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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.

Elaboração de Celestino Rafael

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA


FACULDADE DE DIREITO
TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL
ANO 2021-2022

PARTE I: INTRODUÇÃO

1. Preliminares
• Propósito da Parte Introdutória: compreender o objecto de estudo, o âmbito, as
funções e a importância da TGDC.
• Pré-compreensão: - Divisão do Ordenamento jurídico e do Direito Privado
• Necessidade de revermos alguns conceitos, tais como:
- o conceito de direito;
- seus sentidos
- suas divisões ou especializações

2. Conceito de Direito:
• O Direito como fenómeno humano (muitas vezes oculto) e cultural (ubi homo ibi
ius)
• Dificuldade de se definir o direito.
• Noção normativa: conjunto de normas impostas coactivamente pelo Estado (ou
normas de tutela coactiva) e que visam disciplinar as relações sociais de um
determinado grupo de pessoas, com vista a garantir a harmonia, a paz e o
desenvolvimento.
• Outras noções:
- Guia de acção e de decisão para resolver conflitos (FUNÇÃO REPRESSIVA)
- Meio para organizar o convívio entre os homens, como se este não fosse possível
sem a lei positiva. CRÍTICA: o direito não está todo escrito.
- Meio de que os governantes se servem para dominar os governados
- Conjunto das decisões dos tribunais ou o que um juiz dita como justo;
- Direito como “conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um se pode
harmonizar com o arbítrio de outro, segundo uma lei universal da liberdade”
(Immanuel Kant)

3. Funções do direito. REMISSÃO:


As funções do Direito decorrem justamente do papel que ele representa para prevenir e
acautelar as situações de conflitos, incertezas e rupturas com o normal, com o dever-ser. O
Direito é uma realidade natural, isto é, decorre da natureza do homem.
• Função pacificadora (preventiva e repressiva).
• Ordenação e garantia da liberdade individual: o direito limita as acções dos
indivíduos, para garantir o respeito pelos direitos e interesses dos outros e da
comunidade, mas também garante a liberdade individual (positiva e negativa). A
liberdade positiva diz respeito à dimensão espiritual do homem e entende-se como
o poder que cada homem tem de fazer tudo quanto lhe possibilite a sua realização
como pessoa, dentro dos limites da lei. A segunda entende-se como ausência de
coação.
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A liberdade negativa é a condição de realização da liberdade positiva. Ela garante


uma esfera de actuação tão ampla quanto possível. Por isso, o Direito privilegia a
liberdade negativa, procurando, no máximo, proteger os indivíduos de todas as coações
externas não legítimas, não interferindo nas opções de cada um, e deixar a todas as
pessoas o espaço necessário para que elas possam conformar a sua vida e os seus
interesses. Daí que o Direito que regula as relações dos particulares entre si faça-o,
tendo em conta que as pessoas actuam, nas relações entre si, sob o signo da liberdade e,
por isso, respeitando a sua autonomia e liberdade (princípio da autonomia privada, da
liberdade contratual); quanto ao Direito Público, deve admitir o princípio da
participação, que é uma das bandeiras do Estado Democrático.

• Legitimação e limitação (legalidade) do poder: o poder só é legítimo quando


tomado e exercido de acordo com as leis estabelecidas, o que por sua vez reforça o
consenso à volta das decisões tomadas pelos detentores do poder.
• Função integradora: o direito visa garantir a coesão da sociedade, coordenando
a acção das várias entidades, sejam elas do Direito Público ou do Direito Privado, para a
unidade e o Bem Comum. As regras de direito exteriorizam, objectivam, o conjunto de
valores jurídicos dominantes na comunidade que se impõem como importante factor de
coesão.
• Função educativa e conformadora: A função educativa reflecte, não o que o
homem é e faz, mas sim o que ele deve ser e fazer, ao contrário da função ordenadora
que reflecte, em certa medida, o ser. No que à função conformadora diz respeito,
importa dizer o seguinte: conformar é dar forma a alguma coisa, é moldar. O Direito
é o instrumento valioso de que o Estado se serve para conseguir ter o tipo de
cidadãos que quer para si, inculcando nos seus membros a necessidade de
adoptarem determinados comportamentos, através do hábito, o que se torna possível
através da coercibilidade das suas normas, e realizar o modelo de desenvolvimento
preconizado para a sociedade. O Direito foi, e sempre será uma força civilizadora
incontornável em todas as sociedades na medida em que o progresso e civilização
de qualquer sociedade depende e está ligado à criação de um sistema de normas
jurídicas e de instituições para a sua aplicação.(Mário Reis Marques).

Ao desempenhar estas funções, o Direito contribui de maneira insubstituível para a


justiça, e, por isso, para a paz, a segurança e certeza na vida social.
Aliás, circula, como moeda corrente, de manual em manual de Direito, que o Direito
tem como fins últimos: a justiça, a certeza e a segurança jurídicas.

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Resumindo esta função, diremos que a ordem jurídico-estadual visa a manutenção


da paz e a prevenção de conflitos.

4. Sentidos da palavra direito. REMISSÃO


• Direito objectivo: é o direito entendido como sistema de normas ou preceitos
jurídicos que se destinam a regular a vida social, ou simplesmente, o conjunto de
normas de conduta social. Este sentido, o sentido objectivo, deriva do facto de se
tratar de um ‘corpus iuris’, isto é, um corpo de normas postas diante, ou adiante do
homem (do Latim, objectum).

• Direito subjectivo (do Latim, subjectum= que subjaz ou é inerente ao sujeito): a


palavra direito significa também o poder, a faculdade, ou autorização, que a Ordem
Jurídica reconhece aos membros da comunidade. Corresponde às prerrogativas
individuais que são atribuídas às pessoas, na base das quais está a ideia de que, no
ordenamento jurídico cada indivíduo goza de uma ‘zona’ delimitada de poderes de
que ele pode dispor livremente. Assim, por exemplo, o credor tem o direito de cobrar
a dívida ao devedor; o proprietário de um bem danificado tem o poder de obrigar o
lesante a reparar os danos; o proprietário de um bem tem o poder de o reivindicar
caso de ser espoliado. Qualquer pessoa tem o direito a processar judicialmente
quem utilize o seu nome ilicitamente; o escritor tem o direito a pedir uma
indemnização a quem publique uma obra sua sem a sua autorização ou que, tendo
sido autorizado, a publique com deturpações. Em todas estas situações se usa a
palavra direito em sentido subjectivo

Noção clássica do direito subjectivo: a faculdade ou o poder atribuído pela ordem jurídica
a uma pessoa de exigir ou pretender de outra um determinado comportamento positivo
(fazer) ou negativo (não fazer) ou de, por um acto de sua vontade – com ou sem formalidades
– só de per si ou integrado depois por um acto de autoridade pública (decisão judicial,)
produzir determinados efeitos jurídicos que se impõem inevitavelmente a outra pessoa
(adversário ou contraparte)- MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral da
Relação Jurídica, cit., vol. Nº I - 2.

• Nem todo o poder se traduz num direito subjectivo. Tal é o caso do poder paternal
e do poder tutelar, que devem ser exercidos, não no interesse do titular do poder,
mas sim no de outra pessoa (o menor e o tutelado, respectivamente).
• Relação entre o direito objectivo e o direito subjectivo: apesar de ter constituído
objecto de controvérsia doutrinária, hoje não se reveste de grande importância
prática. Todavia, são consideradas as seguintes relações:
- Ralação de derivação e protecção: a tradição jurídica mais difundida considera
que o direito subjectivo é uma faculdade que é atribuída pelo direito objectivo e é
por este protegido mediante a atribuição de direitos e a imposição de vinculações
correlativas;
- Relação de interdependência/tensão e conexão: o direito objectivo tem a sua
razão de ser no direito subjectivo e vice-versa; os dois se condicionam;
mutuamente. O direito objectivo e o subjectivo se dirigem à mesma realidade, são
dois aspectos da mesma realidade ou a mesma realidade sob dois aspectos
diferentes.

4.1 Tipos de direitos subjectivos:


Conforme o número de pessoas obrigadas ao respeito dos direitos subjectivos, temos:
a) Direitos subjectivos absolutos, também chamados direitos de domínio: são aqueles
que têm efeitos que operam contra todos (erga omnes), são oponíveis a todas as
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pessoas; a eles corresponde uma obrigação passiva universal (direitos de


personalidade e direitos reais, etc.). A sua violação desencadeia a responsabilidade
civil extracontratual e, em certos casos, criminal.
b) Direitos subjectivos relativos, também designados por direitos de crédito: actuam
apenas contra as pessoas que são parte na relação jurídica em causa (operam inter
partes); ao contrário dos primeiros, estes impõem apenas obrigações às pessoas em
causa, porque são relativos. Conferem um direito de crédito. Da sua violação decorre
a responsabilidade civil contratual.

Diferenças marcantes entre os direitos subjectivos absolutos e os direitos


subjectivos relativos.
Estas diferenças podem ser vistas com base nos seguintes critérios:
- Oponibilidade: os direitos absolutos (ex. direitos de personalidade e direitos reais)
não oponíveis erga omnes, enquanto os direitos de crédito são oponíveis apenas inter
partes (entre os sujeitos da relação jurídica creditícia);
- Imprescriptibilidade: os direitos subjectivos absolutos são perenes ou perpétuos,
isto é, são adquiridos para durar. Esta característica, quanto aos direitos reais só se
aplica ao direito de propriedade. Os direitos de crédito são temporários. Extinguem-se
fatalmente, pelas causas que lhe são próprias. Por exemplo, a obrigação extingue-se pelo
pagamento, pela impossibilidade da prestação, pelo perdão ou pela prescrição. A
prescrição é causada pela inércia do credor. O direito real (mormente o de propriedade)
não se extingue pela inércia (o não exercício do direito) do seu titular, excepto se
durante o seu não uso ocorrer alguma situação incompatível ou antagónica com o
direito (ex. usucapião).
- Objecto: o objecto de um direito real é sempre uma coisa determinada, enquanto o
objecto de uma obrigação é uma prestação (um comportamento do devedor).
- Tipicidade: os direitos absolutos são típicos (com excepção dos direitos de
personalidade), isto é, só podem ser constituídos os tipos de direitos existentes e
previstos na lei, sendo que é a lei que determina o seu conteúdo; os direitos relativos ou
de crédito são atípicos; surgem cada vez mais novos modelos de obrigações e direitos
de crédito.
Os acabados de ver são os direitos subjectivos propriamente ditos. Existem outros.
c) Direitos subjectivos potestativos: conferem ao seu titular a faculdade unilateral de
constituir, modificar ou extinguir relações jurídicas … sem que o atingido pelo
exercício deste direito se possa subtrair ao efeito que lhe é imposto, pois encontra-
se num estado de sujeição. Por via de regra, pressupõem a existência precedente de

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relações jurídicas não genéricas, pressupõem a existência de direitos absolutos ou


relativos com base nos quais podem ser invocados.
d) Direitos oponíveis: semelhantes aos direitos potestativos, mas apenas semelhantes.
Têm um alcance menor, são direitos mais fracos do que os potestativos. São aqueles
que “impedem a mera exequibilidade de um outro direito contra o qual são invocados”
(HÖRSTER). É o caso das obrigações cujo cumprimento pode ser recusado por falta
de cumprimento de outra obrigação com a qual mantém uma relação de
interdependência. Ex.: excepção de não cumprimento do contrato exceptio non
adimpleti contractus) (art. 428 C.C.).

5. Divisões ou especializações do direito objectivo:


As normas do direito objectivo são divididas segundo o seu objecto de regulação ou a
natureza ou o tipo de relação jurídica por elas disciplinadas.

5.1 Direito Público e Direito Privado:


Objecto de regulação/qualidade dos sujeitos: o Direito Privado é a parte do Direito
que regula as relações jurídicas dos particulares entre si e destes com os entes públicos,
quando estes intervenham como particulares, isto é, desprovidos do seu poder de
autoridade ou de soberania (ius imperii), isto é, o poder de “emitir comandos, gerais ou
individuais, que se imponham a outrem, mesmo sem ou contra a vontade dos destinatários …).
A relação jus privatística apresenta, deste modo, uma estrutura horizontal, ou seja, os seus
intervenientes estão em pé de igualdade jurídica. O Direito Privado regula as relações entre
os particulares com base em dois princípios fundamentais: o princípio da autonomia
privada e o princípio da responsabilidade.

O Direito Público disciplina as relações estabelecidas entre os entes públicos e entre


estes (investidos do poder de soberania) e os particulares. Ao contrário do que acontece no
Direito Privado, no Direito Público, a disciplina das aludidas relações é feita tendo como
base o princípio da legalidade, cujo sentido pode ser fixado nos termos seguintes: 1º as
entidades públicas e os agentes da administração pública devem pautar toda a sua actuação
na lei; 2º as relações estabelecidas entre os entes públicos e entre estes e os particulares,
bem como a sua modificação e extinção, decorrem apenas da lei, sendo irrelevante a vontade
dos particulares (a relação jurídica do direito público é uma relação de carácter
indisponível), com a ressalva que deve ser feita quanto aos contratos administrativos, cujo
estudo se faz em sede da cadeira de Direito Administrativo.

Outros critérios apresentados na doutrina para distinguir entre o direito público e


o direito privado, mas que não são os mais decisivos, embora sejam relevantes em muitas
situações:
- Critério do interesse: as normas do direito público protegem interesses da colectividade,
enquanto os do direito privado protegem os interesses dos particulares;
- Critério da sobreposição dos sujeitos: as normas do direito público regulam relações entre
sujeitos que se encontram em situação de supra e infra ordenação; as normas do direito
privado, regulam relações entre sujeitos que se encontram em pé de igualdade jurídica.

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Quadro sintético de diferenciação entre Direito Privado e Direito Público


Direito Privado Direito Público
Objecto 1- Relações dos 1 Relações entre os entes
particulares entre si. públicos
2- Relações entre os
particulares e os 2 – Relação entre os
entes públicos particulares e os entes
(desprovidos do ius públicos (investidos do ius
imperii) imperii)
Princípios Autonomia = Legalidade
autodeterminação - A criação, modificação e
- Relevância da vontade na extinção das relações
criação, modificação e jurídicas decorrem da lei
extinção das relações (irrelevância da vontade)
jurídicas (direitos e
obrigações) - Actuação pautada no
- O que não é proibido por lei estrito cumprimento da lei
é permitido (lícito = não (lícito = legal, previsto na
proibido por lei) lei)
Estrutura relacional Horizontal (paridade Vertical, subordinação
jurídica, igualdade)

Enumeração (exemplificativa) dos ramos do direito público e do direito privado

5.1.1. Apreciação crítica da distinção entre direito público e direito privado:


Críticas:
a) Trata-se de uma distinção que não é universal, não é reconhecida por todos os
ordenamentos jurídicos;
b) Há quem defenda que não existe um direito público e um privado; existe apenas o
Direito. Todas as normas, sejam elas do direito público ou privado, emanam da
vontade do Estado (Léon Giguit); a distinção entre direito público e direito privado
destrói a ideia de unidade do sistema jurídico (Mário Reis Marques)
c) Não existe uma linha de demarcação nítida entre o direito público e o direito
privado; há uma compenetração recíproca entre os dois

Relevância da distinção:
a) A distinção tem relevância para determinar a competência dos tribunais para
dirimir os conflitos que são submetidos à sua apreciação.
b) Interesse científico: a distinção está largamente difundida e serve para a
sistematização e arrumação lógica e separação dos grandes grupos de normas
jurídicas.
c) Serve de critério para demarcar as áreas de estudos jurídicos especializados (pós-
graduação, mestrado, doutoramento).

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5.2. Direito substantivo e direito adjectivo

Esta distinção assenta na função da norma jurídica.

Direito substantivo (ou material)


Os adjectivos “substantivo” (de substância) e “material” (de matéria) dizem respeito ao
conteúdo; por conteúdo deve entender-se os direitos e deveres dos sujeitos da relação
jurídica. Neste contexto, o direito material é o conjunto das normas jurídicas que
disciplinam directamente a relação jurídica material ou substantiva, definindo os seus
sujeitos (activos e passivos) e fixando-lhes os respectivos direitos e deveres.
O direito material tem uma função preventiva: ao disciplinar a relação jurídica material,
atribuindo direitos e impondo vinculações, previne os conflitos e concilia os interesses
divergentes.
Enumeração (exemplificativa) dos ramos do direito substantivo: Direito das Obrigações,
Direitos Reais, Direito da Família, Direito Administrativo, Direito Penal, Direito Fiscal,
Direito Constitucional, Direito do Trabalho, etc.

Direito adjectivo:
Os ramos do direito material visam prevenir os conflitos, mas nem sempre os evitam.
Os homens, amiúde, entram em conflito uns com os outros e com a sociedade. Ora, em
virtude do princípio do monopólio estadual da função jurisdicional, é proibido aos
particulares o recurso à justiça própria; só ao Estado compete fazer justiça, mediante os
órgãos competentes, nomeadamente os tribunais e outras instâncias extrajudiciais criadas
para o efeito, e mediante um processo tendente a dirimir os conflitos.
Ao conjunto de normas que estabelecem o processo, a forma, o caminho a seguir na
resolução destes conflitos se chama Direito Adjectivo ou Processual. Por outras palavras, o
Direito Processual é o sistema de normas jurídicas que regulam os actos e as formalidades
tendentes à determinação da regra do direito material a aplicar ao caso que tenha sido
submetido à apreciação do Tribunal. Por dizer respeito à forma (no sentido de processo), o
direito processual é, outrossim, designado direito formal.

Nota: O direito material pode ser público ou privado. O direito processual é todo ele público.
Isto resulta do princípio do monopólio estadual da função jurisdicional.

Enumeração (exemplificativa) dos ramos do direito adjectivo ou material: Direito


Processual Civil, Direito Processual Penal, Direito Processual Administrativo, o Direito
Processual Fiscal, etc.

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Relação entre o direito substantivo e o direito adjectivo:


O direito material e o direito adjectivo mantêm entre si uma relação estreita, que reside
no seguinte:
1º: O direito adjectivo não tem existência autónoma, na medida em que tem no direito
material a sua razão de ser, o seu fundamento e o seu sentido. O direito adjectivo pressupõe
e acompanha o direito substantivo, tanto do ponto de vista cronológico (as normas do
direito adjectivo são criadas depois do surgimento do respectivo direito material) como do
ponto de vista lógico.
2º: O direito processual é um direito instrumental, na medida em que existe para realizar
e está ao serviço do direito material, está ao serviço dos fins do Direito (garantia da paz, da
certeza e da segurança jurídicas), que ficariam gravemente comprometidos se não existisse
o direito adjectivo.
3º O direito substantivo não pode sobreviver sem o direito processual, porque este é o
meio necessário de realização daquele. “O melhor direito material não sobrevive sem o
direito instrumental” (HÖRSTER).
4º: Nem sempre a fronteira entre o direito material e o processual é nítida, uma vez que
as normas do direito material convivem com as do direito processual, e vice-versa.
Encontramos no direito material normas de natureza processual (por exemplo, no Código
Civil, que é direito material, encontramos normas de natureza processual, como as
referentes às provas (art. 349ss C. Civ.), as que estabelecem pressupostos para o exercício
de um direito, as normas relativas à legitimidade para o exercício de um direito (ex. art. art.
125º, 138 e 287º C.Civ.), as que fixam prazos para o exercício de um direito (ex.: 416º e 1410
C.Civ.). No Código da Família, igualmente, existem normas de natureza processual, como,
por exemplo, as que estabelecem prazos, o processo e os formalismos da celebração do
casamento. Por outro lado, podem ser encontradas normas de natureza material no direito
processual.

5.3 Direito imperativo e direito dispositivo:


As normas jurídicas podem, ainda, ser agrupadas em duas classes: normas imperativas,
ou injuntivas, e normas dispositivas ou supletivas.
O direito imperativo (normas imperativas) é o conjunto de normas jurídicas que
obrigam absolutamente os particulares, independentemente da sua vontade, isto é, não
podem ser afastadas ou alteradas por vontade das partes. As normas imperativas, podem
ser preceptivas (as que impõem um determinado comportamento, uma obrigação de
fazer) ou proibitivas (que impõem uma obrigação de não fazer, uma abstenção).

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As normas imperativas têm justificação na existência de um interesse público, na


necessidade da protecção de um terceiro, na protecção da parte mais fraca ou na
necessidade da fundamentação de uma decisão (HORSTER).
O direito dispositivo (normas supletivas) é o conjunto das normas jurídicas que
podem ser afastadas ou alteradas pelas partes. Estas normas só valem em caso de não existir
uma vontade diversa das partes. Se as partes nada determinarem sobre um determinado
aspecto do negócio que celebram, rege o direito dispositivo, isto é, produzem-se, de forma
natural, os efeitos previstos na lei. Se as partes dispuserem de forma diversa, rege a sua
vontade. As normas dispositivas podem ser interpretativas (aquelas que fixam o sentido
de um conceito, limitando-o ou alargando-o) ou supletivas da vontade (visam suprir a falta
de manifestação da vontade das partes).

6. Direito Civil e Direito Privado


Tal como ficou exposto acima, o Direito Privado é entendido hoje como o conjunto de
normas e princípios jurídicos que disciplinam as relações dos particulares entre si e destes
com o Estado e com outros entes de direito público, quando intervenham nas vestes de
particulares (sem estarem munidos do seu poder de autoridade).
A expressão “direito civil” não é de hoje, remonta do Direito Romano (Ius Civile); mas o
seu sentido hodierno é fruto de uma evolução histórica social e económica, pelo que não
teve, ao longo dos tempos, o mesmo significado.
No Direito Romano, o Ius Civile contrapunha-se ao Ius Gentium. Para os romanos, o
Ius Civile designava as instituições próprias dos cidadãos romanos; era um direito de
aplicação exclusiva aos cidadãos (cives) romanos, o direito próprio dos cidadãos romanos
(ius proprium civum romanorum) ou o Direito dos Quirites (ius quiritium) isto é, dos
cidadãos, próprio da cidade. O Ius Gentium, direito das gentes, aplicava-se a todos os povos,
e portanto, também aos estrangeiros.
Na Idade Média, o Direito Civil chegou a designar o direito estadual (público e
privado), enquanto direito próprio de cada povo. É este é o entendimento que o cidadão
comum tem do direito civil. Num dado momento as expressões direito privado direito
civil e designavam a mesma coisa. Esta equivalência perdurou até à autonomização do
Direito Comercial. Em Portugal, tal autonomização se deu em 1833, com o surgimento do
Código de Ferreira Borges1. A partir de então, o direito civil passou a ser designado Direito

1
Ao Código de Ferreira Borges (1833), sucedeu o Código de Veiga Beirão (1888), assim conhecido por ter
sido promovido pelo então Ministro da Justiça de Portugal, Veiga Beirão. Este Código é de feição
objectivista, ao passo que o Código de 1833 é subjectivista. Esta caracterização tem que ver com a
concepção que se tinha ou se tem do objecto de regulação. Para os subjectivistas, a Lei comercial regula os
actos e as actividades dos comerciantes, ligadas ao seu comércio; para a concepção objectivista, a Lei
Comercial rege os actos de comércio independentemente da qualidade das pessoas que neles intervêm, isto
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Privado comum ou geral, por oposição ao Direito Privado especial ou aos direitos privados
especiais.
Ramos do Direito Privado Especial: Direito Comercial, Direito do Trabalho, Direito da
Família, Direitos de Autor, o Direito da Propriedade industrial, o Direito Agrário, o Direito
das Sociedades Comerciais, o Direito dos Seguros, o Direito Bancário, etc.
Ramos do Direito: Direito das Obrigações, o Direito das Coisas, Direito das Sucessões e
a legislação Civil conexa.
O Direito Civil é chamado direito privado geral ou comum pelas seguintes razões:
a) ele representa o núcleo de todo o Privado; constitui o depósito dos grandes
princípios gerais e dos conceitos mais importantes aplicáveis a todos os ramos do
Direito Privado e à generalidade das ralações jurídicas privadas, e não só);
b) porque se aplica aos indivíduo nas suas relações mais fundamentais, comuns, na sua
condição normal, diz respeito a todos seres humanos enquanto pessoas, acompanha-os
mais intensamente em toda a sua via, desde o nascimento até à morte; além do mais, atribui
direitos e impõe deveres sem ter em conta a sua categoria social, profissional, os títulos
culturais, nobiliárquicos, ou outros; é o direito de que todos participam;
c) é do direito subsidiário dos outros ramos do direito privado: sempre que os direitos
privados especiais não possam resolver determinados problemas ou questões, recorre-se
às técnicas, princípios e conceitos do Direito Civil (verbi gratia, os conceitos de
personalidade jurídica, capacidade jurídica, nulidade, anulabilidade, inexistência, vícios dos
negócios jurídicos, os conceitos dos contratos, etc.).

7. As fontes do Direito Civil


7.1 As fontes históricas
7.1.1. As origens romanas
Importância do Direito Romano: resulta do facto de o nosso Direito Civil ser tributário do
Direito Romano, contido no Corpus Iuris Civilis, sobretudo do Digesto ou Pandectae
(colecção de extractos de textos de jurisconsultos romanos sobre o direito). O nosso Cód.
Civil herdou do Digesto a estrutura (uma parte geral e diversas partes especiais) e o
pensamento jurídico. Este último chegou-nos através de estudos científicos de estudiosos
da Pandectística Germânica, isto é, o conjunto dos cultores da ciência jurídica alemã do séc.
18 e 19 que se dedicaram ao estudo do Direito Romano. São de destacar várias escolas: a
Escola Francesa (sec. 16-17), a Escola Prática Alemã (séc. 16 - 18), a Escola do Direito
Natural (séc. 17 - 18) e a Escola Histórica do Direito (séc. 19). Esta última tem como seu
expoente máximo o jurista Carl Von Savigny. Desempenhou também um papel fundamental
a Universidade de Bologna, Itália (entre 1150 e 1563) na divulgação do pensamento jurídico
romano, através dos glosadores e post glosadores (comentadores), que adaptaram o Direito
Romano ao direito italiano e ao Direito Canónico.

7.1.2 As Ordenações: TRABALHO DE CASA


- As Ordenações e a sua importância para a história do Direito Civil.

- A Lei da Boa Razão (LBR) e a sua importância para a história do Direito Civil.

- O Código Civil de 1867 (Código de Seabra) e o Código Civil Francês, de 1804: influências,
semelhanças e diferenças.

é, para que um acto seja tido por comercial não é necessário que o seu agente seja comerciante. Basta que
a lei o qualifique como acto de comércio. O Código Comercial vigente em Angola é o Código de 1888,
apesar de ter sofrido alterações pontuais através da Lei 06/03.

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- Fontes Instrumentais do Direito Civil: a Lei (Constituição, Código Civil e legislação civil
conexa, costume, usos, doutrina, jurisprudência, assentos).

7.3 Os ramos do Direito Civil e a sistematização germânica

O Código Civil de 19662 adoptou o modelo do Código Civil Alemão, conhecido pela sigla
BGB, acrónimo de Burgerlisches Gesetzbuch (literalmente, livro das leis que dizem respeito
aos cidadãos), em vigor desde 1 de Janeiro de 1900. Por sua vez, o BGB, fruto do labor
científico da Pandectística Germânica3, segue, em linhas gerais, e de acordo com o Plano de

2
Conhecido como “Código de Varela”, pelo facto de a fase final da sua elaboração, principalmente a
revisão, ter sido dirigida pelo jurista João de Matos Antunes Varela que era, nessa altura, por sinal, o
Ministro da Justiça de Portugal de 1954 a 1967.

3
Designa os cultores da ciência jurídica alemã do século 18 e 19 que divulgaram e modernizaram o Direito
Romano, mormente as Pandectas ou o Digesto. Para entender o significado da expressão, é mister recorrer
à história do Direito Romano. O Direito Romano escrito teve um período de evolução longo, que percorreu
quatro etapas: até 510 a.C (o Reino); de 510 a 31 a.C (a República), de 31 a.C. até 300 d.C. (o Período
Imperial ou Alto Império, ou ainda o período Clássico do Direito Romano), criação que dura um milénio,
desde a época da república (510 – 31 a.C.), passando pelo período imperial (31 a.C – 300 d.C) e de 300 a
536 d.C. Na primeira etapa, o Direito Romano era consuetudinário. Durante o período imperial, também
conhecido como o período clássico, encontramos eminentes jurisconsultos, tais como Gaius e Ulpianus. A
estes se devem as Institutiones, um compêndio e um manual de direito destinado ao ensino do Direito. As
Institutiones vieram a ser integradas no Corpus Iuris Civilis. Este era composto por partes: Institutiones,
Digesta ou Pandectae, o Codex e as Novellae. O Digesto (ou Digesta) ou Pandectas é uma compilação ou
conjunto de fragmentos e extractos de textos de direito de jurisconsultos sobre várias matérias (Direito
Privado, direito processual, direito administrativo e direito penal). A palavra “digesto” vem do latim
digerere =digerir, dissolver, pôr em ordem, organizar ou classificar. A palavra “pandectas” é o nome grego
correspondente à compilação. O conteúdo do Digesto é, portanto, o direito contido nas obras dos
jurisconsultos romanos. A comissão encarregue da compilação era presidida por Triboniano, ministro da
justiça do imperador Adriano. Triboniano era professor de direito da escola de Constantinopla e
jurisconsulto de grande mérito que, em 530 d. C., através de Constituição “Deo auctore de conceptione
Digestorum”, recebeu do Imperador Adriano, poderes e a tarefa de constituir uma comissão de 16
membros; comissão compulsou cerca de dois mil livros, compilou extractos de 39 jurisconsultos, sendo o
Digesto composto de 50 Livros, subdivididos em cerca de 1.500 títulos. O Digesto foi promulgado em 533
d. C. (Consultar a Enciclopédia virtual Wikipédia). O Codex era uma colectânea das Constitutiones de
todos os imperadores (do Imperador Adriano ao Imperador Justiniano). As Novellae continham apenas as
Constitutiones do Imperador Justiniano). Cada uma destas partes tinha um modo próprio de organização.
As Pandectas dividiam-se em 5 secções. A primeira secção continha os princípios gerais sobre o direito e
a jurisdição; a segunda secção dizia respeito à protecção jurídica da propriedade e dos outros direitos reais;
a terceira secção versava sobre as Obrigações e o Contratos; a 4ª Secção era relativa à Obrigações e a
Família; a 5ª Secção era sobre a herança, o legado, os fideicomissos. O Digesto tinha ainda outras duas
secções referentes a institutos diversos. O Corpus Iuris Civilis é o instrumento que está na base do Direito
Europeu Continental. Serviu como modelo de organização. O Direito Romano contido no Corpus Iuris
Civilis veio a ser recebido como direito vigente a partir do século 12 em vários países europeus e serviu de
objecto de estudo da ciência jurídica. Foi estudado e difundido na Idade Média sobre tudo através da
Universidade Bolonha (Itália) e mais tarde através do Direito Canónico. Destacaram-se no seu estudo várias
escolas: a Escola Francesa, que estudou o direito romano como ciência mundial, a Escola Prática alemã
(séc. 16-18), cujo objectivo era adaptar o Direito Romano às necessidades práticas alemãs e combiná-lo
com o direito germânico, a Escola do Direito Natural, (Séc. 17 e 18), que sublinha a necessidade da
conformidade do Direito Positivo ao Direito Natural, e a Escola Histórica do Direito (séc. 19) que procurava
o conhecimento do Direito Romano puro do Corpus Iuris Civilis. Esta escola afastou o chamado “usus
modernus pandectarum” (uso moderno das pandectas, tradução literal) que era o direito comum vigente na
Alemanha. O seu grande representante é o Jurista alemão Friedrich Carl von Savigny (1779-1861), cuja
11
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

Friedrich Carl Von SAVIGNY, jurista alemão, o sistema das Pandectas. O Código Civil recebe,
assim, uma influência do BGB. Esta influência pode ser vista, fundamentalmente, em dois
aspectos: um interno e outro externo.
Do ponto de vista interno, o Código Civil recebeu do BGB as seguintes notas
características:
a) a sua técnica legislativa usa normas gerais e abstractas;
b) uso de uma linguagem técnico-jurídica abstracta;
c) uma sistematização lógica e clara com uma conceitualização precisa;
d) uso de conceitos jurídicos indeterminados e de cláusulas gerais;
e) influência da moral na lei, ilustrado pela imposição de princípios como o da boa-fé e
do respeito pelos bons costumes; influenciado personalismo ético da filosofia kantiana.
Do ponto de vista externo, o Código Civil seguiu a mesma arrumação que o BGB, embora
não haja uma coincidência absoluta nos conteúdos. Assim, tal como o BGB, esta arrumação
traduz-se na repartição do Código Civil em cinco4 livros, dos quais o primeiro é a uma
parte geral, seguida de partes especiais. Esta forma de arrumação das matérias é própria da
Pandectística Germânica.

Quadro comparativo da estruturação do Digesto, do BGB e do Código Civil de 19665

Digesto BGB Código Civil de 1966


Secção 1ª Princípios Livro I Parte geral Livro Parte Geral
gerais sobre o I
Direito e a
jurisdição
Secção 2ª Da protecção Livro II Direito das Livro Direito das
jurídica da Obrigações II Obrigações
propriedade e
outros direitos
reais

obra principal se intitula Sistema do Direito Romano Hodierno (System des Heutigen Romischen Rechts).
Savigny foi um grande estudioso e professor do Direito Romano. Foi esta escola que teve grande influência
no BGB, porque o seu esquema de exposição das matérias obedece ao Plano de Savigny, que por sua vez,
adoptou o sistema das Pandectae, cuja característica principal é fazer preceder as partes especiais de uma
parte geral, à semelhança do Digesto. O Código Civil de França, por exemplo, adoptou o sistema
desenvolvido por Gaius, composto por Livros (1º Livro – pessoas; 2º- coisas, propriedade, outros direitos
reais e testamentos; 3º- Sucessão intestata, obrigações em geral, obrigações contratuais; 4º- Obrigações
delituais, acções (actiones) do processo civil e direito criminal.

4
O Código Civil contém quatro livros, em virtude de o Código da Família (antigamente Livro III) ter sido
retirado pela Lei 1/88, de 20 de Fevereiro.

5
Segundo HÖRSTER, Heinrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil, ci. , pág. 119.

12
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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Secção 3ª Das obrigações Livro III Direito dos Bens Livro Direito das Coisas
e dos contratos III
Secção 4ª Obrigações e Livro IV Direito da Família Livro Direito da Família
família IV
Secção 5ª Herança, Livro V Direito das Livro Direito das
legados e Sucessões V Sucessões
fideicomissos
Mais Sobre diversos
duas institutos
secções heterogéneos

Conteúdo genérico dos livros do Código Civil


Livro I - Parte Geral:(art. 1º - art. 396º): contém as regras e os princípios de
aplicação comum a todos os ramos do Direito Civil.
- Livro II - Direito das Obrigações (art. 397º - 1250º): é o conjunto de normas e
princípios que regulam as relações de crédito, o vínculo jurídico estabelecido entre um
devedor e um credor, relações que têm por objecto a realização de uma prestação. Tais
relações resultam daquilo que se chama as fontes da obrigações (os negócios jurídicos em
geral, mormente os contratos, a responsabilidade civil - seja por factos lícitos seja por factos
ilícitos e da responsabilidade civil pelo risco – o enriquecimento sem causa, a gestão de
negócios).
A palavra “obrigação” possui vários sentidos, dos quais importa destacar dois. Em
sentido lato, a obrigação significa “qualquer dever jurídico deduzido do direito objectivo” 6.
Em sentido restrito ou técnico, a obrigação significa a “relação jurídica autónoma em virtude
da qual uma pessoa (o devedor) fica adstrita para com outra (o credor) a uma certa
prestação, positiva ou negativa. Este sentido técnico é o que está vertido no art. 397º do
Código Civil. A obrigação é, pois, um vínculo, um nexo que liga duas pessoas.
- Livro III - O Direito das Coisas (art. 1251º - art. 1575º): é o conjunto de regras e
princípios que “regulam o domínio dos bens em si mesmos, a directa e imediata relação com
as coisas” (MÁRIO REIS MARQUES)7. Os direitos reais resultam do vínculo jurídico

6
Numa perspectiva puramente filosófica, a relação entre obrigação e dever jurídico é muito estreita.
Immanel Kant vê na obrigação “a necessidade de uma acção livre sob um imperativo categórico da razão.
O imperativo categórico é uma prerrogativa prática mediante a qual se torna necessária uma acção em si
contingente…. O dever é á acção a que alguém está obrigado. É, pois a matéria da obrigação, e pode ser
o mesmo dever (segundo a acção), embora possamos a ele estar obrigados de modos diversos”. Disto
podemos inferir que a obrigação é algo mais amplo do que o dever; este é gerado por aquele já que este é
apenas o modo de realização da obrigação.

7
Este poder imediato sobre as coisas não pode ser concebido em termos literais; por isso, a noção do direito
real não é rigorosa, na medida em que, literalmente, não existe uma ligação imediata entre a pessoa e a
coisa. O direito não se liga imediatamente às coisas, mas sim às pessoas; de contrário, o direito real
significaria a obrigação de uma pessoa relativamente às coisas e vice-versa, o que é um absurdo. Como diz
I. KANT, “é…absurdo imaginar a obrigação de uma pessoa relativamente a coisas, e vice-versa; de
qualquer forma, é lícito, mediante tal imagem, tornar sensível a relação jurídica e assim se expressar”
(Metafísica dos Costumes, op. cit. Pág. 70). O direito real é o direito ao uso privado de uma coisa e que me
dá a faculdade de excluir qualquer outra pessoa, qualquer outro possuidor do uso privado da coisa. O direito
13
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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directo adquirido sobre os bens e que confere ao seu titular uma supremacia sobre
todas as outras pessoas (erga omnes), no sentido de que gera um dever geral de
abstenção ou obrigação passiva universal sobre todas as pessoas. Por isso, soe dizer-
se, igualmente, que os direitos reais são absolutos. Quanto aos tipos de direitos reais, ver
adiante o capítulo relativo ao princípio da propriedade privada.
- Livro V - Direito das Sucessões ( art. 2024º - 2334º): trata-se do conjunto de
normas e princípios jurídicos que regulam a transmissão mortis causa (causada pela morte
de uma pessoa) da totalidade ou de parte do património (herança) que a ela pertencia aos
sucessores, designados por lei ou pelo de cujus8. Nos termos do artigo 2024º do Cód. Civil, a
sucessão é “o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas
patrimoniais de uma pessoa falecida e a devolução dos bens a ela pertencentes”. Diz-se “das
relações jurídicas patrimoniais”, porque, rigorosamente falando, o objecto da sucessão são
os direitos e as obrigações que incidem sobre os bens deixados por uma pessoa falecida. Por
isso, não se herdam apenas os bens (direitos), mas também as responsabilidades assumidas
sobre tais bens. Assim, o Direito Sucessório define as responsabilidades dos herdeiros.

8. Objecto do Direito Civil


O direito civil regula as relações jurídicas privadas comuns de todas as pessoas (relações
obrigacionais ou de crédito, relações jurídicas reais, relações sucessórias e, em sentido
material, as relações familiares). Serve para orientar os particulares nas relações entre si e
entre estes e os entes públicos, quando actuam sem o ius imperii.

9. Objecto e pertinência da Teoria Geral do Direito Civil


Tudo quanto se disse acima tinha como fim levar-nos à determinação do objecto e do
âmbito da TGDC.
Antes de entrar directamente para o tema em questão, convém afastar, desde já, alguns
equívocos sobre o conteúdo inerente à designação da nossa disciplina.
Em primeiro lugar, é mister sublinhar que, embora a nossa disciplina, a Teoria Geral do
Direito Civil, não é um ramo do Direito, porque, contrariamente ao que acontece com a
maioria das disciplinas jurídicas, a TGDC não é um conjunto de normas e princípios jurídicos
que tenham por objecto a disciplina de determinado tipo de relações jurídicas.

real não é mais do que o direito de uma pessoa perante outras, que se devem abster de qualquer acção que
ponha em causa o exercício do direito pelo seu titular.

8
Abreviação latina da alocução is de cuius hereditate agitur, que significa aquele de cuja herança se trata.

14
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

Advirta-se, outrossim, que não se trata de uma Teoria Geral do Direito. Esta é uma
designação própria de uma disciplina que estuda o Direito na perspectiva filosófica, que não
é a da TGDC.
É corrente dizer-se que a IED constitui a precedência da TGDC. A IED é uma introdução
ao Direito como um todo; a TGDC tem a missão e o condão de introduzir o estudante num
dos grandes ramos ou divisões do Direito, isto é, o Direito Privado, e, dentro deste, no Direito
Civil. Todavia, ao fazê-lo, a TGDC não estuda nenhum dos ramos do Direito Civil em
particular; dedica-se, apenas, ao estudo da Parte Geral do Código Civil. É nesta parte
que estão concentrados os princípios, as regras, noções e conceitos comuns a todos os ramos
do Direito Privado, e não só.
Deste modo, A TGDC não cuida de resolver problemas específicos do Direito Civil, mas
apenas “caracterizar figuras, equacionar problemas, formular soluções respeitantes a todo
domínio do Direito Civil… à generalidade das normas do Direito Civil ou à generalidade das
relações jurídico privadas9. A TGDC não visa estudar a relação jurídica obrigacional, real,
sucessória, em concreto, mas analisa, regula a relação jurídica em si, seja ela de natureza
obrigacional, real ou sucessória, ou ainda de algum ramo do Direito Privado especial ou
mesmo do Direito Público. Estuda as condições necessárias para que esta relação jurídica se
possa considerar constituída, válida e com os efeitos pretendidos. Estuda os elementos
constantes em todas situações jurídicas. É claro que nestes domínios, as relações jurídicas
ganharão contornos e variantes próprias, que constituirão desvios dos princípios contidos
no Direito Civil.
O Direito Civil é o núcleo de todo o Direito; os princípios do Direito Civil são disponíveis
para todos ramos do Direito, que se aplicam enquanto não forem afastados. E porque estes
princípios, conceitos e regras estão contidos na Parte Geral do Código Civil, então a Teoria
Geral do Direito Civil tem por objecto a Parte Geral do Código Civil.
O estudo da Teoria Geral do Direito Civil e a consagração de uma Parte Geral no Código
Civil não são isentas de críticas, na doutrina. Houve, na história da evolução do Direito e da
doutrina, quem questionasse a necessidade da existência tanto de uma disciplina com o
nome de Teoria Geral do Direito Civil, assim como de uma parte peral no próprio Código
Civil, alegando: a) que a Parte Geral é muito abstracta; b) que o estudo do Direito não pode
começar com teorizações, o que levaria os estudantes de Direito a formar uma visão
conceptualista doeste; e que c) os tais princípios da parte geral sofrem desvios importantes
nas partes especiais. Houve mesmo quem sugerisse distribuir tais regras pelas partes
especiais.

9
Carlos Alberto da C.A. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Ed., pág. 17.

15
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

Embora tais críticas sejam pertinentes, elas não são de sobrevalorizar, porquanto: a) as
abstracções são próprias da ciência e são necessárias para dotar o estudante do poder de
profundidade de análise, do rigor técnico, facilitar a tarefa da compreensão e da
interpretação da lei – este é, aliás, o mérito e o objectivo da Teoria Geral do Direito Civil; b)
a existência de desvios não significa que não exista um fundo comum bastante apreciável,
constituído por um conjunto de denominadores comuns a todas as partes especiais. Aliás,
os desvios só confirmam os princípios, como diz o ditado popular, “a excepção confirma a
regra”; c) embora se trate de uma teoria geral, o estudo dos conceitos, dos princípios e das
regras gerais não se pode fazer senão ilustrando-os com as regras e os exemplos práticos
tirados das partes especiais.

PARTE II
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CIVIL

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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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1. Considerações gerais
Para que um ramo de direito seja considerado como tal, é necessário que tenha
princípios próprios, além de uma legislação própria.
O Direito Civil, enquanto ramo de direito, não foge a esta regra. Aliás, o Direito Civil
é um conjunto de ramos de direito. Por isso, ele tem princípios próprios.

O que se entende por princípios fundamentais?


A palavra “princípio” pode ter vários significados. Ela pode significar “origem”,
“começo”, “o que vem antes”, “razão de ser” ou “fundamento”. O adjectivo “fundamental”
significa aquilo que é essencial, principal, aquilo de que não se pode prescindir, isto é, que
não pode ser posto de lado.
Os princípios jurídicos são padrões de conduta, ou critérios de acção, ou valores que
orientam e limitam o comportamento e a actuação das pessoas e das organizações nas suas
relações umas com outras, ou na actividade profissional, tendo em vista a realização de
determinados objectivos e interesses do Estado.
Os princípios fundamentais do Direito Civil são aqueles que constituem o
fundamento, a razão de ser, a explicação, a base das regras deste ramo de Direito. Num outro
sentido, esses princípios podem ser entendidos como aqueles que são os mais importantes;
podem existir outros, mas os princípios fundamentais são aqueles que não podem ser
dispensados, a fim de garantir os objectivos do Direito Civil.

Importância dos princípios:


Os princípios fundamentais do Direito Civil constituem o sistema interno das suas
normas, isto é, aquilo que está na base das normas jurídicas do Direito Civil. Determinam e
modelam o seu conteúdo e dão-lhes sentido.

Quais são os princípios fundamentais do Direito Civil?


São vários. Os autores não são unânimes, nem quanto à enumeração, nem quanto à
formulação. Refiramos apenas os mais conhecidos e mais importantes: o reconhecimento
da pessoa e dos direitos de personalidade, a igualdade ou paridade jurídica, a autonomia
privada, a responsabilidade civil, a boa fé, a concessão da personalidade jurídica às pessoas
colectivas, a propriedade privada, a relevância jurídica da família e o fenómeno sucessório.

2. Princípio do reconhecimento da pessoa e dos direitos de personalidade. A


pessoa e o direito de personalidade. Os direitos de personalidade.

Objectivos específicos: no final da aula, o estudante deverá ser capaz de:


• Formular o princípio da personalidade jurídica
• Definir personalidade jurídica art. 66 e 67 C.C. (sentido histórico teatral do
Direito Romano, persona)
• Enumerar os requisitos de aquisição da personalidade jurídica
• Explicar os sentidos técnico e ético de pessoa (PERSONALISMO ÉTICO)
• Distinguir entre a personalidade jurídica singular e a personalidade jurídica
colectiva (monismo tradicional e formalismo positivista)
• Distinguir entre o conceito de pessoa e o de personalidade jurídica
• Diferencias entre personalidade e capacidade jurídica (art. 67)
• Apontar a razão da consagração do princípio da personalidade jurídica

17
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

• Interpretar correctamente os números 1 e 2 do art. 66 do C.C.: direitos que


a lei reconhece aos nascituros)
• Reflectir sobre a personalidade jurídica, o conceito de pessoal e a
problemática do aborto
• Definir o direito da personalidade (sentido objectivo e sentido subjectivo)
• Definir e enumerar os direitos de personalidade
• Apontar com clareza a características dos direitos de personalidade
• Distinguir entre direitos de personalidade e direitos fundamentais
• Apontar os requisitos de validade da limitação dos direitos de personalidade
• Explicar o regime jurídico dos direitos de personalidade (art. 70-81)

Este princípio, também conhecido como princípio da personalidade, consiste no


reconhecimento da personalidade jurídica a todos os seres humanos, no momento do seu
nascimento completo e com vida (art. 66, nº 1).
A personalidade jurídica é definida, antes de tudo, como a qualidade de ser pessoa,
isto é, sujeito de direito (centro autónomo de direitos e obrigações); mas ela é entendida
também como a susceptibilidade, isto é, como a mera possibilidade abstracta, de ser titular
autónomo de quais quer relações jurídicas (de direitos e obrigações).
Com base no artigo 2º do Decreto-Lei nº 44.128, de 196110, a doutrina aponta como
requisitos da aquisição da personalidade jurídica os seguintes:
a) Facto do nascimento: o nascimento é a separação, por expulsão ou por
extracção, do feto do corpo da mãe. Para este efeito, não tem relevância o período
que dure a gravidez:
b) Nascimento completo: o nascimento completo dá-se quando o bebé se separa
inteiramente do corpo da mãe. A separação completa (inteira) não implica o corte
do cordão umbilical; é suficiente que o feto tenha saído completamente do ventre
materno, mesmo se a placenta ainda não foi retida, isto é, se o bebé ainda estiver
ligado ao corpo da mãe pelo cordão umbilical.
c) Nascimento com vida: com este requisito, exige-se que a criança tenha
sobrevivido à separação do corpo materno. Se ela morrer antes da separação
completa, não adquire personalidade. A criança nasce com vida quando, depois da
separação, ela respire ou manifeste outros sinais de vida (pulsações do coração ou
do cordão umbilical, ou contracção efectiva de qualquer músculo sujeito à acção da
vontade, mesmo antes do corte do cordão umbilical.
Destes requisitos, podemos retirar as seguintes notas importantes:

10
Este artigo reza o seguinte: “Considera-se nascimento de criança viva a expulsão ou extracção completa,
relativamente ao corpo materno e independentemente da duração da gravidez, do produto da fecundação
que, após esta separação, respire ou manifeste quaisquer sinais de vida, tais como pulsações do coração
ou do cordão umbilical ou contracção efectiva de qualquer músculo sujeito à acção da vontade, quer o
cordão umbilical tenha sido cortado, quer não, e quer a placenta esteja ou não retida”

18
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

1º: no nosso ordenamento jurídico angolano, não se exige que o nado vivo tenha
hipótese de sobrevivência ou viabilidade; adquire-se a personalidade jurídica mesmo
contra a previsibilidade da sua morte dentro de poucos instantes11: “basta que a criança
tenha vivido um curtíssimo espaço de tempo” (HÖRSTER);
2º: Não se exige o nascimento com figura humana, pelo que facto de a criança ter
nascido com deformações não afecta a aquisição da personalidade jurídica. O legislador
traçou aqui um ponto de viragem em relação ao Código de Seabra (de 1867), que exigia, no
seu artigo 110º, nascimento com figura humana.
3º) A aquisição da personalidade jurídica, assim como a sua perda, para os seres
humanos, é um dado extra legal e extra jurídico: a personalidade jurídica é reconhecida
e não atribuída. Ao ordenamento jurídico não compete ajuizar da personalidade jurídica das
pessoas físicas; elas são pessoas por Direito Natural. A personalidade jurídica “é uma
qualidade que o Direito se limita a constatar e respeitar e que não pode ser ignorada ou
recusada”12. Neste contexto, o princípio da personalidade jurídica visou afastar ou excluir
as seguintes situações: a) a possibilidade da negação/recusa da qualidade de pessoa a
determinados seres humanos13; b) possibilidade de se fazer depender a aquisição da
personalidade jurídica do mero livre arbítrio do legislador ou dos detentores do poder
político, ou ainda de qualquer outro facto; c) possibilidade da perda da personalidade
jurídica por outros factos que não a morte: tal como a personalidade jurídica se adquire por
um simples facto natural, também só se pode perder por um facto natural (art. 68º C.C.).
Nota bene: há que notar, entretanto, que não há coincidência entre este sentido
técnico-jurídico (formal) e o sentido ético de pessoa 14.

11
França e Holanda (. 3º): é necessário que recém-nascido seja viável, isto é, apto para a vida; se nascer
com vida, a sua capacidade remontará à sua concepção.

Espanha, (Código Civil, art. 30): a) exige que o recém-nascido tenha forma humana e b) que tenha vivido
24 horas para que possa adquirir personalidade.

Argentina (art. 7º) e Hungria (art. 7º): a concepção já dá origem à personalidade.

O Código Civil Suíço (art. 31) e o italiano (art. 1º), brasileiro, português, angolano: a personalidade jurídica
inicia-se do nascimento com vida.

12
PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do direito Civil, cit. Pág. 35

13
Lembre-se de que a palavra pessoa tem uma origem teatral: a personna ersignava a máscara que os
romanos punham nas representações teatrais. Daí terá evoluído para o sentido de actor da vida jurídica.

14
A questão do momento em que se deve reconhecer a pessoa não se esgota no Direito, é uma questão
ética e filosófica. Sobre esta problemática, ver também Celestino Rafael (O humanismo personalista e o
personalismo cristão perante o aborto, Luanda, Janeiro de 2015).

19
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

Por um lado, o conceito jurídico de pessoa tem um alcance que vai para além das
pessoas humanas, abrange também as pessoas colectivas (também conhecidas como
pessoas morais ou jurídicas, por oposição às pessoas naturais, físicas ou singulares). As
pessoas colectivas são organizações de pessoas e complexos de bens, visando a prossecução
de uma certa finalidade económica (lucrativa ou não) ou meramente social (egoísticas e
filantrópicas), às quais o Direito reconhece a qualidade de sujeito de direito 15.
Historicamente, este conceito nem sempre abrangeu todos os seres humanos (por exemplo,
os escravos, no Direito Romano, não eram considerados pessoas.
O sentido ético de pessoa tem um alcance maior do que o do sentido técnico, abrange
todos os seres humanos, desde a concepção até à morte.

Os direitos de personalidade:
A primeira consequência da personalidade é a titularidade de direitos de
personalidade (PAIS DE VASCONCELOS). Estabelecido o princípio do reconhecimento da
pessoa, impunha-se dotá-la dos meios convenientes e necessários à sua protecção. O
reconhecimento dos direitos de personalidade é, deste modo, um mecanismo técnico-
jurídico de tutela da personalidade, que se concretiza na imposição de deveres universais
de abstenção (ou obrigação passiva universal) e de sanções, geralmente de carácter civil,
mas algumas vezes do fórum criminal..
Enumeração (exemplificativa) dos direitos de personalidade: o direito ao nome
(art. 72-74 C.C.), o direito ao sigilo de correspondência (art. 75-78 C.C.; art. 34º CRA), o
direito à imagem (art. 78º C.C.), o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada), o
direito à vida (art. 495º C.C., art.30 CRA e art. 349 C. Penal, o direito à integridade moral,
intelectual e física (art.31º nº 1 CRA), o direito à identidade pessoal (art.32º nº 1 CRA), o
direito à honra, ao bom nome e à reputação (art. 79º nº 3 C.C.; 32º CRA), o direito à liberdade
e à segurança, (art. 36º nº 1 CRA) o direito a um ambiente sadio (art. 39 CRA). Nos termos
do nº 3 do art. 36 da Constituição da República de Angola, o direito à liberdade física e à
segurança individual abrange o direito a não ser sujeito a quaisquer formas de violência, o
direito a não ser torturado nem tratado ou punido de maneira cruel, desumana ou
degradante, o direito de usufruir plenamente da sua integridade física e psíquica, o direito de
não ser submetido a experiências médicas ou científicas sem o consentimento prévio,
informado e devidamente fundamentado.

15
C.A. MOTA PINTO, op. cit. pág. 98.

20
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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Fala-se, assim, do Direito da Personalidade, que comporta um sentido objectivo e


outro subjectivo16.
Por direito objectivo da personalidade entende-se todo o conjunto de normas e
princípios jurídicos relativos à defesa da personalidade, consagradas seja no Direito
Internacional, quer no Direito interno, nomeadamente no Direito Constitucional, no Direito
Civil e nas demais leis ordinárias. O Direito Objectivo da personalidade funda-se em razões
de ordem pública e corresponde aos princípios e normas jurídicas injuntivas sobre a tutela
da personalidade que são indisponíveis, tais como a inviolabilidade da vida humana, o
princípio da dignidade humana, o direito à identidade. Na consideração de PAIS DE
VASCONCELOS, são normas que se impõem ao legislador, na medida em que não está no
poder do Estado legislar ou não nestas matérias, consagrar ou recusar o direito à vida e à
dignidade pessoal… o direito objectivo de personalidade impõe a todos um dever de
respeitar a dignidade de cada indivíduo, incluindo a sua própria pessoa. Tem como
conteúdo um dever, uma vinculação, cujo garante é o Estado, no exercício do seu poder -
dever de fazer respeitar a Lei e o Direito.
O Direito subjectivo da personalidade, integra os poderes que o seu titular pode
exercer directa e livremente, assim querendo, contra os particulares ou mesmo contra o
Estado, sem ficar à mercê da disponibilidade dos órgãos do Estado e da iniciativa destes, se
necessário for (PAIS DE VASCONCELOS). Há que notar, entretanto, no direito subjectivo da
personalidade, uma excepção à regra do exercício livre e da disponibilidade próprias dos
direitos subjectivos; é que existe no direito subjectivo da personalidade, ao lado de uma
zona livre em que a tutela de determinados direitos de personalidade é entregue à tutela do
seu titular, podendo dispor em certa medida do seu direito (ex. direito à honra, à
privacidade, à liberdade, à integridade física, em certos casos) uma zona em que
determinados direitos de personalidade não são disponíveis, no sentido de que o direito não
pode ser prescindido pelo seu titular (ex. o direito à vida, à dignidade humana).

2.2.Caracerísticas dos direitos de personalidade

São absolutos: esta característica significa que os seus titulares podem opô-los a
todas as outras pessoas e produzem efeitos contra todos (erga omnes), o que, todavia, não
corresponde a afirmar o seu exercício esteja isento de controlo ou que os direitos de
personalidade não sejam susceptíveis de limitações. Tais limitações são de duas ordens, a
saber, limitações intrínsecas (resultantes do conteúdo que a lei lhes confere, isto é,
comportam sempre poderes e deveres) e limitações extrínsecas (que resultam da

16
Vide PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, cit. pág. 38.

21
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

necessidade da sua conjugação com outras situações protegidas); o exercício do direito de


personalidade nunca pode justificar o atropelamento dos direitos de personalidade das
outras pessoas; o seu uso abusivo constitui um ilícito, o abuso do direito (art. 334º C.C.).
c) São imprescritíveis: não se extinguem em consequência da sua omissão ou
do seu exercício pelo seu titular;
d) São não patrimoniais/pessoais: não são susceptíveis de avaliação em dinheiro,
embora a sua violação possa acarretar a reparação, ou melhor, uma compensação, de
conteúdo patrimonial. Diz-se, às vezes, que os direitos de personalidade são direitos
pessoais (não patrimoniais), por oposição aos direitos de índole patrimonial.
e) São indisponíveis: significa esta característica que a vontade dos seus titulares é
ineficaz em relação a eles para os extinguir; estão subtraídos à vontade dos seus titulares.
Da sua indisponibilidade decorrem, segundo José de Oliveira Ascensão, três aspectos: são
(a) intransmissíveis17: não podem ser objecto de sucessão, nem de cessão; são(b)
irrenunciáveis, isto é o titular pode renunciar ao exercício de um direito de personalidade,
mas não pode renunciar ao direito de personalidade em si;. c) são escassamente restringíveis
através de negócio jurídico art. 280, 81/1, 340 C.C. A doutrina consagra, geralmente, uma
atenção especial a este aspecto. Assim também faremos mais adiante.
f) São universais: os direitos de personalidade são universais no sentido de
que são inerentes a todas as pessoas.
g) São inatos: nascem com o homem; por isso se dizem originários e primitivos,
à diferença dos direitos adquiridos (adquiridos durante a existência do indivíduo), pese
embora o facto de alguns se poderem efectivar através de um direito posterior, como é o
caso do direito à criação pessoal.
h) Gozam de protecção penal: certa doutrina refere a protecção penal como um
dos atributos dos direitos de personalidade. Todavia, este predicado não diz respeito a
todos eles, sendo que, em regra, a violação dos direitos de personalidade apenas acarreta a
responsabilidade civil, mediante a obrigação de indemnizar). Aqueles cuja violação ganha
relevo social sim, gozam de protecção penal. Tais são os casos do homicídio (art. 349 C.
Penal) das ofensas Corporais (art. 359ss C. Penal), da difamação, da calúnia.
i) São atípicos: esta característica significa que o reconhecimento de um direito
como direito de personalidade não depende de qualquer consagração legal; o único critério
para a qualificação é a ligação estreita com a natureza e a dignidade da pessoa humana. A
atipicidade dos direitos de personalidade não singifica, contudo, que não existam direitos
de personalidade tipificados; pelo contrário. A atipicidade dos direitos de personalidade há-

17
De acordo com este autor, às vezes se fala de direitos personalíssimos como sinónimo de intransmissíveis.

22
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

de entender-se no sentido de que são direitos de personalidade todos os previstos como os


não previstos na lei.

2.3. Direitos de personalidade e direitos fundamentais:


É importante cotejar os direitos de personalidade com os chamados direitos
fundamentais, para saber se se trata da mesma realidade ou não e qual a relação existente
entre eles. Quanto a isto, importa dizer, no essencial, o seguinte:
- 1º As duas expressões pertencem a dois domínios diferentes do Direito: a
expressão “direitos fundamentais” é própria do Direito Constitucional, enquanto a expressão
“direitos de personalidade” é do Direito Civil.
- 2º Embora, do ponto de vista formal, se utilizem expressões diferentes (direitos
fundamentais/direitos de personalidade), do ponto de vista material, há, parcialmente (em
determinados casos), um sentido de coincidência ou identidade do direito em causa
(verbi gratia, o direito à vida, à integridade física, à liberdade, à integridade pessoal, à honra,
etc, são direitos de personalidade/ fundamentais
- 3º Apesar desta identidade material parcial (do objecto), o assento e o tratamento
constitucional dos direitos de personalidade é feito sob um ângulo diferente do Direito
Privado. Na sequência e no âmbito do constitucionalismo moderno e do princípio da
separação de poderes, que visa limitar o poder do Estado em face do cidadão, a disciplina
jurídica constitucional daqueles direitos (sob a epígrafe “direitos, liberdades e garantias”) é
estabelecida a partir de um ângulo de visão próprio, com uma preocupação especial, a da
defesa do cidadão perante o Estado e perante os eventuais arbítrios do poder constituído
(relação cidadão-Estado), embora tal disciplina hoje se estenda a outros domínios 18.
- 4º Embora os direitos de personalidade tenham assento constitucional, os direitos
fundamentais excedem em número aqueles, ou seja, há um incremento incessante dos
direitos fundamentais, há mais direitos fundamentais do que direitos de personalidade (se
quisermos, direitos humanos). Este incremento incessante resulta de as constituições
serem o reflexo de várias ideologias. Dito de outro modo, se os direitos de personalidade
têm hoje assento constitucional, nem todos os direitos fundamentais são direitos de
personalidade.
-5º Todos os direitos de personalidade são de primeira geração, são chamados
primitivos ou originários, porque decorrentes da natureza humana e umbilicalmente
ligados a ela, enquanto muitos dos direitos fundamentais são adquiridos durante a
existência da pessoa, não são, portanto, direitos originários, Pelo contrário, os direitos de

18
José De Oliveira Ascensão, op. cit. pág. 76

23
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

personalidade são anteriores a qualquer estruturação política da vida social, são anteriores
ao Estado e constituem emanações da personalidade humana em si, ou seja, decorrem
directamente da natureza humana. Por isso é são considerados, juridicamente, mecanismos
de tutela da personalidade, isto é, são verdadeiros modos de defesa da personalidade
humana.

2.4. A tutela jurídico-civil da personalidade:


2.4.1 O direito geral de personalidade: art. 70º.
A tutela civil da personalidade comporta um direito geral da personalidade e os
direitos especiais de personalidade.
Se o nº 1 do art. 66º do Código Civil consagra o princípio do reconhecimento da
personalidade jurídica, o artigo 67º a sua noção legal19, o artigo 70º, consagra a tutela geral
da personalidade. José De Oliveira Ascensão fala do princípio da generalidade de tutela da
personalidade. Trata-se de um princípio geral, decorrente do princípio da personalidade
(art. 66). Este princípio é estabelecido da seguinte forma pelo artigo 70º sob a epígrafe
“Tutela geral da personalidade”: nº1: “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa à
sua personalidade física ou moral”.
Nos termos fiéis ao preceito acabado de citar, a doutrina jurídica considera que a
generalidade e a força da tutela dos direitos de personalidade se manifesta, entre outros
aspectos:
a) No critério para se aferir do direito de personalidade. Trata-se de aspectos físicos
e morais da pessoa. Aqui reside o critério para se aferir de quando é que estamos perante
um direito de personalidade: é necessário que o direito incida sobre um bem da
personalidade estreitamente ligado à natureza humana e à dignidade humana;
b) Na atipicidade dos direitos de personalidade: “qualquer ofensa à sua
personalidade física ou moral”. A expressão parafraseada, e de acordo com a nota referida
em a), significa que os direitos de personalidade não estão todos previstos na lei20, não
foram todos visualizados e expressamente consagrados pelo legislador civil; não constituem

19
Uma noção que, como todas ou quase todas as noções legais, não é completa, nem rigorosa.

20
C.A. MOTA PINTO refere alguns desses direitos de personalidade inominados, tais como a identidade
genética (questão dos clones), a auto determinação informativa, isto é, o controlo sobre os dados pessoais,
o direito ao sono, cuja defesa se torna cada vez mais necessária em face da cada vez mais crescente cultura
do barulho, o direito à saúde, ao repouso, o direito ao ambiente saudável (Nota: tutelado pelo Direito
Constitucional); o direito ao ambiente inclui o direito ao ar puro. Vejamos a prática crescente de as empresas
de saneamento depositarem lixos junto de habitações); a LAGMA (Lei das Actividades Geológicas e
Mineiras) impõe às empresas exploradoras de diamantes e de petróleo a obrigação, não só da reconstituição
dos solos, mas também a de realizarem investimentos sociais em beneficio das populações que vivem nas
zonas de exploração mineira.

24
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

um círculo fechado; pelo contrário, constituem um círculo que se vai alargando de acordo
com a evolução que a consciência ético-juridica (modo de pensar) da comunidade vai
registando. Na linguagem de José De Oliveira Ascensão, o artigo 70º tem de ser considerado
necessariamente uma “Janela aberta”, abrangendo, não apenas os direitos estão previstos
na lei (v.g. direito à vida, à integridade física, à liberdade, à honra, ao nome, honra) como
também aqueles que não estão expressamente consagrados (v.g. o direito ao repouso e ao
sono, à integridade e ao património genético, etc.). Disto resulta que um direito de
personalidade não precisa de ser nominado e típico para ser considerado como tal.
Repetimos, preciso é, e basta, que se trate de um aspecto directamente ligado à natureza
humana. Resumindo, a lei protege, por via do artigo 70º, todos os direitos de personalidade,
os previstos e os não previstos no direito positivado; haverá todos os necessários à defesa
da personalidade. Este afirma ainda ser a atipicidade, em matéria dos direitos de
personalidade, uma excepção à regra segundo a qual os direitos absolutos são típicos e isto
constitui uma singular manifestação da importância da defesa da personalidade. Este
carácter excepcional manifesta-se, inter alia:
c): na a-tipicidade dos meios de protecção: no Direito Privado, o meio normal
(típico) de protecção das pessoas contra os actos que violem os seus direitos é a
responsabilidade civil (art. 483º C.C.), que se traduz na obrigação de indemnizar o lesado.
Segundo HÖRSTER, a violação dos direitos de personalidade dá lugar, além das providências
adequadas, à “responsabilidade civil caso se verifiquem os pressupostos da responsabilidade
por factos ilícitos, designadamente a culpa e a existência de um dano (art.70 nº2, em ligação
com os arts. 483ss), ou os pressupostos da responsabilidade pelo risco, ou seja, a concretização
do risco e a existência de um dano (art.70º, nº2, em ligação com os arts. 499ss)”.
Outro meio de manifestação desta importância é o facto de a atipicidade se estender
aos meios de protecção da personalidade. Além dos meios gerais ou comuns da tutela de
direitos no Direito Civil, o legislador permite que o juíz tome as providências adequadas21 a
fazer “reparar”os danos provenientes da violação do direito, a fazer cessar uma ameaça
actual ou impedir uma ofensa iminente, contra a regra segundo a qual o juiz não pode criar
meios jurídicos, mas sim limitar-se ao que está estabelecido na lei;
d) na disponibilidade de um processo especial constante dos artigos 1474º a 1475º
do Código de Processo Civil, integrando-se nos processos de jurisdição voluntária – art.

21
Conferindo assim ao aplicador da lei um poder discricionário para ajuizar dos meios adequados o fim de
reparar o direito violado; o poder discricionário do juiz está aqui doseado com o dever do respeito ao
princípio da proporcionalidade entre a gravidade da violação e os meios para a sua reparação.

25
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

1409ss CPC)22- que permitem ao juiz determinar tais providências) 23; de acordo com o
artigo 1410º do CPC, nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de
legalidade estrita24, devendo antes adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais
conveniente e oportuna. De notar ainda que, nos termos do artigo 1475º do CPC, o legislador
não condiciona a decisão do juiz à contestação pelo demandado, mas apenas à produção das
provas necessárias; esta é uma excepção à regra, consagrada no nº 1 (in fine) e nº 2 do artigo
3º do CPC, segundo o qual “o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção
pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente
chamada para deduzir oposição”. No. 2: “Só em casos excepcionais previstos na lei se podem
tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida”.
e) na irrenunciabilidade, intransmissibilidade e imprescritibilidade; 6º na
revogabilidade a todo o tempo das limitações voluntárias, entre outras coisas
f) no facto de os direitos de personalidade gozarem de protecção também
depois da morte do seu titular (art. 71º nº 1). Este número suscitou leituras diferentes na
doutrina. Segundo o professor C.A. MOTA PINTO, a formulação contida naquele número é
infeliz, uma vez que em consequência da cessação da personalidade jurídica com a morte
(art. 68 nº 1), com a qual se extinguem também os direitos de personalidade, a tutela incide
sobre os direitos e interesses da pessoas mencionadas no nº 2 do mesmo artigo.
Para José De Oliveira Ascensão, embora os direitos de personalidade se extingam de
facto com a morte, a sua tutela jurídica pode continuar mesmo depois dela. Por isso, essa
norma visa proteger não só os interesses e os direitos das pessoas indicadas no número 495
e 496 do C. Civ., mas visa proteger também o princípio do respeito pela memória das pessoas
falecidas, que é um princípio imperante em todas as sociedade civilizadas 25.
Em caso de lesão de que provenha a morte, o direito passa para as pessoas indicadas
no art. 495 e 496, sendo que a indemnização deverá incluir os danos patrimoniais e não
patrimoniais.

22
Os processos de jurisdição voluntária caracterizam-se pelo facto de o seu objecto não ser um litígio, como
nos outros processos, por um lado e pelo facto de neles o tribunal poder investigar livremente os factos,
coligir provas, ordenar os inquéritos e recolher informações convenientes (art. 1409 nº 2).

23
O texto do autor deixa ver que não é por acaso que a lei não menciona as chamadas providências
cautelares.

24
Trata-se de uma excepção à regra

25
Vide, a este respeito, o capítulo referente ao termo da personalidade jurídica, designadamente sobre os
efeitos jurídicos da morte.

26
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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2.4.2. Admissibilidade de restrições aos direitos de personalidade: regime


geral (Art. 340º, 81º e 280º C.C.)
Vimos que uma das características dos direitos de personalidade é a sua
indisponibilidade, isto é, os direitos de personalidade não estão à disposição, nem do seu
titular, tão pouco de outras pessoas. Todavia, a ordem jurídica prevê e admite situações em
que, em função das circunstâncias e dos interesses em jogo, se justifica a sua limitação.
Diga-se, de início que, em geral, as restrições aos direitos de personalidade podem
ser de ordem negocial ou legal, todavia, em condições muito apertadas, tanto num caso
como noutro.

As restrições negociais devem obedecer aos seguintes requisitos:


a) – O consentimento do lesado:
O regime jurídico geral relativo à limitação dos direitos está contido no Subtítulo IV
do Livro I do Código Civil, sob a epígrafe “Do exercício e da tutela dos direitos”. Esta parte,
dedicada à garantia da relação jurídica, estatui as excepções à regra do monopólio estadual
da função jurisdicional, ou seja, as situações em que se justifica o recurso à força própria
para limitar direito de outrem. Aqui a restrição de um direito só se justifica no âmbito da
garantia de um outro direito alegadamente violado ou na iminência de ser violado, excepto
quanto ao consentimento. São as chamadas causas de exclusão de ilicitude, designadamente,
a acção directa (art. 336º), a legítima defesa (art. 337º), o estado de necessidade (art. 339º)
e, por último, o consentimento do lesado (art. 340º).
O artigo 340º estabelece o regime geral do consentimento, em matéria de limitação
de direitos, ao passo que o artigo 81º regula, de forma especial, esta matéria, em sede dos
direitos de personalidade. De acordo com o nº 1 do artigo 340º, “o acto lesivo do direito de
outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão”. Por sua vez, o nº 1 do artigo 81º
fala da limitação voluntária.
O consentimento é um acto jurídico voluntário, de natureza pessoal e
unilateral e, em princípio, revogável pelo qual um indivíduo aceita livre e conscientemente
submeter-se à limitação do seu direito (de personalidade), considerado indisponível.
O consentimento deve ser consciente, esclarecido e informado (informed
consent).
O consentimento não se reduz ao simples voluntarismo, não é uma mera
manifestação da vontade do titular do direito ou de representante, nos casos em que se
permite a representação na limitação dos direitos de personalidade. O que está em causa é
o direito à liberdade, à auto determinação e a legitimidade do acto para dispor do direito de
outrem, que resulta da auto determinação daquele. Por isso, o consentimento é um
instrumento de validade ética e jurídica do acto limitador do seu exercício.
27
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

O consentimento esclarecido pode ser oral ou escrito, mas também pode ser
inferido de um comportamento. O consentimento pode ser expresso, tácito ou presumido.
Será expresso ou tácito consoante ele seja prestado directamente ou indirectamente. Alerta-
se, desde já, para perigo de se confundir consentimento expresso com o consentimento
escrito. O consentimento, tanto oral como escrito, pode ser expresso ou tácito, consoante
ele seja prestado de forma directa ou indirecta (Vide matéria sobre as formas da declaração
negocial). O consentimento expresso é aquele que é prestado de forma directa; o
consentimento tácito é manifestado de forma indirecta e resulta, geralmente, de uma
inferência do comportamento observado anteriormente.
O consentimento presumido supõe a impossibilidade de o titular do direito o
poder prestar directamente e resulta de uma conjectura (especulação), de se presumir ser a
vontade do titular do direito lesado - no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade
presumível (art. 340º nº 3).
Por via de regra, o consentimento deve ser expresso. Mas pode, em determinados
casos, ser prestado tacitamente26. Em outros casos, é presumido. Note-se que só se pode
apelar ao consentimento presumido quando as circunstâncias objectivas não permitam o
consentimento expresso, como por exemplo, em caso de tratamento médico, em estado de
inconsciência, ou quando o diagnóstico seja tão sensível que o paciente possa ser
prejudicado pela informação relativa ao processo e ao risco do tratamento, casos em que o
médico deverá sempre esclarecer, no lugar do paciente, os seus parentes mais próximos e

26
HÖRSTER refere, a este propósito, as seguintes situações em que o consentimento é tácito: “os
praticantes de um desporto perigoso consentem em lesões que possam acontecer, não obstante a observação
das respectivas regras; quem aceitar um transporte gratuito (“boleia”) consentirá em lesões sofridas apesar
de terem sido observadas as regras de trânsito…. por outro lado, quem pratica desportos violentos ou quem
aceitar um transporte gratuito, correndo riscos patentes (p. ex., o condutor está bêbado; o meio de transporte
não oferece condições de segurança, etc.), age por risco próprio, não se podendo falar neste caso de
consentimento…O tratamento médico carece de consentimento, regularmente, expresso, da parte do
paciente. O médico nunca pode pressupor consentimento tácito, se o tratamento exceder aquilo que o
doente, segundo a sua condição, é capaz de prever. Assim, o médico tem por princípio esclarecer o
doente…”. O artigo 31º do Código Deontológico e de Ética Médica reza o seguinte:

Art.31 (Respeito pelas crenças e interesse doente)

1. “O médico deve respeitar escrupulosamente as opções religiosas, filosóficas ou ideológicas e os


interesses legítimos do doente, não devendo exercer qualquer acto médico sem procurar o seu
consentimento.

2. O consentimento de crianças, menores ou incapacitados, é, em princípio, pedido aos pais, parentes mais
próximos ou representantes legais, salvo quando exista conflito entre os familiares e o médico assistente,
em situações graves e de emergência, para as quais deverá recorrer-se a decisão judicial, suportada em
legislação própria”.

28
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

obter deles a autorização27. Há casos em que o consentimento deve ser prestado


expressamente, sendo, portanto, proibido o consentimento tácito e o presumido. Tal é o
caso do consentimento tendo em vista a participação em experiências terapêuticas.

Padrões ou critérios para se aferir do consentimento esclarecido, informado ou


consciente. Segundo FERNANDA SCHAEFER 28, estes pressupostos são os seguintes:
1º: capacidade para consentir: trata-se da capacidade para “tomar decisões
independentes e racionais, podendo assumir as consequências e os efeitos que desse acto
possam advir, para que as suas decisões possam ser consideradas ética e juridicamente
válidas” (Fernanda Schafer), ou ainda, a capacidade de discernimento e de auto
determinação, necessária para o exercício da vida jurídica. A capacidade para consentir
requer capacidade jurídica de agir, isto é, de adquirir e assumir livremente e os próprios
direitos e obrigações. Presume-se que as pessoas com capacidade de agir têm capacidade
para consentir. Todavia, trata-se de uma presunção relativa. As pessoas consideradas
adultas (capazes juridicamente), devido a variadíssimas circunstâncias, podem estar total
ou parcialmente privadas desta capacidade de discernimento.
Em atenção ao que se acaba de dizer, costuma-se distinguir entre as pessoas
absolutamente capazes e as relativamente incapazes. Ao primeiro grupo pertencem os
menores29 e os interditos, ao segundo, os inabilitados, as pessoas em situação de
incapacidade acidental (os ébrios habituais ou toxicodependentes, os pródigos, as pessoas
que, por questões de saúde (em coma), não podem prestar o seu consentimento, etc.). Os
indivíduos absolutamente incapazes de prestar o consentimento, nos casos em que tal seja
permitido, deverão ser representados pelos familiares ou pelas pessoas que, os
representem legalmente, não sendo os pais) não o acto (o que só pode acontecer quando
esteja em causa o próprio bem do incapaz); quanto aos relativamente incapazes, há que
distinguir entre situações em que eles não podem prestar o consentimento, como por
exemplo, os enfermos, caso em que a autorização será dada pelos familiares, e os casos em
poderão, eles próprios, prestar o consentimento, todavia, o acto do consentimento estará

27
H. E. HÖRSTER, op. cit. Nº 441.

28
FERNANDA SCHAEFER, A Nova Concepção do Consentimento Esclarecido, http://www.idb-
fdul.com. Advertimos o leitor de que os pressupostos aqui reportados são referidos por Fernanda Shcaefer
ao consentimento aplicado à relação médico-paciente. Apesar disto, pensamos que os pressupostos são
aplicáveis à limitação dos direitos de personalidade em geral.
29
Segundo HÖRSTER (A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, nº 442), a
defesa da personalidade é tão forte que vai ao ponto de a doutrina considerar que “o consentimento na lesão
não exige capacidade negocial, pelo que também os menores podem consentir numa limitação voluntária
ao exercício dos seus direitos de personalidade quando possuírem, conforme a gravidade do caso concreto,
uma capacidade natural suficiente para entender plenamente o significado do seu acto
29
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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sujeito à autorização pelas pessoas indicadas. (Ver adiante sobre o conceito de assistência e
de representação).
2º: Voluntariedade: o consentimento deve ser livre de qualquer vício (ex.: erro,
dolo, simulação, coacção…).
3º: Informação prévia, clara, objectiva, i.e, aproximativa da realidade, honesta e
adequada à compreensão e ao estado emocional do interlocutor, mais próxima da verdade
sobre os objecivos, riscos, benefícios, probabilidades de sucesso, métodos, técnicas,
duração.
4º: Autorização (activa) ou consentimento: é a tomada da decisão propriamente
dita, podendo ser escrita ou oral. A forma juridicamente mais segura é a forma escrita.
5º: Termo do consentimento: trata-se da materialização do todo o processo de
informação.

b) A limitação dos direitos de personalidade, além de ser voluntária, deve ser


legal. Não basta que a lesão seja consentida; é necessário que ela se conforme com a ordem
pública. É o que resulta do nº 2 do art. 81º do Código Civil: “toda a limitação voluntária ao
exercício dos direitos de personalidade é nula, se for contrária aos princípios da ordem
pública” e do nº 2 do artigo 340º: O consentimento do lesado não exclui, porém, a ilicitude do
acto, quando este for contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes”. Assim, mesmo
sendo livre e bem informado, o consentimento será irrelevante se o acto lesivo contrariar
os princípios da ordem pública 30 e dos bons costumes. Tal é o caso da eutanásia, da
mutilação, e do auxílio ao suicídio. Quanto a esta, o artigo 354º do C. Penal preceitua:”Será
punido com a pena de prisão aquele que prestar ajuda a alguma pessoa para se suicidar”.
Cabe dizer que o legislador usou cláusulas gerais (ordem pública/bons costumes)
em face da impossibilidade de se delimitar todas as situações em que se pode renunciar aos
direitos de personalidade31.
Estes requisitos (consentimento do lesado e não contrariedade com a ordem
pública) são cumulativos, e só com eles é que o consentimento será validamente prestado,
sendo que o limite último ao consentimento será sempre a ordem pública.
c) Revogabilidade do consentimento: de acordo com o nº 2 do artigo 82º do Código
Civil, a renúncia aos direitos de personalidade é sempre revogável. Parece ser um contra-
senso que o acto de limitação do direito de personalidade seja lícito, porque livre e

30
Uma referência ao artigo 280º nº 2.

31
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, cit. , Vol. I, pág. 93.

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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

consciente e porque não contrário à ordem pública, e que, ao mesmo tempo, ele possa ser
revogado. Seria mais lógico que as partes consentissem em distratar o negócio jurídico
celebrado. Mas a lógica que presidiu à consagração da revogabilidade do consentimento
(acto unilateral do titular do direito) obedeceu à necessidade do reforço da tutela do direito
de personalidade de reforçar o carácter indisponível dos direitos de personalidade. De
resto, trata-se de uma medida de prevenção contra a possibilidade do risco e das
consequências adversas que adviriam de uma possível vinculação definitiva do titular do
direito ao consentimento prestado relativo à limitação do exercício do seu direito: Evita-se,
deste modo, que a contraparte possa vir a invocar a prerrogativa de dispor do direito de
personalidade de outrem com base no consentimento por este prestado.
d) Indemnização da outra parte: o número 2 do artigo 81º do C.C. impõe ao titular
do direito de personalidade a obrigação de indemnizar. Parece existir aqui outro contra-
senso: se a revogação é, lícita, permitida pela ordem pública, porquê, então, indemnizar? A
resposta é que a declaração negocial do titular do direito de personalidade pode ter gerado
já expectativas legítimas e o não cumprimento do contrato pode causar danos na esfera
jurídica da outra pessoa. José de Oliveira Ascensão nota: “…a tutela da personalidade leva a
que sejam causados danos a quem nenhuma responsabilidade teve” (pág. 94). Daqui se pode
concluir que, se o declaratário tiver responsabilidade na emissão da declaração, porque se
portou de forma contrária aos padrões normais de conduta, não terá direito à referida
indemnização. Isto aplica-se a quem tenha usado de usura (art. 282 C.C.) ou de uma certa
coação moral para obter a declaração negocial. Por outro lado, embora não directamente,
este preceito pode sustentar também a ideia da protecção da personalidade, assente na
lógica de que entre sujeitar-se à limitação do direito de personalidade em virtude do
consentimento prestado e indemnizar, é preferível indemnizar.
Entretanto, apela o mesmo autor à necessidade de se não fazer uma leitura
meramente positivista ou literal do nº 2 do artigo 81º do Código Civil. Parece-nos ser de
concluir que o pensamento do autor vai no sentido de se poder afirmar que a revogabilidade
patente neste número não é absoluta32. Segundo ele, há que considerar nas restrições
negociais três situações diferentes: um núcleo duro, em que o direito não é susceptível de
limitação negocial (v.g. o direito à vida, à saúde, etc.); uma orla, em que os direitos são
limitáveis, mas a limitação é revogável e uma periferia em que os direitos são limitáveis,
sem se incorrer na revogabilidade estatuída no nº 2 do artigo 81º/2, sendo que, neste último
caso, o critério para se aferir da admissibilidade da revogação é o carácter ético ou anti-ético
da situação, ou seja, se, num caso concreto, se chega à conclusão de que considerar o

32
Uma leitura que não parece ser consentânea com a letra do nº 1 do artigo 81º do Código Civil.

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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

consentimento irrevogável é anti-ético, este será revogável; se, pelo contrário, a consciência
ético-jurídica não exige a revogabilidade do consentimento, então, este é irrevogável. Cita
como exemplos o direito à imagem e o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada33.
Fora destes parâmetros, qualquer acto lesivo de qualquer direito de personalidade
será ilícito. A ilicitude terá como consequência a nulidade nos casos de o acto ser contrário
à lei ou à moral (art. 340/2; 81/1; 280/1 e 2); a consequência será a anulabilidade quando
estejamos em presença de um vício da vontade (art. 246º; 287º C.C.).

2.4.3. Dos direitos de personalidade em especial: TRABALHOS EM GRUPOS

4. Princípio da igualdade:
Introdução
Existe uma igualdade natural entre os homens. Todos somos partícipes da mesma
natureza (humana), temos a mesma constituição, em termos biológicos e químicos, temos
a mesma origem e teremos o mesmo fim, inevitavelmente. Além e acima de tudo,
gozamos todos da mesma dignidade humana.
Mas também, há uma desigualdade natural entre os homens, que se concretiza em
vários factores: diferentes posições económicas, culturais, sociais. Mesmo do ponto de
vista jurídico, a desigualdade, em determinados sectores de relações jurídicas, é um facto
consumado. Por exemplo, na relação jurídica laboral, existe uma subordinação jurídica
do empregado ao empregador, uma vez que o primeiro presta o seu trabalho sob a
autoridade e a direcção do empregador (Cf. art. 1º da Lei 2/00, de 11 de Fevereiro – Lei
Geral do Trabalho). Na relação jurídica familiar de filiação, os filhos menores e os não
emancipados devem obediência aos pais, que exercem sobre eles o poder paternal
(art.124ºdo Cód. Civil e 137º do C.Fam.).
Formulação
O princípio da igualdade ou paridade jurídica está consagrado na CRA, que o
formula de duas formas, uma positiva e outra negativa, sendo que esta não é nada mais
do que a explicitação daquela. O artigo 23º da CRA determina:
nº 1 – “todos são iguais perante a lei”;
nº 2 – “ninguém pode ser prejudicado, privilegiado, privado de qualquer direito
ou isento de qualquer dever em razão da sua ascendência, sexo, raça, etnia, cor,

33
Vide op. cit. nº 49-III

32
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas,


ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou
profissão”.
Significado do princípio
O princípio da igualdade jurídica significa, portanto, a ausência de quaisquer
privilégios e discriminações fundados em diferenças de qualquer tipo (ascendência, sexo,
raça, etnia, cor, deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas,
ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão)
entre os particulares. A igualdade jurídica não significa a anulação das diferenças acima
aludidas, nem a simples consideração dos factores naturais comuns aos homens, porque
o contrário resultaria em um absurdo e em injustiças. Significa, isto sim, que a lei trata a
todos como iguais, independentemente das suas diferenças; o Direito , em geral, e o Direito
Privado, em especial, assegura às pessoas uma posição paritária nos mais variados domínios
das relações jurídicas privadas: na negociação e na celebração dos negócios jurídicos, no
desenvolvimento da relação contratual; no domínio do Direito da Família, tal igualdade é
atestada pela igualdade entre os cônjuges no casamento, pela igualdade dos filhos; no
Direito Societário a igualdade concretiza-se na não discriminação dos sócios, etc. Este
princípio encontrará no Direito Civil a sua máxima expressão no princípio da autonomia
privada e na liberdade contratual (art. 405º C.C.), que analisaremos no momento devido.
Fundamento(s)
Este princípio resulta do princípio da personalidade jurídica, que tem inerente a
capacidade jurídica (art. 66/1 e 67º do C.C.), e, por conseguinte, no facto de que todas as
pessoas possuem as mesmas virtualidades e, por isso, são susceptíveis de serem sujeitos
de quaisquer direitos e obrigações e de quaisquer relações jurídicas do direito privado 34 e
tem como pano de fundo o personalismo ético e o princípio da dignidade humana.
Medidas cautelares
Entretanto, sabe-se que, às vezes, as desigualdades naturais ou disparidades reais
acabam por desequilibrar a igualdade (formal), fazendo com que a parte mais forte na
relação jurídica, mormente nos contratos, acabe por se impor à parte mais fraca (porque
menos atenta, menos preparada ou com menos condições económicas, culturalmente
inferior em virtude da iliteracia, ou porque necessitada, ou porque sofre de uma outra

34
HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit. pág. 52.

33
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

inferioridade circunstancial), obtendo dela vantagens à custa de restrições, despesas,


encargos ou prejuízos não razoáveis e são prejudicais.
O legislador, ao regular cada um dos variados tipos contratuais, esteve atento a
este perigo e, por isso, instituiu um regime jurídico de protecção da parte mais fraca a
vários níveis. Assim, por exemplo, a ideia da protecção da parte mais fraca concretiza-se
na protecção do arrendatário, no contrato de arrendamento para habitação, do trabalhador,
no contrato de trabalho, do cliente e do consumidor, nos contratos com cláusulas
contratuais gerais, em geral, por via de regras imperativas.
No âmbito da protecção da parte mais fraca no contexto dos contratos, merece
especial atenção a Lei 4/03, de 18 de Fevereiro, Lei sobre as Cláusulas Gerais dos
Contratos, que visa disciplinar os contratos por adesão, ou contratos standard, e todas as
cláusulas contratuais gerais (ou cláusulas gerais dos contratos), isto é, os contratos que
carecem de prévia negociação individual, os quais se limitam a subscrevê-los (contratos
por adesão). Esta lei impõe determinados deveres e princípios a serem observados pelo,
para garantir a liberdade e a autonomia da decisão do aderente. Tais deveres e princípios
são: o dever comunicação e de informação clara, atempada, íntegra e adequada das
cláusulas contratuais gerais, bem como da explicação, dos aspectos relevantes, e de
prestar todos os esclarecimentos solicitados (art. 3º), o princípio da boa fé na elaboração
dos contratos (art. 227º C.c.), a prevalência das cláusulas sobre as quais tenha havido
acordo sobre as cláusulas contratuais gerais (art. 4º), a proibição absoluta e relativa de
determinadas cláusulas (art. 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, a nulidade das cláusulas violadoras
das proibições nelas aludidas (art. 15º) a imposição de uma sanção pecuniária
compulsória para a entidade que infrinja a obrigação de se abster de uma cláusula proibida
(art. 26º).

4. Princípio da protecção dos mais fracos:


A igualdade jurídica é meramente formal, isto é, a lei trata a todos de forma igual
(“todos são iguais perante a lei”), a despeito das diferenças materiais que existem,
naturalmente, entre as pessoas. Por outras palavras, os particulares são materialmente
desiguais, mas, para a lei, essas diferenças não contam.
Ora, o desequilíbrio natural pode, às vezes, ser aproveitado pela parte mais forte,
para explorar a parte mais fraca, impondo a esta a aceitação de cláusulas que lhe sejam
economicamente desfavoráveis e perniciosas. Como se pode, facilmente, compreender, isto
levaria à “eliminação” dos mais fracos e à supressão da sua autonomia, além de propiciar
injustiças.

34
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

Para prevenir tais situações, o direito objectivo consagra mecanismos adequados


para a correcção das desvantagens decorrentes do eventual uso abusivo da desigualdade
material e para a realização de uma certa justiça material35. Sendo difícil determinar
casuisticamente quem é o mais fraco, o legislador escolhe algumas situações socialmente
típicas ou recorrentes nas relações jurídicas privadas, e não só, e introduziu normas
imperativas no respectivo regime jurídico (v.g., contrato de trabalho, relações jurídicas
jurídicas familiares, sucessórias, relação consumidor-fornecedor de bens e serviços), ou
então, concedendo à parte que tenha sido vítima de exploração a possibilidade de anular o
negócio realizado (v.g., a usura, o erro, o dolo, os negócios realizados por um menor, etc.).
O princípio da protecção dos mais fracos, também designado como o princípio da
protecção social (HÖRSTER), visa, portanto, assegurar o equilíbrio jurídico entre os
particulares no trato entre si e com os entes públicos, nas vestes de particulares.

5. Princípio da autonomia privada


Importância
O princípio da autonomia afigura-se de importância capital para o Direito Civil. Esta
importância traduz-se no seguinte:
a) A autonomia é um factor necessário para o desenvolvimento da personalidade
humana e, por essa razão, ela é o pressuposto e o fundamento das normas do Direito
Privado.
b) O princípio da autonomia privada está subjacente à distinção entre o Direito
Público e o Direito Privado, na medida em que as relações jurídicas do Direito Privado não
são estabelecidas segundo uma estrutura de dominação e de obediência, mas sim da
autonomia e da paridade jurídica.
c) Na celebração dos negócios jurídicos, a absoluta ausência da vontade de uma das
partes no negócio jurídico é causa da inexistência material do negócio jurídico, nos termos
do artigo 246º do Código Civil. Por outro lado, uma vontade viciada (por erro, dolo,
incapacidade acidental, etc.) é causa de invalidade do negócio jurídico.

Noção
A autonomia privada pode ser definida como o poder reconhecido aos particulares
de auto regulamentação dos seus interesses, de auto governo da sua esfera jurídica (C.A.
MOTA PINTO). Entende-se por esfera jurídica o conjunto das relações jurídicas,

35
H. E. HÖRSTER sustenta a tese de que o grau de protecção dos mais fracos é uma bitola para medir o
valor ético de uma ordem jurídica. (Vide a obra em referência, nº ???)

35
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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patrimoniais e não patrimoniais, de que uma pessoa é titular num determinado momento.
A autonomia privada assenta na ideia de que, nas relações entre os particulares, estes agem
de acordo com a sua vontade, são livres de estabelecer ou não relações jurídicas, de as
estabelecerem com quem quiserem, de adquirir direitos, assumir obrigações e de fazerem
o que bem entenderem dos seus interesses, dentro dos limites da lei36.

Autonomia privada e ordem jurídica


É importante não esquecer, entretanto, que a autonomia privada não pode ser
entendida fora da ordem jurídica. Em primeiro lugar, a ordem jurídica é o espaço de
realização e fornece os instrumentos ou modelos para o exercício da autonomia privada.
Tais modelos são, nomeadamente, os modelos ou tipos negociais previstos na lei (tipos
negociais, v.g, compra e venda, mútuo, depósito, etc.), alguns rígidos, outros elásticos, como
ser verá, a seu tempo. Além dos negócios jurídicos, a autonomia é exercida, na ordem
jurídica, através da soberania do querer, que se exerce mormente através do direito
subjectivo.
Além de fornecer aos indivíduos os instrumentos de realização da sua autonomia
(privada), a ordem jurídica fixa os limites necessários a este exercício, de modo a assegurar,
não o interesse o interesse público, os direitos da outra parte na relação negocial e a defesa
dos mais fracos. As normas jurídicas do Direito Privado são ricas de exemplos de limitações
à autonomia privada.
Nos vários ramos do Direito Privado, as restrições à autonomia privada são
maiores ou menores, consoante a natureza da relação jurídica e do negócio jurídico em
causa. Assim, as restrições maiores nos domínios do Direito da Família, no Direito
Sucessório e no Direito do Trabalho, pelas razões sobejamente explicadas supra, e nos
Direitos Reais. Os particulares gozam de maior autonomia no Direito das Obrigações e
nos ramos do privado especial que constituem uma adaptação do Direito das Obrigações.
Por outro lado, há menos restrições nas relações jurídicas patrimoniais do que nas relações
jurídicas de natureza pessoal.

5.1 Liberdade contratual


Origem e formulação (art. 405º C.C.)
Fala-se da liberdade contratual nos negócios jurídicos bilaterais, que são sempre
contratos, de onde a expressão “liberdade contratual”.

36
HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit. pág. 52.

36
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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O princípio da liberdade contratual está consagrado no artigo 405º do Código Civil,


que estabelece, sob a epígrafe “liberdade contratual”:
nº1- “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos
contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas
que lhes aprouver”;
nº 2- “as partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total
ou parcialmente regulados na lei”.

Noção e conteúdo
O princípio da liberdade contratual encerra dois aspectos, a saber: a) a liberdade de
celebração, ou liberdade de conclusão de contratos; b) a liberdade de modelação, também
conhecida como liberdade de fixação ou estipulação.
• A Liberdade de celebração define-se como a faculdade de livremente celebrar ou
recusar-se a celebrar contratos. A liberdade, em si, significa ausência de coação. A
liberdade contratual significa, por isso, que, em princípio, ninguém está obrigado a
concluir contrato algum. Mas também significa que ninguém deve ser impedido ou
proibido de celebrar os contratos. Além disso, ninguém deve ser sancionado ou
repreendido pelo facto de concluir determinado contrato.
Note-se que o nº 1 do artigo 405º do C.C., que fundamenta a liberdade de celebração,
não a refere de modo expresso; referência explícita é feita à liberdade de fixação (“…as
partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos
diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver). A
liberdade de celebração resulta é o pressuposto da liberdade de modelação, sendo este,
portanto, consequência lógica daquela. As partes não teriam a faculdade de fixar livremente
o conteúdo dos contratos e de celebrar contratos diferentes dos previstos na lei, se antes
não tivessem a faculdade de celebrar ou não tais negócios jurídicos.
A liberdade de modelação é a faculdade que assiste aos particulares de: a) celebrar
contratos típicos (previstos na lei) ou atípicos (não previstos na lei); b) fixar livremente o
conteúdo dos contratos que queiram celebrar; c) incluir nos contratos que celebrem (típicos
ou atípicos) as cláusulas que lhes aprouver, isto é, que julgarem mais convenientes à
realização dos seus interesses; d) integrar, num mesmo contrato (contrato misto), regras de
dois ou mais contratos (típicos ou atípicos).

5.3. Restrições à autonomia privada:

37
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

A autonomia privada manifesta, principalmente, através do direito subjectivo e da


realização dos negócios jurídicos. Assim sendo, as restrições à autonomia privada devem
ser vistas tanto quanto ao direito subjectivo quanto aos negócios jurídicos.

5.3.1. Restrições ao direito subjectivo: o abuso do direito


A figura jurídica do abuso do direito está prevista no artigo 334º do Código Civil. Nos
termos deste artigo, há abuso do direito sempre que o titular de um direito exceda,
manifestamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e o fim social e
económico do direito, circunstâncias que tornam ilegítimo o exercício do mesmo. Em outras
palavras, o abuso do direito consiste nu exercício do direito contrário à boa-fé, aos bons
costumes e no desrespeito do fim social económico e social do direito.
Pedro Pais de Vasconcelos ajuda-nos a perceber o conteúdo do excesso destes
limites37.

i) A não contrariedade à boa-fé: o dever de agir de boa-fé impõe-se sempre que


o exercício do direito subjectivo implique o contacto social e traduz-se na necessidade da
observância dos antigos mandamentos do agir honestamente (honeste agere), do dever de
não causar danos a outrem (alterum non laedere) e da proscrição de comportamentos
contraditórios (venire contra factum proprium).
O agir honestamente é exercer o seu direito como pessoa de bem e implica a
proibição de qualquer tipo de exercício do direito inaceitavelmente contrário aos padrões
da honestidade que devem reger as relações entre pessoas de bem.
A fórmula latina alterum non laedere impõe o dever de, no exercício do direito
subjectivo, não causar danos a outrem, ou de, sendo impossível evitá-los, causar o mínimo
possível de danos (princípio do mínimo dano).
O venire contra factum proprium (trad. lit. ir contra um facto próprio) é uma fórmula
tradicional usada contra quem apresente um comportamento (activo ou omissivo)
contraditório que seja susceptível de malograr as expectativas que, legitimamente, criou em
outrem.
Em geral, sempre que alguém se ache ofendido com fundamento na violação do
dever de agir honestamente, pode usar do expediente consagrado tradicionalmente pela
doutrina e pela jurisprudência e traduzido na fórmula latina “exceptio doli”38 (excepção de

37
Op. cit. pág. 265 ss

38
Vem do Direito Romano. Traduzia-se, na invocação, pelo demandado, de um comportamento fraudulento
do titular de um direito, indicando, assim, que o último não agiu honestamente.

38
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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dolo), usada contra todos os tipos de condutas, activas ou omissivas, que assentem na
violação da boa-fé, do dever agir honestamente, de agir como pessoa de bem, honesta.
Constitui violação mandamento de não prejudicar os outros (alterum non laedere ou
do princípio do mínimo dano) (vide supra) o exercício do direito em desequilíbrio, o qual
pode ser: a) emulativo (quando o titular do direito é movido pela intenção exclusiva de
prejudicar ou causar um mal a outrem), b) inútil ou injustificado (quando o exercício não
represente qualquer vantagem para o seu titular e resulta para outrem um sacrifício
injusto); c) a exigência de algo que deve ser imediatamente restituído (fundamento da
compensação); d) a desproporção no exercício (quando a vantagem resultante do exercício
do direito é inferior, mínima ou desproporcional ao sacrifício causado a outrem.

ii) A não contrariedade aos bons costumes: os bons costumes opõem-se aos
maus costumes (uma distinção moral). De acordo com Pais de Vasconcelos, os maus
costumes traduzem-se, geralmente, nas práticas que violem a boa-fé objectiva, embora a
imoralidade vá além da boa-fé. A normatividade assente nos bons costumes é aquela que é
imanente na sociedade, que muitas vezes não se encontra nas palavras da lei39. Há, pois,
formas de exercício de direitos que são moralmente inaceitáveis; exercer o direito de forma
imoral constitui abuso do direito.

iii) Desvio do fim social ou económico do direito: O exercício de um direito é


abusivo quando contrário ao fim que a ordem jurídica lhe atribui. Por exemplo, os direitos
sobre as coisas têm um conteúdo, constituído pelos poderes que a ordem jurídica confere
ao seu titular e devem ser exercidos respeitando tais fins. Por exemplo, um arrendatário que
tenha sobre um determinado imóvel o direito de uso e habitação, não o pode usar para fins
incompatíveis com aquele poder; de contrário, estará a desviar-se do fim social e económico
para o qual o direito de uso e habitação foi constituído e pode responder civilmente pelos
danos que causar ao proprietário do imóvel.

iv) Consequências do abuso do direito:


O abuso do direito não tem consequências específicas. A lei limita-se a qualificar de
ilegítimo o abuso do direito (art. 334º C.C.). Em alguns casos, a consequência será a
invalidade do acto (anulabilidade, v.g. deliberações abusivas, no Direito das Sociedades
Comerciais), a ineficácia do acto, a responsabilidade civil (no caso de se verificarem os seus
pressupostos) ou outras consequências adequadas, cabendo ao tribunal determiná-las.

39
Idem, pág. 270.

39
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

O abuso do direito é do conhecimento oficioso, isto é, pode ser decretado pelo


Tribunal mesmo que não tenha sido alegado pelas partes.

b) Restrições à autonomia privada na celebração dos negócios jurídicos


(bilaterais)
Os limites à autonomia privada na realização dos negócios jurídicos incidirão,
logicamente, sobre os aspectos da liberdade contratual (liberdade de celebração e liberdade
de fixação)
i) Restrições à liberdade de celebração:
A faculdade de celebrar ou não celebrar contratos não é absoluta. A lei, de forma
excepcional e em determinados casos, impõe aos particulares ou a obrigação ou a proibição
de celebrar contratos.
Dever jurídico de celebrar contratos:
Pode dizer-se, em geral, que o dever jurídico de contratar40 impõe-se sempre que
certos ou serviços básicos não possam ser obtidos senão mediante a conclusão do
respectivo contrato e a pessoa interessada preencha os requisitos necessários ao acesso
àqueles serviços/bens. A obrigação de celebração só existirá em caso de disponibilidade do
bem ou serviço. São casos do dever jurídico de contratar: os serviços de saúde, de
abastecimento de água, de energia eléctrica, de combustíveis, transportes colectivos,
comunicações, o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. Este seguro tem
uma finalidade própria: prevenir determinados riscos decorrentes da falta de capacidade
financeira, em geral, para os cobrir a reparação dos danos que podem resultar da
sinistralidade rodoviária.
É de admitir, igualmente, por uma questão de ordem pública, o dever jurídico, e até
moral, antes de tudo, de prestar assistência médica (médicos e estabelecimentos de saúde)
em casos de urgência. A prestação de assistência médica, em casos de urgência, é mesmo
uma questão humanitária, antes de jurídica 41.

40
Segundo HÖRSTER, este dever jurídico abrange também a liberdade de fixação para evitar que o
obrigado a contratar contorne este dever, fixando exigências tão exorbitantes relativamente ao conteúdo do
contrato, que a obrigação acabe por não ter efeitos, porque a outra parte nunca estaria em condições de
satisfazer as obrigações contratuais, nomeadamente em relação ao preço. Nota o mesmo autor que a
obrigação de contratar não se pode reconduzir à figura da sujeição, própria dos direitos potestativos, porque,
contrariamente aos direitos potestativos, a parte obrigada a contratar pode violar esta obrigação (A Parte
Geral do Código Civil Português, cit. op. Cit. nº 62).

41
Nesta matéria, é mister transcrever aqui os preceitos relevantes do Código Deontológico e de Ética
Médica, que reza o seguinte:

Art. 6º (Deveres Deontológicos e Estatutários dos Médicos):

40
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

No domínio do Direito das Obrigações, o senhorio está vinculado à renovação do


contrato de arrendamento, se não denunciar o contrato dentro do prazo contratual ou legal
(art. 1095º e 1055º C. Civ.). Trata-se, rigorosamente falando, de um dever jurídico de
manutenção do contrato já celebrado. No Direito do Trabalho, existe também o dever
jurídico da manutenção do contrato de trabalho, de reintegração do trabalhador, quando o
despedimento é feito sem justa causa (art. 229º nº 1 da LGT). Vários outros exemplos podem
ser encontrados no Direito Civil reflectindo a obrigação de contratar ou de celebrar
contratos.
Proibição de contratar:
Por outro lado, há casos em que pesa sobre os particulares a proibição legal de
celebrarem determinados negócios jurídicos. Como exemplos, a proibição 42 do negócio
consigo mesmo, prevista no art. 261º C.Civ.), da cessão de um direito litigioso (art. 579 e
876 C.Civ), da venda a filhos ou netos (art. 877º C.Civ), as chamadas indisponibilidades
relativas (art. 953º e 2192º a 2198º C.Civ), a sujeição da conclusão de negócios jurídicos ao
consentimento de determinada pessoa – por exemplo, certos actos dos inabilitados só
podem realizados com a autorização do curador (art. 153º C. Civ.) ou do representante legal,
em alguns casos; a disposição sobre certos bens43 dos cônjuges só pode ser feita com o
consentimento do outro cônjuge (art. 61ss C. Fam.).

1- São deveres gerais dos médicos em relação à Deontologia Médica os seguintes:

a) “O Exercício da arte médica é uma missão eminentemente humanitária. O médico zela em todas as
circunstâncias pela saúde das pessoas e da colectividade. Para cumprir com esta missão o médico presta
toda a atenção à arte médica que pratica, estando sempre e plenamente preparado de forma a respeitar a
pessoa humana.

d) Todos os médicos devem prestar tratamento de urgência a pessoas que se encontrem em perigo imediato,
independentemente da sua função específica ou especialidade;

e)O médico deve exercer todos os actos médicos benéficos para o doente, segundo o consenso actual da
comunidade médica, mesmo que eles sejam contrários às suas convicções ideológicas, religiosas ou
políticas.

g) O médico deve ter consciência dos seus deveres para com a colectividade”.

42
Rigorosamente falando, só se pode falar da proibição de contratar quando não verificados os requisitos
da sua admissibilidade. Nas condições em que ele é admitido, ele representa apenas um perigo fundado na
possibilidade do conflito de interesses (VER INFRA, o fenómeno da representação).

43
Daqueles bens importantes para a vida económica familiar.

41
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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ii) Restrições à liberdade de fixação:


As restrições que este princípio comporta traduzem-se:
• na necessidade de o conteúdo dos contratos não contrariar a lei, a ordem pública e
os bons costumes (art. 280 C.C.);
• na proibição dos negócios jurídicos usurários (art. 282 C.C.). A usura consiste numa
grande desproporção entre a prestação efectuada (ou prometida) por um dos
contraentes e a contraprestação de outro, resultante da intenção do primeiro, nos
contratos comutativos44;
• na necessidade do respeito pelo princípio da boa-fé. A boa-fé de uma pessoa traduz-
se na sua rectidão, honradez, confiabilidade. A boa-fé objectiva, enquanto padrão de
conduta, impõe-se para proteger a confiança do outro contraente, que tem fé, que se
entrega confiadamente à conduta leal da outra: art. 227, 612 nº 2, 762 nº 2 C.C. (Vide
notas sobre o abuso do direito);
• na existência de normas imperativas: as normas imperativas têm em vista: a)
assegurar um interesse público, b) proteger legítimos interesses de terceiros e d)
proteger a parte mais fraca e 45., especialmente na legislação laboral46, nas
convenções colectivas de trabalho, imperatividade das normas ou cláusulas dos
contratos normativos;
• normas imperativas que ditam o conteúdo obrigatório de determinados contratos
(no contrato de trabalho, no contrato de arrendamento) 47 em relação ao conteúdo
ou cláusulas dos contratos individuais de trabalho;
• na obrigatoriedade de se não ultrapassarem as taxas máximas de juros (art. 1146º
C.Civ.);
• nas cláusulas contratuais gerais ou contratos standard: são “…contratos
uniformizados...em que as condições para o negócio já se encontram pré-estabalecidas

44
Espécie dos contratos onerosos. São Contratos em que as atribuições patrimoniais das partes são certas
(Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, 1979, III-746) no sentido de que são conhecidas no momento
da celebração do contrato.

45
H. E. HÖRSTER op. cit pág. nº 67.

46
No Direito do Trabalho ao lado do princípio da protecção do mais fraco, que é transversal a toda a sua
regulamentação, vigora um princípio importante, que é o princípio do tratamento igual. O nº 1 do artigo
164 da Lei Geral do Trabalho reza, a este propósito: “O empregador é obrigado a assegurar para um
mesmo trabalhado ou para um trabalho de valor igual, em função das condições de prestação da
qualificação e do rendimento, a igualdade de remuneração entre os trabalhadores sem qualquer
descriminação com respeito pelas disposições”.

47
Em Angola, ainda não temos diplomas legislativos reguladores do regime de preços, sobretudo para
determinadas mercadorias, ou as margens de comercialização de determinados produtos. Mas é possível
encontrar uma legislação abundante em outras ordens jurídicas mais desenvolvidas economicamente.

42
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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por uma das partes, com vista a um número indeterminado de contratos iguais a
concluir no futuro com parceiros diferentes, restando a estes apenas a aceitação das
cláusulas fixadas, normalmente sem hipótese de alteração (ou de alteração essencial)”
ou, simplesmente, as cláusulas “elaboradas de antemão por uma das partes e
destinadas a serem aceites, sem mais, pela outra (HÖRSTER). Nos contratos por
adesão, a parte que formula as cláusulas é designada predisponente ou contratante
determinado, ou ainda oferente, por oposição à parte que se limita aceitar, o
aderente.
A existência de contratos por adesão justifica-se por três razões: a primeira razão é
de ordem dogmático-legal: os contratos por adesão resultam das normas jurídicas
dispositivas. Estas normas, por serem gerais, não conseguem comportar ou
contemplar os interesses e os condicionalismos próprios de determinadas áreas
contratuais. A segunda razão é de ordem técnica e reside no facto de os contratos
standard versarem, geralmente, sobre matérias jurídica e tecnicamente complexas
e sofisticadas, o que torna impossível a sua negociação com a generalidade dos
destinatários das cláusulas contratuais gerais. A terceira razão é de ordem prática, e
prende-se com o facto de ser praticamente impossível, no mundo actual, a
negociação individual e pontual das cláusulas dos contratos por adesão.

6. Princípio da responsabilidade civil

Sentido comum ou vulgar


Em sentido comum, a responsabilidade corresponde à necessidade ou
obrigatoriedade de alguém responder pelos actos praticados por si ou pelas pessoas que
estejam a seu cargo e, por conseguinte, pelas respectivas consequências, sejam elas
positivas ou negativas.

Conceito legal
O conceito legal da responsabilidade civil está contido no nº 1 do artigo 483º e no
artigo 562 do Código Civil. O artigo 483º determina, no seu nº 14: “aquele que, com dolo ou
mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a
proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da
violação”. O artigo 562º, por seu turno, estabelece: “Quem estiver obrigado a reparar um
dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga
à reparação”.
43
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

Conceito doutrinal
Com fundamento no supracitado artigo, a responsabilidade civil é costuma ser
definida pela doutrina como:
• a obrigação imposta por lei ao autor de certos factos ou ao beneficiário de
certa actividade de reparar os danos causados a terceiros por tais factos ou
actividade, ou ainda, a necessidade imposta pela lei a quem cause prejuízos
a outrem de colocar o lesado na situação em que estaria sem a infracção (C.A.
MOTA PINTO), ou ainda,
• a “obrigação de ressarcir os danos causados a outrem em decorrência da
violação de direitos” (NÉLIA DANIEL DIAS);
• a obrigação imposta a uma pessoa de reparar os danos causados pelo seu
comportamento, positivo ou negativo.

Responsabilidade e autonomia, duas âncoras do agir humano


A responsabilidade pressupõe autonomia. Não há responsabilidade sem autonomia.
Só pode ser responsabilizado quem tem o conhecimento, o discernimento e a auto
determinação (liberdade) suficientes para que os seus actos possam ser considerados como
seus e para que ela deva responder por eles. A verificação destes pressupostos é muitas
vezes, um processo complexo.
A liberdade é um atributo da pessoa humana; trata-se da capacidade ou faculdade
de escolher e tomar decisões racionais48 sobre os dos actos a praticar e praticá-los sem
coação externa. A liberdade é exercida através dos actos concretos de escolha, mas não se
confunde com eles.
Por outro lado, não há autonomia sem responsabilidade. O homem só é autónomo
porque tem capacidade para responder pelas consequências dos seus actos e omissões.

Responsabilidade civil e responsabilidade jurídica


A responsabilidade jurídica não se esgota nem se confunde com a responsabilidade
civil. Disto resulta a necessidade de, em primeiro lugar, termos uma noção da
responsabilidade jurídica e, em segundo lugar, distinguí-la da responsabilidade civil.

48
Para Immanuel KANT (Metafísica dos Costumes, cit., pág. 31-32), uma decisão racional nunca pode
significar que a pessoa possa escolher contra aquilo que é racional. Por isso, este filósofo questionava a
concepção da liberdade como a faculdade de escolher a favor ou contra a lei, de decidir entre o bem e o
mal. Isto corresponde ao exercício da liberdade, e não se pode confundir com ela. A liberdade é, antes de
tudo, “uma propriedade negativa, a saber, a propriedade de não sermos forçados a agir por nenhum
fundamento sensível de determinação… a Liberdade jamais pode consistir em que o sujeito racional possa
escolher também contra a sua razão (legisladora)”.

44
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

A responsabilidade jurídica pressupõe a prática de um facto ilícito, isto é, contrário


à ordem jurídica estabelecida, independentemente da produção de um dano. Podem ser
apontados, fundamentalmente, quatro tipos de responsabilidade jurídica: a
responsabilidade disciplinar, a responsabilidade decorrente das transgressões
administrativas, a responsabilidade civil e a responsabilidade penal.
A responsabilidade disciplinar decorre da violação de normas jurídicas que regulam
a organização e o funcionamento das instituições (públicas e privadas). A responsabilidade
no âmbito das contra ordenações resulta da prática de um facto que constitui uma
transgressão administrativa (venda ambulante não autorizada, venda de bens em locais
proibidos).

Responsabilidade Civil e responsabilidade penal:


a) Natureza da norma violada: a responsabilidade civil pressupõe a violação de
uma norma do Direito Civil; decorre, portanto, da prática de um ilícito civil; a
responsabilidade penal decorre da prática de um ilícito penal (violação de uma
norma do Direito Penal). Os ilícitos penais são típicos, isto é, só constitui crime
um facto considerado como tal por uma lei anterior à prática do facto (Princípio
da tipicidade) – a qualificação de uma conduta como criminosa exige que seja
individualizada a norma penal violada que estabelece o respectivo tipo (legal)
de crime. Pelo contrário, os ilícitos civis não carecem de uma qualificação
expressa pela lei; tal é o caso da ilicitude da violação de um direito de
personalidade; a ilicitude pode estar prevista numa norma geral que proteja
algum direito ou interesse inter privado (art. 70º, nº 1 C.C.).
Nota bene: em determinados casos, um comportamento constitui, ao mesmo tempo,
um ilícito civil e penal e, às vezes, também disciplinar.

b) Gravidade da sanção: as sanções do Direito Civil são menos gravosas do que as


do Direito Penal. A sanção típica do Direito Civil é a obrigação de indemnização;
existem outras, tais como a obrigação de juros, a cláusula penal, etc. A
responsabilidade penal comporta sanções mais gravosas (privação da liberdade,
multa, medidas de segurança…).

c) Natureza do interesse violado/protegido: a responsabilidade civil pressupõe


a violação do interesse de um particular (interesse entre privados); a
responsabilidade penal pressupõe a violação de direitos que correspondem a
um interesse fundamental do Estado (interesse público), aos bens jurídicos da
colectividade, necessários à existência e à sobrevivência da colectividade.
45
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

d) Impulso processual: o titular da acção cível é o particular cujo interesse tenha


sido violado, ou das pessoas com legitimidade para agir no seu lugar
(representantes); dele depende, exclusivamente, tanto o interesse como o início
e o andamento do procedimento processual. O titular da acção penal é, em
princípio, o Ministério Público, em representação do Estado, exceptuando os
casos de crimes privados e dos semi-públicos, que dependem de participação ou
de queixa do ofendido.

e) Finalidade da responsabilidade: a responsabilidade civil tem uma finalidade


essencialmente reparatória, isto é, visa a reparação dos danos causados ao
particular, a reposição da situação que existia antes da ofensa, ou que existiria
sem a ofensa. A responsabilidade penal visa uma finalidade diversa: reeducar,
ressocializar, recuperar o agente do crime (prevenção especial positiva) e inibi-
lo de praticar actos semelhantes no futuro (prevenção especial negativa) visa,
ainda, inibir os outros membros da colectividade da prática de actos criminais
(prevenção geral negativa) e restabelecer a confiança da comunidade no sistema
de justiça penal (prevenção geral positiva).

Responsabilidade civil
Noção (remissão)
A responsabilidade civil pressupõe, como se disse, um facto danoso, em princípio
ilícito, mas, às vezes, excepcionalmente, também de um facto lícito. Seja num caso seja
noutro, não há responsabilidade civil sem dano.

Modalidades da responsabilidade civil:


A responsabilidade civil é comummente classificada segundo vários critérios, que não se
excluem, necessariamente.

Responsabilidade civil por factos ilícitos versus responsabilidade por factos lícitos
a) Por factos ilícitos (art. 483º a 498º; 798ss C.C.)
Constitui a regra. Verifica-se quando o dano a ressarcir resulta da prática de um facto
contrário à ordem jurídica, isto é, proibido pelo Direito (por exemplo, a resultante do
homicídio, do roubo, lesão ao bom nome, ao crédito de outrem, à privacidade, etc.);

b) Responsabilidade civil por factos lícitos (excepção regra).

46
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

A responsabilidade por factos lícitos tem lugar quando a lei impõe a obrigação de
indemnizar, apesar de o facto danoso ser permitido pela ordem jurídica. Constituem casos
de responsabilidade por factos lícitos os seguintes: responsabilidade resultante da
revogação do consentimento, em matéria dos direitos de personalidade (art. 81º, nº 2 C.C.),
responsabilidade decorrente da prática de um facto no âmbito do estado de necessidade
(art. 339º, nº 2 C.C.), indemnização por danos causados por escavações ou abertura de
minas e poços em prédios (art. 1348º) ou por danos causados pela apanha de frutos (art.
1349º), igualmente a responsabilidade prevista no artigo 1367º, e responsabilidade
decorrente da revogação do mandato (art. 1172º);

O C.C. não consagra uma secção específica à responsabilidade por factos lícitos; encontra-se
espalhada, esporadicamente, ao longo do C.C.

Responsabilidade civil extra contratual versus responsabilidade contratual


O critério de classificação é, aqui, a fonte da obrigação de indemnizar.
c) Responsabilidade civil contratual (art. 798º e ss C.C.)
Diz-se contratual a responsabilidade civil decorrente da violação de uma obrigação
contratual, ou simplesmente, de um negócio jurídico (ex.: responsabilidade do depositário
pelos danos causados à coisa depositada, responsabilidade do vendedor pelos danos ou
defeitos da coisa vendida, nos casos em que a lei o permita – art. 914ss C.C., responsabilidade
do locatário pelos danos causados à coisa locada).

d) Responsabilidade civil extra contratual (regra) – art. 483º, nº 1 C.C.


A responsabilidade civil diz-se extra contratual quando a obrigação de indemnizar não
resulta da violação de uma obrigação imposta por um negócio jurídico/contrato. Por outras
palavras, a responsabilidade civil extra contratual pressupõe e existência, não de uma
relação contratual, mas sim de uma relação jurídica genérica e, portanto, a violação de
direitos subjectivos absolutos (por exemplo, a responsabilidade decorrente de um acidente
de viação), que, como sabemos, impõem uma obrigação passiva universal ou dever geral de
abstenção
A responsabilidade civil extra contratual abrange:
i) a responsabilidade civil por factos ilícitos (responsabilidade civil subjectiva =
fundada na culpa)
ii) a responsabilidade civil por factos lícitos e (tendencialmente independente de
culpa)
47
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

iii) a responsabilidade civil pelo risco (independente de culpa)

e) Responsabilidade civil pelo risco/objectiva (art. 510s C.C.)


Pré-compreensão da responsabilidade civil objectiva: o princípio do primado da
culpa.
A regra, em Direito Civil, é o princípio da culpa ou do primado da culpa, isto é, a lei
civil parte do princípio de que as pessoas só podem responder por comportamentos
culposos. É este o princípio está subjacente ao nº 1 do artigo 483º do Código Civil. Entende-
se por culpa a censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter adoptado uma conduta
reprovável e contrária à ordem jurídica e a consequente imputação do facto danoso (art.
487º nº 2).
Poderia colocar-se a questão de saber por que razão o legislador não optou pela
imposição da responsabilidade civil independente de culpa como regra. C.A. MOTA PINTO49
pronuncia-se no sentido de que o primado da culpa é um apelo à responsabilidade moral da
pessoa e mostra que a responsabilidade jurídica tem um fundamento ético. Responsabilizar
o homem, mesmo sem culpa, e fazer disso uma regra, seria retirar aquele fundamento e
negar a liberdade do homem e sujeitá-lo a arbitrariedades. “O arbítrio é incompatível com a
dignidade” (PAIS DE VASCONCELOS).
Outros autores defendem a ideia de que o primado da culpa não se funda em motivos
éticos, mas sim económicos, isto é, na sua origem está a preocupação de preservar a
liberdade de actuar e o entusiasmo empresarial (J. ESSER)50

Fundamentação racional da responsabilidade pelo risco: “ubi commoda ibi


incommoda”
Há situações em que, objectivamente, se chega à conclusão de que o próprio lesante
não teve culpa nenhuma. Em tais casos, numa lógica cega, não seriam ressarcidos os danos
causados sem culpa, ficando os mesmos a cargo do lesado, ou, pelo menos, suportados pela
colectividade (socialização dos riscos). Ora, isto seria uma injustiça bárbara e insustentável.
Seria o caso dos danos causados à saúde humana por uma fábrica. Por isso, ao lado da
responsabilidade civil subjectiva (fundada na culpa), e dentro da responsabilidade
extracontratual, foi concebida a responsabilidade pelo risco, regulada nos artigos 499º a
510º do Código Civil.

49
C.A. C.A. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit. Nº 28-II.

50
HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit., nº 119.

48
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

O fundamento da responsabilidade civil pelo risco não reside na culpa do agente,


nem na ilicitude da sua actividade (porque esta é lícita), mas sim no princípio de que, sendo
ele quem tira vantagens de certa actividade (permitida e encorajada pelo Estado, que,
entretanto, não está interessado em vê-la proibida, por ser de reconhecida utilidade social,
mas cujos riscos também não quer assumir) que pode causar riscos, deve ser ele também a
arcar com os prejuízos (desvantagens) que tal actividade cause a terceiros (ubi commoda
ibi incommoda). Pode dizer-se que a responsabilidade civil pelo risco se baseia no princípio
da justiça; é justo que quem crie um risco arque com as consequências da sua verificação.
A obrigação de indemnizar decorrente do risco implica, muitas vezes, custos
enormes, que podem ir para além das reais capacidades financeiras e económicas do agente
da actividade em causa. Para neutralizar o efeito penoso que disto resultaria, as entidades
responsáveis por tais actividades transferem o seu risco para as empresas seguradoras, por
via do contrato de seguro. Em determinados casos, o seguro é obrigatório.
A actividade seguradora é tratada como uma verdadeira colectivização dos danos e
uma ilusão da responsabilidade civil51 (individual).

f) Responsabilidade civil subjectiva versus responsabilidade civil objectiva:


Art. 4836º C.C.:
Nº 1: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de
outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios
fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”;
Nº 2:

A lei distingue, portanto, entre os casos de responsabilidade fundada na culpa, ou


responsabilidade por factos ilícitos (art. 483º, nº 1) e os casos de responsabilidade
independente de culpa (art. 483º2). À responsabilidade fundada na culpa a doutrina chama
de responsabilidade subjectiva, enquanto a responsabilidade independente de culpa é
designada como responsabilidade objectiva.
A responsabilidade civil subjectiva é portanto, a responsabilidade fundada na culpa
e constitui a regra, enquanto a responsabilidade civil objectiva é a responsabilidade
independente de culpa, e constitui a excepção à regra e só se verifica nos casos previstos na
lei (art. 483º, nº 2 C.C.).

51
HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit. nº 123.

49
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

A responsabilidade civil subjectiva (fundada na culpa) abrange: a responsabilidade


civil extracontratual por factos ilícitos, alguns casos pontuais de responsabilidade por factos
lícitos (ex. estado de necessidade) e a responsabilidade civil contratual (aqui, a lei presume
a culpa do devedor - art. 798º C.C.). Casos de responsabilidade civil objectiva (independente
de culpa): responsabilidade civil por factos lícitos, em geral, e responsabilidade civil pelo
risco.
Às vezes, as expressões responsabilidade objectiva e responsabilidade pelo risco são
usadas como sinónimos. A responsabilidade civil objectiva é uma categoria mais
abrangente; nem todos os casos de responsabilidade civil objectiva correspondem à
responsabilidade civil pelo risco. Por exemplo, a obrigação de indemnizar decorrente da
revogação do consentimento (art. 81/2 C.C.) cabe na responsabilidade civil objectiva (é
independente de culpa), de igual modo, a responsabilidade decorrente da revogação do
mandato (art. 1172 C.C.), mas não é pelo risco. A responsabilidade pelo risco pressupõe a
existência de uma actividade ou facto que cria um risco para os direitos de outras pessoas
legalmente protegidos. A actividade é lícita, corresponde a um interesse do Estado. Todavia,
o Estado não assume as consequências decorrentes da verificação do risco.
Tendencialmente, a responsabilidade objectiva será pelo risco, mas nem todos os casos de
responsabilidade independente de culpa constituem responsabilidade pelo risco.

O ónus da prova da culpa (ónus probandi) e os casos de inversão do onus


Em Direito Civil, rege o princípio geral consagrado nº 1 do artigo 342º do C.C.
segundo o qual “àquele que invocar um direito, cabe fazer a prova dos factos constitutivos do
direito alegado”, neste caso, o direito à indemnização. Em matéria de responsabilidade civil
propriamente dita, a regra do onus probandi está consignada no nº 1 do artigo 487º do
Código Civil que estabelece: “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão…”.

Inversão do ónus da prova da culpa (presunção legal de culpa) 52:


Em situações tabeladas, o legislador inverteu o ónus da prova da culpa, saindo, desta
forma, em defesa do lesado. Nos termos do nº 1 do artigo 350º C.C., “quem tem a seu favor a
presunção legal escusa de provar o facto que a ela conduz”. Cabe, então, em casos
pontualmente determinados pela lei, ao autor da lesão desculpar-se, provando que tudo fez
para impedir a consumação dos danos ou que estes viriam a produzir-se

52
As presunções são tecnicamente definidas como as ilações que a lei (presunções legais) ou o julgador
(presunções judiciais) tira de um facto conhecido (no caso a lesão) para afirmar um facto desconhecido
(omissão do dever de agir).

50
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

independentemente dos seus esforços para os evitar (invocação da causa virtual)53. Nas
situações de inversão do onus probandi, vigora a regra da presunção legal de culpa do
lesante, prevista na parte final do nº 1 do supracitado artigo (“…salvo presunção legal de
culpa…”). A presunção legal de culpa só existe nos casos previstos na lei.
Segundo o nº 2 do artigo 344ºdo Código Civil, além dos casos previstos no nº 1 do
mesmo artigo, há também inversão do onus da prova quando a parte contrária tiver
culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei
de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.
Podemos identificar alguns casos de presunção legal de culpa.
a) De acordo com o artigo 491º do Código Civil, as pessoas obrigadas à vigilância
de outrem respondem pelos danos que a pessoa vigilada cause a terceiros, excepto se
provarem que cumpriram o seu dever de vigilância, ou que os danos se teriam produzido
ainda que o tivessem cumprido54;
b) O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir é responsabilizado
pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com
a diligência devida, se não teriam evitado os danos (art. 492º nº 1);
c) A pessoa que, por negócio jurídico ou por lei, está obrigada a conservar o edifício
ou obra no lugar do proprietário, responde pelos danos, se os danos se deverem,
exclusivamente, a defeitos de conservação (art. 492º nº 2);
d) A responsabilidade pelos danos causados por coisas, animais ou actividades
recaem sobre as pessoas que têm o dever de os vigiar, salvo prova de ausência de culpa
dessas pessoas ou de que os danos se teriam verificado mesmo sem culpa (art. 493 nº 1.);
e) Os que exercem uma actividade, em relação aos danos que esta instale na esfera
jurídica de outras pessoas (art. 493 nº 2);
f) Nos termos do nº 3 do artigo 503º: “aquele que conduzir o veículo por conta de
outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte”.

Pressupostos da responsabilidade civil subjectiva:


Para que se possa despoletar o fenómeno da responsabilidade civil subjectiva, é necessário
que se verifiquem, cumulativamente, os seguintes pressupostos:
1º: o facto voluntário do agente:

53
Ver infra, nexo de causalidade.

54
A presunção legal de culpa reside, neste caso, no raciocínio de que o facto danoso resultou da omissão
do dever de vigiar (culpa in vigilando).

51
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

O facto voluntário do agente é o “motor de arranque” da responsabilidade civil


subjectiva. É necessário, em primeiro lugar, que o facto seja materialmente imputado ao
agente, porque, por via de regra, cada um responde por actos próprios e não de outras
pessoas. Todavia, a simples imputação material não é suficiente; em certos casos, nem é
necessária (v.g. a responsabilidade do vigilante pelos factos da pessoa cuja vigilância lhe foi
confiada, em que o facto foi materialmente cometido por uma pessoa diferente daquela que
deve por eles responder).
O facto do agente tem de ser voluntário, isto é, imputado ou imputável à sua vontade.
A voluntariedade não significa que os factos tenham de ser produzidos intencionalmente;
basta que sejam domináveis pela vontade, embora esta não os tenha controlado. O facto
voluntário abrange as acções e as omissões.
Nota: as omissões só podem fazer surgir a responsabilidade civil quando exista um
dever jurídico de agir, isto é, um dever de praticar um acto jurídico que teria impedido a
consumação do dano. Este dever pode tanto resultar de um negócio jurídico como da lei
(art. 486º C.C.). Tal é o caso da responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outras
(art. 491º C.C.). Há aqui uma presunção legal de culpa contra o vigilante. Trata-se, todavia,
de uma presunção relativa, podendo, ser afastada pelo vigilante, provando que fez tudo o
que estava ao seu alcance ou que o dano se teria produzido em qualquer caso. Costuma-se
dizer que o vigilante responde por um facto próprio, isto é, a omissão do dever de agir.

2º: A ilicitude do facto (art. 483º/1 C.C.)


Está subjacente ao nº 1 do artigo 483º do C.C. (“aquele que, com dolo ou mera culpa,
violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger
interesses alheios…”).
É necessário que o facto do agente seja ilícito. A ilicitude consiste na contrariedade
à ordem jurídica e pode traduzir-se tanto na violação de um direito de outrem, como na de
uma norma jurídica destinada a proteger interesses de terceiros (art. 483º, nº 1 C.C.).
Todavia, neste último caso, só há obrigação de indemnizar só existirá se a mesma norma
que tutela o interesse de terceiro conferir a este o respectivo subjectivo correspondente à
sua tutela (ANTUNES VARELLA).
Há violações de direitos que são, excepcionalmente, toleradas pela ordem jurídica,
situações em que esta justifica a violação de direitos, ou, por outras palavras, em que o facto
lesivo se justifica. São as chamadas causas de exclusão de ilicitude. São tais: o estado de
necessidade (art. 339º), a legítima defesa (ar. 337º) e a acção directa (art. 333º C.C.) e o
consentimento do lesado (art. 340º C.c.).

3º: O nexo de causalidade:


52
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

O nexo de causalidade está patente tanto no nº 1 do artigo 483º (aquele que, com
dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos
resultantes dessa violação”), como no artigo 563º (“a obrigação de indemnizar só existe em
relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não sofresse a lesão”).
Exige-se, portanto, a existência de uma relação de causa e efeito entre o facto ilícito
do agente e o dano. Considera-se como causa aquela condição que, pela sua natureza e em
face das circunstâncias do caso, se mostre apropriada, apta, adequada e idónea para gerar
o dano
A causa do dano pode consistir numa acção ou numa omissão. A omissão só poderá
ser considerada causa quando haja um dever jurídico de agir (decorrente da lei ou de
negócio jurídico) e se prove que dano não se teria produzido se se tivesse cumprido como o
respectivo dever (art. 486º C.C.).
Entretanto, pode acontecer que um facto que seja naturalmente apto a produzir
determinado dano não tenha produzido, seja porque houve, entre o facto idóneo (causa
virtual ou hipotética) e a produção do dano um outro acontecimento que o veio a produzir
efectivamente (causa operante), interrompendo-se, desta forma, a causalidade. Neste caso,
o dano será imputado à causa operante, desde que esta tenha um carácter independente em
relação à causa adequada.
Em outros casos, pode ocorrer que “o prejuízo derivado de certo evento, seria
verificado posteriormente, como consequência de outro facto”. Chama-se isto causalidade
antecipada ou precipitada (NÉLIA DANIEL DIAS).
Tanto num caso como noutro, a causa virtual é o evento que, embora apto a produzir
o dano em causa, não o chegou a produzir, seja porque um outro evento posterior quebrou
a causalidade (causalidade interrompida), seja porque outro acontecimento a antecipou
(causalidade antecipada).
Em Direito Civil, a causa virtual, tanto na causalidade interrompida como a
causalidade antecipada ou prematura, é relevante, na medida em que pode afastar a
obrigação de indemnizar (art. 491º, 492º, 493º, 503º, nº 3); na responsabilidade penal, pelo
contrário, a casa virtual não é irrelevante, ou seja, o agente do crime é sempre punido

4º: A culpa (dolo e mera culpa)


Consagração legal: art. 483º, nº 1 e 488
Consagração legal
O comportamento do agente, além de ser ilícito e a causa do dano, deve ser também
culposo. O fundamento legal da culpa como pressuposto da responsabilidade civil subjectiva
53
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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encontra-se no nº1 do 483º (“aquele que, com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito
de outrem …) e no nº 1 do artigo 488º (“não responde pelas consequências do facto danoso
quem, no momento em que o facto ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado de
entender ou querer…”.

Noção:
A culpa consiste no juízo de censurabilidade pessoal do comportamento do agente
(NÉLIA DANIEL DIAS), um juízo de censura ético-jurídica dirigido ao agente, por ter
adoptado uma postura reprovável.

Pressupostos da culpa:
Para haver culpa, é necessário que haja um comportamento voluntário (liberdade),
no sentido de este ser dominado ou dominável pela vontade e, além disso, a capacidade do
agente de entender, isto é, avaliar o resultado, as dimensões e o alcance do seu agir (acção
ou omissão) e capacidade de querer (liberdade). A culpa pressupõe, portanto, vontade e
esclarecimento. Estes pressupostos estão referidos no nº 1 do artigo 488, que estabelece:
“não responde pelas consequências do facto danoso quem, no momento em que o facto ocorreu,
estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer…”.

Modalidades da culpa
A culpa pode apresentar sob a forma de dolo ou de negligência. Às vezes, o dolo é
referido como má fé e a mera culpa, como negligência. O dolo é a forma mais intensa da
culpa; a negligência, a sua forma menos intensa.

- O dolo:
O dolo é o querer de um resultado contrário ao Direito, de se violar o direito de
outrem e de causar-lhe um prejuízo ou com a consciência ou intenção de infringir um dever
jurídico (ENNECCERUS-NIPPERDEY)55. No dolo, o agente tem, portanto, a representação do
efeito danoso do acto praticado, a intenção maléfica e a aceitação, em termos reflexivos,
desse resultado.
i) Tipos de dolo: dolo
- Dolo directo: no dolo directo, o agente representa ou prefigura, no seu espírito,
certo efeito do seu comportamento e pretende directamente esse efeito como fim da sua
conduta, não obstante ter conhecimento de que o facto é ilícito.

55
NÉLIA DANIEL DIAS, A Responsabilidade Civil subjectiva, cit., pág. 73.

54
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-Dolo necessário ou indirecto: o agente, apesar de não pretender praticar


directamente o facto ilícito, o prevê, como consequência necessária do seu comportamento.
E conforma-se com o resultado. O dolo indirecto ou necessário é, na doutrina e na lei,
equiparado ao dolo directo
-Dolo eventual: o agente lesante previu a produção do facto ilícito como efeito
provável ou possível do seu comportamento e, ainda, assim, o realizou. O dolo eventual está
mais próximo da negligência (negligência consciente). É difícil distinguir entre um e outro.
Refira-se que é possível afastar-se o dolo, provando-se que houve uma suposição
errónea de que o facto constitui causa de justificação. Mas aqui, teria de se tratar de um erro
invencível (art. 338º C.C.).

ii) A apreciação da culpa (art. 483º, nº 1; 487º, nº 1, 494º , 570º e 799º, nº 2


CC):
No Código Civil, a apreciação da culpa faz-se em dois sentidos: um abstracto e outro
concreto.
O nº 1 do artigo 487º do C.C. estabelece: “a culpa é apreciada, na falta de outro
critério legal, pela diligência de um bom pai de família…”.
Quando a lei não estabeleça um critério, a apreciação da culpa em sentido abstracto
faz-se, colocando a figura abstracta de um “bónus pater familias”, isto é, de uma pessoa
diligente, no lugar do agente do facto lesivo (artigo 487º, nº 1 C.C.). A fórmula latina “bonus
pater famílias” é um conceito vago e indeterminado, cujo significado só pode ser aferido,
analisando o comportamento da pessoa nas circunstâncias concretas. Esta figura jurídica
traduz-se na ideia de uma pessoa normal, bastante cuidadosa, diligente, prudente no seu
agir. Considera-se que há culpa quando se julgue que uma pessoa prudente, no lugar do
autor do facto ilícito danoso, teria adoptado uma postura diferente e aceitável, de acordo
com os padrões da boa conduta.
Da leitura do nº 1 do artigo 487 do C.C., resulta que o recurso à figura do bonus pater
familias tem carácter subsidiário, só terá lugar quando a lei não tenha estabelecido o critério
de apreciação a seguir.

Em concreto, a culpa é apreciada pelo comportamento que se esperava do agente do


facto ilícito em concreto, isto é, “em face das circunstâncias de cada caso”. A culpa, apreciada
in concreto, “encontra-se numa razão directa com a diligência que este costuma seguir no
âmbito da sua actividade” (NÉLIA DANIEL DIAS).

Apreciação da culpa como dolo ou mera culpa

55
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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Embora o nº 2 do artigo 487º, relativo à apreciação da culpa, não o refira


claramente, decorre do nº 1 do artigo 483º que a apreciação da culpa envolve a questão de
saber se o autor do facto ilícito agiu com dolo ou com mera culpa. A relevância desta análise
da culpa é atestada pelo artigo 494º, na medida em que permite delimitar a obrigação da
indemnização. Dir-se-á que o montante da indemnização pode ser considerado
proporcional à intensidade ou gravidade da culpa, isto é, quanto mais intensa a culpa (dolo),
mais alto o valor da indemnização e vice-versa. Assim, quando há dolo, o valor da
indemnização deverá corresponder ao valor total dos danos, pelo que o julgador não pode,
em sede da responsabilidade civil subjectiva, fixar um valor inferior ao dos danos a reparar,
em caso de dolo. Havendo mera culpa, o valor pode ser reduzido; o julgador poderá recorrer,
então, a critérios de equidade na sua fixação. O artigo 494º deve ser combinado com o artigo
570º, relativo à culpa do lesado. Se este tiver concorrido para a produção ou agravamento
dos danos, o Tribunal poderá determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as
partes e nas consequências que delas resultarem, se a indemnização deve ser totalmente
concedida, reduzida ou excluída (art. 570 nº 1). Além disso, nos termos do nº 2 deste mesmo
artigo, se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa do lesado, na falta
de disposição em contrário, exclui-se o dever de indemnizar.
Além de tudo isto, o legislador manda atender ao critério da equidade, na fixação do
valor de indemnização, nomeadamente a equidade. É preciso atender à situação económica
tanto do lesante como do lesado (art. Xxx C.C.).

iii) A prova da culpa:


Na responsabilidade civil extracontratual, cabe ao lesado e ao credor provar a culpa
(art. 487/1), a menos que haja alguma presunção a seu favor. Quem invoca um direito deve
provar a existência do mesmo (art. 342/1 CC). Podemos concluir que a regra na
responsabilidade civil extracontratual é não haver presunção de culpa.
Constituem excepção à regra os casos de presunção de culpa: art. 343º, 344º nº 1,
491º, 492º, 493º, 503nº 3.
Na responsabilidade civil contratual, há inversão do onus de prova, cabe ao autor da
lesão ou causador dos danos (devedor) provar que não teve culpa (art. 799º, nº 1e 2, e art.
798º CC).
Pode haver culpa por imperícia, quando o agente lesante descurou o dever de
actualizar a técnica e os conhecimentos necessários para cumprir de forma cabal a sua
profissão. Fala-se, neste caso, de indiligência e de imprudência 56.

56
NÉLIA DANIEL DIAS, A Responsabilidade Civil Subjectiva, cit., pág. 86.

56
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

5º: o dano
A relevância do dano não se cinge ao facto de ele constituir um (dos) pressuposto(s)
da responsabilidade civil subjectiva; o dano condiciona e determina, antes de mais, a
existência da própria responsabilidade civil, seja ela subjectiva ou objectiva. Com efeito, em
Direito Civil, não há obrigação de indemnizar se não houver danos. Ninguém pode ser
indemnizado por danos inexistentes ou que não tenha sofrido.
O dano é segundo a qual o dano é o prejuízo que o lesado sofreu in natura, em forma
de destruição, subtracção ou deterioração de um certo bem, corpóreo ou ideal (MANUEL DE
ANDRADE57), ou toda e qualquer ofensa aos bens ou interesses alheios protegidos pela
ordem jurídica (ALMEIDA COSTA) 58. O dano pode ser visto, ainda, como uma desvantagem
ou perda que se verifique nos bens jurídicos de uma pessoa, ou simplesmente como a perda
sofrida pelo lesado em decorrência de um evento.
Para efeitos de responsabilidade civil, são de excluir do conceito de dano os que o
próprio titular do direito cause a si mesmo, porque estes danos não são ressarcíveis.

i) Tipos de dano (art. 564):


Os danos podem ser patrimoniais ou não patrimoniais (morais), consoante sejam ou
não susceptíveis de quantificação ou avaliação em dinheiro, conforme incidam ou não sobre
interesses, bens ou direitos de natureza económica (ex. direito a um crédito, ao pagamento
de uma renda, ao pagamento de um bem ou serviço) ou espiritual (danos causados à saúde,
ao bem-estar, à beleza, à honra, ao bom nome, à alegria de viver, ao equilíbrio anímico, etc.).
Segundo o artigo 564º do Código Civil, a categoria danos patrimoniais abrange 59: a)
o dano emergente (nº 1)60, isto é, a diminuição efectiva no património do lesado; e b) o lucro
cessante (art. 564º nº 1CC), ou seja, os benefícios económicos que o lesado deixa de
perceber, como consequência da lesão.
Nos termos do nº 2 do mesmo artigo, os danos podem ser presentes ou futuros,
sendo que os últimos (danos futuros) só serão atendíveis quando previsíveis.

57
In Teoria Geral das Obrigações (citado por NÉLIA DANIEL DIAS, in Responsabilidade Civil
Subjectiva, cit., pág. 90).

58
NÉLIA DANIEL DIAS, A Responsabilidade Civil Subjectiva, op. cit, pág. 91.

59
Quanto aos danos patrimoniais, costuma falar-se da perda da capacidade de ganho.

60
Segundo Antunes Varela, o dano emergente pode configurar tanto a diminuição do activo como no
aumento do passivo

57
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

Uma orientação doutrinária fala ainda em dano real, isto é, todo o prejuízo que o
lesado sofreu em termos naturalísticos, ou a lesão efectivamente suportada.
Fala-se também da classificação dos danos em directos e indirectos. Os primeiros
são os prejuízos imediatos do facto lesante ou a perda directa causada nos bens ou valores
juridicamente tutelados. Os danos indirectos são os efeitos remotos ou mediatos do dano
directo.
Preenchidos que estejam os pressupostos que acabamos de descrever
sumariamente, determina-se, então, a obrigação de indemnizar o lesado. Tal determinação
é feita em conformidade com os artigos 563º e seguintes do Código Civil, sendo relevante
frisar que o momento da aferição ou determinação do quantitativo da obrigação de
indemnizar é o da pronúncia da sentença condenatória, ou seja, é neste momento que são
computados os danos em que o autor da lesão será condenado. Todavia, pode haver lugar à
condenação provisória sempre que não seja possível apurar já o valor definitivo dos danos
(art. 565º e 569º do C.C.).

7. Princípio do respeito pela propriedade privada


7.1 O sentido geral da propriedade no Direito Civil
Ao longo da sua existência, as pessoas vão adquirindo bens e direitos sobre bens.
Deste fenómeno natural decorre, logicamente, o princípio da propriedade privada.
Deve-se notar, antes de mais, que a propriedade tem aqui um sentido amplo, e não
técnico61. Em sentido técnico ou restrito, a propriedade designa, apenas, um dos tipos dos
direitos reais, o direito de propriedade. Em sentido amplo, vertido aqui, a propriedade
corresponde a todo o conjunto de direitos sobre os bens, ou conjunto de direitos de
carácter patrimonial.

Importância da propriedade (autonomia patrimoial Versus desenvolvimento


da personalidade) e da sua protecção jurídica (constitucional e civil)
A propriedade é considerada como uma incontornável faceta da autonomia
privada, enquanto sinal e instrumento de realização da autonomia patrimonial62
necessária para a realização da dignidade da pessoa humana, para o desenvolvimento
da sua personalidade e é necessária para a sua sobrevivência. JOSÉ DE OLIVEIRA

61
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, cit., vol. I, nº 12-III.

62
A esfera jurídica da pessoa comporta duas sub-esferas: a esfera jurídica pessoal (conjunto de relações
jurídicas pessoais ou não patrimoniais) e a esfera jurídica patrimonial (conjunto de relações jurídicas de
carácter patrimonial).
58
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

ASCENSÃO63 considera que “o exercício da autonomia patrimonial acarreta necessariamente


direitos sobre os bens”. Por sua vez, C.A. MOTA PINTO64 afirma: “a autonomia privada…
encontra, pois, os veículos da sua realização nos direitos subjectivos e na possibilidade de
celebração de negócios jurídicos”. Quanto aos primeiros, direitos subjectivos, é importante
lembrar que é através da soberania do querer que as pessoas decidem o que fazer dos seus
bens. Relativamente aos negócios jurídicos, é ponto assente que a propriedade se adquire,
mormente, através deles. Por isso, conviremos em afirmar que a autonomia da pessoa se
realiza, necessariamente, através da autonomia patrimonial; esta, por sua vez, não tem lugar
sem direitos sobre bens.
A relevância da propriedade que se deixou expressa justifica o princípio do respeito
e da protecção da propriedade. A propriedade é um dos direitos fundamentais dos cidadãos
e é, portanto, objecto de protecção constitucional. O direito à propriedade é assegurado pela
Constituição da República de Angola65, que estabelece, nos nºs 1 e 2 do artigo 37º,
respectivamente: “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão…”;
“o Estado protege a propriedade e demais direitos reais das pessoas singulares, colectivas e
das comunidades locais”.
Em face da ideia de que da soberania do querer, enquanto corolário da autonomia
privada, decorre a liberdade de o homem perseguir com os seus bens os fins que escolher,
sem necessidade de dar razões das suas opções, embora dentro dos limites que a ordem
jurídica fixa para este exercício, justifica-se a necessidade de uma fundamentação racional
da regulação do domínio sobre as coisas (direitos reais). Doutrinariamente, valemo-
nos, uma vez mais, das lições dos insignes mestres que acabámos de citar para expor a razão

63
Op. Cit. , I Vol. Nº 9-I.

64
Op. Cit. Nº 21-III.

65
Diga-se de passagem que a Constituição da República de Angola reconhece três sectores de propriedade:
sector público (Estado e outras entidades públicas), privado (pessoas singulares e colectivas), e cooperativo
e os direitos reais das pessoas singulares, colectivas e das comunidades locais (Cf. art. 37/14 e art. 92 C.RA.
Remete-se o estudo desta matéria para a disciplina própria.

59
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

que se impõe. Lendo as lições dos professores OLIVEIRA ASCENSÃO 66 e C.A. MOTA PINTO67,
chegaremos à conclusão de que a regulação da propriedade encontra a sua razão de ser na
necessidade da prevenção de conflitos e, por conseguinte, na garantia da paz, e na
sociabilidade humana e na regra da solidariedade social que consubstanciam a
função social da propriedade68. A falta da disciplina jurídica do poder do homem sobre as
coisas, além de levar ao desrespeito das outras pessoas, tornaria os próprios direitos sobre
as coisas inseguros, expostos a agressões (eventualmente resultantes tanto da escassez de
bens como da ambição humana – situação que levaria à luta pela apropriação dos bens); isto
daria azo a que o titular precário dos bens os defendesse por meios igualmente agressivos
e por recurso à justiça privada (vindicta privata).
Como foi referido acima, o sentido em que se abordou a propriedade até aqui não é
o técnico, mas sim lato, aquele que é extensivo a todos os direitos patrimoniais. Não sendo
correcto, nem desejável, que o estudante de Teoria Geral do Direito Civil fique com um
conhecimento difuso sobre a propriedade, é mister ver, ainda que sumariamente, como o
Código Civil trata os direitos sobre as coisas (direitos reais) e, neste âmbito, distinguir a
propriedade, enquanto direito real, dos outros tipos de direitos reais. O estudo mais
aprofundado e desenvolvido desta matéria pertence e é remetido à competente disciplina
de Direitos Reais, do 4º ano do Curso de Direito.

7.2 Os vários tipos de direitos reais:


7.2.1 O direito de propriedade – noção.

66
Diz o autor: “Mas o direito exerce-se em sociedade. As posições dos vários intervenientes têm também
de ser conjugadas, para evitar conflitos e organizar a colaboração. A tendência deste século foi a de
assegurar progressivamente a solidariedade neste domínio, afastando-se o modelo da propriedade
absoluta romana. A lei tece cada vez mais vínculos de colaboração entre os intervenientes derivada de um
simples facto: o homem vive em sociedade e, para evitar conflitos, necessário se torna regular o exercício
dos direitos reais, tendo em conta as outras situações juridicamente protegidas, porque autonomia não é
sinónimo de individualismo...a pessoa deve agir, não apenas com os outros, mas os outros. Em toda a
sociedade deve haver uma solidariedade que implique que a actuação de todos tenha reflexos positivos na
ordem global. Pressupõe-se que cada um, no uso da sua autonomia, beneficie o conjunto” (Direito Civil,
Teoria Geral, cit. Nº 32-II).

67
Op. Cit. Nº 9 – II e III.

68
Neste sentido, há que pensar além do Direito Privado, porque para realizar a função social da propriedade,
o Direito, como ordem global, serve-se das normas jurídicas que ultrapassam o âmbito privado; estabelecerá
uma relação jurídica do Direito Público, como é a relação jurídica do imposto, disciplinada pelo Direito
Fiscal. Embora isto pareça criar uma certa tensão entre a privacidade e a intervenção pública, esta é
necessária em certos domínios, desde que se salvaguarde um espaço de liberdade que não ponha em causa
a liberdade das pessoas como princípio. O Direito Fiscal é, talvez, a área mais exuberante de ilustrações de
como o exercício do direito da propriedade privada beneficia a colectividade. O imposto é, sem dúvidas,
um mecanismo de obrigar as pessoas à solidariedade. Esta ideia está patente no artigo 101 da Constituição
de Angola que estabelece que o sistema fiscal visa a redistribuição da riqueza nacional e a solidariedade

60
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

ANTUNES VARELA e GALVÃO TELLES partilham a noção segundo a qual a


propriedade é o vínculo jurídico que sujeita uma coisa do mundo exterior (res corporalis) ao
pleno (real ou potencial) e exclusivo poder de soberania de uma pessoa, que fica tendo o
poder de usar (ius utendi), fruir (ius fruendi) e dispor (ius abutendi) dela, dentro dos limites
da lei69. Por sua vez, MENEZES CORDEIRO define o direito de propriedade como a afectação
jurídico-privada de uma coisa corpórea, em termos plenos e exclusivos, aos fins de pessoas
individualmente consideradas, ou a permissão normativa, plena e exclusiva de
aproveitamento de uma coisa corpórea70.
Ao lado do direito de propriedade, existem outros direitos reais, aos quais,
brevemente, lançaremos um olhar. Por ora, cabe referir que, na esteira de uma antiga
tradição jurídica, que acolheu as chamadas teorias do domínio 71, tornou-se vulgar afirmar-
se que a propriedade se distingue dos outros tipos de direitos reais por se apresentar como
o direito real mais extenso imaginável, ou o direito que confere a mais ampla senhoria sobre
uma coisa determinada, ou ainda, no seguimento de uma outra teoria muito próxima da
primeira72, que a propriedade é o direito que outorga a universalidade dos poderes que à
coisa se podem referir – o direito à fruição da coisa (ius fruendi), ao seu uso (ius utendi) e a
dispor da coisa (ius abutedi)73. É corrente, neste sentido, dizer-se que o direito de
propriedade é o “direito real máximo” ou o “direito real pleno”.

a) Modalidades do direito de propriedade:


Dentro do direito de propriedade, cabe distinguir entre a propriedade singular e a
propriedade plural. A propriedade singular corresponde à titularidade do direito de
propriedade por uma única pessoa. A propriedade plural ocorre quando duas ou mais
pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre uma mesma coisa.

69
MELO FRANCO, João, e ANTUNES MARTINS, António Herlânder, in Dicionário de Conceitos e
Princípios Jurídicos, opus citatus, pág. 705.

70
Idem, pág. 706.

71
Ao lado desta teoria, existiu a teoria da pertença, que centra a distinção entre os direitos reais na pertença
ou na intensidade da ligação que une a coisa ao titular do direito, e uma terceira teoria, muito próxima da
teoria do domínio (OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Direitos reais, 4ª Ed..- 381, citado por João
MELO FRANCO e António Herlânder ANTUNES MARTINS, in Dicionário de Conceitos e Princípios
Jurídicos, pág. 705-706).

72
Ibidem.

73
O direito a dispor da coisa é a faculdade que o titular tem de alienar a coisa, isto é, de transferir a
titularidade dos poderes que sobre ele incidem para outra pessoa.

61
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

Na propriedade plural, cabem três modalidades: propriedade horizontal, a compropriedade


e a propriedade colectiva.

Propriedade horizontal:
Está regulada nos artigos 1414º a 1438º do Código Civil. De acordo com o artigo
1414º, a propriedade horizontal consiste numa situação em que duas ou mais pessoas se
tornam proprietários de fracções autónomas integradas no mesmo edifício de cujas partes
comuns eles são co-proprietários (também designados consortes ou condóminos (art.
1417º, nº 2 e 1420º C.C.). Pode ser definida como a propriedade exclusiva de uma habitação
integrada num edifício comum, ou a pertença a proprietários diversos de várias fracções de
um edifício que constituem unidades independentes.
O esquema fundamental da propriedade horizontal é o da interdependência
estrutural ou dependência funcional entre as várias partes integradas no todo e a
independência das várias unidades que integram o edifício. Nesta lógica, e de acordo o nº 1
do artigo 1420º do Código Civil, cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe
pertence e co-proprietário das partes comuns do prédio. Segundo o nº 2 do mesmo artigo, o
conjunto destes direitos (propriedade exclusiva sobre a fracção autónoma e
compropriedade em relação às partes comuns) é incindível, isto é inseparável; disto resulta
que nenhum destes direitos pode ser alienado separadamente e não é lícito renunciar à
parte comum como meio de o condómino se desonerar das despesas necessárias à sua
conservação ou fruição.
O artigo 1421º do Código Civil determina quais as partes comuns do prédio. Segundo
o nº 1, são categoricamente comuns todas as partes que constituem a estrutura do prédio
(o solo, os alicerces, os pilares, as paredes mestras), o telhado ou terraços de cobertura,
ainda que destinados ao uso do último pavimento, as entradas, os vestíbulos, as escadas e
corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos, e as instalações gerais
de água, electricidade, aquecimento e ar condicionado. O nº 2 estabelece as partes que se
presumem comuns: os pátios e jardins anexos ao edifício, os ascensores, as dependências
destinadas ao uso e habitação do porteiro, as garagens e as coisas que estejam afectadas ao
uso exclusivo dos condóminos. É importante ressaltar algumas limitações que a lei impõe
aos condóminos. Nos termos do nº 2 do artigo 1422º do Código Civil, aos condóminos é
especialmente vedado prejudicar, quer com obras novas, quer por falta de reparação, a
segurança, a linha arquitectónica ou o arranjo estético do edifício, destinar a sua fracção a
usos ofensivos dos bons costumes, dar-lhe uso diverso do fim a que se destina e praticar
quais actos ou actividades que tenham sido proibidos no título constitutivo ou,
posteriormente, por acordo de todos os condóminos; os condóminos não gozam do direito
de preferência na alienação de fracções – o que resulta obviamente da independência e do
62
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

carácter autónomo das fracções nem do direito de pedir divisão das partes comuns (art.
1423) – corolário da compropriedade dos condóminos sobre estas partes. Os encargos de
conservação e fruição, bem como os encargos com as inovações são suportados pelos
condóminos na proporção do valor das suas fracções (art. 1424º, nº 1 e 1426º C.C.). É
importante sublinhar igualmente a obrigatoriedade do seguro do edifício contra o risco de
incêndio, sendo que qualquer dos condóminos pode efectuar o seguro quando o
administrador do condomínio não tenha feito, com direito de regresso sobre os demais
consortes (art. 1429, nº 1 e 2).

- Compropriedade (art. 1403º a 1413º Cód. Civil):


A compropriedade, ou propriedade em comum, existe quando duas ou mais pessoas
são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa, sendo que
os direitos dos comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora
possam ser quantitativamente diferentes. São qualitativamente iguais na medida em que os
comproprietários exercem em conjunto todos os direitos que pertencem ao
comproprietário singular (art. 1403º, nº 1, 1ª parte) e cada um deles pode reivindicar de
terceiro a coisa comum, sendo vedado a este último opor-se à reivindicação com
fundamento na não pertença por inteiro (nº 2). “Quantitativamente diferentes” significa que
os comproprietários participam separadamente (na proporção das respectivas quotas) nas
vantagens e nos encargos da coisa (nº 1, 2ª parte).
A cada uma das partes cabe uma parte ideal (quota); as quotas presumem-se iguais,
salvo indicação contrária constante do título de constituição da compropriedade (art. 1403
nº 1 e 2).
O que caracteriza a compropriedade é, além das quotas, a sua divisibilidade isto é,
nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão (comunhão divisível),
salvo convenção em contrário (art. 1412º nº 1), pelo que o comproprietário pode dispor de
toda a sua quota ou de parte dela (1408º), salvaguardado o direito de preferência dos outros
consortes (art. 1409 nº 1 e 1410º).

- Propriedade colectiva ou comunhão de mão comum:


Nesta modalidade, à semelhança da compropriedade, há contitularidade de duas ou
mais pessoas num único direito de propriedade (que abrange todo o património), mas há
um direito uno e indivisível. Na compropriedade, há um aglomerado de quotas dos vários
comproprietários; na propriedade colectiva não existem quotas, pela razão de se tratar de
uma comunhão indivisível. Na compropriedade há duas ou mais pessoas, mas o direito não
é uno, a cada contitular pertence uma quota de que pode dispor quando lhe aprouver,
embora não lhe seja permitido vendê-la ou dá-la em cumprimento a estranhos, se os demais
63
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

consortes quiserem preferir na alienação (art. 1409 C.C.). A propriedade colectiva, sendo
indivisa, não permite tal divisão; ela só cessa com a cessação do facto jurídico que lhe deu
origem.
A partir da leitura das lições de MANUEL de ANDRADE e C.A. MOTA PINTO, podemos
apontar, de forma resumida, como notas características do património colectivo as
seguintes74: a) o património colectivo pressupõe uma relação, um vínculo pessoal, em regra
de ordem familiar. Essa relação ou vínculo tem causas de extinção próprias e, depois de
extinta ela, é que cessa a propriedade colectiva; b) o património colectivo pertence em globo
ao conjunto de pessoas, cabe ao grupo no seu conjunto; c) não há quotas ideais, como existe
na compropriedade, (nenhum dos contitulares tem qualquer fracção de direito que lhe
corresponda individualmente e de que possa dispor); d) em consequência disto, nenhum
membro do grupo pode alienar uma parte ou quota do património, nem requerer a divisão
enquanto não cessa a causa da comunhão; e) gerando-se um passivo, por este responde o
património; no caso de este ser insuficiente, os membros respondem solidariamente com
os seus bens pessoais (art. 61/2 e 63/1 C. Fam.), porque devedores são todos os membros
do grupo; f) os credores pessoais dos membros não se podem fazer pagar com os bens do
património, mas apenas com a parte que couber a eles depois de dissolvido o vínculo
colectivístico.
Um exemplo da propriedade colectiva é comunhão conjugal.

Quadro comparativo da compropriedade e da propriedade colectiva


Item de Compropriedade Propriedade colectiva
comparação
Nº de titulares Dois ou mais Dois ou mais
Vínculo entre os Pessoal ou outro Pessoal (geralmente familiar)
consortes
Tipo de comunhão Divisível (art. 1408º e Indivisível (v.g. comunhão
1412) conjugal – art.
Exercício de Qualitativamente igual, Qualitativa e
direitos quantitativamente quantitativamente igual
separado (solidariedade)
Cessação da Não tem causas específicas Tem causas próprias: só cessa
comunhão depois de extinto o vínculo
que lhe deu origem

74
Estas características podem ser o pomo de distinção entre a propriedade colectiva e a compropriedade.

64
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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Quotas Sim Não


Responsabilidade Conjunta (na proporção Solidária (os membros podem
pelas das quotas) responder com os seus bens
dívidas/vantagens pessoais)
Responsabilidade Sim Não. Moratória
do património
perante os
credores pessoais

7.2.2 Os direitos reais limitados:


Como já foi referido, ao lado do direito de propriedade, enquanto direito real pleno
ou máximo, existem outros direitos reais, os direitos reais limitados, assim designados por
não conferirem a plenitude dos poderes próprios do direito de propriedade, mas apenas a
possibilidade de exercer certos poderes sobre uma coisa. Tradicionalmente, são designados
como direitos sobre coisas que pertencem, em termos de propriedade, a uma outra pessoa
(iura in re aliena – direitos sobre coisa alheia).
Existem três categorias de direitos reais limitados: direitos reais de gozo, direitos
reais de garantia e direitos reais de aquisição.

i) Direitos reais de gozo: conferem apenas um poder de utilização total ou parcial


de uma coisa e de apropriação dos frutos que a coisa produza. São eles:
a) o Usufruto (1439º-1483º C.C.). É direito que confere ao seu titular o poder de
gozar, temporária e plenamente, uma coisa ou direito alheio e de utilizar ou
apropriar-se dos seus frutos sem, contudo, alterar a sua forma, substância ou
destino económico (art. 1446º).
b) o Uso – art. 1484 C.C. – consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e
haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular quer da sua
família. O direito de uso apenas confere ao seu titular o poder de usar a coisa. A
diferença entre o direito de uso e o direito de usufruto reside, fundamentalmente,
na amplitude dos poderes que o titular do direito tem sobre a utilização dos frutos.
Enquanto o usufrutuário pode utilizar ou apropriar-se de todos os frutos, estando
apenas limitado pela necessidade de alterar a forma, a substância ou o destino
económico da coisa, o titular do direito de uso só pode utilizar os frutos dentro das
suas necessidades e da sua família. Portanto, não pode utilizar todos os fruto.
c) O Direito de habitação – art., 1484º/2: é uma espécie do direito de uso; designa
o direito de uso quando este incide sobre uma habitação.

65
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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d) O Direito de superfície (art. 1524º): consiste na faculdade de construir ou


manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer
ou manter plantações.
e) As Servidões Prediais – art. 1543º C.C. - define-se a servidão predial como um
encargo imposto a um prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a
dono diferente; diz serviente o prédio sujeito à servidão, e dominante o que dela
beneficia.

ii) Direitos reais de garantia: são direitos que conferem ao credor o poder de obter,
com preferência sobre os demais credores, o pagamento da dívida sobre o valor de
uma coisa ou dos seus rendimentos. Servem para garantir o crédito ou o pagamento
de uma dívida. São eles: a)o penhor (art. 666º C.C.), a hipoteca (art. 686º C.C.), os
privilégios creditórios (art. 733ºss CC), o direito de retenção (art. 754ºC.C.) e a
consignação de rendimentos (art. 656º C.C. e 879º CPC). Consiste esta última na
aplicação dos rendimentos de certos bens imóveis ou móveis sujeitos a registo à
garantia do cumprimento de uma obrigação – ainda que condicional ou futura – ou
do pagamento dos respectivos juros, se devidos, ou tão só do cumprimento da
obrigação75, ou ainda, na atribuição feita pelo Tribunal dos rendimentos dos bens
penhorados durante o tempo necessário ao pagamento do crédito 76.

iii) Direitos reais de aquisição: conferem a um determinado indivíduo a


possibilidade de se apropriar de uma coisa, de a adquirir. São eles: a) o direito de
real de preferência (art. 413º C.C.), que existe quando há promessa de alienação
ou oneração de bens imóveis ou móveis equiparados aos imóveis, desde que tal
promessa conste de escritura pública e desde que a escritura pública seja registada
na conservatória de registo competente; b) o direito de preferência dos
proprietários de prédios confinantes (art. 1380 e 1409 C.C.) c) o direito de
preferência do comproprietário (respectiva acção de preferência - art. 1410); d)
o direito de preferência do titular do direito de superfície (art. 1535); e) o
direito de preferência do proprietário do prédio onerado; art. 1555.

7.3 Características dos direitos reais.

75
Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed. – 647 (Citado por João MELO FRANCO e António
Herlânder ANTUNES MARTINS, Op. Cit. P. 222)

76
Galvão Telles, Direito das Obrigações (citado por João Melo Franco e António Herlânder Antunes
Martins, Op. cit. ibidem).

66
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

a) Características privativas do direito de propriedade:


1. O direito de propriedade é um direito pleno, quer dizer, o proprietário goza, de
modo pleno e exclusivo, dos mais amplos poderes: direitos de uso, fruição e de disposição
((ius utendi, ius fruendi e ius abutendi) das coisas que lhe pertencem (art. 1305º, nº 1, C.C.),
dentro dos limites da lei, nomeadamente a expropriação por utilidade pública ou particular
(art. 1308º e 1310º. C.C.), a requisição administrativa (art. 1308º C.C.). Um outro limite de
carácter genérico é o que é imposto pela cláusula geral da proibição do abuso do direito (art.
334º), de resto já contido, embora parcialmente, no nº 1 do artigo 1305º (respeitar o destino
económico do bem).
2. O direito de propriedade é perpétuo (art. 1307º, nº 2). Em regra, o direito de
propriedade é constituído ou transmitido por tempo indeterminado. Todavia, nos casos
previstos na lei, e só nestes, a propriedade pode ser constituída sob condição ou
temporariamente (art. 1307º, nº 2). É exemplo disto a propriedade resolúvel e temporária,
prevista no nº 1 deste artigo. A propriedade resolúvel é aquela que se pode transmitir sob
condição ou aquela em que as partes podem prever casos de resolução.
É ainda digna de menção, no contexto da constituição temporária da propriedade, a
propriedade dos bens entregues aos herdeiros, no âmbito do processo de ausência77. Se
uma pessoa desaparece sem notícias e sem a possibilidade de a contactar e essa ausência se
prolonga de tal modo que se justifique pensar ter ela falecido, justificada a ausência, o
Tribunal declara a morte presumida dessa pessoa e entrega os respectivos bens aos seus
herdeiros. Todavia, trata-se de uma presunção relativa, porque pode acontecer que o
ausente regresse ou dê notícias da sua existência. Se regressar, o património que,
entretanto, fora entregue aos herdeiros, ser-lhe-á devolvido, no estado em que ele se
encontrar (art. 119º C.C.).
No Direito Sucessório, encontramos também exemplos do direito de propriedade
constituído temporariamente. Nos termos do artigo 2229º C.C., o testador pode sujeitar a
instituição de herdeiro ou a nomeação de legatários a condição suspensiva ou resolutiva,
desde que tal condição não seja contrária à lei. Neste contexto, o artigo 2286º do Código
Civil prevê a figura jurídica da substituição fideicomissária ou fideicomisso, isto é, a
disposição pela qual o testador impõe ao herdeiro instituído o encargo78 de conservar a
herança, para que ela reverta, por sua morte, a favor de outrem. Há, portanto, herdeiros ou

77
Note-se que estamos apenas diante de uma excepção à regra, porque os bens não são entregues com a
ideia de que eles deverão ser devolvidos passado algum tempo; a devolução resulta apenas de uma condição
resolutiva (o regresso do ausente) e, portanto, presume-se que este já não regressará. Todavia, trata-se de
uma presunção iuris tantum.

78
Sobre a noção do encargo, consultar o capítulo relativo ao conteúdo dos negócios jurídicos.

67
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

legatários sucessivos, sendo que o primeiro, agravado com o encargo, se chama fiduciário 79,
e o beneficiário da substituição, o fideicomissário. Esta disposição deve ser combinada com
o artigo 2288º que estabelece o limite de validade do fideicomisso.
3. O direito de propriedade é elástico. O proprietário goza de todos os poderes
inerentes ao seu direito. Mas este pode ser limitado por um outro direito real limitado, de
gozo (direito uso e habitação, usufruto) ou de garantia (hipoteca, penhor, retenção), de tal
modo que, enquanto existir o direito real de gozo ou de garantia, o direito de propriedade
fica onerado, comprimido, não se podendo mover livremente na “órbita” jurídica. Assim, por
exemplo, a hipoteca constituída sobre determinado, a hipoteca limita a movimentação
jurídica desse bem, isto é, enquanto durar a hipoteca, o bem não poderá ser alienado sem a
hipoteca. Com o fim da hipoteca, deixa de existir o ónus que sobre ele pesava, o direito de
propriedade ganha de novo toda a sua extensão originária e o seu titular readquire a
plenitude dos poderes que ele comporta80.
b) Características comuns a todos os direitos reais:
1. Os direitos reais são típicos (princípio da tipicidade dos direitos reais). Este
princípio significa que só são direitos reais os que estão previstos na lei e só esta determina
o conteúdo daqueles81. Remissão.
2. Os direitos reais são absolutos. Os direitos reais podem ser opostos a todas as
pessoas. Assim, o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor
da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que
lhe pertence (art. 1311º, nº 1 C.C.). É admitida a defesa da propriedade por meio de acção
directa, nos termos do artigo 336º. O mesmo se aplica à posse. Nos termos do artigo 1277º
do Cód. Civil, se o proprietário de um bem é esbulhado, pode restituir-se por sua própria
força e autoridade nos termos do artigo 336º, ou recorrer ao Tribunal, para que este lhe
restitua a posse. Remissão.
3. Os direitos reais gozam do direito de sequela. Decorre do carácter absoluto dos
direitos reais que o titular de um direito real (de propriedade, ou outro) que seja esbulhado
ou destituído da coisa e do seu direito pode reivindicá-lo e exigir a entrega da coisa contra
objecto do direito contra quem quer que a detenha (acção de revindicação). Se A é titular
do direito de uso e habitação (direito real de gozo - art. 1484º) sobre o imóvel x, pertencente

79
Do Latim, fiducia, que significa confiança.

80
Gama Prazeres falava de propriedade imperfeita, isto é, “a que consiste na fruição de parte dos direitos
contidos no direito de propriedade” (in Dos Incidentes da Instância no Actual C.P. Civil, pág. 62, citado
por João Melo Franco e António Herlânder Antunes Martins na Ob. Cit, pag. 706). É uma ideia que se pode
enquadrar nesta característica como também nos direitos reais limitados.

81
Remissão para o ponto 3.2 d) deste capítulo.

68
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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a B, e B vende o imóvel a C na vigência do contrato de arrendamento, A pode exigir a


restituição do seu direito, inclusive pela via judicial, isto é, pedindo que o Tribunal
reconheça o seu direito e e para que o seu direito lhe seja restituído. Se A vende a C, e este
a D, um imóvel hipotecado (direito real de garantia - art. 686º) num contrato de mútuo entre
A e B, B pode (judicialmente) exigir a apreensão da casa (penhora) com vista à sua venda e
fazer-se pagar com o seu produto, porque a hipoteca acompanha o imóvel enquanto vigorar
o crédito.
4. Os direitos reais gozam de preferência. Significa esta característica que o direito
real constituído em primeiro lugar no tempo prevalece sobre os direitos constituídos
posteriormente sobre a mesma coisa (prius in tempore fortior in iure)82. Como regra, se
forem constituídos sucessivamente direitos reais antagónicos ou incompatíveis sobre a
mesma coisa, prevalece o mais antigo. Assim, se A vende a B o seu imóvel y e, logo a seguir,
vende o mesmo imóvel a C, O Imóvel pertence a B.
Entretanto, esta característica comporta algumas excepções. Uma delas é o registo,
isto é, se dois direitos incompatíveis (ex. dois direitos de propriedade) incidirem sobre a
mesma coisa, prevalece o direito que tiver sido registado83, mesmo que tenha sido
constituído em último lugar. Gozando ambos de registo, prevalece aquele registado em
primeiro lugar. Assim, se A vende a B o seu imóvel y e, a seguir, vende o mesmo imóvel a C,
sendo que B não regista a aquisição, mas C a regista, imóvel pertence a C (porque registou),
apesar de B ter sido o primeiro a comprar. Se, eventualmente, as duas aquisições (de B e de
C) estiverem registadas, prevalecerá o primeiro registo.
Outra excepção à regra “prius in tempore…” são os chamados privilégios
creditórios. Nos termos do artigo 733º do Código Civil, o privilégio creditório é a faculdade
que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do
registo, de serem pagos com preferência a outros. O privilégio creditório, como vimos, é um
direito real de garantia que prevalece sobre o registo. Assim, sendo, o privilégio creditório
prevalece sobre qualquer outro direito real de garantia, mesmo que registado antes.
Vejamos algumas hipóteses práticas:

82
O primeiro no tempo é o mais forte no Direito.

83
O fundamento desta excepção reside em que o registo tem como fim dar publicidade aos direitos inerentes
às coisas, neste caso, às coisas imóveis (art. 1º do Decreto Lei nº 47 611, de 28 de Março de 1967 – Código
do Registo Predial). O nº1 do artigo 2º deste diploma legal enumera os factos jurídicos sujeitos ao registo,
entre os quais, os que importem o reconhecimento, aquisição ou divisão do direito de propriedade, do direito
de usufruto, uso e habitação, a promessa de oneração de bens e os pactos de preferência se as partes tiverem
convencionado atribuir-lhes eficácia real, sempre que respeitem a coisas imóveis, e as convenções de
reserva de propriedade e de venda a retro estipuladas em contratos de alienação, entre outros. O registo visa
igualmente conservar o direito na titularidade da pessoa em cujo nome está registado.

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1. A beneficia de um crédito bancário junto do Banco BAA; para garantir o


crédito, hipotecou o seu imóvel y . A arrenda o imóvel y a C. O imóvel y é
penhorado numa acção executiva movida pelo BAA (dívida no valor de 5 000
000 Kz). No momento da penhora, A tem uma dívida fiscal (2 500 000 Kz)
resultante do não pagamento do Imposto Predial Urbano (privilégio
creditório, art. 733º e 744º,nº1, C.C.). Solução: paga-se, em primeiro lugar, a
dívida fiscal (2 500 000 Kz) e, em segundo lugar, a dívida ao BAA (2 500 000
Kz).
2. António faleceu, deixando uma dívida para com Bento no valor de 800 000
Kz, resultante de um contrato de mútuo celebrado entre António e Bento. No
momento da celebração do contrato, António deu como garantia,
devidamente registada, (art. 687 e 688º/1/f), a sua viatura, avaliada,
actualmente, em 750 000 de Kz (hipoteca art. 686º nº 1 C.C. = direito real de
garantia). Para ocorrer aos encargos com o funeral, os familiares de António
foram forçados a recorrer a um empréstimo de Jeneroso no valor de 350 000
Kz (privilégio creditório = direito real de garantia – art.737º, al. a, C.C.), uma
vez que António não deixou outros bens penhoráveis. Solução: 1º paga-se a
dívida a Jeneroso (privilégio creditório mobiliário geral= 350 000); 2º paga-
se a dívida Bento (400 000 Kz).

Havendo concurso de créditos privilegiados, são aplicáveis as regras estabelecidas


nos artigos 745º e seguintes do Código Civil.

8. Princípio da boa fé
Formulação
O princípio da boa fé é aquele segundo o qual cada um deve comportar-se como se
espera de uma pessoa honrada, como uma pessoa de bem. Trata-se de um apelo à regra
moral básica “fazer o bem e evitar o mal”. A boa fé traduz-se nos mandamentos
tradicionalmente conhecidos pelas expressões latinas honeste vivere (viver honestamente),
neminem laedere (não prejudicar ninguém) e na proibição dos comportamentos
contraditórios (venire contra factum proprium).

Importância

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A boa fé desempenha um papel imprescindível no trato social. As relações humanas


e, por conseguinte, as relações jurídicas, não seriam possíveis sem um mínimo de
confiança na boa fé das pessoas com que lidamos.
O princípio da boa fé encontra, no Código Civil, inúmeras expressões e referências
(v.g. artigos 227º, 612º, 1260º, etc.), o que ilustra bem a sua relevância para as relações
jurídicas e para a ordem jurídica. O Estado tem um interesse fundamental em que os seus
cidadãos tenham uma consciência moral bem formada, porque a sobrevivência e o
desenvolvimento das sociedades depende também da moralidade dos seus cidadãos.
A consagração legal do princípio da boa fé manifesta, também, a relevância da Moral
para o Direito e estreita ligação existente entre estas duas ordens normativas.

Vertentes
O princípio da boa fé é visto, na doutrina jurídica, em duas vertentes: uma objectiva
(sentido objectivo) e outra subjectiva (sentido subjectivo).
Em sentido objectivo, a boa fé é vista como padrão de conduta, como critério do
agir correcto; é a boa fé como dever jurídico. As pessoas devem agir segundo os padrões de
uma acção eticamente decente. É este o sentido imanente no artigo 227º do código civil, que
estabelece, no nº 1: “quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto
nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de
responder pelos danos que culposamente causar à outra”.
Em sentido subjectivo, a boa fé (boa fé subjectiva) corresponde à situação
psicológica do agente que, ao adquirir um direito, ignorava a circunstância de estar a lesar
o direito de outrem. Este sentido é o que está patente nos artigos 612º ( e 1260º (a posse
diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem),
no artigo 243º (a boa fé consiste na ignorância da simulação ao tempo em que foram
constituídos os respectivos direitos).

Relevância da boa fé subjectiva


A apreciação da conduta de uma pessoa não se cinge ao aspecto objectivo da boa fé; é
necessário ver também o lado subjectivo do agir humano. O Direito não é insensível às
motivações interiores do agir humano; o aspecto interno da acção é importante para a sua
valoração jurídica. Assim, de acordo com a lei, a boa fé subjectiva é importante porque pode
ser um factor de estabilização de situações jurídicas que, teoricamente, poderiam ser
postas em causa, isto é, em determinadas situações, a lei protege o adquirente de boa fé,
mesmo que ele não tenha adquirido o direito de alguém sem legitimidade para o alienar (Cf.
Art. 291º, 243º, 892º C.C.).

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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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Em segundo lugar, a boa fé das partes num litígio é e deve ser tida em conta pelo
juiz na decisão de uma causa.

Boa fé ética ou normativa:


A boa fé normativa é uma categoria doutrinal que designa as situações em que a lei exige
das pessoas que queiram fazer valer um direito seu, apelando à sua boa fé, o cumprimento
da diligência de um bonus pater familias. Em tais casos, a lei não se contenta com o simples
desconhecimento (boa fé psicológica) do sujeito, mas exige que ele não tenha culpa na sua
própria ignorância de facto, que o sujeito tenha esgotado os deveres conducentes ao
apuramento da verdade relativa ao direito em causa, de tal modo que, só depois de terem
sido cumpridos tais deveres é que se pode considerar de boa fé o sujeito que desconhecia
que estava a lesar o direito de outrem. Resumindo, só está de boa fé quem desconheça sem
culpa.
Exemplos da lei:
a) art. 291º, nº 3, do C.C.; “é considerado de boa fé o terceiro adquirente que, no
momento da aquisição, desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.

b)- art. 914º e 915º do C.C. – remissão para o art.. 906º C.C: é obrigado a
eparar/substituir a coisa quem a alienou com um defeito que ele desconhecia por
sua própria culpa. Note-se, todavia, que o comprador não pode pretender reparar
um defeito notório, isto é, que uma pessoa de diligência normal (um bonus pater
famílias) teria notado. Excepção a esta nota encontra-se no Direito do Consumidor,
onde os defeitos notórios dão lugar à responsabilidade civil do fornecedor do bem
ou serviço.

Conhecimento normativo
Um outro conceito jurídico usado pela doutrina, no âmbito do princípio da boa fé, é
o do conhecimento normativo. Este conceito designa as situações em que a lei, partindo do
dever imposto à generalidade das pessoas, presume (presunção absoluta) que determinada
pessoa conhece determinada situação, apesar de isto poder não corresponder à realidade
dos factos, isto é, o sujeito pode não saber, efectivamente, de uma determinada situação,
mas a lei presume que ele a conhece, ou devia conhecer, pelo que não pode ser desculpado
(a lei equipara o dever conhecer ao conhecimento). O artigo 6º do C.C. ilustra bem o
conhecimento normativo: “a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do
seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”. Nestes casos, alegar
o desconhecimento de facto pode ser indício de má fé e é irrelevante para impedir a
produção de um determinado efeito jurídico. Tal é o caso da declaração negocial que só por
72
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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culpa do destinatário não chegou a ser dele conhecida (art. 224º, nº2, C.C.). Neste caso, o
sujeito pode fazer tudo para impedir o conhecimento da declaração.

Presunção de má fé/boa fé
Em determinados casos, a lei vai além e considera de má fé ou boa fé quem se encontra
numa determinada situação.
Um exemplo paradigmático da presunção de má fé está no art.. 243º, nº 3, do C.C.,
segundo o qual “considera-se sempre de má fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente
ao registo da acção de simulação…”. Presume-se, assim, que o terceiro adquirente conhece a
simulação, porque o registo da acção tornou-a pública; se o terceiro adquirente não sabe, o
problema é dele; por isso, ele não pode alegar a ignorância do registo da acção de simulação.
Outro caso de presunção de má fé é relatado pelo art. 1046º do C.C: “fora dos casos
previstos no art. 1036, e salvo estipulação em contrário, o locatário é equiparado ao possuidor
de má fé quanto a benfeitorias que haja feito na coisa locada”. O artigo 1036º autoriza o
locatário a realizar benfeitorias necessárias que se compadeçam com a delonga do processo
judicial. A contrariu, nos termos do artigo 1046º, todas as outras benfeitorias carecem do
conhecimento do locador, pelo que não podem ser realizadas sem o conhecimento deste.
No artigo 1260 do Código Civil, temos exemplos de presunção de boa fé e de má fé no
que diz respeito à posse: “ a posse titulada presume-se de boa fé, e não titulada, de má fé”(nº
2); “a posse adquirida por violência é sempre de má fé, mesmo quando seja titulada” (nº 3).

A presunção de boa ou de má fé é relevante para efeitos de indemnização do possuidor,


em caso de ele ter realizado benfeitorias, isto é, ter realizado despesas (gasto dinheiro), seja
para conservar a coisa (evitar a sua deterioração), seja para lhe aumentar apenas o valor e
a utilidade (benfeitorias úteis), ou ainda para simples recreio do benfeitorizante (Cf. artigos.
1273º a 1275º do C.C.). Quanto ao conceito legal das benfeitorias, confira-se o artigo 216º
do C.C.

Consequências da violação do princípio da boa fé:


Da violação do princípio da boa fé podem resultar consequências de vária ordem,
desde a responsabilidade civil à responsabilidade criminal.
Ao nível do Direito Civil, a violação do princípio da boa fé pode levar, entre outros,
a) à obrigação de indemnizar pelos danos causados culposamente (art. 227º, nº 1,
C.C.);
b) ao não reconhecimento de um direito adquirido de má fé (art. 291º); à negação,
pelo Tribunal, de uma simples pretensão (v.g., o adquirente de má fé perde a coisa
em caso de declaração de nulidade ou de anulação do negócio (art. 291º C.C., a
73
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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contrariu sensu); o vendedor ou o doador de uma coisa alheia não pode opor a
nulidade da venda ou da doação ao terceiro de boa fé (art. 892º e 956º, nº 1 C.C.); os
simuladores não podem invocar a simulação contra o terceiro de boa fé (art. 243º,
nº 1, C.C.); o possuidor de má fé não tem direito à indemnização nem ao
levantamento das benfeitorias, tratando-se de benfeitorias voluptuárias (art. 1275º,
nº 2, C.C.).
c) Outras vezes, a má fé de uma pessoa se revela num comportamento contraditório,
tem como efeito a vinculação aos efeitos do negócio formalmente inválido (v.g., se
um dos contraentes provocou o vício do negócio ou participou num negócio que ele
sabe ser inválido, não pode vir pretender do Tribunal fazer-se valer da ineficácia do
negócio; por razões de justiça, poderá ser condenado a cumprir o negócio por ele
celebrado). No mesmo sentido, se o destinatário de uma declaração negocial impede
a sua recepção, ou se, por culpa exclusiva sua, a declaração não chega a ser conhecida
por ele, alegar o desconhecimento da declaração é sinal de má fé. Para estas
situações, a lei recusa-se a reconhecer a desculpa do destinatário e reconhece a
eficácia (vinculatividade) da declaração negocial (art. 224º, nº 2, C.C.).
d) Em determinados casos, a violação do princípio da boa fé dá lugar à
responsabilidade criminal (v.g., crime de burla por defraudação, abuso de confiança,
peculato).

9. Princípio da confiança e da aparência


Importância da confiança nas relações humanas e jurídicas
As pessoas entram nas relações humanas porque depositam confiança na boa
fé da outra parte, confiança na sua seriedade, sinceridade, na verdade das promessas
e na palavra dada (peccatum est transgressio promissionis), nas qualidades e poderes
aparentes, na estabilidades das situações estabelecidas, na titularidade aparente dos
bens e direitos, sustentada pela posse ou pelo registo. É imperioso respeitar a
confiança; e o Direito não podia estar indiferente a esta base ética das relações
jurídicas.
Posições doutrinárias
A doutrina portuguesa apresenta posições divergentes quanto ao reconhecimento
deste princípio. Há autores que rejeitam a confiança como princípio; de entre eles, JOSÉ DE

74
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OLIVEIRA ASCENSÃO84, para quem, a elevação da confiança à categoria de princípio é


oriunda da doutrina e da ordem jurídica alemã. Embora reconheça o papel e o significado
importante que a confiança desempenha e tem na ordem jurídica, já pelo facto de ela ser um
factor pré-legislativo, na medida em que há regras que visam criar um ambiente de
confiança (confiança como realidade abstracta), embora reconheça também o facto de a
confiança ser objecto de tutela jurídica em vários casos85, a confiança interessa apenas como
“realidade pessoal e subjectiva”, e o seu carácter subjectivo traduz a sua própria fraqueza,
porque exige a demonstração de um estado de espírito para que dele tirem consequências
favoráveis. Para o autor, “o mero facto de alguém ter confiado é insuficiente para que dele
se tirem consequências favoráveis. É necessário saber o que funda essa confiança”. Afirma
ainda que “a ratio não pode ser só proteger os ingénuos”86. Além disso, ela “só releva
quando a lei para ela apelar numa situação típica”87.
De entre os autores que alinham na sua defesa, avultam as figuras de BATIASTA
MACHADO, CARNEIRO DA FRADA e PAIS DE VASCONCELOS.
BATISTA MACADO 88 considera a confiança como princípio ético-jurídico
fundamentalíssimo e que a ordem que jurídica não pode deixar de tutelar a confiança
legítima baseada na conduta de outrem.
CARNEIRO DA FRADA89 fala do princípio da protecção das expectativas. Este
princípio, segundo ele, “se ergue com autonomia e especificidade onde os efeitos jurídicos
de uma conduta não possam ser atribuídos ao exercício da liberdade de autodeterminação
da pessoa mediante a conformação de consequências jurídicas”.
Por sua vez, PAIS DE VASCONCELOS90 escreveu: “as relações entre as pessoas
pressupõem um mínimo de confiança sem a qual não seriam possíveis…”. Sem a
confiança, “…haveria uma tal insegurança na vida jurídica que necessariamente a
viria a paralisar ou a dificultar extremamente. Seria necessário desconfiar de todas

84
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, II, cit. II, pág. 395-399; 446-448. Na mesma linha,
MÁRIO BESSONE (Rapporto precontrattuale e doveri di corretteza, 1022) e BENATTI (Responsabilita,
147)

85
Ex., confiança justificada do terceiro na legitimidade do agente que age sem poderes de representação

86
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, cit., II, pág. 396

87
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, cit., II, pág. 448

88
BAPTISTA MACHADO, Tutela da confiança e “Venire contra factum proprium”, in Obra Dispersa, I,
pág. 352.

89
CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e da Responsabilidade Civil, Lisboa, 2001, pág. 50.

90
PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pág. 20 e ss

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as aparências e investigar e comprovar exaustivamente todas as circunstâncias


envolventes…”. A falta de confiança gera insegurança e instabilidade jurídica,
provocando, assim a paralisação da vida jurídica. A má fé é contrária à ordem jurídica;
por isso, esta não pode estar indiferente à frustração da boa fé de quem,
honestamente, confiou na seriedade de outrem. Isto impõe o dever de as pessoas, no
seu agir, terem em devida atenção as expectativas que, com a sua conduta, por acção
ou por omissão, fundadamente criam nas outras pessoas e os danos que o seu
comportamento pode gerar para os outros, porque “o Direito não tolera que alguém
construa expectativas e venha depois actuar em sentido contrário e beneficiar dessa
actuação contraditória” (PAIS DE VASCONCELOS).
A ordem jurídica não tutela, todavia, a confiança ingénua, a dos incautos (ex. dolo
bom), mas apenas aquela que é objectivamente fundada.
A confiança funda regimes jurídicos, ou seja, há regimes jurídicos fundados na
protecção da confiança. No Direito Comercial, a confiança suporta o regime jurídico dos
títulos de crédito. Em Direito Civil, são inúmeros os exemplos em que o legislador sai em
defesa da boa fé de uma pessoa (ex. o simulador não pode invocar a simulação contra
terceiro de boa fé; a inoponibilidade da anulabilidade ou da nulidade contra o terceiro de
boa fé – art. 291º; a anulabilidade resultante de dolo (art. 253º e 254º C.C.),
responsabilidade civil resultante da violação do princípio da voa fé (art.227º C.C.); a
declaração não séria emitida em condições que levem o declaratário a estar convencido da
sua veracidade pode dar lugar à responsabilidade civil (art. 245º, nº 2, C.C.); a reserva
mental não prejudica a validade da declaração negocial (art. 244º, nº 2,C.C.).
OLIVEIRA ASCENSÃO nega à confiança qualquer carácter autónomo, ela tem
um carácter subordinado, porque “resultará de uma situação criada por outra pessoa”, isto
é, da violação do princípio da boa fé, embora não tenha com esta uma ligação definida 91.
Conclusão/resumo:
A confiança, enquanto princípio, traduz-se: a) na existência de regimes
jurídicos fundados na protecção da confiança – presunção da boa fé dos
intervenientes no tráfego jurídico (ex. Direito Comercial); b) na tutela, pela

91
Eis as palavras do próprio autor: “Mas como a tutela de quem confiou tem como reverso a desprotecção
do outro sujeito, diremos que a tutela da confiança se traduz, ou tende a traduzir-se, em reprovação do outro
sujeito, pelo menos, que poderia provocar a aquela reacção. A ser assim, o efeito jurídico que se possa
extrair resulta, antes de antes de mais, da conduta inadequada doutro sujeito, que induziu o terceiro àquele
“investimento de confiança”. A inadequação da conduta, por sua vez, resultará de uma valoração de boa fé,
porque é esta que funciona em conjunturas de relação… Daqui resulta que a confiança só vem a funcionar
como manifestação subalterna: quando alguma regra jurídica previr, para além da violação de regras de
condutas segundo a boa fé, a formação da confiança por parte do destinatário”. E mais adiante: “Pensamos
por isso, que as indicações que se lucram, pelo apelo à noção de confiança, são tão ténues que mais vale
dispensar essa noção. Basta-nos o comando geral da boa fé e os deveres específicos em que este se traduz”.

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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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lei, de quem actuou de boa fé (ex. art. 227º, 291º, 243º/1, 892º, C.C.); e c) na
punição de quem actuou de má fé ou de forma contraditória, isto é, construiu
expectativas legítimas/fundadas e vem a actuar em sentido contrário e
beneficiar da sua actuação contraditória).

10. O princípio do respeito pela família:


O princípio do respeito pela família pode ser abordado em três perspectivas:

1º: Por ser o núcleo fundamental da sociedade, a família deve merecer a


protecção e a atenção especial do Estado e das outras organizações da sociedade, públicas
e privadas, independentemente de ela ter origem no casamento ou na união de facto
(princípio da protecção da família) (Cf. artigo 1º, nº 1, do C. Fam. e artigo 35º, nº 1, da
CRA.). O legislador angolano dotou as relações jurídicas familiares de uma disciplina legal
autónoma, o Código da Família (Lei 1/88, de 20 de Fevereiro).
O princípio da protecção da família anda estreitamente ligado a outro princípio, o da
estabilidade da família, segundo o qual, em todos os momentos, sobretudo nos mais difíceis,
deve-se procurar a manutenção da família, e não a sua separação ou desintegração, contribuindo
para a sua união e encorajando os seus membros a prestarem ajuda uns aos outros, tanto moral
como materialmente, a se manterem unidos na educação e formação dos filhos e na protecção dos
seus membros mais vulneráveis, sobretudo das crianças, dos idosos e dos portadores de
deficiências. Um exemplo claro deste princípio no Direito da Família reside no seguinte:
o divórcio não pode ser pedido por ou ambos os cônjuges antes de 3 anos após o
casamento, nem antes de completar cada um 21 anos de idade (art. 83º do C. Fam.); além
disso, depois de ser requerido o divórcio, o Tribunal ou a Conservatória, conforme o caso,
notificará os cônjuges para a conferência de cônjuges. Nessa conferência, o Tribunal ou
a Conservatória do Registo Civil deve promover a conciliação dos cônjuges, procurando
convencê-los para desistirem do propósito do divórcio. Se os cônjuges não desistirem do
seu pedido, então o Tribunal ou a Conservatória do Registo Civil declarará
posteriormente o divórcio provisório. Depois da declaração do divórcio provisório, os
cônjuges ainda têm 90 dias para desistirem do pedido. Só no caso de eles não desistirem
passado este prazo é que será decretado o divórcio definitivo (art. 91º, 93º e 95º do C. Fam.).
2º: Na família, enquanto célula fundamental da sociedade, desenvolvem-se relações
interpessoais privilegiadas, diferentes e mais fortes do que as que se estabelecem entre as
pessoas em geral, relações que seguem regras próprias de afectividade e de amor, de
solidariedade e autoridade. Afirma-se, por isso, que a família se rege por regras próprias

77
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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(internas). A este respeito, PAIS DE VASCONCELOS92 escreveu: “não se pode, porém, perder
de vista a realidade da família, como instituição que tem regras próprias, sobre as quais o
poder do Legislador e da Lei são ínfimos e que não devem, em princípio, ser perturbadas.
Só quando a própria família se encontra tão doente que se não consegue já reger pelas suas
próprias regras é que a Lei tem legitimidade para intervir. Na construção da Lei positiva, o
Legislador tem geralmente dificuldade em resistir à tentação de reformar a sociedade e de
imprimir ao Direito da Família a sua própria concepção do modo como a Família deveria
ser… a Família tem evoluído, nas suas regras internas, não por imposição da Lei, mas sim de
acordo com a evolução das concepções éticas, culturais e sociais dominantes – entia
moralia- que fazem parte da Lei Natural, da Natureza das coisas. Na legislação e na
aplicação do Direito Civil da Família deve haver um particular cuidado em não
ofender as regras institucionais que lhe são próprias e uma consciência clara do papel
institucionalmente subsidiário da Lei neste domínio”.
3º Afirma-se, na doutrina, que o Direito da Família é um direito institucional, tal
como o Direito Sucessório. As regras do Direito Familiar (e as do Direito das Sucessões) não
são adaptáveis, à diferença, por exemplo, do Direito das Obrigações. Não existe família
especial, relações jurídicas familiares de carácter especial, como também não existe
sucessão especial.

11. Princípio do aproveitamento ou conservação dos negócios jurídicos: favor


negotii
O princípio da conservação dos negócios jurídicos (ou princípio favor negotii) tem a
sua consagração legal expressa nos artigos 292º e 293º do C.C. Trata-se do princípio
segundo o qual, se algum negócio padecer de algum vício, deve-se aproveitar o negócio,
sempre que o vício de que enferma possa ser superado. Nesta conformidade, sempre que
for possível, deve o intérprete e o aplicador do Direito tentar encontrar processos e soluções
que evitem a invalidade. ”… “A invalidade é, pois, o último recurso, a última solução, que só
deverá admitir-se depois de esgotadas todas as soluções que a evitem” (OLIVEIRA
ASCENSÃO).
O princípio da conservação… é tributário da autonomia privada e visa fazê-la
prevalecer.
Este princípio manifesta-se, entre outros, nos seguintes casos:

92
PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, cit., pág. 29.

78
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a) Convalidação dos negócios anuláveis pelo decurso do prazo: enquanto não é


anulado, o negócio jurídico anulável produz efeitos. Se não é anulado dentro do prazo
estabelecido e pela pessoa com legitimidade (art. 287º, nº 1, C.C.), o negócio convalesce, isto
é, torna-se válido e já não pode ser impugnado (art. 288º C.C.).
Na usura, a contraparte a quem assiste o direito de anulação do negócio, pode
oferecer tanto a redução como a modificação do negócio (art. 283º, nº 1, C.C.)
b) Ratificação: no domínio da representação sem poderes, o (falso) representado
pode ratificar o negócio (art. 268º, nº 1, C.C.), isto é, o vício sana-se mediante
ratificação).

c) Confirmação de actos anuláveis: a confirmação do negócio anulável torna-o


válido (ex.: confirmação dos actos do menor – art. 125, nº 2, C.C.). A confirmação
pode ser tácita ou expressa (art. 288º C.C.).
d) Redução: havendo nulidade ou anulação parcial, o negócio considera-se válido
relativamente às cláusulas válidas, a não ser que se mostre que, sem as cláusulas viciadas, o
negócio não teria sido celebrado (art. 292º C.C.). A redução pode ser potestativa ou
voluntária (art. 292º), automática ou legal (v.g. os juros acima do limite legal são reduzidos
automaticamente para o limite legal - art. 1146º, nº 3, C.C.). Outros casos de redução: art.
884º, 902º, 911º e 981º C.C.
f) Conversão: há conversão quando a lei permite que determinado negócio nulo
por inobservância da forma legal se converta em outro negócio cuja forma legal
tenha sido observada no negócio nulo (v.g., contrato nulo por falta de forma
pode converter-se em contrato-promessa correspondente – art. 1143º;);
g) Convalidação do negócio pelo preenchimento ou regularização posterior do
requisito em falta (ex. prática de um acto posterior) ou pela sanação do elemento
defeituoso (revalidação) pela ocorrência de circunstâncias extrínsecas por
determinação da lei (consolidação do contrato de compra e venda de um bem
alheio com a aquisição posterior do direito vendido pelo vendedor - art. 895º
C.C.);

12. Princípio do respeito pela sucessão por morte.


O fenómeno sucessório está regulado no Direito das Sucessões (art. 2024º - 2334º do
C.C.). Trata-se do conjunto de normas e princípios jurídicos que regulam a transmissão

79
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mortis causa (causada pela morte de uma pessoa) da totalidade ou de parte do património
(herança) que a ela pertencia aos sucessores, designados por lei ou pelo de cujus93.

Noção e objecto da sucessão


Nos termos do artigo 2024º do Cód. Civil, a sucessão é “o chamamento de uma ou mais
pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a
devolução dos bens a ela pertencentes”. Diz-se “das relações jurídicas patrimoniais”, porque,
rigorosamente falando, o objecto da sucessão são os direitos e as obrigações que incidem
sobre os bens deixados por uma pessoa falecida. Por isso, é correcto dizer que o objecto da
sucessão são as relações jurídicas (patrimoniais), isto é, os direitos e as obrigações de uma
pessoa falecida; não se herdam apenas os bens (direitos), mas também as responsabilidades
assumidas sobre tais bens. Assim, o Direito Sucessório define as responsabilidades dos
herdeiros.
Abertura da sucessão
Em que momento se dá aquisição pelo sucessor dos direitos e obrigações? É no instante
designado “articulo mortis”, isto é, o instante em que o de cujus deixa de existir (art. 2031º
C.C.).

Quem pode suceder?


O Direito Sucessório contém aspectos interessantes. Uma delas é a de saber quem pode
suceder, isto é, a quem são atribuídos os bens deixados pelo de cuius. A resposta a esta
questão variou no tempo, de acordo com as concepções políticas e as relativas à família e à
propriedade.
Na época clássica do Direito Romano (31 a.C - 300 d.C., Época Imperial), inicialmente, a
visão que os romanos tinham sobre a propriedade não justificava e existência da sucessão,
porque existia a (com)propriedade solidária, um consórcio familiar, em que a figura de
destaque era o pater famílias, que tinha um poder absoluto sobre os bens e os heredes sui,
isto é os filhos, as filhas (e os respectivos descendentes), e a mulher (uxor in manu). A morte
do paterfamilias exigia que alguém tomasse o seu lugar. Essa pessoa tinha um direito
latente, que passava a exercer com a morte do paterfamilias94.
Numa fase posterior, dá-se proeminência à vontade do de cuius (dispositio ultimae
voluntatis) ou seja, ele podia determinar o destino dos bens, indicando um sucessor, que,
em princípio, recaía sobre o primogénito ou outra pessoa (sucessão voluntária). Mais tarde

93
Abreviação latina da alocução is de cuius hereditate agitur, que significa aquele de cuja herança se trata.

94
M. REIS MARQUES, Introdução ao Direito, op. cit. pág.337ss

80
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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ainda, passou a impender sobre o paterfamilias um dever de deixar uma porção dos bens às
pessoas mais próximas; tratava-se de um verdadeiro dever moral de piedade (officium
pietatis), cuja violação dava lugar à declaração de inoficiosidade do testamento. Nisto reside
a origem da actual figura da legítima e da sucessão legitimária. A este respeito, é mister
invocar um texto de MÁRIO REIS MARQUES: “Durante muito tempo, na Europa ocidental, o
direito sucessório propôs-se conservar o património da família, privilegiando a linha
masculina. Frequentemente, com o objectivo de se garantir a unidade do património, dava-se
preferência ao primogénito. Pelo contrário, o Côde Civil procurou conscientemente fraccionar
e difundir as riquezas familiares… Actualmente, o direito de sucessão tem por fundamento a
vontade presumida pela lei, ou estabelecida no seu testamento…” 95.

Tipos de sucessão
Disto decorrem os dois grandes tipos de sucessão: a legal e a voluntária. Com efeito,
estabelece o artigo 2026º do Código Civil: “a sucessão é deferida pela lei, testamento ou
contrato”, o que denota haver de facto uma repartição de poderes entre a lei e o testador na
destinação dos bens.
A sucessão voluntária é a que é regulada pela vontade do de cuius através do
testamento (successio testata) ou de um contrato. A sucessão contratual é um tipo de
sucessão praticamente inexistente no ordenamento jurídico angolano, apesar de o C.c.
determinar que ela é admitida apenas nos cados previstos na lei (art. 2028º, nº 2, C.C.).
A sucessão legal (successio intestata ou ab intestato) é regulada por lei. Pode ser
legítima ou legitimária. O critério para distinguir entre uma e outra está contido no artigo
2027º do Código Civil: “conforme possa ou não ser afastada pela vontade do de cuius”. A
sucessão legitimaria é imposta por lei e opera mesmo contra a expressa vontade do de cuius.
Isto é o reflexo claro e vivo do antigo officium pietatis do Direito Romano, que obrigava o
paterfamilias a deixar intacta uma porção dos bens destinada aos mais próximos, os
herdeiros legitimários. No nosso ordenamento jurídico, são herdeiros legitimários os
descendentes e os ascendentes (art. 2133º C.C.). A porção dos bens de que o testador não
pode dispor chama-se quota indisponível ou legítima. Não havendo herdeiros legitimários,
o testador pode dispor de todos os bens.
A sucessão legítima só pode incidir sobre a quota disponível, isto é, sobre a porção
dos bens de que o de cuius pode dispor, e opera na falta de manifestação válida e eficaz da

95
Op. Cit. pág. 339.

81
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vontade do de cuius, caso em que são chamados os herdeiros legítimos96, as pessoas


mencionadas no artigo 2131º do Código Civil, na ordem em que o são (ordem de
preferência). Trata-se de uma lista preferencial de herdeiros estabelecida pela lei. A
adjectivação da sucessão como “legítima” reside no facto de ser conforme à lei, mas, mais
do que isto, porque fundada no direito, na justiça e na razão; “funda-se numa probabilidade
de maior afecto do defunto, ou, talvez melhor, sobre considerações de solidariedade e dever de
família”97.

13. Princípio o da equivalência


Este princípio significa que as relações entre as pessoas são regidas pela procura de
equilíbrio entre as prestações que se contrapõem (PAIS DE VASCONCELOS). Por exemplo,
no contrato de compra e venda (art. 874º C.c.), o preço deve ser igual ao valor da coisa. Na
interpretação dos negócios jurídicos, deve prevalecer o sentido que conduza a um maior
equilíbrio das prestações (art. 237º C.C.).
As excepções a este princípio devem resultar da autonomia privada. Tal é o que
acontece quando alguém venda uma coisa por um preço inferior ao valor da coisa, aceitando
fazer um desconto, ou quando alguém faz uma doação remuneratória.
Sempre que haja desequilíbrio entre as prestações por exploração de uma das partes
na relação contratual, a ordem jurídica protege a parte que tiver sido vítima, conferindo-lhe
a possibilidade de anular o negócio (ex. usura, art. 282 e 283 do C.C.).

PARTE III
RELAÇÃO JURÍDICA

TÍTULO I
GENERALIDADES
1. Importância, conceito e sentidos da relação jurídica
Por um lado, a relação jurídica enquanto figura jurídica é um dos principais
instrumentos do Direito Privado, destacando-se nele o direito subjectivo e o negócio
jurídico (PAIS DE VASCONCELOS).

96
Breve referência ao facto de o Código Civil Angolano considerar o cônjuge apenas na 4ª linha; em termos
de Direito Comparado, em Portugal, o cônjuge é herdeiro legitimário e aparece na primeira linha,
juntamente com os descendentes e ascendentes.

97
MÁRIO REIS MARQUES, Introdução ao Direito, opus cit. pág. 342

82
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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Põe outro lado, a relação jurídica é o objecto de regulação do Direito. Quando


falamos da distinção entre direito público e direito privado, dissemos que este é o conjunto
de normas e princípios que regulam as relações jurídicas dos particulares entre si e entre
estes e os entes públicos quando desprovidos do seu poder de soberania.
A importância da relação jurídica (decorrente do facto de ser
simultaneamente instrumento e objecto de regulação do direito privado) transcende
o âmbito do Direito Privado, porquanto qualquer ramo do Direito mais não é do que a
disciplina ou regulamentação jurídica de relações jurídicas de determinada natureza.
A expressão “relação jurídica” pode ser percebida em vários sentidos. Num sentido
amplo, ela designa toda e qualquer relação da vida social juridicamente relevante, de
tal modo que seja disciplinada pelo Direito (v. g. relação entre pais e filhos, entre os
cônjuges, entre credor e devedor, entre comprador e vendedor, etc. …). Nem todas as
relações sociais são jurídicas; há espaços das relações inter humanas que não são ou não
podem ser objecto de regulamentação jurídica, seja porque não apresentam nenhum
interesse de tal modo relevante que justifique a sua juridificação ou regulamentação
jurídica, seja porque, devido à sua natureza pessoal, postulam a necessidade de se
salvaguardar a liberdade, a espontaneidade e a intimidade das relações estritamente
pessoais98. Cabe, neste ponto, notar que a fronteira entre as relações jurídicas e não
jurídicas não é sempre nítida, porquanto, em determinados casos, nem todos os aspectos
de algumas relações jurídicas são juridificados e juridificáveis, sobretudo os mais pessoais.
Por exemplo, o Direito Matrimonial não disciplina todos os aspectos da relação entre os
cônjuges; não regula os aspectos mais íntimos da vida conjugal; só regula os aspectos mais
relevantes para o Direito; da mesma forma, o Direito Laboral não regula todos os
pormenores da relação que deve existir entre os colegas de trabalho. Entre os exemplos de
relações sociais não jurídicas podem ser cotados: o namoro, a amizade, as relações de
cortesia, o aconselhamento99.

98
Isto não quer dizer que tais relações não tenham absolutamente nenhuma relevância jurídica. Assim, de
acordo com as regras do Direito Processual (Vide artigos 104º, 105º e 106º do C.P.P e artigos 122 1 127º
C.P.C), o facto de uma pessoa ser amiga de outra que seja parte processual deve ser tido em conta pelo
tribunal; se aquela tiver de prestar declarações; um juiz que tenha com uma das partes processuais uma
relação que possa prejudicar o equilíbrio e a imparcialidade que se espera de um juiz (relação de parentesco,
afinidade, de amizade ou mesmo de inimizade) deverá ser afastado da apreciação da causa por via do
incidente de impedimento ou de suspeição (Ver CPP); na falta de parentes, os vogais do Conselho de
Família (órgão consultivo do tribunal nas causas de natureza familiar) podem ser escolhidos entre os amigos
(a lei usa a expressão “… entre as pessoas que convivem com as partes” – art. 17º C.Fam).

99
Quando não corresponda a um dever jurídico decorrente da lei ou de negócio jurídico.

83
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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Em sentido restrito, a relação jurídica não é apresentada da mesma forma.


HÖRSTER100, por exemplo, ensina a doutrina que entende a relação jurídica em sentido
restrito como aquela relação da vida social disciplinada pelo Direito, mas só quando ela é
apresentada como um tipo ou modelo legal de ralação social, um esquema legal a que
corresponde um conjunto de regras, ganhando assim uma fisionomia típica. Acrescenta
ainda que ao sentido restrito corresponde também a relação jurídica em sentido abstracto.
Fazendo eco de uma outra perspectiva doutrinária, C.A. MOTA PINTO101 entende como
relação jurídica em sentido restrito “a relação da vida social disciplinada pelo direito
mediante a atribuição a uma pessoa de um direito subjectivo e a imposição a outra de um
dever jurídico ou de uma sujeição”. Estas duas formas de ver não são necessariamente
antagónicas, se entendermos que os esquemas legais de relações jurídicas estabelecem
sempre os direitos e as vinculações das partes, devido à sua função cautelar ou de prevenção
de conflitos.
Uma outra classificação doutrinal distingue entre a relação jurídica em sentido
abstracto e em sentido concreto. O critério de diferenciação reside em saber se a relação
jurídica em questão está determinada ou não quanto aos seus elementos (sujeitos, objecto,
facto jurídico e garantia). Assim, enquanto a relação jurídica abstracta é uma relação
virtual, não determinada, que corresponde apenas a um tipo negocial legal, a relação
jurídica concreta é uma relação determinada, real e efectivamente constituída, com
os seus elementos perfeitamente determinados: é uma relação entre sujeitos determinados
(por ex. António e Bernardo), originada num facto jurídico concreto (ex., compra e venda),
incidindo sobre um objecto concreto (ex., um imóvel), com direitos e obrigações para as
partes e com as garantias que a lei confere ao comprador e ao vendedor. Numa linguagem
filosófica, poderíamos dizer que a relação jurídica abstracta é uma relação jurídica em
potência, enquanto a relação jurídica concreta é uma relação em acto.
Sob o ângulo de uma outra classificação doutrinária, não muito corrente, a relação
jurídica pode ser simples (una) ou complexa (múltipla). É una ou simples quando
comporta um único direito subjectivo atribuído a uma pessoa e a correspondente
obrigação/dever jurídico ou sujeição imposta a outra pessoa. Por exemplo, o comodato,
previsto no artigo 1129º do Código Civil, comporta apenas uma prestação (restituição da
coisa); de igual forma o mútuo civil (regular) só comporta o direito à percepção do capital e
o correspondente dever de devolução do capital mutuado ao devedor 102.

100
Op. cit. nº 252.

101
C.A. C.A. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., Nº 40-I.

102
Neste sentido, o mútuo é tradicional e tipicamente um contrato unilateral, isto é, origina apenas direitos
ou obrigações para uma das partes. Nos direitos privados especiais, este esquema nem sempre funciona; o
84
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

A relação jurídica complexa ou múltipla comporta uma pluralidade de direitos


e de obrigações (por exemplo, o mútuo oneroso, que comporta duas prestações, a saber a
restituição da quantia mutuada e a obrigação de juros).

2. A estrutura da relação jurídica: direito subjectivo e dever jurídico:


De forma bastante sugestiva, MANUEL ANDRADE representa graficamente a relação
jurídica por uma linha recta, em cujos terminais estão os sujeitos entre os quais se
estabelece o vínculo jurídico; a relação incide sobre um objecto, deriva de uma causa (facto
jurídico) e a ordem jurídica dota-a de um conjunto de meios coercivos (garantia)
tendentes à garantia da efectivação do direito subjectivo.
Tradicionalmente, quando se fala da estrutura da relação jurídica, refere-se esta
apenas ao vínculo existente entre os seus sujeitos, cujo conteúdo é determinado pelo(s)
direito(s) do titular activo e pelo(s) correspondente(s) dever(es) jurídico(s), e considera-se
que os elementos que se encontram na periferia do vínculo não fazem parte da estrutura
relacional. Parece, entretanto, mais consistente a posição que considera na relação jurídica
uma estrutura externa e outra interna. Tal é a posição defendida por HÖRSTER.
Fazem parte da estrutura externa da relação jurídica os elementos que, embora
necessários à sua existência, constituem apenas a sua face externa. São eles: os sujeitos, o
objecto, o facto jurídico e a garantia.
A estrutura interna da relação jurídica é definida pelo seu conteúdo ou núcleo, ou
ainda, o vínculo ou nexo que se estabelece entre os sujeitos. Qual é, então, o núcleo ou
conteúdo da relação jurídica? Os autores são concordes em considerar que a estrutura
(interna) da relação jurídica é integrada, essencialmente, por dois aspectos: o direito
subjectivo, por um lado, e o dever jurídico lato sensu (dever jurídico e sujeição), por
outro.

2.1 O direito subjectivo:


Foi afirmado, no início deste capítulo, que o direito subjectivo é um dos conceitos
mais importantes do Direito Privado103.

mútuo pode ser bilateral. No âmbito da autonomia privada, as partes podem muito bem, como muitas vezes
acontece no mútuo bancário, celebrar o contrato sem a entrega do valor mutuante, sendo esta uma obrigação
decorrente do contrato.

103
Segundo HÖRSTER (A Parte Geral do Código Civil Português, cit., nº 374-375), o conteúdo do direito
subjectivo varia de época para época. O sentido hodierno deste conceito é uma aquisição do Século XIX,
que marcou uma viragem na História, deixando para trás a ordem corporativa e feudal e operou a
emancipação mental, política e económica do indivíduo e contribuiu para a sua consideração como
personalidade autónoma, garantindo o seu livre desenvolvimento dentro da sociedade. Disto resultou a
85
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

Não obstante a dificuldade de se encontrar uma definição universalmente aceite,


tornou-se clássica, porque corre fluentemente entre os manuais de Direito, a definição
concebida por MANUEL ANDRADE104, segundo a qual o direito subjectivo é “a faculdade
ou o poder atribuído pela ordem jurídica a uma pessoa de exigir ou pretender de outra
um determinado comportamento positivo (fazer) ou negativo (não fazer) ou de, por um
acto de sua vontade – com ou sem formalidades – só de per si ou integrado depois por
um acto de autoridade pública (decisão judicial,) produzir determinados efeitos
jurídicos que se impõem inevitavelmente a outra pessoa (adversário ou contraparte) ”.
Analisemos os termos mais expressivos desta definição.

a) O direito subjectivo como poder ou faculdade.


O direito subjectivo é, por definição, uma faculdade ou poder. Trata-se da faculdade
atribuída ao titular activo da relação jurídica e que determina o conteúdo do direito em
causa.
São exemplos do direito subjectivo o direito que o credor tem de exigir o
cumprimento da obrigação (art. 762 nº 2), de requerer a entrega da coisa ou a prestação do
facto (art. 827 e 828), a execução específica; o direito que assiste a cada um dos cônjuges de
acrescentar ao seu apelido o do outro cônjuge (art. 36º C. Fam); igualmente, o direito de
qualquer dos cônjuges de requerer o divórcio (art. 78 C.Fam); o direito do locador de exigir
o pagamento da renda e de exigir que o locatário lhe faculte o exame da coisa locada (art.
1038); o direito que assiste ao proprietário de usar, fruir e dispor da coisa que lhe pertence
(art. 1305).
Há casos em que o direito subjectivo comporta, necessariamente, deveres. Assim, os
pais têm o direito de decidir sobre a educação religiosa dos seus filhos e de exigir destes
obediência (art. 137 C.Fam). Fala-se de poderes-deveres ou direitos-deveres. Nestes casos,
há um interesse de outrem que interfere no direito subjectivo, no caso do exercício do poder
paternal, o interesse do filho e da comunidade. Isto justifica que sempre que o poder-dever

colocação do indivíduo como sujeito de direito no topo do Sistema do Direito Privado, atribuindo-lhe
direitos subjectivos. O direito subjectivo destina-se, assim, principalmente, à autodeterminação do
indivíduo livre.

104
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, cit., vol. Nº I - 2.
Reveste-se de interesse teórico trazer aqui outras visões doutrinárias sobre o conceito do direito subjectivo.
Para SAVIGNY e para PUCHTA, o direito subjectivo consistia numa garantia jurídica do poder de vontade
atribuído pela ordem jurídica. JHERING, por sua vez, considerava-o como um interesse juridicamente
protegido. ENNECCERUS-NIPPERDEY e, posteriormente, RUTHER, falavam de uma relação de poder
estável, atribuída à pessoa. LÉON DIGUIT não via no direito subjectivo nada mais do que tudo quanto
fosse necessário para o cumprimento da função social do que cabe ao indivíduo, de modo que tudo quanto
é realizado no cumprimento daquela função é protegido pela sociedade (Cf. HÖRSTER, A Parte Geral do
Código Civil Português, cit. Nºs 376 ss).

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não seja exercido ou seja exercido de forma inadequada e inaceitável, sendo que, neste
último caso, há verdadeiramente abuso do poder (art. 334 C.C.), as autoridades
intervenham, ou para se substituir ao titular do poder (art. 140 C. Fam), ou para lhes retirar
legitimidade para o exercício do direito (art. 152 a 155 C. Fam). Devido ao carácter
imperioso do exercício do direito, neste caso do poder paternal, não se pode falar
propriamente de um direito subjectivo, porque o exercício deste é livre e o direito subjectivo
é tipicamente uma faculdade.
Por se tratar de um poder ou faculdade, o exercício do direito subjectivo está
na inteira dependência da vontade do seu titular, porque é dele que deve partir o
impulso virado para a sua defesa. O comando normativo que visa efectivar o direito do
titular activo da relação jurídica, assim como o aparelho sancionatório estadual que o pode
caucionar, não podem intervir sem o impulso inicial do seu titular activo.
Devido ao facto de o direito subjectivo se traduzir numa faculdade, certa doutrina,
que teve como corifeu o jurista alemão JHERING, ligou o direito subjectivo à ideia de
interesse e definiu-o como o interesse juridicamente protegido105. E de facto, como diz C.A.
MOTA PINTO106, o direito subjectivo anda ligado essencialmente à ideia de liberdade de
actuação e de soberania do querer.
Todavia, embora o interesse constitua a causa-função pela qual o direito subjectivo
foi instituído, com ele não se confunde. Não há equivalência entre o direito subjectivo e o
interesse, pelas razões seguintes: em primeiro lugar, a existência de um interesse
juridicamente tutelado nem sempre implica a existência do respectivo direito subjectivo 107,
embora a inversa seja, obviamente, verdadeira. Com efeito, há normas, mormente do Direito
Público, que visam, em primeira linha, proteger interesses da colectividade e, ao mesmo
tempo, interesses particulares, de forma indirecta; todavia a mera violação dessas normas
não dá lugar à obrigação de indemnizar os titulares dos direitos a cuja defesa elas se
destinam. Se o houver, este resultará directamente da violação dos seus direitos subjectivos
(absolutos) e não, simplesmente, da norma. Para ilustrar esta ideia, sirvam como exemplo
as regras do Código de Estrada, as regras que proíbem a poluição ambiental, ou que
obriguem à vacinação obrigatória.

105
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, cit., vol.I, 3-B-I-1

106
Teoria Geral do Direito Civil, 42-I

107
Segundo MANUEL DE ANDRADE, a realização do interesse defendido é deferida pela lei a uma
entidade pública.

87
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Em segundo lugar, o direito subjectivo não está confinado ao interesse que a lei, no
caso concreto, pode tutelar, isto é, o âmbito do direito subjectivo é mais amplo do que o do
mero interesse do seu titular. Este pode exercê-lo para realizar fins diferentes daquele que
foi visado, desde que se respeitem os limites impostos pela lei, nos termos do artigo 334º
(cláusula da proibição do abuso do direito) e do artigo 280º do Código Civil. Nas palavras
de HÖRSTER108, o interesse é “uma razão em virtude da qual a lei atribui esse poder”. Na visão
deste autor, não existe uma identidade entre o direito e o interesse, e justifica esta afirmação
nos seguintes termos: “o interesse constitui o móbil do direito subjectivo, mas não faz parte
dele. Não diz respeito à sua estrutura, apenas se refere à sua função…De resto, a lei ao
reconhecer um poder jurídico a uma pessoa para o prosseguimento de um determinado
interesse, não vincula necessariamente para exercer o poder conferido apenas na estrita
medida deste interesse. O titular pode ficar aquém do interesse, mas também não está de todo
inibido de utilizar o direito para um fim diverso. Além de não coincidirem, interesse e direito
subjectivo também não existem necessariamente ao mesmo tempo ou na mesma pessoa ou só
nesta. P. Ex. o exercício dos direitos-deveres não é feito no interesse do seu titular, mas no
interesse de outrem”.

2.1.1 Direito subjectivo em sentido restrito e em sentido amplo.


É corrente distinguir-se entre o sentido amplo e o sentido restrito do direito
subjectivo. O primeiro, também designado direito subjectivo propriamente dito,
consiste no poder de exigir ou pretender de outrem um comportamento positivo ou
negativo…. A este poder corresponde, por parte do sujeito passivo, o dever jurídico.
Dito de outro modo, isto significa que, quando o direito subjectivo consistir neste poder de
pretender ou exigir de outrem um determinado comportamento (positivo ou omissivo), a
situação da pessoa contra quem se dirige o direito subjectivo é o dever jurídico ou obrigação
em sentido amplo.
O direito subjectivo propriamente dito (poder de exigir ou pretender)109 tem um
conteúdo que deve merecer a nossa atenção. O “exigir” serve para as situações em que o

108
Op. cit. 370-371.

109
Na literatura jurídica, estes dois verbos são, às vezes, usados indistintamente e no mesmo sentido. Assim,
por exemplo, HÖRSTER (a Parte Geral do Código Civil, cit., nº 251), por exemplo, considera que o direito
subjectivo dá origem a diversas pretensões. Estas podem ser: contratuais (primárias – art. 879º/1 e 2;
secundárias – art. 914º, 1ª parte), baseadas em negócios jurídicos unilaterais (art. 459º), pretensões quase
contratuais (art. 227º), pretensões resultantes da lei (art. 526º), pretensões reais e possessórias (art. 1311,
1315 e 1276ss), pretensões baseadas na gestão de negócios (art. 466º), pretensões resultantes da
responsabilidade civil (art. 483ss) e pretensões baseadas no enriquecimento sem causa (art. 476ss). Segundo
o mesmo autor, diante de determinada pretensão, há que perguntar se o direito subjectivo invocado foi
constituído validamente, se não deixou de existir, em virtude do cumprimento ou prescrição, e se não existe
alguma situação de oponibilidade ao mesmo.

88
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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credor, no caso de o devedor não observar tempestivamente o dever jurídico, pode


realizar o seu direito por recurso aos tribunais, que poderão adoptar as providências
adequadas a proporcionar-lhe a coisa ou o comportamento devido, de uma forma ou de
outra. Portanto, o titular activo da relação jurídica pode sempre obter a efectivação do
seu direito, exigindo judicialmente (execução específica ou de outros bens existentes no
património do devedor (art. 601º C.C.) o seu cumprimento. Diz-se que, neste caso, o dever
jurídico recebe o nome de obrigação civil (HÖRSTER).
Por sua vez, o verbo “pretender”, no contexto do direito subjectivo, é adequado
para designar as situações em que o titular activo da ralação jurídica não dispõe, de
acordo com a ordem jurídica, de qualquer meio coercitivo de efectivar o seu direito.
Se o devedor chegar a cumprir o dever a que está adstrito, a lei vê isto como um puro
dever de ordem moral ou social (obrigação natural). Não o tendo cumprido, o credor
não pode exigir judicialmente o cumprimento ou a execução do património daquele (art.
402º C.C.). Assim, por exemplo, quem tiver vendido um imóvel a um menor, não poderá,
judicialmente, exigir do mesmo o preço devido, dado que o menor não se pode obrigar
(carece de capacidade exercício de direitos – Cf. art. 123º e 764º nº 1), o que dará lugar à
sua absolvição da instância por falta de capacidade judiciária 110, excepto se a falta de
capacidade for suprida nos termos do nº 2 do artigo 9º do CPC. Igualmente, a prescrição
torna a obrigação não exigível judicialmente. É também não judicialmente exigível a
obrigação resultante do jogo e da aposta, nos termos do art. 1245º do Código Civil. Nestes e
noutros casos, a situação do credor é de mera expectativa jurídica.
Em sentido amplo, o direito subjectivo abarca o direito subjectivo
propriamente dito e o direito potestativo. O direito potestativo está vertido na última
parte de definição do direito subjectivo (poder de “…por um acto de sua vontade – com ou
sem formalidades – só de per si ou integrado depois por um acto de autoridade pública
(decisão judicial) produzir determinados efeitos jurídicos que se impõem inevitavelmente a
outra pessoa… ”)), ou seja, a ordem jurídica atribui um poder de produzir efeitos jurídicos
mediante uma simples declaração de vontade do titular activo da relação jurídica. É um
direito que tem um poder conformativo; e corresponde-lhe o estado de sujeição ou sujeição
do sujeito passivo, que não terá, assim, nenhuma alternativa para escapar aos efeitos
decorrentes do exercício daquele direito.

110
Entende-se por capacidade judiciária a susceptibilidade de estar, por si só, em juízo. Ver, as este respeito,
NÉLIA DANIEL DIAS, Lições de Processo Civil I, Edição da União dos Escritores Angolanos, Luanda,
2010, pág. 59.

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O direito potestativo pode ser constitutivo, modificativo ou extintivo,


conforme crie, modifique ou extinga uma relação jurídica. Como exemplos de direitos
potestativos, podem ser citados os vários tipos de servidões legais (ex. servidão legal de
passagem (art. 1550º e seguintes), o direito de preferência ou preempção dos proprietários
de prédios confinantes (art. 1380º C.C.), dos comproprietários (art. 1409 C.C.), o direito de
preferência do proprietário do prédio encravado na venda do prédio dominante (art. 1547,
nº 2; 1550 C.C.). A constituição da servidão de passagem pode implicar o pagamento de uma
indemnização pelos prejuízos que a servidão possa, eventualmente, causar, sendo que o
montante da indemnização pode ser acordado pelas partes ou, na falta de acordo, ser fixado
pelo tribunal (art. 1554).
Os direitos potestativos modificativos apenas modificam uma relação jurídica já
existente. Por exemplo, a mudança da servidão de passagem para outro sítio (art. 1568º
C.C.). A separação de facto é, no nosso ordenamento jurídico, um direito potestativo
modificativo, não extingue a relação matrimonial111.
O direito potestativo extintivo põe fim a uma situação ou relação jurídica. Sãos dele
exemplos: a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio por falta de
cumprimento por parte do locatário (art. 1.047º C.C.), a denúncia do arrendamento (art.
1055º C.C.), a revogação da procuração do mandato (art. 265º, nº2, e 1172º C.c.), o direito
de obter divórcio por qualquer dos cônjuges (art. 95º e 97º C. Fam.), a resolução do contrato
de trabalho por justa causa (art. 229 LGT), a revogação do consentimento (art. 81º, nº 2,
C.C.).
Podemos resumir a estrutura da relação jurídica no seguinte quadro:
Direito Correspondente
Direito subjectivo ^^ Dever jurídico (obrigação, lato sensu)
Poder de exigir ^^ obrigação civil (exigível judicialmente)
Poder de pretender ^^ obrigação natural (não exigível judicialmente)
Direito potestativo ^^ sujeição (fatalidade)

c) Classificação dos direitos subjectivos. Remissão.

2.1.1.2. Direitos potestativos, poderes ou faculdades e legitimidade:


Os direitos potestativos são verdadeiras faculdades ou poderes, mas são poderes especiais
na medida em que só competem a pessoas que se encontrem em situações particulares,

111
À luz do Direito vigente em Angola, o casamento só se extingue por duas vias: o divórcio e a morte. O
Código de Família Angolano não prevê a separação judicial.

90
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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porquanto pressupõem uma relação jurídica pré existente, surgindo no desenvolvimento


dessa relação

2.2. O dever jurídico: sentido amplo e sentido restrito.


O dever jurídico e a sujeição correspondem à noção de obrigação em sentido
amplo112. Em sentido técnico, a obrigação consiste no vínculo jurídico entre pessoas
determinadas, por virtude do qual uma delas deve realizar uma dada prestação, positiva
(fazer) ou negativa (não fazer), em beneficio de outra (art. 397º C.C. ).
No entanto, no âmbito da estrutura da relação jurídica, impõe-se
distinguirmos entre dever jurídico e sujeição. Esta destrinça pode ser feita nos
seguintes moldes: i) o dever jurídico é o pólo oposto ao direito subjectivo
propriamente dito (poder de exigir ou pretender), a sujeição, ao direito potestativo;
ii) o sujeito do dever jurídico tem a possibilidade de não cumprir o dever, sendo que,
neste caso, ele se expõe a sanções de vária ordem previstas pelo ordenamento
jurídico, ao passo que, no estado de sujeição, há uma necessidade113 imposta pela
ordem jurídica de ter de suportar os efeitos decorrentes do exercício do direito
potestativo, os quais se produzem, independentemente da vontade do sujeito
passivo. Por isso, a sujeição não pode ser infringida.
O ónus visa simplesmente impôr ao titular de um direito subjectivo certos
deveres ou incumbências para consigo próprio, para que ele vele pelos seus próprios
interesses. Se o titular do direito não cumpre o ónus, não há nenhuma infracção, ele não se
torna devedor de ninguém; ninguém terá o direito de exigir dele o cumprimento do ónus,
nem uma indemnização pelo seu não cumprimento. O que ocorre é simplesmente o facto de
que com o não cumprimento do ónus, a pessoa coloca-se numa situação de desvantagem
devido à sua displicência que, por sua vez, o leva a causar prejuízos a si próprio. Por
exemplo, o não registo da aquisição de um imóvel é um ónus. O tratamento da
documentação necessária para se obter determinada licença é um ónus.

2.2.1 Dever jurídico, sujeição e ónus

3. Relação jurídica e instituto jurídico.

112
Vide supra, no Capítulo II, no item relativo ao Livro II do Código Civil.

113
No sentido filosófico, a que corresponde uma verdadeira fatalidade; necessário é o que não pode não
ser.

91
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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Na linguagem comum, estas duas expressões são, amiúde, confundidas e usadas de


forma promíscua. Todavia, elas não se identificam.
O instituto jurídico corresponde a um conjunto ou complexo de normas jurídicas
que contêm a disciplina jurídica de um determinado tipo de relações jurídicas, de uma
relação jurídica em sentido abstracto. Como exemplos de institutos jurídicos temos o poder
paternal, o casamento, a compra e venda, o arrendamento, a curatela, a propriedade, a
sucessão, etc.
Como se pode facilmente notar, estas duas figuras mantêm entre si uma relação
estreita, apesar da distinção que se impõe fazer do ponto de vista dos conceitos. A relação
jurídica é a matéria, o objecto de regulação do instituto jurídico. O instituto jurídico é a
própria regulamentação. Instituto jurídico e relação jurídica são, por isso mesmo, dois
aspectos da mesma realidade (MANUEL DE ANDRADE).
Os diversos institutos jurídicos se encontram, e devem estar, de tal modo
interligados que manifestem, e não ponham em causa, a unidade do ordenamento ou
sistema jurídico. Esta unidade é garantida pela Constituição da República, que estabelece os
princípios estruturantes do Ordenamento Jurídico por via do princípio da conformidade
constitucional.

4. Elementos da relação jurídica


Os elementos da relação jurídica são aqueles necessários para que ela se constitua e
possa existir, embora não integrem a sua estrutura interna. São eles: os sujeitos, o objecto,
o facto jurídico e a garantia.
Por ora, por esta ser apenas de uma parte de carácter geral, o tratamento mais
intenso dos três primeiros elementos mencionados será dado na parte que se segue, já à luz
do esquema e do articulado do Subtítulo I do Título I da Parte Geral do Código Civil, cuja
sistematização foi feita com base na relação jurídica.114

4.1 Sujeitos
A relação jurídica só pode ser estabelecida entre pessoas, mas só entre pessoas em
sentido jurídico ou técnico 115, isto é, entre entidades dotadas de personalidade jurídica
(sujeitos de direitos e obrigações).

114
De facto, é claramente visível esta lógica na arrumação externa do Título II, sob a epígrafe “Das Relações
Jurídicas. Assim, temos: Subtítulo I – Das Pessoas (art. 66-201); Subtítulo II – Das Coisas (art. 202-2169;
Subtítulo III – Dos Factos jurídicos (art. 217-295); subtítulo IV – Do exercício e da tutela dos direitos. Os
artigos 296 a 333 são dedicados ao tempo e à sua repercussão nas relações jurídicas

115

92
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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Ao sentido técnico-jurídico de pessoa contrapõe-se o sentido ético, que corresponde


aos seres humanos, incluído os seres humanos em formação. O sentido técnico de pessoa
abarca tanto as pessoas singulares, igualmente designadas pessoas ou físicas 116, como as
pessoas colectivas. As pessoas colectivas são organizações de pessoas (sociedades,
associações) ou conjuntos de bens (fundações, institutos), estruturados e organizados em
função de um fim comum (que regularmente transcende as potencialidades individuais), e
às quais a ordem jurídica atribuiu personalidade jurídica 117. O regime jurídico das pessoas
singulares está previsto nos artigos 66º a 156º, enquanto o das pessoas colectivas está
vertido nos artigos 157º a 194º do Código Civil.
Do que se acaba de dizer decorre que o conceito de personalidade jurídica é uma
categoria meramente formal, na medida em que dela participam entidades destituídas de
substrato ético, as pessoas colectivas118.
Note-se, entretanto, que nem todas as formações colectivas são dotadas de
personalidade jurídica. No Código Civil, são contemplados como tais as associações sem
personalidade jurídica e comissões especiais. O seu regime jurídico corresponde aos artigos
195º a 201º do Código Civil. No Direito Comercial, existem também entidades sem
personalidade jurídica, como, por exemplo, o consórcio119, as sociedades irregulares120 e as
associações em participação121. Não têm personalidade jurídica, mas mantêm com as

116
Individualidades físico-químicas capazes de vontade e acção próprias.

117
H.E.HÖRSTER, op. cit. nº 264.

118
OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Teoria Geral, cit., Vol. I, pág. 52).

119
O consórcio é uma associação de empresas ou companhias, sob o mesmo controle ou não, que se juntam
para desenvolver um empreendimento, geralmente de grande dimensão, e cuja execução exige
conhecimentos especializados, e para obter uma finalidade comum. Em sentido técnico, a palavra consórcio
designa o contrato mediante o qual se dá a associação. Trata-se do contrato pelo qual duas ou mais pessoas
singulares ou colectivas, que exerçam uma actividade económica, se obrigam entre si a, de forma
concertada, realizar certa actividade ou efetuar certa contribuição com o fim de prosseguir um determinado
escopo ou objecto. O consórcio tem uma estreita ligação com a joint venture, mas não se pode confundir
com ela. A joint venture pode ter um sentido mais amplo. As empresas que se associam são independentes
juridicamente, mas pode optar por constituir um ente juridicamente independente, que responde
juridicamente pelos direitos e obrigações contraídas em seu nome, ou manter-se num simples consórcio,
sendo que neste caso, são as associadas que respondem pelos direitos e obrigações. Tanto num caso como
noutro, temos uma joint venture.

120
São sociedades em via de formação, estão num processo de aquisição da personalidade jurídica, para a
qual lhes faltam alguns requisitos.

121
A associação em participação é um contrato através do qual uma pessoa se associa à actividade
económica exercida por outra pessoa, ficando a primeira a participar nos lucros ou nos lucros e nas perdas
que desse exercício resultarem para a segunda. Esta figura implica, assim, pelo menos, dois sujeitos: um
deles, normalmente (mas não necessariamente) um comerciante, que obtém o financiamento e mantém o
exclusivo controlo da sua actividade, sendo o único a surgir nas relações externas (o associante) e um outro
(associado), que não tem de, necessariamente, exercer uma actividade comercial, e que realiza um
93
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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pessoas colectivas certas afinidades. como não são centros autónomos de imputação de
direitos e obrigações, pelas obrigações assumidas em nome delas são responsáveis, em
princípio, os seus membros.
Como já foi adiantado, as pessoas singulares têm personalidade jurídica por direito
natural, isto é, pelo simples fato de nascerem, nos termos do artigo (art. 66º nº 1 C.C.)122. A
personalidade jurídica das pessoas é um dado extra-legal e extra jurídico. Já a personalidade
jurídica das pessoas colectivas depende da Lei, pois as pessoas colectivas são uma criação
do Direito; daí que alguma doutrina as considere como pessoas fictícias. Mas a partir do
momento em que adquiram a personalidade jurídica, as pessoas colectivas são autónomas
e juridicamente independentes, isto é, são centros autónomos de direitos e obrigações,
porque juridicamente distintas dos seus membros (pessoas físicas)123.

investimento remunerado na actividade do associante. Note-se ainda, como nota fundamental desta figura,
que a associação em participação não tem personalidade jurídica. Perante terceiros, o associante surge como
o único titular e dono do negócio − só ele intervém no tráfego jurídico e, portanto, só em relação a ele se
constituem direitos e obrigações perante terceiros. A sua relação com o(s) associado(s) é uma relação
meramente obrigacional, não sendo contitulares de qualquer património comum (ALEXANDRE C.A.
MOTA PINTO e JOANA TORRES EREIO, Sumários Desenvolvidos, Contratos Civis e Comerciais, Ano
Letivo De 2011/2012, Faculdade de Direito da Universidade de Nova Lisboa, in
http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/AMP_MA_15386.pdf)

122
Trata-se de um entendimento conquistado com o jusnaturalismo iluminista. O Jusnaturalismo em si é
caracterizado pela defesa da existência de um direito supra legal – o direito natural - que é imutável no que
diz respeito a determinados valores fundamentais como a justiça e que devem ser respeitados pelo Direito
Positivo. Historicamente, o Jusnaturanismo não se concentra numa única época. Assim, fala-se do
jusnaturalismo da antiguidade (de Hesíodo até Séneca e Marco Aurélio), que parte da existência de uma
ordem natural, o jusnaturalismo cristão (de Santo Agostinho a Tomás de Aquino e Francisco Suarez –
caracterizado pelo pensamento teológico), o Iluminismo (de Grotius até Rousseau e Immanuel Kant); este
último, o Iluminismo, coloca a razão e/ou a natureza do homem no centro da reflexão (para mais detalhes,
Ver. H. E. HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit. Nº 15 e 263).

123
PAIS DE VASCONCELOS (Teoria Geral do Direito Civil, cit., cit. nº 4: I a IV) faz uma abordagem
bastante interessante a este respeito, colocando uma pergunta: se é por se ser sujeito de direitos e obrigações
que se é pessoa ou se é por se ser pessoa que se é sujeito de direitos e obrigações. Segundo ele,
tradicionalmente, tem-se partido da susceptibilidade de direitos e obrigações para a qualificação de certo
ente como pessoa, e é este caminho que possibilita a criação de outras pessoas jurídicas (pessoas colectivas),
para além das pessoas humanas. Aqui a pessoa é algo construído pelo Direito. Todavia, este caminho tem
o risco de se conferir ao Direito e à Lei o poder da atribuição da personalidade jurídica, abrindo-se, assim,
caminho para construções jurídicas que não respeitem a dignidade e a centralidade da pessoa em todo o
Direito; é esta via que levou à exclusão de determinados seres humanos do conceito de pessoa, com base
em critérios de raça ou religiosos. Se se parte da personalidade entendida como qualidade de ser pessoa
para a atribuição de direitos e obrigações, então a titularidade de direitos e obrigações é apenas
consequência de um facto e não a sua causa. A personalidade das pessoas humanas não é, neste sentido,
algo que possa ser atribuído ou recusado pelo Direito, é algo que fica fora do alcance do poder de
conformação do legislador. É este o entendimento hoje patente no nº 1 do artigo 66º do Código Civil.

94
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A relação jurídica constitui-se entre sujeitos (activo e passivo), os quais são os seus
pontos terminais. O sujeito activo é o titular de poderes (direito subjectivo/direito
potestativo), enquanto o sujeito passivo é o titular de vinculações (dever jurídico/sujeição).
A relação jurídica pode constituir-se entre pessoas singulares, ou entre pessoas
colectivas, ou entre uma pessoa colectiva e outra singular. Além disso, há que notar ainda
que os sujeitos da relação jurídica podem ser mais de dois, embora, na maioria dos casos,
haja apenas dois sujeitos, um activo e outro passivo.
Os sujeitos da relação jurídica ocupam posições jurídicas. O mais normal é um dos
sujeitos ocupar a posição activa e o outro a posição passiva. Mas há tipos negociais em que
cada um dos sujeitos ocupa, simultaneamente, uma posição activa (ter direitos sobre o outro
sujeito), em determinado(s) aspecto(s) da relação jurídica, uma posição passiva em outro
aspecto da relação (ter obrigações) e vice-versa. Por isso se fala de direitos e obrigações das
partes.

4.2 Objecto
O objecto da relação jurídica é aquilo (quid) sobre o qual incide o direito subjectivo
(os poderes conferidos pela ordem jurídica ao titular activo da relação jurídica). Este quid
pode consistir numa coisa em sentido jurídico; mas pode ser uma prestação. O estudo
pormenorizado é reservado para o capítulo apropriado.

4.3 Facto jurídico


É facto jurídico todo e qualquer acto humano ou acontecimento natural
juridicamente relevante, na medida em que produz efeitos jurídicos (MANUEL DE
ANDRADE). Os efeitos jurídicos traduzem-se na constituição, modificação e extinção de
relações jurídicas, isto é, dos direitos e das obrigações correspondentes. Por isso se fala de
factos jurídicos constitutivos, modificativos e extintivos.
Os factos jurídicos mais significativos no Direito Privado são os negócios jurídicos.

4.4 A garantia da relação jurídica:


O Direito não seria eficaz se se limitasse às imposições ou e proibições. Torna-se
necessário que haja meios coercivos para que aquelas injunções se tornem efectivas. Tais
meios recebem genericamente a designação de garantias da relação jurídica, que
compreendem todo o conjunto de providências sancionatórias externas que importam, em
última instância, o emprego da força (coação), atribuído a órgãos competentes, e que
destinadas a assegurar o respeito e a efectivação do direito subjectivo.
Desta feita, a garantia da relação jurídica pode ser desenhada como o conjunto de
meios que permitem ao titular activo da relação jurídica obter a realização efectiva e fazer
95
Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
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valer o seu direito, sempre que o obrigado negligente ou relutante não cumpra
tempestivamente, e sempre que, fundadamente, o titular do direito receie estar na
iminência de ver o seu direito violado124.
São inúmeras as garantias da relação jurídica. Podem ser descortinadas à medida
que se estudam os vários tipos de relações jurídicas. Podemos apontar, de forma
exemplificativa, algumas, distinguindo entre aquelas que se consideram normais, ou mais
frequentes, e as garantias excepcionais. Entre as primeiras, encontramos: a execução dos
bens do devedor (art. 601º C.C), a execução específica (art. 827º, 830º, nº1), a obrigação de
indemnizar (art. 483º e 562º C.C.), a obrigação de juros (art. 559º C.C.), a cláusula penal (art.
830º nº 2 C.C), a excepção de não cumprimento (art. 428º C.C.) e as garantias, reais e
pessoais, das obrigações.
Estas garantias têm vários níveis. Se o direito subjectivo confere ao seu titular o
poder de exigir, o titular dispõe da garantia da acção judicial. Se lhe confere apenas o poder
de pretender, a garantia é mais fraca, já que o cumprimento não pode ser exigido
judicialmente. Todavia, se o devedor cumprir espontaneamente a obrigação, não tem direito
à repetição (devolução) da coisa prestada (art. 403); o devedor não por exigir, nem
judicialmente, a repetição do indevido. Se o direito subjectivo confere um direito
potestativo, a garantia é mais forte, porque o devedor não se pode furtar ao cumprimento
(estado de sujeição).
Existem, além das que acabamos de mencionar, as que põem ser chamadas de
garantias excepcionais125: a acção directa (art. 336º C.C.), a legítima defesa (art. 337º C.C.) e
o estado de necessidade (art.339º C.C.).
A acção directa (art. 336 e 338) permite que o titular do direito recorra à força, isto
é, confere-lhe autorização para se apropriar, destruir ou deteriorar uma coisa ou eliminar a
resistência física irregularmente oposta ao exercício do direito por parte do titular, ou
praticar outro acto análogo126 para realizar ou assegurar o seu direito, desde que se

124
Segundo HÖRSTER, a garantia jurídica visa proteger a confiança do credor. Com efeito, diz ele:
“embora a ordem jurídica conte, em princípio, com o cumprimento espontâneo das obrigações resultantes
de uma relação jurídica, ela não pode limitar-se a esta posição de confiança. É preciso colocar meios
adequados à disposição do titular do direito subjectivo para aqueles casos em que a confiança é desiludida
porque o direito subjectivo foi violado, ou corre o risco, mais ou menos iminente, de vir a ser violado, ou
é contestado ao seu titular”.

125
Esta designação resulta do que dispõe o artigo 1º do Código de Processo Civil: “A ninguém é lícito o
recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites
declarados na lei. Os direitos são garantidos, em princípio, pela via judicial. Isto é atestado pela Constituição
que estabelece no nº1 do artigo 29º, sob a epígrafe “Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”: “a
todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência dos meios económicos”.

126
HÖRSTER, op. cit. Nº 358

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verifiquem os seguintes pressupostos: a) que a acção seja indispensável (não haja outro
meio para assegurar o direito); b) que seja impossível recorrer em tempo útil aos meios
coercivos normais; c) que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo.
A lei exige, portanto, que se observe o princípio da proporcionalidade. Segundo HÖRSTER,
a acção directa não pode ser aplicada aos direitos de pretender, isto é, quando se trate de
uma obrigação natural127. Nos termos do artigo 338º do Código Civil, se o titular do direito
agir na suposição errónea de se verificarem os pressupostos da acção directa, é obrigado a
indemnizar o prejuízo causado, excepto se o erro for desculpável128.
A legítima defesa (art. 337): traduz-se na justificação do acto destinado a afastar
qualquer agressão actual e contrária à lei contra a pessoa ou o património do agente ou de
terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios normais e desde que o prejuízo
causado pelo acto não seja manifestamente superior ao que pode resultar da lesão. A
legítima defesa difere da acção directa no aspecto de que pressupõe e destina-se a afastar
uma agressão actual e contrária á lei, contra a pessoa ou o património do titular ou de
terceiro (a acção directa destina-se a assegurar ou realizar o próprio direito), postula os
seguintes pressupostos: a) que exista uma agressão humana actual; b) a sua contrariedade
à lei; c) necessidade da defesa; d) Impossibilidade do recurso aos meios normais;
proporcionalidade da defesa.
Nos termos do artigo 339º, o estado de necessidade129 verifica-se sempre que alguém
destrua ou danifique coisa alheia com o fim de remover o perigo actual de um dano
manifestamente superior, quer do agente, quer de terceiro. Segundo HÖRSTER, o estado de
necessidade pode existir em duas situações: numa primeira situação, destrói-se uma coisa
alheia que representa um perigo, seja para o agente seja para terceiro (defensiver
Notstand). Pode existir também quando o perigo não parta da coisa a destruir ou a danificar,
mas se serve desta para remover o perigo actual de um dano manifestamente superior que
parte de outra fonte (Agressiver Notstand)130. O estado de necessidade importa a obrigação
de indemnizar quando o perigo tenha sido provocado pelo agente. Entretanto a obrigação

127
Ibidem

128
HÖRSTER considera tal solução pouco feliz. Nas suas próprias palavras, “Quem recorre à acção directa
assume um risco especial onde todos os cuidados são poucos e devia estar obrigado a indemnizar sempre
que os pressupostos não existem, independentemente da desculpabilidade do erro. Com a solução adoptada
a lei não contribui para a paz social, uma vez que não distribui da melhor maneira o risco entre os
intervenientes, fazendo arcar com ele a vítima de uma actuação não justificada e cujos interesses nem sequer
são afectados”.

129
Alimenta a curiosidade saber que a palavra alemã que traduz o estado de necessidade (notstand) exprime
a ideia de emergência.

130
Op. cit. Nº 361.

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de indemnizar pode recair, além do agente, também aos que tiraram proveito do acto (art.
339 nº 2).
As garantias podem ser preventivas ou repressivas. Talvez conviesse dizer que
todas estas garantias têm uma função preventiva e outra repressiva. Cumprem a primeira
função, na medida em que a sua existência legal visa prevenir a violação de direitos;
repressivas, porque serão accionadas sempre que sejam invocadas pelo titular do direito
violado para que o mesmo seja reposto. Deve-se notar que as garantias não funcionam de
modo automático, são verdadeiras faculdades, de que o sujeito activo pode lançar mão e,
por isso, só operam por iniciativa do titular do direito subjectivo.

RESUMO
DA RELAÇÃO JURÍDICA – GENERALIDADES

1. Noção de relação jurídica. Sentido abstracto e sentido concreto.


• Importância do tema:
• Sentido restrito/abstracto
• Sentido concreto
• Relações sociais e aspectos das relações jurídicas não justificáveis

2. Elementos da relação jurídica: sujeitos, objecto, facto jurídico e garantia.


2.1 Sujeitos: activo (pessoa singular ou colectiva) + sujeito passivo (pessoa singular
ou colectiva)
2.1.1 Estrutura da relação jurídica: direito subjectivo e dever jurídico
Direito subjectivo propriamente dito
• Direito subjectivo como poder ou faculdade
• Poderes-deveres ou poderes funcionais (ex. poder paternal)
o Abuso de poder (334); inibição (140, 152, 155 C. Fam)
o Nota característica do dto subjectivo: dependência da vontade
do titular
o Poder de exigir = obrigação civil (exemplos)
o Poder de pretender V. Obrigação natural (art. 402 C.C.)
Direito Potestativo V. Sujeição

3. Objecto
o Noção: quid sobre o qual incidem os poderes do titular activo da relação
jurídica
o Poder ser: uma coisa, uma prestação, uma pessoa

4. Facto jurídico = acontecimento gerador de efeitos jurídicos = fonte da relação


jurídica (obrigacional, real, familiar, sucessória, administrativa, fiscal, etc.)
O facto diz jurídico quando produz efeitos jurídicos: constituição, modificação e
extinção de direitos e obrigações.

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Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil – 2021.
Elaboração de Celestino Rafael

5. Garantia da relação jurídica: conjunto de providências coercivas e ou


sancionatórias externas que importam, em última instância, o emprego da força
(coação), atribuído a órgãos competentes, e que destinadas a assegurar o respeito
e a efectivação do direito subjectivo.
ou
o conjunto de meios que permitem ao titular activo da relação jurídica obter a
realização efectiva e fazer valer o seu direito, sempre que o obrigado negligente ou
relutante não cumpra tempestivamente, e sempre que, fundadamente, o titular do
direito receie estar na iminência de ver o seu direito violado

5.1 Garantias normais:


• Execução do património do devedor (604)
• Execução específica (827 e 830)
• Cláusula penal (830)
• Sinal (421?)
• Responsabilidade civil (483 e 562)
• Excepção de não cumprimento (428)
• Juros (559)
• Garantias das obrigações reais (hiporeca, penhor, direito de retenção,
privilégio creditório, consignação de rendimentos) e pessoais (fiança, aval).
5.2 Garantias excepcionais: acção directa (336), legítima defesa (337) estado de
necessidade (339)

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