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Capítulo III

CONCEITO SOCIOLÓGICO DO DIREITO

Normas de conduta. Características das normas de conduta: a


obrigatoriedade e a sanção. Origem das normas de conduta: a escola monista
e a escola pluralista. Provisoriedade e mutabilidade das normas de direito.
Conceito sociológico do direito.

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O Direito, como já ficou assentado, é fato social que se manifesta como uma das
realidades observáveis na sociedade. É fenômeno social, assim como a linguagem, a religião,
a cultura, que surge das inter-relações sociais e se destina a satisfazer necessidades sociais,
tais como prevenir e compor conflitos.
Propomo-nos neste capítulo a explicitar a concepção do Direito como fato social,
formulando um conceito que se enquadre na visão sociológica do Direito.
Conceituar, como é sabido por todos, não é tarefa simples, arriscando-se aquele
que se empenha em realizá-la a formular um conceito parcial. Essa tarefa se toma ainda mais
arriscada quando se trata do Direito. Kant teria afirmado, já no século XVII, que os “juristas
ainda estão à procura de uma definição para o Direito”.
Antes de tentar conceituar qualquer coisa, deve o estudante considerar todos os
elementos dessa coisa, seus requisitos, características, finalidade etc., e então procurar fazer uma
descrição de tudo isso. Só assim poderá chegar perto da realidade na formulação do seu conceito.
É o que procuraremos fazer com relação ao Direito, lançando mão dos vários
princípios expostos nos capítulos anteriores. [pg. 23]

12. NORMAS DE CONDUTA

Se o Direito, como já vimos, está ligado à idéia de organização e conduta, então deve
ser ele entendido como um conjunto de normas de conduta que disciplinam as relações sociais. O
mundo do Direito é o mundo das relações entre os homens, pois na conjugação desses dois
elementos - a sociedade e o indivíduo - encontramos a sua razão de ser. Como tem sido assinalado
por muitos autores, é o Direito a única relação inteiramente determinada pela coexistência
humana e que se exaure de homem para homem. Cuida, pois, o Direito da disciplina das relações
extrínsecas do homem, cabendo à moral a disciplina de suas relações intrínsecas.
Não somente as relações que se travam entre o indivíduo e outro indivíduo são
objeto do Direito, mas também aquelas que se realizam entre o indivíduo versus o grupo, o
grupo versus o indivíduo e o grupo versus outro grupo.

13. CARACTERÍSTICAS DAS NORMAS DE CONDUTA

Trata-se de normas de conduta que se destinam a todos, aplicáveis a todas as


relações abrangíveis pelo seu escopo. Por isso são chamadas normas universais ou genéricas.
São também abstratas porque não se referem a casos concretos quando de sua
elaboração, mas sim a casos hipoteticamente considerados. Assim, por exemplo, quando a
norma do art. 121 do Código Penal incrimina a ação de matar, não objetiva concretamente o
caso de A matar B, mas sim qualquer hipótese de homicídio.
Portanto, o Direito não se dirige a pessoas determinadas nem a relações
consideradas individualmente. Não regula de forma direta, por exemplo, o contrato celebrado
entre A e B em determinado momento e em determinado lugar porque a individualidade dos
comandos não é própria do Direito.
O caráter de generalidade das normas do Direito faz que este tenha em vista
apenas o que na sociedade acontece com mais freqüência. E isso permite, como já assinalado,
o prévio conhecimento do critério a ser aplicado na composição dos conflitos e assegura
igualdade de tratamento às partes. Sabe-se previamente como será resolvido um determinado
tipo de conflito se e quando ocorrer, com a garantia de que as partes nele envolvidas serão
tratadas da mesma maneira. [pg. 24]

13.1. A Obrigatoriedade

Em regra são normas obrigatórias, isto é, de observância necessária. E nem


poderia ser diferente, sob pena de o Direito não atingir os seus objetivos. Claro está que, se a
observância das normas jurídicas fosse facultativa, totalmente inócua se tomaria a disciplina
por elas imposta. Seria um tiro sem bala.
A obrigação é, portanto, elemento fundamental do Direito, embora à primeira
vista possa parecer paradoxal. Para o público em geral, a palavra direito dá idéia de privilégio,
faculdade, regalia, liberdade, ou seja, tudo que é oposto à obrigação. Dizemos “eu tenho
direito a isso ou àquilo” para indicar algo que nos favoreça, e não uma obrigação. Esquecemo-
nos, entretanto, que, na exata medida em que o Direito nos confere um beneficio, vantagem
ou poder, cria uma obrigação ou dever para outrem, e vice-versa.
Então, a noção do Direito está intimamente ligada à noção de obrigação. Até
mesmo no campo do direito contratual, onde muitos autores acreditam reinar a “autonomia da
vontade” a coisa não é bem assim, pois na realidade também ali essa autonomia move-se
dentro de limites extremamente reduzidos.
Não percebemos que o Direito é sobretudo obrigação porque estamos habituados
a obedecer a suas normas, a tal ponto que não lhe sentimos quase o peso, da mesma forma
que não sentimos certas imposições físicas, como a gravidade. Ocorre também que, em geral e
por definição, essas normas correspondem à nossa maneira de pensar e sentir, talo nosso
condicionamento social.
No momento em que transgredimos qualquer dessas normas, entretanto, tomamos
logo consciência da sua obrigatoriedade pois temos então que responder pelas conseqüências.
Alguns autores, em lugar de obrigatoriedade, preferem falar em coercibilidade da
norma, para indicar que ela envolve a possibilidade jurídica de coação. Esta, a rigor, é a
principal diferença entre a norma jurídica e a regra moral. A moral é incompatível com a força
ou coação mesmo quando estas se manifestam juridicamente organizadas. Pondera o festejado
Miguel Reale que “a moral é o mundo da conduta espontânea, do comportamento que
encontra em si próprio a sua razão de existir. O ato moral implica a adesão do espírito ao
conteúdo da regra. Só temos, na verdade, moral autêntica quando o indivíduo, por um
movimento espiritual espontâneo realiza o ato enunciado pela norma. Não é possível
conceber-se o ato moral forçado, fruto da força ou da coação. Ninguém pode ser bom pela
vio- [pg. 25] lência” (ob. cit., p. 44). É também por isso que se tem afirmado (Kant foi o
primeiro) ser a Moral autônoma e o Direito heterônomo, visto ser posto por terceiros aquilo
que juridicamente somos obrigados a cumprir.

13.2. A Sanção

O Direito dirige-se a seres dotados de liberdade, que agem comandados pela


vontade. Como podem as pessoas inobservá-lo, tomou-se necessário estabelecer uma sanção,
o meio mais eficaz encontrado pela sociedade para tomar a norma jurídica de observância
necessária.
A obrigação não pode existir sem sanção. Por isso alguns teóricos chegam a
definir o Direito como um sistema de sanções.
Sanção é a ameaça de punição para o transgressor da norma. É o prometimento de
um mal, consistente em perda ou restrição de determinados bens, assim como na obrigação de
reparar o dano causado, para todo aquele que descumprir uma norma de Direito. É a
possibilidade de coação da qual a norma é acompanhada.
Há, em nosso entender, uma pequena diferença entre sanção e pena, embora na
prática os autores e a própria lei não a considerem. Sanção é a ameaça de castigo para o
transgressor da norma, e pena já é o próprio castigo imposto; sanção é a pena abstratamente
considerada, e pena é a sanção concretizada; a sanção é cominada pelo legislador, e a pena é
fixada pelo juiz; a sanção exerce uma coação psicológica sobre os indivíduos, ao passo que a
pena exerce uma coação física ou material.
Essa coação psicológica, geradora do temor à pena, faz com que a maioria se
conduza dentro dos limites do Direito. É a chamada prevenção geral, através da qual consegue
o Direito evitar a ocorrência de inumeráveis conflitos.
Tal coação é por Vanni (Lezioni di Filosofia del Diritto) vista como força psíquica
do direito, que se dirige à vontade, exercendo constrangimento sobre a consciência.
Para uma minoria não basta a coação psicológica, acabando por transgredir as
normas, na esperança de não ser punida. Para esses destina-se a coação física ou material. A
autoridade pública aplica a pena, empregando o poder coercitivo de que dispõe para punir o
responsável pelo ilícito. É o remédio extremo usado contra uma minoria que não observa as
normas, no empenho de levá-la a respeitar o Direito, livrando a sociedade de sua conduta
perniciosa. É a chamada prevenção especial. [pg. 26]

14. ORIGEM DAS NORMAS DE CONDUTA

Já vimos, logo no primeiro capítulo, que esta é uma questão discutida, havendo
aqueles que entendem serem as normas de origem divina, outros, frutos da razão, da
consciência coletiva ou do Estado. Para a sociologia jurídica, entretanto, não há como
tergiversar: as normas de Direito emanam do grupo social.
Sobre o grupo social que deve estabelecer as normas de Direito, as opiniões se
dividem em duas escolas.
14.1. A Escola Monista

Englobando quase todos os juristas, esta escola entende que apenas um tipo de
grupo social- o grupo político - o Estado devidamente organizado -, está apto a criar normas
de direito.
A doutrina monista, que se encontra mais próxima das teorias de Hegel, Marx e
Kelsen, sendo igualmente ensinada pelos puristas clássicos, pode ter sua razão de ser no que
se refere à ciência do Direito, mas não com relação à sociologia jurídica. Um simples olhar
sobre a vida social nos convence de que existiram prescrições jurídicas antes de a sociedade
organizar-se em Estado, e que ainda existem prescrições, mesmo nas sociedades já política e
juridicamente organizadas, além das que foram impostas pela autoridade política.
Houve e ainda há direitos supranacionais e infranacionais que não emanam da
competência dos órgãos da sociedade global, como por exemplo o direito religioso de vários
povos, o direito canônico, muçulmano, judaico etc.
Henri Levy Brühl (Sociologia do Direito, p. 29) cita como exemplo de direito
supranacional as instituições consuetudinárias profissionais, que se difundiram em inúmeras
regiões, sem considerar fronteiras entre Estados nem a nacionalidade dos interessados. A mais
característica dessas instituições foi o direito mercantil (jus mercatorium), muito divulgado na
Idade Média e observado tão escrupulosamente quanto qualquer outra lei nacional.

14.2. A Escola Pluralista

A escola pluralista que, além de alguns juristas, compreende sociólogos e


filósofos, considera que todo agrupamento de certa consistência ou [pg. 27] expressão pode
outorgar-se normas de funcionamento que, ultrapassando o caráter de simples regulamentos,
adquirem o alcance de verdadeiras regras jurídicas. Segundo Henri Levy Brühl, o principal
adepto da doutrina pluralista é G. Gurvitch, que a defendeu em diversos trabalhos.
Inocêncio Galvão Telles, catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, bem
sintetiza esta questão na lição que segue: “O Direito é necessário. Não é uma criação
arbitrária; existe imprescindivelmente. Os homens, sem dúvida, em fase adiantada do
progresso, intervêm na sua criação. A nossa Assembléia Nacional, o nosso Governo, com
freqüência criam Direito, através de leis, decretos-leis, regulamentos. Há aí uma atividade
racional, orientada no sentido da formação do Direito, nos termos que aos governantes se
afiguram como os melhores para satisfazer as necessidades e exigências da vida. Mas, ainda
que não houvesse esta criação racional e um pouco artificial, o Direito necessariamente
brotaria como floração espontânea da sociedade. Foi assim que aconteceu noutros tempos sob
a forma de costumes, e isso mostra o caráter necessário do Direito (Introdução ao Estudo do
Direito, 9ª ed., Lisboa, Livraria Petrony, vol. I, p. 27).

15. PROVISORIEDADE E MUTABILIDADE DAS NORMAS DE DIREITO

Os defensores do direito natural, conforme já assinalamos, tanto os que o


concebiam como tendo origem na Divindade como aqueles que o entendiam fruto da razão,
consideravam o direito um conjunto de princípios permanentes, estáveis e imutáveis.
Tal concepção, entretanto, não se ajusta ao ponto de vista sociológico, que o
considera produto social. Se o Direito emana do grupo social, não pode ter maior estabilidade
que o grupo. E o grupo, como é sabido, sofre constantes modificações.
Se pudéssemos isolar um grupo por um período de dez ou vinte anos, mesmo
assim haveríamos de constatar, no fim desse tempo, que o grupo social havia sofrido
profundas modificações: os adultos envelheceram, os jovens tornaram-se adultos, as crianças
tornaram-se jovens, com concepções e visões diferentes da vida.
Assim é porque o próprio ser humano está em constante mudança: mudam os
hábitos, pensamentos etc. da criança para o adolescente, do adolescente para o jovem, do
jovem para o adulto, do adulto para o velho, embora muitas vezes nem se perceba a mudança.
Daí a razão do eterno choque de gerações entre jovens e adultos. Mudamos em nossa maneira
de ser e [pg. 28] queremos que os jovens de hoje se comportem como nós, que contestávamos
na juventude exatamente aquilo que agora pensamos e fazemos.
Já os filósofos gregos haviam chamado a atenção para essa permanente
mutabilidade das coisas e do próprio homem. Heráclito, um dos mais destacados, afirmava:
“Panta rei” - tudo passa, tudo muda, tudo está em constante transformação.
Imaginemos agora o que se passa nos grupos modernos, onde há uma constante
troca de influências recíprocas possibilitada em razão dos modernos meios de transporte e
comunicação. Mal um fato ocorre aqui, o outro lado do mundo toma conhecimento quase
imediatamente, e vice-versa. O mesmo acontece com hábitos, costumes, moda etc.
Evidentemente, as mudanças nos grupos modernos são bem mais rápidas e constantes do que
nos grupos primitivos. Como pode o Direito, sendo originário do grupo, permanecer imutável,
quando esse mesmo grupo se modifica constantemente?
Mudando o grupo, mudam-se também as normas de Direito, razão pela qual, do
ponto de vista sociológico, não tem o Direito caráter estável ou perpétuo, mas sim
essencialmente provisório, sujeito a constantes modificações.
A observação, assinalou Levy (ob. cit., p. 33), prova de maneira clara que o
Direito está sujeito a transformações contínuas, pois o simples confronto com os diferentes
sistemas jurídicos do passado ou dos países estrangeiros basta para dar idéia da prodigiosa
diversidade das normas de direito aplicadas na superfície do globo.
Aqui mesmo em nosso país profundas modificações foram feitas em nossa ordem
jurídica para ajustá-la às novas realidades sociais decorrentes das transformações por que
passamos nas últimas décadas. Tivemos uma nova Constituição em 1988 que, por sua vez, já
sofreu mais de quatro dezenas de emendas; o Código de Processo Civil sofreu uma série de
alterações e outras precisam ser feitas com urgência; espera-se para breve um novo Código de
Processo Penal e, para não nos alongarmos, em 2002 entrou em vigor um novo Código Civil
em relação ao qual já se fala em mudanças.
Tão incontestável é o caráter provisório do direito que alguns adeptos do direito
natural conceberam uma noção que denominaram “direito natural de conteúdo variável”.
Destaca-se, por derradeiro, como já ficou demonstrado, que em qualquer tipo de
atividade realizada pelo indivíduo na sociedade, seja de cooperação ou de concorrência,
podem surgir conflitos e que o Direito se propõe [pg. 29] primeiramente a preveni-los;
quando não consegue impedir que ocorram, empenha-se em compô-los.

16. CONCEITO SOCIOLÓGICO DO DIREITO

Juntando todas as características até aqui examinadas, formulamos o seguinte


conceito de Direito: conjunto de normas de conduta, universais, abstratas, obrigatórias e
mutáveis, impostas pelo grupo social, destinadas a disciplinar as relações externas do
indivíduo, objetivando prevenir e compor conflitos.
Trata-se de normas universais porque se destinam a todos; abstratas porque são
elaboradas para casos hipoteticamente considerados; obrigatórias porque são de observância
necessária, coercitiva; mutáveis porque sujeitas a constantes transformações; impostas pelo
grupo e não somente pelo Estado. [pg. 30]

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