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I.

NOÇÃO DE DIREITO
1. Ideias aproximada de Direito
Pela experiência, observação e intuição, todos temos uma noção empírica
de Direito, que é, por assim dizer, vivida a todos os momentos perante
factos correntes e vulgares da vida.
Pratica-se um crime, por exemplo, um homicídio, a que os órgãos de
comunicação social divulgam largamente. Agita-se a opinião pública; há um
alarme social. Reclama-se justiça, e as entidades para tal competentes –
Ministério Público e Polícia Judiciária – põem-se em movimento a fim de
descobrir o suspeito e ver se há fundamento para o acusar. Procede-se a
investigações, recolhem-se indícios ou elementos que apontem quem é o
criminoso, as circunstâncias em que praticou o crime, os móbeis a que
obedeceu a sua reprovável ação. Forma-se um processo donde constam
esses elementos e os meios de prova recolhidos, e que é entregue depois
ao tribunal, para que se aprofundem as provas e o arguido seja
eventualmente julgado pelos magistrados. Ao fim do julgamento, o
tribunal, por exemplo, convence-se de que o arguido é culpado e condena-
o a uma pena de acordo com a lei, seguindo-se a execução da pena.
Todos têm a noção de que com o crime foi violado o Direito e que todo este
movimento de emoções e de reações se dá em ordem à restauração do
império da lei atingida pelo criminoso.
Alguém encontra um fio de ouro e pretende saber se pode ficar com ele;
alguém deseja comprar um terreno e pretende saber os passos que deve
dar para o adquirir validamente;
Estes são apenas algumas hipóteses de entre tantas em que está em causa
o Direito, em que se desenvolvem actividades que são por ele pautadas e
comandadas. Bem vistas as coisas, podemos dizer que praticamente toda a
vida do homem em sociedade se acha sujeita à disciplina do Direito.
O Direito traduz-se em normas de conduta social, preceitos que regulam,
com carácter de generalidade, a convivência dos homens em sociedade,
mediante a imposição de ações e de abstenções. O Direito diz o que se deve
fazer e o que se não deve fazer, consequentemente, por exclusão de partes,
o que se pode praticar. E tudo isto em ordem a proporcionar a cada um a
possibilidade de prefigurar as consequências dos seus comportamentos,
prevenir eventuais litígios, resolver litígios já desencadeados, potenciar a
cooperação entre os homens, assegurar a atribuição a cada um o que é seu
– numa palavra, realizar a Paz, o Bem comum, a Justiça. Mais ainda, o
Direito efectiva-se pela força, quando necessário e quando possível. É a
força ao serviço da lei.
O Código Penal, por exemplo, proíbe o furto e o homicídio: comanda uma
abstenção ou omissão – não furtar, não matar. Fá-lo porque isso é
absolutamente imprescindível à coexistência social; fá-lo para que entre os
homens haja tranquilidade e justiça e eles possam livremente realizar os
seus fins na terra. Mas, se a proibição da lei não for respeitada, a autoridade
constituída intervém com a força organizada de que dispõe e lança mão do
infractor, prende-o, condena-o, sujeita-o à execução de pena.
Não se pense, porém, que é da essência do Direito o emprego efectivo da
força. Isso seria tomar os casos patológicos, felizmente excepção nas
relações sociais, como se esgotassem todas as situações de aplicação do
Direito, que na grandíssima maioria das hipóteses se processa espontânea
e pacificamente.
Em face do exposto, pode desde já dar-se a seguinte ideia do Direito: é o
conjunto de normas de conduta social, estabelecidas em vista da Justiça,
da Paz e do Bem comum, dotados de generalidade, e impostas pela força
quando necessário e possível. Esta ideia tomará os contornos mais
definidos e conteúdo mais apreensível à medida que se for avançando na
exposição das matérias e, sobretudo, quando no Capítulo XV nos
debruçarmos sobre os caracteres das normas jurídicas.
2. Leis normativas e leis físicas
Temos falado indiferentemente de “Direito” ou de “lei”. E na verdade as
duas expressões coincidem quando tomada a palavra ‘lei’ em certo sentido.
O Direito por consequência é um conjunto de leis.
Mas todos estamos habituados a ouvir falar em leis que nada têm a ver com
o Direito. As leis físicas (materiais), por exemplo, a lei de Laplace ou a lei de
Lavoisier. Que relação há entre as leis que formam o Direito, e estas outras,
que se referem ao mundo material? Se tomarmos a lei em sentido geral, na
sua acepção mais ampla, ela abarca as duas realidades aparentemente
heterogéneas. Todos os seres, desde os animais e os astros até os homens,
obedecem a leis; mas é evidente que a forma como são governados os seres
físicos difere da forma como são governados os homens, seres inteligentes:
esta é a chave da distinção entre as chamadas leis físicas ou da natureza e
as leis normativas. As leis jurídicas, ou seja, as leis que formam o Direito
pertencem, às leis normativas.
As leis físicas ou da natureza exprimem as relações necessárias entre as
coisas, aplicam-se de forma invariável e constante, independentemente da
vontade dos homens ou mesmo contra essa vontade; ninguém as cria, elas
são dadas como formas de conservação do universo. Os cientistas não
criam essas leis, apenas as descobrem, porque elas são, por assim dizer,
inerentes à natureza das coisas.
O homem, como ser físico, está sujeito a essas leis naturais, a que
cegamente obedece. Mas o homem não é só corpo, é também inteligência
e vontade; inteligência e vontade limitadas, que precisam de ser, a primeira
esclarecida, a segunda orientada; e daí a necessidade de regras de conduta
que digam ao homem o que ele deve fazer e o que não deve fazer, que lhe
imponham fins e indiquem o meio de os atingir.
Estas outras leis que pertencem ao mundo espiritual, que se dirigem ao
homem como ser inteligente, formam a Religião, a Moral, o Direito, e têm
isto de característico: são essencialmente violáveis. Se o não fossem, se
fatalmente houvessem de executar-se, deixariam de ser o que são,
converter-se-iam em leis físicas.
Portanto, esboçamos o contraste fundamental entre as leis da natureza e
as leis normativas: as primeiras são explicativas, as segundas imperativas.
As primeiras descrevem-nos a natureza, são regras de causalidade, dizem
como as coisas se passam no universo – certa causa produz
necessariamente determinado efeito; as segundas dirigem-se à vontade, a
que indicam fins, e mandam aos indivíduos agir ou abster-se como meio de
alcançar esses mesmos fins. As leis físicas dizem o que é, as leis normativas
dizem o que deve ser. Uma lei física: “a água elevada à temperatura de cem
graus, em determinadas condições de ambiente, entra em ebulição”; eis
um fenómeno, aquilo que é, aquilo que acontece. Uma lei normativa: “não
matarás”, “não roubarás”.
Como dissemos acima, o Direito pertence ao mundo normativo; este,
porém, não se resume no Direito; há outras zonas desse mesmo mundo: A
Religião e a Moral, nomeadamente. Torna-se, portanto, necessário o que o
Direito tem de específico, o que o distingue das outras regras de conduta
social; mas esse problema oferece particulares dificuldades científicas e
técnicas, e por isso reservamos para momento posterior.
3. Carácter necessário do Direito
Como vimos o Direito não é um fenómeno da natureza, mas sim um
fenómeno humano, implicando necessariamente o factor espiritual.
Sendo um fenómeno humano, o direito não é um fenómeno do homem
isolado, é um fenómeno social: há uma ligação necessária e constante entre
direito e sociedade.
Portanto, o Direito é necessário. Não é uma criação arbitrária, existe
imprescindivelmente.
Os homens, sem dúvida, em fase adiantada do progresso, intervêm de
forma intencional na sua criação. A nossa Assembleia Nacional, o Governo,
com frequência criam Direito, através de leis, Decretos-leis, Regulamentos.
Há aí uma actividade racional, orientada no sentido da formação do Direito,
nos termos que aos governantes se afiguram como os melhores para
satisfazer as necessidades e exigências da vida. Mas, ainda que não
houvesse essa criação racional e um pouco artificial, o Direito
necessariamente brotaria como floração espontânea da sociedade. Foi
assim que aconteceu noutros tempos sob a forma de costumes, e isto
mostra o carácter necessário do Direito.
Pode dizer-se que as três seguintes ideias se entrelaçam e são
complementares entre si: Homem, Sociedade, Direito, pois que, nas
palavras de S. Tomás de Aquino, o Homem é um animal social. Vive em
sociedade: “ubi homo ibi societas”. E esta forma de vida não dispensa uma
autoridade social, dotada de um poder directivo.
Tal autoridade estabelece as regras de conduta a observar por todos os
membros da sociedade; toma as decisões que forem necessárias em nome
de todos; e impõe o respeito por aquelas regras e por estas decisões,
levando a julgamento os infractores e aplicando-se-lhes sanções pré-
estabelecidas. “Ubi societas ibi Ius”. Nó diremos em conclusão: “ubi homo
ibi ius” – onde existirem homens haverá Direito.
Esta ideia do caracter necessário do Direito, como disciplina sem a qual as
sociedades não podem conservar-se e desenvolver-se não é de todos os
tempos e de todas as escolas.
Durante séculos floresceu a este propósito uma tese que pode hoje ser
considerado ultrapassada, tese, contudo que não deixaremos de referir
pela sua inegável importância histórica. Estamos a aludir à conhecida
Doutrina do estado da natureza ou “satus naturae”. Segundo ela, antes do
estabelecimento das sociedades como corpos organizados, dotados de
disciplina jurídica, que supõe a existência de uma autoridade e a
diferenciação entre governantes e governados, existiu um estado de
natureza, em que os homens viveram, ou teriam vivido isolados ou, pelo
menos, livres, alheios uns dos outros ou em espontânea convivência.
Nada de Direito, nada de coação organizada como monopólio de uma
autoridade constituída, nada de Estado – apenas o homem vivendo
livremente, ao sabor dos seus instintos, das suas paixões, dos seus
sentimentos.
Alguns (por exemplo Hugo Grócio) descrevem este estado como uma
realidade histórica, uma fase real da vida da humanidade que
cronologicamente precedeu o estado de sociedade (status societatis).
Segundo ele os homens transitaram do estado da natureza para o estado
de sociedade através de um contrato. O conteúdo desse contrato era
porém variável, mudando de Estado para Estado e não obedecendo pois
sempre aos mesmos princípios.
Outros não apresentam as coisas assim, mas dizem (Rousseau) que o estado
de natureza deve ser concebido como uma hipótese racional, por ser o mais
conforme com a natureza dos homens. O Estado e o Direito devem ser
pensados como se tivessem sido precedidos dessa situação.
Nem todos os Filósofos concordam na maneira de descrever o estado de
natureza.
Para Rousseau (suíço) este estado apresenta-se como situação idílica de
prosperidade e felicidade. Para este filósofo os homens teriam sido
originariamente livres e bons, vivendo felizes em contacto directo com a
natureza e segundo os ditames desta. O progresso material trouxe a
civilização e com ela a corrupção; gerou-se o poder político, graças à
prevalência dos mais fortes ou engenhosos; e daí nasceu um sistema de
arbitrárias e injustas dependências.
Para Hobbes (inglês) o estado da natureza foi uma situação turbulenta,
cheia de maiores perigos e dominada pelo egoísmo dos homens. Segundo
ele, o homem, profundamente egoísta, não era sociável por natureza; se o
Estado respeitasse o seu pendor, seria inevitável uma guerra permanente
entre os indivíduos, procurando cada um obter vantagens só para si à custa
dos outros, e lançando-se todos em guerra contra todos. Era imperioso
evitar semelhante situação, celebrando os homens entre si um contrato,
através do qual cada um renunciasse inteiramente à sua liberdade e se
submetesse à autoridade absoluta do Estado.
Sem entrarmos nos pormenores das várias correntes, conclui-se deles que,
ou o estado de natureza descrito como espontânea harmonia de vontades
e interesses, como vida livre nos bosques e selvas, ou como guerra
permanente, o certo é que o estado de natureza cessou; dele se deu a
transição para o estado de sociedade, transição cronológica ou lógica. E
essa transição foi obtida como? Através de dum acordo, contrato social. Os
indivíduos deliberaram associar-se, obrigando-se a viver conjuntamente e
a respeitar-se reciprocamente, e foi assim que nasceram as sociedades
organizadas, com uma disciplina política e jurídica; ou tudo se passa como
se tal tivesse acontecido.
. Apreciação crítica da doutrina do estado de natureza
Pode dizer-se que hoje ninguém acolhe esta concepção; ela é contrária à
natureza do homem e, portanto, condenável. Parte de pressupostos falsos
que podem induzir os estudiosos e até os governantes em falsas miragens.
O homem é naturalmente sociável. Nem é totalmente bom, como o
apresenta Rousseau, nem totalmente mau como o descreve Hobbes; é um
misto de bom e de mau, embora em si tenha a força capaz de, mediante
um impulso de vontade esclarecida, evitar o mal e praticar o bem. Por outro
lado, quer física quer espiritualmente ele necessita do seu semelhante, sem
o qual não pode viver. É impelido para a vida em comum a que o levam os
seus instintos, entre os quais o da conservação individual e o da
conservação da espécie, e a própria ideia superior do progresso material e
moral.
O homem só pode subsistir se estiver em contacto com o próximo, e
também só através desse contacto pode progredir. Há atração dos sexos, e
daí a fundação da família; há depois uma série infinita de necessidades que
exigem comunhão de esforços ou troca de serviços e constituem o
fundamento de múltiplas outras associações. Daí a natural sociabilidade do
homem.
Já Aristóteles, na sua célebre obra “A Política” chamava o homem um
animal social e dizia, com exatidão, que o homem para poder viver fora da
sociedade precisaria ser mais ou menos do que é: mais do que é – um deus;
menos do que é – um bruto.
Podemos, pois, dar como demonstrado o erro da tese do estado da
natureza. Esta não é admissível nem como facto nem como hipótese: esse
estado, contraposto ao da sociedade, nunca existiu nem se concebe,
porque o estado natural do homem é o social.
A condenação do estado de natureza significa a condenação do contrato
social, porque este não pode existir sem o primeiro. O contrato social, como
vimos, seria um acordo de vontades de todos os indivíduos tendente à
criação da sociedade: portanto o instrumento através do qual eles, real ou
logicamente, teriam saído do estado de natureza para ingressar na
sociedade política. Se o estado de natureza não pode aceitar-se, o contrato
social não pode aceitar-se também.
As sociedades políticas, nomeadamente, o Estado, têm origem natural.
Os mais elementares instintos do homem conduzem à sua agregação em
comunidades. Mas essas comunidades, para subsistirem e para que neles
triunfe a Paz, a Justiça, o Bem comum, precisam de uma organização, que
se traduz, antes de mais nada, na existência de uma autoridade legítima,
com o poder e o dever de governar, e tendo ao seu serviço a força, sem a
qual não existe sociedade verdadeiramente estável.
É nisto que consiste fundamentalmente a comunidade política, de que o
Estado representa a mais progressiva e complexa forma. A comunidade
política é, pois, necessária, porque decorre naturalmente da condição do
homem; com o que o Estado só ganha em dignidade e autoridade: a sua
origem deixa de ser um frágil acordo de indivíduos.
Sendo necessário o Estado, necessário é também o Direito, que representa
a disciplina daquele, a linguagem dos governantes.
O Estado implica a diferenciação entre governantes e governados, os
primeiros autorizados a darem ordens aos segundos, que têm de as acatar;
mas toda esta actividade se desenvolve através de regras precisas e certas,
que são as normas jurídicas.
4. Direito Natural e Direito Positivo
Até aqui, ao falar de Direito, temos tido em atenção principal as leis que se
formam na sociedade, em vista da organização e da pacífica convivência
dos indivíduos. Ora, este conjunto de leis, com uma existência efectiva,
forma aquilo a que se denomina de Direito Positivo: “ius in civitate
positum”, isto é, Direito “posto na sociedade”, nela inserido como algo de
tangível. Assim, o conjunto de normas jurídicas que neste momento estão
em vigor em Cabo-verde, as que nos regem, as expressas nos Códigos (Civil,
Penal, Laboral, etc.) e em leis avulsas, além dos costumes, formas o nosso
Direito Positivo.
O Direito Positivo é obra humana e, como tal, contingente e variável; emana
daqueles órgãos ou daquelas forças sociais que em cada momento têm
competência para dar ordens, portanto para formular regras de conduta
obrigatórias e coactivas. O Direito Positivo varia no tempo e no espaço: não
é hoje o que foi ontem nem o que será amanhã, nem é aqui o que é além-
fronteiras.
Mas o Direito positivo, que directamente cai nos nossos sentidos, não
constitui todo o Direito.
Os positivistas que só crêem naquilo que pode ser objecto de observação e
de experiência, contentam-se com o Direito Positivo (escola do
positivismo). Mas a verdade é que a razão nos diz que acima dele existe
outro, que não é, como o primeiro criação do homem, mas antes emanação
da Natureza humana: O Direito Natural (escola jusnaturalista). Daí aquele
binómio que forma uma das pedras angulares do pensamento jurídico e
filósofo de quase todas as escolas através dos tempos: Direito Positivo–
Direito Natural, na sua harmonia e nos seus inevitáveis conflitos.
O Direito Positivo provém da vontade mais ou menos discricionária dos
homens, que normalmente procuram criá-lo tão perfeito quanto possível,
mas que pela fraqueza e contingência das suas forças fazem quase sempre
obra precária.
Visa-se através do Direito Positivo atingir os fins da justiça, os fins jurídicos;
mas quantas vezes se fica longe deles! Há leis que são contrárias ao bem
comum, que são injustas, que não realizam verdadeiramente o fim da paz
social.
O Direito Natural representa o reflexo imediato da Justiça, que traduz e
realiza na sua plenitude. São regras normativas fundadas na essência, na
dignidade humana e, portanto, não localizadas no tempo e no espaço. Não
estão contidas em qualquer Código, não foram traçadas pelas mãos do
homem; não têm, assim, expressão sensível. No entanto, a Razão
esclarecida pode erguer-se a elas ou, pelo menos, tentar erguer-se a elas
como padrão superior, à luz do qual se deve nortear e avaliar o Direito
Positivo.
Se nós, numa atitude de cepticismo e positivismo esterilizante, abdicarmos
da tentativa de subir ao Direito Natural, teremos de aceitar sempre o
Direito Positivo como justo e como bom, e de o considerar legítimo e
insusceptível de críticas por mais monstruoso que ele seja. Cícero (106-43
a.C), por exemplo, interrogava: poderia considerar-se legítima uma lei
contrária à natureza, como a que declarasse permitido o homicídio, só
porque ela promanava dum tirano ou duma multidão irresponsável? Nesta
pergunta se contém a demonstração da existência do Direito Natural.
Pode acontecer, e acontece por vezes infelizmente, que o Direito Positivo
está em contradição com o Direito Natural. Claro que só em restrita medida
isso acontecerá, porque o Direito Natural se reduz necessariamente a um
pecúlio muito limitado de princípios imutáveis conformes com a natureza
do homem, no que esta tem de permanente. Alguma coisa há de
permanente na natureza do homem, pois de contrário o homem deixaria
de o ser. Mas há também muito de mutável, e isso, que é a maior parte, fica
abandonado à soberania livre do Direito Positivo.
No entanto, o Direito Positivo poderá, porventura, pôr-se em desarmonia
com algum princípio de Direito Natural, e daí um trágico conflito. O
julgador, encarregado de aplicar as leis do Estado, fica perante esta
perplexidade: deverá obedecer às leis positivas, apesar de as reputar
contrárias ao Direito Natural, ou deverá considera-las ilegítimas? É um
problema grave de consciência e, mais do que isso, um problema com
óbvias implicações sociais. Por enquanto não pronunciaremos sobre este
problema, pois estamos apenas a dar alguns tópicos sobre este tema de
Direito Natural. Mais adiante este problema será retomado, para ser visto
com um pouco mais de desenvolvimento.
5. Os três sentidos da palavra Direito: Direito obejctivo e direito
subjectivo; ciência do Direito
Se tivermos em atenção no emprego da palavra “direito” em frases de
todos os momentos, notaremos que essa palavra não possui sempre o
mesmo significado. Por um lado, diz-se: “o Direito rege os homens”, “os
homens estão submetidos à disciplina do Direito”. Mas afirma-se por outro
lado: “eu tenho o direito a 22 dias úteis de férias por cada ano de serviço
prestado”, “o credor está no direito de reclamar do devedor o pagamento”.
Ora, reflectindo um pouco, vê-se que a palavra, embora seja a mesma nas
duas categorias de frases, não assume em ambas o mesmo significado. No
primeiro caso, ela designa uma norma, uma regra de conduta ou um
conjunto de normas dirigidas aos homens; na segunda, significa “poder” ou
“faculdade”.
Todos estamos sujeitos ao Direito, quer dizer, encontramo-nos
subordinados a uma disciplina social com determinadas características, a
directrizes que pautam a nossa ação. Essa disciplina é que constitui o Direito
naquele primeiro sentido – Direito objectivo.
Quando se afirma que o credor tem direito contra o devedor, que o
proprietário tem direito de fazer, dentro dos limites da lei, o que quiser da
coisa que lhe pertence (desde que não cometa abuso), a palavra direito
indica uma faculdade, um poder, a prerrogativa superiormente tutelada de
agir desta ou daquela forma, de fazer ou não fazer algo – direito subjectivo.
O direito objectivo é a norma de agir; o direito subjectivo é a faculdade de
agir. O primeiro diz-se objectivo porque está fora e acima dos indivíduos
que governa. O segundo diz-se subjectivo porque se insere ou
consubstancia neles como uma sua prerrogativa.
O conjunto de leis que se contêm, por exemplo, no Código Civil é Direito
objectivo, exterior aos indivíduos: um complexo de normas abstractas que
comandam a conduta dos particulares e disciplinam os seus conflitos de
interesses. O direito do proprietário é um direito subjectivo, porque se
encontra ligado a ele como uma prerrogativa em face dos outros indivíduos
em geral, adstritos ao dever de não o perturbarem no legítimo uso e fruição
da coisa que lhe pertence.
No fundo o direito objectivo e o direito subjectivo não são mais que a
mesma realidade vista por dois ângulos. Isso justifica, na linguagem
portuguesa, a identidade de terminologia, pois o direito subjectivo emana
do direito objectivo, é como que a sua concretização. O Direito objectivo,
que regula a coexistência dos homens em sociedade, fá-lo atribuindo
poderes a uns em face dos outros e, portanto, dando aos primeiros direitos
subjectivos.
Tomemos como exemplo o artigo 1305º do CCiv., que estabelece: “o
proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e
disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei, e com
observância das restrições por ela imposta”. O enunciado desta norma é
direito objectivo, é uma regra de conduta. E como surgirá um direito
subjectivo, neste domínio, por aplicação do citado preceito? À sombra da
lei que reconhece o direito de propriedade e nos termos dessa mesma lei,
um indivíduo manda fazer um prédio, compra-o ou herda-o, e fica então
investido numa prerrogativa sua, individual, num poder, numa faculdade, é
o direito subjectivo.
Portanto, o Direito objectivo, que é abstracto, que está concebido em
termos genéricos para toda uma categoria mais ou menos vasta de
hipóteses, aplicando-se caso a caso resolve-se em direitos subjectivos, que
os indivíduos adquirem sob a sua égide e que podem fazer valer como
prerrogativas próprias. Aos direitos subjectivos correspondem, pelo lado
daqueles que se opõem, deveres ou sujeições.
Finalmente, também se usa falar do Direito num terceiro sentido. Aqui o
Direito é uma ciência, uma ciência social e humana (não uma ciência exacta
ou da natureza), que estuda e teoriza cientificamente o Direito objectivo e
os direitos subjectivos. É ciência do Direito. É neste terceiro sentido que se
diz que A é professor de Direito ou que B é estudante de Direito, ou que C
está a preparar o seu doutoramento em Direito.
6. O carácter sistemático do Direito
Há juristas que definem o Direito como um conjunto de regras ou normas.
Nós, acompanhamos o Prof. Freitas do Amaral que o define como um
sistema. Porquê?
Um conjunto pode ser constituído apenas por uma soma de objectos,
dispostos de qualquer forma, desarticulados uns dos outros e sem qualquer
unidade entre eles (p.ex., um conjunto de brinquedos espalhadas numa
sala). Pelo contrário, um sistema é um conjunto articulado de objectos,
dispostos na determinada forma, e constituindo uma certa unidade entre
si.
Ora, o Direito é um sistema normativo. Por várias razões principais.
Em primeiro lugar, porque o conjunto das regras ou normas que o
compõem se encontra articulado em termos de coerência, em torno de
uma ideia central – a ideia de Direito.
Em segundo lugar, o Direito é um sistema, porque as suas regras objectivas
têm de ser interpretadas de acordo com certos critérios lógicos e técnicos,
em harmonia com a sua função num dado conjunto, e não apenas segundo
o mero teor literal de cada uma das disposições normativas aplicáveis,
desinseridas do todo a que pertencem.
Em terceiro lugar, o carácter sistemático do Direito revela-se também na
circunstância de os casos omissos, de que a legislação não trata, terem de
ser resolvidos de harmonia com determinados métodos integradores, que
em última análise se reconduzam à descoberta e aplicação do “espírito do
sistema”, isto é, do todo integrado que o ordenamento jurídico constitui (
art. 10º nº 3 CCiv.).
Em quarto lugar, o Direito é um sistema, e não uma mera soma aritmética
de regras soltas e desconexas, porque o conjunto de normas que o
compõem está organizado, enquadrado e enformado por princípios gerais,
que condicionam o legislador e orientam os órgãos de aplicação do Direito.
Em quinto lugar, o Direito é um sistema porque, em cada comunidade
humana, vigora o princípio da unidade da ordem jurídica, que fundamenta
soluções, forma categorias, reforça conexões, e permite eliminar, por
diversos meios, as contradições que logicamente se possam detectar, mas
que juridicamente não podem subsistir, pelo que têm de ser suprimidas ou
harmonizadas.
Em sexto lugar, o Direito é um sistema porque, mesmo ao nível da sua
aplicação aos milhares de casos concretos suscitados na vida real, o
ordenamento jurídico preocupa-se em assegurar, tanto quanto possível,
“uma interpretação e aplicação uniformes do direito, estando previstos
diversos modos de garantir a uniformização da jurisprudência (decisões
judiciais com força obrigatória geral; assentos; acórdãos de uniformização
de jurisprudência, etc).
Em sétimo e último lugar, o Direito é um sistema porque nele vigora o
princípio da plenitude da ordem jurídica, que garante a todos os cidadãos,
por um lado, a existência de uma norma jurídica capaz de resolver toda e
qualquer questão que deva ser regulada pelo Direito (art. 10º CCiv) e, por
outro, o direito de acesso à justiça, e o direito a uma tutela jurisdicional
efectiva (CRCV), não podendo nenhum tribunal abster-se de julgar,
invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável
acerca dos factos em litígio (art. 8º 1 CCiv).
A ordem jurídica – isto é, o Direito objectivo – caracteriza-se pela sua
plenitude, pelo que tem sempre uma solução adequada para oferecer ao
cidadão que reclama justiça, mesmo que não haja lei expressa
directamente aplicável ao caso, ou que a lei aplicável seja obscura, ou que
o tribunal tenha uma dúvida insolúvel sobre os factos em disputa. Para
todas esta hipóteses, o Direito está apto a fornecer uma solução adequada
justa e proferida em tempo oportuno, o que não sucederia se ele não fosse
um sistema coerente, global e completo.
7. Direito e Estado
Temos vindo a falar do Direito estatal – o Direito criado pelo Estado. Mas,
em bom rigor, a ideia de Direito não anda necessariamente ligada à do
Estado.
O Estado, no seu sentido mais amplo, é a colectividade fixada em
determinado território que detém e exerce em nome próprio o poder
político, ou seja, o poder de domínio sobre esse território e de definição de
normas jurídicas e da sua aplicação através de órgãos adequados, com
recurso à força quando necessário e possível. Daí que o Estado se compõe
fundamentalmente de três elementos – povo, território e poder político.
Um povo que está situado num determinado território e que institui o
próprio poder político.
Normalmente o Direito resulta desse Estado. Mas o Direito também resulta
de organizações internacionais que criam regras que estão acima do Estado.
Nesse plano supraestadual se situa a comunidade internacional – A União
Europeia, a CEDEAO – criam-se regras jurídicas. Existem também entidade
infra estaduais (poder local) – as Câmaras Municipais que criam regras
jurídicas.
Temos assim, direito situado fora do Estado como comunidade global – ou
acima dele ou abaixo dele: Direito supraestadual, como o direito
internacional; direito infra estadual, como as autarquias locais.
8. Símbolos do Direitos
O conceito de Direito era expresso na língua latina por duas palavras: “Ius”
e “Derectum”.
A palavra “Ius” derivou para a língua portuguesa como justo e justiça.
O termo que nas línguas românicas deu origem a Direito foi “Derectum”:
Direito em português, Derecho em castelhano, Diritto em italiano, Droit em
francês, etc.
Foram os símbolos do Direito, isro, é, os objectos materiais usados para dar
dele uma imagem física, que ´levaram, a certa altura, ao emprego do
vocábulo “Derectum”, como designativo do Direito, em substituição do
antigo vocábulo “Ius”.
Esses símbolos reconduziam-se, fundamentalmente, a uma balança de dois
pratos.
Duas Deusas representavam a personificação o Direito. O símbolo grego do
Direito era representado pela deusa “Dikê” que, de pé e de olhos abertos,
empunhava na mão direita uma espada e na esquerda a balança. O símbolo
romano do direito era a dessa “Iustitia” que, também, de pé mas de olhos
vendados, segurava com as duas mãos a balança. O conjunto em que a
balança se integrava estava bem a prumo, bem “directum”; a posição a
prumo (recta) da balança significa pois equilíbrio, ponderação, a rectidão
com que deve proceder o julgador; e foi desta palavra que provieram nas
línguas românicas acima indicados – Direito, Diritto, Droit e outros.
As simbologias grega e romana divergiam em pormenores. A deusa grega
Dikê empunhava a espada porque o executor da lei deve “cortar a direito”,
no sentido de que não se deve deixar influenciar por qualquer das partes, e
ainda porque deve, se necessário, recorre à força para impor o Direito. E
tinha olhos abertos para não lhe escapar nada. A Deusa romana Iustitia não
traz a espada, pois esta poderia sugerir a ideia de violência, contrária à
serenidade com que o julgador deve julgar; estava sentada e de olhos
vendados porque a justiça, com se costuma dizer, deve ser “cega”, no
sentido de que o julgador deve decidir, sem “olhar” a que o vencedor seja
um ou outro dos litigantes em particular, e sim aquele que objectivamente
tiver razão.

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