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Nota introdutória: Sebenta elaborada com base em apontamentos de aula e


complementada com informações de autores que constam na bibliografia
recomendada da unidade curricular, nomeadamente “Introdução ao Direito e ao
Discurso Legitimador”, do Dr. Batista Machado, “O Direito - Introdução e Teoria
Geral”, do Dr. Oliveira Ascensão, “Manual de Introdução ao Direito”, do Dr. Freitas
do Amaral, entre outros.
Estrutura-se de acordo com o programa disponível no Sigarra. No entanto, a
consulta da sebenta não invalida a leitura e consulta dos manuais.
Bom estudo.

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PROGRAMA (disponível no Sigarra):

I. Noção e Sentido do Direito


1 - O Ser Humano, a sociedade e o Direito
2 – O Direito como ordem normativa e como sistema institucional: confronto com
outras ordens normativas
3 - Direito em sentido objetivo e direito(s) em sentido subjetivo
4 - O Direito, a autoridade e o poder: a problemática da coação
5 - A relação entre Direito, Justiça e segurança
6 - O problema do Direito Natural

II. Os ramos do Direito


7 - A summa divisio estrutural - Direito Público e Direito Privado
8 - Principais ramos do Direito

III. A norma jurídica


9 - O conceito de norma jurídica: elementos definidores e estrutura da norma
10 – O facto jurídico, o ato jurídico, a situação jurídica e a relação jurídica
11 - Classificação das normas jurídicas

IV. A criação normativa estadual


12 - Técnicas legislativas principais
13 - A codificação
14 – Sistematicidade do ordenamento jurídico

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I. Noção e sentido de Direito
Bibliografia do ponto 1:
- Oliveira Ascensão – páginas 13 a 50; 56 a 64; 80 a 89; 96 a 103; 193 a 223
- Batista Machado – 31 a 49; 55 a 59
- Freitas do Amaral – 165 a 211
- Objeção de consciência – artigos disponíveis no Sigarra

O Ser Humano, a sociedade e o Direito


O que é o Direito?
Na opinião de Oliveira Ascensão, o Direito, enquanto objeto de estudo, é difícil
de estudar pelo seu caráter abstrato, na medida em que não pode ser atingido
apenas através da experiência e os pontos de apoio escasseiam. No entanto,
existem dois pontos de partida seguros:

1. É um fenómeno humano, ou seja, não é um fenómeno da Natureza. É


criado por humanos para humanos, sendo que o destinatário é sempre o ser
humano. Coisas e animais podem ser contemplados pelo Direito, como
objetos, mas o Direito não estabelece para eles regras de conduta. O que há
são regras sobre condutas humanas referentes a eles (ex: direitos dos
animais).
2. É um fenómeno social, destinado ao Homem relacionado com a sociedade,
pois a sociabilidade é uma determinante da natureza humana, o que justifica
dizer que o homem é um animal social (“viver é necessariamente conviver” –
Oliveira Ascensão). Não se dirige a ele isolado, mas sim às relações entre
seres humanos no contexto de sociedade. Oliveira Ascensão diz: “há uma
ligação necessária e constante entre Direito e sociedade”. Daí as seguintes
expressões:
● “Obi homo ibi societas” – Onde existe o Homem, existe sociedade (o ser
humano não vive fora da sociedade).
● “Obi societas ibi ius” – Onde existe sociedade, existe Direito (a sociedade não
existe sem o Direito, sem as normas, pois o Direito é uma necessidade do ser
humano).
● “Obi ius ibi societas” – Onde existe Direito, existe sociedade.

Visto que o Direito só se verifica em contexto de sociedade, o fenómeno


social surge como condicionante do fenómeno jurídico. No entanto, Oliveira
Ascensão afirma que muito mais há do que apenas esta ligação, que faria
com que o fenómeno social fosse unicamente pressuposto do fenómeno
jurídico.

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Toda a sociedade necessita de uma ordem. Segundo Oliveira Ascensão, a
ordem é “uma realidade não material, mas nem por isso é menos um dado objetivo”.
Isto porque a sociedade não constitui apenas uma soma de indivíduos, uma vez que
há ligações espirituais entre eles que lhes são essenciais.
Há 2 conjuntos de regras que organizam a vida em sociedade:

● Ordem Natural – ordem de necessidade, ou seja, “tem de existir tal qual, as


suas leis não são alteráveis” (Oliveira Ascensão). Rege os fenómenos da
Natureza e as suas regras são invioláveis.
Exemplo: Quando apareceu o Heliocentrismo viu-se que a teoria geocêntrica
estava errada e desapareceu.
● Ordem Social – apesar de ter origem na ordem natural, é uma ordem de
liberdade que pressupõe a vontade do Homem. É o Homem que cria as
normas e depois decide se as cumpre ou não. Por isso, são regras violáveis
e alteráveis, mas isso não lhes tira validade. Oliveira Ascensão diz: “propõe-
se à vontade do homem, e pode justificar-se pela sua racionalidade, mas não
se impõe cegamente”. O ser humano é, por isso, livre de se rebelar contra ela
e de a alterar. Uma especificidade desta ordem é o facto de o ser humano ser
o único capaz de comunicar às gerações futuras o saber adquirido.
Exemplo: O facto de muitas pessoas não atravessarem a rua na passadeira
não faz com que a norma que impõe atravessar a rua na passadeira
desapareça.

A Ordem Social divide-se, por sua vez, em duas componentes:

● Componente fáctica – Há em toda a sociedade elementos fácticos que,


apesar de contribuírem para a ordem social, não têm caráter normativo. É
composta por elementos de facto que visam descrever a conduta humana/os
factos, mas não orientá-la.
Ex: a segregação das pessoas idosas – é um facto, mas não é de todo
considerado lei.

No entanto, a ordem social não se esgota apenas nesta componente,


surgindo, assim, a componente normativa.
● Componente normativa – composta por regras de conduta, regras essas
que pertencem ao “dever ser”, tendo, por isso, a função de orientar a vida em
sociedade. Como diz Oliveira Ascensão, “não se cifra numa mera descrição,
antes se dirige a orientar a conduta humana”. São, por isso, regras violáveis,
mas essa violabilidade não afeta a sua validade. O Homem pode adequar ou
não a ela a sua conduta.
O Direito corresponde, portanto, a um fenómeno humano e social inserido na
ordem social de componente normativa.

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A importância das instituições
Segundo Oliveira Ascensão, “a ordem, conformadora da posição relativa
dos membros, é constituinte de todas as sociedades. Mas o que representa o
elemento essencial de toda a sociedade, e constitui o fundamento profundo da
ordem existente, são as instituições que lhe são próprias”. Isto porque uma
sociedade não pode ser vista como uma mera justaposição de pessoas. O que
caracteriza e distingue cada sociedade são as ligações estabelecidas entre os seus
membros.
Isto justifica-se pelo facto de o Homem não possuir um instinto e serem-lhe
apresentadas múltiplas opções no que diz respeito à sua ação, o que dificulta o
estabelecimento de relações entre nós. Por isso, o ser humano precisa de padrões
de conduta socialmente sancionados que cada cultura destaca da multiplicidade
possível de modos de conduta humana, elevando-os a padrões vinculantes para
todos os membros do grupo.
É neste contexto que nascem as instituições. São realidades objetivas e
supra-individuais, pois perduram no tempo, independentemente de mudarem as
pessoas, mas não têm existência própria, ou seja, “vivem enquanto essas
significações objetivas encarnam nos indivíduos que são a matéria da sociedade e
através da sua adesão as mantêm em vida” (Oliveira Ascensão).

● Variam de povo para povo e surgem nos fatores mais estratégicos da vida
em sociedade;
● São criações sociais e culturais, mas tendem para a juridificação, ou seja, a
serem absorvidas pelas normas jurídicas.

Esta tendência para a juridificação pode levar-nos a pensar erradamente que


todas as criações sociais e culturais se tornam normas jurídicas. O Direito resultaria
de um encadeamento de factos, regulados por uma relação causa-efeito, em que as
relações sociais seriam a causa das relações jurídicas e a ciência do Direito limitar-
se-ia a apurar a expressão desta resultante.
Este é o entendimento dos empiristas, século XX (a ver de seguida), e dos realistas,
século XXI (vai ser visto mais à frente).
Reflete-se na…

Teoria da Força Normativa dos Factos (empiristas) – todo o Direito resulta de


padrões sociais fácticos de conduta que se identificam pela vivência na sociedade,
ou seja, que estudar Direito é estudar os factos sociais. Deste modo, quando um
novo facto social surge ou adquire nova importância, surgirá na consciência social
um novo valor ou uma nova ordenação de valores, o que vai originar consequências
no sistema das normas.
Mas então, uma conduta que de facto se generaliza entre a maioria dos
membros da sociedade torna-se, por isso, norma (moral ou jurídica)?

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Segundo Batista Machado, a eficácia dos factos na constituição e
modificação de normas é indiscutível. Temos exemplos na História de que uma
conduta aceite universalmente por grande parte dos membros de uma sociedade
acaba por se impor como norma válida.
No entanto, o que efetivamente se verifica é que uma conduta social que se
afasta de uma norma vigente só adquire caráter normativo quando se generaliza a
convicção de que é justa e correta, ou seja, quando se afirma como legítima e
vinculante.
Batista Machado ainda acrescenta que “muitas vezes acontece que a
conduta de facto mais frequente diverge da conduta normativamente imposta como
desejável e correta sem que por isso a norma seja destruída por revogação”.
Exemplo: o facto de muita gente violar a norma que proíbe o aborto não quer
dizer que essa norma seja substituída por outra.
Posto isto, Batista Machado aponta 3 reservas a esta teoria:
1. “Uma conduta de facto generalizada só conduz a uma modificação normativa
quando é acompanhada da convicção da correção e validade da máxima que
preside a essa conduta”.
2. Não é função do Direito limitar-se a assumir como seu o conteúdo de condutas
socialmente praticadas. O Direito pertence à ordem do “dever ser” e tem uma
dimensão orientadora da conduta social.
3. “Uma conduta de facto observada pela generalidade dos membros de uma
sociedade só institui uma nova norma quando seja compatível com o sistema
valorativo global (com o universo cultural) dessa sociedade ou, então, quando
provoque uma modificação nesse sistema valorativo global”. Se a conduta conflituar
com esse universo valorativo, não pode ser tornada norma jurídica.

As correntes do realismo jurídico

Século XXI → Corrente do realismo jurídico, que veio fortalecer o empirismo


passado. Tem essencialmente 2 vertentes:

● Realismo jurídico escandinavo (não é aprofundado);


● Realismo jurídico norte-americano

A lógica do realismo jurídico norte-americano é que todo o Direito é facto.


Não é facto social (como diziam os empiristas), mas sim decisão judicial, no
sentido em que o Direito apenas existe quando aplicado ao caso. Numa maneira
mais simples, estudar Direito é estudar o que o juiz decidiu e o que irá decidir sobre
uma matéria em que ainda não se pronunciou, ou seja, prever a forma como o juiz
irá decidir, com base em decisões passadas. As normas só existem quando
aplicadas e rege-se pela regra do precedente (Batista Machado – “a regra é pois

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um facto, precedendo outro facto futuro”), ou seja, a jurisprudência é a principal
fonte de Direito.

Nota:

● Encontramo-nos perante uma crescente aceitação desta corrente.


● O sistema jurídico português é romano-germânico (influência do Direito
romano e alemão).
● Em Portugal, a principal fonte de Direito é a lei, logo a regra do precedente
não se aplica.

Críticas ao realismo jurídico norte-americano:

1. Crítica principal (e que engloba todas as restantes) – Conceber a regra


como uma previsão do juiz deixa por explicar justamente o essencial: qual é o
critério que está por detrás das decisões do tribunal e que impele o juiz a
decidir de uma dada forma? Oliveira Ascensão diz: “seria contraditório
pretender que ele (o juiz) se baseie numa previsão do que ele próprio vai
decidir”.
2. Contribui para o aumento da insegurança jurídica.
3. Se negarmos a existência de normas jurídicas anteriores à decisão do juiz,
então as decisões judiciais serão necessariamente arbitrárias e baseadas em
convicções pessoais.
4. Se negarmos a existência de normas jurídicas anteriores à decisão do juiz,
onde é que se fundamenta a autoridade de decisão do tribunal?
5. Se a decisão do juiz é o único Direito reconhecido, o que é que justifica os
recursos em tribunal?

Quais são os conjuntos de normas que regulam a vida do Homem


em sociedade?
Nota introdutória: Normas correspondem a uma perspetiva de “dever ser” e, por
isso, inserem-se dentro da Ordem Social.
- Ordem moral – corresponde a uma “ordem de condutas, que visa o
aperfeiçoamento da pessoa, dirigindo-a para o Bem” (Oliveira Ascensão). À
semelhança das normas religiosas, as normas morais são também intraindividuais,
em grande medida porque se dirigem ao aperfeiçoamento da consciência de cada
Homem. No entanto, qualquer que seja a fonte da norma moral, esta acaba sempre
por se repercutir sobre a ordem social. Isto porque as regras morais têm um grande
impacto no comportamento social dos indivíduos, uma vez que esse
aperfeiçoamento concretiza-se na participação social de cada pessoa (apesar de a
norma se dirigir ao aperfeiçoamento individual, ela fá-lo estabelecendo normas de
conduta). Por isso se justifica o facto de existir uma moral coletiva/dominante na

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cultura em que cada indivíduo se insere, o que torna falso dizer que a moral é
individual e subjetiva.

- Ordem religiosa – nas palavras de Oliveira Ascensão, “é uma ordem normativa


que assenta num sentido de transcendência” e ordena as condutas entre os crentes,
tendo em vista a sua posição perante Deus. É, em parte, intraindividual, pois, no seu
íntimo, assenta na relação do crente perante Deus, mas repercute-se também na
ordem social, ordenando condutas exteriores de membros da sociedade. As normas
religiosas apresentam uma dimensão instrumental, porque se destinam a tornar
possível o que não pertence ao mundo terreno.
- Ordem de trato social – são as normas de etiqueta e cortesia. Destinam-se a
tornar a convivência em sociedade mais fluída e agradável, mas não são essenciais
à conservação e progresso sociais. É expressa pelos usos e convencionalismos
sociais. As normas de trato social caracterizam-se por um caráter inorganizado da
sua génese e pela ausência de coercibilidade organizada, o que significa que a
sanção à violação das normas de trato social é a reprovação social (ex: rompimento
do casamento).
Nota: Oliveira Ascensão distingue entre ordens normativas éticas e não éticas,
afirmando que a ordem de trato social não goza de imperatividade, porque se basta
com a conformidade exterior e, por isso, não tem a componente valorativa que está
implícita na qualificação de uma ordem como ética.
- Ordem jurídica – dada a sua importância, será aprofundada mais à frente, mas,
como diz Oliveira Ascensão, “esta pauta os aspetos mais importantes da
convivência social e exprime-se através de regras jurídicas”.
Todas elas influenciam a nossa conduta em sociedade.
Há uma tendencial sobreposição das normas jurídicas e morais, mas nem
todas as normas jurídicas são morais, porque há normas jurídicas que não têm
qualquer tipo de elemento moral (ex: normas de trânsito; prazo para pedir recurso
no tribunal, etc).

Distinção entre Direito e Moral

1. Critério do mínimo ético – Defende que todas as normas jurídicas derivam


de normas morais que, pela sua importância, merecem uma proteção
acrescida (“tudo o que a moral ordena é prescrito também pelo Direito, pois
este só recebe da moral aqueles preceitos que se impõem com particular
vigor” – Oliveira Ascensão). Direito e Moral surgem, assim, como círculos
concêntricos, de maneira que, como diz Oliveira Ascensão, “a área mais

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ampla da moral representa um núcleo que é acolhido e garantido pelo direito,
porque é imprescindível à vida social.”

Críticas:

● Há regras do Direito que não têm qualquer conteúdo moral.


Exemplos: abertura das câmaras legislativas ou uniformes dos militares.
● Há normas jurídicas que, na sua aplicação ao caso concreto, podem implicar
consequências tidas pela moral dominante como imorais.

Teoria dos círculos concêntricos ≠ Teoria dos círculos secantes

Teoria dos círculos concêntricos → Defendida pelo critério em causa.

Teoria dos círculos secantes → Há uma parte das normas jurídicas e das normas
morais cujo conteúdo se sobrepõe, ou seja, é comum (sobretudo no domínio penal).
No entanto, há normas morais que não são jurídicas e há normas jurídicas que não
são morais.

2. Critério da heteronomia – O Direito é uma criação exterior ao sujeito, isto é,


é uma ordem heterónoma, no sentido em que não é uma criação do sujeito,
mas sim exterior a ele (esta parte está correta), enquanto a Moral é uma criação
do próprio sujeito (esta parte está errada).

Críticas:

● Não é correto afirmar que a Moral deriva da consciência individual de cada


um, porque existe uma Moral dominante de criação exterior ao sujeito (surge
naturalmente da sociedade).

3. Critério da coercibilidade – Enquanto as normas morais são incoercíveis,


ou seja, não gozam de coercibilidade, porque, de acordo com Oliveira
Ascensão, “nenhum poder exterior pode impor que os homens sejam
melhores” (esta parte está correta), as normas jurídicas caracterizam-se por
serem coercíveis (esta parte está errada).

Críticas:

● Como vamos ver mais à frente, há normas jurídicas que não gozam de
coercibilidade e não deixam, por isso, de ser normas jurídicas.
Exemplo: Direito Internacional Público

4. Critério da exterioridade – Estabelece-se, aqui, uma distinção entre o lado


interno e o lado externo da conduta humana. A Moral limitar-se-ia ao lado

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interno, ou seja, à consciência/intenção, enquanto o Direito incidiria sobre o
lado externo, isto é, o ato externamente manifestado, não invadindo o foro
íntimo de cada um.

Crítica:

● Oliveira Ascensão afirma que é falso que a intenção seja irrelevante para o
Direito e que a conduta seja irrelevante para a Moral (“é falsa a demarcação
de compartimentos estanques e a caracterização operada, quer do Direito,
quer da Moral”).

Exemplo: Legítima defesa, uma vez que, se o lado externo fosse suficiente para a
atuação jurídica, a pessoa que mata outra em legítima defesa iria ser julgada pelo
ato de matar outrem. No entanto, o facto de a conduta adotada ter sido em legítima
defesa (lado interno) faz com que a consequência jurídica seja completamente
diferente. Deste modo, o lado interno interessa e muito ao Direito.

O critério torna-se verdadeiro quando corrigido: enquanto o Direito tem como


ponto de partida o lado externo da existência (ou seja, a conduta), a Moral assenta
na ordem espiritual do sujeito, sendo os aspetos exteriores reflexos da dimensão
interior.

Nota: Sem comportamento (ou seja, sem ato/conduta), o Direito não atua, ou seja, a
mera vontade, se não for traduzida em atos, carece de relevância jurídica.
Exemplo: Um funcionário público que queira fugir ao fisco não consegue, pois o
dinheiro fica automaticamente retido mal o salário lhe cai na conta. Tem intenção,
mas não o faz e, por isso, o Direito não intervém.
Relação entre normas jurídicas e normas morais
O princípio que regula a relação entre as normas jurídicas e as normas
morais é um princípio a que se dá o nome de princípio da não-litigância /
princípio da não-beligerância.
Segundo este princípio, o Direito pode permitir um ato tido como imoral, mas,
por princípio, não deve impor um ato tido como imoral.
Duas manifestações deste princípio:

● Artigo 128º do Código Civil → Dever à obediência


● Artigo 41º nº6 da CRP → Direito à objeção de consciência

Objeção de consciência – segundo Francisco Pereira Coutinho, “é uma posição


subjetiva protegida constitucionalmente que se traduz no não cumprimento de
obrigações e no não praticar de atos legalmente impostos, em virtude de as próprias
convicções do sujeito o impedirem de as cumprir, sendo que estes atos e

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incumprimentos estão isentos de quaisquer sanções”. Resulta no incumprimento de
uma norma/lei.

Para haver objeção de consciência, têm que estar preenchidos 6 elementos:

1. Incumprimento de uma norma jurídica que é impositiva para o objetor,


ou seja, existe uma norma jurídica que obriga a pessoa a adotar uma
determinada conduta e a pessoa desrespeita esse comando jurídico/lei.
2. Esse incumprimento é motivado por razões de consciência (religiosas,
morais, familiares, político-ideológicas, filosóficas, etc).
3. Tem de ser exercida com caráter individual, ou seja, não pode ser
exercida por grupos nem por pessoas coletivas.
4. Reveste um caráter pacífico, ou seja, não pode haver recurso à violência.
5. Não pode gerar prejuízo grave para terceiros. Uma objeção de
consciência alargada põe em causa a segurança.
6. Esse comportamento de incumprimento é tolerado pela ordem jurídica,
isentando o sujeito de qualquer sanção.

Casos de objeção de consciência, em Portugal, previstos pela lei ordinária:

● Serviço militar obrigatório;


● Procriação medicamente assistida;
● Interrupção voluntária da gravidez;
● Diretivas antecipadas de vontade (previamente indico qual a minha vontade
em caso de eu ficar incapaz de a identificar) – ex: desligar as máquinas.

Nota: lei ordinária = lei infraconstitucional (abaixo da lei constitucional).


Qual o fundamento da objeção de consciência?

A dignidade da consciência de cada um, ou seja, respeito pelas


convicções profundas de cada um, sobretudo em questões fraturantes (que
chocam).
Características do direito à objeção de consciência:

● Está prevista no artigo 41º nº6 da CRP, inserindo-se na parte dos DLG;
● É uma norma precetiva (que se dirige diretamente aos cidadãos) e não
pragmática (que se dirige ao Estado – ex: direito à habitação);
● No entanto, é uma norma de eficácia indireta, ou seja, a sua aplicação aos
casos concretos depende da lei ordinária – é preciso uma lei que concretize,
para cada caso, o modo de execução da objeção de consciência.

Nota: Recentemente tem-se suscitado objeção de consciência no direito ao


trabalho, isto é, quando assinamos um contrato, somos obrigados a cumprir aquilo
que a entidade patronal diz, mas, baseando-nos em outro tipo de direitos, pode ser
possível invocar o direito à objeção de consciência – ex: um trabalhador que seja

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judeu e o patrão o obrigue a fabricar armas para o exército nazi matar os judeus na
2ª GM, pode-se recusar a fazê-lo por razões de consciência.

O princípio da não-litigância e a objeção de consciência são situações muito


pontuais – a regra vem no artigo 8º nº2 do Código Civil.

A Ordem Jurídica

Não existe uma definição única de ordem jurídica, sendo que:

- Para os normativistas, a ordem jurídica consiste no aglomerado das regras


jurídicas existentes numa dada sociedade, num dado momento histórico. O Direito
esgota-se no estudo da norma, ou seja, não há mais nada para o Direito além das
normas.
Crítica:
Existe uma unidade de sentido que vai para além do mero somatório de regras e o
estudo do Direito tem que refletir isso.
- Para Oliveira Ascensão, é uma “noção englobante em que se inscrevem as
instituições, os órgãos, as fontes do Direito, a vida jurídica/atividade jurídica e as
situações jurídicas” – as regras jurídicas são uma expressão da ordem jurídica e
não parte dela.
- Para Cabral de Moncada, é um “conjunto de normas, princípios, instituições e
institutos jurídicos trabalhados pela especulação científica” (ciência jurídica).
- Para Castanheira Neves, é uma “institucionalização histórica do Direito”.
O entendimento mais unânime do que é a ordem jurídica é que é um conjunto
relativamente estável de normas, princípios, instituições e institutos jurídicos
correlacionados e harmónicos entre si (aponta para um sistema coerente e
ordenado de organização social).

Há 3 sentidos principais para a palavra “Direito”:

1. Direito como sinónimo de ciência jurídica – ciência que estuda a ordem


normativa segundo um método próprio.
Exemplo: Vou ter aulas de Direito do Trabalho.
2. Direito em sentido objetivo – conjunto relativamente estável de normas,
princípios, instituições e institutos jurídicos correlacionados e harmónicos
entre si (entendimento mais unânime). Em inglês, “law”.
Exemplo: O Direito do Trabalho consagra a remuneração do trabalhador.
3. Direito em sentido subjetivo – poder ou faculdade de que se encontra
investido um determinado sujeito num determinado momento. Em inglês,

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“right”.
Exemplo: O senhorio tem direito ao dinheiro da renda; o arrendatário te o
direito de usufruir do espaço.

Oliveira Ascensão distingue Direito objetivo e Direito subjetivo, através de


um exemplo: “Confrontemos as expressões «Direito das Sucessões» e «direito de
suceder». O Direito das Sucessões é uma realidade objetiva: está-se mais perto da
ideia de uma ordenação da vida social. Pelo contrário, o direito de suceder é uma
realidade subjetiva: refere-se necessariamente a um sujeito dado para significar que
ele goza de uma certa posição favorável”.
Nota: Torna-se mais fácil perguntarmos qual o ponto de vista de um sujeito perante
aquelas realidades: pode-se dizer que o Joaquim tem direito de suceder a Jerónimo,
mas não que Joaquim tem o Direito das Sucessões. (Oliveira Ascensão).
O autor afirma que o Direito objetivo tem prioridade sobre o Direito subjetivo,
isto porque existe o direito subjetivo deriva do direito objetivo (ex: “Se o Joaquim
tem o direito de suceder é porque, de harmonia com o Direito das Sucessões, tal
prerrogativa lhe é conferida”).

Nota: Partindo desta distinção, o autor conclui que ordem jurídica e Direito não são
a mesma coisa, pelo que a primeira é mais ampla, porque inclui também os direitos
subjetivos.
Características da ordem jurídica

- Necessidade → não é possível a vida em sociedade sem o Direito. A sociedade


não é apenas uma condicionante exterior do Direito (dado que este é um fenómeno
social, como vimos inicialmente). O contrário também é verdade, como vimos,
sendo que o Direito é imprescindível à sociedade (ubi societas ibi ius). Oliveira
Ascensão diz que “é definitivo ser a ordem necessária em qualquer sociedade,
tanto fazendo que sejam boas como más as pessoas que dessa ordem participam”.
Sem Direito, só existiriam 2 alternativas:

● Despotismo puro – segundo Oliveira Ascensão, é muito difícil apresentar


exemplos no seu estado puro; mesmo as Monarquias absolutas e o
Despotismo iluminado do Antigo Regime, ainda que com uma concentração
de poder numa só pessoa, ficaram aquém de um despotismo puro. Nas
palavras do autor, “um puro despotismo só é imaginável em hipóteses de
loucura do déspota”.
● Anarquia – desta já existem exemplos pontuais, que surgem por vezes na
vida de uma sociedade, como em certas situações criadas pela retirada
abrupta de uma potência colonizadora. No entanto, Oliveira Ascensão
afirma que “não se poderá apontar um estado puro de anarquia sem que isso
signifique também a extinção da sociedade em causa”.

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Nenhuma destas soluções é suscetível de perpetuação e, portanto, a
ausência de Direito conduziria necessariamente à dissolução da sociedade.

- Imperatividade → partilha esta característica com a ordem religiosa e moral (fica,


portanto, de fora a ordem de trato social) – as suas regras exprimem um “dever ser”
que constitui uma exigência incondicionada de aplicação. Isto significa que não cabe
aos destinatários das normas decidirem se elas se lhes aplicam ou não (as normas
jurídicas são aquelas que proíbem ou obrigam a uma determinada conduta).
Oliveira Ascensão caracteriza-as, dizendo que “não é uma mera descrição dum
processo desencadeado por um ato humano ou facto da natureza, não é também
uma espécie de conselho – intenciona em absoluto realizar-se”.
No entanto, dizer que a norma jurídica é imperativa, não é o mesmo que dizer
que todas as normas jurídicas são imperativas.
Exemplos: normas permissivas (autorizam mas não obrigam) e normas supletivas
(normas que podem ser afastadas por vontade das partes).
A consequência da imperatividade é que a violação da norma jurídica gera
uma sanção. Segundo Oliveira Ascensão, uma sanção consiste numa
“consequência desfavorável normativamente prevista para o caso de violação de
uma regra, e pela qual se reforça a imperatividade desta”.
Nota: Dizer que opto por não cumprir a norma e prefiro sujeitar-me à sanção é falso,
porque a sanção não é uma escolha, mas sim uma repreensão/punição. Nas
palavras de Oliveira Ascensão, “a ordem jurídica não se cifra num catálogo de
condutas que se apresentam à disposição dos destinatários, de tal modo que estes,
pesando as consequências, escolham indiferentemente o que mais vantajoso se
lhes apresente. Implica antes uma pretensão de aplicação incondicional”.

- Estatalidade → É comum identificar o Direito como uma criação do Estado,


aplicada por órgãos que se integram no mesmo. Na verdade, é inegável esta
dimensão de supremacia que o Estado desempenha na criação das normas
jurídicas, mas, segundo Oliveira Ascensão, se essas declarações não se
integrassem na ordem social, não podiam ser consideradas Direito. Daí que o autor
afirme que “o Direito é o que está na sociedade, não o que é produzido pelo
Estado”. Esta ideia reforça-se com o facto de que nem todo o Direito tem origem
estadual (aliás, antes da existência do Estado já havia Direito). Não só há normas
jurídicas criadas por sociedades intraestatais (como é o caso dos municípios), como
também há normas jurídicas criadas por sociedades supraestatais (como é o caso
dos tratados internacionais entre os Estados). Grande exemplo disto é o Direito
Internacional Público que não deixa de ser Direito pelo facto de não ser reconhecido
por algum Estado. Neste sentido, “dizer-se «ordem jurídica estatal» não significa
que o fundamento da validade dessa ordem jurídica esteja no Estado a que
corresponde, ou que todas as regras que traduzem aquela ordem jurídica sejam
criadas pelo Estado, mas unicamente que o âmbito daquela ordem jurídica é
demarcado pelo Estado a que corresponde” (Oliveira Ascensão).

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Em suma, apesar de nem todo o Direito ter fonte estadual, a maior parte das
normas jurídicas tem, de facto, origem no Estado e o seu âmbito de aplicação está
delimitado por esse Estado. Podemos dizer, portanto, que a estatalidade não é uma
característica absoluta, mas tendencial.

- *Heteronomia → Segundo Oliveira Ascensão, a aceitação desta característica


depende da maneira como a entendemos. É correto afirmar que o Direito é uma
ordem heterónoma, no sentido em que não é uma criação do sujeito, mas sim
exterior a ele. No entanto, não podemos esquecer a importância da sociedade e da
coletividade na criação do Direito. Estabelecendo uma comparação entre a ordem
jurídica e a ordem moral, o autor afirma que “se se pretender que a moral é
autónoma porque a sua manifestação passa através da consciência do sujeito, e o
Direito não, a caracterização pode ser aceite para a moral e é também verdadeira
no direito”.

*Tema abordado já nos critérios de distinção entre Direito e Moral.

- *Exterioridade → Esta característica tem também sido alvo de grande debate.


Estabelece-se, aqui, uma distinção entre o lado interno e o lado externo da conduta
humana. A Moral limitar-se-ia ao lado interno, enquanto o Direito incidiria sobre o
lado externo, não invadindo o foro íntimo de cada um. No entanto, Oliveira
Ascensão afirma que, no extremo, a doutrina da exterioridade está incorreta, na
medida em que “é falsa a demarcação de compartimentos estanques e a
caracterização operada, quer do Direito, quer da Moral”. Exemplo disto é a legítima
defesa, uma vez que, se o lado externo fosse suficiente para a atuação jurídica, a
pessoa que mata outra em legítima defesa iria ser julgada pelo ato de matar outrem.
No entanto, o facto de a conduta adotada ter sido em legítima defesa (lado interno)
faz com que a consequência jurídica seja completamente diferente. Deste modo, o
lado interno interessa e muito ao Direito.
Em suma, esta característica é válida se a entendermos como ponto de partida da
atuação do Direito. O Direito parte da conduta e sem conduta não há atuação
jurídica, mas isto não quer dizer que a interioridade do sujeito seja irrelevante para a
ordem jurídica. Nas palavras de Oliveira Ascensão, “essa ordem (jurídica) é uma
ordem humana: assenta no homem tal qual este é, portanto sem poder abstrair da
sua essência espiritual”.

*Tema abordado já nos critérios de distinção entre Direito e Moral.

- Coercibilidade → Define-se muito frequentemente a coercibilidade como sendo a


suscetibilidade de aplicação coativa (pela força) da regra. No entanto, segundo
Oliveira Ascensão, nem sempre há meios de tutela preventiva, destinados a evitar
a violação da regra e, além disso, o ponto principal associado a esta característica
coloca-se nos casos em que, “perante uma efetiva violação duma regra jurídica, se
pergunta se surge de qualquer maneira autorizado o recurso à coação”. Deste

16
modo, é insuficiente definir coercibilidade dessa maneira, mas sim a suscetibilidade
de aplicação coativa (pela força) da sanção associada à violação da norma jurídica.
É uma característica exclusiva da ordem jurídica e que a faz afastar-se e
autonomizar-se das restantes ordens.
Apesar de tendencialmente a coercibilidade vir sempre associada à norma jurídica,
de facto, há normas jurídicas que não gozam de coercibilidade ou têm essa
coercibilidade muito mitigada, como:

● Normas jurídicas de âmbito infraestadual – nestas, raramente surge a


utilização da força para imposição de uma sanção (ex: associações culturais
ou desportivas). Por vezes, a ordem jurídica comum empresta-lhes parte da
sua força, mas isso não significa que a essa ordem jurídica menor passe a
ser assistida de coercibilidade. Estas normas, apesar de lhes ser atribuída
uma sanção, não têm a capacidade de as impor pela força (precisam do
auxílio da ordem jurídica estadual) e, por isso, dependem do facto de a
ordem estadual reconhecer a legitimidade das suas normas.

Exemplo prático: Quando o Bruno de Carvalho foi proibido de entrar nas


instalações do Sporting, mais precisamente na reunião da Assembleia do clube, e
ele apareceu lá na mesma, o clube não pôde fazer nada pelas suas mãos. Teve que
chamar a polícia para o impedir de entrar.

● Normas jurídicas de âmbito supraestadual – tendo por exemplos


fundamentais o Direito Canónico e o Direito Internacional Público, o
problema/fragilidade, além da indefinição dos meios e do mau funcionamento
das instituições, consiste na aplicabilidade das sanções, porque não existe
um corpo autónomo de aplicação das sanções pela força, sendo esta, nas
palavras de Oliveira Ascensão, “a força dos Estados que compõem a
comunidade internacional”. Ora, como os Estados só emprestam a sua força
para o que for do seu interesse, torna-se difícil falar em “imposição de
sanções internacionais”. Muito mais evidente se torna a situação quando
olhamos para as grandes potências mundiais, às quais não é imposta uma
sanção pela força. Daí a afirmação do autor: “pode dizer-se que quem viola o
Direito Internacional sujeita-se normalmente a sanções, que podem levar até
à guerra. Mas isso só terá significado como manifestação de coercibilidade
na hipótese invulgar de a vítima ser o mais forte e o infrator o mais fraco (ver
exemplo abaixo).

Exemplo prático: Quando os EUA invadiram o Iraque, apesar de a nível


internacional se ter decidido que não se reuniam as condições necessárias para tal
e não houve sanção nenhuma.

● Mesmo na ordem jurídica estadual, há normas sem sanção e normas cuja


sanção não pode ser coativamente imposta, como:
- Se o Estado, principal criador de normas jurídicas, violar uma norma, não

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há possibilidade de imposição de uma sanção pela força, pois é o próprio
Estado quem detém o “monopólio da coação” (Oliveira Ascensão).
- Prazos de decisão dos juízes – caso os juízes ultrapassem os prazos não
têm qualquer sanção.
- Obrigações familiares – há normas que, pela sua natureza, não justificam a
intervenção do Estado na vida privada. No artigo 1672º do Código Civil,
estabelecem-se as responsabilidades mútuas dos cônjuges mas, apesar de
estes aspetos serem essenciais para a ordem jurídica, a sanção de eventuais
violações é praticamente inexistente, só se aplicando apenas em casos
extremos.
- Obrigações naturais (artigo 403º do CC) – são obrigações cujo
cumprimento o credor não pode exigir coativamente, mas, se o devedor
cumprir voluntariamente, o credor pode reter a prestação, não estando
obrigado a devolvê-la. Vejamos os seguintes exemplos:

Exemplos:
- Trabalho prestado pelos filhos em auxílio dos pais;
- Dívidas de jogo (tolerado) e aposta que não sejam reconhecidas juridicamente
(como um jogo de cartas em recinto familiar);
- Prescrição (quando passou um determinado período de tempo e a dívida deixa de
ser exigível em tribunal).
IMPORTA DESTACAR QUE TUDO ISTO SÃO EXCEÇÕES – A GRANDE
MAIORIA DAS NORMAS JURÍDICAS GOZAM DE COERCIBILIDADE!
Como já vimos, a coercibilidade corresponde à possibilidade de aplicação da
sanção pela força, ou seja, possibilidade de aplicação coativa de uma sanção.
Qual o papel da coação no Direito?
De uma maneira geral, o Direito é visto por todos os sociólogos como um
instrumento de controlo social particularmente eficaz, uma vez que consiste num
conjunto de normas assistidas de uma sanção socialmente organizada. É
exatamente esta característica (coercibilidade), como vimos anteriormente, que
distingue a ordem jurídica das restantes ordens sociais.
Destacam-se 2 correntes doutrinárias:

● Max Weber (sociólogo) – a existência de uma instância de coação é um


elemento determinante do conceito de Direito, ou seja, a coação é o
elemento que identifica, caracteriza e dá essência ao Direito. Assim sendo,
as normas jurídicas são aquelas que são suscetíveis de aplicação
institucional pela força (“o elemento determinante do conceito de «direito»
consiste na existência de uma instância de coação”).
● Larenz (jurista) – a essência do Direito é a justiça e é essa noção de justiça
que confere ao Direito uma ordem de sentido e que o distingue de uma

18
ordem de pura força. Para Larenz, a coercibilidade não pertence à essência
do Direito, mas sim à sua eficácia.
Batista Machado partilha da mesma opinião, dizendo que “a coação ou a
coercibilidade não especifica o Direito no plano do ser, não o determina no
seu conteúdo e, portanto, não faz parte da sua essência”. No entanto, apesar
de o Direito não se definir pela coercibilidade, esta é uma característica
resultante da própria natureza do Direito e, por isso, o autor afirma que “num
mundo de homens imperfeitos, a coercibilidade é essencial para assegurar,
não a essência, mas a vigência do Direito e essa coercibilidade é legitimada
pela justiça, procurada pela ordem jurídica”. Daí que o recurso a meios de
coação para repor a justiça seja, na sua opinião, legítimo e exigível.

Coação é, portanto, a aplicação efetiva da coercibilidade.

Os valores do Direito: justiça e segurança


De um modo geral, tem-se procurado ancorar o Direito em pontos fixos que
devam ser imperativamente recebidos. Oliveira Ascensão diz: “são pontos fixos,
porque fundam a ordem jurídica e escapam ao arbítrio humano”.
Foram vários os pontos fixos encontrados pelos autores ao longo da História.
A filosofia do século XX prestou atenção ao facto de, nas palavras do autor, “todos
nós constantemente valorarmos, constantemente depararmos com objetos valiosos,
constantemente falarmos de valores. Da meditação destes temas nasceu uma
corrente, certamente multiforme, a que se dá a designação de Filosofia dos
Valores”.
Deste modo, os autores determinaram numerosas espécies de valores,
sendo necessário o seu agrupamento e, depois, a sua hierarquização. Assim sendo,
um valor inferior deverá nomeadamente ser sacrificado para a consecução de um
valor considerado superior.
De entre os vários valores a que a ordem jurídica tem que assentar e que são
próprios da mesma, destacam-se a justiça e a segurança.
Justiça
Segundo Ulpiano, a justiça consiste na constante e perpétua vontade de dar
a cada um aquilo que é seu.
Na sua obra, o autor refere mesmo estas 3 condições/elementos da justiça:

● Viver honestamente
● Não prejudicar ninguém
● Atribuir a cada um aquilo que é seu

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Para o Direito, a justiça é uma cultura naturalmente enraizada, influenciada
pelo tempo e pelo espaço e assenta no velho vocábulo latino de Ulpiano “suum
cuique tribuendi” (dar a cada um aquilo que é seu).
Cabe ao Direito a justa distribuição entre o que o indivíduo dá e o que recebe
da sociedade.
Oliveira Ascensão aponta ainda para o facto de que não se pode identificar
o Direito e a justiça, uma vez que “o Direito ultrapassa muito o domínio do justo”.
Isto porque, se assim fosse, poucas ordens jurídicas subsistiam, uma vez que “a
ordem internacional é injusta; e injusta é a maioria das ordens nacionais”.
Nota: A justiça portuguesa tem origem nas civilizações grega e romana, tem
influência judaico-cristã e da Revolução Francesa (liberdade, igualdade,
fraternidade).
Elementos lógicos da justiça:

1. Proporcionalidade → Compete ao Direito promover a proporcionalidade entre


os sujeitos da comunidade (remissão para o preceito de Ulpiano: atribuir a cada um
aquilo que é seu). Dante dizia que “o Direito é a proporção real e pessoal de um
homem em relação ao outro que, se observada, mantém a sociedade em
ordem e, se corrompida, corrói-a”.
2. Igualdade → Tratar o que é igual de modo igual e tratar de forma diferente o
que é diferente, na medida dessa diferença.
3. Alteridade → A justiça atribui valor às condutas socialmente relevantes, ou
seja, as que se dirigem aos outros com os quais nos relacionamos. É daqui
que resulta o princípio da dignidade da pessoa humana, segundo o qual
todos os seres humanos têm o mesmo valor.

Para o doutor Castanheira Neves, em termos substantivos, a justiça


assenta em 2 princípios fundamentais: o princípio da solidariedade e o princípio da
corresponsabilidade. E, com base nesses princípios, o Direito deve dividir direitos e
deveres, bens e encargos, benefícios e obrigações – deve haver um equilíbrio. Diz
que “o princípio ou intenção da justiça aponta para o ponto ótimo da dialética entre a
pessoa (autonomia pessoal) e a comunidade”.
Ao nível do Direito, Aristóteles fazia uma divisão da justiça em 3
tipos/dimensões:

- Justiça distributiva → Rege a repartição dos bens comuns pelos membros da


sociedade segundo um critério de igualdade proporcional, que atende à finalidade
da distribuição e à situação dos sujeitos (justiça característica das relações de

subordinação, ou seja, do Direito público). Neste sentido, surge a afirmação de


Oliveira Ascensão: “De todo o modo, é claro que a justiça comanda aqui a

20
desigualdade dos resultados. Se, por exemplo, a todas as pessoas que
desempenham cargos oficiais se atribuem por sistema condecorações idênticas,
está-se a praticar uma injustiça substancial, pois foi muito diversa a dedicação, o
zelo e a inteligência com que cada um serviu”. Isto significa que, na opinião do
autor, uma distribuição proporcional das “vantagens entre todos os membros da
comunidade” gera desigualdades, pois não se tem em conta o mérito de cada
pessoa.

- Justiça comutativa/sinalagmática → Segundo Oliveira Ascensão, “é a que preside


às relações dos indivíduos entre si. As pessoas apresentam-se em pé de igualdade,
e essa igualdade deve ser salvaguardada pelo Direito”. Assim, rege o intercâmbio
entre pessoas iguais, ou seja, visa corrigir os desequilíbrios que ocorrem no seio de
relações contratuais e na prática de atos ilícitos. Deste modo, estabelece a
equivalência entre prestações e entre danos e indemnizações (é a justiça típica do
Direito Privado e, ao nível do Direito contratual, entende-se que essa equivalência é
fixada pelas partes, isto é, cabe às partes definir essa equivalência). Aristóteles
fala de uma proporção aritmética, tendo como objetivo colocar o lesado na situação
em que estaria se não tivesse sofrido o dano.

- Justiça geral/legal → Rege a participação dos membros da sociedade nos


encargos comuns, segundo um critério de igualdade proporcional. É, portanto, “a
que preside às relações entre os indivíduos e a comunidade, mas desta vez no
tocante aos encargos exigidos àqueles, que devem ser repartidos equitativamente
por todos” (Oliveira Ascensão).

O problema coloca-se em encontrar o equilíbrio entre a justiça distributiva e a


justiça comutativa. Isto porque cada vez mais a justiça distributiva se insere em
situações que pertenciam à justiça comutativa.
Exemplo: Artigo 282º do Código Civil – contrato de usura: um contrato em que
uma das partes se aproveita da outra parte por alguma razão, seja a falta de
informação, a necessidade de algo (como, por exemplo, dinheiro), ou outras. Estes
contratos perdem a sua força jurídica caso seja comprovada essa exploração de
interesses de alguém para benefício próprio ou de terceiros (ex: para pedir uma
percentagem de juros acima do que está estabelecido no Código Civil – artigo
1146º).
Nota: Sinalagma – é um nexo de correspetividade entre as prestações, ou seja, uma
prestação não se compreende sem a outra.
A par da justiça, o Direito tem de promover também a segurança.
Segurança

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Este valor, apesar de ser referido há muito tempo, não suscita uma
elaboração tão grande como a justiça. Isto porque a segurança é um valor
hierarquicamente menos elevado, por estar “mais diretamente ligado à utilidade, às
necessidades práticas e às urgências da vida” (Batista Machado). No entanto, é
um valor fundamental, na medida em que só se cada um souber o papel social que
lhe compete é que é possível exigir que se comporte dessa forma (“sem segurança
a ordem não existe ou é imperfeita” – Oliveira Ascensão). Podemos dizer, portanto,
que é uma das exigências feitas ao Direito. A segurança promove a estabilidade, a
previsibilidade, a confiança no tráfego negocial e isso é essencial à convivência
pacífica.
A segurança associada à previsibilidade do comportamento é essencial ao
Direito. Não se pode promover a convivência pacífica em sociedade se as pessoas
não sabem como se comportar ou o que esperar dos outros.
Manifestações da segurança no ordenamento jurídico:
(Como é que o Direito promove a segurança?)

Segundo Batista Machado, a segurança jurídica aparece-nos sob a forma de


“certeza jurídica”:

1. Positivação do Direito legislado pelo Estado/pelas autoridades competentes


→ Direito vertido em normas de conhecimento público (redação escrita de
normas que são publicadas no Diário da República – é uma das maiores
manifestações de concessão de segurança às normas jurídicas, visto que
todos têm acesso ao Diário da República).
2. Generalidade e abstração das normas jurídicas → As normas são iguais para
todos.
3. Formulação de leis em termos precisos e claros → Normas precisas e claras,
sem grande margem de interpretação nem de ambiguidades (ius strictum),
evitando o recurso a cláusulas gerais e conceitos indeterminados. Nota: A
distinção entre ius strictum e ius aequum que surgem neste ponto será
abordada no fim deste subtema.
4. Proibição do non liquet – um juiz não pode recusar-se a julgar um caso,
invocando inexistência de regulamentação (ou seja, que não existe lei para
esse caso) – artigo 8º, 10º e 11º do Código Civil.
A proibição do non liquet complementada com a integração de lacunas
promove a plenitude do sistema jurídico, ou seja, assegura a regulamentação de
todos os aspetos merecedores de tutela jurídica (assegura a todos os cidadãos o
facto de nunca ficarem desprotegidos por falta de solução do sistema jurídico).
VER OS ARTIGOS DO PONTO 4

5. Atuação do aparelho coativo do Estado.

PROBLEMA: Muitas vezes, existe uma tensão dialética entre a justiça e a

22
segurança, isto porque, muitas vezes, a solução imposta pela lei parece ir ao
contrário do sentido de justiça do caso concreto.

Como se resolve um conflito entre a justiça e a segurança do caso concreto?


Qual é que prevalece?

Para Batista Machado…


Apesar de o valor mais importante ser a justiça, há casos em que a própria
praticabilidade do Direito exige que o valor da segurança prevaleça sobre o valor da
justiça, no sentido de promover essa mesma justiça. O autor diz que “as realidades
ou valores de escalão inferior na estrutura ôntica do mundo têm um maior peso que
as realidades ou valores de escalão superior, por serem aqueles o necessário
suporte deles”. Pôr em causa esta operacionalização, em último grau, afeta a
própria justiça.
Assim, “uma justiça sem segurança seria vazia de eficácia e, portanto, não
passaria de piedosa intenção. Já uma segurança sem justiça representaria uma
situação de pura força”.
Institutos jurídicos onde prevalecem preocupações de segurança:

■ Maioridade aos 18 anos (por uma questão de uniformidade e


previsibilidade) – artigo 122º do Código Civil;
■ Normas de caducidade (artigo 328º do Código Civil) e prescrição por
decurso do tempo (artigo 300º do Código Civil).
■ Normas que estabelecem exigência de forma (ex: escritura pública num
contrato compra-venda de um imóvel) – exigem certas formalidades para a
validade ou para a prova de certos atos jurídicos (como, por exemplo o facto
de certos atos serem levados a registo), de modo a garantir a estabilidade e a
confiança.
■ Instituto do caso julgado, onde se proíbem recursos ordinários em decisões
transitadas em julgado – visa essencialmente pôr um ponto final nos litígios e
assegurar a paz jurídica.
■ Não retroatividade da lei na aplicação da lei no tempo – a lei só vigora
para o futuro, de modo a assegurar a proteção dos direitos adquiridos e das
expectativas legítimas (artigo 12º do Código Civil);
■ Usucapião (artigo 1287º do Código Civil e seguintes);
■ Princípio da “ignorantia iuris non excusata” – a ignorância da lei não
aproveita a ninguém (artigo 6º do Código Civil)

Institutos jurídicos onde prevalecem preocupações de justiça:

■ Boa-fé (artigo 227º e 762º do Código Civil);


■ Bons costumes (artigo 28º do Código Civil);
■ Ordem pública (artigo 280º do Código Civil);

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■ Abuso de direito (artigo 334º do Código Civil);
■ Alteração superveniente das circunstâncias (artigo 437º do Código Civil).

Assim, vivemos um período de jurisprudência dos valores e concretização da


justiça (ver informação seguinte).
No contexto anteriormente abordado entre justiça e segurança, divide-se:

Ius strictum – técnica de redação que usa conceitos específicos com um sentido
relativamente fechado, de mais fácil apreensão. Normas com um conteúdo mais

claro, preciso e fechado → PREDOMÍNIO DA SEGURANÇA

Ius aecqum – normas construídas com base em conceitos indeterminados e


cláusulas gerais, cuja necessidade de densificação e interpretação é muito mais
ampla. São conceitos que não são de compreensão imediata. Quem faz o trabalho

de densificação são os tribunais e a doutrina, mas são conceitos jurídicos →


PREDOMÍNIO DA JUSTIÇA

Este crescente de cláusulas gerais e conceitos indeterminados foi


característica dos códigos após a 2ª Guerra Mundial, de modo a promover a justiça,
incluindo dentro do próprio ordenamento jurídico as chamadas “válvulas de escape
do sistema” – por isso dizemos que estamos na 3ª sistemática:
1ª sistemática – jurisprudência dos conceitos
2ª sistemática – jurisprudência dos interesses
3ª sistemática – jurisprudência dos valores
No entanto, apesar do sistema parecer, de facto, dar resposta mais ou menos
equilibrada ao confronto entre a justiça e a segurança, posso afastar-me de uma
solução de Direito positivo com fundamento na sua injustiça? Ou seja, perante
uma norma de Direito positivo injusta, é possível recusar a sua obediência
com fundamento nessa injustiça?
OU
Pode alguém ser condenado por ter cumprido uma norma de Direito
positivo e que depois se veio a considerar que era contrária aos princípios
fundamentais de justiça no ordenamento jurídico?
Fórmula de Radbruch (ler em Batista Machado) – “sempre que a injustiça do Direito
positivo atinja um tão alto grau que a segurança jurídica deixe de representar algo
de positivo em confronto com esse grau de violação da justiça, nesse caso, não
poderá duvidar-se de que o Direito positivo injusto deverá ceder perante a justiça”.

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Exemplo: Julgamento de Nuremberga – depois da 2ª Guerra Mundial, vários nazis
foram julgados e posteriormente sentenciados a pena de morte por cumprirem a lei
que, na altura, vigorava na Alemanha (Direito positivo em confronto com a justiça).
Por fim, Batista Machado ainda destaca que, no Estado de Direito
Democrático, o cidadão goza também de segurança perante eventuais
intervenções/intromissões dos poderes públicos na sua vida privada. Essa
segurança é assegurada, sobretudo, pela possibilidade de recurso a um “poder
neutro” (o poder judicial) para defesa dos direitos, liberdades e garantias próprios
dos cidadãos.

Confronto entre o Direito Positivo e o Direito Natural


Direito positivo – Direito que é posto em vigor pelas autoridades oficiais ou pela
vontade coletiva de uma comunidade. Corresponde ao conjunto das normas
jurídicas da ordem jurídica.
No entanto, desde a Grécia Antiga que juristas e filósofos do mundo ocidental
colocam a seguinte pergunta: será que existe um Direito natural superior ao
Direito positivo de onde este retira o fundamento da sua validade e que
permite aos cidadãos aferir a sua legitimidade ou ilegitimidade (ou seja, um
Direito superior às normas positivadas)?
Exemplo do Dr. Freitas do Amaral: “o direito positivo emanado do Governo
ditatorial é válido e obrigatório, como Direito, porque emana do Poder político
vigente, que controla o país? Ou é inválido e pode ser juridicamente desobedecido,
porque é contrário ao Direito Natural, na medida em que viola de modo flagrante a
Democracia e os Direitos Humanos?”
Nota: Uma realidade histórica deste tema é o julgamento de Nuremberga, como
visto a propósito do confronto entre justiça e segurança.
Deste confronto entre Direito positivo e Direito natural, surgem 2 correntes:
Jusnaturalismo – corrente que admite a existência de Direito natural, ou seja, a par
do Direito positivo, existe um Direito natural que se sobrepõe, fundamenta e legitima
o Direito positivo.
Juspositivismo – corrente que nega a existência de Direito natural, ou seja, para
os juspositivistas só existe Direito positivo.
Origem do problema e as várias fases do confronto
Origem
- Grécia Antiga (século V a.C.)

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- Jusnaturalismo – surge associado a uma peça de teatro, “Antígona”, de Sófocles.
Esta peça conta a história de uma cidade em guerra civil. Creonte, o seu chefe,
tenta dominar uma revolta liderada por dois dos seus três sobrinhos, irmãos de
Antígona. O terceiro estava do lado do tio. Este último e um dos primeiros acabam
por morrer. Ao seu defensor, Creonte reserva cerimónias gloriosas, ao contrário do
outro, ao qual o tirano impõe uma decisão cruel de que ninguém lhe fará funeral e o
seu cadáver ficará à disposição dos abutres, fora das muralhas da cidade. Ora, na
tradição grega, todos os mortos, para serem recebidos pelos deuses, tinham que ter
um funeral. E foi por isso que Antígona não aceita o ato desumano do tio,
desobedecendo-lhe e, assim, sepultando o irmão. Creonte acaba por descobrir e
Antígona é levada à sua presença, confessando, mesmo sendo condenada à morte,
que ousou desobedecer à lei, porque:
“Não são essas as leis que eles (os deuses) determinaram para sempre aos homens; e eu nunca
pensei que as tuas proibições fossem tão poderosas que pudessem permitir a um simples mortal
violar outras leis, as leis não escritas e invioláveis dos deuses”.

Surge assim a primeira defesa conhecida do jusnaturalismo: as leis naturais,


provenientes dos deuses, eternas e invioláveis. Caso as leis positivas, emanadas
pelos governantes entrem em confronto com as primeiras, nada podem contra elas
e, por isso, a sua desobediência justifica-se. Nas palavras de Freitas do Amaral:
“Antígona preferiu obedecer ao Direito Natural que a sua consciência lhe ditava,
mesmo sabendo que por isso podia ser condenada”.
- Juspositivismo – só quarenta anos mais tarde é que surge, com Sócrates, o
positivismo, a propósito do julgamento a que ele próprio foi condenado à morte por
criticar severamente a democracia ateniense. Um jusnaturalista não teria dificuldade
em considerar essa condenação injusta e, portanto, o próprio teria o direito de fugir.
Foi essa a ideia de muitos amigos de Sócrates, mas este não se convenceu,
apresentando várias razões para deixar a sentença ser executada. Dessas razões
destaca-se aquela que é o principal argumento do positivismo: “é melhor para o país
que a lei (ou a sentença que aplica a lei a um caso concreto) seja cumprida e
obedecida por todos, mesmo que alguém a considere injusta ou imoral, do que
reconhecer a cada cidadão o direito à desobediência”.
Nas palavras de Sócrates: “é maior e mais perigoso o dano coletivo da desobediência às leis, por alguns
cidadãos que se sentem lesados, do que o dano individual suportado por aqueles que de facto forem lesados
por uma lei injusta ou por uma sentença injusta”.

Roma
- Na Roma clássica, ainda antes de Cristo, o Direito Natural é proclamado, descrito
e explicado em palavras de forte vigor intelectual por Cícero:
“Existe, pois, uma lei verdadeira, que é a reta razão, conforme à Natureza, presente
em todos os homens, constante e sempre eterna”.
Surge, assim, a conceção clássica do Direito Natural:

26
Existe uma ordem natural, que foi criada por Deus. Essa é descoberta pela
razão humana e dela resulta o Direito Natural, que impõe direitos e deveres aos
homens aos quais estes devem obediência, sob pena de desrespeitarem a própria
natureza humana. As suas normas são universais, eternos e imutáveis e, deste
modo, o Direito positivo não as pode alterar.
Nota: Nesta época, surge também a figura de Ulpiano que diz: o Direito Natural é
“aquele que a natureza ensina a todos os animais. Na verdade, este direito não é
próprio do género humano, mas comum a todos os animais que vivem na terra e no
mar, incluídas as aves”.
Idade Média
- O Cristianismo vem dar ainda mais força à ideia de Direito Natural, porque
apresenta o seu Deus, único e verdadeiro, como criador do universo e proclamou a
superioridade da lei divina face à lei humana.
- Entre vários autores, destaca-se S. Tomás de Aquino, para o qual o mundo e o
homem foram criados por Deus, mas a atuação divina não se esgotou nesse
primeiro momento: continua todos os dias a exercer-se. No entanto, não intervém
caso a caso, atua sim “por causas segundas”, isto é, estabelece as leis gerais do
universo e deixa que os acontecimentos decorram entretanto.
- Existe uma grande diferença para com a conceção greco-romana. Isto porque S.
Tomás de Aquino reduz consideravelmente o conteúdo do Direito Natural,
aumentando na mesma proporção a função e a importância do direito positivo.
Renascimento e o racionalismo
- Em meados do século XV dá-se o Renascimento.
- As transformações dadas no Renascimento refletiram-se naturalmente na ordem
jurídica: não negaram o jusnaturalismo, mas dividiram-no em jusnaturalismo
religioso (de base divina) e o jusnaturalismo racionalista (de base humana). A figura
principal desta época é Hugo Grócio.
- Para este autor, “o direito natural é imutável, mesmo para Deus, e sempre existiria,
mesmo que Deus não existisse”. Deste modo, o Direito Natural é um produto da
razão humana e não da vontade divina.
A escola racionalista do Direito Natural
- Continuadores e inovadores em relação a Hugo Grócio foram Hobbes, Locke e
Rousseau, embora com concessões diferentes. Só que, até estes três grandes
filósofos do Iluminismo, o Direito Natural era encarado como um tipo de direito
superior ao direito positivo estadual. A partir deles, o Direito Natural começa por ser
encarado como anterior ao Estado, por isso que nasce e se afirma na situação de
estado de natureza, em que ainda não há Estado, ou poder político.
A fase da contestação do jusnaturalismo: o positivismo

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- Séculos XIX e XX – surge um movimento chamado positivismo jurídico. Entre
outros autores, destaca-se Hans Kelsen.

- Divisão dos juristas em jusnaturalistas e juspositivistas.


- Principais características:

● O Direito Natural não é direito, pois Deus não existe (origem divina) e nem
pode ser aceite como uma dedução racional de cada indivíduo, porque,
assim sendo, qualquer pessoa poderia inventar a sua maneira de Direito
Natural;
● O Direito Natural não é direito, dado que não é promulgado pelas autoridades
sociais legitimadas para o fazer;
● O Direito Natural não é direito, uma vez que não há qualquer consenso sobre
o seu conteúdo;
● O Direito Natural não é direito, visto que a violação das suas normas não
gera nenhuma sanção.

O renascimento do Direito Natural no século XX


- O final da 2ª Guerra Mundial marca o renascimento do jusnaturalismo. Isto porque
não era possível conformar-se com as atrocidades cometidas pelos nazis, muito
menos aceitar tudo isso como direito.
- Era, portanto, necessário existir um Direito Natural, à luz do qual esse direito
positivo fosse invalidado e consequentemente legitimada a sua desobediência.
Nota: Um exemplo desta inversão foi o filósofo Gustav Radbruch (já antes
mencionado) que, antes da guerra, era positivista, mas acaba por se “converter” ao
jusnaturalismo, dados os horrores cometidos pelos nazis, sempre com cobertura do
direito positivo.
- No entanto, os positivistas reagem, iniciando-se um verdadeiro confronto entre as
duas conceções. Destaca-se aqui o debate Fuller-Hart que iniciou com uma
sentença proferida por um tribunal da RFA, em 1949. Passa-se a resumir o caso:
Mulher e marido viviam casados durante o regime nazi. As autoridades tinham promulgado uma lei que punia
quem proferisse declarações ofensivas do Governo do Reich. O marido, em dias de folga do serviço militar,
ataca e insulta o regime à frente da sua mulher que era militante nazi. Deste modo, a mulher denuncia o marido
às autoridades, que acaba por ser condenado à morte. Tal não chegou a acontecer, pois foi necessário enviá-lo
para a guerra.
Passada a guerra, a mulher foi acusada do crime de “privação de uma pessoa da sua liberdade” por ter
denunciado o marido.
A sua defesa baseou-se no facto de que ela se limitou a cumprir a lei em vigor no momento, a quem devia
obediência (positivismo).
No entanto, o tribunal decidiu em termos opostos (jusnaturalismo): a lei positiva era contrária “à sã consciência e
ao sentido de justiça de todos os seres humanos decentes” e, por isso, era inválida. A mulher foi, portanto,
condenada.

28
- Hart criticou a decisão do tribunal, de um ponto de vista positivista. Fuller
respondeu, posicionando-se a favor do jusnaturalismo. Importa, no entanto, apontar
que tanto um como outro reconhecem a existência de valores e critérios
supralegais, que devem servir para ajudar o Homem a decidir se há-de obedecer ou
não a uma determinada lei. O ponto em que eles divergem é o seguinte: Fuller
acredita no Direito Natural, deduzindo dele a invalidade jurídica das leis imorais,
extraindo daí a legitimidade da sua desobediência. Já Hart não acredita no Direito
Natural, considerando juridicamente válida qualquer norma produzida de acordo
com as regras estipuladas para se elaborar leis, independentemente do seu
conteúdo, sendo, portanto, obrigatória a sua obediência. Coloca, assim, a tónica,
não em termos jurídicos, mas em termos políticos, ou seja, o combate às leis
imorais e injustas deve ser feito politicamente e não juridicamente.
Em suma, a legitimidade do Direito natural foi modificando ao longo do tempo:

● 1ª fase (Grécia Antiga): natureza humana.


● 2ª fase (Idade Média): vontade de Deus.
● 3ª fase (Iluminismo): Razão.
● Mais recentemente: voltou a pôr-se a tónica na natureza humana.

Razões que Freitas do Amaral aponta para defender o jusnaturalismo:


Desde sempre se afirmou defensor do jusnaturalismo – cristão, quanto ao
fundamento, e liberal, quanto ao conteúdo. No entanto, atualmente, nas suas
palavras, “o problema tem de ser visto, em parte, a outra luz, porquanto, por um
lado, vivemos constitucionalmente num Estado laico e, por outro, somos, também
por força da Constituição, um Estado social”.

1. “Uma boa parte dos valores humanos supralegais que permitem aferir da
legitimidade ou ilegitimidade do Direito positivo são valores jurídicos” e, por
isso, esse juízo de legitimidade deve caber ao Direito e não à política. Ora,
rejeitando o Direito natural, teria necessariamente que se fazer esse juízo
com recurso à política, porque nada mais haveria dentro do Direito. Não deve
ser a política a dizer o que é lícito ou não para o Direito, mas sim o
próprio Direito. Para o Doutor Freitas do Amaral, os três valores
fundamentais do Direito, que dão corpo ao Direito natural, são a justiça, a
segurança e a dignidade da pessoa humana (proteção dos direitos
humanos).

2. “Só o Direito natural nos permite avaliar juridicamente a validade ou


invalidade de uma Revolução”. Uma revolução, de acordo com o Direito
positivo, é sempre um crime.

Portanto, Freitas do Amaral pergunta: “Como é que justifico que uma


revolução que triunfa (sendo um crime) possa legitimamente substituir
toda uma ordem jurídica por outra?”

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Resposta dos juspositivistas: o Direito vigente tem como fundamento o
reconhecimento da comunidade a que se aplica, ou seja, depende da adesão da
comunidade.
Só que esta resposta falha em 2 dimensões: nada nos diz que a
comunidade vá aderir ao regime pós-revolução (ex: ISIS – não houve adesão da
comunidade, foi-lhe imposto) e, além disso, a comunidade podia ter aderido ao
regime que foi derrubado pela revolução.
Já o Direito natural dá essa resposta: se o regime que foi derrubado pela
revolução era ilegítimo (contrário ao Direito Natural), a revolução é legítima
porque, apesar de quem o derrubou ter violado o direito positivo, repõe o Direito
Natural. Na situação oposta, a revolução é ilegítima.

3. “O jus naturalismo tem a vantagem de, no plano da paz social, permitir


conduzir o combate às leis injustas dentro do aparelho judicial”, ou seja, nos
tribunais, enquanto o positivismo não tem armas jurídicas para efetuar essa luta,
reduzindo-se apenas ao plano político.

Ao longo do tempo, tem-se colocado a pergunta:


“O Direito Natural é um Direito imutável ou influenciado pela cultura?”

➔ Durante muito tempo, defendeu-se que o Direito Natural é imutável.

➔ Na atualidade, a grande maioria dos autores admite que o Direito Natural é


influenciado pela cultura da sociedade concreta onde é suscitado. No
entanto, existe um núcleo essencial assente na proteção da dignidade
humana, esse sim constante ao longo do tempo (imutável).

Dr. Freitas do Amaral define esse núcleo essencial como sendo constituído por
“todos os valores, normas e princípios que tenham a ver com o respeito devido à
dignidade da pessoa humana, na sua tripla dimensão política, económica e social”.
Nota: A metáfora normalmente utilizada é a lógica de pêndulo – há princípios
fundamentais comuns a todos os tempos e locais (têm um ponto fixo comum), que é
proteção da dignidade da pessoa humana, mas as suas concretizações vão
variando em função da cultura.

➔ A doutrina tem avançado no sentido de dizer que esta querela, na atualidade,


não tem o mesmo impacto que tinha antigamente. Após a 2ª Guerra Mundial,
deu-se uma crescente positivação do Direito natural (ex: CRP – direitos
fundamentais; DUDH; Direito penal; etc). Por isso, na prática, as posições
dos jusnaturalistas e dos juspositivistas acabam por se encontrar. No entanto,
não deixa de ser importante ter o Direito Natural em mente, pois são várias
as questões atuais que interferem com esta problemática.

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Nota: Querela – discussão/divergência

II. Ramos do Direito


Bibliografia do ponto 2:
- Oliveira Ascensão – páginas 333 a 361
- Freitas do Amaral – páginas 213 a 340
Introdução
A ordem jurídica é una, mas o seu estudo impõe demarcações de setores –
ramos do Direito. Freitas do Amaral concebe o Direito objetivo como uma árvore,
que representa o conjunto da ordem jurídica; o tronco é constituído pelos valores
jurídicos superiores e pelos princípios gerais comuns a todos os ramos do Direito;
os ramos são, por sua vez, as várias partes ou divisões do direito objetivo,
diferenciadas em função da matéria regulada pelas normas jurídicas.
A divisão em ramos de Direito é uma divisão que vem da ciência jurídica, foi
criada por quem faz doutrina jurídica (ou seja, Direito enquanto ciência jurídica), não
para separar o Direito em compartimentos estanques, sem ligação uns com os
outros, mas sim para ser mais fácil estudar. Isto porque é impossível uma pessoa
conhecer a totalidade das normas jurídicas. O que se fez foi criar divisões que
permitissem agrupar as normas jurídicas com base em critérios de afinidade entre
elas, assim tornando mais acessível a compreensão do sistema jurídico como um
todo. Esta necessidade cedo se fez sentir, com a divisão, em Roma, de toda a
ordem jurídica em Direito Público e Direito Privado.
No entanto, importa apontar que, na prática, os problemas jurídicos aparecem
como problemas da vida real, cuja solução passa inevitavelmente pela combinação
de vários ramos do Direito.

Direito Público vs. Direito Privado


A principal divisão que existe dentro do sistema jurídico (a “summa divisio”) é
a que opõe o Direito público ao Direito privado.
São tradicionalmente apresentados 3 critérios de distinção entre Direito
público e Direito privado:

■ Critério do interesse – parte da célebre frase de Ulpiano que, traduzida, diz


“o Direito público é aquele que respeita à República romana; o direito privado
é o que importa à utilidade dos particulares”.
Segundo este critério, o Direito público visa a satisfação dos interesses
públicos (interesses do Estado ou de um ente público menor) e o Direito
privado a satisfação dos interesses privados (interesses individuais ou de

31
entidades particulares). Relativamente a este critério, e pelas razões de
seguida mencionadas, Oliveira Ascensão considera este critério
insustentável, ao passo que Freitas do Amaral considera que continua a ser
adequado na maioria dos casos, mas há exceções. Ambos tecem uma crítica
ao mesmo:

Crítica: Não existe uma divisão rígida entre o que é interesse público e privado. O
interesse público promove interesses privados de cada cidadão e o interesse
privado é protegido porque existe um interesse público nesse sentido. Há normas de
direito público que protegem a realização dos interesses particulares, bem como
normas há que visam proteger, na esfera da vida privada dos particulares, certos
interesses públicos.

Para tentar salvar este critério introduziu-se uma correção: o Direito público
promove predominantemente interesses públicos e o Direito privado promove
predominantemente interesses privados. Mas, como diz Oliveira Ascensão,
introduzir um juízo de predominância num critério que tem como objetivo facilitar a
realidade, cria insegurança e incerteza. Portanto, não serve, é insuficiente. E, por
isso, avança-se para um segundo critério.

■ Critério da qualidade dos sujeitos – segundo este critério, é público o


Direito que regule situações em que intervém o Estado ou qualquer ente
público e é privado o Direito que regule as situações dos particulares
(indivíduos ou pessoas coletivas privadas). Mais uma vez, Oliveira
Ascensão não aceita este critério, ao contrário de Freitas do Amaral que diz
que é aplicável na maioria dos casos, mas há exceções. Surge, portanto, a
crítica ao critério:

Crítica: Há situações em que o Estado e os demais entes públicos atuam como


meros particulares, decidindo atuar ao abrigo de normas de Direito Civil. Como diz
Oliveira Ascensão, não é pelo facto de os entes públicos celebrarem compras e
vendas, por exemplo, que as regras aplicadas deixam de ser Direito Privado. Este
critério é, pois, insuficiente para determinar a distinção entre estes dois grandes
ramos do Direito.
Exemplo: o motorista do PM António Costa, quando abastece o carro do Governo
numa bomba de gasolina, sem qualquer tipo de poder extra por ser o carro do
Governo.

■ Critério da posição dos sujeitos (critério adotado) – Nas palavras de


Oliveira Ascensão, o Direito público constitui e organiza o Estado e outros
entes públicos e as relações entre eles no exercício das suas funções
públicas e também regula as relações entre os entes públicos e os
particulares, quando os entes públicos atuam dotados do seu poder de
império (ius imperii). O Direito privado regula as relações entre os particulares
e entre estes e os entes públicos, quando os entes públicos atuam

32
despojados do seu poder de autoridade (como lhe chama Freitas do
Amaral) ou poder de império (relação de paridade entre as partes em termos
de poder).
Exemplo: Expropriação de um terreno – Direito Público
Compra de um terreno – Direito Privado

A partir daqui, Freitas do Amaral define estes dois ramos do Direito da seguinte
maneira:
Direito Público – “sistema de normas jurídicas que, tendo em vista a prossecução
de um interesse coletivo, conferem, para esse efeito, a um dos sujeitos da relação
jurídica poderes de autoridade sobre o outro”.
Direito Privado – “sistema de normas jurídicas que, visando regular a vida privada
das pessoas, não conferem a nenhuma delas poderes de autoridade sobre as
outras, mesmo quando pretendem proteger um interesse público considerado
relevante”.
Nota: Freitas do Amaral – Tem havido dois movimentos de sentido contrário que
aproximam, e até sobrepõem, os dois ramos: a publicização do direito privado e a
privatização do direito público. Esta aproximação entre eles faz com que, por vezes,
uma mesma situação seja simultaneamente regulada por normas de direito público
e de direito privado.
Segundo Oliveira Ascensão:
Ramos do Direito: setores da ordem jurídica compostos por conjuntos de normas
delimitadas segundo o seu conteúdo. O conteúdo de cada ramo do Direito é
estruturado por intermédio de princípios gerais próprios que lhe conferem
identidade.

No entanto, há ramos do Direito que, por não respeitarem as


fronteiras do Estado, não podem ser classificados nem como
Direito Público nem como Direito Privado:

Direito Internacional Público – Este ramo do Direito vive atualmente um período


de rápidas transformações que tornam difícil a demarcação de contornos. A noção
clássica de DIP é o que regula as relações entre os Estados (soberanos,
logicamente).
Segundo Freitas do Amaral, é “ramo do Direito constituído pelo sistema de
normas jurídicas que se aplicam a todos os membros da comunidade internacional
para regular os assuntos específicos desta, a fim de garantir os fins próprios da
referida comunidade nas matérias da sua competência”.

33
No entanto, esta conceção deixa de parte outros sujeitos de DIP (como as
organizações internacionais) e, além disso, assiste-se atualmente a uma evolução
no sentido de abranger os próprios indivíduos como sujeitos de Direito Internacional.
Isto porque há normas que têm por objeto direto as condutas dos indivíduos (ex:
criminosos de guerra OU o próprio recurso a tribunais internacionais pelos sujeitos
individuais).
Oliveira Ascensão entende que DIP não pode ser considerado nem Direito
Público, nem Direito Privado, uma vez que esta divisão centra-se no âmbito interno
dos Estados. As relações regidas por ele não são de subordinação, mas de
coordenação, pois os sujeitos regulados por ele são entidades soberanas.
Direito da União Europeia – segundo Freitas do Amaral, é o “sistema de normas
jurídicas que regulam a organização e o funcionamento da União Europeia, bem
como os direitos fundamentais dos cidadãos europeus, a fim de prosseguir a
gradual integração política, económica e monetária dos seus países membros, os
quais convencionam para o efeito o exercício em comum dos poderes necessários à
construção da unidade europeia”.
Dentro das fontes de Direito da UE, existem 2 tipos:
- Direito originário – constituído pelos tratados da União Europeia, o segmento do
DIP (Roma, Maastricht, etc).
- Direito derivado – normas jurídicas produzidas pelos órgãos da União Europeia.
São Direito interno da UE, sendo supranacional face aos países (ex: regulamentos e
diretivas).
Direito dos organismos intermédios (segundo Oliveira Ascensão) / Direito
corporativo (segundo outros autores) – ramo do Direito que congrega as normas
jurídicas infraestaduais criadas por ordens institucionais menores, que têm uma vida
jurídica autónoma em relação à vida do Estado (porque não estão em causa normas
infraestaduais com origem na administração pública, como os municípios, mas sim
normas criadas por organismos que representam diferentes categorias morais,
culturais, económicas ou profissionais – artigo 1º nº2 do Código Civil). É um poder
originário (não deriva do Estado) e abrange as normas que regulam a constituição,
estrutura e funcionamento dos organismos corporativos, sejam elas de origem
infraestadual ou estadual, bem como as normas criadas por esses organismos ao
abrigo do seu poder jurisgénico (poder de criar Direito).
Exemplo: Ordem dos advogados; Ordem dos médicos; Direito do desporto é um
dos maiores exemplos.

Ramos do Direito Público


Nota inicial: Todos os ramos do Direito de seguida enunciados constituem os
principais a saber, mas cada vez são mais as ramificações da árvore definida por
Freitas do Amaral daquela que é a ordem jurídica portuguesa.

34
Direito Constitucional – segundo Freitas do Amaral, é o sistema de normas
jurídicas que regulam a organização e o funcionamento dos poderes do Estado,
asseguram a proteção da constitucionalidade das leis e dos direitos fundamentais,
definem as tarefas essenciais do Estado e os principais objetivos da governação
pública. Ocupa o lugar central, pois é ele que caracteriza o Estado como detentor do
poder soberano. No entanto, apesar de a maioria das normas constitucionais
estarem presentes na Constituição, há normas constitucionais que não estão lá
previstas, mas sim dispersas por leis avulsas (ex: lei do Tribunal Constitucional, lei
da nacionalidade, o regimento da Assembleia da República, etc).
Direito Administrativo – segundo Oliveira Ascensão, é o sistema que regula a
organização e atividade dos órgãos da administração pública enquanto tais na
prossecução de interesses coletivos, bem como a atividade de outros entes públicos
também na prossecução de interesses coletivos. A doutrina costuma discutir muito a
questão de saber distinguir o Direito Administrativo do Direito Constitucional.
Direito Tributário – segundo Freitas do Amaral, é um sistema de normas que
regulam a administração das receitas públicas (conseguidas através de taxas e
impostos), estabelecendo os direitos e garantias das entidades públicas e os direitos
dos particulares no que concerne a irregularidades cometidas nessa atividade.
O autor aponta-o como sub-ramo do Direito Administrativo, pois é constituído por
normas que estabelecem poderes de autoridade do Estado e dos entes públicos
menores sobre os particulares, bem como deveres, encargos e sujeições dos
últimos perante os primeiros, assim como é também constituído por normas que
impõem limitações, restrições e encargos de direito público aos entes públicos. No
entanto, este ramo autonomizou-se.
Direito Fiscal – segundo Freitas do Amaral, é um sistema de normas jurídicas que
definem impostos e o seu montante a pagar pelos cidadãos e pelas empresas ao
Estado e aos entes públicos menores. Além disso, protege/salvaguarda os direitos
dos contribuintes perante a administração tributária e vice-versa. É um sub-ramo do
Direito Tributário.
Direito Penal – segundo Freitas do Amaral, é o conjunto das normas jurídicas que
qualificam os factos ilícitos de maior gravidade social como crimes e estabelecem
para eles as penas e medidas de segurança tidas como adequadas. É um ramo
particularmente sensível ao modelo político que vigora no país e aos respetivos
princípios constitucionais. Nos Estados democráticos, em caso de dúvida, adota a
regra de que “mais vale não condenar um culpado do que condenar um inocente” (in
dubio pro reo). Não é o arguido que tem de provar em tribunal a sua inocência, mas
a acusação pública tem que mostrar que ele é culpado.
Nota: Oliveira Ascensão é o único autor em Portugal que defende que o Direito
Penal é um ramo do Direito Privado, justificando que os deveres penais são deveres
dos indivíduos e a aplicação das penas em termos judiciais não implica que o Direito
Penal regule a atividade do Estado.

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Maioria da doutrina: o que está em causa é a conduta do sujeito para com a
sociedade como um todo, que é representada pelo Estado, através do Ministério
Público.
Por causa do peso do Direito Penal, ele obedece a um princípio estrito de
tipicidade ou legalidade, o que significa que só há crimes se houver previsão legal
anterior nesse sentido e a aplicação da pena também depende de uma previsão
legal anterior. Isto porque, como a consequência do Direito Penal é tão grave, tem
de haver sempre uma norma a prevê-la para que possa ser aplicada. E por esta
razão, é absolutamente proibida a analogia de normas penais incriminadoras.
As sanções criminais são penas e medidas de segurança. Existem 2 tipos
de penas principais – a prisão e a multa. As medidas de segurança aplicam-se
quando o agente é considerado inimputável, ou seja, alguém que não consegue
avaliar a ilicitude da conduta ou não consegue agir de acordo com essa avaliação.
Nota: A multa é uma sanção exclusiva do Direito Penal. Relaciona-se com a
privação do património, ou seja, elementos do património são confiscados (no caso
da multa, é o dinheiro).
Direito de Mera Ordenação Social – segundo Freitas do Amaral, regula os atos
ilícitos de menor gravidade social por comparação com o Direito Penal, qualificando-
os como “contraordenações”, e estabelece sanções pecuniárias designadas por
coimas. Há, na doutrina, quem defenda que o Direito de Mera Ordenação Social é
um sub-ramo especial do Direito Penal, mas Freitas do Amaral não concorda,
advogando que este segundo é caracterizado pelo binómio crime-pena, aplicada por
um tribunal, para os factos ilícitos de elevada gravidade social e, no primeiro, não há
nem crimes, nem penas, nem factos ilícitos de forte gravidade social, sendo que as
coimas são aplicadas por um órgão administrativo.

Nota: Multa ≠ Coima: São ambas em dinheiro, mas a multa é uma sanção penal,
enquanto a coima é uma sanção contraordenacional.
Direito Processual – segundo Oliveira Ascensão, disciplina a atividade dos juízes
na solução dos casos que lhe são apresentados. Diz-se que é direito adjetivo,
porque é instrumental face aos restantes ramos do direito que se designam por
substantivos (diz qual é a tramitação a seguir para resolver as situações, mas não
dá soluções para problemas jurídicos concretos). É muitas vezes ajustado ao ramo
do direito substantivo, sendo que, em princípio, a cada ramo de direito substantivo
corresponde um ramo adjetivo que lhe dá realização. Até agora, este
desenvolvimento já foi consolidado nos 2 seguintes sub-ramos:

■ Direito Processual Civil – segundo Oliveira Ascensão, abrange o processo


relativo a todos os ramos do Direito Privado que não lhe foram subtraídos, ou
seja, aplica-se sempre que não há um processo especial em todos os ramos
do Direito Privado – é um processo dispositivo, ou seja, encontra-se na

36
disponibilidade das partes (é o autor que decide se intenta a ação ou não e o
réu se contesta ou não a ação; as partes definem que provas apresentam, o
que alegam, se chegam ou não a acordo, etc). No entanto, o juiz não está
numa posição passiva, cabendo-lhe assegurar que o processo chegue
efetivamente à descoberta da verdade.

Nota: Ónus da contestação – se um réu ignorar uma petição inicial e não contestar
dentro do prazo, os dados elencados na petição inicial são dados como aceites por
acordo.
Sentença – proferida por apenas 1 juiz.
Acórdão – proferido por 3 ou mais juízes.
Dentro do processo civil, é possível distinguir:

● Processo declarativo – visa essencialmente tornar certo um direito, ou seja,


define qual o direito das partes (através da sentença).

● Processo executivo – o objetivo é dar realização efetiva ao direito declarado.


Para haver processo executivo, o autor tem que ser titular de um título
executivo (ex: sentença; cheque; ata do condomínio; etc).

■ Direito Processual Penal – abrange o processo relativo ao Direito Penal e


ao Direito de Mera Ordenação Social. Em regra, está afastado do Direito
Penal o princípio do dispositivo. As partes do processo penal, em regra, são o
Ministério Público, em representação da comunidade, e o arguido. A pessoa
ofendida (vítima) pode constituir-se assistente no processo. Em processo
penal, a não contradição dos factos não os torna válidos, uma vez que o
silêncio do arguido é um direito e daí não se retira prova nenhuma.

Existem 3 tipos de crimes em processo penal:

● Públicos – não depende de queixa nem de dedução de acusação.


Ex: violência doméstica: mesmo que a pessoa não queira apresentar queixa,
o caso vai a julgamento na mesma.
● Semipúblicos – depende de queixa, mas não depende de acusação
particular.
● Particulares – dependem de acusação particular. Ex: agressão

O fundamental em processo penal é o princípio do contraditório, o que


significa que o réu tem os mesmos poderes processuais que a acusação. Isto é
muito importante, porque toda a prova tem de ser produzida ou reproduzida em
julgamento para que aí possa ser debatida.
Nota: Queixa – dá à polícia conhecimento do crime.
Acusação – exige ida a tribunal.

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Ramos do Direito Privado
Nota inicial: Todos os ramos do Direito de seguida enunciados constituem os
principais a saber, mas cada vez são mais as ramificações da árvore definida por
Freitas do Amaral daquela que é a ordem jurídica portuguesa.
Direito Civil – considerado o tronco do Direito Privado, é designado habitualmente
como o Direito Privado comum, por regular os setores de que todos participam.
Segundo Oliveira Ascensão, disciplina a vida das pessoas comuns, abstraindo de
qualificações especiais. Provavelmente é o mais antigo ramo do direito, sendo, por
isso, o que foi mais cultivado, trabalhado e construído. Como diz Freitas do
Amaral, “o Direito Civil cobre com o seu manto regulador toda a vida privada dos
indivíduos, desde o berço até ao túmulo”, além de regular, também, as diferentes
maneiras de organização coletiva de grupos de indivíduos. A sua principal
codificação no ordenamento jurídico português é o Código Civil. Quase todas suas
normas constam nesta codificação, mas também há normas avulsas que regulam
matéria civil.
Tendo por base a classificação germânica, é constituído por 5 livros – Parte
geral; Direito das obrigações; Direito das coisas; Direito da família; Direito das
sucessões.

■ Direito das Obrigações – segundo Oliveira Ascensão, regula as situações


pelas quais uma pessoa fica vinculada para com outra à realização de uma
prestação, ou seja, a adotar um comportamento para satisfação de um
interesse de outrem. Àquele que está vinculado ao comportamento designa-
se devedor e o que tem o direito ao comportamento designa-se credor. As
obrigações têm um caráter dinâmico (estão mais ligadas às transferências de
bens e à prestação de serviços).

■ Direitos Reais / Direito das Coisas – segundo Oliveira Ascensão, regula a


atribuição das coisas de tal modo que uma pessoa fica com um direito
oponível a terceiros que lhe dá possibilidade de tirar vantagem da coisa. O
direito real por excelência é o direito de propriedade (usucapião). Os direitos
reais têm um caráter estático (regulam a atribuição de bens).

Nota: a usucapião surge nos direitos reais, porque gera um direito real de
propriedade por aquisição originária.

■ Direito da Família – segundo Oliveira Ascensão, regula a constituição da


família e as relações que se estabelecem no seu seio. As relações familiares
advêm de 3 factos: casamento, procriação e adoção. Família será, por isso,
um conjunto de pessoas ligadas por um vínculo conjugal, pelo parentesco,

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pela afinidade (relação que um cônjuge tem com os familiares do outro
cônjuge) e pela adoção.

Nota: A 3 factos correspondem 4 vínculos, porque o casamento gera afinidade e


parentesco.

■ Direito das Sucessões – regula a sucessão por morte. Há várias espécies


de sucessão, dependendo do título pelo qual os sucessores são chamados:
➢ Testamentária – deferida por testamento;
➢ Legitimária – é obrigatória; deferida quando há ascendentes,
descendentes e cônjuge (os herdeiros legitimários são aqueles que
não podem ser afastados da herança, mesmo que essa seja a vontade
do autor da sucessão – ex: um filho, em Portugal, não pode ser
afastado da herança);
➢ Legítima – deferida a familiares, quando não há herdeiros legitimários
nem testamento ou quando o autor da sucessão não tenha
manifestado por testamento outra vontade.

A par do Direito Civil há um conjunto de outros ramos do Direito Privado


que se foram autonomizando do Direito Civil:
Direito comercial – segundo Freitas do Amaral, é o “sistema de normas jurídicas
que regulam o estatuto dos comerciantes e o regime dos atos e atividades de
comércio”. Surgiu da adaptação das regras do Direito Civil às especificidades da
atividade comercial.
Exemplo: a necessidade de celeridade da atividade económica (as relações
comerciais têm que ser rápidas);
A finalidade lucrativa;
O reforço do crédito;
A proteção acrescida do credor;
O profissionalismo (atividade caracterizada por pelo menos uma das partes atuar no
âmbito profissional);
A boa-fé.
No fundo o seu objetivo é dar fluidez às relações económicas. Regula o
comércio em sentido económico, a indústria, as pescas, algumas atividades de
prestação de serviços (banca, serviços diversos, transportes de pessoas e bens) e
atos e documentos de formalização tanto de operações comerciais como de
negócios jurídicos civis (letras, livranças, cheques, etc).
Nota:

● Cada vez mais, o Direito Comercial é Direito Empresarial (apesar de não


haver uma total coincidência entre o comércio e a empresa).
● O conceito de comércio em Direito é muito mais amplo do que em Economia.

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Direito do Trabalho – segundo Oliveira Ascensão, é um Direito Privado especial,
pois também especializa os princípios gerais do Direito Civil (sobretudo do Direito
das Obrigações), adequando-os às especificidades das relações de trabalho
subordinado. Por causa da existência deste elemento de subordinação do
trabalhador às ordens do empregador e por causa da especial proteção do
trabalhador que caracteriza este ramo do Direito, muitos autores entendem que o
direito do trabalho não é um ramo do Direito Privado, mas sim do Direito Misto
(abrange uma dimensão do Direito Privado e uma dimensão do Direito Público),
porque se assume que não há igualdade entre as partes na relação laboral (o
trabalhador está em desvantagem face ao empregador).
Há duas grandes dimensões no direito do trabalho:

● O direito individual do trabalho – constituído pelas normas que regulam a


relação entre o trabalhador e o empregador, através do contrato de trabalho,
definido pela nossa lei no artigo 1152º do Código Civil.
● O direito coletivo do trabalho – constituído pelas normas que regulam os
fenómenos laborais de massa, como, por exemplo, a greve, as convenções
coletivas de trabalho, associações sindicais, associações patronais, etc.

Direito Internacional Privado – segundo Freitas do Amaral, é o sistema de


normas jurídicas que, na ausência de regulação direta do conteúdo das relações
privadas internacionais, designam qual a lei competente (nacional ou estrangeira)
para regular essas relações. Daí que se diga que o Direito Internacional Privado se
designa também Direito dos Conflitos. Não é função do Direito Internacional Privado
resolver situações da vida real, mas apenas identificar qual a legislação (lei
competente), nacional ou estrangeira, que irá dar essa resposta (que regulará essa
situação). O objetivo principal do Direito Internacional Privado não é promover a
aplicação preferencial da nossa própria lei, mas procurar encontrar, para cada tipo
de situação privada internacional, a lei que melhor puder corresponder às
expectativas fundadas das partes em conflito, ou a lei que se mostrar capaz de
fornecer uma solução mais justa e adequada para o litígio.
Exemplo: A, nacional de um país cuja lei civil admite o divórcio, casa com B,
cidadão de um Estado que proíbe o divórcio. Suponhamos que vieram entretanto
viver para Portugal e que A propõe contra B uma ação de divórcio. Como é que o
tribunal português deve decidir? É nestas situações, em que há várias leis a
quererem aplicar-se ao caso, que atuam as normas de Direito Internacional Privado
no nosso CC – ver o artigo 52º do CC.
Direito da Propriedade Intelectual – abrange:

■ Direito de Autor – segundo Freitas do Amaral, disciplina os direitos dos


criadores sobre as suas obras científicas, literárias e artísticas, bem como os
direitos dos artistas que interpretam ou executam aquelas obras.
■ Direito Industrial – segundo Freitas do Amaral, atribui direitos exclusivos
aos criadores de modelos originais de utilidade para a indústria

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Exemplos: Patente (Direito Industrial por excelência, pois é um direito
exclusivo que se obtém sobre invenções); Marcas; Denominações de origem.

Ramos do direito emergentes


Existe uma tendência na atualidade de autonomizar outros ramos do Direito,
como, por exemplo:

● Direito bancário (âmbito comercial);


● Direito dos seguros (âmbito comercial);
● Direito do consumo (âmbito económico);
● Direito da concorrência (âmbito económico).

III. A Norma Jurídica

A norma jurídica equivale ao átomo do Direito. É uma partícula de atuação.


Segundo o Dr. Oliveira Ascensão, a norma jurídica é “o critério de qualificação e
decisão de casos concretos e opera como mediadora na aplicação do Direito às
situações concretas da vida”. Ou seja, é uma mediadora para os juristas na
resolução de casos concretos.
É importante ressalvar que, embora a maioria das normas jurídicas sejam normas
de conduta, nem sempre é assim. É o caso, por exemplo, das normas meramente
qualificativas, que delimitam e qualificam os elementos com que a ordem jurídica
trabalha. Por exemplo, as regras são personalidade jurídica, não são as regras de
conduta ou as regras que qualificam as coisas. Outro exemplo de normas jurídicas
que não são regras de conduta são as normas sobre normas. Por exemplo, uma
norma cujo conteúdo é a revogação de uma norma anterior.

Uma norma jurídica é constituída por dois elementos:

● Previsão → Também se dá o nome de hipótese legal ou facti-species.


É a situação típica da vida cuja verificação em concreto desencadeia a
consequência jurídica fixada na estatuição. Segundo o Dr. Batista
Machado, “procura dar uma imagem, visualização ou modelo daquele
facto que produz a consequência.”

● Estatuição → É a consequência jurídica a que se associa a verificação


da previsão. Ou seja, a previsão é a situação da vida a que se aplica a
norma, a estatuição é a consequência jurídica em caso daquela
situação concreta efetivamente ocorrer.

41
Ex: art. 283º do CC: Todo aquele que ilícita e culposamente causar
danos a outrem (previsão), fica obrigado a indemnizar o lesado
(estatuição).

Facto Jurídico - É todo o acontecimento natural ou humano suscetível de produzir


efeitos jurídicos. Nas palavras do Dr. Oliveira Ascensão, o facto é “o elemento
dinamizador da ordem jurídica, porque altera as situações existentes, provocando
efeitos de Direito.”
Estes efeitos traduzem-se na constituição, modificação ou extinção de situações
jurídicas. Não são factos jurídicos os acontecimentos naturais ou humanos
indiferentes para o Direito (ex: convidar alguém para passear ou usar um vestido de
determinada cor). Portanto, todos os factos que não produzam efeitos de Direito não
são factos jurídicos. No entanto, mesmo um facto natural ascende à categoria de
facto jurídico se produzir efeitos de Direito como, por exemplo, uma tempestade que
fez naufragar um navio.

Situação Jurídica - Posição em que o sujeito jurídico se acha perante o Direito.

Relação Jurídica - Na sua face externa, corresponde à relação social disciplinada


pelo Direito. Internamente, consiste no laço que une um poder a uma vinculação, ou
seja, na relação jurídica, ao dever de um ou mais sujeitos. Com frequência, a
ocorrência de um facto jurídico faz nascer, modificar ou extinguir relações jurídicas,
porque é criada uma relação jurídica, a filiação. O divórcio é um facto jurídico
porque é criada uma relação jurídica, a extinção. É possível que, na ocorrência de
um facto jurídico, não resulte qualquer impacto para uma relação jurídica, mas
apenas a aquisição de uma qualidade jurídica (ex: a aquisição de personalidade
jurídica).
Nota: factos jurídicos, situação jurídica e relação jurídica são conteúdos da previsão.
Uma previsão pode conter um facto jurídico, uma situação jurídica ou uma relação
jurídica, sendo que o facto jurídico pode dar origem a uma situação ou relação
jurídica.

Nos factos jurídicos temos duas possíveis categorias: os puros factos jurídicos e os
atos jurídicos:

○ Puros factos jurídicos - São estranhos a qualquer processo


volitivo/voluntário, seja porque resultam de causas naturais, seja
porque a sua eventual voluntariedade não tem relevância jurídica, ou
seja, é irrelevante para o Direito se eles são voluntários ou não. Ex: o
nascimento (o Direito não quer saber se a mãe quer que a criança
nasça ou não), a morte (raramente é voluntária), relações de
vizinhança, decurso do tempo ou factos naturais como um temporal.

42
○ Atos Jurídicos - Resultam da vontade como elemento jurídico
relevante, ou seja, são tratados pelo Direito enquanto manifestação ou
atuação de uma vontade.
Dentro dos atos jurídicos distinguem-se os simples atos jurídicos dos
negócios jurídicos. Esta distinção tem como critério a relação que se
estabelece entre a vontade das partes dirigida a um resultado e o
resultado jurídico. O que está em causa é saber se existe ou não
coincidência entre a vontade das partes dirigida a um determinado
resultado e o resultado jurídico efetivamente produzido.

Simples atos jurídicos → São factos voluntários cujos efeitos se


produzem independentemente de terem sido previstos ou queridos
pelos seus autores. Produzem-se ex legem, por força da lei, e não ex
voluntate. Ex: fixação do domicílio voluntário, criação de uma obra
literária, interpelação do devedor para cumprir. São exemplos de atos
que são voluntários, mas os efeitos são os que estão fixados na lei,
quer eu queira quer não.
Dentro dos simples atos jurídicos distinguem-se os quase negócios
jurídicos e os atos reais.

Os quase negócios jurídicos também são chamados atos jurídicos


quase negociais. Traduzem-se na manifestação exterior de uma
vontade. É o caso de interpelar o devedor para cumprir.
Os atos reais também se chamam operações jurídicas. Traduzem-se
na efetivação ou realização de um resultado material ou factual a que
a lei liga determinados efeitos jurídicos. É o exemplo da criação de
uma obra.

Negócios jurídicos → São factos voluntários cujo núcleo essencial é


integrado por uma ou mais declarações de vontade a que o
ordenamento jurídico atribui efeitos jurídicos concordantes com o teor
das vontades manifestadas. No negócio jurídico produzem-se os
efeitos jurídicos desejados pelas partes. Produzem-se ex voluntate e
não ex legem. Ex: testamento, contrato de compra e venda, renúncia a
um direito. Em todos estes casos, eu pratico um ato voluntário com o
objetivo de que ele produza efeitos jurídicos que são por mim
desejados.
Dentro dos negócios jurídicos, distinguem-se os negócios jurídicos
unilaterais e os negócios jurídicos bilaterais. O critério de distinção
entre ambos assenta no número e no modo de articulação das
declarações de vontade que integram o negócio.

43
No caso dos negócios jurídicos unilaterais, eles são compostos por
uma só declaração de vontade ou por várias declarações de vontade,
mas todas no mesmo sentido, formando um único grupo. Ou seja,
existe só uma parte, ainda que composta por vários sujeitos. Ex: o
testamento (quando eu escrevo um testamento não há outra parte que
concorde), uma procuração ou uma renúncia a um direito.
Os negócios jurídicos bilaterais são chamados de contrato. São atos
jurídicos compostos por duas ou mais declarações de vontade, de
sentido oposto mas convergente, visando a produção de um resultado
jurídico unitário, coincidente com as vontades manifestadas. Ex:
compra e venda, arrendamento, empreitada.
Dentro dos negócios jurídicos bilaterais, é possível distinguir negócios
jurídicos bilaterais unilaterais (contrato unilateral ou não sinalagmático)
de negócios jurídicos bilaterais bilaterais (contrato bilateral ou
sinalagmático). O critério que pressupõe a distinção entre os contratos
unilaterais e os contratos bilaterais está relacionado com o número de
obrigações geradas pelo contrato e a sua titularidade.

Os contratos unilaterais/não sinalagmáticos geram apenas obrigações


para uma das partes. É o caso da doação.
Os contratos bilaterais/sinalagmáticos geram obrigações para ambas
as partes, e essas obrigações estão ligadas entre si por um nexo de
correspetividade, designado sinalagma. Isto significa que elas existem
uma em função e por causa da outra. Ex: compra e venda,
arrendamento.

Como já vimos, a estatuição corresponde à fixação da consequência jurídica a que


se associa a verificação da previsão. Os efeitos jurídicos possíveis associados a
uma estatuição são:

- Imposição de um dever jurídico


- Atribuição de um direito
- Atribuição de uma qualidade, competência ou faculdade jurídica

Por isso é que se diz que a norma jurídica ou obriga, ou faculta ou confere um
direito subjetivo.
Mas o que é um direito subjetivo?
Corresponde a um poder atribuído a uma determinada pessoa para satisfação de
um interesse próprio ou alheio, acompanhado da faculdade de dispor dos meios
coercitivos que protegem esse poder. Ao poder do sujeito ativo corresponde o
dever/obrigação do sujeito passivo.
Segundo Santos Justo, “o direito subjetivo é a faculdade ou poder, reconhecido pela
ordem jurídica a uma pessoa, de exigir ou pretender de outra um determinado

44
comportamento positivo (facere) ou negativo (non facere) ou de, por ato da sua livre
vontade, só de per si ou integrado por um ato da autoridade pública (decisão
judicial), produzir determinados efeitos jurídicos que inevitavelmente se impõem a
outra pessoa (adversário ou contraparte).”

1. A primeira categoria de direitos subjetivos é a que opõe os direitos subjetivos


em sentido estrito aos deveres jurídicos. Nesta categoria:

● Direito subjetivo em sentido estrito ⇨ É o poder de exigir ou pretender de


outrem que adote uma certa conduta positiva ou negativa para satisfação de
interesses próprios ou alheios.
● Dever jurídico ⇨ Corresponde à adstrição a adotar o comportamento
imposto pelo exercício do direito subjetivo, no interesse do titular desse
direito.

1.1. Direitos subjetivos absolutos ⇨ São eficazes perante todos os membros


da comunidade, ou seja, podem ser invocados pelo seu titular contra qualquer outro
sujeito jurídico. Têm uma eficácia erga omnes, ou seja, uma eficácia contra todos -
todos estão obrigados a respeitar os direitos absolutos uns dos outros. Todas as
pessoas são obrigadas a respeitar esse direito - obrigação passiva universal = dever
geral de abstenção. Ex: direito à vida, à integridade física, de propriedade, entre
outros.

1.2. Direitos subjetivos relativos ⇨ Têm uma eficácia circunscrita a um dado


número de pessoas, só em face delas podendo ser invocadas, ou seja, só elas é
que estão obrigadas a respeitar esse direito. Daí se dizer que têm uma eficácia inter
partes, ou seja, só podem ser invocadas contra um determinado número de
pessoas. Ex: um contrato de arrendamento entre um estudante maior de idade e o
senhorio - o senhorio, em caso de o estudante não pagar a renda, não pode exigir
aos seus pais o pagamento, visto que o contrato foi feito entre o estudante maior de
idade e o senhorio (dever jurídico em sentido estrito).

2. A segunda categoria de direitos subjetivos é a que opõe o direito potestativo


ao estado de sujeição. Nesta categoria:

● Direito Potestativo ⇨ poder de, através de simples declaração de vontade,


integrada ou não por decisão judicial, produzir efeitos jurídicos na esfera do
sujeito passivo, sem que este possa fazer algo para o evitar. Enquanto no
direito subjetivo em sentido estrito o sujeito ativo precisa da colaboração do

45
sujeito passivo, no direito potestativo ele impõe o seu direito sem precisar da
colaboração do sujeito passivo. Quando o sujeito ativo tem um direito
potestativo, o sujeito passivo está em estado de sujeição, ou seja, tem de
suportar os efeitos que advêm do exercício do direito. Os direitos potestativos
podem ser constitutivos de relações jurídicas (ou seja, criar relações
jurídicas), modificativos de relações jurídicas (ou seja, alterar uma relação
jurídica pré existente) e podem ser extintivos de relações jurídicas (ex: o
divórcio litigioso, ou seja, mesmo que o outro cônjuge não se queira divorciar,
o sujeito ativo tem o direito de colocar o outro em situação de divorciado).

3. A terceira categoria de direitos subjetivos são os poderes funcionais, também


chamados poderes deveres e direitos de direção.

● Poderes funcionais ⇨ Nestes casos, o titular do direito não é livre de


exercer as inerentes faculdades ou poderes, estando também obrigado a
fazê-lo, porque estão também em causa interesses que não são apenas
seus. O Dr.
● Batista Machado chama-lhes “direitos funcionais ou direitos ligados ao
exercício duma função.” São direitos ligados ao exercício de uma função, e
devem ser exercidos segundo essa ligação. Ex: as responsabilidades
parentais ou o poder de direção do empresário que tem de ser exercido a
bem da empresa.

Figuras próximas de direitos subjetivos e deveres jurídicos, mas que não são nem
uma coisa nem outra, apenas se aproximam deles:

⇨ Ónus Jurídico - É próximo do dever jurídico. Consiste na observância de


um determinado comportamento prescrito por lei como condição para obter
uma certa vantagem, manter uma certa vantagem e não incorrer numa
desvantagem. Diferença entre ónus e dever jurídico: a violação de um dever
gera uma sanção, a violação de um ónus não, apenas poderá ter uma
consequência desvantajosa.

⇨ Mero Interesse Jurídico - Interesse tutelado pela ordem jurídica, a que não
corresponde um direito subjetivo, ou seja, o titular do interesse não tem o
poder de exigir ou pretender de outrem que adote os comportamentos
adequados à salvaguarda do seu interesse. Ex: a questão da vacinação
(tenho interesse que toda a gente seja vacinada, mas não posso obrigar
ninguém a sê-lo), boa conservação das estradas, entre outros. Segundo

46
Santos Justo, “falta-nos a faculdade ou o poder de exigir ou pretender esses
comportamentos que definem os direitos subjetivos.” O art. 483º do CC
abrange direitos absolutos e interesses legalmente protegidos, deixando de
fora os direitos relativos.

⇨ Faculdades em sentido estrito - São possibilidades de agir que a ordem


jurídica admite e garante sem, todavia, constituírem direitos subjetivos.
Podem traduzir-se em meros poderes naturais (ex: passear num jardim) ou
na possibilidade de fazer negócios jurídicos (ex: casar). A estas faculdades
dá-se o nome de faculdades primárias, por oposição às faculdades
secundárias, que são as que compõem o conteúdo de um direito subjetivo.

⇨ Direitos Reflexos - São posições jurídicas que são tuteladas por efeito de
especiais obrigações que oneram outras. Ex: posição dos filhos perante as
responsabilidades parentais dos pais.

⇨ Expectativa Jurídica - Situação em que se encontra uma pessoa que ainda


não tem o direito subjetivo, mas conta razoavelmente vir a tê-lo. Não é uma
simples esperança. É, segundo o professor Orlando Carvalho: “uma situação
intermédia mais ou menos consistente da esperança que o direito protege.”
Está em causa uma formação progressiva de um direito subjetivo, faltando
apenas uma condição para a sua materialização. Ex: expectativa que um filho
tem de vir a herdar o património do pai.

São três as características apontadas à norma jurídica: imperatividade, generalidade


e abstração.

● Imperatividade - É falso apontar a imperatividade como característica da


norma jurídica, pois há normas que não são normas de conduta. Todas as
normas que não são regras de conduta não gozam de imperatividade. Há
também normas que são regras de conduta mas que não obrigam nem
proíbem, apenas permitem/facultam.

● Generalidade e abstração - Ao contrário dos comandos individuais e


concretos, que não criam direito objetivo, as normas jurídicas são gerais e
abstratas. Geral opõe-se a individual, abstrato opõe-se a concreto.
- Generalidade: A norma jurídica dirige-se a uma generalidade mais ou menos
ampla de destinatários determinados.

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- Abstração: É abstrato o preceito que disciplina um número indeterminado de
casos e não casos ou hipóteses determinadas, ou seja, concretamente
visados.

Ambas são apontadas tendencialmente como características da norma


jurídica. “Tendencialmente”, porquê? Porque o Dr. Oliveira Ascensão rejeita a
abstração como característica da norma jurídica.
Generalidade não se confunde com pluralidade, são realidades diferentes.
Um preceito/uma regra pode ter como destinatários uma pluralidade de
pessoas e não ser geral. Da mesma maneira que é possível que a regra
tenha apenas um destinatário e seja geral. Portanto, o que está em causa
nas normas jurídicas não é a pluralidade, é a indeterminação. Os
destinatários são identificados com recurso a uma dada categoria abstrata ou
uma dada função.
Depois temos a abstração. É abstrato o preceito que disciplina ou regula um
número indeterminado de casos, ou seja, uma categoria mais ou menos
ampla de situações. Como assinala o Dr. Oliveira Ascensão, abstração não
significa que se refira apenas ao futuro. Uma norma jurídica pode aplicar-se a
situações já ocorridas. O que está em causa na abstração é ser uma
categoria de casos e não casos individualizados. Daí que o Dr. Batista
Machado diga que, na verdade, a abstração se reconduz também à
generalidade. No fundo, a abstração também está relacionada com a
generalidade. Ou seja, toda a norma deve ser geral no sentido de se destinar
a regular toda uma categoria de situações ou factos futuros e/ou presentes,
desde que a definição dessa categoria obedeça a critérios gerais e
objetivamente justificáveis. Ex: os sinais do polícia sinaleiro não são norma
jurídica, porque lhes falta generalidade e abstração, assim como uma
sentença de um tribunal e um contrato, pois apenas vinculam as partes.

Classificação de normas jurídicas

1ª classificação ☞ A que opõe as normas injuntivas/imperativas a normas


dispositivas.
Dentro das normas injuntivas/imperativas, temos as normas:
- Precetivas: são as que ordenam a adoção de uma dada conduta (ex: as
normas que nos obrigam a pagar impostos ou a circular pela direita).
- Proibitivas: são as que proíbem uma dada conduta (ex: normas que punem o
furto ou o homicídio).

Dentro das normas dispositivas, temos as normas:

48
- Permissivas: são aquelas que concedem poderes ou faculdades, deixando ao
titular a liberdade do seu exercício. Também se chamam normas facultativas,
normas de autorização ou normas concessivas.
- Interpretativas: neste contexto, correspondem àquelas disposições legais
cuja função é determinar o alcance e sentido imputáveis a certas expressões
ou certas condutas declarativas das partes em caso de dúvida.
- Supletivas: destinam-se a suprir a falta de manifestação de vontade das
partes sobre determinado ponto do negócio que carece de regulamentação.
Ou seja, são aquelas que podem ser afastadas por vontade das partes em
sentido distinto do seu conteúdo. Ex: comunhão de adquiridos, que é regime
de bens supletivos em Portugal, ou seja, é aquele que se aplica se as partes
não disserem algo diferente.
Mas como é que eu sei se uma norma é imperativa ou supletiva? Aquela norma é
obrigatória ou podem-na afastar se não a quiserem?
Muitas vezes, a própria norma dá a resposta. É muito frequente as normas
supletivas identificarem essa mesma supletividade, por exemplo, começando por
“salvo convenção em contrário” ou “salvo acordo em contrário”. Há casos, porém,
em que a norma nada diz. Nesse caso, identificar a natureza imperativa ou supletiva
da norma depende de um juízo de interpretação, tendo por base a própria norma e a
sua integração no sistema jurídico. O intérprete tem de avaliar se a norma é ou não
essencial à fisionomia daquele instituto e se pode ou não ser posta de parte sem
romper o equilíbrio de interesse fixado pelo legislador.

2ª classificação ☞ Normas universais, regionais e locais. Esta classificação reporta-


se ao âmbito de validade territorial da norma.
- Norma universal: aplica-se em todo o território do Estado.
- Norma regional: aplica-se numa dada região autónoma.
- Norma local: aplica-se apenas no território de uma autarquia local e pode ser
emanada por um órgão local mas também por um órgão central (ex: o
governo decretar um decreto lei sobre a região do Algarve). Isto é muito
importante, pois enquanto o direito emanado dos órgãos locais se aplica
apenas naquela circunscrição geográfica, o direito local, emanado por um
órgão central, pode ser usado para integrar lacunas de outras leis centrais ou
locais.

3ª classificação ☞ Opõe normas gerais, normas excessionais e normas especiais.


- Normas gerais: constituem o direito regra, ou seja, estabelecem o regime
regra para o setor de relações que regulam.
- Normas excessionais: limitam-se a uma parte restrita de um dado setor de
relações ou factos, consagrando nesse setor restrito, por razões privativas
dele, um regime oposto ao regime regra. Nos termos do art. 11º do CC, as
normas excessionais não podem ser aplicadas analogicamente.

49
- Normas especiais: não consagram uma disciplina diretamente oposta ao
regime regra, mas consagram uma disciplina nova ou diferente para círculos
mais restritos de pessoas, coisas ou relações, em função da sua
especificidade. Ou seja, elas não contrariam substancialmente o princípio
contido no regime regra, mas adaptam-no a um domínio particular. Enquanto
uma norma excessional não pode ser aplicada analogicamente, uma norma
especial pode.

4ª classificação ☞ Normas autónomas, normas não autónomas e proposições


jurídicas incompletas.
- Normas autónomas: são a regra.
- Normas não autónomas: são aquelas que, por si só, não têm um sentido
completo, faltando-lhes toda ou parte da hipótese ou toda ou parte da
estatuição, só o obtendo por remissão para outras normas. É o caso das
normas remissivas e o caso das normas que ampliam ou restringem o campo
de aplicação de normas anteriores.
- Proposições jurídicas incompletas: não chegam a ser verdadeiras normas
jurídicas. É o caso das classificações e das definições legais. São
disposições que se destinam a integrar as hipóteses globais de outras
normas ou a definir os conceitos normativos por estas utilizados.

Codificação

O legislador da Constituição é a Assembleia Constituinte; o legislador do Código


Civil é o Governo.
Um código é uma lei, igual a qualquer outra e com a mesma força, podendo ser
afastada por qualquer outra lei de igual valor. A codificação é uma lei material.
O Código Civil não é uma lei com mais valor do que qualquer outra lei avulsa.
Segundo Batista Machado, “na hierarquia das leis, o código tem a força própria da
lei que o aprova ou na qual está contido.”
O CC tem o valor da lei que o aprovou. Materialmente, o CC consubstancia um
decreto lei e, portanto, tem a força que tem qualquer decreto lei (ex: se for um
decreto lei do Governo, tem a mesma força de um decreto lei do Governo), o que
significa que qualquer outra lei posterior pode afastar uma lei do CC.
O que caracteriza o código é o facto de ser uma lei que contém a disciplina
fundamental de certa matéria ou ramo do Direito, elaborado de forma científico-
sistemática e unitária. Esta elaboração facilita a construção científica do Direito ao
pôr em evidência os princípios comuns, as grandes orientações legislativas, os
grandes nexos construtivos e funcionais, bem como a articulação entre os diversos
institutos e figuras jurídicas. A grande vantagem da elaboração unitária é que regula
de modo integrado um setor relativamente vasto da vida social.

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Um código não se confunde com estatutos (que é outro tipo de codificação).
Usa-se a denominação estatutos, em vez de código, para identificar leis que
regulam também de maneira unitária e sistemática uma determinada matéria que
não goza da amplitude, dignidade ou estabilidade suficientes para ser designada por
código. Também se dá o nome de estatutos às leis que regulam de forma unitária e
sistemática uma determinada carreira ou profissão (ex: estatutos da ordem dos
advogados).

Uma outra designação que se distingue de código é a lei orgânica. A lei orgânica
regula de modo sistemático e unitário o funcionamento de um serviço (ex: lei
orgânica do Ministério Público).

Há também uma outra figura, a que se dá o nome de lei avulsa, também chamada
lei extravagante. São leis que introduzem alterações a matérias constantes de
códigos, não sendo neles integradas (ex: lei de defesa do consumidor).

Principais vantagens e desvantagens da Codificação

● Vantagens:

- Maior facilidade de reconhecimento das normas (o Dr. Oliveira Ascensão diz


que o código fornece ao intérprete um mapa, permite identificar mais
facilmente onde é que está a solução para cada caso e pode ser utilizado
como ponto de partida para integrar lacunas).

- Permite um conhecimento mais fácil do Direito, mesmo para não juristas.

- Traz ao de cima os princípios fundamentais de cada ramo do Direito.

● Desvantagens:

- A grande desvantagem que é apontada à Codificação é a rigidez. O


legislador evita mexer nos códigos, pois existe uma espécie de dignidade
acrescida que lhes é reconhecida e faz com que o legislador seja mais
cauteloso. Rigidez no sentido em que se torna mais difícil adaptar as normas
à mudança e à evolução da vida social. Mas, como diz o Dr. Oliveira
Ascensão, isto não é verdade, pois é tão fácil mudar um código como
qualquer outra lei. Não é uma questão de formalismo jurídico, mas sim de
pensamento. O legislador evita tocar no código, há uma espécie de
sacralismo associado aos códigos que faz com que se evite alterá-los. Se
bem que, e contrariamente ao que diz o Dr. Oliveira Ascensão, deve de facto,
segundo a opinião de muitos, haver uma cautela especial na alteração da
legislação codificada, porque a estabilidade não é necessariamente uma
coisa má e nos códigos estão, de facto, princípios fundamentais de

51
determinados ordenamentos jurídicos, especialmente ao nível da substituição
de um código por outro, pois um código é feito para dar estabilidade a um
determinado ramo do Direito. Ou seja, esta rigidez que é apontada como
crítica é simultaneamente uma crítica e uma vantagem. Os códigos são
“monumentos legislativos”. Não são perfeitos, têm críticas, mas dão
estabilidade, proteção e segurança.

Técnicas legislativas principais

São técnicas de organização e redação de normas. São particularmente visíveis nos


códigos, mas não são exclusivas dos códigos.

- Parte geral → A técnicas de recurso a partes gerais é usada em códigos e,


muito particularmente, no Código Civil. O objetivo da parte geral é evitar

repetições, fixando desde logo princípios gerais e disposições normativas que

de outro modo teriam de ser repetidas sucessivamente em formulações


idênticas nas diferentes matérias a regular. Ou seja, são aspetos que são
comuns a várias matérias a regular, e o legislador, em vez de os repetir,
incluí-os numa parte inicial (ex: o CC regula o contrato de compra e venda, o
contrato de doação, o contrato de sociedade, entre outros. Podia ter, a
propósito de cada contrato, um artigo a dizer qual é a forma daquele contrato;

em vez disso, criou o artigo 219). NOTA: a parte geral do livro primeiro tem
dois tipos: “das leis, sua interpretação e aplicação” (parte geral do Direito-
constitui o repositório de princípios gerais de todo o ordenamento jurídico,
diz-se que é uma teoria geral das leis e só está no CC por tradição; é esse
que estudamos em Introdução ao Direito) e “da relação jurídica” (verdadeira
parte geral do Direito Civil- é passível de muitas críticas, diz-se que
desumanizou o Direito, pois passou a ter como centro o ordenamento
jurídico).

- Remissão → Também tem como objetivo evitar repetições. Normas


remissivas/indiretas são normas que o legislador, em vez de regular
diretamente a questão em causa, manda-lhe aplicar outras normas do
sistema jurídico contidas no mesmo diploma legal ou noutro. A isto dá-se o
nome de remissão intra sistemática.

52
A remissão é extra sistemática quando é feita para sistemas jurídicos
diferentes do sistema a quo/em causa/ao qual pertence (ex: art. 8 nº1 do CC).
Quanto às normas remissivas intra sistemáticas, em regra, a remissão é feita
para a estatuição da norma, mas nada impede que a remissão seja feita para
a previsão da norma. Há situações em que a lei faz uma remissão muito
ampla, dando ao regime para o qual remete a função de integração
subsidiária do regime a quo (ex: artigo terceiro do Código Comercial, que
remete para o regime do Direito Civil em geral quando a questão não puder
ser resolvida pela letra da Lei Comercial, pelo seu espírito nem por casos
análogos).
Noutros casos, a norma remissiva opera através de uma extensão do regime
de um instituto a outros institutos (ex: art. 939 do CC, que estende o regime
de compra e venda a todos os contratos onerosos que impliquem
transferência de propriedade). As normas remissivas iniciam-se geralmente
com “com as necessárias adaptações”, porque neste processo de aplicação
de um regime de um instituto ou outro, o intérprete tem sempre que ter em
atenção a especificidade do instituto. Em quase todas as normas remissivas,
o legislador salvaguarda as necessárias adaptações, não é uma aplicação
cega do regime de um instituto ou outro. O intérprete tem que atender às
especificidades de cada um dos institutos e aplicar a remissão na medida em
que essa afinidade o justifique. Muitas vezes, em remissões, o legislador
remete para outra norma, não para mandar aplicar essa norma, mas para
traçar relações de prevalência ou de subsidiariedade. Quando o legislador
começa por “sem prejuízo do disposto em”, esta norma para a qual se remete
tem prevalência/primazia, e quando diz “não obstante o disposto em”,
significa, em regra, que a norma que se vai enunciar estabelece um regime
especial ou excecional, face ao regime contido na norma para a qual se
remete.

- Ficção legal → As ficções legais funcionam, na prática, como remissões

implícitas, pois em vez de remeter expressamente para outras normas que


regulam um dado facto ou situação, o legislador estabelece que o facto ou
situação a regular é ou se considera igual àquele facto ou situação para que
já se haja estabelecido um regime na lei. Ou seja, a ficção corresponde a
uma assimilação fictícia de realidades factuais diferentes para efeitos de as

sujeitar ao mesmo regime jurídico (ex: art. 275 nº2 do CC).

- Presunção legal → A noção de presunção vem no art. 349 do CC - é uma


ilação que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para um facto

53
desconhecido. No art. 350 do CC, quem tem a favor uma presunção legal
não tem que provar o facto que a ela conduz. Isto significa que as
presunções legais têm um impacto direto no ónus da prova (art. 342 do CC).

Nos termos do princípio geral do ónus da prova, quem invoca um direito tem
de provar os factos constitutivos do direito invocado. Quem alega factos
impeditivos, modificativos ou extintivos de num direito tem que fazer prova
desses factos. Por força do art. 344 do CC, se houver uma presunção legal,

há uma inversão do ónus da prova, cabendo à outra parte provar, nos casos
em que é permitido, que essa presunção não corresponde à realidade. Há
dois tipos de presunções: as presunções legais e as presunções judiciais. A
presunção judicial, também chamada de presunção natural/simples/de
facto/de experiência: resulta da normal decorrência das coisas. Só são
admitidas nos mesmos termos em que é admitida a prova testemunhal e
podem ser afastadas por simples contraprova, ou seja, por provas que criem
no espírito do juiz uma incerteza quanto à ocorrência do facto a provar.
As presunções que nos interessam são as presunções legais, as que
resultam de normas jurídicas.
A presunção legal pode ser de dois tipos:

➤ Iuris et de iure: presunções inilidíveis, não podem ser afastadas por prova
em contrário, são absolutas e irrefutáveis (mesmo que se prove que aquilo
não aconteceu, é irrelevante, a presunção aplica-se na mesma). Estas
presunções são a exceção, o que significa que a presunção só é inilidível
quando isso resulta da norma que a consagra (se nada consagrar, a
presunção é iuris tantum). Ex: art. 243 nº3 do CC.
➤ Iuris Tantum: são presunções ilidíveis, podem ser afastadas por prova em
contrário. São a regra, o que significa que, se nada resultar da norma, a
presunção é iuris tantum.
Na prática, é difícil distinguir ficção legal de presunção iuris et de iuri. Mas,
como diz Batista Machado, as duas figuras são conceitualmente distintas. Na
ficção legal, a lei atribui a um facto as consequências jurídicas de outro; Na
presunção inilidível/iuris et de iure, o facto presumido acompanha sempre o
facto que serve de base à presunção.

- Definição Legal → São normas em que o legislador se limita a estabelecer


definições. Não são normas autónomas, não têm estatuição. Como técnica

54
legislativa, são muito criticáveis, porque não compete ao legislador fazer
construções conceptuais, essa função é da doutrina. “Ommis definitia
periculosa” (toda a definição é perigosa). Porquê? Porque deixa de fora

coisas que deviam lá estar e pode integrar coisas que não deviam lá estar.
Existe esta consciência de que toda a definição legal representa perigos,
porque pode ser excessivamente lata ou restrita. Mas a verdade é que, não
obstante as definições serem tidas como perigosas, o legislador português

recorre com frequência a elas (ex: art. 202 e 762 do CC). A pergunta que se
coloca é: qual a força normativa de uma definição legal? Obriga o intérprete

ou não obriga? Tem força obrigatória ou é meramente indicativa? A doutrina


divide-se. O Dr. Batista Machado diz que as verdadeiras definições legais
constituem indiretamente as hipóteses a que se ligam as consequências
jurídicas de determinadas normas e, portanto, não são meras construções
conceptuais. Elas integram-se nas hipóteses das normas e, assim, têm força
prescritiva/obrigatória. As definições pelo legislador não são constituições da

doutrina, são normas, e como tal são obrigatórias.

-Conceitos indeterminados e cláusulas gerais → São técnicas de ius


aequum. Conferem à norma flexibilidade suficiente para se adaptar à
mudança das conceções sociais e às situações da vida. Justificam-se por 4
razões: 1) permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a

regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações; 2)


justificam-se também para facultar uma espécie de osmose entre os máximos
éticos sociais e o Direito; 3) para permitir levar em conta os usos do tráfico; 4)
para permitir um maior ajustamento da solução ao caso.
Conceitos indeterminados não se confundem com cláusulas gerais,
eles aparecem normalmente os dois referidos porque têm as mesmas
funções, mas são distintos.
O conceito indeterminado é o conceito que necessita de
preenchimento valorativo pelo intérprete na sua aplicação ao caso
concreto. Ele contrapõe-se aos designados “conceitos determinados”.

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O Dr. Batista Machado diz que estes conceitos determinados são
estruturas arquitetónicas consolidadas da ordem jurídica que permitem
a construção de um sistema científico e salvaguardam a certeza e a
segurança jurídicas. Ex de conceitos determinados: credor,
personalidade jurídica, caso julgado. Ex de conceitos indeterminados:
boa fé, bons costumes, bom pai de família, prazo razoável.
Já as cláusulas gerais opõem-se à chamada regulamentação
casuística (regulamentação que identifica exaustivamente todas as
hipóteses a que se aplica). É muito comum as cláusulas gerais usarem
conceitos indeterminados, mas os conceitos indeterminados não são
exclusivos das cláusulas gerais. Ex: no art. 1781, alíneas a e c do CC,
o legislador fez uma enumeração casuística, e na alínea d estabeleceu
uma cláusula geral (isto é um exemplo de uma enumeração mista).
As cláusulas gerais opõe-se à regulamentação casuística que
identifica exaustivamente todas as hipóteses a que se aplica a norma.
A norma casuística prevê e regula grupos de casos especificados,
enquanto a cláusula geral não regula tipos de casos especialmente
determinados, deixando indefinidos os casos a que virá a aplicar-se. O
seu objetivo é evitar os dois riscos: não abranger da sua hipótese
todas as jurídicas que merecem o mesmo tratamento jurídico,
abranger inadvertidamente situações que mereceriam pela sua
natureza tratamento diferente, a isto dá-se o nome de lacuna de
exceção.

-Atribuição de poder discricionário → em regra, os agentes do estado


estão vinculados por um princípio de legalidade, um princípio fundamental do
direito público, isso significa que os seus atos e as suas decisões devem
conformar-se estritamente à lei, ou seja, verificamos os pressupostos da

hipótese, o agente do estado deve desencadear a consequência prevista na


norma, mesmo que essa atividade implica um exercício aplicativo. Cabe aos
agentes do estado cumprir a lei, este é o fundamento essencial do princípio
da legalidade. Só que há situações em que o legislador confere a esses
agentes um verdadeiro poder discricionário, assente num princípio de
oportunidade, ou seja, para permitir a adaptação da decisão às

particularidades do caso concreto, o legislador limita se a autorizar o órgão


ou agente a adotar determinadas condutas, a conceder determinadas
autorizações ou até mesmo a prevaricar determinadas intervenções,

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indicando apenas o escopo/finalidade da decisão a adotar, mas sem vincular
o órgão ou agente a uma obrigação determinada. Ou seja, a lei estabelece
uma hipótese, mas verificada esta, deixa a fixação da consequência jurídica à

decisão do órgão ou agente, que faz um juízo de oportunidades ou


conveniência. Discricionariedade é diferente de arbitrariedade. A decisão está
limitada pelas finalidades e objetivos da norma. Ex: poder discricionário do
diretor de decidir se a falta foi suficientemente forte para considerar a falta

justificada.

● Equidade

Bibliografia deste ponto:


- Oliveira Ascensão: 245 a 249; 261 a 262
- Artigo do doutor Carneiro da Frada (sigarra)
Equidade – sendo muito difícil a sua definição, aceita-se a noção clássica de
Aristóteles: é a justiça aplicada ao caso concreto.
Referencia-se, portanto, o Direito, não só à Justiça, como à equidade. Como
diz Carneiro da Frada, esta realidade cria uma trilogia em que é difícil determinar a
posição destas noções. Se o Direito constitui o objeto da Justiça e se, deste modo, o
Direito corresponde a uma ordenação justa da vida social, a equidade vem
intrometer-se e atrapalhar a linearidade desta co-implicação recíproca do Direito e
da Justiça
O Código Civil faz, pela primeira vez, referência à equidade no artigo 4º -
vem integrado no capítulo 1º relativo às fontes de Direito.
No entanto, esta conceção da equidade como fonte de Direito é motivo de
discordância entre a doutrina:

● Aqueles que consideram que a equidade é fonte de Direito têm uma razão: o
caso resolve-se pela equidade, pois ela revela-nos o direito aplicável àquele
caso, além de ser modo de revelação do Direito, embora com referência a
casos singulares.
● Aqueles que não consideram a equidade como fonte de Direito, entre eles
Oliveira Ascensão, que diz: se fontes de Direito são os modos de formação
e revelação de regras jurídicas, a equidade, como critério formal de decisão,
está fora desta noção. Isto porque, não só não se determinam, através dela,
regras, como a própria solução do caso não se faz através da mediação de

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uma regra, elaborada pelo intérprete de modo a abranger a categoria em que
o caso se enquadra.

A decisão segundo a equidade não assenta em normas jurídicas, mas sim


num juízo de justiça individual feito pelo julgador, tendo por base as especificidades
do caso concreto.
Enquanto a norma jurídica se pauta por uma natureza geral e abstrata e
consegue essa natureza identificando, na previsão, os elementos de que faz
depender a aplicação da norma e mandando aplicar essa norma quando esses
elementos se verificam, ignorando os restantes elementos que compõem a
identidade do caso concreto, quando o juiz decide segundo a equidade, ele tem em
atenção tudo acerca da situação, analisando todas as especificidades do caso na
procura do equilíbrio. Daí que Oliveira Ascensão diga que, na equidade, a decisão
atende a circunstâncias que a norma despreza, como a força ou a fraqueza das
partes ou a incidência sobre o seu estado de fortuna para encontrar a solução que
melhor se adapta à justiça daquela situação concreta.
De acordo com o artigo 4º, os tribunais/o julgador só podem resolver os casos
segundo a equidade:

● Quando a própria lei o permitir1;


● Quando haja acordo das partes nesse sentido, não sendo a relação jurídica
indisponível2;
● Quando as partes previamente o convencionaram (acordaram) nos termos
aplicáveis à cláusula compromissória2.

1. Quando a própria lei o admite


Exemplos: artigo 72º nº2; artigo 400º nº1; artigo 437º nº1; artigo 489º nº1; artigo
1675º nº3 à Matérias que carecem de objetividade – não é possível ao legislador
definir um equilíbrio a priori, ou seja, esse equilíbrio de justiça só consegue ser
encontrado perante todas as especificidades do caso concreto.
2. Acordo das partes
Quando a lei não consagra o recurso à equidade, o julgador só pode decidir
segundo a equidade se houver acordo das partes nesse sentido.
- Alínea b) – o acordo é posterior à ocorrência do litígio.
- Alínea c) – o acordo é anterior, ou seja, as partes estabelecem (no próprio
contrato) a possibilidade de recurso à equidade para todos os litígios derivados
daquela relação.
Nota: Nestas situações, normalmente, a decisão é remetida para um Tribunal
Arbitral (jurisdição alternativa/paralela muito usada nos litígios comerciais altamente
sofisticados economicamente).

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Vantagens do tribunal arbitral: celeridade, desformalização, especialização e caráter
secreto.
Desvantagem: caríssimo
Pergunta: Deste modo, atendendo que a equidade é a justiça do caso concreto e
que o objetivo do Direito é a promoção da justiça, porquê que não se decide sempre
segundo a equidade?
Resposta: O problema da equidade é que é uma solução restrita que acaba com a
previsibilidade das decisões, o que afeta a segurança jurídica. Em relações
indisponíveis (ex: estado das pessoas ou núcleo dos direitos de personalidade) – as
partes não podem, nem por acordo, mandar aplicar a equidade, precisamente por
causa da falta de critérios (de previsibilidade).
Reflexão feita pelo professor Meneses Cordeiro
A equidade deixou de ser necessária, porque a flexibilização do sistema
jurídico decorrente das normas de ius aequum e o próprio aperfeiçoamento da
metodologia jurídica que se concentra agora mais no fundamento axiológico das
normas substitui, de forma suficiente, as necessidades de individualização e de
adequação ao caso concreto que antes eram respondidas pela equidade. A justiça
do caso concreto agora consegue-se dentro do sistema jurídico e já não é
preciso procura-la fora (na equidade).
Ora, é inegável que a equidade perdeu pelo menos parte da premência. O
sistema jurídico atual tem mecanismos de flexibilização que permitem achar a
justiça dentro do ordenamento jurídico.
Pergunta: Mas ela tornou-se dispensável/desnecessária?
Meneses Cordeiro – Sim, pelo referido acima.

Carneiro da Frada – Não. Ela pode ser menos premente (urgente/essencial), mas
continua a ser útil. Não se negando o aperfeiçoamento da metodologia jurídica, não
se negando que a abertura axiológica do sistema tem um impacto significativo na
procura da justiça perante as soluções concretas, as decisões assentes no sistema
jurídico estão sempre limitadas pela generalidade e abstração e comprometidas
com a norma. Já as decisões segundo a equidade são extra-sistemáticas (fora do
ordenamento jurídico, quer nacional, quer internacional), ou seja, não estão
limitadas por princípios históricos e culturais vigentes na promoção da justiça.
Segundo Carneiro da Frada, a equidade corresponde a uma “forma superior de
justiça”, acima da lei e do Direito constituído. A decisão segundo a equidade
convoca um “modo de decidir” em que a substância, a forma, a matéria e o
processo se fundem. Porém, a equidade não é estranha ao Direito, antes procura a

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concordância entre a sabedoria e a realização de valores no Direito, assinalando a
amplificação e a perfeição a que o Direito tende, em ordem à justiça.

A equidade é o sistema que assegura a justicibilidade, exequibilidade, coercibilidade


e eficácia da decisão. É a arte de harmonizar a justiça com outras virtudes que
regulam as relações humanas. Tende a dar mais valor aos sentimentos, aos afetos
pessoais e às emoções das partes. É, por isso, a “justiça do coração”. A equidade
relaciona-se com a sabedoria, representa uma sublimação da justiça. A equidade,
como decisão extra-sistemática, postula um não aprisionamento da justiça pelo
conjunto articulado de normas e princípios historicamente vigentes.
Não se negando o aperfeiçoamento da metodologia jurídica nem o facto de a
abertura axiológica do sistema ter um impacto significativo na procura da justiça
perante as soluções concretas, as decisões assentes no sistema jurídico estão
sempre limitadas pela generalidade e abstração, assim como estão comprometidas
com a norma. Já as decisões segundo a equidade são extra-sistemáticas, ou seja,
não estão limitadas por princípios históricos e culturais vigentes na promoção da
justiça.
Os critérios do “razoável”, do “bom senso”, do “naturalmente justo” ou da “ordem
natural das coisas” assumem um papel importante na equidade, na seleção dos
argumentos, sendo que nenhum é excluído à priori. Tem-se em conta a pertinência
da decisão e as suas consequências.
A equidade não remete para o simples entendimento pessoal do juiz ou para a sua
íntima convicção, reclama sempre uma fundamentação intersubjetiva; está em
causa uma apreciação racional e objetivável.

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