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Introdução ao Direito

1º Ano Licenciatura em Direito

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Nota Introdutória:

Esta sebenta diz respeito à matéria abordada no ano


lectivo 2017/2018 na cadeira de Introdução ao
Direito, lecionada pelas docentes Graça Enes
(teóricas) e Mariana Costa (práticas).
Esta sebenta tem como base os powerpoints
fornecidos pela docente, bem como o livro
“Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador,
de João Baptista Machado”.
Foi elaborada com o intuito de auxiliar os estudantes
para os momentos de avaliação que se avizinham,
com a colaboração das estudantes Maria João
Correia Resende e Ana Margarida Marques Pereira.
Este instrumento não substitui a leitura das obras
obrigatórias. É um mero acompanhamento ao
estudo.
Bom estudo!

Comissão de Curso de 1º ano

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SEMESTRE

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I.O DIREITO: NOÇÃO E SENTIDO
O SENTIDO DO DIREITO: pré-compreensão e noção
preliminar; o Direito e a Sociedade
O Direito não é consensual. Há várias e diferentes perspetivas sobre
ele.
Quid ius? – o que é o Direito?
Quid iuris? – o que diz o Direito e que regras impõe?
 Estudo das normas jurídicas que regem a vida em 1ª noção
sociedade: ordem normativa preliminar:
 Imposição de determinado “dever ser”, comandos
conjunto de
com caráter de obrigatoriedade
regras
Conceitos fundamentais: obrigatórias
 Sociedade: grupo estável e formal, pois tem uma
finalidade comum e todos os seus membros (pessoas)
contribuem para a atingir. O Direito é uma ordem/sistema
social, criado em sociedade, para a sociedade -» Ubi societas,
ibi ius (Onde há sociedade, há Direito).
 Cultura: o Direito é um produto de cultura, que varia conforme a
mesma e traduz um padrão identitário de pertença (Volksgeist:
resultado do espírito do povo).
 Pessoa: ser humano que possui uma dimensão cultural e de
interação intencional. Há uma identidade que marca o próprio
indivíduo, uma espécie de sentido existencial transcendente, que
passa pelo reconhecimento de que o outro também tem essa
dimensão espiritual. A esta relação chama-se intersubjetividade,
que é regulada pelo Direito. O Homem é um ser naturalmente
livre, sendo a liberdade um princípio fundamental que leva à
responsabilidade: o Direito é a institucionalização dessa
responsabilidade.
 Instituição: complexo normativo pessoal ou material, que se
reúne à volta de princípios comuns e regulamenta um
determinado tipo de relações sociais, designando também a
realidade social que está na base de tais relações. É uma
realidade de índole cultural que permanece para além da
evolução e unifica os participantes da comunidade numa nova

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unidade (resulta da necessidade de agregação dos seres
humanos).
 Instituto: complexo normativo menor que a instituição. Regime
jurídico para determinada realidade que assenta num conjunto
de regras/princípios jurídicos que norteiam o funcionamento da
instituição.
 Estatuto: posição jurídica de um determinado sujeito a que estão
associados direitos e deveres que fazem parte dessa posição. Um
indivíduo pode ter vários estatutos, adotando normas, valores e
atitudes próprios da sua função (ex: indivíduo que é
simultaneamente pai, marido e juiz).
 Norma jurídica: regra de conduta social que, em determinada
sociedade é, em cada momento, considerada necessária à
permanência, perpetuidade, e bem-estar dessa sociedade e à
consecução dos seus objetivos comuns, e que é aplicável
obrigatória e coercivamente.
O Direito é essencialmente uma ordem de normas vinculativa numa
determinada sociedade. Nas nossas sociedades, o Direito sendo
obrigatório é também ultima ratio: a chamada do Direito tem lugar
estritamente quando tal é necessário, já que a nossa sociedade assenta
num favor libertatis (o reconhecimento da pessoa pressupõe o
reconhecimento de um ente que possui liberdade, por ser um ser
racional). O ser humano nasce livre e mantém plenamente o estatuto
de liberdade. Assim, o Direito deve ser apenas convocado quando
necessário para preservar a liberdade de outros e para o bom
funcionamento da sociedade. As relações de natureza afetiva (esfera
pessoal dos indivíduos) não podem ser colocadas sob a égide do
Direito, sendo a sua espontaneidade crucial para a coesão social
(“Defenderei a minha mãe antes da justiça”).

2ª noção preliminar:
 Weber - o Direito como ordem normativa integrada num
sistema institucional-coercivo que assegura a sua vigência:
É fundamental que o Direito vigore, daí a associação à coerção com a
existência de instituições e órgãos políticos que exerçam esse poder.
Não há preocupação com a bondade das soluções nem com o
adequado equilíbrio de distribuição de direitos. Ao Direito cabe
essencialmente garantir regras que sejam conhecidas dos destinatários

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e que promovam a segurança (como modo de garantia de estabilidade
e paz, já que todos têm conhecimento desse quadro de regras).
OU
 Larenz - o Direito como uma ordem normativa orientada
pela ideia de justiça (o Direito é uma parte da Moral armada de
garantias específicas indispensáveis à existência da paz, da
liberdade e da justiça na sociedade).
A justiça é o centro de gravidade de todos os valores jurídicos, com o
objetivo de alcançar a equidade. Nem sempre uma norma, pelo facto
de vigorar, garante que o que deve pertencer ou acontecer a cada um é
o certo. Direito é Direito na medida em que funciona de acordo com a
justiça.
Há uma clara contraposição entre justiça e segurança.

O Direito e a Sociedade

 A Ordem Jurídica é necessária mas insuficiente para a


compreensão do quid ius, do sentido do Direito:
- Não basta a compreensão analítico-empírica do “fenómeno”
OJ, manifestação objetiva e estrutural do Direito
- Pois o Direito não é uma “ordem do ser” (onto-descritiva), mas
do “dever ser” (prescritiva-comunicativa)
As normas do Direito não são da ordem do “ser” porque não vigoram
como regras da natureza (fenómenos empíricos) que se impõem sem a
participação humana. Deste modo, as leis do Direito só vigoram
quando efetivadas, sendo produto de reflexão e ação da sociedade. O
Direito escrito nos códigos (Law in books) não passa de textos. Só se
traduz numa ordem normativa da sociedade quando é aplicado (Law in
action). Assim sendo, o Direito dirige-se à pessoa impondo-lhe
determinados cânones e há uma comunicação dos mesmos entre, pelo
menos, dois indivíduos.
 É necessário um empreendimento reflexivo que
contextualiza OJ num “universo significante”
Logo, na Sociedade/Comunidade, num quadro axiológico-cultural (o
“ocidental”), prático-intencional e intersubjetivo (na medida em que
há várias interpretações que variam de pessoa para pessoa, de
sociedade para sociedade, e de tempo em tempo) e numa perspetiva
atual e histórica.

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 SOCIEDADE - “meio e resultado da convivência humana”
- Implica interação entre “pessoas”, não mera coexistência: a
sociedade não é um mero conjunto de pessoas. Implica laços
mais ou menos institucionalizados (que atribuem papéis e
estatutos) e também a simplificação da intersubjetividade.
- A perspetiva pode ser: individual/intencional (Weber olha para
as relações sociais do ponto de vista social, considerando o
sujeito o motor do Direito), sistémica/funcional (Luhmann
defende que a sociedade é um todo articulado, com fins próprios
que ultrapassam os indivíduos), ou uma síntese “reflexiva” de
ambas (Habermas).
- Implica institucionalização (com “estatutos” e “papéis” e a
concomitante redução/simplificação da intersubjetividade
relevante).
- Nas sociedades ocidentais “plurais” e “laicas”, há um instável
equilíbrio entre “consenso” e “dissenso” e o conflito, que é
intrínseco à sociedade, apela inelutavelmente ao Direito:

As sociedades plurais (pouco uniformes e homogéneas) são um


fenómeno crescente, resultante das grandes vagas de migrações ao
longo dos anos. Consequentemente, é cada vez mais difícil a
existência de consensos no que diz respeito às interpretações dos
quadros de valores vigentes nas diferentes sociedades. Já as
sociedades laicas passam por remeter uma das influências
fundamentais nos quadros axiológicos para o espaço privado (esfera
íntima), começando o Direito a ser a principal ordem de regulação da
sociedade. Isto gera um conflito permanente entre a obrigatoriedade e
exigências do Direito e as regras e imposições da religião.
Atualmente, a religião deixou de ser um fator de coesão de uma
sociedade devido à liberdade religiosa. Já não há uma moral comum
nas sociedades, o que nos permite afirmar que não estamos perante
uma mera multidão. Aquilo que nos continua a ligar é apenas o
Direito, o denominador comum mínimo que tem de garantir a
efetividade das normas, que está em permanente dinâmica e é
conseguido por múltiplas formas. Quando há algum problema recorre-
se ao Direito, deixando de parte o recurso à religião ou à moral.
 Assim, o Direito é o mais importante fator de integração
social, que institucionaliza a relação de estatutos e papéis.
Mas, será variável dependente ou independente das

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principais dimensões “constitutivas” ou “condicionadoras”
da sociedade ocidental?
- Interesses económicos, concorrentes ou contrapostos (fruto da
finitude dos recursos)
- Poder político/ideológico
- Valores axiológico-culturais

Há também facetas negativas nestas ligações. A obrigatoriedade à


articulação com outras esferas da ação social acaba muitas vezes por
levar ao uso do Direito para satisfazer necessidades especiais. Para
além disso, isto leva a um esforço intensivo do Direito para que
consiga resolver problemas e manter a ordem juntamente com os
outros domínios em que é envolvido. Cabe aos juristas preservar a
autonomia do Direito, evitando que este seja utilizado como um objeto
por outros atores, bem como preservar as suas funções. É fundamental
que os juristas conheçam os riscos, as diferentes funções e
funcionalidades das várias áreas, bem como as suas necessidades de se
relacionarem, sem nunca deixar que se tornem em relações de
dependência para com o Direito (devem manter cada área dentro da
sua esfera). A justiça não tem um lugar central na sociedade, enquanto
que o Direito tem: a sua função não é meramente axiológica, o Direito
é um “dever ser” que é, dado ter uma exigência de efetividade. É uma
dimensão institucional e regulatória que leva à concretização social.
Ou seja, falamos das “funções do Direito” na sociedade, do “Direito-
função” da sociedade e do Direito na “teia dos poderes”.

O SENTIDO DO DIREITO: outras ordens normativas


e relação com outras esferas sociais
Outras ordens normativas

Há outros conjuntos de normas que tentam ter as mesmas funções que


o Direito. Nas sociedades ocidentais há cada vez mais autonomização
do Direito face às ordens religiosas e à Moral. Apesar dessa
autonomização, hoje em dia ainda há sociedades em que a OJ se
confunde com a ordem religiosa, principalmente onde não aconteceu a
laicização. A religião é uma esfera fundamental de qualquer ser
humano ou sociedade. Reconhece-se que há espaços de afirmação
livre da religião que têm lugar numa esfera privada, mas podem ter

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uma exteriorização pública. Há uma moral laica inquestionavelmente,
mas historicamente a Moral desenvolveu-se através e com o
contributo da religião. No século XX consegue-se encontrar uma
relação equilibrada entre Direito, Sociedade e Religião.
 A Moral – critérios de relação/distinção:
- O “mínimo ético”: reconhece-se a história de desenvolvimento
comum da Moral e do Direito, e a posterior autonomização.
Parte-se do pressuposto que têm um fundamento semelhante
(são ordens axiológicas), que prescreve condutas que se devem
aplicar nas sociedades. O Direito apenas reconhece na sua esfera
aqueles valores que são essenciais à sociedade (para garantir
estabilidade, justiça e segurança), enquanto a Moral tem uma
maior amplitude e ambição (considera os mesmos valores que o
Direito e ainda valores que visam fazer progredir o ser humano
em direção à perfeição). A Moral exige que sejam assumidas
certas atitudes/comportamentos promotores do bem-estar e da
correção de uma situação (por exemplo, quando alguém está
numa situação dramática), enquanto o Direito não prevê
obrigação nenhuma de ajudar alguém. Um comportamento que
esteja na origem de uma situação que provocou danos (a bens ou
a sujeitos) é condenado pela Moral e também pelo Direito: a
relação entre estas ordens normativas não é de alheamento,
tendo em conta que os valores fundamentais do Direito são
morais (todos derivam do bem último da “dignidade humana”).
Este critério é válido mas insuficiente.
- Heteronomia/coercibilidade: estes conceitos estão relacionados
com Weber. O Direito é imposto heteronomamente, ou seja, é
imposto ao sujeito de fora (pela sociedade ou pelo Estado
através da coercibilidade) e não está à espera da sua aceitação.
O imperativo categórico defendido por Kant é um imperativo
absoluto que dita que se aja de um modo que o comportamento
se possa universalizar, imposto dentro do próprio sujeito. É uma
ordem de imposição autónoma, na medida em que passa pelo
reconhecimento do outro como um sujeito igual. É também uma
ordem da consciência, já que visa o aperfeiçoamento do ser
humano, passando por uma adesão voluntária do sujeito.
Este critério é válido mas insuficiente: há no Direito todo um
conjunto de normas que não dispõem de meios coercivos
(reconhece-se o poder da criação jurídica).

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- Exterioridade da conduta: o Direito só se preocupa com as
condutas tangíveis (com os comportamentos manifestados) e
não com as intenções. As normas morais não se limitam a
sancionar comportamentos empíricos: enquanto ordem do
aperfeiçoamento, a Moral sanciona e tutela as
intenções/pensamentos que surgem do sujeito (sem
exteriorização não há relevância jurídica).
Este critério é válido mas insuficiente: também a esfera interna é
importante para o Direito (a responsabilidade do sujeito está
dependente de diferentes pressupostos, nomeadamente a culpa).
Em suma, devemos articular todos os critérios, de modo a melhor
distinguir a relação entre Direito e Moral.
 A relação Direito/Moral nas sociedades ocidentais atuais
(plurais, democráticas, laicas)
O facto da nossa sociedade ser cada vez mais um conjunto de sujeitos
com culturas diferentes faz com que seja mais difícil encontrar uma
moral social vigente que possa ser consensual para agregar a
sociedade. A Moral é relativa, é um imperativo autónomo do sujeito.
O Direito impõe-se aos sujeitos, desconsiderando essa vinculação
moral; é uma esfera de intervenção última e não tem uma pretensão de
vincular a consciência dos sujeitos, mas sim de vincular o seu
comportamento social. O Direito não pode impor em absoluto regras
contra a consciência do indivíduo. O princípio da não litigância: é o
teste para definir de algum modo qual é que é o limiar entre o Direito
e a Moral, já que têm funções distintas. O Direito não tem como
função promover melhores sujeitos, mas sim a convivência pacífica
entre eles. O Direito não promove a Moral, ou seja, o aperfeiçoamento
dos indivíduos, mas deve ter, face à Moral, uma posição neutral, no
sentido em que não deve intervir/legislar determinadas matérias. Se o
Direito não deve tutelar a Moral, também não deve litigar contra ela
ou ofendê-la. Consequentemente, o Direito não deve impor regras que
atentem contra a moral (que sejam imorais). Um exemplo é um
médico poder invocar a objeção de consciência para não fazer um
aborto.

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O Direito, o Estado e a Sociedade

 A relação entre o Direito e o Estado: o Direito como criação


do Estado; o Direito legitimador e limitador do Estado – o
“Estado de Direito”
- O Direito não estadual: o Estado cria o Direito e dispõe do
monopólio dos mecanismos coercivos que garantem a sua
efetivação (o Direito como produto do Estado). A maioria do
Direito vigente é de criação estadual; no entanto, não podemos
pensar que o Direito esteja dependente do Estado para a sua
fundamentação. Antes de haver Estado já havia Direito e, como
tal, essa dependência não faz sentido. A ligação do Direito com
o Estado continua a ser fundamental: a efetivação do Direito
continua a estar essencialmente nas mãos do Estado.
Desenvolvem-se muitas sedes internacionais de criação jurídica,
com competências autónomas, que adotam atos jurídicos que se
dirigem aos Estados e, em geral, aos seres humanos (ex: União
Europeia). O Estado Constitucional da separação de poderes é,
em grande medida, uma criação do Direito Moderno. Estado de
Direito: fundamenta a sua legitimidade no Direito, que
condiciona e limita o poder do Estado. O poder necessita de se
submeter ao Direito, mas o Direito não está dependente do
Estado.
- A problemática da imperatividade e da coação/sanção
 A subsidiariedade do Direito (favor libertatis) e a
juridificação crescente das relações sociais
 A ordem do trato social
Ordem que preside a uma convivência cívica de respeito mútuo dos
membros de determinada sociedade (regras que têm a ver com uma
conduta correta nos contactos interpessoais, que é variável entre
grupos sociais, sociedades, etc). Não tem características de
vincularidade (não dispõe de mecanismos de imposição, mas sim de
sanções sociais difusas).
Qual a sua relação com o Direito? Não há relevância direta. O respeito
das “regras” do trato social não acarreta sanções, mas é importante
para o Direito: a sociedade entende que se exige que haja um
tratamento jurídico específico/especial, que leva ao reconhecimento de
determinados direitos (como essenciais para o bom funcionamento da
sociedade), que correspondem a valores que o Direito consagra. Uma
sociedade em que prevaleça o bem-estar, pacifidade e respeito pela
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ordem do trato social tem mais resultados quanto à efetividade do
Direito (é uma sociedade menos litigiosa). Assim, a ordem do trato
social deve ser cultivada, pelas instituições sociais/públicas, pela
família, etc.

A AUTONOMIA DO DIREITO: a sociedade função


do Direito ou o Direito função da sociedade;
finalidades do Direito
A autonomia do Direito na sociedade

 O Direito é o mais importante fator de integração social, que


institucionaliza a relação de estatutos e papéis.
O Direito é, no espaço ocidental, uma ordem social que se tem vindo a
autonomizar face a outras esferas, que desempenha funções próprias e
distintas. As leis jurídicas são produto humano e, portanto, estão
sujeitas a toda a contingência que as envolve. Nos dias de hoje, o
Direito é chamado por nós de forma exigente, precisamente porque há
uma relativização moral, uma laicização, um pluralismo (cultural,
ideológico, social..) de entidades múltiplas dos membros da sociedade,
que vem remeter, por exemplo, a moral e a religião para uma esfera
interna, dando protagonismo ao Direito (que se torna o denominador
comum, impondo-se a todos). O Direito é desempenha então uma
função de agregação, tornando-se na plataforma comum na qual todos
devemos reconhecer todos os seus valores e a que todos estamos
vinculados.
 Mas, será variável dependente ou independente das
principais dimensões ‘constitutivas’ ou ‘condicionadoras’ da
sociedade ocidental?
É difícil para o Direito conseguir articular-se com as diferentes
exigências. É uma articulação indispensável, mas que acarreta riscos:
o Direito não pode permitir ser usado como mecanismo para atingir
interesses próprios (se tal acontecer, torna-se em “Direito-função”,
isto é, um Direito instrumental ao serviço de finalidades de outras
esferas). Deve-se garantir que cada uma dessas esferas tem a sua área
de intervenção e afirmação própria.
- Interesses económicos, concorrentes ou contrapostos (fruto da
finitude dos recursos)
- Poder político/ideológico
- Valores axiológico-culturais
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Ou seja, falamos das ‘funções do Direito’ na sociedade e do
‘Direito-função’ da sociedade
 O ‘DIREITO-FUNÇÃO’ NA SOCIEDADE
- A redução ‘economicista’ – o direito como parte da
supraestrutura determinada pela infraestrutura económica (o marxismo
e as respetivas evoluções ‘críticas’)
O Direito desempenha uma função reguladora e legitimadora face à
economia: o marxismo-leninismo defendia que o Direito não tinha
finalidades próprias, sendo apenas um instrumento auxiliar. Marx
alertou para o facto do Direito, a par do Estado e da Igreja, ser usado
como instrumento das forças do domínio económico para garantir os
seus interesses. Os oprimidos deveriam fazer uso destas dimensões
supraestruturais para superar esta questão. Lenine falou da “ditadura
do proletariado” liderada por essas vanguardas culturais. A refundação
marxista reconheceu alguma autonomia ao Direito, mas não se afasta
da ideia da sua utilização ativa para promover o seu efeito na
economia e na sociedade. A racionalidade económica, visando a
garantia de maior eficiência de recursos, é também uma racionalidade
instrumental (não assenta num valor absoluto que sirva de referente
para a determinação do que é correto). O Direito deve garantir que os
seres humanos possam ser pessoas (reconhecidos na sua dignidade
fundamental: com direitos, um mínimo digno de existência, etc). Não
basta a garantia dos direitos, liberdades, e garantias; também é preciso
estabelecer os direitos económicos, sociais e culturais, para as pessoas
desenvolverem a sua personalidade. O Direito tem que acautelar que
os seus valores, finalidades e critérios, embora tenham que se articular
com outras esferas, tem que preservar a respetiva autonomia.
Crítica: a diferente racionalidade da Economia (eficiência da alocação
dos recursos – racionalidade instrumental) e do Direito (a validade na
constituição e desenvolvimento das relações intersubjetivas –
racionalidade problemático-axiológica) A racionalidade da
Economia é a eficiência (garantir a mais eficiente utilização e
distribuição dos recursos), enquanto que a do Direito é a validade (o
dever ser). No desenvolvimento das relações jurídicas, o critério é de
saber qual é a interação válida, com referente de justiça. O Direito é
chamado a analisar e interferir sobre a esfera económica, como
elemento de apoio ao subsistema económico. O Direito não é um mero
instrumento para garantir a utilização eficiente de recursos: há que
olhar para as relações jurídicas económicas e notar se, à luz do

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Direito, estas relações não colocam em causa o equilíbrio válido das
relações nem os direitos fundamentais.
- A redução ‘político-ideológica’ – o direito como instrumento
de concretização dos objetivos políticos legitimados
democraticamente
É mais difícil fazer uma autonomização neste sentido. Há toda uma
dimensão dos direitos sociais, que não devem ser considerados
direitos menores. O Direito acaba por ser condicionado pelo poder
democrático maioritário, que é legítimo, e não é um poder político
autoritário (porque há limites). Nesta articulação há uma instituição
que tem uma função central: o Tribunal Constitucional (visa garantir
que o Direito não é completamente instrumentalizado daquilo que são
pretensões nobres, que ainda assim tem uma esfera própria de
limitação do poder, mas também de ordenação). As diferentes
conceções políticas legítimas não devem atentar a esta articulação.
Crítica: o Direito como condicionante e fundamento de validade da
política (o Estado de Direito; os direitos fundamentais) o Direito
condiciona e limita a política, mas por outro lado legitima-a (define os
termos em que o poder político se exerce e se constitui na sociedade).
- A redução ‘axiológica’ – o direito como pura manifestação
‘ética’ histórica
Se o Direito encontra no quadro axiológico dos valores fundamentais
da sociedade a sua base (que se reflete na consciência social), o
Direito não é um instrumento ao serviço de qualquer moral. A moral
também tem variação subjetiva, mas mesmo quanto a uma moral
dominante, o Direito não prossegue o objetivo de garantir que aquilo
que é considerado bom se verifique, nem garante a sua realização. É
um quadro regulador social e não quadro um quadro de constituição
social. Se o Direito assenta num quadro de valores fundamentais, não
pode bastar-se como tal. Tem uma missão regulatória em sociedade,
nessa medida não se basta com condições ideais valorativas. Tem que
atender aos interesses, à articulação entre muitas esferas, ainda que
isso obrigue a relativizar esse quadro axiológico. O Direito não é um
quadro que se paute somente pela realização de valores, mas tem que
relativizar esse quadro axiológico para fazer cumprir as suas funções.
Crítica: a inerente vocação prática e controvertida que exige uma
consideração contextual-concreta e uma efetividade vigente
(‘positiva’) - O Direito “é um dever-ser que é”

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 A FUNÇÃO DO DIREITO NA SOCIEDADE OCIDENTAL
CONTEMPORÂNEA
O Direito é maioritariamente criado pelo poder político.
Um Estado de Direito é um Estado limitado e vinculado ao próprio
Direito.
- Função integrante-constitutiva (tutela dos valores e princípios
fundamentais da sociedade) – especialmente importante numa
sociedade plural, laica
O subsistema social que garante a coesão, bom funcionamento e
desenvolvimento da sociedade (sem grandes atritos), a identidade e
alguma homogeneidade, é o Direito. O Direito tem um grande
alcance. É o denominador mínimo comum, aquilo que agrega, aquilo
em que nos revemos – é a nossa Constituição. É este património
identitário que constitui verdadeiramente o “cimento” social (que
torna a sociedade coesa). Contém os princípios fundamentais que
estão presentes na consciência coletiva.
- Função integrante-regulativa (dos interesses e conflitos) –
preventiva e resolutiva (o direito como ‘estabilizador social’)
Cabe ao Direito regular os conflitos sociais, determinar o que cada um
pode exigir, determinar a esfera de direitos e de deveres de cada um –
desempenhar uma função de integração social. Se a sociedade possuir
um sistema jurídico capaz de regular de modo adequado os conflitos,
há um melhor desempenho desta função.
- Função institucionalizante e limitadora do poder – o Estado de
Direito
Especialmente importante para os juristas. As relações entre as
pessoas em sociedade são simplificadas através da institucionalização:
pelo enquadramento das instituições e papéis previstos
institucionalmente. Quem faz esta institucionalização é o Direito, que
desempenha a função de limitação e legitimação do poder, através de
todas as normas que regulam a ação do Estado e dos seus agentes.
- Especificamente, na sociedade ocidental contemporânea –
função crítica-reflexiva (‘consciência’ das várias dimensões sociais –
a ‘consciência jurídica geral’ - remissão)
Ao Direito, seja quanto às instituições ou aos seus agentes, através da
análise e reflexão, cabe sempre pensar sobre a sua relação com os
outros subsistemas sociais, as funções que lhe cabe desempenhar e
finalidades que deve prosseguir. No quadro de elaboração e aplicação
das normas, o Direito não pode ser acrítico: tem que ser sempre capaz
de fazer uma avaliação dos resultados, dos interesses, dos equilíbrios

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presentes e desejados, à luz do quadro jurídico fundamental e da
realidade político-económica internacional, para ser sempre capaz de
evoluir e poder desempenhar convenientemente estas funções. Não se
deve olhar para as normas, instituições e funcionamento para as
conhecer; há que ter presente este quadro complexo e
questionar/avaliar este funcionamento à luz do contexto e realidade e
de como se vai desenvolvendo, tendo a consciência que o Direito faz
evoluir a sociedade.
§ todas condicionadas ‘historicamente’ e problematicamente
Há evolução e essa deve ser preservada. No Ocidente, foi no sentido
de efetivação de direitos.

A autonomia do Direito na sociedade – “aqui e agora”

 Assim, o Direito apresenta-se como um quid autónomo,


‘socialmente’ integrado…
- Abstrato e concreto
- Geral e individual
- Ou seja, além da ordem objetiva e do seu contexto macro-
social (axiológico-cultural), o direito só se compreende como
construção judicativa no ‘caso’
- É instância de ‘validade normativa’, positiva, mas
permanentemente constituenda
Abstrato porque é formado por normas e estas, por definição
preliminar, são gerais e abstratas. A generalidade das normas significa
que as normas são regras sem destinatários pré-definidos, são
individualizados mas caracterizados de modo tipológico. Uma norma
não está definida quanto aos destinatários por nenhum indivíduo em
especial, mas sim definida de modo genérico para a globalidade dos
sujeitos jurídicos que preencham determinados requisitos definidos
pela norma. A generalidade assegura um valor e princípio
fundamental: a igualdade dos sujeitos perante a lei, em condições que
são definidas de modo geral. As normas são também abstratas. A
realidade que é regulada (situação fáctica que é objeto de tratamento
jurídico sobre a qual o Direito incide) dando-lhe estatuto jurídico,
determinando de que modo será integrada numa ou noutra esfera
jurídica: este processo é feito de forma abstrata, definindo‐se por
traços hipotéticos.
Mas o Direito não se realiza plenamente nesta dimensão geral e
abstrata. Encontramos esta dimensão quando temos um conjunto de
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enunciados positivados num texto e articulados através de disposições
que têm determinação em geral e abstrato de sujeitos e objetos, mas
isto só por si não é Direito. O Direito só se realiza e só atinge todo o
seu sentido quando confronta estes enunciados linguísticos com as
situações reais nas quais será aplicado. São normas em potencial que
só depois de confrontadas com o respetivo objeto é que conseguem ter
verdadeiramente um sentido normativo. A realidade social que
convoca o Direito e que lhe pede que desempenhe determinadas
funções é sempre concreta e individual. Esta realidade interage com a
ordem geral e abstrata num sentido biunívoco. A determinação do
sentido das normas só se faz com a presença, com a tomada de
consciência, da realidade individual e concreta. Funciona como um
círculo. O sentido da ordem jurídica geral e abstrata não é um dado
pré-definido que possa ser imutável, mesmo sem a modificação de
qualquer disposição legal vigente, porque o confronto com a realidade
das relações sociais e económicas e a evolução da mesma vai
influenciar a determinação do alcance do conteúdo das normas gerais
e abstratas. Não há aplicação unívoca destas normas gerais e abstratas
à realidade.
A consciência axiológica está presente na ordem jurídica no seu
conjunto, nos seus princípios fundamentais de ordenação. Quando
pensamos em princípio de Estado de Direito, pensamos na inspiração
deste conjunto de valores fundamentais que a sociedade construiu ao
longo da História. Há que ter sempre a realidade e o contexto social
construído histórico e espacialmente como elementos fundamentais na
construção do Direito. Nas situações de maior dificuldade é a esse
conjunto de valores fundamentais que recorremos para construir
soluções concretas na ausência da ordem geral e abstrata. Não
podemos compreender o Direito sem perceber o contexto axiológico
social. O Direito é compreendido como construção judicativa –
construção jurídica concreta, quando é em concreto declarado. O
Direito tem esta vocação concreta, não pode pretender situar-se numa
esfera abstrata, porque quando o não for capaz de ter essa função
judicativa concreta, deixa de conseguir realizar a sua função de
resolução de conflitos concretos. Não basta conhecer um código, a
nossa aptidão jurídica está na capacidade de articular as normas com
as situações que exigem que o Direito desempenhe alguma função que
se aplique concretamente.
Não há um Direito estático, está sempre a modificar-se. O Direito é
uma instância dinâmica que, além do referente normativo, se constitui

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(constituição permanente). Esta realidade, como individual e concreta
que é, tem nuances que, neste diálogo com as normas abstratas, vão
mostrando novas matrizes e vão obrigando a uma constante adaptação
da ordem geral e abstrata e das instituições a quem compete assegurar
as funções do Direito. A âncora do válido formal (determinado por
procedimentos assegurados pelo Direito) do dever-ser, é válido no
contexto social, tem validade fundamental. O Direito, perante as
funções que desempenha na sociedade e que são suas, obriga‐se a
estar permanentemente aberto às outras ordens sociais.
 Os valores humanos transpositivos como fundamento
constitutivo da validade da ordem objetivada
 A intenção regulativa em ordem à Justiça (suum…) –
dimensão problemático-axiológica
 A (re)constituição crítico-praxeológica permanente
 A autonomia do Direito é a autonomia da “pessoa” numa
relação dialógica intersubjetiva (entre “sujeitos”) – a
consciência jurídica geral… (inalienabilidade, dignidade,
consciência, liberdade, responsabilidade)
Os traços fundamentais constitutivos desta relação dialógica subjetiva,
desta estruturação do Direito com base na intersubjetividade, são:
inalienabilidade da dignidade, da natureza que todos os seres humanos
têm que os torna sujeitos de direito, seja em que momento ou lugar
for; afirmação da liberdade e consciência e decorrências do mesmo;
responsabilidade, pois é inerente ao sujeito de direito esta vinculação
ao respeito pelas esferas jurídicas alheias de todos os outros sujeitos
da sociedade.
 O modo de ser do Direito implica um vai-vem da ordem ao
caso (realidade), ambos integrados no sistema jurídico

Finalidades do Direito

 FINS DO DIREITO: o dilema Justiça e


Segurança/Estabilidade; o bem-estar social?
A essência do Direito é marcada pelos valores que o orientam – a
justiça e a segurança.
- A Justiça como “razão suficiente” do Direito: a justiça será
uma razão suficiente do Direito, ainda que por ventura possa
não ser a razão eficiente (porque tem que se habituar e

18
confrontar com outros fins que também tradicionalmente foram
apontados ao Direito).
- A Justiça como virtude individual (perspetiva subjetiva) e
como valor/ideal (perspetiva objetiva): a justiça é claramente
uma virtude individual, não é algo que seja fácil de definir. É
também um referente que servirá de parâmetro para a realização
de um caso em concreto do Direito (nas suas múltiplas funções:
resolução de litígios, institucionalização e legitimação do poder
no quadro fundamental da Constituição, etc).
- A definição de Ulpiano: “perpétua e constante vontade de dar a
cada um o seu direito”;
- Cícero: “A disposição de espírito que, respeitando a utilidade
comum, atribui a cada um o seu valor”;
- Segurança: equivale a ordem e tranquilidade, que o Direito
garante reprimindo os atos de agressão contra pessoas e bens.
 A Justiça como essência/intenção - a ‘fórmula de Radbruch’
O conflito entre a justiça e a certeza da lei deve ser resolvido a favor
do direito positivo, lei promulgada pelo poder e autoridade legítima,
mesmo quando é injusta no seu conteúdo e finalidade, exceto para os
casos em que a discrepância entre o direito positivo e a justiça atinge
um nível tão insuportável que a lei deve abrir caminho para a justiça
(…). É impossível traçar uma linha nítida de demarcação entre os
casos de injustiça legal e leis que são aplicáveis apesar do seu
conteúdo injusto; no entanto, uma outra linha de demarcação pode ser
estabelecida com nitidez: onde a justiça não é sequer tentada, onde a
igualdade, que é o núcleo da justiça, foi repudiada no processo de
legislação, há um ato que não é apenas "lei incorreta”, mas um facto
que não tem de todo natureza jurídica. Isso porque a lei, o direito
positivo, não pode ser definido de outra forma senão como regra que
visa, precisamente, servir a justiça.
A justiça, nesta medida, não é algo que se demonstre nem de modo
fáctico nem normativo estrito. A justiça é um ideal de equilíbrio, um
referente axiológico. Nesta medida, é essencialmente uma essência e
uma intenção (conceção contemporânea pós-positivismo), e é difícil
dar uma definição positiva de justiça. No entanto, é fácil, olhando para
a ordem jurídica, perceber o potencial de injustiça e o resultado de
ações injustas, pois ferem a intenção referente à justiça.

19
Finalidades do Direito - Justiça

 Dimensões da Justiça:
- Justiça geral – virtude individual na sua integração e relação
intersubjetiva: Justiça geral é a justiça que liga cada indivíduo à
sociedade (o contributo que a sociedade pode exigir dos seus
membros).
- Justiça particular ou legal – segundo a equidade e a lei,
correspondendo a igualdade de proporções corretiva/comutativa
(aritmética) ou distributiva (geométrica)
Justiça particular ou legal, decorrência da virtude, concretização
nas relações interpessoais, na relação entre sujeitos de direito
iguais. Há um equilíbrio aritmético, a justiça como equilíbrio:
proporção daquilo que cada um pode exigir de direito e tem de
contribuir também de direito.
Justiça comutativa: o equilíbrio horizontal é chamado de
sinalagmático, e é associado à justiça aritmética - há uma
relação comutativa, igualdade em que aquilo que é devido a uma
das partes, tem um correspondente de valor devido daquilo que
é devido à outra parte (a prestação de um está diretamente
dependente da contraprestação de outro).
Justiça distributiva: justa repartição das riquezas, dos cargos e
dos privilégios entre todos os cidadãos. É geométrica porque o
mérito dos membros da sociedade não é igual: a prestação de
um e aquilo que são direitos e deveres correspetivos não são
necessariamente idênticos, podem ser diferentes de acordo com
o mérito ou contribuições dadas.
 Elementos estruturais da justiça: personalidade; igualdade;
liberdade; reciprocidade; imparcialidade
 JUSTIÇA E EQUIDADE
- A Equidade como a “justiça do caso concreto” - a função
moderadora da equidade; a equidade como princípio; a decisão
ex eaquo et bono (artigo 4º do CC)
A equidade é efetivamente uma manifestação da justiça, mas de
uma justiça concreta, que vale no quadro da justiça particular
apenas e não da justiça geral (aplicada conforme as
circunstâncias específicas de cada caso). A equidade não é um
conceito unívoco; aponta para a dimensão de equilíbrio e
20
reciprocidade, porque nem sempre o que pertence a cada um é
necessariamente equitativo repartido de modo igual. Vemos
equidade como repartição igualitária dos direitos, prejuízos,
deveres. Numa dimensão horizontal, é uma dimensão de
preservação da justiça comutativa de proporção aritmética.
A noção de um equilíbrio concreto historicamente situado,
casuisticamente, pode servir para moderar aquilo que sejam
resultados iníquos das regras legais. Tem de se admitir que o
Direito possa traduzir resultados iníquos, mas ainda assim ser
um Direito imperativo; só quando a norma é contra o Direito é
legítimo afastar a norma legal para fazer valer a justiça. É essa
(equidade) a função complementar que pode passar pela
correção das iniquidades que resultam da formulação da lei, por
exemplo.
A equidade como princípio é complementar da lei;
essencialmente, serve para complementar a lei naquilo que são
as suas dimensões de concretização que não podem ser, em
abstrato, estabelecidas. Permite flexibilizar na aplicação as
regras jurídicas, permitindo perceber quais os contornos
particulares e adaptar a regra legal àquela situação concreta.
Não está dependente da vontade das partes (é a lei que
determina que o julgador utilizará princípios de equidade).
Equidade como princípio de proporcionalidade: aplicação da
equidade como complemento das normas legais. Por exemplo,
na fixação das indemnizações, nomeadamente quanto a danos
morais, arbitra-se um valor que seja compensador de todo o
sofrimento. Ora, este valor só pode ser fixado à luz de juízos
equitativos. Por isso, a lei nunca é suficiente para garantir a
justiça plenamente.
Equidade como ex eaquo et bono: como forma de resolução de
situações que exigem intervenção jurídica. A possibilidade de
resolução de litígios nos tribunais através da equidade tem que
estar prevista, e é então possível decidir à luz da mesma
(afastando a aplicação das normas legais). Concretização da
justiça que não tem mediação normativa nenhuma, que acata
riscos de subjetivismo (porque resulta de um juízo do julgador
sem qualquer suporte legal ou base normativa). Equidade
(decisão justa) à margem das regras legais, é uma decisão
concreta que não é passível de ser usada num outro caso, pois só

21
é justiça por contemplar as especificidades do caso concreto,
servindo apenas para aquele caso.

Finalidades do Direito – Segurança

 As dimensões da segurança:
- Paz e ordem social
A existência de ordem jurídica vigente, integrada num sistema
jurídico dotado de instituições que a garante, assegura a paz e
ordem social fundamental à vida em sociedade.
- Certeza jurídica
O direito garante a certeza - é fundamental esta ordem porque dá
ferramentas a cada um para saber, no desenvolvimento da sua
vida e relações com os outros, como governar a sua vida
mediante condutas identificadas com as normas jurídicas
vigentes. Esta é uma dimensão fundamental, que é assegurada
com o constitucionalismo. A lei é importante como fonte de
direito porque é escrita e só entra em vigor depois de publicada,
permitindo aos seus destinatários saber quais as regras que
regem determinada situação e relação jurídica. Finalmente, a
segurança e certeza do direito é ainda caucionada pelo princípio
da não retroatividade da lei (proteção dos direitos adquiridos e
das expetativas legítimas).
- Segurança contra o Estado
Segurança jurídica em sentido estrito por parte do Estado.
Proteção dos direitos e liberdades dos cidadãos contra eventuais
arbitrariedades dos poderes públicos, ligada à ideia de Estado de
Direito. Resultado de várias técnicas de limitação do poder
político e defesa dos direitos, liberdades e garantias contra
intromissões ou intervenções públicas. Cumprimento, por parte
do Estado, do princípio da legalidade.
 A polaridade Justiça / Segurança – exemplos (caducidade de
direitos; a resolução ou modificação dos contratos por
alteração fundamental das circunstâncias)
A justiça puramente ideal e desacompanhada de segurança
revelar-se-ia desprovida de qualquer eficácia, não passando de
uma mera intenção; igualmente, uma segurança sem justiça
representaria uma infeliz demonstração de força. A
consideração única pela justiça conduz à instabilidade da vida
22
social, enquanto que a prevalência absoluta da segurança
transforma a ordem social em opressão.
Caducidade de direitos: a prescrição atua sobre direitos que já
estão plenamente na titularidade do sujeito e acabam por ser
eliminados, enquanto a caducidade atua essencialmente na
aquisição de direitos. O cidadão tem um prazo para intentar uma
ação em juízo, se não o faz dentro desse prazo perde a
possibilidade de efetivar a tutela jurisdicional dos seus direitos.
Por exemplo: na faculdade há o direito de pedir uma segunda
avaliação; para tal, impõem-se condições, nomeadamente
prazos; esses prazos são uma condição para que se possa exercer
o direito à avaliação e, portanto, têm que ser cumpridos; se um
estudante não os cumprir abdica do direito de ser avaliado uma
segunda vez – caduca o seu direito à realização do exame por
não ter realizado os atos previstos para o exercício desse mesmo
direito. Este instituto não é propriamente justo mas é necessário
por razões de segurança e certeza do Direito (a ordem jurídica
não pode ficar eternamente à espera).
Resolução ou modificação dos contratos por alteração
fundamental das circunstâncias: um contrato é a concretização,
nas relações particulares, do que é a justiça, uma vez que são as
próprias partes a definir o que é que é devido a cada um (justiça
sinalagmática). No contexto do cumprimento de um contrato
podem surgir situações que alteram as circunstâncias - pode
haver uma modificação de tal ordem que se considere que ela
torna desequilibrado o inicialmente considerado justo pelas
partes. Neste caso, pode entender-se que aquela parte cuja
obrigação é agora injustificada, pode requerer a resolução do
contrato e a respetiva devolução daquilo que foi prestado, ou
então a respetiva modificação (alteração das condições do
contrato para tornar a ser justo).
 A prevalência da Justiça como fundamento e instância de
validade do Direito
Todos estes fins têm de ser prosseguidos em simultâneo e,
portanto, todos devem ser harmonizados, na lei e na prática. As
normas jurídicas procuram encontrar um equilíbrio entre justiça e
segurança. Cabe ao legislador limitar ao mínimo necessário os casos
de prevalência da segurança sobre a justiça e regular a matéria pela
forma menos gravosa para a justiça.

23
SISTEMAS JURÍDICOS NO MUNDO
Os sistemas jurídicos no mundo: as grandes “famílias”

Existem cerca de 200 ordens jurídicas estaduais. Esta realidade plural


mostra que existem alguns traços de afinidade que resultam de
múltiplos fatores, os quais revelam que o Direito é uma realidade
cultural. Na atualidade verifica-se uma convergência dos sistemas
jurídicos baseada na realidade ocidental.
 OBJETIVOS
Os objetivos da criação dos sistemas jurídicos prendem-se com a
compreensão da realidade jurídica em termos globais, a compreensão
das fontes e dos institutos, como a ordem jurídica entra em
comparação e as influências (apesar da sua autonomia e
independência).
 CRITÉRIOS
 Civilizacionais
Elementos civilizacionais e culturais como fatores de
distinção dos sistemas jurídicos. Hoje em dia, é um critério
com pouca relevância (insuficiente), nomeadamente em
virtude de fenómenos como a globalização.
 Ideológicos
Assenta numa natureza de pré-conceitos políticos. Justificava-
se a sua utilização durante a Guerra Fria, pois havia um
conjunto de países orientados por uma forte ideologia política
que influenciava o ordenamento jurídico. A matriz ideológica
foi ultrapassada pela própria história do mundo.
 Históricos
Evolução da história em cada sistema, tentativa de perceber o
que se alterou.
 Religioso
 Normativo-formais (fontes e “estilo”)
Fontes de Direito e toda a forma como o mesmo é criado ou
aplicado/exercido.
 Normativo-substanciais (institutos e princípios)
Solução dada pelo Direito a determinadas questões.
 LIMITES DA CLASSIFICAÇÃO (a pluriformidade dos
sistemas; a complexidade; as interinfluências)
Há limites pois apontam-se categorias que são determinadas por
critérios gerais incapazes de compreender de modo exaustivo o

24
sistema. Há sempre conjunturas que tornam o sistema pluriforme. A
história da Europa continental é uma história de influências recíprocas
ditadas pela religião, comércio, alianças politicas. Temos que
compreender que o nosso constitucionalismo no século XIX foi
influenciado pelo Reino Unido.
 A COMPARAÇÃO JURÍDICA – Função, perspetivas
comparatísticas e métodos.
O Direito comparado consiste no confronto das várias ordens
jurídicas, ressaltando as suas analogias e as suas diferenças. A ciência
do Direito comparado procura compreender e explicar os elementos
fundamentais que caracterizam cada ordem jurídica e agrupá-la com
outras com características semelhantes e distingui-las das que se
opõem. Comparação jurídica:
- macro comparação: perspetiva os vários sistemas jurídicos como um
todo, na sua generalidade e globalidade
- micro comparação: distingue e compara os vários institutos em
particular, pormenorizadamente
 AS “FAMÍLIAS JURÍDICAS”
 OS SISTEMAS ROMANO-GERMÂNICOS
 OS SISTEMAS DE ‘COMMON LAW’
§ OS SISTEMAS HÍBRIDOS (Escócia, África do Sul, Quebec,
Louisianna)
 OS SISTEMAS NÓRDICOS (referência)
 OS SISTEMAS ISLÂMICOS
 OS SISTEMAS ASIÁTICOS – CHINA, ÍNDIA E JAPÃO
 OS SISTEMAS AFRICANOS
Os sistemas híbridos
A Escócia, o Quebec, o Louisianna e a África do Sul são sistemas
mistos.
O Quebec tem fontes de Direito próprias e distintas do resto do
Canadá. O modo de realizar o Direito inspira-se no modo continental
europeu.
A Escócia rege-se por fontes de Direito distintas.
A África do Sul, dominada pelos britânicos até ao século XIX, está
rodeada de Estados que se inspiram no modelo continental, o que a
aproxima deste modelo.
Os sistemas nórdicos
Verifica-se uma conexão do critério histórico com o desenvolvimento
dos sistemas nórdicos (sistemas romano-germânicos nos instrumentos
fundamentais). Até ao século XVII, eram espaços, do ponto de vista
25
de organização política, que não integravam as alianças que marcavam
o espaço europeu. Aqueles povos eram cristãos mas não tinham o grau
de desenvolvimento e sofisticação social que o resto dos Estados
europeus já tinham. A partir do século XVII mudou. Descartes foi o
autor desta mudança, pois procurou transmitir à rainha da Suécia todo
o ensinamento racional filosófico.
Nota: é de referir que não há uma família soviética (se houvesse seria
assente apenas num critério político). Os Estados filiados
politicamente da antiga URSS eram formas de organização política,
económica e social marcadas pela ideologia marxista-leninista.

Os sistemas romano-germânicos

Onde se integra, em princípio, o sistema jurídico português -


inspiração nos sistemas jurídicos continentais
 Âmbito geográfico: Europa continental não nórdica (e Ásia
russa); América latina.
 Critérios:
 Histórico - o Direito romano
O critério histórico diz-nos que este sistema é influenciado
pelo Direito Romano (da fase imperial/tardia), consequência
da romanização dos povos bárbaros. Para além disso, verifica-
se também uma relevante influência do Direito Canônico.
 Fontes – a lei
A fonte deste sistema é, indiscutivelmente, a lei (como ato
unilateral escrito que é ditado através de regras gerais e
abstratas para a generalidade dos sujeitos jurídicos). Esta foi
capaz de enquadrar toda a realidade de modo pleno,
afirmando-se particularmente útil no processo de
centralização e autonomia dos Estados.
 “Estilo” – dogmática geral-abstrata e método lógico-dedutivo
O seu estilo (forma como o Direito é pensado e realizado)
compreende a dogmática geral-abstrata (que se afirma com o
positivismo do século XIX) e o método lógico-dedutivo
assenta na ideia de que a lei é geral e abstrata e, dessa
maneira, encontrar-se-á uma solução jurídica para cada caso
previsto na lei. A sua aplicação lógico-dedutiva implica
avançar de uma premissa geral para outra particular. O Direito
é uma criação abstrata que se aplica aos casos concretos – é
um objeto para regular a sociedade.
26
Os sistemas da “common law”

Também conhecido como Direito anglo-saxónico.


 Âmbito geográfico: Reino Unido (com exceção da Escócia);
Irlanda; EUA; Commonwealth
 Critérios
 Fontes – costume, jurisprudência (regra do precedente
obrigatório dos tribunais superiores – ratio decidendie
staredecisis);
Common law, isto é, o Direito comum, resulta do
reconhecimento do poder normativo espontâneo. A criação do
direito é produto do costume e da respetiva aplicação pelos
tribunais (sobretudo os tribunais superiores, cujas decisões
têm valor de precedente obrigatório). O precedente não é uma
decisão do caso concreto, mas antes uma ferramenta para que,
noutro caso com natureza idêntica, haja ratio decidendi –
fundamentação da decisão – e stare decisis – a decisão
propriamente dita. Num sistema jurídico cuja fonte normativa
é o costume, há a necessidade de, aquando da
complexificação da sociedade, se criar alguma
institucionalização. O costume só se manteve como fonte de
Direito ao longo dos séculos devido ao trabalho da
jurisprudência, nomeadamente quanto à aplicação das leis
consuetudinárias.
 Estilo – dogmática e praxis casuística, método indutivo
É utilizado um estilo dogmático e de praxis casuística, bem
como um método indutivo. Isto significa que se parte do caso
concreto e deste para o geral. Através de um processo de
indução e generalização, parte-se do particular para o
universal.
Os sistemas romano-germânicos e anglo-saxónico,
civilizacionalmente, têm a mesma base, uma vez que estas
civilizações integraram, desde sempre, o meio europeu. Entre as
diferenças entre os dois sistemas contam-se as fontes de Direito que
cada um utiliza e o modo como se entende a construção do sistema
jurídico.

27
Os sistemas islâmicos

Nos seus primórdios, este sistema era limitado e baseava-se na


religião. Com o processo de descolonização, contudo, verifica-se a
criação dos sistemas jurídicos inspirados nos europeus (uma espécie
de ocidentalização forçada). No entanto, na atualidade, há um retorno
e uma islamização progressiva com o crescimento da sua afirmação
religiosa. O sistema continua a assentar numa autonomia do Direito,
mas muito limitada.
 Âmbito geográfico: África e Ásia (Estados islâmicos)
O sistema jurídico islâmico compreende uma jurisdição
predominante nos países em que a maioria da população é
muçulmana.
 Fontes: o Direito não é autónomo da Religião, pelo que as
principais fontes são a Sharia (‘lei revelada’ no Alcorão) e a
Sunna (tradição)
O Direito não é autónomo face à religião.

Os sistemas asiáticos
O Direito hindu

A Índia não era uma realidade unitária, pelo que a ordem da sociedade
era resultado de um conjunto de normas híbridas, postulados
desenvolvidos por personalidades que tinham sido ímpares na história
hindu. O direito legitima-se integrado na ordem social de natureza
cosmológica e eterna. Revela-se através da tradição (consuetudinário)
e incumbe-se de organizar as pessoas de acordo com a origem
segundo castas. Nunca os portugueses conseguiram impor a sua
presença usando a força, na medida em que se depararam com
sociedades estruturadas e bastante complexas. Mais tarde, dada a
presença efetiva dos ingleses não só em população, mas também pelo
advento da organização administrativa imperial do Reino Unido,
verifica-se uma ocidentalização crescente (século XIX). A influência
ocidental faz-se sentir no direito, sobretudo por intermédio da
Common Law. A Índia, desde a sua independência, se arroga ser a
maior democracia do mundo.
 Não existe o conceito de ‘Direito’; o Dharma (conjunto de
regras/deveres de natureza híbrida – moral, religiosa, social
– que regem a sociedade) revelado no Veda (e parcialmente
reduzido a escrito) inscrito na tradição e no costume social
28
 A ‘ocidentalização’ crescente

O Direito chinês

 A tradição: Sistema jurídico-filosófico sincrético assente no


‘Li’ (conjunto de regras/deveres sociais desenvolvidos pela
tradição) e no ‘Fa’ (conjunto de regras heterónomas, gerais
e abstratas, impostas pelo poder).
O sistema jurídico chinês tem origem no confucionismo –
corrente ético-filosófica chinesa – com base no costume e na tradição,
opondo-se à rigidez das leis.
 A ‘Revolução popular’ e a ‘abolição’ do Direito
A “Revolução popular” data do ano de 1962. Entretanto, em
1966 é dado o grande salto em frente com a rutura com o marxismo-
leninismo: a proposta do maoísmo, um sistema perpetrado por Mao
Tsé Tung, que passava pela imposição de instituições e de regras que
assentavam no poder do Partido Único chinês, com a recusa do Estado
de Direito (sempre à luz de um quadro ideológico comunista.
Instaurou-se um regime que provocou milhões de mortes,
universidades encerradas e alunos enviados para trabalhar no campo
com condições lúgubres, além dos múltiplos fuzilamentos.
Queimaram-se os livros antigos que marcaram a história chinesa. Mao
Tsé Tung falece em 1976 e, a partir daí, dá-se uma maior abertura,
nomeadamente no estabelecimento de ligações com as potências
ocidentais.
 O retorno a um Estado de Direito – a prevalência da lei e a
conciliação com a tradição.
Ao longo dos séculos, procede a codificações e à introdução de
princípios jurídicos ocidentais. Verifica-se uma harmonia dos
costumes com o novo sistema jurídico chinês ocidentalizado.

O Direito japonês

 O sistema tradicional (influenciado pelo sistema chinês,


partilha a mesma mundividência); desenvolvimento de uma
organização político-jurídica feudal
O sistema jurídico japonês caracteriza-se, inicialmente, pela
tradição feudalista e pela ausência de Direito, que não passava de
instruções dadas pelos superiores aos inferiores.

29
 A modernização económico-jurídica ‘ocidentalizante’ a
partir do século XIX; a ‘ocidentalização’ jurídica após a II
Guerra Mundial
Verifica-se, no entanto, uma crescente ocidentalização, na qual
se assiste a um corte total com o passado no que toca ao pensamento
jurídico; o Estado feudal é substituído pelo Estado democrático e a
legislação moderna aproxima o Japão dos Direitos romano-
germânicos.

Os sistemas africanos

No que diz respeito ao sistema jurídico africano, é necessário que seja


analisado sob uma só perspetiva, ainda que diferem dentro de cada
grupo étnico.
 Os sistemas jurídicos ‘primitivos” - as múltiplas tradições
tribais costumeiras; o sincretismo jurídico-social-natural-
religioso.
Tendencialmente, estas famílias eram qualificadas como
organizações humanas, sistemas primitivos, que os europeus
encontraram em África e procuraram enquadrar. O costume é a fonte
de Direito primordial, ao qual se submetem espontaneamente
prestando culto aos antepassados e não estando escritas as normas
jurídicas. Parecia que a ordem que ditava essas organizações era uma
ordem com múltipla natureza, simultaneamente religiosa, social,
natural, o que, para os europeus, aparentava ser uma ausência de
desenvolvimento. Assim, interpretaram que esta realidade exigia
civilização.
 A ‘ocidentalização’ imposta pelo colonialismo (desenraizada
e desigualitária)
Esta ocidentalização que é imposta a partir do século XX com
grande força, não contempla as realidades africanas como válidas.
Podem admiti-las, convivendo com elas, mas procuraram manipulá-
las, para atingir objetivos de imposição do modelo europeu. Só na
década de 60, em Portugal, se elimina o estatuto de indigenato,
elevando todos ao mesmo estatuto de cidadania. O corte com os
Estados europeus foi em grande medida um corte jurídico, uma
primeira recusa da integração do modelo ocidental. Em muitos dos
novos Estados africanos passou a viver-se um conflito interno que
refletia o conflito entre o ocidente europeu e o leste soviético. O fim
da colonização foi apoiado pela ideologia da esfera soviética, contra
30
os ocidentais apelidados de capitalistas. Há então uma recusa do
modelo do colonizador e a imposição, totalmente desenraizada, de
lógicas importadas do modelo soviético, pura estrutura ideológica,
articulada com tradições de liderança que ainda advinham do
sincretismo anterior. Criam-se Estados seriamente criticáveis no ponto
de vista dos direitos individuais.
 A ‘ocidentalização’ pós-colonial (a difícil conciliação entre a
modernidade e a tradição nas experiências pós-
independentistas) – a aproximação às famílias ‘romano-
germânica’ e da ‘Common Law’.

A convergência dos sistemas

A convergência entre os sistemas romano-germânicos e os sistemas de


“Common Law” tem sido realizado sob duas tendências de
aproximação mútua e recíproca, isto é, um sistema não se impõe sobre
o outro. Há uma maior aproximação, apesar de tudo, ao modelo
romano pela prevalência da Lei enquanto fonte de Direito,
transmissora de maior segurança.
Todas as famílias tendem para a convergência e, neste processo de
globalização ocidental, o futuro poderá afigurar-se mais homogéneo.
 A convergência entre os sistemas romano-germânicos e os
sistemas de “common law”
Há com certeza uma história diferente, modelos diferentes que,
pelas afinidades e distinções, se poderão agregar em famílias. Mas, o
que existe nos dias de hoje quando olhamos para o mundo, é uma
convergência entre os vários sistemas. A convergência entre a
common law e a civil law influencia os restantes.
 Fatores e indícios de aproximação
O processo de ocidentalização, ou seja, o domínio do sistema
jurídico ocidental concretizou-se:
- num primeiro momento, pela colonização
- num segundo momento, pela internacionalização
 Em especial, a “europeização” – a OCDE, a CEDH, e
particularmente a UE
Se o Reino Unido era totalmente avesso à codificação das
normas, por considerar esse método insuficiente, a sua adesão
à UE levou a uma proliferação de um maior número de
códigos e, agora, cada vez mais se integra no Direito Europeu
31
(law of the land) que se reconduz à forma de Lei ditada
unilateralmente pela política. É a realidade da europeização
que nos traz a estes acontecimentos.
 A globalização jurídica (induzida pela economia e comércio
internacionais, pela promoção da democracia e do Estado de
direito e dos direitos humanos) – o papel da ONU
A globalização jurídica é garantida pela criação de Direito
Internacional e de instituições internacionais, como forma de
responder às necessidades advindas, por sua vez, da globalização
económica e comercial.
Atualmente, os sistemas nacionais procuram integrar-se,
convergir com o Direito Internacional.
Simultaneamente, assiste-se à globalização da democracia, do
Estado de Direito e dos direitos humanos, numa expressão do anseio
generalizado pela criação de sociedades democráticos e
reconhecimento de direitos individuais fundamentais. Estamos perante
um verdadeiro processo de democratização, e, mais, de
ocidentalização.
O papel da ONU tem sido determinante neste sentido, ao efetuar
um desenvolvimento lento e sistemático da aproximação dos
países a nível jurídico.
 A “constitucionalização” e a “codificação”
As próprias circunstâncias atuais favorecem o predomínio da
Lei: as sociedades tornaram-se de tal modo complexas que
necessitam de uma regulação mais elaborada, extensa. O
costume não se consegue adaptar às exigências da “nova”
sociedade. Deste modo, a Lei ganha espaço a favor da criação
de normas, algo notório em cada país desenvolvido,
industrializado, verificando-se, efetivamente, até, como já foi
referido, uma aproximação dos sistemas de “Common Law”
ao modelo romano.
Por outro lado, o inverso também sucede, ainda que de forma
não tão notória, através do reconhecimento crescente da
jurisprudência pela constitucionalização e pelo Tribunal
Constitucional, a quem compete, em última instância,
interpretar a norma constitucional, num método próximo ao
da jurisprudência, ao contrário do que é tradicional. Além
disso, o Direito é efetivado pelos Tribunais, pelo que também
assim se denota o quanto a jurisprudência é fundamental para
a identificação dos sistemas jurídicos.
32
Os Estados dotam-se cada vez mais de Constituições formais
e a expansão da codificação pelos mesmos é uma realidade
cada vez mais clara, dando contornos ao desejo de
sistematização do Direito através da Lei.

I. PERCURSO HISTÓRICO. A HISTÓRIA


DO PENSAMENTO JURÍDICO
OCIDENTAL.

Fases fundamentais:
1- Da antiguidade à modernidade
2- Modernidade
3- Contemporaneidade

Da antiguidade à modernidade

Partilha de elementos comuns fundamentais relativamente ao Direito.


 Elementos perenes
Elementos que se vêm formando de trás e se vão sedimentando
até à modernidade).
 Autonomia do Direito integrada numa ordem mais global (seja
imanente, quando presente na realidade social, seja
transcendente, se diz respeito a uma ordem que não é humana,
que é dada, podendo ser divina ou apenas exterior à sociedade
humana) – esta é uma característica específica do ocidente, que
se reflete, por exemplo, na autonomização do sistema jurídico
 Natureza societária e “pessoal” do Direito
O direito é uma manifestação da autonomia e da liberdade do
ser humano, um produto da vontade (deliberação/razão). Para
além disso, a sua aplicação é feita de pessoa para pessoa.
Ainda assim, há uma ordem social para lá do Direito.

33
 Polos gravitacionais (que se afirmam e que continuam até à
época contemporânea)
Polos que condicionam o pensamento jurídico, que oscila
tendencialmente entre eles, sendo que, por vezes prevalece um em
relação a outro, havendo também tendencial equilíbrio entre os dois
polos.
 Idealismo (fundamento e critério) VS Positivismo
Ordem axiológica inerente à sociedade humana e de qualquer
direito positivo, isto é, o direito não se reduz a normas
jurídicas.
Este polo predominou até à Idade Clássica. O direito é a regra
posta (o direito que socialmente vigora; seja de uma
convenção, seja de um ato unilateral do poder).
 Individualismo VS “Comunitarismo”
Este polo prevalece até aos dias de hoje.
O comunitarismo, diluição do cidadão nos organismos
comunitários, é típico da idade média, uma vez que, nessa
época, havia uma ordem natural que constituía a sociedade e a
dividia em diferentes categorias. Ainda assim, no século XX,
sob formulações novas, voltam a surgir perspetivas
comunitaristas. A sociedade é vista, pelo comunitarismo,
como uma entidade com existência independente dos seus
membros, ou seja, que possui um sentido próprio.
Por sua vez, o individualismo é próprio da modernidade, em
que existe um reconhecimento da pessoa, que é alfa e ómega
do direito, uma vez que é, simultaneamente, criadora de
direito e a realidade em função da qual todo o sentido do
direito é pensado.
 Ratio natural VS Voluntas
O direito será apenas o conjunto de normas feito por um
organismo ou será algo com sentido independente dessa
organização que faz as normas jurídicas? O direito, produto
da razão, assenta na vontade dos indivíduos manifestada num
ato concreto. Há um direito universal porque a razão também
é universal.
 Justiça VS Estabilidade/Ordem
Será o direito um sistema normativo com o intuito da justiça
ou da estabilidade, ordem e segurança? Podem e devem
existir em simultâneo, enquanto finalidades do direito. O

34
direito visa garantir a estabilidade e a ordem e, por isso, a sua
finalidade última é a segurança, a certeza jurídica.

O pensamento jurídico na Antiguidade Clássica

 § TEXTOS EXEMPLARES (A República, de Platão; A


Ética, de Aristóteles; Antígona, de Sófocles)
 O pensamento grego:
 O idealismo universal ontológico (uma ordem de validade
fundada em valores a-históricos integrada numa ordem
cosmológica a-histórica)
O pensamento jurídico é pensado com um fundamento numa
ordem de validade com valores a-históricos (que não fizeram
parte de um processo histórico), integrados numa ordem
cosmológica a-histórica, isto é, uma ordem natural imanente
que dita a ordem do mundo, do cosmos e da sociedade (onde
se inclui também a ordem jurídica).
 O relativismo e o voluntarismo da ordem jurídica humana
independente de uma ordem natural - a contraposição physis
(natureza)/nomos (lei humana) dos Sofistas
Ideia de que o direito, ainda que integrado numa ordem
natural mais vasta, é também essencialmente e de modo direto
uma criação social na polis. Essa forma de organização
política essencial das comunidades humanas (especialmente
das helénicas), a polis, acaba por se traduzir na criação de
normas jurídicas (surgem os primeiros elementos de
voluntarismo do direito: a par desta ordem considerada
natural involuntária, surge uma ordem humana voluntária,
social, como deliberação do poder). Assim, o direito é
essencialmente produto da razão voluntária, mas deverá ser
também produto dessa ordem natural, sendo independente
desta última, isto é, tendo legitimidade autónoma –
contraposição do pensamento Socrático (physis - natureza)
com o pensamento Sofístico (nomos – lei humana).
 O Direito integrado num continuum “ideal-ontológico a-
histórico” e “humano” (com todos os seus dilemas, tragédias
e riscos)
 O “idealismo realista” de Aristóteles (e a relação derivada
direta do justo natural/ideal do justo legal/humano-social: o

35
direito positivo é manifestação histórica e contingente do
direito natural)
O direito positivo é uma manifestação concreta, quotidiana
dessa ordem natural, não se contrapondo a ela; há um justo
natural – ordem universal cosmológica de fundamento
transcendente – e um justo humano, fruto de uma sociedade
bem organizada. Por isso, Aristóteles centrou-se na
preocupação de qual o melhor regime de governo, para
permitir a escolha daquele que melhor garantiria a
correspondência entre essa ordem humana e o justo natural.
 O pensamento romano (a plena autonomização do Direito
em relação à Filosofia)
 Pragmático
Verifica-se um entendimento pragmático pelos romanos da
ordem jurídica: ordem de organização da sociedade cuja
função é permitir à sociedade romana viver em paz e
estabilidade.
 Não universalista (distinção entre ius naturale/ius gentium e
ius civile/direito positivo, voluntário), embora entendendo
haver uma ordem natural universal (“realismo ideal”)
Os romanos mantinham dos gregos a conceção de ordem
natural também jurídica. No entanto, essa ordem natural
revelava-se juridicamente no direito dos povos. O ius naturale
correspondia ao ius gentium que regulava todos os povos e
relações entre os povos romanos e não romanos. Enquanto
sociedade altamente complexa e institucionalizada, os
romanos foram capazes de distinguir, e de forma muito nítida,
esse quadro do direito natural do direito positivo, da sua
sociedade política organizada. O ius civile era o direito dos
cidadãos romanos, essencialmente o direito positivo, criado e
institucionalizado na sociedade romana, mas que não corta em
absoluto com o direito natural. Através da organização
política e de instituições, os romanos foram capazes de dotar a
sociedade de direito positivo autónomo, que não tinha que se
articular com o direito natural, dado que era uma
manifestação da justiça independentemente dessa referência
permanente ao direito natural.
 O desenvolvimento “prudente” da Justiça através do qual o
direito positivo alcança e concretiza o direito natural (aqui
como ordem a-histórica de toda a realidade que fundamenta
36
quer o ius gentium, quer o ius civile) – o Direito como
iurisprudentia (doutrina/pensamento jurídico)
Sobretudo aquilo que os romanos nos legaram é fruto do que
foi o método de realização da justiça e que se traduzia
essencialmente num trabalho prudencial e casuístico, sobre os
casos e situações que a realidade exigia da instituição (que era
o pretor) enquanto solução de litígios. Em suma, através de
várias instituições, os romanos conseguem concretizar um
sistema jurídico autónomo humano e positivo, cujo
desenvolvimento da justiça permite ao direito positivo
concretizar o direito natural (direito como jurisprudência).
 O pensamento jurídico integra o Direito, como “constituinte”
dessa ordem ontológica imanente
O direito não é uma realidade normativa abstrata, mas antes
uma praxis, o que leva a que, no pensamento jurídico romano,
a doutrina e a jurisprudência fossem constituintes no direito.
 O pensamento jurídico é problemático-tópico e é uma
“prudência” que se desenvolve numa praxis casuística
O pensamento jurídico romano é assente na resolução de
problemas e é uma prudência que se desenvolve numa praxis
casuísta, isto é, o método de realização da justiça é um
trabalho casuístico, traduzido na jurisprudência.
 “ius” distingue-se de “lex” (esta é emanação do poder)
De acordo com o pensamento jurídico romano, o direito não é
lei. Ao invés, o Direito integra a lei na ordem normativa
juntamente com outras fontes, sendo que a jurisprudência
elabora os princípios fundamentais do sistema, modelando-os
de forma a garantir uma ordem justa.
NOTAS:
 A jurisprudência foi, em Roma, a ciência do Direito. De facto, o
pensamento jurídico romano é dominado pela preocupação de
determinar o justo e o injusto, segundo a consciência social que
juridicamente representa. Desta forma, o iuris prudens romano
vive a realidade prática e procura a solução jurídica que se lhe
ajuste, apoiado no saber socialmente reconhecido.
 Deste pensamento baseado na jurisprudência resultou um direito
que podemos caracterizar destacando alguns aspetos:
- As leis são relativamente escassas e disciplinam, em grande
parte, matérias de direito público.

37
- A prioridade da actio sobre o ius: o escasso papel
desempenhado pela lex justifica que a jurisprudência tenha
desenvolvido um papel trabalho eminentemente criador na
resolução dos casos práticos não previstos pelo ius civile.
- A naturalidade e a simplicidade que percorrem as soluções
jurídicas.
- A jurisprudência respeitou a tradição unindo de forma
indissolúvel e ininterruptamente os costumes dos antepassados
aos atuais. Por isso, a evolução das instituições foi lenta,
prudente e conservadora.

A transição para a Idade Média

- idealismo universal “religioso”


- positivismo voluntarista do “poder”
 A influência do cristianismo e o neoplatonismo agostiniano
(a questão crítica da autonomia face à Teologia: a “ordem
ideal-ontológica transcendente” e os laivos
“positivistas/voluntaristas” e a associação do direito ao
poder)
No continente europeu, verificava-se uma pluralidade de
espaços políticos, devido às invasões bárbaras, que introduziram leis
bárbaras costumeiras, dominantes a partir do século XV. Apesar de
serem bárbaras, integram o património jurídico de Roma (fazem parte
do direito romano vulgar, decadente, mais centrado nas decisões do
imperador e não na atividade jurisprudencial). Nos séculos XI e XII,
deu-se o renascimento do Direito Romano nas universidades
europeias, pela influência do Cristianismo. Esta influência dá-se pelo
facto de a cristianização dos povos bárbaros se ter mantido,
convertendo-se o espaço que ocupavam numa unidade religiosa
(apesar das lutas entre povos). A sobrevivência do Império Romano
faz-se, pois, através do Cristianismo e à persistência do Direito
Canónico, com a influência do Papa: conceitos do Direito Romano
ligados à família, por exemplo, sobreviveram graças ao Direito
Canónico.
Entre os pensadores cristãos, destacou-se Santo Agostinho, que
se ocupou da readaptação do pensamento jurídico clássico aos
princípios do Cristianismo, reconhecendo a existência de uma ordem
divina transcendente, de Deus único, e uma ordem humana que deriva
dessa mesma ordem transcendente. Santo Agostinho, demonstrando a
38
sua grandiosidade enquanto teólogo, dentro da tensão entre direito
positivo e direito natural divino, reconhece a validade do direito
positivo, que é legitimado pela ordem divina. Desta forma, ainda que
o direito positivo possa ser injusto, deve ser obedecido na mesma
porque está legitimidade por uma entidade legítima. Apesar disso,
Santo Agostinho reconhece legitimação à rebelião contra um líder
injusto.
 A estrutura do Direito e o dilema:
 lei divina (a-histórica, imutável e universal – vontade de
Deus inacessível, fundamento último) e lei natural
(derivada da primeira, ordem da Criação acessível por
revelação) / lei positiva (histórica, mutável, com
fundamento na lei divina através da mediação da lei
natural) – Santo Agostinho entende o Direito dividido
em três ordens:
- Lei Divina: corresponde à vontade de Deus e não é
acessível ao ser humano (está num plano a que o
humano não pode ascender). Não é passível de
compreensão e muito menos de modificação, pelo que
os seres humanos têm apenas de o aceitar. Depende de
uma vontade, mas de uma vontade superior à do
Homem;
- Lei Natural: o pensamento jurídico tem como
obrigação a Lei Natural, legitimada pela Lei Divina,
sendo, contudo, acessível ao ser humano. Pode ser
compreendida, mas apenas através da Fé e não através
da racionalidade, pelo que está acessível aos crentes,
embora estes não possam intervir nela;
- Lei Positiva – à criação do Homem, segue-se a sua
organização, que necessita intrinsecamente de um poder,
cuja legitimidade é assegurada pelo facto de o Homem
ser uma criação divina. Mas leva a uma discussão: se a
legitimidade se prende com a justiça, poder-se-á
concluir que o poder humano, que provém, como vimos,
de Deus, é sempre justo? A Lei Positiva está
subordinada às duas anteriores.
 justiça/ordem social (o poder e a “vontade de Deus”)
 A densificação do conceito de “Pessoa”
A ideia de “Pessoa” deve-se muito ao cristianismo: os
indivíduos deixaram de ser olhados como seres sociais,
39
passando a ter também uma marca divina, o que lhes conferiu
uma natureza irredutível de pessoa. É a partir daqui que o
direito tem no seu centro as pessoas.
 O pensamento jurídico como elaboração “revelada”
 O estoicismo (contributo paralelo para essa construção da
“Pessoa”, ser racional/absoluto)
O pensamento estoico acredita que uma Pessoa é um ser
construído à imagem de Deus e é o centro da política e do Direito.
Quanto aos contributos para a construção do conceito de
“Pessoa”, o estoicismo basou-se numa construção racional, enquanto
que com o cristianismo, este ser racional e absoluto ganha também um
contorno divino transcendente. Desenvolve-se, igualmente, a ideia de
inadiabilidade do ser humano e dos seus direitos naturais.

O pensamento jurídico medieval

O período medieval representou uma consolidação do poder e uma


consolidação da ordem política. O Direito vai refletir esta realidade,
autonomizando-se o direito positivo.
 Entre o idealismo universal “religioso” e o positivismo
voluntarista do “poder”
 O pensamento aquiniano neoaristotélico: a lei divina a-
histórica (razão divina), a lei natural dos princípios (o laivo
individualista na participação humana racional na lei natural),
a lei humana positiva, histórica e contingente aplicação dos
princípios da lei natural à realidade, a fim de realizar o “bem
comum” (o problema da lei injusta e da tirania – a solução do
“mal menor” para o “bem comum”)
Devemos a São Tomás de Aquino o renascimento do
pensamento jurídico clássico, sobretudo assente no
pensamento aristotélico. São Tomás de Aquino entende, como
lei, que existe uma lei divina imutável e inacessível, mas que
tem manifestações nos seres humanos que se traduzem na lei
natural. Para si, a lei natural passa a ser acessível ao ser
humano pela razão, ainda que possa derivar de um
transcendente.
A aplicação dos princípios da lei natural à realidade,
necessariamente justos, traduz a ordem positiva. Isto levanta
novamente a problemática da sua concretização à luz da

40
ponderação à luz dos interesses sociais: verifica-se sempre ou
não? Na verdade, o direito positivo pode ser injusto. Ao
contrário de Santo Agostinho, que acreditava no direito
positivo ainda que pudesse parecer injusto, era justo porque
era legitimado pela lei divina, São Tomás de Aquino diz-nos
que, por vezes, para garantir o bem comum, o ideal da justiça,
é necessário ter em conta a ideia do mal menor: por vezes, é
necessário que existam leis injustas para garantir o bem
comum.
 A racionalização do pensamento jurídico (inspirada na lógica
dialética aristotélica) – a Escolástica (a sua essencial natureza
problemático-tópica) e o nascimento da dogmática jurídica. A
sua “utensilagem” permanece até hoje – contraposição
“espírito/letra”, a contextualização dos preceitos, os
“expedientes lógicos aristotélicos”, perspetiva indutiva-
sintética com recurso à definição e às “causas”, à comparação
(os argumentos “por maioria de razão”, a analogia). Primícias
da lógica racional/abstrata dedutiva-subsuntiva que se vai
desenvolver pelo racionalismo (quando a razão se “libertar”)
Nos finais do séc. XI, o Direito Romano e a ciência jurídica
renascem em Bolonha. Explicam este renascimento fatores de
natureza política, económica, social, cultural e religiosa: o
Império Romano do Ocidente tinha sido restaurado e, sendo o
Direito Romano o direito do Império, devia ser estudado e
divulgado. Ainda, o direito canónico era um direito
tecnicamente inferior e o estudo do Direito Romano
contribuía para o seu aperfeiçoamento. Assim, as cidades
italianas atingiram um grande desenvolvimento e as suas
relações comerciais exigiam um direito mais perfeito que os
direitos locais.
Surge, assim, em Bolonha, a Escolástica, desenvolvida a
partir do pensamento aristotélico seguindo uma linha de
racionalidade. Preocupou-se primeiro em interpretar os
documentos das autoridades cristãs, constituindo-se como a
base da hermenêutica.
Hoje, somos herdeiros diretos destas normas. Esta lógica de
interpretação de textos divinos e clássicos assenta na
contraposição entre o “espírito”/sentido (cuja revelação está
reservada aos doutores da Igreja e não o povo) e a “letra da
lei” – o que prevalece é o espírito. Nasceu aqui a dogmática
41
da Igreja Católica. A Escolástica constituiu um reforço do
pensamento jurídico, inspirada na lógica aristotélica dedutiva:
parte-se de um enunciado linguístico (premissa maior), onde a
situação concreta se integrará, sendo que a conclusão daí
retirada será a solução jurídica (estatuição). Está é a nossa
lógica atual, que traduz uma noção de causa/consequência.
 O pensamento jurídico integrava ainda o Direito, através da
“revelação racional” dos postulados fundamentais – um
“idealismo prático”
É importante notar que, embora o pensamento jurídico se
começasse a construir de modo dedutivo, ainda assentava na
base do costume.
 A formação do Direito Comum (ius commune)
 A receção do direito romano (a partir do séc. XII) e do
“Império”
A Idade Média é referida como um período que “foi, por
excelência, o reinado dos juristas”. Porquê? Porque a
insuficiência do direito local e o caráter fragmentário e
localista do costume exigiam a construção de um sistema
jurídico suscitável de servir uma sociedade cada vez mais
complexa que só poderia ser concretizado através do Direito
Romano renascido.
 O modelo do “Direito Canónico”
Este renascimento vai, de facto, permitir o desenvolvimento
da dogmática jurídica, da ciência do Direito, utilizando
princípios lógicos da filosofia aristotélica. Esta é uma base
nova, uma vez que, nesta época, no âmbito do Direito,
tínhamos, no ocidente europeu, reencontrado os textos
clássicos. Então, ao longo dos primeiros séculos da Idade
Média, as fontes do direito eram o Direito Canónico e os
costumes locais.
 A sistematização medieval dos textos das “autoridades” –
antigos (Corpus Iuris Civilis e al. - Glosadores e
Comentadores)
É precisamente o Corpus Iuris Civilis (compilações) que é
reencontrado e é trabalhado como base fundamental do
Direito. É um trabalho que pretende ser de pura interpretação,
feita pelos glosadores. No entanto, estes encontraram-no de
tal forma elaborado que entenderam que não havia nada de
novo a ser criado.
42
 A formação de um “Direito Comum” de tipo “lógico-
hermenêutico”, mas ainda prático-tópico, de fundamento
natural
As universidades europeias (abertas a todos os cidadãos da
Europa e não apenas aos cidadãos nacionais) iniciaram o
desenvolvimento do ius commune no séc. XVII, o que se
prolongou desde o séc. XIII até ao séc. XVI, ocorrendo a sua
autonomização a partir do séc. XVII. Com ele, apesar de
haver uma realidade política nacional e diferente, surge a
ideia de que há dimensões comuns, como o Direito Canónico,
que regula todas as realidades políticas. Originou-se, a partir
daqui, a formação de um direito hermenêutico que se
entendeu funcionar como direito natural, a que submetiam
todos os direitos locais.
A sua metodologia é predominantemente analítico-
problemática: o dado a priori não é (nem pode ser) o sistema
(o ordenamento jurídico globalmente considerado), mas a
norma concreta; e a solução é obtida não por via da subsunção
do facto à norma legal, mas pela ponderação das soluções
legais possíveis com base em critérios de justiça e direito
natural. Estamos perante um discurso tópico-argumentativo
que se move no domínio do provável, do talvez, que é um
grau intermédio entre o verdadeiro e o falso; por isso, trata-se
dum pensamento jurídico que não podemos considerar
dogmático, antes reveste uma profunda humildade intelectual.
 Um Pensamento Jurídico “europeu” (é sobretudo este
elemento que sobressai no Direito Comum medieval)
Forma-se um Direito Comum europeu e transnacional, o ius
commune. Era um Direito não político, apenas ciência do
Direito, património jurídico europeu antigo.
 Subsidiário, mas modelo, suplemento e limite dos
ordenamentos locais
Quando o Direito local não fornecesse nenhuma solução, esta
seria oferecida no Direito Comum.
 O pluralismo das ordens jurídicas (pluralidade espacial,
pessoal, transnacional – o Direito Comum, o Direito
Canónico, a lex mercatoria)
Pluralidade de ordens jurídicas que assentam em vários
critérios, ideia de comunidade orgânica. Época de pluralidade de

43
direitos porque é limitada no espaço, ou seja, constitui uma
pluralidade que se interseta e sobrepõe.
O direito constrói com base na pluralidade de costumes, de leis
reais ou leis no sentido material, lei das múltiplas autoridades, no
direito da lex mercatoria (séc. XIII – Renascimento) que se constrói
do mesmo modo na época clássica (o pretor também construía as
normas jurídicas). A lex mercatória era o direito do comércio, dos
mercadores, transnacional e de criação autónoma.
 A sociedade estamentalista (forma medieva de
“comunitarismo”) e uma pluralidade de ordens
corporativista que integra uma “constituição natural”
Uma sociedade plural não é igualitária, não é de
reconhecimento de uma autonomia constituída livremente e
voluntariamente. Ao invés, trata-se de uma sociedade que assenta na
ideia de uma ordem natural que resulta da vontade divina, sendo certo
que esta norma é uma ordem desigual, uma ordem estamental em que
os estatutos das pessoas estão pré-determinados e são definitivos.
Desta forma, o estatuto de uma pessoa estava associado ao
desempenho de uma determinada função. Esse estatuto decorre dessa
função pré-determinada por uma constituição natural. Naquela época
existiam três estamentos (três ordens sociais) que determinavam então
o estatuto das pessoas.
 A recusa de um “poder absoluto” (Baixa Idade Média) e de
um “direito totalizante”
Começa-se por recusar um poder absoluto e, por isso, assiste-se
à centralização progressiva do poder real nos espaços do ocidente. O
direito comum (pensamento jurídico formado nas universidades), vai
ser um instrumento de centralização do poder.
 A resolução dos conflitos entre ordens: a especialidade, a
subsidiariedade, o “pecado”.
O direito comum baseado no direito romano clássico serve para
preencher as lacunas que subsistem neste múltiplo direito. A
especialidade e a subsidiariedade do direito comum só intervêm
quando as outras não dispõem de normas para resolver litígios.
 Método de aplicação do Direito: tópico-dialético e casuístico
A justiça pela definição de regras jurídicas a partir de múltiplos
argumentos jurídicos. É um direito tópico porque utiliza esses
múltiplos argumentos que encontra no direito local, no direito real,

44
nos textos dos doutores da igreja, bem como sistematização feita nas
universidades de direito comum.
A aplicação do direito, método jurídico, assenta no
reconhecimento da pluralidade que nos obriga a entender que a
realização do direito casuística, porque a determinação da
competência das regras que serão aplicáveis só se faz perante
situações concretas que exigem uma determinada solução.
NOTAS FUNDAMENTAIS sobre o pensamento jurídico medieval:
- entende o direito como uma normatividade que se infere das fontes,
ou seja, dos textos prescritivos imputados quer ao imperador (Corpus
Iuris Civilis), quer aos soberanos (leges) ou poderes políticos locais
(estatutos), quer ao papa e a outras autoridades eclesiásticas (Direito
Canónico)
- a sua intenção epistemológica é hermenêutica (interpretação) e a
perspetiva metódica é dialético-argumentativa

Transição para a modernidade

A transição para a modernidade tem por base movimentos que


pressionam o movimento do racionalismo (tensão entre a razão
humana e o divino). Tratou-se de um movimento fundado no
pensamento de S. Francisco de Assis que defendia a humanização da
teologia e a da ação cristã no interior das instituições religiosas e das
universidades.
 A “crise” induzida pelo “empirismo” e “individualismo” –
séc. XIV
 A querela dos “universais” e o nominalismo (D. Scotto, G.
d’Occam)
Uma das conceções que se integra no pensamento de São
Francisco de Assis é a querela dos “universais”, a primeira
rutura com os ideais do Humanismo, do pensamento
filosófico traduz-se no nominalismo e constitui os alicerces da
orientação filosófica do empirismo. Assim, assiste-se à
afirmação do nominalismo: uma controvérsia que marcou o
pensamento cristão entre o reconhecimento da realidade das
ideias abstratas (o pensamento aristotélico que dominava na
altura assentava num idealismo realista, os conceitos
individuais tinham uma realidade efetiva) e aquilo que é a
recusa dos conceitos abstratos – segundo alguns, os conceitos
abstratos não passam de nomes, de criações intelectuais que o
45
pensamento humano constrói para compreender o mundo,
mas não correspondem à realidade. Isto gera um grande
impacto na sociedade, passando o sujeito a analisar e a
perceber a realidade e, consequentemente, no Direito.
 A sociedade não como “ordem pré-definida”, mas como
agregação de unidades essenciais (indivíduos, iguais) – virá a
desenvolver-se na rutura religiosa cristã posterior e vai atingir
a plenitude liberalismo individualista
A segunda rutura, que também se integra no pensamento
franciscano, dar-se-á entre o pensamento humano e a
metafísica, o que dará os contornos para o individualismo,
que tem por base a autonomia de cada um,
independentemente do modo como se situa no mundo, num
total despojamento da personalidade humana. Assim nascerão
as raízes para a ideia de sociedade constituída por indivíduos
e não por categorias, a que estão submetidos desde o
nascimento até à morte e para a conceção de sociedade como
realidade pré-definida, comunitária, que os indivíduos
integram, mas na qual atuam e participam de forma não
autodeterminação. A rutura com esta ideia irá dar origem aos
ideais liberais, com valorização das ideias individuais. A
razão é vista como um elemento presente nos indivíduos e,
consequentemente, a sociedade é tida como um meio de
agregação desses mesmos indivíduos e não como uma ordem
natural, ou algo proveniente da vontade divina. Este
pensamento vai permitir que o individualismo se converta na
lógica fundamental da constituição de uma sociedade.
 A neoescolástica peninsular (tentativa de conciliação entre
uma “ordem teológica” e uma “ordem humana positiva” – o
direito natural “divino” e a ordem “necessária” imposta
pela autoridade “legitimada divinamente” – o direito
positivo)
A neoescolástica peninsular surge tardiamente. No século XV,
ocorrem tentativas de conciliação de realidades (antigas e novas)
políticas, económicas e sociais, assistindo-se a uma preservação do
pensamento medieval (assente na Escolástica e em São Tomás de
Aquino – ideia da legitimação divina do Direito, em que o soberano
tem poder legítimo porque vem de Deus). Surgem duas escolas de
direitos que se desenvolveram entre os séculos XV e XVI. Eram
universidades nas quais as influências religiosas eram elevadas e que
46
reagiram perante o racionalismo e o individualismo do poder laico,
atualizando o pensamento da escolástica. É assim que se irá
desenvolver a Neoescolástica, nas universidades de Coimbra e
Salamanca, que defendia o princípio do “mare clausum” e a
conciliação entre a superioridade divina e a ordem positiva humana. A
oposição da Holanda e da Inglaterra perante este pensamento ibérico
do “mare clausum” fez-se sentir desde cedo, com a proposta do “mare
liberum” (abertura à liberdade), que constitui o primeiro princípio de
Direito Internacional Público – ou seja, um princípio que não pode ser
restringido ou proibido.
 O advento do racionalismo “humano” e o corte
epistemológico com a “metafísica” (ontológica ou teológica,
i.e a ética e a religião (ainda não o poder e ainda não a
natureza, agora racional/axiomática)
Assim, ao contrário da escolástica, a neoescolástica não tinha
como objetivo conciliar a fé cristã com um sistema de pensamento
racional (pensamento aristotélico). Assumia que existia uma ordem
natural (legitimada divinamente) que é fundamento do direito
positivo, mas que é racional e humana, não tendo uma base
transcendente (ou na fé).
É nesse mesmo século que começam a surgir as primeiras
ciências tal qual as conhecemos na atualidade, ciências essas que
sujeitam a realidade à falsidade e baseiam-na em axiomas (que se
demonstram racionalmente) e não em dogmas. Desenvolvem-se a
Matemática, a Física, etc., bem como o pensamento racionalista
(iniciado por Descartes), assente na razão e nos sentidos e há lugar à
afirmação do empirismo, das ciências lógico-dedutivas, da lógica
racional assente na experimentação e falsificação. Foram
essencialmente estes aspetos que mais contribuíram para o
desenvolvimento do pensamento jurídico moderno face ao anterior.
 O idealismo universal da natureza racional – o Direito
natural como “razão natural humana”
§ todos, por vias diferentes, contribuem para a laicização e
fundamento voluntarista do Direito. Este é fruto da voluntas
racional, seja “contratualista” ou “legitimada” divinamente, seja
autoritária, seja “democrática”. A ligação a uma ordem
“superior/anterior” é eliminada.
A época do Renascimento, o reencontro com a antiguidade, vem
colocar o ser humano no centro do mundo, recentrando o pensamento
filosófico na realidade humana. Por esta via inicia-se um processo de
47
laicização do direito, um corte mais ou menos tímido que se aprofunda
ao longo dos dois séculos seguintes, marcando o Direito como nós o
entendemos ainda hoje. Esta laicização passa a assentar a sociedade e
o Direito na razão natural, razão humana. A razão manifesta‐se,
obviamente pela capacidade especulativa e compreensão da realidade,
na sociedade, nas relações sociais, a razão manifesta-se pela vontade.
O direito natural não é um direito determinado por Deus, mas sim um
direito que é um produto da razão humana. Temos, então, a
vontade humana, orientada pela razão, como fator gerador do Direito.
Há um corte com a ordem pré-estabelecida transcendente. A sociedade
corresponde a uma ordem natural humana, construída racionalmente
através da razão. Paralelamente aproximando todos os seres humanos,
uma vez que todos são dotados de razão, o Direito tende para uma
projeção universalista, que se reflete na expansão do modelo jurídico e
da conceção de direitos como direitos universais.
 As primícias do Direito como “positum” a compreender
sistemático-dedutivamente: o pensamento jurídico como
ciência/técnica e já não como uma “praxis”
O Direito deixa de ser pensado como uma praxis e como uma
ciência especulativa, passando a ser uma ciência prática construída a
partir dos casos. O direito enquanto ordem natural e universal passa a
ser um objeto, um dado a que se acede pela razão, mas é uma ordem
abstrata geral. A sua essência e os seus princípios fundamentais são
históricos, daí que sejam os mesmos em qualquer lugar. A ela
acedemos pelo conhecimento racional, sendo aplicada através da
lógica das ciências exatas, através de lógica não indutiva. Assim,
parte-se do geral abstrato para dedutivamente resolver questões
concretas, partindo de axiomas, de dados, e aplicando-os a casos
concretos, à realidade. O Direito passa a ser concebido como ciência
técnica e não como prudência, como era tido desde o pensamento
romano.

O pensamento jurídico da modernidade

O fim da Idade Média e o início da modernidade dá-se com a queda de


Constantinopla, em 1453. Trouxe muitos sábios do Oriente para o
Ocidente, que contribuíram para o desenvolvimento da ciência e da
filosofia.
 Contexto político e religioso

48
 A formação dos Estados – como “comunidade”, produto
humano e com fins estritamente humanos (sem qualquer
associação “teológica”)
A formação dos Estados surge a par do conceito de Europa
como identidade, deixando-se de fazer em termos religiosos,
passando a fazer-se através de uma civilização e cultura
comum, com direito comum: através do ponto de vista
político com os Estados. A soberania é exercida dentro do
Estado e é o exercício do poder soberano que vai condicionar
a ação humana; a soberania traduz-se na inexistência de
qualquer poder concorrente e menos ainda superior num
espaço sobre o qual se exerce. Assim, proliferam a formação
de uma organização político-social da comunidade humana,
assente num território, com um governo que exerce o seu
poder soberano sobre uma população nesse espaço territorial,
poder exclusivo para regular e impor regras.
 A soberania e o aniquilamento da pluralidade de poderes
supra ou infra-reais
O poder do rei absorve os poderes dos senhores e cria um
território estável. A soberania do rei, considerada o poder
supremo no interior do território, e que, face ao exterior, não
encontra qualquer poder superior, apenas equivalente:
igualdade dos Estados. Assim, dentro do território do Estado
o poder supremo, enquanto que no plano internacional os
estatutos dos Estados são iguais. É este o modelo que passa a
ordenar a organização politica na Europa ocidental, ainda que
só atinja o seu apogeu no séc. XVII após a Guerra dos Trinta
Anos.
 A rutura religiosa da cristandade ocidental: a Reforma
protestantista
A reforma protestantista determina que as sociedades se
organizam em Estados laicos, eliminando pretensões de
unificação sob a direção do poder religioso do papado. Deste
modo, reduz a influência da religião no espaço social e no
Direito, que passa a estar associado ao Estado, ao poder real
que delimita a jurisdição para esse mesmo Estado.
Consequentemente, enaltece-se uma relação direta entre os
homens e Deus, independentemente de qualquer instituição
religiosa. Forma-se uma conceção da autonomia humana nos
indivíduos e não numa ordem institucional que se opõe num
49
patamar superior aos indivíduos (não se verificou tão evidente
no sul da Europa, onde são mais individualistas). Dá-se uma
rutura religiosa da cristandade ocidental: cada Estado tem a
religião que o rei professa.
 A laicização do poder e a separação do poder temporal e do
poder espiritual
 Contexto filosófico, cultural e económico
 Do renascimento “humanista clássico” que exalta o indivíduo
racional (a “razão” é a “natureza humana”) e se opõe às
“autoridades” ao enciclopedismo iluminista
Esta é a época do Renascimento, assente no Classicismo
(deslumbramento pela cultura clássica que tinha uma
dimensão transcendente muito mais humanizada que o
Cristianismo). O destino do homem é a sua realização na
terra.
Por outro lado, há uma crescente afirmação da razão, como a
capacidade de questionar a autoridade, o que serve de motor
ao desenvolvimento da ciência e à rutura do pensamento
humano com os ditames da autoridade religiosa. Deste modo,
e contrariando o enciclopedismo iluminista, a ciência debate
todo o tipo de questões sem aceitar argumentos de autoridade,
mas sujeitando-as ao escrutínio da razão – isto leva-nos ao
desenvolvimento das ciências empíricas que estão sujeitas às
experiencias.
 A “humanização” e laicização da “filosofia” sob o “império
da razão e da experiência” e consequente
individualismo/subjetivismo e universalismo (a razão e a
experiência são “inatos” a todos os “homens” que assim
podem aceder ao conhecimento da ordem natural) - a rutura
epistemológica com a metafísica e a Teologia
O laicismo defendia a autonomia do saber racional perante os
dados da fé.
Por sua vez, segundo o universalismo, todos são dotados de
razão, logo todos são capazes de aceder ao conhecimento
através da ordem natural. Tendo em conta o resultado da
capacidade especulativa do ser humano, dá-se uma rutura
epistemológica com a metafísica e a Teologia.
 O desenvolvimento das ciências exatas, primeiro, (paradigma
lógico-dedutivo), e empírico-naturais, depois, (paradigma

50
lógico-indutivo em que o sujeito e o objeto do conhecimento
se distinguem, sendo o segundo um dado/positum exterior ao
sujeito)
A partir da Idade Moderna, desenvolve-se a astronomia e,
consequentemente, a teoria heliocêntrica (já não a teoria
geocêntrica) dá alento ao Direito para procurar a realidade de
forma abstrata, recorrendo ao uso da lógica-dedutiva. Com
ela, dá-se a aplicação dos princípios gerais do Direito à
realidade e o Direito passa a ser a realidade que o jurista vai
apreender de modo dedutivo, mas da qual não faz parte,
estando dela afastado. Os juristas passam a ser a boca que
pronuncia a lei. Depois de se avançar na criação jurídica é
importante fazer a respetiva avaliação do impacto que a sua
aplicação teve na sociedade e se atingiu os objetivos pré-
definidos – esta é uma herança que vem da revolução
científica do período da modernidade.
 A descoberta de “novos mundos”, “culturas” e religiões
É mais ou menos depois desta época que a Europa vai
começar a contactar e a conhecer realidades que desconhece,
que até recusa, mas que acaba por absorver
inconscientemente.
 O desenvolvimento do comércio
Dá-se o desenvolvimento do comércio associado aos
Descobrimentos, com o ultrapassar dos limites e fronteiras
territoriais do espaço que vinham da Antiguidade. O comércio
traz exigências ao nível do desenvolvimento jurídico, e
também uma relativização da ordem social que se conhecia na
Europa.

O jusracionalismo

A reconfiguração política ocorrida no século XVII, em que o Estado


passa a ser a forma política por excelência que se constrói sobre o
conceito de Nação, vai, por sua vez, conduzir a uma reconfiguração
jurídica.
 A unificação e justaposição de ordens jurídicas: a
substituição da pluralidade pela(s) unidade(s)
 A progressiva produção legislativa estadual e a unificação da
organização judiciária nacional (o relevo do precedente dos
Tribunais que supera a opinio communis doctorum)
51
Dá-se uma progressiva eliminação dos poderes locais e
infrarreais e a sua substituição por um poder real unificado,
assente numa comunidade/nação política e num território
estável.
O mundo jurídico medieval era plural. No entanto, na
modernidade, com a razão e a ordem comum, verificou-se
uma centralização do Direito. Este direito uno só vai
encontrar o limite da soberania: há o poder de criar direito no
espaço de exercício da soberania, eliminando o poder de
criação jurídica de outras fontes nesse mesmo espaço. O
Direito converte-se, a prazo, no direito estadual. Para além
disso, o valor jurídico do costume dependia do
reconhecimento do direito estadual. Isto deve-se
principalmente aos juízes e tribunais nomeados pelo rei, que
harmonizavam os costumes locais de acordo com aquilo que
era a vontade do monarca. Deste modo, dá-se uma
harmonização jurídica que se vai manter até ao séc. XIX,
aquando do processo das codificações. O precedente dos
tribunais vem a superar a opinio communis doctorum (o
pensamento universitário, a opinião comum dos doutores). É
o precedente vinculativo que unifica o direito, nomeadamente
os precedentes da Casa da Suplicação (tribunal de recurso real
que impunha a interpretação do direito a todos os tribunais).
NOTA: em Portugal o processo de unificação foi precoce,
dado que desde cedo tinha definidas as suas fronteiras.
 Da afirmação dos Direitos “reinícolas” dos sécs. XV-XVI (e
sistematização: as compilações) e a secundarização do ius
commune (o direito romano apenas vigora se fundado na “boa
razão’” – Ord. Fil.), até à imposição da exclusividade do(s)
Direito(s) estadual dos séc. XVIII-XIX
Quanto às compilações, estas não pretendiam ser fonte de
Direito legal; eram apenas sistematizações de jurisprudência e
constituem o primeiro passo da sistematização que iria dar
lugar à Codificação mais tarde. Especialmente com as
ordenações filipinas, o Direito Romano atualizado pelo ius
commune medieval passa a valer apenas se fundado na boa
razão (decidida pelos tribunais). Nestes termos, o costume só
valeria se tivesse mais de 100 anos e se fosse igualmente
conforme à boa razão, numa tentativa de o eliminar como
fonte de Direito. Há criação de uma estrutura judicial nacional
52
com poder de dizer o Direito, o que a colocava num plano de
Direito praticamente ao nível do legal (porque as suas
interpretações serviam de precedente jurídico e tinham valor
normativo).
Nesta época, assiste-se à afirmação do Direito nacional
estadual, que sustenta a unidade jurídica do Estado, com
pretensão de ser a única e de absorver todas as outras esferas
que regulamentam as relações entre as pessoas (eliminação de
várias fontes jurídicas a favor apenas da prevalência do
Direito legal).
 A autonomização do “direito temporal” do “direito canónico”
O direito temporal corresponde a um conjunto de ordens
jurídicas nacionais, todas elas potencialmente uniformes que
se justapõem entre si, mas não se atravessam, com base num
princípio associado à soberania – o poder não é superior no
exterior (princípio da igualdade dos Estados). Deste modo, o
direito interno elimina a pretensão, nomeadamente do papado,
de um poder se tornar superior ao poder de um Estado.
 O pensamento jurídico
 A laicização do pensamento jurídico sob o “império da razão”
 O “Direito natural” como uma “recta ratio” (“direita razão”,
que se reconduz a um conjunto reduzido de princípios
fundamentais/axiomas inerentes à natureza humana –
neminen leadere, pacta sunt servanda), produto e apreensível
pela “especulação racional”, comum a todos os seres humanos
A laicização corresponde à humanização do Direito natural,
nomeadamente da razão, tendo na sua base a recta ratio, e
traduzindo-se num conjunto de princípios fundamentais
inerentes à natureza humana: neminem leadere (qualquer
sujeito tem a obrigação de não causar danos a outrém), pacta
sunt servanda (os contratos são para se cumprir) – este
princípio é a base da boa-fé, da dignidade da pessoa humana e
da responsabilidade civil.
 As premícias da cientificização sintético-dedutiva (a recta
ratio desdobra-se num conjunto de axiomas a partir dos quais,
dedutivamente se pode formar um sistema de segundos
princípios, geral e coerente, a partir do qual a aplicação se
pode deduzir); expoente máximo foi Pufendorf (com a sua
metodologia matemática) – sua manifestação: a codificação

53
Verifica-se uma tentativa de construir o Direito como um
sistema axiomático, semelhante à Matemática. O Direito era
um sistema unitário, lógico-dedutivo e, como tal, procura ser
evidente à luz da Razão, como as outras ciências. De acordo
com esta teoria, defendia-se que a recta ratio se desdobra
num conjunto de axiomas a partir dos quais se pode formar
um sistema de segundos princípios, geral e coerente, cuja
aplicação se pode deduzir. O autor desta conceção foi
Pufendorf, de grande importância no pensamento jurídico
germânico. O expoente máximo de sistematização jurídica é,
desde então, o código.
 Os gérmenes voluntaristas/positivistas (as normas são
ditames/voluntas da razão humana)
Acreditava-se que o Direito, enquanto ordem normativa
vigente, era produto da razão, mas que se manifestava em
vontade. Este voluntarismo está presente até aos dias de hoje.
Como criação voluntária que é, todo o Direito válido e
vigente é aquele que a vontade humana criou.
Temos então, através da razão universal, a-histórica, o passo
que conduz ao positivismo legalista. As leis são
manifestações da vontade racional, que encontram os limites
dos seus efeitos na fronteira do Estado. Cada Estado tem o
seu direito positivo. Do Direito natural racional passa‐se para
a conceção de Direito positivo. Assim, chegamos ao
positivismo do séc. XIX.
 Os gérmenes da autonomização da Ética (as normas jurídicas
como normas incidentes sobre ações intersubjetivas e dotadas
de sanção)
Se o Direito é razão e vontade, a Ética é a consciência
interior: afirma-se a distinção entre a Ética e o Direito. Esta
construção deve-se a Kant, que defendia a ideia de que o
Direito é a projeção externa e a Ética a esfera interna da
consciência do indivíduo. Neste sentido, a Ética poderá ser
racional, mas sem a projeção social do Direito.
 Correntes jurídicas fundamentais
 Mos gallicus (Escola Culta francesa) e a reforma
antiescolástica do estudo do Direito Romano: a depuração
estílística; a sistematização racional textualista; o academismo
Escola culta francesa que denotava um fascínio pela
civilização da Antiguidade Clássica, pretendo eliminar a
54
vulgarização do Direito e retomar, na sua pureza, os textos do
Direito Romano clássico, que, no seu entender, possuíam
mais “brilho”. Pretende, pois, fazer uma interpretação o mais
pura possível dos textos clássicos, ao contrário do que se
verificou na Escola dos Comentadores, na Idade Média, que
se afastou dos mesmos. Esta escola deve muito ao
desenvolvimento estilístico: olhava para os textos não só
jurídicos, mas também filosóficos e literários da Antiguidade
e via um exemplo de brilhantismo e rigor que não encontrava
no tempo mais próximo. Há uma tentativa de alcançar o
sentido dos clássicos, não tendo necessidade de construir algo
de novo, pois o esplendor foi anteriormente atingindo e tenta-
se a sua recuperação. O seu contributo hermenêutico é dado
no sentido do respeito.
A crítica apontada é o academicismo, incapaz de perceber as
exigências da realidade da época. Deste modo, por mais que o
espírito anterior tivesse sido brilhante, era adaptado à
realidade anterior e não à dos dias em questão. Ainda assim,
hoje ainda se mantém uma preocupação conceitual de rigor
dos conceitos, distinção e classificação que se deve a estas
propostas.
 Usus Modernos Pandectarum: a “receção transformadora e
limitadora” do direito romano pelo direito nacional; a
dogmatização sob o modelo “romanístico” do direito nacional
Surge, na Alemanha, aquando da Paz de Vestefália, e procura
conciliar os seus princípios com os do Corpus Iuris Civilis, no
sentido de os modernizar como resposta às necessidades
modernas, servindo-se da lógica dedutiva. No século XIX,
num contexto de afirmação do Estado e do poder real, realiza-
se na Pandectista Alemã, que mais influenciou os sistemas
jurídicos da Europa Continental. É importante referir que esta
escola está na base do Código Civil alemão, e
consequentemente, na base de outros códigos civis.
 A Escola do Direito Natural e das Gentes: interpretação
racional-axiomática e subjetiva (individualista e laica) dos
textos e a construção de um sistema geral/universal; as
tentativas de codificação; a afirmação dos “direitos
subjetivos” naturais dos homens
De alcance importante na afirmação do direito internacional,
mas também do direito nacional. Afinal, o direito
55
internacional constrói-se a partir dos direitos nacionais, cujos
Estados soberanos se assemelham uns aos outros – Direito
Nacional Estadual.
O seu principal contributo foi o individualismo, caracterizado
pela exacerbação do indivíduo enquanto ser racional e pela
perceção de que todos os seres humanos o são. Reconhece o
ser humano, inclusivamente, como o alfa e o ómega do
Direito, uma vez que é o seu sujeito (dando razão, mais tarde,
para a afirmação dos direitos naturais nas Revoluções
Americana e Francesa). Entende a sociedade como um
conjunto de indivíduos num determinado espaço, a que
acrescem as relações que estabelecem entre si, cabendo ao
Direito a regulação das referidas. É, enfim, a lógica do
reconhecimento do individualismo racional. Foi através da
crença de que o ser humano é livre, autónomo, capaz de se
autorrealizar que se formou a partir desta corrente um Direito
que tem apenas como limite as manifestações da vontade,
assente nesta teoria individualista. A vontade é a manifestação
da liberdade e da autonomia, ambas partes integrantes do ser
humano.
A realização dos autores desta Escola ocorre quando atingem
a racionalidade das normas, pelos compêndios (o grande
projeto iluminista era o da Enciclopédia, inclusive) à luz de
critérios científicos. Assim, o Direito vai afirmar-se através de
uma sistematização racional, desprovida de elementos não
jurídicos (como a religião). A codificação conhece o seu
grande desenvolvimento – dá-se a articulação de um sistema e
das respetivas normas num código fechado. O código é a
realização dogmática mais conseguida dos juristas. Estando
toda a regulação num só código, há um risco muito menor de
perder normas e fontes.
Afirmam-se os direitos naturais inalienáveis das pessoas,
decorrência do entendimento de que o Direito assenta na
razão humana e serve o indivíduo. Nestes termos, os
indivíduos possuem um conjunto de direitos inatos e
inalienáveis que se impõem a todos e a toda a sociedade.
Trata-se de um reconhecimento de direitos contra a
interferência do poder do Estado (especialmente importante
tendo em conta que na época se afirma o poder absoluto dos
monarcas). A esta escola devemos a ideia de que todos os

56
seres humanos são dotados de direitos pelo simples facto de
serem pessoas.
 Conjugações paradoxais
 Universalismo racional/Particularismo político-jurídico
Há direitos iguais em todo o mundo, para todos os seres
humanos, mas que só se realizem a nível estadual, onde se
positivam. Só a partir da segunda metade do século XX, vão
ultrapassar os Estados, com a afirmação dos direitos
humanos.
 Objetivismo (Direito positivo)/Subjetivismo (direitos
individuais)
A conjugação dos dois irá dar lugar à afirmação da vontade
geral, de acordo com Rousseau, depois de um processo de
abstração.
O subjetivismo, conceção que entende que o Direito é produto
da razão e da vontade dos indivíduos, acaba por se transmutar
no objetivismo. Deste modo, sendo esta razão idêntica em
todos os indivíduos, pode converter-se numa vontade geral
objetiva que é a vontade dos indivíduos (via contratualista ou
despotismo iluminado).
 Individualismo/Nacionalismo
As sociedades assentam essencialmente no indivíduo, sendo
cada um igual ao outro. Contudo, estas sociedades não são
universais: o individualismo realiza-se primeiramente em
sociedades nacionais estaduais.
 Racionalismo/Voluntarismo
Se todos os indivíduos são racionais, a universalidade dessa
racionalidade assenta na vontade.
 Características fundamentais sucessivas:
 Racionalismo jusnaturalista subjetivista axiomático - regido
por uma lógica abstrata e racional, em que os princípios não
se supõem, são determinados pela razão.
 Laicização
 Voluntarismo
 Positivismo legalista - a Lei é a manifestação da vontade e
como é geral e abstrata não atende a particularismos nem a
vontades individuais. É baseada no racionalismo, vértice que
respeita as vontades gerais.

57
 Vias fundamentais do Direito na modernidade
jusracionalista
 O Sistemismo Racionalista Axiomático – Pufendorf, Wolff
O Direito é concebido como um sistema matemático de
princípios e leis racionais que derivam dos axiomas
fundamentais e que se articula de modo unitário. O espaço
germânico possuía um poder comum e unificador do Império,
mas que era nominal, acabando por não ser, verdadeiramente,
um Império. Este direito não corresponde a qualquer direito
positivo, é antes direito universal estritamente especulativo,
que procura dar racionalidade às múltiplas fontes que
prevaleciam no espaço germânico. Neste contexto, tiveram
especial importância as universidades, que eram o espaço
próprio para a sistematização axiomática.
 O Racionalismo Individualista e Contratualista – Grócio,
Hobbes, Locke, Kant, Rousseau
O Direito fundamenta-se na razão dos indivíduos. Então como
se afirma, se cria e se desenvolve a ordem jurídica ou a ordem
política? Os sujeitos dotados de razão criam a sociedade
através de um contrato original no qual delegam a alguém o
poder para impor regras e ordenar a sociedade. A base da
sociedade, o fundamento do direito que rege a sociedade
humana, estabelece-se num contrato entre humanos que, no
momento de partida, são totalmente livres sem
constrangimentos. Todavia, têm constrangimentos naturais,
não de poder, mas sim que se relacionam com as ameaças à
sua volta, com o facto de a força não estar distribuída de
modo igualitário, sendo indispensável criar ordem humana e
social. Esta lógica é racional, uma vez que é a razão que dita
que se faça este contrato. No plano internacional, o contrato é
fruto dos tratados internacionais. No plano interno, Hobbes
entende que os indivíduos racionais têm uma tendência
natural para a guerra de todos contra todos, tentando impor
sem respeito a sua esfera de direitos. Então, através do
contrato, transferem o poder a um ente central que vai, a partir
desse momento, ficar com a soberania que cada um tinha
individualmente, de modo a poder impor a ordem (os
indivíduos abdicam dos seus direitos naturais para garantir a
paz social). No entanto, os indivíduos mantêm o direito à

58
legítima defesa, podendo defender-se contra qualquer poder,
incluindo a do soberano autoritário.
A visão de Locke é distinta, mais benigna. Defende que os
indivíduos, através do contrato, entregam o poder aos seus
representantes (o poder é fundamental à ordem da paz social),
mas não um poder absoluto; é um poder limitado, que não
abdica de um determinado conjunto de direitos (por exemplo,
liberdade, propriedade, consciência, religião e exercício da
religião).
Por sua vez, Rosseau acredita que o contrato social original
garante a liberdade e o núcleo de direitos fundamentais,
permitindo legitimar e fundar o Direito no que é a vontade
geral de todos os membros da comunidade.
§ ambas as vias conduzem ao positivismo “iluminado” ou
“demoliberal”, na tentativa de eliminar os “vícios” derivados dos
“paradoxos” (incerteza e arbítrio) - isto porque, em qualquer dos
casos, o Direito é imposto pela Lei: na primeira situação, ditado
pelo soberano, cuja vontade e razão são iluminados; no segundo
caso, por deliberação democrática.
 Legados fundamentais do Jusracionalismo
 A sublimação jurídica da “Pessoa”: os Direitos individuais
“naturais” (mais tarde plasmados em “Declarações”, depois
precisados pelo liberalismo como “direitos subjetivos” e mais
tarde pelo constitucionalismo como “direitos fundamentais” e
pelo DI como “direitos humanos”) – o Direito não se concebe
sem os “direitos” assentes na liberdade e na propriedade (o
paradigma jusprivatista)
Trata-se dos direitos imanentes da Natureza, não de
privilégios. Não são conseguidos, mas sim reconhecidos
(reconhecidos a partir do constitucionalismo do século XX,
com Kelsen, perdendo a natureza, até então, imanente, pré-
dada). São direitos de primeira geração que afirmam a
liberdade individual e a participação cívica. A pessoa é
elevada ao seu expoente máximo, porque é um indivíduo
racional dotado de vontade, dotado de um conjunto de direitos
inalienáveis, que funda o Direito. Na Europa, verifica-se até
um excesso de Declarações de Direitos, embora haja com elas
afirmação e reforço dos direitos um pouco por toda a parte, o
que se revela benéfico.

59
 A especificidade europeia: o sistema da CEDH
(monumento jurídico fundamental do pensamento
jurídico europeu em matéria de “direitos”)
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, é a
atualização mais recente do jusracionalismo
desenvolvido na modernidade e que se afirma
plenamente no iluminismo e enciclopedismo do séc.
XVII.
 A “humanização” e “legalidade” do Direito Penal
A partir dos séc. XV, XVI e XVII, o Direito Penal inumano,
cruel, que não hesitava em fazer uso de tortura e penas
degradantes, que começa a ser combatido pelo humanismo,
assente na ideia da dimensão racional voluntária e da
consciência. O Direito Penal deixa, pois, de assentar na
retribuição do mal, passando a prevalecer a ideia de que todos
os humanos são dotados de consciência e, como tal, são
capazes de distinguir o bem do mal. Quem opta por mesmo
assim fazer o mal é apenas declarado culpado: o Direito Penal
firma-se na culpa e na censura do culpado. A pena de morte
não pode existir porque se crê, a partir de então, que um mal
não pode ser retribuído com outro. Também se acredita na
possibilidade de reabilitação do culpado, no sentido de passar
a concordar com aquilo que é certo; acredita-se na
reintegração do agente na sociedade. Esta conquista conduzirá
à eliminação do arbítrio no Direito, porque a ilicitude do
Direito é corrigida pela legalidade do Direito Penal que
suprime a discricionariedade e as pessoas são informadas do
que acontece mediante o não cumprimento da Lei. A privação
da principal atribuição do Homem enquanto sujeito de
direitos naturais (liberdade) passa a ser considerada a
principal pena.
 Estadualização do Direito, definido pela forma e pela coação
(reflexo na teoria das fontes: da primazia até ao exclusivismo
da “lei”)
A contratualização cria a sociedade, o Estado, que está
incumbido de ditar o Direito, através das respetivas
instituições. . Fazendo a travessia através da razão e da
representação democrática, chegamos de um direito racional,
a um direito legal. Os Tribunais são a “máquina” de
cumprimento do Direito e pertencem ao Estado.
60
 A “codificação” (os “3 ss”) e a vocação “totalizante” do
Direito
 Síntese - depurada de conceções não jurídicas, como
sejam as éticas. Perfeitamente limitada aos princípios e
regras fundamentais jurídicas.
 Sistematicidade – o regime jurídico é articulado de
modo sistemático. Verifica-se a afirmação dos
princípios básicos e a regulação de determinadas
matérias de modo sucessivo e lógico e de acordo com
certos postulados.
 (S)cientificidade – o código está articulado de acordo
com o modelo científico, enciclopédico, isto é, está
ordenado de forma racional e lógica.
A vocação “totalizante” do Direito refere-se ao facto de o
ordenamento jurídico garantir a regulação plena da sociedade:
cada vez que há um problema, o Direito é obrigado a intervir,
ainda que este possa não ser um problema jurídico.
“Totalizante” também porque a codificação tinha inicialmente
uma dimensão política, para além de jurídica, pretendendo a
construção de uma sociedade de igualdade e a eliminação da
sociedade do Antigo Regime. A Lei impunha-se sobre a
sociedade e eliminaria toda a pluralidade jurídica existente.
 O pensamento jurídico e a “tentação cientista” (o Direito
como “objeto” de análise e sistematização)
 O DI (“Direito das gentes”) como a manifestação imediata da
“recta ratio”, com os seus poucos princípios fundamentais
universais
Reconduzia-se aos princípios dos Direitos nacionais e afirma-
se como um direito de tratados (produtos da vontade
manifestada pelos Estados) entre os Estados nacionais,
sobretudo pactos marítimos.
§ tudo estava preparado para o último passo: o positivismo
jurídico “científico” do século XIX

O positivismo jurídico

Conceção na qual o Direito é considerado como uma vontade; é dado


por via da razão que se manifesta na vontade.
Contexto político

61
 A vitória do ideal demoliberal e nacionalista
 Os ideais da Revolução Americana (o republicanismo, os
direitos naturais, “o governo do povo para o povo”, da
Revolução Francesa (“liberdade, igualdade, fraternidade”)
 A reação “legitimista” e a sua conciliação com a
reivindicação da soberania popular (o Congresso de Viena e a
“estabilidade instável” até à I Guerra Mundial) – a vitória
final da soberania democrática (a soberania pertence à Nação)
Os ideais da Revolução Americana (curiosamente, de certa
forma, a primeira revolução europeia), que se traduzem no
republicanismo e no “governo do povo para o povo”, e da
Revolução Francesa (“liberdade, igualdade, fraternidade”)
afirmam-se contra os regimes legitimistas (em que a
legitimidade assentava na propriedade) e conciliam-se com a
reivindicação da soberania popular, alcançando-se uma nova
realidade com o Congresso de Viena, ocorrido no fim do
século XIX, inserido dentro de uma Europa de Estados (fim
das ideias imperialistas). É de notar, contudo, que nesta
Europa se reconhecem ainda as monarquias, embora não se
atribua e até se recusa a atribuição da soberania ao monarca.
As monarquias evoluíram agora para Monarquias Estaduais,
em que a soberania pertence à Nação.
 A separação de poderes como garantia contra o “poder
absoluto” e suas perversidades
Associado à soberania popular aparece o princípio de
separação de poderes, assente em legitimidades distintas,
como garantia contra o “poder absoluto” e suas perversidades,
tendo em mente que a concentração do poder o corrompe.
Baseado na teoria de Montesquieu, que se mantém até aos
dias de hoje, dá-se primazia ao poder legislativo, numa
primeira manifestação do poder do povo através dos seus
representantes.
 A criação do Direito cabe ao legislador, representante da
soberania; ao executivo a condução da política e
administração; ao juiz cabe a aplicação do Direito
Para Montesquieu, os juízes são a boca do Direito,
apenas o aplicam e não o criam – isso somente compete
ao poder legislativo.

62
Esta separação não tinha o alcance dos dias de hoje. Foi pensada
como reação ao absolutismo e tinha a intenção primeira de
limitar o poder e não foi criada considerando a legitimidade de
cada um dos titulares ser o detentor de cada poder.
 Dos ideais nacionalistas românticos ao nacionalismo radical
do final do século Cada Nação/um Estado; Estado/uma Nação
(mote político do século XIX, tendencialmente cumprido após
a I Guerra Mundial)
A partir dos finais do século XIX, contrariando a tendência
até aqui verificada, os ideais nacionalistas (românticos até
então) ganham tom mais agressivo que recusava,
inclusivamente, os ideais democráticos liberais, crendo num
Estado unitário: é a afirmação do nacionalismo fechado,
radical, que conduziu à Segunda Guerra Mundial. A conceção
em vigor é a de que a cada Nação corresponde um Estado e a
cada Estado deve corresponder apenas uma Nação. No
segundo conflito mundial, o nacionalismo ganhou até mesmo
traços de antissemitismo (Alemanha, Rússia, França).
 As duas visões da Nação: a abstrata, contratualista,
expressa na “vontade geral” – francesa; a orgânica,
histórica, expressa no “espírito do povo” – alemã
Existiam duas visões diferentes de Nação. Para
Rousseau, a Nação era fruto da adesão deliberada, é um
projeto de comunidade comum. Esta perspetiva acredita
que a partilha de valores fundamentais é que é
verdadeiramente essencial e, para si, o conceito de
Nação não deve assentar no sangue nem em elementos
culturais comuns. É uma ideia que facilita, pois, a
cidadania, pois a lealdade aos valores fundamentais é
encarada como o verdadeiro determinante de Nação.
Estamos perante a visão abstrata, contratualista,
expressa na vontade geral – francesa.
Numa outra perspetiva, a Nação é encarada enquanto
comunidade histórica, assente na partilha e no sangue
das guerras. No início do século XIX, esta noção era
olhada de modo romântico, pois era considerada
libertária. Na altura em que nos encontramos agora, vai
culminar num nacionalismo agressivo. É uma visão que
pode aceitar o outro, mas nunca o irá tratar como

63
cidadão. É a visão a orgânica, histórica, expressa no
“espírito do povo” – alemã.
Estes dois modos de conceber a Nação irão dar lugar, por sua
vez, a duas visões de cidadania: uma, que é atribuída mediante os
direitos fundamentais partilhados; outra, a do “ius sanguinis”,
para a qual importa a ascendência (afirma-se a partir do século
XIX).
 O “Estado” como a forma de organização política da Nação –
a multiplicação dos Estados na Europa e o fim dos impérios
 O Estado mínimo (“guarda-noturno”) (a garantia da esfera da
sociedade civil contra a intervenção do Estado) – garante da
liberdade, da estabilidade e da segurança
No séc. XIX, em consequência da disseminação de Estados na
Europa, o conceito de Estado identificava-se com o de
“guarda-noturno”, uma vez que vínhamos do séc. XVII e
XVIII, onde prevaleceu o Estado absoluto e mercantilista (a
sociedade estava ao serviço dos interesses estaduais). No séc.
XIX há uma reação contra esta ideia e uma tentativa de
afirmação da sociedade. Há que garantir a liberdade
económica, inclusive a liberdade da sociedade contra a
privação estadual. Assim, pretendia-se um Estado incumbido
de funções de defesa e segurança interna, um Estado mínimo
que não intervém na economia, que deixa que os cidadãos,
através da conjugação das suas vontades, desenvolvam a sua
atividade.
 Para tal, detém o monopólio da criação do Direito (através da
“vontade geral”, manifestação da soberania popular), e da
respetiva aplicação e sanção
Segundo este Estado liberal, o Estado é uma entidade unitária
e todo o Direito é estadual. As restantes fontes de Direito são
eliminadas, incluindo o costume, padrão que se mantém até
aos nossos dias. Atualmente somos todos positivistas: o
Direito é criado e assegurado pelo Estado e as normas
jurídicas representam a vontade geral.
 Mas, está limitado e racionalizado pela Constituição (e
“direitos”) e pela separação de poderes
A ideia de separação de poderes não surge no século XIX,
mas é nessa época que se afirma.

64
Apesar desta limitação e racionalização, a Constituição liberal
do século XIX é essencialmente reguladora, não garantido
princípios fundamentais.
 Onde a institucionalização do Estado é débil, o Direito,
revelado nos “costumes”, é uma manifestação do “espírito
do povo/nação”
 A sua “racionalização” cabe à doutrina e a sua aplicação aos
juízes, mas estritamente vinculados
Contexto socioeconómico
 A ascensão da burguesia e o paradigma individualista
(embora o que se verifique na prática seja uma sociedade
assente na propriedade e nos privilégios que dela advêm, algo
favorecido pelos próprios elementos)
Esta burguesia industrial e comercial que indispensável e
necessária à abolição dos privilégios que permaneciam, da
sociedade estamental. A lei garantia a certeza, fundamental
para uma classe empreendedora, uma vez que permitia a
previsibilidade, o que fazia avançar iniciativas económicas. A
lei deve assegurar a prevalência da vontade contratual livre e
consciente. A ideia de o direito corresponder à lei encaixava
nas exigências da época.
 A industrialização
 A internacionalização da produção e comércio (vitória do
liberalismo económico)
Surge, em consequência, o capitalismo financeiro e uma elite
dentro da burguesia, que leva a corrida a África.
 O paradigma do equilíbrio automático do mercado (a “mão
invisível”)
O que acontece é que a competição existente entre as
empresas se traduz em equilíbrios perversos, havendo
necessidade de regular o mercado concorrencial.
§ todos estes fatores exigem a abolição dos privilégios, a
igualdade perante a lei, a liberdade e a proteção da propriedade
Os direitos naturais
 Direitos cívicos expressão da liberdade;
 Direitos políticos expressão da igualdade, ponderada com a
propriedade (na representação política censitária);

65
 Direitos subjetivos nas relações privadas sob o signo da
liberdade individualista (o domínio da vontade – a autonomia
e o contratualismo);
Trata-se ainda do contratualismo, já que os contratos são o
produto de uma interceção das vontades dos sujeitos. As
relações jurídicas entre os privados são inteiramente reguladas
pelo contratualismo. Esta regulação evita os excessos e os
desequilíbrios. Hoje em dia, negociamos com um contrato
que possui regulações já definidas (os contratos são meros
formulários com condições contratuais) e a nossa liberdade
reside em aceitar ou não. Contudo, quem nos apresenta o
contrato não pode moldar as cláusulas a seu favor, pois estas
são reguladas pelo Direito objetivo. Portanto, o Direito
Público é que regula as relações entre os privados.
 A liberdade de estipulação – das prestações, incluindo nas
relações laborais;
No final do século XIX, os direitos naturais estendem-se a
domínios sociais, nomeadamente aos trabalhadores.
 A exclusão das relações corporativas;
 O Código e a Constituição como os repositórios fundamentais
do Direito e dos Direitos
O Código: lei unitária que articula de acordo com princípios
racionais todas as regras num determinado domínio que se vê
extenso, de modo a que seja capaz de garantir a ordenação da
sociedade.
No século XIX, as Constituições estavam associadas,
inclusivamente, a cartas de Direitos.
A generalidade e abstração são a garantia da liberdade e
igualdade
O positivismo reagiu contra a vinculação do direito à religião e à
moral, como também contra qualquer identificação com especulações
filosóficas, como as ideias jusracionalistas. Foi uma luta contra a
incerteza e confusão do direito tradicional, casuístico, que dependia da
teologia e da moral.
 O Direito como conjunto de “normas”, i.e. regras criadas pela
“vontade geral”, para problemas de todos
O Direito assenta na norma jurídica geral e abstrata que não
se aplica a casos concretos e é por essa via que se manifesta a
sua racionalidade. No sentido de assegurar uma visão racional

66
e imparcial, a criação deliberada pela vontade geral e pelo
Parlamento é defendida, repudiando-se o costume, etc.
O Direito é “positum”
 Criação voluntária e distingue-se da sua aplicação
O positivismo diz-nos apenas que todo o Direito é posto. Isto
significa que não há Direito que não seja fruto de uma
deliberação, de uma criação social e humana, legitimada para
tal.
Doutrina
A doutrina tem como função tornar percetível o Direito, mas não é
uma função constitutiva da Lei.
 “Ciência hermenêutica e sistematizadora da lei”, não como
“criadora do Direito”
 O pensamento jurídico é científico porque analisa o Direito
“posto” (a expressão “Direito positivo” vem de “Direito posto
pelo legislador”) e não porque assenta em especulações
racionais ou afirma argumentos de autoridade (modelo das
ciências naturais, como paradigma epistemológico)
Jurisprudência
 “Aplicadora mecânica” da lei
O juiz vai aplicar a lei. Sempre na lógica dedutiva: a situação
concreta terá que corresponder, nos seus traços casuísticos, à
situação hipotética definida pelos traços gerais e abstratos da
lei, aplicando a estatuição prevista.

Escolas positivistas

 Escola da Exegese – positivismo legalista


Nome devido à crença por parte dos seus pertencentes de que a
Lei deveria ser interpretada e integrada, uma exegese do jurista,
mediante criação prévia.
 Direito = Lei (Código), i.e. conjunto de regras gerais e
abstratas concisas, simples e acessíveis a todos
Afirma-se em França, onde a Codificação foi mais radical e
onde se cria que o código deveria sintetizar e sistematizar o
Direito. Em 1804, com a publicação do Código francês,
proliferou a ideia de que ensinar o Direito era ensinar os
códigos. O Direito identificava-se, assim, com a Lei (Código),
algo de onde decorreram, naturalmente, limitações e

67
insuficiências. Este Direito identificado com a Lei
correspondia a uma manifestação empírica da Razão e
proporcionava certeza jurídica. A Lei veio a resolver os
problemas criados pela multiplicidade de fontes, perante as
quais os agentes não sabiam por onde se reger, sendo um ato
deliberado, tornado público em todo o país, redigido na língua
do mesmo e garantia de previsibilidade. O Direito era, deste
modo, o conjunto das leis gerais e abstratas, assente na
legitimidade democrática da soberania. Verifica-se a
plenitude lógica do direito legal: todo o Direito é Lei; não há
Direito para além da Lei.
 À Doutrina cabe apenas interpretar/integrar a lei vinculada à
vontade do legislador histórico
A Doutrina possuía como único papel, um papel secundário,
interpretar e reconhecer o sentido das leis plasmadas pelo
legislador. Isto porque após as conquistas da Codificação, o
Direito estava realizado, cabendo à doutrina apenas apreendê-
lo.
 Aos juízes cabe aplicar mecanicamente (lógica dedutivo-
subsuntiva) a lei aos factos, recusando-se-lhes qualquer
missão “criadora”
Os Juízes estavam incumbidos de um papel mecânico. A eles
lhes cabia aplicar mecanicamente a Lei, sendo simplesmente,
como preconizava Montesquieu, a boca que pronuncia a Lei.
Na perspetiva da Escola da Exegese, não havia lógica mais
garantidora da certeza do Direito do que esta, pois evitava o
livre arbítrio dos Tribunais. Foi uma lógica que se afirmou
com o princípio de separação de poderes (independência dos
Tribunais, aos quais cabia a função judicial; função legislativa
da competência do legislador), sendo que a conceção clássica
de tripartição se conjuga perfeitamente com ela.
 Para garantir essa fidelidade, previu-se o “reenvio
legislativo” sempre que a lei fosse obscura.
A interpretação da lei revelava-se tão importante que,
para garantir a fidelidade dos juízes, se previu o
“reenvio legislativo” sempre que a lei fosse obscura. O
juiz não podia interpretar as leis “per si”; caso tivesse
dúvidas, devia remeter a lei a aplicar ao legislador para
que ele procedesse à sua interpretação mais correta e
fidedigna. Também este ato se relaciona com a
68
separação de poderes, no sentido da limitação da
soberania dos juízes. Esta premissa entendia que o
sistema jurídico estava perfeitamente integrado na Lei e
no Código, reflexo de uma sociedade que pretende do
Direito a menor interferência possível, no sentido de
garantir a maior liberdade e autonomia dos sujeitos.
 Para impedir o arbítrio judicial e garantir a fidelidade à
consciência jurídica do povo instituiu-se o júri.
Isto levou à instituição de tribunais de júri – prova de
ativismo popular, recusa da aristocracia judicial. Não
havia só juízes de carreira; havia também lugar para a
consciência jurídica diretamente da nação, mas sempre
estritamente condicionada à lei.
Porém, a existência do Código, que não permitia a integração de
lacunas, numa crença de que não há Direito para além da Lei (a Lei
dava resposta a tudo, até mesmo por analogia), fez decair a Escola
que não conseguiu dar resposta às falhas do sistema que instituiu.
Esta Escola, herdeira da conceção alemã e, por essa razão, não
muito aceite nesse país, influenciou todo o pensamento europeu.
 Escola Histórica alemã
 Contexto
O seu aparecimento insere-se num contexto em que o estatuto
epistemológico das ciências exatas é muito elevado. É a
expressão jurídica de um vasto movimento cultural alemão
que surgiu na última metade do século XVIII e no século
XIX, em que se afirmam respetivamente, a Economia e a
Sociologia, ciências sociais que pretendiam englobar todas as
esferas do ser humano e empurrar o Direito para o plano
inferior e ter métodos semelhantes aos das ciências exatas.
 Anti universalismo e recusa da codificação e do legalismo
Caracteriza-se pelo positivismo anglo-saxónico, muito
diferente do da Escola da Exegese, não pretendendo positivar
tudo. Para a Escola da Exegese, a cidadania assentava em
critérios universalistas como a igualdade e a liberdade.
Desejava a expansão desta ideologia para vários povos da
Europa, no sentido de os afastar da conceção legitimista e de
os libertar, ainda que de forma forçada. No espaço germânico,
um grande número de pessoas inspirou-se nestes ideais
francesas. Mas estes últimos encontraram também a
resistência das elites, criando-se o Volksgeist, uma identidade
69
que se afirma como uma unidade cultural, linguística mas que
não tem um espaço político único (é, antes, múltiplo), numa
reação à pretensa de universalidade francesa (reação anti
universalista).
 O Direito é uma manifestação cultural/orgânica e é
constituído pelas normas criadas pelo “espírito do povo” – o
“costume”
Esta reação entende o Direito, não como uma manifestação
racional, mas como uma manifestação da cultura de um povo
(Volksgeist), construída ao longo da História. Neste sentido,
recusará manifestações de direitos naturais e universais, bem
como a codificação, uma vez que ela é não é verdadeira ao
não constituir uma manifestação do espírito do povo – a
verdadeira fonte de Direito é o costume, pois o Direito, tal
como todas as outras dimensões culturais (nomeadamente a
arte, manifestada na literatura, na pintura, na música, entre
outros) é um produto da cultura popular, no seu entender.
 O papel da Doutrina (“Professorenrecht”) é a sistematização
dessa ordenação emanada da cultura popular (mas
intensamente imbuída de “romanismo”)
No entanto, como o Direito proveniente do espírito do povo
está repleto de elementos irracionais, não jurídicos, para se
tornar mais racionalizado (tornando-se mais passível de ser
interpretado e aplicado) e mais próximo de uma ciência, ele
terá de ser sistematizado pela Doutrina. É na Doutrina que se
encontra a origem dos elementos para a interpretação ainda
hoje usados. Devemos a Teoria Geral da Interpretação do
Direito a Savigny, pensador da época, que desenvolveu a
conceção de que os juízes deviam criar a norma e não
depender de um legislador autoritário.
Mas como se transita de uma perspetiva do Direito enquanto produto
cultural e popular para o Direito como um sistema concetual,
desprovido de quaisquer dimensões éticas? Em breve se transitará
para a Pandectista ou Jurisprudência dos Conceitos, a qual
desenvolveu a construção sistemática do Direito.
Assim, em breve se transita para
 A Jurisprudência dos Conceitos ou Pandectística
A Pandectista reconhece desde logo que o Direito é constituído
por princípios e conceitos racionais, integrando várias fontes
normativas, embora não lhes reconheça logo valor jurídico.
70
 A influência do formalismo kantiano e do idealismo
hegeliano
A proposta da Jurisprudência dos Conceitos começa com
autores da Escola Histórica alemã, ainda no quadro de
organicismo básico em que assenta a proposta desta mesma
escola. No séc. XIX afirma-se na Alemanha o contexto do
idealismo formal, uma forma quase contemporânea do
idealismo platónico. Hegel foi o filósofo que afirmou que
“todo o real é ideal e todo o ideal é real”. Este formalismo
idealista vai servir para trabalhar e formalizar, em termos
conceptuais, as propostas e fontes que estavam presentes no
quadro do pensamento da Escola Histórica. A jurisprudência,
no sentido clássico do termo (que advém da Antiguidade e se
desenvolveu ao longo da Idade Média) é a atividade científica
do Direito. Assim, esta jurisprudência é a doutrina elaborada
nas universidades com influência epistemológica kantiana e
hegeliana, que constrói um sistema jurídico ideal. Este
sistema jurídico entende que o Direito é um sistema
intelectual conceitual e não um conjunto de fontes.
 A sistematização exponencia-se em conceitos abstratos e
autovalidantes integrados num sistema jurídico pleno, que se
constrói, de modo autónomo, indutivamente a partir do direito
positivo, em que os princípios fundamentais se desenvolvem
em outros princípios e se especificam em regras, e que se
concretiza dedutivamente na aplicação subsuntiva por meio
de uma interpretação/integração objetivista (o “espírito do
sistema” – art. 10º CC)
 A autonomia do Direito e do pensamento jurídico: o Direito
como sistema e método colocam-se ao abrigo das
contingências e arbítrio políticos, ético-valorativos e
casuísticos; o pensamento jurídico reassume uma função
central, pois o Direito não se confunde com lei, mas é um
“sistema”, cujo sentido tem de ser determinado – é uma
ciência não hermenêutica/descritiva, mas conceitual/racional
O Direito é, assim, um sistema conceitual, constituído por
princípios gerais. À ciência do Direito cabe garantir a
autonomia do Direito – sistema de princípios racionais
evidentes que não validam a realidade social envolvente. Aos
juristas cabe preservar esta lógica.

71
 A sua revelação no BGB já sob o império do Estado alemã; a
universalização do modelo no século XX
A realidade política acompanhou esta evolução, o que
comprova pela pretensão alemã de um Estado unificado,
procurando eliminar o Império que se constituía como uma
mistura de Estados pequenos. Este novo sistema vai
concretizar-se positivamente pelo Estado alemão com a
codificação, permitindo a unificação alemã. França,
contrariamente, começou logo pela Codificação: o seu
sistema articulou-se através dos códigos. A Alemanha vai
evoluir de um direito abstrato para um direito “posto” que se
positiva nos Códigos. (as outras fontes de Direito perdem-se).
Hoje em dia, o Código Civil Alemão de 1900, surgido da
Pandectista serve de inspiração para todos os sistemas
jurídicos do mundo.
As duas escolas contribuíram grandemente para a atualidade, sendo o
principal contributo da primeira o legado da Lei. Da Pandectista,
encontramos uma definição de Direito que não se reconduz à Lei,
porque esta ultrapassa as fontes legais e articula-se em torno de
princípios fundamentais. Deve-se especialmente a ela a
autonomização do Direito. Contudo, ela também recusou a integração
do Direito na vida social e a sociedade como parte integrante do
Direito. A sua conceção não se afigura, pois, suficiente, nem consegue
responder às exigências do Direito na atualidade. No século XIX estas
Escolas serão completamente recusadas, questionando-se as suas
conceções e reconhecendo-se a necessidade de as complementar com
outras teorias e outras propostas.

Crítica e crise do positivismo oitocentista

 Contexto e fatores políticos, económico-sociais e culturais


 Nacionalismo
Nacionalismo exacerbado – agressivo, xenófobo do final do
séc. XIX, o que conduziu à I Guerra Mundial.
 Emergência do “Estado Social”
 Teses antiliberais de esquerda – marxismo/socialismo,
anarquismo, social-democracia, e de direita – a radicalização
do nacionalismo
O marxismo com a perspetiva de que a sociedade é uma
permanente luta de classes e que o Direito é um elemento de
72
infraestrutura condicionado pela macroestrutura económica,
põem em crise o direito positivo e supostamente neutro.
 Emergência de ciências sociais críticas e empíricas
(especialmente a sociologia)
O surgimento da sociologia afronta diretamente o Direito,
porque adota uma perspetiva que pretende ser uma perspetiva
científica isenta de considerações de dever ser, de justiça, de
correção ética e de elementos de teorização de organização
social. Começa‐se por recusar o Direito por ser uma moral
imposta pelo poder. É isto que os juristas querem impedir,
argumentando que podemos construir um sistema jurídico tão
científico quanto as teorias sociológicas. São quadros gerais -
o seu valor não está dependente de interesses ou vontades –
que respondem a conjuntos de princípios gerais concretizados
através de regras.
 Capitalismo internacional concentrado
Este novo capitalismo industrial rapidamente se converte num
capitalismo financeiro internacional, que põe em causa o
modelo ideal de Estado-Nação. O progresso de umas
economias faz-se à custa de outras. Há uma corrida ao
território africano, numa tentativa de o explorar e encontrar
matérias-primas da indústria cada vez mais desejadas. Isto
veio por em causa a ordem que o Direito natural preconizava.
 Movimentos operários e sindicalistas
 Refundação do idealismo axiológico cristão
Todos estes fatores põem em causa o individualismo axiologicamente
neutral e teleologicamente alheio em que assentava o pensamento
jurídico.
 Limites e não adequação dos seus postulados
 Crítica da plenitude lógica do sistema normativo perante uma
realidade extensa, densa e dinâmica
A ideia de que o Direito é um sistema pleno e fechado sobre
si mesmo, tentando isolar-se de influências consideradas
irracionais e não científicas (ética, cultura, etc) para garantir
cientificidade, resultava numa autonomia que rapidamente
revelou os seus limites. Se o Direito é apenas isto deixa de ser
capaz de responder às exigências da sociedade.
 Formalismo do conceitualismo que ignora o telos da
regulação

73
Vamos ter outras propostas como a do telos da regulação, de
Ihering, que reconhece insuficiência de um Direito que,
querendo manter a sua autonomia, não olha para as
finalidades do legislador. É indispensável para a compreensão
do Direito e para a sua efetivação, não apenas pensar nos
quadros conceituais abstratos nem nos princípios e regras daí
deduzidos, mas interpretar, integrar, dar sentido, tendo
presente as finalidades da regulação, os fins da lei.
 Instrumentalização que põe em causa a validade normativa

O pensamento jurídico contemporâneo

A época contemporânea é um momento de crise, fruto de múltiplos


fatores (nomeadamente culturais e económicos), que acaba por pôr em
causa o paradigma que se tinha criado, e que procura apresentar
propostas para ultrapassar falhas (não se trata de uma nova realidade,
mas antes novas roupagens, aspetos relacionados com pequenos
pormenores).

A refundação do positivismo

§ O Direito como “facto social” - a recusa da “abstração


conceitualista”, a contextualização do Direito na Sociedade
A linha positivista, que tinha perdido importância na modernidade
(com a positivação do jus racionalismo) volta a nascer no século XX
de forma menos pretensiosa, mais tímida. Crendo no Direito como
“facto social” e recusando a “abstração conceitualista”, a
contextualização do Direito na Sociedade, a Refundação do
Positivismo crê que o Direito positivo não pode basear-se num
sistema conceitual de princípios, mas está marcado por eles pelas
exigências sociais que enfrenta, bem como pelas suas finalidades na
sociedade.
 A Jurisprudência teleológica e dos Interesses (R. Ihering; P.
Heck; M. de Andrade; A. Vaz Serra): o fundamento
normativo do Direito encontra-se na tutela de interesses, das
finalidades, individuais ou sociais legítimas (i.e. legais),
subjacentes aos atos jurídicos e ao ordenamento jurídico.
Esta é ainda uma escola “normativa”

74
 Salienta-se o utilitarismo, o anti-individualismo voluntarista,
mas ainda o legalismo
Recusando o legalismo da Exegese, é depois da sua
reconstrução que o Estado alemão integra este sistema,
criando um Código Civil e um Código Comercial. Nestes
termos, a recusa do legalismo vem a ser, posteriormente, a
base da codificação do BGB, um código que, na prática,
converte, articulando em parágrafos, aquilo que era um
manual civil (Windscheid elaborou o tratado de Direito civil
que depois é convertido em lei para o BGB). Vai acrescentar
um direito positivo legal que, quando sistematizado e
interpretado para ser aplicado, não pode desviar-se das
finalidades que o legislador visava atingir (Ihering).
Finalidades essas que são legítimas porque o legislador é o
criador legítimo das normas. O Direito só será a ordem
normativa vigente se tiver em conta os princípios sociais e
económicos.
 A relevância determinante do elemento teleológico na
hermenêutica jurídica
Na perspetiva de Heck, o Direito não pode entender-se como
um sistema conceitual, mas sim institucional, de solução dos
problemas da sociedade. Cabe aos juristas analisar a realidade
social e, atendendo aos interesses, encontrar a solução correta.
O Direito é um sistema social de resposta aos problemas que,
em concreto, se colocam, pelo que exige ponderação de
interesses; tem como fonte principal a Lei. Será neste aspeto
que a jurisprudência teleológica e a jurisprudência dos
interesses se afastarão. Segundo este autor, não são apenas as
finalidades do legislador que importam, mas também, e
sobretudo, os seus interesses. A função do Direito é garantir
uma correta articulação dos interesses, uma vez que a
sociedade é formada por diferentes interesses que estão em
combate ou coligação. Cabe ao juiz efetivar as normas e
garantir que os interesses são preservados sem prejuízo de
outros que em sociedade se afirmam e têm as suas exigências.
 A resolução do problema das lacunas
A jurisprudência dos interesses resolve ainda o problema das
lacunas: o Direito não consegue envolver todos os factos
sociais, mas, de acordo com esta visão, consegue encobrir as
falhas pela procura máxima da garantia de interesses. É a
75
finalidade dos interesses subjacentes à norma análoga e não
numa lógica paralela. A analogia não se refere aos factos, mas
às finalidades que se pretendem atingir. A perspetiva relatada
continua a ser aceite no dia de hoje e está inclusivamente
presente no artigo 10.º do Código Civil – Integração das
lacunas da lei:
1. Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a
norma aplicável aos casos análogos.
2. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as
razões justificativas da regulamentação do caso previsto
na lei.
3. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a
norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de
legislar dentro do espírito do sistema.
 A decisão judicativa como ponderação de interesses
A primeira assenta na finalidade, mas crê essencialmente na
Lei, num sistema pré-definido pelo legislador. Para a segunda,
a unidade lógica é minimizada em ordem aos interesses
concretos, cabendo ao sistema jurídico institucional, tem em
conta as normas, dar resposta, confluindo os interesses em
litígio. Assim, a jurisprudência dos interesses coloca a tónica
na aplicação pelo jurista e na ponderação dos interesses, numa
conceção de que o que é o fundamental é a garantia da justa
posição dos mesmos. Para si, o Direito, mais do que uma
ordem assente numa lógica sistemática, assenta na realidade
social e no modo como consegue adquirir o justo equilíbrio
dos interesses.
 O construtivismo anti conceitualista

76

SEMESTRE

77
I - Continuação da História do Pensamento Jurídico
(Refundação Jusnaturalista)
• Pressuposto:
- A existência de uma realidade jurídica suprapositiva, intemporal, a-espacial
imanente ou transcendente, arquétipo e fundamento de validade da ordem jurídica
contingente positiva, através de um quadro axiológico fundamental.
- Nasce depois da 2ª Guerra Mundial, principalmente na Alemanha. É uma
refundação sem grande eco para além da Europa Continental. Atualmente, tem um
acolhimento ainda menor, na medida em que o sonho do jusnaturalismo é um sonho
passado e há um afastamento desta tendência. A refundação que se entende como sendo
possível é feita num quadro das propostas juspositivistas.
- Há pressupostos que se mantêm ao longo do tempo: a realidade jurídica não se
esgota no Direito positivo. Este é a sua manifestação mais relevante e imperativa, mas
há um conjunto de axiomas racionais ou valores éticos que são universais e que servem
como referência para aferir a validade do Direito positivo e, no limite, podem implicar
que o Direito positivo se possa classificar como não-jurídico, quando se afasta desse
quadro valores de referência ideal que se pressupõe como inerente à natureza humana.

• Linhas fundamentais (o Direito como irredutível indisponibilidade, ciência do


espírito, natureza problemática):
- O Direito passa a ser uma ciência do espírito, podendo haver métodos
científicos na análise, compreensão e prática jurídica do Direito. Podem haver métodos
objetivos na sua compreensão mas esta não é uma ciência idêntica às ciências empíricas
e especulativas, como a Matemática. O Direito faz parte do quadro das humanidades e
aparta-se da realidade científica.
- O Direito é uma praxis, o que nos reconduz para a sua natureza problemática,
na medida em que o Direito é sempre uma resposta aos problemas casuísticos que a
sociedade apresenta e a que procura dar resposta válida. O Direito não se limita a um
conjunto de regras imperativas, dotadas de instrumentos coercivos, que são aplicadas
mas que desconsideram aquilo que lhes dá valor intrínseco, a natureza espiritual e ética,
a natureza fundamental dos seres humanos.

• Contexto:
- Surgiu como reação à tragédia histórica do legalismo e do neutralismo
axiológico - uma tragédia de meados do século XX. Está associada a uma orientação
doutrinal que entendia que o Direito do Estado - a lei positiva - era a fonte exclusiva de
Direito. O Direito não estava associado a qualquer fundamentação ética e não havia
qualquer questionamento da justiça das normas legais, eram Direito posto e não havia
Direito para além desse.
- Em meados do século XX, dá-se a afirmação dos direitos humanos a nível
internacional com a criação das Nações Unidas, assente em valores de igualdade e
dignidade de todos os seres humanos.

78
• Tipos fundamentais de jusnaturalismo:
- Jusnaturalismo laico: formalista, idealista, existencialista e essencialista. Não
se afirma muitas vezes como jusnaturalismo mas a sua lógica enquadra-se neste
pressuposto. Há uma realidade humana universal que não está localizada espacialmente
mas cujas manifestações históricas são integradas nessa realidade mais vasta. Apresenta
três formas: o formalismo neokantiano, o existencialismo e o essencialismo.
- Jusnaturalismo cristão: afirmou-se com mais pujança nos países do Sul da
Europa (Portugal, França, Espanha). No Norte da Europa há uma afirmação mais
limitada associada à Igreja Protestante.

• O formalismo neokantiano (Esc. Marburgo, R. Stammler, Cabral de Moncada):


- É a resposta mais evidente à tragédia do positivismo germânico. Inspira-se em
todo o património que o pensamento de Kelsen trouxe ao pensamento jurídico alemão.
- Há o pressuposto de que há uma ideia do Direito que responde à justiça que é
universal, a priori, uma ideia intelectual que é inerente à razão humana e que está
presente sempre e em qualquer lugar, ainda que se manifeste de formas distintas.
- Os quadros ideais são quadros reais, permitem-nos compreender o mundo e
não simplesmente apreender empiricamente através dos sentidos. Todos os seres
humanos partilham estes quadros inerentes à razão.
- A justiça é um ideal que integra a compreensão e a razão serve para o
enquadrar o Direito positivo. É um referente para fundamentar o Direito criado em
sociedade, criado pelo Estado. Todo o ser humano tem em si um quadro de ideais de
valores, entre os quais a justiça.
- Esta corrente deriva da jurisprudência dos conceitos, porque é uma corrente
formal e aponta para a essência do Direito como um quadro de referentes abstratos,
ainda que a pandectística fosse estritamente positivista na afirmação da recusa de
qualquer fundamento axiológico. Podemos falar aqui numa “jurisprudência dos
valores”, que se reconduz aos princípios do Direito romano: o ideal de justiça.
- Neminem ladere: Não prejudicar ninguém.
- Pacta sunt servanda: Cumprimento dos contratos.
- Suum cuique tribuere: A dignidade humana que dá a cada um um património
de direitos na sociedade que lhe é devida de acordo com a dignidade humana.
- O Direito é a-histórico: os princípios do Direito romano estão a vigor até hoje.

• O existencialismo (W. Maihofer, E. Fechner):


- É olhado como uma concepção radical do ser humano, como um ente que
inspira ao absoluto mas é fruto das suas limitações, sendo então limitado e insuficiente.
- Este quadro leva o ser humano a desenvolver a cultura de modo a superar as
suas insuficiências, os seus limites. É aí que surge o Direito, integrado nesse projeto de
superação dos limites das falhas humanas. O Direito é um projeto de desenvolvimento
tendente à perfeição e, para isso, necessita de princípios.
- Princípios fundamentais: reciprocidade, universalidade do imperativo
categórico. São estes princípios que enformam o Direito para permitirem ao ser humano
desenvolver-se em sociedade. Reconhece-se uma universalidade do Direito.

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• O essencialismo (G. Radbruch, H. Coing):
- Há uma natureza das coisas ou do Homem que se impõe ao Direito um quadro
axiológico fundamental (que se densifica num conjunto restrito de princípios e direitos),
ainda que não uma normação concreta, e sobretudo de natureza negativa, como limite à
intervenção regulativa positiva (a radical indisponibilidade do Direito).
- Fórmula de Radbruch: O Direito positivo muitas vezes contraria a essência do
Direito. Há um quadro axiológico que deverá ser concretizado pelo direito positivo. A
substância da justiça aqui é mais tangível, tem haver com a igualdade.

• Conclusão da refundação jusnaturalista laica:


- A refundação jusnaturalista laica é tão precária e limitada que se reconduz
efetivamente a um ideal de justiça, fundamento de validade de um direito que ôntica e
radicalmente só pode ser positivo, positum humano.
- Assim, o pensamento jurídico ocidental, através de duas linhas em espiral
converge num vértice comum, centrado na concretização casuísto-problemática da
Justiça, onde o que releva é como e quem opera tal realização.
- Na ausência de um fundamento mais sólido, acabam por reconhecer que é no
Direito positivo e nos quadros de relação deste que se consegue concretizar a intenção
fundamental do Direito. Aproximam-se das outras correntes que pretendem legitimar o
Direito através de fórmulas sociais e políticas. Há uma aproximação entre as propostas
jusnaturalistas e juspositivistas do presente. Há uma sobrevivência, ainda que se associe
às outras respostas dos positivistas.

• O Jusnaturalismo Cristão:
- Reconduz-se ao entendimento de que a fundamentação do Direito assenta na
dignidade humana, que se reconduz a um conjunto de valores onde se fundam os
direitos individuais, resultado da natureza do homem, na medida em que este é uma
criação divina, feito à sua imagem, com uma natureza absoluta e transcendente.
- Tenta reconhecer a autonomia dos indivíduos, as formas tradicionais de
organização social contra um Estado todo poderoso e intervencionista. O
reconhecimento da respetiva autonomia jurídica (afirmação do direito à educação, não
por um padrão da parte do Estado, mas auto-definido pela família).
- É a afirmação de um conjunto de princípios que hoje estão confirmados pela
Constituição.
- A refundação do jusnaturalismo que permaneceu foi essencialmente a
associada à Igreja. O fundamento do Direito assenta na ligação ao transcendente. Todos
os direitos têm esse fundamento e o direito positivo tem de o reconhecer, sendo que a
validade deste resulta do seu reconhecimento. Num estado laico, este não se converte
num estado religioso mas reconhece autonomia, o que leva a que o Estado não interfira
na afirmação da liberdade do ser humano, na afirmação da sua autonomia de
organização social.

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II - Ramos do Direito Objetivo
1 - Ramos de Direito
• O Direito Objetivo corresponde à ordem jurídica vigente, ou seja, ao conjunto de
normas que articuladas, de acordo com diferentes princípios, vigoram num
determinado espaço e constituem o Direito vigente que se coloca sobre determinada
jurisdição. Corresponde ao Direito de um Estado. Pode ser imaginado como uma
árvore com raízes, tronco e diversas ramificações.
• Summa Divisio do Direito:
- Institui-se com o positivismo jurídico (século XIX), uma vez que nessa fase
temos um Estado que se submete ao Direito Constitucional e se legitima a partir do
Direito e aceita submeter a sua ação ao enquadramento do Direito. Antigamente, a área
do Direito Público era pouco nítida, na medida em que o Direito e a política se
confundiam e os princípios não eram claros como no Direito Privado. Não havia o
princípio do Estado de direito, separação de poderes, etc. e havia uma confusão entre o
interesse da comunidade e o interesse do soberano. Esta autonomização do Direito
Público faz-se então depois das revoluções liberais.
- O tronco dividiu-se em Direito público e Direito privado. Nos dias de hoje,
vemos uma proliferação dos ramos do Direito porque há cada vez mais uma necessidade
da sociedade de responder a questões específicas, há a necessidade de desenvolver
ramos/sub-ramos do Direito.
- Esta distinção está, na perspetiva de vários autores, incluindo Kelsen e
Radbruch, enraizada não só no conceito de direito, mas até mesmo na própria ideia de
direito. É uma distinção que vem desde o Direito Romano e encontra os seus primórdios
nas afirmações de Ulpianus: “O direito público é o que se refere ao estado da cosia
romana; o privado, o que se refere à utilidade dos indivíduos”. Diz-se que o
jurisconsulto romano ter-se-á baseado no critéiro do sujeito da relação jurídica e
considera de direito público “aquelas normas que organizam o Estado romano e
disciplinam a sua atividade”; o direito privado seira aquele conjunto de normas que
“como não respeitam ao status rei publicae respeitam à utilidade de cada um.
- Ramos do Direito: conjunto de normas jurídicas que, estruturados segundo
princípios gerais específicos, contêm uma individualidade própria. Referem-se a setores
individualizados da vida social.

• Critérios para a distinção entre Direito Público e Direito Privado:


- Critério dos interesses:
- Direito Público: conjunto de normas que tutelam o interesse geral da
comunidade, o interesse público.
- Direito Privado: o Direito Civil (direito das relações individuais)
cobria as matérias respeitantes ao direito contratual. O Direito Privado é o direito da
liberdade contratual, dos interesses particulares.
- Crítica: este critério é caraterizado por insuficiente. No final do século
XIX, século XX, há uma revolução da organização económica em que há um maior
intervencionismo do Estado e começa a existir confusão entre o interesse público e o
interesse privado. Sobre os interesses particulares, não deixa de haver o interesse
público, que condiciona as liberdades dos particulares. Os interesses particulares não se
bastam mesmo no âmbito das relações privadas, é necessária uma intervenção pública, e

81
há uma mistura entre o interesse particular de cada um e o interesse geral em garantir a
livre concorrência.
- Exemplo: as normas de Direito penal (Direito público), que proíbem
o homicídio protegem um valor da coletividade e ao mesmo tempo o
interesse pessoal que cada um de nós tem na conservação da vida.
Desta forma, tenta-se atenuar este critério acrescentando a nota de
predomínio aos interesses a prosseguir por cada um daqueles direitos:
os interesses predominantemente (ou diretamente) públicos
pertencem ao âmbito do direito público: os predominantemente
privados, ao direito privado. Porém, nem mesmo esta versão se
considera satisfatória: as normas sobre o casamento pertencem ao
direito privado e, não obstante, algumas protegem inequivocamente
um interesse público.
- Este critério não é capaz, nos dias de hoje, de distinguir o Direito
Privado do Direito Público.

- Critério do estatuto dos sujeitos:


- Relação entre sujeitos privados/relações entre sujeitos públicos e
privados ou entre sujeitos públicos.
- Há sujeitos com estatuto público e outros com estatuto privado. Há
entidades que são construídas ao abrigo do Direito Privado e outras do Direito Público
(na sua constituição é definida a sua natureza pública e a sua sujeição a normas do
Direito Público). O Direito Público regula as relações entre sujeitos públicos e entre
privados e públicos.
- Crítica: este critério não diz nada de substantivo, o que nós vemos é
que mesmo entre sujeitos de estatuto público, nas suas relações ou nas relações entre
públicos e privados, podemos ter sujeição a normas do tronco que não correspondem ao
seu estatuto. Mesmo entre entidades públicas, pode haver relações jurídicas regidas pelo
Direito Privado, por se entender que este resolve melhor a situação em causa. As
relações entre privados podem também estar sujeitas a regras do Direito Público
(impostas pelo Estado para além da vontade das partes).

- Critério da posição dos sujeitos:


- Não se preocupa com definir se o interesse é privado ou público, olha
para as relações em concreto.
- Quando uma das partes dispõe do ius imperium, considera-se que
estamos perante Direito Público. Quando as partes estabelecem as suas relações em
condições de estrita igualdade e paridade, estamos perante Direito Privado.
- Dir-se-á, todavia, que nem todas estas relações pertencem ao
direito privado como por exemplo: relação proveniente dum contrato administrativo não
deixa de pertencer ao direito público embora o Estado ou outro ente público participe aí
numa posição igual à da outra parte. Dir-se-á também que, no direito privado, há
relações de subordinação e de dependência (relações entre pais e filho). O que falta
perceber é porque é que nuns casos o Estado e as entidades públicas agem dotados de
imperium e noutros não e que esta ideia de ius imperium parece desconhecer as novas
formas de intervenção do Estado que, sem serem tipicamente autoritárias, tão pouco são
individualistas.
- Quando uma das partes pode fixar unilateralmente as condições
contratuais, pode impô-las, estamos perante Direito Público. Quando nenhuma das
partes pode fixar condições contratuais, estamos perante Direito Privado.

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- A dificuldade em encontrar um critério insuscetível de crítica
explica-se, em grande, parte, pelo facto de os limites, que separam os direitos público e
privado, não serem fixos, mas dependerem de circunstâncias históricas. Assim,
enquanto no Estado liberal o direito privado atingiu o seu apogeu, no Estado social o
Direito público tem-se desenvolvido extraordinariamente com a consequente flutuação
das fronteiras que tradicionalmente o separavam do DP. Todavia, a distinção entre os
dois direitos mantém-se importante, sobretudo porque o direito privado não deixou de
ser o “baluarte da personalidade e autonomia dos indivíduos” e, por isso, “deve ser
ciosamente preservado de tentativas injustificadas de invasão pelo Direito Público”.

• Ter os três critérios presentes será sempre útil. Esta divisão não é tão clara
nos sistemas anglo-saxónicos, é sobretudo válida nos espaços ocidentais.

• Princípios fundamentais:
- Direito Público (legalidade/tipicidade):
- Há uma prevalência do interesse geral definido como sendo o interesse
do Estado, traduzido numa necessidade de segurança externa e interna. O seu âmbito
substantivo é muito reduzido e essencialmente leva a que se procure assegurar que ele é
exercido no estrito respeito pelo Direito e pela garantia dos princípios do Direito
Privado. É um domínio residual essencial para garantir os princípios do Direito privado
mas é limitado para, de alguma forma, prevenir qualquer tendência para escapar às
regras do Direito.
- Os princípios da legalidade e da tipicidade previnem abusos de poder
pela mão de quem possui o poder público. O Direito Público é definido pela lei e é a lei
que indica quais são os interesses da esfera pública e que indica igualmente que
entidades são competentes para prosseguirem esse interesse público.
- Princípio da legalidade: princípio principal em todos os ramos do
Direito Público. traduz-se na definição dos interesses a tutelar e na definição de uma
previsão legal. Em determinados domínios, não deixa sequer qualquer margem de auto-
determinação por parte de entidades públicas - legalidade reforçada (tipicidade).
- Princípio da tipicidade: as competências, os atos que podem ser
adoptados pelos entes públicos estão estritamente previstos em lei. Na ausência dessa
previsão não há competência nem é legal a intervenção do ente público. Há portanto
uma definição típica das competências e atos.
- Estes princípios vieram a ser temperados por outros princípios,
sobretudo visíveis no Direito Administrativo: o princípio da discricionariedade e o
princípio da oportunidade.
- Princípio da discricionariedade: articula-se com o da legalidade.
Distingue-se do da tipicidade. A partir do momento em que o Estado tem uma realidade
diversa e complexa, em alguns domínios é necessária alguma margem de escolha,
alguma discricionariedade, que está subvertida à lei e ao interesse que é ainda
determinado pela lei. A discricionariedade está ligada ao modo e meios utilizado pela
entidade pública, não está ligada ao fim que continua a pertencer à legalidade.
- Princípio da oportunidade: alargar da margem de liberdade da esfera
pública e dos entes públicos. Contrapõe-se ao princípio da legalidade em grande
medida. Predomina o interesse geral, o bem da comunidade.

- Direito Privado:
- Sobretudo a partir do século XX, vêem-se diversas manifestações do
ordenamento jurídico que vêm a condicionar principalmente o princípio fundamental da
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autonomia, em grande medida para salvaguardar a igualdade substantiva. Vêem-se
intervenções estaduais que condicionam a autonomia contratual, garantindo os
interesses numa negociação pactual das partes mais débeis. A esfera dos interesses
individuais não está isenta do interesse comum (ex. abuso do Direito) - publicização do
Direito Privado.
- Princípio da autonomia: os sujeitos, de modo livre e consciente, têm a
capacidade de definir as suas relações jurídicas e de estabelecer as regras entre si – no
CC existe o princípio da liberdade contratual. Existem contratos típicos porque estão
previstos na lei e a sua estrutura também está prevista na lei, mas estes contratos foram
fruto de toda a imaginação dos sujeitos que, por sua vez, tiveram reconhecimento
jurídico, o CC integrou-os e previu-os, tornando mais seguro para os particulares. Os
particulares têm imensa liberdade para estabelecer as obrigações do contrato – cabe aos
particulares livremente estipular. Contudo, há imensos contratos que não estão no CC,
sobretudo contratos que foram desenvolvidos no âmbito das relações comerciais. Todos
os dias os agentes inventam contratos, estabelecem um conjunto de estruturas
contratuais novas, não previstas anteriormente, que não cabem naqueles contratos que
estão previstos em lei.
- Princípio da igualdade: tem que haver uma intervenção pública.
Existe uma publicitação do direito privado para garantir que certos princípios (de
igualdade e paridade nas relações) não sejam derrubados no estabelecimento de
contratos entre particulares ou entre particulares e autoridades públicas sem o seu
imperium. 

2 - Ramos de Direito Público
• Direito Constitucional:
- Estabelece os princípios fundamentais da ordem jurídica. Consagra os direitos
e liberdades fundamentais. Determina a organização fundamental do Estado (tipo de
regime, forma de governo, organização administrativa e judicial, órgãos fundamentais e
respetivas competências).
- Muitos constitucionalistas acham que o Direito Constitucional deveria estar na
base, na raiz de toda a ordem jurídica, pois lá encontramos os valores fundamentais da
sociedade em causa e são nessa medida valores que se refletem no direito público e
direito privado. Constitui a pedra angular do ordenamento jurídico, quer porque
estrutura os órgãos do poder que porque estabelece as esferas de ação do poder público
e dos cidadãos. O Direito Constitucional verdadeiramente é o tronco da toda a ordem
jurídica. Consagra os direitos e liberdades fundamentais (esfera de preservação do
indivíduo e contra a ingerência do império do estado). Mas ainda assim, o modo como o
Direito Constitucional condiciona os múltiplos ramos de direito não é idêntico, por isso,
historicamente o Direito Constitucional é público.
- Pertence ao direito público e assinalam-se-lhe características especiais:
1) Auto primazia normativa: as suas normas têm um valor normativo formal e
material superior e, por isso, todos os atos do poder político devem-lhes
obediência.
2) Fonte primária da produção jurídica: o direito constitucional estabelece o
processo de criação das normas jurídicas
3) Direito heterodeterminante: as normas do DC determinam negativa e
positivamente as normas hierarquicamente inferiores, isto é, exercem uma
função de limite e regulam parcialmente o seu conteúdo.
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4) Direito supra-ordenamental: o direito constitucional é um direito superior aos
ordenamentos estatal e autonómicos e, por isso, unifica-os e estabelece a sua
hierarquia.
5) A constituição contém princípios fundamentais da organização política,
refletindo-se tanto no Direito Público com no Direito Privado.
6) O DC como hoje o conhecemos, é relativamente recente, da época das
revoluções liberais.
7) Rege e estabelece limites à atuação do poder político; consagra direitos naturais
que se convertem em direitos fundamentais
8) As suas normas são a Constituição que pode ser entendida consoante uma
perspetiva formal e outra material.
- Ciências auxiliares: Teoria Geral do Estado e Ciência Política.

• Direito Administrativo:
- Regula a organização e a atividade dos órgãos da administração pública.
Regula a organização do estado e dos entes públicos enquanto entes prossecutores do
interesse coletivo.
- Concretiza e desenvolve os princípios fundamentais da atividade
administrativa do Estado. Enquanto no Direito Constitucional encontramos
enquadramento geral do estado, no Direito Administrativo encontramos a regulação da
atividade administrativa do estado, dos órgãos da administração pública, âmbito do
poder executivo na sua dimensão administrativa e regulamentar também.
- As normas jurídicas distribuem-se por três modalidades:
1. Orgânicas: disciplinam a organização da Administração Pública
2. Funcionais: estabelecem os processo de funcionamento, as formalidade, a
tramitação a seguir, etc, da atividade administrativa
3. Relacionais: disciplinam a atividade administrativa de direito público que se
traduz em relações jurídicas entre a Administração Pública e os particulares:
entre duas ou mais pessoas coletivas públicas: e entre particulares.
- Princípio da legalidade: qualquer órgão administrativo tem que ser regulado e
criado por lei. Os seus objetivos e fins prosseguidos são também determinados por lei,
as respetivas competências jurídicas são também determinadas por lei, a composição
dos seus órgãos internos também tem que estar legalmente definido tal como
procedimento que também está legalmente regulado.
- Há domínios em que a legalidade é reforçada pela tipicidade, i.e., o ente em
causa não tem margem de apreciação na determinação das decisões que tem que adotar;
sendo que a tipicidade se contrapõe à discricionariedade, onde o órgão da administração
publica dispõe de livre apreciação do ato, medida ou o modo como o fim que prossegue
vai ser atingido. No Direito Administrativo temos alguns dominós sujeitos a tipicidade,
e temos domínios em que vemos presente a discricionariedade, possibilidade de opção
entre soluções distintas vinculadas ao fim que prossegue. O fim é sempre ditado por lei,
a forma como se chega lá é que pode ser tipificado ou discricionário.
- Ciências auxiliares: Ciência da Administração, Sociologia das Organizações.
Ciências analíticas e descritivas que servem para compreender melhor o modo e lógicas
de funcionamento das entidades a quem compete o desenvolvimento do interesse
público e que apoia o Direito na escolha das soluções. Para nós podermos decidir se
num determinado domínio deve ou não deixar discricionariedade ao ente em causa a
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liberdade de decisão, será importante conhecer aquilo que os estudos destas ciências nos
indicam, pois é no seu estudo que encontramos o porque do legislador deixar ou não
deixar discricionariedade.
- Em Portugal vigora o sistema administrativo de tipo francês (ou de
administração executiva) e, portanto, o Direito Administrativo, afirma-se como um
direito dotado de soluções novas e especificas que o autonomizam como um direito
próprio e justificam um jurisdição contencioso-administrativa especializada para a
sua aplicação: os tribunais administrativos. No entanto, a atividade da Administração
pública não se esgota na prática de atos de gestão pública disciplinados pelo Direito
Administrativo. Também lhe cumpre a gestão privada, em cujo âmbito atua despida
do poder público, numa posição de paridade com os particulares, utilizando os meios
de direito privado.

• Direitos especiais do Direito Administrativo:


A complexidade crescente da Administração pública determinou a necessidade de se
autonomizarem diversos direitos administrativos especiais que disciplinam setores
específicos.
- Direito do ambiente: é um domínio de intervenção pública que ultrapassa os
interesses do Estado, transcende as atuais gerações, uma vez que se pretende fazer uma
projeção de sustentabilidade para as gerações futuras e, por isso, afasta-se do direito
administrativo comum.
- Direito do urbanismo: um dos ramos do Direito Administrativo que mais
intensamente interfere na esfera privada. Relaciona-se com direitos subjetivos, como o
direito de propriedade, que será condicionado por um interesse de ordenação
urbanístico, ordenação do território (pois este limita as possibilidades de usar um
determinado território). 


• Direito Fiscal:
- Concretiza e desenvolve os princípios fundamentais do poder tributário do
Estado. Regula o exercício do poder tributário do Estado.
- Regula aquilo que é uma das dimensões fundamentais para a subsistência do
estado: capacidade para aplicar tributos, cobrar impostos e outras taxas, que são
indispensáveis para o desenvolvimento das atividades do estado para as quais tem
competência.
- Um poder desta natureza tem que ser regulado de modo muito
estrito/condicionado. (importante enunciar os artigos 103º e 104º da CRP). Aqui temos
a afirmar-se em pleno o princípio da legalidade – não se pode aplicar impostos que
não estejam expressamente previstos na lei, lei em sentido formal (no taxation without
representation) cabe aos representantes do povo fixar os impostos, por isso a criação de
impostos é uma competência da Assembleia da República. Princípio da legalidade
acompanhado do principio da tipicidade, impede qualquer margem de apreciação, os
impostos têm que estar previamente criados, tal como o seu objeto e taxa a aplicar, todo
o modo como o processo tributário decorre, determinação da incidência tributária tem
que estar anteriormente consagrado na lei.
- Na nossa ordem jurídica vigora o princípio da não retroatividade dos impostos,
qualquer imposto só pode ser aplicado a factos tributários que se verifiquem após a
entrada em vigor da lei.
- Tem uma relação muito próxima com o Direito Administrativo. As
prerrogativas do Direito Público aparecem, até em termos históricos, no Direito Fiscal.

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Foi através da cobrança de impostos, logo na Idade Média, que se levanta a questão do
poder tributário da coroa, regulação do poder público.
- Ciências auxiliares: Finanças públicas; Fiscalidade; Contabilidade.

• Direito Penal:
- Define os ilícitos, as penas e medidas de segurança, tutelando o círculo de bens
jurídicos essenciais do Estado e da sociedade.
- Ramo do direito com maior relevo e impacto em termos sociais e para os
interesses/valores da comunidade. Não se pode, por isso, colocar numa mesma lógica do
direito administrativo, pois este é associado ao desenvolvimento das funções do Estado.
O direito penal é um monopólio de Estado porque este deve ser realmente um domínio
imparcial, para não levar a enviesamentos, de contaminação por interesses provenientes
de outras áreas. Deve refletir os valores sociais fundamentais.
- Deveria ser um tronco autónomo dados os especiais bens e valores tutelados,
tal como os seus princípios fundamentais. São os interesses fundamentais da paz, da
ordem social e da segurança que são prosseguidos neste ramo e não exatamente os
interesses do Estado. O Estado tem aqui “apenas” um papel instrumental, pois há aqui
interesses que ultrapassam claramente o interesse do Estado, eles manifestam-se na ação
do Estado, através de órgãos de soberania (tribunais). Os princípios aqui são mais
imperativos. Se há um ramo do Direito onde vemos a maior distinção do público e
privado, é este.
- Trata-se de um ramo do direito público, no entanto, Oliveira Ascensão defende
que não, que os deveres penais são deveres dos indivíduos e o facto de as penas serem
aplicadas judicialmente não implica que o Direito Penal regule a atividade do Estado)
- Não pertencem ao Direito Penal as contraordenações: aquele propõe-se
defender os valores ou bens fundamentais da sociedade, sem a observância dos quais a
vida em sociedade não seria possível; a contraordenações, pelo contrário, são normas de
caráter regulamentar geralmente dimanadas da Administração Pública e atuam
preventivamente proibindo e punindo certa condutas suscetíveis de lesarem interesses
fundamentais. Tais normas estabelecem coimas e pertencem ao ilícito administrativo.
- Na sua base está o princípio da legalidade que tem por conteúdo os seguintes
preceitos:
1) Nullum crimen sine lege previa: não há crime se, antes de ser cometido, não
tiver sido definido por lei com suficiente precisão. Por efeito deste preceito, que
constitui um princípio básico da segurança jurídica, é permitido praticar todos os
atos não considerados legalmente criminosos. Entende-se que a lei incerta é
inconstitucional e proíbe-se a aplicação analógica das leis penais incriminadoras
2) Nullas poena sine lege previa: não podem ser alicadas penas ou medidas de
segurança que não estejam expressamente previstas em lei anterior (artigo 29 nr
3 da CRP)
3) Nulla poena sine culpa: só é punível o facto particado com culpa (na forma de
dolou, ou nos casos expressamenre previstos na lei, de negligência). Embora
este princípio não cosnte expressamente da Constituição, não deixa de estar na
abse de várias disposições constitucionais e constitui um pressuposto essencial
da punição consagrado no Código Penal. A culpa traduz a censura dum certo
facto típico à pessoa do seu agrnete: é uma censura ético-jurídica dirigida a um
sujeito por não ter agido de modo diverso. O dolo constitui a forma amsi grave
de culpa e é constituído por dois elementos:

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 Um intelectual: o conhecimento dos elementos e circuntâncias descritos
no tipo legal de crime
 Um volitivo: a especial direção da vontade
Quanto à negligência traduz-se na omissão de um dever objetivo de cuidado ou
diligência. Pode ser consciente e inconsciente: no primeiro caso o agente previu
a realização do crime, mas confiou que não teria lugar; no segundo, não a
previu.
4) Nulla poena sine iudictio: a pena só pode ser aplicad anum processo
devidamente estruturado (como o processo penal) que garanta a defesa do
arguido
- Ciências auxiliares: medicina legal, criminologia e criminalística.
Criminologia – ciência social mas que não se dedica a esses aspetos da investigação
forense direta mas que tem a preocupação de estudar os elementos que favorecem em
termos sociais o crime, uma perspetiva da compreensão das razões do crime e quais as
políticas criminais que poderão combater e prevenir estes fenómenos. A criminalística
dedica-se mais à parte da investigação do crime em si, a investigação forense.

• Direito Económico:
- Ramo do Direito transversal porque está associado ao desenvolvimento do
século XX, que trouxe o Estado para a atividade económica desde a 1ª Guerra Mundial.
- Regula o desenvolvimento da atividade económica, especialmente daquela
desenvolvida pelo Estado e com especial importância dos designados ‘serviços de
interesse geral’ (seja diretamente, seja em termos reguladores).
- É um Direito transversal porque atravessa o Direito Constitucional
(encontramos na Constituição os princípios fundamentais que norteiam o Direito
Económico) e é um direito que se autonomizou recentemente do Direito Administrativo.
A expansão do direito administrativo clássico conduziu a este ramo económico, que tem
características semelhantes, como o princípio da legalidade, e mais do que o princípio
da discricionariedade, temos aqui o princípio da oportunidade.
- Quanto ao Direito económico ele é relevante porque devido à passagem do
Estado Liberal para o Estado de providência e todas as grandes vicissitudes que as
constituições ocidentais do século XX sofreram, o Estado intervém cada vez mais na
atividade económica. Regula o desenvolvimento dessa mesma atividade, especialmente
daquela desenvolvida pelo Estado e com especial importância dos designados serviços
de interesse geral.
- O Direito Económico que nos rege atualmente maioritariamente deriva de
normas da UE, onde existe liberdade de circulação de pessoas, de bens.
- Ciências auxiliares: Economia; Gestão.

• Direito adjetivo e Direito substantivo (normas primárias e secundárias de Hart):


- Direito adjetivo: contém as normas das regras processuais (conjunto das
normas que regulam um processo). Determina como são criadas as normas e como são
aplicadas. É um direito que não determina materialmente a qualificação jurídica dos
factos ou os direitos e obrigações dos sujeitos mas sim como esses direitos e obrigações
são aplicadas ou concretizadas. Corresponde, em grande parte, ao Direito Processual.
Existe para pôr em prática o Direito substantivo, daí ser adjetivo (por ser auxiliar).
- Direito substantivo: direito que confere direitos e impõe obrigações. todas as
normas que regulam materialmente situações jurídicas (relações sociais, qualificação de

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factos, etc.) que têm conteúdo normativo e conferem natureza jurídica a uma
determinada realidade. Resolve problemas da vida social. Regula a substância do
problema jurídico, é posto em prática e aplicado ao caso concreto. Encontrado por
exemplo no Código Civil. Ex. Direito Civil, Direito Penal, Direito Constitucional.

• Direitos Processuais (Direito adjetivo):


- Ramos de Direito que regulam o modo como os direitos e obrigações, previstos
de modo substantivo, são aplicados e garantidos, de forma processual junto a
determinadas entidades (tribunais, essencialmente). Não integram o Direito Privado
uma vez que a liberdade das partes limita-se a questões que não põem em causa o
interesse geral da realização da justiça.
- A sua necessidade resulta da preocupação de o Estado assegurar aos litigantes
uma posição igual e de defender a iustita do poder da vis que encontramos na autotutela.
Por isto, pertence ao Direito Público e reveste uma natureza adjetiva ou
instrumental: cumpre a função de ordenar os processos em que os interessados
reclamem judicialmente os direitos reconhecidos pelas normas substantivas.
- Regulam a tutela judicial conferida nos vários ramos de direito substantivo e
que é tendencialmente um monopólio do Estado (orgânica judiciária, competências
judiciais, regras processuais, etc.). A tutela judicial não se encontra nas mãos de
privados. Apesar de algumas disposições de direito processual estarem nas mãos da
partes, tendencialmente e na sua generalidade não estão.
- A doutrina deve ser associada aos respetivos ramos substantivos. Existem
vários direitos processuais: o direito processual civil (o mais comum; Disciplina a
atividade nos tribunais com vista à realização de direitos privados que não lhe foram
subtraídos; por isso, constitui o processo comum), direito processual relacionado à
garantia do direito administrativo (orgânica dos tribunais administrativos e fiscais,
regras especiais), etc.

• Direito Internacional Privado:


- O seu objeto são as relações jurídicas entre sujeitos privados conexionadas com
diferentes ordens jurídicas estaduais. É essencialmente um “direito de conflito de leis”,
de litígios entre partes, embora haja uma progressiva harmonização de soluções pela via
do DI e do DUE.
- Num momento de litígio, vamos ter que convocar as diferentes ordens jurídicas
de acordo com as pontes de conexão. Temos que ter regras que determinem qual a
ordem jurídica competente para a resolução do litígio. São essas as regras do direito
internacional privado, mas estas regras são nacionais, cada ordem jurídica tem as suas.
Porque é que estas regras não são privadas? Porque são ditadas por critérios de interesse
público, estas são em princípio imperativas, não podem ser afastadas pelos particulares,
não estão na autonomia das partes. Quando falamos em estatuto das pessoas não se
deixa à liberdade das mesmas definirem se esse estatuto pessoal cabe a determinada
ordem jurídica, é a própria ordem jurídica que o define.
- Estas regras determinam qual a ordem competente, mas pode haver conflito
positivo (múltiplas leis que regulem a situação) e conflito negativo (quando nenhuma
ordem se considera competente, mas aqui o tribunal do local do litigio aplica a sua
própria lei para resolver este conflito negativo). Harmonização progressiva de soluções
pela via do Direito da UE (em especial) e pelo Direito Internacional.
- Não é completamente nem internacional nem é privado, daí integrar-se nos
ramos do Direito Público. É internacional pq as relações jurídicas sobre as quais incide

89
conexionarem-se com mais de uma ordem jurídica, mais de uma jurisdição (ex.
português casa com uma francesa).
- Não tem conteúdo substantivo pois indicam as jurisdições às quais nos
devemos conduzir para entender as condições substantivas, é feito um reenvio. Daí este
ramo ser adjetivo.
- As partes podem ter alguma liberdade de escolha nas normas aplicáveis à sua
condição mas não é o caso do Direito pessoal (são normas maioritariamente
imperativas).

3 - Ramos de Direito Privado


Relembrando, entendemos por direito privado o conjunto de normas que disciplinam as
relações jurídicas entre simples particulares com eles próprios, e entre eles e o Estado
ou outros entes públicos, desde que intervenham despido do seu imperium. Compreende
o Direito civil, que é o Direito Privado comum, e direitos privados especiais como o
Direito Comercial, o Direito de Autor, e o Direito Agrário.
• Direito Civil
- É o ramo/tronco comum do Direito Privado. O Direito Civil regula as relações
em geral entre os sujeitos de Direito Privado.
- Estabelece os princípios e regras fundamentais do direito privado
(essencialmente na parte geral do CC) - estatuto fundamental das pessoas e bens.
- Previsto no Código Civil, subdivide-se em sub-ramos: Direito das obrigações,
Direito das coisas, Direito da Família e Direito das Sucessões.
- O Direito Civil foi sendo desenvolvido inicialmente pelo Direito pretoriano,
desenvolvimento das instituições romanas através das leis, depois ao longo da Idade
Média foi essencialmente uma regulação feita pela via consuetudinária, em grande parte
também a regulação fez-se através do Direito Canónico, porque a igreja católica foi a
grande herdeira do Direito Romano (direito da família era domínio do direito canónico,
com alguma influencia do que foi o direito germânico). Direito que se afirmava com a
matriz da autonomia e liberdade. Isto veio a ser reformulado nas revoluções liberais
através da codificação, da eliminação de múltiplas fontes como costumes e normas
copulativas.
- O nosso Código Civil compreende uma parte e geral e uma parte
especial:
Parte geral: subdivide-se em dois títulos:
- Das leis, sua interpretação e aplicação: normas sobre normas que
contêm uma teoria geral da lei: fontes, interpretação e aplicação da
lei no tempo e espaço
- Das relações jurídicas: relações da vida social que a ordem jurídica
disciplina atribuindo a uma pessoa um direito subjetivo e impondo a
outra um dever ou uma sujeição correspondente.

Parte especial é constituída por:


- Direito das Obrigações: regula as relações jurídicas entre os privados quando
estabelecem entre si vínculos obrigacionais, quando se comprometem a prestar

90
determinada coisa ou serviço (exemplo: uma venda). É o direito das prestações
recíprocas reguladas através de contratos e do direito das obrigações.
- Direito das Coisas: incide sobre as relações entre os sujeitos e os objetos e
sobre aspetos respeitantes ao estatuto dos objetos. Temos direitos de natureza absoluta
(que se impõe à generalidade das pessoas normalmente de forma negativa).
- Direito da Família: o núcleo familiar é objeto da preocupação do Direito. Até
ao século XIX, grande parte do direito da familia era regulado pelo direito canónico.Só
com o código civil de 1867 é que isto mudou.
- Direito das Sucessões: regula o destino do património de alguém que falece. o
destino desse património em alguma medida pode ser definido pelo próprio ainda em
vida.

• Direito Comercial e direitos derivados:


- Direito dos comerciantes, mais ágil e menos formal. O nosso código comercial
é o de 1888, apesar de ter modificações e revogações.
- Tipos de sociedades: Sociedade em nome coletivo, sociedade por quotas,
sociedades anónimas, sociedade em comandita
- Dele derivam outros ramos de direito com as suas especialidades, por exemplo
direito dos seguros, direito bancário.

• Direito da Propriedade Intelectual:


- Remete para o Direito das Coisas. Incide sobre as relações entre o sujeito e
aquilo que é o objeto que por si pode ser apropriado (por ser por si criado). É um direito
do inventor sobre as suas invenções, é uma proteção do titular da invenção. No entanto,
a contrapartida é a invenção e suas características/inovações tornarem-se públicas.

4 - Outros ramos de Direito


• Direito do Trabalho:
- Difícil integração em qualquer um dos troncos. Autonomizou-se em colisão
com o Direito das Obrigações, por se entender que os princípios e regras da obrigações
têm que ser afastados dada a natureza específica das relações laborais.
- Na base da sua autonomia está o abandono da neutralidade do Estado que se
viu obrigado a intervir, definindo e impondo condições suscetíveis de afastarem as
formas extremas de exploração a que tinha conduzido a autonomia dos indivíduos na
determinação dos seus negócios.
- É o ramo especial do Direito que se aparta em grande medida daquilo que são
os princípios fundamentais do Direito Privado em alguns domínios em particular,
nomeadamente porque preside à autonomização do Direito no trabalho (as relações
laborais são diferentes das outras relações de prestações de serviços).

• Direito da Segurança Social:


- Difícil integração em qualquer um dos troncos. Associado ao Direito do
Trabalho, tem como objetivo assegurar os direitos dos trabalhadores. Forma-se com
Bismark, na Alemanha, que impõe uma segurança social pública com contribuições
obrigatórias feitas pelos trabalhadores.

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III - O Direito como ordem normativa - A Norma jurídica
(Conceito e classificação)
• A ordem jurídica é formada por normas jurídicas que se interligam. A norma jurídica
é a forma, o suporte através da qual o direito se concretiza. Não é a norma que faz o
direito, é o direito que promana as normas, o direito densifica-se, estrutura-se através
de normas – comandos que ditam as orientações, que se impõem aos sujeitos, que
ditam o que é de direito e o que não é (lógica binária da ordem jurídica – do sim e
não).

1 - Estrutura da norma jurídica


• 1. Previsão:
- Tatbestand, facti-species Factos jurídicos (todo o acontecimento natural ou
humano susceptível de produzir efeitos jurídicos) e situações, definidos de modo
genérico/tipológico e abstrato/ideal, sobre que incide a norma, isto é, o evento
juridicamente relevante, cuja verificação produz efeitos jurídicos (a consequência é
dada pela estatuição). Delimitam o âmbito da realidade sobre a qual a norma jurídica vai
incidir.
- Tipos de factos:
- Naturais: não são dominados pelos Homens, mas à sua ocorrência podem

associar-se efeitos jurídicos.
- Humanos;
- Jurídicos: evento juridicamente relevante, suscetível de produzir efeitos
no direito (constituir, modificar ou extinguir uma situação jurídica). Como
factos jurídicos, a sua determinação semântica implica sempre uma
interpretação jurídica que incorpora os valores e significados (de senso
comum, técnicos ou especificamente jurídicos) integrados na ordem
jurídica – como por exemplo: arma, documento (cf. o direito como sistema
autopoiético – Teubner e Luhman). Os factos jurídicos à luz da relevância
jurídica que assumem, e mesmo os factos humanos, podem assumir uma
significação específica/especial no âmbito do direito. Arma na semântica
comum é relativamente limitado (artigo 86.º CP) – objetos com uso militar,
ou uso em condições de defesa militar ou policial – para o direito pode ser
diferente, qualquer objeto mesmo que não seja exatamente uma arma pode
ser uma arma, tem de ser lido no seu contexto de direito. Por exemplo, para
o direito um documento é qualquer declaração de um facto jurídico – a
gravação telefónica é um documento.
- Puros factos jurídicos (estranhos a qualquer processo de vontade):
• Factos naturais - nascimento, morte, avulsão (art. 1329º CC), tempestade,
decurso do tempo - são factos da natureza que se traduzem em modificações
que são objeto de propriedade.
• Factos humanos involuntários - animais perdidos (art. 1318o CC) – aqueles que
são imputáveis a um sujeito de direito, não é alguém que não pratica um ato de
modo intencionado na produção de efeitos jurídicos, mesmo que a pessoa não
tivesse intenção de produzir efeitos jurídicos (estes são factos voluntários) – são
factos que a conexão com o sujeito de direito é marginal, caso dos animais
perdidos (diferente dos animais abandonados – aí o facto é imputável a
alguém).
- Atos jurídicos (atos humanos voluntários, ações ou omissões):

92
• Simples atos jurídicos – o facto não foi necessariamente intencionado à
produção de consequências jurídicas – animal abandonado (art. 1318º CC);
confusão casual (art. 1335º CC). São factos voluntários cujos efeitos se
produzem independentemente de terem sido queridos ou não pelas partes. O ato
é dependente da vontade mas os seus efeitos são independentes. Dividem-se em
dois: atos reais (efetivação ou realização de um resultado material a que a lei
liga determinados efeitos jurídicos. Por ex. criação de uma obra literária e
declarações quase negociais (ato jurídico que se traduz na manifestação exterior
de uma vontade a que a lei associa determinados efeitos jurídicos automáticos.
Ex. interpelação de um devedor para cumprir - o credor ordena ao devedor o
cumprimento). Efeitos são ex lege.
• Declarações quase negociais/quase negócio jurídico - atos dirigidos à produção
de consequências jurídicas ainda que não as modelem – confirmação (art. 288º
CC)
• Negócios jurídicos ou declarações negociais * – atos que modelam os efeitos
jurídicos intencionados (testamento, contrato, aceitação da herança, etc.). Ato
voluntário que produz efeitos jurídicos coincidentes com a vontade
manifestada. Efeitos jurídicos são ex voluntate. Pode existir um negócio
jurídico unilateral ou um negócio jurídico bilateral (contrato - é necessária a
aceitação da outra parte - pode ser unilateral ou bilateral).

* Os negócios jurídicos são tudo o resto que é comum aos atos jurídicos, é um ato
voluntário que produz efeitos jurídicos coincidentes com a vontade manifestada. Os
efeitos jurídicos produzidos são ex voluntate (coincidentes com a vontade manifestada).
Os negócios jurídicos podem ser bilaterais (contratos) ou unilaterais e o que os distingue
é o número e o modo de articulação das declarações de vontade.
No negócio jurídico unilateral temos uma única manifestação de vontade ou
várias declarações de vontade no mesmo sentido (exemplo: testamento, doação,
procuração, despedimento com justa causa). Se o contrato só gera obrigações para uma
das partes é unilateral.
Nos negócios jurídicos bilaterais temos duas ou mais declarações de vontade que
convergem num mútuo consenso, produzindo resultado jurídico unitário (exemplo:
contrato de trabalho). O contrato resulta da soma de uma proposta com uma aceitação e
os efeitos jurídicos que o contrato produz são efeitos jurídicos desejados pelas partes (ex
voluntate). Se o contrato gera obrigações para ambas as partes e essas obrigações estão
unidas por um nexo de correspetividade, ou seja, uma só se entende em função da outra,
então o contrato é bilateral.

• 2. Estatuição:
- Efeito, consequência jurídica/sanção. É o ónus (encargo/peso) da prova – tem
que se provar que o facto ocorreu. Efeito jurídico que a norma associa à verificação da
respetiva previsão.
- Tipos de efeitos jurídicos:
- Constitutivo: constituição de um estatuto jurídico, não se traduz a uma
pena infligida a quem prevaricou, pode ser a atribuição de um novo
estatuto.
- Modificativo: modificar uma realidade jurídica pré-existente – realidade
que também será uma realidade de facto.
- Extintivo:

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- Silogismo judiciário - norma/previsão – premissa maior (previsão geral e abstrata);
caso – premissa menor (individual e concreta - abrangido pela norma – despoleta a
qualificação dos factos, integrando-os nos conceitos da previsão e a partir daí aplicar-
se-á a consequência jurídica como uma operação mecânica); conclusão – aplicação da
consequência jurídica estabelecida na estatuição, ou seja, a constituição, modificação
ou extinção de uma situação jurídica.
- Não encontramos uma estatuição nas normas constitucionais. Não há uma
consequência jurídica associada à sua violação (a não ser apenas a sua
inconstitucionalidade).

• Situação jurídica:
- Posição de um sujeito ou ente perante o Direito, resultante da estatuição da(s)
norma(s). Essa posição jurídica do sujeito pode traduzir-se num direito subjetivo
ou num direito potestativo.

• Direito subjetivo:
- Um poder ou um conjunto de faculdades dos sujeitos, garantido por meios coercivos,
pela estrutura institucional do direito, com base nas normas do ordenamento jurídico,
por uma estrutura de instituições que vão desde a Administração Pública à Polícia e,
em última instância, aos Tribunais.
- A norma jurídica ou obriga, ou faculta, ou confere um direito subjetivo. Conferir um
direito subjetivo consiste em atribuir um direito que confere a determinada pessoa
um poder destinado à satisfação de um interesse próprio ou alheio,
acompanhando da faculdade de dispor dos meios coercivos que protegem esse poder
(ex. direitos de personalidade, direitos sobre coisas, direitos obrigacionais).
- Tem como correspetivo o dever jurídico, isto é, uma vinculação positiva ou negativa,
seja geral (obrigação passiva universal ou dever geral de abstenção) - direitos
absolutos - seja particular (obrigação) – direitos relativos. Quando a um direito
subjetivo de sujeito determinado corresponda uma obrigação por sujeito determinado
estamos perante uma relação jurídica. § os poderes-deveres (v.g. a responsabilidade
parental).
- Dentro e como resultado de direito subjetivo, podemos distinguir:
 Direitos de domínio: são direitos absolutos tutelados contra a intromissão de
qualquer terceiro que impeça ou perturbe o exercício dos poderes que
constituem o respetivo conteúdo (ex. direito sobre coisas materiais ou direito
de propriedade).
 Direitos de crédito: são direitos relativos, pois existem apenas em relação a
determinadas pessoas (devedores), pelo que não podem ser violados por
terceiros. Conferem ao seu titular o poder, juridicamente tutelado, de exigir de
outrem (o devedor) uma determinada conduta positiva (fazer) ou negativa
(omitir e tolerar, não fazer). A conduta devida chama-se prestação e pode ser
de facto ou de coisa.
 Direitos potestativos: direitos que conferem ao seu titular o poder de,
mediante declaração unilateral (ou ação judicial, em alguns casos), modificar
ou extinguir relações jurídicas preexistentes ou mesmo constituir um direito
que limite o direito de outrem.

• Direitos reais ou direitos de personalidade:

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- Os seus sujeitos passivos são todos os sujeitos – todos temos a obrigação de nos
abstermos de qualquer ato que possa provocar qualquer tipo de lesão na propriedade
de alguém – por isso são direitos absolutos.
- Há também direitos relativos (em casos particulares) – quando os poderes e
obrigações se referem estritamente a pessoas determinadas – e ao mesmo tempo
direitos obrigacionais – são resultado de um vínculo voluntário criado entre os
sujeitos. Temos um conjunto de faculdades e poderes na titularidade de um sujeito
que tem como respetivo as obrigações sobre outro sujeito. Um contrato de
arrendamento – vínculo jurídico entre sujeitos determinados em face de um
determinado objeto – estabelecimento de uma relação jurídica – traduz-se num
conjunto de obrigações e direitos recíprocos – modelo de relação jurídica contratual,
aquela que é estabelecida voluntariamente entre sujeitos, estabelecendo direitos e
obrigações correspetivos.
- Uns dizem que os direitos humanos não são verdadeiramente direitos subjetivos
porque não é possível determinar exatamente os obrigados ao respeito desses mesmos
direitos. Ou os direitos humanos reconhecidos internacionalmente carecem de uma
força coerciva.

• Poderes-Deveres:
- Faculdades de que disponho para tutelar não os meus interesses ou a minha vontade,
mas interesses de outrem. Não visa prosseguir interesses próprios mas interesse de
terceiros. Consta, neste âmbito, o exemplo da responsabilidade parental que é aferida
única e exclusivamente para o interesse das crianças.
- Exemplo: Pessoas que em virtude de determinada função em certas circunstâncias têm
um conjunto de direitos que visam tutelar direitos de outrem – assumir um conjunto
de poderes-deveres – não é no âmbito da tutela própria. Poderes-deveres – exercício
de direito em nome de outrem – a ordem jurídica em relação a certos sujeitos assume
que eles não têm a plenitude para exercer esses direitos, e encarrega outras pessoas de
agir juridicamente em nome dessas pessoas – representação dos incapazes. Todos os
sujeitos, quando nascem, têm personalidade jurídica e capacidade jurídica, distingue-
se capacidade jurídica e capacidade de exercício.
- A capacidade jurídica distingue-se em relação às pessoas coletivas (estas têm uma
capacidade jurídica especial – têm em conta as finalidades para que essa pessoa
coletiva foi criada, não tem qualquer capacidade jurídica em qualquer domínio).
Todos têm capacidade jurídica, mas nem todos têm a mesma capacidade de exercício.
Os incapazes têm uma capacidade de exercício limitada – no caso dos menores, que
são representados em tribunal, é escolhido um tutor.

• Direito Potestativo:
- É o poder conferido a uma das partes numa relação jurídica de, por ato unilateral
modificar (a escolha entre obrigações alternativas – 543º CC) ou extinguir a relação
jurídica (revogação do mandato – 1170º CC; divórcio) ou ainda de constituir um
direito que vai limitar o direito de outrem (servidão legal de passagem – 1550º no 1
CC); tem como correspetivo um estado de sujeição. O direito potestativo resulta do
direito subjetivo.
- É uma figura que não sendo o paradigma das posições jurídicas que qualquer sujeito
pode deter, é mais forte que o direito subjetivo porque não admite qualquer tipo de
violação (o direito subjetivo traduz-se num conjunto de deveres a que correspondem
poderes, ou seja, alguém pode não fazer ou violar, o que impede a realização plena do
direito subjetivo). A ordem jurídica confere aos sujeitos o poder de criarem direitos e

95
obrigações, através do princípio da liberdade contratual. No direito potestativo, não
acontece isso, aqui estão determinados por lei. O direito potestativo tem uma força
com a qual o seu sujeito/titular não se limita a modificar a sua esfera jurídica, ele
sozinho modifica a esfera jurídica de outrem, pode restringir a esfera de outrem.
- A procuração – ato através do qual se estabelece a relação jurídica – relação jurídica
de mandato. Quem confere o mandato? Mandante – que pode também revogar o
mandato - este é um direito potestativo.
- Exemplo: O direito de obter o divórcio é um direito potestativo.

* Ónus jurídico: observância de certo comportamento, prescrito por lei como condição
de obtenção de uma certa vantagem para o agente, ou como pressuposto da manutenção
de uma certa vantagem de que já está a usufruir (para evitar uma desvantagem). O ato
que se reporta a este ónus não é imposto como um dever. Exemplo: ónus da contestação
e da impugnação especificada em processo civil.
* Estado de sujeição: é o estado em que se encontra a contraparte do titular de um
direito potestativo (poder conferido a uma das partes numa relação jurídica de por ato
unilateral modificar ou extinguir a relação jurídica). A contraparte não pode evitar que
se produzam, na sua esfera jurídica, os efeitos do exercício do direito potestativo. Não é
propriamente um dever jurídico.

* Relação jurídica: sempre que ao dever de um dos sujeitos corresponde o direito de


outro sujeito. É o que acontece no domínio dos direitos subjetivos, com ressalva dos
direitos absolutos que devem ser apenas respeitados.
* Personalidade jurídica: centro de imputação de efeitos jurídicos. É a capacidade de
ser titular de direitos e obrigações. A capacidade de direitos implica a titularidade
efetiva de certos direitos, nomeadamente os direitos de personalidade. Um sujeito pode
ter capacidade de direitos mas ter incapacidade de exercício de direitos (exemplo:
menores).

• Características da norma jurídica:


- Imperatividade – a norma como comando. Este conceito tem uma conotação
voluntarista ultrapassada. Esta natureza limita-se às ‘normas precetivas’
(‘prescritivas’ e ‘proibitivas’) e há um afastamento desta característica (que o é sim da
ordem jurídica como ‘ordem de dever ser’). Imperativo é o direito e tem normas que
de facto são imperativas, ao serviço das quais a ordem jurídica coloca todo um
instrumentário coercivo. Mas a norma em si não é imperativa. O que a norma é
com certeza é geral.
- Generalidade – não tem destinatários individualizados. As normas do Direito
incidem sobre a realidade que é convocada através de modo topológico, definindo os
traços gerais dessa realidade. Quando individualizáveis ou únicos são-no por inscrição
numa categoria definida tipologicamente. A norma tem destinatários que são
indeterminados, mesmo que só possa ser um, a sua configuração é feita de modo
tipológico – “aquele tipo de sujeito” – características definidas de modo genérico –
exemplo: normas que dizem respeito ao PR. É esta a característica que melhor
corresponde à norma jurídica. Temos, no entanto, normas que aparentemente são
gerais, mas são individuais.
- Distinção da pluralidade (‘feixe de atos administrativos’): a pluralidade distingue-
se da generalidade. Um preceito pode ter uma pluralidade de destinatários e, no
entanto, não ser geral.

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- Abstração: os factos ou situações objeto da norma não estão concretizados, são
hipotéticos. Podem estar já verificados. O problema das ‘leis medida’: podemos ter
normas a que falta abstração. As leis medida são gerais, mas não são abstratas.
Surgiram para resolver um determinado caso. Esta não é a situação típica nem
desejável. Art. 18º, nº3 não admite leis medida - em matéria de restrição de direitos
têm de existir as duas características. A característica que identifica uma norma é a
generalidade porque a abstração pode não existir. Logo, as leis-medidas são leis em
sentido material.
- Alteridade: a norma jurídica torna socialmente ou intersubjetivamente relevante um
dado facto ou situação. A importância deste elemento radica na distinção da
bilateralidade, característica, sim, da relação jurídica: as normas não traduzem esta
bilateralidade dado que, pelo facto de terem sujeitos indeterminados, abrangem
qualquer sujeito e desde que socialmente haja uma relação que os faça integrar
naquela esfera.

• Classificações das normas jurídicas:


• De acordo com os efeitos na ordem jurídica:
- Normas interpretativas: determinam o alcance e sentido de outras normas (lei
interpretativa – remissão) ou de certas condutas dos destinatários – art. 840.º, no
2 (“presume-se”).
- Normas inovadoras: modificam a ordem jurídica, modificam situações jurídicas
e modificam o regime jurídico previsto em normas anteriores.
• De acordo com o alcance jurídico da norma:
- Norma autónoma: a que por si define o regime jurídico de uma situação ou facto
jurídico. A previsão elege uma determinada realidade e abrange um tipo de
sujeitos definidos e ela determina por si só o regime jurídico aplicável nas
circunstancias que define.
- Normas não autónomas: em parte ou na sua totalidade remetem o regime
jurídico para outras normas. a que, por ausência de uma das partes da estrutura
normativa (previsão ou estatuição) obriga ao recurso a outra norma para
completar o seu sentido jurídico. Podem ser normas remissivas ou de
devolução. É uma das técnicas legislativas (S’s - sucinto) e permite, por ex.,
simplificar um código e não repetir reiteradamente o mesmo regime.

- De acordo com a relação com autonomia da vontade:


- Imperativas: a ordem jurídica ordena e proíbe. Para ordenar, faz uso de normas
prescritivas (obrigam os sujeitos a agir de determinada forma) e para proibir faz
uso de normas proibitivas (limitam pela negativa a liberdade do sujeito).
Exemplo: art.º 1, n.º3 CC, que impõe ao sujeito um regime jurídico do qual ele
não se pode afastar.
- Dispositivas: a OJ também permite ou autoriza certos comportamentos.
Positivamente concede poderes ou faculdades, põe o exercício de um poder
jurídico nas mãos dos particulares ou confere direitos. Assim são chamadas as
normas que isto fazem, que podem ser também designadas como normas de
autorização ou normas concessivas. Podem portanto ser facultativas,
permissivas ou atributivas (faculdade de testar; a norma que confere o direito
potestativo - sua aplicação depende de uma manifestação dos destinatários nesse
sentido) ou supletivas (suprem a ausência ou a deficiência da declaração de
vontade).

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- De acordo com o âmbito territorial ou funcional:
- Classificação no âmbito de validade territorial das normas.
- Nacionais: aplicam-se em todo o território do Estado (Baptista Machado chama-
lhes universais);
- Regionais: aplicam-se numa determinada região (ex. Regiões Autónomas);
- Locais: aplicam-se no território de uma autarquia local (ex. 348.º CC - costumes
locais e normas da competência das autarquias).
- Estatutárias (v.g. Estatutos da FDUP)
- De acordo com o regime jurídico estabelecido:
- Normas comuns (ou de direito-regra): as normas comuns constituem o direito-
regra, ou seja, estabelecem o regime-regra para o setor de relações que regulam.
Exemplo: 219º CC (Princípio do consensualismo dos contratos).
- Normas excecionais: representando um ius singulare, limitam-se a uma parte
restrita daquele setor de relações ou factos, consagrando neste setor restrito, por
razões privativas dele, um regime oposto ao regime-regra. Exemplo: 1143.º CC.
Em relação a estas normas, há uma proibição de aplicação analógica - não se
pode utilizar uma norma excecional que não tem regulamentação, que é omissa
no enquadramento normativo, ou seja, não pode ser aplicada por analogia
porque a analogia assenta no paralelismo dos interesses a tutelar – e se aqui
falamos de normas excecionais, tal como o nome indica, só se aplicarão a
situações excecionais, não existindo um paralelismo com outras situações -
11ºCC. Por exemplo, 875º n. º1 e 947.º n.º1 CC (contrato de compra e venda
sobre imóveis e contrato de doação sobre coisas imóveis) são normas
excecionais em relação ao 219.º.
- Normas especiais (regime diferente das normas comuns, adaptado à categoria de
factos ou destinatários abrangidos. Prevê determinados requisitos ou situações
específicas. Não é contrário nem oposto às normas comuns, estabelece sim
elementos diferenciados- v.g. o direito das sociedades comerciais face ao regime
das sociedades estabelecido no CC; o regime do contrato de trabalho. As normas
excecionais ou as especiais prevalecem sobre o regime comum. Princípio da
especialidade – aplica-se a norma especial e o regime comum é afastado. A
norma comum só se aplicará se, entretanto, a norma especial for revogada.
- Normas imperativas, de acordo com as consequências jurídicas:
• Normas mais que perfeitas - qualidade das normas imperativas cuja violação
importa além da anulação do ato ilícito a imposição de uma pena (que não é
uma pena civil) – exemplo: usura criminosa (284.º CC), imposição de taxas de
juro acima do permitido – este ato será anulado e há circunstâncias em que este
ato configura um crime, determinando a aplicação de uma pena (ilícito de
natureza criminal). No âmbito do Direito Privado, são normas excecionais.
• Normas perfeitas – qualidade das normas imperativas cuja violação importa a
anulação do ato ilícito. Impõe ao sujeito a eliminação da ilicitude – exemplo:
venda de bens alheios – a venda de bens alheios é anulada e reconstitui-se a
situação (892º CC) – o ato ilícito é anulado, temos aqui a reconstituição
normativa, a reconstituição dos direitos. Estamos sobretudo no âmbito do
direito privado.
• Normas menos que perfeitas – qualidade das normas imperativas cuja violação
comporta uma pena, mas não a nulidade do ato ilícito (exemplo: a venda em
estabelecimento sem autorização). Há uma pena mas o ato não é anulado.
Sobretudo para o direito privado e para o direito público, mas não na dimensão
penal (porque aqui falamos da censura ao comportamento do agente). Normas

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que proíbem ou prescrevem um certo comportamento, cuja violação comporta
uma sanção (penal ou contra ordenacional) sem, no entanto, isto levar à
nulidade do ato aplicado.
• Normas imperfeitas – qualidade das normas precetivas destituídas de sanção
(exemplo: art. 136º, no 1 CRP) – impõe uma orientação, mas não faz acarretar
ao seu desrespeito qualquer tipo de sanção para o prevaricador. Exemplo:
ausência de sanção quando o PR não promulga, nem veta (veto de bolso).

• Princípios e regras da norma jurídica:


• Princípios gerais de direito (profusamente referidos na CRP e no artigo 22.º n.º1
CC). Contraste com o 38º do ETIJ.
• São normas, não são regras (Dworkin), que se traduzem em máximas ou
fórmulas que exprimem uma orientação da ordem jurídica, mas que, dada a sua
reduzida determinabilidade necessitam, normalmente, de um desenvolvimento
densificador através de regras legislativas ou da mediação jurisprudencial
(Esser).
• Função (Crisafulli; Fernando Bronze): programática/constitutiva (criadora de
regras) - mais do que um princípio pode ser aplicado na mesma situação, mas
podemos ter vários princípios que determinem qual a norma-regra a aplicar;
interpretativa - princípio da interpretação conforme à constituição – o
interprete tem a obrigação de o fazer; integradora (lacunas) – caso da
equidade, a solução jurídica será criada para determinada situação,
parametrizada por princípios; invalidante (Freitas do Amaral) – as normas-
regras são violadoras dos princípios gerais, que são o topo fundamental que vai
enformar toda a validade das normas do ordenamento. 


IV - A tutela do Direito e dos direitos


1 - A tutela do Direito e dos direitos
• Quando falamos da tutela do Direito, temos instituições que têm como missão
prevenir de um modo geral a violação da norma jurídica, podendo utilizar a força
se tal necessário.
• Têm de ser garantidos os direitos e impostos os deveres, daí haver a necessidade de
existirem meios jurídicos para o fazer cumprir e garantir a integridade da ordem
jurídica. As normas jurídicas caracterizam-se pela sua coercibilidade, sendo que esta é
assegurada pelo aparelho de coerção estadual. Este aparelho impõe e tutela o direito
objetivo e representa a garantia jurídica dos direitos subjetivos. A tutela dos
direitos subjetivos e individuais faz-se num momento em que há uma lesão traduzida
ou risco de lesão evidenciado, de forma a proteger bens jurídicos e, por isso, em
grande parte as sanções são negativas.
• A tutela do direito visa garantir a efetivação da sanção da norma para a
verificação da respetiva previsão.

• Norma jurídica e sanção:


- Em princípio, as normas jurídicas acarretam uma sanção (positiva ou negativa), isto
é, uma reação do ordenamento à verificação da previsão normativa.

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- A norma prevê uma consequência jurídica que se traduz na aplicação de uma
sanção, que não é necessariamente negativa (por exemplo, no Direito premial temos
sanções positivas).
- Sanção e coerção: o exercício desta última compete ao Estado para efetivar as
sanções negativas e pode envolver a utilização da força (coação – o uso da força em
si). Em situações excecionais pode ser exercida pelos indivíduos (legítima defesa,
ação direta). A observância da ordem jurídica ou as sanções correspondentes à sua
violação podem ser impostas pela força (coercibilidade como característica das
normas jurídicas – suscetibilidade de ser aplicada determinada norma através do uso
da força). A coerção surge, então, como uma estrutura formada por instituições, por
um conjunto de regras que determinam processos através dos quais se efetiva o direito
e se for necessário com o uso da força. No Estado de Direito temos a força policial e
em situações excecionais forças militares.

• Coação e tutela preventiva da ordem jurídica:


- Artigo 272º CRP – a ação dos órgãos policiais.
- A ação dos órgãos policiais é segundo o princípio da legalidade, o princípio da
proporcionalidade e o respeito dos DLG.

• A coercibilidade da ordem jurídica – função do Estado:


- Artigo 9º al. b) (CRP) - é tarefa fundamental do Estado: “Garantir os direitos e
liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito
democrático”.
- Compete aos aparelhos institucionais estaduais tutelar a vigência e efetividade do
direito objetivo e garantir os direitos subjetivos.

2 - Instituições estaduais de tutela


• Instituições estaduais de tutela:
- Tribunais;
- Administração Pública;
- Polícias: art.º 272 nº 1 CRP: “A polícia tem por funções defender a legalidade
democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos”. Fazem
aplicar o direito que é dito pelos tribunais.
- Forças Armadas: regime excecional – ‘estado de sítio e estado de emergência (arts.
19º e 275º, nº 7 CRP). Têm como função exclusiva a tutela da segurança externa do
Estado. Garantem a defesa contra os inimigos externos do Estado, proteger contra
riscos externos e não internos. Submissão (interface) das forças armadas ao Direito
Internacional (guerra, direito humanitário) 


§ A resolução privada de litígios – a arbitragem: temos uma lei que regula as


condições em que os particulares podem retirar dos tribunais a resolução dos seus
litígios. Tem existido um alargamento então da resolução privada de litígios, através de
formas como a arbitragem (jurídica).

3 - Tipos de tutela jurídica (finalidades)


• Tutela Preventiva:
- Tendente a evitar a violação das normas e lesão de direitos, através da fiscalização,
da fixação de condições e sujeição a autorizações de determinadas atividades dos
particulares)

100
- Compete à administração pública, às polícias e aos tribunais.
- Em relação aos tribunais, há determinados instrumentos processuais com finalidade
preventiva:
 Providência cautelar: atuam quando há uma dúvida sobre um possível litígio
sobre Direito ou direitos e que assim previna uma situação que seja lesiva e se
consuma. Permite suspender os efeitos de determinado ato até que se defina se o
ato é ou não conforme ao Direito. As providências cautelares são desde logo
reguladas pelo código civil.
 Medidas inibitórias: por exemplo, pessoas viciadas no jogo serem proibidas de
ir a um casino.
 Medidas de segurança: associadas à perigosidade de determinado sujeito, em
regra no quadro do Direito Penal. Em casos em que não se pode aplicar a uma
pena, pode-se aplicar uma medida de segurança que pode passar por uma
detenção num espaço que impede uma pessoa de voltar a infringir a lei, por
exemplo. O internamento de alguém perigoso para a sociedade é um outro
exemplo. Não se visa punir um comportamento, mas impedir que a pessoa
continue em liberdade constituindo um perigo para a sociedade.

• Tutela Compulsória:
- Visa constranger o infrator a atuar conforme devido, adotando um comportamento
positivo ou negativo. Nesta tutela, o ordenamento jurídico institui instrumentos que têm
como finalidade constranger o infrator a alterar o seu comportamento e adotar o
comportamento devido e exigido pelas normas jurídicas.
- Exemplos no CC destes institutos:
 Direito de retenção: artigo 754.º CC. Por exemplo, se alguém se instalar num
hotel e não pagar à entrada nem à saída, o hotel pode reter as bagagens.
 A exceção de não cumprimento: artigo 428, nº 1 CC. “Se nos contratos
bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações,
cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto
o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento
simultâneo”.
 Sanção Pecuniária Compulsória (Artigo 829.º CC): meio de tutela ao dispor
das partes nos contratos de prestação de serviços e não dos contratos de coisa
(entregar uma coisa – compra e venda).

• Tutela Reconstitutiva:
- Visa (re)estabelecer a situação que existiria caso não tivesse ocorrido a violação
da lei (tornar indemne).
- Artigo 562.º CC: “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a
situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
- A lesão já tem que estar consumada e visa eliminar a lesão. A tutela compulsória
também tem lesão, mas não visa eliminá-la, a eliminação da lesão será voluntária por
parte do agente. Deseja-se com esta tutela colocar a situação na configuração que ela
teria se aquele facto que lesou o direito não tivesse ocorrido.

⇒ Reconstituição natural:
- É reconstituição natural se a condenação não for respeitada voluntariamente,
pode haver uma execução e o credor que tem direito a receber uma coisa pode ser
substituído pelo tribunal, sendo que este pode até usar a força para requerer o bem para
ser entregue ao seu legítimo titular. Sempre que ocorre a lesão de um bem deve tentar-

101
se a reconstituição natural, mas isso nem sempre é possível – quando não há reparação
possível de um carro em caso de acidente.
- Exemplo: art. 827o CC: “Se a prestação consistir na entrega de coisa
determinada, o credor tem a faculdade de requerer, em execução, que a entrega lhe
seja feita judicialmente”.
- Há lesões pessoais que são completamente irreparáveis – a morte. Dano mais
grave possível, a perda da vida. Logo, há limites para a reconstituição natural. Então
temos que procurar alternativas para compensar ou eliminar o máximo possível os
danos.
- Importância do artigo 829.ºA do CC: o tribunal, além de condenar a pessoa a
cumprir aquilo a que se obrigou (mas que em última instância pode não fazer por ser
uma prestação pessoal), pode condenar essa pessoa ao pagamento de uma quantia que
pode ser fixada diariamente por cada dia de atraso. Isto visa a pessoa a conformar-se
com o Direito, apesar de em última instância a pessoa não ser obrigada a prestar.

⇒ Reintegração por equivalente:


- Artigo 566.º n.º 1 CC: “A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a
reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja
excessivamente onerosa para o devedor”.
- No caso do automóvel, por exemplo, pode ser feita uma reintegração por
equivalente, como por exemplo uma indemnização. Não tendo sido possível a
reconstituição natural pode ser feita uma reintegração equivalente, atribuindo-se o valor
que o tribunal estabelece como equivalente ao dano causado.

⇒ Compensação:
- Tem como objeto a reparação dos danos morais (sofrimento, honra, etc.).
Não é uma verdadeira forma de tutela reconstitutiva porque, na verdade, ela não visa
reconstituir a lesão ocorrida porque não é possível de todo. Há danos que não são
possíveis serem reconstituídos - a morte. O sofrimento psicológico depois de um
acidente, a depressão, as dores – são danos corporais ou psicológicos que não se
conseguem eliminar, não conseguem ser retirados. No entanto, pode haver uma
compensação, um valor que diminui a intensidade dos efeitos para o futuro daquelas
lesões.

⇒ Reconstituição normativa:
- Invalidade e ineficácia. Um contrato que é contrário aos bons costumes, que
foi celebrado sobre coação ou com dolo pode ser objeto desta reconstituição –
declaração da invalidade do contrato. E ainda a ineficácia – não-produção de efeitos de
um determinado ato jurídico – declaração de ineficácia produz a reconstituição
normativa. Normalmente esta reconstituição complementa-se com as outras.

• Tutela Punitiva:
- Visa sancionar o desrespeito da ordem jurídica através da privação de um bem
do infrator (vida, liberdade ou património) – as penas de prisão e de multa e as coimas.
- Perante uma lesão do Direito e de direitos, a OJ vem a infligir um mal, uma censura
que se traduz numa lesão (sobre a vida, sobre a liberdade ou sobre o património), na
esfera jurídica do infrator. Nos regimes jurídicos que admitem pena de morte, a vida é o
objeto dessa lesão. Nos restantes, é a liberdade (ex. pena de prisão, medidas de

102
confinamento) e o património (pena de multa, coimas, apreensão de bens) que são
objetos de sanções.
- Não corresponde aos quadros fundamentais do sistema romano-germânico.
- Surge essencialmente no quadro do Direito Público, em primeiro lugar do Direito
Penal.
- Admite-se por haverem lesões que não podem ser reconstituídas, por atentarem contra
bens fundamentais da sociedade e da OJ.

4 - Tipos de tutela jurídica (modo)


• Autotutela:
- Princípio geral encontra-se no artigo 1.º CPC - “A ninguém é lícito o
recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito,
salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei”.
- Consiste naquela que é realizada por particulares, em princípio, pelo
próprio titular do direito, tendo em vista reparar essa violação (a agressão
pode ser quer por terceiros, quer pelo próprio, ao seu património ou à sua
pessoa). A autotutela só é admitida pela lei a título excecional e
subsidiário, exemplo disso: artigos 1º e 2º do CPC. Assim, a autotutela só
é possível numa situação em que não sejam possíveis os mecanismos
comuns de tutela pública, ou seja, a heterotutela não é possível, na
medida em que a regra comum desta é o recurso aos
mecanismos/institutos de Estado de efetivação do Direito. Em suma, a
tutela jurídica é essencialmente levada a cabo pelo aparelho estatal
(daí se designar por tutela pública), embora se admita, a título excecional,
a tutela privada ou autotutela.
- Situações excecionais (fogem ao regime comum de tutela) em que se
admite a autotutela:
 Direito de resistência – art. 21º CRP: O direito de resistência,
segundo este artigo consiste no direito em que “todos têm o direito de
resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e
garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja
possível recorrer à autoridade pública.” É de salientar que este direito
não pode ser utilizado para reagir contra qualquer ato que nos pareça
lesivo ou limitador dos valores fundamentais. Faculdade que, em
determinadas situações, o credor goza de uma coisa do devedor para
o coagir a cumprir o seu objetivo. Exemplo: um relojoeiro tem o
direito a não entregar um relógio quando o cliente não paga. É
sempre contra uma autoridade pública.
 Ação direta – art. 336º CC: A ação direta ocorre quando eu utilizo os
meus próprios meios, para defender o que era meu (exemplo: a

103
professora empurra o senhor que lhe tinha tirado a carteira há 3 dias).
Ou seja, de acordo com o nº1 do artigo 336.º a ação direta consiste:
“é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o
próprio direito, quando ação direta for indispensável, pela
impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos
normais, para evitar a inutilização prática desse direito, constante que
o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo”. Só
pode acontecer para defender direitos próprios e não de terceiros.
 Legítima defesa – art. 337º CC: É a “rainha” da autotutela –
pressupõe que se verifiquem um conjunto de elementos para se poder
entender um ato que é contrário à lei, lesivo do direito, se justifica
precisamente porque visa impedir um ato que seria lesivo dos direitos
do seu autor. Qual é o facto que constitui legítima defesa? É sempre
um facto contrário ao direito (ato não lícito em relação àquilo que é o
quadro jurídico vigente). Portanto, este ato justifica-se e o seu agente
não será responsabilizado ou será responsabilizado de um modo
menor porque se verificaram certos pressupostos ou circunstâncias,
que tornam aquela reação uma reação compreensível e justificada.
Ligada a um princípio de atualidade, portanto, temos de estar por
exemplo perante uma agressão atual – um ato que está a ocorrer.
 Estado de necessidade – art. 339º CC. Pressupostos do Estado de
necessidade são a situação de perigo ser uma situação atual e em
curso, impossibilidade de recurso aos meios normais de tutela, uso da
proporcionalidade. O artigo 339.º - é uma situação fáctica, na qual
por qualquer circunstância que seja resultante de um fenómeno
natural ou humano, há um perigo atual sobre uma pessoa ou um bem
e consecutivamente para afastar esse perigo, é necessário que eu
tenha de danificar um bem de outrem.

§ Existem regimes excecionais paralelos como causas da exclusão da ilicitude ou
da culpa em direito penal

• A tutela administrativa como forma de autotutela do Estado ao serviço do


interesse público:
- A executoriedade do ‘ato administrativo’ e o ‘privilégio da execução
prévia’: podemos considerar que no âmbito do Direito Público o Estado e as
entidades públicas beneficiam de um conjunto de prerrogativas que as
colocam numa posição diferenciada relativamente à autotutela dos sujeitos
privados, nomeadamente quanto à execução do ato administrativo
(privilégio de execução prévia). Podem unilateralmente exercer e efetivar os

104
seus atos mesmo contra a vontade dos destinatários. Além disso, não
necessitam de meios judiciais para concretizar os seus atos.
- Princípios gerais: igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e
boa fé (art. 266º, nº 2 CRP).
- As garantias dos administrados (direito à informação, participação, audição,
fundamentação e o direito de tutela jurisdicional) – art. 267º CRP: direito à
informação, participação no procedimento administrativo, audição formal
para que o particular se pronuncie, atos que têm sempre de ser
fundamentados sob o risco de serem anulados, recorrer a tribunais caso os
particulares se sintam injustiçados.
- Ao reconhecermos que as autoridades públicas dispõem de poderes, no
âmbito das suas competências, que lhes conferem poderes exorbitantes e,
entre esses poderes, os referidos, podemos reconduzir esses poderes a algo
que se traduz numa autotutela de que dispõem as autoridades para garantir a
prossecução do interesse público.
- Corresponde a uma espécie de autotutela de que os privados não beneficiam,
por ser no interesse do interesse público. Nos últimos anos tem-se procurado
diminuir estes privilégios das autoridades públicas por serem excessivos,
penalizarem os particulares e impedirem a realização da justiça.

 Heterotutela (regime comum de tutela):


- Tal como vimos o modo normal/típico/comum da tutela de direitos é a
heterotutela, em que existe um recurso a um terceiro especial que vai
efetivar a tutela dos direitos lesados. Assim, os cidadãos que pretendem
expor um caso na administração pública, têm inúmeros direitos, como o
direito de acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efetiva (art. 20º CRP).
- Os objetivos das formas não judiciais de solução dos litígios:
proximidade, informalidade, celeridade, economia, eficiência, simplicidade,
voluntariedade, proporcionalidade, oportunidade,
participação/responsabilidade, confidencialidade.
- Voluntariedade: o recurso à heterotutela é um resultado da manifestação de
vontade das partes, através de uma cláusula compromissória ou de um
acordo de arbitragem (um acordo complementar, para além do contrato,
celebrado quando emerge algum litígio entre as partes, que chegam ao
entendimento que aquele litígio deve ser resolvido, em vez de pelo tribunal,
por arbitragem).
- Proximidade: os tribunais não são instituições próximas de todos os
cidadãos, por exemplo por existirem em número reduzido. Daí a colocação à

105
disposição de outras formas de resolução – a proximidade de algumas
formas não judiciais e não jurisdicionais relativamente aos tribunais.
- Confidencialidade: a lei prevê que pode haver confidencialidade quando a
publicidade pode afetar o respeito pela dignidade das partes envolvidas,
por exemplo em matéria penal perante crimes de natureza pessoal e mais
íntima ou mesmo natureza familiar. A confidencialidade está dependente da
vontade das partes, nos meios não judiciais.
- Economia: a justiça acaba por ter custos, manter a máquina judicial é
caro. O recurso às modalidades de tutela jurisdicional como mediação
importam um custo inferior, por não terem tanta formalidade como a tutela
judicial. A arbitragem pode significar custos elevados também, por
exemplo, quando se precisar de recorrer a peritos que significam um maior
custo.
- Passa pelo recurso necessário a um terceiro imparcial que vai avaliar o
litígio à luz do Direito, em princípio, para daí retirar a definição dos
direitos e obrigações respetivos.
- Se a tutela na resolução de litígios assentar no recurso ao Direito (aplicação
do Direito estrito – aplicação das normas vigentes num determinado
ordenamento jurídico), temos uma tutela de natureza jurisdicional.

5 – Tutela jurisdicional (modos de heterotutela)


 Tutela judicial (tribunais):
- Regime regra feito em tribunais, com a intervenção de um tribunal. Esta
matéria foi objetivo de sucessivas alterações nos últimos anos e atualmente
está regulamentada pela Lei da Organização do Sistema Judiciário (lei
nº62/2013, alterada pela lei 40/2016).
- Estrutura judicial portuguesa:
 TRIBUNAIS JUDICIAIS:
o Supremo Tribunal de Justiça (tribunal de 3ª instância): órgão
superior da hierarquia. Julga, em regra, os recursos do tribunal da
relação. Tem competência em todo o território nacional. Tem
secções em matéria cível, penal e social. Os juízes do STJ têm a
designação de “juiz conselheiro”. Em matéria cível, as decisões dos
tribunais judiciais só admitem recurso para o tribunal
hierarquicamente superior se excederem a alçada do tribunal no qual
forem julgadas.
o Tribunais da Relação (tribunal de 2ª instância): existem cinco
em Portugal (Guimarães, Porto, Coimbra, Lisboa e Évora). Em

106
regra, funciona como tribunal de recurso. O tribunal da relação
competente é aquele a que está hierarquicamente subordinado o
tribunal de cuja decisão se recorre. Têm secções de matéria cível,
penal e social (social corresponde a trabalho). Podem ainda ter
secções em matéria de família e menores, comércio, propriedade
intelectual e concorrência. Os juízes chamam-se “juiz
desembargador”.
o Tribunal de 1ª instância: corresponde habitualmente ao tribunal de
comarca (área geográfica sob a jurisdição do tribunal) ou a tribunais
de competência especializada e de competência territorial alargada.
Cabe-lhes apreciar a generalidade das causas pela primeira vez,
portanto, são geralmente onde a ação é intentada pela primeira vez.
Existem atualmente 23 comarcas em Portugal. Várias matérias são
julgadas nos tribunais de comarca, sejam criminais ou cíveis, exceto
as que estão abrangidas pelos tribunais de competência
especializada e de competência territorial alargada (ex. matéria
comercial, propriedade intelectual, concorrência). Nas comarcas
menores, o mesmo tribunal tem as várias competências – comarcas
de competências genéricas. Os tribunais de comarca dividem-se em
juízos que podem ser de competência genérica ou de competência
especializada (juízo central cível – substituíram as varas e tramitam
e julgam ações em regra de valor superior a 50 mil euros , juízes
locais cíveis – tramitam e julgam as ações que não cabem ao central
cível -, tribunal central criminal – julgam ações que dizem respeito
a crimes de competência do tribunal coletivo ou de júri -, local
criminal – as que não cabem ao central criminal nem aos juízes
locais de pequena criminalidade -, tribunal local de pequena
criminalidade – ações a que corresponda a forma de processo
sumário, abreviado e sumaríssimo, e ainda recurso das decisões das
autoridades administrativas em processo de contraordenação quando
o valor da coima seja igual ou inferior a 15 mil euros -, tribunal
local de proximidade (130.º/5 LOSJ), tribunal de instrução
criminal, tribunal de família e menores, tribunal de trabalho,
tribunal de comércio e tribunal de execução). Existem ainda
tribunais de 1ª instância de competência especializada e
competência territorial alargada, que excedem a comarca –
tribunal da propriedade intelectual, tribunal da concorrência,
regulação e supervisão, tribunal marítimo, tribunal de execução de
penas e tribunal central de instrução criminal.

107
o Em matéria penal não há limite de alçada pois são as matérias
mais importantes para a convivência pacífica em sociedade,
portanto não deve haver limite de recurso.

 TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS:
o Pressuposto de que o interesse do Estado devia valer de forma mais
reforçada face aos interesses dos privados, o que levava a que o
controlo dos atos do Estado fosse um controlo mais restrito do que
o dos tribunais judiciais. A orgânica dos tribunais administrativos é
resultado, de certa forma, da orgânica pré-25 de abril.
o Supremo Tribunal Administrativo;
o Tribunal Central Administrativo;
o Tribunais Administrativos/Tribunais Tributários (1ª instância): um
para competências fiscais (tributário) e outro para as restantes
matérias que não envolvem impostos nem taxas;

 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (artigo 221.º a 224.º):


o Função de controlo constitucional das normas, função jurídica mas
não jurisdicional. Trata de questões de constitucionalidade,
colaborando no exercício da função jurisdicional.
 TRIBUNAL DE CONTAS (art. 214º CRP):
o Tribunal de natureza especial, com uma função e competências de
controlo da atividade dos entes públicos no respeito das respetivas
competências quando têm incidência financeira.
o Fiscalizam atos que envolvem a utilização de dinheiros públicos
por parte de qualquer entidade pública. Fazem uma apreciação
preventiva (sujeição de determinados atos da administração pública
antes da utilização) e corretiva (posterior ato, depois da despesa
realizada, responsabilização de natureza administrativa ou
criminal).
 TRIBUNAIS MILITARES (art. 213º CRP):
o Têm estatuto excecional, portanto, não existem em funcionamento
normal (podem ser instituídos em situações de guerra). Composto
por juízes militares – militares com formação jurídica. Juízes
dividem-se por cada ramo das forças armadas e pela GNR (força de
segurança de natureza militarizada).

• Arbitragem (tribunais arbitrais):


- Através de árbitros. A arbitragem determina a resolução de litígios de
modo alheio às partes, porque só tem lugar se as mesmas nisso convierem,
consistindo num modo de resolução alternativa de conflitos. A

108
competência destes tribunais depende do acordo e vontade das partes. A
arbitragem rege-se pela lei 31/86, que tem como característica principal a
voluntariedade (competência de jurisdição voluntária), em que existe
consenso entre ambas as partes, tendo em conta os direitos disponíveis,
que são direitos que as partes possam prescindir e modificar esses direitos
sem alteração legal.
- Não é admissível existir arbitragem perante direitos pessoais, já que não
posso abdicar desses direitos.
- Para solucionar os litígios, vão ter em conta a lei aplicável e inserida na
decisão equitativa das partes — decisão de “ex aequo et bono”
(fundamentada pela deliberação das partes).
- A arbitragem carateriza-se pela resolução “ad hoc” (para o caso concreto)
em que os árbitros são designados pelas próprias partes e são subordinadas
às regras escolhidas por estas. Só é possível encontrar um consenso em
caso da convergência da vontade de ambos.
- Pode ser simulada ou coletiva. Tem lugar de forma institucionalizada
muitas vezes. Existem então tribunais arbitrais que têm membros já
determinados, sendo que as partes escolhem entre a lista dos membros
quais os que escolhem. Ex. Associação Comercial do Porto (para litígios
entre comerciantes).
- As decisões dos tribunais arbitrais não são publicitadas, são secretas.

• Julgados de paz:
- Têm competência para resolver causas comuns de Direito Civil cujo valor
não exceda 15 mil euros, mas excluindo matérias de Direito da Família, de
Direito das Sucessões e de Direito do Trabalho.
- A opinião maioritária diz que a competência dos julgados de paz é
obrigatória, ou seja, se couber na competência dos julgados de paz, não se
deve recorrer ao tribunal judicial.
- São uma espécie de ressuscitar de uma instituição que em tempos existiu
em Portugal - os juízes de paz. Estes julgados de paz funcionam junto das
autarquias, são mais próximos às populações (princípio da
subsidiariedade).
- Estes julgados têm mediação, tendo os juízes de paz que ser
obrigatoriamente juristas, sujeitos a um processo de seleção rigoroso, com
competência limitada.
- Os julgados de paz são estabelecidos por lei, decidem de acordo com a lei,
têm competências definidas pela lei, são independentes das partes e
assumem uma fase prévia de mediação, em que o juiz reúne as partes e
procura aproximá-las de modo a que estas cheguem a uma decisão para
que este não tenha de atribuir uma sentença, porque as partes terão
chegado a uma decisão. Reconduzem-se a todos os litígios respeitantes a
relações de vizinhança, particularmente em matéria de condomínios. Têm
presença municipal e resultam de um protocolo entre o ministério da
justiça e as câmaras municipais. Ex. litígios no âmbito de condomínios.

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- São uma criação recente que replica uma realidade antiga em Portugal em
alguns locais – a figura do juiz de paz, que existia em alguns lugares mais
remotos, a quem cabia a resolução de litígios, mesmo não tendo formação
jurídica, sendo em regra uma pessoa com credibilidade social a que era
reconhecida idoneidade. Termina no século XIX e atualmente reinventa-se
e atualiza-se essa figura. Os julgados de paz funcionam junto dos
municípios e são formados por juízes de paz (necessariamente licenciados
em Direito, embora não tendo uma formação tão profunda como as dos
juízes judiciais). Litígios não podem ter valor superior ao de alçada do
tribunal de 1ª instância. Não está sujeito às regras de petição nem tem que
estar articulado por artigos, tendo um processo diferente.

• Ministério Público:
- O Ministério Público está presente em todos os tribunais e representa o
Estado, cabendo-lhe exercer a ação penal.
- Numa ação penal, é arguido e Ministério Público (por vezes com
assistente que corresponde à vítima). O MP não representa a vítima,
representa toda a sociedade afetada pelo crime.
- Tem autonomia.
- O órgão superior do MP é a Procuradoria Geral da República.

• Tutela não jurisdicional:


- Pretende-se que haja uma resolução da controvérsia, mas não à luz de
critérios jurídicos.
- Composição dos litígios (objetivo: concórdia), assente na voluntariedade
e na construção da solução pelas partes.Esta tutela é prevista e regulada
pela ordem jurídica, mas não se faz segundo o direito, logo é uma tutela
não jurisdicional, não é dada por uma autoridade de direito. Todas estas
fórmulas são fórmulas institucionalizadas por lei, enquadradas no âmbito
de natureza pública ou privada, às quais o Estado ou o direito reconhecem
um papel mediador. Celeridade (agilidade) é uma vantagem destas
fórmulas.
- Não se faz segundo o Direito, visa resolver os litígios através da respetiva
composição - através de uma solução que as partes aceitem, que
consideram razoável para os seus interesses e não necessariamente dos
direitos, pode ser uma garantia dos direitos mas não é uma efetivação
destes. Assenta na voluntariedade - nenhuma das soluções é
unilateralmente imposta pela lei, passa pela aceitação das partes
envolvidas; prevê-se que haja, de facto, uma intervenção de um terceiro
que vá procurar aproximar as partes, talvez num momento inicial um
diálogo separado para perceber o que elas estão dispostas a ceder e, a partir
daí, reuni-las e alcançar uma solução para o litígio entre elas. Temos visto
a expansão destas formas não jurisdicionais, à margem do direito e podem
até ser opostas ao direito logo a sua relevância é limitada.
 Conciliação: atribuída ao IAPMEI no âmbito do SIREVE (Sistema de
Recuperação de Empresas por via Extrajudicial) com vista à

110
viabilização de empresas (art. 8o do DL 178/2012, de 3/8, modificado
pelo DL 26/2015, de 6/2). Intervenção da administração pública no
âmbito de situações problemáticas nas empresas – IAPMEI – vai
intervir no quadro do processo especial de recuperação da empresa que
se encontra em dificuldades e os credores podem pedir a insolvência
para tentar subsistir – pretende-se que entre os titulares da empresa e
os credores se alcance um acordo de forma a que a empresa continue a
sua atividade – os credores podem abdicar de parte dos seus créditos
ou admitir condições mais favoráveis ao pagamento. Traduz-se numa
intervenção de um terceiro que vai, em diálogo com as partes, propor-
lhes vias de solução, logo, este terceiro terá um papel relativamente
ativo. A intervenção do IAPMEI é menos intensa, aproxima-se até da
mediação.
 Mediação: em geral, regulada pela Lei 29/2013 e Portarias 344/2013 e
345/2013. É uma forma que tem vindo a ser desenvolvida e que por
definição procura ser mais próxima. O mediador limita-se a ser um
intermediador entre as partes, o mediador não tem de apresentar
qualquer solução, tem de fomentar o diálogo entre as partes para
encontrar 
uma solução. Na conciliação o mediador apresenta a
solução. Mas as diferenças são muito ténues.
 Âmbito laboral: protocolo de acordo entre o Min. Justiça e as
principais organizações representativas dos empregadores e as
confederações sindicais, de 5/5/2006)
 Âmbito penal: decisão Quadro n.o 2001/220/JAI; Lei 21/2007 –
apenas para crimes particulares ou semipúblicos)
 Âmbito familiar: Despacho 18778/2007 do Min. Da Justiça
 Âmbito civil e comercial: Lei 29/2013 (junto de várias entidades –
v.g. CMVM; no âmbito dos Julgados de Paz)

V – As fontes do Direito – teoria geral e tipos de fontes


• Teoria Geral das Fontes = não se restringe à perspetiva do OJ português
mas é de alguma forma condicionada pelo mesmo. Considera a teoria clássica
legalista, mas admite outras.
• Teoria Clássica Legalista = a lei é a fonte geral desta tetralogia no caso dos
sistemas Civil Law e Common Law mais o costume, devido ao seu
reconhecimento e contributo sistematizador das fontes imediatas de normas.
Tetralogia: lei, costume, doutrina e jurisprudência.

• SENTIDOS DA EXPRESSÃO ‘Fontes do Direito’:


§ único – recondução a uma ‘Teoria Geral das Fontes de Normas’

111
 Histórico-cultural – refere a influência histórica e cultural que marca um
determinado sistema jurídico, um ramo ou setor normativo ou um instituto
(v.g. o Direito Romano como ‘fonte’ do Direito português, do ‘direito
civil’, da ‘impugnação pauliana’ (arts. 610º-618º CC)) onde vamos buscar
inspiração para formulação das normas, pode ser num sistema jurídico já
inexistente, quando referimos que somos sistema romano-germânico
aludimos a isto. Refere a influência histórica e cultural que marca um
determinado sistema jurídico, um ramo ou setor normativo ou um instituto
(exemplo: o Direito Romano como “fonte” do Direito português, do
“direito civil”, da impugnação pauliana (tem como inspiração o instituto
do direito romano clássico – ART. 610º - 618º CC). Todo o quadro
jurídico que regula a usucapião também tem inspiração condicionada pelo
que foi no direito romano.
 Histórico-jurídico – refere a influência derivada de uma fonte normativa
num ramo, setor normativo ou instituto (influência do BGB como ‘fonte’
do CC; instituto da responsabilidade extracontratual civil no regime da
responsabilidade extracontratual da administração pública). Sentido
histórico mais técnico. Especialmente importante quando estudamos a
teoria da interpretação jurídica, vendo como as fontes são fundamentais
na interpretação jurídica, tentando determinar o sentido de determinada
norma jurídica. Influência de um ordenamento jurídico exterior ou
estrangeiro ou o próprio ordenamento jurídico que vigorou num momento
anterior ao daquela norma, não sendo irrelevante para dar interpretação à
norma atual, seja no sentido de continuidade ou de rutura. Refere a
influência derivada de uma fonte normativa num ramo, setor
normativo ou instituto. Como o desenvolvimento do direito se fez a partir
da matriz do direito privado, encontramos em muitos domínios, mesmo
também no direito público (o BGB como “fonte” do CC; a
responsabilidade extracontratual civil no regime da responsabilidade
extracontratual da administração pública). A responsabilidade
extracontratual publica está modelada pela responsabilidade
extracontratual privada e aqui falamos de fontes iuris essendi, é um
regime que influenciou e está na génese da responsabilidade
extracontratual pública, mas é uma fonte no sentido da influência na sua
formulação;
 Orgânico ou Institucional – refere os órgãos ou entidades de que emana
o Direito. Referência aos autores das normas (por ex. a fonte do CC é o
parlamento português), remete para a autoria e responsabilidade pela
criação das normas jurídicas.

112
 Instrumental – refere os suportes materiais ou formais, os veículos,
através dos quais o Direito se revela (documentos, tradição oral, etc.).
Refere os suportes materiais em que a norma se manifesta, fontes iuris
cognoscendi.
 Material ou sociológico – refere o circunstancialismo causal (económico,
social, político) que originou uma regulação jurídica – occasio legis.
Sobretudo utilizado pelos sociólogos do Direito. Refere-se ao contexto, à
realidade, às influências de interesses, à conjugação de autores, que
conduziu à adoção de um determinado regime jurídico.
 Jurídico-dogmático – refere as modalidades de formação (fontes iuris
essendi) e revelação das normas (fontes iuris cognoscendi). Permite
compreender a natureza das normas jurídicas e o que elas constituem na
ordem jurídica. Temos fontes iuris essendi – modelam o conteúdo das
normas, constituem a substância da norma instituída – e fontes iuris
cognoscendi – revelam as fontes dessas normas, permitem compreendê-
las. Concentra-se na norma jurídica e nas modalidades de formação da
mesma, no sentido de qual é a realidade jurídica através da qual se criam,
modificam ou extinguem normas jurídicas que é coincidente com a forma
de manifestação das normas, mas que não o é necessariamente. Falaremos
da lei enquanto fonte de normas (lei fonte instrumental) e sendo certo que
podemos deparar-nos com leis que não contêm normas jurídicas não
havendo coincidência entre as duas modalidades jurídico-dogmáticas, mas
tendencial coincidência.

É o primeiro destes sentidos que é relevante – ‘fonte’ é o facto/ato jurídico


pelo qual se cria, modifica ou extingue uma norma jurídica.

• ANÁLISE CRÍTICA – da Teoria Clássica legalista:


 A tetralogia – lei: costume; doutrina e jurisprudência. Uma Teoria
Plural das Fontes de normas.
 Existe uma pluralidade de fontes que nos leva a reconsiderar a
tetralogia. Podem ser menos relevantes que essas fontes, mas não
deixam de ser cada vez mais importantes. A teoria clássica permanece
válida, mas é insuficiente para compreendermos verdadeiramente as
fontes de Direito que são relevantes.
 A Teoria Clássica resulta de toda a construção dogmática desenvolvida
pelo positivismo desde o século XIX até ao XX. A teoria plural das
fontes tem-se desenvolvido nas últimas épocas, nomeadamente a partir
de meados de século XX.
 Tetralogia - quatro fontes reconhecidas: lei, costume, doutrina,
jurisprudência. A propósito dos sistemas romano-germânicos
113
sabemos que por exemplo no OJ francês só se reconhecia a lei com o
positivismo-legalista. O costume integra a tetralogia porque no quadro
do positivismo é também considerado uma fonte. Esta tetralogia
permite-nos também compreender as fontes dos sistemas anglo-
saxónicos, substituindo a prevalência da lei pela prevalência do
costume e da jurisprudência.
 Código Civil quanto à tetralogia - não cabe ao legislador determinar
as fontes de Direito, esta é uma pretensão que é uma presunção da lei
enquanto fonte. O que nós vemos ser feito no CC, que trata as fontes
entre o artigo 1º e o artigo 4º, é uma fonte de Direito (a lei) a
pretender ditar as fontes de Direito do OJ português. Na verdade, o
próprio legislador reconhece outras fontes e na atualidade a nossa
constituição reconhece outras fontes que não estão no elenco colocado
pelo legislador no CC. Há que reconhecer que para além deste elenco,
há fontes de Direito no OJ português, que não contêm normas, que
integram a OJ portuguesa, por terem proveniência por exemplo
internacional, mas não deixam de vigorar e produzir efeitos jurídicos.

§ O CÓDIGO CIVIL (cap. I – art. 1º):


 Artigo 1.º: relativo às fontes imediatas.
 Crítica da não taxatividade - é criticada a sua não taxatividade, uma
vez que é incapaz de apontar todas as fontes do Direito português, sendo
esta sua insuficiência complementada com a CRP - as fontes de direito
são complementadas com o ART. 8.º da CRP.
 Conceito de lei amplo - todos os atos de natureza regulamentar.
 O Código civil reconhece que há outras fontes:
- ART. 2º - assentos;
- ART. 3º - uso e, no próprio corpo deste, em ocasiões diversas,
reconhece o costume com uma formulação não muito nítida e
que suscitam ambiguidades se se está mesmo a referir a costume
ou só ao uso. ART. 1400º + ART. 348º: costumes locais e
estrangeiro. Sobre os costumes locais:
o São reconhecidos como fonte de Direito Português;
o Têm âmbito territorial de formação e vigência que se reduz a
um espaço limitado do território português;
o As leis, quer sejam de poder executivo ou da administração
autónoma, são reconduzidas;
o Correspondem a autarquias têm poder regulamentar
autónomo com base na CRP e de uma lei geral.
 Uma outra crítica corresponde ao facto do Código Civil apresentar muitas
omissões e imprecisões, como é o caso do ART. 1º, nº1, no qual se
confunde norma com fonte, uma vez que a confusão incide na fonte em
sentido jurídico-dogmática e em sentido formal. É de notar que as normas,
por si mesmas, podem ter diversos suportes, como é o caso da lei que se
apresenta como um ato criador destas primeiras. No entanto, considera- se
que uma lei não corresponde a uma norma.

114
 O prof. Freitas do Amaral refere regras respeitantes a confissões
religiosas, indo “longe demais”. A prof. Graça Enes não concorda com o
facto de ele reconhecer em demasia quadros de normação privada (por ex.
regulamento dos condomínios).

 Classificações das fontes:


 De acordo com o modo de deliberação:
- Intencionais: lei;
- Espontâneas: costume Ações dos sujeitos, mas independente
da sua vontade de criar, modificar ou extinguir uma norma,
sendo um resultado que não foi necessariamente intencional
como, por exemplo, o costume.
 De acordo com o sujeito emitente
- Unilaterais: autoria de um único sujeito – a lei, sendo que o seu
único interveniente é o legislador, pode associar muitos agentes,
mas o seu autor e um só;
- Convencionais: resultam de um acordo, de pelo menos duas
vontades para que a norma se formule e venha a vigorar
também, por exemplo: Convenção de estados em Direito
Internacional Publico;
- Nacionais;
- Internacionais;
- Estaduais;
- Regionais: regiões autónomas;
- Locais: autarquias locais;
- Estaduais;
- Corporativas: o produto dessa autonomia de organização e
criação jurídica da sociedade em sede cultural, económica,
social (assente na divisão do ART. 1º).
 De acordo com a forma
- Escritas;
- Não escritas: costume – redução da importância das fontes não
escritas, mesmo até nos sistemas anglo-saxónicos, as normas
consuetudinárias já foram objeto de sistematização e integração
na jurisprudência, já não subsistem da forma originária.
 De acordo com o âmbito de aplicação territorial ou funcional:
- Nacionais
- Regionais
- Locais

115
-Institucionais ou estatutárias: âmbito de aplicação funcional,
há um espaço de desempenho da aplicação. Por ex.
Universidade do Porto.
 De acordo com a autonomia na determinação do seu valor jurídico
- Autónomas: que por si, sem haver qualquer atribuição da
capacidade, são aptas para definir o regime jurídico de
determinada matéria. Têm poder próprio para criação de normas
jurídicas.
- Não autónomas: os usos – ART. 3º Nº1 CC – é necessário,
para que possa ser utilizada como fonte de direito, que haja uma
lei que lhe atribua uma relevância jurídica sob pena de não
poder ser invocado como fonte de direito. O seu relevo jurídico
é conferido e reconhecido por outra fonte. Sem esse
reconhecimento, elas não seriam capazes de criar ou revelar
normas jurídicas. São fontes indiretas de normas jurídicas. Por
exemplo, o artigo 3.º reconhece o valor dos usos quando a lei
para eles remeta e com a condição de não serem contrários à
boa fé.

§ único – a questão das fontes mediatas (doutrina; jurisprudência) –


remissão
 O conceito de fonte mediata diz respeito a fontes que não têm o poder de
criação de normas jurídicas e, portanto, não são fontes de direito, mas têm
o poder de influência na criação e na interpretação das normas jurídicas.
 As fontes mediatas conduzem a fontes integradas na tetralogia que não são
fontes imediatas, mas antes fontes que influenciam as fontes imediatas ou
trabalham as fontes imediatas, aplicando-as ou sistematizando-as de
forma a dar sentido ao ordenamento jurídico.
 Aponta-se para a importância da uniformidade da jurisprudência,
existindo mesmo institutos jurídicos que têm como função a promoção
desta primeira, uma vez que se reconhece a existência de correntes
jurisprudenciais que fixam e dão certeza jurídica sobre as normas e que,
mesmo não se comportando como criadoras de normas de forma direta,
acabam, através do seu trabalho de aplicação, por dar consistência
normativa, conferindo relevância à fonte mediata no que diz respeito à
compreensão do sentido da norma. A jurisprudência efetua-se a jusante,
sendo que a doutrina se efetua tanto a montante como a jusante.
 Desta forma, conclui-se que se consideram fontes mediatas pelo facto de
elas não criarem normas, mas contribuírem para a formulação e

116
efetivação dessas normas, sendo, por isso, importantes e determinantes
para o sistema jurídico.

V.1 – Costume
 O costume é a prática constante e reiterada (ex. artigo 1402º CC) – corpus
- com a convicção de juridicidade - animus. Para a prof. Graça Enes, o
348.º CC e o 1402.º são os artigos essenciais do costume no CC.

 Elemento material:
 É o resultado de uma prática reiterada, prática constante, que se repete
com 
as mesmas características ao longo do tempo. Naturalmente esta
prática tem que ter alguma uniformidade, não sendo sempre exatamente
igual. Desenvolve-se entre os sujeitos de Direito, aqueles que são os
destinatários da norma e, neste sentido, há elementos que podem ser
diferenciados, mas nos essenciais tem que ter essa uniformidade.
 A prática pode ser um comportamento ativo ou uma abstenção, o não
atender, o não aplicar. Prática reiterada, positiva ou negativa.
 Outro elemento que tem a ver com os seus sujeitos: esta prática deve ser
uma prática que se consiga imputar nos sujeitos quando deparados com
uma situação jurídica. No Direito Internacional, por exemplo: para que
haja um costume internacional é preciso ver de que forma é que os
Estados desenvolveram essa prática.
 Este elemento material do costume é de fácil verificação.

 Elemento psicológico:
 Convicção da obrigatoriedade, uma vez que o comportamento é
realizado porque corresponde àquilo que o Direito existe, não por relações
de conveniência ou acaso. Convicção da juridicidade – animus.
 O usus tem apenas o primeiro elemento, o material, ao passo que o
costume é precisamente a junção do uso com a convicção da
obrigatoriedade. O usus é uma fonte imediata de Direito.
 Em matéria de prova de costume, no CC, admite-se a obrigação para
quem invoca o costume de provar os factos que constituem costume. O
Direito é de conhecimento oficioso. Os elementos de facto são
apresentados pelas partes aos juízes, mas os elementos de Direito são
constituídos pelos juízes – ART. 388.º do CC em matéria do ónus da
prova.
 Distinção do uso (art. 3º; 885º, nº 2; 1122º; 1128º; 1357º): O usus tem
apenas o primeiro elemento, o material, ao passo que o costume é

117
precisamente a junção do uso com a convicção da obrigatoriedade. O
usus é uma fonte imediata de Direito.

 Sobre a prova do costume:


 No seu elemento material, é bastante simples de fazer. Agora a prática do
elemento psicológico é difícil. Fá-lo através de uma presunção: pode
presumir-se. Compete à outra parte que não pretende ver validado o
costume encontrar um princípio de oportunidade ou de conveniência. 


 Relação costume/lei:
 Secundum legem - segundo a lei;
 Praeter legem - para além da lei, no que a lei não prevê – artigo 1402.º no
qual a lei se abstém de regular uma matéria;
 Contra legem - nos sistemas que reconhecem o costume como fonte de
direito isto é comum, mas nos que não reconhecem é problemático.
 Em Portugal, não se reconhece o costume como fonte de Direito. Um
exemplo é a exclusão da caducidade por desuso, revogação expressa ou
tácita – 7º CC; a relevância do 348º CC. Não se admite costume contra
legem que faça cessar a vigência de uma lei.

 Posição do CC:
 Omissão no art. 1º;
 Remissão substantiva nos arts. 1400º e 1401º (uso?);
 Artigo 348º.

 Posição da CRP:
 Art. 8º, nº 1 - remete para os princípios comuns do Direito Internacional,
que são praticamente exclusivamente consuetudinários.
 Art. 29º, nº 2 - refere-se ao reconhecimento dos crimes internacionais.
Em grande medida, as normas que preveem crimes internacionais são
consuetudinárias.

 Qual é a grande questão em torno do costume?


 É a garantia da certeza jurídica.
 É um tipo de fonte, a mais democrática, porque resulta do próprio
empenho dos sujeitos na construção do Direito, correspondendo ao
sentido da sociedade e do Direito.
 A certeza jurídica é um problema, uma vez que o costume apresenta
alguns contornos de menor definição do que apresenta a lei. Uma prática
118
reiterada, repetidamente: quantas? Quanto tempo? Por quantas entidades?
Tem um sentido uniforme, mas não é completa. É preciso muitas vezes
retirar os comportamentos ilusórios e filtrar a regra, o núcleo. 
O
costume necessita, por isso, de um trabalho constitucional. Numa
sociedade cada vez mais complexa, é cada vez mais difícil.
 Isto criou, com o desenvolvimento das cidades europeias, alguns
problemas: a interpretação tem que ser feita pelos tribunais. No caso
dos países europeus, associados ao poder real, criou algumas dificuldades
na criação desse sistema judicial. Queriam remeter os tribunais para a
mera aplicação das normas e a lei como única fonte. 
Nos sistemas
anglo-saxónicos, a afirmação do costume só se faz porque está associada
à regra do precedente e é através dessa regra que o costume vai
permanecer como fonte do Direito, assegura a sua continuidade que nos
continentais é feita pela lei. 


V.2 – Lei
 LEI:
 É um ato jurídico unilateral, produto de um sujeito jurídico,
corresponde a uma autoridade pública, em princípio, o Estado ou
qualquer uma com legitimidade para editar atos. 

 Ato imperativo que tem como objetivo principal a criação, modificação
ou extinção de normas jurídicas. Este é o conceito de lei material:
traços fundamentais das normas que são objeto deste mesmo ato.
Neste
conceito de lei, cabem todos os atos legislativos do ART. 112o da
CRP, mas pode incluir mesmo atos que naquele quadro que referimos
são atos normativos, que são secundários em relação à lei, de
desenvolvimento dos atos base, ou regulamentos autónomos. 

 Corresponde à lei em sentido material – além dos atos legislativos
designados no art. 112º/1 da CRP, a noção inclui mesmo os
regulamentos - decretos regulamentares, portarias, despacho normativo,
regulamentos municipais e estatutos e regulamentos de outras entidades
infra estaduais (não para Freitas do Amaral). Estamos a falar num Teoria
Geral das Fontes que abrange os atos normativos e que não são
designados como lei. 

 Lei em sentido formal é o ato emitido pelo órgão do Estado com função
legislativa. Podem não ser lei material (v.g. leis-medida ou a lei que
aprova o Orçamento). Fonte imediata – art.º 1 n.º1 CC. Definição do
art.º1 e n.º2 CC – crítica.
 Em abstrato, em relação ao costume, a ideia da validade não se coloca
porque não obedece a critérios, a formalidades, a pressupostos. A lei
119
é um ato de uma autoridade com competência para a editar, obviamente
está condicionada por uma série de requisitos. A lei para poder ser
fonte de Direito tem que estar conforme os princípios do ordenamento
jurídico. 

• Validade da vigência:
 Quando falamos no momento atual num quadro jurídico e nos referimos à
validade, falamos num parâmetro que nos conduz para a CRP em primeiro
lugar e em segundo plano a sede legal. 

 A vigência refere-se à integração de um determinado ato no ordenamento
jurídico, começando a vigorar. Distingue-se da validade porque nós temos
requisitos diversos, complementares, que não têm a ver com a natureza ou
competência do ato em si (validade), mas sim com requisitos fundamentais
que têm que estar preenchidos para que um ato seja relevante no mundo
jurídico, passando a ter efeitos jurídicos.
 Os requisitos enquanto não estiverem preenchidos, são atos que ainda não
são atos. Só com os requisitos é que podem alterar o sistema
jurídico.
Um dos requisitos de vigência é a sua publicação, até que no
que caso português se confunde com a eficácia. Embora haja um plano de
coincidência com a vigência. Um ato vigente já teve efeitos, mas é possível
que não possa desde logo aplicar-se porque está dependente de factos para
se realizar na plenitude. Exemplo de factos: mecanismos de aplicação,
definição do conceito, etc. Há, portanto, atos que são vigentes, mas que
não se verificam na sua plenitude.
 Temos no nosso ordenamento este plano de sobreposição:
eficácia/vigência. O período de vacatio legis = o ato em causa, reunindo
todas as condições para entregar o ordenamento jurídico, não o faz de
imediato, para permitir um conhecimento generalizado e uma adaptação à
novação normativa instituída. Nunca entra em vigor no próprio dia em que
é publicado. Mesmo que o legislador diga que entra em vigor no próprio
dia, não produz efeitos.
 Estes atos sempre pretenderam dar a oportunidade aos destinatários, não só
conhecer o ato, como também adaptarem-se ao novo regime jurídico; para
esse efeito, a vigência não se produz no momento em que é editado, é
conferido aos particulares um tempo após a publicação para que possam
adaptar-se. Entrará em vigor não de imediato, mas sim numa fase
posterior, de forma a não criar uma interrupção abrupta. Período durante o
qual a vigência do ato está dormente, não está ativa. Inteiramente nas mãos
do legislador. Qualquer ato normativo entra em vigor na data em que assim
o determinar, e esta data pode ser imediata, frequentemente não o é pela tal

120
adaptação, mas pode ter lugar com a própria data de publicação. Se nada
for definido pelo ato, temos o período de vacasolene.
 Atenção: não há vigência retroativa – não pode ter uma vigência anterior à
publicação do ato. Pode é haver produção retroativa. É diferente. 


 A CRP distingue lei (lei formal) de ato legislativo (que integra antes a
categoria de lei material) – art. 112º. Este último engloba a Lei, o DL e o
DLR.

 Cessação da vigência:
 Caducidade (expressa ou tácita) – Quando é expressa trata-se da
verificação de um determinado facto num momento posterior à entrada
em vigor do qual resulta a cessação da vigência da norma. Por exemplo,
a previsão de uma data na qual se cessará ou vigorará a vigência. Quando
é tácita, o facto que produz a cessação da vigência não está
expressamente previsto na lei. O art. 7º CC preclude que pudéssemos
considerar o costume como um fator de caducidade da lei. Pode ser
questionada a possibilidade de o costume contra legem e o desuso serem
um fator de cessação da vigência da lei, no entanto, não são admitidos em
Portugal como forma de cessação da vigência.
 Revogação/Abrogação (expressa ou tácita; total ou parcial, em especial a
aprovação de um novo código): é determinada através da adoção de um
novo ato legislativo que terá um valor jurídico igual ao superior ao ato
legislativo revogado. É sempre produto de um novo ato legal que revoga
o ato legal anterior. Pode ser total ou parcial. Pode ser expressa ou tácita
– desejavelmente deve ser expressa por razões de certeza jurídica,
quando é tácita há uma incompatibilidade entre o regime jurídico
estabelecido pelo novo ato e o regime jurídico estabelecido com o ato
anterior. A não repristinação (art. 7º nº 4) - uma lei A é revogada por
uma lei B. Num momento posterior, através da lei C, o legislador revoga
a lei B. Quando a lei C revoga a lei B, poder-se-ia pensar que a lei A
voltava a ganhar vigência, mas este artigo diz-nos que não é assim, a lei
A cessou a sua vigência e “morreu”; a repristinação na declaração de
inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral, nos
termos do art. 282º, nº 1 CRP – quando cessa a vigência de uma lei por
força da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade, temos a
repristinação da lei ou dos regimes legais que essa lei tinha revogado
(281.º CRP). Regras gerais – lei posterior revoga lei anterior (princípio
norteador da revogação dos atos legislativos); lei superior revoga lei
121
inferior; lei geral não revoga lei especial (art. 7º, nº 3 - as normas
especiais são aquelas que estabelecem um regime diverso do regime
comum por haver uma determinada especificidade que justifica essa
diferenciação. A lei geral posterior não revoga a lei especial exceto se
puder concluir inequivocamente que a intenção do legislador era eliminar
os regimes especiais).

 Desvalor jurídico:
 Inexistência (por falta de promulgação do PR – art. 137º CRP; por falta
de referenda ministerial – art. 140º, nº 2 CRP): não podem produzir
nenhum efeito jurídico. O ato em nenhum momento pode deixar um rasto
de efeitos. A causa da inexistência de um ato jurídico são dois vícios de
natureza formal - a falta de promulgação do PR ou a falta de referenda
ministerial por parte do Governo (na realidade, a referenda é operada pelo
PM).
 Invalidade (inconstitucionalidade ou ilegalidade): em princípio, faz
desaparecer os efeitos produzidos ab início. O ato é expurgado do
ordenamento jurídico desde o momento em que entra em vigor. Traduz-se
numa desconformidade com regras que deveriam ser respeitadas, sejam
regras constitucionais (invalidade por inconstitucionalidade) sejam regras
legais, superiores, que seriam imperativas para determinado ato legal. Em
princípio a invalidade implica também a eliminação dos efeitos jurídicos
desde o momento da entrada em vigor, mas, há limites a esta produção de
efeitos que remontam a esse momento anterior, limites que resultam de
princípios como a segurança jurídica.
 Ineficácia (por falta de publicação - art. 119º CRP): regulada pela Lei nº
74/98 (Lei-formulário), de 11 de Novembro, com as alterações
introduzidas pela Lei nº 42/2007, de 24 de Agosto. Não elimina o ato
jurídico nem o retira da vigência do OJ, apenas afeta a produção de
efeitos. É para vícios menos graves que não afetam as bases jurídicas
formais e substanciais mais relevantes para a válida adoção do ato. O caso
que se prevê em Portugal é o da falta de publicação.

 A Constituição como fonte de Direito – lei ou fonte autónoma?:


 O conceito de constituição material faz-nos encontrar normas
constitucionais que não se confundem com a lei constitucional. Freitas do
Amaral defende uma distinção entre lei e Constituição.

 Regulamentos como fonte de Direito:

122
 Tipos: complementares (enquadram-se nos parâmetros fixados no ato
legislativo, têm que ser apropriados para fazer cumprir os atos
legislativos) ou de execução; independentes ou autónomos;
 Relação com a lei - fundamento legal dos primeiros; a habilitação legal
dos segundos (art. 112º, nº 8 da CRP);
 Hierarquia - valor infra-legal.

 O Código:
 Significado e alcance normativo (os ‘3 ss’).
 O movimento codificador - o movimento é associado ao Iluminismo e às
revoluções constitucionalistas liberais, que tentaram codificar
genericamente o Direito enquanto projeto normativo global para a
sociedade futura.

V.3 – Normas Corporativas


 NORMAS CORPORATIVAS:
 Fonte imediata (art. 1º, nº 1 CC).
 Definição (art. 1º, nº 2 CC) – referência histórica e atual. Há um contexto
histórico que explica o relevo quase paritário dado às normas
corporativas. A referência às normas corporativas não se caducou e
podemos continuar a aceitar a relevância das mesmas numa formulação
aberta ao reconhecimento da autonomia da sociedade civil enquanto
espaço e sujeito de criação normativa. Com o 25 de abril, existem normas
de caráter regulamentar criadas por entes autónomos com poder
regulamentar próprio que caberão numa interpretação atualista do artigo
1.º. Os organismos corporativos não existem, mas existem normas de
caráter regulamentar, criadas por entes autónomos com poder
regulamentar próprio que cabem neste artigo 1.º e se sujeitam a uma
interpretação atualista. Por exemplo, a Ordem dos Advogados ou
associações desportivas. Sendo possível retirar um sentido útil da norma,
não deve ser considerada caducada.
 Posição hierárquica (art. 1º, nº 3 CC; art. 2º, nº 2 CC). Por um lado, as
normas corporativas não podem contrariar disposições legais imperativas
(condicionadas a esse respeito, daí ser um regime quase paritário) e por
um lado na relação com os usos têm uma posição superior.

123
V.4 – Fontes de Direito que não estão no artigo 1.º/1 do CC
 Doutrina:
 Conjunto das orientações e opiniões dos jurisconsultos (da ‘opinião
de Bártolo’ à communis opinium doctorum) – a ciência do Direito. É
o conjunto de opiniões, de sistematizações elaboradas pelos
jurisconsultos. Foi mais tarde uma fonte secundarizada,
nomeadamente com a reforma pombalina que colocou a opinião dos
doutores num plano inferior. Hoje corresponde à ciência do direito e
ainda vai sendo o produto do labor intelectual desenvolvido nas
universidades.
 A ‘teoria clássica’ apontava-a como fonte mediata. É uma fonte iuris
cognoscendi. Tem um papel fundamental na elaboração de princípios
jurídicos e na definição de conceitos jurídicos – fonte iuris essendi.
 Antes de serem princípios jurídicos reconhecidos e positivados em
lei, foram estudados pela doutrina. Um exemplo é o princípio da
proporcionalidade, cuja elaboração foi realizada na dogmática
jurídica antes da sua consagração constitucional. Outro exemplo é o
da imparcialidade da função administrativa.
 Contribui para a própria evolução do sistema jurídico positivo. A
doutrina elabora teoricamente princípios que primeiro vão sendo
utilizados pelos tribunais como elementos de interpretação das
normas positivas e mais tarde são plasmadas em normas legais,
tornando-se em fontes imediatas de direito.

 Jurisprudência:
 Reconduz-se às decisões dos tribunais – não à criação de normas
jurídicas, mas à criação jurídica individual e concreta que resulta do
desempenho da função judicial (tribunais superiores). O relevo da
jurisprudência vai além dos precedentes judiciais obrigatórios.
 A inexistência de precedente obrigatório - não é fonte imediata de
normas jurídicas por não termos, em Portugal, um regime de
precedente, uma vez que as decisões dos juízes assentam apenas na
lei. Nenhum juiz está obrigado a seguir a regra que resulta de
uma decisão judicial anterior (mesmo que seja de um tribunal
superior) – art. 203º CRP. Há um princípio da independência dos
magistrados judiciais.

124
 Referência histórica aos Assentos – até 1995, tivemos um regime
jurídico de reconhecimento de precedente obrigatório de
determinadas decisões dos tribunais superiores (os assentos, que
fixavam ou criavam a regra). Esta realidade histórica foi acolhida
sucessivamente mesmo após a extinção da Casa da Suplicação e
mesmo após o século XX no qual se criou a estrutura judiciária que
ainda hoje conhecemos. Reconhecem-se agora competências
semelhantes ao STJ e ao STA. O problema com os assentos era
serem desconformes com a ideia de liberdade e independência
dos juízes (princípio da independência dos magistrados judiciais).
Para além disso, havia uma desconformidade com o princípio da
separação de poderes. Em 1993, são declarados desconforme com
a CRP portuguesa, com uma base positivista – violação do artigo
que à época era o 115.º e atualmente é o 112.º da CRP.
 Contudo, há:
- Decisões judiciais com força obrigatória geral, i.e. com caráter
normativo (segundo C. Queirós reconduzem-se à fonte lei): pelo
Tribunal Constitucional - a declaração de inconstitucionalidade e
ilegalidade na fiscalização sucessiva abstrata; a declaração de
inconstitucionalidade e ilegalidade em 3 casos na fiscalização
concreta. Pelo Supremo Tribunal Administrativo nos termos
regulados pelo CPTA – art. 76.º. Não há como negar que têm um
poder revogatório, o legislador não se pode afastar destas
decisões, logo têm uma natureza vinculativa. No entanto, a prof.
Mariana Costa defende que o seu poder extintivo da lei pode
não-lhes conceder uma natureza de fonte de direito;
- Acórdãos uniformizadores de jurisprudência e no interesse
da unidade do Direito pelo STJ (art. 732.º-A e 763.º e 788.º
CPC e art. 446.º e 447.º C^PPI) e pelo STA (arts. 148.º e 152.º

125
CPTA), em situações diversas, v.g. em que há contradição de
julgados (decisões contraditórias). Conferiu-se aos assentos o
valor de acórdãos uniformizadores de jurisprudência. Não têm
valor jurídico obrigatório, ainda que devam as decisões
divergentes fundamentar essa divergência e haja um recurso
obrigatório do MP de decisões que contrariem jurisprudência
fixada, no caso do processo penal. Um ‘efeito persuasivo’;
- Correntes jurisprudenciais uniformes (segundo O. Ascensão
reconduzem-se a costume) – a adesão à máxima da decisão. O
art. 8º, nº 3 do CC. Não são vinculativas nem têm relevo
normativo. Não têm o mesmo valor dos acordos
uniformizadores. Ascensão diz que são uma espécie de costume
jurisprudencial.

V.5 – Outras fontes de normas no sistema jurídico português


 Direito Internacional (receção automática):
- Costume e PGD - art. 8º, nº 1 CRP;
- Convenções internacionais - tratados e acordos – art. 8º, nº 2 CRP -
que vinculem internacionalmente o Estado português;
- Atos unilaterais de OI’s de que Portugal faça parte (art. 8º nº 3).

 Direito da União Europeia


- Os tratados, fontes de Direito da UE, integram-se no art. 8º nº 2
CRP. Nomeadamente, o tratado da UE, o tratado sobre o
funcionamento da EU.
- Atos unilaterais – art. 8º nº 3.
§ valor jurídico das fontes do Direito da UE – efeito direto
(diretamente aplicáveis, regulam em concreto várias
realidades) e primado (as normas da UE prevalecem sobre as
normas nacionais). A importância do art. 8º nº 4 em
conjugação com o art. 7º, nºs 5 e 6 CRP.

126
- Podem ser usadas pelos Estados mas sobretudo pelos cidadãos que
procuram proteger a sua esfera jurídica.
- O artigo 8.º n.º4 foi introduzido em 2004 por causa do Tratado
Constitucional/Constituição Europeia

• Praxes administrativas:
- A relevância conferida pelo art. 152º, nº 1, al, d) do CPA (Código
de Procedimento Administrativo) - o dever de fundamentação
das decisões contrárias à prática habitualmente seguida na
resolução de casos semelhantes, ou na interpretação e aplicação
dos mesmos princípios ou preceitos legais.
- Praxes administrativas são muito próximas do costume, são
orientações genéricas (com alcance normativo), muitas das vezes
resultados de decisões de órgãos superiores da administração
pública que são sucessivamente repetidas e respeitadas na tomada
de decisões administrativas. O artigo 152.º determina que se as
decisões se afastarem dessas práticas terão de ser fundamentadas.

• Usos:
- Relevância civil, comercial, laboral, etc.
- São fonte mediata de Direito no nosso CC.
- O uso só exige o corpus, o elemento material (prática geral e
reiterada).

• Convenções coletivas de trabalho:


- Origem convencional privada no âmbito do direito laboral.
- Resultam de acordos de natureza privada entre as associações
representativas das entidades patronais de certo setor e os
sindicatos, que acordam condições de trabalho como por exemplo
a jornada de trabalho.
- Mais relevante do que os usos, apenas não podem contrariar o
direito imperativo.
- Existem também convenções coletivas europeias, que resultam de
acordos entre as federações das associações patronais.

• Normas técnicas:
- Standards de conduta a cumprir com zelo e diligência não
consagradas numa outra fonte de direito.
- Fundamento de validade e vigência – costume ou lacuna a
preencher nos termos do 10º, nº 3 CC. Por exemplo, empresas que
apresentam uma série de selos de acordo com standards
internacionais que elas cumprem que aferem qualidade e
parâmetros.

127
- São normas fixadas por entidades técnicas especialistas naquela
matéria.
- Há a nível europeu organismos de estandardização técnica. Muitas
destas normas acabam por ser acolhidas em legislação. São muitas
vezes acolhidas em diretivas da UE ganhando alcance
normativo.

• Atos jurídicos que modificam o OJ sem estarem legitimados por


ele:
- Guerra e Revolução - na guerra há Direito? A força tem
alcance normativo e produz efeitos normativos? fontes de
Direito? Fundamento e legitimação? Valores e imperativos
sociais e políticos ou internacionais ‘novos’ que produzem não
uma simples inovação normativa, mas uma substituição do
ordenamento anteriormente vigente por um novo.
- Atos políticos em ‘estado de necessidade’ ou ‘legítima defesa’.

128
VI – CODIFICAÇÃO E TÉCNICAS LEGISLATIVAS
VI.1 – Codificação

 A codificação corresponde a uma técnica jurídica que pretende sair do


casuísmo para uma ordenação jurídica assente em leis, paralelas às
leis científicas. Estas normas legais, tal e qual como se sucede na
Ciência, devem ser articuladas e sistematizadas num compêndio
global, numa ordenação completa da sociedade. E é precisamente isso
que o Código pretende ser: uma lei que tem como objetivo normatizar
a sociedade em geral, assente em critérios lógicos.

 Associa-se, muitas das vezes, a situações que impliquem a existência de


um novo regime político, uma vez que a recusa do sistema anterior
implica a existência de uma nova codificação. Daí que possamos
admitir que é possível fazer uma reforma a partir do Código.

 Pela sua natureza, tem características que permitem uma aplicação do


Direito que, nas sociedades de hoje, é mais certa do que a utilização de
legislação avulsa. No entanto, é importante considerar que, dada a
rapidez da evolução na sociedade do presente, a codificação acaba por
se tornar obsoleta ou, pelo menos, insuficiente. É, por isso, necessário
um movimento de descodificação através de legislação avulsa,
alterando e atualizando, desta forma, o Código. A não coincidência do
Código com a legislação avulsa acarreta consigo uma incoerência que
apenas se apresenta como possível de resolver a partir de uma
recodificação. É nesta recodificação que o Código integra em si as
alterações que a legislação avulsa possa adicionar.

 Um outro fator importante de mencionar sobre o Código, é o facto de


existirem Códigos sobre vários domínios. Este assentar em Códigos
permite que toda a atualização seja mais acessível do que se o estudo
tivesse que assentar em legislação avulsa ou com base na
jurisprudência.

 O Código Civil, o Código Comercial e o Código Penal são os três


códigos clássicos.

129
 Objeto:
- Ramo de direito/setor social.

 Linhas estruturais:
- Unidade, sistematicidade, cientificidade (os 3 ‘s’ – sintético,
scientífico, sistemático).
- Uma ordenação unitária, sistematicamente articulada, mas também
científica (lógica, racional).
- Esta estruturação permanece até aos dias de hoje.

 Teleologia:
- Projeto de ordenação sociojurídica inovadora. A codificação era um
projeto de ordenação social para o futuro.

 Fatores:
- Político-ideológicos; técnico-práticos.
- Na base do projeto de codificação entendemos que historicamente
predominaram os fatores político-ideológicos (um movimento que se
estendeu a todos os Estados europeus de diferentes formas, na sua
base estiveram fatores político-ideológicos de ordenação de uma
sociedade nova – igualitária, liberal, das liberdades e liberal também
a nível económico).
- É também frequente que os fatores político-ideológicos se
mantenham relevantes em cada projeto de codificação, é frequente
em momentos mais revolucionários que se empreenda de seguida,
para obter estabilização, uma codificação ou recodificação do
Direito. Nos dias de hoje estes fatores são menos importantes.
- Os fatores técnico-práticos têm a ver com a codificação ser uma
técnica legislativa que garante a coerência e consistência do OJ,
havendo uma necessidade de perante o desenvolvimento normativo,
codificar esse domínio normativo, para superar uma regulação que
muitas vezes apresenta lacunas. Estes fatores mantêm-se hoje, mas
existem mais técnico-práticos.

 Vantagens e desvantagens:
- Lógica e coerência v. rigidez e incompletude.
- A codificação acaba por se traduzir numa rigidificação, tomando
muito tempo e cristalizando o Direito. Crítica apontada
130
principalmente nos UK que defendem uma matriz consuetudinária.
Reconduz-se também a adoção de legislação extravagante que se
traduz em descodificação e incompletude – o código já não consegue
responder plenamente às exigências da realidade. A rigidez acaba
por se traduzir em incompletude e desadequação.

 Forma:
- Lei - o Código é sempre uma lei.

 Divisão:
- Livro/título/capítulo. Nos nossos códigos a divisão tendencialmente
obedece a esta lógica – os grandes códigos dividem-se em livros
(nem todos), e todos dividem-se em títulos, em capítulos subsecções,
artigos.

VI.2 – Figuras afins

 Compilação:
- A diferença para com o Código reside no facto de a compilação
reunir a legislação em si, isto é, todas as normas vigentes na altura
em questão, assentando, por isso, no passado, não recusando a
ordenação passada com o objetivo de iniciar novo ordenamento, e
não com o objetivo de criar algo novo, contrariamente ao que
acontece com o Código, visto que este funciona como reforma do
próprio regime, anulando a legislação anterior, remetendo apenas
para o presente.
- Uma outra diferença corresponde ao facto de as compilações se
efetuarem pela doutrina, ao passo que o Código é feito pelo
legislador.
- Levada a cabo pela autoridade (como imperadores e reis) que
utilizando o apoio dos sábios da matéria, procurou articular as
diversas fontes que se reconheciam como fontes vigentes e articulá-
las colocando-as num instrumento, normalmente num livro, que
permitisse uma utilização para o futuro mais acessível e de leitura
mais fácil. Por exemplo, o CIC é uma compilação.
- São uma obra do presente para o futuro.

131
 Consolidação:
- A consolidação corresponde a uma técnica cada mais adotada
pelos legisladores, uma vez que existe cada vez mais legislação
avulsa que modifica os Códigos.
- De forma a evitar que seja criado um novo Código, dadas as
alterações efetuadas, é necessária a consolidação. Efetua-se, por
isso, uma publicação de uma lei com as novas normas que foram
introduzidas, sendo que o texto original se mantém, acrescentando-
se, apenas, a legislação posterior que induziu tais modificações.
- É importante notar que, mesmo que a norma original seja revogada
pela nova norma, o legislador não a modifica, sendo que para que a
consolidação se possa efetuar, é necessária a existência de três
alterações mínimas.
- Tem efetivamente alguma afinidade com o Código, uma vez que
vem reunir múltipla legislação sobre determinado domínio, mas
que se distingue do Código porque não é unitária para
determinado setor.
- É muitas vezes resultado da descodificação, da adoção de legislação
extravagante. É necessária a leis que não são códigos pois por força
de adoção de novas fontes/atos legislativos temos muitas das vezes
modificações de atos legislativos vigentes. Essas modificações
integrar-se-ão na legislação anterior. Se elas se multiplicam, torna-se
difícil para os cidadãos e para os próprios juristas conseguir fazer a
articulação de todas essas modificações, que têm que estar atentos
diariamente para as normas que podem alterar a disposição de uma
lei.
- Qualquer lei que tenha sido modificada 3 vezes será consolidada.

 Estatuto:
- O estatuto prevê competências, assim como múltiplas regras que
têm como objetivo a vinculação de todos aqueles que agem e que
trabalham em determinado domínio.

- É o caso da Ordem dos Advogados: existe um conjunto de regras
fundamentais que rege o exercício da advocacia, quer do exercício
direto, quer do exercício com os tribunais, até com a própria Ordem,
estabelecendo quem pode exercer, em que condições e de que
forma.

132
- Muitas das vezes são adotados sob a forma de lei orgânica. Têm a
ver com aquilo que é o estatuto constitucional de determinadas
entidades ou atividades, onde se encontra os princípios e normas
fundamentais que regulam o exercício dessa atividade ou o
funcionamento dessa entidade.

 Lei orgânica:
- A lei orgânica – enquanto ato fundamental ordenador de
determinado instituto ou ente, não em sentido de Direito
Constitucional e, por isso, de lei de valor reforçado – pretende ser o
normativo fundamental de determinado domínio, não tendo, no
entanto, o mesmo alcance do que o Código, uma vez que este último
envolve todos os ramos: Civil, Trabalho, Penal, etc. Admite-se que o
objetivo da lei orgânica não é tão ambicioso, mas que tende para
tal.
- Todos estes atos são feitos através de lei (não obrigatoriamente
formal, podendo também ser por Decreto-Lei) pretendendo sempre a
unificação, no entanto, nunca chega a ter o mesmo alcance do
Código, este é mais amplo, uma vez que abrange os vários setores
existentes, de forma individualizada.
- É uma lei prevista na CRP que em determinados domínios
fundamentais estabelece o regime de base e os princípios
fundamentais que depois serão desenvolvidos através de outros atos
legislativos. É aplicada em domínios que não são um ramo de Direito
mas q têm importância suficiente para merecer um enquadramento
como lei orgânica. Muitas das vezes são domínios relacionados com
o exercer de competências.

VI.3 – Técnicas legislativas

 Parte geral – Livro I do CC:


- Elementos jurídicos transversais aplicáveis às restantes partes:
PG, definições, etc.).
- Inclui os princípios fundamentais, regras transversais a todo o
domínio abrangido e um conjunto de proposições ou institutos
que são utilizados depois em toda a regulação que é feita nos
diversos âmbitos abrangidos pelo código. Isto permite que o

133
código seja sintético por não ser necessário especificar a
regulação a múltiplos propósitos.
- Uma das suas partes e, normalmente a primeira, dedica-se a
tratar, a regular e a incluir elementos normativos que são
transversais a todos os domínios abrangidos pelo Código,
correspondendo a uma das técnicas mais usadas que permite uma
apresentação mais sucinta, não sendo necessário repetir o que é
comum para todos, problema este que se associa à legislação
avulsa.
- Encontramos um conjunto de definições que valem em geral para
a aplicação de qualquer outro Código, como é o caso da
personalidade, da classificação das coisas, etc. O Código Civil
fornece isso e é aplicável para todos os restantes códigos, a menos
que estes últimos apresentem definição contraditória. Se nada
disser, assume- se que é o que o Código Civil diz que se aplica,
daí o seu papel importante.
 Proposições jurídicas não normativas:
- A norma é uma regra que estabelece uma orientação de conduta e
que se associa a uma determinada consequência jurídica, no entanto,
nem todas as disposições legislativas são normativas. Alguns dos
seus enunciados não têm, portanto, uma vocação normativa, mas o
legislador admite que há determinados conceitos que têm que ser
definidos na lei, classificados pela lei, qualificados pela lei, porque
são de tão forma essenciais para a revelação das normas jurídicas,
que não devem ser deixados àquilo que é um sentido comum ou
técnico que possa existir. O legislador inclui estas proposições
jurídicas não normativas, é a técnica que usa – ART. 202.º CC, por
exemplo, é uma definição.
- Definição: ex. 202º CC. Definições jurídicas.
- Classificação: ex. 203º CC. Classificações de realidades jurídicas.
- Qualificação: ex. 204º CC. Qualificações de factos à luz do Direito.

 Normas não autónomas:


- Sentido completo só se obtém com a articulação com outras.
- Correspondem a normas que por si não dão todo o alcance do regime
jurídico, do âmbito a que se aplicam. O sentido só se consegue retirar
em articulação com outras normas, como por exemplo:

134
 REMISSÃO:
 De um facto conhecido, supõe-se um desconhecido (?).
Assenta nas regras da experiência.
 Intra ou extra-sistemática (8º, nº 1 CRP): dentro ou fora
(CI’s por ex.) do sistema jurídico.
 Extensiva (939º CC): remissão genérica, para todo o
regime da compra e venda, por exemplo.
 À hipótese (art. 974º CC - 2034º CC) ou à estatuição (art.
678º CC, 594.º): uma norma que não define completamente
o seu âmbito de previsão, remetendo o sujeito para uma
outra norma que irá complementar.
 Subsidiariedade (os códigos de processo penal ou
administrativo – código de processo civil): no domínio
comercial, aplica-se o Código Comercial. Mas pode haver
legislação que não esteja nesse Código. Aplicar-se-á o
regime comum que se encontra no Código Civil – na
ausência de norma da legislação especial, aplica-se o
regime comum. Não deixa de ser uma forma de remissão, é
um regime em que num determinado domínio matérias que
não sejam reguladas por uma norma especial serão
reguladas pelo regime comum que está previsto numa outra
lei.
 “Normalmente quando acontece isto, é porque aconteceu
aquilo”
 FICÇÃO:
 Tem um objeto diferente da presunção, não incide sobre a
verificação, prova ou ocorrência de factos.
 Incide sobre a qualificação jurídica de determinado facto,
retira uma consequência jurídica. O que se extrai é uma
dada conclusão jurídica, equiparando a ocorrência de um
facto à ocorrência de um outro facto, para efeitos de se lhe
aplicar o mesmo regime jurídico.
 É uma espécie de remissão implícita, na medida em que em
vez de expressamente remeter para normas determinadas, o
legislador estabelece que o facto ou a situação a regular se
considera igual a um facto ou uma situação para a qual já
existe um regime consagrado na lei.

135
 É automática e nunca permite prova em contrário.
 Exemplo da aula prática: artigo 314.º, artigo 805.º/2/c).
 “Quando acontecer isto, a solução jurídica que se retira é
a mesma que se tivesse acontecido o facto ficcional”

 PRESUNÇÃO:
 De um facto conhecido, retira-se um facto desconhecido,
que segundo as regras da experiência vem associado aquilo
que se conhece;
 Regime: 350º (As presunções legais podem, todavia, ser
ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em
que a lei o proibir);
 Iuris tantum: admite prova em contrário, é uma presunção
relativa. A parte contrária que irá ser prejudicada pela
presunção lógica pode apresentar provas que eliminem
aquela presunção do juiz. Inverte o ónus da prova, ou seja,
quem beneficia da presunção não tem de provar o facto
presumido (têm de ser os outros a provar o contrário).
 Iuris et de iure: presunção absoluta. Não podem ser
afastadas por provas em tribunal, pois são de aplicação
automática (daí aproximarem-se da ficção). É uma técnica
de raciocínio que incide sobre factos e que pretende apurar
e tirar uma conclusão sobre a verificação ou não
verificação de um determinado facto, para o qual nós não
temos elementos de prova diretos (que diretamente
indiquem que aquele facto ocorreu ou pode ocorrer).
 Artigos (aulas práticas): artigo 243.º/3 (iuris et de iure),
artigo 370.º/1 (iuris tantum), artigo 441º.

 Abertura e flexibilidade do OJ:


- Técnicas legislativas que garantem a flexibilidade do Direito em
resposta a situações extremamente complexas, que não conseguem
ser determinadas pelo legislador de forma rígida.
- CONCEITOS DETERMINADOS (‘fruto’ – 212º CC; ‘fiador’ – art.
627º CC): são importantes para qualificar determinados factos.
Conceito de fruto: conceito jurídico, para o Direito é tudo aquilo
que é produzido por uma coisa sem detrimento da sua substância.

136
Fiador: conceito jurídico e determinado, por ex. alguém afiançar
alguma coisa.
- CONCEITOS INDETERMINADOS (‘boa fé’, ius aequm):
 Conceitos cujos elementos tipológicos não são definidos pelo
legislador, sobre situações com contornos diversos e que o
legislador por conveniência ou impossibilidade não é capaz de
determinar os seus contornos.
 A sua vantagem é garantirem a atualidade da ordem jurídica, a
flexibilidade e o acompanhamento das realidades sociais. A
sua desvantagem é uma menor segurança.
 Exemplos: o conceito de boa Fé, que tem lugar quando o seu
autor está convicto da legalidade, da correção, da honestidade
desse mesmo comportamento; está dependente de um conjunto
de inter-relações concretas; é necessário recorrer aos
princípios gerais para poder qualificar como de boa ou má fé o
comportamento do sujeito. Outro exemplo é o conceito de
ordem pública.
 Artigos (ex.): artigo 280.º/2.
- CONCEITOS GRADATIVOS (‘culpa grave’): Aquilo que é o
núcleo do seu conceito é um núcleo definido e determinado, mas
admitem graus de intensidade diversa. Culpa: a censura admite
graus diversos, do qual resultam culpas graves ou não tão graves;
não pode ser determinado pelo legislador porque está dependente da
sua contextualização de facto que é mais vasta. É um conceito
gradativo pois podemos ter culpa grave como podemos ter culpa
leve.
- REGULAMENTAÇÃO CASUÍSTICA (classificação taxativa e
exemplificativa) E CLÁUSULAS GERAIS (1421º, nº 2 CC): A
regulamentação casuística pode ser feita pela classificação de
determinados factos, sendo, por isso, considerada taxativa.
Apresenta-se de forma rígida, uma vez que só qualifica os factos das
categorias que delimita, o que significa que é incapaz de acolher na
sua previsão situações que não correspondem aos tipos que admite.
Fica, assim, sem qualificação, correspondendo a uma lacuna. Pode
ainda ser exemplificativa, isto é, pode apresentar uma cláusula
aberta que permite enunciar – mais do que as que já existem - outras
classificações; com maior flexibilidade.

137
VII – INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO JURÍDICAS
• Postulados:
 A teoria da interpretação jurídica desenvolveu-se não
necessariamente nos termos que vamos abordar, pois na verdade na
teoria clássica de interpretação começa por partir-se de um
pressuposto – a interpretação é uma tarefa que é importante, mas por
ventura será em determinadas situações e idealmente seria mesmo
dispensável. A Escola da Exegese assentava toda a sua elaboração
sobre o sentido do Direito no domínio da interpretação das normas
jurídicas (criadas pelo legislador, aplicadas pelo juiz e interpretadas
para intermediar estas duas fases). Se as normas jurídicas fossem
claras, a interpretação seria uma evidência e, portanto, toda uma
teorização complexa sobre esse processo seria dispensável.
 A polissemia dos enunciados linguísticos que torna a
interpretação uma necessidade: a tarefa da interpretação não é
simplesmente um processo lógico-dedutivo, é um processo em que
há necessariamente uma intervenção do julgador aplicador que é
mais do que uma tarefa mecânica, portanto, há um processo de
criação jurídica. O motivo é os enunciados linguísticos nunca terem
só um significado claro e a priori evidente. É necessário sempre um
trabalho de interpretação para alcançar a evidência. Há um aforismo
falso – In claris non fit interpretatio (quando a norma é clara não é
necessária a interpretação).
 O círculo hermenêutico que pressupõe a pré-compreensão do
referente para que remete o enunciado linguístico e dos
‘referentes fundamentais’ do Direito: quando nós interpretamos
qualquer enunciado linguístico, utilizamos vários instrumentos que
recolhemos da nossa experiência, da nossa formação, etc. Assim, de
modo mais consciente ou mais inconsciente, estes instrumentos são
absolutamente indispensáveis para alcançar o sentido da norma. O
círculo hermenêutico basicamente diz-nos que a interpretação da
norma não assenta apenas no intérprete e na norma. A interpretação
só se alcança com um “vai e vem” lógico-dialético. Os referentes
fundamentais do Direito passam por valores, princípios do próprio
ordenamento jurídico e do sistema em que esse OJ está integrado.
 Incindibilidade entre interpretação e aplicação (Oliveira
Ascensão é contra): o professor Oliveira Ascensão tem uma posição
mais ortodoxa nesta matéria, acredita que se pode separar a

138
interpretação da aplicação. A prof. Graça Enes defende que a
interpretação não é alheia às exigências da realidade e do objeto da
aplicação. De um ponto de vista estritamente lógico, é possível e
conveniente fazer essa separação (para que o trabalho de
compreensão da interpretação jurídica se possa fazer de um modo
mais científico) mas com o alerta de que é, na perspetiva da prof.,
muito difícil separar estas tarefas.
 Assim, a interpretação é um percurso dialético entre o texto e o
contexto de significação e entre o direito positivo e a juridicidade
transpositiva. O papel fundamental do pensamento jurídico. O
texto é o enunciado linguístico (objeto direto da interpretação) e o
contexto é o contexto onde ele se integra, um contexto de todo o
direito positivo (toda a ordem jurídica) e de toda a juridicidade
transpositiva (manifestada em múltiplos elementos da realidade
social, que o intérprete conhece e interioriza, utilizando mesmo que
de modo inconsciente).

• A HERMENÊUTICA (ciência da interpretação) JURÍDICA pretende


definir elementos, critérios, objetivos que concorram para uma tarefa
interpretativa adequada à melhor efetivação do Direito de acordo
com as necessidades da vida social.
• A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA é a tarefa do jurista destinada a
definir o sentido e o alcance normativo (função normativa) de um
enunciado linguístico que é considerado fonte de Direito. Savigny foi o
primeiro autor a contribuir para a teoria da interpretação jurídica,
embora entendesse a interpretação do costume e não de normas legais.

• CLASSIFICAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA:


1. Quanto aos Autores:
 Interpretação doutrinal (art. 9º CC): interpretação comum,
realizada pelos juristas e pelo pensamento jurídico. É para esta
que nós vamos estudar todos os elementos da teoria da
interpretação, uma vez que o legislador não está vinculado a essa
mesma teoria.
 Interpretação autêntica (art. 13º, nº 1 CC): realizada pelo
próprio autor da norma. O valor jurídico desta interpretação é o

139
perentório, ou seja, se o legislador, através de um ato
subsequente, vem indicar o sentido que pretendeu dar à norma X
que foi adotada num momento anterior, aquele
sentido/interpretação é imperativo. Não é possível aos restantes
agentes do Direito fazerem uma interpretação com um sentido
diverso daquele. Para garantir a certeza jurídica, o legislador
intervém indicando a interpretação que deve ser seguida,
passando a ser a que vale juridicamente (norma interpretativa).
2. Quanto aos Objetivos:
 Interpretação subjetivista (mens legislatoris) – não
subjetivismo (sentido do intérprete): o sentido a alcançar era a
pretensão do legislador. É possível distinguir o criador da
criatura, entendendo que a criatura (a norma) ganha vida própria
depois de criada pelo legislador e tem um sentido autónomo,
distinto da vontade do legislador, que deriva da sua integração no
OJ. O objetivo da interpretação é subjetivista, há uma prevalência
da vontade do legislador, pois tal corresponderia a garantir que a
manifestação mais elevada do poder soberano (o poder
legislativo) era respeitada. Prevalecia no positivismo clássico.
 Interpretação objetivista (mens legis): acaba por ser a mais
correspondente ao sentido de Direito da jurisprudência dos
conceitos. É quase consensual a escolha desta interpretação, que
tem como finalidade interpretar a norma objetivamente, mesmo
que não corresponda ao pensamento do legislador. Utiliza-se o
método jurídico de forma racional e neutra.

 Interpretação historicista: o intérprete deverá buscar o sentido


da norma que corresponde à vontade do legislador ou à vontade
da lei historicamente, ou seja, no momento em que foi criada a
norma. Tendencialmente é mais próxima dos autores
subjetivistas.
 Interpretação atualista: é muito difícil determinar qual seria a
vontade do legislador agora, uma vez que o legislador que criou a
norma está no passado.

• O nosso CC utiliza a expressão “pensamento legislativo”, que, sujeita


a interpretação, pode cair quer na interpretação subjetivista quer na

140
interpretação objetivista. Como tal, o nosso artigo 9.º não cristaliza
nenhuma das expressões, utilizando expressões neutras e flexíveis.

• ELEMENTOS DA INTERPRETAÇÃO:
1. Elemento gramatical (‘letra da lei’):
 É o ponto de partida;
 É-lhe dada muita relevância pelo nosso CC – 9º, nºs 1 e 2 CC.
 Função imediata negativa: é a primeira função e é impeditiva de
sentidos que não encontrem aí uma correspondência. Partindo da
expressão que tem um determinado sentido, podemos excluir um
conjunto de sentidos que não cabem naquele enunciado.
 Função positiva: valorização entre os possíveis sentidos
daquele(s) que maior correspondência literal apresente.
Polissemia do enunciado, abrangendo realidades diversas. É uma
função mais complexa, pois valoriza as interpretações que têm
mais correspondência à letra da lei.
2. Elementos lógicos – ratio legis:
 Elementos que ajudam a selecionar a interpretação certa.
Designam-se na gíria jurídica como ratio legis (espírito da lei),
embora seja necessário ter atenção a esta expressão, uma vez que
é frequente fazer-se referência à ratio legis no sentido do
elemento teleológico (finalidade da norma), no entanto, isto é
errado, uma vez que esse é um dos elementos que integra o
espírito da norma e não é o único.
 Elemento teleológico:
- A finalidade visada pela lei – a justificação social -
interesses, objetivos, valores a salvaguardar. É então
constituído pelo telos, ou seja, pelas finalidades que a norma
pretende alcançar e pelos interesses que ela arbitra e em que
sentido os arbitra;
- É o elemento ao qual o OJ atribui maior relevância,
atualmente;
- Nasce com a Jurisprudência Teleológica e dos Interesses
(Ihering). Foi o último elemento a entrar na teoria da
interpretação;
- Não está referido explicitamente no artigo 9.º do CC, porque a
maior inspiração do CC foi o BGB, que não foi influenciado

141
por correntes teleológicas. A interpretação do artigo 9.º
permite fazer uma integração atualista para conseguir
reconhecer o elemento teleológico.
 Elemento sistemático:
- Foi essencialmente trabalhado pela Pandectística, pela
Jurisprudência dos Conceitos. O relevo é lembrar ao intérprete
que ele tem que integrar aquela particular norma no sistema
jurídico, e articulá-la com todas as outras normas desse mesmo
sistema. Tem o objetivo de compreender qual é o lugar e
relação de uma norma com as outras normas, nomeadamente
as mais próximas.
- O contexto da lei: conexão/concatenação sistemática do
instituto;
- Lugares paralelos: analogia com outros institutos afins -
artigo 8º, nº 3 CC (refere a importância da uniformidade da
aplicação do direito). Institutos que mesmo sendo diversos
temos de perceber para entender diferenças e proximidades.
- A sua inserção no ordenamento, pressupondo a unidade e
coerência deste: artigo 9º, nº 1 CC, em especial a
subordinação aos princípios que a fundam.

 Elemento histórico:
- É o conjunto de suportes, realidades, acontecimentos,
manifestações, etc. que nos permitem compreender o próprio
momento da realização da norma jurídica.
- Precedentes normativos históricos e comparativos: elementos
na história que serviram de inspiração para a norma jurídica.
Permitem-nos ver se há uma continuidade ou uma rutura com os
precedentes normativos do passado;
- Trabalhos preparatórios: discussão importante para as correntes
de orientação subjetiva, uma vez que saber a vontade do
legislador é uma dificuldade. Estes trabalhos passam por
discussões, que resultam numa decisão quanto ao sentido que
prevaleceu.
- A occasio legis: todo o contexto social, jurídico, cultural, etc. em
que a norma foi criada. Que exigências a norma visou acautelar e
que interesses estavam em jogo à época que a norma arbitrou.

142
3. CLASSIFICAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA:
 Quanto aos Resultados (é sempre uma relação entre a letra e
o espírito da lei, que pode ser ou não positiva):
- A teoria da interpretação diz-nos que deve prevalecer o
espírito e não a letra.
- Interpretação declarativa: elege um dos sentidos que o
enunciado comporta e que corresponde ao ‘espírito’ da lei ou
do legislador. Coincidência plena entre a letra e o espírito. O
sentido que resulta da utilização dos elementos lógicos
coincide com algum dos sentidos da letra da lei. Idealmente,
seria sempre este o resultado da interpretação.
- Interpretação extensiva: estende o sentido da letra da lei
para que corresponda ao seu ‘espírito’. Os argumentos ad pari
(identidade de razão – argumentos idênticos para incluir a
norma) e a fortiori (maioria de razão – argumentos mais fortes
para incluir a norma). O intérprete estende a letra ao espírito,
havendo uma coincidência mínima entre a letra e o espírito
(não são realidades distintas). É uma interpretação
relativamente frequente nos nossos tribunais. Um exemplo
muito utilizado é o contrato de transporte comercial, que de
acordo com o Código Comercial abrange todas as atividades
que procedam à deslocação de pessoas ou bens de um local
para outro em troca de um preço, atividade esta
desempenhada profissionalmente. O transporte aéreo não
estava inicialmente previsto nesta norma, mas mais tarde o
sentido da lei foi estendido. É difícil colocar uma barreira
entre esta interpretação extensiva e a existência de uma
lacuna.
- Interpretação restritiva: restringe o sentido da letra da lei
para que corresponda ao seu ‘espírito’. Uma letra da lei mais
ampla do que o espírito não é tão frequente. Exclui-se da
letra da lei todos aqueles sentidos que ela tem que não
correspondam ao espírito da lei.
- Interpretação ab-rogante, revogatória ou corretiva: apenas
quando houver contradição insanável entre duas disposições,
portanto, entre duas normas vigentes. Em teoria, se o
intérprete conclui que a letra e o espírito se opõem, a

143
interpretação jurídica válida corresponderia ao espírito. É
necessário ter cautela, pois há um limiar muito ténue entre o
que é a função de interpretação e a função de criação
normativa. Portanto, podemos ter uma norma que não tem
sentido contrário à letra da lei, pode ser antes uma lacuna
oculta. O nosso CC não admite de todo este tipo de
interpretação, à luz do artigo 9.º/3. O julgador não pode fazer
prevalecer o espírito contra, em absoluto, a letra da lei.
- Interpretação enunciativa:
 Temos na mesma em contraposição a letra e o espírito da
lei, mas aquilo que o espírito da lei indica não encontra eco
direto/expresso na letra da lei, nos conceitos utilizados na
letra da lei. Só se encontrará lá de uma forma implícita, de
um modo indireto.
 O preceito normativo tem de deduzir-se com base em
inferências lógicas de uma outra regra porque não está
explicitado em qualquer enunciado.
 O exemplo mais fácil de compreender é o argumento a
contrario sensu (da norma excecional deduz-se um regime
comum oposto). Por exemplo, temos um regime comum e
um regime excecional. O legislador revoga o regime
comum e deixamos de ter positivado o regime comum, no
entanto, não revoga o regime excecional. Daqui, pudemos
inferir o regime comum a contrario sensu.
 Será isto uma lacuna da lei? É preciso cautela quando se
usa o argumento a contrario sensu.
 Outros argumentos: o argumento a maiori ad minus diz-
nos que se uma norma permite o mais, mesmo que não diga
nada, logicamente permite o menos. Por exemplo, se
alguém tem legitimidade conferida pela lei para alienar um
bem, logicamente, terá legitimidade para simplesmente
onerar, ou seja, se pode vender também pode hipotecar. Um
outro argumento é o a minori ad maius, que nos diz que se
a lei proíbe o menos, logo proíbe o mais. Por exemplo, se
está proibido de arrendar também esta proibido de vender.

144
 O Artigo 9º do Código Civil:
Artigo 9.º
(Interpretação da lei)

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em
conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é
aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de
correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube
exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 Objetivos:
- Afastamento da querela subjetivismo/objetivismo: não houve
tomada de decisão por parte do legislador na controvérsia entre a

doutrina subjetivista e a doutrina objetivista, uma vez que não
há referência nem à “vontade do legislador”, nem à “vontade da lei”,
apontando, sim, como objetivo da atividade interpretativa a
descoberta do pensamento legislativo;
- O ‘legislador razoável’ – a feição objetivista de um presuntivo
‘legislador ideal’: é apresentando um modelo de legislador ideal que
consagra as soluções mais acertadas e que se sabe exprimir por forma
correta. Este modelo reveste-se de características objetivistas, pois não
se toma para ponto de referência o legislador concreto, mas o
legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo. 

- Reconstituição do pensamento legislativo (‘espírito da lei) (nº 1): a
interpretação não deve cingir-se à letra da lei, deve reconstituir o
pensamento legislativo. O sentido da lei corresponde ao espírito da lei
e não à letra da lei. O pensamento legislativo corresponde então ao
espírito da lei.
- A feição atualista: sentido da norma atualista, que pretende alcançar
o sentido que a norma atualmente terá (n.º1). As condições específicas
do tempo em que é aplicada. No entanto, não se esquece o elemento
histórico.

 Elementos:
- Relevo da letra da lei: nº 1 – letra da lei como ponto partida (“A
interpretação não deve cingir-se à letra da lei...”) -, n. º2 – letra da
lei como limite (‘teoria da alusão’ – é necessário uma
correspondência mínima na letra da lei, porque se considera que o
legislador soube exprimir adequadamente o seu pensamento) –, n.º3 –

145
letra da lei como reforço (a letra é um fator de reforço, entre os
sentido possíveis no âmbito do pensamento legislativo/espírito
legislativo prevalecerá o que tiver maior correspondência com a letra
da lei).
- Elemento sistemático: “a unidade do sistema jurídico”. É uma
marca da orientação que prevalece no nosso CC – a organização que
em grande medida é ainda manifestação da Jurisprudência dos
Conceitos.
- Elemento histórico: “as circunstâncias em que a lei foi elaborada”.
Precedentes históricos ou precedentes comparatísticos, alcançados
através de interpretação, na medida em que não são explicitamente
referidos.
- Elemento teleológico: “as condições específicas do tempo em que é
aplicada”. Telos da lei ou do legislador não eram considerados com o
relevo que são nos dias de hoje, isto só aconteceu após o 25 de abril.
Referência fundamental às finalidades da lei. Numa interpretação
atualista, reconhecemos que este elemento é reconhecido
interpretando a primeira expressão exposta – as condições específicas
obviamente têm a ver com os efeitos na realidade presente, efeitos que
podem ser ligados ao elemento teleológico, embora não o serem
exatamente.

 A integração das lacunas:


 Se a questão tem relevância jurídica e exige que o direito decida sobre ela,
um juiz não pode fundamentar-se numa “não decisão”. Se o intérprete não
consegue integrar uma determinada situação no regime jurídico, podemos
estar perante uma falha do OJ, ou seja, uma lacuna de regulação. Não
havendo nenhuma norma passível de ser utilizada, temos de encontrar no
OJ uma via que permita preencher essa lacuna.

 Analogia (art. 10º, nº 1 CC):


- A primeira via que integra para a integração de lacunas é a analogia –
a utilização de um caso análogo, portanto, de uma outra norma que à
luz da semelhança dos interesses em presença possa ser aplicada
analogicamente. A analogia não é dos factos, é sempre de direito – é
sempre axiológica.
- Limites: a analogia tem limites, sendo que não podem aplicar-se
analogicamente as normas do regime jurídico excecional (artigo 11.º
CC), ou seja as normas excecionais (o regime excecional é

146
especificamente vocacionado para regular uma situação nos seus
contornos concretos). Está também excluída no Direito Penal, sendo
que a generalidade dos penalistas portugueses admite interpretação
extensiva, mas nunca a analogia.
- A enumeração completa (art, 1306º, nº 1 CC): regulamentação
casuística com enumeração completa.
- Determinação do ‘caso análogo’ (art. 10º, nº 2 CC): a semelhança
dos interesses em presença (analogia axiológica e não lógica).

 A elaboração de uma norma ad hoc (art. 10º, nº 3 CC):


- Criação de uma norma para o caso concreto. É uma norma (não
enquanto fonte de Direito, pois só vale no caso concreto) e não uma
solução casuística porque se impõe ao juiz que se abstraia das
circunstâncias de facto e aja como se fosse o legislador, elaborando
uma norma geral e abstrata para aplicar à situação concreta. A norma é
interpretada, é feito o enquadramento dos factos e tira-se a respetiva
consequência jurídica.
- A exclusão da equidade e da discricionariedade e a imposição da
formulação de uma ‘regra geral e abstrata’ para o ‘tipo’ omisso.
- Opção excluída também no âmbito do Direito Penal.

147
VIII – CONCURSO E CONFLITOS DE NORMAS E FONTES
1. Concursos
 Um concurso de normas é uma realidade que se verifica quando em
determinadas situações podemos convocar em abstrato diversas normas ou
diversas fontes para regular uma certa situação. Isto coloca-nos perante uma
dificuldade, que pode resultar do facto desses regimes serem diferenciados ou
contraditórios e não poderem ser convocados em simultâneo, sendo
necessário ter critérios de escolha.

1. CONCURSO NO ESPAÇO
- Positivo: duas ou mais normas de diferentes sistemas jurídicos são
aplicáveis. É o mais frequente.
- Negativo: nenhuma norma de qualquer sistema jurídico é aplicável.
Nenhum ordenamento se julga competente.
- No Direito Internacional Privado: temos uma situação jurídica privada
que pode ter conexão com mais do que um ordenamento jurídico,
podendo, por isso, e, em abstrato, convocar ambos, sendo que qualquer
um deles pode ser convocado a regular a situação em causa. Tal serve
tanto em conflito positivo como em positivo negativo. A ideia fulcral
passa pelo facto da norma aplicável em questão ser considerada uma
norma subsidiária, sendo este o sistema do foro aplicado por qualquer
tribunal. 


2. CONCURSO NO TEMPO:
- Leis sucessivas, que em virtude do alcance das situações que abrangem
acabam por tocar ambas na mesma situação, só que em momentos
distintos.
- É entre duas normas que têm uma vigência temporal sucessiva - a
aplicação da lei no tempo (infra).
- Corresponde a uma situação jurídica que, por si própria, se prolonga no
tempo, quer na constituição, quer nos efeitos que produz e no seu
conteúdo, podendo ultrapassar inúmeras normas sucessivas. A sua
resolução passa por definir a parte em que a segunda norma deve ser
aplicada e em que medida a lei nova vem modificar os direitos e
obrigações a partir da sua entrada em vigor. 


3. CONCURSO NO MESMO TEMPO E ESPAÇO:


- Conflitos de normas (infra).

148
 CONCURSO APARENTE:
- Preenchem-se várias previsões, mas só uma é aplicável ao caso. Não são
verdadeiramente situações de concursos de normas, porque aparentam,
mas na verdade nós só temos uma norma competente, isso fruto do que são
princípios de articulação das normas. Na verdade, não são então um
concurso porque temos um princípio ordenador no OJ que dita que relação
existe entre normas comuns/gerais e normas especiais (as normas especiais
prevalecem sobre as normas comuns ou gerais).
- Relação de Especialidade:
 Concorrem com as normas comuns, ditando que o concurso não é um
concurso que tenha uma solução à luz de um princípio geral de
ordenamento jurídico. A situação especial tem alguma especificidade
devido a um regime diferente. Se não for complementar – cumulativa
ou integrativa -, a norma geral não revoga (derroga) a norma especial –
especialidade cumulativa: norma especial que se aplica em simultâneo
com a norma geral;
 Se não for complementar (cumulativa ou integrativa), a norma
geral não revoga (derroga) a norma especial – art. 7º nº 3 CC. O
artigo tem a ver com a revogação, o concurso no mesmo tempo e no
espaço está regulado neste artigo. A norma nova revoga a norma
anterior, no entanto, nas normas especiais não se aplica este princípio;
 Determinação da intenção inequívoca do legislador: quando
podemos nós concluir que o legislador quis afastar a especialidade e
quis impor um regime comum? A não ser que o diga expressamente, é
necessário que os vários elementos da interpretação revelem
indubitavelmente que o legislador visou uniformizar os regimes
jurídicos. É necessário usar elementos como a letra da lei, o elemento
sistemático, etc. Tendencialmente considera-se que se houver uma
codificação total, podemos por ventura concluir que a intenção do
legislador seria eliminar os múltiplos regimes especiais, de modo a
unificar o regime para o integrar num todo sistemático unitário.
- Relação de Consunção:
 O interesse tutelado por uma norma absorve o tutelado por outra. O
âmbito de previsão de duas normas é idêntico e, portanto, elas em
abstrato podem abranger a mesma situação, só que na verdade não há
concurso, porque uma das normas consome a outra.
 A relação entre o 437º nº 2 e o 437º nº 1 CC: relativo à alteração
fundamental das circunstâncias e o seu efeito em sede contratual.
Acontece essa absorção no que acontece com o n. º2 em relação ao n.

149
º1, absorvendo-o e anulando-o. Temos, por isso, um concurso que não
se traduz numa aplicação alternativa, mas que impede a aplicação do
Nº1, que seria aplicável em princípio.
 No Direito Penal, entre aquilo que são factos semelhantes, mas que
produzem factos diversos, só se aplica uma que consiga absorver a
previsão da outra.
- Relação de Subsidiariedade:
 Temos ramos de Direito e normas que são subsidiárias, portanto, que
se aplicam em segundo grau na falta de regime específico previsto
naquele que é o regime principal ou especial aplicado.
 Casos em que as normas são aplicáveis quando não há regime
aplicável, existindo uma sobreposição parcial entre as normas e, em
caso de incompatibilidade, uma cede perante a outra.
 Há uma sobreposição parcial entre as normas e em caso de
incompatibilidade uma cede perante outra. Por exemplo, o regime do
enriquecimento sem causa em face da responsabilidade no CC –
instituto subsidiário face ao regime da responsabilidade. Por exemplo,
uma pessoa que recebe uma transferência bancária por engano.

 CONCURSO REAL:
- As duas normas são aplicáveis. Há um concurso verdadeiro. Elas não
podem aplicar-se as duas, por terem um regime que não é coerente entre
si. Temos que ter critérios que determinarão qual norma se aplicará.
- Cumulativo: aplicam-se as duas normas.
- Alternativo: aplica-se apenas uma delas. Conflito de normas quando
temos de ter critérios de determinação de qual a norma aplicável, sendo
que só se pode aplicar uma.

 CONCURSO IDEAL:
- Um só facto ativa várias normas, o facto tem efeitos diversos.
- Por exemplo, uma explosão que mata uma pessoa, fere outra e destrói um
automóvel. Podemos ter a convocação da norma que regula o homicídio,
mas simultaneamente também de ofensas corporais (alguém pode ter
ficado apenas ferido) e também uma norma que regula um crime de dano.

2. A aplicação de leis no tempo:


 Um concurso de normas é uma realidade que se verifica quando em
determinadas situações podemos convocar em abstrato diversas normas ou
diversas fontes. Não se trata de um autêntico conflito de normas, mas antes a

150
convocação dos mesmos factos por normas vigentes em momentos
sucessivos.
 PRINCÍPIO GERAL - não retroatividade: não incidência normativa no
momento anterior à sua vigência. As normas não se aplicam a factos que
ocorreram antes do início da sua vigência. Encontramos isto no artigo 12º n.
º1 (a lei só dispõe para o futuro). Este princípio vale sempre se nada for dito
pelo legislador em contrário, não sendo um princípio absoluto (12.º n. º2).
 As razões para o princípio da retroatividade se ter afirmado como um
princípio fundamental são a certeza jurídica e a confiança legítima (como
limite à faculdade de estabelecer regras retroativas).
 Os fundamentos invocados para a afirmação deste princípio são os
direitos adquiridos (a LN deve respeitar os direitos adquiridos, sob pena de
retroatividade) e a doutrina do facto passado (a LN não se aplica, sob pena
de retroatividade, a factos passados e aos seus efeitos. Só se aplicaria a factos
futuros).

 A CRP e a retroatividade:
- Proibição nas leis restritivas de DLG (art. 18º, nº 3);
- Proibição de retroatividade incriminadora ou sancionatória em
matéria penal (art. 29º, nº 1);
- Imposição da retroatividade in mitius (nº 4): aplicação retroativa das
normas incriminadoras que forem mais favoráveis ao agente;
- Proibição de retroatividade dos impostos (art. 103º, nº 3).

 DIREITO TRANSITÓRIO:
- Instrumento que o legislador tem para regular esta matéria. São normas
que, incluídas na nova legislação, vêm estabelecer um regime específico
vocacionado para situações jurídicas constituídas no passado,
afastando o princípio geral da não-retroatividade. Disposições destinadas a
regular os efeitos de situações jurídicas conexionados e com normas
sucessivas.
- Formal: de natureza remissiva, determina se é aplicável a lei antiga ou a
lei nova. Remissão para a norma antiga ou para a norma nova.
- Material: estabelece um regime jurídico específico para essas situações.
Estabelece ele próprio um regime diferenciado.

 GRAUS DE RETROATIVIDADE:
- Máximo: uma nova norma se aplica a todos os factos passados, aplicação
a todos os factos, aqueles objetos de uma decisão transitada em julgado,
ou em relação aos quais se tivesse verificado prescrição ou caducidade;

151
- Médio: aplicação a todos os efeitos jurídicos de factos passado com
exceção dos referidos acima (transitadas em julgado e prescritas ou
caducadas);
- Mínimo ou ordinário: a do art. 12º CC – incide sobre os factos passados,
mas ressalva os efeitos jurídicos já produzidos pelos factos passados,
incidindo apenas sobre os efeitos que venham ainda a decorrer. No
entanto, é necessário ter atenção, na medida em que neste artigo temos
uma presunção que pode ser expressamente afastada. Portanto, pode vir a
estabelecer o grau médio de retroatividade.

 Retroatividade inautêntica (retroconexão ou retrospetividade):


- Ver Ac. TC 287/90, de 30/10 e Ac. TC 85/2010, de 3/3 (os factos de
constituição sucessiva e os factos pressupostos na aplicação da lei).
- Aparentemente é retroatividade, mas realmente não é.
- Retroconexão: quando a lei nova, entre os seus pressupostos de
aplicação, convoca factos passados. Isto é trazer factos passados para o
presente.
- Retrospetividade: assunto polémico entre a doutrina.

 Art. 12º CC:


- Distingue entre factos e seus efeitos (nº 1) e conteúdo de situações
jurídicas abstraindo da origem (nº 2).
- De acordo com o princípio geral, a lei nova aplica-se apenas aos factos e
efeitos verificados após a sua vigência (nº 1); aplica-se também ao
conteúdo das situações jurídicas constituídas sob a lei antiga, mas que
perduram sob a vigência da lei nova (nº 2).
- Exemplo apresentado pela professora: regimes de bens aplicados a
cônjuges face ao casamento (ex. comunhão geral de bens).

 AS LEIS INTERPRETATIVAS (ART. 13º CC):


- O artigo 13.º determina que a lei interpretativa se integra na lei
interpretada.
- São retroativas de acordo com Oliveira Ascensão, mas para Baptista
Machado não são. O que é certo é que os efeitos da lei interpretativa
valem desde a entrada em vigor da lei interpretada, mas com ressalvas (ex.
caso transitado em julgado, prescrição, caducidade, decisões,
cumprimento da obrigação, etc.).
- Leis sobre prazos (ART. 279.º/297.º CC): regras sobre as contagens dos
prazos.

152
- Estatuto das Pessoas e Coisas: a lei do momento da instituição desse
estatuto e seus efeitos permanecem sempre para além da vigência dessa
lei, mesmo que haja uma lei nova que venha modificar as condições de
obtenção desse estatuto.
- Estatuto do Contrato: há quem defenda que nos contratos deveríamos
reconhecer a sobrevivência da lei antiga, que pode produzir efeitos sobre
as condições de exercício do contrato. Entre os jusprivatistas, há quem
defenda que não deva ser assim.

 Doutrina tradicional - aplicação no tempo em casos especiais:


- Direito Processual – a regra é a de que a lei nova é de aplicação
imediata;
- Leis sobre prazos – artigo 297.º;
- Estatuto pessoal – princípio da aplicação imediata da lei nova;
- Estatuto real – a regra é a da aplicação da lei do momento da
aquisição do direito real;
- Estatuto do contrato – em princípio regulado pela lei vigente ao
tempo da conclusão do contrato;
- Estatuto sucessório – no que respeita à sucessão voluntária, aplicação
da lei vigente ao tempo da abertura da sucessão, exceto no que respeita
à validade do testamento, em que será aplicável a lei do tempo da sua
elaboração.

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