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Sebenta de Introdução ao Direito - 2019/2020

Elaborada por Lara Reis e Marco Moreira

Nota introdutória: Sebenta elaborada com base em apontamentos de aula e


complementada com informações de autores que constam na bibliografia
recomendada da unidade curricular, nomeadamente “Introdução ao Direito e ao
Discurso Legitimador”, do Dr. Batista Machado, “O Direito - Introdução e Teoria
Geral”, do Dr. Oliveira Ascensão, “Manual de Introdução ao Direito”, do Dr. Freitas
do Amaral, entre outros.
Estrutura-se de acordo com o programa disponível no Sigarra. No entanto, a
consulta da sebenta não invalida a leitura e consulta dos manuais.

Refere-se ainda o facto de que o 2º Semestre do ano letivo em questão foi


desenvolvido em tempo da pandemia COVID-19, pelo que, seguindo as orientações
da UP, a professora regente da UC não abordou completamente todo o programa
delineado, focando-se apenas nos pontos mais essenciais. Daí que este documento
possa não conter algum ponto abordado em anos posteriores.

Bom estudo!

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PROGRAMA (disponível no Sigarra):

I. Noção e Sentido do Direito


1 - O Ser Humano, a sociedade e o Direito
2 – O Direito como ordem normativa e como sistema institucional: confronto com
outras ordens normativas
3 - Direito em sentido objetivo e direito(s) em sentido subjetivo
4 - O Direito, a autoridade e o poder: a problemática da coação
5 - A relação entre Direito, Justiça e segurança
6 - O problema do Direito Natural

II. Os ramos do Direito


7 - A summa divisio estrutural - Direito Público e Direito Privado
8 - Principais ramos do Direito

III. A norma jurídica


9 - O conceito de norma jurídica: elementos definidores e estrutura da norma
10 – O facto jurídico, o ato jurídico, a situação jurídica e a relação jurídica
11 - Classificação das normas jurídicas

IV. A criação normativa estadual


12 - Técnicas legislativas principais
13 - A codificação
14 – Sistematicidade do ordenamento jurídico

V. Fontes de Direito e Vigência das normas


15 – Modalidades das fontes de Direito
16 - Vigência das normas jurídicas
17 – Hierarquia e conflitos de normas

VI. A efetivação do Direito. O método jurídico


18 – Interpretação da lei: fins, elementos e resultados
19 – Integração de lacunas

VII. Aplicação da lei no tempo


20 - Identificação do problema
21 - A solução através do direito transitório
22 -O princípio da não retroatividade e a sua expressão no ordenamento português

VIII. A tutela do Direito e dos direitos


23 - Meios de tutela jurídica
24 - Modalidades de tutela quanto aos fins
I. Noção e sentido de Direito

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Bibliografia do ponto 1:
- Oliveira Ascensão – páginas 13 a 50; 56 a 64; 80 a 89; 96 a 103; 193 a 223
- Batista Machado – 31 a 49; 55 a 59
- Freitas do Amaral – 165 a 211
- Objeção de consciência – artigos disponíveis no Sigarra

O Ser Humano, a sociedade e o Direito


O que é o Direito?
Na opinião de Oliveira Ascensão, o Direito, enquanto objeto de estudo, é difícil
de estudar pelo seu caráter abstrato, na medida em que não pode ser atingido
apenas através da experiência e os pontos de apoio escasseiam. No entanto,
existem dois pontos de partida seguros:

1. É um fenómeno humano, ou seja, não é um fenómeno da Natureza. É


criado por humanos para humanos, sendo que o destinatário é sempre o ser
humano. Coisas e animais podem ser contemplados pelo Direito, como
objetos, mas o Direito não estabelece para eles regras de conduta. O que há
são regras sobre condutas humanas referentes a eles (ex: direitos dos
animais).
2. É um fenómeno social, destinado ao Homem relacionado com a sociedade,
pois a sociabilidade é uma determinante da natureza humana, o que justifica
dizer que o homem é um animal social (“viver é necessariamente conviver” –
Oliveira Ascensão). Não se dirige a ele isolado, mas sim às relações entre
seres humanos no contexto de sociedade. Oliveira Ascensão diz: “há uma
ligação necessária e constante entre Direito e sociedade”. Daí as seguintes
expressões:
● “Obi homo ibi societas” – Onde existe o Homem, existe sociedade (o ser
humano não vive fora da sociedade).
● “Obi societas ibi ius” – Onde existe sociedade, existe Direito (a sociedade não
existe sem o Direito, sem as normas, pois o Direito é uma necessidade do ser
humano).
● “Obi ius ibi societas” – Onde existe Direito, existe sociedade.

Visto que o Direito só se verifica em contexto de sociedade, o fenómeno


social surge como condicionante do fenómeno jurídico. No entanto, Oliveira
Ascensão afirma que muito mais há do que apenas esta ligação, que faria
com que o fenómeno social fosse unicamente pressuposto do fenómeno
jurídico.
Toda a sociedade necessita de uma ordem. Segundo Oliveira Ascensão, a
ordem é “uma realidade não material, mas nem por isso é menos um dado objetivo”.
Isto porque a sociedade não constitui apenas uma soma de indivíduos, uma vez que
há ligações espirituais entre eles que lhes são essenciais.

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Há 2 conjuntos de regras que organizam a vida em sociedade:

● Ordem Natural – ordem de necessidade, ou seja, “tem de existir tal qual, as


suas leis não são alteráveis” (Oliveira Ascensão). Rege os fenómenos da
Natureza e as suas regras são invioláveis.
Exemplo: Quando apareceu o Heliocentrismo viu-se que a teoria geocêntrica
estava errada e desapareceu.
● Ordem Social – apesar de ter origem na ordem natural, é uma ordem de
liberdade que pressupõe a vontade do Homem. É o Homem que cria as
normas e depois decide se as cumpre ou não. Por isso, são regras violáveis
e alteráveis, mas isso não lhes tira validade. Oliveira Ascensão diz: “propõe-
se à vontade do homem, e pode justificar-se pela sua racionalidade, mas não
se impõe cegamente”. O ser humano é, por isso, livre de se rebelar contra ela
e de a alterar. Uma especificidade desta ordem é o facto de o ser humano ser
o único capaz de comunicar às gerações futuras o saber adquirido.
Exemplo: O facto de muitas pessoas não atravessarem a rua na passadeira
não faz com que a norma que impõe atravessar a rua na passadeira
desapareça.

A Ordem Social divide-se, por sua vez, em duas componentes:

● Componente fáctica – Há em toda a sociedade elementos fácticos que,


apesar de contribuírem para a ordem social, não têm caráter normativo. É
composta por elementos de facto que visam descrever a conduta humana/os
factos, mas não orientá-la.
Ex: a segregação das pessoas idosas – é um facto, mas não é de todo
considerado lei.

No entanto, a ordem social não se esgota apenas nesta componente,


surgindo, assim, a componente normativa.
● Componente normativa – composta por regras de conduta, regras essas
que pertencem ao “dever ser”, tendo, por isso, a função de orientar a vida em
sociedade. Como diz Oliveira Ascensão, “não se cifra numa mera descrição,
antes se dirige a orientar a conduta humana”. São, por isso, regras violáveis,
mas essa violabilidade não afeta a sua validade. O Homem pode adequar ou
não a ela a sua conduta.
O Direito corresponde, portanto, a um fenómeno humano e social inserido na
ordem social de componente normativa.

A importância das instituições


Segundo Oliveira Ascensão, “a ordem, conformadora da posição relativa
dos membros, é constituinte de todas as sociedades. Mas o que representa o
elemento essencial de toda a sociedade, e constitui o fundamento profundo da

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ordem existente, são as instituições que lhe são próprias”. Isto porque uma
sociedade não pode ser vista como uma mera justaposição de pessoas. O que
caracteriza e distingue cada sociedade são as ligações estabelecidas entre os seus
membros.
Isto justifica-se pelo facto de o Homem não possuir um instinto e serem-lhe
apresentadas múltiplas opções no que diz respeito à sua ação, o que dificulta o
estabelecimento de relações entre nós. Por isso, o ser humano precisa de padrões
de conduta socialmente sancionados que cada cultura destaca da multiplicidade
possível de modos de conduta humana, elevando-os a padrões vinculantes para
todos os membros do grupo.
É neste contexto que nascem as instituições. São realidades objetivas e
supra-individuais, pois perduram no tempo, independentemente de mudarem as
pessoas, mas não têm existência própria, ou seja, “vivem enquanto essas
significações objetivas encarnam nos indivíduos que são a matéria da sociedade e
através da sua adesão as mantêm em vida” (Oliveira Ascensão).

● Variam de povo para povo e surgem nos fatores mais estratégicos da vida
em sociedade;
● São criações sociais e culturais, mas tendem para a juridificação, ou seja, a
serem absorvidas pelas normas jurídicas.

Esta tendência para a juridificação pode levar-nos a pensar erradamente que


todas as criações sociais e culturais se tornam normas jurídicas. O Direito resultaria
de um encadeamento de factos, regulados por uma relação causa-efeito, em que as
relações sociais seriam a causa das relações jurídicas e a ciência do Direito limitar-
se-ia a apurar a expressão desta resultante.
Este é o entendimento dos empiristas, século XX (a ver de seguida), e dos realistas,
século XXI (vai ser visto mais à frente).
Reflete-se na…

Teoria da Força Normativa dos Factos (empiristas) – todo o Direito resulta de


padrões sociais fácticos de conduta que se identificam pela vivência na sociedade,
ou seja, que estudar Direito é estudar os factos sociais. Deste modo, quando um
novo facto social surge ou adquire nova importância, surgirá na consciência social
um novo valor ou uma nova ordenação de valores, o que vai originar consequências
no sistema das normas.
Mas então, uma conduta que de facto se generaliza entre a maioria dos
membros da sociedade torna-se, por isso, norma (moral ou jurídica)?
Segundo Batista Machado, a eficácia dos factos na constituição e
modificação de normas é indiscutível. Temos exemplos na História de que uma
conduta aceite universalmente por grande parte dos membros de uma sociedade
acaba por se impor como norma válida.

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No entanto, o que efetivamente se verifica é que uma conduta social que se
afasta de uma norma vigente só adquire caráter normativo quando se generaliza a
convicção de que é justa e correta, ou seja, quando se afirma como legítima e
vinculante.
Batista Machado ainda acrescenta que “muitas vezes acontece que a
conduta de facto mais frequente diverge da conduta normativamente imposta como
desejável e correta sem que por isso a norma seja destruída por revogação”.
Exemplo: o facto de muita gente violar a norma que proíbe o aborto não quer
dizer que essa norma seja substituída por outra.
Posto isto, Batista Machado aponta 3 reservas a esta teoria:
1. “Uma conduta de facto generalizada só conduz a uma modificação normativa
quando é acompanhada da convicção da correção e validade da máxima que
preside a essa conduta”.
2. Não é função do Direito limitar-se a assumir como seu o conteúdo de condutas
socialmente praticadas. O Direito pertence à ordem do “dever ser” e tem uma
dimensão orientadora da conduta social.

3. “Uma conduta de facto observada pela generalidade dos membros de uma


sociedade só institui uma nova norma quando seja compatível com o sistema
valorativo global (com o universo cultural) dessa sociedade ou, então, quando
provoque uma modificação nesse sistema valorativo global”. Se a conduta conflituar
com esse universo valorativo, não pode ser tornada norma jurídica.

As correntes do realismo jurídico

Século XXI → Corrente do realismo jurídico, que veio fortalecer o empirismo


passado. Tem essencialmente 2 vertentes:

● Realismo jurídico escandinavo (não é aprofundado);


● Realismo jurídico norte-americano

A lógica do realismo jurídico norte-americano é que todo o Direito é facto.


Não é facto social (como diziam os empiristas), mas sim decisão judicial, no
sentido em que o Direito apenas existe quando aplicado ao caso. Numa maneira
mais simples, estudar Direito é estudar o que o juiz decidiu e o que irá decidir sobre
uma matéria em que ainda não se pronunciou, ou seja, prever a forma como o juiz
irá decidir, com base em decisões passadas. As normas só existem quando
aplicadas e rege-se pela regra do precedente (Batista Machado – “a regra é pois
um facto, precedendo outro facto futuro”), ou seja, a jurisprudência é a principal
fonte de Direito.

Nota:

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● Encontramo-nos perante uma crescente aceitação desta corrente.
● O sistema jurídico português é romano-germânico (influência do Direito
romano e alemão).
● Em Portugal, a principal fonte de Direito é a lei, logo a regra do precedente
não se aplica.

Críticas ao realismo jurídico norte-americano:

1. Crítica principal (e que engloba todas as restantes) – Conceber a regra


como uma previsão do juiz deixa por explicar justamente o essencial: qual é o
critério que está por detrás das decisões do tribunal e que impele o juiz a
decidir de uma dada forma? Oliveira Ascensão diz: “seria contraditório
pretender que ele (o juiz) se baseie numa previsão do que ele próprio vai
decidir”.
2. Contribui para o aumento da insegurança jurídica.
3. Se negarmos a existência de normas jurídicas anteriores à decisão do juiz,
então as decisões judiciais serão necessariamente arbitrárias e baseadas em
convicções pessoais.
4. Se negarmos a existência de normas jurídicas anteriores à decisão do juiz,
onde é que se fundamenta a autoridade de decisão do tribunal?
5. Se a decisão do juiz é o único Direito reconhecido, o que é que justifica os
recursos em tribunal?

Quais são os conjuntos de normas que regulam a vida do Homem


em sociedade?
Nota introdutória: Normas correspondem a uma perspetiva de “dever ser” e, por
isso, inserem-se dentro da Ordem Social.

- Ordem moral – corresponde a uma “ordem de condutas, que visa o


aperfeiçoamento da pessoa, dirigindo-a para o Bem” (Oliveira Ascensão). À
semelhança das normas religiosas, as normas morais são também intraindividuais,
em grande medida porque se dirigem ao aperfeiçoamento da consciência de cada
Homem. No entanto, qualquer que seja a fonte da norma moral, esta acaba sempre
por se repercutir sobre a ordem social. Isto porque as regras morais têm um grande
impacto no comportamento social dos indivíduos, uma vez que esse
aperfeiçoamento concretiza-se na participação social de cada pessoa (apesar de a
norma se dirigir ao aperfeiçoamento individual, ela fá-lo estabelecendo normas de
conduta). Por isso se justifica o facto de existir uma moral coletiva/dominante na
cultura em que cada indivíduo se insere, o que torna falso dizer que a moral é
individual e subjetiva.
- Ordem religiosa – nas palavras de Oliveira Ascensão, “é uma ordem normativa
que assenta num sentido de transcendência” e ordena as condutas entre os crentes,
tendo em vista a sua posição perante Deus. É, em parte, intraindividual, pois, no seu

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íntimo, assenta na relação do crente perante Deus, mas repercute-se também na
ordem social, ordenando condutas exteriores de membros da sociedade. As normas
religiosas apresentam uma dimensão instrumental, porque se destinam a tornar
possível o que não pertence ao mundo terreno.
- Ordem de trato social – são as normas de etiqueta e cortesia. Destinam-se a
tornar a convivência em sociedade mais fluída e agradável, mas não são essenciais
à conservação e progresso sociais. É expressa pelos usos e convencionalismos
sociais. As normas de trato social caracterizam-se por um caráter inorganizado da
sua génese e pela ausência de coercibilidade organizada, o que significa que a
sanção à violação das normas de trato social é a reprovação social (ex: rompimento
do casamento).
Nota: Oliveira Ascensão distingue entre ordens normativas éticas e não éticas,
afirmando que a ordem de trato social não goza de imperatividade, porque se basta
com a conformidade exterior e, por isso, não tem a componente valorativa que está
implícita na qualificação de uma ordem como ética.
- Ordem jurídica – dada a sua importância, será aprofundada mais à frente, mas,
como diz Oliveira Ascensão, “esta pauta os aspetos mais importantes da
convivência social e exprime-se através de regras jurídicas”.
Todas elas influenciam a nossa conduta em sociedade.
Há uma tendencial sobreposição das normas jurídicas e morais, mas nem
todas as normas jurídicas são morais, porque há normas jurídicas que não têm
qualquer tipo de elemento moral (ex: normas de trânsito; prazo para pedir recurso
no tribunal, etc).

Distinção entre Direito e Moral

1. Critério do mínimo ético – Defende que todas as normas jurídicas derivam


de normas morais que, pela sua importância, merecem uma proteção
acrescida (“tudo o que a moral ordena é prescrito também pelo Direito, pois
este só recebe da moral aqueles preceitos que se impõem com particular
vigor” – Oliveira Ascensão). Direito e Moral surgem, assim, como círculos
concêntricos, de maneira que, como diz Oliveira Ascensão, “a área mais
ampla da moral representa um núcleo que é acolhido e garantido pelo direito,
porque é imprescindível à vida social.”

Críticas:

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● Há regras do Direito que não têm qualquer conteúdo moral.
Exemplos: abertura das câmaras legislativas ou uniformes dos militares.
● Há normas jurídicas que, na sua aplicação ao caso concreto, podem implicar
consequências tidas pela moral dominante como imorais.

Teoria dos círculos concêntricos ≠ Teoria dos círculos secantes

Teoria dos círculos concêntricos → Defendida pelo critério em causa.

Teoria dos círculos secantes → Há uma parte das normas jurídicas e das normas
morais cujo conteúdo se sobrepõe, ou seja, é comum (sobretudo no domínio penal).
No entanto, há normas morais que não são jurídicas e há normas jurídicas que não
são morais.

2. Critério da heteronomia – O Direito é uma criação exterior ao sujeito, isto é,


é uma ordem heterónoma, no sentido em que não é uma criação do sujeito,
mas sim exterior a ele (esta parte está correta), enquanto a Moral é uma criação
do próprio sujeito (esta parte está errada).

Críticas:

● Não é correto afirmar que a Moral deriva da consciência individual de cada


um, porque existe uma Moral dominante de criação exterior ao sujeito (surge
naturalmente da sociedade).

3. Critério da coercibilidade – Enquanto as normas morais são incoercíveis,


ou seja, não gozam de coercibilidade, porque, de acordo com Oliveira
Ascensão, “nenhum poder exterior pode impor que os homens sejam
melhores” (esta parte está correta), as normas jurídicas caracterizam-se por
serem coercíveis (esta parte está errada).

Críticas:

● Como vamos ver mais à frente, há normas jurídicas que não gozam de
coercibilidade e não deixam, por isso, de ser normas jurídicas.
Exemplo: Direito Internacional Público

4. Critério da exterioridade – Estabelece-se, aqui, uma distinção entre o lado


interno e o lado externo da conduta humana. A Moral limitar-se-ia ao lado
interno, ou seja, à consciência/intenção, enquanto o Direito incidiria sobre o
lado externo, isto é, o ato externamente manifestado, não invadindo o foro
íntimo de cada um.

Crítica:

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● Oliveira Ascensão afirma que é falso que a intenção seja irrelevante para o
Direito e que a conduta seja irrelevante para a Moral (“é falsa a demarcação
de compartimentos estanques e a caracterização operada, quer do Direito,
quer da Moral”).

Exemplo: Legítima defesa, uma vez que, se o lado externo fosse suficiente para a
atuação jurídica, a pessoa que mata outra em legítima defesa iria ser julgada pelo
ato de matar outrem. No entanto, o facto de a conduta adotada ter sido em legítima
defesa (lado interno) faz com que a consequência jurídica seja completamente
diferente. Deste modo, o lado interno interessa e muito ao Direito.

O critério torna-se verdadeiro quando corrigido: enquanto o Direito tem como


ponto de partida o lado externo da existência (ou seja, a conduta), a Moral assenta
na ordem espiritual do sujeito, sendo os aspetos exteriores reflexos da dimensão
interior.

Nota: Sem comportamento (ou seja, sem ato/conduta), o Direito não atua, ou seja, a
mera vontade, se não for traduzida em atos, carece de relevância jurídica.
Exemplo: Um funcionário público que queira fugir ao fisco não consegue, pois o
dinheiro fica automaticamente retido mal o salário lhe cai na conta. Tem intenção,
mas não o faz e, por isso, o Direito não intervém.
Relação entre normas jurídicas e normas morais
O princípio que regula a relação entre as normas jurídicas e as normas
morais é um princípio a que se dá o nome de princípio da não-litigância /
princípio da não-beligerância.
Segundo este princípio, o Direito pode permitir um ato tido como imoral, mas,
por princípio, não deve impor um ato tido como imoral.
Duas manifestações deste princípio:

● Artigo 128º do Código Civil → Dever à obediência


● Artigo 41º nº6 da CRP → Direito à objeção de consciência

Objeção de consciência – segundo Francisco Pereira Coutinho, “é uma posição


subjetiva protegida constitucionalmente que se traduz no não cumprimento de
obrigações e no não praticar de atos legalmente impostos, em virtude de as próprias
convicções do sujeito o impedirem de as cumprir, sendo que estes atos e
incumprimentos estão isentos de quaisquer sanções”. Resulta no incumprimento de
uma norma/lei.
Para haver objeção de consciência, têm que estar preenchidos 6 elementos:

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1. Incumprimento de uma norma jurídica que é impositiva para o objetor,
ou seja, existe uma norma jurídica que obriga a pessoa a adotar uma
determinada conduta e a pessoa desrespeita esse comando jurídico/lei.
2. Esse incumprimento é motivado por razões de consciência (religiosas,
morais, familiares, político-ideológicas, filosóficas, etc).
3. Tem de ser exercida com caráter individual, ou seja, não pode ser
exercida por grupos nem por pessoas coletivas.
4. Reveste um caráter pacífico, ou seja, não pode haver recurso à violência.
5. Não pode gerar prejuízo grave para terceiros. Uma objeção de
consciência alargada põe em causa a segurança.
6. Esse comportamento de incumprimento é tolerado pela ordem jurídica,
isentando o sujeito de qualquer sanção.

Casos de objeção de consciência, em Portugal, previstos pela lei ordinária:

● Serviço militar obrigatório;


● Procriação medicamente assistida;
● Interrupção voluntária da gravidez;
● Diretivas antecipadas de vontade (previamente indico qual a minha vontade
em caso de eu ficar incapaz de a identificar) – ex: desligar as máquinas.

Nota: lei ordinária = lei infraconstitucional (abaixo da lei constitucional).


Qual o fundamento da objeção de consciência?
A dignidade da consciência de cada um, ou seja, respeito pelas
convicções profundas de cada um, sobretudo em questões fraturantes (que
chocam).
Características do direito à objeção de consciência:

● Está prevista no artigo 41º nº6 da CRP, inserindo-se na parte dos DLG;
● É uma norma precetiva (que se dirige diretamente aos cidadãos) e não
pragmática (que se dirige ao Estado – ex: direito à habitação);
● No entanto, é uma norma de eficácia indireta, ou seja, a sua aplicação aos
casos concretos depende da lei ordinária – é preciso uma lei que concretize,
para cada caso, o modo de execução da objeção de consciência.

Nota: Recentemente tem-se suscitado objeção de consciência no direito ao


trabalho, isto é, quando assinamos um contrato, somos obrigados a cumprir aquilo
que a entidade patronal diz, mas, baseando-nos em outro tipo de direitos, pode ser
possível invocar o direito à objeção de consciência – ex: um trabalhador que seja
judeu e o patrão o obrigue a fabricar armas para o exército nazi matar os judeus na
2ª GM, pode-se recusar a fazê-lo por razões de consciência.
O princípio da não-litigância e a objeção de consciência são situações muito
pontuais – a regra vem no artigo 8º nº2 do Código Civil.

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A Ordem Jurídica

Não existe uma definição única de ordem jurídica, sendo que:

- Para os normativistas, a ordem jurídica consiste no aglomerado das regras


jurídicas existentes numa dada sociedade, num dado momento histórico. O Direito
esgota-se no estudo da norma, ou seja, não há mais nada para o Direito além das
normas.
Crítica:
Existe uma unidade de sentido que vai para além do mero somatório de regras e o
estudo do Direito tem que refletir isso.
- Para Oliveira Ascensão, é uma “noção englobante em que se inscrevem as
instituições, os órgãos, as fontes do Direito, a vida jurídica/atividade jurídica e as
situações jurídicas” – as regras jurídicas são uma expressão da ordem jurídica e
não parte dela.
- Para Cabral de Moncada, é um “conjunto de normas, princípios, instituições e
institutos jurídicos trabalhados pela especulação científica” (ciência jurídica).
- Para Castanheira Neves, é uma “institucionalização histórica do Direito”.

O entendimento mais unânime do que é a ordem jurídica é que é um conjunto


relativamente estável de normas, princípios, instituições e institutos jurídicos
correlacionados e harmónicos entre si (aponta para um sistema coerente e
ordenado de organização social).

Há 3 sentidos principais para a palavra “Direito”:

1. Direito como sinónimo de ciência jurídica – ciência que estuda a ordem


normativa segundo um método próprio.
Exemplo: Vou ter aulas de Direito do Trabalho.
2. Direito em sentido objetivo – conjunto relativamente estável de normas,
princípios, instituições e institutos jurídicos correlacionados e harmónicos
entre si (entendimento mais unânime). Em inglês, “law”.
Exemplo: O Direito do Trabalho consagra a remuneração do trabalhador.
3. Direito em sentido subjetivo – poder ou faculdade de que se encontra
investido um determinado sujeito num determinado momento. Em inglês,
“right”.
Exemplo: O senhorio tem direito ao dinheiro da renda; o arrendatário te o
direito de usufruir do espaço.

Oliveira Ascensão distingue Direito objetivo e Direito subjetivo, através de


um exemplo: “Confrontemos as expressões «Direito das Sucessões» e «direito de

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suceder». O Direito das Sucessões é uma realidade objetiva: está-se mais perto da
ideia de uma ordenação da vida social. Pelo contrário, o direito de suceder é uma
realidade subjetiva: refere-se necessariamente a um sujeito dado para significar que
ele goza de uma certa posição favorável”.
Nota: Torna-se mais fácil perguntarmos qual o ponto de vista de um sujeito perante
aquelas realidades: pode-se dizer que o Joaquim tem direito de suceder a Jerónimo,
mas não que Joaquim tem o Direito das Sucessões. (Oliveira Ascensão).
O autor afirma que o Direito objetivo tem prioridade sobre o Direito subjetivo,
isto porque existe o direito subjetivo deriva do direito objetivo (ex: “Se o Joaquim
tem o direito de suceder é porque, de harmonia com o Direito das Sucessões, tal
prerrogativa lhe é conferida”).
Nota: Partindo desta distinção, o autor conclui que ordem jurídica e Direito não são
a mesma coisa, pelo que a primeira é mais ampla, porque inclui também os direitos
subjetivos.
Características da ordem jurídica

- Necessidade → não é possível a vida em sociedade sem o Direito. A sociedade


não é apenas uma condicionante exterior do Direito (dado que este é um fenómeno
social, como vimos inicialmente). O contrário também é verdade, como vimos,
sendo que o Direito é imprescindível à sociedade (ubi societas ibi ius). Oliveira
Ascensão diz que “é definitivo ser a ordem necessária em qualquer sociedade,
tanto fazendo que sejam boas como más as pessoas que dessa ordem participam”.
Sem Direito, só existiriam 2 alternativas:

● Despotismo puro – segundo Oliveira Ascensão, é muito difícil apresentar


exemplos no seu estado puro; mesmo as Monarquias absolutas e o
Despotismo iluminado do Antigo Regime, ainda que com uma concentração
de poder numa só pessoa, ficaram aquém de um despotismo puro. Nas
palavras do autor, “um puro despotismo só é imaginável em hipóteses de
loucura do déspota”.
● Anarquia – desta já existem exemplos pontuais, que surgem por vezes na
vida de uma sociedade, como em certas situações criadas pela retirada
abrupta de uma potência colonizadora. No entanto, Oliveira Ascensão
afirma que “não se poderá apontar um estado puro de anarquia sem que isso
signifique também a extinção da sociedade em causa”.

Nenhuma destas soluções é suscetível de perpetuação e, portanto, a


ausência de Direito conduziria necessariamente à dissolução da sociedade.
- Imperatividade → partilha esta característica com a ordem religiosa e moral (fica,
portanto, de fora a ordem de trato social) – as suas regras exprimem um “dever ser”
que constitui uma exigência incondicionada de aplicação. Isto significa que não cabe

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aos destinatários das normas decidirem se elas se lhes aplicam ou não (as normas
jurídicas são aquelas que proíbem ou obrigam a uma determinada conduta).
Oliveira Ascensão caracteriza-as, dizendo que “não é uma mera descrição dum
processo desencadeado por um ato humano ou facto da natureza, não é também
uma espécie de conselho – intenciona em absoluto realizar-se”.
No entanto, dizer que a norma jurídica é imperativa, não é o mesmo que dizer
que todas as normas jurídicas são imperativas.
Exemplos: normas permissivas (autorizam mas não obrigam) e normas supletivas
(normas que podem ser afastadas por vontade das partes).
A consequência da imperatividade é que a violação da norma jurídica gera
uma sanção. Segundo Oliveira Ascensão, uma sanção consiste numa
“consequência desfavorável normativamente prevista para o caso de violação de
uma regra, e pela qual se reforça a imperatividade desta”.
Nota: Dizer que opto por não cumprir a norma e prefiro sujeitar-me à sanção é falso,
porque a sanção não é uma escolha, mas sim uma repreensão/punição. Nas
palavras de Oliveira Ascensão, “a ordem jurídica não se cifra num catálogo de
condutas que se apresentam à disposição dos destinatários, de tal modo que estes,
pesando as consequências, escolham indiferentemente o que mais vantajoso se
lhes apresente. Implica antes uma pretensão de aplicação incondicional”.

- Estatalidade → É comum identificar o Direito como uma criação do Estado,


aplicada por órgãos que se integram no mesmo. Na verdade, é inegável esta
dimensão de supremacia que o Estado desempenha na criação das normas
jurídicas, mas, segundo Oliveira Ascensão, se essas declarações não se
integrassem na ordem social, não podiam ser consideradas Direito. Daí que o autor
afirme que “o Direito é o que está na sociedade, não o que é produzido pelo
Estado”. Esta ideia reforça-se com o facto de que nem todo o Direito tem origem
estadual (aliás, antes da existência do Estado já havia Direito). Não só há normas
jurídicas criadas por sociedades intraestatais (como é o caso dos municípios), como
também há normas jurídicas criadas por sociedades supraestatais (como é o caso
dos tratados internacionais entre os Estados). Grande exemplo disto é o Direito
Internacional Público que não deixa de ser Direito pelo facto de não ser reconhecido
por algum Estado. Neste sentido, “dizer-se «ordem jurídica estatal» não significa
que o fundamento da validade dessa ordem jurídica esteja no Estado a que
corresponde, ou que todas as regras que traduzem aquela ordem jurídica sejam
criadas pelo Estado, mas unicamente que o âmbito daquela ordem jurídica é
demarcado pelo Estado a que corresponde” (Oliveira Ascensão).
Em suma, apesar de nem todo o Direito ter fonte estadual, a maior parte das
normas jurídicas tem, de facto, origem no Estado e o seu âmbito de aplicação está
delimitado por esse Estado. Podemos dizer, portanto, que a estatalidade não é uma
característica absoluta, mas tendencial.

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- *Heteronomia → Segundo Oliveira Ascensão, a aceitação desta característica
depende da maneira como a entendemos. É correto afirmar que o Direito é uma
ordem heterónoma, no sentido em que não é uma criação do sujeito, mas sim
exterior a ele. No entanto, não podemos esquecer a importância da sociedade e da
coletividade na criação do Direito. Estabelecendo uma comparação entre a ordem
jurídica e a ordem moral, o autor afirma que “se se pretender que a moral é
autónoma porque a sua manifestação passa através da consciência do sujeito, e o
Direito não, a caracterização pode ser aceite para a moral e é também verdadeira
no direito”.

*Tema abordado já nos critérios de distinção entre Direito e Moral.

- *Exterioridade → Esta característica tem também sido alvo de grande debate.


Estabelece-se, aqui, uma distinção entre o lado interno e o lado externo da conduta
humana. A Moral limitar-se-ia ao lado interno, enquanto o Direito incidiria sobre o
lado externo, não invadindo o foro íntimo de cada um. No entanto, Oliveira
Ascensão afirma que, no extremo, a doutrina da exterioridade está incorreta, na
medida em que “é falsa a demarcação de compartimentos estanques e a
caracterização operada, quer do Direito, quer da Moral”. Exemplo disto é a legítima
defesa, uma vez que, se o lado externo fosse suficiente para a atuação jurídica, a
pessoa que mata outra em legítima defesa iria ser julgada pelo ato de matar outrem.
No entanto, o facto de a conduta adotada ter sido em legítima defesa (lado interno)
faz com que a consequência jurídica seja completamente diferente. Deste modo, o
lado interno interessa e muito ao Direito.
Em suma, esta característica é válida se a entendermos como ponto de partida da
atuação do Direito. O Direito parte da conduta e sem conduta não há atuação
jurídica, mas isto não quer dizer que a interioridade do sujeito seja irrelevante para a
ordem jurídica. Nas palavras de Oliveira Ascensão, “essa ordem (jurídica) é uma
ordem humana: assenta no homem tal qual este é, portanto sem poder abstrair da
sua essência espiritual”.

*Tema abordado já nos critérios de distinção entre Direito e Moral.

- Coercibilidade → Define-se muito frequentemente a coercibilidade como sendo a


suscetibilidade de aplicação coativa (pela força) da regra. No entanto, segundo
Oliveira Ascensão, nem sempre há meios de tutela preventiva, destinados a evitar
a violação da regra e, além disso, o ponto principal associado a esta característica
coloca-se nos casos em que, “perante uma efetiva violação duma regra jurídica, se
pergunta se surge de qualquer maneira autorizado o recurso à coação”. Deste
modo, é insuficiente definir coercibilidade dessa maneira, mas sim a suscetibilidade
de aplicação coativa (pela força) da sanção associada à violação da norma jurídica.
É uma característica exclusiva da ordem jurídica e que a faz afastar-se e
autonomizar-se das restantes ordens.
Apesar de tendencialmente a coercibilidade vir sempre associada à norma jurídica,

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de facto, há normas jurídicas que não gozam de coercibilidade ou têm essa
coercibilidade muito mitigada, como:

● Normas jurídicas de âmbito infraestadual – nestas, raramente surge a


utilização da força para imposição de uma sanção (ex: associações culturais
ou desportivas). Por vezes, a ordem jurídica comum empresta-lhes parte da
sua força, mas isso não significa que a essa ordem jurídica menor passe a
ser assistida de coercibilidade. Estas normas, apesar de lhes ser atribuída
uma sanção, não têm a capacidade de as impor pela força (precisam do
auxílio da ordem jurídica estadual) e, por isso, dependem do facto de a
ordem estadual reconhecer a legitimidade das suas normas.

Exemplo prático: Quando o Bruno de Carvalho foi proibido de entrar nas


instalações do Sporting, mais precisamente na reunião da Assembleia do clube, e
ele apareceu lá na mesma, o clube não pôde fazer nada pelas suas mãos. Teve que
chamar a polícia para o impedir de entrar.

● Normas jurídicas de âmbito supraestadual – tendo por exemplos


fundamentais o Direito Canónico e o Direito Internacional Público, o
problema/fragilidade, além da indefinição dos meios e do mau funcionamento
das instituições, consiste na aplicabilidade das sanções, porque não existe
um corpo autónomo de aplicação das sanções pela força, sendo esta, nas
palavras de Oliveira Ascensão, “a força dos Estados que compõem a
comunidade internacional”. Ora, como os Estados só emprestam a sua força
para o que for do seu interesse, torna-se difícil falar em “imposição de
sanções internacionais”. Muito mais evidente se torna a situação quando
olhamos para as grandes potências mundiais, às quais não é imposta uma
sanção pela força. Daí a afirmação do autor: “pode dizer-se que quem viola o
Direito Internacional sujeita-se normalmente a sanções, que podem levar até
à guerra. Mas isso só terá significado como manifestação de coercibilidade
na hipótese invulgar de a vítima ser o mais forte e o infrator o mais fraco (ver
exemplo abaixo).

Exemplo prático: Quando os EUA invadiram o Iraque, apesar de a nível


internacional se ter decidido que não se reuniam as condições necessárias para tal
e não houve sanção nenhuma.

● Mesmo na ordem jurídica estadual, há normas sem sanção e normas cuja


sanção não pode ser coativamente imposta, como:
- Se o Estado, principal criador de normas jurídicas, violar uma norma, não
há possibilidade de imposição de uma sanção pela força, pois é o próprio
Estado quem detém o “monopólio da coação” (Oliveira Ascensão).
- Prazos de decisão dos juízes – caso os juízes ultrapassem os prazos não
têm qualquer sanção.
- Obrigações familiares – há normas que, pela sua natureza, não justificam a

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intervenção do Estado na vida privada. No artigo 1672º do Código Civil,
estabelecem-se as responsabilidades mútuas dos cônjuges mas, apesar de
estes aspetos serem essenciais para a ordem jurídica, a sanção de eventuais
violações é praticamente inexistente, só se aplicando apenas em casos
extremos.
- Obrigações naturais (artigo 403º do CC) – são obrigações cujo
cumprimento o credor não pode exigir coativamente, mas, se o devedor
cumprir voluntariamente, o credor pode reter a prestação, não estando
obrigado a devolvê-la. Vejamos os seguintes exemplos:

Exemplos:
- Trabalho prestado pelos filhos em auxílio dos pais;
- Dívidas de jogo (tolerado) e aposta que não sejam reconhecidas juridicamente
(como um jogo de cartas em recinto familiar);
- Prescrição (quando passou um determinado período de tempo e a dívida deixa de
ser exigível em tribunal).
IMPORTA DESTACAR QUE TUDO ISTO SÃO EXCEÇÕES – A GRANDE
MAIORIA DAS NORMAS JURÍDICAS GOZAM DE COERCIBILIDADE!
Como já vimos, a coercibilidade corresponde à possibilidade de aplicação da
sanção pela força, ou seja, possibilidade de aplicação coativa de uma sanção.
Qual o papel da coação no Direito?
De uma maneira geral, o Direito é visto por todos os sociólogos como um
instrumento de controlo social particularmente eficaz, uma vez que consiste num
conjunto de normas assistidas de uma sanção socialmente organizada. É
exatamente esta característica (coercibilidade), como vimos anteriormente, que
distingue a ordem jurídica das restantes ordens sociais.
Destacam-se 2 correntes doutrinárias:

● Max Weber (sociólogo) – a existência de uma instância de coação é um


elemento determinante do conceito de Direito, ou seja, a coação é o
elemento que identifica, caracteriza e dá essência ao Direito. Assim sendo,
as normas jurídicas são aquelas que são suscetíveis de aplicação
institucional pela força (“o elemento determinante do conceito de «direito»
consiste na existência de uma instância de coação”).
● Larenz (jurista) – a essência do Direito é a justiça e é essa noção de justiça
que confere ao Direito uma ordem de sentido e que o distingue de uma
ordem de pura força. Para Larenz, a coercibilidade não pertence à essência
do Direito, mas sim à sua eficácia.
Batista Machado partilha da mesma opinião, dizendo que “a coação ou a
coercibilidade não especifica o Direito no plano do ser, não o determina no
seu conteúdo e, portanto, não faz parte da sua essência”. No entanto, apesar

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de o Direito não se definir pela coercibilidade, esta é uma característica
resultante da própria natureza do Direito e, por isso, o autor afirma que “num
mundo de homens imperfeitos, a coercibilidade é essencial para assegurar,
não a essência, mas a vigência do Direito e essa coercibilidade é legitimada
pela justiça, procurada pela ordem jurídica”. Daí que o recurso a meios de
coação para repor a justiça seja, na sua opinião, legítimo e exigível.

Coação é, portanto, a aplicação efetiva da coercibilidade.

Os valores do Direito: justiça e segurança


De um modo geral, tem-se procurado ancorar o Direito em pontos fixos que
devam ser imperativamente recebidos. Oliveira Ascensão diz: “são pontos fixos,
porque fundam a ordem jurídica e escapam ao arbítrio humano”.
Foram vários os pontos fixos encontrados pelos autores ao longo da História.
A filosofia do século XX prestou atenção ao facto de, nas palavras do autor, “todos
nós constantemente valorarmos, constantemente depararmos com objetos valiosos,
constantemente falarmos de valores. Da meditação destes temas nasceu uma
corrente, certamente multiforme, a que se dá a designação de Filosofia dos
Valores”.
Deste modo, os autores determinaram numerosas espécies de valores,
sendo necessário o seu agrupamento e, depois, a sua hierarquização. Assim sendo,
um valor inferior deverá nomeadamente ser sacrificado para a consecução de um
valor considerado superior.
De entre os vários valores a que a ordem jurídica tem que assentar e que são
próprios da mesma, destacam-se a justiça e a segurança.
Justiça
Segundo Ulpiano, a justiça consiste na constante e perpétua vontade de dar
a cada um aquilo que é seu.
Na sua obra, o autor refere mesmo estas 3 condições/elementos da justiça:

● Viver honestamente
● Não prejudicar ninguém
● Atribuir a cada um aquilo que é seu

Para o Direito, a justiça é uma cultura naturalmente enraizada, influenciada


pelo tempo e pelo espaço e assenta no velho vocábulo latino de Ulpiano “suum
cuique tribuendi” (dar a cada um aquilo que é seu).
Cabe ao Direito a justa distribuição entre o que o indivíduo dá e o que recebe
da sociedade.

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Oliveira Ascensão aponta ainda para o facto de que não se pode identificar
o Direito e a justiça, uma vez que “o Direito ultrapassa muito o domínio do justo”.
Isto porque, se assim fosse, poucas ordens jurídicas subsistiam, uma vez que “a
ordem internacional é injusta; e injusta é a maioria das ordens nacionais”.
Nota: A justiça portuguesa tem origem nas civilizações grega e romana, tem
influência judaico-cristã e da Revolução Francesa (liberdade, igualdade,
fraternidade).
Elementos lógicos da justiça:

1. Proporcionalidade → Compete ao Direito promover a proporcionalidade entre


os sujeitos da comunidade (remissão para o preceito de Ulpiano: atribuir a cada um
aquilo que é seu). Dante dizia que “o Direito é a proporção real e pessoal de um
homem em relação ao outro que, se observada, mantém a sociedade em
ordem e, se corrompida, corrói-a”.
2. Igualdade → Tratar o que é igual de modo igual e tratar de forma diferente o
que é diferente, na medida dessa diferença.
3. Alteridade → A justiça atribui valor às condutas socialmente relevantes, ou
seja, as que se dirigem aos outros com os quais nos relacionamos. É daqui
que resulta o princípio da dignidade da pessoa humana, segundo o qual
todos os seres humanos têm o mesmo valor.

Para o doutor Castanheira Neves, em termos substantivos, a justiça


assenta em 2 princípios fundamentais: o princípio da solidariedade e o princípio da
corresponsabilidade. E, com base nesses princípios, o Direito deve dividir direitos e
deveres, bens e encargos, benefícios e obrigações – deve haver um equilíbrio. Diz
que “o princípio ou intenção da justiça aponta para o ponto ótimo da dialética entre a
pessoa (autonomia pessoal) e a comunidade”.
Ao nível do Direito, Aristóteles fazia uma divisão da justiça em 3
tipos/dimensões:

- Justiça distributiva → Rege a repartição dos bens comuns pelos membros da


sociedade segundo um critério de igualdade proporcional, que atende à finalidade
da distribuição e à situação dos sujeitos (justiça característica das relações de
subordinação, ou seja, do Direito público). Neste sentido, surge a afirmação de
Oliveira Ascensão: “De todo o modo, é claro que a justiça comanda aqui a
desigualdade dos resultados. Se, por exemplo, a todas as pessoas que
desempenham cargos oficiais se atribuem por sistema condecorações idênticas,
está-se a praticar uma injustiça substancial, pois foi muito diversa a dedicação, o
zelo e a inteligência com que cada um serviu”. Isto significa que, na opinião do
autor, uma distribuição proporcional das “vantagens entre todos os membros da

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comunidade” gera desigualdades, pois não se tem em conta o mérito de cada
pessoa.

- Justiça comutativa/sinalagmática → Segundo Oliveira Ascensão, “é a que preside


às relações dos indivíduos entre si. As pessoas apresentam-se em pé de igualdade,
e essa igualdade deve ser salvaguardada pelo Direito”. Assim, rege o intercâmbio
entre pessoas iguais, ou seja, visa corrigir os desequilíbrios que ocorrem no seio de
relações contratuais e na prática de atos ilícitos. Deste modo, estabelece a
equivalência entre prestações e entre danos e indemnizações (é a justiça típica do
Direito Privado e, ao nível do Direito contratual, entende-se que essa equivalência é
fixada pelas partes, isto é, cabe às partes definir essa equivalência). Aristóteles
fala de uma proporção aritmética, tendo como objetivo colocar o lesado na situação
em que estaria se não tivesse sofrido o dano.

- Justiça geral/legal → Rege a participação dos membros da sociedade nos


encargos comuns, segundo um critério de igualdade proporcional. É, portanto, “a

que preside às relações entre os indivíduos e a comunidade, mas desta vez no


tocante aos encargos exigidos àqueles, que devem ser repartidos equitativamente
por todos” (Oliveira Ascensão).

O problema coloca-se em encontrar o equilíbrio entre a justiça distributiva e a


justiça comutativa. Isto porque cada vez mais a justiça distributiva se insere em
situações que pertenciam à justiça comutativa.
Exemplo: Artigo 282º do Código Civil – contrato de usura: um contrato em que
uma das partes se aproveita da outra parte por alguma razão, seja a falta de
informação, a necessidade de algo (como, por exemplo, dinheiro), ou outras. Estes
contratos perdem a sua força jurídica caso seja comprovada essa exploração de
interesses de alguém para benefício próprio ou de terceiros (ex: para pedir uma
percentagem de juros acima do que está estabelecido no Código Civil – artigo
1146º).
Nota: Sinalagma – é um nexo de correspetividade entre as prestações, ou seja, uma
prestação não se compreende sem a outra.
A par da justiça, o Direito tem de promover também a segurança.
Segurança
Este valor, apesar de ser referido há muito tempo, não suscita uma
elaboração tão grande como a justiça. Isto porque a segurança é um valor
hierarquicamente menos elevado, por estar “mais diretamente ligado à utilidade, às
necessidades práticas e às urgências da vida” (Batista Machado). No entanto, é
um valor fundamental, na medida em que só se cada um souber o papel social que

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lhe compete é que é possível exigir que se comporte dessa forma (“sem segurança
a ordem não existe ou é imperfeita” – Oliveira Ascensão). Podemos dizer, portanto,
que é uma das exigências feitas ao Direito. A segurança promove a estabilidade, a
previsibilidade, a confiança no tráfego negocial e isso é essencial à convivência
pacífica.
A segurança associada à previsibilidade do comportamento é essencial ao
Direito. Não se pode promover a convivência pacífica em sociedade se as pessoas
não sabem como se comportar ou o que esperar dos outros.
Manifestações da segurança no ordenamento jurídico:
(Como é que o Direito promove a segurança?)

Segundo Batista Machado, a segurança jurídica aparece-nos sob a forma de


“certeza jurídica”:

1. Positivação do Direito legislado pelo Estado/pelas autoridades competentes


→ Direito vertido em normas de conhecimento público (redação escrita de
normas que são publicadas no Diário da República – é uma das maiores
manifestações de concessão de segurança às normas jurídicas, visto que
todos têm acesso ao Diário da República).
2. Generalidade e abstração das normas jurídicas → As normas são iguais para
todos.
3. Formulação de leis em termos precisos e claros → Normas precisas e claras,
sem grande margem de interpretação nem de ambiguidades (ius strictum),
evitando o recurso a cláusulas gerais e conceitos indeterminados. Nota: A
distinção entre ius strictum e ius aequum que surgem neste ponto será
abordada no fim deste subtema.
4. Proibição do non liquet – um juiz não pode recusar-se a julgar um caso,
invocando inexistência de regulamentação (ou seja, que não existe lei para
esse caso) – artigo 8º, 10º e 11º do Código Civil.
A proibição do non liquet complementada com a integração de lacunas
promove a plenitude do sistema jurídico, ou seja, assegura a regulamentação de
todos os aspetos merecedores de tutela jurídica (assegura a todos os cidadãos o
facto de nunca ficarem desprotegidos por falta de solução do sistema jurídico).
VER OS ARTIGOS DO PONTO 4

5. Atuação do aparelho coativo do Estado.

PROBLEMA: Muitas vezes, existe uma tensão dialética entre a justiça e a


segurança, isto porque, muitas vezes, a solução imposta pela lei parece ir ao
contrário do sentido de justiça do caso concreto.

Como se resolve um conflito entre a justiça e a segurança do caso concreto?


Qual é que prevalece?

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Para Batista Machado…
Apesar de o valor mais importante ser a justiça, há casos em que a própria
praticabilidade do Direito exige que o valor da segurança prevaleça sobre o valor da
justiça, no sentido de promover essa mesma justiça. O autor diz que “as realidades
ou valores de escalão inferior na estrutura ôntica do mundo têm um maior peso que
as realidades ou valores de escalão superior, por serem aqueles o necessário
suporte deles”. Pôr em causa esta operacionalização, em último grau, afeta a
própria justiça.
Assim, “uma justiça sem segurança seria vazia de eficácia e, portanto, não
passaria de piedosa intenção. Já uma segurança sem justiça representaria uma
situação de pura força”.
Institutos jurídicos onde prevalecem preocupações de segurança:

■ Maioridade aos 18 anos (por uma questão de uniformidade e


previsibilidade) – artigo 122º do Código Civil;
■ Normas de caducidade (artigo 328º do Código Civil) e prescrição por
decurso do tempo (artigo 300º do Código Civil).
■ Normas que estabelecem exigência de forma (ex: escritura pública num
contrato compra-venda de um imóvel) – exigem certas formalidades para a
validade ou para a prova de certos atos jurídicos (como, por exemplo o facto
de certos atos serem levados a registo), de modo a garantir a estabilidade e a
confiança.
■ Instituto do caso julgado, onde se proíbem recursos ordinários em decisões
transitadas em julgado – visa essencialmente pôr um ponto final nos litígios e
assegurar a paz jurídica.
■ Não retroatividade da lei na aplicação da lei no tempo – a lei só vigora
para o futuro, de modo a assegurar a proteção dos direitos adquiridos e das
expectativas legítimas (artigo 12º do Código Civil);
■ Usucapião (artigo 1287º do Código Civil e seguintes);
■ Princípio da “ignorantia iuris non excusata” – a ignorância da lei não
aproveita a ninguém (artigo 6º do Código Civil)

Institutos jurídicos onde prevalecem preocupações de justiça:

■ Boa-fé (artigo 227º e 762º do Código Civil);


■ Bons costumes (artigo 28º do Código Civil);
■ Ordem pública (artigo 280º do Código Civil);
■ Abuso de direito (artigo 334º do Código Civil);
■ Alteração superveniente das circunstâncias (artigo 437º do Código Civil).

Assim, vivemos um período de jurisprudência dos valores e concretização da


justiça (ver informação seguinte).
No contexto anteriormente abordado entre justiça e segurança, divide-se:

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Ius strictum – técnica de redação que usa conceitos específicos com um sentido
relativamente fechado, de mais fácil apreensão. Normas com um conteúdo mais
claro, preciso e fechado → PREDOMÍNIO DA SEGURANÇA

Ius aecqum – normas construídas com base em conceitos indeterminados e


cláusulas gerais, cuja necessidade de densificação e interpretação é muito mais
ampla. São conceitos que não são de compreensão imediata. Quem faz o trabalho
de densificação são os tribunais e a doutrina, mas são conceitos jurídicos →

PREDOMÍNIO DA JUSTIÇA

Este crescente de cláusulas gerais e conceitos indeterminados foi


característica dos códigos após a 2ª Guerra Mundial, de modo a promover a justiça,
incluindo dentro do próprio ordenamento jurídico as chamadas “válvulas de escape
do sistema” – por isso dizemos que estamos na 3ª sistemática:
1ª sistemática – jurisprudência dos conceitos
2ª sistemática – jurisprudência dos interesses
3ª sistemática – jurisprudência dos valores
No entanto, apesar do sistema parecer, de facto, dar resposta mais ou menos
equilibrada ao confronto entre a justiça e a segurança, posso afastar-me de uma
solução de Direito positivo com fundamento na sua injustiça? Ou seja, perante
uma norma de Direito positivo injusta, é possível recusar a sua obediência
com fundamento nessa injustiça?
OU
Pode alguém ser condenado por ter cumprido uma norma de Direito
positivo e que depois se veio a considerar que era contrária aos princípios
fundamentais de justiça no ordenamento jurídico?
Fórmula de Radbruch (ler em Batista Machado) – “sempre que a injustiça do Direito
positivo atinja um tão alto grau que a segurança jurídica deixe de representar algo
de positivo em confronto com esse grau de violação da justiça, nesse caso, não
poderá duvidar-se de que o Direito positivo injusto deverá ceder perante a justiça”.
Exemplo: Julgamento de Nuremberga – depois da 2ª Guerra Mundial, vários nazis
foram julgados e posteriormente sentenciados a pena de morte por cumprirem a lei
que, na altura, vigorava na Alemanha (Direito positivo em confronto com a justiça).
Por fim, Batista Machado ainda destaca que, no Estado de Direito
Democrático, o cidadão goza também de segurança perante eventuais
intervenções/intromissões dos poderes públicos na sua vida privada. Essa

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segurança é assegurada, sobretudo, pela possibilidade de recurso a um “poder
neutro” (o poder judicial) para defesa dos direitos, liberdades e garantias próprios
dos cidadãos.

Confronto entre o Direito Positivo e o Direito Natural


Direito positivo – Direito que é posto em vigor pelas autoridades oficiais ou pela
vontade coletiva de uma comunidade. Corresponde ao conjunto das normas
jurídicas da ordem jurídica.
No entanto, desde a Grécia Antiga que juristas e filósofos do mundo ocidental
colocam a seguinte pergunta: será que existe um Direito natural superior ao
Direito positivo de onde este retira o fundamento da sua validade e que
permite aos cidadãos aferir a sua legitimidade ou ilegitimidade (ou seja, um
Direito superior às normas positivadas)?
Exemplo do Dr. Freitas do Amaral: “o direito positivo emanado do Governo
ditatorial é válido e obrigatório, como Direito, porque emana do Poder político
vigente, que controla o país? Ou é inválido e pode ser juridicamente desobedecido,
porque é contrário ao Direito Natural, na medida em que viola de modo flagrante a
Democracia e os Direitos Humanos?”
Nota: Uma realidade histórica deste tema é o julgamento de Nuremberga, como
visto a propósito do confronto entre justiça e segurança.
Deste confronto entre Direito positivo e Direito natural, surgem 2 correntes:
Jusnaturalismo – corrente que admite a existência de Direito natural, ou seja, a par
do Direito positivo, existe um Direito natural que se sobrepõe, fundamenta e legitima
o Direito positivo.
Juspositivismo – corrente que nega a existência de Direito natural, ou seja, para
os juspositivistas só existe Direito positivo.
Origem do problema e as várias fases do confronto
Origem
- Grécia Antiga (século V a.C.)
- Jusnaturalismo – surge associado a uma peça de teatro, “Antígona”, de Sófocles.
Esta peça conta a história de uma cidade em guerra civil. Creonte, o seu chefe,
tenta dominar uma revolta liderada por dois dos seus três sobrinhos, irmãos de
Antígona. O terceiro estava do lado do tio. Este último e um dos primeiros acabam
por morrer. Ao seu defensor, Creonte reserva cerimónias gloriosas, ao contrário do
outro, ao qual o tirano impõe uma decisão cruel de que ninguém lhe fará funeral e o
seu cadáver ficará à disposição dos abutres, fora das muralhas da cidade. Ora, na
tradição grega, todos os mortos, para serem recebidos pelos deuses, tinham que ter

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um funeral. E foi por isso que Antígona não aceita o ato desumano do tio,
desobedecendo-lhe e, assim, sepultando o irmão. Creonte acaba por descobrir e
Antígona é levada à sua presença, confessando, mesmo sendo condenada à morte,
que ousou desobedecer à lei, porque:
“Não são essas as leis que eles (os deuses) determinaram para sempre aos homens; e eu nunca
pensei que as tuas proibições fossem tão poderosas que pudessem permitir a um simples mortal
violar outras leis, as leis não escritas e invioláveis dos deuses”.

Surge assim a primeira defesa conhecida do jusnaturalismo: as leis naturais,


provenientes dos deuses, eternas e invioláveis. Caso as leis positivas, emanadas
pelos governantes entrem em confronto com as primeiras, nada podem contra elas
e, por isso, a sua desobediência justifica-se. Nas palavras de Freitas do Amaral:
“Antígona preferiu obedecer ao Direito Natural que a sua consciência lhe ditava,
mesmo sabendo que por isso podia ser condenada”.
- Juspositivismo – só quarenta anos mais tarde é que surge, com Sócrates, o
positivismo, a propósito do julgamento a que ele próprio foi condenado à morte por
criticar severamente a democracia ateniense. Um jusnaturalista não teria dificuldade
em considerar essa condenação injusta e, portanto, o próprio teria o direito de fugir.
Foi essa a ideia de muitos amigos de Sócrates, mas este não se convenceu,
apresentando várias razões para deixar a sentença ser executada. Dessas razões
destaca-se aquela que é o principal argumento do positivismo: “é melhor para o país
que a lei (ou a sentença que aplica a lei a um caso concreto) seja cumprida e
obedecida por todos, mesmo que alguém a considere injusta ou imoral, do que
reconhecer a cada cidadão o direito à desobediência”.
Nas palavras de Sócrates: “é maior e mais perigoso o dano coletivo da desobediência às leis, por alguns
cidadãos que se sentem lesados, do que o dano individual suportado por aqueles que de facto forem lesados
por uma lei injusta ou por uma sentença injusta”.

Roma
- Na Roma clássica, ainda antes de Cristo, o Direito Natural é proclamado, descrito
e explicado em palavras de forte vigor intelectual por Cícero:
“Existe, pois, uma lei verdadeira, que é a reta razão, conforme à Natureza, presente
em todos os homens, constante e sempre eterna”.
Surge, assim, a conceção clássica do Direito Natural:
Existe uma ordem natural, que foi criada por Deus. Essa é descoberta pela
razão humana e dela resulta o Direito Natural, que impõe direitos e deveres aos
homens aos quais estes devem obediência, sob pena de desrespeitarem a própria
natureza humana. As suas normas são universais, eternos e imutáveis e, deste
modo, o Direito positivo não as pode alterar.
Nota: Nesta época, surge também a figura de Ulpiano que diz: o Direito Natural é
“aquele que a natureza ensina a todos os animais. Na verdade, este direito não é

25
próprio do género humano, mas comum a todos os animais que vivem na terra e no
mar, incluídas as aves”.

Idade Média
- O Cristianismo vem dar ainda mais força à ideia de Direito Natural, porque
apresenta o seu Deus, único e verdadeiro, como criador do universo e proclamou a
superioridade da lei divina face à lei humana.
- Entre vários autores, destaca-se S. Tomás de Aquino, para o qual o mundo e o
homem foram criados por Deus, mas a atuação divina não se esgotou nesse
primeiro momento: continua todos os dias a exercer-se. No entanto, não intervém
caso a caso, atua sim “por causas segundas”, isto é, estabelece as leis gerais do
universo e deixa que os acontecimentos decorram entretanto.
- Existe uma grande diferença para com a conceção greco-romana. Isto porque S.
Tomás de Aquino reduz consideravelmente o conteúdo do Direito Natural,
aumentando na mesma proporção a função e a importância do direito positivo.
Renascimento e o racionalismo
- Em meados do século XV dá-se o Renascimento.
- As transformações dadas no Renascimento refletiram-se naturalmente na ordem
jurídica: não negaram o jusnaturalismo, mas dividiram-no em jusnaturalismo
religioso (de base divina) e o jusnaturalismo racionalista (de base humana). A figura
principal desta época é Hugo Grócio.
- Para este autor, “o direito natural é imutável, mesmo para Deus, e sempre existiria,
mesmo que Deus não existisse”. Deste modo, o Direito Natural é um produto da
razão humana e não da vontade divina.

A escola racionalista do Direito Natural


- Continuadores e inovadores em relação a Hugo Grócio foram Hobbes, Locke e
Rousseau, embora com concessões diferentes. Só que, até estes três grandes
filósofos do Iluminismo, o Direito Natural era encarado como um tipo de direito
superior ao direito positivo estadual. A partir deles, o Direito Natural começa por ser
encarado como anterior ao Estado, por isso que nasce e se afirma na situação de
estado de natureza, em que ainda não há Estado, ou poder político.
A fase da contestação do jusnaturalismo: o positivismo
- Séculos XIX e XX – surge um movimento chamado positivismo jurídico. Entre
outros autores, destaca-se Hans Kelsen.
- Divisão dos juristas em jusnaturalistas e juspositivistas.
- Principais características:

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● O Direito Natural não é direito, pois Deus não existe (origem divina) e nem
pode ser aceite como uma dedução racional de cada indivíduo, porque,
assim sendo, qualquer pessoa poderia inventar a sua maneira de Direito
Natural;
● O Direito Natural não é direito, dado que não é promulgado pelas autoridades
sociais legitimadas para o fazer;
● O Direito Natural não é direito, uma vez que não há qualquer consenso sobre
o seu conteúdo;
● O Direito Natural não é direito, visto que a violação das suas normas não
gera nenhuma sanção.

O renascimento do Direito Natural no século XX


- O final da 2ª Guerra Mundial marca o renascimento do jusnaturalismo. Isto porque
não era possível conformar-se com as atrocidades cometidas pelos nazis, muito
menos aceitar tudo isso como direito.
- Era, portanto, necessário existir um Direito Natural, à luz do qual esse direito
positivo fosse invalidado e consequentemente legitimada a sua desobediência.
Nota: Um exemplo desta inversão foi o filósofo Gustav Radbruch (já antes
mencionado) que, antes da guerra, era positivista, mas acaba por se “converter” ao
jusnaturalismo, dados os horrores cometidos pelos nazis, sempre com cobertura do
direito positivo.
- No entanto, os positivistas reagem, iniciando-se um verdadeiro confronto entre as
duas conceções. Destaca-se aqui o debate Fuller-Hart que iniciou com uma
sentença proferida por um tribunal da RFA, em 1949. Passa-se a resumir o caso:
Mulher e marido viviam casados durante o regime nazi. As autoridades tinham promulgado uma lei que punia
quem proferisse declarações ofensivas do Governo do Reich. O marido, em dias de folga do serviço militar,
ataca e insulta o regime à frente da sua mulher que era militante nazi. Deste modo, a mulher denuncia o marido
às autoridades, que acaba por ser condenado à morte. Tal não chegou a acontecer, pois foi necessário enviá-lo
para a guerra.
Passada a guerra, a mulher foi acusada do crime de “privação de uma pessoa da sua liberdade” por ter
denunciado o marido.
A sua defesa baseou-se no facto de que ela se limitou a cumprir a lei em vigor no momento, a quem devia
obediência (positivismo).
No entanto, o tribunal decidiu em termos opostos (jusnaturalismo): a lei positiva era contrária “à sã consciência e
ao sentido de justiça de todos os seres humanos decentes” e, por isso, era inválida. A mulher foi, portanto,
condenada.

- Hart criticou a decisão do tribunal, de um ponto de vista positivista. Fuller


respondeu, posicionando-se a favor do jusnaturalismo. Importa, no entanto, apontar
que tanto um como outro reconhecem a existência de valores e critérios
supralegais, que devem servir para ajudar o Homem a decidir se há-de obedecer ou
não a uma determinada lei. O ponto em que eles divergem é o seguinte: Fuller
acredita no Direito Natural, deduzindo dele a invalidade jurídica das leis imorais,

27
extraindo daí a legitimidade da sua desobediência. Já Hart não acredita no Direito
Natural, considerando juridicamente válida qualquer norma produzida de acordo
com as regras estipuladas para se elaborar leis, independentemente do seu
conteúdo, sendo, portanto, obrigatória a sua obediência. Coloca, assim, a tónica,
não em termos jurídicos, mas em termos políticos, ou seja, o combate às leis
imorais e injustas deve ser feito politicamente e não juridicamente.
Em suma, a legitimidade do Direito natural foi modificando ao longo do tempo:

● 1ª fase (Grécia Antiga): natureza humana.


● 2ª fase (Idade Média): vontade de Deus.
● 3ª fase (Iluminismo): Razão.
● Mais recentemente: voltou a pôr-se a tónica na natureza humana.

Razões que Freitas do Amaral aponta para defender o jusnaturalismo:


Desde sempre se afirmou defensor do jusnaturalismo – cristão, quanto ao
fundamento, e liberal, quanto ao conteúdo. No entanto, atualmente, nas suas
palavras, “o problema tem de ser visto, em parte, a outra luz, porquanto, por um
lado, vivemos constitucionalmente num Estado laico e, por outro, somos, também
por força da Constituição, um Estado social”.

1. “Uma boa parte dos valores humanos supralegais que permitem aferir da
legitimidade ou ilegitimidade do Direito positivo são valores jurídicos” e, por
isso, esse juízo de legitimidade deve caber ao Direito e não à política. Ora,
rejeitando o Direito natural, teria necessariamente que se fazer esse juízo
com recurso à política, porque nada mais haveria dentro do Direito. Não deve
ser a política a dizer o que é lícito ou não para o Direito, mas sim o
próprio Direito. Para o Doutor Freitas do Amaral, os três valores
fundamentais do Direito, que dão corpo ao Direito natural, são a justiça, a
segurança e a dignidade da pessoa humana (proteção dos direitos
humanos).

2. “Só o Direito natural nos permite avaliar juridicamente a validade ou


invalidade de uma Revolução”. Uma revolução, de acordo com o Direito
positivo, é sempre um crime.

Portanto, Freitas do Amaral pergunta: “Como é que justifico que uma


revolução que triunfa (sendo um crime) possa legitimamente substituir
toda uma ordem jurídica por outra?”
Resposta dos juspositivistas: o Direito vigente tem como fundamento o
reconhecimento da comunidade a que se aplica, ou seja, depende da adesão da
comunidade.
Só que esta resposta falha em 2 dimensões: nada nos diz que a
comunidade vá aderir ao regime pós-revolução (ex: ISIS – não houve adesão da

28
comunidade, foi-lhe imposto) e, além disso, a comunidade podia ter aderido ao
regime que foi derrubado pela revolução.

Já o Direito natural dá essa resposta: se o regime que foi derrubado pela


revolução era ilegítimo (contrário ao Direito Natural), a revolução é legítima
porque, apesar de quem o derrubou ter violado o direito positivo, repõe o Direito
Natural. Na situação oposta, a revolução é ilegítima.

3. “O jusnaturalismo tem a vantagem de, no plano da paz social, permitir


conduzir o combate às leis injustas dentro do aparelho judicial”, ou seja, nos
tribunais, enquanto o positivismo não tem armas jurídicas para efetuar essa luta,
reduzindo-se apenas ao plano político.

Ao longo do tempo, tem-se colocado a pergunta:


“O Direito Natural é um Direito imutável ou influenciado pela cultura?”

➔ Durante muito tempo, defendeu-se que o Direito Natural é imutável.

➔ Na atualidade, a grande maioria dos autores admite que o Direito Natural é


influenciado pela cultura da sociedade concreta onde é suscitado. No
entanto, existe um núcleo essencial assente na proteção da dignidade
humana, esse sim constante ao longo do tempo (imutável).

Dr. Freitas do Amaral define esse núcleo essencial como sendo constituído por
“todos os valores, normas e princípios que tenham a ver com o respeito devido à
dignidade da pessoa humana, na sua tripla dimensão política, económica e social”.
Nota: A metáfora normalmente utilizada é a lógica de pêndulo – há princípios
fundamentais comuns a todos os tempos e locais (têm um ponto fixo comum), que é
proteção da dignidade da pessoa humana, mas as suas concretizações vão
variando em função da cultura.

➔ A doutrina tem avançado no sentido de dizer que esta querela, na atualidade,


não tem o mesmo impacto que tinha antigamente. Após a 2ª Guerra Mundial,
deu-se uma crescente positivação do Direito natural (ex: CRP – direitos
fundamentais; DUDH; Direito penal; etc). Por isso, na prática, as posições
dos jusnaturalistas e dos juspositivistas acabam por se encontrar. No entanto,
não deixa de ser importante ter o Direito Natural em mente, pois são várias
as questões atuais que interferem com esta problemática.

Nota: Querela – discussão/divergência

29
II. Ramos do Direito
Bibliografia do ponto 2:
- Oliveira Ascensão – páginas 333 a 361
- Freitas do Amaral – páginas 213 a 340
Introdução
A ordem jurídica é una, mas o seu estudo impõe demarcações de setores –
ramos do Direito. Freitas do Amaral concebe o Direito objetivo como uma árvore,
que representa o conjunto da ordem jurídica; o tronco é constituído pelos valores
jurídicos superiores e pelos princípios gerais comuns a todos os ramos do Direito;
os ramos são, por sua vez, as várias partes ou divisões do direito objetivo,
diferenciadas em função da matéria regulada pelas normas jurídicas.
A divisão em ramos de Direito é uma divisão que vem da ciência jurídica, foi
criada por quem faz doutrina jurídica (ou seja, Direito enquanto ciência jurídica), não
para separar o Direito em compartimentos estanques, sem ligação uns com os
outros, mas sim para ser mais fácil estudar. Isto porque é impossível uma pessoa
conhecer a totalidade das normas jurídicas. O que se fez foi criar divisões que
permitissem agrupar as normas jurídicas com base em critérios de afinidade entre
elas, assim tornando mais acessível a compreensão do sistema jurídico como um
todo. Esta necessidade cedo se fez sentir, com a divisão, em Roma, de toda a
ordem jurídica em Direito Público e Direito Privado.
No entanto, importa apontar que, na prática, os problemas jurídicos aparecem
como problemas da vida real, cuja solução passa inevitavelmente pela combinação
de vários ramos do Direito.

Direito Público vs. Direito Privado


A principal divisão que existe dentro do sistema jurídico (a “summa divisio”) é
a que opõe o Direito público ao Direito privado.
São tradicionalmente apresentados 3 critérios de distinção entre Direito
público e Direito privado:

■ Critério do interesse – parte da célebre frase de Ulpiano que, traduzida, diz


“o Direito público é aquele que respeita à República romana; o direito privado
é o que importa à utilidade dos particulares”.
Segundo este critério, o Direito público visa a satisfação dos interesses
públicos (interesses do Estado ou de um ente público menor) e o Direito
privado a satisfação dos interesses privados (interesses individuais ou de

30
entidades particulares). Relativamente a este critério, e pelas razões de
seguida mencionadas, Oliveira Ascensão considera este critério
insustentável, ao passo que Freitas do Amaral considera que continua a ser
adequado na maioria dos casos, mas há exceções. Ambos tecem uma crítica
ao mesmo:

Crítica: Não existe uma divisão rígida entre o que é interesse público e privado. O
interesse público promove interesses privados de cada cidadão e o interesse
privado é protegido porque existe um interesse público nesse sentido. Há normas de
direito público que protegem a realização dos interesses particulares, bem como
normas há que visam proteger, na esfera da vida privada dos particulares, certos
interesses públicos.

Para tentar salvar este critério introduziu-se uma correção: o Direito público
promove predominantemente interesses públicos e o Direito privado promove
predominantemente interesses privados. Mas, como diz Oliveira Ascensão,
introduzir um juízo de predominância num critério que tem como objetivo facilitar a
realidade, cria insegurança e incerteza. Portanto, não serve, é insuficiente. E, por
isso, avança-se para um segundo critério.

■ Critério da qualidade dos sujeitos – segundo este critério, é público o


Direito que regule situações em que intervém o Estado ou qualquer ente
público e é privado o Direito que regule as situações dos particulares
(indivíduos ou pessoas coletivas privadas). Mais uma vez, Oliveira
Ascensão não aceita este critério, ao contrário de Freitas do Amaral que diz
que é aplicável na maioria dos casos, mas há exceções. Surge, portanto, a
crítica ao critério:

Crítica: Há situações em que o Estado e os demais entes públicos atuam como


meros particulares, decidindo atuar ao abrigo de normas de Direito Civil. Como diz
Oliveira Ascensão, não é pelo facto de os entes públicos celebrarem compras e
vendas, por exemplo, que as regras aplicadas deixam de ser Direito Privado. Este
critério é, pois, insuficiente para determinar a distinção entre estes dois grandes
ramos do Direito.
Exemplo: o motorista do PM António Costa, quando abastece o carro do Governo
numa bomba de gasolina, sem qualquer tipo de poder extra por ser o carro do
Governo.

■ Critério da posição dos sujeitos (critério adotado) – Nas palavras de


Oliveira Ascensão, o Direito público constitui e organiza o Estado e outros
entes públicos e as relações entre eles no exercício das suas funções
públicas e também regula as relações entre os entes públicos e os
particulares, quando os entes públicos atuam dotados do seu poder de
império (ius imperii). O Direito privado regula as relações entre os particulares
e entre estes e os entes públicos, quando os entes públicos atuam

31
despojados do seu poder de autoridade (como lhe chama Freitas do
Amaral) ou poder de império (relação de paridade entre as partes em termos
de poder).
Exemplo: Expropriação de um terreno – Direito Público
Compra de um terreno – Direito Privado

A partir daqui, Freitas do Amaral define estes dois ramos do Direito da seguinte
maneira:
Direito Público – “sistema de normas jurídicas que, tendo em vista a prossecução
de um interesse coletivo, conferem, para esse efeito, a um dos sujeitos da relação
jurídica poderes de autoridade sobre o outro”.
Direito Privado – “sistema de normas jurídicas que, visando regular a vida privada
das pessoas, não conferem a nenhuma delas poderes de autoridade sobre as
outras, mesmo quando pretendem proteger um interesse público considerado
relevante”.
Nota: Freitas do Amaral – Tem havido dois movimentos de sentido contrário que
aproximam, e até sobrepõem, os dois ramos: a publicização do direito privado e a
privatização do direito público. Esta aproximação entre eles faz com que, por vezes,
uma mesma situação seja simultaneamente regulada por normas de direito público
e de direito privado.
Segundo Oliveira Ascensão:
Ramos do Direito: setores da ordem jurídica compostos por conjuntos de normas
delimitadas segundo o seu conteúdo. O conteúdo de cada ramo do Direito é
estruturado por intermédio de princípios gerais próprios que lhe conferem
identidade.

No entanto, há ramos do Direito que, por não respeitarem as


fronteiras do Estado, não podem ser classificados nem como
Direito Público nem como Direito Privado:
Direito Internacional Público – Este ramo do Direito vive atualmente um período
de rápidas transformações que tornam difícil a demarcação de contornos. A noção
clássica de DIP é o que regula as relações entre os Estados (soberanos,
logicamente).
Segundo Freitas do Amaral, é “ramo do Direito constituído pelo sistema de
normas jurídicas que se aplicam a todos os membros da comunidade internacional
para regular os assuntos específicos desta, a fim de garantir os fins próprios da
referida comunidade nas matérias da sua competência”.
No entanto, esta conceção deixa de parte outros sujeitos de DIP (como as
organizações internacionais) e, além disso, assiste-se atualmente a uma evolução
no sentido de abranger os próprios indivíduos como sujeitos de Direito Internacional.

32
Isto porque há normas que têm por objeto direto as condutas dos indivíduos (ex:
criminosos de guerra OU o próprio recurso a tribunais internacionais pelos sujeitos
individuais).
Oliveira Ascensão entende que DIP não pode ser considerado nem Direito
Público, nem Direito Privado, uma vez que esta divisão centra-se no âmbito interno
dos Estados. As relações regidas por ele não são de subordinação, mas de
coordenação, pois os sujeitos regulados por ele são entidades soberanas.
Direito da União Europeia – segundo Freitas do Amaral, é o “sistema de normas
jurídicas que regulam a organização e o funcionamento da União Europeia, bem
como os direitos fundamentais dos cidadãos europeus, a fim de prosseguir a
gradual integração política, económica e monetária dos seus países membros, os
quais convencionam para o efeito o exercício em comum dos poderes necessários à
construção da unidade europeia”.
Dentro das fontes de Direito da UE, existem 2 tipos:
- Direito originário – constituído pelos tratados da União Europeia, o segmento do
DIP (Roma, Maastricht, etc).
- Direito derivado – normas jurídicas produzidas pelos órgãos da União Europeia.
São Direito interno da UE, sendo supranacional face aos países (ex: regulamentos e
diretivas).
Direito dos organismos intermédios (segundo Oliveira Ascensão) / Direito
corporativo (segundo outros autores) – ramo do Direito que congrega as normas
jurídicas infraestaduais criadas por ordens institucionais menores, que têm uma vida
jurídica autónoma em relação à vida do Estado (porque não estão em causa normas
infraestaduais com origem na administração pública, como os municípios, mas sim
normas criadas por organismos que representam diferentes categorias morais,
culturais, económicas ou profissionais – artigo 1º nº2 do Código Civil). É um poder
originário (não deriva do Estado) e abrange as normas que regulam a constituição,
estrutura e funcionamento dos organismos corporativos, sejam elas de origem
infraestadual ou estadual, bem como as normas criadas por esses organismos ao
abrigo do seu poder jurisgénico (poder de criar Direito).
Exemplo: Ordem dos advogados; Ordem dos médicos; Direito do desporto é um
dos maiores exemplos.

Ramos do Direito Público


Nota inicial: Todos os ramos do Direito de seguida enunciados constituem os
principais a saber, mas cada vez são mais as ramificações da árvore definida por
Freitas do Amaral daquela que é a ordem jurídica portuguesa.

33
Direito Constitucional – segundo Freitas do Amaral, é o sistema de normas
jurídicas que regulam a organização e o funcionamento dos poderes do Estado,
asseguram a proteção da constitucionalidade das leis e dos direitos fundamentais,
definem as tarefas essenciais do Estado e os principais objetivos da governação
pública. Ocupa o lugar central, pois é ele que caracteriza o Estado como detentor do
poder soberano. No entanto, apesar de a maioria das normas constitucionais
estarem presentes na Constituição, há normas constitucionais que não estão lá
previstas, mas sim dispersas por leis avulsas (ex: lei do Tribunal Constitucional, lei
da nacionalidade, o regimento da Assembleia da República, etc).
Direito Administrativo – segundo Oliveira Ascensão, é o sistema que regula a
organização e atividade dos órgãos da administração pública enquanto tais na
prossecução de interesses coletivos, bem como a atividade de outros entes públicos
também na prossecução de interesses coletivos. A doutrina costuma discutir muito a
questão de saber distinguir o Direito Administrativo do Direito Constitucional.
Direito Tributário – segundo Freitas do Amaral, é um sistema de normas que
regulam a administração das receitas públicas (conseguidas através de taxas e
impostos), estabelecendo os direitos e garantias das entidades públicas e os direitos
dos particulares no que concerne a irregularidades cometidas nessa atividade.
O autor aponta-o como sub-ramo do Direito Administrativo, pois é constituído por
normas que estabelecem poderes de autoridade do Estado e dos entes públicos
menores sobre os particulares, bem como deveres, encargos e sujeições dos
últimos perante os primeiros, assim como é também constituído por normas que
impõem limitações, restrições e encargos de direito público aos entes públicos. No
entanto, este ramo autonomizou-se.
Direito Fiscal – segundo Freitas do Amaral, é um sistema de normas jurídicas que
definem impostos e o seu montante a pagar pelos cidadãos e pelas empresas ao
Estado e aos entes públicos menores. Além disso, protege/salvaguarda os direitos
dos contribuintes perante a administração tributária e vice-versa. É um sub-ramo do
Direito Tributário.
Direito Penal – segundo Freitas do Amaral, é o conjunto das normas jurídicas que
qualificam os factos ilícitos de maior gravidade social como crimes e estabelecem
para eles as penas e medidas de segurança tidas como adequadas. É um ramo
particularmente sensível ao modelo político que vigora no país e aos respetivos
princípios constitucionais. Nos Estados democráticos, em caso de dúvida, adota a
regra de que “mais vale não condenar um culpado do que condenar um inocente” (in
dubio pro reo). Não é o arguido que tem de provar em tribunal a sua inocência, mas
a acusação pública tem que mostrar que ele é culpado.
Nota: Oliveira Ascensão é o único autor em Portugal que defende que o Direito
Penal é um ramo do Direito Privado, justificando que os deveres penais são deveres
dos indivíduos e a aplicação das penas em termos judiciais não implica que o Direito
Penal regule a atividade do Estado.

34
Maioria da doutrina: o que está em causa é a conduta do sujeito para com a
sociedade como um todo, que é representada pelo Estado, através do Ministério
Público.
Por causa do peso do Direito Penal, ele obedece a um princípio estrito de
tipicidade ou legalidade, o que significa que só há crimes se houver previsão legal
anterior nesse sentido e a aplicação da pena também depende de uma previsão
legal anterior. Isto porque, como a consequência do Direito Penal é tão grave, tem
de haver sempre uma norma a prevê-la para que possa ser aplicada. E por esta
razão, é absolutamente proibida a analogia de normas penais incriminadoras.
As sanções criminais são penas e medidas de segurança. Existem 2 tipos
de penas principais – a prisão e a multa. As medidas de segurança aplicam-se
quando o agente é considerado inimputável, ou seja, alguém que não consegue
avaliar a ilicitude da conduta ou não consegue agir de acordo com essa avaliação.
Nota: A multa é uma sanção exclusiva do Direito Penal. Relaciona-se com a
privação do património, ou seja, elementos do património são confiscados (no caso
da multa, é o dinheiro).
Direito de Mera Ordenação Social – segundo Freitas do Amaral, regula os atos
ilícitos de menor gravidade social por comparação com o Direito Penal, qualificando-
os como “contraordenações”, e estabelece sanções pecuniárias designadas por
coimas. Há, na doutrina, quem defenda que o Direito de Mera Ordenação Social é
um sub-ramo especial do Direito Penal, mas Freitas do Amaral não concorda,
advogando que este segundo é caracterizado pelo binómio crime-pena, aplicada por
um tribunal, para os factos ilícitos de elevada gravidade social e, no primeiro, não há
nem crimes, nem penas, nem factos ilícitos de forte gravidade social, sendo que as
coimas são aplicadas por um órgão administrativo.

Nota: Multa ≠ Coima: São ambas em dinheiro, mas a multa é uma sanção penal,
enquanto a coima é uma sanção contraordenacional.
Direito Processual – segundo Oliveira Ascensão, disciplina a atividade dos juízes
na solução dos casos que lhe são apresentados. Diz-se que é direito adjetivo,
porque é instrumental face aos restantes ramos do direito que se designam por
substantivos (diz qual é a tramitação a seguir para resolver as situações, mas não
dá soluções para problemas jurídicos concretos). É muitas vezes ajustado ao ramo
do direito substantivo, sendo que, em princípio, a cada ramo de direito substantivo
corresponde um ramo adjetivo que lhe dá realização. Até agora, este
desenvolvimento já foi consolidado nos 2 seguintes sub-ramos:

■ Direito Processual Civil – segundo Oliveira Ascensão, abrange o processo


relativo a todos os ramos do Direito Privado que não lhe foram subtraídos, ou
seja, aplica-se sempre que não há um processo especial em todos os ramos
do Direito Privado – é um processo dispositivo, ou seja, encontra-se na

35
disponibilidade das partes (é o autor que decide se intenta a ação ou não e o
réu se contesta ou não a ação; as partes definem que provas apresentam, o
que alegam, se chegam ou não a acordo, etc). No entanto, o juiz não está
numa posição passiva, cabendo-lhe assegurar que o processo chegue
efetivamente à descoberta da verdade.

Nota: Ónus da contestação – se um réu ignorar uma petição inicial e não contestar
dentro do prazo, os dados elencados na petição inicial são dados como aceites por
acordo.
Sentença – proferida por apenas 1 juiz.
Acórdão – proferido por 3 ou mais juízes.
Dentro do processo civil, é possível distinguir:

● Processo declarativo – visa essencialmente tornar certo um direito, ou seja,


define qual o direito das partes (através da sentença).

● Processo executivo – o objetivo é dar realização efetiva ao direito declarado.


Para haver processo executivo, o autor tem que ser titular de um título
executivo (ex: sentença; cheque; ata do condomínio; etc).

■ Direito Processual Penal – abrange o processo relativo ao Direito Penal e


ao Direito de Mera Ordenação Social. Em regra, está afastado do Direito
Penal o princípio do dispositivo. As partes do processo penal, em regra, são o
Ministério Público, em representação da comunidade, e o arguido. A pessoa
ofendida (vítima) pode constituir-se assistente no processo. Em processo
penal, a não contradição dos factos não os torna válidos, uma vez que o
silêncio do arguido é um direito e daí não se retira prova nenhuma.

Existem 3 tipos de crimes em processo penal:

● Públicos – não depende de queixa nem de dedução de acusação.


Ex: violência doméstica: mesmo que a pessoa não queira apresentar queixa,
o caso vai a julgamento na mesma.
● Semipúblicos – depende de queixa, mas não depende de acusação
particular.
● Particulares – dependem de acusação particular. Ex: agressão

O fundamental em processo penal é o princípio do contraditório, o que


significa que o réu tem os mesmos poderes processuais que a acusação. Isto é
muito importante, porque toda a prova tem de ser produzida ou reproduzida em
julgamento para que aí possa ser debatida.
Nota: Queixa – dá à polícia conhecimento do crime.
Acusação – exige ida a tribunal.

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Ramos do Direito Privado
Nota inicial: Todos os ramos do Direito de seguida enunciados constituem os
principais a saber, mas cada vez são mais as ramificações da árvore definida por
Freitas do Amaral daquela que é a ordem jurídica portuguesa.
Direito Civil – considerado o tronco do Direito Privado, é designado habitualmente
como o Direito Privado comum, por regular os setores de que todos participam.
Segundo Oliveira Ascensão, disciplina a vida das pessoas comuns, abstraindo de
qualificações especiais. Provavelmente é o mais antigo ramo do direito, sendo, por
isso, o que foi mais cultivado, trabalhado e construído. Como diz Freitas do
Amaral, “o Direito Civil cobre com o seu manto regulador toda a vida privada dos
indivíduos, desde o berço até ao túmulo”, além de regular, também, as diferentes
maneiras de organização coletiva de grupos de indivíduos. A sua principal
codificação no ordenamento jurídico português é o Código Civil. Quase todas suas
normas constam nesta codificação, mas também há normas avulsas que regulam
matéria civil.
Tendo por base a classificação germânica, é constituído por 5 livros – Parte
geral; Direito das obrigações; Direito das coisas; Direito da família; Direito das
sucessões.

■ Direito das Obrigações – segundo Oliveira Ascensão, regula as situações


pelas quais uma pessoa fica vinculada para com outra à realização de uma
prestação, ou seja, a adotar um comportamento para satisfação de um
interesse de outrem. Àquele que está vinculado ao comportamento designa-
se devedor e o que tem o direito ao comportamento designa-se credor. As
obrigações têm um caráter dinâmico (estão mais ligadas às transferências de
bens e à prestação de serviços).

■ Direitos Reais / Direito das Coisas – segundo Oliveira Ascensão, regula a


atribuição das coisas de tal modo que uma pessoa fica com um direito
oponível a terceiros que lhe dá possibilidade de tirar vantagem da coisa. O
direito real por excelência é o direito de propriedade (usucapião). Os direitos
reais têm um caráter estático (regulam a atribuição de bens).

Nota: a usucapião surge nos direitos reais, porque gera um direito real de
propriedade por aquisição originária.

■ Direito da Família – segundo Oliveira Ascensão, regula a constituição da


família e as relações que se estabelecem no seu seio. As relações familiares
advêm de 3 factos: casamento, procriação e adoção. Família será, por isso,
um conjunto de pessoas ligadas por um vínculo conjugal, pelo parentesco,
pela afinidade (relação que um cônjuge tem com os familiares do outro
cônjuge) e pela adoção.

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Nota: A 3 factos correspondem 4 vínculos, porque o casamento gera afinidade e
parentesco.

■ Direito das Sucessões – regula a sucessão por morte. Há várias espécies


de sucessão, dependendo do título pelo qual os sucessores são chamados:
➢ Testamentária – deferida por testamento;
➢ Legitimária – é obrigatória; deferida quando há ascendentes,
descendentes e cônjuge (os herdeiros legitimários são aqueles que
não podem ser afastados da herança, mesmo que essa seja a vontade
do autor da sucessão – ex: um filho, em Portugal, não pode ser
afastado da herança);
➢ Legítima – deferida a familiares, quando não há herdeiros legitimários
nem testamento ou quando o autor da sucessão não tenha
manifestado por testamento outra vontade.

A par do Direito Civil há um conjunto de outros ramos do Direito Privado


que se foram autonomizando do Direito Civil:
Direito comercial – segundo Freitas do Amaral, é o “sistema de normas jurídicas
que regulam o estatuto dos comerciantes e o regime dos atos e atividades de
comércio”. Surgiu da adaptação das regras do Direito Civil às especificidades da
atividade comercial.
Exemplo: a necessidade de celeridade da atividade económica (as relações
comerciais têm que ser rápidas);
A finalidade lucrativa;
O reforço do crédito;
A proteção acrescida do credor;
O profissionalismo (atividade caracterizada por pelo menos uma das partes atuar no
âmbito profissional);
A boa-fé.
No fundo o seu objetivo é dar fluidez às relações económicas. Regula o
comércio em sentido económico, a indústria, as pescas, algumas atividades de
prestação de serviços (banca, serviços diversos, transportes de pessoas e bens) e
atos e documentos de formalização tanto de operações comerciais como de
negócios jurídicos civis (letras, livranças, cheques, etc).
Nota:

● Cada vez mais, o Direito Comercial é Direito Empresarial (apesar de não


haver uma total coincidência entre o comércio e a empresa).
● O conceito de comércio em Direito é muito mais amplo do que em Economia.

Direito do Trabalho – segundo Oliveira Ascensão, é um Direito Privado especial,


pois também especializa os princípios gerais do Direito Civil (sobretudo do Direito
das Obrigações), adequando-os às especificidades das relações de trabalho
subordinado. Por causa da existência deste elemento de subordinação do

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trabalhador às ordens do empregador e por causa da especial proteção do
trabalhador que caracteriza este ramo do Direito, muitos autores entendem que o
direito do trabalho não é um ramo do Direito Privado, mas sim do Direito Misto
(abrange uma dimensão do Direito Privado e uma dimensão do Direito Público),
porque se assume que não há igualdade entre as partes na relação laboral (o
trabalhador está em desvantagem face ao empregador).
Há duas grandes dimensões no direito do trabalho:

● O direito individual do trabalho – constituído pelas normas que regulam a


relação entre o trabalhador e o empregador, através do contrato de trabalho,
definido pela nossa lei no artigo 1152º do Código Civil.
● O direito coletivo do trabalho – constituído pelas normas que regulam os
fenómenos laborais de massa, como, por exemplo, a greve, as convenções
coletivas de trabalho, associações sindicais, associações patronais, etc.

Direito Internacional Privado – segundo Freitas do Amaral, é o sistema de


normas jurídicas que, na ausência de regulação direta do conteúdo das relações
privadas internacionais, designam qual a lei competente (nacional ou estrangeira)
para regular essas relações. Daí que se diga que o Direito Internacional Privado se
designa também Direito dos Conflitos. Não é função do Direito Internacional Privado
resolver situações da vida real, mas apenas identificar qual a legislação (lei
competente), nacional ou estrangeira, que irá dar essa resposta (que regulará essa
situação). O objetivo principal do Direito Internacional Privado não é promover a
aplicação preferencial da nossa própria lei, mas procurar encontrar, para cada tipo
de situação privada internacional, a lei que melhor puder corresponder às
expectativas fundadas das partes em conflito, ou a lei que se mostrar capaz de
fornecer uma solução mais justa e adequada para o litígio.
Exemplo: A, nacional de um país cuja lei civil admite o divórcio, casa com B,
cidadão de um Estado que proíbe o divórcio. Suponhamos que vieram entretanto
viver para Portugal e que A propõe contra B uma ação de divórcio. Como é que o
tribunal português deve decidir? É nestas situações, em que há várias leis a
quererem aplicar-se ao caso, que atuam as normas de Direito Internacional Privado
no nosso CC – ver o artigo 52º do CC.
Direito da Propriedade Intelectual – abrange:

■ Direito de Autor – segundo Freitas do Amaral, disciplina os direitos dos


criadores sobre as suas obras científicas, literárias e artísticas, bem como os
direitos dos artistas que interpretam ou executam aquelas obras.
■ Direito Industrial – segundo Freitas do Amaral, atribui direitos exclusivos
aos criadores de modelos originais de utilidade para a indústria
Exemplos: Patente (Direito Industrial por excelência, pois é um direito
exclusivo que se obtém sobre invenções); Marcas; Denominações de origem.

Ramos do direito emergentes

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Existe uma tendência na atualidade de autonomizar outros ramos do Direito,
como, por exemplo:

● Direito bancário (âmbito comercial);


● Direito dos seguros (âmbito comercial);
● Direito do consumo (âmbito económico);
● Direito da concorrência (âmbito económico).

III. A Norma Jurídica

A norma jurídica equivale ao átomo do Direito. É uma partícula de atuação.


Segundo o Dr. Oliveira Ascensão, a norma jurídica é “o critério de qualificação e
decisão de casos concretos e opera como mediadora na aplicação do Direito às
situações concretas da vida”. Ou seja, é uma mediadora para os juristas na
resolução de casos concretos.
É importante ressalvar que, embora a maioria das normas jurídicas sejam normas
de conduta, nem sempre é assim. É o caso, por exemplo, das normas meramente
qualificativas, que delimitam e qualificam os elementos com que a ordem jurídica
trabalha. Por exemplo, as regras são personalidade jurídica, não são as regras de
conduta ou as regras que qualificam as coisas. Outro exemplo de normas jurídicas
que não são regras de conduta são as normas sobre normas. Por exemplo, uma
norma cujo conteúdo é a revogação de uma norma anterior.

Uma norma jurídica é constituída por dois elementos:

● Previsão → Também se dá o nome de hipótese legal ou facti-species.


É a situação típica da vida cuja verificação em concreto desencadeia a
consequência jurídica fixada na estatuição. Segundo o Dr. Batista
Machado, “procura dar uma imagem, visualização ou modelo daquele
facto que produz a consequência.”

● Estatuição → É a consequência jurídica a que se associa a verificação


da previsão. Ou seja, a previsão é a situação da vida a que se aplica a
norma, a estatuição é a consequência jurídica em caso daquela
situação concreta efetivamente ocorrer.
Ex: art. 283º do CC: Todo aquele que ilícita e culposamente causar
danos a outrem (previsão), fica obrigado a indemnizar o lesado
(estatuição).

Facto Jurídico - É todo o acontecimento natural ou humano suscetível de produzir


efeitos jurídicos. Nas palavras do Dr. Oliveira Ascensão, o facto é “o elemento

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dinamizador da ordem jurídica, porque altera as situações existentes, provocando
efeitos de Direito.”
Estes efeitos traduzem-se na constituição, modificação ou extinção de situações
jurídicas. Não são factos jurídicos os acontecimentos naturais ou humanos
indiferentes para o Direito (ex: convidar alguém para passear ou usar um vestido de
determinada cor). Portanto, todos os factos que não produzam efeitos de Direito não
são factos jurídicos. No entanto, mesmo um facto natural ascende à categoria de
facto jurídico se produzir efeitos de Direito como, por exemplo, uma tempestade que
fez naufragar um navio.

Situação Jurídica - Posição em que o sujeito jurídico se acha perante o Direito.

Relação Jurídica - Na sua face externa, corresponde à relação social disciplinada


pelo Direito. Internamente, consiste no laço que une um poder a uma vinculação, ou
seja, na relação jurídica, ao dever de um ou mais sujeitos. Com frequência, a
ocorrência de um facto jurídico faz nascer, modificar ou extinguir relações jurídicas,
porque é criada uma relação jurídica, a filiação. O divórcio é um facto jurídico
porque é criada uma relação jurídica, a extinção. É possível que, na ocorrência de
um facto jurídico, não resulte qualquer impacto para uma relação jurídica, mas
apenas a aquisição de uma qualidade jurídica (ex: a aquisição de personalidade
jurídica).
Nota: factos jurídicos, situação jurídica e relação jurídica são conteúdos da previsão.
Uma previsão pode conter um facto jurídico, uma situação jurídica ou uma relação
jurídica, sendo que o facto jurídico pode dar origem a uma situação ou relação
jurídica.

Nos factos jurídicos temos duas possíveis categorias: os puros factos jurídicos e os
atos jurídicos:

○ Puros factos jurídicos - São estranhos a qualquer processo


volitivo/voluntário, seja porque resultam de causas naturais, seja
porque a sua eventual voluntariedade não tem relevância jurídica, ou
seja, é irrelevante para o Direito se eles são voluntários ou não. Ex: o
nascimento (o Direito não quer saber se a mãe quer que a criança
nasça ou não), a morte (raramente é voluntária), relações de
vizinhança, decurso do tempo ou factos naturais como um temporal.

○ Atos Jurídicos - Resultam da vontade como elemento jurídico


relevante, ou seja, são tratados pelo Direito enquanto manifestação ou
atuação de uma vontade.
Dentro dos atos jurídicos distinguem-se os simples atos jurídicos dos
negócios jurídicos. Esta distinção tem como critério a relação que se
estabelece entre a vontade das partes dirigida a um resultado e o

41
resultado jurídico. O que está em causa é saber se existe ou não
coincidência entre a vontade das partes dirigida a um determinado
resultado e o resultado jurídico efetivamente produzido.

Simples atos jurídicos → São factos voluntários cujos efeitos se


produzem independentemente de terem sido previstos ou queridos
pelos seus autores. Produzem-se ex legem, por força da lei, e não ex
voluntate. Ex: fixação do domicílio voluntário, criação de uma obra
literária, interpelação do devedor para cumprir. São exemplos de atos
que são voluntários, mas os efeitos são os que estão fixados na lei,
quer eu queira quer não.
Dentro dos simples atos jurídicos distinguem-se os quase negócios
jurídicos e os atos reais.

Os quase negócios jurídicos também são chamados atos jurídicos


quase negociais. Traduzem-se na manifestação exterior de uma
vontade. É o caso de interpelar o devedor para cumprir.
Os atos reais também se chamam operações jurídicas. Traduzem-se
na efetivação ou realização de um resultado material ou factual a que
a lei liga determinados efeitos jurídicos. É o exemplo da criação de
uma obra.

Negócios jurídicos → São factos voluntários cujo núcleo essencial é


integrado por uma ou mais declarações de vontade a que o
ordenamento jurídico atribui efeitos jurídicos concordantes com o teor
das vontades manifestadas. No negócio jurídico produzem-se os
efeitos jurídicos desejados pelas partes. Produzem-se ex voluntate e
não ex legem. Ex: testamento, contrato de compra e venda, renúncia a
um direito. Em todos estes casos, eu pratico um ato voluntário com o
objetivo de que ele produza efeitos jurídicos que são por mim
desejados.
Dentro dos negócios jurídicos, distinguem-se os negócios jurídicos
unilaterais e os negócios jurídicos bilaterais. O critério de distinção
entre ambos assenta no número e no modo de articulação das
declarações de vontade que integram o negócio.

No caso dos negócios jurídicos unilaterais, eles são compostos por


uma só declaração de vontade ou por várias declarações de vontade,
mas todas no mesmo sentido, formando um único grupo. Ou seja,
existe só uma parte, ainda que composta por vários sujeitos. Ex: o
testamento (quando eu escrevo um testamento não há outra parte que
concorde), uma procuração ou uma renúncia a um direito.

42
Os negócios jurídicos bilaterais são chamados de contrato. São atos
jurídicos compostos por duas ou mais declarações de vontade, de
sentido oposto mas convergente, visando a produção de um resultado
jurídico unitário, coincidente com as vontades manifestadas. Ex:
compra e venda, arrendamento, empreitada.
Dentro dos negócios jurídicos bilaterais, é possível distinguir negócios
jurídicos bilaterais unilaterais (contrato unilateral ou não sinalagmático)
de negócios jurídicos bilaterais bilaterais (contrato bilateral ou
sinalagmático). O critério que pressupõe a distinção entre os contratos
unilaterais e os contratos bilaterais está relacionado com o número de
obrigações geradas pelo contrato e a sua titularidade.

Os contratos unilaterais/não sinalagmáticos geram apenas obrigações


para uma das partes. É o caso da doação.
Os contratos bilaterais/sinalagmáticos geram obrigações para ambas
as partes, e essas obrigações estão ligadas entre si por um nexo de
correspetividade, designado sinalagma. Isto significa que elas existem
uma em função e por causa da outra. Ex: compra e venda,
arrendamento.

Como já vimos, a estatuição corresponde à fixação da consequência jurídica a que


se associa a verificação da previsão. Os efeitos jurídicos possíveis associados a
uma estatuição são:

- Imposição de um dever jurídico


- Atribuição de um direito
- Atribuição de uma qualidade, competência ou faculdade jurídica

Por isso é que se diz que a norma jurídica ou obriga, ou faculta ou confere um
direito subjetivo.
Mas o que é um direito subjetivo?
Corresponde a um poder atribuído a uma determinada pessoa para satisfação de
um interesse próprio ou alheio, acompanhado da faculdade de dispor dos meios
coercitivos que protegem esse poder. Ao poder do sujeito ativo corresponde o
dever/obrigação do sujeito passivo.
Segundo Santos Justo, “o direito subjetivo é a faculdade ou poder, reconhecido pela
ordem jurídica a uma pessoa, de exigir ou pretender de outra um determinado
comportamento positivo (facere) ou negativo (non facere) ou de, por ato da sua livre
vontade, só de per si ou integrado por um ato da autoridade pública (decisão
judicial), produzir determinados efeitos jurídicos que inevitavelmente se impõem a
outra pessoa (adversário ou contraparte).”

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1. A primeira categoria de direitos subjetivos é a que opõe os direitos subjetivos
em sentido estrito aos deveres jurídicos. Nesta categoria:

● Direito subjetivo em sentido estrito ⇨ É o poder de exigir ou pretender de


outrem que adote uma certa conduta positiva ou negativa para satisfação de
interesses próprios ou alheios.
● Dever jurídico ⇨ Corresponde à adstrição a adotar o comportamento
imposto pelo exercício do direito subjetivo, no interesse do titular desse
direito.

1.1. Direitos subjetivos absolutos ⇨ São eficazes perante todos os membros


da comunidade, ou seja, podem ser invocados pelo seu titular contra qualquer outro
sujeito jurídico. Têm uma eficácia erga omnes, ou seja, uma eficácia contra todos -
todos estão obrigados a respeitar os direitos absolutos uns dos outros. Todas as
pessoas são obrigadas a respeitar esse direito - obrigação passiva universal = dever
geral de abstenção. Ex: direito à vida, à integridade física, de propriedade, entre
outros.

1.2. Direitos subjetivos relativos ⇨ Têm uma eficácia circunscrita a um dado


número de pessoas, só em face delas podendo ser invocadas, ou seja, só elas é
que estão obrigadas a respeitar esse direito. Daí se dizer que têm uma eficácia inter
partes, ou seja, só podem ser invocadas contra um determinado número de
pessoas. Ex: um contrato de arrendamento entre um estudante maior de idade e o
senhorio - o senhorio, em caso de o estudante não pagar a renda, não pode exigir
aos seus pais o pagamento, visto que o contrato foi feito entre o estudante maior de
idade e o senhorio (dever jurídico em sentido estrito).

2. A segunda categoria de direitos subjetivos é a que opõe o direito potestativo


ao estado de sujeição. Nesta categoria:

● Direito Potestativo ⇨ poder de, através de simples declaração de vontade,


integrada ou não por decisão judicial, produzir efeitos jurídicos na esfera do
sujeito passivo, sem que este possa fazer algo para o evitar. Enquanto no
direito subjetivo em sentido estrito o sujeito ativo precisa da colaboração do
sujeito passivo, no direito potestativo ele impõe o seu direito sem precisar da
colaboração do sujeito passivo. Quando o sujeito ativo tem um direito
potestativo, o sujeito passivo está em estado de sujeição, ou seja, tem de
suportar os efeitos que advêm do exercício do direito. Os direitos potestativos
podem ser constitutivos de relações jurídicas (ou seja, criar relações
jurídicas), modificativos de relações jurídicas (ou seja, alterar uma relação

44
jurídica pré existente) e podem ser extintivos de relações jurídicas (ex: o
divórcio litigioso, ou seja, mesmo que o outro cônjuge não se queira divorciar,
o sujeito ativo tem o direito de colocar o outro em situação de divorciado).

3. A terceira categoria de direitos subjetivos são os poderes funcionais, também


chamados poderes deveres e direitos de direção.

● Poderes funcionais ⇨ Nestes casos, o titular do direito não é livre de


exercer as inerentes faculdades ou poderes, estando também obrigado a
fazê-lo, porque estão também em causa interesses que não são apenas
seus. O Dr.
● Batista Machado chama-lhes “direitos funcionais ou direitos ligados ao
exercício duma função.” São direitos ligados ao exercício de uma função, e
devem ser exercidos segundo essa ligação. Ex: as responsabilidades
parentais ou o poder de direção do empresário que tem de ser exercido a
bem da empresa.

Figuras próximas de direitos subjetivos e deveres jurídicos, mas que não são nem
uma coisa nem outra, apenas se aproximam deles:

⇨ Ónus Jurídico - É próximo do dever jurídico. Consiste na observância de


um determinado comportamento prescrito por lei como condição para obter
uma certa vantagem, manter uma certa vantagem e não incorrer numa
desvantagem. Diferença entre ónus e dever jurídico: a violação de um dever
gera uma sanção, a violação de um ónus não, apenas poderá ter uma
consequência desvantajosa.

⇨ Mero Interesse Jurídico - Interesse tutelado pela ordem jurídica, a que não
corresponde um direito subjetivo, ou seja, o titular do interesse não tem o
poder de exigir ou pretender de outrem que adote os comportamentos
adequados à salvaguarda do seu interesse. Ex: a questão da vacinação
(tenho interesse que toda a gente seja vacinada, mas não posso obrigar
ninguém a sê-lo), boa conservação das estradas, entre outros. Segundo
Santos Justo, “falta-nos a faculdade ou o poder de exigir ou pretender esses
comportamentos que definem os direitos subjetivos.” O art. 483º do CC
abrange direitos absolutos e interesses legalmente protegidos, deixando de
fora os direitos relativos.

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⇨ Faculdades em sentido estrito - São possibilidades de agir que a ordem
jurídica admite e garante sem, todavia, constituírem direitos subjetivos.
Podem traduzir-se em meros poderes naturais (ex: passear num jardim) ou
na possibilidade de fazer negócios jurídicos (ex: casar). A estas faculdades
dá-se o nome de faculdades primárias, por oposição às faculdades
secundárias, que são as que compõem o conteúdo de um direito subjetivo.

⇨ Direitos Reflexos - São posições jurídicas que são tuteladas por efeito de
especiais obrigações que oneram outras. Ex: posição dos filhos perante as
responsabilidades parentais dos pais.

⇨ Expectativa Jurídica - Situação em que se encontra uma pessoa que ainda


não tem o direito subjetivo, mas conta razoavelmente vir a tê-lo. Não é uma
simples esperança. É, segundo o professor Orlando Carvalho: “uma situação
intermédia mais ou menos consistente da esperança que o direito protege.”
Está em causa uma formação progressiva de um direito subjetivo, faltando
apenas uma condição para a sua materialização. Ex: expectativa que um filho
tem de vir a herdar o património do pai.

São três as características apontadas à norma jurídica: imperatividade, generalidade


e abstração.
● Imperatividade - É falso apontar a imperatividade como característica da
norma jurídica, pois há normas que não são normas de conduta. Todas as
normas que não são regras de conduta não gozam de imperatividade. Há
também normas que são regras de conduta mas que não obrigam nem
proíbem, apenas permitem/facultam.

● Generalidade e abstração - Ao contrário dos comandos individuais e


concretos, que não criam direito objetivo, as normas jurídicas são gerais e
abstratas. Geral opõe-se a individual, abstrato opõe-se a concreto.
- Generalidade: A norma jurídica dirige-se a uma generalidade mais ou menos
ampla de destinatários determinados.
- Abstração: É abstrato o preceito que disciplina um número indeterminado de
casos e não casos ou hipóteses determinadas, ou seja, concretamente
visados.

Ambas são apontadas tendencialmente como características da norma


jurídica. “Tendencialmente”, porquê? Porque o Dr. Oliveira Ascensão rejeita a
abstração como característica da norma jurídica.
Generalidade não se confunde com pluralidade, são realidades diferentes.
Um preceito/uma regra pode ter como destinatários uma pluralidade de
pessoas e não ser geral. Da mesma maneira que é possível que a regra

46
tenha apenas um destinatário e seja geral. Portanto, o que está em causa
nas normas jurídicas não é a pluralidade, é a indeterminação. Os
destinatários são identificados com recurso a uma dada categoria abstrata ou
uma dada função.
Depois temos a abstração. É abstrato o preceito que disciplina ou regula um
número indeterminado de casos, ou seja, uma categoria mais ou menos
ampla de situações. Como assinala o Dr. Oliveira Ascensão, abstração não
significa que se refira apenas ao futuro. Uma norma jurídica pode aplicar-se a
situações já ocorridas. O que está em causa na abstração é ser uma
categoria de casos e não casos individualizados. Daí que o Dr. Batista
Machado diga que, na verdade, a abstração se reconduz também à
generalidade. No fundo, a abstração também está relacionada com a
generalidade. Ou seja, toda a norma deve ser geral no sentido de se destinar
a regular toda uma categoria de situações ou factos futuros e/ou presentes,
desde que a definição dessa categoria obedeça a critérios gerais e
objetivamente justificáveis. Ex: os sinais do polícia sinaleiro não são norma
jurídica, porque lhes falta generalidade e abstração, assim como uma
sentença de um tribunal e um contrato, pois apenas vinculam as partes.

Classificação de normas jurídicas

1ª classificação ☞ A que opõe as normas injuntivas/imperativas a normas


dispositivas.
Dentro das normas injuntivas/imperativas, temos as normas:
- Precetivas: são as que ordenam a adoção de uma dada conduta (ex: as
normas que nos obrigam a pagar impostos ou a circular pela direita).
- Proibitivas: são as que proíbem uma dada conduta (ex: normas que punem o
furto ou o homicídio).

Dentro das normas dispositivas, temos as normas:


- Permissivas: são aquelas que concedem poderes ou faculdades, deixando ao
titular a liberdade do seu exercício. Também se chamam normas facultativas,
normas de autorização ou normas concessivas.
- Interpretativas: neste contexto, correspondem àquelas disposições legais
cuja função é determinar o alcance e sentido imputáveis a certas expressões
ou certas condutas declarativas das partes em caso de dúvida.
- Supletivas: destinam-se a suprir a falta de manifestação de vontade das
partes sobre determinado ponto do negócio que carece de regulamentação.
Ou seja, são aquelas que podem ser afastadas por vontade das partes em
sentido distinto do seu conteúdo. Ex: comunhão de adquiridos, que é regime

47
de bens supletivos em Portugal, ou seja, é aquele que se aplica se as partes
não disserem algo diferente.
Mas como é que eu sei se uma norma é imperativa ou supletiva? Aquela norma é
obrigatória ou podem-na afastar se não a quiserem?
Muitas vezes, a própria norma dá a resposta. É muito frequente as normas
supletivas identificarem essa mesma supletividade, por exemplo, começando por
“salvo convenção em contrário” ou “salvo acordo em contrário”. Há casos, porém,
em que a norma nada diz. Nesse caso, identificar a natureza imperativa ou supletiva
da norma depende de um juízo de interpretação, tendo por base a própria norma e a
sua integração no sistema jurídico. O intérprete tem de avaliar se a norma é ou não
essencial à fisionomia daquele instituto e se pode ou não ser posta de parte sem
romper o equilíbrio de interesse fixado pelo legislador.

2ª classificação ☞ Normas universais, regionais e locais. Esta classificação reporta-


se ao âmbito de validade territorial da norma.
- Norma universal: aplica-se em todo o território do Estado.
- Norma regional: aplica-se numa dada região autónoma.
- Norma local: aplica-se apenas no território de uma autarquia local e pode ser
emanada por um órgão local mas também por um órgão central (ex: o
governo decretar um decreto lei sobre a região do Algarve). Isto é muito
importante, pois enquanto o direito emanado dos órgãos locais se aplica
apenas naquela circunscrição geográfica, o direito local, emanado por um
órgão central, pode ser usado para integrar lacunas de outras leis centrais ou
locais.

3ª classificação ☞ Opõe normas gerais, normas excecionais e normas especiais.


- Normas gerais: constituem o direito regra, ou seja, estabelecem o regime
regra para o setor de relações que regulam.
- Normas excecionais: limitam-se a uma parte restrita de um dado setor de
relações ou factos, consagrando nesse setor restrito, por razões privativas
dele, um regime oposto ao regime regra. Nos termos do art. 11º do CC, as
normas excecionais não podem ser aplicadas analogicamente.
- Normas especiais: não consagram uma disciplina diretamente oposta ao
regime regra, mas consagram uma disciplina nova ou diferente para círculos
mais restritos de pessoas, coisas ou relações, em função da sua
especificidade. Ou seja, elas não contrariam substancialmente o princípio
contido no regime regra, mas adaptam-no a um domínio particular. Enquanto
uma norma excecional não pode ser aplicada analogicamente, uma norma
especial pode.

4ª classificação ☞ Normas autónomas, normas não autónomas e proposições


jurídicas incompletas.
- Normas autónomas: são a regra.

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- Normas não autónomas: são aquelas que, por si só, não têm um sentido
completo, faltando-lhes toda ou parte da hipótese ou toda ou parte da
estatuição, só o obtendo por remissão para outras normas. É o caso das
normas remissivas e o caso das normas que ampliam ou restringem o campo
de aplicação de normas anteriores.
- Proposições jurídicas incompletas: não chegam a ser verdadeiras normas
jurídicas. É o caso das classificações e das definições legais. São
disposições que se destinam a integrar as hipóteses globais de outras
normas ou a definir os conceitos normativos por estas utilizados.

Codificação

O legislador da Constituição é a Assembleia Constituinte; o legislador do Código


Civil é o Governo.
Um código é uma lei, igual a qualquer outra e com a mesma força, podendo ser
afastada por qualquer outra lei de igual valor. A codificação é uma lei material.
O Código Civil não é uma lei com mais valor do que qualquer outra lei avulsa.
Segundo Batista Machado, “na hierarquia das leis, o código tem a força própria da
lei que o aprova ou na qual está contido.”
O CC tem o valor da lei que o aprovou. Materialmente, o CC consubstancia um
decreto lei e, portanto, tem a força que tem qualquer decreto lei (ex: se for um
decreto lei do Governo, tem a mesma força de um decreto lei do Governo), o que
significa que qualquer outra lei posterior pode afastar uma lei do CC.
O que caracteriza o código é o facto de ser uma lei que contém a disciplina
fundamental de certa matéria ou ramo do Direito, elaborado de forma científico-
sistemática e unitária. Esta elaboração facilita a construção científica do Direito ao
pôr em evidência os princípios comuns, as grandes orientações legislativas, os
grandes nexos construtivos e funcionais, bem como a articulação entre os diversos
institutos e figuras jurídicas. A grande vantagem da elaboração unitária é que regula
de modo integrado um setor relativamente vasto da vida social.

Um código não se confunde com estatutos (que é outro tipo de codificação).


Usa-se a denominação estatutos, em vez de código, para identificar leis que
regulam também de maneira unitária e sistemática uma determinada matéria que
não goza da amplitude, dignidade ou estabilidade suficientes para ser designada por
código. Também se dá o nome de estatutos às leis que regulam de forma unitária e
sistemática uma determinada carreira ou profissão (ex: estatutos da ordem dos
advogados).

Uma outra designação que se distingue de código é a lei orgânica. A lei orgânica
regula de modo sistemático e unitário o funcionamento de um serviço (ex: lei
orgânica do Ministério Público).

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Há também uma outra figura, a que se dá o nome de lei avulsa, também chamada
lei extravagante. São leis que introduzem alterações a matérias constantes de
códigos, não sendo neles integradas (ex: lei de defesa do consumidor).

Principais vantagens e desvantagens da Codificação

● Vantagens:

- Maior facilidade de reconhecimento das normas (o Dr. Oliveira Ascensão diz


que o código fornece ao intérprete um mapa, permite identificar mais
facilmente onde é que está a solução para cada caso e pode ser utilizado
como ponto de partida para integrar lacunas).

- Permite um conhecimento mais fácil do Direito, mesmo para não juristas.

- Traz ao de cima os princípios fundamentais de cada ramo do Direito.

● Desvantagens:

- A grande desvantagem que é apontada à Codificação é a rigidez. O


legislador evita mexer nos códigos, pois existe uma espécie de dignidade
acrescida que lhes é reconhecida e faz com que o legislador seja mais
cauteloso. Rigidez no sentido em que se torna mais difícil adaptar as normas
à mudança e à evolução da vida social. Mas, como diz o Dr. Oliveira
Ascensão, isto não é verdade, pois é tão fácil mudar um código como
qualquer outra lei. Não é uma questão de formalismo jurídico, mas sim de
pensamento. O legislador evita tocar no código, há uma espécie de
sacralismo associado aos códigos que faz com que se evite alterá-los. Se
bem que, e contrariamente ao que diz o Dr. Oliveira Ascensão, deve de facto,
segundo a opinião de muitos, haver uma cautela especial na alteração da
legislação codificada, porque a estabilidade não é necessariamente uma
coisa má e nos códigos estão, de facto, princípios fundamentais de
determinados ordenamentos jurídicos, especialmente ao nível da substituição
de um código por outro, pois um código é feito para dar estabilidade a um
determinado ramo do Direito. Ou seja, esta rigidez que é apontada como
crítica é simultaneamente uma crítica e uma vantagem. Os códigos são
“monumentos legislativos”. Não são perfeitos, têm críticas, mas dão
estabilidade, proteção e segurança.

Técnicas legislativas principais

São técnicas de organização e redação de normas. São particularmente visíveis nos


códigos, mas não são exclusivas dos códigos.

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- Parte geral → A técnicas de recurso a partes gerais é usada em códigos e,
muito particularmente, no Código Civil. O objetivo da parte geral é evitar
repetições, fixando desde logo princípios gerais e disposições normativas que

de outro modo teriam de ser repetidas sucessivamente em formulações


idênticas nas diferentes matérias a regular. Ou seja, são aspetos que são
comuns a várias matérias a regular, e o legislador, em vez de os repetir,
incluí-os numa parte inicial (ex: o CC regula o contrato de compra e venda, o
contrato de doação, o contrato de sociedade, entre outros. Podia ter, a

propósito de cada contrato, um artigo a dizer qual é a forma daquele contrato;


em vez disso, criou o artigo 219). NOTA: a parte geral do livro primeiro tem
dois tipos: “das leis, sua interpretação e aplicação” (parte geral do Direito-
constitui o repositório de princípios gerais de todo o ordenamento jurídico,
diz-se que é uma teoria geral das leis e só está no CC por tradição; é esse
que estudamos em Introdução ao Direito) e “da relação jurídica” (verdadeira
parte geral do Direito Civil- é passível de muitas críticas, diz-se que
desumanizou o Direito, pois passou a ter como centro o ordenamento
jurídico).

- Remissão → Também tem como objetivo evitar repetições. Normas


remissivas/indiretas são normas que o legislador, em vez de regular
diretamente a questão em causa, manda-lhe aplicar outras normas do
sistema jurídico contidas no mesmo diploma legal ou noutro. A isto dá-se o

nome de remissão intra sistemática.


A remissão é extra sistemática quando é feita para sistemas jurídicos
diferentes do sistema a quo/em causa/ao qual pertence (ex: art. 8 nº1 do CC).
Quanto às normas remissivas intra sistemáticas, em regra, a remissão é feita
para a estatuição da norma, mas nada impede que a remissão seja feita para
a previsão da norma. Há situações em que a lei faz uma remissão muito
ampla, dando ao regime para o qual remete a função de integração
subsidiária do regime a quo (ex: artigo terceiro do Código Comercial, que
remete para o regime do Direito Civil em geral quando a questão não puder
ser resolvida pela letra da Lei Comercial, pelo seu espírito nem por casos
análogos).
Noutros casos, a norma remissiva opera através de uma extensão do regime
de um instituto a outros institutos (ex: art. 939 do CC, que estende o regime

51
de compra e venda a todos os contratos onerosos que impliquem
transferência de propriedade). As normas remissivas iniciam-se geralmente
com “com as necessárias adaptações”, porque neste processo de aplicação
de um regime de um instituto ou outro, o intérprete tem sempre que ter em
atenção a especificidade do instituto. Em quase todas as normas remissivas,
o legislador salvaguarda as necessárias adaptações, não é uma aplicação
cega do regime de um instituto ou outro. O intérprete tem que atender às
especificidades de cada um dos institutos e aplicar a remissão na medida em
que essa afinidade o justifique. Muitas vezes, em remissões, o legislador
remete para outra norma, não para mandar aplicar essa norma, mas para
traçar relações de prevalência ou de subsidiariedade. Quando o legislador
começa por “sem prejuízo do disposto em”, esta norma para a qual se remete
tem prevalência/primazia, e quando diz “não obstante o disposto em”,
significa, em regra, que a norma que se vai enunciar estabelece um regime
especial ou excecional, face ao regime contido na norma para a qual se
remete.

- Ficção legal → As ficções legais funcionam, na prática, como remissões


implícitas, pois em vez de remeter expressamente para outras normas que
regulam um dado facto ou situação, o legislador estabelece que o facto ou

situação a regular é ou se considera igual àquele facto ou situação para que


já se haja estabelecido um regime na lei. Ou seja, a ficção corresponde a
uma assimilação fictícia de realidades factuais diferentes para efeitos de as
sujeitar ao mesmo regime jurídico (ex: art. 275 nº2 do CC).

- Presunção legal → A noção de presunção vem no art. 349 do CC - é uma

ilação que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para um facto


desconhecido. No art. 350 do CC, quem tem a favor uma presunção legal
não tem que provar o facto que a ela conduz. Isto significa que as
presunções legais têm um impacto direto no ónus da prova (art. 342 do CC).

Nos termos do princípio geral do ónus da prova, quem invoca um direito tem
de provar os factos constitutivos do direito invocado. Quem alega factos

impeditivos, modificativos ou extintivos de num direito tem que fazer prova

desses factos. Por força do art. 344 do CC, se houver uma presunção legal,
há uma inversão do ónus da prova, cabendo à outra parte provar, nos casos

52
em que é permitido, que essa presunção não corresponde à realidade. Há
dois tipos de presunções: as presunções legais e as presunções judiciais. A
presunção judicial, também chamada de presunção natural/simples/de
facto/de experiência: resulta da normal decorrência das coisas. Só são
admitidas nos mesmos termos em que é admitida a prova testemunhal e
podem ser afastadas por simples contraprova, ou seja, por provas que criem
no espírito do juiz uma incerteza quanto à ocorrência do facto a provar.
As presunções que nos interessam são as presunções legais, as que
resultam de normas jurídicas.
A presunção legal pode ser de dois tipos:

➤ Iuris et de iure: presunções inilidíveis, não podem ser afastadas por prova
em contrário, são absolutas e irrefutáveis (mesmo que se prove que aquilo
não aconteceu, é irrelevante, a presunção aplica-se na mesma). Estas
presunções são a exceção, o que significa que a presunção só é inilidível
quando isso resulta da norma que a consagra (se nada consagrar, a
presunção é iuris tantum). Ex: art. 243 nº3 do CC.
➤ Iuris Tantum: são presunções ilidíveis, podem ser afastadas por prova em
contrário. São a regra, o que significa que, se nada resultar da norma, a
presunção é iuris tantum.
Na prática, é difícil distinguir ficção legal de presunção iuris et de iuri. Mas,
como diz Batista Machado, as duas figuras são conceitualmente distintas. Na
ficção legal, a lei atribui a um facto as consequências jurídicas de outro; Na
presunção inilidível/iuris et de iure, o facto presumido acompanha sempre o
facto que serve de base à presunção.

- Definição Legal → São normas em que o legislador se limita a estabelecer


definições. Não são normas autónomas, não têm estatuição. Como técnica

legislativa, são muito criticáveis, porque não compete ao legislador fazer


construções conceptuais, essa função é da doutrina. “Ommis definitia
periculosa” (toda a definição é perigosa). Porquê? Porque deixa de fora
coisas que deviam lá estar e pode integrar coisas que não deviam lá estar.
Existe esta consciência de que toda a definição legal representa perigos,

porque pode ser excessivamente lata ou restrita. Mas a verdade é que, não
obstante as definições serem tidas como perigosas, o legislador português
recorre com frequência a elas (ex: art. 202 e 762 do CC). A pergunta que se

53
coloca é: qual a força normativa de uma definição legal? Obriga o intérprete
ou não obriga? Tem força obrigatória ou é meramente indicativa? A doutrina
divide-se. O Dr. Batista Machado diz que as verdadeiras definições legais

constituem indiretamente as hipóteses a que se ligam as consequências


jurídicas de determinadas normas e, portanto, não são meras construções
conceptuais. Elas integram-se nas hipóteses das normas e, assim, têm força
prescritiva/obrigatória. As definições pelo legislador não são constituições da

doutrina, são normas, e como tal são obrigatórias.

-Conceitos indeterminados e cláusulas gerais → São técnicas de ius


aequum. Conferem à norma flexibilidade suficiente para se adaptar à
mudança das conceções sociais e às situações da vida. Justificam-se por 4
razões: 1) permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a
regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações; 2)
justificam-se também para facultar uma espécie de osmose entre os máximos

éticos sociais e o Direito; 3) para permitir levar em conta os usos do tráfico; 4)


para permitir um maior ajustamento da solução ao caso.
Conceitos indeterminados não se confundem com cláusulas gerais,
eles aparecem normalmente os dois referidos porque têm as mesmas
funções, mas são distintos.
O conceito indeterminado é o conceito que necessita de
preenchimento valorativo pelo intérprete na sua aplicação ao caso
concreto. Ele contrapõe-se aos designados “conceitos determinados”.
O Dr. Batista Machado diz que estes conceitos determinados são
estruturas arquitetónicas consolidadas da ordem jurídica que permitem
a construção de um sistema científico e salvaguardam a certeza e a
segurança jurídicas. Ex de conceitos determinados: credor,
personalidade jurídica, caso julgado. Ex de conceitos indeterminados:
boa fé, bons costumes, bom pai de família, prazo razoável.
Já as cláusulas gerais opõem-se à chamada regulamentação
casuística (regulamentação que identifica exaustivamente todas as
hipóteses a que se aplica). É muito comum as cláusulas gerais usarem
conceitos indeterminados, mas os conceitos indeterminados não são
exclusivos das cláusulas gerais. Ex: no art. 1781, alíneas a e c do CC,

54
o legislador fez uma enumeração casuística, e na alínea d estabeleceu
uma cláusula geral (isto é um exemplo de uma enumeração mista).
As cláusulas gerais opõe-se à regulamentação casuística que
identifica exaustivamente todas as hipóteses a que se aplica a norma.
A norma casuística prevê e regula grupos de casos especificados,
enquanto a cláusula geral não regula tipos de casos especialmente
determinados, deixando indefinidos os casos a que virá a aplicar-se. O
seu objetivo é evitar os dois riscos: não abranger da sua hipótese
todas as jurídicas que merecem o mesmo tratamento jurídico,
abranger inadvertidamente situações que mereceriam pela sua
natureza tratamento diferente, a isto dá-se o nome de lacuna de
exceção.

-Atribuição de poder discricionário → em regra, os agentes do estado


estão vinculados por um princípio de legalidade, um princípio fundamental do
direito público, isso significa que os seus atos e as suas decisões devem
conformar-se estritamente à lei, ou seja, verificamos os pressupostos da
hipótese, o agente do estado deve desencadear a consequência prevista na
norma, mesmo que essa atividade implica um exercício aplicativo. Cabe aos

agentes do estado cumprir a lei, este é o fundamento essencial do princípio


da legalidade. Só que há situações em que o legislador confere a esses
agentes um verdadeiro poder discricionário, assente num princípio de
oportunidade, ou seja, para permitir a adaptação da decisão às
particularidades do caso concreto, o legislador limita se a autorizar o órgão
ou agente a adotar determinadas condutas, a conceder determinadas

autorizações ou até mesmo a prevaricar determinadas intervenções,


indicando apenas o escopo/finalidade da decisão a adotar, mas sem vincular
o órgão ou agente a uma obrigação determinada. Ou seja, a lei estabelece
uma hipótese, mas verificada esta, deixa a fixação da consequência jurídica à
decisão do órgão ou agente, que faz um juízo de oportunidades ou

conveniência. Discricionariedade é diferente de arbitrariedade. A decisão está


limitada pelas finalidades e objetivos da norma. Ex: poder discricionário do

55
diretor de decidir se a falta foi suficientemente forte para considerar a falta
justificada.

Equidade

Bibliografia deste ponto:


- Oliveira Ascensão: 245 a 249; 261 a 262
- Artigo do doutor Carneiro da Frada (sigarra)
Equidade – sendo muito difícil a sua definição, aceita-se a noção clássica de
Aristóteles: é a justiça aplicada ao caso concreto.
Referencia-se, portanto, o Direito, não só à Justiça, como à equidade. Como
diz Carneiro da Frada, esta realidade cria uma trilogia em que é difícil determinar a
posição destas noções. Se o Direito constitui o objeto da Justiça e se, deste modo, o
Direito corresponde a uma ordenação justa da vida social, a equidade vem
intrometer-se e atrapalhar a linearidade desta co-implicação recíproca do Direito e
da Justiça
O Código Civil faz, pela primeira vez, referência à equidade no artigo 4º -
vem integrado no capítulo 1º relativo às fontes de Direito.
No entanto, esta conceção da equidade como fonte de Direito é motivo de
discordância entre a doutrina:

● Aqueles que consideram que a equidade é fonte de Direito têm uma razão: o
caso resolve-se pela equidade, pois ela revela-nos o direito aplicável àquele
caso, além de ser modo de revelação do Direito, embora com referência a
casos singulares.
● Aqueles que não consideram a equidade como fonte de Direito, entre eles
Oliveira Ascensão, que diz: se fontes de Direito são os modos de formação
e revelação de regras jurídicas, a equidade, como critério formal de decisão,
está fora desta noção. Isto porque, não só não se determinam, através dela,
regras, como a própria solução do caso não se faz através da mediação de
uma regra, elaborada pelo intérprete de modo a abranger a categoria em que
o caso se enquadra.

56
A decisão segundo a equidade não assenta em normas jurídicas, mas sim
num juízo de justiça individual feito pelo julgador, tendo por base as especificidades
do caso concreto.
Enquanto a norma jurídica se pauta por uma natureza geral e abstrata e
consegue essa natureza identificando, na previsão, os elementos de que faz
depender a aplicação da norma e mandando aplicar essa norma quando esses
elementos se verificam, ignorando os restantes elementos que compõem a
identidade do caso concreto, quando o juiz decide segundo a equidade, ele tem em
atenção tudo acerca da situação, analisando todas as especificidades do caso na
procura do equilíbrio. Daí que Oliveira Ascensão diga que, na equidade, a decisão
atende a circunstâncias que a norma despreza, como a força ou a fraqueza das
partes ou a incidência sobre o seu estado de fortuna para encontrar a solução que
melhor se adapta à justiça daquela situação concreta.
De acordo com o artigo 4º, os tribunais/o julgador só podem resolver os casos
segundo a equidade:

● Quando a própria lei o permitir1;


● Quando haja acordo das partes nesse sentido, não sendo a relação jurídica
indisponível2;
● Quando as partes previamente o convencionaram (acordaram) nos termos
aplicáveis à cláusula compromissória2.

1. Quando a própria lei o admite


Exemplos: artigo 72º nº2; artigo 400º nº1; artigo 437º nº1; artigo 489º nº1; artigo
1675º nº3 à Matérias que carecem de objetividade – não é possível ao legislador
definir um equilíbrio a priori, ou seja, esse equilíbrio de justiça só consegue ser
encontrado perante todas as especificidades do caso concreto.
2. Acordo das partes
Quando a lei não consagra o recurso à equidade, o julgador só pode decidir
segundo a equidade se houver acordo das partes nesse sentido.
- Alínea b) – o acordo é posterior à ocorrência do litígio.
- Alínea c) – o acordo é anterior, ou seja, as partes estabelecem (no próprio
contrato) a possibilidade de recurso à equidade para todos os litígios derivados
daquela relação.
Nota: Nestas situações, normalmente, a decisão é remetida para um Tribunal
Arbitral (jurisdição alternativa/paralela muito usada nos litígios comerciais altamente
sofisticados economicamente).
Vantagens do tribunal arbitral: celeridade, desformalização, especialização e caráter
secreto.
Desvantagem: caríssimo

57
Pergunta: Deste modo, atendendo que a equidade é a justiça do caso concreto e
que o objetivo do Direito é a promoção da justiça, porquê que não se decide sempre
segundo a equidade?
Resposta: O problema da equidade é que é uma solução restrita que acaba com a
previsibilidade das decisões, o que afeta a segurança jurídica. Em relações
indisponíveis (ex: estado das pessoas ou núcleo dos direitos de personalidade) – as
partes não podem, nem por acordo, mandar aplicar a equidade, precisamente por
causa da falta de critérios (de previsibilidade).
Reflexão feita pelo professor Meneses Cordeiro
A equidade deixou de ser necessária, porque a flexibilização do sistema
jurídico decorrente das normas de ius aequum e o próprio aperfeiçoamento da
metodologia jurídica que se concentra agora mais no fundamento axiológico das
normas substitui, de forma suficiente, as necessidades de individualização e de
adequação ao caso concreto que antes eram respondidas pela equidade. A justiça
do caso concreto agora consegue-se dentro do sistema jurídico e já não é
preciso procura-la fora (na equidade).
Ora, é inegável que a equidade perdeu pelo menos parte da premência. O
sistema jurídico atual tem mecanismos de flexibilização que permitem achar a
justiça dentro do ordenamento jurídico.
Pergunta: Mas ela tornou-se dispensável/desnecessária?
Meneses Cordeiro – Sim, pelo referido acima.

Carneiro da Frada – Não. Ela pode ser menos premente (urgente/essencial), mas
continua a ser útil. Não se negando o aperfeiçoamento da metodologia jurídica, não
se negando que a abertura axiológica do sistema tem um impacto significativo na
procura da justiça perante as soluções concretas, as decisões assentes no sistema
jurídico estão sempre limitadas pela generalidade e abstração e comprometidas
com a norma. Já as decisões segundo a equidade são extra-sistemáticas (fora do
ordenamento jurídico, quer nacional, quer internacional), ou seja, não estão
limitadas por princípios históricos e culturais vigentes na promoção da justiça.
Segundo Carneiro da Frada, a equidade corresponde a uma “forma superior de
justiça”, acima da lei e do Direito constituído. A decisão segundo a equidade
convoca um “modo de decidir” em que a substância, a forma, a matéria e o
processo se fundem. Porém, a equidade não é estranha ao Direito, antes procura a
concordância entre a sabedoria e a realização de valores no Direito, assinalando a
amplificação e a perfeição a que o Direito tende, em ordem à justiça.

A equidade é o sistema que assegura a justicibilidade, exequibilidade, coercibilidade


e eficácia da decisão. É a arte de harmonizar a justiça com outras virtudes que

58
regulam as relações humanas. Tende a dar mais valor aos sentimentos, aos afetos
pessoais e às emoções das partes. É, por isso, a “justiça do coração”. A equidade
relaciona-se com a sabedoria, representa uma sublimação da justiça. A equidade,
como decisão extra-sistemática, postula um não aprisionamento da justiça pelo
conjunto articulado de normas e princípios historicamente vigentes.
Não se negando o aperfeiçoamento da metodologia jurídica nem o facto de a
abertura axiológica do sistema ter um impacto significativo na procura da justiça
perante as soluções concretas, as decisões assentes no sistema jurídico estão
sempre limitadas pela generalidade e abstração, assim como estão comprometidas
com a norma. Já as decisões segundo a equidade são extra-sistemáticas, ou seja,
não estão limitadas por princípios históricos e culturais vigentes na promoção da
justiça.
Os critérios do “razoável”, do “bom senso”, do “naturalmente justo” ou da “ordem
natural das coisas” assumem um papel importante na equidade, na seleção dos
argumentos, sendo que nenhum é excluído à priori. Tem-se em conta a pertinência
da decisão e as suas consequências.
A equidade não remete para o simples entendimento pessoal do juiz ou para a sua
íntima convicção, reclama sempre uma fundamentação intersubjetiva; está em
causa uma apreciação racional e objetivável.

V. Fontes de Direito e Vigência das normas

Bibliografia deste ponto:


Oliveira Ascensão – pág. 241-331; pág. 534-538 ;
Santo Justo – pág.196-200; pág. 207
Fontes de direito: são modos de formação e revelação de normas jurídicas.
Podemos distinguir fontes de direito internacionais e fontes de direito nacionais.
O art.8 regula o termo da vigência das normas internacionais no direito internacional.
Neste artigo distinguem-se 3 tipos:
1. Direito internacional geral ou comum (art.8 nº1: as normas de direito
internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português, ou
seja, a sua recessão na ordem jurídica nacional é automática)
2. Direito internacional convencional (art.8 nº2: estas normas gozam de uma
recessão plena condicionada, e nos termos do art. 8 nº3 vigoram diretamente
em Portugal as ordens emanadas dos órgãos competentes das organizações
internacionais de que Portugal seja parte, desde que isso se encontre
estabelecido no tratado constitutivo)
3. Direito da União Europeia (segundo o art. 8 nº4, quer as disposições dos
tratados quer as normas emanadas da União Europeia no exercício das suas
competências, são aplicadas na ordem interna nos termos definidos pelo

59
próprio direito da União Europeia, desde que respeitados os princípios do
Estado de Direito democrático).

Dentro do direito da União Europeia podemos distinguir 2 tipos:


● Direito originário (tratados, contém as normas fundamentais do
funcionamento, integram a ordem jurídica interna por força do art. 8º
nº2).
● Direito derivado (produzido pelos órgãos da União Europeia: o
regulamento e a diretiva, o que distingue o regulamento das diretiva é a
aplicabilidade direta).

Dentro do Direito derivado existe:


O regulamento é um verdadeiro ato normativo com força geral e obrigatória, tem
como destinatários tanto os Estados membros, como os particulares, e é diretamente
aplicável no território dos Estados membros.
Vincula quer os Estados, quer os particulares e pode ser diretamente invocado pelos
interessados. Goza de aplicabilidade direta, ou seja, as normas nele contidas
produzem efeitos na ordem interna dos estados membros, sem necessidade de
qualquer ato de recessão, transposição ou mediação. Ou seja, assim que entram em
vigor, os regulamentos passam automaticamente a obrigar também o território
nacionalmente, sem sequer terem de ser publicados pelo Estado português.
O regulamento entra em vigor no território nacional, quando entra em vigor de acordo
com o estabelecido na UE, obrigando todos os destinatários. O regulamento não é
transposto nem publicado no Diário da República, é publicado no jornal oficial da UE.
As diretivas têm como destinatários formais os Estados membros, vinculam os
Estados membros quanto ao resultado a alcançar, mas deixam ao decisor nacional a
escolha quanto à forma e quanto aos meios de alcançar o resultado. A diretiva não
goza de aplicabilidade direta, a sua aplicação interna depende de um ato de
transposição para o direito português através de lei da Assembleia da República ou
de decreto-lei do Governo. Fruto do trabalho do Tribunal de Justiça, tem-se
desenvolvido o entendimento de que as diretivas não gozam de aplicabilidade direta,
mas de aplicabilidade direta, que é a suscetibilidade de invocação pelo particular da
norma num litígio de que seja parte. Se a diretiva já devia ter sido transposta e ainda
não foi, o particular pode invocá-la num relação contra o Estado, mas não contra outro
particular). As diretivas precisam de ser transpostas (transposição - é preciso que o
Estado Português tome a iniciativa de elaborar uma lei ou um decreto-lei com os
meios para atingir os resultados impostos pela diretiva).
A decisão é um ato obrigatório, de âmbito individual e concreto, que pode ter como
destinatário qualquer Estado-membro, ente público ou ente privado. Não é fonte de

60
direito porque é de âmbito individual e concreto, para ser fonte de direito tinha que ser
geral e abstrata.

As recomendações e pareceres também não são fonte de direito. Têm relevância


sobretudo no plano interpretativo. São elaboradas por iniciativa do próprio órgão, já
os pareceres são elaboradas a pedido de outro órgão.

Fontes nacionais:
Doutrina: é a opinião dos jurisconsultos quanto a temáticas jurídicas. Os
jurisconsultos são as pessoas que se dedicam ao estudo do Direito. A doutrina não é
fonte de direito, mas já foi. Atualmente, tem uma importância persuasiva, um peso de
influência que não deve ser ignorado. O valor da doutrina está associado ao valor
intrínseco das posições que são defendidas.
Costume: é prática social reiterada acompanhada da convicção da sua
obrigatoriedade. Corpos corresponde ao usos, prática social reiterada, decorre de
uma mera observação de facto; o animus é a convicção de obrigatoriedade, ou seja,
“opinio juris vel necessitatis”: no meio social onde aquela prática é adotada, existe a
consciência de que ela não deriva apenas de uma rotina ou de cortesia, mas é
obrigatória. Só quando existe esta convicção de obrigatoriedade é que se pode
afirmar que existe costume.
Relação do costume com a legem:
- secundum legem (o conteúdo do costume coincide com o conteúdo da lei,
“uma única norma jurídica, dois títulos”, segundo Oliveira Ascensão);
- praeter legem (costume que não contraria a lei, vai para além da lei, tem por
objeto matéria que a lei não regula);
- costume contra legem (costume contrário à lei, contraria o conteúdo de uma
lei).

Figura que pode ser confundida com costume contra legem: o desuso (não se
confunde com o costume). Enquanto o desuso traduz uma mera não aplicação da lei,
o costume traduz isso, mas associada a uma convicção que essa desobediência da
lei é obrigatória. Um exemplo de desuso de uma lei em Portugal, foi o aborto.
O desuso é causa de cessação de vigência da lei? Uma lei deixa de vigorar por não
se aplicada por uma sociedade em geral? Depende. Não é causa de
extinção/cessação de lei. A mera não aplicação da lei, não gera a sua cessação. É o
caso da violação dos limites de velocidade.
Problema diferente é saber se o costume contra legem terá o poder de fazer cessar
uma lei anterior. Aqueles que defenderem que o costume é fonte de direito, se
admitirmos que existe um costume que cria uma regra diferente daquela que consta
na lei, num momento posterior à entrada em vigor dessa lei, então, neste caso, o
costume contra legem tem o poder de revogar uma lei anterior, segundo a regra de
que a norma posterior pode revogar norma anterior.

61
Em conclusão, o que distingue o desuso, do costume contra legem, é a convicção
de obrigatoriedade, isto é, o animus.

Exemplo: uma associação dos direitos dos animais vem invocar que são proibidos os
touros de morte. Em Barrancos, segundo a sua população, essa lei não se aplica,
porque existe um costume ancestral que revoga essa lei. Há uma convicção de que
há uma obrigatoriedade nesse costume, baseada em questões culturais ou, talvez, a
proximidade com a Espanha. É uma exceção.
A principal consequência que se pode retirar desta situação é, então, o impacto que
o costume tem na vigência na lei – se for posterior, revoga a lei no sentido contrário.
A grande questão do costume é que as fronteiras não são definidas territorialmente,
mas por comunidades culturais. No caso de Barrancos, coincide até com aquela
freguesia. Admitindo que o costume é fonte de direito, o que é que a comunidade de
Barrancos tem de provar, para que não seja considerada em incumprimento à lei?
Provar que é um costume reiterado e com convicção de obrigatoriedade.
Primeiramente, é necessário comprovar o corpus, através, por exemplo, de vídeos da
festa, testemunhos das pessoas, entre outros aspetos, depois da entrada em vigor da
lei. Mesmo depois da entrada em vigor da lei, essa prática manteve-se. De seguida,
é necessário provar o animus, que já é mais difícil de vincular.
Contudo, é muito difícil encontrar uma comunidade cultural que admite convictamente
não estar vinculada com uma lei.

O costume é fonte de Direito?


Em DIP, o costume internacional é uma das maiores fontes de Direito.
Ao nível do direito interno, a resposta varia conforme os autores.
Posição que Oliveira Ascensão defende:
1- Não cabe a uma fonte de direito reconhecer ou excluir outras fontes de direito (não
se pode atribuir à lei o poder de dizer se o costume é ou não fonte de direito);
2- O costume é a mais pura manifestação de criação normativa, porque resulta de
uma prática social reiterada, nasce em sociedade, acompanhada da convicção de
que é a prática mais correta (não significa que seja fácil a criação de costume, é muito
difícil a criação de costume contra legem na atualidade por causa da complexidade
da vida social, da dispersão por grupos e facilidade de conhecimento do conteúdo
das leis).
O artigo 348º do CC reconhece relevância ao costume, porque impõe àquele que o
invoca em Tribunal a prova da sua existência. O que se retira daqui, é que a própria
lei reconhece a existência de costume, pelo menos, local e estrangeiro.
Nos artigos do CC relativos às fontes de direito (art. 1 a 4) o legislador não fala do
costume, ou seja, é o primeiro argumento para quem defende que costume não é

62
fonte de direito. Assim, muitos autores, com base no silêncio da lei, consideram que
o legislador não considera a existência do costume.

Outro argumento é o artigo 7.º, nº1, do Código Civil, que rejeita a revogação da lei por
um costume contra legem.

O costume é fonte de direito?


- A resposta é afirmativa no Direito Internacional Público.
- Há divisão doutrinal no direito nacional:
Argumentos contra:
● Artigos 1º a 4º do CC
● Artigo 7º nº1 do CC
Argumentos a favor:
● Não cabe a uma fonte de direito reconhecer ou excluir outras;
● O costume constitui a mais pura manifestação de criação normativa;
● O artigo 348º do CC.

APLICAÇÃO DO COSTUME PELOS ÓRGÃOS PÚBLICOS


Uma questão é saber se o costume é ou não fonte de direito, outra é se o aparelho
estatal deverá ou não assegurar a força coerciva do costume.
A questão aqui é: admitindo que o costume é fonte de direito, saber se o aparelho
estadual deverá ou não aplicar este direito consuetudinário.

Haverá uma obrigatoriedade de o aparelho estadual aplicar direito consuetudinário?

Oliveira Ascensão: Parece que nada impede o Estado de condicionar a medida em


que os seus órgãos aplicam ou não certos costumes. Nada impede o Estado de proibir
os seus órgãos de aplicar determinados costumes. Da mesma maneira, nada impede
o Estado de legislar contra um determinado costume.

Será de admitir que cabe ao Estado determinar em que termos e em que medida
é que os seus órgãos devem ou não aplicar Direito
Consuetudinário/costumeiro.

Não está em causa um problema de existência ou validade, mas sim de efetividade.

63
USOS
Uso – costume sem animus. Prática social reiterada, mas destituída de uma
convicção de obrigatoriedade.
Art.3º nº1 CC – “Os usos que não forem contrários aos princípios da boa fé são
juridicamente atendíveis quando a lei o determine”
O Uso é uma FONTE MEDIATA de direito, o seu poder normativo deriva da
intermediação da lei. É a lei que confere a um determinado uso pré-existente, força
normativa - a lei não cria usos, atribui-lhes poder normativo.
A fonte do conteúdo é o uso, mas a fonte da vinculatividade dessa conduta é a lei, o
uso só é fonte de direito quando a lei disser que é.
Quando existe uma remissão legal, quando existe uma lei que atribui força normativa
ao uso, o conteúdo desse uso adquire vinculatividade jurídica, mas na sua essência
essa legitimidade vem da lei.
Quando não existe remissão legal - o uso não tem força normativa e não é fonte de
direito.

JURISPRUDÊNCIA
Conjunto das decisões dos tribunais.
Sistema de “Common law”/Sistema anglo-saxónico - Precedente judiciário –
decisão de um tribunal superior, que vários elementos entre eles, a “ratio decidendi”.
Esta passa a vincular as decisões dos restantes tribunais em casos análogos, sendo
elevada a norma jurídica.
A razão de ser da decisão que esteve na origem de um acórdão de um tribunal
superior é elevada a norma jurídica e, portanto, torna-se obrigatória para todos os
tribunais que, após essa decisão, tenham de julgar casos onde a razão de ser seja
aquela. Ou seja, a máxima de decisão daquele acórdão concreto passa a ser
obrigatória para todas as decisões posteriores dos tribunais.
Assim, sem sombra de dúvida que a Jurisprudência é a principal fonte de direito
nos sistemas de Commom law.

E no nosso sistema, no sistema romanístico?


As decisões dos tribunais na solução de caso concretos em Portugal, são fonte de
direito? NÃO. No sistema romanístico cada juiz está em posição de total

64
independência face aos restantes - PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA JUDICIAL - 4
consequências:

1- Os tribunais superiores não estão obrigados a decidir no sentido em que o fizeram


os tribunais inferiores;
2- Um juiz não está obrigado a julgar no mesmo sentido em que o fez um outro juiz
do mesmo nível hierárquico. Pode até decidir em sentido completamente oposto;
3- Um juiz não está vinculado a decidir no mesmo sentido em que decidiu em casos
anteriores;
4- Um tribunal inferior não está obrigado a julgar no mesmo sentido de decisões
anteriores de tribunais superiores, não está vinculado.
É nesta 4ª consequência que reside a ausência de força normativa da decisão dos
tribunais, a rejeição da regra do precedente, ou seja, em Portugal a máxima da
decisão/ a razão da decisão não é elevada a norma jurídica, não adquire força
normativa.

No entanto, existem algumas situações dúbias:


- Art.10º nº3 do CC - confere ao juiz o poder de criar uma norma ad-hoc, pode aplicar
no caso a norma que ele criaria se tivesse de legislar sobre aquela matéria. -» Este
artigo não consagra um exemplo em que a jurisprudência é fonte de direito, porque a
norma criada segundo o espírito do sistema não é geral e abstrata. Essa norma
regula e decide vinculativamente o caso concreto, mas não vincula casos posteriores;
- Os antigos Assentos - tipo de decisões jurisprudências às quais se reconhecia
força obrigatória geral - foram revogados – agora são apenas resquícios históricos;
Em fiscalização concreta da constitucionalidade, o acórdão 810/93 de 7 de dez.
julgou o art.2º do CC (os assentos) inconstitucional , por violação do disposto no
art.115º da CRP – o princípio da separação de poderes é contrário ao poder dos
tribunais da criação de normas jurídicas.
O decreto-lei 329-A/95 de 12 de dez. revogou o art.2º e veio determinar no art.17º
nº2 do Decreto Lei que os Assentos já proferidos passaram a ter o valor de um
julgamento ampliado de revista. A partir daqui os assentos deixam de ter força
vinculativa.

Entre o momento da publicação do decreto lei e a sua entrada em vigor, o TC voltou


a pronunciar-se, mas desta vez com força obrigatória geral e aí declarou a
inconstitucionalidade do art.2º do CC por violação do disposto no art.115º
(art.111º/112º da atual CRP) - acórdão 743/96 de 28 de maio.

65
Quando foram extintos os assentos, o Código de Processo Civil foi criando figuras
para permitir ao STJ assumir um papel de uniformizador de jurisprudência quando
assim se justifique.
A estas figuras dá-se o nome de ACÓRDÃOS UNIFORMIZADORES DE
JURISPRUDÊNCIA. Estes são tomados em Plenário das Secções Cíveis (de civil).
A principal situação em que existem é quando existem decisões distintas na mesma
matéria.
Os acórdãos uniformizadores de jurisprudência não são assentos, não tem força
obrigatória e geral, têm apenas um valor reforçado. Esta força acrescida vem de 2
dimensões:
- De emanarem do Plenário;
- Se não forem acatados por um tribunal de 1ª instância ou Tribunal da Relação, isso
constitui motivo para uma admissibilidade especial de recurso (art.629º nº2 c) –
Código processo Civil)
NÃO SÃO FONTE DE DIREITO – um outro juiz pode ir contra este acórdão, não está
vinculado a respeitá-lo.

- ACÓRDÃOS COM FORÇA OBRIGATÓRIA E GERAL (situação mais duvidosa)


Decisões sobre a fiscalização abstrata da constitucionalidade e legalidade.
Estes acórdãos têm força obrigatória e geral? Sim.
São fonte de Direito? Tudo vai depender da forma como interpretarmos o conceito de
fonte de Direito. - Se entendermos fonte de direito como modo de formação e
revelação de normas jurídicas, então estes acórdãos, uma vez que não criam nem
revelam normas jurídicas, apenas as extinguem; não têm um poder criador, mas
extintivo e, portanto, não são fonte de direito.
- Oliveira Ascensão considera que estes acórdãos são fonte de direito, reconhecendo-
lhes força normativa enquanto extintores de normas. Deste modo, a Jurisprudência
será apenas fonte de direito no caso destes acórdãos.

LEI
A Lei é a principal fonte de direito em Portugal.
Noção de lei:
- art.1º nº2 CC – “Consideram-se leis todas as disposições genéricas providas dos
órgãos estaduais competentes...”

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- Cabral de Moncada – “A lei é a forma que reveste a norma jurídica quando
estabelecida e decretada, de uma maneira oficial e solene, pela autoridade dum órgão
expressamente competente para esse efeito, por ser órgão legislativo”.

LEI EM SENTIDO FORMAL vs. LEI EM SENTIDO MATERIAL

LEI EM SENTIDO MATERIAL – corresponde à forma que reveste a norma jurídica


quando estabelecida e declarada pela autoridade dum órgão expressamente
competente para esse efeito. Abrange diplomas normativos que são emitidos no
âmbito de poder legislativo, mas também no âmbito de poder executivo.
LEI EM SENTIDO FORMAL – é aquela que se reveste das formas destinadas por
excelência ao exercício da função legislativa do Estado. Portanto: Leis
constitucionais, leis da AR; decretos-leis do Governo e decretos legislativos regionais
das RA da Madeira e Açores.
Enquanto conceito de LEI EM SENTIDO MATERIAL, tem na base a análise do
conteúdo da lei (saber se tem ou não conteúdo normativo). O que está em causa na
LEI EM SENTIDO FORMAL é a forma adotada (tipos de atos legislativos acima
referidos).
Oliveira Ascensão diz que há leis em sentido formal que não correspondem a lei em
sentido material. Pode acontecer que um Decreto Lei não o devesse ser, por não ter
conteúdo normativo (uma norma jurídica individual e concreta por exemplo).

LEI SOLENE vs. LEI COMUM


LEI SOLENE - quando uma lei é simultaneamente lei em sentido formal e material.
LEI COMUM - Uma lei que apenas é lei em sentido material, mas não em sentido
formal (ex.: o regulamento).

LEI CENTRAL vs. LEI REGIONAL vs. DIPLOMAS NORMATIVOS LOCAIS


LEI CENTRAL - que se aplica a todo o território nacional, tem âmbito nacional.
LEI REGIONAL – aplica-se apenas às RA, da Madeira ou Açores.
DIPLOMAS NORMATIVOS LOCAIS – não são lei sem sentido formal, são apenas
em sentido material. (ex.: uma postura). Tem âmbito municipal e normalmente
resultam das autarquias locais.
Ninguém questiona que estes diplomas sejam fonte de direito, pois criam normas de
âmbito local.

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No entanto, coloca-se um problema: estes diplomas não provêm de órgãos estaduais
e, portanto, não cabem no art.1º nº2 do CC.

Para resolver este problema há várias posições:


- Oliveira Ascensão (é bastante confusa)
- Posição maioritária e que a professora adota - Pires de Lima e Antunes Varela - é
necessário interpretar a expressão “órgãos estaduais competentes” do art.1º nº2 em
sentido amplo de modo a abranger todas as normas provenientes de instituições de
Direito Público, incluindo aqui as autarquias locais como partes integrantes do Estado
– Interpretação extensiva do artigo 1º nº2 do CC
Os conflitos de normas são geralmente resolvidos pela hierarquia das normas – existe
uma pirâmide de normas – uma norma de valor inferior não pode contrariar uma
norma de valor superior.
Ao nível das LEIS SOLENES (simultaneamente lei em sentido formal e material) -
art.112º:
- Leis constitucionais;
- Leis reforçadas - art.112º nº3 (leis orgânicas; as que carecem de aprovação por
maioria de 2/3 e as que por força da CRP são pressuposto necessário de outras leis
ou que devem ser respeitadas por outras leis);
- Leis Formais Ordinárias da AR;
- Decretos-Leis do GV;
- Decretos Legislativos Regionais das ALRA (art.112º nº4)

Qual é a relação de hierarquia entre as leis da AR, decretos do GV e decretos


ALRA?
- Em matéria concorrencial, LEI e DECRETO-LEI estão exatamente no mesmo
patamar da pirâmide normativa, um pode revogar o outro;
- Em matéria de competência absoluta da AR, um DECRETO DO GV seria
inconstitucional;
- Em matéria de competência relativa, o GV está subordinado à Lei de autorização e
aos seus termos;
- Os DECRETOS LEGISLATIVOS REGIONAIS, podem revogar Decretos-leis e Leis
anteriores apenas parcialmente/apenas no seu âmbito territorial, na parte que lhes
diga respeito, continuando em vigor a Lei e o DL em relação ao resto do território
nacional.

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LEIS COMUNS DE ÂMBITO NACIONAL: OS REGULAMENTOS (art.199º)
No âmbito da criação de regulamentos (poder administrativo e não legislativo), o GV
tem um dever de obediência às leis existentes, o que quer dizer que os regulamentos
se encontram no final da pirâmide normativa.
O objetivo dos regulamentos é dar executoriedade às leis.

Não obstante a maioria dos regulamentos vir associada a uma lei específica, é
possível haver regulamentos autónomos, aqueles que não dão executoriedade a
nenhuma lei específica, mas que se subordinam à ordem jurídica no seu todo.
Em regra, o poder de inovação e definição de condutas dentro da ordem jurídica deve
caber à lei em sentido formal e não aos regulamentos. O papel da lei comum é o de
concretizar esses princípios.
TIPOS DE REGULAMENTOS
- DECRETO – praticado pelo chefe do poder executivo; exige a intervenção
obrigatória do PR e a referenda do GV.
- PORTARIA – (dos regulamentos mais comuns) duvidosa base constitucional porque
não vem previsto na CRP, no entanto já existe um verdadeiro costume de aceitação
das mesmas quanto à sua existência e aplicação.
- DESPACHO NORMATIVO - Só pode ser usado quando a lei autorizar essa forma;
é publicado na 1ª serie do DR.

DESVALORES DO ATO LEGISLATIVO:


- INEXISTÊNCIA - principais causas: art.137º- falta de promulgação ou assinatura
pelo PR e art.140º nº2- falta de referenda pelo.
- INVALIDADE - A lei em princípio é inválida quando for desrespeitada uma regra
sobre a produção jurídica.
- INEFICÁCIA - A situação mais importante que torna uma lei ineficaz é falta de
publicação.

PUBLICAÇÃO DA LEI
Objetivo da publicação – dar a conhecer a lei a todos os seus destinatários; tornar
possível o seu conhecimento.
Diz o ART.5º Nº1 CC que “A lei só se torna obrigatória depois de publicada no jornal
oficial”, no entanto no ART.119º Nº1 CRP é possível verificar que nem todas as leis
comuns estão sujeitas a publicação no DR, mas sim todas estão sujeitas a algum tipo

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de publicidade, remetendo para lei ordinária (nos nos 2 e 3) a fixação dos modos
dessa publicidade, com exceção dos diplomas que obrigatoriamente são publicados
em DR.
Ora, como conjugamos estes 2 artigos? O art.5º nº1 deve ser interpretado de uma
forma restritiva (interpretação restritiva), prevalecendo o art.119º CRP. Devemos ler
o art.5º da seguinte forma - a lei que deva ser publicada no jornal oficial, só se torna
obrigatória com essa publicação.
Temos uma RETIFICAÇÃO quando o texto que é publicado não corresponde
exatamente ao texto original da lei, seja por um lapso na impressão, seja por uma
anomalia no processo legislativo.
LEI 74/98, ART.5º Nº2 – “As declarações de retificação devem ser publicadas até 60
dias após a publicação do texto retificando”.
Que efeitos reconhecer ao texto inicialmente publicado e que depois veio a ser
retificado? A verdade é que esse texto não deriva de nenhuma lei, há uma
desconformidade com o texto normativo, e portanto, não há uma verdadeira
revogação do texto original pelo diploma retificativo, o que há é uma cessação
automática dos efeitos do texto com o erro.
E se entre o momento da entrada em vigor do texto original com erro e a declaração
de retificação foi praticada uma determinada conduta com base nesse erro? Tem-se
defendido a solução de acautelar os efeitos produzidos pelo texto original. Tem de se
confiar no jornal oficial/DR - especial força probatória do jornal nacional.

ENTRADA EM VIGOR DA LEI


A partir do momento que é publicada, a lei passa a reunir condições para ser eficaz
(publicação é condição de eficácia/produção de efeitos), o que é diferente de ser
imediatamente aplicada (o início da sua vigência só ocorre com a sua entrada em
vigor). Os destinatários precisam de tempo para a conhecer e se ajustar a ela. Entre
o período da publicação da lei e o período da sua entrada em vigor decorre um prazo
ao qual se dá o nome de VACACIO LEGES.
Em regra, a própria lei indica o seu período de vacacio leges/a data em que entra em
vigor (ex.: art.2º do Decreto-Lei que aprova o CC).
E se a lei nada diz? Aplica-se o art.2º da Lei 74/98; ela entra em vigor em todo o
território nacional e estrangeiro no 5º dia após a sua publicação. Nos termos do art.2º
nº4, estes prazos, seja o que está fixado na lei, sejam os 5 dias (o período de vacacio
leges), começam a contar no dia imediatamente a seguir ao da disponibilização no
DR, onde a lei está publicada no site.
O tempo da vacacio leges tem em conta a complexidade e extensão do regime
jurídico, a dificuldade de adaptação dos seus destinatários e situações de urgência.

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Pode o legislador suprimir, de todo, o período de vacatio leges, fixando o início da
vigência da lei no dia em que é publicada? O legislador não pode, nunca, fixar o início
da vigência no próprio dia da publicação (art.2º nº1 Lei 74/98), dado que tem de
acautelar a proteção das expetativas dos particulares.
Contudo, há situações de exceção em que faz sentido derrogar esta regra. Oliveira
Ascensão considera 3 situações:
- Normas que estabelecem efeitos jurídicos automáticos - não exigem adaptação
da conduta dos particulares, pelo que não haverá, à partida, nenhum obstáculo à
vigência automática;
- Normas de conduta dirigidas aos órgãos públicos – considera-se que sendo
órgãos da própria administração pública, do próprio Estado, caber-lhes-á a resolução
das dificuldades.
- Normas de conduta dirigidas aos particulares - só de facto em situações de
urgência é que se compreende/justifica que a lei entre em vigor no próprio dia. No
fundo o que está em causa são as situações em que o decurso de um período de
vacatio leges ainda que de 24h, poria em causa o efeito útil da lei.
Não levanta problemas a lei que entra em vigor no dia a seguir à sua publicação, o
problema é a lei que entra em vigor no próprio dia.

Cessação da vigência da lei


O artigo chave em matéria de cessação da vigência da lei é o artigo 7º do CC.
No nº1 diz que quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de
vigorar se for revogada por outra lei. Já tínhamos apresentado uma crítica a este
artigo, que foi que é falso que uma lei só deixa de vigorar quando entra em vigor uma
outra lei porque quem admite que o costume é fonte de direito, admite que esse
costume tem o poder de revogação da lei também.
Portanto, o artigo 7º serve-nos de base, mas não é suficiente. Não é suficiente desde
logo por uma questão: é possível, para além de fazer cessar a vigência da lei,
suspender a vigência da lei. É permitido o legislador decidir suspender
temporariamente a vigência de uma lei, por prazo limitado ou ilimitado.
Cessação por costume contra legem: para quem admite que o costume é fonte de
direito, admite também que ele se situa no mesmo patamar hierárquico da lei, uma
fonte não pode ser mais importante do que a outra. Portanto, admitindo que o costume
é fonte de direito, o que admitimos é que um costume posterior que contrarie uma lei
anterior revoga essa lei.
Caducidade: vem prevista na primeira parte do artigo 7º nº1, que diz que quando se
não destine a ter vigência temporária. Na caducidade, ocorre um determinado facto
superveniente que extingue a lei. O artigo 7º nº1 fala apenas de uma das hipóteses
de caducidade, mas elas há duas causas de caducidade. A primeira é quando a

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própria lei prevê um facto que conduz à cessação da sua vigência (ex: há uma seca
muito forte num determinado ano e o governo emite uma lei para atenuar as
consequências dessa seca. Quando é que essa lei cessa? Quando a seca acabar. O
caso típico de caducidade são leis com prazo). Uma segunda hipótese de caducidade
é quando desaparecem os pressupostos de aplicação da lei (ex: lei que visa a
proteção de uma espécie protegida que entra em extinção, desaparecendo os
pressupostos de aplicação da lei)
Revogação: é o meio mais comum da vigência da lei. Revogação é a cessação da
vigência de uma lei por força da publicação de uma outra lei. A regra fundamental em
matéria de revogação é que lei posterior revoga lei anterior. Isto significa que, se
ambas as leis estiverem no mesmo patamar hierárquico, a lei nova revoga a lei antiga
se for com ela incompatível. A lei posterior só revoga a lei anterior se o disser
expressamente ou se houver alguma incompatibilidade. Qual é a data que se
considera para saber se uma lei é posterior ou anterior? A data da publicação no DR,
não é a entrada em vigor.

Quais são as modalidades de revogação?


- Expressa vs tácita
- Global vs individualizada
- Total vs. parcial
A cada revogação aplica-se uma destas 3 características. A revogação é expressa ou
tácita + global ou individualizada + total ou parcial.
Expressa: o legislador indica expressamente quais são os preceitos ou os diplomas
que a lei nova revoga. Existe um artigo antes do período vacatio leges a dizer “a
presente lei revoga os artigos (...)”.
Tácita: mesmo que o legislador nada diga, a lei anterior que está num patamar
hierárquico igual ou inferior à lei nova, é revogada se e na medida em que haja
incompatibilidade entre ela e os preceitos da nova lei.
Global: a revogação global vem prevista no artigo 7º nº2 da parte final, que diz que a
revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas
disposições e as regras precedentes (tácita) ou da circunstância de a nova lei regular
toda a matéria da lei anterior. Ou seja, a revogação global é quando a revogação
revoga toda a matéria da lei anterior. Mas não é revogar toda a matéria, é revogar
globalmente. Na revogação global, a lei nova regula todo um instituto jurídico ou todo
um ramo do direito. Quando isso acontece, ficam revogados os preceitos das leis
anteriores sobre esse instituto jurídico ou ramo do direito. E não é necessário
demonstrar que existe uma incompatibilidade entre cada um dos preceitos revogados
das leis anteriores e a nova lei. Há uma revogação “em bloco”. Como diz o Dr. Oliveira

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Ascensão, a lei não é muito correta quando diz “toda a matéria da lei anterior”, porque
no novo regime pode haver aspetos que estavam regulados em leis anteriores que
não estão regulados agora no novo regime, mas mesmo assim eles são revogados.
Mesmo que houvesse matérias consagradas em leis anteriores, que agora ficam sem
regulamentação, elas consideram-se igualmente revogadas (ex: entrada em vigor do
novo Código Civil, que revogou completamente o anterior). A revogação global é
exceção.
Individualizada: tudo o que não é global. Em regra, a revogação é individualizada e
não global.
Total: ocorre quando o diploma é substituído no seu conjunto, quanto todo o diploma
é revogado. À revogação total dá-se o nome de ab-rogação.
Parcial: apenas alguns preceitos/artigos da lei antiga são revogados pela lei nova. O
diploma não é todo revogado, apenas alguns preceitos. À revogação parcial dá-se o
nome de derrogação.

Regras de revogação:
Lei posterior revoga lei anterior.
Duas exceções: 1) lei inferior não revoga lei superior;
2) lei geral não revoga lei especial, salvo se outra for a vontade inequívoca do
legislador (artigo 7º, nº3 do CC).
Vimos já que uma lei posterior revoga uma lei anterior que seja com ela compatível,
no entanto, uma lei inferior não tem o poder de revogar uma lei superior.
Mas porque é que uma lei geral não revoga uma lei especial? Qual é o fundamento
do legislador para estabelecer esta regra?
Ainda que o regime geral tenha mudado, à partida ele continua sem acautelar as
especificidade que justificou a lei especial. E, portanto, ela merece manter-se em vigor
precisamente porque acautela uma especificidade que o regime geral anterior e o
novo não acautelam.
Há uma ressalva: se houver compatibilidade entre a lei geral nova e a lei especial
antiga, não se coloca o problema da revogação. O problema da revogação só se
coloca quando há incompatibilidade entre os regimes, quando a lei geral mais recente
contraria o regime da lei especial antiga.
Então porque é que o legislador estabelece que a lei geral não revoga a lei especial
salvo se outra for vontade inequívoca do legislador?
Precisamente porque a lei especial foi pensada para a situação particular a que se
aplica. E, à partida, o regime geral novo não terá tomado em consideração essas

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circunstâncias especiais que justificaram a emissão da lei especial. A lei especial é
pensada para situações particulares e atende às características dessas situações. O
regime geral posterior em princípio não terá em conta essas especificidades e,
portanto, não se sobreporá à lei especial que existia. Daí que a alteração ou criação
de um regime geral não afetará a vigência de um regime especial anterior que seja
com ele incompatível. Mas temos que ter atenção à parte final do artigo 7º nº3, pois
isto não é impreterível. É possível que a própria lei geral posterior revogue
expressamente a lei especial anterior, e aí não há dúvidas, e ainda é possível que
resulte da interpretação da lei geral que o legislador pretendia aplicá-lo à situação
regulada pela lei especial. Neste caso, é revogada tacitamente.
Ou seja, há duas formas de uma lei geral revogar uma lei especial:
1) através de revogação expressa;
2) quando resulte com especial certeza da lei geral nova que ela se pretende aplicar
à situação que era regulada pela lei especial anterior.
O artigo 7º nº2 estabelece a relação entre uma lei geral posterior e uma lei especial
anterior. E se for ao contrário? Se for uma lei especial posterior incompatível com uma
lei geral anterior? A lei especial anterior revoga parcialmente a lei geral anterior. Faz
com que a lei geral se deixe de aplicar à situação especial que é abrangida pela lei
especial na medida dessa incompatibilidade. Se a lei especial for revogada sem ser
substituída por outra lei, aplica-se o regime geral. Porque esse regime geral já está
em vigor.

O problema da não repristinação: este problema está explicado no artigo 7º nº4


(“a revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que esta revogar”)
ou seja, a não repristinação significa que a cessação da vigência de uma lei que
revogou uma lei anterior não implica o renascimento da lei que foi por ela revogada.
Ex: uma lei 1, que entrou em vigor em 1990, é revogada pela lei 2, que foi publicada
em 2005, e esta lei 2 foi revogada pela lei 3 em 2010. Ora, a revogação da lei 2 pela
lei 3 não implica o renascimento da lei 1, mesmo face aos casos em que a lei 1 não
seria incompatível com a lei 3.
Duas exceções: 1) o legislador pode repristinar, por lei nova, uma lei já revogada, e
não tem que o fazer expressamente se isso resultar da sua vontade inequívoca;
2) o artigo 282º nº1 da CRP determina que a declaração de inconstitucionalidade ou
ilegalidade com força obrigatória geral implica a repristinação das normas que ela
eventualmente haja revogar. Se um legislador, por lapso, remete numa lei nova para
uma lei que afinal já estava revogada ou cuja vigência tinha cessado.
Quid iuris? Nestes casos, parece de admitir que a lei nova não repõe a lei antiga, não
há repristinação, o que faz é apropriar-se materialmente do conteúdo da lei antiga
para a qual remete. A lei nova torna seu o conteúdo da lei antiga na parte para que
remete.

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Ex: o legislador diz que em matéria de atualização do valor das rendas remete para
o índice de preço do consumidor, e esse índice foi revogado, substituído por outro.
Não se entende que à repristinação da lei que regula o índice de preço do consumidor,
entende-se é que a determinação desse índice que constava da lei que foi revogada
passa a integrar a lei nova.

CONFLITO DE LEIS (súmula):


Quando estamos perante normas conflituantes (o conteúdo dessas normas não é
compatível), esse conflito é resolvido com recurso a estes 3 critérios:
- Princípio da superioridade – lei superior prevalece sempre sobre a lei inferior
- Princípio da posterioridade – estando as leis no mesmo patamar da pirâmide
normativa, a lei mais recente prevalece sobre a lei mais antiga (conta a data da
publicação); exceto se a lei mais antiga for uma lei especial, caso em que prevalece
sob a lei geral
- Princípio da especialidade – se a lei antiga for uma lei especial ela não e afeta
pela lei geral mais recente, exceto de outra for a vontade inequívoca do legislador.
Há um outro tipo de conflito de leis mais complicado – aplicação da lei no tempo (saber
se uma situação se prolonga ao longo da mudança de várias leis, qual é a que se
aplica).
Para aplicarmos o princípio da superioridade temos por base a hierarquia das leis:
- Leis constitucionais editadas pelo legislador constituinte originário;
- Leis constitucionais emanadas do poder constituinte de revisão;
- O problema do nível hierárquico das designadas leis constitucionais mediatas ou
constitucionalizadas (art.8º);
- Leis, Decretos-Leis e Decretos-legislativos Regionais (em matéria concorrencial
estão no mesmo patamar, tem o mesmo valor normativo, desde que sejam
respeitadas as regras de competência absoluta e relativa dos órgãos de onde
emanam estes diplomas;
- Decretos regulamentares do Governo;
- Resoluções do Conselho de Ministros;

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- Portarias
- Despacho normativo
- Posturas, regulamentos e regimentos dos órgãos das autarquias locais.
O PAPEL DAS INSTRUÇÕES
Circulares, ordens de serviço, instruções propriamente ditas, despachos, proferidos
no seio de uma determinada hierarquia.
O que caracteriza as instruções é que elas vinculam apenas no seio de uma
determinada hierarquia. São atos genéricos, mas internos, dirigem-se só aos
inferiores hierárquicos dentro daquela estrutura, não vinculam pessoas fora daquela
hierarquia. Têm caráter administrativo e não têm de força obrigatória geral.
NORMAS CORPORATIVAS
Segundo o art.1º nº1 do CC, as normas corporativas são fonte imediata de direito.
São normas intraestaduais criadas por ordens institucionais menores, que tem uma
vida jurídica autónoma em relação à vida do estado (ex.: ordem dos advogados).
Atualmente, falamos de normas criadas por organismos representativos das
diferentes categorias morais, culturais, económicas ou profissionais que ainda hoje
existem. Não podem contrariar leis de caráter imperativo, mas prevalecem sobre os
usos (art.3º nº2).

VI. A efetivação do Direito. O método jurídico


Interpretação da lei
BIBLIOGRAFIA: Batista Machado: pág. 173 - 192
O que é interpretar? Interpretar, no fundo, implica retirar do enunciado linguístico (ou
seja, do texto), em que se traduz a disposição legal, um determinado
sentido/conteúdo. O objetivo é, ao ler o texto legal, retirar dele um conteúdo, que
depois será aplicável aos casos concretos.
Durante algum tempo entendeu-se que a tarefa de interpretação era apenas
necessária quando o texto legal suscitava dúvidas, dizia-se que no texto claro não
cabia interpretação. Mas a verdade é que nenhum texto comporta um único sentido,
por mais claro que ele seja, comporta sempre uma multiplicidade de sentidos, dos
quais é preciso tirar um.
Portanto, todas as leis têm de ser interpretadas. Tanto que só sabemos se uma
disposição legislativa é clara depois de a interpretar. A interpretação é uma tarefa que
é imposta sempre. No caso das normas jurídicas, essa situação é ainda mais intensa
devido ao uso de expressões ambíguas, da natureza técnica do vocabulário, dos
conceitos indeterminados e cláusulas gerais.

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É para evitar sensibilidades que o legislador e a doutrina desenvolveram uma doutrina
forte, que encontra cabimento no artigo 9º, ao nível da interpretação da lei. Porque
temos que ter cânones de interpretação que nos permitam chegar a soluções
coerentes. Caso contrário, a incerteza seria enorme, porque cada juiz interpretaria a
lei da forma que entendesse mais justa ao caso concreto sem qualquer
previsibilidade.

O que vamos analisar é quais são os cânones/orientações que nos são dadas para
tirar um conteúdo de um texto legislativo.

A primeira distinção é entre interpretação autêntica e interpretação doutrinal.


A interpretação autêntica é realizada por diploma legal de força hierárquica igual ou
superior à da norma interpretada. Portanto, é uma interpretação feita pelo órgão
legislativo competente, por lei, é decretada uma lei que interpreta uma lei anterior.
Que força normativa tem a interpretação autêntica? É vinculativa, não podemos
questionar uma interpretação autêntica, tem força de lei. A estas leis dá-se o nome
de leis interpretativas.
A interpretação doutrinal não é feita por um órgão competente para esse efeito nem
tem força normativa, é feito por todos os que aplicam direito, pelos intérpretes. É feita
por pessoas sem poder/competência legiferante. Corresponde à atividade do jurista
que se destina a fixar o sentido e o alcance com que o texto legal deve valer. Tem
poder persuasivo, vale exatamente aquilo que vale a argumentação em que assenta.
Ou seja, tem apenas um poder de persuasão que é tanto maior quanto mais
convincentes forem os argumentos decorrentes da tal fidelidade aos cânones de uma
metodologia jurídica correta.

A propósito da tarefa de interpretação fala-se muitas vezes em hermenêutica jurídica,


que é igual a falar em metodologia da interpretação. É o conjunto das diretivas ou
cânones que devem orientar a atividade do intérprete na sua tarefa interpretativa, para
evitar o casuísmo (caso a caso) e o arbítrio de cada aplicador, que são incompatíveis
com as necessidades da vida social.
É preciso tomarmos posição quanto a duas querelas doutrinais em matéria de
interpretação. Estava discussões doutrinais pretendem analisar o que é que o
intérprete deve procurar quando está a interpretar uma lei. E, portanto, temos duas
discussões:
1ª - Corrente subjetivista (mens legislatoris) vs Corrente objetivista (mens legis)
2ª - Historicismo vs Atualismo

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A discussão na 1ª é saber se devo procurar a vontade real do legislador ou aquilo que
resulta da lei, a chamada vontade da lei. Na 2ª, a discussão é: o sentido da lei é
rigidificado no momento em que ela entra em vigor ou evolui com a evolução da vida?
Quando interpreto uma lei devo interpretá-la com o sentido que ela foi publicada,
naquele momento histórico, e ela vale sempre com esse sentido, ou essa
interpretação deve ser feita no contexto histórico em que ela vai ser aplicada?
Querela entre a corrente subjetivista e a corrente objetivista: a discussão
associada a esta querela é analisar se o intérprete deve procurar a vontade ou
intenção do legislador (corrente subjetivista) ou a vontade ou a intenção da lei
(corrente objetivista). Para os subjetivistas, o intérprete deve procurar a vontade
efetiva do legislador real, o que é que ele quer quando publica a lei. E, portanto, dá
menos peso à objetivação linguística dessa vontade no texto da lei. Ou seja, de entre
as várias acessões que o texto da lei comporta, deve selecionar-se aquela que
corresponde à vontade historicamente real do legislador.
Argumentos a favor da corrente subjetivista: 1º) o dever de obediência ao legislador
ou ao poder legítimo que ele detém exige que se faça prevalecer a sua vontade
histórica, isto está associado à questão da representatividade, à separação de
poderes. 2º) esta interpretação conforme a vontade do legislador promove a certeza
jurídica, porque a vontade do legislador é só uma.
Argumentos contra a corrente subjetivista: 1º) não é possível determinar a vontade
histórica do legislador porque, em regra, ele é um órgão colegial e, portanto, cada um
dos seus membros pode ter atribuído à fórmula da lei um sentido diferente. Os
subjetivistas dizem que isto ainda reforça mais a posição deles porque, como o órgão
é colegial, há debate, discussões, atas e aproximações de ideias. 2º) como é que o
destinatário da norma da lei tem acesso à vontade real do legislador? Daquilo a que
nós temos acesso, é o texto, a objetivação linguística dessa vontade. O destinatário
corrente da norma não tem acesso à vontade real do legislador, só à norma. Para
uma posição subjetivista moderada, exige-se que a vontade do legislador se reflita de
alguma forma no texto. A isto, o Dr. Batista Machado chama Teoria da Alusão.
Para os objetivistas, o intérprete deve procurar a descoberta do sentido da fórmula
normativa que foi objetivada no texto, autonomizando-a da vontade psicológica que
esteve na sua origem.
Argumentos a favor da corrente objetivista: 1º) sendo a lei um enunciado linguístico
destinado a comunicar um sentido, ele desprende-se do seu autor, sendo a partir
desse texto que deve o intérprete apreender o sentido que lhe está iminente, ou seja,
o ponto de partida do intérprete e do destinatário da norma é o enunciado linguístico,
desprendido do seu autor. 2º) não é possível identificar a vontade do legislador real
porque o legislador é maioritariamente coletivo. 3º) o ponto de vista objetivista
favorece mais a retidão e a justeza do direito porque permite escolher de entre os
sentido possíveis do enunciado linguístico o mais razoável, não fica preso à vontade
do legislador.

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Argumentos contra a corrente objetivista: 1º) o objetivismo desrespeita o princípio
fundamental da separação de poderes, nomeadamente entre os órgãos legislativos e
os órgãos judiciais, entre os tribunais e o legislador. 2º) o objetivismo, na modalidade
atualista, fomenta a disparidade de julgados, afeta a certeza e a segurança jurídicas.
Será esta discrepância doutrinária assim tão importante? Será a clivagem entre as
duas posições assim tão acentuada? O que vem dizer o Dr. Manuel de Andrade é
que, na prática, a divergência entre a escola objetivista e a escola subjetivista não é
assim tão grande, esta querela centra-se apenas na importância que é conferida aos
trabalhos preparatórios da lei (projetos, anteprojetos, relatórios oficiais, pareceres,
atas das comissões, debates, etc). São estes trabalhos preparatórios que nos podem
elucidar quanto à vontade real do legislador e, na falta de elementos para chegar a
esta vontade real, os próprios subjetivistas reconhecem que tem de se partir do texto
da lei. Portanto, esta querela só é determinante nos casos extremos em que existem
elementos concretos que revelam a vontade real do legislador e esta vontade colide
com o sentido que resulta do texto da lei

Querela entre a posição historicista e a posição atualista: é saber se, quando


interpreta a lei, o intérprete se deve concentrar no sentido que ela tem no momento
em que é elaborada ou se deve adequar esse sentido ao momento histórico em que
a lei é aplicada. O intérprete deve interpretar a lei de acordo com o sentido que ela
tem no momento em que ela é elaborada ou deve adequar esse sentido ao momento
histórico em que ela é aplicada? Para o historicismo, o sentido da lei permanece
imutável ao longo de toda a sua vigência, é o que ela tem no momento em que é
elaborada. Para o atualismo, o sentido da lei deve evoluir de acordo com o evoluir
da vida, ajustando-se às circunstâncias de cada momento histórico.
Como é que se conjuga a discussão subjetivismo vs objetivismo com a discussão
historicismo vs atualismo? Tendencialmente, um subjetivista é historicista ou
atualista? Tendencialmente, é historicista, porque ele procura a vontade real do
legislador, no momento em que elabora a norma. E, tendencialmente, um objetivista
é atualista. Mas nada impede um subjetivista de ser atualista, ele atende à vontade
histórica do legislador ajustada às atuais condições, no fundo, é um legislador
hipotético e é raro. Mais comum é um objetivismo histórico ou um objetivismo
atualista. No objetivismo histórico, o intérprete atribui ao texto um sentido invariável
ao longo do tempo. Já no objetivismo atualista, o intérprete centra-se na fórmula legal
e no sentido que dela decorre, mas considera que este sentido pode variar conforme
a evolução da vida e do ordenamento jurídico.

79
Elementos de interpretação: quais são os elementos a que um intérprete recorre
para retirar o sentido correto da norma, portanto temos um texto linguístico, a norma
é-nos apresentada sob uma fórmula normativa e é preciso retirar dela o sentido
correto, que depois será utilizado na aplicação da norma na realidade da vida
concreta. Para isso, em cada tarefa de interpretação, devemos recorrer à conjugação
de dois grandes elementos, sendo que o segundo elemento se subdivide em 3, e
sempre que estamos no exercício de uma tarefa interpretativa deve recorrer-se a
estes elementos:
● Elemento gramatical, que corresponde à letra da lei
● Elemento lógico, que abrange 3 subelementos:
- Elemento racional ou teleológico
- Elemento sistemático
- Elemento histórico
É dos resultados que surgirem da conjugação destes quatro elementos que nasce a
tarefa de interpretação.

O elemento gramatical é o ponto de partida da interpretação, porque quando


recorremos a um diploma legislativo, começamos por ler o texto, é sempre a primeira
tarefa, o ponto de partida para chegar à interpretação.
E resulta do elemento literal que ele tem uma função negativa e uma função positiva:
a função negativa do elemento literal é eliminar todos os sentidos que não tenham
qualquer apoio ou pelo menos uma correspondência ou ressonância com as palavras
da lei; a função positiva do elemento literal tem duas dimensões, a primeira dimensão
é se o texto da lei comporta apenas um sentido então, em regra, esse é o sentido da
norma (em regra, porque pode acontecer que, nomeadamente da conjugação com
outras normas, se chegue à conclusão que a redação do texto não representa o
pensamento do legislador), a segunda dimensão é que se o texto comporta mais do
que um sentido, que é o que normalmente acontece, então o intérprete deve, na falta
de outros elementos que induzam em sentido contrário, acolher aquele sentido que
melhor e mais diretamente corresponde ao significado natural das expressões verbais
utilizadas na norma. A função positiva do elementos gramatical no fundo, resulta da
convicção de que o legislador se soube exprimir adequadamente, o artigo 9º regula
esta matéria. Elemento gramatical, função negativa, nº 2 do artigo 9º e eleito
gramatical, função positiva, nº3 do artigo 9º.

O elemento teleológico é um argumento de raciocínio de razão de ser e, portanto,


dá-nos alguma margem de compreensão e enquadramento da norma no contexto.
Consiste na razão de ser da lei, usa-se muito a expressão em latim “ratio leges”, para
falar do elemento teleológico, qual é a razão de ser da lei, o que é que a lei pretende.
Este é o elemento mais determinante porque, percebendo o que a lei pretende regular
e como, chegamos muito mais facilmente ao seu sentido. A ratio leges é, portanto, o

80
fim visado ao elaborar a norma, com que finalidade legislativa é que a norma foi
elaborada.

Um dos principais elementos para identificação da ratio leges é a occasio leges, que
corresponde às circunstâncias políticas, sociais, económicas, morais, etc em que a
lei foi elaborada. Ou seja, a conjuntura político-económico-social que motivou a
elaboração da lei.
Na identificação da ratio leges é muito importante identificar quais são os interesses
que estão em causa na norma, que muitas vezes são conflituosos.
Ex: uma das primeiras medidas legislativas do governo no período de confinamento
foi uma norma que prevê a renovação automática de todos os contratos de
arrendamento habitacional que cessem nos próximos três meses. A occasio leges é
a situação de pandemia, a conjuntura político-económico-social, no caso habitacional,
é não deixar ninguém sem casa neste momento. Os interesses que estão em causa
são evitar a propagação do vírus, o interesse do arrendatário à sua proteção e a
manter a sua casa e o interesse do senhorio. O legislador, nestas matérias
excecionais, adotou posições de salvaguarda de proteção das pessoas mais frágeis,
neste caso o arrendatário. O elemento teleológico é um elemento muito fácil de
manipular, enquanto os outros são mais objetivos. Quando analisamos o elemento
teleológico temos que ter a preocupação de ser neutros e abrangentes na análise,
não nos podemos esquecer da occasio leges, temos que perceber quais as
circunstâncias que estão por trás da lei, analisar quais os interesses que estão em
jogo, que são afetados por aquela norma e procurar identificar a qual desses
interesses é que o legislador atribuiu prevalência e em que medida é que o fez.

O elemento sistemático tem em vista a consideração das outras normas que


formam aquele instituto em que se integra a norma a interpretar. O seu objetivo é
considerar as outras normas que formam o instituto em que se integra a norma que
estamos a interpretar, ou seja, devemos considerar as outras normas que regulam a
mesma matéria, bem como normas que regulam matérias próximas ou afins, porque
a solução entre todas as normas tem que ser coerente. A norma deve ser considerada
em consonância com o espírito de todo o ordenamento jurídico.

O elemento histórico compreende todos os elementos relacionados com a história


do preceito: evolução histórica daquele instituto, ou seja, qual era a solução anterior,
textos legais ou doutrinais que inspiraram o legislador naquela solução e trabalhos
preparatórios da norma, como estudos prévios, etc.
Depois de fazer a aplicação destes quatro elementos ao enunciado normativo, o
intérprete pode chegar a um conjunto de resultados da interpretação, que têm por
base a relação que se estabelece entre o sentido a que o intérprete chegou depois

81
de aplicar todos os elementos de interpretação e a relação desse sentido com o
elemento gramatical. Avaliamos qual é o resultado de interpretação daquela norma
em função da consonância ou dissonância entre o sentido que o intérprete retirou da
norma e o elemento gramatical. Resultados da interpretação:

1- Interpretação declarativa: estamos perante uma interpretação declarativa quando


o intérprete, depois de aplicar à norma os 4 elementos de interpretação, atribui à
norma um dos sentidos que o texto direta e claramente comporta. Existe uma
coincidência entre o sentido que o intérprete atribui à norma e um dos sentidos que o
texto da norma direta e claramente comporta. Chega-se à conclusão, nos termos do
artigo 9º nº3, que o legislador exprimiu de modo correto e adequado o pensamento
legislativo.

2- Interpretação extensiva: na interpretação extensiva, a interpretação do texto fica


aquém do seu sentido, por isso é que tem que se estender. O intérprete chega à
conclusão de que a letra da lei fica aquém do espírito da lei. A letra da lei diz menos
do que a norma deveria dizer. Depois de aplicar os quatro elementos da interpretação,
chega-se à conclusão que a norma tem um sentido mais amplo do que aquele
que resulta da sua letra.
O exemplo que se costuma dar é o de que o legislador diz “pais” quando queria dizer
“ascendentes” e, portanto, queria abranger os avós, bisavós, etc, podemos ponderar
no limite no artigo 877º do CC. Se entendermos que, quando este artigo se refere a
pais e filhos ou avós e netos, também deve abranger bisavós e bisnetos, o que
estamos a fazer é uma interpretação extensiva, a dizer que o sentido da lei pretendia
abranger todos os descendentes diretos. E, portanto, quando o legislador referiu
apenas avós e netos, disse menos do que queria.
O que o intérprete faz é alargar o que resulta diretamente do texto, dando-lhe o
alcance mais amplo que corresponde ao verdadeiro sentido da lei. A interpretação
extensiva é difícil de distinguir da lacuna, que são aqueles casos em que há uma
ausência de regulamentação.
Na interpretação extensiva não há uma ausência de regulamentação porque, apesar
de aquele caso não resultar diretamente do texto da lei, ele resulta ainda só seu
espírito e, portanto, ainda cabe na norma. Estamos perante uma interpretação
extensiva quando o texto da lei fica aquém do seu sentido. Resulta do texto menos
do que deveria resultar quando aplicados os quatro elementos de interpretação.
Nestes casos, cabe ao intérprete alargar o sentido da norma para além do seu texto.
Por interpretação, atribui-se à norma um conteúdo que vai para além do seu texto,
mas não vai para além dos elementos de interpretação, porque esses sentido resulta
da aplicação dos elementos.
Quais são os argumentos usados pelo intérprete para fundamentar uma interpretação
extensiva?

82
1. O argumento da identidade da razão, chamado argumento a pari (onde a razão de
decidir seja a mesma, a decisão também deve ser a mesma. Se a razão de proibir a
compra e venda de pais a filhos ou avós a netos sem autorização dos restantes filhos
ou netos é igual à razão que justificaria proibir a compra e venda de bisavós a
bisnetos, então a solução também deve ser a mesma);
2. O argumento da maioria da razão, chamado argumento a fortiori (se a lei
explicitamente contempla certas situações para que estabelece um determinado
regime, forçosamente há de também pretender abranger outra ou outras situações
que com ainda mais fortes motivos exigem ou justificam o mesmo regime.

3- Interpretação restritiva: Depois de aplicar os quatro elementos de interpretação


àquela norma, o intérprete chega à conclusão que o texto da lei vai para além do seu
sentido, ou seja, o legislador disse mais do que aquilo que queria dizer. Portanto, é
preciso reduzir o alcance da norma que resultaria do elemento gramatical de maneira
a que ele seja coincidente com o sentido que resulta da razão de ser da lei, da ratio
leges. “Cessante ratio legis cessat euis dispositio”, ou seja, cessando a razão de ser
da norma, cessa o seu alcance. Ou, usando as palavras do Dr. Batista Machado, “lá
onde termina a razão de ser da lei, termina o seu alcance”. Um dos artigos onde é
necessário fazer uma interpretação restritiva é o artigo 202º, onde o legislador diz
“diz-se coisas tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas”, ora, os objetos
das relações jurídicas não são todos coisas, temos prestações, que são igualmente
possíveis de relações jurídicas. Pode haver também relações jurídicas sobre direitos.
Portanto, na verdade, o que o legislador queria dizer é que as coisas são um dos
possíveis objetos de relações jurídicas. Mas não é tudo aquilo que pode ser objeto de
relações jurídicas.
Interpretações excecionais, que devem ser usadas com cautela:
4- Interpretação revogatória ou ab-rogante: estamos perante uma interpretação
revogatória quando, da aplicação dos 4 elementos de interpretação, o intérprete
chega à conclusão que existe uma contradição insanável entre duas disposições
legais e que, portanto, é necessário sacrificar, em obediência ao tal pensamento
legislativo, a totalidade ou parte de uma norma.
5- Interpretação corretiva: partilha com a interpretação revogatória o facto de ser
necessário sacrificar parte ou a totalidade de uma fórmula normativa. No caso da
interpretação corretiva, o intérprete chega à conclusão que esta fórmula normativa é
tão mal inspirada que nem sequer consegue aludir com o mínimo de clareza às
hipóteses a que a lei se pretende referir, ou então abrange hipóteses que não estão
de todo no espírito da lei. A interpretação corretiva só é possível quando não se
consegue chegar a esse resultado por interpretação extensiva ou restritiva.
6- Interpretação enunciativa: o Dr. Oliveira Ascensão não integra a interpretação
enunciativa dentro dos resultados de interpretação. O Dr. Batista Machado integra no

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contexto dos resultados de interpretação mas esclarece exatamente o que é que se
passa, é que na interpretação enunciativa, o intérprete retira de uma norma um
preceito que está apenas virtualmente contido nela, ou seja, ele utiliza um conjunto
de inferências lógico-jurídicas de argumentos para retirar de uma norma uma outra
norma que ele considera que está nela contida. O argumento “a maiori ad minus” (a
lei que permite o mais, também permite o menos, ex: se a lei me permite vender o
meu anel, também me permite penhorá-lo), o argumento “a minori ad maius” (a lei
que proíbe o menos, também proíbe o mais) e o argumento “a contrario” (se existe
uma norma excecional para um determinado caso, os casos não abrangidos pela
norma excecional obedecem a um princípio regra de sentido oposto, um exemplo é o
artigo 1143º, sendo este artigo uma norma excecional, o que podemos dizer é que a
contrario, os de valor inferior a 2500 euros, obedecem ao princípio da liberdade de
forma do artigo 219º, mas isto não é interpretação enunciativa, embora muitas vezes
se use o termo a contrario nestes contextos, o que temos aqui é que a partir de uma
norma excecional se deduz a contrario que os casos que ela não abrange seguem
um regime oposto que será o regime regra. Para podermos usar o argumento a
contrario é preciso demonstrar que aquela consequência jurídica que está
consagrada na norma excecional, só se produz quando se verifique a hipótese
prevista nessa norma e não qualquer outra hipótese. A hipótese mais segura é
quando o legislador faz uma enumeração taxativa.

O artigo 9º do CC: é um exemplo de norma sobre normas, que valem para todo o
direito, independentemente do ramo do direito em causa, não apenas ao direito civil.
O objetivo do artigo 9º é prescrever/determinar o modo de determinação do conteúdo
significativo de todas as outras normas do sistema jurídico.
É no artigo 9º que encontramos os critérios que devemos utilizar para determinar qual
o sentido de todas as restantes normas do sistema jurídico.
Daí que o Dr. Batista Machado diga que todas as normas trazem associadas a si o
artigo 9º. Encontramos, no artigo 9º, inúmeras respostas, por exemplo, em matéria de
controvérsia entre subjetivismo e objetivismo e em matéria de controvérsia entre
atualismo e historicismo.
Vimos já que não cabe ao legislador tomar posições em termos de matérias
doutrinais, e o nosso legislador procurou fazê-lo no artigo 9º quando, em vez de se
referir ao à vontade do legislador ou à vontade da lei, ele aponta como objetivo da
atividade interpretativa a descoberta do pensamento legislativo.
Não obstante, não podemos esquecer que o artigo 9º nº3 aponta para algumas
características objetivistas. Ainda que o legislador não tome ostensivamente posição
quanto à querela subjetivista e objetivista, utilizando o termo neutro do pensamento
legislativo, a verdade é que no artigo 9º nº3 ele deixa claro que o intérprete deve

84
procurar ter em mente um legislador ideal que se soube exprimir corretamente e não
a vontade do legislador concreto. Este é um indício objetivista do artigo 9º.

A parte final do artigo 9º nº1 é a adoção da posição atualista. O intérprete deve ter em
atenção as condições específicas do tempo em que a lei é aplicada. O elemento
gramatical vem logo no início do artigo, a função negativa do elemento gramatical
está consagrada no artigo 9º nº2 e a função positiva do elemento gramatical está no
nº3. O artigo 9º nº1 fala ainda ostensivamente no elemento sistemático quando fala
da unidade do sistema jurídico e refere-se ainda, logo de seguida, às circunstâncias
em que a lei foi elaborada, sendo uma menção à occasio leges, para a identificação
que ela tem para a ratio leges.

Integração de lacunas
Bibliografia: Oliveira Ascensão, pág. 381-389 e 433-472.
Temos uma lacuna quando há uma situação da vida merecedora de tutela jurídica
mas que não se encontra regulada em nenhuma norma jurídica. É uma situação que
merecia ser regulamentada, mas não foi.
Um exemplo de lacuna que se suscitou foi quando começou a vulgarizar-se o
transporte aéreo, pois era um novo modelo de transporte com características muito
específicas, as normas de circulação terrestre e marítima não respondiam
devidamente e o que aconteceu, foi que passámos a ter uma situação que merecia
tutela jurídica e que não tinha. Na atualidade, há vários temas que estão a ser
debatidos, exemplo disso é a inteligência artificial. Como diz o Dr. Oliveira Ascensão,
as lacunas são inevitáveis.
Quais são as razões subjacentes à existência de lacunas?
1) A deficiência de previsão: a situação já existia, mas o legislador esqueceu-se, são
situações que o legislador se esqueceu de prever;
2) A intenção consciente do legislador de não regular a matéria, quando se trata de
matérias novas, que ainda estão em evolução, situações em que o legislador opta por
não regular uma situação que ele sabe que merece tutela e fá-lo por uma de 3
situações: porque a matéria ainda é muito recente e, portanto, muito fluída e ele
prefere aguardar até que esteja mais estabilizada; porque prefere deixar essa questão
aos órgãos de aplicação do direito ou porque os próprios órgãos legiferantes não têm
a capacidade para encontrar a solução adequada ou chegar a acordo e, portanto,
preferem deixar a situação por regular;
3) Circunstâncias novas que surgem de maneira imprevisível, quando essa
circunstância surge, não existe regulação para ela. A questão do HIV levantou muitos
problemas de proteção de dados pessoais, nomeadamente de direito à privacidade,

85
que nunca tinham sido suscitados antes porque nunca tinha havido nenhuma situação
que o motivasse

Por vezes não é fácil identificar uma lacuna.


Como refere o Dr. Oliveira Ascensão, é necessário, quando estamos perante uma
nova situação para a qual não existe regulamentação na ordem jurídica, distinguir se
ela é uma lacuna ou uma situação extra jurídica. Para haver lacuna, não basta dizer
que existe um caso que não é regulado pelo direito. A maior parte das situações da
nossa vida não são reguladas pelo direito (ex: os passos de dança que eu dou, um
passeio com a família), mas o facto de uma determinada situação no momento ser
considerada uma situação extra jurídica, não ser regulada pelo direito, não significa
que não venha a ser. Há situações que não são reguladas pelo direito porque não
têm que ser, como o lançamento de satélites espaciais.
O que distingue uma lacuna de uma situação extra jurídica é que, na lacuna, não só
temos um caso que não está regulado pelo direito mas devia estar, no sentido em
que tem dignidade jurídica e merece tratamento normativo.
Para haver lacuna, temos que ter uma situação da vida não regulada normativamente,
mas que o deveria ser porque tem dignidade jurídica e merece tratamento normativo.
Como é que avaliamos essa dignidade jurídica? Saber se a matéria cabe dentro das
características e das funções da ordem jurídica ou não, porque se for uma matéria de
cortesia, de ordem moral moral ou religiosa, o direito não deve interferir. Depois, se
chegarmos à conclusão que essa questão goza de dignidade jurídica, então ainda é
preciso avaliar se ela deve ser juridicamente regulada, ou seja, se o sistema jurídico,
para ser completo, requer a consideração e a solução daquele caso concreto.
Segundo a doutrina alemã, e que é também uma frase utilizada pelo Dr. Oliveira
Ascensão, “a lacuna é uma incompleição do sistema normativo que contraria o plano
deste”, ou seja, temos uma ausência de regulamentação contrária ao espírito do
sistema. O princípio fundamental em matéria de lacunas vem no artigo 8º do CC, a
chamada proibição de non liquet, o tribunal não pode abster-se de julgar invocando a
falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos e litígio.
Nos artigos 10º e 11º está presente a integração de lacunas.

Relação entre integração de lacunas e interpretação


É uma relação, por um lado, de complementaridade, mas por outro também de
exclusão, o que torna difícil este jogo de equilíbrios.
Complementaridade porquê?
A própria identificação de uma lacuna supõe uma atividade prévia de interpretação
das normas jurídicas. Só depois de, por força de interpretação, se ter apurado o
sentido de todas as normas em vigor, é possível chegar à conclusão que aquele caso

86
não está especificamente regulado. É através da interpretação que é possível
identificar uma lacuna. Perante um caso da vida, o intérprete vai interpretar todos os
preceitos vigentes, chegando à conclusão que nenhum deles regula o caso em
questão. Identificar uma lacuna pressupõe interpretação de todos os preceitos
vigentes e a conclusão de que nenhum deles se aplica àquele caso.
Outro elemento da relação de complementaridade: qual é o mecanismo da integração
de lacunas? Nos termos do artigo 10º, a analogia. Como é que aplicamos a analogia?
Através da aplicação de outras normas do ordenamento. E, portanto, no momento do
preenchimento da lacuna, o recurso à analogia pressupõe a interpretação da norma
para aferir dessa semelhança. Ou seja, é por interpretação que identificamos a lacuna
e é por interpretação que colmatamos a lacuna por analogia.
Uma terceira manifestação, ainda dentro da complementaridade, é que é através da
interpretação que se detetam as lacunas ocultas. Numa lacuna oculta, temos uma ou
mais normas que aparentemente regulam a situação da vida comum que está em
causa. No entanto, por interpretação restritiva ou por interpretação ab rogante da
norma, é revelada que afinal aquela norma não regula aquela situação concreta,
surgindo uma lacuna.

A relação de exclusão está entre a integração de lacunas e a interpretação extensiva.


A primeira afirmação é: se a situação for passível de enquadramento por interpretação
extensiva, não há lacuna.
Como é que distinguimos uma lacuna de interpretação extensiva? Em ambos os
casos, a regulamentação não resulta do texto da lei, mas no caso da interpretação
extensiva resulta do seu sentido, ainda está incluída na norma. Só estaremos perante
uma lacuna quando a situação não cabe nem na letra nem no espírito de nenhuma
norma em vigor. Esta distinção é importante porque, nos termos do artigo 11º do CC,
é proibida a aplicação analógica de normas excecionais, mas é permitida a
interpretação extensiva. Na prática, isto pode ser difícil.
Ex: O artigo 884º do CC é um artigo que regula a redução de preço na compra e
venda em caso de incumprimento parcial. O problema do incumprimento parcial tem
começado a surgir na consequência da pandemia, nomeadamente nos contratos de
empreitada, que não tem norma equivalente.
O que alguns autores defendem é a aplicação analógica do artigo 884º
exclusivamente previsto para a compra e venda a outros tipos contratuais como a
empreitada ou a prestação de serviços.
Do artigo 884º não conseguimos, por interpretação extensiva, retirar a aplicação deste
artigo a outros tipos contratuais. Mas conseguimos retirar por analogia a solução da
redução em proporção do valor do contrato.

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O Dr. Oliveira Ascensão fala na questão dos tipos contratuais, que são uma
modalidade de contrato que goza de determinadas características que lhe dão uma
especificidade.

Relação entre lacuna e costume

Para quem admite o costume como fonte de direito, se uma matéria é regulada por
costume, então não há lacuna. Para haver lacuna, é necessário que não haja em todo
o sistema jurídico, uma norma jurídica que regule aquela situação.

Modo de integração de lacunas:


- Analogia
- Criação de uma norma ad hoc
A questão da integração de lacunas começa no artigo 8º nº1 do CC. Se o tribunal não
pode deixar de julgar um caso porque existe uma lacuna, então tem que haver
maneira de colmatar essa lacuna.
A maneira de resolver lacunas vem consagrada no artigo 10º do CC. Perante uma
lacuna, como é que o intérprete resolve o problema?
Primeiro, a integração de lacunas é feita com recurso a analogia. Só quando a
analogia é proibida ou não é possível, é que se recorre à criação de uma norma ad
hoc. O que está subjacente à analogia é que situações semelhantes merecem um
tratamento igual. À semelhança que pressupõe a analogia não é uma semelhança em
termos de descrição exterior das situações, não é uma semelhança fáctica, é uma
semelhança sob o ponto de vista do efeito jurídico, ou seja, ambas as situações
partilham a mesma razão justificativa de regulamentação. O núcleo essencial do caso
omisso e do caso análogo exige aplicar-se a ambos a mesma consequência jurídica.
Daí que a analogia exija sempre uma atividade de valoração das normas, não é uma
mera atividade interpretativa nem uma atividade de procura de semelhanças fácticas,
é uma atividade valorativa, para procurar a essência da regulamentação.
Quando é que o uso da analogia é proibido? Nas normas penais positivas, no direito
fiscal e nas normas excepcionais.
Nas normas penais positivas: as normas que definem os crimes estabelecem as
penas não podem ser aplicadas por analogia, artigo 1º, nº3 do Código Penal e no
artigo 29º da CRP. As normas penais negativas, aquelas que em vez de estabelecer
uma punição, afastam essa punição, podem ser aplicadas por analogia.
No direito fiscal, por força do princípio da legalidade fiscal, os impostos devem ser
criados e disciplinados por lei, artigo 103º, nº2 e nº3 da CRP.

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As normas excepcionais, artigo 11º, proibição de aplicação analógica de normas
excecionais. A lógica subjacente ao artigo 11 é se a norma excepcional é uma norma
contrária ao regime regra, se há uma lacuna, deve-se aplicar o regime regra, por
analogia, e não a exceção.
O Dr. Oliveira Ascensão e o Dr. Teixeira de Sousa distinguem, nas normas
excecionais, aquelas que gozam apenas de excepcionalidade formal e aquelas que
se caracterizam por uma excepcionalidade substancial.
A excecionalidade substancial está associada a um conceito que já vem do direito
romano chamado ius singulare. O ius singulare são normas que, porque têm em vista
uma utilidade especial, contrariam o princípio fundamental de direito. Isto significa que
na excepcionalidade substancial não está em causa só uma oposição a um regime
que está consagrado noutra norma, mas está também em causa uma oposição aos
princípios gerais que inspiram aquele instituto ou o regime jurídico.
O Dr. Oliveira Ascensão e o Dr. Teixeira de Sousa defendem que a proibição do artigo
11º só se aplica às normas excecionais que gozam de excepcionalidade substancial.
Se a excepcionalidade é formal, já não se aplica a proibição. Esta proibição não só
não se aplica à interpretação extensiva, como também não se aplica à interpretação
enunciativa.

Analogia legis vs Analogia iuris


Esta é uma classificação doutrinal quanto a modalidades de analogia.
A analogia legis, também chamada de analogia da lei, é aquela em que a analogia é
feita com recurso a uma específica norma, portanto, preenche-se o caso omisso com
recurso a uma outra norma.
Já na analogia iuris, o caso omisso é preenchido com recurso a um princípio geral
que é elaborado a partir de um conjunto de normas singulares.
Há uma divergência doutrinal quanto a saber se a analogia iuris ainda cabe no artigo
10 nº1 e 2 ou cabe no artigo 10º nº3. O Dr. Oliveira Ascensão e o Dr. Santos Justo
defendem que a diferença entre a analogia legis e a analogia iuris é uma diferença de
grau e não de natureza, o que significa que ambas são analogia.

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O artigo 10º nº3 só se aplica nos casos em que a analogia não é possível ou não é
adequada. Fala-se, a este propósito, de lacunas rebeldes à analogia. As lacunas
rebeldes à analogia são aquelas para as quais não é possível encontrar nenhuma
norma nem nenhum princípio que assente na mesma razão fundamental de decidir
que possa ser aplicável ao caso omisso. Só nestes casos é que recorremos ao artigo
10º, nº3. E, de acordo com este artigo, a situação deve ser resolvida segundo a norma
que o intérprete criaria se tivesse de legislar dentro do espírito do sistema. Quando o
legislador fala em norma, o que está a fazer é a atribuir uma intenção generalizadora
à solução, isto é reforçado pela referência ao espírito do sistema jurídico. No fundo, o
que o artigo 10º nº3 está a dizer é, segundo o Dr. Oliveira Ascensão, que “na falta de
caso análogo, a situação deve ser resolvida segundo a norma que corresponder aos
espírito do sistema”.

Plenitude do ordenamento jurídico


Antes, dizia-se que o ordenamento jurídico era pleno pela conjugação de instituições
de integração de lacunas com o instituto da interpretação. Este dogma da plenitude
do ordenamento jurídico surge no século XIX com os positivistas, mas prolongou-se
ao longo de grande parte do século XX.
A lógica da plenitude do ordenamento jurídico é aquele o sistema jurídico conteria em
si solução para todos os casos que devessem ser juridicamente regulados, isto é
segundo o que defendem a plenitude do ordenamento jurídico. Mesmo nos casos em
que é necessária a integração de lacunas, em que aparentemente não existe uma
norma, essa norma estaria ainda dentro do sistema, porque ia ser encontrada no
conjunto das outras normas jurídicas. Portanto, a lacuna seria meramente aparente.
Esta teoria da plenitude do ordenamento jurídico falha no nº3 do artigo 10º. A norma
ad hoc criada nos termos do artigo 10º nº3 é inspirada no sistema, mas não está
contida no sistema, é uma criação do intérprete.
É falso que a integração de lacunas preenche o ordenamento jurídico, porque a
integração de lacunas não completa o sistema jurídico porque não cria normas. Não
criando normas, o sistema incompleto permanece incompleto após a integração de
lacunas.
Segundo o Dr. Oliveira Ascensão, a integração de lacunas não altera a situação
normativa existente. Ou seja, depois de integrarmos a lacuna, continua a haver
lacuna.

O método jurídico
O aplicador do direito deve começar pelo caso. O caso concreto é o primeiro elemento
a atender, quer na tarefa de interpretação, quer na tarefa de integração. Não se pode
começar pela norma, mas sim pelo caso.

90
O Dr. Castanheira Neves diz que, com esta nova revolução metodológica, deixou de
se centrar a atenção na norma para se começar a localizar no prios metódico, o
primeiro momento metódico, no caso concreto da vida, sobre cuja validade jurídica
haverá de pronunciar-se. A factualidade relevante identifica-se agora como conteúdo
jurídico-material de um caso concreto e, por isso, é que a interpretação não mais é
encarada como um fim em si mesma, mas como um momento normativa e
metodologicamente subordinado ao serviço da aplicação do direito.
Ou seja, neste novo quadro metodológico, a interpretação e a integração esbatem
fronteiras, porque são ambas constituintes do desenvolvimento do direito. Neste
quadro, o juiz ocupa um papel central.

VII. Aplicação da lei no tempo

Bibliografia deste ponto:


- Batista Machado, págs. 219 a 251

O problema da sucessão de leis no tempo

As leis sucedem-se no tempo e isso não gera conflitos, pois existem regras que
resolvem o problema de conflitos de leis:

➔ Lei posterior revoga lei anterior;


➔ Lei superior revoga lei inferior;
➔ Lei especial não se revoga por lei geral.

Só que há situações da vida que se prolongam ao longo de várias substituições


legislativas, que continuam quando a lei muda.

O problema é: que lei aplicar a uma situação jurídica que nasce ao abrigo de
uma determinada lei, mas que se prolonga no tempo, continuando a existir mesmo
depois dessa lei ser substituída por outra.

91
Este problema surgiu no século XVIII com um novo interesse, estreitamente
relacionado com a proteção dos direitos fundamentais do cidadão e da segurança
jurídica destes contra o poder.

O problema da aplicação da lei no tempo é um problema de conflito entre duas


funções do Direito:

● Uma função estabilizadora (segurança), para proteção dos direitos e


expectativas legítimas das pessoas e, portanto, garantia da continuidade da
vida social. Esta função aconselha a aplicação da lei antiga, ou seja, a lei
que existia à data em que surge a situação.

● Uma função dinamizadora, com o objetivo de ajustar a ordem estabelecida


à evolução social e de promover essa mesma evolução. Esta função
aconselha a aplicação da lei nova, ou seja, a lei que surge já depois da
situação existir, mas antes de se extinguir.

PERGUNTA: Qual é a lei que deve prevalecer em regra?

RESPOSTA: A função principal é a função estabilizadora, pois a função do Direito


é orientar condutas. Ora, não é possível apreciar uma conduta em face de uma
regra que não existia quando a conduta foi praticada.

Além disso, como diz Batista Machado, “nada corrói mais a função social do
Direito (tema abordado no 1º semestre) do que a perda de confiança nas suas normas, em
consequência da frustração de expectativas legítimas fundadas nas mesmas
normas”.

Daí que se diga que o princípio fundamental da aplicação da lei no tempo é o


princípio da não retroatividade da lei, ou seja, a não aplicação da lei a factos
passados. Isto porque não é possível avaliar condutas com base em normas que
não existiam quando elas foram praticadas.

Mas esta regra não é absoluta, ou seja, há situações de aplicação retroativa da lei.

Três graus possíveis de retroatividade

● Retroatividade de grau máximo – a lei nova nem sequer respeita as


situações definitivamente decididas por sentença transitada em julgado ou
por um título equivalente (como sentença arbitral homologada, transação
homologada, etc) ou aquelas causas em que o direito da ação já havia
caducado, ou seja, é uma retroatividade plena, sem respeito sequer pelas
designadas causae finitae (causas terminadas).

Nota:
- Sentença arbitral homologada – sentenças do tribunal arbitral que são confirmadas
pelo juiz.

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- Transação homologada – acordo das partes numa ação judicial, que é confirmada
pelo juiz.

● Retroatividade de grau médio – são respeitadas as causae finitae (causas


terminadas), mas a sua aplicação afeta até mesmo os efeitos jurídicos já
produzidos no passado que não foram objeto de decisão judicial ou título
equivalente.

Exemplo: A e B celebram um contrato de mútuo a 24 meses sujeito à taxa de juros


legal. À data da celebração do contrato, a taxa de juro era de 4%. 6 meses depois,
entra em vigor uma lei que reduz a taxa de juro legal para 2%, ordenando a sua
aplicação a todos os contratos em curso desde o início da sua constituição. Assim,
isto implicaria que A devolvesse a B os 2% de juros a mais cobrados nos primeiros
6 meses.

● Retroatividade de grau mínimo – é a regra prevista no artigo 12º nº1 do


CC. Nada sendo dito pelo legislador em contrário, aplica-se esta. A lei aplica-
se a situações constituídas antes da sua entrada em vigor, mas respeita os
efeitos de Direito já produzidos ao abrigo da lei antiga. Nos casos em que a
lei estabelece, nas disposições transitórias, que se aplica aos contratos
existentes à data da sua entrada em vigor, deve entender-se que o faz a
título de retroatividade de grau mínimo, ou seja, aplica-se de imediato, mas
respeita/salvaguarda os efeitos produzidos ao abrigo da lei antiga.

Exemplo: No exemplo anterior, B passaria a pagar apenas 2% de juros a partir da


entrada em vigor da lei e A não teria que devolver os 2% que cobrava a mais nos
primeiros 6 meses do contrato.

Limites constitucionais à retroatividade das leis

Na CRP, o único limite expresso à retroatividade das leis é no domínio do


Direito Penal. Daqui se retira um princípio de que o legislador ordinário pode, se
quiser, conferir retroatividade às leis novas que aprova, embora com alguns limites.

Casos que o legislador ordinário não pode atribuir a uma lei eficácia retroativa:

● Se, através da retroatividade, violar Direitos Fundamentais


constitucionalmente tutelados ou qualquer outro princípio ou garantia
constitucional.

Exemplo: Uma lei que venha declarar nulas e de nenhum efeito as alienações do
domínio público marítimo feitas nos últimos 50 anos viola o direito de propriedade
constitucionalmente reconhecido, pois corresponderia a uma expropriação
desacompanhada da indemnização devida.

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Uma questão que se pode problematizar neste ponto tem a ver com a
retroatividade de grau máximo: pode e deve questionar-se se essa retroatividade de
grau máximo não viola o artigo 111º da CRP relativo ao princípio da separação de
poderes, uma vez que desrespeita o próprio caso julgado anterior.

Se se entender que sim, a retroatividade de grau máximo é proibida. Além disso,


segundo Oliveira Ascensão, a retroatividade de grau máximo é inconstitucional
com base num argumento de maioria de razão extraído do artigo 282º nº3 da CRP
que determina que, em regra, a declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade
pelo TC não afeta os casos julgados.

Tendo em conta que a inconstitucionalidade é o maior vício do nosso


ordenamento jurídico, se as próprias declarações de
inconstitucionalidade/ilegalidade do TC não afetam os casos julgados, por maioria
de razão, uma decisão do legislador também não o deve fazer.

Nota: Ou seja, se o artigo 282º nº3 da CRP salvaguarda os efeitos produzidos por
normas inconstitucionais e já salvaguardados em caso julgado, por maioria de
razão, terá de se salvaguardar os efeitos, produzidos por normas que não foram
consideradas inconstitucionais, já salvaguardados por decisão transitada em
julgado.

● Em matéria de lei penal incriminadora, lei penal que venha criar novas
penas ou medidas de segurança e lei penal que agrave penas ou
medidas de segurança anteriores é constitucionalmente proibida a
retroatividade (artigo 29º nºs 1, 3 e 4 da CRP).

Vigora nestas leis um princípio de retroatividade in mitius, ou seja, aplicam-se


retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido (nº4).

Este princípio é desenvolvido pelo artigo 2º do CP:

- As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no


momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que
dependem.

- No entanto, se a lei nova eliminar o facto até esse momento punível


criminalmente do núcleo das infrações penais (ou seja, se o facto deixar de ser
crime), o arguido já não pode ser condenado e, se já o foi, por sentença transitada
em julgado, a pena considera-se extinta.

- Sendo diferentes a pena estabelecida pela lei do tempo da infração e as


penas estabelecidas para o mesmo delito em leis posteriores, será sempre
aplicada a pena mais leve ao infrator ainda não condenado por sentença transitada
em julgado. Se tiver havido condenação, mesmo que transitada em julgado, cessam

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a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar
cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.

● Direito Fiscal – tem-se entendido que a lei fiscal que venha reduzir um prazo
de prescrição de um imposto aplica-se imediatamente a todos os prazos em
curso, contando-se todo o tempo que decorreu ao abrigo da lei anterior. Aqui
também se entende que existe uma retroatividade in mitius. Esta
retroatividade in mitius aplica-se, não só a questões de prazo, mas na
generalidade do Direito Fiscal, aplicando-se sempre a lei mais favorável ao
indivíduo (ex: aplica-se também quanto ao aumento/diminuição do valor do
imposto).

Soluções para o problema da aplicação da lei no tempo

1. Disposições transitórias (primeira opção) – normas incluídas na lei nova


que visam especificamente dar resposta aos problemas que esta lei pode
suscitar em matéria de sucessão das leis no tempo.

Estas disposições transitórias podem ser:

- De natureza formal – quando se limitam a determinar se, a determinada situação,


se aplica a lei antiga ou a lei nova;
Exemplo: “A presente lei aplica-se aos contratos em curso à data da sua entrada
em vigor”.

- De natureza material – quando estabelecem uma regulamentação própria, que


não coincide, nem com a lei antiga, nem com a lei nova, para situações jurídicas de
fronteira. Nestes casos, o legislador cria um regime diferente, que não é equivalente
nem ao regime da lei antiga nem ao regime da lei nova. É um regime transitório.

O que o legislador faz é criar um regime substantivo novo que não equivale nem
à lei antiga nem à lei nova e que determina quais são as normas a aplicar a
determinadas situações que se encontram na fronteira entre as duas leis.

Se o legislador consagrar expressamente a retroatividade na lei, ela não é


necessariamente de grau mínimo: poderá ser de grau mínimo ou médio. Quanto à
de grau máximo, como visto, há quem entenda que ela viola a Constituição.

2. Na maior parte das vezes, o legislador nada diz e, por isso, temos que
aplicar as regras de Direito transitório (artigos 12º, 13º e 297º do CC).

Artigo 12º nº1 – vigora o princípio geral de não retroatividade da lei. Considera-se
retroativa a lei que se aplica a factos que ocorreram antes do início da sua vigência.

● 1ª regra – Quando não lhe seja atribuída eficácia retroativa expressa pelo
legislador, a lei só dispõe para o futuro.

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● 2ª regra – Mesmo nos casos em que o legislador admite a aplicação da lei a
factos passados antes do início da sua vigência, presumem-se ressalvados
os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular
(retroatividade de grau mínimo).

Nota importante: O nº1, 2ª regra diz que, quando há retroatividade, ela é de grau
mínimo. Há retroatividade nas situações do nº2, segunda parte, e nas disposições
transitórias (ou seja, quando o legislador assim o expresse).

Artigo 12º nº2 – densifica o nº1 anterior, distinguindo 2 tipos de normas:

● Primeira parte – As normas da lei nova que dispõe sobre os requisitos de


validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os efeitos
de quaisquer factos, só se aplicam a factos/situações que ocorram após o
início da sua vigência.

Logo, aplica-se a lei antiga a todos os factos jurídicos que tenham sido constituídos
no passado, mesmo que tenham gerado situações jurídicas que ainda estejam em
curso à data da entrada em vigor da lei nova, uma vez que esta apenas se aplica a
factos jurídicos ocorridos após a sua entrada em vigor.

● Segunda parte – As normas da lei nova que dispõe sobre o conteúdo de


certas situações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais
situações deram origem, aplicam-se de imediato às situações jurídicas
constituídas antes da entrada em vigor da lei nova, mas em curso à data
desse início de vigência.

Logo, aplica-se a lei nova aos efeitos da situação jurídica ocorridos após o início da
sua vigência (retroatividade de grau mínimo), ou seja, neste caso, a lei nova, além
de se aplicar às situações jurídicas constituídas após a sua entrada em vigor, aplica-
se também às situações jurídicas constituídas no passado e que ainda estão em
curso à data da sua entrada em vigor, mas apenas a partir dessa data, não incidindo
sobre os efeitos produzidos por essa situação jurídica antes da entrada em vigor da
lei nova.

Nota: Por isso é que há autores que chamam a esta situação retroconexão e não
retroatividade, porque entendem que se aplica a factos presentes e futuros de
situações jurídicas passadas.

Exemplo: A e B celebram um contrato de mútuo a 24 meses sujeito à taxa de juros


legal. À data da celebração do contrato a taxa de juro era de 4%. 6 meses depois,
entra em vigor uma lei que reduz a taxa de juro legal para 2%, ordenando a sua
aplicação a todos os contratos em curso desde o início da sua constituição. Deste
modo, B passa a pagar apenas 2% de juros a partir da entrada em vigor da lei e A
não tem que devolver os 2% que cobrou a mais nos primeiros 6 meses do contrato.
Aplica-se do início da lei para a frente, sem incidir sobre os juros já pagos.

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Uma lei que venha alterar o regime das relações pessoais dos cônjuges ou o
regime de administração dos bens do casal, ou que venha alterar o conteúdo do
direito de propriedade, aplica-se, respetivamente, aos casamentos já celebrados
antes da sua entrada em vigor ou aos direitos de propriedade constituídos ou
adquiridos antes dessa mesma data.

● Terceira situação retirada a contrario da segunda parte – As normas da


lei nova que dispõe sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o
modelam, mas atendendo aos factos que a tais situações deram origem,
só se aplicam a factos/situações que ocorram após o início da sua vigência.

No caso específico dos contratos, no fundo, o que se passa com uma norma
supletiva, em sede de Direito dos contratos, é como se as partes as integrassem
conteúdo do contrato (lex transit in contractum – a lei transita para o contrato), pelo
que uma alteração dessa lei em vigor não abstrai do facto que é a celebração do
contrato e, por isso, não se aplica.

No entanto, sempre que a lei nova seja uma norma imperativa que consagra
matérias que tenham por base normas em matéria de estatuto das pessoas, bens,
princípios estruturadores da ordem social ou económica, prevalecem as
disposições da lei nova, pois é nas normas imperativas que as partes encontram a
limitação à sua liberdade contratual.

PROBLEMA GERAL (aplicável a todas as situações): Apenas são relevantes


para determinar a competência da lei aplicável os factos que constituem, modificam
ou extinguem relações jurídicas. Pode acontecer que uma lei nova que se aplica a
um facto constitutivo ocorrido já depois do início da sua vigência pode ter impacto
ou ser aplicada a factos passados que ela assume como pressupostos positivos ou
negativos da validade ou admissibilidade da situação jurídica em causa.

Exemplo:
- A lei que regula os impedimentos matrimoniais aplica-se à data da celebração
do casamento; não à data em que o impedimento surgiu. E, portanto, a lei que
regula os impedimentos matrimoniais pode ter reflexos sobre situações de
impedimentos que aconteceram antes. Isto não é aplicação retroativa, porque o
facto constitutivo da situação jurídica é o casamento.

- A lei que regula a capacidade sucessória é a lei em vigor à data da abertura da


sucessão, mesmo que os fundamentos de deserdação tenham ocorrido antes.

Estes factos passados (impedimentos matrimoniais; fundamentos de


deserdação) são chamados por Batista Machado como factos pressupostos, cuja
localização no tempo não influi sobre a determinação da lei aplicável. E é a estas
situações, em que a lei influi sobre pressupostos anteriores, que o autor dá o nome
de retroconexão.

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O artigo 2166º do CC diz que é causa de deserdação ter sido o sucessível condenado por
denúncia caluniosa ou falso testemunho contra o autor da sucessão. Imaginemos que, quando o
herdeiro foi condenado por denúncia caluniosa, não existia este artigo e, por isso, isto não era causa
de deserdação. Mas, quando o autor da sucessão morreu, já existia o artigo 2166º do CC. Aplica-se
esta norma ou não? O que diz Batista Machado é que este facto de ele ter sido condenado é um
facto pressuposto do facto que desencadeia efetivamente a situação jurídica, que é a morte. E,
portanto, a lei aplicável é determinada com base na morte e não no momento em que o herdeiro foi
condenado.

Leis sobre prazos (artigo 297º do CC)

Sempre que está em causa uma lei que contém um prazo e esse prazo é
alterado, as regras para a sua aplicação no tempo constam do artigo 297º do CC.

Nº1: Aplica-se quando a lei nova tem um prazo mais curto que o da lei antiga.

Se a lei nova encurtar o prazo da lei antiga, aplica-se de imediato aos prazos
em curso, mas o prazo da lei nova só se começa a contar a partir do seu início de
vigência, exceto se, segundo a lei antiga, faltar menos tempo para o prazo se
completar.

1º prazo – se a lei não tivesse mudado, quando é que o prazo terminava.


2º prazo – contar quando é que termina o prazo fixado na lei nova, mas sabendo
que esse prazo só se começa a contar a partir da sua entrada em vigor.

Exemplo: Lei antiga de 2015 que fixa um prazo em 5 anos. Esse prazo começou a
ser contado a 1 de maio de 2017. Depois, temos uma lei nova que diz que o prazo
já não é de 5 anos, mas de 3. E essa lei nova entrou em vigor a 1 de maio de 2020.
Qual se aplica?

- De acordo com a lei antiga, o prazo terminava a 1 de maio de 2022.


- De acordo com a lei nova, o prazo terminaria a 1 de maio de 2023.

Assim, aplica-se a lei antiga e o prazo termina em 2022.

Nota: Se a lei nova vem estabelecer um prazo de metade do tempo que a lei antiga
estabelecia e entrar em vigor a metade do tempo, aplica-se a lei nova, porque a lei
antiga só se aplicará se faltar menos tempo para o seu prazo se completar.

Exemplo: Lei antiga estabelece o prazo de 10 anos; lei nova estabelece o prazo de
5 anos e entra em vigor no decorrer do 5º ano do prazo. Ambas terminam no
mesmo ano, mas aplica-se na mesma a lei nova.

Nº2: Aplica-se quando a lei nova tem um prazo mais longo que o da lei antiga.

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Se a lei nova alarga o prazo previsto na lei antiga, ela aplica-se de imediato
aos prazos em curso, mas conta-se, porém, todo o prazo decorrido desde o
momento inicial.

Nº3: Estas soluções também se aplicam se a lei nova modifica o momento a partir
do qual o prazo se começa a contar:

● Se o referido momento é antecipado pela lei nova, aplica-se o artigo 297º


nº1;
● Se o referido momento é adiado pela lei nova, aplica-se o artigo 297º nº2.

A regra do artigo 297º do CC não se aplica aos prazos que dizem respeito ao
decurso de um dado período de tempo como fundamento de uma presunção
legal.

Exemplo: Prazo legal de conceção do artigo 1798º do CC à neste caso, o decurso


do prazo em si não é causa de qualquer efeito jurídico e, portanto, a lei aplicável é a
lei em vigor à data do facto principal. Estes prazos são meros pressupostos e não
factos constitutivos, modificativos ou extintivos. A lei aplicada é a lei em vigor à data
do facto.

Leis interpretativas (artigo 13º do CC)

Nos termos do artigo 13º do CC, assume-se que a lei interpretativa se integra
na lei interpretada e, deste modo, não se colocam, a propósito das leis
interpretativas, os problemas de retroatividade que se colocam quanto às outras
leis. No entanto, salvaguardam-se os efeitos já produzidos, seja pelo cumprimento
das obrigações, seja por sentença transitada em julgado, por transação ainda
que não homologada (acordo que ainda não foi confirmado pelo juiz), ou outras de
natureza análoga.

Nos termos do artigo 13º nº2, podem ser revogadas pelo desistente ou
confitente (o que confessou) a quem a lei interpretativa for favorável a desistência
ou a confissão não homologadas pelo tribunal.

PERGUNTA: Porquê que a lei interpretativa se integra na lei interpretada e se


considera que não há problemas de retroatividade?

RESPOSTA: A lei interpretativa vem fixar uma das interpretações possíveis que já
se retirava da lei interpretada. E, portanto, não há violação de expectativas seguras
dos destinatários.

E se o legislador classifica como interpretativa uma lei que, na verdade, não é


interpretativa?

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Se não houver uma norma superior que proíba a retroatividade, o que se faz é
considerar-se que o que o legislador quis foi aplicar àquela norma inovadora o
regime do artigo 13º do CC.

Portanto, para que uma LN possa ser realmente interpretativa, são necessários 2
requisitos:

1. Que a norma anterior seja controvertida ou, pelo menos, incerta;

2. Que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da
controvérsia, sendo que o julgador ou o intérprete poderiam chegar a ela sem
ultrapassar os limites da interpretação da lei.

Nota:
- Não é interpretativa uma lei cuja solução fixada para resolver o ponto controvertido
seja tal que um intérprete não poderia chegar a ela pelas vias normais da
hermenêutica jurídica.

- O mesmo texto da lei pode conter simultaneamente uma disposição inovadora e


uma disposição interpretativa.

O problema das leis confirmativas

Problema: É possível invalidar um ato que, à data da sua prática, não respeitou
uma formalidade exigida pela lei em vigor, sendo que a lei nova veio eliminar a
exigência dessa formalidade, pelo que, se avaliado à luz da lei nova, o ato seria
válido?

Deve considerar-se que a alteração pela lei nova em nada afeta o vício de que
padece o ato (regra), mas, no entanto, Batista Machado defende que, se a lei nova
for mais favorável ao particular, não afetando interesses da contraparte ou de
terceiros, faz sentido aplicar aqui uma espécie de retroatividade in mitius,
semelhante à do Direito Penal (exceção).

O autor tem este entendimento, porque o principal objetivo do princípio da não


retroatividade é salvaguardar a estabilidade e a segurança jurídicas. Ora, na maior
parte das vezes, as leis confirmativas, pelo contrário, em vez de comprometer
essa segurança, vêm reforça-la, afastando aquelas perturbações que seriam
causadas pela anulação ou declaração de nulidade de atos que os seus autores
poderão ter concluído “na melhor das boas-fés”.

100
VIII. A tutela do Direito e dos direitos

Bibliografia do ponto 8:

- Oliveira Ascensão págs. 64-80 e 89-96


- Batista Machado págs. 125-134
- Carlos Alberto da Mota Pinto “Teoria Geral do Direito Civil” 4ª edição (atualizada
por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto) págs. 615-627 e 632-644
- Germano Marques da Silva (no sigarra)

A característica que mais imediatamente distingue as normas jurídicas das


restantes normas é a coercibilidade: suscetibilidade de aplicação da sanção pela
força se for necessário.

O responsável, em primeira linha, pelo exercício da coercibilidade é o Estado


(mais especificamente, o aparelho de coerção do Estado), através dos tribunais, da
polícia, das prisões e, em último grau, das forças armadas.

Sanção – uma consequência desfavorável que atinge aquele que violou a norma
jurídica. É o principal meio de tutela das normas jurídicas (daí que OA não fale em tutela,
mas sim em sanções).

Tutela do Direito – proteger/salvaguardar/preservar o Direito (quais são os


mecanismos que a ordem jurídica põe à nossa disposição para acautelarmos o
respeito pelo Direito objetivo e pelos direitos subjetivos).

PERGUNTA: Se o objetivo da tutela é proteger o Direito, como é que os principais


mecanismos de tutela são as sanções, que ocorrem precisamente depois de a
norma ter sido violada?

RESPOSTA: A tutela atua procurando evitar que o sucedido se volte a repetir, ou


seja, visa desincentivar a violação futura de normas. Outra grande função das
sanções é eliminar as consequências negativas geradas pela violação da norma.

No entanto, embora os principais meios de tutela correspondam a sanções


pela violação de normas jurídicas, nem sempre assim é. Há meios de tutela que
atuam antes da violação da norma.

Exemplo: No estado de necessidade (que é um meio de autotutela) permite-se a reação


sobre a esfera jurídica de alguém por outrem que está ameaçado por um perigo que
não resulta de agressão do primeiro.

101
Exemplo prático: a minha casa está a arder e o meu cão está fechado dentro de
casa. Eu sei que o meu vizinho tem um extintor, mas não está em casa. Eu parto o
vidro e entro na casa dele para ir buscar o extintor. O meu vizinho não violou
nenhuma norma jurídica, mas foi afetado pelo meu ato.

Evolução do sistema da tutela jurídica:

Diz-se que a tutela jurídica evoluiu historicamente de um sistema de


justiça privada para um sistema de justiça pública. De início, se A atacava B, a
ofensa seria coletivamente sentida pelo grupo de B, que procuraria tirar desforço
sobre A, provocando, pelos mesmos motivos, o grupo de A – isto seria a justiça
privada.

Só que, como diz Oliveira Ascensão, em qualquer das suas formas e


mesmo com os abrandamentos que os anos foram trazendo, o sistema de justiça
privada é sempre mau. Por um lado, porque fica dependente da força, uma vez que
a justiça se satisfaz ou não consoante o ofendido tenha ou não força suficiente para
a impor. Por outro, como ninguém é bom juiz em causa própria, todos terão a
tendência de exagerar os agravos sofridos e de minimizar os efetivamente
praticados.

Daí que desde sempre se assista a uma procura de intervir por parte dos
órgãos públicos. Esta evolução passou por várias fases, culminando atualmente
com o Estado a tender para a universalização da justiça pública e eliminando a
insegurança da justiça privada. No entanto, não se pode dizer que esta se extinguiu,
uma vez que ainda existem formas de justiça privada/autotutela.

Meios de tutela distinguem-se:

- Quanto aos fins:

● Tutela compulsória/compulsiva – atua sobre o infrator da regra para o levar


a adotar, ainda que tardiamente, a conduta devida. Ou seja, apesar de já ter
havido violação da norma ou da conduta devida, procura-se constranger o
infrator a adotar o comportamento devido que ele, até aí, omitiu. É uma tutela
rara/excecional – há poucos exemplos de tutela compulsória.

Exemplo:

Prisão por incumprimento da obrigação de alimentos (artigo 250º do CP


– único caso de prisão por dívidas em Portugal). Este é um exemplo de tutela
compulsória e punitiva, porque o artigo 250º permite ao tribunal declarar
extinta a pena ainda não cumprida logo que a pensão seja paga (mas não é
obrigado a fazê-lo), ou seja, não é um verdadeiro castigo, mas um modo de
pressão. O que interessa não é castigar o infrator, mas conseguir que a
obrigação seja cumprida.

102
Sanção pecuniária compulsória (artigo 829º-A do CC). Esta sanção aplica-
se nas prestações de facto infungíveis* em que não estejam em causa
especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado. Consiste em
condenar o devedor inadimplente (em incumprimento) ao pagamento de uma
quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada
infração.

*Nota: Prestação é objeto das relações de crédito (relações do Direito das


Obrigações – artigo 397º do CC), ou seja, é um comportamento a que o devedor
está obrigado para satisfazer um interesse do credor ou de terceiro. Essa prestação
pode ser de facto (quando se esgota no comportamento) ou de coisa (quando
consiste na entrega de uma coisa). Uma prestação de coisa é, desde logo, uma
prestação de facto, porque envolve um comportamento. O que as distingue é a
existência da coisa.

Exemplo da prestação de facto: prestação de um serviço (pintar a casa, por


exemplo).
Há prestações de facto infungíveis e fungíveis. As primeiras são as que só podem
ser praticadas pelo devedor, sendo que a sua substituição por terceiro traria
prejuízos para o credor. São aquelas em que o devedor é insubstituível (exemplo:
comprar um bilhete para um concerto). As segundas são as que o devedor pode ser
substituído sem prejuízo para o credor.

Direito de retenção (artigo 754º do CC). Permite ao sujeito obrigado a


entregar coisa alheia a sua retenção para ressarcimento de crédito de que é
titular em consequência de despesas feitas por causa da coisa ou de danos
por ela causados.

Exceção de não cumprimento (artigo 428º do CC). Nos contratos bilaterais,


permite ao sujeito recusar o cumprimento da sua prestação enquanto a
contraparte não se dispuser a cumprir a sua, exceto se aquele estava
obrigado a cumprir primeiro.

Em ambos os casos, o devedor tem licitude para não adotar a conduta. Elas
confundem-se quando se fala da entrega de uma coisa.

DIFERENÇAS: Enquanto, na exceção de não cumprimento, uma das partes pode


não cumprir, enquanto a contraparte não se dispuser a cumprir a sua prestação
(relação sinalagmática), no direito de retenção, o devedor pode não cumprir até ser
ressarcido do crédito de que é titular, em consequência de despesas feitas por
causa da coisa que se recusa a entregar ou de danos por ela causados (a relação já
não é sinalagmática, porque já houve cumprimento da obrigação principal por parte
do devedor).

● Tutela reconstitutiva – abrange as medidas que se destinam a reconstituir a


situação que existiria caso não tivesse ocorrido a inobservância da norma ou
da conduta juridicamente devida.

103
Há 3 tipos de reconstituição:
Reconstituição natural/in natura/em espécie (artigo 566º do CC) – é o
modo de reconstituição-regra e aplica-se sempre que possível e adequada à
reparação dos danos, desde que não seja excessivamente onerosa para o
devedor. Neste tipo de reconstituição, a parte lesada é colocada
materialmente na situação em que estaria se não tivesse havido a violação
da norma ou da conduta devida.

Exemplo: Se A furtou uma joia de B, a reconstituição natural assenta na


devolução da joia // Se A ocupou o prédio de B sem autorização, a
reconstituição natural assenta na expulsão de A.

Nota: Em casos de especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, na


lógica do artigo 829º-A, não pode haver nem reconstituição natural nem sanção
pecuniária compulsória, porque é contrária à dignidade da pessoa humana, uma vez
que não se pode obrigar ninguém a, contra a sua vontade, exercer uma atividade
que deriva da sua própria criatividade intelectual.

Ao nível do Direito das Obrigações, a reconstituição natural opera através de


uma figura que se designa execução específica. Ela consiste na imposição pelo
tribunal de realização, pelo devedor ou por terceiro, da prestação devida ao credor.
Esta execução específica vem materializada nos artigos 827º a 830º do CC.

Artigo 827º - Entrega de coisa determinada: se a prestação consiste na entrega de


coisa determinada, que se encontra em poder do devedor, o credor requere ao
tribunal que a coisa lhe seja entregue. Para isso, o credor deverá primeiramente
obter através do processo declarativo a condenação do devedor à entrega da coisa
e, caso este continue sem cumprir, o credor recorre ao processo executivo, que se
destina a dar realização efetiva ao direito declarado.

Artigo 828º - Prestação de facto positivo fungível: se a prestação é, de facto,


fungível, o credor tem o direito de requerer ao tribunal que o facto seja realizado por
terceiro à custa do devedor (em último caso, se o devedor se recusar a pagar, o
tribunal penhora e vende judicialmente os bens do devedor até atingir o valor
necessário para pagar).

Artigo 829º - Prestação de facto negativo: consiste em, se o devedor se obrigou a


não fazer uma determinada obra e a realiza, a reconstituição natural implica que a
obra seja desfeita pelo devedor ou à custa dele, exceto, diz a lei, se o prejuízo daí
decorrente for consideravelmente superior do que o prejuízo sofrido pelo credor com
a obra.

Artigo 830º - Obrigação de contratar: no caso do não cumprimento de um contrato-


promessa, e verificados determinados pressupostos, é possível ao credor solicitar
ao tribunal que se substitua ao contraente faltoso (devedor) na sua (do contraente
faltoso) declaração negocial, considerando-se celebrado o contrato prometido,

104
mesmo sem intervenção e contra a vontade do devedor. Num contrato-promessa,
as partes obrigam-se a, no futuro, celebrar outro contrato (isto acontece, por
exemplo, se a pessoa ainda precisar de dinheiro para pagar algo que queira
adquirir). O efeito jurídico de um contrato-promessa é a obrigação de contratar. O
contrato-promessa goza de execução específica, ou seja, o juiz substitui-se ao
devedor e celebra o contrato de compra e venda como se fosse o devedor.

Nota: Esta é provavelmente das sanções mais agressivas do Direito Civil.


A execução específica só não pode ser aplicada nos casos de prestações de
facto infungíveis, uma vez que a substituição do devedor por um terceiro não é
possível. Nestes casos, o credor pode requerer ao tribunal que atribua ao devedor
uma sanção pecuniária compulsória, ou seja, que, a cada dia que passe sem
cumprir, o devedor paga uma sanção. Só não se poderia recorrer a esta sanção em
casos de em que estão em causa especiais qualidades científicas ou artísticas – aí
o devedor é obrigado a indemnizar o credor.

Reintegração por equivalente – utiliza-se quando a reconstituição natural


não é possível, não é equitativa ou não é suficiente para dar resposta à
violação ocorrida. Neste caso, não se procura chegar a uma solução
materialmente idêntica à que haveria se a norma não tivesse sido violada,
mas sim constituir uma situação que, sendo diferente, é valorativamente
equivalente à que existiria em caso de não violação da norma. Ou seja, a
reintegração por equivalente opera através de uma indemnização pecuniária
(entrega-se ao lesado uma quantia em dinheiro que tem como objetivo
colocá-lo na situação patrimonial em que ele estaria se não tivesse havido
violação da norma, ou seja, se o contrato tivesse sido cumprido). Esta
indemnização por equivalente ora substitui a reconstituição natural (quando
esta não é possível ou é excessivamente onerosa), ora é cumulada com a
reconstituição natural (quando esta não é suficiente para suprir todos os
danos).

Compensação – aplica-se apenas a danos morais, entregando-se uma


quantia pecuniária como forma de compensar o lesado.

Nota: É FALSO DIZER QUE OS DANOS MORAIS SÃO INDEMNIZÁVEIS. SÃO


COMPENSÁVEIS!

Indemnizar significa tornar indemne, ou seja, tornar sem dano/remover o


dano. E nas situações morais não são passíveis de remover o dano, pelo que se
atribui uma compensação.

● Tutela preventiva – abrange as medidas destinadas a impedir a violação da


ordem jurídica, a prevenir ou a evitar a inobservância das normas. Fazem
parte da tutela preventiva:
Medidas da administração pública destinadas a fiscalizar, limitar,
condicionar ou sujeitar a autorizações prévias o exercício de certas

105
atividades, para evitar os danos sociais que delas poderiam vir a resultar.
Exemplo: autorização de uma manifestação; licenças camarárias em sede
de urbanismo.
Medidas de segurança que são aplicadas para evitar a prática de
contraordenações e/ou crimes futuros quando o sujeito revela uma especial
tendência para delinquir.
Exemplo: apreensão da carta de condução; internamento de um inimputável
– não é passível de juízo de culpa por um crime praticado dadas as suas
características, daí que lhe seja atribuída uma medida de segurança privativa
da liberdade; impedir adeptos praticantes de violência nas claques de
frequentar os estádios; insolvência dolosa (levar de propósito a empresa à
falência) – a consequência é que durante algum tempo o sujeito fica impedido
de realizar qualquer atividade comercial.

Nota: Em Portugal, as medidas de segurança privativas da liberdade só se aplicam


a inimputáveis.

Perda do benefício do prazo (artigo 781º do CC) – se o devedor falhar uma


prestação, vencem-se imediatamente todas as que estão por pagar, porque o
devedor se revelou indigno da confiança que o prazo de pagamento implica.

Nota: Contrato de mútuo – 1142º do CC: empréstimo de coisas fungíveis, ou seja,


coisas que podem ser substituídas por outras do mesmo género e quantidade (ex:
dinheiro).

● Tutela punitiva – abrange as medidas que visam infligir um castigo (uma


pena) ao infrator que desrespeitou a norma jurídica, implicando
simultaneamente a privação de um bem (valor patrimonial ou a própria
liberdade) e a reprovação da conduta. O que está em causa não é
reconstituir a situação que existiria, mas castigar o infrator (podem atuar em
simultâneo). O ramo por excelência desta tutela é o Direito Penal, mas cada
vez mais se assiste a tutela punitiva no Direito Civil.
Exemplo: Artigo 2034º do CC – indignidade sucessória (castiga-se o sujeito,
retirando-lhe o direito de suceder).

● Recusa de efeitos jurídicos – meio de tutela que se traduz no não


reconhecimento da situação gerada pela inobservância da norma ou da
conduta devida, recusando-lhe automaticamente a produção de efeitos
jurídicos, ou seja, visa assegurar a frustração dos desígnios daquele que
pretende obter um dado resultado jurídico, omitindo os pressupostos que
para tanto a lei exige ou não satisfazendo os requisitos impostos por esta.
Oliveira Ascensão recusa que esta figura seja um mecanismo de tutela. À
recusa de efeitos jurídicos dá-se o nome de ineficácia*. Esta recusa de
efeitos jurídicos é o ordenamento jurídico a não proteger/tutelar um
determinado ato.

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Exemplo: O artigo 875º do CC exige que a compra e venda de imóveis seja
feita por escritura pública ou documento particular autenticado. As partes, em
desrespeito por esta norma, decidem celebrar um contrato de compra e
venda de um apartamento por WhatsApp. Este contrato é nulo, ou seja, a lei
retira os efeitos jurídicos a esse contrato.

*Um ato ineficaz é um ato que não produz efeitos jurídicos.

Há 3 tipos de ineficácia em sentido amplo (do mais grave para o menos


grave):

Inexistência jurídica – casos mais graves em que se pode dizer que para o
Direito não há nada, ou seja, não se reconhece sequer a existência de uma
base que permita afirmar que existe um ato. Há autores que rejeitam esta
categoria, porque ela não goza de enquadramento geral na lei, mas parece
de admitir que há casos em que o vício é tão grave que não se deve
reconhecer sequer a possibilidade de redução ou conversão e a usucapião
que existem nos negócios nulos. Segundo Oliveira Ascensão, a inexistência
jurídica corresponde a um “nada jurídico”.
Exemplo: artigo 1628º do CC

Nota: Esta figura foi invocada pela doutrina francesa no campo do Direito
matrimonial, na medida em que não se podia, na altura, considerar válido o
casamento entre pessoas do mesmo sexo ou cujo consentimento não foi prestado
perante um funcionário do registo civil. Ora, tais hipóteses não eram incluídas pela
lei entre os casos de nulidade, pelo que a doutrina desenvolveu esta figura: nesses
casos, a lei não previa a nulidade, porque o negócio era inexistente, e só o que
existe pode ser nulo.

A casos de inexistência jurídica, não pode, logicamente, ser aplicado o instituto da


redução ou da conversão.

Invalidade – dá-se a invalidade quando a lei considera o próprio ato, que


deveria ser fonte de efeitos, sem valor, ou seja, abrange os casos em que a
não produção de efeitos se deve a uma falta ou irregularidade dos elementos
internos essenciais do negócio. Pode ter uma de duas modalidades:
Nulidade – um ato é nulo (maior gravidade)
Anulabilidade – um ato é anulável ou foi anulado (menor gravidade)

Artigo 294º do CC - são nulos os atos celebrados em violação de norma imperativa.


Artigo 220º do CC - são nulos os atos que desrespeitam a forma legal.

Ineficácia em sentido estrito – esta figura abrange os restantes casos de


ineficácia, nos quais a não produção de efeitos jurídicos se deve a uma
circunstância extrínseca ao ato.
A ineficácia pode ser:

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● Absoluta: quando tem eficácia erga omnes, ou seja, pode ser invocada
por todos os interessados, afetando todas as pessoas.
Exemplo: negócio sujeito a condição suspensiva, se a condição não
se verificar.

Nota: Uma condição é um acontecimento futuro e incerto do qual a lei faz


depender:

- No caso da condição suspensiva, o início da produção de efeitos


Exemplo clássico: dono do café que se comprometeu a subir o preço do café
apenas quando o Sporting fosse campeão),

- No caso da condição resolutiva, a extinção de efeitos.

● Relativa: quando o ato só produz efeitos perante determinadas


pessoas, só por elas podendo ser invocada. Ela surge em situações
caracterizadas pela existência de um direito, expectativa ou interesse
legítimo de um terceiro, que seriam prejudicados pelo negócio em
causa.
Exemplo: ato sujeito a registo que não foi registado é oponível entre
as partes, mas não perante terceiros.

Também pode ser:

● Total: quando o ato não produz nenhum efeito.


● Parcial: quando apenas partes do ato não produzem efeitos.

Nota: A morte não é uma condição, uma vez que não é incerta – é um termo.

Nota global: Os dois últimos tipos de ineficácia existem e vêm previstos em artigos.
O primeiro apenas vem previsto quanto ao casamento, mas tem-se entendido que
há atos de tal maneira graves que justificam a sua inexistência.

Nulidade vs. Anulabilidade

COMUM: Ambos são manifestações de invalidade, ou seja, quer a nulidade, quer


a anulabilidade estão associadas à existência de um vício ou defeito no momento da
formação do ato. O ato nasce com defeito/viciado!

DIFERENÇAS:

● O ato nulo não produz desde o início os efeitos a que tendia, ou seja, a
lei não lhe reconhece o poder de produzir efeitos. O ato anulável produz os
seus efeitos e é tratado como válido até ser judicialmente declarado
anulado. Se o ato anulável vier a ser anulado, os seus efeitos são destruídos
retroativamente.

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● Se o ato anulável não for declarado anulado dentro do prazo legal para o
efeito, ele passa a ser definitivamente válido. O direito de anulação de um
ato anulável é um direito potestativo das pessoas com legitimidade para
requerer a anulação. Perante um ato nulo não há escolha, mas perante um
ato anulável há – a escolha de quem tem legitimidade para o anular de o
poder anular, destruindo-se retroativamente os seus efeitos, ou não e,
passando o prazo, ele torna-se válido como se nunca tivesse tido um defeito.

● A nulidade serve interesses públicos, ao passo que a anulabilidade serve


interesses dos particulares.

Ocasionalmente, há casos em que o legislador prevê invalidades mistas.


Exemplo: artigo 410º nº3 do CC; artigo 1939º nº 1 e 2 do CC.

Regime da nulidade

➔ Opera ipso iure, ou seja, não é necessário intentar uma ação ou emitir uma
declaração para que o ato seja nulo, ele simplesmente é nulo por força do
Direito.
➔ A nulidade é invocável por qualquer pessoa interessada.
➔ A nulidade pode ser invocada oficiosamente pelo tribunal, ou seja, por
iniciativa do tribunal, ainda que ninguém o tenha solicitado, recusando os
efeitos do ato (artigo 286º do CC).
➔ A nulidade é insanável pelo decurso do tempo (não há prazo para a invocar),
exceto quando dá origem a uma prescrição aquisitiva por usucapião (a
nulidade do ato não impede a aquisição por usucapião – o ato não se torna
válido, mas a nulidade não impede o exercício por usucapião).

Usucapião – modo originário de aquisição da propriedade associado ao facto de o


sujeito que a adquire se ter, durante um determinado período de tempo, comportado
como verdadeiro proprietário. A área em que impacta mais é os terrenos, mas tem
mais áreas de aplicação (prazo de 5 anos para bens móveis).

➔ É insanável mediante confirmação, ou seja, ninguém pode aprovar o ato


viciado.

Regime da anulabilidade

➔ Não pode ser invocado oficiosamente pelo tribunal.


➔ Tem de ser invocada pelas pessoas indicadas na lei para o efeito ou, em
caso de não indicação legal, pelos titulares do interesse, para cuja específica
tutela a lei a estabeleceu (artigo 287º nº1 do CC).
➔ A invocação da anulabilidade tem de ser feita em ação judicial, ou seja, é
declarada pelo tribunal (o ato nulo é sempre nulo; o ato anulável só passa a
anulado se o tribunal assim o declarar).

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➔ É sanável pelo decurso do tempo, ou seja, se não for intentada ação em
tribunal dentro do prazo legalmente fixado para invocar a anulabilidade, o ato
torna-se definitivamente válido.

Nota importante:

- O prazo para intentar ação de anulabilidade é, em regra, de 1 ano (artigo 287º do


CC). No caso das ilegitimidades conjugais é de 3 anos (artigo 1687º nº2 do CC).
Este prazo começa a contar-se, quando a lei nada diz em contrário, da cessação do
vício que serviu de fundamento à anulabilidade (artigo 287º do CC). Por aplicação
deste critério, o prazo de um ano deverá começar a contar desde o conhecimento
do erro do negócio. No entanto, o prazo não termina se o negócio não estiver
cumprido.

- O ato nulo não produz efeitos; o ato anulável produz todos os seus efeitos até ser
anulado e, se anulado, esses efeitos são destruídos retroativamente.

➔ É sanável mediante confirmação (artigo 288º do CC): a confirmação é um


negócio jurídico unilateral pelo qual a pessoa com legitimidade para
arguir/invocar a anulabilidade declara aprovar o ato viciado (a pessoa que
pode anular o ato, quer mantê-lo). A confirmação só é eficaz se for posterior
à cessação do vício e se o confirmante, na data da confirmação, tinha
conhecimento do vício e do direito à anulação. A confirmação pode ser:
- Tácita (ou seja, resultar do comportamento adotado) e não depende de
forma especial – a pessoa conhece que o ato tem defeito, mas o seu
comportamento mostra que ela quer mantê-lo na mesma. Ao confirmar, o
prazo de 1 ano cessa e o negócio torna-se convalidado.
- Expressa: quando a pessoa diz expressamente que, apesar de o negócio
ser anulável, quer mantê-lo (escrita ou oralmente).

Nota: A confirmação em efeitos retroativos, mesmo perante terceiros (artigo 288º


nº4 do CC)

Efeitos da nulidade e da anulabilidade (efeitos comuns) – artigo 289º do CC:

1. Operam retroativamente;

2. Não obstante a retroatividade, aplicam-se-lhes as regras do possuidor de


boa-fé quanto a frutos, bem feitorias e encargos;

3. Dão lugar à repristinação (reconstituição/recuperação) das coisas no estado


anterior do negócio, restituindo-se tudo o que tiver sido prestado ou, se a
restituição não for possível, o valor correspondente (artigo 289º nº1 do CC).

Institutos da redução e conversão

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Estes institutos têm como objetivo aproveitar, dentro do possível, as
manifestações de vontade que estão na origem de um ato nulo ou anulável.

Como se faz isto?

Redução (artigo 292º do CC) – aplica-se quando o fundamento da invalidade afeta


apenas parte do conteúdo do ato. Neste caso, a lei permite que o negócio
permaneça válido quanto ao restante, exceto se se provar que ele não teria sido
concluído sem a parte viciada. Em todos os casos, haverá lugar à redução se a
invalidade parcial resultar de uma infração de uma norma destinada a proteger uma
parte contra a outra ou quando assim o imponha a boa fé.
Exemplo: contrato muito grande, mas apenas uma cláusula é nula

Nestes casos, aplica-se o critério da vontade hipotética ou conjetural das


partes, averiguando-se aquilo que as partes teriam querido provavelmente se
soubessem que o negócio se opunha parcialmente a alguma disposição legal e não
pudessem realizá-lo em termos de ser válido na sua integridade:

➢ Se se entender que as partes, nessa hipótese, prefeririam não


realizar qualquer negócio, conclui-se pela invalidade total.
➢ Se se entender que as partes, nessa hipótese, sempre o teriam
realizado sem a parcela atingida pela invalidade, conclui-se pela
redução do negócio.

Nota:

- A solução adotada pelo artigo 292º do CC corresponde à ideia de


proporcionalidade entre o vício e a sanção: sendo a nulidade/anulabilidade parcial,
deve igualmente a sanção, em princípio, afetar apenas a parte viciada.

- O contraente que pretender a declaração da invalidade total tem o ónus de provar


que a vontade hipotética das partes ou de uma delas, no momento do negócio, era
nesse sentido. Isto é, que as partes teriam preferido não o realizar se soubessem
que ele não poderia valer na íntegra.

Conversão (artigo 293º do CC) – permite converter um negócio que é totalmente


inválido num outro negócio, cujo resultado económico-jurídico final, embora mais
precário, se aproxime do tido em vista pelas partes.

Requisitos:

1. Um negócio inválido tem de conter os requisitos essenciais de forma e


substância necessários para a validade do negócio sucedâneo.

2. Tem de resultar que as partes teriam querido o negócio convertido se se


tivessem apercebido do vício e não pudessem celebrar sem ele.

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3. A conversão tem de manter a finalidade jurídico-económica do negócio para
o qual se converte.

4. A conversão tem lugar sempre que a boa fé o imponha, mesmo contra a


vontade das partes (artigos 239º e 334º do CC).

5. Há casos em que a lei obriga à conversão (ex: artigo 946º nº2 do CC).

Ao contrário do que acontece com a redução, a conversão exige a prova da


vontade hipotética das partes, não tendo lugar em caso de dúvida.

Nota final: Tanto a redução como a conversão tratam-se de uma “colaboração” do


ordenamento jurídico com a vontade das partes.

- Quanto aos entes (entidades):

● Heterotutela/tutela pública – a ninguém é lícito o recurso ao uso da força,


com o fim de assegurar/realizar o próprio direito (regra), exceto nos casos
permitidos por lei (artigo 1º do CPC).

● Autotutela/tutela privada (exceção) – “exceto nos casos permitidos por lei”


(artigo 1º do CPC).
- Estado de necessidade, ação direta e legítima defesa– são meios de
autotutela preventiva, subsidiários, concedidos para suprir as insuficiências
da autoridade pública:

Ação direta (artigo 336º do CC) – consiste num recurso à força com o fim de
realizar/assegurar o próprio direito, quando esse meio for indispensável, pela
impossibilidade de recorrer, em tempo útil, aos meios coercivos normais, para evitar
a inutilização prática desse direito.
Pode consistir na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa; eliminação
da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito; ou, noutro ato análogo,
não sendo lícita quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa
assegurar/realizar.
Três requisitos da ação direta:

1. Indispensabilidade da conduta para evitar a inutilização prática do


direito.

2. Impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos


normais.

3. Racionalidade dos meios empregues.

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Esta distingue-se dos outros dois, porque eles têm natureza defensiva, ou seja,
pretendem evitar que uma agressão ou perigo se efetivem ou prossigam. Já a ação
direta é ativa, ou seja, pretende remover uma situação de facto já consumada ou
antecipa-se a garantir ou satisfazer a realização de um direito. Além disso, tem uma
amplitude muito maior que os outros dois meios de autotutela.

Legítima defesa (artigo 337º do CC e 32º do CP) – reação contra uma agressão
alheia, atual ou iminente.
Cinco requisitos para a legítima defesa:

1) Uma agressão ilegal, injusta ou ilícita*.

2) Em execução ou iminente – exige que a ação ainda não esteja terminada


(tem de estar a decorrer ou em vias de ocorrer).

3) Contra a pessoa ou património do próprio ou de terceiro – pode ser pessoal


ou patrimonial e também pode ser própria ou alheia.

4) Impossibilidade de recorrer à força pública – é subsidiária, ou seja, só é


permitida quando não se pode recorrer, em tempo útil, à autoridade pública.

5) Necessidade ou racionalidade da defesa – o prejuízo causado pelo ato não


pode ser manifestamente superior ao que resultaria da agressão.

Há um subtipo de legítima defesa que é o direito de resistência (artigo 20º da


CRP) e permite aos cidadãos desobedecer às autoridades quando estejam em
causa ordens que violem direitos, liberdades e garantias.

*Uma agressão pode ser legal → cesariana, operação, agressões em desporto

Estado de necessidade (artigo 339º do CC e artigo 34º do CP) – visa a proteção


de direitos colocados em perigo por forças da natureza ou por terceiros que não
aqueles contra quem a ação necessitada se dirige, ou seja, existe uma situação de
perigo e, para a afastar, é necessário sacrificar interesses de terceiros inocentes. O
estado de necessidade permite destruir ou danificar coisa alheia para afastar um
perigo atual de um dano manifestamente superior do agente ou de terceiro. O
prejuízo gerado pelo estado de necessidade pode, em alguns casos, ser
indemnizável pelo agente ou até por outras pessoas.

Nota: Embora a lei admita o sacrifício do interesse de terceiro inocente, quando se


trate de proteger interesses de valor igual ou superior, a lei obriga a indemnizar o
lesado quando o perigo for causado por culpa exclusiva do agente e em qualquer

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caso o tribunal pode fixar sempre uma indemnização equitativa ao lesado e
condenar nela não só o agente, mas também aqueles que tiraram proveito do ato ou
contribuíram para o estado de necessidade (artigo 339º nº2 do CC).

- Direito de retenção (artigo 754º do CC) – permite ao sujeito obrigado a


entregar coisa alheia a sua retenção para ressarcimento de crédito de que é
titular em consequência de despesas feitas por causa da coisa ou de danos
por ela causados.

- Exceção de não cumprimento (artigo 428º do CC) – nos contratos


bilaterais, permite ao sujeito recusar o cumprimento da sua prestação
enquanto a contraparte não se dispuser a cumprir a sua, exceto se aquele
estava obrigado a cumprir primeiro.

- Direito de resolução por incumprimento (artigos 432º a 436º do CC) –


mecanismo de extinção unilateral do contrato com fundamento.
O principal fundamento para a resolução de um contrato é o incumprimento
da outra parte. Um incumprimento grave e/ou reiterado é suficiente para a
resolução de um contrato. O direito de resolução é um direito potestativo e
não tem de ser exercido judicialmente (pode ser, mas não tem), o que
significa que também é um meio de autotutela (é um direito potestativo da
vítima do incumprimento).

UMA ÚNICA SITUAÇÃO PODE DESENCADEAR VÁRIOS MEIOS DE TUTELA!

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