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Sumário Desenvolvido

Aula Teórica - Semana 5

3. Os fins do direito

3.1. A Justiça

3.1.1 Os elementos da justiça

3.1.2 As diferentes modalidades da justiça

3.1.2.1 A justiça comutativa

3.1.2.2 A justiça distributiva

3.1.2.3 A justiça contributiva

3.1.3 A justiça social

3.1.4 Ius strictum e ius aequum

3.2. A segurança jurídica como fim do direito

3.3. A relação entre justiça e segurança

3.3.1 Uma relação de sintonia com o sentir comum

3.3.2 Situações de (aparente) conflito entre o fim da justiça e o da segurança

***

3. Os fins do Direito

3.1 A Justiça

Como resulta da definição do conceito “direito objectivo” (ver ← ponto 2.2.1), os fins da ordem
jurídica são a realização da justiça.

O direito cumpre as suas funções a partir de uma ideia de justiça, que o legitima, sendo esta
ideia aceite (ou, pelo menos, tolerada) pela sociedade. A aceitação do direito pelos homens é
fundamental. Está em causa a aceitação social daquilo que se entende por justo porque uma
definição objectiva de justiça, perene e comummente aceite, não existe. Há-de assumir-se,
resignadamente, que não se pode encontrar uma resposta definitiva à questão de saber o que é
a justiça1. O sentir em relação ao entendimento do que é justo modifica-se no decurso da
evolução social e das convicções religiosas e morais e da realidade económica e varia nas
diferentes sociedades. Por isso, a justiça (inclusive os direitos subjectivos e seu exercício) deve
ser sempre aferida à realidade, deve respeitar a realidade que resulta da evolução contínua dos
conhecimentos, da técnica, da ordem social, do sentir dos homens e das suas expectativas e
deve ser consentânea com elas sob pena de se criar um fosso, um desfasamento, fatal para a
aceitação da ordem jurídica, entre a realidade social e as leis. Deve haver uma ligação, uma
“comunicação” (uma interacção), entre quem faz as leis e os que as devem seguir. O que
significa também que a aceitação das leis pelos seus destinatários é um pilar fundamental da
legitimação democrática.

Com os olhos de hoje podemos considerar muitas soluções legais, vigentes no passado, como
injustas embora, na altura, não eram entendidas desta maneira. Ao direito cabe realizar a justiça
na vida real e social que, em dada altura, é acessível ao legislador. E a justiça de que falamos
é a justiça humana, moldada, em termos mais ou menos perfeitos, de acordo com os
conhecimentos existentes, por leis humanas.

A ausência de uma resposta comummente aceite no que respeita à definição da justiça não
impede, todavia, que possam ser definidos elementos da justiça ou determinadas modalidades
da justiça.

3.1.1 Os elementos da justiça

a) Os elementos da justiça em geral são a impessoalidade ao estabelecer limites e critérios


gerais objectivos (sem sentimentos pessoais como amor, caridade ou amizade2), e a alteridade
no sentido de que a justiça se orienta para os outros, para os seus comportamentos
exteriorizados, a convivência social, a sua sujeição à evolução contínua e sua orientação para
a vida social bem como a preservação da liberdade. Podemos referir o exemplo da justiça penal
em relação à sociedade e liberdade: o direito penal de uma sociedade secularizada e plural só
pode intervir e impor comportamentos para proteger bens jurídicos fundamentais das pessoas
ou de toda a comunidade; só merecem protecção os bens jurídicos de dignidade eminente e
superior, sendo esta avaliação dependente das condições da evolução social.

1
Sobre nenhuma questão – saber o que é justiça – houve mais controvérsias e discussões ao longo dos tempos, de
Platão a Kant ou de Hans Kelsen a John Rawls. E a questão continua sem uma resposta definitiva – até hoje.
2
Sendo certo, já o dissemos, que para Aristóteles a amizade é um valor superior ao da justiça.
b) Como elementos lógico-formais da justiça apontamos a proporcionalidade (temos aqui a
ideia de equilíbrio, da reciprocidade e da adequação), a igualdade na sua aplicação das suas
regras (como contraposto à arbitrariedade, de todo em todo inaceitável) e o respeito pela
dignidade da pessoa humana, isto é, o valor superior de qualquer pessoa humana!

c) Em termos materiais compete ao direito resolver conflitos concretos, garantir a


comparticipação de todos nos bens da comunidade e a integração na sociedade em
consequência do facto de o homem apenas se poder realizar na convivência com os outros.

Mas daí não resulta que, em termos gerais, “nós sermos responsáveis pelo ser dos outros e os
outros são responsáveis pelo nosso ser”. Esta afirmação não corresponde aos pressupostos da
responsabilidade que, em toda a regra, pressupõe actos próprios livremente (autonomamente)
assumidos com os seus riscos inerentes e com a consciência de responder em pessoa. E neste
contexto devemos reconhecer que a autorresponsabilidade abrange até a possibilidade de um
agir que outros podem considerar irresponsável (por exemplo, não se deixar vacinar).

Ser responsável por outrem pressupõe o poder de determinar a conduta deste (é o artigo 491.º
que prevê uma situação deste tipo) o que por regra não é o caso. Coisa perfeitamente diferente
e imprescindível é respeitar o outro como ser igual e neste sentido ser responsável pela sua
condição de homem.

3.1.2 As modalidades da Justiça

Quanto às modalidades da justiça há diferenciações sob vários aspectos (por exemplo, a justiça
como uma virtude pessoal ou a justiça num sentido material ou formal). É neste contexto que
vamos determinar e distinguir entre a justiça comutativa; a justiça distributiva e ainda a justiça
contributiva (ou justiça geral ou legal).

3.1.2.1 A justiça comutativa

A justiça comutativa assenta no princípio “prestação ↔ contraprestação”, e pode ser voluntária


ou involuntária. Distinguimos assim a justiça comutativa voluntária ou sinalagmática da justiça
comutativa involuntária ou correctiva.

Ela é voluntária no caso do sinalagma, da reciprocidade, e pretende o equilíbrio ou a


equivalência das prestações de um contrato bilateral em que há prestações de ambas as partes
na lógica do “do ut des” (Austauschgerechtigkeit”). Como exemplo de um contrato bilateral
temos o contrato de compra e venda (artigos 874.º e 879.º); temos uma troca de prestações (a
entrega da coisa vendida e o pagamento do preço), ou seja, um equilíbrio das prestações3.

Ela é involuntária no caso da obrigação de indemnizar em consequência da prática de um facto


que causou um dano e destruiu um equilíbrio (patrimonial), que há-de ser corrigido ao
restabelecer a situação que existiria se não tivesse havido o facto danoso e temos a justiça
correctiva (korrektive ou ausgleichende Gerechtigkeit). Como exemplo podemos referir a
obrigação legal de indemnizar, prevista no artigo 483.º CCiv, como consequência da prática de
um facto ilícito danoso não consentido.

Deste modo, a justiça comutativa procura (1) obter à partida um equilíbrio entre as prestações
das partes de um contrato, livremente celebrado com base no artigo 405.º CCiv, sendo neste
caso voluntária, ou (2) visa corrigir o desequilíbrio que foi criado por um facto danoso através
da realização de uma indemnização que foi imposta por lei a quem causou o dano.

3.1.2.2 A justiça distributiva

A justiça distributiva, que assenta na lógica “prestação sem contraprestação”, tem como
objectivo uma correção da repartição dos bens, tida como injusta, normalmente feita por meio
de prestações sociais atribuídas por organismos públicos a favor de cidadãos necessitados e
merecedores de apoio. É certo, todavia, que ninguém sabe explicar positiva e convincentemente
o que é uma repartição justa dos bens; apenas se pode sustentar pela negativa que uma
determinada repartição é considerada socialmente como injusta. E também no que respeita ao
direito sucessório, nomeadamente no caso da sucessão legal, quanto à partilha dos bens da
herança entre os herdeiros, pode estar subjacente a ideia de uma repartição justa dos bens.

3.1.2.3 A justiça contributiva

A justiça contributiva (ou geral ou legal) significa a participação de todos segundo o critério
da igualdade proporcional nos encargos comuns da sociedade em benefício de todos. Isto é, há
a igualdade para todos na obrigação de contribuir, mas já não há uma igualdade para todos no
que respeita ao valor da obrigação. Aqui a prestação que onera cada um depende da sua
capacidade económica de contribuir. Por exemplo: em princípio, todos os contribuintes devem
pagar impostos (IRS) sobre os seus rendimentos (há igualdade na obrigação de contribuir), mas

3
Pelo contrário, o contrato unilateral é um contrato em que falta este equilíbrio das prestações: há uma prestação
de apenas uma das partes, como sucede no contrato de doação (artigo 940.º, n.º 1).
a taxa dos impostos que onera os rendimentos é progressiva na medida em que aumenta em
função da soma dos rendimentos auferidos pelo contribuinte e da sua maior capacidade de
contribuir: há proporcionalidade da prestação.

3.1.3 A justiça social

A tudo isto sobrepõe-se o conceito, indeterminado, da chamada “justiça social”, um critério


“movediço” que encerra aspectos difíceis, controversos e úteis. O conceito de justiça social
goza, em geral e à partida, de uma conotação positiva, mas sem usufruir de um entendimento
comum. F. A. Hayek chama-o um logro. Há indícios claros que o conceito vem a ser utilizado
como um conceito de combate (Kampfbegriff) por parte de quem pretende introduzir
melhoramentos e/ou regalias sociais ao beneficiar quem é considerado como desfavorecido ou
discriminado.

a) Ao direito cabe, como dissemos, realizar a justiça na vida real e social dos homens, isto é,
na vida real e social que nos é acessível. Esta justiça é moldada, em termos mais ou menos
perfeitos, por leis humanas em sintonia com as condições humanas correspondentes. As leis
humanas são regras de conduta humanas feitas por e para seres humanos. Por isso,
verdadeiramente, num sentido estrito e preciso, só podemos falar de justiça, ou de injustiça, a
respeito de situações ou relações sociais sujeitas às leis ou normas jurídicas feitas por homens,
ou seja, relações juridificadas.

b) Há, porém, inúmeras situações que sentimos como “injustas”, e que nos perturbam e
atormentam, apesar de não serem injustas no sentido estrito que acabamos de definir: não há
ninguém que tenha lesado um direito subjectivo, não ocorreu nenhuma violação de uma lei,
não se verifica uma desconformidade com o direito de um Estado, mas, não obstante, resulta
delas um desconforto, uma insatisfação ou mesmo uma sensação de repulsa ou de revolta.
Trata-se de circunstâncias não causadas por actos humanos que podem ser conferidos em
relação a leis, mas nomeadamente por fenómenos danosos da natureza – que não se rege de
acordo com considerações de justiça humana, uma vez que as ideias humanas a respeito da
justiça não podem ser transferidas para a natureza – que ocorrem independentemente de
qualquer acção humana; e por isso seria absurdo qualificá-las como injustas embora possam
ser encaradas como tais, quando sustentadas em sentimentos de compaixão ou em critérios
morais, e que merecem ser “corrigidas”.

Neste contexto devemos distinguir de uma verdadeira injustiça situações como o infortúnio em
consequência da natureza (exemplos: fértil ≠ infértil; bonito ≠ feio; saudável ≠ doente;
inteligente ≠ pouco inteligente; etc.) ou de acasos (exemplos: lugar do nascimento, género,
nacionalidade, deficiências ou lesões, etc.) ou da situação familiar (nascer pobre ou numa
família disfuncional ou numa família abastada). Pois um infortúnio, uma infelicidade, um não
merecimento, um acaso, etc. criam desequilíbrios, desvantagens e distorções, mas não são logo,
à partida, sinais de uma injustiça.

Também uma desigualdade, por si só, tão pouco o é. As pessoas e as sociedades estão
habituadas a conviver com muitas situações de desigualdade tidas, mais ou menos, como
normais de acordo com os respectivos padrões de convivência num determinado ambiente
social. Mas os problemas surgem inevitavelmente quando as desigualdades atingem um grau a
partir do qual são sentidas como socialmente incomportáveis, sobretudo a respeito da obtenção
de rendimentos elevados ou da repartição da riqueza, de maneira que passam a ser consideradas
injustas, devendo estas injustiças ser corrigidas com base em critérios de justiça social4.

Também não é injusto que a natureza distribui de forma desigual a herança genética,
favorecendo uns e prejudicando outros (por exemplo, ter força de vontade ou não ou ter
condições físicas boas ou não). Assim, o êxito desportivo é, em grande parte, genética ou
fisicamente pré-determinado e não em primeiro lugar o resultado de treino e disciplina.
Portanto, visto nesta perspectiva, o êxito desportivo é resultado de uma “injustiça” em relação
àqueles que não possuem as mesmas características genéticas o que, obviamente, não faz
sentido ser sustentado)5.

c) Injusto é, todavia, quando em virtude da omissão da feitura de leis que estão ao alcance do
legislador não são tomadas medidas preventivas, por exemplo, mediante a intervenção de
serviços de saúde para evitar que nasçam crianças doentes ou diminuídas, ou para atenuar ou
mesmo eliminar por meio de um sistema escolar (empenhado em criar oportunidades de

4
No subconsciente poderá haver (naturalmente nunca confessado) algum sentimento de inveja (que é um dos sete
pecados mortais [soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça]).
Mas a natureza humana, dos indivíduos, com todas as suas características próprias, faz com que as desigualdades
sejam perfeitamente inevitáveis. E estas desigualdades podem ser encaradas também a partir de uma perspectiva
claramente positiva: “A desigualdade entre os homens (…) é um factor de liberdade. A sociedade completamente
igualitária não é apenas uma ideia irrealista, ela é também uma ideia medonha. (…) É aqui o lugar para lembrar
(…) a observação crítica de Kant a Rousseau de que a desigualdade é por um lado «a rica fonte de tanto mal, mas
também a fonte de todo o bem»”. Ver Ralf DAHRENDORF, Über den Ursprung der Ungleichheit unter den
Menschen, Tübingen, 1961, p. 30, 32.
5
Só aqui a justiça social já não resolve nada: cinicamente dito, a tarefa de criar “igualdade” caberá agora à
engenharia biológica e genética par obtermos o homem perfeito.
igualdade) os efeitos do infortúnio ou de condições familiares desfavoráveis em que uma
pessoa nasceu, ou seja, quando não são realizadas medidas assentes na justiça distributiva6.

Por conseguinte, há hoje uma tendência muito acentuada no sentido de corrigir juridicamente
o infortúnio ou o acaso infeliz com a sujeição de cada vez mais relações sociais em que estas
situações acontecem ao direito. Com isso verifica-se uma extensão (ou mesma alguma diluição
ou até a banalização) dos conceitos “(in)justo” ou “(in)justiça”. De facto, quanto mais latos são
o conteúdo de um conceito e seus contornos, tanto mais esvaziado e indeterminável fica este
conteúdo com o perigo ulterior de se corrigirem “injustiças” por meio da criação, interpretação
e aplicação arbitrária das leis.

A tendência de juridificar, isto é, sujeitar cada vez mais relações ou situações sociais sentidas
como “injustas” a normas jurídicas – como, por exemplo, um necessitado deixa de estar
dependente de actos de misericórdia ou de caridade e passa a ter um direito subjectivo público
a prestações sociais, ou à uma pessoa de idade dependente de apoios dos seus familiares (que
a sentem como um peso) é atribuída uma reforma mínima e com isso um direito subjectivo
público, sendo que nestes casos os direitos subjectivos públicos libertam as pessoas das suas
condições pouco dignas e subalternas – é defendida sob o lema da justiça social e caracteriza-
se por regulamentos jurídicos diferenciados e sempre mais complicados. Há quase uma
obsessão de sujeitar tudo o que é considerado socialmente inaceitável ou “injusto” ao domínio
do direito com o propósito de se obter deste modo mais justiça social por meio da juridificação
(Verrechtlichung) de tais situações.

d) Por outro lado, com frequência nem se pergunta quando alguém se encontra em dificuldades
ou está necessitado quais as razões, a evitabilidade, a culpa própria ou as alternativas, mas
sustenta-se, simplesmente, que estamos perante “injustiças” (ou também discriminações) que
o direito deve resolver ou eliminar. Cria-se uma cultura de vitimização (que tem a tendência
de se manter) em vez de lutar e não se deixar vencer por infortúnio, contrariedades e derrotas.
Assim, a propensão – em princípio bem-intencionada e correcta – de juridificar sob o lema da
justiça social um número crescente de ralações sociais desfavoráveis não está isenta de dúvidas:
a ideia da autorresponsabilidade pode ficar esvaziada; as “circunstâncias” ou as “condições” é
que são “injustas”, logo o direito deve intervir, criando justiça e proporcionando ajudas sociais.

6
Por outro lado, também é injusto tratar situações iguais de uma maneira arbitrária e não com os mesmos critérios.
Além disso, quanto mais relações sociais passam a ser juridificadas, ou seja, passam a ser
relações jurídicas, tanto mais aumenta o poder do Estado (de quem emanam as leis) com os
seus meios coercivos, e criam-se novos laços de dependência (agora face ao Estado e sua
Administração Social) e fica diminuído o espaço para as pessoas encontrarem livremente, de
uma maneira autónoma, normas de conduta social pelas quais se pretendem guiar. E a liberdade
acaba mesmo quando o Estado se encarrega de cuidar da felicidade dos homens.

3.1.4 Ius strictum versus ius aequum

Seja como for, para poderem ser seguidas a aplicação das leis exige que elas sejam redigidas
em termos claros e precisos. Neste sentido a aplicação estrita de uma norma é, naturalmente, o
caso comum. Mas pode não ser assim. É a este respeito que distinguimos entre o ius strictum
e o ius aequum. Quer dizer, à aplicação estrita de uma norma contrapõe-se uma aplicação
maleável. Na verdade, pode suceder que da aplicação estrita de uma norma, obviamente
destinada a fazer justiça, em determinados casos concretos venham resultar consequências
sentidas como injustas. Nestes casos, limitados é certo, a equidade aparece como excepção à
aplicação estrita de uma norma por parte do julgador.

Portanto, a aplicação estrita da norma, do ius strictum, é o caso normal (quer dizer, vale o
princípio dura lex sed lex), porque só deste modo fica assegurado que o julgador (o juiz) se
mantém vinculado ao rigor da lei, evitando-se possíveis arbitrariedades (às quais o artigo 8.º,
n.º 2, que já mencionámos procura prevenir). Partindo da lógica que as leis são concebidas em
função da justiça, o recurso à equidade, ao ius aequum, não pode deixar de ser excepcional
como também resulta do artigo 4.º, alínea a), do Código Civil que refere “os tribunais só podem
resolver segundo a equidade … quando haja disposição legal que o permita”.

É dada prevalência a razões da justiça do caso concreto em que a equidade se funda. O julgador
não está subordinado aos rigorosos critérios normativos que são fixados na lei, por exemplo o
pressuposto da culpa estabelecido no artigo 483.º, uma vez que estes critérios vêm a ser
atenuados por normas que recorrem à utilização da equidade, como é o caso dos artigos 494.º
e 489.º, n.os 1 e 2, 2016.º, n.º 3, do Código Civil.

Mediante o recurso à equidade o artigo 494.º atenua o rigor do artigo 483.º – que estabelece,
sem atender ao grau da culpa do lesante (!!), a obrigação de indemnizar todos os danos causados
– quando consente ao juiz maleabilidade na sua decisão e lhe permite, ao considerar e ponderar
as situações concretas do lesado e do lesante, quando a culpa deste é leve e os danos são grandes
e os meios económicos do lesante são insuficientes, fixar a indemnização devida em montante
inferior aos danos causados.

Por outro lado, o artigo 489.º, n.º 1, abdica mesmo da culpa como pressuposto essencial da
responsabilidade e faz responder, apesar de ser inimputável, o causador do dano, uma vez que
seria injusto que o lesado ficasse sem indemnização. No entanto, ao fazê-lo responder nos
termos do n.º 1 do artigo 489.º, no seu n.º 2 também o protege contra eventuais efeitos gravosos
que podem resultar para ele da indemnização devida ao garantir-lhe uma existência material
estável. Vemos aqui muito bem como, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 489.º, a lei avalia a
situação concreta e pondera os interesses em causa e procura obter soluções equilibradas e
justas.

No caso do artigo 2016.º, n.º 3, a lei parte do princípio, estabelecido no n.º 1 do mesmo artigo,
que depois de um divórcio “cada um dos ex-cônjuges deve prover à sua subsistência”. Mas isto
não exclui que possa existir a necessidade de um ex-cônjuge de receber “por razões manifestas
de equidade” alimentos do outro (artigo 2009.º, n.º 1, alínea a)) em circunstâncias de ele carecer
deles e de o outro cônjuge ter capacidade para os prestar (artigo 2004.º, n.º 1).

Portanto, a equidade não é contraposta à justiça, mas uma forma específica da mesma: ela visa
a realização da justiça do caso concreto. Nessa medida não há uma contradição entre o ius
aequum e o ius strictum. Ambos procuram obter a solução justa e correcta. Mas a respeito da
equidade, o perigo da arbitrariedade e imprevisibilidade da decisão sempre existe; daí as
cautelas justificadas do artigo 4.º do Código Civil e a limitação da equidade a casos singulares.
No entendimento tradicional dos antigos juristas, a equidade era uma espécie de correctivo do
rigor da lei, um “amaciador” que atenua com base na misericórdia e em sentimentos benignos
o princípio dura lex sed lex (com todos os riscos da imprevisibilidade que isto implica).

Podemos concluir que a realização da ideia geral da justiça nem sempre é fácil de conseguir;
ela depende das situações concretas e do modo como o direito e o juiz (com a “arte do jurista”)
as enfrentam7.

7
Para quem queira aprofundar as reflexões sobre a problemática da justiça indicam-se três obras relevantes de
que há traduções para português: John RAWLS, Uma Teoria da Justiça, Tradução de Carlos Pinto Correia, Editorial
Presença, Lisboa; Amartya SEN (prémio Nobel da Economia), A Ideia de Justiça, Tradução de Nuno Castello-
Branco Bastos, Almedina, Coimbra; Karl ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, Tradução e Prefácio de
J. Baptista Machado, Fundação Gulbenkian, Lisboa, uma obra já indicado na 1.ª aula (aula de apresentação).
Sem uma tradução para português podemos ver Bernhard SCHLINK, Der Preis der Gerechtigkeit (= O preço da
justiça); Wolfgang KERSTING, Theorien der sozialen Gerechtigkeit (= Teorias da justiça social) e Martha C.
NUSSBAUM, Frontiers of Justice. Disability, Nationality, Species Membership (Limites da justiça, deficiências,
nacionalidade, espécies).
3.2 A segurança jurídica

Além da realização da justiça também a criação de segurança jurídica e certeza constitui uma
finalidade essencial do direito na medida em que se destina a contribuir para a paz social (ver
← ponto 2.2.1).

Sabemos que, para viver livre e tranquilamente em sociedade, os homens têm de manter-se
dentro dos quadros normativos estabelecidos pelo direito, ou seja, devem respeitar (para além
das regras ordenadoras das várias instituições sociais que são as normas de conduta social)
sobretudo as leis. São unicamente as leis que contêm as regras jurídicas plasmadas pelo direito
objectivo que, por sua vez, reconhece ou atribui os direitos subjectivos.

As regras jurídicas conferem uma segurança ordenadora específica e própria em virtude da sua
positivação no direito legislado e da garantia da sua observância pelo funcionamento correcto
do poder coercivo do Estado (policial, administrativo ou judicial). Sem esta segurança
oferecida pelo direito não é possível haver uma convivência estável entre os homens e também
não se pode desenvolver uma economia moderna; esta precisa da confiança decorrente da
estabilidade das normas e da previsibilidade da sua aplicação.

Em geral corresponde à convivência entre os homens que tanto as regras de conduta social
como as leis são voluntariamente respeitadas sem qualquer necessidade coerciva. Quer dizer,
as regras são aceites por serem sentidas como adequadas ou justas ou, pelo menos, são toleradas
(cf. a este respeito ← ponto 3.1). Aliás, sem estes pressupostos uma sociedade não pode
sobreviver; por outro lado, a sociedade também não pode dispensar da garantia assegurada
pelos órgãos estaduais.

“(…) o próprio desenvolvimento do tráfico jurídico moderno é impossível sem esta segurança
adicional constituída pela garantia jurídica. Designadamente, os valores económicos em
circulação adquirem essa qualidade de valores contabilizáveis e transaccionáveis por força da
confiança, e esta confiança é fundamentalmente obra da garantia jurídica de que o direito se
reveste. … A exigência de segurança pode, porém, conflituar com a exigência de justiça.
Justiça e segurança acham-se numa relação de tensão dialéctica”8.

Quando falamos da segurança jurídica estão em causa:

8
João BAPTISTA MACHADO, Introdução, pág. 55
a) a paz social, tutelando as pessoas e os seus bens, prevenindo as agressões contra as pessoas
e bens ou, tendo elas ocorrido, punindo-as;

b) a certeza jurídica, no sentido de conferir segurança quanto à previsibilidade dos efeitos


jurídicos dos nossos actos e das decisões que foram praticadas de acordo e dentro dos quadros
legais estabelecidos que garantem e, ao mesmo tempo, também delimitam a liberdade das
nossas decisões;

c) a segurança dos particulares perante o Estado cujos órgãos devem agir em consonância com
o princípio da legalidade, quer dizer, devem actuar sempre com base numa justificação já
preestabelecida na lei e, por isso, previsível (ver → ponto 10.1.2);

d) a imparcialidade e a independência dos tribunais (ver → ponto 10.1.1) e, por fim,

e) a segurança social (a exigência do direito ao trabalho ou, na sua falta, a disponibilização de


meios de subsistência condignos com base na justiça social ou distributiva.

3.3 A relação entre justiça e segurança

3.3.1 Uma relação de sintonia com o sentir comum

A segurança jurídica traz ordem e paz social e deve estar ao serviço da ideia da justiça e
legitimar-se perante ela. A ideia de justiça por seu lado, subjacente às leis, deve ter a aceitação
da sociedade à que as leis se dirigem e acompanhar a evolução desta sociedade. Há, como
referimos, uma certa comunicação, uma interacção, entre quem faz as leis e o sentir da
sociedade. Quer dizer, a “mentalidade legislativa” deve ter em consideração a realidade vivida
pelas pessoas às quais as leis se destinam. No caso de isto não se verificar, achando o legislador
que pode ignorar a realidade, as leis desfasadas do sentir geral podem acabar por constituir um
mero colete-de-forças. As leis podem ser iníquas justamente por terem deixado de estar ao
serviço da justiça. A segurança criada deste modo não contribui para a paz social. Situações
muito graves da falta de sintonia entre as leis e convicções de justiça existentes na realidade
social podem legitimar o direito à resistência.

Há muitas razões em virtude das quais a lei considera a segurança como particularmente
relevante como sucede, designadamente, quando estão em causa o estado civil das pessoas (por
exemplo, o estado de casado) e sua capacidade negocial (por exemplo, a aquisição da
maioridade), ou a atribuição e o conteúdo de direitos patrimoniais (para sabermos o que
pertence a quem e em que termos), ou a circulação de bens (onde, como vimos, o comércio
jurídico exige confiança, estabilidade e previsibilidade das regras jurídicas), ou no que respeita
à fixação de prazos. Nestas situações referidas as relações entre justiça e segurança estão
indubitavelmente em sintonia.

3.3.2 Situações de (aparente) conflito entre justiça e segurança

Acontece, todavia, que as relações entre justiça e segurança podem apresentar-se como difíceis
em determinadas situações em que a praticabilidade do direito parece exigir, aparentemente,
que o valor da segurança prevaleça sobre o da justiça. Mas, analisando melhor estas situações
em questão veremos que uma verdadeira contradição entre justiça e segurança não se verifica:
também a segurança se baseia numa ordem jurídica legitimada pela ideia da justiça que pondera
os interesses em causa. À semelhança do que observámos acerca do ius strictum e do ius
aequum, segurança e justiça não se contradizem, uma vez que têm como finalidade comum
encontrar uma solução correcta para um problema, quer dizer, a obtenção de um resultado
adequado e justo.

Vamos, a seguir destacar alguns exemplos em que podemos encontrar situações de (aparente)
conflito entre as ideias de segurança e de justiça:

a) O princípio expresso no artigo 6.º do Código Civil que determina que a ignorância ou má
interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções
nelas estabelecidas, ou seja, há segurança na aplicação da lei (embora um infractor de uma
norma que não conheceu ou não entendeu possa sentir-se injustiçado quando sente os efeitos
sancionatórios que o atingem).

b) O caso julgado, quer dizer, quando há um litígio o processo vai a julgamento num tribunal
e termina com uma sentença transitada em julgado (= definitivo, não recorrível). Esta sentença
transitada em julgado cria certeza, mas pode ser injusta: o tribunal decidiu, como não pode
deixar de ser, com base na “verdade processual” (quod non est in actas non est in mundo) e,
evidentemente, não com base em elementos extra-processuais (ou difusos) que não são
verificáveis. Não obstante, pode acontecer que a “verdade verdadeira” seja diferente da verdade
processual, mas acabou por não ser considerada porque os respectivos factos não chegaram ao
conhecimento do tribunal devido a insuficiências ou falhas humanas das partes envolvidas no
processo judicial ou dos seus representantes (por exemplo, os advogados).
Contudo, havendo trânsito em julgado, o mal está feito. Com o trânsito em julgado a lei opta,
em benefício da segurança (ou da certeza), por pôr termo ao litígio – que se arrastou ao longo
do processo em que reina a incerteza quanto ao seu desfecho e que cria instabilidade – e chegar
a um fim para haver paz (embora para a parte vencida a paz possa ser amarga). Normalmente,
o caso julgado significa o fim definitivo, embora nem sempre: em situações excepcionais a lei,
precisamente para fazer justiça, ainda permite a revisão de uma decisão transitada em julgado.

c) A não retroactividade da lei, sendo a retroactividade uma anomalia que pode ser um atentado
contra as pessoas atingidas que confiaram na previsibilidade dos efeitos dos seus actos
praticados com base em normas em vigor que agora já não valem. A não retroactividade da
aplicação de uma lei satisfaz a exigência da segurança e também corresponde a uma exigência
da justiça que os efeitos produzidos se mantêm. Mas, excepcionalmente – como ainda vamos
estudar (ver → ponto 14.3.1) –, a retroactividade de uma lei pode afectar efeitos produzidos se
ela beneficiar quem for abrangido por ela (por exemplo quando uma lei reduz retroactivamente
uma pena ou a taxa de um imposto).

d) O decurso de prazos, de que resulta a prescrição ou caducidade de direitos, e ainda a


usucapião. Como já sabemos (ver ← ponto 2.2.2.5), a caducidade opera ipso iure, sendo
apreciada oficiosamente pelo tribunal e não necessita de ser invocada. A prescrição, pelo
contrário, para ser eficaz, tem que ser invocada por quem dela beneficia. São os direitos
potestativos podem caducar e são os direitos de crédito que podem prescrever. Enquanto, na
sequência do decurso do tempo, a caducidade extingue o direito e a prescrição o enfraquece, a
usucapião produz um efeito em contrário à prescrição: a usucapião permite a aquisição de um
direito, que não foi exercido ou usado ao longo dos tempos pelo seu titular, por outrem. Quer
dizer, o decurso dos prazos opera em dois sentidos opostos quanto aos direitos subjectivos
atingidos por ele, de forma negativa (caducidade e prescrição) ou positiva (usucapião).

Assim, por exemplo, um proprietário absentista pode perder a propriedade de um terreno a


favor de outrem que o tinha na sua posse e o cultivava se este, depois de decorrido os prazos
legais (artigo 1278.º), a usucapir – apesar de a propriedade não poder prescrever nem se
extinguir pelo não uso. Tal como sucede com a prescrição, a usucapião deve ser invocada por
quem dela beneficia com a aquisição do direito. Por isso ela é também designada por
“prescrição aquisitiva”.

e) A protecção do adquirente de boa fé em situações específicas previstas na lei. Temos aqui


os casos resultantes da inobservância de formalidades registrais. Estas formalidades foram
especialmente concebidas em ordem a proteger a confiança e a segurança do tráfico jurídico
negocial mediante a inscrição de certos factos jurídicos em registos públicos. Consideremos
um exemplo do registo automóvel (que segue a lógica do registo predial). O contrato da
aquisição de um automóvel está sujeito a registo. Se o vendedor de um automóvel, devidamente
inscrito como o seu proprietário, o vender a um comprador é este que passa a ser pela simples
conclusão do contrato o seu proprietário (artigos 408.º, n.º 1 e 879.º, alínea a)). Contudo, se
ele não regista o seu contrato de aquisição, pois foi negligente, é na mesma o proprietário, mas
é o vendedor que continua inscrito como proprietário (embora em desconformidade com a
realidade jurídica, pois de acordo com esta o proprietário é agora o comprador). Caso o
vendedor se aproveite disso e disponha de novo a favor de um segundo comprador que confia
na inscrição do registo, que mantém a aparência da propriedade em nome do vendedor, e se o
segundo comprador, sendo uma pessoa diligente, regista o seu próprio contrato de aquisição
em primeiro lugar, é ele quem adquire a propriedade (à custa do comprador que não registou e
que ficou sem ela). Desta forma, a lei castiga (sanciona) a negligência e o descuido de quem
não registou; é precisamente com a ameaça desta penalização, ou seja, o risco de perder o
direito adquirido, mas não registado, que a lei quer incentivar a efectivação do registo.9

f) A aquisição do direito da propriedade de um bem móvel por meio de usucapião por um


possuidor que está de má fé (artigo 1299.º, 2.ª alternativa). Portanto, uma posse de má fé (por
exemplo adquirida por um furto) não exclui a aquisição posterior da propriedade por usucapião.
Sendo a posse a atribuição provisória de um bem, a lei privilegia a atribuição estável do bem
obtida pela aquisição da propriedade por usucapião em prejuízo da justiça que não devia
permitir este resultado que “premeia” a má fé.

g) A validação de um testamento nulo na altura em que foi feito (por ofensivo dos bons
costumes) por uma pessoa casada a favor de quem cometeu adultério (artigo 2196.º, n.º 1)
quando à data da abertura da sucessão do testador o casamento já estava dissolvido há mais de

9
Uma protecção semelhante de um adquirente resulta da aplicação do artigo 291.º que é uma norma excepcional
na medida em que inviabiliza os efeitos retroactivos e restitutivos do regime-regra do artigo 289.º, n.º 1, em caso
da declaração de nulidade ou da anulação de um negócio jurídico precedente ao proteger um adquirente
subsequente. Para o efeito o n.º 1 do artigo 291.º determina: “A declaração de nulidade ou a anulação do negócio
jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre
os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé (se …).”
Um outro caso (estranho) é regulado pelo artigo 1301.º onde a lei favorece a segurança, mais precisamente a
confiança no comércio, em detrimento da justiça. Vemos o seguinte exemplo: A furta um objecto e vende-o a um
comerciante que, por sua vez o vende a um cliente de boa fé. Quando A reivindica a sua propriedade esta é-lhe
reconhecida, mas ele só pode exigir a restituição do bem que lhe pertence (!) se devolve ao cliente o preço que
este pagou ao comerciante. Caso não o faça (suponhamos por não ter dinheiro) o cliente pode adquirir a
propriedade por usucapião nos termos do artigo 1299.º, 1.ª alternativa.
seis anos (artigo 2196.º, n.º 2, alínea a)), onde em atenção à realidade alterada pelo decurso do
tempo o pragmatismo (segurança) prevalece sobre a justiça (moral).

h) As situações em que a segurança prevalece são o resultado de opções ponderadas da lei que
as considera justas e adequadas, porque põem termo a incertezas e pretendem criar paz, embora
o exemplo em que é dada prevalência, pelo registo, ao segundo adquirente, possa suscitar sérias
dúvidas pois a lei aceita um resultado como bom, não obstante ele ser a consequência de uma
burla praticada anteriormente pelo vendedor. E as mesmas dúvidas podemos sentir no caso da
aquisição da propriedade por usucapião por um possuidor de má fé10.

De qualquer maneira, podemos concluir – à semelhança do que dissemos quanto à relação entre
ius strictum e ius aequum – a segurança não é contraposta à justiça. Também ela procura com
base em decisões legislativas ponderadas as soluções justas e adequadas sem contrariar a
justiça; há, por conseguinte, uma complementaridade entre ambas porque também é
eminentemente justo viver em segurança.

Ler: J. Baptista Machado, pp. 55-59; Ángel Latorre, pp. 46-65.

10
Ou em relação à solução que artigo 1301.º encontrou para os casos como o referido na 2.ª parte na nota 9.

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