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ANÁLISE DO ACÓRDÃO DO TRL DE 19/05/2020

Crédito ao Consumo

Proponho-me a analisar, de uma forma sucinta, o acórdão do TRP de 19 de maio de


2020, o qual tem como objeto, a celebração de um contrato de crédito associado à celebração de
um contrato de compra e venda de um automóvel, ou seja, um contrato de crédito coligado no
ano de 2006, nos termos e para os efeitos do artigo 4.º, n.º 1, alínea o) da Lei n.º 133/2009,
tendo o primeiro sido celebrado entre B, exequente, e C e D, executados.

Ora, este processo surgiu por apenso aos autos principais de execução de C e D.

Mas, para melhor compreensão do caso, importa referir que, em 1.ª Instância, C e D
vieram deduzir embargos, separadamente, os quais foram liminarmente aceites invocando
diversos argumentos.

Quanto aos embargos deduzidos por C, este vem referir que foi efetuado o pagamento
da quantia de 14.191,13 euros do valor acordado no âmbito do contrato de financiamento
para aquisição de veículo automóvel, através do estabelecimento fornecedor da viatura, sendo
o valor total de 28.507,06 euros. Num segundo momento, C alega que, ao passar por
dificuldades, procedeu à entrega da viatura, nunca lhe tendo sido comunicado o valor
resultante da venda do automóvel, a abater do valor da dívida, mostrando-se infrutíferas
as tentativas de contacto com a financiadora, levando-o a crer que o valor resultante da
venda do automóvel teria sido suficiente para colmatar as suas responsabilidades no
âmbito do contrato em causa, ou seja, a sua dívida. Por último, o executado refere nunca ter
sido interpelado para o preenchimento da livrança e não tendo autorizado o seu
preenchimento, alegando que tal “se mostra abusivo”.

Já no tocante aos embargos deduzidos por D, esta refere não ter existido comunicação
do contrato e respetiva explicação dos termos deste, alegando, em suma, ter assinado toda a
documentação – e nomeadamente a livrança – na sua casa, tendo sido o marido a proceder à
entrega da documentação ao vendedor. Num segundo momento, alega a executada o facto de o
verso do contrato não se encontrar assinado por esta, devendo, como tal, tais cláusulas
considerarem-se excluídas – sendo que importa ressalvar que do verso do contrato (não
assinado), constava a convenção de preenchimento da livrança em causa, levando a executada a
alegar, assim, que deverá ser considerada tal cláusula inexistente e, consequentemente, inválido
o preenchimento da livrança. O circunstancialismo invocado conduz então à inexistência de um
título executivo válido. Acresce que a executada refere ainda o facto de não lhe ter sido
interpelada para efetuar o pagamento do valor constante da livrança e não foi igualmente
informada do valor resultante da venda do veículo financiado. Por fim, a executada menciona
ser ilegal a cobrança de juros remuneratórios, tendo existido uma resolução do contrato, nos
termos do artigo 560.º, n.º 1 do CC e que não lhe foi comunicado qualquer preçário
relativamente a despesas e comissões relacionadas com a venda do veículo em causa.

Veio a exequente contestar, invocando diversos argumentos. De entre os quais cumpre


referir que a exequente invoca que recebeu do vendedor automóvel a proposta de
financiamento, juntamente com a documentação necessária à sua aprovação. Nos termos do
contrato celebrado, os executados obrigavam-se a reembolsar o financiamento no valor de
28.507.06 euros, mediante o pagamento de 72 prestações mensais. Como forma de garantia do
cumprimento do contrato, os executados aceitaram uma reserva de propriedade do veículo a
favor da exequente, a par da entrega da livrança exequenda por eles subscrita.

Refere ainda ter interpelado os mutuários, após verificação do não cumprimento da 34.ª
prestação e seguintes, através de carta registada com aviso de receção, concedendo um prazo de
8 dias úteis para liquidação dos montantes em dívida. Note-se que a carta enviada à embargante
não foi por ela recebida, sem culpa da exequente, não tendo sido efetuado qualquer pagamento,
razão pela qual a exequente considerou o contrato como resolvido.

O executado embargante entrou em contacto com a exequente, tendo em vista a entrega da


viatura, sendo que esta última aceitou, mas não aceitando a exoneração dos devedores.

O veículo foi entregue a uma empresa que procedeu à sua venda pelo valor de 8.800 euros,
revelando-se tal valor insuficiente para liquidar o alegado montante em dívida à exequente.
Como tal, a exequente preencheu a livrança, nos termos do contrato, tendo comunicado esse
preenchimento por correspondência. Contudo, os executados não pagaram o valor dela
constante.

Relativamente aos embargos formulados por D, a exequente veio reproduzir


maioritariamente a contestação já mencionada, acrescentando apenas que desconhecia se a
executada acompanhou ou não o executado ao estabelecimento em que vieram a adquirir o
automóvel, sendo que o contrato foi formalizado com a assinatura de ambos, incluindo na
livrança sobre a qual versa o presente litígio. Refere que a exequente dispôs de tempo e
condições para analisar o clausulado e que poderia ter recorrido ao fornecedor do veículo, caso
tivesse alguma dúvida ou questão, esclarecimentos esses que até àquele dia, não foram pedidos.

Ao assinar tal clausulado, os executados declararam ter tomado conhecimento do mesmo,


“impendendo sobre os mesmos deveres de zelo e diligência na contratação”.

Em sede de 1.ª Instância, foi então proferida sentença referindo que, “por todo o
exposto julgam-se os presentes embargos procedentes, por provados, e, em consequência,
julgando-se nulo o contrato subjacente e inválida a obrigação cartular exequenda, determina-
se a extinção da execução”.
B, exequente, inconformada com a decisão, veio interpor recurso, alegando, em suma,
que:

 a sentença em causa é nula, nos termos do artigo 615.º, nº 1, d) por conhecer de


questões que não foram invocadas pela Executada;
 o facto de dos artigos 6.º/1 e 7.º/1 do DL n.º 359/91 de 21 de setembro não
impõem ao exequente o ónus da prova da entrega de um exemplar do contrato
ao consumidor, nem estabelecem qualquer presunção de não entrega;
 Que pendia sobre a embargante D a prova consistente do facto de não lhe ter
sido entrega de um exemplar do contrato, nos termos do artigo 342.º/2 do CC;
 Como tal, não se poderá retirar qualquer conclusão diferente da de ter sido
entregue à embargante um exemplar do contrato e que esta foi devidamente
informada e esclarecida sobre o teor do mesmo, quer no tocante às condições
particulares e gerais, quer no que toca à garantia prestada, ou seja, a livrança de
caução;
 Por fim, refere a Exequente que a sentença em causa deverá ser nula por
omissão de pronúncia, uma vez que a Exequente, em sede de contestação,
invocou que a embargante D atuava em abuso de direito, ao invocar a falta de
informação e comunicação do teor das cláusulas gerais do contrato e considera
que, na sentença, o Mm.º Juiz não se pronunciou sobre a questão em causa.

C veio apresentar contra-alegações – contudo, vem, em suma, contradizer todo o


alegado pela Exequente em sede de recurso, concluindo pela improcedência do recurso,
por infundando, devendo ser mantida a sentença proferida pela 1.ª Instância.

Face ao exposto, ao TRP cabia analisar se:

 Se verificam as nulidades invocadas do artigo 615.º, alínea d);


 Se existiu erro na decisão de facto

Razão pela qual cumpre analisar aquela que foi a fundamentação apresentada pelo TRP.

Quanto à fundamentação de facto, por não resultar nada de novo, penso não ser
relevante expor detalhadamente, devendo o foco ser na fundamentação de direito
apresentada.

No caso em apreço, o título executivo é uma livrança subscrita pelos executados, na


sequência da celebração de um contrato de crédito celebrado entre a exequente B e C e
D, executados, em outubro de 2006, estando aqui em causa, em suma, uma compra e
venda financiada, existindo dois contratos distintos – um contrato de CeV e um
contrato de crédito, verificando-se, contudo, uma ligação funcional entre os mesmos.

Ao tempo da celebração deste contrato, encontrava-se em vigor o DL n.º 359/91


de 21 de setembro. Contudo, este diploma veio a ser revogado através da publicação do
DL n.º 133/2009 de 2 de junho, o qual só se aplica aos contratos de crédito concluídos
depois da data da sua entrada em vigor, ou seja, depois de 1 de julho de 2009.

Ora, a questão reside aqui no facto de, apesar de apenas ter sido expressamente
consagrado que todos os contraentes, incluindo os garantes, devem receber um
exemplar do contrato de crédito no artigo 12.º/2 do DL n.º 133/2009, a verdade é que já
assim se entendia, sempre que fossem dois ou mais os beneficiários do crédito, sendo
exigível a entrega de um exemplar a cada um deles, ou seja, apesar de o artigo 6.º, n.º 1
apenas referir “O contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos
contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no
momento da respetiva assinatura.”, já se entendia que em casos como este, deveria ser
entregue um exemplar a cada um dos beneficiários.

A falta de entrega de tal exemplar acarretava, nos termos do artigo 7.º/1 do DL


359/1991 e no artigo 13.º/1 do regime atual, a nulidade do negócio jurídico.

Refere ainda o Tribunal da Relação que tal nulidade apenas pode ser arguida
pelo consumidor e que recai sobre o mutuante de crédito a prova de que foi
efetivamente entregue ao consumidor um exemplar do contrato de concessão de crédito,
aquando da sua assinatura, sendo que a falta de tal prova acarreta a nulidade.

Como tal, vem o Tribunal refutar o alegado pelo exequente, no que toca ao ónus
da prova recair sobre os executados – pois na verdade, recai sobre o exequente. Este
desvalor surge, claramente, como uma forma de tutela mais sólida e eficaz do
consumidor, visando uma sua maior proteção.

O Tribunal vem concluir que, no presente caso, a oponente alega a não


comunicação do contrato, o que equivale a dizer que não lhe foi entregue qualquer
exemplar do contrato. Como tal, foram invocados os factos que conduzem,
necessariamente, á nulidade do contrato, pelo que cabia ao exequente a prova de que tal
exemplar foi efetivamente entregue.

Decidi analisar o acórdão em apreço pois, apesar de apenas ser referente a uma
questão muito específica do regime do DL n.º 133/2009, trata-se de um importante meio
de tutela do consumidor e que visa a sua proteção, pelas seguintes razões.
A partir da análise deste acórdão é possível perceber a importância da
consagração, no DL n.º 133/2009, dos deveres pré-contratuais e, nomeadamente, das
informações que devem ser prestadas ao consumidor, nos termos do artigo 6.º, em
especial no seu n.º 3, ideia essa reforçada no artigo 12.º, n.º 3.

Também a consagração da obrigatoriedade de entrega de um exemplar do


contrato de crédito, no artigo 12.º, n.º 2 do DL a todos os contraentes e a previsão
expressa da consequência da falta dessa entrega no artigo 13.º, n.º 1 veio reforçar a
proteção conferida ao consumidor e punir da forma mais gravosa a violação desses
deveres de informação pré-contratuais que recaem sobre o credor.

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