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Legitimação dos
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Direitos Humanos li
Organizador
Ricardo Lobo Torres
TEMAS RENOVAR
1\
Rio de Janeiro. São Paulo
2002
Todos os direitos reservados à
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Conselho Editorial
1. Direito. I. Ana Paula de Barcellos. 11.Torres, Ricardo Lobo. Flávio Galdino - Professor Assistente de Direito Processual
UI. Título. Civil na Faculdade de Direito da UERJ. Mestre e Doutorando
CDD:340
Flávio Galdino
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I'
1I
I:I' ção de Jellinekll, e tantos outros. Esta última construção vários direitos (públicos) subjetivos - em uma dada socieda-
11 merece uma consideração específica. de em um dado momento histórico - são sistematizados,
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Georg Jellinek, certamente um dos cânones da literatura
jurídica ocidental, construiu sua teoria dos direitos subjetivos
assim, a partir da categoria fulcral dos status, falando-se, em
relação ao indivíduo, em quatro categorias básicas de status,
(públicos) sobre a idéia de status, retomando conceito que quais sejam: passivo, negativo, positivo eativol7.
fora abandonado pelo liberalismo clássico (onde se considera-
:r va o indivíduo independentemente de sua relação com o Esta-
De toda sorte, e é o que nos importa por ora, a noção de
direito subjetivo permanece sendo utilizada (reconhecendo-
,'I do). Esta sua importante teoria, formulada ainda no século
se, contudo, as indeléveis marcas da publicidade da relação
passado, é de suma relevância, sendo objeto de análise crítica
jurídica em questão).
nas mais importantes obras do nosso tempo12, inclusive no
Assim, sem prejuízo das múltiplas teorias e dos amplos
Brasil!3, onde é utilizada para fundamentar a retomada do
importante conceito de cidadanial4. debates a respeito, e também assim.dos demais conceitos que
se desenvolveram com o tempo, e ainda sem embargo do
O autor chama de status os diversos feixes de relações
prestígio científico das teorias negativistas, o direito subjetivo
entre o indivíduo e o Estado. A categoria proposta por Jellinek
continua a ser uma categoria essencial ao debate jurídico I 8.
é então um tipo de relação que qualifica o indivíduo a partir
Talvez mesmo a mais importante categoria jurídica, no míni-
do modo de sua integração ao EstadolS (e, portanto, da con-
mo, como instrumento teórico de operacionalização das posi-
formação deste), estabelecendo agrupamentos de direitos do
indivíduo em face do Estado e também deste em face daque- ções jurídicas previstas nas normas, ou, consoante a constru-
ção de Alf Ross, como ferramenta técnica de apresentaçãol9.
lel5, acompanhados dos respectivos deveres correlatos. Os
Àssim, sem embargo da ausência de univocidade no conceito,
nem muito menos no que concerne ao respectivo conteúdo,
braria, 1912, p. 60, afirma que a pretensão dá origem ao direito
subjetivo, dizendo enfaticamente inclusive, que "i diritti pubblici sub-
biettivi consistono percià, (. ..) esclusivamente in pretese giuridiche
17' Conforme averbou JELLINEK em passagem clássica (op. cit., p.
(Ansprüche) (... )" (p. 96).
98): "]n questi quattro status, quello passivo, quello negativo, quello
11 JELLINEK, op. cit., p. 60.
positivo, quello attivo, si compendiano le condizioni nelle quali puà
12 Veja-se a obra seminal de ALEXY,.Robert. Teoria de los Derechos trovarsi I'individuo nello Stato come membro di esso. Prestazioni alio
Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, Stato, libertà dallo Stato, pretese verso lo Stato, prestazioni per conto
p.247.
dello Stato sono i punti di vista daí quali puà essere considera ta la
13 Entre n6s, é de se relembrar (com saudade) a referência de RÁo, situazione di diritto pubblico dell'individuo"; TORRES, Os Direitos
op. cit, p. 843 e seguintes. Consulte-se ainda a síntese de TORRES, Humanos e a Tributação ... , cit., p. 54.
Ricardo Lobo. Os Direitos Humanos e a Tributação. Rio de Janeiro: 18 Assim considera ALEXY, op. cit., p. 183. Entre n6s, LOPES, José
Renovar, 1995, p. 54.
Reinaldo de Lima. "Direito SubjeÚvo e Direitos Sociais: o Dilema do
14 TORRES, Ricardo Lobo. "A Cidadania Multidimensional na Era Judiciário no Estado Social de Direito". In: FARIA, José Eduardo
dos Direitos". In: ---o (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio (Org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Ma-
de Janeiro: Renovar, 2001, p. 251. lheiros, 1998.
15 JELLINEK, op. cit., p. 96. Acerca da qualificação, ALEXY, op. 19 Consoante a terminologia de ROSS, AI£. Direito e Justiça. São
cit., p. 248.
Paulo: Edipro, 2000, p. 209. Igualmente, FERRAZ JR., op. cit., p.
16 JELLINEK, op. cit., p. 213: "] diritti dello Stato e delle Comunità". 151.
144
145
IlIl." .
II :
. I
I:
I ficar que se trata de direitos públicos subjetivos, cuja especia-
lidade reside exatamente no fato de um dos pólos da relação
Dentre as referidas liberdades no seio das qUaISflorescem
a idéia e o conceito de direito subjetivo está precisamente a
propriedade (liberdade de assenhorar-se de bens), cujo res-
,
,I em questão ser ocupado pelo Estado (no mínimo, na qualida- peito por parte do Estado e a proteção em face dos ~e~.als
de de garantidor da efetividade daquele). indivíduos assume relevo fundamental neste momento InICial.
Neste ponto ressalta a importância de uma breve digres- Há mesmo quem diga que é a propriedade que faz o elo de
são de ordem histórica (institucional) 21 , de caráter meramen- ligação entre a liberdade (no sentido de direito natural) e o
te instrumental, e, por conseguinte, sem nenhuma tomada de direito subjetiv025. Ocorre que, consagrada a propnedade: ou,
posição definitiva em relação às controvérsias que cercam o mais precisamente, o direito de propriedade26, como mte-
tema.
Note-se, assim, que a idéia de direito subjetivo surge
pública originariamente. O pensamento jusnaturalista medie- ralismo". In: BOBBIO, Norberto, et alii, Dicionário de Política. Bra- ,
val, que construíra uma noção de direito natural enquanto sília: Ed, Universidade de Brasília, 1991.
norma objetiva, cedeu espaço, transmudando-se, de modo 23 De fato, o que se reconhecia inicialmente eram as liberdades,
que o jusnaturalismo dito moderno ressaltava já os aspectos SALDANHA, Nelson. "liberdades Públicas". In: Estado de Dtretto,
Liberdades e Garantias, São Paulo: Sugestões literárias, 1980, p, 40,
subjetivos do direito natural, precisamente através do reco-
explica que a idéia de liberdade precede a de direito subjetivo público.
nhecimento de vários direitos naturais22, inatos ao indivíduo e Em verdade, acentua o Mestre, somente ap6s Hugo Gr6cio e John
Locke passou-se a falar em direitos naturais (em sentido subJetlv~),
pois antes proclamava-se apenas "o" direito natural. Com as revoluçoes
liberais é que as liberdades passam a se~ reconhecidas c~mo uma
\ 20 BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitucional e a Efetividade
categoria jurídica genérica, o direito s~bJetlvo, ASSim, é poss.lvel dizer
de suas Normas. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 101: "A idéia
que "Direitos são, portanto, um conceito genénco, onde ashberdades
central em torno do qual gravita o t6pico ora desenvolvido é a idéia
I', i,
I , de direito subjetivo". se subsumem como espécie, Historicamente a espéCie motivou a con-
ceituação do gênero; juridicamente o gênero qualifica a espécie"; no
I " 21 VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 1977, p.
mesmo sentido: TORRES, Os Direitos Humanos ..., Clt" p, 7, sob o
120, dedicou-se detidamente a estudar a hist6ria do direito subjetivo.
sugestivo título "Da liberdade para os direitos", e p, 43; e FERRAZ
É de se ressaltar que ele empresta sua autoridade à tese de que a
JR., op, cit., p, 148. ..
noção de direito subjetivo surge antes do pr6prio termo: "O pr6prio
24 Confira-se ad exemplum tantum, BRESSER PEREIRA, LUIZCar-
termo "direito subjetivo" s6 data do século XIX. Mas a noção de
los, "Cidadania e Res Publica: a Emergência dos Direitos Republica-
direito concebido como o atributo de um sujeito (subjectum iuris) e
nos:'. Revista de Direito Administrativo 208: 153, 1997,
que existe exclusivamente s6 na vantagem deste sujeito remonta pelo
menos ao século XIV, Ela foi pela primeira vez distinguida por Guil- 2S LOPES op. cit., p, 120. VILLEY, op, cit" p, 125. '
lame d'Occam (... r. No texto, sem maiores discussões, aderimos a 26 Sobre a' diferença entre a propriedade e o direito de propriedade,
anotando a orientação a respeito do clássico AUGUST THON, v,
ponto de vista em alguma medida diverso, referido a seguir.
22 Assim o verbete "Jusnaturalismo", por FASSO, Guido. "Jusnatu- SILVA Ovídio Baptista da, Jurisdição e Execução na Tradição Roma-
no-Ca~ônica, São Paulo: Ed, Revista dos Tribunais, 1996, p, 142,
146
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I
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I rentes aos direitos públicos subjetivos (e bem assim para a De plano, cumpre observar que a própria nomenclatura
i ,
, I ~
assegurar a respectiva tutela). que envolve o tema suscita escrúpulos. Sem embargo da exis-
Os direitos públicos subjetivos devem ser conceituados a tência de críticas acerca da própria vagueza dos termos envol-
partir da especialidade da situação (ou relação) de natureza vidos36, nossa preocupação dirige-se ao fato de que, com o fito
pública de onde promanam, e também tendo em vista o tipo de examinar o mesmo fenômeno, por influências várias, os
de prestação (dever jurídico) a ela correlato: a natureza públi- doutores servem-se de rótulos diversos, causando muita vez,
ca da prestação influi sobre o conceito, afastando a conceitua- indesejável confusão teórica, com graves conseqüências de
I ção elaborada em base meramente privatística (que é franca- ordem prática. Assim, para ficar apenas na esfera genérica,
! , mente insuficiente). fala-se, indiscriminadamente, em direitos do homem, liber-
1 I
Neste sentido, a obra de Sunstein e Holmes é útil para dades públicas, direitos humanos, direitos fundamentais, et
uma reavaliação - ao menos parcial- do conceito de direito coetera. Neste estudo, preferindo-se as expressões 'direitos
1
público subjetivo, n; medida em que aquilo que supostamen-
I II
I ':
te é exigível do Estado depende de forma direta e imediata
humanos' e 'direitos fundamentais', seguindo-se prestigioso
entendimento, todas são tidas por sinônimas37.
daquilo que este pode suportar. Mais especificamente, importa aqui uma determinada ti-
pologia de direitos (subjetivos) fundamentais, que alguns au-
2.2. Direitos fundamentais: positivos e negativos tores implicitamente atribuem a Isaiah Berlin (enquanto fruto
de uma famosa conferência pronunciada no ano de 1958 na
Como observado, para os fins do presente estudo, interes- Universidade de Oxford)38. Cuida-se aqui da divisão entre
sa-nos uma determinada categoria de direitos subjetivos - os
direitos fundamentais ou direitos humanos, salientando-se
desde logo que há a grande controvérsia acerca de saber quais obra coletiva coordenada por TORRES, Ricardo Lobo. Teoria dos
;. dentre os muitos direitos do homem são dotados de exigibili- Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
t',
36 Corno leva a efeito BOBBIO, op. cit., p. 17.
dade ou sindicabilidade em sede jurisdicional (ou ainda, quais
37 A expressão direitos fundamentais - mais urna influência tedesca
são direitos subjetivos strieto sensu), ficando afastada, dados - originariamente era utilizada para designar o momento de recepção
os limites e escopos do presente trabalho, as muito complexas no ordenamento positivo dos direitos humanos. Sobre as questões
questões acerca da justificação ou da fundamentação dos di- terminológicas, esclarecendo a origem de cada urna das expressões, e
reitos humanos35. ressaltando a irrelevância das diferenças sob o prisma prático, veja-se
., "
MELLO, Celso Renato Duvivier de Albuquerque. Direitos Humanos
, i
e Conflitos Armados. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 9 e seguintes.
, I
Vide ainda SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional.
35 Isto não significa que ainda (dada nossa manifestação anterior em São Paulo: Malheiros, 1999, p. 179 e seguintes (referindo, p. 182,
estudo corno graduando) estejamos com BOBBIO, Norberto. A Era que a expressão direitos fundamentais do homem é a mais adequada).
dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 25, no ponto em que Afirmando tratar-se de expressões sinônimas, veja-se TORRES, Ricar-
"
asseverou "que o problema grave de nosso tempo, com relação aos do Lobo. Direitos Humanos.", cit., p. 8 e seguintes, cuja posição é
'i.; direitos do homem não era mais o de fundamentá-los, e sim o de por nós adotada.
protegê-los". A questão da fundamentação permanece de suma rele- 38 Assim, por exemplo, BRESSER PEREIRA, op. cit., p. 158, in'vo-
vância, ganhando vulto a cada dia. Ad exemplum tantum, e em caráter cando o clássico ensaio de BERLIN, Isaiah. Quatro Ensaios sobre a
introdutivo, seja permitido remeter aos diversos estudos incluídos na Liberdade. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1981: "Essa distin-
150 151
---•..-
direitos fundamentais chamados "positivos" e direitos funda- tocar o caráter prestacional dos direitos respectivos. Este au-
mentais chamados "negativos" (para Berlin, liberdade positiva tor também opera com a importante diferença entre a liber-
e liberdadenegativa). dade de e"a liberdade para, que se constitui em instrumento
Não nos parece tenha a importantíssima construção de sobremodo útil para muitos autores43 no sentido de diferen-
Berlin a invocada precedência histórica39. Ademais, embora as ciar a liberdade em si mesma das condições necessárias para o
idéias de "positivo" e "negativo" desenvolvidas pelo autor seu exercício.
Assim é que, sob o prisma jurídico (mas não normativis-
sejam em alguma medida se~elhantes às referidas no presen-
ta), o presente estudo dirige-se à análise da classificação dos
te estudo, ou seja, digam respeito à relação entre a liberdade
direitos fundamentais formulada a partir da necessidade ou
e a autoridade, seu enfoque é bastante diverso, sendo antes de não de prestação positiva por parte do Estado para sua efeti-
natureza filosófica (ou mesmo política) que jurídica, desti- vaçã044, e que, por variadas razões históricas confunde-se, ao
. nando-se a estudar preferencialmente o conflito entre as duas menos em parte, com a tradicional divisão entre direitos fun-
mencionadas espécies de liberdades 40,sendo certo que, tendo damentais da liberdade e direitos fundamentais econômicos
sido escrito no auge da Guerra Fria (1958), constitui-se num ou sociais.
libelo em defesa da preponderância da liberdade negativ~ (em Mister ressaltar que a expressão "positivo", aqui utilizada
desfavor, portanto, da positiva)41. para qualificar os direitos, nada tem a ver com a fonte de onde
Ademais, no estudo referido Berlin não trata das presta- promanam os mesmos. Com efeito, também a expressão "po-
ções positivas do Estado. Em realidade, Betlin fala em liberda- sitivo" possui mais de um significado. Usualmente refere-se
de positiva no sentido de auto governo e participaçã042, sem ao direito positivo como sendo o conjunto de normas vigentes
em um determinado ordenamento. No presente estudo, por
outro lado, a referida expressão "positivo" refere direitos que
demandam prestação estatal.
ção, que na sua formulação contemporânea se deve a Isaiah Berlin
C ... )" .
39 Apesar da referência provir de autoridade, acreditamos que a dis-
tinção de BERLIN, além de inconfundível com a ora analisada, é 43 BERLIN, op. cit., p. 142. Entre nós, TORRES, Os Direitos Hu-
,'. também posterior Coque se confirma, por exemplo, a partir da refe- manos e a Tributação ...., cit., p. 129.
rência constante da nota 43). 44 Ninguém menos do que PONTES DE MIRANDA, Francisco Ca-
40 BERLIN, op. cit., p. 164. valcanti. Comentários à Constituição de 1946 ..Rio de Janeiro: Borsoi,
41 Neste sentido, HOLMES, Stephen & SUNSTEIN, Casso The Cost 1960, p. 277, assinalava a diferença pelo menos desde a Constitui'ção
of Rights. Cambridge: Harvard University Press, 1999, p. 239, nota Republicana brasileira de 1946. Assim: "direitos fundamentais positi-
3: "The dístinction between nega tive ríghts and positíve rights should vos e negativos. É de advertir-se, porém, em que, falando-se de direitos
not be confused with the similar-sounding distinction between nega tive fundamentais negativos e de direitos fundamentais positivos, não se
and positive líberty, popúlarized by Isaiah Berlin C...)". Criticando, alude ao conteúdo dos direitos subjetivos fundamentais, e sim à pre-
noutro passo, em parte, a construção de BERLIN, veja-se o mesmo tensão do Estado. É classificação que só atende a isso. C...) Quando
HOLMES, Stephen. "Las Regias Mordaza o la Política de Omisión". se distinguem direitos fundamentais positivos e direitos fundamentais
In: Constitucionalismo y Democracia. Mexico: Fondo de Cultura Eco- negativos apenas se alude ao papel do Estado na prestação C..);'; Com
nómica, 1999, p. 53-4. texto essencialmente igual, o mesmo autor nos Comentários à Cons-
42 Refere este sentido, entre nós, SILVA, José Afonso. Curso ... , cit., tituição de 1967 - com a Emenda nO 1 de 1969. São Paulo: Ed.
p." 235. Revista dos Tribunais, 1974, p. 661.
152 153
..,
•
Observe-se então, por importante, que o critério em que mentais que são de pronto exigíveis do Estado (ou do respec-
se baseia a citada classificação (positivo/ negativo) analisada tivo sujeito que ocupe o pólo passivo da relação jurídica de
funda-se no pressuposto de que existem direitos subjetivos direito público em questão) e os que não são sindicáveis ipso
cuja efetivação independe completamente da atuação positiva facto.
do, Estado, ou seja independe de qualquer prestação pública, Com efeito, à primeira vista, parece correto dizer que a
dai serem chamados direitos negativos (integrando na célebre conduta meramente omissiva é exigível de plano e ipso facto,
classificação de Georg J ellinek antes referida, um status nega- ao passo que a "ação positiva", também ao menos aparente-
tivo. do indivíduo frente ao Estado )45. mente, parece demandar análise prévia das possibilidades
Positivo e negativo aqui são expressões empregadas para reais ou materiais para sua execução.
qualificar a obrigação (ou o dever) correlata ao direito em De acordo com essa tipologia, serão puramente negativos,
questão, sobre saber se se trata de uma prestação facere ou por exemplo, os direitos de ir e vir e o direito de propriedade
- exemplo aliás, paradigmático, eis que o respeito pela pro-
non!acere, ~ncasu, a cargo do Estado, que via de regra ocupa
I priedade privada por parte do Estado e seus agentes dispensa
o. p~lo passIvo da relação jurídica que tem como objeto um
'I qualquer ação positiva, ao contrário, a repele. Com efeito, não
direito fundamental. A não turbação da propriedade privada
se exige uma prestação estatal positiva para que'seja possível
constitUi um non facere, uma obrigação negativa, ao passo que
o exercício destes direitos. Com fulcro no mesmo critério,
a entrega de merenda escolar configura um facere, uma obri-
serão positivos, por exemplo, os direitos à educação e à saúde,
gação positiva.
os quais não podem ser autonomamente exercidos pelos indi-
Não é ocioso remarcar que o principal juízo de valor que víduos de per se, demandando atuação estatal em forma de
p.esa sobre as classificações não versa sobre sua correção, mas prestação positiva' para sua efetivação.
sim sobre a sua utilidade. Realmente, em se tratando de um Esta talvez seja, realmente, a mais importante classifica-
objeto de valor científico meramente instrumental a "classi- ção dos direitos fundamentais, senão sob o aspecto dogmáti-
ficação" - e o respectivo critério subjacente - devem ser co, pelo aspecto prático (de sua utilidade) e sob a ótica da
avaliados, pressupondo-se por óbvio sua coerência interna efetividade46. Com efeito, a partir da classificação sub exami-
em vista de sua utilidade. '
nem, costuma-se até mesmo identificar uma linha histórica,
I i Neste sen.tido, tem-se esta classificação (positivo/negati- dita evolutiva, dos Estados e de suas constituições.
! vo) em especial como extremamente relevante e útil, pois a Com a ascensão do pensamento liberal (stricto sensu, na
partir dela parece possível discernir entre os direitos funda- Idade Moderna) de matriz individualista, o Estado, como
visto acima, passou a reconhecer como direitos subjetivos as
liberdades individuais, as quais, positivadas, constituíram di-
45 Fala JELLINEK, op. cit., p. 117, então, no status libertatis, que o reitos públicos subjetivos face ao Estado. Tais seriam os úni-
autor cheg~ a a~slmllar, para fins explicativos, à conformação dos cos direitos exigíveis do Estado, e que se constituiriam em
dueltos reaiS, cUJa observância está precisamente na ausência de tur- abstenções.
bação. por parte dos demais indivíduos: uNella stessa maniera come
ai dtrltto reale corrisponde il dovere puramente negativo da parte delle
person.e, che eventualmente si trovino in rapporto com colui che ne e
mv.estlto, d, non recargli moles tia, cosi alio status negativo corTisponde 46 V. BARROSO, op. cit., sobre a efetividade dos direitos constitu-
unamme analogo dovere da parte di turte le autorità (...)". cionalmente protegidos (rectius: prometidos).
154 155
Refere-se, então, à passagem de um Estado guarda-notur-
no, que funcionava na imagem célebre, como um algodão
11
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direitos positivos, consubstanciados na exigibilidade jurídica
(ou justiciabilidade, ou ainda sindicabilidade) de pre,stações
entre os cristais - o Estado Liberal, ao Estado Social47, que estatais positivas, daí porque falar-se que através dessa evolu-
longe da postura meramente omissiva, deve intervir nas rela- ção transita-se da simples pretensão de omissão para a proibi-
ções sociais com o escopo de realizar justiça social, efetuando ção de omissãoS1 .
por si ou por outrem (direta ou indiretamente) prestações
positivas de molde a - tomando por empréstimo a imagem 2.3. Evolução das idéias acerca dos direitos positivos e
que o Grande Jurista forjou a outro propósito - afeiçoar a negativos
realidade sensível, na medida do possível, àquilo que, segundo
o direito, ela deve ser. 2.3.1. Delimitação do objeto do capítulo: modelos de
O traço marcante desta evolução institucional é justamen- pensamento sobre direitos fundamentais
te o reconhecimento - tido, sob o prisma intelectual, como
herança dos movimentos socialistas e da própria doutrina Sem'embargo do grande interesse que essa evolução insti-
. social da Igreja, e que tem por marcos históricos institucionais tucional desperta, não nos importa neste momento a linha
a Constituição mexicana de 1917 e alemã de Weimar48 de evolutiva das instituições jurídicas (ou a história dos direitos
1919 - de determinados direitos econômicos e sociais; direi- do homemS2); de fato, interessa-nos por ora a evolução das
tos cuja observância depende de uma prestação positiva do idéias, a qual demanda outro tipo de análise histórica, diversa
Estado. .
daquela e fundada precipuamente na produção acadêmica e
Assim, enquanto o Estado do tipo 'Liberal' é referido
como aquele cuja constituição reconhece apenas direitos ne-
.
intelectual , cUJ'asobras se tornam por assim dizer os "fatos
históricos" sob análises3•
gativos (liberdades) - o caráter declaratório é estampado de Assim, tem-se por escopo aqui tão-somente apresentar
modo inconfundível na marca das Declarações de Direitos do um panorama - de traços simples, porém seguros - da
Ocidente49 - eis que apenas atestava .a existência de coisa concepção atualmente admitida acerca dos direitos funda-
anterior no sentido lógico e temporal, e prioritária no sentido mentais, enquanto sejam positivos ou negativos, e do processo
axiológicoSO, o Estado social e sua constituição reconhecem os intelectual que se seguiu até o presente momento. Cuida-se
47 Expressão que, aliás, dá título a importante obra de BONA VIDES, 51 PIOVESAN, Flávia. Proteção Judicial contra Omissões Legislati-
Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Malheiros, 1996. vas. São Paulo: E,d. Revista dos Tribunais, 1995, p. 29.
48 Consulte-se GUEDES, Marco Aurélio Peri. Estado e Ordem Eco- 52 Neste sentido, em vernáculo, COMPARATO, Fábio Konder. A
nômica e Social - a Experiência Constitucional da República de Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1999.
Weimar e a Constituição Brasileira de 1934. Rio de Janeiro: Renovar, 53 Para nos servirmos das expressões ao gosto dos ingleses, pode-se
1998.
afirmar que a primeira parte do presente estudo versa sobre a law in
49 Sobre as Declarações de Direitos, seu sincretismo e sua ambição the books e não sobre a law in action. V. HESP ANHA, Antómo
universalista, veja-se GOYARD-FABRE, Simone. Os Princípios Filo- Manuel. História das Instituições - Épocas Medieval e Histórica.
sóficos do Direito Político Moderno. São Paulo: Martins Fontes 1999 Coimbra: Almedina, 1982, p. II e seguintes, sobre a diferença entre
p. 329 e seguintes. ' ,
as várias perspectivas no estudo de cunho histórico - história das
50 SALDANHA, Nelson. "Liberdades Públicas ... ", cit., p. 39. instituições, das fontes, ou da dogmática jurídiCa".
156
157
de estudo de caráter instrumental, e que se destina a fundar Preliminarmente, é muito importante salientar que os
as bases para a demonstração' de que a obra posteriormente modelos teóricos (ou fases da dogmática jurídica) cuja.' evolu-
submetida a análise - The cast af rights - consubstancia um ção' busca-se estabelecer neste capítulo não se confundem de
momento de amadurecimento da concepção corrente acerca modo algum com a delimitação, já tradicionalmente referida
dos direitos. pelos autores, dos direitos fundamentais em fases ou gerações
O estudo que se segue, contudo, tem seu objeto restrito à históricas (houve ainda quem fale em gestações históricas).
produção de idéias tal como difundidas Brasil (rectius: a partir A tradicional formulação geracional apresenta alguma uti-
da produção de autores brasileiros) nos últimos quarenta anos lidade para compreensão dos fenômenos em questão, embora
aproximadamente (fazendo-se referência às fontes estrangei-
suscite hoje muitas cautelas55, pois, como também sói aconte-
ras apenas quando seja indispensável), e mesmo assim, as
cer com as construções dogmáticas, os vários autores - mui-
citações são meramente ilustrativas, estando longe dos esco-
tos deles no .afã de inusitada originalidade (que neste caso
pos do autor, e mais ainda de suas possibilidades reais, elabo-
rar a história circunstanciada das idéias jurídicas no País sobre também padece do vício da inutilidade) - atribuem conteú-
os direitos fundamentais. Assim, o objetivo do capítulo é dos diversos às várias gerações, acerca das quais não há unifor-
apenas inventariar algumas teorias mais influentes, de molde midade sequer quanto ao número (três, quatro ou cinco?). Na
a evidenciar as tendências e idéias dominantes. Este escopo medida em que a linguagem não seja unívoca, torna-se perigo-
justifica as múltiplas citações efetuadas, algumas vezes longas, sa à ciência a sua utilização. O de que se há mister em ciência
sempre em pé de página, indispensáveis, contudo, para a de- - em especial do Direito - é a precisão terminológica.
mon,stração das idéias aludidas no texto, e de sua evolução. Atribui-se a construção original a T.H. Marsha1l56. Este
E nestas circunstâncias que nos parece importante evi- autor, Professot Emérito de Sociologia da Universidade de
denciar a evolução ocorrida até que se chegasse à presente Londres, estudando o desenvolvimento da cidadania na Ingla-
fase. A observação permite-nos condensar em cinco momen-
tos diversos a evolução das concepções acerca dos direitos
tendo em vista a aludida tipologia pOSitivo/negativo. 55 Observa CELSO MELLO, op. cit., p. 43, o internacionalista, que
Por evidente, não se trata de compartimentalização em no âmbito do Direito Internacional, a primeira geração dos direitos
modelos teóricos puros ou fases estanques, precisamente de- fundamentais é constituída pelos direitos sociais (cujo marco hist6rico
marcadas em quadras históricas. Ao revés, tem-se aqui um de reconhecimento na seara internacional é a criação da OIT - Or-
simples esforço de identificação de tendências dominantes ganização Internacional do Trabalho em 1919), ao contrário do ?ireito
a: quais, como sói ocorrer no seio da produção intelectua( Interno, em que integram a segunda ou mesmo terceIra geraçao.
sao marcadas antes pela predominância do que pela exclusivi- 56 Trata-se do livro Sociology at the crossroads and other essays; há
dade54. tradução para o vernáculo intitulada Cidadania, Classe Social e Status.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, onde indica-se a data da obra
original: 1963. BRESSER PEREIRA, op. cit., p. 152, dos poucos autores
que adota a genealogia de MARSHALL, indica outro livro daquele
54 Embora em referência a movimentos hist6ricos de longa duração, autor - Citzenship and Social Class, segundo ele, originalmente pu-
é aplicável aqui a explicação de HESPANHA, História das Institui- blicado em 1950; livro este a que, contudo, ainda não tivemos acesso,
ções ... , cit., p. 37, de que a periodização é, antes que urna divisão tornando materialmente impossível a referência. Ainda sobre MARS-
meramente arbitrária, urna necessidade interna da própria historiogra- HALL, confira-se a síntese de ESPADA, João Carlos. Direitos Sociais
fia. da Cidadania. São Paulo: Massao Ohno, 1999, p. 16 e seguintes.
158 159
,
II
.:1
I
terra, dividiu-a em três elementos, o civil, o político e o ss)(ial, direitos de titularidade coletiva ao meio ambiente saudável e
~ e buscou estabelecer as fases em que surgiram os respectivos ao desenvolvimento. .
}
I ji
direitos na prática político-jurídica inglesa. Os autores brasi- A aludida classificação foi ampliada por alguns e modifica-
160 161
~ 1
( ,
I
gerações aludidas (e até mesmo fora do Brasil63), tornando a o tema é realmente de extrema atualidade e suma impor-
utilização da nomenclatura, acaso desacompanhada dos devi- tância. Por mais não fosse, abstraindo-se de sua relevância
dos esclarecimentos, muito pouco informativa, e, portanto, prática, o porte dos autores que se dedicam a ele já demons-
desaconselhável em sede científica. traria seu relevo teórico. De outro lado, nada OCiOSOsalientar
De toda sorte, saliente-se que os modelos ou fases que se 'que se trata de posições - acerca da positividade e mesm~ a
tenciona estabelecer neste trabalho não se confundem com a propósito das gerações antes cit~~as -, ademal,s,. tambem
referida formulação geracional, já que observam critérios di- expressamente reconhecidas e utilizadas pelo EgreglO Supre-
:,'
i, versos (sendo oportuno ressalvar, contudo, que tais critérios mo Tribunal Federal64.
não são meramente tangentes, senão secantes mesmo). Repi- Demonstrado o interesse superlativo no tema em análise,
:\ ta-se: trata-se de inventário de idéias acerca da positividade e com as aludidas ressalvas, procuramos estabelecer cinco
modelos teóricos (que talvez possam ser caracte~izados como
dos direitos fundamentais, e não de história institucional dos
6
próprios direitos fundamentais. fases de uma evolução dogmática ou conceituaI '), a saber:
't Todavia, deve-se de logo ressalvar, na medida em que a (I) modelo teórico da indiferença: o caráter positivo da
\ diferença entre os direitos de liberdade e os direitos econômi- prestação estatal e o respectivo custo são absolutamente mdl-
cos e sociais repousa justamente na positividade destes últi- ferentes ao pensamento jurídico.
mos, que os resultados finais da avaliação que se leva a cabo (II) modelo teórico do reconhecimento:. a produç~o inte-
acerca dos direitos positivos e negativos farão descortinar um lectual funda-se no reconhecimento institUCIOnal de direitos a
equívoco amparado também naquelas classificações geracio- prestações (ditos sociais), o que implica reconhec~r. ~i~eitos
nais (embora sob o prisma institucional a idéia de gerações positivos; ao mesmo tempo afasta-se a pronta eXigibilidade
I'
I persista válida). desses novOS direitos.
E mais, a discussão desenvolvida acerca da positividade (UI) modelo teórico da utopia: a crí~ica ideológi~a e a
dos direitos (especialmente dos direitos fundamentais) busca crença em despesas sem limite iguala direitos negativos e
demonstrar que novas luzes iluminam essa temática, com
amplos e profundos reflexos sobre as complicadas e sempre
atuais questões em torno da sindicabilidade dos direitos fun-
64 Multiplicam-se os exemplos. Ad exemplum tantum, veja-se a de-
damentais (em especial dos sociais). cisão proferida no julgamento, pelo Tribunal Pleno, do .Mandado de
Segurança 22164/SP, de que foi Relator o emmente Mmlstro Celso
de Mello (publicado no Dl, Parte r, de}. 7. r r .1995: p. 3:'206), o qual
RATO, op. cit., p. 52, empresta sua autoridade ao entendimento de faz referência inclusive a uma nota de mexaunblhdade dos direitos
que a solidariedade é o fundamento dos direitos sociais - geralmente de terceira geração (ditos direitos de solidariedade).
indicados como de segunda geração -, ao contrário dos que entendem 65 A expressão "fases" pode conduzir à conclusão de que se trata ~e
tratar-se do fundamento referente à terceira. geração, conforme su- idéias que se substituem ao longo do tempo, o que certamente nao
pra-indicado. ocorre e é extensamente demonstrado pelas referências a muitas obras
63 CANOTrLHO, op. cit., p. 362, que inclui os chamados direitos e auto;es contemporâneos, razão pela qual preferimos utilizar o termo
sociais na terceira geração (ou dimensão), e fala em uma quarta ge- "modelos teóricos", embora desejemos salientar q:,e tratamo-las (as
ração, que seria integrada pelos direitos dos povos ou da humanidade idéias) efetivamente como fruto de uma evoluçao, na medida do
(e.g. direito de autodeterminação, direito ao desenvolvimento, etc.). possível, igualmente retratada no texto.
162 163
!, I
positivos, a positividade dos direitos sociais permanece reco- Salvo melho~ juízo, é possível afirmar que a pr?dução
nhecida, mas o elemento custo é desprezado. acadêmica nacional de que se trata neste estudo não alcança
(IV) modelo teórico da verificação da limitação dos recur- este momento histórico, ingressando no debate quando este
sos: o custo assume caráter fundamental, de tal arte que, modelo já se encontrava praticamente superado, encontrando
mantida a tipologia positivo/negativo, tem-se a efetividade eco apenas pela voz de célebres autores europeus cujas obras
dos direitos sociais como sendo dependente da reserva do traduzidas67 desfrutaram de grande prestígio e colheram gran-
possível. de influência. Constitui curioso hábito nacional que as tradu-
M a superação dos modelos anteriores: tem-se por supe- ções cheguem ao idioma quando as respectivas idéias já foram
rada essa tradicional tipologia positivo/negativo dos direitos superadas - à guisa de exemplo relembrem-se os nefastos
fundamentais. efeitos que a recepção tardia das idéias de Kelsen causou à
Vejamo-los com maior detenção. produção intelectual pátria. Sem embargo, faz-se aqui a refe-
rência com o fito de demarcar o momento anterior àqueles de
2.3.2. O modelo teórico da indiferença que efetivamente nos ocupamos.
sitivas para efetivação de direitos públicos subjetivos, ou so- boa medida devido à tradução para a língua portuguesa de suas obras
- a produção científica nacional, exprimia o pensamento referido no
bre a relevância do conteúdo econômico dos direitos indivi- texto de forma enfática, in verbis: "Mas é verdade também que grande
duais, de sorte que a intervenção estatal no domínio econômi- parte das normas jurídicas se refere a relações sem qualquer conteúdo
co privado era não apenas evitada, mas repudiada: econômico - por exemplo, os direitos fundamentais". A referência
é antes uma homenagem do que uma crítica ao autor, que fazia questão
de expressar seu apreço pelo Brasil. Embora a ciência evolua, não se
pode menosprezar a contribuição daqueles que estabeleceram pilares
66 Quanto ao tema, confira-se, em termos sintéticos, FASSÓ, op. cito sólidos para que ela pudesse avançar.
164 165
~.
~--------_.•....--- 4
Evolui-se para a especificação da positividade. Assim, sem 2.3.4. Modelo teórico da utopia
embargo, pode-se dizer que este é o momento ou modelo
dogmático em que se remarca éonceitualmente a essencial
Acredita-se que a diferença entre os direitos fundamen-
diferença entre os direitos fundamentais, classificando-se- tais sociais (e econômicos) e os individuais é meramente ideo-
lhes a partir da distinção72 entre positivos ou negativos, con-
lógica. Em sentido correlato, há vigência de um normativismo
forme demandem ou não uma atuação positiva, em verdade, estrito, isolando os juristas, os quais cultuam a crença de que
uma prestação por parte do Estado73.
as soluções para os problemas da vida são passíveis de ser
encontradas no plano normativo.
Optou-se por chamar utópica esta fase, porque a influên-
Ordem Social na Constituição de 1967". In: CAVALCANTI, The-
místocles Brandão (Org.). Estudos sobre a Constituição de 1967. Rio
cia da doutrina econômica keynesiana74 - fundada na pre-
de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1968, p. 179: "O que, por outro missa de que o déficit orçamentário público é uma imposição
lado, distingue os direitos sociais da antiga declaração dos direitos do da necessidade da atuação governamental eficiente - justifi-
homem e do cidadão é o fato da verdadeira oposição de base conceitual. ca.a crença no meio acadêmico, que ao nOsso ver beira a
Estes segundos são limitativos dos poderes do Estado, limitam-lhe o utopia, na ausência de limites às prestações públicas (na prá-
arbítrio, cercando-o de certas liberdades e franquias dos indivíduos tica, quase sempre ignorada pelos téoricos, sem o correspecti-
como cidadãos isolados. São direitos de caráter negativista, em relação vo ingresso fiscal, ainda que este também, por sua vez, seja
aos poderes públicos, fiéis ao próprio espírito individualista das revolu-
elevado ad absurdum); e são estas prestações que propria-
ções dos fins do século XVIII. Os primeiros - direitos sociais - são
garantias positivas, inscritas no texto constitucional, em favor dos mente caracterizam o Estado Social (Sozialstaat tedesco) ou
grupos sociais, da sociedade e de suas manifestações. O papel do do Bem-estar social (na expressão 'americana - Welfare Sta-
Estado aqui não é negativista, de absenteísmo, de omissão; pelo con- tefs.
trário, manifesta-se concretamente, intervindo em favor de certas
realizações materiais ou culturais. O seu papel é ativo, e não mais
passivo, de mero espectador. Tudo isso acompanhou o próprio desen-
ESMEIN, A. Élements de Droit Constitutionnel. Paris: Librairie de la
volvimento da legislação social ordinária, rompendo com o tradicional
Société du Recueil Géneral des Lois et des Arrêts, 1899, p. 353: "Os
individualismo jurídico, egoísta, regulado simplesmente pelas normas
direitos individuais apresentam todos uma característica comum: li-
do direito civil. Pela nova realidade econômico-social, já com medidas
mitam os direitos do Estado mas não lhe impõem qualquer obrigação
concretas de intervenção estatal, somente faltava dar mais um passo
positiva, qualquer contraprestação em favor dos cidadãos".
para atingir a esfera mais elevada da constitucionalização daquela
74 Baseada na obra do economista JOHN MAYNARD KEYNES. O
legislação. "
"déficit" tornou-se uma das notas marcantes de sua obra: "Restava
72 Também neste sentido as observações de GOMES, Orlando. "Di-
[segundo Keynes] apenas um, e um só, curso de ação: a intervenção
reitos ao Bem-Estar Social". In: Anais da Conferência Nacional da
do governo para aumentar o nível dos gastos em investimentos -
Ordem dos Advogados do Brasil. Rio de Janeiro: OAB, 1974, p. 221:
empréstimos e verbas governamentais para finalidades públicas. Ou
"Quanto aos direitos sociais, os preceitos constitucionais que os de-
seja, um déficit intencional"; (GALBRAITH, John Kenneth. O Pen-
claram se distinguem porque impõem deveres ao Estado".
samento Econômico em Perspectiva - uma História Crítica. São Paulo:
73 Neste viés a observação clara de GALVÃO, Paulo Braga. Os Di- Pioneira/EDUSP, 1989, p. 211).
reitos Sociais nas Constituições. São Paulo: Companhia das Letras,
75 Embora sejam raras as referências na literatura especificamente
1981, p. 13: "Neste ponto já se pode fixar a distinção básica entre os
jurídica, confirâ-se o relato autorizado de TORRES, Ricardo Lobo, O
direitos individuais e os que posteriormente seriam chamados sociais,
Orçamento na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 11 et
para o que recorremos à lição de um constitucionalista do século XIX:
passim, (obra que contém ainda amplo acervo bibliográfico).
168
169
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Essa premissa acima referida - da "inesgotabilidade" dos Assim, nessa fase, a crítica da doutrina mais autorizada
recursos públicos -, via de regra não se mostra clara nos dirige-se ao fato de atribuir-se efetividade máxima aos direi-
textos jurídicos, que, aliás, não se preocupam com os pressu- tos individuais e mínima aos direitos sociais76 (rectius: às nor-
pos:os de natureza econômica, mas podem ser tidas por im- mas constitucionais respectivas).
plICitamente reconhecidas, dadas as conclusões obtidas. Com efeito, afastada qualquer barreira de natureza eco-
~estes termos, supostamente afastados quaisquer óbices nômica - observam autores respeitáveis - não há diferença,
economlC~s, grassou livre a crítica ideológica da distinção senão ideológica, entre os direitos sociais e os individuais,
entre direitos positivos e negativos. Mais precisamente na desfrutando todos eles, dês que previstos na Constituição, da
verdade, nã~ se negava propriamente a mencionada disti~ção mesma estatura, sendó, portanto, igualmente acionáveis ou
- ~econ~e.Cla-seque determinados direitos demandam pres- sindicáveis judicialmente77. Importante observar que não tra-
taçao positiva e outros conduta meramente omissiva. Negava- tam os autores de afastar a diferença entre os direitos positi-
se apenas sua relevância. Com efeito, na medida em que "os vos e os negativos, inclusive expressamente reconhecida pelos
recursos não faltariam", a distinção seria absolutamente irre- mesmos, mas sim, desconsiderando quaisquer aspectos eco-
nômicos (custos) ou de outra natureza qualquer, diferente da
levante sob o prisma prático, que é o que realmente importa.
normativa, assinalar a sua acionabilidade (ou justiciabilidade)
De outro lado ~é preciso salientar que o País respirava (e,
plena, notadamente dos direitos sociais, em tudo idêntica à
de ~erto modo, amda respira) o normativismo. A recepção
.: dos direitos da liberdade.
tardia, e porque ~ão dizê-lo, anacrônica, das idéias originais de
J:Ians Kelsen, otl~l::ada pelo status político autoritário expe- Note-se ainda, por oportuno, que fazemos referência nes-
nmentado pela_hlstona recente do País, permite a redução de te passo apenas a um grupo de autores havidos como de
todas as questoes,. ao, menos no seio da produção jurídica, à
norm~ (em especial a regra positivada). Sob este prisma, a
questao que se coloca para o operador jurídico é a de saber se 76 Neste sentido, BONAVIDES, Curso ... , cit., p. 518. Este justa-
uma n~rma prevê_ou n~o um determinado direito, e em que mente celebrado Professor reduz ao plano normativo a questáo, abs-
extensao. A soluça0 alVitrada pelo aludido operador não ultra- traindo da problemática envolvendo a exigüidade de recursos .para
passa o plano normativo, o que conduz, muitas vezes à elabo- implementação dos direitos sociais: "( ...) passaram por um ciclo de
ração de "soluções" injustas ou incondizentes com a ;ealidade baixa normatividade (...) em virtude de sua própria natureza de direitos
concreta. que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre
resgatáveis por exigüidade, carência ou limitação essencial' de meios
Interessa ~alientar também, no plano conceitual, que os ou recursos. (...) Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e
custos fmanceiros são vistos aqui como absolutamente exter- execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constitui-
nos ao conceito do direito, de tal sorte que o reconhecimento ções, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade
dos direitos ~ubjetivos fundamentais precede e independe de imediata dos direitos fundamentais".
qualquer analIse relaclOnada às possibilidades reais de sua 77 Neste exato sentido, ad exemplum, a opinião de FLÁVIA PIOVE-
con:retização (reetius: efetivação). Em síntese: o conceito e a SAN, Direitos Humanos ... , cit., p. 198, que enuncia em termos pe-
efJcaClados direitos subjetivos especificamente considerados remptórios a sua posição: "Acredita-se que a idéia da não acionabili-
dade dos direitos sociais é meramente ideológica e não científica".
(v.g. di:eito à educação) são analisados em vista dos textos
Alhures, e.g., PECES-BARBA MARTINEZ, Gregorio. "Los Derechos
normativos, se~ qualquer consideração concernente às possi- Económicos, Sociales e Culturales: su Génesis y su Concepto". De-
bihdades de reais de efetivação. rechos y Libertades 6: 27, 1998.
170 171
vanguarda e que utilizam a norma para conferir eficácia irres- 2.3.5. Modelo teórico da verificação da limitação dQ~
trita aos direitos, ou seja, abstraindo daqueles que usam a .recursos
mesma construção redutora e normativista para retirar a efi-
cácia (e/ou a efetividade) de alguns ou todos os direitos fun- A verificação de que os recursoS financeiros estatais são
damentais sociais78• A mesma água que serve ao leite, acolhe limitados revigora sobremaneira o interesse na distinção entre
o veneno. os direitos fundamentais positivos e negativos, atribuindo-lhe
É preciso fazer justiça, então, e reconhecer que as mesmo maior relevância.
formulações originais acerca da eficácia e da força normativa Neste modelo, volta a ser relevante a existência de uma
das previsões constitucionais surgem justamente com o esco- diferença essencial entre os direitos fundamentais negativos
po de tornar realidade as referidas previsões, antes vistas (via de regra indicados como direitos individuais e políticos) e
como mero ideário de princípios morais79. A ressalva é impor- os positivos (usualmente referidos como direitos sociais), no-
tante, pois aqueles autores e suas obras, enfrentando com tadamente no que concerne à sua eficácia.
coragem momento político adverso, produziram a discussão A própria nomenclatura utilizada pelos vários autores que
que se mostrava possível, muitas vezes com o sacrifício da tratam dessa temática espelha a diferença aludida. Não sem
própria liberdade. O difícil equilíbrio entre o que é necessário sentido são utilizadas as expressões direitos de defesa8! (Ab-
e o que é possível. Mas a ressalva não retira , contudo ., a wehrrechte, na formulação alemã) para referir as liberdades
validade da observação de que se trata de orientação que puramente negativas (com as especificações que se fará a
consagra redução normativista e de que a mesma resta supe- seguir), e direitos de crédit082 ou de prestaçã083 (para referir
rada, não constituindo senão uma (importante) etapa da evo- os direitos sociais). . ..
lução que se tenciona narrar. A (invocada) superação dos paradigmas keynesianos (ao
menos dos originais) conduz à revisão das despesas públicas
Feitas essas observações, então, o que nos importa é gizar
deficitárias, sustentando-se que as mesmas devem limitar-se à
a absoluta indiferença com que a positividade e o respectivo
receita do Estado. Tem-se o equilíbrio orçamentário como
custo das prestação estatais é tratada pelos autores (e obras)
objetivo a ser alcançado. Não desaparece propriamente o Es-
que se situam neste modelo dito utópico.8o
tado Social, mas renova-se, e influenciado pelo "liberalismo
social", limita-se, transmudando-senaquilo que Ricardo Lobo
Torres usa chamar Estado Social Fiscal (em tudo preferível à
78 Como denuncia FARIA, José Eduardo. Direito e Economia na
expressão Estado de prestação - Leistungstaat, consoante
Democratização Brasileira. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 8I: "As averbam os autores alemães). 84
normas programáticas são utilizadas,.deste modo, para acomodar situa-
ções, contemporizar conflitos entre interesses excludentes e acobertar
acordos".
81 SARLET, op. cit., p. 259.
79 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucio- 82 LAFER, op. cit., p. 130; C LEVE, Clemerson. "Sobre os Direitos
nais. São Paulo: Malheiros, 1998 Veja-se também BARROSO, op. do Homem". In: Temas de Direito Constitucional. São Paulo: Ed.
cU., p. 103, com amplas referências bibliográficas. Acadêmica, 1993,p. 125.
80 Neste viés, além dos autores anteriormente citados vide MELLO 83 CANOTILHO, op. cit., p. 362. .
op. cit., p. 33-34. . ' , 84 Ainda uma vez a síntese segura de RICARDO LOBO TORRES,
172 173
Assim sendo, a realidade finalmente projeta raios de luz ção negativa,87 verbi gratia, no sentido de impedir o legislador
sobre o antes hermeticamente fechado pensamento jurídico e. de adotar medidas que sejam .contrárias a determinado pro-
seu produto, o "mundo jurídico". O operador jurídico, ainda grama estabelecido na Constituição, ou ainda permitindo o
sem conseguir incluir de todo a realidade em seu espectro de reconhecimento de sua nulidade, acaso sejam efetivamente
considerações, passa a ter em conta ao menos as impossibili- adotadas.
dades materiais das prestações públicas, ainda que os direitos Este reconhecimento se dá em vários níveis, e com graus
a tais prestações estejam expressamente previstos no texto variados de valorização das normas positivadas (ou regras) na
constitucional e, nesta qualidade, sejam objeto de reconheci- Constituição (daí falarmos em orientação "normativista").
mento em sede jurisdicional. 85 Os autores salientam que se deve extrair o conteúdo dos
É preciso observar que esse modelo de pensamento conti- direitos das regras constitucionais, conforme a respectiva
nua seguindo, muita vez, uma orientação predominantemente "densidade normativa". Ou seja, partindo da idéia de que a
"normativista" (e, portanto, redutora). Apenas passa-se a "ad- regra positivada (reetius: constitucionalmente positivada),
mitir", e não poderia ser de outro modo, que a impossibilida- desde que preveja a prestação (o objetivo) e os respectivos
de material faz com que a dicção normativa seja um pouco meios de consecução, e atribua uni direito subjetivo ao indiví-
mais do que "o nada" sob o prisma prático, sem prejuízo do duo (ou mesmo à coletividade, na hipótese dos direitos difu-
reconhecimento de seu caráter programático, fruto de sua sos ou coletivos), cria uma situação jurídica sindicável pelo
inegável dimensão prospectiva,86 e da otimização de sua fun- indivíduo, e, diante desta situação inteiramente configurada,
têm-se as reservas materiais - i.e. as possibilidades econômi-
cas e financeiras, como único limite à efetivação dos direi-
o Orçamento ... , cit., p. 15: "Mas a verdade é que o modelo do Estado toS.88 É comum dizer-se que a efetivação dos direitos econô-
Social não desaparece totalmente. Passa por modificações importantes,
com a diminuição do seu tamanho e a restrição ao seu intervencio-
nismo. Deixa-se influenciar pelas idéias do liberalismo social, que se
" não confundem com as do neoliberalismo ou do protoliberalismo nem, 87 Discorrendo detalhadamente sobre os efeitos das normas progra-
I por outro lado, com as da social-democracia. Continua ser Estado máticas, confira-se a síntese conclusiva de BARROSO, op. cit., p.
Social Fiscal, podado em seus excessos, ao fito de obter a síntese 117-118.
'I entre o que os alemães chamam de Estado de Impostos CS,teuerstaat)
e Estado de Prestações CLeistungstaat)".
88 Assim em BARROSO, op. cit., p. 111: "C ... ) os limites econômicos
!, derivam do fato de que certas prestações hão de situar-se dentro da
85 Sobre o ponto, em especial acerca da exaustão da capacidade "reserva do possível" CP. 107). E ainda: "Fique bem clara a posição
orçamentária, entendida como "a situação que se manifesta quando que adotamos: direito é direito e, ao ângulo subjetivo, ele designa uma
inexistem recursos suficientes para que a administração possa cumprir específica posição jurídica. Não pode o Poder Judiciário negar-lhe a
determinada ou determinadas decisões judiciais", veja-se como de tutela, quando requerida, sob o fundamento de ser um direito não
hábito excelente parecer de GRAU, Eros. "Despesa Pública - Con- exigível. Juridicamente, isso não existe. Tampouco poderá invocar a
flito entre Princípios e Eficácia das Regras Jurídicas - o Princípio da nao-imperatividade ou ausência de caráter jurídico da norma que o
Sujeição da Administração às Decisões do Poder Judiciário e o Prin- confere. Já demonstramos o desacerto desse ponto de vista Cv. supra,
cípio da Legalidade da Despesa Pública". Revista dos Tribunais. Ca- capoIV, item 1). Logo, somente poderá o juiz negar-lhe o cumprimento
I
! derno de Direito Público e Ciência Política 2: 144. coercitivo, no caso de impossibilidade material evidente e demonstrá-
86 Sobre as normas programáticas, JOSÉ AFONSO DA SILVA, Apli- vel, pela utilização de uma interpretação sistemática influenciada pela
cabilidade ... , cit., p. 135 e seguintes. teoria geral do Direito".
174 175
micos e socIaIs - POSItIVOS por excelência - depende da Ou seja, usa-se afirmar que uma pessoa tem direito - na
"reserva do possível".89 verdade inúmeros direitos - a determinadas prestações
Nesta linha de orientação, tem-se como principal parâme- independentemente da mínima verificação das possibilidades
tro para aferição da existência de direitos a pura regra positi- materiais de consecução da mesma. Em verdade, de acordo
vada, sem ter na perspectiva imediata o seu conteúdo, ou, com a análise jurídica tradicional, o reconhecimento da exis-
mais importante, a sua essência. Ademais, neste modelo, os tência de um direito subjetivo é um prius em relação a qual-
custos dos direitos assumem feição meramente limitativa (ne- quer verificação de suas possibilidades reais de 'consecução, o
gativa J. Não que haja nesse modo de ver as coisas um equívo- que, como se verá no momento oportuno, embora acarrete
co. Mas somos de sustentar que esta perspectiva reduz as diversas vantagens, implica também conseqüências extrema-
potencialidades que a correta compreensão dos custos faculta mente desvantajosas.
ao pensamento jurídico. Impende gizar, ainda de acordo com esta linha de orienta-
De fato, é muito comum a construção que refere os cus- ção, que os direitos tipicamente individuais (ou da liberdade,
tos econômicos e financeiros como meros óbices à observân- que integram o status negativus91 J rião são atingidos pelas
cia dos direitos fundamentais que demandam prestação esta- limitações econômicas, pois configuram condutas de pura
abstenção por parte do Estado (daí, frise-se ainda uma vez,
tal positiva (direitos econômicos ou sociais). No terreno do
serem indicados tais direitos como negativos J, independendo
acesso à justiça, apenas para exemplificar com um tema can-
completamente dos recursos estatais, e portanto, daquela alu-
dente, esta característica merámente limitativa dos custos em
dida "reserva do possível"92. Em realidade, na medida em que
relação ao exercício dos direitos é realçada sobremodo.90
a abstenção supostamente não "custa nada", a proteção e a
Essa caracterização dos custos econômicos e financeiros tutela dos direitos da liberdade (ou pelo menos dos direitos
como meros óbices à efetivação dos direitos fundamentais de defesa) não encontra limites econômicos ou financeiros
permite observar que, para esses autores, as condições reais nas reservas.
de efetividade da prestação relativa ao direito são externas ao Este viés de orientação possui, ao menos, a vantagem de
conceito do direito fundamental (enquanto direito subjeti- retirar a discussão do plano predominantemente ideológico
vo). que a dominava no modelo antecedente, e consoante o qual,
176 177
I~~~~~~~~~~~~~~~~~~----~Q"--~-
como salientado, o problema da positividade (frise-se: da Cuida-se, a rigor, na prática, de prestações positivas que
existência ou não de uma prestação estatal correlata ao direito integram o círculo dos direitos fundamentais sociais antes
em questão) era irrelevante, além de ignorar-se o prisma eco- referidos, mas com eles, em princípio, não se confundem. Em
nômico das questões. verdade, cuida-se de reconhecer como direito fundamental a
De um modo mais sofisticado, há autores que acentuam a uma parcela daquelas prestações positivas (sociais) que sejam
profundidade da discussão fundada no reconhecimento das consideradas efetivamente indispensáveis para a vida com mÍ-
limitações materiais às prestações. Assim, mantendo o para- nima dignidade e bem assim para o exercício dos direitos da
digma positivo/negativo, e mesmo diante da ausência de dis- liberdade (estes sim verdadeiramente fundamentais), como
positivo constitucional expresso - um passo importante para sejam a alimentação, o vestimento, o teto (moradia) a educa-
a superação do normativismo quase "radical" que se vem de ção básica et coetera97. Seriam, assim, condições (ou pré-
cuidar -, sustentam alguns haver direito subjetivo funda- condições) da liberdade98 (rectius: do exercício da liberdade).
mental a determinadas prestações positivas que integrem o Por evidente, há o reconhecimento, explícito ou mesmo
mínimo existencia193, entendido como o conjunto de condi- implícito, de que também as prestações públicas que inte-
ções mínimas de existência humana digna94, derivado, portan- gram o mínimo existencial encontram-se sujeitas aos recursos
to, do princípio da dignidade da pessoa humana, sedes mate- econômicos e financeiros disponíveis no momento, salientan-
riae de toda a discussão moderna sobre os direitos fundamen- do-se apenas, contudo, que tais prestações devem receber
tais95. É interessante notar que a posição em tela é dada por tratamento preferencial em relação às que não ostentem tal
alguns como "essencialmente correta", e sequer chega ser caráter.
questionada96 .
I
I
i
Ainda neste último ponto de 'sofisticação teórica', desta-
ca-se a orientação daqueles que reconhecem que nem todos
178 179
1-----------------4~------------
;
I I
,
os direitos da liberdade têm a mesma natureza puramente dam prestação estatal (dita em sentido amplo), parece haver
negativa, e observam a existência de direitos, tidos tradicio- um pequeno retrocesso em considerar-se: (a) que alguns.di-
nalmente como negativos tout court, que demandam presta- .
reltos - possuem nen h um cara't er pres t'aClOna1101 ( sen d o
nao
ção estatal marcadamente positiva. E o fazem normalmente a assim, em conclusão, puramente negativos), e, (b) que as
partir da diferenciação entre 'direitos de defesa' e 'direitos de prestações referentes aos direitos de proteção seriam funda-
proteção', de indisfarçável inspiração tedesca e cuja sistema- mentalmente normativas e assim, não-fáticas102. De acordo
tização é tributada a Robert Alexy99, o qual reconhece direitos com o mesmo entendimento, somente (ou quase somente) os
a prestações em sentido amplo (onde se inserem os direitos direitos a prestações em sentido estrito, identificados com os
de proteção) e em sentido ~strito, sendo certo que estes direitos fundamentais sociais103, demandariam as chamadas
últimos se confundem com os direitos fundamentais sociais. prestações fáticas.
Os direitos de defesa seriam puramente negativos, de- Uma observação necessária. Esta última orientação que se
mandando tão-somente o absenteísmo estatal. Os direitos de vem de referir assenta-se na diferenciação entre prestações
proteção permitiriam ao respetivo titular exigir determinada fáticas e não-fáticas (que seriam as prestações normativas) 104,
prestação, notadamente no sentido de exigir do Estado prote- a quat como se verá no item seguinte, não se justifica. E
ção em face de ingerências de terceiros. Eventualmente seria assim, sendo equivocada a premissa - o critério em que se
o caso de falar-se de uma duplicidade de faces ou de um baseia a classificação, também se mostra equivocada respecti-
caráter bifronte, pois o mesmo título (o mesmo direito) exige va conclusão.
a um só tempo a abstenção e a prestação. Bom exemplo é o do De toda sorte, e, no que realmente nos importa aqui, para
direito de posse (na expressão famosa, o guardião do direito este modelo teórico, fica mantida em essência a tipologia
de propriedade) que exige não apenas a não-intervenção do positivo/negativo (na pior das hipóteses, em relação aos direi-
Estado, mas também a tutela positiva, no sentido de impedir tos de defesa antes referidos).
a turbação ou o esbulho por parte de outrem, seja um ente Deste modo, tem-se que a referida "reserva do possível"
estatal, seja um terceiro privadoloo, no mínimo através da funciona como limite tão-somente em relação às prestações
edição de um sistema de regras protetivas positivadas.
estatais positivas (usualmente referentes aos direitos funda-
Sem embargo do passo adiante que representa o reconhe- mentais sociais10S). Os direitos da liberdade, tidos como me-
cimento de que tais direitos (da liberdade) também deman-
99 ALEXY, op. cit., p. 435 e seguintes, e p. 441. Entre nós, além de 101Verbi gratia, SARLET, op. cit., p. 163: "( ..) embora não resulte
INGO WOLFGANG SARLET, op. cit., aderindo expressamente à suficientemente explicitada a dimensão prestacional dos direitos e
posiç.ão de ALEXY acerca dos direitos a ações negativas e a ações liberdades políticas".
POSItIvas, confira-se BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da 10zId., ibid., p. 191, fala que os direitos à prestação em sentido amplo
ProporclOnalrdade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Res- abrangem "todas as posições fundamentais prestacionais não-fáticas".
tritivas de Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 103Id., ibid., p. 198.
136 e seguintes. 104Originariamente devida a ROBERT ALEXY, op. cit., p. 194.
100Neste sentido, SARLET, op. cit., p. 190 e seguintes (exemplo do 105Na verdade, o autor de que se vem de trátar, RICARDO LOBO
dIreIto de propriedade na p. 192). Este autor reconhece haver uma TORRES, Os Direitos Humanos ... , cit., p. 12 e 135-6, não reconhece,
"íntima interpenetração" entre as duas categorias referidas (p. 191). senão na parcela que integra o mínimo existencial, o caráter "funda-
ii
180 181 i
I
I
ramente negativos (ou demandando apenas prestações não- zidas. Busca-se também, como anunciado, apresentar as im-
fáticas), podem assim ser integralmente garantidos e efetiva- portantes obras dos autores, apresentando sua doutrina ao
dos, sem as amarras sempre severas das reservas orçamentá- leitor nacional, situando, inclusive, a presente obra no seio da
rias. . produção (ao menos nei que concerne.à obra do Professor
Ademais, impende observar que, ainda aqui, os custos dos Cass Sustein10G).
direitos em geral, e dos direitos fundamentais muito especial- Na obra em tela - The cost of rights - é possível identi-
mente, continuam a figurar como meros óbices à sua efetiva ficar um objetivo fundamental: demonstrar que todos os di.
realização. reitos são positivos, e, portanto; demandam algum tipo de
prestação pública (em última análise, por parte do Estado)
2.3.6. A superação d~s modelos anteriores'." para sua efetivação, Além disso, prOcuram os autoresextraii-
diversas conseqüências relevantes de tal observação. .
A partir de um novo'modelo de pensamento, por vezes até A fim de alcançar este escopO, o livro divide-se em quatro
tocado por alguns autores pátrios, todavia sem maiores conse- pimes. A primeira parté destina-se então a 'demonstrar que
qüências, aprofundado por Sunstein e Holmes, superam-se as todos os direitos, mesmo os tipicamente individuais, tidos
concepções tradicionais, reconhecendo-se que todos os direi- habitualmente como meramente negativos, e que embasam a
tos são positivos. Constituição e os valores mais caros à sociedade americana,
É o tema de que se passa a tratar, analisando-se previa-
mente a obra referida.
são todos positivos, isto é, sua consecução depende de atua7 I
ção estatal. " " ..' , .
Nas partes seguintes desenvolvem-se consectários da pri~ II, '
meira. Na segunda parte, a partir da observação de que todos
3. SUNSTEIN E HOLMES E O CUSTO DOS os direitos são positivos, verifica-se que também a liberdade
DIREITOS (ou os direitos da liberdade) é afetada pela ausência de recur-
I'
sos, e que, também a, proteção destes direitos representa a
Embora evidentemente não configure qualquer juízo de redistribuição da riqueza social, com todas as suas conseqüên- i
desvalor, deve-se registrar que é incomum entre os autores cias. Na terceira parte, contrapondo-se a um grupo de autores j,
brasileiros a elaboração de estudos do tipo que se segue. É que sustenta que os direitos "foram muito longe" nos Estados
mais comum a referência ao pensamento desenvolvido alhu- Unidos, suscitando a irresponsabilidade do indivíduo para
res, sem que se tragam a lume as premissas e o contexto em com a comunidade, os autores argumentam, também a partir j i
que tal desenvolvimento foi levado a efeito. Nossa proposta. da verificação de que todos os direitos são positivos, que o I
,
neste capítulo é permitir ao leitor que não possui, por qual .. exercício dos direitos é, ao contrário, um exercício de respon-
quer razão, acesso direto às obras estrangeiras, um contato um
pouco mais pr6ximo às idéias tal como originalmente produ-
106 Infelizmente não foi possível lograr acesso amplo à produção de
STEPHEN HOLMES, destacando-se contudo, além das obras já re-
feridas, o estudo HOLMES, Stephen. "EI Precompromiso y la Paradoja
mental" aos direitos sociais, salientando que estes não geram preten- de la Democracia". In: Constitucionalismo y Democracia. Mexlco:
sóes referentes às prestaçóes: . Fondo de Cultura Econômica, 1999, p. 217-262.
182 183
-- -_ __ -... u
1
sabilidade. Na quarta parte, ainda como consectário de sua rência do case system, do stare decisis e do binding precedent,
visão acerca da positividade, os autores sustentam que os adotados naquele País. 108
direitos - todos eles - são sempre fruto de uma opção De outra parte, embora os autores dessa linhagem sejam
social, e, portanto, da negociação (especialmente política), tradicionalmente avessos a amplas teorizações abstratas e a
em que nem todas as partes encontram-se em pé de igualda- conceituações109, é preciso observar que há na obra em tela
de, gerando distorções, por vezes de monta.
uma incursão na seara abstrata, notadamente no que se refere
Em conclusão, o que já havia sido adiantado em várias
à caracterização (ou definição, ou conceituação) de uma de-
passagens anteriores, enunciam os autores a tese de que ine-
terminada situação jurídica (o que, enquanto conceito, é com-
xistem direitos ou liberdades privadas, senão que o exercício
de todo e qualquer direito ou liberdade depende fundamen- pletamente ignorado pelos autores) como direito (right -
talmente das instituições públicas, e em grande medida, sen- entendido no nosso ambiente cultural como direito subjeti-
do, portanto, igualmente público-? VO).110
Nosso estudo dedica-se precipuamente ao tema que serve Essas observações prévias não devem ser tomadas propria-
de base às d~mais considerações dos autores - a positividade mente como incompletudes ou falhas da obra ou mesmo dos
dos direitos, abordando as demais questões tratadas no livro autores, os quais, a bem da verdade, não se propõem a nada
apenas quando consideradas fundamentais para o desenvolvi- além daquilo que efetivamente realizam. Feitas tais ressalvas,
mento da apresentação das idéias. Algumas observações pré- passemos ao cerne do estudo.
vias mostram-se de todo importantes.
Em primeiro lugar, trata-se de estudo marcado pelo loca-
Iismo, a exemplo do que comumente ocorre com autores de
origem anglo-saxônica, em especial, autores norte-america- tação de um caso famoso - DeShaney v. Winnebago County Depart-
nos. O localismo leva os autores a um certo isolacionismo ment of Social Services, 489 U.S. 189 (1989). Esta e outras decisões
da Suprema Corte norte-americana, na íntegra, encontram-se dispo-
cultural e mesmo material, desprezando-se considerações de
níveis on line em www.findlaw.com. Sobre o sistema jurídico norte-
direito comparado ou mesmo de direito estrangeiro e a pró- americano, seja permitido remeter a SOARES, Guido Fernando Silva.
pria experiência e~terna. Common Law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Ed.
Deste modo, as referências e mesmo os exemplos citados Revista dos Tribunais, 1999.
no texto em comento são restritos, em caráter praticamente 1, 108 COLE, Charles. "Precedente Judicial". Revista de Processo 92: 71:
absoluto, à experiência tipicamente norte-americana, inclusive , "Dessa forma, "precedente" é a regra de direito usada por uma Corte
. de segunda instância no sistema judiciário em que o caso .está para
em termos de alusões doutrinárias e científicas. As referências
a casos julgados pelas Cortes judiciais, em especial pela Supre- I ser decidido, aplicada aos fatos relevantes que criaram a questão
colocada para a Corte para decisão. Stare decisis é a política que
ma Corte (United States Supreme Court) , também segue o
modelo tipicamente americano, em que tais decisões assumem ,I requer que as Cortes subordinadas à Corte de segunda instância que
estabeleceu o precedente sigam o precedente e que não "disturbem
função central e predominante no debate jurídico107, decor- um ponto estabelecido".
109 Como acentuado pelo próprio SUNSTEIN, Casso One Case at a
Time:'- Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Har-
vard University Press, 1999, p. 9 e 20-2 I, et passim.
107 Assim é que o capítulo cinco é integralmente fundado em decisões 110 Por exemplo, HOLMES/SUNSTEIN, The Cost of Rights ... , cit.,
judiciais, sendo certo que toda a argumentação deflui da fundamen- p. 16.
184 185
Destarte, em observação de corte descritivo, verificam os
o ponto de partida dos autores é o senso comum das
autores, de modo bastante expressivo, que os direitos, assim
pessoas em geral, e em especial dos operadores jurídicos,
reconhecidos por. um determinado ordenamento jurídico,
acerca da natureza dos direitos. Curiosamente, embora sigam "têm dentes" (rights in that legal sense have teeth 1]3), ao passo
quase à risca o antes aludido modelo jurídico norte-america-
que , do contrário , os ,direitos meramente morais não os pos-
no/ na obra referida, os autores trafegam, logo de início, pelos suem (are teethless). A figura metafórica dos "dentes", corres-
conceitos de direito e de custos. ponde, em verdade, a possibilidade de utilização dos remé-
O livro principia, então, com a observação de que existem dios jurídicos previstos no ordenamento, isto é, os meios de
duas perspectivas para observação dos direitos - aqui enten- acionar o ente estatal para que garanta os direitos previamen-
didos, frise-se ainda uma vez, em sentido subjetivo (rights) _ te reconhecidos pelo Direito. Há, assim, uma ligação indisso-
a saber: (a) uma perspectiva moral, por meio da qual se busca lúvel entre o direito subjetivo e o remédio jurídico previsto
a justificação dos direitos, via de regra através da associação para sua garantia e efetivação.
dos direitos a princípios ou idéias morais; e, (b) uma perspec- Mas não é só. Observam os autores com acuidade, em
tiva descritiva (descriptive), mais preocupada em explicar o passagens plenas de exemplos expressivos, que, indepen-
funcionamento dos sistemas jurídicos, do que justificá-lo mo- dentemente da utilização de remédios jurídicos, o Estado atua
ralmente.l]l para garantir determinados direitos. Assim, por exemplo,
Embora salientando que as mencionadas perspectivas não quando se serve de poderoso contingente financeiro para im-
são conflitantes (are not at odds) , os autores deitam os olhos pedir que o fogo venha a consumir o patrimônio dos indiví-
sobre o problema dos direitos a partir da visada descritiva. duos (rectius: a propriedade privada) em caso de incêndio,
Também quanto ao ponto a obra merece elogio. Com efeito, como o ocorrido em Westhamptonll4 (conhecida como área
a ressalva é muito relevante na medida em que se trata de nobre de Long Island/NY/USA) em 1995. Ou ainda para
problemas que, embora intimamente interligados, são incon- proteger a propriedade privada dos indivíduos que a titulari-
fundíveis. Uma questão é a de saber de onde derivam os zam, contra outros indivíduos que não: segurança pública para
direitos (ou seja, qual o seu fundamento de validade - o que bens privadosllS.
responde a saber se são direitos ou não). Outra questão, diver-
sa, é a de saber como determinadas situações jurídicas} carac-
terizadas como direitos - seja lá de onde for que promanem nadas normas positivas disponem". Neste sentido, a expressão descri-
- são operacionalizadas, o que se dá através da tal visada tiva é utilizada para designar a um só tempo a fonte do direito e o
descritiva.]l2 seu modo de operação no ordenamento; na obra sob análise, é usada
para designar somente o modo de operação, o que parece mais con-
veniente.
113 HOLMES/SUNSTEIN, The Cost of Rights ... , cit., p. 17.
III Loc. cito
114Id.; ibid., p. 13. Trata-se de trágico incêndio famoso, cujo combate
IlzA expressão "descritiva" é comumente utilizada para referir o
custou ao Erário americano nada menos do que US$ 2.9 milhões,
pensamento positivista analítico. Veja-se NINO, Carlos Santiago. In-
utilizados, portanto, para proteger a propriedade privada dos indiví-
troducción ai Análisis dei Derecho. Barcelona: Ariel, 1997, p. 196: :EI
duos (sendo oportuno assinalar que não houve perda de uma vida
significado descriptivo que los positivistas asignan a la expresión 'de-
sequer). .
recho' implica que las proposiciones acerca de derechos subjetivos. e
IISId., ibid., p. 90, et passim. Vide. comentários infra.
deberes jurídicos deben ser verificables en términos de lo que determi-
187
186 .
Na m~dida em que o Estado é indispensável ao reconheci-
T
\ conseguinte, econômicas) subjacentes levadas a efeito pelos
men1:oê~efetivação dos direitos, e considerando que o Estado II
poderes públicos 119. A crença na ausência de custos de alguns
somente funciona em razão das contingências de recursos direitos permite a consagração de uma orientação conserva-
econômico-financeiros captadas junto aos indivíduos singular- dora de proteção máxima de tais direitos (normalmente os
mente considerados, chega-se à conclusão de que os direitos individuais - liberdade e propriedade) em detrimento dos
só existem onde há fluxo orçamentário que o permita 116. O chamados sociais, o que se mostra, a partir da compreensão de
"reino privado" que a sociedade americana tanto preza é sus- que todos custam, absolutamente equivocado, descortinando
tentado, e mesmo criado pela ação públicall7. É o que remete a opção ideológica encoberta pela ignorância.
ao problema dos custos e da positividade. Em segundo lugar, também os liberais - expressão peri-
Verificando-se que os custos serão, então, indispensáveis gosa, aqui empregada no sentido de progres'sistas, ou promo-
à caracterização dos direitos - entendidos como situações a
tores dos direitos humanos - de seu turno, parecem preferir
que o Direito "concede" determinados remédios Qurídicos,
deixar a questão de lado. Deveras, há o receio velado de que a
portanto), os autores afirmam que TODOS OS DIREITOS
SÃO POSITIVOS. consciência e as discussões acerca dos custos dos direitos
diminuam o comprometimento com a respectiva proteçãol2o.
Para tanto, contudo, reconhecem eles, é preciso ultrapas-
Na verdade, não se deve falar em diminuição de direitos ou de
sar a sólida barreira erguida pelo senso comum acerca dos
direitos, consoante a qual os direitos fulcrados diretamente na suas garantias, mas sim em redimensionamento da extensão
liberdade seriam puramente negativos, não demandando da proteção devotada aos direitos, tendo como parâmetro as
qualquer prestação estatal positiva para sua efetivação. condições econômicas de dada sociedade. A aferição dos cus-
Há duas razões principaisl18 - informam os autores _ tos permite trazer maior qualidade às escolhas públicas em
para que tais questões sejam ignoradas pelo pensamento jurí- relação aos direitos. Ou seja, permite escolher melhor onde
dico-político norte-americano. gastar os insuficientes recursos públicos.
Em primeiro lugar, a ignorância de tais questões deixa A temática da positividade de todos os direitos não é
encobertas as discussões acerca das opções políticas (e, por propriamente nova para os autores. Cass Sunstein, por exem-
plo, já havia antecipado noutras obras considerações sobre o
caráterprestacional dos direitos ditos negativos.
116Id., ibid., p. 20. Em obra que versa sobre a parcialidade da Constituição
1171d., ibid., p. 14-1 5: "The priva te realm we rightly prize is sustained, norte-americana, ou, mais precisamente, sobre a parcialidade
indeed created, by public aétion". De igual teor: "Americans seem da interpretação que lhe dá a Suprema Corte daquele país,
easily to forget that individual rights and freedoms depend fundamen- Sunstein já criticava as decisões fundadas na dicotomia nega-
tally on vigorous state action". Noutro passo, e sob outro enfoque, o
. mesmo SUNSTEIN, Casso "Constituciones y Democracias: Epílogo".
tivo/positivo. Com efeito, as decisões da Suprema Corte
In: Constitucionalismo y Democracia. Mexico: Fondo de Cultura Eco- orientam-se no sentido de que as liberdades individuais estão
nómica, 1999, p. 355, já havia salientado que "la decisión sobre qué
será público y qué privado es necessariamente uns decüión pública
(..)".
119Loc. cit., expressivamente: "To ignore costs is to leave painful
118HOLMES/SUNSTEIN, The Cost of Rights .. , cit., p. 24 e seguin- tradeoffs conveniently out of the picture".
tes.
1201d., ibid., p. 28 e seguintes.
188
189
------------------.------------------..,...
garantidas pela Constituição, precisamente por inde- tura jurídico-política norte-americana (e bem assim nos siste-
penderem de atuação estatal, ao passo que as provisões desti- mas jurídicos de origem romano-germânica - os da Europa
nadas a assegurarem o bem -estar (provision of welfare), que continental ocidental e brasileiro). Tradicionalmente, huma
dela dependem, não estariam garantidas pela Constituição. visada de corte jusnaturalista, tem-se o direito de propriedade
Tal orientação, anota o autor, funda-se em premissa equivoca- como liberdade básica, anterior e superior ao Estado, aliás
da, a qual serve, na verdade, para encobrir os fundamentos de figura absolutamente desimportante na caracterização do di-
justiça distributiva que o país adota - que protege apenas reito, ocupando posição completamente passiva (ou negativa)
uma parte do povo americano. A verdade é que a Constituição _ bastando respeitá-lo, constituindo a intervenção estatal
protege alguns direitos e outros não, e a linha divisória entre exceção excepcionalíssima. Os autores em tela discordam
os direitos positivos e os negativos é estabelecida pelas Cortes desta visão.
judiciais de forma a manter - sob a falsa aparência da neutra- Em primeiro lugar, os autores discordam das premissas, o
lidade - os critérios tradicionais de distribuição dos bens que já havia sido objeto de argumentação detida em outras
sociais (que o autor chama status quo neutrality) 121,favore- obras anteriores. Assim é que não reconhecem direitos ante-
cendo uma parte dos indivíduos em detrimento dos demais. riores à formação política, nem mesmo a propriedade, orien-
Não obstante a produção anterior, é-na obra em comento tação que, em boa parte, decorre de sua orientação republica-
que a idéia é desenvolvida com apuro, concluindo-se pela nista123. Com efeito, conforme averbou Cass Sunstein em
inexistência de direitos puramente negativos, pois todo e obra anterior, os "republicanos" vêem a esfera privada como
qualquer direito depende de prestação estatal positiva. produto de decisões públicas, que muitas vezes justificam a
Os autores servem-se de um exemplo paradigmático para existência de setores de reconhecimento da autonomia priva-
. . . 'l't' 124
demonstrar a sua tese - o direito de propriedadel22. Este d a, mas nunca d e d Ireltos naturaIs ou pre-po I ICOS .
direito é entendido como ocupando posição central na estru- O mesmo se dá em relação à intervenção estatal no domí-
nio privado, a qual, ao invés de ser considerada excep'cional, é
190 191
,...
----------------- ._-------------------''----7''''["'"
considerada mesmo uma precondição de funcionamento dos são mantidos (e pagosn pelo Erário Público, com recursos
mercados ditos "livres e privados"125, questão que, aliás, já levantados a partir da tributação imposta pelo Estadol3l, con-
havia sido objeto de análise detida em obra anterior de Cass substanciando o seu trabalho em uma prestação manifesta-
Sunstein, justamente a propósito da necessidade de atuação mente pública - positiva - indispensável à configuração e
positiva maciça do Estado para assegurar operacionalização manutenção do direito de propriedade.
dos mercados126. . . Assim, é possível concluir que o direito de propriedade -
Sunstein e Holmes argumentam que não existe a propri~- clássico direito da liberdade, tido como tipicamente negativo
da de privada sem a ação pública, sem prestações estatais posi- _, é estrondosamente positivo132. Criado e mantido diutur-
tivas. Na verdade, a expressão "respeito à propriedade", en- namente pela ação estatal.
quanto dever negativo do Estado, conduz a uma compreensão O mesmo se dá em relação a outras liberdades tipicamen-
equivocada do fenômeno127. Para os autores, o Estado não te individuais deveras caras à sociedade norte-americana e
reconhece simplesmente a propriedade; o Estado verdadeira- tradicionalmente consideradas puramente negativas, como,
mente cria a propriedade!28. O direito de propriedade depen- por exemplo, a liberdade de expressãol33 e a liberdade de
de de um arsenal normativo de criação contínua e perene por contratar134, e também em relação a direitos políticos (como
parte de agentes políticos, em especial juízes e legisladores129 o direito de votar!3', por exemplo), todos expressamente
(trata-se, portanto, a toda evidência de uma prestação fática).
Ademais a proteção ao direito de propriedade depende diaria-
mente da ação de agentes governamentais, como sejam bom- 131Id., ibid., capítulo 3. Entre nós, RICARDO LOBO TORRES, A .
beiros e policiais 130.Todos os agentes antes referidos, de sol- Tributação e os Direitos Humanos ... , cit., p. 3, enuncia que "o tributo
dados-bombeiros a senadores, passando pelos magistrados, nasce no espaço aberto pela autolimitação da liberdade e constitui o
preço da liberdade (... r. A propriedade é uma espécie do gênero
liberdade, que é criada e se mantém através da tributação imposta
pelo Estado - no property without taxation.
125HOLMES/SUNSTEIN, The Cost of Rights ... , cit., p. 64: "But if 132O que já havia sido objeto de consideração anteriormente por
private rights depend essentialy on public resources, there can be no CASS SUNSTEIN, The Partial Constitution ... , cit., p. 70: "The right
fundamental opposition between "government" and "free markets (... r. to private property is fully positive in the sense that it depends on
126Neste sentido, SUNSTEIN, After Rights Revolution ... , cit., p. 42 government for its existence (... r.
et passim. 133HOLMES/SUNSTEIN, The Cost of Rights ... , cit., p. I I 1. O tema
127HOLMES/SUNSTEIN, The Cost of Rights ... , cit., p. 60: "A liberal é recorrente paraSUNSTEIN, por constituir-se segundo ele, na mais
government must refrain from violating rights. It must respect rights. .}i;Í1dâinental das libérdad~s (idem, p. 107). Veja-se ainda, SUNSTEIN,
But this way of speaking is misleading because ir reduces the govern- Casso "Free Speech Now . In: STONE, Geoffrey, EPSTEIN, Richard
ment's role to that of a non participant observer". Sobre esse "mislea- & SUNSTEIN, Cass (Org.). The Bill of Rights in the Modem State.
ding", em obra anterior, vide SUNSTEIN, The Partial Constitution ... , Chicago: The University of Chicago Press, 1991, p. 3I3. Boa parte
cit., p. 70. deste último artigo encontra-se, como adverte o próprio autor, repetida
128Esta afirmação é reiteradamente repetida no texto. Confira-se, por ipsis verbis em SUNSTEIN, The Partial Constitution ... , cito (capítulos
exemplo, HOLMES/SUNSTEIN, The Cost of Rights ...., cit., p. 60, 7 e 8). Quanto ao ponto, seja consentido mais uma vez referir nosso
66, 69. estudo acerca do tema: GALDINO, ap. cit., p. 173-215.
129Id., ibid., p. 66. 134HOLMES/SUNSTEIN, The Cost of Rights ... , cit., p. 49.
130Id., ibid., p. 90. 135Id., ibid., p. 53, explicando que estes direitos':"" acerca dos quais
192 193
r--------------------v------------------- I
I
198 199
------------------------------e •.-----------------------------~ i
De outro lado, sustentam Sunstein e Holmes que uma Sunstein e Stephen Holmes na obra The cost of rights lança
correta compreensão dos direitos estimula a responsabilidade novas luzes sobre a importante temática dos direitos huma-
em relação aos deveres para com a comunidade. O reconheci- nos, significando mesmo a superação dos modelos teóricos
mento de que todos os direitos possuem custos (isto é, são anteriormente referidos (vide capítulo 2 supra.).
custeados por recursos captados na coletividade de cada indi- A verdade é que, a partir da consideração de que todos os
víduo singularmente considerado), e de que os recursos públi.' direitos públicos subjetivos são positivos, isto é, demandam
cos são insuficientes para a promoção de todos os ideais so- uma prestação positiva do Estado para sua efetivação, o que
ciais - impondo o sacrifício de algun.s deles, implica também implica custos públicos, há que se proceder a uma releitura
. o reconhecimento de que aqueles (os direitos) devem ser das noções que envolvem os direitos fundamentais.
exercitados com responsabilidade 156. É o que se passa a esboçar.
A consciência de que os direitos custam implica ipso facto
a conscientização de que as pessoas some~te possuem direitos 4.1. Todos os direitos são positivos
na medida em que um Estado responsavelmente recolha re-
cursos junto aos cidadãos responsáveis157 para custeá-los, 4.1.1. Algumas importantes idéias antecedentes
mostrando ser incorreta a tese. atomista de que os direitos
inculcam a irresponsabilidade para com os deveres sociais. Ao Os estudos jurídicos159 acerca dos custos e da positividade
revés, os direitos, corretamente compreendidos, inculcam a dos direitos fundamentais são escassos no Brasil. Quando
responsabilidade no respectivo exercício. muito há algumas referências esparsas, as quais, no entanto,
merecem registro específico neste momento. Com efeito, na
medida em que a primeira parte do estudo dedicou-se a de-
4. DIREITOS NÃO NASCEM EM ÁRVORES senvolver um inventário das idéias acerca dos direitos huma-
nos, interessam agora, na verdade, algumas idéias anteceden-
As idéias evoluem, em especial as idéias acerca dos direi- tes desenvolvidas no Brasil já em torno da positividade dos
tosl58. Pensamos que o argumento desenvolvido por Cass direitos da liberdade, que de algum modo fugiriam aos mode-
los antes formulados.
156Id., ibid., p. 146: "The simple fact that rights have costs, therefore,
already demonstrates why rights entail responsabilities". 159 Não é possível deixar de referir os estudos que vêm sendo desen-
157Id., ibid., p. 151: "That rights have costs demonstrates their de- volvidos por PINHEIRO, Armando Castelar. "Judicial System Perfor-
pendence on what we might as we call "civic virtue". Americans possess mance and Economic Development". Ensaios BNDES 2, Outu-
rights only to the extent that, on the whole, they behave as responsible bro1l996. Este autor, professor de economia da UFRJ, infelizmente
citzens". E ainda, p. 155: "Because rights are costly, they could never quase um desconhecido da comunidade acadêmica jurídica, tem pro-
be protected or enforced if citzens, on average, were not responsible duzido importante contribuição no terreno dos custos econômicos dos
enough to pay their taxes (...)". . direitos, notadamente sob o prisma institucional, ou seja, do funcio-
158 Sobre a evolução das idéias, em especial em tema de direitos namento do sistema judicial. É preciso ressalvar, contudo, que seus
humanos, veja-se o belo texto, pleno de significado, de PECES-BARBA estudos não possuem cunho jurídico, daí porque não foram incluídos
MARTINEZ, op. cit., p. 15. na análise efetuada no texto.
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! .
204 205
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4.1.2. A superação da idéia de que existem direitos Saliente-se então, que a importante conclusão de que
negativos. Todos os direitos integram as opções dadas às todos os direitos públicos subjetivos são positivos não pode
escolhas trágicas mais ser desconsiderada pelo pensamento jurídico brasileiró.
O equívoco parece residir precisamente em considerar-se
A importação a-crítica de idéiàs já produziu efeitos preju- que a tutela dos direitos da liberdade consista ou possa consis-
dicúlÍs ao nosso Direito. Multiplicam-se os exemplos, estando tir em uma obrigação de não fazerl69, quando, em verdade, ela
o próprio tema dos direitos fundamentais apto a ministrar contém sempre e sempre um jacere (um agir positivo), que é
vários deles, como, por exemplo, o sistema de prestação de igualmente sempre custoso.
serviços públicos de saúde, em que a Constituição da Repúbli- Enquanto na esfera privada talvez seja possível caracteri-
ca de 1988, importando o modelo nórdico, francamente ina- zar uma obrigação ou dever como totalmente negativo, no
dequado para a realidade brasileira, vem trazendo grande sentido de que impedem a ação e mesmo impõem a abstenção
transtorno. A importação pressupõe uma análise prévia e de- total, no caso do da atividade do Estado, as obrigações e
tida da compatibilidade das idéias importadas ao sistema e à deveres de natureza púbica são sempre ativas ou positivas,
realidade onde presumivelmente devem integrar-se. implicando custos, sendo a utilização de exemplos tomados
No caso vertente, a dita importação das idéias vertidas na ao direito privado manifestamente inadequada 170. Omitir-se,
obra comentada não padece de qualquer problema. Notada- para o Estado, também custá dinheiro.
mente porque se trata de idéia de cunho operacional, ou, na Para exemplificar, seja consentido voltar ainda uma vez ao
linguagem de Sunstein e Holmes, descritivo. Não se trata, direito de propriedade. Em sua faceta estritamente privada, o
portanto, propriamente de importação de uma idéia, mas de aludido direito talvez até seja meramente negativo (sendo
observação de um mesmo fenômeno comum, não sendo pos- bastante discutível a possibilidade de cisão das "faces" de um
sível ignorar a correção da afirmação dos autores consoante a
qual todos os direitos são positivos (no sentido de que deman-
dam prestações positivas). 169 Como afirma Luís BARROSO, op. cit., p. 105: "A segunda razão
O senso comum científico da comunidade jurídica não é de caráter operacional: esses direitos têm por conteúdo, normal-
fica - ou ao menos não deve ficar - alheio aos argumentos e mente, uma abstenção, um não fazer dos indivíduos e principalmente
conclusões apresentadas na O'brade Sunstein e Holmes. do Estado; sua realização, assim, na generalidade dos casos, independe
de ônus, de atividades materiais, além de ter a seu favor a própria lei
da inércia".
170 Como faz exatamente ao tratar de direitos públicos JOÃO CAR.
a hablar de 'deberes activos' y 'deberes pasivos' con este significado). LOS ESPADA, op. cit., p. 23: "Os direitos positivos e negativos
Es cierto que aun en la alternativa abstencionista más extrema hay diferem na medida em que acarretam obrigações positivas ou negativas,
un elemento de activismo por parte dei Estado, que consiste en dictar ou seja, obrigações (i"egativas) de não fazer qualquer coisa, ou obriga-
y en hacer cumplir normas para que otros se abstengan de actuar, pera ções (positivas) de fazer qualquer coisa. O exemplo habitual de um
de cualquier modo los beneficiarias de los derechos en cuestión<son sólo direito positivo é o direito do credor contra o seu devedor, do qual
destinatarios de omisiones y no de prestaciones positivas". A curiosís- decorre para este último a obrigação positiva de pagar a sua dívida.
sima observação de que o destinatário da norma recebe apenas a O direito de uma pessoa à sua propriedade é prjncipalmente um
omissão sugere a questão de saber, então, quem seria o beneficiário direito negativo do qual decorre, para outras pessoas, a obrigação
da prestação positiva que o autor reconhece existir ('). negativa de não interferirem com a propriedade".
206 207
direito em público e privado), porque impõe aos demais par- Costuma-se referir apenas aos direitos SOCIaIS,ou que
ticulares um dever de abstenção, tQutcourt. O mesmo direito demandam prestações públicas positivas, como fazendo parte
de propriedade, em sua face pública, impõe ao Estado uma do elenco de opções entregues às escolhas trágicas, restando
I série de deveres positivos, que permitem a criação e manu- os direitos da liberdade fora deste âmbito, como se fossem
tenção do direito, como seja a proteção daquele direito em efetivados independentemente daquelas175. A afirmação não
face do próprio Estado e dos demais particulares. Saltam aos é correta, data maxima venia.
0\!-
olhos as fortes cores da inadequação dos esquemas formula- A partir da anterior conclusão de que todos os direitos
dos a partir de categorias privatísticas. De fato, é preciso I!
públicos são positivos, é mister reconhecer que os direitos da
concordar com Sunstein e Holmes, para afirmar que na esfera liberdade ou individuais também integram o rol dado às trági-
pública inexistem direitos negativos - inexiste puro non fa- cas escolhas públicas. Na verdade, conclui-se que todo e qual-
cere. Todos os direitos públicos subjetivos são positivos. quer direito público subjetivo integra o referido rol (podendo,
Como consectário, relevante consectário, tem-se que as portanto, ser preterido em razão da tutela de outro direito,
liberdades, outrora entendidas como direitos meramente ne- cuja tutela seja considerada mais importante em um dado
gativos, também integram o círculo de opções que são dados momento).
às escolhas públicas, às trágicas e inevitáveis escolhas. As conseqüências de tal conclusão, inclusive as práticas-
A partir da retórica da tragédia, os já aludidos Guido são de elevada monta. No modelo teórico tradicional, o direi-
Calabresi e Philip Bobbitl71 demonstram que a escassez de to de ir e vir - ad exemplum tantum, a liberdade em sentido
recursos econômicos e financeiros públicos impede a realiza- estrito - é tido como plenamente assegurado independente-
ção de todos os objetivos sociais, de tal sorte que a realização , mente de qualquer ação estatal, devendo a autoridade pública
de alguns desses relevantes objetivos impõe necessária e ine- escolher, por exemplo, tão-somente entre assegurar o direito
vitavelmente o sacrifício de outros, igualmente importan- à educação ou o direito à saúde. A partir das conclusões de
tes!72. Não sendo possível- e muita vez, nem desejável! 73- Sunstein e Holmes, citadas pela observação empírica, tam-
a solução da tensão entre os valores subjacentes174 aos men- bém o direito de ir e vir "passa" a integrar o elenco de opções,
cionados cibjetivos sociais em conflito, há a necessidade de
podendo ser preterido.
serem feitas escolhas. Escolhas realmente trágicas.
Com efeito, na medida em que tal direito e seus congêne-
res, tidos habitualmente como negativos, dependem tanto das
prestações estatais positivas como todos os outros, não há que
17l CALABRESI/BOBBIT, op. cit., passim.
pensar estejam eles fora das escolhas. Os recursos são limita-
17ZAinda sobre as escolhas e os sacrifícios, BERLIN, op. cit., p. 167:
"o mundo que se nos depara na experiência comum é aquele em que
dos , e as escolhas ,.verdadeiramente trágicas, incluem também
. nos defrontamos com opções entre fins igualmente últimos, exigências os direitos individuais, que podem igualmente ser sacrifica-
igualmente absolutas, sendo que a realização de parte desses fins e dos.
dessas exigências deverá necessariamente acarretar o sacriffcio de ou- Deveras, nossos tribunais, diuturnamente reconhecem,
tras" . ao menos implicitamente, que os direitos individuais têm
173Sobre a desejável manutenção dos conflitos entre os valores como
meio de promoção da participação e da deliberação democrática, con-
sulte-se SUNSTEIN, One Case at a Time ... ,cit., passim.
174CALABRESIIBOBBIT, op. cit., p. 19. 175Neste sentido, TORRES, Os Direitos Humanos ..., cit., p. 12.
208 209
,
.,I
custos, muitas vezes elevados. Reconhecem quando, por positivo/negativo 1 78, uso que obstaculiza a vlsao de que -
exemplo, servem-se de indenizações como meio de salvaguar- tomando-se em consideraçã() os custos --,-também os direitos
dar os direitos dessa natureza 1 76. A retórica do "respeito" individuais podem ser sacrificados em detrimento dos so-
(puramente passivo) pelos direitos individuais desvela sua ciaisl79. Embora os custos não sejam o único referencial OÚ
face custosa na indenização que é deferida na hipótese contrá- critério de decisão, fato é que não podem ser desconsiderados
ria (ainda que omissiva - omissão em proteger a liberdade Ii
, ou servir de fundamento para a tutela integral dos direitos
individual). Seja permitido lembrar que este modelo de deci-
são judicial refere o que já se usou chamar "sociedade de
reparação generalizada"I77, em especial para designar a socie-
r individuais e meramente parcial dos direitos sociais, como se
vem fazendo, de forma muitas vezes inaceitável.
Nessa linha de argumentação, é possível trazer a lume
dade americana, onde, havendo ao menos aparentemente um
reconhecimento mais tênue dos direitos chamados sociais, a uma série de exemplos. O País tem assistido a vários massa-
redistribuição da riqueza. social funçia-se na radicalização da cres de populações carentes levados a efeito por órgãos públi-
proteção dos direitos individuais, num discutível aperfeiçoa- cos através do recolhimento de recursos igualmente públicos,
mento da lógica individualista. adotando veladamente um modelo de direito de propriedade
Demonstrado que o direito possui um custo, a opção pela inaceitável nesta quadra histórica (e que se serve do equívoco
sua efetivação independe de sua caracterização como indivi- de considerar-se este direito como sendo negativo). Quanto
dual ou social. custou aos cofres públicos enviar e manter por semanas a fio
De toda sorte, o que cumpre ressaltar é que a expressão em Eldorado dos Carajás quinhentos homens armados. O que
"passam a integrar" utilizada alguns parágrafos acima não é estes homens protegiam? Em nome de que eles mataram? A
precisa. Na verdade, os direitos individuais (enquanto direitos resposta atende pelo nome de propriedade. Será possível ain-
subjetivos públicos) sempre foram positivos, no sentido de da dizê-la meramente negativa? Óbvio que não. É preciso
que sempre demandaram intervenção estatal em forma de perscrutar a essência dos direitos públicos subjetivos, para
prestações estatais positivas. O diferencial do presente mo- verificar que todos são positivos, e permitir uma escolha lúci-
mento teórico é o reconhecimento dessa positividade, e não o da entre a violenta proteção da propriedade e a adequada
seu surgimento.
prestação educacional, que talvez seja menos custosa.
Na verdade, o reconhecimento da positividade de todos
os direitos impede que se faça uso ideológico da distinção
178A questão ideológica é aqui ~olócada e~ termos diversos daqueles
referidos no modelo teórico da utopia, em que os problemas relativos
176É exemplo paradigmático a seguinte ementa: "Em caso de prisão aos recursos públicos eram simplesmente ignorados (vejacse o capítulo
indevida, o fundamento indenizatório da responsabilidade do Estado 2 acima), reconhecendo-se a validade da distinção positivo/negativo, .
deve ser enfocado sobre (sic) o prisma de que a entidade estatal fatos que, em última análise, favorecem a manipulação ideológica dos
assume o dever de respeitar, integralmente, os direitos subjetivos direitos.
constitucionais assegurados ao cidadão, especialmente o de ir e vir" 179Afastando a parcialidade denunciada por SUNSTEIN (v. capítulo
(STJ, Primeira Turma, Recurso Especial 220982/RS, Relator o Mi- 3 acima). Observa VILLEY, op. cit., p. 131: "Sob pretexto de conceder
nistro José Delgado, julgado em 22.02.2000, votação por maioria). a todos satisfaçéÍes infinitas, o sistema funciona exclusivamente para
177ROSANVALLON, Pierre. A Nova Questão Social- Repensando vantagem de alguns. É impossível atribuir qualquer direito subjetivo
o Estado Providência. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998, p. 63. a alguns, se não for em detrimento dos outros."
210 211
T"
Por fim, assinale-se que a aludida argumentação de Cass Na linha antes referida de Sunstein e Holmes, aconselha-
Sunstein e Stephen Holmes em torno do direito de proprie- r
I
se a mudança de perspectiva, passando-se a trabalhar com os
dade (e que vale para os direitos em geral) permite observar I; recursos econômicos como pressupostos, que tornam possível
que inexistem prestações não-fáticas (a que se referia Ingo I a realização dos direitos.
Sarlet, forte na lição de Robert AIexy - veja-se capítulo 2 A concepção dos custos como óbices tem a sua função,
i
supra). A própria prestação normativa tem por pressupostos I
I que é a de identificar e precisar os obstáculos para supera-
uma série de fatos - como a criação e operação permanente "
I ção1B1,mas neste viés, os custos ainda são inadequadamente
das normas -levados a efeito por corpos de agentes públicos vistos como algo externo aos direitos.
quase sempre muito bem remunerados e sediados em estru- Ainda neste sentido, anote-se que a expressão "exaustão
turas deveras dispendiosas, e que consomem grande parte dos orçamentária"182 conduz, com todas as vênias, a uma interpre-
recursos estatais. Assim sendo, também os direitos de defesa
tação equivocada do fenômeno que procura analisar. Com
(vide ainda uma vez o capítulo 2 acima) referidos por alguns,
efeito , através dela não se analisa o fenômeno como um todo,
-
equivocadamente, s.m.j., como totalmente negativos, deman-
mas apenas parte dele. A análise global do fenômeno permite
dam prestação estatal positiva permanente, sendo igualmente
positivos. entrever o engano.
Com efeito, ao se dizer que o orçamento não pode supor-
4.2. Necessidade de superação da idéia dos custos como tar determinada despesa, in casu, destinada à efetivação de
meros óbices. direitos fundamentais, e tendo como parâmetro a noção de
custos como óbices, quer-se necessariamente designar um
Um outro consectário relevante que se pode extrair do orçamento determinado. Os recursos públicos são captados
argumento acima desenvolvido é o de que os custos não de- em caráter permanente - a captação não cessa nunca, de
vem ser encarados como meros óbices à consecução dos direi- forma que, a rigor, nunca são completamente exauridos. As-
tos fundamentais, conforme se vem de há muito salientando. sim sendo, nada obstaria a que um outro orçamento posterior
Não que tal consideração seja essencialmente errada. A ques- assumisse a despesa em questão. Sem embargo dessa possibi-
tão é só de perspectiva. A perspectiva dos custos como meios lidade os autores argumentam que esse meio - a exaustão da
nos parece mais construtiva. capacidade orçamentária - é um único meio de frustrar a
A verdade é que os custos ostentam um caráter biface. proteção dos direitos fundamentais.
Tanto podem ser vistos como óbices quanto como pressupos-
tos. A experiência registra sem-número de tentativas de vi-
sualizá-Ios como óbices tão-somente com escopos ideológi- GRAU, Eros. A Constituinte e a Constituição que Teremos. São Paulo:
cos. Na história recente do País houve mesmo quem impug- Ed. Revista dos Tribunais, 1985, p. 33: "O pretexto da despesa que
nasse a instauração da Assembléia Nacional Constituinte (de a Assembléia constituinte ocasionará não resiste ao bom senso (...)".
1986) em razão dos elevados custos por ela impostos à socie- 181Como faz referéncia, entre nós, CRUZ E TUCCI, José Rogério.
dade1Bo. Tempo e Processo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, p. 114,
especificamente em relação aos custos ocasionados pela longa duração
dos processos judiciais.
182Conforme o estudo antes referido de EROS GRAU, "Despesa
180Sobre as despesas com a Constituinte, veja-se o registro crítico de Pública ... " cit., p. 130-148.
212 213
o que verdadeiramente frustra a efetivação de tal ou qual 4.3. À guisa de conclusão: os direitos efetivamente l1ão
direito reconhecido como fundamental não é a exaustão de nascem em árvores
um determinado orçamento, é a opção política de não se
gastar dinheiro com aquele mesmo "direito". A compreensão
O presente estudo tencionava demonstrar que o senso
dos custos como meios de promoção dos direitos, e a observa- comum formado no pensamento jurídico brasileiro Caqui
ção empírica de que tais meios são insuficientes para atender apresentado em diversos modelos teóricos) em torno dos
a todas as demandas, leva necessariamente à conclusão de que. direitos fulcra-se em premissa equivocada, qual seja, de que
não é propriamente a "exaustão da capacidade orçamentária" . existem direitos fundamentais cuja tutela por parte do Estado
que impede a realização de um determinado direito. O argu- independe de qualquer ação positiva, e portanto, de qualquer
mento da "exaustão orçamentária" presta-se unicamente a custo.
encobrir as trágicas escolhas que deixaram de fora do universo Após a apresentação do modelo de superação do senso
do possível a tutela de um determinado "direito". comum, atese de que há direitos negativos parece padecer de
De outra face, a retórica da "exaustão" cria um sentimen- equívoco óbvio, e custa a crer não tivesse sido percebido
to de que "direitos" há que não são objeto de tutela, restando antes. Não há que se preocupar, pois consoante ensina o
"abandonados", o que se nos parece extremamente prejudi- Grande Jurista em sua sabedoria, às vezes as coisas mais difí-
cial à segurança jurídica. Tal situação de desconfiança e falta' ceis de serem vistas são precisamente aquelas que estão bem
de credibilidade prejudica a tutela dos direitos como um diante dos nossos olhos.
todo, o que é desaconselhável. E o que se põe diante dos olhos com clareza capaz de
Por estas razões, e ressalvando que ainda não temos opi- ofuscar é que todos os direitos subjetivos públicos são positi-
nião com animus de definitividade sobre o tema, parece con- vos. As prestações necessárias à efetivação de tais direitos têm
veniente considerar a sugestão de Cass Sunstein e Stephen custos, e, como tal, são sempre positivas.
Holmes consoante a qual os custos devem integrar previa- Não há falar, portanto, em direitos fundamentais negati-
mente a própria concepção do direito (subjetivo) fundamen- vos, ou, o que é pior, em direitos fundamentais "gratuitos", .
até porque, como já se pode perceber, direitos não nascem
taI (devem ser trazidos para dentro do conceito). Aquele
em árvores. Q.e.d.
"conceito pragmático de direito subjetivo" a que nos referi-
mos acima.
De fato, parece correto sustentar que não se deve afirmar I
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Direitos Humanos e Justiça Sodal:
as Idéias de Liberdade e Igualdade
no Final do Século XX
Gustavo Binenbojm
1.INTRODUÇÃO
Liberdade, igualdade e fraternidade Catualizada sob a
idéia de solidariedade) continuam sendo os valores funda-
mentais em torno dos quais gravita o pensamento jusfilosôfico
contemporâneo. Com efeito, a equação formada pelos ideais
que serviram de bandeira para a Revolução Francesa] consti-
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