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A Estrada Real do Direito

Carlos Biasotti

A Estrada Real do Direito


Carlos Biasotti

2022
São Paulo, Brasil
O Autor

Carlos Biasotti foi advogado criminalista, presidente da


Acrimesp (Associação dos Advogados Criminalistas do Estado
de São Paulo) e membro efetivo de diversas entidades (OAB,
AASP, IASP, ADESG, UBE, IBCCrim, Sociedade Brasileira de
Criminologia, Associação Americana de Juristas, Academia
Brasileira de Direito Criminal, Academia Brasileira de Arte,
Cultura e História, etc.).

Premiado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo,


no concurso O Melhor Arrazoado Forense, realizado em 1982,
é autor de Lições Práticas de Processo Penal, O Crime da Pedra,
Tributo aos Advogados Criminalistas, Advocacia Criminal (Teoria
e Prática), Da Prova, Da Pena, Direito Ambiental, O Cão na
Literatura, etc., além de numerosos artigos jurídicos publicados
em jornais e revistas.

Juiz do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São


Paulo (nomeado pelo critério do quinto constitucional, classe
dos advogados), desde 30.8.1996, foi promovido, por
merecimento, em 14.4.2004, ao cargo de Desembargador do
Tribunal de Justiça.

Condecorações e títulos honoríficos: Colar do Mérito


Judiciário (instituído e conferido pelo Poder Judiciário do
Estado de São Paulo); medalha cívica da Ordem dos Nobres
Cavaleiros de São Paulo; medalha cultural “Brasil 500 anos”;
medalha “Prof. Dr. Antonio Chaves”, etc.
A Real Estrada do Direito
Carlos Biasotti

A Real Estrada do Direito

2022
São Paulo, Brasil
“O Direito é tão eterno como quem o criou”
(Gabriel José Rodrigues dos Santos,
Discursos Parlamentares, 1863, p. 801).

“Il diritto penale è stato sempre il mio amore


secreto” (Francesco Carnelutti; apud
Nélson Hungria, Comentários ao Código
Penal, 1958, vol. I, t. II, p. 450).
Índice

Prólogo......................................................................................15

1. A Linguagem do Advogado.....................................................21

2. A Cultura dos Senhores Advogados........................................29

3. Advogados: Atributos Primários..............................................35

4. A Sustentação Oral nos Tribunais............................................41

5. Ofensas e Desagravos................................................................49

6. Da Petição Inicial.......................................................................53

7. O Sagrado Direito de Defesa....................................................61

8. O Advogado e a Defesa Oral nos Tribunais............................67

9. Da Legítima Defesa...................................................................83

10. Coletânea de Exórdios................................................................91

11. Dia do Advogado: 11 de agosto.................................................97

12. O Advogado e o Crime de Falso Testemunho........................113


12

13. Justiça e Advocacia Criminal...................................................119

14. Dia do Advogado Criminalista: 2 de dezembro....................131

15. A Função de Julgar...................................................................149

16. A Linguagem do Juiz...............................................................157

17. Das Excelências do Voto Vencido...........................................163

18. Da Citação do Réu...................................................................169

19. Crime, Rigor da Lei e Clemência............................................173

20. O Interrogatório do Réu e o Livre Convencimento


do Juiz.........................................................................................181

21. O Erro. O Erro Judiciário. O Erro na Literatura


(Lapsos e Enganos)................................................................187

22. Lei, Justiça e Bom-Senso..........................................................207

23. O Crime de Extorsão e a Tentativa.........................................217

24. Morte no Trânsito: Homicídio Doloso?.................................225

25. Da Confissão Judicial...............................................................237

26. Antecedentes Criminais...........................................................243

27. Álibi e Defesa Criminal...........................................................261

28. Nulidade Processual.................................................................269

29. O Princípio da Insignificância no Direito Penal....................283

30. As Desavenças Conjugais e o Rigor da Lei............................305

31. Violação de Domicílio..............................................................319

32. Quando a Exageração na Propaganda é Crime......................341


13

33. O Crime de Dano.....................................................................351

34. Presunção de Inocência...........................................................367

35. Da Exclusão da Ilicitude do Jogo do Bicho............................389

36. Carta para Migalhas sobre uma Questiúncula Gramatical:


“Subsume” ou “Subsome” ?...........................................................397

37. Coisas Inúteis.......................................,....................................403

38. A Prestigiosa e Altiva Acrimesp..............................................413

39. Dívida de Alimentos e Prisão Civil.........................................417

40. Reabilitação e Reparação do Dano.........................................425

41. Do Excesso ou Desvio de Execução........................................431

42. Transação Penal........................................................................439

43. Do Flagrante Preparado...........................................................445

44. “Res Furtiva”...............................................................................451

45. O Direiro de Recorrer em Liberdade......................................457

46. Da Prisão Domiciliar: Solução Heroica para


Casos Especiais.........................................................................463

47. Palavra: Veículo do Pensamento.............................................477

48. Parricídio: Crime Abominável................................................481

49. Crise no Tribunal do Júri........................................................485

50. Da Morosidade (Inevitável) da Justiça...................................491

51. Embargos de Declaração no Processo Penal...........................495

52. O Desaforamento nos Processos do Júri.................................517


14

53. Da Presumida Segurança da Urna Eletrônica........................535

54. O Advogado e a Eloquência fora dos Tribunais....................543

55. Arrazoados Forenses. Extensão e Conteúdo..........................551

56. J.B. Viana de Moraes: Nobre e Valoroso


Advogado..............559

57. Damásio E. de Jesus: Honra e Glória do Direito


Penal..........................................................................................571

58. O Bom Juiz Eliézer Rosa.........................................................583

59. O Nome: Aspectos Jurídicos e Literários...............................589

60. Memorando aos Colegas da Advocacia e da


Magistratura..............................................................................619

61. Carta de Despedida (do Desembargador Carlos


Biasotti).....................................................................................643
Prólogo

I. Tive a subida honra e, permita-me dizê-lo o amável


leitor, o justo orgulho (que tange as fibras da alma dos que
se propuseram altos e nobres ideais) de percorrer a estrada
real do Direito.
Entre a modesta banca profissional e a barra solene
dos Tribunais — a exemplo dos colegas da Advocacia e da
Magistratura, em cujos peitos ardeu a flama da vocação —
empreguei a máxima parte de meus dias.
Pecúlio fatal dos que transpõem um número
considerável dos marcos miliários de sua trajetória, era
força também me habituasse à poeira e às pedras do
caminho e aprendesse a evitar os escolhos e as arestas dos
precipícios marginais; o que não maravilha, que são
comuns esses percalços a todas as profissões!
Mas, o viajor determinado e confiante não faz caso
nem cabedal dos desalentos e frustrações (que os não
16

conhecem aqueles que, com inteireza de espírito e coração,


pugnam pela restauração do direito violado e põem timbre
em distribuir justiça: é que soem cobrar ânimo fitando os
olhos, sem quebra, no padrão de chegada, onde lhes está
reservado o galardão do merecimento.

II. Pelo que respeita aos advogados (os criminalistas, em


especial), fácil lhes fora exibir as cartas credenciais de seu
valor, importância e prestígio.
Leve-se-me à paciência reproduza aqui o texto que
serviu de introito a certo livrinho meu(1):
Tendo escrito Voltaire que a Advocacia era a mais
bela profissão do mundo(2), já lhes compusera o melhor
panegírico; por isso, tratarei aqui somente da gratidão que
se lhes deve.
Mas, nem porque impossível resgatá-la, por imensa
a dívida que a sociedade contraiu com os Advogados
Criminalistas, deixarei de render-lhes acanhado tributo.
A omissão, no caso, podia interpretar-se por ingratidão,
agravo irremissível, que a gente antiga punha no número
dos delitos(3).

(1) Tributo aos Advogados Criminalistas, 2005; Millennium Editora.


(2) “Le plus bel état du monde” (apud Carvalho Neto, Advogado, 1946,
p. 83).
(3) “Tão abominável vício é a ingratidão, e tão digno de castigos” — anotou
o velho Bluteau —, “que, nos Tribunais de Atenas, Pérsia e Macedônia,
havia lugar para ação contra os ingratos” (Vocabulário, 1713, t. IV, p. 133).
17

Se do advogado, em geral, houve em todos os tempos


boa opinião — pelo grandioso de seu ofício(4) —, foi,
entretanto, ao Advogado Criminalista que se reservaram
as mais soberbas e encomiásticas expressões de estima e
simpatia, próprias somente daqueles que, nos angustiantes
dramas humanos, representaram o bálsamo para o
sofrimento alheio e a esperança para os que receavam não
só pela liberdade, senão pela própria vida.
Num rapto de eloquência, escreveu Eliézer Rosa,
Magistrado em tudo exemplar:

“Não sei de nenhuma outra forma de advogar mais dolorosa


e pungente que a advocacia criminal. Tudo nela é dor e
desespero. Os próprios triunfos têm seu tanto de amargor,
porque, enquanto pende o processo e se prepara a causa, há
sofrimentos que a vitória não apaga completamente”(5).

Foi, todavia, José Soares de Mello, mestre na Ciência


do Direito Penal e Juiz de muito nome, quem remeteu o
disco mais longe, ao escrever:

“Quando o advogado se alça para falar, na tribuna do júri,


ninguém o iguala. É que está em jogo a liberdade e a vida
de um homem e periclita a honra de uma família”(6).

(4) “O advogado é o sacerdote do direito e da liberdade” (Vicente de


Azevedo, Curso de Direito Judiciário Penal, 1958, vol. I, p. 94).
(5) Romeiro Neto, O Último Romântico da Advocacia Criminal, 1984,
p. 21.
(6) O Júri, 1941, p. 17.
18

Também Piero Calamandrei, em seu livro primoroso(7),


destinou um capítulo enternecedor ao velho advogado
florentino que, suposto entrara em artigo de morte, não se
apartava das preocupações dos que se haviam fiado de seu
patrocínio: entre delírios, imaginava-se perante o Tribunal,
a discursar aos juízes, veemente, como se os tivesse ali,
sentados em derredor de seu leito, a ouvi-lo.
E remata o galante escritor: “Não era um herói, nem um
santo: era simplesmente… um advogado”.
À Advocacia Criminal são bem comuns esses rasgos,
que descobrem valentia e grandeza nos que a praticam.
De Rui, o maior Advogado que o Brasil jamais
conheceu, registram os anais da Justiça o momento
sublime em que, debaixo da beca do criminalista, após
sustentar, perante o Supremo Tribunal Federal, aos 23 de
abril de 1892, as razões do famoso “Habeas Corpus” nº 300,
impetrado em favor de presos políticos, foi ter com
o Ministro que, único, lho deferia. Arrebatado do
entusiasmo por haver dele obtido esse voto favorável —
que “um voto”, dizia, lhe bastava para a “vitória moral” da
causa —, não pôde menos de cumprimentá-lo com larga
efusão de ânimo:
“(…) eu me cheguei, depois da sessão, quase sem voz, ao Sr.
Pisa e Almeida, pedindo-lhe que me permitisse o consolo de
beijar a mão de um justo”(8).

(7) Eles, os Juízes, Vistos por Nós, os Advogados, 1a. ed., p. 188; trad. Ary
dos Santos.
(8) Rui, Obras Completas, vol. XIX, t. III, p. 296.
19

Essas finezas no desempenho da profissão conhecem-


-nas que farte os Criminalistas: são a expressão espontânea
do sentimento puro que lhes vai na alma. Não andaria mal
quem lhes chamasse paixão da defesa do direito violado,
pois que paixão vale o mesmo que sofrimento, e este é o
sócio inseparável do Advogado Criminalista(9).
Glória eterna, portanto, a essa nobre ordem de
sujeitos predestinados, nunca inferior à dos grandes do
mundo, porque estes lhe deverão sempre a honra da
conservação e defesa do mais caro de seus bens, depois da
vida: a liberdade!

III. Da Magistratura — a que servi, na 2a. Instância,


durante catorze anos — são assaz lisonjeiros os conceitos
que dela sempre fizeram as pessoas de reto juízo.
Rui Barbosa, cuja autoridade é superior a toda a
exceção, não teve mão em si que não afirmasse, num texto
célebre: “É à magistratura que vos ides votar? Elegeis, então, a
mais eminente das profissões, a que um homem se pode entregar
neste mundo” (10).

(9) Notável coincidência: paixão, que é afeto violento da alma, tem


sua raiz na voz latina “passio” (do verbo “pati”), que significa sofrimento
(cf. Francisco Solano Constancio, Diccionario da Lingua Portugueza,
1877; v. paixão). Paixão e sofrimento, eis as reais insígnias do Advogado
Criminalista!
(10) Oração aos Moços, 1a. ed., p. 41.
20

Antes que encarecimento retórico, foi pregão de


verdade que deitou nosso maior jurisconsulto, ao dizer: “Se
alguma coisa divina existe entre os homens, é a justiça” (11).
Aos colegas elevados a essas dignidades e, pois,
servidores da Justiça — uns, como seus distribuidores (os
Juízes); outros, por indispensáveis à sua administração
(os Advogados) —, e ainda aos que pertencem à honrosa e
preclara instituição do Ministério Público dedico e ofereço,
com extremos de afeição e infinita saudade, este singelo
e tosco livrinho. Vale!
O Autor

(11) Obras Completas de Rui Barbosa, vol. XXV, t. IV, p. 329.


1. A Linguagem do Advogado
I – Como “a palavra é por excelência a arma do advogado”(1),
só quem a souber manejar com propriedade e segurança
conquistará triunfos profissionais invejáveis. O que aspira
aos primeiros lugares da Advocacia deverá, portanto, ou
fale ou escreva, ostentar suas credenciais de cultor das boas
letras.
Ainda que dele se não exijam os mesmos atributos
por que se distinguem e recomendam à pública admiração
os escritores de muito nome (v.g.: torneio clássico da frase,
dicção peregrina e elegante, galas de estilo, etc.), nunca se
dispensará, porém, o advogado da estrita observância dos
requisitos a que se obriga todo aquele que, em razão do
ofício, tenha de enunciar pontualmente seu pensamento:
clareza e correção(2). Nenhuma qualidade se avantaja à
clareza. Dada ao homem para comunicar suas ideias, a
palavra somente alcançará seu fim se clara e inteligível(3).
Pelo que, falha no intuito de expressar-se quem,
por deficiência verbal, não é pronta e cabalmente
compreendido; mas falha gravemente se é advogado, visto
que em seu brasão profissional o campo maior compete
por direito de preferência à arte de persuadir.
Só o argumento que facilmente se percebe é poderoso
a influir no ânimo de terceiro e movê-lo ao talante do
expositor. À disciplina do pensamento há de corresponder,
pelo conseguinte, expressão verbal precisa e livre de tudo o
que o possa tornar obscuro e impenetrável.
22

A precisão do termo, intimamente associada ao


conceito de clareza, impõe que ao rigor do raciocínio
lógico suceda representação oral e escrita por palavras que
lhe evidenciem o vero sentido e lhe sejam acomodadas.

II – Da mesma sorte que os outros profissionais, têm os


advogados seu falar próprio: a linguagem forense.
Vocábulos e expressões técnicas do direito, constitutivos
da fraseologia jurídica, haverá de conhecê-los bem o
advogado e empregá-los com severa propriedade. A
primeira providência, pois, de quem deseja adquirir o
estilo do foro é ler os bons textos legais e as obras jurídicas
estimáveis pela castiça locução vernácula portuguesa(4).
A essa mui particular feição de escrever, em que
à ordem lógica dos conceitos corresponda fiel e perfeita
representação gráfica e artística, chamou-lhe Jhering
“elegantia juris”(5).
A expressão clara do pensamento não se mostra
incompatível com o bom gosto literário, antes o aconselha
e encarece. Nenhum espírito culto se recusará, em verdade,
a aplaudir consigo o esforço daquele que imprimiu no seu
escrever o selo da arte e da estética. A duvidar alguém, é
ler uma página de Rui, Castilho ou Herculano, e logo se
convencerá de que a glória literária não lhes cingiu a fronte
a esses eminentes escritores, senão após aturada e constante
dedicação à arte da linguagem.
23

III – O método mais seguro e eficaz para adiantar-se


alguém nos segredos de sua língua é conversar
assiduamente os autores que melhor a possuíram: os
clássicos(6). Detendo-se na leitura criteriosa de suas obras,
não será maravilha se lhes vier a adquirir, com o andar do
tempo, as excelências da forma e a riqueza do estilo. Tal
prodígio será simples corolário do processo de assimilação.
Não se cuide fora isto desairoso, por implicar, em certo
modo, imitação de outrem. De todo o ponto inatendível é
semelhante objeção. Primeiro, porque a presunção da
originalidade cede àquele dito profundo e solene do mais
sábio dos homens: Não há nada de novo debaixo do Sol(7)!
Tudo o que hoje dizemos, já o disseram os antigos, e não
raro com mais arte e propriedade. Além disso, a imitação
do autor clássico dará a conhecer ao leitor curioso,
enquanto não alcance o seu próprio estilo, as maneiras
mais expressivas de dizer, os meneios sintáticos mais
apurados e as construções que melhor se conformem ao
gênio da língua. Tanto que o alcance, porém, libertar-se-á
do arquétipo literário. De fato, como observou preclaro
escritor, “saber imitar é aprender a não imitar mais, porque é
habituarmo-nos a reconhecer a imitação e a passar sem ela,
quando já não for precisa”(8).

IV – Os mais crassos defeitos que podem aviltar a pena do


escritor são os erros gramaticais inescusáveis.
“Não há escritor sem erros”, proclamou o exímio Rui(9),
aludindo certamente não aos erros toleráveis e invencíveis,
mas àqueles que afrontam os cânones elementares de
24

gramática. Esses não conhecem absolvição. Identificam-se


pela denominação de solecismos, e são infrações gravíssimas
das leis do bem escrever. No evitá-los deve o advogado pôr
toda a sua diligência e tento(10).
É a notar que as petições, sobre constituírem o
assento material de uma pretensão levada a Juízo, valem
como carta de crédito intelectual de quem as elaborou. Por
elas também se homenageia o juiz a quem se destinam. E
não entra em dúvida que nenhum motivo de lisonja
deparará ao magistrado, que a tiver de despachar, uma
petição pejada de erros de português.
Aos lidadores da palavra — os advogados sobretudo
— lembre-lhes sempre esta advertência do venerando
Bluteau: “Indício quase sempre certíssimo de não saber um
homem uma língua é o desprezá-la, porque ninguém despreza o
que sabe”(11).

Notas

(1) Nereu Corrêa, A Palavra, 1972, p. 22.


(2) Donde a exortação de J. Soares de Melo: “O advogado
deve escrever de forma elegante, precisa e clara. Falar com
exatidão” (Perfis Acadêmicos, 1957, p. 97).
(3) Exemplo das consequências, verdadeiramente funestas
do estilo travado e obscuro, traz este despacho
lançado em confusa petição: “Indefiro, até onde
entendi”.
25

(4) Será bem que o advogado leia, por acrescentar


os cabedais de sua linguagem forense, as obras
que ao propósito escreveu Eliasar Rosa, eminente
conhecedor assim de nosso idioma pátrio como do
Direito: Os Erros mais Comuns nas Petições, Glossário
Forense, Dicionário de Conceitos para o Advogado, etc.
Ainda: procure ter sempre à mão uma boa gramática
(a do provecto Napoleão Mendes de Almeida,
por exemplo), os dicionários de Caldas Aulete e
Laudelino Freire ou do Aurélio, e alguns livros sobre
questões de linguagem como: Tréplica, de Ernesto
Carneiro Ribeiro; Estudos da Língua Portuguesa, de
Mário Barreto; Língua Vernácula, de José de Sá
Nunes, etc. Tocantemente a leituras, vem a pelo este
alvitre de um sábio: “Ler sem anotar pouco adianta; ler,
sem um bom dicionário ao lado, é perda considerável de
tempo. É que a leitura se faz, palavra por palavra”
(Eliézer Rosa, A Voz da Toga, 2a. ed., p. 71).
(5) Cf. Edmundo Dantès Nascimento, Linguagem Forense,
1980, p. 222.
(6) Do vasto rol de autores que passam por modelos
acabados da boa linguagem podemos citar esta meia
dúzia: Rui Barbosa, “o maior dentre os nossos escritores”
(José Rizzo, Estudos da Língua Portuguesa, 1922,
p. 207). Obras: Parecer sobre a Redação do Código Civil,
Réplica, Oração aos Moços (“a peça mais trabalhada da
língua portuguesa” — cf. Nereu Corrêa, op. cit., p. 42),
etc.; Antônio Vieira, “o clássico mais autorizado da
26

língua portuguesa” (Francisco José Freire, Reflexões sobre


a Língua Portuguesa, 1842, 1a. parte, p. 10). Obras:
Sermões, História do Futuro, Cartas, etc.; Manuel
Bernardes, “o mais suave e delicioso clássico português!”
(Silveira Bueno, História da Literatura Luso-Brasileira,
1965, p. 54). Obras: Nova Floresta, Luz e Calor,
Últimos Fins do Homem, etc; Alexandre Herculano: “A
sua palavra é um relâmpago: deslumbra, fulmina” (Alves
Mendes, Discursos, 1879, p. 127). Obras: Lendas e
Narrativas, Eurico, Opúsculos, etc.; Camilo Castelo
Branco, “o mais opulento dos clássicos portugueses”
(Castilho, in As Sabichonas, 1872, trad.). Obras: Amor
de Perdição, Boêmia do Espírito, A Queda dum Anjo, etc;.
Machado de Assis: “Originalíssimo na invenção, timbrava
outrossim na correção da linguagem” (Fausto Barreto e
Carlos de Laet, Antologia Nacional, 41a. ed., p. 95).
Obras: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Memorial de
Aires, D. Casmurro, etc.
(7) Eclesiastes, cap. I, v. 10.
(8) Antônio Albalat, A Arte de Escrever, 9a. ed., p. 40;
trad. Cândido de Figueiredo.
(9) Réplica, nº 10. Isto sentia bem Tobias Barreto,
quando disse: “Há três cousas neste mundo que o homem
não pode ter completamente puras: a consciência, a boca e a
gramática” (Obras Completas, 1926, vol. II, p. 173).
27

(10) Breve exemplário de solecismos hediondos:


a) “Fazem” 81 dias que o réu está preso (por faz);
b) “Haviam” muitas pessoas no local (por havia);
c) O irmão “interviu” na briga (por interveio);
d) Os policiais “deteram” o réu (por detiveram);
e) O juiz “penalizou” com rigor o acusado (por apenou,
puniu, castigou, etc.);
f) “Interim” (ínterim), “ávaro” (avaro), “púdico” (pudico),
“gratuíto” (gratuito) e aquele que tem sido o mais
frequente dos solecismos de prosódia (ou pronúncia):
“récorde”, em vez de recorde. Sinônimo de proeza,
façanha, marca, etc., recorde é a forma aportuguesada
de “record”. Sua pronúncia: recorde (ó), a despeito do
intolerável sestro de alguns locutores, que persistem,
obdurados, na cacologia “récorde”. Não era caso de se
lhes remeter um memorando fonético?! Estamos que
sim!
(11) Prosas Portuguesas, 1726, 2a. parte, p. 189.
2. A Cultura dos Senhores Advogados

I – Desencantados com o nível cultural dos que abraçam


as mais nobre das profissões, em cujo número se conta
a Advocacia(1), críticos veementes (e quase sempre
abalizados) têm vindo a público para verberá-lo. De
férula em punho, arrolam as causas que, a seus avisos,
responderiam pelo despreparo profissional: a eversão dos
primeiros valores do homem, num século que sacrifica
precipuamente ao materialismo; a angústia de tempo, que
lhe não deixa vagar nem ócio para as coisas do espírito; a
notória degradação do currículo das escolas; a deficiência
do ensino universitário, etc. Fatores são estes que, deveras,
nenhum estudioso remete à sombra quando considera nos
motivos que autorizam a opinião, muita vez desfavorável,
da ciência e ilustração dos bacharéis. E, pois que se
diagnosticou a “mazela” (que outro nome não merece a
carência dos cabedais científicos), será força indicar do
mesmo passo os meios de sua cura e erradicação. Este,
verdadeiramente, é o estilo de obrar do crítico sensato e
benfazejo, o teor de proceder do que traz consigo a
centelha que outrora inflamava o peito aos valorosos
educadores (não só críticos), os quais a Humanidade
hoje reverencia com chamar-lhes, muito à própria e
gravemente, apóstolos; que o foram: apóstolos da
Civilização.

II – Longe deste augusto padrão, no entanto, parece ficou


a censura que, em jornal de grande circulação no País(2),
certo juiz fez aos advogados que atuam nos pretórios da
30

Justiça Criminal. (Pedem razões de vária ordem lhe


conservemos o nome debaixo de espesso véu: à uma,
porque não está excluída a hipótese de lhe haver recolhido
mal as palavras o jornalista que as publicou; à outra,
porque, ainda que as tivesse dito, bem pode ser que,
havendo-as lido depois, em letras redondas, já lhes não
afiançasse, no recôndito de sua consciência, o modo como
as tirou à luz do dia: à derradeira, porque o conceito em
que, desde a mais alta antiguidade, foram havidos os
críticos(3) — tomado o vocábulo à má parte —, não quadra
nunca à pessoa do juiz, cujo timbre mais precioso ninguém
ignora foi sempre a serenidade).
Vindo agora ao ponto. O que disse o magistrado, a
propósito dos problemas que obstam à boa administração
da justiça, foi que “o nível dos advogados criminais é péssimo”.
Dissera-o com assombro da gente do foro, a qual, mais
que um rude epigrama, interpretou essa desprimorosa
referência por injúria formal contra a verdade e injustiça
manifesta aos criminalistas. Estes, como era forçoso
receberam-na com profunda consternação; mas, habituados
já à poeira de seu caminho — afinal, não houve até quem
lhes quisesse cortar a língua?!(4) —, deram logo de mão às
acerbas invectivas. Não lhes sofreu contudo o ânimo que
antes não retorquissem: a) que não era de crítico assisado
generalizar afirmações pejorativas; b) que, houvesse alguém
de notar defeitos em outrem, que o fizesse com a atenção
devida à sua pública reputação; c) que, de necessidade,
fora injusta a crítica só empenhada em esquadrinhar
deficiências, sem exaltar virtudes.
31

III – Ao criticar os indivíduos de uma classe, é de mau


exemplo arrojar-se alguém a ofendê-la em sua totalidade.
Concedendo-se que a censura procedesse em relação a uns
poucos, decerto não houvera de prevalecer quanto à
maioria. E tratar (na verdade, maltratar) igualmente os
desiguais passa por gênero grande de injustiça. Repugna
também à consciência crítica bem formada isso de, na
apreciação de eventuais defeitos que se achem num
indivíduo, calar muito de estudo suas qualidades. Ainda:
para ser equânime e reto, não deverá o crítico subtrair ao
aplauso dos sujeitos honestos os fatos e as notícias relativos
à instituição que pretende censurar. É que, da mesma sorte
que os homens, também elas nunca deixarão de ser aquilo
que foram com suas misérias e grandezas. Dito da
Advocacia Criminal, isto importaria a evocação de páginas
imortais de abnegação e sacrifícios. Interrogue a História
aquele que ainda não conhece as excelências da “ínclita
profissão”, e ela haverá de responder-lhe com a lição do
imenso Malesherbes, um dos três defensores de Luís XVI,
de França. Herói e mártir da profissão, teve o mesmo fim
que o seu real constituinte: “pagou com a vida a honra de ter
defendido seu rei”(5).
Por fim, está no modo de fazê-la a alma e o egrégio
merecimento da crítica: há de conformar-se com os
princípios da moral social e refletir os sentimentos próprios
do coração probo e virtuoso(6).
32

IV – Alguma insuficiência, que a crítica implacável se


afadigue em surpreender nos advogados criminalistas(7),
não será outra coisa que o comum tributo que os mortais
se obrigam a recolher, à conta de sua própria condição, que
nada quer perfeito e acabado.
E, se arguirem de suspeita esta defesa, porque
deduzida por praticante do ofício, a argumentar “pro domo
sua”, então seja permitido que falem pelos criminalistas
dois titãs do Direito, que não foram só exímios advogados,
mas também juízes modelares: Eliézer Rosa e Alfredo
Tranjan. Escreveu o primeiro, elegante e sabiamente: “Há
no semblante austero dos grandes advogados criminais uma
discreta sombra de amargura que atesta a convivência diuturna
com a angústia alheia, que neles se imprime como a verônica
inapagável da profissão. Eu lhes vi a muitos a cabeça aureolada
pelo forte esplendor da glória e do saber. Eu vi-os passar soberbos
na humildade dos sábios e dos bons” (Eliézer Rosa, Romeiro
Neto, O Último Romântico da Advocacia Criminal, 1984,
p. 21). Alfredo Tranjan, citando Viviani, discursou: “O que
faz a grandeza de nossa profissão é que, quando abraçamos uma
causa justa, nós a defendemos contra a ignorância da multidão,
contra a paixão do povo, contra a tirania dos poderosos. O
advogado é o primeiro homem acima de todos, em volta de nós,
capaz de fazer ouvir, mesmo acima dos clamores da multidão, as
palavras de justiça e verdade” (A Beca Surrada, 1994, p. 309).
Donde se mostra claro que aqueles mesmos que
foram, segundo craveira mesquinha, indiscriminadamente
apodados de péssimos, distinguem-se, no juízo de dois
33

varões da primeira eminência, pelo “esplendor da glória e do


saber” e pelo ideal de “justiça e verdade”.
Ao pio e avisado leitor já não fica difícil aquilatar de
que lado desce a concha da balança!

Notas

(1) À Advocacia chamou Voltaire “a mais bela das profissões


humanas”. “Le plus bel état du monde” (apud Carvalho
Neto, Advogados, 1946, p. 83). Louvor é este que sobe
de ponto quando sabemos que seu autor “foi talvez a
primeira cabeça, o mais fecundo gênio do século XVIII”
(Ernesto Carneiro Ribeiro, Tréplica, 1923, p. 666).
(2) Folha de S. Paulo, 27.9.95.
(3) Vem aqui a pelo o instrutivo conto de Boccalini:
“Tendo certo crítico famoso ajuntado todos os defeitos de um
grande poeta, fez deles presente a Apolo. Este deus os recebeu
graciosamente, e determinou recompensar o autor de um
modo conveniente ao trabalho que tivera. Com este intento
pôs-lhe presente um pouco de trigo por alimpar, e ordenou-
-lhe que separasse a palha, e a pusesse à parte. Começou o
crítico a trabalhar com muita indústria e diligência; e
depois de ter feito a separação, Apolo lhe deu a palha pelo
seu trabalho” (apud Cardeal Saraiva, Obras Completas,
1883, vol. X, p. 154).
(4) Napoleão: “Quero que se possa cortar a língua ao
advogado, se dela usar contra o governo” (apud Rui, Obras
Completas, vol. XXXVIII, t. II, p. 57).
34

(5) Cf. Romeiro Neto, Fora do Júri, 1970; p. 98.


(6) Sentenciou o erudito Cardeal Saraiva “não ser jamais
decente que o homem bem nascido e bem educado note ou
repreenda com expressões de desprezo, com ditérios picantes
e com amargosa sátira qualquer gênero de defeito que
observe nos seus semelhantes” (op. cit., p. 159).
(7) Advogado criminalista — ensinou o reputado Prof.
Napoleão Mendes de Almeida (a quem pedimos nos
soltasse a dúvida) — é a designação correta daquele
que professa a Advocacia Criminal. Eliézer Rosa,
jurista de prol e escritor de exemplar vernaculidade,
prefere a expressão advogado criminal. “Grammatici
certant”!
3. Advogados: Atributos Primários
1. Duas coisas, ao aviso de graves autores, deve possuir o
advogado, para que verdadeiramente o seja: bom-senso e
bom texto. Bom-senso, porque nisto mesmo consiste o
Direito, de que será sempre indefesso paladino; bom texto,
porque de sua expressão verbal e literária penderá a sorte
dos pleitos cujo patrocínio lhe tenha sido confiado.
É a própria dignidade de seu claro ofício a que
pressupõe este notável predicado, que antes parece virtude
que aptidão do espírito: o siso. Mesmo que não se tenha na
conta de jurisprudente, o homem do Direito será prudente
por força(1).
Noutros profissionais talvez se pudesse tolerar a falta
de prudência no dizer e no obrar; nunca porém no
advogado, que no desempenho de seu augusto ministério
toma as vezes de conselheiro.
Poucos resultados, de fato, serão mais dignos de
lástima do que aqueles a que der causa sua irreflexão ou
desequilíbrio. Quer fale, quer escreva, o advogado haverá
de mostrar-se em tudo varão de reto juízo e bom acordo.
Provas serão estas de que o advogado se guiou pelas
regras da prudência: entre duas alternativas, escolheu a que
se lhe afigurava melhor ou menos gravosa para o cliente;
não relegou para o último dia do prazo fatal e peremptório
a prática de ato que lhe incumbia; não fiou de outrem a
guarda de autos de processo que lhe foram entregues
mediante carga em livro próprio; recusou-se a orientar
testemunhas que depusessem contra a verdade real e
36

sabida; em face das injúrias e da incontinência de


linguagem do adversário, conservou a serenidade de ânimo
e repeliu com argumentos de razão e polidamente as
invectivas que recebeu(2), etc.
Em pontos de bom-senso, como em tudo o mais na
vida, importa atender àquela “primeira máxima de toda
a razão de estado, assim da providência divina, como da
providência humana, que é saber concordar estes dois extremos:
conseguir o intento e evitar o perigo” (Vieira, Sermões, 1959,
t. I, p. 329).

2. Outra característica da formação profissional do


advogado respeita à ciência da linguagem vernácula e da
linguagem do foro. Espadachim da palavra, ao advogado
cumpre cultivá-la com esmero, fidelidade e constância.
Todo o seu arrazoado há de encerrar bom texto (que não
contravenha às regras rudimentares da composição
literária, mas se ajuste aos moldes da gramática e revele
galas e primores de estilo). Sobretudo os princípios básicos
da arte de escrever não pode ignorá-los o advogado, e entre
esses a correção. É intolerável se transforme sua petição em
corpo de delito de infrações graves perpetradas contra as
leis gramaticais(3). A leitura (o estudo, fora melhor dito)
dos manuais que ensinam a bem escrever, e a conversação
dos autores que granjearam nomeada como padrões do
dizer vernáculo(4), aliadas à vontade férrea de possuir em
grau assinalável sua língua, satisfarão a essa dificuldade.
Tudo vence o trabalho perseverante, já o afirmara quem
pôde prová-lo(5).
37

Particular da profissão que abraçou, o advogado há de


conhecer e praticar a linguagem forense, empregando-lhe
os termos próprios. O frasear jurídico e o estilo do foro
obtêm-se com a lição dos mestres; daqueles que se
abalizaram igualmente na ciência do Direito que nos
segredos de sua língua(6).
Só o advogado que não subestimou as prendas da
linguagem e do saber jurídico pode-se afirmar que foi cabal
em seu ofício, convindo-lhe pois o famoso conceito de
Catão: “Vir bonus, dicendi peritus”. Homem de bem, perito
na arte de dizer!

Notas

(1) “A prudência compõe-se de ciência e de experiência,


encaminha para o bem e previne o mal, e na milícia é mais
necessária que a força” (J. I. Roquete, Dicionário dos
Sinônimos da Língua Portuguesa).
(2) A altercação que, no debate da causa, substitui
pelos convícios a veemência da linguagem, não se
concilia com os preceitos da urbanidade, a que se
haverão de sujeitar os advogados, se não por amor da
convivência em sociedade, ao menos para não expor à
fortuna vária o resultado que do pleito justamente
esperamos. “Moderação e urbanidade na expressão, eis o
melhor meio de convencer; não há outro que seja tão eficaz”,
pontificou o egrégio Machado de Assis (Obras
Completas, vol. VI, p. 149). E Ângelo Majorana: “Tu
gritas? Logo, não tens razão!” (As Formas Práticas da
38

Eloquência, 1945, p. 209; trad. Fernando de


Miranda).
(3) Livros que servem de guia seguro em questões de
linguagem há-os em barda. Ao leitor benévolo
não é preciso que lhe refiramos senão os mais
bem reputados: Mário Barreto (Estudos da Língua
Portuguesa, Novos Estudos da Língua Portuguesa, De
Gramática e de Linguagem, Últimos Estudos, etc.); José
de Sá Nunes (Língua Vernácula, Aprendei a Língua
Nacional, etc.); Cândido de Figueiredo (Problemas de
Linguagem, Lições Práticas da Língua Portuguesa, O que
se não deve dizer, etc.); Ernesto Carneiro Ribeiro
(Serões Gramaticais, Ligeiras Observações, Tréplica, etc.);
Napoleão Mendes de Almeida (Gramática Metódica da
Língua Portuguesa, Dicionário de Questões Vernáculas,
etc.); Pedro Adrião (Tradições Clássicas da Língua
Portuguesa).
(4) Por frequentes quanto errôneas, devem evitar-se
estas construções ou grafias: a) “Penalizar” o réu
(no sentido de apenar, impor pena a, etc.). Penalizar
quer dizer causar pena, dor ou aflição a (cf. Caldas
Aulete, Dicionário); b) “Haviam” (por havia) indícios
veementes da autoria criminosa. Haver, com o
significado de existir, não se flexiona. “Houveram”
coisas terríveis — “Este solecismo é realmente feio, é
quase bestial” (Camilo, in Polêmica de Carlos de Laet
e Camilo Castelo Branco, 1966, p. 49). Outro tanto
com referência ao verbo fazer, na acepção de tempo
decorrido: Faz (e não “fazem”) 90 dias que o réu
está preso; c) Vossa Excelência “fostes” injusto com
39

o réu. Corrija-se: (…) foi injusto. Os pronomes de


tratamento obrigam o verbo à terceira pessoa;
d) Quero muito falar “consigo”. Falar contigo (com você
ou com o senhor) é como se deve dizer. O pronome
consigo refere-se ao sujeito do verbo. Ex.: O preso
falava consigo, isto é, com seus botões, só, etc. São
também dignas de nota estas cacografias:
“meretríssimo” (meritíssimo), “previlégio” (privilégio),
“indiscreção” (indiscrição), “interviu” (interveio),
“exitar” (hesitar), “excessão” (exceção), “infrigir”
(infringir: transgredir, desrespeitar, desobedecer a,
etc.), “infligir” (infligir: aplicar, impor, etc.), “frustar”
(frustrar). Ainda que empregadas amiúde, carecem de
foros de vernaculidade as locuções posto que, em
sentido causal (porque), e “vez que” em lugar de uma
vez que. Exemplos: O réu não merecia condenado,
“posto que” nenhuma a prova de sua culpabilidade.
Em vez de “posto que”, era para dizer porque, porquanto,
por isso que, uma vez que, visto que, como, visto como, etc.
Posto que tem lugar só em frases deste feitio: Posto que
(isto é, embora, suposto, ainda que, mesmo que, a despeito
de que, etc.) levemente, o réu violou a ordem jurídica.
Uma vez que (e não “vez que”): A defesa desistiu de
suas testemunhas, uma vez que não compareceram
à audiência.
(5) “Labor improbus omnia vincit” (Virgílio, Geórgicas,
liv. I, v. 145).
(6) Copioso rol de insignes autores pudéramos desfiar
aqui. Todavia, por não nos alongarmos demasiado,
citamos apenas dois, que, sobre terem sido juristas
40

exímios, foram também guapíssimos escritores: Rui


(Parecer sobre a Redação do Código Civil, Réplica,
Tréplica, Trabalhos Jurídicos, etc.) e Orosimbo Nonato
(Da Coação como Defeito do Ato Jurídico, Estudos sobre
Sucessão Testamentária, Curso de Obrigações).
Dos vivos sempre nos apraz arrolar os nomes destes
autores cujas obras passam por imprescindíveis à boa
formação jurídica e literária do advogado: Eliézer
Rosa e Eliasar Rosa. Não vem para aqui a apreciação
(que o não sofre a pouquidão do espaço) das
excepcionais contribuições que às letras jurídicas do
País têm dado esses irmãos, ambos sujeitos eminentes
em saber, doutrina, virtudes e letras. Mencionamos-
lhes somente as obras, e estas por maior, onde muito
se achará que aprender, admirar e aplaudir: Eliézer
Rosa (Dicionário de Processo Civil, Dicionário de Processo
Penal, A Voz da Toga, etc.); Eliasar Rosa (Os Erros
mais Comuns nas Petições, Glossário Forense, Dicionário
Didático do Direito das Sucessões, etc).
4. A Sustentação Oral nos Tribunais

I – Eduardo Couture, numa obra de raro esplendor que


escreveu para os cultores do Direito(1), pôs em questão
matéria de certa gravidade, e foi esta: para que círculo do
Inferno irão um dia os bacharéis que comparecem à
tribuna das câmaras julgadoras e aí sustentam suas razões
e recitam seus memoriais, não advertindo em que os
esclarecidos juízes que os ouvem conhecem bem o
processo e, pois, escusam o empenho oratório do patrono
do réu?! Será muito de temer, por certo, o fogo desse
inferno; muito mais, no entanto, houvera de confranger a
alma do advogado o anátema com que o pudesse fulminar
um dia o constituinte, por não ter empregado em seu prol
algum dos meios de defesa que o Direito lhe assegura!
E a sustentação oral, por sem dúvida, não é o menos
importante deles.
Tem curso desembaraçado, nos círculos forenses, o
preceito de que a Defesa não deve, pelo comum, usar da
palavra em sede recursal. A causa seria porque, uma vez
conhecidas já as razões do recurso, fora supérfluo reeditá-
-las oralmente perante aqueles que o vão julgar. Demais,
encarecendo seus argumentos na superior instância,
como que o réu deixava descobrir sua dúvida acerca da
justiça dos magistrados cuja benevolência invoca, e tal
configuraria, se não absurdo, decerto injúria gravíssima. O
silêncio, a essa conta, não valera menos do que a palavra!
42

II – A sustentação oral de recurso, a nosso aviso, nada tem


de superfetação ou despropósito: ao revés, sobre arguir
clara ciência do ofício, entende-se por documento de zelo
profissional do advogado. Por fim, toda a manifestação da
Defesa é alento e coragem para a inocência oprimida(2).
Mas, para que a sustentação oral colime seu fim
precípuo, que é argumentar para convencer(3), não haverá o
advogado descurar das regras que aproveitam geralmente
aos discursos em suas partes principais: a invenção, a
disposição e a elocução(4).
Conforme Caldas Aulete, é a invenção “a operação
mental que sobre um dado assunto o espírito produz”(5). Tal
aptidão se adquire com os conhecimentos, assim os de
cunho geral como os especiais. Estes se granjeiam com o
ativo e aturado estudo das mais reputadas obras acerca da
matéria do debate.
Não só das leituras, também da conversação com os
excelentes modelos da tribuna judiciária formará o
advogado seu cabedal de ciência particular(6).
Escolhido o assunto e delimitado o raio da
controvérsia, entrará o orador a ordenar seu discurso,
catando observância à disposição clássica: exórdio,
narração, confirmação e peroração(7). No exórdio, buscará
conciliar a benevolência dos juízes, que “não se contentam
com ser instruídos na causa, querem também ser deleitados”(8).
Em seguida lhes exporá o orador os fatos, narrando-lhos
com precisão e fidelidade; ao depois, na confirmação,
43

levará o fito em persuadi-los com provas e argumentos; na


peroração, que é o remate do discurso, porá o intento em
fazer triunfar suas ideias pela força da evidência.
Chamam os retóricos elocução à terceira e última parte
da eloquência, que se ocupa da seleção das palavras e frases
que darão vigor, luz, beleza e majestade aos pensamentos.
Passa pela mais difícil das operações do orador e é a que
lhe demanda maior aplicação e esmero, visto pressupõe
o conhecimento exemplar e firme não somente da língua,
senão também da “linguagem das paixões, a qual só se aprende
bem com o longo exercício e com o profundo estudo do coração
humano”(9).

III – Mais que o gênio ou dom criador, é a arte (conjunto


de preceitos para executar qualquer obra) a que sempre
comunica à elocução oratória o timbre da perfeição.
Benditas, portanto, as longas vigílias de estudo e trabalho,
que a elas deve o advogado o brasão de suas glórias
tribunícias!
Ponto de reconhecida relevância na Oratória, vem
aqui de molde tratarmos por igual da maneira de enunciar
o discurso. Querem uns, alegando com o grave da matéria
e do momento, que se leia como o trouxeram escrito;
outros, fiados de sua feliz memória, têm para si que devem
declamá-lo como o compuseram; há, por último, os que,
após diuturna preparação do tema, que assimilaram
pontualmente, asseveram não precisar mais que de breves
notas esquemáticas para garantir a perfeita comunicação
44

com os ouvintes. Das três opções de articulação do


discurso, é a última a que, por mais segura e natural,
recomendam os mestres da arte de falar. Ler, simplesmente,
o arrazoado forense, o mesmo fora que admitir o advogado
a própria falta ou negligência ao preparar a sustentação
oral, defeito insigne, que ordinariamente se lhe não sofre
nem perdoa(10). Dar de cor a mensagem, será arriscar-se
o advogado às insidiosas contingências dos lapsos e dos
esquecimentos, que lhe poderão comprometer o fluxo
natural das ideias. Se, contudo, a tanto o “ajudar o engenho e
arte”(11); se, pupilo dileto da fortuna, gozar de memória
privilegiada; se, afeiçoado à arte declamatória, preferir o
advogado pronunciar de cor sua sustentação, não há que se
lhe oponha ou objete. Cada qual, enfim, sabe até onde
pode ajudar-se das próprias forças!
Outra questão, a que deve atender o advogado que se
propõe sustentar oralmente perante o Tribunal, é esta da
improvisação. No sentido de produção intelectual repentina
e sem preparo, ela não há; tampouco a tolera a seriedade
do múnus advocatício, o qual tudo quer perfeito e bem
acabado. “Na realidade, a improvisação é o resultado de um
longo trabalho de acumulação”(12).
Ao discutir, habitue-se o advogado a fazê-lo em pé
(ainda que lhe seja idolatrada prerrogativa o falar sentado).
Além de argumento de sua deferência para com os
ouvintes (cuja benevolência haverá de conquistar), é a
aprumada postura de quem trava combate, de que a defesa
oral constitui bom simulacro(13).
45

Mediante a observância destas regras, que para a mais


bela das artes cunharam nossos maiores, é sem dúvida que
os advogados aprendizes colherão merecidos gabos, com
pouca diferença daqueles com que a posteridade cingiu a
fronte imortal de Cícero: “Foi, de todos os oradores, aquele que
melhor fez sentir aos romanos o encanto que a eloquência
acrescenta às coisas honestas e o invencível poder da justiça
quando é sustentada pela força da palavra”(14).

Notas

(1) Os Mandamentos do Advogado, 1979, p. 67.


(2) A defesa oral — escreveu o distinto criminalista
Mauro Otávio Nacif, em brilhante ensaio, no qual
versou com diligência a matéria — “a defesa oral é
a coroação de todo o esforço realizado pelo advogado nos
processos criminais” (Revista Ajuris, nº 3, março/1975,
pp. 141-144).
(3) Edmundo Dantès Nascimento, Linguagem Forense,
1980, p. 12.
(4) A. Cardoso Borges de Figueiredo, Instituições
Elementares de Retórica, 1875, p. 7.
(5) Oratória, 1875, p. IV.
(6) À imitação, como estímulo criador, consagrou
Aristóteles não poucos lugares de sua Arte Poética
(cf. caps. I, III, etc.). Pelo mesmo teor, Antônio
Albalat (A Arte de Escrever, 1953; trad. Cândido de
46

Figueiredo). Ouvindo os paradigmas de sua classe,


conhecerá o advogado os segredos da arte oratória.
Da gloriosa milícia dos tribunos do foro criminal, leve-
-se-nos em gosto, por isso, mencionemos aqui alguns
dos mais conspícuos, de cuja destreza em desenrolar
o pendão da eloquência até os mestres apurados no
dizer têm muito que aprender e invejar: Paulo Sérgio
Leite Fernandes, José Roberto Batochio, Antônio
Carlos de Carvalho Pinto, José Carlos Dias, Tales
Castelo Branco, Miguel Reale Júnior, Antônio
Cláudio Mariz de Oliveira, Luiz Flávio Borges
D’Urso, Roberto Delmanto, Mário de Oliveira Filho,
João Meireles Câmara, Roberto Podval, Alberto
Zaccharias Toron, Eugênio Malavasi, Mauro Octávio
Nacif, Antônio Sérgio de Moraes Pitombo, Daniel
Bialski, etc. (que, mercê de Deus, oradores forenses
de alta estofa sempre houve entre nós, e isso em todos
os quadrantes da Pátria!). É escutá-los pois o novel
advogado, se aspira deveras à primeira tribuna!
(7) Simetria: “Até no Inferno, que é o centro da confusão, há
ordem, como adverte Santo Agostinho” (Francisco de
Pina, Retórica, 1766, p. 53).
(8) Quintiliano, Instituições Oratórias, 1788, t. I, p. 255;
trad. Jerônimo Soares Barbosa.
(9) A. Cardoso Borges de Figueiredo, op. cit., p. 72.
(10) Aliás, como a prevenir inconvenientes, dispôs o
Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo que, “na sustentação oral, é permitida a
47

consulta a notas e apontamentos, sendo vedada a leitura de


memoriais” (art. 476).
(11) Camões, Os Lusíadas, canto I, v. 16.
(12) Henri Robert, apud Evandro Lins e Silva, A Defesa
Tem a Palavra, 1a. ed., p. 23.
(13) No Diálogo dos Oradores, Tácito “compara o advogado
ao soldado que marcha para a batalha provido de todas
as armas, pois aquele também comparece ao Fórum armado
de todas as ciências” (Alberto Sousa Lamy, Advogados,
Elogio e Crítica, 1984, p. 96). Não apenas é importante
que os advogados falem de pé; ajuntam provectos
oradores, com malícia espirituosa, que deveriam
fazê-lo também apoiados sobre uma perna só, por
advertência que fossem breves!
(14) Plutarco, Cícero e a Queda da República, p. 24; trad.
Lobo Villela.
5. Ofensas e Desagravos
I. De todos os bens, é a honra o mais precioso que tem
o homem; sem ela, a mesma vida lhe não houvera de
merecer os cuidados com que de contínuo a defende e
protege. Era tal a conta que dela faziam os antigos, que não
a queriam perder senão com a própria vida. E não foram
poucos os que, educados nessa escola de probidade e
inteireza de caráter, nada antepunham ao nobre sentimento
da honra, elegendo por seu timbre o garboso versículo do
poeta: “antes quebrar que torcer”(1).
Esse caríssimo atributo do homem é direito
penalmente tutelado. Assim, cometerá crime (de calúnia,
difamação ou injúria, conforme o caso) aquele que detrair
a honra alheia; que ninguém sofre ser desonrado(2). A
razão disto bem se conhece das seguintes palavras de
Matias Aires: “Acabando tudo com a morte, só a desonra não
acaba, porque o labéu ainda vive mais do que quem o padece”.
É “a única desgraça que se imprime na alma como um caráter
imortal”(3).

II. Mesmo que exercitado na virtude da tolerância, não


logra porém o homem permanecer imperturbável e sereno
diante da perversidade da maledicência (4); tampouco lhe
é eficaz aquela exortação da filosofia estoica, segundo a
qual ao varão virtuoso não lhe deviam fazer mossa nem
abalo as contumélias e os baldões(5). Ao homem agasta-o
de ordinário quem o trata mal de palavras ou lhe profere
50

expressões de travo irônico, visto inato o seu desejo de


haver-se em boa conta e opinião.
Algumas injúrias, contudo, ele pode (e talvez deva)
levar em paciência, não só em obséquio à suave doutrina
do Rabino da Galileia (que nos manda perdoar a quem nos
ofende), mas também porque não é de bom exemplo fazer
caso e cabedal de coisas insignificantes(6).
Por outra parte, afrontas há que, por sua gravidade,
justamente se não relevam. Bem ao revés: reclamam
providências rígidas contra quem as irrogou, para que não
se presumam verdadeiras só pelas não haver o ofendido
repudiado em tempo e com singular veemência. O silêncio,
que noutros casos fora argumento de soberano desprezo
das querelas e pequenezes humanas, aqui o seria de
imprudência e temeridade(7).

III. Poderá dar-se o caso que a ofensa praticada contra o


indivíduo alcance a todos os membros de sua classe. Da
coletividade será então já o interesse na reparação do
imerecido gravame, não só do indivíduo. Demonstrada a
injustiça da ofensa, haverá lugar o público desagravo.
Nisto de desagravos, há de proceder-se com tento e
circunspecção, não se convertam, posto involuntariamente,
numa como ofensa reiterada. Temos entre mãos exemplo
definitivo: desagravou-se publicamente, há assaz de anos,
um dos mais insignes advogados criminalistas de São
Paulo, a quem certo porta-voz da Presidência da República
ofendera no exercício da ínclita profissão. Assinalada a data
para o público desagravo, expediram-se editais, onde,
51

ao mesmo passo que se convocavam para a sessão os


advogados, eram transcritos, “ipsis verbis”, os epítetos
desprimorosos disparados contra o ofendido, com o que
novamente se lhe impôs crudelíssimo agravo(8)!
Em conclusão: as injúrias que por desventura
recebamos, não as consideremos tão graves, que se não
possam entregar ao silêncio, que é muita vez a resposta
heroica dos espíritos superiores. Mas se foi nossa
reputação, construída pelo comum com sacrifício imenso, a
que intentaram demolir, então é meditarmos nestas
profundas e belas palavras do Prof. David Speroni, as quais
nos ensinarão a atuar a preceito: “Só dois valores grandes e
puros encontrei na vida: a Mãe e a Honra. Se perdeis vossa Mãe,
sois um órfão; se perdeis a Honra, sois um morto!” (apud J.
Didier Filho, Direito Penal Aplicado, 1957, p. 154).

Notas

(1) Sá de Miranda; apud Ernesto Carneiro Ribeiro,


Ligeiras Observações, 1902, p. 30.
(2) “Nenhuma contemplação merecem aqueles que, por
ódio, despeito, rivalidade ou áspero prazer do mal, se
fazem salteadores da honra alheia” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VI, p. 43).
(3) Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, 1752, pp. 41 e
42.
52

(4) “Mui comuns e gerais são em nós os excessos da língua”, já


o advertia o clássico Amador Arrais (Diálogos, 1846,
p. 57).
(5) “Semelhante enfim (o varão forte) ao rochedo elevado no
meio do mar, aonde vem quebrar-se a fúria das ondas, sem
que ele, batido por muitos séculos, mostre jamais aparência
alguma de irritação” (Sêneca, Da Constância do Varão
Sábio; trad. Cardeal Saraiva, Obras Completas, 1883,
vol. X, p. 375).
(6) O poeta inglês Alexandre Pope, de sua vez, compôs
este verso imortal: Errar é humano; perdoar, divino
(“To err is human; to forgive, divine”).
(7) Faz ao intento aquilo de Kant, que Ihering trasladou
em seu livro célebre: “Aquele que anda de rastos como
um verme nunca deverá queixar-se de que foi calcado
aos pés” (A Luta pelo Direito, 1968, p. 7; trad. João de
Vasconcelos).
(8) Caso análogo a este lemos em João do Mato: “Tendo
sido substituído por um suplente, quando juiz da 4a.
Pretoria Civil, o respectivo titular fora insultado por
um advogado que numa petição chamara o juiz efetivo
de incompetente, burro e teimoso. O suplente deu o
seguinte despacho, no processo: ‘Risquem-se as expressões
incompetente, burro e teimoso’. As expressões foram
riscadas, mas o despacho… ficou” (Bestiário Forense, 1959,
p. 97).
6. Da Petição Inicial
I – Conceito. Elementos formais
Chamavam-lhe os antigos libelo; dão-lhe hoje o nome
de petição inicial. Na linguagem forense, é o “ato pelo qual o
autor propõe, por escrito e articuladamente, a espécie da questão
que se há de tratar em juízo”(1).
Assento de todo processo e, pois, sua parte mais
difícil(2), deve ser a petição inicial elaborada com precisão
e clareza, qualidades que a ciência da linguagem tem
por principais em quem escreve. A clareza do escrever
pressupõe a do pensar. Donde seguir-se que só aquele que
se abalizou na arte do raciocínio (lógica) saberá claramente
reduzir a escrito o seu pensamento.
Consiste a clareza em expressar o pensamento sem
obscuridade. Para obtê-la, cumpre dar de mão a todo modo
de “tecer o discurso que torne o sentido ambíguo e embaraçoso”(3),
não se penetrando à prima vista o pensamento do escritor.
Este atributo fundamental do estilo comparou-o
Quintiliano não menos que ao Sol: o ponto está em que a
clareza seja tal, que impressione ainda ao mais fraco
entendimento, “bem como a luz do Sol se mete pelos olhos”(4).
A clareza ou perspicuidade da locução depende sobretudo
da propriedade do termo, que é a fiel adequação das palavras
às ideias que intentamos traduzir. Infringe a regra da
propriedade do estilo forense, v.g., o advogado que
emprega intimação por citação, interrogatório por
inquirição de testemunha, despejo do locatário em vez de
despejo do imóvel, etc.
54

Do libelo é outro requisito formal a precisão, cuja


inobservância o anterior regime processual civil (art. 158,
nº III) fulminava de inépcia. Tal sanção ainda consta do
direito positivo(5). Em seu obséquio, não se deve usar senão
dos termos necessários à enunciação das ideias, arredados
sempre os supérfluos.

II – Paragrafação
A fim de assegurar a clareza expositiva da petição, é
recomendável que o advogado a articule, isto é, dê-lhe
a forma de artigo ou item. Embora antes apropriada à
natureza da petição inicial, a separação por períodos
gramaticais convém igualmente aos requerimentos em geral,
às alegações e às razões. Esta assaz preconizada técnica de
redigir o discurso também se conhece por paragrafação. É
a pedra angular de todo o arrazoado, porque, uma vez
dispostas em parágrafos numerados, ficam as ideias mais
inteligíveis, sobretudo se observada a ordem lógica do
raciocínio dedutivo (introdução, desenvolvimento e
conclusão).

III – Forma de tratamento do juiz


Ao dirigir-se ao juiz, o subscritor da petição
empregará a fórmula de tratamento Vossa Excelência (que
se abrevia V. Exa.). Como os pronomes de tratamento
substituem a terceira pessoa gramatical, nesta é que deve
ser flexionado o verbo(6). Exemplo: Vossa Excelência
fará (não “fareis”) justiça, absolvendo o réu. Também da
55

fórmula meritíssimo (que tem muito mérito) pode-se usar em


referência ao juiz(7). Abreviadamente: MM.
A petição, lembra o insigne Pontes de Miranda, “há de
ser escrita respeitosamente, atenta a prerrogativa da dignidade
judiciária e das instituições”(8). Repugna, assim, à gravidade
inerente às coisas da justiça o emprego de palavras ou
frases que denotem falta de decoro, desprimor de
linguagem ou, o que fora muito de sentir e deplorar,
incorram em a nota de doesto e convício. Daqui a razão
por que o legislador processual civil lhes atalhou o curso, in
verbis: “É defeso às partes e seus advogados empregar expressões
injuriosas nos escritos apresentados no processo (…).”(9)
Suposto não constitua crime de injúria ou difamação
a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pelo
advogado, conforme dispõe o art. 142, nº I, do Código Penal,
será sempre violação grave do código de urbanidade, cujos
mandamentos a gente que se preza e respeita faz timbre de
guardar.

IV – Tratamento devido ao adversário


Sem mentir à confiança do cliente que se
encomendou a seu patrocínio, deve o advogado manter
com o colega “ex adverso” relacionamento que evidencie,
em tudo, respeito e consideração. (Não é para esquecer que
natural espírito de solidariedade associa aqueles que
pertencem à ínclita profissão; pelo que, haja sempre entre
eles tratamento cordial). A pessoa do advogado é mister
que fique abroquelada dos tiros que, no debate da causa,
venha a desfechar-lhe a dialética veemente do antagonista.
56

A questão agitada entre as partes perante o juiz não


houvera jamais de extrapassar as raias do litígio e atingir
seus patronos. É apenas um simulacro de guerra, não é
uma guerra a em que se empenham no teatro forense. Os
advogados, importa que levem a mira em fazer triunfar as
próprias razões contra as do adversário, não em vencê-lo.
O trato afável, justamente encarecido entre os
advogados, não haverá inibi-los, porém, de recorrer àquela
que passa pela mais temível arma de combate no campo
das ideias: a ironia. Desta figura de retórica disse tudo
quem a definiu como “forma elegante de ser mau”(10).
Até os mais acabados modelos de caráter e fidalguia
serviram-se dela quando se lhes ajeitou ensejo. Assim com
Eurico Sodré, advogado polido e culto como os que mais o
foram, não se correu de molhar na tinta da ironia sua pena,
em certa demanda cujo ponto controverso eram os danos
que, nos primórdios do século passado, causavam no
calçamento das vias públicas paulistanas os bondes
elétricos da Light (sua cliente), o que não sucedia ao tempo
em que eram trazidos por animais (burros). Foi o caso que
o advogado contrário lhe saíra, na petição de agravo, com
esta pilhéria escarninha: que a Light havia recolhido “para o
seu serviço interno, os muares que empregara em seus serviços
externos”. E a coartada de Eurico veio, sobre irônica,
demolidora: “Quanto ao aproveitamento dos muares que
puxavam os bondes peremptos, pode a agravada afirmar, com
ênfase e convicção, que a nenhum conservou em seu serviço e que,
tendo-se desfeito deles, não curou de verificar as carreiras que
seguiram (…)”(11). Exemplo é também de impiedosa ironia
57

a daquele representante do Ministério Público para com


o grande criminalista italiano Henrique Ferri, num
julgamento célebre: “Quando o doente recorre a um médico
de fama é porque sente a saúde muito abalada!”(12)

V – Palavra, imagem da alma


Sendo verdade inelutável que toda obra revela seu
autor, não permita o advogado que seus arrazoados
forenses reflitam um caráter ignóbil e um coração
empedernido. Para tanto, olhe que suas ideias sejam
elevadas, o estilo circunspecto e a locução nobre e
escorreita; não descaia em licença; tampouco afronte o
pudor da gramática. Expunja do escrito as expressões
contumeliosas, advertindo que “a injúria é sempre um mau
argumento”(13).
Em tudo o que escrever, diligencie por alcançar
padrão profissional tão lisonjeiro e eminente, que lhe
quadre este soberbo e acaso inexcedível louvor de um
espírito de escol, que foi Laudo de Camargo, Ministro do
Supremo Tribunal Federal: “O nome de certos advogados
debaixo de uma petição é meia prova feita do que está
pedindo”(14).

VI – Da concisão e da brevidade
Outra qualidade essencial, de que não poderá carecer
o arrazoado forense, é a concisão. Último grau da arte de
bem escrever, consiste em dizer muito em pouco. Da rara
estima que dela fazem os autores de nomeada, para logo se
58

mostra nisto de havê-la um engenho feliz apelidado “alma


do espírito”(15).
A consequência da concisão é a brevidade. O texto
conciso por força que será breve. Com dizer muito em
poucas palavras, o advogado, ou fale ou escreva,
necessariamente não irá além da marca. Ao demais,
atenderá, avisado, ao venerando preceito horaciano: “Esto
brevis et placebis”(16).
Ficará ao prudente arbítrio do advogado, segundo lho
reclame a importância ou a natureza do assunto, dilatar ou
contrair as lindas de sua petição.
Os longos arrazoados jurídicos, bem que muito
comuns outrora, não se podem hoje sofrer. É que a
angústia do tempo retirou aos espíritos o ócio
indispensável às extensas leituras. Além disso — e não
há supor atrevimento onde só a verdade discreteia —,
escrever alguém muito e prolixamente é aventurar-se a não
ser lido sequer por aquele que, primeiro que julgue o réu,
está na obrigação de ouvi-lo: o juiz da causa.
A razão disto no-la deu o clássico Manuel Bernardes:
“Memoriais longos e compostos até a Deus desagradam”(17).

Notas

(1) Lourenço Trigo de Loureiro, Teoria do Processo, 1850,


p. 91.
(2) Barão de Ramalho, Postilas de Prática, 1872, p. 86.
59

(3) Ernesto Carneiro Ribeiro, Serões Gramaticais, 1955,


p. 797.
(4) Instituições Oratórias, 1790, t. II, p. 48; trad. Jerônimo
Soares Barbosa.
(5) “Considera-se inepta a petição inicial quando da narração
dos fatos não decorrer logicamente a conclusão” (art. 295,
parág. único, nº II, do Cód. Proc. Civil).
(6) Cf. Napoleão Mendes de Almeida, Gramática Metódica
da Língua Portuguesa, 29a. ed., p. 174.
(7) Vem aqui a talho de foice a lição de Eliasar Rosa: “Em
meritíssimo (forma de tratamento reservada aos juízes) o
grau superlativo comunica à forma de tratamento um
acentuado teor de respeitabilidade, de reverência e, mesmo,
de solenidade que deve cercar a pessoa do magistrado, em
obséquio de suas funções. Evite-se o meretíssimo de certas
petições. E, muito mais, evitem-se o meretríssimo e o
meritríssimo dos leigos” (Os Cem Erros mais Comuns nas
Petições, 1a. ed., p. 54). Advogado houve que, num
petitório, chamou de meritríssimo o juiz. Ao que este
despachou: “O requerente trocou o repetido tratamento
vestibular por um prostibular. Volte-lhe portanto o processo,
para que nele fale com o acatamento que se deve a um juiz e
com o respeito devido à nobre profissão dos advogados”
(Fernando Caldeira de Andrada, O Pitoresco na
Advocacia, 1a. ed., p. 178).
(8) Teoria e Prática do “Habeas Corpus”, 1961, p. 409.
(9) Art. 15 do Código de Processo Civil.
60

(10) Berilo Neves; apud Folco Masucci, Dicionário


Humorístico, 2a. ed., p. 134. Igualmente faz ao
propósito aquilo do discreto Francisco Manuel de
Melo: “O mais terrível artifício que inventou a malícia é
ofender com louvores” (Apólogos Dialogais, 1920, p. 82).
(11) Cf. Revista da Academia Paulista de Direito, 1973, nº 2,
p. 18.
(12) Henrique Ferri, Discursos de Defesa, 5a. ed., p. 10;
trad. Fernando de Miranda.
(13) Eliézer Rosa, Novo Dicionário de Processo Civil, 1986,
p. 46.
(14) Idem, A Voz da Toga, 1983.
(15) William Shakespeare, Hamlet, ato II, cena II; trad.
Carlos Alberto Nunes.
(16) Arte Poética, v. 355. Em vulgar: Sê breve e agradarás.
(17) Nova Floresta, 1726, t. IV, p. 420.
7. O Sagrado Direito de Defesa
I – Ao comum do povo geralmente repugna o solene
desvelo com que a Justiça Criminal tutela os interesses do
acusado, ainda que autor de crime gravíssimo. É que,
havendo obrado tão perniciosamente contra a espécie
humana, a nenhuma outra coisa parece pudera já aspirar
tal indivíduo, exceto (e isto à maneira de pública expiação)
a afastar-se incontinenti do convívio social.
Dantes era como procediam os homens, sob o influxo
da lei do talião(1); não assim hoje, em que às instituições
legítimas, não aos impulsos da vingança privada, confiaram
a solução de seus conflitos.
Efeito grande do progresso cultural dos povos,
o direito de defesa constitui, de presente, garantia
impostergável do indivíduo. Toda vez que acusado de
crime, tem jus à defesa, mesmo que, vilíssimo entre os de
sua condição, esteja naquele ponto da escala zoológica
onde o homem confina com a animalidade bruta.

II – Por emprestar-lhe caráter sagrado, os mais dos autores


prendem o direito de defesa não menos que à primeira
idade do mundo.
Antes de condenar Caim, o fratricida, rezam as
Escrituras que Deus quis ouvi-lo: “Quid fecisti?”(2)
Não fora preciso (no caso que o houvesse) mais
cabal argumento da excelência do princípio da defesa,
indelevelmente inscrito, em soberbos relevos, nos
diplomas constitucionais de todas as nações livres.
62

Nossa Carta Magna incluiu-o expressamente em suas


primeiras disposições(3). Isto mesmo fizera constar a ONU,
em 6.12.48, no art. 11 da Declaração Universal dos Direitos
do Homem.
É a defesa, portanto, direito que o Estado
democrático deve assegurar, sem exceção, aos acusados,
com o timbre de regra processual inviolável: “Ninguém pode
ser julgado sem defesa”.

III – Não basta, porém, que o acusado tenha defesa; é


mister que a tenha em sua plenitude, porque “só merece o
nome de defesa a que for livre e completa”(4).
Aquele que a tomou sobre si, ainda que venha a
exceder-se por palavras ou atos, sempre achará quem lhe
escuse as demasias. É que a defesa do réu, sem embargo de
exercida alguma vez com despropositada veemência, não
desmereceu nunca no conceito dos que bem compreendem
o ideal da Advocacia: promover a restauração do direito
violado.
Daqui por que o próprio legislador houve a bem
acautelar os interesses do advogado (do cliente, fora
melhor dito) contra a má fortuna, desfazendo a nota de
crime nas ofensas que irrogar em Juízo, na discussão da
causa: não constituem injúria ou difamação(5); tampouco
desacato(6).
Tal imunidade, que outros profissionais desconhecem,
têm-na os advogados (e dela fazem grande cabedal),
porque são eles, no fim de contas, segundo a frase
memorável de Rui, “a voz dos direitos legais” do acusado(7).
63

IV – Da boa estimação que graves autores fizeram do


princípio processual da amplitude do direito de defesa
depõem superiormente estes dois exemplares:
a) “Só uma luz nesta sombra, nesta treva, brilha intensa no
seio dos autos. É a voz da defesa, a palavra candente do
advogado, a sua lógica, a sua dedicação, o seu cabedal de
estudo, de análise e de dialética. Onde for ausente a sua
palavra, não haverá justiça, nem lei, nem liberdade, nem
honra, nem vida” (Ribeiro da Costa, Ministro do
Supremo Tribunal Federal; in Diário da Justiça da
União, 12.12.63, p. 4.366);
b) O grande advogado Sobral Pinto, sustentando a tese
de que todo homem tem direito à palavra de defesa,
acentuou: “Deus que tudo sabe e tudo pode, antes de
proferir a sua sentença contra Caim, que acabava de
derramar o sangue de seu irmão, quis ouvi-lo, como narra a
Sagrada Escritura, dando aos homens, com este exemplo, a
indicação irremovível de que o direito de defesa é, entre
todos, o mais sagrado e inviolável” (Pedro Paulo Filho,
A Revolução da Palavra, 2a. ed., p. 168).

Tem foro de garantia constitucional e está germanado


à plena defesa o princípio do contraditório, que deve dominar
o processo penal. Consiste na igualdade ou equilíbrio entre
as partes, com idênticas oportunidades para produzirem
provas e contradizê-las. Tudo há de ser feito às claras, “na
bochecha do Sol”, como recomendavam nossos maiores(8),
ouvindo-se ambas as partes. Depara seu fundamento na
regra jurídica: “Audiatur et altera pars”. Ouça-se também a
parte contrária.
64

Nisto do contraditório — ou resposta —, cai a lanço


reproduzir passo antológico de Vieira, em carta à Nobreza
de Portugal:
“É cousa tão natural o responder, que até os penhascos duros
respondem e para as vozes têm ecos. Pelo contrário, é tão
grande violência não responder, que aos que nasceram
mudos fez a natureza também surdos, porque se ouvissem, e
não pudessem responder, rebentariam de dor” (Cartas,
1971, t. III, p. 680).

E tendo falado Vieira, o clássico mais autorizado da


língua portuguesa(9), aqui faremos ponto; que nenhuma
pena se atreveu nunca a ir-lhe adiante.

Notas

(1) “Lei, pena do talião, castigo que consiste em fazer sofrer ao


delinquente o que ele faz sofrer à vítima” (Constâncio,
Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1877, p. 916);
“Talião. Deriva-se do adjetivo latino talis, como quem
dissera talis retributio, ou poena talis, porque talião é pena
recíproca, castigo semelhante ao delito, mal igual, e pena tal
qual se deu a outra pessoa” (Bluteau, Vocabulário, 1721,
t. VIII, p. 26).
(2) “Que é o que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama
desde a terra até a mim” (Gên 4,10; trad. Antônio
Pereira de Figueiredo).
65

(3) Art. 5º, nº LV: “(…) aos acusados em geral são assegurados
o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes.”
(4) J. Soares de Melo, O Júri, 1941, p. 16.
(5) Art. 142, nº I, do Código Penal.
(6) Art. 7º, § 2º, da Lei nº 8.906, de 4.7.94 (Estatuto da
Advocacia).
(7) Obras Completas, vol. XXXVIII, t. II, p. 10.
(8) Arte de Furtar, 1652, p. 68.
(9) Francisco José Freire, Reflexões sobre a Língua
Portuguesa, 1842, p. 10.
8. O Advogado e a Defesa Oral
nos Tribunais(*)

Meus amigos, boa noite!


I – É honra imensa a de poder falar-vos neste magnífico
simpósio de estudos sobre ritos processuais penais,
promovido pela Escola de Advocacia Criminal do Estado
de São Paulo. Apenas entro em escrúpulos se em vez de ser
eu quem vos devera ocupar a atenção, não fora melhor
devolver a palavra aos doutos colegas que me precederam,
ou transferi-la desde já ao expositor seguinte, o abalizado
penalista Dr. Hélio Bialski. É responsabilidade grande,
com efeito, discorrer perante plateia tão seleta e corpo
docente de tanto saber e erudição, que se vê transformado
este auditório da Acrimesp numa verdadeira academia de
ciência jurídica.
Contudo, sem mais salvas nem ambages, vamos ao
ponto: Sustentação Oral nos Tribunais.

II – Nenhuma profissão humana, mormente a Advocacia,


pode prescindir da palavra como expressão do pensamento.
É ela a arma por excelência do advogado, profissional que
o célebre Catão definiu como “vir bonus, dicendi peritus”(1), o
que em nosso vernáculo quer dizer: homem de bem, perito
na arte de falar.

(*) Palestra na Acrimesp, em 6.12.1995.


68

O nobre ofício do advogado — não há quem o


não saiba — resume-se num verbo: convencer(2). Sua
eloquência reduz-se essencialmente a isto: convencer os
juízes(3) de todos os graus de jurisdição.
A sustentação oral inscreve-se, pois, entre os mais
importantes meios que a lei assina ao advogado para prover
à defesa de seus clientes.
O Estatuto da Advocacia previu-a em seu art. 7º, nº IX,
entre os direitos do advogado. O mesmo passa em relação
aos Tribunais, cujos regimentos internos facultam aos
advogados sustentar suas razões.
Foi tormentosa questão, nos círculos forenses, se o
advogado deveria falar antes ou após o voto do relator. A
controvérsia já perdeu de momento, porque o Supremo
Tribunal Federal, em Ação Direta de Inconstitucionalidade
proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros,
suspendeu a eficácia da cláusula “após o voto do relator”. O
advogado falará, portanto, antes do voto do relator do
processo.
E o principal argumento expendido em favor da
praxe tradicional foi que “a sustentação oral integra a etapa
de discussão da causa, enquanto o voto do relator caracteriza o
início do julgamento”(4). Além disso, o velho Estatuto (Lei nº
4.215/63) já assegurava (e o atual o manteve) o direito de o
advogado “usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou
tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco
ou dúvida surgida” durante o julgamento (art. 7º, nº X).
69

Todavia, mais do que o momento de usar a palavra, o


que verdadeiramente importa e avulta é o modo de usá-la,
de tal sorte que seja valioso instrumento de conquista
profissional.

III – A eloquência judiciária está subordinada às mesmas


regras do discurso oratório, conforme a doutrina clássica de
Quintiliano, retórico latino que floresceu pelo séc. I da era
cristã, autor da famosa obra Instituições Oratórias. Dividiu o
discurso em 4 partes: Exórdio, Narração, Confirmação e
Peroração.
No exórdio busca o orador conciliar a benevolência
dos juízes, conquistar-lhes a simpatia e interessá-los para
que de bom ânimo recebam sua mensagem. Aqui o
advogado lhes falará à razão e aos sentimentos.
No Tribunal, a própria saudação à turma julgadora e
ao procurador de justiça poderá servir de matéria para o
exórdio.
Exemplificando:
[Excelentíssimo Senhor Presidente;
Demais nobres Juízes;
Digno Procurador de Justiça, reputado modelo de
honra, austeridade e cultura jurídica:
No intento de promover, quanto em nós couber,
a defesa dos direitos e interesses do cliente é que
comparecemos perante Vossas Excelências, não acaso
movidos da incerteza do veredicto, que este será sempre o
voto perfeito da razão e da consciência.
70

Nossa presença nesta colenda Câmara argui também


o sentido, porque assim o digamos, de um como preito
de admiração a Vossas Excelências, todos magistrados
insignes, a quem os advogados criminalistas prezamos por
mais de um predicamento louvável. Com respeito e estima
saudamos Vossas Excelências.]
Após o exórdio, que é a preparação do auditório, fará
o advogado a narração (ou exposição) do fato incriminado.
Poderá servir-se deste modelo:
[Eminentes Julgadores, pela prática de furto, o MM.
Juízo de Direito da 1a. Vara Criminal da Capital condenou
o réu-apelante à pena de 1 ano de reclusão. A r. sentença,
no entanto, salvo melhor aviso, rende o flanco a censura,
pois se louvou em elementos inidôneos para definir a
responsabilidade criminal do réu.
Em Juízo, o apelante negou, com a veemência de que
só os inocentes são capazes, a prática delituosa. Não houve
testemunhas presenciais do fato. Somente a vítima o
incriminou, por tê-lo visto a perambular nas imediações de
sua casa, mas em seu poder não foi apreendida a “res
furtiva”. O conjunto probatório, em suma, é precário e
coxo. A condenação, destarte, não pode subsistir.]
Até aqui a exposição do fato e suas circunstâncias.
A terceira parte do discurso é a confirmação. É a fase
da sustentação da tese da defesa.
Parece bem apresentá-la assim:
[Doutos Juízes, conforme o sentir de graves autores,
só a certeza pode ensejar condenação. No caso de ela faltar
71

(ou ceder passo à dúvida, que, em Direito Penal, é o outro


nome da ausência de prova), a absolvição do acusado será a
única decisão compatível com os ditames da Justiça.
Faz ao nosso propósito a lição de Nélson Hungria, o
maior penalista que ainda houve entre nós: “Condenar
um possível delinquente é condenar um possível inocente”
(Comentários ao Código Penal, 6a. ed., vol. V, p. 65).]
À derradeira parte do discurso denominam os
retóricos peroração ou epílogo. É o remate do discurso.
Nesta parte o orador costuma “dar o último impulso aos
corações”(5). Na sustentação oral, equivale ao pedido.
Poderá ter esta substância:
[Por estas razões, e passando em silêncio outras
muitas, por forçada brevidade e porque facilmente haverá
de supri-las o notório saber de Vossas Excelências, espera a
defesa dignem-se prover o recurso do réu para absolvê-lo
por insuficiência de provas.
Noutros casos fora só justiça, aqui será também
piedade afastar dos lábios do réu a taça amarga de uma
condenação imerecida!
Obrigado, Excelências!]

IV – Tivestes, ilustres acadêmicos de Direito, um


simulacro, ou imagem muito em sombra, do que seria uma
sustentação oral. Mencionarei agora ligeiramente, ou “per
summa capita”, como diria o egrégio tribuno Dr. Antônio
Carlos de Carvalho Pinto, alguns preceitos a que o
advogado deve catar observância, quando lhe couber
72

sustentar razões perante o Tribunal, nos casos que a


lei admite (apelação, revisão, “habeas corpus”, embargos
infringentes e recurso em sentido estrito).
Primeiro que o mais, cumpre que o advogado se
prepare bem para a tribuna. Procure estudar com afinco o
processo, conhecer o direito aplicável ao caso concreto e
reduzir a escrito a peça oratória. Leia-a, depois, quanto
possível. De suas partes principais faça um resumo, um
esboceto, e entregue-o à memória. Exercite-se entre quatro
paredes, enquanto lhe não chegue a suspirada hora de
arengar diante da luzida Corte de Justiça, que decerto o
escutará com edificação e arrebatamento, como quando
fala o Dr. Mauro Otávio Nacif, aqui presente.
Ao proferir sua alocução, deve o advogado empregar
a linguagem técnica forense, a fraseologia jurídica, e
observar, rigorosamente, os cânones gramaticais. Não
poderá ofender o pudor dessa veneranda matrona que é a
gramática, perpetrando abomináveis solecismos como
estes: “fazem 81 dias” que o réu está preso; “não houveram
testemunhas” presenciais do fato; “o policial interviu” na briga,
etc. Diga o advogado meritíssimo (e não “meretíssimo” ou, o
que fora mais deplorável, “meretríssimo”, que, sobre ser erro
de prosódia, configuraria também desacato). Intuito e
gratuito é como se pronuncia, e não “intuíto”, “gratuíto”. Os
policiais detiveram o ladrão, e não “deteram”. O advogado
que, na tribuna disser que “os policiais deteram o ladrão”,
ainda que esteja enfarpelado numa rica e perfumada beca
de seda do Oriente, provocará ao menos duas insignes
desgraças: terá furado o outro olho ao divino Camões
73

(agora o esquerdo!) e ter-se-á recomendado mal àqueles


que lhe vão julgar a causa do cliente.
Não vos esqueça, portanto, aquela profunda
observação de Voltaire: “A maneira pela qual dizemos as
coisas, não raro vale mais do que as coisas que dizemos”(6).
Também a postura do advogado ao discursar requer
algumas ponderações:
a) Sem embargo de o Estatuto rezar que pode “falar
sentado” (art. 7º, nº XII), o advogado deve fazê-lo em
pé. A posição ereta é a que mais se apropria e convém
ao orador, porque o mantém num plano de
superioridade, facilitando-lhe a prolação das palavras,
sem comprimir o órgão fonador e a gesticulação.
Paladino que é do Direito, o advogado, na tribuna,
assemelha-se ao soldado que peleja no campo
de batalha. Sustentar oralmente sentado não se
compadece, portanto, com a nobre figura do
advogado, sobretudo se criminalista, de seu natural
valente, intrépido e garboso!
b) Na sustentação oral é defeso ao advogado ler
memoriais. Poderá consultar breves notas e
apontamentos, ler não(7). Ele discursará sem ler nem
gritar. Pode ser veemente, sem contudo vociferar.
Recomenda-se-lhe até que dispense o microfone, se
tiver voz solene de Júpiter Olímpico, ou de trombeta
do Juízo Final. As Câmaras dos Tribunais são exíguas
e nelas de ordinário impera silêncio pouco menos que
sepulcral, o que permite ao orador ser escutado de
todos os presentes, sem precisão de deblaterar, como
74

fazem alguns pregadores evangélicos da Praça da Sé,


que vivem ameaçando os pecadores com o fogo do
Inferno.
Não se deve todavia cair no vício oposto: o de falar
muito baixo, quase sussurrando. É que, além de
outros inconvenientes conspícuos, isso poderá
induzir os ouvintes ao sono (e transformar o
auditório em dormitório).
Daqui por que afirmara, em conferência, o nosso
distinto e saudoso Theotonio Negrão que não tinha
certeza se era bem ouvido pelos membros das
Câmaras: “(...) é que só depois de suas sustentações orais o
presidente anunciava: Acordam… (como se fora o despertar
do sono dos justos (…)”(8).
c) Antes de concluir, direi duas palavras acerca do
grave defeito de que se deve eximir todo o orador
(e em que estou incorrendo): a prolixidade, o
intumescimento do discurso. Tudo o que é em
excesso desvirtua; até a bondade morre do excesso. O
ponto está em acertar com o equilíbrio. É o preceito
de Horácio: “Esto brevis et placebis”. (Sê breve e
agradarás). Evite, por fim, o advogado, quanto em si
caiba, atos e situações insólitas e desprimorosas como
os daquele causídico paranaense que, indignado com
o indeferimento de uma revisão criminal, cometeu
o despautério de (perdoai-me se ofendo orelhas
pudicas), cometeu o despautério de ficar só de
cuecas no sacrossanto recinto do Tribunal de Justiça.
Todos os jornais do País publicaram a foto (nada
75

pudibunda!) do arrojado tribuno. (Era vermelha a


peça íntima de nosso “herói”, acaba de esclarecer o
Dr. Mauro Nacif, sempre muito bem informado das
coisas jurídicas e profanas; vermelha de vergonha,
certamente!).
Afora os abusos de alguns espíritos galhofeiros, é a
sustentação oral um dos pontos mais altos a que pode
remontar-se o talento do verdadeiro criminalista em
prol daqueles que se encomendaram, confiantes, a seu
patrocínio.

V – Dois pontos, por sua particular relevância, quisera


ferir ainda nesta ligeira alocução: um é a força de vontade,
como fator insubstituível dos triunfos oratórios; o outro, o
aparte na eloquência judiciária.
Diletos colegas e acadêmicos de Direito, desenganemo-
-nos por todo o sempre: ninguém será bom orador,
ninguém haverá de participar da glória tribunícia de
Demóstenes, de Cícero e de Rui, se não se consagrar, como
eles, diuturnamente e sem desalento, à arte de falar em
público.
Uma vontade intrépida e inabalável será, portanto, o
primeiro requisito daquele que aspire à palma da oratória,
pois que o orador se faz, não nasce como o poeta.
De sua irresistível vocação poética afirmou Ovídio
que tudo que tentava dizer em prosa era verso(9). Tratava-
-se de um pupilo mimoso e afortunado das musas! Não
assim os oradores: estes se fazem. O dom da poesia é inato
76

no homem; o da eloquência pode ser adquirido pelo


trabalho e pelo estudo(10).
Enquanto Bilac despertava à noite para “ouvir estrelas”,
que fazia Rui? Ele mesmo no-lo responde na celebérrima
Oração aos Moços: encetava sua banca solitária de estudo
às primeiras horas da antemanhã(11). De madrugada. Não
maravilha, pois, tenha sido “o primeiro talento verbal da
nossa raça”(12). Como Rui, também Demóstenes, que era
tartamudo ou gago de nascença, e mediante inauditos
esforços, declamando com seixos ou pedrinhas na boca,
nas praias do Mar Egeu, e lendo avidamente os grandes
mestres, conquistou o primado da oratória e recebeu a
coroa de ouro. Símbolo e exemplo vivo do que é capaz a
vontade humana. É “O Pai da Eloquência” e o seu eterno
paradigma.
Tudo vence o esforço, meus amigos! O sacrifício é o
pedestal da vitória. Façamos como Demóstenes, isto é,
apliquemo-nos aos estudos com pertinácia e tenacidade, se
quisermos transformar a palavra em valioso instrumento
de nobilitantes vitórias e galardão profissional.
Cícero, para adiantar-se na arte da palavra, não
hesitou em ir á Grécia e ali tomar lições com o famoso
retor Mólon. De nós não se exige tanto. Basta que
frequentemos as sessões do júri e as Câmaras dos Tribunais.

VI – E uma vez que mencionei as sessões do júri, cai a


propósito versar a questão do aparte, que é a “interrupção
feita a um orador, no meio de seu discurso”(13).
77

Os apartes no júri são frequentes e, não raro, motivo


de grande tensão no plenário, porque elevam a temperatura
do debate e obrigam, muita vez, à interferência do juiz-
-presidente, que faz soar o tímpano ou vibra golpes de
malho.
É de preceito que o aparteante, primeiro solicite o
aparte — V. Exa. me concede um aparte? —, o qual, uma
vez concedido (e o orador pode negá-lo), ensejará ao
aparteante formule sua pergunta ou objeção.
À solicitação do aparte do Ministério Público poderá
o advogado responder:
– “Se oportuno e inteligente, será uma honra para a Defesa
concedê-lo a V. Exa.”
Concluído o aparte do Promotor de Justiça, poderá
retrucar o defensor:
– “Temos ouvido apartes de V. Exa. muito mais nobres do
que este”; ou
– “Foi sempre um princípio nosso respeitar o direito da
palavra, ainda quando precipitada, injusta e insolente como a de
V. Exa.”

VII – A réplica ao aparte é a pedra de toque, o teste


decisivo do orador, porque revela sua perspicácia, argúcia
intelectual, cultura e conhecimento do assunto que se
discute.
É o instante de que poderá depender a sorte da causa
e do próprio orador.
78

A História da Eloquência tem registrado apartes


notáveis.
Ouviremos alguns:

Na Tribuna Forense:
1º) Certa feita, depois de longa arenga com o promotor
público, o advogado e poeta cearense José Quintino da
Cunha ouviu dele uma frase comprometedora: “Senhores do
conselho de sentença, eu estou montado no Código Penal”. E,
fulminante, Quintino da Cunha rebateu: “Pois V. Exa. faz
muito mal em montar em animal que não conhece!”(14)

Na Tribuna Parlamentar:
2º) O sogro de Hermes da Fonseca, o velho Almirante
Teffé, senador pelo Amazonas, teria dito: “Não houveram
muitas vítimas. Foram pouquíssimas”. E Rui, prontamente:
“Houve agora mais uma: a língua portuguesa, que V. Exa.
acabou de assassinar”(15).

3º) Um deputado, homem honradíssimo e inteligente,


defendendo a sua candidatura, começou o discurso com as
seguintes frases de retórica:
– “Sei que vou morrer, porém, quero morrer como Mirabeau
(o orador mais eminente da Revolução Francesa): ouvindo as
músicas mais belas e mais bem executadas, aspirando os perfumes
mais raros, vendo em riquíssimos vasos de alabastro as flores mais
exóticas…”
79

Neste ponto levanta-se José Estêvão (o Cícero do


parlamento português) e diz-lhe:
– “Se o ilustre deputado quer morrer, que morra mais
barato, porque no orçamento não há verba para tanto”.
Músicas, flores, Mirabeau, retórico, deputado e
candidatura caíram fulminados por uma salva de
gargalhadas!(16)

4º) Carlos Lacerda foi um dos maiores tribunos de seu


tempo. Este episódio é narrado por Hebert Levy:
Na Câmara dos Deputados discursava Carlos
Lacerda, quando o aparteou Ivete Vargas, nestes termos:
– “O discurso de V. Exa. é um purgante!”
– “E o aparte de V. Exa. o efeito, retrucou prontamente o
temível parlamentar”(17).
Por último, há o caso daquele conferencista que,
empolgado com a docilidade heroica dos ouvintes (ou
vítimas, como vós) discorreu por largo tempo e, afinal, já
esgotada sua eloquência, desculpou-se dizendo:
“Queiram perdoar-me, se excedi as balizas cronológicas. É
que esqueci em casa meu relógio”.
Ouviu-se uma voz na plateia:
“Eh! mas havia um calendário aí atrás na parede!”.
80

Notas

(1) Cf. Arthur Rezende, Frases e Curiosidades Latinas,


1955, p. 841.
(2) Cf. J. Soares de Mello, Perfis Acadêmicos, 1957, p. 96.
(3) Cf. Ângelo Majorana, As Formas Práticas da Eloquência,
1946, p. 180; trad. Fernando Miranda.
(4) René Ariel Dotti, in Gazeta do Povo (Curitiba, PR), de
10.10.94.
(5) A. Cardoso Borges Figueiredo, Retórica, 1875, p. 67.
(6) Cf. Mário Guimarães, O Juiz e a Função Jurisdicional,
1a. ed., p. 359.
(7) Cf. Regimento Interno do Tribunal de Justiça,
art. 476.
(8) Cf. In A Linguagem do Advogado, Revista de Processo, vol.
XLIX, p. 83.
(9) “Quidquid tentabam dicere versus erat” (Arthur
Rezende, op. cit., p. 644).
(10) “Nascuntur poetae, fiunt oratores” (Idem, ibidem, p. 437).
(11) Cf. 1a. ed., p. 32.
(12) Sílvio Romero, História da Literatura Brasileira, vol. V,
p. 448.
(13) Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa,
11a. ed.
(14) Pedro Paulo Filho, Grandes Advogados, Grandes
Julgamentos, 1989, p. 154.
81

(15) Raimundo Magalhães Jr., Rui, o Homem e o Mito,


p. 457.
(16) Bulhão Pato, Sob os Ciprestes, 1877, p. 177.
(17) Herbert Levy, Viver é Lutar, 1990, p. 245.
9. Da Legítima Defesa

Sumário. É porventura a legítima defesa o mais caro e importante dos


institutos penais, pois que serve a tutelar o direito à vida, bem máximo
de todo o indivíduo. Para os advogados criminalistas, em especial os
que atuam à barra do Júri, é sempre tema de primeira ordem.

I. A legítima defesa, afirmou Cícero num rapto de


eloquência, não tem história, porque é uma lei sagrada, que
nasceu com o homem, anterior à tradição e aos livros,
gravada que está no código imortal da natureza.(1)
Definiu-a nestes termos o Código Penal (art 25):

“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente


dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente,
a direito seu ou de outrem”.
“Todas as leis e todos os direitos permitem repelir a força
pela força”, escreveu no bronze eterno o jurisconsulto
Paulo(2): “Vim vi defendere omnes leges omniaque jura
permittunt” (Dig. 9, 2).
Isto mesmo significou o elegante Manuel Bernardes:
“A justiça concede a todos repelir a força com a força” (3).
De igual sentir, o imenso Vieira(4).
Aquele, portanto, que for injustamente agredido (ou
estiver na iminência de sê-lo), poderá afastar o ofensor, até
com violência, que o autoriza a lei. É a clara dicção do
art. 23, nº II, do Código Penal. Matar, para não morrer, não é
crime! (5)
84

Todavia, quem invoca a descriminante da defesa


própria, a esse cabe demonstrá-la acima de dúvida, pois
aqui a falta de prova faz as vezes de confissão da prática do
crime.
Não é fora de propósito notar, porém, que, em pontos
de legítima defesa, tem voga desembaraçada nos círculos
pretorianos o entendimento adotado no ven. acórdão de
que foi relator o eminente Desembargador Manuel Carlos:

“Ainda que a legítima defesa não se apresente com


impecável nitidez, não sendo razoável negá-la, deve o juiz
reconhecer sua existência” (Rev. Tribs., vol. 171, p. 97).

II. Os Tribunais de Justiça do País, desde que


comprovados os requisitos da lei, têm sistematicamente
reconhecido a licitude do teor de proceder de quem age
segundo a referida causa excludente de antijuridicidade. O
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que figura
entre os grandes luzeiros da Jurisprudência pátria, nunca
se desabraçou desta inteligência, como se vê do acórdão
seguinte, proferido por sua 5a. Câmara de Direito Criminal:
85

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO E STADO DE S ÃO PAULO


Q UINTA C ÂMARA – S EÇÃO C RIMINAL

Recurso de Ofício nº 990.09.081418-7


Comarca: Pedregulho
Recorrente: MM. Juiz de Direito “Ex Officio”
Recorrido: LS

Voto nº 12.188
Relator

– É maior de toda a censura a decisão


que, reconhecendo a existência de
causa excludente de antijuridicidade —
legítima defesa (art. 23, nº II, do Cód.
Penal) —, absolve o acusado nos termos
da lei (art. 415, nº IV, do Cód. Proc. Penal).
Em verdade, é lícito repelir a força com
a força: “Vim vi repellere licet” (Ulpiano).
–“A justiça concede a todos repelir a força
com a força” (Manuel Bernardes, Nova
Floresta, 1726, t. IV, p. 207)
– Todo aquele que for injustamente
agredido (ou estiver na iminência de sê-
-lo), poderá afastar o ofensor, mesmo
com violência, que o autoriza a lei. É a
clara dicção do art. 23, nº II, do Cód.
Penal. Matar, para não morrer, não é
crime!
86

–“A defesa individual contra um ataque


violento e sério é um direito, é mesmo um
dever, porque cada um tem não somente o
direito, mas também o dever de velar pela
sua própria conservação” (Antônio Lemos
Sobrinho, Legítima Defesa, 1925, p. 28).
–“Na minha casa, sem a minha autorização,
só entra o Sol e ninguém mais!” (Adágio).

1. Da r. sentença que, reconhecendo em seu favor causa


excludente de antijuridicidade (legítima defesa), absolveu
LS da acusação de infrator do art. 121, § 2º, nº III,
combinado com o art. 29, do Código Penal, recorreu de
ofício o MM. Juiz de Direito da Comarca de Pedregulho.
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em firme e
criterioso parecer do Dr. Gianpaolo Poggio Smanio, opina
pelo improvimento do recurso (fls. 347/349).
É o relatório.

2. Reza a denúncia que o recorrido, no dia 1º de julho


de 2006, pelas 20h30, na Rua Jerônimo Ferreira, em
Pedregulho, obrando “necandi animo”, efetuou disparos
com arma de fogo contra Luciano Domingos, nele
produzindo ferimentos que lhe foram a causa da morte.
A prova coligida (técnica e testemunhal) demonstrou,
além de dúvida, que o recorrido procedera em situação em
legítima defesa (fls. 190/191 e 230).
87

É dos autos, com efeito, que a vítima Luciano


Domingos — conhecido ferrabrás da cidade de Pedregulho
—, dando expansão às suas bravatas, foi à casa dos réus e aí
se travou de razões com eles.
Acompanhava-se do irmão Vagner e trazia consigo
uma arma branca (faca). Eis senão quando entra a agredir
o réu Lincoln; este, conseguindo livrar-se dos agressores,
pegou uma arma de fogo que estava no quarto e disparou-a
contra a vítima, atingindo-a mortalmente.
Fatos foram esses que mereceram ao douto
Magistrado não somente feliz escorço, mas observações
juntamente vivazes e verdadeiras: “Não é aceitável que
alguém apanhe de um valentão dentro da própria casa. Se existe
um lugar onde a legítima defesa deve ser analisada com toda
boa vontade é dentro da própria casa” (fl. 312).
Tem, deveras, carta de antiguidade a parêmia: “Na
minha casa, sem a minha autorização, só entra o Sol e ninguém
mais”!

3. As provas obtidas, assim na Polícia como em Juízo,


retrataram uma situação de legítima defesa própria. Todos
os requisitos legais concorreram dessa causa de exclusão de
ilicitude jurídica.
À agressão injusta e atual da vítima o acusado
revidou. O teor de seu proceder, portanto, subsumiu-se no
tipo legal do art. 25 do Código Penal.
88

Serve ao intento a lição de Antônio Lemos Sobrinho:

“A defesa individual contra um ataque violento e sério é


direito, é mesmo um dever, porque cada um tem não
somente o direito, mas o também o dever de velar pela sua
própria conservação” (Legítima Defesa, 1925, p. 28).

Todo aquele que for injustamente agredido (ou


estiver na iminência de sê-lo), poderá, destarte, afastar o
ofensor, não importando se com violência, que o autoriza a
mesma lei. É a clara dicção do art. 23, nº II, do diploma
repressivo.
De igual teor, o clássico Manuel Bernardes:
“A justiça concede a todos repelir força com força” (Nova
Floresta, 1726, t. IV, p. 207).

Essa, ao demais, foi sempre a tradição de nossa


jurisprudência. Os arestos a seguir transcritos bem o
persuadem:

a) “Age em legítima defesa quem pratica o crime ao ser


agredido, injustamente, em seu próprio lar, à noite”
(Rev. Forense, vol. 164, p. 393);
b) “Age em legítima defesa quem, injustamente agredido
em sua casa, dispara contra o agressor, matando-o”
(Rev. Forense, vol. 178, p. 409).

A decisão de Primeiro Grau resolveu a questão dos


autos com acerto e rigor jurídico.
89

Em suma, dada com estrita observância da lei e após


escorreita análise da prova dos autos, quer-se confirmada a
r. sentença de fls. 300/314, que faz honra a seu prolator, o
distinto e culto juiz Dr. Luiz Gustavo Giuntini de
Rezende.

5. Pelo exposto, nego provimento ao recurso necessário.

São Paulo, 2 de setembro de 2009


Des. Carlos Biasotti
Relator

Notas

(1) “Pro Milone”, cap. IV.


(2) Cf. V. César da Silveira, Dicionário de Direito Romano,
1957, vol. II, p. 475.
(3) Nova Floresta, 1726, t. IV, p. 207.
(4) “Haveis de ferir necessariamente a quem vos afrontou,
porque a mancha de uma bofetada no rosto só com o sangue
de quem a deu, se lava” (Sermões, 1959, t. XIII, p. 135;
Lello & Irmão —Editores; Porto).
(5) Oráculo do Direito Penal pátrio, escreveu Nélson
Hungria: “Tanto na legítima defesa, quanto no estado
de necessidade, não há crime, o que vale dizer: o fato é
objetivamente lícito” (Comentários ao Codigo Penal, 1981,
vol. V, p. 92).
10. Coletânea de Exórdios

Para desempenhar-se a primor de seu nobre ofício —


que se resume num verbo: persuadir —, há de conhecer o
advogado os preceitos da Retórica, ou “arte de bem dizer”(1),
dos quais um é conciliar a benevolência do juiz(2). Exórdio
é o nome da parte do discurso ou arrazoado forense
destinada a congraçar o orador com os ouvintes e a excitar-
-lhes a atenção. De ordinário, toma-se de frase ou
pensamento de autor célebre, que se ajuste à espécie
da causa. Não só no discurso oratório, também nas
composições literárias escritas (conforme se deixa entender
de um lugar de Cícero(3)), cabe o exórdio, de que damos a
seguir alguns exemplos. O advogado diligente, com suas
leituras, poderá acrescentá-los ao infinito:

1. “Não hei de pedir pedindo, senão protestando e


argumentando; pois esta é a licença e liberdade que tem
quem não pede favor senão justiça” (Vieira, Sermões,
1959, t. XIV, p. 302);
2. “A suspeita é a justiça das paixões. O crime é a presunção
juris et de jure, a presunção contra a qual não se tolera
defesa, nas sociedades oprimidas e acovardadas. Nas
sociedades regidas segundo a lei, a presunção universal é, ao
revés, a de inocência” (Rui, Obras Completas, vol. XXIV,
t. III, p. 87);
92

3. “A verossimilhança, por maior que seja, não é jamais


a verdade ou a certeza, e somente esta autoriza uma
sentença condenatória. Condenar um possível delinquente
é condenar um possível inocente” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1981, vol. V, p. 65);
4. “A causa da justiça porém é a verdade; a condenação do
inocente constitui maior desgraça para a sociedade do que
para o condenado, sendo preferível, segundo a velha
sentença de Berryer, ficarem impunes muitos culpados,
do que punido quem devera ser absolvido” (Firmino
Whitaker, Júri, 5a. ed., p. 89);
5. “Se ao juiz fosse facultado julgar e cominar pena ao
indigitado autor de um delito, de cuja existência ou
realidade não haja plena certeza e sobre cuja autoria paira
dúvida (…), o arbítrio sentar-se-ia no trono da Justiça, e
esta não mais seria a garantia das pessoas honestas e dos
fracos” (Moacir Amaral dos Santos, Prova Judiciária no
Cível e Comercial, vol. I, 3a. ed., p. 18);
6. “Não é a absolvição do culpado, mas a condenação do
inocente que afeta os fundamentos jurídicos, desacredita
a Justiça, alarma a sociedade, ameaça os indivíduos,
sensibiliza a solidariedade humana” (Roberto Lyra,
Introdução ao Estudo do Direito Penal Adjetivo e do
Direito Penal Executivo, p. 12);
93

7. “Não sigais os que argumentam com o grave das acusações,


para se armarem de suspeita e execração contra os acusados;
como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não
houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e
menos perder de vista a presunção de inocência, comum a
todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido
o delito” (Rui, Oração aos Moços, 1a. ed., p. 42);
8. “No processo acusatório, o juiz só tem a decidir qual das
alegações é bem fundada: se as do acusador, se as do
acusado; e não provando o primeiro plenamente as suas, a
absolvição é a consequência incontestável” (Mittermayer,
Tratado da Prova em Matéria Criminal, 1871, t. II,
p. 285; trad. Alberto Antônio Soares);
9. “Sobre o confuso tumultuar das paixões só a Justiça
resplende, como guia seguro: e é tal a pureza de seu
esplendor que, segundo a imagem aristotélica, não é tão
maravilhosa Vésper, a estrela vespertina, nem Lúcifer, a
matutina” (Giorgio del Vecchio, A Justiça, p. 161;
trad. Antônio Pinto de Carvalho);
10. “Todas as vezes que a culpabilidade não esteja completamente
estabelecida, uma condenação seria injustificada” (R.
Garraud, Compêndio de Direito Criminal, 1915, vol. II,
p. 170; trad. A.T. de Menezes);
94

11. “A acusação é apenas um infortúnio, enquanto não


verificada pela prova. Daí esse prolóquio sublime, com que
a magistratura orna os seus brasões, desde que a Justiça
Criminal deixou de ser a arte de perder inocentes: Res sacra
reus. O acusado é uma entidade sagrada” (Rui, Obras
Completas, vol. XIX, t. III, p. 113);
12. “A mais dura cousa que tem a vida é chegar a pedir e,
depois de chegar a pedir, ouvir um não: vede o que será!”
(Vieira, Sermões, 1682, t. II, p. 87);
13. “A defesa não quer o panegírico da culpa, ou do culpado.
Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente
ou criminoso, a voz dos seus direitos legais” (Rui, Obras
Completas, vol. XXXVIII, t. II, p. 10);
14. “Jamais devemos apagar de nossa memória três princípios
centrais da processualística tradicional: Reus res sacra;
nemo tenetur se detegere; satius esse imponitum relinqui
facinus nocentis quam innocentem damnare. (O réu é coisa
sagrada; ninguém é obrigado a depor contra si mesmo; é
preferível deixar impune um culpado a condenar um
inocente)” (Nélson Hungria, in Revista Forense, vol.
138, p. 339);
15. “Quanto mais abominável é o crime, tanto mais imperiosa,
para os guardas da ordem social, a obrigação de não
aventurar inferências, de não revelar prevenções, de não
se extraviar em conjecturas, de seguir passo a passo as
circunstâncias, deixando a elas a palavra, abstendo-se
rigorosamente de impressões subjetivas, e não antecipando
nada” (Rui, Novos Discursos e Conferências, 1933, p.
75);
95

16. “A possibilidade de ocorrência de erro judiciário justifica


supremos cuidados” (Roberto Lyra, Como Julgar, como
Defender, como Acusar, p. 11);
17. “É melhor absolver um culpado do que condenar um
inocente” (Idem, ibidem, p. 14);
18. “Os delitos mais horrendos, os crimes mais obscuros e mais
fantásticos e, portanto, os mais incríveis são exatamente os
que são tidos como comprovados por simples hipóteses e
indícios fracos e muito equívocos” (Beccaria, Dos Delitos e
das Penas, XIII; trad. Torrieri Guimarães);
19. “A sentença mais penosa, ou que mais fundo possa ferir a
parte, pode sempre ser suavizada, sem prejuízo de sua
eficácia, por um acento discreto de solidariedade humana”
(Cândido Naves, Páginas Processuais, 1950, p. 68);
20. “A prova para uma condenação, principalmente quando se
trata de penas extremadas, há de ser como o véu d’água,
que se escoa ao longo de um paredão granítico: cristalina,
pura, constante. Ela deve ser una, indivisível, convincente
por si mesma, para, ungida pelos óleos sagrados, ficar a
salvo de quaisquer influências que não sejam a da verdade
verdadeira” (Revista de Direito Penal, vol. 11, p. 113).

Notas

(1) Caldas Aulete, Oratória, 1875, p. III.


96

(2) Quintiliano, Instituições Oratórias, 1788, t. I, p. 230;


trad. Jerônimo Soares Barbosa.
(3) “(…) tenho um volume de proêmios, donde costumo colher
algum, quando começo algum tratado” (apud Quintiliano,
op. cit., p. 262).
11. Dia do Advogado: 11 de agosto

I. Coletânea de Pensamentos de
Rui Barbosa (Patrono dos Advogados)

Acusação
“A acusação é apenas um infortúnio, enquanto não verificada
pela prova. Daí esse prolóquio sublime, com que a
magistratura orna os seus brasões, desde que a justiça
criminal deixou de ser a arte de perder inocentes: Res sacra
reus. O acusado é uma entidade sagrada” (Obras Completas,
vol. XIX, t. III, p. 113).

Advogado
“Assim que, em todas as nações livres, os advogados são, por
via de regra, a categoria de cidadãos que mais poder e
autoridade exercem” (Obras Completas, vol. XXXVIII, t.
II, p. 54).
“A lei e a nossa consciência são os dois únicos poderes
humanos, aos quais a nossa dignidade profissional se inclina”
(Idem, ibidem, p. 61).

Defesa
“A defesa não quer o panegírico da culpa, ou do culpado. Sua
função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou
criminoso, a voz dos seus direitos legais” (Obras Completas,
vol. XXXVIII, t. II, p. 10).
98

“A defesa tem a sua religião, e há na defesa momentos em que


aquele, que apela para a justiça está na presença de Deus”
(Obras Completas, vol. XXIII, t. V, p. 61).
“A liberdade de defesa judiciária é, por toda parte, sagrada,
ainda nos seus excessos” (apud Roberto Lyra, A Obra de
Ruy Barbosa em Criminologia e Direito Criminal, 1952,
p. 215).

Elogio Histórico
“Caso, postos de parte os descontos humanos, houvessem de
condensar numa síntese o meu curriculum vitae, e do meu
naufrágio salvassem alguns restos, tudo se teria, talvez,
resumido com dizer: Estremeceu a pátria, viveu no trabalho,
e não perdeu o ideal” (Discurso no Colégio Anchieta, 1981,
p. 8).

Erro
“Uma verdade há, que me não assusta, porque é universal
e de universal consenso: não há escritor sem erros” (Réplica,
nº 10).
“A toga do magistrado não se deslustra, retratando-se dos
seus despachos e sentenças, antes se relustra, desdizendo-se do
sentenciado ou resolvido, quando se lhe antolha claro o
engano, em que laborava, ou a injustiça que cometeu”
(Obras Completas, vol. XLV, t. IV, p. 205).
99

“Melhor será que a sentença não erre. Mas, se cair em erro,


o pior é que se não corrija” (Oração aos Moços, 1a. ed.,
p. 46).

Felicidade
“A meu ver, a felicidade está na doçura do bem, distribuído
sem ideia de remuneração. Ou, por outra, sob uma fórmula
mais precisa, a nossa felicidade consiste no sentimento da
felicidade alheia, generosamente criada por um ato nosso”
(Discursos e Conferências, 1907, p. 332).

Honra
“De tanto ver triunfar as nulidades,
de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem-se
os poderes nas mãos dos maus,
o homem chega a desanimar da virtude,
a rir-se da honra,
a ter vergonha de ser honesto”
(Obras Completas, vol. XLI, t. III, p. 86).
100

Igualdade
“A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar
desigualmente aos desiguais, na medida em que se
desigualam” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 25).

Imprensa
“A imprensa é a vista da nação. Por ela é que a nação
acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que
lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o
que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou
nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que
lhe interessa, e se acautela do que a ameaça” (A Imprensa e o
Dever da Verdade, 1920, p. 15).

Justiça
“Não há sofrimento mais confrangente que o da privação da
justiça” (Obras Completas, vol. XL, t. VI, p. 202).
“Se alguma coisa divina existe entre os homens é a justiça”
(Obras Completas, vol. XXV, t. IV, p. 329).
“Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e
manifesta” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 42).
“A esperança nos juízes é a última esperança” (Obras Seletas,
t. VII, p. 204).
101

Pátria, Família
“A pátria é a família amplificada. E a família, divinamente
constituída, tem por elementos orgânicos a honra, a
disciplina, a fidelidade, a benquerença, o sacrifício”
(Discurso no Colégio Anchieta, 1981, p. 9).

Pena
“A certeza da punição é um dos mais importantes e ativos
elementos na organização do sistema penal” (apud Roberto
Lyra, A Obra de Ruy Barbosa em Criminologia e Direito
Criminal, 1952, p. 250).

Pleitos Judiciais
“Duvidosa foi sempre a sorte das lides judiciárias, ainda
quando manifesta a justiça dos litigantes. Daí, a utilidade,
reconhecida em todos os tempos, das transações; e por isso a
sabedoria da experiência manda muitas vezes preferir a má
composição à boa demanda” (apud Roberto Lyra, A Obra
de Ruy Barbosa em Criminologia e Direito Criminal, 1952,
p. 205).

Presunção de Inocência
“O crime é a presunção juris et de jure, a presunção contra
a qual não se tolera defesa, nas sociedades oprimidas e
acovardadas. Nas sociedades regidas segundo a lei a
presunção universal é, ao revés, a de inocência” (Obras
Completas, vol. XXIV, t. III, p. 87).
102

“Não perder de vista a presunção de inocência comum a todos


os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido o
delito” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 42).
“Enquanto a acusação não prova, presume-se a inocência do
acusado. Sobre isto não há contestação em escola alguma”
(Obras Completas, vol. XXVIII, t. I, p. 197).

Verdade
“O maior, o mais inviolável dos deveres do homem público
é o dever da verdade” (A Imprensa e o Dever da Verdade,
1920, p. 53).
103

II. A “Pendura” e o Direito Penal

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO E STADO DE SÃO PAULO


Q UINTA C ÂMARA – S EÇÃO C RIMINAL

“Habeas Corpus” nº 1.003.154-3/7-00


Comarca: São Caetano do Sul
Impetrante: Dr. Mário Rui Aidar Franco
Paciente: LMO

Voto nº 7799
Relator

– “As atribuições do Ministério Público,


bem compreendidas, são as mais belas
que existem” (De Molénes; apud J.B.
Cordeiro Guerra, A Arte de Acusar, 1a.
ed., p. 99).
104

– Segundo a comum opinião dos doutores e a


jurisprudência de nossos Tribunais, não
comete crime de estelionato o acadêmico de
Direito que, por festejar a data comemorativa
da instituição dos cursos jurídicos no País —
11 de agosto —, pratica a denominada
“pendura”, isto é: dirige-se a uma casa de pasto
e, após comer à tripa forra e entrar
galhardamente pelas bebidas, chama a seu pé
o dono do estabelecimento e comunica-lhe,
em discurso de pompa e circunstância, que
aquele troço de estudantes quer homenageá-
lo como a amigo e benfeitor da velha e
gloriosa Academia de Direito do Largo de
São Francisco, além de significar-lhe eterna
gratidão pelo “oferecimento” do memorável
banquete.
– Em escólio ao art. 176 do Código Penal
escreveu Damásio E. de Jesus: “Entendeu-se
haver mero ilícito civil e não penal, uma vez que o
tipo exige que o sujeito não possua recursos para o
pagamento dos serviços” (Código Penal Anotado,
17a. ed., p. 674).
– Dispõe o art. 659 do Cód. Proc. Penal que, se o
Tribunal verificar ter já cessado a violência
ou coação ilegal de que se queixa o paciente,
lhe julgará prejudicado o pedido de “habeas
corpus”.
–“Julga-se o habeas corpus prejudicado quando o
impetrante obtém, durante a ação, a situação
jurídica reclamada” (STJ; HC nº 1.623/2;
6a. T.; rel. Min. Vicente Cernicchiaro;
j. 18.12.96).
105

1. O ilustre advogado Dr. Mário Rui Aidar Franco


impetra a este Egrégio Tribunal ordem de “Habeas Corpus”
em favor de LMO, sob a alegação de que padece
constrangimento ilegítimo da parte do MM. Juízo de
Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca de São Caetano
do Sul.
Alega, em esmerada petição, que o paciente está a
sofrer coação ilegal por falta de justa causa para a
persecução penal que lhe foi instaurada perante aquele
douto Juízo, por infração do art. 176 do Código Penal (tomar
refeição em restaurante sem dispor de recurso para efetuar
o pagamento).
Foi o caso que — afirma o digno impetrante — o
paciente, acadêmico de Direito da Universidade do
Grande ABC (UniABC), e mais onze colegas, no dia 11 de
agosto deste ano, dirigiram-se à “Churrascaria Vivano Grill
Ltda.”, situada na Av. Goiás, em São Caetano do Sul, com o
intuito de comemorar, com a tradicional “pendura”, o
aniversário da criação dos cursos jurídicos no Brasil.
Assim, após consumir comida e enfrascar-se em
bebidas, o paciente levantou-se e “leu um discurso”, no qual
dava a conhecer ao gerente da casa de pasto que não iriam
pagar a conta, que ficaria “pendurada” em obséquio ao onze
de agosto, data caríssima aos estudantes de Direito.
O gerente da churrascaria, no entanto, infenso à arenga
acadêmica, exigiu que os estudantes ocorressem às
despesas, do contrário solicitaria o concurso da Polícia
Militar.
106

Da turma, oito satisfizeram ao pagamento; o paciente


e mais três colegas, contudo, esses recalcitraram: nada
pagariam. Pelo que, policiais militares, chamados a intervir
na pendência, deram-lhes voz de prisão e conduziram-nos
à Delegacia de Polícia de São Caetano do Sul, onde a
autoridade de plantão os mandou autuar em flagrante pelo
crime de estelionato (art. 171, “caput”, do Cód. Penal).
A instâncias da Defesa — que lhe pleiteou o
relaxamento da prisão por vício de formalidade (i.e., falta
de comunicação da prisão ao MM. Juiz de Direito do
Plantão Judiciário), — foi solto o paciente mediante
concessão de liberdade provisória.
Requer agora o paciente, assistido de distinto
advogado, o trancamento do inquérito policial, sob color
de que o fato que lhe foi imputado carecia de tipicidade
penal; por isso, era força pôr termo à “persecutio criminis in
judicio” e mandá-lo em paz, em ordem a que não se lhe
comprometesse o futuro, com o registro de crime em sua
biografia social.
Em abono de sua pretensão, invocou a lição da
Doutrina (Paulo José da Costa Júnior, Código Penal
Anotado, p. 711) e a jurisprudência dos Tribunais
(TACrimSP; HC nº 382.840/2; 6a. Câm.; rel. Almeida
Sampaio; DOE 11.5.2001).
O pedido acompanha-se de numerosas cópias de peças
dos autos de inquérito policial (fls. 14/32).
O despacho de fls. 34/39 denegou a medida liminar
pleiteada.
107

A mui digna autoridade judiciária indicada como


coatora prestou as informações de estilo (fls. 62/63),
nas quais esclareceu que os autos aguardavam manifestação
da vítima quanto ao interesse em representar
criminalmente contra o paciente.
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em arguto e
objetivo parecer do Dr. Arnaldo Gonçalves, opina pelo
não-conhecimento do pedido, pela perda de seu objeto
(fls. 99/101).
É o relatório.

2. O alvo a que atira a impetração é obter desta augusta


Corte de Justiça ordem de “habeas corpus” para o
trancamento do inquérito policial instaurado contra o
paciente.
O objeto da impetração, no entanto, já decaiu de
momento e interesse.
De feito, é força considerar prejudicado o pedido de
“habeas corpus”, uma vez que — e bem o observou o douto
parecer da Procuradoria-Geral de Justiça (fl. 100) –– os
autos foram arquivados, nos termos do parecer ministerial
(fl. 105).
A razão foi que, tratando-se de ação pública
condicionada (art. 176, parág. único, do Cód. Penal),
era de preceito a representação da vítima, ônus de
que todavia se não desempenhou, embora intimada
regularmente (fl. 103).
108

A essa conta, perdeu seu objeto a impetração, pois


desapareceu a “causa petendi” (alegado constrangimento
ilegal).
Faz ao caso a lição de Julio Fabbrini Mirabete:
“Verificando, em especial pelas informações, que já cessou a
violência ou a coação, como por exemplo, a prolação da
sentença condenatória ou a soltura do réu em caso de excesso
de prazo na instrução criminal, o juiz ou o Tribunal
declaram que o pedido está prejudicado. Deixou de existir
legítimo interesse no remédio heroico e o impetrante é,
agora, carecedor da ação” (Código de Processo Penal
Interpretado, 7a. ed., p. 1.476).

Isto mesmo têm proclamado nossos Tribunais, como o


persuade o ven. aresto abaixo reproduzido por sua ementa:
“Julga-se o habeas corpus prejudicado quando o impetrante
obtém, durante a ação, a situação jurídica reclamada”
(STJ; HC nº 1.623/2; 6a. T; rel. Min. Vicente
Cernicchiaro; j. 18.12.96).

Assim, nos termos do art. 659 do Código de Processo


Penal, tenho por prejudicada a impetração.

3. No entanto, leve-se à paciência externe ligeiras


observações a propósito deste feito.
É a primeira a agradável impressão que nos infundem
no ânimo as boas ações e iniciativas louváveis.
109

Tenho uma delas entre mãos: a diligência que


tomou sobre si o digno e culto subscritor do parecer da
Procuradoria-Geral de Justiça (Dr. Luiz Carlos Ormeleze),
em ordem a obter, “sponte sua”, documentos relacionados
com o estágio da presente causa-crime.
Atos desse jaez, próprios somente dos espíritos
esclarecidos e cônscios da muita importância de suas
funções, confirmam-me a veracidade do conceito de
De Molénes, citado pelo saudoso Ministro Cordeiro
Guerra, do Supremo Tribunal Federal: “As atribuições do
Ministério Público, bem compreendidas, são as mais belas que
existem” (A Arte de Acusar, 1a. ed., p. 99).
Este registro, com menção expressa do nome de
distinto Procurador de Justiça, faço-o como preito de
admiração e justa homenagem aos preclaros membros
dessa nobre Instituição, quando se comemora o Dia do
Ministério Público: 13 de fevereiro.

4. A dar-se o caso que não interrompesse o curso da


persecução penal o despacho de fl. 105, que mandou
arquivar o inquérito policial — por falta de condição para
o exercício do “jus persequendi in judicio”: representação do
ofendido —, a espécie dos autos não incorria na censura
do Direito.
Deveras, segundo a comum opinião dos doutores
e a jurisprudência de nossos Tribunais, não comete crime
de estelionato o acadêmico de Direito que, por festejar a
data comemorativa da instituição dos cursos jurídicos no
110

País — 11 de agosto —, pratica a denominada “pendura”,


isto é: dirige-se a uma casa de pasto e, após comer à tripa
forra e entrar galhardamente pelas bebidas, chama a seu pé
o dono do estabelecimento e comunica-lhe, em discurso de
pompa e circunstância, que aquele troço de estudantes o
quer homenager como a amigo e benfeitor da velha e
gloriosa Academia de Direito, além de significar-lhe eterna
gratidão pelo oferecimento do memorável banquete (a que
soem, então, chamar “supino ágape” ou “simpósio opíparo”);
ato contínuo, rompem em fuga, a sete pés, pela porta de
saída, onde já os espera a Polícia!
Ao paciente o inquérito policial imputou o crime
de estelionato (art. 171 do Cód. Penal), visto que se recusara
a pagar o preço da consumação de produtos numa
churrascaria, “mesmo tendo recursos disponíveis” (fl. 15).
Em escólio ao art. 176 do Código Penal escreveu
Damásio E. de Jesus:
“Entendeu-se haver mero ilícito civil e não penal, uma vez
que o tipo exige que o sujeito não possua recursos para o
pagamento dos serviços” (Código Penal Anotado, 17a. ed.,
p. 674).

Pelo mesmo teor, Guilherme de Souza Nucci, em sua


apreciada obra:
“Pendura: por força da tradição, acadêmicos de direito
costumam, como forma de comemorar a instalação dos
cursos jurídicos no Brasil (11 de agosto), dar penduras
em restaurantes, tomando refeições sem efetuar o devido
111

pagamento. Tem entendido a jurisprudência, neste caso,


não estar configurada a hipótese do art. 176, pois, na sua
grande maioria, são pessoas que têm dinheiro para quitar
a conta, embora não queiram fazê-lo, alegando tradição.
Tratar-se-ia, pois, de um ilícito meramente civil” (Código
Penal Comentado, 5a. ed., p. 706).

Professa a mesma inteligência o renomado penalista


Paulo José da Costa Júnior:
“Condição indispensável à configuração do crime é não
dispor de recursos para solver a obrigação. Desse modo, o
estudante de direito que vier a dar o “pendura”, no dia 11
de agosto, data da fundação dos cursos jurídicos no Brasil,
se dispuser de numerário suficiente, surpreendido em
flagrante e levado à polícia, não estará praticando crime
algum, nem em sua forma tentada. O crime não se
realizou, porque ausente um pressuposto: a falta de recursos
para efetuar o pagamento. A ausência do ilícito penal não
elimina o civil, restando ao estudante a obrigação de pagar
a consumação” (Código Penal Anotado, p. 711).

Passa o mesmo na esfera pretoriana:


“Percebe-se com nitidez que os recorrentes foram unicamente
movidos pelo animus jocandi. Não houve dolo, consistente
na consciência e vontade de praticar a ação sabendo
que não dispunham de recursos para efetuar o pagamento.
Não houve fraude, no sentido de ludibriar o comerciante,
112

gerando nele a crença de uma situação financeira diversa


da real. Simplesmente quiseram brincar, seguindo secular
tradição dos estudantes do Largo de São Francisco, e não
causar prejuízo a terceiro em proveito próprio. Brincadeira.
Sem dúvida, reprovável, verdadeiro calote, que causou
prejuízo ao comerciante. Dano porém, reparável, através
de competente ação civil, aliás já proposta pela vítima”
(TACrimSP; RHC nº 426.297-9/São Paulo; rel.
Gonzaga Franceschini; j. 14.4.86; v.u).

Assim, mesmo que não tivesse o MM. Juiz de Direito


determinado o arquivamento, por falta de condição de
procedibilidade, dos autos de inquérito policial, decerto
não triunfava, por atípica, a imputação formulada contra o
paciente, que estava a comemorar, com expansão de
jovialidade e segundo a tradição ininterrupta das Arcadas,
o dia mais risonho das efemérides acadêmicas: o 11 de
agosto.

5. Pelo exposto, considero prejudicado o pedido de


“habeas corpus”.

São Paulo, 13 de fevereiro de 2007


Des. Carlos Biasotti
Relator
12. O Advogado e o Crime de
Falso Testemunho
I – O Fim da Palavra
Dado que o fim da palavra é expressar a verdade, bem
se entende que a mentira passa por um dos defeitos mais
reprováveis do homem(1). E mais avulta essa falta (e pois se
justifica a fulminem com extremos de rigor), se estava a
palavra empenhada sob formal juramento. Há casos, com
efeito, em que a contravenção da verdade, sobre constituir
quebra insigne do caráter e mácula moral intensa, cai
também debaixo da nota de infração penal: o crime de
falso testemunho. Tal é a repulsa que, por sua enormidade,
mereceu desde todo o sempre o falso testemunho, que o
mesmo Deus quis significá-lo, assentando-o na tábua que
deu a Moisés. Dos dez preceitos que nelas constavam, um
em verdade era este: Não dirás falso testemunho contra o teu
próximo(2).

II – O Falso Testemunho
Consoante a fórmula do art. 342 do Código Penal,
cometerá este crime a testemunha que fizer afirmação falsa,
negar ou calar a verdade, em processo(3). Réu de falso
testemunho, portanto, não será só aquele que mentir (ou
afirmar inverdade), senão o que negar a verdade sabida ou
ocultá-la(4). A falsidade, nunca é demais encarecê-lo, há de
recair sobre fato juridicamente relevante(5); do contrário,
visto não prejudica a prova, será reputada inócua(6).
114

À violação do juramento, que as antigas legislações


denominavam perjúrio, sempre se cominaram castigos
da última severidade(7). Com o que se conformava a
prudência do tempo, que punha timbre em não tolerar se
introduzisse no processo judicial coisa alguma capaz de
comprometer-lhe o intuito precípuo: a pesquisa da verdade
real.

III – O Advogado e o Falso Testemunho


Num mundo em que nada se mostra seguro (bem ao
invés, até as montanhas como que se abalam), não admira
que ainda aos advogados firam cruéis desgraças, e entre
estas a de serem processados criminalmente por falso
testemunho. O advogado, ninguém ignora que é de
seu particular ofício promover defesas, e juntamente
aconselhar quem o procure, o que pressupõe comunicação
ou trato pessoal não apenas com o cliente, mas também
com terceiros que intervenham em processo, máxime as
testemunhas.
Tão para escrúpulos é esta matéria do relacionamento
entre o advogado e as testemunhas, que, tratando-se das
que arrolou a defesa do réu, convém não mais que ouvi-las
previamente dos fatos sobre que tenham de depor em
Juízo, e recomendar-lhes falem só verdade; pelo que
respeita às indicadas pelo órgão da acusação, é de bom
aviso fuja delas o patrono do réu como da peste, se quiser
manter sua altivez e independência (necessárias no instante
de reperguntá-las), e a paz de espírito(8). Se o acusado, no
entanto, por sua conta e risco, pretender com elas encetar
115

conversação, deixá-lo fazer, que sua condição de réu bem


houvera de sofrê-lo; nunca, porém, o advogado, em cujas
mãos não cabem armas desleais. Não lhe esqueçam estas
graves palavras de Eduardo Couture: O processo é a
realização da Justiça, e nenhuma Justiça pode apoiar-se na
mentira (9).

IV – O Falso Testemunho e o Concurso de Pessoas


Tem este assunto suscitado pareceres encontrados no
grêmio dos penalistas. Querem alguns que, delito de mão
própria(10), o falso testemunho não pode ser cometido
salvo pelas pessoas às quais a lei expressamente se refere:
testemunha, perito, tradutor e intérprete. Para outros,
firmes na regra do art. 29 do Código Penal, é possível em tal
crime a participação ou coautoria.
A primeira opinião — que enjeita a hipótese de
codelinquência nos crimes de falso testemunho — é,
contudo, a que tem recebido sufrágios mais numerosos,
mostrando-se benemérita de acolhida. Esforça-se, de feito,
em argumento de solidez e boa lógica, inspirado no art.
343 do Código Penal, que, segundo a lição do saudoso e
diligente Celso Delmanto, “pune quem suborna aquelas
pessoas, não se concebendo que acabe punido com iguais penas
quem só pediu, sem subornar” (11).
Os julgados que dizem em crédito desta doutrina são
mais que muitos. Anotaremos apenas dois, que vêm aqui
de molde:
116

a) “É impossível a coautoria no delito de falso testemunho, dado


o caráter personalíssimo da infração, que só pode ser
cometida por testemunha, perito ou intérprete” (Rev. Tribs.,
vol. 655, p. 281);
b) “Firme corrente jurisprudencial tem entendido que o delito
do art. 342 do Código Penal de 1940 é de mão própria,
somente podendo ser praticado pelo autor da infração. Não
admite a coautoria, a coparticipação através de instigação
ou orientação, nem mesmo por parte do advogado do
acusado” (Rev. Tribs., vol. 601, p. 321).

A despeito de o termos versado muito em sombra,


não se afigura este ponto do falso testemunho de todo
indigno da reflexão do advogado, enquanto se dirija, para
suas audiências, ao Fórum (cuja estrada real é fama que o
célebre Catão, por amor do caráter sagrado da Justiça e por
sua humildade, costumava percorrer descalço)(12).

Notas

(1) Para Kant, “a mentira é a falta individual mais grave


porque perverte o fim natural da palavra” (Castro Nery,
Filosofia, 1931, p. 99).
(2) Êx 20, 16.
(3) Deste crime também pode ser sujeito ativo o perito, o
tradutor ou o intérprete.
(4) Como quer que vem ao nosso propósito, cabe aqui
alusão àquelas três coisas que os persas haviam pelas
117

mais importantes: “(…) montar a cavalo, atirar com o


arco e dizer a verdade” (Heródoto, História, 1950,
p. 72; trad. Brito Broca).
(5) “Tanto a doutrina como a jurisprudência exigem o requisito
da relevância jurídica do fato para a configuração do delito
de falso testemunho” (Rev. Tribs., vol. 570,
p. 284).
(6) Cf. E. Magalhães Noronha, Direito Penal, 1968, vol.
IV, p. 442.
(7) Rezavam textualmente as Ordenações Filipinas: “A
pessoa que testemunhar falso, em qualquer caso que seja,
morra por isso morte natural” (liv. V, tít. LIV). Pelo
mesmo teor, o Código Criminal do Império do Brasil,
com respeito aos que jurassem falso em Juízo:
prescrevia, na hipótese de juramento prestado para
a condenação do réu em causa capital, a pena “de
galés perpétuas no grau máximo” (art. 169). A Lei das
XII Tábuas assentava: “Se alguém profere um falso
testemunho, que seja precipitado da Rocha Tarpeia” (táb.
7a., inc. 16); apud Silvio Meira, A Lei das XII Tábuas,
2a. ed., p. 172). Ajuntou, ao propósito, Jayme de
Altavila: “Eis a razão por que os romanos, que puniam
atrozmente o roubo, diziam que falsi testes pejores sunt
latronibus. As testemunhas falsas são piores que os ladrões”
(Origem dos Direitos dos Povos, 4a. ed., p. 80).
(8) Bem que não seja defeso ao advogado o contacto
prévio com testemunhas, todavia, como o advertiu o
abalizado criminalista Paulo Sérgio Leite Fernandes,
118

“a atitude não é recomendável, pelos problemas que traz”


(Na Defesa das Prerrogativas do Advogado, vol. II,
p. 62).
(9) Apud Ruy A. Sodré, Ética Profissional e Estatuto do
Advogado, 1977, p. 112.
(10) “Crimes de mão própria ou de atuação pessoal são aqueles
que só podem ser cometidos pela própria pessoa” (Orlando
Mara de Barros, Dicionário de Classificação de Crimes,
2a. ed., p. 68).
(11) Código Penal Comentado, 5a. ed., p. 620.
(12) Cf. Jayme de Altavila, A Testemunha na História e no
Direito, 1967, p. 67).
13. Justiça e Advocacia Criminal(*)
Excelentíssimo Senhor Juiz-Presidente deste Egrégio
Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo,
Doutor Luiz Carlos Ribeiro dos Santos, varão a todas as
luzes grande, em quem pedimos vênia para saudar os
ilustres Magistrados aqui presentes;
Excelentíssimo Senhor Doutor Pedro Gagliardi,
dignísssimo Vice-Presidente e pedra angular deste mesmo
Tribunal, em cuja pessoa cumprimentamos todas as
autoridades que nos honraram com suas presenças;
Excelentíssimo Senhor Doutor Guido Antonio
Andrade, insigne Presidente da Seção Paulista da Ordem
dos Advogados do Brasil, na pessoa de quem desejamos
abraçar, efusivamente, todos os membros da ínclita
profissão;
Excelentíssimo Senhor Doutor Ademar Gomes,
dedicado e talentoso Presidente da Associação dos
Advogados Criminalistas do Estado de São Paulo
(Acrimesp), em quem homenageamos todos aqueles que,
um dia, puderam sacudir, em prol dos acusados, o gládio
inflamado da defesa;
Os mais, pedimos licença para saudá-los nestes três
vultos eminentes: Napoleão Mendes de Almeida, João de
Scantimburgo e Paulo Bomfim. Pelo Prof. Dr. Napoleão

(*) Texto, com ligeiras modificações, da oração que, em 20.11.96,


proferiu o autor, na cerimônia solene de sua posse como juiz do
TACrimSP.
120

Mendes de Almeida, mestre da vernaculidade, e pelo Dr.


João de Scantimburgo, membro da Academia Brasileira de
Letras, chegarão até vós as palavras de nosso profundo
reconhecimento; o outro, Paulo Bomfim, o Príncipe dos
Poetas Brasileiros e, pois, o que melhor sabe interpretar os
impulsos do coração humano, este será o depositário fiel
de nossa gratidão sincera a todos quantos aqui vos achais.
Meus queridos Amigos:
Em primeiro lugar, satisfazendo ao natural escrúpulo
de algum dos presentes, afiançamo-vos que seremos breve,
não só porque a isto nos exorta o preceito horaciano (“esto
brevis…”), senão ainda porque guardamos a lição de
preclaro conselheiro da OAB, o qual não cessava de repetir
que o advogado, como verdadeiro combatente, devia
empunhar sua arma, que é a palavra, sempre em pé; mas,
acertando de falar a pessoas graves e geralmente muito
ocupadas, havia de fazê-lo como se estivesse apoiado
numa perna só, à guisa de advertência que fosse breve.
Procederemos na conformidade deste sapientíssimo
ditame.
A incumbência de falar-vos foi-nos cometida por
deliberação generosa dos dois notáveis juízes, com os quais
temos hoje a honra de ser recebido, em cerimônia de
inexcedível beleza, na Magistratura estadual de Segunda
Instância: os Drs. Ricardo Santos Feitosa e José Orestes de
Souza Nery. Agradecemos-lhes, por isso, a confiança com
que nos distinguiram.
121

Havendo Deus dado ao homem um semblante


voltado para as estrelas, como cantou o vate iluminado,
não maravilha suspirássemos por estas altas esferas, onde
a Justiça tem suas dominações.
Porém, só de imaginá-lo, penetramo-nos de justos e
fundados temores. É que, a despeito de nossas fraquezas e
misérias, fomos investidos daquela sublime função que, na
frase de um engenho feliz, constitui atributo próprio da
Divindade: julgar(1).
Num arroubo de eloquência tribunícia, houve quem
perguntasse: “Valerá o Sol mais do que a ideia de Justiça?
E primeiro que alguém o fizesse, ele mesmo respondeu: Não”(2)!
Era este, por igual, o sentimento de nosso egrégio
Rui: “Se alguma coisa divina existe entre os homens é a
Justiça”(3).
A consciência da grandeza e da gravidade do cargo
de juiz não nos insinua no peito, entretanto, sombra de
vaidade; ao revés, obriga-nos, humildes, a dar com a
face em terra e confessar nossa muita indignidade para
exercê-lo. Mas não parece de razão extinguir nos homens a
chama azul desse ideal supremo de vida, de todos talvez o
mais nobre, porque é essencialmente o ideal de bem servir!
122

Ruínas do Fórum Romano: padrão eterno do Direito e da Justiça

Sob essa divisa, cunhada na frágua do sacrifício, é


que têm dedicado seus dias à causa da Justiça os novéis
Magistrados deste Tribunal: os Drs. Ricardo Santos Feitosa
e José Orestes de Souza Nery.
Se resistimos ao impulso de chamar-lhes varões de
Plutarco, é por não incorrermos na ira de nosso conspícuo
orador oficial o Dr. Volney Corrêa de Moraes que, com sua
voz e autoridade de Júpiter Olímpico, ordenou tangessem
123

os bronzes em dobres fúnebres pela morte da Arte


Retórica. Não lhes daremos, pois, esse epíteto. De cada um
será bastante se diga, com o polido Sá de Miranda, que é
“homem dum só parecer, dum só rosto e duma só fé”(4).
São os Drs. Ricardo e José Orestes sujeitos austeros,
de conhecida retidão de caráter, de vastos cabedais de
ciência do Direito e “duma só fé”: fé inquebrantável na
Justiça, como instrumento de redenção da ordem social.
Este, aliás, é o alvo a que atiram seus ímprobos esforços
todos os membros deste respeitabilíssimo colégio de juízes.
Aos que alegam que os juízes erramos, respondemos
ser os primeiros a reconhecê-lo. O erro é contingência
humana. Todos, involuntariamente, conjugamos o verbo
errar. Só não erram os que cruzam os braços, e aqui estão
homens de pensamento e ação. “Andar sem tropeçar é
privilégio do Sol”(5)!
Da Justiça, representada pela divina Têmis, os olhos
eternamente vendados, dizem que é cega. Alguns remetem
o disco ainda mais longe: recitam, em tom escarninho, que,
sobre cega, a Justiça é surda e coxa.
Dura crítica essa, com que a malícia pretende ferir em
sua própria alma a Instituição, notando-a de inerte, que o
não é!
Ouvi, meus amigos, um depoimento (e tomamos o
Céu por testemunha de que falamos verdade): não existe,
na República, Instituição cujos membros estejam tão
expostos aos tiros da maledicência como o Judiciário.
124

Não argumentaremos, presumidamente, com o


anexim de que só se atiram pedras a árvores que dão
frutos… Apenas deploramos que a opinião pública sempre
se haja mostrado tão inexorável em seus veredictos acerca
desses homens que, arrebatados ao convívio social,
entregam-se, com todas as potências de sua alma, ao árduo
e terrível ofício de julgar! Essa dedicação, que não raro
atinge o grau de virtude heroica, não lhes merece, àqueles
que estão em condições de proferi-la, uma palavra sequer,
já não dizemos de louvor, mas de estímulo. Fora só o
estudado silêncio, e bem se pudera sofrer. Há mais, porém:
preconizam para os membros do Poder Judiciário uma
como tutela disciplinar, o aguilhão do controle externo.
Encerra, “data venia”, esse alvitre mais injúria que
utilidade, pois onde homem obra segundo os influxos de
sua reta e esclarecida consciência, toda a crítica se haverá
por despicienda e baldia.
O mesmo passa naquelas corporações que instituíram
para seus membros Tribunais de Ética e Disciplina, como a
veneranda Ordem dos Advogados do Brasil. Também na
Magistratura e no glorioso Ministério Público é assim:
apurada a falta de algum de seus integrantes, ele cai logo
em séria desgraça e é relaxado ao braço disciplinar, onde
até a perda do cargo figura entre as sanções.
É muito provável que a esta hora, em que os sonhos e
as ilusões se trocam pela saudade, alguém desta luzida
assembleia entre a excogitar que o obscuro advogado, que a
Ordem emprestou à Magistratura, na carinhosa expressão
do bastonário Guido Antonio Andrade, já se tenha passado
125

com armas e bagagens para as hostes contrárias, esquecido


de seus velhos companheiros e compromissos.
Oh! não! Tal não fora possível, porque nunca
voltamos as costas para aqueles que são grande parte de
nós mesmos.
E é este o espírito que preside à indicação de
advogado para preencher um quinto dos lugares dos
Tribunais de Justiça: ensejar que, na composição de suas
câmaras, jamais esteja ausente a alma, a experiência dos
que fizeram da Advocacia profissão, máxime da Advocacia
Criminal (pois este é, por excelência, o Tribunal das causas
criminais).
Muitos dos que se acham aqui presentes são
advogados, e não poucos reputados e assaz conhecidos
criminalistas.
Mas, quem é esse que a voz pública trata por
advogado criminalista?
Interroguemos a História, que ela no-lo dirá!
Onde se levantou o primeiro homem em defesa
daquele cujos direitos fundamentais eram violados, aí
surgiu o criminalista, esse bravo paladino, que tem em
mais a liberdade alheia que a própria vida.
É certo que alguns ainda hoje lhe desferem ásperos
epigramas. Já em dias pretéritos dizia um que o advogado
criminalista era aquele garboso tribuno “que vendia sua
eloquência a quem melhor lhe pagasse”(6).
126

Injusto libelo este; iníquo pregão de infâmia! Esse é o


advogado que a fantasia destemperada de algum literato
criou e descreveu, não o que nós conhecemos e
respeitamos.
O criminalista, na definição de um alto espírito, “é a
voz dos direitos legais do acusado”(7).
Ser criminalista, em suma, é viver o ideal do grande
Malesherbes, um dos três defensores de Luís XVI de
França. Herói e mártir da profissão, teve o mesmo fim que
o seu real constituinte: “pagou com a vida a honra de haver
defendido seu rei”(8).
Esta é a vera efígie do advogado criminalista!
Estes modelos acabados da augusta profissão, imagina
o vulgo que já não existem, que já não respondem à voz
da chamada. Engana-se; ah! como se engana! Pedem-se
provas? Ei-las: Waldir Troncoso Peres, J.B. Viana de
Moraes, Raimundo Pascoal Barbosa, Márcio Thomaz
Bastos, Paulo Sérgio Leite Fernandes, Paulo José da Costa
Jr., José Carlos Dias, Zulaiê Cobra Ribeiro, Tales Castelo
Branco, José Roberto Batochio, Antônio Carlos de
Carvalho Pinto, Roberto Delmanto, Hélio Bialski,
Francisco Lobo da Costa Ruiz, Mauro Otávio Nacif, Mário
de Oliveira Filho, Laércio Laurelli… (só por citarmos os
jovens de outrora!). Todos abalizados criminalistas!
O magistrado Eliézer Rosa, grande esplendor de sua
Instituição, observou que não conhecia “nenhuma outra
forma de advogar mais dolorosa e pungente que a advocacia
criminal. Tudo nela é dor e desespero”(9).
127

Daqui por que, ao aviso dos advogados, os juízes não


deviam decidir apenas segundo as leis da razão e as regras
do direito positivo; haviam de obedecer também aos
movimentos do coração.
Esse teor de julgar não abate, antes sobe de ponto os
créditos do magistrado.
De um juiz criminal italiano conta-se que, durante o
julgamento, “chamou um guarda e disse-lhe a meia-voz:
vá dizer àquela mulher que não chore mais, porque será
absolvida”(10).
Sim, porque é igualmente do ofício do juiz enxugar
lágrimas!
Meus amigos, já vai longe nossa oração; é mister
pôr-lhe fecho e cláusula.
Agradecemos, comovidos, as palavras de benevolência
que tiveram para conosco o Dr. Volney Corrêa de Moraes,
magistrado exemplar, e o querido amigo Dr. Guido
Antonio Andrade, cuja feliz gestão na OAB assinalou para
sempre entre nós o seu honrado nome; ao Excelentíssimo
Senhor Desembargador Djalma Rubens Lofrano,
digníssimo Vice-Presidente do Egrégio Tribunal Regional
Eleitoral, jurista exímio e paradigma de todos nós,
agradecemos-lhe a delicadeza do comparecimento;
agradecemos também ao nosso dileto e esclarecido
Presidente Doutor Luiz Carlos Ribeiro dos Santos;
ao Doutor Pedro Gagliardi, a quem havíamos prometido
falar só por dez minutos e, no entanto, verificamos, corrido
de vergonha, ter excedido já o dobro do tempo;
agradecemos ainda ao Excelentíssimo Senhor Governador
128

do Estado Doutor Mário Covas e ao eminente Secretário


de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania Doutor
Belisário dos Santos Júnior; aos doutos Colegas e
Funcionários do Tribunal; aos confrades da 15a. Câmara
Criminal (os Doutores Décio Barretti, Geraldo Lucena,
Fernando Matallo e Francisco Vidal de Castro); aos
estremecidos amigos da Acrimesp; aos familiares; a todos,
enfim, agradecemos penhoradamente.
Faça-nos Deus (aos três novos juízes) dignos sempre
desta investidura, e não permita nos desviemos nunca, um
ponto sequer, do caminho reto da Justiça!
Muito obrigado!

Notas

(1) Ellero, apud Carlos de Araújo Lima, Os Grandes


Processos do Júri, 1957, vol. III, p. 175.
(2) Antônio Cândido, Discursos e Conferências, p. 27.
(3) Apud Miguel Reale, Posição de Rui Barbosa no Mundo
da Filosofia, 1949, p. 57.
(4) Apud Arlindo Ribeiro da Cunha, A Língua e a
Literatura Portuguesa, 1945, p. 203.
(5) Bluteau, Vocabulário, 1712, t. I, Prólogo.
(6) Cf. Romeiro Neto, Fora do Júri, 1970, p. 90.
(7) Rui, Obras Completas, vol. XXXVIII, t. II, p. 10.
(8) Cf. Romeiro Neto, op. cit., p. 98.
129

(9) Romeiro Neto, o Último Romântico da Advocacia


Criminal, 1984, p. 21.
(10) Eliézer Rosa, op. cit., p. 23.
14. Dia do Advogado Criminalista:
2 de dezembro
Sumário. O dia 2 de dezembro, no registro das efemérides, é
consagrado aos Advogados Criminalistas. Vem a propósito, portanto,
oferecer-lhes, num como preito de homenagem e gratidão, estes (belos)
textos de Paulo José da Costa Jr., Rui Barbosa, Eduardo Couture e
Eliézer Rosa.

I. Criminalista, uma Devoção

“Ser criminalista é devoção, arrebatamento,


desprendimento.
Viver o drama do cliente como se fosse ele próprio.
Envolver-se na dor alheia e senti-la na própria carne.
Sofrer a privação da liberdade, como se o próprio
filho estivesse por entre as grades.
Angustiar-se com a angústia dos familiares. Suportá-
la e compreendê-la.
Enxugar o pranto dos pais que choram. Consolar a
dor do filho aflito. Aplacar a revolta do cônjuge irado
contra a injustiça dos homens.
Não ter hora para o repouso, quando a liberdade de
alguém estiver ameaçada.
Enfrentar a arbitrariedade com firmeza e coragem.
Lutar contra a violência e o desmando.
132

Não distinguir entre pobres e ricos, poderosos e


miseráveis. Defender a todos, com igual denodo. Ser mais
passional que profissional.
Propugnar pela isonomia e combater os privilégios.
Procurar atribuir a cada um o que é seu.
Aceitar o despeito do adversário derrotado e por isso
inconformado.
Habituar-se a sorver o fel amargo da ingratidão do
cliente. E receber, com resignação maculada pela mágoa, o
punhal da traição do colega em quem se confia.
Encarar o adversário com lealdade, mas sem temor de
com ele porventura agastar-se. Acima de tudo está a defesa
de um direito ofendido, que precisa ser restaurado.
Não temer a conquista gratuita de inimigos, nem a
antipatia dos que estiverem afetivamente ligados à vítima.
A isto se sobrepõe a defesa do réu, por mais desgraçado
que seja, que tem o direito inconteste de que alguma
palavra seja dita em seu benefício.
Aliar, se possível, à experiência do velho a tenacidade
do jovem.
Pugnar, sem trégua nem quartel, enquanto o direito
não for reconquistado, enquanto a injustiça não for
reparada.
Ser criminalista, enfim, é dar tudo de si. Dedicação,
sacrifício. Sem temor e sem nenhuma esperança de
gratidão ou de recompensa.
133

A grande recompensa é a paz interior. A tranquilidade


serena de consciência. A sensação confortadora do dever
cumprido.”
(Paulo José da Costa Jr., in Folha de S. Paulo, 6.3.77)

II. Conselhos aos Advogados

“Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do


advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os
mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejá-la. Não
lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho.
Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar
a ordem pela anarquia. Não antepor os poderosos aos
desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles.
Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da
verdade ante o poder. Não colaborar em perseguições ou
atentados, nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade.
Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das
perigosas, quando justas. Onde for apurável um grão, que
seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o
consolo do amparo judicial. Não proceder, nas consultas,
senão com a imparcialidade real do juiz nas sentenças. Não
fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser
baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis.
Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com
caridade. Amar a pátria, estremecer o próximo, guardar a fé
em Deus, na verdade e no bem.”

(Rui Barbosa, Oração aos Moços, 1a. ed., pp. 48-49).


134

III. Os Mandamentos do Advogado

1º – ESTUDA. O Direito está em constante transformação;


se o não acompanhas, serás cada dia menos advogado.

2º – PENSA. O Direito aprende-se estudando, mas se


pratica pensando.

3º – TRABALHA. A advocacia é uma fatigante e árdua


atividade a serviço da Justiça.

4º – LUTA. Teu dever é lutar pelo Direito; porém,


quando vires o Direito em conflito com a Justiça, luta
pela Justiça.

5º – SÊ LEAL. Leal para com teu cliente, a quem não


deves abandonar, exceto se perceberes que é indigno
de teu patrocínio. Leal para com o adversário, ainda
quando seja desleal contigo. Leal para com o Juiz,
que ignora os fatos e deve confiar no que tu lhe dizes;
e que, mesmo quanto ao Direito, por vezes tem de
confiar no que tu lhe invocas.

6º – TOLERA. Tolera a verdade alheia, como gostaria que


a tua fosse tolerada.

7º – TEM PACIÊNCIA. O tempo vinga-se das coisas que


se fazem sem o seu concurso.

8º – TEM FÉ. Tem fé no Direito como o melhor


instrumento para a convivência humana; na Justiça,
como destino normal do Direito; na paz, como
substitutivo benevolente da Justiça; e, sobretudo, tem
135

fé na liberdade, sem a qual não há Direito, nem


Justiça, nem paz.

9º – ESQUECE. A Advocacia é uma luta de paixões. Se a


cada batalha fores carregando tua alma de rancor,
chegará o dia em que a vida te será impossível.
Terminado o combate, esquece logo assim a vitória
como a derrota.
10º – AMA A TUA PROFISSÃO. Procura considerar a
Advocacia de tal maneira que, no dia em que teu
filho te peça conselho sobre seu futuro, considere
uma honra para ti aconselhá-lo que se torne
advogado.

(Eduardo Couture)

IV. Oração do Advogado

“Senhor, que eu Te encontre no escritório, ao


sair de casa;
que eu Te encontre no Foro, ao sair do escritório;
que eu Te encontre em casa, quando regressar.
Está no meu caminho.
Vigia-me.
Dá-me clientes e compreensão para seus problemas;
palavras para conciliar e confortar.
Ensina-me a unir e nunca separar aqueles que a vida
quer que sigam juntos.
136

Ensina-me a ler na alma do cliente, para distinguir o


mau do bom.
Que eu nunca esteja ao lado do mau contra o bom.
Afasta de mim as causas injustas.
Dá que eu as reconheça, antes de as ajuizar.
Que eu nunca insulte, nem lisonjeie os julgadores das
causas que patrocinar.
Ensina-me a arte amável de saber perder.
Faze-me sempre ver nos julgamentos o fruto da
convicção dos julgadores.
Que eu não minta.
Que meu cliente não minta.
Que as testemunhas do meu cliente não mintam
perante o Juiz.
Faze-me respeitado pela minha vida em público e em
particular.
Dá-me a riqueza do espírito.
Esta me bastará.
Que o pão de meus filhos venha dos meus
honorários.
Que meus honorários nunca venham do pão dos
filhos do meu cliente.
Ensina-me a pôr o mesmo generoso esforço na causa
paga e na gratuita.
Ajuda-me a ser advogado, só advogado, sempre
advogado.
137

Senhor, não deixes que nenhum advogado


tenha fome, cometa crime ou esteja na prisão.
Todo advogado é bom. Senhor, a vida é que, às vezes,
é má.
Perdoa-lhes aos que erraram.
Ensina os homens a perdoar-lhes e a querer-lhes bem.
Abençoa a todos os Advogados.
Amém!”
(Eliézer Rosa, Novo Dicionário de
Processo Civil, 1986, p. 199).

“O nome de certos advogados debaixo de uma petição é


meia prova feita do que está pedindo” (Ministro Laudo de
Camargo; apud Eliézer Rosa, A Voz da Toga, 1a. ed.,
p. 24).

V. Lista Onomástica de Advogados Criminalistas

Relação onomástica dos Advogados Criminalistas


que, nos últimos 150 anos, por sua infatigável luta pelo
Direito, subido valor profissional e alto prestígio
que deram à Advocacia, tornaram-se dignos da admiração
e do reconhecimento de seus contemporâneos e
recomendaram-se ainda à respeitosa memória dos pósteros.
138

Neste panteão de ilustres Advogados Criminalistas


é assaz provável tenha o autor omitido, posto
involuntariamente, alguns nomes (e até de alta estofa); não
no lance, porém, o pio e gentil leitor à conta de desapreço
para com esses legítimos representantes da briosa milícia;
tenha-o, antes, por mera confirmação do anexim, segundo
o qual, dentre os cultores da seara do Direito, são os
criminalistas sempre os mais esquecidos! O escrúpulo de
eventual omissão de alguns nomes não pudera ser
maior que a tremenda injustiça de esquecê-los todos!
(Diligenciará, contudo, por suprir, quanto lhe esteja nas
mãos, a falta dos nomes que, muito a seu pesar, passou em
silêncio).

1. Ada Pellegrini Grinover


2. Ademar Gomes
3. Adriano Salles Vanni
4. Alberto Zacharias Toron
5. Alfredo Pujol
6. Alfredo Tranjan
7. Aloísio Lacerda Medeiros
8. Aloisio Sayol de Sá Peixoto
9. Álvaro Cury
10. Américo Marco Antônio
11. Antônio Augusto de Almeida Toledo
12. Antônio Augusto de Covello Jr.
139

13. Antônio Carlos Barandier


14. Antônio Cândido Dinamarco
15. Antônio Carlos de Almeida Castro
16. Antônio Carlos de Carvalho Pinto
17. Antônio Cláudio Mariz de Oliveira
18. Antônio Di Franco Neto
19. Antônio Evaristo de Moraes Filho
20. Antonio Ruiz Filho
21. Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo
22. Ariosvaldo de Campos Pires
23. Arnaldo Malheiros Filho
24. Augusto Thompson
25. Aylthon Domingos Gonçalves
26. Belisário dos Santos Jr.
27. Carlos Augusto Biasotti
28. Carlos Canellas de Godoy
29. Carlos de Araújo Lima
30. Carlos Kauffman
31. Carlos Vico Mañas
32. Cássio Renato Vergueiro da Silva
33. Celso Campos Petroni
34. Celso Delmanto
35. Cezar Roberto Bittencourt
36. Cláudio de Luna
140

37. Clécio Ribeiro


38. Clovis Sahione
39. Cristiano Zanin
40. Dalmo Bordesan
41. Daniel Guedes de Araújo
42. Daniel Leon Bialski
43. Dante Delmanto
44. David Teixeira de Azevedo
45. Dirceu Gromann
46. Eduardo Muylaert Antunes
47. Eduardo Reale Ferrari
48. Eliana de Cassia F. B. Ribeiro dos Santos
49. Elias Farah
50. Eloy Franco Oliveira
51. Esther de Figueiredo Ferraz
52. Eugênio Carlo Balliano Malavasi
53. Euro Bento Maciel
54. Euvaldo Chaib
55. Evandro Lins e Silva
56. Fausto Bittar
57. Fernando Castelo Branco
58. Fernando José da Costa
59. Francisco Lobo da Costa Ruiz
60. Francisco Manuel Xavier de Albuquerque
141

61. Francisco Tolentino Neto


62. Franklin Doria (Barão de Loreto)
63. George Tavares
64. Geraldo Jabur
65. Heleno Cláudio Fragoso
66. Hélio Bialski
67. Heráclito Fontoura Sobral Pinto
68. Hugo Baldessarini
69. Humberto Teles
70. J. B. Viana de Moraes
71. Jaime Buratto
72. Jamil Covello
73. J. J. Alvim Passos
74. João Meireles Câmara
75. João Romeiro Neto
76. João Mestieri
77. Jorge Severiano
78. José Aranha
79. José Carlos Dias
80. José Parada Neto
81. José Paulo Sepúlveda Pertence
82. José Roberto Batochio
83. José Roberto Leal
84. Joseval Peixoto
142

85. Julián André Sanches Nieto


86. Laércio Laurelli
87. Laércio Pellegrino
88. Laertes Macedo Torrens
89. Leonardo Frankental
90. Leônidas Ribeiro Scholz
91. Loureiro Júnior
92. Luciano Caseiro
93. Luiz Eduardo Greenhalgh
94. Luiz Flávio Borges D’Urso
95. Manoel Pedro Pimentel
96. Manuel Alceu Affonso Ferreira
97. Márcio Thomaz Bastos
98. Maria Thereza Rocha de Assis Moura
99. Mário Bulhões Pedreira
100. Mário de Oliveira Filho
101. Mário Saad
102. Mário Simas
103. Maurício Zanoide de Moraes
104. Mauro Otávio Nacif
105. Miguel Reale Jr.
106. Mílton Rosenthal
107. Nabor Bulhões
108. Nélio Machado
143

109. Ney Gonçalves Dias


110. Nilo Batista
111. Nilson Jacob
112. Nílton Silva Jr.
113. Noé de Azevedo
114. Norberto Gomes
115. Oscar Pedroso Horta
116. Oscar Stevenson
117. Osvaldo Ianni
118. Oswaldo Pereira Gomes
119. Paulo Cunha Bueno
120. Paulo Esteves
121. Paulo Henrique Martins de Oliveira
122. Paulo Jabur
123. Paulo José da Costa Jr.
124. Paulo Nimer
125. Paulo Oliver
126. Paulo Ramalho
127. Paulo Sérgio Leite Fernandes
128. Pedro Aleixo
129. Pedro Paulo Filho
130. Rafael Potenza
131. Raimundo Pascoal Barbosa
132. Renato Biondi
144

133. René Ariel Dotti


134. Reynaldo Fransozo Cardoso
135. Ricardo Antunes Andreucci
136. Ricardo Carrara Neto
137. Roberto Delmanto
138. Roberto Podval
139. Roberto Wagner Battochio Casolato
140. Rogério Lauria Tucci
141. Romeu Falconi
142. Romualdo Sanches Calvo Filho
143. Ronaldo Augusto Bretas Marzagão
144. Rubens de Souza
145. Rubens Negrão
146. Salazar Pessoa Jr.
147. Salvador Scarpelli
148. Samir Achoa
149. Saulo Ramos
150. Sérgio Marcos de Moraes Pitombo
151. Sérgio Salomão Shecaira
152. Serrano Neves
153. Tales Castelo Branco
154. Técio Lins e Silva
155. Teodomiro Dias Neto
156. Vera Regina de Almeida Braga
145

157. Vicente Fernandes Cascione


158. Vinícius Bittencourt
159. Vitorino Prata Castelo Branco
160. Volney Corrêa Leite de Moraes Júnior
161. Waldir Troncoso Peres
162. Zulaiê Cobra Ribeiro

VI. Advogado Criminalista

Tendo escrito Voltaire que a Advocacia era a mais


bela profissão do mundo(1), já lhes compusera o melhor
panegírico; por isso, tratarei aqui somente da gratidão que
se lhes deve.
Mas, nem porque impossível resgatá-la, por imensa a
dívida que a sociedade contraiu com os Advogados
Criminalistas, deixarei de render-lhes acanhado tributo. A
omissão, no caso, podia interpretar--se por ingratidão,
agravo irremissível, que a gente antiga punha no número
dos delitos(2).
Se do advogado, em geral, houve em todos os tempos
boa opinião — pelo grandioso de seu ofício(3) —, foi,
entretanto, ao Advogado Criminalista que se reservaram as
mais soberbas e encomiásticas expressões de estima e
simpatia, próprias somente daqueles que, nos angustiantes
dramas humanos, representaram o bálsamo para o
sofrimento alheio e a esperança para os que receavam não
só pela liberdade, senão pela própria vida.
146

Num rapto de eloquência, escreveu Eliézer Rosa,


Magistrado em tudo exemplar:

“Não sei de nenhuma outra forma de advogar mais dolorosa


e pungente que a advocacia criminal. Tudo nela é dor e
desespero. Os próprios triunfos têm seu tanto de amargor,
porque, enquanto pende o processo e se prepara a causa, há
sofrimentos que a vitória não apaga completamente”(4).

Foi, todavia, José Soares de Mello, mestre na Ciência


do Direito Penal e Juiz de muito nome, quem deitou a
barra adiante, ao escrever:
“Quando o advogado se alça para falar, na tribuna do júri,
ninguém o iguala. É que está em jogo a liberdade e a vida
de um homem e periclita a honra de uma família”(5).

Também Piero Calamandrei, em seu livro primoroso(6),


destinou um capítulo enternecedor ao velho advogado
florentino que, suposto entrara em artigo de morte, não se
apartava das preocupações dos que se haviam fiado de seu
patrocínio: entre delírios, imaginava-se perante o Tribunal,
a discursar aos juízes, inflamado, como se os tivesse ali,
sentados em derredor de seu leito, a ouvi-lo.
E remata o galante escritor: “Não era um herói, nem um
santo: era simplesmente… um advogado”.
À Advocacia Criminal são bem comuns esses rasgos,
que descobrem valentia e grandeza nos que a praticam.
De Rui, o maior Advogado que o Brasil jamais
conheceu, registram os anais da Justiça o momento
sublime em que, debaixo da beca do criminalista, após
147

sustentar, perante o Supremo Tribunal Federal, aos 23 de


abril de 1892, as razões do famoso “Habeas Corpus” nº 300,
impetrado em favor de presos políticos, foi ter com
o Ministro que, único, lho deferia. Arrebatado do
entusiasmo por haver obtido esse voto favorável — que
“um voto”, dizia, lhe bastava para a “vitória moral” da causa
—, não pôde menos de cumprimentá-lo com larga efusão
de ânimo:
“… eu me cheguei, depois da sessão, quase sem voz, ao Sr.
Pisa e Almeida, pedindo-lhe que me permitisse o consolo de
beijar a mão de um justo”(7).

Essas finezas no desempenho da profissão


conhecemnas que farte os Criminalistas: são a expressão
espontânea do sentimento puro que lhes vai na alma. Não
andaria mal quem lhes chamasse paixão da defesa do
direito violado, pois que paixão vale o mesmo que
sofrimento, e este é o sócio inseparável do Advogado
Criminalista(8).
Glória eterna, portanto, a essa nobre ordem de
sujeitos predestinados, nunca inferior à dos grandes do
mundo, porque estes lhe deverão sempre a honra da
conservação e defesa do mais caro de seus bens, depois da
vida: a liberdade!

Notas

(1) “Le plus bel état du monde” (apud Carvalho Neto,


Advogado, 1946, p. 83).
148

(2) “Tão abominável vício é a ingratidão, e tão digno de


castigos” — anotou o velho Bluteau —, “que, nos
Tribunais de Atenas, Pérsia e Macedônia, havia lugar para
ação contra os ingratos” (Vocabulário, 1713, t. IV, p.
133).
(3) “O advogado é o sacerdote do direito e da liberdade”
(Vicente de Azevedo, Curso de Direito Judiciário Penal,
1958, vol. I, p. 94).
(4) Romeiro Neto, O Último Romântico da Advocacia
Criminal, 1984, p. 21.
(5) O Júri, 1941, p. 17.
(6) Eles, os Juízes, Vistos por Nós, os Advogados, 1a. ed.,
p. 188; trad. Ary dos Santos.
(7) Rui, Obras Completas, vol. XIX, t. III, p. 296.
(8) Notável coincidência: paixão, que é afeto violento da
alma, tem sua raiz na voz latina “passio” (do verbo
“pati”), que significa sofrimento (cf. Francisco Solano
Constancio, Diccionario da Lingua Portugueza, 1877;
v. paixão). Paixão e sofrimento, eis as reais insígnias
do Advogado Criminalista!
15. A Função de Julgar(*)
Excelentíssimo Senhor Presidente do Egrégio
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, eminente
Desembargador Luiz Elias Tâmbara;
Excelentíssimo Senhor Corregedor-Geral da Justiça,
Dr. José Mário Antonio Cardinale;
Inspirado e gentil orador, Dr. Jo Tatsumi;
Meus amigos:
Permiti que vos diga ligeiras palavras neste augusto
recinto, onde acabo de ser investido no cargo de
Desembargador. Serão por força breves minhas palavras,
que não quero acrescentar o gravame e o desconforto aos
que me dais a honra de ouvir em pé; ao demais, à tarde, o
Dr. Tâmbara presidirá outra solenidade de posse (do colega
Américo Angélico). Desta forma, importa falar pouco.
Por especial favor divino, o Dr. Carlos Vico Mañas e
eu fomos chamados a compor o grêmio da mais alta Corte
Judiciária do Estado: o Egrégio Tribunal de Justiça; bem
se compreende, pois, nosso natural regozijo, nossos
transportes de alegria! Há outro sentimento, porém, que
nos turba o ânimo, e esse já o adivinhais: a consciência de
nossa pequenez, em respeito da grandeza de nosso ofício, o
belo, o imenso e terrível ofício de julgar!

(*) Com ligeiras alterações, discurso que, aos 14 de maio de 2004, na


solenidade de sua posse no cargo de desembargador do Tribunal de
Justiça de São Paulo, proferiu o autor, no Gabinete da Presidência.
150

É voz que João Mendes de A1meida Jr., mestre


incomparável do Direito, ao ensinar o processo penal aos
alunos das Arcadas, evocava-lhes episódio da história da
antiguidade, em que se exaltavam as funções do Juiz.
Recitava-lhes que no Fórum egípcio havia uma pintura
mural representando um julgamento, e dos lábios do
Magistrado pendiam estas graves palavras: “Eu sou o
secretário de Deus, no templo da Verdade e da Justiça”. E
rematava o provecto lente do Largo de São Francisco:
“Percebeis a grandeza dessa missão e a extensão de sua
responsabilidade?!”(1).
Também o Prof. Hélio Tornaghi, em formoso introito
a seu Curso de Processo Penal — introito que por si só vale
o livro inteiro —, confessa que lhe fizera grande abalo no
espírito certa frase que achara em Pitigrilli: “Que homem é
suficientemente Deus para julgar outro homem?!”(2).
Do mesmo teor, a opinião do insigne Juiz português
Pinto Osório: “A ideia de Justiça é a mais pura, a mais nobre, a
mais sublime e santa depois da ideia de Deus”(3).
De tudo bem se mostra que não falo por tropos de
linguagem ou encarecimentos retóricos, senão clara e
lisamente: o ofício de juiz nenhum homem o poderá
exercer, sem que juntamente lhe estremeçam as fibras da
alma.
Mas, a justiça entre os homens há de ser feita por
homens. O ponto, por isso, está em saber que qualidades
neles devem concorrer para que exerçam menos
indignamente suas elevadas atribuições.
151

Fui, a esse propósito, ouvir aquele que, no geral


consenso dos doutos, passa por um dos mais abalizados
oráculos da Ciência do Direito entre nós: o legendário
Prof. Goffredo Telles Jr., que estará comemorando depois
de amanhã — 16 de maio — os 89 anos de sua fecunda e
radiante existência.
Pedi-lhe, muito de estudo, me fizesse a especial mercê
de declarar quais os predicados que, a seu aviso, deviam
exornar a pessoa do Magistrado.
Respondeu-me, com acentos de ternura e firmeza nas
palavras, que a dois imperativos haviam de atender sempre
aqueles que tivessem abraçado a carreira da Magistratura:
ao primado absoluto da ordem moral e aos generosos
impulsos do coração humano, sem o que nenhum juiz se
levantaria nunca à sublimidade de seu ofício.
Ao julgar, ponderou o venerando Mestre, “deve o juiz
usar a lógica do jurista, que é, precisamente, a lógica do razoável
e do humano”(4).
Muito me apraz repetir aqui e ainda professar esta sã
doutrina, no instante de minha posse neste areópago da
Justiça paulista. Proviemos o Dr. Carlos Vico Mañas e eu
da classe dos Advogados, particularmente da Advocacia
Criminal, onde — tolerai que vo-lo diga sem vaidade nem
constrangimento — fizemos largo tirocínio nos abismos
das misérias humanas, às quais não podemos fechar as
portas de nosso coração.
Todavia, a preciosíssima das pedras da coroa (ou da
cruz) do Magistrado há de ser sempre o seu valor moral.
152

Isto mesmo proclamou, recentemente, com grande


fortuna e autoridade, na revista da Escola Paulista da
Magistratura, o nosso Presidente: “A força do Judiciário está
na moral de seus juízes”(5). Impossível dizer melhor!
Esta força, de tão notável relevo, poderá até suprir
certas deficiências e fraquezas da condição humana, como
os mesquinhos dotes de inteligência daqueles que
desejaram consagrar-se ao serviço da Justiça, como este
obscuro juiz.
Prometi-vos que seria breve, e já estou indo além da
marca…; por isso me cerro aqui.
Antes, porém, que termine esta alocução ou arenga,
desejava, Senhor Presidente, agradecer do âmago da alma
àqueles com os quais estou em dívida ingente (porque de
gratidão): aos queridos colegas do Tribunal de Alçada
Criminal, o glorioso Tacrim. Costumo chamar-lhes, mais
que amigos, irmãos… E isto dizendo, fico dispensado de
protestar quanto lhes quero e quão pungente me haverá de
ser a saudade de nosso convívio. Muitos, amavelmente,
compareceram a esta bonita cerimônia: os Drs. Eduardo
Pereira Santos, Antonio Manssur, Eduardo Braga, Alceu
Penteado Navarro, Carlos Augusto Bonchristiano e outros
mais, que abraço na pessoa do Presidente José Renato
Nalini, vulto eminente da Magistratura brasileira, ao qual
se reservam grandes destinos.
153

Des. Luiz Elias Tâmbara, Presidente do Tribunal de Justiça:


“A força do Judiciário está na moral de seus juízes”.

Fico lisonjeado também de enumerar entre os


presentes outros sujeitos da primeira esfera intelectual,
como o Dr. João de Scantimburgo, laureado escritor e
membro da Academia Brasileira de Letras; o Dr. Paulo
Bomfim, Príncipe dos Poetas Brasileiros, que, vivendo entre
nós, fez deste palácio da divina Têmis incorruptível
também a mansão olímpica das musas! O erudito e
operoso Des. Emeric Lévay, intrépido guardião das
tradições culturais de nosso Tribunal de Justiça. (Em prova
do alegado, basta uma visita à Exposição dos 130 anos do
Tribunal); os distintos e cultos Desembargadores Ruy
Camilo, Munhoz Soares, Alberto Silva Franco, Nelson
154

Fonseca, Geraldo Amaral Arruda, Junqueira Sangirardi,


Ericson Maranho, Pedro Gagliardi, o querido “Pedrinho”, e
o Dr. Mohamed Amaro, respeitabilíssimo Vice-Presidente
do Tribunal, cuja presença apenas agora pude notar,
debaixo dessa portada que lhe serve de moldura (sua
melhor moldura, no entanto, fico serão sempre os primores
de sua peregrina inteligência e a formosura de seu
extremado caráter).

Paulo Bomfim: “O Príncipe dos Poetas Brasileiros”.

Da Advocacia Criminal, cujas insígnias levarei sempre


comigo, saúdo o Dr. Ademar Gomes, talentoso e dinâmico
presidente da Acrimesp, e também os Drs. Hélio Bialski,
Francisco Lobo da Costa Ruiz e Paulo Oliver, advogados
de muito nome e competência; e, em especial, o dileto
155

amigo Paulo Sérgio Leite Fernandes, nunca assaz louvado


criminalista e paladino da liberdade; o Dr. Paulo José da
Costa Jr., o maior penalista contemporâneo, que, como
Henrique Ferri, ilustrou a cátedra universitária, e cobriu de
glórias a tribuna do Júri; o Prof. Francesco D’Ippolito, “il
nostro insegnante di italiano giuridico: La ringrazio della Sua
visita”; esses dois vultos imensos do Ministério Público, Dr.
Sebastião Baccega e Dr. Gabriel Eduardo Scotti e ainda o
amigo Alfredo Abe, sócio-diretor da Millennium Editora.
Minha gratidão pública a meus familiares: minha
santa mulher Meirildes, meus filhos Carlos Augusto, Maria
Helena e Juliana e seu marido Jomar Juarez Amorim,
jovem e aplicado juiz; ao meu netinho Tonico, que, trajado
com elegância, também veio a esta magnífica solenidade,
por si e representando a irmãzinha Lenita, que nasceu
ontem e já deu um sorriso de paz diante do mundo!
Por fim, em meu nome (e no do colega Carlos Vico
Mañas), agradeço particularmente a Vossa Excelência,
Dr. Luiz Tâmbara, que, na condição de Presidente
do Tribunal, oficiou em nossa posse, vinculando-nos
definitivamente a seu nome. E rendemos graças a Deus por
isso: por ter formalizado nossa ascensão ao Tribunal
um Magistrado a quem, por seus méritos excepcionais,
acendrado amor à Justiça e inexcedível probidade, todos
tomamos por excelso paradigma.
Muito obrigado!
156

Notas

(1) Apud Vicente de Azevedo, Curso de Direito Judiciário


Penal, 1958, vol. I, pp. 47-48.
(2) Curso de Processo Penal, 1980, vol. I,. p. XI.
(3) “In Memoriam” do Juiz Pinto Osório, p. 28.
(4) A Folha Dobrada, 1999, p. 162.
(5) Luiz Elias Tâmbara, in Diálogos & Debates,
março/2004, p. 7.
16. A Linguagem do Juiz
I – Com esse título, tirou a público o eminente
Desembargador Geraldo Amaral Arruda livro em extremo
útil àqueles que se consagraram ao serviço da Justiça(1).
Forte no argumento de que a linguagem das decisões
judiciais está comprometida com a linguagem culta(2),
entrou Sua Excelência a tratar “ex professo” de pontos, cuja
inobservância tem levado muitos a distanciar-se daquele
áureo padrão de que justamente se ufanava o jurista
Bertrand: O Palácio da Justiça é o conservatório da língua(3).
Como é do ofício do juiz dizer o Direito, está além de
toda a disputa que unicamente na palavra achará o veículo
de sua realização. Daqui procede, pois, que deverá
conhecer bem o idioma vernáculo e saber exprimir-se nele
com discreta e pontual correção(4).
No juiz não é mister concorram os dotes que
distinguem os exímios artistas da palavra e lhes asseguram
a imortalidade no panteão da glória literária; tampouco é
preciso traga na fronte o louro de Apolo; basta-lhe que,
não podendo possuir todas as excelências de sua língua, ao
menos se empenhe por evitar as faltas graves que amiúde
contra ela se cometem e lhe abatem o esplendor(5).

II – Mas, visto pressupõe largo tirocínio, a ciência da


linguagem não se adquire sem o trato paciente e
ininterrupto dos mais acabados modelos da vernaculidade
— os clássicos —, que Horácio mandava correr com mão
diurna e noturna(6).
158

A primeira objeção que nos fará algum colega é que,


verdadeiros reféns do tempo, e eternamente ocupados em
leituras e estudos de autos de processo, já não têm os juízes
ócio para a conversação dos mestres do bom dizer, que lhes
regale a alma.
Verdade é esta que se não pode refutar cabalmente!
Todavia, àquele, em cujo peito ainda não feneceu a
centelha do entusiasmo pelas coisas belas e grandes,
sempre deparará a fortuna alguns instantes, nos quais
possam reconciliar-se com os egrégios varões que deram
lustre e majestade à formosa língua portuguesa. Eis a
melhor maneira de alcançar a riqueza do saber literário!
Não é para aqui a menção de todos os escritores cujas
obras importam muitíssimo à formação do gosto literário, à
aquisição dos cabedais da língua e à apuração do estilo.
Alguns poucos, no entanto, de nomeada clássica, merecem
referidos: Antônio Vieira, Manuel Bernardes, Luís de
Sousa, Alexandre Herculano, Latino Coelho, Camilo
Castelo Branco, Machado de Assis…, demais dos que
figuram também no cânon dos juristas conspícuos: Rui,
Lafaiete, Nélson Hungria, Orosimbo Nonato e Eliézer
Rosa. (O que escreveram estes beneméritos espíritos
constituirá sempre boa lição de vernaculidade e excelente
doutrina jurídica).

III – Entretanto, porque nem o talento supre a gramática,


o livro prestantíssimo de Geraldo Amaral Arruda também
adverte o leitor dos erros e impropriedades mais comuns
que desprimoram sentenças e outros escritos forenses.
159

Alguns damos aqui de amostra:


a) “Recomende-se-o na prisão” (p. 23). Frase incorreta.
Deve-se dizer: “Recomende-se na prisão; recomende-se ele
na prisão ou seja ele recomendado na prisão”(7);
b) “Posto que, conjunção concessiva, que não deve ser usada
como causal. Posto que equivale a embora, ainda
que, conquanto, etc., e se usa com o verbo no subjuntivo”
(p. 109)(8);
c) “De vez que…, vez que”: “muito comuns, tanto em peças
redigidas por advogados como até em sentenças” (p. 22),
tais locuções constituem solecismo condenável;
d) “Procedida a penhora” (p. 56). “Mas não será correto dizer
procedida a penhora… Por se tratar de verbo transitivo
indireto, não é correto seu uso em expressão passiva”. Diga:
“procedeu-se à penhora”;
e) Reprimenda. “Tem essa palavra aparecido em sentença
como sinônima de pena. Há equívoco. Não há fundamento
para o uso de reprimenda no sentido de punição criminal”
(p. 8). “No direito penal haverá impropriedade em se
denominar reprimenda qualquer pena detentiva. Apenas
pretendendo referir-se à admonição resultante da suspensão
condicional da pena é que se pode falar, sem impropriedade,
em reprimenda ao réu” (p. 9). O Dicionário
Contemporâneo, de Caldas Aulete e Santos Valente, dá
ao verbete reprimenda os seguintes sinônimos:
admoestação severa; crítica acerba; censura forte;
f) Inobstante. “Nenhum dicionário autoriza esse neologismo,
que circula nos meios forenses a par de outras expressões de
160

formação semelhante. Preferível o uso das expressões


vernáculas já consagradas não obstante ou nada obstante”
(p. 23);
g) “… a aberrante expressão datissima venia” (p. 11).

A segurança e clareza com que foi escrito e a grande


utilidade que sua doutrina representa para os cultores do
Direito e das boas letras, notadamente os juízes, valem por
idônea carta de recomendação do livro A Linguagem do Juiz,
no qual até os que se presumem de doutos e sabedores
terão muito que aprender e louvar.

Notas

(1) Geraldo Amaral Arruda, A Linguagem do Juiz, 1996,


Editora Saraiva.
(2) Op. cit., p. 5.
(3) Edgar de Moura Bittencourt, O Juiz, 1966, p. 287.
(4) “Não há bom Direito em linguagem ruim”, afirmou com
assaz de razão Hildebrando Campestrini (Como
Redigir Ementas, 1994, p. 40).
(5) Ao juiz não lhe é defeso cultivar em grau assinalado
a arte de bem escrever. Disse-o Mário Guimarães:
“Pode o juiz, se a tanto lhe ajudar o engenho e arte, dar
contorno elegante a cada frase. A elegância não se opõe à
simplicidade. Coexistem uma e outra, e até bem vai que
161

se associem” (O Juiz e a Função Jurisdicional, 1958,


p. 360).
(6) Arte Poética, v. 268.
(7) Vem aqui de molde o ensinamento do preclaro
filólogo Mário Barreto: “Todos, em letra redonda, já
se referiram à combinação se o e unanimemente lhe
assentaram o ferro em brasa de sua condenação, por
monstruosa em face dos documentos exemplares do nosso
idioma” (De Gramática e de Linguagem, 1922, t. I,
p. 47). Ainda: “Os pronomes se e o jamais podem vir
juntos na mesma oração; nunca devemos dizer: não se o
sabe, faz-se-o, vê-se-o” (Napoleão Mendes de Almeida,
Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 29a. ed.,
p. 177; Edição Saraiva).
(8) Posto que, em lugar de porque: “É locução conjuntiva, de
sentido concessivo, e não causal; significa ainda que, bem
que, embora, apesar de: Um simples cavaleiro, posto que
ilustre. E, posto que a luta fosse longa e encarniçada,
venceram” (Napoleão Mendes de Almeida, Dicionário
de Questões Vernáculas, 1981, p. 242). Outros
exemplos, em abono da lição do saudoso Mestre:
“(…) alguns exemplos temos, posto que poucos” (Antônio
Vieira, Sermões, 1959, t. V, p. 74); “O tempo ia sereno,
posto que frio” (Alexandre Herculano, O Monge de
Cister, 21a. ed., t. I, p. 46); “Estou melhor, posto que não
inteiramente restabelecido” (Idem, Cartas de Vale de Lobos,
1980, vol. I, p. 59; Livraria Bertrand).
17. Das Excelências do Voto Vencido
I – O critério da verdade sabemos todos que não é o
número, senão a qualidade. Os méritos de um só não raro
podem suprir ou compensar a deficiência de muitos. Isto de
ser único ou singular não desmerece; tampouco serve
sempre de bitola de louvor o copioso.
Onde há unanimidade (e talvez maioria) aí também
se acha, em princípio, o melhor e o mais digno de estimar.
É a regra geral. Advirta-se muito, porém, que às vezes o
singular é o que triunfa do coletivo, e o indivíduo o que
avulta na multidão.

II – Na linguagem forense bem se conhece a expressão


voto vencido, designativa daquele que “é dado em desacordo
com os votos vitoriosos, ou que decidem a questão”(1). É “o voto
que não acompanha a maioria do tribunal”(2).
As deliberações, nos tribunais, são tomadas por
maioria simples de votos. O voto majoritário é, pois,
o prevalecente. De o ser, não procede, todavia, deva
considerar-se livre de erro ou engano.
Da mesma sorte que na emenda pode estar o erro,
também não será de estranhar seja o voto vencido o que
alguma vez encerre a verdade e o acerto. Daqui por que,
longe de arguir a ideia de manifestação inferior do espírito,
representa, rigorosamente falando, benéfica oportunidade
de efetivação de justiça(3). Além disso, qual pedra de toque,
ele serve sempre a contrastar o voto vencedor, fazendo-lhe
164

subir de ponto os primores. É que os fundamentos do voto


singular, quando não abalam os do voto vencedor, como
que operam este prodígio: acrescentam-lhe a solidez e a
segurança. Assim como a sombra dá maior relevo à luz,
também o voto vencido sói confirmar as eminências do
voto vencedor.
Do muito préstimo que ostenta o voto vencido
escreveram insignes juristas páginas de peregrina
formosura.
Eliézer Rosa, talentoso e provecto magistrado, fez-lhe
a apologia com estas formais palavras: “E uma das belezas
desses corpos coletivos de homens que pensam e estudam está no
voto vencido. Isso revela que nem sempre todos estão de acordo
com tal ou qual corrente de opinião. O voto vencido não é uma
rebeldia, é uma semente”(4). À guisa de coroa e remate de seus
louvores, reproduziu a eloquente sentença do ex-ministro
Luiz Gallotti: “Um bom acórdão é o que traz um voto
vencido”(5).
Já o proclamara o excelso Rui, por ocasião do
julgamento, no Supremo Tribunal Federal, do célebre
“Habeas Corpus” nº 300: “Um voto me basta para a vitória
moral desta causa”(6). Este voto (vencido) obteve-o do
ministro Pisa e Almeida, que, por isso, mereceu ao ínclito
jurista pregão imortal(7).
Assim, nem porque “solus peregrinus”, é o voto vencido
menos de apreciar e enaltecer.
165

III – É desse lote o voto vencido que, em julgamento de


“habeas corpus”, proferiu o distinto e culto juiz Márcio
Bartoli, do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São
Paulo. A tese a que Sua Excelência deu curso, posto não
fosse a vencedora, fez-lhe contudo muita honra, pelo vigor
de seu raciocínio, a que se não podem contrapor mais
valentes argumentos, e por seu benigno influxo de
equidade.
Foi o caso que, tendo-lhe sido negada fiança para
apelar em liberdade, à conta de seus maus antecedentes,
certo indivíduo — condenado por estelionato à pena de
dois anos de reclusão — encomendara-se à proteção da
Justiça, que lhe pusesse cobro ao constrangimento ilegal.
O colendo Tribunal, pelos votos de dois de seus
ilustres juízes, não se mostrou propício ao clamor do
paciente, salvo o eminente subscritor do voto vencido, que
lhe deferia a ordem para o fim colimado.
Era este seu teor: “Se, contudo, o réu tiver maus
antecedentes e se a custódia for necessária para o exercício do
recurso, ainda assim poderá apelar, sem se recolher à prisão, que
pode ser substituída pela fiança, se, pela quantidade da pena
aplicada, o crime for afiançável e, se não for reincidente, porque o
dispositivo do art. 594 do Cód. Proc. Penal, nessa hipótese, deve
ser interpretado em conjugação com as regras dos incisos I e II do
art. 323 do mesmo estatuto”(8).
No caso, embora maus seus antecedentes, era
primário o réu, e a pena mínima, cominada a seu crime
(art. 171 do Cód. Penal), não superior a dois anos, como
prescreve o art. 323, nº I, do Código de Processo Penal.
166

De claro e persuasivo, o r. voto vencido já bastara


para forçar o assentimento. Seu diligente subscritor, no
entanto, ainda invocou a lição do renomado processualista
Fernando Tourinho Filho, que tratara a matéria “ex
professo”(9).
Indisputável, por conseguinte, seu valor jurídico, em
nada inferior ao do venerando acórdão.
Forte argumento é este de que o voto, que o estilo
forense apelida de vencido, bem pudera, à luz da razão e
do direito, reputar-se vencedor.

IV – À derradeira, faz ao nosso propósito prevenir uma


objeção, e é que, sendo comum vir escoteiro ou solitário
o voto vencido, tinha contra si aquela formidável
advertência: “Ai do que está só, porque quando cair não tem
quem o levante”(10)! A questão resolve-a o profundo Vieira:
“Não é necessário ser Salomão para refutar este inconveniente.
Se o só não terá quem o levante, também não terá quem o
derrube”(11).
Faz ao propósito, por fim, este belo pensamento de
autor desconhecido: “Um homem só, com Deus, é maioria!”(12)

Notas

(1) De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, 3a. ed., vol.


III, p. 1.667.
(2) Leib Soibelman, Enciclopédia do Advogado, 3a. ed.,
p. 370.
167

(3) Uma de suas virtudes extrínsecas: render azo à


oposição de embargos infringentes, pelos quais
poderá o réu alegar de sua justiça (art. 609, parág.
único, do Cód. Proc. Penal).
(4) A Voz da Toga, 2a. ed., p. 50.
(5) Idem, ibidem, p. 51.
(6) Obras Completas, vol. XIX, t. III, p. 296.
(7) Em verdade, escrevendo sobre as circunstâncias do
julgamento do “habeas corpus” que impetrara a favor
de presos políticos, o excelso o Advogado burilou esta
memória eterna: “Eu me cheguei, depois da sessão, quase
sem voz, ao Sr. Pisa e Almeida, pedindo-lhe que me
permitisse o consolo de beijar a mão de um justo” (Idem,
ibidem).
(8) Cf. Boletim da AASP, nº 1907, p. 227.
(9) In Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 7, p. 76
(Da Prisão e da Liberdade Provisória).
(10) Ecl 4,10.
(11) Sermões, 1959, t. IV, p. 41.
(12) Elcias Ferreira da Costa, Deontologia Jurídica, 1997,
p. 215.
18. Da Citação do Réu
I – Conforme regra inviolável de Direito Natural,
ninguém pode ser condenado sem que primeiro se ouça de
sua justiça(1).
De tal eminência é este preceito, que insignes autores
costumam remontar sua origem aos primórdios da
Criação: Deus, “antes de condenar Caim, vocavit eum, isto é,
chamou-o”(2). Ainda: “a citação é tão essencial que nem o
Príncipe a pode dispensar”(3).
Segundo a letra do art. 351 do Código de Processo Penal,
“a citação inicial far-se-á por mandado”. No caso porém que o
réu não seja encontrado — reza o art. 361 do referido
diploma legal —, “será citado por edital, com o prazo de quinze
dias”(4). Mas, à citação por éditos(5), é entendimento
jurisprudencial uniforme dos Tribunais de Justiça do País
que não se deve recorrer, exceto depois de o encarregado
das diligências haver dado todas as providências que lhe
estavam nas mãos para citar o réu em sua própria pessoa.
O que bem se explica por duas razões forçosas:
a) como “a citação é o princípio e o fundamento do juízo”(6),
dela se não pode prescindir sem que a um tempo se
mortifique a mesma relação processual;
b) a não ser o réu citado “in faciem”, ter-se-á por ineficaz
outra forma do chamamento a juízo, pois que, ainda
quando afixado o edital no átrio do fórum, ou
publicado pela imprensa, dificilmente seu teor literal
lhe chega à notícia(7).
170

Donde haverem os Tribunais encarecido sempre ao


oficial de justiça a máxima exação no cumprimento do
mandado citatório.
Sua primeira cautela será, portanto, procurar o réu em
todos os endereços constantes nos autos, antes que
certifique não o haver encontrado; porque algum defeito
ou balda que haja aqui poderá fulminar de nulidade
irremediável toda a ação penal(8).

II – O conhecido rigor com que a Superior Instância tem


versado o ponto da citação do réu claramente se mostra das
ementas seguintes:
a) “É nula a citação por edital, quando desprezadas as
cautelas habituais para apurar o paradeiro do acusado”
(Rev. Forense, vol. 161, p. 349);
b) “A certidão de achar-se o acusado em lugar incerto e não
sabido deve ser lançada pelo oficial depois de esgotadas
todas as tentativas na pesquisa do paradeiro do citando”
(Ibidem, vol. 147, p. 444);
c) “Representando a citação-edital uma exceção, é imperativo
da Justiça esgotar todos os meios ao seu alcance, com os
elementos constantes dos autos, para positivar o paradeiro
do réu” (Ibidem, vol. 186, p. 331).

Cumpre-nos referir, porém (e gratamente o fazemos),


que, dos atos processuais, é a citação, sobre todos, o em
cuja realização mais se têm distinguido e acreditado, pelo
zelo funcional e pela consciência do dever, abnegados
servidores da Justiça. Raros, mui raros são os casos em que
171

o Tribunal se vê na contingência de decretar, por defeito


de citação, nulidade de processo-crime!
O que é matéria de não pequeno consolo, pois que,
fundamento da ordem judicial, a citação válida constitui
igualmente o primeiro estádio da busca da verdade, escopo
e alma de todo processo.

Notas

(1) É o clássico aforismo jurídico: “Nemo inauditus


damnari potest”.
(2) Cf. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro; v.
citação. Pelo mesmo teor, a lição de Alexandre
Caetano Gomes: “E já Deus, Senhor nosso, no primeiro
processo que julgou no mundo, quando quis punir a
primeira culpa, usou da citação em Adão delinquente: Ubi
es, Adam? Gên., cap. 3º” (Manual Prático Judicial Civil e
Criminal, 1820, p. 4).
(3) Cons. Ramalho, Postilas de Prática, 1872, p. 71.
(4) Quando não o encontra para citar, costuma o
meirinho certificar que o réu está em lugar incerto e
não sabido. Faz ao caso, por isso, a lição do mui
douto Geraldo Amaral Arruda: “Há contrassenso em
dizer lugar incerto e não sabido. Nenhum lugar pode ser
incerto e, ao mesmo tempo, não sabido” (A Linguagem do
Juiz, 1996, p. 10).
172

(5) São vocábulos que se empregam distintamente: édito


e edito. Édito significa “ordem judicial publicada por
anúncios ou editais” (Pequeno Dicionário Brasileiro da
Língua Portuguesa, 11a. ed.); edito (sem acento) é o
mesmo que decreto, lei e, por extensão, sentença,
decisão, etc. Ex.: edito condenatório, edito de
absolvição, etc.
(6) Cons. Ramalho, op. cit., p. 71.
(7) A respeito da publicação do édito no órgão da
imprensa oficial, vêm a talho de foice estas palavras
do Conde de Afonso Celso: “Verdade é que, segundo
Ferreira Viana, quem quisesse guardar um segredo devia
dá-lo à estampa nesse diário” (Oito Anos de Parlamento,
1981, p. 80).
(8) A certidão do oficial de justiça, conforme a tradição
doutrinária, passa por artigo de fé: seu teor vale como
ato autêntico; suas afirmações têm por si a presunção
de veracidade. Trata-se, porém, de presunção “juris
tantum”: prevalece até prova em contrário.
19. Crime, Rigor da Lei e Clemência
Em erudito ensaio, que lhe descobre para logo a
segurança da ciência do Direito e acrisoladas noções
de Moral Prática, propõe o autor (Juiz Alexandre Semedo
de Oliveira) engenhosa questão, a saber: é compatível
com o ofício de julgar o sentimento de misericórdia e
indulgência?
Para indicar a matriz de seu pensamento, declara
formar entre aqueles que proclamam não haver lugar para
misericórdia e perdão “sob a toga de um juiz”. Tudo isto diz
o ilustre articulista, forte no simbolismo da Cruz e na
celebração da Páscoa.
Peço-lhe vênia para, terceiro interessado, chegar a seu
pé e tomar a mão sobre tema de tanto alcance.
Da função precípua do juiz tratou já, nos albores da
era cristã, o guapíssimo jurisconsulto Ulpiano, em cláusula
que a posteridade conservou entre os seus maiores
tesouros: “Jus suum cuique tribuere” (Dig. 1.1.10.1).
Na esfera criminal, levando a mira em reparar o
direito violado, resume-se a função judicante, de ordinário,
em infligir o castigo ao infrator. E não há que objetar. Fale
por todos o Pontífice Máximo do Direito Penal Brasileiro:
“A pena traduz primacialmente um princípio humano por
excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que
merece” (Nélson Hungria, Novas Questões Jurídico-Penais,
p. 131).
174

A essa conta, nenhum sujeito imputável haverá


de subtrair-se ao rigor da lei, formoso corolário de premissa
lógica reproduzido pelo Des. Volney Corrêa Leite de
Moraes Jr., saudoso colega e amigo (citado pelo autor do
ensaio), em livro bem reputado e de muita originalidade(1):
“Todo homem deve saber do fundo de seu coração o que é certo e o
que é errado (Alberto Oliva, filósofo)”.
Em pontos de criminalidade, não transigia realmente
Volney com os postulados — que denominava “laxismo
penal” — que figuram em barda nas cartilhas espúrias e
contrafeitas de pseudodireitos humanos(2).
Ninguém ignora, salvo se inteiramente hóspede na
sociologia jurídica e refratário às chispas do bom-senso,
que a impunidade é poderoso incentivo do crime.
Suposto seja a pena o estipêndio do delito, não parece
bem deva sempre o magistrado agravá-la. Eis por que,
segundo tradicional usança, provectos e honrados Juízes —
quando acertava punirem delinquentes (empedernidos
até) — nunca lhes esquecia ponderar, nas conchas da
balança de Têmis, assim as partes positivas e boas como as
negativas e iníquas.
Que outra coisa, com efeito, ensinou o eloquente
Cícero à Humanidade, quando gravou com estilete
o imortal prolóquio “Summum jus, summa injuria”(3), senão
que o exagero punitivo contravém de rosto ao ideal de
justiça, e que, pelo contrário, ao justo concreto não
repugna alguma vez o estalão da indulgência?!
175

Poderá o juiz, caso concorram circunstâncias ou


razões particulares de vulto, assentar na fronte do réu o
ferrete do castigo sem, todavia, recusar-lhe um como
galardão de merecimento.
Aliás, a letra mesma da lei é a que o obriga
(não só lhe inculca) dispensar benefício ao réu que
espontaneamente confessa a autoria do crime (art. 65,
nº III, alínea d, do Cód. Penal).
Há, deveras, alguma coisa de nobre e louvável nisto
de o réu, perante o magistrado que o interroga, preferir —
ainda que com prejuízo para si mesmo e sem alegar com
o prestígio de causa descriminante — pôr-se ao lago
da Justiça e, sem rebuços nem ambages, confessar,
arrependido, a prática do ilícito penal que lhe imputa o
órgão da Acusação!
Terá jus não só à redução da pena: será força
que dele também se amerceie a Justiça e lhe defira
benefícios (“verbi gratia”: regime especial de cumprimento
de pena, substituição da pena privativa de liberdade, etc.).
Aqui me pedirá o inteligente e amável leitor lhe exiba
a carta credencial para a outorga de semelhantes obséquios.
Desço, pois, ao particular e transcrevo, por amor
de aplacar possíveis escrúpulos da crítica severa, estas
sublimes palavras de um de nossos maiores processualistas:
“É certo que o juiz tem, diante de si, a lei. Mas a dificuldade
não termina aí; ao contrário, aí é que ela começa: primeiro
porque a lei procura ser igual para todos, mas as condições
176

pessoais exigem tratamento individualizado, que só o juiz


pode dar. A lei não pode existir intuitu personae, mas a
sentença pode. A lei põe o problema em equação; mas quem
dá o valor das incógnitas é o juiz. Só ele pode estabelecer
a real, e não apenas fictícia, igualdade de tratamento,
nivelando o poderoso e o deserdado, o rico e o pobre. A
igualdade perante a lei é puramente lírica se não se
concretiza na atuação judicial” (Hélio Tornaghi, Curso
de Processo Penal, 1980, vol. I, p. XII).

Com a excelência desta doutrina concerta a lição do


venerando magistrado Eliézer Rosa, a quem os colegas
reconhecem e proclamam como seu muito vivo paradigma:
“Daí a necessidade de o Juiz do nosso tempo e para o nosso
tempo saber que deve praticar o razoável e não o puramente
racional” (Dicionário de Processo Civil, 2a. ed., p. 261).

E mais estas, dignas só de um elevado espírito, como


foi Goffredo Telles Junior, mestre em Direito e sábio:
“Na interpretação das leis, mais importante do que o rigor
da lógica racional é o entendimento razoável dos preceitos,
porque o que se espera inferir das leis não é, necessariamente,
a melhor conclusão lógica, mas uma justa e humana
solução” (A Folha Dobrada, 1999, p. 163).

Ajunto ainda este florilégio de conceitos, por onde se


conhecerá que, na judicatura criminal — ressalvadas e
atentas algumas circunstâncias de peso —, moderação e
castigo não são ideias que se implicam:
177

I. “Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se


acreditar com o nome de austeros e ilibados. Porque
não há nada menos nobre e aplausível que agenciar
uma reputação malignamente obtida em prejuízo da
verdadeira inteligência dos textos legais” (Rui Barbosa,
Oração aos Moços, 1a. ed., p. 43).

II. “Nenhum homem deve envergonhar-se de ter coração!


Não fica mal a juízes mostrar que o têm! Julgar o
contrário leva a muitas vaidades e inconcebíveis erros!”
(Pedro Eurico, Figuras do Passado, 1915; Lisboa.
Pedro Eurico era o pseudônimo do insigne juiz
português Augusto Carlos Cardoso Pinto Osório
– 1840-1920 –, presidente do Supremo Tribunal
de Justiça).

III. “Deve o rigor do castigo temperar-se sempre com a


moderação da clemência” (Manuel Bernardes, Nova
Floresta, 1728, t. V, p. 466).

IV. “Não há realmente Justiça sem Piedade!” (Eliézer Rosa,


Romeiro Neto, o Último Romântico da Advocacia
Criminal, 1984, p. 26).

V. “Amparando os mais fracos, não fazemos favor, senão


justiça” (Teodomiro Dias: apud Odilon Costa
Manso, Letras Jurídicas, 1971, p. 111).

VI. “A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim,
antes de tudo, real, humana, socialmente útil. (…). Se o
178

juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei,


julgando contra legem, pode e deve, por outro lado,
optar pela interpretação que mais atenda às aspirações
da justiça e do bem comum” (Min. Sálvio de
Figueiredo, Revista do Superior Tribunal de Justiça,
vol. 26, p. 384).

Aqui faço ponto, meu caro Alexandre Semedo de


Oliveira, não entre a fatigá-lo com estas pífias e insípidas
nótulas, ao mesmo passo que o cumprimento pelo
magnífico ensaio que as provocou; por fim, desejo-lhe, “ex
corde”, nesta Páscoa e no exercício de seu difícil e honroso
cargo de juiz, muitas felicidades e a recompensa própria
dos que praticam as boas ações: a glória de tê-las praticado!
(O que fará, creio-o — sobretudo no paroxismo das crises
que abalam o Mundo contemporâneo —, sob o influxo da
bondade, que é a cruz de todas as religiões!). Meu fraterno
abraço.

Notas

(1) Ricardo Dip e Volney Corrêa Leite de Moraes Jr.,


Crime e Castigo, 2002, p. 3; Millennium Editora.
(2) O alto sentido da presença do Crucifixo nos
Tribunais, lembrado pelo Des. Volney Corrêa Leite
de Moraes Jr. — e que serviu de epígrafe ao ensaio do
Dr. Alexandre Semedo de Oliveira —, já o acentuara,
179

em tópicos de rara beleza, o prestigioso advogado e


homem de letras Plínio Barreto: “Cristo é um assunto
inesgotável para pintores, escultores e nunca fica deslocado
em qualquer tribunal. Vítima suprema de uma injustiça
revoltante, é um apelo permanente à consciência dos juízes e
um consolo perpétuo para os que não encontram, entre os
juízes, água e mantimento para a sede e fome de justiça,
que os devoram. No júri, a sua presença é mais do que uma
fonte de consolações: é uma necessidade imprescindível”
(Vida Forense, 1922, p. 87).
(3) “De Officiis”, I, 10, 33. Igual fórmula já traziam as
divinas letras: “Noli esse justus multum” (Eccl 7, 17).
Não sejas por demasiado justo.
20. O Interrogatório do Réu e o Livre
Convencimento do Juiz

I – “Fim imediato do processo”(1), toda a sentença baseia-se


na prova, que é o farol que ilumina o juiz na decisão da
causa; logo, dos elementos acumulados nos autos é que
ele deduzirá as razões de seu convencimento(2). No Juízo
criminal, onde não há “hierarquia de provas”(3), todas
servirão a formar o convencimento do julgador, ainda o
interrogatório do réu(4), que passa principalmente por meio
de defesa(5). Demais de termo essencial do processo,
constitui, de feito, meio de defesa e juntamente de prova,
que este caráter lhe imprimiu o Código, inscrevendo-o no
Título VII (Da Prova). E meio de prova que é, parece
evidente que o juiz o terá em conta ao sentenciar a causa.
Que isto não faça dúvida, em vista do texto expresso da lei:
“O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá
constituir elemento para a formação do convencimento do juiz”
(art. 198 do Cód. Proc. Penal). E, se é fonte de persuasão do
juiz o mesmo silêncio do interrogando, mais forçosamente
o haverão de ser as respostas que este lhe venha a dar.
Embora direito do preso permanecer calado (art. 5º, nº
LXIII, da Const. Fed.), reputa-se porém da última
ingenuidade supor que se haja ele de defender melhor
reverenciando o silêncio do que usando da palavra,
intérprete do pensamento. O juiz, portanto, quando
adverte o réu das consequências de seu silêncio no
182

ato do interrogatório, não apenas lhe está a curar


legitimamente dos interesses, mas por igual a discorrer-lhe
do óbvio: quem cala, consente(6).

II – Da regra de direito de que “o juiz formará sua convicção


pela livre apreciação da prova” (art. 157 do Cód. Proc. Penal)
não se há extrair, decerto, o corolário de que possa julgar
livremente (isto é, sem atender aos elementos reunidos
nos autos), senão com fundamento em alguma prova;
nela é que deve assentar o julgamento, que não em sua
consciência. “Do contrário, surgiria o regime do arbítrio e da
insegurança”(7).
Mas, que coisa é a prova? Responde-nos por todos o
clássico Mittermayer: “(…) o complexo dos motivos produtores
de certeza”(8). Tudo quanto em nós produz a certeza, isso
pois se denomina prova. Se não se chegou à certeza, foi
porque falhou a prova: ficou-se na dúvida, que, em Direito
Penal, é o outro nome da falta de prova.
As provas do delito, umas são perfeitas e outras
imperfeitas. Perfeitas dizem-se “aquelas que demonstram, de
maneira positiva, que é impossível ser o acusado inocente. As
provas são imperfeitas quando a possibilidade de inocência do
acusado não é excluída”(9).
No caso de serem precárias e imperfeitas, aí caberá ao
julgador declará-lo, sem escrúpulos nem rodeios; o que os
antigos já praticavam, ao proclamar nos julgamentos
públicos o “non liquet”(10).
183

III – Conquanto não deva o magistrado julgar senão pelas


provas dos autos, todavia, ao aplicar a lei, concede-se-lhe
que o faça com algum temperamento ou brandura, uma
vez que, a estarmos pela acreditada lição do eminente Juiz
Eliézer Rosa, “o que importa não é a lei mas o direito, que vive e
vibra na consciência do povo. Fazer justiça não é, em muitos
casos, obedecer à lei e, sim, obedecer ao direito que é a fonte da
lei”(11).
Em prova de que o julgador não está encadeado à
letra da lei, sofra-nos o pio leitor deixemos gravadas na
base desta coluna as sábias palavras de eminente
magistrado alemão a seus pares: “Nós, magistrados, que do
povo saímos, precisamos ficar ao lado do povo, ter cérebro e
coração atentos aos seus interesses e necessidades. A atividade do
juiz não consiste, de modo algum, em simples esforço intelectual.
Ela exige, em igual medida, são e ardente sentir, grandeza de
alma, tato, simpatia”(12).

Notas

(1) Eliézer Rosa, Dicionário de Processo Civil, 1957,


p. 325.
(2) O que não está nos autos não está no mundo, reza
venerando aforismo jurídico (“Quod non est in
actis, non est in mundo”). Este princípio, as velhas
Ordenações Filipinas exaltaram num lugar célebre:
“E assim dê (o julgador) a sentença definitiva, segundo o
184

que achar alegado e provado de uma parte e da outra,


ainda que lhe a consciência dite outra coisa, e ele saiba a
verdade ser em contrário do que no feito for provado” (liv.
III, tít. LXVI).
(3) Cf. Exposição de Motivos do Cód. Proc. Penal, cap. VII.
(4) Posto impressione asperamente os sentidos, e até
as fibras delicadas da alma, o vocábulo réu é termo
próprio da linguagem do foro, para designar “aquele
que é demandado e chamado em Juízo. O seu contrário é
autor. Chama-se réu, da palavra latina res, que, segundo os
jurisconsultos, vale o mesmo que causa, demanda e litígio”
(Bluteau, Vocabulário, 1720, t. VII, p. 251). Tome-nos
ainda a mão o erudito vocabulista: “De sorte que réu,
na Jurisprudência, se chama todo aquele que é arguido e
acusado, ainda que inocente; e, nesta conformidade, chama
Cícero a Milão réu, no mesmo tempo que, apadrinhando a
sua causa, quer provar que é inocente” (Ibidem).
(5) “(…) o interrogatório do acusado não constitui meio de
prova, mas representa o mais importante instrumento da
autodefesa no processo penal” (Ada Pellegrini Grinover,
As Nulidades no Processo Penal, 2a. ed., p. 226).
(6) Só por exceção deixa de triunfar a verdade deste
brocardo, como se lê em Cícero: O silêncio em certo
modo é confissão (cf. Bluteau, op. cit., t. VII, p. 644).
(7) Bento de Faria, Código de Processo Penal, 1960, vol. I,
p. 254.
185

(8) Tratado da Prova em Matéria Criminal, 1871, t. I,


p. 93; trad. Alberto Antonio Soares.
(9) César Beccaria, Dos Delitos e das Penas, § VII; trad.
Torrieri Guimarães.
(10) “Non Liquet” — Não está claro; não convence;
estou em dúvida; a coisa não está bem esclarecida.
Abreviadamente: NL. No processo criminal romano,
ao ensejo da votação no julgamento do acusado,
entregava-se a cada jurado uma tabuinha de madeira
revestida de cera, na qual, sem se comunicar com o
seu colega, escrevia a letra A (“absolvo”), ou a letra C
(“condemno”) ou as letras NL (“non liquet”): não está
esclarecido (cf. V. César Silveira, Dicionário de Direito
Romano, 1957, vol. II, p. 456).
(11) A Voz da Toga, 2a. ed., p. 49.
(12) Düringer, apud Carlos Maximiliano, Hermenêutica e
Aplicação do Direito, 1933, p. 187.
21. O Erro. O Erro Judiciário. O Erro
na Literatura (Lapsos e Enganos)

I. Que os homens geralmente nos enganamos e caímos


em faltas, e estas muita vez graves, é verdade que passa por
axioma. Adverte-nos, com efeito, a conhecida parêmia:
“Errare humanum est”!
“O cair o homem vai de ser homem, e todos somos homens”,
sentenciou o clássico Manuel Bernardes (Nova Floresta,
1711, t. IV, p. 477).
Mas o homem por que erra?
A esta embaraçosa pergunta deu elegante resposta o
profundo Antônio Vieira: “Os erros e as ignorâncias, é certo
que são muito mais que as ciências, porque para saber e acertar
não há mais que um caminho, e para errar infinitos”.(1)
Assim, dado que o erro seja partilha comum dos
mortais, console-nos ao menos a esperança de podermos
repetir com aquele insigne pregador: “(…) protesto que será o
erro das palavras e do entendimento, mas nunca do coração”.(2)
À derradeira, nisto de erros, sirva-nos de regra de
moral prática o seguinte lance oratório de Cícero, da mais
alta filosofia: “Todos estamos sujeitos a errar, mas só o estulto se
obstina no erro”.(3)

II. Erro — que é a “a não-conformidade do entendimento


com a realidade; juízo falso acerca de alguma coisa”(4) — só não
comete quem cruza os braços. Que mérito, porém, terá
aquele que nunca errou porque jamais tentou acertar?!
188

Em suma: ainda que puséssemos timbre em evitá-lo,


todos lá um dia (e talvez muitas vezes ao dia) haveremos
de conjugar o verbo errar. Sim, porque, segundo aquele
varão de raro espírito que foi Mário Barreto, “o bom peca sete
vezes no dia”(5).
Onde o erro sobretudo faz sentir seus funestos efeitos
é no vasto campo do Direito Penal: são aí bem visíveis as
marcas da falibilidade humana!
Em verdade, o capítulo do “erro judiciário” foi dos que
mais enlutaram a História e ofenderam o sentimento
comum da Humanidade.
Além do “processo de Jesus” — “o maior erro judiciário da
História”(6) —, no rol dos casos judiciais que retratam a
precariedade dos juízos humanos figuram, por força, os de
Sócrates, Galileu, Alfredo Dreyfus, Mota Coqueiro(7), dos
Irmãos Naves, do “Padeirinho de Veneza”(8), etc.
Tais erros, a Humanidade (muito a seu pesar!) nunca
poderá reparar. E daqui vem a aterradora desconfiança
de que possa alguém tornar a cometê-los, posto que
involuntariamente!
Mílton Campos, jurista exímio, discorreu gravemente
do assunto:
“Errar é humano, e seria crueldade exigir do juiz que
acertasse sempre. O erro é um pressuposto da organização
judiciária que, por isso mesmo, instituiu sobre a instância
do julgamento a instância da revisão” (apud João Martins
de Oliveira, Revisão Criminal, 1a. ed., p. 45; Sugestões
Literárias S.A.).
189

Donde a inferência lógica imediata de que também o


juiz pode cair em erro. E, remetendo o disco mais alto, o
próprio “Supremo Tribunal Federal não está imune às críticas.
Como dizia Nélson Hungria, ele tem apenas o privilégio de
errar por último” (Heleno Cláudio Fragoso, Advocacia da
Liberdade, 1984, p. 199).(9)
A dar-se o caso, todavia, que o juiz, por não
desmentir sua condição humana, perpetre algum erro ou
equívoco, então lhe não esqueça aquilo do incomparável
Rui:
“(…) a toga do magistrado não se deslustra, retratando-se
dos seus despachos e sentenças, antes se relustra, desdizendo-se do
sentenciado ou resolvido, quando se lhe antolha claro o engano,
em que laborava, ou a injustiça, que cometeu” (Obras Completas,
vol. XLV, t. IV, p. 205).
Ainda:
“Melhor será que a sentença não erre. Mas, se cair em erro,
o pior é que se não corrija” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 46).

III. Do mesmo passo que os sacerdotes de Têmis (ou


Juízes, ordinariamente falando), não estão imunes os
literatos a equívocos e lapsos; pois, consoante a doutrina de
Horácio, às vezes “até o bom Homero toscaneja”: “Quandoque
bonus dormitat Homerus” (Arte Poética, v. 359).
O “lapsus calami” (o lapso da pena) tem frustrado
autores do mais distinto merecimento, os que escreveram
com pena de ouro. Eis pequena amostra de suas
inadvertências:
190

a) O genial dramaturgo inglês William Shakespeare(10)


— o que “mais criou depois de Deus”, na frase feliz de
um escritor — também recolheu seu tributo à condição
humana:
“É comum fazer-se carga em Shakespeare, em cuja conta se
debita, como erro, como anacronismo, o ter dito, em Júlio César
(ato II), que o relógio batia horas, num tempo em que, afirmam
críticos, ainda não havia relógios” (Pedro A. Pinto, in Revista
Filológica, 1955, nº 2, p. 15).
De feito, na referida tragédia, “um relógio bate horas”:
“três pancadas” (cf. William Shakespeare, Júlio César, ato II,
cena I, p. 47; trad. Carlos Alberto Nunes; Edições
Melhoramentos).
Ora, “os relógios chamados horários e de repetição são os que
dão ou repetem as horas, as meias horas e os quartos. A fabricação
dos relógios remonta ao fim do século XV” (cf. Lello Universal,
Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro; v. relógio).
O relógio de repetição não podia, portanto, ser
contemporâneo do grande Júlio César, morto nos idos de
março do ano 44 a.C.!

b) O próprio Rui Barbosa, com ser “o primeiro talento


verbal da raça”(11), não pôde libertar-se das insídias do erro,
consequência da que denominou “eterna falibilidade
humana, cujos estigmas ninguém evita neste mundo” (Réplica,
nº 10).
191

Assim é que, em sua monumental Réplica, exarou:


“Minha divisa na vida pública tem sido aquilo do evangelista:
Per infamiam et bonam famam (nº 24).
É o conhecido texto de São Paulo, que, no entanto,
não foi “evangelista” (“stricto sensu”), mas “apóstolo”(12).

c) A pena da “Águia de Haia” deu curso também a este


lapso:
“De tudo quanto no mundo tenho visto, o resumo se
abrange nestas cinco palavras:
Não há justiça onde não haja Deus” (Oração aos Moços,
1a. ed., p. 46).
O que ensejou a Adriano da Gama Kury a seguinte
nota:
“Cinco palavras: Não há justiça onde não haja Deus. A
propósito deste curioso engano, Rui havia escrito, realmente, cinco
palavras: Não há justiça sem Deus. Ao substituir a frase,
esqueceu-lhe recontar as palavras, já agora em número de sete”
(Oração aos Moços, 1956, p. 75; Casa de Rui Barbosa).

d) Em seu livro “Uma Vida” refere Plínio Doyle dois


exemplos de enganos, que vêm aqui a lanço:
1. “Flor de Sangue”, de Valentim Magalhães.
“Esse romance foi publicado em 1897, pela Laemmert &
Cia., trazendo um dado que parece incabível num romance: uma
errata. Mas lá está, à página 385: À página 285, 4a. linha, em
vez de estourar os miolos, leia-se cortar o pescoço” (p. 65);
192

2. “(…) ouvi, não sei de quem, quando se falava de A


Condessa Hermínia, peça teatral do general Dantas Barreto, que
a mesma terminava com a frase: Quando a Condessa acordou,
estava morta” (Plínio Doyle, Uma Vida, 1999, p. 76; Casa da
Palavra).
Ainda:
3. “Ele passeava pelo jardim, com as mãos às costas, lendo
tranquilamente o jornal” (Ponson du Terrail; apud Folco
Masucci, O Livro que Diverte, 1953, p. 261; Edições Leia;
São Paulo).
4. De Camilo Castelo Branco, no romance A Filha do
Doutor Negro (3a. ed., p. 262, da Parceria Antônio Maria
Pereira): “Antônio da Silveira, o justo, o honrado, o cristão,
chegou aos 70 anos com a alma no pleno fulgor de suas
faculdades, e o corpo sadio e vigoroso, excetuando o braço que ele
pendurou entre os troféus da liberdade em Portugal. Morreu em
1860 na casa onde nascera, porque seu sobrinho, remordido pela
consciência da feia ação, um dia se ajoelhou aos pés do velho
coronel, suplicando-lhe que entrasse no seio da sua família. O
ancião ergueu nos braços o sobrinho…” (Agrippino Grieco,
Pérolas, 1937, p. 16; Cia. Brasil Editora S.A.).
5. “O Sr. Ferreira da Rosa, no Por Amor de Portugal, alude a
um trecho apologético que Castilho (Antônio Feliciano de
Castilho) compôs à vista do túmulo de D. Afonso Henriques.
Esse à vista, em se tratando de um escritor cego, é bem um
murro no olho de todos os cidadãos de bom-senso…” (Idem,
ibidem, p. 49).
193

6. “Nas Ideias de Jeca Tatu, o Sr. Monteiro Lobato vê a


caveira de Spencer estremecer na cova, coisa difícil, uma vez que
o cadáver do grande filósofo britânico foi incinerado…” (Idem,
ibidem, p. 51).

IV. O deslize de linguagem (“lapsus linguae”) ocorre com


frequência entre os oradores.
A. Almeida Jr., professor emérito da Faculdade de
Direito das Arcadas, relata o seguinte episódio:
“Há muitos anos, um de nós assistiu, no interior do Estado
de São Paulo, ao enterro de um chefe político. Homem
voluntarioso, violento, temido tanto pelos companheiros como
pelos adversários, pareceu que sua morte, ainda que sentida,
produziu alívio. Caso nítido de ambivalência! À beira do
túmulo, um dos oradores, ao lamentar o fato, referiu-se a este
faustoso acontecimento. Era indubitável que ele tinha querido
dizer (como depois declarou) infausto” (Lições de Medicina Legal,
20a. ed., p. 491; Companhia Editora Nacional).
Há quem jure de pés juntos que Fernando Costa,
prócer político e ministro da agricultura sob o governo de
Getúlio Vargas, em discurso inaugural da Feira de Bovinos,
Equinos e Muares, que tradicionalmente se realizava no
Parque da Água Branca, na Capital paulista, ergueu a voz
em inflamado exórdio:
— “A uma exposição de animais como esta eu não poderia
faltar”!
194

Não é mister dizer que o frêmito da gargalhada do


público ressoou por todos os cantos (os estábulos e as
cavalariças inclusive).
Outro caso de “lapsus linguae” foi Paulo Bomfim,
O Príncipe dos Poetas Brasileiros, quem nos contou.
Era por 1983. Em visita oficial à Comarca de Jacareí
para a instalação de Vara Criminal, o Presidente do
Tribunal de Justiça — Desembargador Francisco Thomaz
de Carvalho Filho (a quem o Poeta acompanhava na
condição de Chefe do Cerimonial) — foi recepcionado,
conforme o estilo, pelas autoridades locais e representantes
de entidades de classe. Houve discursos de pompa e
circunstância.
O presidente da Subseção da Ordem dos Advogados
do Brasil, após desenrolar o pendão da eloquência, passou
à peroração e rematou com o seguinte rasgo de efeito:
“Senhor Presidente, o povo da generosa cidade de Jacareí
recebe V. Exa. de pernas abertas!”. (Quisera dizer, é claro,
braços abertos).
Um tiro de canhão, no silêncio da noite, não teria
causado no ânimo dos presentes maior abalo e confusão!

V. O erro tipográfico (“lapsus typographicus”) não pode ser


excluído da resenha geral dos enganos e senões que, as
mais das vezes, metem em angústia e desespero aos que
assentaram praça na república das letras(13).
195

Exemplos em barda poderíamos arrolar de gralhas


tipográficas ou erros de impressão. Damos aqui os mais
frisantes e notáveis:

1. Imensa terá sido a mágoa de Machado de Assis —


“verdadeiro modelo da boa linguagem, assim na correção como no
gosto”, ao aviso dos doutos(14) —, ao deitar os olhos no
volume de suas “Poesias Completas” (1901; H. Garnier,
Livreiro-Editor), sobretudo naquele passo da “Advertência”
que lhe escreveu:
“Não deixo esse prefácio, porque a afeição do meu defunto
amigo a tal extremo lhe cegara o juízo que não viria a ponto
reproduzir aqui aquela saudação inicial”.
A causa do dissabor e justa indignação do
circunspecto Machado explicou-a Plínio Doyle no livro
Minha Vida:
“Aquele cegara ali em cima teve uma letra trocada pelo
tipógrafo: o e por a. Não preciso dizer mais nada, senão pensar no
enorme aborrecimento que deve ter tido Machado ao ver com seus
olhos o erro.
Na biblioteca da Casa de Rui Barbosa há um exemplar
com o erro, outro emendado à mão (corre que foi o próprio
Machado que toda tarde fazia as emendas de vários exemplares) e
um terceiro, correto” (p. 67).

2. Outro aleijão tipográfico depara-nos a 6a. ed. do


Código de Processo Penal (1959; Saraiva).
196

Com efeito, reza o teor do art. 536:


“Recebidos os autos da autoridade policial, ou prosseguindo
no processo, se tiver sido por ele iniciado, o juiz, depois de ouvido,
dentro do prazo improrrogável de 24 anos, o órgão do Ministério
Público, procederá ao interrogatório do réu”. Emenda: “24
horas”.

3. Nisto de falhas ou quiproquós tipográficos, faz ao


intento a crônica do esmerado escritor maranhense
Humberto de Campos, “in verbis”:
“Conta-se que, por ocasião de sua vinda ao Rio de Janeiro
em 1887, escreveu Ramalho Ortigão, para a Gazeta de Notícias,
um artigo de colaboração destinado a uma edição festiva. No dia
aprazado, o matutino de Ferreira de Araújo aparecia com o
escrito do seu eminente colaborador português. Intitulava-se,
aquele, O Pássaro e as Penas. Quem, todavia, o lesse, não
encontraria nem as penas, nem o pássaro. No dia seguinte,
porém, vinha a corrigenda. Por um engano de revisão — dizia
esta —, saiu deturpado o título do artigo que publicamos ontem,
da autoria do ilustre escritor Ramalho Ortigão. Onde se lê
O Pássaro e as Penas, leia-se: O Pássaro e o Presunto.
No referido artigo não se tratava, entretanto, ainda, de tal
coisa. O título verdadeiro era, apenas, O Passado e o Presente,
que o tipógrafo encarregado de compor os títulos não
compreendera bem, na caligrafia complicada de Ramalho
Ortigão” (Reminiscências…, 1962, pp. 89-90; Livro do Mês
S.A.).
197

4. De erros de imprensa (“gralhas”) também o erudito


escritor Eduardo Frieiro colheu exemplos em barda. Eis
alguns:
I. “Na secção necrológica de um austero órgão carioca, leram-se
um dia estas palavras escandalosas a propósito de um
venerando figurão do Império: O honrado Senador X
passou os últimos anos de sua existência entre duas mulatas.
Um inocente paragrama trocara as muletas em mulatas”
(Os Livros, nossos Amigos, 2010, p. 139; Edições do
Senado Federal; Brasília).

II. “Um jornal de Lisboa, no tempo da Rainha Dona Amélia,


fazendo uma edição especial muito esmerada em
homenagem à Soberana, anunciou um prêmio a quem
descobrisse um erro de revisão. Para quê? Logo na primeira
coluna da primeira página do tal jornal lia-se em tipos
fortes: Sua Majestade a Bainha… etc., etc. O responsável
foi punido e no dia seguinte saía a retificação: Por um
lamentável erro de revisão — dizia —, demos ontem a
notícia de que Sua Majestade a Tainha… etc., etc.” (Idem,
ibidem, p. 140).

III. “Enfim, a explicação do Capeta é tão boa como qualquer


outra. E só por artes do Capeta se pode explicar que se haja
inutilizado uma edição da Bíblia que continha este erro
imperdoável: Cristo com cinco mil pães deu de comer a
cinco pessoas”. Outra Bíblia, impressa em Hale, em
1710, encerrava este monstruoso mandamento: Cometerás
adultério” (Idem, ibidem, p. 141).
198

5. Sesquipedal lapso tipográfico foi o que, a dar-se


crédito à tradição oral, cometeu desastrado revisor.(15)
Passara ano inteiro a rever uma obra e, ao cabo,
escreveu-lhe no cólofon, em letras capitulares:
“Este livro não contém erata”.

6. Dos erros tipográficos, em suma, é vasta a messe, que


veteranos jornalistas ainda conservam na memória, com
carinho e saudade. A um desses(16) ouvimos dizer que,
retornando ao País a Seleção Brasileira de Futebol, certo
órgão da imprensa, arrebatado de justa ufania, publicou a
seguinte manchete: O marechal da vitória Paulo Machado
de Carvalho merece a gratidão da pátria!
Deu-se, no entanto, que, por terribilíssimo lapso,
deixara o linotipista cair uma letra do patronímico do
marechal da vitória, o que formou um palavrão de rachar
um carvalho de alto a baixo!
Outro tanto em referência a um “incêndio na fábrica de
colchões”, que teria irrompido, vai por meio século, no
bairro paulistano do Brás.
Ao revisor do jornal esquecera-lhe examinar a última
prova. Consequência: mofina síncope fizera desaparecer
letra intermediária da palavra colchões, o que só perceberam
os leitores, estupefactos! Já ardera Troia!

7. Outra gralha tipográfica, de certo peso e vulto,


noticiaram ultimamente os jornais. Vai abaixo reproduzida:
199

“O Tribunal de Justiça do Paraná condenou uma editora


de Londrina (do norte do Estado) a pagar uma indenização de
R$ 4.800,00 por danos morais e materiais a uma lanchonete da
mesma cidade.
A editora, que é responsável por publicações em listas
telefônicas, escreveu errado um anúncio da loja de sucos.
Por erros de grafia cometidos durante o processo de
composição do anúncio, a expressão sucos exóticos e grelhados
virou sucos eróticos e gralhados. O erro saiu na edição de
2008/2009” (Agora, 16.5.2012).

8. Essa ingrata experiência viveu também Gilberto


Amado (1887-1969), jornalista, político e diplomata
sergipano. Ele próprio o narra: “Quando comecei a escrever no
O País e no Comércio de São Paulo, ao iniciar a minha carreira,
há cinquenta anos, lembro-me de que, expondo um assunto,
terminava dizendo: São fatos como este que demonstram a
vitalidade de uma raça. Saiu… vitalidade de uma onça” (Depois
da Política, 1960, pp. 196-197; Livraria José Olympio
Editora).

9. “Na folha, objeto de nossas informações anteriores,


publicou-se, de uma feita, um anúncio: Vende-se casa com
tantos cômodos e cocheira para família de trato” (Folco
Masucci, O Livro que Diverte, 1953, p. 100).
200

10. Não seria descabido recordar o resultado de um pastel, em


correspondência interiorana. Noticiava-se, na mesma coluna, o
noivado de dois rebentos de família ilustre, e o aparecimento de
uma praga na lavoura. A notícia social terminava assim: Sendo
a noiva filha do dr. fulano e de sua virtuosa esposa, dona
beltrana, a Prefeitura está empenhada em acabar com essa
praga, que vem ocasionando dano às plantações deste
município...” (Idem, ibidem).

11. Outra cinca desmarcada ou, antes, providência


“ultima ratio”, vem descrita em “O Pitoresco na Advocacia”,
livro do Dr. Fernandino Caldeira de Andrada (p. 26).
Ei-la:
“Contam que, numa comarca do interior, na sala dos
advogados, um profissional, às pressas — quase fim do expediente
forense —, redigia uma petição. O papel não valia nada. Era
daqueles destinados à cópia. Pelas tantas, o advogado errou.
Utilizou borracha. Rasgou o papel. Continuou a datilografar.
Depois de pedir deferimento, datar e assinar o requerimento, nele
apôs a seguinte observação: No buraco, leia-se Vossa Excelência”.

VI. Anda na boca do povo que é o espírito do mal quem


enfatua e amesquinha a inteligência do homem, para que
cometa semelhantes iniquidades e despautérios. Tem até
nome: Titívilo (“Titivillus”, na voz latina). Eis sua efígie(17):
201

“Titivillus” (Titívilo) – Diabinho inventado “por


monges copistas medievais” para justificar seus erros de
escrita (“lapsus calami”).

Já que o erro é contingência humana, defenda-nos


Deus das ciladas de Titívilo, agora e sempre. Amém!
202

Anexo

(fig. 1)

Notas

(1) Sermões, 1959, t. VIII, p. 209; Lello & Irmão —


Editores; Porto.
(2) Cartas, 1971, t. I, p. 157; Imprensa Nacional; Lisboa.
(3) “Cujusvis hominis est errare, nullius nisi insipientis in
errore perseverare” (Philip., XII, 2,5).
(4) C.J. de Castro Nery, Filosofia, 1932, p. 83;
Companhia Editora Nacional; São Paulo.
(5) Através do Dicionário e da Gramática, 1927, p. 185;
Livraria Quaresma; Rio de Janeiro.
(6) Pedro Paulo Filho, Grandes Advogados, Grandes
Julgamentos, 3a. ed., pp. 599-603; Millennium Editora.
Trata-se de obra, porventura a mais bela e completa
203

que entre nós ainda se escreveu a respeito dos “casos


do Júri” !
(7) Consta que, tendo chegado à notícia do Imperador
Pedro II que Mota Coqueiro, morto por enforcamento,
havia sido vítima de “erro judiciário”, no mesmo ponto
mandou quebrar a pena com que lhe denegara
pedido de clemência e “nunca mais quis assinar
nenhuma condenação” (Raimundo Menezes, Crimes e
Criminosos Célebres, 2a. ed., p. 123).
(8) “O Caso do Padeirinho de Veneza” refere-o, em livro
valioso assim pela substância como pela forma, o
eminente Des. João Martins de Oliveira, do Tribunal
de Justiça de Minas Gerais:
“Em 1507, pela madrugada, foi assassinado um homem
em Veneza e seu cadáver estava na rua. Passando pelo
local, o moço Pedro Faciol, modesto padeiro, viu o corpo e
ficou a admirar o punhal manchado de sangue. A arma era
rica. Apoderou-se dela e ia retirar-se, quando soldados que
se aproximavam e o viram inclinado junto ao cadáver o
perseguiram e prenderam, encontrando o instrumento do
crime em seu poder. À vista do flagrante, foi submetido a
tormento, confessou o assassinato e foi enforcado a 22 de
março de 1507. Descobriu-se, depois, o verdadeiro autor do
crime. Diz-se que, por causa deste erro, a administração
local mandou escrever, em tinta vermelha, na parede da
sala dos julgamentos, a frase: Ricordatevi del povero fornaio
(Recordai-vos do pobre padeiro), e estas palavras eram
repetidas, em voz alta, por um funcionário, antes dos
pronunciamentos dos julgadores” (Revisão Criminal, 1a.
204

ed., p. 45; Sugestões Literárias S.A.; São Paulo).


Ainda: Giuseppe Fumagalli, Chi l’ha detto?, 1995,
p. 170; Editore Ulrico Hoepli; Milano.
(9) Esta mesma ideia já havia enunciado Rui, da tribuna
do Senado Federal, em 29.12.1914:
“Em todas as organizações políticas ou judiciais há
sempre uma autoridade extrema para errar em último
lugar.
Alguém, Senhores, nas cousas deste mundo, se há de
admitir o direito de errar por último.
Acaso V. Exas. poderiam convir nessa infalibilidade
que agora se arroga de poder qualquer desses ramos da
administração pública, o Legislativo ou o Executivo, dizer
quando erra e quando acerta o Supremo Tribunal Federal?
O Supremo Tribunal Federal, Senhores, não sendo
infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de
errar por último, de decidir por último, de dizer alguma
cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade”
(Obras Completas, vol. XLI, t. III, p. 259).
(10) Hamlet é sua obra-prima e Otelo, “uma das poucas
criações humanas — quatro ou cinco — que merecem
o qualificativo de perfeitas” (cf. Obras Completas de
Shakespeare, vols. XIII e XIV; trad. Carlos Alberto
Nunes; Edições Melhoramentos; São Paulo).
(11) Sílvio Romero, História da Literatura Brasileira, 1949,
t. V, p. 448.
(12) 2a. Epístola aos Coríntios, cap. VI., v. 8: “por infâmia,
e por boa fama”.
205

Ao apontar lapsos nos escritos de Rui, nem por


sombras nos moveu o intuito de profanar a memória
do “Maior dos Brasileiros”, cuja morte os jornais da
época noticiaram com pregão extraordinário: “Apagou-
-se o Sol!” (cf. Gazeta de Notícias, de 2 de março de
1923; fig. 1 do Anexo).
Quisemos apenas significar que até o Sol tem
manchas, como afirmam os astrônomos!
(13) Camilo Castelo Branco, em prefácio à 2a. edição de
“Agulha em Palheiro”, fulminou anátema contra os que
haviam entendido na impressão de seu livro:
“A primeira edição deste romance saiu de uma
tipografia do Rio de Janeiro. Parece que houve propósito de
desdourar os prelos brasileiros! Poderá parecer também que
se intentou desdourar o autor; mas semelhante suspeita não
vingaria, atendendo a que não é coisa verossímil alguém
escrever assim”.
Também o nosso Rui não teve mão em si que, a
propósito de erros tipográficos, não discreteasse por este
feitio:
“(…) nem sempre será fácil discernir com segurança
onde termina a ação do escritor, onde começa a culpa do
tipógrafo” (Réplica, nº 357).
Ainda:
“Quem quer que haja experimentado o rever provas,
saberá com que facilidade escapam essas diferenças de letra
aos olhos mais adestrados, sobretudo aos do próprio autor,
que, lendo no seu pensamento, cuida amiúde ter visto no
206

impresso o que apenas lhe estava na ideia. A imagem


mental, em sua forma correta, oculta e substitui aos olhos do
escritor a incorreta reprodução no trabalho da oficina”
(Ibidem, nº 123).
(14) Rui, Réplica, nº 74.
(15) Revisor, indivíduo cuja profissão é um erro, disse
alguém.
(16) Dr. Mário de Oliveira, advogado e jornalista (diretor-
-presidente do periódico Edição Policial).
(17) Cf. Carlos M. Horcades et alii, Almanaque Tipográfico
Brasileiro, 2008, p. 66; Ateliê Editorial.
22. Lei, Justiça e Bom-Senso
1. “Uma norma é a sua interpretação”, escreveu Miguel
Reale, um dos mais altos espíritos de que justamente se
orgulha e envaidece a cultura jurídica do País(1).
Ora:
“Interpretar, no sentido jurídico, é procurar o pensamento
contido na lei, a significação das palavras, o alcance do texto, a
explicação da frase”(2).
As mais das vezes a lei, de tão claros seus termos,
escusa interpretação ou exegese: não há senão aplicá-la ao
caso concreto. “In claris cessat interpretatio”, reza o retrilhado
adágio latino, à maneira de advertência de que se não deve
perverter o raciocínio, pois a ninguém é lícito negar o que
a evidência mostra. Não é mister trazer o Sol ao meio do
firmamento para que todos o vejam!
Mas, ainda quando clara como água de regato, pode
dar-se o caso que a lei não seja de per si justa (e sequer,
deitando a barra mais longe, lídima expressão da vontade
popular). Eis por que infinito número delas não resiste à
arguição de inconstitucionalidade nem se exime da tacha
ou eiva de injustas, já que atentatórias dos princípios que
regem as sociedades civilizadas.
Sobretudo na esfera criminal — que é o lugar próprio
à reparação do direito violado por ofensa a bem jurídico
penalmente protegido —, a função do juiz resume-se em
dar a cada um o que lhe cabe. Encerrada a instrução do
devido processo legal, se não liquidada sua culpa, é o réu
absolvido e mandado em paz; se, ao revés, a prova obtida
208

com estrita observância das regras do contraditório


processual e da plenitude do direito de defesa(3) não pôde
menos de demonstrar-lhe a responsabilidade criminal, em
vão pelejará contra o gládio implacável da Justiça. Não há
aí que objetar. Tome a mão sobre o árduo assunto o
preclaro Nélson Hungria, autor do Código Penal e seu
mais abalizado exegeta: “A pena traduz primacialmente um
princípio humano por excelência, que é o da justa recompensa:
cada um deve ter o que merece”(4).
A essa conta, ninguém — exceto se penalmente
inimputável — poderá forrar-se ao rigor da lei, que a todos
iguala.
É de ciência vulgar (isto se aprende não só nos bancos
acadêmicos mas também à porta do Fórum) que a
impunidade passa pelo mais poderoso estímulo do crime.
Atraiu, por isso, ultimamente, acerbas críticas a tese
de que, por amor do princípio constitucional da presunção
de inocência, ou da não-culpabilidade (art. 5º, nº LVII, da
Const. Fed.), a pena imposta ao réu só era possível executar
após o trânsito em julgado da decisão penal condenatória.
Tal prática, a darmos crédito a resenhas que parecem
fidedignas, somente o Brasil adota!
Embora nem sempre seja o número o melhor critério
da verdade, essa estonteante exceção faz grande abalo em
todo ânimo imparcial e avisado!
Tratando-se de autêntica “vexata quaestio”, àquele que
a pretender desatar (o juiz, em especial) cumprirá eleger
209

primeiro o padrão exegético por onde os sujeitos mais


acreditados em saber e virtudes costumavam agitá-la.
Faz ao intento a soberba lição que, em livro a mais
de um respeito admirável e digníssimo de ler (e ainda
recomendar), ministrou o Prof. Goffredo Telles Junior.:
deve o juiz “interpretar as leis com a lógica do jurista”.
Advertiu, porém, o saudoso mestre das Arcadas: a lógica do
jurista “não deve ser sempre a lógica do racional. Frequentemente,
deve o jurista, em nome da justiça, substituir os rigores dessa
lógica pela lógica do razoável, como bem ensinou Luiz Recasens
Siches”(5).
Ora, descendo ao particular, teria foros de
razoabilidade a decisão que, imolando na ara da presunção de
inocência, obstasse a execução da pena do réu logo após
o julgamento da causa-crime pelo Juízo de 2º Grau de
Jurisdição?!
Seria sensato afirmá-lo, se, falando pela via ordinária,
o argumento da inocência presumida cede, após a
condenação do réu, ao da presunção de sua culpabilidade?!
Conformar-se-ia com os ditames da reta razão isto de
se desconsiderarem os efeitos do julgado de 2a. Instância
— derradeira etapa de análise da prova com cognição
plena — e remeter-se a solução do litígio aos Tribunais
Superiores, que já não versam matéria de fato, mas apenas
de direito?!
Era decoroso fazer alguém tábua rasa de acórdão que,
no julgamento de apelação (da Defesa ou da Acusação),
proferiu o Tribunal de Justiça — órgão de exaurimento
da jurisdição ordinária, com apuração inteira da
210

responsabilidade criminal do réu — e, destarte, protrair


“ad infinitum” o deslinde da controvérsia entretida nos
autos do processo?!
Frisaria com a gravidade dos negócios da Justiça
desfazer em decisão colegiada, proferida com escrupulosa
observância do devido processo legal, para (em liberdade
o réu, nada obstante condenado a penas extremadas)
aguardar, não raro com insofrível delonga, a chancela da
Superior Instância, que sói confirmá-la?! As reformas dos
julgados inferiores na perspectiva do mérito, com efeito,
segundo os cálculos mais favoráveis, não excedem o
percentual ínfimo (1%) !
Procederia com discrição aquele que, mentindo à sua
particular e honrosa condição de aplicador da lei, tivesse
em pouco o princípio da tutela judicial efetiva, tornando
desta sorte írrita a resposta penal do Estado?!
Atenderia, em suma, aos conselhos da prudência
o que, só por generosa (e quiçá mal compreendida)
inteligência do texto da lei, fizesse mais caso e cabedal da
exceção do que da regra geral?!
Perguntadas sobre esses quesitos, as pessoas de
alguma ilustração e decerto probas — de boas entranhas,
diriam nossos maiores — não hesitariam em enunciar a
resposta curial e aceitável, e isto com argumentos mui
atendíveis.

2. Está além de toda a dúvida que, fenômeno intelectual


inerente à condição humana, a variedade de opiniões tem
211

entre nós a força e a eficácia de postulado ou garantia


fundamental: “É livre a manifestação do pensamento”, dispõe a
Constituição da República (art. 5º, nº IV).
A ciência da Filosofia patenteia o substrato dessa
diversidade, e até antagonismo de ideias(6); é a área do
Direito, no entanto, a que lhe depara maior voga e
desembaraço. Com efeito, entre os que professam as
carreiras jurídicas, máxime os investidos de função
judicante, passa por moeda corrente o conhecido brocardo
“cada cabeça, cada sentença” (“quot capita, tot sententiae”).(7)
Ser constante em suas opiniões e fiel aos seus pontos
de vista, eis a pedra de toque do homem honrado. Todavia,
“porque para saber e acertar não há mais que um caminho, e
para errar infinitos”, conforme aquilo do profundo Vieira(8),
poderá suceder que somente lá para o diante caiamos na
conta que o melhor alvitre era haver tomado por outra
direção.
Matéria não é essa para escrúpulos, nem pode meter
em confusão caracteres sem jaça: afinal, mudar de parecer
(“para melhor”, fique entendido) é próprio do sábio(9).
Nas tenazes desse dilema esteve por vezes também o
mais eminente dos brasileiros: Rui Barbosa. O teor de seu
proceder, nessas conjunturas, qual foi? Conheçamo-lo por
inteiro:
“Felizes os que variam da ignorância para a ciência, do erro
para a verdade. Afortunado o que, pecando um dia contra a
verdade, ou contra a justiça, acorda, a tempo, do seu engano, e se
retrata ainda utilmente do seu desvio. Benditas as mudanças de
opinião, quando se operam neste sentido. Elas não abalam a
212

consideração pública a quem a merecer. Antes recomendam à


estima, ao respeito e à confiança de seus semelhantes o homem,
que não se desdoire de as confessar, e sem rubor pratique a nobre
ação de se desdizer abertamente, pondo a consciência acima do
interesse, o dever acima da vaidade, antes que o desacerto,
circulando abonado com o prestígio de um nome autorizado,
comece a produzir consequências malfazejas” (Obras Completas,
vol. XLV, t. IV, p. 213).
Feriu de novo o ponto num de seus mais reputados
livros:
“Pelo que toca ao variar das opiniões, deixem-me ter, mais
uma vez, o consolo de trazer à praça como coisa de que me prezo,
e não me pesa, a deliciosa culpa dos homens de consciência, a
única em que hei de morrer impenitente. Beata, beata, beatissima
culpa! Não mo tenham a mal os imutáveis. Deus os desencrue.
Deus os reverta da pedra e cal em homens. Deus os ensine a
mudar. Porque todo o aprender, todo o melhorar, todo o viver é
mudar. De mudar nem mesmo o céu, o inferno ou a morte
escapam. Mudar é a glória dos que ignoravam, e sabem, dos que
eram maus, e querem ser justos, dos que não se conheciam a si
mesmos, e já melhor se conhecem, ou começam a conhecer-se”
(Rui Barbosa, Queda do Império, 1921, t. I, p. LXXX).

3. Quanto lhe custa, ao que muda de opinião, o


renunciar a primitivas e inveteradas convicções, bem se
adivinha. Ao discursar do tema, observou muito de estudo
Orosimbo Nonato, provecto e laborioso ministro do
Supremo Tribunal Federal:
213

“Todos os homens erramos. Ninguém possui a pedra lídia


da verdade. (…) Ao juiz, essa confissão se torna penosa não
apenas por afeição paternal que dedicamos aos partos do nosso
entendimento, como dizia frei Luís de Sousa, senão ainda pelo
reconhecimento dos grandes males suscitados pelas oscilações de
uma jurisprudência voltária e flexível, matriz de inseguranças
perturbadoras do comércio jurídico e das relações do consórcio
civil.
Mas, a verdadeira coerência é a moral, e tributo constante e
infalível só é devido à verdade que o juiz julga identificar em face
de novos estudos retificadores de erros passados. Se a consciência
dessa situação se lhe impõe com as cores da evidência, todas as
demais considerações se dissipam e se evaporam: confessará ele o
engano e decidirá de modo diferente em obséquio à verdade”
(Revista Forense, vol. 177, p. 143).
Isto mesmo sentiu o culto e austero ministro Carlos
Maximiliano, como revelam as memoráveis palavras que
pronunciou na oração de despedida do Supremo Tribunal
Federal: “Não trepidei em mudar de voto, pública e
declaradamente, toda vez que novos argumentos ou provas
concludentes me convenceram do desacerto do veredictum
anterior: acima do melindre pessoal de cada um está a sacrossanta
causa da Justiça” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 16a.
ed., p. 377; Editora Forense).
Tais exemplos de dignidade de inteligência deram,
pouco há, Ministros do Supremo Tribunal: obrando com
bom-senso — que é a estrela-guia do Direito —, e
imbuídos de altiva e desusada coragem moral, tomaram a
seu cargo interpretar embaraçosos textos de lei segundo a
214

craveira do razoável(10). Sobre fazer justiça, como é de regra,


realçaram o lustre da veneranda Instituição e avigoraram
a confiança que nela deve ter o povo. Conspiraram, ao
demais, para segurar a Pátria contra o execrando agente
que a estiola e desfibra: a corrupção.
Animados de igual propósito, já tocaram a rebate,
com boa fortuna, e levantaram-se em benemérita cruzada,
para pôr cobro às graves mazelas que afligem os brasileiros,
os briosos patrícios Miguel Reale Júnior, Hélio Bicudo,
Janaína Paschoal, Modesto Carvalhosa, Luís Carlos Crema,
Laercio Laurelli, Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Aloísio
de Toledo César, Luiza Eluf Nagib, Roberto Livianu,
Augusto Nunes, Felipe Moura Brasil, José Maria Trindade,
Claudio Tognolli, Carlos Andreazza, Marcelo Madureira,
José Paulo de Andrade, Salomão Ésper, Rafael Colombo
(por nomear apenas alguns dentre os principais).
A quantos — nos circuitos da Justiça, do Direito e da
Imprensa — tiveram a honra e a glória de merecê-los,
convêm conscientes aplausos, não apenas a simpatia e o
incentivo dos homens de bem, que amam o Brasil,
praticam a Justiça e professam a Verdade!

Notas

(1) Filosofia do Direito, 2016, p. 571; Editora Saraiva.


(2) Vicente de Azevedo, Curso de Direito Judiciário Penal,
1958, vol. I, p. 74.
215

(3) “(…) só merece o nome de defesa a que for livre e completa”


(José Soares de Mello, O Júri, 1941, p. 16).
(4) Novas Questões Jurídico-Penais, p. 131.
(5) Goffredo Telles Junior, A Folha Dobrada, 1999,
p. 161; Editora Nova Fronteira.
(6) “(…) até entre os anjos pode haver variedade de opiniões,
sem menoscabo de sua sabedoria nem de sua santidade”,
pregou o eloquente Vieira (Sermões, 1959, t. IV,
p. 216; Porto).
(7) O vulgo profano, cuja malícia e criatividade
sobreexcedem a toda medida, cunhou o anexim:
“Duas coisas em que se não pode confiar: b. de criança e
cabeça de juiz” (cf. Rubem Alves, Ostra Feliz não Faz
Pérola, 2008, p. 33; Editora Planeta do Brasil).
(8) Op. cit., t. VIII, p. 209.
(9) “Sapientis est mutare consilium”, afiança o prolóquio.
(10) O estado da questão. A execução provisória da pena
repugna ao princípio da presunção de inocência
(art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.)? O tema foi exposto
em toda a luz pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal, intérprete máximo da Constituição, no
julgamento do “Habeas Corpus” nº 126.292-SP. Após
considerar que, “em país nenhum do mundo, depois de
observado o duplo grau de jurisdição a execução de uma
condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte
Suprema”, propôs orientação que restaurou tradicional
entendimento a respeito do ponto especial, isto é: “A
216

execução provisória de acórdão penal condenatório proferido


em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou
extraordinário, não compromete o princípio constitucional
da presunção de inocência” (STF; HC nº 126.292-SP;
Plenário; rel. Min. Teori Zavascki; 17.2.2016).
Ao julgar o Agravo Regimental nº 964.246-SP, o
Pretório Excelso, por maioria de votos, reafirmou a
jurisprudência dominante sobre a matéria. Contém
a conclusão do aresto a seguinte substância: “(…) a
reafirmação da atual jurisprudência desta Corte, fixando,
para efeitos de repercussão geral, a tese de que a execução
provisória de acórdão penal condenatório proferido em
grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou
extraordinário, não compromete o princípio da presunção
de inocência afirmado pelo art. 5º, inc. LVII, da
Constituição Federal” (STF; ARE nº 964.246-SP;
Plenário; rel. Min. Teori Zavascki; j. 11.11.2016).
23. O Crime de Extorsão e a Tentativa

I. Das infinitas questões que se disputam perante a


barra da Justiça Criminal, poucas apresentam mais
dificuldade que a tentativa de extorsão: art. 158 do Código
Penal(1).
Contra expressiva corrente doutrinária, admitem-na
autores de boa nota, considerando tal crime de natureza
material, isto é, não se aperfeiçoa sem a efetiva lesão do
bem jurídico.
Os que a não reconhecem, porém, esses alegam que a
tentativa é incompatível com a extorsão, delito formal, ou
de consumação antecipada.
Valem-se também da letra da Súmula nº 96 do
Colendo Superior Tribunal de Justiça, que reza: “O crime
de extorsão consuma-se independentemente da obtenção da
vantagem indevida”.
Mas, afirmar de modo absoluto que repugna à
extorsão a figura do “conatus” não é senão afastar-se da
verdadeira exegese do texto legal e aplicá-lo em franco
desacordo com os preceitos da Justiça, a qual manda evitar
sempre a imoderação no castigo: “Interpretatio aequior, et
benignior, summenda est”. É de preferir a interpretação mais
equitativa e mais benigna.

II. A interpretação que atende à hipótese da tentativa no


crime de extorsão é a que, a nosso aviso, leva primazia
entre os penalistas.
218

Nélson Hungria, o Pontífice Máximo do Direito


Penal pátrio, escreveu, com efeito, em sua monumental
obra:
“Apesar de se tratar de crime formal, a extorsão admite
tentativa, pois não se perfaz unico actu, apresentando-se um
iter a ser percorrido. Assim, toda vez que deixa de ocorrer a
pretendida ação, tolerância ou omissão da vítima, não
obstante a idoneidade do meio de coação, ou, no caso de
extorsão mediante sequestro, deixa este, já em execução, de
se ultimar (por circunstância alheia à vontade do agente),
não se pode reconhecer senão a tentativa” (Comentários ao
Código Penal, 1980, vol. VII, p. 77).

E logo abaixo:
“Há que se identificar a tentativa punível ainda no caso,
não muito infrequente, em que a vítima, vencendo o temor
incutido, comunica a ameaça à polícia, e esta predispõe as
coisas de modo a surpreender o extorsionário no ato de se
apoderar da coisa fingidamente consignada ou quando se
apresenta no lugar indicado para recebê-la” (Ibidem).

Doutrina é esta em que conspiram graves autores:


“Ocorre (tentativa de extorsão) quando o sujeito passivo,
não obstante constrangido pelo autor por intermédio da
violência física ou moral, não realiza a conduta positiva ou
negativa pretendida, por circunstâncias alheias à vontade
do autor” (Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado,
18a. ed., p. 610).
219

Pelo mesmo teor, o insigne Heleno Cláudio Fragoso:


“Não se exige, para a consumação, que o agente tenha
conseguido o proveito que pretendia. O crime se consuma
com resultado do constrangimento, isto é, com a ação ou
omissão que a vítima é constrangida a fazer, omitir ou
tolerar que se faça e por isso pode-se dizer que, em relação
ao patrimônio, este é crime de perigo” (Lições de Direito
Penal, Parte Especial, 11a. ed., vol. I, p. 217).

Ainda:
“Como no constrangimento ilegal, a tentativa é aqui
perfeitamente admissível, configurando-se quando, apesar
do emprego de meio idôneo, não consegue o agente que a
vítima faça, tolere que se faça ou deixe de fazer alguma
coisa” (Ibidem).

Afigura-se esta interpretação mais conforme ao


direito e à razão. Na real verdade, como quer que
“interpretar, no sentido jurídico, é procurar o pensamento contido
na lei, a significação das palavras, o alcance do texto, a explicação
da frase. Interpretar é descobrir a vontade da lei” (Vicente de
Azevedo, Apostilas de Direito Judiciário Penal, 1952, vol. I,
p. 56), não entra em dúvida que a todas se avantaja a
interpretação que deu ao texto legal seu próprio autor:
Nélson Hungria, que não somente foi o principal
colaborador e artífice do Código Penal de 1940, mas também
seu exegeta supremo.
220

Na lição desses conspícuos autores é que nossas


Cortes de Justiça têm assentado sua jurisprudência:

a) “O crime de extorsão comporta a figura da tentativa,


em consonância com a doutrina, visto que a ação
delituosa foi tempestivamente atalhada em sua
execução, de maneira a permanecer a conduta
incriminada aquém da meta optata” (Rev. Tribs., vol.
623, p. 313; rel. Emeric Levai);

b) “O enquadramento da extorsão entre os crimes formais


não impede que se reconheça a possibilidade da
tentativa. A extorsão é delito plurissubsistente, isto é,
que se preenche com a realização de vários atos.
Destarte, a atividade criminosa é perfeitamente
cindível: tem um iter criminis e, portanto, pode sofrer
interrupção” (Rev. Tribs., vol. 572, p. 356; rel.
Silva Franco);

c) “Embora seja crime formal, a extorsão admite a


tentativa, porque não se perfaz com um só ato: exige
um iter criminis que o agente deve percorrer. Ocorre a
tentativa quando não se verifique qualquer dos efeitos
imediatos à coação (fazer, tolerar ou deixar a vítima
que se faça alguma coisa que resulte ou possa resultar
em prejuízo seu ou de outrem)” (Rev. Tribs., vol. 555,
p. 374; rel. Dirceu de Mello; apud Alberto Silva
Franco et alii, Código Penal e sua Interpretação
Jurisprudencial, 6a. ed., vol. I, t. II, pp. 2.574-
2.575);
221

d) “Se a vítima da ameaça suportou um estado de


constrangimento, não entregando o dinheiro exigido
pelo réu por convocado o concurso da polícia, tem-se
caracterizado o crime de extorsão na forma tentada, eis
que o agente só não conseguiu seu desiderato por
circunstâncias alheias à sua vontade” (Rev. Tribs., vol.
799, p. 602; rel. Ricardo Dip).

A não ser assim, a figura penal da extorsão (art. 158)


não representaria mais que supérflua reduplicação do
crime de constrangimento ilegal (art. 146).

III. Pela suma autoridade que lhe reconhecem os cultores


da Ciência de Carrara, quer-se transcrita aqui a perspícua e
definitiva lição que, acerca do ponto, ministrou Damásio
E. de Jesus:
“Para nós, consuma-se a extorsão com a conduta da
vítima.
Diz-se o crime consumado quando nele se reúnem
todos os elementos de sua definição legal (CP, art. 14, I).
A consumação exige que, presente o elemento subjetivo,
o sujeito concretize todos os elementos objetivos do tipo,
havendo perfeita adequação entre o fato concreto e o modelo
legal. O iter criminis da extorsão apresenta os seguintes
elementos, que consubstanciam três momentos típicos
relevantes: 1º) conduta de constranger o sujeito passivo
mediante violência ou grave ameaça; 2º) comportamento
da vítima, fazendo, tolerando que se faça ou deixando de
222

fazer alguma coisa; 3º) intuito de obtenção da indevida


vantagem econômica.
A obtenção da vantagem indevida é dispensável, uma
vez que se encontra no âmbito da intenção do agente
(com o intuito de). Por isso o crime se diz formal ou de
consumação antecipada. Os outros elementos, entretanto,
de ordem objetiva, referentes ao comportamento do sujeito
ativo e à conduta da vítima, são imprescindíveis à
consumação. Se o agente, com o elemento subjetivo próprio,
constrange o sujeito passivo mediante violência física ou
grave ameaça, e este porém não atende à coação, não se pode
afirmar, para fins de consumação, que no crime se reúnem
todos os elementos de sua definição legal. Está faltando a
elementar alternativa fazer, tolerar que se faça ou deixar de
fazer alguma coisa.
O crime formal antecipa a consumação ao momento
típico imediatamente anterior à produção do resultado
visado pelo agente. Considerando os três momentos típicos
da extorsão, consuma-se quando da concretização do
segundo, i.e., com a conduta da vítima.
A adotar-se a tese de que a extorsão atinge a
consumação com o simples constrangimento, ter-se-á de
aceitar a consequência lógica de aplicá-la aos crimes que
apresentam a mesma construção típica. Em outros termos,
consumar-se-iam com o ato executório do sujeito ativo todos
os crimes em que a conduta do agente é seguida de
comportamento coativo da vítima. Assim, consumar-se-ia o
223

constrangimento ilegal com a violência ou grave ameaça


(CP, art. 146). E como o constrangimento ilegal é um crime
subsidiário, o princípio incidiria sobre todos os delitos em
que ele constitui meio de execução. Em face disso, v.g., o
atentado violento ao pudor, na hipótese de o constrangimento
visar a que a vítima pratique ato libidinoso, atingiria o
momento consumativo com a simples violência ou grave
ameaça” (Novíssimas Questões Criminais, 2a. ed., pp.
21-22).

Enfim, o asserto de que a extorsão não conhece


tentativa (porque delito formal ou de consumação
antecipada) não consta da lei; tampouco o professam os
mais reputados mestres de Direito Penal, como Damásio E.
de Jesus, Heleno Cláudio Fragoso e aquele “che sovra gli
altri com’aquila vola”(2): Nélson Hungria.

Damásio E. de Jesus
(Autor eminente e muito louvado
por sua ciência e doutrina).
224

Notas

(1) Art. 158 do Código Penal:


“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça,
e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida
vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de
fazer alguma coisa:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa”.
(2) Dante, Inferno, IV, 96.
24. Morte no Trânsito: Homicídio Doloso?

I – Dolo Direto e Dolo Eventual


Consequência do princípio da reserva legal(1), que o
legislador penal inscreveu no marco primeiro do Código,
ninguém será condenado pela prática de fato que não
esteja, com todos os seus elementos, previsto no texto
normativo incriminador. É este um dos postulados políticos
“mais importantes das declarações dos direitos e garantias
individuais”(2), porque serve a prevenir as arremetidas do
arbítrio e da ilegalidade.
A ação humana que se não ajuste à descrição legal da
figura delituosa carecerá de ilicitude e, pois, não recairá na
sanção do direito. Pelo comum, têm caráter objetivo e
material os elementos de composição do fato típico. Há-os
também de natureza subjetiva, os quais dizem com o
processo intencional do agente; daqui o chamar-se-lhes
elementos subjetivos do injusto. Não basta, porém, que o
fato típico (isto é, que corresponda aos termos da definição
legal) seja antijurídico para que constitua crime; há mister
que o tenha o agente praticado com culpa. A lição de José
Frederico Marques é, ao propósito, cabal:
“A conduta objetivamente ilícita de que proveio a lesão a
interesse penalmente tutelado só será delituosa e punível, se
contiver o coeficiente subjetivo da culpabilidade”(3).

Duas são as formas da culpabilidade: o dolo e a culpa


(“stricto sensu”). Dolo, segundo a clássica definição de Costa
e Silva, “é a vontade consciente de praticar um fato que a lei
226

define como crime”(4); culpa, a “violação do cuidado objetivo


exigível”(5).
Quando a vontade do agente não tira a um resultado
certo e determinado, o dolo diz-se indireto. Há dolo
eventual, “quando o agente, conscientemente, admite e aceita
o risco de produzir o resultado”(6). Entre o dolo eventual e a
culpa consciente há esta notável diferença: na culpa
consciente, o sujeito prevê o resultado, contudo espera que
este não ocorra; no dolo eventual, ao revés, o agente,
demais de assumir o risco de produzi-lo, consente no
resultado. Disse-o, numa síntese perfeita, o eminente Costa
e Silva(7):
“Quando o agente espera ou acredita que o resultado não se
verificará, quando repele como impossível ou improvável,
não existe dolo, mas apenas culpa (consciente)”.

Estes conceitos, bem trilhados de quantos versam


com mão diurna e noturna os mais graves autores de
Direito Penal, era necessário lembrá-los aqui (posto muito
a nosso pesar), a fim de podermos atender a algumas
dificuldades e objeções que o tema dos delitos de trânsito
geralmente suscita.

II – Dolo Eventual e Culpa Consciente


Em verdade, ainda que em números discretos,
conhecem-se casos de motoristas que respondem a
processo perante o Júri (órgão do Poder Judiciário do
Estado competente para julgar os crimes dolosos contra a
vida), por haver causado a morte de pedestres. Tê-la-iam
227

causado por inobservância desmarcada de regras de


trânsito, como: dirigir em estado de embriaguez, trafegar
em velocidade incompatível com a segurança, desobedecer
ao sinal fechado ou à parada obrigatória, disputar corrida
por espírito de emulação, etc.
A essência da qualificação legal do crime, a acusação
pública deduzira-a desta fórmula: o motorista que,
naquelas condições, dirigia seu veículo, se não quis a morte
da vítima (dolo direto), ao menos assumiu o risco de
produzi-la (dolo indireto eventual). Pelo que, havendo
cometido o crime dolosamente, devera ser julgado pelo seu
juiz natural: o Júri.
Tal conclusão, que parece acautelada por sólido
fundamento, desapresenta, no entanto, quando submetida
ao crisol do raciocínio lógico, documento de seriedade:
afeta encerrar silogismo inabalável, todavia é menos que
uma operação fantástica do espírito, porque é um
impudente sofisma (vênia!). Primeiro que o mais, a
afirmação de que o autor de morte no trânsito, naquelas
circunstâncias, deva ser julgado pelo Júri, porque praticou
o delito dolosamente, contém falsa premissa. Deveras, não
foi dolo o que aí pudera ter existido, nem sequer dolo
eventual, senão culpa (bem que consciente). No dolo
eventual, de feito, a doutrina imprimiu sempre esta nota
conspícua: não basta a caracterizá-lo tenha o agente
assumido o risco de produzir o resultado lesivo; necessita
que nele haja consentido. Vindo ao nosso ponto: o
motorista, de quem se afirmasse que obrara com dolo
eventual, cumpria que, além de ter assumido o risco de
228

causar a morte da vítima, com isso mesmo houvera


concordado, o que repugna ao bom-senso e afronta a lição
da experiência vulgar.

III – Acidente de Trânsito: A Verdadeira Doutrina sobre o Ponto


Este ensinamento é o que nos deparam os penalistas
de superior quilate, dentre os quais pompeia Nélson
Hungria. Dois exemplos, que se transcrevem pela suma
autoridade de quem os ministrou e por fazerem ao nosso
caso, dirimem e soltam plausivelmente a questão. Em seus
preciosos Comentários ao Código Penal (1978, vol. I, t. II),
discorre desta sorte o egrégio escoliasta:
a) “Um motorista, dirigindo o seu carro com grande
velocidade, já em atraso para atender ao compromisso de
um encontro amoroso, divisa à sua frente um transeunte,
que, à aproximação do veículo, fica atarantado e, vacilante,
sendo atropelado e morto. Evidentemente, o motorista
previu a possibilidade desse evento; mas deixando de
reduzir ou anular a marcha do carro, teria aceito o risco de
matar o transeunte, ou confiou em que este se desviasse a
tempo de não ser alcançado? Na dúvida, a solução não
pode ser outra senão a do reconhecimento de um homicídio
simplesmente culposo (culpa consciente)” (p. 120);

b) “Nota-se que, principalmente na justiça de primeira


instância, há uma tendência para dar elasticidade ao
conceito do dolo eventual. Dentre alguns casos, a cujo
respeito fomos chamados a opinar pode ser citado o seguinte:
229

três rapazes apostaram e empreenderam uma corrida de


automóveis pela estrada que liga as cidades gaúchas de Rio
Grande e Pelotas. A certa altura, um dos competidores não
pôde evitar que o seu carro abalroasse violentamente com
outro que vinha em sentido contrário, resultando a morte
do casal que nele viajava, enquanto o automobilista era
levado, em estado gravíssimo, para um hospital, onde só
várias semanas depois conseguiu recuperar-se. Denunciados
os três rapazes, vieram a ser pronunciados como coautores
de homicídio doloso, pois teriam assumido ex ante o risco
das mortes ocorridas. Evidente o excesso de rigor: se eles
houvessem previamente anuído em tal evento, teriam,
necessariamente, consentido de antemão na eventual
eliminação de suas próprias vidas, o que é inadmissível
(grifamos). Admita-se que tivessem previsto a possibilidade
do acidente, mas, evidentemente, confiaram em sua boa
fortuna, afastando de todo a hipótese de que ocorresse
efetivamente. De outro modo, estariam competindo, in
mente, estupidamente, para o próprio suicídio” (p. 544).

Pelo magistério do pontífice máximo de nosso


Direito Penal, está, como era forçoso, a Jurisprudência
dos Tribunais de Justiça do País. Confirma-o bem o
acórdão seguinte, redigido pelo mui douto e insigne
Desembargador Djalma Lofrano:
230

“Homicídio culposo — Caracterização — Réu embriagado


que, em velocidade excessiva, atropela, matando e
lesionando transeuntes — Conduta antijurídica, que não
foi, porém, querida nem consentida intimamente —
Hipótese de culpa consciente e não de dolo eventual —
Recurso provido para que se proceda a novo julgamento
perante o Tribunal do Júri” (RJTJESP, vol. LXXXIX,
p. 385).

IV – A Solução Legal: A Pena Conforme a Culpa


Dado que numa única semana(8) perde o Brasil, em
acidentes de trânsito, mais indivíduos que na II Guerra
Mundial (470), será digno de louvor todo o empenho de
resolver este magno problema. No que não se pode
consentir é que se perverta o espírito da lei, havendo-se
por dolo o que simplesmente fora culpa (não importando
se consciente).
Ainda que sob a cor de impedir tragédias e atalhar os
males da direção perigosa de veículos, todo aquele que
decidir por essa rigorosa craveira estará fazendo tábua rasa
do direito positivo e, sobre isto, contravindo ao princípio
fundamental de hermenêutica: o processo lógico. É que
obra em fraude da lei quem, ressalvando-lhe as palavras,
desatende a seu espírito(9). Em suma: ter na conta de autor
de crime doloso motorista que, naquelas condições, deu
causa a acidente em via pública, seria, falando lisa e
sinceramente, atropelar o Código Penal (“transeat”).
231

A 1a. Turma do Supremo Tribunal Federal (valha a


verdade), julgando recentemente processo de réu acusado
de homicídio, que provocara durante “racha”, atribuiu ao
fato a definição jurídica mais grave (crime doloso). O
argumento de Aquiles do venerando acórdão (de que foi
relator o Exmo. Sr. Min. Celso de Mello) teve esta
substância: “esse tipo de delito deve ser reprimido grave e
energicamente”(10).
Mas para reprimir tal modalidade criminosa não fora
preciso, “data venia”, alterar a estrutura típica do delito;
bastara aplicar ao infrator a pena segundo sua culpabilidade
(que a pena, conforme o brocardo, deve corresponder
à culpa, medindo-se pelo delito): se maior da marca a
censurabilidade do procedimento do acusado, máxima
houvera de ser sua reprimenda penal; “se a conduta do réu for
extremamente censurável, aplica-se a pena máxima do delito
culposo, não se falando, nesse caso, em dolo eventual”, ensina
André Luís Callegari(11).
Contra aqueles que se afanam em submeter à barra
do Júri homicidas de trânsito sempre colherá esta
advertência de José Frederico Marques:

“Crimes dolosos contra a vida não são, portanto, todos


aqueles em que ocorra o evento morte. Se esta integra a
descrição típica de um crime, nem por isso se torna este um
crime doloso contra a vida. Para que assim seja qualificado,
é necessária a existência do dolo direto, em que a vontade
inicial e o evento se casaram, visando ambos à vida”(12).
232

A doutrina acima exposta — que sustenta ser caso de


crime culposo (e não doloso) o homicídio cometido por
motorista em estado de embriaguez — conta, de presente,
com os auspícios de nossa Mais Alta Corte de Justiça.
Com efeito, muito há — 6.9.2011 —, decidiu a 1a.
Turma do Supremo Tribunal Federal que se trata de
hipótese de crime culposo o homicídio praticado, sob a
influência de álcool, na direção de veículo automotor (art.
302 do Código de Trânsito).
O ven. aresto, de que foi relator o Min. Luiz Fux, tem
a seguinte ementa:
“1. A classificação do delito como doloso, implicando pena
sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir,
mercê de alterar o procedimento da persecução penal em
lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via
do habeas corpus.
2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo
automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a
capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre
de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual.
3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização
a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que
o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o
risco de produzi-lo.
4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada
nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP,
não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido
bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte.
233

5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza


ao asseverar que o anteprojeto Hungria e os modelos em que
se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31
e §§ 1º e 2º estabeleciam: a embriaguez pelo álcool ou
substância de efeitos análogos, ainda quando completa,
não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou
involuntária. § 1º Se a embriaguez foi intencionalmente
procurada para a prática do crime, o agente é punível
a título de dolo; § 2º Se, embora não preordenada, a
embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e
podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer
crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título
é punível o fato (Guilherme Souza Nucci, Código Penal
Comentado, 5a. ed., p. 243; Editora Revista dos Tribunais).
6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias
inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto
fático-probatório. Precedentes: HC nº 96.820/SP, rel. Min.
Luiz Fux, j. 28.6.2011; RE nº 99.590, rel. Min. Alfredo
Buzaid, DJ 6.4.1984; RE nº 122.011, rel. Min. Moreira
Alves, DJ 17.8.1990.
7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame,
porquanto não se revela lex mitior, mas, ao revés, previu
causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese
praticado, configurado como homicídio culposo na direção
de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB).
8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta
imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de
veículo (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa
234

dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP”


(STF; HC nº 107.801/SP; rel. Min. Luiz Fux; j.
6.9.2011).

Por seus lógicos e jurídicos fundamentos — que estão


conformes com o magistério perene de Nélson Hungria, o
maior de nossos penalistas —, pode muito bem o referido
acórdão servir de pedra de toque (ou precedente judicial)
para todas as decisões que se venham a proferir nas causas
criminais instauradas pela prática de homicídio na direção
de veículo automotor, por agente sob efeito de embriaguez
(não preordenada).
Faz também muito ao nosso caso a lição de Sérgio
Salomão Shecaira, exposta em sólido parecer publicado em
Estudos de Direito Penal, 2010, vol. I, pp. 95-121; Editora
Forense.
À consulta se era “possível, ao menos em tese, a prática do
delito na modalidade de dolo eventual, pelo simples fato de estar
o acusado conduzindo seu veículo em excesso de velocidade”
(p. 98), respondeu, após acurado e severo exame da
questão agitada, o competente professor titular de Direito
Penal da USP:
“Assim, podemos perceber que andar em excesso de
velocidade causando a morte de outrem não caracteriza a
conduta de homicídio doloso, por não ser possível imputar, a
título de dolo eventual, a responsabilidade do evento,
finalisticamente considerado.
235

Não se deve, sob a influência da pressão da mídia,


reconhecer qualquer alteração na estrutura do delito, para
mandar alguém a júri. Por mais grave que tenha sido a
conduta culposa ela não pode ser transformada em dolosa,
sob pena de criarmos um Direito Penal do Terror que
venha a satisfazer interesses punitivos extra-autos” (op. cit.,
p. 107).

Notas

(1) “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena
sem prévia cominação legal” (art. 1º do Cód. Penal).
(2) José Frederico Marques, Curso de Direito Penal, 1956,
vol. II, p. 73.
(3) Op. cit., p. 158.
(4) Comentários ao Código Penal, 1967, p. 84.
(5) Heleno Fragoso, in Comentários ao Código Penal, de
Nélson Hungria, 1978, vol. I, t. II, p. 555.
(6) Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 1991,
p. 30.
(7) Op. cit., p. 88.
(8) Valdir Sznick, 1978, p. 3.
(9) Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do
Direito, 1933, p. 138.
(10) O Estado de S. Paulo, 28.5.96.
(11) In Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 13,
p. 197.
(12) A Instituição do Júri, 1963, pp. 130-131.
25. Da Confissão Judicial
Alguns a tiveram pela rainha das provas(1), outros
por fenômeno contrário à natureza(2), não poucos a
interpretaram como argumento de honradez(3): a confissão
judicial foi sempre tema de que se ocuparam os mais
graves autores, que a definiram como “declaração da
própria responsabilidade”(4).
Confessar alguém um fato o mesmo é que admitir-
-lhe a autoria. A prevenção, por isso, com que muitos a
recebem, já entrou em provérbio: Se disseres a verdade, irás
à forca.
Mas, ainda que, geralmente falando, se deva
reservar “a confissão à Justiça do Altíssimo, e o silêncio, à dos
homens”, como alvitrava Jacques Isorni(5); a despeito de,
confessando a autoria de um fato, fechar o acusado sobre
si a porta do cárcere, há casos em que ela se mostra de
rigor; outros, em que será ato de razão esclarecida.
Assim, é forçoso que admita a autoria de certo fato
aquele que o pretenda justificar nas barras do pretório.
Primeiro que alegue de sua justiça em pontos de legítima
defesa, haverá o réu de admitir, com efeito, que repelira
com violência o agressor. Sua confissão, em tal caso, é
pressuposto lógico e jurídico da afirmação de que obrara
sob a égide daquela excludente de injuridicidade.
Situações existem, contudo, que, suposto não se
ajustem ao rol das descriminantes, toleram (se é que o
não aconselham) confesse o arguido a autoria do fato que
lhe é imputado. São aqueles em que a sua negativa
238

quanto ao fato representaria, pelo estado da prova, um


sesquipedal insulto à inteligência do inquisidor e de
qualquer pessoa de suficiente consideração. Deveras, que
mais atentório do siso comum que isso de insistir o réu
em negar, perante o magistrado, aquele mesmo fato cuja
autoria admitira, sem ambages, na quadra do inquérito?
Não vale contra esta consequência a objeção do
leitor perspicaz, de que as confissões extrajudiciais
padecem da eiva da suspeição, visto se presumem obtidas
mediante violência: a muitos infelizes, em boa verdade,
extraíram-se confissões juntamente com suas fibras
musculares! Não há negá-lo, e as crônicas forenses
demonstram-no além de toda a dúvida(6).
É outra, no entanto, a hipótese que figuramos aqui:
a do agente que, sobre haver admitido por declarações
no inquérito a prática do delito — furto, por exemplo —,
fora preso em flagrante, reconhecido pessoalmente por
testemunhas, e em seu poder apreendidas as coisas que
subtraíra à vítima. Em tal caso, seria de indivíduo sensato
aventurar-se à negativa da autoria do fato criminoso,
recalcitrando-se à força da evidência? Ficamos que não.
Uma coisa é ser cego, outra negar a existência da luz! Aí
pediria a razão que, em seu interrogatório, confessasse o
réu, sem salvas nem rodeios, a imputação. Com o que,
do mesmo passo que se pouparia ao arrojado e baldio
empenho de pelejar contra a realidade da prova dos
autos, faria jus ao benefício do art. 65, nº III, letra d,
do Código Penal, que inscreve a confissão entre as
circunstâncias atenuantes da pena(7).
239

Por último — e é coisa muito digna de reparo —,


trai algo de nobre e louvável o ato de quem, havendo
percorrido a vereda da iniquidade, lá um dia reconhece as
faltas que cometeu e protesta emendar-se.
Matéria é esta das mais delicadas, e parece mesmo
andar às testilhas com o sagrado princípio da amplitude
do direito de defesa. Nada mais inexato, porém. Antes,
conforma-se às inteiras com aquele venerando aforismo
jurídico: Para ruim defesa, melhor é nenhuma!

Notas

(1) “A confissão sempre foi reputada prova excelente — regina


probationum —, pois que é contrário à natureza alguém
afirmar contra si fato que não seja verdadeiro” (Mário
Guimarães, O Juiz e a Função Jurisdicional, 1958,
p. 309). R. Garraud, pelo mesmo feitio: “Os antigos
consideravam a confissão como a prova por excelência,
probatio probatissima, a rainha das provas, a única
que podia num processo criminal assegurar a consciência
do juiz e permitir-lhe, sem escrúpulo como sem remorso,
pronunciar o castigo capital” (Compêndio de Direito
Criminal, 1915, vol. II, p. 207; trad. A. T. de
Menezes).
(2) A confissão afirmam alguns que se acha em
hostilidade aos ditames da natureza porque esta
impõe silêncio ao culpado (cf. Mittermayer, Tratado
da Prova em Matéria Criminal, 1871, t. II, p. 6; trad.
Alberto Antônio Soares).
240

(3) “Nenhum homem se deve envergonhar de haver errado;


estranhar erros num homem é não querer conhecer que é
homem. A nossa maior desgraça não é cair em erros, é não
os poder conhecer, ou não querer emendá-los” (Bluteau,
Vocabulário, 1713, t. III, p. 192).
(4) Cf. Bento de Faria, Código de Processo Penal, 1960,
vol. I, p. 290.
(5) Apud Eliasar Rosa, Dicionário de Conceitos para o
Advogado, 1974, p. 63.
(6) Por não estirar muito este escrito, citamos apenas
o Caso dos Irmãos Naves (Sebastião e Joaquim), que
passa pelo maior erro judiciário do País. Acusados,
em 1937, de latrocínio e metidos a tormentos,
confessaram a autoria do crime, por que os condenou
o Tribunal de Justiça de Minas Gerais à pena de
15 anos e 6 meses de reclusão. Eis senão quando
reaparece (em 1952), são e salvo, Benedito Pereira
Caetano, a pseudovítima. Acerca do assunto, que foi
transportado também à tela do cinema, há copiosa
literatura: Pedro Paulo Filho, Grandes Advogados,
Grandes Julgamentos, 1989, pp. 79 e 85; João Alamy
Filho, O Maior Erro Judiciário do Direito Brasileiro,
1965; Leib Soibelman, Enciclopédia do Advogado,
1981, p. 62, etc.
(7) O preceito da lei diz com a doutrina de nossos
maiores: “Quem se acusa a si mesmo escusa acusador, e
faz leve o seu delito” (Manuel Bernardes, Nova Floresta,
241

1711, t. III, p. 259); “A confissão da culpa costuma


fazer menor a pena” (Matias Aires, Reflexões sobre a
Vaidade dos Homens, 1752, prólogo); “A confissão é
atenuante de culpa” (Júlio de Castilho, Os Dois Plínios,
1906, p. 362).
26. Antecedentes Criminais
I. Apresentação

Não se passa, de um salto, da vida honesta para o


crime, sentenciou o profundo Malatesta(1). É que, de regra,
antes de incorrer na sanção do Direito Penal, o réu já fizera
algum tirocínio nas esferas da delinquência.
Tal fato, porém, pode não constituir mau antecedente,
ainda que sirva a compor o perfil moral do réu (pois,
segundo a máxima vulgar, “o homem é o que foi”).
Em verdade, como escreveu Cícero(2), não podemos
mudar o passado, sem embargo dos benéficos efeitos do
instituto da reabilitação criminal (art. 743 do Cód. Proc.
Penal).
Maus antecedentes, nos melhores de direito, são
fatos reveladores “de uma hostilidade franca, ou militante
incompatibilidade em relação à ordem jurídico-social”(3).
Todavia, por amor do princípio constitucional do
estado de inocência (art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.), não se
consideram maus antecedentes inquéritos (ou processos) em
andamento e sentença condenatória sem trânsito em
julgado.
Por último, nisto de antecedentes, aproveita sempre
o brocardo latino: “Quilibet praesumitur bonus, donec
contrarium probetur”. Todos se presumem bons, até prova
em contrário.
244

II. Maus antecedentes: conceito

1) Crime e castigo. Ao conhecer da causa-crime e


proferir decisão condenatória, o juiz, para fixar ao réu sua
pena, atenderá ao ponto dos antecedentes. É a dicção do
art. 59 do Código Penal.
Que coisa, porém, à face da Justiça Criminal, é isto
dos antecedentes?
Os mais dos autores têm para si (e o mesmo étimo
está a persuadi-lo) que antecedentes significam os fatos
pretéritos da vida de alguém.
Não só os fatos anteriores bons, também os maus
(sobretudo estes, pois que irão agravar a sorte do
condenado) caem na conta do julgador. Destarte, importa
saber o que se entende, para os efeitos da lei penal, por
maus antecedentes. Geralmente falando, são os fatos
concretos do currículo da vida pregressa do acusado,
reveladores “de uma hostilidade franca, ou militante
incompatibilidade em relação à ordem jurídico-social”(4).

2) Maus antecedentes. Lição da doutrina. Nem todo


fato antissocial, entretanto, há de averbar-se de mau
antecedente; só o que for a “expressão de uma personalidade
predisposta para o crime”(5). Esta, a razão por que nossos
Tribunais, seja por advertirem na conveniência de se
oporem temperamentos à repressão das “infrações penais
de menor potencial ofensivo”(6), seja por lhes parecer que,
avaliando com extremos de rigor as ações humanas, antes
estariam servindo à iniquidade que à Justiça, têm
245

ultimamente expungido o caráter de maus antecedentes a


certos episódios e acontecimentos da vida pretérita do
indivíduo.
Demonstram-no julgados sem conto, que o saudoso
penalista Celso Delmanto e seu diligente irmão Roberto
deram a lume em livro prestantíssimo(7). “Exempli gratia”:
mercê do estado de inocência do réu, princípio que nossa
Carta Magna recebeu como garantia fundamental(8), a
increpação de portador de maus antecedentes já não pode
prevalecer com respeito àquele que, por desventura, tenha
contra si processo ou inquérito policial em andamento.
Com maioria de razão, se absolvido, ou arquivado o
inquérito.

3) Jurisprudência. Acórdão notável. Tal liberalidade no


conceituar maus antecedentes, no entanto, chegou a mais.
Deveras, ainda que anteriormente condenado, não se
reputa de maus antecedentes o réu se já decorrido o
quinquênio depurador (art. 64, nº II, do Cód. Penal). É que,
segundo ponderou em memorável julgamento o Min. Luiz
Vicente Cernicchiaro, “o estigma da sanção criminal não é
perene. Limita-se no tempo”(9).
Fora injúria grande aos preceitos lógicos, em verdade,
não desaparecessem com a reincidência também os maus
antecedentes que a pressupunham (“sublata causa, tollitur
effectus”). Volvidos cinco anos, a condenação anterior já não
opera o efeito da reincidência; esta desaparece, e com ela os
maus antecedentes.
246

Tal doutrina, conquanto se afigure assaz indulgente


com o infrator, não discrepa do sistema filosófico sob cuja
inspiração o legislador da parte geral do Código criou as
circunstâncias atenuantes inominadas (art. 66), como a
lembrar a todos os que julgam que o réu, não podendo ser
um relicário de virtudes, nem por isso houvera de ser um
filho bastardo de Belzebu.

III. Acórdão do TJ-SP

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO E STADO DE SÃO PAULO


QUINTA C ÂMARA – S EÇÃO C RIMINAL

Apelação Criminal nº 993.03.061197-8


Comarca: São Paulo
Apelantes: Ministério Público, AB, FMCF, HDPF e RCS
Apelados: Os mesmos

Voto nº 12.271
Relator
247

–“Esta Corte Federal Superior e o Excelso


Supremo Tribunal Federal firmaram
já entendimento no sentido da
impossibilidade de se considerar como
maus antecedentes, quando na fixação
da pena-base, o fato de o réu responder
a outros processos criminais” (STJ;
REsp nº 281.450-0-RO; 6a. T.; j.
21.9.2004; Boletim do Superior
Tribunal de Justiça, nº 1, p. 74).

– A pena, segundo Garófalo, é o remédio


para a falta de adaptação do réu (apud
Fernando Nery, Lições de Direito
Criminal, 1933, p. 355). A punição
do infrator, portanto, não é outra
coisa que a legítima reação da ordem
social contra o crime.

– O decurso do tempo apaga a


memória do fato punível e a
necessidade do exemplo desaparece
(Abel do Vale; apud Ribeiro Pontes,
Código Penal Brasileiro, 8a. ed., p.
154).

– A prescrição intercorrente (art. 110, §


1º, do Cód. Penal) “constitui forma de
prescrição da pretensão punitiva (da
ação), que rescinde a própria sentença
condenatória” (Damásio E. de Jesus,
Código Penal Anotado, 18a. ed., p.
358).
248

– Decretada a extinção da punibilidade


do apelante pela prescrição da
pretensão punitiva estatal, já
nenhuma outra matéria poderá ser
objeto de exame ou deliberação.

1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito


da 16a. Vara Criminal da Comarca da Capital, condenando
AB, FMCF, HDPF e RCS à pena de 1 ano de reclusão, no
regime semiaberto, e 10 salários-mínimos de multa, por
violação do art. 50, parág. único, ns. I e II, da Lei nº 6.766/79
(Lei do Parcelamento do Solo Urbano), apelam para este
Egrégio Tribunal, com o intuito de reformá-la, os réus e o
ilustre representante do Ministério Público.
Nas razões de recurso que lhes apresentou diligente
patrono, alegam os réus que as provas reunidas nos autos
não eram aptas a evidenciar-lhes a autoria delitiva.
Acrescentam que, em todo o caso, não cometeram
crime algum, pois não obraram com dolo.
Requerem, por isso, à colenda Câmara que os
absolva e mande em paz; subsidiariamente, pleiteiam a
substituição da pena privativa de liberdade por medida
alternativa (fls. 602/606).
A Promotoria de Justiça, essa postula a exacerbação
da pena aos réus, e reclama contra o regime prisional
fixado que, a seu aviso, devia ser alterado para a
modalidade fechada (fls. 515/520).
249

Contrariados os recursos, opinou a douta


Procuradoria-Geral de Justiça, preliminarmente, pela
conversão do julgamento em diligência, baixando os
autos à Vara de origem, em ordem a possibilitar a
formulação de proposta de suspensão condicional do
processo; no mérito, encarece o provimento parcial do
recurso da Justiça Pública, improvido o da Defesa (fls.
258/261).
É o relatório.

2. Foram os réus chamados a dar contas à Justiça


porque, no período entre os meses de janeiro a agosto de
1998, na Estrada da Cocaia (Jardim das Flores), nesta
Capital, obrando em concurso e unidade de propósitos,
efetuaram parcelamento, para fins urbanos, dos imóveis
situados na Rua Major Lúcio Ramos (Jardim Cotia),
nesta Capital, em área de proteção aos mananciais,
por meio de desmatamento, abertura de vias de
circulação, demarcação de quadras e de 204 lotes, e
alienação de lotes, sem autorização e em desacordo com
a legislação regulamentar.
Instaurada a “persecutio criminis in judicio”, transcorreu
o processo na forma da lei; ao cabo, a r. sentença de fls.
496/504 julgou procedente a denúncia para condená-los,
por incursos nas sanções do art. 50, parág. único, ns. I e II,
da Lei nº 6.766/79 (Lei do Parcelamento do Solo Urbano).
250

Inconformados, porém, com o êxito desfavorável da


causa-crime, manifestaram as partes recurso para esta
augusta Corte de Justiça.

3. A despeito dos bons esforços de seu patrono, os


elementos arrebanhados nos autos eram os que bastavam
para legitimar o decreto de procedência da denúncia, dado
que demonstraram, sem falta, a responsabilidade criminal
dos réus.
Com efeito, aos apelantes imputou o órgão do
Ministério Público a prática de crime contra o
parcelamento do solo urbano, definido e punido pelo art.
50, parág. único, ns. I e II, da Lei nº 6.766/79; por esse delito
foi que a r. sentença os condenou, após minucioso e
acurado exame dos fatos e suas circunstâncias, descritos,
na denúncia, de forma inteligível e segundo o estilo do
foro.
A singela afirmação de que não obraram com dolo —
o que impossibilitava a tipificação da conduta — não se
afigura poderosa para eximir de culpa os apelantes.
É que — e disse-o bem a r. sentença — “se houve, como
enfatizado pela Defesa, um problema de cunho social, para este
muito contribuíram os réus, pois ao deixarem de atender às leis
em vigor, mesmo com possível regularização do loteamento,
tal fato não os exime de responsabilidade criminal, como
expressamente previsto por lei” (fl. 502).
251

Assim, comprovadas a materialidade e a autoria do


fato criminoso e a culpabilidade dos agentes, era-lhes
inevitável a condenação.
Cai a lanço a velha parêmia, que os romanos
adotavam na apuração da autoria de um crime: aquele a
quem o crime aproveita, esse o cometeu (“cui prodest scelus,
is fecit”).
É a lógica a melhor das provas!
A condenação dos réus, portanto, atendeu ao exame
crítico dos autos do processo e à vontade da lei.

4. Ao fixar aos réus a pena em seu grau mínimo, a


douta Magistrada não se afastou da letra nem do espírito
da lei, como inculca a estrênua Promotoria de Justiça.
Com efeito, embora estejam respondendo a outros
processos (fls. 9, 23 e 26 do Apenso), não há prova nos
autos de que tenham sido condenados em algum deles.
Ora, processos em curso, conforme consagrada
jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça,
não podem ser considerados maus antecedentes para
prejudicar o réu:
“Esta Corte Federal Superior e o Excelso Supremo
Tribunal Federal firmaram já entendimento no sentido
da impossibilidade de se considerar como maus
antecedentes, quando na fixação da pena-base, o fato de
o réu responder a outros processos criminais” (STJ;
REsp nº 281.450-0-RO; 6a. T.; j. 21.9.2004; Boletim
do Superior Tribunal de Justiça, nº 1, p. 74).
252

Outro tanto, desde que reconhecida a primariedade


dos réus — “não há prova material de reincidência nos autos”
(fl. 105) —, “a regra é partir da pena-base no grau mínimo”
(TRF da 1a. R.; Ap. nº 22.082; DJU 5.3.90, p. 3.233).
Em vista de tudo o sobredito, as razões de apelação
do Ministério Público, ainda que deduzidas com muito
brilho e esmero, tenho-as por improcedentes, “data venia”.
Embora grave a ação praticada pelos apelantes, nada
lhes obstava a fixação do regime semiaberto para o
cumprimento das penas.
Algumas razões conspiravam para esta solução,
dentre as quais a primariedade; além de que, não
empregaram violência contra as vítimas.
Entendimento é esse que se conforma com os
superiores ditames de nossas Cortes de Justiça:

a) “Se a pena imposta por um crime é maior do


que 4 anos, mas não excede a 8, cabe, em tese, o
cumprimento de pena em regime semiaberto, segundo
se depreende da leitura do art. 33, § 2º, alínea b, do
Cód. Penal, combinado com o seu § 3º, que remete às
circunstâncias judiciais do art. 59 do mesmo Código;
porém, o Juiz pode impor regime mais severo do
que aquele em tese, mas para tanto, necessário é que
apresente os parâmetros legais aplicáveis à espécie e as
razões que o levaram a tal conclusão, não bastando
apenas a gravidade do delito como justificativa para
a imposição de regime mais gravoso, salvo se o crime
253

for qualificado como hediondo” (STJ; Min. José


Arnaldo da Fonseca; Rev. Tribs., vol. 769, p.
543);

b) “Não encontra fundamento a imposição de regime


fechado para execução da pena inferior ao limite
máximo estabelecido no art. 33, § 2º, alínea b,
do Cód. Penal, mesmo em se tratando de condenação
por roubo duplamente qualificado, se foram
reconhecidas a primariedade dos réus e a concorrência
de circunstâncias judiciais favoráveis, previstas no
art. 59 do mesmo Codex” (STF; Min. Octavio
Gallotti; Rev. Tribs., vol. 770, p. 495);

c) “Se o condenado preenche os requisitos para o


cumprimento da pena em regime semiaberto, tendo
em vista a quantidade de pena imposta e a ausência
de reincidência e maus antecedentes, não cabe a
imposição de regime mais gravoso com fundamento
exclusivo na gravidade do delito praticado” (STJ;
Min. Gilson Dipp; Rev. Tribs., vol. 779, p. 533).

5. Mas, ainda que superior a toda a crítica a r. sentença


condenatória, o decurso do tempo já não permite executar
a pena dos réus.
Com efeito, na expressão clássica de Abel do Vale, o
decurso do tempo apaga a memória do fato punível e a
necessidade do exemplo desaparece (apud Ribeiro Pontes,
Código Penal Brasileiro, 8a. ed., p. 154).
254

Já não tem o Estado o direito de puni-los, visto


ocorreu, no caso, prescrição superveniente à sentença.
Nos termos do art. 109, nº V, do Código Penal, a pena
não superior a 2 anos prescreve em 4.
Ora, desde a publicação da r. sentença — 13.5.2003
(fl. 505) —, até aqui decorreu lapso de tempo superior a
4 anos, suficiente ao reconhecimento da prescrição.
Cumpre, de conseguinte, decretar a extinção da
punibilidade do réu pela prescrição intercorrente, que
“constitui forma de prescrição da pretensão punitiva (da ação),
que rescinde a própria sentença condenatória” (Damásio E. de
Jesus, Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 358).

Realmente:
“Não tendo havido recurso da acusação, o prazo
prescricional, a partir da publicação da sentença, é regulado
pela pena imposta” (Damásio E. de Jesus, Prescrição
Penal, 9a. ed., p. 49).

Ainda:
“(…) a partir da publicação da decisão condenatória,
aplicado exclusivamente o § 1º do art. 110, teremos a
incidência da extinção da punibilidade pela prescrição da
pretensão punitiva (ação penal). Não subsistem a sentença
nem seus efeitos principais e acessórios. E o Tribunal não
precisa apreciar o mérito, ficando prejudicada a apelação”
(Idem, ibidem).
255

6. Pelo exposto, nego provimento aos recursos e declaro,


de ofício, extinta a punibilidade dos réus pela prescrição
intercorrente da pretensão punitiva estatal, com fundamento
nos arts. 107, nº IV, 109, nº V, e 110, § 1º, do Cód. Penal e 61 do
Cód. Proc. Penal.

São Paulo, 17 de setembro de 2009


Des. Carlos Biasotti
Relator

IV. A identificação criminal do indiciado


e o art. 5º da Constituição Federal

Tão logo tenha conhecimento da prática de infração


penal, deve a autoridade policial ordenar a identificação do
indiciado pelo processo datiloscópico, isto é, mediante a
coleta de suas impressões digitais.
Sem a identificação de quem seja o autor do fato
delituoso, não há persecução penal, nem é possível a
apuração da responsabilidade criminal do agente.
Não sofre disputa, portanto, que o Estado, ao qual
incumbe combater a criminalidade, tem não apenas o
direito mas também o dever de identificar o delinquente.
Tal providência, todavia, principalmente para aqueles
que não foram antes indiciados em inquérito policial,
representa violência moral insigne; o deixar alguém suas
256

impressões digitais numa planilha, montara o mesmo que


ser condenado! Tão forte abalo costuma causar o ato de
identificação no ânimo do acusado, que até aqueles que já
figuraram na clientela da jurisdição criminal têm-no por
medida extremamente vexatória.
Para conjurar tão cruel estigma, que marca a alma do
indiciado (muita vez inocente) antes mesmo de averiguada
sua culpa, autores abalizados na Ciência Penal propugnaram
fosse a identificação criminal adotada só naqueles casos em
que o suspeito de haver cometido algum crime ainda não
estivesse identificado civilmente; do contrário, ficaria
dispensado da formalidade.
Por algum tempo vigorou esse entendimento no seio
dos Tribunais; cedeu o passo, contudo, à orientação mais
severa, consubstanciada na Súmula nº 568 da jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal: “A identificação criminal do
indiciado pelo processo datiloscópico não constitui constrangimento
ilegal, ainda que já identificado civilmente”.
Assim se praticou até à promulgação da Constituição
Federal de 5.10.88, que, mercê do espírito liberal de seus
legisladores, tratou por modo mais benigno e plausível a
questão ao preceituar, no inciso LVIII de seu art. 5º, que
“o civilmente identificado não será submetido a identificação
criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”.
A nova Carta Magna, a mais abrangente e extensa de
quantas houve entre nós, imprimiu grande relevo aos
direitos e garantias individuais, sobretudo em matéria
penal.
257

Em pontos de identificação criminal, a fórmula que


impôs assegura ao mesmo tempo a defesa do Estado contra
os que violam a ordem jurídica e, ao indivíduo, as garantias
contra o arbítrio daquele.
Abolindo a identificação criminal quando já tiver o
indiciado cédula de identidade, o legislador supremo
revelou-se mui coerente com o princípio da presunção do
estado de inocência, que consagrara no inciso LVII do
referido artigo.
De fato, se “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, seria
contravir ao rigor da lógica jurídica submeter indivíduo
a ato que, falando a verdade inteira, não fora menos
infamante que a própria sentença condenatória!
Nem vale, contra esta consequência irrecusável, a
objeção de alguns, fundada em que, não havendo a recente
Carta da República revogado o inciso VIII do art. 6º do
Código de Processo Penal, será sempre exigível a identificação
criminal pelo processo datiloscópico.
Suposto impressione ao primeiro aspecto, esse
raciocínio descobre no entanto fragilidade maior da marca,
se apreciado mais de espaço, como o demonstrou,
irrefutavelmente, o preclaro Juiz Oliveira Ribeiro, do
Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo:

“(…) a regra processual penal em causa, ao impor um


dever legal que a Constituição só admite em grau de
especializada exceção, joga por terra todo o comando
jurídico da norma constitucional que dispõe de modo
258

diametralmente oposto ao que naquela regra de processo.


Até e enquanto não surja no horizonte da República norma
de direito comum estabelecendo as hipóteses de exceção
ao mandamento proibitório, a exigência da identificação
criminal, para todos aqueles acusados que estiverem
identificados civilmente, não terá lugar” (Revista de
Julgados e Doutrina, vol. I, p. 184).

A identificação criminal, reservemo-la apenas àqueles


casos em que o indiciado não foi ainda civilmente
identificado, ou haja fundadas suspeitas de que falso o
documento de identidade expedido pelo órgão oficial
competente; que fique ela adstrita ao critério da
necessidade, não venha a ferir gravemente o “status
libertatis” do indivíduo.
Aquele selo que Deus “pôs à mão de cada homem, para
que o conheçam todos os homens” (Jó 37,7), não se transforme,
facilmente, em ferrete de sua desgraça e ignomínia!

Notas

(1) “(…) non si passa di balzo dalla vita onesta al reato”


(Nicola Framarino dei Malatesta, La Logica delle Prove
in Criminale, 1895, vol. I, p. 235).
(2) “Praeterita mutare non possumus” (“In Pisonem”, XXV,
59). Há quem, forte em Santo Tomás de Aquino,
deite a barra mais longe: Deus pode destruir uma
cidade inteira; mas, com ser quem é, não pode fazer
259

que ela nunca tenha existido (apud Rubem Ferraz de


Oliveira, Procurador de Justiça; TJSP; Agravo em
Execução nº 1.163.611-3/1-00-Araçatuba).
(3) Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1951,
vol. III, p. 83; Editora Forense; Rio de Janeiro.
(4) Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1951,
vol. III, p. 83.
(5) José Frederico Marques, Curso de Direito Penal, 1956,
vol. III, p. 74.
(6) Art. 98, nº I, da Constituição Federal. Faz muito ao caso
o erudito artigo doutrinário de Luiz Flávio Gomes,
tirado à luz na Revista Brasileira de Ciências Criminais
(número especial de lançamento, pp. 88 a 109) sob o
título: “Tendências político-criminais quanto à criminalidade
de bagatela”.
(7) Código Penal Comentado, 3a. ed., p. 92.
(8) “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, nº LVII).
(9) Tem esta substância a ementa oficial do venerando
aresto: “O art. 64, nº I, do Cód. Penal determina que,
para efeito de reincidência, não prevalece a condenação
anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da
pena e a infração posterior houver decorrido período
superior a 5 (cinco) anos. O dispositivo se harmoniza com
o Direito Penal e Criminologia modernos. O estigma
da sanção criminal não é perene. Limita-se no tempo.
260

Transcorrido o tempo referido, sem outro delito, evidencia-


-se ausência de periculosidade, denotando, em princípio,
criminalidade ocasional. O condenado quita sua obrigação
com a justiça penal. A conclusão é válida também para
os antecedentes. Seria ilógico afastar expressamente a
agravante e persistir genericamente para recrudescer a
sanção aplicada” (STJ; RHC nº 2.227-2/MG; 6a. T.; rel.
Min. Luiz Vicente Cernicchiaro; j. 18.12.92; m.v.;
DJU 29.3.93, p. 5.267).
27. Álibi e Defesa Criminal

Sumário. Para afastar de si o infortúnio de uma condenação, pode o réu


invocar álibi. Cabe-lhe contudo comprová-lo compridamente, sob pena
de confissão do ilícito penal por que responde.

I. É princípio de lógica jurídica e dogma processual


venerando que aquele que invoca a seu favor álibi(1) deve
comprová-lo sem falta, aliás não se eximirá da tacha de réu
confesso (art. 156 do Cód. Proc. Penal).
A força do argumento que assenta na “negativa loci”
pode-a abalar, com efeito, a menor dúvida, pois o réu que
afirma álibi, e não o prova, como que admite a própria
culpa.
Lição é esta que abraçam os doutores e a
jurisprudência dos Tribunais:

a) “Álibi. Quem alega deve prová-lo, sob pena de


confissão” (Damásio E. de Jesus, Código de Processo
Penal Anotado, 23a. ed., p. 59; Editora Saraiva;
São Paulo).
b) “É de se ter por confesso o réu que, tentando elidir a
responsabilidade penal que lhe é imputada mediante
álibi, deixa de fazer qualquer prova roborativa de sua
afirmação” (JTACrSP, vol. 33, p. 335; rel. Roberto
Martins).
262

II. À luz dessa doutrina comum têm nossas Cortes de


Justiça tratado sempre a questão. Foi o que praticou o
Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo,
como o demonstra o acórdão abaixo reproduzido:

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL


OITAVO G RUPO DE C ÂMARAS

Revisão Criminal nº 352.776/1


Comarca: Campinas
Peticionário: CAR

Voto nº 2130
Relator

– Em se tratando de revisão criminal,


reclama tradicional e ortodoxa
jurisprudência dos Tribunais que
o condenado deve provar, além
de toda a dúvida razoável, que a
sentença andou em erro, ou foi
cometida injustiça (art. 621 do Cód.
Proc. Penal).
263

– É presunção comum (“praesumptio


hominis”) que a apreensão de coisa
alheia, na posse de quem a não
justifique plenamente, dá a conhecer
o criminoso.
– Na forja da sabedoria antiga foi
batido o argumento de que, se o réu
não prova seu álibi, entende-se haver
confessado o crime.

1. Condenado à pena de 7 anos, 1 mês e 10 dias de


reclusão, além de 17 dias-multa, por infração do art. 157,
§ 2º, nº I, do Código Penal, CAR requer a revisão do processo
a que respondeu perante o MM. Juízo de Direito da 2a.
Vara Criminal da Comarca de Campinas.
Alega, na petição de fls. 2/12, que o decreto
condenatório assentou em provas frágeis e inseguras.
Afirma ainda que sempre negou, com veemência, a
imputação.
Destarte, a seu aviso, a causa-crime não poderia
desfechar senão em decreto absolutório.
É o que pede e espera, ao intentar a presente revisão
criminal.
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em
primoroso e firme parecer do Dr. Antonio Augusto Bello
Oricchio, opina pelo indeferimento do pedido (fls. 37/42).
É o relatório.
264

2. Foi o peticionário chamado à barra da Justiça


Criminal porque, aos 23 de abril de 1993, pelas 9h, na
Rua Quintino de Paula Maldonet (Bairro Taquaral), em
Campinas, subtraíra para si, mediante grave ameaça
exercida com emprego de arma de fogo, 130 maços de
cigarros, de várias marcas, de propriedade de Andréa
Domingos Modesto.
Rezam os autos que o peticionário entrou no
estabelecimento comercial da vítima, um bar, e pediu uma
dose de “Caninha 51”.
Servida que lhe foi a cachaça, pediu um maço de
cigarros; quando a vítima lho entregava, o réu sacou de
arma de fogo.
Ato contínuo, exigiu que a vítima lhe entregasse o
dinheiro, mas porque havia somente trocados, decidiu
subtrair maços de cigarros, apoderando-se de grande
número deles.
Posteriormente, quando tentava vender o produto do
roubo para outro bar, foi descoberto, pois já corria a notícia
do fato e de seu autor.
Instaurada a persecução criminal, foi o réu, ao cabo,
condenado.
Agora, põe a mira de seus desejos na reforma do
julgado, em ordem a que seja absolvido.

3. A despeito de seus bons esforços e engenhosa


argumentação, não há deferir a súplica do requerente, que
isto equivalia a encadear o raciocínio lógico e fazer tábua
265

rasa das provas dos autos e de princípios fundamentais do


processo penal.
Ao invés do que afirma o peticionário, a prova era
assaz suficiente para justificar-lhe a condenação.
Consta, com certeza, dos autos que, no mesmo dia
em que roubara os maços de cigarros no bar situado no
Parque Taquaral, o réu tentou vendê-los noutro
estabelecimento comercial, este no bairro de Santa
Genebra.
Deu-se, porém, que — circunstância notável! —, os
referidos estabelecimentos pertenciam a um só e mesmo
proprietário: José Carlos Domingos.
A notícia da ocorrência do roubo e as características
de seu autor comunicaram-se imediatamente aos
empregados do botequim do bairro de Santa Genebra, de
tal arte que o réu, quando aí chegou para vender o produto
do roubo, a testemunha Márcia Regina Domingos, que o
reconheceu, deu logo o rebate, avisando o irmão e
comerciante José Carlos Domingos. Este se travou de
razões com o réu e reouve, à fina força, os cigarros que lhe
tinham sido subtraídos no bar do Parque Taquaral. Tudo
isto declarou, com vivacidade e pormenores, na instrução
criminal (fls. 13 e 117).
A vítima Andréa, depondo em Juízo, também narrou
os fatos. Indagada se reconhecia o réu como ao autor do
roubo, entrou em pranto convulsivo, explicando que o não
podia fazer: disse que lhe haviam pedido não reconhecesse
o réu… (fl. 115).
266

Tal pormenor, no entanto, não embaraça a liquidação


da autoria do roubo, antes a confirma: Márcia Regina
Domingos (fl. 116), com efeito, afiançou que o réu, havia 8
meses, estivera em seu bar e lhe recomendara não dissesse
palavra contra ele.
Análise atenta dos elementos reunidos no processado
põe de manifesto, portanto, que o peticionário cometeu o
roubo pelo qual foi condenado.
Sua afirmação, pois, de que a prova era tíbia e incapaz
de gerar convencimento de culpa deve receber-se como
mero artifício de retórica ou meio de defesa; não é possível
tomá-la ao sério.

4. Por outra parte, em se tratando de revisão criminal,


reclama tradicional e ortodoxa jurisprudência dos Tribunais
que o condenado deve provar, além de toda a dúvida
razoável, que a sentença andou em erro, ou foi cometida
injustiça.
No caso, porém, desse ônus não se desempenhou a
Defesa.
E, o que é mais, não logrou o peticionário elidir
circunstância que o comprometera visceralmente: estava na
posse da própria “res furtiva”.
Ora, é presunção comum (“praesumptio hominis”) que
a apreensão de coisa alheia, na posse de quem a não
justifique plenamente, revela o criminoso.
Entendimento é esse que sempre recebeu sufrágios
em todos os pretórios da Justiça Criminal:
267

“A apreensão da res em poder do agente gera presunção


de autoria do crime, invertendo-se o ônus da prova. Ao
suspeito incumbe oferecer justificativa plausível para a
comprometedora posse. Em o não fazendo, prevalece, para
efeito de condenação, a certeza possível de ter praticado a
subtração” (Rev. Tribs., vol. 739, p. 627; rel. Renato
Nalini).

É verdade que o réu, com grande assombro, afirmou,


de pés juntos, em seu interrogatório judicial, que, no dia
do fato, estava recolhido no Presídio Prof. Ataliba Nogueira
(fl. 103) e, pois, não poderia ter cometido o crime. Sem o
dom da ubiquidade, certamente não praticaria o roubo no
Parque Taquaral, estando preso.
Seu álibi, no entanto, foi impiedosamente fulminado
pela mensagem expedida pelo Presídio Prof. Ataliba
Nogueira, da qual consta que o peticionário se evadira do
Instituto Penal-Agrícola de Bauru no dia mesmo em que
praticara o roubo: 23.4.93 (fl. 109).
Donde o haver a sabedoria antiga forjado o
argumento de que, se o réu não prova seu álibi, entende-se
haver confessado o crime.
À derradeira, embora o passado ruim do homem não
seja prova inequívoca de responsabilidade criminal, não há
negar que os protestos de inocência do peticionário muito
se abateram e decaíram de prestígio à face de sua folha de
antecedentes, que registra inúmeros processos e condenações
por roubo (fls. 74/80 dos autos principais).
268

A condenação contra que se rebela, portanto, não fez


rosto à prova dos autos, antes se ajustou ao teor da prova
neles coligida; merece, pois, prevalecer.
Com efeito:
“É princípio assente que, na instância revisional, o ônus da
prova passa ao requerente. Nessas condições, não trazendo
ele elementos novos em abono das suas alegações, não merece
deferimento o pedido” (Rev. Forense, vol. 171, p. 384).

5. Pelo exposto, indefiro o pedido de revisão criminal.

São Paulo, 4 de maio de 2000


Carlos Biasotti
Relator

Nota

(1) “Alibi – Alhures. Em Direito: ausência do acusado no lugar


do crime, provada pela sua presença noutro lugar.
Já considerado palavra vernácula (álibi) por muitos
dicionaristas” (Paulo Rónai, Não Perca o seu Latim,
1980, p. 23; São Paulo). O lexicógrafo Antônio
Houaiss registrou o vocábulo, aportuguesando-o (cf.
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 1a. ed.; v.
álibi).
28. Nulidade Processual

Sumário. É matéria de grande peso e tomo isto de anular processo


penal, por implicar perda irreparável para os interesses da Justiça. Muita
vez, no entanto, passa por mal necessário, já que providência “extrema
ratio” para evitar o sacrifício da liberdade e do sagrado direito de defesa.

I. A prova do prejuízo é o padrão por que se deve aferir


o alcance da alegação de nulidade processual. Dispõe, com
efeito, o art. 563 do Código de Processo Penal que “nenhum ato
será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a
acusação ou para a defesa”.
Anular, portanto, um ato ou todo o processo, por
preterição de formalidade que não influiu na apuração dos
fatos ou na decisão da causa, será render exagerado preito
de vassalagem à lei e imolar na ara do frívolo curialismo(1).
Ao demais, é matéria sempre de grande repugnância
isto de anular processo penal, pois que representa perda
irreparável para o Poder Judiciário. Muita vez, contudo, é
força decretar-lhe a nulidade (v.g., nos casos de vício de
citação).
De outra forma, sacrificar-se-ia o direito de defesa,
que é a coluna do templo da Justiça e a lâmpada de seu
santuário.
Há, sobre o tema, lição memorável de José Frederico
Marques, processualista exímio:
“Muita prudência, portanto, deve guiar o juiz quando tenha
de encarar o problema das nulidades no processo penal.
Postergar, de maneira categórica, a relevância das formas
270

processuais, para atender tão só ao aspecto teleológico do ato,


pode redundar em violação aberta do direito de defesa. É
que a observância das formas, na justiça penal, constitui,
muitas vezes, o instrumento de que a lei se vale para
garantir o jus libertatis contra as coações indevidas e sem
justa causa” (Estudos de Direito Processual Penal, 2a. ed.,
p. 267; Millennium Editora Ltda.).

II. Foi por essa craveira, ajustada à lição da doutrina mais


bem recebida e ao magistério tradicional da Jusprudência,
que o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São
Paulo, por sua 15a. Câmara, decretou a nulidade de
processo, por vício de citação:

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL


D ÉCIMA QUINTA C ÂMARA

“Habeas Corpus” nº 459.240/2


Comarca: São Paulo
Impetrante: Ordem dos Advogados do Brasil,
Secção de São Paulo (OAB/SP)
Paciente: RMPM
Voto nº 5400
Relator
271

– O exame de provas no âmbito do


“habeas corpus”, para a verificação da
falta de justa causa para a ação penal,
tem sido pábulo de tormentosas
disputas. Mas, a inteligência que, de
presente, prevalece a tal respeito, assim
na Doutrina como na Jurisprudência, é
a que, embora incompatível o processo
de “habeas corpus” com o contraditório
ou ampla indagação probatória, tem
lugar o exame dos elementos dos autos,
“para avaliar-se da legalidade ou
ilegalidade da ação penal” (cf. Rev. Tribs.,
vol. 491, p. 375; rel. Min. Costa Lima).
–“Exame de provas em habeas corpus
é cabível desde que simples, não
contraditória e que não deixa alternativa à
convicção do julgador” (STF; HC; rel.
Min. Clóvis Ramalhete; DJU 18.9.81,
p. 9.157).
– Não se aperfeiçoa a relação jurídico-
-processual sem a citação válida do réu.
É a lição dos patriarcas do Direito: “O
princípio e fundamento de toda a ordem
jurídica é a citação, de sorte que sem ela se
não pode tomar conhecimento de causa
alguma” (Alexandre Caetano Gomes,
Manual Prático Judicial Civil e Criminal,
1820, p. 3); “A citação é tão essencial que
nem o Príncipe a pode dispensar” (Cons.
Ramalho, Postilas de Prática, 1872,
p. 71).
272

–“É nula a citação por edital, quando


desprezadas as cautelas habituais para
apurar o paradeiro do acusado” (Rev.
Forense, vol. 161, p. 349).
– É sempre matéria de grande
repugnância anular processo penal,
pois que representa perda irreparável
para o Poder Judiciário. Muita
vez, porém, é força decretar-lhe a
nulidade, por vício de citação do réu.
De outra forma, sacrificar-se-ia o
direito de defesa, e este é a coluna do
templo da Justiça e a lâmpada de seu
santuário!

1. A Ordem dos Advogados do Brasil – Secção de São


Paulo, por intermédio do ilustre advogado Dr. Laertes de
Macedo Torrens, impetra a este Egrégio Tribunal “Habeas
Corpus” em favor da Dra. RMPM, que lhe ponha cobro ao
constrangimento ilegal que afirma está a padecer da parte
do MM. Juízo de Direito da 6a. Vara Criminal da Comarca
da Capital.
Alega a impetrante, em esmerada e substanciosa
petição, que a paciente está sendo processada perante
aquele douto Juízo, acusada de ter praticado crime de
apropriação indébita.
Acrescenta que, recebida a denúncia, a mui digna
autoridade judiciária indicada como coatora ordenou a
citação da paciente.
273

Mas — acentua a impetrante —, como o encarregado


da diligência certificasse que a paciente se estava ocultando
para não ser citada, houve a bem o douto Juízo
determinar-lhe a citação por edital, na forma do art. 362 do
Código de Processo Penal.
Visto não comparecera à audiência de interrogatório,
foi-lhe decretada a revelia.
A ação penal entrou a correr os seus trâmites.
A paciente, assistida da Seccional Paulista da Ordem
dos Advogados do Brasil, comparece perante esta augusta
Corte de Justiça, com o escopo de obter ordem de “habeas
corpus” para conjurar o que denomina constrangimento
ilegal.
Tem para si a impetrante que o processo instaurado
contra a paciente se acha malferido de nulidade essencial,
por defeito de citação. Ajunta que o oficial de justiça não
se houvera com toda a diligência e rigor no cumprimento
do mandado de citação da paciente.
Argui também de nulo o feito porque o MM.
Juízo não mandara incluir no auto de chamamento a
possibilidade de outorga da suspensão do processo, nos
termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95.
À derradeira, assevera que a paciente está sofrendo
coação em seu direito deambulatório por falta de justa
causa para a “persecutio criminis in judicio”.
Pleiteia, destarte, o trancamento da ação penal por
falta de justa causa ou a decretação da nulidade do processo,
por vício de citação (fls. 2/10).
274

O pedido acompanha-se de numerosas cópias de


peças processuais e outros documentos de interesse da ação
de “habeas corpus”.
A egrégia Vice-Presidência do Tribunal, pelo r.
despacho de fl. 70, proferido pelo eminente Juiz Eduardo
Pereira deferiu a medida liminar “para suspender o
andamento do feito até que a colenda Câmara se pronuncie
definitivamente”.
A mui digna autoridade judiciária apontada como
coatora prestou as informações do estilo, nas quais
esclareceu que a paciente foi denunciada como incursa nas
penas do art. 168, § 1º, nº III, do Código Penal.
Informou ainda que, recebida a denúncia e em
tramitação o processo, desapareceram os respectivos autos
do cartório. Foram, todavia, restaurados, nos termos do
art. 541 do Código de Processo Penal.
Narrou ainda a distinta Juíza que a paciente foi
procurada em cinco diferentes endereços, e em nenhum
deles encontrada; pelo que, em face da informação do
meirinho de que se estava ocultando para não ser citada,
determinou Sua Excelência que o fosse por éditos.
O não-comparecimento da paciente à audiência de
interrogatório implicou-lhe a revelia.
Remata o ofício de informações que os autos se
encontram na fase do art. 500 do Código de Processo Penal,
aguardando a apresentação de alegações finais pela Defesa
(fls. 74/75).
275

Ao ofício de informações foram acostadas novas


cópias de peças processuais (fls. 76/144).
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em
minucioso e abalizado parecer do Dr. Hermann Herschander,
reputado expoente de sua Instituição, opina pela concessão
parcial da ordem “para determinar-se a suspensão do processo
e do lapso prescricional, nos termos do art. 366 do CPP”
(fls. 146/154).
O despacho de fl. 160 determinou diligência,
cumprida pontualmente pela impetrante (fls. 164/172).
É o relatório.

2. Da denúncia, juntada a estes autos por cópia (fls.


11/12), consta que a paciente, no dia 18 de maio de 2000,
no interior do “Banco do Estado de São Paulo S/A”, nesta
Capital, apropriara-se indevidamente de coisa alheia
móvel, de que tinha a posse em razão de profissão,
pertencente à vítima Eleonete Gama dos Santos.
Reza a denúncia que a paciente, advogada de
profissão, fora contratada pela vítima para patrocinar-lhe a
defesa dos direitos e interesses em ação de consignação
em pagamento.
Narra a denúncia ter sido depositada em Juízo,
em prol da vítima, a quantia de R$ 183.285,00, que a
paciente, na condição de advogada, comparecendo à
agência do “Banespa”, munida do mandado de levantamento
judicial, transferiu para a conta-corrente do filho (JVPM).
276

É dos autos ainda que, aos 18 de outubro de 2000,


a paciente, em seu escritório, confessara à vítima e a seu
contador (Édson de Castro Rodrigues) a prática do ilícito;
aduzira, no entanto, que a quantia a ser paga à vítima
orçava por R$ 128.541,51.
Ato contínuo, o filho da paciente (JVPM), emitiu
cheque daquele valor. A cártula bancária, todavia, foi
sustada, sob o argumento de que o negócio não se
realizara.
Conclui a peça de introito da ação penal que, em
razão do “grande lapso temporal percorrido e do modus
operandi”, era manifesto que a paciente obrara com o
“animus rem sibi habendi”.
Destarte, foi denunciada por infração do art. 168, § 1º,
nº III, do Código Penal.
A Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São
Paulo, impetra agora a este Egrégio Tribunal, ordem de
“habeas corpus”, a fim de reparar o injusto gravame que a
paciente alega estar sofrendo.

3. Sem embargo dos bons esforços do advogado da


impetrante para pôr termo ao litígio, impossível deferir-lhe
o pleito de trancamento da ação penal.
Com efeito, no que respeita à alegada falta de justa
causa, manifesta lhe é a improcedência.
Mesmo em processo de “habeas corpus”, permite a
tradição de nosso Direito o exame de prova, porque
277

antecedente lógico da verificação da existência (ou não) de


justa causa para a ação penal.
Doutrina é esta consagrada por acórdãos infinitos de
nossos Tribunais, como o persuadem os adiante reproduzidos
por suas ementas:

a) “Exame de provas em habeas corpus é cabível desde que


simples, não contraditória e que não deixe alternativa à
convicção do julgador” (STF; HC; rel. Min. Clóvis
Ramalhete; DJU 18.9.81, p. 9.157);

b) “O habeas corpus é o instrumento tutelar da liberdade.


No seu exame o Juiz não pode criar obstáculos tais que
venham a tornar letra morta a garantia constitucional.

Daí que superado o entendimento de, a priori, não se


examinar prova. Como, sem vencer esse obstáculo, se
poderá afastar o abuso de poder ou ilegalidade da coação?
Para se poder concluir sobre a tipicidade ou não do fato é,
em certa medida, indispensável examinar a prova em que
se baseia a acusação” (Revista do Superior Tribunal de
Justiça, vol. 26, p. 95; rel. Min. José Dantas; apud
Alberto Silva Franco et alii, Código de Processo Penal e
sua Interpretação Jurisprudencial, 1999, vol. I, pp. 593
e 595).

Exame de matéria de alta indagação (como a que


pretende a paciente versar) é, entretanto, vedado no
âmbito do “habeas corpus”; só na instância ordinária da
dilação probatória tem lugar.
278

De feito, em razão de seu rito sumaríssimo, na via


heroica do “habeas corpus” é defeso proceder a análise de
matéria de alta indagação. Isto de haver ou não a paciente
obrado com dolo, como se trata de questão que apenas
pode ser dirimida na quadra de instrução criminal, não há
apreciá-la no raio exíguo do processo de “habeas corpus”.
Trancamento da ação penal por falta de justa causa
apenas se admite quando comprovada, ao primeiro súbito
de vista, a atipicidade do fato imputado ao réu, ou sua
inocência.
Esta, com efeito, é a jurisprudência dominante em
nossos Tribunais, em acórdãos notáveis, como o que dou a
seguir por sua ementa:
“Somente pode ser reconhecida e afirmada, em sede de habeas
corpus, quando os fatos apontados como delituosos são
atípicos ou quando a inocência do acusado se manifesta de
forma desembuçada, clara, precisa, límpida e incontestável”
(Rev. Tribs., vol. 499, p. 488).

4. À derradeira, nossos Tribunais têm decidido, sem


quebra, ser inadmissível o trancamento de ação penal por
alegada ausência de justa causa, quando se baseia a
denúncia em indícios de crime, em tese, e de sua autoria.

Comprovam-no que farte os julgados seguintes:

a) “O trancamento da ação penal, por falta de justa causa,


implica reconhecimento de fato atípico, ilegitimidade ad
causam ou extinção da punibilidade. Em descrevendo
279

fato amoldável a um tipo legal de crime, havendo, pois,


indicação, em tese de delito, inviável encerrar o processo,
ou inquérito policial” (STJ; rel. Min. Vicente
Cernicchiaro, DJU 14.6.93, p. 11.791);

b) “Não é possível o trancamento de uma ação penal sob


a alegação de falta de justa causa, como pretende o
recorrente, na via estreita do habeas corpus. É
imprescindível a produção de prova na instrução
criminal, a fim de se constatar a ocorrência do fato dado
como delituoso” (STJ; rel. Min. Pedro Acioli; DJU
25.10.93, p. 22.511; apud Alberto Silva Franco et
alii, op. cit., 1999, vol. I, pp. 1.271 e 1.274).
Não evidenciado, à prima face, o constrangimento
ilegal que afirma está a sofrer por falta de justa causa, não
cabe o trancamento da ação penal.

5. No que tange, porém, ao outro fundamento da


impetração — nulidade do processo por vício de citação
da paciente —, tenho-o por mui atendível.
Com efeito, os documentos entranhados ultimamente
nos autos (fls. 164/173) comprovam que a paciente residia,
sem dúvida, na Rua Santo Eufredo (Jardim Guedala). Aí,
embora a tivesse procurado para citação, informou o oficial
de justiça que estava “o local em reforma” (fl. 94).
Mas, o estar “em reforma” um imóvel e servir a um
tempo de residência a seu proprietário não são ideias que
se implicam nem excluem.
280

Era mister, pois, que outras vezes o encarregado


retornasse àquele endereço para dar cabal cumprimento à
diligência. Tal preterição induziu, inegavelmente, nulidade
ao processo.

6. Da importância da citação escreveram graves autores


páginas antológicas.
O doutíssimo Conselheiro Ramalho afirmou, com
suma autoridade: “A citação é o princípio e o fundamento do
juízo”.
Ainda:
“A citação é tão essencial, que nem o Príncipe a pode
dispensar” (Postilas Práticas, 1872, 2a. ed., p. 71).

De Alexandre Caetano Gomes temos a lição clássica:


“E já Deus Senhor nosso, no primeiro processo que julgou
no mundo, quando quis punir a primeira culpa, usou da
citação em Adão delinquente: Ubi es, Adam?” (Manual
Prático, 1820, p. 4).

E o saudoso José Frederico Marques discorreu do


ponto por este feitio:
“Por ser elemento integrante do contraditório e substancial ao
exercício do direito de defesa, a citação é tão indispensável
que a sua falta não fica sanada sequer com a res judicata.
Cabe, assim, habeas corpus contra sentença condenatória
proferida em processo onde faltou a citação, por ser ele
manifestamente nulo, como o prevê o art. 648, nº VI, do
281

Cód. de Proc. Penal” (Elementos de Direito Processual


Penal, 1965, vol. II, p. 176).

Pelo mesmo teor, a jurisprudência do Colendo


Supremo Tribunal Federal:

a) “É nula a citação por edital, quando desprezadas as


cautelas habituais para apurar o paradeiro do acusado”
(Rev. Forense, vol. 161, p. 349);

b) “O oficial de justiça deve procurar o acusado para citá-lo


no endereço por este indicado quando foi interrogado.
Não o encontrando, deve esgotar todos os meios possíveis

para sua localização. E só depois disso é que deve ser


declarado, para fins de citação por edital, em lugar
incerto e não sabido” (Rev. Tribs., vol. 726, p. 613;
rel. Min. Edson Vidigal).

Daqui por que é forçoso decretar a nulidade do


processo desde a citação; o que faço com grande
repugnância, pois a anulação de processo representa
sempre perda irreparável para o Poder Judiciário.
De outra forma, porém, sacrificar-se-ia o direito de
defesa, e este é a coluna do templo da Justiça e a lâmpada
de seu santuário!

7. Pelo exposto, acolho parcialmente o pedido de “habeas


corpus” para conceder à paciente a ordem impetrada, a fim
de anular, a partir da citação, o processo a que responde
282

perante o MM. Juízo de Direito da 6a. Vara Criminal da


Comarca da Capital (proc. nº 00/098225).

São Paulo, 17 de março de 2004


Carlos Biasotti
Relator

Nota

(1) “O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo,


que se compraz em espiolhar nulidades. É consagrado o
princípio geral de que nenhuma nulidade ocorre se não
há prejuízo para a acusação ou a defesa” (Exposição de
Motivos do Código de Processo Penal, nº XVII).
29. O Princípio da Insignificância no
Direito Penal

I. Preâmbulo

Não é de bom exemplo fazer caso nem cabedal de


coisas insignificantes ou ninharias. “De minimis non curat
praetor”, advertiam os antigos (o que, posto em linguagem,
soa: o magistrado não se ocupa de questões de somenos).
Não decai a Justiça de sua grandeza e confiança, antes
se recomenda ao louvor dos espíritos retos, se, aferindo a
lesão patrimonial por craveira benigna, rejeita denúncia.
Nos casos de insignificante a lesão ao bem jurídico
protegido e mínimo o grau de censurabilidade da conduta
do agente, pode o Magistrado, com prudente arbítrio,
deixar de aplicar-lhe pena (e ainda pôr termo à “persecutio
criminis”). É que, nas ações humanas, o Direito Penal
somente deve intervir como providência “ultima ratio”.
Ao Juiz não esqueçam jamais aquelas severas palavras
de Rui:
“Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se
acreditar com o nome de austeros e ilibados. Porque não há
nada menos nobre e aplausível que agenciar uma reputação
malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência
dos textos legais” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 43).
284

II. O Princípio da Insignificância e a Lição da


Doutrina

Tal princípio, que permite escusar de punição o autor


de infração mínima, tem merecido a muitos penalistas —
alguns da primeira esfera — crítica lisonjeira e voto
prestigioso. Eis as lições que deram:

a) “As sanções penais são o último recurso para conjurar a


antinomia entre a vontade individual e a vontade
normativa do Estado. Se um ilícito, hostil a um interesse
individual ou coletivo, pode ser convenientemente
reprimido com as sanções civis, não há motivo para
a reação penal” (Nélson Hungria, Comentários ao
Código Penal, 1978, vol. I, t. II, p. 34).

b) “O que se não compreende é que a Justiça Criminal


movimente todo o seu aparatoso mecanismo para o
processo e julgamento de lesões mínimas e insignificantes,
praticadas eventualmente por pessoas destituídas de
qualquer periculosidade, e que sempre foram ordeiras
e de boa conduta” (José Frederico Marques, Tratado
de Direito Penal, 1961, vol. IV, p. 200).

c) “(…) o Direito Penal não deve intervir quando a lesão


jurídica é mínima, reservando-se para as ofensas graves”
(Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 18a.
ed., p. 103).
285

d) “(…) o Direito Penal, por sua natureza fragmentária, só


vai até onde seja necessário para a proteção do bem
jurídico. Não se deve ocupar de bagatelas” (Francisco
de Assis Toledo, Princípios Básicos do Direito Penal,
1994, p. 57).

e) “Embora não presente em texto legal, o princípio


da intervenção mínima, de cunho político-criminal,
impõe-se ao legislador e ao intérprete, por sua
compatibilidade com outros princípios jurídico-penais
dotados de positividade, e com os pressupostos políticos
do estado democrático de direito” (Carlos Vico Mañas,
O Princípio da Insignificância como Excludente da
Tipicidade no Direito Penal, 1994, p. 57).

III. O Princípio da Insignificância e a Jurisprudência


dos Tribunais

Na aplicação da lei ao caso concreto, nossos


Tribunais, como quem põe a mira em atenuar os ápices do
direito repressivo, não relutaram em apadrinhar o referido
princípio. Estão a demonstrá-lo os julgados seguintes,
reproduzidos por suas ementas:
a) “Por isso, deve o órgão investido do ofício judicante
resistir à tendência de, em época de delinquência
exacerbada, caminhar para a persecução penal a ferro e
fogo, com desprezo de normas comezinhas, entre as quais
surge, com relevância maior, a alusiva ao princípio
da não-culpabilidade” (Rev. Trim. Jurisp., vol. 171, p.
582; STF; 2a. Turma; rel. Min. Marco Aurélio).
286

b) “O direito penal não deve se ocupar de condutas que


produzam resultados, cujo desvalor — por não importar
em lesão significativa a bens jurídicos relevantes — não
represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao
titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da
própria ordem social” (Rev. Tribs., vol. 84, p. 477;
STF; 1a. Turma; rel. Min. Celso de Mello).

c) “Aplica-se o princípio da insignificância (ou da bagatela)


se o agente é pessoa em estado de miserabilidade, que
abateu três animais de pequeno porte para subsistência
própria” (STJ; REsp nº 182.487-RS; rel. Min.
Fernando Gonçalves; 6a. Turma; j. 9.3.99; DJU
5.4.99, p. 160).

IV. Tribunal de Alçada Criminal do


Estado de São Paulo

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL

D ÉCIMA Q UINTA C ÂMARA


287

Apelação Criminal nº 1.303.549/6


Comarca: Presidente Prudente
Apelante: Ministério Público
Apelado: MMP

Voto nº 3817
Relator

– Se pequeno o prejuízo da vítima e primário


o réu, indivíduo de escassos meios de
subsistência, não há censurar decisão que,
reputando crime de bagatela o fato que
praticou, rejeita a denúncia. Tal solução,
além de conformar-se com a tradição
jurídica (“De minimis non curat praetor”),
atende ao direito positivo, que manda olhar
o Juiz para os fins sociais da lei ao aplicá-la
(art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil).
– O sujeito, a quem a vida já puniu
severamente, deixando de prover-lhe às
primeiras necessidades, parece bem, e ainda
justo, em certos casos, poupá-lo ao rigor da
lei penal, que tem por odioso todo o
excesso: “Noli esse justus multum” (Ecl 7,17).
Não sejas por demasiado justo!

1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito


da 2a. Vara Criminal da Comarca de Presidente Prudente,
absolvendo, com fundamento no art. 386, nº III, do Código
de Processo Penal, MMP da imputação de infrator do art. 171,
288

“caput”, do Código Penal, interpôs recurso para este Egrégio


Tribunal, com o escopo de reformá-la, o ilustre representante
do Ministério Público.
Em esmeradas, substanciosas e elegantes razões de
apelo, afirma que, ao aplicar à hipótese dos autos o
“princípio da insignificância e da ultima ratio”, o douto
Magistrado feriu de rosto o direito positivo. É que os
argumentos em que se esforçou a r. sentença não eram
poderosos, a seu aviso, para “elidir a responsabilidade penal do
recorrido”.
Que se privilegiasse o réu, com base no art. 171, § 1º,
do Código Penal, bem estava; mas, rematou o combativo
apelante, que se absolvesse ele, isto se não podia sofrer.
Destarte, espera o provimento de seu recurso para o
efeito de ser o réu condenado segundo a denúncia (fls.
97/104).
Apresentou a nobre Defesa contrarrazões de recurso,
nas quais repeliu a pretensão da douta Promotoria de
Justiça e exaltou os predicados da r. sentença apelada (fls.
111/113).
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em
primoroso e circunspecto parecer do Dr. Mário Cândido
de Avelar Fernandes, opina pelo provimento da apelação
para que, reformada a sentença recorrida, seja o réu
condenado (fls. 119/123).
É o relatório.
289

2. Foi o réu chamado à barra da Justiça Criminal


porque, no dia 23 de junho de 1999, cerca de 15h, no
interior do estabelecimento comercial Padaria Monte Alto,
situado na Rua Adelino Rodrigues Gato, em Presidente
Prudente, obtivera para si vantagem ilícita, em detrimento
do patrimônio de Primo Odair Campos Ricci, induzindo-o
em erro mediante fraude.
Rezam os autos que, no dia dos fatos, o réu
compareceu àquele endereço e efetuou compras no valor
de R$ 55,00; para pagamento, entregou o cheque do Banco
Itaú S/A, da conta corrente de Maísa Vieira de Godói Lima,
já preenchido e assinado, no valor de R$ 100,00;
a diferença, a título de troco, recebeu-a o réu em moeda
corrente.
Colocado o cheque em cobrança, devolveu-o o
sacado, em razão de contraordem emitida pela correntista,
pois lhe haviam furtado o talonário no interior de um
supermercado.
Submetido o título à perícia, apurou-se que os seus
dizeres, como a assinatura da emitente, foram lançados
pelo réu.
Instaurada a persecução criminal, transcorreu o
processo na forma da lei; ao cabo, a r. sentença de fls.
90/93 absolveu o réu, por atípico o fato que lhe foi
imputado.
A douta Promotoria de Justiça, no entanto, não no
levou a bem e, pois, compareceu perante esta egrégia
Instância, no intento de alcançar a condenação do réu.
290

3. Ao absolver o réu, fê-lo o insigne Magistrado forte no


argumento de que o fato incriminado ao réu não tivera
“maior consequência”; ao demais, padecia o réu, por esse
tempo, sérias vicissitudes; por último, não infligira à vítima
prejuízo real, pois o réu vinha “saldando seu débito”.
Tais razões, que ao douto Acusador pareceram
insuficientes para justificar a absolvição do réu, afiguram-se-
-me, “data venia”, muito aptas a guardá-la de toda a crítica.
Ao afirmar, na Polícia, que recebera o cheque de fl. 25
das mãos de certo José Carlos, em pagamento de dívida
(fl. 13), não entra em dúvida que o réu mentiu. Fosse
Pinóquio, e mais lhe houvera de crescer o nariz!
De feito, o laudo pericial de fls. 23/24 concluiu
que os caracteres manuscritos e a assinatura da cártula
provieram de seu punho.
Destarte, não há negar, sem imprudência, tenha sido
o réu o que cometeu o “falsum”.
Mas, não obstante isso, mui particulares circunstâncias
avultam no processado que justificam a solução que o
douto Juiz supeditou à causa-crime: uma, a carência de
recursos materiais do réu; outra, a parva lesão do bem
jurídico penalmente tutelado.
Em seu interrogatório judicial, alegou o réu que
passava por dificuldades, decorrentes da estreiteza de
meios ou de sua condição de desempregado (fls. 53/54).
291

As testemunhas inquiridas na instrução criminal


confirmaram o infortúnio do réu: declararam que
atravessava dificuldades conjunturais sócioeconômicas
(fls. 74/75).
Valha a verdade que já se decidiu que “o fato de o
agente estar passando por dificuldades, situação da maioria
dos brasileiros, não caracteriza o estado de necessidade”
(RJDTACrimSP, vol. 19, p. 99; rel. Afonso Faro).
Na espécie sujeita, no entanto, embora não deite a
barra tão longe que afirme era a conduta do réu — pagar
dívida com cheque falso — a única ou melhor forma de
atalhar o mal que o constrangia, não há desconsiderá-la de
todo.
A necessidade, com efeito, já o reconheciam os
antigos, faz do homem o que quer (“Necessitas non habet
legem”).
Cai a ponto a sábia doutrina praticada pelo ven.
julgado, abaixo transcrito por sua ementa:

“Embora tecnicamente insustentável a alegação de estado de


necessidade, no caso em razão de pobreza e prole numerosa,
merece ser considerada pelo Juiz Criminal, para outros fins,
pois a pobreza — ressalvada a dos bem-aventurados, a
quem pertence o reino dos céus — não é um estado de
espírito, mas de carência existencial, que poderá ser de tal
ordem que justifique, por si mesma, a conduta do réu”
(EJTRF, vol. 68, p. 25; rel. Washington Bolivar).
292

No caso, todavia, triunfa razão de grande peso e


tomo, capaz de prevalecer contra a pretensão punitiva do
Estado: a insignificância do bem jurídico ofendido, visto se
trata de crime de bagatela.
A vítima, deveras, relatou que lhe devia o réu, seu
freguês e vizinho, a quantia de R$ 55,00, que pretendeu
liquidar mediante cheque falsificado. Mas — acrescentou
—, o réu, de presente, vai amortizando seu débito: “já
pagou R$ 30,00” (fl. 65).
Ao demais — e isto mesmo consignou a r. sentença
—, “o réu, amasiado, é pai e na ocasião passava por dificuldades
econômicas” (fl. 92). Ainda: “vem saldando seu débito”
(Ibidem).
Donde a pertinência da apóstrofe do insigne
Magistrado de Primeiro Grau: mais que estelionato, não
era porventura o dos autos caso de “mero retardamento no
pagamento?” (Ibidem).
Mesmo que não conste de texto legal expresso —
afirma o eminente Juiz e reputado penalista Carlos Vico
Mañas —, “o princípio da intervenção mínima, de cunho
político-criminal, impõe-se ao legislador e ao intérprete, por sua
compatibilidade com outros princípios jurídico-penais dotados de
positividade, e com os pressupostos políticos do estado democrático
de direito” (O Princípio da Insignificância como Excludente da
Tipicidade no Direito Penal, 1994, p. 57).
Por esta mesma craveira de equidade, sabedoria e
grandeza ensinou o profundo Nélson Hungria:
293

“As sanções penais são o último recurso para conjurar a


antinomia entre a vontade individual e a vontade
normativa do Estado. Se um fato ilícito, hostil a um
interesse individual ou coletivo, pode ser convenientemente
reprimido com as sanções civis, não há motivo para a reação
penal” (Comentários ao Código Penal, 1978, vol. I, t. II,
p. 34).

Em suma: a despeito da força dialética e da segura


doutrina que os dotes de espírito dos digníssimos
representantes do Ministério Público puderam comunicar
às razões do apelo, estou em que as sobrepujam na lídima
aplicação do direito e, pois, na realização do justo, as
que deram corpo e alento à r. sentença de Primeiro
Grau. Eis por que a mantenho, adotados os mesmos
fundamentos que lhe deparou o grande Juiz Dr. Odorico
Nilo Menin Filho.

5. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.

São Paulo, 20 de maio de 2002


Carlos Biasotti
Relator
294

V. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


QUINTA C ÂMARA – S EÇÃO C RIMINAL

Recurso em Sentido Estrito nº 990.09.139567-6


Comarca: Rio Claro
Recorrente: Ministério Público
Recorridos: RFM e AR

Voto nº 12.466
Relator
– Não decai a Justiça de sua grandeza e
confiança, antes se recomenda ao louvor
dos espíritos retos, se, aferindo lesão
patrimonial por craveira benigna, rejeita
denúncia por tentativa de furto de coisa de
ínfimo valor (art. 155, § 4º, nº IV, do Cód.
Penal). Ao Juiz não esqueçam jamais
aquelas severas palavras de Rui: “Não
estejais com os que agravam o rigor das leis,
para se acreditar com o nome de austeros e
ilibados. Porque não há nada menos nobre e
aplausível que agenciar uma reputação
malignamente obtida em prejuízo da verdadeira
inteligência dos textos legais” (Oração aos
Moços, 1a. ed., p. 43).
295

– Nos casos de insignificante lesão ao bem


jurídico protegido e mínimo grau de
censurabilidade da conduta do agente,
pode o Magistrado, com prudente arbítrio,
deixar de aplicar-lhe pena (e ainda pôr
termo à “persecutio criminis”). É que, nas
ações humanas, o Direito Penal somente
deve intervir como providência “ultima
ratio”.
–“O direito penal não deve se ocupar de condutas
que produzam resultados, cujo desvalor — por
não importar em lesão significativa a bens
jurídicos relevantes — não represente, por isso
mesmo, prejuízo importante, seja para o titular
do bem jurídico tutelado, seja à integridade da
própria ordem social” (Rev. Tribs., vol. 834,
p. 477; rel. Min. Celso de Mello).

1. Da r. decisão que proferiu o MM. Juízo de Direito da


2a. Vara Criminal da Comarca de Rio Claro, rejeitando-lhe
a denúncia que ofereceu contra RFM e AR, por infração
do art. 155, § 4º, nº IV, do Código Penal, interpôs Recurso em
Sentido Estrito para este Egrégio Tribunal, com o intuito de
reformá-la, o ilustre representante do Ministério Público.
Nas razões de fls. 88/92, elaboradas com esmero e
proficiência pelo Dr. Otávio Ferreira Garcia, afirma que, ao
rejeitar a denúncia formulada segundo os preceitos legais,
o MM. Juízo fizera rosto ao Direito Positivo.
296

Acrescentou o recorrente que isto de ter a coisa parco


valor não significava pudesse livremente ser subtraída. Em
abono de sua argumentação invocou o magistério da
Jurisprudência.
Pleiteia, destarte, o provimento do recurso para que
seja a denúncia recebida na íntegra.
Apresentou a nobre Defesa contrarrazões de recurso,
nas quais repeliu a pretensão da combativa Promotoria de
Justiça e propugnou a mantença da r. decisão de Primeiro
Grau (fls. 123/127 e 129/134).
O r. despacho de fl. 136 manteve, por seus próprios
fundamentos, a r. decisão recorrida.
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em
minucioso e abalizado parecer do Dr. Marcílio Grecco,
opina pelo provimento do recurso (fls. 140/143).
É o relatório.

2. Foram os recorridos chamados à barra da Justiça


Criminal porque, em 14.5.2008, pelas 9h10, na Rua 14,
em Rio Claro, obrando em concurso e unidade de
propósitos, tentaram subtrair para si “peças de carne
embaladas a vácuo”, de propriedade do estabelecimento
“Varejão da Qualidade”.
Instaurada a “persecutio criminis”, foram os autos de
inquérito remetidos a Juízo.
Oferecida a denúncia, rejeitou-a a r. decisão de fls.
81/86, sob color de que a “insignificância da conduta” dos
acusados não justificava a intervenção judicial.
297

3. A materialidade e a autoria do fato imputado aos


recorridos não podem ser infirmadas sem imprudência,
pois assentaram em base probatória firme e incontroversa.
A despeito, porém, dos cabedais de talento e zelo do
subscritor das razões de recurso, a solução adotada pela
decisão de Primeira Instância era, a meu aviso, a que
realmente devia caber na alçada da Justiça Criminal.
Nos casos de insignificante lesão ao bem jurídico (e
mínimo o grau de censurabilidade), o fato não constitui
crime. É que, nas ações humanas, o Direito Penal apenas
intervém como providência “ultima ratio”.
Mesmo quando conspirem os elementos constitutivos
do crime, sempre se reconheceu ao Juiz discrição para
atalhar o curso da persecução penal, se esta lhe parecer,
mais do que intolerável absurdo, violação grave do ideal e
dos preceitos da Justiça.
Não decai de sua grandeza e confiança a Justiça, antes
se recomenda ao louvor dos espíritos retos, se, aferindo
lesão patrimonial por craveira benigna, rejeita a denúncia
por furto de “peças de carne”.
Ao juiz não esqueçam jamais aquelas severas palavras
de Rui:

“Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se


acreditar com o nome de austeros e ilibados. Porque não há
nada menos nobre e aplausível que agenciar uma reputação
malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência
dos textos legais” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 43).
298

Tal exegese conforma-se com o alto magistério do


Colendo Supremo Tribunal Federal, como está a persuadi-
lo a ementa a seguir reproduzida:
“Por isso, deve o órgão investido do ofício judicante resistir
à tendência de, em época de delinquência exacerbada,
caminhar para a persecução criminal a ferro e fogo, com
desprezo de normas comezinhas, entre as quais surge,
com relevância maior, a alusiva ao princípio da não-
-culpabilidade” (Rev. Trim. Jurisp., vol. 171, p. 582).

4. Ao Juiz a Lei determina — e não apenas assegura —


que, no aplicá-la, atenda “aos fins sociais” e “às exigências do
bem comum” (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil).
Casos haverá (sendo o dos autos desse número) em
que ao Magistrado corre o dever de repelir, com retidão
e sabedoria, a ingrata censura, na qual se detinham e
compraziam já nossos maiores, por onde “Regimentos não se
executam senão nos pobres; Leis e prisões não se guardam, senão
contra os desamparados” (Diogo do Couto, Diálogo do Soldado
Prático, 1790, p. 19).
Isto mesmo tem proclamado esta prestigiosa Corte
Criminal, em acórdãos numerosos, subscritos por seus mais
eminentes Juízes:

“A lei penal jamais deve ser invocada para atuar em casos


menores, de pouca ou escassa gravidade. E o princípio da
insignificância surge justamente para evitar situações dessa
espécie, atuando como instrumento de interpretação
299

restritiva do tipo penal, com o significado sistemático e


político-criminal da expressão da regra constitucional do
nullum crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar
a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal”
(Rev. Tribs., vol. 733, p. 579; rel. Márcio Bártoli).

O princípio da insignificância como causa de exclusão


de tipicidade penal tem, entre nós, padroeiros de grande
vulto e peso:
“Embora não presente em texto legal, o princípio da
intervenção mínima, de cunho político-criminal, impõe-se
ao legislador e ao intérprete, por sua compatibilidade com
outros princípios jurídico-penais dotados de positividade,
e com os pressupostos políticos do estado democrático
de direito” (Carlos Vico Mañas, O Princípio da
Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito
Penal, 1994, p. 57).

Paradigma da melhor doutrina acerca do ponto, faz


ao intento o ven. aresto que a r. sentença reproduziu por
sua ementa às fls. 84/85:
“O princípio da insignificância — que deve ser analisado
em conexão com os postulados da fragmentariedade e da
intervenção mínima do Estado em matéria penal — tem o
sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal,
examinada na perspectiva de seu caráter material. Tal
300

postulado — que considera necessária, na aferição do relevo


material da tipicidade penal, a presença de certos vetores,
tais como a) a mínima ofensividade da conduta do agente,
b) a nenhuma periculosidade social da ação, c) o
reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e
d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada —
apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no
reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema
penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos
por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.
O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima
circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de
direitos do indivíduo somente se justificam quando
estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da
sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais
notadamente naqueles casos em que os valores penalmente
tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial,
impregnado de significativa lesividade. O direito penal não
deve se ocupar de condutas que produzam resultado, cujo
desvalor — por não importar em lesão significativa a bens
jurídicos relevantes — não represente, por isso mesmo,
prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico
tutelado, seja à integridade da própria ordem social” (Rev.
Tribs., vol. 834, p. 477; STF; rel. Min. Celso de
Mello).
Os outros julgados de que fez menção a decisão
recorrida — STJ; HC nº 89.357-SP; 5a. T.; rel. Min.
Arnaldo Esteves Lima; j. 11.3.2008; v.u.; in Boletim AASP
301

nº 2.592, de 8 a 14.8.2008; Ementário p. 1.571; e STF; HC


nº 88.393/RJ; 2a. T.; rel. Min. Cezar Peluso; DJU 8.6.2007,
p. 47 (fls. 83/85) — não serviram apenas a esforçar-lhe o
teor jurídico, senão a evidenciar o acerto e magnífico senso
judicante de seu prolator, o distinto e culto Magistrado Dr.
Antonio Fernando Scheibel Padula.

5. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.

São Paulo, 23 de outubro de 2009


Des. Carlos Biasotti
Relator

VI. Princípio da Insignificância: Textos Analógicos

1. “Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se


acreditar com o nome de austeros e ilibados. Porque não
há nada menos nobre e aplausível que agenciar uma
reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira
inteligência dos textos legais” (Rui Barbosa, Oração aos
Moços, 1a. ed., p. 43.
2. “Na esfera dos crimes contra o patrimônio, cometidos sem
violência a pessoa, tem relevância apenas a lesão jurídica
de valor econômico, pois segundo a velha fórmula do
direito romano, De minimis non curat praetor (Dig.
4,1,4)” (TACrimSP; Ap. nº 1.298.323/8).
302

3. “Não incorre na censura de ilegalidade a decisão que, firme


no princípio da insignificância do bem jurídico protegido
e da mínima reprovabilidade social do fato, rejeita
denúncia oferecida contra sujeitos que, na inclemência da
miséria e sem teto a que se recolher, furtam duas galinhas e
uma leitoa para acudir às primeiras necessidades. Punidos
já pelos rigores da própria vida, em contínuas privações,
era escusado fazer recair sobre eles, com todo o peso, o
gládio da Justiça” (TACrimSP; Rec. nº 1.316.405/3).
4. “Mesmo quando conspirem os elementos constitutivos de
um crime, sempre se reconheceu ao juiz discrição para
atalhar o curso da persecução penal, se esta lhe parecer,
mais do que intolerável absurdo, violação grave do ideal e
dos preceitos da Justiça” (TACrimSP; Rec. nº 1.316.405/3).
5. “Nisto de crimes contra o patrimônio, não contraria o
Direito Penal — a quem só importam as infrações de
relevância econômica — nem ofende as leis da Justiça o
magistrado que, à luz do princípio da insignificância,
absolve e manda em paz autor de furto de material de
ínfimo valor, que lhe não foi de proveito algum, porque
afinal recuperado pela vítima” (TJSP; Ap. Crim. nº
990.08.020404-1).
6. “Nos casos em que a insignificância da lesão do bem
jurídico protegido concorre com o mínimo grau de
censurabilidade do fato, não há crime que punir, pois nas
ações humanas o Direito Penal deve unicamente intervir
como providência ultima ratio” (TACrimSP; Rec. nº
1.363.301/6).
303

7. “À luz do princípio da insignificância, que opera como


excludente da tipicidade no Direito Penal, alguns fatos
podem guardar-se da censura da Lei, pois não é de bom
exemplo ocupar-se o varão grave com questões de pequeno
alcance: De minimis non curat praetor” (TACrimSP;
Ap. nº 1.049.327/0).
8. “A ideia de que pequenas infrações podem subtrair-se
ao direito sancionador já a propugnavam os romanos,
perpetuando-a na fórmula clássica: De minimis non curat
praetor” (TACrimSP; Ap. nº 1.146.159/7).
9. “A pedra de toque desses a que a Doutrina chama delitos
de bagatela é a pequena lesão ao patrimônio da vítima, o
ínfimo valor do bem. Não cai sob esse número, pois, a
infração penal de vulto nem a ofensa a objeto jurídico
de grande monta e estimação” (TACrimSP; Ap. nº
1.049.327/0).
10. “O sujeito, a quem a vida já puniu severamente, deixando
de prover-lhe às primeiras necessidades, parece bem, e
ainda justo, em certos casos, poupá-lo ao rigor da lei penal,
que tem por odioso todo o excesso: Noli esse justus multum”
(Ecl 7, 17). Não sejas por demasiado justo!” (TACrimSP;
Ap. nº 1.303.549/6).

Mas, aplicado inconsideradamente, o princípio da


insignificância representa violação grave da lei, a qual
manda punir o infrator; pelo que, subtrair a seu rigor o
culpado, sem relevante razão de direito, fora escarnecer da
304

Justiça, que dispensa a cada um o que merece. Em verdade,


conforme aquilo de Alberto Oliva, “todo homem deve saber
do fundo de seu coração o que é certo e o que é errado”(1).

Nota

(1) Apud Ricardo Dip e Volney Corrêa de Moraes, Crime


e Castigo, 2002, p. 3; Millennium Editora).
30. As Desavenças Conjugais e o
Rigor da Lei
I – Interessante acórdão(1) do Tribunal de Alçada
Criminal de São Paulo desafia reflexões, à conta da matéria
mesma nele versada: a briga de casal e a censura do direito.
Ao aviso de seu relator, o eminente Juiz Régis
Fernandes de Oliveira, não há aplicar aos casos de
lesões corporais entre cônjuges o princípio doutrinário
da insignificância ou bagatela, pois que “o direito à
incolumidade física é indisponível”.
Nada se pode arguir contra a afirmação de que o
direito ao corpo tem caráter indisponível, opinião muito
ordinária entre os mais graves escritores(2); onde nos parece
caiba algum reparo é no ponto em que o venerando aresto
dogmatizou ser impossível tratar como de somenos certas
lesões corporais. Aí — sofra-se-nos o atrevimento de
alçar-lhe o estilete da crítica — o douto Magistrado fez
rosto à correntia lição de autores de alta linhagem, assim de
nossos tempos como da mais remota ancianidade.
Com efeito, a ideia de que pequenas infrações podem
subtrair-se ao direito sancionador já a propugnavam os
romanos, perpetuando-a na fórmula clássica “De minimis
non curat praetor”, que, tirada em vulgar, quer dizer: O
pretor não se ocupa de assuntos de mínima importância.
Ou porque à majestade da Justiça (perante a qual
só devem ter entrada os fatos relevantes) não convém
entender em questões miúdas nem recorrer aos ápices da
306

lei e do direito, ou porque assim aconselha a prudência


(que manda olhar o juiz a que não se converta em veneno a
triaga de que fiou a esperança da cura do mal), não cai em
dúvida que algumas ações humanas, suposto geralmente
notadas de ilícitos penais, merecem remetidas à sombra
de obsequiosa impunidade(3). São deste número as lesões
corporais leves, sobretudo quando praticadas entre
cônjuges.

II – Nunca faltam entre os casados ocasiões de


desavenças, já o dizia Juvenal afiando um epigrama(4).
Deveras, das altercações e vitupérios não raro passam eles
às vias de fato, e daí a mais: aquele cavalheiro que dantes
era “tão terno para com a esposa, que ao próprio vento obstava de
bater-lhe no rosto com violência”(5); aquele mesmo que bebera
com o leite a doutrina de requintada galantaria de que “em
mulher não se bate, nem mesmo com uma flor”, agora, tendo
cedido aos ímpetos da cólera, não se limita a ofender de
palavras sua consorte, ou a travar-se de razões com ela: na
sua própria integridade corpórea é que busca já ofendê-la,
posto levemente. E daquela sublime união do homem e da
mulher, mediante a comunicação de direitos divinos e
humanos — palavras com que Modestino definiu o
casamento(6) —, não resta mais que um baixo-relevo, que a
sátira anônima burilou em pedra tosca, ajuntando-lhe a
impiedosa inscrição: “Casamento – A Divina Comédia ao
contrário: antes o Paraíso, depois o Purgatório e por último o
Inferno”(7).
307

Como desde o fato lesivo até à persecução penal não


vão mais que dois credos, nem pode o juiz recusar-se a
declarar o direito, breve se achará nas tenazes deste dilema:
infligir ao culpado a sanção legal ou relevar-lhe a falta?
Com uma diferença: que, punindo-o, estará também
rompendo os últimos e já frágeis vínculos da afeição
conjugal; no caso todavia que absolva o agressor, talvez
contribua para restaurá-los. O que não será obra de pouco
momento nem glória desprezível!

III – Não se trata de decidir segundo a craveira do bom


Juiz Magnaud(8), senão de o julgador aplicar a lei com a
advertência de que deverá atender “aos fins sociais a que ela
se dirige e às exigências do bem comum”(9).
Esta doutrina foi a que nos herdaram juristas de
grande suposição(10). Sobre ela edificaram também nossos
Tribunais a ortodoxia de seu magistério(11), inspirado em
diretriz de boa política criminal. É que a condenação do
cônjuge infrator poderá importar a separação do casal, com
sérios gravames para os filhos.
Se de pouca ou nenhuma gravidade a ofensa, não será
despropósito absolvê-lo, máxime se de vida pregressa
inculpada. Bastara já a espertar-lhe a adormecida consciência
dos valores jurídicos e morais sua submissão a infamante
processo penal e alguma admoestação que o magistrado
acerte de fazer-lhe na própria sentença, como a preveni-lo
de castigo futuro(12).
308

A letra da lei — ponderava o saudoso e notável Juiz


Edgard de Moura Bittencourt — “a letra da lei torce o nariz
a semelhantes facilidades, mas seu espírito não omite um olhar de
aplauso aos que, bem intencionados, procuram a harmonia
comum, que principia pela paz nas famílias”(13).
Por esse mesmo estalão decidiu o egrégio Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo, conforme se extrai do
acórdão adiante reproduzido:

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


QUINTA C ÂMARA – S EÇÃO C RIMINAL

Apelação Criminal nº 993.02.028824-4


Comarca: São Paulo
Apelante: Ministério Público
Apelado: AOB

Voto nº 11.812
Relator
309

– Se a prova dos autos não desfaz a


dúvida quanto à culpabilidade do
agente, será bem que o Juiz o
absolva, por amor do princípio de
curso universal: “In dubio pro reo”.
Mais do que probabilidade da
autoria do crime, a condenação
reclama certeza, que é sua única
base legítima.
– Nas querelas domésticas, a
punição do acusado implica, muita
vez, a ruptura dos últimos vínculos
da afeição conjugal; sua absolvição,
do contrário, pode contribuir para
restaurá-los, o que não será obra
de pouco momento nem glória
desprezível!
– O espírito da lei “não omite um
olhar de aplauso aos que, bem
intencionados, procuram a harmonia
comum, que principia pela paz
nas famílias” (Edgard de Moura
Bittencourt, Vítima, 1a. ed., p. 74).

1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito


da 2a. Vara Criminal do Foro Regional de Itaquera
(Comarca da Capital), absolvendo AOB da imputação de
infrator do art. 129, § 1º, nº I, combinado com o art. 61, nº II,
alínea e, do Código Penal (lesões corporais de natureza grave,
praticadas contra cônjuge), interpôs recurso de Apelação
para este Egrégio Tribunal, com o propósito de reformá-la,
o ilustre representante do Ministério Público.
310

Afirma, nas razões de recurso, que a materialidade e a


autoria do delito ficaram comprovadas.
Sustenta, ao demais, que nenhuma causa excludente
de antijuridicidade militou em prol do apelado.
À vista disso, requer à colenda Câmara tenha a bem
prover-lhe o recurso para condená-lo nos termos da
denúncia (fls. 192/195).
A digna Defesa apresentou contrariedade à pretensão
ministerial. Argumentou que a solução dada pela r.
sentença à espécie não malferiu o direito positivo.
Pugna, destarte, pelo improvimento do recurso (fls.
207/212).
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em sólido e
criterioso parecer da Dra. Ana Cláudia Mattos Quaresma e
Silva, opina pelo provimento do recurso (fls. 218/220).
É o relatório.

2. O Ministério Público ofereceu denúncia contra o réu


porque, pela madrugada de 9.7.1999, na Rua Tubiba
(Cidade A. E. Carvalho), nesta Capital, ofendera a
integridade física de CBB, produzindo-lhe as lesões
corporais de natureza grave descritas nos laudos de exame
de corpo de delito.
Instaurada a persecução criminal, após regular
tramitação do feito, a r. sentença de fls. 184/188 absolveu-o,
com fundamento no art. 386, nº VI, do Código de Processo
Penal.
311

O dedicado Dr. Promotor de Justiça, entretanto,


insatisfeito com o desfecho absolutório, requer seja o
processo de novo submetido a julgamento, condenando-se
o réu.

3. As razões de apelação recomendam muito seu


subscritor — o distinto Promotor de Justiça Dr. Ednilson
Andrade Arraes de Melo —, mas não se mostram
poderosas a convelir os fundamentos da r. sentença de
Primeiro Grau, visto que proferida à luz de severa análise
crítica dos fatos e com estrita observância das regras de
Direito.
Exame detido do conjunto probatório evidencia que,
ao absolver o réu, o insigne Magistrado não se houve
apenas com acerto jurídico, senão com sabedoria.
A prova dos autos, com efeito, não induz certeza a
respeito da culpabilidade do réu.
Interrogado em Juízo, esclareceu que, ex-marido da
vítima, travou-se de razões com ela; negou porém a tivesse
agredido. Ajuntou que, ao revés, ele foi o que sofreu
espancamento por parte da mulher, cunhados e sogra
(fl. 112).
A vítima, essa imputou ao réu a prática de agressão
física: empurrões, mordidas, tentativa de esganadura, etc.
(fls. 122/123).
312

As testemunhas Adriana, Danilo e Maria Militão —


irmãos e mãe da vítima (fls. 124/127) — também puseram
timbre em carregar ao apelado a prática de violência contra
a mulher.
O conjunto probatório, no entanto — conforme
observou com notável penetração o douto Magistrado —,
não permitia acabar pela efetiva culpabilidade do réu, pois
que lavrava séria e forte dúvida a respeito da isenção e
imparcialidade dos testemunhos que o incriminaram.
Realmente, vítima e testemunhas parece falaram
linguagem diversa da que consta dos laudos periciais:
tentaram “demonstrar a existência de lesões que a própria prova
material afasta”, como ressaltou a r. sentença (fl. 187).
Ao demais, também o réu sofreu lesões corporais,
segundo atestou o laudo de fl. 178.
Não foi possível, portanto, liquidar a quem coube a
iniciativa da agressão, nem se o réu queria deveras ofender
a integridade física da vítima — como significou a r.
sentença recorrida —, ou só defender-se de injusta
agressão.
Ante a razoável dúvida, a decisão em prol do réu
conformou-se com o velho aforismo jurídico: “In dubio pro
reo”.

4. Suposta a dúvida quanto ás circunstâncias do fato


criminoso imputado ao réu (e dúvida, em Direito Penal, é
o outro nome da falta de prova); e havendo consideração a
313

que somente a prova plena e incontroversa permite juízo


de certeza acerca da culpabilidade do acusado; considerando,
por fim, que, nas dissensões e conflitos domésticos, é de
Magistrado proceder sempre com assaz de prudência, não
venha a prejudicar, pelo nímio rigor na aplicação da lei,
a sorte dos filhos, tenho por mui digna de prevalecer a
sentença que absolveu o réu.
Com efeito, o espírito da lei “não omite um olhar de
aplauso aos que, bem intencionados, procuram a harmonia
comum, que principia pela paz nas famílias” (Edgard de
Moura Bittencourt, Vítima, 1a. ed., p. 74).
À derradeira, faz ao intento a lição de Camargo
Aranha:

“A condenação criminal somente pode surgir diante de uma


certeza quanto à existência do fato punível, da autoria e
da culpabilidade do acusado. Uma prova deficiente,
incompleta ou contraditória, gera a dúvida e com ela a
obrigatoriedade da absolvição, pois milita em favor do
acionado criminalmente uma presunção relativa de
inocência” (Da Prova no Processo Penal, 3a. ed., p. 65).

Numa palavra, as razões do recurso da Promotoria de


Justiça não se afiguram poderosas a invalidar a força dos
argumentos da r. sentença que proferiu o distinto e culto
Magistrado Dr. Alberto Marino Neto.
314

5. Pelo exposto, nego provimento à apelação.

São Paulo, 9 de junho de 2009


Carlos Biasotti
Relator

Notas

(1) Ap. nº 725.611, 11a. Câm., j. 9.9.93.


(2) “E por isso mesmo que correspondem a interesses imediatos
ou diretos do Estado, esses bens (a vida e a integridade
corporal) são inalienáveis, indisponíveis, irrenunciáveis,
por parte do indivíduo. Representam o conteúdo de direitos
subjetivos que a lei penal considera intangíveis, ainda
quando preceda, para seu ataque, o consentimento do
subjectum juris” (Nélson Hungria, Comentários ao
Código Penal, 1981, vol. I, p. 16).
(3) Da copiosa literatura sobre o assunto é digno de
menção o artigo que escreveu Luiz Flávio Gomes:
“Tendências político-criminais quanto à criminalidade
de bagatela” (Revista Brasileira de Ciências Criminais,
número especial de lançamento, dezembro de 1992,
pp. 88-109). Outro tanto: Francisco de Assis Toledo,
Princípios Básicos de Direito Penal, 1986, p. 121.
315

Casuística do princípio da insignificância:


a) furto (JTACrSP: 60/198, 61/175, 78/365; Rev.
Tribs.: 523/357;
b) estelionato (JTACrSP: 67/263);
c) lesões corporais (JTACrSP: 75/307, 78/336,
87/208, 78/208);
d) jogo do bicho (JTACrSP: 78/413, 82/239,
85/325).

(4) “Semper habet lites, alternaque jurgia lectus” (Sátira 6a.,


v. 268).
(5) Shakespeare, Hamlet, ato I, cena II; trad. Carlos
Alberto Nunes.
(6) Cf. Alexandre Correia, Manual de Direito Romano,
1953, vol. I, p. 124.
(7) Cf. Folco Masucci, Dicionário Humorístico, 1958, p. 57.
(8) Paul Magnaud (1848-1926), magistrado francês
partidário da livre interpretação do Direito. Punha-se
amiúde em rixa aberta com a lei para decidir
conforme seus próprios sentimentos e os aspectos
sociais do caso. Abrigava debaixo de sua toga os
desvalidos; aos opulentos sacudia-lhes à face o gládio
inflamado da Justiça (cf. Leib Soibelman, Enciclopédia
do Advogado, 3a. ed., p. 52).
(9) Art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.
316

(10) José Frederico Marques: “O que se não compreende é


que a Justiça Criminal movimente todo seu aparatoso
mecanismo para o processo e julgamento de lesões mínimas
e insignificantes, praticadas eventualmente por pessoas
destituídas de qualquer indício de periculosidade, e que
sempre foram ordeiras e de boa conduta” (Tratado de
Direito Penal, 1961, vol. IV, p. 200).
(11) Mais que muitas são as decisões colegiadas que,
ferindo o tema briga de casal, optaram por solução de
equidade. Por não sermos prolixo, delas daremos só
esta meia dúzia:
a) “Tratando-se de incidente doméstico, do qual resultaram
levíssimos ferimentos na vítima, aconselha o interesse
social a absolvição do acusado, pois mais convém a
harmonia do casal do que uma decisão que poderia
acarretar sua separação” (Rev. Tribs., vol. 524, p.
405);
b) “Em inúmeros casos tem o Poder Judiciário reconhecido
ser aconselhável a absolvição do acusado que pratica
pequenas agressões contra o cônjuge, ante a verificação
de que o casal se reconciliou e de que a pequenez do
agravo físico deve ceder perante o bom convívio
familiar” (Ibidem, vol. 538, p. 360);
c) “As brigas entre cônjuges são de todos os dias e o castigo
corporal imposto por pai a filho não entra no terreno
penal senão excepcionalmente (Cód. Penal, art. 136).
Assim, tratando-se de lesões corporais levíssimas, o caso
é penalmente irrelevante” (Ibidem, vol. 394, p. 239);
317

d) “Havendo séria dúvida sobre quem teve a iniciativa da


agressão e tendo-se esta verificado no recesso do lar,
sem testemunha ocular, a melhor solução é absolver o
pretenso acusado” (Ibidem, vol. 545, p. 381);
e) “Lesão corporal – Agressão de marido alcoolizado
contra mulher – Posterior abandono da bebida e
reconciliação do casal – Absolvição” (JTACrSP, vol.
71, p. 218);
f) “A interferência da Justiça Penal é inconveniente e
talvez mesmo nociva à estabilidade conjugal em
desavenças íntimas…” (Ibidem, vol. 11, p. 158).
(12) Promulgada com o declarado intuito de pôr cobro a
toda a sorte de violência doméstica e familiar contra a
mulher, a Lei nº 11.340/2006 (também conhecida por
“Lei Maria da Penha”) criou poderosos instrumentos
jurídicos para a prevenir, punir e erradicar. Em
verdade, além do apoio efetivo à mulher em situação
de risco, assegurou-lhe medidas protetivas de urgência
(art. 23) e a adoção, contra o agressor, de providências
drásticas e excepcionais (art. 22); dispôs ainda que aos
crimes praticados com violência contra a mulher não
se aplicam os benefícios da Lei nº 9.099/1995 (Lei dos
Juizados Especiais), “verbi gratia”: pena alternativa (art.
76), suspensão condicional do processo (art. 89), etc.
Por seu extraordinário alcance e finalidade, foi tal
lei — como era de razão — recebida com gerais
aplausos. Enfim, para grandes males, grandes (e bons)
remédios!
(13) Vítima, 1a. ed., p. 74.
31. Violação de Domicílio

1. Desde a mais alta antiguidade foi a casa considerada


lugar sagrado(1). Definiu-a com esse caráter a Constituição
Federal: “A casa é asilo inviolável do indivíduo”; ninguém
pode nela entrar sem consentimento do morador, salvo
em caso de crime (art. 5º, nº XI). Aqui, perdida já sua
característica principal de santuário doméstico, ter-se-á
transformado em antro de delinquência…
A violação de domicílio, enfim, o Código Penal
capitula de crime(2).
A proteção jurídica da propriedade e a inviolabilidade
do domicílio figuram expressamente, na Carta Magna,
como garantia e direito fundamental do indivíduo (art. 5º,
“caput”, e ns. XI e XXII).
Também o Código Penal — sob a rubrica esbulho
possessório — pune a invasão de propriedade, “com violência a
pessoa ou grave ameaça, ou mediante o concurso de mais de duas
pessoas” (art. 161, nº II). É a lei a proteger direito inerente à
mesma condição humana, porque extensão da personalidade:
o direito de propriedade(3).
Eis por que, no limiar de toda propriedade (casa,
choupana, sítio ou fazenda), poder-se-á ler, sob forma de
advertência legítima, a inscrição imaginária: “Sem autorização
do proprietário, aqui só entra o Sol!”.
320

2. Nos Tribunais de Justiça, o prestígio do direito de


propriedade nunca sofreu abalo, como se extrai dos
acórdãos a seguir reproduzidos:

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO E STADO DE SÃO PAULO


Q UINTA C ÂMARA – S EÇÃO C RIMINAL

Recurso em Sentido Estrito nº 926.743-3/3-00


Comarca: Mogi das Cruzes
Recorrente: MSF
Recorrido: Ministério Público

Voto nº 9024
Relator

–“A casa é o asilo inviolável do cidadão”,


reza a Constituição Federal (art. 5º,
nº XI); por isso, nela ninguém pode
penetrar, se o não consentir o
morador, ou ordenar a autoridade
judicial. O preceito legal mesmo,
no entanto, excepciona hipótese de
flagrante delito.
321

–“O delito de guarda ou depósito de arma


de fogo constitui crime permanente,
admitindo a entrada na casa do infrator
para efetuar prisão em flagrante”
(Damásio E. Jesus, Crimes de Porte de
Arma de Fogo e Assemelhados, 2a. ed.,
p. 48).
– Sucessivas decisões contraditórias
em processo criminal têm sempre
operado como causa de insegurança
nos negócios jurídicos e grande
descrédito da Justiça, pelo que se
devem evitar quanto possível.

1. Da r. decisão do MM. Juízo de Direito da 1a. Vara


Criminal da Comarca de Mogi das Cruzes, deferindo a
LSC o relaxamento da prisão em flagrante, interpôs Recurso
em Sentido Estrito, levando em vista reformá-la, o digno
representante do Ministério Público.
Nas elegantes razões de recurso de fls. 2/19, afirma
que, ao revés do que decidiu o nobre Magistrado, o fato
imputado ao recorrido constituía, em tese, infração penal;
concorriam na espécie, ao demais, os elementos suficientes
para justificar sua manutenção em custódia; pelo que, não
havia relaxar-lhe a prisão em flagrante.
Assim, firme na lição da Jurisprudência, espera o
provimento de seu recurso para que, reformada a r.decisão
de Primeiro Grau, seja restabelecida a custódia provisória
do réu, expedindo-se-lhe mandado de prisão.
322

A Defesa apresentou contrarrazões de recurso, nas


quais repeliu os argumentos da douta Promotoria de
Justiça e propugnou a mantença da r. decisão atacada
(fls. 27/33).
O r. despacho de fl. 34 manteve, por seus próprios
fundamentos, a r. decisão recorrida.
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em incisivo
e abalizado parecer do Dr. Ludgero Francisco Sabella,
opina pelo provimento do recurso (fls. 48/50).
É o relatório.

2. Foi preso em flagrante o requerido, por infração do


art. 12 da Lei de Tóxicos e art. 14 da Lei nº 10.826/03 (Estatuto
do Desarmamento), já que, no dia 6 de dezembro de 2004,
pelas 20h30, na Rua Koheiji Adachi, em Mogi das Cruzes,
guardava, para fins de tráfico, 255 g de “Cannabis sativa L”
(maconha), substância entorpecente que determina
dependência física ou psíquica, sem autorização e em
desacordo com determinação legal ou regulamentar;
ainda mantinha sob guarda, ilegalmente, duas pistolas
semiautomáticas (fl. 40).
O MM. Juízo, imprimindo relevo às circunstâncias do
caso e argumentando que, a diligência policial “suprimiu
garantia constitucional”, foi servido relaxar a prisão em
flagrante do recorrido (fl. 42), com o que, entretanto, não
concordou a combativa Promotoria de Justiça; daqui o ter
manejado recurso.
323

3. “A casa é o asilo inviolável do cidadão”, reza o art. 5º,


nº XI, da Constituição Federal; por isso, nela ninguém pode
penetrar, se o não consentir o morador, ou ordenar a
autoridade judicial.
O preceito legal mesmo, no entanto, excepciona a
hipótese de flagrante delito.
Ora, dos elementos que instruem o recurso consta
que, tendo chegado à notícia de policiais que o recorrido
estava a praticar o comércio ilícito de entorpecentes,
tomaram para a sua casa e, sendo aí, apreenderam certa
quantidade — 46 invólucros — da erva maconha, além
de armas de fogo, em situação irregular.
Era caso, logo se vê, de ocorrência de crimes
permanentes.
De feito, o crime do art. 12 da Lei de Tóxicos é
“permanente em cinco modalidades (exposição, venda, depósito,
transporte, trazer consigo e guarda)” (Celso Delmanto, Tóxicos,
1a. ed., p. 19).
No que respeita ao delito de “guarda ou depósito de
arma de fogo constitui crime permanente, admitindo a entrada
na casa do infrator para efetuar prisão em flagrante” (Damásio
E. de Jesus, Crimes de Porte de Arma de Fogo e Assemelhados,
2a. ed., p. 48).
Em tais casos, assim a doutrina como a jurisprudência
dos Tribunais sempre houveram por legítima a prisão do
infrator.
O ven. aresto do Colendo Supremo Tribunal Federal,
abaixo reproduzido por sua ementa, faz bem ao propósito:
324

“Habeas Corpus – Invasão de domicílio para realização do


flagrante – Nulidade – Art. 5º, nº XI, da Const. Fed. –
Legitimidade do flagrante – Infração permanente.
Estado de flagrância caracterizado, o que afasta a
exigência do mandado judicial, art. 5º, nº XI, da Const.
Fed. Pedido conhecido, mas indeferida a ordem de habeas
corpus” (HC nº 70.909-5; rel. Min. Paulo Brossard;
DJU 25.11.94, p. 32.299).

Pela boa doutrina que encerra, não posso menos de


copiar aqui este lanço de Vicente de Azevedo:

“Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse


do indivíduo sobre a tutela social. Não se pode continuar a
contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo
do bem comum” (Curso de Direito Judiciário, 1958, vol. I,
p. 44).

4. Na espécie dos autos, por força do alvará de fl. 43,


já estará o recorrido em liberdade.
Mas, havendo consideração à data do r. despacho
impugnado — 7.12.2004 (fl. 42) —, não é improvável
tenha sido já sentenciado o feito e, pois, decidida a sorte do
réu no tocante a seu “status libertatis”.
Ao demais, sucessivas decisões contraditórias em
processo criminal têm sempre operado como causa de
insegurança nos negócios jurídicos, além de descrédito da
Justiça, pelo que se devem evitar quanto possível.
325

5. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.

São Paulo, 3 de agosto de 2007


Des. Carlos Biasotti
Relator

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO E STADO DE SÃO PAULO


Q UINTA C ÂMARA – S EÇÃO C RIMINAL

“Habeas Corpus” nº 990.09.141950-8


Comarca: Presidente Bernardes
Impetrantes: Dr. Aton Fon Filho,
Dr. Leandro Lúcio Baptista Linhares,
Dr. Roberto Rainha,
Dra. Paloma Gomes e
Dra. Giane Alvares Ambrósio Alvares
Paciente: JAGM

Voto nº 12.000
Relator
326

– Não entra em dúvida que, a


despeito do princípio da presunção
de inocência, consagrado na
Constituição da República (art. 5º,
nº LVII), subsiste a providência
da prisão preventiva, quando
conspiram os requisitos legais do
art. 312 do Código de Processo Penal:
garantia da ordem pública,
conveniência da instrução criminal
ou para assegurar a aplicação da lei
penal, desde que comprovada a
materialidade da infração penal e
veementes os indícios de sua
autoria.
– Não requer o despacho de prisão
preventiva o mesmo rigor que deve
encerrar a decisão definitiva de
condenação. É o escólio de
Damásio E. de Jesus ao art. 312 do
Cód. Proc. Penal: “A prisão preventiva
exige prova bastante da existência do
crime e indícios suficientes de autoria.
Não é necessária a mesma certeza que
deve ter o juiz para a condenação do
réu” (cf. Código de Processo Penal
Anotado, 23a. ed., p. 253).
327

– Matéria de alta indagação, como


a que entende com a autoria do
crime, é insuscetível de exame
em processo de “habeas corpus”,
de rito sumaríssimo; apenas tem
lugar na instância ordinária, com
observância da regra do contraditório.
Trancamento de ação penal por
falta de justa causa unicamente
se admite quando comprovada,
ao primeiro súbito de vista, a
atipicidade do fato imputado ao réu,
ou a sua inocência (art. 648, nº I, do
Cód. Proc. Penal).
–“Exame de provas em habeas corpus
é cabível desde que simples, não
contraditória e que não deixe alternativa
à convicção do julgador” (STF; HC;
rel. Min. Clóvis Ramalhete; DJU
18.9.81, p. 9.157).
–“O dia em que se não cumprirem as
decisões judiciais transitadas em julgado
perecerá o direito, e com ele a liberdade,
que faculta a plena realização da pessoa
humana na sociedade em que vive”
(Carlos Alberto Menezes Direito,
Manual do Mandado de Segurança,
4a. ed., p. 200).
328

– Entre nós, tem o direito de


propriedade garantia constitucional
(art. 5º, nº XXII, da Const. Fed.). Por
isso, no limiar de toda propriedade
(choupana, chácara, sítio e fazenda),
haveremos de ler, sob a forma de
advertência legítima, a imaginária
inscrição: “Aqui, sem a minha
autorização, só entra o Sol e ninguém
mais!”.

1. Os ilustres advogados Dr. Aton Fon Filho, Dr.


Leandro Lúcio Baptista Linhares, Dr. Roberto Rainha,
Dra. Paloma Gomes e Dra. Giane Alvares Ambrósio
Alvares impetram a este Egrégio Tribunal ordem de
“habeas corpus”, com pedido de liminar, em prol de JAGM,
sob o argumento de que padece constrangimento ilegal da
parte do MM. Juízo de Direito da Comarca de Presidente
Bernardes.
Afirmam, em extensa e esmerada petição (fls. 2/30),
que, embora processado por formação de quadrilha (art.
288 do Cód. Penal), era manifesto o constrangimento ilegal
que o paciente estava a sofrer, porquanto nenhum crime
cometera.
Argumentam que, por isso, não havia subsistir o
decreto de prisão preventiva, ou por falta de justa causa, ou
por sua ilegalidade, pois que ausentes os pressupostos
processuais que a poderiam autorizar.
329

Notam ainda de mal fundamentado o r. despacho que


a decretou.
Rematam que o paciente é primário, tem residência
fixa e família constituída.
Pleiteiam, destarte, à colenda Câmara tenha a bem
conceder a ordem de “habeas corpus” para revogar-lhe a
custódia cautelar, com expedição de contramandado de
prisão.
Instruíram o pedido com cópia dos autos da ação
penal e numerosos outros documentos (cf. Apenso).
O despacho de fls. 33/37 indeferiu a medida liminar
pleiteada.
A mui digna autoridade judiciária indicada como
coatora prestou as informações de praxe, nas quais
esclareceu ter sido o paciente denunciado por infração do
art. 288 do Código Penal.
Informou também que não foi ainda cumprido o
mandado de prisão expedido contra o paciente (fls.
52/54).
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em
ponderado e escorreito parecer do Dr. Eder Lago Mendes
Ferreira, opina pela denegação da ordem (fls. 45/50).
É o relatório.
330

2. Da denúncia, juntada a estes autos por cópia (Apenso),


extrai-se que, desde 2005 até meados de maio de 2007, em
Presidente Bernardes, o paciente, obrando em concurso
e unidade de propósitos com três outros indivíduos,
associaram-se em bando, para a prática de número
indeterminado de crimes de esbulho possessório, furtos,
incitação ao crime e danos aos patrimônios particulares.
Instaurada a persecução penal, entrou o processo a
correr seus trâmites.
Por decisão de 24.4.2009 — fls. 1.357/1.361 dos
autos da ação penal (7º vol.) —, o MM. Juiz de Direito da
Comarca de Presidente Bernardes, Dr. Gabriel Medeiros,
decretou a prisão preventiva dos réus VUS e JAGM.
Fê-lo pelas seguintes razões de fato e de direito:
constara-lhe, por provas e indícios, que o paciente JAGM
— conhecido como “Cido Maia” —, que já respondia
a processo por “formação de quadrilha para invadir
propriedade”, tornara “a praticar novo crime, associando-se e
liderando centenas de pessoas”.
Foi o caso que, no dia 17.4.2009, integrantes do
denominado Movimento Sem-Terra (MST) teriam
invadido a Fazenda Santa Terezinha, situada no município
de Nantes, liderados — conforme o Boletim de Ocorrência
nº 41 (fl. 1.336) — por JAGM (o paciente) e CMS.
Mesmo citados para os termos de ação de
reintegração de posse, o paciente, menoscabando a ordem
judicial, protestara que, “em nome do movimento”, não
deixaria o local.
331

Mencionou o Magistrado que a imprensa regional


divulgara esses fatos, ilustrando-os com “foto dos invasores”,
na qual figurava o paciente. Aludiu ainda à matéria do
jornal “Oeste Notícias”, desta substância: “Polícia Civil
investiga furto de gado em Iepê. Abate de bovinos pode ter ligação
com integrantes do MST que ocupam área próxima” (fl. 1.359).
A Promotoria de Justiça de Presidente Bernardes,
como se vê das fls. 1.342/1.343 (7º vol.), mandou reduzir a
termo, aos 14.4.2009, as declarações de Marcos Antônio
Sanches, fotógrafo de profissão, que, a pedido de Carlos
Dias, proprietário da “Fazenda São Luís”, tirara fotos “das
pessoas que estavam invadindo a área, que seriam integrantes do
MST”. Aí lhe informaram que o líder era o indivíduo
“Tião”, de quem se aproximou e ouviu logo a advertência
que não queria ser fotografado. O declarante, porém,
logrou tirar-lhe “uma foto de perfil”. Ajuntou que “Tião
estava colocando a bandeira no pasto”. Fotografou também os
“barracos que estavam sendo armados” e as “placas dos veículos
utilizados pelos invasores”.
Usava “boné vermelho” e trajava “camisa preta” o
indivíduo que se identificara por “Tião”.
Exibida, contudo, sua foto ao proprietário da
“Fazenda São Luís”, este foi peremptório: “não era Tião e sim
Cido Maia” (fl. 1.343).
Firmes nessas múltiplas e concretas circunstâncias, o
mui digno Juiz de Direito da Comarca de Presidente
Bernardes, indicado como autoridade coatora, teve a bem
decretar a prisão preventiva do paciente JAM, a quem
nomeiam também “Cido Maia”.
332

Irresignado com a decisão que lhe impôs medida


constritiva de liberdade, o paciente vem a este augusto
Pretório de Justiça clamar por sua revogação.
Assistido de causídicos notáveis por seus talentos,
competência e combatividade — que bem atestam a força
e o prestígio da Classe dos Advogados, à qual todo o
louvor é curto —, alega o paciente, em longa e erudita peça
forense (fls. 2/30), que não concorriam na espécie “sub
judice” os requisitos autorizadores da decretação da prisão
cautelar.
Sustentam os nobres impetrantes que o paciente
jamais colocou “em risco a ordem pública da comunidade
paulista” (fl. 27).
Requerem, por isso, a revogação da custódia
preventiva e a expedição de contramandado de prisão em
favor do paciente.

3. Pelo que respeita aos protestos de inocência que seus


esforçados patronos firmaram nos autos — de que, a
admitir-se tenha sido o paciente “visto ou fotografado no
latifúndio ocupado”, não era bastante a configurar “algum
ilícito penal a recomendar a sua segregação cautelar” (fls. 9/10)
—, não é ponto suscetível de resolução na esfera exígua do
“habeas corpus”.
Com efeito, em razão de seu rito sumaríssimo, na via
heroica do “habeas corpus” é defeso proceder a exame de
matéria de alta indagação. Isto de haver ou não o paciente
333

concorrido para a prática do crime que lhe imputou a


denúncia, como se trata de questão que apenas pode ser
dirimida na quadra de dilação probatória, na instância
ordinária, não há apreciá-la em processo de “habeas corpus”.
Assim, apenas na instância regular, sob o
contraditório processual, será lícito apurar a alegada
inocência do paciente.
Esta, com efeito, é a jurisprudência consagrada por
nossos Tribunais, em acórdãos infinitos em número:
“Somente pode ser reconhecida e afirmada, em sede de habeas
corpus — a falta de justa causa para a ação penal —,
quando os fatos apontados como delituosos são atípicos ou
quando a inocência do acusado se manifesta de forma
desembuçada, clara, precisa, límpida e incontestável” (Rev.
Tribs., vol. 499, p. 488).

Em tese, o fato atribuído ao réu tipifica ilícito penal;


acha-se presente, pois, o “fumus boni juris” que legitima
e autoriza a instauração do processo-crime contra seu
provável autor. Se a presença do paciente no lugar que os
impetrantes denominam “latifúndio São Luís” era “pacífica” e
não causara “dano à propriedade”, como inculcam (fls. 9/10),
não cabe examiná-lo aqui: tratar-se-ia de juízo acerca do
elemento subjetivo do tipo, incompatível com o rito e
finalidade da ação de “habeas corpus”.
334

4. De outra parte, o r. despacho impugnado (cf. fls.


1.357/1.361 do 7º vol.), ao fundamentar a decretação da
prisão preventiva, argumentou com sua necessidade e
conveniência: exarou que o paciente, já demandado na
Justiça Criminal por delito que causou profundo
desassossego na região (formação de quadrilha), praticou
novo crime: “associando-se e liderando centenas de pessoas,
voltou a invadir nova propriedade” (fl. 1.358).
Sua custódia, portanto, foi determinada pela
exigência indeclinável de garantia social e conveniência da
Justiça, que deve atender a que se não frustre a aplicação da
lei nem periclite a ordem pública.
Era o quanto bastava para justificar a subsistência da
prisão cautelar; pretender fosse além a digna autoridade
apontada como coatora, seria o mesmo que antecipar
decisão de mérito, o que passava por desmarcada abusão
lógica e jurídica.
Ato mais relevante do ofício do Magistrado, a decisão
deve ser fundamentada (art. 93, nº IX, da Const. Fed.), isto é,
ao proferi-la deve dar as razões de seu convencimento.
Mas fundamentação percuciente, minuciosa e
castigada só a requer decisão definitiva de mérito, não
a que impõe prisão preventiva ou denega liberdade
provisória; esta se satisfaz com a indicação da necessidade
da decretação da custódia cautelar, que se infere da prova
da materialidade da infração penal grave e de indícios
veementes de sua autoria.
335

Vem aqui de molde o magistério da jurisprudência do


Colendo Superior Tribunal de Justiça, abaixo reproduzido
por sua ementa:
“Demonstrada a necessidade da medida cautelar constritiva
da liberdade humana, concretizada em decisão, ainda
que sucinta, onde consignadas as razões pelas quais
entendeu necessária, descabe pretender desconstituí-la com a
invocação do princípio da presunção de inocência, ou pela
circunstância de ser o paciente primário, radicado no foro
da culpa e com profissão definida” (Revista do Superior
Tribunal de Justiça, vol. 58, p. 119).

O magistério de José Frederico Marques, processualista


exímio, faz ao intento:
“Desde que a permanência do réu, livre e solto, possa dar
motivo a novos crimes, ou cause repercussão danosa e
prejudicial no meio social, cabe ao juiz decretar a prisão
preventiva como garantia da ordem pública. Nessa
hipótese, a prisão preventiva perde seu caráter de
providência cautelar, constituindo antes, como falava
Faustin Hélie, verdadeira medida de segurança. A
potestas coercendi do Estado atua, então, para tutelar, não
mais o processo condenatório a que está instrumentalmente
conexa, e sim, como fala o texto do art. 312, a própria
ordem pública. No caso, o periculum in mora deriva dos
prováveis danos que a liberdade do réu possa causar — com
a dilação do desfecho do processo — dentro da vida social e
em relação aos bens jurídicos que o Direito Penal tutela”
(Elementos de Direito Processual Penal, 1a. ed., vol. IV,
pp. 49-50).
336

5. Há nos autos um registro que não pode correr em


silêncio, neste momento de exame da legalidade dos
fundamentos da decretação da prisão preventiva do
paciente.
O Magistrado prolator da decisão atacada salientou,
com arrimo no Boletim de Ocorrência nº 41/09 (fl. 1.336),
que integrantes do Movimento Sem-Terra, “liderados pelos
investigados” (um dos quais, o paciente), “invadiram na
sexta-feira passada, dia 17.4.2009”; “já haviam sido citados”
para a ação de reintegração de posse. “Os investigados (…),
em nome do movimento, mesmo tendo conhecimento da ordem
judicial, disseram que não deixariam o local, em total afronta à
decisão do Poder Judiciário” (fl. 1.350).
Fato esse de suma gravidade, se verdadeiro!
É que, segundo o alto pensamento do Min. Carlos
Alberto Menezes Direito, “o dia em que se não cumprirem as
decisões judiciais transitadas em julgado perecerá o direito, e com
ele a liberdade, que faculta a plena realização da pessoa humana
na sociedade em que vive” (Manual do Mandado de Segurança,
4a. ed., p. 200).

6. Ainda que medida excepcional, a custódia preventiva


não repugna ao Estado Democrático de Direito, se imposta
com a finalidade de coibir violações da lei e preservar a
ordem jurídica.
337

A jurisprudência dos Tribunais sempre reservou ao


juiz do processo autonomia para avaliar, com o arbítrio
do bom varão, a necessidade e a conveniência de sua
decretação.
Ora, a decisão do Magistrado da Comarca de
Presidente Bernardes evidenciou, com rigor de lógica
jurídica, que a segregação do paciente era necessária, em
bem do interesse público. Afirmou-o Sua Excelência, após
detido exame dos autos, com palavras textuais:
“O ato praticado pelo acusado, formação de quadrilha para
invadir propriedade, disfarçado atrás do movimento social,
provoca imensa repercussão de forma a abalar a ordem
pública na pequena cidade de Presidente Bernardes, de
apenas 13 mil habitantes, onde fatos como os debatidos
nestes autos causam verdadeira sensação de insegurança
jurídica” (fl. 1.357).

Cai a talho o ven. aresto do Colendo Superior


Tribunal de Justiça:
“Em sede de prisão preventiva, deve-se prestar máxima
confiabilidade ao Juízo de primeiro grau, por mais próximo
e, pois, sensível às vicissitudes do processo” (HC nº 46.192-0-
PE; 6a. T.; rel. Min. Hamilton Carvalhido; j. 7.3.2006;
m.v.; apud Mohamed Amaro, Código de Processo Penal
na Expressão dos Tribunais, 2007, p. 363).
338

7. O sonho de todo camponês de ter um dia sua gleba e


poder cultivá-la é digno sempre de respeito. Ninguém
haverá de embaraçar-lhe o caminho que o levará à Terra
da Promissão, como cantou a musa rústica de Patativa do
Assaré, inspirado poeta cearense:

“Se a terra foi Deus quem fez,


se é obra da criação,
deve cada camponês
ter uma faixa de chão”
(in Dialógico, Revista do Movimento do Ministério Público
Democrático, nº 25, p. 32).

Mas, os conflitos agrários não podem resolver-se com


o sacrifício da lei e da ordem.
O Código Penal, por isso, define e pune como crime
as invasões a propriedade e o esbulho possessório (art. 161,
§ 1º, nº II).
Entre nós, tem o direito de propriedade garantia
constitucional (art. 5º, nº XXII, da Const. Fed.).
Assim, no limiar de toda propriedade (choupana,
chácara, sítio e fazenda), haveremos de ler, sob a forma de
advertência legítima, a imaginária inscrição: “Aqui, sem a
minha autorização, só entra o Sol e ninguém mais!”.
339

O despacho criticado atendeu às diretrizes do art. 312


do Código de Processo Penal; merece, pois, prevalecer, sem
deslustre dos advogados do paciente, profissionais mui
reputados pela ciência do Direito e dedicação ao nobre
mister que abraçaram.
Em suma: porque os argumentos deduzidos
pelo paciente não me persuadiram estivesse a sofrer
constrangimento ilegal, indefiro-lhe o pedido de “habeas
corpus”.

8. Pelo exposto, denego a ordem de “habeas corpus”.

São Paulo, 11 de agosto de 2009


Des. Carlos Biasotti
Relator

Notas

(1) “Quid est sanctius, quid omni religione munitius, quam


domus uniuscujusque civium” (Cícero, Pro Domo sua,
cap. 41).
(2) Art. 150 do Cód. Penal: “Entrar ou permanecer,
clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa
ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas
dependências:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa”.
340

(3) Não só a legislação dos regimes democráticos,


também a Declaração Universal dos Direitos do
Homem (ONU, 1948) reconhece à propriedade o
caráter de direito público subjetivo: “Todo homem
tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”
(art. 17).
32. Quando a Exageração na
Propaganda é Crime
I. A par dos mitômanos(1), que não conhecem outra
linguagem senão a da mentira, estão aqueles que não
trepidam em exagerar, a qualquer respeito, as qualidades e
atributos de suas coisas.
Teor de proceder é esse que, as mais das vezes,
ninguém toma ao sério, por sabê-lo fruto de fantasia
desordenada, ingênua hipérbole ou mera bazófia.
É da condição humana, com efeito, isto de
exagerarem as pessoas as notas positivas de tudo o que
possuem: tanto lhes agrada ter e cobiçar o melhor ou o
mais raro de uma ordem ou classe!
Não foi, portanto, matéria para estranheza haver
certo comerciante, num rasgo de orgulho e vaidade,
mandado afixar à porta de seu estabelecimento (de carnes
e embutidos), cartaz em que anunciava, à guisa de
publicidade, a venda das “melhores linguiças do mundo”. (Os
fregueses simplesmente adquiriam o produto, que decerto
presumiam superior à craveira mediana, mas nenhuma
importância ligavam à existência do termo de comparação,
por onde pudessem aferir as excelências da mercadoria!).
As patranhas que, nas Aventuras do Barão de
Münchhausen, os garotos de primeira instrução liam
outrora, fascinados, parecem havê-los acompanhado pela
vida fora!…
342

II. Há casos, porém, em que essa a que pudéramos


denominar malícia verbal da propaganda cede o lugar à
sanção penal, visto se trata de crime(2).
É desse número a hipótese que versou o Tribunal de
Alçada Criminal do Estado de São Paulo, no acórdão a
seguir reproduzido:

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE ALÇADA C RIMINAL


D ÉCIMA Q UINTA C ÂMARA

Apelação Criminal nº 1.206.637/1


Comarca: Guarujá
Apelante: KCO
Apelado: Ministério Público

Voto nº 2291
Relator
343

– Pratica estelionato (art. 171, “caput”, do


Cód. Penal) o sujeito que vende linhas
telefônicas e recebe do comprador de
boa fé o preço total da transação, mas
não lhas transfere sob o argumento de
não as haver disponíveis. É manifesto o
dolo (“animus laedendi”) de quem assim
procede, pois dá à venda o que não
tem.
– Incorre nas penas do art. 67 da
Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do
Consumidor), por delito de propaganda
enganosa, aquele que, no intento de
vender produtos e prestar serviços,
apregoa-lhes, para conciliar clientela,
atributos que não possuem ou não
respondem à verdade.

1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito


da 2a. Vara Criminal da Comarca de Guarujá,
condenando-a à pena de 2 anos de reclusão, no regime
aberto, além de 25 dias-multa, por infração do art. 171,
“caput”, combinado com o art. 29, do Código Penal, e 2 anos
de detenção, no regime aberto, por infração dos arts. 67
e 69 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor),
interpôs recurso para este Egrégio Tribunal, com o intuito
de reformá-la, KCO.
Nas razões de apelação, afirma que a prova acusatória,
frágil e insegura, era inidônea para justificar o decreto
condenatório.
344

Requer, destarte, o provimento de seu recurso para


ser absolvida, por insuficiência de provas (fl. 364).
A douta Promotoria de Justiça, reexaminando a
matéria dos autos, propugnou a confirmação da r. sentença
apelada (fls. 368/369).
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em detido
e criterioso parecer do Dr. José Albino Zorthea, opina pelo
provimento parcial do recurso, a fim de absolver a ré pelo
crime do art. 69 do Código do Consumidor (fls. 378/380).
É o relatório.

2. O Ministério Público ofereceu denúncia contra a ré


porque, no dia 23 de março de 1996, na Avenida Emílio
Carlos, na cidade de Guarujá, obrando em concurso e com
unidade de intuitos com MAS, obteve para si vantagem
ilícita, em prejuízo de Valdemar Perez Dantas, induzindo-
-o e mantendo em erro, mediante o artifício de vender
linha de telefone inexistente.
Consta dos autos que a vítima, atraída pela
publicidade, comprou à empresa (…) uma linha telefônica,
mediante o pagamento de sinal e mais 4 parcelas.
A quantia de R$ 1.800,00, referente ao pagamento da
entrada, foi entregue aos réus no momento da celebração
do contrato; as mais parcelas, posteriormente.
A linha telefônica, entretanto, essa não foi jamais
instalada.
345

Apurou-se ainda que os réus promoveram


publicidade enganosa e abusiva, uma vez prometiam
a instalação de linhas telefônicas, sem condições de
cumpri-lo.
Instaurada a persecução criminal, tramitou o processo
na forma da lei; ao final, foram condenados pela r. sentença
de fls. 343/347.
Inconformada com a decisão condenatória, a ré
manifestou recurso para esta colenda Corte de Justiça, na
expectativa de ser absolvida.

3. A solução do litígio não podia ser outra que


a consubstanciada na r. sentença recorrida, pois
indiscutivelmente o conjunto probatório evidenciou a
responsabilidade criminal da ré.
A vítima, inquirida em Juízo, narrou ter comprado
à empresa (…) um telefone em 4 prestações; pagou a
importância total de R$ 3.080,00, mas nunca o recebeu.
A prova literal de suas alegações acha-se entranhada
nos autos (fls. 10/12).
Pelo mesmo teor o depoimento da testemunha
Gilberto Dantas Lima. Confirmou as palavras da vítima e
garantiu que, a despeito de haver pago integralmente o
preço da linha telefônica, a empresa da ré não procedeu à
instalação de seu telefone; tampouco lhe devolveu o
dinheiro expendido para a sua aquisição (fl. 72).
346

A prova oral obtida na fase de instrução do processo


revelou, à saciedade, que a ré, proprietária de empresa que
anunciava a venda e pronta entrega de linhas telefônicas,
induziu em erro a vítima, causando-lhe vultoso prejuízo
econômico.
Foi criminoso, portanto, o seu procedimento, definido
e punido pelo art. 171 do Código Penal.
A alegação de que se tratava de matéria que devia ser
desatada na esfera cível mostra-se de todo improcedente.
É o caso dos autos exemplo de ilícito penal, porquanto a
ré, ao prometer a venda das linhas telefônicas, sem as
possuísse, atuara maliciosamente, com o dolo de obter
lucro mediante fraude.
Que operações comerciais desse quilate configuram
estelionato bem o persuadem arestos infinitos de todos os
Tribunais do País. Por me não demasiar, faço menção deste
apenas:

“Pratica o crime de estelionato o agente que autoriza a


celebração de contrato com a vítima, de venda de linha
telefônica, como se já estivesse com ela à sua disposição,
quando, na verdade, já sabia que, por ser ela inexistente,
não tinha condições de transferi-la para o nome da vítima.
Evidente, portanto, o escopo de lucro ilícito e não mero
negócio frustrado por problemas financeiros surgidos após a
sua concretização” (Rev. Tribs., vol. 736, p. 648; rel.
Mesquita de Paula).
347

Comprovada, além de toda a dúvida sensata, a


imputação atribuída à ré, era força julgar procedente a
denúncia.
À derradeira, importa ressaltar que a ré não se
empenhou em restituir o dano à vítima, com que
patenteou sua insigne má-fé.

4. Outro tanto, o delito de propaganda enganosa (art. 67


da Lei nº 8.078/90), ficou suficientemente caracterizado,
visto que, a pôr fé inteira nas palavras da sentença, “as
cópias dos panfletos da empresa da ré noticiavam credibilidade
total para sua segurança final” (fl. 345).
Mais mentiroso, conforme áspero epigrama, só elogio
de epitáfio (“transeat”) !
Não só amplificados, os termos que a ré empregou
para qualificar seus serviços eram também mentirosos e
armavam ao intuito de ilaquear a boa fé das pessoas.
O pregão que fazia de sua atividade era, portanto, de
caráter enganoso.
Vem aqui a talho de foice a lição do provecto e
reputado jurista Paulo José da Costa Jr.:
“Ao fazer ou promover a publicidade, que sabe ser enganosa
ou abusiva, o agente se conduz iluminado pelo dolo
genérico, consistente na vontade de realizar a conduta,
consciente dos efeitos que dela irão desencadear-se, em
detrimento do consumidor, da paz pública, do meio
ambiente” (Crimes contra o Consumidor, 1999, p. 44).
348

Que o comerciante, com o propósito de conciliar o


interesse da clientela, exalte as qualidades de seus produtos
ou serviços, bem está; que o faça, porém, por meio de
mentira e engodo, não se admite e a própria lei o reprime
severamente (art. 67 do Código de Defesa do Consumidor).
A infração do art. 69 do Código de Defesa do
Consumidor (“deixar de organizar dados fáticos, técnicos e
científicos que dão base à publicidade”), como o ressaltou, com
raro aviso, o parecer da douta Procuradoria-Geral de
Justiça, não depara no processado elementos probatórios
que a configurem; pelo que, é força absolver a ré desta
acusação, o que faço com fundamento no art. 386, nº VI,
do Código de Processo Penal.

5. A pena fixada à ré pelo estelionato (2 anos de reclusão),


não sofre modificação alguma: acima do mínimo legal, por
amor das inúmeras vítimas que, com dolo intenso, lesou, e
pelas graves repercussões sociais do fato na urbe de
Guarujá.
Pelo que respeita à pena privativa de liberdade
estipulada à ré, por infração do art. 67 do Código de Defesa
do Consumidor (propaganda enganosa), é força reduzi-la a
6 meses de detenção, metade do máximo legal cominado ao
tipo. Não será de bom exemplo exasperar ao extremo, sem
causa que o justifique, a pena prevista para os crimes.
“Virtus in medio”!
349

Ao demais, da data do fato — 23.3.96 (fl. 2) — até


à data do recebimento da denúncia pelo ven. acórdão
de fls. 381/388 — 30.4.98 — decorreu lapso de tempo
superior a 2 anos.
Destarte, fixada em 6 meses, a pena de detenção
acha-se prescrita, ao módulo do art. 109, nº VI, do Código
Penal.
Assim, quanto ao crime do art. 67 do Código de Defesa
do Consumidor, cumpre julgar extinta a punibilidade da ré,
pela prescrição da pretensão punitiva estatal.
Em suma: provejo parcialmente o recurso para
absolver a ré quanto à infração do art. 69 da Lei nº 8.078/90
(Código de Defesa do Consumidor) e reduzir-lhe a 6 meses de
detenção a pena referente ao art. 67 do mencionado
estatuto legal; no tocante a este delito, julgo-lhe extinta a
punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva estatal
(art. 107, nº IV, 1a. fig., e 109, nº VI, do Cód. Penal), mantida
no mais a r. sentença de Primeiro Grau, máxime a
condenação por estelionato e o regime prisional.

6. Pelo exposto, dou provimento parcial ao recurso para os


fins que constarão no acórdão.

São Paulo, 14 de julho de 2000


Carlos Biasotti
Relator
350

Notas

(1) Já entrou em provérbio a notória vocação dos


pescadores para a mentira: dizia um deles que era
tão grande o peixe que pescara, que somente a sua
fotografia pesou 2 kg. Nos ranchos em que se
acomodam, é também frequente dar-se com esta
inscrição: Aqui se reúnem pescadores e outros mentirosos!
(2) Art. 66 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do
Consumidor):
Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação
relevante sobre a natureza, característica, qualidade,
quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço
ou garantia de produtos ou serviços:
Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa.
Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria
saber enganosa ou abusiva.
Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa.
33. O Crime de Dano

Sumário. Com o intuito de prevenir e reprovar a ação de sujeitos


refratários à boa ordem social e à garantia do direito de propriedade, o
legislador — à maneira do médico que propina remédio amargo para
mazela renitente — estabeleceu penas aos que praticam dano, crime em
que incorrem vândalos, pichadores, grafiteiros, etc. Em guarda, pois!

I. O abuso de direito de manifestação (e melhor diria


insensatez) imprimiu, pouco há, a marca do vandalismo
em dois patrimônios ou bens públicos: o monumento a
Borba Gato, na capital do Estado de São Paulo, e o prédio
do Ministério da Agricultura, em Brasília (fotos ns. 1 e 2).
Não é para aqui atear o archote da crítica acerca dos
méritos artísticos e das razões de ordem histórica que
presidiram à ereção da colossal estátua do bandeirante
Manuel Borba Gato (ao aviso de alguns ofensiva do bom
gosto e do senso estético).
A questão é objetiva e de fato: a mão profana, que lhe
deitou fogo, perpetrou, em tese, ato ilícito penal.
Em verdade, “destruir, inutilizar ou deteriorar coisa
alheia”, reza o Código Penal que configura o crime de dano
(art. 163).
Os verbos do tipo, na lição de Damásio E. de Jesus,
significam:
352

I - destruir – demolir, desfazer o objeto material;


II - inutilizar – torná-lo imprestável, inútil, ainda
que parcialmente;
III - deteriorar – arruiná-lo, estragá-lo, causando-lhe
modificação para pior(1).

Incorre, pois, no caso da lei o preso que empreende


fuga com dano do patrimônio público (ainda que seja o
amor da liberdade expressão incoercível do espírito
humano).
Também comete o crime de dano o sujeito que, em
ato de cru vandalismo, picha prédio, inutilizando-lhe a
pintura e deteriorando-o(2).
Mas, nos casos de insignificante a lesão ao bem
jurídico protegido e mínimo o grau de cesurabilidade da
conduta do agente, pode o Magistrado, com prudente
arbítrio, deixar de aplicar-lhe pena (e até mesmo pôr termo
à “persecutio criminis”). É que, nas ações humanas, o Direito
Penal somente deve intervir como providência “ultima
ratio”.

II. No intento de proteger os bens públicos (e


particulares) da ação nefasta de indivíduos de má indole e
refratários à disciplina social e aos bons costumes, o
legislador — à maneira do médico que propina remédio
amargo para mazela renitente — preveniu e reprimiu tais
infratores, cominando-lhes adequada sanção.
353

A Justiça Penal, empenhada sempre em dar a cada


um o que merece, não se tem demitido deste árduo e
imperioso ofício, como o ilustram os acórdãos adiante
reproduzidos, do Tribunal de Alçada Criminal do Estado
de São Paulo:

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE ALÇADA C RIMINAL


D ÉCIMA Q UINTA C ÂMARA

Apelação Criminal nº 1.279.311/5


Comarca: Araraquara
Apelante: TAS
Apelado: Ministério Público

Voto nº 3412
Relator

– O crime de dano não requer dolo


específico, senão genérico, que se
resume à simples voluntariedade de
inutilizar ou destruir coisa alheia
(art. 163 do Cód. Penal).
354

– Tratando-se de bem de uso comum


da coletividade, não é lícito ao
particular, ainda nos assomos de
cólera e sob o efeito de embriaguez
voluntária, danificar aparelho
telefônico (“orelhão”). A preservação
do patrimônio público deve ser
apanágio de todo cidadão.
– A substituição de pena corporal por
multa é desaconselhável se não
atende aos princípios que lhe devem
reger a aplicação: necessidade
e suficiência da reprovação e
prevenção do crime e edificação
das pessoas na observância da lei.

1. Inconformado com a r. sentença que proferiu o MM.


Juízo de Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca de
Araraquara, condenando-o à pena de 6 meses de detenção
e 10 dias-multa, substituída a pena privativa de liberdade
por restritiva de direitos (prestação de serviços à
comunidade), por infração do art. 163, parág. único, nº III,
do Código Penal, interpôs recurso para este Egrégio
Tribunal, com o escopo de reformá-la, TAS.
Em seu arrazoado recursal, afirma que o fato que lhe
foi imputado praticara-o sem dolo; pelo que, merecia
absolvido.
355

Acrescenta que, no dia em que danificara o telefone


público, estava embriagado.
Pleiteia, destarte, absolvição ou aplicação de pena de
multa somente (fls. 74/78).
A douta Promotoria de Justiça respondeu ao recurso,
refutando-lhe os argumentos; de igual passo, propugnou a
manutenção da r. sentença de Primeiro Grau (fls. 80/83).
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em
esmerado e escorreito parecer do Dr. José Eduardo Diniz
Rosa, opina pelo improvimento da apelação (fls. 90/94).
É o relatório.

2. A Justiça Pública meteu em processo o réu porque,


aos 9 de março de 2000, na Rua Deputado Emílio Carlos
(Vila Melhado), na bela cidade de Araraquara, danificou
um aparelho telefônico público (“orelhão”), de propriedade
da Telefônica, concessionária de serviços públicos.
Reza a denúncia que policiais militares foram
solicitados para atender a uma ocorrência de dano.
Constava que certo indivíduo, como não lograsse
completar uma ligação, acabara por seccionar o fone,
mediante uso de força muscular.
De posse das características do autor do fato, a Polícia
entrou a diligenciar e deteve-o nas adjacências.
356

Instaurada a persecução criminal, transcorreu o


processo na forma da lei; ao cabo, a r. sentença de fls.
66/68, julgando procedente a denúncia, condenou o réu, o
qual, jurando inocência, comparece perante esta Segunda
Instância, sonhando com absolvição.

3. A despeito dos bons esforços de seu ilustre patrono,


não há atender à pretensão do réu, visto que o incrimina o
conjunto probatório.
Na real verdade, em seu interrogatório judicial,
admitiu o réu, por miúdo, a autoria do fato criminoso.
Esclareceu que tentava comunicar-se por telefone com a
ex-mulher, porém não o conseguia. Irritado, dera com o
monofone contra o gancho, quebrando-o (fl. 45).
É certo que afirmara não era sua intenção danificar o
aparelho, ajuntando que estava embriagado.
A versão escusatória, no entanto, não merece
acolhida.
A razão é que apenas a embriaguez completa,
proveniente de caso fortuito ou força maior, elide a
imputabilidade penal, consoante a fórmula do art. 28 do
Código Penal.
A lição de Damásio E. de Jesus faz muito ao intento:
“Se o sujeito comete uma infração penal sob o efeito de
embriaguez, voluntária ou culposa, não há exclusão da
imputabilidade e, por consequência, não fica excluída a
culpabilidade. Ele responde pelo crime” (Código Penal
Anotado, 9a. ed., p. 118).
357

Por outra parte, o crime de dano não requer dolo


específico, senão genérico; este se traduz, como o ressaltou
o abalizado parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, “na
simples voluntariedade de causar dano à propriedade alheia”.
Esta, com efeito, é a licão dos mais reputados autores:
“O resultado de dano é, neste crime, inseparável do evento.
Se há vontade e consciência de destruir, inutilizar ou
deteriorar, há, evidentemente, vontade de causar dano e,
pois, de prejudicar. O que pode ocorrer é o concurso de
outros fins que, se não mudam o título do crime, são
irrelevantes… Não se exige, portanto, um específico animus
nocendi” (Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito
Penal, Parte Especial, 1980, vol. II, pp. 26-27).
Comprovada a materialidade do fato (fls. 36/40) e
liquidada a culpa do réu, era sua condenação imperativo de
justiça.
Tratando-se de bem de uso comum da coletividade,
não é lícito ao particular, ainda nos assomos de cólera ou
sob o efeito de embriaguez voluntária, danificar aparelho
telefônico; o respeito ao patrimônio público deve ser
apanágio de todo cidadão.
A pena foi imposta segundo craveira módica: a
mínima, substituída por prestação de serviços à comunidade.
O pedido de substituição da pena corporal por multa
não atenderia ao princípio que lhe deve reger a aplicação:
prevenir novos delitos, expiar a falta cometida e edificar as
pessoas na observância da lei.
358

Mantenho, por isso, ante os bons fundamentos em


que assenta, a r. sentença proferida pelo distinto e culto
Juiz Dr. Marcos Antonio Corrêa da Silva.

4. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.

São Paulo, 1º de novembro de 2001


Carlos Biasotti
Relator

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE ALÇADA C RIMINAL

D ÉCIMA Q UINTA C ÂMARA

Apelação Criminal nº 1.209.491/2


Comarca: Avaré
Apelante: MSP
Apelado: Ministério Público

Voto nº 2438
Relator
359

– “A confissão livre é, sem contradição,


a prova mais peremptória, aquela
que esclarece, convence e satisfaz, no
mais alto grau, a consciência do Juiz:
omnium probationum maxima” (Cons.
Vicente Alves de Paula Pessoa,
Código do Processo Criminal, 1882,
p. 157).
– Expressão incoercível do instinto
humano, o amor da liberdade elide
o caráter de ilicitude penal da fuga
do preso, exceto se empreendida
mediante violência contra pessoa ou
com dano do patrimônio público
(arts. 352 e 163 do Cód. Penal).
– Tratando-se de pena de curta
duração, não é defeso ao Magistrado
conceder ao condenado reincidente
o benefício do regime semiaberto, se
mais compatível com o critério de
suficiência para a reprovabilidade e
prevenção de novas infrações (art.
33, § 2º, letra c, do Cód. Penal).

1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito


da 1a. Vara da Comarca de Avaré, condenando-o a
cumprir, sob o regime fechado, a pena de 9 meses de
detenção, além de 15 dias-multa, por infração do art. 163,
parág. único, nº III, do Código Penal, apela MSP para este
Egrégio Tribunal, com o intuito de reformá-la.
360

Nas razões que lhe apresentou dedicado e culto


patrono, alega não procedeu com dolo, visto que não lhe
estava no ânimo destruir, inutilizar ou deteriorar coisa
alheia; tão só o movia o intuito de recobrar a liberdade,
o que não constitui crime.
Pelo que, pleiteia à colenda Câmara digne-se prover-
-lhe o recurso para o efeito de absolvê-lo (fls. 324/328).
Apresentou contrarrazões o douto representante
do Ministério Público: contrapôs sólidos argumentos à
pretensão da nobre Defesa e propugnou a manutenção da
r. sentença de Primeiro Grau (fls. 330/332).
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em sólido,
incisivo e criterioso parecer da Dra. Eloisa de Sousa
Arruda, opina pelo improvimento do recurso (fls.
350/352).
É o relatório.

2. Foi denunciado o réu porque, no dia 20 de fevereiro


de 1997, pelas 2h, na Penitenciária Dr. Luciano de Campos,
em Avaré, procedendo em concurso e com unidade de
propósitos com outro indivíduo, destruiu as barras de ferro
da janela da cela, danificando o patrimônio do Estado.
Rezam os autos que o réu e seu comparsa estavam
recolhidos naquele estabelecimento prisional e, na referida
data, serraram as barras de ferro de uma das celas,
destruindo-as.
Instaurada a persecução criminal, foi o réu, ao cabo,
condenado pela r. sentença de fls. 299/303.
361

Descontente, com a solução do pleito, espera que


esta colenda Corte de Justiça lhe atenda ao apelo,
absolvendo-o.

3. Da materialidade e autoria do fato imputado ao réu


há prova eloquente nos autos: o laudo pericial atesta a
veracidade da alegação da denúncia, isto é, que a grade
metálica de proteção da cela, onde se encontrava recolhido
o apelante, foi serrada (fl. 47).
As fotografias que ilustram o laudo pericial
demonstram-no seguramente (fls. 49/51).
A autoria confessou-a o apelante, acima de todo o
engano: “(…) ajudou a serrar a barra de ferro da cela”
(fl. 186 v.).
À vista da conclusão técnica irrefutável e da confissão
do réu, que se tem pela rainha das provas, foi a certeza que
serviu de base à prolação do edito condenatório.
Com efeito, segundo a Doutrina clássica, a confissão
prestada em Juízo tem força absoluta:

“Ora, a confissão livre é, sem contradição, a prova mais


peremptória, aquela que esclarece, convence e satisfaz,
no mais alto grau, a consciência do Juiz: omnium
probationum maxima” (Cons. Vicente Alves de Paula
Pessoa, Código do Processo Criminal, 1882, p. 157).
362

4. Ainda que próprio do homem o anseio de liberdade


— “Sempre a liberdade… Algo haverá mais importante do que
ela? Tenho para mim que dela depende a definição do homem”
(Goffredo Telles Junior, A Folha Dobrada, 1999, p. 321) —
, a fuga do condenado constitui violação de dever inerente
a seu estado e falta disciplinar grave.
O detento que — deitando a barra mais longe —
destruir o patrimônio público, mesmo que sob color de
alcançar a amplidão da liberdade, esse comete o crime
previsto no art. 163, nº III, do Código Penal (dano
qualificado).
Damásio E. de Jesus, penalista de grande suposição,
discorreu do ponto nesta substância:

“O elemento subjetivo do tipo do crime de dano é


simplesmente o dolo, vontade de destruir, inutilizar ou
deteriorar coisa alheia. O tipo não exige qualquer outro
elemento subjetivo ulterior. Assim, responde por dano
qualificado o preso que danifica cela a fim de fugir, uma
vez que o motivo tendente à fuga não exclui o elemento
subjetivo próprio do crime. Dizer que o preso não comete
crime porque não tem a intenção específica de causar
prejuízo ao patrimônio público não é correto. Se o preso tem
vontade e consciência de destruir ou inutilizar a grade que o
prende, tem claramente vontade de causar dano, e, em face
disso, de prejudicar. O fim, que é alcançar a liberdade, não
tem força de excluir o elemento subjetivo próprio do delito
qualificado” (Código Penal Anotado, 8a. ed., p. 548).
363

O Colendo Supremo Tribunal Federal, em ven.


aresto cuja ementa vai a seguir transcrita, proclamou que:

“Responde por dano qualificado o preso que danifica cela a


fim de fugir, uma vez que o motivo tendente à fuga não
exclui o elemento subjetivo próprio do crime.
Se o preso tem vontade e consciência de destruir ou
inutilizar a grade que o prende, tem claramente vontade de
causar dano e, em face disso, de prejudicar. O fim, que é
alcançar a liberdade, não tem força de excluir o elemento
subjetivo próprio do delito qualificado” (Rev. Tribs., vol.
731, p. 514; rel. Min. Carlos Velloso).

Pelo mesmo estalão tem decidido este Colendo


Tribunal:

“Responde pelo crime de dano qualificado o preso que


danifica a cela na tentativa de fuga, pois o elemento
subjetivo desse delito que é o dolo não fica excluído pela
alegação de que a evasão tem o fim de alcançar a liberdade”
(Rev. Tribs., vol. 755, p. 661; rel. Devienne Ferraz).

As penas foram fixadas segundo legal e justa craveira,


alguma coisa acima do mínimo, por se tratar de infrator
de quatro costados, cuja folha de antecedentes o não
recomenda a menções honrosas.
Conquanto reincidente, o regime prisional pode ser
o intermediário, havendo consideração à quantidade e
espécie de pena (9 meses de detenção).
364

A reincidência, quanta é de si mesma, não obriga


à fixação do regime de extrema severidade:

“O disposto no art. 33, § 2º, a e c, do Cód. Penal, impõe o


regime inicial fechado ao réu reincidente. Há, porém, que se
atender às particularidades do caso, sob pena de ofensa ao
princípio da individualização da pena.
É fundamental observar os requisitos objetivos e
subjetivos, mesmo quando se tratar de reincidência. Não
há por que dar ao réu que não demonstra possuir grau de
culpa intensa, cuja personalidade e conduta não revelam
traços de periculosidade ou temerabilidade social, o mesmo
tratamento dado a quem é participante de criminalidade
de alta periculosidade” (STJ; REsp. nº 196.940-DF; 6a.
Turma; j. 20.4.99, v.u.; DJU 17.5.99, p. 263).

5. Pelo exposto, dou provimento parcial ao recurso para


fixar ao apelante o regime semiaberto, mantida no mais a
r. sentença de Primeira Instância.

São Paulo, 12 de setembro de 2000


Carlos Biasotti
Relator
365

(Foto 1: Estátua de Borba Gato)

(Foto 2: Prédio do Ministério da Agricultura)


366

Notas

(1) Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 622; Editora Saraiva.


(2) “Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou
monumento urbano” (art. 65 da Lei nº 9.605/98: Lei do
Meio Ambiente).
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
34. Presunção de Inocência

I. À guisa de introdução

É princípio de direito, exaltado à categoria de dogma


constitucional, esse da presunção de inocência do acusado,
“princípio de eterna justiça”, na eloquente expressão de
Carrara(1).
Consagrado na Declaração Universal dos Direitos do
Homem, da ONU, em 1948, e na de Virgínia (1776), a
Constituição Federal de 1988 transladou-o no inciso LVII
de seu art. 5º: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito
em julgado de sentença penal condenatória”.
Somente o selo da “res judicata” (coisa julgada) pode,
com efeito, imprimir na fronte do réu o estigma de
culpado.
Muitas graças se deem, pois, ao legislador constituinte,
que incorporou à Carta Magna de 1988 a sabedoria do
postulado, segundo o qual toda pessoa acusada de crime
tem o direito de haver-se por inocente enquanto não
liquidada sua culpa em processo regular.
Corre, é verdade, inteligência em contrário, que
admite a presunção de inocência desde que se não
confirme, pela instância recursal, a sentença condenatória;
porque daí avante prevaleceria a regra da presunção de
culpabilidade.
A exegese porém que, de presente, passa por
triunfante é a que nos supeditou o Supremo Tribunal
368

Federal, no julgamento do Agravo Regimental nº 964.246-SP,


cuja conclusão tem esta substância:
“(…) a reafirmação da atual jurisprudência desta Corte,
fixando, para efeitos de repercussão geral, a tese de que a execução
provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau
recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário,
não compromete o princípio da presunção de inocência afirmado
pelo art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal”(2).

II. Presunção: acepções do termo

Empregado amiúde na terminologia jurídica, o


vocábulo presunção — conforme De Plácido e Silva —
exprime “a dedução, a conclusão ou a consequência, que se tira
de um fato conhecido, para se admitir como certa, verdadeira e
provada a existência de um fato desconhecido ou duvidoso”(3).
De três ordens são as presunções: 1. de direito
(“praesumptiones juris”); 2. de fato (“praesumptiones facti”) e
3. do homem (“praesumptiones hominis”). As de direito
(ou jurídicas) são as presunções estabelecidas por lei.
Dividem-se em absolutas (ou presunções “juris et de jure”) e
em relativas, condicionais ou presunções “juris tantum”).
A presunção de fato (ou comum) é a “deduzida da
natureza de certos fatos que demonstram a veracidade de outro”.
A presunção do homem é “a consequência que ele próprio tirou de
um fato conhecido para demonstrar outro desconhecido ou
duvidoso”.
369

Na linguagem do foro, as presunções de fato e do homem


entendem-se propriamente por indícios. O que sejam estes,
enfaticamente o define o art. 239 do Código de Processo Penal:
“Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que,
tendo relação com o fato, autoriza, por indução, concluir-se a
existência de outra ou outras circunstâncias”(4).
A presunção “juris tantum” — denominada também
condicional, relativa ou simples — prevalece até que se
demonstre o contrário. (A voz latina “tantum” significa tão
somente).
“Presunção juris et de jure” (de direito e por direito),
instituída por lei como verdade, não admite prova em
contrário. É a presunção absoluta. Eis sua fórmula em
latim: “Praesumptio juris et de jure probationem in contrarium
non admittit”. Exemplo típico de “presunção absoluta ou juris
et de jure” traz o art. 1.597 do Código Civil: “Presumem-se
concebidos na constância do casamento os filhos nascidos 180
(cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a
convivência conjugal”.

III. Presunção: jurisprudência, máximas e


aforismos

Extenso e variado é o número de prolóquios e


expressões que respeitam às ideias de presunção, inocência,
dúvida, certeza, absolvição, etc. Deles vai aqui abreviado rol:
1. “Praesumptio cedit veritati”. A presunção cede à
verdade.
370

2. “Quivis praesumitur bonus, donec probetur malus”. Todo


indivíduo se presume bom enquanto não se prove
que é mau.
3. “Não perder de vista a presunção de inocência comum a
todos os réus, enquanto não liquidada a prova e
reconhecido o delito” (Rui Barbosa, Oração aos Moços,
1a. ed., p. 42).
4. “Enquanto a acusação não prova, presume-se a inocência
do acusado. Sobre isto não há contestação em escola
alguma” (Rui Barbosa, Obras Completas, vol. XXVIII,
t. I, p. 197).
5. “O crime é a presunção juris et de jure, a presunção contra
a qual não se tolera defesa, nas sociedades oprimidas e
acovardadas. Nas sociedades regidas segundo a lei a
presunção é, ao revés, a de inocência” (Rui Barbosa,
Obras Completas, vol. XXIV, t. III, p. 87).
6. “A acusação é apenas um infortúnio, enquanto não
verificada pela prova. Daí esse prolóquio sublime, com que
a magistratura orna os seus brasões, desde que a justiça
criminal deixou de ser a arte de perder inocentes: Res sacra
reus. O acusado é uma entidade sagrada” (Rui Barbosa,
Obras Completas, vol. XIX, t. III, p. 113).
7. “Nemo innocens si accusare sufficit”. Ninguém seria
inocente se bastasse acusar.
8. “Nenhuma presunção, por mais veemente que seja, dará
motivo para imposição de pena” (art. 36 do Cód.
Criminal do Império do Brasil).
371

9. “A verossimilhança, por maior que seja, não é jamais a


verdade ou a certeza, e somente esta autoriza uma sentença
condenatória. Condenar um possível delinquente é
condenar um possível inocente” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1981, vol. V, p. 61).
10. “Ainda que sejas casta como o gelo e pura como a neve, não
escaparás à calúnia” (William Shakespeare, Hamlet,
Príncipe da Dinamarca, p. 83; trad. Carlos Alberto
Nunes).
11. “Facile est opprimere innocentem”. É fácil oprimir o
inocente (Fedro, Fábulas, liv. I, 1).
12. Só os inocentes podem ser acusados de tudo.
13. A inocência não vê a serpente debaixo das flores.
14. Todo ato criminoso é passível de repúdio, mas
cumpre atender também ao preceito do art. 5º, nº
LVII, da Constituição Federal: “Ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória”.
15. Em obséquio ao princípio da presunção de não-
-culpabilidade, que, entre nós, tem a consagração de
garantia constitucional (art. 5º, nº LVII, da Const. da
República), processos em curso não se consideram
maus antecedentes porque, ao fim, o réu poderá ser
absolvido.
372

16. Embora o princípio da presunção de inocência tenha


sido exaltado à categoria de dogma constitucional
(art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.), não há postergar os
direitos e interesses da sociedade, entre os quais
figura o de exigir a segregação do agente pernicioso
que pretende subverter-lhe os fundamentos e pôr em
risco a segurança de seus membros.
17. Segundo a nova ordem jurídica do País — que deu
dignidade constitucional ao princípio da presunção
de inocência (art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.) —,
é regra defender-se o réu em liberdade.
18. Em obséquio ao princípio da presunção de inocência
(art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.), e do devido processo
legal (nº LV), não é defeso à Segunda Instância
conhecer do recurso do réu, ainda que intempestivo,
se o despacho de prelibação (ou admissibilidade)
do Juízo da condenação lhe determinou o regular
processamento.
19. Contra decisão condenatória nada pode simples
protesto de inocência do réu, se em franca rebeldia
com as provas dos autos, que implacavelmente o
incriminam de roubo.
373

20. É verdade que, à luz do princípio da presunção de


inocência (art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.), ninguém
será havido na conta de culpado senão após o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Esse mandamento, contudo, não importa licença
para a concessão indiscriminada de liberdade
provisória a réu preso em flagrante; tal sucede
apenas naqueles casos em que se não achem
presentes os requisitos que autorizam a decretação
da prisão preventiva (art. 310, parág. único, do Cód.
Proc. Penal).
21. À vista da nova ordem constitucional instaurada no
País, a regra geral é que se defenda o réu em
liberdade. Consectário do princípio do estado de
inocência (art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.), só por
exceção deve o acusado responder preso ao processo.
22. Destituído de natureza formal, o crime de corrupção
de menores (art. 1º da Lei nº 2.252/54) não se
caracteriza sem a prova da inocência do sujeito
passivo, que não se presume. Só a inocência não vê a
serpente debaixo das flores!
23. Se o réu nega com veemência a imputação de
larápio, que assenta em declarações vagas e
imprecisas, tem a Justiça de respeitar-lhe o direito de
inculcar-se inocente.
24. Por simples presunção ninguém pode decair de seu
estado de inocência.
374

25. Inquestionável é a força probante dos indícios; mas,


para que autorizem edito condenatório, é mister
que, em apoio recíproco, por forma inequívoca e
concludente, incriminem o acusado, com exclusão
de toda a hipótese que o favoreça (cf. Rev. Tribs., vol.
169, p. 76).
26. É velho preceito de sabedoria que, no caso de dúvida
acerca da culpabilidade do réu, deve o Juiz
pronunciar o “non liquet” e mandá-lo em paz.
27. Do Ministério Público é o ônus de provar
suficientemente a acusação deduzida na denúncia.
Desde que o não faça, ao Magistrado cumpre julgá-la
improcedente, por amor do princípio da presunção
de inocência, que entre nós granjeou nomeada
constitucional (art. 5º, nº LVII, da Const. Fed.).
28. A perplexidade que domina e constrange o ânimo
do Julgador não há de incliná-lo senão para o
desfecho absolutório, conforme o preceito comum
de interpretação da dúvida: “In dubio pro reo”.
29. “Não pode haver condenação sem prova plena do crime e de
sua autoria. Indícios, ainda que veementes, desautorizam-
-na” (Rev. Tribs., vol. 181, p. 89).
30. Os tratadistas da prova conferem grande valor aos
indícios. Chama-lhes Mittermayer, elegantemente, as
“testemunhas mudas colocadas pelo dedo de Deus” (apud
Mário Guimarães, O Juiz e a Função Jurisdicional,
1958, p. 311). Mas só têm peso e força se vários e
concludentes.
375

31. “Um decreto condenatório deve repousar em prova certa e


segura, não o autorizando apenas indícios, presunções e
suspeitas” (JTACrSP, vol. 65, p. 241).
32. O indício pode levar à condenação, desde que
veemente. Diz-se veemente o indício que, por sua
natureza, “permite razoavelmente afastar todas as
hipóteses favoráveis ao acusado” (Camargo Aranha, Da
Prova no Processo Penal, 3a. ed., p. 169).
33. Prudente é o Juiz que absolve o réu, quando
inconclusiva, dúbia e coxa a prova; decidir o contrário
fora imolar na ara da presunção, o gravíssimo dos
pecados de quem julga.
34. “Na dúvida, deverá o Juiz recorrer ao meio ordinário e
admitir como verdadeira a versão mais favorável ao réu”
(Mittermayer, Tratado da Prova em Matéria Criminal,
1871, t. II, p. 177; trad. Alberto Antônio Soares).
35. “Confissão extrajudicial pode gerar forte presunção em
desfavor do confitente, mas não a certeza da autoria
necessária para embasar decreto condenatório” (JTACrSP,
vol. 54, p. 423).
36. “Os indícios têm força convincente, quando muitos,
concordes, concludentes. Indícios que permitem explicação
diferente apenas levantam suspeitas. Não são aptos para
conduzir à certeza” (Mário Guimarães, O Juiz e a
Função Jurisdicional, 1958, p. 311).
376

37. É princípio de doutrina, consagrado pela


jurisprudência de todos os Tribunais, que, duvidosa
a prova da autoria do fato arguido, cumpre decidir
em prol do acusado.
38. “A defesa tem direitos superiores aos da acusação, porque,
enquanto houver uma dúvida, por mínima que seja,
ninguém pode conscientemente condenar o seu semelhante”
(João Mendes Júnior, Processo Criminal Brasileiro,
4a. ed., p. 388).
39. Beneficiado pela dúvida que se afigure atendível,
tem jus o acusado à solução preconizada pelo
venerando aforismo “In dubio pro reo”.
40. “Um Tribunal não pode condenar, sem a convicção íntima
da criminalidade do réu, e se há sombra de uma dúvida,
não há certeza possível para o Juiz” (Cons. Paula Pessoa,
Código de Processo Criminal, 1882, p. 147).
41. Não basta para a condenação penal a suspeita de que
o réu cometeu crime; é mister prová-lo acima de
toda a dúvida sensata.
42. Segundo princípio de aceitação universal, não há
condenar ninguém sem prova plena e cabal de sua
culpabilidade. Alguma dúvida que a tal respeito
exista é a que basta para impor ao Juiz, por atalhar
possível erro judiciário, a pensão de pronuciar o “non
liquet” e absolver o réu.
377

43. De todas as máximas que devem inspirar o Julgador,


nenhuma se tem por mais respeitável que esta:
Condenação exige certeza. Dúvida, em Direito Penal,
é o outro nome da falta de prova.
44. Desde que os autos lhe deparem dúvida, não fará
melhor o Juiz que absolver o acusado, em obséquio
ao princípio geral, vigorante nas legislações dos
povos cultos: “In dubio pro reo”.
45. É princípio, que remonta à primeira antiguidade do
Direito, esse de que ninguém pode ser punido
por pensar (ou, na sentença clássica de Ulpiano:
“Cogitationis poenam nemo patitur”).
46. “O valor probante dos indícios e presunções, no sistema de
livre convencimento que o Código adota, é em tudo igual
ao das provas diretas”, conforme lição memorável
de José Frederico Marques (Elementos de Direito
Processual Penal, 2a. ed., vol. II, p. 378). Mas, para
que sirvam de sustentáculo a um edito condenatório,
devem ser numerosos, coesos e harmônicos.
47. Das máximas que a sabedoria cunhou para guiar os
Juízes em suas decisões é esta, sem falta, a capital:
Condenação exige certeza. Na dúvida, será força decidir
em prol do acusado, por amor do velho aforismo
“In dubio pro reo”.
48. É não só injusta mas ainda injurídica a sentença
condenatória que não se baseou na certeza da autoria
da infração penal.
378

49. Em obséquio ao princípio comum de interpretação


da dúvida e aos conselhos da prudência, é força
absolver o réu da acusação de roubo, se a vítima, cuja
palavra constitui relevante meio de prova, lhe
proclamou a inocência.
50. É princípio solenemente consagrado pela consciência
jurídica dos povos cultos que a prova para
condenação deve ser plena e incontroversa. Uma
dúvida, que se levante no espírito do Julgador, é a
que basta a recomendar a absolvição, por força do
preceito universal do “In dubio pro reo”.
51. “Julgar por livre convicção não é julgar livremente, sem
atenção à vida expressiva dos elementos comprobatórios ou
indiciários e sem consulta à realidade dos fatos” (STF; RE
nº 8.232; rel. Min. Orosimbo Nonato; DJU 15.12.49,
p. 4.289).
52. Em caso de dúvida, só a absolvição exprime o bom
direito e a realização a justiça.
53. Se frágil a prova da autoria do crime, cumpre ao Juiz
absolver o réu, num tributo ao cânon venerável de
interpretação da dúvida: “In dubio pro reo”.
54. “E deve, para haver condenação nos crimes, ser a prova
mais clara que a luz do meio-dia” (Alexandre Caetano
Gomes, Manual Prático Judicial, 1820, p. 247).
55. Para justificar decreto absolutório basta a dúvida
razoável, pois que esta, como a pedra que tomba do
rochedo e muda o curso do rio, é apta a desviar da
cabeça do réu o gládio inflamado da Justiça Penal.
379

56. A precariedade da prova, fonte natural de dúvida no


espírito do Juiz, deve ser interpretada em prol do
réu, à luz do preceito de alcance universal: “In dubio
pro reo”.
57. Dúvida, em Direito Penal, equivale a ausência de
prova.
58. Desde que nos autos triunfe dúvida invencível
acerca da culpabilidade do acusado, será força
absolvê-lo por amor do princípio de nomeada
universal “In dubio pro reo”.
59. Embora direito que a Constituição da República
reconhece a todo o acusado (art. 5º, nº LXIII), ficar
em silêncio perante injusto acusador passa por
prodígio de tal ordem, que a experiência vulgar o
tem reputado irmão gêmeo da culpa (“Qui tacet,
consentire videtur”).
60. Entre os princípios que informam o processo penal
sobreleva o de que somente a certeza é base legítima
de condenação. Na dúvida, ou falta de prova da
autoria, o único desfecho admissível para o feito-
-crime é a absolvição do réu, em obséquio à regra
jurídica de cunho universal: “In dubio pro reo”.
61. Se a prova dos autos não lhe permite abraçar, com
segurança e motivação lógica, a proposta acusatória,
deve o Juiz inclinar-se, prudentemente, à solução
que favorecer o réu.
380

62. Na dúvida, o Julgador deve decidir conforme o


estalão da prudência (o qual, unicamente, o guardará
das insídias do erro judiciário) e absolver o réu.
63. No comum sentir dos doutores, não há condenar
(ainda o pior facínora) sem prova plena e
incontroversa da materialidade da infração penal
e de sua autoria.
64. Isto de condenação exige prova plena e cabal, assim
da autoria como da materialidade do fato e da
culpabilidade do agente. A dúvida, segundo
princípio universalmente recebido, fala em benefício
do réu: “In dubio pro reo”.
65. “No processo acusatório, o Juiz só tem a decidir qual das
alegações é bem fundada: se as do acusador, se as do
acusado; e não provando o primeiro plenamente as suas, a
absolvição é a consequência incontestável” (Mittermayer,
Tratado da Prova em Matéria Criminal, 1871, t. II,
p. 285; trad. Alberto Antônio Soares).
66. “Se o réu nega o que a testemunha afirma, nada há de certo
e a Justiça tem o dever de respeitar o direito de cada um de
considerar-se inocente” (cf. César Beccaria, Dos Delitos e
das Penas, § VIII).
67. Ao absolvê-lo por falta de prova, o Magistrado como
que dá seu testemunho a favor do réu, de tal arte
que a absolvição já não se ampara unicamente em
argumento lógico, mas na própria força moral do
julgado.
381

68. No Direito Penal, em pontos de dúvida, prevalece o


prolóquio sublime inscrito nos emblemas da Justiça
Criminal: “In dubio pro reo”.
69. “À Acusação é que incumbe provar todas as condições que a
lei exige para a incriminação do fato arguido” (Inocêncio
Borges da Rosa, Processo Penal Brasileiro, vol. I,
p. 415).
70. É doutrina de alçada universal que apenas a certeza
da autoria do crime permite a condenação do réu.
Dúvida, em Direito Penal, outra coisa não é
que ausência de prova, o que impede solução
condenatória.
71. Mais que simples referência à materialidade da
infração penal, importa que a prova reunida na
instrução evidencie a culpabilidade do acusado. Em
isto faltando, será imperioso absolvê-lo, por amor
daquele princípio comum de interpretação da
dúvida, recebido por todas as civilizações que se
regem segundo a Lei e o Direito: “In dubio pro reo”.
72. Sem prova plena e cabal de sua culpabilidade não há
condenar o acusado, ainda que o pior dos facínoras.
73. Em bom direito, é ponto vitorioso que, sem a certeza
da materialidade e da autoria da infração penal,
ninguém pode ser condenado. Esta é a regra de ouro
de todo o julgador.
74. É princípio fundamental em Direito que, se o autor
não prova, absolve-se o réu (“Actore non probante, reus
absolvitur”).
382

75. Na falta de comprovação da conduta criminosa do


réu, será força absolvê-lo em homenagem ao
preceito comum de interpretação da dúvida (art. 386,
nº VII, do Cód. Proc. Penal).
76. Pelas consequências graves que sói acarretar ao
indivíduo, uma condenação apenas se decreta em
face da certeza de que é culpado.
77. Se a prova dos autos não desfaz a dúvida quanto à
culpabilidade do agente, será bem que o Juiz o
absolva, por amor do princípio de curso universal:
“In dubio pro reo”. Mais que probabilidade da autoria
do crime, a condenação reclama certeza, que é sua
única base legítima.
78. Se precária a prova da autoria do furto imputado a
surdo-mudo, será força que o Juiz pronuncie o “non
liquet” e o absolva. Já assinalado pela mão de Deus,
seria impiedade, mais que injustiça, acrescentar-lhe
o infortúnio.
79. “Amparando os mais fracos, não fazemos favor senão
justiça” (Teodomiro Dias; apud Odilon da Costa
Manso, Letras Jurídicas, 1971, p. 111).
80. Se o conjunto probatório enseja dúvida acerca da
imputação do elemento subjetivo do tipo, o desfecho
mais consentâneo com as regras do Direito é
pronunciar o Juiz o “non liquet” e mandar o réu em
paz.
383

81. Se da prova dos autos é possível extrair duas


conclusões lógicas, deve o Juiz preferir a que
favorece o acusado, em razão do princípio geral de
interpretação da dúvida: “In dubio pro reo”.
82. Mais de um caso têm recenseado os anais forenses de
decisões que, louvando-se em meros indícios, foram
motivo e ocasião de deploráveis erros judiciários.
83. Na dúvida, a máxima de jurisprudência “In dubio pro
reo” é o farol que deve guiar o Juiz na decisão da
causa, sob pena de cair em erro grave (art. 386,
nº VII, do Cód. Proc. Penal).
84. Por prevenir injustiças, a sabedoria das nações
confiou à eternidade do bronze e à prudência dos
julgadores o clássico preceito: “In dubio pro reo”.
85. Muito para meditadas são estas palavras do velho
Min. Cândido Lobo: “Só condeno por prova que me
deixe a consciência tranquila” (apud Heleno Cláudio
Fragoso, Jurisprudência Criminal, 1973, vol. II, p.
469).
86. Se os autos deparam ao Juiz indícios da
culpabilidade do réu, sem no entanto afastar-lhe
de todo a possibilidade de inocência, é caso de
absolvição, em obséquio ao venerando princípio que
informa os processos criminais: “In dubio pro reo”.
384

87. A codenação, ainda que de indivíduo de sombria


nomeada nas expansões da criminalidade, requer
prova plena e cabal da existência do fato e certeza de
sua autoria. Neste ponto, deve o Juiz timbrar de
escrúpulos, não venha a condenar alguém com base
em vagos e remotos indícios, fonte de clamorosos
erros judiciários.
88. É princípio geralmente recebido que apenas a
certeza autoriza a condenação do réu. Em caso de
dúvida — presente, por força, no processo-crime
onde o réu nega o que a vítima afirma —, a solução
mais prudente será a que o absolver por insuficiência
de prova (art. 386, nº VII, do Cód. Proc. Penal).
89. A integração do tipo do art. 173 do Cód. Penal (abuso
de incapazes) requer prova boa da falta de higidez
mental da vítima, poderosa a incapacitá-la para
deliberar segundo as leis da razão. Do contrário,
justifica-se a absolvição do réu à luz do princípio
tutelar da inocência: “In dubio pro reo”.
90. “No processo criminal, máxime para condenar, tudo deve
ser claro como a luz, certo como a evidência, positivo como
qualquer expressão algébrica” (Rev. Tribs., vol. 619,
p. 267).
91. Mais que meras conjecturas acerca da culpabilidade
do acusado, são necessárias, para sua condenação,
provas tão claras como a luz meridiana: “(…)
probationes luce meridiana clariores” (cf. Giovanni
Brichetti, L’Evidenza nel Diritto Processuale Penale,
1950, p. 111).
385

92. “O que se passa no foro íntimo de uma pessoa não é dos


domínios do Direito Penal. Persiste ainda hoje a máxima
de Ulpiano: Cogitationis poenam nemo patitur. Ou,
como falam os italianos: Pensiero non paga gabella
(o pensamento não paga imposto ou direito). Em intenção
todos podem cometer crimes” (E. Magalhães Noronha,
Direito Penal, 1963, vol. I, p. 154).
93. “Dúvida, in poenalibus, deve ser decidida pro libertate”
(Nélson Hungria; apud J. Didier Filho, Direito Penal
Aplicado, 1957, p. 8).
94. Na dúvida se o acusado é traficante ou usuário de
droga, deve prevalecer a hipótese mais favorável do
art. 28 da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Tóxicos), em
atenção ao princípio “In dubio pro reo”, que preside
soberanamente as deciões da Justiça Criminal.
95. Ainda que, ao aviso de Malatesta, o espírito humano,
limitado em suas percepções, não alcance a verdade,
nas mais das vezes, senão por via indireta — “Lo
spirito umano, limitato nelle sue percezioni, non arriva il
più spesso, alla verità che per via indiretta” (La Logica
delle Prove in Criminale, 1895, vol. I, p. 43) —, não
parece de bom exemplo suprir pela força do
raciocínio a lacuna da prova.
96. “Sêneca, que viveu e floresceu três séculos antes de Cristo,
deixou, entre outros, este pensamento admirável: julgar
alguém sem ouvi-lo, é fazer-lhe injustiça, ainda que a
sentença seja justa” (Vicente de Azevedo, Curso de
Direito Judiciário Penal, 1958, vol. I, p. 93).
386

97. “Os indícios não têm a necessária consistência e força


persuasiva da verdadeira prova, pelo que não bastam para
justificar qualquer sentença condenatória” (Auto Fortes,
Questões Criminais, 1a. ed., p. 123).
98. A biografia social do indivíduo, ainda que
verdadeiro sudário de crimes, não basta para
imprimir-lhe na fronte o estigma de culpado; para
sua punição faz-se mister prova maior de toda a
dúvida.
99. É lei de todos os tempos que condenação exige
certeza. Dúvida, em questões criminais, interpreta-se
por falta de prova, o que impede condenação.
Sentença que absolve o réu, porque frágil e precária
a prova, é desfecho razoável para a causa e lance de
prudência humana, apanágio de todo julgador (art.
386, nº VII, do Cód. Proc. Penal).
100. “Na interpretação das leis, mais importante do que o
rigor da lógica racional é o entendimento razoável dos
preceitos, porque o que se espera inferir das leis não é,
necessariamente, a melhor conclusão lógica, mas uma justa
e humana solução” (Goffredo Telles Junior, A Folha
Dobrada, 1999, p. 163).

Notas

(1) Apud Pedro Paulo Filho, Grandes Advogados, Grandes


Julgamentos, 4a. ed., p. 218).
387

(2) STF; ARE nº 964.246-SP; Plenário; rel. Min. Teori


Zavascki; j. 11.11.2016; m.v.
(3) Vocabulário Jurídico, 3a. ed., t. III; v. presunção; Editora
Forense. Foi a seu autor, já reputado clássico — Oscar
Joseph De Plácido e Silva (1892-1963) — que tomei
por guia e referência, elaborando este singelo artigo. À
licença de citá-lo em plenitude somei a ousadia de
transcrever-lhe, “ipsis litteris virgulisque”, vários passos de
sua inestimável obra. Nem saberia, tratando-se de
conceitos e definições, escusar termos próprios e
lapidares em favor de outros, que os haveria decerto no
cabedal da língua, porém imprecisos e equívocos.
Foi-me forçoso, por isso, recorrer servilmente à lição
do egrégio vocabulista. Em todo o caso, dei curso à
prática vulgar, inspirada na metáfora da abelha, que
recolhe, nos luxuriantes jardins, a matéria-prima com
que irá deleitar o gosto a terceiros. É o que lhe quisera
oferecer, amável leitor!
(4) Nisto de indício (falho, porém) depara-nos a literatura
amostra frisante: O Caso do Padeirinho de Veneza.
Refere-o, em livro notável assim pela substância como
pela forma, o eminente Des. João Martins de Oliveira,
do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
“Em 1507, pela madrugada, foi assassinado um homem em
Veneza e seu cadáver estava na rua. Passando pelo local, o
moço Pedro Faciol, modesto padeiro, viu o corpo e ficou a
admirar o punhal manchado de sangue. A arma era rica.
Apoderou-se dela e ia retirar-se, quando soldados que se
388

aproximavam e o viram inclinado junto ao cadáver o


perseguiram e prenderam, encontrando o instrumento do
crime em seu poder. À vista do flagrante, foi submetido a
tormento, confessou o assassinato e foi enforcado a 22 de
março de 1507. Descobriu-se, depois, o verdadeiro autor do
crime. Diz-se que, por causa deste erro, a administração local
mandou escrever, em tinta vermelha, na parede da sala
dos julgamentos, a frase: Ricordatevi del povero fornaio
(Recordai-vos do pobre padeiro), e estas palavras eram
repetidas, em voz alta, por um funcionário, antes dos
pronunciamentos dos julgadores” (Revisão Criminal, 1a. ed.,
p. 45; Sugestões Literárias S.A.; São Paulo). Ainda:
Giuseppe Fumagalli, Chi l’ha detto?, 1994, p. 170;
Editore Ulrico Hoepli; Milano.
35. Da Exclusão da Ilicitude do
Jogo do Bicho
I – Da arca preciosa onde os romanos guardaram para
a posteridade as noções fundamentais do Direito
desentranha-se amiúde o aforismo “de minimis non curat
praetor”, o que, posto em linguagem, quer dizer: o pretor
não se ocupa com questões insignificantes. Não só o
pretor, nome por que na Roma antiga se conheciam os
magistrados, também os membros do Ministério Público e
os advogados caem sob a jurisdição do sobredito preceito: é
de péssimo exemplo fazer caso e cabedal de ninharia; não
há dar peso à fumaça!
Daqui por que promotores de justiça, firmes naquele
brocardo, têm levantado mão da ação penal nos casos de
pequenas infrações. De todos os dias são, com efeito, os
casos de arquivamento de inquéritos policiais por não
constituir o fato neles apurado violação grave da ordem
jurídica. Além de que, na aplicação da lei, deverá o juiz
atender aos fins sociais a que ela se dirige (art. 5º da Lei de
Introdução ao Código Civil). Não estranha, pois, que certas
ações humanas, suposto antijurídicas, fiquem ao abrigo da
sanção penal.
São mais que muitos os casos em que, embora
denunciado por crime, o agente logra afinal absolvição, sob
a cor de que seu ato careceu de relevância jurídico-penal.
Contam-se nesse número os de furto de coisas sem valor
econômico. Dois jovens, embriagados, subtraíram cinco
patos. Absolveu-os o tribunal: ou porque destituídas de
390

valor econômico as aves, ou porque obraram os mancebos


“jocandi animo”, por mero brinco ou facécia(1). Outro tanto
em relação ao indivíduo que furtara um talonário de
cheques. Foi absolvido à conta da ausência de dano
patrimonial(2). Pelo mesmo teor e com idêntica motivação,
prudentes delegados de polícia tratam, além dos cancelos
de seus próprios distritos policiais, a prática do “pendura”,
com que galhofeiros acadêmicos de direito, fiéis à tradição
e ao espírito das Arcadas, comemoram anualmente, no dia
11 de agosto, com expansões de jovialidade, a criação dos
cursos jurídicos no Brasil.
Também nas desinteligências ou brigas de casal têm
os juízes temperado com a equidade o rigor da lei. Sujeitos
pelo comum de raro aviso, sempre lhes pareceu que menor
gravame acarretará a impunidade das partes desavindas do
que sua condenação, esta sim fator certíssimo de perpétua
discórdia e porventura de quebra definitiva dos laços
conjugais. Muito ao propósito escreveu Moura Bittencourt:
“A letra da lei torce o nariz a semelhantes facilidades; mas
seu espírito não omite um olhar de aplauso aos que, bem
intencionados, procuram a harmonia comum, que principia pela
paz nas famílias”(3).

II – Nos meios jurídico suscitou fervorosas e aturadas


controvérsias a atitude de ilustre promotor de justiça do
Fórum Regional de Pinheiros, que, sistematicamente,
requeria o arquivamento de inquéritos policiais relacionados
com o jogo do bicho (art. 58 da Lei das Contravenções Penais).
391

A razão de seu proceder foi Sua Excelência mesmo


quem no-la deu: não lhe parecia bem trazer à barra da
Justiça rústicos e inexpressivos contraventores, quando o
próprio Estado se prestava a patrocinar, explorar e
incentivar a prática dos jogos de azar. Por outro lado,
passava por cruel paradoxo meter entre ferros a míseros
vendedores ou intermediários do jogo do bicho,
ao passo que tantos arquidelinquentes ficavam livres e
impunes, como eram os que sangram a bolsa popular e
malversam com descomunal desfaçatez o erário público!
À derradeira, ainda que corresponda a um tipo legal,
não constitui crime o fato que é por si incapaz de
quebrantar a ordem jurídica.
Examinada de sobremão e com ânimo estreme de
exacerbado e intolerável dogmatismo jurídico, não se pode
recusar à argumentação do promotor Pedro Falabella
Tavares de Lima — que é este o nome do intrépido
paladino da “abolitio delicti” em relação ao jogo do bicho —
grande lucidez e força persuasiva.

III – No conceito objetivo de crime distinguem os


penalistas, sem discrepar, “o seu caráter danoso ou, pelo menos,
perigoso”(4).
Ora, a contravenção (que se denomina também
delito-anão por amor de sua pequenez em comparação do
crime) é em si mesma inocente, visto não causa dano;
reprime-se contudo, não venha a criar perigo para a
sociedade.
392

Ofensas menores ao preceito legal, são as contravenções


“condutas mais potenciais que reais; mais perigosas que realmente
lesivas aos interesses”(5).
Delas, uma existe (o jogo do bicho) que se não pode
hoje arguir de prática ilícita sem que juntamente se esteja a
sacrificar na ara da arqueologia jurídica.
Tal contravenção, deveras, muito há perdeu seu
cunho de lesividade e sua carga de reprovabilidade
eticossocial.
Para o que decisivamente contribuíram o desuso e
esse a que Hobbes chamou leviatã (ou monstro): o Estado.
Bem que, falando pela via ordinária, não seja
admitido o desuso (ou costume “contra legem”) como forma
revogadora de normas penais, casos existem em que assim
opera. É que nada se subtrai à jurisdição e às injúrias do
tempo. “Também a lei penal nasce, vive e morre”(6).
Mas, quer se atribua à força do costume, quer se
considere “exercício regular de um direito, que pode também
ter base consuetudinária”(7), o que não entra em dúvida é que
normas incriminadoras tornam-se muita vez inaplicáveis.
O mesmo tempo e as mutações sociais (que a vida é
movimento) são os que lhes decretam a caducidade. Uma
vez abatido o estrépito social que timbra de ilícito o fato, já
não tem lugar a punição do agente.
Disto é exemplo, sobre todos notável, o prosaico jogo
do bicho, que, na expressão de venerando acórdão do
Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, “tornou-se
pequena, popular e folclórica contravenção impunível”(8).
393

Sua indisputável inidoneidade para pôr em risco o


organismo social expungiu-o de toda a ilicitude.
Ainda (e aqui o ponto): insulta a inteligência dos
doutos e semidoutos isso de o Estado punir contravenção
que ele mesmo pratica debaixo das denominações de
Loteria Federal, Loteria Esportiva, Loteria de Números
(Loto e Sena), com uma diferença, que nos jogos
oficializados as combinações de números e a quantidade
dos que se exigem para o prêmio submetem os apostadores
a uma situação nitidamente mais desvantajosa que o jogo
do pobre (bicho).
Antes que uma pedra de escândalo, a atuação arrojada
e sincera daquele membro do Ministério Público refletia o
sentimento comum dos homens de nossa idade e não tem
menos fiador que vigoroso aresto do Tribunal de Alçada
Criminal de São Paulo, relatado pelo juiz Luiz Pantaleão.
Respeito ao jogo do bicho, proferiu a citada Corte de
Justiça e luminária conspícua de jurisprudência pátria estas
formais palavras, merecedoras de se imprimirem em
bronze: “Não basta, por outro lado, que a lei fixe a previsão
contravencional. É preciso mais. Necessário que exista um
supedâneo de ordem ética e moral a dar conteúdo jurídico e
coercibilidade à norma penal. Sem tal alicerce, a regra não passa
de uma ficção, de uma incomensurável hipocrisia imposta à
sociedade. Não tem fundamento legítimo. O Estado existe como
projeção da vontade nacional; esta representa o sentimento
popular. Se o Estado promove, autoriza e incentiva as mais
diversas modalidades de jogo de azar, pouco se importando com
394

as consequências deletérias sobre a economia dos cidadãos,


acoroçoando o sonho de uma premiação que venha afastar o
espectro da penúria ditada por uma inflação calamitosa e
incontrolada, não pode pleitear a punição de quem age a seu
exemplo. Os fins do Estado não podem justificar os meios que
impliquem a derrogação da própria ordem jurídica, pinçando-se,
em meio a uma verdadeira multidão de praticantes do jogo do
bicho, agindo a seu próprio modelo de atuação, este ou aquele
homem, para que se imponha reprimenda. O Poder Judiciário
não é discriminatório, nem estabelece privilégios, nem referenda
meras ficções legais”(9).
Argumentos são esses que triunfam pela força da
evidência e instam conosco para que não oneremos a
Justiça Criminal, empenhada já na solução de gravibundos
problemas, com uma bagatela retumbante, de que não
deve curar o pretor: o jogo do bicho.

Notas

(1) Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo,


vol. 60, p. 298.
(2) Revista dos Tribunais, vol. 523, p. 357.
(3) Vítima, 1a. ed., p. 74.
(4) Basileu Garcia, Instituições de Direito Penal, 1975;
vol. I, t. I, p. 193.
(5) Valdir Sznick, Contravenções Penais, 1987, p. 3.
395

(6) Giuseppe Bettiol, Direito Penal, 1977, vol. I, p. 173;


trad. Paulo José da Costa Jr. e Alberto Silva Franco.
(7) José Frederico Marques, Curso de Direito Penal, 1954,
vol. I, p. 173.
(8) Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo,
vol. 82, p. 240.
(9) Idem, vol. 85, p. 326.
36. Carta para Migalhas sobre uma
Questiúncula Gramatical:
“Subsume” ou “Subsome” ?

São Paulo, 24 de fevereiro de 2017

Senhor Diretor:

I. Atraído pela excelência do debate suscitado por


dúvida de um leitor de Migalhas — a forma correta qual
seria: “Subsume ou Subsome?” —, cuja resposta saiu à luz
em 2.2.2017, na página virtual Gramaticalhas, sob os
auspícios de José Maria da Costa, insigne jurista e mestre
em linguagem, peço vênia para, terceiro de boa-fé e
interessado, aduzir breves razões acerca do ponto
controverso.
Faço-o também num como preito de gratidão e
homenagem àquele benemérito cultor e paladino das boas
letras, com quem contraímos (os que lidamos na esfera
judicial) dívida insolúvel, bem que imprescritível.
A substância da questão que pareceu inquietar o
espírito do aplicado consulente era se, de par com subsume,
tinha foros de cidade na língua portuguesa o emprego de
“subsome”, como forma verbal de subsumir, na terceira
pessoa do singular do presente do indicativo.
398

A lição do abalizado Professor — que se ocupara já


do tema em sua prestantíssima obra Manual de Redação
Profissional (3a. ed., p. 1151; Millennium Editora) —
desatou pontualmente a dúvida. Advertiu, contudo, que,
no tocante à conjugação do verbo subsumir, não se
encontravam “grandes subsídios”.
Não há que dizer contra a exação deste asserto: com
efeito, salvo engano (de que me dou pressa a pedir
escusas), nenhum gramático, lexicógrafo ou filólogo de
inconcussa nomeada ainda tratara “ex professo”, entre nós,
a flexão do aludido verbo.
A tese, que pretende justificar a forma “subsome” por
semelhança com o verbo sumir (que faz some na 3a. pessoa
do singular do presente do indicativo), carece, ao parecer,
de bom fundamento nos padrões da vernaculidade.
Deveras, dificilmente alguém, mesmo após ter
percorrido de espaço a literatura jurídica, terá acertado
com um só lugar onde a forma vicária “subsome” aparecesse
na acepção em que o estilo do foro emprega o verbo
subsumir: “enquadrar um fato na lei, gênero ou espécie” (cf. Leib
Soibelman, A Enciclopédia do Advogado, 3a. ed., p. 337).
É a forma subsume a que tem aí voga desembaraçada e
prevalente. Haja vista os exemplos seguintes:

1. “Por ser típico é que o fato pode produzir efeitos


jurídico-penais. Pois não há pena sem o antecedente
da descrição legal em que se subsume a conduta
humana” (José Frederico Marques, Curso de
Direito Penal, 1956, vol. II, p. 47; Edição Saraiva;
São Paulo).
399

2. “Portanto, por exemplo, a subtração de coisa com a


simples intenção de usá-la (furto de uso) é fato
irrelevante para a nossa legislação penal, pois não se
subsume à norma penal incrimindora do art. 155”
(Damásio E. de Jesus, Codigo Penal Anotado, 18a.
ed., p. 33; Editora Saraiva; São Paulo).

3. “A adequação típica imediata ocorre quando o fato se


subsume imediatamente no modelo legal, sem a
necessidade da concorrência de qualquer outra norma
(…)” (Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de
Direito Penal, 10a. ed., vol. I, p. 324; Editora
Saraiva; São Paulo).

II. O argumento, impressionável ao primeiro aspecto, de


que subsumir devia conjugar-se pelo paradigma sumir (de
que é composto) não se mostra atendível, “data venia”. É
que nem todas as formas cognatas seguem à risca seu
modelo de conjugação. Algumas caem sob a regra geral:
consumir é composto de sumir, que lhe serve de modelo; o
que também ocorre com os verbos construir e instruir, que
derivam do mesmo radical latino (“struere”); têm, por isso,
idêntica desinência nos tempos e modos verbais: constrói,
constroem; destrói, destroem. Outras, no entanto, constituem
exceção: instrui (que provém da mesma raiz latina (“in +
struere”) discrepa daqueles cognatos na forma verbal da 3a.
pessoa (instrui e não “instrói”). Subsumir está nesse caso:
embora derivado de sumir, dele se afasta na conjugação das
terceiras pessoas do presente: subsume(m).
400

É no falar comum que está a gênese desse fenômeno


linguístico; ou, por melhor dizer, no uso, “que é o árbitro, o
senhor e o regulador único do falar” (José de Sá Nunes,
Aprendei a Língua Nacional, vol. II, p. 124).
Eis por que a ninguém lembra dizer “presome” (em vez
de presume), ou “assome” (por assume), ao empregar a 3a.
pessoa dos verbos presumir e assumir, conquanto fale e
escreva consome (3a. pessoa do presente de consumir) e
tenham esses verbos uma só e a mesma origem: “con +
sumere”, “prae + sumere” e “ad + sumere”).

III. À luz da tradicional fraseologia jurídica, da prática


reiterada do foro e da lição de acatados modelos do bom
dizer, é preferível pois a forma verbal subsume — que é
moeda boa e corrente — à outra (“subsome”), inusitada,
desnecessária e de ressaibo clandestino.
Em suma, para exprimir a ideia de adequação do fato
concreto ao paradigma legal, não andará mal-avisado
aquele que falar e escrever: que se subsume ao tipo legal.
Para aferir a tipicidade da imputação, recorrem os
mais dos penalistas à vasta sinonímia de verbos: Subsumir-se
a (ou em), aceder a, adaptar-se a, adequar-se a (*), afeiçoar-se a,
amoldar-se a, coadunar-se com, conformar-se a (ou com),
compadecer-se com, corresponder a, frisar com, enquadrar-se em,
responder a, etc.
Por não dilatar sobremodo este artiguelho, aqui faço
ponto, prezado e ilustre Diretor de Migalhas. Saúdo-o com
todas as veras e agradeço-lhe a generosa acolhida em seu
401

portal de informação e cultura. Congratulo-me também


com os milhares de leitores que se honram de frequentar
essa prestigiosa fonte de saber e comunicação.
Cordialmente,
Carlos Biasotti

Nota

(*) Sobre a flexão do verbo adequar vem a propósito o


magistério de Arnaldo Niskier: “O verbo adequar é
defectivo, só possui as formas arrizotônicas, isto é, aquelas
cujo acento tônico não recai sobre a raiz do verbo. Portanto,
não existe adequo, adequas, etc.; utilize nesses casos o
verbo adaptar ou ajustar” (Questões Práticas da Língua
Portuguesa, 1992, p. 75; Consultor; Rio de Janeiro).
37. Coisas Inúteis

1. (“Zero à esquerda”?!)

No universo das realidades, infinito é o número de


coisas que afirmam a vida e lhe abrandam os rigores e
demasias, pelo que se consideram úteis ou benéficas;
outras, aos revés, trazem em si mesmas uma como tacha de
deformidade que as desmerece e torna dispensáveis (e
talvez repugnantes, por afrontosas do siso comum).
Quando queremos dizer que algo é imprestável (e,
pois, despiciendo), costumamos juntar-lhe, para encarecer
e avivar seus atributos e notas particulares, certos termos de
comparação, deste feitio: inútil como verruga, fósforo
apagado, trem fora da linha, barata (dentro ou fora de
casa), sino sem badalo, ferramenta cega, lápis sem ponta,
etc.(1)
Nesse rol de coisas reputadas inúteis averbou o vulgo,
desde tempos imemoriais, a locução “zero à esquerda”, que
Antenor Nascentes recolheu numa de suas obras: “Ser um
zero à esquerda. Nada valer, não ter a menor importância, a
menor consideração”(2).
Onde, porém, o “zero à esquerda” (ou cifra da
mediocridade, segundo os irreverentes) irradia sua estéril
presença é no enunciado da numeração cardinal,
notadamente na representação gráfica dos dígitos (ou
números inteiros de 1 a 10), assim (“horribile dictu”!): 01,
02, 03…, etc.
404

Em verdade, é ordinário ver-se em todo lugar (placas


em vias públicas, repartições administrativas, agências
bancárias, locais de trabalho, áreas de lazer, peças de
vestuário, papéis impressos, petições forenses, calendários,
etc.) o tal símbolo excrescente:
405
406

Feriu o ponto, de forma cabal e irrespondível, o


Comendador DeRose, num interessante opúsculo em que
trata de certas mazelas da língua portuguesa. Parece bem
reproduzi-lo aqui:

“Está grassando um cacoete do zero à esquerda. Na data,


assim como em qualquer outro número, lembre-se de que zero à
esquerda não tem valor. Portanto, nada de escrever 01, 02, 03,
etc. Isso é cafona.
Se você escrever dia 03, vou querer escrever que no dia 018
de fevereiro de 02013 fiz 069 anos.
A desculpa esfarrapada de que o zero à esquerda é para
evitar confusão não convence ninguém. Uma placa com a
informação portão 03 é claramente mais confusa do que portão 3.
Tal praxe é incompreensível, pois, inclusive, sai mais caro
mandar fazer 20 ou 30 placas com um algarismo a mais, um
desnecessário zero, antes do número que se quer indicar.
E todas as vezes em que alguém colocar o zero à esquerda,
deveríamos ler em voz alta: Dia zero três, na sala zero quatro, às
zero duas horas, só para fazer gracinha!” (Falando Bonito, 2013,
p. 31; Editora Gráfica Vida & Consciência; São Paulo).

À vista de tal lição — que se firma em argumentos de


muita força e alcance, capazes de render os mais refratários
entendimentos —, persistir na prática acintosa de grafar
“zero à esquerda” seria mais do que teimosia de espírito,
porque fora também chapada estultícia (vênia!).
407

2. (“Boa noite a todos e a todas”?!)

O poder atrativo da novidade e certa perversão do


gosto, eis os responsáveis por atentarem muitas pessoas
(algumas até da primeira esfera) contra o pudor da
gramática. Exemplo frisante é o do orador que, ao proferir
sua arenga, rompe cerimonioso: “Boa noite a todos e a todas!”.
A flexão feminina “todas” mostra-se aí, evidentemente,
por demais. Com dizer todos, por sua feição de coletivo
universal, já se entende a totalidade dos ouvintes, sendo de
todo o ponto supérfluo aditar ao pronome indefinido a
forma genérica feminina.
Nem suponha algum espírito de contradição que
a falta do termo específico importava desdouro ou
menoscabo ao elemento feminino. É especioso o
argumento!
O próprio vocábulo “homem”, de per si só (e em senso
lato), máxime no plural, já presume o sexo oposto, visto
encerra a ideia de gênero humano.
Numa assembleia, quando o conferencista apregoa:
“Adianto aos senhores que serei breve”, ninguém duvida que
exultarão homens e mulheres (se as houver no recinto).
Isto é dos livros!
Advertiu, com efeito, o imperador Justiniano em
seu Digesto(3): É fora de dúvida que o termo homem
compreende assim o varão como a mulher. Donde o haver
proclamado a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de
408

10 de dezembro de 1948, em seu art. 1º: Todos os homens


nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Portanto, essa
“página mais brilhante do pensamento jurídico da Humanidade”(4)
é o paládio ou garantia suprema, simultaneamente, do
homem que da mulher!
Muita vez, o exagerado empenho do orador de
dirigir-se a cada um dos ouvintes — dando-lhes “todos” e
“todas” — sói interpretar-se menos por lance de galantaria e
urbanidade do que por ingênuo e desgracioso bordão
retórico. Evitá-lo, pois!

3. (“A poeta” Cecília Meireles?!)

Conta-se do diabo que, tanto se extremou em enfeitar


a cara do filho, que acabou por vazar-lhe um olho.
Estão nesse caso os que, para armar ao efeito, não
trepidam em remeter inconsideradamente o disco além da
meta, esquecidos de que o ótimo é inimigo do bom!
Descendo ao particular: em beleza, eufonia e acepção,
poucas palavras há, na língua portuguesa, que possam
apostar primazia com poetisa.
Não é este, porém, o vocábulo que, ao presente —
ainda mal! —, empregam alguns (ia a escrever excêntricos)
— para designar, por escrito ou verbalmente, o feminino
de poeta. Quando acerta de aludirem a Cecília Meireles,
justapõem-lhe, muito de estudo, a forma de tratamento “a
poeta” (que não a poetisa, conforme os cânones gramaticais).
409

Poetisa (falando-se de mulher) é a forma que


praticaram sempre os mais acreditados padrões da boa
linguagem:
a) “…Safo, poetisa grega (VII-VI séc. a.C.” (Pequeno
Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, 11a. ed.;
v. sáfico; Editora Civilização Brasileira S.A.; Rio de
Janeiro).
b) À filha do poeta português Tomás Ribeiro (a qual
também o era das musas) chamara-lhe Cândido de
Figueiredo, com sua reconhecida competência de
lexicógrafo e escritor de nota, “(…) Branca de Gonta, a
poetisa das Matinas” (Os Meus Serões, 1928, p. 40;
Livraria Clássica Editora; Lisboa).
c) À derradeira, como quem tem voz no capítulo, Paulo
Bomfim, O Príncipe dos Poetas Brasileiros, além de
prosador elegante e vernáculo: “Certa vez me disse
(Ruy Apocalypse) que a única pessoa que poderia fazê-lo
feliz era a poetisa Renata Pallottini” (O Caminheiro,
2001, p. 124; Editora Green Forest do Brasil; São
Paulo).
Na doutrina gramatical não se conhece discrepância:
o feminino de poeta é poetisa (cf. Eduardo Carlos Pereira,
Gramática Expositiva, 91a. ed., p. 88; Ernesto Carneiro
Ribeiro, Gramática Portuguesa, 1932, p. 70; Júlio Ribeiro,
Gramática Portuguesa, 1900, p. 87; Cândido de Oliveira,
Dicionário Gramatical, 1967, p. 525; Francisco da Silveira
Bueno, Gramática Normativa da Língua Portuguesa, 1968,
p. 166; Napoleão Mendes de Almeida, Gramática Metódica
da Língua Portuguesa, 1980, p. 104, etc.
410

A Academia Brasileira de Letras, que, por disposição


de seus Estatutos, “tem por fim a cultura da língua e da
literatura nacional” (art. 1º), assentou que o feminino de
poeta é poetisa(5).
José Maria da Costa, jurista de prol e cultor exímio
de nosso idioma, exarou: “(…) uma forma própria para o
masculino (poeta) e outra para o feminino (poetisa), não se
admitindo seu emprego como se fosse substantivo comum de dois
gêneros” (Manual de Redação Jurídica, 6a. ed., p. 570;
Migalhas; Ribeirão Preto SP).
O que fica dito autoriza esta forçosa conclusão:
atribuir à palavra poeta o caráter — que não tem — de
substantivo comum de dois gêneros e dizer “a poeta”
(em vez de poetisa) seria contravir a regra elementar de
gramática, sobre sancionar um desconchavo, que os
sujeitos avisados geralmente aborrecem e proscrevem.
Em suma: honremos, quanto em nós couber, a
memória de Cecília Meireles(6), Francisca Júlia e Colombina,
poetisas notáveis pelo estro e primor de estilo!

Notas

(1) Ao cadoz das coisas inúteis também Agrippino


Grieco deitou sua cota-parte: “Inútil como um tenor
resfriado” (Gralhas & Pavões, 1988, p. 106; Editora
Record; Rio de Janeiro).
(2) Tesouro da Fraseologia Brasileira, 1945, p. 447; Livraria
Editora Freitas Bastos; Rio de Janeiro.
411

(3) “Hominis appellatione tam foeminam quam masculum


contineri nemo dubitat” (Dig. 58,16, 152).
(4) Jayme de Altavila, Origem dos Direitos dos Povos, 4a.
ed., p. 185; Edições Melhoramentos; São Paulo.
(5) Cf. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 5a.
ed., p. 662.
(6) “Falecida em 1965, viveu sempre no Rio de Janeiro.
Professora primária, soube elevar-se aos mais altos
píncaros da poesia lírica, tornando-se a primeira poetisa
contemporânea” (Francisco da Silveira Bueno, História
da Literatura Luso-Brasileira, 6a. ed., p. 195; Edição
Saraiva; São Paulo).
38. A Prestigiosa e Altiva Acrimesp

No intento de congregar os profissionais que atuam


na esfera do Direito Penal, alguns advogados, idealistas
e de notável saber jurídico, resolveram fundar uma
associação. Do estatuto, com que lhe deram corpo e alento,
consta em caracteres indeléveis o seu fim determinado:
enobrecer a Advocacia Criminal com aprimorar a cultura
dos que a exercem, para que mais efetivamente possam
promover a defesa dos direitos e interesses dos que se
confiarem a seu patrocínio.
O precursor — e melhor diríamos apóstolo — desta
auspiciosa empresa foi, sem contradição, o advogado (em
tudo exemplar e espelho dos colegas) Paulo Sérgio Leite
Fernandes. (Trata-se de preito de justiça: o galardão a
quem o merece!).
Efeito espontâneo das ideias brilhantes e generosas, a
novel entidade atraiu para logo número copioso de sócios,
que formam hoje legião!
Como a cláusula principalíssima do pacto social
preconizava o máximo empenho no desenvolvimento e
apuração dos dotes de espírito de seus membros, entrou
a Acrimesp imediatamente a realizar cursos de revisão
acadêmica e adiantamento nas disciplinas mais úteis e caras
aos criminalistas: Direito Penal, Direito Processual Penal,
Ética Profissional, Redação Forense e Arte Oratória.
De propósito convidado, nenhum mestre ou
sumidade em tais áreas do saber humano faltou com
414

sua provecta ciência para satisfazer à curiosidade e ânsia


de conhecimentos dos advogados.
Sob todas as presidências, foi esse o regime das
atividades culturais no seio da Acrimesp.
Do biênio em que transcorreu nossa gestão (1991-
1992) — pois tivemos a honra de suceder ao preclaro e
saudoso José Parada Neto, sem o mérito de o substituir,
evidentemente — estamos em condições de poder
discretear, por maior (ressalvada eventual infração da
modéstia quando em porfia com os ditames da verdade).
No intuito de acrescentar quilates à boa formação dos
que abraçaram as carreiras jurídicas — alvo ambicioso que
a Acrimesp leva em mira —, demos execução, apoiado
sempre na entusiástica e diligente cooperação dos colegas,
a intenso programa de palestras e conferências.
Lições de ética e de escorreita doutrina, próprias da
Advocacia Criminal, revelaram o cunho especial de tais
cursos. Mais que muitos foram, deveras, os sujeitos
chamados a enriquecer, com o seu abalizado saber e
aturada prática na arte de advogar, os cabedais de espírito
dos ouvintes.
Dentre muitos, mencionamos, por amor da estreiteza
do espaço, apenas estes nomes (bastantes contudo para
depor acerca dos memoráveis dias de glória que já viveu a
Associação): Waldir Troncoso Peres, Raimundo Pascoal
Barbosa, Miguel Reale Jr., José Carlos Dias, Pedro Paulo
Filho, Ciro Vidal, Hermínio Marques Porto, Ary Belfort,
João de Scantimburgo, Prof. Napoleão Mendes de Almeida,
poeta Paulo Bomfim, etc.
415

Ainda nos lembra o magistério venerando de


Napoleão Mendes de Almeida, intrépido paladino da
língua portuguesa, que repetia com a autoridade de quem
a um tempo ensina e adverte: “Não há bom Direito em
linguagem ruim”; de Waldir Troncoso Peres, “O Príncipe
da Oratória Forense”, que encarecia aos advogados, quando
assomassem à tribuna, catassem estrita observância ao
magno preceito: “Falar sempre verdade”.
Já Raimundo Pascoal Barbosa, também conhecido
pela antonomásia de “Advogado dos Advogados”, este, ao
termo de suas frequentes palestras aos que faziam profissão
da vida forense (os quais denominava “sacerdotes de Têmis”),
recomendava lessem amiúde o juramento que prestaram ao
receber a prestigiosa carteira de advogado: “Prometo exercer
a advocacia com dignidade e independência, observando os
preceitos da ética e defendendo as prerrogativas da profissão, não
pleiteando contra o Direito, contra os bons costumes e a segurança
do País, e defendendo, com o mesmo denodo, humildes e
poderosos” (art. 64 da Lei nº 4.215, de 27.4.63).
Isto realizou a Acrimesp, assim na administração
nossa como na dos demais presidentes, cujos nomes aqui
vem a ponto enunciar (e mereciam gravados em lâminas de
ouro): Antônio A. de Almeida Toledo, Paulo Sérgio Leite
Fernandes, Laércio Laurelli, Antônio Carlos de Carvalho
Pinto, Hélio Bialski, Mário de Oliveira Filho, José Parada
Neto, Luiz Flávio Borges D’Urso, Ademar Gomes e
Vitória Nogueira.
416

Não cai em dúvida que, na gestão do Dr. Ademar


Gomes, alcançou a entidade lustre excepcional, menos pela
duração do mandato de seu titular do que pelo raro senso
e desvelo com que a soube dirigir e engrandecer
(amparando-a até com recursos próprios); proveu-lhe
também — fato mui digno de registro! — a instalação
da nova e bem aparelhada sede social, no Complexo
Judiciário “Ministro Mário Guimarães” — Fórum Criminal
da Barra Funda (Av. Dr. Abrahão Ribeiro, 313; Barra
Funda; Capital).
É justo e natural, portanto, exulte a alma dos
criminalistas na data comemorativa dos 40 anos de fundação
da Acrimesp (2.12.1980 — 2.12.2020), cujos portais
estarão permanentemente abertos para acolher aqueles que
juraram defender, sem quebra nem desalento, a Lei, o
Direito e a Liberdade. “Ad multos annos”!
39. Dívida de Alimentos e Prisão Civil

Sumário. Consequência do princípio ético da paternidade responsável,


é dever do pai sustentar sua prole. Trata-se de obrigação natural
indeclinável, cujo descumprimento sujeitará o inadimplente ao rigor da
lei — prisão civil — se não provar, “ad satiem”, que lho obstara a absoluta
falta de recursos.

I. É dever legal do pai prover ao sustento, guarda e boa


educação dos filhos menores, reza o art. 1.566, nº IV, do
Código Civil. Somente a absoluta carência de meios poderá
escusá-lo de seu estrito cumprimento (cf. art. 229 da Const.
Fed.).
A necessidade do credor e a capacidade do devedor:
eis a craveira para aferir a obrigação de prestar alimentos.
Corolário do princípio ético da paternidade responsável,
de tanto relevo e alcance é o ônus alimentício, que o
devedor inadimplente que não justifica a impossibilidade
de fazê-lo sujeita-se, de plano, ao inexorável rigor da lei:
prisão civil (art. 733, § 1º, do Cód. Proc. Civil).
Assenta em bom direito, e por isso está ao abrigo da
crítica sensata, a decisão que decreta a prisão civil do
executado, por não ter ocorrido, injustificadamente, às
necessidades alimentares dos filhos menores.
A alegação de haver constituído nova família não
serve de escusa ao alimentante para reclamar redução do
encargo, se não comprovou a total impossibilidade de
cumprir a obrigação natural indeclinável de prestar
alimentos ao filho (art. 1.699 do Cód. Civil).
418

A dar-se o caso, porém, que mudança de fortuna já


lhe não permita suprir os alimentos na totalidade de seu
valor, fica ao prudente arbítrio do Juiz reduzi-lo, pela via
revisional.
É fora de dúvida, entretanto, que constitui modalidade
de constrangimento ilegal, reparável pelo remédio do
“habeas corpus” a prisão civil do devedor que comprova não
ter condições de prestar alimentos porque de todo o ponto
falto de recursos e incapaz de atender às primeiras
necessidades das pessoas de sua obrigação.
Com efeito, “Nemo tenetur ad impossibilia”. (Em vulgar:
Ninguém está obrigado ao impossível),
Entende-se o mesmo daqueles casos em que a prisão
civil do executado é decretada como meio coercitivo de
cobrança de verba alimentícia pretérita, visto que já não
tem esta caráter alimentar nem é urgente à conservação da
vida do alimentando.

II. Essa é a doutrina comum acerca do instituto dos


alimentos, apadroada por jurisprudência homogênea e
torrencial de todos os Tribunais do País. Não discrepou
dessa orientação o Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, como o certifica o acórdão a seguir reproduzido:
419

PODER JUDICIÁRIO

T RIBUNAL DE JUSTIÇA DO E STADO DE S ÃO PAULO


Q UARTA C ÂMARA – S EÇÃO DE D IREITO P RIVADO

“Habeas Corpus” nº 361.630-4/3-00


Comarca: Cruzeiro
Impetrante: Dr. José Dulcídio de Oliveira
Paciente: MLS

Voto nº 5820
Relator

– Alimentos — Dívida pretérita —


Inadimplência — Prisão civil —
Inadmissibilidade — Ordem de
“habeas corpus” concedida.
– Constitui gênero de constrangimento
ilegal, reparável pelo remédio do
“habeas corpus”, a prisão civil como
meio coercitivo de cobrança de
verba alimentícia pretérita, visto
que já não tem caráter alimentar
nem é urgente à conservação da
vida do alimentando (Lei nº
5.478/68).
420

1. O ilustre advogado Dr. José Dulcidio de Oliveira


impetra a este Egrégio Tribunal ordem de “habeas corpus”
em favor de MLS, a fim de que lhe seja conjurado
iminente constrangimento ilegal da parte do MM. Juízo
de Direito da 1a. Vara Cível da Comarca de Cruzeiro.
Afirma, na petição de fls. 2/4, que o paciente foi
citado para pagar dívida de alimentos referentes aos
meses de maio a outubro de 2003, no total de R$
448,23.
Alega ainda que, em virtude de sua condição de
desempregado — e, pois, impossibilitado de cumprir a
obrigação de uma só vez —, requereu ao MM. Juiz
autorização para “saldar a dívida relativa aos três últimos
meses anteriores à data da citação”; o mais, pagaria nos
termos do art. 732 do Código de Processo Civil.
O nobre Magistrado, contudo, não o despachou de
boa sombra, antes lhe mandou expedir ordem de prisão.
Assim, porque receia lhe seja infligido mal injusto e
grave, requer a esta augusta Corte de Justiça a concessão
de “habeas corpus”.
Em prol de sua pretensão argumenta que “saldou o
equivalente às três últimas prestações que antecederam à data
da citação” (fl. 3). Invoca também jurisprudência do
Colendo Superior Tribunal de Justiça relacionada com a
espécie.
Instruiu o pedido com numerosos documentos de
interesse da causa (fls. 5/23).
421

O r. despacho do Excelentíssimo Senhor 3º


Vice-Presidente do Tribunal, Dr. Ruy Camilo, mandou
processar o pedido, sem concessão de liminar (fl. 27).
A mui digna autoridade judiciária indicada como
coatora prestou as informações de estilo, nas quais
esclareceu que, nos autos de Execução de Alimentos que
lhe promove FLS, representado pela mãe, foi citado o
paciente para pagar a quantia referente ao débito em
atraso.
Informou ainda que, em face da inércia do
executado, da não-comprovação do pagamento do débito
e porque a alegação de desemprego não era poderosa a
acarretar a extinção da execução, decretou-lhe a prisão
civil por “um mês” e ordenou lhe fosse expedido o
respectivo mandado (fls. 35/36).
O ofício de informações acompanhou-se de novos
documentos (fls. 37/48).
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em
esmerado e criterioso parecer da Dra. Cintia Mitico
Belgamo Pupin, opina pela denegação da ordem (fls.
50/52).
É o relatório.

2. Foi citado o paciente (fl. 13) para, nos termos do


art. 5º, § 2º, da Lei nº 5.478/68, pagar, em três dias, a dívida
de alimentos ao filho menor FLS, ou justificar a
impossibilidade de fazê-lo, sob pena de prisão (art. 733.
§ 1º, do Cód. Proc. Civil).
422

Por elidir o decreto de prisão, o paciente ocorreu ao


pagamento dos últimos três meses (fl. 17).
Mas, em que pese à providência que dera —
satisfação do débito relativo aos últimos três meses —, o
nobre Magistrado foi servido decretar-lhe a prisão (fl. 22).
Veio, por isso, o paciente requerer ordem de “habeas
corpus” ao Tribunal.

3. Posto que respeitável a inteligência que o distinto


Magistrado emprestou ao caso “sub judice”, não se
conforma, todavia, com a orientação que, em hipóteses
semelhantes à dos autos, têm professado nossos Tribunais.
Em verdade, à luz da boa doutrina, dívidas pretéritas
perdem seu caráter alimentar, pois já não são urgentes à
conservação da vida do reclamante.
De que a dívida pretérita não deva cobrar-se pelo rito
do art. 733 do Código de Processo Civil estão a persuadi-lo os
brilhantes arestos do Colendo Superior Tribunal de
Justiça, abaixo reproduzidos por suas ementas:

a) “O rito do art. 733 do Cód. Proc. Civil deve ficar


reservado à cobrança das três últimas prestações
alimentícias vencidas antes da propositura da ação. E isso
porque a demora na cobrança de débito há muito vencido
evidencia que a urgência da prestação alimentar já não
se faz presente, além de ensejar a constituição de um
débito cujo valor dificilmente poderá ser atendido pelo
devedor no prazo curto que a lei lhe reserva. Sendo a
423

constrição sobre a liberdade do devedor a mais grave das


sanções, que o nosso regime prisional converte em pena
inominável, deve ela, em princípio, ficar reservada
àquela hipótese” (Rev. Tribs., vol. 791, p. 200; rel.
Min. Ruy Rosado de Aguiar);

b) “A prisão civil por inadimplemento de obrigação alimentar


é constrição excepcional e tem por fim encorajar o devedor
a prestar os alimentos atuais e não os pretéritos. Assim, o
decreto de prisão deve referir-se a débitos atuais, por isso
que os débitos em atraso já não têm caráter alimentar”
(Rev. Tribs., vol. 717, p. 144).

Esta, de igual passo, é a doutrina de graves autores:

“A prisão civil, como meio coercitivo de pagamento de pensão


alimentícia, não se justifica na cobrança de prestações
passadas e de cujo recebimento o credor não necessita
para sobreviver; assim, é de se dar habeas corpus a quem
tem contra si mandado de prisão civil, acusado de
descumprimento de obrigação alimentar” (Yussef Said
Cahali, Dos Alimentos, 4a. ed., p. 1.023).

É matéria mui digna de ponderação ainda que, a


meter-se o paciente nas sombras de cárcere iníquo, aí
também se haverá de encerrar a esperança de poder
desempenhar suas obrigações de alimentante.
424

À derradeira, desempregado há coisa de 9 meses


(fl. 13), bem se adivinham os terríveis transes por que terá
passado o alimentante, primeiro que a Justiça o chamasse
às contas. O caso dos autos, menos que empedernida
indiferença à face de obrigação alimentar inescusável, argui
exemplo de inadimplência por absoluta falta de recursos.
Ninguém dá o que não tem!
Advirta, porém, o paciente que é próprio do pai
repartir com o filho necessitado o último pedaço de pão!
Em suma: não há razão atendível para manter a
situação de constrangimento à liberdade, de que se queixa
o paciente.

4. Pelo exposto, concedo a ordem de “habeas corpus” para


revogar o decreto de prisão civil do paciente, expedindo-
-se-lhe contramandado.

São Paulo, 31 de janeiro de 2005


Des. Carlos Biasotti
Relator
40. Reabilitação e Reparação do Dano

I – Considerando nas consequências gravíssimas que lhe


advêm da sentença penal condenatória, é de razão busque
o réu, a todo o poder que possa, elidi-las, não o
acompanhem — nefando espectro! — pela vida fora.
Ninguém põe em dúvida quanto importam ao nosso
futuro os fatos e notícias que nos ocorreram em dias
pretéritos. A falar lisa e sinceramente, somos o que
fomos(1); donde o recurso aos meios legais que nos sirvam
de expungir as máculas do passado.
Se ainda não transitou em julgado a decisão
condenatória definitiva, poderá o acusado guerrear-lhe os
efeitos, dela interpondo apelação para a superior instância.
No caso de já se achar sob o selo da “res judicata”, mediante
revisão do processo é que o réu haverá de buscar a
reparação da injustiça da sentença. Não raro, do próprio
“habeas corpus”, “remédio jurídico processual mais eficaz, em
todos os tempos”(2), é que ele se valerá para debelar os
gravibundos efeitos do decreto condenatório. Para redimir-
-se da falta passada e, pois, melhor acreditar-se para o
futuro, ou porque lhe é próprio o querer subir sempre de
ponto na estimação pública(3), todo homem procura com
veemência delir os estigmas da condenação.
Dado que se frustrem os mais instrumentos que lhe
assina a lei, é o instituto da reabilitação o que certamente
haverá deparar ao condenado algum refúgio ou lenitivo.
426

II – Reabilitação, como a definiu o doutíssimo Eliézer


Rosa, é “pedido de declaração, por sentença, do desaparecimento
da temibilidade do réu, em consequência da mudança de sua
personalidade, com a finalidade de cancelar na biografia penal
do reabilitado as anotações penais”(4).
O deferimento da reabilitação (a qual, segundo a
regra do art. 94 do Código Penal, “poderá ser requerida,
decorridos dois anos do dia em que for extinta, de qualquer modo,
a pena ou terminar sua execução”) produz esta notável
consequência: obriga ao sigilo o processo e a condenação
que o réu sofreu. Valha a verdade que isto mesmo já
constara do art. 202 da Lei de Execução Penal, pelo que
entendem insignes autores seja o seu tanto inútil a figura
da reabilitação(5).
Mas, posto semelhantes (se não idênticos) esses efeitos,
mui diversas lhes são todavia as causas determinantes: a
um, dá-lhe origem o mesmo cumprimento da pena; a
outro, uma sentença, na qual se declara que certo
indivíduo, que atendeu deveras aos requisitos da lei, foi
reputado apto a reintegrar-se na comunhão social e, por
isso, digno do respeito e estima dos bons.
Esta diferença há, pois, entre as duas hipóteses: na
primeira, o sigilo quanto ao processo a que o acusado
respondeu e respectiva condenação decorre de haver
já expiado seu castigo; na outra, o que torna defesa a
menção ou notícia de tais fatos em folha corrida, certidões
ou atestados, será comparecer o condenado perante a
427

sociedade qual homem novo, protestando-lhe que se


emendou da falta cometida, aborreceu a vida do crime e,
a essa conta, pede que o admita em o número de seus
membros exemplares e prestantes.
Do simples contraste das razões ou motivos que
militam em prol de um e outro efeito deixa-se entender,
além de toda a dúvida, que os derivados da reabilitação
acham-se tão longe daqueles a que se refere a disposição do
art. 202 da Lei nº 7.210, de 11.7.84 (Lei de Execução Penal),
como o céu da terra. Logo, não parece bem dar inútil à
reabilitação!

III – O assento legal da matéria são os arts. 94 e seguintes


do Código Penal e 743 e seguintes do Código de Processo
Penal. Demais dos requisitos do “domicílio no País” e do
“bom comportamento público e privado”, há de satisfazer o
reabilitando ao do ressarcimento do dano causado pelo
crime. É a notar, entretanto, que desta exigência nem todos
os julgados têm feito caso e cabedal; ao contrário, alguns
a houveram até por francamente despicienda, como se
colhe das ementas abaixo transcritas(6):

a) “As finalidades do instituto da reabilitação recomendam


que o julgador não se prenda a um esquema de rígido
formalismo na verificação dos requisitos secundários ao seu
deferimento e entre estes se inclui o do ressarcimento do
dano” (Rev. Tribs., vol. 511, p. 405);
428

b) “Admissível a concessão de reabilitação, ainda que não


tenha sido ressarcido o dano causado pelo crime, pois seria
injusto obrigar o condenado a aguardar a prescrição da
ação indenizatória para deferimento do pedido (…)”
(RJDTACrimSP, vol. 4, p. 205).

Em suma: não só desagravo da sociedade (a que


ofendera com a prática do delito) e alívio de sua
consciência(7), também é a reabilitação o modo mais
solene e cabal de o infrator demonstrar que se restituiu
integralmente à condição de homem de honra. O que, não
se nega, é matéria superior a todo o elogio.

Notas

(1) É fama que, levado perante o tribunal revolucionário,


sob a alegação de que maquinava a ruína de sua
pátria, Danton, fitando os olhos em seus acusadores,
prorrompeu em memoráveis palavras que, tiradas em
linguagem, têm esta substância: “Com quê então a mim
é que acusais de trair a pátria? Que meu passado se levante
e me defenda!”.
(2) Pontes de Miranda, História e Prática do “Habeas
Corpus”, 4a. ed., p. 3.
(3) Faz muito para o nosso caso aquilo do grande Vieira:
“A razão de ser tão natural ao homem o encobrir e esconder
o pecado, deu Quintiliano, e é porque ninguém é tão mau,
que o queira parecer: Non quisquam tam malus, ut malus
videri velit” (Sermões, 1959, t. VIII, p. 188).
429

(4) Dicionário de Processo Penal, 1975, pp. 175-176.


(5) Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 3a. ed.,
p. 144.
(6) Com este parecer vão escritores de boa nota, como
Evaristo Toledo: “No que tange à reparação do dano, é
razoável que se considere o interesse da vítima, uma vez que
a lei põe o problema como faculdade e não como obrigação
(art. 63 do CPP). De qualquer forma, tal requisito deve ser
apreciado com certa elasticidade” (Curso de Processo Penal,
1992, p. 347).
(7) “… é preciso que a Justiça seja solícita em ouvir o seu
reclamo (do ex-presidiário), dando o primeiro testemunho
de que ele tem direito à reintegração social. Não se pode
admitir que marcas de Caim o persigam até o túmulo”
(João Baptista Herkenhoff, Uma Porta para o Homem
no Direito Criminal, 1988, p. 196).
41. Do Excesso ou Desvio de Execução

Meus Amigos, boa tarde!


Quem fala por determinação de outrem, não por
impulso próprio, há de ter em seu favor a justa escusa ou
dirimente de que, sendo o dever um dogma, não fizera
mais que respeitosamente curvar-lhe a fronte; o que
decerto o defenderá da arguição de infrator daquele velho
anexim, segundo o qual, onde há galos de fama, pintos não
têm que fazer!
Nossa presença aqui, portanto, deve interpretar-se
apenas como sincero desejo de colaborar em mais um
mutirão em prol das Execuções Criminais. Tem o sentido
também, para que assim o digamos, de um como preito aos
distintos colegas que, debaixo de verdadeira “pena de
limitação de fim de semana”, comparecem a este I Encontro
Estadual de Juízes da Execução Criminal para aprimorar os
cabedais de espírito e trazer-nos o conforto do amplexo
fraterno.
É grande fortuna poder falar logo depois do Dr.
Pedro Gagliardi, porque o orador (ou arengador) ainda
encontra repleto o auditório. A debandada dos ouvintes
(ou vítimas?) será mais tarde!
Mas, vamos ao ponto.
Faz poucos dias, no gabinete da Vice-Presidência do
Tribunal de Alçada Criminal (Tacrim), onde está sempre
a despachar, até noite cerrada, processos infinitos em
432

número, o Pedrinho (perdão: Sua Excelência o Dr. Pedro


Gagliardi) ministrou a alguns juízes que ali nos achávamos
bela e oportuna lição, e foi que devíamos adotar, com
referência às causas-crimes, a seguinte filosofia ou estilo de
proceder: alguma severidade, se tivéssemos de usar com o
réu, que o fosse até o momento da sentença, porque, ao
depois, cumpria se mostrasse a Justiça menos implacável e
mais tolerante com aquele que, já condenado e, pois,
perdida sua liberdade (bem supremo), tornara-se, na frase
de Carnelutti, “o mais pobre de todos os pobres: o encarcerado”(1).
Para tanto, não será mister derrogar a ordem jurídica
e social; bastará aplicar a lei, sem lhe agravar o rigor; se
possível, praticar o conselho daquele extraordinário vulto
que foi Bardot (referimo-nos, evidentemente, ao notável
juiz francês Osvaldo Bardot, não à sua patrícia Brigitte):
“(…) para manter o equilíbrio entre o forte e o fraco, o rico e o
pobre, que não têm o mesmo peso, é preciso carregar um pouco a
mão do lado mais fraco da balança”(2).
E isto cabe perfeitamente nas atribuições do Juiz e
está em suas mãos!
Do que sejam nossas prisões têm os nobres Colegas
notícia completa, cabal e individuada. Desde Beccaria, que
lhes chamou “horríveis mansões do desespero e da fome”(3) e,
antes dele, o egrégio Vieira, para quem o cárcere era “meia
sepultura”(4), há um consenso em derredor do termo prisão:
é o pior lugar do mundo, antes do cemitério!
O emérito Des. Azevedo Franceschini, que foi o 2º
Presidente de nosso querido Tacrim, afirmou num livreto,
“(…) em relação à maioria dos presídios brasileiros, não se defere
433

aos recolhidos nem aquilo que nos zoológicos aos animais se


proporciona!”(5). É aí que milhares de desgraçados cumprem
suas penas!
A pena — que é o salário do crime e “traduz
primacialmente um princípio humano por excelência, que é o da
justa recompensa: cada um deve ter o que merece”(6) — a pena
constitui o núcleo objetivo da execução.
O cumprimento da pena, como era de razão, está
subordinado ao critério da legalidade, de sorte que não
pode extrapassar as raias da pretensão executória fixadas na
sentença condenatória com trânsito em julgado; se não,
como reza o art. 185 da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de
11.7.84), haverá excesso ou desvio de execução, com manifesta
violação dos direitos e interesses do sentenciado.
Por amor da pouquidão de tempo, versaremos
somente a hipótese de desvio de execução consubstanciada
em manter-se o condenado em regime diverso daquele que
lhe estabeleceu a sentença.
São de todos os dias, no Tribunal, com efeito, casos
de réus que, pela via heroica do “habeas corpus”, se queixam
de constrangimento ilegal, porque, embora lhes houvesse
concedido a sentença o benefício do regime prisional
semiaberto, permanecem no fechado sob o argumento da
falta de vagas nos institutos penais-agrícolas.
Como resolver o empecilho?
Nisto, como em tudo o mais na vida, é necessário
proceda o Magistrado com o arbítrio do varão prudente:
comprovada a inexistência de vaga em estabelecimento
434

penal adequado ao regime intermediário, pode o Juiz


promover desde logo o sentenciado ao regime aberto, na
modalidade de prisão domiciliar, que isto não ofende o
zelo da Justiça, antes é o que a Jurisprudência preconiza.
O nº 8 da publicação do Tacrim — As Mais Recentes
Decisões — traz venerando aresto do Colendo Superior
Tribunal de Justiça, que faz muito ao nosso intento:
“Evidente a inadequação entre a lei de execução da pena e
a realidade brasileira. A inexistência de Casa de Albergado não
pode impor ao condenado regime mais rigoroso; caso contrário,
afrontar-se-á o princípio da legalidade, com flagrante desrespeito
do título executório. Na falta de local próprio, por analogia e
precariamente, recomenda-se a prisão domiciliar, enquanto
inexiste o local próprio” (STJ; REsp nº 120.595-DF; 6a. T;
rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro; j. 10.6.1997; v.u.;
DJU 8.9.1997, p. 42.626).
É sem dúvida que o Magistrado advertirá o
beneficiário de que a Justiça, havendo-o transferido
diretamente do regime recluso ao aberto, deu-lhe voto de
mui particular confiança, a qual, uma vez quebrada,
implicará seu imediato retorno às sombras do cárcere.
Importará muitíssimo ainda que o Magistrado lhe
encareça a necessidade impreterível de dedicar-se ao
trabalho, que não é apenas obrigação social, mas o melhor
fator de promoção humana.
O preso aidético. De quantos males afligem de presente
a Humanidade, nenhum disputa primazia à terrível Aids,
que arrebata ao indivíduo aquilo que tem em maior preço:
a vida. Mensageira da morte, sobre todos exerce implacável
435

sua jurisdição. Poderosos e desvalidos, celebridades e


obscuros, bons e maus: ninguém está seguro contra os
efeitos de sua formidável tirania.
Uma casta de pessoas, contudo, existe que merece,
por mui particulares circunstâncias, especial atenção dos
espíritos bem formados, notadamente dos constituídos em
dignidade. Compõe-se daqueles que, havendo decaído
(ainda mal!) de seu estado de liberdade, foram por isso
excluídos do convívio social. Esses (os encarcerados)
inspiraram sempre alguns acentos de compaixão no peito
dos homens livres, ou porque, carecedores do sumo bem
da liberdade, a própria vida não lhes devera parecer digna
dos cuidados que lhe reservamos, ou porque, postos em
regime de segregação, não lhes esqueceriam jamais aquelas
pungentes palavras com que o divino Dante acrescentou o
suplício dos réprobos: “Não há dor, que maior seja, do que
lembrar o tempo feliz nos dias da desgraça”.(7)
Se a pena de prisão, ao aviso dos sujeitos eminentes
em ciências e letras, é já um mal, “porque inútil como método
penal e como fator de recuperação”(8), com maioria de razão
o será quando associada a castigo corporal ainda mais
aflitivo, como é a insidiosa enfermidade que subjuga os
portadores do vírus HIV, quebrantando-lhes as energias e
fazendo que, pelo comum, de humanos só conservem a
figura.
Desses tais é forçoso que se amerceie a Justiça; mantê-
-los em calabouço, onde aguardem com resignação estoica
o sopro frio da morte, não seria só rigor excessivo, que
fora também desmarcada impiedade. A mesma legislação
436

penitenciária é a que, nesses casos, ministra aos desgraçados


os derradeiros lenitivos, com facultar-lhes o recolhimento à
própria residência (cf. art. 117, nº II, da Lei de Execução Penal).
Portanto, uma vez que lhe tenha chegado à notícia
que certo preso se ache em adiantado (não terminal
somente) estágio da atroz moléstia, dê o Juiz, com a maior
brevidade que couber no possível, as providências
necessárias para removê-lo ao pé de seus familiares. É que,
havendo-se declarado impotente a Medicina para conjurar
o mal, fora de preceito que o Estado (que mais se conhece
por ente sem entranhas) relaxasse o preso aos desvelos de
sua família, a qual, unicamente, lhe poderia acudir com o
remédio que serve de atenuar ao mesmo tempo os
achaques do corpo e os da alma: o amor.
Tanto que diagnosticada a doença gravíssima, a
direção do presídio, firme em parecer médico oficial,
comunicá-la-ia espontaneamente ao Juiz de Direito
corregedor. Este, com aviso e cautela, e sem fazer caso nem
cabedal da pena imposta ao recluso, enviá-lo-ia aos seus,
num tributo sublime à piedade, considerando apenas
no grande alcance do benefício (acaso o último), cuja
concessão não encontra as regras do bom-senso nem faz
rosto a seu amplo poder discricionário.
Mais que aconselhável, seria verdadeira obra de
misericórdia isso de o Magistrado, para melhor aferir as
condições físicas do enfermo, proceder a uma inspeção
ocular e, de seguida, num generoso impulso de consciência
reta, sensível sempre às tragédias humanas, transferi-lo
para o domicílio, onde familiares o pudessem assistir até o
437

doloroso momento em que ao curto dia de sua vida


sucedesse a noite eterna.
Tal solução não desacreditaria o Judiciário nem
recomendaria mal o Juiz; bem ao revés, consoante parêmia
venerável, mais crescerá em crédito e respeitabilidade o
Magistrado que ao rigor antepuser a equidade, a um tempo
corpo e alento da Justiça!

Notas

(*) Alocução no I Encontro de Juízes da Execução Criminal;


Escola Paulista da Magistratura (18.10.97).
(1) As Misérias do Processo Penal, 1995, p. 21; trad. José
Antonio Cardinalli.
(2) Apud Jucid Peixoto do Amaral, Manual do Magistrado,
4a. ed., p. 42.
(3) Dos Delitos e das Penas, VI.
(4) Sermões, 1959, t. XV, p. 276.
(5) Tóxicos, 1973, p. 67.
(6) Nélson Hungria, Novas Questões Jurídico-Penais, p. 131.
(7) A Divina Comédia, 1886; Inferno, canto V; trad.
Joaquim Pinto de Campos.
(8) Evandro Lins e Silva, A Defesa Tem a Palavra, 1980,
p. 265. Outro tanto, in Revista Forense: “A repressão
pela expiação no cárcere não traz cura. Amontoa desespero
sobre desespero” (vol. 155, p. 414).
42. Transação Penal

I – Foi sempre o acaso matéria de muita angústia e


tortura para os homens, tendo não poucos afirmado
preferir o inferno definitivo à dúvida provisória. É de
espíritos avisados, com efeito, acautelar-se contra as
contingências humanas; donde o haver a sabedoria das
nações batido na forja de seus anexins este, que é a quinta-
-essência do bom-senso vulgar: Nunca deixar o certo pelo
duvidoso.
Ainda que a fortuna ajude os audaciosos, como
cantou O Cisne de Mântua(1), contudo a maioria prefere,
quando lhe toca a vez, eleger a alternativa que não lhe
pareça temerária nem por demais gravosa; se, com as mãos,
tenta alcançar as estrelas do céu, olha sempre lhe não
venha a faltar a terra debaixo dos pés. E arremata com
resignação: O ótimo é inimigo do bom!
Sendo muito vária a sorte nos sucessos humanos,
nunca o é mais, porém, que nos negócios jurídicos. Tão
incertas e imprevisíveis se mostram, deveras, as soluções
dos pleitos judiciais, que apenas os insensatos lhes
aventuram prognósticos; os prudentes, esses aguardam
o trânsito em julgado da sentença, uma vez que até aí
ninguém tem razão.
Isto parece compreende bem a voz pública, em todos
os pontos do globo, ao declamar o prolóquio (na verdade,
turpilóquio): “De cabeça de juiz, (omissis)… nunca se sabe o
440

que vem”. É que “a sentença faz do branco preto, e do quadrado


redondo”(2).
Daqui por que os próprios órgãos do Poder Judiciário
são os que encarecem aos litigantes a conveniência da
conciliação(3), firmes em que, nas mais das vezes, é melhor
um mau acordo que uma boa demanda(4).

II – Do mesmo passo que em outros ramos do Direito,


agora também na esfera penal, com o advento da Lei nº
9.099, de 26.9.95 (que dispôs sobre os Juizados Especiais
Cíveis e Criminais), é possível, em certos casos, a realização
de acordo. As hipóteses em que se permite ele são “as
infrações penais de menor potencial ofensivo” (art. 60), isto é, “as
contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima
não superior a um ano” (art. 61). Porém, consequência do
princípio da retroatividade da lei nova mais favorável, tais
efeitos poderão operar-se até em casos de réus condenados
por “crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior
a um ano” (art. 89), suspendendo-se condicionalmente o
processo.
Mediante a composição dos danos civis, poderá
portanto o autor da infração (primário e de bons
antecedentes) obter pronunciamento judicial, em que lhe
seja infligida pena restritiva de direitos (cf. art. 43 do Código
Penal: prestação de serviços à comunidade; interdição
temporária de direitos e limitação de fim de semana) ou
multa.
A Lei dos Juizados Especiais Criminais atendeu, sem
contradita possível, a notáveis e antigas aspirações da
441

sociedade, porque: imprimiu rapidez à solução dos


conflitos penais(5), estimulou a reparação dos danos
causados à vítima, beneficiou o delinquente primário
(seja subtraindo-o logo ao tormento do processo-crime,
seja evitando-lhe o estrépito e o prejuízo que a menção de
fato desabonador, em sua folha de antecedentes, de
ordinário acarreta), reduziu o número espantoso de feitos,
originados de questões de bagatela que assoberbam e
empecem o Judiciário, etc.
Prevenindo a objeção do inteligente leitor, de que a
aceitação do acordo pelo autor do fato equivale a confissão
e, pois, contrasta com o dogma constitucional da
presunção de inocência, que domina o processo penal,
diremos que:
a) é direito do autor da infração penal recusar a proposta
(de aplicação imediata de pena não privativa de
liberdade); como se trata de acordo, imprescindível é
seu consentimento, para que se aperfeiçoe;
b) desde que o aceite, porém (porque diz com o seu
interesse), que muito se isto importe confissão? De
feito, que coisa é preferível: aceitar o infrator o
acordo, e receber sanção, que todavia não constará de
assentamentos criminais nem induzirá reincidência
(art. 76, § 4º), ou enjeitá-lo, por amor só da
intangibilidade do princípio da presunção do estado
de inocência, e vir a ser, ao cabo, condenado, e sobre
isso ter o nome lançado no rol dos convictos, não só
para seu desdouro, senão ainda para caracterização de
futura reincidência?!
442

Não se há mister da sabedoria de Salomão, para


desatar, sem erro, a melhor ponta do dilema!

III – O acordo, ora instituído no âmbito da Justiça


Criminal, conforma-se com a velha parêmia de que, em
certos casos, mais conveniente é transigir que contender.
Aqueles que já se desempenharam de defesas na barra
do Júri, esses conhecem que também aí se concertam
transações, bem que muito à puridade e discretamente.
E se, a mais de um respeito, esta prática mereceu a
eminentes varões críticas aceradas(6), formam por igual
legião os que a têm por beneficente, não só tolerável.
Aos delitos da competência do Tribunal Popular a
lei cominou penas geralmente extremadas. Figure-se a
hipótese, muito comum, de réu que responde a processo
por homicídio simples: poderá ser absolvido, é claro; mas
poderá também ser condenado (e a pena igual ou superior
a seis anos, se o for nos termos da decisão de pronúncia),
para cumprimento em regime fechado. Em tal caso, não
nos parece repugne à dignidade de seus nobres ofícios,
nem lhes contrarie os padrões éticos, isso de o promotor
de justiça e o advogado optarem por uma solução
intermediária, ou de equidade, exortando os jurados a
reconhecer, v. g., que o réu cometeu homicídio privilegiado.
A sociedade será desagravada, com a condenação do
réu a certa pena; o promotor de justiça haver-se-á
desincumbido retamente de seu múnus, ao pleitear a
condenação do homicida a uma pena que lhe não retire a
esperança de emenda e de recuperação; o advogado, este
443

não terá pouco de que se ufanar: afinal, poupou o cliente à


desgraça do cárcere, a “casa dos mortos”, como lhe chamou
um alto espírito(7).
Em suma: a Lei nº 9.099, de 26.9.95, ainda que se
reputem verdadeiras (o que admitimos, sem contudo
conceder) as críticas que alguns lhe têm disparado,
representa edificante esforço de aperfeiçoamento da Justiça
Criminal.
E isto já a faz respeitável; os seus autores, dignos de
louvor e reconhecimento.

Notas

(1) “Audentes fortuna juvat” (Eneida, liv. X, v. 284).


(2) Cf. Arthur Rezende, Frases e Curiosidades Latinas,
1955, p. 721: “Sententia facit de albo nigrum, de quadro
rotundum”.
(3) Compete ao juiz “tentar, a qualquer tempo, conciliar as
partes” (art. 125, nº IV, do Cód. Proc. Civil).
(4) Formas variantes do adágio: Mais vale má avença que
boa sentença; mais vale um pássaro na mão que dois
voando; mais vale um tico-tico no prato que um jacu
no mato; quem tudo quer, tudo perde, etc.
(5) Já em 1921, abrasado em zelo apostólico, Rui
verberava a lentidão da Justiça com estas formais
palavras: “Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça
qualificada e manifesta” (Oração aos Moços, 1a. ed., p.
42).
444

(6) É do número dos que não estão pelo acordo no Júri o


insigne Magistrado Aben-Athar de Paiva Coutinho.
Ao aviso de Sua Excelência, a barganha, “embora
implique em pena mais branda para o réu, não possibilita o
exercício de defesa plena que poderia vir a beneficiá-lo” (cf.
Edição Policial, abril/1991).
(7) Eliézer Rosa, Romeiro Neto, O Último Romântico da
Advocacia Criminal, 4a. ed., p. 23.
43. Do Flagrante Preparado

1. Da Prova Ilícita. A Constituição Federal de 5 de


outubro de 1988, em seu art. 5º, nº LVI, fulminou de
morte, para os efeitos processuais, “as provas obtidas por
meios ilícitos”. Produzidas com o sacrifício do direito ou ao
arrepio da lei, tais provas carecem de prestígio ou eficácia
na apuração da verdade, que é a alma e o escopo de todo
processo; passam por simples borbulhas fantasmagóricas
ou “flatus vocis”, a que falece completamente cunho
jurídico. “Frutos da árvore envenenada”, segundo a velha
expressão, inaproveitam à pesquisa da verdade e
merecem não menos que formal repúdio(1). E parece bem
que assim seja, pois repugna aos foros da civilização e
ao raciocínio lógico pratique alguém aquilo mesmo
que intenta punir no delinquente: a infração da lei(2).
Para mais, não há querer provar a verdade com a
mentira, entendida esta como qualquer contrafação do
pensamento(3). Assim, aquilo tudo que espelhe malícia ou
resvale da seriedade e grandeza inerentes às coisas da
Justiça não se afigura digno de constituir a matéria-prima
da prova, base e fundamento do ato de julgar(4).

2. Do Flagrante Preparado. Esta questão cobra


importância e relevo perante os denominados flagrantes
putativos ou preparados. Há países(5), com efeito, que, em
nome da política de repressão à criminalidade (sobretudo
a relacionada com os tóxicos), têm recorrido a expedientes
446

ou artifícios que, por implicar ideia de fraude ou vileza,


reputa-os a crítica violadores dos soberanos princípios
da lealdade e da espontaneidade, que devem presidir
indefectivelmente à produção da prova.
A astúcia pode ser venha a lavrar aí um tento contra
os mensageiros da desgraça e os fautores do nefando
comércio das drogas, mas a torpeza, a dissimulação e
a impostura entrarão também a compor o estilo das
operações policiais, o que, do ponto de vista ético,
representará sempre mau exemplo. Fora instituir no seio
do organismo da segurança pública a praxe de permitir a
seus agentes, sob falsas aparências, enganar e induzir
outros à prática de atos de extrema reprovação social.

3. Da Impunibilidade do Crime Putativo. Consoante a


doutrina jurídica mais bem recebida entre nós, guarda-se
de qualquer punição aquele que, ardilosamente, foi
levado ao crime. A razão é Nélson Hungria, o sumo
escoliasta do Código Penal, quem no-la declara: “Somente
na aparência é que ocorre um crime exteriormente perfeito. Na
realidade, o seu autor é apenas o protagonista inconsciente de
uma comédia”(6).
O exímio professor Aníbal Bruno incluiu o crime de
experiência ou induzido por agente provocador na classe
do crime impossível, porquanto, “embora a inidoneidade
não exista no meio ou no objeto, existe no conjunto
de circunstâncias, adrede preparadas, que eliminam a
possibilidade de constituir-se o crime”(7). O mesmo sentia
Galdino Siqueira, penólogo de tomo(8).
447

Com arrimo na concepção realista, que o Direito


vigente apadrinhou, o Supremo Tribunal Federal
converteu na Súmula 145 o entendimento de que “não há
crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna
impossível sua consumação”.
Essa igualmente é a orientação que vem professando
o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como
se colhe de lúcido acórdão relatado pelo insigne
desembargador Marcelo Fortes Barbosa: “No flagrante
preparado, que transforma o réu em garoto de recados, viola-se
o art. 5º, inc. LVI, da Constituição Federal, produzindo-se
provas ilícitas e um autêntico crime imaginário ou de ensaio”(9).
Em suma: à luz da Doutrina e da Jurisprudência, o
flagrante preparado, por infringir de rosto o art. 5º, nº
LVI, de nossa Carta Magna (que defende e proscreve a
produção de provas ilícitas), não caracteriza crime. Será
caso, pois, de absolvição do réu, com fundamento no art.
386, nº III, do Código de Processo Penal.

Notas

(1) Decidindo conforme esta craveira, o Tribunal de


Justiça do Estado de São Paulo “desconsiderou a prova
ilícita resultante de busca e apreensão efetuada sem
mandado judicial, com invasão de domicílio, absolvendo
o réu por inexistência da prova do fato (Ap. Crim. nº
83.624/3)” (Ada Pellegrini Grinover, As Nulidades no
Processo Penal, 2a. ed., p. 116).
448

(2) Donde a lição do egrégio Roberto Lyra, que tem


força de aforismo jurídico: “É melhor não punir um
crime do que cometer outros crimes para descobri-lo e
prová-lo” (apud Walter P. Acosta, O Processo Penal,
1957, p. 164).
(3) “Mentir é ir contra a mente própria”, escreveu o
clássico Manuel Bernardes (Nova Floresta, 1711, t.
III, p. 276).
(4) A importância da prova nas decisões judiciais já a
reconheciam as velhas Ordenações do Reino: “A prova
é o farol que deve guiar o juiz nas suas decisões, ainda que
a consciência lhe dite outra coisa, ou saiba ser a verdade
em contrário” (Liv. III, títs. 63 e 68; apud José
Antônio Pereira Ribeiro, As Diversas Facetas de
Monteiro Lobato, 1a. ed., p. 62).
(5) A este número pertencem os Estados Unidos (cf.
Menna Barreto, Estudo Geral da Nova Lei de Tóxicos,
1976, p. 84). “No Brasil, a Justiça não reconhece
legitimidade a essa atuação, considerando-a espúria e
incitadora do próprio crime que, sem ela, não teria
ocorrido” (Idem, ibidem).
(6) Comentários ao Código Penal, 1978, vol. I, t. II, p.
107.
(7) Direito Penal, 1956, t. II, p. 507.
449

(8) “No flagrante preparado verifica-se o chamado crime


aparente, uma das formas do crime putativo, não passível
de pena em virtude da impossibilidade jurídica de sua
realização, dada a ciência da suposta vítima, pelo que
não haveria sujeito passivo, dado ainda o preordenado
acordo com a autoridade, o que tira do fato a nota de
antijuridicidade, caindo somente na reprovação moral”
(Rev. Forense, vol. 69, p. 177).
(9) Ap. Crim. nº 162.791, de São Paulo; j. 20.6.93; v.u.;
in Boletim da AASP nº 1883.
44. “Res Furtiva”

I – Por sua extraordinária concisão e majestade, a língua


latina foi a que preferiram os velhos autores para difundir
suas obras jurídicas e literárias. Nela foi também que se
perpetuaram os aforismos de Direito.
Ainda hoje, nenhum livro jurídico se edita, que não
contenha frases ou locuções próprias da língua de Cícero.
E nada há que alegar contra esse costume, exceto
quando as citações, por mui frequentes e copiosas, venham
a prejudicar a primeira qualidade de quem escreve — a
clareza —, ou a ferir o preceito legal que obriga ao uso
de nosso idioma vernáculo nas petições, sentenças e
arrazoados forenses(1).
É certo que isso de alguém pejar de latinismos um
texto escrito em linguagem inculca para logo pedantaria;
será por igual fazer tábua rasa do brocardo de que todo
excesso desvirtua, o que a antiguidade clássica resumia na
parêmia: “Est modus in rebus”.
Mas, desde que venha a ponto a expressão latina e se
empregue com parcimônia, tem lá sua graça e vale por
excelente recurso de estilo.
Onde todo escritor deve extremar-se em desvelo é no
guardar fidelidade ao elemento gráfico ou material das
expressões latinas de que acerte utilizar-se. Tal advertência
fizeram-na sempre os mestres, como a prevenir não se
pusessem a circular moedas falsas ao lado das verdadeiras,
de ouro de puríssimo quilate.
452

II – A leitura (de livros jurídicos, profanos e de autos de


processo) tem-nos deparado ocasião de anotar certas faltas
em que geralmente caímos os que escrevemos, por dever
do ofício ou por mero prazer intelectual.
A primeira lição para os que se proponham adornar
suas páginas literárias com as flores do Lácio é não
acentuar graficamente a vogal tônica das palavras. Por
exemplo: “data maxima venia” (e não “data máxima vênia”),
“ex officio” (e não “ex offício”), “ad judicia” (e não “ad judícia”),
“in dubio pro reo” (e não “in dúbio pro réo”), “in limine” (e não
“in límine”), etc.
Outra regra, muito para observar quando se
escreverem vocábulos latinos, é a que manda abolir o hífen
(ou traço-de-união), que o não há em latim: “habeas corpus”
(e não “habeas-corpus”), “ex positis”, “lato sensu”, “stricto sensu”,
“ab initio”, “ex vi legis”, etc.
Algumas vozes, de uso corrente na linguagem do
foro, aparecem muitas vezes estropiadas: “mellius” (por
“melius”, com um “l” só), “oportuno tempore” (por “opportuno
tempore”, com dois “pês”), “in memorian” (por “in memoriam”,
com “m”), “animus caluniandi” (por “animus calumniandi”,
com “mn”), etc.
Tem-se visto a fórmula “rei furtivae” como se o plural
de “res furtiva”(2). Trata-se de engano; o certo é, no plural,
“res furtivae” (coisas subtraídas: furtadas ou roubadas).
453

III – Ainda se reputem simples erros de impressão,


máculas a que livro algum está imune(3), tais inexatidões
costumam abater o esplendor que circunda a edição de
certos livros.
A expressão “reformatio in mellius” (em vez de “melius”,
com um “l”), topamo-la em Damásio E. de Jesus (Código de
Processo Penal Anotado, 1996, 17a. ed., p. 423); “animus
caluniandi” (em vez de “calumniandi”), em Celso Delmanto
(“in memoriam”) e Roberto Delmanto (Código Penal
Comentado, 5a. ed., p. 276).
Foi muito de estudo que nomeamos estes egrégios
autores. Suas obras são as que, na atualidade, sobre todas,
granjeiam a afeição dos cultores do Direito Processual
Penal e do Direito Penal. Levem-nos pois à paciência os
tenhamos individuado, que a seus prestantíssimos livros
quadram estas elegantes palavras de nosso Matias Aires:
“Nas sombras não há que distinguir, na luz qualquer alteração
é reparável”(4).
Mas, dado o caso que houvera aí mais que toscanejos
de revisores, “ad argumentandum tantum”, facilmente os
confortara a cláusula escusativa universal: “Errare humanum
est”.
“Vale”!
454

Notas

(1) Em todos os atos e termos do processo é obrigatório


o uso do vernáculo (art. 156 do Cód. Proc. Civil). Cai
a lanço o episódio que narra Moura Bittencourt:
“Conta-se, por exemplo, com verdade ou malícia, que certo
tribunal devia manifestar-se sobre a sentença de um
magistrado inferior. Estava ela vazada em muitas páginas,
nas quais havia mais citações em alemão do que
considerações em português. Não era possível criticar-se o
acerto da fundamentação. Dizem que a Corte não
encontrou outra saída senão converter o julgamento em
diligência para que o juiz traduzisse seu escrito” (O Juiz,
1966, p. 292).
(2) E pois que falamos da “res furtiva” e das “res furtivae”,
será bem dizer algo do autor do furto: o ladrão.
Chamou-lhe Plauto “homo trium litterarum”. Em
vulgar: homem das três letras, porque tantas são, em
latim, as de “fur”, que significa ladrão (Cf. Arthur
Rezende, Frases e Curiosidades Latinas, 1955, p. 283).
Larápio, sinônimo de ladrão, esse conta com
etimologia curiosa, a fiarmo-nos da seguinte notícia
que traz o citado autor: “Dizem ter existido em Roma
um pretor venal, cujas sentenças eram sempre a favor do
litigante que melhor pagava. Chamava-se Lucius Antonius
Ruffus Appius, e sua rubrica era: L.A.R. Appius. O povo o
chamava Larappius, palavra que se tornou sinônimo de
gatuno” (Idem, ibidem, p. 358).
455

(3) De que seja o erro partilha comum dos mortais


prova-o que farte a anedota daquele revisor,
profissional exímio, o qual passou ano inteiro a
corrigir as provas de certo livro que, ao cabo, saiu à
luz com o aviso: “Este livro não contém erata”.
(“Transeat!”).
(4) Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, 1752, p. 156.
45. O Direito de Recorrer em Liberdade

I– Da Importância do Instituto

Em trabalho jurídico de grande peso e tomo,


dissertou Rui que “o bom-senso humano, em todos os tempos,
tem reconhecido não ser lícito abandonar a sorte da lei comum e
dos direitos por ela assegurados às contingências do julgamento
por um só tribunal. Daí a concepção das instâncias, dos recursos e,
especialmente, das apelações, destinadas a corrigirem, mediante
segundo exame do caso em cada lide, os vícios, omissões e
nulidades do processo, os erros, abusos e injustiças da sentença”
(Obras Completas, vol. XLV, t. IV, p. 169).
O uso de recorrer já o reputava Ulpiano remédio
salutar, “que se criou para emendar a iniquidade e reparar a
imperícia dos julgadores” (Ibidem).
Tanto que dê com a erronia ou desacerto da decisão, a
parte interessada poderá, portanto, encetar recurso.

II – Do Direito de Recorrer em Liberdade

Rezava o art. 594 do Código de Processo Penal que, se


primário e de bons antecedentes, podia o réu apelar em
liberdade.
Tal possibilidade, mais que arbítrio do juiz, tem-se
entendido geralmente que é direito subjetivo processual do
acusado.
458

Uma vez concorram aqueles dois requisitos, será força


que o magistrado — que jurou cumprir a lei ao receber a
toga — lhe conceda de plano o benefício.
Isto é doutrina comum dos juristas, na exposição
deste lugar. José Frederico Marques, luminária grande do
Direito Processual Penal, lecionou:
“Desde que a imputação se refira a fato delituoso punido com
detenção ou com pena inferior, no grau máximo, a oito anos
de reclusão, o recurso impede que a sanctio juris, constante
da sentença, produza seus devidos efeitos, desde logo, no
tocante ao status libertatis do réu, pelo que se admitirá que
ele solto aguarde o julgamento da apelação, ou sob o regime
de liberdade provisória, ou sob aquele de liberdade não
vinculada” (Elementos de Direito Processual Penal, 1a. ed.,
vol. IV, p. 261).

Pela mesma craveira decidiram nossos Tribunais. Por


não acumular citações, que enfadariam pela sua invariável
conformidade, poremos aqui estes sós três exemplos, que
se poderiam multiplicar ao infinito, se mister:

a) “O art. 594 do Cód. Proc. Penal, na redação que lhe deu a


Lei nº 5.941/73, traduz direito subjetivo processual do
acusado que satisfaz os requisitos nele exigidos, e não mera
faculdade do Juiz” (Rev. Trim. Jurisp., vol. 77, p. 145);
b) “Tratando-se de réu primário e de bons antecedentes, a
eventual prisão em flagrante, por si só, não obsta à
concessão do benefício do art. 594 do CPP” (JTACrSP,
vol. 53, p. 182);
459

c) “O benefício assegurado no art. 594 do Código de Processo


Penal não constitui mera faculdade do julgador e sim um
direito do réu, desde que satisfeitos os requisitos da lei”
(Idem, vol. 42, p. 57).

Por onde, provados seus bons antecedentes e


primariedade, fará jus o réu ao benefício de recorrer solto.

III – Dos Bons e Maus Antecedentes. Conceitos e


Generalidades

O que sejam bons antecedentes, sabe-se à porta do


Fórum: são os fatos da vida pretérita do indivíduo, que não
repugnem à sensibilidade ética do comum dos homens.
Bons antecedentes, pois, terá quem obrou segundo os
preceitos da moral pública e atendeu às normas que
disciplinam o convício social.
No indivíduo, os bons antecedentes sempre se
presumem: ao órgão da acusação toca a prova em contrário.
Daquele a quem move a dúvida é, por conseguinte, a
pensão de provar os maus antecedentes do acusado, a favor
do qual subsiste a “presunção de direito, de que qualquer
naturalmente se entende ser bom, enquanto não se prova
o contrário” (Cons. Paula Pessoa, Código Criminal, 1882,
p. 148).
Vem aqui a ponto advertir que a mera existência de
processos em andamento contra o acusado não configura
maus antecedentes. É que poderão acabar por absolvições.
460

Faz ao propósito aquilo da jurisprudência de nosso


egrégio Tribunal de Alçada Criminal:

a) “Em Direito Penal, hão de se chamar maus antecedentes


apenas e tão somente as condenações criminais que o réu
registre, não constituindo antecedentes, do ponto de vista
jurídico-penal, o indiciamento em inquérito policial e
mesmo a denúncia. Pensar o contrário seria ignorar que o
processo penal constitui garantia não apenas dos culpados
mas também dos inocentes, das vítimas da violência e do
arbítrio dos maus policiais” (JTACrSP, vol. 49, p. 243);
b) “O simples fato de o réu estar respondendo por outros processos
criminais em andamento não obsta o reconhecimento de
bons antecedentes, para fins do art. 594 do CPP” (Idem,
vol. 53, p. 189).

IV- Da Primariedade. Conceito e Extensão

A primariedade do agente, afirmou Hungria, “a


primariedade do agente é reconhecível, a contrario sensu do art.
46 (atual 63 do Cód. Penal), quando ele ainda não sofreu,
em razão de outro crime, condenação anterior, transitada em
julgado, no Brasil ou no estrangeiro” (Comentários ao Código
Penal, 1980, vol. VII, p. 32).
Nesse número contam-se também aqueles que,
suposto delinquissem de novo, todavia um período de
tempo superior a cinco anos já mediara entre a data do
cumprimento ou extinção da pena referente à condenação
anterior e a da infração posterior (cf. art. 64, nº I, do Cód.
Penal).
461

V- Do Direito de o Réu Apelar em Liberdade, ainda que


Reincidente

Se bem que o texto legal reserve ao réu primário o


direito de recorrer em liberdade, magistrados há, e esses
conspícuos e abalizados nas letras jurídicas, que o vêm
reconhecendo até aos reincidentes.
Foi o que praticou, sem ofensa da Lei (cuja dureza lhe
cabia temperar) nem da Justiça (de quem era prudente
dispenseiro), antes com grande crédito de seu nome, o
Dr. José Humberto Urban, Juiz de Direito da 19a. Vara
Criminal da Capital, a respeito de certo acusado
reincidente, ao qual, embora o condenasse a cumprir a
pena reclusiva de 2 anos e 11 meses, por sequestro e
cárcere privado, concedeu-lhe entretanto o benefício de
apelar sem recolher-se à prisão (proc. nº 484/86).
O magistrado autorizou sua decisão com o art. 5º, nº
LVII, da Constituição Federal, que dispõe que “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória”.
Não lhe faltou à sentença o rigor da lógica jurídica
(pois ninguém decai da condição de primário, enquanto
a decisão que o condenou não receber o selo da “res
judicata”); outro tanto, não há que se diga contra seu
distinto prolator, visto procedeu com o estilo daquele que
passa pelo mais sábio dos homens — Salomão —, de quem
nos ficaram estas palavras, dignas de bronze e de lâminas
de ouro: “Não sejas por demasiado justo” (Ecl 7,17).
46. Da Prisão Domiciliar:
Solução Heroica para Casos Especiais

I. Grau máximo na escala do regime penitenciário de


semi-liberdade, representa a prisão domiciliar, entre nós,
ideal de sadia política criminal e arrojada solução para o
magno problema do superpovoamento dos presídios.
O estudo dos meios de combater o crime depois de
praticado — objeto da política criminal — tem espertado
no legislador providências de muito relevo, indicativas
antes da fé na completa recuperação do infrator do que
arbitrária generosidade para os que violam a ordem
jurídica.
Assumiu foros o problema de verdadeira cruzada
nacional, mercê da crise de saturação dos presídios, que
reclama medidas rápidas e drásticas em bem dos
interesses da sociedade e da pessoa do condenado, que —
entidade sagrada (“res sacra reus”) —, merece a proteção da
lei, ainda quando o pior dos facínoras.
Donde o aparecimento da prisão-albergue e da
prisão domiciliar, como formas sucedâneas da prisão
celular, instituídas, há obra de 43 anos, pelo Provimento
XCII, de 19.6.75, do Egrégio Conselho Superior da
Magistratura do Estado de São Paulo.
Em seu art. 40, previa o citado diploma o
albergamento no domicílio mesmo do sentenciado, nos
casos em que não houvesse vaga em estabelecimentos
464

oficiais de custódia, ou fosse o condenado acometido de


moléstia grave.
À medida, porém, que as autoridades judiciárias
deferiam a sentenciados a mercê, enorme problema
surgia, ameaçador de sua execução: falta de local
adequado para o albergamento.
De verdade, segundo o Prov. XCII, de 19.6.75, o
regime de prisão-albergue devia ser cumprido em
estabelecimento próprio, separado dos presos comuns,
e sem rigor carcerário (art. 39).
Contudo, ante a inexistência de infraestrutura
destinada à sua execução, houve mister se recolhessem os
albergados às cadeias públicas e distritos policiais, em
contacto com outros presos que descontavam suas penas
sob regime carcerário comum.
Porque não perdesse tão grata conquista da
penologia sua inspiração e finalidade — evitar o trato
promíscuo e deletério do condenado com delinquentes
perigosos e dar-lhes condições de reintegração no
convívio social —, urgia se criasse forma alternativa de
prisão celular.
Daqui a prisão-albergue domiciliar.
Extraordinário, o alcance dessa medida, pois ao
tempo em que prescrevia ao sentenciado normas
obrigatórias de conduta (v.g.: comparecimento perante o
Juízo das Execuções Criminais, comprovando o exercício
efetivo do emprego; permanência no domicílio durante o
período de repouso noturno, proibição de frequentar
465

lugares de duvidosa reputação e ingerir qualquer espécie


de bebida alcoólica), permitia-lhe reassumir em toda a
plenitude os encargos inerentes a seu estado.
As reiteradas e criteriosas concessões de prisão-
-albergue domiciliar comprovaram, desenganadamente,
sua excelência e eficácia como instrumento de recuperação
social.

II. Vozes, no entanto, houve, e essas abalizadas, que


entraram a apregoar não ser a prisão-albergue domiciliar
outra coisa que velada impunidade.
A despeito da crítica demolidora, o instituto
subsistiu, tendo-o acolhido a Lei nº 7.210, de 11.7.84 (Lei de
Execução Penal) e admitido para o beneficiário de regime
aberto, em hipóteses taxativas (art. 117), a saber: condenado
maior de 70 anos, ou acometido de moléstia grave;
condenada gestante, ou com filho menor, ou deficiente
físico ou mental.
O Estado, porém, como observam geralmente os
doutos, não está aparelhado para oferecer ao condenado
o estabelecimento penal compatível com o regime que
lhe fixara a sentença.
Por isso, não raro, condenados são mantidos em
estabelecimentos prisionais diversos daquele a que fariam
jus, o que, em princípio, configura desvio de execução.
Formam hoje verdadeira legião os condenados que,
promovidos já ao regime semiaberto, aguardam ainda no
fechado o surgimento de vagas.
466

E não lhes esquece aquilo de um alto engenho:


“As esperanças que tardam tiram a vida” (Antônio Vieira,
História do Futuro, 2a. ed., p. 59; Imprensa Nacional).

III. Têm nossos Tribunais tratado variamente a


tormentosa questão da permanência do condenado em
regime mais gravoso, pela falta de vagas em
estabelecimento da rede da Coespe (Coordenadoria dos
Estabelecimentos Penais do Estado de São Paulo).
Acórdãos inúmeros professam a inteligência de que
tal situação, conquanto irregular e anômala, deve ser
tolerada porque, ao cabo de contas, cai na esfera dos
casos de força maior, que nenhum Juiz, ainda o mais
diligente, pode prevenir ou remediar. Ao demais, alguma
delonga (posto indesejável) que, porventura, suceda na
transferência do sentenciado para a colônia penal ou
estabelecimento similar, há de interpretar-se como efeito
invencível da contingência a que estarão sempre sujeitos
aqueles que voluntariamente se levantaram contra a
ordem legal e cometeram crimes.
Copiosos também são os julgados de nossas Cortes
Judiciárias que preconizam tese oposta: reputam gênero
grande de injustiça agravar, sem razão de direito, a sorte
do condenado. Assim, desde que lhe estipulou a sentença
o regime semiaberto para o cumprimento da pena
(máxime se de curta duração, e o seu crime não esteja no
número dos que mais gravemente ferem a ordem jurídica
e social), será violência mantê-lo sob o regime fechado.
467

No caso de falta de vaga em presídio adequado ao


semiaberto, seria de razão e justiça aguardasse o
sentenciado, no regime aberto, sob a forma de prisão
domiciliar, a efetivação de sua transferência.
Isto sentiu bem o eminente Juiz Renato Nalini, em
acórdão de que foi relator, e que veio à luz na Revista dos
Tribunais (vol. 759, p. 627): “A manutenção do preso em
regime fechado, quando faz jus ao regime semiaberto constitui
constrangimento, corrigível por habeas corpus. O encarcerado
não pode responder pela incúria do Estado e se não existir vaga
no estabelecimento adequado, pode fazer jus ao regime aberto,
até mesmo sob a forma de prisão domiciliar, a critério do Juízo
das Execuções”.
Solução heroica e extremada, não há negá-lo, mas
que se compadece com os ditames da Justiça, desde que
aplicada pelo Juiz com a prudência do bom varão, o qual
não pode ignorar que, para quem está preso, um dia
importa o mesmo que uma eternidade!

IV. Foi a consideração do imenso malefício da pena


privativa de liberdade — sobretudo quando aplicada
muitos anos após o cometimento do crime, estando já o
infrator reintegrado na vida social — que moveu o ânimo
dos Juízes da colenda 15a. Câmara do Tribunal
de Alçada Criminal do Estado São Paulo a negar
legitimidade à prisão de condenado efetuada à véspera do
dia da consumação do prazo prescricional da pretensão
executória da pena.
468

O Estado que espera seis anos, para cumprir ordem


de prisão expedida por motivo de condenação, já não
pratica, por seus agentes, ato vinculado, antes parece
executar vingança pública.
Tem esta substância o ven. acórdão:

Recurso em Sentido Estrito nº 1.249.863/4


Comarca: Rio Claro
Recorrente: João C.
Recorrido: Ministério Público

Ementa Oficial:
– Das decisões proferidas pelo Juízo de Direito
da Vara das Execuções Criminais cabe, em
princípio, agravo, por força do preceito do art. 197
da Lei de Execução Penal.
– Se o Estado, por seus agentes, não revela, durante
largo trato de tempo, interesse algum em cumprir
ordem de prisão expedida contra réu já reintegrado
no convívio social (e afastado da esfera do crime),
decai do direito de fazê-lo à véspera da consumação
do prazo prescricional da pretensão executória de
sua pena. Por ferir de frente o sentimento de justiça
e a lógica do razoável, a cega obediência à lei, em
tal caso, seria rematado arbítrio e vingança; mas
justiça excessiva não é senão injustiça, proclamou
com assaz de razão o eloquente Cícero: “Summum
jus, summa injuria” (De Officiis, I, 10).
– Ao Estado não pode interessar mais a expiação
do delito cometido pelo infrator do que sua
recuperação, fim último da pena.
469

–“Não há vinculação à lei que seja suficientemente forte


para romper o compromisso que todo Juiz Criminal deve
ter com a equidade e, portanto, com a própria Justiça”
(Alberto Silva Franco, in JTACrSP, vol. 76, pp.
307-308).

1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito


da Vara das Execuções Criminais da Comarca de Rio
Claro, indeferindo-lhe pedido de extinção da punibilidade
pela prescrição da pretensão punitiva, interpôs recurso para
este Egrégio Tribunal, com o intuito de reformá-la, João C.
Alega, nas razões de recurso elaboradas por sua
esforçada e digna patrona, que, prescrita sua pena em
execução, era força julgar-lhe extinta a punibilidade.
Acrescenta, com efeito, que, por infração do art. 157,
§ 2º, ns. I e II, do Código Penal, foi condenado pelo
MM. Juízo de Direito da 17a. Vara Criminal da Comarca
da Capital à pena de 5 anos e 4 meses de reclusão e
13 dias-multa (proc. nº 546/90).
Afirma também que, desde a data do trânsito em
julgado da sentença condenatória — 3.7.92 — até à
data de sua prisão — 2.7.98 (fl. 30) —, decorreu lapso
temporal suficiente à prescrição da pretensão executória da
pena.
Sustenta, à derradeira, que, menor de 21 anos ao
tempo do crime, o prazo de prescrição, nos termos do art.
115 do Código Penal, reduzia-se de metade, convém a saber:
6 anos.
470

Destarte, espera que a colenda Câmara lhe proveja o


recurso para o efeito de julgar-lhe extinta a punibilidade
(fls. 2/18).
Apresentou contrarrazões a douta Promotoria de
Justiça: repeliu a pretensão da nobre Defesa, sob color de
que se não aperfeiçoara o lapso prescricional (fl. 62).
O r. despacho de fl. 77 manteve, por seus próprios
fundamentos, a r. decisão agravada.
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em
incisivo e ponderado parecer do Dr. Shiozo Tanaka,
opina seja conhecido o recurso como agravo em execução,
negando-se-lhe, todavia, provimento (fls. 80/82).
É o relatório.

2. Acho razão ao culto e diligente subscritor do


parecer (fl. 81), quando observa ser o agravo em
execução o recurso adequado a impugnar decisão que
indefere pedido de extinção da punibilidade pela
prescrição da pretensão executória.
Esta, com efeito, é a melhor interpretação do texto
legal, segundo o escólio de Julio Fabbrini Mirabete:

“Para a jurisprudência majoritária cabe o recurso de


agravo em todas as decisões do juiz da execução no
procedimento judicial diante do disposto nos artigos 66 e
197 da LEP” (Execução Penal, 5a. ed., p. 458).
471

Destarte, pelo princípio da fungibilidade dos


recursos (art. 579 do Cód. Proc. Penal), conheço como
agravo em execução do que interpôs o sentenciado.

3. No rigor do cálculo aritmético e segundo o preceito


da lei, a decisão está sobranceira a toda a censura, uma
vez que o recorrente, para seu infortúnio, foi preso à
véspera do dia da consumação do prazo prescricional.
De feito, lançadas boas contas, desde o termo inicial
do prazo prescribente — i.e., a data do trânsito em
julgado da sentença para o Ministério Público: 3.7.92 (cf.
fl. 62) — e a sua prisão em 2.7.98 (causa interruptiva),
não decorreu o trato de tempo de 6 anos, em que se daria
a prescrição da pena de 5 anos e 4 meses, observada a
circunstância do art. 115 do Código Penal.
Ora, segundo a regra do art. 10 do referido estatuto,
inclui-se no cômputo do prazo de prescrição o dia do
começo — no caso, 3.7.92 (data do trânsito em julgado
da sentença condenatória para a Acusação e Defesa, pois
gênese do título penal executório).
Mas, preso aos 2.7.98, nesse dia se interrompeu o
lapso prescricional da pretensão executória (art. 117, nº V).
Donde a conclusão implacável, mas escorreita, do
parecer da douta Procuradoria-Geral de Justiça (fl. 81):
preso o recorrente em 2 de julho de 1998, o prazo
extintivo de sua punibilidade decorreria tão somente à
meia-noite de 2 de julho de 1998.
472

Assim, à conta de algumas horas, não pôde o


recorrente subtrair-se ao império da Justiça punitiva.
À data do crime — 7.1.90 (fl. 145) —, tocava o réu
por 19 anos (fl. 128).

4. No caso, porém, a aplicar textualmente a norma


penal, estará o juiz ferindo de rosto o princípio que lhe
deve reger todas as decisões e que o legislador mandou
gravar no pórtico de bronze do Código Civil: “Na
aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se
dirige e às exigências do bem comum” (art. 5º, da Lei de
Introdução ao Código Civil).
Mandado de prisão havia sido expedido, fazia 6
anos, contra o agravante e apenas à última hora, quando
iminente a perda de sua eficácia, o Estado pôs timbre em
executá-lo.
Mas, ao presente, o condenado já não é o mesmo
indivíduo de antanho: reintegrou-se na comunhão social
e tem profissão lícita.
Enviá-lo ao cárcere, por obediência formal e cega à
vontade da lei, seria quebrar-lhe o propósito de
regeneração e deitá-lo a perder.
Ao Estado não pode interessar mais a expiação do
delito cometido pelo infrator do que sua recuperação, fim
último da pena.
473

5. A jurisprudência — afirmou o sábio e preclaro


Magistrado Eliézer Rosa — é “a errata que os Tribunais
escrevem para corrigir os excessos dos Códigos que devem ser
feitos para o Homem, mas na verdade, por ocasião de sua
feitura, é como se o Homem é que fora feito para os Códigos”
(apud Heleno Cláudio Fragoso, Jurisprudência Criminal,
1973, vol. II, p. 374).
De que ao juiz, em casos de todo especiais, é lícito
atenuar os ápices da lei, concedem os mais opinados
exegetas.
Do livro clássico de Carlos Maximiliano extraio este
passo, que merecia perpetuado em lâminas de ouro:
“Hoje a maioria absoluta dos juristas quer libertar da
letra da lei o julgador, pelo menos quando da aplicação
rigorosa dos textos resulte injusta dureza, ou até mesmo
simples antagonismo com os ditames da equidade.
Assim, vai perdendo apologistas na prática a frase
de Ulpiano — durum jus, sed ita lex scripta est —
duro Direito, porém assim foi redigida a lei — e
prevalecendo, em seu lugar, o summum jus, summa
injuria — do excesso de direito resulta a suprema
injustiça” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 16a.
ed., p. 170).

Também o exímio Alberto Silva Franco, honra e


glória da Magistratura pátria (que não somente paulista),
em brilhante voto vencedor, não se correu de expender
estas notáveis palavras a respeito de hipótese muito
semelhante à de que tratam os autos:
474

“Julgo seres humanos, gente, enfim. E se meu campo de


trabalho se situa nesse nível, não posso, nem quero —
meu compromisso de Juiz com a lei é menos importante
do que minha compreensão a respeito do sentido
da justiça e minha visão do mundo — sacrificar a
liberdade de pessoas como se estas fossem coisas, paradas
no tempo, estáticas.
Não compreendo como possa, ao mesmo tempo,
cumprir a lei e ser justo condenando, quase sete anos
depois da prática da infração penal, indivíduos que estão
hoje perfeitamente integrados no convívio social. A
mora na entrega da prestação jurisdicional torna, no
momento, a imposição de pena privativa de liberdade
um ato de profunda injustiça. No espaço de tempo em
que o aparelhamento judiciário deixou em suspenso
uma definição sobre a ação criminosa, os apelantes
transformaram-se. Não são as mesmas pessoas que
executaram a infração penal. E se já são outras pessoas,
não me sinto, portanto, em condições de privá-los de sua
liberdade para o cumprimento de uma pena absurda de
cinco anos e quatro meses de reclusão. Tal condenação
tem para mim a sensação amarga de apenar pessoas que
são totalmente estranhas ao delito. E, nesse caso, não há
vinculação à lei que seja suficientemente forte para
romper o compromisso que todo Juiz Criminal deve ter
com a equidade e, portanto, com a própria Justiça”
(JTACrSP, vol. 76, pp. 307-308).
475

Isto mesmo pratica a generalidade dos Tribunais do


País, conforme se extrai do ven. acórdão do Tribunal de
Justiça do Ceará, abaixo reproduzido em sua parte
fundamental:
“A respeito da matéria, cumpre trazer à tona as lições
de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes que, ao estudar
tal princípio (scilicet, da razoabilidade), após invocar
ensinamento de Recaséns Siches — para quem a lógica
dedutiva é imprópria para a solução dos problemas
jurídicos e humanos, ao contrário da lógica do razoável,
que realiza operações que a lógica formal não comporta,
especialmente aquelas de valorização e adaptação à
realidade concreta —, assevera: ‘A própria noção de
razoabilidade adquire um contorno próprio e específico
no Direito, sendo mesmo erigida à categoria de princípio
geral informativo do sistema jurídico positivo. E não se
pense que tal procedimento pode gerar uma ruptura
intrassistêmica ao Direito, porquanto o princípio (talvez
mais acertadamente o principado) da razoabilidade é
que dá consistência à possibilidade material da
realização da justiça na aplicação concreta da lei,
sobretudo da lei penal’ (Teoria constitucional do direito
penal. São Paulo, Ed. RT, 2000, p. 450-451)”
(Rev. Tribs., vol. 787, p. 515; rel. Des. Fernando
Luiz Ximenes Rocha).

6. Destarte, o cumprimento de seu mandado de prisão


(seis anos após expedido e às vésperas da consumação
do prazo prescricional) pode satisfazer à lógica da
Matemática, mas ofende de frente as normas do Direito e
476

da Justiça, que assentam na lógica do razoável; pelo que,


tenho por francamente injusto e desarrazoado deixar de
reconhecer ao réu a extinção de sua punibilidade, “por
questão de algumas horas ou quiçá em função de alguns
minutos” (fl. 82).
A severa obrigação do Estado de meter em ferros ao
autor de um crime torna-se ilegítima quando, por
desmarcada omissão e inércia de seus agentes, não provê
às diligências necessárias para efetivá-lo a seu tempo.
Ao direito-dever de punir do Estado, que, por
dilatado espaço de tempo, não demonstra interesse em
executar o castigo imposto ao réu, prevalece o direito
deste de eximir-se da sanção penal e do rigor do cárcere
se, havendo aborrecido a vida de crimes, plenamente se
reintegrou no convívio da sociedade.
Exigir, no caso, o cumprimento mecânico da lei não
seria ato de justiça, mas puro arbítrio e vingança. Porém,
justiça excessiva não é senão injustiça, proclamou com
assaz de razão o grande Cícero: “Summum jus, summa
injuria” (De Officiis, I, 10).

7. Pelo exposto, conheço do recurso como agravo em


execução e dou-lhe provimento para, com base nos arts. 107,
nº IV, 109, nº III, 110 e 115 do Código Penal, julgar extinta
a punibilidade do réu pela prescrição da pretensão
executória da pena (proc. nº 546/90 ; 17a. Vara Criminal).
Expeça-se-lhe alvará de soltura, se por al não estiver
preso. São Paulo, 20 de dezembro de 2001 (Carlos
Biasotti, relator).
47. Palavra: Veículo do Pensamento

I – “Dom mimoso de Deus”, na frase de um de nossos


clássicos(1), é a palavra o instrumento da ideia. Mas,
consequência da imperfeição mesma do homem, nem
sempre a pode representar fielmente. Ao invés, tanta é a
dificuldade para traduzir a ideia na sua inteireza, que o
insigne Carlos Maximiliano, sem alguma injúria à verdade,
antes com grande respeito dela, afirmou que a palavra
passava por mau veículo do pensamento(2). Isto mesmo
escreveu o talentoso Saint-Exupéry, em sua obra-prima
imortal: A linguagem é uma fonte de mal-entendidos(3).
Não maravilha, pois, que, expressão literal de uma
ideia, a palavra seja de igual passo causa e ocasião de
incidentes, e estes muita vez graves.

II – Temos entre mãos exemplo que faz ao caso. Certo


advogado, narra uma folha carioca(4), empregara em
petição a palavra quadrilheiro em referência a um oficial de
justiça, o que este não levou em paciência, comunicando-o
logo a seu juiz (o Dr. Paulo César Salomão), o qual,
tomando o vocábulo à má parte, representou à Ordem dos
Advogados do Brasil contra o Dr. Salomão Velmovitsky
(assim havia nome o nobre causídico). Aquela entidade,
órgão a um tempo de disciplina e defesa dos que
pertencem à ínclita profissão, rejeitou o libelo proposto pelo
juiz, preferindo acolher os argumentos do advogado,
reputados da primeira intuição: quadrilheiro não significava
478

só o indivíduo que fazia parte de quadrilha, era também


sinônimo de oficial de justiça. O que tudo bem visto e
examinado, foi força achar razão ao perspicaz bacharel
(íamos dizendo nosso herói). Em verdade, registraram a
palavra quadrilheiro, na última acepção, os mais autorizados
lexicógrafos da língua. Depara-no-lo o bissecular Rafael
Bluteau, com a seguinte definição: “Quadrilheiro, oficial
humilde de justiça”(5). Pelo mesmo teor o velho Morais(6)
e o Constâncio(7). As próprias Ordenações Filipinas, “de
autoridade clássica entre os clássicos”, na opinião de Rui(8),
reservaram aos quadrilheiros não menos de um título(9).
Portanto, da mesma sorte que meirinho, beleguim e aguazil, a
palavra quadrilheiro tem carta de vernaculidade portuguesa
entre os sinônimos de oficial de justiça.

III – No intuito de justificar a exação de sua linguagem,


o conspícuo advogado (jamais rábula!) louvou-se no
argumento de autoridade, “in verbis”: “Descobri, num artigo
do jurista Eliézer Rosa, que quadrilheiro era sinônimo de oficial
de justiça”. E, tendo-se abordoado à lição de autor de tanto
crédito, de nenhuma outra havia ele mister, em firmeza do
acerto do tratamento dispensado ao oficial de diligências.
Falara contudo verdade, quando disse ter reproduzido
o magistério de Eliézer Rosa, não só mestre na ciência do
Direito senão cultor exímio das boas letras? Estamos que
sim.
Temos, com efeito, diante dos olhos cópia do artigo
que, debaixo do título Estudinhos de Processo, aquele
eminente magistrado tirou à luz em jornal do Rio de
479

Janeiro. Dele transcrevemos este relanço: “Em nosso


vernáculo, são sinônimos dicionarizados de oficial de justiça os
seguintes: oficial de diligências, beleguim, esbirro, alcaide,
aguazil, sargente, ovençal, meirinho, quadrilheiro”(10). De
seguida, ajuntou esta judiciosa advertência: “Desses termos,
muitos se tornaram obsoletos, caíram em desuso muito
justamente, porque não significam nada em nossos dias, sobre
serem muito pejorativos, injustamente pejorativos” (ibidem).
O ponto, logo se vê, está em usar com discrição
aqueles vocábulos, dos quais uns caíram em mortório,
outros porém têm curso livre e são vernáculos de lei.
Quadrilheiro, posto que de fidalga genitura, termo é que
hoje se não deve empregar por sinônimo de oficial de
justiça, à conta de seu cunho notoriamente injurioso.
Matéria é esta, pois, digna de especial cautela, não se
converta em pedra de escândalo, de que mal puderam
eximir-se dois altos sujeitos, que traziam por timbre de sua
muita ciência e raro aviso o nome de Salomão, “o mais sábio
de todos os que nasceram”(11).

Notas

(1) Silvério Gomes Pimenta, in Discursos Acadêmicos,


1936, p. 65.
(2) Cf. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1933, p. 131.
(3) “Le langage est source de malentendus” (Le Petit Prince,
1997, p. 69; Gallimard).
(4) O Dia, 17.8.95.
480

(5) Vocabulário, 1720, t. VII, p. 7.


(6) Dicionário da Língua Portuguesa, 1813, t. II, p. 531.
(7) Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1877, p. 816.
(8) Cf. Réplica, nº 2.
(9) O LXXIII do liv. I, que dispunha: “Em todas as cidades,
vilas, lugares e seus termos, haverá quadrilheiros, para que
melhor se prendam os malfeitores”.
(10) Cf. Jornal do Comércio, 5.6.78.
(11) Vieira, Sermões, 1959, t. IX, p. 256.
48. Parricídio: Crime Abominável

I – Todo crime tem lá sua abjeção, porque é sempre ato


antissocial reprovável. Alguns, no entanto, por sua própria
torpeza ou pelas condições mui particulares do ofendido,
sobem de ponto na escala da iniquidade: não infringem só
as leis humanas, senão também as divinas. Desse número é
o homicídio, “a mais chocante violação do senso moral médio da
humanidade civilizada”(1).
Mas “a destruição da vida humana, por outro homem” —
palavras com que a doutrina penal define o homicídio(2) —
pôde ainda (“horribile dictu!”) — conhecer especial
circunstância que a tornou, além de delito máximo,
verdadeiro sacrilégio: a morte do pai pelo filho (parricídio).
Parecia impossível que alguém se estremasse tanto no
circuito da perversidade, que não quisesse poupar ao
menos o autor de seus dias!
Grão documento é esse da ignomínia que cinge o
homem, quando se desabraça dos preceitos a que os
indivíduos pertencentes à superior espécie dos racionais
devem catar estrita observância!

II – Desde a mais alta antiguidade foi o parricídio


considerado crime da última hediondez.
É fama que Sólon, insigne legislador de Atenas,
“perguntando por que razão não fizera alguma lei em castigo dos
que matassem a seus pais, respondeu que no coração humano não
cabia tão enorme crueldade”(3).
482

E “obrou prudentemente”, advertiu Cícero, “em não


ordenar nada contra o que até então se não tinha cometido, para
que parecesse que mais admoestava do que proibia”(4).
Igual horror causava aos persas a ideia do parricídio.
Entre eles, conforme a lição de Heródoto, nunca houve
quem matasse o pai ou a mãe, pois todas as vezes que se
divulgou a notícia de tal crime, descobriu-se, “depois de
rigorosas pesquisas, que o filho criminoso, ou era suposto ou
adulterino”. Isso porque não podiam admitir “a possibilidade
de um homem matar o verdadeiro autor dos seus dias”(5).
Ainda hoje, se alguém é convencido de parricídio,
logo se prova — por honra da Humanidade! — que o
praticara sob o império de intermitência escura de reto
juízo. Será esta a única explicação plausível para tão
excepcional atrocidade: que um insano a tenha perpetrado,
porque só aquele a quem faltou a luz da razão pudera dar
a morte ao que lhe deu a vida.

III – Em que pese às leis severas promulgadas para a


contenção dos delitos, cresce contudo desenfreada a
criminalidade. Não está, portanto, só no rigor punitivo o
meio de adversá-la. Importa muito conhecer-lhe as reais
causas. Uma delas é a miséria social (que se tem pela mãe
do crime); outra, a ignorância, que não permite ao
indivíduo discernir com acerto entre o bem e o mal. E
isto cabe à educação, que é dever do Estado. (Falou
avisadamente quem disse: Educai as crianças e não será preciso
castigar os homens!).
483

Ainda: busquemos incutir no ânimo dos jovens, a


todo o poder que pudermos, o amor do trabalho, o
preciosíssimo dos fatores da promoção humana(6);
exortemo-los, ao demais, à aturada prática das virtudes.
Unicamente assim estarão armados de ponto em branco
para aniquilar os três piores inimigos que ainda houve
entre nós: a miséria, a ignorância e o crime.

Notas

(1) Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1981,


vol. V, p. 25.
(2) E. Magalhães Noronha, Direito Penal, 1969, vol. II,
p. 18.
(3) Bluteau, Vocabulário, 1720, t. VI, p. 279. Este mesmo
caso refere o historiador Diogo do Couto: “Essa foi a
razão por que Sólon não falou na pena que teria quem
matasse seu pai, porque dizia que não queria que entrasse
na imaginação dos homens tamanha maldade” (Soldado
Prático, 1790, p. 105).
(4) Cícero, Orações, 1948, p. 400; trad. Pe. Antônio
Joaquim.
(5) História, 1950, cap. CXXXVII; trad. J. Brito Broca.
(6) “O trabalho não é castigo: é a santificação das criaturas.
Tudo o que nasce do trabalho é bom” (Rui, A Questão
Social e Política no Brasil, 1983, p. 11).
49. Crise no Tribunal do Júri

I – O Fato. Soou como um tiro de canhão no silêncio da


noite o pregão de rebate que, pelos idos de março de 1993,
deram alguns promotores de justiça do 1º Tribunal do Júri
da Capital, de que as sessões daquela corte estariam eivadas
de nulidade absoluta por inobservância de regra processual
impostergável: a que impõe seja feita mediante cautelas
especiais a convocação do júri.
Esse ato, de tanta solenidade, relevância e graveza,
estaria sendo praticado, a jurarmos nas palavras daqueles
representantes do Ministério Público, à luz de critério
outro que o exigido por lei. Indisputável, assim
(proclamaram eles), que o tribunal popular infringiu em
seu espírito e forma o preceito do art. 428 do Código de
Processo Penal (de 1941), que reza: “O sorteio (dos vinte e um
jurados que tiverem de servir na sessão) far-se-á a portas
abertas, e um menor de dezoito anos tirará da urna geral as
cédulas com os nomes dos jurados, as quais serão recolhidas a
outra urna, ficando a chave respectiva em poder do juiz, o que
tudo será reduzido a termo pelo escrivão, em livro a esse fim
destinado, com especificação dos vinte e um sorteados”.
Tal notícia não veio a público a descoberto de prova
ou sob a cor de artifício retórico; antes se autorizou com
elementos e testemunhos superiores a toda a exceção. Em
suma: a pormos fé inteira na séria increpação do órgão
ministerial, o 1º Tribunal do Júri, ao escolher por critério
insólito os jurados que nele deviam servir, obrou com
486

enorme afronta dos ditames da lei, pois até réu de


homicídio doloso consta que figurara em seu cadastro geral
onomástico.

II – O Júri. As instituições humanas, ainda as mais


nobres, têm lá seus detratores, que é coisa impossível
concordarem todos os pareceres, conforme aquilo do
excelso Vieira: “Até entre os anjos pode haver variedade de
opiniões, sem menoscabo de sua sabedoria, nem de sua
santidade”(1).
Assim quanto ao júri: alguns houve que o exaltaram
aos cornos da lua(2); estigmatizaram-no outros com o
ferrete em brasa, não o poupando a aspérrimas diatribes e
invectivas(3). Mas, quem lhe definiu melhor a essência e fez
subir de ponto sua utilidade foi decerto Rui, por estas
palavras verdadeiramente dignas de se entregarem à
memória: “Sentido, senhores! Quando o tribunal popular cair, é
a parede mestra da Justiça que ruirá. Pela brecha hiante varará
o tropel desatinado e os mais altos tribunais vacilarão no trono
da sua superioridade”(4).
Todavia, muito a prazer de seus apologistas e com
bem de pesar de seus críticos inexoráveis, tem o júri, em
face do direito brasileiro, a consagração de garantia
constitucional (art. 5º, nº XXXVIII). Os que o não quiserem
aplaudir hão pois, ao menos por imperativo legal, de
catar-lhe esclarecido e pronto respeito.
487

III – As Nulidades. É doutrina jurídica triunfante, que não


vale (sendo, portanto, nulo) o ato que deixa de revestir a
forma determinada em lei(5). Originando-se de infração
de princípios capitais do sistema jurídico, a nulidade será
“pleno jure”. Por seu caráter de ordem pública, pode alegá-la
qualquer interessado, “e se o interessado guarda silêncio, se o
Ministério não intervém ou se mostra incurioso no cumprimento
de seus deveres, nem assim a nulidade se cobre”(6).
No âmbito da Justiça Penal, o maior interessado em
arguir a nulidade do ato praticado em detrimento da forma
prescrita em lei será aquele que ocupar o polo passivo da
relação processual; aquele que, potencialmente, haja de
suportar o gravame da condenação: o réu. Sua voz, por
isso, com preferência a todas as mais, será a que vai emitir
os veementes e firmes protestos contra a preterição de
formalidades processuais relevantes.
Não cuide alguém deva o interessado, em obséquio à
teoria geral dos atos irregulares, fazer prova de seu
prejuízo, primeiro que argua a nulidade. Fora demasia
exigi-lo. Por simples presunção, com efeito, prova-se o
prejuízo do réu julgado por juiz incompetente, a quem se
equipara o jurado escolhido sem atenção ao requisito da
“notória idoneidade”(7).

IV – Os Jurados. Ponto que não sofre disputa é esse do alto


conceito que deve exornar os jurados, entre os quais não
queria Firmino Whitacker senão “homens de moral pura e
consciência reta”(8). Faz-se mister concorram neles cabedais
de ciências e virtudes que francamente os recomendem à
488

terrível e bela função de julgar, a qual, por sua desmedida


grandeza, parece havê-la o homem usurpado à própria
divindade(9). Estrito rigor, por conseguinte, deve presidir à
seleção do corpo de jurados, pedra angular da veneranda
instituição do Júri.
Os que externaram profunda irresignação à vista dos
episódios ocorridos na esfera do 1º Tribunal do Júri,
estamos que não o fizeram com o intuito de “desmoralizar
a Justiça” (como parecera a um de nossos egrégios
criminalistas) ou por “frívolo curialismo”, porém pela muita
importância que lhes mereceu o problema da irregularidade
dos atos judiciais.
Foram, nesse particular, fiduciários da doutrina
do saudoso professor José Frederico Marques: “Muita
prudência, portanto, deve guiar o juiz quando tenha de encarar o
problema das nulidades no processo penal. Postergar, de maneira
categórica, a relevância das formas processuais, para atender tão
só ao aspecto teleológico do ato, pode redundar em violação aberta
do direito de defesa. É que a observância das formas, na justiça
penal, constitui, muitas vezes, o instrumento de que a lei se vale
para garantir o jus libertatis contra as coações indevidas e sem
justa causa”(10).
Contrapondo-se à prática perniciosa que se instalara
no seio do Judiciário, os promotores do 1º Tribunal do Júri
souberam desempenhar o principalíssimo de seus deveres:
zelar pelo fiel cumprimento da lei.
Tenhamo-los, pois, em boa conta!
489

Notas

(1) Sermões, 1959, t. IV, p. 216.


(2) Na legião dos defensores do júri alistaram-se autores
de muito nome, que lhe encareceram as excelências
com frases lapidares: “O júri é a melhor forma de justiça
que eu conheço” (Magarinos Torres, apud Evandro Lins
e Silva, A Defesa Tem a Palavra, 1980, p. 237); “Se um
dia tiver a infelicidade de cometer um crime, quero ser
julgado pelo júri popular, porque é o único tribunal que
pode fazer-me verdadeira justiça” (Pedro Lessa, apud
Vitorino Prata Castelo Branco, O Advogado no Tribunal
do Júri, 1989, p. 25); “Júri, santuário da justiça popular”
(José Eduardo Fonseca, Justiça Criminal, 1925, p. 70).
(3) Do júri, entre nós, foi quiçá Nélson Hungria seu mais
iníquo censor, ao averbá-lo não menos que de “osso de
megatério”: “…o famigerado Tribunal, osso de megatério
que persiste em ligar repressão penal e regime democrático,
redundou, pela incompetência e frouxidão, em fator
indireto de criminalidade” (apud Pedro Paulo Filho,
Grandes Advogados, Grandes Julgamentos, 1989, p. 20).
(4) Obras Completas, vol. XXV, t. III, p. 86.
(5) Art. 130 do Cód. Civil.
(6) Orosimbo Nonato, Da Coação como Defeito do Ato
Jurídico, 1957, p. 226.
(7) Art. 436 do Cód. Proc. Penal.
(8) Júri, 5a. ed., p. 18.
490

(9) “Sublime e tremenda missão de julgar, que no dizer de Ellero


foi usurpada pelo homem a Deus” (Carlos de Araújo
Lima, Os Grandes Processos do Júri, 1957, vol. III,
p. 175).
(10) Estudos de Direito Processual Penal, 1959, p. 259.
50. Da Morosidade (Inevitável) da Justiça

I – Não é recente o fenômeno. Já em 1921, Rui Barbosa,


em sua celebérrima Oração aos Moços, verberava o teor de
proceder de certos “magistrados, nas mãos de quem os autos
penam como as almas do purgatório, ou arrastam sonos
esquecidos como as preguiças do mato”(1), e proferia aquelas
palavras que entraram em provérbio: “Justiça atrasada não é
justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”(2).
Temos para nós, porém, que a Justiça não pode nem
deve ser demasiado rápida, sob pena de comprometer o
resultado que dela espera o próprio Estado. A causa,
conforme advertiu Eliézer Rosa, está em que “a bilateralidade
essencial da ação exige o contraditório”(3), soberano princípio
de direito judiciário que, entre nós, tem a consagração de
garantia constitucional (art. 5º, nº LV).
À conta de sua estrutura dialética, repugna ao
processo, portanto, a marca da celeridade, levantado ideal
para cuja consecução empenharam não poucos o melhor
de suas energias e talentos.
Nada obstante, passa por legítima a aspiração comum
de que toda a prestação jurisdicional deva ser entregue com
a maior brevidade que caiba no possível, pois quem teve
seu direito violado sofre por força, e é coisa assaz difícil
unir a dor à paciência. A demora, no entanto, “faz parte da
vida do processo”(4).
492

II – O insigne e abalizado criminalista Carlos de Araújo


Lima, numa crônica de suas viagens à França, descreve
que vivamente o impressionara e comovera a estátua do
legendário Berreyer(5), no átrio do Palácio da Justiça de
Paris, e a seus pés, “quase escondida, uma pequena tartaruga de
pedra”, como a lembrar que “a justiça de verdade não deve e
não pode correr. Ela exige um pouco de lentidão para ser madura
e inteira”(6).
Não será, logo, pelos estilos da Cavalaria (“rápido,
ainda que mal feito!”), que se haverão de compor nunca os
negócios judiciais, mormente no foro criminal, onde
impera aquela sentença não menos famosa que verdadeira:
Decidir depressa é buscar um culpado!
Com prudente arbítrio, convirá fugir sempre aos
excessos e levar em vista o equilíbrio ou meio-termo, que
é onde está a virtude.
Nisto de dispensar justiça, como em tudo o mais na
vida, cumpre em suma, atender àquela “primeira máxima de
toda a razão de estado, assim da Providência Divina, como da
providência humana, que é saber concordar estes dois extremos:
conseguir o intento e evitar o perigo”(7).
Lograr o intento, em pontos de justiça, é dar a cada
um o seu (“suum cuique tribuere”); evitar o perigo é não
cometer iniquidades, causa frequente de ódios implacáveis
e cruentas convulsões político-sociais.
493

Estátua de Berryer, glória imortal da Advocacia


(Palácio da Justiça de Paris)

Estátua da Justiça
(por escabelo, “uma pequena tartaruga de pedra”)
494

Notas

(1) 1a. ed., p. 42.


(2) Ibidem, p. 42.
(3) Novo Dicionário de Processo Civil, 1986, p. 34.
(4) Idem, ibidem, p. 34.
(5) Do velho Berryer, glória imortal da Advocacia,
ficou-nos assentada em memória esta altiloquente
apóstrofe: “Trago à Convenção a verdade e a minha
cabeça! Os juízes podem dispor de uma, depois de ter ouvido
a outra” (cf. Pedro Paulo Filho, Grandes Advogados,
Grandes Julgamentos, 1989, p. 374).
(6) Tribuna da Imprensa, 1.7.93.
(7) Vieira, Sermões, 1959, t. I, p. 329.
51. Embargos de Declaração no
Processo Penal
Sumário. Ainda que se pretenda superior a toda a crítica, pode a
decisão judicial conter defeitos de vária ordem: omissão, obscuridade,
erro ou contradição. Para conjurá-los, a lei processual previu o uso dos
embargos de declaração.

I. Se “até nas obras de Deus há claros e escuros”, pois “da luz


e das trevas compôs o dia natural”, como escreveu grave
autor(1); se “até o Sol tem manchas”, conforme asseveram os
astrônomos, que muito encerre uma decisão, ainda que
com bem de pesar de seu prolator, baldas e senões?!
Produto do entendimento humano, adivinham-se-lhe as
imperfeições e fraquezas!
Daqui a instituição dos embargos declaratórios,
espécie de recurso cuja finalidade precípua é provocar o
reexame de decisão para esclarecê-la, dissipando-lhe as
dúvidas ou expungindo-a de erros (art. 619 do Cód. Proc.
Penal).
Pelo comum, não possuem caráter infringente ou
modificativo do julgado(2).
“Melhor será que a sentença não erre. Mas, se cair em erro,
o pior é que se não corrija”, escreveu o excelso Rui (Oração aos
Moços, 1a. ed., p. 45).
Nos casos em que se amparem a razões atendíveis,
nenhum escrúpulo deve obstar que o Juiz acolha de boa
sombra embargos declaratórios opostos às suas decisões.
496

Temos, a esse propósito, lição de nosso mais


eminente jurisconsulto:
“A toga do magistrado não se deslustra, retratando-se dos
seus despachos e sentenças, antes se relustra, desdizendo-se
do sentenciado ou resolvido, quando se lhe antolha claro o
engano em que laborava, ou a injustiça que cometeu” (Rui
Barbosa, Obras Completas, vol. XLV, t. IV, p. 205)(3).

Magistrados que, num impulso de consciência reta —


e talvez não vulgar coragem moral —, não hesitarem em
rever suas decisões e até mudar de opinião em bem da
Justiça e da Verdade(4), esses terão por si o aplauso e a
reverência dos espíritos esclarecidos e honrados (o que
bastará a recomendar-lhes o nome à estima pública).

II. Em conformidade com a doutrina mais bem recebida


e sob o patrocínio de abalizada jurisprudência, foi que a
15a. Câmara do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de
São Paulo decidiu os Embargos de Declaração, cuja cópia
vai adiante reproduzida:
497

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE A LÇADA CRIMINAL


D ÉCIMA Q UINTA C ÂMARA

Embargos de Declaração nº 1.214.913/5 1


Comarca: Pirajuí
Embargante: LCS
Embargada: 15a. Câmara do Egrégio Tribunal
de Alçada Criminal

Voto nº 2697
Relator

–“Em caso de dúvida sobre a tempestividade


do recurso, deve ser admitido” (STF; Rev.
Trim. Jurisp., vol. 89, p. 799).
–“Proferida a sentença de mérito, o juiz
encerra a atividade jurisdicional sobre
a imputação” (Vicente Greco Filho,
Manual de Processo Penal, 1997, p. 327);
pelo que, já não pode modificá-la, senão
para emendar erros materiais.
– Lição de Rui: “Quer dizer que o juiz,
depois de proferir a sentença, deixou de
ser juiz a este respeito. É esse o direito
dominante entre nós” (Obras Completas,
vol. XXXII, t. I, p. 141).
498

–“Os embargos de declaração não se devem


revestir de caráter infringente do julgado”
(Julgados do Supremo Tribunal Federal, vol.
217, p. 266; rel. Min. Néri da Silveira).

1. Assistido de ilustre advogado, LCS opôs embargos de


declaração ao ven. acórdão de fls. 767/779, sob color de
que encerrava nulidade; ao demais, era contraditório e
omisso.
Requer, destarte, o acolhimento do recurso, a fim de
que seja anulado o acórdão, ou afastada sua condenação,
por “injusta e sem qualquer base legal” (fls. 792/807).
A arguição de nulidade consistira no cerceamento do
direito de defesa, por falta de intimação do patrono do réu
para o julgamento de sua apelação.
Ao aviso do embargante, foi omisso o acórdão porque
não reconhecera a nulidade do processo, à qual dera causa
a falta de “intimação específica” da defesa para manifestar-se
a respeito da remessa dos autos ao Juízo de Direito da
Comarca de Pirajuí.
Teria sido também contraditório ao sustentar que a
alegação de cerceamento de defesa respeitava somente à
fase de instrução do processo, não à inquisitorial.
Acrescenta que incidiu em equívoco a decisão
colegiada ao manter-lhe a condenação por crime que não
cometera, pois não estava obrigado a efetuar repasses
de recursos correspondentes a dotações orçamentárias
destinadas aos órgãos do legislativo.
499

À derradeira, afirma que a escassez das finanças do


Município de Pirajuí era óbice irremediável à realização do
pagamento aos Vereadores.
Pleiteia, assim, o recebimento dos embargos.
É o relatório.

2. A r. sentença proferida pelo MM. Juízo de Direito da


2a. Vara Criminal da Comarca de Pirajuí condenou o réu
à pena de 10 dias-multa por infração do art. 1º, nº XIV, do
Decreto-lei nº 201/67, combinado com o art. 71 do Código
Penal.
Confirmou-a em sua inteireza o ven. acórdão desta
colenda Câmara, ao julgar-lhe improcedente a apelação.
O embargante, porém, increpando-o de nulidade,
contradição e omissão, pretende-lhe a reforma.

3. Conheço dos embargos, porque opostos no prazo e


em forma legal.
A dúvida acerca da tempestividade da interposição do
recurso, interpreto-a em favor do embargante. É que,
embora disponha o art. 798, § 6º, alínea a, do Código de
Processo Penal que “os prazos correrão da intimação” — e esta
se deu aos 27.11.2000 (fl. 791) —, o embargante
manifestou-se a tempo, ainda que somente aos 6.12.2000
tenha seu recurso entrado no Protocolo de Segunda
Instância (fl. 792).
500

A petição de fl. 792, protocolou-a o embargante no


Fórum da Comarca de Pirajuí, como lho facultava o
sistema de protocolo integrado, criado pelo Provimento nº
462, de 14.10.91, do Conselho Superior da Magistratura
do Estado de São Paulo, com a redação que lhe deu o
Provimento nº 3/92, o qual autorizou os protocolos dos foros
do Estado a receber as petições destinadas ao Tribunal de
Justiça e aos Tribunais de Alçada. Fê-lo no dia 29.11.2000,
como consta do selo adesivo de fl. 792, portanto no prazo
do art. 619 do Código de Processo Penal.
Vem aqui a ponto o magistério do Colendo Superior
Tribunal de Justiça:
“A interposição de recurso, no Estado de São Paulo, em
comarca diversa, pelo sistema de protocolo integrado, dentro
do prazo legal, considera-se tempestiva mesmo que a petição
tenha sido juntada aos autos posteriormente” (Revista do
Superior Tribunal de Justiça, vol. 57, p. 377; apud
Theotonio Negrão, Código de Processo Civil, 26a. ed.,
p. 399).

Ainda:
“Em caso de dúvida sobre a tempestividade do recurso, deve
ser admitido” (STF; Rev. Trim. Jurisp., vol. 89, p. 799;
apud Damásio E. de Jesus, Código de Processo Penal,
13a. ed., p. 404).

À vista do que levo expendido, conheço dos


embargos de declaração e entro a examiná-los.
501

4. A alegação de nulidade do julgamento, porque


cerceada a defesa do embargante, não procede, “data venia”.
Não fora o combativo patrono do embargante
intimado a tempo da sessão de julgamento da apelação:
este, o argumento com que pretende invalidar a r. decisão
colegiada.
Ainda que, por assistir longe da Capital, lhe tenha
chegado às mãos com atraso o órgão da imprensa oficial em
que foi publicada a intimação da sessão de julgamento — e
por isso a ela não pôde comparecer para a sustentação oral
de suas razões —, não se mostra atendível sua pretensão.
Deveras, o julgamento da causa de interesse do
embargante obedeceu à disposição do art. 129, § 1º, do
Regimento Interno do Tribunal, que obriga à publicação da
ordem do dia no órgão oficial, com a antecedência mínima
de 48h; o que, aliás, foi feito, como o reconheceu o próprio
embargante (fl. 795).
A circunstância de que soubera tardiamente da data
do julgamento não é poderosa a carrear-lhe nulidade.
Deveras:
“A intimação de advogado, devidamente constituído, das
decisões proferidas em 2a. Instância, deverá ser feita por
publicação no órgão oficial ou no órgão da imprensa
incumbido da publicidade dos atos judiciais da comarca,
nos termos do art. 370, § 1º, do Cód. Proc. Penal, com a
redação dada pela Lei nº 9.271/96” (STF; Min. Carlos
Velloso; Rev. Tribs., vol. 754, p. 543).
502

Rejeito, por isso, a preliminar de nulidade suscitada


pelo embargante.

5. O embargante assentou o ferrete de omisso ao ven.


acórdão porque não decretara a nulidade do processo por
alegada afronta ao princípio do contraditório e da ampla
defesa: faltara intimação específica de seu patrono para
dizer a respeito da remessa dos autos ao Juízo de Direito da
Comarca de Pirajuí.
Não lhe acho, todavia, razão.
Com efeito, versando o tema, afirmou textualmente o
ven. acórdão:
[4. Também não procede, com a devida vênia, a
argumentação do recurso de que estaria nulo o
processo por falta de intimação do despacho de
fl. 650 à Defesa.
Tal alegação, posto a não considere este
obscuro juiz obra de malícia, de equívoco é
certamente.
Em verdade, do aludido despacho foram as
partes regularmente intimadas (fl. 677 v.).
Da certidão do cartório, ao demais, constou
que não veio aos autos manifestação da Defesa
(Ibidem).
Ora, se intimada na forma da lei, deixou a
Defesa corresse “in albis” o prazo para falar nos
autos, direito era esse que lhe assistia: tratava-se
de ato que se achava no circuito dos ônus.
503

De feito:
“Agir ou omitir-se, na ocasião própria, dentro do
processo, é uma dimensão de liberdade processual.
Cada parte age, ou não age, em certas ocasiões, a seu
risco. Só o interesse próprio lhe ditará se deve ou não
atuar” (Eliézer Rosa, Dicionário de Processo Civil,
1973, p. 304).
À derradeira, a prova do prejuízo é requisito
da decretação da nulidade processual.
No caso, ainda que alguma nulidade
triunfasse — o que admito sem contudo
conceder —, não era de reconhecê-la, ante a
ausência de prova cabal do prejuízo.
Assim dispõe o art. 563 do Código de Processo
Penal:
“Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade
não resultar prejuízo para a acusação ou para a
defesa”.
Por manifestamente improcedentes, rejeito as
questões preliminares suscitadas no apelo do
réu.]

6. De contraditório também o embargante qualificou o


ven. acórdão, que proclamara ser inaplicável ao inquérito
policial o princípio da ampla defesa. Sustenta que, “a
contrario sensu”, ao menos na fase judicial, deveria ser-lhe
garantido o exercício da plena defesa, com possibilidade de
realização de perícia, em ordem a restabelecer a verdade
dos fatos.
504

Abraçando doutrina que os críticos mais exatos


observam e ensinam, afirmou o acórdão recorrido que o
contraditório pertencia para a instrução criminal judicial, “in
verbis” (fls. 773/774):
[A razão é que, embora “indispensável à
administração da justiça” (art. 133 da Const. Fed.),
não há exigir a presença do advogado, exceto
naqueles atos em que opera como requisito de
sua validade.
O caso dos autos não está nesse número.
A perícia contábil contra que se rebela o apelante,
efetuada a instância da Procuradoria-Geral de
Justiça (fls. 304 e 311/315), não armava senão
ao fito de obter os elementos necessários à
instauração do processo-crime. A “persecutio
criminis” não passara ainda da esfera policial.
Ora, segundo a comum opinião dos doutores,
não é indeclinável, no curso da investigação
policial, a prática do contraditório, que entende
só com o processo (o qual só entra a existir com o
recebimento da denúncia ou queixa).
Entendimento é este que tem por fiador não
menos que ao Colendo Supremo Tribunal
Federal:
“A investigação policial, em razão de sua própria
natureza, não se efetiva sob o crime do contraditório,
eis que é somente em Juízo que se torna plenamente
exigível o dever estatal de observância do postulado da
bilateralidade dos atos processuais e da instrução
criminal. A inaplicabilidade da garantia do
505

contraditório ao inquérito policial tem sido reconhecida


pela jurisprudência do STF. A prerrogativa inafastável
da ampla defesa traduz elemento essencial e exclusivo
da persecução penal em Juízo” (Rev. Tribs., vol. 689,
p. 439; rel. Min. Celso de Mello).
Ainda:
“Não cabe alegar cerceamento de defesa na fase do
inquérito. O contraditório é próprio da instrução
criminal judicial” (STJ; RHC nº 4.358-0; rel. Min.
Edson Vidigal; DJU 4.8.95, p. 24.035; apud
Alberto Silva Franco et alii, Código de Processo
Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, 1999, vol.
I, pp. 40-41).]

7. Os embargos ferem também a questão relacionada


com suposto equívoco do ven. acórdão, por haver mantido
a condenação do réu pela prática de crime que não
cometera. Invoca em seu prol motivo de força maior: a
Prefeitura do Município de Pirajuí carecia dos recursos
para o pagamento dos salários de seus vereadores.
Mas, ao tratar, no âmbito dos embargos de declaração,
de matéria já sovada e que entende com sua culpabilidade,
por sem dúvida que o réu não guardara, como lhe cumpria,
inteira observância à finalidade dessa espécie recursal,
limitada ao esclarecimento do acórdão.
“Assim — escreveu Bento de Faria —, não devem ser
admitidos quando o seu objetivo for a infringência ou a nulidade
do julgamento” (Código de Processo Penal, 1960, vol. II, p.
340).
506

Não é, portanto, pela via judicial dos embargos de


declaração que o réu haverá de impugnar a conclusão do
acórdão que lhe foi desfavorável. Pretender, como faz, que
a colenda Câmara lhe reaprecie a tese da inocência, o
mesmo seria que pressupô-la dotada de qualidade que não
tem, i.e., de juízo de retratação.
A alegada injustiça da decisão — se a houve — já não
será a turma julgadora quem a vai reparar.

8. Em verdade, é princípio jurídico, observado entre nós


sem quebra, que, “proferida a sentença de mérito, o juiz encerra
a atividade jurisdicional sobre a imputação” (Vicente Greco
Filho, Manual de Processo Penal, 1997, p. 327); já não
poderá modificá-la, senão para retificar erros materiais.
Quer dizer — é a lição de Rui — “quer dizer que o juiz,
depois de proferir a sentença, deixou de ser juiz a este respeito.
É esse o direito dominante entre nós” (Obras Completas, vol.
XXXII, t. I, p. 141).
Pelo mesmo teor, João Monteiro:
“A sentença termina o ofício do juiz, e por isso é irretratável;
quer dizer que, proferida a sentença definitiva, finda a
jurisdição do respectivo juiz prolator” (apud Rui, op. cit.,
p. 142).

Nisto de alcance e finalidade dos embargos de


declaração, vem aqui a pelo a jurisprudência do Pretório
Excelso:
507

a) “O recurso de embargos de declaração não tem cabimento


quando, a pretexto de esclarecer uma inocorrente situação
de obscuridade, contradição, dúvida ou omissão do
acórdão, vem a ser utilizado com o objetivo de infringir o
julgado” (ED em RE nº 159.228-DF; rel. Min. Celso
de Mello);
b) “Os embargos de declaração não se devem revestir de
caráter infringente do julgado. A maior elasticidade que
se lhes reconhece, excepcionalmente, em casos de erro
material evidente ou de manifesta utilização para
questionar a correção do julgado no mérito e obter sua
modificação” (Julgados do Supremo Tribunal Federal,
vol. 217, p. 266; rel. Min. Néri da Silveira; apud
Alberto Silva Franco et alii, Código de Processo Penal
e sua Interpretação Jurisprudencial, 1999, vol. II,
p. 3.035).
Estas, as razões que me inclinam a não admitir, com
bem de pesar meu, os embargos de declaração opostos ao
acórdão de fls. 768/779 pela estrênua e talentosa Defesa
do réu.

9. Pelo exposto, rejeito os embargos de declaração.

São Paulo, 2 de janeiro de 2001


Carlos Biasotti
Relator
508

III. Embargos de Declaração:


Petição de Interposição e Razões
(Modelo de Petição)

Excelentíssimo Senhor Relator da Apelação Criminal nº


_______________, Des. ____________________(5)

1. (Nome do embargante), por seu advogado infra-


-assinado, vem, mui respeitosamente, perante Vossa
Excelência, conforme o disposto no art. 619 do Código
de Processo Penal e pelas razões de fato e de direito
adiante expendidas, opor(6) Embargos de Declaração(7) ao
venerando acórdão proferido nos autos de Apelação
Criminal nº ________________________, da Comarca de
São Paulo.

Nestes termos,
P. Deferimento.

São Paulo, (dia, mês e ano)


________________________________
(Nome do advogado e número da OAB)
509

Razões de Embargos de Declaração


(Nome do embargante)

Eminentes Julgadores:

1. Por acórdão de (sua data), a colenda 5a. Câmara


Criminal do Egrégio Tribunal de Justiça, à unanimidade
de votos, proveu o apelo do Ministério Público, “para fixar
o regime fechado, desde o início e negar provimento ao recurso do
réu, expedindo-se-lhe mandado de prisão” (fl. __).
O julgado, entretanto, com que(8) subscrito por
juristas de prol, que enterreiraram(9) a controvérsia em suas
lindas próprias, rende flanco a reparo (vênia!).

2. De feito, ao mesmo passo que negava provimento ao


recurso do réu, dava-o o v. acórdão ao da Justiça Pública,
para o fim de impor ao embargante regime fechado, com
expedição de mandado de prisão.
O v. decreto condenatório, no entanto, com a devida
vênia, não pode operar consequências contra o “status
libertatis” do réu, porque extinta já sua punibilidade(10).
Deveras, é princípio geralmente recebido (e até
exaltado à categoria de dogma em matéria processual), que
o acórdão confirmatório da sentença de condenação não
interrompe o prazo prescricional. Damásio E. de Jesus,
510

representando o comum sentir dos doutores, discorre desta


substância:
“O acórdão que, em recurso da acusação, agrava a pena
não interrompe o prazo prescricional. Trata-se de acórdão
confirmatório e não condenatório” (Prescrição Penal, 1995,
p. 88).

Entendimento é este que tem por si o aval(11) de


todos os Tribunais do País, como o persuadem os excertos
a seguir transcritos:
a) “O acórdão confirmatório da condenação imposta em 1º
grau não tem virtude de interromper o lapso prescricional.
Punibilidade declarada extinta, julgando-se, em
consequência, prejudicado o recurso especial” (STJ; Rev.
Tribs., vol. 679, p. 414; doc. __);
b) “A decisão que confirma a sentença condenatória não foi
— nem poderia ser — considerada pelo legislador causa
de interrupção (…)” (TJSP, RJTJESP, vol. 125, p. 557;
doc. __);
c) “Prescrição — Pretensão executória — Condenação
confirmada em Segunda Instância — Substituição da
pena privativa de liberdade pela de multa — Prazo
prescricional não interrompido pelo acórdão — Aplicação
dos arts. 112, nº I, e 117 do CP — Agravo improvido”
(TACrimSP, JTACrSP, vol. 100, p. 66; doc. __).

3. No caso, a decisão de Primeira Instância, que


condenou o embargante à pena de 5 meses e 10 dias de
reclusão, foi proferida em (dia, mês e ano).
511

Mas, se a pena é inferior a 1 ano, reza o art. 109, nº VI,


do Código Penal, prescreve em 2 anos. Ora, daquela a esta
data decorreram já para mais de 2 anos(12). Logo, acha-se
prescrita a pretensão punitiva estatal.
À derradeira, nisso de hermenêutica e aplicação do
direito, tem boa cabida a lição de Bento de Faria:
“Em matéria penal, justifica-se sempre a interpretação mais
favorável à liberdade” (Código de Processo Penal, 1960,
vol. II, p. 71).

4. Pelo exposto, e sob a invocação dos áureos


suprimentos jurídicos de Vossas Excelências, espera o
embargante que, recebidos os presentes embargos, tenham
a bem julgá-los provados, para o fim de ser-lhe declarada
extinta a punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva
estatal.

E.R.M.
São Paulo, (dia, mês e ano)
________________________________
(Nome do advogado e número da OAB)

Notas

(1) Rafael Bluteau, Suplemento ao Vocabulário, 1727, 1a.


parte; Preâmbulo).
512

(2) Cf. Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo


Tribunal Federal, vol. 182, p. 896; Min. Celso de
Mello.
(3) Ainda: “Felizes os que variam da ignorância para a
ciência, do erro para a verdade. Afortunado o que, pecando
um dia contra a verdade, ou contra a justiça, acorda, a
tempo, do seu engano, e se retrata ainda utilmente do
seu desvio. Benditas as mudanças de opinião, quando se
operam neste sentido. Elas não abalam a consideração
pública a quem a merecer. Antes recomendam à estima, ao
respeito e à confiança de seus semelhantes o homem, que não
se desdoure de as confessar, e sem rubor pratique a nobre
ação de se desdizer abertamente, pondo a consciência acima
do interesse, o dever acima da vaidade, antes que o
desacerto, circulando abonado com o prestígio de um nome
autorizado, comece a produzir consequências malfazejas”
(Idem, ibidem, p. 213).
(4) Aliás, segundo a velha parêmia, mudar para melhor é
próprio do sábio: “Sapientis est mutare in melius”.
(5) Juiz-relator da apelação criminal. Os embargos,
“deduzidos em requerimento” (art. 620 do Código de
Processo Penal) e opostos “no prazo de dois dias” (art.
619), são endereçados ao juiz que funcionou como
relator do acórdão.
(6) Opor embargos. E não oferecer ou interpô-los: “Opor
embargos” (Caldas Aulete, Dicionário).
513

(7) Embargos de Declaração. “Pressuposto dos embargos


de declaração é que a sentença ou acórdão contenha
obscuridade, omissão ou pontos contraditórios que causem
gravame ao embargante” (José Frederico Marques,
Elementos de Direito Processual Penal, 2000, vol. IV,
p. 363; Millennium Editora).
(8) Com que subscrito. “Com que tem aí o valor de ainda que,
com indicativo ou subjuntivo” (Mário Barreto, Novíssimos
Estudos da Língua Portuguesa, 1a. ed., p. 281).
(9) Enterreiraram a controvérsia em suas lindas(*) próprias.
“(Fig.) Enterreirar um negócio, um assunto, dispor com arte
a conversação para que naturalmente ele venha à discussão,
trazê-lo a terreiro” (Caldas Aulete, Dicionário). Ex.: “O
eminente orador enterreira o assunto em toda a sua altura
(…)” (Rui, Queda do Império, t. II, 1921, p. 2); “Um
aresto francês citado em Demogue (…) enterreira a
questão em suas lindes próprias” (Orosimbo Nonato, Da
Coação como Defeito do Ato Jurídico, 1957, p. 171);
“Nestes termos é que (…) enterreira a questão, e o faz
aguisadamente” (Idem, Curso de Obrigações, 1a. ed., vol.
II, p. 273).
(*) Lindas (fem.), isto é, limites, raias, estrema,
baliza, marco, etc. Cândido de Figueiredo
(Dicionário) emprega também a forma lindes
(masc.).
514

(10) Extinta já sua punibilidade. 1. Dentre as causas que


podem atuar sobre a punibilidade do agente enumera
o Código Penal a prescrição (art. 107, nº IV), que “é a
extinção do direito de punir do Estado pelo decurso do
tempo” (José Frederico Marques, Curso de Direito
Penal, 1956, vol. III, p. 412). Denomina-se prescrição
da pretensão punitiva estatal a que ocorre antes da
sentença, e prescrição da pretensão executória da pena
a que lhe sobrevém; 2. A pretensão retroativa
(modalidade da pretensão punitiva estatal) pode ser
reconhecida pelo juízo de primeiro grau (cf. Rev.
Tribs., vol. 637, p. 371; JTACrSP, vol. 72, p. 111 e
vol. 73, p. 20); 3. À Vara das Execuções Criminais é
que se deve requerer a decretação da prescrição da
pretensão executória da pena (cf. Rev. Tribs., vol. 619,
p. 295); 4. Diz-se intercorrente a prescrição que se
verifica entre a sentença de primeiro grau e o
julgamento da apelação dela interposta; 5. “São
reduzidos de metade os prazos de prescrição quando o
criminoso era, ao tempo do crime, menor de vinte e um
anos, ou, na data da sentença, maior de setenta anos” (art.
115 do Cód. Penal).
(11) Tem por si o aval de. Expressões semelhantes: conta
com o apoio de; é patrocinado por; conforma-se com
o entendimento ou a lição de; na mesma opinião
abundam juristas de nota, etc. Exs.: “Com esta lei se
conforma a doutrina de Aristóteles” (Bluteau, Prosas
Portuguesas, 1728, 1a. parte, p. 286); “Apolodoro diz,
acostado ao testemunho de vários autores, que” (Camilo,
515

O Gênio do Cristianismo, trad., 1952, vol. I, p. 194);


“A interpretação de Espínola orna com o texto da lei”
(Orosimbo Nonato, Da Coação como Defeito do Ato
Jurídico, 1957, p. 91); “E sua lição esforçava-se
também na autoridade de” (Idem, ibidem, p. 312);
“De tudo nos dão exemplos os nossos maiores que têm voto
valioso nestes assuntos” (B. Sampaio, Falar Certo, 1a. ed.,
p. 114); “Não tenho menos fiador que Santo Agostinho”
(Vieira, Sermões, 1959, t. XV, p. 337); “Tem a seu favor
não menos que a Jacinto Freire” (Cândido Lusitano,
Reflexões sobre a Língua Portuguesa, 3a. parte, p. 98);
“Em firmeza do que levo dito sobre os hibridismos, falem
em meu prol e abono gramáticos e filólogos” (Francelino
de Andrade, O Vernáculo, p. 255); “Não tenho neste
sentido menos autor que Vieira” (Rui, Réplica, nº 210).
(12) Decorreram já para mais de 2 anos. Decorreram (e não
decorreu). Vai o verbo para o plural sempre que ao
sujeito mais de seguir-se nome no plural ou
“nome coletivo acompanhado de complemento plural” (cf.
Napoleão Mendes de Almeida, Dicionário de Questões
Vernáculas, 1981, p. 181).
52. O Desaforamento nos
Processos do Júri

Sumário. É a imparcialidade um dos atributos mais conspícuos do


julgador, de sorte que, em ela faltando, suas próprias decisões perdem
força e legitimidade; o que se entende não só do juiz de direito senão
também do juiz de fato (ou jurado).

I. A imparcialidade em suas decisões(1) é a importantíssima


entre as qualidades de todo julgador. Assim o juiz de
direito como o juiz de fato ou jurado(2) serão — porque
sob formal compromisso(3) —, necessariamente, imparciais.
Os jurados, embora profiram voto “ex informata
conscientia” — isto é, de acordo com sua convicção íntima
—, não podem aberrar da prova legitimamente produzida,
que é a voz dos autos, a alma do processo e a luz que deve
guiar o juiz.
Aquilo, portanto, que tenha aptidão para anular
julgamento por eiva de parcialidade, ordena a Justiça que
se previna e atalhe a todo transe.
Pode, com efeito, haver circunstâncias de muito
alcance que, por exercerem influência no ânimo dos
jurados e coartar-lhes a faculdade de formar reto juízo e de
deliberar sobre a causa debatida em plenário, são capazes
de contaminar a decisão do Júri, malferindo-a de nulidade
insanável.
518

Esta, a razão por que o legislador, que se presume


sempre sábio, acudiu com medida que lhes pusesse cobro:
o desaforamento.
O assento legal do instituto é o art. 427 do Código de
Processo Penal, que reza:
“Se o interesse da ordem pública o reclamar ou houver
dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança
pessoal do acusado, o Tribunal, a requerimento do
Ministério Público, do assistente, do querelante ou do
acusado ou mediante representação do juiz competente,
poderá determinar o desaforamento do julgamento para
outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles
motivos, preferindo-se as mais próximas”.

Será de razão deferir, em alguns casos, o pedido de


desaforamento; noutros, manda o bom Direito que se
negue, por amor do princípio do juiz natural, que rege todo
processo.

II. Ilustram ambas as hipóteses os acórdãos a seguir


reproduzidos, do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo:
519

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


QUINTA CÂMARA – SEÇÃO CRIMINAL

Desaforamento nº 474.521-3/1-00
Comarca: Matão
Requerente: MM. Juízo de Direito da 1a. Vara Criminal
da Comarca de Matão

Voto nº 5993
Relator

– No interesse da ordem pública,


ameaçada pela comoção social
decorrente de crime da última
hediondez, e em razão de fortes
dúvidas acerca da segurança pessoal
do réu e da imparcialidade do júri,
é força deferir pedido, formulado
de ofício pelo Juiz de Direito da
Comarca, de desaforamento do
julgamento pelo Tribunal do Júri (art.
427 do Cód. Proc. Penal).
520

– Pelo que respeita à dificuldade em


achar advogado que proceda à defesa
em plenário de réu de crime atroz
e repugnante, cabe advertir que
ainda o mais vil dos homens não
decai nunca da proteção da lei.
Excelentemente, Rui: “A defesa não
quer o panegírico da culpa, ou do
culpado, sua função consiste em ser, ao
lado do acusado, inocente ou criminoso,
a voz de seus direitos legais” (Obras
Completas, vol. XXXVIII, t. II, p. 10).

1. A ilustre Juíza de Direito da 1a. Vara da Comarca de


Matão, nos autos do processo-crime que a Justiça Pública
move contra VAC, representa a este Egrégio Tribunal pelo
desaforamento de seu julgamento pelo Júri.
Afirma, no pedido de fls. 2/4, que o réu foi
denunciado como incurso nas sanções dos arts. 1º da Lei
nº 2.252/54 (corrupção de menores), 213 (estupro), 214
(atentado violento ao pudor) e 121, § 2º, ns. III e V
(homicídio qualificado pelo emprego de meio cruel e para
assegurar a impunidade de outro crime), conjugados com o
art. 29, por duas vezes, do Código Penal.
Foi o caso que, no dia 18 de dezembro de 2002, pelas
18h30, em local ermo, próximo da Rodovia dos
Trabalhadores (km 1,15), no Município e Comarca de
Matão, obrando em concurso e unidade de propósitos com
o menor inimputável ICS, o réu teria constrangido KF e
521

CAAF, crianças de 6 anos de idade, à conjunção carnal e à


prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal,
mediante violência real, além de, em seguida, ajudado
ainda de adolescente, haver-lhes dado a morte, com
emprego de meio cruel (asfixia), com o intuito de assegurar
a ocultação e a impunidade dos crimes anteriormente
perpetrados.
Aduz mais a douta Magistrada que, após regular
instrução do processo, foi o réu pronunciado para
julgamento pelo Tribunal do Júri, por decisão já transitada
em julgado.
Acrescenta que os crimes de que tratam estes autos
suscitaram grande estrépito na cidade e consternaram a
população, não acostumada a tais atrocidades. Eis a razão
por que, durante as audiências que se feriram em Juízo,
familiares e amigos das vítimas postaram-se junto do
Fórum, o que obrigou ao fechamento da porta frontal do
prédio e à intervenção da Polícia.
Em vista da indignação popular, houve mister, “ad
cautelam”, retirar o réu do prédio pela porta dos fundos.
É voz pública, ao demais, que parentes do réu se
travaram de razões com os familiares das vítimas.
Consta ainda que todos os advogados inscritos na
Subseção da OAB da Comarca se recusaram prover à
defesa do réu, sob color de que não tinham “condições
psicológicas” para atuar em plenário. Também a Subseção da
OAB de Araraquara deu de mão ao convite para tomar
sobre si o patrocínio da causa.
522

Assim, porque a preservação da ordem pública o


reclamava, e também em obséquio à segurança do réu, a
distinta Magistrada da Comarca de Matão protestou pelo
desaforamento de seu julgamento pelo Tribunal do Júri.
A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em firme e
abalizado parecer do Dr. Gilberto de Angelis, opina pelo
deferimento da representação (fls. 35/37).
É o relatório.

2. As razões que expôs a douta Magistrada (fls. 2/4)


e as circunstâncias dos fatos imputados ao réu — que
provocaram, entre os habitantes da bela e pacata cidade
de Matão, a mais intensa comoção e repugnância —
persuadem para logo da procedência do pedido.
De feito, o geral sentimento de repúdio da população
local (notadamente dos familiares e amigos das pequenas
vítimas) aos crimes apurados nestes autos inculca fundado
receio pela incolumidade pessoal de seus autores (entre os
quais, o réu).
Cabe relevar que, por ensejo das audiências de
instrução da causa-crime, pessoas em atitude animosa
acercaram-se do edifício do Fórum, o que implicou fossem
adotadas providências especiais (fechamento da porta
principal do prédio e requisição de concurso da Polícia),
não se subvertesse a ordem legal.
Do que bem claro se mostra que, na comunidade
local, a apreensão de que possa alguém infligir mal grave
ao réu — e ainda a seu defensor, como o observou, com
523

penetração, o douto parecer de fl. 36 —, não será fantasia


desordenada, senão hipótese provável.
Ao demais, o trauma psicológico de que se ressentiu a
gente de Matão faz contra a presunção de imparcialidade
do julgamento.

3. Conquanto medida de exceção, o desaforamento


do julgamento, solicitado pelo MM. Juízo de Direito da
Comarca de Matão afigura-se atendível, pois que
conspiram os pressupostos legais: interesse da ordem
pública e dúvidas sobre a segurança pessoal do réu e a
imparcialidade do júri, as quais, segundo a lição da
doutrina, “se referem a causas ambientais, de pressão, adesão ou
influência, e também de coação ou violência moral, cabalas,
indignação popular em relação ao réu (…)” (José Frederico
Marques, O Júri no Direito Brasileiro, 2a. ed., p. 113).

Vem a ponto, por isso, a jurisprudência dos


Tribunais:

a) “Legal é o desaforamento do julgamento ditado pelo


interesse da ordem pública, sempre que houver dúvida
sobre a imparcialidade do Júri ou sobre a segurança
pessoal do réu” (Rev. Tribs., vol. 540, p. 417; rel. Min.
Cordeiro Guerra);

b) “Havendo fatos objetivos que autorizem fundada dúvida


sobre a imparcialidade dos jurados, é de se deferir
o pedido de desaforamento, garantindo-se ao réu
524

julgamento que atenda aos requisitos legais de isenção


e imparcialidade” (Rev. Tribs., vol. 549, p. 429; rel.
Min. Cunha Peixoto);
c) “Se o interesse da ordem pública o reclamar, ou houver
dúvida sobre a imparcialidade do Júri, ou sobre a
segurança pessoal do réu, justifica-se o desaforamento do
julgamento” (Rev. Tribs., vol. 602, p. 441; rel. Min.
Djaci Falcão; apud Alberto Silva Franco, Código de
Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial,
1999, vol. vol. II, p. 2.409).

Em suma: presentes as razões que o autorizam, defiro,


na forma do art. 427 do Código de Processo Penal, o
desaforamento do julgamento do réu para a Comarca mais
próxima.

4. Pelo que respeita à dificuldade em achar quem lhe


proceda à defesa em plenário, cabe ressaltar que se trata de
legítimo direito do réu, que a legislação dos povos
civilizados assegura ainda ao mais vil dos homens.
Nossa Carta Magna inscreveu-o entre os direitos e
garantias fundamentais do indivíduo (art. 5º, nº LV).
Direito é esse que os antigos entenderam muito bem,
ao cunhar a parêmia “res sacra reus”.
Embora a todas as luzes penosa a defesa do réu
odiado, garante-lha o ordenamento jurídico.
525

Temos, ao propósito, lição de muita sabedoria nas


palavras com que Rui, elegantemente, respondeu à
consulta que lhe fizera Evaristo de Morais: “A defesa não
quer o panegírico da culpa, ou do culpado, sua função consiste
em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz de seus
direitos legais” (Obras Completas, vol. XXXVIII, t. II, p. 10).

5. Pelo exposto, nos termos do art. 427 do Código de


Processo Penal, defiro o pedido, formulado de ofício pelo
MM. Juízo de Direito da Comarca de Matão, de
desaforamento do julgamento de VAC para a Comarca de
Araraquara.
São Paulo, 14 de julho de 2005
Des. Carlos Biasotti
Relator
526

PODER JUDICIÁRIO

T RIBUNAL DE JUSTIÇA DO E STADO DE S ÃO PAULO

Q UINTA C ÂMARA – S EÇÃO C RIMINAL

Desaforamento nº 990.09.214623-8
Comarca: São José do Rio Preto
Requerente: Ministério Público
Requerido: Juízo de Direito da Comarca de
São José do Rio Preto

Voto nº 12.467
Relator

– “Justiça atrasada não é justiça, senão


injustiça qualificada e manifesta” (Rui
Barbosa, Oração aos Moços, 1a. ed., p.
42).
– Desaforar o julgamento de processo da
competência do Júri é ferir de rosto o
princípio do Juiz Natural. Donde haver
opinado Rafael Magalhães que só tem
lugar desde que “as circunstâncias especiais
do caso manifestem um aspecto de acentuada
anormalidade, capazes de escusar as
inconveniências do desaforamento” (apud
José Frederico Marques, A Instituição do
Júri, 1963, p. 154).
527

– O desaforamento constitui “derrogação da


regra fundamental de que o réu deve ser
julgado no distrito da culpa” (RTJ, vol. 51,
p. 671), e certa demora na realização
do julgamento, estando o réu solto,
não lhe implica, pelo comum, prejuízo
irreparável, tampouco ofende a majestade
da Justiça.
– O Magistrado, com o arbítrio e diligência
do bom varão, dará as providências que
lhe estejam nas mãos para abreviar, se
possível, o tempo de espera do
julgamento do réu pelo Júri; se não, é
resignar-se ao império inexorável da
conjuntura adversa. “Nemo tenetur ad
impossibilia”!

1. O órgão do Ministério Público requereu


Desaforamento do processo a que responde JCMF perante o
MM. Juízo de Direito 5a. Vara Criminal da Comarca de
São José do Rio Preto, por infração do art. 121, “caput”,
combinado com o art. 14, nº II, do Código Penal.
Alegou, na petição de fls. 2/5, que, designado o
plenário de julgamento para o dia 25 de agosto de 2011,
era indeclinável a necessidade do desaforamento do feito,
nos termos da lei.
Ajuntou ainda que “mais de uma centena” de processos
aguardavam julgamento pela Vara do Júri, já preenchidas
na pauta “as disponibilidades dos exercícios de 2009, 2010 e
2011” (fl. 4).
528

Pleiteia, destarte, à Colenda Câmara, com base no art.


424, parág. único, do Código de Processo Penal, tenha a bem
deferir-lhe o pedido de desaforamento, para que se realize,
em outra Comarca, o julgamento do processo do réu.
O MM. Juízo de Direito prestou informações, nas
quais, sobre discorrer das críticas e precárias condições do
Judiciário de São José do Rio Preto no concernente aos
processos da competência do Júri.
Esclareceu mais que não havia possibilidade de
antecipar a data do julgamento do réu: “não há viabilidade
na antecipação nas dezenas de julgamentos já agendados para o
Tribunal do Júri” (fl. 22).
A douta Procuradoria-Geral de Justiça, em firme
e incisivo parecer do Dr. Marcio Sergio Christino, opina
pelo desaforamento do julgamento para a Comarca mais
próxima (fl. 323).
É o relatório.

2. Pronunciado o réu para julgamento pelo Tribunal do


Júri da Comarca de São José do Rio Preto, por infração do
art. 121, “caput”, combinado com o art. 14, nº II, do Código Penal
(fls. 6/11), foi-lhe assinada a data do plenário-crime para
25 de agosto de 2011 às 12h30 (fl. 285).
Mas, tendo presente que o sobredito julgamento se
dará em “36 (trinta e seis) meses da data de pronúncia”, o
douto Magistrado foi servido mandar os autos com vistas
às partes, para que se manifestassem nos termos do art. 424,
parág. único, do Código de Processo Penal.
529

A douta Promotoria de Justiça, argumentando com a


“relevância de tais julgamentos”, requereu o desaforamento
do julgamento do réu (fl. 4).

3. Que a 5a. Vara Criminal da Comarca de São José do


Rio Preto enfrenta crise maior da marca — em razão do
número excessivo de processos que por ali tramitam —
não é ponto de dúvida, pois que fato público e notório.
Enquanto se não derem providências efetivas, “para
eventual alteração na situação envolvendo o Anexo do Júri na
Comarca” — segundo o distinto e culto Magistrado Dr.
Caio Cesar Melluso —, “não há viabilidade na antecipação
das dezenas de julgamentos já agendados para o Tribunal do
Júri” (fl. 22).
O pedido de desaforamento está alicerçado no parág.
único do art. 424 do Código de Processo Penal: “se o julgamento
não se realizar no período de um ano, contado do recebimento do
libelo”.
Com a redação dada pela Lei nº 11.689, de 9.6.2008,
foi esse prazo reduzido a “6 meses, contado do trânsito em
julgado da decisão de pronúncia” (art. 428 do Cód. Proc. Penal).
O desaforamento — reza o citado dispositivo —
“também poderá ser determinado, em razão do comprovado
excesso de serviço”.
A “mens legis”, portanto, é imprimir celeridade aos
trâmites processuais, ou evitar-lhes as demoras demasiadas.
530

Sentenciou, com efeito, um alto espírito: “Justiça


atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”
(Rui Barbosa, Oração aos Moços, 1a. ed., p. 42).
Tal preocupação respeita, sobretudo, ao réu preso,
entre cujos direitos se inscreve o de ser rigorosamente
processado dentro nos prazos previstos em lei. É que, bem
supremo do indivíduo, a liberdade não lhe pode ser tolhida
senão por motivo legítimo relevante e por tempo razoável.

4. Não entra em dúvida que desaforar o julgamento de


processo da competência do Júri é ferir de rosto o princípio
do Juiz Natural. Donde haver opinado Rafael Magalhães
que só tem lugar desde que “as circunstâncias especiais do caso
manifestem um aspecto de acentuada anormalidade, capazes
de escusar as inconveniências do desaforamento” (apud José
Frederico Marques, A Instituição do Júri, 1963, p. 154).
O caso dos autos é desse número, pois que o
caracterizam “circunstâncias especiais”, a saber: “mais de uma
centena” de processos na 5a. Criminal da Comarca (Anexo
do Júri) e demasiada delonga no julgamento do réu,
designado para 25 de agosto de 2011, portanto daqui a
2 anos.
No caso dos autos, porém — e aqui bate o ponto —,
o réu está solto, já que lhe concedeu a sentença de
pronúncia o direito de recorrer em liberdade (fl. 12).
Portanto, aquela que poderia ser a pedra de toque
por onde aferir a necessidade e a conveniência do
531

desaforamento — i.e., a prisão do réu —, essa não conspira


no particular.
Ao demais, e circunstância é esta muito de considerar,
a deferir--se todo o pedido de desaforamento requerido
pelo Anexo do Júri da 5a. Vara Criminal da Comarca de
São José dos Campos (e não raro com fundadas e justas
razões), estar-se-ia agravando e talvez empecendo a
atividade normal das comarcas mais próximas da região,
com evidentes prejuízos para a administração da Justiça no
Estado.
Em face do que levo expedido, afigura-se razoável
esperar pela realização do julgamento na data que lhe aprazou o
MM. Juízo: 25.8.2011 (fl. 3).
O nobre Magistrado, no entanto, com o arbítrio e
diligência do bom varão, dará as providências que lhe
estejam nas mãos para antecipar, se possível, o julgamento
do réu pelo Júri; se não, é resignar-se ao império inexorável
da conjuntura adversa. “Nemo tenetur ad impossibilia”!
Ainda: em caso como o dos autos, em que está solto
réu, avulta a primazia do princípio do juiz natural, que
obsta ao desaforamento de processo da competência do
Júri.
Em suma, considerando que o desaforamento
constitui “derrogação da regra fundamental de que o réu deve ser
julgado no distrito da culpa” (RTJ, vol. 51, p. 671) e que certa
demora na realização do julgamento, estando solto o réu,
não lhe implica, pelo comum, prejuízo irreparável, e
tampouco ofende a majestade da Justiça; considerando
também que este Egrégio Tribunal tem denegado pedidos
532

em tudo idênticos ao dos autos (cf. Desaforamento nº


990.08.090901-0 – Campinas; j. 5.2.2009; rel. Pinheiro
Franco; Desaforamento nº 990.08.078119-7 – Campinas;
j. 5.2.2009; rel. Ciro Campos; Desaforamento nº
990.08.095607-0 – Campinas; j. 5.2.2009; rel. Sydnei de
Oliveira Jr., etc.), indefiro o pedido de desaforamento do
julgamento do réu JCMF.
Remetam-se cópias do acórdão, da informação do
ilustre Magistrado (fl. 22), do requerimento do Ministério
Público (fls. 2/5) e do parecer da Procuradoria-Geral de
Justiça (fls. 27/28) à Egrégia Presidência do Tribunal de
Justiça para as providências que lhe parecerem.

5. Pelo exposto, indefiro o pedido de desaforamento do


julgamento do réu JCMF, com determinação.

São Paulo, 23 de outubro de 2009


Des. Carlos Biasotti
Relator

Notas

(1) Imparcial, segundo J.I. Roquete, “é a pessoa que não


sujeita seu parecer a razões particulares, que não se inclina
com preferência a algum partido, ou se decide por aceitação
de pessoas. (…) A imparcialidade é uma qualidade que
nasce do bom-senso” (Dicionário dos Sinônimos da Língua
533

Portuguesa; v. imparcial; Lello & Irmão – Editores;


Porto).
(2) Jurado, na definição clássica de De Plácido e Silva,
diz-se a “pessoa que é chamada ao Tribunal do Júri, para
deliberar a respeito dos fatos, submetidos à sua apreciação,
opinando pela procedência ou improcedência” (Vocabulário
Jurídico, 1973; v. jurado; Editora Forense).
(3) Pelo que respeita aos jurados, dispõe o art. 472 do
Código de Processo Penal: “Formado o Conselho de Sentença,
o presidente, levantando-se, e, com ele, todos os presentes, fará
aos jurados a seguinte exortação: Em nome da lei, concito-vos
a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir
a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os
ditames da justiça. Os jurados, nominalmente chamados
pelo presidente, responderão: Assim o prometo”).
53. Da Presumida Segurança da
Urna Eletrônica
Sumário. Instrumento de comprovada utilidade nos escrutínios
eleitorais, tem a urna eletrônica lugar de relevo na vida política
nacional. Mas, obra do engenho humano, está naturalmente sujeita a
falhas e imperfeições, que urge reconhecer e corrigir, não venham a
destruir a pedra angular dos regimes democráticos, que é o voto do
eleitor.

Sob a inspiração e patrocínio da Justiça Eleitoral, os


meios de comunicação do País (rádio, televisão, etc.) têm
anunciado, com viva força, que as urnas eletrônicas, em
que depositam os eleitores os seus votos, são, quando
examinadas à luz da eficiência, precisão e segurança, de
todo o ponto confiáveis.
Da excelência de tais características foi constituída
pregoeira e avalista a renomada professora e mestra em
Filosofia Política Djamila Ribeiro, a qual, ao mesmo passo
que encareceu em sumo grau a confiança nas qualidades
positivas daquele aparelho — por atender aos requisitos da
“segurança”, “checagem” e “transparência” —, contou com o
prestígio de lisonjeira informação: “Não recebeu cachê para
participar desta campanha”.
As circunstâncias em que elaborada como que
conferem à mensagem rigor dogmático. Ostenta, com
efeito, caráter oficial, expedida que foi por órgão da
soberania do Estado: Tribunal Superior Eleitoral, cujo
536

Presidente — Ministro Luís Roberto Barroso — não é


lícito supor quisesse obrar com outro propósito que prover
da máxima garantia e lisura a realização dos pleitos(1).
Ao demais, isto de haver profissional de nomeada
renunciado à retribuição econômica ou verba honorária,
a que fazia jus (por sustentar o facho de importante
campanha de interesse público), passa por lance edificante
de cidadania, poderoso a prevenir e afastar o menor laivo
de má-fé, restrição mental ou intenção reservada.
Por fim, diz em crédito dos vibrantes discursos em
prol dos predicados vantajosos da urna eletrônica a Portaria
nº 578, de 8.9.21, do Excelentíssimo Senhor Presidente do
Tribunal Superior Eleitoral, que criou a Comissão de
Transparência das Eleições (CTE), e a Portaria nº 579, de
8.9.21, que tornou pública a composição do Observatório
da Transparência das Eleições (OTE): expressivo rol de
representantes de instituições e órgãos públicos (Congresso
Nacional, Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério
Público, Forças Armadas, Polícia Federal, etc.), chamados
a supervisionar a tecnologia aplicada ao sistema eleitoral.
Tal conjunção de fatores, embora ponderável,
afigurar-se-á entretanto hábil para elidir toda dúvida
sensata a respeito da urna eletrônica?!
Terá deveras solidez absoluta o que dela dizem
sujeitos, ainda que fidedignos e de grande ilustração?!
Eis a pergunta que poderá fazer alguém, num mundo
em que até os rochedos se abalam!
537

II. No campo das ideias nenhum assunto está fora de


exame e debate. Princípio é esse que se autoriza com o
timbre da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
da ONU, de 1948: “Todo homem tem direito à liberdade de
opinião e expressão, direito esse que inclui a liberdade de, sem
interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de
fronteiras” (art. 19)(2). Igual disposição traz a Constituição
da República Federativa do Brasil, de 5.10.1988(3).
De feito — disse-o com razão e inexcedível
propriedade Mário Barreto, fino homem de letras —, “Só
as verdades intrinsecamente matemáticas estão isentas de toda
discussão”(4); argumento a que acrescentou peso e força o
saudoso e benemérito Prof. Napoleão Mendes de Almeida,
com dizer que só “o ignorante não duvida, porque desconhece
que ignora”(5).
Pode, portanto, a dúvida representar estágio mais
que aconselhável, obrigatório, na busca incessante da
verdade(6).
Nas ações humanas é coisa vulgar o erro; desde que
feita por homem, a obra encerra, por força, alguma
imperfeição, fatal contingência contra que ninguém se
mostrou ainda suficientemente seguro. Esta é a regra geral!
Não lhe constituem exceção notável sequer aqueles
nos quais arde o fogo do gênio e que, inteligências
privilegiadas, acreditam-se pupilos diletos da fortuna.
É que também sobre eles exerce implacável sua
jurisdição a “eterna falibilidade humana, cujos estigmas ninguém
evita neste mundo”, como sentenciou o nosso Rui(7).
538

Cuida-se aqui — escusava dizê-lo — somente do erro


do entendimento, não do que é parto da vontade viciada
ou da malícia (que fora gênero de desgraça grande supô-lo
em sujeitos incumbidos de prestar inestimáveis serviços à
Pátria!).

III. Por padrão de segurança, declara o Tribunal Superior


Eleitoral, em seu texto de campanha, que a urna eletrônica
“não é conectada à Internet nem a nenhuma outra rede”.
Afirma ainda que o “boletim de urna” — extrato
impresso dos votos dos candidatos — é afixado no átrio
da seção eleitoral para conhecimento dos interessados em
apurar o rigor do escrutínio.
Por fim, especialistas em segurança digital, instituições
e órgãos do Estado haverão de comprovar se o sistema de
urna eletrônica é, em verdade, sem falha e superior à crítica
honesta.
A essas cautelas, que têm o cunho de imprescindíveis
à atestação da qualidade da urna eletrônica, duas outras
sobrelevariam:

I- Máxima diligência na operação (que se quer


indefectível) de traslado e transposição dos dados do
boletim informativo para o circuito receptor do Tribunal
Superior Eleitoral;

II- Estrita pontualidade no desenvolvimento e


execução dos programas (“softwares”) do Tribunal Superior
Eleitoral, estremes de senão ou mácula.
539

A escrupulosa observância de tais normas afastará,


por certo, o natural receio do eleitor de que evento fortuito
ou (por argumentar somente) algum criminoso artifício lhe
venham frustrar a intenção do voto no candidato de sua
preferência.
Trata-se de medidas que servirão a coibir toda
anomalia no funcionamento do processo eleitoral.
No caso, porém, de emenda de erros — matéria de
gravidade insigne! —, o interessado não haverá recorrer
senão ao instituto da auditoria, como instrumento
revisional…
Mas a alegação de fraude — aqui é que está o busílis!
— será simples sopro de voz e expressão vazia de sentido,
se a não acompanhar o elemento material ou corpo de
delito. (É que, em todas as esferas da Justiça, os litígios
devem julgar-se “pelo alegado e provado”).
Ora, de nenhum instrumento poderá valer-se o
eleitor para fazer prova da alegação de que foi lesado (por
ter sido computado em favor de outrem o sufrágio que
dera a certo candidato).
Seria, portanto, impor-lhe ônus inexequível, como é
a produção de prova impossível (a que os patriarcas do
Direito chamavam, com bem de razão, prova diabólica)(8).
Há-se mister, pois, do elemento de contraste, ou
pedra de toque, da prova de que o voto foi atribuído
exatamente ao candidato cujo número o eleitor digitara
na urna eletrônica. Para tanto, importa muito seja dotada
de núcleo no qual, de par com o voto oficial — que é
540

computado e impresso no boletim informativo do


Tribunal Superior Eleitoral —, se proceda ao seu registro
físico (por criptograma), para utilização futura, como prova
instrumental, no caso de dúvida ou impugnação do
resultado da votação.
A falta de tal recurso, ou dispositivo de salvaguarda
do voto, é, a meu aviso, a razão principal de se não
formularem ainda gerais aplausos à urna eletrônica.
Esta árida e árdua questão tem sido já exposta a toda a
luz por autores de vasto saber e levantado senso crítico. É
desse número Charles Seife, professor de Jornalismo da
Universidade de Nova Iorque e mestre em Matemática
pela Universidade Yale; após advertir que “o voto eletrônico
tem potencial para transformar as eleições em um caos”, diz, com
bem de pesar: “É possível que nunca fiquemos sabendo se nosso
voto foi realmente computado ou engolido pelo aparelho”.
Ajunta, contudo, para honra e conforto da
Humanidade: “Se o software for aberto ao escrutínio público —
se qualquer programador puder estudar o código-fonte à procura
de erros —, a contagem eletrônica dos votos apresentaria um
alto grau de confiabilidade”(9).
Por sua intensa campanha de esclarecimento a esse
respeito, é para crer que o Tribunal Superior Eleitoral
esteja realmente a sanear, na plenitude de sua força e
grandeza, o nosso processo eleitoral, expungindo-o de todo
vício que possa contaminar o resultado das urnas eleitorais
e, destarte, livrá-lo da justa diatribe que lhe fulminara, há
mais de um século, o verbo inflamado e moralizador de
541

Rui Barbosa: “A fraude eleitoral da política brasileira é como o


elemento servil na formação de nossa sociedade: está por toda a
parte”(10).
Em suma: façamos votos porque a urna eletrônica
seja, verdadeiramente, o augusto padrão miliário da estrada
real da Democracia!

Notas

(1) Nenhum motivo me depara o teor de proceder


do Excelentíssimo Senhor Ministro Luís Roberto
Barreto, que o desmereça das graves funções de
Presidente do Tribunal Superior Eleitoral; nele acho,
aliás, muitos que o recomendam para o seu exercício,
e estão expressos no livrinho que lhe dediquei e
ofereci: Da Sentença (Doutrina e Jurisprudência), 2019,
pp. 11-17; www.scribd.com/Biasotti. (A benevolência
do leitor espero me relevará esta fumaça de vaidade,
aqui necessária!).
(2) Apud Jayme de Altavila, Origem dos Direitos dos Povos,
4a. ed., p. 223; Edições Melhoramentos.
(3) “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato” (art. 5º, nº IV, da Const. Fed.).
(4) Últimos Estudos, 1944, p. 39.
(5) In Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 29a. ed.,
p. 169; Editora Saraiva.
542

(6) “Dubitando ad veritatem pervenimus”, escreveu o


eloquente Cícero (“Tusculanae Disputationes”, I, 30,
73), o que, traduzido para o nosso vernáculo, quer
dizer: Duvidando chegamos à verdade.
(7) Réplica, nº 10 (Obras Completas de Rui Barbosa, vol.
XXIX, t. II, p. 49).
(8) “Prova diabólica – Probatio diabolica. Prova impossível de
fazer-se. Prova que se perde na noite dos tempos. Prova
absurda” (Leib Soibelman, Enciclopédia do Advogado,
3a. ed., p. 297; Editora Rio).
(9) Charles Seife, Os Números (Não) Mentem, 2012, pp.
220-222; trad. Ivan Weisz Kuck; Editora Zahar;
Rio de Janeiro. Em confirmação da verdade de que
também as máquinas, não só os homens, conjugam o
verbo errar na voz ativa, traz o autor à colação dois
casos frisantes: I- “(…) em 2003, uma eleição em Boone
County, Iowa, inicialmente registrou 144 mil votos em
máquinas eletrônicas, embora só houvesse 19 mil eleitores
cadastrados”. II- “Às vezes as máquinas roubam votos de
um candidato e dão a outro. Em 2000, o sistema de
votação eletrônica de um condado da Flórida registrou
16 mil votos negativos para Gore, enquanto Bush recebeu
aproximadamente 2.800 votos — tudo em uma área com
menos de seiscentos eleitores registrados” (op cit., p. 221).
(10) Op. cit., vol. XXX, t. I, p. 73.
54. O Advogado e a Eloquência
fora dos Tribunais

Sumário. Nobre veículo do pensamento, pode a palavra, em certas


circunstâncias — sobretudo quando em rixa aberta com o senso comum
—, meter na berlinda ao próprio orador e turvar-lhe a boa reputação.
Tomar tento, pois!

I. Com grande assombro das pessoas circunspectas,


órgãos de comunicação têm, ultimamente, realejado
notícia que, por seu teor insólito, despertou rudes críticas
e veementes protestos em todas as esferas sociais.
Foi o caso que, durante reunião gastronômica
promovida por seleto grupo de advogados notáveis, um
deles, erguendo sua taça num brinde ao mais famigerado
dos convivas, teria dito que, segundo o espírito do tempo,
adiantava pouco punir o infrator, se cometido já o crime.
Ainda: que o castigo era ineficaz contra a corrupção.
(Não recolhi ao orador suas palavras textuais; sou-
-lhes, porém, fiel ao sentido, a saber: seria em pura
perda infligir pena ao criminoso, porque irreparáveis as
consequências do ato que praticou; ao demais, era a
corrupção mal invencível).
Tal afirmação — a pôr-se fé inteira nos meios
eletrônicos que a transmitiram — fizera-a um dos mais
renomados, competentes e argutos advogados criminalistas
do País: o Dr. Antônio Cláudio Mariz de Oliveira.
544

Não fosse o fato público e notório (que, em bom


direito, dispensa prova), ninguém o tomaria ao sério. É que
todos os que o conhecem — e sou desse número,
que forma legião — juram-no incapaz de dar curso a
semelhante enormidade (resisto ao impulso de chamar-lhe
parvoíce chapada).
As razões que militam em prol desta persuasão têm
grande peso e força. Laureado pela Faculdade Paulista de
Direito (PUC), frequentou Antônio Cláudio a lição de
mestres os mais consumados na Ciência do Direito, como
José Frederico Marques, Washington de Barros Monteiro,
Agostinho Neves de Arruda Alvim e Waldemar Mariz de
Oliveira Júnior, este seu ilustre pai (e meu saudoso e
querido professor de Direito Processual Civil). Com eles
aprendemos que a toda violação corresponde uma sanção,
ou “pena cominável aos violadores da ordem instituída”(1).
Não pode cair em dúvida, com efeito, que todo
infrator, sendo imputável, está sujeito ao rigor da lei.
Donde a advertência de Nélson Hungria, com justiça
proclamado “o maior penalista brasileiro de todos os tempos”(2):
“A pena traduz, primacialmente, um princípio humano por
excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que
merece”(3).

II. A proposição — não ser de bom aviso punir o


delinquente, porque perpetrado já o crime — havia, sem falta,
de incorrer na reprovação das pessoas de reto juízo e
critério sólido.
545

Passa o mesmo quanto à corrupção, cancro social a


que, por extirpá-lo, os países de organização democrática
declaram guerra sem tréguas nem quartel.
Tais conceitos, que tanta indignação despertaram
nos espíritos esclarecidos, teria de fato emitido o nobre
advogado?!
Admito-o, a benefício de inventário, pois que —
segundo consta — ele próprio não se empenhou em lavrar
desmentido; tampouco se retratou.
Mas — e aqui bate o ponto! —, o provecto causídico
estava, ao tempo, em seu acordo e razão?!
Eis por que, não me sofrendo o ânimo ver arrastado
ao pelourinho da execração pública distinto e prestigioso
paladino do Direito, lembrou-me, sob a invocação das leis
da amizade, acudir por sua honra. Tenho-o na conta
de amigo e, conforme aquilo de um autor engenhoso, “um
bom amigo vale mais do que uma carabina” (4), que substituo
aqui pela arma do advogado: a palavra.
Tomo sobre mim, em suma, o encargo de seu
defensor “ad hoc”, a despeito de alguma voz que porventura
se levante para entoar o refrão do costume: Para ruim
defesa, melhor é nenhuma!

III. Aquele chorrilho de expressões o garboso Dr. Mariz


proferiu (ia quase a escrever expectorou), ao termo de um
banquete, perante colegas do ofício e algumas pessoas,
estas a mais de um respeito bem conhecidas.
546

Entre iguarias, que decerto causariam inveja à


glutonaria de Vitélio e à magnificência das mesas de
Lúculo, é de presumir não faltassem também — visto que
hoje muito poucos se constrangem diante de uma garrafa
— os melhores vinhos (capitosos, naturalmente!).
Nosso orador (diga-se a verdade lisa e francamente) é
possível não se tivesse limitado a sorver a água do copo,
que a praxe manda conservar à esquerda da tribuna, para
alguma emergência gutural. Lançando mais longe a barra:
embora seja a água “o vinho de Deus”, na original definição
de um homem de letras e espírito(5), não está afastada a
hipótese de que entrasse galhardamente pelas bebidas.
Palpito mais que, ao discursar (ou soltar-se em palavras),
já estava aquecido pelos vapores do álcool…
Ora, é de elementar intuição que as bebidas
alcoólicas, tanto que absorvidas pelo sangue, entram a
operar efeitos nos centros superiores do sistema nervoso do
indivíduo, desintegrando-lhe o psiquismo.
Assim, até mesmo quando consiga manter-se em pé,
ensinam os tratadistas da matéria que o atleta de Baco,
eclipsado o entendimento pelo torpor alcoólico e rotos
seus freios inibitórios, desata a palavrear e a despejar frases
sem nexo(6).
Em prova desta alegação, tenho por autor não menos
que ao polido Pe. Antônio Vieira, que falava como o
oráculo de seu tempo: “(…) porque eles (os vinhos) perturbam
e tiram os homens de seu juízo, e fazem que fiquem fora de si
como doudos”(7).
547

Numa palavra: a bebida alcoólica tem arte de enfatuar


o ânimo daqueles que a ela se entregam e, o que é mais,
nos casos de libação excessiva, faz sucumbir muitos ao
estado de embriaguez(8).
É certo que — noção que ensinam os rudimentos do
Direito Penal — a embriaguez voluntária não elide a
responsabilidade criminal do agente, porque lhe não exclui
a imputabilidade(9).
Pelo que, isto de ter-se alguém enfrascado em
vinho, antes de enunciar despautérios ou obrar contra o
direito expresso, não lhe serve de razão escusativa de
responsabilidade.
Haverá, entretanto — o que não é licença desprezível
—, de aproveitar-lhe como argumento “pietatis causa”: que,
se estivesse, como de ordinário, sóbrio e lúcido, não lhe
cairiam dos lábios palavras e frases que repugnam ao juízo
das pessoas de médio entendimento e, por mais forte
razão, ao daquele que se conhece por timbre e espelho de
sua instituição, a gloriosa Ordem dos Advogados do Brasil.
Enfim, se por mero gracejo, ou jocosa expansão de
jovialidade, foi que o orador proferiu as palavras que tanto
estranharam às pessoas de maduro juízo, não havia senão
recebê-las com um grão de sal; mas, se outra a hipótese,
passava por medida salutar, oportuna e talvez meritória
que lhe viessem os amigos limpar a testada.
Nisto pus a mira, em obséquio à grande estima que
tenho ao “Dr. Mariz”, a quem faço um discreto brinde
como pedem os estilos da urbanidade(10).
548

Nota

(1) Goffredo Telles Junior, Iniciação na Ciência do Direito,


2a. ed., p. 76; Editora Saraiva.
(2) Evandro Lins e Silva, Arca de Guardados, 1995, p. 96;
Editora Civilização Brasileira; Rio de Janeiro.
(3) Novas Questões Jurídico-Penais, 1945, p. 131; Rio de
Janeiro.
(4) João Guimarães Rosa, Noites do Sertão, 7a. ed., p. 34;
Editora Nova Fronteira; Rio de Janeiro.
(5) Escreveu algures Agrippino Grieco.
(6) Em contradição com o retrilhado anexim “Quem não
bebe, não fuma e não mente não é filho de boa gente”,
formulou Baudelaire a advertência: O homem que só
bebe água tem alguma coisa a esconder (apud Almeida Jr.,
Lições de Medicina Legal, 7a. ed., p. 489: Companhia
Editora Nacional).
(7) Sermões, 1959, t. XIII, p. 320; Lello & Irmão –
Editores; Porto.
(8) Nunca faltou, entretanto, quem no vinho achasse até
virtudes dignas da voz latina: “In vino veritas”. (O
vinho seria uma como pedra de toque da verdade).
Para outros, faria as vezes de estímulo. Os advogados
veteranos (ou da velha escola) estarão lembrados
daquela celebridade da oratória forense que, antes de
assomar à tribuna, costumava, como dizia, “molhar
a palavra”. No Restaurante Corso, junto das Arcadas
549

(Faculdade de Direito do Largo de São Francisco),


após sorver um trago de conhaque, filosofava: “Tira o
juízo, mas dá coragem!”. E — circunstância notável —,
no maior número das causas que patrocinava, saía do
plenário do júri coberto de louros!
(9) Em seu espírito e forma, dispõe o art. 28 do Código
Penal que não exclui a imputabilidade penal: “II – a
embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou
substância de efeitos análogos”. Cifra-se esta norma à
teoria da “actio libera in causa”; quem quer a causa
quer o efeito.
(10) Desde tempos imemoriais, foi uso em todas as
sociedades esse de brindar ou beber à saúde de
alguém, com votos pela felicidade pessoal e em
atenção a seu merecimento. Como quer que o
episódio oratório, que faz objeto deste arrazoado,
ocorreu num brinde a certo vulto da classe política,
leve-me em paciência o benévolo e instruído leitor
evoque das páginas de nossa História dois outros,
frisantes por suas circunstâncias e pela dignidade dos
sujeitos a que se referiam:
I - “Brinde de Rui Barbosa ao Senador Pinheiro Machado.
No banquete político de 7 de maio de 1907: (…) os
que se habituaram a ver nele (Senador Pinheiro
Machado) não só um guia de raro tino entre as
incertezas políticas, mas ainda uma dessas úteis
reservas de energia moral, concentradas numa
individualidade robusta e poderosa, para as quais as
550

nações democráticas dirigem a vista confiadamente,


quando consideram no seu porvir” (Obras Completas
de Rui Barbosa, vol. XXXI, t. I, pp. 91-92).
II - “Recepção na Bahia. Discurso do Dr. Virgílio de Lemos
(…): “Não posso, pois, deixar de, em nome do presente,
levantar a minha taça em honra desta individualidade
verdadeiramente excepcional, considerada como a
culminância intelectual do país. Assim, pois, em nome
do presente e em nome do passado brilhante da Bahia,
brindo ao Conselheiro Rui Barbosa, que, melhor do
que qualquer outro baiano, concretiza e representa o
brilho de suas tradições e o fulgor de suas glórias”
(Ibidem, p. 103).
“Quantum mutatus ab illo!”.
55. Arrazoados Forenses.
Extensão e Conteúdo

Sumário. A virtude está no meio. Por essa velha máxima de filosofia


prática entende-se que os extremos são nocivos; o demasiado, vicioso; a
mesma bondade morre do excesso. Também no circuito judiciário isto
ocorre: a exageração no reclamar justiça pode, muita vez, ser causa de
sua própria denegação.

I. Movido de altas preocupações, fáceis de presumir —


como a escassez de tempo, a quantidade assombrosa dos
processos que tramitam em todas as instâncias da Justiça
do País e até a voz da consciência ecológica —, propôs
o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pela
generalidade de seus juízes(1), fosse limitada a dez laudas
a extensão das petições forenses e decisões judiciais.
Pelo que, os obreiros do Direito (advogados,
membros do Ministério Público e autoridades judiciárias),
primeiro que viessem a juízo com petições, razões de
recurso e sentenças, deveriam submetê-las a um como leito
de Procusto(2).
Ao toque de rebate dos expoentes do Judiciário
gaúcho acudiu de plano a Justiça bandeirante, que lhe
enalteceu e prestigiou o protocolo de intenções(3).
Muitos receberam tal proposta com vivos e
conscientes aplausos; alguns porém a tiveram por afrontosa
e lesiva a seus direitos e interesses.
552

De importante que é, embora controvertido, ao


assunto não repugnam por isso reflexões e adequadas
providências, que, sem mortificar o sagrado direito de
defesa (princípio capital da ordem jurídica), ponham a
mira na solução da grave crise que, muito há,
vem empecendo a atuação da Justiça, à conta de sua
morosidade (inevitável) na prestação jurisdicional(4).
Que seja lenta a Justiça não há negá-lo, que já o
perceberam e amiúde repetem ainda os de parco
entendimento. Não direi, entretanto — como o vulgo
profano —, que entre nós “se arrastem” os processos
(porque, em verdade, “tramitam” e nunca o fazem sem
dignidade), mas é força reconhecer que lhes falta o caráter
intrínseco de instrumento de solução de litígio: a celeridade.
Ora, é coisa difícil unir a dor à paciência, e os
litigantes — fato de certeza experimental — estão a provar
cotidianamente o cálice amargo da angústia e do
infortúnio! Donde veio a dizer um autor a todas as luzes
grande: “Não há maior tormento no mundo que o esperar”(5).
Eis por que ao aflito, que bate às portas da Justiça,
urge despachar bem e rapidamente!

II. A muita demora nos julgamentos — mal que de tão


sério e pernicioso parece incurável! — tem causa bem
conhecida daqueles que um dia puderam penetrar a
complexa administração judiciária: a quantidade inaudita
dos processos que assoberbam a maioria dos foros, em
contraste implacável com o número (sempre inferior) dos
juízes que neles terão de oficiar. Deveras, sem embargo de
553

seus ingentes esforços e irrestrita dedicação à Justiça —


predicados que, pelo comum, os distinguem —, nada
podem os magistrados contra a insana pletora dos serviços
inerentes a seu cargo(6).
Assim, visto que o Estado não acrescenta o número
ideal dos juízes, e a flux recrudesce o dos processos em
trâmite perante as seções judiciárias — metida em conta,
ao demais, a ampla liberdade de acesso das partes à via
recursal —, não há senão adotar medida de cunho
emergencial que contribua para o melhor aproveitamento
do tempo (sempre exíguo) dos juízes.
É, portanto, muito de louvar (e receber) o alvitre da
Magistratura do Rio Grande do Sul, que se ponha cobro à
extensão das peças forenses como forma de emendar as
inveteradas anomalias que obstam à realização da justiça,
ainda que pareça, ao primeiro súbito de vista, fazer rosto ao
direito de liberdade de expressão.
Àqueles que, falando ou escrevendo, cultivam o estilo
difuso ou prolixo, certamente lhes custará sujeitar ao rigor
da nova craveira suas petições, argumentos e razões em
processos judiciais. É lembrar-lhes, todavia, a milenar
exortação horaciana: Sê breve, e agradarás! (7).
Mais que agradar (ou, antes, satisfazer à “elegantia
juris”), é do ofício do advogado persuadir e “argumentar
para convencer”(8). Para alcançá-lo, pouco lhe bastará. Já
o ensinava, com efeito, didaticamente, o velho Código
de Processo Civil de 1939, no art. 158: na petição escrita,
“determinados os termos de seu objeto”, serão indicados “o fato e
554

os fundamentos jurídicos do pedido, expostos com precisão e


clareza (…)” (inc. III). Posto se referisse à petição inicial,
aquela cláusula salutar interessa também as mais peças
forenses, pois que todas constam de objeto, narração de fato
e fundamento de direito.
Comuns a todo o gênero literário, os requisitos da
“precisão e clareza” convêm especialmente ao estilo do foro.
À luz da experiência comum, a exposição clara (como
água de regato) e precisa (como as verdades matemáticas)
influem consideravelmente na boa inteligência dos
argumentos e razões; e, sobre isso, é poderosa para
conciliar (e até mesmo render) o ânimo do juiz da causa e
meter em desespero e confusão o adversário.

III. É quando entra a discutir a questão posta em juízo,


que o advogado — para imprimir cunho enérgico às suas
razões e argumentos — costuma dilatar as raias do escrito;
embora lhe bastara alegar com a doutrina e a lição de um
ou dois autores de nomeada, não hesita em trazer ao
terreiro da controvérsia para cima de meia dezena deles; e,
o que é mais, transcreve-lhes, prodigamente, páginas
inteiras dos lugares de suas obras… Não há mal em citar
bons autores e sábios jurisconsultos(9); apenas o exagero é
que parece bem evitar.
Passa o mesmo em matéria de jurisprudência dos
Tribunais: duas ementas, que fizessem ao caso, eram as que
bastavam para fechar a abóbada ao arrazoado forense,
555

dispensada coleta copiosa. Para mais, não haverá esquecer


a sentenciúncula: “Jura novit curia”, que, em nosso vulgar,
significa: O Tribunal conhece o direito.
A objeção de que seria violar o postulado de ampla
defesa (art. 5º, nº LV, da Const. Fed.) isso de coartar o
tamanho das petições forenses, não tem, “data venia”,
fundamento sólido que o sustente. A razão é que, se não
conseguir o advogado (ou outro profissional de sua
condição) expender, em dez laudas, argumentos cabais em
prol da causa que defende, em vão tentará fazê-lo em
cinquenta. (E se o podia em dez folhas, não lhe havia de
mister ir além, que tal fora não só inútil, mas também
supérfluo).
Esse ponto, de muito alcance, deve-se entender em
termos hábeis: ao juiz, sujeito sempre à inexorável tirania
do tempo, falece indubitavelmente vagar para a leitura
ponderada e de sobremão de petições derramadas e
sesquipedais(10).
Tal diretriz haverá de respeitar somente à extensão
das peças jurídicas, não a seu conteúdo estrito ou padrão
da linguagem. Pelo conseguinte, escusa tratar aqui do
quilate da expressão verbal que se deve empregar na esfera
judiciária; nada obstante, cai a lanço recordar o pregão do
insigne magistrado Hildebrando Campestrini: “Não há bom
Direito em linguagem ruim”(11).
À derradeira, como quer que, de regra, petições e
arrazoados desfecham em requerer e pedir, não resisto à
força que me faz o desejo de transcrever aqui este
556

pedacinho de ouro do clássico Manuel Bernardes:


“Memorais longos e compostos até a Deus desagradam”!(12)

Notas

(1) Cf. https://www.tjsp.jus.br


(2) “Procustes, salteador da África; obrigava os viajantes a
deitar-se num leito de ferro e cortava-lhes os pés quando
excediam o tamanho deste, ou esticava-os com cordas
quando o não atingiam. Foi morto por Teseu, que lhe
aplicou o mesmo suplício” (Lello Universal; v. Procustes).
(3) Cf. https://www.tjsp.jus.br
(4) Com efeito, vai já por um século, Rui estigmatizava
com ferro em brasa essa pertinaz mazela: “Mas justiça
atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e
manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador
contraria o direito escrito das partes e, assim, as lesa no
patrimônio, honra e liberdade” (Oração aos Moços, 1a.
ed., p. 42).
(5) Pe. Antônio Vieira, Sermões, 1959, t. V, p. 210; Lello
& Irmão — Editores; Porto.
(6) O fato não é raro: horas mortas da noite e ainda está
acesa a luz da bliblioteca do obscuro magistrado!
Solitário (e como abstraído), compulsa autos, em que
ásperas questões jurídicas lhe fatigam o cérebro; nada
porém o demove da busca diligente da verdade real
— alma e escopo de todo o processo —, que
lhe dará a conhecer o direito que, no caso concreto,
terá de preponderar na balança incorruptível da
557

Justiça. Isto praticam, de ordinário, os juízes! Não


será muito, destarte, se lhes consigne um voto sincero
de gratidão e simpatia; porque souberam honrar a
toga e dignificar, em sumo grau, o Poder Judiciário.
Todo o louvor lhes será acanhado!
(7) “Quicquid praecipies, esto brevis” (Horácio, Arte Poética,
v. 355).
(8) Edmundo Dantès Nascimento, Linguagem Forense,
1980, p. 18.
(9) “Desconfio muito de quem se não abordoa a autoridades”
(José de Sá Nunes, Aprendei a Língua Nacional, 1938,
vol. II, p. 221).
(10) Apropriado ao nosso intento é o episódio que, faz
bem de anos, o desembargador Brenno Caramuru
Teixeira (de saudosa memória: 1910-1981) narrava a
um pugilo de advogados que se compraziam em
escutá-lo acerca de coisas do foro. Com a vênia do
gentil leitor, reproduzo-o aqui.
Foi o caso que, no exercício de sua judicatura na
comarca de Faxina (que pelo nome não perca), depois
chamada Itapeva, acertou de comparecer, de uma
feita, a seu gabinete, à primeira hora do expediente,
garboso advogado da região. Após saudá-lo
cortesmente, estendeu-lhe uma petição de avultado
aspecto. O magistrado, tanto que lhe pôs os olhos,
percebeu se tratava de inicial de reintegração de posse
com pedido de concessão de liminar. Havia um
obstáculo notável, porém: orçava a dita petição por
558

sessenta laudas! O “Dr. Caramuru” — que era esse o


tratamento que davam os jurisdicionados ao juiz-
-titular da vara —, primeiro cerrou o sobrecenho; a
breve trecho, contudo, num impulso de consciência
reta e magnífico senso judicante, acenou ao nobre
causídico para que se assentasse na cadeira junto à sua
mesa e discreteou: Doutor, não posso despachar sua
petição, que é larga, sem que a examine detidamente,
mas o meu tempo é curto, “sou empurrado pelo ponteiro
do relógio”! Dou-lhe um conselho: torne ao escritório,
refaça-a em quatro laudas, indicando o objeto do
litígio e os fundamentos jurídicos do pedido, que
ainda hoje — prometo-lhe — direi da justiça de seu
cliente.
Não tendo que opor à sensata e oportuna exortação, o
advogado — a túrgida petição entre mãos — enfiou
diretamente para sua banca e pôs-se a amputar-lhe as
demasias…
Era já pelo cair da tarde quando retornou ao fórum,
onde o esperava, tranquilo, o benevolente Caramuru,
que lhe recebeu a petição, leu-a enquanto o diabo
esfrega um olho e nela exarou pronta e curial decisão.
O guapo e diligente advogado, esse não sopitava largo
sorriso de satisfação ao descer as escadarias do Palácio
da Justiça, pois fora despachado de boa sombra!
(11) Como Redigir Ementas, 1994, p. 40; Editora Saraiva.
(12) Nova Floresta, 1726, t. IV, p. 420.
56. J.B. Viana de Moraes:
Nobre e Valoroso Advogado
I – Foi certamente dos mais acabados paradigmas de
Advogado Criminalista que ainda houve entre nós!
Dotara-o a natureza de talentos e aptidões excepcionais:
com todos era afável, solícito e atencioso; os colegas,
amigos e pessoas constituídas em dignidade (e tinha-os em
todas as esferas da vida social) contavam-no por homem
fidalgo e de vasto saber; profissional competente e dedicado;
caráter de rija têmpera e coração generoso; em suma: um
vaso de eleição!
Esse foi o vulto insigne que, no dia 4 de novembro de
1998, para grande abalo e desgosto dos que tiveram a
fortuna de conhecê-lo, reclinou mortalmente a fronte; esse,
o varão notabilíssimo a quem os artífices do Direito e da
Justiça, e com eles toda a sociedade paulistana, renderam
fervorosos e comovidos obséquios fúnebres.
Tal foi o grande e inesquecível J.B. Viana de Moraes!
O favor de circunstâncias da vida permitiu-nos
privássemos com esse grande espírito. Foi o caso que a
Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de
São Paulo (Acrimesp), por deliberação unânime de seu
conselho, outorgara-lhe o prestigioso título de “Advogado
Criminalista do Ano de 1992”. Ao saudá-lo no plenário da
Câmara Municipal de São Paulo, em cerimônia de grande
esplendor, lembra-nos que lhe dirigimos aquelas soberbas
palavras que a posteridade mandou gravar no monumento
a Molière, no átrio da Academia Francesa: “Rien ne manque
560

à sa gloire; il manquait à la nôtre” (o que, vertido em


linguagem, significa: nada falta à sua glória; ele faltava
à nossa). A imagem não encarecia os méritos do
homenageado, somente os declarava!
Deveras, de mui poucos se poderá afirmar que
tivessem granjeado tanta notoriedade no âmbito da
realização humana e profissional como J.B. Viana de
Moraes.
Ao trabalho e à sua inquebrantável força de vontade,
costumava dizer, devia tudo o que era e quanto possuía.
Afeiçoado desde a juventude aos embates da vida,
proclamava que toda a biografia houvera de ocupar-se,
de preferência, com o tempo que os homens tivessem
dedicado ao trabalho, o melhor fator de promoção na
ordem social, e por isso digno de escrever-se em lâminas
de ouro.
E ajuntava que nunca o sol o havia surpreendido no
leito; ao revés, era ele quem o saudava quando surgia entre
as nuvens cinzentas da Pauliceia, na Chácara Flora, ou
dourava as linhas do horizonte, por sobre os campos verdes
de suas fazendas, aonde, nos fins de semana, ia retemperar
as energias e apascentar o espírito.

II – Foi a Advocacia Criminal seu imenso teatro de lutas.


Os adversários, embora sempre lhe merecessem respeito e
estima, é certo nunca os temera; esses eram, aliás, os que
lhe cobravam certa e justa apreensão, persuadidos da
excelência de seus cabedais de espírito e extraordinária
capacidade de trabalho.
561

Toda causa criminal J.B. Viana de Moraes reputava


importante e sagrada. Na defesa dos direitos e interesses do
cliente, não distinguia entre um processo por lesões
corporais leves e outro por homicídio qualificado.
Argumentava (e com assaz de razão) que não podia
considerar pequena uma causa que era sempre grande ao
aviso do cliente.
Ao Tribunal do Júri orgulhava-se de atribuir sua
consagração pública. Exercia-lhe a veneranda instituição
um fascínio arrebatador e comovente. Na sala dos passos
perdidos, entre as majestosas colunas jônicas, estando, certa
feita, a encaminhar-se ao Tribunal do Júri, ouvimos-lhe
dizer que a designação de advogado, em seu rigor,
competia sobretudo àqueles que aí atuavam. E dava logo as
razões de sua opinião: os advogados do júri estavam
incumbidos da defesa do maior bem do homem depois da
vida, a liberdade; além disso, não lhes bastava, para o cabal
exercício da profissão, adquirir a ciência do Direito:
haviam de mister conhecer também de raiz a Medicina
Legal e a Arte Oratória.
E referia, ao propósito, o conhecido passo de José
Soares de Mello: “Quando o advogado se alça para falar, na
tribuna do júri, ninguém o iguala”(1).
Era na tribuna do júri que J.B. Viana de Moraes se
realizava como advogado; afirmava ter-se preparado para
isso desde a juventude. Primeiro, ouvindo lições à mãe
(Amélia Alves Viana), renomada professora de arte
dramática e de canto; dela aprendera a importância da voz,
como instrumento oratório, e a disciplina do gesto e da
562

postura na tribuna. Ao falar — mesmo fora dos Tribunais


—, tinha J.B. Viana de Moraes a voz sempre empostada,
com acento grave e forte. Sua figura, ao caminhar, era
solene e aprumada. Ainda quando entrado em anos, nunca
recorreu ao bastão ou à bengala: sustentava-se do próprio
vigor físico.
Alma sensível e terna era a de J.B. Viana de Moraes!
Vimos-lhe o pranto nas faces mais de uma vez,
quando falava de Jânio Quadros, de quem era amigo
devotado e conselheiro perpétuo. Dava-lhe o Presidente
suma importância às opiniões e pareceres. Não passava
uma semana, que o não viesse abraçar e ouvir a respeito de
alguma questão momentosa da administração pública.
Como quem se lamenta de cruel frustração, deixou um dia
cair dos lábios este amargo queixume: “Estivesse ao lado de
Jânio, naquela tarde nefasta de 25 de agosto de 1961, não teria
havido renúncia!”. Tal era a confiança com que o honrava e
distinguia o ex-Presidente!
Depois, a modo de refrigério da saudade — “delicioso
pungir de acerbo espinho”, conforme o célebre verso do
poeta(2) —, apanhou um álbum de fotografias, já
esmaecidas pela voragem do tempo, em que aparecia ao
lado do ex-Presidente: numas, solene e grave; noutras,
alegre e descontraído; em todas, a certeza de que eram
amigos verdadeiros e fraternos aqueles que aí estavam
retratados.
Por último, numa folha de jornal dobrada, aquela
fotografia patética de seu amigo Jânio, já vítima da
fatalidade orgânica, em cadeira de rodas, a cabeça pendente
563

sobre o peito (imagem dura de ver, que jamais o espírito


esquece!). Após fitá-la demoradamente, J.B. Viana de
Moraes retraiu o semblante e, a um tempo comovido e
indignado, comentou: “Eis a que miserável condição foi
reduzido o grande Jânio! Sempre fará falta ao Brasil, que não
conhecerá outro igual! Pobre amigo Jânio!”
E com a mão espalmada, como lhe era do hábito,
bateu na tábua de sua mesa de trabalho, esforçando-se por
refrear a emoção que parecia já dominá-lo. Para as dores da
alma não conhecia outro lenitivo que restituir-se às
ocupações do árduo e nobre ofício da Advocacia, máxime
a Advocacia Criminal, pátria dos que sofrem: advogados
ou réus(3).

III – Era muito de admirar o estilo que adotava o brilhante


Advogado na composição de seus arrazoados forenses:
ditava-os, em voz alta e ritmada, à sua benemérita
colaboradora e assistente Maria Celeste de Oliveira, que os
reduzia a escrito pelo processo estenográfico. As alegações
finais e as razões de recurso eram pelo comum extensas
(deitavam sempre para cima de vinte laudas); os períodos
encerravam boa exação gramatical e natural força lógica.
Abalizara-se J.B. Viana de Moraes nos torneios da retórica
e da dialética: falando, persuadia e captava para logo
a benevolência e a atenção do auditório; escrevendo,
prevenia e aniquilava, “a priori”, os argumentos do
adversário. Acrescentava o peso e a força de suas razões,
debatendo exaustivamente os pontos controversos da
causa. Não escrupuleava em discorrer profusamente,
564

contanto que, no final, convencesse a parte contrária e o


juiz.
Aos que o increpavam de exagerar o esforço de
persuasão e, destarte, alongar escusadamente as raias de seu
escrito — verdadeiro “excesso de defesa”, com que se pudera
tornar prolixo —, respondia com o aforismo “quod abundat
non nocet” (que traduzia, com ênfase, para descobrir certa
malícia no vocábulo inocente: o que abunda não dana!).

IV – Outro princípio muito para considerar na filosofia de


vida desse perfeito idealista pragmático era a importância
que votava à remuneração do advogado.
Mais que muitas vezes advertira que “o homem não
podia viver só de brisa”, por isso devia o advogado curar
seriamente da questão dos honorários. Apregoava, ainda,
que o advogado que não sabia defender os interesses
próprios não estava em condições de tomar sobre si a
defesa dos alheios, isto é, do cliente.
Dizia que, de ordinário, o necessitado do amparo
judicial não olhava mais ao dinheiro que à competência,
confiança e dedicação do profissional. Estas, a seu parecer,
constituíam os predicados essenciais de todo o causídico.
Das petições e arrazoados, recomendava J.B. Viana de
Moraes destinasse o advogado sempre uma cópia ao
cliente, por preceito de fidalguia e como prova direta do
mérito profissional. Prática era essa que, ao demais, lhe
haveria de fazer as vezes de argumento-Aquiles, no
instante de arbitrar e receber a verba honorária.
565

Advogados de consciência demasiado delicada não


logram dissimular constrangimento quando contratam
honorários com o cliente: parece repugnar-lhes o discurso
a respeito do “vil metal” no ato mesmo em que aceitam
o patrocínio da causa (que são todas, por sua natureza,
intrinsecamente nobres!)(4).
Os “miseráveis” (que é como a linguagem do Direito
designa aqueles que não têm meios para ocorrer às
despesas judiciais e aos honorários de advogado) J.B. Viana
de Moraes assistia gratuitamente (e nunca sem grande
desvelo); os sujeitos de muitas posses, no entanto, a esses
lhes estimava o preço dos serviços profissionais por estalão
fora do comum, ou segundo sua estatura de advogado, que
o era dos maiores.
Assinalava que a defesa dos altos interesses dos
poderosos e ricos, aos quais chamava “endinheirados”, por
força que lhes havia de custar caro: suas demandas eram
mais trabalhosas, porque sempre complexas; obrigavam-
-no, além disso, a penosas e angustiantes vigílias, cuja razão
constava do terrível brocardo: “Dormientibus non succurrit
jus” (o que, em nosso vernáculo, soa: o direito não
aproveita aos que dormem)(5).
Aqueles que se encomendavam a seu patrocínio,
por outra parte, conheciam-lhe sobejamente o prestígio
profissional, amparado em sólida cultura jurídica auferida
na banca de estudos e na cátedra de Direito Penal, que
regeu em várias faculdades (Mackenzie, Itu, São Carlos,
etc.).
566

Com ar de triunfo — que se não confundia com vã


soberba, antes lhe descobria o sumo gosto de ter podido
ser útil — registrava que nunca encerrara uma aula, que os
jovens acadêmicos o não ovacionassem em pé! Era a
moeda com que lhe pagavam as lições recebidas: moeda de
ouro, porque de gratidão!

V – Era J.B. Viana de Moraes varão de bom natural:


expansivo e de alegre comunicação.
Mantinha permanentemente aberta a porta de seu
amplo escritório na Rua Boa Vista, onde acolhia numerosa
e qualificada clientela; aberto mantinha também o portal
de seu grande e generoso coração.
Aos que o frequentavam dispensava a mais
significativa atenção: ouvia-os com paciência de Jó,
esquecido da fuga do tempo: escutava-lhes as razões e a
narração dos fatos; depois, falava (discursava será melhor
dito, porque o fazia com o semblante grave e solene);
pronunciava-se como um oráculo, e suas palavras e
opiniões eram comumente recebidas como um artigo de
fé pelos sujeitos esclarecidos.
Ao despedir-se dos que o visitavam, não lhe esquecia
acompanhá-los, com expressões de carinho, até à porta do
elevador.

VI – A memória, tinha-a pronta e feliz, o que lhe permitia


recitar excertos poéticos e lugares notáveis dos autores
clássicos.
567

Trazia nos lábios a obra imortal de Júlio Dantas,


“A Ceia dos Cardeais”, que declamava com indescritível
contentamento. Parece o estamos ainda a ouvir, com sua
voz modulada: “Recordar é viver, transformar num sorriso o
que nos fez sofrer”.
Numa tarde, acertou que introduzíramos na
conversação o poemeto de Francisco Otaviano, “As Ilusões
da Vida”, que o excelso Advogado recitou de cor, em bela
interpretação:

“Quem passou pela vida em branca nuvem


e em plácido repouso adormeceu;
quem não sentiu o frio da desgraça,
quem passou pela vida e não sofreu,
foi espectro de homem, não foi homem:
só passou pela vida, não viveu!”

J.B. Viana de Moraes não “foi espectro de homem”,


consoante a lira do poeta, senão — para que repitamos o
louvor de Rui ao Cons. Nabuco — “a mais alta dignidade na
ordem do merecimento e da autoridade perante seus colegas de
foro”(6).
Justa e merecida esta homenagem que a Classe dos
Advogados tributa a um de seus mais portentosos e ilustres
membros; talvez o maior de uma geração de grandes!
568

(“… o grande e inesquecível J.B. Viana de Moraes!”)

Notas

(1) O Júri, 1941, p. 17.


(2) Almeida Garrett, Camões, canto I.
(3) Eliézer Rosa, magistrado exímio, escreveu a propósito
estas notáveis palavras: “Não sei de nenhuma outra
forma de advogar mais dolorosa e pungente que a advocacia
criminal. Tudo nela é dor e desespero. Os próprios triunfos
têm o seu tanto de amargor, porque, enquanto pende o
569

processo e se prepara a causa, há sofrimentos que a vitória


não apaga completamente. Não é sem razão que a
memória humana guarde, com mais insistente frequência,
o nome aureolado de celebrados advogados criminais…”
(Dicionário de Processo Penal, 1975, p. 22).
(4) “A profissão do advogado é uma árdua fadiga posta ao
serviço da Justiça. A missão do advogado não consiste na
venda dos seus conhecimentos, por um preço chamado
honorários, senão na luta diária pela atuação da justiça
nas relações humanas! Esta missão não tem equivalente
pecuniário e, por ela, a remuneração que se paga não é o
preço da paz que se procura, senão o das necessidades de
quem se consagra a esta nobre forma de vida” (Ruy A.
Sodré, Ética Profissional e Estatuto do Advogado, 1977,
p. 489).
(5) Que as causas entregues ao patrocínio dos advogados
de muito nome e crédito apresentam, pelo comum,
maior dificuldade está a persuadi-lo o cruel epigrama
que, durante sessão do júri, o órgão da Acusação
desferiu contra o celebrado Henrique Ferri: “(…)
quando o doente recorre a um médico de fama, é porque
sente a saúde muito abalada” (Discursos de Defesa, 4a. ed.,
p. 10; trad. Fernando de Miranda).
(6) Rui, Obras Completas, vol. XXXII, t. I, p. 119.
57. Damásio E. de Jesus:
Honra e Glória do Direito Penal

I. Personagem singular
Ele, que discorria “ex professo” do princípio da
proporcionalidade da pena(1) — que deve corresponder
sempre ao grau da culpa ou da falta cometida —,
esqueceu-lhe aferir por justa craveira a pena dos que
perdem os objetos de sua afeição: preferiu que outros o
fizessem. Foi debalde, porém, que a dor de certas perdas
não raro excede toda medida.
Não cabe realmente no coração humano (porque
infinita) a mágoa que acompanha o desaparecimento de
individualidades privilegiadas como o Professor Damásio
Evangelista de Jesus, arrebatado pela morte no dia 13 de
fevereiro deste ano.
Até mesmo os que aprenderam a resignar-se ao
império da lei que fixou o termo a todas as coisas —
“pois também as pedras morrem”, como asseverou um
alto espírito(2) — acabrunharam-se com a interrupção do
esplêndido curso da vida desse varão egrégio, no qual se
viam reunidas, no mais elevado grau de primor, qualidades
que apenas se encontram distribuídas entre muitos.
Os que o conheceram e trataram — e esses se contam
por dezenas de milhares — podem atestar que não há
encarecimento retórico nem tropo de linguagem no juízo
de ter sido Damásio de Jesus, sem contradição, uma das
figuras mais úteis, estimadas e fascinantes de nossa idade.
572

A razão do mui particular apreço e reverência que lhe


sagrava o comum das pessoas ilustradas (máxime as
atuantes nas províncias do Direito) procedia da notória
fama de sua dedicação, contínua e proficiente, ao magistério
das disciplinas jurídicas.
Ao mesmo tempo que se desempenhava, com
exemplar exação, de árduas e relevantes funções no
Ministério Público do Estado de São Paulo, dava lições de
Direito a classes universitárias. Com provada competência
e assiduidade cumpria à risca as praxes da cátedra e
proferia aulas com seguro critério e esmero; granjeou bem
cedo, por isso, entre alunos e professores, grande prestígio
e reputação. Ainda: nas preleções patenteava, sem quebra,
a excelência de sua didática: expunha com clareza e
vivacidade as matérias do programa oficial, que, muito de
estudo, para logo aplicava a casos concretos, numa como
antecipação da liça incruenta, expressão com que se referia à
futura agenda dos advogados, promotores de justiça e
juízes de direito.
Pelo interesse que a novidade excitava, a classe inteira
ficava-lhe suspensa dos lábios!
Não se restringia, porém, seu magistério a transmitir
doutrina segundo a mais apurada matriz da ciência
jurídica; declarava as dúvidas e infundia torrentes de
conhecimentos aos que se aprestavam para o exercício da
profissão (o que lhe conferia já legítima credencial de
professor benemérito); inculcava, por fim, no espírito dos
alunos o termo de proceder que deviam guardar, à luz da
Ética.
573

À maneira dos rudimentos da boa educação (de


ordinário ministrados com o leite materno), recitava aos
moços, no limiar da vida acadêmica, o pregão duas vezes
milenar de Ulpiano, jurisconsulto romano de muito
nome: Os princípios fundamentais do Direito são: Viver
honestamente; não lesar a ninguém; dar a cada um o que
é seu(3).
Estes, em síntese, os traços mais conspícuos das
nunca assaz louvadas preleções que, na regência da cadeira
de Direito Penal, fazia o provecto mestre Damásio E. de
Jesus!

II. Artífice das letras jurídicas


No benéfico intuito de obviar às dificuldades e
percalços que soem influir no aproveitamento letivo, o
Prof. Damásio diligenciou por suprir suas aulas com textos
adequados às matérias do currículo. Por esta forma, tirou
a público, em quatro volumes, o prestigioso repertório
didático: Direito Penal. Sucessivamente, atendendo à
extraordinária aceitação da obra e aos abundantes frutos
que produzia, deliberou entre si enviar ao prelo os que
seriam os mais laureados compêndios de doutrina e
jurisprudência em pontos de Direito Penal e Processo
Penal: Código Penal Anotado e Código de Processo Penal
Anotado.
574

Assim pelo rigor do senso crítico e acurada exegese


dos textos legais como pela sistemática e judiciosa
disposição dos temas versados e feliz apresentação gráfica,
esses dois livros bastaram a exaltar aos cornos da lua
a glória literária de seu autor.
Em verdade, apenas expostos nas livrarias,
despertaram geral atenção e interesse da classe jurídica do
País, que de pronto os adquiriu e transformou no principal
vade-mécum dos que militam na área do Direito Penal.
Nenhum bacharel especializado na “Ciência de Carrara”
furtou-se a dar-lhes guarida pronta e cortês. Advogados
criminalistas, promotores de justiça e magistrados tinham-
-nos sempre à mão (na mesa de trabalho ou na estante
de obras seletas). Para dar força e peso a seus arrazoados
575

forenses, ou para acrescentar o vigor da fundamentação de


suas decisões, era aos “Códigos Anotados” do Prof. Damásio
que se habituaram a recorrer.
E não havia que opor a esta sensata e natural prática.
À uma, porque sempre foi de louvar o dito daquele
discreto: “Duvido muito de quem se não abordoa a autoridades
(…)”(4); à outra, porque, no caso de necessitarmos de boa
lição, importa muito que a tomemos a quem a deu mais
clara e completa.
De mim, entre honrado e agradecido, direi que não
caem sob o algarismo as vezes em que me valeram
esses dois edificantes compêndios. Advogado, eram-me a
primeira fonte de consulta; juiz de 2º grau, constituíam
meu oráculo e subsídio na aplicação do bom direito à
espécie em causa. E isto por mui atendível razão: a
despeito da robusta bibliografia com que eminentes
penalistas opulentaram a república das letras(5), esses dois
livros passavam pelos mais fáceis de compulsar, além de,
sem salvas nem rodeios, encaminhar o leitor para a solução
do ponto controverso. Por fim — circunstância notável —,
eram suas edições, com desusado esmero, revistas e
atualizadas anualmente.
Eis por que (e cuido não incorrer em engano se alego
interpretar o sentimento comum dos que frequentam a
barra da Justiça Criminal), fomos alcançados em altíssima
dívida para com o Prof. Damásio E. de Jesus, irresgatável
como todas as contraídas com um benfeitor, já que de
gratidão.
576

III. Vocação para o magistério superior e para as artes


Sem embargo de suas atividades de professor
universitário, membro efetivo do Ministério Público e
escritor de pulso, Damásio achou ainda força e condições
para realizar ambicioso projeto, que o consagraria como o
precursor das escolas preparatórias às carreiras jurídicas.
Fundou e dirigiu, com inspiração de educador exímio,
o Complexo Jurídico Damásio de Jesus, glorioso celeiro de
saber especializado, onde jovens encontravam estímulo e
pecúlios intelectuais que os habilitassem a ingressar no
Ministério Público e na Magistratura.
Mestre Damásio e o abalizado corpo docente de seu
instituto deitaram em solo fértil sementes de verdadeira e
sã doutrina, que logo medraram e, por fortuna, produziram
os frutos que se esperam da boa árvore (na espécie, a nova
geração de servidores públicos, “magna pars” da cota de
sinergia orientada para o aprimoramento dos quadros da
Justiça).
Incontáveis, com efeito, são hoje os que servem
lugares de Magistratura, dignificam as hostes do Ministério
Público e da Advocacia e podem exibir com orgulho, à
guisa de credenciais de mérito, as insígnias do Complexo
Jurídico Damásio de Jesus.
A auréola de celebridade começava, destarte, a cingir
a fronte do Mestre, pois transpusera a meta que muitas
organizações predestinadas não lograram sequer tocar!
577

Houve mais, porém! É fama que a Natureza, para não


desmentir a parêmia que a dá por mãe pródiga, costuma
dotar de modo especial certas individualidades, com
apurar-lhes o entendimento, a vontade, o senso estético e
as potências que afirmam a vida(6). Este prodígio operou
em relação a Damásio, cujo ânimo, agraciado já com
peregrina inteligência e caráter, quis também dispor para
altas concepções e misteres: ungiu-o ministro juramentado
da arte e da beleza, em cujos altares oficiou com devota
pontualidade.
O bucólico teor de vida, o estilo original e as
expansões de jovialidade que imprimia às horas feriadas,
em sua estância rural, forjaram-lhe afável e lisonjeiro perfil.
Comprazia-se em cultivar, com entranhado desvelo,
imenso orquidário, que encerrava para cima de 6 mil
espécies, e extensa plantação de coqueiros (coisa de 3 mil
pés, que lhe rendiam a safra anual de 90 mil cocos). Ainda:
criava em sua deleitosa quinta — que, num lampejo feliz
de imaginação denominou Ilha da Fantasia — formoso
bando de 153 flamingos. Remeteu o disco ainda
mais longe: com infinita paciência adestrou-os na arte
coreográfica; sob sua regência e ao som de melodia
favorita, punham-se as aves a agitar a cabeça e o pescoço,
graciosa e sincronicamente, de um para outro lado.
Espetáculo era esse belíssimo de ver e mui digno de
divulgar, para gáudio e encantamento de quantos ainda se
extasiam perante o maravilhoso e sabem ser gratos àqueles
que, pelo engenho, ação fecunda e idealismo, engrandecem
a sociedade humana.
578

A revista Veja SP, edição de 5.10.2005, levou a palma


do bom gosto e oportunidade, ao comentar, com texto da
jornalista Marcella Centofanti, ilustrado com fotografia
expressiva, a arte cênica dos alvinitentes flamingos do
Prof. Damásio de Jesus (pp. 49-50):

IV. A herança do varão sábio e probo


Aquele que ensinou pela palavra e pelo exemplo, e
converteu em facho de luz os livros com que aplainou a
milhares de jovens o caminho das mais nobres profissões,
esse não foi apenas agente do bem; exerceu, em rigor,
a missão de apóstolo, termo por que se conhecem e
recomendam os propagadores de boa doutrina.
Obrando conforme o seu nome — Evangelista —,
Damásio armara-se de ponto em branco para revelar aos
579

espíritos ávidos de saber e afeitos aos estudos jurídicos as


noções fundamentais da ciência que o faria conhecido e
louvado em todos os círculos acadêmicos: o Direito Penal.
Mentor intrépido da instrução secundária e guia
seguro da mocidade estudiosa, acha-se-lhe por isso inscrito
o nome, à conta de sua manifesta e inconcussa influência,
entre os grandes vultos nacionais.
Isto de um obscuro discípulo pretender tributar
louvor a seu mestre, se este se chamou Damásio E. de
Jesus, não será pedra de escândalo nem pretexto para
censura, já que se amparou em razões forçosas e atendíveis,
das quais uma é a regra que manda proporcionar o
galardão ao merecimento, e o castigo à iniquidade. (Ora, os
serviços que o homenageado prestou à gente do foro
ultrapassam o mais generoso estalão!).
É de ordem natural o outro motivo: procede das
fibras do coração humano, que nunca ficou indiferente
à face daqueles que, por haverem tomado sobre si o
patrocínio de causas sociais nobres e urgentes, tornaram-se
dignos de eterno reconhecimento.
Ao Prof. Damásio Evangelista de Jesus convém, pois,
o mote paradoxal que a opinião pública tem reservado aos
varões de sumo valor, saber e honra: “Morreu ontem um
desses homens que não morrem” !(7)
580

Prof. Damásio E. de Jesus (1935-2020)


( Luminária grande do Direito Penal )

Notas

(1) Direito Penal Anotado, 18a. ed., p. 3.


(2) Pe. Antônio Vieira, Sermões, 1959, t. I, p. 120.
(3) “Juris praecepta sunt haec: Honeste vivere; neminem laedere;
jus suum cuique tribuere” (Digesto, 1.1.10.1).
(4) José de Sá Nunes, Aprendei a Língua Portuguesa, 1938,
vol. II, p. 221.
(5) No soberbo e dilatado cânon dos penalistas que, por
universal consenso, têm entre nós lugar assinalado
no panteão da glória literária, avultam os nomes de:
581

Nélson Hungria (“Pontifex Maximus” do Direito Penal


Brasileiro), Bento de Faria, A.J. da Costa e Silva,
Basileu Garcia, José Frederico Marques, Aníbal
Bruno, Heleno Cláudio Fragoso, Edgard Magalhães
Noronha, René Ariel Dotti, Alberto Silva Franco,
Mohamed Amaro, Guilherme Souza Nucci, Luiz
Flávio Gomes, Cezar Roberto Bitencourt, Miguel
Reale Jr., Edílson Mougenot Bonfim, Fernando
Capez, Roberto Delmanto, e muitos outros também
de primeira plana.
(6) Assevera um de seus biógrafos que Benjamim
Disraeli (1804-1881), estadista que consolidou o
Império Britânico, “idolatrava as árvores e as flores”
(André Maurois, A Vida de Disraeli, 7a. ed., p. 141;
trad. Godofredo Rangel; Companhia Editora Nacional;
São Paulo); o genial Rui Barbosa (1849-1923), nos
raros e breves ócios que lhe consentiam as graves
ocupações, “sempre dedicou especial carinho ao jardim e
às flores” (cf. Ruy Barbosa, “In Memoriam”, 1923).
(7) Dístico eloquente com que a imprensa da Capital
paulista lamentou a morte de seu prefeito Olavo
Setúbal (in O Estado de S. Paulo, 22.8.2008).
58. O Bom Juiz Eliézer Rosa

O louvor entre vivos (ou panegírico, segundo a


doutrina literária clássica) parece repugnar alguma coisa
aos estilos da prudência e ao comum senso ético. A razão é
que se lhe contrapõem, as mais das vezes, três objeções de
certo peso e tomo: é uma que o elogio poderá ofender a
natural modéstia daquele a quem se faz, causando-lhe
mágoa e escusado constrangimento; a outra é nunca faltar
uma voz que se levante contra a proclamação dos méritos
de alguém(1), ainda quando seja este a mesma virtude
personificada(2); o terceiro argumento, com que se tem
dissuadido a prática do louvor, é que, havendo-o a craveira
mesquinha por simples lisonja, somente fará abater os
créditos daquele que precisamente se intentava exaltar.
Tais dificuldades, porém, muito se atenuam quando,
ressalvado o pudor daquele a quem todo o encômio é
molesto (e isto fora já matéria de alto louvor), estiver a
deficiência unicamente no pregoeiro do mérito alheio;
porque, acudindo pela honra da causa, bem poderá
defender-se com as seguintes palavras de excelso varão:
“Elogios nem sempre são lisonjas; quando vêm merecidos, são
dever”(3). E, ao dever todos haveremos de respeitosamente
curvar a fronte!

II. É raro que alguém abrace quatro vezes a idade que


Tácito reputava por um grande espaço da vida humana(4);
mais raro, no entanto, é tenham as efemérides distinguido
584

com este favor sujeito de quem justamente se orgulha e


envaidece a classe jurídica do País!
No dia 14 de novembro de 1995, cumpriu os 87 anos
de sua idade o Magistrado Eliézer Rosa, ao qual, pelo
exemplar teor de sua vida e pela edificação e zelo com que
professou a carreira do Direito e da Justiça, deu-lhe a voz
pública o honroso cognome de o bom Juiz.

Eliézer Rosa, o bom Juiz

É lembrado sempre como dos poucos homens, em


quem se operara a feliz comunhão de qualidades que, por
excepcionais, se não veem senão distribuídas entre muitos
indivíduos: dotes raros de espírito, vastos cabedais de
585

ciências e compêndio de singulares virtudes. Magistrado,


põem-no os seus colegas por modelo cabal e venerando;
professor, leu o Direito Processual com inexcedível
competência e apuro; escritor, dignificou as letras com a
excelência de sua doutrina, esmaltada de elegante forma
vernácula portuguesa; privado, serve a conceituá-lo aquele
epíteto por que entre os romanos se reconhecia o titular da
soberania familiar: “bonus paterfamilias”.
À atividade judicante consagrou, esquecido de si
mesmo, a parte mais substancial de sua longa e fecunda
existência. A 8a. Vara Criminal do Rio de Janeiro foi o
tabernáculo onde o grão sacerdote do Direito sagrou culto
fervoroso à divina Têmis. Ali foi que, por 18 anos, exerceu
com o fulgor de sua inteligência, a pureza de sua fé e a
magnanimidade de seu coração o sublime ofício de julgar
os que afrontaram a lei. Primeiro que o criminoso, buscava
no infrator o homem, que a este era mister recuperar e
restituir ao convívio social. Ainda no mais empedernido
malfeitor, nunca deixou de ver uma entidade sagrada; os
que foram achados em erro, costumava tratá-los com
especial brandura(5). Sem fazer auto de fé da lei escrita,
curava todavia penetrar-lhe de preferência o espírito. E não
tinha mão em si que não proclamasse: “A Justiça está na
alma do juiz. Não está nos Códigos. A Justiça é o juiz”(6).

III. Aos cartórios do ofício é que geralmente incumbe


preservar contra a tirania do tempo, assentando-os em livro
próprio, os despachos e sentenças do juiz. O que parece
bem, visto que se não pode subtrair à curiosidade pública,
586

sem reprovação, o conhecimento dos atos de seus cidadãos


principais.
Do Juiz Eliézer Rosa, entretanto, não nos ficaram
(ainda mal!) os livros de registro de suas sentenças, uma
vez os reduzira a cinzas o mesmo incêndio que devorou,
com grande consternação do foro, o cartório de sua amada
8a. Vara Criminal. A tradição oral, contudo, supriu os
estragos do infortúnio. Sabe-se, por exemplo, que certa
feita julgara um jovem, acusado de furto de bicicleta.
Condenara-o, é verdade, como pediam as provas, mas,
porque lhe constasse que, filho de lavadeira, dificilmente o
ladrãozinho poderia realizar o sonho de ter uma bicicleta,
deu-lhe uma por presente o bom Juiz(7).
Casos que tais dispensam livros de registro, “porque do
que não cabe em livros, não há livro”, como sentenciou o
profundo Vieira(8).

IV. No entanto, se uma classe houve de profissionais a


que Eliézer Rosa votou entranhada estima e exaltou entre
todas, essa foi a dos advogados. Nunca lhe mereceram
outros maiores gabos e expressões de mais subido quilate:
ora afirma, solenemente, “que a nobreza elegeu seu domicílio
entre os advogados”(9); ora discreteia: “Não há justiça sem Deus,
disse-o o egrégio Rui; não há justiça sem advogado, acrescentarão
quantos viveram no jardim de tormentas que é o foro”(10). Daqui
procede a muita afeição que lhe têm eles, que não o
estremecem apenas, mas também lhe guardam fielmente as
lições, expostas com segurança e primor em seus vários
livros(11). Hoje, por ocasião do 87º aniversário de seu
587

nascimento, aos advogados (notadamente os criminalistas)


é que toca a honra e a vez de saudá-lo. Dir-lhe-á cada qual,
no estilo e com as mesmas palavras que, ao visitá-lo no
Tribunal de Alçada Criminal do Estado do Rio de Janeiro,
empregou o saudoso Prof. Alfredo Buzaid: “Só deixarei de
querer-lhe, Amigo, no dia em que Deus envelhecer”!(12).

Notas

(1) “Ao traçar a biografia de um de seus contemporâneos,


reconheceu Taine o perigo a que se expunha, ante a
circunstância de que o biografado ainda estava em
condições de desmentir o biógrafo” (Josué Montello, A
Oratória Atual do Brasil, 1950, p. 4).
(2) Como olhasse Deus para Abel e para suas ofertas, não
no levou Caim à paciência e determinou consigo
matá-lo (Gên 4,4). Aristides, é fama que seus
conterrâneos o proscreveram, aborrecidos de ouvir
“chamarem-no sempre O Justo” (cf. R. Magalhães Jr.,
Dicionário de Provérbios e Curiosidades, 1960, p. 141).
(3) Júlio de Castilho, Os Dois Plínios, 1906, p. 343).
(4) Cf. Vieira de Castro, Discursos Parlamentares, 1866, p.
180.
(5) “Todo réu é um humilhado e um ofendido pela própria vida.
O tratamento cordial dispensado aos réus é um dever de
todos que lavramos a terra escaldante, o chão de espinhos
duma sala de audiências criminais” (Eliézer Rosa,
Dicionário de Processo Penal, 1975, p. 55).
588

(6) Idem, Uma Justiça para o nosso Tempo e nosso Meio, 1977,
p. 19.
(7) In Última Hora (Rio), 12.1.1984.
(8) Sermões, 1957, t. X, p. 39.
(9) A Voz da Toga, 2a. ed., p. 34.
(10) Ibidem, p. 31.
(11) Da bibliografia de Eliézer Rosa (cujo nome é
frequentemente confundido com o do irmão —
Eliasar Rosa —, também jurista e escritor) constam os
títulos seguintes: Dicionário de Processo Civil (1957),
Cadernos de Processo Civil (3 vols., 1973), Leituras de
Processo Civil (1971), Advocacia, Função Pública (1949),
Dicionário de Processo Penal (1975), Romeiro Neto, o
Último Romântico da Advocacia Criminal (1984, 4a.
ed.), etc. Escreveu-lhe, ultimamente, primorosa e
rica biografia o renomado Desembargador do TJSP
Benedito Silvério Ribeiro, em Vultos do Poder
Judiciário (2016, pp. 243-257; YK Editora; São
Paulo). Ali, como em messe copiosa, colherá o leitor
os frutos que produziu o espírito fecundo de Eliézer
Rosa (1909-2002).
(12) Cf. Cadernos de Processo Civil, 1975, 3º vol., p. 23.
59. O Nome: Aspectos Jurídicos e
Literários

Sumário. Atributo importante do indivíduo, que o acompanhará em


toda a extensão da vida, é o nome civil um dos principais elementos ou
sinais de sua identidade; pelo que, ao pôr-se o nome próprio a alguém,
é mister proceder sempre, como em tudo o mais, com judicioso e
maduro critério.

I. Caso em Espécie
Haverá um mês, informaram órgãos de nossa
imprensa que certa avó cearense batera à porta do
Judiciário, animada de propósito que reputava não só
razoável e nobre senão ainda grave e urgente: obter
provimento que alterasse o nome de seu neto, civilmente
registrado com o prenome Lúcifer(1).
Caso foi esse que, por seu cunho “sui generis” ou
peculiar, interessou muitas pessoas, que o quiseram logo
discutir e comentar.
Deveras, isto de chamar Lúcifer a alguém é,
geralmente falando, o mesmo que tratá-lo por símbolo do
mal, que depara no Demônio (Satanás, Diabo, Capeta,
Belzebu, etc.) o tipo definitivo.
Destituída de sua primitiva significação — “o que traz
luz” (do étimo latino “lux + fero”) —, a palavra Lúcifer
adquiriu conotação fortemente pejorativa, de ordinário
associada ao anjo que, segundo a tradição religiosa(2), foi
precipitado no Inferno por haver-se rebelado contra Deus.
590

Assim, a despeito da auréola que o cinge — e que


mereceu ao genial Vieira observação notável: “O mais sábio
espírito que Deus criou foi Lúcifer”(3) —, esse nome inculca
para logo a ideia de sujeito maléfico ou monstro moral.
Consoante doutrina, em que conspiram os mais dos
autores de Direito Civil, é o nome “sinal distintivo externo
revelador da personalidade”. Ainda: pode o prenome (ou
nome próprio) “ser escolhido ad libitum dos interessados”,
não porém arbitrária e inconsideradamente. “Não seria
realmente admissível” — adverte o distinto e saudoso Prof.
Washington de Barros Monteiro — “adoção de prenome que
expusesse o portador à irrisão (…)”.
Conclui o consagrado Mestre: “Volva-se àquela pessoa
registrada com o absurdo nome Himeneu (Casamentício das
Dores Conjugais). Inquestionável o direito dela de pleitear a
mudança de nome que só lhe pode criar dificuldades na vida,
expondo-a a chacotas e zombarias. Da mesma forma, os tribunais
têm admitido a substituição de nomes como Mussolini, Hitler e
Lúcifer”(4).
Ao propósito, reza o teor do art. 55, parág. único, da
Lei nº 6.015, de 31.12.73 (Lei dos Registros Públicos): “Os oficiais
do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao
ridículo os seus portadores”.
Ao ajuizar pedido de retificação do registro civil do
neto, pelas possíveis consequências negativas de seu nome,
não entra em dúvida que a boa avó cearense obrou com
raro aviso; revelou, ao demais, grandeza de alma.
591

II. Antroponímia Exótica e Registro Civil

Não cabe no algarismo o rol dos nomes que, por


excêntricos ou curiosos, poderiam, à luz do regime legal
vigente (art. 55, parág. único, da Lei nº 6.015/1973), ser de
plano recusados pelo oficial do Cartório de Registro Civil
de Pessoas Naturais.
Com o escopo de oferecer “pequena amostra da
criatividade do povo brasileiro”, o periódico eletrônico Revista
Jus Navigandi (http://www.jus.com.br/legal/nomes.html) publicou,
em 24.12.2001, extensa resenha deles — que deita por
mais de 450 nomes —, de que, por amor da brevidade,
transcrevo apenas 50. São personativos que se leem entre
frouxos de risos; outros omiti, muito de estudo, com a
ressalva de nosso Rui em circunstância análoga: “(…)
porque, atualmente, o papel impresso o não sofreria”(5). Ei-los:
1. Antônio Manso Pacífico de Oliveira Sossegado;
2. Antônio Noites e Dias;
3. Asteroide Silvério;
4. Bandeirante do Brasil Paulistano;
5. Boaventura Torrada;
6. Cafiaspirina Cruz;
7. Caso Raro Yamada;
8. Céu Azul do Sol Poente;
9. Chevrolet da Silva Ford;
10. Dolores Fuertes de Barriga;
11. Esparadrapo Clemente de Sá;
592

12. Espere em Deus Mateus;


13. Éter Sulfúrico Amazonino Rios;
14. Faraó do Egito Sousa;
15. Felicidade do Lar Brasileiro;
16. Flávio Cavalcante Rei da Televisão;
17. Francisco Zebedeu Sanguessuga;
18. Homem Bom da Cunha Souto Maior;
19. Hipotenusa Pereira;
20. Inocêncio Coitadinho;
21. Jacinto Fadigas Arranhado;
22. João Cara de José;
23. João da Mesma Data;
24. João Pensa Bem;
25. José Casou de Calças Curtas;
26. José Maria Guardanapo;
27. Júlio Santos Pé-Curto;
28. Justiça Maria de Jesus;
29. Magnésia Bisurada do Patrocínio;
30. Manuel Sovaco de Gambar;
31. Manuel Sola de Sá Pato;
32. Maria da Segunda Distração;
33. Maria Panela;
34. Napoleão Sem Medo e Sem Mácula;
35. Olinda Barba de Jesus;
593

36. Pacífico Armando Guerra;


37. Pedrinha Bonitinha da Silva;
38. Pedro do Cacete da Silva;
39. Pombinha Guerreira Martins;
40. Restos Mortais de Catarina;
41. Rolando Caio da Rocha;
42. Sete Chagas de Jesus e Salve Pátria;
43. Tropicão de Almeida;
44. Vicente Mais ou Menos de Sousa;
45. Vítor Hugo Tocagaita;
46. Necessário Frescura;
47. Benigna Jarra;
48. Carabino Tiro Certo;
49. Maria Passa Cantando;
50. Último Vaqueiro.
594

III. O Nome nos Provérbios e Aforismos

São os provérbios (ou voz da experiência) repositório


notável do vocábulo nome. Aqui, os mais comuns e
correntios:

1. “Melius est nomen bonum quam divitiae multae”


(Prov. 22, 1). Mais vale o bom nome do que muitas riquezas
(Bíblia Sagrada; Prov 22, 1; trad. Pe. Antônio Pereira de
Figueiredo).

2. “Stultorum nomen semper ubique jacit”. O nome dos


néscios encontra-se em toda parte (Arthur Rezende, Frases e
Curiosidades Latinas, 1955, p. 764).

3. “Nomina stultorum scribuntur ubique locorum”.


“I nomi degli sciocchi sono scritti dapertutto” (Giuseppe
Fumagalli, L’Ape Latina, 1992, p. 185). Os nomes dos
loucos estão escritos em toda parte.

4. “Nomina stultorum semper parietibus haerent”. Os


nomes dos tolos estão sempre pegados às paredes (Paulo Rónai,
Não Perca o seu Latim, 1996, p. 120).

5. “Nisi enim nomen scieris, cognitio rerum perit” (San


Isidoro de Sevilla, Etimologías, 2018, p. 276). Se ignoras o
nome, o conhecimento das coisas desaparece.
595

6. “Hominis appellatione tam foeminam quam masculum


contineri nemo dubitat” (Dig.; apud Giuseppe Fumagalli,
op. cit., p. 107). Ninguém duvida que, sob o nome de
homem, entende-se tanto o gênero masculino como o
feminino.

7. Façamos célebre o nosso nome (Bíblia Sagrada; Gen 11,


4; trad. Pe. Antônio Pereira de Figueiredo).

8. Dúvida, em Direito Penal, é o outro nome da falta


de prova.
596

IV. O Nome: Frases, Locuções e Epigramas

a) Locuções nominais

1. Nome vocatório – Aquele pelo qual a pessoa é


comumente chamada e logo identificada. Exs.: Rui (Rui
Barbosa); Camões (Luís Vaz de Camões); Camilo (Camilo
Castelo Branco); Bilac (Olavo Brás Martins dos Guimarães
Bilac) (cf. Leib Sobelman, A Enciclopédia do Advogado, 1981;
v. nome vocatório).

2. Nome de guerra – “Pseudônimo pelo qual uma pessoa


é mais conhecida em sociedade já pelos seus escritos, já por outro
qualquer motivo” (Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo,
2a. ed.; v. guerra). Exs.: Carlitos (Charles Chaplin); Lima
Duarte (Ariclenes Venâncio Martins); Fernanda Montenegro
(Arlette Pinheiro Monteiro Torres), Pelé (Édson Arantes
do Nascimento), etc.
Pseudônimos extraídos do Dicionário Literário Brasileiro,
2a. ed., pp. 789-800 (autor, Raimundo de Menezes): Inútil
João Ninguém (João Capistrano Honório de Abreu);
Malba Tahan (Júlio César de Melo e Sousa); Pronto da
Silva (Emílio de Menezes); Valentim Demônio (Fidelino
de Sousa Figueiredo); Um Asno (José Martiniano de
Alencar); Zumbido (João Francisco Lisboa); Tristão de
Ataíde (Alceu Amoroso Lima).
À locução nome de guerra juntou o vocabulista De
Plácido e Silva — aliás, nome vocatório de Oscar Joseph
de Plácido e Silva —, tomando-a à má parte, a seguinte
acepção: “É especialmente utilizada na linguagem dos lupanares
597

para designar o nome suposto adotado pelas meretrizes, a fim de


ocultarem seu verdadeiro nome” (Vocabulário Jurídico, 3a. ed.; v.
nome de guerra). É o mesmo que pseudônimo, apelido,
alcunha, criptônimo ou nome suposto.

3. Nome regimental – O que adotam, nos atos de


seus ofícios, os integrantes do Poder Judiciário e, em suas
produções intelectuais, os membros das Academias ou
Institutos Científicos e Culturais. A esse respeito assentou
o Regimento Interno do Tribunal Regional Eleitoral de Roraima
(TER-RR): “Os juízes que compõem a Corte Eleitoral utilizarão
nome regimental, composto de um prenome e um sobrenome” (art.
206-A).
Assim, Ayres Britto era o nome regimental de Carlos
Augusto Ayres de Freitas Britto (do Supremo Tribunal
Federal); Carlos de Laet, de Carlos Maximiliano Pimenta
de Laet, fundador e ex-ocupante da cadeira nº 32 da
Academia Brasileira de Letras.

4. Anônimo – Termo usado para designar o que não


tem nome ou é desconhecido; “pessoa que se utiliza do
anonimato para satisfazer intuitos inconfessáveis” (De Plácido e
Silva, op. cit.; v. anonimato). Preceitua o art. 5º, nº IV, da
Constituição Federal: “É livre a manifestação do pensamento,
sendo vedado o anonimato”.
A eles (i.e., aos anônimos) parece que se referiu o
preeminente Rafael Bluteau, quando lançou da pena bem
aparada (talvez de ganso) este anátema: “Sei que há homens
598

no mundo, que desejaram ter nascido como os abutres, dos quais


escreve Plínio que ninguém sabe onde têm o ninho” (Prosas
Portuguesas, 1728, vol. II, p. 5).

b) Locuções de ressalva (ou cláusulas restritivas)

1. Pelo nome não perca. Ao discorrer desta locução,


que tem foros de cidade na fraseologia poruguesa, afirma
R. Magalhães Júnior que “há nomes desfavoráveis e que se pode
perder quando soam mal ou são extravagantes”. Cita, a esse
respeito, o caso de “um jurisconsulto português que dizia que,
havendo vários suspeitos de um crime e não sendo as provas
decisivas, devia ser condenado aquele que tiver mais ruim nome.
Neste caso, porém, o ruim nome deve entender-se como pior fama”
(Dicionário de Provérbios e Curiosidades, 1960, p. 213).
Em seus escritos, usaram dessa fórmula de reserva
autores de pulso e grande nomeada: a) “(…) que por nome
não perca” (Filinto Elísio, Obras Completas, 1818, t. IV, p.
263); b) “Caía a noite, quando acertou Atenodoro de ir visitar
o seu amigo Senador (que pelo nome não perca)” (Júlio de
Castilho, Os Dois Plínios, 1906, p. 134); c) “Não sucederia tal
ao celebrado capitão que conquistou a cidade Melqui, que
por nome não perca” (Cartas ao Abade Antônio da Costa, 1946,
p. 72); d) “(…) e fustigada até por um Sr. Terzuolo, que pelo
nome não perca” (Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário
Bibliográfico Português, vol. V, p. 341); e) “Lâmia é como se
chama a nossa velha, que pelo nome não perca!” (Léo Vaz, O
Burrico Lúcio, 1973, p. 25).
599

2. Dar nome aos bois. “Quando alguém faz acusações


vagas, apontando desonestidades em serviços públicos ou privados,
sem nomear os responsáveis, é normalmente convidado a dar
nome aos bois, isto é, a apontar os culpados” (R. Magalhães
Júnior, op. cit., p. 80).

3. Dar pelo nome de. Locução perifrástica, usada


como sinônima de ser sensível, ser conhecido por. Exs.: “E dava
pelo nome de Aprendiz” (Cândido de Figueiredo, Lições
Práticas da Língua Portuguesa, 1910, vol. III, p. 94);
“Procurou por um homem que dava pelo nome de Antônio do
Couto-de-baixo” (Camilo Castelo Branco, Noites de Insônia,
1874, nº 2, p. 27); “Petronilla ou Pellatroni (dava por ambos os
nomes), não se parecia com (…)” (Idem, ibidem, nº 5, p. 9).

c) Epigramas, ditos satíricos e curiosidades

Entra o nome também na formação de sentenças e


frases de espírito ou irônicas e mordazes, de que vai a
seguir pequena amostra:
1. “Teresa de Jesus, com espírito próprio de seu sobrenome,
chegou a dizer que (…)” (Pe. Antônio Vieira, Sermões, l959,
t. I, p. 301).
2. “Chamava-se Bona, e concordavam com o seu nome as
suas virtudes” (Pe. Manuel Bernardes, Nova Floresta, 1711,
vol. III, p. 2).
3. “Rústico, obrando conforme o seu nome, tanto que ouviu,
creu” (Idem, ibidem, p. 149).
600

4. “Amaro, o vosso nome corresponde à vossa condição”


(Cândido Lusitano, Vieira Defendido, Réplica, 1746, p. 4).
5. Com impiedosa mordacidade, assim Jânio Quadros
escarneceu, de uma feita, de Mário Covas, competente e
honrado governador do Estado de São Paulo: “O nome é o
homem!”.
6. J. Lamas: nome (autoexplicável) de certo deputado
federal, convencido de corrupção (ou lama).
7. Francisco da Silveira Bueno, gramático, filólogo e
escritor ilustre, no livro Memórias de um Batalhador (1996,
p. 76), mergulhou sua pena em fel e dela deixou cair —
sobre o Pe. Alberto Pequeno — palavras que certamente
desmerecem o prelo e as letras nacionais: “(…) triunfos que
muito deveriam ter incomodado a pequenez bastarda do Sr.
Padre Alberto, cujo sobrenome era a súmula profética da sua
miserável formação cristã: Pequeno!”.
8. “Vicentíssimo”, apelido pelo qual, “per jocum” (ou
pilhéria), era conhecido o jurista Vicente de Paulo Vicente
de Azevedo.
9. Houve outrora, na Magistratura do Estado de São
Paulo, provecto juiz e esforçado cultor do vernáculo, que
no entanto proferia decisões em estilo prolixo, com
extensos períodos, o que as sujeitava amiúde a embargos de
declaração. A “gens forensis”, de natural espirituoso, pusera-
lhe, a essa conta — de seu nome Rolando Magalhães
Couto —, a alcunha de Enrolando Magalhães.
601

10. Singular curiosidade encerram certos nomes. O


do dicionarista Aurélio Buarque de Holanda está neste
caso: desde o berço predestinara-o a fortuna à Lexicografia,
pois trazia já no prenome as cinco vogais do alfabeto
português.
11. Entre os nomes extensos e compridos incluem-se,
por força, os de:

Pedro I (1798-1834), 1º imperador do Brasil e 27º


rei de Portugal, com o título de Pedro IV:

Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de


Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano
Serafim de Bragança e Bourbon.
602

Pedro II (1825-1891), 2º imperador do Brasil:

Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano


Francisco Xavier de Paula Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de
Bragança e Bourbon (cf. Larousse Cultural, 1988, pp. 616-617;
Editora Universo).
603

V. O Nome: Lugares Seletos

Na Roma antiga — ensina Washington de Barros


Monteiro (op. cit., pp. 87-89) —, o nome da pessoa
compunha-se de três elementos (peculiares ao patriciado):
– o prenome (ou nome próprio da pessoa);
– o gentílico (usado por todos os membros da mesma
“gens”, ou família);
– o cognome (que distinguia os membros da “gens”).
À luz dessa praxe, constava dos seguintes elementos o
nome do Príncipe da Eloquência Romana: Marco (prenome);
Túlio (gentílico); Cícero (cognome).
De presente, compõe-se o nome de: prenome (ou
nome próprio da pessoa), que pode ser simples ou
composto, e sobrenome (patronímico ou nome de família).
Foi sempre o nome, em todo o gênero literário, voz
de primorosos conceitos. Eis alguns:
1. “O nome é o primeiro patrimônio do homem, a base
do seu crédito, o nervo de sua força, o estofo de seu trabalho, a
herança de sua prole, a última consolação de sua alma” (Rui
Barbosa, Obras Completas, vol. XX, t. IV, p. 199).
2. “O mais belo patrimônio é um nome honrado” (Vítor
Hugo; apud R. Magalhães Júnior, Como Você se Chama?,
1974, p. 51).
3. “O nome ilustre a um certo amor obriga” (Luís de
Camões, Os Lusíadas, canto II, estância 58).
604

4. “Enquanto os rios correrem para os mares, enquanto as


sombras das árvores percorrerem os vales dos montes, enquanto o
céu alimentar os astros, sempre a tua honra, o teu nome e louvores
lembrarão, quaisquer que sejam as terras que me chamem”
(Virgílio, Eneida, liv. I, v. 607; trad. Nicolau Firmino).
5. “A História coroará o seu nome” (Francisco Ferreira
dos Santos Azevedo, Dicionário Analógico da Língua
Portuguesa, 1974, nº 873).
6. “Seu nome viverá eternamente inscrito entre os dos
grandes homens, nos corações agradecidos” (Idem, ibidem).
7. “A aprovação e o louvor já vinham na primeira página,
apenas se chegava a ler o seu nome” (Antônio Feliciano de
Castilho, Castilho Pintado por Ele Próprio, vol. I, p. 18).
8. “Os alemães punham a cabeça a descoberto quando
ouviam o nome de Cujácio, não por fascinação pelo Mestre, mas
como culto ao Direito, cujo sacerdote ele era” (Revista da OAB-
SP), 1951, vol. 8º, p. 4).
9. “O nome de Leão XIII ficará gravado no coração
de todos os homens de bem, em caracteres que o tempo em vão
tentará extinguir” (Alves dos Santos, Orações Fúnebres,
p. 34).
10. “O seu nome (do Pe. Antônio Vieira) é o seu maior
panegírico” (Ernesto Carneiro Ribeiro, in Homenagem ao
Pe. Antônio Vieira, 1897, p. 47).
11. “Tanto nomini nullum par elogium”. “A nome tão
grande nenhum elogio é bastante. Epitáfio que orna o túmulo de
Niccolò Machiavelli” (cf. Pe. Godinho, Todas as Montanhas
são Azuis, 1991, p. 151).
605

12. “O seu nome há de chegar à última posteridade”


(Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo, 2a. ed.; v. último).
13. “Saber o nome de cada coisa, e não chamá-la de coisa,
chamá-la exatamente pelo nome, eis o que é saber um idioma”
(Carlos Lacerda, Uma Rosa é uma Rosa, 1965, p. 73; Rio de
Janeiro).
14. Glória eterna a seu nome!
606

VI. O Nome: Episódios Anedóticos

1. É dos livros que, ao chegar à notícia de Napoleão


Bonaparte que em seu exército havia um soldado também
chamado Napoleão, porém pusilânime, ordenou ao
ajudante-de-campo o trouxesse a seus pés. Tanto que o viu,
fulminou-lhe o general enérgica intimação: Ou você muda
de proceder, ou muda de nome, que a bravura deve ser o timbre
de todo militar.

2. Esfregava as mãos de alegria o espanhol José,


exibindo a certidão de nascimento do filho do casal
(José Galeón) à mulher. Esta o acompanhava também na
expansão de justa euforia… até que leu, estupefacta, o
nome com que o oficial do cartório registrara o menino:
Sossega Leão.

3. Ansioso, entra o galhardo mancebo na livraria e diz:


estou à procura de um livro. Qual o título? pergunta-lhe,
solícita, a vendedora.
— As Catilinárias de Cícero.
Após demorada busca nas estantes, a moçoila gentil
(porém hóspede em humanidades) retorna com a resposta:
— Queira desculpar, mas Arte Culinária só temos a de
Maria Teresa!
(Alusão ao famoso livro de Maria Thereza A. Costa,
Noções de Arte Culinária, 1964, 28a. ed., Editora Vozes;
Petrópolis; RJ).
607

4. Escrito lacônico de oficial de justiça, deixado sob a


porta da casa do réu, a quem não encontrara para citar,
porque se ocultava: Cidadão, voltarei amanhã, às 8h em ponto,
para cumprir um mandado do juiz. O negócio é feio e o teu nome
está no meio!

5. O nome do autor. Perguntado um dia Alexandre


Dumas (pai) se era o feliz autor do romance Dama das
Camélias, respondeu elegantemente:
— Não, sou o autor do autor!
608

VII. O Nome: Anagrama, Palíndromos e


Antonomásia

I. Anagrama – “Palavra formada pela transposição das letras


de outra palavra: Belisa (de Isabel)” (Hildebrando de Lima
et alii, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa,
11a. ed.; v. anagrama).
Do imenso rol de engenhosos anagramas pessoais,
que a capacidade inventiva pôs em circulação, alguns se
notabilizaram e caíram em graça:
1. Iracema – “No Brasil, o mais feliz dos anagramas foi o
que José de Alencar compôs, com a inversão do nome América,
do qual extraiu o de Iracema, a virgem dos lábios-de-mel” (R.
Magalhães Júnior, Dicionário de Provérbios e Curiosidades,
1960, p. 22).

2. Natércia (de Caterina);

3. Alice (de Célia);

4. “Galenus” (de “Angelus”). (Galeno – Anjo);

5. Mastai Ferretti. “Este nome dá o anagrama: Fert iste


tiaram. Este traz a tiara, isto é, este é papa. Mastai Ferretti é o
nome de família do papa Pio IX” (Arthur Rezende, Frases e
Curiosidades Latinas, 1955, p. 416; Rio de Janeiro);

6. “O alte vir!” – Ó varão eminente! (Voltaire). (Idem.


ibidem, p. 852);

7. “Laudator” (“Adulator”). (O que louva – Adulador).


(Idem, ibidem, p. 360);
609

8. “Iste erat Sol” – Esse era um sol (Aristóteles);

9. Egoísta vulgar (Getúlio Vargas);

10. Ignorante (argentino);

11. Maconha (cânhamo);

12. “Vê que perfeito anagrama


formam também alma e lama” (Alberto de Oliveira,
em Poesias; apud R. Magalhães Júnior, Dicionário de Citações
Brasileiras, 1971, p. 14);

13. “Libertà d’Orso”. Liberdade de urso (Alberto Sordi).


(Giorgio De Giorgio, in Corriere della Sera, 13.2.2000,
p. 21);

14. “Quid est veritas?”. “Est vir qui adest”. (Que é a


verdade? É o homem que está presente). Famoso exemplo de
anagrama feliz. Que coisa é a verdade? foi a pergunta que
Pilatos fez a Jesus, sem esperar pela resposta; e esta foi dada
na Idade Média com o referido anagrama (cf. Giuseppe
Fumagalli, L’Ape Latina, 1992, p. 251; Hoepli).

II. Palíndromos – “Tanto é palíndromo (…) um verso


quanto uma frase ou simples palavra que se possa ler da esquerda
para a direita ou da direita para a esquerda: ama, ovo”
(Napoleão Mendes de Almeida, Dicionário de Questões
Vernáculas, 1981, p. 222).
610

a) Em sua prestante obra, o Prof. Napoleão Mendes


de Almeida (1911-1998), varão integérrimo e apóstolo
ardoroso do ensino da língua portuguesa, traz curioso e
seleto exemplário de palíndromos, de que traslado esta
meia dúzia:
1. Roma me tem amor.
2. Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos.
3. Palíndromos latinos: “In girum imus nocte, et
consumimur igni”. (Circunvagamos durante a noite e somos
consumidos pelo fogo). Sidônio Apolinário, que o refere,
diz: O poeta que o compôs foi inspirado pelas mariposas
que via se queimarem na chama de sua lâmpada.
4. “Si bene te tua laus taxat, sua laute tenebis”. (Se teu
elogio te considera bem, muito mais te deleitarás com o dele).
5. Palíndromos ingleses: “Able was I ere I saw Elba”.
(Poderoso eu fui antes de ver Elba”).
6. “Doc, note I dissent. A fast never prevents a fatness. I
diet on cod”. (Doutor, observe; o jejum não evita engordar; eu faço
regime comendo bacalhau) (op. cit., p. 222).

b) Outros palíndromos:
7. Ave, Eva;
8. “(…) palíndromo das primeiras palavras ditas por Adão
a Eva no jardim do Éden: Madam, I’m Adam (Madame,
sou Adão)” (Charles Berlitz, As Línguas do Mundo, 4a. ed.,
p. 242; trad. Heloísa Gonçalves Barbosa; Editora Nova
Floresta; Rio de Janeiro).
611

9. “A Roma antiga desfrutava de um romântico


palíndromo: Roma tibi subito motibus ibit amor (Em Roma o
amor te virá de repente)” (Idem, ibidem).
10. O galo nada no lago.
11. “Subi dura a rudibus” (latim). Sofre coisas
desagradáveis de pessoas rudes. (Arthur Rezende, op. cit.,
p. 767; “subi”: modo imperativo: tolera, suporta, sofre).
12. Amor a Roma, título de livro do embaixador e
acadêmico Afonso Arinos de Melo Franco (1930-2020):
612

III. Antonomásia – “Substituição de um nome próprio por


um nome comum ou perífrase, e vice-versa: o nosso épico
(por Camões); Aristarco (por crítico)” (cf. Lello Universal; v.
antonomásia).

1. O Pai Eterno (Deus);


2. O Filósofo (Aristóteles);
3. O Pai da Eloquência (Demóstenes);
4. O Príncipe da Eloquência Romana (Cícero);
5. O Cisne de Mântua (Virgílio);
6. A Águia de Haia (Rui Barbosa);
7. O Altíssimo Poeta (Dante Alighieri);
8. O Pai da História (Heródoto);
9. O Torturado de Seide (Camilo Castelo Branco);
10. O Solitário de Vale de Lobos
(Alexandre Herculano);
11. A Redentora (Princesa Isabel,
filha do Imperador D. Pedro II);
12. O pai da mentira (Demônio);
13. O pai dos burros (dicionário);
14. O astro do dia (o Sol);
15. A rainha das flores (a rosa);
16. O Rei da Voz (Francisco Alves);
17. O Cantor das Multidões (Orlando Silva);
18. O Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa);
19. Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier);
613

20. Boca de Ouro (São João Crisóstomo);


21. Boca do Inferno (Gregório de Matos);
22. O Pai da Aviação (Alberto Santos Dumont);
23. O Poeta dos Escravos (Castro Alves);
24. O Bruxo do Cosme Velho
(Joaquim Maria Machado de Assis);
25. O Solitário de Itajubá (Venceslau Brás
1868-1966 – Presidente da República);
614

26. O Grande (Pe. Antônio Vieira);


615
616

27. O Patriarca da Floresta. É o nome por que se conhece


o grande jequitibá-rosa do Parque Estadual de
Vassununga, Santa Rita do Passa Quatro (SP).
617
618

Notas

(1) https://www.direitonews.com.br/2022/02.
(2) Bíblia Sagrada (Is 14, 12-15).
(3) Sermões, 1959, t. VIII, p. 198; Lello & Irmão —
Editores; Porto.
(4) Curso de Direito Civil, 1989, 1º vol., pp. 86-89;
Editora Saraiva; São Paulo.
(5) Réplica, nº 10.
60. Memorando aos Colegas da
Advocacia e da Magistratura

1. Era de razão que se voltassem para o Supremo


Tribunal Federal, aos 23 de março de 2021, os espíritos
preocupados com os graves assuntos nacionais; afinal,
nesse dia, julgariam seus Ministros processo que, segundo
abalizadas opiniões, iria pôr cobro à nefasta impunidade e
corrupção que, sem contradita honesta, arruínam o País.
Como o viajor do deserto, que, exausto, se imagina
diante do oásis que o irá dessedentar e, pois, manter-lhe a
vida, assim milhões de brasileiros dirigiram sua atenção
para o pórtico de nossa principal Corte de Justiça, com o
desejo ardente de que ela não lhes frustrasse enorme
expectativa. Queriam, em suma, confirmar-se na crença de
que o Supremo Tribunal Federal, além de guardião das leis
e intérprete máximo da Constituição, era o precioso
repositório da ciência jurídica e, pelo raro saber e conselho
de seus Ministros, o oráculo infalível nas questões que
entendem com os direitos, obrigações e garantias dos
cidadãos.
Mas, o que se não esperava (e excedeu toda a
imaginação) foi que esse julgamento, a estarmos pelo
sentimento geral das pessoas de limado juízo, deu causa e
pretexto a que — “horribile dictu”! — se fulminassem contra
a Suprema Corte críticas e impropérios tão acerbos e
desabridos, como iguais ainda não haviam registrado os
fastos do Poder Judiciário.
620

Numa palavra: o efeito que tal decisão provocou nos


sujeitos mais advertidos e briosos não foi muito diverso do
assombro que se infundiria no ânimo do homem comum
que, ao deitar os olhos para as fímbrias do horizonte,
percebesse, no alvor de um dia aziago, aparecer o Sol
no ponto cardeal oeste, onde precisamente costuma
descambar!

2. Os Senhores Ministros de nossa Mais Alta Corte de


Justiça tinham entre mãos causa mais relevante que
complexa (“Habeas Corpus” nº 164.493), em que o paciente
armava ao fito de obter de Suas Excelências declaração de
nulidade de ação penal, por alegada parcialidade do juiz.
Por uma de suas Turmas (a 2a.), deferiu o Supremo
Tribunal Federal ao paciente a ordem para o fim que
constituía o objeto da impetração: anular a ação penal
(cujos termos se haviam processado perante o Juízo de
Direito da 13a. Vara Federal de Curitiba), à conta de
parcialidade do juiz (Sérgio Fernando Moro) que presidira
à instrução criminal, sentenciara o feito, decretara a
condenação do paciente (Luiz Inácio Lula da Silva) e
enviara-o à sombra do cárcere.
Se, em todas as instâncias da Justiça Criminal, passa
por fato ordinário isto da concessão de “habeas corpus”, por
que, no caso de que se trata, foi o resultado do julgamento
severamente impugnado não só pelo vulgo profano senão
ainda por figuras exponenciais das carreiras jurídicas,
de seu natural discretas e que, em linha de princípio,
621

costumam abster-se de comentar com estrépito decisões


proferidas pelos magistrados com assento nas primeiras
cadeiras da Justiça?!
De uma das mais lúcidas inteligências, de que
justamente se ufana a república das boas letras, ficou-nos
este alvitre: “Não há coisa mais dificultosa que dar a razão
de uma sem-razão”(1).
Tentarei, contudo, examinar os móveis ou argumentos
que, ao parecer, concorreram para a discordância de muitos
brasileiros com a referida decisão, que houveram por
anômala e acintosa; e, por isso, deram o toque de rebate
para que juízes, membros do Ministério Público e
advogados comparecessem à barra do tribunal do povo,
para responder aos artigos de informal libelo por pretensas
infrações éticas, funcionais e até pela prática de crimes de
prevaricação e lesa-pátria.
Fez as vezes de estendal da insatisfação pública a
Imprensa — “a vista da nação”, na frase lapidar de nosso
maior patrício(2) —, secundada pelos mais veículos de
informação. Com efeito, jornais, emissoras de rádio, canais
de televisão e instrumentos de acesso às redes sociais
continuam a realejar o tema do julgamento do “habeas
corpus” que recebeu já a tacha pejorativa de abundantes
adjetivos: “nefasto”, “aberrante”, “esdrúxulo”, “monstruoso”, etc.

3. Circunstâncias da vida ensejaram-me integrasse por


largo tempo, de corpo e alma, as carreiras assim da
Advocacia como da Magistratura, esta até a aposentadoria.
622

Conheço, pois, o seu tanto as aptidões e qualidades


necessárias aos que as exercem, o que me habilita a delas
discorrer, posto incidentalmente. Trata-se, não há para que
se negue, de profissões, cargos ou dignidades que sempre
mereceram à voz pública os mais altos e distintos louvores.
Da primeira disse um grande espírito que era a mais bela
profissão do mundo(3); a Magistratura, esta se honra com o
magnífico epíteto com que a exornou o imenso Rui: “(…)
a mais eminente das profissões, a que um homem se pode entregar
neste mundo”(4).
Defensor de uma das partes litigantes em juízo (e
constituído para assisti-la com toda diligência e sem
desfalecimento), submete-se o advogado, no exercício do
múnus público, às severas cláusulas do juramento que fez,
ao receber sua prestigiosa carteira profissional(5).
Por formal compromisso também o magistrado se
obriga à reta exação no desempenho de seu cargo(6).
E bem estava que, em cerimônia penetrada de
simbolismo e resignação, o advogado e o juiz prestassem
realmente compromisso de cumprir seus deveres com
“retidão, amor à Justiça e fidelidade às leis e instituições vigentes”,
provendo à segurança do País, que o preconizavam os
atributos de seu múnus e ofício.
Enfim, os integrantes das carreiras jurídicas
(advogados, juízes, membros do Ministério Público, etc.)
atendem, pelo comum, ao compromisso com que se
aprestaram para as coisas e negócios da Justiça e do Estado.
O advogado, a dar-se o caso que, esquecido das normas do
623

público proceder, ofenda o decoro da profissão ou, no


patrocínio da causa, destoe da praxe e uso forense, haverá
quem o chame a contas e lhe emende a mão: o órgão
disciplinar da Ordem ou, na esfera judiciária, o próprio
juiz do processo. O juiz que transgride seus deveres
funcionais ou desacerta no dizer o direito (“quod Deus
avertat a bonis”!), esse fica sob o poder disciplinar do
Conselho Nacional de Justiça, ou é submetido à
autoridade de hierarquia superior, nas hipóteses de erro de
julgamento (“error in judicando”).
Para mais, são brasileiros esses profissionais do
Direito e, destarte, presume-se-lhes o natural sentimento
de patriotismo. No rol de seus desígnios constará, por
força, a preocupação pela prosperidade do Brasil e bem-
-estar de seu povo. (Os acordes do Hino Nacional ainda
lhes espertam um frêmito de entusiasmo na arca do peito!).

4. Agora, ao cerne da questão: o julgamento, pelo


Supremo Tribunal Federal, de um “habeas corpus”, cujo
resultado até a leigos supreendeu… (O que depõe a favor
da teoria de que não é preciso ser musicista de escol para
perceber quando, ao entoar melodia conhecida, o cantor
desafina).
O instituto do “habeas corpus” — remédio jurídico-
-processual mais célere e eficaz para conjurar abusos e
ilegalidades contra o direito à liberdade de locomoção
do indivíduo — rege-se por princípio rigorosamente
observado em todos os graus de jurisdição, que o Supremo
624

Tribunal Federal, muito há, cristalizou em sua jurisprudência:


“O processo de habeas corpus não comporta exame interpretativo
de prova, notadamente prova testemunhal” (HC nº 48.894-GB;
2a. Turma; rel. Min. Antonio Neder; j. 6.8.71; in Revista
Trimestral de Jurisprudência, vol. 58, p. 523).
Era a aplicação da doutrina que o ínclito jurista Pedro
Lessa(7) professava a propósito do “habeas corpus”: se, para
concedê-lo, for de mister exame de “alegações e provas, que
devem ser exibidas em uma ação qualquer, sob qualquer exame
processual, ao juiz cumpre indeferir o pedido” (apud Manoel
Costa Manso, O Processo na Segunda Instância, 1923, p.
391).
Ultimamente, Heleno Cláudio Fragoso: “Não se
pode admitir em habeas corpus matéria de prova duvidosa ou
controvertida” (Jurisprudência Criminal, 1979, vol. II, p. 432).
Ora, a questão que se pretendia desatar na via angusta
do “habeas corpus” ninguém, em seu acordo e razão,
dirá que era simples e estreme de dificuldades; ao revés,
cobria-a véu espesso e impenetrável; ao demais, no
transcurso de seis anos, escrutínios de probos, cultos e
diligentes Magistrados de nossas Cortes Superiores de
Justiça não acharam o que desvendar nem trazer à luz, em
contradição com a legalidade do processo-crime em que
oficiara o juiz estigmatizado com o ferrete de parcial.
Eis por que a doutos e semidoutos não desconcertou
o voto do Senhor Ministro-Relator (Edson Fachin), ao
denegar, sob aquele fundamento (isto é, não tolerar o
“habeas corpus”, por seu rito peculiar, análise aprofundada
625

de prova), a ordem impetrada; nem o do 2º Juiz (Cármen


Lúcia), que o acompanhou, abundando nas mesmas razões
de decidir.
Certo exame de prova — desde que perfunctório,
rápido e superficial — sempre se admitiu nos raios do
“habeas corpus”; o que aí não tem lugar é a ampla indagação,
própria só das dilações probatórias ordinárias.
Proferido o segundo voto, pediu vista dos autos o 3º
Juiz (Gilmar Mendes), como lho facultava o art. 134 do
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal(8).
A partir daí, introduziram-se na tramitação dos autos
práticas insólitas, das quais foi a primeira a demora
inaudita em sua devolução à mesa para a continuidade do
julgamento(9), e isso em tanta maneira, que adquiriu foros
de realismo o oportuno epigrama de Rui: “Não sejais, pois,
desses magistrados, nas mãos de quem os autos penam como as
almas penadas do purgatório, ou arrastam sonos esquecidos, como
as preguiças do mato” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 42).
Pode ter havido razões atendíveis — que não é para
aqui liquidar —, mas, em pontos de retenção de autos de
“habeas corpus”, por pedido de vista, não se sabe que alguém
deitasse a barra tão longe!

5. Outro fato, que abismou as pessoas que o puderam


testemunhar, foi o teor de proceder do Senhor Ministro
a quem competia dar a conhecer o voto ansiosamente
aguardado: com veemência, e melhor diria fúria retórica,
626

discorreu à larga das circunstâncias do pedido de “habeas


corpus”, fazendo grande caso e cabedal de matérias de vária
ordem, colhidas de processos-crimes instaurados contra o
paciente; onde, entretanto, mais se comprazeu, reservando-
-lhes magna parte de suas diatribes, foi nuns elementos (ou
narrativas) a que a malícia emprestara força e prestígio, sem
embargo de sua absoluta imprestabilidade, por obtidos
com violação de conversas telefônicas resguardadas pelo
sigilo.
Ao caráter de nada jurídico (atento seu vício de
origem) juntava-se a tal corpúsculo de provas a nódoa
irremissível de não ter sido submetido a perícia, que lhe
comprovasse a autenticidade.
Com as mãos nessa congérie de elementos disformes
e sem fomento de direito — que, de regra, não têm entrada
no átrio da Justiça —, foi que Sua Excelência votou pela
concessão do “habeas corpus”, tendo-o seguido o 4º Juiz
(Ricardo Lewandowski). Ao mesmo tempo, anunciava-se
com pregão que algum Ministro estaria excogitando alterar
seu voto, agora para deferir o “habeas corpus”. Solicitou,
nesse ínterim, vista dos autos o 5º Juiz (Nunes Marques),
que iria desempatar a votação.
Firme na lição da doutrina mais bem recebida e na
jurisprudência consolidada dos Tribunais, Sua Excelência
acompanhou o Ministro-Relator e denegou o pedido.
Então, à maneira de iracundo mestre-escola — que,
empunhando temível férula, determina chamar à ordem
rapazelhos díscolos e recalcitrantes —, o mesmo Senhor
627

Ministro (que retivera consigo, por obra de um biênio, os


autos do processo de “habeas corpus”) retomou a palavra e,
reabrindo a discussão da causa, entendeu de avigorar os
fundamentos do voto que proferira na sessão anterior da
Turma, discrepante do que dera o Ministro-Relator. Em
exaustiva peroração, reiterou argumentos extraídos de
vários tópicos processuais; submeteu a aturada análise fatos
relativos ao paciente e deles pretendeu inferir a parcialidade
do juiz da condenação. Já esgotada a sua eloquência (e
talvez a paciência de muitos que o escutavam), fechou a
abóbada de seu voto, no qual encareceu a concessão da
ordem de “habeas corpus”.
As palavras, que milhares de espectadores da TV
Justiça acabávamos de ouvir, não lembraram — pesa-me
dizê-lo — as que soem brotar dos lábios do magistrado
refletido, prudente e sábio (atributos que lhe são
inerentes), mas as de um demagogo atrabiliário que,
erguendo a voz(10) e gesticulando arrebatadamente num
rude palanque, prestes a romper as ilhargas, expectora
frases minazes e tremebundas e, ao final, promete, em
tempestuosa oratória, atar ao pelourinho quem dele ouse
discordar(11).

6. Após a segunda manifestação de Sua Excelência,


deparou ensejo a novo ato no julgamento do “habeas corpus”
a intervenção de outro integrante da Turma, que, embora
já tivesse proferido seu voto (pelo qual denegava a ordem),
propunha-se reconsiderá-lo; o que fêz.
628

Nos Tribunais, é incidente ordinário isto de um juiz


mudar seu voto, se o determinarem razões forçosas e
inabaláveis. Proceder é esse que, aliás, tem por si brasão
de aforismo jurídico: “Sapientis est mutare consilium”. Sim, é
próprio do sábio mudar de parecer ou opinião, desde que o
faça para melhor!
É que a mudança de opinião ou voto, sem que o
inculquem novas razões e sustentem melhores fundamentos,
é operação mental que desfecha em ilogismo, pois encadeia
o raciocínio e amortalha o bom-senso.
Ora, nenhum argumento sério constava dos autos —
e o que não está nos autos não está no mundo, reza
a parêmia(12) —, suficiente a abalar o convencimento
expresso no voto que acabava de abjurar.
Onde o argumento-Aquiles, o argumento de grande
calado, bastante a abrir mossa no espírito do Ministro do
Supremo Tribunal Federal e justificar-lhe a excepcional
alteração de entendimento acerca de matéria processual
simples e correntia, em sacrifício de sua decisão anterior,
tão bem exarada?!
Fora acaso a menção, no debate da causa, de fatos
extraídos de gravações telefônicas não autorizadas e talvez
desabonadoras da conduta do magistrado arguido de
parcial?!
Estou que não; obtidas criminosamente — demais de
não periciadas —, não se eximiam tais provas da nota de
ilícitas e indignas de fé; repugnariam, pois, liminarmente,
à sã consciência de todo aquele que as houvesse de
aferir…(13).
629

No mudar seu voto, dar-se-ia o caso que o Juiz


acedera a sugestões e fatores exógenos, sem algum liame
com o processo?! Seria leviandade supô-lo; não fora de
presumir quisesse rastejar na lama o que tem asas para
voar!
Poderia, enfim, ter influído na alteração (ou
metamorfose) do voto um inexplicável temor reverencial
ou rendição da vontade do súcubo à prepotência de algum
soturno íncubo? Não há afirmá-lo, que isto implicava
perscrutar os arcanos do subjetivismo alheio, empresa vã
e pretensão desvairada!
Em resumo: atinar com os reais motivos da mudança
de voto (que tanta honra conferia a seu prolator!) não
parecera menos difícil que “endireitar a sombra da vara
torta”, como diria um galante escritor(14).
Daí a estupefação da maior parte daqueles que se
inteiraram do resultado do julgamento, no qual se alegava
parcialidade do juiz que condenou o paciente. Muitos, a
essa conta, não tiveram mão em si que não se autorizassem,
desde logo e com desconhecida energia, a vituperar juízes
e advogados.

7. Que os agravados em sua reputação não viessem a


terreiro para se defender foi também matéria para ásperas
controvérsias. Mas o seu silêncio (antes estudado que
obsequioso) terá, decerto, fundamentos sólidos que o
relevem, e isto bem se adivinha.
630

Com referência aos advogados — que não poucas


pessoas tiveram por agrestes e incivis, por amor do extremo
denodo com que atuaram em suas causas —, esses estão
sujeitos ao Estatuto da Advocacia e ao Código de Ética e
Disciplina.
Por seu teor normativo particular, e em proveito da
boa inteligência das prerrogativas do advogado, faz ao
propósito reproduzir aqui artigo áureo do Estatuto da
Advocacia: “O advogado tem imunidade profissional, não
constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer
manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo
ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a
OAB, pelos excessos que cometer” (art. 7º, § 2º).
Para ele, o mesmo é trair a grandeza de seu ministério
que não poder exercê-lo com independência. Donde
o elementar corolário: para advogar é mister ampla
liberdade. Ou, como sentia aquele sujeito de raro espírito e
talentos que foi Alfredo Pujol: “O advogado tem de ser
inteiramente livre, para poder ser completamente escravo de seu
dever profissional! O único juiz de sua conduta há de ser sua
própria consciência (…)” (Processos Criminais, 1908, p. 128).
Sobretudo a liberdade de expressão há sempre de
garantir-se aos advogados, aos quais tocou a palavra por
instrumento de luta.
Em obséquio ao alcance de seu ofício, houve quem
reputasse dignas de tolerância as palavras do advogado,
ainda nos seus excessos: “O advogado precisa da mais ampla
liberdade de expressão para bem desempenhar o seu mandato. Os
631

excessos de linguagem, que porventura cometa, na paixão do


debate, lhe devem ser relevados” (Rafael Magalhães, in Revista
de Jurisprudência, vol. I, p. 375).
E, ouso dizer, não lhe faltaram carradas de razão.
Naquelas defesas onde se reclama certa vivacidade e
animação de linguagem, que mais fácil, com efeito, que ir o
advogado além da marca?! Excelentemente, o conspícuo
Sobral Pinto: “É que o patrono de uma causa precisa, muitas
vezes, para bem defendê-la, assegurando assim o seu êxito, ser
veemente, apaixonado, causticante. Sem que o advogado revista a
sua defesa de tais características, a sorte de seu cliente estará,
talvez, irremediavelmente perdida” (apud Carvalho Neto,
Advogados, 1946, p. 481).
Mas, ainda quando algum advogado, mentindo a
augustos ideais, venha a cair em desgraça, não é possível
que desdoure o fulgor de toda sua Ordem: grandes vultos,
em todas as quadras da História — Cícero, Berryer,
Malesherbes e Rui Barbosa —, já lhe fizeram perpétua
apoteose. (Ainda ressoam nos Tribunais, já que a morte as
não pôde silenciar, as vozes de um Waldir Troncoso Peres,
de um Dante Delmanto e de um Raimundo Pascoal
Barbosa, nos quais a flama da advocacia militante rivalizava
com os primores da ética profissional)(15).

8. Mais que o silêncio (ou talvez indiferença) dos


advogados quanto às licenças com que, ultimamente, se
apadrinharam julgamentos do Supremo Tribunal Federal,
incomodou a opinião pública o conformismo, com feições
632

de apatia, que pareceu haver penetrado a alma de eleição


da Magistratura brasileira.
Juízes houve, é bem verdade, que, não sopitando
desapontamento e desagrado, vieram a público e
declararam-se estarrecidos com os rumos que tomava a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal; diziam-se
igualmente acabrunhados pelo proceder (que haviam por
temerário) de alguns de seus Ministros no aplicar o direito
e dispensar justiça.
Para não ser demasiado prolixo, e reputá-las
expressivas que farte para evidenciar a desconformidade do
sentimento (ia quase a dizer unânime) dos juízes com os
recentes julgados daquela Alta Corte, citarei só as palavras
do ex-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, Desembargador Márcio Martins Bonilha, jurista
de alto quilate, varão de claro entendimento, vasto saber e
peregrinas virtudes: “(…) quero bradar meu clamor, porque
assisti com estupefação à sessão de julgamento no caso da
imputada parcialidade do juiz Sergio Moro, em processo da
denominada Operação Lava Jato, mal acreditando no aberrante
desfecho da causa, que não honra as tradições de justiça daquela
Alta Corte” (in O Estado de S. Paulo, 25.3.21, p. A3).
Teria tal clamor, que não se atirava às pedras do
deserto, deixado de propagar-se entre os colegas de toga?
Não, decerto! Antes é para crer que o tenham ouvido e de
boa mente confirmado, pois que, fortes nas escorreitas
letras jurídicas, sempre tiveram em muito as regras do
direito positivo, as tradições do Judiciário e os preceitos da
633

Justiça. Para mais, o sangue não lhes esquecera ainda o


caminho do rosto!
Mas, por que se retraíram quando deles se esperava
que adiantassem o passo, de viseira erguida?!
Duas razões acredito lhes guiaram o propósito de
prestigiar o silêncio: a notória escassez de tempo, que não
permite aos juízes cuidar senão das coisas que interessam
diretamente à sua judicatura; e a persuasão de que o
referido julgamento em nada irá alterar a Jurisprudência
que, de longa data, vem iluminando nossos Tribunais.
Fato de todos conhecido, a sobrecarga de trabalhos
com que se veem a braços os juízes estaduais, reduzidos a
condição análoga à de escravos, era já poderosa para
mantê-los afastados de questões extra-autos. Neles operou,
todavia, causa de maior monta: a convicção da parva
relevância do resultado de tal julgamento nas instâncias
judiciárias inferiores.
Com efeito, o acórdão do Supremo Tribunal Federal,
que deferiu ordem de “habeas corpus” ao paciente, em rixa
aberta com o voto do Senhor Ministro-Relator, terá
dificuldade para elidir o estigma de casuístico (que outro
nome não convém à decisão que faz rosto ao bom direito e
à jurisprudência mansa e pacífica).
Sem receio de cair em erro, auguro que os integrantes
da heroica e assaz honrada Magistratura brasileira
continuarão, pela maior parte (se não totalidade de seus
membros), a dizer o direito e a distribuir justiça em
harmonia com a nossa veneranda tradição jurisprudencial
634

e os ditames da razão esclarecida, a exemplo daqueles


juízes doutos e integérrimos, infinitos em número, que
orgulham o Poder Judiciário(16).

9. Um aspecto do julgamento em exame não deve correr


sem reparo, que isto importaria transigir com violação de
regra que a legislação penal define com ênfase.
É o caso que a Segunda Turma do Supremo Tribunal
Federal, ao atribuir ao “habeas corpus” a qualidade de via
judicial idônea para apurar arguição de suspeição de juiz,
às testilhas com o ensinamento dos autores de melhor nota
e com a jurisprudência dominante, quebrantou preceito
legal básico. Dispõe, com efeito, o Código de Processo Penal
que, “nos procedimentos ordinário e sumário” (art. 396), “a
exceção será processada em apartado, nos termos dos arts. 95 a
112 deste Código” (art. 396-A, § 1º).
Ao demais, a parcialidade do juiz, a quem se deu
por “inimigo capital” do paciente, não podia prescindir da
prática formal do princípio do contraditório, já que instaurada
a instância pela via judicial do “habeas corpus”. Imputação
era essa que traía verdadeiro libelo; pelo que, não havia
acolhê-la sem prévia audiência do interessado, conforme
preconizava o milenar brocardo jurídico “Audiatur et altera
pars”. Ouça-se também a parte contrária.
Tal garantia, que a Constituição Federal (art. 5º, nº LV)
assegura até ao pior facínora, ao juiz foi denegada, com
manifesto desprezo do direito positivo e da doutrina
comum de juristas de prol: “Sêneca, que viveu e floresceu três
635

séculos antes de Cristo, deixou, entre outros, este pensamento


admirável: Julgar alguém sem ouvi-lo é fazer-lhe injustiça, ainda
que a sentença seja justa” (Vicente de Azevedo, Curso de
Direito Judiciário Penal, 1958, vol. I, p. 93).
Cai a lanço notar mais que o magistrado, quando
julga, tem diante de si o interesse do meio social em que
vive. Assim como prevalece, nas hipóteses de legítima
defesa, a regra jurídica de que todo cidadão é autoridade
(“omnis civis est miles”), de igual passo, naquelas em que a
própria sociedade é vítima da torrente de delitos graves,
caberá ao juiz (lídimo guardião dos valores que ela lhe
confiou) aplicar, à luz do direito penal subjetivo, o rigor da
lei; trata-se de inexorável medida política de prevenção
da delinquência e de defesa da sociedade, meta primeira do
Estado e aspiração permanente da Justiça. Tanto viola a
lei o juiz que condena o inocente, como o que, por mero
arbítrio, absolve o culpado. Para esse, aliás, já a Antiguidade
cunhava máxima de infâmia: Condena-se o juiz quando o
culpado é absolvido(17).
Também naquele processo relacionado com a
competência do Juízo da condenação do paciente, o
julgamento do Supremo Tribunal Federal não ficou a salvo
dos tiros da crítica, pela fragilidade, e até carência, de
fundamentos plausíveis.
Realmente, nenhum espírito refletido e limpo de
baixas preocupações se contentará das razões que anularam,
por deliberação de um só Juiz (o Senhor Ministro-Relator),
sentença condenatória que Desembargadores do Tribunal
636

Regional Federal da 4a. Região (TFR-4) e Ministros do


Superior Tribunal de Justiça haviam confirmado, após
detido e individuado exame dos autos, com estrita
observância dos princípios capitais de nosso sistema
jurídico, notadamente o da plenitude do direito de defesa.
Donde veio a perguntar, autorizado por sua honrosa,
brilhante e ilibada presença nas províncias da Justiça, o
ex-Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Almir
Pazzianotto Pinto: “Houve colapso mental ou perda da lucidez
pela maioria? Se não houve, qual o motivo para arbitrária
concessão de habeas corpus que fulmina a Operação Lava Jato
e consagra a impunidade contra a corrupção?”(18).
Para Mário Guimarães, insigne ministro do Supremo
Tribunal Federal, cujo nome se lê no frontão do Fórum
Criminal de São Paulo, “a jurisprudência é, nos tribunais,
a sabedoria dos experientes. É o conselho precavido dos mais
velhos (…). Manter quanto possível a jurisprudência, será obra
de boa política judiciária, porque inspira no povo confiança na
Justiça”(19).
Assim, embora os Tribunais Superiores não obriguem
os inferiores salvo quanto ao caso concreto, será de bom
exemplo guardar conformidade àquelas decisões que,
proferidas sob o influxo da reta razão e da equidade,
aproveitem às partes sem ofender o zelo da Justiça.

10. Quisera não lhes coubesse, às ideias e conceitos


aqui emitidos — parece bem preveni-lo — o laivo de
destempero de fantasia ou amplificação retórica. São, em
637

verdade, expressão a mais genuína da grande mágoa que


feriu a alma de velho advogado e desembargador, já no
ocaso da existência (e a de milhares de colegas e milhões de
patrícios), nascida da percepção de que enorme descrédito,
qual perfil sombreado, ameaça deslustrar a imagem da
Justiça brasileira, e mazelas hediondas (como a corrupção
e a perda da consciência profissional) obstinam-se em
atrofiar as fibras saudáveis da Pátria.
Desenganem-se, contudo, os que alguma hora
descreram da Justiça do País e avaliaram por craveira
mesquinha os seus juízes… Estes permanecerão quais
sempre foram: a despeito de suas naturais imperfeições
e misérias, continuarão a exercer, com nobreza de
sentimentos, dignidade de inteligência e firmeza de caráter,
a sublime função que, na frase de um engenho feliz, o
homem usurpou a Deus: julgar(20).
Mas, perguntará alguém, esses julgamentos que
surpreenderam a maioria dos brasileiros não terão lançado
no ânimo dos juízes um como germe de desalento
e frustração? Palpito que não! Preferirão atender ao
conselho do sumo Poeta: “Non raggioniam di loro, ma guarda
e passa” (21).
E ouvirão, com a alegria dos justos, aquela profissão
de fé e letra de louvor: “A esperança nos juízes é a última
esperança”!(22).
638

Notas

(1) Pe. Antônio Vieira, Sermões, 1959, t. IV, p. 139; Lello


& Irmão – Editores; Porto.
(2) Rui Barbosa, A Imprensa e o Dever da Verdade, 1920,
p. 15.
(3) “J’aurais volu être avocat: c’est le plus bel état du monde”
(Voltaire; apud Alberto Souza Lamy, Advogados, Elogio
e Crítica, 1984, p. 102).
(4) Oração aos Moços, 1a. ed., p. 41.
(5) “Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência,
observando os preceitos de ética e defendendo as prerrogativas
da profissão, não pleiteando contra o Direito, contra os bons
costumes e a segurança do País, e defendendo, com o mesmo
denodo, humildes e poderosos”, dispunha o art. 64 da Lei
nº 4.215, de 27.4.63.
(6) Reza o art. 137 do Regimento Interno do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo: “O novo desembargador,
antes de tomar assento, prestará, perante o Presidente, o
compromisso formal de cumprir com retidão, amor à Justiça
e fidelidade às leis e instituições vigentes, os deveres do
cargo (…)”.
(7) Pedro Augusto Carneiro Lessa (1859-1921) —
“Nomeado, na presidência Afonso Pena, por decreto de
26 de outubro de 1907, ministro do Supremo Tribunal
Federal, traçou, na magistratura, o perfil do maior dos
juízes brasileiros” (Waldemar Ferreira, A Congregação da
639

Faculdade de Direito de São Paulo na Centúria de 1827 a


1927, p. 82).
(8) Art. 134 do Regimento Interno do STF: “O ministro
que pedir vista dos autos deverá apresentá-los, para
prosseguimento da votação, no prazo de trinta dias, contado
da data da publicação da ata de julgamento. (Redação
dada pela Emenda Regimental nº 54, de 1.7.2020; a
Resolução nº 278, de 15.12.2003, fixava em 10 dias o
prazo de vista do processo).
(9) “Após segurar o caso por quase dois anos e meio, graças a um
pedido de vista (…)” (Carlos Alberto Di Franco, in
O Estado de S. Paulo, 22.3.21, p. A2). Nas colunas do
mesmo jornal (23.4.21, p. A4), enquanto o jurista
Joaquim Falcão perguntava: “Pode um ministro pedir
vista por dois anos e três meses?”, lia-se que o Ministro
Luís Roberto Barroso, altercando com o seu colega
Gilmar Mendes, dele chasqueara por “manipular a
jurisdição” e “sentar em cima do processo sobre a suspeição
de Moro por dois anos (…)”.
(10) “Tu gritas? Logo, não tens razão” (Ângelo Majorana,
As Formas Práticas da Eloquência, 1945, p. 209; trad.
Fernando Miranda). Ainda: “(…) maldizer, detratar
com veemência, não é argumentar; será uma ilusão de
apaixonado, ou indício de inópia de verdadeiras razões”
(Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do
Direito, 1933, p. 298).
640

(11) No afã de fundamentar seu voto divergente, o Senhor


Ministro abordoou-se ao famoso anátema de Rui:
“(…) como quer que te chames, prevaricação judiciária, não
escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se.
Mas não há salvação para o juiz cobarde” (Obras
Completas de Rui Barbosa, vol. XXVI, t. IV, p. 191).
(12) “Quod non est in actis non est in mundo”.
(13) “São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios
ilícitos” (art. 5º, nº LVI, da Const. Fed.).
(14) Amador Arrais, Diálogos, 1846, p. 355.
(15) Não cabem no algarismo os nomes de todos os
notabilíssimos advogados que, nos circuitos forenses,
os colegas mencionam com respeito e especial
consideração; alguns, no entanto, apraz-me aqui
lembrar: Theotonio Negrão, Walter Ceneviva, Ives
Gandra da Silva Martins, Modesto Carvalhosa, Paulo
Sérgio Leite Fernandes, Tales Castelo Branco, Pedro
Paulo Filho, Antônio Carlos de Carvalho Pinto, Euro
Bento Maciel, Roberto Delmanto, etc.
(16) Nesse cânon de muitos nomes, não resisto à força que
me faz o desejo de escrever os seguintes: Manuel
Costa Manso, Mário Guimarães, Laudo de Camargo,
Carlos Maximiliano, Nélson Hungria, Orosimbo
Nonato, Eliézer Rosa, Sydney Sanches, Carlos
Velloso, Carlos Ayres Britto, Antão de Moraes,
Antonio Cezar Peluso, Márcio Martins Bonilha,
Djalma Rubens Lofrano, Luiz Elias Tâmbara,
Mohamed Amaro e Sidnei Beneti.
641

(17) “Judex damnatur ubi nocens absolvitur” (Publilii Syri


Sententiae, I, 28).
(18) In O Estado de S. Paulo, 2.4.2021, p. A2.
(19) O Juiz e a Função Jurisdicional, 1958, p. 327; Editora
Forense.
(20) Ellero; apud Carlos de Araújo Lima, Os Grandes
Processos do Júri, 1957, vol. III, p. 175.
(21) “Não nos ocupemos deles: olha-os, e passa adiante” (Dante,
Divina Comédia – Inferno – III, 51; 1886, p. 96; trad.
Mons. Joaquim Pinto de Campos).
(22) Rui Barbosa, Obras Seletas, t. VII, p. 204.
61. Carta de Despedida
(do Desembargador Carlos Biasotti)

Antes que viesse a público o decreto de minha


aposentadoria compulsória — por haver tocado a idade-
-limite para o regular exercício do cargo —, lembrou-me
que devia abraçar cada um dos colegas e amigos do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como forma
de despedida.
Dois óbices, porém, frustraram logo meu intento, e
esses de grande peso e alcance: um, a angústia de tempo;
outro, o receio de que a influência da emoção, presente
sempre nessas ocasiões, em que se aparta alguém do
convívio dos que lhe são caros, me quebrantasse as forças e
anulasse a capacidade de resistir a toda a adversidade.
Algumas palavras, no entanto, é mister que lhes diga,
aos distintos amigos; por serem as últimas, fio que mas
levarão à paciência.
Oriundo da classe dos advogados, exerci, por obra
de catorze anos, funções de Magistratura na Segunda
Instância.
Fiz quanto estava em minhas posses por não ser
indigno da grandeza do ofício, no qual descobria Rui
“majestade semidivina” (Obras Completas, vol. XXII, t. I,
p. 182).
Em nenhum momento — diz-me a consciência —
faltei à confiança daqueles que me honraram com a
indicação do nome para servir à causa da Justiça. (Esta
644

menção pertence aos Conselheiros da Ordem dos


Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, ao Órgão
Especial do Tribunal de Justiça e ao íntegro e saudoso
Governador Mário Covas, que me nomeou para o cargo de
Juiz do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São
Paulo, pelo quinto constitucional, classe dos advogados).
Conheci a obra gigantesca e inestimável que realizam
os nobres Juízes de meu Estado, homens excedentes à
craveira comum, sujeitos insignes pelo saber, ciências e
virtudes; estas, não raro, praticadas em grau assinalável, e
talvez heroico. Sim, porque somente aquele que se
consagra inteiro ao árduo ministério de dispensar justiça
pode ser contado entre os Juízes. Tais são os que conheci
no Tribunal, dignos não só de respeito e estima, senão
ainda reconhecimento e veneração.
A esses eminentes colegas (ia dizendo irmãos) que me
serviram de inspiração e paradigma na vida judiciária, mais
que palavras de agradecimento, lavro o protesto de que não
cessarei de pedir a Deus lhes prolongue generosamente os
dias felizes!
Também aos que exercitam a Magistratura de
Primeiro Grau rendo meu tributo de vivo apreço e
gratidão: são os primeiros que depõem as mãos sobre
a matéria-prima da prova para modelar a prestação
jurisdicional.
Mesmo havendo consideração a que todos estamos
sujeitos a erro — “andar sempre sem tropeçar é privilégio do
Sol”, conforme aquilo do velho Bluteau (Vocabulário, 1712,
t. I, Prólogo) —, verifiquei, com suma alegria, que seus
645

acertos eram infinitamente mais numerosos que seus


enganos. Passo a mais: casos houve em que, tendo-lhes a
Instância Recursal modificado o teor da decisão, foi aí, a
meu aviso, que se introduziu no processo o equívoco.
Numa palavra: na emenda é que surgiu o erro!
É próprio do homem a tendência de melhorar
cada dia o que faz. Na esfera do Judiciário passa o
mesmo: tivessem os Juízes condições ideais de trabalho,
produziriam certamente melhor. Falta-lhes sobretudo o
tempo. Ora, sem o concurso do tempo, ninguém produz
obra perfeita e acabada.
O critério da verdade não é o número, mas a qualidade.
O trabalho insano que o Juiz é obrigado a executar
à pressa trará, necessariamente, a marca da deficiência.
O estilo da Cavalaria — “rápido, ainda que mal feito”! — não
convém aos elevados negócios da Justiça. Para pôr cobro a
este mal, só um remédio: multiplicar o número dos Juízes,
cuja função é indelegável, ou restringir o acesso à via
recursal.
Não resisto à força que me faz o desejo de reproduzir
aqui as palavras que, em 19 de fevereiro de 1931, escreveu
o preclaro Ministro do Supremo Tribunal Federal Pires
e Albuquerque (Antônio Joaquim Pires de Carvalho e
Albuquerque):
“A celeridade das decisões é, não há dúvida, uma das
condições da boa justiça; mas não é a única, nem a
principal. O que antes de tudo se quer é o acerto e este
não dispensa o estudo demorado das questões e exige que
646

sejam resolvidas com ponderação, sem impaciências e sem


atropelos” (Culpa e Castigo de um Magistrado, 3a. ed.,
p. 118).

Tendo-me de afastar do Tribunal — e, pois, daqueles


que lhe asseguram a existência e o funcionamento, como
são os Juízes e mais Servidores e a Assessoria Policial
Militar —, levarei comigo muita recordação, orgulho e
saudade; mágoa, nenhuma. O orgulho será por ter podido
servir, como obscuro juiz, num Tribunal, cuja grandeza
e respeitabilidade os cultores do Direito geralmente
reconhecem e proclamam.
A meus ilustres colegas (Desembargadores e Juízes
de Direito de Primeiro Grau), sem exceção, rogo aceitem,
com um abraço fraterno, a expressão de meu reconhecimento
e acendrado respeito. Registro também, comovido, meu
agradecimento aos membros do Ministério Público:
deram-me lições constantes de Direito e de amor à Justiça.
Aos advogados, indispensáveis à administração da justiça,
declaro profunda simpatia e cordialidade. Ajunto mais que
me confirmaram na verdade daquele merecido elogio do
bom Juiz Eliézer Rosa: “A nobreza elegeu seu domicílio entre os
advogados” (A Voz da Toga, 1a. ed., p. 34).
Por fim, reservo um preito de saudade àqueles
eminentes Desembargadores com quem tratei, em grata e
benfazeja camaradagem, na colenda 5a. Câmara de Direito
Criminal: Damião Cogan, Pinheiro Franco, Tristão
Ribeiro, Marcos Zanuzzi, Sérgio Rui e Juvenal Duarte.
Nesse número incluo também o digno Procurador de
647

Justiça Rubem Ferraz de Oliveira, figura exponencial


de sua Instituição.
Fica, por igual, consignado aqui meu sincero
agradecimento e particular admiração aos Desembargadores
Luiz Carlos Ribeiro dos Santos e Luiz Elias Tâmbara
(por haverem presidido à cerimônia de minha posse,
respectivamente, no Tribunal de Alçada Criminal e no
Tribunal de Justiça).
Aos mui distintos, competentes e honrados
Desembargadores Roberto Antonio Vallim Bellocchi
(Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo)
e Eduardo Pereira Santos (Presidente da Seção de Direito
Criminal), minha gratidão e respeitosa homenagem.
Cumprimento, com ânimo agradecido, aos
funcionários do Tribunal, notadamente os de meu
gabinete de trabalho e do 3º Grupo de Câmaras.
Ao descer, trêmulo de emoção, a majestosa escadaria
do Palácio da Justiça, inclino-me profundamente perante
estes dois vultos, a todas as luzes grandes: Desembargador
Alexandre Moreira Germano, Diretor do Museu do
Tribunal de Justiça, e Paulo Bomfim (“Príncipe dos Poetas
Brasileiros”). Com este, repito: “Passamos uma época da
vida colecionando emoções, a outra, saudades” (O Colecionador
de Minutos, 1a. ed., p. 16).
Adeus!

São Paulo, 22 de novembro de 2009


Carlos Biasotti
Trabalhos Jurídicos e Literários de
Carlos Biasotti

1. A Sustentação Oral nos Tribunais: Teoria e Prática;


2. Adauto Suannes: Brasão da Magistratura Paulista;
3. Advocacia: Grandezas e Misérias;
4. Antecedentes Criminais (Doutrina e Jurisprudência);
5. Apartes e Respostas Originais;
6. Apelação em Liberdade (Doutrina e Jurisprudência);
7. Apropriação Indébita (Doutrina e Jurisprudência);
8. Arma de Fogo (Doutrina e Jurisprudência);
9. Cartas do Juiz Eliézer Rosa (1a. Parte);
10. Citação do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
11. Crime Continuado (Doutrina e Jurisprudência);
12. Crimes contra a Honra (Doutrina e Jurisprudência);
13. Crimes de Trânsito (Doutrina e Jurisprudência);
14. Da Confissão do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
15. Da Presunção de Inocência (Doutrina e Jurisprudência);
16. Da Prisão (Doutrina e Jurisprudência);
17. Da Prova (Doutrina e Jurisprudência);
18. Da Vírgula;
19. Denúncia (Doutrina e Jurisprudência);
20. Direito Ambiental (Doutrina e Jurisprudência);
21. Direito de Autor (Doutrina e Jurisprudência);
22. Direito de Defesa (Doutrina e Jurisprudência);
23. Do Roubo (Doutrina e Jurisprudência);
24. Estelionato (Doutrina e Jurisprudência);
25. Furto (Doutrina e Jurisprudência);
26. “Habeas Corpus” (Doutrina e Jurisprudência);
27. Legítima Defesa (Doutrina e Jurisprudência);
28. Liberdade Provisória (Doutrina e Jurisprudência);
29. Mandado de Segurança (Doutrina e Jurisprudência);
30. O Cão na Literatura;
31. O Crime da Pedra (Defesa Criminal em Verso);
32. O Crime de Extorsão e a Tentativa (Doutrina e Jurisprudência);
33. O Erro. O Erro Judiciário. O Erro na Literatura (Lapsos e
Enganos);
34. O Silêncio do Réu. Interpretação (Doutrina e Jurisprudência);
35. Os 80 Anos do Príncipe dos Poetas Brasileiros;
36. Princípio da Insignificância (Doutrina e Jurisprudência);
37. “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”;
38. Tópicos de Gramática (Verbos abundantes no particípio;
pronúncias e construções viciosas; fraseologia latina, etc.);
39. Tóxicos (Doutrina e Jurisprudência);
40. Tribunal do Júri (Doutrina e Jurisprudência);
41. Absolvição do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
42. Tributo aos Advogados Criminalistas (Coletânea de Escritos
Jurídicos); Millennium Editora Ltda.;
43. Advocacia Criminal (Teoria e Prática); Millennium Editora Ltda.;
44. Cartas do Juiz Eliézer Rosa (2a. Parte);
45. Contravenções Penais (Doutrina e Jurisprudência);
46. Crimes contra os Costumes (Doutrina e Jurisprudência);
47. Revisão Criminal (Doutrina e Jurisprudência);
48. Nélson Hungria (Súmula da Vida e da Obra);
49. Ação Penal (Doutrina e Jurisprudência);
50. Crimes de Falsidade (Doutrina e Jurisprudência);
51. Álibi (Doutrina e Jurisprudência);
52. Da Sentença (Doutrina e Jurisprudência);
53. Fraseologia Latina;
54. Da Pena (Doutrina e Jurisprudência);
55. Ilícito Civil e Ilícito Penal (Doutrina e Jurisprudência);
56. Regime Prisional (Doutrina e Jurisprudência);
57. Alimentos (Doutrina e Jurisprudência);
58. Estado de Necessidade (Doutrina e Jurisprudência);
59. Receptação (Doutrina e Jurisprudência);
60. Inquérito Policial. Indiciamento (Doutrina e Jurisprudência);
61. A Palavra da Vítima e seu Valor em Juízo;
62. A Linguagem do Advogado;
63. Memorando aos Colegas da Advocacia e da Magistratura;
64. Código de Defesa do Consumidor (Casos Especiais em Matéria
Criminal);
65. Crime de Dano (Doutrina e Jurisprudência);
66. Nulidade Processual (Doutrina e Jurisprudência);
67. Da Coação no Direito Penal (Doutrina e Jurisprudência);
68. Violação de Domicílio (Doutrina e Jurisprudência);
69. Indenização (Doutrina e Jurisprudência);
70. Desistência Voluntária (Doutrina e Jurisprudência);
71. A Embriaguez e o Direito Penal (Doutrina e Jurisprudência);
72. Embargos de Declaração (Doutrina e Jurisprudência).
656

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

www.scribd.com/Biasotti

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