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O Advogado e a Eloquência fora dos Tribunais

Sumário. Nobre veículo do pensamento, pode a palavra, em certas


circunstâncias — sobretudo quando em rixa aberta com o senso comum —,
meter na berlinda ao próprio orador e turvar-lhe a boa reputação. Tomar tento,
pois!

I. Com grande assombro das pessoas circunspectas, órgãos de


comunicação têm, ultimamente, realejado notícia que, por seu teor
insólito, despertou rudes críticas e veementes protestos em todas as
esferas sociais.
Foi o caso que, durante reunião gastronômica promovida por
seleto grupo de advogados notáveis, um deles, erguendo sua taça num
brinde ao mais famigerado dos convivas, teria dito que, segundo o
espírito do tempo, adiantava pouco punir o infrator, se cometido
já o crime. Ainda: que o castigo era ineficaz contra a corrupção.
(Não recolhi ao orador suas palavras textuais; sou-lhes, porém,
fiel ao sentido, a saber: seria em pura perda infligir pena ao criminoso,
porque irreparáveis as consequências do ato que praticou; ao demais,
era a corrupção mal invencível).
Tal afirmação — a pôr-se fé inteira nos meios eletrônicos que
a transmitiram — fizera-a um dos mais renomados, competentes e
argutos advogados criminalistas do País: o Dr. Antônio Cláudio Mariz
de Oliveira.
Não fosse o fato público e notório (que, em bom direito,
dispensa prova), ninguém o tomaria ao sério. É que todos os que o
conhecem — e sou desse número, que forma legião — juram-no
incapaz de dar curso a semelhante enormidade (resisto ao impulso de
chamar-lhe parvoíce chapada).
As razões que militam em prol desta persuasão têm grande
peso e força. Laureado pela Faculdade Paulista de Direito (PUC),
frequentou Antônio Cláudio a lição de mestres os mais consumados
na Ciência do Direito, como José Frederico Marques, Washington de
2

Barros Monteiro, Agostinho Neves de Arruda Alvim e Waldemar


Mariz de Oliveira Júnior, este seu ilustre pai (e meu saudoso e querido
professor de Direito Processual Civil). Com eles aprendemos que a
toda violação corresponde uma sanção, ou “pena cominável aos violadores
da ordem instituída” (1).
Não pode cair em dúvida, com efeito, que todo infrator, sendo
imputável, está sujeito ao rigor da lei. Donde a advertência de Nélson
Hungria, com justiça proclamado “o maior penalista brasileiro de todos
os tempos” (2): “A pena traduz, primacialmente, um princípio humano por
excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece” (3).

II. A proposição — não ser de bom aviso punir o delinquente, porque


perpetrado já o crime — havia, sem falta, de incorrer na reprovação das
pessoas de reto juízo e critério sólido.
Passa o mesmo quanto à corrupção, cancro social a que, por
extirpá-lo, os países de organização democrática declaram guerra sem
tréguas nem quartel.
Tais conceitos, que tanta indignação despertaram nos espíritos
esclarecidos, teria de fato emitido o nobre advogado?!
Admito-o, a benefício de inventário, pois que — segundo
consta — ele próprio não se empenhou em lavrar desmentido;
tampouco se retratou.
Mas — e aqui bate o ponto! —, o provecto causídico estava,
ao tempo, em seu acordo e razão?!
Eis por que, não me sofrendo o ânimo ver arrastado ao
pelourinho da execração pública distinto e prestigioso paladino do
Direito, lembrou-me, sob a invocação das leis da amizade, acudir
por sua honra. Tenho-o na conta de amigo e, conforme aquilo de um
autor engenhoso, “um bom amigo vale mais do que uma carabina” (4), que
substituo aqui pela arma do advogado: a palavra.
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Tomo sobre mim, em suma, o encargo de seu defensor “ad hoc”, a


despeito de alguma voz que porventura se levante para entoar o refrão
do costume: Para ruim defesa, melhor é nenhuma!

III. Aquele chorrilho de expressões o garboso Dr. Mariz proferiu (ia


quase a escrever expectorou), ao termo de um banquete, perante colegas
do ofício e algumas pessoas, estas a mais de um respeito bem
conhecidas.
Entre iguarias, que decerto causariam inveja à glutonaria de
Vitélio e à magnificência das mesas de Lúculo, é de presumir não
faltassem também — visto que hoje muito poucos se constrangem
diante de uma garrafa — os melhores vinhos (capitosos,
naturalmente!).
Nosso orador (diga-se a verdade lisa e francamente) é possível
não se tivesse limitado a sorver a água do copo, que a praxe manda
conservar à esquerda da tribuna, para alguma emergência gutural.
Lançando mais longe a barra: embora seja a água “o vinho de Deus”, na
original definição de um homem de letras e espírito (5), não está
afastada a hipótese de que entrasse galhardamente pelas bebidas.
Palpito mais que, ao discursar (ou soltar-se em palavras), já estava
aquecido pelos vapores do álcool…
Ora, é de elementar intuição que as bebidas alcoólicas, tanto
que absorvidas pelo sangue, entram a operar efeitos nos centros
superiores do sistema nervoso do indivíduo, desintegrando-lhe o
psiquismo.
Assim, até mesmo quando consiga manter-se em pé, ensinam os
tratadistas da matéria que o atleta de Baco, eclipsado o entendimento
pelo torpor alcoólico e rotos seus freios inibitórios, desata a palavrear
e a despejar frases sem nexo (6).
Em prova desta alegação, tenho por autor não menos que ao
polido Pe. Antônio Vieira, que falava como o oráculo de seu tempo:
“(…) porque eles (os vinhos) perturbam e tiram os homens de seu juízo, e fazem
que fiquem fora de si como doudos” (7).
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Numa palavra: a bebida alcoólica tem arte de enfatuar o ânimo


daqueles que a ela se entregam e, o que é mais, nos casos de libação
excessiva, faz sucumbir muitos ao estado de embriaguez (8).
É certo que — noção que ensinam os rudimentos do Direito
Penal — a embriaguez voluntária não elide a responsabilidade
criminal do agente, porque lhe não exclui a imputabilidade (9).
Pelo que, isto de ter-se alguém enfrascado em vinho, antes de
enunciar despautérios ou obrar contra o direito expresso, não lhe
serve de razão escusativa de responsabilidade.
Haverá, entretanto — o que não é licença desprezível —, de
aproveitar-lhe como argumento “pietatis causa”: que, se estivesse, como
de ordinário, sóbrio e lúcido, não lhe cairiam dos lábios palavras e
frases que repugnam ao juízo das pessoas de médio entendimento e,
por mais forte razão, ao daquele que se conhece por timbre e espelho
de sua instituição, a gloriosa Ordem dos Advogados do Brasil.
Enfim, se por mero gracejo, ou jocosa expansão de jovialidade,
foi que o orador proferiu as palavras que tanto estranharam às pessoas
de maduro juízo, não havia senão recebê-las com um grão de sal; mas,
se outra a hipótese, passava por medida salutar, oportuna e talvez
meritória que lhe viessem os amigos limpar a testada.
Nisto pus a mira, em obséquio à grande estima que tenho ao
“Dr. Mariz”, a quem faço um discreto brinde como pedem os estilos da
urbanidade (10).

Notas

(1) Goffredo Telles Junior, Iniciação na Ciência do Direito, 2a. ed., p. 76;
Editora Saraiva.
(2) Evandro Lins e Silva, Arca de Guardados, 1995, p. 96; Editora
Civilização Brasileira; Rio de Janeiro.
(3) Novas Questões Jurídico-Penais, 1945, p. 131; Rio de Janeiro.
5

(4) João Guimarães Rosa, Noites do Sertão, 7a. ed., p. 34; Editora
Nova Fronteira; Rio de Janeiro.
(5) Escreveu algures Agrippino Grieco.
(6) Em contradição com o retrilhado anexim “Quem não bebe, não
fuma e não mente não é filho de boa gente”, formulou Baudelaire a
advertência: O homem que só bebe água tem alguma coisa a esconder
(apud Almeida Jr., Lições de Medicina Legal, 7a. ed., p. 489:
Companhia Editora Nacional).
(7) Sermões, 1959, t. XIII, p. 320; Lello & Irmão – Editores; Porto.
(8) Nunca faltou, entretanto, quem no vinho achasse até virtudes
dignas da voz latina: “In vino veritas”. (O vinho seria uma como
pedra de toque da verdade). Para outros, faria as vezes de
estímulo. Os advogados veteranos (ou da velha escola) estarão
lembrados daquela celebridade da oratória forense que, antes de
assomar à tribuna, costumava, como dizia, “molhar a palavra”. No
Restaurante Corso, junto das Arcadas (Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco), após sorver um trago de conhaque,
filosofava: “Tira o juízo, mas dá coragem!”. E — circunstância
notável —, no maior número das causas que patrocinava, saía
do plenário do júri coberto de louros!
(9) Em seu espírito e forma, dispõe o art. 28 do Código Penal que não
exclui a imputabilidade penal: “II – a embriaguez, voluntária ou
culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos”. Cifra-se esta
norma à teoria da “actio libera in causa”; quem quer a causa quer o
efeito.
(10) Desde tempos imemoriais, foi uso em todas as sociedades esse
de brindar ou beber à saúde de alguém, com votos pela
felicidade pessoal e em atenção a seu merecimento. Como quer
que o episódio oratório, que faz objeto deste arrazoado, ocorreu
num brinde a certo vulto da classe política, leve-me em
paciência o benévolo e instruído leitor evoque das páginas de
nossa História dois outros, frisantes por suas circunstâncias e
pela dignidade dos sujeitos a que se referiam:
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I – “Brinde de Rui Barbosa ao Senador Pinheiro Machado. No banquete


político de 7 de maio de 1907: (…) os que se habituaram a ver nele
(Senador Pinheiro Machado) não só um guia de raro tino entre
as incertezas políticas, mas ainda uma dessas úteis reservas de
energia moral, concentradas numa individualidade robusta e
poderosa, para as quais as nações democráticas dirigem a vista
confiadamente, quando consideram no seu porvir” (Obras
Completas de Rui Barbosa, vol. XXXI, t. I, pp. 91-92).
II – “Recepção na Bahia. Discurso do Dr. Virgílio de Lemos (…): “Não
posso, pois, deixar de, em nome do presente, levantar a minha taça
em honra desta individualidade verdadeiramente excepcional,
considerada como a culminância intelectual do país. Assim, pois,
em nome do presente e em nome do passado brilhante da Bahia,
brindo ao Conselheiro Rui Barbosa, que, melhor do que qualquer
outro baiano, concretiza e representa o brilho de suas tradições e o
fulgor de suas glórias” (Ibidem, p. 103).
“Quantum mutatus ab illo!”.

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