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Justiça e Composição de Litígios

Sumário. A excessiva demora na prestação jurisdicional equivale a


denegação de justiça; pelo que, será digno de louvor todo o esforço para debelar
esse grave mal. Entre as mais promissoras medidas propostas figura,
inegavelmente, o instituto da conciliação das partes, ou justiça consensual.

1. A solução dos conflitos que surgem e recrudescem nas relações


humanas é o primeiro alvo a que os órgãos do Poder Judiciário atiram
seus esforços, no elevado intento de prover à paz social(1). Tão clara e
arrazoada é esta preocupação, que o mesmo texto da lei a propõe e
encarece. Reza, com efeito, o art. 3º, § 2º, do Código de Processo Civil que
“O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”(2).
Também na esfera do Direito Penal — com o advento da Lei
nº 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais — adquiriu tal prática
foros de preceito, que encerra não só a faculdade senão o estímulo
para que se componham as partes (cf. arts. 60, 61 e 89).
Presidem à adoção da medida em nosso ordenamento jurídico
duas razões de grande peso e alcance, poderosas a descoroçoar as
aventuras forenses, a litigância de má-fé e o espírito de emulação: a
urgência da prestação jurisdicional rápida e a sorte vária dos pleitos
judiciais.
Em verdade, graças à conciliação ou concórdia(3) entre as partes
no limiar da ação, fica dispensado o juiz de instaurar a fase de dilação
probatória e, pois, de ferir o mérito da causa. O que isso representa de
útil e proveitoso escusa dizê-lo, pois bem o sabem quantos um dia já
transpuseram, aflitos, os pórticos solenes e perturbadores da Justiça!
Na tela sombria dos problemas com que defronta o Judiciário,
há que considerar alguns pontos de reconhecida importância e
gravidade. Conforme a opinião comum, que assenta na notoriedade
pública, são estas as causas que, para nossa desgraça, obstam a célere
e efetiva realização de justiça:
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I – O número gigantesco da população brasileira, que, segundo


o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), orça por
duzentos e quinze milhões de pessoas, das quais anda a metade em
pendências com a Justiça.
II – O quadro geral da magistratura, que conta cerca de 18
mil juízes em atividade. (Mas, atento o número vultoso dos
jurisdicionados, o Conselho Nacional de Justiça estima um “deficit” de
20%).
III – O uso (íamos quase a escrever abuso) da via recursal da
2a. Instância e Tribunais Superiores.

2. A forçosa consequência dessa realidade (que antes parecera


crise permanente) é a demora demasiada na solução das controvérsias
submetidas à Justiça.
No Brasil, a pormos fé inteira na voz da imprensa e nas
estatísticas, “uma sentença de primeira instância leva 1.606 dias para sair”(4),
mais de quatro anos, portanto!
Discorrendo da matéria num texto célebre, escrevia, há um
século, o primeiro de nossos juristas:
“Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta.
Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das
partes e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade” (Rui Barbosa,
Oração aos Moços, 1a. ed., p. 42).

Ora, problemas e dificuldades, tanto que apareçam, é mister


resolvê-los sem tardança, em obséquio à própria condição humana,
que nunca se resigna às incertezas e às longas esperas.
Daqui a aura de simpatia e esperança que nobilita a iniciativa de
espíritos ardentes, esclarecidos e bem-intencionados, de propugnar o
aperfeiçoamento dos serviços judiciais.
Assim, embora se deite à sombra a hipótese de ser acrescentado
o número dos juízes em todo o território nacional — à conta da
alegada estreiteza financeira —, algumas ações ainda se poderiam
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empreender para poupar à Justiça imerecido descrédito e prevenir-lhe


iminente paralisia funcional pela formidável pletora de serviços:
a) prestigiar com afinco a Justiça Consensual, ampliando-lhe os
casos de incidência;
b) conferir à 2a. Instância — pois que se trata da derradeira etapa
de análise da prova com cognição plena — o caráter de órgão de
juízo definitivo sobre a questão de mérito resolvida pela
sentença de primeiro grau.

Efeitos notáveis dessa inovação: no próprio Tribunal de Justiça


— que não nas Cortes Superiores — receberá o processo judicial o
selo da “res judicata”; as partes entrarão logo a cumprir o julgado; a
Justiça Criminal expedirá guia de recolhimento do réu a que tiver sido
aplicada pena privativa de liberdade, fazendo o Estado que expie o seu
crime aquele que infringiu a lei penal. Numa palavra: far-se-á justiça
em tempo razoável, com restauração do direito violado.

3. Na adoção de tais medidas, que importam muitíssimo para a


celeridade da Justiça, não poderá haver — é bem se registre com
ênfase — preterição, posto que mínima, dos sagrados princípios da
ampla defesa e do contraditório, que dominam o processo.
O Judiciário brasileiro, então, lançará de si a nota incômoda,
com que justamente o verberou, pelo voto de um de seus membros,
o Supremo Tribunal Federal:
“(…) em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de
jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando
o referendo da Corte Suprema” (HC nº 85.886; relª Minª Ellen Gracie;
DJ 28.10.2005).

A Justiça Consensual, como forma de solução de conflitos, tem


por si o influxo não só do direito positivo, mas também de veneranda
tradição, apoiada na sabedoria das gentes.
Deveras, a nossos pais já ouvíamos dizer que é preferível um mau
acordo a uma boa demanda. Tão prudente lhes parecia não deixar o certo
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pelo duvidoso!(5) O móvel que lhes inflamava o espírito e dirigia a


vontade exprimiu-o, em lição magistral, o nosso Rui:
“Duvidosa foi sempre a sorte das lides judiciárias, ainda quando manifesta
a justiça dos litigantes. Daí a utilidade, reconhecida em todos os tempos,
das transações; e por isso a sabedoria da experiência manda muitas vezes
preferir a má composição à boa demanda” (apud Roberto Lyra, A Obra
de Ruy Barbosa em Criminologia e Direito Criminal, 1952, p. 205).

Em suma, reforma judicial que ponha cobro à franca


morosidade nos julgamentos pelo Poder Judiciário (sempre que
provocado para dirimir questões) será a mais grata resposta à velha
aspiração dos brasileiros de extirpar o mal grave que os desalenta:
a falta de rapidez na distribuição de justiça.

Notas

(1) Mote ou legenda eloquente do brasão pontifício de Pio XII


(1876-1958): “Opus justitiae pax”. A paz é fruto da justiça.
(2) O § 3º do referido artigo é ainda mais incisivo: “A conciliação, a
mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser
estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do
Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.

(3) Concórdia: “União dos corações” (Rafael Bluteau, Vocabulário, 1712;


v. concórdia).
(4) In O Estado de S.Paulo, 1.9.2022.
(5) A propósito do dilema — litigar ou transigir? — é expressivo o rol
dos aforismos e anexins: “Não deixemos o certo pelo duvidoso”
(Solano Constâncio, Dicionário da Língua Portuguesa, 1877;
v. duvidoso); “Antes uma composição má que uma boa demanda”
(Séguier; apud Francisco Fernandes, Dicionário de Sinônimos e
Antônimos, 2a. ed.; v. composição); “Vale mais transigir que litigar”
(Séguier; apud Francisco Fernandes; Dicionário de Verbos e Regimes,
39a. ed.; v. transigir); “Mais vale um toma que dois te darei”
(R. Magalhães Júnior, Dicionário de Provérbios e Curiosidades, 1960,
5

p. 162); “Minima de malis” (Cicero, De Officiis, 3, 29, 15) – Dos


males, o menor; Quando os males são inevitáveis, manda a prudência
escolher o menor (Fedro, Fábulas, I, 2); Antes uma ruim avença que uma
boa sentença; É melhor transigir do que contender; Vale mais um pássaro
na mão do que dois voando; Vale mais um tico-tico no prato que um jacu
no mato.

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