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A reforma processual e o Anteprojeto do Código de Processo

Civil e Comercial

GABRIEL DE REZENDE FILHO


Da Feculc/ade de Dlrei!o de São Paulo

( ·:,) Em recente trabalho, há pouco divulgado entre nós, "Moderni problemi dei
Diritto", LUIGI FERRARA, professor da Universidade de Napoles, no capítulo intitulado
"Rec,:mtes tendências italianas e estrangeiras sôbre a reforma do Processo Civil", salienta
que a hora presente tem imperiosas exigê.,cias, porque em muita coisa mudou o rítmo
da vida com o moderno e dinâmico movimento das relações jurídicas e com a necessidade
de bem protegê-las em juizo.
Daí, as çrrandes reformas processuais que se anunciam e se preparam na Itália, na
França, na Alemanha e em Portugal.
Nos países latinos, acrescenta FERRAR A., nítida é a feição tradicionalista de que se
revestem os planos e projetos apresentados, ao passo que de revisionismo integral, quasi
iconoclasta, é a orientacã0 seguida nos países tedescos.
Assim, por exemplo, o último pro;9.lo de reforma ·do processo civil da Alem;rnha
tem um caráter mais de ordem política, do que objetiva e rigorosamente jurídico.
Em tal projeto, avulta a preocupação de pôr em saliência a questão da verdade no
processo, cominando-se penas sevéras para os litigantes e auxiliares da justiça que pra­
tiquem quaisquer atos dolosos, com o objeiivo de desviar a vontade judicial.
O juiz, por isso, armado de qrandes p oderes, torna-se o dono do processo; póde
repudiar quaisquer provas oferecidas pel;1s partes, rejeitar a confissão do litiqante, ad­
mitir como provados. os fatos que entenda notó,ios, tentar, em qualquer estado da causa
o acôrdo entre os litiqantes, reduzir despesas e consequências econômicas da lide.
Estudando cuidadosamente as tendêr.cias germânicas dos últimos tempos, o citado
orofessor entende que elas são manifestarrente subversivas, e não propriamente inova­
doras· ressentem-se, naturalmente, do forl íssimo clima político da hora presente.
Sem embargo, porém, das diferenças de orientação que se observam em tantos oro­
ietos de reforma processual, refletindo as coiniões oor vezes extremadas dos notáveis
processualistas que dos mesmos têm sido i ncumbidos, o que é fato é que todos s_entern
'" necessidade de estabelecer medidas caoazes de impedir, ao menos de atenua,, os ma­
ves males processuais, que são a lentidão desesperadora das causas, as excessivas des­
pesas judiciais e as complicacões do velho sistema processual que já não condiz mais
com as exiaências da realidade e as prementes necessidades da vida hodierna.
A tendência atual diriqe-se, incontestavelmente. oara os seguintes oontos capitai;::.:
a) a substituicão do procedimento escríto pelo oral; b) a livre atuação do juiz; e) a
simplificação do processo, com a máxima economia de tempo e de dinheiro.
Ora, levando em conta a feição moderna da Processualística, os diqnos juristas, que
elaboraram o Projeto de Código do Processo Civil Brasileiro. não podiam deixar_ de
oferecer um trabalho que, em grande parte, romoe com as tradicões do nosso pro­
cesso, visando certamente melhorá-lo e acomodá-lo ás exiaências da vida atual.
É assim aue o Projeto estabelece a or.alidade, cujo trac;o característico consiste na
audiência de instrução, discussão e julgamento, onde se produzem perante o juiz as

(':') Conferência pronunciada pelo Professor GABRIEL DE R.EZENDE FILHO, numa das �essões públi­
'�s oro,novidas pelo Instituto dos Advogados de Sã::, Paulo, Jurante ;i discussão do anteprojeto do Código
de Processo Civ'I e Comercial.

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provas mais importantes - a testemunhal e a pericial - e, a seguir, se discute e se


julga a causa.
Quer o Projeto que haja realmente contacto entre o juiz, as partes e os auxiliares
da justiça, mas admite que as leis de organização judiciária instituam juízes instruto­
res com a competência para a instrução dos processos, o que, afinal, vem a quebrar a
harmonia do sistema, onde é pressuposto a identidade física do juiz em todo o decor-
rer da causa. . -
Quanto á concentração, estabelece o Projeto que a audiência de instrução, dis­
cussão e julgamento deve ser contínua, permitindo, porém, quando necessário, se mar­
que uma outra, não podendo, entretanto, haver entre o começo dos trabalhos e o ju 1 ·
gamento um intervalo maior de deºz dias.
Os debates serão orais, diz o Projeto, mas, admitindo que o juiz possa - sem se1·
preciso justificar o seu ato - suspender a audiência, marcando uma outra para profe­
rir o seu julgamento, concedeu-se ás partes o direito de oferecerem, para serem juntos
aos autos, dentro de 48 horas, memoriais com as suas conclusões.
Não seguiu, assim, o Projeto rigorosamente o sistema da oralidade, e com certeza
acontecerá, na prática, aquilo a que, com chiste, se referiu ilustre comentador do Pro-­
jeto nas colunas do "Estado de São Paulo":

"... o debate escrito, posto fóra pela porta da sala das audiências, voltará
_aos autos pela porta dos cartórios..."

Não sabemos si a oralidade, planta exótica, poderá florescer em nosso meio.


Outras inovações podem ser apontadas no Projeto: a razoável redução de muitos
atos e termos processuais; a ação ordinária, como tipo único do processo comum, nela
se convertendo, aliás, os próprios executivos e a maioria das ações especiais, uma vez
oferecida defesa recebida pelo juiz; a concessão de amplos poderes ao juiz na direção
e fiscalização das causas; a solução das questões prejudiciais e das nulidades sanáveis
antes da sentença final; a repressão eficaz do dolo processual; a redução dos casos de
agravo.
Nem sempre foi feliz o Projeto na colocação, sequência, harmonia e redação de
seus dispositivos, que precisam ser cuidadosamente revistos, mas, de sua leitura, fica­
mos com a impressão de que houve sinceridade no trabalho, de que se procurou atingir
o ideal, já tão bem assinalado pelo nosso PAULA BATISTA, quando ensinava, no seu
"Compêndio", que

" ... brevidade, economia e remo;ão de todos os meios maliciosos e supér­


fluos, tais são as condições que devem acompanhar o processo em toda a sua
marcha."

Os pontos capitais do Projeto são, indiscutivelmente, a oralidade e a livre atuação


do juiz.
Examinem.os êste último, que nos parece relevantíssimo É inegável o progressu
.
extraordinário que tem atravessado a ciência processual nestes últimos tempos.
Daquela época, que não está muito di stante de nós, em que os juristas despreza
vam os assuntos processuais, relegando-os a plano secundário, por considerá-los, come
bem assinalou MANFREDINl, indígnos de excitarem a sua curiosidade e o ardor de
seus espíritos generosos, passamos, na atuelidade, a observar que os maiores juriscon­
sultos preocupam-se intensamente com o D:reito Processual.
.
Mercê da doutrina dos escritores alemães, austríacos e italianos, a teoria do Pro­
cesso e�oluiu extraordinariamente, começando por derruir a velha concepção do pro-

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cesso-duelo judiciário entre dois ou mãis litigantes, testemunhados pelo juiz, arbítrc
entregue ao comodismo de sua passividade funcional.
O critério individualístico do processo - herança dos romanos -- já não domina
mais !'la doutrina de nossos dias.
Entende-se hoje que, si-a lei deve cercar os litigantes de todas as garantias, ou­
torgando-lhes todas as faculdades que não contradigam a finalídade do processo e su­
primindo tudo quanto seja inútil e dispendioso, deve, ao mesmo tempo, tornar o juiz
um partícipe ativo e dinâmico do d�ama ju diciário, para poder exercer dignamente as
suas elevadas funções, aplicando adequadamente a lei aos fatos e fazendo vitoriosa a
Verdade contra a injustiça, na frase do cléssico l(OHLER.
Eis porque a feição do processo é essencialmente publicística.
Com essa orientação, acenam os escritores para a necessidade de dar ao juiz toda
a largueza, toda a amplitude que exigem a delicadeza e a relevância de suas funções .
Não há dúvida que, em juízo, discutem-se e decidem-se interesses privados.
As partes podem livremente dispôr de seus direitos, compondo amigavelmente os
seus dissídios, confessando, desistindo ou ransigindo.
Mas, não é certo possam também dis pôr do processo.
O processo é, antes de tudo, o instn.., mento pelo qual a sociedade tutela os direi­
tos privados em luta, manejado, porém, controlado pelo juiz, representante do Estado,
ao qual incumbe atuar a lei em cada caso, realizando-lhe a vontade positiva ou nega-.
tiva, como diz CH IOVENDA, fazendo, enfim, triunfar a verdade em juizo.
Em tempos idos, quando predominava a concepção da luta judiciária como um
duelo entre os litigantes, apenas fiscalizado pelo juiz; quando aos litigantes se entre­
gava inteiramente a direção do processo, c om a faculdade de alegarem e provarem
como e quanto entendessem; quando ao juíz era defeso imiscuir-se por qualquer modo
n a produção da prova; nesses tempos bem mesquinha era a atividade judicial, poden­
do-se assegurar que o juiz não passava, ertão, como lembram os autores, de um fan­
toche, de um rmm�quim, movido discricio nariamente pela vontade dos litigantes.
A passividade do juiz era a consequência natural da feição individualística do pro­
cesso.
Daí, o julgar-se a relação processw1I como um méro negócio privado, do qual os
interessados podiam dispôr ó vontade.
Ora, atualmente, processualista algurn deixa de acentuar - sem embargo das di­
vergências doutrinárias em pontos s�cundários, que não atingem o âmago da questão
- que o processo é eminentemente publi cístico, uma vez que indiscutível é o inte­
rêsse do Estado na bôa distribuição da justiça, na vitória da verdade em juizo.
Nestas condições, ao juiz deve caber papel preponderante na instrução das cau­
sas, fiscalizando a sua marcha, impedindo chicanas, demoras, fráudes e artifícios, orde­
nando a produção das provas que julgar c,:invenientes, armado, enfim, de todos os pode­
res que o habilitem a proferir sentença ju sta.
Êsse, o juiz ativo, em oposição ao juiz passivo, da velha concepção individua­
listica.
Tem-se dito que a função de julgar é, por sua natureza, um ato de inteligência
e de vontade. Mas, é também um ato de li berdacle.
O juiz precisa ser livre ao decidir os p leitos; quaisquer barreiras (excluindo-se,
naturalmente, as ditadas pela lei em obediê ncia a princípios de ordem geral), quaisquer
impecilhos que poósam impedir a franca ap reci::ição dos fatos pelo juiz, constitue coac­
ção capaz de turvar a limpidez e a justir:;a d a decisão.
O juiz póde, portanto, orientar a produção das provas, delas ter mesmo a inicia­
tiv a, quando assim entender necessário.
Sem chegarmos aos exageros de a:gu1� s processualistas, que acenam até para a
adoção, no civel, do sistema inquisitório, sem qualquer concessão ao princípio disposi­
tivo, podemos combinar harmonicamente o s dois sistemas, afim de, por um lado, não

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sacrificar os interesses individuais que estão em jôgo em juizo, concedendo liberdade


ás partes na colocação de suas questões e na produção das provas, mas, por outro lado,
dando ao juiz a direção dos processos, com a faculdade de tomar as providências neces­
sárias para assegurar a rapidez, a simplicidade e a economia, na discussão das caus=1s
e para conseguir que a sua decisão corresponda á verdade.
Com êsses poderes de inspeção e ptcmoção do juiz, assim denominados pelo ilus­
. tre Prof. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, póde-se conseguir uma instrução rópida e sinr::era.
O problema, todavia, é delicado. A dificuldade está exatamente cm graduar con­
venientemente os poderes que convém out orgar ao juiz,
Si o juiz passivo da velha concepção, era um mal, mil ve7.es pior sedo juiz d0nc
do processo, capaz, á sombra da lei, de prnticar .:is maiores iniquidades, prejudicandc
os legítimos interesses indiviàuais.
Daí, a necessidade de bem acertar aquilo que se deve dar ao juiz, sem receio cle
que possa abusar, cerceando ou dificultando os direitos dos litigantes, e aquilo que
convém deixar á Iivre disposição das partes.
L.,
O saudoso Ministro ARTUR RI BEi RO, na exposição de motivos com que prece­
deu o seu trabalho sôbre recursos e execuções, oferecido á Comissão elaboradora da
Projeto de Código de Processo Civil, em 1936, sustentava qL:e se deve ampliar, parca
e sobr'iamente, a iniciativa do juiz, maximé quanto aos meios probatórios.
Dizia que a finalidade do processo, q1.,e o objetivo da ação e o motivo porque se
arma e se constitue a relação processual, em que o jui;z: deve intervir cor>10 dirigente
ativo, é coisa muito simples e que os romanos definiam por três palavras lapidares -
suum cuique tribuere, dar a cada um o que é seL:, fazer justiça.
Com êsse objetivo é que o juiz procura descobrir a verdade e que a lei lhe for­
nece a soma de meios necessários á produção da certeza.
É essencial, portanto, concluia o emir.ente magistrado, ciue, ao lado dêsses meios,
haja cautelas, medidas de prudência que obstem o juiz desvirtuar aquêles meios e os
empregue, não como meios produtores de sua convicção, mas para oprimir uma das par-
tes em benefício da outra.
Isso vale dizer que o Ministro ARTUR RI BEi RO não de:ejava inovacões no ros:o
processe, parecendo-lhe suficientes as disposições exist�ntes nos códigos estaduais a
respeito da atividade judicial.
Achamos que o Projeto, quanto ao a5sunto que nos p�eocupa, tem muita cois3
aceitável; várias de suas inovações serão úteis, Outras, no entanto, não devem ser
mantidas.

Entre os dispositivos do Projeto, um dêles merece referência especial, Trata-se do


despacho saneador do processo, a ser proferido pelo juiz antes do início da instruc:ío da
causa, em ordem a expurgá-la das irregularidades ou nulidades sanávei5, desernbar.3-
çando-a de tudo quanto possa obstar o conhecimento do méríto.
O Prof. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, autor da reforma do Código de Processo por­
tuguês, que se converteu no Decreto n. 0 13.979, de 25 de julho de 1927, ao ju.stific5�
a necessidade do despacho saneador, ensina que tríplice é o seu fim: a) conhecer as
nulidades; b) apreciar a legitimidade das partes e sua representação; e) julgar as ques­
tões prévias.
O recente Decreto-lei n. 0 960, de 17 de dezembro de 1938, que dispõe sóbre a
cobran·ça judicial da dívida ativa da Fazenda Pública, em todo o território nacional.
no art. 19, im,tituiu êsse despacho saneador nos executivos fiscais, principalmente

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para poderem os juizes mandar suprir as irregularidades ou nulidades, decretando desde


logo as que forem insanáveis, e decidir ma térias estranhas ao mérito da causa, mas
cujo conhecimento ponha termo ao processo.
O Projeto extende êsse preceito a tôdas as ações.
Vejamos o que dispõe o art. 119:

"Quando a autoridade judiciária verificar nulidade, irregularidade ou fal­


tas, que possam ser sanadas, proverá no sentido de ordenar o processo, assi­
nando á parte responsável um prazo razoável para suprí-las."

Quanto ao momento processual, prescreve o art. 364:

"Contestada a ação, ou impugnada a reconvenção ou a defesa, o escrivão, nas


24 horas seguintes, fará os autos concíusos para que o Juiz, no prazo de 5 dias,
profira o despacho saneador, man dando, em prazo razoável, integrar a repre­
sentação dos incapazes e corrigir a petição inicial, quando inepta, suprindo to­
das as nulidades arguidas ou pronunciando as insanáveis."

t✓ão precisamos encarecer a utilid;ide dessa medida.


No sistema atual, quantas vezes o autor, depois de longos meses de trabalho e
despesas, não vê o seu esfôrço inutiliza•:lo pela sentença final, em· que o juiz não toma
conhecimento do pedido, porque anula o processo, ou por ser ilegítima a parte ou por
faltar alguma formalidade substancial. ..
Tudo isso previne o despacho saneado r; antes que a causa prossig·a, antes que s�
produzam as provas, o juiz assegura o exame de seu mérito, saneando o processo de
todas as suas falhas e irregularidades.
Entre os poderes do juiz na direção d o processo, segundo consta do art. 117 do
Projeto, inclue-se o de

"...indagar das partes, na audiência de instrução e julgamento si elas não


preferem discutir a possibilidade de uma conciliação, aconselhando-as a isso,
nos casos em que o interêsse patrim onial não estiver em proporção com as des­
pesas e incomodas do processo."

A conciliação, como disse um escritor, pertence áquêle período romântico do pro­


cesso em que ao juiz era cometido o encar go de procurar sempre conciliar as partes,
antes do início das demandas.
Atualmente, no regime dos códigos es taduais, a conciliação é facultativa.
Comentando o dispositivo do Código do Processo de seu país, que permite a ini­
ciativa do juiz no assunto, entende o Prof. JOSÉ /\LBERTO DOS REIS, que muitas vezes
poderá ela produzir resultados satisfatórios, dizendo:

"...não é com um sermào, mais ou menos eloquente, sôbre as vantagens do


sossêgo, da tranqui !idade e da harmonia, que se consegue vencer a obstinaçãc
de dois adversários em !uta. O que poderá dar resultado é uma intervenção
que vá direita ao litígio que o esclareça e ilumine, mostrando até que ponto
podem ser aceitáveis ou excessivas as pretensões de cada um dos litigantes."

Quer-nos parecer, porém, que a conci I iação deve permanecer facultativa, não de­
vendo o juiz ter iniciativa na matéria.
De fato, o juiz, que aventa aos litigantes, depois das provas produzidas, a utili­
dade da conciliação, mostra, desde logo, o que entende ser aceitável da pretensão do
autor, e, assim, está visivelmente dando a conhecer o seu pensamento, isto é, prejulga
a causa.

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Por outro lado, o fato do juiz indagar das partes si não preferem conciliar-se, csns­
tituirá, muitas vezes, uma coacção aos litigantes, sendo certo que a parte, que se mos­
trar irredutível, terá contra ela talvez predisposto o sentimento do juiz.

Vamos, agora, focalizar dois interess�ntes dispositivos do Projeto, os ns. 9 e l O


do art. 117.

Diz o primeiro:

"A autoridade judiciária poderá ordenar, antes de proferídas as respecti­


vas sentenças, a cumi.-ilação de ações conexas, mesmo entre partes diversas, bem
como, antes de finda a instrução, o desmembramento de ações cumuladas."

Reza o segundo:

"A autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da causa, quando


lhe parecer de conveniência aguardar a decisão de uma questão ou causa pre­
judicial."

Tais dispositivos são copiados do projeto de CHIOVENDA, que, por sua vez, os foi
buscar nas legislações alemã e húngara.
Observe-se que CARNELUTTI, no seu "Projeto", também consigna idênticas dis­
posições.
Aplaudimos a orientação do Projeto brasileiro.
Caberá, sem dúvida, á jurisprudência firmar convenientemente o que sejam cau­
sas conexas para admitir a sua cumulação, por iniciativa judicial.

Seguindo � lição de JOSÉ ALBERT.O DOS REIS, pensamos que a conexão existe
quando há identidade de causa de pe dir, considerando-se conexas as questões
que importem a apreciação judiciária do m<:>smo ato ou fato jurídico. Em caso tal, evi­
dente a vantagem econômica e judiciária cie sua junção.
Mas, é de admitir-se ainda a conexão quando mesmo diverso o objeto rias ações,
comum fôr o fato que haja determinado a obrigação.
Nesses casos, de regras próprias, part es interessadas se coligam em juizo, for­
mando-se, então, o litisconsórcio.
Mas, como o litisconsórcio, na espécie, é facultativo e não obrigatório, pode acon­
tecer que as ações caminham separadas perant� o mesmo juiz, a êste se permitindo _.
então, caso lhe pareça convenient0, ordenar a sua junção para o efeito de submetê-las
a uma só decisão.
Visando a economia proce�sual, aceitável é também o outro dispositivo, que fa­
culta ao juiz suspender o andamento da causa até que se resolva alguma questão pre­
judicial.

Não foi feliz, porém, o Projeto em cutros pontos.


É assim que nos parece excessivo o di,.posto no art. 283:

"Ficará ao arbítrio do juiz conceder, ou não, a realização das provas soli­


citadas, bem como restringí-las ou ampliá-las."

O Código de Processo de S. Paulo possue um excelente dispositivo, o art. 180 § 1. 0,


segundo o qual

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... o juiz poderá indeferir o pedido, tratando-se de inquirição, si a lei só


admitir prova instrumental; e assim também quando a diligência fôr manifesta­
mente impraticável ou inútil."

Aliás, para evitar abusos do juiz, o no,so Código dá ao interessado, o recurso de


ag,avo da decisão que denegar a produção d2 próva (art. l .093 § l . 0 n. 0 l l).
O Projeto, porém, facultando ao juiz, sem quaisquer pêias, deferir, ou não, a rea­
iização das provzs solicitadas, vai longe demais abrindo largo campo para o arbítrio do
juiz, cerceando o direito dos litigantes.
E com a agravante de, negada injusta.11ente uma diligência qualquer, não haver
para o interessado recurso algum...

t�ão podemos louvar ainda o art. 282 Ó:> ProJeto, que assim dispõe:

"O juiz formará a sua convicçã'.) sem estar adstríto a regras legais para a
interpretação das provas, sinão nos casos expressamente determinados em lei."

Todos os processualistas estão de acôrdo em facultar ao juiz a livre apreciação das


provas, á luz de seu próprio entendimento, com a necessária independência.
f\lão há quem defenda mais o sistema das provas legais obrigatórias, o anacrônico
sistema do tarifamento das orovas.
· Evoluiu, nesse sentido, 'o processo bra:;ileiro, pois, todos os códigos estaduais pres­
crevem que o juiz deve consignar escrupulosamente na sentença os fundamentos de
fato e de direito da decisão.
E o Código da Baía dispõe, com acerto e precisão, que o juiz julgará de acôrdo
com a sua convicção, formada pelo exame criterioso das provas do processo e do con­
junto de todos os atos praticados, apreciando ainda os fatos e circunstâncias que não
hajam sido alegados pelas partes.
Preferível nos parece êsses dispositivos do código baiano ao art. 282 do Projeto.
Com efeito, poderá o juiz fugir ás regras legais de interpretação das provas?
Si a lei prescrever regras, a elas está adstríto o juiz...

Merece censura também o art. 319 do Projeto:

"O juiz só fará consignar as respostas das testemunhas quando elas se re­
lacionarem com os fatos cuja investigação interesse á decisão da causa."

Si é o juiz quem dirige as inquirições de testemunhas, só êle podendo fazer as


perguntas (cf. art. 318), embóra possa corisentir que as partes requeiram as perguntas
que lhes parecerem necessárias, não é extranho que, além disso, se lhe conceda o ar­
bítrio de sóment� mandar transcrever nos autos as respostas das ·testemunhas que, a
seu ver, se relacionem com a causa?
É evidente que semelhante dispositivo abre margem a possíveis abusos, em pre­
juizo dos litigantes.
Suscita também reparos o art. 321 do Projeto, ainda a respeito de prova teste­
munhaL
Diz assim:

"Quando qualquer das partes cferecer mais de três testemunhas para a


prova de cada fato, o juiz poderá dispensar as restantes, sempre que lhe pare­
cerem desnecessários os depoimentos.
Parágrafo único. - Em caso algum, o número de testemunhas poderá ex­
ceder de dez para cada uma das partes."

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Em primeiro lugar, não vemos motivo n.ara se estabelecer rigorosamente o limite


de dez testemunhas para todos os casos.
Causas há, abundantes de fatos complexos, que só podem ser provados por maior
número de testemunhas, de dentro e de fóra da terra.
O Código de São Paulo, seguindo a tradição da velha legislação portuguesa, em�
bóra tenha fixado em vinte o número máximo de testemunhas para cada uma das par­
tes, ainda assim permite a inquirição de out"ras mais, em casos excepcionais pela diver­
sidade ou multiplicidade de fatos.
Rigoroso, portanto, se nos afigurél, o dispositivo do Projeto, que examinamos, es­
tabelecendo taxativamente que, em caso algum, o número de testemunhas poderá ex­
ceder de dez para cada uma das partes.
Além disso, pelo sistema do Projeto, e juiz fica com o arbítrio, excessivo sem dú­
vida, de dispensar testemunhas· arroladas pelas partes, quando entenda que já bastam
os depoimentos existentes nos autos.
Vamos terminar, fazendo referência a outro artigo do Projeto, que merece espe­
cial atenção.
Dispõe o art. 349 que

" ...quando as circunstâncias da causa convencerem o juiz de que o autor


e o réu se serviram do processo para realizar um ato simulado, ou para conse­
gui r um fim proibido em lei, proferirá decisão que obste a êsse fim."

Preliminarmente, não vemos motivos ç:ara se consignar na lei processual que o juiz
tem o dever de obstar, por meio da sentença, que as partes dolosamente consignam
um fim proibido em lei.
O juiz, no exercício de suas funções, tem evidentemente o dever de rejeitar a de­
manda, quando se convença de que o autor (com a aquiescência do réu ou com simu­
lada defesa dêste) veiu a juizo com uma pretensão ilícita ou ilegal.
Não era preciso, pois, focalizar ou des tacar semelhante hipótese.
Quanto ao processo simulado, melhor seria também que a êle .não se referisse o
Projeto.
Com efeito, dificílimo será ao juiz, com os elementos da causa, e mesmo utili­
zando-se dos largos poderes que lhe confere o Projeto, concluir com segurança pela
simulação, baseando-se em tal motivo para rejeitar a demanda.
Não há concordância entre os escritcres a respeito do que seja processo simulado.
Ao nosso ver, o processo simulado se c aracteriza pelo fato da ação ser exercitadc:
com o fim de tornar existente uma situação jurídica que as partes sabem ser inexis­
tente.
Visam, assim, autor e réu conseguir uma sentença que, afinal, vai éltingir interes-
ses de terceiro, estranho á demanda.
CH IOVENDA ensina que, em casos tais, há uma destinação anormal do processo.
De regra, o processo simulado é um processo fraudulento.
Pensamos que não há conveniência em dar ao juiz a faculdade de rejeitar a ação
ou de anular o processo, com fundamento na simulação, na coal1são das partes, porque
cabe aos terceiros prejudicados virem a juizo para defender os seus direitos.
Ninguem deve ficar surpreendido com o fato de existirem, aqui e alí, juizes c�­
pazes de se desviarem do reto cumprimento de seus deveres.
Com leis excelentes, um juiz póde praticar os maiores excessos.
Mas, de revés, magistrados haverá que, mesmo em se lhes outorgando os maiores

poderes, dêles farão uso discreto e prudente.
Si a função judiciária, pela sua delicadeza e relevância, deve estar confiada a ho­
mens esclarecidos, honestos e dedicados, não vemos mal em se lhes conceder os neces­
sários poderes para que decidam com justiça.

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No caminho para a verdade, eiue a inteligência do juiz deve percorrer, já adver­


tia UGO FERRONE, todas as limitações são obstáculos que podem impedi-lo de atin­
gir áquela justiça que a todos e á sociedade inteira importa ser assegurada.
. N6o regateamos. por isso, em princípio, os nossos aplausos á orientação do Pro-
jeto quanto á atuação do juiz, embóra as ressalvas que fizemos, além de outras que
ainda teremos oportunidade de apresentar, traduzam o nosso receio de que o Projeto
tenha sido extremado, ido longe demais, i:altando de um golpe do sistema tradicional
e experimentado dos códigos estaduais para um outro oposto, cheio ainda de interro•
gações.

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