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INTRODUÇÃO

Na literatura, lemos: “(...) Não me pergunte nomes, por favor; limite-se a corrigir
seus erros, deixe de ser tão intransigente, contra esse tribunal ninguém pode se
defender; é preciso fazer uma confissão. Na primeira oportunidade, confesse. Só depois
disso haverá a possibilidade de escapar, só depois disso (...).”1
Nos filmes e seriados, ouvimos: “Tudo o que você disser poderá ser usado
contra você no Tribunal.”
Como se diz, a arte imita a vida.
Afinal, a possibilidade de as declarações serem usadas contra o arguido como
contexto de programas de entretenimento nada mais é do que replicar uma das mais
conhecidas características concretas do processo penal americano, as chamadas
Miranda warnings, estabelecidas em célebre julgamento da Suprema Corte americana.
Advertência tão singela, por vezes até óbvia, mas que é resultado de uma vasta
de discussões sobre o tema. Sucintamente, a advertência surge para legitimar a
utilização futura, como prova em julgamento, da declaração prestada pelo arguido
quando em custódia, notadamente a que ocorre logo após a prática do crime (inclusive
como forma de testemunho indireto). Entretanto, e é importante que se diga, a mesma
advertência não é exigida quando o arguido declara sem estar em custódia.
Uma mesma advertência, não necessariamente uma mesma causa de aplicação.
De qualquer maneira, trata-se de uma exigência para que as declarações sejam
transmitidas de uma etapa da persecução para outra.
Em outros contextos processuais, contudo, os tratamentos já possuem outros
nortes. No processo penal italiano, as declarações do arguido anteriores à fase de
julgamento não necessariamente serão transmitidas ao fascicolo (per il dibattimento)
que é formado e levado para a etapa de julgamento. Se não compuser referido
instrumento, acusação e defesa poderão ter acesso a ele em outro auto, com especial
destaque aquele que é entregue ao Ministério Público (fascicolo del pubblico ministero).
No processo penal brasileiro, onde a transmissibilidade das declarações do
arguido anteriores à fase de julgamento tem uma amplitude maior, percebe-se que o
legislador criou um limitador para a formação de convencimento judicial. Como se
percebe da leitura do CPP brasileiro, art. 155, caput, o juiz exporá sua decisão a partir
dos atos de prova que foram produzidos em contraditório judicial (real ou diferido), não
1
KAFKA, 2020: p. 127.
podendo fundamentar sua decisão, exclusivamente, com base nos elementos de
informação, cujo principal exemplo que podemos trazer é a confissão feita perante o
inquérito policial.
Na Alemanha, onde a transmissibilidade das citadas declarações também existe,
além de serem estabelecidas diversas regras quanto à forma de obtenção das declarações
do arguido anteriores à fase de julgamento, há limitadores quanto aos graus probatórios
que referida declaração pode ter, especialmente porque há um forte respeito à chamada
imediação probatória. Em Portugal, o tema do aproveitamento das declarações
anteriores do arguido ganhou forte destaque com a reforma do art. 357º do CPP
português no ano de 2013, sob a consideração de que houve uma ampliação de
possibilidades de uso processual dela (notadamente, porque permite que haja a
reprodução ou leitura das declarações também quando feitas perante uma autoridade
judiciária respeitados direitos que competem à defesa).
Não obstante, estes são exemplos que mostram uma parcela do tema. Há a
possibilidade de que as declarações anteriores do arguido sejam reproduzidas ou lidas
em audiência quando ele próprio solicitar que isto ocorra (Portugal), quando houver
consenso entre as partes para tanto (Itália). Igualmente, serão elas utilizadas para
decisões anteriores ao mérito e que envolvem, exemplificativamente, o ato de
recebimento da acusação, a realização de medidas cautelares (reais, probatórias ou
pessoais), dentre outras hipóteses.
Facilmente se percebe que a utilização das declarações do arguido prestadas
antes da fase de julgamento não possui tratamento unificado entre os ordenamentos
jurídicos distintos (por vezes, nem mesmo no próprio ordenamento).
E por que isto ocorre? O problema surge porque a prática e a técnica nos fazem
caminhar por trilhas que não são sempre planas, seja no Direito, seja nos processos em
si, naquilo que se costuma apresentar como a diferença entre a law in action e a law in
books. Notadamente em processo penal, há a necessidade de se proteger o status
libertatis individual, já que expressão máxima da dignidade que carregamos, ao mesmo
tempo em que, no direito penal, há interesses socialmente reconhecidos que fazem com
que a liberdade ceda em prol da organização de um contrato, socialmente firmado, que
nos vincula. E direito penal não existe no mundo real sem processo.
Os livros, de Direito inclusive, nos mostram que a vitória na Segunda Guerra
Mundial fez com que a influência norte-americana se impulsionasse pelo planeta. Ela
foi de vários matizes, mas, e no que nos interessa, também de percepções jurídicas,
notadamente por conta dos tribunais que se seguiram para os julgamentos de crimes de
guerra, com ampla e difundida representatividade dos Estados Unidos neles (sem serem
desconsideradas influências pela permanência americana em uma das zonas que
dividiram Berlim na época da chamada Guerra Fria).
Ao mesmo tempo em que permitiu uma difusão da forma americana de ver o
processo penal, a Segunda Guerra Mundial também fomentou a necessidade de outro
debate de extremo relevo, qual seja, sobre até que ponto os indivíduos podem estar
expostos aos anseios de um Estado. Dito de outro modo, numa visão negativa para ele,
mas positiva para o indivíduo, o mesmo Estado passou a ser mais limitado na
intervenção sobre os direitos das pessoas, que passaram a ter cada vez mais
reconhecidas suas dignidades. Documentos e Cortes internacionais surgiram para
mostrar que os Estados estavam preocupados com os rumos havidos.
Esta nova percepção não tardou a trazer seus efeitos no processo penal,
especialmente na Europa, que também conta, através de sua vastíssima história,
momentos que ficaram conhecidos como o Direito Romano, a Inquisição, o Iluminismo.
O que nos permite perceber que o choque de pensamentos e filosofias se
apresentaria, pois é dito que o processo norte-americano é consequência da common
law, surgida em uma Europa insular, ao passo que o continente moldou o que se
convencionou chamar de civil law. Ainda que ligadas por um tecido denominado
Direito, a primeira possui um enfoque de resolução mais prática dos conflitos, ao passo
que a segunda está mais ocupada com a primazia de um conjunto normativo-dogmático.
Na primeira, predomina o julgamento pelo júri (leigo, portanto); na segunda, o
julgamento técnico e togado é preferencial.
Juntamente com referida compreensão, há de ser agregado o fato de que existe,
na atualidade, uma forte discussão quanto aos limites da existência da imparcialidade
judicial a partir do momento em que o julgador conhece ou tem acesso aos conteúdos da
fase de investigação. Sob argumento de que existem estudos de outras áreas do Direito,
mormente os que envolvem a chamada teoria da dissonância cognitiva, que afirmam
que poderia existir um viés de prejuízo ao arguido 2 em situações como tais, estão sendo
aplicadas divisões de atuação por motivos funcionais, o que vem exemplificado pelo
juiz das garantias brasileiro, pelo juiz de instrução português e pela tríplice atuação

2
No presente trabalho, haverá a preferência pelo uso da identificação de quem sofre as etapas de
persecução penal pelo termo arguido, o que se faz por dois motivos. O primeiro, porque se trata de termo
utilizado pela legislação portuguesa, como será adiante explicado. O segundo, porque o trabalho é
destinado a uma Faculdade de Direito sediada em Portugal.
judicial italiana (giudice per le indagini preliminari, o giudice dell’udienza preliminare
e o do dibattimento).
Usando a tríplice atuação antes mencionada, poderia ser mais facilitado o
caminho de realizar um trabalho acadêmico se o horizonte fosse dicotômico, ou seja,
moldado numa regra de um ou outro. Entretanto, as difusões de ideias fazem com que
um determinado ordenamento jurídico queira se distanciar de suas origens e se
aproximar da uma compreensão que não lhe era tão natural assim. É o que se diz do
processo penal italiano, cunhado nas origens da civil law, mas que quis apresentar um
processo renovado, de cunho mais adversarial (common law, portanto), numa ruptura
que aconteceu, mas que não foi esqueceu suas origens e todo o passado que o liga com o
restante do continente europeu.
Todos, de alguma forma, preservam suas raízes; todos, de alguma forma, dizem
que seu processo penal poderia usar o que outro país utiliza. De qualquer sorte, o
Direito sempre será o resultado de uma dialética própria, de uma análise interpretativa,
social e histórica, o que, ordinariamente, faz surgir linhas conflitantes entre si. Os
legisladores e os operadores do Direito passam a projetar as regras de maneira a buscar
uma maior efetividade de seus sistemas em cotejo com as necessidades de concessão de
direitos às partes.
Dentre as concessões às partes, a principal das garantias hoje conferida no plano
processual penal é a percepção de que “todos são inocentes até o surgimento da prova
em contrário”. Por tal razão, não se exige qualquer tipo de colaboração do indivíduo que
está na condição de arguido com quem lhe acusa. Ela, se houver, decorrerá de uma
atuação livre (em seus aspectos psicológicos) e consciente (dos resultados que dela
advirão).
Essa opção livre e consciente do arguido é a razão principal pela qual hoje resta
conferida a ele a noção de ser um sujeito processual, não o objeto do processo que um
dia foi quando da presença da Inquisição. Arguido este que, por estar envolvido com o
iter criminis em muitos dos casos, dispõe de informações que são importantíssimas para
o resultado final da persecução penal.
Contudo, na linha da inocência antes citada, são a ele conferidas opções que vão
desde o silêncio até às declarações autoincriminatórias concordantes com quem lhe
acusa, com as várias possibilidades entre estes extremos. Afinal, independentemente de
quem venha a conduzir a investigação, o arguido pode querer apresentar suas teses
desde a primeira oportunidade que lhe for permitida, numa tentativa de (a) já desejar
livrar-se da persecução e de (b) começar a trabalhar suas teses defensivas acaso enfrente
uma determinada acusação.
Feitas tais apresentações, evidencia-se que o tema do presente trabalho está
delimitado no estudo nas declarações do arguido anteriores à fase de julgamento. A
problemática que envolve o exame das declarações do arguido está no simples e
costumeiro fato de que ele, antes da acusação em si, pode vir a declarar e, quando do
conhecimento de sua condição de acusado, passar a calar ou alterar o conteúdo das suas
declarações anteriores. Novamente, parece singelo isto, mas há inúmeras realidades que
cercam esta realidade.
Tanto isso se mostra verdadeiro que Sousa Mendes afirma que a possibilidade de
aproveitamento das declarações anteriores ao julgamento feitas pelo arguido guarda
relação com a estrutura acusatória, o contraditório, a igualdade de armas, a oralidade, a
imediação, o direito de audiência, o direito de defesa e o princípio da livre convicção
judicial, sem esquecer os impactos que pode causar à verdade material. 3 Eis o que dá os
principais caminhos da presente pesquisa!
Em síntese, duas perguntas se mostram: (1) qual o impacto da transmissibilidade
das declarações anteriores do arguido na construção do processo e na imparcialidade
judicial; (2) como devem ser tratadas as declarações prestadas pelo arguido em
momento anterior à fase de julgamento?4 Quer-se encontrar se há justificativa às
liberdades ou limitações impostas pelo legislador em fundamentos jurídicos, meramente
políticos ou em uma idealização processual específica para elas.
Para tanto, em sua primeira parte, o estudo começa com contextualização do
debate a tema de tal magnitude. A primeira é a relação entre o direito e o processo
penal, pois somente se pode falar em arguido no procedimento quando se tem notícia de
um crime havido. O segundo, verdadeiro ponto de motivação, é o conjunto de reformas
havidas no processo penal português, especialmente por conta do debate que se fez por
causa da reforma que aconteceu em 2013.
Na sua segunda parte, discorre-se sobre o que se compreende por common e
civil law, as comparações que podem decorrer de uma visão sobre elas e, notadamente,

3
SOUSA MENDES, 2014: p. 416-417.
4
Como aponta a doutrina, há diferentes linhas sobre o aproveitamento do que é produzido na fase anterior
ao juízo voltado para o julgamento. Há quem sustente não haver a possibilidade de utilização, na medida
em que ausentes critérios mínimos de confiabilidade por falta das garantias judiciais mínimas; outra linha
defende que podem ser valoradas, mas com peso probatório limitado de antemão; por fim, há quem
sustente que deve ser admitida, com seu valor probatório visto na casuística (Conforme elencado por
BEDOYA SIERRA, 2013: p. 108).
a aproximação das declarações do arguido com a presunção de inocência, o ato de
interrogatório e os resultados deste ato, notadamente, a confissão.
Com a visão de que o aproveitamento das declarações anteriores do arguido se
relaciona com a estrutura acusatória, na terceira parte, passa-se a um elemento que
acompanhará o restante da pesquisa: a pretensão de comparação entre as diferentes
formas de visão do processo penal (inquisitório, acusatório, adversarial ou misto).
Obviamente, percepções gerais serão apresentadas. Contudo, vai-se um passo adiante:
serão apresentados os processos penais de cinco países diferentes (Portugal, Brasil,
Itália, Alemanha e Estados Unidos), com objetivo não só de mostrar visões de mundo,
mas, e especialmente, de compreender estados da arte na evolução, nas ideias de base,
nas funções dos integrantes do processo, na maior ou menor presença de juízes ao longo
da investigação, na forma como se trata a transmissão de uma etapa para outra das
declarações prestadas pelo arguido. O que nos levará a responder duas primeiras
grandes e importantes questões: se ainda há a dicotomia inquisitório e acusatório, e se é
necessário derrubar a transmissibilidade das declarações anteriores do arguido.
A estrutura acusatória não é apenas a função de cada um: ela também se justifica
pela maneira como cada ordenamento jurídico trata sua justiça e, mais ainda, o juiz.
Assim, quando da quarta parte, a estrutura acusatória igualmente será vista pela
independência do Poder Judiciário, na imparcialidade judicial, sendo que, em relação à
última, naquele que é seu maior ponto de tensão atualmente: a imparcialidade judicial a
partir do conhecimento do que foi coletado e/ou determinado durante a investigação,
notadamente pelo hoje presente confronto dela com a chamada teoria da dissonância
cognitiva. Noutros termos: há efetiva contaminação da imparcialidade por tal
conhecimento?
Na quinta parte, a sequência da pesquisa acompanha as relações do
aproveitamento das declarações anteriores com o contraditório, a igualdade de armas, a
oralidade, a imediação, o direito de audiência, o direito de defesa e o princípio da livre
convicção judicial, ou seja, os preceitos de direito probatório que caminham em prol da
descoberta de uma verdade aceita, a ser definida por juízes togados ou leigos, tenha ou
não a presença de tarifas probatórias. Antes, porém, de falar-se deles, também se mostra
essencial discutir e estudar as motivações para as limitações probatórias, pois além de
conformarem o arguido como sujeito processual, também guiam a maneira como as
provas se vinculam à persecução penal.
Ao longo de cada um dos passos acima, serão apresentados fechamentos parciais
que se mostrarem relevantes para melhor encaminhamento da pesquisa em si (a
presença de todos os ordenamentos mencionados antes exige isto) e, mais adiante, das
conclusões finais e da tese que se proporá.5
Uma pesquisa que se dispõe a se apresentar ao nível de tese de doutoramento
enfrenta referências doutrinárias, legislativas e de jurisprudência dos países citados, das
ordens regionais (notadamente pela força das Cortes EDH e IDH), e, por fim, de outros
países que com o tema se relacionam, além de outras áreas do conhecimento. Far-se-á,
assim, a dialeticidade necessária que permitirá chegar-se ao final da pesquisa, sem
esquecer que “(...) nada é mais fácil do que encontrar para toda a novidade uma obra
antiga que com ela tenha alguma semelhança.”6

5
Adverte-se, desde já, que não se quer fazer uma análise de proporcionalidade probatória frente à
criminalidade grave e organizada de maneira a querer justificar qualquer conclusão com base no atual
contexto de criminalidade. Importa referir aqui os termos da Resolução do Conselho de Ministros
17/2011, de 4 de março, ponto 7, c), pois se deve “considerar prioritário para o reforço dos instrumentos
de combate ao crime organizado e à corrupção a consagração legal da valoração da prova produzida
durante a fase de inquérito ou instrução, designadamente as declarações do arguido, desde que prestadas
perante juiz e com garantias plenas de defesa, incluindo a assistência de advogado”. O que se quer é,
justamente, fazer um estudo que justifique conclusões para todos os crimes, inclusive para os mais graves.
6
KANT, 2019: p. 11.

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