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A FIGURA DO ASSISTENTE DO MINISTÉRIO POBLICO NO DIREITO

PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

MANOEL PEDRO PIMENTEL


Prof. de Direito Penal da Universidade
de São Paulo

A figura do Assistente do Ministério Público no Direito Pro


cessual Penal Brasileiro é peculiar, diferiudo de quase todos os sistemas
estrangeiros. Hélio Tornaghi entende que o Assistente é "parte adjunta",
enquanto que Frederico Marques o qualifica como "parte adesiva".
J. Canuto Mendes de Almeida, isolando-se em posição que não encontra
apoio na doutrina dominante, prefere vê-lo como parte civil.
Perante o Direito processual penal italiano, o Assistente do Minis
tério Público assume a posição de "parte civil". Observa Marcelo Fortes
Barbosa (1) que "não poderia ser de outra forma, pois o princípio da
unidade vigente no processo penal italiano, pelo qual o Juiz Penal decide
não só a causa penal, como também o quantum indenizatório na própria
sentença penal", impõe a conceituação do Assistente com representante da
parte civil no processo penal, e não como acusador auxiliar.
O Direito processual penal espanhol, tal como o argentino, reco
nbece a figura do actor civil, distinta do titular do direito de agir através
da ação penal privada. Comentando o assunto, Alcalá-Zamora y Castillo
e Ricardo Levene, Rijo, cuidam da figura do actor civil dizendo: "Por
influxo do Código napoleônico, propende-se a denominá-lo parte civil,
tanto na esfera legislativa como na doutrina, e em ambas com notória
impropriedade, posto que igualmente parte e igualmente civil o é o res
ponsável em dita ordem, seja o próprio acusado seja um terceiro. Como
autor civil pode comparecer a pessoa que tenba sido prejudicada pelo
delito e aspira a ser ressarcida dos danos (materiais ou morais: cf. artigo
29, inciso l.º, do Código Penal) sofridos. Em geral, essa pessoa será o
ofendido ou seus representantes, que para tal fim podem, conforme os casos,
comparecer em três atitudes distintas: como autor civil porque o Código
Processual respectivo não lhe permite constituir-se em acusador particular,
como autor civil apesar de estar autorizado para acusar, e como acusador
que por sua vez demande a responsabilidade civil e que se acredite com
direito pelo dano suportado." (2)
Em posição radicalmente oposta está o Direito processual penal
mexicano, que não admite a intervenção do ofendido na lide penal, a

(1) Considerações sobre a natureza Juridica da Assistência de Acusação no


Processo Penal Brasilerio, "in" Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de
São Paulo, vol. 15, pág. 28.
(2) Derecho procesal penal, Ed. G. Kraft, Buenos Aires, 1945, tomo II, pág. 32.
- 14 - penal pelo Estado.
No Direito processual penal alemão, o ofendido pode funcionar como
qualquer título, prevalecendo o princípio rígido do monopólio da ação Assistente, ressaltando-se, porém, que se reconhece o seu interesse não à mera
reparação civil, mas prevalentemente a contribuir para que haja o1.,
- 15 -
exercício do poder-dever de punir do Estado.
Em nosso Direito, a figura do Assistente está mais aproximada empregadas pelo legislador são técnicas, a interpretação dos vocábulos
deste modelo alemão. Como salientou Frederico Marques, o Assistente deve ser sempre a mesma, o ofendido referido pelo artigo 268 é o mesmo
ingressa na lide, ao lado do Ministério Público, numa intervenção adesiva, a que alude o artigo 30. Portanto, em princípio, somente quem tenha
que lhe confere direitos de parte penal e não simplesmente de parte civil. capacidade processual para intentar a ação penal privada poderá habilitar-se
Assim é que o Assistente pode propor meios de prova, participar do contra como Assistente do Ministério Público, nas ações penais públicas.
ditório, aditar o libelo e os articulados e até mesmo recorrer isoladamente
caso o Ministério Público não o faça. ' Esta simetria é adequada ao princípio já assent'ado de que o
Assistente terá sempre um bem ou um interesse jurídico imediatamente
Esta posição do Assistente permitiu a seguinte conclnsão a que ofendído pelo delito, a justificar, ética e juridicamente, a sua intervenção,
chegou Marcelo Fortes Barbosa: "A assistência de acusação, em- nosso como parte adesiva, na ação penal. Essa é a opinião manilestada por
Direito Processual Penal não é um mero correlativo direto do direito à Magalhães. Noronha: "Ofendida que _é pelo crime, tem a pessoa o direito
reparação do dano, eis que o ofendido intervém para reforçar a acusação de persegmr o ofensor, mediante queixa, quando a ação é privativa ou de
pública, figurando em posição secundária o interesse mediato na reparação auxiliar o Ministério Público quando pública. Assistente - nome'que se
do dano causado pelo delito." (3) lhe dá - é, dpois, o ofendido, o titular do bem jurídico lesada pelo
O acerto desta afirmativa autoriza dizer que o Assistente, em delito." (6)
nosso Direito Processual Penal, deva ter um legítimo interesse coligado à . O of n do é, portanto, o sujeito passivo do crime, pois este "é
finalidade precípua da ação penal, isto é, deve estar ética e juridicamente o titular do direito lesado ou posto em perigo pelo crime", conforme
vinculado ao poder-dever de punir que o Estado exerce através do pro ensinamento de Basileu Garcia, (7) completando o mesmo autor: "Impor
cesso criminal. tante reflexo processual deriva da qualidade de sujeito passivo, pois lhe é
Por isso mesmo, é preciso esclarecer, não é o Assistente, no facultado, ou ao seu representante legal, promover a ação penal privada, ou
processo penal brasileiro, um mero representante da parte civil, que se repres ntar para que seja instaurada - se de natureza pública condicio
vincule à causa penal exclusivamente pelo interesse que tenha quanto à nada a representação do ofendido - e, não só nesta hipótese, como na
reparação do dano. Esta outra conclusão de Marcelo Fortes Barbosa é, comum, de ação pública, auxiliar a acusação, exercendo o encargo de
igualmente, válida: "Finalmente, diante do exposto, não se pode dizer que assistente do Ministério Público."
a assistência de acusação, face aos dispositivos legais vigentes ou mesmo, Frederico Marques elege a definição de sujeito passivo dada por
face àqueles constantes do anteprojeto prestes a vigorar, possa integrar um Antolisei, e aceita por Bettiol e Asúa, segundo a qual é ele "o titular ou
instituto único denominado "parte civil", ao lado do acusador privado e do portador do interesse cuja ofensa constitui a essência do crime". (8)
apelante ofendido." (4)
Excetuadas as hipótóeses dos crimes pluriofensivos, em que há
2 - Colocadas estas premissas, vejamos qual o sentido que se multiplicidade de sujeitos passivos, nem todo o prejudicado pelo crime
pode dar à expressão ofendido, constante no artigo 268 do Código de ostenta a condição de ofendido, vocábulo que a lei reserva para designar o
Processo Penal· Brasileiro. Frederico Marques assim o conceitua: "O titular de um bem o_u de um interesse j?rídico lesado ou posto em perigo
ofendido, no processo penal, é o titular do jus accusationis, nos denominados pelo cnme. Vale dizer, portanto, que e relegada ao esquecimento a dis
crimes de ação privada, cabendo-lhe, por isso, o direito de queixa. Em tais tinção que a melhor doutrina faz entre ofendido e prejudicado pelo delito,
delitos, a persecução penal tem, no sujeito passivo da infração penal, a
afirmando Frederico Marques que: "Do sujeito passivo do crime, deve distinguir-
pessoa investida da legitimidade ad causam para a propositura da ação
penal." (5) se a pessoa do prejudicado pelo delito." (9)

O artigo 38 do Código de Processo Penal confere ao ofendido o Esclarecendo melhor o pensamento, prossegue o mencionado
direito de intentar a ação penal privada. Tendo em vista que as expressões autor, linhas adiante: "Essa distinção tem grande relevância no tocan\e às
indenizações provenientes do delito. Enquanto que a titularidade de certos
dire tos de caráter formal, como a queixa e a representação, estão ligados,
(3) Op. cit., pág. 35. salvo as exceções abertas em lei, à pessoa do sujeito passivo do crime, as
(4) Op. cit., pág. 35. pretensões ct'o arre1to c.::vil sobre a indenização ex delicto também têm, no
(5) Estudos de Direito Processual Penal, Ed. Forense, Rio, 1960, pág. 157. prejudicado, a pessoa ativamente legitimada para reclamar em juízo o
::ossarcimento desses danos." ' '

(6) Curso de Direito Processual Penal, Ed. Saraiva, São Paulo, 1969, pág. 152.
(7) BASILEU GARCIA - Instituições de Direito Penal, Max Limonad Ed., São
Paulo, 1951, vol. I, tomo I, pág. 216.
(8) Tratad de Direito Penal, Ed. Saraiva, São Paulo, 1955, 2.ª ed., vol. II, pág. 22.
(9) Tratado cit., vol. II, pág. 25,

- 16 - batedor de carteiras, sujeito passivo do crime é somente aquele, porquanto


o patrão não passa de prejudicado. As duas situações, porém, se distinguem s
"As vezes há dificuldades em distinguir o sujeito passivo daquele nitidamente, como diz Petrocelli, porque uma consiste na titularidade do
que foi apenas prejudicado, na esfera civil, pela prática de delito. Se um interesse atingido pelo fato, enquanto ilícito penal, e a outra na titularidade do
preposto quando levava o dinheiro do proponente, é assaltado por um interesse atingido pelo fato tão-só como ilícito civil."
Mais clara, ainda, a lição de Fontán Balestra, firmada em várias -17-
opiniões de autores igualmente conceituados "Sujeito passivo é o titular
do interesse cuja ofensa constitui a essência do delito (Francesco Antolisei,
"Manuale di Diritto Penale", Milão, 1955, n. 68); aquele a quem se Esse legítimo interesse está sempre presente quando o acusado, co111 a
designa como vítima do delito; quer dizer, a pessoa, em sentido jurídico, prática do crime, ocasionou u.m dano ao ofendido." (12)
quer se trate de um homem ou de um grupo de homens Arturo Rocco, Expressamos naquela oportunidade o pensamento que ora reite
"L'oggetto dai reato e della tutela giuridica penale", Roma, 1932, n. 3, ramos: o ofendido tem legítimo interesse na ação penal, em função do dano
pág. 1O). A idéia de vítima não deve ser identificada, entretanto, com a causado pelo delito. Mas não há que se confundir o dano resultante de um
de lesado ou prejudicado, como é logo feito pelo próprio Arturo Rocco crime, mas estranho ao fato típico, com o dano que, como resultado neces sário
(obra e lugar citados), porque ambos podem não coincidir (Bernardino da ação, integra a tipicidade do fato, pois certos crimes podem con sumar-se
Alimena, "Principias de Derecho Penal", vai. I, págs. 288 e segs.; Lnís independentemente do dano que deles possa resu1tar.
Jiménez de Asuá, "Tratado de Derecho Penal", tomo III, 2.ª ed. n.
978). (10) Antolisei destacou a lesão jurídica, qne é a ofensa sofrida pelo
sujeito passivo, o ofendido, separando-a do dano, conseqüência material do
Merece transcrição o pensamento do autor por último citado: delito, que não integra o fato típico, e que, portanto, é estranha à idéia
"Em troca não é a mesma coisa dizer "sujeito passivo" e danificado ou de ofensa, no sentido jurídico penal. Assim se nrnnifesta o pensamento
prejudicado, excessivamente unidos por Rocco ("L'oggetto", pág. 17, nota do citado autor: "Uma coisa é, na verdade, a lesão do interesse juríd ico 1
28). Já os distinguiram Alimena (págs. 360/3"61) e Ferri ("Principii", pág. lesão, que, se se quer considerar sob o aspecto causal, deve colocar-se em
401), e agora os diferenciam Battaglini (pág. 78) e Petrocelli (págs. relação com o crime no seu todo complexo (o dano - como já salientam.os
265/267). Estes dois últimos limitam a noção de prejudicado a aquele a - é produto do crime e não apenas da ação humana); outra coisa é o efeito
quem se causa um dano de índole civil, patrimonial ou não, ou melhor dito, natural da ação, isto é, a modificação do mundo exterior causado pelo
à pessoa a quem corresponde o direito ao ressarcimento. Com palavras movimento corpóreo como força física. A diferença entre os dois con
talvez excessivas disse Alimena que "aquele que sofre o dano é o preju ceitos é certamente notável e não pode ser descurada na ciência penal." (13)
dicado, ou seja o possuidor de um direito subjetivo privado, que se viola
ao mesmo tempo em que o direito subjetivo público, cuja violação constitui O dano, por isso mesmo, nem sempre está relacionado com o
delito" (pág. 360)." (11) fato típico de que se trata, pois há crimes que se consumam mesmo sem
eles, o que levou Antolisei a asseverar: "De quanto se expôs até agora
De todo o exposto, podemos concluir que o prejudicado pelo podemos tirar uma conclusão que, sem dúvida, tem grande importância
delito nem sempre é sujeito passivo da infração, e que esta deve ser analisada teórica e prática: o evento não é requisito essencial do crime." (14)
em seus elementos constitutivos, para verificar-se, mediante exame dos A distinção tem, realmente, importância. "Ofensa e dà.no" são
sens dados objetivos, quem é o ofendido no sentido legal e, portanto, quem coisas diversas, podendo coexistir de modo relevante em alguns delitos e
tem o direito de ação privada - se se tratar de crime. reservado à perse em outros, não. Petrocelli assinala que: "A ofensa é o ataque, a agressão
guição particular - ou quem tem o direito de se habilitar como Assistente do interesse protegido pelo direito, é o mal próprio do fato ilícito que se
do Ministério Público - se se tratar de crime de ação pública. traduz na alteração para pior do interesse. O dano, ao invés, é o prejuízo
3 - Em trabalho anteriormente publicado, tivemos ocasião de que deriva do fato ilícito e, mais precisamente, aquele particular prejuízo
dizer: "os crimes de ação pública é admitida a intervenção do ofendido, ou que consiste nas conseqüências nocivas do fato." (15)
do seu representante legal, em caráter subsidiário, como assistente do Minis Com fundamento nessa distinção, dissemos que "A ofensa, se
tério Público, desde qne provada a legitimidade do seu interesse na ação. gundo a exposição de Petrocelli atua através da violação da norma que
impõe a obrigação de fazer ou de não fazer correspondente, ou seja, com
(10) Tratado de Derecho Penal, Abeledo Perrot, Buenos Aires, 1966, tomo I, pág. 363. o realizar-se de um ilícito. O resultado lesivo, que pode ser a lesão efe
(11) Tratado de Derecho Penal, Ed. Losada S/A., Buenos Aires, 1951, tomo III, tiva do bem ou do interesse, ou a sua simples ameaça, é o conteúdo material
págs. 78/79. da ofensa." (16)
Constata-se, assim, que há crimes em que a ofensa não consiste
em um "resultado lesivo", não havendo "dano" a considerar, relativamente
à materialidade do delito, sob o aspecto de integração da figura típica

( 12) MANOEL PEDRO PIMENTEL - Advocacia criminal - teoria e prática, Ed. dos
Tribunais, São Paulo, 196·5, págs. 159/160.
(13) L'azione e ravent-0 nel reato, S/A. Inst. Ed. Se., Milão, 1928, pág. 91.
(14) Op. cit., pág. 111,
(15) L'antigiuridicità, Cedam, Pádun, 1951, pág. 127.
(16) MANOEL PEDRO PIMENTEL - Crimes de mera conduta, Ed. Revista dos Tri
bunais, São Paulo, 1968, 2.ª ed., pág. 51.
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penal. Nessa categoria incluem-se, obviamente, os "crimes de perigo É claro que o prejudicado terá um legítimo inter':sse civil, a ser coloc_ado
comum". em Juízo, através da lide civil, visando o ressarcimento do dano sofrido.
Não terá porém, qualidade para intervir na ação penal, em nome apenas
4 - Os crimes contra a incolumidade pública não se integram desse isoÍado interesse civil, não coligado, ética e juridicamente, ao poder..
com um evento lesivo, ou, de modo mais completo, o dano resultante
desses crimes é de todo indiferente para a existência mesma do½,crime. ..dever de punir do Estado, exercitado através do processo criminal, com o
O resultado de dano é estranho ao conceito jurídico de tais infrações, objetivo de realizar a Justiça penal.
considerando-se ofensa a simples colocação em perigo de um bem ou 5 - Mais clara se torna a questão quando se trata, como neste
interesse da coletividade. O dano efetivamente causado por esses delitos caso, d incêndio culposo. i\o.; cÚilles culposos o resultado de dano é
é um pius, levado em conta quod poenam, funcionando como circunstân cia culposo e o Código Penal lbe confere relevância jurídica nos crimes d dano,
agravante. nos chamados crimes materiais. Nestes delitos o resultado de dano mtegra
Vale dizer, portanto, que nos crimes de perigo comum o "ofen o fato típico, e o sujeito passivo é, ao mesmo tempo, o ofendido, com
dido" não é aquele que sofreu o dano material eventualmente ocorrido, duplo interesse, civil e criminal.
mas o Estado, titular do bem jurídico "incolumidade pública", pela simples Nos "crimes de perigo" - que assumam as formas de delitos da
exposição a perigo de tal bem. mera conduta ou de crimes formais - o resultado de dano é estranho
E isso que acontece, particularmente, com o crime de incêndio. à figura típica. A exposição do bem ou interesse a perigo consuma o
Analisando a figura do sujeito passivo desta infração, Magalbães Noronha crime. O sujeito passivo é o titular desse bem ou interesse. O resultado de
diz: "Sujeito passivo é a coletividade, o conglomerado social ameaçado em dano é um plus, uma conseqüência do crime, mas o prejudicado não é
sua incolumidade; é, portanto, o Estado." (17) sujeito passivo de infração.
De modo mais claro e objetivo, assim se expressou Maggiore: Isto, porém, não é tudo. Em se tratando de incêudio culp s?,
"Objetividade da incriminação é a necessidade de preservar a convivência o dano patrimonial resultante é igualmente culposo, dando como corolano
civil do perigo de fogo, independentemente do dano que pode resultar para lógico e conclusão de que o dano patrim?nial culposo é p,_to atípico pe1,1al;
a propriedade. Tal característica distingue este delito do crime de dano.
pois o crime de dano, previsto no artigo 163 do Cod1go Penal, so e
Este é um delito típico de lesão ou dano, enquanto que aquele é um crime
exclusivamente de perigo. O dano se constitui aqui uma eventualidade, punível a título de dolo.
estranha à noção do crime." (18) Pergunta-se, então: Se o Estado é o sujeito passivo do crime de
E, para completar bem o pensamento, aduz o 'mesmo autor: "Se incêndio culposo; se o dano patrimonial culposo é resultado atípico penal;
é verdade que o incêndio produz sempre um dano à coisa incendiada, se o prejuízo sofrido pelo prejudicado é de natureza meramente civil,
não é este dano que vem aqui em consideração, mas sim o perigo corrido em nome de que interesse pode o prejudicado pelo dano patrimonial cul
pela incolumidade pública, pela potência de difusão de fogo." (19) poso ingressar na ação penal, para postular a condenação do réu?
Nenhuma dúvida resta, pois, de que o crime de incêndio não se É evidente que a Justiça penal não cuida do "dano patrimonial
integra com o dano que possa resultar do fato ilícito e que é inteiramente culposo". Todos os dias acontecem colisões de veículos no trânsito, dessas
estranho ao conceito do crime. Quem sofre tal dano, evento lesivo concreto, , que fazem resultar apenas danos materiais. Tais fatos, que se referem
não é sujeito passivo da infração, não é o ofendido mas simplesmente o apenas a dano patrimonial culposo, não são objetivados porque não há
prejudicado. crime a considerar, restando ao prejudicado tão-somente a via civil para
Esta conclusão, que é absolutamente jurídica, está arrimada, pedir o ressarcimento do prejuízo,
igualmente, no Direito Penal positivo vigente. O artigo 250 e seus pará Não será diferente a solução, no caso de acidente com vítima
grafos, do Código Penal de 1940, descrevem os fatos típicos constitutivos pessoal, que não seja a proprietária do veículo. A vítima poderá habilitar-se
do crime de incêndio, sem qualquer referência ao dano, pessoal ou patri como Assistente do Ministério Público, mas o proprietário do veículo, sendo
monial, enquanto que o artigo 258, cuidando das formas qualificadas dos apenas prejudicado e não ofendido, não poderá fazê-lo. Nenhum juiz
crimes de perigo comum, destaca o dano pessoal - morte ou lesão corpo criminal deferiria o pedido de Assistência formulado pelo mero prejudicado
ral - como resultado que agrava a pena. pelo dano patrimonial culposo.
Todavia, nenhuma referência faz a lei ao dano patrimonial, e não O simile é perfeito, quando se enfoca o caso concreto de incêndio
é erigido nem mesmo à categoria de agravante qualificadora pelo resultado.
culposo. O terceiro prejudicado pelo dano patrimonial culposo carece de
qualidade para estar no processo penal, na condição de Assistente do
(17) Direito Penal, Ed. Saraiva, São Paulo, 1969, 4.ª ed., 3.0 vol., pág. 346. Ministério Público, porque não é o ofeudido, e o seu interesse, meramente
(18) GIUSEPPE MAGGIORE - Diritto Penale, N. z. Ed., Bolonlla, 1950, voL n, pág. 376.
civil, lbe confere somente o título de parte civil, inadequado, ética e
(19) Op. cit., pág. 376. juridicamente, para o exercício da ação penal, principal ou supletivamente.

- 20 - EM CONCLUSÃO

Quanto à primeira parte:


1.º) Em nosso Direito Processual Penal, a figura do Assistente -21 -
do Ministério Público não se confunde com a do representante da parte
civil, que é desconhecida entre nós.
tada de metade; se resulta morte, é aplicada em dobro. No caso de culpa,
2.º) Não se confundem, também, as figuras do ofendido e do se do fato resulta lesão corporal, a pena aumenta-se de metade; se resulta
prejudicado pelo delito, seudo certo que somente o primdro tem legítimo morte, aplica-se a pena cominada ao homicídio culposo, aumentada de
interesse para habilitar-se como Assistente do Ministério Público. um terço."
3.0 ) O sujeito passivo do crime de incêndio é o Estado. O comportamento acusatório correto, em tese, e segundo o nosso
4. º) O resultado de dano pessoal decorrente do crime de incên dio entendimento doutrinário (sem que tal importe em dizer se a denúncia é
culposo é relevante para o Direito Penal, mas somente quod poenam, procedente ou não, quanto ao mérito), sera denunciar pelo crime de incênm
conforme o disposto no artigo 258 do Código Penal vigente. dio culposo (artigo 250, § 2.0 ) , agravado pelo l."esnltado (artigo 25g) e
concurso de agentes (artigo 25). Estariam assim incluídos os resultados de
5. º) O resultado de dano patrimonial decorrente do crime de dano, consistentes em mortes e lesões corporais, relegada qualquer refe
incêndio culposo é absolutamente irrelevante para o Direito Penal, razão rência ao concurso formal com homicídio e lesões corporais culposas.
pelo qual o prejudicado não tem interesse ético-jurídico para ingressar na
ação penal na qualidade de Assistente do Ministério Público. EM CONCLUSÃO
6. º) A admissão de Joelma S/ A., Importadora e Construtora,
para funcionar como Assistente do Ministério Público, nos autos da ação Quanto à segunda parte.
penal que a Justiça Pública move contra Kiril Petrov e outros, por crime de A capitulação dos fatos descritos na denúncia não nos parece
incêndio culposo, não encontra apoio no Direito e na lei, pois está creden correta, pois agrava indevidamente a situação dos réus, atribuindo-lhes, sem
ciada apenas por um interesse civil, que lhe confere a condição de parte apoio em lei, a prática de crime de incêndio culposo em concurso formal
civil e não de parte penal. com crimes de homicídio culposo e lesões corporais culposas, o que é
6 - A segunda parte da consulta versa a respeito de capitu inadmissível frente ao disposto no artigo 258 do Código Penal vigente.
lação dos fatos delituosos descritos na denúncia, indagando o consulente se
é correta a classificação dada pela denúncia.
A denúncia considerou os réus incursos nos artigos 250, § 2.0 ,
121, §§ 3.º e 4.0 , e 129, § 6. 0 , estes dois últimos artigos combinados com
o artigo 51, § 1.0 , fazendo referência, ainda, ao artigo 25, todos do Código
Penal.
Ora, conforme demonstração feita neste trabalho, o crime de
incêndio é crime de perigo comum, crime contra a incolumidade pública,
que se consuma com a simples exposição a perigo do bem ou interesse
juridicamente tutelado. O resultado é estranho à idéia do delito consumado,
sendo relevante apenas para o conceito de crime exaurido.
Por isso é que o legislador dispensou-se de fazer qualquer refe
rência ao resultado de dano nos tipos fundamentais, levando em conside
ração apenas os danos pessoais - morte e lesões corporais - para quali
ficar, quod poenam, os mesmos tipos fundamentais.
Inexiste possibilidade, portanto, de dar relevância aos danos
pessoais como formas autônomas de crimes, de modo a considerar um
concurso formal de infrações, como fez a denúncia, entre o crime de
incêndio culposo e os de homicídio e de lesões corporais culposas.
A matéria vem explicitamente tratada no artigo 258 do Código
Penal vigente, que dispõe: "Se de crime doloso de perigo comum resulta
lesão corporal de natureza grave, a pena privativa de liberdade é aumen-

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