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Crise do processo penal

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1 - Sumário

1. Há uma crise do processo penal português;

2. Responsáveis pela crise são o legislador, os magistrados e advogados, os professores de direito, os órgãos
de polícia criminal, os jornalistas e, em geral, todos os intervenientes no processo;

3. No essencial, a crise do processo penal é uma crise de identidade dos sujeitos;

4. A lei penal é boa mas carece de ser revista e mesmo reformada;

5. É errada a ideia de que há excesso de garantismo no processo penal português;

6. Uma revisão do processo penal deve incidir, nomeadamente, sobre os regimes jurídicos das escutas, da
prisão preventiva e do segredo de justiça;

7. Uma reforma penal deve orientar-se, no plano substantivo, para a diversificação das penas principais, a
descriminalização de condutas de diminuta ressonância ética e a codificação da legislação extravagante;

8. No plano adjectivo, a reforma penal deve reforçar a “igualdade de armas” entre a acusação e a defesa,
apurar a estrutura acusatória do processo e assumir o princípio da oportunidade, sem prejuízo do primado da
legalidade,

9. Em geral, o desempenho dos profissionais do foro é positivo mas os respectivos processos de recrutamento,
formação e progressão nas carreiras carecem de aperfeiçoamento;

10. As matérias de direito e processo penal constituem questões de cidadania, sendo positivo que todos as
discutam e não podendo o parlamento (que deveria beneficiar de uma reserva de competência legislativa
absoluta e não apenas relativa) eximir-se de proferir sempre a última palavra quanto a elas.

2 – O estado da justiça penal

É verdade que há uma crise do processo penal português. Parafraseando o célebre quadro pós-revolucionário
de Vieira da Silva, pode hoje dizer-se que o processo penal está na rua. E nem sempre isso acontece pelos
melhores motivos – sucedem-se as violações do segredo de justiça e proliferam as declarações contraditórias
de magistrados e advogados sobre processos em curso. Por vezes, o processo penal acaba por se transformar
num verdadeiro duelo mediático.

As responsabilidades pela crise devem ser repartidas com equanimidade: pelo legislador, que a um ritmo quase
mensal e sem sentido sistemático aprova novas leis penais, para alegria de editores e livreiros; pelos
magistrados, que com frequência se esquecem de recorrer à Constituição como parâmetro legitimador do
processo e da aplicação de penas públicas; pelos advogados, que usam por vezes expedientes dilatórios; pelos
professores de direito, que se enclausuram nas suas torres de marfim; pelos polícias, que exacerbam o discurso
“securitário” à Dirty Harry; enfim, pelos jornalistas, que ignoram, por exemplo, que o crime de violação do
segredo de justiça é comum (artigo 371º, nº1, do Código Penal), podendo ser cometido por todos quantos
tiverem acesso a elementos de um processo (artigo 86º, nº4, do Código de Processo Penal), e que a presunção
de inocência não é uma mera figura de retória, implicando o efectivo respeito pela honra e pela consideração
dos arguidos em processos crimes.

No essencial, a crise do processo penal português é uma crise de identidade dos sujeitos. Como é sabido, o nº
5 do artigo 32º da Constituição atribui ao processo penal uma estrutura acusatória (diferentemente do que
sucede com a Constituição para a Europa, que é omissa quanto a esse ponto). Este mandamento constitucional
seria compatível, a meu ver, com duas soluções: um processo acusatório puro, de partes, à americana, ou um
processo acusatório mitigado ou temperado pelo princípio da investigação. O legislador português de 1987
enveredou pelo segundo caminho e, a meu ver, bem: não gostaria de ver o juiz português transformado em
árbitro seráfico de um duelo penal ou de assistir ao primado do júri, incompatível com a nossa tradição jurídica
como a experiência tem demostrado à saciedade, ou ainda à conversão do Ministério Público, defensor da
legalidade democrática e norteado por deveres de objectividade, num implacável caçador de prémios e
negociador de penas nem sempre escrupuloso.

Todavia, o caminho eleito não está isento de dificuldades. Ele é, pelo contrário, fonte de inúmeras
ambiguidades e antinomias. O processo penal português possui estrutura acusatória e está subordinado ao
princípio do contraditório, mas o Ministério Público é o dominus do inquérito e o juiz pode, por sua iniciativa,
determinar a produção ou o debate de quaisquer meios de prova não proibidos que reputar de relevantes. O
nosso processo consagra quase irrestritamente o princípio da legalidade (como afloramentos incipientes da
oportunidade, apenas podemos surpreender o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão
provisória e o processo sumaríssimo, previstos nos artigos 280º, 281º e 392º do Código de Processo Penal) e,
no entanto, são muito elevadas as cifras negras. No processo há sujeitos que não são partes, mas aos quais se
promete igualdade de armas (e isto apesar de um deles ser o titular da acção penal, por força da própria
Constituição – artigo 219º, nº 1).

Estas ambiguidades e antinomias geram contradições estatutárias e funcionais nos sujeitos do processo que
eles só podem superar através de um desempenho excelente. Assim, o arguido pode não ser suspeito sequer,
visto que a constituição de arguido pode ser efectuada por órgão de política criminal – e não apenas pelo
Ministério Público – sem sujeição, por exemplo, a uma exigência de indícios mínimos (artigo 58º, nº 2, do
Código de Processo Penal). Ora, apesar de a constituição de arguido ser condição do exercício de determinados
direitos processuais, como o direito ao silêncio, assim se explicando que uma pessoa possa ser constituída
arguida a seu pedido (artigos 59º, nº 2, e 132º, nº 2, do Código de Processo Penal), o significado
predominante deste acto processual é negativo – dele depende, nomeadamente, a aplicabilidade de medidas de
coacção e garantia patrimonial (incluindo a prisão preventiva) e envolve, para além disso, um notório efeito
estigmatizante.

É insustentável, pois, a leveza deste regime, à luz do qual mal se compreende que titulares de altos cargos
políticos se declarem dispostos a renunciar a eles se forem constituídos arguidos. Aliás, também se não
compreende que o Ministério Público, ao qual a Constituição comete o exercício da acção penal, possa estar
arredado de tão relevante procedimento. Não se compreende e, atrevo-me a dizê-lo, não é compatível com o
disposto no nº 1 do artigo 219º da Constituição, Aliás, o exercício da acção penal não se basta com a abertura
e o encerramento do inquérito, como pode resultar das delegações genéricas de competências do Ministério
Público nos órgãos de polícia criminal (artigo 270º, nº 4, do Código de Processo Penal). Senhores do inquérito,
nestes casos, não serão, afinal, os órgãos de política criminal?
Por seu turno, o juiz de instrução, guardião dos direitos, liberdades e garantias, como prescreve o nº 4 do
artigo 32º da Constituição, transforma-se com frequência num parceiro do Ministério Público. Na fase
facultativa da instrução, o juiz tende a duplicar a actividade do inquérito (artigo 308º, nºs. 1 e 2, do Código de
Processo Penal). Além disso, com óbvio prejuízo da estrutura acusatória, o juiz chega a poder intervir no
julgamento do processo em que antes se decidiu pela aplicação ou manutenção da prisão preventiva – cujo
pressuposto, recorde-se, é a existência de indícios fortes da prática do crime (artigos 40º e 202º, nº 1, do
Código de Processo Penal).

Perante tudo isto, por que razão afirmo eu que a lei penal – incluindo a constitucional, o Código Penal e o
Código de Processo Penal – é boa? Digo-o, sentidamente, porque entendo que consagra os princípios
fundamentais de política criminal impostos pela essencial dignidade da pessoa humana e pelo Estado de direito
democrático – legalidade, necessidade das penas e das medidas de segurança, culpa, igualdade e humanidade
– e assegura um processo justo, tanto quanto possível célere, mas dotado de todas as garantias de defesa
(artigo 32º da Constituição).

Paradoxalmente, porém, esta boa lei penal carece de revisão e mesmo de reforma. Esta lei é, com efeito,
herdeira de uma tradição política, cultural e jurídica em que me revejo – do iluminismo, do liberalismo e da
dogmática romano-germânica –, mas que enfrenta os desafios do “pós-modernismo”. O modelo simplista do
Código Penal, assente apenas em duas penas principais (prisão e multa), não se adequa aos nossos dias. Ele
compreendia-se em contextos históricos em que o valor da liberdade e o desvalor da sua privação possuíam um
significado universal e idêntico em todos os casos ou em que o direito de propriedade superava em importância
certas dimensões da liberdade (direitos cívicos, liberdade de escolha e exercício da profissão ou, na actualidade,
licença de condução de veículos automóveis, por exemplo). Actualmente, importa diversificar as penas
principais, adequando-as aos diversos tipos incriminadores.

Num outro plano, processual, creio que devem ser reforçados os meios de obtenção de consenso em relação
aos crimes menos graves, retirando-se a cabeça da areia, ao proclamar o império inderrogável do princípio da
legalidade em processo penal. Assim, merecem ser reforçados, desde logo, institutos como o arquivamento em
caso de dispensa de pena, a suspensão provisória e o processo sumaríssimo. Parece-me também indispensável
definir a quem compete, num país com cifras negras elevadas e recursos económico-financeiros frugais, como
Portugal, que tipos de crimes é prioritário perseguir em abstracto. Em suma, é necessário “retirar da gaveta” o
princípio da oportunidade.

Grave erro, numa revisão ou reforma penal, seria pressupor o “excesso de garantismo”. Em si mesma, a
expressão encerra, aliás, uma contradictio in terminis. As garantias nunca são excessivas. O seu uso pode, esse
sim, ser exagerado ou abusivo. Mas a boa resposta a situações de abuso não é restrição de garantias, é o
sancionamento do próprio abuso (através, por exemplo, da rejeição liminar de recursos manifestamente
infundados ou da aplicação de multas processuais). Abstraindo desta precisão lógica, não me parece, ainda
assim, que haja “excesso de garantismo”. Pelo contrário, a condução do processo penal permite até
desencadear, em certos casos, um “dominó punitivo” altamente perverso.

Funciona assim o referido dominó: ao abrigo de uma delegação genérica, é um órgão de polícia criminal que
constitui alguém arguido e realiza todos os actos de inquérito; alheado da investigação, o Ministério Público
tenderá a concordar com todos os meios de obtenção de prova e com todas as medidas de coacção ou garantia
patrimonial que lhe forem propostas; o juiz, igualmente estranho ao inquérito, deferirá o que lhe for requerido
e, no caso de crime grave (crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos), aplicará a prisão
preventiva; fundamentando se a prisão preventiva na existência de fortes indícios, o Ministério Público deduzirá
acusação, para a qual se requer a verificação de indícios suficientes (aqueles que ilustram uma probabilidade
predominante de condenação); requerida a instrução pelo arguido, o juiz é “convidado” a pronunciá-lo, uma
vez que o despacho de pronúncia concordante com a acusação é irrecorrível (ao contrário do que sucede
sempre com o despacho de não pronúncia) e poderá apaziguar as suas dúvidas pensando que fica adiada para
a fase de julgamento a avaliação definitiva da responsabilidade; o juiz do julgamento, ciente de que já houve
despachos de vários magistrados que consideraram haver indícios fortes ou suficientes (aplicação e
manutenção da prisão preventiva, acusação e pronúncia), poderá presumir culpado o arguido, invertendo o
princípio da presunção de inocência.
Este retrato a negro propositadamente exagerado destina-se a provar quão equivocadas são as ideias de
“excesso de garantismo”. E errónea é também a perspectiva simplista (para não lhe chamar simplória) segundo
a qual as garantias de defesa são garantias para os “maus”, concedidas em detrimento dos “bons”, isto é, das
vítimas. As garantias são dos cidadãos, de todos os cidadãos, e pretendem evitar, em todos os casos, o arbítrio
e a prepotência e assegurar um processo leal e justo.

Não significa o que afirmei sobre o “dominó sancionatório” que eu creia que o desempenho dos magistrados é,
em geral, negativo. Da experiência recente, destaco apenas três aspectos menos felizes que têm caracterizado
a acção profissional ou pública de alguns magistrados: a ignorância da Constituição como parâmetro
interpretativo da lei penal (que redundou em alguns julgamentos de inconstitucionalidade tirados por
unanimidade pelo Tribunal Constitucional); a proliferação de declarações públicas, não raramente
contraditórias, sobre processos; a emissão de opiniões desabonatórias sobre a política ou os políticos.

A publicitação e a politização do processo penal constituem, de resto, fenómenos ambivalentes. Se as


telenovelas processuais, que recorrem por vezes aos pormenores mais sórdidos a pretexto de hipócritas
intenções pedagógicas, que ignoram o direito ao bom nome e à privacidade e que esmagam positivamente a
presunção de inocência, nada trazem de bom, já as notícias objectivas sobre os processos e os artigos de
opinião informados são de aplaudir. O processo penal não é assunto reservado aos penalistas, é questão de
cidadania. É, de acordo com uma conhecida afirmação, direito constitucional aplicado. Saber se cidadãos não
suspeitos ou arguidos podem ser submetidos a escutas ou se a prisão preventiva pode ser fundamentada na
conduta de pessoas diversas do arguido, por exemplo, é algo que interessa e respeita a todos os cidadãos e
que compete à Assembleia da República decidir.

3 – A revisão do processo penal

Em que aspectos é indispensável modificar a lei penal? No quadro de uma revisão pontual, a aprovar a curto
prazo, que regimes devem ser alterados?

Creio, em primeiro lugar, que deve ser clarificado o regime das “escutas”, de forma a tornar claro que apenas
os arguidos e suspeitos (incluindo comparticipantes no crime a qualquer título e ainda encobridores e
receptadores, que no Código Penal de 1852/86 eram também considerados comparticipantes e agora são
puníveis pelos crimes autónomos previstos nos artigos 367 e 231º, respectivamente, do Código Penal) podem
ser sujeitos a esse meio de obtenção de prova. Uma tal clarificação é imposta pelo entendimento, que tem
vindo a ser defendido e acolhido judicialmente, segundo o qual as “escutas” podem ser dirigidas a quaisquer
cidadãos, ainda que não arguidos nem suspeitos, contanto que isso seja útil para a descoberta da verdade. E
este entendimento resulta de o Código de Processo Penal apenas restringir a possibilidade de “escutas” em
função da gravidade dos crimes e só proibir, em regra, a intercepção de comunicações entre o arguido e o seu
defensor (artigo 187º).

É de notar, porém, que a proibição de “escutar” o defensor não prova, a contrário, que quaisquer outras
pessoas possam ser colocadas sob “escuta”. Aquela proibição abarca todas as comunicações do defensor com o
arguido. Dela apenas se pode inferir que as comunicações entre o arguido e outras pessoas quaisquer podem
ser interceptadas – mas não que o possam ser as comunicações de outras pessoas entre si.

Como já tive oportunidade de afirmar noutro contexto, a afirmação de que quaisquer pessoas podem ser
colocadas sob “escuta” esquece o sentido essencial da restrição das “escutas” ao processo penal e da
necessidade de mandado de juiz (artigos 34º, nº 4, e 32º, nº 4, da Constituição), ignora a exigência de
máxima contenção das limitações a direitos fundamentais como a reserva da vida privada (artigos 18º e 26º da
Constituição) e reconduz o processo penal a um universo orwelliano onde todos são investigados. De todo o
modo, é à Assembleia da República que compete definir, com a máxima clareza, o âmbito das escutas
telefónicas. Perante as dúvidas suscitadas, importa clarificar o regime.

Também em relação aos requisitos das medidas de coacção (artigo 204º do Código de Processo Penal) se
impõe uma intervenção clarificadora, pela qual se determine que o perigo de perturbação do decurso do
inquérito ou de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas se há de dever a condutas do arguido. Na
verdade, nas situações em que o arguido se não possa considerar conivente, a título nenhum, com tal
perturbação, “castigá lo” por condutas alheias (e a medida de coacção é uma sanção em sentido amplo)
contraria o carácter pessoal da responsabilidade e viola, em última análise, o princípio da essencial dignidade
da pessoa humana (artigo 1º da Constituição).

Aparentemente escusada, mas recomendável à luz de algumas interpretações jurisprudenciais surpreendentes,


é igualmente uma explicitação do regime de reexame dos pressupostos da prisão preventiva (artigo 213º do
Código de Processo Penal) pela qual se esclareça que a possibilidade de a medida de coacção ser revista
oficiosamente antes de decorrido o prazo de três meses assenta na hipótese da sua revogação ou alteração.
Uma tal explicitação tornará finalmente claro que não é possível antecipar o reexame, por exemplo, por razões
de calendário judicial.

Já fora do âmbito das intervenções clarificadoras, mas ainda no domínio da prisão preventiva, julgo que são
excessivos e merecem ser revistos os prazos máximos da sua duração, que se estendem de seis meses a
quatro anos e meio, se bem que esta última hipótese se refira apenas a procedimentos excepcionalmente
complexos e relativos a crimes especialmente graves, nos quais já haja sido proferida sentença condenatória e
haja recurso, por exemplo, para o Tribunal Constitucional (artigo 215º, nº 4, do Código de Processo Penal).

Prazos tão longos são dificilmente conciliáveis com uma Ordem Jurídica que apenas admite que a prisão
preventiva (ultima ratio das medidas de coacção por força do artigo 28º, nº 2, da Constituição) seja aplicada se
houver fortes indícios da prática do crime [artigo 202º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal]. É claro
que o caminho a percorrer entre a recolha destes fortes indícios e a documentação dos “indícios suficientes”, de
que depende a dedução de acusação pelo Ministério Público e que prenunciam uma possibilidade razoável de
condenação (artigo 283º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal), não pode ser tão longo que justifique prazos
muito dilatados de prisão preventiva até ao termo do inquérito.

Esse percurso deve servir ainda para recortar com maior nitidez o objecto do processo (visto que não pode, em
princípio, haver alteração substancial de factos na fase de julgamento, por força do artigo 359º do Código de
Processo Penal) e até para permitir à defesa que infirme os indícios recolhidos, evitando um julgamento inútil e
estigmatizante. Todavia, a sua extensão excessiva é um convite à aplicação prematura e generalizada da prisão
preventiva e ao arrastamento injustificado do inquérito.

Ainda no âmbito da prisão preventiva, não se afiguram dignas de um Estado de direito democrático e de justiça
normas como as contidas nos nºs 1 e 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal, que restringem a
indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade aos casos em que a prisão foi manifestamente
ilegal ou se verificou erro grosseiro na avaliação dos respectivos pressupostos. Então é admissível que um
comprovado inocente, que foi sujeito a prisão preventiva em homenagem às necessidades de prevenção da
criminalidade, nem sequer beneficie do direito a uma indemnização, mesmo que não tenha dado causa em
sentido algum à aplicação dessa medida de coacção?

Num outro domínio, o segredo de justiça carece de revisão, de modo a que se obtenha uma concordância
prática entre a necessidade de preservar a investigação e as garantias da defesa. Na verdade, tal como tem
sustentado a jurisprudência do Tribunal Constitucional (desde o Acórdão nº 121/97, D.R., II Série, de 30 de
Abril), não pode ser completamente denegado ao arguido o acesso aos autos, inviabilizando a impugnação da
prisão preventiva. Mas sendo inconstitucional uma tal interpretação dos artigos 86º, nº 1, e 89º, nº 2, do
Código de Processo Penal, é desejável que o legislador formule, no mínimo, um critério do qual se infira em que
medida deve ser concedido, caso a caso, o acesso aos autos em homenagem às garantias de defesa.

Sem pôr em causa a investigação, julgo que se deve restringir o âmbito do segredo de justiça, tendo em conta
que em determinados processos (por exemplo, relativos a abuso da liberdade de imprensa) ou certos actos
processuais (acórdãos proferidos por tribunais superiores quanto a matérias de direito) ele não se justifica. E
tão pouco se justifica que o segredo se estenda para além da acusação – na instrução, o processo deve tornar-
se público.

Por fim, em matéria de imunidades e foro especial para titulares de cargos políticos, também são
recomendáveis alterações pontuais, tendo sempre presente que tais regimes não correspondem a privilégios,
constituindo antes um corolário racional do princípio da separação e interdependência de poderes. Nesta
perspectiva, justifica se a atribuição de um foro especial não só para o Presidente da República, o Presidente da
Assembleia da República e o Primeiro Ministro – que respondem perante o Supremo Tribunal de Justiça, ex vi
do artigo 11º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal - mas também para os restantes membros do
Governo e deputados. Estes poderiam ser julgados pelas Relações (perante as quais correriam os respectivos
inquéritos e instruções).

4 – A reforma penal

Todavia, a médio prazo justifica se uma verdadeira reforma penal e não apenas o conjunto de alterações
pontuais do Código de Processo Penal a que fiz referência. No âmbito do processo penal, uma reforma deve
orientar se principalmente para o aperfeiçoamento da estrutura acusatória e para a clarificação do papel dos
sujeitos, numa perspectiva funcional.

Em primeiro lugar, sem pôr em causa o primado da legalidade e da oficialidade (nos termos dos quais o
Ministério Público deve, em regra, instaurar um processo sempre que adquire a notícia de um crime), não se
deve continuar a dissimular o princípio da oportunidade. Para além de reforçar os institutos do arquivamento
em caso de dispensa de pena, da suspensão provisória e do processo sumaríssimo – e porventura criar outros
com um sentido idêntico - , deve pôr se termo à indefinição reinante no que respeita à repartição de
competências entre a Assembleia da República, o Governo e o Ministério Público, em matéria de definição e
execução da política criminal e determinar a quem compete estabelecer que crimes é prioritário perseguir.

Por outro lado, parecendo me adequada a configuração do Ministério Público como magistratura autónoma,
vinculada à legalidade democrática e responsável pelo exercício da acção penal, merece ser reforçado o seu
senhorio do inquérito. A constituição de arguido deve ser sempre efectuada pelo Ministério Público. É de afastar
a possibilidade de delegações genéricas de competências (artigo 270º, nº 4, do Código de Processo Penal).
Conviria, por fim, prever um debate instrutório obrigatório nos casos de crimes particulares em que o Ministério
Público não acompanhe a acusação particular, para evitar a “privatização” do processo penal (privatização
inadmissível quando expansiva da responsabilidade).

Para apurar a estrutura acusatória do processo penal, a fase de instrução, de natureza facultativa, deve ser
reduzida a um debate instrutório em que vigorem plenamente a publicidade e o contraditório. Mas importa
contemplar, em todos os casos, a recorribilidade do despacho de pronúncia para assegurar a efectiva
“igualdade de armas”. Por fim, o juiz que aplique ou (e não “e”, como prevê o artigo 40º do Codigo de Processo
Penal) mantenha a prisão preventiva deve ser impedido de intervir ulteriormente nas fases de julgamento ou
recurso.

Uma reforma do sistema deve estender se igualmente ao direito penal substantivo, promovendo a
diversificação das penas principais, reservando a pena de prisão aos casos mais graves do direito penal de
justiça ou de alteração do Estado de direito democrático, excluindo do âmbito do direito penal condutas dotadas
de reduzida ressonância ética e contendo a proliferação da legislação avulsa.

Tal como referi, apesar de o Código Penal de 1982 e a Reforma de 1995 terem introduzido na nossa Ordem
Jurídica várias alternativas à pena de prisão, incluindo o muito celebrado e presumivelmente ressocializador
trabalho a favor da comunidade (artigo 58º do Código Penal), mantém se o primado da prisão e da multa. Em
todas as normas da Parte Especial o legislador comina penas simples de prisão, penas compósitas alternativas
de prisão ou multa ou, muito raramente, penas simples de prisão (por exemplo, no artigo 366º, nº 2, do
Código Penal).
Deste modo, enquanto os crimes são tipificados na Parte Especial, as penas são estritamente previstas na Parte
Geral, num plano abstracto, com prejuízo da adequação aos diversos tipos de crimes. Ora, seria conveniente,
desde logo, que certas penas acessórias (proibição de conduzir, proibição de exercício de actividade, função ou
profissão, proibição de ser titular de cargos políticos ou públicos) fossem concebidas como penas principais para
determinados crimes (porque só assim podem ser aplicadas autonomamente). Seria recomendável, em suma,
passar a tratar as penas como questão da Parte Especial do Código Penal, diversificando as e adequando as aos
vários tipos incriminadores.

Este propósito não esquece o papel insubstituível que a pena de prisão ainda hoje desempenha. Contudo, essa
pena deve ser reservada para os casos mais graves e não utilizada, sem critério, quanto a crimes de menor
gravidade ou no âmbito do direito penal secundário.

No que respeita aos limites da intervenção penal, é necessário contrariar as tendências hipercriminalizadoras,
resultem elas do dogmatismo moral ou de critérios predominantemente políticos. Encarem se, entre muitos
exemplos possíveis de criminalizações discutíveis de condutas destituídas da indispensável ressonância ética, os
crimes de “violação de normas de execução orçamental” [artigo 14º, alíneas a) e b), da Lei nº 34/87, de 16 de
Julho] ou de “peculato de uso”, assim impropriamente chamado quando consiste em o titular de cargo político
ou o funcionário darem a dinheiro público um destino para uso público diferente daquele a que estiver
legalmente afectado (artigos 21º, nº 2, da mesma lei e 376º, nº 2, do Código Penal).

Nestas situações, o legislador foi longe de mais na criminalização. De acordo com as intuições éticas comuns,
há uma diferença essencial entre a violação de regras de contabilidade ou de finanças públicas (que, é certo,
pode ser severamente sancionada nos planos político, disciplinar e contra ordenacional) e o aproveitamento
privado de dinheiros públicos. Confundir os dois planos é descaracterizar o direito penal e des legitimar a sua
intervenção.

Também a tendência para a aprovação de legislação extravagante merece ser reprimida. Presentemente, todas
as editoras reeditam anualmente (e com versões ampliadas) os Códigos Penal e de Processo Penal. Os meios de
repressão e de obtenção de prova mais gravosos (combate ao terrorismo e acções encobertas, por exemplo)
estão hoje previstos em legislação avulsa. A pretexto da luta contra a criminalidade organizada e o terrorismo,
o direito penal secundário está a transmutar se num direito penal de primeira importância (um direito penal
mais agressivo, para “inimigos”), relegando para segundo plano o direito penal primário ou de justiça (o direito
penal dos homicídios, das ofensas graves, das violações, dos sequestros e dos roubos, à luz do qual se formou
o conceito material de crime).

A este nível, a actividade legislativa deve ser antecedida de juízos sobre a conformidade constitucional, a
coerência com o sistema penal no seu conjunto e a efectiva necessidade de aprovação de medidas avulsas.
Além disso, o desenvolvimento legislativo e o labor doutrinário apontam hoje para a conveniência da
codificação do direito penal secundário.

Uma outra dimensão nuclear da reforma respeita ao recrutamento, promoção e acesso de magistrados a
tribunais superiores.

No domínio do recrutamento, não se pode ignorar que os magistrados são titulares de órgãos de soberania –
dizem o direito em nome do povo – e os magistrados do Ministério Público exercem o poder punitivo em nome
do Estado. Tratar o recrutamento de uns e outros como se se tratasse de meros “técnicos superiores” é um
grave erro. Uma escolha mais ponderada pressupõe curriculum vitae e experiência jurídica anterior. Por outro
lado, embora nem sempre a sensatez e a idade andem de mãos dadas, penso que seria aconselhável que não
se tivesse a responsabilidade de aplicar penas ou medidas de segurança antes dos 35 anos. É certo que há
pessoas com menos de 30 anos extremamente maduras, mas essas mesmas pessoas (único termo de
comparação sério) possuirão um grau mais elevado de maturidade com 35 anos e uma experiência profissional
bem sucedida noutra carreira jurídica.
Na formação dos magistrados – e também dos advogados – creio que se deve evitar uma pura duplicação do
ensino universitário. Para além dos conhecimentos jurídicos (no âmbito dos quais deve ser reforçada a
aprendizagem de direito constitucional), seria conveniente promover o ensino da ética (pura e aplicada) e de
ciências auxiliares do direito (indispensáveis, por exemplo, para acompanhar a investigação criminal). Uma
formação parcialmente comum entre magistrados e advogados – que poderia ser concretizada mediante a
colaboração entre o Centro de Estudos Judiciários e a Ordem dos Advogados – seria útil para aumentar a
compreensão entre os profissionais do foro.

Por último, em relação ao acesso aos tribunais superiores, é de instituir a regra de prestação de provas públicas
(e não apenas avaliação do desempenho). Essas provas contribuiriam para consolidar o prestígio dos tribunais
superiores e para os legitimar como órgãos de soberania. Essencial é, também, o acesso de juristas de mérito a
esses tribunais, para evitar que a magistratura judicial se torne um órgão de poder autopoiético, imune à
renovação e reprodutivo de defeitos.

5 – O método a seguir

Para terminar, impõem-se algumas considerações breves sobre o método a seguir numa revisão e numa
reforma.

Uma revisão pontual do Código de Processo Penal deve ser inteiramente configurada pela Assembleia da
República. É óbvio que os redactores das normas não são obrigatoriamente deputados. Todavia, é o Parlamento
o responsável por definir claramente, por exemplo, em que condições pode haver escutas, ser aplicada a prisão
preventiva ou ser levantado o segredo de justiça, depois de ouvir “teóricos” e “práticos” do direito.

Já num processo de reforma o método a seguir é mais complexo. Penso que o Parlamento pode traçar
orientações gerais – por exemplo sobre diversificação de penas, consagração de um princípio da oportunidade
mitigado ou apuramento da estrutura acusatória –, que deverão ser concretizadas por uma comissão. No final,
deve controlar criteriosamente os resultados.

No processo de reforma devem intervir representantes de todas as profissões forenses – juízes, magistrados do
Ministério Público e advogados –, professores de direito, órgãos de polícia criminal e representantes dos
partidos com assento na Assembleia da República. Uma reforma em que participe um conjunto reduzido de
pessoas, por mais competentes que sejam, não conseguirá responder às necessidades de mudança. Para
empreender a reforma não se aconselha pressa mas recomenda se que uma “Grande Comissão” inicie já um
trabalho, porventura moroso, que prepare o direito penal português para os desafios que se perfilam no
horizonte.

Rui Pereira – Advogado (com inscrição suspensa)

Professor Universitário Convidado

Membro do Conselho Superior do Ministério Público

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