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Manual de

Processo Penal
volume único
Renato
Brasileiro
de Lima

9ª revista
atualizada
edição ampliada

2021
TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

TÍTULO

1
NOÇÕES
INTRODUTÓRIAS

1. INTRODUÇÃO para a resolução da causa, sendo admitida a solu-


Quando o Estado, por intermédio do Poder Le- ção consensual em infrações de menor gravidade,
gislativo, elabora as leis penais, cominando sanções mediante supervisão jurisdicional, privilegiando-se,
àqueles que vierem a praticar a conduta delituosa, assim, a vontade das partes e, principalmente, do
surge para ele o direito de punir os infratores num autor do fato que pretende evitar os dissabores do
plano abstrato, genérico e impessoal, e, para o par- processo e o risco da condenação.
ticular, o dever de se abster de praticar a infração É exatamente daí que sobressai a importância
penal. A partir do momento em que alguém pratica a do processo penal, pois este funciona como o ins-
conduta delituosa prevista no tipo penal, este direito trumento do qual se vale o Estado para a imposição
de punir desce do plano abstrato e se transforma no de sanção penal ao possível autor do fato delituoso.
ius puniendi in concreto. Mas o Estado não pode punir de qualquer ma-
Surge, então, a pretensão punitiva, a ser com- neira. Com efeito, considerando-se que, da aplicação
preendida como o poder do Estado de exigir de do direito penal pode resultar a privação da liberdade
quem comete um delito a submissão à sanção pe- de locomoção do agente, entre outras penas, não se
nal. Através da pretensão punitiva, o Estado procura pode descurar do necessário e indispensável respeito
tornar efetivo o ius puniendi, exigindo do autor do a direitos e liberdades individuais que tão caro cus-
delito, que está obrigado a sujeitar-se à sanção penal, taram para serem reconhecidos e que, em verdade,
o cumprimento dessa obrigação, que consiste em condicionam a legitimidade da atuação do próprio
sofrer as consequências do crime e se concretiza no aparato estatal em um Estado Democrático de Direi-
dever de abster-se ele de qualquer resistência contra to. Na medida em que a liberdade de locomoção do
os órgãos estatais a que cumpre executar a pena. cidadão funciona como um dos dogmas do Estado
Todavia, esta pretensão punitiva não pode ser de Direito, é intuitivo que a própria Constituição
voluntariamente resolvida sem um processo, não po- Federal estabeleça regras de observância obrigatória
dendo nem o Estado impor a sanção penal, nem o em um processo penal. É a boa (ou má) aplicação
infrator sujeitar-se à pena. Em outras palavras, essa desses direitos e garantias que permite, assim, avaliar
pretensão já nasce insatisfeita. Afinal, o Direito Penal a real observância dos elementos materiais do Estado
não é um direito de coação direta. Apesar de o Esta- de Direito e distinguir a civilização da barbárie.
do ser o titular do direito de punir, não se admite a De fato, como adverte Norberto Bobbio, a pro-
imposição imediata da sanção sem que haja um pro- teção do cidadão no âmbito dos processos estatais é
cesso regular, assegurando-se, assim, a aplicação da justamente o que diferencia um regime democrático
lei penal ao caso concreto, consoante as formalidades daquele de índole totalitária. Na dicção do autor, “a
prescritas em lei, e sempre por meio dos órgãos ju- diferença fundamental entre as duas formas anti-
risdicionais (nulla poena sine judicio). Aliás, até mes- téticas de regime político, entre a democracia e a
mo nas hipóteses de infrações de menor potencial ditadura, está no fato de que somente num regime
ofensivo, em que se admite a transação penal, com a democrático as relações de mera força que subsistem,
imediata aplicação de penas restritivas de direitos ou e não podem deixar de subsistir onde não existe Es-
multas, não se trata de imposição direta de pena. Uti- tado ou existe um Estado despótico fundado sobre o
liza-se, na verdade, de forma distinta da tradicional direito do mais forte, são transformadas em relações
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de direito, ou seja, em relações reguladas por nor- nem sequer seria concebível em virtude da falta de
mas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, contraposição entre acusação e defesa. Ademais, ge-
preestabelecidas, de tal forma que não podem valer ralmente o acusado permanecia encarcerado pre-
nunca retroativamente. A consequência principal ventivamente, sendo mantido incomunicável.
dessa transformação é que nas relações entre cida- No sistema inquisitório, não existe a obriga-
dãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de toriedade de que haja uma acusação realizada por
guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima órgão público ou pelo ofendido, sendo lícito ao
‘Tem razão quem vence’ é substituído pelo direito de juiz desencadear o processo criminal ex officio. Na
paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima mesma linha, o juiz inquisidor é dotado de ampla
‘Vence quem tem razão’; e o direito público externo, iniciativa probatória, tendo liberdade para deter-
que se rege pela supremacia da força, é substituído minar de ofício a colheita de provas, seja no curso
pelo direito público interno, inspirado no princípio das investigações, seja no curso do processo penal,
da ‘supremacia da lei’ (rule of law)”.1 independentemente de sua proposição pela acusa-
É esse, pois, o grande dilema existencial do pro- ção ou pelo acusado. A gestão das provas estava
cesso penal: de um lado, o necessário e indispensá- concentrada, assim, nas mãos do juiz, que, a partir
vel respeito aos direitos fundamentais; do outro, o da prova do fato e tomando como parâmetro a lei,
atingimento de um sistema criminal mais operante e podia chegar à conclusão que desejasse.
eficiente.2 É dentro dele que se buscará, ao longo da Trabalha-se com a premissa de que a atividade
presente obra, um ponto de equilíbrio no estudo do probatória tem por objetivo uma completa e ampla
processo penal, pois somente assim serão evitados reconstrução dos fatos, com vistas ao descobrimento
os extremos do hipergarantismo e de movimentos da verdade. Considera-se possível a descoberta de
como o do Direito Penal do Inimigo ou do Direito uma verdade real, absoluta, por isso admite uma
Penal da Lei e da Ordem. ampla atividade probatória, quer em relação ao ob-
jeto do processo, quer em relação aos meios e méto-
2. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
dos para a descoberta da verdade. Dotado de amplos
2.1. Sistema inquisitório poderes instrutórios, o magistrado pode proceder a
uma completa investigação do fato delituoso.
Adotado pelo Direito canônico a partir do sé-
culo XIII, o sistema inquisitório posteriormente se Em tal sistema, o acusado é mero objeto do
propagou por toda a Europa, sendo empregado in- processo, não sendo considerado sujeito de direi-
clusive pelos tribunais civis até o século XVIII. Típi- tos. Na busca da verdade material, admitia-se que
co dos sistemas ditatoriais, tem como característica o acusado fosse torturado para que uma confissão
principal o fato de as funções de acusar, defender e fosse obtida. O processo inquisitivo era, em regra,
julgar encontrarem-se concentradas em uma única escrito e sigiloso, mas essas formas não lhe eram
pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acu- essenciais. Pode se conceber o processo inquisi-
sador, chamado de juiz inquisidor. tivo com as formas orais e públicas.
Essa concentração de poderes nas mãos do juiz Como se percebe, há uma nítida conexão en-
compromete, invariavelmente, sua imparcialidade. tre o processo penal e a natureza do Estado que o
Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado institui. A característica fundamental do processo
psicologicamente ao resultado da demanda, perden- inquisitório é a concentração de poderes nas mãos
do a objetividade e a imparcialidade no julgamento. do juiz, aí chamado de inquisidor, à semelhança
Nesse sistema, não há falar em contraditório, o qual da reunião de poderes de administrar, legislar e
julgar nas mãos de uma única pessoa, de acordo
com o regime político do absolutismo.
1. BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Tradução de João
Em síntese, podemos afirmar que o sistema in-
Ferreira; revisão técnica Gilson César Cardoso. 4ª ed. Brasília: Editora Uni- quisitório é um sistema rigoroso, secreto, que adota
versidade de Brasília, 1999, p. 96-97. ilimitadamente a tortura como meio de atingir o es-
2. Na linha do ensinamento de Antônio Scarance Fernandes, o vocá- clarecimento dos fatos e de concretizar a finalidade
bulo eficiência aqui empregado “é usado de forma ampla, sendo afasta-
da, contudo, a ideia de eficiência medida pelo número de condenações. do processo penal. Nele, não há falar em contradi-
Será eficiente o procedimento que, em tempo razoável, permita atingir tório, pois as funções de acusar, defender e julgar
um resultado justo, seja possibilitando aos órgãos da persecução penal
agir para fazer atuar o direito punitivo, seja assegurando ao acusado as
estão reunidas nas mãos do juiz inquisidor, sendo o
garantias do processo legal”. (Sigilo no processo penal: eficiência e garan- acusado considerado mero objeto do processo, e não
tismo. Coordenação Antônio Scarance Fernandes, José Raul Gavião de sujeito de direitos. O magistrado, chamado de inqui-
Almeida, Maurício Zanoide de Moraes. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2008. p. 10). sidor, era a figura do acusador e do juiz ao mesmo
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TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

tempo, possuindo amplos poderes de investigação Mas esta mera separação das funções de acusar
e de produção de provas, seja no curso da fase in- e julgar não basta para a caracterização do sistema
vestigatória, seja durante a instrução processual.3 acusatório, porquanto a imparcialidade do magis-
Por essas características, fica evidente que o trado não estará resguardada enquanto o juiz não
processo inquisitório é incompatível com os direitos for estranho à atividade investigatória e instrutória.
e garantias individuais, violando os mais elementa- Com efeito, de nada adianta a existência de pessoas
res princípios processuais penais. Sem a presença de diversas no exercício das funções do magistrado e
um julgador equidistante das partes, não há falar em do órgão estatal de acusação se, na prática, há, por
imparcialidade, do que resulta evidente violação à parte daquele, uma usurpação das atribuições deste,
Constituição Federal e à própria Convenção Ameri- explícita ou implicitamente, a exemplo do que ocor-
cana sobre Direitos Humanos (CADH, art. 8º, nº 1). re quando o magistrado requisita a instauração de
um inquérito policial, dá início a um processo penal
2.2. Sistema acusatório de ofício (processo judicialiforme), produz provas
De maneira diversa, o sistema acusatório carac- e decreta prisões cautelares sem requerimento das
teriza-se pela presença de partes distintas, contra- partes, etc.
pondo-se acusação e defesa em igualdade de condi- Portanto, quanto à iniciativa probatória, o juiz
ções, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira não pode ser dotado do poder de determinar de
equidistante e imparcial.4 Historicamente, tem como ofício a produção de provas, já que estas devem ser
suas características a oralidade e a publicidade, nele fornecidas pelas partes, prevalecendo o exame di-
se aplicando o princípio da presunção de inocência. reto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob
Logo, a regra era que o acusado permanecesse solto o ponto de vista probatório, aspira-se uma posição
durante o processo. Não obstante, em várias fases de passividade do juiz quanto à reconstrução dos
do Direito Romano, o sistema acusatório foi escrito fatos. A gestão das provas é, portanto, função das
e sigiloso. partes, cabendo ao juiz um papel de garante das
Chama-se “acusatório” porque, à luz deste regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades
sistema, ninguém poderá ser chamado a juízo fundamentais. Diversamente do sistema inquisitó-
sem que haja uma acusação, por meio da qual o rio, o sistema acusatório caracteriza-se por gerar um
fato imputado seja narrado com todas as suas cir- processo de partes, em que autor e réu constroem
cunstâncias. Daí, aliás, o porquê da existência do através do confronto a solução justa do caso penal.
próprio Ministério Público como titular da ação Segundo Ferrajoli, são características do sis-
penal pública. Ora, se é natural que o acusado te- tema acusatório a separação rígida entre o juiz e
nha uma tendência a negar sua culpa e sustentar acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a pu-
sua inocência, se acaso não houvesse a presença blicidade e a oralidade do julgamento. Lado outro,
de um órgão acusador, restaria ao julgador o papel são tipicamente próprios do sistema inquisitório a
de confrontar o acusado no processo, fulminando iniciativa do juiz em campo probatório, a dispari-
sua imparcialidade. Como corolário, tem-se que dade de poderes entre acusação e defesa e o caráter
o processo penal se constitui de um actum trium escrito e secreto da instrução.5
personarum, integrado por sujeitos parciais e um O sistema acusatório vigorou durante quase
imparcial – partes e juiz, respectivamente. Somente toda a Antiguidade grega e romana, bem como na
assim será possível preservar o juiz na condição Idade Média, nos domínios do direito germano. A
de terceiro desinteressado em relação às partes, partir do século XIII entra em declínio, passando a
estando alheio aos interesses processuais. ter prevalência o sistema inquisitivo. Atualmente, o
processo penal inglês é aquele que mais se aproxima
de um sistema acusatório puro.
Pelo sistema acusatório, acolhido de forma explí-
3. Como observa GIACOMOLLI (O devido processo penal: abordagem cita pela Constituição Federal de 1988 (CF, art. 129,
conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª ed. São Paulo: Atlas, inciso I), que tornou privativa do Ministério Público
2016. p. 90), “verifica-se um ‘donismo’ processual sem precedentes, endo
e extraprocessuais: o processo é meu, o promotor é meu, o estagiário é a propositura da ação penal pública, a relação proces-
meu, o servidor é meu, o carro é meu, eu sou eu, eu e eu. Então, eu posso sual somente tem início mediante a provocação de
investigar, eu posso acusar, eu posso julgar, recorrer e executar a sanção.
Nesse modelo, confundem-se as funções dos agentes do Estado-Julgador
pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva
com os do Estado-Acusador e com os do Estado-Investigador”
4. Nesse sentido: PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade
constitucional das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora 5. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed.
Lumen Juris, 2005. p. 114. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 518.
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MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

(ne procedat judex ex officio), e, conquanto não retire Sistema Inquisitório Sistema Acusatório
do juiz o poder de gerenciar o processo mediante o
exercício do poder de impulso processual, impede Como se admite o princípio O princípio da verdade real
que o magistrado tome iniciativas que não se alinham da verdade real, o acusado é substituído pelo princípio
não é sujeito de direitos, da busca da verdade, deven-
com a equidistância que ele deve tomar quanto ao
sendo tratado como mero do a prova ser produzida
interesse das partes. Deve o magistrado, portanto, objeto do processo, daí por com fiel observância ao con-
abster-se de promover atos de ofício na fase investi- que se admite inclusive a tor- traditório e à ampla defesa;
gatória e na fase processual, atribuição esta que deve tura como meio de se obter a
ficar a cargo das autoridades policiais, do Ministério verdade absoluta;
Público e, no curso da instrução processual penal,
Gestão da prova: o juiz in- Gestão da prova: recai pre-
das partes. É exatamente nesse sentido, aliás, o art. quisidor é dotado de am- cipuamente sobre as partes.
3º-A do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19 (Pacote pla iniciativa acusatória e Na fase investigatória, o juiz
Anticrime), segundo o qual “o processo penal terá probatória, tendo liberdade só deve intervir quando pro-
estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na para determinar de ofício vocado, e desde que haja
fase de investigação e a substituição da atuação pro- a colheita de elementos in- necessidade de intervenção
batória do órgão de acusação”.6 formativos e de provas, seja judicial. Durante a instru-
no curso das investigações, ção processual, prevalece o
Como se percebe, o que efetivamente diferencia seja no curso da instrução entendimento de que o juiz
o sistema inquisitório do acusatório é a posição dos processual; tem certa iniciativa proba-
sujeitos processuais e a gestão da prova. O modelo tória, podendo determinar
acusatório reflete a posição de igualdade dos su- a produção de provas de
jeitos, cabendo exclusivamente às partes a produ- ofício, desde que o faça de
ção do material probatório e sempre observando maneira subsidiária;
os princípios do contraditório, da ampla defesa, da A concentração de poderes A separação das funções e
publicidade e do dever de motivação das decisões nas mãos do juiz e a inicia- a iniciativa probatória resi-
judiciais. Portanto, além da separação das funções tiva acusatória dela decor- dual restrita à fase judicial
de acusar, defender e julgar, o traço peculiar mais rente é incompatível com a preserva a equidistância que
garantia da imparcialidade o magistrado deve tomar
importante do sistema acusatório é que o juiz não
(CADH, art. 8º, § 1º) e com quanto ao interesse das par-
é, por excelência, o gestor da prova. o princípio do devido pro- tes, sendo compatível com a
Em síntese, pode-se trabalhar com o seguinte cesso legal. garantia da imparcialidade e
quadro comparativo entre os dois sistemas: com o princípio do devido
processo legal.

Sistema Inquisitório Sistema Acusatório


Não há separação das fun- Separação das funções de 2.3. Sistema processual misto ou francês
ções de acusar, defender e acusar, defender e julgar. Após se disseminar por toda a Europa a partir
julgar, que estão concentra- Por consequência, caracteri- do século XIII, o sistema inquisitório passa a sofrer
das em uma única pessoa, za-se pela presença de partes
que assume as vestes de um distintas (actum trium per-
alterações com a modificação napoleônica, que ins-
juiz inquisidor; sonarum), contrapondo-se tituiu o denominado sistema processual misto. Tra-
acusação e defesa em igual- ta-se de um modelo novo, funcionando como uma
dade de condições, sobre- fusão dos dois modelos anteriores, que surge com o
pondo-se a ambas um juiz, Code d’Instruction Criminelle francês, de 1808. Por
de maneira equidistante e isso, também é denominado de sistema francês.
imparcial;
É chamado de sistema misto porquanto abrange
duas fases processuais distintas: a primeira fase é
tipicamente inquisitório, destituída de publicida-
de e ampla defesa, com instrução escrita e secreta,
sem acusação e, por isso, sem contraditório. Sob o
comando do juiz, são realizadas uma investigação
preliminar e uma instrução preparatória, objeti-
vando-se apurar a materialidade e a autoria do fato
delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o
órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defen-
6. O art. 3º-A do CPP será objeto de análise mais detalhada no próximo de e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade,
título – “Juiz das Garantias” –, para onde remetemos o leitor.
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TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

a oralidade, a isonomia processual e o direito de da Constituição Federal, que prevê, em tese, a pos-
manifestar-se a defesa depois da acusação. sibilidade de prisão civil do devedor de alimentos
Quando o Código de Processo Penal entrou e do depositário infiel, a Suprema Corte entendeu
em vigor, prevalecia o entendimento de que o que a circunstância de o Brasil haver subscrito o
sistema nele previsto era misto. A fase inicial da Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a
persecução penal, caracterizada pelo inquérito prisão civil por dívida ao descumprimento inescu-
policial, era inquisitório. Porém, uma vez iniciado sável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à
o processo, tínhamos uma fase acusatória. Porém, inexistência de balizas visando à eficácia do art. 5º,
com o advento da Constituição Federal, que prevê LXVII, da Carta Magna. Logo, com a introdução do
de maneira expressa a separação das funções de aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional,
acusar, defender e julgar, estando assegurado o restaram derrogadas as normas estritamente legais
contraditório e a ampla defesa, além do princí- definidoras da custódia do depositário infiel.8
pio da presunção de não culpabilidade, estamos Em face da incorporação da Convenção Ame-
diante de um sistema acusatório. ricana sobre Direitos Humanos ao ordenamento
É bem verdade que não se trata de um sistema pátrio, o Brasil assume, então, o dever de adotar
acusatório puro. De fato, há de se ter em mente que medidas legislativas para dar efetividade aos direi-
o Código de Processo Penal tem nítida inspiração tos preconizados na referida Convenção (art. 2º).
no modelo fascista italiano. Torna-se imperioso, Esta pode ser garantida em 3 (três) perspectivas:9
portanto, que a legislação infraconstitucional seja a) utilização da jurisprudência da Corte Intera-
relida diante da nova ordem constitucional. mericana de Direitos Humanos (CIDH)10 e das
opiniões consultivas na interpretação dos casos
3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO penais internos de cada país; b) controle difuso
PENAL da convencionalidade, a ser exercido pelos magis-
trados em cada caso concreto, nos termos do art.
O vocábulo princípio é dotado de uma imensa
5º, §§ 2º e 3º, da CF; c) controle concentrado ou
variedade de significações. Sem nos olvidar da dis-
abstrato da convencionalidade, a ser realizado pela
tinção feita pela doutrina entre princípios, normas,
CIDH, em sua jurisdição contenciosa e consultiva,
regras e postulados,7 trabalharemos com a noção
e pelos Tribunais, após a EC nº 45/04.
de princípios como mandamentos nucleares de um
sistema. De se notar, portanto, que as decisões da CIDH
gozam de eficácia vinculante, nos termos dos arts.
A Constituição Federal de 1988 elencou vários
67, 68.1 e 68.2 da CADH. São dotadas de autoridade
princípios processuais penais, porém, no contexto
de coisa julgada formal e material, devendo, pois, ser
de funcionamento integrado e complementar das
cumpridas de forma eficaz e integral. Como observa
garantias processuais penais, não se pode perder
Giacomolli,11 seus efeitos, todavia, não estão limita-
de vista que os Tratados Internacionais de Direitos
dos às partes, mas irradiam um efeito hermêutico a
Humanos firmados pelo Brasil também incluíram
todos aqueles que aderiram ao sistema interameri-
diversas garantias ao modelo processual penal bra-
cano, com eficácia erga omnes e standard interpre-
sileiro. Nessa ordem, a Convenção Americana sobre
tativo da convencionalidade do ordenamento inter-
Direitos Humanos (CADH – Pacto de São José da
no. Daí a importância da análise dos diversos cases
Costa Rica), prevê diversos direitos relacionados
da CIDH, já que suas decisões funcionam como
à tutela da liberdade pessoal (Decreto 678/92, art.
7º), além de inúmeras garantias judiciais (Decreto
678/92, art. 8º).
8. STF, Pleno, HC 87.585/TO, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 118
Embora seja polêmica a discussão em torno 25/06/2009.
do status normativo dos Tratados Internacionais de 9. É nesse sentido a lição de Nereu José Giacomolli: O devido processo
Direitos Humanos, a partir do julgamento do RE penal: abordagem conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª ed.
São Paulo: Atlas, 2016. p. 30.
466.343, tem prevalecido no Supremo Tribunal Fe-
10. Composta por sete juízes, eleitos por um período de seis anos,
deral a tese do status de supralegalidade da Conven- permitida uma reeleição, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
ção Americana sobre Direitos Humanos. Não por (CIDH) está situada em San José da Costa Rica. Existe desde 1978 como
outro motivo, a despeito do teor do art. 5º, LXVII, órgão jurisdicional internacional, vinculado à CADH, com competência
consultiva automática (Convenção e Tratados) e contenciosa (violação aos
preceitos da Convenção) sobre os Estados que ratificaram a Convenção
e que reconheceram a sua jurisdição contenciosa (facultativa). O Brasil
7. Para ampla análise dessa distinção, sugerimos a leitura da obra de reconheceu a jurisdição contenciosa e obrigatória da CIDH por meio do
Robert Alexy: Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Vírgilio Afonso da Decreto-Legislativo nº 89, de 03 de dezembro de 1998.
Silva. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. 11. Op. cit. p. 40.
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MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

importante ferramenta hermenêutica do Pacto de legal, durante o qual o acusado tenha se utilizado
São José da Costa Rica. Enfim, já não basta mais de todos os meios de prova pertinentes para a sua
o conhecimento da jurisprudência dos Tribunais defesa (ampla defesa) e para a destruição da cre-
Superiores. Também se impõe o conhecimento da dibilidade das provas apresentadas pela acusação
jurisprudência da CIDH. (contraditório).
Comparando-se a forma como referido prin-
3.1. Da Presunção de inocência (ou da não
cípio foi previsto nos Tratados Internacionais e na
culpabilidade) Constituição Federal, percebe-se que, naqueles,
3.1.1. Noções introdutórias costuma-se referir à presunção de inocência, ao
passo que a Constituição Federal em momento
Em 1764, Cesare Beccaria, em sua célebre obra algum utiliza a expressão inocente, dizendo, na
Dos delitos e das penas, já advertia que “um homem verdade, que ninguém será considerado culpa-
não pode ser chamado réu antes da sentença do do. Por conta dessa diversidade terminológica,
juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção o preceito inserido na Carta magna passou a ser
pública após ter decidido que ele violou os pactos denominado de presunção de não culpabilidade.
por meio dos quais ela lhe foi outorgada”.12
Na jurisprudência brasileira, ora se faz referên-
Esse direito de não ser declarado culpado cia ao princípio da presunção de inocência,14 ora
enquanto ainda há dúvida sobre se o cidadão é ao princípio da presunção de não culpabilidade.15
culpado ou inocente foi acolhido no art. 9º da De- Segundo Badaró, não há diferença entre presunção
claração dos Direitos do Homem e do Cidadão de inocência e presunção de não culpabilidade, sen-
(1789). A Declaração Universal de Direitos Hu- do inútil e contraproducente a tentativa de apartar
manos, aprovada pela Assembleia da Organização ambas as ideias – se é que isto é possível –, devendo
das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas.16
1948, em seu art. 11.1, dispõe: “Toda pessoa acusa-
Do princípio da presunção de inocência (ou
da de delito tem direito a que se presuma sua ino-
presunção de não culpabilidade) derivam duas
cência, enquanto não se prova sua culpabilidade,
regras fundamentais: a regra probatória (também
de acordo com a lei e em processo público no qual
conhecida como regra de juízo) e a regra de tra-
se assegurem todas as garantias necessárias para
tamento, objeto de estudo nos próximos tópicos.17
sua defesa”. Dispositivos semelhantes são encon-
trados na Convenção Europeia para a Proteção dos 3.1.2. Da regra probatória (in dubio pro reo)
Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais
(art. 6.2), no Pacto Internacional de Direitos Civis Por força da regra probatória, a parte acusadora
e Políticos (art. 14.2) e na Convenção Americana tem o ônus de demonstrar a culpabilidade do acu-
sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92 – art. 8º, sado além de qualquer dúvida razoável, e não este
§ 2º): “Toda pessoa acusada de delito tem direito de provar sua inocência.18 Como consectários dessa
a que se presuma sua inocência enquanto não se regra, Antônio Magalhães Gomes Filho destaca: a) a
comprove legalmente sua culpa”. incumbência do acusador de demonstrar a culpabi-
lidade do acusado (pertence-lhe com exclusividade
No ordenamento pátrio, até a entrada em o ônus dessa prova); b) a necessidade de comprovar
vigor da Constituição de 1988, esse princípio so- a existência dos fatos imputados, não de demonstrar
mente existia de forma implícita, como decorrên-
cia da cláusula do devido processo legal.13 Com a
Constituição Federal de 1988, o princípio da pre- 14. Vide súmula nº 09 do STJ. E também: STF, 1ª Turma, HC-ED 91.150/
sunção de não culpabilidade passou a constar ex- SP, Rel. Min. Menezes Direito, DJe 018 01º/02/2008.
pressamente do inciso LVII do art. 5º: “Ninguém 15. A título de exemplo: STF, 1ª Turma, AI-AgR 604.041/RS, Rel. Min.
Ricardo Lewandowski, DJe 092 – 31/08/2007; STF, 2ª Turma, HC 84.029/
será considerado culpado até o trânsito em julgado SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 06/09/2007 p. 42.
de sentença penal condenatória”. Em síntese, pode 16. BADARÓ, Gustavo Henrique. Ônus da prova no processo penal. São
ser definido como o direito de não ser declarado Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 283.
culpado senão após o término do devido processo 17. Por força do disposto no art. 8º da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (nº 2), Luiz Flávio Gomes acrescenta uma terceira regra,
qual seja, a regra de garantia, segundo a qual a única forma de se afastar
a presunção de inocência do acusado seria comprovando-se legalmente
12. BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi de. Dos delitos e das penas. sua culpabilidade (Legislação criminal especial. São Paulo: Editora Revista
Tradução: Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins dos Tribunais, 2009. p. 442). A nosso ver, e com a devida vênia, tal regra
Fontes, 1997. p. 69. já está inserida na regra probatória.
13. Nesse sentido: STF, 1ª Turma, HC 67.707/RS, Rel. Min. Celso de 18. Para mais detalhes acerca da divisão do ônus da prova no processo
Mello, DJ 14/08/1992. penal, remetemos o leitor ao capítulo de provas.
46
TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

a inconsistência das desculpas do acusado; c) tal sobre o postulante, razão pela qual, no caso de dúvi-
comprovação deve ser feita legalmente (conforme da, deverá o Tribunal julgar improcedente o pedido
o devido processo legal); d) impossibilidade de se revisional.
obrigar o acusado a colaborar na apuração dos fatos
(daí o seu direito ao silêncio).19 3.1.3. Da regra de tratamento
Essa regra probatória deve ser utilizada sempre A privação cautelar da liberdade, sempre qua-
que houver dúvida sobre fato relevante para a deci- lificada pela nota da excepcionalidade, somente se
são do processo. Na dicção de Badaró, cuida-se de justifica em hipóteses estritas, ou seja, a regra é res-
uma disciplina do acertamento penal, uma exigência ponder ao processo penal em liberdade, a exceção
segundo a qual, para a imposição de uma sentença é estar preso.22 São manifestações claras desta re-
condenatória, é necessário provar, eliminando qual- gra de tratamento a vedação de prisões processuais
quer dúvida razoável, o contrário do que é garantido automáticas ou obrigatórias e a impossibilidade de
pela presunção de inocência, impondo a necessidade execução provisória ou antecipada da sanção penal.
de certeza.20 Nesta acepção, presunção de inocência Portanto, por força da regra de tratamento
confunde-se com o in dubio pro reo. Não havendo oriunda do princípio constitucional da não culpa-
certeza, mas dúvida sobre os fatos em discussão em bilidade, o Poder Público está impedido de agir e de
juízo, inegavelmente é preferível a absolvição de um se comportar em relação ao suspeito, ao indiciado,
culpado à condenação de um inocente, pois, em um ao denunciado ou ao acusado, como se estes já hou-
juízo de ponderação, o primeiro erro acaba sendo vessem sido condenados, definitivamente, enquanto
menos grave que o segundo. não houver o fim do processo criminal.23
O in dubio pro reo não é, portanto, uma sim- O princípio da presunção de inocência não
ples regra de apreciação das provas. Na verdade, proíbe, todavia, a prisão cautelar ditada por razões
deve ser utilizado no momento da valoração das excepcionais e tendente a garantir a efetividade do
provas: na dúvida, a decisão tem de favorecer o processo, cujo permissivo decorre inclusive da pró-
imputado, pois não tem ele a obrigação de provar pria Constituição (art. 5º, LXI), sendo possível se
que não praticou o delito. Enfim, não se justifica, conciliar os dois dispositivos constitucionais desde
sem base probatória idônea, a formulação possível que a medida cautelar não perca seu caráter excep-
de qualquer juízo condenatório, que deve sempre cional, sua qualidade instrumental, e se mostre ne-
assentar-se – para que se qualifique como ato re- cessária à luz do caso concreto.
vestido de validade ético-jurídica – em elementos Há quem entenda que esse dever de tratamen-
de certeza, os quais, ao dissiparem ambiguidades, to atua em duas dimensões: a) interna ao processo:
ao esclarecerem situações equívocas e ao desfa- funciona como dever imposto, inicialmente, ao ma-
zerem dados eivados de obscuridade, revelam-se gistrado, no sentido de que o ônus da prova recai inte-
capazes de informar, com objetividade, o órgão gralmente sobre a parte acusadora, devendo a dúvida
judiciário competente, afastando, desse modo, favorecer o acusado. Ademais, as prisões cautelares
dúvidas razoáveis, sérias e fundadas que pode- devem ser utilizadas apenas em situações excepcio-
riam conduzir qualquer magistrado ou Tribunal nais, desde que comprovada a necessidade da medida
a pronunciar o non liquet.21 extrema para resguardar a eficácia do processo; b)
O in dubio pro reo só incide até o trânsito em externa ao processo: o princípio da presunção de
julgado de sentença penal condenatória. Portanto, inocência e as garantias constitucionais da imagem,
na revisão criminal, que pressupõe o trânsito em dignidade e privacidade demandam uma proteção
julgado de sentença penal condenatória ou absolu- contra a publicidade abusiva e a estigmatização do
tória imprópria, não há falar em in dubio pro reo, acusado, funcionando como limites democráticos à
mas sim em in dubio contra reum. O ônus da prova abusiva exploração midiática em torno do fato cri-
quanto às hipóteses que autorizam a revisão cri- minoso e do próprio processo judicial.24
minal (CPP, art. 621) recai única e exclusivamente
22. “Diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o processo penal que tens
e o Estado que o instituiu” (FIGUEIREDO DIAS, Jorge. Direito processual
19. “O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na penal. 1º vol. Coimbra: Coimbra Editora, 1984. p. 428.)
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa 23. STF – HC 89.501/GO – 2ª Turma – Rel. Min. Celso de Mello – DJ
Rica)”, em Revista do Advogado, da AASP, nº 42, abril/94, p. 31. 16/03/2007 p. 43.
20. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo 24. LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade consti-
penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 285. tucional. Vol. II. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 47/48. Especi-
21. Nesse contexto: STF, 1ª Turma, HC 73.338/RJ, Rel. Min. Celso de ficamente em relação à dimensão externa ao processo, vem bem a calhar
Mello, DJ 19/12/1996. a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no
47
MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

Portanto, por força do dever de tratamento, 3.1.4. (In) constitucionalidade da execução pro-
qualquer que seja a modalidade de prisão cautelar, visória da pena26
não se pode admitir que a medida seja usada como Como bem sabe o leitor, muito já se discutiu
meio de inconstitucional antecipação executória da – e ainda se discute – acerca da necessidade de se
própria sanção penal, pois tal instrumento de tutela aguardar (ou não) o trânsito em julgado de sen-
cautelar penal somente se legitima se se comprovar, tença condenatória para o início da execução da
com apoio em base empírica idônea, a real necessi- pena. Entre fevereiro de 2016 e novembro de 2019,
dade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária prevaleceu, no Supremo Tribunal Federal, por força
medida de constrição do status libertatis do indicia- do HC 126.292, o entendimento de que não havia
do ou do acusado.25 necessidade de se aguardar o trânsito em julgado,
Atento à regra de tratamento que deriva do justificando-se, assim, a denominada execução pro-
princípio da presunção de inocência, o STF assen- visória da pena. Recentemente, porém, por ocasião
tou, em Recurso Extraordinário com Repercussão do julgamento definitivo das Ações Declaratórias
Geral reconhecida (RE 560.900/DF, Rel. Min. Ro- de Constitucionalidade 43/DF, 44/DF e 54/DF,
berto Barroso, j. 05/02/2020), a seguinte tese: “Sem houve uma mudança de orientação daquela Cor-
previsão constitucional adequada e instituída por lei, te. Por razões didáticas, vejamos os argumentos de
não é legítima a cláusula de edital de concurso pú- ambas as correntes, separadamente.
blico que restrinja a participação de candidato pelo
simples fato de responder a inquérito ou ação penal”. 3.1.4.1. Desnecessidade do trânsito em julgado (STF
Na visão da Corte, a simples existência de inquéritos – HC 126.292).
ou processos penais em curso não autoriza a elimi- Pelo menos em regra, os recursos extraor-
nação de candidatos em concursos públicos, o que dinário e especial não são dotados de efeito sus-
pressupõe: (i) condenação por órgão colegiado ou pensivo (CPP, art. 637, c/c arts. 995 e 1.029, §
definitiva; e (ii) relação de incompatibilidade entre 5º, ambos do novo CPC). Por isso, prevaleceu,
a natureza do crime em questão e as atribuições do durante anos, o entendimento jurisprudencial
cargo concretamente pretendido, a ser demonstrada segundo o qual era cabível a execução provisória
de forma motivada por decisão da autoridade com- de sentença penal condenatória recorrível, inde-
petente. A lei pode instituir requisitos mais rigorosos pendentemente da demonstração de qualquer hi-
para determinados cargos, em razão da relevância das pótese que autorizasse a prisão preventiva do acu-
sado. O fundamento legal para esse entendimento
atribuições envolvidas, como é o caso, por exemplo,
era o disposto no art. 637 do CPP. Nessa linha,
das carreiras da magistratura, das funções essenciais o STJ editou a súmula nº 267 (“A interposição
à justiça e da segurança pública (CF, art. 144), sendo de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão
vedada, em qualquer caso, a valoração negativa de condenatória não obsta a expedição de mandado
simples processo em andamento, salvo situações ex- de prisão”). Portanto, mesmo que o acusado ti-
cepcionalíssimas e de indiscutível gravidade. vesse permanecido solto durante todo o processo,
impunha-se o recolhimento à prisão como efeito
automático de um acórdão condenatório proferi-
do por órgão jurisdicional de segundo grau, ainda
caso J. vs. Peru (2013), no qual o Peru foi responsabilizado por violação que a decisão condenatória não tivesse transitado
ao estado de inocência previsto no art. 8.2 do Pacto de São José da Costa em julgado em virtude da interposição dos re-
Rica. Para a CIDH, os distintos pronunciamentos públicos das autorida- cursos extraordinário e especial, e pouco, impor-
des estatais, sobre a culpabilidade de J. violaram o estado de inocência,
princípio determinante que o Estado não condene, nem mesmo informal-
tando, ademais, a ausência dos pressupostos que
mente, emitindo juízo perante a sociedade e contribuindo para formar a autorizavam sua prisão preventiva.27
opinião pública, enquanto não existir decisão judicial condenatória. Para
a Corte, a apresentação da imagem da acusada para a imprensa, escrita
Ocorre que, no julgamento do Habeas Corpus
e televisiva, ocorreu quando ela estava sob absoluto controle do Estado, nº 84.078 no ano de 2009, o Plenário do Supremo,
além de as entrevistas posteriores também terem sido levadas a cabo
sob conhecimento e controle do Estado, por meio de seus funcionários.
A Corte acentuou não impedir o estado de inocência que as autoridades 26. Para mais detalhes acerca da possibilidade de execução provisó-
mantenham a sociedade informada sobre investigações criminais, mas ria de decisão condenatória proferida pelo Tribunal do Júri no caso de
requer que isso seja feito com a discrição e a contextualização necessárias, condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclu-
de tal modo a garantir o estado de inocência. Assim, fazer declarações são (CPP, art. 492, I, alínea “e”, com redação dada pela Lei n. 13.964/19),
públicas, sem os devidos cuidados, sobre processos penais, gera, na so- independentemente do julgamento sequer de uma eventual apelação
ciedade, a indevida crença sobre a culpabilidade do acusado. Nessa linha: pelos Tribunais de 2ª instância, remetemos o leitor ao Título 11 (Processo e
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Procedimento), mais precisamente ao Capítulo IV (Procedimento Especial
Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª ed. São Paulo: do Tribunal do Júri), onde o tema é objeto de análise nos comentários
Atlas, 2016. p. 135-137. à “sentença do Júri”.
25. Nessa linha: STF – HC 90.753/RJ – 2ª Turma – Rel. Min. Celso de 27. Nesse contexto: STF, 1ª Turma, HC 91.675/PR, Rel. Min. Cármen
Mello – DJ 23/11/2007 p. 116. Lúcia, j. 04/09/2007, Dje 157 06/12/2007.
48
TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

por maioria de votos (7 a 4), alterou sua orientação causa. Por consequência, não seria razoável inver-
jurisprudencial até então dominante para concluir ter a lógica do sistema, de maneira a transformar os
que a execução da pena só poderia ocorrer com o tribunais de segundo grau em meros tribunais de
trânsito em julgado de sentença penal condenató- passagem, e Cortes Superiores, que não têm compe-
ria. Logo, a despeito de os recursos extraordinários tência constitucional para a plena análise do mérito,
não serem dotados de efeito suspensivo, enquanto em instâncias finais de julgamentos penais;
não houvesse o trânsito em julgado de sentença pe-
nal condenatória, não seria possível a execução da c) se houve, em segundo grau, um juízo de in-
pena privativa de liberdade, ressalvada a hipótese criminação do acusado, fundado em fatos e provas
de prisão cautelar do réu, cuja decretação, todavia, insuscetíveis de reexame pela instância extraordiná-
estaria condicionada à presença dos pressupostos ria, parece inteiramente justificável a relativização e
do art. 312 do CPP.28 até mesmo a própria inversão, para o caso concreto,
Todavia, no julgamento do HC 126.292 no dia do princípio da presunção de inocência até então
17 de fevereiro de 2016,29 e novamente por maioria observado. Faria sentido, portanto, negar efeito sus-
de votos (7 a 4), o Plenário do Supremo Tribunal pensivo aos recursos extraordinários, como o faz o
Federal concluiu que seria possível a execução pro- art. 637 do CPP;
visória de acórdão penal condenatório proferido por
Tribunal de segunda instância quando ali esgotada d) não se pode afirmar que, à exceção das
a jurisdição, ainda que sujeito a recurso especial ou prisões em flagrante, temporária, preventiva e de-
extraordinário, e mesmo que ausentes os requisitos corrente de sentença condenatória transitada em
da prisão cautelar, sem que se pudesse objetar su- julgado, todas as demais formas de prisão foram
posta violação ao princípio da presunção de inocên- revogadas pelo art. 283 do CPP, com a redação dada
cia, já que seria possível fixar determinados limites pela Lei 12.403/2011, haja vista o critério temporal
para a referida garantia constitucional. Não se trata, de solução de antinomias previsto no art. 2º, § 1º, da
portanto, de prisão cautelar. Cuida-se, na verdade, Lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Di-
de verdadeira execução provisória da pena. Para reito Brasileiro). Se assim o fosse, a conclusão seria
justificar essa nova orientação foram apontados, à pela prevalência da regra que dispõe ser meramente
época, os seguintes fundamentos: devolutivo o efeito dos recursos ao Superior Tribu-
a) deve ser buscado o necessário equilíbrio nal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal
entre o princípio da presunção de inocência e a (STF), visto que os arts. 995 e 1.029, § 5º, do CPC
efetividade da função jurisdicional penal, que deve têm vigência posterior à regra do art. 283 do CPP.
atender a valores caros não apenas aos acusados,
Portanto, não há antinomia entre o que dispõe o art.
mas também à sociedade;
283 do CPP e a regra que confere eficácia imediata
b) é no âmbito das instâncias ordinárias que se aos acórdãos proferidos por tribunais de apelação;
exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e,
sob esse aspecto, a própria fixação da responsabi- e) em nenhum país do mundo, depois de obser-
lidade criminal do acusado. É dizer, os recursos de vado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma
natureza extraordinária não configuram desdobra- condenação fica suspensa, aguardando referendo da
mentos do duplo grau de jurisdição, porquanto não Corte Suprema;
são recursos de ampla devolutividade, já que não se f) a jurisprudência que assegurava a presunção
prestam ao debate da matéria fática probatória.30
de inocência até o trânsito em julgado de sentença
Noutras palavras, com o julgamento implementado
condenatória vinha permitindo a indevida e sucessi-
pelos tribunais de apelação, ocorreria uma espécie
va interposição de recursos da mais variada espécie,
de preclusão da matéria envolvendo os fatos da
com indisfarçados propósitos protelatórios, visando,
não raro, à configuração da prescrição da preten-
são punitiva ou executória, já que o último marco
28. HC 84.078, Rel. Min. Eros Grau. Informativo nº 534 do STF – Brasília,
2 a 6 de fevereiro de 2009. No mesmo sentido: STF, 2ª Turma, HC 88.174/
interruptivo do prazo prescricional antes do início
SP, Rel. Min. Eros Grau, j. 12/12/1996, DJe 092 30/08/2007; STF, 2ª Turma, do cumprimento da pena é a publicação da sentença
HC 89.754/BA, Rel. Min. Celso de Mello, j. 13/02/2007, DJe 04 26/04/2007; ou do acórdão recorríveis (CP, art. 117, IV).31 Esse
STF, 2ª Turma, HC 91.232/PE, Rel. Min. Eros Grau, j. 06/11/2007, DJe 157
06/12/2007; STJ – HC 122.191/RJ – 5ª Turma – Rel. Min. Arnaldo Esteves
Lima – Dje 18/05/2009.
31. Como exemplo do uso abusivo do direito de recorrer com a nítida
29. STF, Pleno, HC 126.292/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 17/02/2016, intenção de procrastinar o trânsito em julgado de sentença condenatória
DJe 100 16/05/2016. podemos citar o caso do ex-Senador L. E., condenado a 31 anos de reclu-
30. As matérias fáticas que levariam apenas a um reexame da prova são pela prática dos crimes de peculato, estelionato, corrupção ativa, uso
estão excluídas dos recursos especial e extraordinário, nos termos da de documento falso e associação criminosa – os dois últimos delitos aca-
súmula nº 279 do STF (“Para simples reexame de prova não cabe re- baram prescrevendo. Desde 2006, quando foi condenado pelo Tribunal
curso extraordinário”) e da súmula nº 7 do STJ (“A pretensão de simples Regional Federal da 3ª Região, o ex-Senador já havia interposto mais de
reexame de prova não enseja recurso especial”). 35 (trinta e cinco) recursos, obstando, assim, o trânsito em julgado. Com
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MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

indevido incentivo à infindável interposição de re- do STF na análise do Recurso Extraordinário com
cursos protelatórios acabaria reforçando a própria Agravo (ARE) 964.246,34 que teve repercussão geral
seletividade do sistema, pois a Defensoria Pública reconhecida. Assim, a tese firmada pelo Tribunal
não litiga dessa forma e as pessoas pobres não têm passou a ser aplicada nos processos em curso nas
recursos financeiros para pagar recursos judiciais demais instâncias, pelo menos até o julgamento de-
indefinidamente; finitivo das ADC’s 43, 44 e 54.
g) quanto a eventuais equívocos das instân-
3.1.4.2. Necessidade do trânsito em julgado (STF –
cias ordinárias, não se pode esquecer que há ins-
trumentos aptos a inibir consequências danosas ADC’s 43, 44 e 54).
para o condenado, suspendendo, se necessário, a Sempre nos posicionamos, mesmo antes do jul-
execução provisória da pena, como, por exemplo, gamento definitivo das ADC’s acima mencionadas,
medidas cautelares de outorga de efeito suspensi- no sentido de que a execução provisória da pena
vo ao recurso extraordinário e ao recurso especial estaria em desacordo com a Constituição Federal,
(art. 1.029, § 5º, do novo CPC) e o habeas corpus. que assegura a presunção de inocência (ou de não
Portanto, mesmo que exequível provisoriamente o culpabilidade) até o trânsito em julgado de sentença
acórdão condenatório recorrível, o acusado não es- condenatória (art. 5º, LVII), e com o art. 283 do CPP,
taria desamparado da tutela jurisdicional em casos que, mesmo após o advento do Pacote Anticrime
de flagrante violação de direitos. Isso seria possível, (Lei n. 13.964/19), só admite, no curso da investi-
por exemplo, em situações nas quais estivesse carac- gação ou do processo – é dizer, antes do trânsito em
terizada a verossimilhança das alegações deduzidas julgado de sentença condenatória –, a decretação da
na impugnação extrema, de modo que se pudesse prisão cautelar por ordem escrita e fundamentada
constatar a manifesta contrariedade do acórdão com da autoridade judiciária competente.
a jurisprudência consolidada da Corte a quem se Não negamos que se deva buscar uma maior
destina a impugnação. eficiência no sistema processual penal pátrio. Mas,
Posteriormente, o teor da decisão proferida no a nosso juízo, essa busca não pode se sobrepor à
julgamento do HC 126.292 foi confirmado pelo Ple- Constituição Federal, que demanda a formação de
nário do STF, ao indeferir medida cautelar em duas coisa julgada para que possa dar início à execução
ações declaratórias de constitucionalidade (ADC’s de uma prisão de natureza penal. E só se pode falar
43 e 44), permitindo, assim, a execução provisória em trânsito em julgado quando a decisão se torna
da pena privativa de liberdade após a decisão con- imutável, o que, como sabemos, é obstado pela in-
denatória de segundo grau e antes do trânsito em terposição dos recursos extraordinários, ainda que
julgado, sob o argumento de que as decisões juris- desprovidos de efeito suspensivo. A presunção de
dicionais não impugnáveis por recursos dotados de inocência não se esvazia progressivamente, à medi-
efeito suspensivo seriam dotadas de eficácia imedia- da em que se sucedem os graus de jurisdição, pois
ta. Assim, após esgotadas as instâncias ordinárias,32 a só deixa de subsistir quando resultar configurado o
condenação criminal poderia provisoriamente surtir trânsito em julgado da sentença penal condenató-
efeito imediato do encarceramento, uma vez que o ria. Não há, portanto, margem exegética para que
acesso às instâncias extraordinárias se dá por meio o art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, seja
de recursos que são ordinariamente dotados de efei- interpretado no sentido de se admitir a antecipação
to meramente devolutivo.33 Esse entendimento foi, ficta do momento formativo da coisa julgada penal
posteriormente, confirmado pelo Plenário Virtual de modo a concluirmos que o acusado é presumido
inocente (ou não culpável) tão somente até o esgo-
tamento da instância nos Tribunais de Apelação.
a mudança de orientação jurisprudencial do STF acerca do assunto, o
ex-Senador foi, enfim, recolhido à prisão, em data de 8 de março de 2016.
32. A execução da pena depois da prolação de acórdão em segundo
grau de jurisdição e antes do trânsito em julgado da condenação não é
automática, quando a decisão ainda é passível de integração pelo Tribunal
de Justiça, sobretudo quando o juízo de primeiro grau conceder ao acu- 34. “(…) Em regime de repercussão geral, fica reafirmada a juris-
sado, na sentença condenatória, o direito de recorrer em liberdade. Por prudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a execução
isso, em caso concreto no qual ainda não havia se dado o esgotamento provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal,
da jurisdição do Tribunal de Justiça, em virtude da interposição de Em- ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o
bargos de Declaração ainda não julgado, concluiu a 6ª Turma do STJ (HC princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo
366.907/PR, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 06/12/2016, DJe 16/12/2016) 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Recurso extraordinário a que se
ser indevido, naquele momento, o início da execução provisória da pena. nega provimento, com o reconhecimento da repercussão geral do tema e
33. STF, Pleno, ADC 43 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 05/10/2016; a reafirmação da jurisprudência sobre a matéria”. (STF, Pleno, ARE 964.246
STF, Pleno, ADC 44 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 05/10/2016. RG/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 10/11/2016, DJe 251 24/11/2016).
50
TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Por mais que a Convenção Americana sobre extraordinário, seja ele dotado de efeito suspensivo
Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8º, n. 2)35 es- ou não. Logo, o caráter “extraordinário” dos re-
tenda o princípio da presunção de inocência até a cursos especial e extraordinário, bem como o fato
comprovação legal da culpa, o que ocorre com a de serem recursos de fundamentação vinculada e
prolação de acórdão condenatório no julgamento limitados ao reexame de questões de direito não é
de um recurso – lembre-se que a mesma Conven- um argumento legítimo para sustentar a execução
ção Americana assegura o direito ao duplo grau de antecipada da pena. Isso porque o caráter “extraor-
jurisdição (art. 8º, § 2º, “h”) –, não se pode perder dinário” desses recursos não afeta o conceito de
de vista que a Constituição Federal é categórica ao trânsito em julgado expressamente estabelecido
afirmar que somente o trânsito em julgado de uma pelo art. 283 do CPP como marco final do processo
sentença penal condenatória poderá afastar o estado para fins de execução da pena.
inicial de não culpabilidade de que todos gozam. Por mais que as Leis 12.403/11 e 13.964/19,
Seu caráter mais amplo deve prevalecer, portanto, responsáveis pelas sucessivas mudanças da reda-
sobre o teor da Convenção Americana de Direitos ção do art. 283 do CPP, não tenham feito qualquer
Humanos, assegurando-se, assim, a máxima efeti- referência ao art. 637 do CPP, é no mínimo estra-
vidade da garantia constitucional da presunção de nho admitirmos que um dispositivo legal autoriza
inocência. De fato, a própria Convenção Americana a execução da pena tão somente com o trânsito em
prevê que os direitos nela estabelecidos não poderão julgado de sentença condenatória, enquanto outro a
ser interpretados no sentido de restringir ou limi- autoriza pelo fato de não outorgar efeito suspensivo
tar a aplicação de normas mais amplas que existam aos recursos extraordinários. É bem verdade que
no direito interno dos países signatários (art. 29, o art. 9º da LC 95/98, com redação dada pela LC
b). Em consequência, deverá sempre prevalecer a nº 107/01, determina que a cláusula de revogação
disposição mais favorável (princípio pro homine). de lei nova deve enumerar, expressamente, as leis e
Não bastasse a Constituição Federal, é fato que disposições revogadas, o que não ocorreu na hipó-
a legislação infraconstitucional também não dá aco- tese sob comento. No entanto, a falta de técnica por
lhida à nova orientação dos Tribunais Superiores. parte do legislador – que, aliás, tem se tornado uma
Explica-se: apesar de o art. 637 do CPP autorizar a péssima rotina –, não pode justificar a convivência
execução provisória de acórdão condenatório pelo de normas jurídicas incompatíveis entre si, tratando
fato de os recursos extraordinários não serem dota- do conceito de execução da pena de maneira con-
dos de efeito suspensivo, este dispositivo foi tacita- flitante. Por consequência, como se trata de norma
mente revogado pela Lei nº 12.403/11, que conferiu posterior que tratou da matéria em sentido diverso,
nova redação ao art. 283 do CPP. parece-nos que a nova redação do art. 283 do CPP
O art. 283 do CPP, mesmo após a alteração conferida pelas Leis 12.403/11 e 13.964/19 revogou
promovida pelo Pacote Anticrime, é categórico ao tacitamente o art. 637 do CPP, nos termos do art.
estabelecer as hipóteses em que pode haver restri- 2º, § 1º, da Lei de Introdução às normas do Direito
ção à liberdade de locomoção no processo penal: Brasileiro.
a) prisão em flagrante36 e prisão cautelar (leia-se, Não se pode objetar que o novo CPC teria re-
temporária e preventiva): são as únicas espécies de vogado tacitamente o art. 283 do CPP, por prever
prisão cautelar passíveis de decretação no curso expressamente que os recursos extraordinários não
da investigação ou do processo; b) prisão penal são dotados de efeito suspensivo (NCPC, arts. 995
(carcer ad poenam): a prisão penal só pode ser e 1.029, § 5º). A uma porque o novo CPC só pode
objeto de execução com o trânsito em julgado de ser aplicado no âmbito processual penal de maneira
sentença condenatória. Há, portanto, um requisi- subsidiária e supletiva, ou seja, quando restar evi-
to de natureza objetiva para o início do cumpri- denciada a existência de uma lacuna. Como não
mento da reprimenda penal, qual seja, a formação há qualquer omissão no âmbito do CPP, que prevê
da coisa julgada, que é obstada pela interposição expressamente que a execução da pena pressupõe o
de todo e qualquer recurso, seja ele ordinário ou trânsito em julgado (art. 283), não se pode admitir a
revogação de seus dizeres por uma norma genérica
prevista no novo CPC. Não bastasse isso, é fato que
35. “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua o art. 283 do CPP consiste em mera reprodução
inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. da cláusula pétrea do art. 5º, LVII, da Constitui-
36. Há controvérsias acerca da natureza jurídica da prisão em flagrante. ção Federal, cujo núcleo essencial jamais poderia
Há quem entenda que se trata de medida pré-cautelar, e não uma espécie
de prisão cautelar. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o sofrer qualquer restrição, quer por parte de uma
leitor ao Título 6, Capítulo IV, item 4.
51
MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

lei ordinária (Lei nº 13.105/15 – NCPC), quer pelo exigência civilizatória que é o combate à impunida-
próprio Poder Constituinte. de, verdadeira desgraça que assola nosso país. No
Com base nesses argumentos, o Supremo Tri- entanto, pelo menos do ponto de vista normativo-
bunal Federal voltou a apreciar a matéria em no- -constitucional atualmente em vigor – cuja obser-
vembro de 2019. Porém, dessa vez, e novamente por vância irrestrita também traduz em si mesma uma
maioria (6 a 5), julgou procedentes pedidos formu- exigência civilizatória –, não há como afastarmos a
lados nas Ações Declaratórias de Constitucionali- necessidade do trânsito em julgado para a execução
dade 43/DF, 44/DF e 54 (Rel. Min. Marco Aurélio, de uma pena. Portanto, a nosso juízo, a solução para
j. 07/11/2019) para assentar a constitucionalidade o caos do sistema punitivo brasileiro deve passar por
do art. 283 do CPP, que condiciona o início do cum- uma mudança constitucional ou legislativa – e não
primento da pena ao trânsito em julgado do título jurisprudencial, como feita pelo STF –, para que
condenatório. Como consequência, determinou a seja antecipado o momento do trânsito em julgado
suspensão imediata de toda e qualquer execução de acórdãos condenatórios proferidos pelos Tribu-
provisória de pena cuja decisão a encerrá-la ain- nais de 2ª instância, hipótese em que os recursos
da não tivesse transitado em julgado. Desse modo, extraordinários obrigatoriamente teriam que ter sua
determinou a libertação daqueles que tenham sido natureza jurídica alterada para sucedâneos recursais
presos, ante exame de apelação, reservando-se o re- externos.37
colhimento aos casos verdadeiramente enquadrá- De todo modo, pelo menos enquanto não so-
veis no art. 312 do CPP, sem prejuízo, ademais, de brevém essa mudança legislativa – se é que um dia
implementação das cautelares diversas da prisão. virá –, caberá aos Tribunais maior rigor na verifi-
Prevaleceu o voto do Min. Marco Aurélio (Relator), cação de eventuais excessos por parte da defesa no
que foi acompanhado pelos ministros Rosa Weber, tocante ao exercício abusivo do direito de recorrer.
Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Em outras palavras, quando restar evidenciado o
Mello e Dias Toffoli. intuito meramente protelatório dos recursos, apenas
Preponderou o entendimento no sentido de para impedir o exaurimento da prestação jurisdicio-
que, ao editar o art. 283 do CPP por meio da Lei nal e o consequente início do cumprimento da pena,
12.403/2011 – a decisão em questão foi proferida incumbe aos Tribunais determinar o imediato início
antes da vigência da Lei n. 13.964/19 –, o Poder da execução mesmo antes do trânsito em julgado,
Legislativo teria se limitado a concretizar, no cam- haja vista o exercício irregular e abusivo do direito
po do processo, garantia explícita constitucional, de defesa e do duplo grau de jurisdição e a conse-
adequando-se à óptica então assentada pelo próprio quente violação ao princípio da cooperação, previsto
STF no julgamento do HC 84.078, julgado em 5 de no art. 6º do novo CPC, ao qual também se sujei-
fevereiro de 2009, segundo a qual “a prisão antes do tam as partes, tudo isso sem prejuízo da fixação de
trânsito em julgado da condenação somente pode multa por litigância de má-fé.38 Nessa linha, como
ser decretada a título cautelar”. Logo, não seria pos- já havia se pronunciado o Supremo em momento
sível a declaração de inconstitucionalidade de um anterior ao HC 126.292, “a reiteração de embargos
dispositivo que simplesmente reproduz o texto da de declaração, sem que se registre qualquer dos seus
Constituição Federal. O princípio da não culpabi- pressupostos, evidencia o intuito meramente prote-
lidade é garantia vinculada, pelo art. 5º, LVII, da latório. A interposição de embargos de declaração
CF, à preclusão, de modo que a constitucionalidade com finalidade meramente protelatória autoriza o
do art. 283 do CPP não comporta questionamen- imediato cumprimento da decisão emanada pelo
tos. O preceito consiste em reprodução de cláusula Supremo Tribunal Federal, independentemente da
pétrea cujo núcleo essencial nem mesmo o poder publicação do acórdão”.39
constituinte derivado estaria autorizado a restrin-
gir. Coloca-se, enfim, o trânsito em julgado como
37. A expressão “sucedâneos recursais”, introduzida por Frederico
marco seguro para a severa limitação da liberdade, Marques (Instituições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense,
ante a possibilidade de reversão ou atenuação da 1960, v. 4, p. 377 e segs.), ora é utilizada para identificar o conjunto de
condenação nas instâncias superiores. meios não recursais de impugnação, ora é utilizada em acepção estrita,
para referir apenas aos meios de impugnação que nem são recurso nem
Não podemos negar que fortes razões de ín- são ação autônoma.
dole social, ética e cultural amparem seriamente 38. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao título
atinente aos “Recursos”, mais precisamente ao item 2 (“Natureza jurídica
a necessidade de que sejam buscados desenhos dos recursos”).
institucionais e mecanismos jurídico-processuais 39. STF, 1ª Turma, RMS 23.841 AgR-ED-ED/DF, Rel. Min. Eros Grau, j.
cada vez mais aptos a responder, com eficiência, à 18/12/2006, DJ 16/02/2007. No sentido de que a utilização indevida das
espécies recursais, consubstanciada na interposição de inúmeros recursos
52
TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Daí a importância, aliás, da nova causa suspen- título, diversamente dos autos de prisão em flagran-
siva da prescrição, introduzida pelo Pacote Anticri- te, de inquérito policial ou das petições iniciais dos
me no art. 116, inciso III, do Código Penal, segundo processos criminais, supre a exigência de instrução
o qual antes de passar e julgado a sentença final, perante autoridade administrativa ou judicial no
a prescrição não corre na pendência de embargos âmbito executivo, autorizando a consequente apli-
de declaração ou de recursos aos Tribunais Supe- cação das sanções disciplinares pela autoridade ju-
riores, quando inadmissíveis. Com aplicação restri- diciária competente para decidir questões relativas
ta aos crimes cometidos após a vigência da Lei n. à execução penal. Com base nesse entendimento,
13.964/19 (23 de janeiro de 2020), o legislador passa em Recurso Extraordinário com repercussão geral
a “punir” o exercício abusivo do direito de recorrer reconhecida (RE 776.823/RS - Tema 758), restou
com a suspensão da prescrição nas duas hipóteses fixada a seguinte tese pelo Plenário do STF: “O re-
aí citadas. A despeito da expressão dúbia constante conhecimento de falta grave consistente na prática
do novo dispositivo – inadmissíveis –, queremos crer de fato definido como crime doloso no curso da
que se refere às hipóteses em que tais recursos não execução penal dispensa o trânsito em julgado da
forem conhecidos, e não quando forem improvidos, condenação criminal no juízo do conhecimento,
sob pena de evidente violação ao direito de recorrer. desde que a apuração do ilícito disciplinar ocorra
Em conclusão, é de todo relevante não confun- com observância do devido processo legal, do con-
dir a necessidade do trânsito em julgado da con- traditório e da ampla defesa, podendo a instrução
denação criminal para se superar a presunção de em sede executiva ser suprida por sentença criminal
não culpabilidade e dar início ao cumprimento da condenatória que verse sobre a materialidade, a au-
pena (STF, ADC’s 43, 44 e 54), com a necessidade toria e as circunstâncias do crime correspondente
do trânsito em julgado de condenação criminal no à falta grave”.41
juízo de conhecimento para fins de reconhecimento
3.2. Princípio do contraditório
de falta grave no curso da execução penal.40 Diante
da dinamicidade da fase executiva e da necessidade De acordo com o art. 5º, inciso LV, da Consti-
de se assegurar a ordem no estabelecimento prisio- tuição Federal, aos litigantes, em processo judicial ou
nal, a decisão do juízo da execução, proferida após administrativo, e aos acusados em geral são assegu-
apuração de falta grave efetuada de modo válido, rados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
há de ser considerada apta a ensejar a imposição recursos a ela inerentes.
da respectiva sanção disciplinar, sem prejuízo, ob- Na clássica lição de Joaquim Canuto Mendes
viamente, do direito recursal do apenado. Por outro de Almeida, sempre se compreendeu o princípio do
lado, inexiste óbice ao aproveitamento de sentença contraditório como a ciência bilateral dos atos ou
proferida no processo penal de conhecimento, após termos do processo e a possibilidade de contrariá-
regular instrução criminal, com observância do con- -los.42 De acordo com esse conceito, o núcleo fun-
traditório e da ampla defesa, pelo juízo da execução damental do contraditório estaria ligado à discussão
penal para o reconhecimento de falta grave. Esse dialética dos fatos da causa, devendo se assegurar a
ambas as partes, e não somente à defesa, a oportuni-
dade de fiscalização recíproca dos atos praticados no
contrários à jurisprudência como mero expediente protelatório, desvirtua curso do processo. Eis o motivo pelo qual se vale a
o próprio postulado constitucional da ampla defesa: STF, 2ª Turma, AI
759.450 ED/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 01/12/2009, DJe 237 17/12/2009; doutrina da expressão “audiência bilateral”, consubs-
STF, Pleno, AO 1.046 ED/RR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 28/11/2007, tanciada pela expressão em latim audiatur et altera
DJe 31 21/02/2008. Para o STJ, quando verificada a oposição de recursos
manifestamente protelatórios apenas para se evitar o exaurimento da
pars (seja ouvida também a parte adversa). Seriam
prestação jurisdicional, tem sido admitida a baixa imediata dos autos, dois, portanto, os elementos do contraditório: a) di-
para o início da execução penal: STJ, 5ª Turma, EDcl nos EDcl no AgRg reito à informação; b) direito de participação. O
no Ag 1.142.020/PB, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 07/10/2010,
DJe 03/11/2010. E ainda: STJ, 5ª Turma, EDcl nos EDcl no AgRg no Ag contraditório seria, assim, a necessária informação
862.591/MG, Rel. Min. Felix Fischer, j. 15/09/2009, DJe 05/10/2009. O abu- às partes e a possível reação a atos desfavoráveis.
so do direito de recorrer no processo penal, com o escopo de obstar o
trânsito em julgado da condenação e, por consequência, de se alcançar a Como se vê, o direito à informação funciona
prescrição da pretensão punitiva, autoriza inclusive a determinação mo- como consectário lógico do contraditório. Não se
nocrática de baixa imediata dos autos por Ministro de Tribunal Superior,
independentemente de publicação da decisão. Nessa linha: STF, Pleno,
pode cogitar da existência de um processo penal
RE 839.163 QO/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 05/11/2014.
40. De acordo com o art. 52, caput, da LEP, a prática de fato previsto
como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasionar subversão
da ordem ou disciplina internas, sujeitará o preso provisório, ou conde- 41. STF, Pleno, RE 776.823/RS, Rel. Min. Edson Fachin, j. 04.12.2020.
nado, nacional ou estrangeiro, sem prejuízo da sanção penal, ao regime 42. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Editora Re-
disciplinar diferenciado. vista dos Tribunais, 1973. p. 82.
53
MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

eficaz e justo sem que a parte adversa seja cientifi- possibilidade de nomeação de defensor ao acusado
cada da existência da demanda ou dos argumentos quando considerá-lo indefeso (CPP, art. 497, V).44
da parte contrária. Daí a importância dos meios de Portanto, pode-se dizer que se, em um primeiro
comunicação dos atos processuais: citação, intima- momento, o contraditório limitava-se ao direito à
ção e notificação. Não por outro motivo, de acordo informação e à possibilidade de reação. A partir dos
com a súmula 707 do Supremo Tribunal Federal, ensinamentos do italiano Elio Fazzalari, o contra-
“constitui nulidade a falta de intimação do denuncia- ditório passou a ser analisado também no sentido
do para oferecer contrarrazões ao recurso interposto de se assegurar o respeito à paridade de tratamento
da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação (par conditio ou paridade de armas).
de defensor dativo”.
Prevalece na doutrina e na jurisprudência o
Também deriva do contraditório o direito à entendimento de que a observância do contradi-
participação, aí compreendido como a possibilidade tório só é obrigatória, no processo penal, na fase
de a parte oferecer reação, manifestação ou contra- processual, e não na fase investigatória. Isso porque
riedade à pretensão da parte contrária. o dispositivo do art. 5º, LV, da Carta Magna, faz
Pela concepção original do princípio do con- menção à observância do contraditório em processo
traditório, entendia-se que, quanto à reação, bastava judicial ou administrativo. Logo, considerando-se
que a mesma fosse possibilitada, ou seja, tratava- que o inquérito policial é tido como um procedi-
-se de reação possível. No entanto, a mudança de mento administrativo destinado à colheita de ele-
concepção sobre o princípio da isonomia, com a mentos de informação quanto à existência do crime
superação da mera igualdade formal e a busca de e quanto à autoria ou participação, não há falar em
uma igualdade substancial, produziu a necessidade observância do contraditório na fase preliminar de
de se igualar os desiguais, repercutindo também no investigações.45
âmbito do princípio do contraditório. O contradi- Por força do princípio ora em análise, a pa-
tório, assim, deixou de ser visto como uma mera lavra prova só pode ser usada para se referir aos
possibilidade de participação de desiguais para se elementos de convicção produzidos, em regra, no
transformar em uma realidade. É o que se denomina curso do processo judicial, e, por conseguinte, com
contraditório efetivo e equilibrado. Na dicção de Ba- a necessária participação dialética das partes, sob
daró, houve, assim, uma dupla mudança, subjetiva o manto do contraditório e da ampla defesa. Essa
e objetiva. Segundo o autor, “quanto ao seu objeto, estrutura dialética da produção da prova, que se ca-
deixou de ser o contraditório uma mera possibili- racteriza pela possibilidade de indagar e de verificar
dade de participação de desiguais, passando a se os contrários, funciona como eficiente mecanismo
estimular a participação dos sujeitos em igualdade para a busca da verdade. De fato, as opiniões con-
de condições. Subjetivamente, porque a missão de trapostas das partes adversas ampliam os limites da
igualar os desiguais é atribuída ao juiz e, assim, o cognição do magistrado sobre os fatos relevantes
contraditório não só permite a atuação das partes, para a decisão da demanda e diminuem a possibi-
como impõe a participação do julgador”.43 lidade de erros.
Notadamente no âmbito processual penal, não A prova há de ser produzida não só com a par-
basta assegurar ao acusado apenas o direito à in- ticipação do acusador e do acusado, como também
formação e à reação em um plano formal, tal qual mediante a direta e constante supervisão do órgão
acontece no processo civil. Estando em discussão julgador. De fato, com a inserção do princípio da
a liberdade de locomoção, ainda que o acusado identidade física do juiz no processo penal, o juiz
não tenha interesse em oferecer reação à pretensão que presidir a instrução deverá proferir a sentença
acusatória, o próprio ordenamento jurídico impõe (CPP, art. 399, § 2º, com redação dada pela Lei nº
a obrigatoriedade de assistência técnica de um de- 11.719/08). Nesse sentido, foi bastante incisiva a
fensor. Nesse contexto, dispõe o art. 261 do CPP
que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido,
será processado ou julgado sem defensor. E não se 44. Com esse entendimento: TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias
deve contentar com uma atuação meramente formal individuais no processo penal brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2009. p. 45.
desse defensor. Basta perceber que, dentre as atri- 45. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou o entendi-
buições do juiz-presidente do júri, o CPP elenca a mento no sentido de que o inquérito policial é peça meramente infor-
mativa, não suscetível de contraditório, e sua eventual irregularidade
não é motivo para decretação da nulidade da ação penal. Nessa linha:
STF, 2ª Turma, HC 99.936/CE, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 232 10/12/2009.
43. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito processual penal. Em sentido semelhante: STF, 2ª Turma, HC 83.233/RJ, Rel. Min. Nelson
Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2008. Tomo 1. p. 1-36. Jobim, DJ 19.03.2004.
54
TÍTULO 1 • NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Lei nº 11.690/08, dando nova redação ao art. 155, Nesse caso, não há falar em violação à garantia da
caput, do CPP: “O juiz formará sua convicção pela bilateralidade da audiência, porquanto o exercício
livre apreciação da prova produzida em contraditó- do contraditório será apenas diferido para momento
rio judicial, não podendo fundamentar sua decisão ulterior à decisão judicial.47
exclusivamente nos elementos informativos colhi-
dos na investigação, ressalvadas as provas cautela- 3.3. Princípio da ampla defesa
res, não repetíveis e antecipadas”. Impõe-se, pois, De acordo com o art. 5º, LV, da Magna Carta,
a observância do contraditório ao longo de toda a “aos litigantes, em processo judicial ou administra-
persecutio criminis in iudicio, como verdadeira pe- tivo, e aos acusados em geral são assegurados o con-
dra fundamental do processo penal, contribuindo traditório e ampla defesa, com os meios e recursos a
para o acertamento do fato delituoso. Afinal, quanto ela inerentes”. Sob a ótica que privilegia o interesse
maior a participação dialética das partes, maior é a do acusado, a ampla defesa pode ser vista como um
probabilidade de aproximação dos fatos e do direito direito; todavia, sob o enfoque publicístico, no qual
aplicável, contribuindo de maneira mais eficaz para prepondera o interesse geral de um processo justo,
a formação do convencimento do magistrado.46 é vista como garantia.
3.2.1. Contraditório para a prova e contraditório O direito de defesa está ligado diretamente ao
princípio do contraditório. A defesa garante o con-
sobre a prova
traditório e por ele se manifesta. Afinal, o exercício
O contraditório para a prova (ou contraditó- da ampla defesa só é possível em virtude de um
rio real) demanda que as partes atuem na própria dos elementos que compõem o contraditório – o
formação do elemento de prova, sendo indispen- direito à informação. Além disso, a ampla defesa se
sável que sua produção se dê na presença do órgão exprime por intermédio de seu segundo elemen-
julgador e das partes. É o que acontece com a prova to: a reação. Apesar da influência recíproca entre
testemunhal colhida em juízo, onde não há qualquer o direito de defesa e o contraditório, os dois não
razão cautelar a justificar a não intervenção das par- se confundem. Com efeito, por força do princípio
tes quando de sua produção, sendo obrigatória, pois, do devido processo legal, o processo penal exige
a observância do contraditório para a realização da partes em posições antagônicas, uma delas obriga-
prova. toriamente em posição de defesa (ampla defesa),
O contraditório sobre a prova, também conhe- havendo a necessidade de que cada uma tenha o
cido como contraditório diferido ou postergado, direito de se contrapor aos atos e termos da parte
traduz-se no reconhecimento da atuação do contra- contrária (contraditório). Como se vê, a defesa e o
ditório após a formação da prova. Em outras palavras, contraditório são manifestações simultâneas, inti-
a observância do contraditório é feita posteriormente, mamente ligadas pelo processo, sem que daí se possa
dando-se oportunidade ao acusado e a seu defensor concluir que uma derive da outra.48 O contraditório
de, no curso do processo, contestar a providência deve ser aplicado em relação a ambas as partes, além
cautelar, ou de combater a prova pericial feita no da obrigatória observância pelo próprio magistrado.
curso do inquérito. É o que acontece, por exemplo, Logo, se o acusador não for comunicado em relação
com uma interceptação telefônica judicialmente au- a determinado ato processual, ou se lhe for negado
torizada no curso das investigações. Nessa hipótese, o direito de reagir à determinada prova ou alegação
não faz sentido algum querer intimar previamente o da defesa, conquanto não se possa falar em violação
investigado para acompanhar os atos investigatórios. ao direito de defesa, certamente terá havido violação
Enquanto a interceptação estiver em curso, não há ao contraditório, pois este se manifesta em relação a
falar, portanto, em contraditório real. Porém, uma ambas as partes, ao passo que a defesa diz respeito
vez finda a diligência, e juntado aos autos o laudo apenas ao acusado.49
de degravação e o resumo das operações realizadas Quando a Constituição Federal assegura aos
(Lei nº 9.296/96, art. 6º), deles se dará vista à Defesa, litigantes, em processo judicial ou administrativo,
a fim de que tenha ciência das informações obtidas e aos acusados em geral a ampla defesa, entende-se
através do referido procedimento investigatório, pre-
servando-se, assim, o contraditório e a ampla defesa.
47. TUCCI. Op. cit. p. 162/163.
48. Com esse entendimento: FERNANDES, Antônio Scarance. Proces-
46. Nessa linha: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 11ª so penal constitucional. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 34. Com entendimento 2010, p. 253.
semelhante: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no 49. Nessa linha: BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação
processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 116. e sentença. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 37.
55
MANUAL DE PROCESSO PENAL • Renato Brasileiro de Lima

que a proteção deve abranger o direito à defesa téc- defensor público, o processo estará eivado de nuli-
nica (processual ou específica) e à autodefesa (ma- dade absoluta, por afronta à garantia da ampla de-
terial ou genérica), havendo entre elas relação de fesa (CPP, art. 564, III, “c”). Nessa linha, segundo a
complementariedade. Há entendimento doutrinário súmula nº 708 do Supremo, “é nulo o julgamento
no sentido de que também é possível subdividir a da apelação se, após a manifestação nos autos da re-
ampla defesa sob dois aspectos: a) positivo: realiza- núncia do único defensor, o réu não foi previamente
-se na efetiva utilização dos instrumentos, dos meios intimado para constituir outro”.52
e modos de produção, certificação, esclarecimento Considerando que, a fim de se assegurar a pa-
ou confrontação de elementos de prova que digam ridade de armas, a presença de defensor técnico é
com a materialidade da infração criminal e com a obrigatória no processo penal, especial atenção deve
autoria; b) negativo: consiste na não produção de ser dispensada à Convenção Americana sobre Di-
elementos probatórios de elevado risco ou poten- reitos Humanos. Isso porque, de acordo com o Pac-
cialidade danosa à defesa do réu.50 to de São José da Costa Rica, toda pessoa acusada
Por força da ampla defesa, admite-se que o acu- de delito tem direito de se defender pessoalmente
sado seja formalmente tratado de maneira desigual ou de ser assistido por um defensor de sua escolha
em relação à acusação, delineando o viés material do (CADH, art. 8, nº 2, “d”). Logicamente, se o acusa-
princípio da igualdade. Por consequência, ao acu- do é profissional da advocacia, poderá exercer sua
sado são outorgados diversos privilégios em detri- própria defesa técnica. Todavia, não o sendo, sua
mento da acusação, como a existência de recursos defesa técnica deverá ser exercida por profissional
privativos da defesa, a proibição da reformatio in da advocacia legalmente habilitado nos quadros da
pejus, a regra do in dubio pro reo, a previsão de revi- OAB.53
são criminal exclusivamente pro reo, etc., privilégios Para que o próprio acusado possa exercer sua
estes que são reunidos no princípio do favor rei.51 defesa técnica, não basta que seja dotado de ca-
pacitação técnica. O acusado deve ser advogado
3.3.1. Defesa técnica (processual ou específica)
regularmente inscrito na Ordem dos Advogados
Defesa técnica é aquela exercida por profissio- do Brasil. Por isso, a despeito do evidente conhe-
nal da advocacia, dotado de capacidade postulatória, cimento jurídico de que são dotados, se acusados
seja ele advogado constituído, nomeado, ou defen- criminalmente, juízes e/ou promotores não podem
sor público. Para ser ampla, como impõe a Cons- exercer sua defesa técnica. Nesse sentido, como já
tituição Federal, apresenta-se no processo como se pronunciou o Supremo, “nas ações penais ori-
defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva, não ginárias, a defesa preliminar (L. 8.038/90, art. 4º),
sendo possível que alguém seja processado sem que é atividade privativa dos advogados. Os membros
possua defensor. do Ministério Público estão impedidos de exercer
advocacia, mesmo em causa própria. São atividades
3.3.1.1. Defesa técnica necessária e irrenunciável incompatíveis (L. 8.906/94, art. 28)”.54
A defesa técnica é indisponível e irrenunciá- Se a defesa técnica deve ser exercida por pro-
vel. Logo, mesmo que o acusado, desprovido de ca- fissional da advocacia, é evidente que não é possível
pacidade postulatória, queira ser processado sem a nomeação de estagiários para patrocinar causas
defesa técnica, e ainda que seja revel, deve o juiz criminais, já que tal providência é proibida pelo
providenciar a nomeação de defensor. Exatamente
em virtude disso, dispõe o art. 261 do CPP que “ne-
nhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será
processado ou julgado sem defensor”. Não se admi-
52. No sentido da nulidade absoluta de sessão de julgamento de ape-
te, assim, processo penal sem que a defesa técnica lação criminal realizada sem a presença de defensor constituído, porquan-
seja exercida por profissional da advocacia. Caso o to, após a apresentação das razões de apelação, o advogado constituído
teria renunciado aos poderes que lhe foram conferidos, sem que o juiz
processo tenha curso sem a nomeação de defensor, tivesse notificado o acusado para a constituição de novo defensor, como
seja porque o acusado não constituiu advogado, seja demanda a súmula nº 708 do STF: STF, 2ª Turma, HC 94.282/GO, Rel. Min.
porque o juiz não lhe nomeou advogado dativo ou Joaquim Barbosa, j. 03/03/2009, DJe 75 23/04/2009.
53. Nesse sentido: STF, 1ª Turma, HC 102.019/PB, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, j. 17/08/2010, DJe 200 21/10/2010. Ainda no sentido de
que o exercício da autodefesa pelo acusado deve se dar de forma com-
50. AZEVEDO, David Teixeira de. O interrogatório do réu e o direito ao plementar à defesa técnica, e não de forma exclusiva, salvo em hipóteses
silêncio. RT, São Paulo, v. 682, p. 285-298, ago. 1992. p. 290. excepcionais, como no caso da impetração de habeas corpus: STJ, 5ª Tur-
51. Para mais detalhes acerca do princípio do favor rei, consultar co- ma, HC 100.810/PB, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 29/04/2009, DJe 25/05/2009.
mentários ao Título 6 (“Provas”), mais precisamente no Capítulo I (“Teoria 54. STF, 2ª Turma, HC 76.671/RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, j. 09/06/1998,
geral das provas”), item 6.6. (“Princípio do favor rei”). DJ 10/08/2000.
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