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ea & - de 2017.

» — Re
Alisa
O
Connan

PAULA HAWKINS
foi jornalista na área financeira durante
15 anos, antes de se dedicar inteiramente
à escrita de ficção.

Nascida e criada no Zimbabué, mudou-se


para Londres em 1989, onde vive
atualmente.

A Rapariga no Comboio foi o seu primeiro


livro e um verdadeiro fenómeno, tendo sido
traduzido em mais de 40 línguas, com cerca
de 20 milhões de exemplares vendidos em
todo o mundo. Em Portugal, é o livro mais
vendido desde 2015, tendo atingido os
130 000 exemplares editados. Do livro
resultou um filme de sucesso, protagonizado
por Emily Blunt, que alcançou o primeiro
lugar das bilheteiras.

Escrito na Água é o segundo thriller da Tea... E

autora, cujos direitos para filme já for oLibri


comprados pela Dreamworks. Paula H A fr Iraly

fará parte da produção executiva.


poi

ESCRITO
NA
AGUA
Digitized by the Internet Archive
in 2022 with funding from
Kahle/Austin Foundation

https://archive.org/details/escritonaagua0000hawk
PAULA HAWKINS

ESCRITO
“NA
ÁGUA

os livros em primeiro
lugar
Edição original
Título: Into the Water
Texto: O 2017 Paula Hawkins
Excerto do poema The Numvers Game, in Dear Boy:
O Emily Berry, com permissão de Faber & Faber.
Excerto de Alucinações: (O) 2012 Oliver Sacks,
com permissão de The Wylie Agency (UK) Limited.
Letra de Down by the Water: PJ] Harvey, com permissão
de Hot Head Music Ltd. Todos os direitos reservados.
Capa: Jaya Miceli
Fotografia da capa: Jessica Robyn /Millennium Images
Publicado por Transworld Publishers,
uma chancela do Penguin Random House Group, Londres.
Todos os direitos reservados.

Edição em português
Título: Escrito na Água
Tradução: Miguel Martins
Revisão: José João Leiria
Paginação: Ana Seromenho
ISBN: 978-989-8800-88-6
Depósito legal: 423 761/17

1.º edição (1.º impressão): maio de 2017


5.º Impressão: maio de 2017
Impresso pela Publito em Braga
45 000 exemplares

O 2017 Topseller, uma chancela da 20/20 Editora.


Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra
sem prévia autorização da editora.

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Esta garantia é adicional aos seus direitos de consumidor e em nada os limita.

Escrito na Água é uma obra de ficção. Nomes, personagens e episódios resultam


da imaginação da autora ou são usados de forma fictícia. Qualquer semelhança
com pessoas, acontecimentos ou locais reais é pura coincidência.
Para todas as pessoas problemáticas
«Era muito novo quando me abriram ao meio.

Algumas coisas devemos abandoná-las,


Outras não devemos.
As opiniões diferem quanto a quais.»
The Numbers Game, Emity BERRY

«Sabemos hoje que as recordações não são fixas


ou congeladas, que não são como os boiões
de compota guardados na despensa de Proust,
mas que se transformam, desmontam e voltam
a montar, que são recategorizadas através
de cada acto de memória.»
Alucinações, OLivER SACKS (2013, Relógio d'Água)
O POÇO DAS AFOGADAS
Libby

AV uma vez! Mais uma vez!


TS Os homens voltam a amarrá-la. Agora, de uma ma-
neira diferente: o polegar esquerdo ao dedo grande do pé direito, e o
polegar direito ao esquerdo. A corda em torno da cintura. Desta feita,
têm de a carregar água adentro.
— Por favor — começa ela a implorar, porque não sabe ao certo se
consegue voltar a enfrentar aquilo, a escuridão e o frio.
Quer regressar a um lar quejá não existe, a um tempo em que ela e
a tia se sentavam diante da lareira e contavam histórias uma à outra.
Quer estar na sua cama no chalé delas, quer voltar a ser pequena, ins-
pirar o fumo da madeira e as rosas e o doce aconchego da pele da tia.
— Por favor.
Afunda-se. Quando a tiram de lá pela segunda vez, tem os lábios
do azul de uma nódoa negra, e a sua respiração desapareceu para
sempre.
PARTE UM
Adi

JULES

Havia QUALQUER COISA que me querias contar, não havia? O que


é que estavas a tentar dizer? Sinto que me desviei desta conversa
há muito tempo. Deixei de me concentrar, estava a pensar noutro
assunto, a lidar com as coisas, não estava a ouvir, e perdi o fio à
meada. Bem, agora tens a minha atenção. Só que não consigo evi-
tar pensar que me escaparam alguns dos pontos mais relevantes.
Quando vieram contar-me, fiquei zangada. Aliviada primeiro,
porque, quando dois agentes da polícia nos aparecem à porta pre-
cisamente quando estamos à procura do bilhete de comboio, pres-
tes a sair porta fora para ir trabalhar, tememos o pior. Temi pelas
pessoas de quem gosto — os meus amigos, o meu ex, as pessoas
com quem trabalho. Mas não tinha que ver com nenhum deles,
disseram, tinha que ver contigo. Portanto, fiquei aliviada, só por
um instante, e depois contaram-me o que acontecera, o que ti-
nhas feito, contaram-me que tinhas estado na água e, então, fiquei
furiosa. Furiosa e com medo.
Estava a pensar no que te iria dizer quando lá chegasse, em
como sabia que tinhas feito aquilo para me magoar, para me per-
turbar, para me amedrontar, para me dar cabo da vida. Para me cha-
mares a atenção, para me arrastares de volta para onde me querias.
E pronto, Nel, conseguiste: aqui estou eu num sítio a que nunca
mais queria voltar, para tomar conta da tua filha, para resolver a tua
maldita embrulhada.

13
SEGUNDA-FEIRA, 10 DE AGOSTO

JOSH

ÁLGO ME ACORDOU. Saí da cama para ir à casa de banho e reparei


que a porta da mamã e do papá estava aberta e, quando olhei,
consegui ver que a mamã não estava na cama. O papá estava a res-
sonar, como de costume. O rádio-despertador dizia que eram 4ho8.
Achei que ela devia estar no andar de baixo. Ela tem dificuldade
em dormir. Agora, têm ambos, mas ele toma comprimidos que
são tão fortes que podíamos estar mesmo ao lado da cama e gritar-
-lhe ao ouvido que ele não acordaria.
Fui ao andar de baixo muito silenciosamente, porque, habi-
tualmente, o que acontece é que ela liga a televisão e vê aque-
les anúncios intermináveis acerca de máquinas que nos ajudam
a perder peso ou a limpar o chão ou a cortar legumes de imensas
maneiras diferentes e, depois, adormece. Mas a televisão não estava
ligada e ela não estava no sofá, pelo que percebi que devia ter saído.
Já o tinha feito algumas vezes — que eu saiba, pelo menos.
Não consigo saber onde é que toda a gente está a toda a hora. Da pri-
meira vez, disse-me que tinha ido só dar um passeio, para arejar a
cabeça, mas houve outra manhã em que acordei e ela tinha saído
e, quando olhei pela janela, consegui ver que o carro dela não es-
tava estacionado à entrada, onde costuma estar.
Julgo que, provavelmente, vai caminhar junto ao rio ou visitar
a campa da Katie. Eu faço isso, às vezes, embora não a meio da noite.
Teria medo de sair na escuridão, além de que isso me faria sentir

14
ESCRITO NA ÁGUA

esquisito, porque foi o que a própria Katie fez: levantou-se a meio


da noite, foi até ao rio e não voltou. No entanto, compreendo
porque é que a mamã o faz: agora, é o mais perto que consegue
estar da Katie, isso e sentar-se no quarto dela, que é outra coisa
que sei que, às vezes, ela faz. O quarto da Katie é ao lado do meu
e consigo ouvir a mamã a chorar.
Sentei-me no sofá para esperar por ela, mas devo ter adorme-
cido, porque, quando ouvi a porta abrir-se, havia luz lá fora e o
relógio na cornija da lareira indicava 7h15. Ouvi a mamã a fechar
a porta atrás dela, e depois correu imediatamente escadas acima.
Segui-a até ao primeiro andar. Fiquei diante do quarto e esprei-
tei por entre a abertura da porta. Ela estava de joelhos ao lado da
cama, do lado do papá, e tinha a cara vermelha, como se tivesse
estado a correr. Estava a respirar com dificuldade e a dizer:
— Alec, acorda. Acorda — dizia enquanto o abanava. — À Nel
Abbott morreu. Encontraram-na na água. Atirou-se.
Não me lembro de dizer nada, mas devo ter feito algum baru-
lho, porque ela olhou para cima, para mim, e pôs-se de pé.
— Oh, Josh — disse ela, vindo na minha direção. — Oh, Josh.
— Tinha lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto abaixo e abraçou-
-me com força. Quando me afastei dela, ainda estava a chorar, mas
estava a sorrir também. — Oh, querido — disse ela.
O papá sentou-se na cama. Esfregava os olhos. Leva uma eter-
nidade a acordar como deve ser.
— Não compreendo. Quando... Queres dizer na noite passa-
da? Como é que sabes?
— Saí para comprar leite — disse ela. — Toda a gente estava a
falar disso... na loja. Encontraram-na esta manhã.
Ela sentou-se na cama e voltou a chorar. O papá deu-lhe um
abraço, mas estava a observar-me e tinha um ar estranho na cara.
— Onde é que foste? — perguntei-lhe. — Onde é que andaste?
— Fui às lojas, Josh. Acabei de dizer.
Estás a mentir, apeteceu-me dizer. Saíste há horas, não foste só
comprar leite. Apeteceu-me dizer isso, mas não podia, porque os
meus pais estavam sentados na cama, a olhar um para o outro,
e pareciam felizes.

15
TERÇA-FEIRA, 11 DE AGOSTO

JULES

LEMBRO-ME. NO BANCO DE TRÁS DA AUTOCARAVANA, com as almofadas


empilhadas no meio para marcar a fronteira entre o teu território
e o meu, ao irmos para Beckford passar o verão, tu inquieta e exci-
tada — mal podias esperar por chegar lá —, e eu esverdeada de
enjoo, tentando não vomitar.
Não era só lembrar-me; sentia-o. Sentia o mesmo enjoo esta
tarde, debruçada sobre o volante como uma velhota, a conduzir
depressa e mal, guinando para o meio da estrada nas curvas, car-
regando no travão com brusquidão demais, corrigindo demasiado
a trajetória ao ver os carros a virem de frente. Sentia aquilo, aquela
sensação que tenho quando vejo uma carrinha branca disparada
na minha direção, por um daqueles caminhos estreitos, e penso:
Vou desviar-me, vou fazê-lo, vou guinar mesmo para a faixa dele; não
porque queira, mas porque tenho de fazê-lo. Como se, à última
hora, perdesse todo o livre-arbítrio. É como a sensação que temos
quando nos encontramos à beira de um penhasco, ou à beira da
plataforma dos comboios, e nos sentimos impelidos por uma
qualquer mão invisível. E se? E se eu me limitasse a dar um passo
em frente? E se eu me limitasse a virar o volante?
(Afinal de contas, tu e eu não somos tão diferentes.)
O que me espantou foi quão bem me lembrava. Demasiado
bem. Porque será que me consigo recordar tão perfeitamente das
coisas que me aconteceram quando tinha 8 anos e, contudo, tentar

16
ESCRITO NA ÁGUA

lembrar-me se falei ou não com os meus colegas acerca de rea-


gendar a avaliação de um cliente para a semana que vem me pa-
rece impossível? Nunca me consigo lembrar do que preciso, mas
as coisas que tanto queria esquecer estão sempre a ocorrer-me.
Quanto mais perto estava de Beckford, mais inegável se tornava,
o passado a disparar sobre mim como pardais vindos de uma
sebe, assustadores e inevitáveis.
Toda aquela exuberância, aquele verde inacreditável, o amare-
lo vivo e ácido do tojo nas colinas, queimava-me o cérebro e trazia
consigo um documentário de memórias: o papá a levar-me ao
colo para dentro de água quando eu tinha 4 ou 5 anos, enquanto eu
gritava e me contorcia com deleite; tu a saltares dos rochedos para
o rio e a subires cada vez mais alto. Piqueniques nas margens
arenosas, junto ao poço, o gosto a protetor solar na língua; apa-
nhar um peixe gordo e castanho na água lamacenta a jusante do
Moinho. Tu a chegares a casa com sangue a correr-te pela perna
abaixo depois de teres calculado mal um dos saltos e a morderes
um pano de cozinha enquanto o papá te limpava o golpe, porque
não ias chorar. Não à minha frente. A mamã a usar um vestido de
alças azul-claro, descalça na cozinha, a fazer papas de aveia para
o pequeno-almoço, com as solas dos pés de um castanho escuro
e enferrujado. O papá sentado na margem do rio, a desenhar.
Mais tarde, quando éramos mais velhas, tu de calções de ganga,
com a parte de cima de um biquíni debaixo da tua t-shirt, a fugires
de casa tarde para te encontrares com um rapaz. Não um rapaz
qualquer, o rapaz. A mamã, mais magra e mais frágil, a dormir
num cadeirão na sala de estar; o papá a desaparecer para fazer
longas caminhadas com a mulher do vigário, gorducha, pálida e
com chapéu de sol. Lembro-me de um jogo de futebol. Um sol
quente sobre a água, e todos os olhares em cima de mim; a con-
ter as lágrimas, com sangue na coxa, e risadas a soarem-me aos
ouvidos. Ainda as consigo ouvir. E, por trás disso tudo, o som da
água a correr.
de
Estava tão embrenhada nessa água que não me apercebi
que tinha chegado. Estava ali, no coração da vila; surgiu subita-
mente perante mim como se tivesse fechado os olhos e sido levada

1174
PauLa HAWKINS

para o local e, antes que desse por isso, estava a conduzir lenta-
mente pelas ruelas estreitas cheias de jipes, com uma mancha
de pedra rosada na periferia da minha visão, em direção à igreja,
em direção à antiga ponte, agora com cuidado. Mantive o olhar
no asfalto à minha frente e tentei não olhar para as árvores, para o
rio. Tentei não ver, mas não conseguia evitá-lo.
Encostei à beira da estrada e desliguei o motor. Olhei para cima.
Havia árvores e degraus de pedra, verdes por causa do musgo e
traiçoeiros depois da chuva. Todo o meu corpo tinha pele de gali-
nha. Lembrei-me disto: a chuva gelada a embater no asfalto, luzes
azuis intermitentes a competirem com os relâmpagos para ilu-
minarem o rio e o céu, nuvens de respiração diante de rostos em
pânico, e um rapazinho, branco como um fantasma e a tremer, le-
vado pelos degraus acima, até à estrada, por uma mulher-polícia.
Ela estava a agarrar-lhe na mão e tinha os olhos muito abertos e
enlouquecidos, a cabeça a virar-se para um lado e para o outro en-
quanto chamava alguém. Ainda consigo sentir o que senti nessa
noite, o terror e o fascínio. Ainda consigo ouvir as tuas palavras
na minha cabeça: Como seria? Consegues imaginar? Veres a tua mãe
morrer?
Afastei o olhar. Liguei o carro e voltei para a estrada, passei a
ponte até onde o caminho faz uma curva. Procurei a curva — a pri-
meira à esquerda? Não, não é essa, a segunda. Lá estava ela, aquele
velho e castanho casco de pedra, a Casa do Moinho. Com uma
picada na pele, fria e húmida, e o coração a bater perigosamente
depressa, conduzi o carro para lá do portão aberto, seguindo pelo
caminho de acesso privado.
Encontrava-se lá um homem, a olhar para o telemóvel. Um polí-
cia fardado. Aproximou-se rapidamente do carro e eu baixei a
janela.
— Sou a Jules — disse. — A Jules Abbott? Sou... irmã dela.
— Ah. — Ele parecia envergonhado. — Sim. Certo. Claro.
Olhe — e virou-se para trás, para a casa —, de momento não está cá
ninguém. À rapariga... a sua sobrinha... saiu. Não sei para onde...
Tirou o rádio do cinto.
Abri a porta e saí.

18
ESCRITO NA ÁGUA

— Não faz mal se eu entrar em casa? — perguntei.


Estava a olhar para cima, para a janela aberta, para o que costu-
mava ser o meu quarto. Ainda te conseguia ver lá, sentada no
parapeito da janela, com os pés pendurados para fora. Vertigino-
samente.
O polícia parecia indeciso. Afastou-se de mim e disse qualquer
coisa em voz baixa para o rádio antes de regressar.
— Sim, não faz mal. Pode entrar.
Eu estava cega ao subir as escadas, mas ouvia a água e cheira-
va a terra, a terra à sombra da casa, por debaixo das árvores, nos
lugares intocados pela luz do Sol, o fedor acre das folhas a apodre-
cerem, e esse cheiro transportou-me para trás no tempo.
Abri a porta da rua, meio à espera de ouvir a voz da minha mãe
a chamar-me da cozinha. Sem pensar, soube que teria de empur-
rar a porta com a coxa, no ponto em que fica presa contra o chão.
Entrei no corredor e fechei a porta atrás de mim, com os olhos
a debaterem-se para se focarem na penumbra, e eu a tremer face
ao frio súbito.
Na cozinha, havia uma mesa de carvalho por baixo da janela.
Seria a mesma? Parecia semelhante, mas não podia ser, o sítio ti-
nha mudado de mãos demasiadas vezes entre essa altura e agora.
Poderia ter a certeza se rastejasse para debaixo dela, para procurar
as marcas que tu e eu lá deixámos, mas só essa ideia me acelerava
a pulsação.
Lembro-me do modo como apanhava o sol de manhã, de
como, se nos sentássemos do lado esquerdo, defronte para o for-
no de ferro fundido, víamos a antiga ponte, perfeitamente enqua-
drada. Tão bela, comentava toda a gente perante aquela vista —
mas não a viam mesmo. Nunca abriam a janela nem se inclina-
vam para fora, nunca olhavam para baixo, para a roda, a apodrecer
no seu lugar, nunca olhavam para lá da luz do Sol que brincava
na superfície da água, nunca viam como a água era, na realidade,
de um negro-esverdeado e cheia de coisas vivas e de coisas mo-
ribundas.
s
Saí da cozinha em direção ao vestíbulo, passei pelas escada
mente
e penetrei mais na casa. Deparei-me com aquilo tão subita

E)
PauULA HAWKINS

que me espantou, junto às enormes janelas que davam para o rio


— rio adentro, quase, como se, se as abríssemos, a água entrasse
cá para dentro, para cima do comprido banco de madeira da jane-
la que corria por debaixo dela.
Lembro-me. Todos aqueles verões, eu e a mamã sentadas âque-
la janela, encostadas às almofadas, com os pés para cima, os dedos
dos pés quase a tocarem-se, e com livros sobre os joelhos. Um
prato de petiscos algures, embora ela nunca lhes tocasse.
Eu não conseguia olhar para aquilo; deixava-me triste e deses-
perada, vê-lo assim outra vez.
O estuque fora retirado, expondo os tijolos nus por debaixo,
e a decoração era toda o teu género: tapetes orientais sobre o chão,
móveis de ébano pesados, grandes sofás e cadeirões de couro,
e demasiadas velas. E, por toda a parte, as provas das tuas obses-
sões: enormes gravuras emolduradas, a Ofélia de Millais, bela e
serena, com os olhos e a boca abertos, e com flores nas mãos. A Tripla
Hécate de Blake, o Sabat das Bruxas de Goya, o seu Cão Afogado.
Detesto esta mais do que todas, o pobre animal a lutar para man-
ter a cabeça acima da maré a subir.
Ouvi um telefone a tocar e pareceu-me vir de debaixo da casa.
Segui o som ao longo da sala de estar e desci alguns degraus —
creio que costumava haver aí uma arrecadação, cheia de tralha.
Certo ano, inundou-se e ficou tudo coberto de lodo, como se a casa
se estivesse a tornar parte do leito do rio.
Entrei naquilo que se tornara o teu estúdio. Estava cheio de
equipamento de filmagem, ecrãs, projetores e caixas de luz, uma
impressora, papéis, livros e pastas empilhados no chão, e arquivos
agrupados contra a parede. E fotografias, claro. As tuas fotografias
a cobrirem cada centímetro do estuque. Para um leigo, poderia
parecer que eras uma fã de pontes: a Golden Gate, a ponte de
Nanquim sobre o rio Yangtzé, o viaduto Príncipe Eduardo. Mas ve-
jam melhor. Não se trata de pontes, não é um amor por essas obras-
“primas de engenharia. Vejam melhor e perceberão que não são
apenas pontes, é Beachy Head, a floresta de Aokigahara, Preikestolen.
Os locais a que pessoas desesperadas vão para acabarem com tudo,
catedrais da angústia.

20
ESCRITO NA ÁGUA

Defronte da entrada, imagens do Poço das Afogadas. Uma vez,


e outra, e outra, de todos os ângulos imagináveis, de todos os pon-
tos de vista: pálido e gelado no inverno, com a falésia escura e
brutal, ou cintilante no verão, um oásis, exuberante e verde, ou de
um cinzento opaco e pedregoso com nuvens de tempestade por
cima, uma vez, e outra, e outra. As imagens desfocavam-se tor-
nando-se uma só; um ataque vertiginoso ao olhar. Senti-me como
se estivesse lá, naquele sítio, como se me encontrasse no cimo do
penhasco a olhar para baixo, para a água, e a sentir essa adrenalina
terrível: a tentação do esquecimento.

Po
NICKIE

ALGUMAS DELAS IAM ÁGUA ADENTRO voluntariamente e algumas


não; e, se perguntassem a Nickie — não que alguém o fizesse,
porque nunca ninguém o fez —, Nel Abbott tinha entrado a dar
luta. Mas ninguém lhe ia perguntar e ninguém lhe daria ouvidos,
pelo que, na verdade, não fazia sentido ela dizer o que quer que
fosse. Especialmente, não à polícia. Mesmo que não tivesse tido
os seus problemas com eles no passado, não podia falar-lhes acer-
ca daquilo. Era demasiado arriscado.
Nickie tinha um apartamento por cima da mercearia; na ver-
dade, apenas um quarto, com uma pequena bancada de cozinha
e uma casa de banho tão minúscula que mal merecia esse nome.
Não era grande coisa, não dizia muito do que ela tinha feito com
a sua vida, mas tinha um cadeirão confortável junto à janela, que
dava para a vila, e era aí que se sentava e comia, e até dormia, às
vezes, porque hoje em dia já mal conseguia dormir, pelo que lhe
parecia não fazer muito sentido ir para a cama.
Sentava-se e observava todas as idas e vindas e, se não visse,
sentia. Mesmo antes de as luzes terem começado a cintilar sobre a
ponte, sentira algo. Não sabia que era Nel Abbott, a princípio
não. As pessoas acham que as visões são cristalinas, mas não é
assim tão simples. Só sabia que alguém voltara a ir nadar. Com
as luzes apagadas, ela sentou-se e observou: um homem e os
seus cães subiram escadas acima, depois chegou um carro; não

Puga
ESCRITO NA ÁGUA

um carro-patrulha como deve ser, apenas um carro normal, azul-


-escuro. O inspetor Sean Townsend, pensou ela, e tinha razão.
Ele e o homem com os cães voltaram a descer as escadas e, depois,
chegou a cavalaria toda, com luzes intermitentes, mas sem sire-
nes. Não fazia sentido. Não havia pressas.
Quando o Sol se levantara no dia anterior, ela descera para com-
prar leite e o jornal, e toda a gente estava a falar, toda a gente estava
a dizer — olha mais uma, é a segunda este ano —, mas, quando
contaram quem era, quando disseram que era Nel Abbott, Nickie
soube que a segunda não fora como a primeira.
Ainda chegara a pensar em ir ter com Sean Townsend e dizer-lhe
logo ali, Mas, embora fosse um jovem agradável e bem-educado,
continuava a ser um chui, e filho do seu pai, pelo que não se podia
confiar nele. Nickie nem sequer teria pensado nisso se não tivesse
tido um ligeiro fraquinho por Sean. Ele próprio passara por uma
tragédia e Deus sabe por que mais depois disso, e fora bondoso
com ela — fora o único a ser bondoso com ela na altura da sua
própria detenção.
A segunda detenção, para ser sincera. Fora há algum tempo, há
seis ou sete anos. Ela quase desistira do negócio depois da sua pri-
meira condenação por fraude, e reservava-se apenas para alguns
clientes regulares e para a malta da bruxaria que aparecia de vez
em quando para prestar homenagem a Libby, a Mary e a todas
as mulheres da água. Fazia algumas leituras de tarot e algumas
sessões espíritas durante o verão; de vez em quando, pediam-lhe
que contactasse um familiar, ou uma das nadadoras. Mas tinha
desistido de angariar clientes há já muito tempo.
Acontece que, depois, fizeram-lhe um segundo corte na pen-
são, pelo que Nickie teve de sair da semirreforma. Com a ajuda de
um dos tipos que eram voluntários na biblioteca, criou uma pági-
na de Internet em que oferecia leituras a 15 libras por cada meia
hora. O que, ainda por cima, comparativamente, era um bom
preço — aquela Susie Morgan da televisão, que era tão médium
como o traseiro de Nickie, cobrava 29,99 libras por 20 minutos e,
por esse preço, nem sequer se falava com ela, só com um membro
da sua «equipa de médiuns».

23
PauULA HAWKINS

Ela só tinha a página a funcionar há algumas semanas quan-


do foi denunciada à polícia por um funcionário da inspeção
comercial por «não apresentar o termo de isenção de responsa-
bilidade exigido pelos Regulamentos de Defesa do Consumidor».
Regulamentos de Defesa do Consumidor! Nickie desculpou-se
dizendo que não sabia que tinha de apresentar um termo de res-
ponsabilidade; a polícia disse-lhe que a lei tinha mudado. Como
é que estavam à espera de que ela soubesse? A pergunta causara
grande hilaridade, claro. Era de pensar que adivinharia! Então, só
consegue ver o futuro? E o passado, não?
Só o inspetor Townsend — um mero agente, nessa altura
— é que não se tinha rido. Fora bondoso, explicara-lhe que era
por causa das novas regras da União Europeia. Regras da União
Europeia! Defesa do Consumidor! Tempos houvera em que pes-
soas como Nickie eram processadas (perseguidas) de acordo com
a Lei da Bruxaria e a Lei dos Médiuns Fraudulentos. Agora, eram
apanhados pelos burocratas europeus. Oh, como tombaram os
poderosos!
Portanto, Nickie fechou a página de Internet, renunciou à tec-
nologia e voltou aos seus antigos hábitos, mas hoje em dia não
aparecia quase ninguém.
O facto de ser Nel na água transtornara-a um pouco, tinha
de admitir. Sentia-se mal. Não propriamente culpada, porque a
culpa não era sua. Ainda assim, Nickie perguntava-se se teria dito
demasiado, revelado demasiado. Mas não a podiam culpar por ter
começado aquilo tudo. Nel Abbott já andava a brincar com o fogo
— estava obcecada com o rio e os seus segredos, e esse tipo de
obsessão nunca acaba bem. Não, Nickie nunca disse a Nel para ir
à procura de problemas, só a encaminhou na direção certa. E não
se dava o caso de não a ter avisado, pois não? O problema era que
ninguém lhe dava ouvidos. Nickie costumava dizer que havia ho-
mens naquela vila que nos amaldiçoavam sem qualquer motivo,
que sempre assim fora. Contudo, as pessoas faziam vista grossa,
não era? Ninguém gostava de se lembrar de que a água daquele
rio estava infetada com o sangue e a bílis de mulheres persegui-
das, mulheres infelizes; afinal, bebiam-na todos os dias.

24
JULES

TU NUNCA MUDASTE. Eu devia saber isso. E sabia mesmo. Adoravas


a Casa do Moinho e a água, e estavas obcecada por aquelas mulhe-
res, pelo que tinham feito e por quem tinham deixado atrás de si.
E agora isto. Sinceramente, Nel. Levaste mesmo as coisas tão longe?
No andar de cima, hesitei à entrada do quarto principal.
Com os dedos na maçaneta da porta, respirei fundo. Sabia o que
me tinham dito, mas também te conhecia, e não conseguia acre-
ditar neles. Tinha a certeza de que, quando abrisse a porta, lá esta-
rias tu, alta e magra e nada contente por me veres.
O quarto estava vazio. Dava a sensação de ser um sítio que
acaba de ficar desocupado, como se tivesses acabado de sair de lá
e corrido escadas abaixo para fazer uma chávena de café. Como se
voltasses dentro de nada. Eu ainda conseguia cheirar o teu perfu-
me no ar, algo forte e doce e antiquado, como um dos que a mamã
costumava usar, Opium ou Yvresse.
— Nel?
Disse o teu nome suavemente, não sei se para te conjurar,
como a um demónio. O silêncio respondeu-me.
Mais à frente no corredor, ficava o «meu quarto» — aquele
em que eu costumava dormir: o mais pequeno da casa, como é
próprio dos mais novos. Parecia ainda mais pequeno do que eu
me lembrava, mais escuro, mais triste. Estava vazio, à exceção de
uma cama individual por fazer, e cheirava a humidade, como a terra.

Ro
PAULA HAWKINS

Nunca dormi bem neste quarto, nunca estive à vontade. O que


não é assim tão surpreendente, dado o modo como gostavas de
aterrorizar-me. Sentada do outro lado da parede, a arranhar o es-
tuque com as unhas, a pintar símbolos na parte de trás da porta
com verniz vermelho-sangue, a escrever os nomes de mulheres
mortas na condensação da janela. E, depois, havia todas aquelas
histórias que contavas, de bruxas arrastadas para a água ou de mu-
lheres desesperadas a lançarem-se dos penhascos para as rochas
lá em baixo, de um rapazinho aterrorizado que se escondera na
mata e vira a própria mãe a saltar para a morte.
Não me lembro disso. Claro que não. Quando examino a memó-
ria que tenho de observar o rapazinho, não faz qualquer sentido:
é tão desconexa como um sonho. Tu a sussurrares-me ao ouvi-
do — isso não aconteceu numa qualquer noite gelada na água.
Seja como for, nunca cá estávamos no inverno, não havia noites
geladas na água. Nunca vi uma criança assustada na ponte, a meio
da noite — o que é que eu, eu própria uma criança pequena, esta-
ria lá a fazer? Não, foi só uma história que me contaste, de como
o rapaz se agachara entre as árvores e olhara para cima e a vira,
o rosto dela tão pálido como a sua camisa de noite ao luar; de
como olhara para cima e a vira a lançar-se, de braços abertos como
se fossem asas, para o ar silencioso; de como o grito dos seus lá-
bios morrera ao embater na água escura.
Nem sequer sei se houve mesmo um rapaz que viu a mãe mor-
rer, ou se inventaste aquilo tudo.
Deixei o meu antigo quarto e virei para o teu, o espaço que
costumava ser teu, o espaço que, ao que parece, é agora da tua
filha. Uma bagunça caótica de roupas e livros, uma toalha húmida
largada no chão, canecas sujas na mesa de cabeceira, um bafo a
tabaco no ar e o cheiro nauseante a lírios apodrecidos, murchando
num vaso ao pé da janela.
Sem pensar, comecei a arrumar. Endireitei a roupa da cama e
pendurei a toalha no suporte da casa de banho privativa. Estava de
joelhos, a apanhar um prato de plástico sujo de debaixo da cama,
quando ouvi a tua voz, um punhal no meu peito.
— O que é que julgas que estás a fazer, foda-se?

26
JULES

DEBATI-ME PARA ME PÔR DE PÉ, com um sorriso triunfal nos lábios,


porque sabia — sabia que eles estavam errados, sabia que não ti-
nhas mesmo desaparecido. E ali estavas tu à entrada, dizendo-me
para sair do teu quarto, FODA-SE. Dezasseis, dezassete anos, com
uma mão à volta do meu pulso, unhas pintadas a cravarem-se-me
na pele. Eu disse para SAÍRES, Julia. Sua vaca gorda.
O sorriso morreu-me nos lábios, porque é claro que não podias
ser tu; era a tua filha, que é quase exatamente igual a ti quando
eras adolescente. Encontrava-se à entrada, com uma mão na anca.
— O que é que estás a fazer? — voltou ela a perguntar.
— Desculpa — disse eu. — Sou a Jules. Não nos conhecemos,
mas sou tua tia.
— Não perguntei quem eras — disse ela, olhando para mim
como se eu fosse estúpida. — Perguntei o que é que estavas a
fazer. Estás à procura de quê? — Os seus olhos desviaram-se do
meu rosto e olhou na direção da porta da casa de banho. Antes
que lhe pudesse responder, disse: — A polícia está lá em baixo
— e seguiu pelo corredor fora, com as suas pernas compridas,
passos preguiçosos e os chinelos a baterem no chão ladrilhado.
Apressei-me atrás dela.
— Lena — disse eu, colocando-lhe a mão sobre o braço. Ela
libertou-o como se estivesse escaldada, virando-se para trás, para
me encarar. — Lamento.

PAi
PauLA HAWKINS

Ela baixou os olhos, com os dedos a massajarem o sítio onde


eu lhe tocara. As suas unhas apresentavam vestígios de um an-
tigo verniz azul, e as pontas dos dedos pareciam pertencer a um
cadáver. Acenou com a cabeça, sem vir ao encontro do meu olhar.
— A polícia precisa de falar contigo — disse ela.
Ela não é como eu esperava. Suponho que imaginara uma
criança, destroçada, desesperada por consolo. Mas ela não o é,
claro; não é uma criança, tem 15 anos e já é quase adulta e, quanto
a procurar consolo, não parecia necessitar de todo disso, não de
mim. Afinal de contas, é tua filha.
Os detetives estavam à espera na cozinha, de pé junto à mesa,
olhando lá para fora, em direção à ponte. Um homem alto com
uma barba por fazer grisalha salpicada na cara e uma mulher a seu
lado, cerca de 30 centímetros mais baixa do que ele.
O homem avançou, com a mão estendida e os olhos cinzento-
-claros fixos no meu rosto.
— Inspetor Sean Townsend — disse ele. Ao esticar o braço,
reparei que tinha um ligeiro tremor. A sua pele parecia fria e seca
contra a minha, como se pertencesse a um homem muito mais
velho. — Sinto muito pela sua perda.
Tão estranho ouvir aquelas palavras. Disseram-nas ontem
quando me vieram contar. Eu própria quase as dissera à Lena, mas
agora a sensação era diferente. A sua perda. Apetecia-me dizer-
“lhes: ela não está perdida. Não pode estar. Vocês não conhecem
a Nel, não sabem como ela é.
O inspetor Townsend observava o meu rosto, à espera de que
eu dissesse alguma coisa. Era muito mais alto do que eu, magro
e com um ar incisivo, como se, caso nos aproximássemos dema-
siado dele, nos pudéssemos cortar. Eu ainda estava a olhar para
ele quando me apercebi de que a mulher me fitava, com um rosto
cheio de compaixão.
— Agente Erin Morgan — disse ela. — Lamento muito.
Tinha uma pele cor de azeitona, olhos escuros e cabelo preto-
“azulado, cor de asa de corvo. Usava-o puxado para trás, mas alguns
caracóis tinham escapado junto às têmporas e por trás das orelhas,
dando-lhe um ar de desalinho.

28
ESCRITO NA ÁGUA

— À agente Morgan será o seu contacto na polícia — disse


o inspetor Townsend. — Mantê-la-á informada acerca do ponto
em que nos encontramos na investigação.
— Há uma investigação? — perguntei estupidamente.
A mulher acenou com a cabeça e sorriu, fazendo sinal para que
me sentasse à mesa da cozinha, e eu obedeci. Os detetives sentaram-
-se à minha frente. O inspetor Townsend baixou os olhos e esfregou
a palma da mão direita no seu pulso esquerdo, com movimentos
rápidos e bruscos: um, dois, três.
A agente Morgan estava a falar comigo, com o seu tom calmo
e tranquilizador a opor-se às palavras que lhe saíam da boca.
— O corpo da sua irmã foi visto no rio por um homem que
andava a passear os cães ontem de manhã cedo — disse ela. Uma pro-
núncia de Londres, com uma voz suave como o fumo. — Os indí-
cios preliminares sugerem que estava na água apenas há algumas
horas. — Olhou para o inspetor e novamente para mim. — Estava
completamente vestida, e os ferimentos são condizentes com uma
queda do penhasco acima do poço.
— Acha que ela caiu? — perguntei.
Desviei o olhar dos detetives da polícia para a Lena, que me
seguira até ao andar de baixo e que estava do outro lado da cozinha,
encostada à bancada. Descalça, com perneiras pretas e um colete
cinzento esticado sobre as clavículas acentuadas e os minúsculos
brotos de seios, estava a ignorar-nos, como se aquilo fosse normal,
banal. Como se fosse uma ocorrência quotidiana. Agarrava o tele-
móvel com a mão direita, percorrendo-o com o polegar, e tinha
o braço esquerdo à volta do seu corpo esguio, o antebraço mais
ou menos da largura do meu pulso. Uma boca larga e amuada,
sobrancelhas escuras, o cabelo louro e sujo a cair-lhe sobre a cara.
Deve ter pressentido que a observava, porque levantou os olhos
e ampliou-os apenas por um momento, pelo que afastei o olhar.
Falou.
— Tu não achas que ela caiu, pois não? — disse ela, com o lábio
a dobrar-se. — Conhece-la melhor do que isso.

2
LENA

ESTAVAM TODOS SÓ A OLHAR fixamente para mim e apetecia-me


gritar-lhes para que saíssem da nossa casa. Da minha casa. É a mi-
nha casa, a nossa, nunca será dela. Tia Julia. Descobri-a no meu
quarto, a vasculhar as minhas coisas, antes sequer de me ter co-
nhecido. Depois, tentou ser agradável e disse-me que lamentava,
como se eu devesse acreditar que ela não se está a cagar.
Não durmo há dois dias e não quero falar com ela nem com
ninguém. E não quero a ajuda dela nem as suas condolências de
merda, e não quero ouvir as mesmas teorias patéticas acerca do que
aconteceu à mamã, vindas de pessoas que nem sequer a conheciam.
Estava a tentar manter a boca calada, mas, quando eles disse-
ram que provavelmente ela caiu, fiquei mesmo zangada, porque
é claro que não caiu. Não caiu. Eles não compreendem. Isto não
foi um acidente fortuito,
foi ela que fez isto. Quer dizer, não é que
agora importe, suponho, mas sinto que toda a gente devia, pelo
menos, admitir a verdade.
Disse-lhes:
— Ela não caiu. Saltou.
A detetive começou a fazer perguntas estúpidas acerca de por-
que é que eu dizia aquilo e se ela estava deprimida e se já o tentara
antes e, durante todo esse tempo, a tia Julia estava só a olhar fixa-
mente para mim, com os seus tristes olhos castanhos, como se eu
fosse uma espécie de aberração qualquer.

30
ESCRITO NA ÁGUA

— Sabem que ela era obcecada pelo poço, por tudo o que lá
aconteceu, por toda a gente que lá morreu. Vocês sabem disso.
Até ela sabe isso — disse eu, olhando para a Julia.
Ela abriu a boca e voltou a fechá-la, como um peixe. Parte de
mim queria contar-lhes tudo, parte de mim queria contar-lhes tin-
tim por tintim, mas qual seria, afinal, a utilidade? Não creio que
sejam capazes de compreender.
O Sean — o inspetor Townsend, como é suposto eu chamar-
“lhe quando são assuntos oficiais — começou a fazer perguntas à
Julia: quando foi a última vez que falou com a minha mãe? Qual
era o estado de espírito dela na altura? Havia alguma coisa que
a estivesse a incomodar? E a tiá Julia ficou ali sentada e mentiu.
— Não falo com ela há anos — disse ela, com o rosto a ficar
vermelho-vivo ao dizê-lo. — Afastámo-nos.
Ela conseguia ver-me a olhar e sabia que eu sabia que ela era
uma aldrabona. Ficou cada vez mais vermelha e, depois, tentou
desviar as atenções de si própria, falando comigo.
— Porquê, Lena, porque é que dizes que ela saltou?
Olhei para ela durante muito tempo antes de responder. Queria
que ela soubesse que eu via que ela estava a mentir.
— Estou surpreendida por me perguntares isso — disse eu.
— Não foste tu que lhe disseste que ela tinha um desejo de morte?
Ela começou a abanar a cabeça e a dizer:
— Não, não, não disse, não desse modo...
Mentirosa.
O outro detetive — a mulher — começou a falar acerca de como
«não temos provas, neste momento, que indiquem que se tratou
de um ato deliberado» e acerca de como não tinham encontrado
um bilhete.
Então, tive de me rir.
— Acham que ela deixaria um bilhete? A minha mãe não dei-
xaria um bilhete, foda-se. Isso seria, tipo, tão prosaico.
A Julia acenou com a cabeça.
— Isso é... é verdade. Consigo imaginar a Nel a querer que toda
a gente tivesse dúvidas... Ela adorava mistérios. E teria adorado
ser o centro de um.

31
PauLA HAWKINS

Então, apeteceu-me esbofeteá-la.


Cabra de merda, apetecia-me dizer, isto também é culpa tua.
A detetive começou a alvoroçar-se, servindo copos de água a
toda a gente e tentando impingir-me um deles, e eu já não era
capaz de suportar aquilo. Sabia que ia começar a chorar e não ia
fazê-lo à frente deles.
Fui para o meu quarto, tranquei a porta e foi lá que chorei.
Enrolei-me numa echarpe e chorei tão silenciosamente quanto
conseguia. Tenho andado a tentar não ceder àquilo, à vontade de
me deixar ir e de me desfazer, porque sinto que, quando isso co-
meçar, nunca mais vai parar.
Tenho andado a tentar não deixar que as palavras surjam, mas
elas andam às voltas na minha cabeça: Desculpa, Desculpa, Desculpa,
a culpa foi minha. Não parava de olhar fixamente para a porta do meu
quarto e de rever repetidamente aquele momento, no domingo
à noite, em que a mamã entrou para dizer boa-noite. Ela disse:
— Aconteça o que acontecer, sabes quanto te amo, Lena, não
sabes?
Eu virei-me para o outro lado e pus os auscultadores, mas sa-
bia que ela estava ali, conseguia senti-la de pé e a observar-me, era
como se conseguisse sentir a tristeza dela e estivesse contente, por
achar que ela a merecia. Faria qualquer coisa, qualquer coisa para
ser capaz de me levantar e abraçá-la e dizer-lhe que também a
amava e que ela não tinha culpa nenhuma, que eu nunca devia ter
dito que a culpa era toda dela. Se ela fosse culpada de alguma coi-
sa, então, eu também era.

32
MARK

ERA O DIA MAIS QUENTE DO ANO até agora e, dado que o Poço das
Afogadas estava interdito, por motivos óbvios, Mark foi para mon-
tante, para nadar. Havia um troço em frente ao chalé dos Wards
em que o rio se alargava, com a água a correr, veloz e fresca, sobre
seixos cor de ferrugem, na margem, mas, no centro, era profunda
e suficientemente fria para nos arrancar o fôlego dos pulmões e
fazer a pele arder, o tipo de frio que nos fazia rir alto, devido ao
choque que provocava.
E ele fê-lo, riu-se às gargalhadas — era a primeira vez em me-
ses que lhe apetecia rir. Também era a primeira vez em meses
que estava dentro de água. Para ele, o rio deixara de ser uma fonte
de prazer e passara a ser um local de horror, mas hoje voltara a
mudar, Hoje, dava-lhe uma sensação agradável. Soubera desde que
acordara, mais leve, com as ideias mais claras, com os membros
mais relaxados, que hoje era um bom dia para ir nadar. Ontem,
tinham encontrado Nel Abbott morta na água. Hoje, era um bom
dia. Ele não sentia tanto como se se tivesse libertado de um fardo,
mas mais como se um torno — que lhe andara a pressionar as
se
têmporas, ameaçando-lhe a sanidade, ameaçando-lhe a vida —
tivesse, por fim, desapertado.
Uma mulher-polícia fora lá a casa, uma detetive muito jovem,
r
com um ar doce e ligeiramente infantil, que lhe fizera deseja
er Coisa
contar-lhe coisas que, na verdade, não devia. Callie Qualqu

33
PauLA HAWKINS

era o nome dela. Ele convidou-a a entrar e contou-lhe a verdade.


Disse que vira Nel Abbott a sair do pub no domingo à noite. Não
mencionou que fora lá com a intenção expressa de dar de caras com
ela, isso não era importante. Disse que tinham falado, mas só breve-
mente, porque Nel estava com pressa.
— Falaram acerca do quê? — perguntou-lhe a detetive.
— Da filha dela, a Lena, é uma das minhas alunas. No período
passado, tive alguns problemas com ela; questões de disciplina,
esse tipo de coisas. Em setembro, ela vai voltar a estar na minha
turma de Inglês: é um ano importante, o ano em que ela vai ter exa-
mes nacionais, pelo que eu queria assegurar-me de que não íamos
ter mais problemas.
Era suficientemente verdade.
— Ela disse que não tinha tempo, que tinha outras coisas para
fazer.
Verdade, também, embora não toda a verdade. Não nada mais que.
— Ela não tinha tempo para discutir os re ERã escolares
da filha? — perguntou a detetive.
Mark encolheu os ombros e exibiu-lhe um sorriso pesaroso.
— Alguns pais envolvem-se mais do que outros — disse ele.
— Quando ela saiu do pub, para onde é que foi? Estava de
carro?
Mark abanou a cabeça.
— Não, creio que ia para casa. Estava a caminhar nessa direção.
A detetive acenou com a cabeça.
— Não voltou a vê-la depois disso? — perguntou ela, e Mark
abanou a cabeça.
Portanto, parte daquilo era verdade, parte era mentira, mas, em
qualquer caso, a detetive parecia satisfeita; deixou-lhe um cartão
com um número para onde ligar e disse-lhe que devia contactá-la
se tivesse alguma coisa a acrescentar.
— Assim farei — disse ele, com o seu sorriso vitorioso, e ela
semicerrou os olhos.
Ele perguntou a si próprio se não teria exagerado.
Agora, mergulhou para debaixo de água, descendo rumo ao leito
do rio e enfiando os dedos na lama macia e sedimentosa. Enroscou

34
ESCRITO NA ÁGUA

o corpo formando uma bola apertada e, depois, com um acesso


explosivo de energia, guindou-se de novo para a superfície, inspi-
rando ar para os pulmões.
Teria saudades do rio, mas, agora, estava pronto para se irembora.
Teria de começar a procurar um novo emprego, talvez lá em cima
na Escócia, ou talvez ainda mais longe: em França ou em Itália,
algures onde ninguém soubesse de onde é que ele tinha vindo ou
o que acontecera pelo caminho. Sonhava com uma tábua rasa, uma
folha em branco, uma história imaculada.
Ao sair para a margem, sentiu o torno a apertar-se um pouco,
mais uma vez. Ainda não estava livre de preocupações. Ainda não.
Restava a questão da rapariga, ela ainda lhe podia causar proble-
mas, embora, dado que estivera calada tanto tempo, não parecesse
provável que fosse agora quebrar o silêncio. Podiam dizer o que
quisessem acerca de Lena Abbott, mas ela era leal; mantinha a sua
palavra. E talvez agora, liberta da influência tóxica da mãe, até se
pudesse tornar uma pessoa decente.
Sentou-se na margem durante algum tempo, com a cabeça
inclinada, escutando a canção do rio e sentindo o sol nos ombros.
A sua euforia evaporou-se juntamente com a água que tinha nas
costas, mas deixou outra coisa no seu lugar, não exatamente espe-
rança, mas uma premonição tranquila de que a esperança pudes-
se, pelo menos, ser possível.
Ouviu um ruído e olhou para cima. Vinha lá alguém. Reco-
nheceu a forma dela, a lentidão agonizante do seu caminhar, e o
seu coração bateu-lhe mais forte no peito. Louise.

35
LOUISE

Havia UM HOMEM SENTADO NA MARGEM. À princípio, ela pensou


que estava nu, mas, quando ele se pôs de pé, conseguiu ver que
tinha uns calções de banho, curtos e justos, bem apertados.
Sentiu-se a reparar nele, a reparar na sua carne, e corou. Era o
Sr. Henderson.
Quando chegou ao pé dele, ele tinha posto uma toalha à volta
da cintura e enfiado uma t-shirt pela cabeça. Caminhou na direção
dela, com a mão estendida.
— Sra. Whittaker, como está?
— Louise — disse ela. — Por favor.
Ele baixou a cabeça, meio a sorrir.
— Louise. Como está?
Ela tentou retribuir-lhe o sorriso.
— Sabe como é.
Ele não sabia. Ninguém sabia.
— Eles dizem-nos... eles, veja bem! Os conselheiros do luto dizem-
-nos que teremos dias bons e maus, e que só temos é de lidar com
isso.
Mark acenou com a cabeça, mas os seus olhos desviaram-se
dos dela e ela viu-o a ruborizar. Estava envergonhado.
Toda a gente estava envergonhada. Antes de a sua vida se des-
fazer, ela nunca se apercebera de quão constrangedor era o luto,
de quão inconveniente era para toda a gente com que o enlutado

36
ESCRITO NA ÁGUA

contactava. A princípio, era uma coisa reconhecida e respeitada e


merecedora de deferência. Mas, passado um tempo, tornava-se um
empecilho — da conversa, do riso, da vida normal. Toda a gente
queria pôr aquilo para trás das costas, seguir em frente, e lá estava
ela, a empatar, a bloquear o caminho, a arrastar o corpo da sua
criança morta atrás dela.
— Que tal está a água? — perguntou ela, e o rubor dele agravou-
-se. A água, a água, a água. Não havia maneira de fugir-lhe naque-
la vila. — Fria, imagino.
Ele abanou a cabeça como um cão molhado.
— Brrr! — disse ele, e riu-se, de modo inibido.
Havia um elefante entre os dois, e ela sentiu que devia realçá-lo.
— Ouviu falar na mãe da Lena?
Como se pudesse não ter ouvido. Como se alguém pudesse
viver naquela vila e não saber.
— Sim. É terrível. Meu Deus, é terrível. Foi um choque tão gran-
de. — Calou-se e, dado que Louise não respondeu, continuou a
falar: — Hum... quer dizer, eu sei que você e ela...
Arrastou a voz, olhando por sobre o ombro para o carro. Estava
desesperado por fugir, pobrezinho.
— Não nos dávamos lá muito bem? — concedeu Louise. Brincou
com a corrente à volta do pescoço, puxando o amuleto, um pássaro
azul, para a frente e para trás. — Não, não dávamos. Ainda assim...
Ainda assim era o melhor que ela conseguia. Não nos dávamos lá
muito bem era um eufemismo absurdo, mas não havia necessidade
de contar tudo tintim por tintim. O Sr. Henderson sabia acerca da
zanga, e Deus a livrasse de estar ao pé do rio a fingir que ficara in-
feliz por Nel Abbott lá ter morrido. Não podia, não queria fazê-lo.
Ela sabia, ao ouvir os conselheiros do luto, que eles estavam
a dizer disparates e que nunca mas nunca mais teria outro dia
bom no resto da sua vida, e, no entanto, houvera momentos, nas
últimas 24 horas, em que tivera dificuldade em apagar o triunfo
do rosto.
— Suponho que, de um modo horrível — estava o Sr. Henderson
a dizer —, seja estranhamente adequado, não é? O modo como
ela morreu...

37
PAULA HAWKINS

Louise acenou com a cabeça, lugubremente.


— Talvez seja o que ela teria desejado. Talvez seja o que dese-
jou mesmo.
Mark fez uma careta.
— Acha que ela... Acha que foi deliberado?
Louise abanou a cabeça.
— Na verdade, não faço ideia.
— Não. Não. Claro que não. — Fez uma pausa. — Pelo menos...
pelo menos, agora, o que ela andava a escrever não será publicado,
pois não? O livro em que andava a trabalhar acerca do poço... não
estava acabado, pois não? Portanto, não pode ser publicado...
Louise trespassou-o com um olhar.
— Acha que não? Eu estava em crer que a morte dela o tornaria
ainda mais publicável. Uma mulher que está a escrever um livro
acerca de pessoas que morreram no Poço das Afogadas torna-se,
ela própria, uma das afogadas? Diria que alguém o quereria publicar.
Mark parecia horrorizado.
— Mas a Lena... certamente que a Lena... ela não quereria que...
Louise encolheu os ombros.
— Quem sabe? — disse ela. — Suponho que seja ela a rece-
ber os direitos de autor. — Ela suspirou. — Tenho de ir andando,
Sr. Henderson.
Deu-lhe uma palmadinha no braço e ele cobriu-lhe a mão com
a sua.
— Lamento mesmo muito, Sra. Whittaker — disse ele, e ela ficou
tocada por ver que havia lágrimas nos olhos do pobre homem.
— Louise — disse ela. — Chame-me Louise. E eu sei. Sei que
lamenta.

Louise começou a dirigir-se para casa. Levava-lhe horas, aquele


caminho pelo trilho do rio acima e abaixo — ainda mais com
aquele calor —, mas não conseguia encontrar mais nenhuma ma-
neira de preencher os seus dias. Não que não tivesse coisas para
fazer. Havia agentes imobiliários a contactar, escolas a pesquisar.
Uma cama que tinha de ser desfeita e um guarda-fatos cheio de
roupas que precisavam de ser enfiadas em caixas. Uma criança

38
ESCRITO NA ÁGUA

que precisava de acompanhamento da mãe. Amanhã, talvez. Amanhã,


faria essas coisas, mas hoje caminhava junto ao rio e pensava na
filha.
Hoje, fazia o que fazia todos os dias: procurava na sua memó-
ria inútil sinais que lhe deviam ter escapado, alertas de que
não se devia ter dado conta. Procurava fragmentos, indícios de
tristeza na vida feliz da sua criança. Porque a verdade era que
nunca se tinham preocupado com Katie. A filha era brilhante, capaz,
comedida, com uma vontade de ferro. Despertara para a adoles-
cência como se fosse uma trivialidade, aceitara-a como algo nor-
mal. Quando muito, às vezes Louise sentia-se triste por a filha mal
parecer precisar dos seus pais. Nada a intimidava — nem os traba-
lhos da escola, nem a atenção enjoativa da sua melhor amiga
carente, nem sequer o seu desabrochar, rápido e quase chocante,
para a beleza adulta. Louise conseguia lembrar-se com precisão da
vergonha cortante e ofendida que sentira quando reparara nos
homens a olharem para o seu corpo quando era adolescente, mas
Katie não dera quaisquer mostras disso. Tempos diferentes, disse-
ra Louise a si mesma, agora as raparigas são diferentes.
Louise e o marido, Alec, não se preocupavam com Katie, ape-
nas com Josh. Sempre sensível, sempre uma criança ansiosa, algo
mudara neste ano, algo o andava a incomodar; tornara-se mais
reservado, mais introvertido, aparentemente a cada dia que pas-
sava. Eles preocupavam-se com o bullying, com as suas notas
a piorarem, com as suas olheiras de manha.
A verdade é — a verdade tem de ser — que, enquanto andavam
a vigiar o filho, à espera de que ele caísse, em vez disso, foi a filha
deles que tropeçou, e eles nem sequer repararam, não estavam lá
para a amparar. A culpa parecia uma pedra na garganta de Louise;
ela estava sempre à espera de que isso a sufocasse, mas não sufo-
cava, nunca, e, portanto, ela tinha de continuar a respirar: a respi-
rar e a lembrar-se.
Na noite anterior, Katie estava calma. Eram só eles os três
para jantar porque Josh ia dormir a casa do seu amigo Hugo.
Normalmente, isso não era permitido em dias de escola, mas ti-
nham aberto uma exceção porque andavam preocupados com ele;

39
PauLa HAWKINS

Aproveitaram a oportunidade para falar com Katie acerca disso.


Teria ela reparado, perguntaram eles, em quão ansioso o irmão
parecia ultimamente?
— Provavelmente, anda preocupado por ir para a escola grande
no ano que vem — disse ela, mas não olhou para os pais enquanto
falava, manteve o olhar no prato, e a sua voz vacilava muito subtil-
mente.
— Há de correr tudo bem — estava Alec a dizer. — Metade da
turma dele vai lá estar. E tu estarás lá.
Louise lembrava-se da mão da filha a apertar o copo de água
com um pouco mais de força quando Alec disse aquilo. Lembrava-
-se dela a engolir com dificuldade e a fechar os olhos só durante
um segundo.
Lavaram a louça juntas, a mãe lavava e a filha secava, porque
a máquina de lavar louça estava avariada. Louise lembrava-se de
ter dito que não fazia mal, que podia fazer aquilo sozinha se Katie
tivesse trabalhos de casa, e que a filha dissera:
— Está tudo feito.
Louise lembrava-se de que, de cada vez que Katie lhe tirava um
prato para secar, deixava os seus dedos roçarem nos da mãe, só
um momento mais do que era necessário.
Só que, agora, Louise não podia ter a certeza se se lembrava, de
todo, dessas coisas. Teria Katie desviado os olhos, olhado para baixo,
para o seu prato? Teria mesmo agarrado o copo com mais força,
ou deixado que o seu toque se demorasse? Agora, era impossí-
vel dizê-lo, todas as suas recordações pareciam abertas à dúvida,
ao equívoco. Ela não sabia bem se isso se devia ao choque de se
aperceber de que tudo aquilo que tomara por certo não era, de
modo algum, assim tão certo ou se a sua mente estivera perma-
nentemente enevoada pelos medicamentos que tomara nos dias e
semanas depois de Katie ter morrido. Louise engolira comprimi-
dos atrás de comprimidos, com cada mão-cheia a proporcionar-
“lhe horas de alívio em branco, só para voltar a ser submergida
no seu pesadelo, ao acordar. Passado algum tempo, percebeu que
o horror de redescobrir a ausência da filha, uma e outra vez, fazia
com que as horas de esquecimento não valessem a pena.

40
ESCRITO NA ÁGUA

Disto, sentia que podia estar certa: quando Katie disse boa-noite,
sorriu e beijou a mãe do modo como sempre fazia. Abraçou-a, não
mais apertada ou demoradamente do que era habitual, e disse:
— Dorme bem.
Como é que ela tinha sido capaz, sabendo o que ia fazer?
Diante de Louise, o caminho desfocava-se, com as lágrimas a
obscurecerem-lhe a visão, pelo que não reparou na fita até estar
em cima dela. Polícia. Não Atravessar. Ela já ia a meio da colina
e aproximava-se do cume; teve de fazer um desvio pronunciado
para a esquerda, para não perturbar o último chão que Nel Abbott
alguma vez pisara.
Arrastou-se pela cumeeira e desceu a encosta da colina, com
os pés a doerem-lhe e o cabelo a colar-se-lhe ao couro cabeludo,
por causa do suor, até chegar à desejada sombra em que o cami-
nho atravessava um matagal de árvores à beira do poço. Cerca de
um quilómetro e meio mais à frente no caminho, chegou à ponte
e subiu os degraus até à estrada. Um grupo de raparigas jovens
aproximava-se dela pela esquerda e ela procurou, como sempre
fazia, a sua filha entre elas, tentando ver a sua cabeça castanho-
-clara e ouvir o ribombar do seu riso. O coração de Louise voltou
a ficar destroçado.
Observou as raparigas, com os braços à volta dos ombros umas
das outras, agarrando-se, uma massa entrelaçada de carne macia;
no seu centro, apercebeu-se Louise, encontrava-se Lena Abbott.
Lena, tão solitária naqueles últimos meses, estava a ter O seu mo-
mento de celebridade. Também ela seria olhada de boca aberta
e lastimada e, passado algum tempo, evitada.
Louise afastou-se das raparigas e olhou fixamente colina acima,
na direção de casa. Curvou os ombros, deixou cair o queixo e espe-
rou conseguir passar despercebida, porque olhar para Lena Abbott
era uma coisa terrível, conjurava imagens horríveis na mente de
Louise. Mas a rapariga avistou-a e gritou:
— Louise! Sra. Whittaker! Espere, por favor.
Louise tentou caminhar mais depressa, mas tinha as pernas
pesadas e o seu coração estava murcho como um balão velho, e Lena
era jovem e forte.

41
PauLa HAWKINS

— Sra. Whittaker, quero falar consigo.


— Agora não, Lena. Desculpa.
Lena pôs a mão no braço de Louise, mas a mulher afastou-se,
não conseguia olhar para ela.
— Lamento muito. Agora não posso falar contigo.
Louise tornara-se um monstro, uma criatura vazia que não era
capaz de reconfortar uma criança órfã, que — pior, muitíssimo
pior — não era capaz de olhar para aquela criança sem pensar:
Porque não tu? Porque é que não estavas na água, Lena? Porque é que
não foste tu? Porquê a minha Katie? Bondosa e meiga e generosa e traba-
lhadora e motivada — melhor do que tu de todas as maneiras possíveis.
Ela nunca devia ter entrado na água. Devias ter sido tu.

42
O POÇO DAS AFOGADAS
DANIELLE ABBOTT (inédito)

Prólogo

uando eu tinha 17 anos, salvei a minha irmã de se afogar.


Mas isso, acreditem ou não, não foi o início da história.
Há pessoas que se sentem atraídas pela água, que conservam algum
sentido vestigial, primordial de onde ela corre. Creio que sou uma delas.
Sinto-me mais viva quando me encontro ao pé da água, quando me
encontro ao pé desta água. Este é o local em que aprendi a nadar, o local
em que aprendi a habitar a natureza e o meu corpo, da maneira mais
alegre e aprazível.
Desde que me mudei para Beckford, em 2008, tenho nadado no rio
quase todos os dias, no inverno e no verão, às vezes com a minha filha
e às vezes sozinha, e fui ficando fascinada pela ideia de que este local
de êxtase podia ser para os outros um local de medo e de terror.
Quando tinha 17 anos, salvei a minha irmã de se afogar, mas tinha-
-me tornado obcecada pelo poço de Beckford muito antes disso. Os meus
pais eram contadores de histórias, sobretudo a minha mãe; foi da sua
boca que ouvi, pela primeira vez, a história trágica da Libby, do massacre
chocante no chalé dos Wards, da terrível lenda do rapaz que viu a sua
mãe a saltar. Obrigava-a a contar-ma, repetidamente, e lembro-me da
consternação do meu pai («Essas histórias não são mesmo para crian-
ças.») e da resistência da minha mãe («Claro que são! São História.» ).
Ela plantou uma semente em mim e, muito antes de a minha irmã
ter entrado água adentro, muito antes de eu ter pegado numa máqui-
na fotográfica ou levado a caneta ao papel, passei horas em devaneios

43
PAULA HAWKINS

e a imaginar como teria sido, que sensação teria produzido, quão fria
devia ter estado a água para a Libby naquele dia.
Como adulta, o mistério que me tem consumido é, claro está, o da
minha própria família. Não devia ser um mistério, mas é, porque, apesar
dos meus esforços para construir pontes, a minha irmã não fala comigo
há vários anos. No poço do seu silêncio, tentei imaginar o que a atraíra
para o ro na calada da noite, e até eu, com a minha imaginação singu-
lar, não consegui. Porque a minha irmã nunca foi a dramática, a que
era dada a gestos arrojados. Podia ser dissimulada. ardilosa, tão vingativa
como a própria água, mas ainda estou perplexa. Pergunto-me se não
estarei sempre.
Decidi, no decurso do processo de tentar compreender-me a mim
própria e à minha família e às histórias que contamos uns aos outros,
que tentaria entender todas as histórias de Beckford, que tentaria pôr
por escrito todos os derradeiros momentos, tal como os imaginava, das
vidas das mulheres que foram parar ao Poço das Afogadas de Beckford.
Tem um nome soturno; e, contudo, o que é afinal? Uma curva do rio,
somente. Um meandro. Achá-lo-ão se seguirem todas as voltas e revira-
voltas do rio, a dilatar-se e a transbordar, dando vida e roubando-a,
também. O rio é, à vez, frio e límpido, estagnado e poluído; serpenteia
por entre florestas e corta, como aço, por entre as dúcteis Cheviot Hills,
e, depois, mesmo a norte de Beckford, abranda. Repousa, só durante
um pouco, no Poço das Afogadas.
É um local idílico: carvalhos dão sombra ao caminho, faias e plá-
tanos pontuam as encostas, e há um banco de areia inclinado do lado
sul. Um local onde remar, onde levar as crianças; o lugar ideal para
um piquenique num dia de sol.
Mas as aparências iludem, porque este éum local mortífero. A água,
escura e vítrea, esconde o que se encontra sob a sua superfície: algas para
nos emaranharem, para nos arrastarem para baixo, rochas afiadas
para nos cortarem a carne. Por cima, emerge o penhasco de ardósia
cinzenta: um desafio, uma provocação.
Este é o local que, ao longo de séculos, reclamou as vidas de Libby
Seeton, de Mary Marsh, de Anne Ward, de Ginny Thomas, de Lauren
Slater, de Katie Whittaker, e mais — inúmeras outras, sem nome nem
rosto. Eu queria perguntar porquê, e como, e o que nos dizem as suas

44
ESCRITO NA ÁGUA

vidas e mortes acerca de nós próprios. Há quem prefira não fazer essas
perguntas, quem prefira abafar, suprimir, silenciar. Mas eu nunca fui
dada à tranquilidade.
Neste trabalho, nesta memória da minha vida e do poço de Beckford,
queria começar não com afogamentos mas com natação. Porque é assim
que isto principia: com as bruxas a nadarem — o tormento da água.
Ali, no meu poço, esse lugar de beleza pacífica, a cerca de um quiló-
metro de onde me encontro sentada agora, foi onde as trouxeram e as
ataram e as atiraram ao rio, para se afundarem ou nadarem.
Há quem diga que as mulheres deixaram algo de si próprias na
água; há quem diga que esta conserva o seu poder, porque, desde então,
tem atraído para as suas margens as desafortunadas, as desesperadas,
as felizes, as perdidas. Vêm até cá para nadarem com as suas irmãs.

45
ERIN

É uM sírio MUITO ESQUISITO mesmo, Beckford. É lindo, bastante


deslumbrante nalgumas partes, mas é estranho. Parece um sítio
à parte, desligado de tudo o que o rodeia. Claro que está a quiló-
metros de distância de tudo — tem de se conduzir durante horas
para se chegar a qualquer sítio civilizado. Isto se considerarmos
Newcastle civilizado, o que não estou certa de achar. Beckford é
um lugar estranho, cheio de gente excêntrica, com uma história
absolutamente bizarra. E, atravessando a vila toda, há este rio,
e isso é a coisa mais esquisita de todas — parece que, para onde
quer que nos viremos, qualquer que seja a direção para onde for-
mos, de algum modo, acabamos sempre junto ao rio.
O inspetor também tem qualquer coisa de invulgar. É um rapaz
da terra, pelo que suponho que isso seria de esperar. Pensei nisso
a primeira vez que lhe pus os olhos em cima, ontem de manhã,
quando tiraram o corpo da Nel Abbott da água. Ele encontrava-se
na margem do rio, com as mãos nas ancas e a cabeça baixa. Estava
a falar com alguém — o médico-legista, vim a saber —, mas, à
distância, parecia que estava a rezar. Foi nisso que pensei — num
padre. Um homem alto e magro, de roupas escuras, com a água
negra como pano de fundo e com o penhasco de ardósia atrás dele
e, a seus pés, uma mulher, pálida e serena.
Serena, não, claro. Morta. Mas o seu rosto não estava contor-
cido, não estava desfigurado. Se não se olhasse para o resto dela,

46
ESCRITO NA ÁGUA

para os membros partidos ou para a contorção da sua espinha,


pensar-se-ia que se tinha afogado.
Apresentei-me e pensei imediatamente que havia algo de estra-
nho nele — os seus olhos aguados, um ligeiro tremor nas suas
mãos, que ele tentava ocultar esfregando-as uma na outra, a pal-
ma contra o pulso — e isso fez-me pensar no meu pai, naquelas
manhãs-depois-da-noite-anterior em que tínhamos de manter a voz
e a cabeça baixas.
Em todo o caso, manter a cabeça baixa parecia-me boa ideia.
Eu estava no Norte há menos de três semanas, depois de uma
transferência apressada de Londres, graças a uma relação impru-
dente com um colega. Sinceramente, a única coisa que queria era
trabalhar nos meus casos e esquecer toda aquela embrulhada.
Estava completamente à espera de que, a princípio, me dessem
as coisas aborrecidas, pelo que fiquei surpreendida quando me
quiseram numa morte suspeita. Uma mulher, cujo corpo fora
avistado num rio por um homem que saíra para passear os cães.
Ela estava completamente vestida, pelo que não tinha ido nadar.
O inspetor-chefe preveniu-me.
— Quase de certeza que se atirou — disse-me ele. — Está no
Poço das Afogadas de Beckford.
Foi uma das primeiras coisas que perguntei ao Townsend.
— Acha que ela se atirou?
Ele olhou para mim durante um momento, examinando-me.
Depois, apontou para o cimo do penhasco.
— Vamos lá acima — disse ele —, procurar o técnico forense
e ver se descobriram alguma coisa, indícios de uma luta, sangue,
uma arma. O telemóvel dela pode ser um bom começo, porque
não o tem consigo.
— Com certeza.
Ao afastar-me, olhei de relance para a mulher e pensei no ar
triste e simples que tinha.
— O nome dela é Danielle Abbott — disse o Townsend, num
tom ligeiramente alto. — Vive cá. É escritora e fotógrafa, com bas-
tante sucesso. Tem uma filha, de 15 anos. Portanto, não, em res-
posta à sua pergunta, não acho provável que se tenha atirado.

47
PAULA HAWKINS

Subimos o penhasco juntos. Vai-se pelo trilho, a partir da pe-


quena praia ao lado do poço, até que este vira para a direita, atra-
vessando uma aglomeração de árvores, e, depois, é uma subida
íngreme colina acima, até ao topo da cumeeira. Nalguns sítios,
o trilho estava enlameado — conseguia ver os locais em que tinham
escorregado e derrapado botas, apagando os vestígios de quais-
quer pegadas feitas anteriormente. No cimo, o trilho vira pronun-
ciadamente para a esquerda e, saindo das árvores, conduz mesmo
até à beira do penhasco. O meu estômago deu uma guinada.
= Men Deus:
O Townsend olhou para trás, por sobre o ombro. Parecia qua-
se divertido.
— Tem medo das alturas?
— Um medo perfeitamente razoável de assentar mal um pé
e cair para a morte — disse eu. — Seria de pensar que pusessem
aqui uma barreira ou algo do género, não acha? Não é propria-
mente seguro, pois não?
O inspetor não respondeu, limitou-se a seguir em frente, cami-
nhando resolutamente em direção à beira do penhasco. Segui-o,
encostando-me aos arbustos de tojo, evitando olhar para a queda
a pique para a água lá de baixo.
O técnico forense — de cara pálida e peluda, como pareciam
ser sempre — tinha poucas novidades interessantes a dar.
— Não há sangue, nem arma, nem sinais de luta aparentes
— disse ele, encolhendo os ombros. — Nem sequer grande coisa
em termos de lixo recente. Contudo, a máquina de filmar dela
está danificada. E não tem o cartão de memória.
— À máquina de filmar dela?
O Peludo virou-se para mim.
— Dá para acreditar? Ela instalou uma máquina de filmar
acionada pelo movimento, como parte do projeto em que estava
a trabalhar.
— Porquê?
Ele encolheu os ombros.
— Para filmar as pessoas cá em cima... para ver a razão por que
sobem? Às vezes, apanha-se aqui uns tipos esquisitos, sabe, por

48
ESCRITO NA ÁGUA

causa de toda a história do local. Ou talvez quisesse apanhar um


suicida em flagrante...
Fez uma careta.
— Meu Deus. E alguém lhe danificou a máquina de filmar?
Bem, isso é... inconveniente.
Ele acenou com a cabeça.
O Townsend suspirou, cruzando os braços à frente do peito.
— É mesmo. Embora não signifique, necessariamente, o que
quer que seja. O equipamento dela já foi vandalizado antes. O pro-
jeto dela tinha os seus detratores cá na terra. De facto — deu alguns
passos para mais perto da berma do penhasco e eu senti a cabeça
às voltas —, nem sequer sei bem se substituiu a máquina de filmar
depois da última vez. — Espreitou para lá da berma. — Há outra,
não há? Fixada algures lá em baixo. Sabe alguma coisa acerca disso?
— Sim, parece intacta. Vamos buscá-la, mas...
— Não mostrará nada.
O Peludo voltou a encolher os ombros.
— É capaz de mostrá-la a cair, mas não nos dirá o que aconte-
ceu cá em cima.

Tinham-se passado mais de 24 horas desde então, e não pare-


cíamos estar nem um pouco mais perto de descobrir o que, na
realidade, acontecera lá em cima. O telemóvel da Nel Abbott não
aparecera, o que era estranho, embora, talvez, não suficientemente
estranho. Se ela se tivesse atirado, havia a hipótese de se ter desfei-
to dele antes. Se tivesse caído, ainda podia estar algures na água,
podia ter-se afundado na lama ou ter sido levado pela corrente.
Se ela tivesse sido empurrada, claro, quem quer que a tivesse em-
purrado poderia ter-lho tirado primeiro, mas, dada a ausência de
qualquer sinal de luta no cimo do penhasco, não parecia provável
que alguém tivesse lutado com ela para lho tirar.
Perdi-me no regresso depois de ter ido levar a Jules (não Julia,
,
pelos vistos) ao hospital para proceder à identificação. Deixei-a
diri-
novamente, na Casa do Moinho e pensei que me estava a
gir uma vez mais para o posto quando descobri que não estava:
trás
depois de ter atravessado a ponte, de algum modo, virara para

49
PauLA HAWKINS

e dei por mim, de novo, no rio. Como disse, para onde quer que
nos viremos, acabamos sempre junto ao rio. Em qualquer caso,
tinha o meu telemóvel na mão, tentando perceber por onde é que
era suposto ir, quando avistei um grupo de raparigas a passarem
por cima da ponte. A Lena, um palmo mais alta do que as outras,
afastou-se delas.
Saí do carro e fui atrás dela. Havia uma coisa que lhe queria
perguntar, uma coisa que a tia dela tinha mencionado, mas, antes
que a conseguisse alcançar, ela começou a discutir com alguém
— uma mulher, talvez de 40 e tal anos. Vi a Lena agarrar-lhe o
braço, a mulher a afastar-se e a levar as mãos à cara, como se tives-
se medo de que lhe batessem. Então, separaram-se abruptamente,
com a Lena a ir para a esquerda e a mulher a seguir em frente,
colina acima. Segui a Lena. Ela recusou-se a contar-me o que se
passara ali. Insistiu que não tinha havido nada de mal, que não
fora, de todo, uma discussão e que, de qualquer modo, não era da
minha conta. Uma atuação arrojada, mas o rosto dela estava raiado
de lágrimas. Ofereci-me para a levar a casa, mas ela disse para me
pôr a andar.
Portanto, eu fui. Conduzi de volta para o posto e apresentei ao
Townsend informações pormenorizadas acerca da identificação
formal do corpo pela Jules Abbott.
Em consonância com o ambiente geral, a identificação foi
esquisita.
— Ela não chorou — disse eu ao chefe, e ele fez uma espécie
de movimento para baixo com a cabeça, como que a dizer: Bem,
isso é normal.
— Não foi normal — insisti eu. — Não se tratou de um cho-
que normal. Foi mesmo estranho.
Ele mexeu-se na cadeira. Estava sentado atrás de uma secre-
tária num escritório minúsculo nas traseiras do posto e parecia
enorme para a sala, como se pudesse bater com a cabeça no teto
se se levantasse.
— Estranho como?
— É difícil explicar, mas ela parecia estar a falar sem produzir
nenhum som. E também não me estou a referir aquele género de

50
ESCRITO NA ÁGUA

soluços inaudíveis. Foi estranho. Os lábios dela moviam-se como


se estivesse a dizer qualquer coisa... e não apenas a dizer qualquer
coisa, mas a falar com alguém. A ter uma conversa.
— Mas, na verdade, não conseguiu ouvir nada?
— Nada.
Ele olhou para o ecrã do computador portátil à sua frente e,
depois, novamente para mim.
— E foi só isso? Ela disse-lhe alguma coisa? Fosse o que fosse,
qualquer coisa de útil?
— Perguntou por uma pulseira. Pelos vistos, a Nel tinha uma
pulseira que pertencia à mãe delas e que usava sempre. Ou, pelo
menos, usava-a quando a Jules viu a Nel pela última vez, o que já
foi há anos.
O Townsend acenou com a cabeça, coçando o pulso.
— Não há nenhum sinal de uma pulseira nos seus pertences,
eu verifiquei. Estava a usar um anel, não tinha nenhuma outra
joia.
Ficou em silêncio durante tanto tempo que eu pensei que talvez
a conversa tivesse acabado. Estava mesmo prestes a sair da sala
quando, subitamente, ele disse:
— Você devia perguntar à Lena acerca disso.
— Estava a planear fazê-lo — contei-lhe —, só que ela não
estava lá muito interessada em falar comigo.
Informei-o do encontro na ponte.
— Essa mulher — disse ele —, descreva-a.
Portanto, fi-lo: tinha 40 e poucos anos, era ligeiramente para o
pesado, tinha cabelo escuro e usava um casaco comprido, apesar
do calor.
O Townsend examinou-me durante um longo momento.
— Então, não lhe lembra ninguém?
— Ah, sim — disse ele, olhando-me como se eu fosse uma
criança particularmente simplória. — É a Louise Whittaker.
— E quem é ela?
Ele franziu o sobrolho.
— Não leu acerca de nenhuns antecedentes disto?
— Na verdade, não — disse eu.

51
PauLa HAWKINS

Apeteceu-me chamar-lhe a atenção para o facto de que informar-


-me acerca de quaisquer antecedentes relevantes do caso poderia
ser considerado uma função dele, já que ele é que era de lá.
Ele suspirou e começou teclar no computador.
— Você devia estar a par disto tudo. Deviam ter-lhe passado as
pastas. — Carregou no Enter com particular força, como se esti-
vesse a bater nas teclas de uma máquina de escrever e não de um
iBook com um ar dispendioso. — E também devia ler todo o ma-
nuscrito da Nel Abbott. — Olhou para cima, para mim, e fez uma
careta. — O projeto em que ela andava a trabalhar? la ser uma es-
pécie de álbum, creio. Fotografias e histórias acerca de Beckford.
— Uma história local?
Ele expirou mordazmente.
— Mais ou menos. A interpretação dos acontecimentos pela
Nel Abbott. De acontecimentos selecionados. A sua... reinterpre-
tação das coisas. Como lhe disse, não era algo de que muitas das
pessoas de cá gostassem. Seja como for, temos cópias do que ela
tinha escrito até agora. Um dos agentes arranja-lhe uma. Peça à
Calle Buchan, encontrá-la-á à entrada. O que importa é que um
dos casos acerca dos quais ela escreveu foi o da Katie Whittaker,
que se suicidou em junho. A Katie era muito amiga da Lena Abbott,
e a Louise, a mãe dela, foi outrora amiga da Nel. Zangaram-se,
aparentemente por causa do objeto do trabalho da Nel e, depois,
quando a Katie morreu...
— À Louise culpou-a — disse eu. — Considera-a responsável.
Ele acenou com a cabeça.
— Sim, considera.
— Portanto, eu devia ir falar com ela, com essa Louise?
— Não — respondeu ele: Os seus olhos permaneceram no
ecra. — Eu faço isso. Conheço-a. Fui o inspetor na investigação da
morte da filha dela.
Ele caiu em mais um longo silêncio. Não me tinha mandado
embora, pelo que acabei por falar.
— Alguma vez houve alguma suspeita de que houvesse mais
alguém envolvido na morte da Katie?
Ele abanou a cabeça.

DZ
ESCRITO NA ÁGUA

— Nenhuma. Não parecia haver uma razão clara, mas, como


sabe perfeitamente, muitas vezes não há. Pelo menos, uma razão
que faça sentido para os que cá ficam. Mas, na verdade, ela deixou
um bilhete a despedir-se. — Ele passou a mão sobre os olhos.
— Foi só uma tragédia.
— Portanto, morreram duas mulheres naquele rio este ano?
— perguntei eu. — Duas mulheres que se conheciam uma à ou-
tra, que estavam ligadas... — O inspetor não disse nada, não olhou
para mim, e eu nem sequer sabia bem se ele me estava a ouvir.
— Quantas é que morreram lá? Quer dizer, no total?
— Desde quando? — perguntou ele, voltando a abanar a cabe-
ça. — Quanto é que gostaria de recuar no tempo?
Como disse, é muito esquisito mesmo.

55
JULES

SEMPRE TIVE UM POUCO DE MEDO DE TI. Tu sabias disso, divertias-


-te com o medo, divertias-te com o poder que te dava sobre mim.
Portanto, creio que, apesar das circunstâncias, ter-te-ias divertido
com esta tarde.
Pediram-me para proceder à identificação — a Lena ofereceu-se,
mas disseram-lhe que não, pelo que tive de dizer que sim. Não havia
mais ninguém. E, embora não te quisesse ver, sabia que tinha de ser,
porque ver-te seria melhor do que imaginar-te; os horrores conju-
rados pela mente são sempre tão piores do que aquilo que é. E preci-
sava de ver-te, porque ambas sabemos que eu não acreditaria nisto,
que não seria capaz de acreditar que tinhas desaparecido, até te ver,
Estavas deitada sobre uma maca no meio de uma sala fria, com um
lençol verde-claro a cobrir o teu corpo. Havia lá um rapaz, com umas
luvas calçadas, que acenou com a cabeça para mim e para a detetive,
e ela acenou-lhe de volta. Quando ele estendeu a mão para puxar o
lençol para trás, sustive a respiração. Não me lembro de sentir tanto
medo desde que era criança.
Estava à espera de que me atacasses.
Não atacaste. Estavas quieta e bela. Havia sempre tanta coisa
no teu rosto — tanta expressão, alegria ou veneno — e tudo isso
ainda lá estava, os vestígios disso; tu ainda eras tu, ainda perfeita,
e, então, apercebi-me: tu saltaste.
Tu saltaste?

54
ESCRITO NA ÁGUA

Tu saltaste?
Essa palavra, que me deixava um amargo de boca. Tu não salta-
rias. Nunca o farias, não é assim que se faz. Foste tu que me dis-
seste isso. O penhasco não tem altura suficiente, disseste. São só
55 metros do topo do penhasco até à superfície da água — as pes-
soas podem sobreviver à queda. Portanto, disseste, se quisesses
mesmo, tinhas de ter a certeza. De saltar de cabeça. Se se quiser
mesmo, não se salta, mergulha-se.
E, a não ser que queiras mesmo, disseste, porquê fazê-lo? Não dês
nas vistas. Ninguém gosta de quem só quer dar nas vistas.
As pessoas podem sobreviver à queda, mas isso não quer dizer
que sobrevivam. Aqui estás tu, afinal de contas, e não mergulhaste.
Foste de pés para baixo e aqui estás: tens as pernas partidas, a coluna
partida, estás partida. O que é que isso quer dizer, Nel? Quer dizer
que perdeste a coragem? (Isso não é nada teu.) Não a suportavas,
a ideia de saltar de cabeça, estragando a tua linda cara? (Sempre
foste muito vaidosa.) Para mim, não faz sentido. Nem parece teu,
fazer o que disseste que não farias, contrariares-te a ti própria.
(A Lena disse que não há aqui nenhum mistério, mas o que
sabe ela?)
Peguei-te na mão e pareceu-me estranha, não só por estar tão
fria, mas porque não lhe reconheci a forma, o toque. Quando é
que pegara na tua mão pela última vez? Talvez ma tivesses esten-
dido no funeral da mamã? Lembro-me de te ter virado as costas,
olhando para o papá. Lembro-me do aspeto da tua cara. (De que
é que estavas à espera?) O meu coração petrificou no meu peito,
abrandou, tornando-se um tambor fúnebre.
Alguém falou.
— Desculpe, mas não é suposto tocar-lhe.
A luz zumbiu sobre a minha cabeça, iluminando a tua pele,
pálida e cinzenta contra o aço por debaixo de ti. Pus o meu polegar
sobre a tua testa e passei um dedo pela tua face.
— Por favor, não lhe toque.
A agente Morgan encontrava-se mesmo atrás de mim. Conse-
guia ouvi-la a respirar, lenta e regularmente, sobre o som do zum-
bido das luzes.

5
PauLa HAaWKINS

— Onde é que estão as coisas dela? — perguntei. — As roupas


que trazia vestidas, as suas joias?
— Ser-lhe-ão devolvidas — disse a agente Morgan — depois
de o Departamento Forense as ter analisado.
— Havia uma pulseira? — perguntei-lhe.
Ela abanou a cabeça.
— Não sei, mas o que quer que ela trouxesse vestido, ser-lhe-á
devolvido.
— Devia haver uma pulseira — disse eu tranquilamente,
olhando para baixo, para a Nel. — Uma pulseira de prata com
um fecho de ónix. Pertencia à mamã, tinha as suas iniciais gra-
vadas. SJA. Ela usava-a sempre. A mamã. E, depois, também tu.
A detetive estava a olhar fixamente para mim.
— Quer dizer, era ela. A Nel é que a usava.
Voltei a olhar para ti, para o teu pulso esguio, para o sítio
onde o fecho de ónix outrora repousava sobre as tuas veias azuis.
Queria tocar-te de novo, sentir a tua pele. Tinha a certeza de que
te conseguiria acordar. Sussurrei o teu nome e esperei que estre-
mecesses, que os teus olhos piscassem e se abrissem, e que me
seguisses pela sala fora. Pensei que talvez te devesse beijar, como
se isso pudesse resultar, como com a Bela Adormecida, e isso fez-
-me sorrir porque tu detestarias essa ideia. Nunca foste uma prin-
cesa, nunca foste uma beleza passiva à espera de um príncipe;
tu eras outra coisa. Estavas do lado da escuridão, da madrasta mal-
vada, da fada má, da bruxa.
Senti o olhar da detetive sobre mim e cerrei os lábios para ocul-
tar esse sorriso. Tinha os olhos secos e a garganta vazia e, quando
te sussurrei, não parecia ouvir-se som algum.
— O que é que me querias contar?

56
LENA

DEVIA TER SIDO EU. Sou a parente mais próxima, a família dela. A pes-
soa que a amava. Devia ter sido eu, mas não me autorizaram a
ir. Deixaram-me sozinha, sem nada que fazer senão ficar numa
casa vazia e fumar até se me acabarem os cigarros. Fui à loja da
vila para comprar alguns — a mulher gorda de lá, às vezes, pede
a identificação, mas eu sabia que hoje não o faria. Estava mesmo a
sair quando vi aquelas cabras da escola — a Tanya e a Ellie e essa
malta toda — a descerem a estrada na minha direção.
Senti que ia vomitar, e limitei-me a baixar a cabeça e a virar-lhes
as costas. Comecei a andar tão depressa quanto conseguia, mas elas
viram-me, chamaram-me e começaram todas a correr para me apa-
nharem. Não sabia o que é que elas iam fazer. Na verdade, quando
me apanharam, começaram todas a abraçar-me e a dizer o quanto
lamentavam o sucedido, e a Ellie até teve o descaramento de chorar
algumas lágrimas fingidas, foda-se, e eu deixei-as estarem em cima
de mim, deixei-as porem os seus braços à minha volta e alisarem-
-me o cabelo para trás. Na realidade, soube-me bem ser tocada.
Atravessámos a ponte; elas estavam a falar acerca de irmos até
ao chalé dos Wards para metermos umas pastilhas e irmos nadar.
— Será como um velório, uma espécie de cerimónia — disse
a Tanya.
Idiota do caralho. Acharia, sinceramente, que eu hoje tinha von-
tade de ficar pedrada e de nadar naquela água? Eu estava a pensar

V/
PauLA HAWKINS

no que dizer, mas, então, vi a Louise e foi uma espécie de acaso


feliz, pois pude, simplesmente, afastar-me delas sem dizer nada,
e não havia nada que elas pudessem fazer.
A princípio, achei que ela não me tinha ouvido, mas, quando
a apanhei, consegui ver que estava a chorar e que não queria estar
ao pé de mim. Agarrei-a. Não sei porquê, mas só queria que ela não
se fosse embora, que não me deixasse ali com os abutres daquelas
cabras a olharem e a fingirem estar tristes e, entretanto, a diverti-
rem-se com aquele teatro, foda-se. Ela estava a tentar libertar-se,
retirando os meus dedos um a um, e dizia:
— Desculpa, Lena, agora não consigo falar contigo. Não consigo
falar contigo.
Eu queria dizer-lhe qualquer coisa, como: Você perdeu a sua filha
e eu perdi a minha mãe. Isso não nos deixa quites? Agora, não me pode,
ao menos, perdoar?
No entanto, não o disse e, então, chegou aquela polícia incom-
petente e tentou perceber porque é que estávamos a discutir, de
maneira que eu disse-lhe para onde é que ela podia ir, e fui para
casa sozinha.
Pensava que a Julia já tivesse voltado quando cheguei a casa.
Na realidade, quanto tempo levaria ir àmorgue e vê-los a baixarem o
lençol e dizer «sim, é ela»? Não é como se a Julia quisesse sentar-se
ao pé dela e pegar-lhe na mão, para reconfortá-la, como eu teria feito.
Devia ter sido eu, mas eles não me deixaram ir.
Deitei-me na minha cama, em silêncio. Nem sequer consigo
ouvir música porque sinto que tudo tem um sentido diferente,
de que antes não me apercebia, e dói-me demasiado encará-lo
agora, foda-se. Não quero estar sempre a chorar, faz-me doer o peito
e a garganta, e o pior é que ninguém me vem ajudar. Não sobra
ninguém para me ajudar. Portanto, fiquei deitada na cama, a fumar
cigarro atrás de cigarro, até ouvir a porta da rua abrir-se.
Ela não me chamou nem nada disso, mas ouvi-a na cozinha,
a abrir e a fechar armários, e a chocalhar tachos e panelas. Esperei
que ela viesse ter comigo, mas acabei simplesmente por me abor-
recer e, como estava a sentir-me enjoada por causa de fumar tanto
e estava mesmo, mesmo esfaimada, fui para o andar de baixo.

58
ESCRITO NA ÁGUA

Ela encontrava-se junto ao fogão, a mexer algo, e, quando se


virou para trás e me viu ali, assustou-se. Mas não foi como acon-
tece quando alguém nos prega um susto e, depois, rimos; o medo
permaneceu no seu rosto.
— Lena — disse ela. — Estás bem?
— Viste-a? — perguntei.
Ela acenou com a cabeça e olhou para o chão.
— Ela parecia... ela própria.
— Isso é bom. Fico contente. Não gosto de imaginá-la...
— Não. Não. E não estava. Desfigurada. — Voltou-se nova-
mente para o fogão. — Gostas de esparguete à bolonhesa? — per-
guntou. — Estou a fazer... é isso que estou a fazer.
Sim, gosto, mas não lho queria dizer, pelo que não respondi.
Em vez disso, perguntei-lhe:
— Porque é que mentiste à polícia?
Ela virou-se para trás abruptamente, e a colher de pau na sua
mão espalhou molho vermelho pelo chão.
— O que é que queres dizer, Lena? Eu não menti.
— Mentiste, sim. Disseste-lhes que nunca falavas com a minha
mãe, que há anos que não tinham qualquer contacto.
— E não tínhamos. — A cara e o pescoço dela estavam vermelho-
-vivos, a boca virada para baixo como a de um palhaço, e vi-a, a feal-
dade de que a mamã falava. — Não tive nenhum contacto signifi-
cativo com a Nel desde que...
— Ela telefonava-te a toda a hora.
— Não era a toda a hora. Ocasionalmente. E, em qualquer caso,
não falávamos.
— Sim, ela disse-me que te recusavas a falar com ela, por muito
que ela se esforçasse.
— É um bocadinho mais complicado do que isso, Lena.
— É complicado como? — cortei eu. — Como? — Ela desviou
o olhar de mim. — Isto é tudo culpa tua, como sabes.
Pousou a colher e deu alguns passos na minha direção, com
as mãos nas ancas e uma expressão muito preocupada, como uma
professora que está prestes a dizer-nos quão desapontada está com
a nossa atitude nas aulas.

SJ)
PauLAa HAWKINS

— O que é que queres dizer com isso? — perguntou ela.


— Do que é que eu tenho culpa?
— Ela tentou contactar-te, queria falar contigo, precisava...
— Ela não precisava de mim. A Nel nunca precisou de mim.
— Ela era infeliz! — disse eu. — Nem sequer te importas,
foda-se?
Ela deu um passo atrás. Limpou a cara como se eu lhe tivesse
cuspido.
— Porque é que ela era infeliz? Eu não... Ela nunca disse que
era infeliz. Ela nunca me contou que era infeliz.
— E o que é que terias feito se ela te tivesse contado? Nada!
Não terias feito nada, como sempre fizeste. Tal como quando a
vossa mãe morreu e tu foste horrível para ela, ou quando ela te
convidou para vires cá quando nos mudámos, ou quando te pediu
para vires, daquela vez, ao meu aniversário e tu nem sequer res-
pondeste! Limitavas-te a ignorá-la, como se ela não existisse.
Muito embora soubesses que ela não tinha mais ninguém, muito
embora... |
— Ela tinha-te a ti — disse a Julia. — E nunca suspeitei de que
fosse infeliz, eu...
— Pois bem, era. Já nem sequer nadava.
A Julia ficou muito quieta, de cabeça virada para a janela,
como se estivesse a tentar ouvir alguma coisa.
— O quê? — perguntou ela, mas não estava a olhar para mim.
Era como se estivesse a olhar para outra pessoa, ou para o seu
reflexo. — O que é que disseste?
— Ela deixou de nadar. Toda a minha vida, lembro-me de ela
ir para O poço ou para o rio, todos os dias, era a praia dela, ela era
uma nadadora. Todos os dias, mesmo no inverno daqui, quando
está um frio do caralho e se tem de partir o gelo da superfície.
E, depois, parou. Assim de repente. Eis quão infeliz ela estava.
Ela não disse nada durante um bocado, limitou-se a estar para
ali, a olhar fixamente para fora da janela, como se estivesse à pro-
cura de alguém.
— Sabes se... Lena, achas que ela tinha irritado alguém? Ou se
alguém a andava a incomodar, ou...?

60
ESCRITO NA ÁGUA

Abanei a cabeça.
— Não. Ela ter-me-ia dito.
Ela ter-me-ia avisado.
— Teria? — perguntou a Julia. — Porque sabes que a Nel...
a tua mãe... tinha uma certa maneira de ser, não sabes? Quer dizer,
sabia como entrar na cabeça das pessoas, como irritá-las.
— Não, não tinha! — cortei eu, embora fosse verdade que,
às vezes, tinha, mas só com pessoas estúpidas, só com pessoas
que não a compreendiam. — Tu não a conhecias de todo, tu não a
compreendias. És só uma cabra ciumenta: já o eras quando eram
novas e continuas a ser. Meu Deus. Nem sequer vale a pena falar
contigo.
Saí de casa, muito embora estivesse esfaimada. Mais valia pas-
sar fome do que sentar-me a comer com ela, isso parecer-me-ia
uma traição. Eu estava sempre a pensar na mamã, ali sentada,
a falar para o telefone, e no silêncio do outro lado. Cabra sem cora-
ção. Uma vez, aborreci-me com ela por causa disso e irritei-me:
— Porque é que não paras com isso? Porque é que não a esque-
ces? Obviamente, ela não quer ter nada que ver connosco.
A mamã disse:
— Ela é minha irmã, é a minha única família.
— Então e eu? Eu sou da tua família.
Ela riu-se e, depois, retorquiu:
— Tu não és da minha família. És mais do que família. És parte
de mim.
Parte de mim desapareceu, e nem sequer me autorizaram a
vê-la. Não me permitiram apertar-lhe a mão ou dar-lhe um beijo
de despedida ou dizer-lhe quanto lamento o sucedido.

61
JULES

NÃo A SEGUI. NA VERDADE, não queria apanhar a Lena. Não sabia


o que queria. Portanto, limitei-me a ficar ali, nos degraus da entra-
da, com as mãos a esfregarem os antebraços, e os olhos a acostu-
marem-se gradualmente ao lusco-fusco que se instalava.
Sabia o que não queria: não queria reconfortá-la, não queria
ouvir mais nada. Culpa minha? Como é que aquilo podia ser culpa
minha? Se eras infeliz, nunca mo disseste. Caso me tivesses dito,
eu ter-te-ia ouvido. Na minha cabeça, rias-te. Tudo bem, mas, se me
tivesses dito que tinhas deixado de nadar, Nel, então, eu teria sa-
bido que algo estava mal. Nadar era essencial para a tua sanidade,
foi o que me disseste; sem isso, desmoronavas-te. Nada te man-
tinha fora de água, tal como nada me conseguia atrair para ela.
Só que algo o fez. Algo o deve ter feito.
Senti-me, subitamente, esfomeada, tive uma ânsia violenta de
ser saciada, de algum modo. Voltei para dentro de casa e servi-me
a mim própria uma taça de bolonhesa, e depois outra, e uma ter-
ceira. Comi até não poder mais e, então, enojada comigo mesma,
fui para o andar de cima.
De joelhos na casa de banho, deixei a luz desligada. Um hábito
há muito abandonado, mas tão antigo que quase parecia reconfor-
tante; debrucei-me no escuro, com os vasos sanguíneos da minha
cara tão tensos que quase rebentavam e com os olhos a chorarem
enquanto vomitava. Quando senti que já não havia mais nada,

62
ESCRITO NA ÁGUA

levantei-me e puxei o autoclismo e, depois, molhei a cara, evitan-


do o meu próprio olhar no espelho, o que só o fez cair sobre o
reflexo da banheira atrás de mim.
Não fico imersa em água há mais de 20 anos. Durante sema-
nas depois do meu quase afogamento, foi-me difícil, sequer, lavar-
-me como deve ser. Quando comecei a cheirar mal, a minha mãe
teve de me obrigar a ir para debaixo do chuveiro e segurar-me lá.
Fechei os olhos e voltei a molhar a cara. Ouvi um carro a
abrandar no caminho lá fora, com o batimento cardíaco a acelerar
enquanto ele abrandava e, depois, a diminuir novamente quando
O carro arrancou.
— Não vem aí ninguém — disse eu em voz alta. — Não há
nada de que ter medo.
A Lena não tinha voltado e, contudo, eu não fazia ideia de onde
procurá-la nesta vila, familiar e estranha ao mesmo tempo. Fui para
a cama, mas não dormi. De cada vez que fechava os olhos, via a
tua cara, azul e pálida, os teus lábios cor de lavanda, e, na minha
imaginação, eles afastavam-se para cima das tuas gengivas e, mui-
to embora tivesses a boca cheia de sangue, sorrias.
— Para com isso, Nel. — Estava novamente a falar em voz alta,
como uma mulher louca. — Para lá com isso.
Fiquei à espera da tua resposta e só recebi silêncio; silêncio
quebrado pelo som da água, pelo ruído da casa a mover-se, a deslo-
car-se e a ranger à medida que o rio a empurrava ao passar. Na es-
curidão, tateei à procura do meu telemóvel na mesa de cabeceira
e marquei o número do meu voicemail. Não tem mensagens novas,
disse-me a voz eletrónica, e tem sete mensagens guardadas.
A mais recente chegou na terça-feira passada, menos de uma
semana antes de morreres, à 1h30 da manhã.
— Julia, sou eu. Preciso que me ligues de volta. Por favor, Julia.
É importante. Preciso que me telefones, logo que possas, está bem? Eu...
hã... é importante. Pronto. Adeus.
Carreguei na tecla para repetir, uma e outra vez. Escutei a tua
voz, é não apenas a rouquidão, a pronúncia, ligeira mas irritante,
meio inglesa, meio americana — escutei-te a ti. O que é que me
estavas a tentar dizer?

63
PauLAa HaWKINS

Deixaste a mensagem a meio da noite e eu ouvi-a de manhã-


zinha cedo, virando-me para o outro lado na cama, para ver a luz
a piscar no meu telemóvel. Ouvi as tuas três primeiras palavras,
Julia, sou eu, e desliguei. Estava cansada e a sentir-me em baixo
e não queria ouvir a tua voz. Ouvi o resto mais tarde. Não achei
aquilo estranho nem particularmente intrigante. É o tipo de coisa
que tu fazias: deixar mensagens crípticas de modo a espicaçar-me
o interesse. Andavas a fazê-lo há anos e, depois, quando voltavas
a ligar, um ou dois meses mais tarde, apercebia-me de que não
havia crise nenhuma, mistério nenhum, grande acontecimento
nenhum. Estavas só a tentar chamar-me a atenção. Era um jogo.
Não era?
Ouvi a mensagem, repetidamente, e, agora que a estava a ouvir
como deve ser, não conseguia acreditar que não me tivesse aperce-
bido antes da falta de fôlego na tua maneira de falar, da suavidade
pouco caraterística do teu discurso, hesitante e titubeante.
Estavas com medo.
Do que é que tinhas medo? De quem é que tinhas medo? Das pes-
soas desta vila, das que param e olham fixamente, mas não dão as
condolências, das que não trazem comida nem mandam flores?
Não me parece, Nel, que tenham muitas saudades tuas. Ou talvez
tivesses medo da tua filha, estranha, fria e zangada, que não chora
por ti e que insiste em que te mataste, sem provas e sem razões
para isso.
Saí da cama e esgueirei-me para a porta ao lado, para o teu
quarto. Senti-me, subitamente, infantil. Costumava fazer isto
— esgueirar-me para a porta ao lado — quando os meus pais dor-
miam aqui, quando sentia medo à noite, quando tinha pesadelos
depois de ouvir uma das tuas histórias. Empurrei a porta e entrei.
O quarto parecia abafado, quente, e a visão da tua cama desfei-
ta levou-me, subitamente, às lágrimas.
Empoleirei-me sobre a berma da cama, peguei na tua almofa-
da, de linho rígido e cinzento-ardósia, com um debrum vermelho-
-sangue, e encostei-a a mim. Tinha uma memória muito vívida de
nós as duas a virmos cá no aniversário da mamã. Tínhamos-lhe
feito o pequeno-almoço; nessa altura, ela estava doente e estávamos

64
ESCRITO NA ÁGUA

a esforçar-nos, a tentar darmo-nos bem. Essas tréguas nunca dura-


vam muito: tu cansada de me teres por perto, e eu sem nunca te
prestar atenção. Eu ia para o lado da mamã e tu observavas-me
com os olhos semicerrados, desdenhosa e magoada ao mesmo
tempo.
Eu não te compreendia, mas, se nessa altura me parecias estra-
nha, agora és-me completamente desconhecida. Agora, estou aqui
sentada na tua casa, entre as tuas coisas, e é a casa que me é fami-
liar, não tu. Não te conheço desde que éramos adolescentes, desde
que tinhas 17 anos e eu 13. Desde aquela noite em que, como um
machado a golpear um toro de madeira, as circunstâncias nos di-
vidiram, deixando uma fissura larga e profunda.
Mas só seis anos mais tarde é que voltaste a baixar o machado e
nos separaste de vez. Foi no velório. Com a nossa mãe acabada de
enterrar, tu e eu a furharmos no jardim numa noite gelada de no-
vembro. Eu estava emudecida pelo desgosto, mas tu tinhas andado
a automedicar-te desde o pequeno-almoço e querias falar. Estavas a
contar-me acerca de uma viagem que ias fazer, à Noruega, ao Púlpito
do Pregador, um penhasco de 600 metros sobre um fiorde. Eu esta-
va a tentar não te ouvir, porque sabia o que era e não queria ouvir
falar nisso. Alguém — um amigo do nosso pai — nos chamou:
— Vocês aí estão bem, raparigas? — As suas palavras eram
ligeiramente arrastadas. — Estão a afogar as vossas mágoas?
— Afogar, afogar, afogar... — repetiste tu.
Também estavas bêbeda. Olhaste para mim com as pálpebras
caídas e com uma luz estranha nos teus olhos.
— Ju-ulia — disseste, arrastando o meu nome lentamente.
— Alguma vez pensas naquilo?
Pousaste a tua mão no meu braço e eu afastei-me.
— Penso em quê?
Estava a pôr-me de pé, já não queria estar mais contigo, queria
ficar sozinha.
— Naquela noite. Tu... alguma vez falaste com alguém acerca
na
disso? — Dei um passo para longe de ti, mas tu agarraste-me
mão e apertaste-a com força. — Vá lá, Julia... Diz-me sinceramente.
Não houve uma parte de ti que gostou daquilo?

65
PauLa HAWKINS

Depois disso, deixei de falar contigo. Isso, segundo a tua filha,


era eu a ser horrível para ti. Contamos as nossas histórias de ma-
neira diferente, tu e eu, não é?
Deixei de falar contigo, mas isso não evitou que me telefonas-
ses. Deixavas pequenas mensagens estranhas, contando-me acerca
do teu trabalho ou da tua filha, de um prémio que tinhas ganhado
ou de um elogio recebido. Nunca me disseste onde estavas nem com
quem estavas, embora, às vezes, ouvisse ruídos de fundo, música
ou trânsito, às vezes vozes. Às vezes, apagava as mensagens,
e outras guardava-as. Às vezes, ouvia-as repetidamente, tantas
vezes que, mesmo anos mais tarde, conseguia lembrar-me das tuas
palavras exatas.
Às vezes, eras críptica, outras vezes revoltada; repetias velhos
insultos, desenterravas desentendimentos há muito enterrados,
apoiavas-te em velhas calúnias. O desejo de morte! Certa vez, no
calor do momento, cansada das tuas obsessões mórbidas, acusei-te
de teres um desejo de morte e, oh, como martelaste nisso!
Às vezes, eras piegas, ao falar acerca da nossa mãe, da nossa
infância, da felicidade que tínhamos tido e perdido. Outras vezes,
estavas animada, contente, energética.
— Vem à Casa do Moinho! — imploravas-me. — Por favor, vem!
Vais adorar. Por favor, Julia, está na altura de pormos essas coisas todas
para trás das costas. Não sejas teimosa. Está na altura.
E, então, eu ficava furiosa. Está na altura! Porque é que havias
de ser tu a decidir quando pôr termo aos problemas entre nós?
Eu só queria que me deixassem em paz, esquecer Beckford,
esquecer-te a ti. Construí uma vida para mim própria — mais
simples do que a tua, claro, como poderia ser de outro modo?
Mas minha. Bons amigos, relações, um minúsculo apartamento
num subúrbio encantador, no norte de Londres. Um emprego de
assistente social que me dava um objetivo; um emprego que me
consumia e realizava, apesar do ordenado reduzido e do horá-
rio extenso.
Queria que me deixassem em paz, mas tu não ias nisso.
Às vezes, duas vezes por ano e, às vezes, duas vezes por mês, telefo-
navas-me: para me sabotar, desestabilizar, inquietar. Exatamente

66
ESCRITO NA ÁGUA

como sempre fizeras — era uma versão adulta de todos os jogos


que costumavas jogar. E, durante todo esse tempo, eu esperava,
esperava por aquela chamada a que pudesse, realmente, respon-
der, aquela em que tu explicarias porque é que te comportavas
como comportavas quando éramos novas, porque é que tinhas
sido capaz de me fazer male porque é que ficaste quieta enquanto
me estavam a magoar. Parte de mim queria ter uma conversa con-
tigo, mas não antes de me pedires desculpa, não antes de suplica-
res o meu perdão. Mas o teu pedido de desculpas nunca chegou,
e agora continuo à espera.
Abri a gaveta de cima da mesa de cabeceira. Havia postais em
branco — fotografias de sítios onde estiveras, talvez —, preserva-
tivos, um lubrificante e um isqueiro de prata antiquado com as
iniciais LS gravadas de lado. LS. Um amante? Olhei novamente ao
redor do quarto e impressionou-me que não houvesse quaisquer
fotografias de homens nesta casa. Nem aqui em cima, nem lá em
baixo. Até os quadros são quase todos de mulheres. E, quando
deixavas as tuas mensagens, falavas do teu trabalho e da casa e
da Lena, mas nunca mencionaste nenhum homem. Os homens
nunca te pareceram lá muito importantes.
No entanto, houve um, não houve? Há muito tempo, houve um
rapaz que foi importante para ti. Quando eras adolescente, costu-
mavas escapulir-te de casa à noite, trepavas para fora da janela da
lavandaria, caías sobre a margem do rio e esgueiravas-te em torno
da casa, com lama até aos tornozelos. Escalavas pela margem aci-
ma e subias para o caminho, e ele estava à tua espera. O Robbie.
Pensar no Robbie, em ti e no Robbie, foi como atravessar a cor-
rer a ponte arqueada: estonteante. O Robbie era alto, largo e louro,
com o lábio curvado numa zombaria permanente. Tinha uma ma-
neira de olhar para as raparigas que as virava do avesso. Robbie
Cannon. O macho-alfa, o chefe, sempre a cheirar a Axe e a sexo, abru-
talhado e mau.
Tu amava-lo, disseste, embora, para mim, aquilo nunca se
parecesse muito com amor. Tu e ele ou estavam agarradíssimos
ou a insultarem-se um ao outro, e nunca havia meio-termo. Nunca
havia paz. Não me lembro de muitas risadas. Mas, de facto, eu tinha

67
PauLa HaWKINS

uma memória vívida de vocês os dois deitados na margem do poço,


com os membros emaranhados e os pés dentro de água, e de
ele a rolar para cima de ti e a empurrar-te os ombros para baixo,
enterrando-os na areia.
Algo nessa imagem me chocou, me fez sentir uma coisa que
não sentia há algum tempo. Vergonha. A vergonha suja e secreta
do mirone, com um laivo de outra coisa, algo que não conseguia
definir exatamente e que também não desejava definir. Tentei
virar-lhe as costas, mas lembrei-me: essa não foi a única vez em
que o vi contigo.
Senti-me, subitamente, desconfortável, pelo que me levantei
da tua cama e andei pelo quarto, olhando para as fotografias. Foto-
grafias por toda a parte. Claro. Fotografias tuas emolduradas, sobre
a cômoda, bronzeada e sorridente, em Tóquio e Buenos Aires, em
férias de esqui e na praia, com a tua filha nos braços. Nas paredes,
impressões emolduradas de capas de revistas com fotografias tira-
das por ti, um artigo na capa do New York Times, os prémios que
recebeste. Ei-los: todos os testemunhos do teu êxito, a prova de
que me suplantaste em tudo. No trabalho, na beleza, nos filhos,
na vida. E, agora, voltaste a suplantar-me. Até nisto, tu ganhas.
Uma fotografia fez-me parar de andar. Uma fotografia de ti e
da Lena — já não um bebé, talvez com 5 ou 6 anos, ou talvez mais
velha, eu nunca sei dizer a idade das crianças. Ela está a sorrir,
a mostrar os seus minúsculos dentes brancos, e há algo de estra-
nho nisso, algo que fez com que o meu cabelo se eriçasse; algo nos
seus olhos, no conjunto da sua cara, lhe dá o ar de um predador.
Conseguia sentir a minha pulsação no pescoço, um velho medo
a emergir. Voltei a deitar-me na cama e tentei não ouvir a água,
mas, mesmo com as janelas fechadas, no cimo da casa, era impos-
sível escapar ao som. Conseguia senti-lo a empurrar as paredes,
a infiltrar-se nas frestas da alvenaria, a subir. Conseguia sentir-lhe
o sabor, lamacento e sujo, na minha boca, e a minha pele parecia
húmida.
Algures na casa, conseguia ouvir alguém a rir-se, e parecias
mesmo tu.

68
AGOSTO DE 1993

JULES

A MAMÃ TROUXE-ME UM FATO DE BANHO novo, antiquado, aos qua-


drados azuis e brancos, com «armação». Era suposto ter uma
espécie de ar à anos 50, o tipo de coisa que a Marilyn poderia ter
usado. Gorda e pálida, eu não era nenhuma Norma Jean, mas,
ainda assim, vesti-o, porque ela tivera muito trabalho para o
encontrar. Não era fácil encontrar fatos de banho para alguém
como eu.
Vesti uns calções azuis e uma t-shirt branca, muito larga, sobre
a parte de cima. Quando a Nel desceu para almoçar, com os seus
calções de ganga cortados e um biquíni laçado no pescoço, lançou-
-me uma olhadela e disse:
— Vens ao rio hoje à tarde? — num tom que tornava óbvio
que não queria que eu fosse; depois, captou o olhar da mamã e
disse: — Não vou tomar conta dela, percebeste? Vou lá para me
encontrar com os meus amigos.
A mamã pediu:
— Sê boazinha, Nel.
Nessa altura, a mamã estava em remissão, tão frágil que uma
brisa forte poderia derrubá-la, com a sua pele cor de azeitona ama-
relada, como papel velho, e a Nel e eu tínhamos instruções rígidas
do nosso pai para nos darmos bem.
Parte de nos darmos bem significava andarmos juntas e, por-
tanto, sim, eu ia ao rio. Toda a gente ia ao rio. Era tudo quanto

69
PauLA HaWkKINS

havia para fazer, na realidade. Beckford não era como a praia, não
havia nenhum parque de diversões, nenhum salão de jogos, nem
sequer um campo de minigolfe. Havia a água: e era tudo.
Algumas semanas depois de o verão começar, uma vez estabe-
lecidas as rotinas, tendo toda a gente descoberto onde pertencia
e com quem devia andar, quando os forasteiros e os da terra se
tinham misturado, com amizades e inimizades estabelecidas, as
pessoas começaram a andar em grupos ao longo da margem do
rio. Os miúdos mais novos tendiam a nadar a sul da Casa do
Moinho, onde a água corria lentamente e havia peixes para pescar.
Os miúdos maus passavam o tempo junto ao chalé dos Wards,
onde consumiam drogas e faziam sexo, brincavam com tabu-
leiros Ouija e tentavam conjurar espíritos irados. (A Nel disse-
-me que, se olhássemos com atenção suficiente, ainda conse-
guíamos ver vestígios do sangue do Robert Ward nas paredes.)
Mas a multidão maior reunia-se no Poço das Afogadas. Os rapa-
zes saltavam dos rochedos e as raparigas tomavam banhos de sol,
havia música e faziam-se churrascos. Havia sempre alguém que
trazia cerveja.
Eu teria preferido ficar em casa, lá dentro, longe do sol. Teria pre-
ferido ficar deitada na cama, a ler ou a jogar às cartas com a mamã,
mas não queria que ela se preocupasse comigo, porque tinha coi-
sas mais importantes com que se preocupar. Queria mostrar-lhe
que era capaz de ser sociável, que era capaz de fazer amigos. Que
era capaz de andar acompanhada.
Eu sabia que a Nel não ia querer que eu fosse. Na opinião
dela, quanto mais tempo eu passasse em casa, melhor, e me-
nos provável seria que os amigos dela me vissem — a bucha,
o embaraço: a Julia, gorda, feia e chata. Ela contorcia-se na mi-
nha companhia, sempre a andar alguns passos à minha frente ou
deixando-se ficar dez para trás; o seu desconforto ao pé de mim
era suficientemente óbvio para chamar a atenção. Certa vez,
quando nós as duas saímos juntas da loja da vila, ouvi um dos
rapazes da terra a falar.
— Ela tem de ser adotada. Não é possível que a puta da gorda
seja irmã verdadeira da Nel Abbott.

70
ESCRITO NA ÁGUA

Eles riram-se, e eu olhei para ela em busca de reconforto, mas


a única coisa que vi foi vergonha.
Nesse dia, caminhei sozinha até ao rio. Levava um saco com
uma toalha e um livro, uma lata de Diet Coke e dois Snickers, para
o caso de ficar com fome entre o almoço e o jantar. O estômago
doía-me e tinha dores nas costas. Queria voltar para trás, regres-
sar à privacidade do meu quarto pequeno, fresco e escuro, onde
podia estar sozinha. Sem ser vista.
Os amigos da Nel chegaram pouco depois de mim e coloni-
zaram a praia, o pequeno banco de areia em crescente no lado
mais próximo do poço. Era o sítio mais agradável para se estar, e
era a descer, pelo que se podia estar deitado com os dedos dos pés
dentro de água.
Estavam lá três raparigas — duas da terra e uma miúda cha-
mada Jenny, que era de Edimburgo e tinha uma linda pele cor de
marfim e cabelo escuro cortado a direito. Embora fosse escocesa,
falava um inglês de lei e os rapazes andavam, desesperadamente,
a tentar ir para a cama com ela, porque corria o boato de que ainda
era virgem.
Todos os rapazes, à exceção do Robbie, claro, que só tinha
olhos para a Nel. Tinham-se conhecido dois anos antes, quando
ele tinha 17 anos e ela 15, e agora tinham um namoro de verão es-
tável, muito embora estivessem autorizados a ver outras pessoas
durante o resto do ano, porque não era realista esperar que ele
fosse fiel quando ela não estava por perto. O Robbie tinha um
metro e oitenta e cinco, era elegante e popular, jogava muito
râguebi, e a família dele tinha dinheiro.
Quando a Nel tinha estado com o Robbie, às vezes, voltava
com nódoas negras nos pulsos ou no cimo dos braços. Quando
eu lhe perguntava como é que aquilo tinha acontecido, ela ria-se
e dizia:
— Como é que achas?
O Robbie provocava-me uma sensação estranha no estôma-
go, e eu não conseguia evitar olhar fixamente para ele sempre
que se encontrava por perto. Tentava não O fazer, mas estava sem-
pre a olhar para ele. Ele reparou nisso e começou a devolver-me o

71
PauLA HAWKINS

olhar. Ele e a Nel faziam piadas acerca disso e, às vezes, ele olhava
para mim e lambia os lábios e ria-se.
Também lá estavam os rapazes, mas estavam do outro lado,
a nadar, a subir a margem, a empurrarem-se dos rochedos,
a rirem-se e a dizerem palavrões e a chamarem maricas uns aos
outros.
Era assim que parecia ser sempre: as raparigas ficavam sen-
tadas e esperavam que os rapazes fizessem disparates até se far-
tarem e, então, eles aproximavam-se e faziam coisas às raparigas,
às quais estas às vezes resistiam e outras vezes não. Todas as rapa-
rigas, exceto a Nel, que não tinha medo de mergulhar para a água
e de molhar o cabelo, que apreciava a brutalidade desorganizada
dos seus jogos, que conseguia manter o equilíbrio entre ser um
dos rapazes e ser o objeto supremo do desejo deles.
Claro que não me juntei aos amigos da Nel. Estendi a mi-
nha toalha debaixo das árvores e sentei-me sozinha. Havia outro
grupo de raparigas mais novas, mais ou menos da minha idade,
sentadas um pouco mais longe, e uma delas era uma rapari-
ga que eu reconheci dos verões passados. Ela sorriu-me e eu
retribuí-lhe o sorriso. Fiz-lhe um pequeno aceno, mas ela des-
viou o olhar.
Estava calor. Ansiava, então, por entrar dentro de água. Conse-
guia imaginar, exatamente, qual seria a sensação na minha pele,
suave e limpa, conseguia imaginar os meus dedos dos pés a en-
terrarem-se no lodo viscoso, conseguia ver a luz quente e cor de
laranja nas minhas pálpebras ao deixar-me flutuar de costas. Tirei
a minha t-shirt, mas isso não me refrescou nada. Reparei que a
Jenny me estava a observar, e ela franziu o nariz e, depois, olhou
para baixo, para o chão, porque sabia que eu registara o desagrado
no seu rosto.
Virei-lhes as costas a todos, fiquei deitada sobre o meu lado
direito e abri o meu livro. Estava a ler A História Secreta, da Donna
Tartt. Ansiava por um grupo de amigos assim, muito unidos e
fechados e brilhantes. Queria alguém a quem seguir, alguém que
me protegesse, alguém notável pelo seu cérebro, e não pelas suas
pernas compridas. Embora soubesse que, se houvesse pessoas

72
ESCRITO NA ÁGUA

dessas aqui ou na minha escola em Londres, não quereriam ser


minhas amigas. Eu não era estúpida, mas não brilhava.
A Nel brilhava.
Ela desceu até ao rio algures a meio da tarde. Ouvi-a a chamar
os amigos e vi os rapazes a responderem-lhe ao chamamento do
cimo do penhasco em que se encontravam sentados, com as per-
nas a penderem da berma, e a fumarem cigarros. Olhei por cima
do ombro, observando-a a despir-se e a caminhar lentamente para
a água, salpicando-a contra o corpo e desfrutando da atenção.
Agora, Os rapazes estavam a descer do cimo do penhasco, pela
mata. Virei-me de barriga para baixo, mantendo a cabeça baixa,
com os olhos firmemente fixados na página, e as palavras desfo-
cadas. Desejava não ter vindo, só me apetecia escapulir-me sem
que reparassem em mim, mas não havia nada que pudesse fazer
sem que fosse notada, literalmente nada. A minha massa branca
e informe não se podia escapulir para parte alguma.
Os rapazes tinham uma bola de futebol e começaram a dar
uns toques. Conseguia ouvi-los a pedirem passes, com a bola a
embater na superfície da água, e os gritos risonhos das rapari-
gas ao serem salpicadas. Então, senti-a, uma pancada pungente
contra a minha coxa quando a bola me bateu. Estavam todos a
rir-se. O Robbie levantou a mão e correu na minha direção para
vir buscar a bola.
— Desculpa, desculpa — dizia ele, com um sorriso aberto no
rosto. — Desculpa, Julia, não foi de propósito.
Pegou na bola e vi-o olhar para mim, para a marca vermelha
e lamacenta na minha carne, pálida e marmoreada como banha
fria. Alguém disse qualquer coisa acerca de um grande alvo, sim,
que não conseguiam acertar na porta de um celeiro, mas que era
impossível não acertar naquele cu.
Regressei ao meu livro. A bola acertou numa árvore apenas
a alguns metros de mim, e alguém gritou:
— Desculpa.
Ignorei-os. Voltou a acontecer e, depois, outra vez. Virei-me
para o outro lado; estavam a fazer pontaria a mim. Tiro ao alvo.
As raparigas dobravam-se sobre si próprias, sem conseguirem

73
PauLa HAWKINS

parar de rir, e os gritos de hilaridade da Nel eram os mais altos


de todos.
Sentei-me e tentei combater aquilo.
— Sim, pronto. É muito engraçado. Agora, podem parar. Vá lá!
Parem com isso — gritei eu, mas estava outro a fazer pontaria.
A bola veio na minha direção. Levantei o braço para proteger a
cara e a bola embateu-me na carne, num golpe duro e pungente.
Com lágrimas a picarem-me a parte de trás dos olhos, pus-me
de pé. As outras raparigas, as mais novas, tarabém estavam a obser-
var. Uma delas tinha a mão a tapar a boca.
— Parem com isso! — gritou ela. — Magoaram-na. Está a
sangrar.
Olhei para baixo. Tinha sangue na perna, escorrendo pela
parte interior da minha coxa abaixo, em direção ao joelho. Não era
daquilo, soube imediatamente, eles não me tinham magoado.
As cãibras no estômago, as dores de costas — e tinha andado a
sentir-me mais infeliz do que o habitual toda a semana. Estava
mesmo a sangrar, bastante, e não apenas num só sítio — os meus
calções estavam ensopados. E eles estavam a olhar para mim,
todos eles, a olhar fixamente para mim. As raparigas já não se
estavam a rir, olhavam umas para as outras, boquiabertas, a meio
caminho entre o horror e o divertimento. Captei o olhar da Nel,
ela desviou-o, e eu quase consegui senti-la a encolher-se. Estava
mortificada. Tinha vergonha de mim. Vesti a minha t-shirt tão
depressa quanto consegui, enrolei a toalha à volta da cintura e
afastei-me a coxear desconfortavelmente, de novo ao longo do tri-
lho. Ao vir-me embora, conseguia ouvir os rapazes a começarem
a rir-se novamente.

Nessa noite, entrei na água. Era mais tarde — muito, muito


mais tarde — e eu estivera a beber, na minha primeira experiência
de sempre com álcool. Também tinham acontecido outras coisas.
O Robbie procurou-me, veio ter comigo e pediu desculpa pelo
modo como ele e os seus amigos se tinham comportado. Disse-
-me quão arrependido estava, pôs o braço à volta dos meus om-
bros e explicou-me que não era preciso eu estar envergonhada.

74
ESCRITO NA ÁGUA

Mas, de qualquer modo, eu fui até ao Poço das Afogadas, e a


Nel arrastou-me de lá para fora. Puxou-me para a margem e pôs-
-me de pé. Deu-me uma chapada na cara com força.
— Minha cabra estúpida e gorda, o que estavas a fazer? O que
estás a tentar fazer?

75
PAO IES
QUARTA-FEIRA, 12 DE AGOSTO

PATRICK

O cHaLÉ DOS WARDS já não pertencia aos Wards há quase cem


anos, e também não pertencia a Patrick — na verdade, parecia
não pertencer a ninguém. Patrick supunha que, provavelmente,
pertencia à câmara municipal, embora nunca ninguém tivesse re-
clamado a sua propriedade. Mas, fosse como fosse, Patrick tinha
uma chave, o que o fazia ter um sentimento de posse. Pagava as
pequenas contas da eletricidade e da água, e instalara, ele pró-
prio, a fechadura, uns anos antes, depois de a antiga porta ter
sido arrombada por arruaceiros. Agora, só ele e o seu filho, Sean,
é que tinham as chaves, e Patrick tratava de manter o local limpo
e arrumado.
Só às vezes é que a porta era deixada destrancada, e, se fosse
perfeitamente sincero, Patrick já não poderia ter a certeza se a
tinha trancado. Começara a sentir, cada vez mais ao longo do últi-
mo ano, momentos de confusão que o enchiam de um medo tão
frio que se recusava a encará-lo. As vezes, esquecia-se de palavras
ou nomes e levava muito tempo a voltar a lembrar-se deles. Velhas
memórias reemergiam para violarem a sua paz de espírito, e es-
sas eram intensamente coloridas, perturbadoramente ruidosas.
Na periferia da sua visão, moviam-se sombras.
Patrick dirigia-se para montante todos os dias, fazia parte da
sua rotina: levantava-se cedo, caminhava os cinco quilómetros
junto ao rio até ao chalé e, às vezes, pescava durante uma ou duas

76
ESCRITO NA ÁGUA

horas. Hoje em dia, fazia menos isso. Não só por estar cansado
ou por lhe doerem as pernas; era a vontade que lhe faltava.
Não retirava prazer das coisas que, outrora, o tinham divertido.
Contudo, continuava a gostar de ver como estavam as coisas e,
quando se sentia bem das pernas, ainda conseguia caminhar até
lá e regressar num par de horas. Naquela manhã, todavia, acordara
com a barriga da perna esquerda inchada e dorida, e com o latejar
monótono da sua veia persistente como o tiquetaque de um reló-
gio. Portanto, decidiu levar o carro.
Ergueu-se da cama, tomou um duche, vestiu-se e, de repente,
lembrou-se, com uma irritação súbita, de que o seu carro ainda
estava na oficina — esquecera-se completamente de ir buscá-lo
na tarde anterior. Resmungando consigo próprio, atravessou o
pátio a coxear, para perguntar à sua nora se lhe emprestava o dela.
A mulher de Sean, Helen, estava na cozinha a limpar o chão.
No período letivo, já se teria ido embora — era diretora da escola
e fazia questão de estar todos os dias no seu escritório às 7h30.
Mas, mesmo nas férias escolares, não era pessoa de ficar na cama.
A indolência não estava na sua natureza.
— Levantaste-te cedo — disse Patrick ao entrar na cozinha,
e ela sorriu.
Com rugas a plissarem-lhe os olhos e madeixas grisalhas no
cabelo castanho e curto, Helen parecia mais velha do que os seus
36 anos aparentavam. Mais velha, achava Patrick, e mais cansada
do que devia estar.
— Não conseguia dormir — disse ela.
— Oh, lamento, querida.
Ela encolheu os ombros.
— O que é que se pode fazer? — Pôs a esfregona no balde
e encostou-a, de pé, à parede. — Posso fazer-lhe café, papá?
Era assim que ela o tratava agora. A princípio, parecera-lhe
estranho, mas, agora, gostava; aquecia-o, o afeto na sua voz ao
pronunciar a palavra. Ele disse que levaria café num recipiente,
explicando que queria ir para montante.
— Não vai para ao pé do poço, pois não? Só eu é que acho...
Ele abanou a cabeça.

Ti
PauLA HAaWKINS

— Não. Claro que não. — Ele fez uma pausa. — Como é que
o Sean está a lidar com isso tudo?
Ela voltou a encolher os ombros.
— Você sabe. Ele não fala lá muito.

Sean e Helen viviam na casa que Patrick outrora partilhara


com a sua mulher. Depois de ela ter morrido, Sean e Patrick
tinham vivido lá juntos. Muito mais tarde, depois do casamento
de Sean, remodelaram o antigo celeiro, mesmo do outro lado do
pátio, e Patrick saiu de casa. Sean protestou, dizendo que ele e
Helen é que se deviam mudar, mas Patrick nem sequer quis ouvir
falar nisso. Queria-os ali, gostava da sensação de continuidade,
da sensação de eles os três serem a sua própria pequena comuni-
dade, parte da vila e, no entanto, separada dela.
Quando chegou ao chalé, Patrick percebeu imediatamente
que alguém estivera lá. As cortinas estavam corridas e a porta da
rua estava ligeiramente entreaberta. Lá dentro, descobriu a cama
desfeita. Copos manchados de vinho encontravam-se vazios so-
bre o chão e um preservativo flutuava na sanita. Havia beatas de
cigarros de enrolar num cinzeiro. Ele pegou numa e cheirou-a,
à procura do odor a marijuana, mas só sentiu o cheiro a cinza fria.
Também lá havia outras coisas, peças de roupa e tralhas variadas
— uma meia azul descasada, um colar de contas. Juntou tudo e
enfiou-o num saco de plástico. Tirou os lençóis da cama, lavou os
copos no lavatório, atirou as beatas para o caixote do lixo e trancou
a porta, cuidadosamente, ao sair. Levou tudo para o carro, colocan-
do os lençóis no banco de trás, o lixo no porta-bagagens e os restos
variados no porta-luvas.
Trancou o carro e caminhou até à beira do rio, acendendo um
cigarro pelo caminho. A perna doía-lhe e o peito apertou-se-lhe ao
inspirar, com o fumo quente a embater-lhe na parte de trás da gar-
ganta. Tossiu, imaginando que conseguia sentir o arranhar acre
contra os seus pulmões cansados e enegrecidos. Subitamente,
sentiu-se muito triste. Aqueles estados de espírito acometiam-no
de vez em quando, apoderavam-se dele com uma tal força que dava
por si a desejar que tudo acabasse. Tudo. Olhou para a água e fungou.

78
ESCRITO NA ÁGUA

Nunca fora daquelas pessoas que cedem à tentação de se subme-


terem, de se submergirem, de fazerem com que tudo desapareça,
mas era suficientemente sincero para admitir que, às vezes, até
ele conseguia ver a atratividade do olvido.
Quando regressou a casa, a manhã ia a meio, e o Sol estava alto
no céu. Patrick avistou a malhada, a gata rafeira que Helen anda-
va a alimentar, a atravessar preguiçosamente o pátio, dirigindo-se
ao arbusto de rosmaninho no canteiro junto à janela da cozinha.
Reparou que tinha as costas ligeiramente arqueadas e a barriga
inchada. Grávida. Teria de tratar disso.

ks)
QUINTA-FEIRA, 13 DE AGOSTO

ERIN

Os MEUS VIZINHOS DE MERDA do meu apartamento de merda de


Newcastle, um arrendamento de curta duração, estavam a ter a
mãe de todas as discussões às 4 horas da manhã, pelo que decidi
levantar-me e ir correr. Estava completamente vestida e pronta e,
então, pensei: por que razão hei de correr aqui quando posso cor-
rer lá? Portanto, conduzi até Beckford, estacionei à frente da igreja
e parti pelo trilho do rio acima.
A princípio, foi difícil. Depois de se passar pelo poço, é preciso
subir a colina e, a seguir, voltar a descer o declive do outro lado,
mas, depois, esse terreno torna-se muito mais plano e é uma cor-
rida de sonho. Fresca, antes de o sol de verão atacar, sossegada,
pitoresca e livre de ciclistas, bem diferente da minha corrida lon-
drina, ao longo do Regent's Canal, desviando-me de bicicletas e
turistas durante todo o percurso.
Algumas milhas a montante, o vale alarga-se, com a encosta
verdejante do outro lado, salpicada por carneiros, a afastar-se aos
poucos. Corri sobre um chão plano e pedregoso, árido, à exceção
de tufos de relva grosseira e do tojo omnipresente. Corri muito,
de cabeça para baixo, até que, cerca de uma milha mais acima,
cheguei a um pequeno chalé ligeiramente afastado da berma do
rio, protegido por uma fila de bétulas.
Abrandei, correndo devagar, para recuperar o fôlego, dirigindo-
-me ao edifício, para lhe dar uma vista de olhos. Era um local

80
ESCRITO NA ÁGUA

isolado, aparentemente desocupado, mas não ao abandono. Tinha


cortinas, parcialmente corridas, e as janelas estavam limpas.
Espreitei lá para dentro e vi uma sala de estar minúscula, mobi-
lada com dois cadeirões verdes e uma pequena mesa entre eles.
Experimentei a porta, mas estava trancada, pelo que me sentei no
degrau da entrada, à sombra, e bebi um gole da minha garrafa de
água. Esticando as pernas à minha frente e fletindo os tornoze-
los, esperei que a minha respiração e o meu coração abrandas-
sem. Na base do caixilho da porta, reparei que alguém tinha gra-
vado uma mensagem — A Annie Maluca esteve aqui —, com um
pequeno crânio desenhado ao lado.
Havia corvos a discutirem nas árvores atrás de mim, mas,
exceto isso e o ocasional balido dos carneiros, o vale estava silen-
cioso, e perfeitamente preservado. Penso em mim mesma como
uma rapariga completamente citadina, mas este local — embora
estranho — tem o condão de se apoderar de nós.
O inspetor Townsend convocou a reunião para pouco depois
das 9 horas. Não éramos muitos — dois agentes fardados que
tinham andado a ajudar-nos com o porta a porta, a jovem agente
Callie, o tipo peludo da ciência e eu. O Townsend estivera reu-
nido com o médico-legista para a autópsia — transmitiu-nos os
pormenores, a maior parte dos quais seriam de esperar. À Nel
morreu devido aos ferimentos sofridos na queda. Não tinha água
nos pulmões — não se afogou, já tinha morrido quando entrou
na água. Não tinha quaisquer ferimentos que não pudessem ser
explicados pela queda — nenhuns arranhões ou nódoas negras
que parecessem deslocados ou que pudessem sugerir que qual-
quer outra pessoa tivesse estado envolvida. Também tinha uma
quantidade razoável de álcool no sangue — O correspondente
a três ou quatro copos.
A Callie deu-nos as informações detalhadas acerca do porta
a porta — não que houvesse grande coisa para dizer. Sabemos que
a Nel esteve no pub, durante pouco tempo, no domingo à tarde,
e que se foi embora por volta das 19 horas. Sabemos que esteve
a
na Casa do Moinho até, pelo menos, às 22h30, que foi quando
Lena foi para a cama. Ninguém relatou tê-la visto depois disso.

81
PAULA HAWKINS

Também ninguém relatou tê-la visto em quaisquer altercações


recentemente, muito embora seja do consenso geral que não gos-
tavam muito dela. As pessoas da terra não gostavam da atitude
dela, do sentimento de legitimidade de uma forasteira que viera
para a vila delas e se propunha contar a história delas. Como é que
ela se atrevia?
O Peludo tem andado a vasculhar a conta de e-mail da Nel
— ela criara uma conta dedicada ao seu projeto e convidara as
pessoas a enviarem-lhe as suas histórias. Basicamente, só recebera
ofensas.
— Embora eu não as considere muito piores do que as que
imensas mulheres recebem pela Internet, no normal decurso das
coisas — disse ele, exibindo-me um encolher de ombros apolo-
gético, como se fosse responsável por todos os idiotas misóginos
no ciberespaço. — Vou continuar a analisar os e-mails, é claro,
mas...
O resto do testemunho do Peludo foi, na verdade, bastante
interessante. Demonstrou que a Jules Abbott, para começar, es-
tava a mentir: o telemóvel da Nel ainda estava desaparecido, mas
os seus registos telefónicos mostravam que, embora não usasse
muito o telemóvel, fizera onze chamadas para a irmã durante
os últimos três meses. A maior parte das chamadas durava menos
de um minuto, às vezes dois ou três; nenhuma delas era parti-
cularmente demorada, mas também não eram de ligar e desligar.
Ele também conseguira determinar a hora da morte. A máquina
de filmar ao fundo do penhasco — a que não estava danificada
— Captara qualquer coisa. Nada de gráfico, nada de revelador, ape-
nas uma súbita mancha de movimento na escuridão, seguida por
um respingo na água. As 2h31 da manhã, dizia-nos a câmara, fora
o momento em que a Nel caíra.
Mas ele guardou o melhor para o fim.
— Tirámos uma impressão digital da outra máquina de filmar,
a que está danificada — disse ele. — Não corresponde a ninguém
nos arquivos, mas não poderíamos pedir às pessoas da terra para
começarem a vir cá, para se excluírem a si próprias?
O Townsend acenou com a cabeça, lentamente.

82
ESCRITO NA ÁGUA

— Sei que essa máquina de filmar foi vandalizada antes — pros-


seguiu o Peludo, encolhendo os ombros —, pelo que não nos dará,
necessariamente, nada de conclusivo, mas...
— Ainda assim. Vejamos o que descobrimos. Deixo isso con-
sigo — disse o Townsend, olhando para mim. — Vou falar com a
Julia Abbott acerca das tais chamadas. — Pôs-se de pé, cruzando
os braços à frente do peito, de queixo para baixo. — Devem ter
todos consciência — disse ele, em voz baixa, quase como se pe-
disse desculpa — de que, ainda esta manhã, estive ao telefone
com o Comando. — Suspirou profundamente, e os demais de nós
trocámos olhares. Sabíamos o que ali vinha. — Dados os resulta-
dos da autópsia e a ausência de provas físicas de qualquer espécie
de altercação lá em cima no penhasco, estamos a ser pressionados
para não desperdiçar recursos — e fez umas aspas com os dedos à
volta das palavras — com um suicídio ou uma morte acidental.
E pronto. Eu sei que ainda há trabalho a fazer, mas temos de tra-
balhar depressa e eficientemente. Não nos vão dar muito tempo
para isto.
Isso não representou propriamente um choque. Pensei acerca
da conversa que tinha tido com o inspetor no dia em que recebera
a incumbência — quase de certeza que se atirou. Por todo o lado,
havia pessoas a precipitarem-se, de penhascos ou para conclusões.
O que não era, de modo algum, surpreendente, dada a história
do local.
Mas, ainda assim, eu não gostava daquilo. Não gostava que
houvesse duas mulheres na água no espaço de apenas alguns me-
ses, e que se conhecessem uma à outra. Estavam ligadas, pelo
local e por pessoas. Estavam ligadas pela Lena: a melhor amiga de
uma e filha da outra. A última pessoa a ver a sua mãe com vida
e a primeira a insistir que aquilo — não apenas a morte da mãe,
mas o mistério que a envolvia — era o que ela queria. Que coisa tão
estranha para uma criança sugerir!
Disse isto mesmo ao inspetor ao sairmos do posto. Ele olhou
para mim lugubremente.
— Só Deus sabe o que vai pela cabeça dessa rapariga — disse
ele. — Deve andar a tentar conferir sentido a isto. Ela...

83
PauLA HAaWKINS

Parou. Havia uma mulher a caminhar na nossa direção — mais


a arrastar-se do que a caminhar, na verdade —, murmurando para
si própria enquanto andava. Usava um casaco preto, apesar do
calor, tinha madeixas roxas no cabelo grisalho e verniz escuro nas
unhas. Parecia uma idosa gótica.
— Bom dia, Nickie — disse o Townsend.
A mulher olhou para cima, para ele, e depois para mim, semi-
cerrando os olhos sob as sobrancelhas salientes.
— Hum — murmurou ela, presumivelmente em jeito de
cumprimento. — Está a chegar a alguma conclusão, está?
— À chegar a alguma conclusão acerca de quê, Nickie?
— Acerca de quem é que fez isto! — disse ela atabalhoada-
mente. — Acerca de quem é que a empurrou.
— Acerca de quem é que a empurrou?! — repeti. — Está a
referir-se à Danielle Abbott? Tem informações que nos possam
ser úteis, senhora... huim.?
Ela encarou-me e, depois, voltou a virar-se para o Townsend.
— Quem é esta? — perguntou, apontando um dedo para mim.
— É a agente Morgan — disse ele, calmamente. — Tem algu-
ma coisa que gostasse de nos dizer, Nickie? Acerca da outra noite?
Ela voltou a mostrar a sua desaprovação.
— Não vi nada — resmungou ela — e, mesmo que tivesse
visto, a vossa laia não me iria prestar atenção, pois não?
Continuou a arrastar-se para lá de nós, descendo a estrada en-
solarada e murmurando enquanto andava.
— À que é que ela se referia, na sua opinião? perguntei eu
ao inspetor. — Trata-se de alguém com quem devêssemos falar
oficialmente?
— Eu não levaria a Nickie Sage demasiado a sério — respon-
deu ele, abanando a cabeça. — Ela não é propriamente credível.
— Então?
— Diz que é «médium», que fala com os mortos. Já anterior-
mente tivemos problemas com ela, fraudes e por aí fora. Também
alega que é descendente de uma mulher que foi morta aqui por
caçadores de bruxas — acrescentou ele, secamente. — É comple-
tamente doida.

84
JULES

EU ESTAVA NA COZINHA quando a campainha tocou. Olhei para fora


da janela e vi o detetive, o Townsend, de pé nos degraus da entra-
da, a olhar para cima, para as janelas. A Lena foi à porta antes de
mim. Abriu-lha e disse:
— Olá, Sean.
O Townsend entrou em casa, roçando-lhe o corpo magro ao
passar e reparando (tem de ter reparado) nos seus calções de gan-
ga cortados. E na t-shirt dos Rolling Stones com a língua de fora.
Estendeu-me a mão e eu apertei-a. Tinha a palma seca, mas a sua
pele tinha um brilho doentio e havia círculos acinzentados debaixo
dos seus olhos.
A Lena observava-o por debaixo das suas pálpebras descaídas.
Levou os dedos à boca e roeu uma unha.
Levei-o até à cozinha e a Lena seguiu-nos. O detetive e eu
sentámo-nos à mesa, ao passo que a Lena se encostou à bancada.
Cruzou um tornozelo por cima do outro e, depois, mudou de po-
sição e voltou a cruzá-los.
O Townsend não olhou. Tossiu e, depois, esfregou uma mão
contra o pulso.
— Foi concluída a autópsia — disse ele, com uma voz suave.
Olhou de relance para a Lena e, depois, de novo, para mim. — A Nel
morreu devido ao impacto. Não há nenhuma indicação de que
tenha estado envolvida qualquer outra pessoa. Tinha algum álcool

85
PAULA HAWKINS

no sangue. — A sua voz tornou-se ainda mais suave. — O sufi-


ciente para lhe toldar o discernimento. Para a desequilibrar.
A Lena fez um ruído, um suspiro demorado e trémulo. O dete-
tive estava a olhar para as mãos, agora cruzadas à sua frente, sobre
a mesa.
— Mas... a Nel andava com a firmeza de um bode lá em cima,
naquele penhasco — disse eu. — E aguentava bastantes copos de
vinho. A Nel conseguia aguentar uma garrafa...
Ele assentiu com a cabeça.
— Talvez — disse ele. — Mas, à noite, lá em cima...
— Não foi um acidente — disse a Lena, bruscamente.
— Ela não se atirou — cortei eu.
A Lena piscou-me os olhos, com o lábio curvado.
— O que é que tu sabes? — perguntou ela, e virou-se para olhar
para o detetive. — Sabia que ela lhe mentiu? Mentiu acerca de não
estar em contacto com a minha mãe. A mamã tentou ligar-lhe,
tipo, nem sequer sei quantas vezes. Ela nunca atendia, nunca li-
gava de volta, nunca... — Parou, voltando a olhar para mim. — Ela
só está... porque é que estás sequer aqui? Não te quero cá.
Saiu da divisão, atirando com a porta da cozinha atrás dela.
Alguns segundos mais tarde, também atirou com a porta do seu
quarto.

O inspetor Townsend e eu ficámos sentados em silêncio. Esperei


que ele me perguntasse acerca dos telefonemas, mas ele não disse
nada; tinha os olhos fechados e o rosto inexpressivo.
— Não lhe parece estranho — disse eu, por im — que ela es-
teja tão convencida de que a Nel fez isto deliberadamente? — Ele
virou-se para mim, com a cabeça ligeiramente inclinada para um
dos lados. Ainda assim, não disse nada. — Não tem nenhum sus-
peito nesta investigação? Quer dizer... é que não me parece mes-
mo que alguém aqui se preocupe com o facto de ela ter morrido.
— Mas você preocupa-se? — perguntou ele, calmamente.
— Que raio de pergunta é essa?
Conseguia sentir a minha cara a ficar quente. Sabia o que aí
vinha.

86
ESCRITO NA ÁGUA

— Sra. Abbott — disse ele. — Julia.


— Jules. É Jules.
Eu estava a ganhar tempo, a atrasar o inevitável.
— Jules. — Ele pigarreou. — Como a Lena acabou de mencio-
nar, embora você nos tenha dito que não tinha qualquer contacto
com a sua irmã há anos, os registos do telemóvel da Nel revelam
que, só nos últimos três meses, ela fez onze chamadas para o seu
telefone.
Com o rosto quente de vergonha, afastei o olhar.
— Onze chamadas. Porque é que nos mentiu? — insistiu ele.
(Ela está sempre a mentir, murmuraste tu, de modo sombrio.
Sempre a mentir. Sempre a inventar histórias.)
— Eu não menti — protestei. — Eu nunca falava com ela. Era
como a Lena disse: ela deixava-me mensagens, e eu não respondia.
Portanto, não menti — repeti eu. Parecia uma desculpa esfarra-
pada, até para mim própria. — Olhe, não me pode pedir para lhe
explicar isto, porque não há maneira de explicá-lo a um estranho.
A Nele eu tínhamos problemas há muitos anos, mas isso não tem
nada que ver com isto.
— Como é que pode saber? — perguntou o Townsend. — Se não
falava com ela, como é que sabe com o que é que teve que ver?
— Eu só... Tome — disse, estendendo-lhe o meu telemóvel.
— Fique com ele. Ouça você mesmo.
As minhas mãos tremiam e, quando ele pegou no telemó-
vel, as dele também. Ouviu a tua última mensagem.
— Porque é que não lhe ligou de volta? — perguntou ele, com
algo semelhante a desapontamento no rosto. — Ela parecia per-
turbada, não acha?
— Não, eu... Não sei. Ela era a mesma Nel de sempre. Às ve-
zes estava contente, às vezes triste, às vezes estava zangada, algu-
mas vezes estava bêbeda... isso não significava nada. Você não a
conhece.
— As outras chamadas que ela fez — exigiu ele, agora com
um tom de voz mais abrupto. — Ainda tem essas mensagens?
Não tinha, todas não, mas ele ouviu as que eu tinha, com a mão
a agarrar no meu telemóvel com tanta força que os nós dos seus

87
PauLA HAWKINS

dedos se embranqueceram. Quando terminou, devolveu-me o


telemóvel e disse:
— Não apague essas. Podemos ter de voltar a ouvi-las.
Empurrou a sua cadeira para trás e pôs-se de pé, e eu segui-o
ao sair para o vestíbulo.
Junto à porta, virou-se para me encarar.
— Tenho de dizer-lhe — disse ele — que acho estranho que
não lhe respondesse. Que não tentasse descobrir porque é que ela
precisava de falar consigo com tanta urgência.
— Achei que ela só queria atenção — disse eu, calmamente,
e ele virou-me as costas.
Só depois de ele ter fechado a porta atrás de si é que me lem-
brei. Corri atrás dele.
— Inspetor Townsend — gritei. — Havia uma pulseira. A pul-
seira da minha mãe. A Nel usava-a sempre. Encontrou-a?
Ele abanou a cabeça, virando-se de novo para olhar para mim.
— Não encontrámos nada, não. A Lena disse à agente Morgan
que, apesar de a Nel, de facto, a usar muitas vezes, não era algo
com que andasse todos os dias. Embora — continuou ele, baixando
a cabeça — eu suponha que você não pudesse saber disso.
Olhando de relance para a casa, entrou no seu carro e recuou
lentamente, saindo da rampa da entrada.

88
JULES

PORTANTO, DE ALGUM MODO, acabei por ter culpa disto. És mesmo


tramada, Nel. Morreste, possivelmente foste morta, e toda a gente
me está a apontar o dedo. Eu nem sequer cá estava! Senti-me exas-
perada, reduzida ao meu eu adolescente. Apetecia-me gritar-lhes:
Como é que pode ser culpa minha?
Depois de o detetive se ter ido embora, voltei pesadamente
para dentro de casa, avistando-me a mim própria no espelho do
corredor, e fiquei surpreendida por te ver a olhares para mim (mais
velha, não tão bonita, mas, ainda assim, tu). Senti um peso no pei-
to. Fui até à cozinha e chorei. Se te falhei, preciso de saber como.
Posso não te ter amado, mas não admito que sejas assim aban-
donada, ignorada. Quero saber se alguém te magoou e porquê;
quero que paguem por isso. Quero que tudo isto tenha descanso
para que, talvez, possas parar de me sussurrar ao ouvido acerca
de como não te atiraste, não te atiraste, não te atiraste. Acredito em
ti, está bem? E (sussurra-o) quero saber que estou em segurança.
Quero saber que não vem ninguém atrás de mim. Quero saber
que a criança que é suposto eu proteger é apenas isso — uma
criança inocente — e não outra coisa qualquer. Não algo perigoso.
Não parava de pensar no modo como a Lena olhara para o
inspetor Townsend, no tom da voz dela ao tratá-lo pelo nome
próprio (o nome próprio?) e no modo como ele olhara para ela.
Perguntava-me se o que ela lhes dissera acerca da pulseira era

89
PauLA HAWKINS

verdade. Soava a falso, na minha opinião, porque foras tão rápida


a reclamá-la, a torná-la tua. Era possível, supunha, que só tives-
ses insistido em ficar com ela porque sabias quanto eu a queria.
Quando a descobriste no meio das coisas da mamã e a puseste
no pulso, eu queixei-me ao papá (sim, voltei a fazer queixinhas).
Perguntei:
— Porque é que ela há de ficar com aquilo?
— Porque não? — respondeste. — Sou a mais velha.
E, quando ele saiu, disseste:
— Não achas que me fica bem? — E beliscaste uma camada de
gordura no meu antebraço. — Duvido que coubesse à volta do teu
bracinho gorducho.
Limpei os olhos. Muitas vezes, davas-me ferroadas dessas;
a crueldade era o teu forte. Alguns insultos — acerca do meu tama-
nho, de quão lenta era, de quão chata — eu desdramatizava-os.
Outros — Vá lá, Julia, diz-me sinceramente. Não houve uma parte
de ti que gostou daquilo? — eram farpas cravadas bem fundo na
minha carne, irrecuperáveis, a menos que eu quisesse abrir no-
vas feridas. O último, pronunciado ao meu ouvido no dia em que
enterrámos a nossa mãe — oh, teria gostado de te estrangular
com as minhas próprias mãos por causa dessas palavras. E, se me
fazias isso a mim, se eras capaz de me fazer sentir assim, a quem
mais é que deste vontade de matar?
Lá em baixo, nas entranhas da casa, no teu estúdio, comecei
a vasculhar os teus papéis. Comecei com as coisas mundanas.
Dos arquivos de madeira, tirei pastas contendo registos médicos
teus e da Lena, e uma certidão de nascimento da Lena, sem o
nome do pai. Já sabia que seria assim, claro; esse era um dos teus
mistérios, um dos teus segredos bem guardados junto ao peito.
Mas nem a Lena podia saber? (Tinha de me perguntar, indelicada-
mente, se tu também não sabias mesmo.)
Havia relatórios escolares, da Montessori Day School, em Park
Slope, Brooklyn, e das escolas primária e secundária locais, aqui
em Beckford. As escrituras da casa, uma apólice de seguro de vida
(com a Lena como beneficiária), extratos bancários, contas de in-
vestimento. Todos os restos vulgares de uma vida relativamente

90
ESCRITO NA ÁGUA

bem organizada, sem segredos a revelar, sem verdades escondi-


das por contar.
Nas gavetas de baixo, encontravam-se os teus arquivos relati-
vos ao «projeto»: caixas cheias de impressões em bruto de foto-
grafias, páginas de anotações, algumas datilografadas, algumas
na tua própria caligrafia apressada, com tinta azul e verde, pala-
vras riscadas e com letra maiúscula e sublinhadas, como os desva-
rios de uma partidária da teoria da conspiração. Uma louca.
Ao contrário das outras pastas, as institucionais, nada daquilo
estava em ordem, era tudo uma bagunça, estava tudo mistura-
do. Como se alguém tivesse vasculhado as pastas, à procura de
alguma coisa. A minha pele arrepiou-se, a minha boca secou.
A polícia vasculhara-as, claro. Tinham o teu computador, mas,
ainda assim, quereriam ver isto. Talvez tivessem andado à procura
de um bilhete.
Percorri a primeira caixa de fotografias. Eram, sobretudo, do
poço, das rochas, da pequena praia de areia. Nalgumas, escre-
veste coisas nas bermas, códigos que eu não conseguia decifrar.
Também havia fotografias de Beckford: as suas ruas e casas, as
bonitas de pedra e as mais novas e feias. Uma delas fora fotogra-
fada repetidamente, uma casa geminada eduardiana, com corti-
nas sujas, meio corridas. Havia fotografias do centro da vila, da
ponte, do pub, da igreja, do cemitério. Da campa da Libby Seeton.
Pobre Libby. Andavas obcecada por ela quando eras criança.
Eu odiava a história, triste e cruel como era, mas tu querias ouvi-
Ja repetidamente. Querias ouvir como a Libby, ainda criança, foi
levada até à água, acusada de bruxaria.
— Porquê? — perguntava eu.
E a nossa mãe respondia:
— Porque ela e a tia dela sabiam acerca de ervas e plantas.
Sabiam como fazer remédios.
Isso parecia-me uma razão estúpida, mas as histórias dos adul-
tos estavam cheias de crueldades estúpidas: criancinhas recusadas
à entrada das escolas porque a sua pele era de uma cor errada;
pessoas espancadas ou mortas por adorarem o deus errado. Mais
tarde, contaste-me que não era por fazerem remédios, que era

91
PauLA HAWKINS

porque a Libby seduzira (explicaste-me a palavra) um homem


mais velho e incitara-o a deixar a mulher e o filho. Isso não a dimi-
nuía aos teus olhos; era um sinal do seu poder.
Quando eras pequena, com 6 ou 7 anos, insistias em levar uma
das saias velhas da mãe para o poço; ela arrastava-se pela lama,
embora tu a segurasses debaixo do queixo. Subias aos rochedos
e atiravas-te à água enquanto eu brincava na praia. Eras a Libby:
Olha, mamã! Olha! Achas que me afogo ou que nado?
Consigo ver-te a fazeres isso, a excitação na tua cara. Consigo
sentir a mão suave da mãe na minha, a areia quente entre os meus
dedos dos pés ao observarmos-te. Isto não faz nenhum sentido:
se tu tinhas 6 ou 7 anos, então, eu tinha 2 ou 3 — é impossível
lembrar-me disso, não é?
Pensei no isqueiro que encontrei na tua gaveta, nas iniciais
gravadas nele. LS. Será para a Libby? A sério, Nel? Estarias tão
obcecada por uma rapariga morta há 300 anos que mandaste gra-
var as suas iniciais nos teus pertences? Talvez não. Talvez não es-
tivesses obcecada. Talvez gostasses apenas da ideiade seres capaz
de segurá-la na palma da tua mão.
Regressei aos arquivos, procurando mais acerca da Libby. Per-
corri páginas datilografadas e impressas e fotografias, cópias de
velhos artigos de jornal, recortes de revistas, com os teus rabis-
cos grosseiros, aqui e ali, nas margens das páginas, normalmente
ilegíveis, raramente compreensíveis. De alguns nomes ouvira fa-
lar, de outros não: Libby e Mary, Anne e Katie e Ginny e Lauren,
e ali, no cimo da entrada da Lauren, a letra grossa e negra, escre-
veste: Beckford não é um local de suicídios. Beckford é um sítio onde se
livram de mulheres problemáticas.

Sa
O POÇO DAS AFOGADAS

Libby, 1679

O ntem disseram que seria amanhã, portanto é hoje. Ela sabe que
não falta muito. Virão para a levarem para a água, para a
fazerem nadar. Ela quer que aquilo chegue, deseja que chegue, não
será cedo demais. Está cansada de se sentir tão suja, da comichão
na sua pele. Sabe que, na verdade, não a ajudará quanto às cha-
gas, agora pútridas e a cheirarem mal. Precisa de bagas de sabuguei-
ro, ou talvez de calêndula, não sabe bem qual seria melhor, ou se
já será demasiado tarde para fazer o que quer que seja. A tia May
saberia, mas agorajá morreu, há oito meses que foi pendurada numa
forca.
Libby gosta da água, adora o rio, embora tenha medo das profun-
dezas. Agora, estará suficientemente frio para a enregelar, mas, pelo
menos, tirará os insetos da sua pele. Raparam-na logo que a prende-
ram, mas, agora, o cabelo voltou a crescer um pouco, e há coisas a ras-
tejarem por toda a parte, a cravarem-se nela, ela sente-as nos ouvidos,
nos cantos dos olhos e entre as pernas. Coça-se até sangrar. Será bom
que tudo isso, o cheiro do sangue, seja levado pela água.
Vêm de manhã. Dois homens, jovens, de mãos calejadas, de boca
rude, ela já antes lhes sentiu os punhos. Agora já não, eles têm cuidado
com isso, porque ouviram o que o homem disse, o que a viu na floresta,
com as pernas abertas e o Diabo entre elas. Riem-se e esbofeteiam-na,
mas também têm medo dela e, em qualquer caso, hoje em dia não é lá
muito agradável olhar para ela.

93
PaULA HAWKINS

Ela pergunta-se se ele estará lá para vê-la e o que pensará. Outrora,


achou-a bela, mas, agora, os seus dentes estão a apodrecer e a sua pele
tem manchas azuis e roxas, como se já estivesse meio morta.
Levam-na para Beckford, onde o rio descreve uma curva pronun-
ciada à volta do penhasco e, depois, corre lentamente, lentamente e em
profundidade. Será ali que ela nadará.
É outono, com um vento frio a soprar, mas o Sol brilha e, portanto,
ela sente-se envergonhada, ali despida, à luz brilhante, defronte de todos
os homens e mulheres da vila. Pensa que consegue ouvi-los a arfarem,
de horror ou de surpresa, com o que a linda Libby Seeton se tornou.
Ela está amarrada com cordas suficientemente grossas e ásperas
para lhe trazerem sangue novo e fresco aos pulsos. Só os braços. As per-
nas estão livres. Então, passam-lhe uma corda à volta da cintura, para,
no caso de se afogar, conseguirem puxá-la de novo.
Quando a levam até à beira do rio, ela vira-se e procura-o. Então,
as crianças gritam, pensando que está a amaldiçoá-las, e os homens
empurram-na água adentro. O frio retira-lhe o fôlego todo. Um dos
homens tem uma vara e enfia-lha nas costas, empurrando-a cada vez
mais para a frente, até ela ficar sem pé. Ela escorrega para baixo, água
adentro.
Afunda-se.
O frio é tão cortante que se esquece de onde está. Abre a boca para
respirar e engole água negra, começa a engasgar-se, debate-se, esper-
neia, mas está desorientada e já não sente o leito do rio sob os pés.
A corda puxa-a com força, cortando-lhe a cintura, rasgando-lhe
a pele.
Quando a arrastam para a margem, está a chorar.
— Mais uma vez!
Alguém está a clamar por um segundo tormento.
— Ela afundou-se! — grita uma voz de mulher. — Não é nenhu-
ma bruxa, é apenas uma criança.
— Mais uma vez! Mais uma vez!
Os homens voltam a amarrá-la para um segundo tormento. Agora,
de uma maneira diferente: o polegar esquerdo ao dedo grande do pé
direito, e o polegar direito ao esquerdo. A corda em torno da cintura.
Desta feita, têm de a carregar água adentro.

94
ESCRITO NA ÁGUA

— Por favor — começa ela a implorar, porque agora não sabe ao


certo se consegue voltar a enfrentar aquilo, a escuridão eo frio.
Quer regressar a um lar que já não existe, a um tempo em que ela
e a tia se sentavam diante da lareira e contavam histórias uma à
outra. Quer estar na sua cama no chalé delas, quer voltar a ser peque-
na, inspirar o fumo da madeira e as rosas e o doce aconchego da pele
da tia.
— Por favor.
Afunda-se. Quando a tiram de lá pela segunda vez, tem os lábios
do azul de uma nódoa negra, e a sua respiração desapareceu para
sempre.

95
SEGUNDA-FEIRA, 17 DE AGOSTO

NICKIE

NICKIE ESTAVA SENTADA na sua cadeira junto à janela, observando


o Sol a nascer e a queimar a neblina matinal, retirando-a das
colinas. Mal dormira, praticamente, devido àquele calor e ao facto
de a sua irmã lhe ter tagarelado ao ouvido durante toda a noite.
Nickie não gostava do calor. Era uma criatura feita para o tempo
frio: a família do seu pai vinha das Hébridas. Ascendência viquin-
gue. Do lado da mãe, vinham do leste da Escócia, empurrados
para sul, há centenas de anos, por caçadores de bruxas. A malta de
Beckford podia não acreditar, podia ridicularizá-la e desprezá-la,
mas Nickie sabia que era descendente de bruxas. Podia estabele-
cer uma linha direta até lá atrás, dos Sage até aos Seeton.
Depois de ter tomado um duche, de ter comido e de se ter
vestido de um negro respeitoso, Nickie foi primeiro ao poço. Uma
caminhada arrastada, demorada e lenta ao longo do trilho. Estava
agradecida pela sombra proporcionada pelos carvalhos e pelas
faias. Ainda assim, o suor picava-lhe os olhos, acumulando-se na
base da coluna. Quando chegou à pequena praia da margem es-
querda, descalçou as sandálias e entrou na água até aos tornoze-
los. Baixou-se e encheu várias vezes as mãos de água, salpicando-a
sobre a cara, o pescoço e os antebraços. Noutros tempos, teria su-
bido ao cimo do penhasco para prestar a sua homenagem às que
tinham caído, às que se tinham atirado e às que tinham sido em-
purradas, mas as suas pernas, simplesmente, já não eram capazes

96
ESCRITO NA ÁGUA

disso, pelo que, o que quer que tivesse a dizer às nadadoras, teria
de dizê-lo dali de baixo.
Nickie estava quase precisamente naquele lugar da primeira
vez que vira Nel Abbott. Fora um par de anos antes e ela estava a
fazer a mesma coisa — a chapinhar um pouco, a refrescar-se —
quando avistou uma mulher no cimo do penhasco. Observou-a a
andar para trás e para a frente, uma e outra vez, e, à terceira vez,
houve um formigueiro nas palmas das mãos de Nickie. Algo de
maléfico, pensou ela. Observou a mulher a agachar-se, a pôr-se
de joelhos e, depois, como uma cobra a deslizar sobre a barriga,
a avançar mesmo até à beira do penhasco, com os braços a balou-
çarem para fora da berma. Com o coração na boca, Nickie gritou:
— Eil
A mulher baixou os olhos e, para surpresa de Nickie, sorriu e
acenou-lhe.
Nickie via-a bastante por ali depois disso. la muitas vezes ao
poço, para tirar fotografias, fazer desenhos, anotar coisas. Estava
lá em cima a qualquer hora da noite ou do dia, fizesse o tempo
que fizesse. Da sua janela, Nickie observara Nel a atravessar a vila
a pé, em direção ao poço, na calada da noite, durante um nevão,
ou quando a chuva agreste caía com força suficiente para arrancar
a pele à carne.
Às vezes, Nickie passava por ela no trilho e Nel não recuava,
nem sequer reparava que tinha companhia, de tão absorta que
estava pela tarefa que tinha em mãos. Nickie gostava disso, ad-
mirava a concentração da mulher, o modo como o seu trabalho
a consumia. Também apreciava a devoção que Nel tinha ao rio.
Outrora, Nickie gostava de mergulhar na água nas manhãs quen-
tes de verão, embora, agora, esses dias pertencessem ao passado.
Mas Nel! Nadava de madrugada e ao crepúsculo, tanto no inverno
não a
como no verão. Embora, agora que pensava nisso, Nickie
tivesse visto a nadar no rio há algum tempo, há algumas semanas
ver-
já. Talvez mais? Tentou lembrar-se da última vez em que, na
a sua
dade, a tinha visto na água, mas não conseguiu, até porque
a
irmã estava novamente a tagarelar-lhe ao ouvido, toldando-lhe
visão mental.

E
PauLA HAWKINS

Queria tanto que ela se calasse.


Toda a gente achava que Nickie era a ovelha negra da família,
mas essa era, na realidade, a sua irmã, Jean. Ao longo da infância,
toda a gente dizia que Jeannie era a boazinha, que fazia o que lhe
mandavam, e, então, ela fizera 17 anos e, surpreendentemente,
entrara para a polícia. Para a polícia! O pai delas era mineiro, por
amor de Deus. Fora uma traição, era o que a mãe dela dizia, uma
traição a toda a família, a toda a comunidade. Os pais dela deixa-
ram de falar com Jean nessa altura e era suposto Nickie também
cortar relações com ela. Só que não conseguia, pois não? Jeannie
era a sua irmã mais nova.
Falava demais, caraças, era esse o seu problema — não sabia
quando estar calada. Depois de ter deixado a polícia e antes de ter
saído de Beckford, Jean contou a Nickie uma história de lhe pór
os cabelos em pé e, desde então, Nickie andava a morder a língua
e a cuspir para o chão, murmurando as suas invocações para se
proteger, sempre que Patrick Townsend se cruzava com ela.
Até agora, aquilo funcionara. Estava protegida. Jeannie, con-
tudo, não. Depois dessa questão com Patrick e a mulher dele e
de todos os problemas que se seguiram, Jeannie mudou-se para
Edimburgo, casou-se com um homem inútil e, juntos, resolveram
passar os 15 anos seguintes a beber até morrerem. Mas Nickie ain-
da a via de vez em quando, ainda falava com ela. Recentemente,
com mais frequência. Jeannie voltara a tornar-se tagarela. Ruidosa,
problemática. Insistente.
Nas últimas noites, desde que Nel Abbott se afogara, andara
a tagarelar mais do que nunca. Jeannie teria gostado de Nel, teria
visto nela algo de si própria. Nickie também gostava dela, gosta-
va das suas conversas, gostava do facto de que Nel ouvia quando
Nickie falava. Ouvia as suas histórias, mas não acatava os seus
avisos, pois não? Tal como Jeannie, Nel era outra que não sabia
quando estar calada.
O que se passa é que, às vezes, digamos que depois de chuvas
fortes, o rio sobe. Indisciplinado, transborda para terra, revira-a
e revela algo perdido: os ossos de um carneiro, a galocha de uma
criança, um relógio de ouro revestido de lama, um par de óculos

98
ESCRITO NA ÁGUA

com uma corrente de prata. Uma pulseira com um fecho de ónix


partido. Uma faca, um anzol, um peso de pesca. Latas de estanho
e carrinhos de supermercado. Destroços. Coisas com significado
e coisas sem. E não tem mal nenhum, é assim que as coisas são,
é assim que o rio é. O rio pode revisitar o passado e trazê-lo à
superfície e cuspi-lo nas margens para que toda a gente o veja,
mas as pessoas não podem. As mulheres não podem. Quando
se começa a fazer perguntas e a colocar pequenos anúncios nas
lojas e nos pubs, quando se começa a tirar fotografias e a falar com
os jornais, e a fazer perguntas acerca de bruxas e mulheres e al-
mas perdidas, não se está a procurar respostas, está-se a procurar
problemas.
Nickie sabia-o bem.
Quando acabou de secar os pés e voltou a calçar as sandálias
e a caminhar, de novo, muito lentamente, ao longo do trilho e
escadas acima e para lá da ponte, já passava das 10, e estava quase
na hora. Foi à loja, comprou uma lata de Coca-Cola e sentou-se
no banco diante do adro da igreja. Não ia entrar — a igreja não
era lugar para ela —, mas queria observá-los. Queria observar os
enlutados e os mirones e os hipócritas descarados.
Instalou-se e fechou os olhos — apenas por um momento,
pensou —, mas, quando voltou a abri-los, aquilo já começara.
Observou a jovem mulher-polícia, a nova, a pavonear-se por
ali, virando a cabeça para trás como uma suricata. Ela também
era uma observadora. Nickie viu a malta do pub, o proprietário,
a mulher e a rapariga que trabalhava atrás do balcão, um par de
professores da escola, o gordo e desalinhado, e o elegante, com
óculos escuros a taparem-lhe os olhos. Viu os Whittakers, os três,
com a tristeza a borbulhar como vapor de uma panela, o pai todo
curvado de dor, o rapaz aterrorizado pela sua própria sombra,
m
e só a mãe de cabeça erguida. Um bando de raparigas a grasnare
como gansos, com um homem atrás delas, um rosto do passado,
não
uma cara feia. Nickie conhecia-o, mas não conseguia situá-lo,
azul-
conseguia fixá-lo na sua mente. Estava distraída pelo carro
escuro que entrara no parque de estacionamento, pelos arrepios
a mulher
na sua pele, pela sensação do ar fresco na sua nuca. Viu

99
PauLa HaWKINS

primeiro, Helen Townsend, simplíssima, a sair do banco de trás


do carro. O seu marido saiu do lugar do condutor e, do lado do
passageiro, surgiu o velhote, Patrick, com as costas direitas como
as de um brigadeiro. Patrick Townsend: um homem de família,
um pilar da comunidade, um ex-bófia. Escumalha. Nickie cus-
piu para o chão e disse a sua imprecação. Sentiu o velhote a virar
o olhar para ela e Jeannie sussurrou:
— Olha para o outro lado, Nic.
Nickie contou-os ao entrarem e voltou a contá-los ao saírem,
meia hora mais tarde. Houve uma espécie de celeuma à porta, com
as pessoas a chocarem umas contra as outras, a empurrarem-se
para passarem e, então, aconteceu qualquer coisa entre o profes-
sor elegante e Lena Abbott, uma palavra trocada com brusquidão.
Nickie olhava e conseguia ver que a mulher-polícia também es-
tava a olhar, com Sean Townsend a segui-la, um palmo mais alto
do que ela. Para manter a ordem. No entanto, algo passou ao lado,
não foi? Como numa daquelas burlas em que desviamos os olhos
da bola durante um segundo e todo o jogo muda.

100
HELEN

HELEN SENTOU-SE À MESA da cozinha e chorou silenciosamente,


com os ombros a sacudirem-se e as mãos fechadas sobre o colo.
Sean interpretou aquilo de modo completamente errado.
— Não tens de ir — disse ele, pousando-lhe uma mão, aten-
ciosamente, sobre o ombro. — Não há nenhuma razão para ires.
— Tem de ir, sim — disse Patrick. — A Helen e tu; temos
todos. Fazemos parte desta comunidade.
Helen acenou com a cabeça, limpando as lágrimas com as
costas das mãos.
— Claro que vou — disse ela, pigarreando. — Claro que vou.
Não estava aborrecida por causa do funeral. Estava aborre-
cida porque Patrick afogara a malhada no rio naquela manhã.
Ela estava grávida, disse-lhe ele, e não se podiam dar ao luxo de
ficar com a casa infestada de gatos. Tornar-se-iam um incómodo.
Ele tinha razão, claro, mas isso não ajudava. A malhada, embora
selvagem, tinha começado a parecer a Helen um animal de esti-
mação. Gostava de observá-la a andar pelo pátio todas as manhãs,
farejando em torno da porta da rua, em busca de uma guloseima,
a esmagar preguiçosamente as abelhas que zumbiam em redor
e.
do rosmaninho. Pensar nisso fê-la levantar o ânimo novament
Depois de Sean ter ido para o andar de cima, ela disse:
— Não tinha de afogá-la. Eu podia tê-la levado ao veterinário,
eles podiam tê-la adormecido.

101
PAULA HAWKINS

Patrick abanou a cabeça.


— Não era preciso — disse ele, asperamente. — É a melhor
maneira. Acaba muito depressa.
Mas Helen vira os arranhões profundos nos seus antebraços,
atestando a força com que a gata lutara. Ainda bem, pensou ela.
Espero que te tenha aleijado, caraças. Então, sentiu-se mal, porque
claro que ele não fizera aquilo por crueldade.
— Terei de lhe tratar disso — disse ela, apontando para as
marcas nos braços dele.
Ele abanou a cabeça.
— Está tudo bem.
— Não está bem, pode apanhar uma infeção. E vai ficar com
a camisa ensanguentada.
Ela sentou-o à mesa da cozinha, limpou-lhe os arranhões, esfre-
gou desinfetante nas feridas e, depois, tapou-lhe os cortes piores
com pensos rápidos. Ele observou-lhe a cara durante esse tempo
todo, e ela imaginou que ele devia sentir alguns remorsos porque,
quando ela terminou, ele beijou-lhe a mão e disse:
— Linda menina. És uma linda menina.
Ela pôs-se de pé e afastou-se dele, ficando junto ao lavatório da
cozinha com as mãos sobre a bancada e olhando para os paralele-
pípedos inundados de sol. Mordeu o lábio.
Patrick suspirou, baixando a voz até se tornar um murmáúrio.
— Olha, querida, eu sei que isto é difícil para ti. Sei disso.
Mas temos de ir como uma família, não é? Temos de apoiar o
Sean. Não se trata de sofrer por ela. Trata-se de pormos tudo aqui-
lo para trás das costas.
Helen não sabia bem se tinham sido as palavras que ele dissera
ou a sua respiração na nuca dela, mas o seu cabelo eriçou-se.
— Patrick — disse ela, virando-se para olhar para ele. — Papá.
Tenho de falar consigo acerca do carro, acerca...
Sean estava a descer as escadas ruidosamente, dois degraus
de cada vez.
— Acerca de quê?
— Esqueça — disse ela, e ele franziu o sobrolho. Abanou a
cabeça. — Não é importante.

102
ESCRITO NA ÁGUA

Foi ao andar de cima, lavou a cara e vestiu o fato de calças cin-


zento-escuro, normalmente reservado para as reuniões do conse-
lho diretivo. Passou um pente pelo cabelo, tentando não ver o seu
próprio olhar no espelho. Não queria admitir, nem sequer para
si mesma, que tinha medo; não queria encarar aquilo que temia.
Achara algumas coisas no porta-luvas do seu carro, coisas que não
conseguia explicar, e não sabia bem se queria a explicação. Tirara
de lá tudo e escondera — estupidamente, infantilmente — debaixo
da sua cama.
— Estás pronta? — gritava Sean do andar de baixo.
Ela respirou fundo, forçando-se a olhar para o seu próprio refle-
xo, para o seu rosto pálido e limpo, para os seus olhos transparentes
como um vidro cinzento.
— Estou pronta — disse ela, para si mesma.

Helen sentou-se no banco de trás do carro de Sean, com Patrick


à frente, ao lado do filho. Ninguém falou, mas, pelo modo como
o seu marido estava sempre a levar a palma da mão ao pulso, ela
conseguia ver que ele estava ansioso. Estaria a sofrer, claro. Tudo
aquilo — aquelas mortes no rio — trazia à tona memórias doloro-
sas para ele e para o pai.
Ao atravessarem a primeira ponte, Helen olhou de relance lá
para baixo, para a água esverdeada, e tentou não pensar nela, sub-
mergida, a lutar pela vida. À gata. Estava a pensar na gata.

103
JOSH

TivE UMA BRIGA COM A MAMA antes de sairmos para o funeral.


Cheguei ao andar de baixo e ela estava no corredor, a pôr batom
ao espelho. Estava a usar uma camisa vermelha. Disse-lhe que
não se podia levar aquilo para um funeral, que era desrespeitoso.
Ela limitou-se a dar uma espécie de risada estranha, foi para a
cozinha e continuou como se eu não tivesse dito absolutamente
nada. No entanto, eu não estava disposto a desistir daquilo, por-
que não precisamos que recaia mais atenção sobre nós. A polícia
estará, por certo, lá — a polícia aparece sempre nos funerais de
pessoas que morrem de forma misteriosa. É suficientemente mau
que eu já lhes tenha mentido, e a mamã também — o que irão
eles pensar se a virem aparecer vestida como se fosse para uma
festa?
Segui-a até à cozinha. Ela perguntou-me se eu queria um pou-
co de chá, e eu disse que não. Disse que achava que ela não devia
ir ao funeral, de todo, e ela perguntou: por que raio é que não?
Tu nem sequer gostavas dela, disse eu. Toda a gente sabe que não
gostavas dela. Ela mostrou-me um sorriso irritante e disse: ai é,
sabem? Eu disse: eu vou porque sou amigo da Lena, e ela disse:
não és nada. O papá desceu as escadas e disse: não digas isso,
Lou. Claro que é. Disse-lhe qualquer coisa, muito baixo, para que
eu não conseguisse ouvir, e ela acenou com a cabeça e foi para o
andar de cima.

104
ESCRITO NA ÁGUA

O papá fez-me um pouco de chá, que eu não queria, mas,


ainda assim, bebi-o.
— Achas que a polícia vai lá estar? — perguntei-lhe, muito
embora soubesse a resposta.
— Imagino que sim. O Sr. Townsend conhecia a Nel, não co-
nhecia? E, bem, imagino que um certo número de pessoas da vila
queira prestar a sua homenagem, quer a conhecessem quer não.
Eu sei... Eu sei que, connosco, é complicado, mas acho que o mais
acertado é ficarmos unidos, não achas? — Eu não disse nada. — E tu
quererás ver a Lena, não é verdade? Para lhe dares as tuas condo-
lências. Imagino quão miserável a Lena se deve estar a sentir.
Continuei sem dizer nada. Ele esticou-se para me fazer uma
festa no cabelo, mas eu desviei-me dele.
— Papá — disse eu —, sabes que a polícia nos questionou
acerca de domingo à noite, acerca de onde estávamos e por aí fora?
Ele acenou com a cabeça, mas, ao fazê-lo, vi-o a olhar por cima
de mim, para verificar se a mamã não estava a ouvir.
— Tu disseste que não tinhas ouvido nada de invulgar, não
foi? — perguntou ele, e eu acenei com a cabeça. — Contaste
a verdade.
Eu não sabia bem se ele dissera Contaste a verdade?, como uma
pergunta, ou Contaste a verdade, como se fosse uma instrução.
Queria dizer uma coisa, dizê-la alto. Queria dizer: E se? E se
ela fez alguma coisa de mal?, só para que o papá me pudesse dizer
quão ridículo eu estava a ser, para que pudesse gritar comigo e
dizer: Como é que podes, sequer, pensar isso?
Respondi:
— A mamã foi às lojas.
Ele olhou para mim como se eu fosse uma parede.
— Sim, eu sei. Foi às lojas nessa manhã, para comprar leite.
Josh... Oh! Cá estás tu — disse ele, olhando por cima do meu om-
bro. — Aqui está ela. É melhor assim, não é?
Ela tinha trocado a camisa vermelha por uma preta.
Estava melhor, mas eu continuava com medo do que iria acon-
tecer, Tinha medo de que ela dissesse alguma coisa, ou de que
se risse a meio da cerimónia, ou coisa assim. Nesse momento,

105
PauLA HAWKINS

ela tinha um ar que estava mesmo a irritar-me. Não que estivesse


contente nem nada, era mais como... como o ar que faz ao papá
quando ganha uma discussão, como quando diz: Eu disse-te que
teria sido mais rápido ir pela AG8. Era como se se tivesse provado
que ela tinha razão acerca de qualquer coisa e ela não conseguisse
tirar aquele ar vitorioso da cara.

Quando chegámos à igreja, já havia muitas pessoas por lá


— e isso fez-me sentir um pouco melhor. Vi o Sr. Townsend e
creio que ele me viu, mas não se aproximou nem me disse nada.
Estava só ali de pé, a olhar em redor e, depois, parou e ficou
a olhar enquanto a Lena e a tia dela atravessavam a ponte a pé.
A Lena parecia mesmo adulta, diferente de como é normalmente.
Bonita na mesma. Ao passar por nós, viu-me e lançou-me um
sorriso triste. Apetecia-me ir ter com ela e dar-lhe um abraço, mas
a mamã estava a segurar-me na mão com muita força, pelo que
eu não me conseguia libertar.
Não precisava de me ter preocupado com a possibilidade de
a mamã se rir. Quando entrámos na igreja, ela começou a cho-
rar, a soluçar tão alto que as outras pessoas viraram-se para trás
e olharam. Eu não sabia bem se isso tornava as coisas melhores
ou piores.

106
LENA

NAQUELA MANHÃ, SENTIA-ME FELIZ. Estava deitada na cama, com os


cobertores para baixo. Conseguia sentir o calor do dia a avolumar-
-se, sabia que ia estar um dia bonito e conseguia ouvir a mamã
a cantar. Então, acordei.
Na parte de trás da porta do meu quarto, estava pendurado o
vestido que eu planeava usar. É da mamã, da Lanvin. Ela nunca,
por nada, mo deixaria usar, mas naquele dia eu achava que não se
importaria. Não fora à limpeza a seco desde que ela o usara pela
última vez, pelo que cheirava a ela. Quando o vesti, era como ter
a pele dela contra a minha.
Lavei e sequei o cabelo e, depois, prendi-o atrás. Normalmente,
uso-o para baixo, mas a mamã gostava que o usasse para cima.
Bué da fixe, diria ela, do modo como falava quando queria que
eu lhe revirasse os olhos. Apetecia-me ir ao quarto dela e procurar
a sua pulseira — sabia que estaria algures lá —, mas não podia
fazê-lo.
Ainda não fui capaz de entrar no quarto dela desde que ela
morreu. A última vez que lá estive foi no último domingo à
tarde. Estava aborrecida e a sentir-me triste por causa da Katie,
pelo que fui ao quarto dela, à procura de erva. Não descobri
nenhuma na mesa de cabeceira, pelo que comecei a vasculhar-
lhe os bolsos dos casacos no guarda-fatos, porque, às vezes, ela
guarda lá coisas. Não estava à espera de que ela estivesse em

107
PauLa HAWKINS

casa. Quando a mamã me apanhou, não pareceu zangada, só


meio triste.
— Não me podes repreender — disse eu. — Estou à procura
de droga no teu quarto. Portanto, não podes ficar zangada comigo.
Isso faria de ti uma completa hipócrita.
— Não — disse ela —, isso faria de mim uma adulta.
— É a mesma coisa — disse eu, e ela riu-se.
— Sim, talvez, mas o facto é que eu posso fumar erva e beber
álcool, e tu não. Em qualquer caso, porque é que queres ficar
pedrada a meio de uma tarde de domingo? Sozinha? É meio
triste, não é? — E, depois, continuou: — Porque é que não vais
nadar ou coisa assim? Ou porque é que não telefonas a um
amigo?
Passei-me com ela, porque parecia que ela estava a dizer o tipo
de coisas que a Tanya e a Ellie e todas essas cabras dizem acerca
de mim — que sou triste, que sou uma falhada e que não tenho
amigos, agora que a única pessoa que alguma vez gostou de mim
se matou. Comecei a gritar: |
— Que amigo, caralho? Não tenho nenhum, não estás lem-
brada? Não te lembras do que aconteceu à minha melhor amiga?
Ela ficou completamente calada e ergueu as mãos, como faz
— fazia — quando não quer uma briga. Mas eu não desisti, não
me apetecia desistir. Estava a gritar acerca de ela nunca estar em
casa, de como me deixava sozinha a toda a hora, de como era tão
distante que parecia que nem sequer me queria por perto, de todo.
Ela estava a abanar a cabeça, dizendo:
— Isso não é verdade, isso não é verdade. — E continuou:
— Desculpa se tenho andado distraída, mas estão a acontecer
algumas coisas que não consigo explicar. Há uma coisa que tenho
de fazer, e não te consigo explicar quão difícil é.
Armei-me em insensível com ela.
— Não tens de fazer nada, mamã. A sério. Prometeste-me que
ficavas de boca calada. Portanto, não tens de fazer nada. Meu Deus,
não fizeste já o suficiente?
— Lenie — estava ela a dizer —, Lenie, por favor. Tu não sabes
de tudo. Eu é que sou a mãe aqui, tens de confiar em mim.

108
ESCRITO NA ÁGUA

Então, eu disse algumas coisas bastante merdosas, acerca de


como ela nunca tinha sido grande mãe — estilo, que tipo de mãe
é que andava pedrada pela casa e levava homens para lá à noite,
de modo que eu pudesse ouvir? Disse-lhe que, se tivesse sido ao
contrário, se tivesse sido eu que tivesse tido problemas como a
Katie tivera, a Louise teria sabido o que fazer, teria sido uma boa
mãe, teria feito alguma coisa e teria ajudado. E era tudo treta,
claro, pois fora eu que não quisera que a mamã dissesse nada,
e ela fez notar isso mesmo e, depois, disse-me que, em qualquer
caso, tinha tentado ajudar. E, então, eu comecei só a gritar com
ela, a dizer-lhe que era tudo culpa dela, que, se ela contasse a
alguém, eu sairia de casa e nunca mais falaria com ela. Disse-o
repetidamente:
— Já fizeste mal suficiente.
A última coisa que lhe disse na vida foi que a culpa de a Katie
ter morrido era dela.

109
JULES

ESTAVA CALOR NO DIA DO TEU FUNERAL, com o calor a tremeluzir


sobre a água, a luz demasiado brilhante, o ar demasiado perto,
pesado devido à humidade. A Lena e eu caminhámos até à igreja.
Ela partiu alguns passos à minha frente e a distância entre nós
aumentou; não sei andar de saltos, para ela é normal. Ela pare-
cia muito elegante, muito bela, muito mais velha do que os seus
15 anos, com um vestido de crepe preto com uma abertura no
corpete. Caminhámos em silêncio, com o rio a serpentear, lama-
cento, ao nosso lado, soturno e calmo. O ar quente cheirava a
podridão.
Ao virarmos a esquina ao pé da ponte, eu sentia medo de
quem poderia estar na igreja. Tinha medo de que não aparecesse
ninguém e de que a Lena e eu fôssemos forçadas a sentarmo-nos
sozinhas, sem nada além de ti entre nós.
Mantive a cabeça baixa, observei a estrada, concentrei-me
em pôr um pé à frente do outro, tentando não tropeçar no asfalto
irregular. A minha camisa (preta e sintética, com um laço no pes-
coço, errada para este tempo) agarrava-se-me ao fundo das costas.
Os meus olhos começaram a lacrimejar. Não importa, pensei eu,
se o meu rímel se esborratar. As pessoas saberão que estive a chorar.
A Lena ainda não chorou. Ou, pelo menos, não chorou à minha
frente. Às vezes, penso que a ouço a soluçar à noite, mas ela vem
tomar o pequeno-almoço com os olhos límpidos e despreocupada.

mo
ESCRITO NA ÁGUA

Esgueira-se para dentro e para fora de casa sem dizer palavra.


Ouço-a a falar em voz baixa no seu quarto, mas ela ignora-me,
recua quando me aproximo, rosna em resposta às minhas pergun-
tas, rejeita a minha atenção. Não quer ter nada que ver comigo.
(Lembro-me de tu entrares no meu quarto depois de a mamã
morrer, querias falar, e eu mandei-te embora. Será igual? Estará
ela a fazer o mesmo que eu? Não sei dizer.)
Ao aproximarmo-nos do cemitério, reparei numa mulher sen-
tada num banco ao lado da estrada, que me sorriu com os dentes
podres. Pensei que ouvia alguém a rir-se, mas eras só tu, na mi-
nha cabeça.
Algumas das mulheres acerca das quais escreveste, algumas
das tuas mulheres problemáticas, estão enterradas naquele cemité-
rio. Vocês eram todas problemáticas? A Libby era, claro. Aos 14 anos
de idade, seduziu um homem de 34 anos, incitando-o a largar a
sua esposa dedicada e a criança pequena. Ajudada pela tia, a bruxa
May Seeton, e pelos numerosos demónios que conjuraram, a Libby
persuadiu o pobre e inocente Matthew a fazer uma série de atos
contranatura. Era mesmo problemática. Da Mary Marsh, dizia-se
que tinha realizado abortos. A Anne Ward era assassina. Mas então
e tu, Nel? Que tinhas tu feito? Quem é que andavas a incomodar?
A Libby está enterrada no cemitério. Sabias onde jazia, ela e as
outras, mostraste-me as lápides, raspaste-lhes o musgo para que
pudéssemos ler as palavras. Guardaste parte dele — do musgo,
quer dizer — e esgueiraste-te para dentro do meu quarto, puseste-o
debaixo da minha almofada e, depois, disseste-me que fora a
Libby que o deixara lá. À noite, ela andava pela margem do rio,
disseste-me: se se escutasse com suficiente atenção, conseguia-
-se ouvi-la a chamar pela tia, pela May, para que a viesse salvar.
Mas a May nunca vinha: não podia. Não está no cemitério. Depois
de terem obtido a sua confissão, enforcaram-na no largo da vila;
o corpo dela está enterrado na mata, fora dos muros do cemitério,
com pregos a atravessarem-lhe as pernas para que nunca mais se
reerga.
No arco da ponte, a Lena virou-se, só durante um segundo,
para olhar para mim. A sua expressão — impaciência, talvez só

Mm
PAULA HAWKINS

um pingo de piedade — era tão parecida com a tua que estremeci.


Apertei as mãos uma na outra e mordi o lábio: não posso ter medo
dela! É apenas uma criança.
Doíam-me os pés. Conseguia sentir o suor a picar-me junto
à linha do cabelo, apetecia-me rasgar o tecido da minha camisa,
apetecia-me rasgar a minha pele. Conseguia ver a pequena multi-
dão reunida no parque de estacionamento defronte da igreja; agora
estavam a virar-se, a virar-se para nós, a observar a nossa aproxima-
ção. Pensei na sensação que me daria fugir saltando os muros de
pedra: aterrorizadora, sim, mas só durante um bocadinho. Podia
escapulir-me para o meio da lama e deixar que a água se fechasse
sobre a minha cabeça; seria um enorme alívio sentir o frio, não
ser vista.
Lá dentro, a Lena e eu sentámo-nos lado a lado (com 30 centíme-
tros de permeio) no banco da frente. A igreja estava cheia. Algures
atrás de nós, uma mulher soluçava, continuadamente, como se
tivesse o coração destroçado. O vigário falou acerca da tua vida, elencou
os teus sucessos, falou da tua devoção à tua filha. Eu fui menciona-
da de passagem. Fora eu quem lhe dera as informações, pelo que
suponho que não me podia queixar de o seu discurso me parecer
superficial. Eu própria podia ter dito qualquer coisa, talvez o devesse
ter feito, mas não conseguia pensar em como poderia falar acerca
de ti sem trair qualquer coisa — tu, ou eu mesma, ou a verdade.
O serviço fúnebre terminou abruptamente e, antes que eu desse
por isso, a Lena estava a pôr-se de pé. Segui-a ao longo da nave, com
o calor da atenção virado para nós. Uma atenção ameaçadora, nem
um pouco reconfortante. Tentei não ver as caras à minha volta, mas
não conseguia evitá-lo: a mulher chorosa, com o rosto engelhado
e vermelho, o Sean Townsend, com os olhos a encontrarem-se
com os meus, um rapaz de cabeça baixa, uma adolescente a rir-se
por detrás da mão. Um homem violento. Estaquei, subitamente,
e a mulher atrás de mim pisou-me o calcanhar.
— Desculpe, desculpe — murmurou ela, passando à minha
frente.
Não me mexi, não respirei, não conseguia engolir, tinha as
entranhas a liquefazerem-se. Era ele.

MZ
ESCRITO NA ÁGUA

Mais velho, sim, mais feio, desgastado, mas inconfundível.


Um homem violento. Esperei que ele virasse os olhos para mim.
Pensei que, se o fizesse, aconteceria uma de duas coisas: eu cho-
raria ou atacá-lo-ia. Esperei, mas ele não estava a olhar para mim.
Estava a olhar para a Lena, a observá-la atentamente. As minhas
entranhas liquefeitas gelaram.
Continuei a andar, às cegas, empurrando as pessoas para me saí-
rem da frente. Ele estava a observá-la a descalçar-se. Os homens
observam as raparigas com a aparência da Lena de muitas maneiras
diferentes: desejo, avidez, repúdio. Não lhe conseguia ver os olhos,
mas não era preciso. Sabia o que lá estava.
Dirigi-me a ele, com um ruído à emergir-me da garganta. As pes-
soas estavam a olhar para mim, com pena ou confusão, tanto me
fazia. Precisava de chegar ao pé dele... E, então, ele virou-se abrup-
tamente e afastou-se. Caminhou rapidamente pelo trilho abaixo
e saiu para o parque de estacionamento, e eu fiquei parada, com os
pulmões, de súbito, a recuperarem o fôlego, e a adrenalina a dar-
-me tonturas. Entrou num grande carro verde e desapareceu.
— Jules? Está tudo bem?
A agente Morgan apareceu a meu lado e colocou-me uma mão
no braço.
— Viu aquele homem? — perguntei-lhe. — Viu-o?
— Que homem? — disse ela, olhando em redor. — Quem?
— É um homem violento — disse eu.
Ela parecia alarmada.
— Onde, Jules? Alguém fez alguma coisa... lhe disse alguma
coisa?
— Não, eu... não.
— Que homem , Jules? Está a falar acerca de quem?
Eu tinha a língua presa e a boca pastosa. Apetecia-me contar-
Jhe, apetecia-me dizer: Lembro-me dele. Sei do que é capaz.
— Quem é que você viu? — perguntou-me ela.
— O Robbie — disse, por fim, o seu nome. — O Robbie Cannon.

113
AGOSTO DE 1993

JULES

TiNHA-ME ESQUECIDO. Antes do jogo de futebol, aconteceu outra


coisa. Estava sentada na minha toalha, a ler o meu livro, ainda
sem ninguém à volta, e, então, tu apareceste. Tu e o Robbie. Não
me viste debaixo das árvores, correste para a água com ele atrás de
ti, e nadaram e chapinharam e beijaram-se. Ele pegou-te na mão e
puxou-te para a beira da água, deitou-se em cima de ti, empurrou-
“te os ombros para baixo, arqueou as costas e olhou para cima.
E viu-me, a olhar. E sorriu.
Mais tarde, regressei a casa sozinha. Despi o fato de banho aos
quadrados e os calções azuis e deixei-os ensopados em água fria
no lavatório. Pus a água a correr para um banho, entrei na banheira
e afundei-me, pensando: Nunca me livrarei disto, de toda esta carne
horrível.
Uma balofa. Um trambolho. Umas pernas que mais pareciam
o trem de aterragem de um Boeing. Podia ser avançada da seleção
de râguebi de Inglaterra.
Demasiado grande para os espaços que habitava, sempre a
transbordar. Eu ocupava demasiado espaço. Afundei-me no banho
e a água subiu. Eureca.
De regresso ao meu quarto, enfiei-me debaixo dos cobertores
e fiquei ali deitada, a sufocar de tristeza, com a autocomiseração
misturada com a culpa, porque a minha mãe encontrava-se de
cama, no quarto mesmo ao lado, e estava a morrer de cancro da

114
ESCRITO NA ÁGUA

mama, e eu só conseguia pensar em que não me apetecia conti-


nuar, em que não queria viver assim.
Adormeci.
O meu pai acordou-me. Tinha de levar a minha mãe ao hospital,
para fazer mais testes, e iam passar a noite na cidade porque ti-
nham de se levantar cedo. Havia um jantar qualquer no forno,
disse ele, e eu deveria servir-me.
A Nel estava em casa, sabia-o, porque conseguia ouvir a música
no quarto ao lado. Passado pouco, a música parou e, então, conse-
gui ouvir vozes, baixas e, depois, mais altas, e também outros ruí-
dos, gemidos, grunhidos, uma inspiração acentuada. Saí da cama,
vesti-me e fui até ao corredor. A luz estava acesa, e a porta do quar-
to da Nel ligeiramente entreaberta. Lá dentro estava mais escuro,
mas conseguia ouvi-la, ela estava a dizer qualquer coisa, estava a
dizer o nome dele.
Mal me atrevendo a respirar, aproximei-me mais um passo.
Através da abertura da porta, conseguia distinguir as suas silhue-
tas a moverem-se na escuridão. Não conseguia forçar-me a desviar
o olhar; observei-os até ouvi-lo a produzir um ruído sonoro e
animal. Então, ele começou a rir-se e eu percebi que tinham
terminado.
No andar de baixo, todas as luzes estavam acesas. Dei a volta à
casa, desligando-as, e depois fui até à cozinha e abri o frigorífico.
Olhei fixamente para o seu conteúdo e, pelo canto do olho, repa-
rei numa garrafa de vodca, aberta, meio cheia, sobre a bancada.
Copiei o que vira a Nel a fazer: servi-me de meio copo de sumo
de laranja e rematei-o com vodca, e, então, preparando-me para
o desagradável e amargo sabor alcoólico que experimentara ao
provar vinho e cerveja, bebi um gole e apercebi-me de que era
doce e não amargo, nem por sombras.
Terminei a bebida e servi-me de outra. Gostava da sensação fisi-
ca, do calor que se espalhava do meu estômago para o meu peito,
do meu sangue a aquecer, de todo o meu corpo à relaxar, da tristeza
dessa tarde a desvanecer-se.
co-
Fui até à sala de estar e olhei lá para fora, para o rio, uma
endent e
bra escorregadia e escura por debaixo da casa. Era surpre

Jults
PAULA HAWKINS

para mim o modo como, subitamente, conseguia ver o que não


vira antes — que o meu problema não era insuplantável de todo.
Tive um acesso súbito de clareza: não tinha de ser fixa, podia ser
fluida. Como o rio. Talvez não fosse assim tão difícil, afinal de
contas. Não seria possível passar fome, mexer-me mais (em se-
gredo, quando ninguém estivesse a ver)? Transformar-me como
uma lagarta em borboleta, tornar-me uma pessoa diferente, irre-
conhecível, para que a rapariga feia e tristonha fosse esquecida?
Renovar-me-ia.
Regressei à cozinha, para ir buscar mais bebida.
Ouvi passos no andar de cima, soando pelo patamar fora e,
depois, a descerem as escadas. Escapuli-me, de novo, para a sala
de estar, desliguei o candeeiro e enrosquei-me na escuridão, no
banco da janela, com as pernas dobradas.
Vi-o dirigir-se à cozinha e ouvi-o a abrir o frigorífico — não,
o congelador, conseguia ouvi-lo a tirar gelo das cuvetes. Ouvi o
som produzido pelo líquido e, depois, vi-o ao passar. E, então, ele
parou. E deu um passo atrás.
— Julia? És tu?
Eu não disse nada, não respirei. Não queria ver ninguém — por
certo, não o queria ver a ele —, mas ele estava a tatear à procura
do interruptor e, depois, as luzes acenderam-se e ali estava ele, de
bóxeres e nada mais, com a pele muito bronzeada, os ombros lar-
gos, o corpo a afunilar-se numa cintura estreita, a penugem do
seu estômago conduzindo aos bóxeres. Sorriu-me.
— Estás bem? — perguntou ele. — Ao aproximar-se mais,
consegui ver que os seus olhos pareciam um pouco vidrados, e o
seu sorriso mais estúpido, mais preguiçoso do que era habitual.
— Porque é que estás sentada às escuras? — Avistou o meu copo e
o sorriso alargou-se. — Bem me pareceu que havia menos vodca...
Veio ao pé de mim, tocou no meu copo com o dele e, depois,
sentou-se a meu lado, com a coxa encostada ao meu pé. Afastei-
-me, pus o pé no chão e comecei a levantar-me, mas ele pousou-me
a mão no braço.
— Ei, espera — disse ele. — Não fujas. Quero falar contigo.
Queria pedir-te desculpa por esta tarde.

116
ESCRITO NA ÁGUA

— Não faz mal — disse eu.


Conseguia sentir a minha cara a ruborizar. Não olhei para ele.
— Não, peço desculpa. Aqueles gajos estavam a ser uns creti-
nos. Lamento mesmo, está bem? — Acenei com a cabeça. — Não
é nada de que te devas envergonhar.
Encolhi-me, com todo o meu corpo a arder de vergonha daqui-
lo. Uma parte pequena e estúpida de mim esperara que eles não
tivessem visto, que não se tivessem apercebido do que era.
Ele apertou-me o braço, semicerrando os olhos enquanto me
observava.
— Tens uma cara bonita, Julia, sabias disso? — Riu-se. — Estou
a falar a sério, tens mesmo.
Libertou-me o braço e colocou o seu próprio à volta dos meus
ombros.
— Onde está a Nel? — perguntei.
— A dormir — disse ele. Beberricou a sua bebida e estalou os
lábios. — Creio que a deixei exausta.
Puxou o meu corpo para mais perto do dele.
— Já alguma vez beijaste um rapaz, Julia? — perguntou-me.
— Queres beijar-me?
Virou a minha cara para a dele e colocou os lábios contra os
meus; senti a sua língua, quente e viscosa, a entrar na minha boca.
Pensei que era capaz de vomitar, mas deixei-o fazê-lo, só para ver
como era. Quando me afastei, ele sorriu-me.
— Gostas? — perguntou ele, com um hálito quente, a tabaco
e álcool, no meu rosto.
Voltou a beijar-me e eu beijei-o de volta, tentando sentir o que
quer que fosse que era suposto estar a sentir. A mão dele deslizou
para o cós das minhas calças de pijama. Eu esquivei-me, morti-
ficada, ao sentir os seus dedos encostados à gordura da minha
barriga, entrando-me nas cuecas.
— Não! — pensei que tinha gritado, mas foi mais como um
murmáúrio.
— Está tudo bem — disse ele. — Não te preocupes. Não me im-
porto com um bocadinho de sangue.
Depois, ficou zangado comigo porque eu não parava de chorar.

4274
PauLA HAWKINS

— Oh, vá lá, não te magoou assim tanto! Não chores. Vá lá,


Julia, para de chorar. Não achas que foi bonito? Foi bom, a sensa-
ção que deu, não foi? Estavas suficientemente molhada. Vá lá, Julia.
Toma outra bebida. Pronto. Bebe um gole. Meu Deus, para de
chorar! Foda-se. Pensei que ficarias agradecida.

118
2015

SEAN

Lever A HELEN E O MEU PAI A CASA, mas, quando chegámos à porta


da rua, senti-me relutante a entrar. Ocasionalmente, há pensa-
mentos estranhos que se apoderam de mim e debato-me para
afastá-los. Fiquei à porta de casa, com a minha mulher e o meu
pai lá dentro, a olharem para trás, para mim, na expetativa. Disse-
“lhes para comerem sem mim. Expliquei que precisava de voltar
ao posto.
Sou um cobarde. Devo mais do que isto ao meu pai. Hoje,
hoje mais do que nunca, devia estar com ele. A Helen ajudá-lo-á,
claro, mas nem ela consegue compreender como ele se estará
a sentir, a profundidade do seu sofrimento. E, no entanto, eu
não era capaz de ficar com ele, não era capaz de olhá-lo nos olhos.
Por qualquer razão, ele e eu nunca nos conseguimos olhar nos
olhos quando estamos a pensar na minha mãe.
Peguei no carro e conduzi, não para o posto, mas novamente
para o cemitério. A minha mãe foi cremada; não está lá. O meu
pai levou as cinzas dela para um «sítio especial». Nunca me disse
para onde, exatamente, embora, de facto, me tivesse prometido
que, um dia, me levaria lá. Nunca fomos. Eu costumava fazer-lhe
perguntas acerca disso, mas ele ficava sempre perturbado, pelo
que, passado algum tempo, abandonei o assunto.
A igreja e o cemitério estavam desertos, sem ninguém à vista,
exceto a velha Nickie Sage, a coxear lentamente lá fora. Saí do carro

119
PauLa HAWKINS

e fui pelo trilho ao redor do muro de pedra, em direção às árvo-


res atrás da igreja. Ao chegar ac pé da Nickie, ela encontrava-se
com uma mão encostada ao muro, e a respiração assobiava-lhe
no peito. Virou-se de repente. Tinha a cara toda rosada e suava
profusamente.
— O que é que quer? — perguntou ela, a arfar. — Porque é
que me está a seguir?
Sorri.
— Não estou a segui-la. Avistei-a do meu carro e pensei, ape-
nas, em vir aqui dizer-lhe olá. Está boa?
— Estou ótima, estou ótima. — Não parecia estar ótima.
Encostou-se à parede e olhou para cima, para o céu. — Vai haver
uma tempestade não tarda.
Acenei com a cabeça.
— Cheira-me que sim.
Ela inclinou a cabeça para trás.
— Então, está tudo feito? Quanto à Nel Abbott? Vai arquivar o
caso? Remetê-la para a história? |
— O caso não foi arquivado — disse eu.
— Ainda não. Contudo, sê-lo-á em breve, não é verdade?
E murmurou outra coisa qualquer em voz baixa.
— Que foi que disse?
— Está tudo arranjado, não é? — Virou-se para me encarar de
frente e espetou-me um indicador gordo no peito. — Você sabe,
não é verdade, que isto não foi como com a última? Isto não foi
como com a Katie Whittaker. Isto foi como com a sua mãe.
Dei um passo atrás.
— O que é que é suposto isso querer dizer? — perguntei-lhe.
— Se sabe alguma coisa, deve dizer-me. Então, sabe? Sabe alguma
coisa acerca da morte da Nel Abbott?
Ela afastou-se, voltando a murmurar palavras indistinguíveis.
A minha respiração acelerou-se, senti o corpo afogueado com
o calor.
— Não me fale na minha mãe dessa maneira. Muito menos
hoje. Meu Deus! Que espécie de pessoa é que faz uma coisa dessas?
Ela acenou-me com uma mão.

120
ESCRITO NA ÁGUA

— Oh, você não me ouve, a vossa malta nunca me ouve — disse


ela, e cambaleou trilho abaixo, ainda a falar enquanto andava,
apoiando-se, de vez em quando, no muro de pedra, para se equilibrar.
Eu estava zangado com ela, mas, mais do que isso, sentia-me
magoado, quase ferido. Conhecíamo-nos há anos e eu nunca dei-
xara de ser educado com ela. Ela era desorientada, claro, mas eu
não achava que fosse má pessoa e, por certo, nunca a achara cruel.
Caminhei penosamente em direção ao carro, antes de mudar
de ideias e virar para a loja da vila. Comprei uma garrafa de
Talisker— o meu pai gosta dele, embora não beba lá muito. Pensei
que poderíamos partilhar um copo mais tarde, para compensar o
que acontecera, eu ter saído daquela maneira. Tentei imaginar
a situação, nós os dois sentados à mesa da cozinha, com a garrafa
entre nós, erguendo o copo. Perguntei-me a quê — a quem — é
que brindaríamos. Esse mero pensamento amedrontou-me, e a
minha mão começou a tremer. Abri a garrafa.
O cheiro do uísque e o calor do álcool no meu peito trouxeram-
-me à ideia febres de infância, sonhos inquietantes, em que acor-
dava com a minha mãe sentada na berma da cama, afastando-me
o cabelo húmido da testa e esfregando-me Vicks no peito. Houve
alturas da minha vida em que mal pensei nela, de todo, mas, ulti-
mamente, ela tem estado cada vez mais no meu pensamento —
e mais do que nunca nos últimos dias. Ocorre-me o seu rosto;
às vezes, está a sorrir, outras não. Às vezes, estende-me a mão.

A tempestade de verão começou sem que eu reparasse. Talvez


tivesse adormecido. Só sei que, quando me apercebi, a estrada em
frente parecia um rio e os trovões pareciam abanar o carro. Rodei
a chave na ignição, mas, então, ocorreu-me que a garrafa de uís-
que ao meu colo já só tinha um terço do líquido, pelo que voltei a
desligar o motor. Sob o martelar da chuva tempestuosa, conseguia
ouvir a minha respiração e, durante apenas um momento, pensei
que também conseguia ouvir a respiração de outra pessoa. Fui arre-
batado pela ideia ridícula de que, se me virasse para trás, estaria
ali alguém, no banco de trás do carro. Durante um momento, estive
tão certo disso que senti demasiado medo para me mexer.
PAULA HAWKINS

Decidi que uma caminhada à chuva me poria sóbrio. Abri a


porta do carro, verificando o banco de trás, contra a minha vontade,
e saí. Fiquei imediatamente ensopado e cego pela água. Uma for-
quilha de relâmpagos cindiu o ar e, nesse segundo, vi a Julia,
encharcada, meio a andar, meio a correr, em direção à ponte. Voltei
para dentro do carro e fiz sinal de luzes, ligando-as e desligando-
-as. Ela parou. Voltei a fazer sinal de luzes e, hesitantemente, ela
aproximou-se de mim. Parou a poucos metros de distância. Baixei
a janela e chamei-a.
Ela abriu a porta e entrou. Ainda estava a usar as roupas do
funeral, embora agora estivessem encharcadas e coladas à sua
pequena figura. No entanto, trocara de sapatos. Reparei que os
seus collants estavam com malhas — conseguia ver um pequeno
círculo de carne pálida no seu joelho. Isso pareceu-me chocante,
porque, sempre que a vira antes, o seu corpo estava coberto —
mangas compridas e golas altas, sem pele à mostra. Inalcançável.
— O que é que anda aqui a fazer? — perguntei.
Ela olhou para baixo, para o uísque que eu tinha no colo, mas
não fez nenhum comentário. Em vez disso, aproximou-se, puxou
a minha cara para a sua e beijou-me. Foi estranho, estonteante.
Consegui sentir o sabor a sangue na sua língua e, durante um
segundo, sucumbi, antes de me afastar violentamente dela.
— Desculpe — disse ela, limpando os lábios, com os olhos
virados para baixo. — Lamento muito. Não sei porque é que fiz
isto.
— Não — disse eu. — Nem eu.
Incongruentemente, começámos ambos a rir-nos, a princípio
nervosamente e, depois, calorosamente, como se o beijo fosse
a piada mais hilariante do mundo. Quando parámos, estávamos
ambos a limpar as lágrimas do rosto.
— O que anda aqui a fazer, Julia?
— Jules — disse ela. — Andava à procura da Lena. Não sei
bem onde é que ela está... — Ela parecia-me diferente, já não
estava retraída. — Estou com medo — continuou ela, e voltou a
rir-se, agora como se estivesse envergonhada. — Estou mesmo
com medo.

122
ESCRITO NA ÁGUA

— Com medo de quê?


Ela pigarreou e empurrou o cabelo para trás, afastando-o da
cara.
— De que é que tem medo? — insisti.
Ela respirou fundo.
— Eu não... Isto parece estranho, eu sei, mas estava um ho-
mem no funeral, um homem que eu reconheci. Era o namorado
da Nel.
— Ai sim?
— Quer dizer... não recentemente. Há séculos. Quando éra-
mos adolescentes. Não faço ideia se ela o teria voltado a ver. — Ela
tinha duas manchas de cor nas bochechas. — Ela nunca o men-
cionou em nenhuma das suas mensagens telefónicas. Mas ele
estava lá no funeral. E acho que... Não consigo explicar porquê,
mas acho que ele é capaz de lhe ter feito alguma coisa.
— Feito alguma coisa? Está a dizer que acha que ele pode ter
estado envolvido na morte dela?
Ela olhou para mim, suplicantemente.
— Não posso dizer isso, claro, mas tem de investigá-lo, tem de
descobrir onde é que ele estava quando ela morreu.
Franzi a testa, com a adrenalina a cortar o álcool.
— Qual é o nome desse homem? De quem é que está a falar?
— Robbie Cannon.
Tive uma branca durante um momento, mas, finalmente,
ocorreu-me.
— Cannon? Um tipo da terra? A família tinha stands de auto-
móveis, muito dinheiro. É esse?
— Sim. É esse. Conhece-o?
— Não o conheço, mas lembro-me dele.
— Lembra-se...?
— Da escola. Ele andava um ano à minha frente. Era bom
desportista. Safava-se bem com as raparigas. Não era lá muito inte-
ligente.
Com a cabeça inclinada, de modo que o queixo quase lhe tocava
no peito, a Jules disse:
— Não sabia que tinha andado na escola aqui.
PauLa HAWKINS

— Sim — disse eu. — Vivi sempre aqui. Você não se lembra


de mim, mas eu lembro-me de si. De si e da sua irmã, claro.
— Ah — disse ela, e o seu rosto fechou-se, como uma porta
atirada com força.
Levou a mão ao manípulo da porta, como se pretendesse sair.
— Espere — disse eu. — O que é que a leva a pensar que o
Cannon fez alguma coisa à sua irmã? Ele disse alguma coisa, fez
alguma coisa? Foi violento com ela?
A Jules abanou a cabeça e afastou o olhar.
— Só sei que é perigoso. Não é boa pessoa. E vi-o... a olhar
para a Lena.
— A olhar para ela?
— Sim, a olhar. — Ela virou a cabeça e, por fim, fitou-me nos
olhos. — Não gostei do modo como ele olhou para ela.
— Está bem — disse eu. — Eu vou, hmm... Vou ver o que con-
sigo descobrir.
— Obrigada.
Voltou a preparar-se para abrir o carro, mas eu pus-lhe a mão
no braço.
— Eu levo-a — disse eu.
Uma vez mais, um olhar de relance para a garrafa, mas sem
dizer nada.
— Está bem.

Só demorámos alguns minutos a regressar à Casa do Moinho


e nenhum de nós falou até a Jules ter aberto a porta do carro.
Eu não devia ter dito nada, mas queria dizer-lhe.
— É muito parecida com ela, sabia?
Ela pareceu chocada e deu uma risada surpreendida e solu-
çada.
— Não sou nada parecida com ela. — Limpou uma lágrima da
bochecha. — Sou a anti-Nel.
— Não acho — disse eu, mas ela já se tinha ido embora.
Não me lembro da viagem até casa.

124
O POÇO DAS AFOGADAS

Lauren, 1983

elo trigésimo segundo aniversário de Lauren, dentro de uma se-


mana, iriam para Craster. Só ela e Sean, porque Patrick estaria
a trabalhar.
— É o meu lugar preferido do mundo — disse ela ao filho. — Há um
castelo e uma praia linda e, às vezes, consegue-se ver focas nas rochas.
E, depois de irmos à praia e ao castelo, havemos de ir ao fumeiro comer
arenque fumado sobre pão de centeio. É o paraíso.
Sean franziu o nariz.
— Acho que preferia ir a Londres — anunciou ele — para ver
a Torre e comer gelados.
A sua mãe riu-se e disse:
— Então, está bem, talvez possamos fazer isso, em vez daquilo.
No final, não fizeram nem uma coisa nem outra.
Era novembro, os dias eram curtos e inclementes, e Lauren andava
distraída. Tinha consciência de que andava a agir de maneira dife-
rente, mas parecia não conseguir parar. Dava por si sentada à mesa
do pequeno-almoço com a família e, de repente, a sua pele enrubescia,
a sua cara ardia, e tinha de se virar para escondê-lo. Também se virava
quando o marido a vinha beijar — o movimento da sua cabeça era
quase involuntário, para lá do seu controlo, pelo que os lábios dele lhe
roçavam a bochecha ou o canto da boca.
Três dias antes do seu aniversário, houve uma tempestade. Foi en-
grossando ao longo do dia, com ventos ferozes a romperem pelo vale,

1:25
PauLA HAWKINS

como cavalos brancos a galoparem sobre as águas. À noite, a tempes-


tade rebentou, com o rio a empurrar as margens, e árvores caídas ao
longo da sua extensão. A chuva caía em bátegas, todo o mundo parecia
submerso pelo dilúvio.
O marido e o filho de Lauren dormiam como bebés, mas ela esta-
va acordada. No escritório do andar de baixo, achava-se sentada à
secretária do marido, com uma garrafa do seu uísque favorito ao pé do
cotovelo. Bebeu um copo e arrancou uma folha de papel de um bloco
de apontamentos. Bebeu outro copo e outro, e a folha permanecia em
branco. Nem sequer conseguia decidir como se dirigir a ele — «que-
rido» parecia desdenhoso e «meu amor» uma mentira. Com a gar-
rafa quase vazia e a página ainda imaculada, saiu para o meio da
tempestade.
Com o sangue cheio de bebida e de mágoa e de raiva, foi até ao poço.
A vila estava deserta, e os estores, baixados. Sem que a vissem nem a
perturbassem, subiu e tropeçou pela lama até ao penhasco. Aguardou.
Aguardou que alguém viesse, rezou para que o homem pelo qual se
tinha apaixonado pudesse, miraculosamente, de algum modo, saber,
para que pudesse, de algum modo, sentir o seu desespero e vir salvá-la de
si própria. Mas a voz que ouviu, chamando o seu nome com um deses-
pero apavorado, não era a que ela queria ouvir.
E, portanto, corajosamente, avançou para o precipício e, de olhos
bem abertos, atirou-se para a frente.
Era impossível tê-lo visto — era impossível saber que o seu filho
estava lá em baixo, atrás da linha das árvores.
Era impossível ter sabido que ele fora acordado pelos gnitos do pai e
pelo som da porta da rua a bater, que se tinha levantado e corrido para
o andar de baixo e para o meio da tempestade, de pés descalços e com
os membros magros cobertos apenas por um algodão finíssimo.
Sean viu o pai a entrar para o carro e gritou pela mãe. Patrick virou-
-se, berrando ao filho para que voltasse para dentro de casa. Correu na
sua direção, agarrando-o à bruta pelo braço e levantando-o do chão,
e tentou forçá-lo a voltar para casa. Mas o rapaz implorou:
— Por favor, por favor, não me deixes aqui.
Patrick cedeu. Pegou no rapaz e levou-o para o carro, prendendo-o
ao banco de trás, onde Sean se encolheu, aterrorizado e sem compreender.

126
ESCRITO NA ÁGUA

Fechou os olhos com muita força. Foram até ao rio. O pai estacionou
o carro em cima da ponte e disse-lhe:
— Espera. Espera aqui.
Mas estava escuro e a chuva no tejadilho do carro parecia uma
metralhadora, e Sean não era capaz de fugir à sensação de que estava
mais alguém com ele dentro do carro, conseguia ouvir-lhe a respiração
irregular. Portanto, saiu e correu, tropeçando nos degraus de pedra
e caindo sobre a lama do trilho, errando na escuridão, à chuva, em
direção ao poço.
Mais tarde, na escola, correu o boato de que ele vira tudo — era ele
o rapaz que observara a mãe a saltar para a morte. Não era verdade.
Não viu nada. Quando chegou ao poço, o seu pai já estava dentro de
água, a nadar em frente. Ele não sabia o que fazer, pelo que voltou
para trás e sentou-se debaixo das árvores, com as costas apoiadas num
tronco largo, para que ninguém o pudesse surpreender.
Pareceu que tinha estado lá durante muito tempo. Ao olhar para
trás, perguntava-se se não teria até adormecido, muito embora, devido
à escuridão e ao ruído e ao medo, isso não parecesse lá muito verosímil.
Aquilo de que se conseguia lembrar era de uma mulher a aparecer
— Jeannie, do posto da polícia. Tinha um cobertor e uma lanterna
e levou-o de volta para a ponte. Deu-lhe chá doce a beber e esperaram
lá pelo pai dele.
Mais tarde, Jeannie levou-o para casa dela e fez-lhe tostas de queijo.
Mas era impossível que Lauren pudesse ter sequer suspeitado.

12%
ERIN

AO SAIR DO FUNERAL, reparei na quantidade de pessoas que tinham


assistido ao serviço fúnebre e que foram ter com o pai do Sean
Townsend — um homem que me fora apresentado, com uma
sucintez incrível, como Patrick Townsend — para lhe dizerem
algumas palavras. Houve muitos apertos de mão e bonés tirados
e, durante todo esse tempo, ele estava ali de pé, como um major-
-general numa parada, com as costas direitas e os lábios hirtos.
— É um tipo infeliz, não é? — disse eu para o polícia fardado
que se encontrava a meu lado. O agente virou-se e olhou para
mim como se eu tivesse acabado de sair a rastejar de debaixo de
uma pedra.
— Mostre algum respeito — silvou ele, e virou-me as costas.
— Desculpe? — disse eu, falando-lhe para a nuca.
É um oficial altamente condecorado — disse o agente.
— E viúvo. A mulher dele morreu aqui, neste rio. — Voltou-se
novamente para me encarar e, sem ponta de deferência para com
o meu posto, fungou: — Portanto, você devia mostrar algum
respeito.
Senti-me como uma grande idiota. Mas, na verdade, como é
que era suposto eu saber que o Sean da história da Nel Abbott era
o Sean da esquadra da polícia? Não sabia os nomes dos pais dele.
Foda-se. Ninguém me contou e, quando li todo o trabalho da Nel
Abbott, não estava a prestar assim tanta atenção aos pormenores

128
ESCRITO NA ÁGUA

de um suicídio que teve lugar há mais de três décadas. Não me


parecia demasiado premente, dadas as circunstâncias.
A sério: como é que é suposto alguém guardar memória de
todos os cadáveres daqui? Parece o Midsomer Murders, só que com
acidentes e suicídios e afogamentos históricos, grotescos e mi-
sóginos, em vez de pessoas a caírem na lama ou a baterem nas
cabeças umas das outras.
Conduzi de volta à cidade depois do trabalho — alguns dos
outros iam até ao pub, mas, graças à minha gafe com o Patrick
Townsend, estava a sentir-me uma forasteira ainda mais indeseja-
da do que antes. De qualquer forma, aquele caso estava encerrado,
não estava? Não fazia sentido ficar a remoer a história.
Senti-me aliviada, como nos sentimos quando, finalmente,
descobrimos em que filme é que vimos um ator antes, quando
algo de obscuro que nos tem andado a incomodar, subitamente,
se torna nítido. A estranheza do inspetor — os seus olhos agua-
dos, as suas mãos trémulas, a sua desconexão —, tudo isso faz
sentido agora. Faz sentido se conhecermos a história dele. A sua
família sofreu, quase exatamente, o que a Jules e a Lena estão
a sofrer agora — o mesmo horror, o mesmo choque. O mesmo
questionamento acerca da razão.
Voltei a ler o trecho da Nel Abbott acerca da Lauren Townsend.
Não conta uma história lá muito interessante. Ela era uma esposa
infeliz, apaixonada por outro homem. Fala da sua distração, do
seu alheamento — talvez estivesse deprimida? No fim de contas,
quem sabe? Não é como se aquilo fosse o evangelho, é apenas a
versão da Nel Abbott da história. Deve ser necessária uma estranha
sensação de legitimidade, diria eu, para pegar na tragédia de outra
pessoa, daquela maneira, e escrevê-la como se nos pertencesse.
Ao voltar a lê-la, aquilo que não compreendo é como é que o
Sean foi capaz de permanecer aqui. Ainda que não a tenha visto
Ainda
cair, ele estava lá. Que raio é que isso faz a uma pessoa?
miúdos
agora. Ele seria pequeno, suponho. Teria 6 ou 7 anos? Os
Cami-
conseguem bloquear isso, um trauma daqueles. Mas e o pai?
des-
nha junto ao rio todos os dias, já O vi. Imaginem uma coisa
alguém
tas. Imaginem caminhar junto ao local em que se perdeu

11742)
PauLa HAWKINS

todos os santos dias. Não consigo acreditar numa coisa destas,


não seria capaz de fazê-lo. Mas, por outro lado, creio que, na ver-
dade, nunca perdi ninguém. Como poderia eu saber qual o senti-
mento provocado por esse tipo de desgosto?

130
PARTE DOIS
TERÇA-FEIRA, 18 DE AGOSTO

LOTE

O DESGOSTO DE LOUISE era como o rio: constante e dinâmico.


Ondulava, transbordava, diminuía e fluía, alguns dias frio, escuro
e profundo, alguns dias célere e ofuscante. A sua culpa também
era líquida, infiltrava-se por fendas quando ela a tentava conter
fora de si. Ela tinha dias bons e maus.
No dia anterior, tinha ido à igreja para vê-los enterrarem Nel.
Na realidade — e ela devia ter sabido disso — não o fizeram. Ainda
assim, conseguiu vê-la a deslizar para ser queimada, pelo que esse
lhe pareceu um bom dia. Até o extravasar de emoções — soluçara
durante toda a cerimónia, contra a sua vontade — foi catártico.
Mas hoje o dia ia ser terrível. Sentiu-o ao acordar, não como uma
presença, mas como uma ausência. A euforia que, a princípio, sen-
tira, a sua satisfação vingativa, já se estava a desvanecer. E, agora,
com Nel transformada em cinzas, não sobrava nada a Louise. Nada.
Não podia depositar a sua dor e o seu sofrimento à porta de nin-
guém, porque Nel desaparecera. É preocupava-se com que, no final,
o único sítio para onde pudesse levar o seu tormento fosse para casa.
Para casa, para o seu marido e o seu filho. Portanto... Hoje
o dia ia ser terrível, mas esse dia tinha de ser enfrentado e ultra-
passado. Ela tomara uma decisão; estava na altura de seguir em
frente. Tinham de se mudar, antes que fosse tarde demais.
Louise e o marido, Alec, tinham andado a discutir acerca da-
quilo — o tipo de discussões moderadas, calmas, que tinham hoje

133
PauULA HAWKINS

em dia — havia semanas. Alec achava que seria melhor mudarem-


-se antes de começar o próximo período escolar. Deviam deixar
que Josh começasse o novo ano num sítio completamente novo,
defendia ele, onde ninguém soubesse quem ele era. Onde não
fosse, todos os dias, confrontado com a ausência da irmã.
— Para que nunca mais tenha de falar acerca dela? — pergun-
tou Louise.
— Falará acerca dela connosco — respondeu Alec.
Encontravam-se na cozinha, com as vozes tensas e sussurradas.
— Temos de vender esta casa e começar de novo — continuou
Alec. — Eu sei — acrescentou, erguendo as mãos quando Louise
começou a protestar. — Eu sei que esta é a casa dela. — Então,
vacilou, pousando as suas grandes mãos, manchadas pelas agres-
sões do sol, sobre a bancada. Aguentou-se como se lutasse pela
vida. — Temos de construir um novo começo qualquer, Lou, para
bem do Josh. Se fôssemos só tu e eu...
Se fossem só eles, pensou ela, seguiriam Katie água adentro e
acabariam com aquilo. Não era? Ela não sabia bemse Alec o faria.
Costumava pensar que só os pais e as mães é que conseguiam
compreender o tipo de amor que nos consome por completo, mas,
agora, perguntava-se se não eram só as mães. Alec sentia o des-
gosto, claro, mas ela não estava certa de que sentisse o desespero.
Ou o ódio.
Portanto, as falhas sísmicas já estavam a começar a aparecer
num casamento que ela pensara ser inabalável. Mas claro que, an-
tes, não dera por nada. Agora, era óbvio: nenhum casamento pode-
ria sobreviver àquela perda. Aquilo estaria sempre entre eles — o
facto de nem um nem outro terem sido capazes de a impedir.
Pior, o facto de nem um nem outro terem suspeitado de nada.
O facto de eles os dois terem ido para a cama e adormecido e des-
coberto a cama dela vazia de manhã e não terem imaginado, nem
por um segundo, que ela estivesse no rio.
Não havia esperança para Louise, e havia pouca, achava ela, para
Alec, mas com Josh era diferente. Josh teria saudades da irmã todos os
dias, para o resto da vida, mas podia ser feliz: sê-lo-ia. Transportá-
-la-ia consigo, mas também trabalharia, viajaria, apaixonar-se-ia,

134
ESCRITO NA ÁGUA

viveria. E a melhor hipótese que tinha era afastar-se dali, afastar-se


de Beckford, do rio. Louise sabia que o seu marido tinha razão.
Algures dentro de si, já sabia disso, só estivera relutante em
encarar esse facto. Mas no dia anterior, ao observar o filho depois
do funeral, fora tomada pelo terror. O seu rosto comprimido e
ansioso. A facilidade com que ele se sobressaltava, estremecendo
com o barulho, encolhendo-se como um cão amedrontado numa
multidão. O modo como virava constantemente o seu olhar para
ela, como se estivesse a retroceder à primeira infância, já não um
rapaz independente de 12 anos, mas um menino amedrontado
e carente. Tinham de o afastar dali.
E, no entanto... Fora ali que Katie dera os seus primeiros passos,
dissera as suas primeiras palavras, brincara às escondidas, fizera
acrobacias pelo jardim fora, lutara com o irmão mais novo e, depois,
o acalmara, rira e cantara e chorara e dissera palavrões e sangrara
e abraçara a mãe todos os dias, ao chegar a casa, vinda da escola.
Mas Louise tomara uma decisão. Tal como a filha, era deter-
minada, embora isso acarretasse um esforço imenso. Até mesmo
só para se levantar da mesa da cozinha, caminhar até ao fundo
das escadas e, depois, subi-las, levar a mão à maçaneta da porta
e empurrá-la para baixo, para entrar no quarto dela pela última
vez. Porque era essa a sensação que tinha. A de que aquela era a
última vez que aquele seria o quarto dela. Depois de hoje, seria
outra coisa qualquer.
O coração de Louise era um bloco de madeira; não batia, só
a magoava, arranhando os tecidos moles, rasgando veias e mús-
culos, inundando-lhe o peito de sangue.
Dias bons e dias maus.
Não podia deixar o quarto assim. Por muito difícil que fosse
pensar em embalar as coisas de Katie, guardar as suas roupas,
tirar as suas fotografias das paredes, arrumá-las noutro lugar,
escondê-las do olhar, era pior pensar em estranhos ali dentro.
Era pior imaginar no que tocariam, como procurariam pistas,
como se espantariam com o ar normal de tudo, com quão normal
Katie parecera. Ela? Com certeza que não. Seguramente, não podia
ter sido ela a menina afogada.

135
PauLa HaWKINS

Portanto, Louise fá-lo-ia: tiraria as coisas da escola da secre-


tária e apanharia a caneta que, outrora, repousara na mão da sua
filha. Dobraria a t-shirt cinzenta e macia com que Katie dormia
e faria a cama dela. Pegaria nos brincos azuis que a tia preferida
de Katie lhe dera pelo seu décimo quarto aniversário e arrumá-los-
-ja na sua caixa de joias. Tiraria a mala grande e preta do armário
do corredor e enchê-la-ia com as roupas de Katie.
Fá-lo-ia.
Encontrava-se no meio do quarto, pensando em tudo isto,
quando ouviu um ruído atrás de si e, ao virar-se, viu Josh à porta,
observando-a.
— Mamã?
Estava branco como um fantasma, com a voz presa na gar-
ganta.
— O que é que estás a fazer?
— Nada, querido, estou só a...
Deu alguns passos na direção dele, mas o filho afastou-se.
— Vais... vais esvaziar o quarto dela agora?
Louise acenou com a cabeça.
— Vou começar — disse ela.
— O que é que vais fazer às coisas dela? — perguntou ele,
num tom ainda mais alto. Parecia estrangulado. — Vais dá-las?
— Não, querido. — Foi ter com ele e esticou a mão para lhe
alisar o cabelo macio que tinha sobre a testa. — Vamos guardar
tudo. Não vamos dar nada.
Ele parecia preocupado.
— Mas não devias esperar pelo papá? Ele não devia estar aqui?
Era melhor se não fizesses isto sozinha.
A mãe sorriu-lhe.
— Vou só começar — disse ela, tão alegremente quanto con-
seguia. — Na verdade, pensei que tinhas ido para casa do Hugo
esta manhã, de maneira que...
Hugo era amigo de Josh, possivelmente o seu único verda-
deiro amigo. (Todos os dias Louise agradecia ao Senhor pela exis-
tência de Hugo e da família dele, que ficavam com Josh sempre
que ele precisava de sair dali.)

136
ESCRITO NA ÁGUA

— E fui, mas esqueci-me do telemóvel, pelo que voltei cá para


vir buscá-lo.
Ergueu-o para que ela o visse.
— Está bem — disse ela. — Lindo menino. Almoças por lá?
Ele acenou com a cabeça, tentou sorrir e, depois, desapareceu.
Ela esperou até ouvir a porta da rua bater antes de se sentar na cama
e permitir-se chorar a sério.
Na mesa de cabeceira encontrava-se um velho elástico de ca-
belo, alargado e quase completamente desgastado, com longos
fios do glorioso cabelo preto de Katie ainda emaranhados nele.
Louise pegou no elástico e revirou-o nas mãos, enlaçando-o entre
os dedos. Encostou-o à cara. Pôs-se de pé e caminhou até ao tou-
cador, abriu a caixa de joias de estanho, em forma de coração, e
guardou o elástico no interior. Permaneceria lá, juntamente com
as suas pulseiras e os seus brincos — nada seria deitado fora, tudo
seria guardado. Não aqui, mas algures; viajaria tudo com eles.
Nenhuma parte de Katie, nada em que ela tivesse tocado, definha-
ria numa prateleira poeirenta de uma loja de caridade.
À volta do pescoço de Louise encontrava-se pendurado o colar
que Katie estava a usar quando morrera, uma corrente de prata
com um passarinho azul. Incomodava-a que ela tivesse escolhido
essa peça de joalharia em particular. Louise não achava que fosse
das suas favoritas. Não era como os brincos de ouro que a mãe e o
pai lhe tinham dado no seu décimo terceiro aniversário e que ela
adorava, nem como a pulseira entrelaçada da amizade («pulseira
da irmandade») que Josh lhe comprara (com o seu próprio di-
nheiro!) nas últimas férias deles, na Grécia. Louise não conseguia
imaginar porque é que Katie escolhera aquilo — um presente de
Lena, de quem ela já não parecia particularmente próxima, com
uma inscrição no pássaro (muito pouco à Lena): com amor.
Não levava consigo nem mais uma joia. Calças de ganga e um
casaco, demasiado quente para uma noite de verão, com os bolsos
cheios de pedras. A mochila carregada do mesmo modo. Quando
a encontraram, estava rodeada por flores, algumas delas ainda
agarradas à mão. Como Ofélia. Como o quadro na parede de Nel
Abbott.

1187
PauLa HAWKINS

As pessoas diziam que, na melhor das hipóteses, era inconsis-


tente, e que, na pior, era ridículo e cruel atribuir as culpas a Nel
Abbott pelo que acontecera a Katie. Lá por Nel ter escrito acerca
do poço, falado acerca do poço, tirado fotografias lá, feito entre-
vistas, publicado artigos na imprensa local, falado uma vez acerca
daquilo para um programa de rádio da BBC, lá por ter dito as
palavras «local de suicídios», lá por falar acerca das suas adoradas
«nadadoras» como heroínas gloriosas e românticas, como mulhe-
res de coragem que iam ao encontro de urna morte apaziguadora
no belo local da sua escolha, ela não podia ser responsabilizada
por aquilo.
Mas Katie não se enforcou pendurada na parte de trás da porta
do seu quarto, não cortou os pulsos nem tomou uma mão-cheia
de comprimidos. Escolheu o poço. O que era verdadeiramente
ridículo era ignorar isso, ignorar o contexto, ignorar quão suges-
tionáveis algumas pessoas podem ser: pessoas sensíveis, pessoas
jovens. Os adolescentes — crianças boas, inteligentes, generosas
— ficam intoxicados com ideias. Louise não compreendia porque
é que Katie fizera o que fizera, nunca compreenderia, mas sabia
que o seu ato não fora isolado.
O conselheiro do luto, que vira durante apenas duas sessões,
disse-lhe que não devia procurar saber porquê. Que nunca seria capaz
de responder a essa pergunta, que ninguém seria; que, em muitos
casos em que alguém se suicida, não há uma razão para isso, que a
vida, simplesmente, não é assim tão simples. Louise, em desespero,
salientara que Katie não tinha qualquer historial de depressão e que
não andava a ser coagida (falaram com a escola, vasculharam-lhe o
e-mail, o Facebook, mas não encontraram nada que não fosse amor).
Era bonita, boa aluna e tinha ambição, motivação. Não era infeliz.
Às vezes, tinha um olhar selvagem, muitas vezes era excitável. Tem-
peramental. Quinze anos. Sobretudo, era reservada. Se tivesse tido
problemas, teria dito à mãe. Dizia tudo à mãe, sempre o tinha feito.
— Não me escondia nada — disse Louise ao psicólogo, e viu
o olhar dele desviar-se-lhe do rosto.
— Isso é o que todos os pais pensam — disse ele, calmamente
—, e temo que todos os pais estejam errados.

138
ESCRITO NA ÁGUA

Depois disso, Louise não voltou a ver o conselheiro, mas o mal


estava feito. Abrira-se uma fissura e a culpa infiltrara-se por ela,
a princípio uma gota e, depois, uma inundação. Ela não conhecia
a filha. Era por isso que o colar a incomodava tanto, não apenas
por ter sido dado por Lena, mas porque se tornou um símbolo de
tudo o que não sabia acerca da vida da filha. Quanto mais pensa-
va acerca disso, mais se culpava: por andar demasiado ocupada,
por se focar demasiado em Josh, por falhar tão completamente na
proteção à sua filha.
A maré de culpa subiu e subiu e só havia uma maneira de
manter a cabeça à tona, de evitar afogar-se, e essa maneira era
descobrir uma razão, apontá-la, dizer: Pronto. Foi por causa disto.
A sua filha fizera uma escolha absurda, mas enchera os bolsos
de pedras e levara flores nas mãos: a escolha tinha um contexto.
O contexto fora providenciado por Nel Abbott.
Louise pôs a mala preta sobre a cama, abriu o guarda-fatos e
começou a tirar as roupas de Katie dos cabides: as suas t-shirts de
cores garridas, os seus vestidos de verão, a camisola com capuz
rosa-choque que usara no último inverno. A sua visão desfocou-se
e tentou pensar nalguma coisa para evitar que as lágrimas apare-
cessem, tentou descobrir alguma imagem em que pudesse fixar a
imaginação e, por conseguinte, pensou no corpo de Nel, partido
contra a água, e retirou disso o conforto que lhe era possível.

1:39
SEAN

FUI DESPERTADO PELO SOM de uma mulher a gritar, um som deses-


perado e distante. Pensei que devia ter sonhado com aquilo, mas,
depois, fui acordado à bruta por umas batidas, altas e próximas,
intrusivas e reais. Havia alguém à porta da rua.
Vesti-me rapidamente e corri para o andar de baixo, olhando
de relance para o relógio da cozinha ao passar por ele. Ainda pas-
sava pouco da meia-noite — não podia estar a dormir há mais de
meia hora. O martelar na porta persistia e eu conseguia ouvir uma
mulher a chamar pelo meu nome, uma voz que conhecia, mas
que, por um momento, não fui capaz de identificar. Abri a porta.
— Está a ver isto? — A Louise Whittaker estava a gritar
comigo, com a cara ruborizada e furiosa. — Eu disse-lhe, Sean!
Eu disse-lhe que se passava alguma coisa!
O «isto» a que ela se referiá era um tubo de plástico cor de
laranja, do género daqueles em que vêm os medicamentos, e,
de lado, tinha um rótulo com um nome. Danielle Abbott.
— Eu disse-lhe! — gritou ela mais uma vez, e, depois, desfez-
-se em lágrimas.
Conduzi-a para dentro de casa — demasiado tarde. Antes de
fechar a porta da cozinha, vi uma luz a acender-se no quarto
do andar de cima da casa do meu pai.
Levei bastante tempo a compreender o que a Louise me que-
ria dizer. Ela estava histérica, com as suas frases a atropelarem-se

140
ESCRITO NA ÁGUA

e a não fazerem qualquer sentido. Tive de lhe extrair a informa-


ção gradualmente, uma frase tragada, sem fôlego, furiosa, de
cada vez. Por fim, tinham decidido pôr a casa à venda. Antes
que pudessem começar as visitas, ela tinha de esvaziar o quar-
to da Katie. Não queria estranhos a andarem por lá, a tocarem
nas coisas dela. Começara nessa tarde. Enquanto estava a arru-
mar as roupas da Katie, encontrara o tubo cor de laranja. Estava
a tirar um casaco do cabide, o verde, um dos preferidos da Katie.
Ouvira algo a chocalhar. Enfiara a mão no bolso e descobrira
a embalagem de comprimidos. Ficara chocada, e ainda mais
quando viu que o nome na embalagem era o da Nel. Nunca
ouvira falar naquele medicamento — Rimato — antes, mas
procurara-o na Internet e descobrira que era uma espécie de
comprimido para emagrecer. Estes comprimidos não se encontram
legalmente disponíveis no Reino Unido. Houve estudos nos Estados
Unidos que relacionaram o seu uso com depressões e pensamentos
suicidas.
— Vocês não deram por isso! — gritou ela. — Disseram-me
que ela não tinha nada no sangue. Disseram que a Nel Abbott
não tinha nada que ver com aquilo. Mas aqui está — bateu com o
punho na mesa, fazendo o tubo saltar no ar —, veja! Ela andava a
fornecer drogas à minha filha, drogas perigosas. E vocês deixaram-
-na escapar incólume.
Era estranho, mas, durante todo o tempo em que ela estava
a dizer aquilo, a atacar-me, eu sentia-me aliviado. Porque, agora,
havia uma razão. Se a Nel fornecera medicamentos à Katie, então,
podíamos apontar nessa direção e dizer: Olhem, pronto, foi por
isto que aquilo aconteceu. Foi por causa disto que uma raparigui-
nha brilhante e feliz perdeu a vida. Foi por causa disto que duas
mulheres perderam a vida.
Era reconfortante, mas também era mentira. Eu sabia que
era mentira.
— As análises ao sangue dela deram negativo, Louise — disse
eu. — Não sei quanto tempo é que este... este Rimato? Não faço
ideia de quanto tempo é que fica no organismo. Nem sequer sabe-
mos se isto será Rimato, mas...

141
PauLa HAWKINS

Pus-me de pé, tirei um saco de plástico para sandes da gaveta


da cozinha e estendi-o à Louise. Ela pegou no tubo que estava em
cima da mesa e colocou-o no saco. Selei-o.
— Podemos descobrir — concluí.
— E, então, saberemos — disse ela, inspirando, novamente,
pela boca.
A verdade era que não saberíamos. Mesmo que houvesse ves-
tígios da presença de uma droga no seu organismo, mesmo que
houvesse algo que nos tivesse escapado, isso não nos diria nada
de definitivo.
— Eu sei que é demasiado tarde — estava a Louise a dizer —,
mas quero que se saiba disto. Quero que toda a gente saiba o que
a Nel Abbott fez. Meu Deus, ela é capaz de ter dado comprimidos
a outras raparigas... Tem de falar com a sua mulher acerca disto:
como diretora, ela tem de saber que alguém anda a vender esta
merda na escola. Você tem de revistar os cacifos, tem de...
— Louise — sentei-me ao lado dela —, acalme-se. Claro que
vamos levar isto a sério, fá-lo-emos, mas não temos maneira de
saber como é que esta embalagem foi parar às mãos da Katie.
É possível que a Nel Abbott tenha comprado os comprimidos para
si própria...
— E então? O que é que está a dizer? Que a Katie os roubou?
Como é que se atreve a sugerir isso, Sean? Você conhecia-a...
A porta da cozinha abanou — fica presa, especialmente depois
de uma chuvada — e abriu-se. Era a Helen, com um ar desar-
ranjado, de calças de fato de treino e uma t-shirt, e com o cabelo
despenteado.
— O que é que se passa? Louise, o que aconteceu?
A Louise abanou a cabeça, mas não disse nada. Cobriu a cara
com as mãos.
Pus-me de pé e falei com a Helen.
— Devias ir para a cama — disse eu, em voz baixa. — Não
precisas de te preocupar.
e NS.
— Tenho só de conversar com a Louise durante um bocado.
Está tudo bem. Volta lá para cima.

142
ESCRITO NA ÁGUA

— Está bem — disse ela prudentemente, olhando para baixo,


para a mulher que soluçava silenciosamente à mesa da nossa
cozinha. — Se tens a certeza...
— Tenho.
A Helen saiu, calmamente, da cozinha, fechando a porta atrás
de si ao sair. A Louise limpou os olhos. Estava a olhar para mim
de um modo estranho, perguntando-se, suponho, onde estivera a
Helen. Eu podia ter-lhe explicado: ela não dorme bem, o meu pai
também tem insónias, às vezes ficam os dois sentados, a fazer pa-
lavras cruzadas e a ouvir rádio. Podia ter-lhe explicado, mas essa
ideia parecia-me, subitamente, cansativa, pelo que, em vez disso,
lhe disse:
— Não acho que a Katie tenha roubado nada, Louise. Claro
que não. Mas pode ter... Não sei, ter pegado neles inadvertida-
mente. Pode ter tido curiosidade. Diz que estavam no bolso do
casaco dela? Talvez tenha pegado neles e se tenha simplesmente
esquecido.
— A minha filha não tirava coisas das casas das outras pes-
soas — respondeu a Louise acidamente, e eu acenei com a cabeça.
Não valia a pena discutir acerca daquilo.
— Vou investigar, amanhã de manhãzinha. Vou enviar isto
para o laboratório e voltaremos a olhar para as análises ao sangue
da Katie. Se me tiver escapado alguma coisa, Louise...
Ela abanou a cabeça.
— Eu sei que isto não muda nada. Sei que não a trará de volta
— disse ela, calmamente. — Só que me ajudaria. A compreender.
— Entendo isso. Claro que entendo. Gostaria que lhe desse
boleia para casa? — perguntei-lhe. — Posso levar-lhe o seu carro
de manhã.
Ela voltou a abanar a cabeça e exibiu-me um sorriso trémulo.
— Estou bem — disse ela. — Obrigada.

O eco do seu agradecimento — injustificado, imerecido — res-


soou no silêncio depois de ela se ter ido embora. Eu sentia-me
pessimamente, e fiquei agradecido pelo som dos passos da Helen
nas escadas, agradecido por não ter de ficar sozinho.

143
PauLA HAWKINS

— O que se passa? — perguntou-me ela ao entrar na cozinha.


Parecia pálida e muito cansada, com círculos como nódoas
negras debaixo dos olhos. Sentou-se à mesa e pegou-me na mão.
— O que é que a Louise aqui estava a fazer?
— Descobriu uma coisa — disse eu. — Uma coisa que ela acha
que pode ter que ver com o que aconteceu à Katie.
— Oh, meu Deus, Sean. O quê?
Insuflei as bochechas de ar.
— Eu não devia... provavelmente, por ora, não devia discutir
isto em pormenor.
Ela acenou com a cabeça e apertou-me a mão.
— Diz-me uma coisa: quando foi a última vez que confiscaste
drogas na escola?
Ela franziu o sobrolho.
— Bem, tirámos alguma marijuana àquele pequeno inútil do
Watson, o lain, no fim do período, mas, antes disso... oh, já há
algum tempo que não. Já há muito tempo que não. Foi em março,
creio, aquela questão com o Liam Markham.
— Isso foram comprimidos, não foram?
— Sim, ecstasy, ou, em todo o caso, algo que pretendia ser
ecstasy, e Rohypnol. Ele foi expulso.
Eu lembrava-me, vagamente, do incidente, embora não seja o
tipo de coisa em que me envolva.
— Não houve nada desde então? Não te cruzaste com nenhuns
comprimidos para emagrecer, pois não?
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Não. Pelo menos com nada de ilegal. Algumas das rapa-
rigas tomam aqueles azuis; como é que se chamam? Alli, creio.
Estão disponíveis legalmente, embora não creia que seja suposto
vendê-los a menores. — Franziu o nariz. — Tornam-nas horrivel-
mente flatulentas, mas, aparentemente, isso é um preço aceitável
a pagar para ter um espaço entre as coxas.
— À pagar para quê?
A Helen revirou os olhos.
— Um espaço entre as coxas! Elas querem todas ter pernas tão
magras que não se juntem na parte de cima. Sinceramente, Sean,

144
ESCRITO NA ÁGUA

às vezes acho que vives noutro planeta. — Ela voltou a apertar-me


a mão. — Às vezes, apetecia-me viver lá contigo.
Fomos juntos para o andar de cima, para a cama, pela primeira
vez há muito tempo, mas eu não estava capaz de lhe tocar. Não
depois daquilo que fizera.

145
QUARTA-FEIRA, 19 DE AGOSTO

ERIN

O PELUDO, O TIPO DO DEPARTAMENTO CIENTÍFICO, levou cerca de


cinco minutos a descobrir o recibo dos comprimidos para ema-
grecer na pasta de spam do e-mail da Nel Abbott. Tanto quanto
percebeu, ela só comprara os comprimidos numa ocasião, a me-
nos, claro, que tivesse outra conta de e-mail que já não se encon-
trasse ativa.
— É estranho, não é? — comentou um dos polícias fardados,
um dos tipos mais velhos, cujo nome não me dei ao trabalho de
fixar. — Ela era uma mulher tão magra. Não diria que precisasse
disso. A irmã, essa é que era gorda.
— À Jules? — perguntei eu. — Ela não é gorda.
— Ah, sim, agora não, mas devia tê-la visto há uns aninhos.
— Ele começou a rir-se. — Parecia um bezerro.
Charmoso de merda.
Desde que o Sean me contou acerca dos comprimidos, tenho
andado a estudar afincadamente a Katie Whittaker. Era um caso
bastante claro, embora a questão do porquê fosse muito impor-
tante — como acontece muitas vezes. Os pais dela não suspeita-
ram de que se passasse algo. Os professores disseram que talvez
ela andasse um pouco distraída, talvez um pouco mais reservada
do que o habitual, mas que não notaram nenhum sinal de alarme.
As suas análises ao sangue estavam limpas. Não tinha o mínimo
historial de automutilação.

146
ESCRITO NA ÁGUA

A única coisa — e não era lá grande coisa — era um alegado


desentendimento com a sua melhor amiga, a Lena Abbott. Algu-
mas colegas da Katie afirmavam que a Lena e a Katie se tinham
desentendido acerca de qualquer coisa. A Louise, a mãe da Katie,
dizia que se andavam a ver menos, mas que não achava que ti-
vesse havido uma discussão. Se tivesse havido, dizia ela, a Katie
tê-lo-ia mencionado. Elas tinham tido brigas no passado — as rapa-
rigas adolescentes fazem dessas coisas — e a Katie fora sempre fron-
tal com a mãe acerca disso. E, no passado, tinham sempre feito as
pazes. Um dia, depois de uma briga, a Lena sentira-se tão mal que
oferecera um colar à Katie.
No entanto, as tais colegas da escola — a Tanya qualquer-coisa
e a Elle outra-coisa-qualquer — diziam que se passava algo de
importante, embora não soubessem dizer o quê. Só sabiam que,
um mês ou dois antes de a Katie morrer, ela e a Lena tinham
tido aquilo a que elas chamavam uma «discussão violenta», que
acabara com elas a serem fisicamente separadas por um profes-
sor. A Lena negava-o vivamente, alegando que a Tanya e a Ellie
não gostavam dela, que estavam só a tentar causar-lhe problemas.
A Louise, pelo menos, nunca ouvira falar naquela briga, e 0 pro-
fessor envolvido — o Mark Henderson — alegava que, na verdade,
não fora, de todo, uma discussão. Estavam a lutar na brincadeira,
disse ele. A fazer disparates. Aquilo tornou-se muito ruidoso e ele
disse-lhes para se acalmarem. E fora só isso.
Tentei passar por cima do assunto ao ler a pasta da Katie, mas
não parava de voltar a pensar nisso. Algo me parecia errado. Rapa-
rigas adolescentes a lutarem na brincadeira? Parece-me mais
provável que sejam os rapazes a fazê-lo. Talvez eu tenha interio-
rizado mais sexismo do que estou disposta a admitir. Mas estava
agora mesmo a olhar para fotografias daquelas raparigas — boni-
e
tas, comedidas, a Katie, em particular, muito bem arranjada —
não me pareciam do género de lutar por desporto.
o, ouvi
Quando estacionei O carro diante da Casa do Moinh
das
um barulho e olhei para cima. A Lena estava debruçada numa
janelas do primeiro andar, com um cigarro na mão.
— Olá, Lena — gritei.

147
PauLa HaWKINS

Ela não disse nada, mas, muito deliberadamente, fez ponta-


ria e atirou a beata do cigarro na minha direção. Depois, retirou-
-se, atirando com a janela. Não acredito, de todo, naquilo da
luta na brincadeira: imagino que, se a Lena Abbott quiser lutar,
luta a sério.
A Jules abriu-me a porta, olhando, nervosamente, por sobre
o meu ombro ao fazê-lo.
— Está tudo bem? — perguntei-lhe.
Ela estava com um ar horrível: extenuada, cinzenta, com os
olhos cansados e o cabelo por lavar.
— Não consigo dormir — disse ela, suavemente. — Parece
que não consigo mesmo adormecer.
Atrapalhou-se cozinha fora, pôs a chaleira ao lume e sentou-se
pesadamente à mesa. Lembrou-me a minha irmã, três semanas
depois de ter dado à luz gémeos: mal tinha força para erguer
a cabeça.
— Talvez devesse pedir ao médico que lhe receitasse qualquer
coisa — sugeri eu, mas ela abanou a cabeça. |
— Não quero dormir demasiado profundamente — disse
ela, com os olhos a abrirem-se muito, dando-lhe um ar maníaco.
— Tenho de estar alerta.
Eu podia ter dito que já vira pacientes em coma mais alerta,
mas não o fiz.
— Esse Robbie Cannon acerca do qual perguntou — disse eu.
Ela contraiu-se e roeu uma unha. — Estivemos a investigá-lo um
pouco. Tem razão quanto a ele ser violento: tem algumas conde-
nações por violência doméstica, entre outras coisas. Mas não es-
teve envolvido na morte da sua irmã. Fui até Gateshead, que é
onde ele vive, e tive uma pequena conversa com ele. Estava em
Manchester, a visitar o filho, na noite em que a Nel morreu. Diz que
não a vê há anos, mas que, quando leu acerca da morte dela no
jornal local, decidiu vir cá prestar-lhe a sua homenagem. Pareceu-
-me bastante estupefacto por lhe estarmos a fazer perguntas acerca
do assunto.
— Ele... — A voz dela era pouco mais que um sussurro. — Ele
mencionou-me? Ou à Lena?

148
ESCRITO NA ÁGUA

— Não. Não mencionou. Porque é que pergunta? Ele esteve cá?


Pensei no modo hesitante como ela abrira a porta da rua, no
modo como olhara por sobre o meu ombro, como se estivesse de
atalaia a alguém.
— Não. Quer dizer, creio que não. Não sei.
Não consegui arrancar-lhe mais nada acerca do assunto. Era claro
que ela tinha medo dele, por alguma razão, mas não dizia qual.
Aquilo era insatisfatório, mas deixei as coisas como estavam, já
que tinha de abordar outro assunto constrangedor.
— Isto é um bocado difícil — disse-lhe eu. — Peço imensa
desculpa, mas vamos ter de voltar a revistar a casa.
Ela olhou fixamente para mim, horrorizada.
— Porquê? Descobriram alguma coisa? O que aconteceu?
Expliquei-lhe a história dos comprimidos.
— Oh, meu Deus. — Ela cerrou os olhos e deixou cair a cabe-
ça. Podia ser a exaustão a embotar-lhe as reações, mas não parecia
chocada.
— Ela comprou-os em novembro do ano passado, no dia 18,
num website americano. Não conseguimos encontrar registo de
outras compras, mas temos de nos certificar...
— Está bem — disse ela. — Claro.
Esfregou os olhos com as pontas dos dedos.
— Dois agentes virão cá esta tarde. Está bem?
Ela encolheu os ombros.
— Bem, se tiver mesmo de ser, mas eu... em que data é que
disse que ela os comprou?
— A 18 de novembro — disse eu, consultando os meus apon-
tamentos. — Porquê?
— É só que... isso é o aniversário. Da morte da nossa mãe.
Parece... oh, não sei. — Ela fez uma careta. — É só que parece
esquisito, porque a Nel, normalmente, telefonava-me no dia 18,
e o ano passado foi diferente porque não o fez. Acontece que ela
estava no hospital para fazer uma apendicectomia de emergência.
Acho que estou, apenas, surpreendida por ela ter passado o tempo
l para
a comprar comprimidos dietéticos quando estava no hospita
dia 18º
uma cirurgia de emergência. Tem a certeza de que foi no

149
PauLA HAWKINS

steWode eK

De regresso ao posto, verifiquei com o Peludo. Eu tinha razão


quanto à data.
— Ela pode tê-los comprado pelo telemóvel — sugeriu a Calle.
— É muito aborrecido estar no hospital.
Mas o Peludo abanou a cabeça.
— Não, verifiquei o endereço de IP; quem quer que tenha feito
a compra, fê-la às 16h17 a partir de um computador usando o router
da Casa do Moinho. Portanto, teve de ser alguém dentro de casa
ou perto dela. Sabe a que horas é que ela foi para o hospital?
Não sabia, mas não era difícil descobrir. A Nel Abbott foi ad-
mitida na madrugada de 18 de novembro para uma apendicecto-
mia de emergência, exatamente como a irmã disse. Permaneceu
no hospital todo o dia, e também a mantiveram lá até ao dia
seguinte.
A Nel não podia ter comprado os comprimidos. Foram com-
prados por outra pessoa, usando o cartão dela, na casa dela.
— À Lena — disse eu ao Sean. — Tem de ser a Lena.
Ele acenou com a cabeça, com a cara amargurada.
— Vamos ter de falar com ela.
— Quer fazê-lo agora? — perguntei-lhe, e ele voltou a acenar
com a cabeça.
— Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje — disse
ele. — E que altura melhor do que imediatamente a seguir a uma
criança ter perdido a mãe? Meu Deus, isto está uma confusão.

E estava prestes a ficar mais confuso. Estávamos a sair do es-


critório quando fomos detidos por uma Callie sobre-excitada.
— Às impressões digitais! — disse ela, ofegante. — Têm uma
correspondência. Bem, não é exatamente uma correspondência,
porque não corresponde a ninguém que se tenha apresentado, só
que..;
— Só que o quê? — cortou o inspetor.
— Alguma luminária decidiu dar uma olhadela à impressão
digital que havia no tubo dos comprimidos e compará-la com a

150
ESCRITO NA ÁGUA

impressão digital que havia na máquina de filmar... sabe, a que


estava danificada?
— Sim, nós estamos recordados da máquina de filmar danifi-
cada — respondeu o Sean.
— Pronto, enfim, correspondem. E, antes que pergunte, não
são da Nel Abbott, e não são da Katie Whittaker. Uma outra pessoa
mexeu em ambos esses objetos.
— A Louise — disse o Sean. — Tem de ser. A Louise Whittaker.
MARK

MARK ESTAVA A CORRER O FECHO DA MALA quando a detetive chegou.


Desta vez, uma detetive diferente, outra mulher, um pouco mais
velha e não tão bonita.
— Agente Erin Morgan — disse ela, apertando-lhe a mão.
— Desejava dar-lhe uma palavrinha. |
Ele não a convidou a entrar. A casa estava uma bagunça e ele
não estava com disposição para ser acolhedor.
— Estou a fazer as malas para ir de férias — disse ele. — Vou
de carro até Edimburgo esta noite, para ir buscar a minha noiva.
Vamos passar alguns dias a Espanha.
— Não demora muito — disse a agente Morgan, com o olhar
a deslizar por sobre o ombro dele, para dentro de casa.
Ele puxou a porta da rua. Falaram no degrau da entrada.
Ele assumiu que seria, novamente, acerca de Nel Abbott.
Afinal de contas, fora uma das últimas pessoas a verem-na viva.
Vira-a diante do pub, tinham falado brevemente, e ele observara-a
a seguir em direção à Casa do Moinho. Estava preparado para essa
conversa. Não estava preparado para esta.
— Sei que já falou acerca disto, mas há algumas coisas que
temos de clarificar — disse a mulher — acerca dos aconteci-
mentos que precederam a morte da Katie Whittaker.
Mark sentiu a pulsação a acelerar.
— O que é que, hum... o que é que tem?

152
ESCRITO NA ÁGUA

— Constou-me que teve razões para intervir numa discussão


entre a Lena Abbott e a Katie, cerca de um mês antes de a Katie
morrer?
A garganta de Mark parecia-lhe muito seca. Esforçou-se por
engolir.
— Não foi uma discussão — disse ele. — Ergueu a mão para
proteger os olhos do sol. — Porque... desculpe, porque é que isso
veio ao de cima outra vez? Pensava que a morte da Katie tinha sido
considerada suicídio...
— Sim — interrompeu a detetive —, foi sim, e isso não mu-
dou. Todavia, apercebemo-nos de que pode ter havido, hum...
circunstâncias em torno da morte da Katie das quais não sabíamos
antes e que podem exigir mais investigações.
Mark virou-se abruptamente, empurrando a porta da rua e
abrindo-a com tanta força que ela ricocheteou na sua direção,
enquanto ele entrava para o corredor. O torno estava a apertar-se
à volta do seu crânio, tinha o coração aos pulos e precisava de sair
do sol.
— Sr. Henderson? Está tudo bem?
— Estou ótimo. — Com os olhos a adaptarem-se à escuridão
do corredor, virou-se, uma vez mais, para olhar para ela. — Ótimo.
Um pouco de dor de cabeça, é só isso. A luminosidade, é mesmo...
— Porque é que não lhe vamos buscar um copo de água?
— sugeriu a agente Morgan, com um sorriso.
— Não — respondeu ele, apercebendo-se, enquanto falava,
de quão carrancudo parecia. — Não, estou ótimo.
Houve um silêncio.
— A discussão, Sr. Henderson? Entre a Lena e a Katie?
Mark abanou a cabeça.
— Não foi uma discussão... Eu disse isto à polícia, na altura.
Não tive de separá-las. Não... pelo menos, não do modo que foi
sugerido. A Katie e a Lena eram muito próximas, eram capazes
de ser excitáveis e volúveis, como o são muitas raparigas daquela
idade... crianças daquela idade.
A detetive, ainda de pé, à luz do Sol, no degrau da entrada, era
agora uma silhueta sem rosto, uma sombra. Ele preferia-a assim.

153
PAULA HAWKINS

— Alguns dos professores da Katie relataram que ela parecia


distraída, talvez um pouco mais reservada do que era habitual nas
semanas que precederam a sua morte. É essa a sua impressão?
— Não — disse Mark, e pestanejou lentamente. — Não. Não
creio. Não creio que tivesse mudado. Não reparei em nada de dife-
rente. Não percebi que aquilo estivesse para acontecer. Nós...
nenhum de nós percebeu que aquilo estivesse para acontecer.
A voz dele era grave e tensa e a detetive reparou nisso.
— Lamento voltar a trazer tudo isto à tona — disse ela. — Com-
preendo quão terrível...
— Na verdade, imagino que não compreenda. Eu via aquela
rapariga todos os dias. Ela era jovem e inteligente e... era uma das
minhas melhores alunas. Uma rapariga amorosa.
Engasgou-se com aquele amorosa.
— Lamento muito, lamento mesmo. Mas o que se passa é que
surgiram alguns factos novos, e temos de os investigar.
Mark acenou com a cabeça, esforçando-se por ouvi-la por cima
do latejar do sangue nos seus ouvidos; todo o seu corpo parecia
muito frio, como se alguém tivesse despejado gasolina por cima
dele.
— Sr. Henderson, fomos levados a acreditar que a Katie podia
andar a tomar um medicamento, uma coisa chamada Rimato.
Já ouviu falar disso?
Mark perscrutou-a. Agora, queria mesmo ver-lhe os olhos,
queria ler-lhe a expressão.
— Não... eu... eu pensava que tinham dito que ela não tinha
tomado nada? Na altura, foi isso que a polícia disse. Rimato?
O que é isso? Isso é... recreativo?
Morgan abanou a cabeça.
— É um comprimido dietético — disse ela.
— A Katie não tinha excesso de peso — disse ele, apercebendo-
-se de quão estúpido isso parecia enquanto ainda estava a dizê-lo.
— No entanto, estão sempre a falar acerca disso, não é? As raparigas
adolescentes. Acerca do seu peso. E nem sequer são só as adoles-
centes. As mulheres adultas também. A minha noiva nunca se
cala com isso.

154
ESCRITO NA ÁGUA

Era verdade, embora não fosse toda a verdade. Porque a noiva


dele já não era noiva dele, já não se lhe queixava acerca do seu
peso, e também não estava à espera de que ele a fosse buscar para
irem juntos para Málaga. No último e-mail, enviado alguns meses
antes, ela desejara-lhe o pior e dissera-lhe que nunca o perdoaria
pelo modo como ele a tratara.
Mas que fizera ele de tão terrível? Se fosse um homem ver-
dadeiramente horrível, um homem frio, cruel, sem sentimentos,
tê-la-ia mantido à espera em nome das aparências. Afinal de con-
tas, isso teria sido do seu interesse. Mas ele não era um homem
mau. Simplesmente, quando amava, amava completamente — e
que raio é que isso tinha de errado?

Depois de a detetive se ter ido embora, Mark deu voltas à casa,


abrindo gavetas, folheando livros, procurando. Procurando algo
que sabia muito bem que não encontraria. Na noite anterior ao
solstício de verão, zangado e amedrontado, fizera uma fogueira
no jardim das traseiras e empilhara nela postais e cartas, e um
livro. Outros presentes. Agora, se olhasse lá para fora, pela janela
das traseiras, ainda conseguia vê-la, uma pequena mancha de ter-
ra queimada onde erradicara todos os vestígios dela.
Ao abrir a gaveta da secretária da sua sala de estar, sabia, exa-
tamente, o que veria, porque aquela não era a primeira vez que o
fazia. Procurara, repetidamente, alguma coisa que lhe tivesse esca-
pado, às vezes com medo e frequentemente com tristeza. Mas fora
minucioso naquela primeira noite.
Havia fotografias, sabia, no escritório da diretora da escola.
Uma pasta. Agora fechada, mas ainda guardada. Ele tinha uma
chave da ala da administração e sabia exatamente onde procurar.
E queria algo, precisava de algo para levar com ele. Aquilo não era
uma trivialidade, era essencial, sentia ele, porque o futuro era, de
súbito, tão incerto.
Tinha um pressentimento de que, quando rodasse a chave da
porta das traseiras, trancando a casa, talvez nunca mais O fizesse
outra vez. Talvez não voltasse. Talvez estivesse na hora de desa-
parecer, de recomeçar.
PAULA HAWKINS

Conduziu até à escola, parando no parque de estacionamento


vazio. Às vezes, Helen Townsend ia trabalhar durante as férias
escolares, mas hoje não havia sinais do carro dela. Estava sozinho.
Abriu a porta do edifício e dirigiu-se para lá da sala do pessoal,
rumo ao escritório de Helen. A porta dela estava fechada, mas,
quando tentou rodar a maçaneta, descobriu que estava des-
trancada.
Abriu a porta, inalando o desagradável cheiro químico do
detergente da carpete. Atravessou a sala até ao arquivo e abriu a
gaveta de cima. Fora esvaziada, e a gaveta de baixo estava trancada.
Apercebeu-se, com uma sensação aguda de desapontamento, de
que alguém reorganizara tudo, de que, na verdade, não sabia exata-
mente onde procurar, de que talvez a sua viagem tivesse sido em
vão. Saiu apressadamente para o corredor, para verificar se ainda
estava sozinho — sim, o seu Vauxhall vermelho ainda era o único
veículo no parque de estacionamento — e voltou para o escritório
da diretora. Tendo cuidado para não desorganizar nada, abriu as
gavetas da secretária de Helen, uma a uma, à procura das cha-
ves do arquivo. Não as encontrou, mas, na realidade, descobriu
outra coisa: uma bugiganga que não conseguia imaginar Helen
a usar. Algo que lhe pareceu vagamente familiar. Uma pulseira de
prata com um fecho de ónix, e uma gravação que dizia SJA.
Sentou-se e olhou fixamente para aquilo durante muito tempo.
Por nada na vida conseguia compreender o que aquilo significava,
o facto de aquilo estar ali. Não significava nada. Não podia sig-
nificar nada. Mark voltou a arrumar a pulseira na secretária,
abandonou a sua busca e voltou para o carro. Tinha a chave na
ignição quando lhe ocorreu exatamente onde vira aquela pulseira
pela última vez. Vira-a em Nel, à saída do pub. Tinham falado bre-
vemente. Ele observara-a a seguir na direção da Casa do Moinho.
Mas, antes disso, antes de ela o ter deixado, estivera a brincar com
qualquer coisa no seu pulso, enquanto falavam, e era aí, era aí
que aquilo estava. Ele voltou para trás, regressou ao escritório de
Helen e abriu a gaveta; pegou na pulseira e enfiou-a no bolso.
Enquanto o fazia, sabia que, se alguém lhe perguntasse porquê,
não seria capaz de se explicar.

156
ESCRITO NA ÁGUA

Era, pensava ele, como se estivesse em águas profundas, como


se procurasse agarrar-se a algo, a qualquer coisa que o salvasse.
Era como se se tivesse tentado agarrar a uma boia salva-vidas e,
em vez disso, tivesse descoberto algas e, ainda assim, se tivesse
agarrado a elas.

1137
ERIN

O RAPAZ — O JosH — encontrava-se de pé diante da casa quando


nós chegámos, como um pequeno soldado a fazer guarda, pálido
e vigilante. Cumprimentou o Sean educadamente, olhando mais
desconfiado para mim. Tinha um canivete suíço nas mãos, com
os seus dedos a mexerem nervosamente na lâmina, enquanto
o abria e fechava.
— A tua mãe está em casa, Josh? — perguntou-lhe o Sean, e
ele acenou com a cabeça.
— Porque é que querem falar outra vez connosco? — pergun-
tou, com a voz a erguer-se num guincho agudo.
Pigarreou.
— Precisamos só de verificar algumas coisas — disse o Sean.
— Não é nada que te deva preocupar.
— Ela estava na cama — anunciou o Josh, com os olhos a alter-
narem entre a cara do Sean e a minha. — Nessa noite. A mamã
estava a dormir. Estávamos todos a dormir.
— Em que noite? — perguntei eu. — Em que noite foi isso,
Josh?
Ele corou e olhou para baixo, para as suas mãos, e brincou
com o canivete. Um rapazinho que ainda não tinha aprendido
a mentir.
A mãe do Josh abriu a porta atrás dele. Desviou o olhar de mim
para o Sean e suspirou, passando os dedos pelas sobrancelhas.

158
ESCRITO NA ÁGUA

A cara dela tinha a cor de um chá fraco e, quando se virou para


falar com o filho, reparei que tinha as costas curvadas, como uma
velha. Fez-lhe sinal para que fosse ter com ela e falou-lhe baixinho.
— Mas e se eles também quiserem falar comigo? — ouvi-o
a perguntar.
Ela colocou as mãos, firmemente, sobre os ombros dele.
— Não quererão, querido — disse ela. — Vai-te lá embora.
O Josh fechou o seu canivete e enfiou-o no bolso das calças de
ganga, com o seu olhar no meu enquanto o fazia. Sorri-lhe e ele
afastou-se, caminhando rapidamente pelo trilho abaixo e olhando
de relance para trás, apenas uma vez, quando a mãe dele estava a
fechar a porta atrás de nós.
Segui a Louise e o Sean até uma sala de estar grande e lumi-
nosa, que dava para uma daquelas estufas quadradas e moder-
nas que parecem fazer com que a casa transite harmoniosamente
para o jardim. Lá fora, conseguia ver uma gaiola de madeira sobre
o relvado e garnisés — lindas galinhas pretas e brancas e doura-
das — a rasparem o chão em busca de comida. A Louise fez-nos
sinal para que nos sentássemos no sofá. Sentou-se no cadeirão
em frente, lenta e cuidadosamente, como alguém que recupera de
uma lesão, com medo de provocar mais danos.
— Então — disse ela, erguendo o queixo ligeiramente, ao
olhar para o Sean. — O que é que têm para me dizer?
Ele explicou que as novas análises ao sangue tinham dado os
mesmos resultados que as originais: não havia nenhum vestígio
de drogas no organismo da Katie.
A Louise escutava, abanando a cabeça numa clara incredu-
lidade.
— Mas vocês não sabem, pois não, quanto tempo é que esse
tipo de drogas permanece no organismo? Ou quanto tempo é que
os efeitos levam a manifestar-se, ou a passar? Vocês não podem
desconsiderar isto, Sean...
— Não estamos a desconsiderar nada, Louise — disse ele, cal-
mamente. — Só lhe estou a dizer aquilo que descobrimos.
— Tenho a certeza... bem, tenho a certeza que fornecer drogas
ilegais a alguém, a uma criança, é crime, certo? Eu sei... — Passou

159
PauLa HAWKINS

os dentes sobre o lábio inferior. — Sei que é demasiado tarde para


puni-la, mas isto deve ser dado a conhecer, não acha? O que ela
fez? |
O Sean não disse nada. Eu pigarreei e a Louise encarou-me
quando eu comecei a falar.
— Face àquilo que conseguimos descobrir, Sra. Whittaker,
a respeito do momento da aquisição dos comprimidos, a Nel não
os podia ter comprado. Embora tenha sido usado o seu cartão de
crédito, ela...
— O que é que está a sugerir? — O volume da voz dela aumen-
tou furiosamente. — Agora, estão a dizer que a Katie lhe roubou
o cartão de crédito?
— Não, não — disse eu. — Não estamos a dizer nada disso...
A cara dela mudou ao fazer-se-lhe luz.
— A Lena — disse ela, recostando-se na cadeira, com a boca
presa numa resignação sombria. — Foi a Lena.
Também não podíamos ter a certeza disso, explicou o Sean,
embora, é claro, a fôssemos interrogar acerca do assunto. De facto,
ela iria ao posto nessa mesma tarde. O Sean perguntou à Louise
se ela tinha descoberto mais alguma coisa de interesse entre os
haveres da Katie. A Louise ignorou a pergunta liminarmente.
— É isso — disse ela, inclinando-se para a frente. — Não per-
cebem? Se se combinar os comprimidos com este local e o facto
de a Katie passar tanto tempo com as Abbotts, rodeada por todas
aquelas fotografias e aquelas histórias, e...
Parou de falar. Mesmo ela não parecia inteiramente convencida
da história que estava a contar. Porque, ainda que estivesse certa,
e ainda que aqueles comprimidos tivessem deprimido a filha, nada
disso mudava o facto de que ela não reparara.
Eu não o disse, claro, porque aquilo que tinha para lhe per-
guntar já era bastante difícil. A Louise estava a pôr-se de pé, assu-
mindo que o nosso encontro tinha terminado e à espera de que
saíssemos, e eu tive de impedi-la.
— Há outra coisa acerca da qual temos de lhe perguntar
— disse eu.
— Sim?

160
ESCRITO NA ÁGUA

Ela permaneceu de pé, com os braços cruzados sobre o peito.


— Queríamos saber se estaria disposta a deixar-nos recolher
as suas impressões digitais...
Ela interrompeu-me antes que eu pudesse explicar.
— Para quê? Porquê?
O Sean contorceu-se, desconfortavelmente, no seu assento.
— Louise, temos a mesma impressão digital no tubo de com-
primidos que me deu e numa das máquinas de filmar da Nel
Abbott, e temos de determinar porquê. É só isso.
A Louise sentou-se.
— Bem, provavelmente, serão da Nel — disse ela. — Não
acham?
— Não são da Nel — respondi eu. — Já verificámos. Também
não são da sua filha.
Ela recuou perante a resposta.
— Claro que não são da Katie. O que é que a Katie andaria
a fazer com a máquina de filmar?
Franziu os lábios, levando a mão à corrente em torno do pes-
coço e correndo o passarinho azul para trás e para a frente.
Suspirou pesadamente.
— Bem, são minhas, claro — disse ela. — São minhas.
Aconteceu três dias depois de a filha dela morrer, contou-nos.
— Fuia casa da Nel Abbott. Eu estava... bem, duvido que con-
sigam imaginar o estado em que eu estava, mas podem tentar.
Bati à porta da rua, mas ela não saía. Eu não ia desistir, limitei-me
a ficar ali, a martelar na porta e a chamar por ela e, por fim — disse
ela, afastando uma madeixa de cabelo da cara —, a Lena abriu a
porta. Estava a chorar, a soluçar, parecia histérica. Era uma cena
dos diabos. — Ela tentou sorrir, mas não conseguiu. — Eu disse-
“lhe algumas coisas, coisas cruéis, suponho, agora que penso nisso,
mas...
— Que tipo de coisas? — perguntei.
— Eu... Na verdade, não me lembro bem dos pormenores.
— A sua compostura estava a começar a fugir-lhe, a respiração a
faltar-lhe, as mãos a agarrarem os braços do cadeirão, o esforço
a tornar amarela a pele cor de azeitona sobre as norças dos dedos.

161
PauLa HAWKINS

— À Nel deve ter-me ouvido. Veio cá fora e disse-me para as deixar


em paz. Disse... — Deu uma gargalhada ruidosa. — Ela disse que
lamentava a minha perda. Ela lamentava a minha perda, mas disse
que não tinha nada que ver com ela, nada que ver com a filha dela.
A Lena estava para ali no chão, lembro-me disso, estava a fazer
um som como... como um animal. Um animal ferido. — Fez uma
pausa para recuperar o fôlego antes de continuar. — Discutimos,
a Nele eu. Foi bastante violento. — Ela quase sorriu para o Sean.
— Está surpreendido? Ainda não ouviu falar disto? Pensei que
a Nel lhe tivesse contado, ou a Lena, pelo menos. Sim, eu... bem,
não lhe bati, mas empurrei-a, e ela afastou-me. Exigi ver as gra-
vações da máquina de filmar dela. Eu queria... não queria vê-las,
mas, acima de tudo, queria que ela não tivesse... Não conseguia
suportar...
A Louise foi-se abaixo.
Observar alguém na agonia do puro sofrimento é uma coisa
terrível; o ato de observar parece violento, intrusivo, uma violação.
No entanto, nós fazemo-lo, a toda a hora, só temos de aprender a
lidar com isso, o melhor que pudermos. O Sean lidava curvando
a cabeça e permanecendo muito quieto; eu lidava distraindo-me:
observava as galinhas a rasparem o relvado para lá da janela. Olhei
para as estantes de livros, com os olhos a passarem sobre res-
peitáveis romances contemporâneos e livros de história militar;
interiorizei as fotografias emolduradas sobre a lareira. A fotografia
do casamento, a foto de família e a fotografia de um bebé. Só um,
um rapazinho de azul. Onde estaria a fotografia da Katie? Tentei
imaginar a sensação que daria tirar a fotografia de um filho do seu
lugar de destaque orgulhoso para a enfiar numa gaveta. Quando
olhei para o Sean, vi que a sua cabeça já não estava dobrada, que
estava a encarar-me. Apercebi-me de que havia um tamborilar na
sala e de que vinha de mim, de que era a minha caneta a bater
contra o bloco de apontamentos. Não o estava a fazer deliberada-
mente. Estava toda a tremer.
Após o que pareceu muitíssimo tempo, a Louise voltou a falar.
— Não conseguia suportar que a Nel fosse a última a ver a
minha filha. Ela disse-me que não havia filmagem nenhuma, que

162
ESCRITO NA ÁGUA

a máquina de filmar não estava a funcionar e que, ainda que tivesse


estado, se encontrava no cimo do penhasco, pelo que não teria...
não a teria apanhado. — Ela soltou um enorme suspiro, com um
estremecimento a percorrer-lhe todo o corpo, dos ombros aos
joelhos. — Não acreditei nela. Não podia arriscar. E se houvesse
alguma coisa na máquina de filmar e ela a usasse? E se ela mos-
trasse a minha menina ao mundo, sozinha e amedrontada e...
— Ela parou e respirou fundo. — Disse-lhe... A Lena deve ter-
-vos contado isto tudo? Disse-lhe que não descansaria até vê-la pa-
gar pelo que fizera. Depois, vim-me embora. Fui até ao penhasco
e tentei abrir a máquina de filmar para tirar de lá o cartão de me-
mória, mas não fui capaz. Tentei soltá-la do suporte, e parti uma
unha ao fazê-lo.
Ela ergueu a mão esquerda — a unha do indicador estava atro-
fiada e torta.
— Dei-lhe alguns pontapés e bati-lhe com uma pedra. Depois,
fui para casa.

163
ERIN

QUANDO SAÍMOS, O JOSH ESTAVA SENTADO no passeio em frente


da casa. Observou-nos a caminharmos em direção ao carro, atra-
vessou a estrada rapidamente, depois de nós estarmos cerca de
50 metros mais abaixo, e desapareceu casa adentro. O inspetor,
no seu próprio mundo, não pareceu reparar.
— Ela não descansaria até ver a Nel pagar pelo que fez? — repeti
eu quando chegámos ao carro. — Isto não lhe parece uma ameaça?
— O Sean olhou para mim com a sua expressão familiar e vazia,
com o seu ar irritante de não-estou-nem-aí. Não disse nada. — Quer
dizer, não parece estranho que a Lena nem sequer nos tenha men-
cionado isso? E o Josh? Aquela coisa de estarem todos a dormir?
Foi uma mentira tão óbvia...
Ele acenou com a cabeça secamente.
— Sim. Pareceu-me. Mas eu-não daria muito crédito às histó-
rias de crianças enlutadas — disse ele calmamente. — É impossí-
vel saber o que ele está a sentir, ou a imaginar, ou o que pensa que
deve ou não deve dizer. Ele sabe que nós sabemos que a mãe dele
estava ressentida com a Nel Abbott, e imagino que tenha medo
de que a venham a culpar, de que ela lhe seja retirada. Você tem de
pensar no quanto ele já perdeu. — Fez uma pausa. — Quanto à
Lena, se ela, na verdade, estava tão histérica quanto sugere a Louise,
pode nem sequer se lembrar, com clareza, do incidente, pode
lembrar-se de muito pouca coisa além do seu próprio desespero.

164
ESCRITO NA ÁGUA

Pela minha parte, estava a achar difícil casar a descrição que a


Louise fizera da Lena naquele dia — um animal uivante e ferido
— com a rapariga normalmente fechada e, por vezes, venenosa
com que nos tínhamos deparado. Parecia-me bizarro que a reação
dela à morte da amiga fosse tão extrema, tão visceral, quando a sua
reação à morte da mãe fora tão contida. Seria possível que a Lena
tivesse ficado tão afetada pelo sofrimento da Louise, pela convicção
da Louise de que a Nel era culpada da morte da Katie, que tives-
se passado a acreditar, ela própria, nisso? Um arrepio percorreu-
-me a espinha. Não parecia provável, mas e se, tal como a Louise,
a Lena culpasse a mãe pela morte da Katie? E se tivesse decidido
fazer alguma coisa em relação a isso?

165
LENA

PoRQUE É QUE OS ADULTOS fazem sempre as perguntas erradas?


Os comprimidos. Agora, não falam de outra coisa. A merda daqueles
estúpidos comprimidos para emagrecer — até já me tinha esque-
cido de que os comprara, foi há tanto tempo. E, agora, decidiram
que OS COMPRIMIDOS SÃO A RESPOSTA PARA TUDO e, portanto, tive de ir
ao posto da polícia — com a Julia, que é o meu adulto responsável.
Isso fez-me rir. Ela é, tipo, o adulto menos responsável possível
nesta situação em particular.
Levaram-me para uma sala nas traseiras do posto da polícia que
não era como as que se veem na televisão, era apenas um escri-
tório. Sentámo-nos todos ao redor de uma mesa e aquela mulher
— a agente Morgan — fez as perguntas. A maior parte. O Sean
também fez algumas, mas foi sobretudo ela.
Eu contei a verdade. Comprei os comprimidos com o cartão
da mamã porque a Katie me pediu, e nenhuma de nós fazia ideia de
que eram maus para a saúde. Ou, em qualquer caso, eu não fazia
e, se a Katie fazia, nunca me disse nada acerca disso.
— Não pareces particularmente preocupada — disse a agente
Morgan — por eles terem podido contribuir para o estado de espí-
rito negativo da Katie, no final da sua vida.
Quase mordi a língua.
— Não — disse-lhe eu —, não estou preocupada com isso.
A Katie não fez o que fez por causa de comprimidos nenhuns.

166
ESCRITO NA ÁGUA

— Então, porque foi?


Eu devia ter sabido que ela se ia agarrar àquela resposta, pelo
que continuei a falar.
— Ela nem sequer tomou assim tantos. Alguns, provavelmente
não mais de quatro ou cinco. Contem os comprimidos — disse eu
ao Sean. — Tenho quase a certeza de que a encomenda foi de 35.
Contem-nos.
— Fá-lo-emos — disse ele, e depois perguntou: — Forneceste
comprimidos a mais alguém? — Abanei a cabeça, mas ele não se
ficou por aí. — Isto é importante, Lena.
— Eu sei que é — disse-lhe eu. — Essa foi a única vez que os
comprei. Estava a fazer um favor a uma amiga. Foi só isso. A sério.
Ele recostou-se na cadeira.
— Está bem — disse ele. — Aquilo que me estou a esforçar
por compreender é porque é que a Katie havia sequer de querer
tomar comprimidos daqueles. — Ele olhou para mim e depois
para a Julia, como se ela pudesse saber a resposta. — Não é como
se ela tivesse peso a mais.
— Bem, ela não era magra — disse eu, e a Julia fez um ruído
estranho, um cruzamento entre um sopro e um riso, e, quando
olhei para ela, estava a olhar-me de lado, como se me odiasse.
— As pessoas diziam-lhe isso? — perguntou-me a agente
Morgan. — Na escola? Havia quem fizesse comentários acerca
do peso dela?
— Meu Deus! — Estava a achar muito difícil não perder as
estribeiras. — Não. Não andavam a intimidar a Katie. Sabe que
mais? Ela costumava chamar-me cabra magricelas a toda a hora.
Costumava rir-se de mim, porque, sabe... — Fiquei envergonha-
da, porque o Sean estava a olhar-me de frente, mas já tinha come-
çado e, portanto, tinha de acabar. — Porque não tenho mamas
nenhumas. Portanto, ela chamava-me cabra magricelas e eu, às ve-
zes, respondia-lhe com vaca gorda, e nenhuma de nós estava a falar
a sério.
Eles não compreendiam. Nunca compreendem. E o problema
era que eu não conseguia explicar tudo como deve ser. Às vezes,
nem eu própria compreendia, porque, embora ela não fosse magra,

167
PauLAa HawkKINS

isso, na verdade, não a incomodava. Nunca falava acerca do assunto


como as outras faziam. Eu nunca tive de experimentar, mas a Amy
e a Ellie e a Tanya sim. Sempre a comerem poucos hidratos de car-
bono, ou a jejuarem, ou a vomitarem, ou o caralho. Mas a Katie
não se importava, ela gostava de ter mamas. Gostava da aparência
do seu corpo ou, pelo menos, sempre costumara gostar. E depois
— sinceramente não sei o que foi, um comentário estúpido qualquer
no Instagram ou uma observação idiota de algum Cro-Magnon na
escola — começou a sentir-se estranha. Foi então que me pediu os
comprimidos. Mas, quando eles chegaram, aquilo parecia já lhe
ter passado, e ela disse que, de qualquer forma, não funcionavam.
Pensei que o interrogatório tinha acabado. Pensei que tinha
deixado claro o meu ponto de vista, mas, depois, a agente Morgan
disparou numa direção completamente diferente, perguntando-
-me acerca do dia em que a Louise fora lá a casa, pouco depois
de a Katie morrer. Eu fiquei, tipo: claro que me lembro desse dia.
Foi um dos piores dias da minha vida. Ainda fico perturbada só
de pensar nisso. |
— Nunca vi nada assim — disse-lhes eu —, a forma como
a Louise estava nesse dia.
A agente Morgan acenou com a cabeça e, depois, perguntou,
toda séria e preocupada:
— Quando a Louise disse à tua mãe que «não descansaria até
ver a Nel pagar», como é que tu interpretaste isso? O que é que
achaste que ela queria dizer?
Então, passei-me.
— Não queria dizer nada, minha idiota de merda.
— Lena — o Sean estava a encarar-me. — Cuidado com a lín-
gua, por favor.
— Bem, peço desculpa, mas por amor de Deus! A filha da
Louise tinha acabado de morrer, ela nem sequer sabia o que estava
a dizer. Estava louca. — Eu estava pronta para me ir embora, mas
o Sean pediu-me para ficar. — Contudo, não sou obrigada, pois
não? Não estou detida, ou estou?
— Não, Lena, claro que não estás — disse ele.
Falei com ele porque ele compreendia.

168
ESCRITO NA ÁGUA

— Olhe, a Louise não estava a falar a sério. Estava completa-


mente histérica. Passada da cabeça. Você lembra-se, não lembra?
Como ela estava? Quer dizer, claro que andava a dizer todo o
tipo de coisas, andávamos todos, acho que endoidecemos todos
um pouco depois de a Katie morrer. Mas — por amor de Deus
— a Louise não fez mal à mamã. Sinceramente, acho que, se ela
tivesse uma arma ou uma faca naquele dia, talvez tivesse feito.
Mas não fez.
Eu queria contar toda a verdade. Queria mesmo. Não à mulher
detetive, nem sequer à Julia, na verdade, mas queria contá-la ao
Sean. Só que não podia. Teria sido uma traição e, depois de tudo o
que eu fizera, agora não podiá trair a Katie. Portanto, disse tudo
aquilo que podia.
— À Louise não fez nada à minha mãe, está bem? Não fez.
A mamã fez a sua própria escolha.
Levantei-me para me ir embora, mas a agente Morgan ainda
não tinha acabado. Estava a olhar para mim, com uma expressão
estranha na cara, como se não acreditasse numa só palavra do que
eu estivera a dizer, e depois perguntou:
— Sabes o que é que me parece estranho, Lena? Tu não me
pareces minimamente curiosa acerca da razão pela qual a Katie
fez o que fez, e da razão pela qual a tua mãe fez o que fez. Quando
alguém morre desta maneira, a pergunta que toda a gente faz é
porquê. Porque é que haviam de fazer aquilo? Porque é que se
suicidariam, com tanta coisa por que viver? Mas tu não. E a única
razão, a única razão que me ocorre para isso é tu já saberes.
O Sean pegou-me pelo braço e tirou-me da sala antes que eu
pudesse dizer o que quer que fosse.

169
LENA

A JULIA QUERIA LEVAR-ME A CASA DE CARRO, mas eu disse-lhe que


me apetecia andar. Não era verdade, mas a) não queria estar no
carro sozinha com ela, e b) vi o Josh, na sua bicicleta, do outro
lado da estrada, a dar voltas e voltas, e soube que ele estava à mi-
nha espera.
— Atão, Josh? — disse eu, quando ele se aproximou a pedalar.
Quando ele tinha 9 ou 10 anos, começara a dizer «Atão?»
às pessoas, em vez de «olá», e a Katie e eu nunca o deixáramos
esquecer-se disso. Normalmente, ele ri-se, mas desta vez não se
riu. Parecia amedrontado.
— O que foi, Josh? O que aconteceu?
— O que é que te estiveram a perguntar? — disse ele, com
uma vozinha sussurrada.
— Não é nada, não te preocupes. Descobriram uns compri-
midos que a Katie tomou e acham que eles, quer dizer, os com-
primidos, podem ter algo que ver com... o que aconteceu. Estão
enganados, obviamente. Não te preocupes.
Dei-lhe um abracinho e ele afastou-me, o que nunca faz. Nor-
malmente, qualquer desculpa lhe serve para receber um carinho
ou para me pegar na mão.
— Perguntaram-te acerca da mamã? — quis ele saber.
— Não. Bem, sim, suponho que sim. Um pouco. Porquê?
— Não sei — disse ele, mas não olhava para mim.

170
ESCRITO NA ÁGUA

— Porquê, Josh?
— Acho que devíamos contar — disse ele.
Eu conseguia sentir as primeiras gotas de chuva quente nos
meus braços e olhei para cima, para o céu. Estava mortalmente
escuro, com uma tempestade a aproximar-se.
— Não, Josh — disse eu. — Não vamos contar.
— Lena, temos de contar.
— Não! — voltei eu a dizer, e agarrei-lhe no braço com mais
força do que era minha intenção e ele ganiu como um cachorro
quando lhe pisamos a cauda. — Fizemos uma promessa. Tu fizes-
te uma promessa.
Ele abanou a cabeça e, por conseguinte, enterrei-lhe as unhas
no braço.
Ele começou a chorar.
— Mas para que é que a promessa serve agora?
Larguei-lhe o braço e pus-lhe as mãos nos ombros. Obriguei-o
a olhar para mim.
— Uma promessa é uma promessa, Josh. Estou a falar a sério.
Não contes a ninguém.
Ele tinha razão, de certo modo, a promessa não servia de nada.
Nada de bom sairia dali. Mas, ainda assim, eu não a podia trair.
E, se eles soubessem acerca da Katie, fariam perguntas sobre o
que aconteceu depois, e eu não queria que ninguém soubesse
acerca do que nós fizéramos, a mamã e eu. Do que fizéramos e do
que não fizéramos.
Não queria deixar o Josh assim e, de qualquer forma, não me
apetecia ir para casa, pelo que pus o meu braço à volta dele e dei-
-Jhe um apertão reconfortante e, depois, peguei-lhe na mão.
— Anda daí — pedi-lhe. — Anda comigo. Sei de uma coisa
que podemos fazer, uma coisa que nos fará sentir melhor.
Ele ficou vermelho e eu comecei a rir-me.
— Não é isso, meu porcalhão!
Então, ele também se riu e limpou as lágrimas do rosto.
Caminhámos em silêncio em direção ao extremo sul da vila,
com o Josh a empurrar a bicicleta, a meu lado. Não havia ninguém
por ali, a chuva estava a cair cada vez mais forte e eu conseguia

171
PauLAa HAWKINS

sentir o Josh a olhar para mim de vez em quando, porque a minha


t-shirt estava agora totalmente transparente e eu não estava a usar
soutien. Cruzei os braços sobre o peito e ele voltou a corar. Eu sorri,
mas não disse nada. Na verdade, não falámos até chegarmos à
estrada do Mark e, então, o Josh disse:
— O que é que estamos aqui a fazer?
Eu limitei-me a exibir-lhe um sorriso forçado.
Quando estávamos diante da porta do Mark, ele voltou a per-
guntar:
— Lena, o que é que estamos aqui a fazer?
Parecia novamente atemorizado, mas também excitado, e eu
conseguia sentir toda a adrenalina a percorrer-me, a fazer-me sen-
tir tonta e nauseada.
— Isto — disse eu.
Tirei uma pedra de debaixo da sebe e atirei-a, com tanta força
quanto consegui, contra a janela grande da fachada da casa dele,
e ela atravessou-a logo, fazendo apenas um pequeno buraco.
— Lena! — gritou o Josh, olhando em volta, ansiosamente,
para verificar se alguém estava a ver. Não estava. Sorri-lhe, apa-
nhei outra pedra e fi-lo novamente; desta vez, a pedra estilhaçou
a janela e a vidraça veio toda abaixo.
— Vá lá — disse-lhe eu, e entreguei-lhe uma pedra e, juntos,
demos a volta à casa toda. Era como se estivéssemos inebriados
pelo ódio; estávamo-nos a rir e a gritar e a chamar todos os nomes
de que nos lembrávamos àquele monte de merda.

17422
O POÇO DAS AFOGADAS
Katie, 2015

bra ção do rio, ela parava, de tempos a tempos, para apanhar


uma pedra ou um pedaço de tijolo, que punha na sua mochila.
Estava frio, ainda não havia luz, embora, se se tivesse virado para trás,
para olhar em direção ao mar, pudesse ter visto uma ponta de cinzento
no horizonte. Não se virou para trás, nem uma vez.
A princípio, caminhava depressa, descendo a colina rumo ao
centro da vila e colocando alguma distância entre si e a sua casa.
Não se dirigiu diretamente ao rio; queria atravessar, uma última vez,
o local em que crescera, passando pela escola primária (não se atre-
vendo a olhar para ela, não se fosse dar o caso de imagens da sua infân-
cia a deterem nos seus propósitos), passando pela loja da vila, ainda
encerrada à noite, passando pelo relvado onde o seu pai tentara e não
conseguira ensinar-lhe a jogar críquete. Passou pelas casas dos seus
amigos.
Havia uma casa, em particular, a visitar na Seward Road, mas
não conseguia bem decidir-se a atravessá-la, pelo que, em vez disso,
escolheu outra rua, e o seu ritmo diminuiu, à medida que o seu fardo
se tornava mais pesado, à medida que a estrada voltava a subir rumo
à parte antiga da vila, com as ruas a estreitarem entre casas de pedra
revestidas de rosas trepadeiras.
Prosseguiu no seu caminho para norte, passando pela igreja, até
a estrada virar pronunciadamente à direita. Atravessou o rio, detendo-
-se, por um instante, sobre a ponte arqueada. Olhou para baixo, para

173
PAULA HAWKINS

a água, oleosa e escorregadia, movendo-se rapidamente sobre as pedras.


Conseguia ver, ou talvez apenas imaginar, a silhueta escura do velho
moinho, com a sua roda tosca e apodrecida, que não rodava havia
meio século. Pensou na rapariga que dormia lá dentro e pousou as
mãos, brancas e azuladas pelo frio, sobre o muro da ponte, para evitar
que tremessem.
Desceu um lanço íngreme de degraus de pedra, desde a estrada
até ao trilho da margem do rio. Por aquele caminho, podia seguir até
à Escócia, se quisesse. Já o fizera, um ano antes, no verão anterior.
Eram seis, transportando tendas e sacos-cama, e fizeram-no em três
dias. Acampavam junto ao rio, à noite, e bebiam vinho ao luar, con-
tando histórias do rio, de Libby e de Anne e de todas as outras. Ela não
podia, de modo algum, ter imaginado nessa altura que, um dia, cami-
nharia por onde elas tinham caminhado, que a sua sina e as delas esta-
vam entrelaçadas.
Passados 800 metros entre a ponte e o Poço das Afogadas, caminhou
ainda mais devagar, com a mochila a pesar-lhe nas costas, e os contor-
nos duros a cravarem-se-lhe na espinha. Chorou um pouco. Por muito
que tentasse, não conseguia evitar pensar na mãe, e isso era o pior,
mesmo o pior de tudo.
Ao passar debaixo das copas das faias na margem do rio, estava tão
escuro que mal conseguia ver um palmo à sua frente, e isso reconfortava-a.
Pensou que talvez se sentasse durante um bocado, tirasse a mochila e
descansasse, mas sabia que não podia, porque, se o fizesse, o Sol nasceria,
e seria tarde demais, e nada teria mudado, e haveria outro dia em que
teria de acordar antes da alvorada e sair de casa a dormir. Portanto,
um passo de cada vez.
Um passo de cada vez, até chegar à linha das árvores, um passo de
cada vez, saindo do trilho, um pequeno tropeção pelo declive abaixo e,
depois, um passo de cada vez, água adentro.

174
JULES

TU ANDAVAS A INVENTAR HISTÓRIAS. À reescrever a história, a recontá-


Ja com o teu próprio cunho, a tua própria versão da verdade.
(A sobranceria, Nel. A merda da sobranceria.)
Não sabes o que aconteceu à Libby Seeton e, de certeza, não
sabes o que andava a passar pela cabeça da Katie quando morreu.
Os teus apontamentos deixam isso bem claro:

Na noite do solstício de verão, Katie Whittaker foi até ao Poço das


Afogadas. As suas pegadas foram descobertas no extremo sul da praia.
Usava um vestido de algodão verde e uma corrente simples em torno do
pescoço, com um pássaro azul com a gravação «com amor». Às costas,
carregava uma mochila cheia de tijolos e pedras. As análises realiza-
das após a sua morte revelaram que estava sóbria e sem drogas.
Katie não tinha qualquer historial de doenças mentais ou de auto-
mutilação. Era boa aluna, bonita e popular. A polícia não descobriu ne-
nhum indício de intimidação, nem na vida real nem nas redes sociais.
Katie vinha de um bom lar, de uma boa família. Katie era amada.

Eu estava sentada, de pernas cruzadas, no chão do teu escritó-


rio, folheando os teus papéis na penumbra da tarde, à procura de
respostas. À procura de qualquer coisa. No meio dos apontamentos
— que estavam desorganizados e numa bagunça, com rabiscos
quase ilegíveis nas margens e palavras sublinhadas a vermelho ou

175
PauLA HAWKINS

riscadas a preto — também havia fotografias. Numa pasta de papel


pardo barata, descobri impressões em papel fotográfico de baixa
qualidade: a Katie com a Lena, duas rapariguinhas a sorrirem para
a máquina fotográfica, sem fazerem beicinho, sem posarem, ins-
tantâneos de uma era distante e inocente, anterior ao Snapchat.
Flores e tributos deixados à beira do poço, ursos de peluche, bugi-
gangas. Pegadas na areia, à beira do poço. Não dela, presumo.
Não são as verdadeiras pegadas da Katie, certo? Não, devem ter
sido a tua versão, uma reconstituição. Seguiste-lhe os passos, não
foi? Caminhaste por onde ela caminhou, não foste capaz de resis-
tir a sentir o que ela tinha sentido.
Sempre foste assim, afinal. Quando eras mais nova, estavas fas-
cinada pelo ato físico, a essência daquilo, as suas vísceras. Fazias
perguntas: doerá? Durante quanto tempo? Qual será a sensação
de embater na água, vindo das alturas? Sentimo-nos a quebrar?
Pensavas menos, creio, acerca de tudo o resto: acerca do que era
necessário para levar alguém ao cimo do penhasco, ou à beira da
praia, e para impeli-lo a continuar a andar.
Na parte de trás da pasta, encontrava-se um sobrescrito com o
teu nome rabiscado na parte da frente. Lá dentro, havia um bilhe-
te de papel pautado, escrito com uma caligrafia tremida:

Eu queria dizer o que disse quando te vi ontem. Não quero que


a tragédia da minha filha se torne parte do teu «projeto» macabro.
Não é só por achar repulsivo que tu tivesses beneficios financeiros com
isso. Já te disse imensas vezes que acho que o que andas a fazer é
PROFUNDAMENTE IRRESPONSÁVEL e a morte da Katie É PROVA DISSO.
Se tivesses um pingo de compaixão, pararias imediatamente com o que
estás a fazer e aceitarias que o que escreves e publicas e dizes e fazes
tem consequências. Não espero que me dês ouvidos — no passado, não
mostraste nenhum sinal disso. Mas, se continuares por esse caminho,
não tenho a mais pequena dúvida de que, um dia, alguém te obrigará
a dar-lhe ouvidos.

Não estava assinado, mas era óbvio que fora enviado pela mãe
da Katie. Ela avisou-te — e nem sequer foi só desta vez. No posto

176
ESCRITO NA ÁGUA

da polícia, ouvi o detetive perguntar à Lena acerca do incidente


pouco depois de a Katie morrer, acerca de como ela te ameaçara
e te dissera que te faria pagar. Era isso que me querias contar?
Tinhas medo dela? Achavas que ela te iria atacar?
A ideia de que ela — uma mulher de olhos esbugalhados, louca
de desgosto — te pudesse perseguir era horripilante, assustava-
-me. Eu já não queria estar aqui, no meio das tuas coisas. Pus-me
de pé e, ao fazê-lo, a casa pareceu deslocar-se, balouçar como um
barco. Conseguia sentir o rio a empurrar a roda, a incitá-la a rodar,
e a água a infiltrar-se nas fendas alargadas pelas algas cúmplices.
Pousei uma mão sobre o arquivo e subi as escadas para a sala
de estar, com o silêncio a zunir-me nos ouvidos. Parei por um ins-
tante, com os olhos a ajustarem-se à luz mais clara, e, por um
segundo, tive a certeza de ver alguém ali, no assento da janela,
no local em que eu me costumava sentar. Durou apenas um mo-
mento e, depois, desapareceu, mas o meu coração batia-me nas
costelas e o meu couro cabeludo estava arrepiado. Estava aqui al-
guém, ou estivera aqui alguém. Ou vinha aí alguém.
Com a respiração acelerada e pouco profunda, quase corri até
à porta da rua, que estava trancada, tal como eu a deixara. Mas, na
cozinha, havia um cheiro estranho — algo diferente, doce, como
perfume — e a janela da cozinha estava escancarada. Não me lem-
brava de a ter aberto.
Fui até ao frigorífico e fiz uma coisa que quase nunca faço
— servi-me de uma bebida: vodca fria e viscosa. Enchi um copo
e bebi-o rapidamente; queimou-me até à garganta e, depois, até à
barriga. Depois, servi-me de outro.
Sentia tonturas e encostei-me à mesa da cozinha, para me apoiar.
Suponho que estivesse a ver se via a Lena. Ela voltara a desapare-
estava
cer, recusando a minha boleia para casa. Uma parte de mim
com
agradecida — não me apetecia mesmo partilhar o espaço
a
ela; disse para com os meus botões que era por estar zangad
a outra
com ela — por ter fornecido comprimidos para emagrecer
—, mas,
rapariga, envergonhando-a relativamente ao seu corpo
e dissera.
na verdade, eu tinha medo por causa do que a detetiv
Não conseguia
Que a Lena não tem curiosidade porque já sabe.

10277
PauLA HAWKINS

deixar de ver a cara dela, aquela fotografia no andar de cima, com


os seus dedos afiados e o seu sorriso predatório. O que é que a
Lena sabe?
Regressei ao escritório e voltei a sentar-me no chão, reuni os
apontamentos que tirara das gavetas e comecei a reorganizá-los,
tentando estabelecer uma espécie de ordem qualquer. Tentando
compreender a tua narrativa. Quando cheguei à fotografia da
Katie e da Lena, parei. Havia uma mancha de tinta na superfície,
mesmo abaixo do queixo da Lena. Revirei a fotografia nas mãos.
No verso, tinhas escrito uma só linha. Li-a alto: As vezes, as mulhe-
res problemáticas tratam de si próprias.
A sala escureceu. Olhei para cima e um grito prendeu-se-me
na garganta. Não a tinha ouvido, não ouvira a porta da rua a abrir-
-se nem os passos dela a atravessarem a sala de estar e, subita-
mente, ela estava mesmo ali, de pé na entrada, a bloquear a luz,
e, a partir de onde eu me achava sentada, a silhueta era a da Nel.
Então, a sombra avançou mais para dentro da divisão e vi a Lena,
com uma mancha de lama no rosto, as mãos sujas, e o cabelo
emaranhado e desgrenhado.
— Com quem é que estás a falar? — perguntou ela.
Estava a saltar de um pé para o outro, parecia hiperativa,
maniíaca.
— Eu não estava a falar, estava...
— Estavas, sim — disse ela a rir. — Ouwvi-te. Com quem é
que estavas... — Então, interrompeu-se, e a curvatura do seu lábio
desapareceu ao reparar na fotografia. — O que é que estás a fazer
com isso?
— Estava só a ler... Queria...
Antes que as palavras me saíssem da boca, ela estava em cima
de mim, mais alta do que eu, e acobardei-me. Ela empurrou-me e
tirou-me a fotografia das mãos.
— O que é que estás a fazer com isto? — Ela estava a tremer,
com os dentes cerrados, e a cara vermelha de raiva. Pus-me de
pé desajeitadamente. — Isto não é da tua conta! — Virou-me as
costas, pousou a fotografia da Katie sobre a secretária e alisou-a
com a palma da mão. — Quem é que te deu o direito de fazer isto?

178
ESCRITO NA ÁGUA

— perguntou ela, voltando a virar-se para me encarar, com a voz


trémula. — De vasculhares as coisas dela, de tocares nas coisas
dela? Quem é que te deu autorização?
Deu um passo na minha direção, derrubando o copo de vodca
ao fazê-lo. Eu voei para trás e bati contra a parede. Ela pôs-se
de joelhos e começou a reunir os apontamentos que eu estivera
a organizar.
— Não devias andar a mexer nisto! — Ela estava quase a trans-
bordar de raiva. — Isto não é da tua conta!
— Lena — disse eu —, não faças isso.
Ela afastou-se, de repente, com um suspiro de dor. Pusera a
mão sobre um caco de vidro e estava a sangrar. Pegou numa pilha
de papéis e agarrou-os junto ao peito.
— Anda cá — disse eu, tentando tirar-lhe os papéis. — Estás
a sangrar.
— Afasta-te de mim!
Ela empilhou os papéis sobre a secretária. O meu olhar recaiu
sobre a mancha de sangue que atravessava a folha de cima e sobre
as palavras impressas por debaixo dela: Prólogo, em letra carrega-
da, e abaixo disso: Quando eu tinha 17 anos, salvei a minha irmã de
se afogar.
Senti um riso histérico a subir dentro de mim; brotou cá para
fora tão alto que a Lena deu um salto. Olhou fixamente para mim,
estupefacta. Ri-me ainda mais alto, com o ar furioso da sua linda
cara, com o sangue que lhe escorria dos dedos para o chão. Ri-me
até as lágrimas me virem aos olhos, até tudo se desfocar, como se
estivesse submersa.

11745)
AGOSTO DE 1993

JULES

O RoBBIE DEIXOU-ME NO ASSENTO da janela. Bebi o resto da vodca.


Nunca antes estivera bêbeda e não sabia quão rapidamente a
mudança ocorria, a passagem da euforia para o desespero, das
nuvens para o abismo. Subitamente, a esperança parecia-me per-
dida, o mundo desolador. Não estava a pensar como deve ser, mas
parecia-me que a minha linha de pensamento fazia sentido. O rio
é a escapatória. Segue o rio.
Não faço ideia do que pretendia quando tropecei para fora
da viela, para o trilho do rio. Estava a caminhar às cegas; a noite
parecia-me mais escura do que nunca, sem lua, silenciosa. Até o
rio estava sossegado, uma coisa escorregadia, sem atritos, repti-
liana, que deslizava a meu lado. Eu não sentia medo. Como é que
me sentia? Humilhada, envergonhada. Culpada. Olhei para ele,
observei-o, observei-o contigo, e ele viu-me.
São cerca de três quilómetros dá Casa do Moinho até ao
poço, devo ter demorado um bocado. Não era rápida nos meus
melhores momentos, mas, na escuridão, naquele estado, devia
ser ainda mais lenta. Portanto, não me seguiste, suponho. Mas aca-
baste por vir.
Nessa altura, já eu estava na água. Lembro-me do frio à volta
dos meus tornozelos e, depois, dos meus joelhos e, então, de me
afundar suavemente no negrume. O frio desaparecera, com todo
o meu corpo a arder, agora até ao pescoço, sem saída, e ninguém

180
ESCRITO NA ÁGUA

me conseguia ver. Estava escondida, estava a desaparecer, sem


ocupar muito espaço, sem ocupar, de todo, espaço algum.
O calor percorreu-me, dissipou-se e o frio regressou, não na
minha pele, mas na minha carne, nos meus ossos, pesado como
chumbo. Estava cansada, parecia-me que a distância de volta à
margem era muito longa e não tinha a certeza de conseguir voltar
para lá. Esperneei para a frente e para baixo, mas não conseguia
tocar no fundo e, portanto, pensei que talvez pudesse, apenas, flu-
tuar durante um bocado, imperturbada e sem ser vista.
Fui arrastada. A água cobriu-me a cara e algo roçou contra
mim, suave como o cabelo de uma mulher. Tive uma sensação de
esmagamento no peito e arfei, engolindo água. Algures ao longe,
ouvi uma mulher gritar. É a Libby, costumavas dizer, consegue-se
ouvi-la; às vezes, à noite, consegue-se ouvi-la a suplicar. Debati-me,
mas algo me apertou as costelas; senti a mão dela no meu cabelo,
súbita e cortante, e ela puxou-me mais para o fundo. Só as bruxas
é que flutuam.
Não era a Libby, claro, eras tu, a gritar comigo. Com a mão na
minha cabeça, a fazeres-me uma amona. Eu estava a debater-me
para fugir de ti. Estavas a fazer-me uma amona ou a puxar-me para
fora de água? Agarraste-me nas roupas, cravaste-me as unhas na
pele, arranhaste-me o pescoço e os braços, para condizerem com
os arranhões que o Robbie me deixara nas pernas.
Por fim, estávamos na margem, eu de joelhos, tentando respi-
rar, e tu sobre mim, a gritar-me.
— Minha cabra estúpida e gorda, o que estavas a fazer? O que
estás a tentar fazer? — Depois, caíste de joelhos e puseste os teus
braços à minha volta e, então, cheiraste o álcool no meu hálito
e recomeçaste a gritar. — Tu tens 13 anos, Julia! Não podes beber,
não podes... O que é que estavas a fazer? — Os teus dedos magros
cravaram-se-me na carne dos braços, e abanaste-me com força.
— Porque é que estás a fazer isto? Porquê? Para me magoares, é isso?
Deus,
Para que a mamã e o papá fiquem zangados comigo? Meu
Julia, que mal é que eu alguma vez te fiz?
e
Levaste-me para casa, arrastaste-me para O andar de cima
mas tu
puseste a água a correr. Eu não queria ir para banheira,

181
PAULA HAWKINS

forçaste-me, obrigando-me a tirar as roupas e a entrar na água


quente. Apesar do calor, eu não conseguia parar de tremer. Não
me deitava. Estava sentada, curvada para a frente, com os mús-
culos da barriga tensos e desconfortáveis, enquanto tu, com as
mãos, me deitavas água quente sobre a pele.
— Meu Deus, Julia. Tu és uma criança. Não devias estar... não
devias ter... — Pareciam faltar-te as palavras. Limpaste-me a cara
com um pano. Sorriste. Estavas a tentar ser bondosa. — Não faz
mal. Não faz mal, Julia. Está tudo bem. Lamento ter-te gritado.
E lamento que ele te tenha magoado, a sério. Mas do que é que es-
tavas à espera, Julia? Sinceramente, do que é que estavas à espera?
Deixei que me desses banho, com as mãos muito mais meigas
do que se tinham mostrado no poço. Perguntei-me como é que,
agora, conseguias estar tão calma relativamente àquilo, pensei que
estarias mais zangada. Não só comigo, mas por causa de mim.
Supus que talvez tivesse exagerado, ou que tu, simplesmente, não
querias pensar nisso.
Obrigaste-me a jurar que não contaria o que acontecera aos
nossos pais.
— Promete-me, Julia. Que não lhes vais contar, que não con-
tas isto a ninguém. Está bem? Nunca. Não podemos falar acerca
disto, OK? Porque... Porque nos meteríamos todos em sarilhos.
Está bem? Simplesmente, não fales acerca disto. Se não falarmos
acerca disto, será como se não tivesse acontecido. Não aconteceu
nada, está bem? Não aconteceu nada. Promete-me. Promete-me,
Julia, que nunca mais voltarás a falar acerca disto.
Eu cumpri a minha promessa. Tu não.

182
aids

HELEN

A CAMINHO DO SUPERMERCADO, Helen passou por Josh Whittaker,


que ia de bicicleta. Estava completamente encharcado e tinha
lama na roupa; ela abrandou o carro e baixou a janela.
— Estás bem? — gritou ela, e ele acenou-lhe e mostrou-lhe
os dentes: uma desajeitada tentativa de sorrir, supôs Helen. Conti-
nuou a conduzir devagar, observando-o pelo espelho retrovisor.
Ele andava a deambular, virando o guiador para um lado e para o
outro, e, volta não volta, punha-se de pé sobre os pedais para olhar
por sobre o ombro. Ele sempre fora uma pequena persona-
gem estranha, e a recente tragédia exacerbara as coisas. Patrick
levara-o a pescar algumas vezes depois de Katie morrer — como
favor a Louise e a Alec, para lhes dar algum tempo para si pró-
prios. Tinham estado horas e horas junto ao rio e, contou Patrick,
o rapaz mal pronunciara uma palavra.
— Eles deviam tirá-lo daqui — disse-lhe Patrick. — Deviam
ir-se embora.
— Você não foi — respondeu ela suavemente, e ele acenou-
-Jhe com a cabeça.
— Isso é diferente — disse ele. — Eu tinha de ficar. Tinha um
trabalho a fazer.

Depois de se reformar, ficara por eles — por ela e por Sean.


Não por eles, mas para estar perto deles, porque eram tudo quanto

183
PAULA HAWKINS

ele tinha: eles, a casa, o rio. Mas o tempo estava a esgotar-se.


Ninguém dizia nada, porque era esse o tipo de família que eram,
mas Patrick não estava bem.
Helen ouvia-o tossir à noite, uma vez e outra e outra, e via quanto
lhe custava mexer-se de manhã. O pior de tudo era que ela sabia
que aquilo não era apenas físico. Ele fora tão ativo a vida toda e,
agora, tornara-se esquecido, por vezes confuso. Levava o carro dela
e esquecia-se de onde o deixara ou, às vezes, entregava-lho cheio
de tralha, como tinha feito no outro dia. Lixo que encontrara? Bugi-
gangas que roubara? Troféus? Ela não perguntava, não queria saber.
Tinha medo por ele.
Também tinha medo por si própria, para ser completamente
sincera. Ultimamente, andara absolutamente desnorteada, dis-
traída, irracional. Às vezes, pensava que estava a enlouquecer.
A perder o controlo.
Nem parecia dela. Helen era prática, racional, decidida. Sopesava,
cuidadosamente, as suas opções e só depois agia. Tinha a parte
esquerda do cérebro predominante, dizia o seu sogro. Mas, ulti-
mamente, não andava em si. Os acontecimentos do último ano
tinham-na inquietado, desencaminhado. Agora, dava por si a ques-
tionar os aspetos da sua vida que achara menos abertos a discus-
são: o seu casamento, a sua vida familiar, até a sua competência
no emprego.
Começara com Sean. Primeiro, com as suspeitas dela e, depois
— por intermédio de Patrick —, com a terrível confirmação destas.
No outono passado, descobrira que o marido — o seu marido
forte, constante, moralmente resoluto — não era, de todo, o que
ela pensava que ele era. Dera por si bastante perdida. A sua racio-
nalidade e a sua determinação abandonaram-na. Que devia ela
fazer? Ir-se embora? Abandonar o lar e as suas responsabilidades?
Deveria fazer-lhe um ultimato? Chorar, bajulá-lo? Devia puni-lo?
E, nesse caso, como? Fazendo buracos no tecido das camisas pre-
feridas dele, partindo-lhe as canas de pesca ao meio, queimando-
-lhe os livros no pátio?
Todas essas ideias pareciam irrealistas e insensatas ou, simples-
mente, ridículas, pelo que pediu conselhos a Patrick. Ele persuadiu-a

184
ESCRITO NA ÁGUA

a ficar. Assegurou-lhe que Sean tinha ganhado juízo, que estava


profundamente arrependido da sua infidelidade e que se esforça-
ria por merecer o seu perdão.
— Entretanto — disse ele —, ele compreenderia, ambos com-
preenderíamos, se preferisses ficar aqui no quarto de hóspedes.
Talvez te faça bem teres algum tempo para ti própria, e estou certo
de que seria benéfico para ele provar um poucochinho do que se
arrisca a perder.
Quase um ano mais tarde, ela ainda dormia na casa do sogro
a maior parte das noites.
A falha de Sean, como se tornara conhecida, fora apenas o
início daquilo. Depois de se mudar para casa de Patrick, Helen
deu por si acometida por terríveis insónias: um inferno acordado,
debilitante e indutor de ansiedade. O qual, descobriu ela, o seu
sogro partilhava. Ele também não conseguia dormir — andava
assim há anos, segundo dizia. Portanto, eram insones juntos. Fica-
vam acordados juntos — a ler, a fazer palavras cruzadas, sentados
num silêncio sociável.
Ocasionalmente, quando Patrick bebia um cálice de uísque,
gostava de conversar. Acerca da sua vida como detetive, acerca
de como a vila costumava ser. Às vezes, contava-lhe coisas que a
perturbavam. Histórias do rio, boatos antigos, relatos horríveis,
há muito esquecidos e agora desenterrados e revividos, espalhados
como verdades pela Nel Abbott. Histórias acerca da família deles,
coisas dolorosas. Mentiras, falsidades difamantes, seguramente.
Patrick dizia que não se tornariam difamações, que não chega-
riam aos tribunais.
— As mentiras dela nunca verão a luz do dia. Encarregar-
-me-ei disso — disse-lhe ele.
Só que o problema não era exatamente esse. O problema,
segundo contou Patrick, era o mal que ela já provocara — tanto
a Sean como à família.
— Achas, sinceramente, que ele se teria comportado como se
comportou se não fosse por ela, a encher-lhe a cabeça com aquelas
histórias, a fazê-lo duvidar de quem é, de onde vem? Ele está mu-
dado, não está, querida? E foi ela quem o fez mudar.

185
PauLa HawkINS

Helen temia que Patrick tivesse razão e que as coisas nunca


mais voltassem a ser como tinham sido, mas ele garantiu-lhe
que voltariam. Também trataria disso. E ele apertava-lhe a mão e
agradecia-lhe por ouvi-lo e beijava-lhe a testa e dizia:
— És tão boa rapariga.
As coisas melhoraram durante algum tempo. E, depois, piora-
ram. Porque, exatamente quando Helen deu por si capaz de dormir
mais do que um par de horas de seguida, exatamente quando deu
por si a sorrir para o marido como antes, exatamente quando
sentiu a família a regressar ao seu equilíbrio antigo e confortável,
Katie Whittaker morreu.
Katie Whittaker, uma estrela da escola, uma estudante aplicada
e educada, uma criança sem problemas — foi chocante, inexplicá-
vel. E a culpa era dela. Ela tinha falhado para com Katie Whittaker.
Tinham todos: os pais dela, os professores dela, toda aquela comu-
nidade. Não tinham reparado que a alegre Katie precisava de aju-
da, que não era alegre de todo. Enquanto Helen andava deprimida
por causa dos seus problemas domésticos, esgazeada com as insó-
nias e atormentada pelas dúvidas sobre si própria, descurara uma
das suas incumbências.
Quando Helen chegou ao supermercado, a chuva tinha parado.
O Sol aparecera e subia vapor do asfalto, trazendo com ele o
cheiro da terra. Helen deu voltas à mala, à procura da lista: tinha
de comprar carne de vaca para o jantar, hortaliças, leguminosas.
Precisavam de azeite e de café e de cápsulas para a máquina de
lavar.
Ao percorrer o corredor dos enlatados, procurando a marca
de tomate pelado que considerava mais saborosa, reparou numa
mulher que se aproximava e apercebeu-se, com horror, de que era
Louise.
Caminhando lentamente em direção a ela, com uma expressão
vazia, Louise estava a empurrar um carrinho de compras gigante
e quase sem nada. Helen entrou em pânico e fugiu, abandonando
o seu próprio carrinho e apressando-se rumo ao parque de esta-
cionamento, onde se escondeu no seu automóvel até ver o veículo
de Louise passar por ela e sair para a estrada.

186
ESCRITO NA ÁGUA

Sentiu-se estúpida e envergonhada — sabia que aquilo nem


parecia seu. Há um ano, não se teria comportado de maneira tão
indigna. Teria falado a Louise, ter-lhe-ia apertado a mão e pergun-
tado pelo marido e pelo filho. Ter-se-ia comportado dignamente.
Helen não estava em si. De que outro modo poderia explicar
as coisas que pensara ultimamente, o modo como agira? Toda aquela
culpa, aquela dúvida, era corrosiva. Estava a mudá-la, a retorcê-la.
Ela não era a mulher que costumava ser. Conseguia sentir-se a res-
valar, a escorregar como se estivesse a mudar de pele, e não gos-
tava da crueza que havia por debaixo, não gostava do seu cheiro.
Fazia-a sentir-se vulnerável, fazia-a sentir medo.

187
SEAN

DURANTE VÁRIOS DIAS depois de a minha mãe morrer, não falei.


Nem uma só palavra. Pelo menos, é o que o meu pai me diz. Não
me lembro de grande coisa acerca dessa altura, embora, de facto,
me lembre do modo como o papá me arrancou ao meu silêncio,
segurando a minha mão esquerda sobre uma chama até eu gri-
tar. Foi cruel, mas eficaz. E, depois disso, deixou-me ficar com o
isqueiro. (Guardei-o durante muitos anos, costumava trazê-lo
comigo. Perdi-o, recentemente, não me lembro onde.)
A dor e o choque afetam as pessoas de maneiras estranhas.
Já vi pessoas reagirem a notícias más com risos, com uma indife-
rença aparente, com raiva, com medo. O beijo da Jules no carro
depois do funeral não se tratou de luxúria, tratou-se de dor, de
querer sentir alguma coisa — qualquer coisa — além da tristeza.
O meu mutismo quando era criança era, provavelmente, o resul-
tado do choque, do trauma. Perder uma irmã pode não ser a mesma
coisa que perder um progenitor, mas sei que o Josh Whittaker era
chegado à irmã, pelo que detesto julgá-lo, ler demasiado naquilo
que ele diz e faz e no modo como se comporta.
A Erin chamou-me para me dizer que houvera um distúrbio
numa casa na periferia sudeste da vila — uma vizinha telefonara
dizendo que chegara a casa e vira as janelas da moradia em questão
partidas e um rapazinho de bicicleta a abandonar o local. A casa
pertencia a um dos professores da escola, ao passo que o rapaz

138
ESCRITO NA ÁGUA

— de cabelo escuro, com uma t-shirt amarela e montado numa


bicicleta vermelha — era quase seguramente o Josh.
Foi fácil encontrá-lo. Estava sentado no muro da ponte, com
a bicicleta encostada a ele, as roupas completamente encharca-
das e as pernas manchadas de lama. Não fugiu quando me viu.
Quando muito, parecia aliviado quando me saudou, educado
como sempre.
— Boa tarde, Sr. Townsend.
Perguntei-lhe se estava bem.
— Vais-te constipar — disse eu, apontando para as roupas
molhadas, e ele quase sorriu.
— Estou bem — disse ele.
— Josh — disse eu —, estiveste a andar de bicicleta na Seward
Road esta tarde? — Ele acenou com a cabeça. — Por acaso, não
passaste pela casa do Sr. Henderson, pois não?
Ele mordeu o lábio inferior, com os seus olhos, castanhos e
meigos, a abrirem-se imenso.
— Não conte à minha mãe, Sr. Townsend. Por favor, não conte
à minha mãe. Ela já tem muito com que se preocupar.
Fiquei com um nó na garganta e tive de me conter para não
chorar. Ele é um rapaz tão pequeno e com um ar tão vulnerável.
Ajoelhei-me a seu lado.
— Josh! Que raio é que estavas a fazer? Havia mais alguém
lá contigo? Alguns rapazes mais velhos, talvez? — perguntei eu,
esperançosamente.
Ele abanou a cabeça, mas não olhou para mim.
— Era só eu.
— A sério? Tens a certeza? — Ele afastou o olhar. — Porque,
há bocado, vi-te a falar com a Lena diante do posto. Isto não teria
nada que ver com ela, pois não?
— Não! — gritou ele, com a voz num guincho doloroso e
humilhante. — Não. Fui eu. Só eu. Atirei-lhe pedras às janelas.
Às janelas daquele... sacana.
«Sacana» foi cuidadosamente enunciado, como se estivesse
a experimentar a palavra pela primeira vez.
— Por que raio é que fizeste isso?

189
PauLa HAWKINS

Então, ele olhou-me nos olhos, com o lábio inferior a tremer.


— Porque ele merecia — disse ele. — Porque o odeio.
Começou a chorar.
— Anda — disse eu, pegando-lhe na bicicleta. — Eu levo-te
a casa.
Mas ele agarrou no guiador.
— Não! — soluçou ele. — Não pode. Não quero que a mamã
ouça falar disto. Nem o papá. Não podem ouvir falar disto, não
podem...
— Josh... — Eu voltei a agachar-me, pousando a mão no selim
da bicicleta. — Está tudo bem. Não é assim tão grave. Havemos de
resolver isto. A sério. Não é o fim do mundo.
Ao ouvir isto, ele começou num pranto.
— Você não compreende. A mamã nunca me perdoará...
— Claro que perdoará! — Suprimi uma vontade de rir. — Ficará
um pouco zangada, estou certo, mas tu não fizeste nada de terrível,
não magoaste ninguém.
Os ombros dele agitaram-se.
— Sr. Townsend, você não compreende. Não compreende o
que eu fiz.

Acabei por levá-lo comigo para o posto. Não sabia bem que
mais fazer: ele não me deixava levá-lo a casa, e não o podia deixar à
beira da estrada naquele estado. Instalei-o no escritório das trasei-
ras, fiz-lhe uma chávena de chá e, depois, pedi à Callie que fosse a
correr comprar umas bolachas.
— Não pode interrogá-lo, chefe — disse a Callie, alarmada.
— Não sem um adulto responsável.
— Não vou interrogá-lo — respondi, irritado. — Ele está ame-
drontado e ainda não quer ir para casa.
Essas palavras despertaram uma memória: Ele está amedron-
tado e não quer ir para casa. Eu era mais novo do que o Josh, tinha
apenas 6 anos, e uma mulher-polícia estava a segurar-me na mão.
Nunca sei quais das minhas memórias são verdadeiras. Ouvi tan-
tas histórias acerca dessa altura, de tantas fontes diferentes, que
é difícil distinguir as memórias dos mitos. Mas, nesta, eu estava

190
ESCRITO NA ÁGUA

a tremer e com medo, e havia uma mulher-polícia a meu lado,


forte e reconfortante, a segurar-me contra a sua coxa, de modo
protetor, enquanto os homens falavam acima da minha cabeça.
— Ele está amedrontado e não quer ir para casa — dissera ela.
— Podias levá-lo para tua casa, Jeannie? — dissera o meu pai.
— Podias levá-lo contigo?
Era isso. À Jeannie. A agente Sage.

O toque do meu telefone trouxe-me de volta à realidade.


— Chefe? — Era a Erin. — O vizinho do outro lado viu uma
rapariga a fugir na direção contrária. Uma adolescente, de cabelo
louro comprido, calções de ganga e uma t-shirt branca.
— A Lena. Claro.
— Sim, parece que sim. Quer que vá buscá-la?
— Deixa-a estar, por hoje — disse eu. — Já passou pelo sufi-
ciente. Conseguiste contactar o proprietário, o Henderson?
— Ainda não. Tenho estado a telefonar, mas vai diretamente
para o voicemail. Anteriormente, quando falei com ele, ele disse
qualquer coisa acerca de uma noiva em Edimburgo, mas não tenho
o número dela. Até são capazes de já estar no avião.
Levei a chávena de chá ao Josh.
— Olha — disse-lhe eu —, precisamos de avisar os teus pais.
Só tenho de lhes dizer que estás aqui e que estás bem, pode ser?
Não tenho de lhes dar quaisquer pormenores, pelo menos para
já. Vou só dizer-lhes que estás perturbado e que te trouxe para cá,
para conversarmos. Parece-te bem? — Ele acenou com a cabeça.
— E, depois, podes contar-me porque é que estavas perturbado, e
continuaremos a partir daí. — Ele voltou a acenar com a cabeça.
— Mas, a dada altura, terás de me explicar aquela questão da casa.
O Josh beberricou o seu chá, soluçando de vez em quando,
ainda não completamente refeito da sua explosão emocional
anterior. As suas mãos apertavam a caneca com força, e a sua boca
esforçava-se por descobrir as palavras que me queria dizer.
Por fim, ergueu o olhar para mim.
— O que quer que eu faça — disse ele —, alguém vai ficar
zangado comigo. — Depois, abanou a cabeça. — Não, na verdade,

Doi
PauLA HAWKINS

não é assim. Se eu fizer o que está certo, toda a gente vai ficar zan-
gada comigo e, se eu fizer o que está errado, não vão. Não devia ser
assim, pois não?
— Não — disse eu —, não devia. E não estou certo de que
tenhas razão acerca disso. Não consigo imaginar uma situação na
qual fazer o que está certo leve a que toda a gente se zangue con-
tigo. Uma ou duas pessoas, talvez, mas de certeza que, se é o que
está certo, alguns de nós vê-lo-emos desse modo. E ficar-te-emos
agradecidos.
Ele voltou a morder o lábio.
— O problema — disse ele, com a voz novamente trémula
— é que o mal já está feito. Venho demasiado tarde. Agora, é dema-
siado tarde para fazer o que está certo.
Ele voltou a chorar, mas não como antes. Não estava a lamuriar-
-se nem em pânico, desta vez chorava como alguém que perdeu
tudo, que perdeu toda a esperança. Ele estava desesperado, e eu
não conseguia suportar aquilo.
— Josh, tenho de pedir aos teu pais para cá virem, tenho mes-
mo — disse eu, mas ele agarrou-me o braço.
— Por favor, Sr. Townsend. Por favor.
— Quero ajudar-te, Josh, a sério que quero. Por favor, conta-
-me o que é que te está a perturbar tanto.
(Lembrei-me de estar sentado numa cozinha quente, que não
a minha, a comer tostas de queijo. A Jeannie estava lá e sentou-
-se a meu lado. Não me queres contar o que aconteceu, querido?
Por favor, conta-me. Eu não disse nada. Nem uma palavra. Nem uma
só palavra.)
O Josh, no entanto, estava pronto para falar. Limpou os olhos
e assoou o nariz. Tossiu, endireitou-se na cadeira e disse:
— É por causa do Sr. Henderson. Do Sr. Henderson e da Katie.

192
QUINTA-FEIRA, 20 DE AGOSTO

LENA

NÃO PASSAVA DE UMA BRINCADEIRA. À coisa com o Sr. Henderson.


Um jogo. Já o tínhamos jogado antes, com o Sr. Friar, o professor
de Biologia, e com o Sr. Mackintosh, o treinador de natação.
Só tínhamos de os fazer corar. Revezávamo-nos a tentar. Uma de
nós ia e, se não conseguisse, então, era a vez da outra. Podíamos
fazer o que nos apetecesse, e podíamos fazê-lo quando quisésse-
mos, a única regra era que a outra pessoa tinha de estar presente,
porque, caso contrário, não era verificável. Nunca incluímos mais
ninguém, era uma coisa só nossa, minha e da Katie — na verdade,
não me recordo de quem terá sido a ideia.
Com o Friar, eu fui primeiro e demorou cerca de 30 segundos.
Fui até à secretária dele e sorri-lhe e mordi o lábio quando ele es-
tava a explicar qualquer coisa acerca da homeostasia e inclinei-me
para a frente, de modo que a minha camisa se abrisse, e bingo.
Com o Mackintosh, foi preciso um pouco mais de trabalho, porque
iria
ele estava habituado a ver-nos de fato de banho, pelo que não
enlouquecer por causa de um pouco de pele. Mas, finalmente,
a Katie lá conseguiu, agindo de modo doce e tímido e só um boca-
de
dinho envergonhado, enquanto falava com ele acerca de filmes
kung fu, de que sabíamos que ele gostava.
Contudo, com o Sr. Henderson, a história foi diferente. A Katie
Mac. Aguardou
foi primeiro, porque ganhou o assalto com o Sr.
livros,
até depois da aula e, enquanto eu estava à guardar os meus

193
PauLa HAWKINS

muito devagar, aproximou-se da secretária dele e debruçou-se


sobre a beira. Sorriu-lhe, inclinando-se um pouco para a frente,
e começou a falar, mas ele empurrou a cadeira para trás, de repen-
te, e pôs-se de pé, dando um passo atrás. Ela continuou, mas sem
convicção, e, quando estávamos a sair, ele lançou-nos um olhar
como se estivesse furioso. Quando eu tentei, ele bocejou. Fiz o meu
melhor, pondo-me ao pé dele e sorrindo e tocando no cabelo e
no pescoço e mordiscando o lábio inferior, e ele bocejou, de modo
muito óbvio. Como se eu o estivesse a aborrecer.
Não conseguia tirar isso da cabeça, o modo como ele olha-
ra para mim, como se eu não existisse, como se não fosse mini-
mamente interessante. Não me apetecia jogar mais. Não com ele,
não era divertido. Ele limitava-se a comportar-se como um idiota.
A Katie disse:
— Achas que sim?
E eu disse que achava, e ela disse que, então, estava bem.
E pronto.
Só muito mais tarde, meses mais tarde, é que descobri que ela
quebrara as regras. Não fazia ideia, pelo que, quando o Josh me
veio ver, no Dia dos Namorados, com a história mais hilariante
que eu alguma vez ouvira, enviei-lhe uma mensagem com uma
pequena imagem de um coração. Ouvi falar do teu querido, escrevi
eu. KW MH pra sempre. Recebi uma mensagem cerca de cinco
segundos mais tarde, dizendo: APAGA ISSO. NÃO ESTOU A BRINCAR.
APAGA. Respondi-lhe: QUE MERDA É ESTA? E ela voltou a escrever-
-me. APAGA JÁ OU JURO QUE NUNCA MAIS FALO CONTIGO. Meu Deus,
pensei eu. Acalma-te.
Na manhã seguinte, nas aulas, ela ignorou-me. Nem sequer
me disse olá. Ao sairmos, agarrei-lhe no braço.
— Katie? O que é que se passa? — Ela quase me empurrou para
as casas de banho. — O que foi, foda-se? — insisti eu. — O que
foi aquilo?
— Nada — silvou-me ela. — Achei só que era foleiro, está bem?
— Ela lançou-me um olhar, o tipo de olhar que, cada vez mais,
recebia dela, como se ela fosse uma adulta e eu, uma criança.
— Afinal, porque é que escreveste aquilo?

194
ESCRITO NA ÁGUA

Encontrávamo-nos na ponta mais distante da casa de banho,


debaixo da janela.
— O Josh foi ter comigo — expliquei. — Disse-me que te viu de
mãos dadas com o Sr. Henderson no parque de estacionamento...
Comecei a rir-me.
A Katie não se riu. Virou-me as costas e ficou defronte do lava-
tório, a olhar para o seu reflexo.
— O quê? — Tirou um rímel da mala. — O que é que ele disse
exatamente?
A voz dela parecia estranha, não zangada, não perturbada, era
como se estivesse com medo.
— Ele disse-me que estava à tua espera depois das aulas e que
te viu com o Sr. Henderson e que estavam de mãos dadas... —
Comecei, novamente, a rir-me. — Meu Deus, não é nenhum
drama. Ele estava só a inventar histórias porque queria ter uma
desculpa para me ir ver. Foi no Dia dos Namorados, portanto...
A Katie fechou os olhos com força.
— Meu Deus! És mesmo narcisista! — disse ela, baixinho.
— Achas mesmo que tudo gira à tua volta?
Senti-me como se me tivessem dado uma bofetada.
— O quê...”
Nem sequer sabia como responder, aquilo não era nada pró-
prio dela. Ainda estava a tentar pensar no que dizer quando ela
deixou cair o rímel no lavatório, se agarrou ao rebordo e começou
a chorar.
— Katie... — Pus a minha mão no ombro dela e ela soluçou
mais intensamente. Apertei-a nos meus braços. — Oh, meu Deus,
o que é que se passa? O que é que aconteceu?
— Não reparaste — fungou ela — que as coisas têm andado
diferentes? Não reparaste, Lenie?
Claro que tinha reparado. Ela andava diferente, distante, há al-
pelo
gum tempo. Estava sempre ocupada. Tinha trabalhos de casa,
às compra s
que não podíamos estar juntas depois da escola, ou ia
de tomar
com a mãe, pelo que não podia ir ao cinema, ou tinha
Também
conta do Josh, pelo que não podia ir lá a casa nessa noite.
escola. Já não
andava diferente em outros sentidos. Mais calada na

195
PauLA HAWKINS

fumava. Começara a fazer dieta. Parecia alhear-se das conversas,


como se estivesse aborrecida com o que eu estava a dizer, como se
tivesse coisas mais importantes em que pensar.
Claro que reparara. Estava magoada. Mas não ia dizer nada.
Mostrar a alguém que estamos magoados é a pior coisa que pode-
mos fazer, não é? Eu não queria parecer fraca, ou carente, porque
ninguém se quer dar com uma pessoa assim.
— Achei... Não sei, K, achei que estavas só aborrecida comigo
ou coisa assim.
Então, ela chorou ainda mais intensamente, e eu abracei-a.
— Não estou — disse ela. — Não estou aborrecida contigo.
Mas não te podia contar, não podia contar a ninguém...
Subitamente, ela interrompeu-se e soltou-se dos meus braços.
Caminhou até à outra ponta da divisão, pôs-se de joelhos e, depois,
gatinhou na minha direção, verificando por debaixo de cada
cubículo.
— Katie? O que é que estás a fazer? — Só nessa altura é que
percebi. Para verem quão à nora eu andava. — Oh, meu Deus
— disse eu, quando ela se voltou a pôr de pé. — Tu estás... tu estás
mesmo a dizer... — e baixei a voz até parecer um sussurro — que
se passa alguma coisa? — Ela não disse nada, mas olhou-me
bem nos olhos e eu soube que era verdade. — Foda-se. Foda-se!
Não podes estar... Isso é de loucos. Não podes. Não podes, Katie.
Tens de parar com isso... antes que aconteça alguma coisa.
Ela olhou-me como se eu fosse um bocadinho tapada, como se
tivesse pena de mim.
— Já aconteceu, Lena. — Sorriu-me timidamente, limpando
as lágrimas do rosto. — Tem vindo a acontecer desde novembro.

Eu não contei nada disso à polícia. Não era nada que lhes
dissesse respeito.
Vieram lá a casa à noite, quando a Julia e eu estávamos a jan-
tar na cozinha. Correção: eu estava a jaritar. Ela estava só a em-
purrar a comida no prato, como sempre faz. A mamã contou-me
que a Julia não gosta de comer à frente de pessoas: é um resquí-
cio de quando era gorda. Nenhuma de nós estava a falar — não

196
ESCRITO NA ÁGUA

tínhamos dito nada uma à outra desde que eu chegara ontem a


casa e a descobrira com as coisas da mamã —, pelo que foi um
alívio quando tocaram à campainha.
Quando vi que era o Sean e a detetive Morgan — Erin, como
ela quer que eu a chame, agora que andamos todos a passar tanto
tempo juntos —, pensei que devia ser acerca das janelas partidas,
muito embora me parecesse um exagero o facto de virem ambos.
Pus imediatamente as mãos no ar.
— Eu pago os prejuízos — disse eu. — Agora tenho dinheiro
para isso, não tenho?
A Julia franziu os lábios como se achasse que eu era uma desi-
lusão para ela. Pôs-se de pé e começou a levantar os pratos, apesar
de não ter comido nada.
O Sean pegou na cadeira dela e puxou-a para o outro lado,
de modo a sentar-se ao pé de mim.
— Já lá vamos — disse ele, com uma expressão triste e séria
no rosto. — Primeiro, temos de falar contigo acerca do Mark
Henderson.
Eu fiquei gelada, com o estômago às voltas, como quando
sabemos que está prestes a acontecer algo de verdadeiramente
grave. Eles sabiam. Eu sentia-me destroçada e aliviada, ao mesmo
tempo, mas fiz o meu melhor por manter a cara totalmente impá-
vida e inocente.
— Sim — disse eu. — Eu sei. Parti-lhe a casa toda.
— Porque é que lhe partiste a casa toda? — perguntou a Erin.
— Porque estava aborrecida. Porque ele é um imbecil.
Porque...
— Já chega, Lena! — interrompeu o Sean. — Já chega de
disparates. — Ele parecia mesmo lixado. — Sabes que não esta-
mos a falar acerca disso, não sabes? — Eu não disse uma palavra,
limitei-me a olhar para fora da janela. — Estivemos a falar com o
Josh Whittaker — disse ele, e o meu estômago voltou a revirar-se.
Suponho que sempre soubera que o Josh não seria capaz de
permanecer calado acerca daquilo para sempre, mas tivera espe-
er,
ranças de que partir a casa do Henderson o pudesse satisfaz
pelo menos durante algum tempo.

197
PauLa HAWKINS

— Lena? Estás a ouvir-me? — O Sean estava inclinado para


a frente na sua cadeira. Reparei que tinha as mãos a tremer um
pouco. — O Josh fez uma acusação muito grave acerca do Mark
Henderson. Disse-nos que o Mark Henderson estava envolvido
numa relação, uma relação sexual, com a Katie Whittaker, nos
meses antes de ela morrer.
— Tretas! — disse eu, e tentei rir-me. — Isso é uma mentira
completa. — Estava toda a gente a olhar fixamente para mim e
era-me impossível evitar corar. — É mentira — voltei a dizer.
— Porque é que ele inventaria uma história destas, Lena? —
perguntou-me o Sean. — Porque é que o irmão mais novo da
Katie haveria de inventar uma história destas?
— Não sei — disse eu. — Não sei. Mas não é verdade.
Eu estava a olhar fixamente para a mesa, a tentar pensar
numa razão, mas a minha cara não parava de ficar cada vez mais
quente.
— Lena — disse a Erin —, tu não estás, obviamente, a dizer
a verdade. O que não é claro é por que raio é que mentes acerca
de uma coisa destas. Porque é que havias de tentar proteger um
homem que se aproveitou da tua amiga daquela maneira?
— Oh, não mefodam com essa...
— O quê? — perguntou ela, ficando mesmo junto à minha
cara. — Não te fodemos com quê?
Havia algo nela, no modo como se aproximara tanto de mim
e na expressão do seu rosto, que me deu vontade de a esbofetear.
— Ele não se aproveitou dela. Ela não era uma criança!
Então, ela pareceu verdadeiramente satisfeita consigo própria,
e ainda me apeteceu mais esbofeteá-la, mas ela não parava de falar.
— Se ele não se aproveitou dela, porque é que o odeias tanto?
Tinhas ciúmes?
— Creio que já chega — disse a Julia, mas ninguém lhe deu
ouvidos.
A Erin não parava de falar, não parava de se dirigir a mim.
— Queria-lo para ti própria, era isso? Estavas lixada porque
achavas que eras a mais bonita, porque achavas que devias ser tu
a receber toda a atenção?

198
ESCRITO NA ÁGUA

Então, passei-me mesmo. Sabia que, se ela não se calasse, iria


bater-lhe, pelo que disse aquilo:
— Eu odiava-o, minha puta de merda. Odiava-o porque ele ma
roubou.
Toda a gente ficou calada durante um bocado. Depois, o Sean
disse:
— Ele roubou-ta? Como é que ele fez isso, Lena?
Não consegui evitar. Estava mesmo exausta, e era óbvio que,
agora, eles iam descobrir, de uma maneira ou de outra, já que o
Josh tinha dado com a língua nos dentes. Mas, acima de tudo,
estava mesmo demasiado cansada para continuar a mentir. Por-
tanto, fiquei ali sentada, na nossa cozinha, e traí-a.
Eu tinha-lhe prometido. Depois de discutirmos, depois de a
Katie me ter jurado que se tinham separado e que não ia conti-
nuar a vê-lo, ela obrigou-me a jurar que, independentemente do
que acontecesse, independentemente de tudo, nunca contaria a
ninguém acerca deles. Fomos juntas ao poço, pela primeira vez
em muito tempo. Sentámo-nos debaixo das árvores, onde nin-
guém nos conseguia ver, e ela chorou e pegou-me na mão.
— Eu sei que achas que está errado — disse ela —, que eu
não devia ter estado com ele. Percebo isso. Mas eu amava-o, Lenie.
Ainda amo. Ele era tudo para mim. Não posso deixar que lhe fa-
çam mal, não posso mesmo. Não o suportaria. Por favor, não
faças nada que lhe possa fazer mal. Por favor, Lenie, guarda este
segredo por mim. Não é por causa dele, sei que o odeias. Fá-lo por
mim.
E eu tentei. A sério que tentei. Mesmo quando a minha mãe
foi ao meu quarto e me disse que a tinham descoberto na água,
mesmo quando a Louise veio cá a casa meio louca de dor, mesmo
quando aquele monte de merda fez uma declaração aos jornais
locais acerca da excelente aluna que ela era, de quanto era amada e
admirada, tanto pelos estudantes como pelos professores. Mesmo
quando ele veio ter comigo, no funera! da minha mãe, e me deu
as condolências, eu mordi a língua, foda-se.
Mas andara a mordê-la e a mordê-la e a mordê-la havia meses,
e, se não parasse, iria decepá-la. Iria asfixiar-me com ela.

199
PauLA HAWKINS

Portanto, contei-lhes. Sim, a Katie e o Mark Henderson tinham


uma relação. Começou no outono. Terminou em março ou em
abril. Recomeçou em finais de maio, achava eu, mas não durou
muito tempo. Ela pôs termo à relação. Não, eu não tinha provas
disso.
— Eles eram muito cuidadosos — contei-lhes. — Não envia-
vam e-mails, não trocavam SMS, não usavam o Messenger, nada de
eletrónico. Era uma regra deles. Eram muito rigorosos em relação
a ISSO.
— Eram, ou ele era? — perguntou a Erin.
Eu encarei-a.
— Bem, eu nunca discuti o assunto com ele, pois não? Isto foi
o que ela me disse. Era uma regra deles.
— Quando é que soubeste disto pela primeira vez, Lena? — per-
guntou a Erin. — Tens de voltar mesmo ao princípio.
— Não, na verdade, creio que não tem — disse a Julia, subi-
tamente.
Encontrava-se junto à porta; eu esquecera-me de que ela estava,
sequer, ali.
— Creio que a Lena está muito cansada e que deviam deixá-
-la em paz, por agora. Podemos passar por lá e fazer isto no posto da
polícia amanhã, ou vocês podem voltar cá, mas, por hoje, já chega.
A verdade é que me apeteceu abraçá-la; pela primeira vez
desde que a conhecera, parecia-me que a Julia estava do meu lado.
A Erin estava prestes a protestar, mas o Sean disse:
— Sim, tem razão. — Levantou-se e saíram todos da cozinha
para o corredor.
Segui-os. Quando estavam junto à porta, disse-lhes:
— Têm noção do que isto fará à mãe e ao pai dela, quando
descobrirem?
A Erin virou-se para me encarar.
— Bem, pelo menos, saberão o motivo — disse ela.
— Não, não saberão. Não saberão o motivo — disse eu. — Não
havia razão para ela fazer o que fez. Vejam, vocês estão a prová-lo
neste momento. Ao estarem aqui, provam que não valeu a pena
ela fazê-lo.

200
ESCRITO NA ÁGUA

— O que é que isso quer dizer, Lena?


Estavam todos ali parados, a olhar para mim, expectantes.
— Ela não fez aquilo porque ele lhe partiu o coração ou por
sentir-se culpada ou qualquer coisa do género. Fê-lo para o proteger.
Achava que alguém tinha descoberto. Achava que iam fazer queixa
dele e que ele apareceria nos jornais. Achava que haveria um jul-
gamento, e que ele seria condenado, e que iria para a prisão como
violador. Achava que lhe bateriam, ou que o violariam, ou o que
quer que seja que acontece a homens desses lá dentro. Portanto,
ela decidiu livrar-se das provas — disse eu.
Nessa altura, eu estava a começar a chorar e a Julia pôs-se
à minha frente e envolveu-me com os braços, dizendo:
— Chiu, Lena, não faz mal, chiu.
Mas fazia mal.
— Era isso que ela estava a fazer — disse eu. — Não compre-
endem? Estava a livrar-se das provas.

201
SEXTA-FEIRA, 21 DE AGOSTO

ERIN

O CHALÉ JUNTO AO RIO, o que vi quando fui correr, será a minha nova
casa. À curto prazo, pelo menos. Só até resolvermos esta questão
do Henderson. Foi o Sean quem o sugeriu. Ouviu-me a contar à
Callie, a agente, que quase me despistara na estrada esta manhã,
por estar tão exausta, e disse: |
— Bem, isso não pode ser. Devia ficar na vila. Podia usar o chalé
dos Wards. Fica mais acima junto ao rio e está vazio. Não é luxuoso,
mas não lhe custará nada. Dou-lhe as chaves esta tarde.
Quando ele saiu, a Callie sorriu-me de maneira forçada.
— O chalé dos Wards, hã? Tenha cuidado com a Annie louca.
— Desculpe?
— Aquele sítio junto ao rio, que o Patrick Townsend usa como
cabana de pesca, é conhecido como o chalé dos Wards. Como em
Anne Ward? É uma das mulheres. Dizem — contou ela, baixando a
voz até se tornar um sussurro — que, se procurarmos bem, ainda
conseguimos ver o sangue nas paredes.
Eu devo ter parecido perplexa — não fazia a menor ideia do
que é que ela estava a falar —, porque ela sorriu e disse:
— É só uma história, uma das antigas. Uma daquelas velhas
histórias de Beckford.
Eu não andava a prestar muita atenção a histórias centená-
rias de Beckford — tinha outras, mais recentes, com que me
preocupar.

202
ESCRITO NA ÁGUA

O Henderson nunca mais atendia o telemóvel, e nós tinhamos


tomado a decisão de o deixar em paz até ao seu regresso. Se a his-
tória da Katie Whittaker fosse verdade, e se ele suspeitasse de que
sabíamos dela, poderia nem sequer voltar.
Entretanto, o Sean tinha-me pedido para interrogar a mulher
dele, a qual, como diretora da escola, é chefe do Henderson.
— Estou certo de que ela nunca teve a menor suspeita acerca
do Mark Henderson — disse ele. — Creio que ela o tem em muito
boa conta, mas alguém tem de falar com ela e, obviamente, não
posso ser eu.
Ele disse-me que ela estaria na escola e que estaria à minha
espera.

Se estava à minha espera, o certo é que não agiu como tal.


Encontrei-a no seu escritório, de gatas, com uma bochecha en-
costada à carpete cinzenta, esticando a cabeça para ver debaixo de
uma estante de livros. Tossi educadamente e ela ergueu a cabeça,
alarmada.
— Sra. Townsend? — disse eu. — Sou a agente Morgan. À Erin.
— Oh — disse ela. — Sim. — Corou, levando a mão ao pesco-
ço. — Perdi um brinco.
— Ambos, ao que parece — disse eu.
Ela fez um barulho soprado e estranho e fez-me sinal para que
me sentasse. Puxou a bainha da blusa e alisou as suas calças cin-
zentas antes de se sentar. Se me tivessem pedido para imaginar a
mulher do inspetor, teria imaginado uma pessoa muito diferente.
Atraente, bem vestida, provavelmente desportiva — uma corredo-
ra da maratona, uma triatleta. A Helen usava roupas mais apro-
priadas para uma mulher 20 anos mais velha. Era pálida, com os
membros flácidos, como alguém que raramente saía de casa ou
via o Sol.
— Queria falar comigo acerca do Mark Henderson — disse
ela, franzindo ligeiramente o nariz para uma pilha de papéis à
sua frente.
Portanto, nada de conversa fiada, de preâmbulo — diretamente
ao assunto. Talvez seja isso que o inspetor gosta nela.

203
PauLa HAWKINS

— Sim — disse eu. — Ouviu falar nas acusações feitas pelo


Josh Whittaker e pela Lena Abbott, presumo?
Ela acenou com a cabeça, e os seus lábios desapareceram ao
pressioná-los um contra o outro.
— O meu marido contou-me ontem. Posso assegurar-lhe que
foi a primeira vez que ouvi falar numa coisa dessas. — Eu abri a
boca para dizer uma coisa, mas ela continuou. — Recrutei o Mark
Henderson há dois anos. Veio com excelentes referências e os
seus resultados, até agora, têm sido encorajadores. — Remexeu
nas folhas à sua frente. — Tenho pormenores, caso precise deles.
Abanei a cabeça e, uma vez mais, ela começou a falar antes
de eu conseguir fazer a pergunta seguinte.
— A Katie Whittaker era conscienciosa e muito trabalhadora.
Tenho aqui as notas dela. Houve, reconhecidamente, alguma derra-
pagem na primavera passada, mas foi de curta duração, ela tinha
voltado a melhorar quando... quando ela... — passou uma mão
sobre os olhos — quando veio o verão.
Afundou-se um pouco na cadeira.
— Portanto, não tinha nenhuma suspeita, não havia nenhum
rumor...?
Ela inclinou a cabeça para um dos lados.
— Oh, eu não disse nada acerca de rumores, detetive... hum...
Morgan. Os rumores que correm por uma escola secundária
pôr-lhe-iam os cabelos em pé. Estou certa — disse ela, com uma
contração em torno da boca — de que, se se esforçar um pouco,
será capaz de imaginar o tipo de coisas que dizem e escrevem e tuí-
tam acerca de mim e da Sra. Mitchell, a professora de Educação
Física. — Fez uma pausa. — Já conheceu o Mark Henderson?
— Conheci.
— Portanto, assim sendo, compreende. Ele é novo. Com bom
aspeto. As raparigas (são sempre as raparigas) dizem todo o tipo
de coisas acerca dele. Todo o tipo. Mas temos de aprender a dis-
tinguir o trigo do joio. E eu achava que o tinha feito. Ainda acho
que o tinha feito.
Uma vez mais, eu queria falar e, uma vez mais, ela prosse-
guiu.

204
ESCRITO NA ÁGUA

— Devo dizer-lhe — continuou ela, erguendo a voz — que sus-


peito profundamente dessas acusações. Suspeito profundamente,
devido à sua fonte e devido à ocasião.
=== Ed,.:
— Constou-me que as acusações vieram primeiro do Josh
Whittaker, mas ficaria surpreendida se a Lena Abbott não esti-
ver por detrás disso: o Josh adora-a. Se a Lena decidiu que queria
desviar as atenções das suas próprias infrações (comprar drogas
ilegais para a amiga dela, por exemplo), estou certa de que teria
sido capaz de persuadir o Josh a aparecer com esta história.
— Sra. Townsend...
— Qutra coisa que devo mencionar — continuou ela, não
permitindo qualquer interrupção — é que houve uma história
qualquer entre a Lena Abbott e o Mark Henderson.
— Uma história?
— Duas coisas. Primeira, o facto de o comportamento dela
poder, por vezes, ser inapropriado.
— De que modo?
— Ela é atiradiça. E não só com o Mark. Parece que lhe ensi-
naram que é a melhor maneira de obter o que quer. Muitas das
raparigas fazem isso, mas, no caso da Lena, o Mark parecia sentir
que isso ia longe demais. Ela fazia observações, tocava-lhe....
— Tocava-lhe?
— No braço, nada de escandaloso. Punha-se demasiado perto,
como diz a canção. Tive de falar com ela acerca disso. — Ela pare-
ceu hesitar ligeiramente com essa memória. — Foi repreendida,
embora, é claro, não tenha levado isso a sério. Creio que disse
algo como: Quem lhe dera a ele. — Eu riime e ela franziu-me
o sobrolho. — Na realidade, não é motivo para risota, detetive.
Estas coisas podem ser terrivelmente prejudiciais.
— Sim, claro. Eu sei. Desculpe.
— Sim. Bem. — Ela voltou a franzir os lábios, mesmo à pro-
fessora de província. — A mãe dela também não levou isso a sério.
O que não é nada surpreendente. — Ela corou, com um rubor
vermelho e indignado a aparecer-lhe no pescoço, e com a voz
a ficar mais alta. — Nada surpreendente, mesmo. Todo aquele

205
PauLa HAWKINS

namoriscar, o pestanejar incessante e o atirar O cabelo para trás,


aquela expressão, insistente e cansativa, de disponibilidade sexual...
Onde é que imagina que a Lena aprendeu isso? — Ela respirou
fundo e expirou, afastando o cabelo dos olhos. — A segunda coisa
— continuou ela, agora mais calma, mais contida — foi um
incidente na primavera. Desta vez, não um namorisco, mas uma
agressão. O Mark teve de expulsar a Lena da aula porque ela esta-
va a ser agressiva e a abusar bastante, dizendo palavrões durante
um debate acerca de um texto que andavam a estudar. — Ela
olhou para baixo, para os seus apontamentos. — O Lolita, creio eu.
— E arqueou uma sobrancelha.
— Bem, isso é... interessante — disse eu.
— Bastante. Até pode sugerir onde é que ela foi buscar a ideia
para estas acusações — disse a Helen, o que não era, de todo,
aquilo que eu pensara.

À tarde, conduzi até ao meu chalé temporário. Parecia muito


mais solitário com o crepúsculo iminente, as bétulas radiosas ago-
ra fantasmagóricas, o burburinho do rio mais ameaçador do que
alegre. As margens do rio e a colina fronteira estavam desertas.
Ninguém para nos ouvir gritar. Quando eu passara por ali, durante
a minha corrida, vira um idílio pacífico. Agora, pensei que fazia
mais o género de uma cabana isolada do típico filme de terror.
Abri a porta e dei uma olhadela rápida em redor, tentando,
enquanto o fazia, não procurar o sangue nas paredes. Mas o local
era asseado, com o cheiro adstringente de um produto de limpeza
cítrico qualquer, a lareira varrida, e havia uma pilha de madeira
cortada muito arrumadinha ao lado desta. Não tinha muito que
se lhe dissesse, na verdade era mais uma cabana do que um cha-
lé: apenas duas divisões — uma sala de estar com uma cozinha
incorporada e um quarto com uma pequena cama de casal, uma
pilha de lençóis lavados e um cobertor dobrado sobre o colchão.
Escancarei as janelas e a porta para me livrar do cheiro artificial
a limão, abri uma das cervejas que comprara na cooperativa, a cami-
nho de lá, e sentei-me no degrau da entrada, observando os fetos
da colina fronteira a passarem da cor de bronze para o dourado,

206
ESCRITO NA ÁGUA

com o sol poente. À medida que as sombras se alongavam, senti o


isolamento metamorfosear-se em solidão, e peguei no telemóvel,
sem saber bem a quem iria telefonar. Apercebi-me — claro — de
que não havia rede. Pus-me de pé e vagueei por ali, abanando o
telemóvel no ar — nada, nada, nada, até chegar mesmo à beira do
rio, onde apareceram duas barras. Fiquei ali durante um bocado,
com a água mesmo prestes a molhar-me os dedos dos pés, obser-
vando o rio escuro a correr, rápido e pouco profundo. Não parava
de pensar que conseguia ouvir alguém a rir-se, mas era apenas
a água, deslizando agilmente sobre as rochas.

Levei uma eternidade a adormecer e, quando acordei subita-


mente, com um calor febril, estava escuro como breu, o tipo de
negrume profundo que torna impossível vermos um palmo à
frente da cara. Algo me acordara, tinha a certeza: um som? Sim,
uma tossidela.
Procurei o telemóvel, fazendo-o cair da pequena mesa de cabe-
ceira para o chão, com o ruído da queda a parecer muito alto no
meio do silêncio. Atrapalhei-me à procura dele, subitamente toma-
da pelo medo, certa de que, se acendesse a luz, esta revelaria al-
guém que se encontrava ali no quarto. Nas árvores por detrás do
chalé, conseguia ouvir uma coruja a piar. E depois novamente:
alguém a tossir. O meu coração estava a bater demasiado depres-
sa, eu estava com um medo estúpido de abrir a cortina por cima
da minha cama, não se fosse dar o caso de haver um rosto do
outro lado da vidraça, a olhar para mim.
De que rosto é que eu estava à espera? O da Anne Ward? O do
marido dela? Ridículo. Murmurando para me tranquilizar, acendi
a luz e abri as cortinas. Nada nem ninguém. Obviamente. Deslizei
para fora da cama, vesti umas calças de fato de treino e uma
sweatshirt e fui até à cozinha. Considerei fazer uma chávena de
chá, mas mudei de ideias quando descobri uma garrafa de Talisker
meio vazia no armário da cozinha. Servi-me de dois dedos e bebi
rapidamente. Calcei os ténis, enfiei o telemóvel no bolso, peguei
numa lanterna que estava sobre a bancada e destranquei a porta
da rua.

207
PauLA HAWKINS

As pilhas da lanterna deviam estar fracas. O feixe era frouxo,


não alcançando mais do que um metro e meio ou dois metros à
minha frente. Para lá disso, havia uma obscuridade total. Apontei
a lanterna para baixo, para iluminar o chão diante dos meus pés,
e caminhei pela noite dentro.
A relva estava carregada de orvalho. Alguns passos depois,
os meus ténis e as calças de fato de treino estavam completa-
mente ensopados. Caminhei lentamente, dando uma volta com-
pleta ao chalé e observando a luz da lanterna a fazer ricochete na
casca prateada das faias, um bando de fantasmas pálidos. O ar
dava uma sensação suave e fresca, e havia um toque de chuva na
brisa. Voltei a ouvir a coruja, e a tagarelice baixa do rio, e o coaxar
rítmico de um sapo. Terminei a minha volta ao chalé e comecei a
caminhar em direção à margem do rio. Então, o coaxar terminou
de repente e, uma vez mais, ouvi a tal tossidela. Não era de modo
algum próxima, vinha da colina, algures do outro lado do rio,
e, desta vez, não se parecia grandemente com uma tosse. Era mais
um balido. Uma ovelha.
Sentindo-me, eu própria, um bocado borrega, voltei para den-
tro do chalé, servi-me de outro copo de uísque e tirei o manus-
crito da Nel Abbott da minha mala. Enrosquei-me no cadeirão da
sala de estar e comecei a ler.

208
O POÇO DAS AFOGADAS

Anne Ward, 1920

á estava dentro de casa. Estava lá. Não havia nada a temer no exte-
rior, o perigo estava lá dentro. Aguardava, estivera o tempo todo
a aguardar ali, desde o dia em que voltara a casa.
No final, contudo, para Anne, não se tratava do medo, mas da
culpa. Era a perceção, fria e dura como um seixo tirado da corrente,
daquilo que ela desejava, do sonho que se tinha permitido à noite
quando o pesadelo real da sua vida se tornara demasiado. O pesadelo
era ele, deitado a seu lado na cama, ou sentado junto à lareira, com as
botas calçadas e um copo na mão. O pesadelo era quando ela o apa-
nhava a olhar para si e via o nojo na cara dele, como se ela fosse
fisicamente repugnante. Não era só ela, sabia disso. Eram todas as
mulheres, todas as crianças, os velhos, todos os homens que não se ti-
nham juntado à luta. Ainda assim, doía-lhe ver — mais forte e mais
claramente do que qualquer coisa que alguma vez tivesse sentido na
vida — o quanto ele a odiava.
No entanto, ela não podia dizer que não merecia aquilo, pois não?
O pesadelo era real, vivia na casa dela, mas era o sonho que a
atormentava, por se permitir desejá-lo. No sonho, estava sozinha em
casa: era o verão de 1915 e ele tinha acabado de partir. No sonho, era de
tarde, com a luz a começar a mergulhar para o outro lado da colina,
para lá do rio, e a escuridão a avolumar-se nos cantos da casa, e ouvia-
-se bater à porta. Havia um homem à espera, fardado, entregava-lhe
um telegrama e, então, ela sabia que o seu marido nunca regressaria.

209
PauLa HaWkKINS

Quando, acordada, sonhava com isso, não lhe importava como é que
acontecera. Tanto lhe fazia que ele tivesse morrido como um herói ou
como um cobarde fugindo do inimigo. Tanto lhe fazia, desde que ele
estivesse morto.
Teria sido mais fácil para ela. Essa é que era a verdade, não era?
Portanto, porque é que ele não haveria de a odiar? Se ele lá tivesse
morrido, ela tê-lo-ia chorado, e as pessoas teriam sentido pena dela,
a mãe dela, os amigos dela e os irmãos dele (caso ainda sobrassem
alguns). Tê-la-iam ajudado, ter-se-iam unido em torno dela, e ela teria
ultrapassado o assunto. Teria sofrido por ele, durante bastante tempo,
mas isso teria chegado ao fim. Teria 19, 20, 21 anos, e teria uma vida
à sua frente.
Ele tinha razão para odiá-la. Três anos, perto de três anos que ele
passara lá fora, a afogar-se em merda e sangue de homens com quem
partilhara um cigarro, e, agora, ela desejava que ele não tivesse regres-
sado; amaldiçoava o dia em que o telegrama não chegara.
Ela amara-o desde os 15 anos e não se lembrava de como era a vida
antes de ele aparecer. Ele tinha 18 anos quando a guerra começara
e 19 quando partira, e voltara sempre mais velho, não meses, mas anos,
décadas, séculos.
Da primeira vez, contudo, ainda era ele mesmo. Chorara à noite,
abalado como um homem com febre. Dissera-lhe que não podia voltar
a ir para lá, que tinha demasiado medo. Na noite antes de dever re-
gressar, ela descobrira-o junto ao ro e arrastara-o para casa. (Nunca o
devia ter feito. Nessa altura, devia tê-lo deixado ir.) Detê-lo fora egoísta
da parte dela. Agora, percebia o que causara.
Da segunda vez que ele viera a casa, não chorara. Estava silencioso,
fechado, mal olhando para ela, exceto de modo dissimulado, de esgue-
lha, com as pálpebras semicerradas, e nunca quando estavam na
cama. Ele virava-a ao contrário e não parava nem quando ela implo-
rava, nem quando ela sangrava. Ele odiava-a nessa altura, já então a
odiava; a princípio, ela não se apercebeu disso, mas, quando ela lhe
disse quão triste se sentia por causa do modo como andavam a tratar
aquelas raparigas na prisão, e os objetores de consciência e tudo isso, ele
deu-lhe uma estalada na cara e cuspiu-lhe em cima e chamou-lhe puta
traidora de merda.

210
ESCRITO NA ÁGUA

Da terceira vez que ele viera a casa, não estava lá, de todo.
E ela sabia que, agora, nunca mais regressaria. Não sobrava nada
do homem que ele fora um dia. E ela não se conseguia ir embora, não
conseguia apaixonar-se por outra pessoa, porque só ele existira sempre
para ela e, agora, desaparecera... Desaparecera, mas continuava sen-
tado junto à lareira, com as botas calçadas, e bebia e bebia, e olhava
para ela como se ela fosse o inimigo, e ela desejava que ele estivesse
morto.
Que espécie de vida era aquela?
Anne desejava que pudesse ter havido outra maneira. Desejava
conhecer os segredos que as outras mulheres conheciam, mas Libby
Seeton tinha morrido havia muito e levara-os consigo. Anne sabia
algumas coisas, claro, tal como a maior parte das mulheres da vila.
Sabiam que cogumelos apanhar e quais deixar, tinham sido avisadas
acerca da bela senhora, a beladona; tinham-lhes dito para nunca,
nunca lhe tocarem. Sabia onde esta crescia na mata, mas também
sabia o que ela fazia, e não queria que ele morresse desse modo.
Ele estava sempre com medo. Ela apercebia-se disso, conseguia vê-lo
nele, sempre que o observava de relance: ele estava sempre a olhar para
a porta, do mesmo modo que olhava para fora, ao crepúsculo, tentando
ver para lá da linha das árvores. Ele tinha medo e estava à espera de
que aparecesse alguém. E, o tempo todo, procurava no local errado,
porque o inimigo não estava lá fora, já tinha entrado em casa, no seu
lar. Sentava-se à sua lareira.
Ela não queria que ele tivesse medo. Não queria que visse a sombra
cair sobre si, pelo que esperou até ele estar a dormir, sentado na sua
cadeira, com as botas calçadas e a garrafa vazia a seu lado. Foi silen-
ciosa e rápida. Encostou-lhe a lâmina à nuca e cravou-a com força,
de modo que ele mal acordou, e desapareceu de vez.
Foi melhor assim.
No entanto, ficou tudo sujo, claro que ficou, pelo que, depois, ela foi
até ao rio, para lavar as mãos.

2
DOMINGO, 23 DE AGOSTO

PATRICK

O sonHo QUE PATRICK TINHA com a sua mulher era sempre o mesmo.
Era de noite, e ela estava dentro de água. Ele deixara Sean na mar-
gem, mergulhara e nadara e nadara, mas, de algum modo, mal
estava suficientemente perto para a agarrar, ela desviava-se para
mais longe e ele tinha de voltar a nadar. No sonho, o poço era mais
largo do que na vida real. Não era um poço, era um lago, era um
oceano. Ele parecia nadar eternamente, e só quando estava tão
exausto que tinha a certeza de se estar a afogar, também ele, é que
acabava por conseguir agarrá-la, puxá-la para si. Ao fazê-lo, o corpo
dela rodava ligeiramente na água, virando a cabeça para a sua,
e ela ria-se com os dentes partidos e ensanguentados. Era sempre
a mesma coisa, só que, na noite anterior, quando o corpo se virava
na água, na sua direção, a cara era a de Helen.
Ele acordou com um pavor horrível, com o coração aos pulos,
quase a rebentar. Sentou-se na cama, com a palma da mão encos-
tada ao peito, sem querer reconhecer o seu próprio medo, nem o
modo como este estava misturado com um profundo sentimento
de vergonha. Abriu as cortinas e esperou que o céu se aligeirasse,
do preto para o cinzento, antes de ir ao quarto ao lado, o de Helen.
Entrou em silêncio, erguendo suavemente o banco ao lado do
toucador e colocando-o junto à cama dela. Sentou-se. A cara dela
estava virada para o outro lado, tal como estivera no sonho, e ele
combateu a vontade de pôr a mão sobre o ombro dela, de a abanar

212
ESCRITO NA ÁGUA

para a acordar, de se certificar de que a boca dela não estava cheia


de sangue e com dentes partidos.
Quando, finalmente, ela se mexeu, virando-se lentamente para
ele, assustou-se ao vê-lo, inclinando a cabeça violentamente para trás
e, ao fazê-lo, bateu com ela na parede atrás de si.
— Patrick! O que é que se passa? É o Sean?
Ele abanou a cabeça.
— Não. Não se passa nada.
— Então...
— Eu... eu deixei algumas coisas no teu carro? — perguntou-
-Jhe ele. — No outro dia? Tirei algumas tralhas do chalé e tencio-
nava deitá-las fora, mas, depois, com a gata... Distraí-me, e creio
que as deixei lá. Deixei?
Ela engoliu e acenou com a cabeça, de olhos escurecidos,
com as pupilas a apertarem as íris, tornando-as lascas castanho-
-claras.
— Sim, eu... Do chalé? Tirou aquelas coisas do chalé?
Ela franziu o sobrolho, como se tentasse decifrar algo.
— Sim. Do chalé. O que é que lhes fizeste? O que é que fizeste
ao saco?
Ela sentou-se.
— Deitei-o para o lixo — disse ela. — Eram porcarias, não
eram? Pareciam porcarias.
— Sim. Eram só porcarias.
Os olhos dela desviaram-se e, depois, regressaram aos dele.
— Papá, acha que aquilo tinha recomeçado? — Ela suspirou.
— Ele e ela. Acha que...?
Patrick inclinou-se para a frente e alisou-lhe o cabelo para trás,
afastando-lho da testa.
— Bem, não sei ao certo. Talvez. Creio que talvez tivesse reco-
meçado. Mas agora acabou, não acabou? — Ele tentou pôr-se de
pé, mas apercebeu-se de que as suas pernas estavam demasiado
fracas e teve de se erguer com o auxílio de uma mão sobre a mesa
de cabeceira. Conseguia senti-la a observá-lo e sentiu-se envergo-
nhado. — Apetece-te chá? — perguntou-lhe ele.
— Eu faço-o — disse ela, afastando as cobertas.
PauLA HAWKINS

— Não, não. Deixa-te estar onde estás. Eu faço-o. — Junto à


porta, voltou a virar-se para ela. — Livraste-te daquilo? Daquelas
tralhas? — voltou ele a perguntar.
Helen acenou com a cabeça. Lentamente, com os membros
rígidos e o peito apertado, ele desceu as escadas e entrou na cozi-
nha. Encheu a chaleira e sentou-se à mesa, com o coração a pesar-
“lhe no peito. Nunca antes dera por que Helen lhe mentisse, mas
estava bastante certo de que tinha acabado de o fazer.
Talvez se devesse ter zangado com ela, mas estava, sobretudo,
zangado com Sean, porque fora o erro dele que os conduzira ali.
Helen nem sequer devia estar naquela casa! Devia estar no seu
lar, na cama do marido. E ele não devia ter sido colocado naquela
posição, na ignominiosa posição de limpar a bagunça do filho.
Na indelicada posição de dormir no quarto ao lado do da nora.
Sentia comichão na pele do antebraço, por debaixo do penso,
e coçou-a distraidamente.
E, todavia, se fosse sincero, e tentava sê-lo sempre, quem era
ele para criticar o filho? Lembrava-se de como era ser um rapaz
novo, tornado indefeso pela biologia. Fizera más escolhas para si
próprio e ainda sentia vergonha por isso. Escolhera uma beleza,
uma beleza fraca e egoísta, uma mulher sem autocontrolo, em
quase todos os aspetos. Uma mulher insaciável. Ela entrara por
um caminho autodestrutivo, e a única coisa que agora o surpreen-
dia, ao pensar acerca disso, era que aquilo tivesse demorado tanto
a acontecer. Patrick sabia o que Lauren nunca compreendera
— exatamente quantas vezes ela estivera perigosamente perto de
perder a vida.
Ele ouviu passos nas escadas e virou-se. Helen encontrava-se
à entrada, ainda de pijama, com os pés descalços.
— Papá? Está bem? — Ele pôs-se de pé, preparando-se para
fazer o chá, mas ela pousou-lhe a mão no ombro. — Sente-se.
Eu faço-o.
Ele fizera uma má escolha, uma vez, mas da segunda não.
Porque Helen fora uma escolha sua. Era filha de um colega, sos-
segada e simples e trabalhadora, e ele vira imediatamente que ela
seria estável e dedicada e fiel. Sean precisara de ser persuadido.

214
ESCRITO NA ÁGUA

Apaixonara-se por uma mulher que conhecera enquanto esta-


giava, mas Patrick sabia que isso não duraria e, quando se prolon-
gou por mais tempo do que devia, pôs termo à situação. Agora,
observava Helen e sabia que fizera uma boa escolha para o filho:
Helen era direta, modesta e inteligente — completamente desin-
teressada pelo tipo de trivialidades acerca das celebridades e pelas
coscuvilhices que pareciam consumir a maior parte das mulhe-
res. Não desperdiçava tempo com a televisão ou com romances,
trabalhava arduamente e não se queixava. Era uma companhia
agradável, com um sorriso fácil.
— Aqui tem. — Ela estava a sorrir-lhe agora, ao entregar-lhe
o chá. — Oh — e inspirou pronunciadamente, através dos dentes
—, isso não me parece nada bem.
Estava a olhar para o braço dele, para onde ele se tinha coçado
e arrancado o penso. A pele por debaixo estava vermelha e inchada,
e a ferida, escura. Ela foi buscar água quente, sabonete, desinfe-
tante e pensos novos. Limpou-lhe a ferida, ligou-lhe novamente o
braço e, quando terminou, ele inclinou-se para a frente e beijou-
-lhe a boca.
— Papá — disse ela, e empurrou-o suavemente.
— Desculpa — disse ele. — Desculpa.
E a vergonha regressou, agora insuportável, tal como a raiva.
As mulheres deprimiam-no. Primeiro Lauren e, depois, Jeannie,
e por aí fora. Mas Helen não. Por certo que Helen não. E, no en-
tanto, ela mentira-lhe naquela manhã. Ele vira-o no rosto dela,
naquele rosto cândido, pouco habituado a falsidades, e estreme-
cera. Voltou a pensar no sonho, em Lauren a virar-se na água, na
história a repetir-se, só que com as mulheres a ficarem piores.

215
NICKIE

JEANNIE DISSE QUE JÁ ESTAVA NA HORA de alguém fazer alguma coisa


em relação àquilo.
— Para ti, é fácil dizeres isso — respondeu Nickie. — E mu-
daste de opinião, não foi? Costumavas dizer que era suposto eu
manter a boca calada, para o meu próprio bem. Agora, estás a
dizer-me para mandar a cautela às urtigas? — Nesse momento,
Jeannie encontrava-se calada. — Bem, em todo o caso, eu ten-
tei. Tu sabes que tentei. Tenho andado a apontar na direção certa.
Deixei uma mensagem à irmã, não deixei? Não tenho culpa se
ninguém me dá ouvidos. Ah, sou demasiado subtil, é? Demasiado
subtil! Queres que eu ande para aí aos gritos? Vê onde é que fala-
res te conduziu! — Tinham estado a discutir acerca daquilo a noite
toda. — A culpa não é minha! Não podes dizer que a culpa é minha.
Nunca foi minha intenção causar qualquer problema à Nel Abbott.
Disse-lhe aquilo que sabia, foi só isso. Como me tinhas andado a
dizer que fizesse. Contigo, não consigo ganhar, não consigo mes-
mo. Nem sei porque é que me esforço.
Jeannie estava a dar-lhe nervos. Não havia meio de se calar.
E o pior de tudo, bem, não era o pior de tudo, o pior de tudo
era não conseguir dormir, caraças, mas a segunda pior coisa era
que, provavelmente, ela tinha razão. Nickie soubera sempre disso,
desde aquela primeira manhã, sentada à janela, quando o senti-
ra. Outra. Outra nadadora. Pensara-o então; até pensara em falar

216
ESCRITO NA ÁGUA

a Sean Townsend. Mas fizera bem em permanecer calada nessa


altura: vira como é que ele reagira quando ela mencionara a mãe
dele, aquele rosnido de raiva, com a máscara de bondade a fugir-
“lhe. Afinal de contas, ele era filho do pai.
— Então, a quem? A quem, minha velhota? Com quem é que é
suposto eu falar? Com a mulher-polícia, não. Nem sequer mo su-
giras. Eles são todos iguais! Ela vai logo ter com o chefe, não vai?
Com a mulher-polícia, não. Então com quem? Com a irmã da Nel?
Nada na irmã inspirava confiança a Nickie. A rapariga, con-
tudo, era diferente. Ela é apenas uma criança, disse Jeannie, mas
Nickie respondeu:
— E então? Tem mais determinação no dedo mindinho do
que metade das pessoas desta vila.
Sim, falaria com a rapariga. Só ainda não sabia bem o que lhe
diria.
Nickie ainda tinha as folhas de Nel. Aquelas em que tinham
trabalhado juntas. Podia mostrá-las à rapariga. Eram datilogra-
fadas, não manuscritas, mas, certamente, Lena reconheceria as
palavras da mãe, o seu tom. Claro que não diziam as coisas do modo
como Nickie pensara que deviam dizer. Isso era parte da razão pela
qual elas se tinham zangado. Divergências artísticas. Nel tivera
um ataque de raiva e dissera que, se Nickie não era capaz de con-
tar a verdade, então, estavam a perder o seu tempo — mas, bem
vistas as coisas, o que é que ela sabia acerca da verdade? Andavam
todos só a contar histórias.
Ainda aqui estás?, perguntou Jeannie. Pensei que ias falar com a
rapariga, e Nickie respondeu:
— Está bem. Aguenta os cavalos. Eu vou. Fá-lo-ei mais tarde.
Fá-lo-ei quando estiver preparada.
Às vezes, ela desejava que Jeannie se calasse e, outras vezes,
desejava, mais do que tudo, que ela estivesse ali, naquela sala,
sentada consigo junto à janela, a observar. Deviam ter envelhecido
juntas, a irritarem-se uma à outra como deve ser, em vez de briga-
rem pelas ondas sonoras, como tinham acabado de fazer.
Nickie desejava que, quando imaginasse Jeannie, não a visse
tal como ela estava da última vez que viera àquele apartamento.

217
PauULA HAWKINS

Fora somente alguns dias antes de Jeannie ter deixado Beckford


de vez, e ela estava pálida, devido ao choque, e a tremer de medo.
Viera dizer a Nickie que Patrick Townsend a fora ver. Ele dissera-
lhe que, se ela continuasse a falar como tinha andado a fazer, se
continuasse a fazer perguntas, se continuasse a tentar arruinar-lhe
a reputação, ele trataria de que ela fosse magoada.
— Não por mim — disse ele —, que eu não te tocaria, cara-
ças. Arranjo outra pessoa para fazer o trabalho sujo. E também
não será só um tipo. Assegurar-me-ei de que sejam alguns, e de
que vão à vez. Tu sabes que eu conheço pessoas, não sabes, Jean?
Não duvidas de que eu conheço pessoas que te fariam coisas des-
sas, pois não, rapariga?
Jeannie estivera ali mesmo, naquela sala, e obrigara Nickie
a prometer, obrigara-a a jurar que não se meteria naquilo.
— Agora, não há nada que possamos fazer. Eu nunca te devia
ter contado nada.
— Mas... e o rapaz? — disse Nickie. — Então e o rapaz?
Jeannie limpou as lágrimas dos olhos. |
— Eu sei. Eu sei. Fico doente só de pensar nisso, mas teremos
mesmo de o deixar lá. Tens de ficar calada, não podes dizer nada.
Porque o Patrick trata de mim, Nicks, e também trata de ti. Ele não
está a brincar.
Jeannie foi-se embora alguns dias mais tarde; nunca mais
voltou.

218
JULES

Diz-ME, SINCERAMENTE. Não houve uma parte de ti que gostou daquilo?


Acordei com a tua voz na minha cabeça. la a tarde a meio.
Não consigo dormir à noite, esta casa balouça como um barco e
o som da água é ensurdecedor. Durante o dia, de algum modo,
não é assim tão mau. Seja como for, devo ter adormecido, porque
acordei com a tua voz na minha cabeça, a perguntar:
Não houve uma parte de ti que gostou daquilo? Gostou ou desfru-
tou? Ou terá sido queria? Agora, não me consigo recordar. Só me
lembro de tirar a minha mão da tua e de a levantar para te bater,
e do olhar de incompreensão no teu rosto.
Arrastei-me pelo corredor até à casa de banho e abri o chuveiro.
Estava demasiado exausta para me despir, pelo que me limitei a
ficar ali sentada, enquanto a divisão se enchia, cada vez mais, de
vapor. Depois, fechei a água, fui até ao lavatório e molhei a cara.
Ao olhar para cima, vi, aparecendo na condensação, duas letras
desenhadas na superfície do espelho, um «L» e um «S». Assustei-
-me tanto que gritei.
Ouvi a porta da Lena a abrir-se e, depois, ela começou a bater
à porta da casa de banho.
— O que foi? O que se passa? Julia?
Abri-lhe a porta, furiosa.
— O que é que estás a fazer? — perguntei eu. — O que é que
me estás a tentar fazer?
PauLa HAWKINS

Apontei para trás, para o espelho.


— O que foi? — Ela parecia aborrecida. — O que foi?
— Sabes muito bem, Lena. Não sei o que é que julgas que
estás a tentar fazer, mas...
Ela virou-me as costas e começou a afastar-se.
— Meu Deus, és cá uma anormal.
Fiquei ali, a olhar fixamente para as letras durante um bocado.
Não estava a imaginar coisas, estavam, sem dúvida, ali: LS. Era otipo
de coisa que tu costumavas estar sempre a fazer: deixar-me men-
sagens fantasmagóricas no espelho ou desenhar pentagramas
minúsculos com verniz vermelho na parte de trás da minha porta.
Deixavas coisas para me assustares. Adoravas fazer-me perder a ca-
beça e deves ter-lhe contado. Tens de o ter feito e, agora, ela também
o andava a fazer.
Porquê LS? Libby Seeton? Porquê fixares-te nela? A Libby era
uma rapariga inocente, arrastada para a água por homens que
detestavam mulheres, que atiravam para cima delas as culpas
por coisas que eles próprios tinham feito. Mas a Lena achava que
tu tinhas ido para lá de moto próprio, portanto, porquê a Libby?
Porquê LS?
Embrulhada numa toalha, atravessei o corredor e entrei no
teu quarto. Parecia-me intocado, mas havia um cheiro no ar, algo
doce — não o teu perfume, outro. Algo enjoativo, pesado, com o
odor a rosas a apodrecerem. A gaveta ao pé da tua cama estava
fechada e, quando a abri, estava tudo como estivera, com uma
exceção. O isqueiro, aquele em que tinhas mandado gravar as
iniciais da Libby, tinha desaparecido. Estivera alguém no quarto.
Alguém o levara.
Voltei à casa de banho, molhei de novo a cara e apaguei as letras
do espelho e, ao fazê-lo, vi-te, de pé, atrás de mim, exatamente com
o mesmo ar de incompreensão no rosto. Virei-me e a Lena levan-
tou as mãos, como que em autodefesa.
— Meu Deus, Julia, acalma-te. O que é que se passa contigo?
Abanei a cabeça.
— Eu só... Eu só...
— Tu só o quê?

220
ESCRITO NA ÁGUA

Ela revirou os olhos.


— Preciso de apanhar ar.
Mas, no degrau da entrada, quase voltei a gritar, porque estavam
umas mulheres — duas — junto ao portão, vestidas de preto e
dobradas, de algum modo entrelaçadas. Uma delas olhou para
cima, para mim. Era a Louise Whittaker, a mãe da rapariga que
tinha morrido. Arrastou-se para longe da outra mulher, falando
iradamente enquanto o fazia.
— Deixe-me! Deixe-me em paz! Não se aproxime de mim!
A outra acenava-lhe com a mão — ou acenava-me, não con-
seguia saber ao certo. Depois, virou-se e coxeou lentamente, pelo
caminho fora.
— Doida maldita — lançou a Louise ao aproximar-se da casa.
— É um perigo, aquela Sage. Não se envolva com ela, aviso-a. Não a
deixe entrar em sua casa. É uma mentirosa e uma trapaceira,
só quer é dinheiro. — Parou para recuperar o fôlego, franzindo-
-me o sobrolho. — Bem. Você está com um ar quase tão horrível
quanto eu me sinto. — Abri a boca e voltei a fechá-la. — A sua
sobrinha está?
Conduzi-a para dentro de casa.
— Vou só buscá-la — disse eu, mas a Louise já estava ao fundo
das escadas, gritando o nome da Lena. Depois, entrou na cozinha
e sentou-se à mesa, para aguardar.
Passado um pouco, a Lena apareceu. A sua expressão típica,
aquela combinação de arrogância e aborrecimento tão evocativa
de ti, tinha desaparecido. Cumprimentou a Louise docilmente,
embora eu nem sequer saiba bem se a Louise reparou, porque
tinha o olhar preso algures, no rio lá fora ou em algum lugar mais
além.
A Lena sentou-se à mesa, erguendo as mãos para prender o
cabelo com um nó junto à nuca. Levantou o queixo ligeiramente,
como se se estivesse a preparar para qualquer coisa, para uma
entrevista. Para um interrogatório. Eu tanto podia ser invisível,
dada a atenção que elas me prestavam, mas permaneci na cozi-
nha. Fiquei junto à bancada, não relaxada mas preparada, para
o caso de ter de intervir.

2
PauLa HAWKINS

A Louise pestanejou, lentamente, e, por fim, o seu olhar repou-


sou sobre a Lena, que o susteve durante um segundo, antes de
olhar para baixo, para a mesa.
— Lamento, Sra. Whittaker. Lamento mesmo.
A Louise não disse nada. As lágrimas correram-lhe pelas rugas
da cara abaixo, em arroios talhados por meses de luto incessante.
— Lamento tanto — repetiu a Lena.
Agora, ela também estava a chorar, voltando a deixar o cabelo
cair e dando-lhe voltas por entre os dedos, como uma rapariguinha.
— Pergunto-me se alguma vez saberás — disse, por fim,
a Louise — qual é a sensação de nos apercebermos de que não
conhecíamos a nossa filha. — Ela respirou fundo e tremulamente.
— Tenho todas as coisas dela. As roupas dela, os livros dela, a mú-
sica dela. As fotografias a que ela dava valor. Conheço os amigos
dela e as pessoas que ela admirava, sei de que é que ela gostava.
Mas isso não era ela. Porque eu não sabia quem é que ela amava.
Ela tinha uma vida — toda uma vida — que eu não conhecia.
A parte mais importante dela, eu não a conhecia.
A Lena tentou falar, mas a Louise prosseguiu.
— O que se passa, Lena, é que tu me podias ter ajudado.
Podias ter-me contado tudo. Podias ter-me contado assim que
descobriste. Podias ter vindo ter comigo e dizer que a minha filha
se tinha envolvido em algo, em algo que não lhe era possível con-
trolar, em algo que tu sabias, tinhas de saber, que acabaria por ser
prejudicial para ela.
— Mas eu não podia... Não podia...
Uma vez mais, a Lena tentou dizer alguma coisa e, uma vez
mais, a Louise não a deixou.
— Mesmo que tivesses sido suficientemente cega ou suficien-
temente estúpida ou suficientemente irresponsável para não veres
a quantidade de problemas em que ela estava metida, ainda assim,
podias ter-me ajudado. A mim. Podias ter vindo ter comigo, depois
de ela ter morrido, e dito que não era por causa de nada que eu
tivesse feito ou deixado de fazer. Que a culpa não era minha, que
não era do meu marido. Podias ter evitado que enlouquecêsse-
mos. Mas não o fizeste. Escolheste não o fazer. Durante todo esse

2a
ESCRITO NA ÁGUA

tempo, não disseste nada. Durante todo este tempo, tu... E, pior,
ainda pior do que isso, deixaste-o...
A voz dela subiu e, depois, desapareceu no ar, como fumo.
— Ficar impune? — A Lena terminou a frase. Já não estava a
chorar e, embora a sua voz tivesse ficado mais aguda, era forte,
e não fraca. — Sim. Deixei, e isso enojava-me. Enojava-me mesmo,
mas fi-lo por ela. Tudo o que fiz foi pela Katie.
— Não me digas o nome dela — silvou a Louise. — Não te
atrevas.
— Katie, Katie, Katie! — A Lena estava meio de pé, incli-
nada para a frente, com a cara a centímetros do nariz da Louise.
— Sra. Whittaker — e voltou a cair sobre a cadeira —, eu amava-a.
Você sabe quanto eu a amava. Fiz o que ela queria que eu fizesse.
Fiz o que ela me pediu para fazer.
— Não podias ter tomado essa decisão, Lena, de esconderes
de mim, a mãe dela, algo tão importante quanto isto...
— Não, a decisão não foi minha, foi dela! Eu sei que você acha
que tem o direito de saber tudo, mas não tem. Ela não era uma
criança, não era uma menininha.
— Ela era a minha menininha!
A voz da Louise era um gemido, um lamento. Apercebi-me
de que me tinha agarrado à bancada, de que também eu estava
prestes a chorar.
A Lena voltou a falar, agora com a voz mais suave, suplicante.
— A Katie fez uma escolha. Tomou uma decisão e eu acatei-a.
— Ainda com mais gentileza, como se soubesse que se estava
a movimentar em terrenos perigosos: — E não fui a única. O Josh
fez a mesma coisa.
A Louise puxou a mão atrás e deu uma estalada na cara da Lena
com muita força. O estalo ressoou, ecoando contra as paredes.
Eu saltei para a frente e agarrei no braço da Louise.
— Não! — gritei eu. — Já chega! Já chega! — Tentei pô-la de
pé. — Tem de se ir embora.
— Deixa-a! — cortou a Lena. — O lado esquerdo da cara dela
estava vermelhíssimo, mas a sua expressão era calma. — Não te
metas, Julia. Ela pode bater-me, se quiser. Pode arrancar-me

223
PauULA HAWKINS

os olhos, puxar-me o cabelo. Pode fazer comigo o que bem enten-


der. O que é que isso importa, agora?
A Louise tinha a boca aberta, eu conseguia cheirar-lhe o hálito
azedo. Larguei-a.
— O Josh não disse nada por causa de ti — disse ela, limpando
a saliva dos lábios. — Porque tu lhe disseste para não dizer nada.
— Não, Sra. Whittaker. — O tom da Lena era perfeitamente
calmo ao colocar as costas da mão direita contra a bochecha, para
a aliviar. — Isso não é verdade. O Josh manteve a boca calada
por causa da Katie. Porque ela lhe pediu para o fazer. E, depois,
mais tarde, porque a queria proteger a si e ao pai dele. Ele achava
que aquilo vos magoaria demasiado. Saberem que ela tinha sido...
— Ela abanou a cabeça. — Ele é novo, achou que...
— Não me digas o que é que o meu filho achou — disse a
Louise. — O que ele estava a tentar fazer. Não digas mesmo.
— Ela levou a mão à garganta; um reflexo. Não, não era um reflexo:
estava a agarrar no pássaro azul que pendia da sua corrente, entre
o polegar e o indicador. — Isto — disse ela, com um silvo, e não com
uma palavra. — Não foste tu que lhe deste, pois não? — A Lena
hesitou por um momento antes de abanar a cabeça. — Foi ele, não
foi? Foi ele que lho deu. — A Louise empurrou a cadeira para trás,
arrastando-a nos ladrilhos. Ergueu-se e, com um puxão feroz, arran-
cou a corrente do pescoço, atirando-a para cima da mesa, para a
frente da Lena. — Foi ele que lhe deu essa coisa, e tu deixaste-me
andar com ela pendurada ao pescoço.
A Lena fechou os olhos por um momento, voltando a abanar
a cabeça. A rapariga dócil e apologética que se esgueirara para a
cozinha alguns minutos antes desaparecera e, no seu lugar, en-
contrava-se alguém diferente, alguém mais velho, uma adulta em
comparação com a criança desesperada e imoderada que a Louise
personificava. De repente, tive uma memória claríssima de ti, um
pouco mais nova do que a Lena é agora, uma das poucas memórias
que tenho de tu me defenderes. Havia uma professora na minha
escola que me acusara de ficar com uma coisa que não me perten-
cia, e lembro-me de tu a admoestares. Foste lúcida e calma e não
levantaste a voz quando lhe disseste quão errada estava ao fazer

224
ESCRITO NA ÁGUA

acusações sem provas, e ela ficou intimidada por ti. Lembrei-me


de quão orgulhosa fiquei de ti nessa altura e, agora, estava com
o mesmo sentimento, com a mesma sensação de calor no peito.
A Louise começou novamente a falar, com a voz muito baixa.
— Então, explica-me isto — disse ela, voltando a sentar-se
—, já que sabes tanto. Já que compreendes tanta coisa. Se a Katie
amava aquele homem, e se ele também a amava, então, porquê?
Porque é que ela fez o que fez? O que é que ele lhe fez? Para a
conduzir a isso?
A Lena virou o seu olhar para mim. Parecia amedrontada, creio,
ou talvez apenas resignada — não lhe conseguia ler bem a expres-
são. Observou-me durante um segundo, antes de fechar os olhos,
espremendo lágrimas de dentro deles. Quando voltou a falar, a sua
voz estava mais alta, mais tensa do que antes.
— Ele não a conduziu a isso. Não foi ele. — Ela suspirou.
— A Katie e eu discutimos — disse ela. — Eu queria que ela
parasse com aquilo, que deixasse de o ver. Não me parecia bem.
Achava que ela se ia meter em problemas. Achava... — Ela abanou
a cabeça. — Só não queria que ela continuasse a vê-lo.
Um lampejo de compreensão atravessou o rosto da Louise; ela
compreendeu, nesse momento, tal como eu.
— Ameaçaste-a — disse eu. — Que a denunciarias.
— Sim — disse a Lena, quase inaudivelmente. — Ameacei.

A Louise saiu sem dizer palavra. A Lena ficou sentada, imóvel,


a olhar fixamente para o rio, do lado de fora da janela, sem chorar
a de
e sem falar Eu não tinha nada para lhe dizer, nem maneir
ava
aceder a ela. Reconheci nela algo que sei que também costum
incog-
ter, algo que talvez toda a gente tenha na idade dela, uma
era que
noscibilidade fundamental. Pensei em quão estranho
endiam os
os pais acreditassem que conheciam os filhos, que compre
ou 15, OU 128
filhos. Não se lembrariam de como era ter 18 anos,
filhos.
Talvez ter filhos nos faça esquecer de quando éramos
e tenho a certeza
Lembro-me de ti, aos 17 anos, e de mim, aos 13,
éramos.
de que os nossos pais não faziam ideia de quem
— Eu menti-lhe.

225
PAULA HAWKINS

A voz da Lena quebrou-me a linha de raciocínio. Ela não se


tinha mexido, continuava a observar a água.
— À quem é que mentiste? À Katie? — Ela abanou a cabeça.
— À Louise? Mentiste acerca de quê?
— Não serve de nada contar a verdade — disse a Lena. — Agora,
já não. Mais vale ela culpar-me. Pelo menos, eu estou viva. Ela pre-
cisa de depositar todo aquele ódio nalgum lado.
— O que é que queres dizer, Lena? Do que é que estás a falar?
Ela virou os seus olhos, verdes e frios, para os meus e pareceu-
-me mais velha do que antes. Parecia-se contigo na manhã depois
de me teres tirado da água. Diferente, exausta.
— Eu não ameacei contar a alguém. Nunca lhe teria feito isso.
Amava-a. Nenhum de vós parece compreender o que isso signifi-
ca, é como se não soubessem, de todo, o que é o amor. Eu teria feito
tudo por ela.
— Então, se tu não ameaçaste...
Creio que sabia a resposta antes de ela a ter dado.
— Foi a mamã — disse ela.

226
JULES

A DIVISÃO PARECIA MAIS FRIA; se eu acreditasse em fantasmas, diria


que te tinhas juntado a nós.
— De facto, nós discutimos, como eu disse. Eu não queria que
eia continuasse a vê-lo. Ela disse que tanto lhe fazia o que eu acha-
va, que isso não importava. Disse que eu era imatura, que não com-
preendia o que era estar numa relação a sério. Chamei-lhe puta,
e ela chamou-me virgem. Foi esse tipo de discussão. Estúpida, hor-
rível. Quando a Katie se foi embora, apercebi-me de que a mama
estava no seu quarto, mesmo ao lado do meu — eu pensava que ela
tinha saído. Ela ouvira aquilo tudo. Disse-me que ia ter de contar à
Louise. Implorei-lhe que não o fizesse, disse-lhe que isso destruiria
completamente a vida da Katie. Então, ela disse que talvez o melhor
fosse falar com a Helen Townsend, porque, afinal de contas, o Mark
é que estava a fazer algo de errado, e a Helen é a chefe dele. Ela disse
que talvez conseguissem que ele fosse despedido, mantendo o nome
sabia
da Katie fora disso. Eu disse-lhe que isso era estúpido, e ela
feito
que era. Não seriam capazes de despedi-lo assim, teria de ser
Seria
oficialmente. A polícia envolver-se-ia. Aquilo iria a tribunal.
nos
tornado público. E, mesmo que o nome da Katie não aparecesse
saberia...
jornais, os pais dela descobririam, toda a gente na escola
fundo,
Essas coisas não permanecem confidenciais. — Ela respirou
disse-lhe
expirando lentamente. — Na altura, eu expliquei à mamã,
que a Katie preferia morrer a passar por isso.
PAULA HAWKINS

A Lena inclinou-se para a frente, abriu a janela da cozinha e,


depois, vasculhou o bolso da sua camisola com capuz e tirou de
lá um maço de cigarros. Acendeu um e soprou o fumo para o ar.
— Eu supliquei-lhe — prosseguiu ela. — Quer dizer, supliquei-
“lhe mesmo, e a mamã disse-me que teria de pensar no assunto.
Disse-me que eu tinha de convencer a Katie a deixar de o ver, que
aquilo era um abuso de poder e que era completamente errado.
Prometeu-me que não faria nada sem me dar tempo para persua-
dir a Katie.
A Lena esmagou o seu cigarro quase por fumar sobre o para-
peito da janela e atirou-o para a água.
— Eu acreditei nela. Confiei nela. — Voltou a virar-se para me
encarar. — Mas, depois, alguns dias mais tarde, vi a mamã no
parque de estacionamento da escola, a falar com o Sr. Henderson.
Não sei acerca do que é que eles estavam a falar, mas não parecia
amistoso, e eu soube que tinha de dizer qualquer coisa à Katie,
pelo sim, pelo não, porque ela precisava de saber, precisava de
estar preparada... — A voz dela foi-se abaixo, e engoliu em seco.
— Ela morreu três dias mais tarde.
A Lena fungou, limpando o nariz com as costas da mão.
— O que se passa é que, depois, quando falámos acerca disso,
a mamã jurou que nunca, sequer, tinha mencionado a Katie ao
Mark Henderson. Disse que estavam a discutir acerca de mim,
acerca dos problemas que eu andava a ter nas aulas.
— Então... Lena, espera lá, não compreendo. Estás a dizer
que a tua mãe não ameaçou denunciá-los?
— Eu também não conseguia.compreender. Ela jurou-me que
não tinha dito nada, mas sentia-se tão culpada, e eu apercebia-me
disso. Eu sabia que a culpa era minha, mas ela continuava a com-
portar-se como se fosse dela. Deixou de nadar no rio e tornou-se
obcecada por contar a verdade, não parava de falar nisso, em como
era errado ter medo de enfrentar a verdade, em contar a verdade
às pessoas, ela não parava de falar nisso...
(Eu não sabia bem se isso era estranho ou perfeitamente con-
sistente: tu não contavas a verdade, nunca contaste — as histó-
rias que tinhas andado a contar não eram a verdade, eram a tua

228
ESCRITO NA ÁGUA

verdade, cumpriam o teu próprio objetivo. Eu sei bem disso.


A maior parte da minha vida, estive no lado sujo da tua verdade.)
— Mas ela não o fez, pois não? Nunca contou a ninguém,
nem escreveu acerca do Mark Henderson; na sua... história acerca
da Katie, não há nenhuma menção a ele.
A Lena abanou a cabeça.
— Não, porque eu não a deixei. Discutimos e voltámos a dis-
cutir e eu estava sempre a dizer-lhe que adoraria ver aquele monte
de merda ir para a prisão, mas que isso teria partido o coração
à Katie. E que significaria que ela teria feito o que fez em vão.
— Ela engoliu em seco. — Quer dizer, eu sei. Sei que o que a
Katie fez foi estúpido, completamente inútil, mas ela morreu para
o proteger. E, se nós fôssemos à polícia, isso quereria dizer que
a morte dela não significava nada. Mas a mamã não parava de
falar acerca da verdade, de como era irresponsável deixar as coisas
passarem em branco. Ela estava... Não sei. — À Lena olhou para
cima, para mim, com um olhar tão calmo como aquele com que
tinha fixado a Louise, e disse: — Tu saberias disto tudo, Julia, se
ao menos tivesses falado com ela.
— Lena, lamento, lamento isso, mas ainda não vejo porque é...
— Sabes como é que eu sei que a minha mãe se matou? Sabes
porque é que tenho a certeza? — Eu abanei a cabeça. — Porque,
no dia em que ela morreu, tivemos uma discussão. Começou
sem assunto, mas acabou por ser acerca da Katie, como tudo era.
Eu estava a gritar com ela e a chamar-lhe má mãe e a dizer que, se
ela tivesse sido boa mãe, poderia ter-nos ajudado, ajudado a Katie,
e, então, nada disto teria acontecido. E ela disse-me que tentara,
de facto, ajudar a Katie, que, certo dia, a vira a caminhar para casa
já tarde e que parara para lhe oferecer boleia. Ela disse que a Katie
estava toda perturbada e que não lhe quisera dizer porquê, e a
posso
mamã disse: Não tens de atravessar isto sozinha. Disse: Eu
ajudar-te. E: A tua mãe e o teu pai também te podem ajudar. Quando
antes,
lhe perguntei porque é que ela nunca me contara isso
ra,
ela não mo disse. Perguntei-lhe quando é que isso acontece
A Katie foi
e ela disse que fora no solstício de verão, a 21 de junho.
a mamã que
para o poço nessa noite. Sem ser sua intenção, foi

27:89
PauLa HaWkKINS

a fez enlouquecer. E, portanto, a Katie também acabou por enlou-


quecer a mamã.
Uma onda de tristeza apoderou-se de mim, uma vaga tão vio-
lenta que achei que era capaz de me fazer cair da cadeira. Foi isso,
Nel? Depois disto tudo, atiraste-te mesmo, e fizeste-o por te senti-
res culpada e teres desesperado.
Desesperaste porque não tinhas ninguém a quem recorrer
— nem à tua filha, zangada e enlutada, nem, certamente, a mim,
porque sabias que, se me ligasses, eu não atenderia. Desesperaste,
Nel? Atiraste-te?
Eu conseguia sentir a Lena a observar-me, e sabia que ela con-
seguia ver a minha vergonha, que percebia que, finalmente, eu
entendera que também eu era culpada. Mas ela não parecia triun-
fante nem satisfeita, parecia apenas cansada.
— Eu não contei nada disto à polícia porque não queria que
ninguém soubesse. Não queria que ninguém a culpasse — mais
do que já culpam, seja como for. Ela não o fez por ódio. E sofreu
o suficiente, não sofreu? Sofreu coisas que não devia ter sofrido,
porque a culpa não era dela. Não era dela nem minha. — Ela lançou-
-me um pequeno sorriso triste. — E não foi tua. Não foi da Louise
nem do Josh. A culpa não foi nossa.
Eu tentei abraçá-la, mas ela empurrou-me.
— Não faças isso — disse ela. — Por favor, eu só... — Sus-
pendeu a fala, levantando o queixo. — Preciso de estar sozinha.
Só um bocadinho. Vou dar um passeio.
Deixei-a ir-se embora.

230
NICKIE

NICKIE FEZ O QUE JEANNIE LHE DISSERA para fazer: foi falar com Lena
Abbott. O tempo tinha arrefecido, com uma pontinha de outono
a antecipar-se, pelo que se cobriu com um casaco preto, enfiou as
folhas no bolso interior e caminhou em direção à Casa do Moinho.
Mas, quando lá chegou, apercebeu-se de que havia lá outras pes-
soas, e não estava com disposição nenhuma para uma multidão.
Especialmente, não depois do que aquela Whittaker dissera, acer-
ca de ela só se interessar por dinheiro e explorar o sofrimento das
pessoas, o que não era, de modo algum, justo. Isso nunca fora o
que ela pretendera. Se ao menos as pessoas lhe dessem ouvidos...
Ficou diante da casa durante um bocado, a olhar, mas doftam-lhe
as pernas e tinha a cabeça cheia de ruídos, pelo que deu meia-
«volta e fez todo o caminho de regresso a casa. Nalguns dias, sentia
a sua idade, e, noutros, sentia a da sua mãe.
Não tinha estômago para o dia, para a luta que se avizinhava.
De volta à sua sala, dormitou na cadeira e, depois, acordou e pen-
sou que talvez tivesse visto Lena a dirigir-se ao poço, mas podia
ter sido um sonho, ou uma premonição. Mais tarde, no entanto,
,
muito mais tarde, no escuro, teve a certeza de ter visto a rapariga
movendo-se como um fantasma ao atravessar a praça, um fantasma
con-
com um propósito, a caminhar bastante rapidamente. Nickie
que
seguiu sentir o ar a dividir-se quando ela passou, a energia
emanava dela, conseguiu senti-la lá em cima, na sua salinha escura,

226]
PauLA HAWKINS

e isso animou-a, tirou-lhe anos de cima. Aquela era uma rapariga


com uma missão. Aquela rapariga tinha pelo na venta, era uma
rapariga perigosa. Do tipo com que não nos devemos meter.
Vendo Lena assim, Nickie lembrou-se de si própria, em tem-
pos idos; isso fez com que lhe apetecesse levantar-se e dançar, fez
com que lhe apetecesse uivar à Lua. Bem, os seus dias de dança
podiam ter terminado, mas, com dores ou sem elas, decidiu que,
essa noite, iria até ao rio. Queria senti-las de perto, todas aquelas
mulheres problemáticas, aquelas raparigas problemáticas, peri-
gosas e vitais. Queria sentir o seu espírito, banhar-se nele.
Tomou quatro aspirinas e pegou na bengala; depois, desceu as
escadas, lenta e cuidadosamente, e saiu pela porta das traseiras,
para o beco atrás das lojas. Atravessou a praça a coxear, em direção
à ponte.
Aquilo parecia levar imenso tempo; hoje em dia, tudo demorava
tanto. Ninguém nos avisava acerca disso quando éramos mais novos,
ninguém nos dizia quão lentos nos tornaríamos, quão aborreci-
dos ficaríamos com a nossa lentidão. Ela devia ter previsto aquilo,
supunha, e riu-se para si mesma na escuridão.
Nickie conseguia lembrar-se de um tempo em que era rápida
a andar, veloz. Nessa altura, quando era nova, ela e a irmã faziam
corridas junto ao rio, muito para montante. Arrancavam juntas,
com as saias enfiadas nas cuecas, sentindo cada pedra, cada fenda
no solo duro, através das solas de borracha dos seus frágeis ténis
de lona. Eram imparáveis. Mais tarde, muito mais tarde, mais ve-
lhas e um pouco mais lentas, encontravam-se no mesmo local,
a montante, e caminhavam juntas, às vezes vários quilómetros,
frequentemente em silêncio.
Foi numa dessas caminhadas que avistaram Lauren, sentada
nos degraus da casa de Anne Ward, com um cigarro na mão e a
cabeça inclinada para trás, contra a porta. Jeannie chamou-a e,
quando Lauren olhou para cima, viram que um dos lados da sua
cara tinha todas as cores do pôr do Sol.
— Ele é um diabo, o velho dela — dissera Jeannie.
Dizem que, ao falarmos do Diabo, sentimos calor. Enquanto
estava ali parada, a recordar a irmã, com os cotovelos encostados

2a
ESCRITO NA ÁGUA

à pedra fria da ponte, o queixo pousado nas mãos e os olhos virados


para a água, Nickie sentiu-o. Sentiu-o antes de o ver. Não pronun-
ciara o seu nome, mas talvez o sussurro de Jeannie o tivesse
conjurado, o Satã da vila. Nickie virou a cabeça e lá estava ele,
a caminhar na sua direção, vindo do lado leste da ponte, com uma
bengala numa mão e um cigarro na outra. Nickie cuspiu para o chão,
como sempre fazia, e disse a sua imprecação.
Normalmente, ela deixaria as coisas como estavam, mas na-
quela noite — sabe-se lá porquê, talvez estivesse a sentir o espírito
de Lena, ou de Libby, ou de Anne, ou de Jeannie — gritou-lhe:
— Agora, já não falta muito — disse ela.
Patrick estacou. Olhou para cima, como se estivesse surpreen-
dido por vê-la.
— Que é que foi? — rosnou ele. — O que é que disse?
— Disse que, agora, já não falta muito.
Patrick deu um passo na direção dela e ela voltou a sentir o espí-
rito, raivosamente quente, a subir-lhe do estômago para o peito e
até à boca.
— Ultimamente, têm andado a falar comigo — disse ela.
Patrick acenou-lhe com uma mão, desprezando-a, e disse
qualquer coisa que ela não conseguiu ouvir. Continuou no seu
caminho, mas, ainda assim, o espírito recusava-se a ser silencia-
do. Ela gritou-lhe:
— A minha irmã! A sua mulher! A Nel Abbott também. Todas
elas, têm todas andado a falar comigo. E ela tinha-o topado, não
tinha? A Nel Abbott?
— Cale-se, sua velha maluca — lançou Patrick.
Fingiu que se ia dirigir a ela, uma simulação apenas, e Nickie
sobressaltou-se. Ele riu-se, voltando a virar-se.
— Da próxima vez que falar com ela — gritou ele, por sobre
o ombro —, por favor, mande os meus cumprimentos à sua irmã.

233
JULES

EsPEREI NA COZINHA que a Lena chegasse a casa — liguei-lhe para


o telemóvel, deixei-lhe mensagens no voicemail. Inquietei-me
desesperadamente e, na minha cabeça, tu ralhavas-me por não ir
atrás dela, como foste atrás de mim. Tu e eu contamos as nossas
histórias de maneiras diferentes. Eu sei disso, porque li as tuas
palavras: Quando eu tinha 17 anos, salvei a minha irmã de se afogar,
dizes tu, mas que memória seletiva que tu tens, Nel! Ainda con-
sigo sentir a tua mão na minha nuca, ainda me consigo lembrar
de lutar contra ti, a agonia dos pulmões sem ar, o pânico gelado,
e, mesmo no meu torpor estúpido, desesperado e bêbedo, eu sabia
que me ia afogar. Tu fizeste-me uma amona, Nel.
Não durou muito tempo. Mudaste de ideias. Com o braço à volta
do meu pescoço, arrastaste-me para a margem, mas eu sempre
soube que havia uma parte de ti que me queria deixar lá.
Disseste-me para nunca falar acerca disso, obrigaste-me a
prometer, para o bem da mamã, e, portanto, eu arrumei o assun-
to. Suponho que sempre tenha achado que, um dia, num futuro
distante, quando fôssemos velhas e tu fosses diferente, quando
estivesses arrependida, regressaríamos a ele. Falaríamos acerca do
que acontecera, acerca do que eu fizera e do que tu fizeras, acer-
ca do que tu disseras e de como acabámos por nos odiar uma à
outra. Mas tu nunca disseste que estavas arrependida. E nunca
me explicaste por que razão é que tinhas sido capaz de me tratar,

234
ESCRITO NA ÁGUA

à tua irmã mais nova, como me trataste. Tu nunca mudaste,


limitaste-te a morrer, e eu sinto que me arrancaram o coração
do peito.
Quero, tão desesperadamente, voltar a ver-te.

Esperei pela Lena até que, derrotada pelo cansaço, acabei por
ir para a cama. Tinha tido tanta dificuldade em dormir desde que
regressara a este sítio e estava a pagar por isso. Colapsei, entrando
e saindo de sonhos, até ouvir a porta do andar de baixo a abrir-
-se. Os passos da Lena nas escadas. Ouvi-a entrar no seu quarto
e ligar a música, suficientemente alto para que eu ouvisse uma
mulher a cantar.

That blue-eyed girl


said “No more”,
and that blue-eyed girl
became blue-eyed whore.

Lentamente, fui arrastada, de novo, para o sono. Quando voltei


a acordar, a música ainda estava a tocar, a mesma canção, agora
mais alto. Queria que parasse, estava desesperada por que paras-
se, mas apercebi-me de que não me conseguia levantar da cama.
Perguntei-me se estaria, de todo, acordada, porque, se estivesse
acordada, o que seria aquele peso no meu peito, a esmagar-me?
Não conseguia respirar, não me conseguia mexer, mas ouvia
a mulher ainda a cantar.

Little fish big fish, swimming in the water -


Come back here man, gimme my daughter.

Subitamente, o peso desapareceu e eu ergui-me da cama,


se
furiosa. Tropecei até ao corredor e gritei à Lena para que baixas
O quarto
a música. Empurrei a maçaneta da porta dela e abri-a.
beatas de
estava vazio. Com as luzes ligadas, as janelas abertas,
A música
cigarros no cinzeiro, um copo junto à cama vazia.
latejava
parecia estar a ficar cada vez mais alta, a minha cabeça

2Bs:
PauLA HAWKINS

e o maxilar doía-me, e eu continuei a gritar, muito embora não


houvesse lá ninguém. Descobri a coluna do iPod e arranquei a
ficha da parede e, finalmente, por fim, só conseguia ouvir o som
da minha própria respiração e o meu próprio sangue a pulsar-me
nas orelhas.
Regressei ao meu quarto e voltei a telefonar à Lena: como ela
não atendeu, tentei o Sean Townsend, mas a chamada foi direta-
mente para o voicemail. No andar de baixo, a porta da rua estava
trancada e as luzes estavam todas ligadas. Fui de divisão em divi-
são, desligando-as uma a uma, tropeçando como se estivesse
bêbeda, como se estivesse drogada. Deitei-me no assento da jane-
la, onde me costumava sentar a ler livros com a minha mãe, onde,
há 22 anos, o teu namorado me violou, e voltei a adormecer.
Sonhei que a água estava a subir. Eu estava no andar de cima,
no quarto dos meus pais. Estava deitada na cama, com o Robbie
a meu lado. Lá fora, a chuva caía em bátegas, o rio não parava de
subir e, de algum modo, eu sabia que o andar de baixo da casa se
estava a inundar. Lentamente, a princípio, apenas uma gota de
água a infiltrar-se por debaixo da porta, e depois mais rapidamen-
te, com as portas e as janelas a rebentarem e a abrirem-se, e com
a água suja a entrar em casa, embatendo nas escadas. De algu-
ma maneira, conseguia ver a sala de estar, submersa num verde
turvo, com o rio a reclamar a casa, e a água a chegar ao pescoço
do Cão Afogado, só que, agora, este já não era um animal pintado,
era verdadeiro. Os seus olhos estavam brancos e esbugalhados de
pânico, e estava a lutar pela vida. Tentei levantar-me e ir lá abaixo
para o salvar, mas o Robbie não me deixava, estava a puxar-me o
cabelo.
Acordei sobressaltada, saí em pânico do meu pesadelo. Verifi-
quei o meu telemóvel, e já passava das três da manhã. Conseguia
ouvir qualquer coisa, alguém a movimentar-se pela casa. A Lena
tinha voltado. Graças a Deus. Ouvi-a a descer as escadas, com os
chinelos a baterem contra a pedra. Ela parou, enquadrada pela
porta, com a luz atrás dela a iluminar-lhe a silhueta.
Começou a avançar na minha direção. Estava a dizer qualquer
coisa, mas eu não conseguia ouvi-la, e vi que não estava, de todo,

236
ESCRITO NA ÁGUA

a usar chinelos, estava a usar os sapatos de salto alto que levara ao


funeral e o mesmo vestido preto, que se achava encharcado. Tinha
o cabelo colado à cara, a pele cinzenta e os lábios azuis. Estava
morta.
Acordei, a arfar. Tinha o coração aos pulos no peito, e a ban-
queta por debaixo de mim estava alagada em suor. Sentei-me,
confusa, olhei para os quadros à minha frente, que pareciam
deslocar-se, e pensei: Ainda estou a dormir. Não consigo acordar.
Não consigo acordar. Belisquei a minha pele com tanta força quan-
to conseguia, cravei as unhas na carne do meu antebraço e vi mar-
cas reais, senti uma dor real. A casa estava escura e silenciosa,
exceto pelo sussurro calmo do rio. Chamei pelo nome da Lena.
Corri para o andar de cima e ao longo do corredor; a porta da
Lena estava entreaberta e a luz ligada. O quarto estava exatamente
como eu o deixara horas antes, com o copo de água e a cama des-
feita e o cinzeiro intocados. A Lena não estava em casa. Não estivera
em casa. Desaparecera.

237
PARTE TRÊS
SEGUNDA-FEIRA, 24 DE AGOSTO

MARK

ERA TARDE QUANDO ELE CHEGOU A CASA, um pouco depois das duas
da manhã. O seu voo de Málaga atrasara-se e, depois, ele perdera
o talão do parque de estacionamento e levara uns enfurecedores
45 minutos a descobrir o carro.
Agora, desejava ter demorado mais tempo, desejava nunca ter
encontrado o carro, de todo, ter tido de ficar num hotel. Assim,
poderia ter sido poupado, só durante mais uma noite. Porque,
quando se apercebeu, na escuridão, de que todas as janelas da sua
casa tinham sido partidas, soube que não iria dormir, nem nessa
noite nem em nenhuma. O descanso tinha terminado, a paz de
espírito fora destruída. Ele fora traído.
Também desejava ser mais frio, mais duro, ter arrastado a sua
noiva consigo. Nesse caso, quando viessem buscá-lo, poderia dizer:
«Eu? Acabo de regressar de Espanha. Quatro dias na Andaluzia com
a minha noiva. A minha namorada de 29 anos, atraente e com um
bom emprego.»
No entanto, isso não teria feito diferença, pois não? Não teria
importado o que ele dissesse, o que fizesse, como vivera a sua vida:
os
crucificá-lo-iam de qualquer forma. Isso não importaria para
o facto
jornais, para a polícia, para a escola, para a comunidade,
de andar
de ele não ser um depravado qualquer, com um historial
ria que
atrás de raparigas com metade da sua idade. Não importa
por ele.
ele se tivesse apaixonado, e que se tivessem apaixonado

241
Pauta HAWKINS

A reciprocidade dos seus sentimentos seria ignorada: a maturi-


dade de Katie, a sua seriedade, a sua inteligência, a sua escolha
— nada disso importaria. A única coisa que veriam seria a idade
dele, 29, e a dela, 15, e estraçalhar-lhe-iam a vida.
Ele ficou parado no relvado, olhando fixamente para as janelas
partidas, e soluçou. Se restasse alguma coisa para destruir, então,
ele mesmo tê-lo-ia feito. Ficou parado no relvado e amaldiçoou-a,
amaldiçoou o dia em que a tinha visto pela primeira vez, tão mais
bonita do que as suas amigas tolas e autoconfiantes. Amaldiçoou
o dia em que ela caminhara lentamente em direção à sua secre-
tária, com as coxas cheias a bambolearem suavemente e com um
sorriso nos lábios, e lhe perguntara: «Sr. Henderson? Posso pedir-
lhe ajuda numa coisa?» O modo como ela se inclinara para ele,
suficientemente perto para que ele lhe conseguisse cheirar a pele
limpa e sem perfume. A princípio, ficara surpreso, e zangado,
pensara que ela estava a brincar com ele. A provocá-lo. Não fora ela
que começara aquilo tudo? E, então, porque haveria de ser ele a
sofrer as consequências sozinho? Ficou parado no relvado, com lá-
grimas nos olhos, com o pânico a subir-lhe pela garganta, e odiou
Katie, e odiou-se a si mesmo, e odiou a estúpida confusão em que
se tinha metido, e da qual, agora, não via maneira de escapar.
Que fazer? Entrar em casa, fazer as malas e ir-se embora? Fugir?
A sua mente nublou-se: para onde ir, e como? Já estariam a vigiá-lo?
Deviam estar. Se levantasse dinheiro, saberiam? Se tentasse voltar
a sair do país, estariam lá? Imaginou a cena, o guarda alfandegário
a olhar-lhe, de relance, para a fotografia e a pegar num telefone,
agentes da polícia a arrastarem-no de uma fila de veraneantes,
os olhares curiosos nos seus rostos. Saberiam, quando o vissem,
o que ele era? Não parecia um traficante de droga, nem um terro-
rista — não: devia ser outra coisa. Algo pior. Olhou para as janelas
da casa, vazias e mandadas abaixo, e imaginou que eles estavam lá
dentro, que estavam lá, à sua espera, que já tinham vasculhado as
suas coisas, os seus livros e os seus papéis, que já tinham virado
a casa do avesso à procura de provas daquilo que ele fizera.
E não teriam encontrado nada. Sentiu uma réstia de esperança
muito ténue. Não havia nada a encontrar. Nenhuma carta de amor,

242
ESCRITO NA ÁGUA

nenhuma fotografia no seu computador portátil, nenhuma prova


sequer de que ela alguma vez entrara em sua casa (os lençóis da
cama há muito que tinham ido para o lixo, toda a casa fora limpa,
desinfetada, esfoliada de qualquer vestígio remanescente dela).
Que provas poderiam eles ter, exceto as fantasias de uma rapariga
adolescente e vingativa? Uma rapariga adolescente que tentara, ela
própria, cair nas suas graças e que fora retumbantemente recha-
çada. Ninguém sabia, ninguém sabia ao certo, o que se passara
entre ele e Katie, e ninguém precisava de saber. Nel Abbott estava
reduzida a cinzas, e a palavra da filha dela valia mais ou menos
o mesmo.
Ele rangeu os dentes, procurou as chaves no bolso e, depois,
deu a volta à casa e abriu a porta das traseiras.

Ela atacou-o antes que ele tivesse tempo de acender a luz.


Mal parecia feita de carne, apenas uma boca voraz, dentes e unhas.
Ele empurrou-a, mas ela voltou. Que escolha é que ele tinha?
Que alternativa é que ela lhe deixava?
E, agora, havia sangue no chão e ele não tinha tempo para
o limpar. Estava a clarear. Tinha de se ir embora.

243
JULES

(OCORREU-ME MUITO SUBITAMENTE. UMA EPIFANIA. Num momento,


estava aterrorizada e em pânico e, no seguinte, não estava, porque
sabia. Não onde a Lena estava, mas quem ela era. E, com isso,
podia começar a procurá-la.
Eu estava sentada na cozinha, confusa, atordoada. A polícia
tinha-se ido embora, regressado ao rio, para continuar com as
buscas. Disseram-me para ficar ali, pelo sim, pelo não. Para a even-
tualidade de ela vir para casa. Disseram-me para continuar a
telefonar-lhe, para manter o telemóvel ligado.
— Está bem, Julia? Mantenha o telemóvel ligado.
Falaram comigo como se eu fosse uma criança.
Não podia levá-los a mal, suponho, porque tinham estado ali
sentados, a fazer-me perguntas a que eu não sabia responder.
Sabia quando é que tinha visto a Lena pela última vez, mas não
sabia dizer quando é que ela tinha estado em casa pela última vez.
Não sabia que roupas usava quando saíra; não me lembrava do
que trazia vestido quando a vira pela última vez. Não conseguia
distinguir o sonho da realidade: fora a música real, ou também
a imaginara? Quem trancara a porta, quem acendera as luzes?
Os detetives olharam para mim com desconfiança e desaponta-
mento: porque é que eu a deixara ir-se embora, se ela estava tão per-
turbada depois da sua confrontação com a Louise Whittaker? Como
é que eu fora capaz de não correr atrás dela, para a reconfortar?

244
ESCRITO NA ÁGUA

Vi os olhares que eles trocavam, o julgamento implícito. Que tipo


de guardiã será esta mulher?
Tu também estavas na minha cabeça, a admoestar-me. Porque
é que não foste atrás dela, como eu fui atrás de ti? Porque é que não a
salvaste, como eu te salvei? Quando eu tinha 17 anos, salvei a minha
irmã de se afogar. Quando tinhas 17 anos, Nel, foste responsável
por eu ir para dentro de água e fizeste-me uma amona. (Aquela
velha discussão, para trás e para a frente — falas tu, falo eu, falas
tu, falo eu. Estava a perder a paciência para isso, não queria con-
tinuar mais.)
E foi então que aconteceu. No burburinho da exaustão, na emo-
ção doentia do medo, vi algo, avistei qualquer coisa. Era como se
algo se movimentasse, uma sombra imediatamente fora do meu
campo de visão. Fui realmente eu, perguntaste tu, a responsável por
teres ido para dentro de água? Foste tu, ou foi o Robbie? Ou uma
combinação dos dois?
O chão pareceu abanar e agarrei-me à bancada da cozinha,
para me equilibrar. Uma combinação dos dois. Senti-me sem fôlego,
com o peito apertado como se fosse ter um ataque de pânico.
Esperei que o mundo desaparecesse, mas não desapareceu. Conti-
nuava de pé, continuava a respirar. Uma combinação. Corri para
as escadas, subi-as de uma assentada, entrei no teu quarto e ei-la!
Aquela fotografia de ti com a Lena em que ela está a sorrir com um
sorriso predador — isso não é teu. Esse sorriso não é teu. É dele.
É do Robbie Cannon. Consigo vê-lo agora, a olhar para mim, dei-
tado sobre o teu corpo, a enterrar-te os ombros na areia. Eis quem
ela é, quem a Lena é. É uma combinação de vocês os dois. A Lena
é tua, e é dele. A Lena é filha do Robbie Cannon.

245
JULES

SENTEI-ME NA CAMA, COM A MOLDURA da fotografia na mão. Tu e ela


sorriam-me, levando-me lágrimas escaldantes aos olhos, e, por fim,
eu chorei por ti, como devia ter feito no teu funeral. Pensei nele
naquele dia, no modo como ele olhara para a Lena — eu interpre-
tara aquele olhar de modo completamente errado. Não era preda-
tório, era proprietário. Ele não estava a olhar para ela como uma
rapariga que pretendesse seduzir ou possuir. Ela já lhe pertencia.
Portanto, talvez ele a tivesse vindo buscar, para levar o que era
legitimamente seu?
Não era difícil descobri-lo. O pai dele costumava ter uma vis-
tosa cadeia de stands de automóveis por toda a região nordeste.
Cannon Cars, chamava-se a companhia. É claro que já não existia,
tinha falido há anos, mas havia uma versão mais pequena, mais
triste e barata, em Gateshead. Descobri um site de Internet mal
concebido, com uma fotografia dele na página inicial, e a foto-
grafia, pelo aspeto, já fora tirada há algum tempo. Nessa altura,
ele era menos barrigudo, ainda com vestígios do rapaz elegante e
cruel no rosto.
Não telefonei à polícia, porque tinha a certeza de que eles não
me dariam ouvidos. Limitei-me a pegar nas chaves do carro e a sair.
Estava a sentir-me quase satisfeita comigo mesma ao guiar para
fora de Beckford — compreendera tudo, estava a tomar conta das
coisas. E, quanto mais me afastava da vila, mais forte me sentia,
ESCRITO NA ÁGUA

com a névoa do cansaço a desanuviar-se, e os meus membros a


descontraírem. Sentia-me esfaimada, selvaticamente esfaimada,
e deleitava-me com aquela sensação; mordi o interior da boche-
cha e soube-me a ferro. Uma qualquer parte antiga de mim, uma
relíquia furiosa e destemida, tinha vindo à superfície; imaginei-
-me a atacá-lo, a arranhá-lo. Visualizei-me como uma amazona,
a desfazê-lo aos bocados.

A garagem ficava numa zona degradada da vila, debaixo dos


arcos da linha férrea. Um local sinistro. Quando cheguei, já tinha
perdido a coragem. As minhas mãos tremiam ao estendê-las para
pôr as mudanças ou fazer pisca, e a boca sabia-me a bílis, não a
sangue. Estava a tentar concentrar-me no que tinha de fazer —
encontrar a Lena, proteger a Lena —, mas toda a minha energia
era minada pelo esforço necessário para afastar as memórias que
não deixara emergirem durante mais de metade da minha vida,
memórias essas que, agora, vinham à superfície como pedaços de
madeira a saírem da água.
Estacionei do outro lado da estrada, diante da garagem. Havia
um homem cá fora, a fumar um cigarro — um homem mais
novo, não o Cannon. Saí do carro e, com as pernas trémulas, atra-
vessei a estrada para falar com ele.
— Seria possível falar com o Robert Cannon? — disse eu.
— Aquele veículo é seu, é? — perguntou ele, apontando para
o carro atrás de mim. — Pode trazê-lo cá para dentro...
— Não, não é por causa disso. Preciso de falar com... Ele está cá?
— Não é por causa do carro? Ele está no escritório — disse
ele, inclinando a cabeça para apontar para trás de si. — Se quiser,
pode entrar.
Espreitei para o espaço escuro e cavernoso, e o meu estômago
contraiu-se.
— Não — disse eu, tão firmemente quanto conseguia —, pre-
feria falar com ele aqui fora.
Ele chupou os dentes e atirou o seu cigarro meio fumado para
a rua.
— Como queira — disse ele, e dirigiu-se lá para dentro.

247
PauLA HawkINS

Enfiei a mão no bolso e apercebi-me de que tinha o telemóvel


na mala, que ainda estava no lugar do morto. Virei-me para voltar
atrás, sabendo que, se o fizesse, não regressaria, que, se chegasse
à segurança do carro, perderia completamente toda a coragem,
que ligaria o motor e me iria embora.
— Posso ajudá-la? — Gelei. — Queria alguma coisa, menina?
Virei-me para trás, e lá estava ele, ainda mais feio do que me
parecera no dia do funeral. A sua cara tornara-se pesada e melan-
cólica, o seu nariz arroxeado, mapeado por veias azuis que se
espalhavam para as suas bochechas como um estuário. O seu an-
dar era-me familiar, abanando de um lado para o outro, como um
navio, ao aproximar-se. Mirou-me.
— Eu conheço-a?
— É o Robert Cannon? — perguntei.
— Sim — disse ele. — Sou o Robbie.
Durante uma fração de segundo, senti pena dele. Foi o modo
como disse o seu nome, usando ainda o diminutivo. Robbie é um
nome de criança, o nome de um rapazinho que corre pelo jardim
das traseiras e trepa às árvores. Não é o nome de um brutamontes
falhado, de um miserável qualquer que gere uma garagem duvi-
dosa numa zona merdosa da vila. Ele avançou na minha direção
e eu captei-lhe o cheiro, a transpiração e a álcool, e toda a piedade
se evaporou à medida que o meu corpo se lembrou da sensação
do dele, a esmagar-me a respiração.
— Olhe, querida, eu estou muito ocupado — disse ele.
As minhas mãos cerraram-se em punhos.
— Ela está aqui? — perguntei.
— Quem é que está aqui? — Ele franziu o sobrolho, depois
revirou os olhos, enfiando a mão no bolso das calças de ganga, à
procura dos cigarros. — Oh, foda-se, não é amiga da Shelley, pois
não? Porque eu disse ao pai dela que não vejo essa gaja há sema-
nas, pelo que, se for isso, pode dar meia-volta, está bem?
— À Lena Abbott — disse eu, com a voz pouco mais do que
um silvo. — Está aqui?
Ele acendeu o cigarro. Atrás dos seus olhos, castanhos e baços,
algo brilhou.

248
ESCRITO NA ÁGUA

— Está à procura de quem? Da filha da Nel Abbott? Quem é


você? — Olhou em redor. — Porque acha que a filha da Nel estaria
aqui?
Não estava a fingir. Era demasiado estúpido para fingir, dava
para perceber. Ele não sabia onde estava a Lena. Não sabia quem
ela era. Quanto mais tempo eu ficasse ali, mais ele se questiona-
ria. Mais eu revelaria.
— Espere — disse ele, colocando uma mão no meu ombro,
e eu virei-me, afastando-o de mim. — Calma! — disse ele, levan-
tando as mãos e olhando em redor como se procurasse algum
apoio. — O que é que se passa aqui? Você é...? — Semicerrou
os olhos na minha direção. — Eu vi-a, você estava no funeral.
— Finalmente, fez-se-lhe luz. — Julia? — A sua cara abriu-se
num sorriso. — Julia! C'um caraças. Não te reconheci antes...
— Fitou-me, da cabeça aos pés. — Julia. Porque é que não dis-
seste nada?
Ofereceu-me uma chávena de chá. Eu comecei a rir-me e não
conseguia parar, ri até as lágrimas me correrem pela cara abaixo,
enquanto ele estava para ali, primeiro também a rir, até que a sua
hilaridade incerta murchou e ficou parado, apático e sem com-
preender, a observar-me.
— O que é que se passa? — perguntou ele, irritado.
Limpei os olhos com as costas da mão.
— A Lena fugiu — disse eu. — Tenho andado à procura dela
por toda a parte, e pensei que talvez...
— Bem, ela não está aqui. Por que raio é que estaria aqui? Eu nem
sequer conheço a miúda, a primeira vez que lhe pus a vista em
cima foi no funeral. Fez-me um bocado de impressão, para ser sin-
cero. É tão parecida com a Nel. — Ele reorganizou as feições numa
imitação de preocupação. — Fiquei triste por saber o que acontecera.
Mesmo triste, Julia. — Voltou a tentar tocar-me, mas eu afastei-
-me. Ele aproximou-se mais um passo. — Eu só... Não posso crer
que és a Julia! Estás tão diferente. — Um sorriso feio atravessou»
lhe o rosto. — Não sei como é que me pude esquecer — disse ele,
calmamente, em voz baixa. — Tirei-te os três, não foi, rapariga?
— Riu-se. — Já lá vai muito tempo.

249
PauLa HawWkKINS

Tirei-te os três. Uma expressão demasiado inocente, muito


distante do que foi sentir a sua língua viscosa na minha boca,
e os seus dedos imundos a abrirem-me. Tive a impressão de que
la vomitar.
— Não, Robbie — disse eu, e fiquei surpreendida por a minha
voz soar tão clara, tão alta, tão firme. — Não me tiraste os três.
Violaste-me.
O sorriso fugiu-lhe da cara. Lançou um olhar por cima do
ombro antes de voltar a avançar na minha direção. Então, com
a cabeça tonta devido à adrenalina e com a respiração acelerada,
cerrei os punhos e marquei a minha posição.
— Eu o quê? — silvou ele. — Eu o quê, foda-se? Eu nunca...
Eu não te violei.
Sussurrou aquela palavra, violei, como se tivesse medo de que
alguém nos pudesse ouvir.
— Eu tinha 13 anos — disse eu. — Pedi-te para parares, estava
a chorar desalmadamente, eu...
Tive de me calar, porque sentia as lágrimas a encherem-me a
garganta, a afogarem-me a voz, e, agora, não queria chorar à frente
do sacana.
— Choraste porque foi a tua primeira vez — disse ele, em
voz baixa, com falinhas mansas —, porque te magoou um pouco.
Nunca disseste que não querias. Nunca disseste que não. — Então,
começou a rir-se. — Eu podia ter tudo o que quisesse, não te lem-
bras? Tinha metade das raparigas de Beckford atrás de mim, com
as cuecas molhadas. Tinha a tua irmã, que era a rapariga mais boa-
zona de lá. Achas mesmo que precisava de violar uma vaca gorda
como tu?
Ele acreditava naquilo. Conseguia ver que ele acreditava em todas
as palavras que dizia e, nesse momento, fiquei derrotada. Durante
todo este tempo, ele nunca se sentira culpado. Nunca sentira um
segundo de remorsos, porque, na sua cabeça, o que ele fizera não
fora uma violação. Passara-se todo este tempo, e ele ainda acredi-
tava que fizera um favor à miúda gorda.
Afastei-me dele. Atrás de mim, conseguia ouvi-lo a seguir-me,
dizendo palavrões muito baixinho:

250
ESCRITO NA ÁGUA

— Tu sempre foste uma autêntica cabra, não foste? Sempre


foste. Não acredito que apareceste aqui a dizer esse tipo de mer-
das, a dizer...
Parei subitamente, a alguns metros do carro. Não houve uma
parte de ti que gostou daquilo? Algo mudou. Se o Robbie não achava
que me tinha violado, como é que tu podias ter achado? Estavas
a falar acerca de quê, Nel? O que é que me estavas a perguntar?
Uma parte de mim tinha gostado de quê?
Virei-me para trás. O Robbie encontrava-se atrás de mim, com
os braços para baixo, como peças de carne, e com a boca aberta.
— Ela sabia? — perguntei-lhe.
— De quê?
— A Nel sabia? — gritei-lhe.
O lábio dele curvou-se.
— A Nel sabia de quê? Que eu te fodi? Estás a brincar, não
estás? Imagina o que é que ela teria achado se eu lhe dissesse que
lhe tinha comido a irmã mais nova, imediatamente depois de ter
acabado de a comer a ela? — Ele riu-se. — Contei-lhe a primeira
parte, que tu tinhas tentado, que estavas bêbeda e desleixada e
a atirares-te para cima de mim e a olhares para mim com a tua
cara gorda e triste e a suplicar: por favor? Uma cachorrinha, era o
que parecias, sempre ao pé de nós, sempre a observar-nos, onde
quer que eu estivesse com ela, a espiar-nos, mesmo quando está-
vamos na cama; tu gostavas de nos observar, não era? Achavas que
nós não reparávamos, não achavas? — Ele voltou a rir-se. — Repa-
rávamos. Costumávamos brincar acerca da perversazinha que tu
eras, a pequena bucha triste, que nunca fora tocada, nunca fora
beijada e que gostava de ver a sua irmã boazona a ser comida.
— Ele abanou a cabeça. — Violei-te? Não me faças rir. Tu querias
um bocado daquilo que a Nel andava a ter, deixaste-o muito claro,
foda-se.
Imaginei-me, sentada debaixo das árvores, ou à porta do quarto,
a observar. Ele tinha razão, eu observava-os, de facto, mas não com
luxúria, não com inveja, mas sim com uma espécie de fascínio
horrível. Observava como uma criança o faz, porque era isso que
eu era. Era uma rapariguinha que não queria ver o que estava a ser

RI
PauLA HAWKINS

feito à sua irmã (porque era isso que aquilo parecia, parecia sem-
pre que te estavam a fazer alguma coisa), mas que não conseguia
desviar o olhar.
— Eu disse-lhe que te tinhas metido comigo e que, depois,
fugiste a chorar, quando eu te rechacei, e ela foi a correr atrás de
ti — continuou ele.
Houve uma súbita vertigem de imagens na minha cabeça: o som
das tuas palavras, o calor da tua raiva, a pressão das tuas mãos ao
fazeres-me uma amona na água e, depois, a agarrares-me no cabelo
e a puxares-me para a margem.
Minha cabra, minha cabra estúpida e gorda, o que é que tu fizeste?
O que é que estás a tentar fazer?
Ou teria sido: Minha cabra estúpida, o que é que tu estavas a fazer?
E, depois: Eu sei que ele te magoou, mas do que é que estavas à
espera?
Cheguei ao carro, atrapalhando-me à procura das chaves com
as mãos trémulas. O Robbie ainda estava atrás de mim, e conti-
nuava a falar.
— Sim, vai-te lá embora, minha cabra mentirosa. Nunca achaste
que a rapariga aqui estivesse, pois não? Isso foi uma desculpa, não
foi? Vieste ver-me. Querias voltar a comer-me? — Eu conseguia
ouvi-lo a rir enquanto se afastava, debitando a sua tirada de despe-
dida a partir do outro lado da rua. — Não tens hipótese, menina,
desta vez não. Podes ter perdido um bocadinho de peso, mas con-
tinuas a ser uma feiosa de merda.
Liguei o carro, arranquei e, depois, parei. Dizendo palavrões,
voltei a ligar o motor e parti estrada abaixo, carregando no acele-
rador, afastando-me o mais depressa possível dele e do que aca-
bara de acontecer, e sabendo que me devia estar a preocupar com
a Lena, mas incapaz de pensar nisso porque só conseguia pensar
numa coisa: Tu não sabias.
Tu não sabias que ele me tinha violado.
Quando disseste: Lamento que ele te tenha magoado, querias
dizer que lamentavas que eu me sentisse rejeitada. Quando dis-
seste: Do que é que estavas à espera ?, querias dizer que era evidente
que ele me rejeitaria, que eu era, apenas, uma criança. E quando

252
ESCRITO NA ÁGUA

me perguntaste: Não houve uma parte de ti que gostou daquilo?, não


estavas a falar do sexo, estavas a falar acerca da água.
As escamas caíram." Andava cega e de olhos vendados. Tu não
sabias.
Encostei o carro à berma da estrada e comecei a soluçar, com
todo o meu corpo destroçado por aquele conhecimento tremendo
e horrível: tu não sabias. Durante todos estes anos, Nel. Durante
todos estes anos, eu atribuí-te a crueldade mais perversa, e o que
é que tu fizeras para merecer isso? O que é que tu fizeste para o
merecer? Durante todos estes anos, eu não te dei ouvidos, nunca
te dei ouvidos. E, agora, parecia-me impossível que não tivesse
conseguido ver, que não tivesse conseguido compreender que,
quando me perguntaste Não houve uma parte de ti que gostou
daquilo?, estavas a falar acerca do rio, acerca daquela noite no rio.
Querias saber qual era a sensação de nos abandonarmos à água.
Parei de chorar. Na minha cabeça, tu murmuravas: Não tens
tempo para isso, Julia. E eu sorri.
— Eu sei — disse em voz alta. — Eu sei.
Já não me importava com o que o Robbie pensava, não me
importava com que ele tivesse passado toda a vida a dizer a si
próprio que não fizera nada de mal; é isso que os homens como
ele fazem. E o que é que importava o que ele pensava? Ele não era
nada para mim. O que importava eras tu, o que tu sabias e eu não
sabia, e o facto de eu te ter andado toda a vida a punir por algo que
não fizeras. E, agora, eu não tinha nenhuma maneira de te dizer
que estava arrependida.

De regresso a Beckford, parei o carro sobre a ponte, desci os


degraus com musgo e caminhei ao longo do trilho do rio. Era o
início da tarde, o ar estava a arrefecer e a brisa estava a levantar-se.
Não era um dia perfeito para nadar, mas eu esperara tanto tempo
e queria estar lá, contigo. Agora, era a única maneira de me con-
seguir aproximar de ti, a única coisa que me restava.

' Referência bíblica, Atos dos Apóstolos, 9,18: «Nisto, caíram dos olhos de Saulo uma
espécie de escamas e ele voltou a ter vista.» [N. do T.]

25)
PauLA HAWKINS

Descalcei os sapatos e fiquei parada na margem, de calças de


ganga e t-shirt. Comecei a caminhar em frente, pé ante pé. Fechei
os olhos, ofegando quando os meus pés se enterraram na lama
fria, mas não parei. Continuei a andar e, quando a água me tapou
a cabeça, apercebi-me de que, apesar do meu terror, de facto, aquilo
sabia bem. Sabia mesmo.

254
MARK

O SANGUE ESCORRIA ATRAVÉS DA LIGADURA enrolada à volta da mão


de Mark. Ele não fizera um trabalho lá muito bom ao cobri-la e,
embora tentasse, não conseguia evitar agarrar no volante com
demasiada força. O maxilar doía-lhe e uma dor viva e inusitada
pulsava-lhe por detrás dos olhos. O torno voltara, apertando-lhe
as têmporas; conseguia sentir o sangue a comprimir-se ao longo
das veias da sua cabeça, quase conseguia ouvir o crânio a come-
çar a rachar-se. Por duas vezes, teve de parar o carro na berma da
estrada para vomitar.
Não fazia ideia para onde fugir. Começara por conduzir para
norte, de regresso a Edimburgo, mas, a meio do caminho, muda-
ra de ideias. Esperariam eles que ele fosse nessa direção? Haveria
barricadas à entrada da cidade, lanternas apontadas ao seu rosto,
mãos a arrastarem-no à bruta para fora do carro, vozes calmas
a dizerem-lhe que o pior estava para vir? O muito pior. Voltou
para trás e tomou um caminho diferente. Não conseguia pensar,
com a cabeça a latejar daquela maneira. Precisava de parar, res-
pirar, planear. Saiu da estrada principal e conduziu em direção à
costa.
Tudo o que ele temera estava a acontecer. Viu o seu futuro a
desenrolar-se diante dos olhos e recapitulou-o, repetidamente, na
sua cabeça: a polícia à porta, os jornalistas a gritarem-lhe pergun-
tas enquanto era arrastado para um carro, com a cabeça tapada

DS)
PauLA HAWKINS

por um cobertor. As janelas arranjadas, só para voltarem a ser


partidas. Insultos nas paredes, excrementos enfiados na caixa do
correio. O julgamento. Oh, Deus, o julgamento. O ar no rosto dos
seus pais enquanto Lena detonava as suas acusações, as pergun-
tas que o tribunal faria: quando e onde e quantas vezes? A vergo-
nha. A condenação. A prisão. Tudo aquilo para que ele advertira
Katie, tudo o que lhe dissera que enfrentaria. Não sobreviveria a
isso. Dissera-lhe que não sobreviveria a isso.

Naquela sexta-feira de junho, à noite, ele não estava à espera


dela. Pensava que ela ia a uma festa de anos a que não podia faltar.
Lembrava-se de abrir a porta e de sentir a precipitação do prazer
que sempre retirava de olhar para ela, antes de ter tempo de pro-
cessar o ar da sua cara. Ansiosa, desconfiada. Ele fora visto, essa
tarde, a falar com Nel Abbott no parque de estacionamento da
escola. Do que é que eles tinham estado a falar? Porque é que ele
estava sequer a falar com Nel?
— Fui visto? Por quem?
Ele ficou divertido, achava que ela estava com ciúmes.
Katie virara-lhe as costas, esfregando a mão contra a nuca,
como fazia sempre que se sentia nervosa ou inibida.
— Kº O que é que se passa? — insistiu ele.
— Ela sabe — disse Katie, em voz baixa, sem olhar para ele,
e o chão fugiu-lhe de debaixo dos pés, atirando-o para o vazio. Ele
agarrou-lhe no braço e virou-a para que o encarasse. — Acho que
a Nel Abbott sabe.
E, então, tudo se desmoronou, todas as coisas acerca das quais
ela mentira, as coisas que ela lhe andara a esconder. Lena sabia
havia meses, e o irmão de Katie também.
— Meu Deus! Meu Deus, Katie, como é que foste capaz de
não me contar? Como é que foste capaz... Meu Deus! — Ele nunca
antes gritara com ela, e conseguia ver quão atemorizada ela esta-
va, quão aterrorizada e transtornada, e, contudo, não conseguia
deter-se. — Compreendes o que me farão? Compreendes, cara-
lho, o que é ir para a prisão como violador?
— Não és! — gritou ela.

256
ESCRITO NA ÁGUA

Ele voltou a agarrá-la (sentia calor, ainda agora, em virtude da


vergonha que isso lhe causava).
— Sou, sim! É exatamente isso que sou. Foi nisso que me
transformaste.
Ele disse-lhe para se ir embora, mas ela recusou-se. Implorou,
suplicou. Jurou-lhe que Lena nunca falaria. Que Lena nunca diria
nada a ninguém acerca daquilo. A Lena adora-me, nunca me
magoaria. Ela persuadira Josh de que aquilo tinha acabado, de
que, de facto, nunca acontecera nada, de que ele não tinha nada
com que se preocupar, de que, caso, de facto, ele dissesse alguma
coisa, isso só serviria para destroçar os corações dos pais deles.
Mas e Nel?
— Eu nem sequer tenho a certeza de que ela saiba mesmo
— disse-lhe Katie. — A Lena disse que ela talvez tivesse ouvido
qualquer coisa por acaso...
Ela parou de falar, e ele conseguiu ver, pelo modo como ela
desviara o olhar, que ela estava a mentir. Não podia acreditar nela,
não podia acreditar em nada do que ela dissesse. Aquela linda
rapariga, que o tinha encantado, enfeitiçado, não lhe merecia
confiança.
Tinha acabado, disse-lhe ele, observando a cara dela a enrugar-
-se e libertando-se enquanto ela tentava pôr os braços à volta
dele. Empurrou-a, a princípio com suavidade e depois com mais
firmeza.
— Não, escuta, escuta-me! Não posso continuar a ver-te, não
desta maneira. Nunca mais, compreendes? Acabou-se. Nunca acon-
teceu. Não há nada entre nós: nunca houve nada entre nós.
— Por favor, não digas isso, Mark, por favor. — Ela estava a
soluçar tanto que mal conseguia respirar, e O coração dele ficou
destroçado. — Por favor, não digas isso. Eu amo-te...
Ele sentiu-se enfraquecer, deixou que ela o abraçasse, deixou
ou-
que o beijasse, sentiu a sua determinação a sucumbir. Ela encost
-se à ele e Mark teve uma imagem, súbita e clara, de outra pessoa
mas-
a encostar-se a ele, e não apenas uma, mas muitas: corpos
o e violado;
culinos a encostarem-se ao seu corpo espancado, partid
viu isto e empurrou-a violentamente.

ES
PauLA HAWKINS

— Não! Não! Tens ideia do que fizeste? Arruinaste a minha vida,


compreendes isso? Quando isto se souber, quando aquela puta
contar à polícia, e ela vai contar à polícia, a minha vida terá aca-
bado. Sabes o que é que fazem a homens como eu na prisão?
Sabes, não sabes? Achas que eu sobreviverei a isso? Não sobre-
viverei. A minha vida terá acabado. — Ele viu o medo e a mágoa
na cara dela, mas, ainda assim, acrescentou: — E a responsabi-
lidade será tua.
Quando tiraram o corpo dela do poço, Mark culpou-se. Durante
dias, mal conseguia sair da cama e, no entanto, tinha de enfren-
tar o mundo, tinha de ir à escola, olhar para a sua cadeira vazia,
enfrentar a tristeza dos amigos dela e dos pais dela, e não mostrar
qualquer tristeza própria. Ele, a pessoa que mais a amava, não se
podia entristecer por ela do modo como ela merecia. Não se podia
entristecer do modo como também ele merecia, porque, embora
se culpasse pelo que lhe tinha dito quando estava irado, sabia que,
na verdade, a culpa não era sua. Nada daquilo era culpa sua —
como poderia ser? Quem é que conseguia controlar aquele por
quem se apaixonava?

Mark ouviu uma pancada e deu um pulo, desviando-se para o


meio da estrada, corrigindo demasiado a trajetória e derrapando
para a berma de gravilha. Olhou pelo espelho retrovisor. Achava
que batera em algo, mas não havia lá nada, nada que não o asfalto
vazio. Respirou fundo e voltou a apertar o volante, estremecendo
ao pressionar a ferida da sua mão. Ligou o rádio e pô-lo tão alto
quanto possível.
Ainda não fazia ideia do que ia fazer com Lena. A sua primeira
ideia fora conduzir para norte, para Edimburgo, largar o carro
num parque de estacionamento e, depois, apanhar o ferry para
o continente. Encontrá-la-iam suficientemente depressa. Bem,
acabariam por encontrá-la. Ele podia estar a sentir-se terrivel
mente, mas não parava de se lembrar a si mesmo que não tinha
culpa daquilo. Ela atacara-o a ele, e não o contrário. E, quando ele
a tentara afastar, defender-se, ela não parara de o atacar repetida-
mente, gritando e arranhando, com as garras de fora. Ele caíra,

258
ESCRITO NA ÁGUA

esparramando-se no chão da cozinha, com a sua bagagem de mão


a fugir-lhe e a espalhar-se por ali. E dela caíra, como se enviada
por uma divindade com um sentido de humor doentio, a pulseira.
A pulseira que andara com ele desde que a tirara da secretária de
Helen Townsend, aquela coisa que tinha um poder que ele ainda
não compreendera como exercer, lá aparecera ela, rolando pelo
chão, entre eles.
Lena olhou para aquilo como se fosse uma coisa alienígena.
Bem podia ser kryptonite verde brilhante, a julgar pela expressão
na cara dela. E, então, passou-lhe a confusão e ela estava, de
novo, em cima dele, só que, desta vez, tinha a tesoura da cozinha
na mão e agitava-a com força na sua direção, rumo à sua cara,
ao seu pescoço, movimentando-a intencionalmente. Ele ergueu
as mãos em autodefesa e ela retalhou-lhe uma delas. Agora, esta
latejava, furiosamente, ao ritmo dos seus batimentos cardíacos
acelerados.
Tum, tum, tum. Ele voltou a olhar pelo espelho retrovisor — não
havia ninguém atrás dele — e carregou com o pé no travão. Ouviu-
-se uma batida, nauseante e satisfatória, quando o corpo dela bateu
contra o metal, e tudo voltou a ficar em silêncio.
Ele voltou a encostar o carro à berma da estrada, desta vez
não para vomitar, mas para chorar. Por si próprio, pela sua vida
arruinada. Chorou soluços tonitruantes de frustração e desespero,
e bateu com a mão direita contra o volante, uma vez e outra e ou-
tra, até esta lhe doer tanto quanto a esquerda.
Katie tinha 15 anos e dois meses da primeira vez que tinham
dormido juntos. Mais dez meses e teria tido a idade legal. Teriam
sido intocáveis — legalmente, pelo menos. Ele teria tido de largar
o emprego e, ainda assim, algumas pessoas teriam sido capazes
de lhe atirar pedras, ter-lhe-iam chamado nomes, mas ele teria
com
sido capaz de viver com isso. Teriam sido capazes de viver
in-
isso. Dez meses, foda-se! Deviam ter esperado. Ele devia ter
Katie é que
sistido para que esperassem. Katie é que tinha pressa,
àquilo,
não se conseguia manter afastada, Katie é que o obrigara
morrera,
é que quisera torná-lo dela, indiscutivelmente. E, agora,
e era ele que ia pagar por isso.

259
PauLA HAWKINS

A injustiça daquilo não cicatrizava, queimava-lhe a carne como


um ácido, e o torno não parava de apertar, cada vez mais, e ele pedia
a Deus que o esmagasse, que lhe abrisse a cabeça e que, como ela,
como Katie, se lhe acabasse o tormento.

260
LENA

EU ESTAVA AMEDRONTADA QUANDO ACORDEI, não sabia onde estava.


Não conseguia ver nada. Estava completamente às escuras. Mas,
pelo barulho, pelo movimento e pelo cheiro a gasolina, apercebi-
-me de que estava num carro. A minha cabeça estava muito
dolorida e a minha boca também, estava quente e entupida e havia
qualquer coisa a cravar-se-me nas costas, algo duro, como um pa-
rafuso metálico. Meneei a minha mão atrás das costas, para tentar
agarrá-lo, mas estava preso.
Era pena, porque aquilo de que eu precisava mesmo era de
uma arma.
Estava amedrontada, mas sabia que não podia deixar que o
meu medo levasse a melhor sobre mim. Precisava de pensar com
clareza. Com clareza e depressa, porque, mais cedo ou mais tarde,
o carro iria parar e, então, seria ele ou eu — e eu não podia permi-
tir que ele acabasse com a Katie e com a mamã e comigo. Era o que
mais faltava, foda-se. Eu tinha de acreditar nisso, tinha de o dizer
a mim mesma, repetidamente: aquilo iria acabar comigo viva e
com ele morto.
Ao longo das semanas desde que a Katie morrera, eu pensara
em muitas maneiras de fazer o Mark Henderson pagar pelo que
coi-
fizera, mas nunca considerara o assassínio. Pensara noutras
que
sas: grafitar-lhe as paredes, partir-lhe as janelas (e que bem
tudo o que
me soube), telefonar à namorada dele para lhe contar

261
PauLA HAWKINS

a Katie me dissera: quantas vezes, quando, onde. Como ele gostava


de lhe chamar «menina do professor». Pensei em pedir a alguns
dos tipos do ano acima do meu para lhe darem uma sova do ca-
raças. Pensei em cortar-lhe a pila e obrigá-lo a comê-la. Mas não
pensei em matá-lo. Até hoje.
Como é que fui acabar aqui? Não consigo acreditar em quão
estúpida fui ao dar-lhe este trunfo. Nunca devia ter ido a casa dele,
não sem um plano claro, não sem saber, exatamente, o que ia fazer.
Nem sequer pensei, estava só a inventar à medida que avançava.
Sabia que ele ia regressar das férias — ouvira o Sean e a Erin falarem
acerca disso. E, então, depois de tudo o que a Louise disse, e depois
da conversa que tive com a Julia acerca de a culpa não ser minha
nem da mamã, limitei-me a pensar sabem o quê? Que estava na
hora. Só queria estar à frente dele e obrigá-lo a partilhar um pouco
da culpa. Queria que ele a admitisse, que admitisse o que fizera e
que estava errado. Portanto, limitei-me a ir lá, e, como já tinha par-
tido a janela da porta das traseiras, entrar foi relativamente fácil.
A casa cheirava a sujo, como se ele se tivesse ido embora sem
esvaziar o lixo ou coisa assim. Durante um bocado, fiquei apenas
na cozinha e usei a lanterna do telemóvel para olhar em redor,
mas, depois, decidi acender a luz, porque seria impossível vê-la a
partir da estrada e, mesmo que os vizinhos dele a vissem, pensa-
riam, tão-só, que ele regressara.
Cheirava a sujo porque estava suja. Nojenta, na verdade — louça
por lavar no lavatório e embalagens de refeições prontas, com
bocados de comida ainda agarrados a eles, e todas as superfícies
revestidas por gordura. E montes de garrafas de vinho tinto vazias
no caixote da reciclagem. Não era, de modo algum, como eu
achava que seria. Dado o modo como ele era na escola — sempre
muito impecavelmente vestido e com as unhas das mãos limpas,
cortadas rentes —, pensei que seria meio obsessivo.
Atravessei a sala de estar e olhei em redor, usando de novo o
meu telemóvel — não acendi a luz aí, com receio de que pudes-
se ser vista a partir da estrada. Era tão vulgar. Mobiliário barato,
montes de livros e CD, nem uma fotografia nas paredes. Era vulgar
e sujo e triste.

262
ESCRITO NA ÁGUA

O andar de cima era ainda pior. O quarto era desagradável.


A cama estava desfeita, os guarda-fatos abertos, e cheirava mal
— de um modo diferente do andar de baixo, cheirava a azedo e a
suor, como um animal doente. Fechei os cortinados e acendi o can-
deeiro da mesa de cabeceira. Ainda era pior do que o andar de bai-
xo, parecia um local onde vivesse uma pessoa velha — paredes
amarelas e feias e cortinados castanhos e roupas e papéis pelo chão.
Abri uma gaveta e, lá dentro, havia tampões para os ouvidos e
corta-unhas. Na gaveta de baixo, havia preservativos e lubrificante
e algemas felpudas.
Senti-me enojada. Sentei-me na cama e, então, reparei que
o lençol se tinha soltado um bocadinho do colchão, no canto opos-
to, e consegui ver uma mancha castanha por debaixo dele. Achei
mesmo que ia vomitar. Era doloroso, fisicamente doloroso, pensar
na Katie ali, com ele, naquele quarto horrível daquela casa nojenta.
Estava pronta para me ir embora. Afinal, fora uma ideia estúpida,
ir lá sem um plano. Desliguei a luz e voltei para o andar de baixo,
e estava quase junto à porta das traseiras quando ouvi um ruído
vindo do exterior, passos a subirem o trilho. E, então, a porta abriu-
-se e ali estava ele. Parecia feio, com a cara e os olhos vermelhos,
e a boca aberta. Limitei-me a atacá-lo. Queria arrancar os olhos
daquela cara feia, queria ouvi-lo gritar.
Então, não sei o que aconteceu. Ele caiu, creio, e eu estava de
joelhos, e algo rolou pelo chão, na minha direção. Um pedaço
de metal, como uma chave. Peguei-lhe e descobri que não era
dentado, mas sim liso. Um círculo. Um círculo de prata com
um fecho de ónix negro. Revirei-o na mão. Conseguia ouvir O
tique-taque sonoro do relógio da cozinha, e o som da respiração
do Mark.
— Lena — disse ele, e eu virei-me para cima, olhei-o nos olhos
e consegui ver que ele estava com medo. Pus-me de pé. — Lena
— disse ele novamente, e avançou na minha direção.
Eu conseguia sentir-me a sorrir, porque, pelo canto do olho,
avistara outra coisa prateada, uma coisa afiada, e sabia, exatamen-
ele
te, o que ia fazer. la respirar e acalmar-me, e ia esperar até que
dissesse o meu nome mais uma vez e, então, ia pegar na tesoura

263
PauULA HAWKINS

que se encontrava sobre a mesa da cozinha e ia espetar-lha no


pescoço, foda-se.
— Lena — disse ele, e tentou agarrar-me e, depois disso, tudo
se passou mesmo muito depressa.
Agarrei na tesoura e ataquei-o, mas ele é mais alto do que eu e
tinha os braços levantados e eu devo ter falhado, não devo? Porque
ele não está morto, está a conduzir, e eu estou presa aqui atrás,
com um galo na cabeça.
Comecei a gritar, estupidamente, porque, a sério, quem é que
me iria ouvir? Apercebia-me de que o carro ia com velocidade,
mas, ainda assim, gritei:
— Deixa-me sair, deixa-me sair daqui, seu sacana!
Bati com os punhos na capota metálica por cima de mim,
gritando tão alto quanto conseguia e foi então que, subitamente,
bang! O carro parou e eu bati contra o rebordo do porta-bagagens
e, então, permiti-me chorar.
Não era apenas a dor. Por alguma razão, eu não parava de
pensar em todas aquelas janelas que partimos, o Josh e eu, e em
quanto isso teria perturbado a Katie. Ela odiaria isto, tudo isto:
odiaria que o irmão tivesse de contar a verdade, após meses de
mentiras, odiaria que eu me magoasse deste mode, mas, acima
de tudo, odiaria aquelas janelas partidas, porque eram o que ela
temia. Janelas partidas, e pedófilo rabiscado nas paredes, e merda
enfiada na caixa do correio, e jornalistas no passeio, e pessoas a
cuspirem, a darem murros.
Chorei por causa da dor e chorei porque me sentia mal pela
Katie, pelo modo como isto lhe teria destroçado o coração.
— Mas sabes que mais, K? — Dei por mim a sussurrar para a
Katie, como uma louca, como a Julia murmurava para si própria
na escuridão. — Desculpa. Lamento mesmo, porque não é isto que ele
merece. Agora, posso dizê-lo, porque tu morreste e eu estou deitada no
porta-bagagens deste carro, com a boca a sangrar e a cabeça aberta,
posso dizê-lo categoricamente: o Mark Henderson não merece ser per-
seguido ou espancado. Merece pior. Sei que tu o amavas, mas ele não
se limitou a destruir a tua vida, também destruiu a minha. Matou
a minha mãe.

264
ERIN

EU ESTAVA NO ESCRITÓRIO DAS TRASEIRAS, com o Sean, quando chegou


a chamada. Uma mulher jovem, com uma expressão atormentada,
espreitou pela porta.
— Há outra, chefe. Alguém a avistou do cimo da cumeeira.
Está alguém na água, uma mulher jovem.
Atendendo ao ar da cara do Sean, pensei que ele ia vomitar.
— Não pode ser — disse eu. — Há agentes fardados por toda
a parte, como é que pode haver outra?

Quando lá chegámos, havia uma multidão sobre a ponte,


com os agentes fardados a fazerem o seu melhor por manterem
as pessoas lá em cima. O Sean correu e eu segui-o, e corremos
juntos por debaixo das árvores. Eu queria abrandar, queria parar.
A última coisa que eu queria na vida era vê-los a tirarem aquela
rapariga da água.
No entanto, não era ela, era a Jules. Já estava na margem quan-
do lá chegámos. Havia um som estranho no ar, como uma pega
a ralhar. Levei algum tempo a aperceber-me de que vinha dela,
da Jules. O bater dos seus dentes. Todo o seu corpo tremia, com as
roupas encharcadas coladas à sua figura deploravelmente magra,
que se dobrava sobre si própria, como uma espreguiçadeira arru-
mada. Chamei pelo nome dela e ela olhou fixamente para cima,
para mim, com os olhos injetados de sangue a olharem para lá de

265
PauLa HawkINS

mim, como se não se conseguisse concentrar, como se não reco-


nhecesse quem eu era. O Sean despiu o casaco e pô-lo à volta dos
ombros dela.
Ela murmurou, como que em transe. Não dizia uma palavra;
mal parecia notar que estávamos ali. Limitava-se a estar sentada,
a tremer, a encarar a água escura, com os lábios a mexerem-se
como tinham feito quando vira a irmã sobre a maca, silenciosa mas
intencionalmente, como se estivesse a ter uma discussão com um
qualquer adversário invisível.
O alívio, chamemos-lhe assim, mal durou alguns minutos, antes
que a crise seguinte acontecesse. Os agentes fardados, que tinham
ido dar as boas-vindas ao Mark Henderson no regresso das suas
férias, tinham encontrado a casa dele vazia. E não só vazia, ensan-
guentada: havia sinais de uma luta na cozinha, manchas de sangue
por todo o chão e pelas maçanetas das portas, e o carro do Henderson
desaparecera.
— Oh, meu Deus — disse o Sean. — A Lena.
— Não! — gritei eu, tentando convencer-me a mim própria,
bem como ao Sean. Estava a pensar na conversa que tinha tido
com o Henderson, na manhã antes de ele partir de férias. Havia
algo nele, algo de fraco. Algo de ferido. Não há nada mais perigoso do
que um homem assim. — Não. Havia agentes fardados na casa,
estavam à espera dele, ele não podia ter...
Mas o Sean estava a abanar a cabeça.
— Não, não estavam. Não estavam lá. Houve um acidente
grave na A68, a noite passada, e foi toda a gente para lá. Tomámos
a decisão de deslocar os meios. Não havia ninguém na casa do
Henderson até hoje de manhã.
— Foda-se. Foda-se.
= EXAto.
— Ele deve ter voltado, visto as janelas partidas e tirado a con-
clusão certa. De que a Lena Abbott nos dissera alguma coisa.
E depois? Foi a casa dela, raptou-a e voltou a levá-la para casa dele?
— Como é que eu hei de saber, raios? — cortou o Sean. — Isto
é culpa nossa. Devíamos ter estado a vigiar a casa, devíamos ter
estado a vigiá-la a ela... À culpa de ela ter desaparecido é nossa.

266
JULES

O poLícia — QUE NÃO ERA NENHUM dos que eu tinha conhecido


antes — queria entrar em casa comigo. Era jovem, talvez tivesse
uns 25 anos, embora a sua cara imberbe de querubim o fizesse pa-
recer ainda mais novo. Por muito amável que ele aparentasse ser,
insisti para que se fosse embora. Não queria estar sozinha com
um homem dentro de casa, independentemente de quão inofen-
sivo ele parecesse.
Fui para o andar de cima e pus a água do banho a correr. Água,
água, água em toda a parte. Não tinha propriamente um desejo
enorme de voltar a estar mergulhada em água, mas não conse-
guia pensar em alguma maneira melhor de me livrar do frio
que sentia nos ossos. Sentei-me no rebordo da banheira com o
telemóvel na mão, mordendo o lábio para evitar que os meus den-
tes batessem. Não parava de ligar para o número da Lena, repetida-
mente, e continuava a ouvir a sua mensagem alegre, a sua voz
cheia de luz, que nunca ouvira quando ela falava comigo.
Quando a banheira estava meio cheia, agachei-me lá dentro,
com os dentes a rangerem devido ao pânico e com os batimentos
cardíacos a acelerarem à medida que o meu corpo se afundava.
Está tudo bem, está tudo bem, está tudo bem. Tu disseste isso.
Naquela noite, quando estávamos aqui juntas, quando me despe-
jaste água quente sobre a pele, quando me acalmaste. Está tudo
bem, disseste. Está tudo bem, Julia. Está tudo bem. Não estava, claro,

267
PauLa HAWKINS

mas tu não sabias disso. A única coisa que achavas que acontecera
era que eu tinha tido um dia horrível, que tinham gozado comigo,
que tinha sido humilhada e rejeitada por um rapaz de quem gos-
tava. E que, por fim, num ato de melodrama extremo, eu fora até
ao Poço das Afogadas e me atirara lá para dentro.
Estavas zangada porque achavas que eu o tinha feito para te
magoar, para te meter em problemas. Para fazer com que a mamã
gostasse mais de mim, ainda mais do que já gostava. Para fazer
com que ela te rejeitasse. Porque a culpa teria sido tua, não era?
Tu tinhas-me intimidado, e era suposto estares a tomar conta de
mim, e isto acontecera sob os teus cuidados.
Fechei a torneira com o dedo grande do pé e deixei que o meu
corpo escorregasse para dentro da banheira; os meus ombros sub-
mergiram, o meu pescoço, a minha cabeça. Ouvi os sons da casa,
distorcidos, abafados, tornados estranhos pela água. Uma pancada
súbita fez-me emergir bruscamente no ar frio. Escutei. Nada. Estava
a imaginar coisas.
Mas, quando voltei a escorregar para baixo, tive a certeza de ouvir
um rangido nas escadas, e passos, lentos e regulares, ao longo do
corredor. Sentei-me completamente direita, agarrada ao rebordo
da banheira. Outro rangido. A maçaneta de uma porta a rodar.
— Lena? — gritei, já de pé, com a voz a parecer infantil, aguda
e fininha. — Lena, és tu?
O silêncio que me respondeu ressoou nos meus ouvidos e,
dentro dele, imaginei ouvir vozes.
A tua voz. Outro dos teus telefonemas, o primeiro. O primeiro
depois da nossa briga no velório, depois da noite em que me fizeste
aquela pergunta terrível. Foi pouco depois — uma semana, talvez
duas — que tu me telefonaste já tarde e me deixaste uma mensa-
gem. Estavas chorosa, as tuas palavras arrastavam-se, a tua voz era
quase inaudível. Disseste-me que ias voltar a Beckford, que ias ver
um velho amigo. Precisavas de falar com alguém, e comigo não
valia a pena. Nessa altura, não pensei nisso, nem me importei.
Só que agora compreendia, e tremia, apesar do calor da água.
Durante todo este tempo, tinha andado a culpar-te, mas devia ter
sido ao contrário. Tu regressaste para ver um velho amigo. Estavas

268
ESCRITO NA ÁGUA

à procura de consolo porque eu te rejeitara, porque eu me recusava


a falar contigo. E foste ter com ele. Eu falhei-te, e não parei de te
falhar. Voltei a sentar-me, com os braços a apertarem os joelhos, e as
ondas de tristeza não paravam de me assolar: falhei-te, magoei-te,
e o que me mata é que tu nunca soubeste porquê. Passaste toda a
tua vida a tentar compreender porque é que eu te odiava tanto,
e bastava-me dizer-te. Eu só tinha de atender os teus telefonemas.
E, agora, era tarde demais.
Ouvi outro ruído, mais alto — um rangido, um raspar, e não
estava a imaginá-lo. Havia alguém na casa. Saí da banheira e vesti-
-me tão silenciosamente quanto conseguia. É a Lena, disse para
mim própria. É. É a Lena. Esgueirei-me através dos quartos do
andar de cima, mas não havia lá ninguém e, vinda de todos os
espelhos, a minha cara aterrorizada gozava comigo. Não é a Lena.
Não é a Lena.
Tinha de ser, mas onde estaria ela? Devia estar na cozinha,
havia de estar com fome — eu iria lá abaixo e lá estaria ela, com
a cabeça enfiada no frigorífico. Desci as escadas em bicos de pés,
passei pelo corredor e atravessei a porta da sala de estar. E, aí, pelo
canto do olho, vi-a. Uma sombra. Uma figura. Alguém sentado no
assento da janela.

269
ERIN

TuDo ERA PossívEL. QUANDO SE OUVE CASCOS, procura-se cavalos,


mas não se podem descartar as zebras. Não liminarmente. Razão
pela qual, enquanto o Sean levava a Callie para darem uma olha-
dela à cena da casa do Henderson, me tinham mandado falar com
a Louise Whittaker acerca daquela «confrontação» que ela tinha
tido com a Lena, mesmo antes de a Lena desaparecer.
Quando cheguei à casa dos Whittakers, o Josh veio à porta,
como parecia fazer sempre. E, como acontecia sempre, pareceu
alarmado ao ver-me.
— O que é que se passa? — perguntou ele. — Descobriram
a Lena?
Abanei a cabeça.
— Ainda não. Mas não te preocupes...
Ele virou-me as costas, com os ombros descaídos. Segui-o para
dentro de casa. Então, ele voltou a virar-se para me encarar.
— Foi por causa da mamã que ela fugiu? — perguntou ele, com
as bochechas a enrubescerem um pouco.
— Porque é que perguntas isso, Josh?
— À mamã fê-la sentir-se mal — respondeu ele, amargamen-
te. — Agora que a mãe da Lena não está viva, ela culpa a Lena por
tudo. É estúpido. A culpa é tanto minha como dela, mas ela culpa-a
por tudo. E, agora, a Lena desapareceu — disse ele, com a voz a
crescer. — Ela desapareceu.

270
ESCRITO NA ÁGUA

— Estás a falar com quem, Josh? — gritou a Louise do andar


de cima.
O filho ignorou-a, pelo que eu respondi:
— Sou eu, Sra. Whittaker. A agente Morgan. Posso subir?
A Louise estava a usar um fato de treino cinzento que já vira
melhores dias. O seu cabelo estava puxado para trás, e tinha a cara
pálida.
— Ele está zangado comigo — disse ela, à laia de cumpri-
mento. — Culpa-me por a Lena ter fugido. Acha que foi por minha
causa. — Segui-a pelo patamar fora. — Ele culpa-me, eu culpo a Nel,
e culpo a Lena, e andamos assim às voltas.
Parei à entrada do quarto. Estava quase vazio, com a cama
sem roupas e o guarda-fatos vazio. As paredes lilás-claras apre-
sentavam as cicatrizes do Bostik tirado à pressa. A Louise sorriu
cansadamente.
— Pode entrar. Já estou quase a terminar. — Ajoelhou-se,
regressando à tarefa que eu devia ter interrompido, que era colocar
livros em caixas de cartão. Eu agachei-me ao lado dela, para ajudar,
mas, antes que conseguisse pegar no meu primeiro livro, ela pôs a
mão, firmemente, no meu braço. — Não, obrigada. Prefiro ser eu
própria a fazer isto. — Pus-me de pé. — Não é minha intenção ser
mal-educada — disse ela —, só que não quero que outras pessoas
toquem nas coisas dela. É tolo, não é? — perguntou ela, olhando
para cima, para mim, com os olhos a brilharem. — Mas quero que
só ela lhes tenha tocado. Quero que sobre alguma coisa dela, nas
capas dos livros, nas roupas da cama, na sua escova... — Ela parou
e respirou fundo. — Não pareço estar a progredir muito. A seguir
em frente, a ultrapassar as coisas, a avançar minimamente...
— Acho que ninguém esperaria que o fizesse — disse eu, sua-
vemente. — Não...
— Não por enquanto? O que quer dizer que, a dado momento,
não me sentirei assim. Mas aquilo que as pessoas parecem não
compreender é que eu não quero não me sentir assim. Como é
que posso não me sentir assim? A minha tristeza parece-me certa.
Ela... tem o peso certo, esmaga-me o suficiente. A minha raiva é
límpida, galvaniza-me. Bem... — Ela suspirou. — Só que, agora,

Zu]
PauLa HAWKINS

o meu filho acha que eu sou responsável por a Lena ter desapa-
recido. Às vezes, pergunto-me se ele acha que eu empurrei a Nel
Abbott daquele penhasco abaixo. — Ela fungou. — Em qualquer
caso, ele acha-me responsável pelo facto de a Lena ter ficado as-
sim. Sem mãe. Sozinha.
Eu estava no meio do quarto, com os braços cuidadosamente
dobrados, tentando não tocar em nada. Como se fosse o local de
um crime, como se não quisesse contaminar nada.
— Ela não tem mãe — disse eu —, mas não terá pai? Acredita,
sinceramente, que a Lena não faça ideia de quem seja o pai dela?
Sabe se ela e a Katie alguma vez falaram acerca disso?
A Louise abanou a cabeça.
— Estou bastante certa de que ela não sabe. Era isso que a Nel
dizia sempre. Eu achava que era estranho. Tal como muitas das
escolhas parentais da Nel, não apenas estranhas, mas irrespon-
sáveis; quer dizer, e se houvesse um problema genético, uma
doença, qualquer coisa do género? Em qualquer caso, parecia-me
injusto para a Lena, ela nem sequer dar à criança a opção de co-
nhecer o pai. Quando a pressionei, e de facto pressionei-a nos
tempos em que eu e ela nos dávamos melhor, ela disse que fora
um caso de uma só noite, alguém que conhecera nos primeiros
tempos quando se mudara para Nova Iorque. Alegava não saber
sequer o apelido dele. Mais tarde, quando pensei acerca disso,
concluí que devia ser mentira, porque vi uma fotografia da Nel,
a mudar-se para o seu primeiro apartamento de Brooklyn, com a
t-shirt muito esticada sobre a sua barriga já grávida. — A Louise
parou de empilhar livros, abanando de novo a cabeça. — Portanto,
nesse sentido, o Josh tem razão. Ela está sozinha. Não tem mais
família além da tia. Ou nenhuma de que eu alguma vez tenha
ouvido falar. E, quanto a namorados... — Ela sorriu pesarosamen-
te. — Certa vez, a Nel disse-me que só dormia com homens casa-
dos porque eles eram discretos e pouco exigentes e deixavam-na
seguir com a sua vida. Os casos dela eram discretos. Não tenho
dúvidas de que houve homens, mas ela não deixava que esse tipo
de coisa se tornasse público. Sempre que a via, ela estava sozi-
nha. Sozinha ou com a filha. — Ela soltou um pequeno suspiro.

22
ESCRITO NA ÁGUA

— O único homem com quem creio ter visto a Lena ser vagamente
afetiva é o Sean.
Ela corou ligeiramente ao dizer o nome dele, virando a cara
para o outro lado, como se tivesse dito algo que não devia.
— O Sean Townsend? A sério? — Ela não respondeu. — Louise?
— Ela pôs-se de pé, para ir buscar outra pilha de livros à estante.
— Louise, o que é que está a dizer? Que há alguma coisa... impró-
pria entre o Sean e a Lena?
— Meu Deus, não! — Ela soltou uma risada fraca. — Com a
Lena, não.
— Coma Lena, não? Então... com a Nel? Está a dizer que havia
algo entre ele e a Nel Abbott? — A Louise franziu os lábios
e afastou a sua cara da minha, para que eu não lhe conseguisse
ler a expressão. — Porque, sabe, isso seria altamente incorreto.
Investigar a morte suspeita de alguém com quem tinha tido uma
relação, isso seria...
O que é que isso seria? Pouco profissional, pouco ético, mo-
tivo para expulsão da polícia? Ele não seria capaz. Era impossível
ele ter feito isso, era impossível que me tivesse conseguido es-
conder isso. Eu teria visto alguma coisa, reparado nalguma coisa,
não teria? E, então, pensei no ar dele da primeira vez que o vira,
ali parado, na margem do poço, com a Nel Abbott a seus pés, com
a cabeça curvada, como se estivesse a rezar por cima dela. Com os
olhos aguados, as mãos trémulas, o seu alheamento aparente, a sua
tristeza. Mas decerto que seria por causa da mãe dele, não?
A Louise continuou a encaixotar os livros, silenciosamente.
— Escute-me — disse eu, erguendo a voz, para captar a sua
atenção. — Se tem conhecimento de que houve alguma espécie
de relação entre o Sean e a Nel, então...
— Eu não disse tal coisa — disse ela, olhando-me diretamen-
te nos olhos. — Não disse nada do género. O Sean Townsend é
que
um homem bom. — Ela pôs-se de pé. — Agora, tenho muito
de se ir
fazer, detetive. Acho que, provavelmente, está na altura
embora.

273
SEAN

A PORTA DAS TRASEIRAS fora deixada aberta, disseram os agentes


da polícia forense. Não apenas destrancada, mas aberta. O odor
forte a ferro prendeu-se-me nas narinas quando entrei. A Callie
Buchan já lá estava, a falar com a polícia forense; fez-me uma per-
gunta, mas, na verdade, eu não estava a ouvir, porque me estava
a esforçar por ouvir outra coisa — um animal, a gemer.
— Chiu — disse eu. — Escutem.
— Já revistámos a casa, chefe — disse a Callie. — Não está cá
ninguém.
— Ele tem um cão? — perguntei-lhe eu. Ela olhou para mim,
com um olhar impávido. — Há algum cão, algum animal de esti-
mação cá em casa? Algum sinal de um?
— Não, nenhum, chefe. Porque é que pergunta?
Voltei a escutar, mas o som desaparecera e sobrava-me uma
sensação de déjá vu: já tinha visto aquilo, já me acontecera antes,
já tinha ouvido um cão a gemer, já atravessara uma cozinha en-
sanguentada em direção à chuva.
Só que não estava a chover, e não havia nenhum cão.
A Callie estava a olhar fixamente para mim.
— Chefe? Há aqui qualquer coisa. — Apontou para um objeto
no chão, uma tesoura caída sobre uma mancha de sangue. — Isto
não foi só um corte, pois não? Quer dizer, pode não ser arterial,
mas não tem bom aspeto.

274
ESCRITO NA ÁGUA

— Hospitais?
— Até agora, nada, não há sinal de nenhum deles.
O telemóvel dela tocou e ela foi lá fora, para atender a chamada.
Eu permaneci, completamente imóvel, na cozinha, enquanto
dois agentes da polícia forense trabalhavam, silenciosamente,
à minha volta. Observei um deles a pegar, com pinças, numa ma-
deixa de cabelo louro comprido, que ficara presa no rebordo da
mesa. Senti uma súbita onda de náusea, com a saliva a inundar-
-me a boca. Não conseguia justificá-la: já vira cenas piores do que
esta — muito piores — e permanecera impassível. Não fora? Não
caminhara eu por cozinhas mais ensanguentadas do que aquela?
Levei a palma da mão ao punho e apercebi-me de que a Callie
estava, novamente, a falar comigo, com a cabeça a espreitar pelo
umbral da porta.
— Posso dar-lhe uma palavrinha, chefe?
Segui-a até lá fora e, enquanto tirava as proteções de plástico
dos meus sapatos, ela pôs-me ao corrente das novidades.
— A polícia de trânsito apanhou o carro do Henderson — dis-
se ela. — Quer dizer, não apanhou, mas têm duas filmagens do
Vauxhall vermelho dele. — Ela olhou para baixo, para o seu bloco
de apontamentos. — Acontece que é um bocado confuso, porque
a primeira filmagem, pouco depois das três da manhã de hoje,
apanha-o na A68, a ir para norte, em direção a Edimburgo, mas,
depois, algumas horas mais tarde, às sh15, está a conduzir para
sul, pela Ar, mesmo à saída de Eyemouth. Portanto, talvez ele...
tenha largado alguma coisa? — Se tenha livrado de alguma coisa,
queria ela dizer. De alguma coisa ou de alguém. — Ou estará a
tentar confundir-nos?
— Ou mudou de ideias acerca do melhor sítio para onde fugir
— disse eu. — Ou está em pânico.
Ela acenou com a cabeça.
— A andar às voltas como uma galinha sem cabeça.
Eu não gostava dessa ideia, não queria que ele — nem nin-
guém — estivesse sem cabeça. Queria que ele estivesse calmo.
— Era possível ver se havia mais alguém no carro, alguém no
lugar dos passageiros? — perguntei-lhe eu.

PAIS
PauULA HAWKINS

Ela abanou a cabeça, com os lábios cerrados.


— Não. Claro...
Parou de falar. Claro que isso não queria dizer que não hou-
vesse outra pessoa no carro. Só queria dizer que a outra pessoa
não estava na vertical.
Uma vez mais, aquela sensação estranha de já ter estado ali
antes, um resíduo de memória que não parecia ser meu. Mas como
poderia ser de outra pessoa? Devia ser parte de uma história, que
me fora contada por alguém de que não me lembrava. Uma mu-
lher tombada no banco de um carro, uma mulher doente, com
convulsões, a babar-se. Não era lá grande história — não me lem-
brava do resto, só sabia que pensar nela me dava voltas ao estôma-
go. Pu-la de parte.
— Newcastle pareceria o sítio mais óbvio — disse a Callie.
— Quer dizer, se ele está em fuga. Aviões, comboios, ferries... as
possibilidades são imensas. Mas o que é estranho é que, desde
esse avistamento às cinco da manhã, não têm mais nada, pelo
que ou ele parou ou saiu da estrada principal. Pode estar a ir por
estradas mais pequenas, até pela estrada costeira...
— Não há uma namorada? — perguntei eu, interrompendo-
lhe o fluxo de pensamento. — Uma mulher em Edimburgo?
— À famosa noiva — comentou a Callie, com as sobrance-
lhas erguidas. — Bem, nisso já me antecipei, chefe. Ela, a Tracey
McBride, é esse o seu nome, foi trazida esta manhã. Mandei
dois agentes trazê-la cá para baixo, para Beckford, para termos
uma conversa. Mas, só para avisá-lo, a nossa Tracey alega que não
vê o Mark Henderson há bastante tempo. Há quase um ano, na
verdade.
— O quê? Pensava que tinham acabado de passar férias juntos.
— Isso foi o que o Henderson disse quando falou com a agen-
te Morgan, mas, segundo a Tracey, ela não o vê desde que ele aca-
bou com ela, no outono passado. Ela garante que ele a deixou de
repente, dizendo-lhe que se tinha apaixonado loucamente por ou-
tra mulher.

276
ESCRITO NA ÁGUA

A Tracey não sabia quem era nem o que fazia a outra mulher.
— Nem queria saber — disse-me ela, abruptamente. Estava
sentada no escritório das traseiras do posto da polícia, uma hora
mais tarde, a beberricar chá. — Eu fiquei... Fiquei bastante deso-
lada, na verdade. Num minuto, estava à procura de vestidos de
noiva e, no seguinte, ele estava a dizer-me que não podia levar
aquilo por diante, porque tinha conhecido o amor da sua vida.
— Ela sorriu-me com tristeza, enfiando os dedos no cabelo escuro
e curto. — Depois disso, limitei-me a cortar relações com ele.
Apaguei o número dele, desamiguei-o, tudo isso. Por favor, pode
dizer-me se lhe aconteceu alguma coisa? Ainda ninguém se dig-
nou a explicar-me por que raio estou aqui.
Eu abanei a cabeça.
— Queira desculpar-me por isso, mas não há grande coisa que
lhe possa dizer neste momento. Todavia, nós não cremos que ele
tenha sido magoado. Só precisamos de o descobrir, precisamos
de falar com ele acerca de uma coisa. Não sabe para onde poderia
ele ter ido, não? Se precisasse de fugir? Pais, amigos na zona...?
Ela franziu o sobrolho.
— Isto não é por causa daquela mulher morta, ou é? Li nos
jornais que houve outra, há uma ou duas semanas. Quer dizer...
ele não andava... essa não era a mulher que ele andava a ver,
ou era?
— Não, não. Não tem nada que ver com isso.
— Ah, está bem. — Ela parecia aliviada. — Quer dizer, ela
teria sido um pouco velha para ele, não é verdade?
— Porque é que diz isso? Ele gostava de mulheres mais novas?
A Tracey parecia confusa.
— Não, quer dizer... o que é que quer dizer com mais novas?
Essa mulher tinha, tipo, cerca de 40 anos, não tinha? O Mark ainda
não tem 30, portanto...
— Certo.
— Não me pode mesmo dizer o que é que se passa? — per-
guntou ela.
— O Mark alguma vez foi violento consigo, alguma vez perdeu
as estribeiras, alguma coisa desse género?

ZEN
PauLA HAWKINS

— O quê? Meu Deus, não. Nunca. — Ela recostou-se na cadeira,


franzindo a testa. — Alguém o acusou de alguma coisa? Porque
ele não é assim. É egoísta, disso não há dúvida, mas não é má
pessoa, não desse modo.
Acompanhei-a até ao carro, onde estavam agentes fardados
à espera para a levarem a casa, perguntando-me de que maneira é
que o Mark Henderson seria má pessoa, e se ele se teria conseguido
convencer de que estar apaixonado o absolvia de alguma coisa.
— Perguntou-me há bocado para onde é que ele poderia ir
— disse-me a Tracey quando chegámos ao carro. — É difícil dizer,
sem saber o contexto, mas consigo pensar num sítio. Nós, bem,
o meu pai tem uma casa junto à costa. O Mark e eu íamos bas-
tantes vezes para lá, aos fins de semana. É bastante isolada, não
há mais ninguém por perto. O Mark sempre disse que era a fuga
perfeita.
— Está desocupada, essa casa?
— Não é muito usada. Costumávamos deixar uma chave nas
traseiras, debaixo de um vaso, mas, no início deste ano, desco-
brimos que alguém a andara a usar, sem a nossa autorização;
havia canecas desarrumadas ou lixo nos caixotes ou coisa que o
valha, pelo que deixámos de o fazer.
— Quando foi a última vez que isso aconteceu? A última vez
que alguém a usou sem pedir?
Ela franziu o sobrolho.
— Oh, meu Deus. Há bastante tempo. Em abril, creio? Sim,
em abril. Nas férias da Páscoa.
— E onde é que fica essa casa, ao certo?
— Em Howick — disse ela. — É uma aldeiazinha minúscula,
não há lá grande coisa. Fica na costa, mesmo acima de Craster.

278
LENA

ELE PEDIU DESCULPA QUANDO ME DEIXOU sair do porta-bagagens.


— Desculpa, Lena, mas o que é que querias que eu fizesse?
Eu comecei a rir-me, mas ele disse-me para me calar, com o
punho cerrado, e eu pensei que ele me ia esmurrar outra vez, pelo
que me calei.
Estávamos numa casa junto ao mar — só uma casa, comple-
tamente isolada, mesmo sobre a falésia, com um jardim e um
muro e uma daquelas mesas de esplanada de pub. À casa parecia
fechada, não havia ninguém por ali. A partir de onde me encon-
trava, não conseguia ver mais nenhum edifício em parte alguma
das proximidades, apenas um caminho que passava por ali, nem
sequer uma estrada a sério. Também não conseguia ouvir nada,
nenhum ruído de trânsito, nada desse género, apenas as gaivotas
e as ondas contra as rochas.
— Não vale a pena gritares — disse ele, como se me tivesse
lido os pensamentos.
Depois, pegou-me no braço, conduziu-me até à mesa e deu-me
um lenço de papel para limpar a boca.
— Vais ficar bem — disse ele.
— Vou? — perguntei eu, mas ele desviou simplesmente o
olhar.
Durante muito tempo, limitámo-nos a ficar ali sentados, lado
a lado, com a mão dele ainda no meu antebraço, e com o seu aperto

279
PauLA HAWKINS

a afrouxar gradualmente, à medida que a sua respiração abrandava.


Eu não me tentei libertar. Agora, não fazia sentido lutar. Ainda não.
Estava amedrontada, tinha as pernas a tremer loucamente debai-
xo da mesa e não conseguia fazê-las parar. Mas, na realidade, isso
parecia ser bom, como se fosse proveitoso. Eu sentia-me forte, do
modo como me sentira quando ele me descobriu dentro de casa
e lutámos. Sim, é verdade, ele ganhara, mas só porque eu não ten-
tei matá-lo logo, só porque não sabia bem com o que é que estava a
lidar. Esse fora o primeiro assalto. Se ele achava que eu estava derro-
tada, iria ter uma surpresa.
Se ele soubesse o que eu andara a sentir, aquilo por que passara,
creio que não me estaria a segurar no braço. Creio que estaria a
fugir para salvar a puta da vida.
Mordi o lábio com força. Conseguia sentir o sabor do sangue
fresco na língua e gostava dele, sabia-me bem. Gostava do sabor
a metal, gostava da sensação do sangue na minha boca, algo para
lhe cuspir em cima. Quando fosse a altura certa. Eu tinha tantas
coisas para lhe perguntar, mas não sabia por onde começar, pelo
que disse apenas:
— Porque é que a guardou? — Tinha de fazer mesmo um
grande esforço para manter a voz calma e não a deixar esganiçar-
-se ou tremer ou vacilar ou mostrar-lhe que estava amedrontada.
Ele não disse nada, pelo que voltei a perguntar-lhe: — Porque é
que guardou a pulseira? Porque é que não se limitou a deitá-la
fora? Ou a deixá-la no pulso dela? Porque é que a tirou?
Ele largou-me o braço. Não olhou para mim, limitou-se a olhar
fixamente em direção ao mar.
— Não sei — disse ele, com um ar cansado. — Sinceramente,
não faço ideia porque é que a tirei. Como garantia, suponho. Estava
a agarrar-me a qualquer coisa. Para ter algo contra alguém...
Subitamente, ele parou de falar e fechou os olhos. Eu não per-
cebia do que é que ele estava a falar, mas tinha a sensação de
que se abrira qualquer coisa, uma oportunidade. Afastei-me dele,
muito ligeiramente. Depois, um pouco mais. Ele voltou a abrir os
olhos, mas não fez nada, continuou apenas a olhar fixamente para
a água, com uma cara inexpressiva. Parecia exausto. Derrotado.

280
ESCRITO NA ÁGUA

Como se não lhe restasse nada. Recuei sobre o banco. Podia fugir.
Sou mesmo rápida quando preciso. Voltei a olhar para o caminho
atrás da casa. Teria boas hipóteses de fugir dele se me dirigisse
diretamente para lá do caminho, saltasse o muro de pedra e atra-
vessasse os campos. Se fizesse isso, ele não seria capaz de me
seguir de carro, e eu teria uma hipótese.
Não o fiz. Muito embora soubesse que aquela podia ser a últi-
ma oportunidade que eu teria, fiquei quieta. Se tivesse de chegar
a esse ponto, pensei, seria melhor morrer sabendo o que acon-
tecera à minha mãe do que viver sempre a questionar-me, sem
nunca saber. Achava que não conseguiria suportar isso.
Pus-me de pé. Ele não se mexeu, limitou-se a observar-me
enquanto eu dava a volta à mesa e me sentava à frente dele,
forçando-o a olhar para mim.
— Sabe que eu achei que ela me abandonara? A mamã. Quando
a descobriram e me vieram dizer, achei que fora uma escolha.
Achei que ela escolhera morrer, por se sentir culpada pelo que
acontecera à Katie, ou por estar envergonhada por isso, ou... Não sei.
Apenas porque a água a atraía mais do que eu. — Ele não disse
nada. — Eu acreditei nisso! — gritei eu, tão alto quanto conse-
guia, e ele sobressaltou-se. — Acreditei que ela me tinha aban-
donado! Compreende a sensação que tive? E, agora, dá-se o caso
de que não. Ela não escolheu nada. Você levou-a. Roubou-ma, tal
como me roubou a Katie.
Ele sorriu-me. Lembrei-me de como costumávamos achar que
ele era bonito e isso revirou-me o estômago.
— Eu não te roubei a Katie — disse ele. — A Katie não era tua,
Lena. Era minha.
Apetecia-me gritar-lhe, arranhar-lhe a cara. Ela não era sua!
Não era! Não era! Cravei as unhas nas mãos, com tanta força
quanto conseguia, mordi o lábio, voltei a sentir o sabor do sangue,
e ouvi-o a justificar-se:
— Nunca pensei em mim próprio como o tipo de pessoa que
se apaixonaria por uma miúda. Nunca. Achava que esse tipo de
pessoas eram ridículas. Velhos falhados e tristes que não conse-
guiam arranjar uma mulher da idade deles.

281
PAULA HAWKINS

Eu ri-me.
— Exatamente — disse eu. — Achava bem.
— Não, não. — Ele abanou a cabeça. — Isso não é verdade.
Não é. Olha para mim. Nunca tive qualquer dificuldade em arran-
jar mulheres. Elas estavam sempre a atirar-se a mim. Tu, agora,
abanas a cabeça, mas já o viste acontecer. Meu Deus, tu própria o
fizeste.
— Não fiz nada, foda-se.
== ends:
— Acha sinceramente que eu o desejava? Está iludido. Era um
jogo, era...
Parei de falar. Como é que se explica, sequer, uma coisa daque-
las a um homem como ele? Como é que se explica que aquilo não
tinha nada que ver com ele e que tinha tudo que ver connosco?
Que, para mim, pelo menos, tinha que ver comigo e com a Katie e
com as coisas que conseguíamos fazer juntas. As pessoas a quem
as fazíamos eram indiferentes. Não importavam, de todo.
— Sabe como é ter o meu aspeto? — perguntei-lhe eu. — Quer
dizer, eu sei que você acha que é atraente ou o que quer que seja,
mas não faz ideia do que é ser como eu. Sabe como é fácil para
mim levar as pessoas a fazerem o que eu quero, torná-las descon-
fortáveis? Só tenho de olhar para elas de uma certa maneira, ou
pôr-me ao pé delas, ou enfiar os dedos na boca e chupá-los, e con-
sigo vê-las a corarem, ou a ficarem com tesão, ou o que quer que
seja. Era isso que eu lhe estava a fazer, seu atrasado mental. Estava
a gozar consigo. Não o desejava.
Ele fez troça de mim, com uma risadinha incrédula.
— Certo, está bem — disse ele. — Se tu o dizes, Lena. Então,
o que é que tu querias, ao certo? Quando ameaçaste trair-nos,
quando falaste aos gritos para que a tua mãe conseguisse ouvir;
o que é que tu querias?
— (Queria... Queria...
Não sabia dizer o que queria, porque o que eu queria era que
as coisas voltassem a ser como eram. Queria que nós voltásse-
mos ao tempo em que a Katie e eu estávamos sempre juntas, em
que passávamos cada hora de cada dia uma com a outra, em que

282
ESCRITO NA ÁGUA

nadávamos no rio e ninguém olhava para nós, e os nossos cor-


pos eram só nossos. Queria regressar ao tempo antes de termos
inventado aquele jogo, antes de nos termos apercebido do que con-
seguíamos fazer. Mas isso era, apenas, o que eu queria. A Katie,
não. A Katie gostava de que olhassem para ela. Para ela, o jogo não
era só um jogo, era mais do que isso. Mesmo logo ao início, quando
eu descobri e estávamos a discutir acerca disso, ela disse-me:
«Tu não sabes qual é a sensação, Lena. Consegues imaginar? Teres
alguém a desejar-te tanto que arrisca tudo por ti, mesmo tudo.
O seu emprego, a sua relação, a sua liberdade. Tu não compreen-
des qual é a sensação.»
Eu conseguia sentir o Henderson a observar-me, à espera de
que eu falasse. Queria descobrir uma maneira de dizer aquilo,
de fazê-lo ver que ela retirava prazer não apenas dele, mas tam-
bém do poder que tinha sobre ele. Teria gostado de ser capaz de
lhe dizer isso, de lhe retirar aquele sorriso da cara, o sorriso que
dizia que ele a conhecia e que eu não, não a conhecia a sério.
Mas eu ainda não conseguira encontrar as palavras e, em qual-
quer caso, essa não era a história completa, porque ninguém po-
deria negar que ela, de facto, o amava.
Senti uma dor atrás dos olhos, um aperto forte que me dizia
que estava, novamente, prestes a chorar, e olhei fixamente para
baixo, para o chão, porque não queria que ele visse as lágrimas
nos meus olhos, e vi que, caído no solo, mesmo entre os meus
pés, se achava um prego. Era um prego comprido, com, pelo me-
nos, nove ou dez centímetros. Movi o pé ligeiramente, para que
ele lhe cobrisse a ponta, e, depois, calquei-a, para fazer subir a
outra extremidade.
— Tu estavas só com ciúmes, Lena — disse o Henderson.
— A verdade é essa, não é? Estiveste sempre. Acho que tinhas
ciúmes de nós os dois, não tinhas? De mim, por ela me ter esco-
lhido, e dela, por eu a ter escolhido. Nenhum de nós te queria.
E, portanto, fizeste-nos pagar por isso. Tu e a tua mãe, vocês...
Deixei-o falar, deixei-o jorrar as suas balelas ilusórias, e nem
sequer me importava que ele estivesse tão errado acerca de tudo,
que
porque só me conseguia concentrar na ponta daquele prego,

283
PauLa HAWKINS

eu tinha alavancado com o meu pé. Enfiei a mão por debaixo da


mesa. O Mark parou de falar.
— Você nunca devia ter estado com ela — disse eu. Estava a
olhar para trás dele, por cima do seu ombro, tentando distraí-lo.
— Você sabe disso. Tem de saber disso.
— Ela amava-me, e eu amava-a, completamente.
— Você é um adulto! — disse eu, mantendo o olhar no espaço
atrás dele, e funcionou: durante um segundo, ele olhou por cima
do ombro e eu baixei o braço entre as pernas, esticando os dedos.
Com o metal frio na mão, endireitei imediatamente as costas e
preparei-me. — Acha que tem importância o que sentia por ela?
Você era professor dela. Tem o dobro da idade dela, foda-se. Você
é que devia ter juízo.
— Ela amava-me — voltou ele a dizer, envergonhado.
Patético.
— Ela era demasiado nova para si — disse eu, segurando o pes-
coço do prego, com força, na mão. — Era demasiado boa para si.
Ataquei-o, mas não fui suficientemente rápida. Ao pôr-me de
pé, fiquei com a mão presa debaixo da mesa, durante um segundo
apenas. O Mark arremeteu contra mim, agarrando-me no braço
esquerdo, puxando-o à bruta e arrastando-me até meio da mesa.
— O que é que estás a fazer? — Pôs-se de pé com um pulo,
ainda a agarrar-me, e puxou-me para o lado, torcendo-me o braço
atrás das costas. Eu gania de dores. — O que é que estás a fazer?
— gritou ele, empurrando o meu braço mais para cima e abrindo-
-me a mão com os dedos.
Tirou-me o prego da mão e empurrou-me para cima da mesa,
com a mão no meu cabelo e o seu corpo em cima do meu. Senti
a ponta metálica a tocar-me na garganta e o peso dele em cima de
mim, exatamente como ela o deve ter sentido quando estavam
juntos. Veio-me o vómito à garganta e cuspi-lhe e disse:
— Era demasiado boa para si! Era demasiado boa para si!
Disse-o repetidamente, até ele me ter cortado a respiração.

284
JULES

O som DE UM CLIQUE. Um clique e um silvo, um clique e um silvo,


e depois:
— Ah. Ei-la. Abri a porta e entrei, espero que não se importe.
A velhota — a que tinha o cabelo roxo e o eyeliner preto, a que
alegava ser médium, a que andava pela vila a cuspir e a dizer pa-
lavrões às pessoas, a que eu vira, ainda no dia anterior, a discutir
com a Louise em frente da casa — estava sentada no assento da
janela, abanando as suas barrigas das pernas inchadas para trás
e para a frente.
— Importo-me, sim! — disse eu, alto, tentando não lhe mos-
trar que tivera medo, que ainda estava, estúpida e ridiculamente,
com medo dela. — Importo-me mesmo, caraças. O que é que está
a fazer aqui?
Um clique e um silvo, um clique e um silvo. O isqueiro — o
isqueiro de prata com as iniciais da Libby gravadas — estava nas
mãos dela.
— Isso é... Onde é que arranjou isso? Isso é o isqueiro da Nel!
— quis eu saber. Ela abanou a cabeça. — É sim. Como é que se
apoderou disso? Esteve cá em casa, a tirar coisas? Esteve...
Ela acenou-me com uma mão gorda e espalhafatosamente
adornada por joias.
— Oh, acalme-se, sim? — Exibiu-me um sorriso sujo e casta-
nho. — Sente-se. Sente-se, Julia. — Apontou para o cadeirão à sua

285
PauLA HAWKINS

frente. — Venha juntar-se a mim. — Fiquei tão surpreendida que


lhe obedeci. Atravessei a sala e sentei-me à frente dela enquanto
ela se reposicionava no assento. — Isto não é lá muito confortável,
pois não? Podia ser mais almofadado. Embora algumas pessoas
sejam capazes de dizer que eu já tenho acolchoamento suficiente!
Deu uma risada com a sua própria graça.
— O que é que quer? — perguntei-lhe eu. — Porque é que
tem o isqueiro da Nel?
— Não é da Nel. Não é da Nel, pois não? Veja aqui — e apon-
tou para a gravação. — Aqui, vê? LS.
— Sim, eu sei. LS, Libby Seeton. Mas, na verdade, não perten-
cia à Libby, pois não? Acho que ainda não fabricavam esse tipo de
isqueiros no século xvii.
A Nickie deu uma risada.
— Não é da Libby! Achou que LS era da Libby? Não, não, não!
Este isqueiro pertencia à Lauren. A Lauren Townsend. A Lauren
que-costumava-ser-Slater.
— Lauren Slater?
— Isso mesmo! A Lauren Slater, também Lauren Townsend.
A velhota do seu inspetor.
— A mãe do Sean? — Eu estava a pensar acerca do rapaz que
subia os degraus, o rapaz na ponte. — A Lauren da história é a
mãe do Sean Townsend?
— Exatamente. Meu Deus! Você não é lá muito esperta, pois não?
E não é uma história, pois não? Não é só uma história. A Lauren
Slater casou-se com o Patrick Townsend. Teve um filho que amava
até à exaustão. Corria tudo às mil maravilhas. Só que, depois, segun-
do os chuis nos querem fazer crer, ela suicidou-se! — Ela inclinou-se
para a frente e sorriu-me forçadamente. — Não é lá muito vero-
símil, pois não? Eu disse-o na altura, claro, mas ninguém me dá
ouvidos.
Seria o Sean efetivamente esse rapaz? O que estava nas escadas,
o que vira a mãe cair, ou não vira a mãe cair, dependendo de em
quem se acreditasse? Seria mesmo verdade, e não algo que tu ti-
vesses inventado, Nel? A Lauren fora a que tivera o caso, a que be-
bia demasiado, a irresponsável, a má mãe. Não era essa a história?

286
ESCRITO NA ÁGUA

A Lauren fora aquela em cujas páginas tu escreveras: Beckford não


é um local de suicídios. Beckford é um sítio onde se livram de mulheres
problemáticas. O que é que tu me estavas a tentar dizer?
A Nickie ainda estava a falar.
— Vê? — disse ela, apontando-me um dedo. — Vê? É isto que
eu quero dizer. Ninguém me dá ouvidos. Você está aí sentada e eu
estou aqui mesmo à sua frente e você nem sequer me está a ouvir!
— Estou a ouvir, estou. Só que... não compreendo.
Ela pigarreou.
— Bem, se ouvisse, compreenderia. Este isqueiro — clique,
silvo — pertencia à Lauren, certo? Você tem de se perguntar por-
que é que a sua irmã o tinha lá em cima, no meio das coisas dela.
— lá em cima? Portanto, você esteve mesmo cá em casa!
Tirou-o mesmo, você... Foi você? Esteve na casa de banho? Escreveu
alguma coisa no espelho?
— Oiça! — Ela pôs-se de pé com dificuldade. — Não se preo-
cupe com isso, não é importante.
Deu um passo na minha direção, inclinando-se para a frente,
e voltou a clicar no isqueiro, com a chama a cintilar entre nós. Ela
cheirava a café queimado e a rosas apodrecidas. Inclinei-me para
trás, afastando-me do seu cheiro de velha.
— Sabe para que é que ele usou isto? — perguntou ela.
— Quem é que usou isso para quê? O Sean?
— Não, sua idiota. — Ela revirou os olhos na minha direção e
voltou a deixar-se cair sobre o assento da janela, que rangeu dolo-
rosamente por debaixo dela. — O Patrick! O velho. E também não
o usava para acender os cigarros. Depois de a mulher dele morrer,
ele pegou nas coisas dela todas, todas as suas roupas e Os seus
quadros e tudo o que ela possuía, e levou-as para as traseiras e
queimou-as. Queimou tudo. E isto — ela clicou no isqueiro, uma
última vez — foi o que ele usou para atear o lume.
— Está bem — disse eu, com a paciência a esgotar-se. — Mas,
ainda assim, não percebo. Porque é que a Nelo tinha? E porque é
que você lho tirou?
— Tantas perguntas — disse ela, com um sorriso. — Bem.
Quanto a saber porque é que eu o tenho, é porque precisava de

287
PauLA HAWKINS

alguma coisa dela, não é? Para poder falar com ela como deve ser.
Eu costumava ouvir a voz dela com muita clareza, mas... sabe
como é. Às vezes, as vozes ficam abafadas, não é?
— Não faço mesmo ideia do que está a falar — disse eu, fria-
mente.
— Ah, estou a perceber! Não acredita em mim? Parece que
nunca falou com os mortos, ou falou? — Ela riu-se, sabedora, e o
meu couro cabeludo arrepiou-se. — Eu precisava de alguma coisa
dela, com que a pudesse conjurar. — Ela ofereceu-me o isqueiro.
— Pode voltar a ficar com ele. Eu podia tê-lo vendido, não podia?
Podia ter tirado toda a espécie de coisas e tê-las vendido; a sua irmã
tinha algumas coisas caras, não tinha, joias e assim? Mas não o fiz.
— Foi muito gentil da sua parte.
Ela sorriu, de maneira forçada.
— Quanto à pergunta seguinte. Porque é que a sua irmã tinha
o isqueiro? Bem, não posso dizer ao certo.
A minha frustração levou a melhor sobre mim.
— A sério? — zombei eu dela. — Pensei que conseguia falar
com os espíritos. Pensei que isso era a sua praia. — Olhei ao redor
da sala. — Ela está aqui agora? Porque é que não se limita a perguntar-
“lhe diretamente?
— Não é assim tão fácil, pois não? — disse ela, magoada.
— Tenho tentado despertá-la, mas ela calou-se. — Que grande novi-
dade. — Não é preciso ficar desdenhosa. Só estou a tentar ajudar.
Só estou a tentar dizer-lhe...
— Bem, então, diga-me! — cortei eu. — Deite cá para fora.
— Aguente os cavalos — disse'ela, com o lábio inferior para
fora e os queixos a oscilarem. — Eu estava a dizer-lhe, se ao menos
me ouvisse. O isqueiro é da Lauren, e o Patrick foi o último a tê-lo.
E isso é que é importante. Não sei porque é que a Nel o tinha, mas
o facto de ela o ter é que importa, percebe? Ela tirou-lho, porven-
tura, ou talvez ele lho tenha dado. Em qualquer caso, isso é que é
importante. A Lauren é que é importante. Tudo isto, da sua Nel,
não é por causa da pobre Katie Whittaker, nem do tolo daquele
professor, nem da mãe da Katie, nem nada disso. É por causa da
Lauren, e do Patrick.

288
ESCRITO NA ÁGUA

Mordi o lábio.
— Como é que pode ser por causa deles?
— Bem. — Ela mudou de posição no assento. — Ela andava
a escrever as suas histórias acerca deles, não andava? E ficou a
saber dessa história através do Sean Townsend, porque, afinal de
contas, reza a lenda que ele foi testemunha, não é? Portanto, ela
achou que ele estava a contar a verdade, e porque é que não have-
ria de achar?
— E porque é que ele não o faria? Quer dizer, você está a dizer
que o Sean mentiu acerca do que aconteceu à mãe dele?
Ela franziu os lábios.
— Já conheceu o velho? É um demónio, é mesmo, e não um
demónio dos bons.
— Portanto, o Sean mentiu acerca do modo como a mãe dele
morreu porque tem medo do pai?
A Nickie encolheu os ombros.
— Não posso dizer ao certo. O que sei é que a história que a
Nel ouviu, a primeira versão, aquela em que a Lauren foge de noite
e o marido e o filho vão atrás dela, não é verdade. Eu disse-lhe isso
mesmo. Porque, sabe, a minha Jeannie, que é a minha irmã, anda-
va por cá nessa altura. Estava lá. Nessa noite... — Abruptamente,
se
ela enfiou a mão no casaco e começou a vasculhá-lo. — O que
e a Nel
passa é que eu contei à sua Nel a história da nossa Jeannie
escreveu-a.
mas
Ela sacou de um molho de papéis. Eu tentei pegar-lhes,
a Nickie tirou-mos.
eender
— Só um minuto — disse ela. — Você tem de compr
história com-
que isto... — e acenou-me com as folhas — não é a
toda,
pleta. Porque, muito embora eu lhe tenha contado a história
a sua irmã. Isso
ela não a escreveu toda. Era uma mulher teimosa,
Portanto, foi
era parte da razão pela qual eu gostava tanto dela.
.
então que tivemos a nossa pequena discordância
as pernas
Ela voltou a acomodar-se no assento, balançando
mais vigorosamente.
polícia na altura
— Eu contei-lhe acerca da Jeannie, que era
ramente. — À Jeannie
em que a Lauren morreu. — Ela tossiu sono

289
PauLA HAWKINS

não acreditava que ela tivesse entrado na água sem ser empurrada,
porque se estava a passar uma série de outras coisas, sabe. Ela sabia
que o velho da Lauren era um demónio e que lhe dava tareia e que
contava histórias acerca de ela se encontrar com um amante
qualquer na casa da Anne Ward, muito embora nunca ninguém
tivesse visto esse homem mais gordo. Era suposto a razão ser essa,
percebe? O tipo com quem ela andava a portar-se mal fugira e
deixara-a e ela andava perturbada com isso, pelo que se atirou.
— A Nickie acenou com a mão na minha direção. — Disparates.
Com um filho de 6 anos em casa? Disparates.
— Bem, na verdade — disse eu —, creio que deve saber que
a depressão é uma coisa complicada...
— Pfff! — Ela silenciou-me com outro aceno de mão. — Não
havia amante nenhum. Nenhum que alguma pessoa daqui algu-
ma vez tenha visto. Poderia perguntar à minha Jeannie, só que
ela há muito que está morta. E sabe quem é que foi responsável
pela morte dela, não sabe?
Quando, por fim, ela parou de falar, ouvi a água a sussurrar
no silêncio.
— Está a dizer que o Patrick matou a mulher, e que a Nel sabia
disso? Está a dizer que ela o escreveu?
A Nickie expressou a sua desaprovação, irritada.
— Não! Não está a perceber nada. Ela escreveu algumas coisas,
mas não outras coisas, e foi por isso que discordámos, porque ela
ficava muitíssimo contente por escrever as coisas que a Jeannie
me contava quando ainda estava viva, mas não as coisas que a
Jeannie me contou quando já estava morta. O que não faz, de todo,
qualquer sentido.
Fes DEN»
— Não faz sentido algum. Mas você tem de me ouvir. E, se não
me der ouvidos — disse ela, empurrando as folhas na minha di-
reção —, pode dar ouvidos à sua irmã. Porque ele foi responsável
pela morte delas. Até certo ponto. O Patrick Townsend foi respon-
sável pela morte da Lauren, e pela morte da nossa Jeannie, e, se não
estou enganada, até pela morte da sua Nel.

290
O POÇO DAS AFOGADAS
Lauren, de novo, 1983

Ie auren dirigiu-se ao chalé de Anne Ward. Hoje em dia, ia lá


cada vez mais — era um local pacífico, de um modo que mais
nenhum em Beckford parecia ser. Sentia uma estranha espécie de
afinidade com a pobre Anne. Também ela estava presa num casa-
mento sem amor, com um homem que não a suportava. Ali, Lauren
podia nadar e fumar e ler, sem ser incomodada por ninguém. Nor-
malmente.
Certa manhã, havia duas mulheres a passearem. Ela reconheceu-as:
uma mulher-polícia, Jeannie, uma agente robusta com uma cara aver-
melhada, e a sua irmã, Nickie, a que falava com os mortos. Lauren
Ainda
gostava bastante de Nickie. Era engraçada e parecia bondosa.
que fosse uma trapaceira.
que es-
Jeannie chamou-a e Lauren acenou de um modo omisso,
e, teria
perava que fizesse com que elas se fossem embora. Normalment
vergonha e
ido ter com elas para conversar. Mas tinha a cara numa
não estava com disposição para explicações.
última
Foi nadar. Tinha consciência de estar a fazer as coisas pela
último beijo na
vez: uma última caminhada, um último cigarro, um
timo). Ao des-
testa pálida do filho, um último mergulho no rio (penúl
assim, se sentiria
lizar para debaixo de água, perguntou-se Sé seria
sua luta.
alguma coisa. Perguntou-se para onde fora toda a

291
PAULA HAWKINS

Foi Jeannie que chegou primeiro ao rio. Estava no posto, a ob-


servar a tempestade, quando a chamada chegou: Patrick Townsend
estava em pânico e incoerente, gritando algo pelo rádio acerca da
sua mulher. Da sua mulher e do Poço das Afogadas. Quando Jeannie
lá chegou, o rapaz encontrava-se debaixo das árvores, com a cabeça
sobre os joelhos. A princípio, ela pensou que ele estava a dormir,
mas, quando ele olhou para cima, tinha os olhos muito abertos e
escuros.
— Sean — disse ela, despindo o casaco e embrulhando-o nele.
Ele estava branco-azulado e a tremer, com o pijama encharcado e os
pés descalços cobertos de lama. — O que aconteceu?
— À mamã está dentro de água — disse ele. — Eu tenho de ficar
aqui até ele regressar.
— Quem? O teu pai? Onde é que está o teu pai?
Sean soltou um braço magro do casaco e apontou para trás dela,
e Jeannie viu Patrick a arrastar-se para a margem, com a respiração
aos soluços e a cara contorcida pela agonia.
Jeannie foi ter com ele.
— Chefe, eu... A ambulância vem a caminho, deve chegar daqui
a quatro minutos...
— É demasiado tarde — disse Patrick, abanando a cabeça. — Eu
cheguei demasiado tarde. Ela morreu.
Chegaram outras pessoas: paramédicos e agentes da polícia far-
dados e um ou dois detetives seniores. Sean tinha-se posto de pé;
com o casaco de Jeannie à volta dele, como uma capa, agarrava-se
ao pai.
— Pode levá-lo a casa? — perguntou-lhe um dos outros detetives.
O rapaz começou a chorar.
— Por favor, não. Não quero. Não quero ir.
Patrick disse:
— Jeannie, pode levá-lo para sua casa? Ele está assustado e não quer
Ir para casa.
Patrick ajoelhou-se na lama, segurando no filho, embalando-o
e sussurrando-lhe ao ouvido. Quando se pôs de pé, o rapaz parecia
calmo e dócil. Enfiou a mão na de Jeannie, trotando a seu lado sem
olhar para trás.

292
ESCRITO NA ÁGUA

De regresso ao seu apartamento, Jeannie despiu as roupas molha-


das a Sean. Embrulhou-o num cobertor e fez-lhe tostas de queijo. Sean
comeu, sossegada e cuidadosamente, inclinando-se para a frente, sobre
o prato, para não deixar cair migalhas. Quando terminou, perguntou:
— A mamã vai ficar bem?
Jeannie atarefou-se a levantar os pratos.
— Estás quentinho, Sean? — perguntou-lhe ela.
— Estou bem.
Jeannie preparou chávenas de chá e deitou duas colheres de açúcar
em cada uma.
— Queres contar-me o que aconteceu, Sean? — perguntou, € ele
abanou a cabeça. — Não? Como é que foste ter ao rio? Estavas todo
enlameado.
— Fomos de carro, mas eu tropecei no trilho — disse ele.
— Está bem. Então, foi o teu pai que vos conduziu até lá? Oufoi
a tua mãe?
— Fomos todos juntos — respondeu Sean.
— Vocês todos?
A cara de Sean engelhou-se.
— Havia uma tempestade quando eu acordei, era muito baru-
lhenta, e havia barulhos esquisitos na cozinha.
— Que tipo de barulhos esquisitos?
— Tipo... tipo os que um cão faz quando está triste.
— Como um queixume?
Sean acenou com a cabeça.
papá diz
— Masnós não temos um cão, porque não me deixam. O
somente mais
que eu não tomarei conta dele como deve ser e que será
os olhos.
uma coisa para ele fazer. — Ele deu um gole no chá e limpou
tade. Portanto,
— Eu não queria ficar sozinho, por causa da tempes
o papá meteu-me no carro.
— Eatua mãe?
Ele franziu a testa.
xo das árvores.
— Bem. Ela estava no rio e eu tive de esperar debai
Não é suposto eu falar sobre isso.

2os
PauLA HAWKINS

— O que é que queres dizer, Sean? O que é que queres dizer com
não ser suposto falares sobre isso?
Ele abanou a cabeça e encolheu os ombros, e eu não disse mais
nada.

294
S EAN

Howick. Ao PÉ DE CRASTER. À história não estava a repetir-se, mas


sim a brincar comigo. Não fica longe de Beckford, não é muito
mais do que uma hora de carro, mas nunca lá vou. Não vou à praia
nem ao castelo, nunca lá fui comer os famosos arenques defuma-
dos do famoso fumeiro. Isso era com a minha mãe, o desejo da
minha mãe. O meu pai nunca me levou lá e, agora, nunca lá vou.
Quando a Tracey me contou onde ficava a casa onde eu teria
de ir, senti-me comovido. Senti-me culpado. Senti-me como sem-
pre me sentia quando pensava acerca da promessa da minha mãe
de um presente de anos, e que eu rejeitara por causa da Torre de
Londres. Se eu não tivesse sido tão ingrato, se tivesse dito que que-
ria ir com ela à praia, ao castelo, teria ela ficado? Teriam as coisas
acontecido de maneira diferente?
Essa viagem que nunca fora feita era um dos muitos assuntos
que me ocupavam depois de a minha mãe morrer, quando todo o
meu ser se achava consumido em construir um mundo novo, uma
realidade alternativa, em que ela não tivesse de morrer. Se tivés-
semos feito a viagem a Craster, se eu tivesse arrumado o quarto
quando me mandavam, se não tivesse enlameado a minha mochi-
la da escola quando fora nadar a jusante, se tivesse dado ouvidos
ao meu pai e não lhe tivesse desobedecido com tanta frequên-
cia. Ou, mais tarde, perguntava-me se porventura não devia ter
dado ouvidos ao meu pai, se porventura lhe devia ter desobedecido,

295
PauLA HAWKINS

se porventura devia ter ficado acordado até tarde naquela noite,


em vez de ir para a cama. Talvez, nesse caso, tivesse sido capaz
de persuadi-la a não ir.
Nenhum dos meus cenários alternativos funcionava e, por
fim, alguns anos mais tarde, compreendi que não havia nada que
eu pudesse ter feito. O que a minha mãe queria não era que eu
fizesse alguma coisa, era que outra pessoa fizesse alguma coisa
— ou que não fizesse coisa alguma: o que ela queria era que o
homem que amava, o homem com quem se encontrava em segre-
do, o homem com quem andava a trair o meu pai, não a deixas-
se. Esse homem era invisível, não tinha nome. Era um fantasma,
o nosso fantasma — meu e do meu pai. Ele dava-nos o porquê,
dava-nos alguma espécie de alívio: a culpa não foi nossa. (Foi dele,
ou foi dela, deles os dois juntos, a minha mãe traidora e o seu
amante. Nós não podíamos ter procedido melhor, ela não nos ama-
va o suficiente.) Ele proporcionava-nos uma maneira de nos levan-
tarmos de manhã, uma maneira de seguirmos em frente.
E, então, apareceu a Nel.
Quando foi lá a casa pela primeira vez, perguntou pelo meu
pai. Queria falar com ele acerca da morte da minha mãe. Ele não
estava lá nesse dia e eu também não, pelo que ela falou com a
Helen, que lhe deu pouca atenção. Não só o Patrick não falará
consigo, disse-lhe a Helen, como não gostará da intrusão. Nem o
Sean, nem nenhum de nós. Isso é privado, disse a Helen, e per-
tence ao passado.
A Nel ignorou-a e foi ter com o papá. A reação dele intrigou-a.
Ele não ficou zangado, como ela poderia ter esperado que ficasse;
não lhe disse que era demasiado doloroso falar acerca daquilo,
que não suportava voltar a passar por isso. Disse-lhe que não havia
nada a falar. Que não acontecera nada. Foi isso que ele lhe disse.
Que não acontecera nada.
Portanto, finalmente, ela veio ter comigo. Foi a meio do verão,
eu tinha tido uma reunião no posto de Beckford e, quando saí,
encontrei-a encostada ao meu carro. Estava a usar um vestido tão
comprido que varria o chão, sandálias de cabedal sobre os pés bron-
zeados e um verniz azul brilhante nos dedos dos pés. Eu já a vira

296
ESCRITO NA ÁGUA

por ali antes, e reparara nela — ela era linda, difícil de passar des-
percebida. Mas, até então, nunca a vira ao perto. Nunca me aper-
cebera de quão verdes eram os seus olhos, de como lhe davam
um ar diferente. Como se ela não fosse bem deste mundo, ou
pelo menos não deste lugar. Era demasiado exótica para o seu
próprio bem.
Contou-me o que o meu pai lhe tinha dito, que não acontecera
nada, e perguntou-me:
— Também é essa a sua impressão?
Eu disse-lhe que ele não estava a falar a sério, que não queria
mesmo dizer que não acontecera nada. Só queria dizer que não
falávamos acerca disso, que era passado. Que o metêramos para
trás das costas.
— Bem, claro que meteram — disse ela, sorrindo-me. — E eu
entendo, mas estou a trabalhar num projeto, sabe, um livro, e talvez
também uma exposição, e eu...
— Não — disse-lhe eu. — Quer dizer, eu sei o que anda a fazer,
mas eu, nós, não podemos fazer parte disso. É desonroso.
Ela afastou-se ligeiramente, mas o seu sorriso permaneceu.
— Desonroso? Que palavra tão estranha de se usar. O que é que
é desonroso?
— É desonroso para nós — disse eu. — Para ele.
(Para nós ou para ele, não me lembro de qual destas coisas
disse.)
— Ah. — Então, o sorriso abandonou-lhe o rosto, e ela pareceu
perturbada, preocupada. — Não. Não é... não. Não é desonroso.
Acho que já ninguém pensa assim, pois não?
— Ele pensa.
— Por favor — disse ela —, não vai falar comigo? — Creio que
lhe devo ter virado as costas, porque ela me pôs a mão no braço.
Olhei para baixo e vi os anéis de prata nos dedos dela e a pulseira
no seu braço e o verniz azul lascado nos seus dedos. — Por favor,
Sr. Townsend. Sean. Há tanto tempo que quero falar consigo acer-
ca disto.
Ela estava, novamente, a sorrir. A maneira como se me dirigia,
direta e íntima, tornava impossível que eu lho recusasse. Então,

297
PauLA HAWKINS

soube que estava metido em sarilhos, que ela era um sarilho, o tipo
de sarilho pelo qual eu esperara toda a minha vida adulta.
Acedi a contar-lhe aquilo de que me lembrava acerca da noite
da morte da minha mãe. Disse-lhe que me encontraria com ela
na sua casa, a Casa do Moinho. Pedi-lhe para manter essa reunião
confidencial, porque perturbaria o meu pai, e perturbaria a minha
mulher. Ela recuou ao ouvir a palavra «mulher», e voltou a sorrir,
e, então, ambos soubemos em que direção aquilo estava a ir.
Da primeira vez que fui falar com ela, não falámos de todo.
Portanto, tive de lá voltar. Continuei a ir ter com ela e conti-
nuámos a não falar. Eu passava uma hora com ela, ou duas, mas,
quando a deixava, parecia que tinham sido dias. Às vezes, tinha
medo de que me tivesse alheado e perdido a noção do tempo.
Ocasionalmente, acontece-me isso. O meu pai chama-lhe ausentar-
-me, como se fosse algo que eu fizesse de propósito, algo que
pudesse controlar, mas não é. Sempre fiz isso, desde a infância:
num momento estou cá, e depois já não estou. Não é minha in-
tenção que isso aconteça. Às vezes, quando me alheio, apercebo-
-me disso e, às vezes, consigo obrigar-me a regressar — aprendi-o
há muito tempo: toco na cicatriz do meu pulso. Normalmente,
funciona. Mas nem sempre.
Não cheguei a contar-lhe a história, a princípio não. Ela pres-
sionou-me, mas era-me agradavelmente fácil distraí-la. Imaginei
que ela se estava a apaixonar por mim e que nos iríamos embora,
ela e a Lena e eu, que nos desenraizaríamos, que abandonaríamos
a vila, que abandonaríamos o país. Imaginei que, finalmente, me
seria permitido esquecer. Imaginei que a Helen não me choraria,
que rapidamente encontraria alguém mais adequado à sua bonda-
de permanente. Imaginei que o meu pai morreria durante o sono.
Ela provocou-me até eu lhe contar a história, a pouco e pouco,
e tornou-se bastante claro que estava desapontada. Não era a his-
tória que ela queria ouvir. Ela queria o mito, a história de terror,
queria o rapaz que assistira. Então, apercebi-me de que o facto de
ela ter abordado o meu pai fora a entrada: eu seria o prato princi-
pal. Seria o âmago do projeto dela, porque fora assim que aquilo
começara para ela, com a Libby e, depois, comigo.

298
ESCRITO NA ÁGUA

Ela persuadiu-me a dizer-lhe coisas que não lhe queria dizer.


Eu sabia que devia parar, mas não era capaz. Sabia que estava a ser
sugado para dentro de algo de que não me conseguiria libertar.
Sabia que me estava a tornar descuidado. Deixámos de nos encon-
trar na Casa do Moinho, porque as férias escolares estavam a come-
çar e a Lena estava frequentemente em casa. Em vez disso, íamos
para o chalé, o que eu sabia ser um risco, mas não havia quartos
de hotel para alugar, não na terra, e para onde mais é que poderia-
mos ir? Nunca me passou pela cabeça que devia deixar de a ver;
naquela altura, isso parecia-me impossível.
O meu pai faz as suas caminhadas de madrugada, pelo que
não faço ideia porque é que ele lá estava nessa tarde. Mas estava,
e avistou o meu carro; esperou junto às árvores até a Nel ter saído
e, depois, bateu-me. Esmurrou-me até eu cair no chão, deu-me
pontapés no peito e no ombro. Eu enrosquei-me, protegendo a
cabeça, como me tinham ensinado. Não dei luta, porque sabia que
ele havia de parar quando estivesse satisfeito, e quando soubesse
que eu já não aguentava mais.
Depois, ele pegou nas minhas chaves e conduziu-me a casa.
A Helen ficou furiosa: primeiro com o meu pai, por causa da tareia,
e depois comigo, quando ele lhe explicou o motivo. Eu nunca
antes a vira zangada, não daquela maneira. Só quando presenciei
a sua raiva, fria e aterrorizadora, é que comecei a imaginar o que
ela poderia fazer, como é que se poderia vingar. Imaginei-a a fazer
as malas e a ir-se embora, imaginei-a a demitir-se da escola, o escân-
dalo público, a ira do meu pai. Esse era o tipo de vingança pelo qual
eu imaginava que ela optaria. Mas imaginava mal.

as
LENA

ARFEI. TRAGUEI TANTO AR quanto conseguia e espetei-lhe o cotovelo


nas costelas. Ele contorceu-se, mas, ainda assim, manteve-me se-
gura. O seu hálito quente no meu rosto deu-me vontade de gritar.
— Demasiado boa para si — não parava eu de dizer —, ela era
demasiado boa para si, demasiado boa para que você lhe tocasse,
demasiado boa para que você a fodesse... Você custou-lhe a vida,
seu monte de merda. Não sei como é que é capaz, como é que se
levanta todos os dias, como é que vai para o trabalho, como é que
olha a mãe dela nos olhos...
Ele encostou o prego, com força, contra o meu pescoço e eu
fechei os olhos e fiquei à espera.
— Não fazes a mínima ideia do que é que eu tenho sofrido
— disse ele. — A mínima ideia.
Então, agarrou-me num punhado de cabelo, puxou-o com força
e, depois, subitamente, largou-o, de modo que a minha cabeça
bateu contra a mesa, sem que conseguisse evitá-lo: comecei a
chorar.
O Mark libertou-me e pôs-se de pé. Deu alguns passos atrás e,
depois, foi até ao outro lado da mesa, para me ver bem. Ficou ali
parado a observar-me, e eu desejei, mais do que tudo, que a terra
se abrisse e me engolisse. Qualquer coisa era melhor do que ele
a ver-me chorar. Levantei-me. Estava a soluçar como um bebé que
perdeu o seu boneco e ele começou a dizer:

300
ESCRITO NA ÁGUA

— Para com isso! Para com isso, Lena. Não chores dessa ma-
neira. Não chores dessa maneira. — E isso era estranho porque,
nesse momento, ele também estava a chorar, e não parava de dizer,
repetidamente: — Para de chorar, Lena, para de chorar.
Parei. Estávamos a olhar um para o outro, ambos com lágrimas
e ranho na cara. Ele ainda tinha o prego nas mãos, e disse:
— Eu não fiz isso. O que achas que fiz. Não toquei na tua
mãe. Pensei nisso. Pensei em fazer-lhe todo o tipo de coisas, mas
não fiz.
— Fez, sim — disse eu. — Você tem a pulseira dela, você...
— Ela veio ver-me — disse ele. — Depois de a Katie morrer.
Disse-me que eu tinha de dizer a verdade. Para o bem da Louise!
— Ele riu-se. — Como se, na realidade, não se estivesse a cagar.
Como se não se estivesse a cagar para toda a gente. Eu sei porque é
que ela queria que eu dissesse alguma coisa. Ela sentia-se culpada
por ter metido ideias na cabeça da Katie, sentia-se culpada e queria
que outra pessoa assumisse a culpa. Queria culpar-me por tudo,
a puta egoísta.
Observei-o a revirar o prego nas mãos e imaginei-me a atacá-lo,
agarrando-o e espetando-lho no globo ocular. Tinha a boca seca.
Lambi os lábios e souberam-me a sal.
Ele continuava a falar.
— Pedi-lhe que me desse algum tempo. Disse-lhe que havia
de falar com a Louise, que só precisava de pensar bem no que lhe
dizer, como explicar aquilo. Persuadi-a. — Ele olhou para baixo,
para o prego que tinha nas mãos, e, depois, voltou a olhar para
mim. — Sabes, Lena, eu não precisei de lhe fazer nada. O modo
de lidar com mulheres daquelas, mulheres como a tua mãe, não
é através da violência, mas através da vaidade. Eu já conheci mu-
lheres como ela, mulheres mais velhas, com mais de 35 anos, que
estão a perder a beleza. Querem sentir-se desejadas. Consegue-se
cheirar o seu desespero a milhas. Eu sabia o que tinha de fazer,
muito embora me desse arrepios pensar nisso. Tinha de a pôr do
meu lado. Encantá-la. Seduzi-la. — Fez uma pausa, esfregando
as costas da mão na boca. — Pensei que talvez lhe tirasse algu-
mas fotografias. Para a comprometer. Para ameaçar humilhá-la.

301
PauLA HAWKINS

Pensei que, talvez, ela me deixasse em paz, para eu poder fazer o


meu luto. — Ele levantou um pouco o queixo. — Era esse o meu
plano. Mas, então, a Helen Townsend interveio, e eu não tive de
fazer nada.
Ele atirou o prego para o lado. Eu observei-o a ressaltar na relva
e a pousar junto ao muro.
— Do que é que está a falar? — perguntei. — O que é que
quer dizer com isso?
— Eu conto-te. Conto. Só que... — Ele suspirou. — Tu sabes
que não te quero magoar, Lena. Nunca te quis magoar. Tive de
te bater quando me atacaste lá em casa; que mais podia eu fazer?
No entanto, não voltarei a fazê-lo. A não ser que tu me obrigues.
Está bem? — Eu não disse nada. — Só preciso que faças uma
coisa. Preciso que regresses a Beckford, que digas à polícia que
fugiste, que pediste boleia, o que quer que seja. Tanto me faz o
que lhes digas, só tens de explicar que mentiste a meu respeito.
Que inventaste tudo. Diz-lhes que inventaste esta história por
estares com ciúmes, porque estavas louca de sofrimento, talvez
apenas por seres uma putinha vingativa à procura de atenção, tan-
to me faz o que lhes digas. Está bem? Desde que lhes digas que
mentiste.
Olhei-o de soslaio.
— Porque é que acha que eu faria isso? A sério. Que porra
é que me levaria a fazer isso? Em todo o caso, é demasiado tarde.
O Josh falou com eles, não fui eu que...
— Então, diz-lhes que o Josh mentiu. Diz-lhes que pediste ao
Josh que mentisse. Diz ao Josh que também tem de se retratar
da sua história. Sei que consegues fazê-lo. E até acho que o farás,
porque, se o fizeres, não só não te magoarei, como — e enfiou a
mão no bolso das suas calças de ganga, tirando de lá a pulseira
— te contarei o que precisas de saber. Faz só isso por mim, e eu
contar-te-ei o que sei.
Caminhei até ao muro. Tinha as costas viradas para ele e
estava a tremer, porque sabia que ele me podia atacar, sabia
que podia acabar comigo, se quisesse. Mas achava que ele não
queria. Apercebia-me disso. Ele queria fugir. Empurrei o prego

302
ESCRITO NA ÁGUA

com a ponta do sapato. A única questão era se eu ia permitir


que o fizesse.
Virei-me para o encarar, de costas para o muro. Pensei em
todos os erros estúpidos que cometera até ali e que não iria come-
ter mais nenhum. Fingi-me amedrontada, fingi-me agradecida.
— Promete?... Deixar-me voltar a Beckford?... Por favor, Mark.
Promete?
Fingi-me aliviada, fingi-me desesperada, fingi-me arrepen-
dida. Aldrabei-o.
Ele sentou-se e colocou a pulseira à sua frente, no meio da
mesa.
— Encontrei-a — disse ele, sem rodeios, e eu comecei-me
a rir.
— Encontrou-a? O quê, tipo, no rio, onde a polícia procurou
durante dias? Não me foda.
Ele ficou em silêncio durante um segundo e, depois, olhou
para mim como se me odiasse mais do que a qualquer outra pes-
soa no mundo. O que, provavelmente, era verdade.
— Vais ouvir-me ou não?
Recostei-me contra o muro.
— Estou a ouvir.
— Fui ao escritório da Helen Townsend — disse ele. — Estava
à procura de... — Parecia envergonhado. — Algo dela. Da Katie.
Queria... qualquer coisa. Algo em que pudesse a...
Ele estava a tentar que eu tivesse pena dele.
— E?
Não estava a resultar.
— Eu estava à procura de uma chave do arquivo. Procurei na
gaveta da secretária da Helen e encontrei-a.
— O quê? Encontrou a pulseira da minha mãe na secretária
da Sra. Townsend?
Ele acenou com a cabeça.
— Não me perguntes como é que lá foi parar. Mas, se ela a estava
a usar naquele dia, então...
— A Sra. Townsend — repeti eu, estupidamente.
— Eu sei que não faz qualquer sentido — disse ele.

303
PauLa HaWKINS

Só que fazia. Ou podia fazer, em última instância. Eu nunca teria


sonhado que ela fosse capaz. É uma cabra velha e reprimida, eu sei
disso, mas nunca a teria imaginado a magoar alguém fisicamente.
O Mark estava a olhar fixamente para mim.
— Há qualquer coisa que eu não estou a perceber, não há?
O que é que ela fez? À Helen? O que é que a tua mãe lhe fez?
— perguntou ele.
Eu não disse nada. Desviei a cara. Uma nuvem tapou o Sol e
senti-me com tanto frio quanto me sentira ern casa dele, naquela
manhã, fria por dentro e por fora, fria até ao tutano. Caminhei até
à mesa, peguei na pulseira e, depois, passei-a à volta dos dedos,
colocando-a no pulso.
— Pronto — disse ele. — Agora, já te contei. Ajudei-te, não
ajudei? Agora, é a tua vez.
A minha vez. Voltei a andar até ao muro, agachei-me e peguei
no prego. Virei-me para o encarar.
— Lena — disse ele, e apercebi-me, pelo modo como disse
o meu nome, pelo modo como estava a respirar, curta e rapida-
mente, de que ele estava com medo. — Eu ajudei-te. Eu...
— Você acha que a Katie se afogou por ter medo de que eu a
traísse ou por ter medo de que a minha mãe a traísse, de que alguém
vos traísse a ambos e de que, depois, toda a gente soubesse, e ela
estivesse metida num grande sarilho, e os pais dela ficassem des-
troçados. Mas sabe que, na verdade, não foi por isso, não sabe?
— Ele curvou a cabeça, com as mãos a agarrarem a berma da
mesa. — Sabe que, na verdade, a razão não foi essa. A razão foi que
ela tinha medo do que lhe pudesse acontecer a si. — Ele conti-
nuava a olhar fixamente para a mesa, sem se mexer. — Ela fê-lo por
si. Ela matou-se por si. E o que é que você fez por ela? — Os om-
bros dele estavam a começar a tremer. — O que é que fez? Mentiu
com todos os dentes, renegou-a completamente, como se ela não
significasse nada para si, como se não fosse ninguém para si.
Não acha que ela merecia melhor?
Com o prego na mão, aproximei-me da mesa. Conseguia ouvi-
lo a chorar descontroladamente, a chorar descontroladamente
e a pedir desculpa.

304
ESCRITO NA ÁGUA

— Desculpa, desculpa, desculpa — dizia ele. — Perdoa-me.


Deus me perdoe.
— É um pouco tarde para isso — disse eu. — Não acha?

305
SEAN

EU ESTAVA MAIS OU MENOS a meio do caminho quando começou a


chover, uns chuviscos ligeiros que, subitamente, se transforma-
ram numa bátega. A visibilidade era quase nula e tive de abrandar
e ir muito devagar. Um dos agentes enviados à casa de Howick
telefonou-me, e pu-lo em alta-voz. |
— Não há aqui nada — disse ele, através de uma linha com
interferências.
— Nada?
— Não está cá ninguém. Há um carro, um Vauxhall verme-
lho, mas não há sinal dele.
— E da Lena?
— Não há sinal de nenhum deles. A casa está toda trancada.
Estamos à procura. Vamos continuar à procura...
O carro está lá, mas eles não estão. O que quer dizer que de-
vem estar a pé, algures, e porque estariam a pé? Ter-se-á o carro
avariado? Se ele chegou à casa e descobriu que não conseguia
entrar, que não se podia esconder lá — porque não limitar-se a
arrombá-la? Certamente, isso seria melhor do que fugir. A menos
que alguém lhes tivesse dado boleia? Um amigo? Alguém que
o estivesse a ajudar? Talvez alguém o pudesse ajudar numa en-
rascada, mas estávamos a falar de um professor do liceu, e não de
um criminoso comum — eu não conseguia imaginá-lo a ter o tipo
de amigos que se envolveriam num rapto.

306
ESCRITO NA ÁGUA

E não tinha a certeza se isso me fazia sentir melhor ou pior.


Porque, se a Lena não estivesse com ele, não fazíamos ideia de onde
estaria. Ninguém a tinha visto nas últimas 24 horas. Só essa ideia
bastava para me encher de pânico. Eu tinha de a pôr em segurança.
Afinal de contas, falhara tão gravemente à mãe dela.
Eu deixara de ver a Nel depois do incidente com o meu pai.
De facto, nunca mais passei nenhum momento a sós na sua com-
panhia até depois da morte da Katie Whittaker. Aí, não tive esco-
lha. Tive de a interrogar, dada a sua ligação à Katie, por via da sua
filha, e dadas as acusações que a Louise andava a fazer em público.
Entrevistei-a como testemunha. O que, claro está, era pouco
profissional — boa parte da minha conduta no último ano pode-
ria caber nessa descrição —, mas, depois de me ter envolvido com
a Nel, isso parecia ser uma inevitabilidade. Não havia nada que eu
pudesse fazer quanto a isso.
Era um sofrimento, voltar a vê-la, porque senti, quase imedia-
tamente, que a Nel de antes, a que me sorrira tão candidamente,
que me tinha prendido, que me tinha enfeitiçado, já lá não estava.
Ela não tinha desaparecido, mas sim retrocedido; ter-se-ia retirado
para um outro eu, que eu não conhecia. As minhas fantasias ocio-
sas — uma nova vida, com ela e com a Lena, e a Helen satisfeita
por ser deixada — pareciam-me vergonhosamente infantis. A Nel
que me abriu a porta de casa naquele dia era uma mulher diferente,
estranha e inalcançável.
A culpa transbordava dela durante a nossa entrevista, mas era
uma culpa amorfa e genérica. A Nel ainda estava empenhada no
seu trabalho, insistia em que o projeto do Poço das Afogadas não
a
tinha nada que ver com a tragédia da Katie e, no entanto, irradiav
ou
culpabilidade, com todas as suas frases prefaciadas por Eu devia
conseguir
Nós devíamos ou Não me apercebi. Mas não parecíamos
chegar a o que é que ela devia ter feito, de que é que não se aperce-
dela
bera. Sabendo o que sei agora, só posso imaginar que a culpa
coisa
tinha que ver com o Henderson, que ela devia saber alguma
nada.
ou suspeitar de alguma coisa e que, no entanto, não fizera
fui até
Depois da entrevista, deixei-a na Casa do Moinho e
do que expetativa.
ao chalé. Esperei por ela, com mais esperança

307
PauULA HAWKINS

Já passava da meia-noite quando ela chegou: não completamente


sóbria, chorosa, no limite. Depois, de madrugada, quando resol-
vemos o que tínhamos para resolver, fomos até ao rio.
A Nel estava hiperativa, quase frenética. Falava com a paixão
de um fanático pela verdade. A verdade, toda a verdade, nada mais
que a verdade. Eu disse-lhe:
— Tu sabes bem que isso não é assim, não sabes? Às vezes, com
coisas como estas, não há qualquer verdade a descobrir. Nunca
poderemos saber o que é que andava a passar pela cabeça da Katie.
Ela abanou a cabeça.
— Não é isso, não é só isso, não é só... — A mão esquerda dela
agarrou na minha, enquanto a direita desenhava círculos no solo.
— Por que razão — sussurrou ela, sem olhar para mim — é que o
teu pai tem esta casa? Porque é que cuida dela como cuida?
= PO POUe Ri
— Se era aqui que a tua mãe vinha, se era este o local onde ela
o traía, porquê, Sean? Não faz qualquer sentido.
— Não sei — disse eu.
Eu próprio me perguntara a mesma coisa, mas nunca o ques-
tionara acerca disso. Nós não falamos acerca do que se passou.
— E esse homem, esse amante: porque é que ninguém sabe
o seu nome? Porque é que nunca ninguém o viu?
— Ninguém? Lá por eu não o ter visto, Nel...
— À Nickie Sage disse-me que ninguém sabia quem era esse
homem.
— À Nickie? — Tive de me rir. — Andas a falar com a Nickie?
Andas a dar ouvidos à Nickie?
— Porque é que toda a gente desvaloriza o que ela diz?
— irritou-se ela comigo. — Por ser uma velha? Por ser feia?
— Porque é maluca.
— Certo — murmurou ela para si mesma. — As gajas são
todas malucas.
— Oh, vá lá, Nel! Ela é uma intrujona! Garante que fala com
os mortos.
— Sim. — Os dedos dela cravaram-se mais no solo. — Sim, ela
é uma trapaceira, mas isso não quer dizer que tudo o que lhe sai da

308
ESCRITO NA ÁGUA

boca seja mentira. Ficarias surpreendido, Sean, com a quantidade


de coisas que ela diz e que soam a verdades.
— Ela faz leituras a frio, Nel. E, no teu caso, nem sequer pre-
cisa de fazer leituras a frio. Ela sabe o que queres dela, sabe o que
queres ouvir.
Ela ficou em silêncio. Os seus dedos pararam de se mexer e,
depois, disse, num sussurro, num silvo:
— Porque é que havia de passar pela cabeça da Nickie que eu
queria ouvir que a tua mãe tinha sido assassinada?

309
LENA

NÃO HAVIA ESPAÇO PARA A CULPA. Todo o espaço estava ocupado pelo
alívio, pela dor, por aquela estranha sensação de leveza que sen-
timos quando despertamos de um pesadelo e nos apercebemos
de que não é real. Mas isso — isso nem sequer era verdade, por-
que o pesadelo ainda era verdadeiro. A mamã não estava menos
morta. Mas, pelo menos, ela não escolhera morrer. Não escolhera
abandonar-me. Alguém ma roubara — e isso já era alguma coisa,
porque significava que havia algo que eu podia fazer a esse respei-
to, por ela e por mim. Podia fazer o que quer que fosse necessário
para garantir que a Helen Townsend pagava pelo seu crime.
Eu estava a correr pelo trilho costeiro, prendendo a pulseira da
mamã no pulso. Estava com muito medo de que ela caísse pelo
penhasco até ao mar. Queria pô-la na boca, para a resguardar, como
os crocodilos fazem com os seus bebés.
Correr pelo trilho escorregadio parecia-me perigoso, porque
podia cair, mas, ao mesmo tempo, seguro — consegue-se ver até
bastante longe, em ambas as direções, pelo que sabia que não
havia ninguém atrás de mim. Claro que não havia ninguém atrás
de mim. Nem viria ninguém.
Ninguém viria à minha procura — nem para me fazer mal nem
para me ajudar. E eu não tinha o telemóvel e não fazia a mais pe-
quena ideia se ele estava na casa do Mark ou no carro, ou se ele mo
tirara e o deitara fora, e agora já não lho podia perguntar, pois não?

310
ESCRITO NA ÁGUA

Não havia espaço em mim para culpas. Tinha de me concen-


trar. A quem é que podia recorrer? Quem é que me ia ajudar?
Conseguia ver edifícios um pouco mais à frente, e comecei a
correr mais velozmente, tão rápido quanto era capaz. Permiti-me
imaginar que alguém aí saberia o que fazer, que alguém aí teria
todas as respostas.

ea
SEAN

O MEU TELEMÓVEL ZUNIU no seu suporte, resgatando-me, de novo,


para o presente.
— Chefe? — Era a Erin. — Onde está?
— À caminho da costa. E você? A Louise tinha alguma coisa
a dizer? — Houve uma longa pausa, tão longa que eu achei que
talvez ela não me tivesse ouvido. — A Louise tinha alguma coisa
a dizer acerca da Lena?
= Tm... não.
Ela não parecia convencida.
— O que é que se passa?
— Olhe, preciso de falar consigo, mas não quero fazê-lo pelo
telefone...
— O quê? É a Lena? Diga-me agora, Erin, não esteja com
rodeios.
— Não é urgente. Não é a Lena. É...
— Por amor de Deus, se não é urgente, porque é que me está
a telefonar?
— Preciso de falar consigo mal regresse a Beckford — disse
ela. Parecia fria e zangada. — Percebeu?
E desligou a chamada.
Com o aguaceiro a diminuir, acelerei, serpenteando por estradas
estreitas abaixo, flanqueadas por sebes altas. Estava, novamente,
a ter aquela sensação de tonturas, como quando se anda depressa

312
ESCRITO NA ÁGUA

numa montanha-russa, atordoado pela adrenalina. Atravessei um


arco de pedra estreito e desci um declive, depois voltei a subir,
à medida que a estrada passava por cima do topo de uma colina,
e ei-lo: um pequeno porto, e barcos de pesca a subirem e a desce-
rem sobre a maré impaciente.
A aldeia estava sossegada, presumivelmente devido ao tem-
po horrível. Portanto, aquilo é que era Craster. O carro abrandou
sem eu sequer me aperceber de que estava a travar. Alguns cami-
nhantes vigorosos, envoltos em anoraques que pareciam ten-
das, caminhavam, com dificuldade, por cima de poças, quando
eu encostei para estacionar. Segui um jovem casal que corria
para se abrigar e descobri um grupo de reformados reunidos
no café, em torno de canecas de chá. Mostrei-lhes fotografias da
Lena e do Mark, mas não os tinham visto. Explicaram que já ti-
nham respondido o mesmo, nem meia hora antes, a um agente
fardado.
Ao caminhar de volta ao carro, passei pelo exato fumeiro a que
a minha mãe prometera levar-me, para comermos arenque fuma-
do. Tentei imaginar a cara dela, como às vezes fazia, mas sempre
sem sucesso. Creio que desejava reviver o seu desapontamento
quando lhe disse que não queria ir ali. Desejava sentir a dor, a sua
dor nesse momento, a minha dor de agora. Mas a memória estava
demasiado turva.
Continuei a conduzir cerca de um quilómetro até Howick.
Foi suficientemente fácil encontrar a casa — era a única que lá
havia, periclitantemente empoleirada no cimo do penhasco, com
vista para o mar. Como era de esperar, havia um Vauxhall verme-
lho estacionado nas traseiras. Tinha o porta-bagagens aberto.
Ao arrastar-me para fora do carro, com os pés pesados de medo,
um dos agentes aproximou-se para me pôr a par — de onde estavam
à procura, do que tinham descoberto. Estavam a falar com a guar-
da costeira.
— O mar está bastante agreste, pelo que, se algum deles lá esti-
ver, pode ter sido arrastado uma distância considerável, num curto
espaço de tempo — disse ele. — Claro que não sabemos quando
é que eles cá chegaram, ou...

313
Pauta HAWKINS

Ele conduziu-me ao carro e eu espreitei para dentro do porta-


-bagagens.
— Pode ver — disse ele — que parece que alguém esteve cá
dentro.
Ele apontou para a mancha de sangue no tapete e para outra
no vidro traseiro. Um fio de cabelo louro ficara preso no mecanis-
mo da fechadura, exatamente igual ao que havia sido encontrado
na cozinha.
Ele mostrou-me o resto do local: manchas de sangue na mesa
do jardim, no muro, num prego enferrujado. Eu tinha-lhe falha-
do, tal como falhara à minha mãe. Não — tal como falhara à mãe
dela. Sentia-me a desmoronar, com a sensação de que estava a
perder o controlo, e então:
— Chefe? Temos uma chamada. É um lojista da aldeia mais
próxima, mais acima na costa. Diz que tem lá uma rapariga, en-
charcada e um pouco maltratada, que não faz ideia de onde está
e que lhe pediu para ligar à polícia.

Havia um banco diante da loja e ela estava sentada nele, com


a cabeça inclinada para trás e os olhos fechados. Estava coberta
por um casaco que era demasiado grande para ela. Quando o carro
encostou, ela abriu os olhos.
— Lena! — Eu saltei para fora do carro e corri na sua direção.
— Lena! — A cara dela estava fantasmagoricamente branca, exceto
por uma mancha de sangue vivo na bochecha. Ela não disse nada,
limitou-se a encolher-se, de novo, no banco, como se não me reco-
nhecesse, como se não fizesse ideia de quem eu era. — Lena, sou eu.
Lena. Está tudo bem, sou eu.
Quando a sua expressão não mudou, quando lhe estendi a mão
e ela se encolheu ainda mais, apercebi-me de que algo estava errado.
Ela via-me muito bem — não estava em choque, sabia quem eu era.
Sabia quem eu era e tinha medo de mim.
Isso recordou-me, repentinamente, de algo, de um olhar
que, outrora, eu vira no rosto da mãe dela e no rosto da mulher-
-polícia, a Jeannie, quando esta me levara para casa. Não era
apenas medo, mas outra coisa. Medo e incompreensão, medo

314
ESCRITO NA ÁGUA

e terror. Lembrou-me do olhar que, às vezes, eu lançava sobre


mim próprio, caso calhasse cometer o erro de ver os meus olhos
ao espelho.

815
JULES

DeprpoiIs DE A NICKIE SE TER IDO EMBORA, fui para o andar de cima,


para o teu quarto. A tua cama estava sem quaisquer roupas, pelo
que me dirigi ao guarda-fatos e tirei de lá um dos teus casacos,
de caxemira cor de caramelo, mais macio e mais luxuoso do que
qualquer coisa que eu pudesse sonhar possuir. Embrulhei-me
nele e, ainda assim, sentia-me mais fria do que me sentira dentro
de água. Deitei-me na tua cama durante muito tempo e, dema-
siado hirta e demasiado cansada para me mexer, sentia-me como
se estivesse à espera de que os meus ossos aquecessem, de que
o meu sangue circulasse de novo, de que voltasse a ligar o meu
coração. Na minha cabeça, estava à espera de ter notícias tuas,
mas tu estavas em silêncio.
Por favor, Nel, pensei eu, por favor, fala comigo. Pedi-te desculpa.
Imaginei a tua resposta gelada: Todo este tempo, Julia. Tudo o
que eu queria era falar contigo. E: Como é que foste capaz de pensar
isso de mim? Como é que pudeste pensar que eu me tivesse limitado
a desvalorizar uma violação, que te tivesse insultado com isso?
Não sei, Nel. Desculpa.
Ao continuar a não conseguir ouvir a tua voz, mudei de orien-
tação. Então, conta-me acerca da Lauren. Conta-me acerca daquelas
mulheres problemáticas. Conta-me acerca do Patrick Townsend. Conta-
-me 0 que quer que seja que andavas a tentar contar-me antes. Mas tu
não dizias nada. Quase que te conseguia sentir a amuar.

316
ESCRITO NA ÁGUA

O meu telemóvel tocou e, no seu ecrã azul-claro, vi o nome da


agente Morgan. Durante um segundo, não me atrevi a atendê-lo.
O que é que eu faria se tivesse acontecido alguma coisa à Lena?
Como é que, alguma vez, eu poderia redimir-me de todos os erros
que cometera, caso também ela tivesse morrido? Com a mão a tre-
mer, atendi. E pronto! O meu coração voltou a bombear, empurrando
sangue quente até às minhas extremidades. Ela estava em segu-
rança! À Lena estava em segurança. Eles tinham-na encontrado.
Iam trazê-la para casa.

Pareceu-me uma eternidade, horas e horas, antes de ter ouvido


a porta de um carro a bater na rua e ter sido capaz de despertar, de
me pôr de pé num pulo, de tirar o teu casaco e de correr escadas
abaixo. A Erin já lá estava, de pé ao fundo das escadas, observando
enquanto o Sean ajudava a Lena a sair do carro dele.
Ela trazia um casaco de homem sobre os ombros e o seu rosto
estava pálido e sujo. Mas estava inteira. Estava bem. Só que, quan-
do olhou para cima e os seus olhos se encontraram com os meus,
vi que isso era mentira.
Ela caminhava atentamente, pousando os pés com cautela, e eu
conhecia essa sensação. Os seus braços estavam dobrados, de modo
protetor, em torno de si própria; quando o Sean esticou um braço
para a guiar para dentro de casa, ela encolheu-se. Eu pensei acerca
do homem que a levara, acerca das suas inclinações. O meu estô-
mago revirou-se e saboreei a doçura da vodca com laranja, senti
um hálito quente no meu rosto e a pressão de uns dedos insisten-
tes sobre a carne macia.
— Lena — disse eu, e ela acenou-me com a cabeça.
Vi que aquilo que eu supusera ser lama na cara dela era sangue,
que lhe saía da boca e do queixo. Tentei pegar-lhe na mão, mas ela
limitou-se a agarrar-se com mais força, pelo que a segui escadas
acima. No corredor, ficámos paradas, viradas uma para a outra.
Ela meneou os ombros, libertando-se do casaco, e deixou-o cair
no chão. Eu dobrei-me para pegar nele, mas a Erin chegou lá pri-
meiro. Apanhou-o e entregou-o ao Sean, e algo circulou entre eles
— um olhar que eu não conseguia ler, quase de raiva.

317
PauLA HAWKINS

— Onde é que ele está? — silvei eu ao Sean. À Lena estava


dobrada sobre o lavatório, bebende água diretamente da torneira.
— Onde é que está o Henderson?
Eu tinha uma ânsia, simples e selvagem, de lhe causar dor,
aquele homem que assumira uma posição de confiança e, depois,
abusara dela. Apetecia-me agarrá-lo, torcê-lo e rasgá-lo, até o liqui-
dar, fazer-lhe o que os homens como ele merecem.
— Estamos à procura dele — disse o Sean. — Temos gente
à procura dele.
— O que é que quer dizer com à procura dele? Ela não estava
com ele?
— Estava, mas...
A Lena continuava dobrada sobre o lavatório, a engolir água.
— Levaram-na ao hospital? — perguntei eu ao Sean.
Ele abanou a cabeça.
— Ainda não. A Lena deixou muito claro que não queria ir.
Havia algo na cara dele de que eu não gostava, algo escondido.
— Mas... |
— Não preciso de ir ao hospital — disse a Lena, endireitando-
-se e limpando a boca. — Não estou magoada. Estou ótima.
Estava a mentir. Eu sabia, exatamente, que tipo de mentira é
que ela estava a contar, porque eu própria contara essas mentiras.
Pela primeira vez, ao olhar para ela, vi-me a mim mesma, e não
a ti. À sua expressão era de medo e desafio; eu conseguia ver que
ela estava a agarrar o seu segredo junto a si, como um escudo.
Pensamos que a dor será menor, a humilhação mais leve, se mais
ninguém as conseguir ver.
O Sean pegou-me no braço e conduziu-me para fora da casa
de banho. Muito baixo, disse:
— Ela foi inflexível quanto a vir a casa primeiro. Não pode-
mos forçá-la a submeter-se a exames médicos se ela não o desejar.
Mas você tem de a levar. Tão rapidamente quanto possível.
— Sim, claro que levo. Mas ainda não compreendo porque é
que vocês não o apanharam. Onde é que ele está? Onde é que está
o Henderson?
— Desapareceu — disse a Lena, de repente a meu lado.

318
ESCRITO NA ÁGUA

Os dedos dela roçaram nos meus; pareciam tão frios como


os da mãe dela, da última vez que eu lhes tocara.
— Desapareceu para onde? — perguntei eu. — O que queres
dizer com desapareceu?
Ela não olhava para mim.
— Desapareceu, simplesmente.
O Townsend ergueu uma sobrancelha.
— Temos agentes à procura. O carro dele ainda lá está, pelo
que não pode ter ido longe.
— Para onde é que achas que ele foi, Lena? — perguntei eu,
tentando olhá-la nos olhos, mas ela não parava de os desviar.
O Sean abanou a cabeça, com uma expressão pesarosa.
— Eu tentei — disse ele, suavemente. — Ela não quer falar.
Acho que está completamente exausta.
Os dedos da Lena fecharam-se em torno dos meus, com a sua
respiração a escapar-se num suspiro profundo.
— Estou, sim. Só quero dormir. Podemos fazer isto amanhã,
Sean? Estou desesperada por dormir.

Os detetives deixaram-nos, com a garantia de que voltariam;


a Lena teria de prestar declarações formais. Observei-os a cami-
nharem até ao carro do Sean. Quando a Erin entrou para o lugar
do passageiro, bateu com a porta com tanta força que eu fiquei sur-
preendida por o vidro não se estilhaçar.
A Lena chamou-me da cozinha.
— Estou esfaimada — disse ela. — Podias voltar a fazer-me
esparguete à bolonhesa, como da outra vez?
O tom e a suavidade da sua voz eram novos; isso foi tão sur-
preendente quanto o toque da sua mão.
— Claro que posso — disse eu. — Vou já fazer isso.
— Obrigada. Vou só um bocadinho lá acima, tenho de tomar
um duche.
Eu pus a mão no braço dela.
— Não, Lena. Não podes. Tens de ir ao hospital primeiro.
Ela abanou a cabeça.
— Não, a sério que não tenho. Não estou magoada.

319
PauLa HAWKINS

— Lena. — Não consegui olhá-la nos olhos ao dizê-lo. — Tens


de ser examinada antes de poderes tomar um duche.
Ela pareceu momentaneamente confusa, mas, depois, deixou
cair os ombros, abanou a cabeça e avançou na minha direção.
Contra a minha vontade, comecei a chorar. Ela pôs os braços à
minha volta.
— Está tudo bem — disse ela. — Está tudo bem, está tudo bem.
— Tal como tu tinhas feito, na noite depois da água. — Ele não me
fez nada disso. Não foi assim. Tu não compreendes, ele não era,
tipo, um terrível predador sexual qualquer. Era apenas um homem
velho e triste.
— Oh, graças a Deus! — disse eu. — Graças a Deus, Lena!
Ficámos assim paradas, abraçando-nos uma à outra, durante
um bocadinho, até que eu parei de chorar e ela começou. Solu-
çou como uma criança, com o seu corpo magro a encolher-se e a
escorregar-me dos braços para o chão. Eu agachei-me junto a ela
e tentei pegar-lhe na mão, mas esta estava firmemente cerrada,
formando um punho. |
— Vai tudo correr bem — disse-lhe eu. — Não sei como, mas
vai. Eu tomo conta de ti.
Ela olhou para mim, sem palavras; não parecia capaz de falar.
Em vez disso, estendeu-me a mão, com os dedos a desenrolarem-
-se para revelarem o tesouro que estava lá dentro — uma pequena
pulseira de prata com um fecho de ónix. E, então, reencontrou
a sua VOZ.
— Ela não se atirou — disse ela, com os olhos a brilharem.
Eu senti a temperatura da divisão a cair a pique. — A mamã não
me abandonou. Não se atirou.

320
LENA

FIQUEI NO CHUVEIRO DURANTE MUITO TEMPO, com a água tão quente


quanto conseguia suportar. Queria esfregar a minha pele, queria
limpar-me da totalidade do dia e da noite e da semana e do mês
passados. Queria limpar-me dele, da sua casa ascorosa e das suas
mãos e do seu pivete, da sua respiração e do seu sangue.
A Julia foi bondosa para mim quando cheguei a casa. Não esta-
va a fingir, estava, obviamente, contente com o meu regresso, preo-
cupada comigo. Parecia achar que o Mark me tinha violentado,
tal como, provavelmente, pensava que ele era uma espécie qual-
quer de pervertido, que não conseguia manter as mãos longe das
raparigas adolescentes. Concedo-lhe isto: ele tinha razão acerca de
uma coisa — as pessoas não compreendem a relação dele com
a K, nunca compreenderão.
(Há uma parte minúscula e retorcida de mim que quase dese-
java que eu acreditasse na vida depois da morte, e que eles os dois
pudes-
pudessem retomar a relação lá, e que talvez as coisas lhes
eu 0 odeie,
sem correr bem, e que ela fosse feliz. Por muito que
feliz.)
gostaria de pensar que, de algum modo, a Katie possa ser
o
Quando me senti limpa ou, pelo menos, tão limpa quant
e sentei-me
achava que conseguiria ficar, fui para o meu quarto
. Acendi
no parapeito da janela, porque é aí que penso melhor
perguntá-
um cigarro e pus-me a pensar no que devia fazer. Queria
pensar nisso
Jo à mamã, queria tanto perguntar-lho, mas não podia

321
PauLA HAWKINS

porque começaria novamente a chorar, e que bem é que isso lhe


faria? Não sabia se devia contar à Julia o que o Mark me dissera.
Se podia confiar que ela faria o que era correto.
Talvez. Quando contei à Julia que a mamã não se atirara, espe-
rava que ela me dissesse que eu estava errada ou louca ou o que
quer que fosse, mas ela limitou-se a aceitá-lo. Sem questionar.
Como se já soubesse. Como se tivesse sabido sempre.
Eu nem sequer sei se as merdas que o Mark me contou são
verdade, muito embora fossem algo muito estranho para ele inven-
tar. Porquê apontar o dedo à Sra. Townsend quando há pessoas
mais óbvias para culpar? Como a Louise, por exemplo. Mas talvez
ele se sinta suficientemente mal acerca dos Whittakers, depois do
que lhes fez.
Não sei se ele estava a mentir ou a dizer a verdade, mas, seja
como for, merecia o que eu lhe disse, o que lhe fiz. Merecia tudo
o que lhe aconteceu.

322
JULES

QUANDO A LENA VOLTOU para o andar de baixo, com a cara e as mãos


limpas, sentou-se à mesa da cozinha e comeu, vorazmente. De se-
guida, quando me sorriu e agradeceu, eu arrepiei-me, porque, agora
que o vi, não consigo deixar de o ver. Ela tem o sorriso do pai.
(Que mais, perguntei-me, terá ela dele?)
— O que se passa? — perguntou a Lena, subitamente. — Estás
a olhar fixamente para mim.
— Desculpa — disse eu, com a cara a corar. — Estou só... Estou
contente por estares em casa. Estou contente por estares em segu-
rança.
— Eu também.
Hesitei um momento antes de prosseguir.
— Eu sei que estás cansada, mas tenho de te perguntar, Lena,
acerca do que aconteceu hoje. Acerca da pulseira.
Ela afastou a cara, de mim para a janela.
— Sim. Eu sei.
— Era o Mark quem a tinha? — Ela voltou a acenar com a
cabeça. — E tu tiraste-lha?
Ela suspirou.
— Ele deu-ma.
r?
— Porque é que ele ta deu? Porque é que a tinha seque
O olhar
— Não sei. — Ela virou a cabeça para me encarar, com
vazio, fechado. — Ele disse-me que a encontrou.

323
PauLa HawWkKINS

— Encontrou-a? Onde? — Ela não respondeu. — Lena, temos


de falar disso à polícia, temos de lhes contar.
Ela pôs-se de pé e levou o seu prato para a bancada. De costas
voltadas para mim, disse:
— Fizemos um acordo.
— Um acordo?
— Que ele me daria a pulseira da mamã e me deixaria vir para
casa — disse ela — desde que eu dissesse à polícia que tinha men-
tido acerca dele e da Katie.
A voz dela estava incongruentemente leve, enquanto se atare-
fava com os pratos.
— E ele acreditou que farias isso? — Ela levantou os seus
ombros magros até às orelhas. — Lena, diz-me a verdade.
Achas... acreditas que foi o Mark Henderson quem matou a tua
mãe?
Ela virou-se para trás e olhou para mim.
— Estou a dizer a verdade. E não sei. Ele disse-me que a tinha
tirado do escritório da Sra. Townsend.
— Da Helen Townsend? — A Lena acenou com a cabeça.
— Da mulher do Sean? Da diretora da tua escola? Mas porque
é que ela teria a pulseira? Não compreendo...
— Nem eu — disse ela, baixinho. — Para dizer a verdade.
Fiz chá e sentámo-nos juntas à mesa da cozinha, beberri-
cando em silêncio. Segurei a pulseira da Nel na minha mão.
A Lena estava sentada com os membros relaxados e a cabeça cur-
vada, visivelmente a ir-se abaixo à minha frente. Estiquei-me e
toquei-lhe nos dedos com os meus.
— Estás exausta — disse eu. — Devias ir para a cama.
Ela acenou com a cabeça, olhando para cima, para mim, com
os olhos meio fechados.
— Sobes comigo, por favor? Não quero estar sozinha.
Segui-a escadas acima e entrámos no teu quarto, não no dela.
Ela subiu para a tua cama e encostou a cabeça à almofada, dando
palmadinhas no espaço a seu lado.
— Quando nos mudámos para cá — disse ela —, eu não con-
seguia dormir sozinha.

324
ESCRITO NA ÁGUA

— Por causa de todos os barulhos? — perguntei eu, subindo


para ao lado dela e cobrindo-nos com o teu casaco.
Ela acenou com a cabeça.
— Por causa de todos os rangidos e gemidos...
— E de todas as histórias assustadoras da tua mãe?
— Exatamente. Eu costumava vir sempre para aqui e dormia
ao lado da mamã.
Senti um nó na garganta, uma pedra. Não era capaz de engolir.
— Eu também costumava fazer isso com a minha mãe.
Ela adormeceu. Eu fiquei a seu lado, olhando para baixo, para
a sua cara, a qual, em repouso, era sem tirar nem pôr a tua. Queria
tocar-lhe, mexer-lhe no cabelo, fazer algo de maternal, mas não
queria acordá-la, nem alarmá-la, nem fazer nada de errado. Não
faço ideia de como ser mãe. Nunca tomei conta de uma criança
em toda a minha vida. Desejava que tu falasses, que me disses-
ses o que fazer, o que sentir. Com ela deitada a meu lado, creio
que senti, de facto, ternura, mas senti-a por ti, e pela nossa mãe,
e, mal os olhos verdes dela se abriram e se fixaram nos meus,
estremeci.
— Porque é que estás sempre a observar-me dessa maneira?
— sussurrou ela, meio a sorrir. — É mesmo estranho.
— Desculpa — disse eu, e virei-me, ficando deitada de costas.
Ela enfiou os dedos no meio dos meus.
— Não faz mal — disse ela. — Estranho é bom. Estranho
pode ser bom.
Ficámos ali deitadas, lado a lado, com os dedos entrelaçados.
Escutei a sua respiração a abrandar, depois a acelerar e, depois,
a abrandar de novo.
— Sabes que só não compreendo — sussurrou ela — porque
é que tu a odiavas tanto.
— Não odiava...
— Ela também não compreendia.
— Eu sei — disse eu. — Eu sei que não compreendia.
— Estás a chorar — sussurrou ela, esticando-se para me tocar
na cara.
Limpou-me as lágrimas da bochecha.

325
PauLA HAWKINS

Eu contei-lhe. Todas as coisas que te devia ter dito, disse-as


antes à tua filha. Contei-lhe como te tinha dececionado, como
acreditara no pior acerca de ti, como me permitira culpar-te.
— Mas porque é que não te limitaste a dizer-lhe? Porque é que
não lhe contaste o que aconteceu na realidade?
— É complicado — disse eu, e senti-a ficar hirta a meu lado.
— Complicado como? Quão complicado poderia ser?
— À nossa mãe estava a morrer. Os nossos pais estavam num
estado péssimo e eu não queria fazer nada para piorá-lo.
— Mas... ele violou-te — disse ela. — Devia ter ido para a
prisão.
— Eu não via as coisas assim. Era muito nova. Era mais nova
do que tu és, e não me refiro só aos anos, embora também o fosse.
Mas era ingénua, completamente inexperiente, não fazia ideia.
Nós não falávamos acerca do consentimento do modo como vocês,
as raparigas, agora falam. Achei...
— Achaste que o que ele fez estava certo? |
— Não, mas creio que não vi aquilo como era. Como era na
realidade. Achei que a violação era algo que um homem mau nos
fazia, um homem que nos atacava de surpresa num beco, pela
calada da noite, um homem que nos encostava uma faca à garganta.
Não achava que os rapazes o fizessem. Não os rapazes da escola,
como o Robbie, não os rapazes com bom aspeto, os que saíam
com a rapariga mais bonita da vila. Não achava que o fizessem
na nossa sala de estar, não achava que, a seguir, falassem con-
nosco acerca disso e nos perguntassem se nos tínhamos divertido.
Achava, apenas, que devia ter feito algo de errado, que não deixara
suficientemente claro que não queria.
A Lena ficou calada durante algum tempo, mas, quando voltou
a falar, a sua voz estava mais alta, mais insistente.
— Está bem, talvez não quisesses dizer nada na altura, mas
então e mais tarde? Porque é que não lho explicaste mais tarde?
— Porque a interpretei mal — disse eu. — Avaliei-a completa-
mente mal. Achei que ela sabia do que acontecera naquela noite.
— Achaste que ela sabia e não fizera nada? Como é que pudeste
pensar isso acerca dela?

326
ESCRITO NA ÁGUA

Como é que eu podia explicar aquilo? Que eu reuni as tuas


palavras — as palavras que me disseste naquela noite e as palavras
que me disseste mais tarde: Não houve uma parte de ti que gostou
daquilo? — e que contara a mim própria uma história acerca de
ti que fazia sentido para mim, que me permitia seguir em frente
com a minha vida sem nunca ter de me confrontar com o que,
na realidade, acontecera.
— Eu achei que ela escolhera protegê-lo — sussurrei eu.
— Achei que o preferira a ele, e não a mim. Não o podia culpar,
porque nem sequer conseguia pensar nele. Se o tivesse culpado e
pensasse acerca dele, teria tornado aquilo real. Portanto, limitei-
-me a... Pensei antes na Nel.
A voz da Lena tornou-se fria.
— Não te compreendo. Não compreendo pessoas como tu,
que escolhem sempre culpar as mulheres. Se há duas pessoas a
fazerem algo de errado e uma delas é uma rapariga, a culpa tem
de ser dela, certo?
— Não, Lena, não é assim, não é mesmo...
— É, sim. É como quando alguém tem um caso. Porque é que
a esposa odeia sempre a outra mulher? Porque é que não odeia o
marido? Ele é que a traiu, ele é que jurou amá-la e cuidar dela
e mais não sei o quê para todo o sempre. Porque é que não foi ele
a ser atirado do raio de um penhasco abaixo?

327
TERÇA-FEIRA, 25 DE AGOSTO

ERIN

SAÍ DO CHALÉ CEDO, correndo para montante. Queria afastar-me


de Beckford, desanuviar a cabeça, mas, embora o ar tivesse sido
purificado pela chuva e o céu estivesse perfeito, azul-claro, a bruma
que tinha na cabeça escureceu, tornou-se mais sombria. Nada acerca
daquele sítio fazia sentido.
Quando, ontem, o Sean e eu deixámos a Jules e a Lena na Casa
do Moinho, eu enchi-me de nervos, e estava tão lixada com ele que
deitei tudo cá para fora, ali mesmo no carro.
— O que é que se passava ao certo entre sie a Nel Abbott?
Ele carregou com o pé no travão, com tanta força que achei que
ia atravessar o para-brisas. Parámos no meio do caminho, mas
o Sean parecia não se importar.
— O que é que disse?
— Não quer encostar? — perguntei eu, verificando o espelho
retrovisor, mas ele não o fez.
Senti-me uma idiota por desabafar aquilo assim, sem prelimi-
nares, sem testar, de todo, o terreno.
— Está a questionar a minha integridade? — A cara dele tinha
um ar que eu nunca vira antes, uma dureza com que ainda não
me confrontara. — Então? Está?
— Alguém mo sugeriu — disse eu, mantendo a voz calma.
— Deram-mo a entender...
— Deram-lho a entender?

328
ESCRITO NA ÁGUA

Ele parecia incrédulo. Um carro, atrás de nós, buzinou e o Sean


voltou a pôr o pé no acelerador.
— Alguém lho deu a entender, foi? E você achou que seria
apropriado questionar-me acerca disso?
— Sean, eu...
Tínhamos chegado ao parque de estacionamento diante da
igreja. Ele encostou, inclinou-se sobre mim e abriu a porta do lugar
do morto.
-— Já viu a minha folha de serviço, Erin? — perguntou ele.
— Porque eu já vi a sua.
— Chefe, não era minha intenção ofendê-lo, mas...
— Saia do carro.
Eu mal tive tempo de fechar a porta atrás de mim antes de ele
acelerar e partir.

Estava sem fôlego quando acabei de subir a colina a norte do


chalé; parei no cume, para respirar. Ainda era cedo — mal eram
sete horas — e todo o vale era meu. Perfeitamente, pacificamente
meu. Estiquei as pernas e preparei-me para a descida. Senti que
precisava de correr, de voar, de me exaurir. Não era assim que se
obtinha lucidez?
O Sean reagira como um homem culpado. Ou como um ho-
mem ofendido. Um homem que achava que a sua integridade
estava a ser questionada sem provas. Ganhei ritmo. Quando ele
escarnecera de mim, em relação às nossas respetivas folhas de
serviço, tinha razão. A dele era impecável; eu mal conseguira evi-
tar ser despedida por dormir com um colega mais novo. Agora,
estava a correr, a descer a colina a toda a brida, com os olhos pos-
tos no trilho, e com o tojo na periferia da minha visão desfoca-
da. Ele tem um registo de detenções impressionante, é altamente
respeitado entre os colegas. É, como a Louise disse, um homem
bom. O meu pé direito prendeu-se numa pedra do trilho e eu caí
pelos ares. Fiquei deitada sobre a poeira, debatendo-me por resp1-
rar, sem fôlego. O Sean Townsend é um homem bom.
Há muitos desses por aí. O meu pai era um homem bom.
Era um agente respeitado. O que não evitava que se fartasse de

329
PauLA HAWKINS

bater em mim e nos meus irmãos quando perdia as estribeiras,


mas pronto. Quando a minha mãe se queixou a um dos colegas
dele, depois de ele ter partido o nariz ao meu irmão mais novo,
o colega dele disse:
— Há uma linha muito ténue, querida, que temo que não se
deva ultrapassar.
Ergui-me, limpando o pó das minhas roupas. Não podia dizer
nada. Podia ficar no lado certo dessa linha ténue, podia ignorar
as dicas e insinuações da Louise, podia ignorar a possível relação
pessoal do Sean com a Nel Abbott. Mas, se fizesse isso, estaria a
ignorar o facto de que onde há sexo há móbil. Ele tinha um móbil
para se livrar da Nel, e a mulher dele também. Pensei na cara dela,
no dia em que falara com ela na escola, no modo como ela falara
acerca da Nel, acerca da Lena. O que é que ela desprezava? A expres-
são, insistente e cansativa, de disponibilidade sexual dela?
Cheguei ao fundo do declive e contornei o tojo; o chalé ficava
apenas a cerca de 200 metros de distância, e consegui ver que
havia alguém diante dele. Uma figura, robusta e curvada, com um
casaco escuro. Não era o Patrick nem o Sean. Quando me aproximei
mais, apercebi-me de que era a velha gótica, a mediúnica, a com-
pletamente chanfrada Nickie Sage.
Estava encostada à parede do chalé, com a cara arroxeada. Parecia
poder estar à beira de um ataque cardíaco.
— Sra. Sage — gritei. — Está tudo bem?
Ela ergueu o olhar para mim, respirando com dificuldade, e em-
purrou o seu chapéu de abas largas mais para o cimo da testa.
— Estou ótima — disse ela —, embora há muito tempo que
não andasse até tão longe. — Olhou-me de cima a baixo. — Você
parece que esteve a brincar na lama.
— Ah, sim — disse eu, limpando, ineficazmente, a sujidade
que ainda tinha nas roupas. — Dei um pequeno tropeção. — Ela
acenou com a cabeça. Ao endireitar-se, consegui ouvir a pieira que
produzia ao respirar. — Quer entrar e sentar-se?
— Lá dentro? — Ela inclinou a cabeça para trás, em direção ao
chalé. — Nada disso. — Afastou-se alguns passos da porta da rua.
— Sabe o que aconteceu lá dentro? Sabe o que fez a Anne Ward?

330
ESCRITO NA ÁGUA

— Assassinou o marido — respondi eu. — E, depois, afogou-


-se, mesmo ali no rio.
A Nickie encolheu os ombros, bamboleando-se em direção
à margem do rio. Eu segui-a.
— Foi mais um exorcismo do que um assassinato, se quer a
minha opinião. Ela estava a livrar-se de um espírito maligno qual-
quer que se apoderara daquele homem. Esse espírito abandonou-o,
mas não abandonou aquela casa, pois não? Teve dificuldades em
dormir lá?
— Bem, eu...
— Não me surpreende. Não me surpreende, de todo. Eu podia
ter-lhe dito isso, não que você me tivesse dado ouvidos. A casa está
cheia de maldade. Porque é que acha que o Townsend a mantém
como sua, que trata dela como se fosse o seu refúgio especial?
— Não faço ideia — disse eu. — Achava que ele a usava como
cabana de pesca.
— Pesca! — exclamou ela, como se nunca tivesse ouvido nada
tão ridículo em toda a sua vida. — Pesca!
— Bem, na realidade, eu já o vi aqui a pescar, portanto...
A Nickie pigarreou, descartando a ideia com um aceno de
mão. Estávamos à beira da água. Com as pontas dos pés nos calca-
nhares, a Nickie estava a tirar os seus pés inchados e manchados
para fora dos sapatos. Enfiou um dedo grande na água e deu uma
risadinha satisfeita.
— Aqui em cima, a água é fria, não é? E limpa. — Com a água
do rio até aos tornozelos, perguntou: — Já foi visitá-lo? O Townsend?
Já lhe perguntou acerca da mulher dele?
— Está a referir-se à Helen?
Ela virou-se e olhou para mim, com uma expressão de desdém.
— A mulher do Sean? Aquela Helen, com cara de cu? O que é
que ela tem que ver com o que quer que seja? É a coisa mais desin-
teressante do mundo. Não, a que lhe devia interessar é a mulher
do Patrick. A Lauren.
— A Lauren? A Lauren que morreu há 30 anos?
— Sim, a Lauren que morreu há 30 anos! Acha que os mor
tos não importam? Acha que os mortos não falam? Devia ouvir

331
PAULA HAWKINS

as coisas que têm a dizer. — Dirigiu-se um pouco mais rio aden-


tro, dobrando-se para molhar as mãos. — Foi aqui, foi aqui que a
Anne veio lavar as mãos, exatamente assim, vê, só que ela conti-
nuou a andar...
Eu estava a perder o interesse.
— Tenho de ir, Nickie, tenho de tomar um banho e avançar
com uns trabalhos. Foi bom falar consigo — disse eu, virando-me
para a deixar.
Já estava a meio caminho do chalé quando a ouvi gritar.
— Acha que os mortos não falam? Devia escutá-los, talvez
ouvisse alguma coisa. É da Lauren que você anda à procura, foi ela
que começou isto tudo!
Deixei-a no rio. O meu plano era chegar cedo ao pé do Sean;
achava que, se aparecesse em casa dele, tê-lo-ia cativo durante,
pelo menos, 15 minutos. Ele não seria capaz de fugir de mim nem
de me pôr fora do carro. Era melhor do que confrontá-lo no posto,
onde haveria outras pessoas à nossa volta.

Não é grande distância do chalé a casa dos Townsends. Seguindo


junto ao rio, são, provavelmente, cerca de cinco quilómetros, mas
não há nenhuma estrada direta, tem de se conduzir até à vila e,
depois, voltar para trás, pelo que já passava das oito da manhã
quando lá cheguei. Já era demasiado tarde. Não havia carro ne-
nhum no pátio — ele já se tinha ido embora. O mais sensato,
sabia-o, era dar a volta com o carro e dirigir-me ao escritório, mas
tinha a voz da Nickie na minha cabeça, e também a da Louise,
e pensei que iria só ver se a Helen estava por lá, por mais impro-
vável que fosse.
Não estava. Bati à porta algumas vezes e não houve nenhu-
ma resposta. Estava a dirigir-me de volta ao carro quando pensei
que mais valia tentar a casa do Patrick Townsend, ali ao lado.
Aí, também não houve resposta. Espreitei pela janela da frente,
mas não consegui ver grande coisa, apenas uma sala escura e,
aparentemente, vazia. Voltei à porta da rua e bati de novo. Nada.
Mas, quando rodei a maçaneta, a porta abriu-se, e isso pareceu-
-me tão válido quanto um convite.

332
ESCRITO NA ÁGUA

— Está aqui alguém? — gritei eu. — Sr. Townsend? Está aqui


alguém?
Não houve qualquer resposta. Entrei na sala de estar, um es-
paço espartano com chão de madeira escura e paredes despidas;
a única concessão à decoração era um sortido de fotografias emol-
duradas sobre a cornija da lareira. O Patrick Townsend de farda
— primeiro no exército, depois na polícia — e uma quantidade de
fotografias do Sean em criança e, depois, em adolescente, sorrin-
do de modo hirto para a máquina de fotografar, em todas com a
mesma pose e a mesma expressão. Também havia uma fotografia
do Sean e da Helen no dia do seu casamento, parados diante da
igreja de Beckford. O Sean parecia jovem, elegante e infeliz. A Helen
tinha, basicamente, o mesmo aspeto de agora — talvez um pouco
mais magra. Contudo, parecia mais alegre, sorrindo, timidamen-
te, para a máquina de fotografar, apesar do seu vestido horroroso.
Sobre o aparador de madeira diante da janela, encontrava-se
outro conjunto de molduras, estas contendo certificados, louvo-
res e diplomas, um memorial aos feitos do pai e do filho. Tanto
quanto eu conseguia ver, não havia nem uma fotografia da mãe
do Sean.
Saí da sala de estar e voltei a gritar:
— Sr. Townsend?
A minha voz ecoou de volta para o corredor. Toda a casa parecia
abandonada e, no entanto, estava impecavelmente limpa, sem
uma mancha de pó sobre as tábuas dos rodapés ou sobre o corri-
mão. Subi as escadas até ao patamar. Aí, havia dois quartos, lado
a lado, tão esparsamente mobilados quanto a sala de estar do
andar de baixo, mas que eram habitados. Ambos, ao que parecia.
No quarto principal, com a sua grande janela que dava para o vale,
até ao rio, encontravam-se as coisas do Patrick: sapatos pretos
engraxados, junto à parede, e os seus fatos pendurados no roupeiro.
Na porta ao lado, junto a uma cama individual cuidadosamente
feita, havia uma cadeira com um casaco de fato pendurado, que
reconheci como sendo o que a Helen usava quando eu a interro-
gara na escola. E, no guarda-fatos, havia mais roupas dela, pretas
e cinzentas e azul-marinhas e informes.

338
PauLA HAWKINS

O meu telemóvel apitou, ensurdecedoramente alto no silêncio


sepulcral daquela casa. Tinha uma mensagem de voz, uma cha-
mada não atendida. Era a Jules.
— Agente Morgan — dizia ela, com uma voz séria —, preci-
so de falar consigo. É bastante urgente. Vou aí vê-la. Eu... hum...
preciso de falar consigo a sós. Vemo-nos no posto.
Enfiei o telemóvel, novamente, no bolso. Regressei ao quarto
do Patrick e dei outra olhadela rápida em redor, aos livros nas
estantes, à gaveta junto à cama. Aí, também havia fotografias anti-
gas, do Sean e da Helen juntos, a pescarem no rio, ao pé do chalé,
do Sean e da Helen orgulhosamente encostados a um carro novo,
da Helen parada à frente da escola, parecendo, simultaneamente,
feliz e envergonhada, da Helen no pátio, embalando um gato nos
braços, da Helen, da Helen, da Helen.
Ouvi um ruído, um clique, o som de um ferrolho a abrir-se e,
depois, um rangido de tábuas do soalho. Voltei a guardar as foto-
grafias apressadamente, fechei a gaveta e depois fui, tão depressa
quanto conseguia, até ao patamar. Então, gelei. A Helen encontrava-
-se ao fundo das escadas, olhando para cima, para mim. Tinha
uma faca na mão esquerda e estava a agarrar-lhe na lâmina com
tanta força que havia sangue a escorrer para o chão.

334
HELEN

HELEN NÃO FAZIA IDEIA de porque é que Erin Morgan estava a


vaguear pela casa de Patrick como se fosse dona dela, mas, por
agora, estava mais preocupada com o sangue no chão. Patrick
gostava da casa limpa. Foi buscar um pano à cozinha e começou
a limpá-lo, conseguindo apenas derramar ainda mais sangue do
corte profundo que lhe atravessava a palma da mão.
— Estava a picar cebolas — disse ela à detetive, à laia de expli-
cação. — Você assustou-me.
Aquilo não era, exatamente, verdade, porque ela parara de picar
cebolas quando vira o carro chegar. Com a faca na mão, ficara com-
pletamente imóvel enquanto Erin batia à porta e, depois, observa-
ra-a a vaguear até à casa de Patrick. Ela sabia que ele tinha saído,
pelo que assumira que a detetive se limitaria a ir-se embora. Mas,
então, lembrara-se de que, quando saíra nessa manhã, não tinha
trancado a porta da rua. Portanto, ainda com a faca na mão, atra-
vessara o pátio, para verificar.
— É bastante profundo — disse Erin. — Tem de limpar e ligar
isso como deve ser.
Erin descera as escadas e estava acima de Helen, observando-a
a limpar o chão. Estava ali, na casa de Patrick, como se tivesse todo
o direito de lá estar.
— Fle fica furioso se vir isto — disse Helen. — Gosta da casa
limpa. Sempre gostou.
PauLa HAWKINS

— E você... trata-lhe da casa, é?


Helen lançou um olhar afiado a Erin.
— Ajudo. Ele faz a maior parte das coisas sozinho, mas está
a ficar velho. E gosta de que as coisas estejam exatamente de uma
certa maneira. A sua falecida mulher — disse ela, erguendo o
olhar para Erin — era uma desleixada. O termo é dele. Um termo
antiquado. Já não se pode dizer vadia, pois não? É politicamente
incorreto.
Ela levantou-se, encarando Erin e segurando no pano ensan-
guentado à sua frente. A dor na sua mão dava-lhe uma sensação
quente e viva, quase como uma queimadura, com o mesmo efeito
cauterizador. Já não sabia bem de quem havia de ter medo, ou do
que é que se devia sentir culpada ao certo, mas sentia que devia
manter Erin ali, para descobrir o que é que ela queria. Para a reter
durante um bocado, desejavelmente até Patrick voltar, porque
tinha a certeza de que ele quereria falar com ela.
Helen limpou o cabo da faca com o pano.
— Deseja uma chávena de chá, detetive? — perguntou ela.
— Obrigada — respondeu Erin, com o seu sorriso alegre a
desvanecer-se ao observar Helen a trancar a porta da rua e a enfiar
a chave no bolso, antes de prosseguir para a cozinha.
— Sra. Townsend... — começou Erin.
— Quer açúcar? — interrompeu Helen.

O modo de lidar com situações daquelas era tirar o tapete à


outra pessoa. Helen sabia-o devido a anos de negociações com os
burocratas do setor público. Não devemos fazer o que as pessoas
esperam que façamos: isso deixa-as imediatamente baralhadas,
e quanto mais não seja ganhamos algum tempo. Portanto, em
vez de ficar zangada, indignada por aquela mulher ter entrado
em casa deles sem autorização, Helen foi bem-educada.
— Encontraram-no? — perguntou a Erin, enquanto lhe entre-
gava uma chávena de chá. — O Mark Henderson? Já apareceu?
— Não — respondeu Erin —, ainda não.
— Abandonou o carro no penhasco e não há sinal dele em par-
te alguma — comentou Helen, com um suspiro. — Um suicídio

336
ESCRITO NA ÁGUA

pode ser uma admissão de culpa, não pode? Pelo menos vai dar
essa ideia. Que trapalhada.
Erin acenou com a cabeça. Estava nervosa, conseguia aperceber-
-se Helen, sem parar de olhar de relance para trás, para a porta,
com as mãos nos bolsos.
— Vai ser horrível para a escola, para a nossa reputação. Para a
reputação de toda esta terra, novamente manchada...
— Era por isso que tinha tanta antipatia pela Nel Abbott? —
perguntou Erin. — Por ela manchar a reputação de Beckford com
o seu trabalho?
Helen franziu o sobrolho.
— Bem, essa é uma das razões. Ela era má mãe, como lhe disse,
era desrespeitosa para comigo e para com as tradições e regras da
escola.
— Era uma vadia? — perguntou Erin.
Helen riu-se, surpreendida.
— Desculpe?
— Estava só a perguntar-me se, para usar o seu termo politi-
camente incorreto, achava que a Nel Abbott era uma vadia. Ouvi
dizer que ela tinha casos com alguns dos homens da vila...
— Não sei nada acerca disso — disse Helen, mas tinha o rosto
quente e sentia que perdera a vantagem. Pôs-se de pé, foi até à
bancada e pegou na faca. Junto ao lava-louça, removeu o seu sangue
da lâmina. — Eu não afirmo saber coisa alguma acerca da vida
privada da Nel Abbott — disse ela, calmamente. Conseguia sen-
tir o olhar da detetive sobre ela, observando-lhe o rosto, as mãos.
Conseguia sentir o seu rubor a espalhar-se para o pescoço, para
o peito, todo o seu corpo a traí-la. Tentou manter a voz leve.
— Embora não ficasse nada surpreendida se ela fosse promíscua.
Ela gostava que lhe dessem atenção.
Só queria que aquela conversa acabasse. Queria que a detetive
saísse de casa deles, queria que Sean ali estivesse, e Patrick. Ansiava
por abrir completamente o jogo, por confessar os seus próprios
pecados e exigir que eles confessassem os deles. Tinham sido co-
metidos erros, evidentemente, mas os Townsends eram uma boa
família. Eram gente boa. Não tinham nada a temer. Ela virou-se para

337
PauLa HAWKINS

encarar a detetive, com o queixo levantado e uma expressão o


mais altiva que conseguia, mas tinha as mãos a tremer tanto que
achou que era capaz de deixar cair a faca. Por certo, não tinha
nada a temer?

338
JULES

DE MANHA, DEIXEI A LENA deitada na cama da mãe dela, ainda a


dormir profundamente. Escrevi-lhe um bilhete, dizendo que me
encontraria com ela no posto da polícia às 1 horas, para ela pres-
tar declarações. Havia coisas que eu precisava de fazer primei-
ro, conversas que era melhor acontecerem entre adultos. Agora,
tinha de pensar como um progenitor, como uma mãe. Tinha de a
proteger, de afastá-la de qualquer dano adicional.
Conduzi até ao posto, parando a meio do caminho para ligar
à Erin, a avisá-la de que estava a chegar. Queria assegurar-me de
que era com a Erin que falava, e tinha de garantir que poderíamos
falar sozinhas.
Só conseguia pensar naquela pergunta: «Porque é que não foi
ele a ser atirado do raio de um penhasco abaixo?»
A noite passada, a Lena estivera a falar acerca do Sean Townsend.
Deitara tudo cá para fora, o modo como o Sean se apaixonara pela
Nel e — achava a Lena — a Nel, um pouco, pelo Sean. Isso acabara
havia algum tempo — a Nel dissera que as coisas tinham «che-
gado, naturalmente, ao fim», embora a Lena não acreditasse bem
nela. Em qualquer caso, a Helen devia ter descoberto, devia ter-se
vingado. E, então, fora a minha vez de ficar indignada: porque é
que a Lena não dissera absolutamente nada antes? Ele era respon-
sável pela investigação da morte da Nel, o que era completa-
mente inapropriado.

339
PauLa HawkINS

— Ele amava-a — dissera a Lena. — Isso não faz dele uma


boa pessoa, que ele tenha tentado descobrir o que lhe aconteceu?
— Mas, Lena, não vês que...
— Ele é boa pessoa, Julia. Como é que eu podia dizer alguma
coisa? Isso ter-lhe-ia causado problemas, e ele não merece isso.
É um homem bom.

A Erin não atendeu o telemóvel, pelo que lhe deixei uma men-
sagem e continuei a conduzir até ao posto. Estacionei à porta e
voltei a telefonar, mas, uma vez mais, ela não atendeu, pelo que
decidi esperar por ela. Passou-se meia hora e resolvi entrar mesmo
assim. Se o Sean lá estivesse, inventaria uma desculpa, fingiria
que achava que o depoimento da Lena fora agendado para as 9,
e não para as 11 horas. Havia de pensar nalguma coisa.
Acabei por descobrir que ele não estava lá. Nenhum dos dois
estava. O homem à secretária disse-me que o inspetor Townsend
estaria em Newcastle durante todo o dia e que não tinha bem a
certeza quanto ao paradeiro da agente Morgan, mas que não duvi-
dava de que ela chegaria a qualquer momento.
Regressei ao meu carro. Tirei a tua pulseira do bolso — tinha-
-a guardado num saco de plástico, para a proteger. Para proteger
o que quer que estivesse nela. As hipóteses de haver uma impres-
são digital ou algum ADN contido no interior dos seus elos eram
diminutas, mas diminuto era melhor do que nada. Diminuto
era qualquer coisa. Diminuto era uma possibilidade de resposta.
A Nickie tinha dito que estavas morta porque descobriste algo
acerca do Patrick Townsend; a Lena tinha dito que estavas morta
porque te tinhas apaixonado pelo Sean e ele por ti, e porque a
Helen Townsend, a ciumenta e vingativa Helen, não se conforma-
va com isso. Para onde quer que me virasse, só via os Townsends.
Metaforicamente. Literalmente, vi a Nickie Sage, ampliada
pelo espelho retrovisor. Estava a arrastar-se pelo parque de esta-
cionamento, dolorosamente devagar, com a cara rosada sob um
chapéu de abas largas enorme. Chegou à traseira do meu carro e
apoiou-se nela, e eu consegui ouvir a sua respiração aflita através
da janela aberta.

340
ESCRITO NA ÁGUA

— Nickie? — Saí do carro. — Está bem? — Ela não respon-


deu. — Nickie?
Ao perto, parecia poder estar prestes a bater as botas.
— Preciso de uma boleia — arfou ela. — Há horas que estou
a pé.
Ajudei-a a entrar no carro. Tinha as roupas encharcadas de suor.
— Onde raio é que andou, Nickie? O que é que andou a fazer?
— À caminhar — arquejou ela. — Junto ao chalé dos Wards.
À escutar o rio.
— Tem consciência de que o rio passa mesmo junto à porta
de sua casa, não tem?
Ela abanou a cabeça.
— Não é o mesmo rio. Você acha que é tudo a mesma coisa,
mas ele muda. Lá em cima, tem um espírito diferente. Às vezes,
é preciso andar muito para ouvir a sua voz.
Virei à esquerda, mesmo antes da ponte, em direção à praça.
— É aqui em cima, certo? — Ela acenou com a cabeça, ainda
a tentar recuperar o fôlego. — Da próxima vez que lhe apetecer
passear, talvez seja melhor arranjar alguém que lhe dê boleia.
Ela reclinou-se no assento e fechou os olhos.
— Está a oferecer-se? Não imaginava que você ficasse por cá.
Ficámos sentadas no carro durante um bocado quando chegá-
mos a casa dela. Eu não tinha coragem para a obrigar a sair e subir
as escadas imediatamente, pelo que, em vez disso, ouvi-a dizer-
-me porque é que eu devia ficar em Beckford, porque é que seria
bom para a Lena ficar junto à água, porque é que eu nunca ouviria
a voz da minha irmã se me fosse embora.
— Eu não acredito nessas coisas todas, Nickie — disse eu.
— Claro que acredita — retorquiu ela, irritada.
— Está bem. — Não ia discutir. — E então? Esteve ao pé do
chalé dos Wards? É lá que a Erin Morgan está instalada, certo?
Não a viu, pois não?
— Vi, sim. Ela tinha estado a correr algures por ali. Depois, foi
a correr para outro sítio qualquer, provavelmente para acusar as
pessoas erradas. Anda às voltas com a Helen Townsend, quando
eu já lhe disse que não é com a Helen que ela se deve preocupar.

341
PauLa HaWKINS

Ninguém me dá ouvidos. É com a Lauren, disse eu, não com a


Helen. Mas nunca ninguém me dá ouvidos.
Ela deu-me a morada dos Townsends. A morada e um aviso:
se o velhote achar que você sabe alguma coisa, faz-lhe mal. Tem de
ser esperta. Eu não lhe contei acerca da pulseira, nem que era ela,
e não a Erin, quem estava a acusar as pessoas erradas.

342
ERIN

A HELEN NÃO PARAVA DE OLHAR para cima, para a janela, como se


estivesse à espera de que aparecesse alguém.
— Está à espera de que o Sean volte, não está? — perguntei-
-lhe eu.
Ela abanou a cabeça.
— Não. Porque é que ele voltaria? Está em Newcastle, a falar
com os superiores acerca da trapalhada do Henderson. Pensei que
soubesse.
— Ele não me contou — disse eu. — Deve ter-lhe escapado.
— Ela levantou as sobrancelhas, com uma expressão de increduli-
dade. — Às vezes, ele é distraído, não é? — prossegui eu. As so-
brancelhas dela ergueram-se ainda mais. — Quer dizer, não que
isso afete o seu trabalho nem nada, mas, às vezes...
— Pare mas é de falar — irritou-se ela.
Era impossível lê-la, passando do bem-educado para o exaspe-
rado, do tímido para o agressivo; num minuto, estava zangada e,
no seguinte, amedrontada. Isso estava a deixar-me muito nervosa.
Aquela mulher pequena, tímida e pouco impressionante, sentada
à minha frente, estava a amedrontar-me porque eu não fazia ideia
do que ela ia fazer a seguir — oferecer-me mais um chá ou atacar-
-me com a faca.
Subitamente, ela empurrou a cadeira para trás, com os pés
desta a rasparem nos ladrilhos, pôs-se de pé e foi até à janela.

343
PauULA HAWKINS

— Ele já partiu há que séculos — disse ela, baixinho.


— Quem? O Patrick?
Ela ignorou-me.
— Vai caminhar de manhã, mas, normalmente, não durante
tanto tempo. Ele não está bem. Eu...
— Quer ir à procura dele? — perguntei. — Se desejar, posso
Ir consigo.
— Ele vai até àquele chalé quase todos os dias — disse ela,
falando como se eu não estivesse lá, como se não me conseguisse
ouvir. — Não sei porquê. Era para lá que o Sean a costumava levar.
Era lá que eles... Ah, não sei. Não sei o que fazer. Já nem sequer
sei bem o que é que está certo.
Ela fechou a mão direita, formando um punho, com uma
flor vermelha a desabrochar na sua ligadura imaculadamente
branca.
— Fiquei tão contente quando a Nel Abbott morreu — acres-
centou. — Ficámos todos. Foi um alívio tão grande. Mas curto.
Curto. Porque, agora, não consigo evitar perguntar-me se isso
não nos causou ainda mais problemas. — Finalmente, ela virou-
-se, para olhar para mim. — Porque é que está aqui? E, por favor,
não minta, porque hoje não estou com disposição para isso.
Levou a mão à cara e limpou a boca, manchando os lábios de
sangue vivo.
Eu enfiei a mão no bolso, à procura do telemóvel, e tirei-o de lá.
— Creio que talvez esteja na hora de me ir embora — disse
eu, pondo-me lentamente de pé. — Vim cá para falar com o Sean,
mas, dado que ele não está...
— Ele não é distraído, sabe — disse ela, dando um passo para
a esquerda, de modo a ficar entre mim e a passagem para a porta
da rua. — Tem distrações, mas isso é uma coisa diferente. Não.
Se ele não lhe contou que ia a Newcastle, foi porque não confia em
si e, se ele não confia em si, creio que também não devo fazê-lo.
Só lhe vou perguntar mais uma vez porque é que está aqui.
Eu acenei com a cabeça, fazendo um esforço consciente para
deixar cair os ombros, para permanecer descontraída.
— Tal como disse, queria falar com o Sean.

344
ESCRITO NA ÁGUA

— Acerca de quê?
— Acerca de uma acusação de conduta imprópria — disse eu.
— Acerca da relação dele com a Nel Abbott.
A Helen deu um passo na minha direção e eu senti uma inje-
ção de adrenalina, nauseantemente intensa, nas entranhas.
— Isso terá consequências, não terá? — perguntou ela, com
um sorriso triste no rosto. — Como é que pudemos imaginar que
não teria?
— Helen — disse eu —, só preciso de saber...
Ouvi a porta da rua a bater e recuei rapidamente, afastando-me
mais dela, enquanto o Patrick entrava na cozinha.

Durante um momento, nenhum de nós disse nada. Ele olhou


fixamente para mim, com o seu olhar no meu, e o maxilar a
mover-se, enquanto despia o casaco e o atirava para cima das costas
de uma cadeira. Depois, desviou a sua atenção para a Helen.
Reparou na sua mão ensanguentada e ficou, imediatamente,
animado.
— O que aconteceu? Ela fez-te alguma coisa? Querida...
A Helen corou imediatamente, e algo no fundo do meu estô-
mago se contorceu.
— Não é nada — disse ela, apressadamente. — Não é nada.
Não foi ela. A mão escorregou-me quando estava a picar cebolas...
O Patrick olhou para a outra mão dela, para a faca que ela ainda
segurava. Delicadamente, tirou-lha.
— O que é que ela está aqui a fazer? — perguntou ele, sem
olhar para mim.
A Helen inclinou a cabeça para um lado, passando o olhar do
sogro para mim e de novo para ele.
— Tem estado a fazer-me perguntas — disse ela — acerca da
Nel Abbott. — Engoliu em seco. — Acerca do Sean. Acerca da sua
conduta profissional.
— Só preciso de clarificar uma coisa; é só uma formalidade,
relativamente à condução da investigação.
O Patrick não parecia interessado. Sentou-se à mesa da cozi-
nha, sem olhar para mim.

345
PAULA HAWKINS

— Sabes — disse ele à Helen — porque é que a transferiram


cá para cima? Andei a investigar; ainda conheço pessoas, claro, e
falei com um dos meus antigos colegas lá de Londres e ele disse-
-me que aqui esta excelente detetive foi retirada do seu posto de tra-
balho, na Polícia Metropolitana, porque seduziu um colega mais
novo. E não era um colega qualquer, era uma mulher! Consegues
imaginar uma coisa destas? — O seu riso seco transformou-se
numa intrusiva tosse de fumador. — Aqui está ela, a perseguir o
professor Henderson, quando é culpada precisamente da mesma
coisa. De um abuso de poder, para sua própria satisfação sexual.
E ainda tem o emprego. — Ele acendeu um cigarro. — E, depois,
vem aqui e diz que quer falar acerca da conduta profissional do
meu filho! — Finalmente, olhou para mim. — Você devia ter sido,
liminarmente, expulsa da polícia, mas, como é mulher, como é
fufa, permitem-lhe ficar impune. É a isso que chamam igualdade
— zombou ele. — Conseguem imaginar o que aconteceria se fosse
um homem? Se o Sean fosse apanhado a dormir com um dos seus
subordinados, seria corrido.
Eu cerrei as mãos, formando punhos, para evitar que elas tre-
messem.
— Então, e se o Sean andasse a dormir com uma mulher que
acabasse morta? — perguntei eu. — Nesse caso, o que é que acha
que lhe aconteceria?
Ele é bastante ágil para um tipo velho. Estava de pé, com a
cadeira a tombar para trás, e com a sua mão à volta da minha gar-
ganta, naquilo que pareceu menos do que um segundo.
— Tem cuidado com a língua, minha puta nojenta — sussur-
rou ele, exalando fumo acre para a minha cara.
Dei-lhe um valente empurrão, com força, no peito, e ele
largou-me.
Deu um passo atrás, com os braços caídos e os punhos cer-
rados.
— O meu filho não fez nada de mal — disse ele, baixinho.
— Portanto, se lhe causares problemas, rapariguinha, eu causo-
-te problemas a ti. Compreendes isto? Hás de pagar com juros.
— Papá — disse a Helen. — Já chega. Está a assustá-la.

346
ESCRITO NA ÁGUA

Ele virou-se para a nora, com um sorriso.


— Eu sei, querida. É de propósito. — Voltou a olhar para mim
e sorriu novamente. — Com algumas delas, é a única forma de
compreenderem.

347
JULES

DEIXEI O CARRO À BEIRA DO CAMINHO que leva à casa dos Townsends.


Não era preciso, havia bastante espaço para estacionar no pátio,
mas achei melhor assim. Parecia-me que aquela devia ser uma
missão furtiva, como se tivesse de os surpreender. A velha cora-
gem, a que aparecera no dia em que confrontara o meu violador,
tinha voltado. Com a pulseira no bolso, caminhei a passos lar-
gos até àquele pátio inundado de sol, de costas direitas e resoluta.
Viera em nome da minha irmã, para corrigir as coisas em nome
dela. Estava determinada. Estava destemida.
Estava destemida até o Patrick Townsend me abrir a porta,
com a cara manchada de raiva e uma faca na mão.
— O que é que quer daqui? — perguntou ele.
Afastei-me alguns passos da porta.
— Eu... — Ele estava prestes a bater-me com a porta na cara e
eu estava demasiado amedrontada para dizer o que tinha de dizer.
Ele matou a mulher dele, dissera-me a Nickie, e a sua irmã também.
— Eu estava...
— Jules? — gritou-me uma voz. — É você?

Era um cenário dos diabos. A Helen estava lá, com sangue


na mão e na cara, e a Erin também, mal conseguindo fingir que
tinha a situação sob controlo. Cumprimentou-me com um sorriso
alegre.

348
ESCRITO NA ÁGUA

— O que é que a traz aqui? Era suposto encontrarmo-nos na


esquadra.
= Sun, CU SEI, Gl.
— Desembuche — resmungou o Patrick. A minha pele
arrepiou-se de calor, e faltou-me a respiração. — Vocês, os Abbotts!
Meu Deus, que família! — O tom da voz dele aumentou ao atirar
a faca para cima da mesa da cozinha. — Lembro-me de si, sabe?
Obesa, não era, quando era mais nova? — Virou-se, para falar
com a Helen. — Era uma coisa gorda nojenta. E os pais! Patéticos.
— Eu tinha as mãos a tremer quando ele se voltou a virar, para
olhar para mim. — Suponho que a mãe tivesse desculpa, porque
estava a morrer, mas alguém devia ter tomado conta delas. Vocês
andavam à solta, não era, você e a sua irmã? E vejam quão bem
vocês se saíram! Ela era mentalmente instável, e você... bem. O que
é que você é? Atrasada?
— Isso já é demais, Sr. Townsend — disse a Erin, e pegou-me
no braço. — Venha, vamos para o posto. Precisamos de obter o
depoimento da Lena.
— Ah, sim, a rapariga. Essa vai pelo mesmo caminho da mãe
dela: tem o mesmo ar porco, a mesma boca suja, o tipo de cara
que apetece esbofetear...
— Você passa muito tempo a pensar em fazer coisas à minha
sobrinha adolescente, não passa? — disse eu, alto. — Parece-lhe
apropriado? — A minha raiva estava, de novo, desperta, e o Patrick
não estava preparado para isso. — Então? Passa? Seu velho nojento.
— Virei-me para a Erin. — Na verdade, ainda não estou pronta
para me ir embora — disse eu. — Mas fico contente por estar aqui,
Erin, acho que é bastante oportuno, porque a razão pela qual cá
vim não foi para falar com ele — e inclinei a cabeça na direção do
Patrick —, mas sim com ela. Consigo, Sra. Townsend. — Com a
mão a tremer, tirei o pequeno saco de plástico do bolso e coloquei-
-o sobre a mesa, ao lado da faca. — Queria perguntar-lhe: quando
é que tirou esta pulseira do pulso da minha irmã?
Os olhos da Helen esbugalharam-se e eu soube que ela era
culpada.
— De onde é que veio a pulseira, Jules? — perguntou a Erin.

349
PauLaA HAWKINS

— Da Lena. Que a recebeu do Mark Henderson. Que a roubou


à Helen. Que, suponho, dado o ar culpabilíssimo da sua cara,
a roubou à minha irmã, antes de a matar.
O Patrick começou a rir-se, com uma gargalhada sonora, como
um latido falso.
— Ela recebeu-a da Lena, que a recebeu do Mark, que a roubou
à Helen, que a roubou à fada da árvore de Natal, foda-se! Perdão,
minha querida — desculpou-se ele à Helen —, perdoa-me o pala-
vrão, mas isto é um disparate pegado.
— Estava no seu escritório, não estava, Helen? — Olhei para a
Erin. — Há de ter impressões digitais, ADN, não é?
O Patrick voltou a dar uma risada, mas a Helen parecia afetada.
— Não, eu... — disse ela, por fim, com o olhar a passar de mim
para a Erin e para o sogro. — Estava... Não. — Respirou fundo.
— Encontrei-a. Mas não sabia... Não sabia que era dela. Eu só...
Eu guardei-a. la entregá-la aos perdidos e achados.
— Onde foi que a encontrou, Helen? — perguntou a Erin.
— Encontrou-a na escola?
A Helen olhou de relance para o Patrick e, depois, novamente,
para a detetive, como se estivesse a avaliar se a mentira pegaria.
— Acho que... sim, encontrei. E, hum, não sabia de quem era,
pelo que...
— À minha irmã usava sempre esta pulseira — interrompi eu.
— Tem as iniciais da minha mãe. Acho um bocadinho difícil acre-
ditar que não se apercebeu do que era, que era importante.
— Não me apercebi — disse a Helen, mas a sua voz era fini-
nha e o seu rosto estava a corar.
— Claro que ela não sabia! — gritou o Patrick, subitamente.
— Claro que ela não sabia de quem era ou de onde tinha vindo.
— Foi, rapidamente, para o lado dela, colocando-lhe uma mão
sobre o ombro. — A Helen tinha a pulseira porque eu a deixei no
carro dela. Foi descuidado da minha parte. Ia deitá-la fora, era essa
a minha intenção, mas... tornei-me bastante esquecido. Tornei-me
esquecido, não tornei, querida? — A Helen não disse nada, não se
mexeu. — Deixei-a no carro — voltou ele a dizer.
— Está bem — disse a Erin. — E onde é que você a arranjou?

350
EscRITO NA ÁGUA

Ele olhou-me mesmo de frente quando lhe respondeu.


— Onde é que acha que a arranjei, minha imbecil? Arranquei-a
do pulso daquela puta antes de a atirar à água.
PATRICK

ELE AMAVA-A HÁ MUITO TEMPO, mas nunca a amou tanto como no


momento em que ela intercedeu em sua defesa.
— Não foi isso que aconteceu! — Helen levantou-se de um
pulo. — Não foi... Não faça isso! Não assuma a culpa disto, papá,
não foi isso que aconteceu. Você não... você nem sequer...
Patrick sorriu-lhe, estendendo-lhe uma mão. Ela pegou nela
e puxou-a para mais perto de si. Ela era dócil, mas não fraca,
com a sua modéstia mais estimulante do que qualquer beleza
superficial. Naquele momento, isso comoveu-o — sentiu o sangue
a subir, o bombear do seu coração, enfraquecido e velho.
Ninguém falou. A irmã estava a chorar em silêncio, pronun-
ciando palavras sem qualquer som. A detetive observava-o, e obser-
vava Helen, com uma expressão de descoberta no rosto.
— Você...? — Abanou a cabeça, como se lhe faltassem as pala-
vras. — Sr. Townsend, eu...
— Vá lá, então! — Subitamente, ele sentia-se irritável, deses-
perado por fugir ao evidente desconforto da mulher. — Por amor
de Deus, você é uma agente da polícia, faça o que tem a fazer.
Erin respirou fundo e avançou na direção dele.
— Patrick Townsend, está preso por suspeita do assassínio
de Danielle Abbott. Não é obrigado a dizer nada...
— Sim, sim, está bem — disse ele, enfadado. — Eu sei, eu
sei disso tudo. Meu Deus. Mulheres como você nunca sabem quando

352
ESCRITO NA ÁGUA

parar de falar. — Depois, virou-se para Helen. — Mas tu, querida,


tu sabes. Sabes quando falar e quando estar calada. Conta a verdade,
minha menina.
Ela começou a chorar, e ele desejou, acima de tudo, estar a seu
lado, no quarto do andar de cima, só por uma última vez, antes de
ser levado de ao pé dela. Então, beijou-lhe a testa e, antes de seguir
a detetive porta fora, disse-lhe adeus.

Patrick nunca fora pessoa para misticismos, para intuições ou


para palpites, mas, para ser sincero, sentira aquilo a aproximar-se:
o ajuste de contas. O derradeiro jogo. Sentira-o muito antes de
terem arrastado o corpo frio de Nel Abbott para fora de água, só que
desvalorizara-o como um sintoma da idade. Ultimamente, o seu
cérebro andava a pregar-lhe imensas partidas, intensificando-lhe
a cor e o som das suas velhas memórias, e esbatendo-lhe as margens
das novas. Ele sabia que isso seria o princípio daquilo, do longo
adeus, que seria devorado de dentro para fora, do cerne para a cas-
ca. Pelo menos, ficaria agradecido por ainda ter tempo para unir
as pontas soltas, para assumir o controlo. Aquela era, apercebia-se
ele agora, a única maneira de preservar algo da vida que tinham
construído, embora soubesse que nem toda a gente seria poupada.
Quando o sentaram na sala de interrogatórios do posto de
Beckford, a princípio, pensou que não conseguiria suportar a hu-
milhação, mas, de facto, suportou-a. O que tornou aquilo mais
fácil, achou ele, foi a surpreendente sensação de alívio. Ele queria
contar a sua história. Se esta ia ser revelada, então deveria ser ele
a contá-la, enquanto ainda tinha tempo, enquanto a sua mente
ainda lhe pertencia. Mais do que apenas alívio, sentia orgulho.
que
Toda a sua vida, houvera uma parte de si que quisera contar o
fora
acontecera na noite em que Lauren morrera, mas ele não
capaz de o fazer. Retraíra-se, por amor ao filho.
sou
Falou com frases curtas e simples. Foi muito direto. Expres
inatos de
a sua intenção de fazer uma confissão integral dos assass
Lauren Slater, em 1983, e de Danielle Abbott, em 2015.
ia ine-
Lauren foi mais fácil, como é evidente. Era uma histór
o, ele
quívoca. Tinham discutido em casa. Ela tinha-o atacad

35
PauLa HAWKINS

tinha-se defendido e, no decurso dessa defesa, ela ficara seria-


mente ferida, de um modo demasiado grave para que pudesse
ser salva. Por conseguinte, num esforço para poupar o seu filho à
verdade, e — admitia-o — para se poupar a si próprio a uma pena
de prisão, levara-a de carro até ao rio, transportara o corpo dela até
ao cimo do penhasco e atirara-a, já sem vida, para dentro de água.
À agente Morgan ouviu-o educadamente, mas deteve-o nesse
momento.
— O seu filho estava consigo nessa aitura, Sr. Townsend?
— perguntou ela.
— Ele não viu nada — respondeu Patrick. — Era dema-
siado pequeno, e estava demasiado assustado para compreender
o que se estava a passar. Não viu a mãe a magoar-se, e não a viu
a cair.
— Não o viu a atirá-la do penhasco?
Foi necessária toda a sua força de vontade para não saltar por
cima da mesa e bater-lhe.
— Ele não viu nada — respondeu Patrick. — Tive de o meter
no carro porque não podia deixar um rapaz de 6 anos sozinho em
casa durante uma tempestade. Se você tivesse filhos, compreen-
deria isso. Ele não viu nada. Estava confuso, pelo que lhe contei...
uma versão da verdade que fizesse sentido. Com que ele conse-
guisse lidar.
— Uma versão da verdade?
— Contei-lhe uma história: é o que se faz às crianças, sempre
que há coisas que elas não seriam capazes de compreender. Contei-
“lhe uma história com que ele conseguisse viver, uma história que
tornasse a sua vida suportável. Não compreende isto? — Por mui-
to que tentasse, ele não conseguia evitar que a sua voz aumen-
tasse de volume. — Eu não o ia deixar sozinho, pois não? A mãe
dele tinha morrido e, se eu fosse para a prisão, então, o que é que
lhe teria acontecido? Que tipo de vida é que ele teria tido? Teria
sido entregue à proteção de menores. Eu já vi o que acontece aos
miúdos que crescem na proteção de menores, não há nem um
que não fique afetado ou pervertido. Eu protegi-o — disse Patrick,
com o orgulho a inchar-lhe o peito — toda a sua vida.

354
ESCRITO NA ÁGUA

A história de Nel Abbott era, inevitavelmente, menos fácil de


relatar. Quando ele descobriu que ela andara a falar com Nickie
Sage e a levar a sério as suas acusações acerca de Lauren, ficou
preocupado. Não com que ela fosse à polícia, não. Ela não estava
interessada em justiça nem nada do género, só estava interessada
no sensacionalismo da sua arte imprestável. O que o preocupava
era que ela pudesse dizer algo de perturbador a Sean. Uma vez
mais, estava apenas a proteger o filho.
— É o que os pais fazem — salientou ele. — Muito embora
você possa não ter consciência disso. Constou-me que o seu era
um bêbedo. — Ele sorriu a Erin Morgan, observando-a a estre-
mecer como se tivesse levado um murro. — Ouvi dizer que tinha
mau feitio.
Contou que tinha combinado encontrar-se com Nel Abbott
ao final de uma tarde, para conversarem acerca das acusações.
— E ela foi encontrar-se consigo no penhasco?
A agente Morgan estava incrédula.
Patrick sorriu.
— Você nunca a conheceu. Não faz ideia da dimensão da vaidade
dela, da arrogância dela. Só tive de dar a entender que lhe mostra-
ria exatamente o que acontecera entre mim e Lauren. Que lhe
mostraria como é que se tinham desenrolado os terríveis aconteci-
mentos daquela noite, lá mesmo, no local onde tinham tido lugar.
Contar.lhe-ia a história como nunca antes tinha sido contada, e ela
seria a primeira a ouvi-la. Então, quando já a tinha lá em cima,
foi fácil. Ela tinha estado a beber, estava trópega.
— Ea pulseira?
Patrick mexeu-se na cadeira e forçou-se a fitar a agente Morgan
diretamente nos olhos.
o
— Houve uma pequena luta, e eu agarrei-lhe no braço quand
caiu-lhe do
ela estava a tentar libertar-se de mim. A pulseira dela
pulso.
não
— Você arrancou-lha: foi o que me disse anteriormente,
os. — Você
foi? — Ela olhou para baixo, para os seus apontament
arrancou-a «do pulso daquela puta»?
Patrick acenou com a cabeça.

355
PauLA HAWKINS

— Sim. Eu estava furioso, tenho de admitir. Estava furioso


por ela ter andado com o meu filho, ameaçando o seu casamento.
Ela seduziu-o. Até o mais forte e mais moral dos homens pode
dar por si aprisionado por uma mulher que se oferece daquela
maneira...
— De que maneira?
Patrick rangeu os dentes.
— Oferecendo o tipo de entrega sexual que ele talvez não tivesse
em casa. É triste, eu sei. Mas acontece. Eu estava furioso por causa
disso. O casamento do meu filho é muito sólido. — Patrick viu as
sobrancelhas da agente Morgan levantarem-se e, uma vez mais,
teve de se acalmar. — Eu estava furioso por causa disso. Arranquei-
lhe a pulseira do pulso. E empurrei-a.

356
PARTE QUATRO
SETEMBRO

LENA

ACHEI QUE NÃO ME QUERERIA IR EMBORA, Mas não consigo olhar para
o rio todos os dias, atravessá-lo a caminho da escola. Já nem sequer
me apetece nadar nele. Seja como for, agora está demasiado frio.
Vamos para Londres amanhã, já quase acabei de fazer as malas.
A casa há de ser arrendada. Eu não queria isso. Não queria pes-
soas a viverem nos nossos quartos e a encherem os nossos espa-
ços, mas a Jules disse que, se não o fizéssemos, poderíamos ter
ocupantes ilegais, ou que a casa poderia começar a degradar-se e
que não haveria ninguém para apanhar os pedaços, e eu também
não gostei dessa ideia. Portanto, concordei.
Continuará a ser minha. A mamã deixou-ma a mim, pelo que,
quando fizer 18 anos (ou 21, ou coisa que O valha), ela será proprie-
dade minha. E eu voltarei a viver aqui. Sei que voltarei. Regressarei
quando isso já não me magoar tanto e quando não a vir para onde
quer que olhe.
Tenho medo de ir para Londres, mas sinto-me melhor a esse
respeito do que me sentia. À Jules (e não Julia) é mesmo estranha,
será sempre estranha, está toda lixada da cabeça. Mas eu tam-
bém sou um bocadinho esquisita e também estou toda lixada
da cabeça, pelo que talvez as coisas nos corram bem. Há coisas
volta,
nela de que eu gosto. Ela cozinha e faz um alarido à minha
quan-
repreende-me por fumar, obriga-me a dizer-lhe onde vou e
do regresso. Como fazem as mães das outras pessoas.

359
PauLa HAWKINS

Em qualquer caso, estou contente por sermos só nós as duas,


sem marido, e suponho que sem namorados nem nada do géne-
ro, e, pelo menos, quando for para a minha nova escola, ninguém
saberá quem eu sou nem nada acerca de mim. Podes refazer-
-te, disse a Jules, o que eu achei que era um bocadinho estranho,
porque, tipo, o que é que eu tenho de mal? Mas sei o que é que
ela queria dizer. Cortei o meu cabelo rente e, agora, tenho um ar
diferente e, quando for para a minha nova escola, em Londres,
não serei a rapariga bonita de que ninguém gosta, serei, simples-
mente, vulgar.

360
JOSH

A LENA VEIO CÁ A casa DESPEDIR-SE. Cortou o cabelo rente. Continua


a ser bonita, mas não tão bonita como antes. Eu disse-lhe que
preferia quando ela tinha o cabelo mais comprido, e ela riu-se e
disse que ele voltaria a crescer. Disse que já estaria comprido da
próxima vez que eu a visse, e isso fez-me sentir melhor, porque,
pelo menos, ela acha que nos voltaremos a ver, coisa de que eu
não tinha a certeza, porque agora ela vai morar para Londres e
nós vamos para Devon, o que não fica, exatamente, perto. Mas
ela disse que não era assim tão longe, que eram só cinco horas ou
coisa assim e que, dentro de alguns anos, ela teria a carta de con-
dução e iria lá buscar-me, para vermos em que problemas é que
nos conseguíamos meter.
Sentámo-nos no meu quarto durante um bocadinho. Foi um
pouco estranho, porque não sabíamos o que dizer um ao outro.
Eu perguntei-lhe se ela já tinha tido mais notícias e ela ficou com
um ar meio vazio, e eu disse que me referia ao Sr. Henderson,
e ela abanou a cabeça. Parecia não querer falar acerca disso. Tem
havido muitos boatos — as pessoas na escola andam a dizer que
ela o matou e que o empurrou para o mar. Eu acho que é um dis-
parate, mas, mesmo que não fosse, não a culparia.
Eu sei que a Katie teria ficado mesmo triste se tivesse aconte-
cido alguma coisa ao Sr. Henderson, mas ela não sabe, pois não?
A vida depois da morte é uma coisa que não existe. A única coisa

361
PauLA HAWKINS

que importa são as pessoas que cá ficam, e acho que as coisas têm
melhorado. A mamã e o papá não são felizes, mas estão a me-
lhorar, estão diferentes do que estavam. Aliviados, talvez? Como
se já não tivessem de se questionar acerca do porquê. Têm algo
para que podem apontar e dizer: pronto, foi por isto. Algo a que se
agarrarem, como alguém disse, e eu percebo isso, muito embora,
a mim, não me pareça que nada disto alguma vez venha a fazer
sentido.

362
EO UESE

ÀS MALAS ESTAVAM NO CARRO e as caixas estavam etiquetadas e,


mesmo antes do meio-dia, entregariam as chaves. Josh e Alec
estavam a dar um passeio rápido por Beckford, a fazerem as
despedidas, mas Louise deixara-se ficar.
Alguns dias eram melhores do que outros.
Louise ficara para se despedir da casa em que a filha tinha
vivido, a única casa que alguma vez conhecera. Tinha de dizer
adeus às marcas das alturas no armário por debaixo das escadas,
ao degrau de pedra do jardim, onde Katie caíra e ferira o joelho,
onde, pela primeira vez, ela própria tivera de encarar o facto de
que a sua filha não seria perfeita, de que ficaria marcada, com
uma cicatriz. Tinha de dizer adeus ao seu quarto, onde ela e a filha
se tinham sentado e conversado, enquanto Katie secava o cabelo
com o secador e punha o seu batom e dizia que, mais tarde, iria
a casa de Lena e perguntava se podia lá passar a noite. Quantas
vezes, questionou-se ela, fora isso mentira?
(Aquilo que a mantinha acordada à noite — uma das coisas
— era aquele dia, junto ao rio, em que ela ficara tão tocada, tão co-
movida, por ver lágrimas nos olhos de Mark Henderson quando
este lhe dera as suas condolências.)
Lena viera despedir-se e trouxera consigo o manuscrito de Nel,
as fotografias, os apontamentos e a pen com todas as pastas do
computador.
PauLA HAWKINS

— Faça o que quiser com isso — dissera ela. — Queime, se


desejar. Nunca mais quero olhar para nada disso.
Louise ficara contente por a rapariga lá ter ido, e ainda mais
contente por nunca mais ter de a ver depois disso.
— Acha que me conseguirá perdoar? — perguntara Lena.
— Alguma vez?
E Louise dissera que já o tinha feito, o que era uma mentira,
dita por bondade.
A bondade era o seu novo projeto. Tinha a esperança de que
isso lhe viesse a fazer melhor à alma do que a raiva. E, em qual-
quer caso, embora soubesse que nunca poderia perdoar a Lena
— pela sua dissimulação, por ter guardado aquele segredo, sim-
plesmente por existir, enquanto a sua própria filha tinha morrido
—, também não conseguia odiá-la. Porque, se alguma coisa ficara
clara, se alguma coisa naquele horror não oferecia dúvidas, era
o amor de Lena por Katie.

364
DEZEMBRO

NICKIE

ÀS MALAS DE NICKIE ESTAVAM FEITAS.


As coisas pareciam mais sossegadas na vila. Era sempre assim
quando vinha o inverno, mas imensas pessoas também se tinham
mudado. Patrick Townsend estava a apodrecer na sua cela (ah!)
e o seu filho tinha fugido para ter alguma paz. O que era quase
impossível. A Casa do Moinho estava vazia, depois de Lena Abbott
e a tia terem partido para Londres. Os Whittakers também se
tinham ido embora — ao que parecia, a casa estava à venda há
menos de uma semana quando apareceram umas pessoas com
um Range Rover, três filhos e um cão.
As coisas também estavam mais sossegadas na cabeça dela.
Jeannie não andava a falar tão alto quanto era costume e, quando
o fazia, era mais como uma conversa, e menos como uma inveti-
va. Hoje em dia, Nickie apercebia-se de que passava menos tem-
po sentada à janela, a olhar lá para fora, e mais tempo na cama.
Sentia-se muito cansada e as suas pernas doíam-lhe mais do que
nunca.
Na manhã seguinte, ia para Espanha, passar duas semanas ao
sol. Descanso e diversão, era disso que precisava. O dinheiro fora
uma surpresa: dez mil libras da herança de Nel Abbott deixadas
a uma Nicola Sage de Marsh Street, em Beckford. Quem é que
teria adivinhado uma coisa daquelas? Mas, por outro lado, tal-
vez Nickie não devesse ter ficado surpreendida, porque Nel fora,

365
PAULA HAWKINS

na verdade, a única pessoa que alguma vez lhe dera ouvidos.


Pobre alma! Valera-lhe de muito.

366
ERIN

REGRESSEI MESMO ANTES DO NATAL. Na verdade, não sei dizer por-


quê, só que tinha sonhado com o rio quase todas as noites, e achei
que uma viagem a Beckford poderia exorcizar esse demónio.
Deixei o carro junto à igreja e caminhei para norte a partir do
poço, até ao penhasco, passando por alguns ramos de flores que
morriam embrulhados em celofane. Fiz o caminho todo até ao
chalé. Estava inclinado e degradado, com as cortinas corridas
e tinta vermelha salpicada na porta. Rodei a maçaneta, mas a porta
estava trancada, pelo que dei meia-volta e espezinhei a relva gelada
até ao rio, que estava azul-claro e silencioso, com a bruma a subir
dele, como um fantasma. A minha respiração pairava, branca,
no ar à minha frente, e as orelhas doíam-me por causa do frio.
Devia ter levado um gorro.
Fui até ao rio porque não havia outro sítio para onde ir, e nin-
guém com quem falar. A pessoa com quem queria mesmo falar
era o Sean, mas não o consegui encontrar. Disseram-me que ele
se tinha mudado para um sítio chamado Pity Me”, no condado
de Durham — parece inventado, mas não é. A vila está lá, mas ele
não estava. A morada que me tinham dado era afinal de uma casa
vazia com uma placa a dizer «Arrenda-se» no exterior. Até con-
tactei a penitenciária de Frankland, que é onde o Patrick passará

: Tenham piedade de mim. [N. do T.)

367
PauLa HawWkKINS

o resto dos seus dias, mas disseram-me que o velho não tinha tido
uma só visita desde a sua chegada.
Queria pedir a verdade ao Sean. Achava que ele talvez ma
contasse, agora que já não está na polícia. Achava que talvez
fosse capaz de me explicar como é que conseguira viver consigo
próprio todos aqueles anos, e se, quando supostamente estava
a investigar a morte da Nel, sempre soubera acerca do pai. Não
seria assim tão inverosímil. Afinal de contas, ele protegera o pai
toda a sua vida.
O próprio rio não me dava nenhuma resposta. Quando, um
mês antes, um pescador retirara um telemóvel da lama onde tinha
as galochas cravadas, eu ainda tivera esperança. Mas o telemóvel
da Nel Abbott acabou por não nos dizer nada que nós não sou-
béssemos já pelos registos telefónicos. Se tinha chegado a haver
fotografias incriminatórias, imagens que explicassem tudo o que
tinha ficado por explicar, não era simplesmente possível aceder-
-lhes — nem sequer se conseguia ligar o telemóvel, estava morto,
com as entranhas entupidas e corroídas pelo lodo e pela água.
Depois de o Sean se ter ido embora, tinha sido preciso tratar
de um monte de papelada, um inquérito, perguntas feitas e que
ficaram por responder, acerca do que o Sean sabia e de quando
o soubera, e de por que raio é que tudo aquilo fora tão mal ge-
rido. E não apenas quanto ao caso da Nel, mas também ao do
Henderson: como é que fora possível ele desaparecer sem deixar
rasto, mesmo à nossa frente?
Quanto a mim, limitei-me a reler, repetidamente, o último in-
terrogatório ao Patrick, a história que ele contara. A pulseira da
Nel arrancada do pulso dela, o Patrick a agarrar-lhe o braço. A luta
que tinham tido lá em cima no penhasco, antes de ele a empurrar.
Mas não havia nódoas negras nos sítios em que ele dissera que
a agarrara, nem uma marca no pulso dela, de onde ele lhe arran-
cara aquela pulseira, nem um sinal de luta, fosse qual fosse.
E o fecho da pulseira não estava partido.
Na altura, de facto, salientei tudo isso, mas, depois de tudo o
que tinha acontecido, depois da confissão do Patrick, da demis-
são do Sean e da generalizada demissão de responsabilidades

368
ESCRITO NA ÁGUA

e atribuição de culpas aos demais, na verdade, ninguém tinha


vontade de me ouvir.
Sentei-me junto ao rio e senti o que andava a sentir havia algum
tempo: que tudo aquilo, a história da Nel e a da Lauren e também
a da Katie, estava muito incompleto, inacabado. Na verdade, nunca
cheguei a ver tudo o que havia para ver.

369
EREREN

HELEN TINHA UMA TIA que vivia nos arredores de Pity Me, mesmo
a norte de Durham. A tia tinha uma quinta, e Helen ainda se lem-
brava de a ter visitado, certo verão, de alimentar os burros com
pedaços de cenoura e de apanhar amoras das sebes. A tia já lá não
estava; quanto à quinta, Helen não tinha a certeza. A vila era mais
feia e mais pobre do que ela se lembrava, e não havia burros à vis-
ta, mas era pequena e anónima e ninguém lhe prestava atenção.
Ela conseguira um emprego para o qual era demasiado quali-
ficada e um pequeno apartamento no rés do chão, com um pátio
nas traseiras. Apanhava sol à tarde. Quando chegaram à vila pela
primeira vez, tinham alugado uma casa, mas isso só durara algu-
mas semanas e, depois, certa manhã, ela acordara e Sean tinha-se
ido embora, pelo que devolvera as chaves ao senhorio e voltara a
procurar.
Ela não tentara telefonar-lhe. Sabia que ele não ia voltar. A famí-
lia deles estava desfeita, ia sempre desfazer-se sem Patrick, que
era a cola que os mantinha juntos.
Também o coração dela estava despedaçado, de maneiras nas
quais não gostava de pensar. Não fora visitar Patrick. Sabia que
nem sequer devia sentir pena dele — ele admitira que tinha matado
a mulher, e que tinha matado Nel Abbott a sangue-frio.
Não, a sangue-frio, não. Não fora assim. Helen compreendia
que Patrick via as coisas muito a preto e branco, e que acreditava,

370
ESCRITO NA ÁGUA

acreditava genuinamente, que Nel Abbott era uma ameaça para a


família deles, para a sua unidade. E, portanto, agira em conformi-
dade. Fizera-o por Sean, e fizera-o por ela. Isso não é assim tão a
sangue-frio, pois não?
Mas, todas as noites, ela tinha o mesmo pesadelo: Patrick
a segurar a gata malhada dela debaixo de água. No sonho, os olhos
dele estavam completamente fechados, mas os da gata estavam
abertos e, quando o animal que se debatia virava a cabeça na dire-
ção de Helen, ela via que os seus olhos eram de um verde brilhante,
exatamente como os de Nel.
Ela tinha dificuldade em dormir, e sentia-se sozinha. Alguns
dias antes, tinha conduzido 30 quilómetros até ao horto mais
próximo para comprar um arbusto de rosmaninho. E, mais tarde
nesse dia, conduzira até um centro de acolhimento de animais,
em Chester-le-Street, para escolher um gato que lhe conviesse.
JANEIRO

JULES

E UMA COISA ESTRANHA, estar sentada à mesa do pequeno-almoço


todas as manhãs, diante de ti, mas com 15 anos. Ela tem os mes-
mos maus modos à mesa que tu, e revira os olhos tanto como tu
reviravas quando te diziam isso. Senta-se à mesa com os pés en-
fiados por debaixo dela, sobre a cadeira, e com os joelhos magros
a saírem para ambos os lados, exatamente como tu costumavas
fazer. Adota a mesma expressão sonhadora quando está embre-
nhada na sua música, ou nos seus pensamentos. Nunca me ouve.
É teimosa e irritante. Canta, constantemente e desafinada, tal como
a mamã fazia. Tem o riso do nosso pai. Beija-me na cara todas
as manhãs antes de ir para a escola.
Não consigo compensar-te pelas coisas erradas que fiz — a
minha recusa em ouvir-te, a minha ânsia em pensar o pior de ti,
o meu falhanço em ajudar-te quando estavas desesperada, o meu
falhanço em tentar, sequer, amar-te. Como não há nada que eu
possa fazer por ti, a minha expiação terá de ser um ato de mater-
nidade. Muitos atos de maternidade. Não consegui ser uma irmã
para ti, mas tentarei ser uma mãe para a tua filha.
No meu minúsculo e organizado apartamento de Stoke
Newington, ela provoca estragos todos os dias. É necessária uma
enorme força de vontade para não ficar ansiosa nem entrar em
pânico com o caos. Mas estou a tentar. Lembro-me da versão des-
temida de mim própria que emergiu no dia em que confrontei

3:72
ESCRITO NA ÁGUA

o pai da Lena; gostaria que essa mulher voltasse. Gostaria de ter


mais dessa mulher dentro de mim, mais de ti dentro de mim, mais
da Lena. (Quando o Sean Townsend me deixou em casa, no dia do
teu funeral, disse-me que eu era como tu, e eu neguei-o, disse-lhe
que era uma anti-Nel. Costumava ter orgulho nisso. Já não tenho.)
Tento retirar prazer da vida que levo com a tua filha, dado que
ela é a única família que tenho, ou que, agora, alguma vez terei.
Retiro prazer dela, e reconforto disto: o homem que te matou mor-
rerá na prisão, daqui a não muito tempo. Está a pagar pelo que fez
à mulher, e ao filho, e a ti.
PATRICK

PATRICK JÁ NÃO SONHAVA COM A MULHER. Atualmente, tinha um


sonho diferente, em que aquele dia na sua casa acontecia de ma-
neira diferente. Em vez de confessar à detetive, pegava na faca
que estava sobre a mesa e espetava-lha no coração e, depois de a
matar, atacava a irmã de Nel Abbott. A excitação crescia dentro
dele, até que, finalmente saciado, tirava a faca do peito da irmã
e olhava para cima, e lá estava Helen, a observar, com lágrimas a
descerem-lhe pelas bochechas e sangue a escorrer-lhe das mãos.
— Papá, não faça isso — dizia ela. — Está a assustá-la.
Quando acordava, era sempre no rosto de Helen que ele pen-
sava, na sua expressão abalada quando ele lhes contara o que tinha
feito. Estava agradecido por não ter tido de presenciar a reação de
Sean. Nessa tarde, quando o seu filho regressou a Beckford, a con-
fissão de Patrick já tinha sido feita na íntegra. Sean fora visitá-lo
uma vez, durante a prisão preventiva. Patrick duvidava de que vol-
tasse a fazê-lo, o que lhe destroçava o coração, porque tudo aquilo
que ele fizera, as histórias que contara e a vida que construíra,
tinha sido tudo para o bem de Sean.

374
S EAN

NÃo SOU O HOMEM QUE ACHO QUE SOU.


Nem era o homem que achava que era.
Quando as coisas se começaram a fraturar, quando eu me
comecei a fraturar, com a Nel a dizer coisas que não devia ter dito,
mantive o mundo intacto repetindo: As coisas são como são, como
sempre foram. Não podem ser diferentes.
Eu era filho de uma mãe suicida e de um homem bom. Quando
era filho de uma mãe suicida e de um homem bom, tornei-me
agente da polícia; casei-me com uma mulher decente e respon-
sável e levei uma vida decente e responsável. Era simples, e era
inequívoco.
Havia dúvidas, claro. O meu pai disse-me que, depois de a mi-
nha mãe morrer, eu não falei durante três dias. Mas eu tinha uma
memória — o que eu achava que era uma memória — de falar com
a bondosa e doce Jeannie Sage. Ela levou-me de carro para sua
casa naquela noite, não foi? Não nos sentámos a comer tostas
de queijo? Não lhe contei como tínhamos ido para o rio, juntos,
de carro? Juntos?, perguntou-me ela. Vocês os três? Então, achei
melhor não falar de todo, porque não queria piorar as coisas.
Achava que me lembrava de nós os três estarmos no carro,
mas o meu pai disse-me que isso era um pesadelo.
No pesadelo, não fora a tempestade que me acordara, fora
o meu pai a gritar. A minha mãe também; estavam a dizer coisas

375
PauLa HawWkKINS

feias um ao outro. Ela: falhado, bruto; ele: vadia, puta, péssima mãe.
Ouvi um som brusco, uma estalada. E, depois, alguns outros ruí-
dos. E, depois, nem o mais pequeno ruído.
Somente a chuva, a tempestade.
Depois, uma cadeira a raspar no chão, e a porta das traseiras
a abrir-se. No pesadelo, eu esgueirava-me pelas escadas abaixo e
ficava no exterior da cozinha, sustendo a respiração. Ouvia, nova-
mente, a voz do meu pai, mais baixa, a resmungar. Outra coisa:
um cão, a ganir. Mas nós não tínhamos um cão. (No pesadelo, eu
perguntava-me se os meus pais estavam a discutir por a minha
mãe ter levado um cão vadio para casa. Era o tipo de coisa que
ela faria.)
No pesadelo, ao aperceber-me de que estava sozinho em casa,
corria lá para fora, e ambos os meus pais estavam ali, a entrar no
carro. Estavam a deixar-me, a abandonar-me. Eu entrava em pà-
nico, corria, aos gritos, até ao carro e subia para o banco de trás.
O meu pai arrastava-me para fora, gritando e dizendo palavrões.
Eu agarrava-me ao puxador da porta, esperneava e cuspia e mor-
dia a mão do meu pai.
No pesadelo, éramos três no carro: o meu pai a conduzir,
eu atrás, e a minha mãe no lugar do morto, não sentada como deve
ser, mas caída contra a porta. Ao fazermos uma curva apertada,
ela mexia-se, com a cabeça a tombar para a direita, de modo que
eu conseguia vê-la, conseguia ver o sangue na sua cabeça e num
dos lados da sua cara. Conseguia ver que ela estava a tentar falar,
mas não conseguia perceber o que estava a dizer, as suas palavras
soavam de modo estranho, como se estivesse a falar numa língua
que eu não compreendia.
A cara dela também parecia estranha, distorcida, e tinha a
boca torta e os olhos brancos, ao revirarem-se para trás. A língua
saía-lhe da boca como a de um cão; cor-de-rosa, com saliva espu-
mosa a gotejar-lhe do canto da boca. No pesadelo, ela esticava-se
na minha direção e tocava-me na mão, e eu ficava completamente
apavorado, encolhia-me para trás no meu assento e agarrava-me
com força à porta, tentando ficar tão longe dela quanto me era
possível.

376
ESCRITO NA ÁGUA

O meu pai disse-me:


— À tua mãe a tentar tocar-te, isso foi um pesadelo, Sean.
Não foi real. Foi como daquela vez em que disseste que conse-
guias lembrar-te de comeres arenques fumados em Craster, com a
tua mãe e comigo, mas, nessa altura, só tinhas três meses. Disseste
que te lembravas do fumeiro, mas foi só por teres visto uma foto-
grafia. Foi a mesma coisa.
Aquilo fazia sentido. Não me parecia verdade, mas, pelo menos,
fazia sentido.
Quando eu tinha 12 anos, lembrei-me de outra coisa: lembrei-
-me da tempestade, de sair a correr para debaixo da chuva, mas,
desta feita, o meu pai não estava a entrar no carro, estava a meter
a minha mãe lá dentro. A ajudá-la a entrar para o lugar do morto.
Isso ocorreu-me com muita clareza, não parecia ser parte do pesa-
delo, as caraterísticas desta memória pareciam diferentes. Nesta,
eu estava amedrontado, mas era um tipo de terror diferente, me-
nos visceral do que o que sentira quando a minha mãe me tentara
tocar. Aquilo perturbava-me, essa memória, pelo que perguntei ao
meu pai a esse respeito.
Ele deslocou-me o ombro ao atirar-me contra a parede, mas
o que eu retive foi o que aconteceu depois. Explicou que tinha de
me ensinar uma lição, pelo que pegou numa faca de fatiar e me
fez um golpe fundo no pulso. Era um aviso.
— Isto é para te lembrares — disse ele. — Para que nunca te
esqueças. Se te esqueceres, para a próxima será diferente. Cortar-
-te-ei no outro sentido. — Encostou a extremidade da lâmina ao
meu pulso direito, na base da palma da minha mão, e arrastou a
ponta, lentamente, em direção ao meu cotovelo. — Assim. Não
quero voltar a discutir isto, Sean. Tu sabes disso. Já falámos mais
do que o suficiente acerca disso. Não mencionamos a tua mãe.
O que ela fez foi vergonhoso.
Ele contou-me acerca do sétimo círculo do inferno, onde os
suicidas são transformados em arbustos espinhosos e devorados
por harpias. Eu perguntei-lhe o que era uma harpia e ele disse que
a minha mãe era uma delas. Fiquei confuso: ela era um arbus-
to espinhoso ou era uma harpia? Pensei no pesadelo, nela no

377
PauLa HAWKINS

carro, a tentar tocar-me, com a boca aberta e baba ensanguentada


a escorrer-lhe dos lábios. Não queria que ela me devorasse.
Quando o meu punho sarou, apercebi-me de que a cicatriz
era muito sensível e bastante útil. Sempre que dava por mim a
divagar, tocava-lhe e, na maior parte das vezes, isso trazia-me de
volta à terra.
Houve sempre uma falha sísmica aí, dentro de mim, entre a
minha compreensão daquilo que sabia que tinha acontecido, aquilo
que sabia que eu próprio era e que o meu pai era, e uma estranha
e inconsistente sensação de incorreção. Como o facto de os dinos-
sauros não estarem na Bíblia, aquilo era algo que não fazia sentido
e que, no entanto, eu sabia que tinha de ser assim. Tinha de ser,
porque me tinham contado que essas coisas eram verdade, tanto
Adão e Eva como os brontossauros. Com o passar dos anos, houve
mudanças ocasionais, e eu sentia o tremor da terra sobre a falha
sísmica, mas o terramoto só aconteceu quando conheci a Nel.
Não ao princípio. Ao princípio, tratava-se dela, de nós juntos.
Ela aceitou, com algum desapontamento, a história que eu lhe
contei, a história que eu sabia ser verdade. Mas, depois de a Katie
morrer, a Nel mudou. A morte da Katie transformou-a. Ela come-
çou a falar, cada vez mais, com a Nickie Sage, e já não acredi-
tava no que eu lhe contara. A história da Nickie coadunava-se tão
melhor com a ideia que a Nel fazia do Poço das Afogadas, o local
que ela tinha conjurado, um local de mulheres perseguidas, de
marginais e inadaptadas caídas em desgraça face aos decretos
patriarcais, e o meu pai era a corporização de tudo isso. Ela disse-
-me que acreditava que o meu pai tinha matado a minha mãe, e a
falha sísmica alargou-se; tudo mudou e, quanto mais mudava,
mais as visões estranhas reapareciam, a princípio sob a forma de
pesadelos e, depois, como memórias.
Ela vai arrastar-te com ela, disse o meu pai quando descobriu
acerca da Nele de mim. Ela fez mais do que isso. Desfez-me. Se eu
lhe desse ouvidos, se acreditasse na história dela, já não seria o
trágico filho de uma mãe suicida e de um homem de família de-
cente, seria o filho de um monstro. Mais do que isso, pior do que
isso: seria O rapaz que vira a mãe morrer e que não dissera nada.

378
ESCRITO NA ÁGUA

Seria O rapaz, o adolescente, o homem que protegera o seu assas-


sino, que vivera com o seu assassino, e que o amava.
Parecia-me difícil ser esse homem.
Na noite em que ela morreu, encontrámo-nos no chalé, como
já tinha acontecido antes. Eu perdi-me. Ela queria tanto que eu
alcançasse a verdade, disse que isso me libertaria de mim próprio,
de uma vida que eu não desejava. Mas também estava a pensar
em si própria, nas coisas que tinha descoberto e no que isso sig-
nificaria para ela, para o seu trabalho, para a sua vida, para o seu
local. Isso acima de qualquer outra coisa: o local dela já não seria
um local de suicídios. Seria um local onde se livravam das mulhe-
res problemáticas.
Caminhámos juntos de regresso à vila. Tínhamo-lo feito mui-
tas vezes — desde que o meu pai nos descobrira no chalé, eu já
não estacionava o carro lá fora e, em vez disso, deixava-o na vila.
Ela estava atordoada pela bebida, pelo sexo e pelo seu propósito
renovado.
— Tens de te lembrar daquilo — disse-me ela. — Tens de su-
bir lá acima e olhar para aquilo e lembrares-te, Sean. Do modo
como aconteceu. Agora. À noite.
Estava a chover, disse-lhe eu. Quando ela morreu, estava a
chover. Não estava uma noite clara, como hoje. Devíamos esperar
por que chovesse.
Ela não queria esperar.

Estávamos de pé, no cimo do penhasco, a olhar para baixo.


— Eu não vi aquilo a partir daqui, Nel — disse-lhe eu. — Estava
nas árvores, lá em baixo, não conseguia ver nada.
Ela encontrava-se na berma do penhasco, de costas para mim.
— Ela gritou? — perguntou-me ela. — Quando ela caiu, ou-
viste alguma coisa?
Fechei os olhos e vi-a no carro, a tentar tocar-me, e apetecia-me
fugir dela. Encolhi-me para trás, mas ela continuava a aproximar-
se de mim e eu tentei empurrá-la. Com as mãos no fundo das
costas da Nel, empurrei-a para longe de mim.

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Agradecimentos

A nascente deste rio, em particular, não é muito fácil de des-


cobrir, mas os meus primeiros agradecimentos devem ser diri-
gidos à Lizzy Kremer e à Harriet Moore, fornecedoras de ideias
estranhas e opiniões fortes, listas de leituras desafiantes e um
apoioinquebrantável.
Descobrir a nascente foi uma coisa, seguir o curso do rio, outra
bem diferente; obrigada às minhas excecionais editoras, Sarah
Adams e Sarah McGrath, por me ajudarem a encontrar o meu
caminho. Obrigada, igualmente, ao Frankie Gray, à Kate Samano
e à Danya Kukafka, pelo seu apoio editorial.
Obrigada à Alison Barrow, pois, sem a sua amizade e sem os
seus conselhos, talvez não tivesse conseguido superar os últimos
anos.
Pelo seu apoio e encorajamento, recomendações de leitura e
ideias brilhantes, obrigada ao Simon Lipskar, ao Larry Finlay, ao Geoff
Kloske, à Kristin Cochrane, à Amy Black, ao Bill Scott-Kerr, à Liz
Hohenadel, à Jynne Martin, à Tracey Turriff, à Kate Stark, à Lydia
Hirt e à Mary Stone.
Pelos seus designs de capas impressionantes e lindos, obrigada
ao Richard Ogle, à Jaya Miceli e à Helen Yentus.
Obrigada à Alice Howe, à Emma Jamison, à Emily Randle, à
Camilla Dubini e à Margaux Vialleron pelo seu trabalho para garan-
tirem que este livro possa ser lido em dezenas de línguas diferentes.

38]
PAULA HAWKINS

Obrigada ao Markus Dohle, à Madeleine McIntosh e ao Tom


Weldon.
Pelos seus conhecimentos profissionais, obrigada ao James
Elson, antigo elemento da Greater Manchester Police, e à profes-
sora Sharon Cowan da Edinburgh Law School — é desnecessário
dizer que quaisquer erros legais ou de procedimentos são inteira-
mente da minha autoria.
Obrigada às irmãs Rooke de Windsor Close por toda uma vida
de amizade e inspiração.
Obrigada ao Sr. Rigsby por todos os seus conselhos e pela sua
crítica construtiva.
Obrigada ao Ben Maiden por me manter ligada à terra.
Obrigada aos meus pais, Glynne e Tony, e ao meu irmão Richard.
Obrigada a todos e a cada um dos meus amigos, pela sua incrí-
vel paciência.
E obrigada ao Simon Davis, por tudo.

382
Leia também:

22.º EDIÇÃO 6 130 000 ExEMPLARES EM PORTUGAL

RAPARIGA
NO
"COMBOIO
PAULA HAWKINS
«Um livro assim, capaz de viciar, escrito em crescendo
| | e cmrregadinho de surpresas e desmentidos,
“| sóracontece raramente.»

- Diário de Notícias

TODOS OS DIAS, RACHEL APANHA O COMBOIO...


No caminho para o trabalho, ela observa sempre as mesmas
casas durante a sua viagem.
Numa das casas ela observa sempre o mesmo casal, ao qual
ela atribui nomes e vidas imaginárias. Aos olhos de Rachel, o casal
tem uma vida perfeita, quase igual à que ela perdeu recentemente.

ATÉ QUE UM DIA...


Rachel assiste a algo errado com o casal... É uma imagem rá-
pida, mas suficiente para a deixar perturbada.
Não querendo guardar segredo do que viu, Rachel fala com a
polícia. A partir daqui, ela torna-se parte integrante de uma suces-
são vertiginosa de acontecimentos, afetando as vidas de todos os
envolvidos.
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«Decidi, no decurso do processo de tentar
compreender-me a mim própria e às histórias
que contamos uns aos outros, que tentaria
pôr por escrito todos os derradeiros
momentos das vidas das mulheres que foram
parar ao Poço das Afogadas.

É um local idílico, mas as aparências iludem,


porque este é um local mortífero. A água,
escura e vítrea, esconde o que se encontra
sob a sua superfície: algas para nos
emaranharem, para nos arrastarem para
baixo, rochas afiadas para nos cortarem
a carne. Por cima, emerge o penhasco:
um desafio, uma provocação.

Este é o local que, ao longo de séculos,


reclamou as vidas de Libby Seeton, de Anne
Ward, de Lauren Slater, de Katie Whittaker
e de inúmeras outras. Eu queria perguntar
porquê, e como, e o que nos dizem as suas
vidas e mortes acerca de nós próprios.
Há quem prefira não fazer essas perguntas,
quem prefira abafar, suprimir, silenciar.
Mas eu nunca fui dada à tranquilidade.

Neste trabalho, queria começar não com


afogamentos mas com natação. Porque é
assim que isto principia: com as bruxas a
nadarem — o tormento da água. Ali, no meu
poço, esse lugar de beleza pacífica, foi onde
as trouxeram e as ataram e as atiraram ao rio,
para se afundarem ou nadarem.

Há quem diga que as mulheres deixaram algo


de si própioe a éágua; há quem diga que
esta EAN pder, porque, desde
ta as suas margens as
desafQ si Hd Hkssesperadas, as infelizes,
as BA RRADOVêm até 'cá para nadarem com
as stmavirpnBaisystem.com
- “CUIDADO Com AS; ÁGUAS CALMAS..
aE NÃo SABEMOS e Sur ESCONDEM NO FUNDO.

o “NEL VIVIA: OBCECADA com AS MORTES (9) RIO. |


rc
fo)fato)» que. atravessava aquela vilajá levara a vida a demasiadas mulhe-
— resao I[ojals [ole[o Ric ianTo[op incluindo, recentemente, a da melhor amiga
* dasuafilha. Desde. então, Nel AME ainda mais determinada a encontrar
e Tespostas. . e

e “AGORA, É ELA| QUE APARECE MORTA.


É “Sem vestígios de crime, tudo .aponta para que Nel se tenha: sdiado
“no rio. Mas poucos dias antes da sua morte, ela deixara uma mensa-
“gem à irmã, Jules, num tom de:voz cai e:assustado. Estaria Nel a
a pro:sua vida? : € E
-
Ee

É “QUE SEGREDOS ESCONDEM AQUELAS ÁGUAS?


Pao descobre a verdade, Jules vai ser forçada'a enfrentar recoidações :
o medos terríveis, há muito submersos dd ia rio. deaguas calmas,
o ca a morte caioirmã vem trazer à
à superfície. º |

Am juro profundamente original e| durireênidonito aro as à A -


“ devastadoras que o passado encontra para voltar a assombrar-nos
- no presente, Paula Hawkins confirma, de forma triunfal, a sua
ERES) no entendimento dos instintos humanos, numa história.
Com tanta ou mais intensidade do ne A ala no Comboio.

. RAPARIGA
* ComBolO.
PAULA HAWKINS a

a 89898 30

Thriller

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