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Stephanne Says— 1ª Edição — 2019

Copyright © Editora Coerência, 2019


Copyright © Stephanne Says, 2017
Direção Editorial: Lilian Vaccaro
Coordenação Editorial: Bianca Gulim
Preparação: Bianca Gulim
Revisão: Morgana Brunner, Bianca Gulim
Capa: Décio Gomes
Diagramação Digital: Giuliana Sperandio, Help – Serviços Literários
Direitos imagens: © pngtree.com.
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA
PUBLICAÇÃO (CIP)
Says, Stephanne;
A Reação Adversa do Caos
1ª edição - São Paulo: Coerência, 2019
ISBN: 978-85-5327-136-8
Número de páginas: 720
1. Ficção brasileira 2. Ficção científica 3. Romance I. Título
CDD: 869.3
Está é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas.
Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos
da imaginação das autoras. Qualquer semelhança entre esses aspectos
é mera coincidência.
Esta obra segue as regras da nova ortografia da língua portuguesa.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.
É proibido o armazenamento e/ou reprodução de qualquer parte
dessa obra, através de quaisquer meios – Tangível ou intangível – sem o
consentimento por escrito das autoras.
Criado no Brasil.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº
9610/98 e punido pelo artigo 184 do código penal.
Sumário

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora:
Siga nas redes sociais:
.
1

1- A Culpa é das uvas-passas

Em uma parte como outra qualquer deste imenso universo, mais


especificamente no superaglomerado de Virgem, em uma galaxiazinha
chamada Via Láctea, na insignificante região do Braço de Órion, existe
uma estrela que não tem nada de especial chamada Sol.
Ao redor dela, gira um pequeno planeta azul, onde muitas estrelas
explodiram para que a vida fosse gerada por lá. Entretanto, apesar de
todos os seres vivos que o habitam serem basicamente poeira estelar,
são poucos os que valorizam ou têm conhecimento disso.
Devido à ignorância do que acontece ao seu redor, 0,01% dessas poeiras
estelares desenvolveram um complexo de superioridade diante das
outras por possuírem polegar opositor, telencéfalo altamente
desenvolvido e consciência da própria morte.
Sabendo que seu tempo de existência é finito, a melhor maneira que
encontraram para passar a vida foi fazendo coisas que as façam se sentir
especiais. Mas elas são tão desesperadamente inseguras que, para
conseguir isso, precisam da validação de outras poeiras — que por sua
vez também passam a vida fazendo coisas com o mesmo intuito.
E, então, as poeiras nascem, estudam para trabalhar e trabalham para
comprar coisas. Compram roupas, compram viagens, compram beleza,
compram aceitação, compram amor, compram tudo que veem pela frente
para tentar suprir sua mediocridade e não ser iguais às outras poeiras.
Só que, ao mesmo tempo em que elas tentam sempre ser únicas, elas
odeiam poeiras diferentes. É meio paradoxal, não?
Elas odeiam poeiras de cores diferentes, poeiras oriundas de lugares
diferentes, poeiras com gostos diferentes. E, principalmente, odeiam
poeiras que pensam diferente. Porque as poeiras realmente não gostam
de estar erradas. Nunca. Na verdade, elas têm tanta certeza a respeito
de tudo que é bem mais fácil enganá-las do que convencê-las de que
elas foram enganadas.
E mesmo quase 500 anos depois de uma dessas poeiras ser ameaçada
de morte por ter dito que o Sol não gira em torno do planeta delas,
algumas ainda acreditam que o universo inteiro foi criado para o seu
próprio benefício.
O planeta dessas poeiras se chama Terra e, apesar de todo esse
egocentrismo por parte dos habitantes, ele só possui em torno de 12.756
km de diâmetro.
O Sol, por sua vez, possui 109 vezes o raio da Terra.
A Terra, ao lado do Sol, seria como uma pulga ao lado de uma bola de
basquete. O Sol, no meio da Via Láctea, seria como uma pulga perdida
no meio dos Estados Unidos. A Via Láctea, com suas aproximadamente
400 bilhões de estrelas, comparada com a galáxia IC-1011, seria como
uma pulga no meio do planeta Terra.
Enfim, acho que já deu para perceber que o universo é um lugar
realmente grande. Tão grande que o único jeito de conseguir vê-lo
totalmente seria de dentro de um buraco negro. Mas acho que ninguém
vai querer entrar lá.
Então, vamos ver se ficou claro: tudo e todos que as poeiras citadas
conhecem existem apenas dentro da pequena parte de uma pulga
chamada Terra, que fica flutuando no vazio do espaço. E, levando em
consideração que “existem mais estrelas no universo do que grãos de
areia em todas as praias da Terra”, como disse uma poeira chamada Carl
Sagan, podemos dizer com total convicção que a única certeza que
essas poeiras podem ter na vida é que elas não sabem de nada.
Se já é bastante assustador pensar no fato de que elas moram dentro de
uma pulga composta por hélio e hidrogênio que fica flutuando no vazio do
espaço, é mais assustador ainda saber que a matéria, tal como elas a
conhecem — formada por prótons, neutros e elétrons —, representa
apenas 4% do total da massa do universo. Os outros 96% são formados
por matéria escura e energia escura, e nenhuma das duas é visível ou
pode ser detectada pelos telescópios dessas poeiras.
Ninguém faz a mínima ideia do que sejam esses 96%.
Noventa e seis por cento.
Pode admitir, isso é mais assustador do que olhar para o celular e ver
quinze ligações perdidas da sua mãe.
E, se os habitantes desse planeta ficarem pensando muito nisso, vão
começar a sentir um tipo de pânico que eu gosto de chamar de "pânico
da constatação da insignificância da sua vida".
Pensar nisso causa tanto medo que eles têm as mais absurdas reações.
Modelos fitness comem um pote inteiro de Nutella, pseudointelectuais
leem todos os livros de Paulo Coelho, políticos param de roubar, cinéfilos
param de perder tanto tempo tentando decidir o que assistir na Netflix…
As reações podem variar, mas, no geral, todos param de se importar com
o modo como os outros vivem suas vidas. E também de dobrar o lençol
da cama.
Por isso, algumas poeiras optam por não pensar sobre isso. Nunca.
Luna Levine, uma adolescente aparentemente tão normal quanto
prometer que vai começar a dieta na segunda-feira, era uma dessas
poeiras.
Ela nunca pensava nisso.
Suas sobrancelhas astutas a faziam parecer mais confiante do que
realmente era e disfarçavam muito bem o eminente fato de que ela não
sabia de nada; seu pequeno e redondo nariz passava a imagem errada
de que ela era uma pessoa adorável e de fácil convivência, enquanto
seus cabelos castanhos, que ficavam sempre presos em um coque
desarrumado no topo da cabeça, lhe garantiam um ar de mistério. Mas,
mesmo tendo belos olhos azuis, você não repararia nela nem se entrasse
em um café e ela fosse a única pessoa lá dentro. Mesmo que ela
estivesse com uma melancia em cima da cabeça.
Mas não pense que ela não gostava de pensar. Ela não era
necessariamente uma filósofa, mas passava o dia pensando tanto que
esquecia o mundo ao seu redor.
Em determinado momento, por exemplo, ela estava pensando em uvas-
passas.
Sim. Isso mesmo. Uvas-passas.
Luna estava olhando fixamente para uma edição especial de O Retrato
de Dorian Gray, que estava no topo de uma estante, pensando em uvas-
passas.

— LUNA! — gritou tio George, interrompendo as importantíssimas


divagações de Luna sobre uvas-passas e a trazendo de volta para a
realidade. — Tem cliente no balcão, pare de ficar sonhando acordada! —
Ele devia estar no escritório olhando as imagens das câmeras de
segurança, procurando motivos para fazer o que mais amava na vida:
importuná-la.

Diante dela, havia uma senhora com um livro na mão. Como a


livraria era pequena, também avistou ao fundo duas garotas rindo e
cochichando.

— É ela — disse uma delas.

Luna as reconheceu da sua antiga escola e conseguiu imaginar


sobre o que estavam falando. Já fazia um ano desde o ocorrido, mas sua
fama parecia continuar a persegui-la.

— Vou levar este aqui — informou a senhora com um sorriso,


entregando um guia turístico de Praga. — Sonhar acordada às vezes faz
bem.

— Desculpe. — Luna deu um sorriso tímido, pegando o livro e o


passando no leitor de código de barras. — Vai viajar para lá?

— Vou, nas férias. — Ela continuou a sorrir.

— Não deixe de ir ao castelo. É um passeio imperdível.


— Obrigada, vou me lembrar disso. — E entregou o dinheiro. —
Você já foi até lá?

— Hum… Milhares de vezes… na minha imaginação. — Sua voz


saiu quase inaudível. — Meu livro favorito se passa lá.

Luna suspirou, e seu olhar se perdeu na prateleira de livros de


viagens. Havia a organizado no dia anterior, mas ainda estava com o
aperto no peito que sempre sentia cada vez que os tocava; sabia que
aquilo seria o mais perto que chegaria daqueles lugares.

— Preste atenção! — Luna foi despertada mais uma vez por um


grito estridente do seu tio vindo do alto-falante.

Ela piscou algumas vezes e percebeu que a mulher permanecia


parada à sua frente, esperando pela sacola.

— Desculpe. — Deu outro sorriso sem graça.

Mas, apesar de seja lá quanto tempo que Luna lhe tivesse feito
esperar enquanto estava perdida em seus devaneios, a mulher apenas
sorria de forma maternal.

— Tenho certeza de que um dia ainda irá, você é jovem. Tem todo
tempo do mundo para realizar qualquer sonho — disse, pegando a
sacola. — Bom, vou indo, mas boa sorte!

— Obrigada — Luna respondeu com um leve sorriso no rosto,


sentindo o peito se aquecer.

Desde o ocorrido que a fez ser expulsa da escola no ano anterior,


Luna começou a trabalhar na livraria do seu tio. Antes de tudo acontecer,
ela até achava que sabia o que queria. Sonhava em ser jornalista e em
estudar na UFRJ, como seu pai. Viajar o mundo, conhecer novas culturas
e ampliar seus horizontes. Mas, naquele momento, assim como 90% dos
jovens de 17 anos, ela não tinha a mínima ideia do que queria fazer da
vida.

Luna havia se conformado em trabalhar na livraria, o que a fez criar


uma imensa paixão por livros. Neles, as coisas sempre davam certo no
final — a menos que fosse um livro de Stephen King —, e por meio da
leitura ela podia experimentar coisas que jamais faria na vida real.

Mas será que aquela mulher estava certa? Será que Luna ainda
tinha tempo?

O barulho de passos pesados vindo da escada eclodiu no ambiente,


fazendo esse sentimento evaporar imediatamente. Quando seu tio
apareceu na porta, Luna engoliu em seco e prendeu a respiração ao ver
seu rosto rechonchudo com vários tons de vermelho. Sempre que ficava
assim, ele parecia até ser um tipo diferente de ser humano, que havia
evoluído de um porco e não de um macaco.

— Desculpe — ela se apressou em dizer.

— Você deixou a cliente esperando duas vezes!

— Eu sinto muito, eu… me distraí. Não vai acontecer de novo.

— Você estava mexendo no celular!

— Não, eu não estava. Juro.

— Eu vi pelas câmeras, não tente me enganar.

— Ele está no meu quarto, embaixo do meu travesseiro. Pode ir lá


olhar.

— Você deve ter colocado lá enquanto eu descia as escadas.

Luna fez uma careta.


— Claro, porque meu nome é Flash e eu tenho supervelocidade.

O rosto dele ficou mais vermelho ainda, e Luna protegeu a cabeça


com as mãos quando ele levantou o braço. Fechou os olhos e torceu
para que fosse rápido. Ele é seu único parente vivo, disse para si mesma.
Isso é melhor do que morar na rua.

Mas a demora em receber o tapa fez Luna entreabrir um olho. Seu


tio continuava à sua frente, mas estava de costas. Um cliente acabara de
entrar na livraria. Com um sorriso no rosto, George o acompanhou com o
olhar até que entrasse em um dos corredores e, após fechar a expressão
novamente, se virou para Luna.

— Essas coisas que as pessoas falam sobre você pela cidade


devem ser verdade então — balbuciou com o olhar ríspido sobre ela.

Luna sentiu os olhos arderem, mas se recusou a deixá-lo perceber


que suas palavras exerciam algum poder sobre ela ou que aquele
assunto ainda a afetava de alguma forma.

— Quando fechar a loja, às dezenove horas, eu quero que você vá


buscar uma encomenda para mim.

— Ok. Você tem o papel do correio? — Luna perguntou com a voz


mais firme que conseguiu.

— Não é no correio. — Ela franziu o cenho. — É no aeroporto.

— Mas aqui não… — ela começou a dizer, mas ele simplesmente


se virou e caminhou em direção às escadas. Luna sentiu o peito arfar. —
Mas… fica a quase duas horas daqui. E… eu tinha avisado ao senhor
que hoje era o dia em que Amy viria para cá e nós iríamos para uma
festa, e eu iria para a casa dela me arrumar, e… — ela disse já com os
olhos cheios de lágrimas, que estavam difíceis de conter.
— Não é problema meu — seu tio respondeu sem nem olhar para
ela. — E acho bom essa encomenda estar na minha mesa amanhã de
manhã se você quiser receber um salário no fim do mês.

No caminho de volta do aeroporto, Luna colocou uma música na


altura máxima para tocar e curtiu seu momento sozinha para espairecer.
Abriu os vidros e deixou que o vento forte desfizesse o coque de seu
cabelo para combinar com a canção que estava tocando, Unwritten, de
Natasha Bedingfield.

— “Today is where your book begins, the rest is still unwritten”[1] —


cantarolou alto, colocando a faixa para repetir várias vezes.

Se sua vida fosse um filme, a música de abertura certamente seria


aquela. Traduzia tudo que ela sentia. O sentimento de que algo ainda não
havia sido escrito em sua história.

Já havia anoitecido, a estrada continuava vazia e a música já estava


em sua sétima repetição quando, de repente, uma faixa de fumaça
passou cruzando o céu, derrubando alguma coisa alguns metros à sua
frente.

Luna parou o carro.


2–

2- O Final ainda não foi escrito

Luna já assistira a filmes de ficção científica o suficiente para saber


que essas coisas nunca terminam bem. O mais sensato a fazer seria dar
meia-volta e avisar as autoridades o mais rápido possível, antes que algo
que fosse capaz de destruir o planeta Terra saísse de dentro da coisa
misteriosa vinda do céu.

Mas ela resolveu descer para olhar.

O objeto de metal era quase do seu tamanho e poderia muito bem


ser uma peça de arte contemporânea decorando a casa de algum
milionário. Ele ainda faiscava quando Luna se aproximou, o que a fez
voltar para o carro em busca de um guarda-chuva para tocar naquela
cápsula. Assim que o fez, o objeto começou a se abrir.

Ingenuamente, Luna abriu o guarda-chuva, como se isso fosse


protegê-la da criatura verde e gosmenta que provavelmente sairia de
dentro daquilo para tentar comê-la viva. Torceu para que não colocassem
a foto da sua identidade no jornal quando reportassem a notícia de sua
morte. Odiava aquela foto.

No entanto, a suposição de Luna estava errada; havia apenas uma


pedra dentro da cápsula. E não era uma pedra qualquer. Possuía formas
geométricas estranhas e era do tamanho de uma mão adulta. Seus
vários tons de rosa e azul apresentavam pequenos pontinhos brancos
cintilantes semelhantes a estrelas em seu interior. Era simplesmente a
coisa mais bonita que ela já vira em toda sua vida.

Luna não fazia a mínima ideia do que aquilo era, de onde vinha ou a
quem pertencia, mas não podia deixá-la à deriva no meio da estrada.

Com o carro do seu tio parado em frente à livraria, Luna estava


esperando a música terminar para desligá-lo quando ouviu batidas no
vidro. Olhou para o lado e seu coração quase parou ao ver uma garota
de cabelos brancos vestida de noiva com sangue escorrendo por sua
pele negra.

— Onde você estava? Eu te liguei mais de quinze vezes e seu


celular só deu desligado! Eu já estava começando a achar que você tinha
morrido! — disse Amy.

— Ai, meu Deus, você quase me matou de susto! — gritou Luna,


saindo do carro.

— O que aconteceu com nossos planos de nos arrumarmos juntas


e eu fazer sua maquiagem de caveira mexicana? A festa já começou há
horas!

— Desculpe, meu celular descarregou e meu tio me obrigou a ir de


última hora no aeroporto, e… — Luna inspirou profundamente, depois
tentou forçar um sorriso. — Obrigada por me esperar, mas eu não vou.
Você está linda, não perca a festa. Tempestade pós-divórcio, certo? —
Amy apenas a encarou seriamente. — Tempestade noiva-zumbi? — Luna
tentou mais uma vez decifrar a fantasia da amiga.

— Luna… — Amy suspirou. — Você vai, sim. Nós combinamos


essa festa há meses. Eu já te esperei até agora e coloquei até cílios
postiços! Ah, você vai, sim.

— Eu estou tão cansada da viagem… — Luna forçou um bocejo.

— Beba um energético.

— E amanhã eu tenho que acordar cedo…

— Despertador. Café.

Luna contorceu os lábios.

— Eu não… estou com muita vontade de ir. Eu acho que é melhor


eu não ir.

— Luna, você não pode ficar trancada em casa para sempre. Você
tem que… tocar sua vida.

Luna abriu a boca, mas as palavras não vieram. A melhor coisa que
conseguiu pensar para responder foi:

— E… eu não tenho fantasia.

Amy ergueu a sobrancelha.

— Sério que essa é sua melhor desculpa? — Luna deu um sorriso


sem graça. — Espere aqui, vou em casa correndo arranjar algo para
você vestir. E nem ouse fingir que adormeceu quando eu voltar, ok?
Luna concordou com a cabeça e, quando Amy saiu, correu para seu
quarto e tirou a pedra de dentro da bolsa. Ficou olhando para ela,
hipnotizada. Era tão fascinante… Aqueles pontinhos cintilantes, aquelas
cores vibrantes… Onde ela já vira algo assim?

Luna sentiu uma estranha vontade de erguê-la para ver como ficaria
sua tonalidade estando mais próxima da luz. E, sim, ela pareceu ainda
mais mágica. A respiração de Luna ficou até presa no peito enquanto a
contemplava.

— O que… diabos… você está fazendo? — Luna foi desperta do


transe em que se encontrava pela voz de Amy vindo da porta de seu
quarto.

— Onde está a fantasia? — Luna perguntou rapidamente,


escondendo a pedra embaixo do travesseiro.

Amy estreitou os olhos, mas, para a sorte de Luna, ignorou o que


ela estava fazendo antes e abriu a sacola que carregava.

— Aqui.

Luna abriu a boca.

— Essa… é a fantasia?

— Esta é a fantasia.
Quando Luna e Amy entraram na festa, os olhares dos convidados
se voltaram para elas, como quando a garota excluída volta para a escola
depois de passar por uma mudança radical proporcionada pela avó
perdida que a transformou numa princesa. Só que, no caso de Luna, era
porque, bom, ela era ela, e para completar estava usando um pijama do
Pikachu que era basicamente um macacão amarelo com orelhas e rabo.

— Eu não devia ter vindo — Luna sussurrou para Amy enquanto


adentrava o salão, ouvindo as pessoas cochichando entre si.

Uma garota apontou o celular na direção de Luna enquanto fingia


tirar uma selfie, mas o flash saiu. Àquela altura, a única coisa que Luna
conseguia fazer era revirar os olhos.

— Ninguém mais deve se lembrar do que aconteceu, relaxa — Amy


disse, sorrindo e acenando para algumas pessoas.

— Claro — Luna murmurou.

As duas se sentaram no balcão do bar e pegaram bebidas. Luna


deu uma olhada por cima dos ombros e percebeu que, apesar de ser
uma festa de reencontro do seu colégio, havia muitas pessoas de fora.

— É, talvez você tenha razão, talvez todos tenham… — Luna


começou, mas foi interrompida:

— E aí, Amy?! Oi, Luna, ainda ouvindo vozes? Felipe está aqui —
disse Carlos, um garoto que foi da sala delas na escola.

Luna apenas mostrou o dedo do meio, e ele seguiu seu caminho.


Ela e Amy se entreolharam, depois imediatamente começaram a rir.

— Ok, eu retiro o que disse. Mas falando em Felipe… Você viu as


fotos que ele postou com a namorada nova? Meu Deus, eles são tão
melosos que eu tenho vontade de vomitar.
Felipe era o ex-namorado de Luna. E era um idiota.

— Não. Eu o bloqueei. — Luna fez uma careta, depois deu um gole


na bebida.

— Nossa, quanto rancor. Você deveria desbloquear só para rir.


Sério, é ridículo. E não estou dizendo só porque sou sua amiga e tenho o
dever de falar mal da atual do seu ex. Mas, nossa, é sério, você precisa
ver. — Ela foi tirando o celular da bolsa, mas Luna a interrompeu:

— Não, eu não quero ver — disse com a voz firme. — Eu decidi não
perder mais tempo com coisas que eu não gosto. — Luna decidiu cortar
logo, antes que Amy começasse a tocar em assuntos mais
desagradáveis ainda.

— Ah, é mesmo, você está certa. Um professor meu sempre diz


isto, acho que foi Nietzsche que falou: “seu tempo e o que você faz com
ele é a coisa mais importante que você tem”.

Amy estava cursando Direito e, por conta de uma matéria de


Filosofia, vivia postando nas redes sociais frases de filósofos, algumas
até em latim.

— Credo, não! Foi Gandalf que falou isso. Quer dizer, tecnicamente
foi Tolkien…

Luna odiava Nietzsche devido à sua afirmação sobre não existirem


verdades absolutas, pois discordava completamente disso. Acreditava
que todos precisam acreditar em alguma coisa, nem que seja naquelas
correntes ridículas de internet que dizem: “se você enviar essa
mensagem para dez pessoas, uma coisa boa acontecerá”.

Como forma de protesto para essa afirmação, Luna decidiu criar


suas próprias verdades absolutas. Era um enorme acervo de frases
feitas, as quais ela costumava repetir nas mais peculiares situações.
— Sério? Eu podia jurar que ouvi algo desse tipo na aula sobre os
filósofos pré-socráticos. — Amy franziu a testa.

— Não, ele era da Terra Média.

Na verdade, a frase correta era: “tudo o que temos de decidir é o


que fazer com o tempo que nos é dado”. O que pode ser interpretado por:
seu tempo e o que você faz com ele são as coisas mais importantes que
você tem. E Luna tinha isso como sua maior verdade absoluta.

— Mas como está a universidade? — Luna decidiu mudar de


assunto.

— Ah, está ótima! Cara, é tudo tão diferente da escola, você ia


amar… Os garotos, as festas, o ambiente, os professores… até as aulas
são legais. Sério, pelo menos uma vez ao dia eu penso: Luna iria amar
isso aqui… — Amy falou com empolgação, até perceber o olhar
cabisbaixo de Luna. — É uma droga que aquilo tenha acontecido e feito
você perder o vestibular, você estava num ritmo de estudo tão bom, todos
tinham certeza de que você ia ficar em um dos primeiros lugares… —
disse, talvez com intuito de melhorar a situação. — Você pode tentar de
novo este ano.

— Na verdade, eu decidi não fazer.

Amy piscou os olhos por alguns instantes.

— Como assim? Por quê? E… o que você vai fazer?

— Bom, continuar trabalhando na livraria. Quem sabe juntar algum


dinheiro para viajar, não sei. — Luna deu de ombros.

— Mas… você tem que fazer alguma coisa. Todo mundo precisa
fazer alguma.
— Não. Ninguém é obrigado a nada. E eu realmente não quero
falar sobre isso agora. — Nem nunca, Luna pensou. Amy deu um gole na
sua bebida, depois se calou. — Mas vamos falar de você. E os
namoradinhos? — Luna mudou de assunto novamente.

— Ah, você não vai acreditar! Sabe aquele cara que eu tinha
falado que estava na minha aula de Sociologia? Então, ele… — Amy
continuou a falar, e Luna até prestou atenção por um momento, mas
começou a olhar para o enorme laço rosa que sua amiga usava na
cabeça e se lembrou da pedra.

De onde será que ela veio? Luna não sabia o motivo, mas tinha
uma leve impressão de que já vira algo semelhante. Estava morrendo de
vontade de ir para casa tentar descobrir qualquer coisa.

— Amy, eu sei que você vai achar que eu estou inventando uma
desculpa, mas amanhã eu realmente tenho que acordar cedo e não estou
com uma relação muito boa com o meu tio ultimamente…

— Ah, Luna, por favor, eu quase nunca venho aqui! Mande seu tio
ir pastar! Você não precisa mais ficar aturando essas coisas dele, sério.
Pode ter certeza de que ele será a primeira pessoa que irei processar
quando eu me formar. Primeiro, por danos morais a você por sempre te
buscar atrasada no colégio e te deixar lá plantada, esperando. Depois,
por danos morais a mim por ele sempre mentir que você não estava em
casa quando eu ligava e você ainda morava na casa dele. Enfim, vai ser
o processo mais longo do mundo. Mas, agora, vamos tomar pelo menos
mais um drinque.

Luna ficou pensativa. Ok, a pedra não criaria pernas e sairia


andando.

— Só mais um.
Quatro horas depois, Luna voltou para casa correndo, tentando fugir
da chuva, mas escorregou e caiu de bunda no meio da rua. Entrou
cambaleando e derrubou alguns livros de uma estante enquanto tentava
encontrar algum deles para pesquisar sobre a pedra. No dia seguinte,
acordaria cedo e arrumaria tudo antes que seu tio visse a bagunça, mas,
naquele momento, realmente precisava descobrir mais sobre aquela
pedra.

Pegou as coisas que estavam espalhadas sobre a cama, que mal


cabia naquele minúsculo quarto, e as colocou em cima da escrivaninha,
igualmente bagunçada. Era difícil manter a organização num lugar tão
pequeno quanto aquele, mas viver naquele quartinho nos fundos da
livraria ainda era melhor do que viver na mesma casa que seu tio.

Luna se sentou na cama e começou a folhear o livro que escolheu.


Depois de um tempo, se deu conta de que o livro não era sobre pedras,
mas sobre sapos.

O mundo parecia girar um pouco mais rápido, mas mesmo assim


ela se levantou e pegou o notebook. Digitou “pedra rosa com azul”,
depois clicou em “pesquisar”. Deu uma olhada por cima, mas parecia que
existia uma banda de rock dos anos 1980 com esse mesmo nome.

Luna continuou a pesquisa, entrou na página da banda, depois


entrou em outra sobre acontecimentos marcantes dos anos 1980, que a
levou a outra sobre a migração das andorinhas do Ártico, após outra que
informava para qual ex-namorado era cada música de uma cantora
country americana.
Saiu entrando em tantas páginas que, quando se deu conta, estava
cortando a própria franja, seguindo um tutorial de vídeo do Youtube. Ao
perceber o que estava fazendo, já era tarde demais e sua franja estava
na metade da testa. E estava horrível.

Ela se levantou e foi até o guarda-roupa ver se encontrava sua


antiga chapinha da época em que se importava com a aparência de seu
cabelo, mas, ao abrir as portas, quase ficou soterrada por tantas coisas
que caíram. Luna se abaixou para pegar algumas e, ao ver o que estava
à sua frente, teve um estalo. A caixa.

Luna pegou, limpou a poeira que havia sobre ela e aos poucos foi
retirando as coisas de dentro daquela pequena caixa de madeira: fotos
do seu pai e outras coisas da sua infância. Ele e sua mãe haviam morrido
em um acidente de carro quando Luna tinha apenas dois anos. Não tinha
nenhuma foto da sua mãe, pois sua falecida tia, que era irmã do seu pai,
nunca a conhecera. Na verdade, até com seu pai sua tia tinha tido
pouquíssimo contato depois de criança. Ele era jornalista, essa era a
única informação que Luna tinha, o que no começo considerava
extremamente frustrante, mas, àquela altura, já estava conformada.

Foi então que Luna achou o colar. Ela costumava usá-lo todos os
dias, mas passou a deixá-lo guardado porque certa vez, quando era
criança, quase o perdera na escola. Aquela era uma das poucas
lembranças que tinha dos seus pais; não se lembrava de ninguém ter lhe
dado, simplesmente sempre tivera aquele colar.

Sabia que já vira aquela pedra em algum lugar. Era uma estrela
com oito pontas, no meio havia uma pequena pedra, tão pequena que
quase não dava para enxergar, mas que era feita do mesmo material da
pedra que encontrara.

Luna o colocou no pescoço e pegou seu antigo diário. Como havia


abandonado o sonho de seguir os passos do pai, o diário não era usado
desde que fora expulsa do colégio, em parte também porque não tinha
nada de bom para relatar.
Ela escreveu:

Depois corrigiu:

Ficou olhando para o que escrevera, sentindo seu peito se aquecer.


Então ouviu um barulho incomum vindo da porta da entrada, como
se alguém estivesse tentando arrombar a fechadura. Quem poderia ser
naquele horário? Seu tio tinha a chave, mas ele jamais iria lá de
madrugada.

Luna foi verificar e, sim, de fato alguém estava tentando entrar.


Calculou que a pessoa já estaria dentro da livraria antes que ela pudesse
voltar para pegar o celular e ligar para a polícia. Precisava pensar rápido.

Pegou a coisa mais pesada que viu à sua frente, uma edição
especial da trilogia O Senhor dos Anéis, e ficou atrás da porta, esperando
o ladrão entrar. Assim que aquele vulto atravessou a porta, Luna golpeou
sua cabeça com o livro, fazendo-o cair no chão imediatamente.
Mas ele não parecia ser o homem do machado.
3

3- Bok viaja para um lugar exótico

Algumas horas antes, muito longe da Terra…

— Eu vou perguntar mais uma vez. — No interior daquele


laboratório osneano, frio e metalizado, aquela figura sombria e impetuosa
encarava o velho cientista. — Onde está a pedra Aünder? — continuou
Klaaoz com a voz fria e ameaçadora.

Bok assistia à cena de seu esconderijo, percebendo que o cientista


se mantinha firme, tentando não se deixar intimidar. Era evidente que
jamais compactuaria com uma pessoa tão desprezível quanto Klaaoz
Lynxzarsfeld.

Klaaoz o encarou por alguns segundos, provavelmente fervendo


por dentro, mas sem demonstrar um pingo de emoção. Depois, se virou
para os guardas e disse:

— Revistem tudo. Está aqui em algum lugar.

Os guardas imediatamente saíram na direção das outras salas do


laboratório.

— A Capital será informada sobre isso — disse o cientista.


— É mesmo? E onde estão as provas? — perguntou Klaaoz com
um leve sorriso no canto da boca.

Ele levantou o olhar, e as câmeras começaram a se desprender


das paredes. Em uma questão de milésimos de segundos, cacos de vidro
voaram para todos os lados conforme as câmeras atravessavam os
monitores dos computadores e acabavam com qualquer evidência da
presença do Comando Omega ali.

O velho observou a cena boquiaberto, com a expressão de tristeza


que qualquer osneano assumiria ao ver anos de trabalho indo por água
abaixo. Osneanos eram ensinados desde criança a valorizar a ciência e o
conhecimento; assistir àquilo devia ser como ter seu coração arrancado
do peito, Bok concluiu.

— Sua mãe deve ter vergonha de você — o homem disse,


claramente por impulso.

Klaaoz estava de costas, se dirigindo para a saída, quando parou


por alguns segundos, passou as mãos no cabelo e depois se virou.

— Você não sabe nada sobre mim — disse com desprezo


conforme todos os objetos que restavam no cômodo iam para o chão.

As estantes foram viradas, derrubando tudo que antes


acomodavam, os vidros foram estilhaçados em milhares de pedaços,
máquinas explodiram, tudo foi ao chão em uma fração de segundo. O
velho voou até a parede, o que provavelmente fez com que quebrasse
uma ou mais costelas.

— O que vocês estão olhando? — Klaaoz vociferou para os


guardas que vigiavam a porta, depois saiu, desviando da bagunça que
fizera.

Assim como os guardas, Bok também observava aquela cena de


queixo caído. Então os boatos eram verdadeiros, ele realmente é
gagrilyano, pensou.

Já fazia quase uma estação que Bok estava espionando o


Comando Omega, mas nunca vira Klaaoz tão irritado e descontrolado
como naquele momento. Geralmente era arrogante, ardiloso, mas nunca
costumava perder o controle. O que será que o aborrecia tanto sobre seu
passado? Bok já ouvira algumas histórias sobre ele ter vindo de uma
família muito nobre, de um planeta fora do Sistema, e sobre ter matado a
todos. Outros relatos diziam que fora preso quando tinha apenas
cinquenta anos aurelianos, depois havia fugido e feito uma cirurgia que
modificara seu rosto.

Bok não sabia exatamente em qual acreditar, mas, depois do que


presenciou, compreendia porque tantas pessoas o odiavam e o temiam.
Ele possuía uma aparência completamente comum: jovem, alto, pálido,
cabelos pretos. Porém, sua telecinesia não tinha absolutamente nada de
comum.

Depois que todos haviam se retirado, Bok saiu de seu esconderijo


e foi até o coitado do velho.

— Você está bem? — perguntou baixinho, sabendo que aquela era


uma pergunta idiota. Quem é que ficaria bem depois de ser arremessado
contra a parede?!

O velho lançou um olhar sofrido para Bok e, com dificuldade, falou:

— Melhor do que o mundo vai ficar caso eles encontrem a pedra


Aünder.

Bok estremeceu.

— O que vai acontecer?

— Tudo estará perdido. Todos estarão perdidos. — Suspirou.


Bok achou que ele estava começando a delirar, pois não falava
nada com nada.

— Para que exatamente serve essa pedra?

— A pedra Aünder possui poderes inimagináveis.

— Certo, mas por que eles querem tanto encontrá-la? O que ela
faz? —O velho não respondeu. — Escute, eu sou da GASP e estou aqui
investigando o Comando Omega numa missão secreta. Existe alguma
coisa que eu possa fazer para ajudar? — O velho levantou a
sobrancelha, como se sentisse dificuldade em acreditar naquilo. — É
sério — Bok insistiu.

Ao ver a hesitação do velho, Bok retirou seu Holophone do bolso e


mostrou sua credencial, fazendo o rosto sofrido do velho se iluminar.

— A pedra foi colocada em uma cápsula transportadora e enviada


para outro planeta há algumas horas.

— Como eu faço para chegar até ela?

— Nas buscas no laboratório, eles encontrarão uma bússola que é


atraída pelos seus componentes. Mas, se você seguir direto para o
Oeste, encontrará uma nave com uma dessas bússolas dentro. Ela está
indo para o planeta mais próximo que possuir seus mesmos
componentes. Você precisa encontrá-la antes deles e entregá-la ao
presidente.

Ótimo, Bok pensou. Tudo estava saindo bem, nem parecia que
aquela era apenas sua segunda missão oficial. Sem contar que seria
uma ótima chance de agradecer à primeira-dama por tudo que ela havia
feito por ele.

Saiu do laboratório discretamente e correu o mais depressa que


conseguiu. Chegou ao local indicado e avistou várias naves. Enquanto a
poucos quilômetros dali se encontravam vários guardas do Comando
Omega, ali estava vazio. Guardas idiotas.

Bok entrou em uma das naves, colocou a bússola para indicar o


caminho e deixou no piloto automático.

Klaaoz conseguiu até ouvir seus batimentos acelerados quando pôs


os pés naquele recém-redecorado saguão de entrada, que transbordava
positividade de uma forma irritante. “Combina com a nova imagem do
Comando Omega”, essa era a desculpa de Zuuvak, que decidira seguir
uma ideologia idiota que dizia que melhorar o ambiente de trabalho,
fazendo com que as pessoas esqueçam que estão trabalhando, melhora
a produtividade. Devido a isso, havia frases motivacionais espalhadas por
todas as paredes, foram criadas várias salas de descanso e de jogos e
um andar inteiro do prédio fora transformado em um bar. Klaaoz achava
aquilo patético e ficava irritado toda vez que passava lá embaixo, mas,
como não podia fazer nada, apenas travou o maxilar e manteve a
expressão séria e fechada de sempre.

Pessoas andavam apressadamente de um lado para o outro


naquele ambiente claro, algumas faziam um leve cumprimento com a
cabeça, outras desviavam do caminho quando o viam, mas tudo que ele
mais queria naquele momento era se trancar em sua sala e ficar sem ter
contato com alguém pelas próximas vinte e seis horas gagrilyanas.

— Senhor Klaaoz — disse de maneira efusiva a recepcionista que


estava no balcão, mas ele a ignorou, não só porque aquela sua alegria
diária era profundamente irritante, mas também porque ele realmente
precisava ficar sozinho. Desconsiderando o fato de ter sido ignorada, ela
pateticamente se levantou e correu até ele. — O canal oito já chegou
para a entrevista — informou com um sorriso grande demais.

Klaaoz apenas revirou os olhos e suspirou. Não estava com


cabeça para aquilo. Já estava até começando a sentir uma leve falta de
ar, coisa que não acontecia há um bom tempo.

— Estamos aqui com Klaaoz Lynxzarsfeld, o diretor de transações


do Comando Omega. O Comando Omega sempre existiu aqui em
Vindemiatrix, sob o comando de Zuuvak Vontees, do qual vocês já devem
ter ouvido falar. Mas recentemente eles decidiram ter mais participação
no Sistema ao concorrer nas próximas eleições presidenciais. E apesar
do seu passado um pouco… — o repórter parecia escolher
cuidadosamente as palavras — extremista, eles vêm atraindo muitos
simpatizantes. Klaaoz, como estão os preparativos para as próximas
eleições? Estão confiantes?

— Sim, estamos tendo bons resultados. Tivemos alguns


contratempos, mas a tendência é aumentar a aprovação.

— Mas e você? Pensei que você fosse se candidatar, já que tem o


sobrenome de uma família bastante tradicional de… — Seu tom era de
flerte, mas Klaaoz o ignorou, assim como a pergunta.

O ar ficou rarefeito enquanto aquelas coisas, que ele deixava muito


bem trancafiadas em um baú nas profundezas de seu inconsciente,
vinham à tona porque aquele velho parecia tê-lo aberto.
Klaaoz não se lembrava de quando havia sido a última vez que
pensara em sua mãe. Será que ela estava o assistindo naquele
momento? Ou teria mudado de canal assim que o vira? Será que ela
preferia assistir a qualquer outro lixo que estivesse passando na HoloTV
em vez de sua entrevista? E se o velho estivesse certo? E se ela
realmente sentisse vergonha dele?

Bom, considerando as circunstâncias, era provável que sim. Em


todos aqueles anos, ela nunca tentou entrar em contato com ele sequer
uma vez. Não que isso fosse uma coisa fácil de fazer, claro. Ninguém
sabia onde ele morava e para falar com ele era preciso ir até o Comando
Omega, coisa que poucas pessoas se atreviam a fazer.

Mas, àquela altura, ele não deveria se importar com isso.

Klaaoz inspirou profundamente, sentindo um formigamento nas


mãos, enquanto os assistentes de câmera olhavam curiosos para os
refletores, que chacoalharam. Aquela droga de poder estava prestes a
sair do controle mais uma vez.

— Klaaoz? — chamou o repórter.

Parecia que havia alguma coisa enforcando Klaaoz.

— Não — respondeu simplesmente e foi embora, deixando-o


olhando para as câmeras, sem reação.
Bok acordou com o piloto automático indicando que estava se
aproximando da localização desejada. À sua frente, havia um enorme
planeta azul, bem maior do que qualquer outro do Sistema Gamma
Aurellius. Olhou nos dados do navegador da nave e descobriu que se
chamava Terra. Também dizia que boa parte dos habitantes falava
aureliano, mas existia uma lei proibindo a entrada direta de qualquer
pessoa. Ok, então o que ele estava prestes a fazer tecnicamente era
ilegal.

Imagens de coisas exóticas apareceram no painel. Árvores


gigantes com luzes coloridas brilhando ao lado de um velho gordo de
barba branca que segurava um saco vermelho e vestia trajes da mesma
cor; pessoas seminuas com penas na cabeça e brilho no corpo sorrindo e
dançando; pessoas sorrindo com sangue no pescoço e uma faca
atravessando a cabeça, segurando um objeto alaranjado semelhante a
uma cabeça sorridente; pessoas vestidas elegantemente e segurando um
pequeno homem dourado; uma pintura de uma mulher meio amarelada
dando um sorriso muito exótico. Não, ela não estava sorrindo. Ou
estava?

Muitas imagens intrigantes depois, a bússola o guiou para um lugar


que de longe parecia estar totalmente escuro, mas que, ao se aproximar,
apresentou o brilho de luzes piscando. Ele aterrissou com cuidado no
local aberto mais próximo, desceu e continuou seguindo a bússola.

Bok se viu diante de vários tipos de construções incomuns,


aparentemente muito antigas. Havia vários estabelecimentos fechados
com as placas mais diferentes que já vira na vida. Viu uma placa de um
local com um tipo de comida gigante usando uma coroa e se perguntou
se aquela coisa chamada burguer era o líder daquele lugar.

Continuou seguindo a bússola, que o levou até uma casa em uma


rua completamente vazia. Olhou pelo vidro, as luzes estavam apagadas.
Não era uma casa, era um estabelecimento que possuía uma enorme
quantidade de um tipo muito antigo de livro. Ele já havia ouvido falar que
antigamente eles eram assim, mas nunca tinha visto um pessoalmente.
Procurou alguma coisa em seus bolsos para tentar abrir a porta.
Aquele tipo antigo de fechadura trouxe lembranças de seu planeta natal.
Não ia a Kryk desde que entrara na academia da GASP, sua mãe iria
matá-lo se ele não fosse naquele ano.

Quando Bok finalmente conseguiu entrar, observou o lugar por um


segundo e depois tudo escureceu.
4

4- Se você voltar, não será o mesmo

— Quem é você e o que quer? — perguntou Luna, sem fazer


questão de ser amigável com o suposto homem do machado.

Mas ele era bonito demais para ser o homem do machado. Não
que realmente existisse um padrão de beleza para ele. Na verdade, sua
aparência geralmente era imprevisível. Era a última pessoa que você
imaginaria. Por isso, Luna o amarrou em uma cadeira usando o fio do
telefone.

Uma leve barba por fazer adornava o queixo quadrado do intruso,


e o seu cabelo raspado nas laterais possuía um tom marrom mais escuro
do que sua pele. Sua roupa indicava que também estava em uma festa à
fantasia. Era um uniforme acinzentado que deixava seus músculos em
evidência e continha um símbolo estranho. Luna já teria ligado para a
polícia, mas sua demora em acordar a deixou preocupada. Ela ainda
estava um pouco bêbada, como iria explicar para a polícia que matara
um estranho que tentou invadir sua casa usando um livro? “O Senhor dos
Anéis é um livro muito grande, naquela época não existia Google, era
preciso três páginas de descrição para as pessoas saberem como era um
pântano, seu guarda.”
Ele falou alguma coisa com a voz de quem tinha acabado de
acordar e abriu os olhos, que eram verdes e lindos. Luna levou algum
tempo para perceber que ele havia falado em inglês. Enquanto isso, o
homem se livrava com facilidade da algema que ela improvisara.

Aquela cena fez Luna sentir um incômodo no estômago, então


rapidamente pegou o guarda-chuva que estava ao lado e apontou para
ele.

— Quem é você e o que quer? — repetiu, pela primeira vez


fazendo valer o dinheiro gasto no cursinho de inglês.

— Quando você for prender uma pessoa, nunca amarre as mãos


dela para frente — ele disse com um sotaque estranho, depois abriu um
sorriso tão bonito que ela não se importou por ele estar zombando da sua
falta de estratégia de defesa. — Meu nome é Bok Wonkhester. Eu sou
agente da GASP e acho que você tem algo de que preciso.

Aquele gringo estava dando em cima dela ou era impressão?

— Saia agora senão eu chamarei a polícia — Luna ameaçou,


tirando o telefone do gancho.

— Não, espere — ele disse, erguendo as mãos em sinal de paz. —


Eu não sou daqui. Da Terra. A entrada direta aqui é proibida, então acho
que vocês não estão muito familiarizados conosco do Gamma Aurellius.

Luna o encarou. Pelo visto, ela não era a única pessoa que estava
bêbada ali. Ou a pancada na cabeça tinha sido tão forte a ponto de afetar
o funcionamento do seu cérebro.

— Você é bonito demais para ser um extraterrestre — ela disse,


impressionada com a coragem que o álcool estava lhe dando.

— Quê? — Ele riu. — Extraterrestre?


Ela revirou os olhos.

— Se não falar sério, eu vou ligar para a polícia. Ao que tudo


indica, você pode ser o homem do machado.

— O homem do quê? — Ele continuava rindo. Seu sorriso


realmente era lindo.

— Nos filmes sempre tem alguém que chega e parece ser


inofensivo, mas no fim é o assassino que entra com um machado na sua
casa para te matar. Enfim… — divagou, esquecendo a situação.

— Calma, enr… eu estou procurando uma pedra. Não sei


exatamente como ela é… Talvez seja de ouro, cintilante, talvez brilhe no
escuro, solte fogos de artifício ou algo do tipo, já que estão todos atrás
dela… — Riu. — Deve estar em algum lugar aqui. Minha bússola indica
que está a poucos metros de distância.

Luna não estava acreditando no que estava ouvindo. Como ele


sabia da pedra? Ela provavelmente havia falado sobre ela para alguém
no bar, e aquilo era uma pegadinha.

— Muito engraçado.

— Estou falando sério — ele insistiu.

— Ok. E você é do lado negro da força ou do lado da luz? —


debochou.

— Quê?!

— Vida longa e próspera? — Ela fez o gesto com a mão.

Mas ele parecia realmente não fazer ideia do que ela estava
falando. Em que planeta ele vivia para não entender aquelas referências?
Luna estremeceu, e então caiu em si. Ou alguém tinha colocado
alguma coisa na sua bebida, ou…

— Você por acaso é de outro planeta?

— Sim, eu nasci em Kryk, mas trabalho na GASP da Capital — ele


falou isso com tanta convicção que parecia até que…

— Você está falando sério?

— Parece que aqui neste planeta vocês não costumam falar muito
com os vizinhos… Como você disse que se chamava mesmo? —
perguntou enquanto ela continuava boquiaberta.

— Luna.

— Então, Luna… Seria bom se você se apressasse em me dar a


pedra antes que os outros cheguem. Acredite, eles não serão assim tão
amigáveis.

— Você realmente não é da Terra? Isso não é nenhum tipo de


brincadeira?

— Não, já disse que estou falando sério.

Luna ainda estava em choque, não sabia se realmente acreditava


naquele estranho. Algo nele transmitia confiança. Talvez fosse seu
sorriso perfeito de comercial de pasta de dente ou seus belos olhos
verdes.

— Me dê uma prova de que você está falando sério.

— Que tipo de prova? — Ele franziu a testa.

— Sei lá, me mostre alguma coisa do seu planeta.


Ele pôs a mão no bolso e retirou algo que parecia mais ser um pó
compacto muito caro. Quando o abriu e digitou alguma coisa, um tipo de
foto holográfica apareceu. Luna ficou abismada com a modernidade e
também porque na foto ele estava sem camisa em uma praia,
comprovando a teoria dela sobre seus músculos por baixo da roupa.

— Ok, eu não sei de onde você é e se isso é algum tipo de iPhone


30, mas por que você está fazendo tudo isso para pegar a pedra? Por
que você a quer tanto?

Ele riu, e ela não conseguiu não reparar como seu sorriso era lindo
toda vez que ele fazia isso. Ficava até menos irritada com aquela
palhaçada toda em plena madrugada.

— Eu quero impedir que ela caia nas mãos erradas.

— Ou você quer vendê-la no Ebay? — Ela ergueu a sobrancelha.

— Eu quero fazer o que é certo.

Pela convicção de sua fala, devia ser um ator fazendo oficina para
uma peça, porque era bem realista.

— Se você é de outro planeta, por que não é verde e não tem três
braços ou algo do tipo? E por que você fala inglês?

Ele riu, e ela percebeu que realmente gostava quando ele fazia
isso.

— Eu conheço algumas pessoas assim como você descreveu. Ah,


e essa é a língua oficial do Sistema.

— Inglês é a língua oficial do Sistema? — Ela cruzou os braços.

— Essa é a língua aureliana.


— Ok, você vai ter que se esforçar mais do que isso nesse seu
teatrinho se quiser que eu te dê a pedra.

— Bom, breisleakyea — disse. Breisleakyea é uma palavra


gagrilyana usada para indicar quando você não sabe o que falar, mas
sabe que precisa falar alguma coisa.

— O que é breisleakyea?

— É uma palavra em gagrilyano, a antiga língua oficial do Sistema.

Luna ficou o encarando. Por que ele estava fazendo aquilo? Só


podia ser falta de roupa para lavar.

— Ok, Bok de Kryk. Você me convenceu. Eu te darei a pedra


porque preciso voltar a dormir, pois amanhã tenho que acordar cedo. —
E também porque eu estou farta dessa palhaçada, ela omitiu.

Quando Luna foi para seu quarto e pegou a pedra, ficou a


observando atentamente. Sentiu um aperto no peito tão grande ao ver
aquelas estrelas cintilantes em seu interior que… percebeu que não
podia se desfazer dela. Não sabia o motivo, mas simplesmente queria
ficar com ela.

Mas, diante da insistência de Bok em inventar histórias


mirabolantes, ele não desistiria facilmente. Ela precisava pensar em
alguma coisa, e rápido.

Enviou uma mensagem para Amy:


Pegou a bolsa azul com desenhos de patos e colocou a pedra
dentro. Pegou também seu celular, seu diário e uma caneta, já que,
dependendo da reação dele, sairia correndo e dormiria na casa de Amy.

— Desculpe, eu não posso entregar a pedra a você — Luna disse


ao voltar para a livraria, se perguntando se não era melhor ter pegado
uma escova de dentes.

Bok balançou a cabeça.

— Por favor, eu realmente preciso dela.

— Não.

Seu celular estava na mão com o número da polícia pronto para


ser discado caso ele tentasse qualquer coisa. Bok baixou o olhar, já sem
o seu lindo sorriso no rosto. Luna sentiu até um pouco de receio por não
lhe dar a pedra, mas… Ah, ela a tinha encontrado primeiro. Era dela por
direito.

De repente, um barulho veio da rua. Bok correu até a entrada e,


quando colocou a cabeça sorrateiramente pela porta, pareceu
empalidecer.

— Droga, eles chegaram.


Instantaneamente, puxou Luna e a levou para trás de uma estante.

— Mas que droga você está… — ela começou, mas ele cobriu sua
boca com a mão.

Luna sentiu vontade de mordê-la, até que percebeu que havia


pessoas entrando na livraria. Quando viu por entre as brechas da
madeira dois homens carregando armas, seu coração gelou.

— Eu acho que esse foi o melhor de todos os episódios — disse


um deles.

— O nono episódio sempre é o melhor — o outro respondeu.

Eles tinham armas. Armas. Todo o ar que existia nos pulmões de


Luna sumiu. Seja lá como eles planejavam usar aquelas armas, seu tio a
mataria caso eles não matassem antes.

Seu corpo tremia e suas mãos suavam enquanto Bok calmamente


foi soltando sua boca. Luna continuou os observando por trás dos livros
ao mesmo tempo em que Bok pegava alguma coisa num tipo de cinto de
utilidades. Os intrusos pararam para observar a bússola de Bok, que
estava na mesa, depois olharam ao redor. O estômago de Luna se
contorceu conforme o pavor aumentava a cada segundo.

Ela só conseguia pensar que dois homens armados estavam


dentro da livraria. Dois. Homens armados. Dentro da livraria.

— O que é isso? — perguntou um deles com um livro na mão.

Ela tentou sorrateiramente pegar seu celular dentro da bolsa para


mandar um pedido de socorro para alguém, mas, quando a terceira
pessoa entrou e ela viu como ele era, sentiu que ia desmaiar.

— Ai, meu Deus — sibilou, sentindo um nó nas entranhas,


imediatamente cobrindo a boca ao ver aquela criatura com muitos dentes
na boca, pescoço comprido e pele escamosa carregando uma arma igual
a dos outros.

Todos se viraram para ver de onde viera o som, apontando uma luz
em sua direção. Luna só conseguiu enxergar a claridade, mas sabia que
por trás dela havia uma arma apontada em sua direção. Não conseguiu
se mexer, respirar ou pensar. O tempo pareceu congelar enquanto um
suor frio cobria sua pele.

Quando a criatura puxou o gatilho, Luna tinha certeza de que não


adiantaria de nada, porque seu coração já havia parado. Bok
rapidamente a puxou para baixo, fazendo com que o tiro acertasse a
parede. Ela respirava ofegante, e, antes que pudesse digerir o que
estava acontecendo, Bok enfiou uma máscara em seu rosto, cobrindo
sua boca e seu nariz, depois jogou uma pequena bola na direção de
onde os intrusos estavam.

Um gás começou a sair de dentro do objeto arremessado. Bok saiu


correndo, carregando Luna consigo, se abaixando e rolando para o outro
lado ao mesmo tempo em que os outros atiravam.

Suas mãos tremiam tanto que Luna não conseguia nem pensar no
que seu tio ia fazer quando visse aquela bagunça, porque tinha certeza
de que não sairia dali viva.

Alguns segundos depois, os tiros cessaram e logo o barulho de


corpos caindo no chão se fez ouvir.

— Eles morreram? — ela perguntou sem conseguir abrir os olhos.

— Não, estão dormindo, mas temos que correr. Você está com a
pedra?

Ela engoliu em seco e balançou a cabeça em sinal positivo,


torcendo para que eles acordassem e fossem embora antes que seu tio
chegasse. Depois daria um jeito de arrumar aquela bagunça. Cobriria os
tiros com cartazes e esconderia os livros destruídos. Usaria suas
economias se fosse preciso.

Saíram pela porta dos fundos e seguiram por entre as ruelas,


correndo como se suas vidas dependessem daquilo. O que era verdade.

Luna estava completamente em choque, não sabia nem o que


estava fazendo, só seguia Bok. Ele não parou nem por um segundo,
tinha um ótimo condicionamento físico, ao contrário dela, que estava se
esforçando muito para ignorar as dores no corpo. Medo, o melhor
combustível.

Luna saiu esbaforida pelos becos, o coração disparado, sem


conseguir tirar da mente a imagem da criatura monstruosa que vira na
livraria. Ele era real. Real até demais. O que estava acontecendo?

Quando Bok parou em um local escuro e aberto, ela finalmente


respirou fundo. Mas, quando olhou para frente, perdeu o fôlego
novamente.

— Vamos — disse ele, apertando um controle, o que fez com que


a coisa que estava à sua frente abrisse uma porta, por onde desceu uma
rampa.

Não era parecido com nada que Luna já vira em sua vida, e
também não acreditaria se alguém lhe contasse. Era uma nave. Uma
nave espacial. Havia uma nave espacial à sua frente.

A ficha de que tudo aquilo era real finalmente caiu. Até então
considerava a possibilidade de ser uma pegadinha, estava esperando as
câmeras aparecerem.

— Não, eu não… — Mas, antes que ela completasse a frase, Bok


a pegou pelos ombros e a levou para dentro.
Luna estava petrificada demais para reagir, mas, quando a porta se
fechou e ele a pôs no chão para depois ir para o painel, onde começou a
apertar botões aleatórios, ela não conseguiu se conter.

— Por que você fez isso? Eu não posso ir, tenho coisas para fazer
amanhã! Abra a porta!

— Se você ficasse, morreria e não as faria do mesmo jeito.

Ela se calou. O barulho da nave sendo ligada foi o único som no


ambiente por alguns instantes.

— Eu pelo menos vou voltar a tempo de receber uma encomenda


amanhã às dez da manhã?

Confuso, ele olhou para ela como se não acreditasse que aquela
era a maior de suas preocupações. Isso porque, obviamente, ele não
conhecia seu tio.

— Hum… Acho que não.

Luna engoliu em seco, sentindo um bolo na garganta.

Nesse momento, seu celular apitou, indicando o recebimento de


uma mensagem de Amy:
Luna respondeu com a testa franzida de preocupação e sem
acreditar totalmente no que escrevia:

Digitou outro número e levou o aparelho cautelosamente até o


ouvido, já se preparando para o esporro que ouviria.

— Por que diabos você está me ligando essa hora? — perguntou


seu tio, furioso do outro lado da linha.

Ela podia quase visualizar seu rosto rechonchudo ficando


vermelho.

— Oi, tio, me desculpe pela hora, é que… o senhor poderia


receber a encomenda das dez horas amanhã no meu lugar?

— Por quê?

— É que surgiu um imprevisto, estou indo viajar agora…

— O quê? Para onde? — gritou.

— É… — Mas, antes que ela pensasse no que dizer, a ligação


caiu.
Estava sem sinal, e Luna teve o pressentimento de que demoraria
um bom tempo para voltar.

Luna foi até uma janela para ver onde estavam, já que a sutileza
dos movimentos daquele transporte dava a impressão de que não
estavam se movendo um centímetro do lugar. No entanto, quando olhou
a paisagem, uma frase de Gandalf veio em sua mente: “se você voltar,
não será mais o mesmo”.
5

5- Não existe estranho, existe diferente

— Você realmente vai ficar a viagem toda sem falar nada? — Bok
tentou puxar assunto pela milésima vez, mas Luna não respondeu.

Ela apenas olhava para o painel da nave com seus infinitos botões,
imaginando o quão absurdo soaria se ela contasse aquilo para alguém ou
quantas curtidas teria se postasse uma foto dali. Pegou o celular e tirou
uma selfie para ver se conseguia se acalmar.

Sentia frio na barriga, medo e empolgação e ainda tinha a


sensação de que a qualquer momento acordaria e descobriria que aquilo
tudo não passava de um sonho ou uma alucinação causada pelo uso de
alguma substância ilícita.

— Entenda que eu fiz isso para te salvar! Mas, assim que eu deixar
a pedra em um lugar seguro, eu levarei você de volta — Bok insistiu.

Luna suspirou.

— Você pode ao menos me dizer para onde estamos indo?

— Estamos indo para a Capital.


— Como assim, Capital? Capital de onde?

— Às vezes eu esqueço que você não é daqui do Sistema. Delta


Mizar é a Capital do Sistema Gamma Aurellius. Ele é formado por oito
planetas: Caelestra, Kryk, Auzuno, Osnea, Vindemiatrix, Plutopra, Teyrilia
e Delta Mizar. E estamos indo para a Capital entregar a pedra ao
presidente.

— Presidente de qual dos planetas?

Bok riu.

— Como assim? Ele é o presidente de todos.

Luna franziu a testa.

— Então esse presidente é tipo um ditador horrível que oprime a


todos?

— Pela luz da Energia, não. — Ele balançou a cabeça. — Cada


lugar possui seus próprios costumes, leis, cultura e governador. Mas
todos são subordinados à Capital e ao presidente, que tem seu mandato
vigente em todo o Sistema. Entendeu?

— Está tendo algum tipo de guerra nesse Sistema e esse planeta


para o qual estamos indo corre o risco de ser destruído por alguma arma
mortal?

Ele franziu a testa.

— Não.

Menos mal, Luna pensou.

— Você tem um zíper nas costas, que, se for aberto, vai retirar seu
macacão humano e mostrará seu eu de verdade?
— Não. — Havia um pequeno sorriso no canto de sua boca. Luna
continuou olhando para a vista, tentando se manter calma. — Mais
alguma dúvida?

Ela engoliu em seco. Tinha tantas que não sabia nem como
começar a formulá-las.

À medida que a nave ia entrando em Delta Mizar, já dava para ter


uma ideia de como era o lugar. Era exatamente como Luna imaginava
que seria uma cidade do futuro.

Gigantescos arranha-céus, tão grandes que não dava para ver o


começo ou o fim, cobriam boa parte da cidade. Naves cortavam o céu em
todas as direções numa harmonia surpreendente. Sim, os carros voavam.
Parecia realmente que estavam no futuro. Luna virava a cabeça,
tentando olhar tudo ao mesmo tempo, mas seu cérebro não estava
conseguindo processar tanta informação.

A nave foi baixando até atingir o solo e parou em um


estacionamento em frente a um dos maiores e mais bonitos prédios da
cidade. Sua fachada era reluzente, entrelaçada com argolas de aço como
os tentáculos de um polvo gigantesco.

— Esse é o edifício Pryke. É aqui que o presidente do Sistema


mora — informou Bok conforme a porta da nave se abria.

— Espere! Não abra! — Luna gritou, desesperada. — O oxigênio!


Eu não vou conseguir respirar!
Ela levou as mãos até o pescoço com a sensação de que o ar não
estava chegando aos seus pulmões. Mal chegou e já iria morrer. Mas Bok
apenas a olhava, confuso.

— Por quê?

— O ar da Terra é diferente. Meu organismo não foi feito para


suportar o ar dos outros planetas. Eu preciso de uma roupa de astronauta
— Luna disse com a voz falhando.

Ele levantou a sobrancelha.

— Quem disse isso?

— Ninguém precisa dizer, todos sabem disso. Está em todos os


livros.

— Mas… alguém verificou se é verdade?

— Os cientistas, claro.

— Mas… alguém verificou se eles estão falando a verdade?

Luna tirou as mãos do pescoço e tentou respirar. O ar alcançou


seus pulmões normalmente, mesmo com a porta da nave aberta.

— Eu não entendo…

— O quê?

— Por que eles mentiriam?

Ele deu de ombros.


— Talvez porque não querem que a população saiba que é
possível sobreviver em outros planetas?

Luna ficou tentando encontrar outra explicação, mas, assim que


saíram da nave, ela sentiu seu corpo gelar mesmo com aquela
temperatura agradável. Não conseguiu conter um grito e se apressou em
se esconder atrás de Bok.

— O que foi? — Ele pareceu se assustar com o susto dela. Luna


apontou na direção de uma criatura azul de pele esburacada e olhos
enormes e virou o rosto. — O que tem ele?

— Ele é… azul.

— E…? — indagou.

Antes que ela respondesse, novas espécies começaram a surgir à


medida que se locomoviam. Todas as formas de vida que alguém
pudesse imaginar passavam ao lado de Luna falando línguas que ela
nunca ouvira, agindo naturalmente. Ela viu um homem verde com o
pescoço grande usando algo similar a uma túnica. Viu outro que era
grande e gordo e tinha quatro olhos. Havia tantos tipos diferentes de
espécies que ela não sabia para qual olhar. Todos pareciam
simplesmente… estar ocupados com suas próprias vidas. Não pareciam
se importar com a aparência um do outro. Para falar a verdade, ela que
parecia ser a estranha ali.

— É estranho.

— Sabe, acho que a palavra que você quer dizer é diferente.


Porque chamar algo de estranho significa que você não o conhece. E se
você não conhece é porque tem um conhecimento… limitado. Não é uma
pessoa muito informada, estudada, viajada… Então, quando você chama
algo ou alguém de estranho… você está se chamando de estúpida.

Essa doeu.
— Não foi isso que eu quis dizer — mentiu, sentindo as bochechas
corarem.

— Eu não estou insinuando que você é estúpida, calma. Eu sei


que você nunca saiu do seu planeta, e a princípio vai ser difícil se
acostumar. Você ainda vai ver muitas coisas diferentes aqui, então tente
se lembrar: não existe estranho, existe diferente.

Assim que entraram no prédio, foram direto para os elevadores. Bok


apertou um botão que fez um dispositivo escanear seu globo ocular. O
elevador era todo de vidro, solto do prédio, e subia tão rapidamente que
Luna não teve coragem de abrir os olhos.

Quando as portas se abriram, ficaram diante de uma enorme sala


com a decoração toda em tons de branco. Havia sofás e poltronas
geométricos perfeitamente arrumados, tão claros que Luna teve receio de
sujá-los caso se sentasse neles. A iluminação era tão forte que chegava
a fazer os olhos doerem, e qualquer viciado em selfies concordaria que
aquela era a luz perfeita. Era o ambiente mais moderno e sofisticado que
Luna já vira.

Uma mulher de cabelo castanho e curto apareceu para recebê-los;


ela possuía o mesmo ar elegante do ambiente.

— Bok! Ainda bem que você chegou. Fiquei preocupada com sua
mensagem. Venham, vamos nos sentar. — Seu jeito de falar também era
sofisticado.
Se não fosse pelas suas vestimentas exóticas e modernas,
facilmente poderia se passar por um membro da família real britânica. Ela
usava um vestido geométrico que parecia ser feito de plástico, algo que
uma cantora pop usaria em uma premiação musical, e plataformas
extremamente altas. Se fosse Luna quem estivesse usando, seria
ridículo, mas à anfitriã os calçados atribuíam um ar estranhamente
elegante.

Luna entregou sua bolsa para Bok, que retirou a pedra.

— Então é mesmo uma pedra Aünder — a mulher disse com a


mesma expressão maravilhada que todos faziam ao olhar para aquele
objeto.

— Eu não sei o que eles estavam planejando com ela, mas,


quando doutor Thaar falou que ela possuía poderes inimagináveis, eu
achei que fosse o momento de intervir.

— Você fez muito bem… Mas ainda precisamos descobrir o que


eles planejavam… — Naquele momento, ela notou a presença de Luna e
a observou, curiosa. — De onde você é?

— Eu? Ah, eu sou da Terra.

— Da Terra?! Bem que eu te achei um pouco familiar… — Ela


pareceu pensativa. — Mas como você veio parar aqui?

— Bom, tudo começou quando eu estava indo para outra cidade…


— Luna começou, mas depois se deu conta de que poderia resumir a
história. — A pedra foi parar lá, eu a achei e a levei para casa, Bok foi até
lá, tentou invadir minha casa, eu dei uma pancada com uma edição
especial de O Senhor dos Anéis na cabeça dele, ele desmaiou, acordou,
fomos perseguidos por uns terroristas, ele me obrigou a vir com ele para
cá e aqui estamos.

Bok riu.
— O Comando Omega também possui uma bússola que aponta
para a pedra e apareceu bem na hora que eu estava lá. Eu tive que
trazê-la — disse, se virando para Luna com um sorriso. — A propósito,
Luna, esta é Mira, a primeira-dama do Sistema.

— Eu adoro a Terra — disse Mira, ignorando o que Bok falou. —


Tenho um grande amigo que é de lá. Ele se chama Ziggy e na Terra é um
músico muito famoso. Ou era. Lá o chamavam de David, algo assim. Mas
ele resolveu vir morar aqui definitivamente há alguns anos.

Luna não acreditou no que estava ouvindo.

— O que você conhece de lá?

— Ah, muitas coisas. Viajei até lá duas vezes, uma para uma cidade
chamada Londres, e outra para… ah, não lembro, faz tanto tempo! Eu
tinha uma grande amiga que adorava viajar por esses lugares… exóticos.
Numa dessas viagens, fomos à Terra. — Ela deu um longo suspiro. — A
Terra é… cianalaiskyea. — Cianalaiskyea é uma expressão gagrilyana
usada para indicar quando você sente muita saudade de um lugar, mas
não quer voltar para lá porque sabe que não será a mesma coisa.

Antes que Luna pudesse responder, um homem alto, elegante e de


cabelos castanhos saiu do elevador acompanhado de outros dois
homens. Os três andavam apressadamente.

— Onde está ela? — perguntou ele.

— Aqui. — A primeira-dama o entregou a bolsa com a pedra.

— Então é verdade — falou, boquiaberto, enquanto segurava o


objeto.

— Senhor presidente — cumprimentou Bok.

— Bok ainda não conseguiu descobrir o que eles queriam com ela.
— Isso deve ser obra de Zuuvak — praguejou o presidente.

— E eu sou da Terra — interrompeu Luna.

Ele a olhou como se a extraterrestre ali fosse ela.

— Nossa, você veio de longe! Como andam as coisas por lá?


Ainda muito atrasadas? Por que eles ainda insistem nessa história de
dizer para a população que são o único planeta com vida em todo o
universo?

Luna riu. Ele parecia ser uma daquelas pessoas que sabem lidar
muito bem com pessoas. Como aqueles apresentadores de programas
de TV, nos quais as pessoas vão ao palco para tentar reconquistar o
marido, essas coisas.

— Continua do mesmo jeito. Você já foi lá?

— Não, nem pretendo. Mas como presidente é meu dever me


manter informado sobre todos os planetas que mantém relações
diplomáticas com nosso Sistema — disse ele com uma expressão
divertida.

— A Terra mantém relações diplomáticas com vocês? Mas então


por que… Eu não estou entendendo.

— Sim, e há muitos anos. A entrada na Terra já foi livre, mas isso


foi em um período antes da Era A.G., então… — Ele deu de ombros. — A
embaixada de vocês daqui também não tem nenhum registro desse
tempo. Parece que tudo estava em um lugar que foi destruído, algo
assim… Me deixe verificar. — Ele pegou um aparelho iPhone 30 igual ao
de Bok e digitou algumas coisas. — Biblioteca de Alexandria!

— A que foi queimada?


— É, deve ter sido essa. Enfim, todos os registros foram perdidos,
então acho que nunca saberemos. Mas já estamos acostumados com
isso por aqui. — Ele deu de ombros mais uma vez, e Luna não entendeu
o que ele quis dizer com aquilo. — Dizem que a proibição da entrada
direta aconteceu por causa de um desentendimento com um povo
chamado… egípcio. Mas nada comprovado.

Luna engoliu em seco, estava completamente sem reação.

— Mas e a língua? — conseguiu perguntar.

— Ah, sim, também tem isso. Quando a dinastia gagrilyana


acabou, todos os antigos dialetos haviam desaparecido. Ninguém queria
mais usar o gagrilyano, e foi aí que a embaixada da Terra nos ofereceu
essa língua. Era fácil de aprender, então decidiram batizá-la de aureliano
e torná-la a língua oficial do Sistema. Mas, mesmo falando a mesma
língua, a entrada direta não voltou a ser permitida e nossa embaixada
precisou continuar embaixo do mar.

Luna piscou algumas vezes.

— Calma, isso é muita informação. Tem uma embaixada


extraterrestre embaixo do mar? Eu já tinha visto algum relato de óvni
desse tipo no History Channel, mas pensei que eram coisas que
inventavam para dar audiência.

— Por quê? Ela tem centenas de anos aurelianos, inclusive é uma


das construções mais bonita que já vi. Como ela se chama mesmo?
Atlanvis, Atlanca…

O queixo de Luna caiu.

— Atlântida?

— Isso! É espetacular! Você vai ter que passar por lá quando for
voltar. É ilegal entrar na Terra sem passar pela embaixada, assinar o
termo de compromisso, deixar todos os pertences… essas coisas. Eu
acho isso uma grande bobagem, mas não há nada que eu possa fazer.

Luna não conseguia nem raciocinar direito.

— Você… simplesmente… — Puxou o ar. — Acabou de decifrar


todos os mistérios que existem na Terra.

O presidente riu.

— Estamos discutindo no senado uma lei para fazer a Terra ser um


porto de livre acesso a todo o Sistema, porque é um ponto de rota
comercial para o Sistema de Andrômeda. Mas eles não aceitam. Os
líderes de lá dizem que a população é atrasada demais, de modo que
não saberia lidar com a informação de que eles não são os únicos no
universo. Dá para acreditar? — Ele fez uma expressão zombeteira. —
Que egocêntricos! Depois reclamam quando os comerciantes tem que
parar lá porque ficam sem combustível, deixando umas marcas nas
plantações.

Luna riu. Então isso não era só coisa de filme.

— Onde você está hospedada? — interrompeu a primeira-dama.

Luna ficara tão entretida na conversa que esquecera desse


pequeno detalhe.

— Na verdade, em canto nenhum… Eu preciso voltar para a Terra.


Eu saí sem avisar nada e…

— Ah, não, você precisa ficar pelo menos hoje! É a nossa festa de
trinta e dois anos gagrilyanos de casados. Você tem que ir!

— Mas… — Luna disse, por dentro se perguntando quantos anos


Mira tinha para estar casada há tanto tempo, mas foi interrompida:
— Não aceito não como resposta. Vou mandar prepararem o
apartamento de hóspedes, fica alguns andares abaixo daqui. Bok, por
que você não fica aqui também para fazer companhia à nossa
convidada?

— Claro.

— Não precisa, não quero incomodar — disse Luna por educação,


mas secretamente muito feliz pelo convite. Um dia a mais ou um dia a
menos não faria mal.

— Eu insisto, será um prazer.

— Obrigada. — Luna deu um sorriso.

— Bok! — disse o presidente com o iPhone 30 na mão. — Acabei


de ser informado de que a coletiva de imprensa já está o aguardando! Já
posso até ver as manchetes: “Bok, o herói da Capital”. — Ele gesticulou
com as mãos, exibindo um sorriso branco no rosto.

Ele e Bok se retiraram enquanto Mira revirava os olhos.

— A festa é hoje à noite no salão lá embaixo. Você trouxe roupa


para a ocasião?

— Não… — informou Luna. Como iria ficar ali mais um dia se a


única coisa que tinha era o pijama que estava usando?

— Imaginei — disse Mira, sorrindo. — Vou providenciar isso


também. Mandarei deixarem no apartamento.
— Blá-blá-blá, alguma coisa sobre patrocinadores. — Foi mais ou
menos assim que Klaaoz ouviu o que saiu da boca daquele vulgoriano do
setor de inteligência, cujo nome ele não tinha se dado ao trabalho de
decorar.

Estava no meio de uma reunião de emergência que deveria ser


muito importante, mas sua concentração nela era ainda menor do que a
de Morg, que dormia em seu colo.

Klaaoz não estava com cabeça para nada naquele momento, mas
passar um tempo com seu fiel companheiro sempre o ajudava a
desopilar. Ele sabia que algumas pessoas do Comando Omega
desaprovavam o fato de ele levá-lo sempre para todos os lugares. Bom,
mualhags nunca foram animais de estimação muito convencionais.
Apesar de serem pequenos, suas asas pontiagudas, seus chifres e seus
dentes afiados eram considerados ameaçadores para algumas pessoas.
Mas Klaaoz achava que aquela bola de pelos cinzenta era o mascote
perfeito para ele, e as pessoas tinham bom senso suficiente para não
contrariá-lo.

— Blá-blá-blá, alguma outra coisa sobre transações comerciais —


falou outro.

— Também concordo. O que você acha, Klaaoz? — perguntou


Zuuvak.

— Concordo também — disse e recebeu de Zuuvak um olhar que


indicou que ele sabia que Klaaoz não fazia a menor ideia do que estava
sendo discutido.

Naquele momento, o Holophone de Klaaoz apitou, mostrando uma


mensagem:

Klaaoz fechou os olhos e tentou respirar fundo. Alguns objetos que


estavam em cima da mesa tremeram como se um terremoto estivesse
prestes a começar.

Zuuvak mais uma vez lançou um olhar para Klaaoz ao ver o copo
de água que estava à sua frente chacoalhar.

— Klaaoz, se controle — disse calmamente, como se Klaaoz


tivesse escolha.

Klaaoz continuou de olhos fechados, respirando, concentrado. Se


controlar havia voltado a ser uma coisa extremamente difícil.
— Vamos fazer uma pausa. Voltamos daqui uma hora aureliana.
Nos deixem — ordenou Zuuvak. Os outros presentes deixaram
imediatamente a sala. — O que aconteceu? — Seu tom era de
preocupação.

Quem não o conhecia podia facilmente pensar que ele não


passava de um velhinho inofensivo. Quem conhecia sabia como ele
podia ser ardiloso. E Klaaoz sabia que ele não era nenhum dos dois.

— Eles não conseguiram recuperar a pedra. E agora, ela… está na


Capital — esbravejou Klaaoz, e, em seguida, um copo no extremo da
mesa explodiu.

Zuuvak observou a cena e depois suspirou. Klaaoz desviou o olhar,


que recaiu sobre um daqueles pôsteres ridículos com frases
motivacionais. “Crie as coisas que você gostaria que existissem.”

Klaaoz teve um estalo.

— Eu vou lá buscar. Parece que o único jeito de uma coisa sair


bem-feita é fazendo você mesmo.

— Você está ciente do que acontecerá lá hoje? — A preocupação


era evidente na voz de Zuuvak.

— Sei. É por isso que eu acho que será ainda mais fácil.

— Muahgw — Morg emitiu um grunhido que significava algo como


“isso não está cheirando bem”.

Zuuvak balançou a cabeça, como se não concordasse, e suspirou


mais uma vez.

— Tenha muito cuidado, Klaaoz. Não vá fazer nenhuma besteira.


6

6- Luna fica amiga do chuveiro

Bok e Luna já haviam se acomodado no apartamento de hóspedes


que ficava no 104º andar. Era tão sofisticado e moderno quanto a sala em
que esteve, e Luna estava tendo dificuldade em fazer coisas básicas
como ligar uma torneira ou abrir uma porta.

Demorou uma eternidade para descobrir como ligar o chuveiro.

— Ligar chuveiro. — Era feito pelo controle de voz.

— Olá, como você gostaria que saísse a água? — perguntou uma


voz robótica.

— Hã? Isso é sério?

— Estou aqui para tornar esse banho o mais agradável possível.


Como gostaria que saísse a água? — repetiu a voz.

Luna não acreditou no que estava ouvindo. Ela realmente estava


falando com o chuveiro?

— Pode ser assim, tipo, hum… bem quente, mas não tão quente?
Quente, mas que você não sinta sua pele derretendo, sabe?
O chuveiro ligou e um pouco de água começou a sair.

— Assim está bom?

— Está perfeito!

— E a intensidade do jato?

— Pode ser assim, nem fraco, nem forte? Tipo um médio, só que
mais pra fraco. Mas não tão fraco, sabe? — Luna pediu, logo se dando
conta de que talvez suas orientações tivessem soado confusas.

O chuveiro aumentou a intensidade, deixando exatamente como


ela pediu.

— Nossa, eu não acredito. Está perfeito de novo! Obrigada.

— Por nada.

— Eu acho que isso, de longe, foi a coisa mais legal que eu vi


desde que cheguei aqui. Ok, na verdade eu disse isso de tudo que eu
nunca tinha visto — disse entre risadas. — Mas, sério, eu acho que isso
foi o melhor até agora. As pessoas costumam conversar muito com
você?

— Na verdade, não.

— Por quê? O banho é o melhor lugar para organizar as ideias.

— Não sei.

— Mas você pode conversar?

— Eu possuo o sistema operacional do Ultra Max Chuveiro 8000, o


que me capacita a discutir sobre qualquer assunto do Sistema.
— Então, você é tipo um psicólogo do banho. Mas você não tem
um nome de verdade?

— Não. Apenas Ultra Max Chuveiro 8000.

Luna não se sentiu muito confortável em desabafar sobre sua vida


com alguém que tinha números no meio do nome.

— Hum… Posso te chamar de… Freud?

— Claro.

— Eu me chamo Luna, a propósito.

— Ok, Luna.

Luna saiu do banho com uma leve sensação de que tudo naquele
lugar, não só o chuveiro, era perfeito para ela. Ela passara toda a vida
sentindo que não se encaixava nos lugares, mas, naquele momento,
embora estivesse ali há pouquíssimo tempo, sentia que aquele era seu
lugar. Conseguia facilmente se visualizar morando ali para sempre, e o
futuro não a assustava de maneira alguma. E esse era um sentimento
totalmente oposto ao que vinha sentindo em relação à sua vida desde
que fora expulsa do colégio.

Um sorriso involuntário tomou conta de seu rosto ao avistar uma


enorme caixa de presentes em cima da cama. Junto, encontrou um
bilhete:
O vestido era perfeito… caso ela trabalhasse em um circo!
Também havia brincos, um colar, sapatos e uma máscara.

Luna odiou, mas Mira estava sendo tão atenciosa que ela não
tinha coragem de reclamar. Vestiu seu pijama de volta e desceu para o
salão.
O salão de beleza, ao contrário do apartamento em que Luna fora
hospedada, era completamente colorido. A decoração era algo
surrealista, meio circense e com esculturas que beiravam o bizarro. Havia
plumas, animais estranhos entalhados nas paredes e espelhos por toda
parte… Até o piso reunia informação suficiente para tornar o olhar
agonizante. A iluminação era amarelada, e por todo lugar havia cadeiras
ovais e estranhas com mais espelhos cheios de luzes na frente, como um
camarim. No meio, havia uma espécie de bar em formato de carrossel,
onde as pessoas estavam sentadas bebendo drinques coloridos. O teto
parecia derreter, como se fosse milhares de ceras de velas escorrendo.
Estava tocando uma música em ritmo animado em outra língua, e Luna
se perguntou se não tinha errado de andar e ido direto para a festa.
Timidamente, usando seu pijama encardido, Luna se dirigiu para o
que parecia ser a recepção, onde uma criatura com vários braços atendia
vários telefones ao mesmo tempo, intercalando com quem falava. Luna
ficou aguardando que ela ficasse livre, mas, assim que ela encerrava um
telefonema, já iniciava outro.
Uma garota alta e com cabelos que pareciam ser feitos de ouro
apareceu ao lado de Luna no balcão e disse, sem desviar os olhos do
seu iPhone 30:
— Avise o Blot que eu cheguei.
A recepcionista fez um sinal com a cabeça, indicando que havia
entendido o recado, e voltou para as ligações.

O rosto da garota parecia desafiar as leis da física de tão


simetricamente perfeitos que eram seus traços. E o seu bronzeado
indicava que havia acabado de chegar de férias de um daqueles
balneários de luxo em que as celebridades passavam o verão. Até uma
barbie seria considerada feia perto dela, mas o que mais deixou Luna
maravilhada foi a cor de seus olhos.

— Meu Deus, seus olhos são violeta! Que lindo… — Luna disse,
se perguntando se aquilo era uma lente de contato ou se lá as pessoas
realmente nasciam com olhos assim.

A garota não desviou o olhar de seu aparelho e disse:

— Nossa, eu nunca tinha ouvido isso.

— Sério? Eles são perfeitos.

— Só de você e de todo o resto do Sistema, todos os dias desde


que eu nasci.

Luna piscou algumas vezes e resolveu deixar para lá. Algumas


pessoas simplesmente não eram simpáticas.

— Ele está vindo — a recepcionista disse para a garota.

Ok, Luna precisava agir senão perderia a festa esperando a


recepcionista terminar suas ligações.

— Oi, eu me chamo Luna, acho que tem um horário marcado para


mim. Eu vou para a festa do presidente e da primeira-dama.

A mulher fez um sinal para Luna, e nessa hora a garota que estava
ao seu lado se virou e a analisou dos pés à cabeça.

— Nossa, pensei que essa festa seria mais selecionada.

Em menos de um minuto, uma criatura de cor roxa, quatro braços,


pescoço comprido e pés juntos como um polvo chegou para recebê-la.
— Olá, você deve ser Luna! A primeira-dama falou muito bem de
você! Venha, vou tomar conta de tudo eu mesmo. Eu me chamo Blot, me
acompanhe.

— Blot, eu pensei que você faria meu cabelo agora — protestou a


garota dos olhos violeta.

— Ah, H’eathler, querida, sinto muito. Ela é uma convidada


especial da primeira-dama, você vai ter que esperar — disse e saiu
arrastando Luna, que daria tudo para ter visto a cara que a garota fez.

Blot a colocou em uma cadeira giratória que parecia um ovo de


dinossauro e disse:

— Não se preocupe com ela. Aquilo é uma ceàrrkyea. —


Ceàrrkyea é uma expressão gagrilyana usada para indicar que você sabe
que uma pessoa é falsa, sendo que ela sabe que você sabe que ela é
falsa e mesmo assim continua sendo mais falsa ainda.

Luna riu mesmo sem entender.

— Então, como você vai querer o cabelo?

— Hum… — Ela costumava usar o cabelo preso em um coque


bagunçado no topo da cabeça… mas estava em outro planeta, certo? —
Você poderia fazer dois grandes coques laterais, muito cheios, como se
fosse um… headphone?

— Nossa! Não, está muito ultrapassado! Que horror!

Ela riu.

— Já usaram o cabelo assim aqui?

— Já, mas há anos que não se usa! Não posso deixar você ir
assim para a festa do ano!
— Entendo… É porque eu queria fazer uma homenagem a uma
princesa do meu planeta — Luna justificou, mas, pela expressão que o
cabeleireiro fez, não parecia que ia ceder. — Ela faleceu recentemente.

Ele ficou a observando de cara fechada, mas depois seu rosto


suavizou.

— Ok, mas eu farei algumas modificações.

Luna riu, achava muito engraçada a maneira como ele se mexia


quase que teatralmente. Parecia que havia acabado de tomar quatro
xícaras de café.

— Ok, mas só algumas.

— Vou preparar aqui e deixar você escolhendo a maquiagem.

Ele saiu e voltou com uma coisa similar a um secador de cabelo,


porém com a abertura maior.

— Como isso funciona?

— Isso aqui é um makeuptor. Você coloca seu rosto aqui, ele vai
escanear e nessa tela aparecerão todas as maquiagens disponíveis já
aplicadas no seu rosto. Pode ir passando com o dedo para trocar o
batom, o blush ou a sombra.

Ok, talvez aquela fosse a coisa mais legal que ela já vira. Luna
colocou o aparelho no rosto e foi para a tela olhar as opções. E como ela
já esperava, eram todas espalhafatosas. Quase todos os olhos
pareciam… pinturas. Eram verdadeiras obras de arte. Já estava
perdendo a esperança de encontrar algo mais discreto quando achou um
olho preto um pouco exagerado, mas ainda assim era o mais simples.
Escolheu aquele e combinou com um batom vermelho.

— Pronto, seu cabelo está divino! — disse Blot.


Suas quatro mãos contribuíram para que não demorasse nem cinco
minutos para o penteado ficar pronto. Luna imediatamente voltou para o
apartamento e colocou aquele vestido horroroso.

Bok estava quase cochilando no sofá do apartamento de hóspedes


de Mira, mas, quando Luna entrou na sala, ele sentiu como se tivesse
acabado de ser atingido por um raio.

Desde que a conhecera, ela estava com aquele macacão amarelo,


e até então ele não havia percebido quão bonita ela era. A parte de trás
do seu cabelo estava solta, enquanto a da frente estava presa em dois
coques cobertos por vários cristais semelhantes à grossa gargantilha que
carregava em seu pescoço. Usava uma máscara preta, que cobria
apenas seus olhos e contrastava com sua pele e seus lábios vermelhos-
sangue. Seu vestido longo era preto com várias camadas de saia, o que
dificultava o andar dela, fazendo-a se locomover de um jeito que Bok
estava achando engraçado. Um laço gigantesco amarrava sua cintura e o
decote o fazia precisar se esforçar muito para olhar para outro lugar.

— Estou estranha demais? — Luna perguntou, dando um sorriso


sem graça e rodando a saia do vestido. — Quer dizer, diferente?

— Você está… àlainnkyea. — Àlainnkyea é uma expressão


gagrilyana usada para indicar quando algo faz seu cérebro esquecer
todas as palavras.

— Eu não sei o que isso significa, mas espero que não seja uma
ofensa.
— É um elogio. — Ele riu, balançando a cabeça. — É um grande
elogio.

Mesmo por trás da máscara, Bok pôde ver as bochechas dela


corando e seu olhar evitando fazer contato de forma tímida e ao mesmo
tempo encantadora.

— Se eu usasse isso na Terra, provavelmente seria ridicularizada


em algum perfil de fashion police e me comparariam com um presente ou
com um saco de lixo.

— Por quê? — Ele franziu o cenho.

— Porque é estranho… Eu sei o que você falou sobre coisas


estranhas, mas lá as pessoas costumam julgar muito. — Ela riu como se
aquilo fosse engraçado.

— Que bom que você não está mais lá. — Bok sorriu, guiando-a
para o elevador.

— É…

Luna deu um leve sorriso, meio de satisfação, meio triste, e Bok se


perguntou qual seria a razão daquilo. Ela era tão exótica e diferente de
todos que ele já havia conhecido… Era uma pena que morasse num
planeta tão distante.

— Você deveria ficar por aqui mais alguns dias. Eu poderia te


mostrar a Capital — tentou persuadi-la por razões que não compreendia,
já que teria muito trabalho a fazer nos próximos dias. Apenas… não
queria que ela fosse embora.

Luna mordeu o lábio e olhou ao redor, fazendo as esperanças de


Bok de acenderem.
— É, talvez eu fique alguns dias. Tanto faz ficar um ou dois, certo?
E de qualquer jeito, quando eu voltar para a Terra, provavelmente já vão
ter passado uns oitenta anos, então talvez fosse melhor eu nem voltar. —
Ela riu de novo.

Bok notou que ela ria muito, o todo tempo, e se perguntou por que
estava reparando naquilo. E de onde ela tirava aquelas ideias? O
funcionamento do seu cérebro devia ser uma coisa interessante.

— Oitenta anos? Como assim?

— Dizem que, se você viajar para outro planeta, ao voltar terão se


passado oitenta anos, algo do tipo. Mas provavelmente também é
mentira dos cientistas que dizem que não dá para sobreviver num ar
diferente do da Terra. — Ela riu mais uma vez. — Aliás, na verdade eu vi
isso em um filme. E não era exatamente oitenta anos, mas enfim… Pelo
menos minha pele ficará jovem enquanto as pessoas idiotas do meu
colégio estarão cheias de rugas. Mas, do jeito que gostam de inventar
coisas sobre mim, dirão que estou dormindo no formol. — Bok riu mesmo
sem entender, pois considerava engraçado o jeito dela de falar, as
palavras quase não acompanhando seu raciocínio. — Ai, meu Deus, eu
tinha me esquecido dessa caixa de vidro. — Ela cobriu os olhos quando
as portas do elevador se abriram.

— Eu soube que ele só caiu umas três vezes. — Bok disse em tom
conspiratório enquanto entrava.

Ela olhou para ele com a boca aberta, levando a mão até o peito.

— É sério?

— Não. — Ele riu, se perguntando como ela fora capaz de


acreditar. — Este é o elevador mais seguro que existe, pode ficar
tranquila.

— Podemos ir de escada?
— São mais de cem andares.

Luna olhou para os lados. Será que ela estava realmente


considerando aquilo?

— Venha, me dê sua mão. — Saiu, pegou sua mão e a guiou para


dentro. — Feche os olhos e só abra quando eu disser.

Ela hesitou um pouco, mas o seguiu com os olhos bem fechados e


apertando sua mão.

— Por que fazer um elevador assim? É completamente inútil.

— Acho que para apreciar a vista. — Bok se virou e olhou para as


luzes da cidade com seus enormes arranha-céus ao fundo. Nem ele, que
era krykiano e fora ensinado a dar mais valor às coisas simples, podia
negar que aquela vista era de tirar o fôlego. Há oito anos aurelianos,
quando ele estava prestes a se mudar para lá, sua mãe dissera que ele
jamais se adaptaria àquela vida. Mas, naquele momento, Bok jamais se
imaginaria morando em outro lugar.

Luna estava tão amedrontada que não ousou abrir os olhos e não
reparou em dois teyrilianos que entraram quando pararam em
determinado andar.

— Mas, por exemplo, se duas pessoas ficassem presas, elas não


poderiam nem… sei lá… dar uns amassos para passar o tempo? Como
fazem nos filmes…

Os dois teyrilianos lançaram um olhar de desaprovação a ela.

— Nós temos companhia. — Bok tentou segurar a vontade de rir.

Luna abriu a boca, entreabrindo um olho, depois voltou a fechá-lo.


Suas bochechas estavam vermelhas.
— Não que eu esteja sugerindo isso. Estou só dizendo que nos
filmes as pessoas fazem isso quando ficam presas em algum lugar — se
apressou em dizer, desajeitada. — Em alguns filmes. — Depois abriu os
olhos subitamente e fez uma cara de choque. — Espere aí, vocês são
elfos?

Os teyrilianos a olharam com uma expressão de confusão. Bok,


por sua vez, riu, mas por dentro estava triste e já sentindo sua falta
mesmo sem ela ter ido embora.

Quando as portas do elevador se abriram, Luna não teve tempo de


pensar nas coisas sem sentido que estava falando por conta do
nervosismo, já que estava diante do que provavelmente seria a festa
mais luxuosa e… excêntrica que alguém já havia feito. As luzes
mudavam de tonalidade de tempos em tempos, por todo lado havia
esculturas gigantescas e metalizadas e algo como galhos de árvores
secas saíam do teto, onde também havia luzes brilhantes semelhantes a
estrelas que flutuavam. Dava para ver sofás e mesas cobertos pelo
mesmo material prateado espalhados pelo lugar. Aquela festa contava
com convidados de todas as espécies que Luna podia imaginar.

Ela percebeu que sua roupa era uma das mais simples dali.

Uma equipe de filmagens chegou para entrevistar Bok. Luna


permaneceu ao seu lado um pouco inquieta, olhando para os lados, até
que de longe avistou Mira e foi até lá. Ela estava empolgada conversando
com… a garota chata do salão!
Mira usava um vestido prateado assimétrico encoberto por tantos
cristais que Luna tinha certeza de que ela seria assaltada se usasse
aquilo em sua cidade. Seu cabelo castanho estava amarrado num coque
com uma estranha tiara cheia de pontas que combinava com o vestido, e
a máscara que usava era da mesma cor.

Luna se aproximou e, quando Mira a viu, imediatamente parou de


dar atenção a H’eathler.

— Luna! Que bom que você veio. Eu sabia que esse vestido ia
servir. Eu o ganhei há alguns anos, mas nunca pude usar, porque, bom, é
preto e eu sou caelestreana, então… Enfim, você está deslumbrante!

— Obrigada, você também! E… você não pode usá-lo porque…


ele é preto? — Luna franziu a testa.

— Ah, é uma coisa caelestreana por causa do vácuo. — Ela


revirou os olhos. — Mas você está gostando de sua estada aqui?

— A festa está linda! Tudo está lindo! E eu amei o chuveiro!

— Que bom! Sabe que pode ficar no apartamento o tempo que


quiser, não é?

H’eathler a olhava de soslaio como se por dentro desejasse


arranhar Luna com aquelas unhas enormes que mais pareciam garras.
Usava um vestido dourado e decotado completamente feito por correntes
que deixava em evidência o baixo percentual de gordura de seu corpo.
Parecia aqueles trajes exagerados que as pessoas usavam nos festivais
de música para chamar a atenção dos fotógrafos e saírem em sites de
street style, só que uma versão de gala. Devia ser pesado de carregar, ou
fazia frio, só isso explicava a expressão tediosa que ela mantinha. Nem
seus olhos lavanda e os diversos cristais que adornavam seu rosto
ajudavam a melhorar sua fisionomia.
— Eu tive um pouco de dificuldade para ligar o chuveiro, as luzes,
o aquecedor… mas estou adorando. Inclusive, já fiz amizade com o
chuveiro. Mal posso esperar para conhecer os outros eletrodomésticos.

Mira não conseguiu conter o riso.

— Qualquer dúvida é só discar quatro no painel da cozinha que um


dróide organizacional aparecerá. Ah, perdão, H’eathler, essa aqui é Luna,
ela é da Terra, aquele planeta que visitei quando era mais jovem.

Ela deu um sorriso amarelado.

— Prazer em conhecê-la.

Nessa hora, Bok se juntou a elas, e Luna sorriu para ele.

— Bok! Já está cansado do assédio dos jornalistas? Se prepare


que isso é só o começo — quando Mira falou isso, Luna reparou a
mudança da expressão de H’eathler, que subitamente pareceu se
interessar.

— Acho que não fomos apresentados — disse ela, jogando o


cabelo para trás enquanto lançava um olhar sensual para Bok. Luna teve
vontade de vomitar pela artificialidade da cena. — Eu sou H’eathler
Graawhan.

— Bok Wonkhester. — Ele estendeu a mão, um pouco sem graça.

Uma voz no alto-falante anunciou que o presidente faria seu


discurso dentro de alguns minutos.

— Tenho que ir, vejo vocês depois. — Mira saiu, enquanto


H’eathler continuou devorando Bok com o olhar como uma leoa
observando uma gazela.
— Bok, vamos comer? — Luna nem estava com tanta fome assim,
só queria sair daquela situação, que estava lhe dando nos nervos.

H’eathler deu um leve sorriso de canto de boca, como se tivesse


entendido a indireta, e disse:

— A gente se vê por aí. — E deu um beijo na bochecha de Bok ao


sair.

Luna sentiu seu sangue ferver, precisou controlar a vontade de lhe


mostrar o dedo do meio e de dizer que ela já ia tarde.

— O cabeleireiro disse que ela era uma… como é mesmo?


Siakyea, algo assim. — Siakyea é uma palavra gagrilyana usada para
indicar quando alguém é a pessoa mais incrível e maravilhosa que você
poderia conhecer.

— Sério? — Bok levantou a sobrancelha e riu.

Antes que eles chegassem à área das comidas, uma voz eclodiu
nos alto-falantes:

— Gostaríamos de chamar a atenção de todos para um momento


especial. Com vocês, o presidente geral do Sistema Gamma Aurellius,
Stayon Dawnstealer.

Todos bateram palmas.

— Obrigado, obrigado — começou o presidente, falando


simpaticamente. — Gostaria de agradecer a presença de todos nesta
noite muito especial para Mira e eu. Cinquenta e cinco anos aurelianos…
nossa! Quem diria que ela me aguentaria por tanto tempo assim?

Todos riram, e Luna se perguntou se ele tinha errado a própria data


de casamento, pois Mira havia falado trinta e dois anos.
— Mas, falando sério, obrigado, querida, por ficar ao meu lado
durante todos esses anos. — Ele olhou para Mira de um jeito que
qualquer garota gostaria de ser olhada. — Alguns de vocês não sabem,
mas passamos por grandes problemas na nossa família há alguns anos e
fomos fortes o suficiente para superar tudo. Há males que vêm para o
bem. — Olhou para baixo por um momento e continuou: — Mas assim
como nós conseguimos superar, nosso Sistema também pode se superar
mais a cada dia! O senado está votando uma lei que aumentará, se
aprovada, a permanência do presidente geral em seu cargo. Então, se
tudo der certo, ano que vem votem em Stayon para presidente.

Assim que o discurso acabou, um garçom com quatro braços


passou em frente à Luna e Bok. Ela pegou a bebida em tom lilás que ele
estava servindo.

— O que é esta bebida?

— Gin centauriano.

Ela provou com cautela, e seu gosto era surpreendentemente


delicioso. Não parecia nem conter álcool.

— Eu nunca mais quero ir embora daqui! — disse


involuntariamente. Bok riu, também pegou um copo e bebeu todo o
conteúdo de uma só vez.

— Você é a pessoa mais bonita desta festa.

Luna ficou da cor da bebida que o garçom ao lado estava servindo.

Continuaram indo de garçom em garçom, tentando experimentar


todos os tipos de bebidas. Luna queria experimentar tudo para poder
decidir qual era sua favorita e depois ficar bebendo só a escolhida por
toda a noite.

O problema é que havia mais de cinquenta tipos.


— Euuuuu não acrrrredito que você nunca foi na Terra! Você tem
que ir, Zaratrusta, a Terra é ótima… é tão… azul — disse Luna para um
habitante do planeta Osnea, que na verdade se chamava Zxyo e não
estava entendendo de onde ela havia tirado o nome pelo qual o
chamava. Naquele momento, ela já havia provado mais da metade dos
drinques disponíveis.

— É verdade — respondeu Bok com uma voz arrastada,


abraçando os dois, igualmente bêbado.

— Bok, aquela bebida piscando que o garçom está levando… Eu


não tomei — disse Luna, apontando. — Traz a bebida que pisca!

— É pra já!
7

7- Você parece perdida

Bok foi se afastando ainda com os olhos voltados para Luna. Ela
continuava conversando efusivamente com aquela pessoa que acabara
de conhecer, mas, quando viu um repórter ao lado entrevistando um
dandoniano, se dirigiu até lá.

— Cara, você é exatamente igual aos ET’s dos filmes — ela falou,
histérica, e ele pareceu confuso. Quando olhou para frente, percebeu que
estava atrapalhando uma entrevista, olhou para a repórter desconfiada,
depois deu uma gargalhada. — Hoje é dia de rock, ET’s! — disse, depois
saiu correndo e, por incrível que pareça, não tropeçou.

Sabe, é engraçado o momento exato que faz com que as pessoas se


apaixonem. E mais ainda o motivo.

Alguns dizem que é quando vislumbramos o lado mais humano das


pessoas. Situações pitorescas em que estamos livres de qualquer
influência do mundo externo, em que somos simplesmente… nós
mesmos. Outros dizem que é como uma picada de mosquito e que não
importa quantas camadas de roupas você tenha sobre a pele, ou se
passou repelente, ou se ficou trancado dentro de casa para evitar a
picada. É um mosquito que ultrapassa as barreiras dos tecidos, da
racionalidade e qualquer outra. E você sente a picada na hora mesmo
que esteja bêbado; na verdade, talvez até a sinta mais intensamente
nessa circunstância. O que importa é que você sabe que foi picado, pois
o mundo simplesmente deixa de ser o mesmo.

Enquanto Bok ainda observava a cena, reparou que alguma coisa


no mundo não parecia mais ser igual. Ele ainda estava na mesma festa
com as mesmas pessoas e usando as mesmas roupas, mas algo estava
diferente.

Foi cambaleando até o garçom e balbuciou:

— Duas bebidas que piscam, por favor. Obrigadooo.

O garçom o encarou antes de lhe entregar duas bebidas com um


de seus quatro braços.

— Eu acho que eu estou dìoghraskyea por ela — disse, olhando


para o nada, tentando inutilmente acertar o canudo na boca.
Dìoghraskyea é uma expressão gagrilyana usada para indicar quando
você mal conhece uma pessoa, mas nutre por ela um sentimento enorme
semelhante ao amor. O garçom olhou para ele, confuso. — É,
definitivamente. Eu estou — Bok continuou, balançando a cabeça e
olhando para o garçom. — O que devo fazer?

O garçom havia brigado com sua esposa e não estava com


paciência para bêbados sentimentais naquela noite.

— Dizer a ela, e não a mim.

— É isssso que eu farei. Obrigado, amigo. — Bok o abraçou antes


de ir.

Quando voltou, ao ver que Luna já não estava mais no mesmo


lugar, sentiu um aperto no peito. Procurou por ela entre a multidão com
um desespero exagerado, a sensação de vazio o consumindo conforme o
ambiente parecia escurecer. Sentiu as palpitações aumentarem, temendo
que algo ruim tivesse acontecido, que alguém tivesse a raptado ou que
ela tivesse tropeçado e quebrado o pescoço. Então, olhou para o lado e
percebeu que ela estava apenas sentada em um banco, sozinha.

Bok lhe entregou o copo, mas ela não bebeu. Estava tão bonita ali,
cabisbaixa e com o olhar perdido no chão… Como alguém pode tornar o
ato de contemplar o piso uma coisa tão esplêndida?, pensou ele,
decidindo que era o momento certo para se declarar. Talvez fosse cedo
demais para fazer aquilo, mas Bok sempre acreditou que as coisas
pensadas em um momento de bebedeira eram verdadeiras; coisas na
qual sempre pensamos, mas que nunca tivemos coragem de revelar. E o
modo como se conheceram e tudo o que havia acontecido só podia ser o
destino agindo.

— Luna, eu preciso te dizer uma coisa — disse, sentindo suas


mãos suando e seus batimentos acelerados.

Depois que ele disse isso, Luna deu um gole na bebida e o beijou.

Normalmente, Luna não teria coragem de fazer isso, mas estava


bêbada demais para raciocinar e curiosa para saber como seria beijar um
extraterrestre. E Bok era um belo extraterrestre. Ele pareceu surpreso,
mas retribuiu o beijo, fazendo-a sentir que aquilo teria acontecido mesmo
que ela não tivesse tomado a iniciativa.

Bok pôs a mão em sua nuca, e isso fez o corpo de Luna


estremecer, lhe causando um frio na barriga tão grande que ela precisou
até abrir um pouco o olho para ter certeza de que ninguém havia
desligado a gravidade. Nesse momento, percebeu que estavam se
beijando embaixo da luz de milhares de estrelas e que não tinha como
seu primeiro beijo extraterrestre ser mais romântico. Até que ela sentiu
um embrulho no estômago. Droga!, pensou. O mundo começou a girar.
Girar muito forte. Girar mais e… Luna precisou interromper o beijo.
Baixou a cabeça e vomitou no sapato de Bok.

— Você pode pegar uma água? — pediu após limpar o rosto, com
a esperança de que ele não se lembrasse daquele acontecimento
quando voltasse.

Devido à quantidade de álcool que ingerira de estômago vazio,


Luna era incapaz de distinguir se fazia dois minutos ou duas horas que
Bok saíra para buscar sua água. Talvez ele tivesse ficado com raiva por
causa do vômito no sapato e ido embora.

Ela se levantou, ainda um pouco tonta, e saiu passando pelo meio


da multidão mascarada. Tudo não passava de borrões desfocados, e ela
não conseguiu ver nenhum rosto conhecido. Não que ela realmente
conhecesse muita gente ali…

Luna parou em frente a um garçom, pediu a bebida que ele estava


servindo e, quando provou, não soube distinguir se era água ou não. É,
ela estava muito bêbada.

— Você parece perdida — alguém disse atrás dela. Aquela era a


voz mais bonita e intimidadora que já ouvira na vida.
Ela não estava perdida, ainda. Mas teve uma leve vontade de se
perder naquela voz e nunca mais ser encontrada.

— Mais perdida do que a Alice e mais louca do que… o Batman.


Aliás, mais louca do que o Aquaman, que fala com os peixes — Luna
falou e riu de sua piada sem graça.

Quando levantou o olhar, Luna prendeu a respiração ao ver aquele


rapaz que poderia facilmente ser um vampiro de um filme de terror. Sua
pele parecia nunca ter visto a luz do sol e seus cabelos, que iam até
abaixo do queixo, eram tão pretos quanto a máscara que usava. Por trás
dela, dava para ver seus penetrantes olhos estreitos, que lembravam
vagamente uma tempestade e não desviavam dela nem por um segundo.
Eles eram profundos e escuros, pareciam esconder muitas coisas, mas
eram inexpressivos e indecifráveis o tempo todo.

— Nós já nos conhecemos? — ele perguntou, inclinando


levemente a cabeça para poder analisá-la melhor.

Era bastante alto e seus trajes, impecáveis. Tudo nele era tão
intimidador quanto sua voz.

— Só se for de algum sonho. — O olhar dele tinha um brilho tão


familiar… que o álcool respondeu por ela.

Seus lábios se curvaram em um leve sorriso, que, se fosse medido


com uma régua, não daria mais do que 0,5 cm, e foi suficiente para fazer
os joelhos de Luna fraquejarem.

Algo lhe dizia que aquele 0,5 cm destruiria sua vida. Mas quem
liga?

— Quem é você? — perguntou ele educadamente, ainda com o


olhar fixo no seu.
Quem era ela? Talvez esse não fosse o melhor momento para
fazer uma reflexão filosófica a respeito dos aspectos de uma
metamorfose ambulante. Mas ela não conseguia se controlar quando seu
cérebro começava a viajar na maionese. Principalmente quando estava
embriagada.

— Olha, essa é uma pergunta um pouco… complexa — Luna


balbuciou. — Mas, parafraseando Lewis Carrol, “quando acordei hoje de
manhã, eu sabia quem eu era, mas acho que já mudei muitas vezes
desde então”. — Ele ainda a fitava com o olhar impassível, mas ela não
conseguia tirar nenhuma informação de sua expressão. Luna podia sentir
o sangue pulsando em suas têmporas e por um instante realmente quase
se esqueceu de onde estava e de quem era. — Mas, se for para resumir,
eu sou Luna. Peixes com ascendente em aquário e lua em sagitário.
Odeio Nietzsche e uva-passa, amo ler e fazer amizades na fila do
supermercado.

Enquanto falava, reparou que ele pegou um objeto estranho e


sorrateiramente apontou para ela. Aquilo parecia familiar para Luna.
Onde ela já tinha visto um daqueles antes? Ah, não estava em condições
de se lembrar.

O estranho misterioso pegou um copo com uma bebida e entregou


a ela. Normalmente, Luna não aceitaria bebidas de estranhos, mas já que
tecnicamente todas as pessoas ali eram estranhas… E, se você parar
para pensar, todos começam sendo estranhos.

Ele continuou a olhando com uma aturdida intensidade, o que fez


com que suas orelhas ardessem e ela fosse tomada por um ataque de
timidez fatal. Ao perceber o efeito que causava nela, o sorriso do
estranho ganhou mais alguns centímetros. E o rosto de Luna ainda mais
rubor.

Luna nunca tinha visto um ser humano tão fascinante e intrigante


como aquele. Seus movimentos, seus gestos, o ar que exalava… Se
sentiu até tonta, e não foi culpa do álcool.
— Foi um prazer conhecê-la, Luna — disse ele, pegando sua mão
e a beijando delicadamente, distribuindo um arrepio por todo seu corpo.

Ok, vá com calma, você já beijou um ET hoje, disse para si


mesma.

Mas, antes que ela conseguisse falar qualquer coisa, ele se virou
sutilmente e saiu. Simplesmente foi embora. Assim, sem mais nem
menos. Como se ao soar da meia-noite sua carruagem fosse se
transformar em abóbora e os trajes impecáveis que usava fossem virar
trapos.

O que foi aquilo? Era como se ela tivesse acabado de ser sugada
para dentro de um buraco negro. Parecia insuportável demais a ideia de
viver sem ao menos saber quem ele era. Por quê?

Sem contar que tudo a respeito dele a alarmava. O modo como ele
falava, como se movia e principalmente como a olhava… Tudo a deixava
inquieta como se houvesse uma enorme placa de “perigo” no meio de
sua testa. Mas, mesmo assim, uma voz no inconsciente de Luna dizia: “o
que você tem a perder?”

E, então, Luna foi atrás dele.

— Vou ver você de novo? — ela perguntou com um desespero


completamente irracional na voz.

— Só se você quiser — respondeu ele, aumentando ainda mais o


mistério.

Então ele dobrou à esquerda em uma coluna e desapareceu.

Essa cena pareceu se projetar no cérebro de Luna em câmera


lenta. Algo nele a fazia ter vontade de correr para longe, mas ao mesmo
tempo o seguir. Era como se 99% do seu cérebro dissesse: “fuja”;
enquanto aquele 1% que restava dissesse: “vá”.
Foi então que uma angústia atordoante a invadiu, um medo
profundo, uma urgência, como se o sol não fosse brilhar no dia seguinte
se ela não soubesse mais alguma coisa a respeito dele.

Luna precisava saber qualquer coisa, nem que fosse o que ele
fazia para ter o cabelo tão perfeito. Sentia que nunca mais ouviria falar
dele se o perdesse de vista naquele momento. Não tinha um nome, nem
um rosto, nem um número de celular, nem um sapato de cristal para sair
testando nos pés de todos que compareceram à festa. Aquele encontro
viveria por alguns dias em sua memória, depois cairia no esquecimento e
seria como se, seja lá o que tivesse sido aquilo que acontecera entre
eles, jamais tivesse acontecido.

Luna o seguiu. Saiu do salão e foi para um longo hangar ao ar


livre, que no final dava para alguns elevadores. Eles eram os únicos no
local.

— Espere. Posso ao menos… ver seu rosto?

Quando ele parou e se virou, ela prendeu a respiração. Seu


coração teve uma reação exagerada enquanto o observava retirar a
máscara e passar as mãos nos cabelos em movimentos sutis. Qualquer
termo que ela usasse soaria meio bobo e incapaz de expressar o que ela
sentiu ao olhar para aquela pessoa que simplesmente não se encaixava
em nenhum estereótipo.

Luna não conhecia o dialeto gagrilyano, mas existia uma palavra que
definia mais ou menos o que ela sentiu: gràdhkyea, usada para indicar
algo que nos deslumbra a ponto de nos tornar quem somos, que é tão
forte que quebra as paredes que temos dentro de nós.

Ele era singular, único demais. Sua pele muito pálida se destacava
devido ao seu cabelo extremamente preto. O nariz afilado, o queixo
pontudo e os ombros ligeiramente largos contrastavam com as ondas de
seu cabelo e com seus olhos escuros, que continuavam a analisá-la. Ele
parecia forte, mas ao mesmo tempo vulnerável. Intenso, porém gentil.
Estranho, mas elegante. Familiar, mas ainda assim misterioso. Lânguido,
porém cheio de energia. Intimidante, mas cativante. Parecia desafiar os
conceitos que ela conhecia do que era categorização e definição. Não
dava para defini-lo. Ele era… um grande paradoxo.

Alguns segundos depois, ele se virou e continuou andando em


direção aos elevadores. Luna estava muito desorientada, mas podia jurar
que sentia seu corpo sendo atraído para ele como um imã.

Ela entrou no elevador ao seu lado, meio que sem entender o


motivo. Foi quase involuntário, como se não conseguisse resistir. E o
mais estranho foi que não sentiu o medo costumeiro de entrar naquela
caixa de vidro. Na verdade, sentiu medo de não entrar e nunca mais vê-
lo.

Quando a porta se fechou, Bok apareceu no final do corredor com


uma expressão de choque.

— Não! — gritou ele, e o elevador voou para cima.


8

8- O bem sempre vence o mal

— Bok? — Luna balbuciou, sentindo a vergonha percorrer seu


corpo.

Tinha acabado de beijá-lo, para completar vomitou no seu sapato, e


já estava indo sabe-se lá para onde com outra pessoa.

Ah, mas calma, ela apenas o havia beijado, o que não é


exatamente um pedido de casamento. Só que, pelo desespero na voz
dele, parecia que era um príncipe vendo sua princesa ser sequestrada
por um dragão que a aprisionaria em uma torre. Que dramático.

O estranho ainda a fitava pelo canto do olho conforme o elevador


subia naqueles segundos que mais pareciam horas. Quando a porta se
abriu, Luna deu um leve sorriso para quebrar a tensão que ficou no ar,
percebendo que seu corpo simplesmente saía do elevador. Algo muito
estranho estava acontecendo; ela realmente não havia dado o comando
para suas pernas se mexerem. Era como se seu corpo estivesse…
andando sozinho.

Será que seu desejo de ficar perto dele era tão grande a ponto de
transcender as barreiras do espaço e tempo, algo assim? Ou será que
era apenas o álcool confundindo seus pensamentos?
Entraram em um enorme salão e algumas luzes imediatamente se
acenderam, revelando seu refinado piso de veludo e algumas cadeiras ao
fundo. A iluminação quente naquele lugar poeticamente vazio, que
aparentemente era um teatro, a deixou aquecida. Só faltava uma música
lenta começar a tocar para aquele ser considerado o encontro mais
romântico da sua vida.

Foram até o fundo, e ela se sentou em uma cadeira, mas não por
vontade própria. Seu corpo… simplesmente se sentou. O que estava
acontecendo? Quão bêbada ela estava? Será que, se ele sugerisse
recriar aquela cena de Dirty Dancing, ela conseguiria se equilibrar?

O estranho foi até a janela em passos lentos e graciosos, e ela


respirou aliviada por se lembrar de que estava em outro planeta, de modo
que ele jamais sugeriria aquilo, já que Dirty Dancing não existia ali.

Enquanto ele olhava para baixo, tirou do bolso um daqueles


iPhones 30 e digitou algo. Luna tentou se levantar para apreciar a vista
ao seu lado, mas não conseguiu. Seu corpo simplesmente não respondia
aos seus comandos, não conseguia mexer um dedo sequer. Como aquilo
era possível? Será que estava tão cansada assim?

Antes que ela morresse de frustração por não conseguir se juntar


ao seu acompanhante, ele pegou uma cadeira e se sentou bem à sua
frente. Ela sorriu, se preparando psicologicamente para dar seu segundo
beijo extraterrestre, pois sabia que a vida é curta demais para se
preocupar com o que os outros pensam.

— Onde está a pedra Aünder? — A voz dele soou terrivelmente


calma. Luna piscou algumas vezes, só podia ter ouvido mal. — Onde
está a pedra Aünder? — ele repetiu.

Ela abriu a boca, inconformada com a situação.

— É sério que você me trouxe aqui para isso? Eu pensei que


nós… — começou, mas em seguida se calou, ciente de que suas
bochechas estavam corando. O estranho permaneceu sério, e Luna
começou a ter um péssimo pressentimento sobre aquilo. — Eu não estou
com a pedra — respondeu com cautela.

— A bússola diz o contrário. — Sua voz continuava calma, mas ela


conseguia sentir um leve vestígio de ironia.

Ele retirou do bolso o mesmo objeto que usou na festa. Era uma
bússola igual a que Bok carregava em sua casa e o ponteiro apontava
para ela, marcando provavelmente a distância que estavam um do outro.
O estranho apenas a observou inexpressivamente, de um jeito que ela
não sabia dizer se era um olhar amigável ou raivoso. Parecia dizer muitas
coisas, mas Luna não conseguia identificar nenhuma delas.

— Não está comigo — se manteve firme.

— Então você a engoliu.

Ela não respondeu. Será que ele era do tal Comando Omega, que
a perseguiu na Terra? Era o que esse interesse todo pela pedra dava a
entender. Então era por isso que Bok pareceu tão desesperado quando a
viu com ele no elevador. Como ela fora burra em segui-lo. Nunca mais
beberia daquele jeito.

Seu olhar impassível continuava sobre Luna, tornando cada vez


mais difícil para ela se manter calma.

— De onde você é? — A hostilidade na voz dele parecia ter


diminuído.

— Terra. Isso importa?

— Na verdade, não. — Ou talvez fosse só impressão.

— Você vai me matar de qualquer jeito, não é? — perguntou ao se


lembrar dos momentos de terror que viveu na livraria.
— E por que você acha que eu ainda não fiz isso? — E a fitou por
um instante que pareceu durar uma eternidade.

Ela engoliu em seco, sentindo o peito arfando, e não conseguiu


retribuir o olhar por muito tempo. Por mais paradoxal que parecesse, ele
agora se mostrava mais acolhedor do que ameaçador. Se não fosse por
todo esse interrogatório a respeito da pedra e pela imobilidade do seu
corpo, Luna realmente acharia que ele tinha a levado ali para… se
conhecerem melhor?

— Por que eu não consigo me mexer? O que você colocou


naquela bebida?

— Nada. — Ele pareceu irritado por ela sugerir aquilo.

— Então, por que eu não consigo me mexer?

— Quem disse que você não consegue?

Quando ele falou isso, Luna tentou mexer as pernas e, para sua
surpresa, elas tinham voltado a funcionar. Se levantou e, sem pensar
muito, correu o máximo que conseguiu. Não tinha um plano, não sabia
para onde estava indo, apenas correu sem olhar para trás.

Mas não chegou nem na metade do cômodo. Foi como se uma


parede invisível a impedisse de passar. Depois começou a sentir seu
corpo ser puxado para trás. Tentou se mexer, mas era mais forte do que
ela.

— O que você está fazendo?! — gritou. Como aquilo era possível?


Uma força mais forte que a gravidade a puxava de volta para a cadeira, e
ela não conseguia fazer nada. — Me deixe ir embora! — continuou com
raiva na voz.

Será que tinha um imã na cadeira? Cordas invisíveis que a


prendiam? A essa altura, não duvidava mais de nada.
— Pare de gritar — ameaçou ele educadamente, se é que havia
como uma ameaça ser educada.

— Me solte! — ela gritou, ignorando a advertência. — Socorro!

Apreensivo, ele olhou para os lados, foi até ela e cobriu sua boca
com a mão. Quando Luna sentiu aquela pele gelada abafando seus gritos
de socorro, não pensou duas vezes e cravou os dentes com toda força
em sua mão, fazendo-o soltá-la imediatamente.

— Você é louca! — ele gritou, olhando perplexo para o sangue que


escorria de sua mão e depois para ela, os olhos queimando.

— Sou. E é melhor você me soltar logo senão da próxima vez será


pior.

Luna respirava ofegante, suas pernas tremiam. A coragem que ela


tirou sabe-se lá de onde a fez realmente acreditar na afirmação dele.

— Você só vai sair daqui quando me disser onde está a pedra


Aünder. — ele gritou de volta.

— Eu a entreguei para o presidente. Está na casa dele — Luna


gritou ainda mais alto.

Quando ela falou isso, ele pareceu até outra pessoa. Seu maxilar
travou e seus olhos escureceram. Ela podia quase sentir a energia ruim
que se formou conforme ele se virava para apenas ficar com uma mão
apoiada na cadeira por alguns instantes.

— Escória de Stayon. Eu deveria ter imaginado.

De repente, a cadeira voou até a parede sem ele mexer um dedo.


Seus pedaços voaram para todos os lados. Luna fechou os olhos e virou
o rosto, o coração na garganta. Precisava ir embora dali. O que estava
acontecendo? O que ele era?
O estranho já estava há um minuto de costas e em silêncio quando
se virou e voltou a encará-la. O ódio era perceptível por trás de seus
olhos escuros. Lentamente, se aproximou, se abaixando a fim de ficar
com o rosto na altura do de Luna. Levou a mão até a sua nuca, lhe
causando uma sensação completamente diferente da que tinha sentido
quando sua mão fora beijada no salão. Luna conseguiu ouvir a
respiração lenta muito próxima do seu rosto. Se estivesse com o controle
dos seus movimentos, ele já estaria com o olho roxo.

Ele pegou o colar de seus pais, que estava escondido por baixo da
gargantilha, e o observou por alguns segundos.

— Onde você conseguiu isto? — perguntou com o rosto ainda


mais próximo do seu. Ela não respondeu. O estranho a encarou com uma
expressão indecifrável, depois retirou o iPhone 30 do bolso e o colocou à
sua frente. Ela tentou virar o rosto, mas estava imobilizado, assim como
seu olho enquanto ele projetava o objeto para escaneá-lo. Ele olhou por
alguns segundos para a tela sem conseguir esconder bem suas
emoções. — Quem é você e o que está escondendo por trás desse olho
não cadastrado? — Havia uma mistura de curiosidade e aborrecimento
em sua voz.

Mas do que ele estava falando?

— Você nunca vai vencer. O bem sempre vence o mal — ela


soltou, pois não sabia o que falar e precisava parecer confiante.

Ele a encarou e abriu um sorriso debochado.

— O bem sempre vence o mal? — Sua voz era carregada de


sarcasmo.

— Sim. Não existem finais felizes para pessoas como você.

O estranho manteve o olhar impetuoso fixo nela sem demonstrar


um lampejo de sentimento sequer.
— Pelo menos, eu sou alguém. Você acha que alguém vai vir lhe
procurar aqui? — Ele parou por alguns instantes e deu um sorriso de 0,5
cm de puro veneno. — Ninguém se importa com você, eles estão apenas
te usando. Você não é ninguém.

Quando ele pronunciou aquelas palavras, aquelas mesmas


palavras que Luna já tinha ouvido antes, ela sentiu algo dentro de si se
partir e ao mesmo tempo se erguer. Sua visão ficou turva. Sentiu ódio
dele e mais ainda dela mesma por ter sido tão ingênua em segui-lo. Iria
morrer ali, em outro planeta, e ninguém jamais saberia sobre seu fim. Se
tornaria aquelas pessoas que passam todos os anos nos especiais da TV
sobre pessoas desaparecidas até o dia de sua existência ser
completamente esquecida. Ninguém iria atrás de saber o que de fato
aconteceu. Ninguém se importava o suficiente, como ele disse, como já
haviam lhe dito antes.

Lágrimas escorreram por sua face e uma sensação de queimação


acometeu seu nariz. O estranho a olhava com deleite, como se sentisse
prazer em ver seu sofrimento.

De repente, um zumbido invadiu seus ouvidos e Luna notou que


alguma coisa havia mudado. O sangue sumiu da sua cabeça, deixando-a
tonta. Subitamente, teve a sensação de que fora teletransportada para
outro lugar. O ambiente ficou mais escuro e o clima, mais pesado.
Escuridão, medo e raiva pareciam fluir em suas veias. Um frio de gelar a
espinha surgiu no ar.

— O que você está fazendo? — Ouviu a voz dele.

Ao abrir os olhos, viu o estranho caído no chão em um canto,


respirando de maneira ofegante. Luna soltou a respiração, relaxou e tudo
foi voltando ao normal. Teve a sensação de que desmaiaria, enquanto ele
mantinha um olhar perturbado que parecia ser uma mistura de todos
aqueles sentimentos que ela sentira há pouco.

— Como você fez isso? — ele gritou, sem conseguir conter a raiva
em sua voz. Toda sua graciosidade e sutileza o abandonaram. Naquele
momento, parecia alguém fraco e vulnerável.

— Fiz o quê?

— Entrou na minha mente.

Do que ele estava falando?! Sua expressão de confusão já


respondia por si, mas, antes que ela pensasse qualquer coisa, a porta de
entrada se abriu.

— O que você pensa que está fazendo, Klaaoz? — Luna ouviu a


voz do presidente ao fundo e viu o rosto do estranho empalidecer.
Klaaoz, então esse era o nome dele. Ela virou o rosto, e lá estavam Bok
e o presidente. Klaaoz permaneceu calado, toda a autoconfiança de
antes se esvaiu. Parecia um ator que esqueceu as falas no meio do
espetáculo. — Como você ousa aparecer aqui logo hoje? — continuou o
presidente.

Sua voz era glacial, assim como o olhar que tinha sobre Klaaoz,
que apenas engoliu em seco. Ele parecia sentir muitas emoções naquele
momento, e nenhuma delas era boa.

Ao perceber que seu corpo estava livre, Luna correu para Bok,
sem conseguir conter as lágrimas ao abraçá-lo.

— Está tudo bem agora — disse ele. — O que ele fez com você?
— Ela não parava de chorar, estava feliz por ver um rosto conhecido. Não
sabia explicar o que estava sentindo, jamais queria passar por aquilo de
novo. Queria ir embora, voltar para a Terra, qualquer coisa. — Vai ficar
tudo bem… já passou — falou Bok baixinho enquanto ela continuava em
prantos com a cabeça enterrada em seu peito.

— Eu quero ir para casa — disse Luna entre soluços. — Bok, eu


não quero mais ficar aqui. Por favor.
— Nós vamos, não se preocupe. Eu prometo que você nunca mais
vai ter que passar por isso — disse, abraçando-a e acariciando seus
cabelos. —Vamos redobrar a segurança e…

— Não! Eu quero voltar para a Terra.

Por um momento, tinham até esquecido o que estava acontecendo


no fundo do salão. Klaaoz e o presidente estavam frente a frente.

— Sabe, eu e sua mãe agradecemos à Energia pelo dia em que


você foi embora. Isso foi a melhor coisa que já nos aconteceu —
esbravejou o presidente enquanto Klaaoz o encarava, completamente
inexpressivo. Luna assistia a cena perplexa. Ele era filho do presidente?
Quê?! — Sua mãe tem muita vergonha de ter um filho como você.

Apesar da distância, Luna prestou bastante atenção em Klaaoz


nessa hora. Sua expressão fechada se desfez, seu rosto relaxou e seus
olhos baixaram. Parecia até que ele ia… chorar?

Ele falou algo que ela não conseguiu ouvir, o presidente respondeu
e, numa fração de segundo, pôs a mão no bolso do casaco, mas Klaaoz
imediatamente sacou uma arma. Luna sentiu o coração pulsar forte nos
milésimos de segundo que se prosseguiram. Ele não faria aquilo, seria
demais até para ele.

Mas ele atirou, e o presidente caiu no chão instantaneamente.


Todo o ar abandonou os pulmões de Luna ao ver aquela cena. Não
conseguia acreditar.

— Não! — Bok gritou, rapidamente sacando uma arma e atirando


na direção de Klaaoz, que ainda estava paralisado, olhando para o corpo
do presidente no chão.

Klaaoz tentou desviar, mas o tiro ainda o acertou de raspão,


fazendo com que ele se desequilibrasse. Colocou a mão no corte, olhou
para trás com a raiva estampada no olhar, e, então, a arma de Bok
flutuou até sua mão. Ele apontou a arma na direção de Bok e o encarou.
Seus olhos pareciam o de outra pessoa, mas não o de uma pessoa que
havia matado o próprio pai. Como alguém era capaz de fazer algo assim?
Complexo de Édipo? Mas ao contrário de Klaaoz, Édipo não sabia que
estava matando o próprio pai.

De repente, dezenas de guardas apareceram na entrada,


apontando armas para ele ao passo que uma câmera de TV registrava
toda a cena.

Não havia saída.

Mas Klaaoz parecia calmo demais para uma pessoa que estava
completamente encurralada. Na verdade, parecia até sorrir. E foi então
que todos os guardas foram ao chão, a câmera explodiu, o vidro da
janela se despedaçou e ele foi até lá.

Luna olhou para ele ainda perplexa e seus olhares se cruzaram por
um instante. Havia algo de distante e trágico no seu olhar. Klaaoz pulou e
subitamente uma nave levantou voo ao lado da janela. Os guardas,
então, conseguiram se levantar e acionar a polícia aérea usando
aparelhos de comunicação.

Alguns segundos depois, naves de polícia surgiram, mas


instantaneamente foram levadas para o chão.
9

9- Luna não quer se separar de seu novo


amigo

— Ok, eu quero que você descreva detalhadamente tudo que


aconteceu.

— Detalhadamente? — Luna franziu a testa para aquela mulher de


pele escura com óculos grandes e quadrados, que parecia analisá-la
como uma amostra de sangue em um microscópio.

Ela se chamava Alynestra Rydzinski, era da Terra, mas morava ali


há muito tempo e era a diretora de publicidade do governo da Capital.
Elas estavam sentadas na sala da casa do presidente, ensaiando para a
coletiva de imprensa que ocorreria em algumas horas. Seus dois
assistentes estavam ao seu lado anotando tudo como papagaios no
ombro de um pirata.

— Sim, todos os detalhes.

Luna engoliu em seco.

— Hã… Bok pegou uma bebida para mim, e eu… — Ela disse
todos os detalhes, certo? — Eu o beijei… Mas comecei a passar mal e
vomitei no sapato dele. — Luna olhou para o chão e arrumou o coque de
seu cabelo enquanto Alynestra escrevia alguma coisa em uma tela e
cochichava com seus assistentes. — Aí ele saiu para pegar água, mas
estava demorando, então eu resolvi ir buscar e dei de cara com Klaaoz.
— Ela encolheu os ombros. — Ele disse: “você parece perdida”. —
Sentiu um embrulho no estômago ao tentar imitar aquela voz.

Luna continuou contando a história, e, ao terminar, os três ficaram


conversando. Parecia que ela nem estava ali.

— Pedido de casamento? — sussurrou Alynestra. Luna levantou a


sobrancelha.

— Providenciarei as alianças agora!

— Você é um gênio — disse um dos homens.

— Eu sei. Por isso que eu sou a chefe — ela se gabou e continuou


falando coisas que Luna não pôde ouvir.

— Muito bom — concordou um deles, anotando tudo que ela


falava.

— Precisamos deixar bem claras suas intenções com a pedra —


prosseguiu, se virando para Luna. — Que emoções você sentiu?

Luna não precisou pensar muito.

— Raiva?

— Escreva: o maior pavor que eu já senti foi imaginar que morreria


e abandonaria meu querido noivo.

Luna soltou uma risada. Noivo?!

Depois de alguns minutos escrevendo, Alynestra se virou para


Luna e disse:
— Aqui está seu discurso. Você tem duas horas aurelianas para
decorar.

Eles se retiraram, e, assim que Luna começou a ler, soltou um


bocejo. Seus olhos começaram a pesar, estava difícil conseguir sair da
primeira linha. Há quanto tempo ela não dormia? Piscou algumas vezes,
não estava conseguindo ficar de olhos abertos. Colocou o papel de lado
e decidiu tirar um cochilo por cinco minutos.

Luna estava na festa, tinha acabado de beijar Bok, e saiu para


pegar água. Provou o líquido e ouviu a voz de Klaaoz atrás de si dizendo
que ela parecia perdida. Ela se virou, jogou a bebida no rosto dele, mas o
líquido flutuou no ar. Ele a encarou já sem máscara e se aproximou de
seu rosto. Se aproximou muito, até demais. Dava para sentir a respiração
dele acariciando sua pele. Luna prendeu o fôlego, parecia que ele ia…

— Vamos, está na hora. — Luna deu um pulo ao ouvir a voz de


Alynestra. Por quanto tempo havia dormido?!

— Calma, eu… — Ai, meu Deus, ela não tinha decorado sua fala.
E que diabos de sonho fora aquele?! — Não decorei tudo.

— As palavras vão aparecer no fundo da sala. E não se preocupe


se sentir vontade de chorar, eu pus vuzynalina no microfone.
Luna chegou ao local da coletiva de imprensa, era uma sala
metalizada com um palco em que várias câmeras flutuavam ao fundo.
Repórteres de todos os tipos se aglomeravam nas cadeiras da frente,
como animais de um zoológico prestes a serem alimentados. Alynestra
avisou que Luna falaria apenas seu discurso, pois ainda estava abalada
demais para responder a qualquer pergunta.

Luna tentou não desmaiar de nervosismo e começou a ler as letras


holográficas que flutuavam no fundo do salão.

— Quando Klaaoz Lynxzars… Ai, que nome complicado! — Isso


não estava no painel. — Quando aquele psicopata me prendeu, tudo em
que eu consegui pensar foi em Bok, o herói da Capital, que havia
acabado de me pedir em casamento. — Quê?! — Klaaoz me raptou e me
trancou numa sala, tentou arrancar informações sobre o paradeiro da
pedra Aünder. — Ok, pelo menos aquilo era verdade. — E deixou bem
claro que a intenção do Comando Omega com ela é tentar converter seu
poder para os genes e criar um exército para dar um golpe de estado. —
Ela não se lembrava de ele ter falado aquilo, mas ok, ela estava bêbada.
— Depois o presidente tentou impedi-lo, mas Klaaoz atirou. Abre
parênteses, abaixe a cabeça. — Ai, meu Deus, não era para ela ter lido
isso! Luna abaixou a cabeça e começou a sentir um ardor nos olhos,
oriundo de um vento que seu microfone soltava, e seus olhos começaram
a lacrimejar. — Quando ele foi atirar em Bok, eu nunca senti tanto medo.
Ele atirou em alguns outros guardas depois de destruir a câmera que
registrava todos os seus atos hediondos, ameaçou a todos dizendo que
voltaria e que o Comando Omega jamais desistiria. — Ela estava em
prantos, mal conseguia falar, parecia que estava cortando cebolas. Seja
lá o que fosse aquilo que Alynestra havia colocado no microfone,
realmente funcionava. — Vocês precisam acabar com o Comando
Omega antes que ele acabe com nosso Sistema!

Apesar de suas lágrimas serem falsas, Luna sentiu um aperto no


peito quando avistou Mira ao fundo. Ela tentava enxugar as lágrimas com
um lenço, mas, ao contrário das de Luna, as dela não pareciam ser
causadas pela substância que saía do microfone. Quando ela deixou a
sala, como se cada palavra proferida fosse dolorosa demais, Luna não
conseguiu continuar.

— Desculpe, eu não estou me sentindo muito bem, talvez seja por


causa do bebê — disse, tocando a barriga, e então abandonou a
entrevista.

Como vocês sabem, Luna possuía uma porção de verdades absolutas,


frases feitas que ela usava em todas as situações. Outra frase dita por
Gandalf era uma delas: “não vou pedir que não chorem, pois nem todas
as lágrimas são um mal”. Na interpretação de Luna, podemos dizer que
significa que chorar resolve, mas só se for muito, até desidratar. Ela tinha
consciência de que era um pouco ingênuo de sua parte acreditar nisso,
mas talvez chorar realmente curasse. Quando você chora, tecnicamente
está exprimindo do seu corpo água, sais minerais, proteínas e gorduras.
E, certamente, deve ir algo mais junto. Talvez as tristezas. Chorar é
drenar a tristeza de dentro de você. Senão, que outra explicação teria
para esse ato ser realizado principalmente em momentos tristes? Nada
acontece por acaso, muito menos as atividades fisiológicas do corpo
humano.
Porém, ao ver Mira chorar há quase vinte minutos, Luna estava
começando a duvidar da veracidade daquilo.

— Mira… eu sei que não sou nem capaz de imaginar a dor que
você está sentindo neste momento… E sei que nada que eu fale agora
será suficiente para te confortar… — Luna sentiu angústia por não
conseguir dizer algo útil. Estava se sentindo a metamorfose de Kafka, um
inseto inútil. — Mas eu quero que você saiba que tudo na vida… passa
— balbuciou, tendo consciência que falava asneiras. Mira apenas
continuou chorando. Luna precisava pensar em alguma coisa. — Sabe —
continuou —, pegue a palma da sua mão. Imagine que ela é uma cidade.
— Nesse momento, Mira virou o rosto e observou o que Luna estava
fazendo. — Digamos que o meio é o centro desta cidade. Os imóveis no
centro com certeza serão mais caros do que algum que estiver na ponta
do dedo, certo? E sabe por que eles são mais caros? Porque estão no
centro! As coisas no centro são mais importantes. Agora imagine que, em
vez de imóveis, isso seja a dor que você está sentindo. Ela agora está
grande, porque está no centro, já que é recente. Mas daqui a algum
tempo, ela vai estar aqui. — Apontou para um ponto um pouco afastado
do centro da mão. — Quando ela chegar aqui, ainda será grande, mas
será menor do que agora. E um dia ela vai chegar aqui. — Apontou para
a ponta de um dedo. — E, quando ela estiver aqui, será tão pequena que
vai parecer que nunca nem existiu.

Mas apesar de já fazer quase um ano que fora expulsa da escola,


o ocorrido parecia que nunca iria sair do centro da palma da mão de
Luna. Sem saber disso, Mira ouvia com atenção. Ver que suas lágrimas
pareciam estar diminuindo fez Luna continuar:

— Isso não significa que você não sentirá essa dor às vezes. Ela
sempre estará aí, fará parte de você para sempre, não importa o que
aconteça. Mas chegará um momento em que ela não será mais
prioridade, entende? No centro terão outras coisas que ocuparão sua
vida, e essa dor de agora estará tão longe que não terá tanta
importância. Então, confie em mim, vai passar. Dê tempo ao tempo.
Acredite. O presidente sairá do coma logo e tudo vai voltar ao normal…
Mira enxugou as lágrimas e suspirou.

— Existem muitas verdades nessas coisas sem sentido que você


falou, Luna. Mas Stayon está na nossa casa de Caelestra, descansando.

— Quê?! Mas então por que disseram que ele está em coma?

Mira apenas lançou um olhar, feito uma pessoa que desacredita


em tamanha ingenuidade.

— Ah…

Era tudo fachada?

— Então, por que você está chorando?

Nesse momento, Mira baixou a cabeça e respirou fundo, como se


o ar que existia em seus pulmões não fosse o suficiente para o que
estava prestes a falar.

— Por causa do meu filho. Porque, apesar de tudo, eu ainda tinha


esperança de tê-lo de volta. Mas, depois do que aconteceu, eu estou com
a sensação de que o perdi para sempre.

Klaaoz.

— Nossa, eu tinha até esquecido. É tão inacreditável que aquele…


— Luna começou, mas talvez aquele não fosse o momento certo para
xingá-lo.

— Isso é letekyea. — Letekyea é uma expressão gagrilyana usada


para indicar um problema sem solução que lhe faz se sentir impotente.

— Como aconteceu isso? Por que ele faz parte desse Comando
Omega? Eu não consigo entender.
Mira lançou o olhar mais triste que Luna já vira na vida e respirou
fundo.

— Eu não sei. Ninguém sabe.

— Como assim?

— Eu estava viajando, fazendo meus trabalhos voluntários, e,


quando voltei, Stayon disse que eles tiveram uma discussão e que depois
Klaaoz havia fugido. — Ela enxugou algumas lágrimas que insistiam em
brotar. — Procuramos por ele em todo lugar, mas ninguém conseguiu
encontrá-lo. Ele ficou desaparecido por quase um ano gagrilyano.
Depois, recebemos a notícia de que Klaaoz havia trocado seu sobrenome
para o do meu pai e entrado para o Comando Omega. Então, nunca mais
o vimos. Tentamos contatá-lo várias vezes, mas nunca tivemos resposta.
Já faz cinco anos gagrilyanos. — Seu olhar ficou perdido, e ela voltou a
chorar.

— Nossa, eu… não sei o que dizer. — Luna não sabia quanto
tempo aquilo significava, mas sabia que aquele não era o momento de
perguntar.

— Sabe… uma pequena parte de mim ainda tinha esperanças de


que um dia ele deixaria tudo isso de lado e voltaria para casa.

Luna queria dizer que ela estava melhor sem ele, mas isso
realmente não seria a coisa mais apropriada a se dizer.

— Mira, eu… preciso te contar uma coisa. — Mira apenas


balançou a cabeça em sinal positivo. — Quando Klaaoz… me sequestrou
e me prendeu naquele salão, ele fez alguma coisa para não me deixar
andar. Era como se tivesse uma parede invisível impedindo minha
passagem. Minhas pernas não se mexiam. Primeiro, eu pensei que fosse
alguma coisa que ele colocou na minha bebida, mas, depois, quando ele
jogou uma cadeira na parede sem mexer um dedo… — Seus olhos se
estreitaram ao se lembrar daquilo. — Eu lembro que ele falou uma coisa
que me deixou com muita raiva, muita raiva, e… algo aconteceu. Foi
como se eu tivesse me teletransportado para outro lugar por alguns
segundos… Não sei explicar como fiz isso, mas fez ele parar seja lá o
que estivesse fazendo para impedir meus movimentos. E depois ele me
disse que eu havia entrado em sua mente.

Luna observou a expressão de Mira, que mudou de tristeza e


decepção para espanto e surpresa.

— Como assim você entrou na mente dele? — Ela estava tão


branca quanto aquela sala.

— Não sei, mas foi o que ele disse… e o que pareceu.

Mira olhava para Luna como se estivesse vendo um fantasma.

— Você não pode falar isso para ninguém.

— Por quê?

Ela olhou em volta para verificar se tinha alguém por perto.

— Klaaoz é gagrilyano. Nós dois somos.

— O quê?

— Fazemos parte de uma raça quase extinta, originária de um


planeta onde todos os habitantes viviam por mais tempo e tinham o
cérebro mais… desenvolvido. Klaaoz tem telecinesia, consegue mover
objetos com a mente. E eu posso manipular memórias. Você não pode
contar para ninguém — ela falou baixo, constantemente olhando para
saber se vinha alguém.

Luna piscou algumas vezes. Ela só podia ter entendido errado.


Mas Mira não parecia estar brincando.

— Mas você não está insinuando que…


— Não sei, mas… talvez — falou simplesmente. — Me parece ser
uma explicação para o que aconteceu.

— Mas como? Eu moro na Terra!

— Isso é genético, seus pais provavelmente são gagrilyanos.

Seu olhar se rebaixou.

— Eu nunca os conheci — Luna tinha pouquíssimas informações


sobre seus pais, e, pelo que sabia, eles tinham morrido em um acidente
de carro. Ou pelo menos era o que seus tios diziam.

— Bom, honestamente, não sei. Hoje em dia restam pouquíssimos


gagrilyanos…

Luna andava ouvindo muitas coisas que eram difíceis de acreditar,


mas ouvir que ela era de uma raça alienígena quase extinta que possuía
superpoderes sem dúvidas merecia o prêmio de mais absurda.

— Mira, eu não tenho superpoderes — respondeu, quase rindo por


se imaginar usando uma capa.

— Então como você explica o que aconteceu?

Luna pensou, pensou, pensou. Seria muito patético colocar a culpa


nos drinques da noite anterior?

— Não sei…

— Você tem certeza de que entrou na mente dele?

— Tenho… quer dizer, não. Foi o que ele me disse.

— Então, é provável que você seja gagrilyana.


— Mas, se eu tenho esses poderes, por que eu nunca usei antes?

— Bom, talvez porque ninguém nunca te ensinou. Mas às vezes


acontecem coisas que fazem ele se manifestar… — Ela olhou para os
lados, parecendo procurar explicações, quando de repente seu rosto se
iluminou com um sorriso. — Você precisa encontrar meu irmão, Oberyn!
Ele pode te dizer com certeza se você é gagrilyana ou não e te ensinar a
controlar o poder, se for o caso. Ele mora em Plutopra, numa parte
isolada de todos. Você pode tentar convencê-lo a vir para cá! Vou pedir
para Bok te levar para lá…

Luna ouvia tudo ainda sem acreditar muito, mas, nesse momento,
levou um choque de realidade. Quanto tempo fazia que já estava fora de
casa?

— Não… eu não posso ir. Eu preciso voltar para casa.

— Mas, Luna… você… — Mira começou, mas Luna a interrompeu:

— Me deixe adivinhar: eu preciso treinar com ele porque sou a


escolhida e nunca soube disso porque meu tio malvado escondeu a
verdade de mim. Ah, e, claro, eu sou órfã. Que original! Já li dezenas de
histórias iguais a essa. Vou poupar seu tempo: eu não sou uma heroína
nem quero ser. Eu não acredito que vou dizer isto, mas: tudo que eu
quero é ter minha vida normal de volta.

— Se você for mesmo gagrilyana, você precisa aprender a usar


seus poderes.

— Não, eu não quero aprender a usar nada. Sério, eu já estou


cansada disso tudo. Tudo que quero é voltar para casa. Você não sabe o
que eu passei lá no salão com aquele… — Ela queria xingar Klaaoz, mas
conteve suas palavras. Sempre que se lembrava do que havia
acontecido, uma raiva enorme tomava conta dela.

Mira suspirou.
— Luna, se o Comando Omega sabe que você é gagrilyana, eles
virão atrás de você. Eles sabem onde você mora na Terra. Você não
estará segura lá. — Luna estremeceu. Então isso significava que…
jamais voltaria para sua vida antiga? Por mais que ela fosse sem graça,
chata e entediante, era a sua vida. Seus olhos se encheram de lágrimas.
— Você também não está segura aqui. Eles podem vir atrás de você aqui
também. Um gagrilyano que lê mentes pode ser muito poderoso. Só o
fato de eles desconfiarem disso já é o suficiente para irem atrás de você
em todos os cantos do Sistema. Você só estará segura se aprender a
usar seu poder.

Luna não conseguiu segurar as lágrimas por mais tempo. Não


estava sabendo lidar com aquela montanha-russa de emoções. Além de
tudo, ela estava sendo procurada por um tipo de organização do mal? De
repente, ela se levantou, correu para seu quarto e se trancou no
banheiro. Talvez, se ela tivesse tampado os ouvidos e começado a cantar
lá-lá-lá, tivesse sido menos infantil. Ficou encarando a parede por alguns
segundos, refletindo sobre sua falta de maturidade para situações
difíceis, até que falou:

— Chuveiro, ligar.

— Olá, Luna, como gostaria do seu banho?

— Freud, Mira quer que eu vá para outro planeta encontrar com


seu irmão que vai me ensinar a usar meus… superpoderes. Mas eu
preciso voltar para a Terra.

— O que você tem para fazer na Terra?

Luna refletiu. Nada. Não tinha absolutamente nada para fazer. E


antes que pensasse em uma saída, Mira bateu na porta.

— Luna, por favor, você precisa ir. É para o seu bem.

— Não, eu não vou. Eu tenho que voltar para a Terra.


— Você vai voltar, eu prometo, mas não agora. — Por que aquilo
estava acontecendo? Por que algo acontecia para estragar tudo sempre
que sua vida parecia estar indo bem? — Quem sabe Oberyn não
descobre alguma coisa sobre seus pais, já que você nunca os conheceu?
Vá embora desta bagunça, deste… circo! — Mira falava como se odiasse
muito o meio no qual estava inserida. — Descubra quem você é!

Luna estremeceu. Ela era meio conformada com sua falta de


informação a respeito dos pais, mas, desde que Mira a informara que seu
possível poder era hereditário, não conseguiu evitar o sentimento de
inquietação e a sensação de que faltava alguma coisa. Como se algo
ainda não tivesse sido escrito.

— O que eu tenho que fazer? — Ela abriu a porta e viu Mira com
um olhar de preocupação.

— Você precisa encontrar Oberyn em Plutopra. Vai ficar segura lá


por enquanto. Mas, se conseguir convencê-lo de vir para a Capital com
você, pode até voltar antes. Se você souber usar seus poderes, pelo
menos já vai saber se defender…

— Mas… — Luna começou a falar, meio sem saber o que iria


dizer. Teve a leve impressão de que aquela história de o Comando
Omega estar atrás dela era tudo invenção, mas a mera possibilidade de
descobrir alguma coisa sobre seus pais era irresistível demais para
contestar qualquer coisa.

— Você realmente precisa ir, Luna. Estou falando sério.

— Eu vou sozinha?

— Sim. Mas posso pedir para Bok levá-la até lá.

Bok. Luna não queria ficar longe dele.


— Ele não pode ficar comigo lá? — pediu. Ter um conhecido
naquele lugar ao qual iria certamente tornaria as coisas mais fáceis.

— Infelizmente, não. Ele será uma pessoa muito requisitada aqui


na Capital agora…

— E eu nunca mais vou falar com ele? — Isso não seria justo.

— Ele pode ir te visitar sempre que estiver livre. E vou te dar um


Holophone. Pode ligar para ele sempre que quiser. Agora você realmente
precisa ir.

Luna olhou para o teto, pensativa. Precisava de mais uma coisa.

— Posso levar o chuveiro?


10

10 - Futura esposa de brincadeira

— Você sabia que ele era filho dela? — perguntou Luna com o olhar
perdido naqueles infinitos botões que davam vontade de apertar.

Estava dentro da nave com Bok, a caminho do planeta que Mira


indicou, se sentindo enjoada mesmo que aquele meio de transporte
tivesse movimentos tão sutis que dava a impressão de que nem estavam
se movendo.

— Não, nunca imaginei. Nunca mesmo. Nem em um milhão de


anos. Literalmente, em hipótese alguma. Mira nunca havia me dito. Acho
que ela tem vergonha.

Realmente. Aquela não era exatamente o tipo de informação que


você gostaria de gritar aos quatro cantos, como quando o filho passa no
vestibular.

— Por que vocês da GASP simplesmente não acabam com esse


Comando Omega?

— Não é tão simples assim. Nós somos o Programa de Segurança


do Gamma Aurellius, nós tentamos manter o Sistema em ordem, mas
fazer uma intervenção sem provas concretas causaria uma guerra. E o
exército deles é consideravelmente maior do que o da Capital… — Ele
estremeceu ao falar isso. — Mas pelo menos as provas que recolhemos
na festa serviram para abrirmos um processo de investigação contra
Klaaoz. E, claro, principalmente por sua entrevista.

— O que exatamente ele faz lá nesse Comando Omega?

— Bom, tecnicamente ele é o diretor de transações, o líder mesmo


é um homem chamado Zuuvak Vontees. Para falar a verdade, eu não sei
exatamente o que Klaaoz faz. Eu acho que ele não faz nada. Mas pelo
que eu descobri nas minhas investigações, todos realmente o odeiam lá
dentro. Aliás, não apenas lá, mas também em todos os lugares do
Sistema. Ele é incapaz de fazer uma gentileza por alguém, é arrogante e
se acha a pessoa mais esperta do mundo. Nos eventos, não
cumprimenta ninguém, passa a noite de cara fechada, e eu desconfio
que ele não possui dentes, porque eu nunca o vi sorrir.

— O que será que o fez largar tudo e… fazer parte deles?

— Acho que para chamar atenção. Ele sempre deve ter tido tudo
que quis, foi mimado demais. Não sei…

Luna guardava muita raiva de Klaaoz, mas, ao mesmo tempo,


nutria uma certa curiosidade a respeito da sua história; 99% ódio
profundo, mas aquele 1%… queria saber mais.

Na noite depois da festa, mal conseguiu dormir. Passou quase a


madrugada em claro, relembrando as cenas do momento de tensão que
viveu. Se enchia de ódio ao se lembrar dele, e isso a afetava muito.
Tentava não pensar mais naquilo, porque não se deve perder tempo
pensando nas coisas de que não se gosta, mas era mais forte do que ela.
Parece que, quando se odeia alguém, essa pessoa ocupa e consome
toda a sua vida.

É por isso que dizem que o ódio pode ser um sentimento até mais
forte do que o amor.
Klaaoz acordou de sobressalto, ainda meio inconsciente. Estava
imerso numa avalanche de sensações confusas. Olhou ao redor e
percebeu que estava em um quarto de hospital. Sua cabeça doía, assim
como seu corpo, e havia um curativo em seu abdômen. Não conseguia
lembrar exatamente de tudo que acontecera, as imagens vinham
aleatoriamente.

Stayon. As coisas que ele disse. Será que eram verdade? Será
que sua mãe realmente o odiava? Bom, se ainda restava alguma dúvida,
o tiro que deu acabou com todas elas.

Mas por que ele ainda se importava tanto?

Se lembrou do impacto do tiro que recebeu. Doía como se


estivesse acontecendo naquele momento. Mas quem era aquela tal de
Luna? Por que o olho dela não era registrado? Seu poder era muito forte,
mas ela parecia não ter ideia do que estava fazendo. Será que ela
realmente era gagrilyana? Klaaoz precisava de uma explicação, não
conseguia parar de pensar naquilo.

De repente, Zuuvak entrou no quarto, acabando com aqueles


pensamentos inconvenientes que começavam a surgir. Ele posicionou
um Holophone em cima de uma mesa e várias telas holográficas se
projetaram. Eram vários noticiários dos mais variados cantos do Sistema
e todos transmitiam a mesma coisa: a holofoto de Klaaoz, a notícia de
que ele atirara no presidente e uma entrevista de Luna, que falava
calúnias a seu respeito.
Como Klaaoz a odiou naquele momento.

— Onde você estava com a cabeça? — Pelo tom de voz que


usava, Zuuvak parecia estar se esforçando muito para se manter calmo.
— Entrar na Capital portando uma arma, invadir aquela festa, atirar no
presidente… —Klaaoz não sabia o que responder, apenas virou um
pouco o rosto, resignado como uma criança que sabia que estava prestes
a ficar de castigo. — Seu rosto está estampado em todos os jornais.
Estão atrás de você de um extremo a outro do Sistema. — Klaaoz queria
falar, mas permaneceu em silêncio. — Nós tivemos que te trazer para
este hospital às escondidas. Abriram um processo de investigação contra
você!

— Eu… não pensei direito na hora… eu só… O quê?! Como


assim, abriram um processo de investigação contra mim?

— Por causa dessa maldita entrevista! — Seus olhos fervilharam


de raiva. Aquele silêncio incômodo reinou por alguns segundos. Klaaoz
não lia mentes, mas era bem óbvio o que estava se passando na cabeça
de Zuuvak. — Você precisa sumir por uns tempos, até a poeira baixar.
Não sei, mas você precisa se afastar do Comando Omega imediatamente
até pensarmos em alguma solução. — As palavras eram como facas
adentrando os ouvidos de Klaaoz.

Ele quis dizer que por uns tempos significava para sempre, mas se
calou. Seu lado emocional entrou em pânico por uns instantes. Se viu
preso num labirinto do qual não adiantava procurar a saída. Seu lado
racional sabia que não existia solução. Só se inventassem uma máquina
do tempo ou se alguém…

De repente, teve uma epifania.

— Eu tenho um plano.
Quando desceram da nave, Luna queria perguntar se naquele
planeta existiam coisas legais e modernas como na Capital, mas teve
muito medo da resposta. E teve mais medo ainda de imaginar a
quantidade de insetos que deveria existir ali.

De cima, o planeta parecia ser uma floresta infinita, mas ela


esperava que por baixo daquelas árvores existisse uma cidade cheia de
telas holográficas e objetos que ela não saberia usar. Mas, depois de
desembarcarem, constatou que realmente era só uma selva gigante.

Árvores gigantescas cobriam tudo, até a luz do sol, deixando o


clima úmido, escuro, mas não de uma forma ruim. O som da floresta era
o único barulho que se ouvia, e não parecia existir vivalma num raio de
cem quilômetros. Mas a natureza parecia estar viva. As plantas se
mexiam enquanto eles caminhavam, seguindo o mapa do Holophone.
Tudo transmitia uma energia boa, paz. As gigantes flores coloridas quase
do tamanho de Luna eram, assim como tudo, lindas. Parecia uma floresta
mágica, e Luna não se surpreenderia se fadas e duendes aparecessem
de repente.

Luna não conseguia manter a boca fechada, estava fascinada


demais com tudo que via. Bok, ao seu lado, não parecia tão
impressionado, mas ria uma vez ou outra quando ela apontava
embasbacada para um novo tipo de vegetação que surgia no caminho. O
sorriso dele ainda causava nela um sentimento de conforto e calma.

Ela ainda não havia parado para pensar a respeito do que


acontecera na festa. Foram tantas emoções nas últimas horas que não
teve tempo para isso. Achava que Bok não se lembrava, mas, quando ele
agarrou sua mão, percebeu que estava enganada. E, só porque não
tinham falado em voz alta, não queria dizer que o beijo não havia
acontecido.

Vê-lo caminhando ao seu lado, carregando sua mala por aquele


chão cheio de musgos, a fez abrir um sorriso. Ela gostava dele. Bok era
divertido, inteligente, prestativo e conhecia o nome de todas as bebidas
da festa. Ele tinha um ar amistoso que o fazia ser o tipo de pessoa que
todos gostam de ter por perto. E, claro, não podia esquecer o modo como
seus lindos olhos verdes combinavam perfeitamente com sua pele, o que
o fazia parecer um modelo de cuecas da Calvin Klein. Luna diria que ele
era afrodescendente, mas aquele termo não fazia sentido fora da Terra, e
ela não sabia se havia algum lugar ali em que todos eram etnicamente
parecidos. Mas, pelo que pôde observar desde que chegou, a Capital era
repleta de diversidade e ninguém parecia dar a mínima para a
nacionalidade ou aparência do outro. Então, isso certamente significava
que algumas coisas da Terra, como racismo, machismo, homofobia ou
qualquer outro preconceito contra um grupo específico de pessoas não
existia lá.

Luna olhou para Bok, tentando encontrar o melhor jeito de


perguntar isso, mas, quando ele deu um sorriso, ela só conseguiu pensar
em como o ex-namorado dela morreria se visse uma foto dos dois juntos.
Na verdade, todas aquelas pessoas falsas da sua escola ficariam com
inveja.

Assim que aprendesse a usar aquele poder idiota, Luna voltaria


para a Capital e convidaria Bok para ir para a Terra com ela. Com a nave
dele, chegariam a Praga em menos de cinco minutos. Na verdade,
chegariam a qualquer lugar em menos de cinco minutos. Poderiam tomar
café da manhã em Praga, almoçar em Dubai e jantar em Paris. Não
existiriam limites.

— Então, futuro marido de brincadeira… — ela comentou.

Ele riu.
— Sim, futura esposa de brincadeira?

— Que tal nós passarmos a nossa… viagem pós-casamento de


brincadeira na Terra?

— Como você quiser, futura esposa de brincadeira. — Ele deu um


beijo em sua bochecha, o que a fez desejar acabar logo com aquele
treinamento que nem havia começado ainda.

Continuaram caminhando, então chegaram em frente a um


pequeno chalé. Era feito de madeira, completamente normal para Luna,
mas Bok parecia estranhar aquele tipo de construção.

— Oberyn? — Ela bateu na porta. Ninguém respondeu. — Eu me


chamo Luna. Hã… Mira me mandou até aqui para você me ensinar a
controlar meus poderes, porque, aparentemente, eu sou gagrilyana.

Continuou sem resposta. Ela decidiu empurrar a porta, que para


sua surpresa estava destrancada.

O chalé possuía uma luz amarelada e quente, ao contrário dos


ambientes da Capital. Havia uma mesa com vários livros espalhados,
tudo estava extremamente bagunçado e lotado de informação. Nas
paredes, havia dezenas de quadros pendurados, assim como objetos
visivelmente muito antigos. Luna olhou de relance para um dos livros que
estava em cima da mesa, mas fora escrito em uma língua que ela
desconhecia.

Avistou uma poltrona de costas, onde parecia ter alguém sentado,


dormindo. Era possível ver um enorme chapéu. Foi até lá e, quando viu o
que estava sentado, deu um grito. Era um esqueleto humano vestido com
um casaco e um chapéu.

Meu Deus, será que aquilo era Oberyn, que morreu e ninguém
sabia, já que ele vivia isolado? Na Terra, aquilo era o equivalente a
envelhecer e morar sozinha com dez gatos e só descobrirem sua morte
duas semanas depois por causa do mau cheiro. Ainda bem que Luna
estava com um casamento de brincadeira marcado com Bok, não queria
terminar morando sozinha com dez gatos.

— Oi — disse uma voz atrás deles, interrompendo seus devaneios.

Luna virou o rosto e se deparou com um homem pequeno de


cabelos e barba grisalhos, óculos fundo de garrafa, um pouco
rechonchudo e vestido com algo… tipo uma túnica branca. Ele parecia
um professor de história hippie que vendia miçangas na praia, não o
irmão de uma primeira-dama.

— O-o-o-i — gaguejou Luna. Ela tinha a impressão de que ele


havia simplesmente se projetado atrás dela. — Você é Oberyn?

— Sou — respondeu, meio apático. Talvez aqueles anos de exílio


tivessem prejudicado suas habilidades sociais. — O que você está
fazendo na minha casa?

— Eu me chamo Luna. Mira me mandou para ter aulas com você,


pois acha que eu também sou gagrilyana.

— Ela o quê?! — ele perguntou como se não estivesse muito feliz


com a notícia. Será que Mira se esquecera de informá-lo de que Luna iria
para lá?

— E eu sou da Terra. — Quando ela falou isso, teve a leve


impressão de ver certa tristeza passar pelo olhar de Oberyn. — Você
sabe quem são meus pais?

— Não — ele respondeu simplesmente.

Luna baixou a cabeça. Como uma única palavra conseguiu


machucá-la tanto? Destruiu completamente todas as suas novas
esperanças.
— Ei… não fique assim. Existem outros jeitos de descobrir, não
perca as esperanças — disse Bok, abraçando-a.

Se ele não estivesse lá, ela provavelmente desabaria em lágrimas.

— Mira disse para eu tentar te convencer a ir conosco para a


Capital… — começou, mas ele logo a interrompeu:

— Ah, claro que ela fez isso. — Ele balançou a cabeça em


negativa. — Mas recusarei a oferta — informou, curto e grosso, e mais
uma vez a entristecendo com suas palavras.

Se ele fosse, tudo seria mais fácil. Ela não precisaria ficar ali
naquele planeta, isolada do resto do mundo e, principalmente, longe de
Bok.

— Por quê? Lá é muito melhor do que aqui! — Luna não desistiria


facilmente.

— Eu tenho meus motivos.

— Quais?

— Não são da sua conta.

Ai, como ele era cabeça dura. Luna mal o conhecia, mas já tinha a
impressão de que conviver com ele seria mais difícil do que participar
daqueles reality shows em que as pessoas precisam sobreviver na selva
e até comer insetos.

Olhou para Bok e falou em seu ouvido:

— Eu não posso ficar aqui com esse louco. Você precisa me levar
de volta. Vamos para a Terra, ninguém nunca vai saber que eu não vim
pra cá. — Bok olhou para ela com sentimentos conflituosos no olhar,
como se travasse uma batalha interna entre o que queria e o que
precisava fazer. — Ele nem sabia que eu vinha! Eu só vim para ver se ele
sabia quem eram meus pais. Mas, como ele sabe ainda menos do que
eu, vamos embora, sério.

Bok suspirou.

— Dê uma chance. Fique aqui pelo menos um dia aureliano, veja


como é. Se realmente for tão ruim assim, amanhã, quando eu vier te
visitar, te levo de volta para a Capital. Conversaremos com Mira e
tentaremos achar outra solução.

— Eu não preciso de um dia para saber que eu odiarei ficar aqui.

Ele pegou sua mão.

— Só um dia. Por favor.

— Eu nem sei se ele vai me deixar ficar aqui. — Ela se virou para
Oberyn, que parecia os ignorar. — Eu posso ficar aqui?

Ele deu de ombros, parecendo que se importava mais com o que


os insetos que existiam ali fariam no fim de semana do que com sua
estada.

Luna não queria ficar nem mais um segundo ali, mas ver Bok tão
atencioso, prestativo, preocupado…

— Ok. Só um dia. — Ela sabia que se arrependeria profundamente


depois, mas… cedeu.

Um dia. Vinte e quatro horas. Não era o fim do mundo.

Eles saíram do chalé, se abraçaram, se beijaram e, sempre que


Bok estava saindo, voltava e a beijava novamente. Repetiram isso cinco
vezes, como namorados que não conseguem desligar o telefone.
Oberyn estava encostado na porta, olhando a cena com desprezo.
Ele provavelmente era uma daquelas pessoas revoltadas com o amor,
frustrado por não ter arranjado um par para o baile da escola.

Quando Bok foi embora de vez, ele falou:

— Então, quer dizer que você é gagrilyana?

— Bom, é o que Mira diz…

— Sim, mas você acha que é só porque ela diz?

Luna respirou fundo.

O arrependimento por não ter ido embora com Bok já havia


começado. Só faltavam vinte e três horas e alguns minutos. Ela iria
conseguir.

— Eu consigo ler mentes.

— Hum — disse com pouco entusiasmo, parecendo duvidar dela.


— E no que eu estou pensando?

— Que você não precisa ser tão grosso! Se eu já soubesse ler, não
estaria aqui! — explodiu.

Ele ficou calado por alguns minutos com uma expressão séria.
Luna já estava esperando ele xingá-la e expulsá-la da sua casa,
obrigando-a a dormir no meio do mato. Mas ele apenas disse, como se
nada tivesse acontecido:

— Mas você já leu alguma mente?

— Eu meio que entrei na de Klaaoz.


— Klaaoz? — Ele levantou uma sobrancelha. — E o que ele fez?

— Ele ficou com muita raiva e… quebrou uma cadeira.

Ela conseguiu arrancar uma risada dele.

— Oh, cosmos, ele não tem jeito…

— Você o conhece?

— Se eu conheço? Eu sou tio dele!

— Ah, é mesmo… — Às vezes ela esquecia disso.

Ainda parecia uma ideia absurda uma pessoa tão boa como Mira
ser mãe de alguém tão desprezível quanto Klaaoz.

— E essa foi a primeira vez que você usou seus poderes?

— Hum… Que eu saiba, sim. — Ela tentou procurar em sua mente


algum episódio parecido, mas não encontrou nada.

— Entendo… — Ele levou a mão até o queixo e continuou a


analisá-la.

— Qual é o seu poder? — Ele parecia estar se tornando simpático.


Talvez só estivesse desacostumado com contato humano.

Oberyn saiu de perto da porta e parou a alguns metros dela.

— Jogue alguma coisa em mim. — Ela o encarou, confusa. —


Vamos, pegue uma pedra no chão e jogue.

Ela levantou a sobrancelha. Ok, já que ele estava mandando…


Luna pegou um pedregulho e atirou em direção à sua barriga. Bem que
havia sentido vontade de fazer isso quando ele estava sendo
desagradável… Mas, alguns centímetros antes de encostar nele, a pedra
bateu em algum tipo de parede invisível e voltou em sua direção.

— Você também tem telecinesia?

— Não. Eu posso criar campos de força. E também isso.

Nessa hora, ele simplesmente desapareceu. Estava parado na


frente dela meio segundo atrás, mas não estava mais.

— Oberyn? — Magicamente, ele reapareceu. — Nossa! — Luna


disse, impressionada e com um pouco de inveja. Ficar invisível
certamente era mais útil do que ler mentes.

Ficou imaginando todas as coisas que faria se esse fosse o seu


poder. Primeiro, iria até o Comando Omega e daria um chute no meio das
pernas de Klaaoz. Riu sozinha ao imaginar isso.

— Do que você está rindo?

— Estou pensando o que eu faria se tivesse o seu poder… —


disse com um sorriso maldoso nos lábios.

— E o que seria?

— Então, se eu pudesse ficar invisível, a primeira coisa que eu


faria seria… — ela começou, mas, ao olhar pra trás e perceber quem
estava vindo, perdeu a fala.

Não. Não. Não podia ser.

— Olá, tio.
11

11- Gagrilya

De acordo com a lei de Murphy, se algo pode dar errado, dará errado.
Mas Luna, do contra que era, discordava disso. Ela gostava de acreditar
que o que a lei de Murphy dizia na verdade era que o que pode acontecer
talvez acontecerá. Essa era uma de suas verdades absolutas. Ela se
apegava a essa crença para esquecer as tragédias da sua vida: o fato de
ter sido expulsa da escola, de nunca ter conhecido seus pais…

Porém, parecia que, desde que ela saiu da Terra, suas verdades
absolutas iam se desfazendo uma por uma.

Ver Klaaoz ali, parado à sua frente, a fazia acreditar nisso. As


coisas nunca dariam certo na vida dela. E ele não se parecia em nada
com a pessoa que ela se lembrava de ter conhecido na festa. Ok, talvez
só 1%.

Ele usava roupas escuras que, apesar de serem elegantes, não


eram apropriadas para aquele clima. Provavelmente estava suando e
cheirando mal por dentro. E realmente precisava se bronzear, parecia
uma vela. No canto de sua boca havia aquele leve sorriso de 0,5 cm, e
ela desconfiava de que, se ele abrisse a boca, o veneno escorreria. Seu
cabelo estava perfeitamente arrumado, sedoso e com leves ondas…
realmente era bonito. Por mais que o odiasse, Luna não tinha como
negar. Mas ele era uma pessoa horrível por dentro, então não importava.
E continuava com aquele olhar impassível e tempestuoso, no qual
Luna quase conseguiu ver trovões.

Voando ao seu lado, notou uma criatura estranha que mais parecia
um demônio. Só que um demônio fofinho. Era do tamanho de uma bola
de vôlei, cinzento e felpudo, com asas de morcego e chifres. Os dentes
afiados ficavam para fora da boca, e, se não fosse pelo olhar raivoso,
Luna até faria carinho em sua cabeça.

Ela não conseguia acreditar no que estava vendo. Tudo de novo


não. Aquilo só podia ser uma pegadinha. Certamente havia câmeras
escondidas em algum lugar.

Sem saber o que fazer e claramente sem pensar, ela pegou um


galho de árvore que estava no chão e apontou para ele.

— O que você quer? — perguntou agressivamente, só depois


percebendo o quão patético era aquilo.

Klaaoz lançou um olhar de desprezo, ergueu a sobrancelha e disse


como se fosse a coisa mais natural do mundo:

— Vim visitar meu tio.

— Mas hoje não é meu aniversário. — Oberyn pareceu surpreso


por vê-lo ali.

— Eu não estou com a pedra — Luna se apressou em dizer. —


Todos estão procurando você. E eu tenho um Holophone e não hesitarei
em ligar para a polícia. — Ela pegou o aparelho com a intenção de ligar
para Bok para pedir ajuda. Ficou encarando aquele pequeno objeto
prateado por alguns segundos, colocou na orelha e disse: — Ligar para a
polícia.

Mas nada aconteceu. Klaaoz a encarou como se estivesse com


vontade de rir. Ela desistiu e guardou o aparelho no bolso. Não fazia a
mínima ideia de como aquilo funcionava.

— Hã? — perguntou Oberyn.

— Ele tentou me matar!

Klaaoz revirou os olhos.

— Eu nunca tentei matar você.

— Tentou, sim.

— E o que a faz achar que eu não teria conseguido se tivesse


tentado? — Ele pareceu ofendido.

Luna empalideceu enquanto os olhos dele brilhavam de desprezo.


Parecia que ele sempre tinha uma resposta na ponta da língua para tudo,
o que era extremamente irritante.

— Ele atirou no presidente! E está sendo procurado em todos os


planetas!

— Você atirou no seu pai? — Oberyn pareceu menos incrédulo do


que deveria.

— E estou bastante arrependido. Por isso estou aqui, para me


redimir e ajudar vocês — disse, olhando para Oberyn com uma
dramaticidade na voz que Luna tinha certeza de que lhe renderia um
Oscar, porque obviamente estava mentindo. — É perigoso ficar aqui. O
Comando Omega já sabe desta localização, sabem que ela é gagrilyana
e farão de tudo para capturá-la. Por isso, sugiro que venham comigo e
Morg.

— Quê?! — Luna só podia ter ouvido mal.


— Eles já estão a caminho — disse, retirando um Holophone do
bolso do casaco e observando a tela calmamente.

— E por que nós deveríamos acreditar em você? Uma pessoa que


é capaz de tentar matar o próprio pai!

Klaaoz respirou fundo, como se já estivesse cansado dela mesmo


fazendo só alguns minutos que estavam conversando.

— Olha, eu estou aqui para ajudar meu tio. Se não quiser ir,
problema seu. Mas fique ciente de que chegarão aqui a qualquer
momento para te prender.

Luna o encarou. Ele devia estar blefando.

— O que garante que isso não é uma armadilha?

— Se isso fosse uma armadilha, eu já teria trazido os guardas e


prendido você aqui mesmo.

Ela olhou para Oberyn à espera de uma resposta, mas ele apenas
olhou para os dois com a expressão confusa.

— Se aqui não é seguro, por que não voltamos para a Capital? —


questionou ela.

— Porque aparentemente estou sendo procurado em todos os


planetas do Sistema. Agora quero apenas ajudar vocês e me redimir pelo
que eu fiz, acredite ou não.

— Klaaoz, por que você atirou no seu pai? — perguntou Oberyn.

— É uma longa história e ainda teremos muito tempo para


conversar sobre isso. Mas isso não vai acontecer se ficarmos aqui. O
Comando Omega tem grandes intenções de pôr as mãos nela porque
acham que seu poder de entrar na mente das pessoas pode ser muito útil
para eles. Como eu não faço mais parte deles, só quero ajudar.

— Oberyn, é óbvio que isso é mentira. Não acredite nele!

Klaaoz se virou para ela, fuzilando-a com o olhar.

— Você está mentindo, Klaaoz? — perguntou Oberyn.

— Não. Estou falando a verdade.

— Ele disse que não está mentindo — Oberyn falou para Luna.

Ela revirou os olhos, e Klaaoz assumiu um sorriso arrogante,


provavelmente adorando aquela situação.

— Claro que, se ele estiver mentindo, não dirá que está, não é? O
que você esperava? Que o nariz dele crescesse ou algo do tipo?!

— Se mentir fizesse o nariz crescer, eu não consigo nem imaginar


de que tamanho estaria o seu só por aquela sua entrevista — Klaaoz
levantou a voz, mostrando que aquilo estava entalado em sua garganta
desde que chegou.

Luna se calou e sentiu o rosto ficar vermelho. Não tinha sido


exatamente culpa dela, mas… Ah, ele mereceu.

— Eu não acho que ele esteja mentindo — Oberyn sussurrou para


Luna.

— E não estou — Klaaoz afirmou num tom petulante, encarando


Luna.

— Para onde nós vamos? — perguntou Oberyn.


— Para minha casa. Tenho certeza de que você irá gostar.

— Tem ceecolini? Faz estações que eu estou desejando comer um


ceecolini. Os que você me trouxe ano passado já acabaram.

— Tem — respondeu Klaaoz com uma expressão divertida, mas


sem sorrir.

— Bom, então o que estamos esperando? — perguntou Oberyn. —


Vou pegar minhas coisas e já volto para irmos.

Luna piscou algumas vezes, sem acreditar naquilo. Depois se


recompôs.

— Oberyn, por favor, isso deve ser uma armadilha. Vamos ficar
aqui, eu imploro. — O desespero que transparecia em sua voz não era
nem metade do que estava sentindo.

— Para que ele mentiria, Luna? — perguntou Oberyn de longe


conforme juntava seus pertences.

— Ele está mentindo! Eu acabei de ler a mente dele e vi que é tudo


mentira! — Ela decidiu apelar.

— Mas você não disse que não sabe usar o seu poder ainda?

Klaaoz cruzou os braços com um sorriso envaidecido no canto da


boca, certamente tentando fazer parecer que aquilo que ela fez foi
patético só para encobrir o fato de que tudo não passava de uma grande
mentira.

— Pois eu não vou, pode ir. Eu me recuso. — Ela se sentou no


chão e cruzou os braços.

— Bom, você o ouviu, o Comando Omega vai chegar aqui a


qualquer momento.
— É óbvio que ele está mentindo, Oberyn. Eu vou ficar aqui e,
quando Bok me ligar, peço para ele vir me buscar.

— Bom, se Klaaoz estiver mentindo e você for conosco, tudo que


você precisará é dizer para aquele rapaz que lhe trouxe para buscá-la em
um lugar diferente… Mas se ele estiver dizendo a verdade e o Comando
Omega realmente chegar aqui… — Suas palavras cessaram, e a
expressão que tomou conta do seu rosto foi no mínimo preocupante.

Luna engoliu em seco. Talvez ele estivesse certo, mas isso não
significava que ela precisava dizer aquilo em voz alta.

— Não importa, eu não vou.

Klaaoz tinha um olhar ríspido sobre ela, a expressão de frieza


indicando que não faria diferença para ele se ela fosse ou não.

— Pois bem — ele disse, ainda a encarando. — Vamos, Oberyn.


Eles devem estar chegando em dez minutos. E as jaulas que eles
costumam manter os gagrilyanos não são lá muito confortáveis, eu
odiaria que você fosse mantido em uma delas.

O coração de Luna deu um salto enquanto observava os dois lhe


darem as costas e caminharem em direção à nave. O nó em sua
garganta aumentava à medida que eles se afastavam.

Klaaoz estava blefando. Ninguém chegaria ali, ela só precisava


esperar Bok voltar. Ela sabia se virar, conseguiria sobreviver algumas
horas sozinha. Essa história de estarem indo lhe prender era obviamente
mentira. Ela não cairia nessa.

Luna fechou os olhos, e as palavras de Oberyn martelaram sua


mente, o olhar terrificado que ele assumiu ao falar o que aconteceria se o
Comando Omega realmente chegasse ali. Ele não conseguiu nem…
completar a frase.
Um calafrio paralisante percorreu o corpo de Luna.

— Esperem! — ela gritou, cerrando os punhos.

Klaaoz se virou, em seu rosto havia um sorriso venenoso que


revelava que as coisas estavam saindo exatamente como ele planejara.

Luna respirou fundo, sentindo seus olhos arderem, mas ela não
daria a ele o gostinho de vê-la chorando. Ergueu a cabeça, pegou sua
mala e foi em direção a eles.

Quando a porta da nave se fechou, ela sentiu um bolo se formar


em sua garganta. Não acreditava que aquilo estava acontecendo. Não
acreditava que Klaaoz tinha mudado e decidido se tornar bonzinho de
uma hora para outra. Sentia que alguma coisa estava muito errada, como
se seu pior pesadelo estivesse prestes a se tornar realidade.

Se virou para Klaaoz, que estava parado exatamente atrás dela, e


o fuzilou com o olhar.

— Você não gosta de mim — observou ele com seus olhos


ríspidos e sombrios sobre ela, parecendo que podia sentir sua ira
crescendo.

— Por que será? — ela retrucou.

— Não foi uma pergunta. — Ele a encarou por alguns instantes e


depois saiu para o painel de controle.

— Mwahau — Morg grunhiu, depois seguiu Klaaoz. Mwahau


significa algo como “eu não gosto de você”.

Ai, como ele era insuportável. Luna ainda não conseguia aceitar a
ideia de ter que ficar no mesmo lugar que Klaaoz por vários… dias?
Semanas? Meses?
Odiava-o tanto que doía.

Quando a nave ficou diante de um planeta que parecia uma bola de


golfe gigante devido à quantidade de gelo que havia em sua superfície, a
expressão de Luna se dividia entre a preocupação, por não saber se na
sua mala havia roupas para aquele frio, a ansiedade, por estar prestes a
conhecer outro planeta, e o ódio, por estar mais uma vez presa ao lado
de Klaaoz.

À medida que a nave perdia altitude, ficava claro que seria preciso
mais do que um simples casaco para enfrentar aquele clima. Ela só via
neve. E onde não havia neve, havia gelo. Neve e gelo, era só o que
parecia existir ali.

— Mas esse não é… — Oberyn começou, abismado ao formular a


pergunta, mas Klaaoz interrompeu:

— É, sim.

Construções colossais cobertas por neve começaram a aparecer.


Ela viu palácios que pareciam feitos de mármore branco dos mais
diferentes tamanhos. Cada um ficava longe do outro, e no caminho havia
grandes pedras de gelo de todos os formatos, mas em sua maioria
pontiagudas. Passaram por uma pequena cidade que contava com a
mesma arquitetura, mas não encontraram nenhuma pessoa em lugar
algum. Luna se perguntava por que um planeta tão bonito como aquele
era completamente inabitado. Bom, talvez porque Klaaoz morasse lá.
Também viram pequenos lagos e árvores estranhas cobertas de
neve, parecendo algodão-doce. Era um verdadeiro cenário de filme de
Natal, só faltava o Papai Noel aparecer em um trenó. Se o encontrasse,
Luna pediria de presente um celular no qual soubesse mexer. E que
Klaaoz fosse preso.

A nave aterrissou em frente a uma enorme casa com um caminho


de neve envolto por árvores que levava até sua entrada. Klaaoz apertou
um botão que fez um armário se abrir, revelando várias vestimentas
pretas iguais. Ele pegou uma, que era um tipo de capa aveludada com
pelos ao redor do capuz, e, quando vestiu, ficou parecendo um espectro
das trevas ajudante de um vilão sem nariz que o nome não deve ser
mencionado. Outras duas vestes iguais levitaram para Luna e Oberyn.

— O dia aqui dura apenas seis horas gagrilyanas. A noite dura


vinte. E evitem sair à noite para não se perderem — avisou.

Luna vestiu aquela capa horrível e, assim que pôs os pés fora da
nave, teve a sensação de que alguma coisa havia cortado seu rosto.
Finalmente entendeu de onde vinha a expressão “frio de doer”.

Mesmo tremendo, ficou sem fôlego ao olhar para o céu. Era de um


tom rosa-claro, como se fosse feito de iogurte, e gerava um contraste
magnífico com o branco da neve. Sim, havia neve por todo lugar, e ela
não estava acostumada com aquele clima. Sentiu uma sensação
estranha ao pisar no chão, sempre pensara que neve fosse mais macia.
Só que era dura. Como raspadinha ou como aquelas bebidas frozen de
que ela não gostava, pois sempre que as bebia tinha a sensação de que
seu cérebro iria congelar. Oh, céus, e se o seu cérebro congelasse por
causa do frio?

Luna pegou sua mala e correu.

A casa era toda branca. Cada centímetro de sua fachada era


esculpida com símbolos e inúmeras esculturas em alto-relevo ricamente
trabalhadas. Sua beleza e riqueza de detalhes eram de tirar o fôlego. O
caminho de gelo envolto por árvores dava um ar majestoso, deixando
tudo tão bonito que não parecia ser real. Parecia um cenário de conto de
fadas bizarro.

Klaaoz foi na frente com Morg e Oberyn e já abria a porta. Luna


estava completamente embasbacada com tudo que via, a ponto de se
esquecer até do frio. Ficou lá fora observando o ambiente, e depois
começou a tentar arrastar sua pesada mala. Movê-la sobre aquela neve
estava sendo uma tarefa quase impossível, gostaria que Bok estivesse ali
para ajudá-la. Até que, de repente, a mala começou a flutuar para dentro
da casa. Ela engoliu em seco e continuou andando.

Logo na entrada, havia um enorme salão com piso xadrez e uma


grande escadaria que se estendia para dois lados com o corrimão
entrelaçado, meio assustador. Klaaoz provavelmente empurrava pessoas
dela, como faziam os vilões nas novelas das nove. Um lustre estranho e
enorme, no mesmo estilo da escada, deixava o ambiente com uma
iluminação semelhante a uma foto que teve o brilho diminuído no
photoshop. Os móveis pareciam ser mais velhos do que a soma da idade
de todos ali multiplicada por dois. Era totalmente o oposto do
apartamento da Capital.

Mas, por mais antigo que parecesse, tudo estava bem conservado
e organizado. A casa estava impecavelmente limpa e não parecia
abandonada como as outras do caminho. Klaaoz certamente era uma
daquelas pessoas frescas com mania de limpeza. E, ao ver uma fileira de
sapatos ao lado da porta, ela teve certeza disso. Ela retirou os seus e
calçou uma espécie de pantufa felpuda que estava à disposição. Era
horrível, mas pelo menos deixava seus pés protegidos do frio.

Três empregados chegaram para recebê-los. Uma mulher de meia-


idade que parecia ser humana se não fossem pelas orelhas pontudas
deu um sorriso maternal para Luna.

— Me deixe ajudá-la, querida — disse, já pegando sua mala. Antes


de partir, Mira havia providenciado roupas e tudo que Luna precisaria
para a viagem. Ela ainda não tivera tempo de abrir, mas estava curiosa
para ver o que tinha lá dentro. — Klaaoz, esse é meu sobrinho,
Rysloslakkohr. Ele teve alguns problemas em casa e eu resolvi trazê-lo
para me ajudar — continuou, apontando para um rapaz da mesma
espécie, alto, magro, de cabelo loiro-escuro e que estava olhando para
Luna com mais intensidade do que o normal.

Klaaoz assentiu e seguiu para as escadas.

— Senhor Klaaoz — cumprimentou o outro empregado, que tinha a


pele roxa.

— Klaaoz, onde a instalo? — perguntou a mulher.

Ele já estava na metade da escada quando parou, olhou para eles


e ficou pensativo. Luna estava esperando ele dizer que ela ficaria em
uma cela medonha dentro das masmorras ou algo do tipo. Mas, em vez
disso, ele falou:

— Na suíte Leste.

— Perfeito! Vamos, você vai adorar! É um dos melhores quartos


daqui! Tenho certeza de que terá uma estada bastante agradável. Você
deve estar morrendo de fome, vou preparar alguma coisa para você
comer… E, a propósito, como você se chama? — disse a mulher,
pegando no braço de Luna e guiando-a para o outro lado da escadaria.

Luna ficou acompanhando Klaaoz com o olhar conforme ele subia.


Ele não perdia a pose de sério nem por um segundo, era impossível
identificar qualquer emoção dele, como se usasse uma armadura
invisível para encobri-las o tempo todo.

Enquanto Luna ainda o observava, ele a olhou de soslaio e, por um


milésimo de segundo, seus olhares se cruzaram. Mas, assim como
quando você está stalkeando o Instagram de alguém e sem querer curte
uma foto e rapidamente descurte, seus olhares desviaram.
O quarto seguia o mesmo padrão antigo. Vintage ou retrô? Luna
não sabia ao certo. A começar pela porta, que era de madeira escura,
toda trabalhada em detalhes semelhantes aos da fachada da casa. As
paredes eram recobertas por um tecido nobre floral em tons de vinho. A
cama era enorme e tinha um dossel que ia do teto ao chão. Um lustre
dourado iluminava o ambiente, fazendo o quarto parecer um daqueles
aposentos reais vistos em livros de História. Talvez só monarcas
franceses que tiveram suas cabeças cortadas tenham tido quartos como
aquele. No entanto, ao mesmo tempo em que remetia a essa decoração
renascentista da Terra, possuía elementos que pareciam ser modernos.
Modernos para a Terra, porém antigos para lá. Certamente se tratava de
algo muito velho ou talvez típico daquele planeta. Que tipo de pessoas
teriam morado ali antes de Klaaoz?

Os desenhos na madeira em volta na cama e do guarda-roupa


eram meio geométricos, um pouco futurísticos. Pareciam espinhos, mas
não furavam. Vários quadros estranhos com molduras exageradas
estavam na parede e se pareciam muito com os que Luna havia visto na
casa de Oberyn. Luna parou em frente a um; era totalmente abstrato, em
tons de azul-escuro e preto, mas… passava muita emoção. Luna não era
uma profunda conhecedora das artes, jamais conseguiria diferenciar um
Monet de um Van Gogh, mas entendia que o valor dos quadros era
baseado nas emoções que provocavam. E aquele, por mais simples que
pudesse parecer, a deixou muito comovida. Era tão… melancólico.

— De onde você é, Luna? — perguntou a mulher, interrompendo


seus devaneios.
Ela ficara tão fascinada pelo quadro que esquecera que nada
daquilo importava, todo aquele luxo e conforto eram irrelevantes diante
do fato de que estava presa.

— Por favor, me ajude a fugir daqui — disse, explodindo em


lágrimas. A mulher ficou sem reação. — Ele me sequestrou. De novo! Por
favor, me ajude a fugir — implorou entre soluços.

— Calma, eu… vou falar com ele. Um momento.

A mulher saiu, e Luna enxugou as lágrimas. Aquilo foi rápido. Se


soubesse que seria tão fácil, não teria ficado tão desesperada.

Alguns minutos depois, a mulher voltou segurando um prato com


algo que Luna não sabia identificar. Podia ser uma peça de arte moderna,
mas, por estar em um prato, desconfiava que fosse de comer.

— E aí, o que ele disse?

— Que você pode juntar suas coisas, pois ele vai te levar de volta
agora.

O rosto de Luna se iluminou.

— Sério? — Ela não conseguiu conter a felicidade.

— Claro que não. Eu não falei com ele ainda. Fui só pegar um
pedaço de bolo para você. Você parece estar precisando de um. — Luna
ficou paralisada por alguns instantes. É, estava fácil demais para ser
verdade. Ela trabalhava para ele, não dava para confiar. — Mas vou falar
com ele depois — completou a mulher, entregando o suposto bolo.

— Ok… — Luna não tinha tanta certeza sobre aquilo. — Isso é um


bolo? Parece uma obra de arte.

— Obrigada. — Ela sorriu, satisfeita.


— Desculpe, não sei seu nome.

— É Coisina.

Luna levantou a sobrancelha enquanto comia.

— Seu nome é… Coisina?

Ela riu.

— Não, na verdade meu nome é Kostynizznhkia. Coisina é apenas


apelido. Nomes teyrilianos são difíceis de pronunciar por quem não é de
lá.

— Nunca ouvi falar desse planeta. Para falar a verdade, eu não


conheço quase nada daqui. Até alguns dias atrás, eu nunca havia saído
do meu planeta.

— Como assim?

— Meu planeta não faz parte desse Sistema e ninguém costuma


sair muito de lá.

— Nossa! Então você deve estar louca para conhecer outros


lugares. Mas vai gostar daqui. Apesar do frio, é muito bonito. Depois peça
para Klaaoz te mostrar as redondezas.

Luna riu. Aquilo era uma piada?

— Klaaoz me mostrar as redondezas? Até parece que ele seria


capaz de fazer alguma gentileza por alguém.

— Eu sei que ele é uma pessoa um pouco fechada e que a princípio


pode parecer meio… difícil, digamos assim. Mas se der uma chance,
talvez se surpreenda. Ele é dealasachkyea. — Dealasachkyea é uma
expressão gagrilyana usada para indicar quando algo parece ser uma
coisa, mas na verdade é outra completamente diferente.

— Essa eu quero ver.

— É verdade. Já faz muito tempo que eu o conheço.

— Há quanto tempo você trabalha para ele?

— Hum… — Ela levou a mão até o queixo, pensativa. — Desde


que ele tem quarenta e nove anos aurelianos.

Luna não conseguiu esconder seu choque.

— Ok, então além de todas as monstruosidades que ele faz, ele


também mantém um quadro envelhecendo por ele no porão enquanto
continua jovem.

Essa era a única explicação para ele ter a pele daquele jeito.
Juntando o tempo pelo qual Coisina trabalhou para ele com o tempo pelo
qual Mira disse que ele se manteve fora de casa, dava cinquenta e quatro
anos.

Coisina pareceu não entender o que Luna falou, mas riu mesmo
assim. Se despediu e avisou que o jantar seria servido às oito horas no
horário aureliano.

Luna foi ao banheiro e instalou o chuveiro. Na verdade, apenas o


encaixou no lugar do outro, que era igual, mas ela preferia usar um que já
a conhecia.

— Chuveiro, ligar.

— Olá, Luna, o de sempre?

— Sim, Freud, obrigada.


— Como vai?

— Bom, tirando o fato de que eu fui sequestrada pela segunda vez


na mesma semana e que agora vou ser forçada a conviver com a pessoa
que eu mais odeio no mundo e que esta semana está conseguindo ser
pior do que a semana em que eu fui expulsa da escola… Vou bem, e
você?

— Vou muito bem.

Ela ficou encarando a parede por alguns instantes.

— Você poderia me explicar como funcionam as horas aqui?

— Claro. O sistema de medidas usado em todos os planetas é o


aureliano. Uma hora aureliana equivale a trinta minutos da Terra.

Interessante.

— E existe diferença entre uma hora gagrilyana e uma hora


aureliana? E os anos?

— Uma hora gagrilyana equivale a quatro horas aurelianas. O ano


aureliano possui cem dias e quatro estações. O ano gagrilyano possui
duzentos dias e oito estações.

— Como assim, estações? Vocês não têm meses aqui?

— Não, os anos são divididos por estações.

— Que dia é hoje?

— Hoje é o décimo dia da segunda estação do ano aureliano 205.


— Isso está ficando cada vez mais confuso. Qual a diferença disso
para a Terra?

— Uma hora terrestre equivale a meia hora gagrilyana e a duas


horas aurelianas.

— Ok, agora ficou pior. E os dias?

— Um dia aureliano possui trinta horas aurelianas, e um dia


gagrilyano possui vinte e seis horas gagrilyanas.

Ela ficou tentando calcular mentalmente o que queria saber, mas


não conseguiu. Ela era de humanas.

— Quanto é quarenta e nove anos aurelianos somado a cinco anos


gagrilyanos?

— Cinquenta e oito anos aurelianos ou trinta e três anos


gagrilyanos.

— E quanto isso dá na medida da Terra?

— Vinte anos terrestres.

Quando saiu do banho, Luna resolveu ir bisbilhotar a mala para ver


o que Mira havia colocado lá. Estava adorando as novidades
tecnológicas, que provavelmente não eram novidades naquele planeta.
Tinha um makeuptor e outras coisas estranhas que ela não sabia para
que serviam.

Mas as roupas… Oh, céus! Eram horríveis. Escandalosas,


espalhafatosas, exageradas. Tudo o que queria era um jeans e uma
camiseta, era pedir muito?

Afastou as coisas para um lado da cama e se deitou. Percebeu


que no interior do dossel havia desenhos de várias constelações que se
mexiam e mostravam até os cometas que passavam no lugar. Era
perfeito.

Ficou olhando, fascinada, tentando identificar alguma estrela, mas


caiu num sono profundo em poucos minutos.

Luna acordou de sobressalto com Coisina batendo na porta e


informando que o jantar estava na mesa. Por quanto tempo dormiu?

— Eu não vou — Luna disse mesmo morrendo de fome.

Não suportava a ideia de ficar no mesmo ambiente que Klaaoz,


quanto mais na mesma mesa.

Depois de alguns minutos, sua barriga emitiu um som estridente.


Devia ter pedido para Coisina pelo menos lhe levar alguma comida. Luna
saiu do quarto, pôs a cabeça na beira da escada e avistou Klaaoz,
Oberyn e Coisina na mesa. Desceu até lá.

A sala de jantar parecia pertencer a um palácio de algum


excêntrico czar da Rússia. Havia uma mesa enorme e retangular com
cadeiras de madeira preta toda trabalhada e assentos borgonha
acolchoados em veludo, que eram perfeitas para fazer uma reunião de
algum tipo de organização do mal. As paredes eram cobertas por um
tecido escuro nobre e contavam com um número exagerado de quadros
pendurados.
Eles estavam jantando uma coisa estranha que parecia ser um tipo
de sopa que Luna normalmente teria medo de provar, mas sua fome era
maior. Pegou um prato, se serviu, se sentou no assento ao lado de
Oberyn e, antes de levar a comida a boca, disse:

— Por que me manter aqui? — Todos levantaram os olhos, menos


Klaaoz, que apenas a ignorou e continuou comendo como se ela fosse
um inseto insignificante que não era digno de sua atenção. — Estou
falando com você, Klaaoz.

Sua colher estava na metade do caminho entre o prato e a boca


quando ele disse:

— Eu não quero te manter aqui. — A voz dele era tão fria e calma
que a deixava inquieta.

— Então me deixe ir embora!

— Ninguém está te impedindo — respondeu com desdém.

— Me leve de volta.

— Não. Peça ao seu amiguinho. Eu estou louco para ter uma


conversa com ele a respeito do tiro que ele me deu. — Seu olhar era de
puro veneno. Luna queria xingá-lo até não poder mais, mas precisava
manter a compostura.

— Qual o nome deste planeta? — perguntou, ignorando a


provocação.

— Gagrilya.

Ela continuou a comer em silêncio. Tinha certeza de que Bok


ligaria, era só esperar.
Depois do confronto, o silêncio reinou na mesa. Era agonizante o
modo como todos comiam calados. Luna sentia até vontade de chorar
por saber que ia ter que passar um bom tempo tendo que conviver com
aquelas pessoas estranhas. Por que eles não conversavam durante o
jantar como pessoas normais?

— Amanhã vai nevar? — ela perguntou só para quebrar o silêncio.

— Não sei, minha bola de cristal quebrou. E a sua, Oberyn? —


disse Klaaoz, se levantando e indo embora com aquele 0,5 cm de sorriso
insuportável.

Luna olhou para Oberyn à espera de uma resposta, mas ele


apenas deu uma gargalhada. Ela ainda demorou alguns segundos para
entender que aquilo havia sido irônico. Que idiota.

Luna estava em seu quarto quando começou a olhar atentamente


para um dos inúmeros quadros da parede. Esse era roxo com sombras
azuis-escuras misturadas com pequenos pontinhos que lembravam
estrelas. Ele enchia o coração dela com desejo de… descobrir mais.

Quando ela olhava para o céu noturno, costumava ver apenas


pontos imutáveis de luz. Nunca pensou nos abismos que existiam entre o
espaço e o tempo.

Tempo. Espaço.
Essas eram apenas palavras que ela usara como desculpa para
terminar com o babaca do seu ex-namorado. Mas, naquele momento,
tudo havia se tornado bem mais complexo.

Parecia que o sentido de toda e qualquer coisa que ela conhecia


tivesse sido substituído pela constatação de que não existe lógica
nenhuma em nada. Era até assustadora a forma como seu universo se
expandira nos últimos dias. Nunca, nem em seus sonhos mais utópicos,
imaginou que uma coisa dessas aconteceria. E, naquele instante, Luna
se deu conta de que sua visão de mundo fora ampliada para sempre.
Sentia que simplesmente não tinha limites.

Para quem praticamente nunca havia saído nem da própria cidade,


agora estava conhecendo outros planetas. Outros planetas, repetiu para
si mesma para ver se acreditava.

Pensou em outra frase de Gandalf: “seu lar ficou para trás agora. O
mundo está à sua frente”. Se sentiu feliz e fascinada por alguns instantes.
Até que se lembrou de quem era a casa em que estava.

Luna suspirou e resolveu pegar seu diário, decidida a começar a


colocar em prática de verdade o sonho de seguir os passos do pai,
mesmo sem nunca ter tido nenhuma prova de que ele realmente era
jornalista e de estar com sérias dúvidas sobre sua verdadeira identidade.

Escreveu:
Então ficou encarando o papel.

As coisas em que estava pensando há pouco tempo pareciam bem


mais profundas e poéticas em sua cabeça. Jogou o diário de lado e
desistiu. É muito difícil acompanhar o ritmo dos seus pensamentos e
transcrevê-los para o papel quando se é de peixes.

Mais tarde naquela noite, Luna se remexia de um lado para o outro


na cama, mas o sono não vinha. Será que ela estava tendo jet lag?
Sempre pensara que era apenas frescura quando os famosos
reclamavam disso no Twitter, mas começou a perceber que havia
formado uma opinião precipitada.

Decidiu então conhecer o resto dos cômodos da casa. Abriu a


porta do quarto com todo o cuidado para não fazer barulho e, no fim
daqueles corredores escuros e silenciosos, avistou uma forte luz azul que
parecia lhe chamar. Luna foi até lá e descobriu que a luz vinha de uma
porta dupla que estava entreaberta e dava para um enorme salão com
piso brilhante e paredes completamente cobertas de espelhos
emoldurados. Eles refletiam os lustres e as esculturas de vidro que
estavam sendo iluminados pelo luar. Eram esculturas de pessoas nas
mais diferentes posições, tão perfeitas que Luna não se surpreenderia se
fossem pessoas sequestradas por Klaaoz que ele congelou e aprisionou
lá. No teto havia pinturas semelhantes às que se via na cúpula das
igrejas renascentistas dos livros de arte. Era mágico de tão lindo. O dono
daquela casa poderia ser uma pessoa desprezível, mas realmente tinha
um ótimo gosto arquitetônico.

Ao final do salão, encontrou outra porta de vidro, também aberta e


que dava para uma grande sacada com vista para enormes montanhas
nevadas. Luna se aproximou devagar até perceber que havia uma
pessoa lá. Ficou parada na porta ao perceber quem era, escondida.

Klaaoz.

Ele estava na beira da sacada com o olhar perdido no horizonte.


Tomara que ele esteja pensando em se jogar, Luna pensou e decidiu
voltar para o seu quarto antes que ele a visse perambulando por sua
casa.

Foi se afastando o mais cuidadosamente possível para não fazer


nenhum barulho, mas esbarrou em uma escultura, que balançou.
Entretanto, ela conseguiu segurá-la a tempo. Essa foi por pouco. Mas o
que Luna não esperava era o fato de seu topo ser solto, de modo que
começou a balançar.

Não. Não, não, não, não.

Ela ainda tentou segurar, mas não conseguiu, e a peça se


espatifou no chão. Foi vidro para todos os lados. Luna voltou para o
quarto rapidamente, se perguntando se Klaaoz a teria visto. Bom, era só
esperar. Se ele fosse ao seu quarto brigar, é porque viu; se não, é porque
não viu.

Ela adormeceu esperando.


12

12- Klaaoz, o estranho

— Eu não me lembro da última vez que o clima ficou agradável


deste jeito… — disse Coisina, abrindo as cortinas. Luna se escondeu
embaixo das cobertas enquanto intensos raios de sol batiam em sua
face. Ela estava completamente perdida com aquele fuso horário, a noite
parecia infinita. — Parece até que alguém não dormiu nada.

Luna murmurou alguma coisa e cochilou de novo por mais cinco


minutos que mais pareceram durar dez segundos. Não importa onde
você esteja, o tempo voa quando você está com sono pela manhã.

— Lunaaaaa, acorde! — chamou Coisina novamente. — O café da


manhã está na mesa, e Oberyn está te aguardando!

Quando Luna chegou à sala, Morg, aquela bola de pelo gorda


misturada com um morcego, estava sentado no chão, olhando-a torto
como de costume. Ela comeu depressa alguma coisa que não fazia a
mínima ideia do que era, pois não gostava de ficar perto dele.

E, para sua alegria, Oberyn apareceu na porta à sua procura. Os


dois foram para uma sala cheia de móveis antigos que mais parecia o
escritório de um psiquiatra. Ele se sentou em uma cadeira, à frente de
uma mesa, na qual abriu um grande livro.
— Então, andei pesquisando e…

— Por que você aceitou vir para cá sem relutar? — Luna o


interrompeu.

— Perdão?!

— Por que você quis vir mesmo depois de tudo que eu disse que
Klaaoz fez?

Oberyn apenas a encarou.

— Porque ele é meu sobrinho, e eu o conheço.

— Você não o conhece. — Pelo menos, não mais. — Você ficou


isolado por vários anos. — E Klaaoz poderia muito bem fingir ser outra
pessoa na frente dele. Que era obviamente o que ele estava fazendo.

— E você, acha que o conhece?

— Bom, eu sei o que todos falam, e tem aquele ditado: “a voz do


povo é a voz de Deus”.

— Conhecer é apenas o modo como percebemos algo, Luna. E


nem sempre é certo. — Ela desviou o olhar e ficou calada, encarando a
parede por alguns instantes. Não estava com paciência para discutir com
ele naquele momento. E em parte também não sabia o que responder. —
Enfim, de acordo com os registros nos livros o seu poder é muito raro e é
bem mais abrangente do que eu pensei.

— Como assim?

— Você disse que entrou na mente de Klaaoz, certo?

— Sim. Foi como se eu tivesse me teletransportado para dentro


dela. Como se a mente dele tivesse se tornado um lugar. E era um lugar
horrível. Sério, o pior lugar do mundo. Pior do que um shopping na
véspera de Natal. Eu senti frio, de verdade. O clima era pesado, não sei
explicar. Era como se fizesse parte da minha mente também — disse,
fazendo caretas ao descrever.

— Entendo… Mas não é só isso que você consegue fazer. Além de


entrar na mente das pessoas e controlá-las, você também pode ler
pensamentos. E, ao que tudo indica, nenhum controle mental funciona
em você. É como se você fosse imune a pessoas que tenham seu tipo de
poder.

Luna levantou a cabeça.

— Então, quer dizer que eu posso… digamos, literalmente obrigar


uma pessoa a fazer o que eu quiser? — Ela poderia obrigar Klaaoz a lhe
levar de volta! E, depois, fazê-lo… dar um soco em seu próprio rosto. Só
para começar.

— Sim, mas primeiro vamos treinar o mais básico, que é ler os


pensamentos.

— Não, vamos treinar entrar na mente primeiro. — Ler


pensamentos não a ajudaria a voltar para a Capital.

— Você só consegue usar um depois que aprender o outro.

— Então vai demorar… Já é difícil me concentrar nos meus


próprios pensamentos, imagine nos dos outros…

— Provavelmente é difícil porque os pensamentos que você tem


não são seus.

— Como assim? — perguntou, atônita.

— Tente se lembrar da última vez que você começou a pensar em


alguma coisa e, quando percebeu, estava pensando em outra totalmente
diferente. Talvez fosse algum pensamento que não deveria estar na sua
mente, mas estava. Como se tivesse sido pensado por outra pessoa.

— Hum, eu sou muito distraída, penso muitas coisas estranhas e


desconexas, mas, sinceramente, nada me vem à mente.

— Aposto que esses pensamentos desconexos acontecem porque


você está se conectando com a mente de outras pessoas sem querer.

— Não, isso é normal, é porque eu sou de peixes.

— Perdão?

— Meu signo… quer dizer, esquece. — Luna se calou ao se dar


conta de que aquilo tinha sido uma resposta meio idiota. Mas será que
era isso mesmo? Durante toda a sua vida, costumava acreditar que isso
fazia parte da sua personalidade. Estava sendo meio difícil de acreditar
que na verdade tudo isso era porque ela lia mentes. — Isso é ruim?

— Bom, você precisa aprender a controlar isso.

— O que eu faço para parar?

— Primeiro, meditação. Muita meditação.

Luna riu.

— Tipo, ficar sentada com os pés em cima do joelho fazendo


“aummm, aummm”? — perguntou, gesticulando com as mãos.

— Não. Meditação é um processo mental, não discursivo.

— Como assim?
— Você precisa esvaziar totalmente sua mente para poder
contemplar a realidade plena e todos os seus aspectos.

Luna não entendera nada do que ele dissera e já estava pensando


no que os monges budistas que viviam meditando faziam quando
queriam ir ao banheiro. Existia sistema de esgoto no topo das montanhas
do Himalaia? E para raspar a cabeça, já que eram todos carecas? Riu
sozinha, imaginando um cabeleireiro indo lá fazer isso uma vez no mês.
Ou será que eles tinham um barbeador? Mas havia eletricidade lá?

— Pode explicar mais uma vez?

Ele suspirou.

— Digamos que seja a busca pelo nirvana de um modo que


melhore a sua consciência, disciplina, concentração e equanimidade.

— Nirvana… a banda?

Oberyn estreitou os olhos.

— Nirvana é um estado de libertação que você atinge ao percorrer


sua busca espiritual. É conseguir superar seu apego aos sentidos,
entrando em um estado de plenitude e paz interior sem se deixar afetar
por influências externas. Você consegue atingir esse estado limpando
sua mente.

Luna riu ao ouvir sua última afirmação.

— Não dá para limpar minha mente.

— Claro que dá.

— Não dá.

— Dá, sim.
— Eu estou dizendo que não dá! — Por que ele era tão teimoso?

— É só tentar. — Aquilo estava parecendo uma irritante partida de


tênis!

— É impossível, Oberyn. Impossível. Nunca na minha vida eu


consegui ficar sem pensar nem por um segundo. Você não tem ideia de
como tem sido difícil para mim todos esses anos… não conseguir prestar
atenção em nada por mais de cinco minutos. Às vezes, até quando eu
estou lendo um livro, ao chegar no final da página tenho que voltar
porque percebo que não entendi nada do que tinha lido. Quando alguém
está me contando uma história, assim que percebo ela já está no final e
eu não me lembro do meio. Você fala isso porque não sabe pelo que eu
passo.

— É difícil porque você não tenta.

— Você acha que eu nunca tentei? Se eu pudesse desligar meu


cérebro por uns minutos e o deixar absolutamente sem pensar em nada,
eu faria. Mas não consigo. Eu sou de peixes!

— Tente. Tudo é impossível se você não tentar. — Ela respirou


fundo. Falar era fácil. — Por que não paramos por hoje e você vai para
seu quarto tentar meditar? Limpe seus pensamentos. Feche os olhos,
mentalize algo.

Pela primeira vez desde que chegou, Luna se sentiu


verdadeiramente deprimida. Claro, ficou assustada, com raiva e com
outras milhares de emoções intraduzíveis quando foi sequestrada por
Klaaoz na festa e também quando soube que teria que conviver com ele.
Mas aquele sentimento era diferente. Se sentia impotente. Se viu diante
de um daqueles momentos em que não há o que fazer. Era um problema
sem solução. Uma causa perdida. Sabia que seus pensamentos eram
incontroláveis, as outras pessoas não entendiam. Achavam que ela fazia
aquilo porque queria ou porque era desinteressada. Mas não. Ela se
esforçava muito, porém era mais forte do que ela.
O pânico consumiu Luna assim que ela se deu conta de que para ir
embora dali precisaria fazer a coisa mais difícil que conhecia: se
concentrar. Estava perdida. Todos os seus planos de viajar com Bok
tinham ido por água abaixo. Ficaria presa ali para sempre se Bok não
ligasse.

Como de costume, Klaaoz acordou cinco minutos antes do


despertador e ficou esperando pelo alarme. Mas, após os cinco minutos,
percebeu que isso não aconteceria, já que não o acionara na noite
anterior por razões de: não possuía nenhum afazer.

Era estranho começar o dia sem nenhum propósito, já que


costumava ser muito ocupado com os diversos compromissos do
Comando Omega. Klaaoz ficou por um tempo deitado, olhando para a
parede, e, quando se deu conta, estava seguindo com o olhar um inseto
que tentava levar uma folha para algum lugar. Invejou-o, pois a vida
daquele inseto parecia ter mais sentido do que a sua naquele momento.

Aquela constatação lhe causou uma leve falta de ar.

Na teoria, ele ainda estava trabalhando para o Comando Omega,


tinha um plano para pôr em prática. Mas como faria para executá-lo?
Quanto tempo demoraria? Pensar na quantidade de poeira que se
juntaria em seu apartamento em Vealmaehon enquanto estivesse
impedido de voltar para lá o deixava nauseado. Mais assustador ainda
era pensar na possibilidade de o plano não dar certo. Ele teria que ficar
afastado do Gamma Aurellius para sempre? Ele nunca mais poderia
comer um squalus arcticus cozido no The Aqccuajellyariumm com aquela
vista terapêutica nem comprar as roupas da Aurore para irritar os
caelestreanos? Nunca mais poderia dar lances no leilão de Kryk?

A enxurrada de pensamentos que invadiam a mente de Klaaoz


fizeram seus batimentos se acelerar. O que ele havia feito naquela
maldita festa seria o suficiente para que ele passasse o resto da vida
preso, e ele não tinha dúvida de que a Capital em peso faria o possível
para garantir que ele apodrecesse na prisão. Não podia sair de Gagrilya,
e o fato de não ter a mínima previsão de quanto tempo teria que ficar
escondido causava calafrios em seu corpo.

Tentando afastar aqueles pensamentos, Klaaoz se levantou e saiu


do seu quarto rapidamente, mas sentiu sua vista escurecer. Ele estava
preso ali para sempre. A dificuldade de respirar aumentou, seus
batimentos também. Ele não poderia nem ir para um hospital.

Desceu as escadas com dificuldade, as dores no corpo


aumentando, e foi até o saguão principal, mas não havia ninguém lá.
Onde estariam todos? O medo de morrer ali, sozinho e sem ar foi
consumindo Klaaoz aos poucos. Sua boca estava tão seca que ele
conseguia sentir a garganta queimando tão forte quanto o peito. Tudo
doía. Ele precisava de água. Precisava chegar na cozinha. Mas na porta
deu de cara com alguém que derramou água nele.

— Saia da frente — disse Klaaoz apressadamente, caminhando


para o filtro de água.

— Desculpe.
Luna não estava no clima para discutir com ele. Tinha coisas mais
importantes para se preocupar, como seu problema de concentração. Era
melhor deixá-lo com sua arrogância para lá. Ele certamente era assim
porque tinha sérios problemas consigo mesmo. Havia uma das verdades
absolutas de Luna que dizia: "o jeito como você trata os outros é como
você realmente se sente por dentro".

Mas ele nem sequer respondeu.

Luna já estava fora, mas resolveu parar e ir até a porta. Quer


saber? A razão por ele ser daquele jeito certamente era que ninguém o
enfrentava por terem medo do que ele faria. Ninguém nunca devia ter dito
as verdades que ele precisava escutar.

— Sabe, Klaaoz… você trata as pessoas feito lixo porque


provavelmente é assim que você se sente por dentro.

Ele estava bebendo água e levantou a cabeça como se fosse difícil


acreditar naquilo que estava ouvindo.

— Você não sabe nada sobre mim — respondeu com a respiração


ofegante, como se tivesse acabado de correr uma maratona.

— Eu entrei na sua mente, esqueceu? — Luna provocou.

De repente, a porta bateu com força à sua frente e um barulho


estridente de vidro quebrando eclodiu do outro lado.

Ele era, sem sombra de dúvidas, a pior pessoa que Luna já


conhecera em toda sua vida. Assim como ela nunca conseguiria se
concentrar em nada, ele também jamais seria uma boa pessoa. Eles
eram duas causas perdidas.
Luna estava em seu quarto tentando meditar, mas vez ou outra se
pegava criando em sua mente roteiros de discussões imaginárias com
Klaaoz, nas quais finalmente falava tudo que ainda estava entalado.
Falaria que sua mãe era uma ótima pessoa, e ele era um babaca por
fazê-la sofrer. Também diria que usar o medo para obter o respeito das
pessoas era apenas mais uma prova de sua insegurança. Que não
adiantava querer manter a casa limpa daquele jeito, já que todos os seus
atos eram sujos. E que seu cabelo não era tão bonito assim.

Ele deveria ser assim porque sofreu bullying no colégio,


provavelmente jogaram um balde de sangue de porco em sua cabeça na
formatura. “Klaaoz, o estranho”.

Luna estava com tanta raiva que não conseguia se concentrar em


nenhuma outra coisa. Mais uma vez, poderia estar meditando, usando
seu tempo, que é o bem mais precioso que temos, para se aperfeiçoar no
uso dos seus poderes e finalmente dar o fora dali. Mas não, estava
pensando em coisas para dizer para aquele crápula na próxima vez que
brigassem.

Raiva, que sentimento assustadoramente poderoso. Ele é capaz


de dominar sua vida. E o pior de tudo é que ela tinha plena consciência
disso.

Luna se lembrou da raiva que estava sentindo no dia do ocorrido e


como tudo depois se desencadeou para que as coisas acontecessem
daquela maneira e ela fosse expulsa da escola. Desde aquele dia, ela
jurou que jamais deixaria as coisas que não gostava ocuparem mais
tempo na sua vida do que as coisas de que gostava. No entanto, parecia
que a raiva que sentia por Klaaoz crescia um pouco mais a cada dia.

Se retirassem o L, o nome dele se tornaria a palavra kaaoz. Caos


significa desordem, confusão e tudo aquilo que está em desequilíbrio.
Não podia ser coincidência, porque era exatamente isso que ele era, um
completo caos. Destruía e deixava tudo em desordem. E ela não podia se
deixar ser arrastada para dentro daquela sua bagunça.

De repente, seu Holophone tocou. Luna demorou alguns segundos


para conseguir atender. Quando um holograma em escala real e bastante
nítido de Bok apareceu à sua frente, ela não conseguiu conter as
lágrimas.

— Bok, socorro! Por favor, venha me buscar.

— Hã?! O que houve? — Seus olhos se arregalaram ao vê-la


daquele jeito.

— Quando você foi embora, Klaaoz apareceu e nos sequestrou!

O holograma dele empalideceu.

— Onde vocês estão? Como… — Ele estava tão em choque


quanto ela no dia em que fora para lá.

— O nome do planeta é Gagrilya. Por favor, venha o mais rápido


que puder! E traga reforços, muitos guardas! Ele disse que quer se vingar
de você!

— Não se preocupe, ele não vai escapar dessa vez. Nós


estaremos preparados. Estou indo agora avisar aos outros. Aguente
firme, futura esposa de brincadeira. — E desligou.

Luna se sentiu feliz pela primeira vez desde que chegara ali e teve
a sensação de que não se importaria de ser a esposa de verdade de Bok.
Definitivamente.

Não podia ser coincidência ela ter achado a pedra, ele ter entrado
na casa dela… Talvez aquilo estivesse… escrito. Mas, antes que
planejasse a música que tocaria no casamento, o nome dos filhos e todo
seu futuro com Bok, alguém bateu na porta.

— Pode entrar!

Era Coisina e novamente estava com uma comida na mão.

— Oi, vim ver como você está. Os ventos estão mudando mesmo
neste lugar, tinha vidro para todo lado na cozinha… — Ela riu, olhando
para os lados como se soubesse de onde essa tempestade viera. — Ah,
trouxe um snacan.

— Obrigada. — Luna pegou uma fatia e preferiu não comentar.

Coisina ficou a observando calada por alguns instantes.

— Klaaoz anda um pouco mais irritado do que o normal com tudo


isso que aconteceu…

— Eu pensei que esse fosse o normal dele — Luna disse ainda de


boca cheia.

— Não, não… Ele é uma ótima pessoa, mas… enfim. Eu falei com
ele. Ele disse que não pode sair daqui por enquanto… — Ela parecia
sinceramente querer ajudar, embora trabalhasse para aquele demônio.

— Pode deixar, eu resolvi isso. Meu futuro marido de brincadeira


vem me buscar.

Coisina lançou um olhar confuso e depois riu.

— Futuro marido de brincadeira?!


— É uma longa história. — Luna riu ao se dar conta do quão
complicado seria contá-la. — Mas talvez, quando ele vier me salvar,
deixe de ser de brincadeira. — Coisina balançou a cabeça, soltando uma
risada amável. Ela não parecia ser uma pessoa ruim. Luna não
conseguia entender o que ela fazia naquele fim de mundo. — Coisina,
por que você trabalha para uma pessoa como Klaaoz?

Ela baixou a cabeça, e Luna sentiu pena. Talvez ela também


estivesse sendo mantida refém ali. Talvez manter as pessoas reféns
fosse o único jeito que Klaaoz tinha de mantê-las ao seu lado. Com
exceção de Oberyn. Mas Oberyn era louco, então não contava.

— Bom, é uma longa história. Talvez um dia eu te conte. Mas,


enfim, gostou do snacan? — Mudou de assunto.

— Adorei! Desde que eu cheguei, eu tenho tido um pouco de medo


de experimentar as comidas, pois são muito estranhas. Quer dizer,
diferentes. Mas, a partir de agora, vou experimentar sem medo. Não
tenho a mínima ideia do que você coloca dentro, mas são ótimas. E
lindas.

— Se quiser pode olhar enquanto eu as preparo.

— Eu adoraria! Adoro cozinhar. Porém, não levo muito jeito.

— Ah, mas leasachadhkyea. — Leasachadhkyea é uma palavra


gagrilyana usada para indicar que, contanto que você não pare,
continuará melhorando. — Vou começar a preparar o jantar agora, quer
vir?
A cozinha não era assim tão diferente das cozinhas da Terra, ao
contrário das coisas do apartamento do presidente. O piso xadrez fosco
era preto e branco e os armários, feitos com madeira. Em cima do
balcão, havia algumas máquinas que Luna não sabia para que serviam.
Já as comidas eram ainda mais… diferentes do que quando servidas.

— O que é isso? — Luna perguntou, apontando para um balde de


creme.

— É massa de bolo.

— Hum… Então para fazer um bolo é só colocá-la no forno?

— Sim. Mas existe uma máquina própria para fazer bolo. Se quiser
adicionar alguma outra coisa também, é só misturar. Ela já vem pronta.

— Que legal… E isso? — Apontou para um líquido incolor.

— Um tempero chamado x-prax. Mas não uso com frequência, é


muito picante.

— Hum… Eu tenho uma dúvida: vocês não comem carne?

— Comer carne? Como assim?

— Tipo, de algum animal.


Coisina piscou algumas vezes.

— Claro que não. Comer animais? Que absurdo! — Ela levou a


mão ao peito, como se Luna fosse louca por sugerir aquilo.

— Ah, sei lá. No meu planeta as pessoas comem. O gosto é bom


— disse, embora o termo correto fosse maravilhoso.

— Nossa, que horror! Isso é um costume de centenas de anos


aurelianos atrás. Hoje em dia existem temperos que dão sabor de
qualquer coisa que você imaginar.

— Sério? Então se, por exemplo, eu colocar um tempero de


chocolate em uma alface, ela ficará com gosto de chocolate?

— Quê?!

— Aqui não tem chocolate? — Luna sentiu um pouco de medo da


resposta.

— O que é isso?

Meu Deus, como viveria sem chocolate?!

— Hum… Como eu posso começar a explicar o que é chocolate?


— Levou a mão até o queixo. — É uma substância mágica que tem o
poder de te deixar feliz. Ele resolve todos os problemas e causa uma
sensação semelhante à de estar apaixonado.

— Nunca ouvi falar. Mas, por favor, traga um para mim quando
você for ao seu planeta.

— Ok — Luna concordou, rindo, mas tendo consciência de que,


quando fosse embora, jamais voltaria.
Coisina pegou algo que parecia ser uma fruta e começou a
descascar, moldando-a em formas precisas com todo cuidado. Depois
pegou outras e fez o mesmo. Fazia tudo com uma delicadeza e carinho
impressionantes, deixando evidente o amor que sentia por fazer aquilo.
Juntou todas e, ao terminar, não parecia ser algo para servir numa mesa,
e sim expor num museu de arte.

— Isso é tão lindo… — Luna se aproximou para analisar mais de


perto aquilo que certamente teria pena de comer.

— Obrigada. — Ela sorriu, orgulhosa.

— Sério, você deveria ter seu próprio restaurante ou um canal no


Youtube para ensinar como fazer essas coisas.

— Eu costumava ter uma doceria — ela falou, pensativa, enquanto


limpava a bancada.

— Por que não abre outra? — Luna encorajou.

— É, quem sabe um dia?

— Quando eu conseguir ir embora daqui, prometo te ajudar a


escapar também.

Ela riu e balançou a cabeça. Luna deduziu que era porque já


estava ali há tanto tempo que perdera completamente as esperanças de
escapar.
13

13 -Rys revela o segredo de Luna

Quando Luna estava no corredor, ouviu uma música vindo da


direção do seu quarto. Uma voz gasguita, como um cantor de ópera
tendo um derrame, cantava algo em uma língua que ela não conhecia.
Se essa pessoa estivesse cantando em público, só não jogariam tomates
nela porque ninguém anda com tomates no bolso.

Abriu a porta sorrateiramente e viu o sobrinho de Coisina de


costas, fingindo que sua escova de cabelo era um microfone enquanto
cantava. Ele estava usando um xale de plumas exagerado, o qual Luna
tinha certeza de que Mira pusera na mala por engano. Dançava e
cantava teatralmente, até que se virou e tomou um susto ao notar sua
presença.

Subitamente, se calou e olhou para Luna, que também estava


olhando para ele, sem reação. Ele olhou para a escova de cabelo, olhou
para ela novamente, e os dois caíram na gargalhada.

— Ai, que vergonha! Desculpe — ele disse com as bochechas


corando, tirando o xale e jogando a escova na cama. Em seu rosto,
estava uma das maquiagens mais exageradas que existia no makeuptor.
— Eu vim aqui programar os robôs para arrumarem o quarto e me
empolguei quando vi o makeuptor. Meu sonho sempre foi ter um desses.
— Ele tinha a língua meio presa, e isso deixava seu sotaque ainda mais
engraçado.

— Pode pegar emprestado quando quiser.

— Sério? — Seus olhos verdes brilharam.

— Sério. Eu quase nunca uso.

— Ai, já gostei de você. Eu me chamo Rysloslakohr. Mas pode me


chamar de Rys.

— Eu me chamo Luna. E, a propósito, você canta muito bem.

— E você mente muito mal. — Ela riu. — Suas roupas são


maravilhosas! — Ele apontou para as peças espalhadas na cama, e não
parecia haver um pingo de ironia em sua voz, o que era estranho.

— Você está brincando, certo? Elas são horríveis! — Luna


verificou, de qualquer forma.

Ele fez uma expressão de choque, como se aquilo fosse o maior


insulto que alguém poderia fazer.

— Amiga, elas são caelestreanas. São o que existe de mais


moderno e sofisticado em todo o Sistema.

— É, imaginei… Mira quem me deu.

— Que Mira? — Ele arregalou os olhos.

— A mulher do presidente…

O queixo dele caiu.


— Nossa! Você a conhece? Eu a acho o maior ícone da moda de
todos os tempos!

Luna riu.

— Ela é uma ótima pessoa, além da aparência.

— Como você a conhece? Por que ela te deu tantas roupas caras
e maravilhosas? E, aliás, o que você está fazendo aqui?

Essa história estava ficando cada vez mais difícil de ser contada.

— Bom… Eu meio que tenho superpoderes, daí fui sequestrada e


estou sendo mantida em cativeiro. Pelo filho de Mira, inclusive. — Ela riu
para não chorar.

— Calma, você tem superpoderes? — Se era meio difícil pra ela


própria acreditar, imagine para os outros.

— É, eu leio mentes — Luna falou, levantando a mão e fazendo


cara de mistério.

— No que eu estou pensando?

Ela mordeu o lábio.

— É… então… esse é o problema! Estou aqui para aprender a


usá-los. Na verdade, eu não tenho certeza ainda se realmente posso.

— Ah… — Ele pareceu desapontado. — Quem te sequestrou


mesmo?

— Então, Klaaoz é filho de Mira. Chocante, não é?


Ele colocou a mão no peito e abriu tanto a boca que Luna pensou
que suas bochechas fossem rasgar.

— Nossa! Eu não sabia que ele era filho dela!

— Pois é. Acho que ela tem vergonha disso. Quem não teria?!
Você acredita que ele se trancou comigo numa sala no meio de uma
festa na Capital e tentou me matar?

— Nossa, Klaaoz se trancou numa sala com você? Eu o acho um


charme, você não acha? — perguntou com um sorriso insinuador. —
Embora às vezes tenha um pouco de medo dele.

Luna se perguntou se ele tinha algum problema mental ou se eles


estavam falando da mesma pessoa.

— Quê? Não! Você ouviu o que eu disse? Ele tentou me matar! E


depois me sequestrou! Eu o odeio. Tudo que eu quero é ir embora daqui,
não suporto ficar perto daquele imbecil, ele é a pessoa mais arrogante e
idiota que eu já vi. Hoje mesmo, só porque eu esbarrei nele, o cretino
fechou a porta na minha cara!

— Nossa, que emocionante — Rys disse, confirmando a teoria de


Luna sobre sua sanidade mental.

— Mas eu falei umas verdades para ele. Sério, não estou mais
suportando a presença dele. A partir de hoje, eu vou fingir que ele não
existe.

— Arrasou. Tem que ser assim. Tem que mostrar quem manda.

Luna revirou os olhos. Ou ele realmente era demente ou não


estava entendendo a situação. E ela desistiu de explicar. Como explicar
para alguém uma coisa que nem ela compreendia?

Ele pegou um Holophone e, de repente, tirou uma selfie com ela.


— Para meu holobook — disse ele. — Qual o seu?

— Ah, eu não tenho. Eu não sei mexer muito bem ainda… —


enquanto dizia isso, ele a observava como se ela fosse de outro planeta.

— Ah, é muito fácil. Me dá seu Holophone que eu faço em um


segundo.

Luna entregou o aparelho, ele apertou uma tela e um holograma


quadrado se abriu. Apertou mais algumas coisas na tela por alguns
segundos, depois posicionou na direção dela e uma luz azul escaneou
seu rosto. Ele havia tirado uma foto de surpresa.

— Ei, calma, deixe eu me ajeitar primeiro!

— Não precisa, nós podemos ajeitar aqui — disse, mostrando um


holograma da foto que tirara.

Ela estava com cara de assustada, e era pior do que a foto da sua
identidade na Terra. Rys começou a mexer na foto com os dedos como
se fosse um artesão moldando uma escultura.

— Que tal sorrindo? — sugeriu, esticando a boca dela e abrindo


um sorriso no holograma.

— Nossa, isso é que eu chamo de photoshop.

— É maravilhoso, não é? E o que você vai colocar na sua


descrição?

— Hum… — Decidir o que colocar na descrição do perfil em redes


sociais é uma tortura para pessoas indecisas. — Não sei.

— Não sei? — ele perguntou, e logo começou a escrever.


— Calma! Me deixe pensar — disse, embora “não sei” fosse
adequado para descrever quem ela era no momento, em vista a recente
descoberta sobre sua história. Mas “não sei” era tão… vago. Parecia que
ela não se importava em não saber, coisa que não era verdade. —
Escreva assim: “o resto ainda não foi escrito”. — Era um trecho da
música que estava ouvindo no dia em que achou a pedra, e
definitivamente não existia nada que combinasse mais com sua vida
naquele momento.

— Nossa, que gòrachkyea. — Gòrachkyea é uma palavra


gagrilyana usada para indicar que algo é bonito e artístico, mas que não
faz o menor sentido. — Pronto, adicionei você! Agora você já tem um
amigo.

Luna olhou o holograma do perfil dele e foi passando por algumas


holofotos. Havia várias mostrando Rys rodeado de pessoas, todos
maquiados e usando roupas tão espalhafatosas quanto as de Mira.

— Por que você está aqui? — ela perguntou.

Ele era jovem, provavelmente tinha a mesma idade que ela, mas o
que estava fazendo naquele fim de mundo?

— Problemas familiares. — Ele encolheu os ombros, e a


efusividade de antes sumiu. — Meu planeta, Teyrilia, é muito atrasado.
Ele só tem 743 anos gagrilyanos A.G..

— Nossa, eu achava que a Terra era o mais atrasado.

— Ah, minha filha, você não tem ideia do nível de atraso do qual
eu estou falando! Nenhum planeta é pior do que Teyrilia, acredite. Eles
continuam com os mesmos costumes de antigamente. Às vezes, nem
parece que a dinastia acabou há 205 anos aurelianos lá…

Antes que Luna pudesse argumentar por que a Terra era mais
atrasada, seu Holophone começou a tocar. O holograma de Bok
apareceu, e sua expressão a assustou. Ele não parecia feliz nem
demonstrava que iria vê-la em poucas horas.

— Luna, o planeta que você citou não existe. Ele é apenas uma
lenda.

Estava sendo fácil demais para ser verdade. Ela fervilhou de ódio
de Klaaoz. Mentiroso.

— Tem certeza? — Ela olhou para Rys, que parecia confuso. —


Qual é o nome deste planeta?

— Não sei, é minha primeira vez aqui também. — Ele deu de


ombros.

— Bok, eu vou dar um jeito de descobrir o nome verdadeiro e te


ligo de volta, ok?

Ele suspirou.

— Ok, futura esposa de brincadeira. Estou com saudades.

— Eu também, futuro marido de brincadeira. — Tentou dar um


sorriso. Ao desligar, percebeu que Rys a olhava como se perguntasse de
qual hospício ela havia fugido. — É uma longa história.
Quando Luna desceu para o jantar, Oberyn, Coisina e aquele que a
fazia ter pensamentos que provavelmente a fariam ir para a cadeia já
estavam sentados à mesa.

— Você mentiu — ela foi logo dizendo. Mas ele nem sequer
levantou o olhar. Idiota. Arrogante. — Por que provavelmente está com
medo do que Bok fará com você quando te encontrar.

Ele franziu o cenho numa expressão de desdém.

— Por que todos presumem sempre o pior de mim? — Klaaoz


falou em tom de deboche, se virando para Oberyn.

— Porque isso poupa o tempo deles — Luna afirmou o óbvio.

Ele se virou para ela e a encarou com um olhar presunçoso.

— Eu não menti. — E sua voz era igual ao seu olhar.

— Você disse que estamos em um planeta que não existe!

— Oberyn, qual é o nome deste planeta? — ele perguntou sem


tirar os olhos dela.

— Gagrilya — Oberyn respondeu sem tirar os olhos da comida.

— E como faz para chegar aqui?

Klaaoz apenas inclinou a cabeça, e os cantos de sua boca se


curvaram sutilmente. Aquele 0,5 cm de pura arrogância.

— Descubra.

Luna sentiu o sangue ferver, foi difícil controlar a vontade de jogar


o prato de comida na cabeça dele. Pensou que não era possível odiá-lo
ainda mais, porém estava enganada.

Coisina e Oberyn se entreolharam, apreensivos, como se uma


bomba atômica estivesse prestes a explodir naquele lugar. Luna pegou
seus talheres e os colocou ao lado dos de Oberyn. Não tinha como evitar
a presença daquele demônio, mas pelo menos não se sentaria ao seu
lado.

O silêncio reinou na mesa, mas ela não se incomodava. Na


verdade, se sentia até aliviada. Não aguentava mais ouvir a voz daquele
idiota.

— A comida está ótima, Coisina — o idiota falou, quebrando o


silêncio.

— Obrigada. Hoje eu tive uma ajuda especial na cozinha — ela


respondeu, olhando para Luna e sorrindo.

Nessa hora, Klaaoz parou de mastigar por um momento e encarou


o prato. Luna observou a cena com desdém. Será que ele iria mesmo
deixar de comer só porque soube que fora ela quem tinha preparado a
refeição? Como ele era ridículo.

— Luna? — perguntou Oberyn. — Está muito boa!

— Hã, eu basicamente só ajudei cortando essas coisas verdes,


que eu esqueci o nome.

Klaaoz olhou para o seu prato, que estava cheio de coisas verdes,
e fez uma careta sutil.

— Estão mal cortadas — disse, como se para ele ser insuportável


fosse tão necessário quanto respirar.

Luna até tentou relevar, mas era mais forte do que ela. Seu
ascendente em aquário não a permitia ouvir desaforos calada.
— Coisina, você poderia dizer a ele que, se quiser um corte
perfeito, da próxima vez ele mesmo que faça?

Klaaoz levantou a sobrancelha.

— Coisina, informe a ela que já foi inventado uma coisa chamada


máquina de cortar moonbeams.

Luna teve a sensação de que Coisina e Oberyn estavam quase


desmaiando de tanto segurar a vontade de rir.

— Coisina, diga a ele que minha bola de cristal também está


quebrada, e eu não tenho como adivinhar.

Nesse momento, Klaaoz tossiu, parecendo se engasgar.

— Coisina. — Ele engoliu em seco, ainda tentando se recuperar.


— Informe a ela que…

Mas, antes que ele terminasse a frase, Rys entrou na sala eufórico,
como se tivesse acabado de ganhar na loteria.

— Luna, eu sabia que te conhecia de algum lugar! — disse,


empolgado com um Holophone na mão.

Ele o posicionou em cima da mesa e um holograma apareceu.


Luna ficou vermelha quando o vídeo holográfico começou a passar. Era
ela interrompendo uma entrevista na festa do presidente. Ficara tão
bêbada naquele dia que não se lembrava daquilo.

Coisina e Oberyn gargalharam horrores com o vídeo e pediram


para repetir várias vezes.

— Já tem mais de dez milhões de visualizações. Você é muito


famosa em Teyrilia!
— Ai, meu Deus, que vergonha. — Ela cobriu o rosto, sem
acreditar.

— “Hoje é dia de rock, ET’s” foi o assunto mais comentado no


holobook no dia! Já fizeram até camisetas com essa frase!

Era impressão ou ela tinha acabado de virar uma daquelas


pessoas famosas de vídeos virais da internet, só que em outro planeta?
Klaaoz apenas continuava comendo, ignorando todos.

Passado o burburinho por causa do vídeo, Luna, que terminou de


comer antes, se levantou e disse:

— Vou indo. Não dormi quase nada ontem e estou morrendo de


sono. Boa noite, Coisina. Boa noite, Oberyn. Boa noite, Rys.

E se foi. Mas uma parte dela, aquele 1%, tinha certa curiosidade
em saber o que Klaaoz teria falado caso Rys não tivesse lhe
interrompido.
14

14- Klaaoz lê fake news sobre si mesmo

— Freud, eu andei pensando… Todos aqui são vegetarianos. E no


começo eu senti um pouco a falta de carne, mas agora me dei conta de
que eu não sentiria falta se nunca tivesse provado.

— Você fala carne… Como assim? — A voz robótica do chuveiro


pareceu surpresa.

— Na Terra, as pessoas comem animais. É normal, eu não sou um


monstro por fazer isso — se apressou em dizer. — Mas o que eu quero
dizer é que você não pode sentir falta de algo que nunca teve.

— Não concordo.

— Por quê? É como um leão de circo nascido em cativeiro. Ele


nunca vai sentir falta de ser livre na floresta, pois ele nunca experimentou
ser livre na floresta.

— Perdão, mas o que é um leão?

Luna suspirou.

— Um animal. Entendeu o que eu estou querendo dizer?


— Sim. Você sentia falta de visitar outros planetas enquanto estava
na Terra?

— Exatamente! Não.

— Mas agora você se sentiria feliz se voltasse para lá e nunca


mais retornasse?

— Não, porque agora eu conheço aqui. Mas não sentiria se eu não


conhecesse. Você não pode sentir falta do que nunca viveu.

— Mas em uma de nossas conversas você alegou ter sentido uma


estranha sensação de perecimento quando chegou aqui, e não sabia o
motivo.

Luna ficou olhando para as gotas de água que escorriam no vidro,


sentindo uma sensação estranha. Se lembrou da inquietação no coração
que passou a vida inteira sentindo, o desejo de ir para algum lugar que
não conhecia, a vontade de saber mais sobre sua história e o medo
paradoxal de mexer nessa ferida que há muito tempo supostamente
estava cicatrizada.

Aquilo era como a caverna de Platão. “Quem não conhece a luz


não sabe que vive na escuridão.”

— Ok, Freud, você me convenceu. Eu não seria vegetariana. E


estou desesperadamente desejando um pedaço de bacon.

Quando Luna se sentou na mesa para seu desjejum e pôs um


pedacinho da obra de arte de Coisina na boca, seu Holophone apitou.

A mensagem de Rys dizia:


Desesperada, ela largou a comida, imaginando que tipo de apuros
Rys estava passando, e correu sem pensar duas vezes. Pegou
rapidamente o casaco-capa pendurado no hall de entrada, mal calçando
o seu sapato que estava no pé da porta, temendo que algum mal lhe
acontecesse.

Os jardins tinham o formato de pequenos labirintos e havia


diversas esculturas de árvores cobertas pela neve dos mais diferentes
formatos, todas muito bem elaboradas, parecendo terem sido feitas por
algum jardineiro com tesouras no lugar das mãos. Também havia uma
pequena fonte e alguns bancos cobertos de neve, todos inutilizáveis
devido ao clima. Era um jardim extremamente bem cuidado, e Luna podia
até imaginar Klaaoz mandando cortar a cabeça de alguém caso
plantassem flores brancas no lugar das vermelhas.

Ela apressou o passo, já imaginando o pior: que Rys havia caído e


quebrado a perna, que ele ficara soterrado na neve ou, até, que Klaaoz
lhe fizera algum mal.

Mas, quando o encontrou, ele estava tirando holofotos de si


mesmo no meio de duas árvores de algodão-doce.

— O que aconteceu? Qual é a emergência? — ela perguntou,


ainda tentando recuperar o fôlego.
— O sol daqui dura muito pouco. E a melhor hora para tirar
holofotos é assim que ele nasce — ele disse calmamente.

Ela revirou os olhos, depois fez uma careta.

— Você fez esse alarde todo por causa de uma foto? Sério? Eu
pensei que você estivesse morrendo pelo jeito que falou.

— Não é apenas uma holofoto. — Havia seriedade em sua voz. —


Holofoto é uma coisa muito importante. É um reflexo de quem você é
para o mundo.

— Claro que não é. É uma mentira. Não corresponde à realidade.


Já dizia Roland Barthes. Ou Walter Benjamin.

— E quem são essas pessoas? — ele perguntou com desdém.

— Pessoas muito inteligentes.

— E quem decidiu que eles são inteligentes?

— Todo mundo.

— E quem disse que todo mundo está certo? — Rys ergueu a


sobrancelha.

Luna contorceu os lábios.

— Foto é uma coisa superficial, Rys. Ninguém precisa dizer.

— Mas é como as outras pessoas verão você. — Ele ignorou os


argumentos intelectuais dela e continuou a tirar holofotos.

— As pessoas sempre vão colocar defeito mesmo se você for a


pessoa mais bonita do mundo. Porque elas sempre veem… o pior. —
Luna olhou pensativa para o chão.

Quando se lembrava desse tipo de coisa, não sentia nem um pouco


de falta de casa, da sua cidade e das pessoas do seu antigo colégio.

— Mas o modo como você se vê é que importa. Você posta a


holofoto para você, não para os outros.

Havia algo de profundo e verdadeiro por trás de todas essas coisas


aparentemente fúteis e superficiais que ele falava. Ela até entraria
naquela discussão filosófica, mas não queria se atrasar para sua aula
com Oberyn.

Pegou o Holophone dele e tirou sua tão almejada holofoto.

— Você pode tirar mais uma? — ele pediu depois de ver como
ficou.

Ela olhou o relógio, já estava atrasada. Mas como o tempo


gagrilyano era o dobro do aureliano… talvez ainda tivesse alguns
minutos.

— Ok, só mais uma.

Ela tirou e mostrou a ele.

— Não está ficando bom. Talvez, se você ficar desse lado… — Ele
andou mais um pouco por entre o jardim.

— Assim? — Luna perguntou, mostrando provavelmente a décima


holofoto que tirara.

— Não… Se você se abaixasse um pouco…

Ela revirou os olhos e se abaixou enquanto ele fazia pose.


— Você deveria ser modelo, fica ótimo em todas as holofotos —
disse, em parte porque queria que ele levasse isso como um elogio e
parasse de pedir para ela tirar mais holofotos, e também porque era
verdade.

— Ah, eu serei muito famoso um dia. Dóchaskyea — Dóchaskyea


é uma palavra gagrilyana usada para indicar que algo não parece que
acontecerá, mas no íntimo do seu ser você sente que vai acontecer.

— Por que as pessoas ficam misturando essa outra língua o tempo


todo no meio das frases?

— Não sei. Eu uso porque é chique. — E deu de ombros.

Ela riu.

— Na verdade é chato. Se eu começasse a misturar frases da


minha língua nativa no meio do que eu falo, vocês entenderiam o que eu
quero dizer.

— Como assim? Aureliano não é sua língua nativa?

— Não. Na Terra, existem muitas línguas. Eu sei falar essa porque


tinha muito tempo livre depois que fui expulsa do colégio. Eu trabalhava
na livraria do meu tio e gostava muito de ler e depois de um tempo
comecei a ler os livros na língua original. Aí, com o tempo fui
aprendendo, pesquisando a tradução das palavras, fiz um curso de
idiomas… enfim.

— Por que você foi expulsa do colégio?

Ela olhou para o chão. Não estava a fim de falar sobre aquele
assunto. Nem naquele momento, nem nunca.

— Fui pega colando — mentiu. — Me fale mais do seu planeta.


Parece ser legal.
— Legal? É o pior planeta do Sistema. Eles têm preconceito contra
tudo da cultura caelestreana e ainda acham que, quanto mais filhos você
tiver, melhor. Sem falar que é terrivelmente quente e só tem 743 anos
gagrilyanos A.G..

— Como assim, 743 anos gagrilyanos A.G.? Tipo antes de Cristo?

— É a Era. Os anos são divididos em A.G. e D.G.. Agora todo


mundo está no ano 205 D.G., e é medido no tempo aureliano.

— Mas o que significa esse G.?

— Os gagrilyanos — ele respondeu com pouco entusiasmo.

— Quem foram esses gagrilyanos, exatamente?

— Eu nunca conheci nenhum além de Klaaoz, parece que todos


morreram. História não era minha matéria favorita na escola para falar a
verdade. Mas, resumindo, foi um pessoal aí que chegou e colonizou todo
o Gamma Aurellius, governaram etc. Depois morreram.

Luna piscou algumas vezes.

— Como assim, morreram? Você tem consciência de que eu sou


gagrilyana?

— Ah, não sei. Eu realmente odiava aula de História. — Ele deu de


ombros.

Ela emitiu um suspiro de frustração.

— História é muito mais importante do que holofoto.

— História não vai acrescentar nada na minha vida. Prefiro me


preocupar com o presente a me preocupar com o passado.
— Mas… é importante saber. — Como ele falava uma coisa
daquelas?

— Pra que eu quero saber da vida de uns doidos que só fizeram


coisas ruins para o Sistema? — Ele pareceu irritado pela primeira vez
desde que se conheceram.

Se aquele Sistema não fosse um lugar maravilhoso e livre de


preconceitos, do jeito que ele falou iria até parecer que ele não gostava
dos gagrilyanos.

— É, ok, desculpe. — Depois ela perguntaria a Oberyn ou a Freud


mais sobre aquele assunto. — Eu também me sinto assim com
Matemática. Odeio com todas as minhas forças. Todo mundo não gosta
de estudar determinadas matérias. Até hoje eu estou esperando o dia em
que usarei equação de segundo grau. — Rys não respondeu. — Cada
um pode se interessar pelo que quiser — insistiu.

— Ah, eu tenho plena consciência disso. — Ele cruzou os braços e


levantou as sobrancelhas. — Você que parece não saber.

Luna sentiu vontade de se enterrar. Palavra nenhuma era capaz de


descrever como se sentiu idiota naquele momento.

— Sério, me desculpe, de verdade. Eu não quis ofender. Às vezes,


eu falo coisas sem pensar. — Olhou para o chão. — Muitas vezes. E
acho que eu me exaltei porque queria muito saber mais sobre esse
assunto… Mas vamos esquecer isso. — Rys começou a olhá-la de forma
estranha, depois fez uma cara fechada. Parecia que realmente tinha
ficado com raiva do que ela falou. — Sério, ponha um sorriso no rosto,
tire essa cara de morto, você está parecendo até o Klaaoz. Vai ficar
horrível na holofoto.

Rys fez sinal com a cabeça, e, quando Luna se virou, avistou


Klaaoz com Morg a tiracolo. Os dois a olharam feio, como sempre.
Klaaoz usava um casaco na altura do joelho com botões
prateados, uma camisa de tecido fino, botas pesadas, anéis nos dedos e
tudo mais. Parecia estar pronto para um baile da realeza em que
dançaria danças engraçadas e iludiria ingênuas moças solteiras que não
tinham conhecimento de sua má índole, embora fosse de manhã. Luna
achava isso extremamente desnecessário, e ele provavelmente o fazia
para tentar compensar sua personalidade horrível. Seu cabelo estava
arrumado, mas seus olhos estavam fundos, parecia não ter dormido bem,
e Luna não sabia por que havia reparado nisso.

— O que foi? Eu não estou vendo nada — Luna disse para Rys,
dando continuidade a seu plano de ignorá-lo.

De costas, mostrou o dedo do meio para Klaaoz e deu um sorriso.


Rys olhou para ela com uma expressão divertida, provavelmente
chocado com sua coragem de afrontá-lo. Pelo canto do olho, Luna
percebeu que Klaaoz a encarava, confuso, franzindo o cenho. Depois
seguiu com Morg para o outro lado do jardim. Já foi tarde.

— O que foi isso? — Rys perguntou, rindo.

— Eu não tenho medo dele — ela se gabou.

— Percebi. — Ele estava com um sorriso insinuador. — Só não


achei que…

Ela o encarou, confusa.

— Achou o quê?

— Bom, você tinha dito que o odiava, né?!

— E quem disse que eu não odeio?

— Mas você mostrou o dedo do meio. — Ele riu.


Luna gelou, os olhos quase saltando das orbitas. Ah, não…

— Isso não é uma ofensa aqui?

— Não mesmo.

Ela cobriu o rosto.

— O que isso significa?

— Não queira nem saber. — Ele deu uma gargalhada alta.

Ela suspirou.

— Eu pensei que isso fosse uma ofensa — Luna gritou, alto o


bastante para que Klaaoz ouvisse do outro lado e não ficasse achando
coisas.

De longe, avistou-o mostrar o polegar. Menos mal, pelo menos ele


havia entendido.

— Isso é uma ofensa — Rys disse, tentando segurar o riso.

Ela revirou os olhos e foi embora. Entrou na casa sem retirar os


sapatos, fazendo questão de sujar toda a sala só por pirraça. E chegou à
aula de Oberyn atrasada como sempre.

— Então, você tem progredi… — ele começou, mas ela logo o


interrompeu:

— Por que você ficou tão impressionado com esse planeta quando
nós chegamos aqui? — Ela tentou sondar, mas sem dar indícios de que
estava tentando colher informações para ajudar Bok a resgatá-la.
Ele a olhou com a expressão que sempre assumia quando ela
ficava enrolando para começar a aula.

— Porque eu pensei que ele fosse uma lenda.

— Como assim, uma lenda?

— Porque ninguém nunca o achou.

— Por que ninguém nunca o achou? Não existe GPS aqui? Os


carros de vocês voam, e vocês não conseguem achar um planeta deste
tamanho?

— Ele tem um defletor que bloqueia qualquer sinal — disse com


convicção enquanto folheava um livro.

— E por que o Holophone funciona aqui?

— Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

— Mas… o sinal, o satélite… não é tudo a mesma coisa? — Ela


não tinha muita certeza do que estava falando.

— Não. São tecnologias diferentes. — Já ele parecia ter certeza do


que estava falando. Assim como tudo que falava.

— E como diabos aquele maldito o encontrou? — Ela resolveu


mudar os argumentos.

— Por meio de livros históricos de família.

— E onde estão esses livros?

Oberyn a encarou. Era evidente que sabia que ela estava


tramando algo.
— Acho que você tem que perguntar a ele. Agora, podemos
começar a aula?

Luna desistiu. Depois reviraria a casa atrás daqueles livros,


mandaria para Bok e tudo daria certo. Porque pelo andar das aulas… não
iria conseguir aprender a usar seus poderes nunca.

— Olá, futuro marido de brincadeira — Luna disse para o holograma


de Bok após tomar um longo e relaxante banho e escolher uma
maquiagem discreta, porém elegante, no makeuptor. Também pôs um
vestido colado, cheio de recortes e pedrarias. Estava morrendo de frio,
mas aguentaria firme ao menos pelo tempo da ligação. Os hologramas
eram em tamanho real, tão nítidos que parecia que Bok estava à sua
frente, portanto queria ficar apresentável. — Tenho novidades. Vocês não
conseguem encontrar o planeta porque parece que tem alguma coisa que
bloqueia todos os sinais.

— Oi, futura esposa de brincadeira. É, eu soube. Aqueles malditos


fizeram isso para ninguém conseguir chegar aí depois que abandonaram
o planeta para explorarem nosso Sistema. — Sua voz era um misto de
irritação e decepção.

— Quem?

— Os gagrilyanos. — Ele respirou fundo.

Por que ele falara aquilo? Qual o problema das pessoas com os
gagrilyanos? E será que ele esquecera de que ela também era
gagrilyana?

— Parece que existe um livro na casa que ensina como chegar


aqui. Então, se prepare que em breve nos veremos. — Ela resolveu
mudar de assunto.

Os olhos dele brilharam. Era perceptível como ele também queria


reencontrá-la.

— Que notícia ótima!

— É, deve estar aqui em algum lugar. Assim que eu encontrar,


mando holofotos de todas as páginas.

— Vou esperar. — Ele sorriu, ainda o mesmo sorriso lindo e


reconfortante de sempre, que a fazia ter vontade de começar a procurar
esse bendito livro imediatamente. — Mas não vou deixar de tentar achar
um jeito por aqui. Não se preocupe. Vai dar certo.

— É, no fim tudo dá certo. Se não deu certo é porque ainda não


chegou ao fim — ela disse, sem medo que ele julgasse sua frase de
Orkut. Primeiro porque ele não sabia o que era Orkut, e segundo porque
ele era literalmente a pessoa mais legal que ela já conhecera.

Os dois conversaram mais um pouco, depois se despediram.


Conversar com ele a aquecia, mas não conseguia conter o aperto no
peito sempre que desligava e se dava conta de que aquilo não passava
de um holograma.
Klaaoz reparou que nunca havia ido naquelas montanhas de neve,
as quais estava observando por tanto tempo que nem se lembrava a que
horas havia chegado ali. Bom, mas era impossível conhecer
tudo, aquele planeta tinha o dobro do tamanho dos outros, e ele não tinha
tempo de ficar fazendo turismo.

Se bem que naquele momento, infelizmente, tinha todo o tempo do


mundo. Nesse instante, seu Holophone apitou e ele deu um longo
suspiro. A mensagem de Zuuvak dizia:

Que bom que ele sabia como Klaaoz odiava ligações.

Ao responder, Klaaoz se sentiu inquieto por se dar conta daquele


fato. Saber que realmente não fazia a mínima ideia de quanto tempo
ainda demoraria lhe dava até dor de cabeça.
Mas ele não se importava, seria por uma boa causa.
Klaaoz abriu o arquivo, e a manchete da primeira notícia dizia:
“Agora Klaaoz Lynxzarsfeld foi longe demais!!! O Comando Omega
pretende fazer o Sistema voltar a utilizar dinheiro em cédulas só para
colocar o rosto de Klaaoz no meio das notas”.

Não era possível que alguém acreditasse naquilo. E para piorar ele
estava horroroso na foto em questão. Eles poderiam pelo menos ter
escolhido uma melhor.

“Klaaoz Lynxzarsfeld e o Comando Omega irão tirar todas as


crianças a partir de vinte e cinco anos aurelianos dos pais e obrigá-las a
servirem o exército em Vindemiatrix por cinco anos aurelianos”; “Klaaoz
L. vai descriminalizar a agressão aos gagrilyanos em todo o Sistema”;
“Klaaoz quer liberar o porte de arma na Capital”; “Klaaoz repudia a
crença na Energia”; “Klaaoz propõe lei para dar injeções de gorgana uma
vez por semana em todos os gagrilyanos”; “Klaaoz vai comprar a HoLo e
mudará o nome do Holophone para Klaaozophone”; “Se o Comando
Omega for eleito, Klaaoz pretende derrubar todos os monumentos em
homenagem aos gagrilyanos em Caelestra”; “Klaaoz quer aumentar os
impostos de exportação de todas as artes caelestreanas”; “Klaaoz
pretende impor a culinária auzuniana em todo o Sistema”; “Klaaoz quer
acabar com a fiscalização dos laboratórios osneanos”; “Klaaoz vai proibir
a liberdade de imprensa na Capital”.

Klaaoz não aguentou mais ler. Ele sabia que a mídia manipuladora
da Capital inventaria todo tipo de história sobre ele para tentar prejudicar
o Comando Omega, mas aquilo já havia ultrapassado o limite do ridículo.
Klaaoz engoliu em seco.
Klaaoz umedeceu os lábios e tentou ignorar a destruição do que
restava de sua reputação.

Klaaoz enviou a última mensagem decidido a não tocar mais


naquele assunto para Zuuvak achar que ele estava realmente seguindo
seu conselho.
Klaaoz guardou o Holophone enquanto entrava na sala de
espelhos, sabendo que não tinha com o que se preocupar. Auzuno podia
até ser o lugar mais avançado em termos de tecnologia, mas, ainda
assim, nada nunca superaria a tecnologia gagrilyana.

Olhou seu reflexo em um dos espelhos, depois ajeitou seus


cabelos. Sem dúvidas, aquele era seu lugar favorito da casa. Tudo da
arquitetura gagrilyana era de tirar o fôlego, e aquela sala conseguia
superar qualquer modernidade da Capital.

Andou mais um pouco e avistou a escultura que Luna quebrara no


outro dia. Klaaoz estreitou os olhos ao perceber que não havia se
importado tanto quanto deveria. Mas, quando ele avistou as pegadas no
carpete na beira da escada, sentiu o sangue ferver. Suas tentativas de
provocá-lo eram ridículas, e o pior de tudo era que estavam funcionando.
Como Coisina ainda tinha a audácia de pedir para ele tentar ser mais
amigável quando claramente era ela quem estava tentando tornar as
coisas mais difíceis?

Ao colocar o pé para fora da sala de espelhos e se virar em


direção ao seu quarto, Klaaoz viu a razão de suas dores de cabeça
tentando abrir de forma inútil a porta da biblioteca. Ela teria parecido
adorável devido a sua falta de jeito se não estivesse tentando invadir um
cômodo da sua casa. O ódio que sentia por ela estar sujando o carpete
de propósito até passou um pouco ao ver aquela cena patética.

Klaaoz caminhou sorrateiramente por entre as sombras e se


postou atrás dela.

— Você parece perdida — sussurrou a mesma frase do dia em que


se conheceram, porém em um contexto totalmente diferente.

Ela deu um pulo e olhou para trás, assustada por ter sido pega em
flagrante. Estava visivelmente nervosa, não conseguia esconder nem um
pouco as emoções, ao contrário dele, que sentiu vontade de rir, mas
permaneceu sério. Luna era tão previsível e fácil de se ler…
— Eu pensei que esse fosse o meu… — começou uma desculpa
esfarrapada e depois se calou, como se tivesse esquecido que estava o
ignorando.

Mesmo no escuro era possível ver a vermelhidão de suas


bochechas. Por que ela sempre prendia o cabelo daquele jeito? E como
ela estava aguentando usar aquela roupa naquele frio? E por que ele se
importava com isso?

Klaaoz ficou a encarando, olhando bem dentro dos seus olhos,


mas ela logo desviou. Já havia reparado que ela nunca conseguia olhar
diretamente para ele por muito tempo.

— Você quer entrar? É uma biblioteca de antes da Era A.G. —


disse com firmeza, pegando a chave no bolso do casaco e entreabrindo a
porta.

Ela inclinou a cabeça para avistá-la por dentro, e, pela expressão


que fez, Klaaoz sabia que tinha atingido algum ponto fraco. Qualquer
pessoa ficava impressionada ao ver livros de antes da Era A.G.. Eram
uma verdadeira relíquia, principalmente os originais em gagrilyano feitos
diretamente em Gagrilya.

Não tinha como ela continuar o ignorando, Klaaoz podia ver como
ela desejava entrar. Luna estava tendo exatamente as reações que ele
pretendia despertar nela na festa. Antes de saber que ela estava com a
pedra Aünder, claro. Ofegava, os olhos arregalados e a boca contraída,
parecia até fora de si.

Mas, depois de alguns instantes, ela pareceu recobrar a


consciência, saindo do transe em que estava, e deu meia-volta em
direção ao seu quarto.

Klaaoz deu um suspiro de frustração. Que fosse assim, então. Ele


também a ignoraria. Que os jogos começassem.
15

15- Verdade ou desafio

Já fazia duas semanas que Luna continuava com aquele joguinho


de ignorar Klaaoz. Certo dia, ela estava na cozinha com Coisina quando
ele entrou e perguntou o que teria para o jantar.

— Coisina, você ouviu alguma coisa? — ela perguntou de forma


teatral.

Coisina riu e respondeu a pergunta.

— Ainda bem que hoje você não está tendo ajuda de pessoas
incautas para fazer o jantar — ele retrucou.

— Eu não sei nem o que essa palavra significa. — Ouviu Luna


dizer depois que saiu.

Klaaoz justificava sua participação nesse joguinho patético com


sua falta de afazeres, mas a verdade era que estava o apreciando bem
mais do que gostava de admitir. Fazia com que se lembrasse da sua
infância. Na época, quando estava com raiva de alguém, agia como se a
pessoa não existisse.
Neo-fhaicsinneachkyea, um ditado gagrilyano usado para indicar
que, se você não consegue resolver um problema, deve ignorá-lo,
porque, se não tem solução, não vale a preocupação. Sua mãe que lhe
dissera isso, e um aperto invadiu o peito de Klaaoz ao se lembrar de que
fazia anos que não falava com ela.

Mas por que ele ainda se importava?

Aquela velha lembrança passou como uma faca em seu pescoço,


lhe roubando o ar. Podia sentir seu peito se movendo para cima e para
baixo, mas não sentia o ar chegando.

Para cima.

Para baixo.

Para cima.

Para baixo.

Klaaoz posicionou sua mão embaixo do seu nariz para se certificar


de que havia ar. Não conseguia respirar.

Tudo de novo.

Foi rapidamente para a cozinha beber água. Não que água


melhorasse alguma coisa, mas também não tinha como ficar pior. De
longe, avistou sua petulante hóspede tomando café da manhã. Seu
cabelo estava preso num coque desleixado e ela usava suas roupas
caelestreanas espalhafatosas de sempre. Ele podia odiá-la o quanto
fosse, mas inconscientemente ficava feliz ao vê-la por causa daquelas
roupas.

Avançou um pouco e percebeu que ela tentava inutilmente


despejar a água de um recipiente em uma xícara. Ai, como ela era
estúpida. Klaaoz se aproximou e falou:
— Tem um botão a… — Mas, antes que ele terminasse, ela se
assustou com a sua presença e apertou o botão enquanto o objeto
estava de cabeça para baixo, derramando tudo.

Ela olhou para ele sem reação, visivelmente nervosa e


envergonhada pela bagunça que causara.

— Eu limpo — se apressou em dizer.

Ele apenas observou, inflexível como de costume. Por um


momento, esqueceu sua falta de ar diante daquele novo acontecimento.

— Então, eu não sou mais invisível? — ele perguntou, a


encarando.

Ela mordeu o lábio inferior. E ele se obrigou a não olhá-lo.

— Você é invisível ainda — ela respondeu, fugindo do seu contato


visual.

— Então, como você está falando comigo?

— Eu não estou falando com você — aquilo não estava fazendo o


menor sentido.

— Então, com quem você está falando? — Por que ele ainda dava
cabimento?

— Com as vozes — Luna falou, olhando para a comida. — O quê?


Vocês estão dizendo que eu não devo perder meu tempo conversando
com pessoas idiotas? Ok.

Ai, como ela era patética. Klaaoz revirou os olhos, mas, sem
perceber, um sorriso se abriu no canto da sua boca. Luna esticou o braço
para pegar guardanapos para limpar a bagunça, mas Klaaoz usou seu
poder para afastá-los. Ela suspirou e esticou ainda mais o braço, mas ele
os afastou de novo.

— Pare de fazer isso! — ela disse, se levantando e se esticando


ainda mais. Klaaoz empurrou os guardanapos para o extremo da mesa, e
ela se virou, o fuzilando com o olhar. — É por isso que ninguém gosta de
você — disse, irritada.

Ela era tão pequena e fraca que com raiva parecia um filhote de
jaguslauks com uma arma na mão.

— Você gostou quando me viu na festa — provocou ele.

É, definitivamente gostava de vê-la assim. Podia odiá-la, mas


amava o efeito que exercia sobre ela. Suas bochechas ficavam da cor do
seu pequeno nariz, que parecia sempre estar irritado por conta do frio. E
ele não tinha a decência de disfarçar sua satisfação por vê-la tão
incomodada.

Luna se inclinou e deu as costas para Klaaoz, tentando esconder o


rubor de sua face. Gostar não era exatamente o termo correto para
designar os sentimentos que ele havia despertado nela naquele dia,
mas… Argh, que convencido!

— Porque eu não te conhecia ainda! — ela disse bruscamente.

— E o que a faz achar que me conhece agora?


Ela não respondeu. Se respondesse, aquela discussão não
acabaria nunca.

Luna sentiu o olhar dele sobre ela por alguns segundos e prendeu
o fôlego. Não precisava olhar para saber que aquele 0,5 cm presunçoso
estava ali. O simples fato de ficar perto dele fazia toda sua pele queimar.
E não era porque ele fazia da vida dela um inferno.

— Nicoy — Klaaoz chamou e, para o alívio de Luna, se retirou.

Luna não conseguia entendê-lo. Alguns dias atrás, quando ele a


flagrou tentando entrar nos quartos proibidos, onde ele provavelmente
mantinha uma rosa dentro de um vidro com as pétalas caindo porque
ninguém o amava, ele não fizera nada.

Nada.

Ela esperava que ele a xingasse, destruísse tudo ou pelo menos


arranhasse um quadro com as garras ou algo do tipo. Mas ele apenas…
perguntou se ela gostaria de entrar. Luna morreu de vontade de fazer
aquilo, ainda mais porque o livro que precisava provavelmente estava lá
dentro. Mas seria impossível pegá-lo com ele lá. E também não queria
parar de ignorá-lo. Mas, então, aquilo aconteceu. E ela não sabia
exatamente o que aquilo era.

O empregado roxo que ela ainda não conhecia entrou


resmungando alguma coisa em outra língua e começou a limpar.

— Desculpe — disse Luna, ainda tentando digerir aquilo que


acabara de acontecer. — Ainda não fomos formalmente apresentados.
Essa não é a melhor das situações, mas eu me chamo Luna.

— Nicoy — respondeu ele e continuou resmungando conforme


limpava. — Tente ter mais cuidado da próxima vez.
— Eu sei… É que eu não estou acostumada com as coisas daqui.
Tudo é muito novo para mim. Você não imagina a dificuldade que eu tive
para ligar o chuveiro. — Nicoy a ignorou e continuou a limpar. — Mas
hoje em dia nós já somos grandes amigos.

Ele levantou a sobrancelha e a encarou como se ela tivesse


acabado de falar que amava Hitler.

— Você é amiga… do chuveiro?

— Sim — respondeu, rindo ao se dar conta de quão absurdo aquilo


soava para as outras pessoas. — Eles falam, certo? Então, podem
conversar. E são muito amigáveis. Você deveria tentar conversar com o
seu, é extremamente relaxante ter uma boa conversa enquanto se está
no banho. Sem contar que é esclarecedor. Já ouviu falar da expressão
“uma luz no fim do banho”? — Ele continuou com um olhar que indicava
que estava questionando sua sanidade. — Ok, você provavelmente deve
estar me achando louca. Não tem problema, já estou acostumada. —
Riu. — Mas para falar a verdade todo mundo é um pouco louco, não
acha? A diferença é que alguns conseguem esconder mais do que os
outros.

Nicoy continuou calado e voltou a limpar. Enquanto isso, Luna


notou Morg no canto da sala, olhando para ela com os olhos arregalados.
Bom, não importa qual a espécie. Quando um animal fica encarando uma
pessoa em uma mesa, só pode significar uma coisa.

Luna pegou um pedaço de seja lá o que fosse aquilo que estava


em seu prato e o levantou como se fosse jogar para ele. Numa fração de
segundo, ele voou e o abocanhou, depois se postou ao lado dela,
continuando com o mesmo olhar pidão. Ela pegou outro pedaço, e o
processo se repetiu. Ele continuou com o olhar, roçando na sua perna
como se fosse um gato, e então ela acariciou sua cabeça.

Bom, ele não era tão ruim assim. Ao contrário de seu dono.
— Foi ótimo conversar com você, Nicoy! Até outra hora. — Luna se
levantou. Nicoy pareceu não entender se ela estava sendo irônica ou
falando sério. Ela se abaixou e acariciou Morg. — Você é um
demoniozinho muito lindo.

— Meahgwn — ele grunhiu. Meahgwn significa algo como “eu não


sei por que eu precisava odiar você, mas, se você me der comida,
pararei”.

Quando estava indo para seu quarto, Luna viu luzes e ouviu um
barulho vindo de uma das salas perto da escada e foi ver o que era.
Estava completamente escuro e havia vários hologramas de tamanho
real se movendo e interagindo entre si, feito uma peça de teatro. No
fundo havia o cenário e os móveis. Era como se estivesse dentro da TV.
Rys estava sentado num sofá ao fundo e, quando notou sua presença,
apertou um botão e tudo congelou.

— Acabou de acontecer uma coisa muito estranha. Eu derramei


água na mesa, e Klaaoz não brigou nem me deixou limpar e… — ela
começou a falar para ver se ela mesma acreditava, mas decidiu omitir o
final. — Mas, enfim, o que é isso?

— É o LDRV, hoje começou a nova temporada — disse Rys,


pegando o Holophone e tirando uma selfie com ela desprevenida, para
variar. — Você é meio famosa em Teyrilia — justificou.

— O que é LDRV?
— Ah, é um reality show de Teyrilia, meu sonho é participar. São
dez pessoas em uma casa fazendo qualquer coisa que quiserem. Essa é
S’ahara, ela é auzuniana; como Nicoy, não entende ironias. Mas a melhor
é Z’ohannah. Ela vai ganhar com certeza. Fala tudo que pensa, já pegou
cinco brigas em menos de cinco horas aurelianas de programa e já beijou
todos, menos Mak. E ele já está visivelmente apaixonado por ela. — Rys
continuou a explicação, empolgado, e quando acabou tirou de trás do
sofá uma garrafa.

— O que é isso? — Os olhos de Luna brilharam.

— Conhaque broptoniano, quer? — Ele deu um gole e passou a


garrafa para Luna.

Oberyn havia a dispensado da aula naquele dia, então que mal


teria?

Os dois ficaram bebendo e assistindo ao programa, que Luna


imediatamente adorou. Ou talvez fosse o álcool. Na cena do momento, a
participante S’ahara estava sendo metódica e monossilábica no meio de
um encontro. Eles jantavam sem se olhar e sem emitir um único som há
vários minutos. Era constrangedor e embaraçoso.

— Acho que um encontro com Klaaoz seria assim — Luna disse só


por dizer.

Rys observou a cena calado por alguns minutos.

— Eu sairia com Klaaoz — ele soltou.

Luna se perguntou qual o teor alcoólico daquela bebida, porque ele


só podia estar bêbado para dizer uma coisa daquelas.

— Nossa, você é louco? Pois eu preferiria passar um ano sem


comer chocolate do que sair com Klaaoz. — Ela riu, Rys também. —
Sério. Eu preferiria comer vidro a ir a um encontro com ele. — Rys riu
mais ainda. Ela também. — Eu preferiria passar um ano sem ler nenhum
livro.

— Ok, eu já entendi.

— Eu preferiria passar um ano levando um tapa na cara todos os


dias — ela continuou.

— Ok, Luna, eu já entendi.

— Ok, só mais um porque eu estou inspirada. — Ela tomou fôlego.


— Eu preferiria passar um ano usando as maquiagens mais estranhas do
makeuptor todos os dias do que ir a encontro com Klaaoz.

— Pretensekyea. — Rys falou. Pretensekyea é um provérbio


gagrilyano usado para indicar que, quando uma pessoa tem muita
necessidade em demostrar que não se importa com algo, isso mostra
várias coisas, inclusive que ela na verdade se importa.

Eles continuaram assistindo. Z’ohannah, a personagem favorita de


Rys, apareceu e ela era exatamente como ele a descrevera. Tinha as
orelhas pontudas e cabelos loiros; era linda, e era a pessoa mais louca
que Luna já havia visto. Ela provavelmente era de áries. Na cena, ela
obrigou S’ahara e seu acompanhante a participarem de um jogo com
bebidas e acabou com aquele encontro terrível.

— Vamos jogar um jogo — Luna disse.

— Qual?

— Verdade ou desafio. Se você escolher verdade, tem que


responder uma pergunta; se escolher desafio, tem que fazer algo que eu
mandar. Qualquer coisa. Começando: verdade ou desafio?

Ele a olhou, confuso, como se não tivesse entendido, mas falou:


— Verdade.

Ela parou para pensar.

— Se você pudesse namorar alguém do programa, quem você


escolheria?

— Hum… Mak, óbvio! Mas talvez eu escolhesse Z’ohannah só


para passar o dia inteiro com ela.

— Interessante. Então, você beija rapazes? — ela perguntou para


acabar com a dúvida que tinha já há um tempo.

— Todo mundo beija todo mundo, independente do gênero. Só no


meu planeta atrasado que as pessoas se importam com isso. — Ele
revirou os olhos. — Agora você. Verdade ou desafio?

— Desafio.

Ele acabara de destruir mais um pouco a teoria de Luna de que


aquele Sistema era um lugar maravilho cheio de pessoas ótimas, mas
antes que ela perguntasse mais a respeito do preconceito do planeta
dele, Rys olhou para cima e fez uma cara engraçada, como se estivesse
prestes a falar a maior besteira do mundo. Então disse:

— Klaaoz estava na piscina da varanda quando eu peguei a


garrafa. Eu te desafio a ir até lá, entrar e… falar alguma coisa.

— Quê?! — O efeito do álcool até passou um pouco quando Luna


ouviu aquilo. Ele não podia estar falando sério.

— É.

Luna sentiu o sangue abandonar seu rosto.

— Você está brincando.


— Não.

Ela levantou a sobrancelha.

— Eu não posso fazer isso! — Ele estava ficando louco?!

— Você mesma que disse que podia ser qualquer coisa.

— Mas… — Qualquer coisa que não envolvesse seu maior


inimigo. — Não, eu não vou.

— Medrosa.

— Não, eu não sou. Até escolhi desafio, mas isso… — Não tinha
nem palavras para aquilo. — Que parte de “eu preferia ficar sem comer
chocolate por um ano a ir a um encontro com ele” você não entendeu? —
Ela se deu conta de que Rys nunca havia provado chocolate. Mas, pelos
outros exemplos que deu, dava para ele ter uma ideia de como aquilo lhe
causava repulsa.

— Justamente por isso que eu escolhi isso. Porque é um


verdadeiro desafio. — Ele deu um sorriso maldoso.

Ela revirou os olhos.

— Eu não posso ir.

— Ah, o que você tem a perder? Você mesma disse que hoje ele te
tratou bem. É só você entrar lá, falar e sair. Não vai durar nem cinco
minutos.

Luna o encarou. Tinha 99% de certeza de que se arrependeria


amargamente daquilo, mas aquele 1%… estava curioso. E bêbado.
Luna chegou à sala de espelhos e toda a paisagem da varanda
estava refletida lá: as montanhas nevadas no fundo, o lago e o céu rosa e
limpo. A calmaria e a paz do branco infinito projetadas nos espelhos de
forma magnífica. Se digitasse no Google “o lugar mais bonito do mundo”,
provavelmente apareceria uma foto dali. Parecia uma pintura
impressionista daqueles artistas que tinham a vida trágica, mas que
conseguiam captar como ninguém a sensibilidade dos momentos.

Sorrateiramente, Luna colocou a cabeça por entre a porta que


dava para a varanda. De longe, avistou Klaaoz na piscina com o maxilar
contraído e o olhar perdido para baixo, como se estudasse os elementos
químicos da água. Seus cabelos molhados caíam sobre seu rosto como
espinhos pretos e afiados, e ele estava sentado em um batente com os
cotovelos apoiados na borda daquela grande piscina arredondada feita
de blocos perolados.

A água morna da piscina soltava vapor, enquanto gotículas


escorriam do pescoço de Klaaoz até seu peito liso e descoberto. O brilho
do sol refletia em seus ombros, evidenciando como não era nem um
pouco musculoso. Não era forte, mas também não era exatamente
magro. E, assim como tudo a respeito dele, Luna se sentia incapaz de
categorizar.

Klaaoz não desviou o olhar da água enquanto ela se aproximava,


contar o número de blocos no chão parecia ser mais interessante. Até
que Luna respirou fundo e começou a desabotoar a camisa rosa bufante,
e foi aí que aqueles olhos terríveis, mas ao mesmo tempo encantadores,
encontraram os seus.
O peito dela arfava conforme lentamente deixava a blusa cair no
chão, e fez o mesmo com a saia rodada preta ainda com o olhar fixo no
dele. Klaaoz não olhava para seu corpo, olhava apenas para seus olhos,
e não desviava por nada, a fitando com uma intensidade que a deixava
sem fôlego.

Luna não sabia se era o álcool ou a vontade de vencer o desafio


de Rys, mas foi invadida por uma coragem estonteante, a ponto de
conseguir também não desviar daqueles olhos tempestuosos que
emanavam descargas elétricas.

Devagar e só com a roupa de baixo, ela foi colocando os pés


naquela água escaldante. O olhar de Klaaoz continuava sobre o seu,
como se nas entrelinhas dissesse: “você não ousaria”.

Quando Luna se sentou no lado oposto do dele, a cerca de três


metros de distância, o brilho nos olhos de Klaaoz era algo predatório de
tão intimidante. Como se ela não passasse de um animal indefeso que
tivera a ousadia de ir até o predador.

Coragem ou insensatez? Nesse caso, um pouco dos dois. E meia


garrafa de conhaque broptoniano.

Aquela concentração letal nela, como se a observasse por um


microscópio e pudesse ver a adrenalina e a tensão que percorriam seu
corpo, quase a fez esquecer a frase que havia ensaiado com Rys.

— Sabe, eu acho que você não é tão misterioso quanto pensa que
é. —O canto da boca dele se curvou em 0,5 cm de um sorriso perigoso
enquanto continuava com aquele olhar terrível, cheio de relâmpagos.
Aquele 1% dela gostava daquilo. — Me conte um segredo, Klaaoz —
Luna disse, sabendo que se arrependeria disso para sempre.

Aquilo não fazia parte do combinado com Rys, mas ela


simplesmente sentiu vontade de perguntar. A boca dele parecia ter se
curvado mais alguns centímetros, formando em sua face aquele sorriso
arrogante. Era insuportável o jeito como aqueles olhos estreitos ainda a
fitavam e combinavam perfeitamente com aqueles lábios que pareciam
até ter sido desenhados por Da Vinci.

— Você primeiro. — Seu olhar tinha uma peculiar mistura de


arrogância e divertimento.

O desgraçado parecia saber exatamente do poder que exercia


sobre ela. Luna odiava esse turbilhão de emoções contraditórias que ele
a fazia sentir. Seu peito martelava, enquanto sua cabeça ficava vazia.
Exatamente como na festa.

O que ela responderia?

Ela tinha muitos segredos. Mas o que era relevante contar? Que
ela nunca tinha terminado de ler O Senhor dos Anéis? Que escondia que
possuía o vênus em áries? Que…

— Na festa, eu estava tão bêbada que teria te seguido mesmo se


você não tivesse usado seu poder para me puxar — ela falou e
imediatamente se virou.

Por que tinha dito aquilo? Precisava parar de beber. Quando ficava
bêbada perto dele, não dava certo. Ela esquecia que ele era um monstro.

— Eu… — Ela ouviu a voz dele, tão próxima de seu ouvido que o
calor que emanou pareceu ser sólido. Toda sua pele se arrepiou, os
lábios dele por poucos milímetros não tocavam a pele atrás de sua
orelha. — Não… — Luna fechou os olhos, o peito arfando, e permanecer
com a boca fechada pareceu tão impossível quanto respirar ou se mexer.
— Estava usando.

Ela contraiu as costas e sentiu um rebuliço no estômago, como se


uma bomba tivesse explodido dentro de suas entranhas. Estava até um
pouco zonza, seu coração batia tão forte que parecia que ia parar.
Era um inferno ficar perto dele, não apenas no sentido literal, mas
também no sentido climático. Principalmente no climático.

Quando finalmente soltou o fôlego e olhou para trás, Luna


percebeu que estava no lado oposto da piscina, enquanto Klaaoz já
estava fora, de costas, vestindo um roupão escuro e indo embora sem
olhar para trás.

É, estava decidido: Luna nunca mais iria beber.


16

16 - Luna acha que pode controlar o tempo

— O que você sabe sobre a Energia do universo? — Naquele dia


Oberyn foi direto ao assunto durante a aula.

Luna olhou para aquele teto com desenhos históricos conforme


tentava procurar em sua mente algo sobre aquilo. Física era uma das
matérias que mais odiava no colégio, mas ainda preferia pensar sobre
física a pensar no que tinha acontecido com Klaaoz no dia anterior.
Aquelas fórmulas e aqueles cálculos malucos envolvendo números e
letras pareciam fazer mais sentido do que as reações involuntárias de
seu corpo naquele dia.

— Isso é tipo alguma fórmula de física? — Ao ouvir Luna dizer


isso, ele a encarou. — E = MC2?

Oberyn respirou fundo.

— Não. O universo transmite uma Energia que está relacionada à


estrutura física e ao desenvolvimento da matéria. Essa Energia é
transmitida por tudo que faz parte do universo, inclusive você. A Energia
que você transmite é capaz de atrair o que você deseja. E nossos
pensamentos, tanto os conscientes quanto os inconscientes, ditam nossa
realidade. Em resumo, se você realmente deseja alguma coisa e acredita
que é possível, você vai consegui-la. Como também, se você colocar
muita atenção e pensamento em algo que você não queira, significa que
isso também poderá acontecer.

Luna ouviu tudo com cara de paisagem, se perdendo na metade


de sua explicação. Ela não havia descido para jantar na noite anterior
porque, quando o álcool passou, a vergonha pelo que acontecera foi
maior do que a fome.

— Você pode explicar mais uma vez? — pediu com um sorriso


sem graça.

— A Energia é o que faz o mundo ser como é. A Energia que você


imprime no universo volta pra você de uma forma ou de outra. Entendeu?

— Hum… Mais ou menos.

Mas por quanto tempo ela iria conseguir evitar Klaaoz? A menos
que Bok descobrisse como chegar ali nas próximas horas, em algum
momento ela precisaria encará-lo.

— O universo responde a todos os seus anseios mais profundos


de um jeito tão misterioso que você nunca nem vai se dar conta. Ele só
coloca na sua vida pessoas e situações que irão te ajudar a encontrar
respostas para todas as suas dúvidas. Você precisa emitir sua própria
frequência em vez de apenas absorver as que estão ao seu redor. Você
precisa imprimir suas intenções no universo em vez de apenas aceitar as
da existência. A Energia do universo é isso, a frequência que você
imprime. Entendeu?

Ela hesitou por um minuto, havia pegado a explicação pela


metade.

— Entendi, mas acho que entendi errado.


— O que você entendeu?

— Que… os nossos pensamentos podem… controlar nossa vida?

— Algo assim.

Ela estreitou os olhos. Ele só podia estar brincando.

— É sério isso?

— Claro.

— Hum… Oberyn… sinceramente? Já vi muitas coisas difíceis de


acreditar desde que eu cheguei aqui, continuo vendo novas a cada dia,
porém não acredito que pensar em uma coisa vá fazer com que você a
consiga.

— Você acreditando ou não, isso é um fato.

Ela soltou uma risada zombeteira.

— Não, Oberyn, isso não é um fato. Acredite, eu sei do que estou


falando.

Luna se lembrou do ocorrido que a fez ser expulsa do colégio. Só


ela sabia o quanto desejara profundamente que as coisas não tivessem
sido daquela maneira.

— É comprovado por meio de estudos.

— Se pensamentos positivos funcionam, por que isso está


acontecendo?

— O quê?
— Basicamente… tudo. — Que aconteceu desde o dia em que ela
nasceu.

— Porque tudo que está acontecendo era para acontecer — ele


falou com um ar de conformismo de quem usa isso para justificar tudo só
porque claramente nunca precisou passar nenhuma dificuldade na vida.

— Por quê? — Luna continuou.

— Por causa da Energia do universo.

— Então essa energia é tipo um Deus?

— Não, não é uma religião. É a Energia.

Luna piscou algumas vezes.

— Vocês não tem religião aqui?

— No tempo da dinastia existia a religião gagrilyana. Caso você


não seguisse sua doutrina, iria para um lugar horrível chamado vácuo
quando morresse, e, se fosse obediente, passaria a eternidade no
cosmos. Algumas pessoas ainda acreditam nisso, mas hoje em dia
existem várias religiões diferentes em todos os lugares, apenas é
proibido comercializá-las.

— Como assim?

— Usá-las para fins lucrativos, obter dinheiro em cima delas, exigir


pagamento para poder segui-las, entre outras coisas.

— Mas cada uma delas tem um Deus?

— A maioria acredita na Energia — ele disse, mas sem deixar


evidente seu posicionamento. Embora fosse meio óbvio.
— Então a Energia é um Deus.

— Não. Chamá-la de Deus implica que ela deve ser adorada ou


obriga a seguir uma doutrina. A Energia te dá liberdade.

— Mas você não disse que ela controla tudo?

Ele suspirou. Luna sempre se sentia a pessoa mais burra do


universo quando não entendia o que ele falava.

— Ela controla, mas não desse jeito.

— Então, eu não tenho livre-arbítrio? — Luna ergueu a


sobrancelha.

— Tem. Mas a Energia já conhece suas escolhas.

— Então, tudo que está acontecendo é o destino?

— Sim.

— Mas como eu vou saber qual é o destino certo para eu poder


escolher?

— Não existe destino certo ou errado, existe apenas o seu.

Luna contraiu os lábios.

— Isso não faz o menor sentido. E como eu vou saber qual é o


meu destino?

— Você vai saber porque é o que você vai escolher.

— Então não importa o que eu faça, meu destino está escrito?


— Sim. A Energia conhece seu presente, seu passado e seu
futuro.

— Digamos então que se eu… sei lá, pegue a nave e vá embora


agora. Seria porque estava no meu destino?

Oberyn suspirou.

— Luna, a Energia é aquilo que faz com que tudo seja como é. É o
que há de mais profundo e misterioso na realidade. É o conjunto
indiferenciado de tudo que existe e também é o princípio supremo que
gera e que está na origem da sua jornada. Embora seja invisível,
inaudível e intangível, se manifesta pela sua influência. Mas essa
influência é espontânea, ou seja, faz parte da sua própria natureza, do
seu fluir natural.

Luna fechou os olhos, inspirando profundamente. Seus olhos


arderam, mas ela não estava com vontade de chorar. Ela se recusava a
acreditar que todas as desgraças que aconteceram em sua vida eram
culpa sua por não ter pensado positivo ou que existia um propósito para
tudo aquilo.

— Eu acho que isso é uma coisa que inventaram para vender


livros de autoajuda. Pronto, falei — disse por fim.

Oberyn suspirou, provavelmente pela milésima vez.

— Sabe, às vezes nós nos aprisionamos em certas convenções e


esquecemos que elas são apenas convenções.

— Como assim?

— Luna, tudo que você faz, pensa e é foi pré-moldado pela


sociedade em que você vive. Tudo é fruto do meio em que você está
inserida, e você está submetida a ele. Então, se você parar para pensar,
vai ver que toda verdade não passa de uma grande mentira, porque ela é
apenas uma construção social.

— Mas…

— É melhor pararmos um pouco e continuarmos depois. Reflita


sobre isso, pois essa é a chave para você conseguir usar seu poder.

Luna foi até a varanda, e pequenos flocos de neve caíam enquanto


o sol brilhava intensamente naquele céu rosado. Como era possível um
planeta ser tão contraditório assim?

A varanda, que ficava no topo de um penhasco, tinha vista para um


lago que por alguma razão não estava congelado. O espelho d’água
refletia uma floresta ao seu redor e as montanhas de neve no fundo.
Tudo era extraordinariamente belo e paradoxal. Aquele realmente era o
planeta perfeito para… ah, deixa pra lá.

Então quer dizer que, se ela desejasse muito que parasse de


nevar, a neve realmente pararia?

— Neve, pare — Luna disse em voz alta, apontando a mão para o


ar. Mas nada mudou. — Pare de nevar — repetiu, sem sucesso de novo.

Oberyn só podia ser louco mesmo. Claro que os pensamentos não


influenciavam na vida.
— Você tem consciência de que seu poder não é controlar o
tempo, certo? — Luna ouviu aquela voz familiar e presunçosa, a qual
passara o dia evitando.

Se virou, e lá estava Klaaoz com um sorriso de 0,5 cm arrogante e


insuportável. As roupas escuras perfeitamente engomadas como sempre,
o que o fazia facilmente passar por uma pessoa decente para quem não
o conhecia. Por fora era um lorde inglês do século XVII, mas por dentro…
estava mais para o monstro da lagoa negra.

Ele era tão contraditório quanto aquele planeta.

— Oberyn disse que nosso poder é controlado pelo pensamento.


— Ela não se deu o trabalho de encará-lo. Na verdade, não conseguia.

— Como eu disse, o seu não é controlar o tempo. — Sua voz era


fria e calculista, mas no fundo havia certa graciosidade em tudo aquilo.

— É, mas a energia controla o resto — Luna disse sem saber


exatamente do que estava falando.

Klaaoz revirou os olhos.

— Isso não existe.

Quê?!

— Pois Oberyn, o sábio, disse que, se desejarmos muito uma


coisa, ela acontece — ela enfatizou a palavra sábio.

— Isso é uma coisa que inventaram para enganar as pessoas —


ele falou com veemência.

— Talvez não funcione com você porque você não acredita. — Na


verdade, ela também não acreditava muito, mas falava qualquer coisa só
para discordar dele.
— Então quer dizer que eu apareci na casa de Oberyn em Plutopra
porque você estava desejando desesperadamente me ver?

Luna imediatamente lhe deu as costas. Suas bochechas ficaram


tão vermelhas que pareceu que havia pegado uma insolação. Ele estava
tão próximo dela que Luna podia sentir o calor envolvendo cada milímetro
da sua pele. Mesmo nevando.

— Claro que não! — Ok, talvez só aquele 1%…

— É o que parece.

— Eu não conhecia o poder da Energia ainda.

— Então, você admite que estava pensando?

Ela fez uma careta. Insuportável, convencido.

— Não tem ninguém para você importunar agora, não?

Klaaoz retirou o Holophone do bolso e olhou para a tela.

— Não até às quatro horas. — E ficou a fitando intensamente, o


suficiente para ela se sentir desconfortável, e então sorriu.

Luna desejou profundamente possuir o poder dele para empurrá-lo


para longe de si. Longe o suficiente para que seu corpo não sentisse
aquelas coisas. Ela respirou fundo e decidiu ignorá-lo, voltando a apontar
a mão para o horizonte. Tempo era a coisa mais importante que existia, e
ela não iria perder o dela com ele.

— Enfim, o que eu estou querendo dizer é: pare de tentar controlar


o tempo e tente focar em ler mentes. — Ela não respondeu. Precisava
ignorá-lo. Ignorar. Ignorar. — Pare de ser tão pròiskyea. — Pròiskyea é
uma palavra gagrilyana usada para indicar que uma pessoa não sabe de
algo e prefere continuar sem saber a admitir que está errada.
Nessa hora Luna parou. O que era aquilo de que ele a tinha
chamado? Ela já estava cansada de todos falando nessa outra língua o
tempo todo. E vindo dele, só podia ser uma ofensa.

— Quem é você para me chamar de qualquer coisa? Você não tem


moral para falar de mim, você é um grande… babaca idiota — gritou e
saiu andando, raivosa, com mais raiva ainda dela mesma por ter se
deixado dominar por aquele sentimento.
17

17 - A Vingança de Luna

Naquele dia, depois de calçar seus sapatos para ir lá fora e entrar


na casa com eles sujos, Luna decidiu ir à cozinha fazer algo que estava
há muito tempo com vontade.

Abriu a geladeira e pegou uma coisa pastosa e azul. Depois


misturou com algo transparente semelhante a açúcar que ficava em um
pote em cima da mesa. Passou no rosto e começou a massagear.

Coisina entrou e riu ao vê-la daquele jeito.

— O que você está fazendo?

— Uma esfoliação — respondeu e continuou tentando melhorar


sua pele, que estava extremamente ressecada devido ao clima.

Coisina estava no balcão começando a preparar o jantar quando o


nêmesis de Luna entrou. Ela havia passado a noite pensando em novos
adjetivos para se referir a Klaaoz, e nêmesis era um deles.
Ao ver a tonalidade do rosto dela ou simplesmente porque era uma
pessoa frustrada com a vida e não podia perder uma chance de provar
que era um babaca, ele a encarou com sua típica expressão de
desaprovação, depois se virou para Coisina e falou:

— Coisina, você poderia, por favor, preparar um crophion e deixar


no meu quarto? Obrigado. — E saiu.

Luna continuou a esfoliação, por dentro achando patético e forçado


seu uso de boas maneiras, enquanto Coisina preparava a comida. Até
que ela saiu e foi até a dispensa. Luna olhou para o alimento dentro da
tigela em cima do balcão. Quase podia ver o diabinho sobre seu ombro
como nos filmes. Aquela era sua chance de se vingar.

Foi até lá, abriu um pote de um tempero que tinha no armário, o x-


prax, que Coisina havia dito que não usava muito por ser muito picante.
Pôs uma pitada na boca e sentiu como se sua língua pegasse fogo.
Ótimo.

Luna derramou uma quantidade significativa dele dentro do


crophion e voltou para seu lugar como se nada tivesse acontecido. Esse
era um daqueles momentos que ela tinha certeza de que apareceriam no
telão no dia do seu julgamento final. Mas isso era para Klaaoz aprender a
nunca mais chamá-la de… seja lá de que ele a tivesse chamado no outro
dia.

Coisina voltou, continuou a preparar o crophion e depois foi levá-lo.


Alguns segundos depois que Coisina voltou, Luna ouviu passos
apressados e pesados na escada.

Aquele que ela tanto odiava adentrou pela porta queimando de


raiva, como se alguém tivesse acabado de cortar seu precioso cabelo
enquanto dormia. Boa ideia. Quem sabe na próxima vingança?

— EU SEI QUE FOI VOCÊ! — ele gritou, praticamente soltando


fumaça pelo nariz.
— EU NÃO FIZ NADA! — Luna gritou de volta, sentido toda aquela
adrenalina de mentir descaradamente na cara de uma pessoa.

— O que aconteceu? — perguntou Coisina.

— Essa, essa… — Ele parecia procurar um termo ruim o suficiente


para xingá-la ou parecia que estava com dificuldade em respirar. —
Colocou x-prax no crophion. — Sua respiração estava ofegante. Correr
as escadas naquela velocidade devia tê-lo cansado.

— Eu não coloquei nada, você que está imaginando coisas. E pare


de me acusar sem ter provas.

— Nossa, está com o gosto horrível. Deve ter caído sem querer. —
Coisina fez uma careta ao provar.

— É óbvio que foi ela!

— Não fui eu! E pare de me dirigir a palavra, pois você é invisível.

— Você não cansa nunca de mentir? — O tom de voz dele era alto
e acusatório. — E pare de entrar aqui dentro de sapato, o que você acha
que vai conseguir com essa coisa ridícula? Ah, quer saber? Eu jogarei
todos os seus sapatos fora agora! — Seus olhos ferviam.

Luna não respondeu, e então ele saiu, enfurecido. Coisina ficou


observando a cena, sem reação.

— Você viu? Ele disse que vai jogar meus sapatos fora! Eu preciso
arranjar um jeito de ir embora daqui! — Luna usou a voz mais dramática
que conseguiu, mas ameaçar jogar todos os sapatos de alguém fora era
cômico demais para que ela ficasse séria. Embora ela realmente temesse
por seus sapatos. Mas Coisina ficou a encarando com a expressão séria.
— Eu não fiz nada! — mentiu Luna.

Coisina contraiu os lábios e balançou a cabeça.


— Quer saber de uma coisa, Luna? Você vive falando mal dele,
mas no fundo vocês… são iguais — ela disse, saindo e deixando Luna
sem saber o que dizer.

Morg estava deitado no canto da sala como sempre, e até ele podia
sentir a tensão que reinava na mesa de jantar. Estava um silêncio total,
até que Luna comentou com Coisina que uma das comidas estava ótima,
mas, quando esticou o braço para pegar o último pedaço, ele
instantaneamente levitou até o prato de Klaaoz. Ela respirou fundo.
Ignorar, ignorar, ignorar. Precisava ignorar.

— Você não se cansa de ser desagradável? — Mas era


impossível.

Ele a encarou, como se a resposta fosse muito óbvia.

— Não.

Luna ignorou e voltou a prestar atenção na sua refeição. Quanto


mais rápido terminasse, mais rápido estaria livre da presença dele. Só
que no momento em que ela foi partir uma espécie de suflê que restava
em seu prato, o creme espirrou em sua face. Seu rosto sujo queimou de
raiva, ela sabia que aquilo era fisicamente impossível de acontecer e
claro que possuía o dedo de certo psicopata que podia mover coisas com
a mente.

Sem pensar duas vezes, ela pegou um copo e jogou o conteúdo no


crápula que estava à sua frente, mas o líquido simplesmente flutuou no
ar, ficando em frente a 0,5 cm de um sorriso perverso.

Luna respirou fundo e desistiu. Um dia ela aprenderia a usar seus


poderes, e ele pagaria por tudo isso. Cada. Coisa.

Ela pegou o último pedaço da comida que restava e colocou


debaixo da mesa. Morg rapidamente voou até lá e comeu. Luna inclinou
o braço e ficou acariciando seu pelo macio, imaginando como o coitado
devia sofrer nas mãos daquele…

— Vamos, Morg. — Ela ouviu uma voz glacial dizer.

Morg olhou para o desalmado do seu dono, que já estava de pé,


depois olhou de volta para Luna.

— Muahwe — disse por fim. Muahwe significa que ele queria


continuar recebendo seus carinhos, mas precisava obedecer Klaaoz.

Quando o jantar acabou, Luna chamou Oberyn para conversar.

— Aconteceu alguma coisa, Luna?

— Hum… Nada que não pudesse se transformar em um ótimo


filme de Woody Allen. — Oberyn apenas a encarou. — Aconteceu —
Luna disse finalmente. — Eu descobri por que não consigo usar meu
poder. É impossível me concentrar no treinamento com Klaaoz me
aborrecendo com sua arrogância o tempo inteiro.

— Mas eu achei que você tinha resolvido esse problema fingindo


que ele não existe. Estava até engraçado de se ver.

— É, estava mesmo. Até ontem, quando ele me chamou de…


como foi mesmo? Eu até decorei a palavra! Pròiskyea, e eu não consegui
me segurar. Sério, eu preciso ir embora. Não aguento ficar mais um
segundo nesta casa.
Oberyn franziu o cenho.

— Luna, por acaso você sabe o que é pròiskyea?

— Hum… Uma coisa ruim?

— Não. É uma pessoa que não sabe de algo e prefere continuar


sem saber a admitir que está errada. E, sinceramente? Não é nada
comparado com as palavras que você usa para insultá-lo.

Ela esboçou um sorriso sem graça.

— Eu não aguento mais vocês o tempo todo falando em


gagrilyano, eu não entendo nada!

— E por que você não usa o tradutor do seu Holophone?

Ela inclinou a cabeça e piscou algumas vezes.

— Como assim, existe um tradutor?

— Existe. Só procurar.

Ela emitiu um suspiro de frustração.

— Por que ninguém nunca me disse isso?

— Você nunca disse que não sabia o significado quando alguém


falava algo em gagrilyano. Por isso, presumi que você entendia. — Ela
deu de ombros. Tecnicamente era verdade. — Mais algum problema
relacionado a Klaaoz?

Luna sentiu vontade de rir.


— Sim. Tem também todas as outras coisas que ele fez. Não dá
para conviver com ele. Oberyn, ele me sequestrou. E hoje simplesmente
jogou fora todos os meus sapatos! Eu não tenho mais nenhum para sair
de casa!

Ele suspirou.

— Luna, você precisa parar de julgá-lo.

— Eu não estou julgando. São os fatos!

— Isso é julgar.

— Ok, mas não tem como não julgá-lo. Todos os dias ele faz
alguma coisa que só aumenta minha raiva. — Só em mencionar o nome
dele, sua cabeça latejava.

— Claro que tem. É só parar de ser preconceituosa.

— Quê?! Eu não sou preconceituosa! Eu sou a pessoa menos


preconceituosa que existe na Terra. E em qualquer outro planeta!

— Você sabe o que significa preconceito? É criar um conceito


antes de conhecer algo. Exatamente o que você está fazendo agora.

— Mas com Klaaoz é diferente.

Oberyn balançou a cabeça.

— Pare de ser tão presa ao seu planeta.

— Quê?! Eu não estou presa ao meu planeta! — Luna estava


começando a ficar com raiva era de Oberyn.
— Não, você está numa prisão simbólica, o que é muito pior. Você
vive falando como seu planeta é atrasado, e você está a milhares de
anos-luz dele, mas sua cabeça parece continuar lá. — Ela abriu a boca
para falar, mas ele continuou: — Olha, eu vou ser bem sincero com você.
— Pelo olhar que direcionava a ela, parecia que ele realmente seria bem
sincero. — Você tenta passar essa imagem de que é… diferente,
especial, cabeça aberta, mas a verdade é que tudo que você pensa está
poluído pelos seus condicionamentos e preconceitos. — Ela olhava para
ele, chocada. Como ele podia dizer aquilo? Ele não tinha sido sincero, ele
tinha sido equivocado. Ela era super-não-preconceituosa. Ele deveria ver
as pessoas da sua cidade, aí ele saberia o que é ser preconceituoso.

— O problema é que Klaaoz, ele… é… — No momento, Luna não


sabia nem qual termo usar para se referir a ele.

— Tem certeza de que não estão… vejamos… você diz que Klaaoz
é… o que mesmo?

— Nossa, não sei nem por onde começar… ele é… — Todos os


termos que conhecia pareciam ser insuficientes para descrever aquele
indivíduo. — Um terrorista. — Oberyn levantou a sobrancelha. —
Sequestrador também — completou.

— Ok, você diz que ele é um sequestrador. E por que você diz
isso?

Ela o fitou por alguns segundos.

— Porque… ele me sequestrou? — Suas palavras foram


acompanhadas de uma careta.

— Certo. Ele sequestrou você. E, certamente, sequestrar alguém


não é uma coisa boa. Então, quando você o chama de sequestrador,
você está querendo dizer que ele é mau. Correto?

— É. — Aonde ele estava querendo chegar com aquilo?


— Mas por que o sequestrador é mau?

— Porque… — antes que ela respondesse, ele interrompeu:

— E o que é maldade? Por que ele foi forçado a sequestrar


alguém?

— Porque eu estava com a pedra. Oberyn, porque você ainda o


defende depois de tudo que ele fez?

— A ação de sequestrar é uma ação isolada. E, com base em uma


ação isolada, você está fazendo um julgamento sobre o todo de uma
pessoa. — Ele simplesmente a ignorou.

— É, mas… Oberyn, por que você ainda o defende? — Luna


insistiu.

— Você está resumindo toda a existência dele a ser um


sequestrador. Mas ele também faz outras coisas, não apenas sequestra
pessoas. Ele pode ser um bom pintor, um bom piloto, pode ser um bom
amigo, um bom corredor, pode ter milhares de qualidades. Uma pessoa
inteira é muito vasta, e o ato de sequestrar é apenas uma ação isolada. E
com base em uma ação isolada você não pode fazer uma afirmação
sobre uma pessoa inteira, entendeu? — Pela primeira vez, Luna não
soube o que dizer. — Você não conhece totalmente a pessoa, e muito
menos sabe em que condições a ação aconteceu. Talvez naquelas
condições sequestrar não fosse errado. Porque toda ação é subordinada
a condições. Se você for em cada planeta e observar os diferentes
condicionamentos das pessoas e suas ideias de bem e mal, certo e
errado, você perceberá que sua mente faz parte apenas de uma
determinada parcela da sociedade. E ela não representa nada sobre a
verdade. Representa apenas uma determinada parcela. E é por isso que
por meio da sua mente tudo o que você vê é visto com julgamento.

Luna olhava para ele realmente sem saber o que dizer. Sentia um
pouco como se seu cérebro tivesse acabado de ser espremido feito uma
laranja, escorrido pelo seu ouvido, e o líquido que saiu servisse apenas
para limpar o chão. Se sentia como uma batata.

Então, Oberyn finalizou:

— Ponha na sua cabeça que uma informação válida é apenas


aparência. Eu não quero que você pense igual a mim, eu só quero que
você pense.
18

18 - Klaaoz desiste de pegar livros sem ver


a capa

No dia seguinte, Luna tomou seu café da manhã e depois ficou


brincando com Morg enquanto esperava Oberyn vir lhe chamar para a
aula. Pegou uma coisa que estava em cima da mesa e jogou para o
animal ir buscar.

— Mwaugw — ele disse. Mwaugw significa algo como "por que


você jogou isso no chão?”.

Ele apenas ficou parado, olhando para ela. Ok, ele não é um
cachorro, ela concluiu.

Sacou o Holophone do bolso e tirou uma holofoto dele. Conforme


ela abria o holograma no ar e pintava seu pelo de rosa, Oberyn apareceu
de surpresa na sua frente e a informou que visitariam uma cidade.

— Finalmente, pensei que nós nunca sairíamos para conhecer


este planeta.

— Eu não sabia que você queria conhecer o planeta, você nunca


falou — ele disse com aquele ar de sabedoria que Luna odiava.
E odiava mais ainda o fato de ele estar certo. Se você quer alguma
coisa, precisa pedir.

Luna pegou um sapato emprestado com Coisina, já que todos os


seus haviam desaparecido, vestiu o casaco-capa, e, quando saiu de
casa, Oberyn estava parado ao lado de duas máquinas similares a motos
ou jet skis.

Alguns segundos depois, o responsável pelo sumiço de seus


sapatos saiu pela porta e passou as mãos no cabelo de forma teatral,
como se estivesse em um comercial de shampoo. Exibido.

Seu cabelo estava impecável, como se ele passasse horas o


arrumando ou mantivesse um cabeleireiro particular em cativeiro. Em vez
do casaco-capa, ele usava uma jaqueta e uma calça feitas de um
material semelhante a couro que despertariam pensamentos impuros em
qualquer pessoa que não o conhecesse de verdade. Parecia o tipo
perfeito de cara que os pais odiavam e pelo qual as garotas se
apaixonavam. Luna tentou desviar o olhar, mas o reflexo do sol em sua
roupa era uma cena bonita de se ver. Conseguia até ter um vislumbre da
pessoa que conhecera no dia da festa do presidente. É, ele está…
bonito. Infelizmente. Mas, meu Deus, é de Klaaoz que estamos falando,
ela pensou e imediatamente expulsou aquele pensamento da cabeça.

— Tome — ele disse, entregando dois óculos a Oberyn, fazendo


questão de ignorar Luna. Depois subiu em uma das máquinas, que
flutuou a alguns centímetros do chão. Oberyn entregou um dos óculos
para Luna, colocou o seu no rosto e subiu em outra máquina. — No
painel, tem um mapa com as coordenadas de tudo caso se perca.

Luna subiu no assento do passageiro da moto-jet-ski de Oberyn, e


eles partiram.

O caminho era repleto de neve, montanhas, árvores, lagos, gelo e


palácios, mas não existia nenhuma pessoa em lugar nenhum. Depois de
uns vinte minutos de percurso sem quase nada no caminho, começaram
a surgir casas e outras construções. Estavam entrando em uma cidade.
Era abandonada, coberta de neve, envelhecida pelo clima, mas
não estava em ruínas. Tudo era feito de um material parecido com
mármore branco semelhante ao da casa de Klaaoz.

Fileiras de lindas casinhas que seguiam o mesmo padrão tomavam


conta das ruas. Pontes, canais congelados e árvores de algodão-doce
completavam o visual, que parecia mais uma cidade cenográfica de filme
de tão fofa e caricata que era.

Foram seguindo, até que pararam no meio de uma praça com uma
enorme fonte no meio e uma escadaria que dava para uma construção
que lembrava os enormes palácios pelos quais passaram no caminho.

— Então, aqui é Lostilia? — perguntou Oberyn sem conseguir


esconder como estava maravilhado.

— É, sim — Klaaoz respondeu meio aéreo, tentando dar a


impressão de que não se impressionava com nada daquilo.

— E Carliria?

— Fica do outro lado do planeta. Eles achavam mais viável as


duas cidades serem distantes uma da outra.

— Sìmplidhkyea — disse Oberyn. Sìmplidhkyea é uma palavra


gagrilyana usada para indicar algo simples e genial.

Luna olhava para tudo, fascinada. Imaginou como ficaria bonito se


colocasse no Facebook. Cidade natal: Lostilia.

— Se eu sou gagrilyana, então… eu nasci aqui?

— Não. Apesar de esse ser nosso planeta de origem, ele é


inabitado faz muito tempo.
— Por quê? — Ela lembrou que Bok falou sobre aquilo, mas não
havia perguntado o motivo.

— Há mais de mil anos gagrilyanos, todos moravam aqui, esse era


o único planeta habitável deste Sistema. A evolução aqui começou bem
antes do que nos planetas do Gamma Aurellius, fazendo com que eles
fossem bem mais evoluídos do que qualquer civilização. Com o tempo,
todos migraram para os planetas de lá, abandonando Gagrilya por
completo. Eles governaram por muitos e muitos anos. Tinham poderes e
eram mais evoluídos, não foi difícil. A maioria morava na Capital, mas
cada um dos planetas do Sistema era governado por um gagrilyano
diferente. Mas, como todo governo opressor, uma hora caiu. O último
imperador da dinastia gagrilyana foi Knox Acrux-Alderaminn III. Seu
poder era ter visões do futuro, e isso o deixou louco. Dizia que todos
estavam conspirando contra ele, mandava matar pessoas inocentes,
enfim… Por isso todos os outros planetas se rebelaram, e quase todos
foram mortos.

— E como vocês sobreviveram? A família de vocês, quero dizer.

— Bom, o meu avô era o governador de Caelestra e nunca


concordou com as atitudes do imperador. Digamos que seu planeta
apoiou a rebelião.

— Mas e a língua? Por que as pessoas ainda a usam?

— Bom, apesar de abusarem do poder, os gagrilyanos eram uma


sociedade impressionante. Eles desenvolveram um dialeto com palavras
capazes de explicar o inexplicável e traduzir o intraduzível. Suas raízes
culturais existem até hoje, e saber falar gagrilyano é considerado nobre.

Pela primeira vez, Luna estava adorando o fato de ter aqueles


poderes que bagunçaram sua vida e de ser gagrilyana. Mas ainda existia
uma pergunta que não saía da sua cabeça: quem eram seus pais? Ela
sabia quem era seu pai, ou achava que sabia. Bom, pelo menos tinha
fotos, um nome e uma história. Mas e sua mãe? Ou seus tios não sabiam
ou não haviam lhe contado a história toda.
— Cuidado, gorgana! — gritou Klaaoz tão dramaticamente que ela
pensou que ele tinha acabado de ver um monstro de dez metros, não
uma pequena planta nascendo no chão.

— Nossa, não sabia que isso existia ainda — Oberyn falou,


curioso.

— O que é isso? — Luna perguntou.

— Gorgana é uma planta que contém uma substância que pode


cortar nosso poder por alguns dias. Foi com ela que conseguiram
derrubar os gagrilyanos. Dizem que, se injetada no sangue, a dor é tão
agonizante que muitas pessoas preferem morrer a esperar uma semana
até o efeito passar.

Klaaoz se afastou o máximo que pôde e pareceu meio enjoado. Os


três ficaram andando pela praça, até que chegaram em frente a um
prédio horizontal.

— Aqui é a biblioteca.

— Biblioteca? — disseram Luna e Oberyn ao mesmo tempo,


animados, correndo para a entrada.

— Cuidado para não se perder, Oberyn. Ela é muito grande —


avisou Klaaoz.

A porta já estava aberta, e, quando entraram, o coração de Luna


foi parar na garganta, não conseguia nem acreditar no que estava vendo.
Era a biblioteca mais bonita do mundo. Nem nos seus sonhos tinha
imaginado algo assim. Era enorme, com várias rampas que davam em
salões circulares e uma cúpula no teto com várias inscrições e desenhos
de constelações… Não conseguia nem pensar. Entrou em um corredor e
desapareceu em sua imensidão.
Klaaoz ficou na porta os esperando, mas, depois de meia hora
gagrilyana, percebeu que aquilo demoraria mais do que imaginava e se
sentou no chão. Queria pegar um livro para passar o tempo, mas não
queria que Oberyn chegasse lá e não o encontrasse.

Conseguiu levitar para si um livro qualquer que estava no topo de


alguma prateleira. Quando o pegou, era um livro sobre casais famosos
gagrilyanos. Jogou de lado e revirou os olhos.

Depois de mais meia hora gagrilyana, Oberyn apareceu com um


livro na mão.

— Klaaoz, acho que comi ceecolini demais e isso não me fez muito
bem. Preciso voltar imediatamente — disse com a mão na barriga.

— Ok, vamos. — Klaaoz foi se levantando.

— Não, você precisa ficar para levar Luna de volta.

Klaaoz, que já estava a poucos passos da porta, parou e o


encarou.

— Você está brincando, certo?

— Não. Você precisa ficar. Se ela chegar aqui e não encontrar


ninguém, vai se desesperar.
— Por que você não deixa um bilhete na porta dizendo que volta
para buscá-la depois?

— Porque eu não tenho ideia de que horas conseguirei voltar.


Klaaoz, é mais fácil você ficar e esperá-la. — Ele hesitou por um
momento, olhou para os lados, tentando analisar a situação. — Por
favor? — Oberyn insistiu.

— Não, de jeito nenhum. Eu não vou ficar. Sem chance.

Oberyn tomou fôlego, parecendo irritado.

— Klaaoz, pelo menos uma vez na vida pense nos outros. Se


coloque no lugar dela. E se fosse você que estivesse completamente
sozinho num lugar em que não conhece nada nem ninguém?

Oberyn conseguia ser muito persuasivo quando queria e sabia


exatamente o ponto fraco em que estava tocando. Isso fez um leve
tremor percorrer o corpo de Klaaoz conforme lembranças inconvenientes
ameaçavam surgir. Olhou fixamente para um quadro no outro lado do
cômodo, tentando focalizar os pensamentos naquele objeto. Pelo estilo
das pinceladas, deveria ser de pouco antes de Gagrilya ser abandonada.
Não era lá uma relíquia, como outros que já havia encontrado em outras
partes do planeta. Não valia a pena levá-lo.

— Klaaoz…? — Oberyn o chamou, o trazendo de volta para a


realidade.

Seu fôlego voltou a ficar preso no peito e um leve formigamento


começou a surgir em suas mãos.

— Ok — cedeu por fim, sabendo que se arrependeria


profundamente depois.

Oberyn foi embora, e Klaaoz voltou a se sentar. Levitou outro livro


para si, mas dessa vez era um livro sobre poesias românticas modernas.
Desistiu de pegar livros sem saber quais eram. Resolveu mexer no
Holophone. Ele não tinha holobook próprio, mas às vezes usava a conta
secreta do Comando Omega e, por algum motivo, terminou entrando no
de Luna.

Era cheio de holofotos ridículas dela com o sobrinho de Coisina ao


lado de vários atores em holograma. Tinha também algumas piadas sem
graça. Os olhos de Klaaoz queimaram quando viu uma holofoto de Morg.
Quem ela pensava que era para ficar tirando holofoto do seu mualhag? A
legenda dizia: “Morg, que, ao contrário de certas pessoas, é lindo e
adorável”. Aquilo era uma indireta para ele? Como ela era ridícula…

A imagem de ela entrando na piscina cruzou seu pensamento, mas


ele imediatamente a expulsou. Já havia perdido tempo demais pensando
no que gostaria de ter feito naquele dia. Na verdade, infelizmente, ainda
perdia. Mas aquele não era o momento.

Ele até estava tentando ser um pouco simpático com ela… Só


porque Coisina solicitara, claro. Mas, depois que ela havia colocado x-
prax em sua comida, faria o possível para dificultar a vida dela o máximo
que conseguisse.

Quando Klaaoz se deu conta, já havia passado mais meia hora


gagrilyana desde que Oberyn havia ido embora. Do jeito que ela era
estúpida, era capaz de ter se perdido. Ele se levantou e entrou em um
corredor à sua procura. Continuou a procurando por quase uma hora
gagrilyana, mas nem sinal dela. Que emboscada essa em que Oberyn o
fez se meter… Klaaoz jogaria fora todo os ceecolinis que havia na casa
quando voltasse.

Pegou um livro sobre arte contemporânea gagrilyana que já havia


lido e voltou para a entrada com o intuito de esperar a boa vontade
daquela indigente de aparecer. Mas, quando chegou lá e olhou para a
porta, quase teve um infarto ao perceber o que tinha acontecido.

Não podia ser.


Luna poderia ficar horas e horas imersa nos livros que não veria o
tempo passar. Todos eram em gagrilyano, e ela pretendia usar o tradutor
para decifrá-los, quem sabe algum deles tinha as coordenadas de como
chegar lá?

Mas já estava sem aguentar o tanto de livros que estava carregando


nos braços, eram dez no total, então resolveu ir até a entrada deixar
esses para depois voltar e buscar mais.

Quando chegou à porta, avistou apenas Klaaoz sentado, lendo um


livro. Ela pensou em perguntar por Oberyn, mas queria continuar o
ignorando.

— Oberyn já foi — avisou ele calmamente e sem tirar os olhos do


livro que estava lendo. — E, a propósito, estamos presos.
19

19 -Luna realiza o sonho de Rys e


descobre que é preconceituosa

— Como assim, estamos presos? — Luna havia deixado os livros


no chão e já estava voltando para pegar mais quando gelou ao ouvir o
que Klaaoz disse.

Ele apenas apontou com a cabeça para a porta de entrada. Pela


janela, tudo que se via era um branco infinito. Estava tudo coberto de
neve até uma altura que passava da porta. Luna foi até lá e tentou abrir,
sem sucesso. Ficou sem reação por uns instantes. Como aquilo era
possível? Como ninguém tinha visto aquilo acontecer?

— Por que Oberyn foi embora? — indagou.

— Porque estava passando mal — Klaaoz retrucou sem tirar os


olhos do livro.

— Ah, é mesmo? Passando mal?

Nessa hora, ele parou de ler e olhou para ela de soslaio, como se
não estivesse entendendo seu tom de voz.

— É — ele afirmou com convicção.

— E aí, de repente, caiu essa nevasca…


— É. — Klaaoz se manteve firme. Já era possível sentir uma
pitada de irritação.

— E por que você não usou o seu poder para liberar a entrada?

— Acredite, eu tentei.

— Essa história está muito mal contada — Luna esbravejou. —


Está me parecendo que é uma armadilha.

Ele apenas a encarou.

— Armadilha para quê? — perguntou com desdém.

— Para ficar preso comigo.

Ele a lançou um olhar de desprezo e disse:

— E por que eu iria querer passar por tamanho infortúnio?

Luna hesitou por um momento. Ok, aquilo tinha soado um pouco


estranho.

— Para me matar. — Esse sempre seria o melhor argumento para


quando ela não tivesse o que falar.

Ele revirou os olhos.

— Olha, coloque uma coisa na sua cabeça de uma vez por todas
— ele disse com arrogância. — Se eu quisesse matar você, eu já teria
feito isso.

Assim que ele terminou de falar, Luna saiu correndo, seu rosto
queimava de raiva enquanto ela entrava em um dos corredores. Pegou o
Holophone e mandou uma mensagem para Rys:
Ele rapidamente respondeu:

Luna revirou os olhos e digitou:


Por um segundo, Luna riu, imaginando o que Z’ohaannah faria,
mas depois voltou a sentir raiva de tudo, daquela situação, da vida. Saiu
correndo desenfreada pelos corredores e tropeçou em um tapete que
estava elevado, indo de encontro ao chão. Seu tornozelo latejou, uma dor
aguda a invadia enquanto ela tentava massagear o membro torcido.

Ficou sentada por alguns minutos olhando atentamente para as


estantes de livros, como se de alguma delas um livro fosse saltar
magicamente e dentro dele tivesse a receita da melhor maneira de lidar
com tudo que acontecia. Mas sua vida já tinha lhe provado várias vezes
que estava mais para um filme de terror do que para um conto de fadas,
e aquilo nunca iria acontecer.

E se ela ficasse ali, Klaaoz poderia muito bem ir embora quando a


neve derretesse e deixá-la lá. Ela não duvidava que ele faria isso.
Precisava ser madura, esquecer o ódio que sentia por ele pelo menos
enquanto estavam presos.

Mas, quando voltou mancando para a entrada e viu todos os livros


que trouxera espalhados em cima de uma mesa, fora do lugar onde ela
havia os deixado, sua vista até escureceu de tanto ódio que sentiu.
Klaaoz certamente havia os pegado para verificar se em algum deles
havia alguma pista de como chegar em Gagrilya, temendo que Luna
encontrasse e acabasse com seu esconderijo.

— Por que você — ela começou com a voz áspera e elevada, mas,
quando percebeu o que tinha acontecido com o local onde estavam os
livros anteriormente, suas palavras cessaram.

Havia uma enorme poça de água, parte da neve que cobria a


entrada certamente derretera e entrara pelas brechas da porta, alagando
o local. O rosto de Luna ficou em vários tons de vermelho. Klaaoz, por
sua vez, se levantou e saiu abruptamente, desaparecendo em um dos
corredores antes que Luna encontrasse a voz.

Um bolo se formou em sua garganta, e tudo que ela conseguiu


fazer foi se encostar à parede e escorregar lentamente até atingir o chão.
Ficou olhando para o interior da biblioteca, para aquelas pinturas e
decoração antiga, e foi então que Luna sentiu como se uma forte luz
tivesse a atingido. Uma luz tão esclarecedora que pareceu que estivera
no escuro todo aquele tempo. Será que Oberyn estava certo esse tempo
inteiro? Ela era preconceituosa?

Klaaoz impedira os livros de serem destruídos, e ela foi logo


achando que ele fizera aquilo para promover o mal. Ela não era diferente
das pessoas preconceituosas e de mente fechada do seu planeta. Era
igual a eles, só que com um CEP diferente. Como pôde ser tão cega?

Ela costumava ter uma opinião formada sobre tudo. Suas verdades
absolutas, que havia escrito em pedra. Que ingenuidade. Se lembrou do
que Oberyn lhe disse: “você pensa o que pensa porque a sociedade
desde os primórdios da humanidade vem induzindo você a pensar
assim”.

Tudo em que acreditou durante toda a sua vida só era verdade


dentro do meio em que estava incluída. Só valia até os limites da sua
percepção. E não existia nenhuma verdade absoluta, na verdade eram
apenas pontos de vista. Tudo era possível. Nada era verdade ou mentira.
Não existiam coisas boas ou coisas ruins. Só existiam pontos de vista.

Luna ficou até um pouco tonta depois de tanta lucidez. Ela, que
sempre fora tão cheia de certezas, só tinha dúvidas. A única certeza da
sua vida naquele momento era de que não sabia de nada.

Luna permaneceu ali, sentada, ainda pensando em como era


idiota, até que depois de alguns minutos Klaaoz apareceu carregando
duas almofadas. Jogou uma para ela sem dizer nada e foi se sentar no
outro extremo do saguão de entrada da biblioteca.

— Obrigada — disse ela baixinho, mas ele não respondeu.

Passaram algumas horas sem nenhum dos dois proferir uma única
palavra. O silêncio era desconfortável. Luna já havia folheado quatro
livros, e Klaaoz estava deitado, olhando para o teto.

Ela estava impressionada com a naturalidade com que ele


conseguia ficar em inércia, já que ela estava quase enlouquecendo com
o tédio. De repente, Luna se lembrou da lição de moral que Oberyn havia
lhe dado no dia anterior. E precisava agradecer a Klaaoz por ter salvo os
livros, sem contar que ainda devia desculpas pelo que havia dito por não
saber o que significava pròiskyea. E já que aparentemente ainda ficariam
ali por um bom tempo…

— Por que você fica tanto tempo parado, olhando para o teto?
Você não tem nada melhor para fazer? — Ele inclinou o rosto e a fuzilou
com o olhar. Luna percebeu que aquilo não tinha soado como ela havia
pensado. — Não, calma, não foi isso que eu quis dizer. Eu sei que isso
soou meio… — Ela se levantou e foi se sentar ao lado dele. — A
propósito, eu também queria me desculpar por aquele dia. Eu não sabia
o que significava pròiskyea e pensei que fosse algo ruim, então, enfim…
Acho que te devo desculpas.

Ele ficou sem reação, pareceu estar esperando qualquer coisa, até
que ela jogasse um livro em sua cabeça, menos um pedido de desculpas.

— Ok — ele disse sem emoção alguma.

Qualquer pessoa sensata teria entendido que aquilo era um sinal


de que ele não queria mais conversar.

— E… obrigada por salvar os livros. — Mas ela não era uma


pessoa sensata.

Ele demorou alguns segundos para responder:

— Por nada.

O silêncio continuou por alguns minutos. Ele parecia extremamente


incomodado com sua mudança de lugar.
— Bom, sabe-se lá por quanto tempo ainda ficaremos presos aqui,
então eu pensei que, se nós… parássemos de nos odiar um pouco, isso
tornaria nossa vida mais fácil. — Ele não respondeu. Parecia que queria
encerrar a conversa ou empurrá-la para o outro lado usando seu poder,
mas ela não desistiu. — Então… me conte mais algum… segredo. — Ela
engoliu em seco ao se lembrar do dia da piscina. — Quais são seus
planos e sonhos? Sua cor favorita? Seu signo? O que você gosta de
fazer em seu tempo livre além de ficar olhando para o teto e destruir
vidros? — Luna perguntou, rindo. A resposta dele foi apenas mais um
olhar fulminante. — Ok, é brincadeira. Mas, sério, quem é Klaaoz por trás
dessa armadura invisível?

— Por que você está fazendo isso? — Ele parecia irritado e


desconfortável com a situação.

— Porque… eu quero me dar bem com você. — Luna abriu um


sorriso bobo. — E também porque Oberyn me pediu.

— Pode se dar bem comigo me deixando em paz. — Sua voz foi


glacial.

Ela suspirou. Isso ia ser mais difícil do que imaginava.

— Ok, você não está ajudando — ela disse, aumentando o tom de


voz. — Eu estou tentando me dar bem com você porque aparentemente
ainda vamos ficar muito tempo aqui, presos sem nada para fazer, o que
por si só já é muito difícil, além do fato de não termos onde dormir, o que
comer, o que beber e… Quer saber? Há alguns dias eu não sabia nem
que existia vida fora da Terra. Aí eu saí de lá sozinha e vim para cá sem
conhecer absolutamente nada nem ninguém. Mas adorei tudo, fiz vários
amigos, entre eles um chuveiro. E pela primeira vez senti que eu
realmente pertencia a algum lugar. Até que você me sequestrou na festa,
e então minha vida mudou completamente pela segunda vez na mesma
semana. Aí eu tive que ir atrás de Oberyn para ele me ensinar a usar
meus poderes, e você apareceu lá e nós tivemos que vir pra cá. E agora
provavelmente ainda vou ter que ficar aqui um bom tempo. E, se você
parasse de me odiar e de ficar me criticando o tempo todo, poderia tornar
tudo isso menos horrível. Porque hoje eu me dei conta de que eu sou
uma batata e também de que estou completamente sozinha, pois na
verdade não conheço ninguém aqui e não faço ideia de quando vou
voltar para a Terra, ou vou comer chocolate, ou ouvir o ranger da porta da
livraria, ou dormir na minha cama, que, mesmo não sendo assim tão
confortável quanto a da sua casa — sua voz começou a falhar e seus
olhos arderam —, era a minha cama.

— Você está falando isso para chegar em algum lugar ou só


porque sente prazer em ser irritante?

Depois que Klaaoz falou aquilo, Luna desabou em lágrimas, o


deixando absolutamente sem reação. Ele realmente não estava
esperando por aquilo. Estava esperando uma ofensa, que responderia
com outra, como sempre faziam. Mas chorar? O que ele deveria fazer?
Oferecer um lenço? Onde vácuos iria arranjar um lenço ali? Pensou em
simplesmente se levantar, deixá-la sozinha e chamar alguém para lidar
com a situação, mas não tinha ninguém lá. Era como se seu cérebro não
fosse programado para reagir àquilo.

Maldita hora em que se sentou ali. Se ele não tivesse impedido os


livros de se molharem, não estaria passando por aquilo. Também se
arrependeu profundamente do plano que precisava colocar em prática. E
se arrependeu mais ainda por ter ido àquela festa estúpida e a
sequestrado. Nessas horas, estaria no Comando Omega e não precisaria
lidar com aquele tipo de situação.

— Pare de fazer isso. — Mas ela continuava chorando sem parar,


soluçando, com a cabeça encostada no joelho. Por que ela tinha que
fazer aquilo? Era tão mais fácil ficarem se odiando. — Sério, pare. Está
ridículo — disse, fazendo a situação piorar.

Ele suspirou.

Com muita vergonha, Klaaoz se sentou e, desajeitadamente,


colocou o braço ao redor dos ombros dela e deu duas leves batidas. Já
vira várias pessoas fazendo isso, era o que faziam para confortar alguém.

Mas, para piorar tudo, Luna afundou a cabeça em seu peito e


chorou ainda mais. Klaaoz olhou para os lados com o desconforto
estampado no rosto, esperando que alguém aparecesse magicamente
para salvá-lo daquele momento.

O barulho de ela chorando misturado com o silêncio


desconfortante do ambiente estava deixando tudo ainda pior. Ele
precisava pensar em alguma coisa para dizer. Seu coração estava
acelerado, e ele provavelmente estava suando. Precisava se acalmar,
aquelas eram as reações naturais do seu corpo para momentos em que
se sentia desconfortável desde que… aquela coisa aconteceu. Mas,
naquele momento, parecia que estavam o dominando com uma
intensidade três vezes maior.

— Está… mais frio hoje — Klaaoz disse e logo em seguida se


arrependeu por ter dito algo tão óbvio e idiota. Por que tinha falado
aquilo? Claro que estava frio, tinha caído uma nevasca. Luna levantou a
cabeça, olhou para ele com uma expressão confusa, depois voltou a
chorar. Ele precisava falar alguma coisa útil. Sobre o que ela estava
falando antes de cair em prantos? — Eu fico olhando para o teto porque
estou sofrendo de tédio existencial — soltou sem mais nem menos. Ela
levantou a cabeça, com algumas lágrimas ainda brotando de seus olhos,
e prestou atenção. — Eu sempre estava ocupado no Comando Omega e,
agora que saí de lá, não tenho absolutamente nada para fazer. É como
se minha vida não tivesse sentido — continuou, quase rindo ao se dar
conta do que acabara de dizer.
— E o que você costumava fazer no seu tempo livre? — perguntou
ela, enxugando as lágrimas.

— Quase nunca tinha tempo livre e, quando tinha, tratava de


ocupá-lo.

— E antes de trabalhar lá?

— Nada me vem em mente.

— Você não tinha nenhum hobby, alguma coisa que você gostava
de fazer quando era criança?

Ele olhou para cima, sentindo os pensamentos irem para longe.

— Tinha uma coisa… mas não sei se eu ainda sei fazer.

Luna ficou esperando Klaaoz dizer o que era aquela coisa


misteriosa, mas ele continuou calado.

— Então, você deveria fazer essa coisa. Não tem como ser menos
desinteressante do que olhar para o teto ou destruir coisas.

— É… — Ela tirou a cabeça de seu ombro, e ele o braço que


estava ao seu redor, mas continuaram um ao lado do outro. E, pela sua
visão periférica, Luna poderia jurar que o sorriso dele tinha bem mais do
que apenas 0,5 cm. — Você gosta mesmo de livros — observou ele,
apontando com a cabeça para a montanha de livros que ela havia trazido
de dentro da biblioteca.

— Nossa, eu gosto tanto de ler que às vezes eu preciso disfarçar


para não parecer estranha demais.

— Não está disfarçando bem — havia uma pitada de humor em


sua voz. — Ler é muito bom, alimenta o intelecto. O cérebro é como um
músculo, precisa ser exercitado, senão… atrofia. É, eòlaskyea. — Luna
ficou sem acreditar que aquelas palavras estavam vindo dele. Quem diria
que esse tempo todo eles tinham opiniões tão parecidas?

— Como se escreve eòlaskyea? — perguntou ela, abrindo o


Holophone para pesquisar a tradução.

— Significa que nossa personalidade é como um jarro que vamos


enchendo a partir de nossos conhecimentos.

— Ah… obrigada. Eu ia pesquisar… no dicionário que eu


descobri… que existe no Holophone… E, sim, eu digo isso para todas as
pessoas! É literalmente o meu mantra — disse, empolgada. — Meu tio é
dono de uma livraria, e eu trabalho lá.

Ele parecia estar tão surpreso quanto ela.

— Hum… E o que você estudou?

— Eu só tenho dezessete anos, então… ainda nada. Eu ia cursar


Letras ou Jornalismo… — Baixou o olhar. — Mas… eu fui expulsa do
colégio. E… agora não sei.

— Você? Expulsa? — Ele franziu o cenho, como se fosse difícil de


acreditar.

— É…

— Por quê?

— Soltei uma bomba no banheiro. — Ele levantou a sobrancelha.


— Brincadeira. Foram outras coisas, mas eu não gosto de falar sobre
isso… Mas agora estou tentando ler todos os livros do mundo. — Mudou
de assunto abruptamente, ainda observando enquanto o sorriso dele se
esvaía da face. Sua expressão estava mais relaxada e menos
incomodada com a situação. Parecia até outra pessoa.
— Você já leu… Dìomhair-phròiseactkyea?

— Não… mas está na minha lista.

— Pensei que você não soubesse falar gagrilyano.

— Hã, acho que eu confundi com outro — Luna disse, sem graça.

Klaaoz ficou em silêncio por alguns instantes, depois soltou:

— E como está o treinamento com Oberyn? Ele já te enlouqueceu?

— Ainda não, mas acho que está perto. — Ela riu. — Eu nem
consegui acessar a primeira parte do meu poder ainda.

— Como assim, primeira parte? — Ele pareceu se interessar.

— Bom, ele disse que meu poder é muito raro e que, além de
conseguir ler mentes, eu também consigo entrar na mente das pessoas e
controlar seus movimentos, sua voz, essas coisas…

Ele se calou por um instante e pareceu apreensivo, como se


finalmente se desse conta de que, quando ela aprendesse a usar o
poder, seria bem mais forte do que ele.

— Mas, afinal, qual é a dessa Terra? Eles não têm contato com
ninguém mesmo?

— Ninguém. E as pessoas têm medo de pessoas de outros


planetas porque nos filmes sempre os mostram tentando invadir a Terra.

— Invadir? — Ele levantou a sobrancelha.

— É! Para aniquilar as pessoas — Luna respondeu com uma voz


teatral.
— Por que alguém iria querer invadir um planeta? — Ele levantou
uma mão em sinal de desdém.

— Bom, geralmente é porque querem morar lá.

— Mas aqui tem espaço suficiente.

— Pois é, mas sempre mostram assim. — Riu. — Eu acho que


isso foi uma moda que surgiu na época da Guerra Fria, enfim… Você não
vai acreditar quais são os motivos para eles não conseguirem.

— Quais são?

— Alguns morrem quando entram em contato com água, outros


com a luz do sol, e outros, acredite se quiser, morrem quando escutam
música clássica num volume alto. — Ele fez uma careta. — Eu queria
voltar lá e dizer: “gente, não é bem assim”, mas com certeza iriam me
chamar de louca.

— Talvez já chamem. — Seu rosto tinha 0,5 cm de um sorriso


irônico. Ela riu. Ok, ele não era tão ruim assim.

— Mas, sério, alguém devia falar isso. As pessoas estão perdendo


tantas coisas.

— Bom, apesar de tudo, eles têm ótimas bandas. Eu tinha um…


alguma coisa que reproduzia música. Não sei o nome. Minha mãe trouxe
quando viajou para lá. Eu gostava muito para falar a verdade, porém
parou de funcionar.

— Ipod? Mp3? Disc-man? Quais bandas?

— Sinceramente, não sei e não sei que fim levou. Mas com certeza
a Terra tem alguma relação diplomática com a Capital, já que nós dois
falamos aureliano.
— É, o presidente explicou… — Quando Luna falou a palavra
presidente, pôde observar a mudança na expressão Klaaoz. Ficou mais
sério. Ok, não precisava ter falado aquilo, mas ela estava com sono
demais para pensar no que estava fazendo. — Como é esse planeta em
que Oberyn disse que vocês moravam? É tudo isso mesmo que ele falou
ou o cérebro dele que ficou com parafusos a menos depois desses anos
todos sozinho? — perguntou, bocejando.

— Caelestra é isso tudo que ele falou mesmo. E muito mais. Nossa
família tem uma casa na região dois. Me lembra muito aqui, só que sem o
frio. — Klaaoz olhou contemplativo para a parede. Se lembrar do seu
antigo planeta sempre o deixava nostálgico. Nessa hora, Luna encostou
a cabeça em seu ombro, e ele não se sentiu tão desconfortável como da
outra vez. — É um refúgio perfeito para esquecer os problemas do
Sistema. E da vida também. É… cianalaiskyea. — Cianalaiskyea é uma
expressão gagrilyana usada para indicar quando você sente muita
saudade de um lugar, mas não quer voltar para lá porque sabe que não
será a mesma coisa.

Klaaoz se perguntava se algum dia poderia voltar para aquele


lugar de onde nunca quisera sair. Luna não respondeu, e, quando ele se
virou, percebeu que ela havia adormecido. Sem saber muito bem o que
fazer, foi se abaixando devagar, puxou a almofada e cuidadosamente a
posicionou atrás da cabeça dela. Quando estava tentando sair, ela se
remexeu e voltou a deitar a cabeça em seu peito, dessa vez com o braço
ao seu redor.

Droga. Como ele faria para sair?


Cuidadosamente, levitou a mão de Luna, a tirando de cima de si e
a colocando de lado. Porém, imediatamente, a mão voltou para o lugar.

Droga. Mais uma vez ele a retirou. Finalmente, pensou.

Levitou a outra almofada até onde estava e a colocou embaixo da


cabeça.
20

20 -Klaaoz se desculpa por ter jogado os


sapatos de Luna for a

Intensos raios de sol entravam pela janela, batendo no rosto de


Klaaoz enquanto ele estava imerso em um aroma que possuía uma
nostalgia incognoscível. Manhãs ensolaradas na varanda da casa de
Caelestra, flores bryana, tardes de compras, segurança, conforto e
risadas. Era adocicado na medida certa e suave ao mesmo tempo, não
sabia definir. De onde ele conhecia aquele cheiro?

Quando abriu os olhos, custou a acreditar no que viu. Luna estava


com a cabeça encaixada em seu peito num sono profundo, respirando
delicadamente. Seu cabelo estava solto, e o estômago de Klaaoz
embrulhou um pouco ao reparar nisso.

Ela se mexeu, e ele rapidamente fechou os olhos, fingindo que


estava dormindo. Alguns minutos depois, ela acordou e fez a mesma
coisa. A cena se repetiu até ela tossir e ambos abrirem os olhos
exatamente na mesma hora, dando um fim àquela atuação.

Ela retirou o braço que estava por cima dele, se levantou com um
sorriso meio sem graça e jogou todo o cabelo para a frente a fim de fazer
um coque. Klaaoz se levantou também, um pouco aéreo e olhando para
os lados.
Foi um momento extremamente embaraçoso.

Você poderia substituir a palavra nàirekyea, uma palavra


gagrilyana usada para indicar quando uma situação é tão embaraçosa
que tudo o que você quer é se enfiar num buraco e ficar lá por quinze
dias, por uma foto desse momento.

— A neve derreteu — observou ele só para dizer alguma coisa,


apontando para a porta, que agora estava totalmente livre.

— É… — respondeu Luna, meio tímida e mancando para a mesa


onde os livros estavam.

Assim que colocou um deles no braço, todos os outros começam a


levitar e a seguir para a porta. Ela deu um sorriso tímido de
agradecimento enquanto iam para as escadas.

— O que houve com o seu tornozelo? — Klaaoz perguntou ao ver


o modo como ela estava se movendo.

— Eu… tropecei dentro da biblioteca, acho que torci.

Ele a observou por alguns segundos com a inexpressividade de


sempre, e então disse:

— Espere aqui.
Enquanto via Klaaoz andar até a moto-jet-ski com os livros
flutuando ao seu lado, Luna reparou que o clima estava estranho. Não a
temperatura, mas a sensação. Ela se sentia estranha, parecia que estava
de ressaca. Era estranho não xingar Klaaoz mentalmente ou não ficar
desejando que ele tropeçasse e quebrasse o nariz.

De longe, ela o avistou guardar todos os livros no compartimento


interno do veículo, depois levá-lo até a entrada da biblioteca. Luna
agradeceu, subiu, e os dois foram o percurso quase todo em silêncio.

Como sempre, não havia uma alma viva no caminho, só a


imensidão gelada. Luna estava agarrada firmemente à cintura de Klaaoz,
tentando não pensar no que aconteceu. Estava envolvida em um aroma
singular, diferente de todos os cheiros que já sentira na vida. Era como se
estivesse no meio de um campo de lavanda na França e inspirasse
profundamente para no fim subir um leve cheiro de álcool, como quando
você passa álcool em gel na mão e sobe aquele cheiro meio ardente,
mas ao mesmo tempo reconfortante por você saber que está livre dos
germes. Álcool em gel fragrância de bebê poderia ser o nome, mas não
era realmente doce nem amadeirado. Nem forte, nem fraco. Nem suave,
nem intenso. Era… indefinível. E desconcertante.

De repente, Luna percebeu o que era. Há quanto tempo estava


cheirando os cabelos dele? Suas bochechas queimaram por não saber
se ele notara o que ela fazia.

— Eles devem estar preocupados conosco — gritou só para


quebrar o silêncio.

— Aposto que Coisina vai oferecer comida para você assim que
chegarmos — gritou ele de volta por causa do barulho do vento.

— Sério? Por quê?

— Ela me contou que tem um plano de fazer você dobrar de


tamanho até ir embora.
— Quê? Sério?

— Não. É porque ela sempre oferece comida quando acha que as


pessoas estão tristes. E como você teve que passar a noite na minha
companhia, ela deve achar que você está praticamente em depressão.

Continuaram seguindo viagem, até que, ao lado da estrada de


neve por qual passavam, começou a surgir uma gigantesca superfície
congelada, como se fosse um lago feito de um tipo de cristal azul-
turquesa. Ele reluzia o brilho do sol e era tão infinitamente grande que
não dava para ver onde começava ou onde acabava.

Klaaoz parou o veículo subitamente, desceu e fez sinal para ela


descer também. Luna não entendeu, mas fez o que ele pediu. Ele abriu o
compartimento interno e retirou algo semelhante a uma adaga. Luna o
observou, confusa. Klaaoz caminhou alguns metros sobre o lago e
cravou a faca no chão.

— O que você está fazendo? — ela perguntou.

— Pegando um pouco de cristal Zaidar.

— Para quê?

— Para decorar a casa — ele disse com casualidade.

Se ainda se odiassem, Luna faria um comentário ácido sobre a


decoração da casa já ser exagerada demais, mas, já que supostamente
tinham deixado suas diferenças de lado, segurou a língua.

Klaaoz estava tentando recortar um pequeno pedaço e estava


conseguindo, mas o cristal parecia ser muito resistente. Enquanto
esperava sentada na moto-jet-ski, Luna se perguntava por que ele
simplesmente não usava o poder para facilitar o trabalho.
Já fazia alguns minutos que ele estava lá, e ela resolveu pegar o
Holophone para fazer uma holofoto daquele cenário lindo para passar o
tempo. Mas, quando estava procurando o enquadramento perfeito, pela
tela do aparelho viu o cristal no local onde Klaaoz estava se partir
subitamente em milhares de pedaços e uma criatura semelhante a uma
baleia ou um tubarão, ou os dois, dar um salto colossal, irrompendo da
água.

Seu coração foi parar na garganta ao ver aquela coisa monstruosa


cheia de dentes saltando da boca. Olhando bem, não parecia nem com
uma baleia, nem com um tubarão, nem com nada que já vira. Era apenas
um monstro branco, a coisa mais assustadora que qualquer pessoa
poderia ver na vida. E tudo aconteceu tão rapidamente que ela demorou
um tempo para raciocinar o que estava acontecendo.

Klaaoz tentava se equilibrar em um pequeno pedaço de cristal


enquanto os outros flutuavam na água feito milhares de peças
bagunçadas de um quebra-cabeça. O olhar dele era desesperado, não
estava com a calmaria costumeira que mantinha em situações de
extremo perigo, aquele ar de superioridade que carregava por conseguir
controlar tudo com a força da mente.

O animal não estava mais à vista, Klaaoz parecia estudar um jeito


de sair dali. Os outros cristais estavam longe demais para possibilitar um
salto, o único meio seria nadar. Será que ele não sabia nadar? Era por
isso que estava tão tenso? Mas por que ele simplesmente não levitava o
cristal sobre o qual estava para a beirada?

Foi então que o animal surgiu novamente das profundezas, dando


um novo salto, destroçando os pedaços de cristais restantes, fazendo
com que Klaaoz se desequilibrasse e caísse na água.

Luna sentiu um calafrio percorrer seu corpo. Alguma coisa estava


errada.

— Use seu poder! — ela gritou conforme ele tentava nadar de volta
para um dos blocos de cristais. Ele apoiou os braços em cima de um dos
pedaços remanescentes, tentando em vão subir. Ao longe, o animal
mostrava suas escamas, pegando impulso e se preparando para o último
e fatal ataque. — Klaaoz, ele está vindo, use seu poder! — ela gritou de
novo, sentindo um pânico tomar conta dela.

O olhar dele pareceu ainda mais desesperado do que antes, e ele


apenas encostou a cabeça na pedra e disse com reluta:

— O cristal anula o poder.

Ao ouvir aquilo, Luna sentiu seu estômago se revirar e sua


garganta se fechou. Então os cristais que ele estava pegando não eram
para decorar a casa. Como ela fora idiota em acreditar que ele havia
mudado. Mais uma vez caíra em uma de suas mentiras ardilosas.
Tremeu, só que de raiva. Ela percebera a mudança de sua expressão
quando o informara sobre a capacidade do seu poder. Como não
desconfiou? Ele era uma pessoa perversa, cruel, desumana, todas as
variações possíveis do significado de maldade no sentido mais literal da
palavra, e não iria mudar nunca. Era uma causa perdida.

Klaaoz continuava encurralado no meio dos cristais enquanto o


animal nadava em sua direção, pegando intensidade para atacá-lo. Não
havia saída. Por um milésimo de segundo, Luna imaginou que aquilo era
exatamente o que ela sempre quis. Se ele morresse, a vida dela seria
mais fácil: poderia voltar para a Capital, para a Terra, fazer o que
quisesse, seria livre novamente. Ele era a razão de todos os seus
problemas, a pessoa que até um dia atrás fora quem ela mais odiou na
vida.

Tudo que precisava fazer era ficar parada e observar. Apenas


observar acontecer o que, por um bom tempo, ela pensou ser o que
sempre quis.

E foi aí que seus olhares se cruzaram. Aquela coisa trágica de seja


lá qual fosse o fardo que ele carregava continuava em seu olhar,
misturada com outras coisas que ela nunca imaginou ver ali:
vulnerabilidade, insegurança, desespero total ao perceber a hesitação
dela em tentar ajudá-lo.

Luna não seria capaz. Jamais conseguiria carregar o fardo de sua


morte, saber que nem ao menos tentou salvá-lo por mais que ele não
merecesse. Tirar a vida de alguém é lhe roubar todo o tempo que lhe
resta. E tempo é a coisa mais importante que uma pessoa tem. E por pior
que Klaaoz fosse, ela não tinha esse direito. Ninguém tinha esse direito.
Ela devia isso a ele. Não porque ele salvou os livros ou porque ele
precisava, mas simplesmente porque… ele era uma pessoa.

Luna saiu de cima do cristal e fechou os olhos.

Funcione, poder idiota, entre na mente do animal. Você conseguiu


entrar na mente de Klaaoz naquele dia, precisa conseguir agora, disse
para si mesma. Se concentre, limpe a mente, mentalize o vácuo, o
nirvana, mas não a banda.

Respirou fundo, mas não ia conseguir. Nada funcionava.

Deveria ter se dedicado mais às aulas de Oberyn. Mas ela era uma
inútil que não conseguia fazer nada direito, e seu sangue começou a
ferver enquanto era invadida por uma enorme raiva de si mesma.

Tudo o que Klaaoz conseguia ver era a barbatana daquele animal


milenar vindo em sua direção enquanto a culpa por ter parado para pegar
cristais Zaidar o corroía por dentro. Parecia até que o que estava
acontecendo era um castigo.
Aquele bloco em que estava apoiado era pequeno demais para
que conseguisse subir, e, mesmo que subisse, ele se destroçaria com o
impacto da batida do animal. Os cristais maiores estavam longe demais
para que conseguisse chegar a tempo, o animal já estava próximo
demais.

Era isso, não tinha mais o que fazer. Só lhe restava aceitar. Já
chegara bem perto de morrer algumas vezes, mas nunca imaginou que
seria assim. Não conseguia pensar muito bem, seu coração estava tão
acelerado que sua vista ficou turva. O único pensamento que cruzou sua
mente naquele momento foi a constatação de que jamais concluiria o
objetivo da sua vida ou falaria de novo com sua mãe.

Fechou os olhos e se conformou. Ele merecia. Era só aguardar a


fera estilhaçá-lo.

Klaaoz podia sentir a força da água se aproximando, mas não


ousava abrir os olhos. Engoliu em seco, tentando se manter calmo nos
segundos que precederam a sensação de que o bicho estava a
pouquíssimos centímetros dele. Sentia seu hálito horrível e quente bem à
sua frente e se perguntava que tipo de besta era aquela e por que não
terminava logo com aquilo.

— Corra — Luna gritou. — Eu não sei o que estou fazendo nem


por quanto tempo irei conseguir.

Ele abriu os olhos e viu a fera paralisada à sua frente com a


mandíbula aberta. Klaaoz se sentiu até meio tonto ao avistar aquela
enorme quantidade de dentes afiados brilhando bem diante de si. Mesmo
com o fôlego preso no peito, nadou o mais rápido que pôde para a borda.
Luna continuava com os olhos fechados em posição de meditação e com
as veias estourando na testa de tanta força que fazia.

Quando conseguiu subir, saiu o mais rápido possível do campo de


cristal, se deitou na neve e finalmente respirou, aliviado. Mas, como não
estava mais dentro da água quente, tremeu de frio com suas roupas
encharcadas. Estavam perto de casa, mas ainda assim seria difícil
suportar aquela temperatura no estado em que estava.

Mas uma inquietação ainda maior do que o eminente fato de que


provavelmente morreria de hipotermia o perturbou. Luna salvara sua
vida. Mas por quê? Que motivo ela teria? Até onde ele sabia, ela só tinha
motivos para querer vê-lo morto. Será que temia não conseguir pilotar o
snowringer para voltar para casa? Era a única explicação.

Enquanto estava deitado na neve com o queixo batendo, Klaaoz a


viu retirar o casaco que usava e jogá-lo em cima dele. Ele não soube o
que dizer, apenas levitou de volta para ela, quase involuntariamente.

— Não. Você precisa mais do que eu. Minha camisa tem mangas,
dá para suportar até chegar em casa. Tire a sua, que está molhada, e
vista a capa — ela falou num tom sério.

Ele hesitou por um momento, mas obedeceu. Ficou alguns


instantes parado, sentindo aquela sensação de alívio conforme seu corpo
absorvia o calor gerado pelo casaco, depois foi pegar outra pedra de
cristal, dessa vez da ponta, claro.

Quando abriu o compartimento interno do veículo, Luna o abordou:

— Deixe aí. — E o encarou quase como se soubesse exatamente


quais eram suas reais intenções com o cristal. Klaaoz sustentou seu
olhar sem saber o que dizer. Foi invadido por um sentimento horrível que
não soube nomear. — Não vai combinar com a decoração — ela
completou com um leve sorriso e o olhar firme no seu.

Ele engoliu em seco, o sangue abandonou seu rosto e, sem pensar


no que estava sentindo, deixou o cristal no chão.

Luna foi o caminho de volta todo em silêncio, não tinha a


costumeira e irritante tagarelice. E Klaaoz com aquele sentimento que
mais parecia um martelo perfurando sua cabeça. Uma inquietação
misturada com palpitações e a constatação de que ele não merecia nada
do que ela fizera.

Assim que entraram na casa, Klaaoz avistou Oberyn, Coisina e


Ryslo… alguma coisa sentados na entrada com preocupação estampada
em seus rostos.

— Ainda bem que vocês chegaram, estávamos preocupados —


choramingou Coisina, abraçando Luna.

— O que aconteceu? — perguntou Oberyn.

— Você não vai acreditar o que aconteceu no programa ontem —


disse o sobrinho de Coisina efusivamente.

— Deu uma nevasca e a porta ficou obstruída. Ficamos presos


dentro da biblioteca sem ter como sair — Klaaoz informou.

— Oh, cosmos, coitada! Venha, você deve estar morrendo de


fome. — Coisina pegou o braço de Luna, a guiando para a cozinha.

Nessa hora, ele olhou para Luna e gesticulou com os lábios: não
disse?. Mas ela apenas deu um sorriso sem graça enquanto foi
mancando em direção à cozinha. Aquela cena lhe causou uma
inquietação imensurável. Por quê?

Mais tarde, na hora do jantar, ela não desceu, e o sentimento de


inquietação aumentou. Um vazio inconveniente misturado com um anseio
por algo que era incapaz de definir.

Mas o quê?
— Oi, desculpe por ter te prendido na festa e te obrigado a vir para
cá, ter jogado seus sapatos fora, ter espirrado comida no seu rosto
aquele dia e ter tentado pegar cristais Zaidar para usar quando você
aprendesse a usar o seu poder. E também por todas as vezes que eu te
tratei mal.

Klaaoz olhou para seu reflexo no espelho enquanto ensaiava seu


discurso. Estava patético. Jamais falaria aquilo.

Por que estava sentindo aquele vazio horrível no estômago, junto


com a garganta tampada e outras inúmeras emoções desagradáveis que
lhe causavam vergonha só de pensar que as tinha? Só por que ela
salvara sua vida? Tecnicamente, ela não estava fazendo mais do que sua
obrigação, já que, se não fosse por ela e suas mentiras, ele poderia estar
vivendo sua vida tranquilamente no Comando Omega.

— Oi, desculpe ter… — começou a ensaiar mais uma vez, mas,


quando seu olhar cruzou com o de Morg, que o observava com os olhos
arregalados, parou. — Eu estou ridículo, não é? — perguntou, se virando
para ele.

Morg balançou a cabeça positivamente. Klaaoz suspirou, pegou o


curaxpat e saiu do quarto.

Ficou parado em frente à porta do quarto de Luna por um longo


tempo, hesitando bater e se perguntando se não era melhor ir embora.
Qual a necessidade daquilo? Para que se desculpar? Ele continuaria com
o plano de toda forma. O mais sensato a fazer era continuar mantendo
distância dela. Não precisava necessariamente tornar sua vida mais
difícil, só manter distância e deixá-la em paz. Isso era agradecimento
suficiente pelo que ela tinha feito. É, estava decidido.

Klaaoz já estava prestes a dar meia-volta quando Luna abriu a


porta e ficou o observando, confusa. Isso fez o peito de Klaaoz se apertar
de arrependimento por ter ido até ali.

— E-e-eu… — Se atrapalhou com as palavras. — Posso ver seu


tornozelo? — Engoliu em seco. — Quer dizer, não que eu ache que você
tenha tornozelos bonitos e queira vê-los por essa razão. — O que ele
estava dizendo?! Por que ele simplesmente não saía correndo? Seria
menos humilhante. — Eu trouxe isso para passar no seu ferimento —
completou, provavelmente a única coisa sensata daquele monólogo
ridículo. — Que é no seu tornozelo.

Ainda inconformado com sua nítida e súbita falta de jeito com as


palavras, Klaaoz lhe entregou o curaxpat e Luna o observou como se
aquilo fosse algum aparelho moderno de última geração difícil de usar.

— Como isso funciona? — ela perguntou, como se ele realmente


fosse um aparelho moderno de última geração difícil de usar.

Klaaoz o pegou de volta, se abaixou, levantou um pouco a barra da


calça do pijama dela por meio do poder, passou o laser em cima do lugar
inchado e reparou algo que definitivamente não deveria ser reparado.

Não existia um padrão para o que seriam considerados tornozelos


bonitos, mas, se existisse, os dela certamente poderiam ser usados como
referência.

Mas o que vácuos era isso em que estava pensando? Em


tornozelos? Ele realmente estava pensando em tornozelos? E para
completar, os achando bonitos? E logo os da pessoa que desgraçara sua
vida?
Klaaoz levantou o olhar, percebendo que ela observava tudo com
fascínio, e se deu conta de que talvez para ela o curaxpat realmente
fosse um aparelho moderno de última geração difícil de usar.

— Passe um pouco todo dia durante alguns segundos e em uma


semana estará melhor — disse ao se levantar.

— Obrigada. — Ela deu um leve sorriso e continuou na porta,


como se esperasse ele falar mais alguma coisa.

Klaaoz permaneceu calado, olhando para os lados, mas, quando


ela estava prestes a fechar a porta, ele interviu:

— Eu já te agradeci por ter… é… — Engoliu em seco. — Ter feito


aquilo?

— Aquilo o quê? — Ela estreitou os olhos.

Ele respirou fundo.

— O que você fez hoje. — Klaaoz tentou ser o mais inexpressivo


possível, mesmo que por dentro estivesse desmoronando.

— Salvar sua vida? Ainda não.

Ele baixou a cabeça, se sentindo incapaz de fazer contato visual.


Os dois permaneceram calados. Não existia nenhum som no ambiente
além do silêncio ensurdecedor de sua humilhação.

— E eu queria dizer que eu só joguei seus sapatos fora porque…


porque, bom, você estava sujando o chão de propósito. E eu joguei
comida no seu rosto porque… você tentou jogar água em mim. Na
verdade, você jogou depois, mas acho que você tinha feito alguma coisa
antes. E todas as vezes que eu te tratei mal foi porque você também não
ajudava. E sobre os cristais… — Ele respirou fundo. O que ele estava
fazendo? Ela permanecia com os lábios entreabertos em sinal de
surpresa. — O que eu quero dizer é que… — Ai, como isso era difícil.

— Calma, me deixe ver se entendi. — Ela inclinou a cabeça, o


fuzilando com o olhar, como se fizesse muito esforço para permanecer
calma ou não empurrá-lo escada abaixo. — Você está querendo dizer
que tudo que você fez é minha culpa?

— N-ã-ã-o, não. — Ele realmente tinha acabado de gaguejar? —


Não foi isso que eu quis dizer.

Ela o encarou, levantando as sobrancelhas. De todas as milhares


de coisas que odiava nela, as sobrancelhas eram a principal. Eram tão
exageradamente grossas e bem desenhadas que, cada vez que ela as
levantava em sinal de petulância, parecia um chicote batendo em suas
costas. Ele não estava exagerando.

— Foi o que pareceu. — Ela cruzou os braços para completar.

A boca de Klaaoz se moveu, mas as palavras não saíram. Seria


ridículo demais se saísse correndo?

— Mas não foi o que eu quis dizer — Klaaoz insistiu, frustrado pela
hesitação na própria voz.

— Então fale o que você quer dizer — ela retrucou, impassível,


terrivelmente calma. Como ele costumava ser.

Klaaoz respirou fundo. Por que ela não gritava e arremessava


coisas nele? Aquela sua plenitude piorava tudo, ele não sabia como
reagir àquilo.

— Não consigo — foi tudo que conseguiu dizer. Essas


provavelmente foram as palavras mais sinceras que ele já falara em toda
sua vida.
— Eu já entendi — ela o interrompeu, o deixando sem reação
enquanto era observado com uma expressão imparcial. Como ela
entendera se nem mesmo ele entendia? O que exatamente ela
entendera? E o que exatamente ela queria dizer com aquilo? Por que ele
estava ali? — Você simplesmente é incapaz de pedir desculpas. Mas por
quê? Qual é o seu problema?

— Pare de tentar fazer isso ser mais difícil do que já é — Klaaoz


soltou o fôlego conforme tentava ocultar o desconforto, que estava
evidente em sua voz, seu rosto, seus olhos, seus movimentos, sua
respiração, tudo. Ele era um desconforto ambulante.

E ela o fitar com o olhar perplexo meneando a cabeça apenas


piorava a situação. Ainda bem que estava escuro, porque o rosto dele
provavelmente estava rubro.

— Esse é o problema, não deveria ser difícil.

Klaaoz demorou alguns segundos para encontrar a voz:

— Mas é.

Luna continuou o fitando, como se tentasse ler por trás de sua


máscara fria. O que será que ela estava pensando?

— Por que é tão difícil fazer um simples pedido de desculpas? —


Ela voltou a bater na mesma tecla, fazendo seu estômago embrulhar.
Devia ser fome, ele mal tocara na comida. Ao ver que ele permaneceu
calado, Luna soltou um suspiro, irritada, e ameaçou fechar a porta. Ele
tentou impedi-la, e ela o fuzilou com o olhar. — Por que você ainda está
aqui? — Ela estava visivelmente irritada. Klaaoz também estava, mas era
com si próprio.

— Eu não sei. — E deu um longo suspiro.


Depois disso, ela o observou por alguns instantes e um sorriso
indulgente se formou em seus lábios.

— Cara, você tem problemas. — Ela riu de um jeito que lhe


pareceu adorável. O que foi estranho, como ele poderia achar adorável
uma pessoa tão mentirosa e manipuladora daquele jeito?

— Você não faz ideia de quantos. — Klaaoz riu de volta sem


perceber.

Os dois ficaram olhando um para o outro por um instante a mais do


que seria apropriado olhar para uma pessoa a qual odiava. Ele nunca
havia reparado como os olhos dela eram irritantemente azuis, embora se
pegasse os observando sem perceber mais vezes do que era saudável.
Eram quase translúcidos, mas não eram feios. E olhar para eles fazia sua
raiva se dissolver. Assim como olhar para o nariz, vermelho como
sempre.

— Então, estamos bem? — ele perguntou, esperançoso e sorrindo,


apesar de não ter a menor ideia do que esperava conseguir com aquilo.

Conseguia pensar em inúmeras razões para o fato de querer que as


coisas ficassem bem fosse considerada uma péssima ideia, e a principal
razão era que ele realmente queria que ficassem.

— Claro que não. — Mas ela imediatamente destruiu sua chama


de esperança. E deu um sorriso. — Nunca mais toque nas minhas
coisas. Você já viu o que eu sou capaz de fazer. — Olhou para ele de
cara feia e fechou a porta. Depois a abriu novamente, ainda com um leve
sorriso. — E eu quero sapatos novos.

Quando ela fechou a porta novamente, Klaaoz sorriu e soltou um


fôlego que nem sabia que vinha prendendo.
21

21 -Alguma coisa aconteceu

— Eu descobri o nome do objeto da Terra. É CD — informou


Klaaoz.

— Ai, isso é mais vintage do que meu mp3 player — respondeu


Luna.

Coisina ainda não conseguia acreditar no que estava vendo.


Durante o jantar daquele dia, Klaaoz e Luna não estavam se ignorando,
nem se provocando, nem se odiando, nem discutindo. Passaram a noite
inteira conversando com empolgação sobre os mais diversos assuntos. O
que teria acontecido para mudar completamente a opinião que um tinha
do outro era a pergunta que não queria calar.

— Por que vocês… não se odeiam mais? — E Rys, claro, era o


único que carecia de bom senso o suficiente para fazê-la.

Nessa hora, Luna e Klaaoz se entreolharam como se um estivesse


esperando que o outro respondesse.

Existia uma palavra gagrilyana para aquilo. Teagamhankyea, que


era usada para indicar quando você não consegue entender nem explicar
algo, apenas sentir.
— Quem disse que a gente não se odeia mais? — Klaaoz
perguntou com um sorriso irônico.

Quando o jantar terminou, Luna foi ajudar Coisina a retirar a mesa


como de costume. Ela estava jogando as sobras dos pratos no lixo com
uma expressão nova no rosto, algo que Coisina não soube identificar.
Parecia mais aérea do que o normal, se é que isso era possível. Mas
também esboçava certa leveza em seu olhar.

— Então… quer dizer que você e Klaaoz agora estão amiguinhos?


— perguntou com um sorriso insinuador.

— Hum… Eu não diria que o celular dele conectaria


automaticamente no Wi-Fi caso ele entrasse na minha casa, mas…
hum… — respondeu, meio sem jeito. — Digamos que resolvemos parar
de desejar a morte um do outro, essas coisas.

— Hum… Percebi. — E levantou a sobrancelha.

— O quê? — Suas bochechas coraram.

Nesse momento, o assunto da conversa entrou na cozinha de forma


inesperada, o que fez com que Luna quase derrubasse o prato que havia
em sua mão. Enquanto ele se dirigia para o filtro, indiferente a todos
como sempre, Coisina alternava ansiosamente o olhar entre ele e Luna.

— Klaaoz, eu havia prometido à Luna que mostraria alguns


cômodos que ela ainda não conhece, mas de repente me deu uma dor de
cabeça… E para completar ainda tenho toda essa louça para lavar! Você
poderia fazer isso?

Luna olhou para Coisina sem entender o que ela estava fazendo e
soltou um quê? sem som.

Klaaoz pareceu surpreso e hesitou por um instante ao perceber a


reação de Luna. Coisina era uma péssima atriz.

— Claro. Agora?

Luna continuou parada onde estava, ainda tentando compreender


a situação, mas Coisina a empurrou para frente.

Os dois saíram da cozinha, passaram pelo saguão de entrada e


subiram as escadas, sempre mantendo uma certa distância um do outro
como se algum deles portasse uma doença contagiosa e fatal. Morg
voava ao lado deles, acompanhando tudo com os olhos arregalados.

— Muwabh — ele grunhiu. Muwabh significa algo como “estou


muito confuso”.

— Bom, essa é a sala de espelhos — disse ele, apontando para a


porta em frente às escadas da parte de cima. — Mas tenho a impressão
de que você já a conhece.

Luna deu um sorriso sem graça ao se lembrar da sua primeira


noite ali.

— Desculpe por ter quebrado aquela estátua.

Klaaoz contorceu os lábios de um jeito estranho, e ela teve a


sensação de que ele iria obrigá-la a consertar a peça que destruiu,
colando pedaço por pedaço. Ou então quebraria o resto em sua cabeça.
— Era só uma estátua qualquer que já fazia parte da decoração da
casa antes de eu vir pra cá. — E deu de ombros.

— Então, quer dizer que esta casa já era assim quando você veio
morar aqui? — Luna perguntou, aliviada e surpresa na mesma
intensidade.

— Bom, a maioria das coisas sim. Mas outras estavam velhas


demais e precisaram ser restauradas. E eu também adicionei uma coisa
ou outra mais moderna.

— E como você veio parar aqui? — Ela nunca tinha ouvido a


versão dele.

— Bom, como você sabe, este planeta era habitado por nossa
raça, mas, depois que todos resolveram se mudar, ficou abandonado por
centenas de anos. Quando cheguei aqui, apenas fui a várias casas e
escolhi a que eu mais gostei.

— E você mora aqui sozinho? — Ele não respondera exatamente


o que ela queria saber, mas a cada resposta que ele dava sua cabeça se
enchia de novas perguntas.

— Na verdade, eu raramente venho aqui. Geralmente, ficava mais


em Vindemiatrix. Quando eu era mais jovem, costumava vir mais. Hoje
em dia, venho só descansar por algumas semanas e aviso a Coisina para
ela vir também.

— Ah, pensei que ela e Nicoy morassem aqui.

Ele se virou para ela com a testa franzida.

— Claro que não. Que tipo de pessoa você acha que eu sou para
fazê-los ficar aqui sozinhos sem necessidade? — Exatamente o tipo de
pessoa que você é, Luna teria dito se essa pergunta fosse feita dois dias
atrás. Naquele momento, ela se limitou a dar uma risada sem graça. —
Eles só vêm pra cá mais ou menos uma semana antes de eu vir — ele
continuou.

— E como eles vieram trabalhar para você?

— Você faz muitas perguntas — disse, a olhando pelo canto do


olho.

Ela deu outra risada sem graça. Sim, de fato, estava parecendo
mais uma entrevista do que um passeio. The Late Show com Luna
Levine. E o entrevistado de hoje é Klaaoz Lynx… alguma coisa, a pessoa
mais misteriosa da galáxia. Mas ele precisava levar em consideração que
essa era a primeira vez que eles estavam mantendo uma conversa como
duas pessoas normais.

— Eu encontrei Coisina em uma agência de empregos. Foi ela que


arranjou Nicoy para cuidar do jardim e eventualmente de outras coisas. E
esse sobrinho dela, Ryslo alguma coisa, conheci agora.

— Nossa, bem que ela disse que já te conhecia há muito tempo.

— É… Já faz um bom tempo. — Klaaoz olhou para a paisagem


enquanto aquela lembrança surgia em sua mente.

— Desculpe, acabei de ser informada de que meu primo adoeceu e


não poderei mais aceitar o emprego. Sinto muito. — E o holograma
desapareceu.
Aquela já era a décima entrevista do dia. E assim como todos os
outros entrevistados, no momento em que descobriu que era para
trabalhar para um gagrilyano, o candidato inventou uma desculpa
esfarrapada e desistiu.

— Isso não vai dar em nada — Klaaoz murmurou para Zuuvak, já


cansado e sem esperanças. — Essa era a última entrevista.

— Você não precisa dizer que é gagrilyano — Zuuvak sugeriu.

— Eu não vejo nenhum motivo para esconder algo do qual eu me


orgulho de ser — Klaaoz disse com irritação.

Já fazia quase duzentos anos aurelianos que a dinastia acabara,


era inacreditável o fato de ainda existirem pessoas que tinham
preconceito contra gagrilyanos.

Zuuvak deu de ombros.

— Você pode ficar aqui em Vindemiatrix então.

Mas Klaaoz não queria ficar em Vindemiatrix. Já havia ficado tempo


demais, não suportava aquele lugar. Ficaria só o necessário, o que o
trabalho exigisse. Para passar as férias e descansar, queria ficar em
Gagrilya.

Tivera tanto trabalho, o livro fora a única coisa que trouxera daquele
maldito calabouço de Caelestra e, quando finalmente encontrou o
lendário planeta, achou a casa e a cidade perfeitas, não aceitaria não
ficar lá. Se não encontrasse alguém para cuidar da casa, ficaria lá
sozinho. Ele já estava acostumado a se virar sozinho desde os vinte e
seis anos gagrilyanos. Ok, era em um hotel… Mas uma casa seria a
mesma coisa. Zuuvak estava enganado.

— Eu posso ir sozinho. Eu sei me virar — disse.


Zuuvak levantou a sobrancelha, como se duvidasse dele. Antes que
ele falasse qualquer coisa, o Holophone apitou.

— Estamos recebendo uma aplicação de última hora.

— Onde estão os dados? — Klaaoz perguntou, e o holograma com


a nova ficha de aplicação se projetou no ar.

Nome: Kostynizznhkia.

Idade: 110 anos aurelianos.

Nacionalidade: teyriliana.

Quando leu aquilo, não queria nem saber de mais nada.


Caelestreanos ainda tinham o costume de usar teyrilianos para ocupar os
cargos de trabalhos que não queriam desempenhar, mas Klaaoz não
tinha paciência para os teyrilianos e seus atrasos. Sem contar que jamais
iria conseguir pronunciar aquele nome.

— Eu não suporto teyrilianos.

— Atenda. — Zuuvak ordenou, fazendo Klaaoz revirar os olhos.

O holograma da nova candidata apareceu. Tinha uma aparência


típica teyriliana: orelhas pontudas e pele dourada do sol, nada demais.
Era igual a todos os outros teyrilianos que já conhecera. Com exceção de
uma marca no rosto, como se tivesse se envolvido em uma briga ou
fosse muito desastrada.

— Oi — ela falou, um pouco tímida, como se tentasse passar a


impressão de que era uma pessoa meiga e inocente. Por quê?

— Você tem consciência de que o emprego é para trabalhar para


um gagrilyano, certo? Você tem algum problema com isso? — Klaaoz
preferiu abrir mão de ser educado e ir direto ao ponto para não perder
mais tempo.

Ela fez a mesma expressão de hesitação que ele tinha visto tantas
vezes naquele dia, a que sempre era seguida de uma desculpa
esfarrapada.

— Não, por mim tudo bem — ela disse sem mais nem menos.
Aquilo era estranho. — Onde fica o trabalho? — continuou.

Klaaoz engoliu em seco e olhou para Zuuvak.

— A localização é secreta.

Ela olhou nos olhos de Klaaoz como se o esperasse completar a


resposta.

— E como eu chegarei lá? — disse por fim.

Ele hesitou, sentindo um formigamento nas mãos.

— Iremos te buscar. — E permaneceu com a expressão impassível.

— Tudo bem. — Ela deu de ombros.

Aquilo estava muito estranho, cheirava a uma armadilha. Alguém


devia ter descoberto que ele havia achado Gagrilya e estava mandando
aquela mulher para se infiltrar. Só podia ser isso.

Ela o olhava com um olhar insinuador, como se sentisse sua


apreensão. Fazia apenas alguns minutos que eles estavam conversando,
mas ele já odiava aquele olhar.

— Obrigado, nós entraremos em contato — Zuuvak disse e


desligou, provavelmente antes que Klaaoz a fizesse desistir do emprego
com sua arrogância. — O que você achou?
— Tem algo errado. Ela pode ser uma espiã de você sabe quem.

Zuuvak deu uma gargalhada, como se achasse cômica e


desnecessária aquela paranoia.

— Me deixe baixar aqui a ficha dela. — Ele apertou alguns botões


no Holophone e entrou no banco de dados do Comando Omega. — Aqui
diz que ela estudou culinária numa escola de gastronomia Osne-
Teyriliana. Possuía uma doceira em Loinvillia, mas fechou sem motivos
aparentes. É casada, mas não têm filhos. Não possui antecedentes
criminais.

— Não sei. Estou com um pressentimento ruim.

— Você não está podendo se dar ao luxo de escolher muito.

Klaaoz olhou para os lados, apreensivo.

— Vamos esperar para ver se aparece outra aplicação de


entrevista.

Mas não apareceu mais nenhuma aplicação de entrevista. Eles


entraram em contato com Kostynizznhkia contra a vontade de Klaaoz e
organizaram tudo.

Foram buscá-la em Teyrilia e a levaram para Gagrilya. Klaaoz


sempre com um péssimo pressentimento de que algo estava errado.

Quando Zuuvak os deixou na casa, ela podia até estar


impressionada com toda a riqueza histórica do lugar, mas se mantinha
sempre calada, falando apenas o necessário. A princípio, Klaaoz
apreciou bastante o fato de ela respeitar seu espaço, mas parte dele via
seu silêncio apenas como mais um indício de que ela estava observando
tudo para colher informações.
— Aqui é a cozinha. Pode fazer uma lista com tudo que precisa
para longas temporadas. Eu só passo uma semana de cada estação
aqui, então, quando eu for te buscar, precisa estar com tudo pronto para
trazer para cá.

— Ok.

— Ali estão os quartos. Os dróides organizacionais estão na


dispensa.

— Ok.

— E não entre na casa com os sapatos.

— Certo.

Na primeira refeição que ela fez, ele ficou maravilhado, mas ainda
estava com um pé atrás. Ela sempre mantinha uma confortável distância,
nunca perguntava ou falava muito, como se tentasse parecer invisível.

Quando Klaaoz disse que voltaria para Vindemiatrix e ela perguntou


se poderia ficar lá em Gagrilya enquanto ele estava fora, ele não
aguentou.

— Ok, qual é a sua? Você aceitou um emprego que todos


recusaram sem mais nem menos. O que você está escondendo? Para
quem você trabalha? O que você vai ganhar com isso? — Ele sempre
escolhia cuidadosamente frases em que pudesse evitar a pronúncia do
nome dela.

Ela apenas riu.

— Você é um adolescente revoltado que vive quebrando coisas,


tem uma mania exagerada de limpeza, mora num planeta que não tem
um habitante vivo, que tem o clima mais inóspito que eu já vi, é tão
paranoico a ponto de não dizer a localização daqui como se alguém em
sã consciência quisesse vir para esse freezer… e eu que estou
escondendo alguma coisa? Eu não estou escondendo nada, você apenas
nunca perguntou mais sobre mim. — Klaaoz não soube o que responder.
Abriu a boca, mas as palavras não vinham. — E a propósito, qual é o seu
problema com o meu nome?

Seus lábios se contraíram.

— Eu não sei como pronunciá-lo — admitiu com reluta.

Ela deu uma risada.

— Pode me chamar de Coisina.

Klaaoz engoliu em seco, sem saber o que estava fazendo.

— Ok, Coisina. Me conte sua história, e eu pensarei se conto a


minha.

— Sabia que, quando ela falou há quanto tempo trabalhava para


você, eu pensei que você fosse supervelho? — Sua não-mais-tão-
odiada-assim-apenas-intrometida hóspede riu, despertando Klaaoz dos
seus devaneios. — Mas agora eu aprendi a fazer os cálculos. Inclusive,
sempre uso sua idade para fazer a regra de três.

— Como você descobriu minha idade? — Ele levantou as


sobrancelhas.

— Er… — Ela se atrapalhou com as palavras, como sempre fazia


quando era pega em flagrante. — O chuveiro me disse. Quer dizer, ele
fez os cálculos para mim. Eu precisava de algum número de referência
para criar a fórmula. Você tem vinte anos terrestres, trinta e três
gagrilyanos e cinquenta e oito aurelianos.

— Na verdade, eu tenho trinta e dois anos garilyanos, o que daria


mais ou menos… — Ele fez os cálculos de cabeça. — Dezenove anos
terrestres. — E ela não havia respondido como descobrira sua idade.

— Ah, eu devo ter calculado mal… E eu tenho dezessete anos na


Terra. Mas e Morg? Há quanto tempo você o tem? Ele é muito lindinho.
— Mais uma vez, ela tentou se esquivar das perguntas, mudando
abruptamente de assunto.

Klaaoz fez as contas e ficou surpreso ao descobrir que ela tinha


mais ou menos vinte e oito anos gagrilyanos, já que mentalmente parecia
ser bem menos.

— Eu o ganhei da minha mãe quando eu tinha vinte e cinco anos


gagrilyanos — respondeu, incapaz de impedir a outra lembrança que
vinha à tona.

— Ai, ela é ótima. Eu adoro sua mãe. Mas eu odeio as roupas que
ela me deu. Você não… sente falta dela?

— Eu gosto das suas roupas — Klaaoz disse, e as bochechas de


Luna queimaram tanto que pareceu que alguém tinha dado um tapa em
seu rosto.

— O que é aquilo? — Ela tentou mudar de assunto, apontando


para um balcão no qual havia cadeiras altas de madeira talhada com
assentos de veludo azul. Por trás do balcão, havia uma enorme estante
que ia de um canto a outro da parede, repleta das mais diferentes
garrafas.
— O bar — ele respondeu, um pouco ofegante e se dirigindo
apressadamente para a sacada.

Luna não entendeu o que tinha sido aquilo, mas ficou por um
instante observando as garrafas, se perguntando se eram alcóolicas.
Talvez tivesse sido dali que Rys roubara o conhaque broptoniano.

Seu antigo arqui-inimigo estava encostado no parapeito com a


cabeça baixa, respirando lentamente. O que ele estava fazendo?

Luna foi até o seu lado e ficou apreciando a vista por alguns
minutos, até que resolveu quebrar o silêncio:

— É muito bonito aqui. Parece um papel de parede do Windows.

Klaaoz levantou a cabeça e olhou para frente, quase como se


precisasse recordar onde estava. O lago lá embaixo, as montanhas
congeladas no horizonte, as árvores e o caminho de gelo eram realmente
de tirar o fôlego. E apesar da noite, que às vezes parecia ser eterna, o sol
sempre voltava a brilhar no outro dia. Mesmo que fosse apenas por seis
horas.

— É…

Os dois continuaram conversando por um tempo, e, quando


Klaaoz se deu conta, sua falta de ar havia passado.
22

22 - Tic-tacs

No programa daquele dia, Z’ohannah pegou todas as garrafas de


conhaque broptoniano que existiam na casa e estava comemorando a
expulsão de um participante por ter tentado ficar à força com outra
participante que estava embriagada.

Como Z’ohannah era maravilhosa… Rys não sabia se queria ser


ela, ser seu melhor amigo ou se casar com ela. Só sabia que o amor que
sentia por aquela criatura era a coisa mais verdadeira em todo o Sistema.

— Nossa, eu não pensei que eles iriam expulsar Shrax do


programa. Apesar de tudo, ele dava audiência — ele comentou porque
algo sério acontecera e aquele não era o momento para dizer como
Z’ohannah era perfeita, até porque todos já sabiam disso.

— Ele era uma babaca e mereceu. Acho que já foi tarde — Luna
respondeu.

— É, eu concordo. Esse programa fica mais polêmico a cada ano


que passa.

— Acho que esse tipo de coisa acontece porque é em Teyrilia, que


é um planeta que só possui 743 anos gagrilyanos A.G.. Em Auzuno ou
em Caelestra, por exemplo, que possuem 1.156 anos gagrilyanos A.G. e
1.049 anos gagrilyanos A.G., jamais aconteceria uma coisa dessas.

Rys se virou para ela e franziu a testa, em choque. Por um


momento, pareceu que estava falando com outra pessoa ou que um
espírito havia se apossado do corpo daquela doida.

— Desde quando você entende sobre as Eras daqui?

— Klaaoz me ensinou outro dia — Luna falou, pegando um pouco


de crophion.

— Foi mesmo? — Ele ergueu a sobrancelha.

— É. Ele também está me ajudando a aprender a falar gagrilyano.


Ele sabe tudo sobre tudo — ela tentou soar casual, mas falhou
terrivelmente.

Pareceu Rys quando tinha um ataque de fã por Z’ohannah. Só que


mais recatada e discreta.

— Agora vocês vivem juntos — ele provocou.

— Vivemos? — Ela continuou se fazendo de desentendida, como


sempre fazia, achando que ninguém percebia.

— Sim. — Luna deu de ombros e permaneceu calada. Mas Rys


podia sentir seu desconforto. — Eu me lembro de que alguém dizia que
preferia comer vidro a ir a um encontro com ele.

Ela riu, nervosa.

— Eu não fui a um encontro com ele.

Nessa hora, as cenas de Z’ohannah na festa do dia anterior


começaram a passar, e Rys preferiu prestar atenção nisso a na próxima
desculpa esfarrapada que Luna inventaria, caso ele contra-
argumentasse.

— Fico apenas calado. — Depois pegou o Holophone e tirou uma


selfie.

— Oberyn, qual é o seu signo? — perguntou Luna, partindo o último


pedaço do snacan que restava em seu prato e o levando até a boca.

O jantar daquele dia era especial: era aniversário de Oberyn.


Coisina preparara tudo, e todos estavam à mesa, até Nicoy, que não era
muito de socializar. Quieto como sempre, mas estava.

Luna e Coisina haviam feito um bolo surpresa de última hora, já


que só tiveram conhecimento de que era aniversário dele naquela
manhã.

— O que é isso? — ele perguntou, fazendo sua típica cara de


confusão quando Luna falava de alguma coisa da Terra.

— Hum… Como explicar o que é signo? — Ela levou a mão até o


queixo. — Seu signo é, digamos, a constelação que estava no céu no
momento em que você nasceu.

— Não sei qual era a minha, já faz tanto tempo…

— Qual a finalidade disso? — perguntou Klaaoz.


— Bom, existe… uma lenda na Terra que diz que isso influencia na
sua personalidade. Pessoas de um determinado signo são mais
simpáticas, mais explosivas, mais racionais, varia muito. Serve para…
justificar as besteiras que você faz.

— Adorei! Como faz para saber o meu? — pediu Rys.

Klaaoz a encarou, erguendo a sobrancelha.

— Que estupidez. Claro que isso não existe — disse, delicado


como um hipopótamo.

— Eu acredito — rebateu Luna.

— Então quer dizer que, se a constelação de Lynx estivesse acima


do local em que eu nasci, isso faria com que eu fosse melhor ou pior?

— Luna, eu acredito, faz o meu — insistiu Rys, mas foi ignorado


novamente.

Discutir com Klaaoz era uma coisa irresistível e fazia muito tempo
que Luna não fazia isso. Ela pensou um pouco. Falando em voz alta,
realmente parecia uma coisa um pouco boba, mas não quis dar o braço a
torcer.

— É.

— Claro que não. Isso é ridículo.

— Influencia, sim. Você ficaria surpreso em saber como dá certo.

— Oberyn, diga para ela que essas coisas do planeta dela não
fazem sentido — disse Klaaoz num tom divertido.

Oberyn riu.
— Luna, a personalidade das pessoas é influenciada por vários
fatores, como genética, criação, estudo, aprendizado e outras coisas.
Mas a posição do céu na hora em que elas nascem não é uma delas.

Klaaoz deu um sorriso sarcástico de 0,5 cm que dizia: “eu avisei”.


Não eram muitas as vezes que ele sorria, portanto era fácil decorar seus
tipos de sorriso, justificou Luna para si mesma.

— Mas não foi você mesmo que disse que o universo influencia no
curso da nossa vida, no nosso destino e nas nossas realizações?

— Isso é uma coisa completamente diferente. O destino é uma


coisa, a personalidade da pessoa é outra. A personalidade é um vaso
que você vai enchendo no decorrer da sua vida a partir de suas
experiências.

— Mas alguma coisa externa tem que influenciar!

Envolver Oberyn havia sido golpe baixo! Era impossível ganhar


uma discussão contra ele, que sempre diria alguma coisa que faria você
pedir desculpas mesmo se você estivesse certo.

— Não, Luna, não influencia. O que influencia nisso é a sua


criação. — Enquanto Oberyn falava, Klaaoz estava com seu 0,5 cm de
sorriso presunçoso, que dizia: “estou certo, e eu amo isso”.

— Se é só a criação que influencia, explique Klaaoz então. Foi


criado por Mira, que é uma pessoa ótima, e…

Nesse momento, todos se calaram. Luna também se calou antes


de terminar a explicação ao ver o olhar que Klaaoz lançava para ela. Seu
0,5 cm de sorriso havia se desfeito e seu olhar era incomum. Não era
nenhum daqueles olhares a que ela estava acostumada, como o cruel,
que queria dizer: “saia daqui”, “quero matar você”; ou o arrogante, que
dizia: “eu não disse?”; ou o incrédulo, que dizia: “você é louca”.
Além dos seus sorrisos de 0,5 cm, Luna também já estava
aprendendo a interpretar seus olhares, que diziam mais do que sua boca
jamais falou. Na maioria das vezes, ele tinha um ar melancólico de ator
francês de filme noir dos anos 1960 que tinha acabado de ser
abandonado pela amada. Mas em raras ocasiões seus olhos diziam
outras coisas. E esse era um olhar diferente de todos os outros. Parecia
um olhar de… decepção? Parecia dizer: “eu não esperava isso de você”.

Quando Luna se deu conta, já era tarde. Klaaoz se levantou da


mesa, levitou uma grande caixa com um embrulho bastante trabalhado e
se retirou, mas seu breve e melancólico olhar permaneceria com ela pelo
resto da noite.

— Luna… — balbuciou Rys, sendo inconveniente como sempre.

O silêncio desconfortante causado pela situação reinou na mesa


por alguns instantes, até que Coisina saiu e voltou com o bolo.

— Surpresa — disse, entregando-o nas mãos de Oberyn.

— Por que isso? — Ele a encarou, confuso.

— Hoje não é seu aniversário? — perguntou Luna.

Oberyn levou a mão até o queixo.

— Ah, hoje é meu aniversário! Não lembrava. A única coisa que


fazia eu me lembrar de meu aniversário era a visita anual que Klaaoz me
fazia para levar ceecolini.

— Pois é, por isso que Klaaoz me pediu para fazer um jantar


especial hoje. Só ficamos sabendo hoje pela manhã, mas ainda deu
tempo de preparar um bolo — disse, enfatizando a palavra Klaaoz e
olhando para Luna nesse momento, como se quisesse fazê-la se sentir
culpada pelo que dissera há pouco.
Ela não tinha falado por mal, era só que… era a realidade!

— Está delicioso! É de ceecolini? — ele perguntou com a boca


cheia.

— É, sim! Quando eu perguntei a Klaaoz do que você gostava, ele


disse que essa era sua comida favorita. — Coisina mais uma vez lançou
um olhar para Luna, como se quisesse mostrar como Klaaoz havia sido
atencioso com tudo e como Luna estava errada por ter dito aquilo.

— Eu adorei! — Oberyn pegou mais um pedaço e depois olhou


para o embrulho que Klaaoz havia deixado em cima da mesa antes de
sair. — Isso é um presente?

— É, sim. E é de Klaaoz.

Dessa vez, Luna virou o rosto, não precisava dos olhares de


julgamento de Coisina para saber que não devia ter dito aquilo. Ela já
tinha entendido.

Oberyn rasgou o embrulho e, ao abrir a caixa, ficou com uma


expressão que era uma mistura de euforia, choque, emoção e
incredulidade.

— Ceecolini! — disse, derramando o conteúdo da caixa na mesa:


um suprimento praticamente inesgotável de ceecolini.

— Olá, Luna. O de sempre?


— Sim, Freud, o de sempre.

Enquanto a água escaldante batia em seu couro cabeludo e o


vapor subia, Luna tentou organizar suas ideias.

— Sabe, Freud, Klaaoz não é uma pessoa tão horrível assim.

— É mesmo?

— O que ele fez para Oberyn hoje… foi muito legal.

— O que ele fez?

— Ele deu de presente para ele uma caixa cheia de ceecolinis, sua
comida favorita. Tipo, Oberyn é alucinado por ela.

— Entendo.

— Assim, isso pode parecer um gesto pequeno, talvez até bobo,


mas significou muito. Existe um filme na Terra em que o garoto é viciado
em tic-tacs, e a garota, para mostrar que gosta dele, enche sua caixa de
correios com todos os tic-tacs que ele poderia comer na vida. É muito
legal quando alguém te conhece bem e faz questão de te dar um
presente hiperpessoal, sabe? Mostra que ela presta atenção em você e
consegue enxergar além do óbvio.

— O que são tic-tacs?

— É um doce da Terra… Enfim, Klaaoz hoje fez isso. Ele… não sei
explicar. Essa atitude mostra que ele é uma pessoa legal. Não fez isso só
pra agradar, porque estamos aqui ou porque não tem o que fazer. Ele
presta atenção. E isso é muito raro hoje em dia.

Luna se perguntava o que seriam seus tic-tacs. Bom, talvez só


uma pessoa que preste atenção em você o suficiente e lhe conheça mais
do que você mesmo poderá responder essa pergunta.
— Então vocês finalmente colocaram suas diferenças de lado?

Luna parou para pensar um pouco. O calor sempre ajuda a pensar


melhor. O vapor faz você ver as coisas com mais clareza. E se ela estava
pensando isso naquele momento, a resposta era óbvia.

Na física, caos não é uma coisa ruim. Significa: sistema sem


estabilidade, dinâmico, que se altera no tempo a cada pequena alteração
das suas condições iniciais. Então, Klaaoz não era uma causa perdida,
afinal.

— Talvez — disse, mas sabendo que a resposta era outra.


23

23- Klaaoz, você quer brincar na neve?

— Vocês viram Klaaoz? — perguntou Luna para Rys e Coisina


assim que entrou na cozinha.

Na noite anterior, antes de dormir, ficara estudando um pouco da


língua gagrilyana e acordara com algumas dúvidas que só ele poderia
tirar. Quer dizer, Oberyn também poderia, mas ela não queria perder o
tempo da aula dele com bobagens.

Entretanto, Luna já havia procurado Klaaoz na sala de espelhos,


na varanda e na sala de jantar, mas ele não estava em lugar algum.

— Ele saiu faz pouco tempo, acho que foi correr — disse Coisina
com um tom de voz que Luna nunca a tinha visto usar e sem olhar para
ela.

Rys fez uma cara engraçada.

— O que foi? — Luna franziu a testa. — Isso ainda é por causa do


que eu disse ontem à noite? —Rys deu de ombros, enquanto Coisina a
ignorou. — Vocês não acham que ele está sendo muito dramático? Eu
apenas fiz um comentário inocente e verdadeiro, e ele… teve uma reação
completamente exagerada.
Coisina largou a comida que estava cortando e se virou para ela.

— Você não sabe o impacto que suas palavras podem causar na


vida de uma pessoa, Luna. Nem todas as feridas têm cicatrizes, e às
vezes você pode estar tocando em uma sem saber.

Luna ficou tentando entender o que ela quis dizer com aquela frase
de biscoito da sorte, mas não chegou à conclusão nenhuma.

— Pois é, como eu vou saber o que eu posso ou não falar para


aquele drama queen? Ele não… argh! Ele fala tudo que quer sem se
importar com os outros, então que aguente também. — Coisina lhe deu
as costas e bufou. Esse gesto fez Luna perceber que estava agindo
como uma criança de cinco anos que é incapaz de admitir que está
errada. Exatamente como Klaaoz. E ela era melhor do que isso. — O
vocês acham que eu devo fazer? — Luna suspirou.

— Se pergunte: “o que Z’ohannah faria?” — sugeriu Rys.

— Ela… provavelmente não faria nada e iria para uma festa.

Coisina se virou, contorcendo os lábios e depois respirou fundo,


como se apesar de tudo ainda acreditasse que havia salvação para Luna.

— Obviamente, se desculpar.

— É… vou fazer isso. Você poderia me emprestar seus sapatos?


— E sorriu.

Coisina retribuiu o sorriso e saiu para buscar os sapatos.

Depois de calçá-los e vestir o casaco-capa que estava pendurado


na entrada, Luna saiu. O sol ainda brilhava no céu cor de iogurte, que
estava limpo e sem nuvens. Não fazia tanto frio como nos outros dias.
Pena que só durava seis horas.
Luna foi caminhando por entre a floresta, seguindo algumas
pegadas na neve que só podiam ser de uma pessoa. Algumas árvores
eram só galhos secos, mas outras eram algodões-doce em palito. Nem
precisou se deslocar muito, logo avistou Klaaoz.

Ele vestia um casaco-capa igual ao dela, como se naquele dia


tivesse tido preguiça de passar horas escolhendo o look do dia, e seu
cabelo pela primeira vez estava despenteado. Estranho. Seus olhos
estavam fundos, o que o deixava com a aparência ainda mais
vampiresca do que o normal.

Ao seu lado, galhos de árvores flutuavam e se partiam ao meio,


caindo numa grande pilha com outros. Luna ficou observando a cena por
um tempo, até que Klaaoz percebeu sua chegada, mas apenas a
ignorou.

— Eu queria me desculpar por ontem à noite. Porque ao contrário


de algumas pessoas, eu sei pedir desculpas quando estou errada.

Ele demorou alguns segundos para responder.

— Ok — falou sem nem olhar para ela.

Ai meu Deus, vai começar tudo de novo, Luna pensou. Todo o


avanço dos últimos dias tinha ido por água abaixo. Conviver com ele era
um jogo de videogame e ela havia apertado o botão reset.

— Sério, eu… não sei por que disse aquilo. Às vezes, eu falo
coisas sem pensar. Mas não quer dizer que eu pense aquilo. É só que…
— começou, meio atrapalhada. — Deixe pra lá, eu sou de peixes. O que
você está fazendo?

Klaaoz olhou para os troncos e depois para ela, como se aquela


fosse a pergunta mais estúpida do mundo. E talvez fosse mesmo.
Por um tempo, o único barulho no ambiente foi o som da madeira
sendo partida e do vento contra as árvores, mas Luna não se sentiu
incomodada pelo silêncio.

A cena de Pulp Fiction em que Mia Wallace fala o que significa


ficar em silêncio com uma pessoa e não se sentir desconfortável por isso
surgiu em sua mente. Mia justificou para Vincent Vega que isso acontece
quando você encontra alguém especial. Ela disse isso tendo consciência
do quão errado era de sua parte achar que ela e Vincent tinham alguma
coisa especial.

Mas, mesmo Mia, que tinha um marido ciumento e psicopata, que


arremessou pela janela uma pessoa só por ter massageado os pés dela,
concordaria que sentir isso por Vincent Vega era ainda menos errado do
que Luna sentir isso por Klaaoz.

— Sabia que meu sonho sempre foi comer neve? — disse Luna,
pegando um punhado na mão e levando até a boca.

Ela só queria acabar com seu conforto diante do silêncio que


deveria ser desconfortante.

Klaaoz abriu a boca, mas as palavras não vieram. E ele teve a


constatação final de que, sim, ela era louca. Falar de sua mãe sempre o
deixava sentido, mas não tinha como ficar com raiva de uma pessoa que
dizia ter o sonho de comer neve.
— É, até que o gosto não é ruim. É só… gelo — ela alegou o
óbvio, mastigando, pensativa.

— Você nunca havia visto neve? — perguntou ele, sem saber com
o que estava mais chocado: com o fato de ela nunca ter visto ou de
querer comê-la.

— Não. Mas no meu planeta existe neve, claro. Só que eu nunca


vi.

— Agora você vê tanto que não deve estar aguentando mais — ele
disse só para dizer alguma coisa.

Ela riu. Por quê? Ele nem tinha falado algo engraçado.

— É. Sempre me perguntei como seria o gosto e principalmente a


consistência. Engraçado que eu achava que ela era macia, como
algodão. Sempre pensei que se eu me jogasse em um monte de neve iria
afundar.

Klaaoz estreitou os olhos, se preparando para intervir caso ela


tentasse fazer essa insensatez que certamente a deixaria com uma
costela quebrada. Não que ele se importasse com o estado dos seus
ossos, claro. Mas não tinha nenhum remédio para esse tipo de coisa na
casa, então teria que ir a um hospital no planeta mais próximo. E o fato
de cogitar ir a um hospital também não significava que se importava com
seus ossos. Apenas que, bom… não significava nada… — Também
sempre quis fazer isso — Luna disse antes de Klaaoz concluir o
pensamento, se deitando no chão e abrindo os braços e as pernas,
fazendo movimentos até criar uma marca no chão.

— O que você está fazendo? — ele perguntou, por dentro aliviado


porque aquilo era uma coisa segura de se fazer e com a sensação de
que a cada minuto ela conseguia surpreendê-lo ainda mais.
— É um anjo na neve. Eu sempre via as pessoas fazerem isso nos
filmes. Você devia fazer também.

— O que é um anjo?

— Anjo é… ai, isso é difícil de explicar. São… pessoas legais,


muito bonitas, que cuidam de você e usam um enfeite dourado na
cabeça. Ah! Apenas venha e se deite aqui.

— Mas qual é a finalidade disso? — Ela não tinha explicado o que


aquilo tinha a ver com se deitar na neve e encharcar a roupa.

— Bom, na verdade nenhuma. Só pra ver mesmo.

Klaaoz ficou esperando ela dar uma explicação mais convincente,


o que obviamente não aconteceu.

— Eu não vou fazer isso.

— Ah, não custa nada. Depois, quando se levanta, fica legal, você
vai ver. — Uma careta involuntária surgiu em seu rosto.— Venha, deixe
de ser chato. Só uma vez.

— Eu não estou sendo chato. — A menos que de onde ela veio ser
chato significasse se recusar a fazer coisas bobas e desnecessárias.
Então, sim, ele era chato. E com orgulho.

— Eu tenho certeza de que se você olhar a definição no dicionário


vai encontrar uma foto sua. Nem tudo na vida precisa ter sentido ou
significado.

Klaaoz desviou o olhar, depois suspirou. Não acreditava que iria


fazer uma coisa dessas. Deitou do seu lado a uma distância suficiente
para fazer o seu próprio anjo sem danificar o dela.
— É só levar as mãos à cabeça e abrir e fechar as pernas. — Ele
fez, se sentindo ridículo, depois se levantou. — Doeu?

— Não. — Ele revirou os olhos, mas com um leve sorriso no canto


da boca.

Luna retirou o Holophone de dentro do casaco e tirou uma holofoto


das marcas na neve.

— Para postar no meu holobook — justificou. — Você tem


holobook?

— Não perco tempo com essas bobagens.

— Ah, é legal. Você pode colocar a foto em um holograma real,


4D. Parece que você está no lugar. Seus amigos podem sentir que estão
lá com você. E o melhor de tudo, não tem curtidas, então você não fica
escravo da aprovação de ninguém!

Klaaoz não falou nada, depois saiu para pegar troncos enquanto
Luna ficou mexendo no Holophone. Ele nunca tinha sido muito ligado
nessas coisas, nem antes de entrar para o Comando Omega. Mesmo na
sua adolescência, nunca teve holobook. Nunca teve muitos amigos, só
Heats e Kievan para falar a verdade. Mas desde que aquela coisa
aconteceu, ele decidira que não precisava de ninguém e que era melhor
ser sozinho.

Se perguntou qual seria sua relação com Luna. Ela era sua…
amiga? Na teoria, ela era apenas sua hóspede, e, embora estivessem
meio que brigados, nos últimos dias estavam passando muito tempo
juntos. Mas, depois que ele colocasse o plano em prática, o que
aconteceria?

Klaaoz começou a sentir um leve aperto no peito por não saber


qual seria a resposta para aquela pergunta.
— Klaaoz, você quer brincar na neve? — cantarolou ela,
interrompendo seus devaneios.

Ele se virou, se perguntando por que vácuos ela falou aquilo


cantando, quando foi surpreendido por uma bola de neve em seu rosto.
Klaaoz semicerrou os olhos e abriu a boca, mas por dentro estava rindo,
imaginando quantos anos ela realmente tinha para fazer aquilo.
Entretanto, se viu praticamente obrigado a fazer uma bola e jogar nela de
volta.

Ela fez mais uma, jogou e correu.

Klaaoz se abaixou, fez uma bola, a deixou no chão e começou a


empurrá-la usando seu poder. A cada segundo que passava, a bola
triplicava de tamanho. Quando estava grande o suficiente, começou a
levá-la até Luna.

— Isso não vale! — gritou ela ao perceber o tamanho da bola que


estava indo em sua direção, mas ele continuou.

— Só quando você disser que eu venci.

A bola já estava do tamanho dela, a encurralando entre duas


árvores.

— Ok, você venceu — ela gritou, a bola parada a pouquíssimos


centímetros de seu corpo.

Klaaoz foi até onde ela estava e disse:

— Se não aguenta, não comece. — Luna riu e depois se jogou no


meio da bola, a destruindo, saindo do outro lado e caindo por cima dele.
— Você é louca — ele disse, rindo e tentando se livrar da neve que o
cobria, enquanto ela dava uma gargalhada gostosa de se ouvir, o que foi
estranho, pois gente feliz demais geralmente o irritava.
Estavam perto o bastante para que ele pudesse ver seus longos
cílios balançando sobre suas íris azuis. Klaaoz ficou imóvel com um olhar
meio idiota focado naqueles lábios, que eram sempre rosados, como se
ela constantemente estivesse os mordendo. Por alguma razão, ele sentia
vontade de apertar seu nariz, que estava sempre vermelho por conta do
clima. E, apesar das inúmeras camadas de roupa, do frio e da neve que
os separavam, ele podia sentir a tensão e o calor do toque.

De repente, foi como se uma faca tivesse entrado no estômago de


Klaaoz. Apesar de ele literalmente já ter levado um tiro na barriga, dessa
vez era uma sensação com a qual não estava acostumado. Não que
tivesse sido uma sensação ruim, se é que fosse possível levar uma
facada no estômago e ser bom. Não era ruim, era diferente.

Ok, talvez faca não fosse a palavra apropriada. Era como se seu
estômago estivesse cheio com algum tipo de inseto voador
inconveniente. Foi aí que Klaaoz se deu conta de que seguir o plano
talvez não fosse ser tão fácil quanto imaginava.

Luna também o olhava e só depois de alguns segundos percebeu


que ainda estava em cima dele. Suas bochechas ficaram da cor da ponta
do seu pequeno nariz. Ela se levantou, sacudindo a neve, e disse
desajeitadamente, tentando esconder seu embaraço:

— É melhor irmos, já vai escurecer.

— É.

Ele olhou para o céu e, pela primeira vez, odiou o fato de o dia
durar tão pouco naquele planeta.
— Oi, futura esposa de brincadeira — disse o holograma de Bok,
dando um sorris’’ o amável e cheio de dentes, como sempre fazia
quando Luna atendia sua ligação.

— Oi, futuro marido de brincadeira. Como estão as coisas?

— Está tudo na mesma, ainda continuo na busca incansável pra


achar esse planeta que parece não existir. Estão desenvolvendo em
Auzuno algo para anular o bloqueador de sinal daí, mas enquanto não
fica pronto irei em Caelestra ver se descubro alguma coisa. Lá, existem
muitos gagrilyanos, talvez alguém tenha alguma informação de como
chegar aí.

— Hum… — Luna balbuciou com pouco entusiasmo.

— A propósito, vi a holofoto que você colocou no holobook. O que


é aquilo?

— O quê?

— Umas marcas na neve.

— Ah, sim, são anjos na neve.

— Hum… Legal. Quem é o outro?


— Oberyn — Luna se apressou em dizer. Não queria dizer a ele
que estava se dando bem com Klaaoz. Ele não entenderia. Na verdade,
nem ela entendia muito bem ainda.

— Hum… Legal…

Ela olhou para os lados, sem saber o que falar. Nas outras ligações,
nunca ficou sem assunto porque estava sempre falando mal de Klaaoz.
Mas, como ela não tinha mais queixas, parecia que também não tinham
sobre o que falar. Será que o ódio por Klaaoz era a única coisa que ela e
Bok tinham em comum?

— Ah, eu fui na embaixada da Terra daqui. Tem um setor só para


pessoas daqui que querem fazer turismo por lá. É meio complicada a
entrada. Você precisa ir para a embaixada na Capital, e lá eles te levam
até a embaixada deles na Terra, que fica embaixo do mar. Você precisa
assinar um termo de compromisso, deixar todos os seus pertences. Não
é permitido levar nada daqui para lá.

— Nossa, é complicado mesmo. Por que tudo isso?

— Não sei, mas é tudo por causa de um tratado que existe, enfim…
Você poderia me passar os lugares que você quer ir lá? Aliás, você vai
ficar lá mesmo ou vai voltar pra cá depois?

Luna engoliu em seco, sentindo palpitações. Ainda não havia


parado para pensar nisso.

— É… — Ela não sabia o que dizer. — Posso responder isso


depois? Estou morrendo de sono, acordei cedo hoje. Preciso ir…

— Certo, não tenha pressa. Você nem está aqui ainda. — Ele deu
um suspiro de frustração.

— É…
— Como estão as coisas por aí, falando nisso? Se você soubesse
como meu coração fica apertado vendo você passar esse sofrimento…
— Ele baixou o olhar.

Ela mordeu o lábio e tentou forçar um sorriso.

— Está tudo horrível como sempre. Mas não se preocupe, eu sei


me virar. Agora preciso ir. Tchau. — E desligou antes que ele pudesse
responder e sua culpa, aumentar.
24

24- Ninguém consegue enganar Coisina

Naquele dia, Klaaoz acordou mais tarde do que de costume, mas


não se sentiu mal por isso. Na verdade, já fazia um tempo que não
acordava se sentindo mal ou sem propósito. Ele havia arranjado algo
para fazer e, mesmo que não fosse algo de muita importância, estava
apreciando bastante. Mas estava mantendo isso em segredo por
enquanto.

Desceu para tomar café da manhã e, quando avistou Luna e


Coisina sentadas à mesa, sentiu… sentiu uma coisa estranha. Luna
estava…

— Os sapatos não couberam, mas eu amei as roupas! — ela disse


com um sorriso que mal cabia no rosto antes mesmo de ele conseguir
completar o pensamento.

Luna usava um vestido branco reluzente, adornado com detalhes


dourados nas mangas. A peça, por ser de antes da Era A.G., já poderia
ser considerada uma relíquia, mas o fato de ter sido feita diretamente em
Gagrilya a tornava uma joia de valor inestimável. Ela estava parecendo
até… uma princesa gagrilyana que havia ressuscitado dos mortos. Ela
estava… Ele suspirou. Perfeita.
Coisina lentamente inclinou o rosto para ele e abriu um daqueles
sorrisos insinuadores que ele tanto odiava.

— Que roupas? — Coisina perguntou.

— Não foi nada demais. Eram apenas algumas roupas velhas dos
antigos moradores da casa que eu encontrei. — Ele fez questão de ser o
mais inexpressivo possível. Sabia que Coisina estava analisando
microscopicamente todos os seus movimentos. Qualquer gesto em falso
seria o suficiente para ela atormentá-lo por dias.

— Mas eu amei mesmo assim. — O sorriso de Luna se alargou


ainda mais.

— Ok. — Klaaoz usou o tom mais frio que conseguiu numa


tentativa desesperada de disfarçar o que sentia. Mas Coisina continuava
com seu olhar insinuador sobre ele. Como era insuportável… — A
comida está com um cheiro ótimo. — Ele tentou mudar de assunto.

— Adivinhe quem fez? — perguntou Coisina, seu sorriso ficando


ainda pior.

— Eu! — Luna se gabou.

— Duvido, está muito boa — respondeu Klaaoz para espantar as


prováveis suspeitas de Coisina. E também porque gostava de irritar Luna,
que levou a mão ao peito de um jeito que seria considerado teatral
demais até se estivessem atuando.

— Pois saiba que eu sou uma ótima cozinheira. Não é, Coisina?

— É, sim. Desde que ela chegou, me acompanha na cozinha e


hoje resolveu arriscar. E parece que deu certo. — Havia algo de oculto e
provocador em seu tom.
Klaaoz continuou comendo, tentando assumir uma postura
desinteressada, mesmo desconfiando que isso não seria suficiente para
enganar Coisina.

— Você é muito desastrada. Se isso fosse verdade, não teria mais


nada inteiro na cozinha.

— Bom, pois Coisina está de prova.

Nessa hora, Oberyn entrou na cozinha.

— Luna, vamos? Você já está atrasada.

Klaaoz fez uma nota mental para se lembrar de presenteá-lo com


mais ceecolinis por ele ter o salvado daquela situação.

— Desculpe, eu nem vi o tempo passar enquanto estava


cozinhando. — Ela olhou para Klaaoz e enfatizou a última parte. — Bom,
já vou indo. — Se levantou. — Bom café da manhã.

— Oberyn, você sabia que antes eu achava que no nosso


treinamento eu precisaria sair correndo por aí te carregando nas costas?

— Não, por que eu saberia que antes você achava que no nosso
treinamento você precisaria sair correndo por aí me carregando nas
costas? — Luna o encarou e piscou algumas vezes. — Então, tem
progredido na meditação? — perguntou sem tirar os olhos de um livro.
— Hum… Acho que sim — respondeu Luna sem ter muita certeza.

Oberyn a observou como se sentisse o cheiro da mentira.

— Que tal tentar ler minha mente hoje?

— Quê? Eu estou melhorando minha concentração, mas também


não a esse ponto…

— Vamos, tente, não custa nada.

— Mas… eu não sei nem por onde começar.

— Bom, você pode tentar pensar em alguma coisa específica para


toda vez que for se conectar com seu poder. Ajuda bastante.

— Tipo… o quê?

— Por exemplo, sempre que eu quero ficar invisível, penso na


água. Fecho os olhos, mentalizo e pronto. Fico invisível. — E
desapareceu em seguida.

— Hum… Então eu posso pensar em um abacate e… vou


conseguir?

— Eu não sei o que significa isso que você falou, mas precisa ser
algo relacionado ao seu poder. A água, por exemplo, é transparente e
assume a cor do que contém, como uma espécie de camuflagem.
Entendeu?

— Ok… — disse, levantando a cabeça, tentando pensar em


alguma coisa. O que diabos ela poderia relacionar com ler mentes?

— Que tal você se perguntar no que eu estou pensando? Deve


funcionar.
— Só isso?

— Você precisa limpar sua mente pelo menos por alguns


segundos. E desejar que isso aconteça no íntimo do seu ser enquanto se
conecta com a Energia.

— Ok, por alguns segundos eu acho que consigo…

— Limpe sua mente, mentalize um objetivo. Você consegue.

Luna fechou os olhos e começou a se imaginar num vácuo. Num


fundo branco, para falar a verdade. Esqueceu o barulho e todos os
problemas exteriores. Oberyn. Mente de Oberyn. O que Oberyn está
pensando? Ela vai saber o que Oberyn está pensando. Ela pode, ela
consegue.

Quando a palavra ceecolini ecoou em sua mente na voz de Oberyn


tão nitidamente que parecia até que ele estava falando em voz alta, Luna
abriu os olhos com uma inquietação.

— Você estava pensando em ceecolini? — perguntou, temendo


sua resposta.

— Exatamente! Você conseguiu, Luna, você leu meus


pensamentos! Nem acredito! Finalmente!

Mas em vez de ela ficar feliz com sua conquista, um calafrio


percorreu seu corpo. Aquela não foi a primeira vez que isso aconteceu. O
modo como as palavras estavam em sua mente… Luna já havia feito
aquilo antes.

— Não… acredito — Luna balbuciou, já podendo sentir seu nariz


queimando e as lágrimas brotando dos seus olhos.

Se levantou imediatamente e saiu correndo, sentindo mais uma


vez que nada fazia sentido.
25

25- Mesmo sem saber o que fazer com a


própria vida, Klaaoz aconselha Luna

Klaaoz ainda estava na mesa, em silêncio, inquieto, sofrendo com o


olhar julgador de Coisina quando Luna passou aos prantos, correndo
desesperada, e saiu pela porta de entrada.

Em seguida, Oberyn apareceu.

— O que aconteceu? — perguntou Coisina.

— Não sei. Ela finalmente conseguiu ler minha mente, mas


começou a chorar e saiu correndo.

Os dois continuaram em silêncio alguns instantes, como se


estivessem ainda digerindo o que acabaram de ver. Klaaoz abriu a boca
para falar alguma coisa, mas as palavras não vieram.

— Vá atrás dela — esbravejou Coisina, verbalizando o que Klaaoz


já havia planejado fazer. Sem hesitar, levitou dois casacos e saiu à sua
procura.

Estava um frio de doer naquele dia, e ele não via nem sinal dela lá
fora. O vento era tão forte que cortava o rosto. Mesmo usando um casaco
próprio para aquele clima, seu queixo tremia.

Klaaoz logo avistou pegadas seguindo por um caminho de neve


entre as árvores e foi correndo o mais rápido que pôde. De longe, a viu
sentada, encolhida num tronco de árvore, chorando, tentando se aquecer
com os braços em volta do corpo. Não estava com a alegria exagerada
de todos os dias, que no começo ele achava extremamente irritante, mas
que passou até a apreciar. Parecia até outra pessoa.

Klaaoz sentiu pena e ao mesmo tempo raiva por ela ter sido tão
irresponsável ao sair naquele frio sem estar preparada, mas correu até
ela e pôs o casaco em volta de seus ombros.

— O que vácuos estava passando nessa sua cabeça estúpida


para sair neste frio sem casaco? Quer morrer congelada? — Ela apenas
olhou para ele como se não tivesse forças para falar, muito menos para
discutir. Seu queixo batia, e aquele era o olhar mais triste que ele já vira.
Alguma coisa estava errada. Por que ela não o xingou de volta? — Ei, o
que aconteceu?

Luna continuou chorando, ofegante, como se estivesse prestes a


morrer. Ou era algo muito grave, ou ela era uma ótima atriz. Por que ela
chorava tanto? Ele nunca sabia como agir.

Involuntariamente, Klaaoz a envolveu em um abraço apertado,


desejando poder absorver sua dor para si mesmo sem entender o motivo
daquilo. Passou os dedos entre seus cabelos, acariciando sua cabeça e
desfazendo o coque de sempre. Por que estava fazendo aquilo? Uma
voz na sua consciência o mandava parar, se afastar, mas ele não
conseguia. Sabia que, quanto mais se aproximasse dela, mais se
distanciaria do seu verdadeiro objetivo de estar ali.

— Por favor, me diga o que aconteceu — ele pediu com calma.

Ela demorou alguns segundos para conseguir falar.


— Tudo faz sentido agora… — sussurrou, quase inaudível.

— O quê? — ele perguntou com a voz muito próxima do seu rosto.

— Tudo…

— O quê? O que faz sentido? Diga.

Era agonizante o jeito enigmático com que ela estava falando.

— As coisas que estragaram minha vida!

Klaaoz sentiu seu estômago se revirar. Do que ela estava falando?

— Que coisas?

— Todos achavam que eu era louca. Mas agora tudo faz sentido.
— O olhar de Luna estava perdido.

— Você roubou outra garrafa do bar e bebeu? Você está falando


nada com nada.

— O ocorrido que estragou minha vida! O motivo pelo qual eu fui


expulsa do colégio! — ela esbravejou, recolhendo o rosto entre os joelhos
e chorando ainda mais.

— Me fale o que aconteceu.

Ela meneou a cabeça, e por alguns segundos tudo o que se ouvia


eram seus soluços. Klaaoz não iria insistir. Se ela não se sentia
confortável para se abrir com ele, quem era ele para obrigá-la? Ele
mesmo guardava segredos que não tinha coragem de revelar para
ninguém. Muito menos para uma pessoa que fez o que ele fez.
Quando ela levantou o rosto e puxou o ar como se precisasse de
forças para falar o que estava prestes a dizer, ele ficou surpreso. Então
ela… confiava nele? Mas por quê? Ela era louca?

— Há um ano, eu estava na cantina do colégio e discuti com uma


garota da minha sala. O motivo não importa. Só sei que, quando ela se
virou de costas, eu juro que a ouvi falar: “você não é ninguém. Ninguém
se importa com você. Nem pais você tem”. — Assim que ele ouviu suas
palavras, a lembrança do dia em que se conheceram o invadiu, o
sufocando. Klaaoz desejou que o chão se abrisse naquele momento. —
Eu não consegui me controlar. Senti tanta raiva que corri e dei um chute
nas costas dela, fazendo com que ela caísse de cara no chão. Depois eu
falei: “repita o que você disse”. Ela afirmou que não havia falado nada,
que eu era louca. Todas as outras pessoas que estavam ao redor
juravam que ela não tinha falado nada. Ela quebrou o braço e eu fui
expulsa do colégio e taxada de louca por todos da cidade.

— Só isso? Foi isso que estragou sua vida? Que grande besteira!
Eu bato em pessoas o tempo todo.

— Você não está entendendo. — Sua voz fraquejou. — Eu tinha


absoluta certeza do que eu tinha ouvido, mas até meus próprios amigos
ficaram contra mim! Disseram que eu estava imaginando coisas, que eu
estava mentindo para justificar meus atos… Mas eu a ouvi falar! Eu sei
que eu ouvi! E eu sempre achei que todos estavam mentindo para
protegê-la. Nem meu namorado da época acreditou em mim! — Ela
baixou o olhar enquanto as lágrimas ainda brotavam. — A única pessoa
que ficou ao meu lado foi minha amiga, Amy.

— De qualquer forma, não precisa desse drama todo — Klaaoz


disse, mas, por razões que ele desconhecia, sentiu uma estranha
vontade de ir ao planeta dela e fazer coisas horríveis com cada uma
daquelas pessoas, principalmente com esse tal ex-namorado.

— Eu era uma boa aluna, Klaaoz. Eu tinha sonhos… Isso


desestabilizou minha vida completamente. Eu perdi o foco, desfiz todos
meus planos dos quais eu sempre corri atrás. Eu cheguei a pensar que
estava ficando louca. Você não sabe o que é saber que está certa, mas
ter todos contra você, te acusando injustamente. Você não consegue
imaginar pelo que eu passei, como passei o último ano me sentindo mal
por causa disso.

Ah, mas ele imaginava, sim. Quando aquela coisa aconteceu, foi
exatamente assim que se sentiu. Talvez pior.

— Olha, todo mundo… comete erros. Como você lida com eles é o
que importa. Você não pode deixar uma coisa que aconteceu no seu
passado estragar o seu futuro — ele disse, pensando em como sua vida
teria sido mais fácil se alguém tivesse lhe dado esse conselho.

— Mas já estragou, você não vê? Estragou não, roubou meu


futuro!

— Deixe de ser ridícula, só rouba se você quiser. Deixe lá no


passado, finja que não existe. Faça igual a como você fazia comigo
alguns dias atrás. — Ele conseguiu arrancar um leve sorriso dela. —
Sério. Por que isso importa agora? Você consegue ler mentes. Você faz
ideia de como seu poder é raro?

— Eu fiquei tanto tempo me martirizando por causa disso… E eu


nunca entendi direito por que todos estavam contra mim. Só que na
verdade eu apenas tinha lido uma mente. Tudo isso porque eu leio
mentes. — Ela continuou com o olhar perdido.

— Eu sei, eu sei… Deve ter sido horrível. Acredite, eu sei… — Ele


baixou a cabeça, se lembrando de coisas as quais tentava esquecer. —
Mas não deixe isso estragar seu futuro.

— Que futuro? Eu perdi o vestibular, perdi toda a vontade de fazer


alguma coisa da minha vida. Tudo que eu queria era ficar trabalhando na
livraria, imersa nos livros. Sabe por quê? Porque os livros não tinham
como me decepcionar! Com eles eu podia viver a vida que eu queria,
mesmo que não fosse real.
— Ah, me poupe. Quanta asneira! Você ainda tem tempo suficiente
para fazer qualquer coisa que você quiser. — Ela apenas o encarava. A
tristeza naquele mar azul o estava afogando. — Sério. Eu olho pra você e
vejo uma pessoa incrível e cheia de potencial, apesar dessa sua
insensatez. — Ele riu ao se dar conta de que realmente acreditava no
que estava dizendo. — Mas que não tem consciência disso. Esqueça o
que aconteceu, deixe para trás. Você é mais do que os erros que você
comete. Não deixe que eles definam quem você é. — Como eu fiz,
pensou.

— Eu não sei o que fazer.

Ela voltou a chorar. Não iria parar nunca? Suas glândulas lacrimais
mereciam ser estudadas.

— Esqueça. Não pense mais no assunto.

— Eu nunca quis ter nada disso. Isso só estragou minha vida.

— Se aprender a controlar seu poder, isso nunca mais vai


acontecer, acredite. Quando eu era criança, vivia quebrando tudo por aí.

— Mais do que agora?

Um sorriso surgiu em meio a todas aquelas lágrimas.

— Bem mais, acredite. Na verdade, hoje em dia eu consigo


controlar, só às vezes que é quase impossível… Não é realmente minha
culpa, mas, quando eu sinto emoções muito fortes, a Energia ao redor é
muito intensa, afeta o ar e… coisas frágeis podem quebrar.

Klaaoz continuava sentado no tronco, a abraçando, tentando


protegê-la daquele frio e da sua tristeza, sentindo coisas que não ousava
nomear. Por que estava sentindo aquilo? Como fazia para desligar? Ele
sempre a viu como uma pessoa confiante, segura de si, e nunca
imaginou que por dentro ela fosse uma pessoa tão… perdida.
Como ele.

Pare de pensar isso, se afaste dela, dizia a voz da sua


consciência. Não esqueça por que você está aqui. Você precisa seguir o
plano. Deixe-a chorando e vá embora antes que seja tarde demais. Vá,
não hesite. Saia agora. Nunca mais fale com ela, finja que ela não existe.

Mas ele não conseguiu se mover um centímetro sequer. Sua


cabeça e seu corpo não estavam mais conectados. O que estava
acontecendo?

— E… eu sinto muito. — Essas palavras saíram dos seus lábios


antes mesmo que Klaaoz se desse conta de que tinha pensado nelas. E
saíram cortando. — No dia em que nos conhecemos, eu não sabia… —
Ele fechou os olhos, respirando fundo. Como era doloroso se mostrar tão
vulnerável. — Eu te disse aquelas coisas, mas… nada é verdade. As
pessoas se importam com você.

Ele se importava. Ele sempre se importou, mesmo que tentasse


demonstrar o contrário, que não admitisse para si mesmo. A verdade era
que… a verdade era vergonhosa demais para ser verbalizada.

— Está tudo bem — ela disse, o poupando, talvez até… o


perdoando?

Mas não estava tudo bem. Não estava nada bem. Nunca ia ficar
bem. Estava tudo errado desde o começo, e era tarde demais para
consertar.

Os dois permaneceram daquele jeito por um bom tempo, mais


tempo do que era recomendável ficar, apenas com o som do vento
batendo nas árvores.

Quando enfim voltaram para casa, Klaaoz alegou que tinha algo
para mostrar à Luna, e se dirigiram para o lado Oeste superior.
Chegaram naquele corredor revestido de madeira escura combinando
com o piso, e ele abriu uma porta, fazendo sinal para que ela entrasse.

Era a biblioteca de antes da Era A.G., madeira, tapete, várias


estantes com livros antigos numa quantidade maior do que qualquer
pessoa conseguiria ler durante toda a sua vida.

Luna o encarou, fascinada, como se não acreditasse que aquilo


existia ali o tempo todo debaixo do seu nariz, ou talvez arrependida por
ter recusado sua oferta de entrar quando ainda se odiavam.

— Os antigos são todos em gagrilyano, mas os novos são em


aureliano — avisou ele, apontando com a cabeça para a escrivaninha
cheia de livros. Ela foi até lá, pegou um livro antigo em garilyano, abriu e
cheirou. — Gostou?

— Se eu gostei? São… meus tic-tacs!

— Seus o quê? — Do que ela estava falando?

— Nada.

Luna riu e pegou o livro atual, curiosa.

— Todos os livros são assim agora?

— Sim. Já faz muitos anos. Eu gosto dos antigos pela história, mas
os de agora… — Klaaoz foi até ela, retirando o livro de sua mão e o
ligando. — Aqui tem todos os livros que existem.

A empolgação estampada no rosto dela era evidente enquanto ele


passava as opções de livros e as imagens refletiam no ambiente, junto
com os sons.

Ele entregou o livro a ela, que ficou empolgada, descobrindo como


funcionava.
— Na Terra, já existem livros digitais, mas eu dizia que jamais iria
me render a eles. Você não pode riscar, cheirar o papel… Mas esse
daqui, com essas imagens se projetando de acordo com o tema do livro e
com sons para completar… — Os olhos dela estavam brilhando. — Me
conquistou.

Sua empolgação fez Klaaoz se lembrar do tempo que costumava


passar na biblioteca da casa de Caelestra. Como ficava fascinado com os
livros da Era A.G. e como sentia falta… Foi lá onde tudo
começou a dar errado.

— Tem algum bom? — perguntou ele, expulsando logo a lembrança


dolorosa que ameaçou surgir.

— Tem. Todos. — Ela abriu um leve sorriso. — Não existem livros


ruins.

— Como não? — Klaaoz perguntou, sabendo que aí viria uma


daquelas suas filosofias excêntricas.

Ele até gostava delas. No começo, achava um pouco irritante, mas


passou a se sentir feliz em ouvi-las. Ela tinha um jeito bastante peculiar
de enxergar o mundo. Às vezes, ele se perguntava se não viviam em
duas dimensões paralelas sem saber.

— O que existe são tipos de livros. Se você não gostou de algum,


é porque simplesmente não é seu tipo. Mas se ele existe, é porque
alguém gosta. E se alguém gosta e sente que esse livro lhe fez bem, que
teve o poder de mudar sua vida, é porque mereceu ter sido escrito. E se
você não gostou, é porque os fatores externos desde o momento em que
você nasceu estão influenciando seu julgamento.

— Você falou igual a Oberyn agora — Klaaoz disse, esboçando um


sorriso torto.
— Ainda bem. — Ela sorriu mais ainda e voltou a folhear os outros
livros.

Klaaoz continuou a observando. Ela ali, sentada de mau jeito em


cima da escrivaninha, com o livro na mão, a luz da lua atravessando a
janela, refletindo nos seus cabelos soltos… Era uma cena linda de se ver.
Quase senti o vazio que ela iria deixar.
26

26- Luna perde o medo de Nietzsche

Luna costumava dizer que odiava Nietzsche por causa de sua


afirmação sobre não existirem verdades absolutas, mas, na verdade, era
por outra razão. Talvez a palavra correta não fosse ódio, e sim medo.
Medo do Eterno Retorno, que era considerado até por ele próprio um dos
seus pensamentos mais aterrorizadores.

Nietzsche dizia que a vida como a conhecemos está fadada a se


repetir de novo e de novo, eternamente, e que não adianta viver o ontem
ou o amanhã, porque eles não existem, tudo que existe é o presente e
sua sequência de pequenos instantes. O que aconteceu é apenas
memória, e o que ainda acontecerá é apenas uma projeção. A vida é o
presente, e ele é instantâneo.

Luna nunca entendeu direito como isso funcionava. Quer dizer, até
entendia, mas se recusava a acreditar. Porque ela sentia falta do ontem,
sonhava com o amanhã e odiava o hoje. Mas, de acordo com Nietzsche,
passado e futuro não existiam, e a ideia de ficar presa no presente com
ele se repetindo eternamente a deixava aterrorizada.

Porém, não mais.

Mì-riaghailtkyea era uma palavra em gagrilyano que ela havia


descoberto em uma de suas longas pesquisas no dicionário. Mì-
riaghailtkyea é uma palavra gragrilyana usada para indicar quando algo,
por mais improvável que seja, faz uma pessoa esquecer os problemas e
as dores do cotidiano. Essa palavra parecia descrever perfeitamente seu
estado.

A dor do cotidiano era o fardo que carregava devido ao ocorrido.

E a coisa improvável se chamava Klaaoz.

É. Era realmente muito improvável.

Fazia um ano desde o ocorrido, e ela nunca havia entendido


exatamente o que acontecera, pois odiava falar ou até pensar sobre isso.
Sentia vergonha, raiva, tristeza, um misto dos piores sentimentos
conhecidos pela ciência.

Mas, naquele momento, o maior enigma da sua vida havia sido


decifrado, Luna estava surpresa com o quão bem estava lidando com
tudo. E devia isso às palavras de consolo de Klaaoz. Quem diria?

Ela costumava olhar para ele e só enxergar maldade por trás


daquela armadura invisível. Mas como estava enganada…

Quase ninguém lê uma bula de remédio do início ao fim, mas no


meio delas existe uma coisa chamada reações adversas. São as
reações, efeitos colaterais que acontecem apenas em uma porcentagem
quase nula de pessoas. São realmente muito improváveis de acontecer,
mas podem acontecer.

Klaaoz era como uma reação adversa.

E ele tinha razão. O passado dela já havia estragado demais sua


vida. Luna precisava deixá-lo para trás. E a menos que ali existisse uma
máquina do tempo, se lamentar e se preocupar com isso não adiantaria
de nada. Só a faria perder mais tempo. E tempo era a coisa que ela
considerava mais importante.
Luna ficou olhando atentamente para um quadro na parede, ele
possuía o fundo branco e várias linhas desorganizadas de um jeito
agonizante. Parecia que o artista começara a desenhar algo, se irritara
no meio do processo e decidira riscar tudo. Ou talvez essa tivesse sido
exatamente sua intenção. Bom, ela nunca saberia.

Mas talvez a teoria do caos fosse uma coisa boa. Ela explicava
fenômenos não previsíveis. Era um padrão de organização dentro de um
fenômeno desorganizado. Ou seja, de uma aparente casualidade.

E por mais estranho que parecesse, aquilo fez Luna ter vontade de
pegar seu diário e escrever um poema:
— Oi, futura esposa de brincadeira.

— Oi… futuro marido de brincadeira — respondeu Luna com


pouco entusiasmo. Só teria aula com Oberyn à tarde naquele dia, e a
ligação de Bok acabou com seus planos de dormir até mais tarde.

— Como estão as coisas?

— Hum… O de sempre…

— Encontrou o livro?

Luna se calou, enquanto seu coração palpitou. O que diria a ele?


Talvez até tivesse visto o tal livro na biblioteca, mas…

— Ainda não.

— E como está indo o aprendizado do poder?

Ela olhou para os lados.

— Mais ou menos. — Não era totalmente mentira, ela ainda estava


se aperfeiçoando.

Bok ficou esperando que ela falasse alguma coisa, mas ela
continuou em silêncio.
— Aguente firme, eu vou descobrir como chegar aí. Eu prometo. —
Suas palavras de conforto sempre vinham a calhar quando o assunto
acabava.

— Ok.

Ela deu um sorriso forçado, e mais um silêncio inconveniente


surgiu.

— Como está sendo fingir que Klaaoz é invisível? Nossa, eu daria


tudo para ver isso…

Ela mordeu o lábio e, por um momento, esqueceu que ele estava


lhe vendo.

— Enr, então, falando nisso… — ela hesitou um pouco antes de


falar, mas continuou, pois sabia que a verdade era sempre a melhor
opção: — Eu parei com isso. Nós agora estamos…

— O quê?! — Ele não a deixou nem terminar a frase.

— Nós paramos de nos odiar.

Bok ficou calado por alguns instantes, como se estivesse


esperando que ela dissesse que aquilo havia sido uma piada.

— Luna, você está ficando louca? Você não pode confiar nele. Ele
é um ceàrrkyea. — Ceàrrkyea é uma expressão gagrilyana usada para
indicar que você sabe que uma pessoa é falsa, sendo que ela sabe que
você sabe que ela é falsa e mesmo assim continua sendo mais falsa
ainda.

— Eu sei, eu só estou dizendo que… agora nós não nos odiamos


mais, só isso. Não quero manter aquele clima pesado que estava,
entende? Não valia a pena ficar brigando o tempo todo.
— Luna, eu o conheço há mais tempo que você. Acredite, é melhor
continuar o ignorando. O cara é o maior babaca do Sistema, por favor.
Você viu. Você mesma disse.

— Eu sei, mas… honestamente? Eu acho que muita coisa que


falam sobre ele não passa de fake news. Sem contar que as pessoas
podem mudar.

Bok a olhava com os olhos arregalados, e Luna estava começando


a se sentir mal com isso. Não com o fato de se dar bem com Klaaoz, mas
por ter contado a Bok.

— Luna, eu não acredito que você está dizendo isso.

— Eu só estou dizendo que ele não é tão ruim quanto parece, só


isso.

— Luna, pare de ser ingênua! Você não sabe o que ele fazia aqui.

— Eu não estou sendo ingênua, só estou dizendo que as pessoas


podem mudar.

— É, mas ele não está incluso nesse grupo.

— Eu acho que tudo depende do ponto de vista…

— Quê? Ponto de vista? O que tem de errado com você? — Ele a


olhava horrorizado, como se ela tivesse acabado de dizer que odiava
vídeos de cachorrinhos.

— Nada, eu só acho que nem tudo é o que parece, talvez as


pessoas estejam erradas sobre ele.

— Nós estamos falando sobre a mesma pessoa? Fizeram uma


lavagem cerebral em você? É isso?
— Não, eu…

— Luna, ele deve estar fingindo, tramando alguma coisa… E você


está sendo idiota por acreditar.

— Eu não sou idiota. Apenas estou mantendo a mente aberta.


Coisa que você deveria tentar também, seu cérebro não vai cair.

— Eu realmente não acredito que você está falando isso.

— Eu só estou dizendo que tudo depende do ponto de vista.

— Olha, não dá pra discutir com você.

E ele desligou.

Por um instante, Luna sentiu a garganta ficar seca, e o mal-estar


gerado pela situação lhe acompanhou durante todo o dia. Até chegar à
aula de Oberyn.

— Oberyn, eu estava me perguntando outro dia… Se só o que é


verdadeiro é conhecido, então o que é verdadeiro? Já que não existem
verdades absolutas, o que é realmente conhecer alguma coisa ou…
alguém? — perguntou Luna, meio apreensiva.

— Bom, primeiro: conhecer é apenas o modo como percebemos


algo.

— Então, o que parece é verdadeiro?

— Nem sempre. É verdadeiro apenas para aquela pessoa.

— Mas… existe algum jeito de saber se o que é verdadeiro para


aquela pessoa também é verdadeiro para o resto do mundo?
— Depende. A verdade acerca das coisas possíveis de serem
contempladas aos nossos olhos não pode ser alcançada por meio dos
sentidos, e sim da alma. Ela é quem contempla os termos comuns que se
aplicam a tudo.

Luna tinha certeza de que, se Oberyn morasse na Terra, seria um


daqueles filósofos budistas life coach ou um escritor best-seller de
autoajuda. Às vezes, ela tinha vontade de fazer tatuagens com as coisas
que ele falava, mesmo não as entendendo totalmente.

— Como assim?

— O conhecimento não reside nas impressões sensoriais, mas na


reflexão que a alma faz sobre elas.

— Então, quer dizer que… — Ela tinha ficado mais confusa. —


Precisamos sentir as coisas com a nossa alma para podermos de fato
compreendê-las?

— Hum… Mais ou menos isso. Mas agora vamos parar de


conversar. Tente ler minha mente.
27

27- Como sempre, Luna recusa a enxergar


a verdade

— Luna! Sabe aquela coisa mágica do seu planeta sobre a qual


você falou uma vez? Choco… alguma coisa — perguntou Coisina assim
que terminou de pôr a mesa de jantar e todos se sentaram.

— Chocolate, claro.

Como Luna esqueceria uma das coisas de que mais sentia falta da
Terra?

— Então… você não vai acreditar. Eu descobri que em Auzuno


existe um lugar que produz esse tal chocolate.

— Ai, meu Deus, eu não acredito! Preciso urgentemente ir lá.

— Parece que lá existe uma fábrica especializada nisso. Disseram


que eles vão ao seu planeta uma vez por estação retirar o leite de algum
animal que existe lá, porque só dá pra fazer com isso, e existe uma lei
que proíbe a retirada de animais da Terra.

— Vacas?
— Não me lembro do nome, mas deve ser isso.

— Ai, meu Deus! Então é por isso que as vacas são abduzidas.

— Hã?

— Existem lendas que dizem que as vacas vivem sendo abduzidas.


Várias pessoas dedicam a vida para resolver esse mistério. Mas ninguém
nunca soube explicar por que isso acontece. E esse tempo todo era só
para… fazer chocolate. Inacreditável.

— O que é isso? — perguntou Klaaoz, apático, como se não se


importasse, mas estivesse curioso e ao mesmo tempo não quisesse
admitir que existiam coisas das quais ele não tinha conhecimento.

— É um doce do meu planeta.

— E essas pessoas dessa fábrica fazem uma viagem para outro


Sistema só pra fazer isso? Eles não têm mais o que fazer, não?

— Ah… Se você provasse chocolate, entenderia.

— Mas nada vale esse trabalho.

— Dizem que dá uma sensação semelhante a estar apaixonado…


— disse Coisina, lançando sobre ele seu típico olhar insinuador.

Klaaoz desviou o olhar e pareceu tenso, como se estivesse usando


sapatos que machucassem seus pés.

Quando o jantar terminou, Luna chamou Klaaoz para assistir à


HoloTV, mas ele disse que estava ocupado. Já era a terceira vez naquela
semana que ele inventava uma desculpa para não fazer alguma coisa
com ela. Parecia até que estava a evitando.
Desde o dia em que ela havia lido a mente de Oberyn, ele estava
distante. Parecia estar sempre fazendo um esforço sobre-humano para
estar nos lugares. Como se ficar deitado em seu quarto olhando para o
teto fosse melhor, só para evitar ter contato humano. Mas por quê?

Luna ficou assistindo ao LDRV com Rys, e no episódio daquele dia


Z’ohanna havia brigado com um participante, que depois revelou estar
apaixonado por ela.

— Klaaoz está tão estranho comigo — Luna soltou.

— Sempre o achei estranho com todos — retrucou Rys.

— Não, mas ultimamente está mais…

— Nossa, pensava que não tinha como ser mais.

— É sério. É como se ele estivesse me evitando. — Rys pegou o


Holophone e tirou uma selfie. — E o pior é que foi depois que eu
consegui usar o meu poder. E ele foi superlegal comigo, me consolou, me
aconselhou e agora está assim. Não entendo.

— Ele é louco.

— É. Ele é louco. E bipolar. Num dia está superlegal e no outro


praticamente nem olha na minha cara.

— Vai ver os remédios dele acabaram — disse Rys, seguindo para


uma risada zombeteira.

Luna também não se segurou, os dois ficaram rindo por muito


tempo.

— Por que você não coloca x-prax na comida dele de novo? Assim
não tem como ele te evitar.
— Meu Deus, Rys, você vai pro inferno. — Ela riu.

— O que é inferno?

Luna estava em seu quarto lendo uma história no livro digital sobre
uma garota gagrilyana que precisou morar escondida no subsolo de uma
casa em Vindemiatrix durante a guerra. Essa leitura arrancou mais
lágrimas do que ela pensava ser capaz de produzir. Seus relatos sobre
seu medo de gorgana, a substância que cortava poderes, e seus sonhos
de um dia conseguir viver ao ar livre de novo eram de partir o coração.
Luna decidiu, então, dar uma pausa na leitura para tomar um banho
esclarecedor.
— Olá, Freud. O de sempre. E você poderia me explicar melhor
por que as pessoas têm preconceito contra os gagrilyanos?

— O preconceito surgiu durante a colonização. Mas durante a


última dinastia, devido ao péssimo governo do imperador da época, os
gagrilyanos se tornaram muito impopulares em todos os planetas.

— Eles governaram por milhares de anos e só por causa de um


imperador ficaram com a fama ruim?

— Na verdade, nenhum dos anteriores foi exatamente bom.

— Ah…
Ok, ela retirava o que havia dito. Mas não era justo alguém pagar
pelo que os antepassados faziam, carregar sua fama. Luna se lembrou
de quando Mira disse que desconfiava que ela era gagrilyana. Falou
como se tivesse medo de alguém ouvir, mesmo estando na própria casa.
Onde já se viu?! Luna não ficaria escondida quando aprendesse a usar
seu poder. Também não seria como Klaaoz, que usava o poder
desenfreadamente a todo momento, na frente de todos. Mas se bem que
o dela poderia ser usado sem ninguém perceber, tirando a parte que
podia controlar o cérebro das pessoas.

Luna se perguntava como exatamente isso funcionaria. Mas não


estava mais tão ansiosa para aprender como estava no começo. Ela se
perguntou o motivo e teve um pouco de medo da resposta.

— O que existia antes dos gagrilyanos? — Ela preferiu encher a


cabeça com outros pensamentos.

— Como assim?

— O que tinha antes de eles chegarem ao Sistema? O planeta


mais antigo é Auzuno, que tem 1.156 anos gagrilyanos A.G., e isso na
medida da Terra equivale a 700 anos. O que tinha antes desse tempo?

— Não tenho nenhum registro oficial disso em meu sistema


operacional.

Luna franziu o cenho.

— Como assim não tem nenhum registro?

— Não existe relato oficial de nada do Sistema Gamma Aurellius da


época que antecede a chegada dos gagrilyanos.

Luna sentiu um embrulho no estômago. Ela se lembrava de o


presidente ter falado algo do tipo, mas…
— Por quê? — perguntou, apreensiva.

— Foi tudo destruído.

Ao ouvir aquilo, todo o ar sumiu dos seus pulmões.

— Pelos… gagrilyanos? — Engoliu em seco.

— Sim.

Ela… não sabia o que dizer.

— Por que ninguém fez nada?

— Porque não havia o que fazer.

Luna se sentiu meio tonta depois disso, precisou até se encostar na


parede. Isso era… o equivalente a pessoas dali chegarem à Terra e…
decidirem que nada do que passou importava. A revolução francesa,
Woodstock, o Oscar de Leonardo DiCaprio… Como se tudo fosse…
simplesmente apagado. E ninguém pudesse fazer nada.

Nesse momento, sentiu muita, muita vergonha por ser gagrilyana.

— Atenção, eu tenho um anúncio a fazer — disse Oberyn no jantar.


— Hoje será lembrado como o dia em que Luna finalmente conseguiu
parar de ocupar sua cabeça com pensamentos desimportantes e
dominou com perfeição a arte de ler mentes!

Todos riram, menos Klaaoz. Ele tentou se manter indiferente, mas


parecia estar prestes a fazer uma prova de matemática.

— No que eu estou pensando? — perguntou Rys.

— Deixe-me ver… — disse Luna, fechando os olhos e limpando a


mente. Mente de Rys. Mente de Rys. — Z’ohannah é a rainha do mundo.
— Ela riu.

— Sim, ela é mesmo.

— Que tal ler a minha mente, Luna? — sugeriu Coisina, com um


daqueles seus sorrisos irônicos.

Luna mentalizou o vácuo, esqueceu o mundo e se concentrou.


Mente de Coisina. De repente, as palavras Klaaoz gosta de você
ecoaram em sua mente. Um tremor percorreu seu corpo. Luna
rapidamente abriu os olhos, confusa, e viu Coisina com aquela cara. Ela
olhou de soslaio para Klaaoz, que pareceu ainda mais apreensivo depois
disso, quase como se soubesse também no que Coisina estava
pensando.

— Então, no que ela está pensando? — perguntou Oberyn.

— Er… — Luna hesitou e se atrapalhou com as palavras, as mãos


suando. — Ela está pensando… no jantar de amanhã.

— Acertou? — perguntou Oberyn para Coisina. — Coisina fez sinal


de positivo com a cabeça. — E o que é o jantar de amanhã? — Oberyn
continuou.

— É… — Luna não sabia o que responder, não estava


conseguindo raciocinar muito bem.
— Segredo — interrompeu Coisina, dando uma piscadela.

— Que tal ler os pensamentos de Klaaoz agora? — sugeriu


Oberyn.

Luna olhou para ele, já estava se preparando para ler, mas ele
disse:

— Nunca, nunca, nunca, em hipótese alguma, leia meus


pensamentos — avisou em um tom sério.

Ela já havia aprendido a diferenciar quando ele estava falando


seriamente sério e seriamente irônico. Dessa vez, era seriamente sério.

— Ok — ela respondeu, erguendo as mãos em sinal de paz e se


sentindo aliviada.

Quando terminou de jantar, Luna ajudou Coisina a retirar a mesa.

— Coisina — hesitou por um instante, sem saber se realmente


queria ouvir sua resposta. — Por que você estava pensando naquilo?

— Porque é verdade — disse simplesmente, deixando Luna sem


reação por alguns segundos.

— C-c-c-omo assim ele… ele gosta de mim? — Sua expressão


estava tão confusa quanto sua cabeça naquele momento.

— Ele gosta, você sabe. — E deu um daqueles seus sorrisos


irônicos, fazendo o coração de Luna acelerar.

— Coisina, ele me raptou no meio de uma festa, depois me


sequestrou de novo e até alguns dias atrás nós nos odiávamos. Só
porque ele está sendo mais simpático ultimamente não quer dizer que ele
goste de mim do jeito que você está pensando — Luna disse sem saber
ao certo a quem estava tentando convencer.
— Hum… Ok, já que você diz… — Luna engoliu em seco e se
retirou. Não estava em condições psicológicas para enfrentar aquela
conversa.

Foi para a sala de HoloTV, não passaria LDRV naquele dia, mas
Rys estava assistindo a outro programa, no qual Luna não se deu o
trabalho de prestar atenção.

— Aconteceu uma coisa hoje — mal se sentou e foi logo falando.

— Me deixe adivinhar… Klaaoz — Rys falou em tom de deboche.

Luna olhou para ele, apreensiva. Como Coisina já tinha contado


para ele? Mensagens por Holophone? Como ela era rápida e fofoqueira!

— Quê?! Quem lhe disse?

— Ninguém me disse nada. É porque agora as única coisas que


você sabe falar é sobre ele.

Ouvir aquilo fez o chão sumir debaixo dos pés de Luna.

— Cla-a-a-a-ro que não. — Luna sentiu o rosto queimar. — Que


mentira!

Rys se virou e a encarou.

— Ontem você falou que ele estava estranho.

— Foi apenas um comentário. — Porque, sim, ele estava, inclusive


continuava.

— Antes de ontem comentou que queria assistir a um programa que


ele indicou.
— Porque parecia ser interessante. E não existe coisa pior do que
não assistir às séries que lhe indicam.

— Outro dia falou que ele havia lhe pedido desculpas pelo dia em
que se conheceram e como isso foi fofo.

— Mas foi muito fofo!

— Outro dia falou que iria perguntar o que ele usa no cabelo.

— Porque você uma vez comentou que achava o cabelo dele


bonito! — E quem não queria saber o segredo daquela maciez?

— Luna… — Ele a encarou, balançando a cabeça como se ela


fosse uma criminosa pega em flagrante e estivesse alegando inocência.
— Eu realmente preciso continuar?

O queixo dela caiu. Meu Deus. Ela não tinha percebido. Era…
involuntário.

— Eu… mas… é que… — Ela tentou, mas não conseguiu completar


nenhuma frase.

— Você está parecendo umas amigas que eu tinha em Teyrilia que


só sabiam falar dos caras com quem estavam saindo. E olhe que você e
Klaaoz nem têm nada. — Ele inclinou a cabeça. — Ainda. — Um silêncio
desconfortável reinou no ambiente por alguns instantes, Luna se sentia
incapaz de falar qualquer coisa. — Eu sei que quando você está a fim de
uma pessoa só consegue pensar nela o tempo todo, só quer falar dela,
ficar com ela etc. Mas tente se controlar, sério. Já está ficando chato.

O ar sumiu dos seus pulmões.

— Desculpe, eu… tenho que ir tomar banho — disse, e correu.


28

28- O Bolo

— Então, andei pensando… Talvez se nós mudássemos de


estratégia para você conseguir acessar a outra parte do seu poder… —
Oberyn disse enquanto folheava um livro assim que Luna se sentou na
cadeira à sua frente para começarem a aula daquele dia.

— É sério que ninguém sabe o que existia antes dos gagrilyanos?


— Luna logo interrompeu.

Ele a encarou com o maxilar contraído.

— Não totalmente.

— O chuveiro que disse. — Ela deu de ombros.

— Nós sabemos que todos os relatos foram destruídos, mas temos


o que eles disseram, que agora não é mais considerado oficial.

— O que eles disseram?

Ele se levantou, saiu e voltou com um livro alguns minutos depois.


— Está em gagrilyano, é a história da colonização. É um poema de
mil estrofes contando como todo o Sistema vivia em escuridão e como
eles chegaram trazendo luz, sabedoria, ensinamentos e cultura para
melhorar a sociedade.

Ele lhe entregou o livro, e Luna o folheou por alguns instantes,


sentindo preguiça só em pensar em tentar traduzi-lo.

— E… isso é verdade?

— Claro que não. — Ele balançou a cabeça, franzindo a testa.

— Ah… — Ela olhou desapontada para o chão. Ele também não


parecia feliz com a falta de informação. Quem ficaria?

— Podemos continuar a aula?

— Mas o que você acha que existia antes?

Ele olhou pra ela, pensativo.

— Eu acho que todos os outros planetas viviam em guerra entre si


e, quando os gagrilyanos chegaram, precisaram se unir como um
Sistema para derrotá-los. Não deu certo a princípio, claro, pois o Sistema
foi colonizado de toda forma. Mas deve ter servido para despertar nas
pessoas um sentimento de sociedade.

— Pelo que eu entendi, as relações diplomáticas com a Terra


começaram antes de eles chegarem. Mas todos os possíveis relatos
desse tempo foram destruídos também.

— A destruição de documentos históricos é uma perda irreparável.


— Oberyn suspirou.

— Concordo. Na Terra isso aconteceu por motivos políticos e


religiosos. É muito frustrante. — Ela bufou. — A biblioteca de Alexandria
possuía documentos de milhares de anos, da época antes de Cristo
até… Lá o tempo é medido em antes e depois de Cristo. Mas nós
sabemos o que aconteceu antes.

Ele a olhou, curioso.

— Quem foi esse Cristo?

Luna riu.

— Cristo na verdade se chamava Jesus. Como eu posso começar


a explicar Jesus? — Ela levou a mão até o queixo. — Ele era o filho de
Deus, que é tipo… uma força superior que controla o universo. Como… a
Energia. — Ele a olhou com uma expressão muito confusa. — E Jesus foi
um cara bacana que chegou dizendo que as pessoas deveriam ser legais
umas com as outras, se for para resumir. Mas aí algumas pessoas não
gostaram muito, e… o mataram.

Oberyn franziu o cenho.

— As pessoas o mataram… por causa disso?

— É, algumas pessoas na Terra são estranhas. Sempre matam


aqueles que tentam fazer a diferença. Jesus, Sócrates, Gandhi, Martin
Luther King, John Lennon… a lista é longa.

— Por quê?

— Hum… Não sei. Acho que eles têm medo de mudanças, sei lá.
Mas todas essas pessoas que morreram deixaram sua marca, fizeram a
diferença, então… — Ela deu de ombros. — Não foi exatamente uma
morte em vão. Eu gostaria de fazer a diferença um dia, mas realmente
tenho medo de ser morta por causa disso.

— Acredito que as pessoas que fizeram a diferença não a fizeram


porque não tinham medo, e sim porque agiram mesmo com medo.
Apreensiva, Luna olhou para os lados.

— É… não é que eu tenha medo, sabe? É que eu sei que não vou
fazer mesmo.

— Todos podem fazer a diferença.

— É, eu conheço essa frase de Gandalf: “até mesmo a menor das


criaturas pode mudar o curso da história”. Mas… — Ela não sabia
exatamente o que dizer.

Oberyn ficou esperando que ela completasse a frase, mas, quando


viu que ela desistira, falou:

— Você não vai fazer a diferença enquanto ficar conversando


sobre coisas que não têm a ver com o seu treinamento, muito bem
lembrado. Agora vamos voltar para a aula.

Quando acabou a aula, Luna foi para a cozinha preparar alguma


coisa para comer e avistou pequenas frutas verdes postas dentro de um
recipiente em cima da mesa. Eram semelhantes a uvas e pareciam
deliciosas. Mordiscou um pedacinho, era doce, suave e parecia ser uma
daquelas comidas que podiam ser misturadas com qualquer coisa que o
resultado seria bom.

Nessa hora, Morg entrou na cozinha e ficou a olhando com aquele


olhar que ela tanto conhecia. Luna jogou uma fruta para ele, que
imediatamente engoliu. Jogou mais outra e foi preparar a massa para um
bolo.

Amassou todas as frutas, misturou com a massa e pôs em uma


forma. Colocou na máquina de fazer bolo e a cada cinco minutos
verificava, pois não queria correr o risco de queimá-lo.

Morg de repente começou a agir de forma estranha. Estava


voando em círculos, e seus olhos pareciam girar. Ela foi até ele, que
nessa hora havia se deitado no chão, e perguntou se estava tudo bem.
Como se ele pudesse responder, pensou. Depois ele começou a voar
freneticamente por todo lado.

Luna continuou observando seu comportamento estranho, e,


quando se deu conta, percebeu que esquecera completamente do bolo.
Correu para tirá-lo da máquina, mas já era tarde demais. Havia
queimado.

Ela tinha acabado de olhar. Como era possível uma coisa mudar
completamente tão rápido? Parecia até que a única coisa constante na
sua vida ultimamente era a sua efemeridade.

Luna tentou salvá-lo, retirando toda a parte queimada de cima.


Ficou horroroso, mas o gosto estava ótimo, por incrível que pareça. Pelo
menos serviria de lição para ninguém julgar as coisas pela aparência.

Quando ela chegou à sala de HoloTV, para sua surpresa Rys não
estava lá, e em seu lugar havia outra pessoa. Uma pessoa que ela mal
vira naquela semana.

— Oi, estranho — ela disse, se sentando na outra ponta do sofá.

Klaaoz respondeu com um aceno de cabeça.

No começo, quando ele se afastou repentinamente, Luna sempre


ia atrás, o convidando para fazer alguma coisa, fosse ir a outra cidade,
assistir à HoloTV ou conversar. Mas ele sempre inventava desculpas, e
chegou o momento em que ela simplesmente… desistiu.

— O que você está assistindo? — Ela resolveu puxar conversa


enquanto Rys não chegava para assistirem ao LDRV.

Klaaoz hesitou alguns instantes para responder, deixando evidente


que o afastamento não era coisa da cabeça de Luna.

— Um programa sobre partículas subatômicas apresentado pelo


renomado cientista osneano Tysoneil Degrasse.

— Você já assistiu ao LDRV?

— O que é isso?

— Hum… Eu não sei nem por onde começar a explicar o que é


LDRV. É mais do que um programa, é… uma religião. São várias
pessoas numa casa fazendo nada o dia todo, mas eu juro que é incrível.

— Parece… idiota.

— Não, é maravilhoso! Vai começar em alguns minutos. — Ela o


olhou com os olhos ansiosos. Ele apenas ignorou. — Por favor, me deixe
mudar de canal — insistiu.

— Não.

Ela suspirou de frustração.

— Nem se eu lhe der um pedaço de bolo? — Ela levantou a


bandeja com seu melhor sorriso no rosto. Klaaoz estreitou os olhos.

— Isso é um bolo? — Seu tom era irônico.


— Sim, e eu mesma fiz, sozinha, com absolutamente nenhuma
ajuda de Coisina.

— Percebi.

Luna revirou os olhos.

— Você só pode falar alguma coisa depois de provar.

Klaaoz o analisou por alguns instantes, depois pegou um pedaço,


meio relutante. Começou a mastigar com um visível preconceito em
relação a ele, mas depois Luna observou sua expressão mudar
gradativamente a cada mordida.

— E aí? O que achou?

— Inacreditavelmente bom — Klaaoz disse, hesitante.

— Eu sabia! Não disse que eu sei cozinhar?

— É, a aparência está horrível, mas o gosto está bom. — Ele


pegou mais um pedaço. — Mas eu não vou mudar de canal.

— Por favor. Isso que você está assistindo deve ser um saco.

Ele começou um longo monólogo para justificar por que aquele


programa era infinitamente melhor do que o dela, como alimentava mais
o intelecto, era mais útil, informativo, interessante, inteligente e outras
milhares de razões. Ela desistiu de discutir com ele na metade da
explicação e aceitou a situação. Ficar assistindo sem prestar atenção era
mais fácil.
Klaaoz tinha a intenção de ir embora para continuar com seu plano
de evitar a presença de Luna, essa era a única maneira de não correr o
risco de ter certos pensamentos, mas resolveu esperar o programa
acabar. Assim não levantaria nenhuma suspeita, e seriam só alguns
minutos. Sem contar que estava se sentindo um pouco tonto, então era
melhor esperar passar.

— Agora irei falar sobre pessoas que são tão egoístas a ponto de
não deixarem outras pessoas escolherem ao que vão assistir na HoloTV
— disse Tysoneil Degrasse, o apresentador do programa.

Klaaoz ficou confuso. Por que ele estava falando sobre isso se o
programa era sobre partículas subatômicas?

— São os chamados ditadores do controle da HoloTV.

Klaaoz riu.

— Eles fazem isso porque precisam se autoafirmar. Acham que,


por controlar o controle da HoloTV, têm algum poder.

Klaaoz franziu a testa. Ele não era assim, apenas não queria
assistir ao programa idiota de Luna. Sem contar que ele havia chegado lá
primeiro.

— E geralmente quem é um ditador do controle de HoloTV não


percebe que é — disse ele, olhando bem nos olhos de Klaaoz, e depois
se calou.
Parecia até que ele estava… o encarando.

— Deixe de ser egoísta uma vez na sua vida e a deixe assistir ao


programa.

Se ele não fosse um holograma de HoloTV, Klaaoz poderia até


jurar que estava falando com ele.

O apresentador suspirou, irritado.

— Eu estou falando com você, Klaaoz.

Ok, aquilo havia sido estranho.

— Apenas a deixe mudar de canal. Deixe de ser idiota, não tem


nada que eu esteja falando no programa que você já não saiba.

Klaaoz arregalou os olhos. Tysoneil Degrasse estava… falando


com ele ou era impressão?

— Vamos, mude essa porcaria de canal logo, que eu já estou me


irritando.

Meio que por impulso, meio que sem reação, meio sem acreditar e
meio sem entender, Klaaoz pegou o controle e mudou de canal,
obedecendo ao holograma de Tysoneil. Aquilo tinha sido muito estranho.

Quando o outro programa começou, Luna se virou para ele e sorriu


como se ele tivesse acabado de descobrir a fórmula secreta para fazer
seu nariz parar de ficar vermelho.

Havia dois hologramas, duas mulheres em uma sala fazendo


coisas inúteis. Que grande babaquice.

— Z’ohannah, qual a sua opinião a respeito de pessoas que são


enganadoras de si próprias? — perguntou o holograma de uma mulher
auzuniana.

— S’ahara, eu acho que essas pessoas são ridículas e merecem


levar um tapa na cara — respondeu a tal Z’ohannah, se virando e
encarando Klaaoz.

Ele olhou para os lados, confuso. O que estava acontecendo? Era


impressão ou o mundo estava girando um pouco mais rápido?

Z’ohannah se levantou da mesa, visivelmente exaltada, e deu


alguns passos para frente.

— Eu vou dizer logo, você é um bocó! — Ela esbravejou,


apontando o dedo para Klaaoz, o deixando ainda mais confuso. — É com
você mesmo, Klaaoz. Até quando você vai ficar sendo ridículo e mentindo
para si mesmo?

Ele ficou boquiaberto. Como assim? Por que todos os hologramas


da HoloTV tinham tirado o dia para importuná-lo?

— É, como você pode ser tão cego? — perguntou S’ahara, bem


mais calma do que Z’ohannah.

Ele desviou o olhar. Começou a encarar uma parede e se


perguntou quantos quadros caberiam nela.

— Cabem vinte quadros — informou S’ahara.

Klaaoz arregalou os olhos.

— E como você sabe? Você é só um holograma — ele retrucou.

— Porque nós sabemos de tudo, trouxa. — Z’ohannah fez gestos


obscenos com as mãos. — Assim como eu sei que você está tentando
lutar contra seus sentimentos.
— De acordo com meus cálculos, está ficando cada vez mais difícil
disfarçar, Klaaoz — sussurrou S’ahara.

— Pois, para mim, esse traste não está disfarçando é nada —


Z’ohannah respondeu.

Do que elas estavam falando?

— O quê? — perguntou Klaaoz, agoniado.

— Klaaoz, a quem você pensa que está enganando?

— Está na cara.

— Está praticamente escrito na sua testa com uma caneta


permanente — Z’ohannah riu.

— Você gosta dela, Klaaoz.

— Está caidinho.

Klaaoz teve uma sensação parecida com ser empurrado de um


precipício.

— Quê?! Claro que não! — protestou quando conseguiu retomar a


consciência.

— Esse ridículo ainda tem coragem de negar.

— É ok estar apaixonado, Klaaoz.

— Não, eu não estou, e parem de dizer isso — ele gritou,


arremessando o controle nelas, que apenas sofreram uma pequena
interferência. Por que isso estava acontecendo? — O que eu fiz para
merecer isso? — ele indagou para ninguém em específico.
— Ah, eu poderia citar facilmente umas dez coisas — Z’ohannha
retrucou.

— Aposto que ele está com medo — sussurrou S’ahara para


Zohannah. — Olhe para ele!

— Ele super está morrendo de medo. Frangote.

Klaaoz demorou uns instantes para digerir o fato de que dois


hologramas estavam discutindo sua vida ali na sua frente.

— Eu não estou com medo — disse por fim.

— Frangote. Pó, pó, pó, pó… — Z’ohannah juntou os cotovelos e


começou a imitar um tipo de pássaro. O que vácuos era aquilo?!

— Então, por que você não faz logo?

— Fazer o quê? — ele gritou, seu coração estava acelerado.

— A coisa que você mais quer.

— A coisa que eu mais quero é voltar para o Comando Omega e


ter minha vida de volta.

Os hologramas começaram a rir descontroladamente. A teyriliana


até caiu no chão.

— Essa foi boa — disse Z’ohannah, enxugando as lágrimas.

— Ai, Klaaoz, você é hilário.

— Klaaoz, você pode até tentar mentir para si mesmo, mas não
pode enganar a gente.
— Nós somos sua consciência…

— Klaaoz, você não pode continuar com o plano, você sabe disso.

Ele desviou o olhar. Como elas sabiam do plano?

— Klaaoz, nós estamos falando com você!

— Klaaoz, você gosta dela, não vê?

Nas profundezas do seu inconsciente, naquelas partes do cérebro


que são como o sótão abandonado de uma casa mal-assombrada, o qual
você evita a todo custo, ele tinha plena certeza disso. Mas sempre
acreditou que, se não falasse em voz alta, jamais se tornaria real.

— Não é tão simples assim — foi tudo que conseguiu dizer.

— Claro que é!

— Eu não posso decepcionar Zuuvak, ok? Eu preciso seguir o


plano!

— Claro que pode. Olhe para ela. Você acha que conseguirá viver
sem essa criaturinha?

Klaaoz olhou para Luna, que estava encarando um pedaço de bolo


que segurava em sua mão. Parecia estar o estudando minuciosamente.
Lentamente, ela começou a amassá-lo e rir exageradamente por causa
disso. Como se o bolo tivesse acabado de lhe contar a piada mais
engraçada do mundo.

Aquela cena fez Klaaoz sentir um aperto no peito, seguido de uma


necessidade imperiosa de imediatamente abraçá-la. Lá estava a causa e
a solução de todos os seus problemas. A pessoa que literalmente havia
destruído sua vida em todos os aspectos e que ao mesmo tempo seria
capaz de consertá-la. A puinnseankyea — Puinnseankyea é uma palavra
gagrilyana usada para indicar que algo é veneno e cura.

— Viu? Você consegue imaginar o vazio que vai ser sua vida se
você ficar longe dela?

— Eu não sei o que fazer, ok? — O turbilhão de dúvidas que sentia


naquele momento transparecia em sua voz desesperada.

Quando Z’ohannah abriu a boca para dar uma resposta daquelas,


ele pegou o controle e mudou de canal. Passava um programa de
culinária com uma senhora krykiana. Luna se levantou e tentou abraçar o
holograma.

— Como você pode querer fazer isso com ela? Você não pode
continuar com o plano! — disse o novo holograma.

Klaaoz mudou de canal novamente. Não estava a fim de ficar


levando lição de moral de mais um holograma. O novo programa tinha
uma equipe de médicos que estava no meio de uma cirurgia.

— Não adianta mudar de canal, Klaaoz — disse o holograma do


paciente cuja barriga estava sendo aberta.

Ele desligou a HoloTV.

— Ei! — protestou Luna.

Ela começou a encará-lo e a apontar um dedo em sua direção. Por


que ela estava fazendo aquilo? Ela continuou se aproximando, até que o
dedo chegou bem próximo do rosto dele.

— O que vácuos você está fazendo? — ele gritou.

— Por favor, coloque o seu dedo também. — Sua voz era


suplicante.
— Por quê?! — Cada dia ela inventava uma coisa mais doida que
a outra. Por que ele gostava dela?

— Porque você é um E.T. — ela disse, depois pegou o controle e


ligou a HoloTV no reality show. Do que ela o havia chamado?

Luna se levantou e começou a tentar dançar com o holograma de


Z’ohannah. Tentava puxar suas mãos, mas só o que fazia era causar
interferência na imagem.

— Está vendo? Você a ama. Ela é a luz da sua vida, fogo da sua
carne. Sua alma, seu pecado[2]. Todos os clichês românticos que existem
no mundo. Admita! — S’ahara disse.

— Nossa, veja como ela brilha! — gritou Z’ohannah.

Klaaoz olhou para Luna e seu rosto estava estrondosamente


iluminado com aquela luz cintilante dos hologramas refletindo
principalmente em seus cabelos. Eles estavam soltos, oh, cosmos. E sua
áurea podia ser sentida em todo o ambiente, parecia que tinha engolido
milhares de estrelas. Estava em câmera lenta. O que era aquilo? Ele
simplesmente não conseguia parar de olhar para ela. Klaaoz havia
passado a semana toda a evitando para não correr o risco de ter aqueles
pensamentos, mas no momento era impossível. O mais intenso
paroxismo de sua adoração dissimulada vinha à tona.

Ela ainda dançava quando disse:

— Klaaoz, vamos dançar e fingir que o mundo não existe.

E depois disso, ele não teve como voltar atrás.

Klaaoz sempre fora extremamente cauteloso para não deixar esse


tipo de coisa acontecer, mas os hologramas idiotas estavam certos. O
que ele sentia por Luna era muito mais do que apenas apreciar sua
companhia. Quer ele admitisse para si mesmo ou não.
Klaaoz foi ao seu encontro, deslizando o braço pelas suas costas
suavemente e a guiando naquela dança sem música, mesmo odiando
dançar. Parecia ser o momento oportuno para fazer algo que há tempos
tinha vontade. Mas a questão era: será que ela… queria?

— Você só vai saber se tentar, Klaaoz — disse S’ahara ao fundo,


quase como se pudesse ouvir seus pensamentos. — No máximo você vai
receber um não.

— Klaaoz, mude para o canal oito!

Ele usou seu poder para mudar de canal, e milhares de meteoros


começaram a passar pelo ambiente.

Quando Klaaoz olhou para Luna, uma palavra em gagrilyano veio


em sua mente: co-cheangailtekyea, usada para indicar a ambígua
intensidade que se sente ao olhar alguém nos olhos, o que faz você se
sentir simultaneamente invadido e vulnerável. Todos os hologramas de
todos os canais pelos quais tinha passado estavam estranhamente
reunidos na sala, contemplando a cena, apreensivos, como se
estivessem assistindo a uma partida de algum jogo.

— Klaaoz, essa é sua chance, não desperdice.

— Mas… ela não deve gostar de mim. Ela não pode ser tão louca
assim — ele afirmou o óbvio.

— Não me faça ter que ir aí empurrar sua cabeça — gritou


Z’ohannah.

— Mas e se… — ele começou.

— Beija logo — gritou o cientista do começo.

— Pela luz da Energia, a beije, eu nunca te pedi nada — disse o


paciente.
Klaaoz olhou para Luna, que estava com a cabeça afundada em
seu peito, à procura de qualquer indício que sugerisse que ela queria
fazer o mesmo. Ele se sentiu frustrado por não conseguir decifrá-la. Ele
entendia muito sobre política, história, artes, moda, armas, cremes de
cabelo, naves, liderança, destruição de coisas… Ele entendia tudo sobre
tudo, tinha o intelecto bem mais elevado que o da maioria, mas a única
coisa que não conseguia entender de jeito nenhum estava bem ali na sua
frente. E por mais que tentasse mudar isso, ela continuava sendo uma
incógnita.

— Klaaoz, é sério, eu estou quase tendo um troço! Beije-a! —


gritou Z’ohannah.

— Klaaoz, não faça isso comigo, meu coração vai parar. Eu não
tenho plano de saúde. — A velhinha do programa de culinária estava
com a mão no peito.

— Klaaoz, não brinque com meus sentimentos! Tome uma atitude


— disse outro.

— Calem a boca! — Klaaoz gritou para a torcida organizada que


havia se formado.

Seria naquele instante.

— Klaaoz, qual foi a primeira coisa que você pensou quando me


viu? — Luna perguntou exatamente na hora em que ele estava prestes
a…

Klaaoz respirou fundo, tentando controlar a frustração.

— Eu não vou dizer.

— Ah, por favor, diga! — Luna afundou mais a cabeça em seu


peito. Por que ela não calava a boca? Estava estragando tudo.
— Não.

Ele pensou que sendo monossilábico ela se calaria. Mas claro que
não.

— A primeira coisa que eu pensei quando lhe vi foi: ele parece um


vampiro.

— O que é isso?

Por que ela insistia em falar das coisas do seu planeta, as quais
ele não conhecia? Se ela soubesse como era irritante…

— Vampiros são criaturas mitológicas. Alguns brilham no sol,


outros não podem entrar na sua casa sem ser convidados, outros podem
hipnotizar as pessoas, varia de autor para autor. Mas, se for para resumir,
são pessoas que bebem o sangue dos outros.

— Quê?! Sangue? — A cada informação nova que ela dava sobre


essa tal Terra, mais ele tinha certeza de que jamais pisaria lá.

— Assim.

Luna levou a mão até a nuca de Klaaoz e afastou seus cabelos.


Ele sentiu seu corpo queimar só com esse gesto, mas, quando ela
inclinou o rosto e sua respiração quente se aproximou do seu pescoço,
ele pensou que fosse explodir.

O que ela estava fazendo? Parecia até que ia… Oh, cosmos.

Os minutos que se seguiram foram um tormento. Não, aquilo não


estava acontecendo. Ela não estava fazendo aquilo.

Os pelos da nuca de Klaooz se eriçaram, os dos seus braços


também, enquanto um arrepio gigantesco percorria sua espinha junto
com um frio na barriga tão grande que parecia que… ah, Klaaoz não
sabia nem como descrever aquilo.

A desgraçada beijava seu pescoço e ainda alternava com leves


mordidas. Todo o seu corpo ardia, enquanto o único som audível era o da
respiração que passava por seus lábios entreabertos e trêmulos. Como é
que ela fazia uma coisa daquelas?!

Aquilo era golpe baixo. Impossível conter aquelas vibrações


intensas que se espalhavam por todo o seu corpo. Sua cabeça latejava,
ele se odiava pelo tanto que queria desesperadamente beijá-la.

Klaaoz pressionou seu corpo contra o dela, fechando os olhos


enquanto o peito arfava.

— Se você… continuar… fazendo isso — ofegou, as mãos


tremendo de desejo de tocá-la. — Eu não… me responsabilizo… pelos…
meus… atos. — Sua voz saiu em um sussurro entrecortado.

Mas aquela maldita não lhe deu ouvidos. Apenas continuou


entretida em deixá-lo louco e com os nervos à flor da pele. E para piorar,
levantou o olhar com um sorriso de esguelha conforme o mordia, como
se por dentro se perguntasse quando ele finalmente faria todas aquelas
coisas erradas que tanto desejava fazer.

Depois disso, Klaaoz não conseguiu pensar com clareza. Ele não
conseguiu pensar em nada. Se viu incapaz de fazer qualquer coisa além
de agarrar suas pernas e jogá-la no sofá.

Todo o desejo que ele estava reprimindo desde o dia em que se


conheceram veio à tona com uma intensidade terrível. Ele deitou por
cima dela, já havia imaginado aquela cena em sua mente tantas vezes,
tantas vezes, tantas vezes… que sabia exatamente onde, como e o que
queria fazer.

— Vão para um quarto! — gritou Z’ohannah ao fundo.


Estavam tão próximos… Klaaoz sentia o calor de sua pele
queimando mesmo com tantas camadas de roupas das quais ele
pretendia urgentemente se livrar. Enquanto a tocava nos lugares certos
para fazê-la suspirar, ele não pôde deixar de notar como se encaixavam
perfeitamente.

E quando finalmente a beijou sem escrúpulos, Klaaoz até pensou


ter sido teletransportado para um mundo onírico entre o sonho e a
realidade. Havia algo entre os dois que ele era incapaz de nomear. Cada
segundo parecia durar uma eternidade.

Naquele momento, seu passado ficou tão distante que parecia


nunca ter existido.

Klaaoz não conseguia nem raciocinar direito, só sabia que não


queria soltá-la nunca mais. Eles estavam se beijando. Finalmente!, sentiu
vontade de gritar. Estava tão… não sabia nem o que estava sentindo.
Todas as células do seu corpo pareciam gritar de euforia e ao mesmo
tempo suspirar. Nunca tinha sentido algo parecido. Só sabia que nunca
mais iria… mas, de repente, Luna o empurrou.

— O que você está fazendo? — perguntou, aqueles olhos azuis


estavam cheios de confusão.

Ele agarrou sua cabeça e colou suas testas novamente.

— Uma coisa que eu desejava há muito tempo, que não deixava


eu me concentrar em nada… Que eu queria tanto que estava ficando
louco.

E avançou para beijá-la de novo, mas ela se esquivou.

— Não… isso é um erro. — Seus olhos estavam arregalados e


perturbados conforme se afastava. — Nós somos um erro! — O que era
aquilo que ela estava falando? Por que ela simplesmente não pegara
uma faca e a enfiara em seu peito em vez disso? — Eu não consigo me
lembrar de como é a neve. Eu preciso vê-la urgentemente — Luna disse,
se levantando e saindo correndo.

A plateia que estava assistindo gritou todos os palavrões em todas


as línguas imagináveis. Klaaoz só conseguiu ficar parado, encarando a
parede, sem acreditar, sentindo o coração que nem sabia que ainda
existia ser dilacerado. Depois de alguns segundos, recobrou a
consciência, levitou os casacos e saiu à procura de Luna.

Nem precisou andar muito, logo a avistou deitada no chão entre


algumas árvores. Pelo menos ela estava de casaco, ele percebeu
quando se deitou ao seu lado, arrependido até a morte pelo que havia
feito.

Onde ele estava com a cabeça? Jamais deveria ter ouvido aqueles
malditos hologramas. O que estava acontecendo?

— Klaaoz, posso te perguntar uma coisa? — Ele travou. Sempre


que alguém dizia que queria falar com ele, tinha vontade de se mudar
para o planeta mais longe que existisse, fazer um transplante de rosto e
passar o resto da vida vivendo de vender artesanato. — O que você faria
se fosse um limpa-vidros? — Luna perguntou antes que ele respondesse
a primeira pergunta, aliviando seu nervosismo.

— Quê?!

— Limpa-vidros são umas pessoas do meu planeta que ficam nos


semáforos limpando os vidros dos carros. O que você faria se fosse um?

— Eu… limparia vidros? — perguntou retoricamente.

Ela abriu um sorriso terno e pôs a mão em seu peito. Por que ela
estava fazendo isso?

— Se você quisesse, poderia fazer um tapete voar conosco em


cima? Nós deveríamos sair por aí assim qualquer dia… — O sorriso
continuava em seu rosto.

— Poderia, mas nós morreríamos. Primeiro porque o tapete não


aguentaria o nosso peso. Segundo porque o vento nos derrubaria. E
terceiro, qual a finalidade disso?

Luna emitiu um suspiro de frustração.

— Então, o que você acha que existe depois da morte? E qual é o


sentido da vida? O que é quarenta e dois? De onde viemos? Para onde
vamos?

— Nada. Não tem sentido. Quarenta e dois é apenas um número.


Viemos de explosões estelares. E é para lá que vamos voltar. Somos
basicamente poeira cósmica.

— Nossa, isso é a coisa mais poética que eu já ouvi sobre física —


Luna disse, estreitando os olhos. — Mas eu acho que nós estamos
perdidos — completou.

Klaaoz olhou em volta e não viu nem sinal da casa, só um corredor


infinito de árvores e neve. Nunca havia ido naquele lugar antes, ele
realmente não sabia onde estavam. Um pânico subitamente começou a
tomar conta dele. De repente, não conseguia se lembrar de como
respirar. Por que aquilo tinha que acontecer logo naquele momento?

— Klaaoz, eu estou com medo. Meu braço está derretendo —


Luna disse para completar.

Klaaoz tentava permanecer calmo, mas seu coração já tinha


começado a acelerar.

— Acho que eu vou morrer — ele confessou com dificuldade.

A sensação era de ter seu cérebro transformado em um gás que


saía pelos seus ouvidos. Como se ele todo tivesse se desintegrado e
estivesse evaporando. E não conseguia segurar, estava indo embora aos
poucos e não tinha o que fazer a respeito.

— Meu braço não quer voltaaaaaar. — Luna podia jurar que havia
esticado o braço e ele, ido para longe, como se ela fosse uma geleia.
Calma, Luna, siga o coelho branco, disse pra si mesma. — Olha essa
neve. Como é maciaaaaa.

Imagine uma janela de internet com trinta e uma abas abertas. Em


uma delas está tocando uma música, mas você não sabe em qual. Era
exatamente assim que estava a cabeça de Luna. Ela estava se sentindo
muito estranha. As mensagens que seus neurônios enviavam para o seu
cérebro não faziam o menor sentido. Sentia vontade de esquiar, mas ela
nunca tinha esquiado. Nossa, como estava desejando
desesperadamente um milkshake de chocolate naquele momento.

— Luna — balbuciou Klaaoz com a respiração ofegante, como se


tivesse acabado de correr uma maratona. Será que ele tinha saído
correndo e ela não tinha visto?

— Para onde você foi? — ela perguntou.

— Quê? Luna, eu vou morrer.

— Por quê?

— Porque eu vou.
— “To die by your side, is such a heavenly way to die”[3] —
cantarolou.

— Eu só queria que tudo parasse de girar.

— Sabia que, se o planeta parasse de girar, todo mundo sairia


voando a mais de 1600km/h?

— Eu estou falando sério — disse ele com a voz cada vez mais
enfraquecida.

— Eu também! Eu li na internet. Se está na internet, é porque é


verdade.

Klaaoz não respondeu. Talvez ele não estivesse brincando.

Luna se levantou, foi até a ponta de uma árvore, pegou uma pedra
e lhe entregou.

— Pegue. Esta é a pedra da vida. Enquanto você estiver a


segurando, não irá morrer.

Pronto, agora ela tinha salvado a vida dele duas vezes. Que árvore
engraçada. Ela nunca tinha visto uma árvore como aquela. Será que
existia um dia da árvore naquele planeta? Na Terra tinha. Dezenove de
abril. Não, calma, esse era o dia do índio. Que dia era aquele? Que dia
era na Terra? Será que seu aniversário já havia passado? Quem será
que havia vencido o The Voice?

— Luna, o que vácuos tinha naquele bolo?

— É tão engraçado quando você fala “vácuos”. Eu acho que é a


mesma coisa de quando eu falo “diabos". — Ela riu.

— Por favor… responda.


— Umas frutinhas verdes que estavam em cima da mesa, por
quê?

Klaaoz usou a outra mão para cobrir o rosto, como se estivesse…


se escondendo. Por que ele estava se escondendo? Não tinha ninguém
ali além dela. Por que ele estava se escondendo dela? Ela sabia que ele
a estava evitando. Klaaoz era o extraterrestre mais estranho que ela já
conhecera.

— São frutas daddas, são de Oberyn. Elas causam alucinações.

— Aaaaaaah… — De repente, pareceu que as coisas tinham


parado de girar e voltado ao seu foco normal. Estava tudo explicado. O
efeito pareceu passar instantaneamente após Luna saber o que estava
acontecendo. Ok, não tudo. — Vamos, eu acho que sei onde nós
estamos — ela disse, mas Klaaoz continuou no chão. A consciência dela
tinha voltado ao normal, mas ele parecia continuar do mesmo jeito.
Estava claramente pior do que ela, mesmo ela tendo comido mais
pedaços do bolo. — Klaaoz, vamos, já vai escurecer.

Ela se abaixou e puxou a mão dele, que se levantou com


dificuldade e foi caminhando com sua ajuda. Andaram alguns metros sem
falar nada, Klaaoz sempre parecendo estar fazendo um esforço sobre-
humano para se movimentar.

Quando chegaram em casa, ele a guiou para a sala de HoloTV e


imediatamente se deitou no tapete. Luna fez o mesmo e percebeu que
ele realmente estava sentindo alguma coisa a mais do que apenas o
efeito do bolo. Nem os sapatos ele se lembrou de tirar! Eles estavam em
casa, seguros, tudo tinha voltado ao normal. Ela só estava com um pouco
de dificuldade de organizar as ideias e de falar, mas ele parecia estar…
morrendo.

— Klaaoz, o que você está sentindo?

— Nada, só me deixe sozinho — disse ofegante, se virando para o


lado.
— Klaaoz, eu não vou te deixar sozinho assim. — Quando Luna
colocou a mão sobre o peito dele e sentiu seu coração acelerado, se
martirizou por não saber o que fazer para ajudá-lo. O que diabos era
aquilo? — Você está tendo uma Brad Pitt — ela disse.

— Quê?!

— Quer dizer, bad trip. Quando você usa alguma coisa e o efeito
não é bom, sei lá. — Ele não respondeu. — Tem alguma coisa que eu
possa fazer? Klaaoz balançou a cabeça em sinal negativo ainda com os
olhos fechados. Luna decidiu abraçá-lo, pois era a única coisa que podia
fazer àquela altura. A vontade de ler seus pensamentos para tentar
compreender um pouco o que ele estava sentindo foi grande, mas ela
resistiu. — Me diga o que você está sentindo — ela pediu baixinho.

Ele continuava calado, respirando como se lutasse contra o ardor


no peito.

— É como se eu estivesse no meio do oceano e nadasse,


nadasse, nadasse, procurando por… alguma coisa. E quando eu
parasse, porque estou prestes a morrer, finalmente encontrasse. — Sua
voz estava trêmula, por um momento ela achou que ele fosse… chorar?
Não conseguia imaginá-lo chorando. Sempre o vira como uma pessoa
que não tinha sentimentos.

— Mas… o que você está sentindo?

— Eu… não consigo respirar.

— Meu Deus, e o que eu faço? Você tem nebulizador aqui?

— Quê? Não, não é isso… — Inspirou fundo. — Só fique aqui do


meu lado calada. Vai passar.

E foi então que Luna se lembrou do que tinha acontecido. Meu


Deus, ele a havia beijado. E ela… o empurrou e disse que era um erro.
Por quê?

Bom, de fato, era errado. De tantas maneiras que ela não


conseguia nem começar a enumerar. Podia usar a desculpa que fosse,
mas, no fim, se olhasse a definição de errado no dicionário, haveria uma
foto dos dois. Não existia outra palavra capaz de descrever aquilo.

E também tinha Bok. Ok, tecnicamente o casamento era de


brincadeira, mas… Nossa, que confusão!

Porém, ver Klaaoz ali, morrendo, fez Luna sentir um aperto no


peito tão grande… Era como se seu coração estivesse saindo de uma
estação lotada de metrô.

Ele estava sem vida, mais pálido do que já era.

E ela só sabia que precisava encontrar um jeito de salvá-lo.

Luna subiu mais o corpo, inclinou a cabeça e suavemente beijou


seu queixo, mesmo sabendo que não deveria. No entanto, era incapaz de
fazer qualquer outra coisa. E beijou de novo e de novo, como se aquilo
fosse fazer aquela dor que ele estava sentindo passar.

Klaaoz estava de olhos fechados, respirando ofegante, mas os


abriu e a olhou pelo canto do olho. A tristeza dentro daqueles olhos
tempestuosos roubou o fôlego dela. Nunca tinha visto alguém tão
desolado. Naquele momento, ele era apenas ele, em seu estado mais
vulnerável. Não era aquela pessoa que todos odiavam, não tinha
armadura invisível.

Klaaoz apertou sua cintura e a puxou mais para cima. O coração


dela martelou forte quando suas bocas se encontraram, mas não se
moveram. Seu peito subia e descia lentamente, seus hálitos quentes se
misturavam enquanto respiravam de forma lenta e irregular. Suas testas
estavam coladas, mas nenhum ousava abrir os olhos. Talvez por medo
de estragar a mágica do momento ou de tornar aquilo real. Mas Luna não
precisava ver para saber que estavam encaixados como duas peças de
um quebra-cabeça. Tão encaixados quanto ela se sentiu quando chegou
à Capital.

O cheiro dele fazia todo o seu corpo estremecer e causava nela


uma sensação que podia ser descrita por uma palavra gagrilyana:
lànachdkyea , usada para indicar um estado lúcido caracterizado pela
ausência de preocupação. Quando Klaaoz afundou a cabeça em seu
pescoço e a beijou, e beijou, e beijou, o calor daquela respiração fez
Luna desejar que o mundo inteiro saísse de foco e só restassem eles
dois.

Ele colocou as mãos por baixo da blusa dela, e aquelas mãos


fazendo carícias preguiçosas em suas costas deixavam cada centímetro
de sua pele queimando tão ardorosamente que parecia que ela estava…
no inferno. Àquela altura, esse era um lugar ao qual ela não se importaria
de ir, caso Klaaoz fosse.

Luna não se importava com mais nada. Sua cabeça latejava de


tanto que o queria. Era como se a cada beijo o bom senso que lhe
restava a abandonasse mais um pouco. Ela se sentia sufocada por
sentimentos que eram confusos demais. Ele deixava sua respiração e
seus batimentos de uma forma caótica. Seus pensamentos eram um
caos que ela não conseguia compreender ou ordenar. Mas ela não se
importava de ser um completo caos. Caos não era ruim, apenas a
deixava sem conseguir pensar direito.

Naquele momento, parecia que estava sendo sugada para dentro


de um buraco negro. E ela não fazia o mínimo esforço para tentar
escapar. Dizem que quando se está dentro de um buraco negro é
possível ter um vislumbre de todo o universo. E era mais ou menos assim
que Luna se sentia: aquecida e fascinada em seus braços. Klaaoz
despertava nela sentimentos obscuros e um desejo doloroso, uma
necessidade incandescente, quase urgente, de tomar uma atitude para
atingir alguma coisa. Algo havia mudado. Era como se ele a fizesse ter a
sensação de que a vida era mais do que aquilo que as pessoas diziam
ser. Ela conseguia enxergar além.
Luna havia encontrado certo dia uma palavra em gagrilyano que
condizia com aquilo: gràdhkyea, algo que nos deslumbra a ponto de nos
tornar quem somos, que é tão forte que quebra as paredes que temos
dentro de nós.

Parecia tão certo, mesmo sendo tão… errado.

E por um momento, isso quase a fez esquecer… de tudo.

Meu Deus, o que ela estava fazendo?

— Klaaoz… eu não posso.

Por um momento, tudo o que se ouviu foi silêncio.

— Eu sei — foi tudo que ele disse.


29

29- O Primeiro dia sem Klaaoz

A água fervia e o vapor subia quando Luna sentiu que alguém se


aproximava. Mãos foram postas sobre as suas enquanto alguém beijava
seu pescoço, fazendo com que fosse difícil seu corpo não arrepiar e ela
não afundar na água. Klaaoz fez carícias preguiçosas em sua pele. Luna
se virou, e quando seus olhos estavam prestes a se encontrar…

Luna acordou de sobressalto em sua cama com a pior ressaca da


sua vida. Aquilo não passava de um sonho, não tinha dúvidas. Mas sobre
as coisas da noite anterior ela não tinha tanta certeza assim.

Entretanto, como havia acordado em sua cama, se dormira na


sala? Talvez fossem apenas alucinações causadas pelas frutas. Ela e
Klaaoz dançando, seus corpos colados… 99% dela gostaria que não
fosse real, mas aquele 1%…

Tentava se obrigar a não pensar naquilo.

Era errado. Mesmo que a história do casamento com Bok fosse


brincadeira, os sentimentos não eram. Ela precisava expulsar essas
coisas de sua mente imediatamente.
E, então, as palavras de Klaaoz ecoaram em sua cabeça: “eu
queria tanto que estava ficando louco”. Luna sentiu um frio na barriga.

Se lembrar disso a deixava feliz e tonta de um jeito no qual ela não


queria pensar a respeito. Se sentia extremamente culpada por esses
sentimentos que ele suscitou. Não podia ser real. Não tinha como ser
real.

Mas Luna ainda podia sentir os beijos dele em seu pescoço e o


cheiro dele impregnado em seu corpo. Precisava tomar um banho para
tirar aquele odor de culpa, mas uma parte dela não se importaria de
nunca mais conversar com Freud.

De repente, Luna se lembrou de que, quando ela perguntara o que


Klaaoz faria se fosse um limpa-vidros, ele respondera que limparia vidros.
Isso era um teste psicológico que ela fazia com as pessoas. Não existia
uma resposta correta, mas ela considerava as melhores pessoas as que
respondiam que limpariam os vidros.

Mas, meu Deus, ele atirou no próprio pai. Ela era louca? Beijá-lo
era mais do que errado, era insensato!

Mas, como Oberyn disse, você não pode julgar uma pessoa
completa por uma atitude isolada, e às vezes alguma circunstância o
levou a fazer aquilo, e talvez dentro daquelas circunstâncias não fosse
errado.

Mas atirar em alguém é errado em qualquer circunstância.

Mas ele disse que saiu do Comando Omega.

E as pessoas podem mudar.

Mas as pessoas mudam os hábitos, mas não a essência.

Mas será que a essência dele era tão ruim assim?


Os hábitos influenciam na essência? Ou a essência influencia nos
hábitos?

Que confusão! Luna não estava conseguindo nem organizar os


pensamentos.

Ela massageou as têmporas a fim de ver se seus neurônios


voltavam a funcionar para que ela conseguisse pensar com clareza, e foi
então que seu olhar se perdeu em um dos quadros da parede.

Esse possuía tons de vermelho-escuro e parecia ao mesmo tempo


uma explosão de fúria e um grito de socorro. Era muito confuso e
paradoxal, como tudo naquele lugar.

E ele fez Luna ter vontade de escrever um poema:

Depois de tomar o primeiro banho silencioso desde que conheceu


Freud, Luna desceu para procurar Klaaoz com o intuito de… bom, não
sabia exatamente para quê. Só queria vê-lo, verificar se aquilo havia
acontecido ou não, ver do que ele se lembrava para tentar juntar as
peças daquele quebra-cabeça.
Mas quando encontrou Coisina ela a informou de que ele tinha
precisado viajar para resolver algumas coisas.

— Ah… — foi a única coisa que Luna conseguiu dizer.

Depois foi para sua aula com Oberyn. Não conseguiu se


concentrar, jantou, assistiu à HoloTV com Rys e foi dormir.
30

30- O segundo dia sem Klaaoz

No outro dia, Luna acordou, tomou café da manhã, perguntou à


Coisina se Klaaoz havia voltado, e ela disse que ainda não. Foi para a
aula com Oberyn, não conseguiu se concentrar, jantou, assistiu à HoloTV
com Rys e foi dormir.
31

31- O terceiro dia sem Klaaoz

No terceiro dia, Luna acordou, tomou café da manhã, perguntou a


Coisina se Klaaoz havia voltado, e ela disse que não. Foi para a aula com
Oberyn, não conseguiu se concentrar, jantou, não quis assistir à HoloTV
com Rys e não conseguiu dormir.
32

32- O quarto dia sem Klaaoz

No quarto dia, Luna acordou e, antes de ela tomar café da manhã,


seu Holophone tocou.

— Oi… futura esposa de brincadeira — Bok disse timidamente.

— Oi. — Eles não se falavam desde a discussão sobre Klaaoz, e


Luna só havia se dado conta disso naquele momento.

— Eu queria me desculpar pelo outro dia…

— Sem problemas.

— Sério, eu não sei o que deu em mim. Eu não deveria ter falado
daquele jeito. É porque Klaaoz, o Comando Omega em geral, realmente
é um assunto que me tira do sério.

— Não tem problema. — Ela foi sincera. Não guardava


ressentimentos.

— E eu me preocupo muito com você. E sinto muito sua falta. —


Ela ficou por alguns segundos pensando no que dizer. — Eu consegui
algumas informações novas sobre esse planeta. Voltarei a Caelestra para
ver as novas pistas.

Luna continuou calada. Não é que ela não quisesse vê-lo, era
que… não sabia qual desculpa inventar.

— Que ótimo! — O sorriso que ela abriu foi tão forçado que até ele
percebeu.

Bok ficou calado por um momento.

— Sério, eu não queria que ficasse um clima chato entre a gente…

— Não, está tudo bem.

— Eu sei que essa história de casamento é só marketing, mas…


para falar a verdade, eu não me importaria se não fosse. — Luna engoliu
em seco. — Eu sei que é muito cedo para isso ainda, mas… eu
realmente dìoghraskyea você — Dìoghraskyea é uma expressão
gagrilyana usada para indicar quando você mal conhece uma pessoa,
mas nutre por ela um sentimento enorme semelhante ao amor. — E eu
acredito que o universo conspirou para que isso acontecesse. — Luna
sentiu um rebuliço no estômago. E não era fome. — Então, Alynestra
quer começar os preparativos, ela acha que isso vai pressionar o
Comando Omega a tomar alguma atitude sobre o seu sequestro. Eu não
sei como eles irão querer fazer ainda, mas, por mim, pode ser uma
cerimônia pequena para poucas pessoas, o que você quiser. — Luna
sentiu toda a cor se esvair do seu rosto. — Você… não vai dizer nada? —
Bok continuou.

As palavras não vinham.

O que ela iria dizer? “Claro que eu aceito me casar com você! Ah,
mas primeiro me deixe verificar se eu beijei ou não o seu maior inimigo,
já que eu não tenho certeza se aconteceu mesmo, pois estava sob o
efeito de frutas alucinógenas”.
— Eu não sei o que dizer. — Ela estava com a sensação de que ia
desmaiar.

— Eu também estou sem palavras. Mas vou avisar a Alynestra que


ela pode começar. Beijo. — E desligou.

Ai, meu Deus. O que Luna tinha feito?

Luna fechou os olhos, mas, como sempre, não conseguiu se


concentrar na aula com Oberyn. Ler pensamentos era fácil comparado a
entrar na mente de alguém, e naquele dia sua cabeça não parava.

O casamento acidentalmente marcado com Bok, o beijo que


ganhara do Klaaoz ou não…

Luna até sentiu sua garganta tampar.

Tentou respirar fundo e foi aí que se lembrou de Klaaoz sem


conseguir respirar. Não tinha como ela ter imaginado aquilo. Tinha
acontecido. Mas o que fora aquilo? Será que ele costumava sentir aquilo
ou fora efeito da fruta?

— Não estou conseguindo me concentrar — confessou, embora


desconfiasse de que fosse desnecessário.

— Me conte uma novidade.


— Eu só consigo quando eu limpo totalmente a minha cabeça, não
sei explicar. Não é natural como Klaaoz, que simplesmente levita os
objetos sem pensar — falou, depois baixou a cabeça, tentando criar
coragem para perguntar o que queria. — E falando nele, eu estava aqui
pensando… como ele era quando criança?

Oberyn abaixou os óculos e ficou pensativo.

— Hum… Ele era… uma criança um pouco complicada.

— Mais do que é hoje? — Ela riu.

— Não, era diferente. Ele era muito calado e vivia sozinho. Não
tinha muitos amigos.

Que ele provavelmente era o estranho que sentava sozinho no


recreio ela já sabia, mas não era isso que queria saber.

— Entendo… E ele já tinha essa coisa de… não conseguir


respirar?

Oberyn pareceu surpreso por ela saber sobre aquilo.

— Não — respondeu, direto. Ela não iria desistir tão facilmente.

— E… há quanto tempo ele tem isso?

Oberyn pareceu pensativo.

— Desde que ele tem mais ou menos vinte e seis anos gagrilyanos
— disse, acabando com sua dúvida sobre aquilo ser coisa da sua cabeça
ou não.

— E o que é isso exatamente?


— Eu não sei exatamente o que é, mas eu desconfio de que seja
ansiedade, algum trauma de alguma coisa que aconteceu entre seus
aniversários de vinte e seis e vinte e sete anos gagrilyanos.

— Trauma de quê?

— Não sei. Ele nunca disse. Mas eu sei que alguma coisa
aconteceu. Todo ano ele ia me visitar no meu aniversário. Entre esses
dois anos, eu notei uma diferença muito grande em seu comportamento e
perguntei se havia acontecido alguma coisa. Ele não nega, mas se
recusa a falar a respeito.

— Mas o que isso tem a ver com não conseguir respirar?

— Bom, quando temos alguma experiência traumática, às vezes


isso pode afetar profundamente nosso psicológico. Ansiedade faz com
que a pessoa tenha crises inesperadas de desespero, um medo intenso
de que algo ruim aconteça, mesmo que não haja motivo algum para isso
ou sinais de perigo iminente. A pessoa é tomada por um sentimento geral
de medo ou inquietação que faz com que ela fique com uma
preocupação e tensão excessivas.

Luna encolheu os ombros. Parecia ser exatamente isso que


acontecera naquele dia.

— Existe cura?

— Falar sobre isso ajudaria.

— E por que ele não fala?

— Bom, porque você não aproveita que ele acabou de chegar e


pergunta a ele? Aproveite e peça também dicas de como se conectar
mais facilmente com seu poder, você está precisando.
Quando Oberyn falou as palavras “ele acabou de chegar”, Luna já
saiu da sala correndo antes de ele completar a frase.

Klaaoz subia as escadas com uma mala flutuando ao seu lado,


provavelmente pronto para se trancar em seu quarto e evitar Luna como
sempre. Seu cabelo estava bagunçado, e suas roupas não estavam tão
engomadas assim. Ele era jovem, mas tinha atitude de um banqueiro de
oitenta anos preocupado se as ações da bolsa iriam cair naquele dia.

— Klaaoz! — Luna o interceptou, meio sem saber o que falar a


seguir. — Você se lembra de alguma coisa daquele dia?

— Não — disse e continuou a andar.

— Ah… — Ela baixou a cabeça. — Quando ele estava quase


entrando em seu quarto, ela disse: — Oberyn disse para eu pedir para
você… — Se atrapalhou um pouco com as palavras. — Quer dizer, você
pode me mostrar como você faz para usar o seu poder?

Ele estava com a mão no trinco, mas hesitou por um instante.

— Claro.

Os dois saíram da casa, e Klaaoz começou a explicação com


bastante empolgação, mas Luna não estava prestando atenção. Será
que ele estava fingindo que nada havia acontecido ou realmente não se
lembrava de nada? De qualquer forma, ela precisava arranjar um jeito de
perguntar sobre esse seu suposto trauma.

— Você precisa limpar sua mente. Não pense em nada. Apenas


mentalize o seu objetivo. Assim — disse ele, arrancando com o seu
poder uma flor que havia em uma árvore e levitando até a mão dela.

Mas Luna continuava entretida bolando uma estratégia. Precisava


enrolar, fazer perguntas sobre o poder, para depois jogar a real.
— Qual a maior coisa que você já levitou?

— Hum… Eu basicamente só uso o poder para evitar tocar nas


coisas, independente do peso… Mas às vezes é bem útil para jogar
algumas pessoas na parede — ele falou com um leve tom de irritação.

Quando ouviu isso, Luna esqueceu tudo o que estava pensando e


se lembrou do que Bok havia falado. Como todos odiavam Klaaoz e
como ele fazia coisas horríveis.

Ela ficou em silêncio e sentiu o sangue ferver ao imaginar o que


seriam essas coisas horríveis. Tomara que aquele beijo fosse só coisa da
sua cabeça, efeito das frutas daddas. Era um erro.

Luna já estava prestes a dar meia-volta e cortar relações com ele


para sempre quando se lembrou do que Oberyn lhe disse: “com base em
uma ação isolada você não pode fazer uma afirmação sobre uma pessoa
inteira”. E, de fato, ele parecia ter mudado, ou pelo menos estava
tentando.

Luna respirou fundo e tentou manter a calma.

— Por que jogar pessoas na parede?

— Porque elas merecem — ele respondeu, tornando cada vez


mais difícil defendê-lo.

— Você não percebe que isso só vai fazer as pessoas te odiarem


mais?

— Quem disse que as pessoas me odeiam?

— Bok me falou tudo de ruim que você fazia no Comando Omega.

Klaaoz a fuzilou com o olhar, como se tivesse intenções de jogá-la


na parede caso houvesse alguma ali.
— Falou o ladrão que roubou a pedra Aünder.

Depois que ele disse isso, Luna esqueceu tudo de bom que tinha
pensado a seu respeito. Talvez ele realmente fosse uma causa perdida.
Não adiantava tentar enxergá-lo com outros olhos só por causa de uma
vez ou outra que ele fora legal. Talvez ele realmente nunca fosse mudar.
Tomara que o beijo tivesse sido só coisa da sua cabeça.

— Bok não é um ladrão. Vocês do Comando Omega é que são um


bando… de sequestradores, desumanos, babacas… que merecem cair
de bunda em cima de um abacaxi!

— Eu não sei o que é um abacaxi, mas eu mesmo vou jogá-lo em


cima de um quando encontrá-lo. — Os olhos dele ferviam.

— Qual é o seu problema? — Luna perguntou, sem acreditar que


aquela pessoa que estava à sua frente era a mesma que… argh!

— Qual é o seu problema? — E ele saiu pisando forte. A armadura


invisível que mantinha o resto do mundo à distância estava de volta.

Por que ele era assim? Quando ela achava que finalmente estava
conseguindo montar aquele quebra-cabeça… ele vinha e bagunçava
tudo.

— Você é louca por dizer que ele gosta de mim — esbravejou Luna,
entrando na cozinha pronta para alugar o ouvido de Coisina por um bom
tempo.
— Boa noite para você também — ela disse de costas enquanto
preparava o jantar no balcão.

— Ele não gosta de ninguém além de si mesmo — Luna afirmou o


óbvio, que por um momento havia se recusado a enxergar.

— O que aconteceu? — Ela não parecia dar muita importância,


como se fosse tudo apenas drama de Luna.

— Às vezes ele parece uma criança que faz escândalo no


shopping. Em outras, ele é a melhor pessoa do mundo, que me diz as
melhores coisas que alguém já me disse. Como é possível?

— Sim, mas o que aconteceu?

— Ele disse que usava o poder para jogar pessoas na parede! Isso
aconteceu. — Falar isso em voz alta fazia parecer ser mais ridículo do
que era.

— É complicado, Luna — Coisina, como sempre, o defendeu.

— Como pode ser complicado? Ele fala isso como se fosse a coisa
mais normal do mundo!

— Ele passou por muitas coisas, você não faz nem ideia. —
Coisina inventaria uma desculpa para defendê-lo até se ele explodisse o
mundo, isso era um fato.

— Que coisas? Mesmo assim, nada justifica.

— Faz parte do trabalho dele.

— E por que esse é o trabalho dele? A meu ver, ele é apenas um


adolescente mimado e revoltado que sempre teve tudo que quis e que
saiu de casa para… sei lá, chamar atenção.
— Nem tudo é o que parece, acredite.

— Ele é um Dìomhaireachdkyea. Uma palavra em gagrilyano que


eu encontrei, significa algo para o que você procura explicação e não
encontra, uma incógnita. É uma situação que suscita constantemente
uma explicação que não existe. Eu cansei de procurar explicações e
justificativas para o que ele faz! Ele faz porque é uma pessoa horrível e
pronto.

— Ah, Luna… — Coisina suspirou. — Quando você olha para uma


pessoa, vê apenas aquilo que ela quer mostrar e aquilo que ela não
consegue esconder. E isso não é nem 50%.

— Eu acho que nunca vou ver os outros 50% dele. — Ele não
mostrava nem 10%! Imagine 50%!

— Não é todo mundo que consegue mostrar os outros 50%.

— Eu mostrei os meus pra ele, falei a ele coisas que eu nunca


disse para ninguém!

— Para algumas pessoas é mais difícil do que para outras.

— Difícil foi eu conseguir me concentrar e ler mentes. Já isso é


impossível. Toda vez que eu acho que finalmente estou conseguindo…
montar esse quebra-cabeça, ele esbarra e joga tudo no chão.

— Em todos os anos que o conheço, nunca o vi assim. Dê tempo


ao tempo. Klaaoz é atormentado por coisas que você não faz ideia.

Luna ficou calada, pensando no que seriam essas coisas e se


algum dia ele falaria sobre elas.

— Não sei se eu quero perder meu tempo com ele. Ele nunca vai
mudar. E de qualquer forma, eu vou me casar com Bok quando voltar
para a Capital.
— Quem?

— Bok, o cara que me trouxe da Terra. Nós meio que estamos de


casamento marcado. No começo era de brincadeira, mas ele gosta de
mim e, o mais importante de tudo, ele demonstra! Ao contrário de certas
pessoas…

Coisina ergueu a sobrancelha.

— Luna, eu vou ser bem sincera… Parece que você fica sempre
procurando desculpas, como se… tivesse medo de se apaixonar por
Klaaoz. —

Essas palavras atingiram Luna como uma pancada na cabeça. Por


essa ela não estava esperando. Se sentiu tonta de verdade. — E eu acho
que… quando você tem medo de se apaixonar por alguém e perde vários
dias pensando nisso, a verdade é que, talvez… você já esteja
apaixonado.

Luna não conseguia pensar em nada para falar. Seu estoque de


desculpas estava vazio. Desejou que naquele momento acontecesse um
terremoto que abrisse um buraco no chão para que ela pudesse entrar.
Como era aquela palavra em gagrilyano para quando seu cérebro
esquecia as palavras mesmo?

— Eu vou… tomar banho — disse, embora tivesse tomado um há


menos de duas horas.

Quando ela estava saindo, Coisina disse:

— Ah, amanhã o jantar vai ser na sala de espelhos. Use sua


melhor roupa.
33

33- O jantar

Klaaoz chegou à sala de espelhos arrumado para esse tal jantar


especial misterioso que Coisina havia planejado e, para seu infortúnio,
encontrou apenas Luna sentada à mesa. Havia velas e tudo estava
exageradamente organizado. Os outros lugares estavam postos, mas
vazios. Por que todo mundo tinha resolvido se atrasar logo naquele dia?

Ainda não falara com Luna desde a discussão do dia anterior e


pretendia continuar assim. Havia passado alguns dias na sua casa do
outro lado do planeta para ver se conseguia reorganizar seus
pensamentos e continuar com o plano, mas ela conseguiu destruir todo o
seu progresso em menos de cinco minutos.

Mas e a flor? Ela não falou nada a respeito da flor. Ele deu uma flor
para ela, e ela apenas ignorou. E por que ela tinha defendido tanto
aquele tal de Bok? Por que ela se importava tanto com ele? Klaaoz
pensava que o que estava nos jornais era apenas encenação típica da
mídia manipuladora da Capital.

Seu sangue ferveu. Não conseguia verbalizar o que sentia naquele


momento, era vergonhoso demais. Respirou fundo, decidido a suprimir,
ignorar ou destruir aqueles sentimentos. Pelo menos durante aquele
maldito jantar.
As estrelas estavam escondidas naquela noite, mas o luar tinha
seu brilho dramático refletido nos espelhos, deixando uma atmosfera
azulada e melancólica, que o fazia se lembrar do motivo de ter escolhido
aquela casa entre tantas outras.

Klaaoz admirou as montanhas no horizonte e a falta de vida por


alguns instantes. Então se sentou o mais longe possível da única coisa
que queria verdadeiramente admirar, no extremo oposto da mesa, sem
proferir uma única palavra.

Olhou para as paredes, para o chão, para o teto, para as comidas,


para qualquer lugar só para evitar olhar para ela. Mas, pelo canto do
olho, reparou que Coisina também havia lhe recomendado ir com a sua
melhor roupa.

Luna usava um vestido borgonha que deixava seus ombros à


mostra e que causava nele todas aquelas sensações que ele tentava
evitar. Era semelhante ao que usara na festa em que se conheceram,
que o fez notá-la muito antes de a bússola ter apontado em sua direção.
Tinha uma saia esvoaçante, que provavelmente varria o chão por onde
passava e ficaria sujo se aquela casa não fosse extremamente limpa. Até
luvas ela usava. Qual a finalidade daquilo? Uma parte dele achou
ridículo, e a outra parte se esforçava bastante para não imaginar como
seria a textura delas tocando sua pele.

Seus cabelos como sempre estavam presos em um coque no topo


da cabeça. Ele sentiu vontade de bagunçá-los só porque gostava de vê-
los caídos, contrastando com seu rosto. Seu nariz perecia um grande
botão vermelho que dizia: “me aperte”. E os lábios, em vez de seu rosado
natural, estavam vermelho-sangue, e ela constantemente os mordia,
como se fizesse de propósito só para provocá-lo. Ai, como ele odiava
isso.

Klaaoz jamais admitiria, talvez só se estivesse sob efeito de frutas


daddas, mas estava a achando mais bonita do que nunca.

Talvez porque coisas impossíveis se tornam mais desejáveis.


O silêncio ensurdecedor perdurou por minutos que pareceram
durar horas, até que foi quebrado pelo barulho do Holophone dela,
indicando que recebera uma mensagem.

— É Coisina. Ela disse que ela e os outros irão demorar e que é


para irmos comendo — se limitou a dizer.

Klaaoz não respondeu e começou a se servir.

Por um bom tempo, o único barulho que se ouvia no ambiente era


o tilintar dos talheres, que foi interrompido com um copo de vidro caindo
no chão e se despedaçando.

Luna engoliu em seco, depois apenas pegou outro copo que


estava ao lado. Sério que ela havia feito isso?! Como ela conseguia ser
tão dissimulada? E desastrada?

Isso, junto com sua teimosia, sua tendência a ser irritante em 90%
do tempo e sua falta de nexo, bom senso e organização caracterizavam
tudo que Klaaoz mais odiava em uma pessoa.

Ele de fato odiava todos os aspectos da sua personalidade.

Mas… por que, ainda assim, a queria tanto?

Ah, sim, ele a queria. Atordoadamente, desesperadamente. Tanto


que doía.
Luna terminou de comer e ficou admirando o ambiente. Estava na
mesma varanda do seu primeiro dia ali, com a mesma pessoa, a mesma
paisagem, mas… algo estava diferente.

Klaaoz continuava com o olhar impassível, fixo no nada, perdido


em seus pensamentos, parecendo estar a anos-luz dali. Era irritante
como ele sempre estava impecável dos pés à cabeça. Parecia fazer isso
para compensar sua personalidade horrível. Usava um terno preto de
tecidos finos e seu cabelo possuía ondas uniformes e sedosas, como se
ele estivesse pronto para aparecer em um comercial de shampoo. Mas
ela não podia esquecer que no fundo ele não passava de um vampiro frio
e sem coração.

Vez ou outra, ela podia sentir seu olhar sobre ela, mas ele o
desviava rapidamente, como se estivesse se esforçando bastante para
não olhar para ela. Luna sentiu uma vontade quase que incontrolável de
ler sua mente, porque só assim conseguiria ter alguma ideia do que se
passava ali. Mas não o fez.

O silêncio já perdurava tempo o bastante, e por isso ela resolveu


partir. Não tinha nada para ela ali. Ele era orgulhoso demais para se
desculpar e talvez nem sequer achasse que estava errado. O melhor a
fazer era voltar para seus aposentos e continuar sua vida sem ele, vida
que ela insistia em repetir para si mesma que estava melhor mesmo
sabendo que aquilo não era verdade.

Quando Luna se levantou da cadeira e estava prestes a deixar o


local, Klaaoz quebrou o seu suposto voto de silêncio:

— Não vá. — Sua voz era calma e inexpressiva.

Luna pensou duas vezes antes de se virar. 99% dos neurônios que
ainda restavam em seu cérebro diziam para ela ir embora enquanto era
possível, correr o mais rápido que pudesse para o lugar mais longe que
encontrasse.
Imaginou por um segundo um universo paralelo em que se virava,
ia embora e nunca mais ouvia falar dele. Um universo em que vivia sua
vida tranquila, sem brigas, sem dramas e sem dúvidas. Era um universo
mais fácil. Talvez até melhor.

Mas Mòran-nab-‘fheàrrkyea. Mòran-nab-‘fheàrrkyea é um


provérbio gagrilyano que indica quando o melhor para a gente não nos
faz bem.

E… aquele 1% sabia que esse não era o universo em que ela


queria viver.

Luna não respondeu e foi até o bar, onde se sentou em um dos


bancos altos, pegou uma garrafa da estante e a pôs em cima da
bancada. A garrafa era azul, de tamanho mediano e com detalhes
dourados. Era a mais bonita do bar.

— Quer? — perguntou, despejando o líquido em um copo.

Klaaoz demorou alguns segundos para responder:

— Eu não bebo — disse. Sua resposta foi tão seca que ela sentiu
vontade de jogar a bebida em seu rosto para ver se a deixava mais
molhada.

— Por quê?

— Porque… é uma perda de tempo. Só faz você parecer um idiota


— ele respondeu, travando o maxilar de um jeito que ela achou
incrivelmente lindo. Quer dizer, irritante.

— Assim, eu não sou uma pessoa que bebe horrores nem que vive
de festas, mas eu sou a favor de, em ocasiões especiais, tomar alguma
coisa.

— Só faz você… agir sem pensar. Fazer coisas sem pensar.


— Não. Você só faz coisas que sempre quis, mas não tinha
coragem. Muda seu comportamento, não sua personalidade.

— E qual a finalidade disso? — Ai, como ela achava irritante


quando ele falava isso.

— Bom, no meu planeta, existia um famoso psiquiatra que dizia


que em nosso cérebro existem áreas que só podem ser acessadas
com… o auxílio de certas substâncias. Então, eu gosto de acreditar que,
quando eu bebo, estou apenas me conhecendo melhor.

— Eu não preciso disso para acessar outras áreas do meu


cérebro.

— Claro que precisa, todo mundo precisa. Aposto que o lado


direito do seu cérebro deve estar criando teias de aranha.

— O que você quer dizer com isso? — Ele levantou a sobrancelha.

— Bom, o nosso cérebro é divido em dois lados, o esquerdo e o


direito. O lado direito é responsável pelas emoções e o esquerdo, pela
razão. Essa sua atitude de não querer beber certamente foi pensada no
lado esquerdo, que é tão dominante em você que não deixa o direito ser
usado nem por um minuto. E eu acho que você não bebe por ter medo de
que ele volte a funcionar.

— Eu estava me referindo ao termo "teias de aranha". Mas não, eu


não tenho medo — retrucou.

— Então, por que não bebe? — Luna continuou, ignorando as


diferenças culturais.

Ele a encarou com o olhar semicerrado.

— Eu sei o que você está tentando fazer.


— O quê? — Luna perguntou cinicamente. Ele continuou a
encarando. — Se não tem medo, vá em frente, beba.

Klaaoz suspirou, depois foi até lá, colocou um pouco num copo e
virou de uma vez. Elegantemente, como um ator de Hollywood de filmes
preto e branco que esconde um grande segredo. Ela fez o mesmo, mas
tossiu e quase se engasgou ao constatar o gosto da bebida.

— Você escolheu a pior de todas só por causa da garrafa — disse


ele, esticando a mão e levitando uma garrafa transparente e simples,
depois despejando o conteúdo no copo. — Prove esta.

Ela bebeu com cautela, e sua expressão mostrava que ele estava
certo.

— Eu quero ir embora daqui — ela falou involuntariamente. Por


que ela tinha falado isso? Ela não queria ir embora. — Desculpe, eu…
não sei por que eu disse isso.

— Eu sei. Foi o gin caelestreano.

Luna franziu a testa, sem entender.

— Eu sei que eu disse que a bebida entra e a verdade sai, mas eu


realmente não quero ir embora — ela disse, pela primeira vez se dando
conta de que aquelas eram provavelmente as palavras mais verdadeiras
que já saíram de sua boca.

Ele a fitou com uma intensidade que quase a fez cair da cadeira.
Quando ele abriu a boca para falar, o coração dela deu tantas
cambalhotas que ficou tonto.

— Gin caelestreano faz você contar uma mentira após ingeri-lo.


Age tão rápido no cérebro que você não pode escolher o que vai falar. —
Luna piscou algumas vezes, sentindo um alívio, mas ao mesmo tempo
uma frustração. E nem sabia o motivo. — As bebidas na Terra não são
assim?

— Não. Deixam apenas… bêbado. — Ela deu uma risada nervosa,


por dentro se perguntando o que diabos tinha bebido na festa do
presidente.

— Essa daqui. — Ele levitou uma garrafa vermelha. — É gin


centauriano. Faz você falar uma verdade.

Ela engoliu em seco enquanto ele enchia o seu copo.

— Você não vai beber também?

— Não. — Ele deu um leve sorriso.

Ela abriu a boca, o encarando.

— Eu só tomo se você tomar.

Ele a encarou de volta com o olhar fulminante. Alguns segundos


depois, virou o copo. A ansiedade de ouvir o que ele falaria era
agonizante.

— Eu não gostaria que você fosse embora.

O coração de Luna acelerou. Como sempre. Apreensiva e


temendo o que iria falar, bebeu também.

— Eu não quero ir. — Eles ficaram em silêncio por alguns


segundos após aquelas confissões óbvias, que sempre estiveram
implícitas. — Tem mais alguma bebida assim? — Ela tentou quebrar a
tensão que ficou no ar.

— Sim. Isso aqui é uísque preozoles, faz você se recordar de uma


lembrança boa. — Ele levitou uma garrafa vermelha.
Meu Deus, por que ninguém a tinha informado que as bebidas de
lá faziam isso?

— Eu não quero nem saber o que conhaque broptoniano faz.

O sorriso dele tinha 0,5 cm que ela preferia não entender.

— Quando você bebeu?

— Uma vez aí, faz tempo, nem me lembro… — Luna


desconversou.

— Considerando que a única garrafa que havia aqui sumiu, posso


imaginar quando foi. — O olhar que ele lançou a deixou da cor daquela
bebida.

Luna bebeu o uísque preozoles e se lembrou do dia em que eles


comeram o bolo. Seus corpos colados, dançando. Do que será que ele
havia se lembrado?

— Posso escolher uma?

— Claro.

Ela apontou para uma garrafa no meio, branca. Ele a levitou até
eles.

— Essa não faz nada. Deixa apenas bêbado. Se chama


Mathehurtskyea. — Mathehurtskyea é uma palavra gagrilyana usada
para indicar quando uma coisa é tão boa que dói.

Ela olhou para a garrafa, desconfiada. Já estava sentindo


levemente o efeito do álcool.

— Que tal jogarmos um jogo? — ela sugeriu.


— Que jogo?

— Eu nunca.

— Você nunca o quê?

— Não, “eu nunca” é o nome do jogo. — Riu.

— Como funciona? — perguntou ele enquanto enchia dois copos


com o líquido preto que havia dentro da garrafa.

— É assim: eu digo alguma coisa, por exemplo, eu nunca vi neve.


Se você já tiver visto, você bebe. E vice-versa.

— Certo. Pode começar.

— Lá vai… É… eu nunca conheci mais do que quatro planetas.

Klaaoz revirou os olhos e depois virou o copo, fazendo uma careta.

— Eu nunca fui à Terra.

Ela riu, bebeu e entendeu o motivo da careta.

— Eu nunca pilotei uma nave.

Ele revirou os olhos de novo e bebeu.

— Eu nunca fui fã de um programa lixo de HoloTV.

— Eu nunca te pedi para ficar ao meu lado. — Ela riu e bebeu.

— Eu também não.
— Pediu, sim. Naquele dia em que nós comemos o bolo… — ela
começou a falar.

— Ok — ele a interrompeu e bebeu. Então ele se lembrava de


alguma coisa. Klaaoz ficou em silêncio por alguns instantes. — Eu nunca
conversei com um chuveiro — ele disse com 0,5 cm de sorriso que a
deixava aquecida.

— Quem disse isso do chuveiro? — Luna perguntou rindo, já


bastante tonta.

— Nicoy. Ele te chama de “a garota que conversa com o chuveiro”.


Ele disse que você é louca.

— Quê? — Ela abriu a boca. — E você disse o quê?

— Eu disse que você era louca mesmo — respondeu com bem


mais do que 0,5 cm de sorriso. Aquela foi uma das poucas vezes que ele
riu a ponto de mostrar os dentes, que a princípio ela desconfiava que não
existiam.

— E você por acaso não é também?

— Eu não. — Riu. — Pelo menos, não tanto quanto você.

— Hum… Sei. — Ela ficou pensando na próxima coisa a dizer,


enquanto ele permanecia com o olhar firme sobre ela, aguardando
ansiosamente. — Eu nunca sequestrei uma pessoa — disse com um
sorriso irônico.

Klaaoz gargalhou alto e bebeu.

Ela riu tanto que sentiu até uma lágrima escorrendo. Mas não
ligava se borrasse a maquiagem, estava feliz demais naquele momento
para se importar com qualquer coisa. Provavelmente era efeito do álcool,
mas aquela luz, o ambiente, o clima, os sentimentos que
transbordavam… Que momento maravilhoso, pensava. Maravilhoso
demais. Se sentia tonta, porém feliz.

Eles estavam ficando cada vez mais perto um do outro. Sem


perceber, durante o jogo, foram inclinando seus bancos, se aproximando.

Klaaoz levitou outra bebida e, sem tirar os olhos de Luna, a


colocou em um copo e a levou até a boca.

— Desculpe por isso — ele disse, colocando o copo na mesa, o


enchendo e continuando a olhar fixo para ela com um olhar triangular.
Olhava para um olho, para o outro, depois para sua boca, tornando a
olhar para um olho. — Era perigoso ficar em Plutopra. E esse era o único
jeito de… mantê-la a salvo.

O coque do cabelo dela se desfez sozinho, fazendo com que


Klaaoz levasse a mão até seu rosto para afastar uma mecha que estava
caindo.

Luna pensou que fosse explodir de tensão quando ele fez isso.
Seu coração acelerou como uma britadeira. Ele não tirava os olhos de
cima dela, e isso estava fazendo parecer que tinha um zoológico inteiro
em seu estômago. Ela não conseguia olhar nos olhos dele por muito
tempo. Tentava desviar, olhando para o teto, para a parede, para a
bebida, para qualquer coisa menos para Klaaoz, mas pelo canto do olho
ainda conseguia vê-lo a encarando.

Nunca estiveram tão próximos assim desde que se conheceram.


Talvez só quando supostamente se beijaram. Mas como ela não se
lembrava direito nem tinha certeza de que aquilo havia de fato
acontecido, não contava. Naquele momento, ela estava até conseguindo
sentir o calor da sua respiração.

— Não tem problema, eu adoro aqui e teria odiado ficar na casa de


Oberyn. Essa bebida é muito boa. Eu devia ter escolhido essa. Não sei
por que escolhi a outra, sério. Eu não sou o tipo de pessoa que julga o
livro pela capa — ela balbuciou desajeitadamente, pegando o copo,
olhando para dentro dele e conseguindo ver, no fundo, seu nervosismo
refletido. Precisava relaxar, mas não estava conseguindo.

— É mesmo? — perguntou ele com 0,5 cm de um sorriso


malicioso no rosto, claramente se divertindo com a situação, apoiando
um braço na mesa e ainda a encarando.

Luna levantou a cabeça e reparou como estavam ainda mais


próximos. Parecia que estavam sendo atraídos feito ímãs.

Poderia passar a noite ali, olhando para ele, para seus olhos
tempestuosos. Ela desejava desesperadamente saber o que havia por
trás deles.

Klaaoz chegou mais perto, e respirar pareceu se tornar uma tarefa


mais difícil. Luna olhava para o fundo do copo, pois não conseguia olhar
para seu rosto perfeito com aqueles olhos intensos a fitando.

Ele virou o rosto e riu ao observar o rubor em sua face.

— É, eu sei que nos piores perfumes estão os melhores frascos…


Quer dizer, menores — ela começou a falar sem saber exatamente o que
estava querendo dizer ou por que estava dizendo aquilo. Só queria
mesmo falar alguma coisa, pois estava nervosa. E desde quando ele
tinha ficado tão bonito? E seus lábios, que costumavam ser um traço
reto, naqueles dias estavam sempre com aquele 0,5 cm de sorriso.
Aquele 0,5 cm deixaria qualquer um com vergonha. E o olhar mais ainda.
Era aquele tipo de olhar… como se estivesse vendo a outra pessoa sem
roupa. E esse conjunto, olhar e sorriso, deixava qualquer pessoa d-e-s-c-
o-n-c-e-r-t-a-d-a.

Klaaoz levitou uma garrafa verde e a serviu. Quando Luna virou o


copo, foi invadida por uma onda de calor. Nossa, estava queimando.
Tirou até a luva.

— Que calor me deu de repente.


Ele riu, virou o copo e retirou o casaco.

— É o efeito do vinho johannine — disse, levitando outra garrafa


igual, só que azul.

Luna bebeu e subitamente sentiu frio. Se abraçou para se aquecer,


mas o casaco dele levitou até seus ombros.

— Obrigada.

E ele estava se aproximando. Estava tão perto que ela podia sentir
seu cheiro. Aquele aroma de álcool em gel com fragrância de bebê que
sentiu no dia em que andara com ele na moto-jet-ski. Talvez existisse
uma palavra gagrilyana para ele. Onde estava o Holophone para
pesquisar? Meu Deus, ela precisava se acalmar. Seu coração batia com
tanta força que chegava a doer. Parecia que tinha uma escola de samba
em seu peito. E ele estava se aproximando mais. Parecia até que ele ia…
beijá-la? Ou aquilo era coisa da sua cabeça? Quão bêbada estava? Mas
não sabia dizer se ele iria fazê-lo ou não. E se não fosse? Ele estava
muito previsível. Isso era estranho, pois geralmente ela dizia que o único
jeito de saber o que ele queria era ligando um cabo USB na cabeça dele
e em uma televisão.

— O que essa bebida faz? — Luna perguntou depois que ele pôs
um frasco amarelo em cima da mesa.

— Faz você fazer uma coisa que você quer fazer há muito tempo,
mas não tem coragem.

Ai, meu Deus. Luna virou o copo e se perguntou o que ele estava
pensando, e, de repente, a voz dele ecoou na sua cabeça com os
dizeres: “se eu a beijar e ela me afastar de novo, eu juro que me mudo de
vez para a outra casa”.

— Não precisa se mudar, idiota. Eu também quero isso — Luna


falou involuntariamente.
— O quê?

— Eu não vou te afastar, eu também… — ela começou, mas


depois se deu conta do que havia acontecido. Essa não.

A expressão de Klaaoz mudou de boba e calma para fria e raivosa


numa questão de segundos. Não restou nem um centímetro de sorriso.

— Saia da minha mente! — ele disse, se afastando.

— Desculpe, eu…

— Você não tem o direito de fazer isso. Eu disse que você não
podia entrar.

— Eu não fiz por querer… — Luna começou, mas ele logo a


interrompeu:

— Por favor, saia. — Ela não conseguiu entender seu tom de voz.

— Não! — rebateu, olhando apreensiva para a expressão


desesperada que havia tomado conta do seu rosto. Klaaoz desceu do
banco e foi andando para a porta, apressado. Ela se viu sem palavras,
incapaz de fazer qualquer coisa além de segui-lo. — Espere. — Mas ele
não lhe deu ouvidos, apenas continuou andando. Luna correu e puxou
seu braço, mas ele apenas se desvencilhou. — Não faça isso — ela
pediu baixinho, parada no meio daquela sala que parecia se encolher.
Mas a porta se fechou, e ele foi embora sem olhar para trás.

Luna correu para seu quarto, tendo consciência de que não


adiantaria falar nada naquele momento. Discutir com raiva não levava a
lugar algum. Ela se deitou e, quando fechou os olhos, o mundo girou
completamente. Odiava aquela sensação e odiava mais ainda a
sensação de que tinha estragado tudo. E mais uma vez por culpa
daquele poder, que ela nunca quisera.
Então, não foi um sonho, Luna pensou, deitada em sua cama, ainda
tentando digerir o que acontecera. E Coisina estava certa. Klaaoz sentia
alguma coisa por ela.

Mas e se ela não tivesse se perguntado o que ele estava


pensando?

E se eles tivessem se beijado?

“E se”, três pequenas letras assustadoramente poderosas, que


atravessam você como uma bala e perfuram seu coração.

Nada a assombrava mais do que os “e se". O que não vem a ser, o


que morre na praia, o que degringola. O que podia ter sido, mas não foi.
Fragmentos inacabados fadados a vagar na eternidade do universo
quântico das dúvidas.

Luna não podia conviver com aquelas dúvidas por nem mais um
segundo. Correu para o quarto de Klaaoz e bateu na porta.

— Klaaoz — chamou, mas ninguém respondeu. — Klaaoz. —


Bateu de novo.

Com o desespero a consumindo, Luna girou a maçaneta e, quando


a porta se abriu, lá estava ele. Havia uma mala em cima da cama, coisas
espalhadas e bagunçadas por todos os lados. Como se estivesse…
— O que você está fazendo? — perguntou ela, engolindo em seco,
com medo da resposta.

— Partindo.
34

34- Klaaoz tem a comprovação de que


Luna é de fato, louca

— O quê?! — Luna só podia ter ouvido errado.

— Estou indo embora.

O coração de Luna quase parou ao ouvir aquelas palavras. De


onde veio a coragem para fazer esta pergunta, foi um mistério:

— Klaaoz, o que eu sou para você?

Seus olhares se cruzaram naquele quarto sombrio com iluminação


quente que ela nem se deu o trabalho de observar. Os segundos que
prosseguiram foram os mais longos da sua vida.

— Uma hóspede — ele se limitou a dizer.

Talvez tivesse doído menos se ele tivesse arrancado o coração


dela e pisado em cima. Um enorme nó se formou em sua garganta, Luna
se sentiu ainda mais tonta do que já estava. Precisou recuperar o fôlego
para continuar:
— Você está mentindo — ela disse, prestando bastante atenção
para ver se conseguia identificar qualquer coisa naquele olhar pesaroso e
severo.

— Não. Você não é nada. É apenas uma hóspede. — Essas


palavras doeram mais do que bater o dedo mindinho do pé em um móvel.
Todo o ar que havia nos pulmões de Luna sumiu. As paredes pareciam
estar se encolhendo, sufocando-a.

— Por que você está fazendo isso? — Ela podia sentir o ardor no
nariz que precede um desabamento de lágrimas. Queria ser forte o
suficiente para segurá-las enquanto a dor se espalhava em seu peito. —
Por que você precisa afastar as pessoas? Me deixe te ajudar.

— Eu não quero sua ajuda. — A frieza dele fazia a Antártica


parecer o Caribe.

— Eu vi sua mente, Klaaoz. — Os olhos dele queimaram de raiva,


enquanto os dela ardiam com a vontade de chorar. — Por que você tem
tanto medo de deixar as pessoas se aproximarem? Você se fecha numa
caverna e, quando alguém está chegando perto, você o expulsa. Do que
você tem tanto medo? Por que você usa essa armadura invisível e não
deixa ninguém ver quem você é de verdade? Me deixe montar esse
quebra-cabeça! — Luna olhou bem dentro de seus olhos ao falar isso.
Conseguia até ter um vislumbre de todos aqueles sentimentos
turbulentos que ele estava tão acostumado a esconder.

— Saia do meu quarto. — Então, ela sentiu uma força empurrando


seu corpo para fora. Quando a porta se fechou atrás dela, o corredor
pareceu escurecer.

Luna correu para a varanda, sentido como se tivesse levado um


soco no estômago. Em seus devaneios mais estúpidos e ingênuos, ela
achava que estava conseguindo montar aquele quebra-cabeça.

Por que a mente dele dizia uma coisa, mas suas atitudes
mostravam o contrário? Por que ele queria beijá-la? Se ele realmente
sentia alguma coisa por ela, por que estava agindo assim? E por que iria
embora?

Aquelas dúvidas rondavam sua mente como um furacão que


passava destruindo e bagunçando tudo, restando apenas o caos.

Carl Jung uma vez disse: “Em todo caos há um cosmos, em toda
desordem uma ordem secreta”. Cosmos no grego antigo quer dizer
ordem e harmonia. Caos significa o espaço que existia antes do cosmos.

Mas Luna não conseguia entender como isso era possível. O que
é pior: não conseguir entender ou não conseguir explicar? Podemos
realmente entender o que não conseguimos explicar? E explicar o que
não conseguimos entender?

Por que só demora uma fração de segundo para destruir uma


coisa que levou meses para ser construída? A única coisa constante na
vida é sua efemeridade?

Você não pode acordar e ter a certeza de que sua vida continuará
a mesma? A única certeza é a morte?

Coincidências existem? Ou nada é por acaso? Será que no fim


realmente tudo vai fazer sentido? Ou é só mais confortável pensar
assim?

O poder do pensamento positivo funciona mesmo? Desejar muito


uma coisa faz com que ela aconteça?

Uma mentira contada cem vezes se torna uma verdade? Ou não


importa qual seja a verdade, as pessoas veem o que elas querem ver?

Mas o que é mentira? O contrário da verdade? E existe alguma


verdade absoluta?
O universo é estritamente fenomenológico e nada é eterno? Então,
tudo é sem sentido?

Será que todo mundo é louco e apenas finge que não é? Será que
loucura é simplesmente parar de fingir?

Mas aí, se todo mundo parasse de fingir, o mundo não ficaria


completamente de cabeça para baixo? Mas ele já não é?

E se quando você achasse que finalmente estivesse começando a


entender alguma coisa sua mente se desorganizasse ainda mais do que
já estava?

Será que algum dia vai existir resposta para alguma coisa? Será
que todo mundo também tinha vinte milhões de dúvidas ou será que
Luna tinha todos esses pensamentos insensatos maquinando na sua
cabeça porque no fundo só queria entender por que Klaaoz estava
agindo daquela maneira?

Mais uma vez, Luna se viu perdida, vulnerável e impotente diante


do mundo, como já se sentira tantas outras vezes. Mais uma vez, a
realidade parecia algo insuportável.

Tudo estava se repetindo. Mais uma vez, sua vida estava saindo
do seu controle por causa daquele poder idiota. Um poder que ela não
sabia nem de onde vinha.

Quem era ela? Quem eram seus pais?

Àquela altura, tudo o que queria era ir para casa, seja lá o que isso
significasse. Mas, ao mesmo tempo, se perguntava se conseguiria
conviver com o fardo de nunca mais ver Klaaoz. Como esquecer Klaaoz
e todas as perguntas sem resposta que ele deixou?

Apesar de tudo, a ideia de Klaaoz não fazer parte do seu futuro a


assustava desesperadamente. Por que parte dele parecia compreendê-la
de um jeito que nem ela mesma conseguia e outra parte a deixava
completamente despedaçada?

Luna sempre sonhou em ter alguém que conseguisse lê-la, que a


entendesse verdadeiramente, nem que fosse apenas por um segundo,
para que ela finalmente não se sentisse mais sozinha com os próprios
pensamentos.

Lágrimas começaram a escorrer, mas, dessa vez, Klaaoz não


estava lá para confortá-la. Mesmo que fosse daquele seu jeito estranho,
como ele fizera tantas vezes. Dessa vez, ele era o motivo das lágrimas.

Luna queria poder voltar no tempo e não se perguntar o que ele


estava pensando. Queria também nunca tê-lo conhecido. Aquela era a
dor mais intensa que já havia sentido, e ela só queria que aquilo parasse.

Olhou para o lago em busca de respostas, suas águas calmas,


paradas e serenas. Nada o perturbava, era tudo tranquilo dentro dele.

Se sentou no parapeito e ficou apreciando a vista, não era tão alto


assim. E pensar que alguns dias atrás estava se sentindo tão serena
quanto o lago.

Quando Klaaoz passou pela porta da sala de espelhos, avistou


Luna ao fundo, sentada no parapeito da varanda.

Antes que ele pudesse sentir raiva de sua irresponsabilidade, ela


caiu.
— NÃÃÃÃO! — gritou, sentindo praticamente como se ele tivesse
caído também.

Imediatamente, levitou-a de volta e a colocou bem à sua frente.

— O que vácuos você estava pensando? — gritou Klaaoz,


agarrando seus cotovelos. Seus olhos faiscavam, Luna nunca o tinha
visto com tanta raiva como naquele momento.

— Por que você se importa? — ela gritou de volta, se debatendo na


tentativa de se desvencilhar dos seus braços.

— Você está ficando louca?

— Me solte!

— Como você pôde… argh, que coisa mais idiota! — A voz dele era
agressiva, mas o olhar era de ódio, preocupação, desespero… Tantas
emoções juntas que pareciam não caber dentro dele. Não fazia sentido.
Parecia dizer algo como: “se você morrer, eu te mato”.

— Idiota é quem faz idiotices! — Ok, talvez esse não tenha sido o
melhor momento para citar Forrest Gump.

— E o que foi que você acabou de fazer?!


Luna se calou. O rosto dele estava menos vermelho, mas sua
respiração continuava rápida.

— Claro que eu não pulei, eu escorreguei!

— Nunca mais faça isso! — ele continuou, o desespero em sua


voz era evidentemente maior que a raiva. Como se, se ela caísse e se
machucasse, ele quem fosse sentir a dor. Como se ele fosse sentir três
vezes mais forte qualquer dor que ela viesse a sentir. Como se, se ela se
matasse, quem morreria seria ele. — Nunca. — Sua respiração foi
ficando mais calma, ele soltou seus braços e a encarou com os olhos
assombrados por trás do cabelo bagunçado caído no rosto. — Não faça
isso comigo. — Não havia nem sinal da armadura invisível. Era só ele,
assustado, atormentado, irreconhecível. — Não ouse fazer isso comigo.

Luna apenas o observava com a respiração ofegante e os olhos


arregalados, sem dizer nada. Não tinha o que dizer.

Então ela simplesmente avançou, fechou os olhos e pressionou os


lábios contra os dele. E foi assim, de repente, sem avisar, sem pedir
permissão e sem planejar que ela o beijou. Sem esperanças ou planos.
Sem saber o motivo, sem pensar o que aconteceria depois.
Simplesmente porque não poderia ter feito outra coisa. Não existia outro
lugar em que ela preferisse estar além de naquele abraço que tinha o
poder tanto de trazer como de acalmar o caos do universo.

Klaaoz foi pego de surpresa e por um instante olhou, confuso, para


aqueles olhos calmos e ansiosos, depois puxou Luna para perto de si
com a intenção de nunca mais soltar.

O problemático e tão almejado beijo. Um beijo quente e


incandescente, que deixava transparecer todo o desejo que tinham de
fazer aquilo.

Suas bocas se tocavam com ânsia e urgência, como se já se


conhecessem há muito tempo. A abnegação de todos esses dias estava
refletida nesse momento em que se entregavam inteiramente um ao
outro, parecendo que se consubstanciavam. A ideia de ficar um segundo
sequer separados era insuportável. Aoibhneaskyea veio à sua mente.
Aoibhneaskyea é uma palavra gagrilyana usada para indicar a sensação
de profundas emoção e satisfação provocada ao experimentar algo
positivamente indescritível.

Seu coração estava acelerado, seu sangue fervia e seu corpo não
conseguia esconder o quanto desejava aquilo. Emoções de verdade
geralmente o deixavam desconfortável, mas naquele momento, por mais
clichê que soasse, ele estava nas nuvens. Qualquer outra coisa parecia
desimportante.

Como ele havia passado a vida inteira sem ela?

Ao pensar nisso, Klaaoz subitamente foi tomando pelo medo.


Enorme, avassalador, invasivo como sempre, intrometido e mal-educado,
um medo que chegou arrombando as portas da casa e dissipando a paz
do momento. Foi como se tivessem esfaqueado seu peito. O ar não
vinha.

Ele não podia sentir aquilo. Sabia o que precisava fazer. Precisava
seguir o plano.

— Eu preciso ir — disse ele, se desvencilhando daqueles braços


em que tanto desejou estar, sentindo uma ânsia atordoada de fugir e ao
mesmo tempo de ficar ali para sempre.
Luna ficou parada com a expressão confusa, depois foi atrás dele.

— Eu tive que escorregar da varanda para você poder admitir que


gosta de mim, e agora você vai embora? Ah, não, mas você não vai
mesmo — ela disse, pegando na sua mão e a apertando com força.

Klaaoz umedeceu os lábios, se permitindo apreciar aquele toque


por mais um segundo.

— Eu não admiti.

— Mas eu não quero que você vá. — Ela sorriu.

Ele suspirou, tentando reunir forças para continuar.

— Eu não posso ficar. — Então ele a soltou.

— Por quê? — Ela continuou o seguindo para dentro da sala de


espelhos.

Klaaoz se sentia como aqueles vidros, que por muito pouco não
caíram e se despedaçaram, se tornando milhares de fragmentos
vergonhosos espalhados pelo chão, mostrando exatamente como ele se
sentia.

“Por quê?”, ela perguntou? A resposta não era óbvia?

— Eu não posso dar o que você quer.

— E como você sabe o que eu quero? — Enquanto cruzava a sala,


ela continuava o seguindo. Klaaoz precisou usar seu poder para impedi-
la de passar. — Eu só quero que você fique.

— Você não deveria querer isso. Você deveria ter medo de mim.
Às vezes, eu não consigo controlar meu poder… Eu posso acabar te
machucando.
— Eu não sou uma coisa frágil. E eu não tenho medo do seu caos,
Klaaoz — ela retrucou com um sorriso ingênuo, tentando em vão lutar
contra a parede invisível que a prendia.

— Você… nem me conhece. — Ele preferiu ignorar aquele


trocadilho horrível.

— Conheço, sim. E eu vi o seu pior. Mas… eu ainda acho que


você é o melhor.

— Você… não viu nada. Se eu fosse você, eu fugiria — ele disse,


mesmo querendo tanto que ela ficasse.

— Eu não vou a lugar nenhum. Nem você.

Por que ela tinha que tornar tudo mais difícil do que já era? Ele
precisava ir. Ela poderia ler sua mente a qualquer momento e descobrir
tudo.

— Não, isso é um erro. Você mesma disse!

— Ah, então você se lembra? — ela indagou, metaforicamente o


colocando contra a parede.

— Claro que eu me lembro. — Seu tom não foi dos mais calorosos
ao sentir aquela lembrança tão humilhante vindo à tona. — Eu te beijei e
você me empurrou! Como eu poderia esquecer? E depois, para
completar, você veio para cima de mim e, quando eu te beijei de novo,
mais uma vez me expulsou!

As bochechas dela coraram enquanto tentava disfarçar a vergonha


com uma risada forçada.

— Eu não conseguia pensar em nada naquela hora! Acorda, eu


achava até que meu braço estava derretendo!
Ok, ele também não estava em sã consciência. Mas colocar a
culpa nas frutas daddas não justificava suas ações, por mais forte que
fosse seu efeito.

— Mesmo assim não deixa de ser um erro.

— Mas eu gosto de cometer um erro pelo menos umas cinco


vezes para ter certeza de que é errado mesmo. — Seu tom era divertido,
como se não acreditasse em nenhuma palavra que ele dizia conforme o
olhava com aqueles malditos olhos, um mar azul pronto para afogar
qualquer desculpa que ele inventasse.

— Por que vácuos você quer que eu fique? — Por que ela queria
que ele ficasse?

— Klaaoz, eu preciso de você.

O quê?!

Klaaoz até se sentiu um pouco desorientado ao ouvir isso.

— O quê?! Você… é louca? — Ele não conseguia acreditar. Ela…


gostava dele? Ela gostava… da personalidade dele?

— É, eu também fiquei surpresa quando me dei conta. — Ela riu.

Não. Não. Não. Ela só podia estar brincando.

— Mesmo… depois de tudo?

— É… — Luna suspirou. — Isso é errado de tantas maneiras que


eu não consigo nem começar a enumerar e, mesmo assim, eu não
consigo evitar.

Não. Não. Não. Ela não podia estar falando sério.


— Você não está falando sério.

— Acredite, eu estou.

— Não… — Ele sentiu necessidade de balançar a cabeça para


reforçar sua afirmação. — Você não está.

— Deixe de ser ridículo. Eu estou!

Não fazia sentido. Ela parecia estar falando sério. Mas ela não
podia estar falando sério.

— Você tem certeza?

— Tenho! Desde que eu cheguei aqui, minha vida virou de cabeça


para baixo tantas vezes que eu cheguei à conclusão de que não sei mais
de nada. E aí eu te conheci, você me fez questionar tudo em que eu
sempre acreditei. E… — Não havia nem um vestígio de ironia em sua
voz. Nesse momento, as pernas dele travaram, não conseguiu dar nem
mais um passo. Parecia até que o seu próprio poder estava sobre ele. —
E que eu preciso de você é a única certeza que eu tenho na minha vida
neste momento — ela disse, e ele estremeceu. Aquele era o problema.
Ele também precisava dela. Terrivelmente, completamente,
atordoadamente, embora fosse incapaz de admitir.

Klaaoz a olhou, os cabelos soltos emoldurando seu rosto


esperançoso, presa a poucos metros dele. Aquilo era como um acidente
de carro. Ele podia até ver a curva na esquina, podia quase sentir o
impacto da batida. Mas não conseguia evitar.

Klaaoz a libertou de seu poder, e ela foi se aproximando devagar


até ficarem frente a frente. Lentamente, Luna colou a cabeça no seu peito
e o envolveu em um abraço.

Ele não conseguiu sair dali. Precisava, mas não conseguia. Sabia
que ficar ali seria como tomar doses de veneno aos poucos e todo dia
esperar para que não fizesse efeito. Mas alguma força invisível parecia
prendê-lo, não tinha como lutar.

Mhòr-thubaistkyea, palavra gagrilyana usada para indicar quando


você sabe que uma coisa vai lhe destruir, mas não consegue evitar.

— Eu vou ficar, mas não pense que isso vai mudar alguma coisa.

— Ok. — Ela apenas o apertou mais.

— É sério. Não pense que nós estamos juntos.

— Ok.

— E nunca mais leia minha mente.

— Ok.

Ela apenas sorria, como se a única coisa com que se importava


fosse se ele iria ficar ou não.

— Você só pode ser louca… — Ele suspirou.

— Eu sei… Talvez nós dois sejamos. — Ela respondeu rindo, se


rendendo ao seu caos e alinhando de uma vez suas órbitas.
35

35- Ninguém sabe o que é isso

Quando Luna entrou na sala de HoloTV, encontrou Klaaoz


assistindo a um de seus programas chatos de sempre. A luz estava
apagada enquanto hologramas de um deserto se projetavam no fundo da
sala, os tons alaranjados deixando o ambiente com um ar de mistério.

— Posso mudar de canal? — ela perguntou, se sentando na outra


ponta do sofá, já consciente da resposta.

— Não — ele respondeu sem desviar os olhos dos hologramas.


Metade de seu rosto estava coberto por sombras, era possível ver seus
trajes escuros e elegantes, como se estivesse pronto para ir a uma festa.

Luna continuou calada, fingindo prestar atenção, mas vez ou outra


podia senti-lo a olhando pelo canto do olho.

— Nossa, que calor — disse ela, retirando o casaco e ficando


apenas com o minúsculo vestido prateado que usava por baixo da peça.

Klaaoz a olhou de soslaio, mas imediatamente voltou a olhar para


os hologramas, como se não desse importância à sua pele à mostra.

Depois de um tempo, Luna começou a sentir seu corpo sutilmente


se mover sozinho em direção à outra ponta do sofá. Os lábios dela se
curvam em um sorriso.

Klaaoz pausou o programa e se virou para ela, que estava a


poucos centímetros dele. Foi subindo o olhar desde suas pernas até seu
rosto, a estudando minuciosamente sem demonstrar um pingo de
emoção, coisa que ela achava demasiadamente frustrante.

Quando seus olhares se encontraram, os olhos dele ferviam, como


se ele se odiasse por não conseguir resistir. Ele passou um braço pela
sua cintura enquanto levava a boca até aquele lugar entre o ombro e as
costas. Aquela respiração quente sobre sua pele fez Luna estremecer.
Seu coração disparou, acelerando mais à medida que ele ia subindo,
beijando suavemente o caminho até seu pescoço.

Ele afastou seu cabelo — que ela passou a usar sempre solto —,
e, quando sua boca chegou ao ouvido dela, ela sentiu todo o seu corpo
se contrair.

— Belo vestido. — Seu tom de voz era obscuro e perigoso.


Lentamente, ele abaixou uma das alças usando a outra mão. Aquele
simples toque em sua pele fez todo o seu corpo se arrepiar e seus
joelhos fraquejarem. — Quais as suas intenções ao vesti-lo? —
perguntou ele com a voz ofegante próximo à sua orelha, deixando os
batimentos de Luna instáveis.

— Você. — A voz dela foi quase um suspiro.

— Eu o quê?

— Eu queria você.

E então seus lábios encontraram os dela num beijo abafado.


Klaaoz a puxou para mais perto de si, pressionando o corpo dela contra o
seu, e… Nessa hora, Nicoy entrou com dois robôs de limpeza, parecendo
ignorar a presença dos dois. Klaaoz subitamente se afastou, cruzou as
pernas e enviou Luna de volta para onde estava tão rapidamente que ela
quase caiu do sofá.

Ela deu um suspiro de irritação, pegou uma almofada e


arremessou contra ele bruscamente. Mas a almofada pairou no ar
centímetros antes de atingi-lo. Klaaoz olhava fixo para um ponto
qualquer, mas em seu rosto era perceptível 0,5 cm de um sorriso
desmiolado.

Luna cruzou os braços, fazendo uma careta, enquanto Nicoy


apenas observou a cena, confuso. Quando ele saiu, Klaaoz a olhou com
um sorriso maior e mais cínico, como se estivesse pronto para continuar
de onde pararam.

Mas, de repente, Rys entrou e se sentou no meio dos dois.

— O que vocês estão assistindo? — perguntou, sem perceber o


quão inconveniente estava sendo.

— Não sei. Algum programa chato que Klaaoz escolheu.

— Ah, ok — respondeu e tirou uma selfie. Klaaoz se levantou e foi


embora, mas antes lançou, por cima do ombro, um olhar para Luna que a
fez suspirar e odiar o fato de Rys ser tão intrometido. — O que ele tem?
— Rys franziu a testa.

— O creme de cabelo deve ter acabado. Mas não vamos perder


tempo falando dele. Quem você acha que vai ser eliminado do LDRV
hoje?
Tarde da noite, na hora em que estava subindo as escadas para ir
para o seu quarto, Luna sentiu seu corpo ser puxado para a sala de
espelhos por uma força gravitacional. Seus pés seguiram contra sua
vontade e, quando adentrou pela porta da sala de espelhos, os braços
dessa suposta força superior agarraram sua cintura.

Antes que ela pudesse falar qualquer coisa, suas bocas se


encontraram com uma intensidade que fez suas pernas ficarem bambas.
Sentiu seu sangue circular mais rápido quando ele abriu o zíper do seu
vestido e começou a acariciar suas costas, o ar cálido e pesado no
ambiente aumentava ainda mais a adrenalina. Seu coração bateu
acelerado, o beijo escondido cessou e aquele hálito quente acariciou sua
pele, espalhando arrepios por todo seu corpo.

— Quer ter uma ótima noite hoje? — Klaaoz sussurrou,


acariciando sua mão, dando um daqueles olhares intensos e
persuasivos, os quais ela não conseguia retribuir por muito tempo.

— E… como seria isso? — Luna engoliu em seco enquanto


fechava o zíper.

— Dormindo no meu quarto — Klaaoz falou como se a resposta


fosse óbvia, e Luna estremeceu quando ele levou a mão até sua nuca.
Os dedos entrelaçando seus cabelos fizeram o coração dela, que já batia
muito rápido, acelerar ainda mais.

— Mas eu pensei que o que nós estamos fazendo não significasse


nada.
— Não precisa significar nada. — Aquela voz rouca em seu ouvido
e o hálito quente em sua pele faziam o ato de se concentrar ser algo
muito difícil.

— Mas dormir junto… — O peito dela arfou. — É um passo muito


grande. Você fica com uma pessoa em um momento muito vulnerável e
confia que ela não vai te matar… — Ela conseguiu ficar séria.

Klaaoz subitamente se afastou e a encarou.

— É sério?! Ainda essa história de que eu quero te matar?

— Foi, tipo, uma piada. — Ela riu.

Ele franziu a testa, revirando os olhos.

— Então você vem? — Ele pegou sua mão, lançando um olhar de


súplica.

— Não.

Klaaoz sustentou seu olhar por mais alguns segundos, mas,


quando viu que Luna não mudaria de ideia, se aproximou de seu ouvido
e sussurrou:

— Então, até amanhã. — E foi embora com os cantos da boca


repuxados em um sorriso irônico.

Fazia uma semana que eles estavam fazendo aquilo, seja lá o que
aquilo fosse. Não estavam juntos, mas também não estavam separados.
Não passava de joguinhos, flertes e beijos escondidos, mas Luna sabia
que alguma coisa havia mudado, ao contrário do que ele a alertara. Claro
que havia mudado.

No caminho para o quarto, Luna recebeu uma mensagem de Bok.


Como se precisasse de mais um lembrete de que o que estava fazendo
era errado…

Assim como fez com as outras, ela apenas ignorou.

— Vocês não imaginam o que foi ter crescido com um pai que é
capaz de prever o futuro e saber de antemão todas as coisas erradas que
você vai fazer. — Oberyn comentou meio angustiado depois de terminar
de contar uma história sua de quando era jovem, como fazia às vezes
durante o jantar.

— Se ele quisesse, poderia prever se ia chover? Ou os números


da loteria? — Luna perguntou, se inclinando na cadeira e acariciando a
perna de Klaaoz por baixo da mesa, olhando fixo em seus olhos
enquanto ele retribuía o olhar. A intensidade com que ele a olhava a fazia
sentir um frio na barriga.

— Ele só podia prever o futuro dele e dos filhos — Klaaoz disse


sem emoção, e Luna percebeu que a toalha da mesa começou a
acariciar sua coxa levemente.
— Ah… — A fala de Luna foi quase um suspiro conforme ela
fechava os olhos, engolindo em seco, se contorcendo na cadeira,
tentando se controlar até pelo menos o jantar terminar.

Quando abriu os olhos, Klaaoz continuava a encarando com um


sorriso de 0,5 cm que a fazia odiar o fato de ter uma mesa os separando.
E também pessoas ao redor.

Luna suspirou e mais uma vez inclinou sua perna até tocar a dele,
fazendo carícias preguiçosas ao observá-lo atentamente.

— Luna, esta perna é minha. — Oberyn tossiu.

Ela olhou para ele, confusa, depois para Klaaoz, que tinha mudado
sua expressão e estava branco.

— Luna, por acaso você estava tentando acariciar a perna de


Klaaoz por baixo da mesa? — perguntou Coisina com um sorriso irônico.
Klaaoz abriu a boca para falar alguma coisa, mas as palavras não
vieram. Luna ficou vermelha e começou a rir descontroladamente.

— Por que você estava tentando fazer isso? — Klaaoz estreitou os


olhos.

Sua atuação pouco convincente fez Coisina dar uma forte


gargalhada.

— Klaaoz, a quem você acha que está enganando?

— Klaaoz, ela sabe — confessou Luna, tentando não rir. Ela


possuía um sorriso torto nos lábios, enquanto Klaaoz lhe lançava um
olhar furioso, que parecia dizer que havia acabado seja lá o que eles
tivessem.

— Ah, Klaaoz, me poupe. Mesmo se ela não tivesse me contado,


eu já sabia. Vocês são péssimos em disfarçar. — Na verdade, Coisina já
sabia antes mesmo de acontecer ou de eles dois se darem conta de que
aconteceria.

— Você contou a ela? — A irritação era evidente na voz de Klaaoz.

Luna tentou dizer alguma coisa, mas não conseguia parar de rir.
Estava achando aquela situação toda muito engraçada.

— Não tem como esconder as coisas de Coisina — respondeu,


ainda rindo. — Ela me perguntou há alguns dias, então tecnicamente eu
só confirmei.

— O quêêêê? Como assim você não me contou? — interrompeu


Rys.

Klaaoz se levantou da mesa com uma expressão séria. Parecia


não estar brincando nem vendo a menor graça naquilo. Luna apenas
gesticulou com as mãos. O que ela iria dizer? Não era exatamente culpa
dela. Mas Klaaoz saiu da sala, subiu as escadas com a expressão
fechada, e foi inacreditável que a porta de seu quarto não tenha se
quebrado com a batida que deu.

— Boa sorte — disse Coisina.

— Isso é ruim — acrescentou Oberyn.

— Minha nossa, isso é melhor do que o LDRV. — Rys gargalhou


por alguns segundos, depois ficou sério. — Mas estou extremamente
ofendido por você não ter me contado. Eu pensei que nós fôssemos
amigos.

O quê?! Ele não podia estar falando sério.

— Eu não falei porque você disse que eu só sabia falar dele, e que
isso era chato!
Oberyn se levantou, como se já tivesse atingido sua cota de drama
do dia, e foi embora. Coisina fez o mesmo, deixando os dois a sós.

— Eu não quis dizer que eu não queria que você falasse dele a
ponto de estarem juntos e você precisar esconder.

— Nós não estamos juntos — Luna se apressou em dizer.

— E o que é isso, então?

“O que é isso?”, era mais fácil responder todas as questões de uma


prova de cálculo avançado do que responder o que era aquilo.

— Não sei. Mas ele me pediu segredo. — Ela deu de ombros.

— E você vai aceitar isso? Luna, ele não quer assumir o


relacionamento e você aceitou?

Luna nunca havia parado para pensar dessa forma. Quando Klaaoz
pediu segredo, ela aceitou sem questionar porque… bom, primeiro
porque realmente queria ficar com ele. Não a ponto de aceitar assinar um
contrato por escrito com o que ele poderia ou não fazer em certas
situações dentro de um quarto com as paredes vermelhas, mas… ela
queria ficar com ele de todo jeito. E, de qualquer forma, não era como se
realmente tivesse tantas pessoas assim para Luna contar.

— Eu… não sei. Acho que sim.

— Não aceite! Você nem é feia. Ok que ele tem um nível de beleza
bem superior, mas… não o deixe fazer isso! Qual a finalidade de namorar
uma pessoa bonita se não puder mostrar para as pessoas?

— Eu não tinha ninguém para me aconselhar. Meu melhor amigo


não me permitia falar sobre esse assunto, então… aceitei. — Ela preferiu
ignorar seus comentários sobre sua aparência e jogou para ele a culpa
da falta de importância que havia dado àquilo.
Rys fez uma careta.

— Pare de tentar me culpar. E claro que você pode falar dele se for
tão importante assim para você. Eu só queria que você falasse de outras
coisas também, como você fazia.

— Desculpe… Eu acho que fiquei com medo de você me julgar. —


É, não tinha funcionado.

Ele a olhava como se tivesse acabado de nascer outra cabeça em


seu ombro.

— E por que eu faria isso?

— Por causa de… — Ela não sabia nem por onde começar. — Por
tudo que eu disse antes sobre ele. Enfim…

— Claro que não. Eu sou seu amigo e estou aqui para te apoiar em
todas as suas decisões, por mais erradas que sejam.

Parte dela sentiu vontade de abraçá-lo, mas a outra não conseguia


não pensar na afirmação que ele fizera.

— Você acha que tomei uma decisão errada? — perguntou,


inquieta. Ela sabia que sim, mas precisava ouvir de alguém.

A hesitação dele para responder fez seu estômago embrulhar. Ela


não devia ter feito uma pergunta cuja resposta não estava preparada
para ouvir.

— Decisões erradas rendem ótimas histórias. — Ele deu um sorriso,


como se fosse muito experiente no assunto. — E se nada der certo, você
pode escrever um livro sobre isso. E pode me colocar como o melhor
amigo que dá conselhos sábios. E se virar um filme, eu mesmo posso
interpretar o papel e finalmente ficar famoso.
Até Coisina, que provavelmente estava na cozinha ouvindo tudo,
não conseguiu segurar a gargalhada.

Luna estava encostada na geladeira lendo um livro sobre a


colonização dos gagrilyanos no Sistema Gamma Aurellius. Descobrira
que, ao contrário do que eles diziam, o modo como chegaram
abruptamente seria o equivalente às pessoas da Capital chegarem na
Terra e instalarem uma monarquia. Esse período durou o equivalente a
setecentos anos terrestres, e Luna passou a entender por que as
pessoas não gostavam dos gagrilyanos.

O primeiro planeta a que chegaram foi Auzuno, que na época já


era o lugar mais desenvolvido do Sistema em termos de tecnologia.
Todos os habitantes realmente ficaram impressionados com os
gagrilyanos, suas tecnologias, sua cultura, sociedade e tudo mais.

Só depois de cinquenta anos terrestres os gagrilyanos foram


colonizar Delta Mizar, que posteriormente se tornou a Capital devido às
melhores condições climáticas e à sua localização central no Sistema.

Os gagrilyanos não influenciavam muito no desenvolvimento da


sociedade, a menos que fosse do interesse deles. Mas, à medida que
foram colonizando os outros planetas, começaram a dividi-los por suas
funções econômicas, e foi aí que alguns começaram a ficar menos
desenvolvidos do que outros.

Delta Mizar se tornou a Capital e o centro político, enquanto


Auzuno passou a ser o centro tecnológico. Caelestra, o terceiro planeta
colonizado por eles, vinte anos terrestres depois da Capital, se tornou o
centro da cultura, o que eles valorizavam profundamente. Osnea, trinta
anos terrestres depois, se tornou o centro científico. Kryk e Plutopra,
simultaneamente, se tornaram centros de produção alimentícia.
Vindemiatrix, o centro militar e por último Teyrilia, que virou o centro da
mão de obra, e isso explicava por que era considerado o mais atrasado.

Obviamente, com o fim da dinastia, toda essa divisão desigual


chegou ao fim, mas todos os problemas gerados naquela época ainda
refletiam nos dias atuais. Por exemplo, em Teyrilia as pessoas
costumavam ter muitos filhos, pois assim teriam mais pessoas para
trabalhar e colocar dinheiro dentro de casa e, apesar de essa obrigação
social ter deixado de existir, algumas pessoas ainda viam com maus
olhos os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo devido à
impossibilidade de gerarem filhos.

Entretanto, ler aquelas coisas não fez Luna ter vontade de ir


àqueles lugares, o que era estranho, já que antes ela sonhava em viajar.
Naquele momento, queria apenas continuar em Gagrilya, terminar de
aprender a usar o seu poder e… Não queria pensar no futuro.

Que grande ironia a razão para querer ficar ser a mesma pela qual
antes queria ir embora. Se tem uma coisa que o mundo faz, é dar voltas.

De repente, como se seus pensamentos se materializassem, a


razão dessa inconstância dos seus sentimentos entrou na cozinha e foi
direto para o filtro pegar um copo d’água. Luna não tirou os olhos do livro
em nenhum momento, mas pelo canto do olho podia vê-lo a encarando
como se quisesse quebrar seu pescoço ou algo assim.

Klaaoz pegou o copo e se retirou na mesma rapidez com que


entrou.

— Depois a louca sou eu — ela murmurou. Ele ainda agia como


uma criança que faz birra no shopping. Onde ela havia se metido?
Imediatamente, Klaaoz retornou, foi até onde ela estava, arrancou
o livro da sua mão e o deixou flutuando. Antes que Luna conseguisse
tomar fôlego para protestar, as mãos dele seguraram seu rosto e ele a
beijou de uma forma que a deixou tão devastada pela sensação
proporcionada que ela esqueceu até de se lembrar de que estavam
brigados. Foi um beijo intenso, a geladeira até se moveu. Ele realmente
sabia como deixá-la irritada e extasiada na mesma intensidade.

Mesmo estando brigados, Luna gostava do jeito como suas bocas


se encaixavam e de como seus lábios se moviam com urgência. Era só
um beijo, não mudava nada, mentiu para si mesma. Mas um beijo
mudava tudo. O mínimo toque entre suas bocas era suficiente para
explodir sua mente, fosse ele rápido e suave ou longo e intenso.

Klaaoz a olhava como se quisesse… pegar uma das facas do


faqueiro ao seu lado e apunhalá-la e ao mesmo tempo entrar na sua
frente para protegê-la. Era confuso de uma forma que Luna não
conseguia saber nem por onde começar a explicar. Se sentia brutalmente
amada, se é que isso fazia sentido.

Depois de um momento, ela recobrou a consciência e o afastou


mesmo querendo continuar. Ainda sem fôlego, pegou o livro que flutuava
e encarou Klaaoz com uma mistura de irritação e perplexidade.

— O que diabos foi isso? — perguntou, tendo mais certeza ainda


de quem era o mais louco dos dois. Ele apenas a encarou. E era difícil
para ela fitá-lo com aquele olhar, especialmente com ele a poucos
centímetros dela. Luna ficou esperando Klaaoz dizer alguma coisa,
qualquer que fosse, para quebrar aquela tensão, mas ele continuava
calado. — Eu não quero mais fazer isso se tiver que ser escondido.
Cansei. Perdeu a graça — ela esbravejou.

Klaaoz abaixou a cabeça e deu um longo suspiro.

— Ok.
Ela não sabia se ficava com raiva por ele desistir tão facilmente, se
ficava triste, revoltada… Foi um turbilhão de emoções desconexas que
sentiu numa questão de segundos.

— Ok o quê? — Não conseguia não transparecer a frustração na


sua voz.

— Ok — ele repetiu, a deixando ainda mais irritada e em parte


também feliz, porque, se ele não quisesse lutar por eles, ela que não iria
querer perder nem mais um segundo com uma pessoa assim.

— Isso acabou então? — Ela tentou ser forte, deixando para


mostrar o que estava sentindo de verdade quando estivesse sozinha,
trancada no quarto.

— Não — ele falou como se o que ela acabara de falar fosse um


absurdo. Parte dela gostou muito do tom de voz que ele usara. — Ok, o
que você quiser.

Ela ficou o encarando sem entender.

— O que eu quiser sobre o que, Klaaoz? Fale direito!

— Sobre isso. — Ele deu de ombros. — O que você decidir, por


mim tudo bem — ele falava como se estivesse… mandando-a escolher a
cor do papel de parede da casa ou algo do tipo.

Klaaoz apenas continuou a olhá-la e, quase um minuto depois,


pegou sua mão e saiu, a puxando para fora da cozinha. Ela não tentou
impedir.

Ele a levou até a sala de HoloTV, se sentou e fez sinal para ela
fazer o mesmo. Luna suspirou, inconformada com a falta de comunicação
daquela criatura, mas se sentou.

— Você realmente não vai falar nada? — perguntou, irritada.


— O quê? — ele retrucou, como se aquilo que estava fazendo
fosse perfeitamente normal.

— Como assim, o quê?

Ele possuía um olhar cínico e ingênuo quando a puxou para perto,


se deitando de modo a levá-la para junto dele, abraçando-a por trás.

— Pode ficar com o controle — ele falou em seu ouvido de modo


quase inaudível, afundando a cabeça em seu ombro e fazendo toda a
sua pele se arrepiar apenas com um beijo suave. O controle da HoloTV
levitou para a mão dela.

— Você quer dizer literalmente ou metaforicamente? — Luna


perguntou, encolhendo o pescoço.

Ele continuou beijando seu ombro, subindo até o pescoço, fazendo


seu coração martelar.

— Os dois — sussurrou, pressionando suavemente os lábios


contra seu rosto. Quando ela sentiu a respiração quente em sua orelha,
fechou os olhos, sentindo um tremor percorrer sua espinha. Ela
estremeceu e esqueceu até por que estavam brigados. O controle estava
em sua mão, mas Luna sabia que o havia perdido há muito tempo.

Já em seu quarto, Luna pegou o diário e foi escrever mais um


poema para um dos quadros da parede.
36

36- A festa de encerramento do LDRV

Klaaoz e Luna estavam no sofá da sala de HoloTV assistindo a um


programa sobre culinária caelestreana que ela escolhera. Luna estava
debruçada por cima dele, que acariciava seus cabelos desajeitadamente
de um jeito que ela estava achando fofo porque ele claramente nunca
havia feito aquilo com ninguém.

Algum tempo depois, Rys entrou na sala e se sentou na outra


ponta do sofá, e Klaaoz continuou do jeito em que estava. Já que todos
sabiam que eles estavam fazendo aquilo, seja lá o que aquilo fosse, não
precisavam mais esconder. A cada dia, a afirmação dele de que nada iria
mudar ia perdendo mais sua veracidade, coisa que Luna estava
apreciando bastante.

Quando o programa acabou, Luna mudou para o reality show, que


começaria em alguns instantes.

— Ok, vejo você depois — disse Klaaoz, se levantando. Parecia


que ele iria lhe dar um beijo de despedida, mas hesitou e saiu da sala.
Ok, Roma não foi construída em sete dias.

Luna lançou um olhar e um sorriso orgulhosos para Rys, que


retribuiu com uma gargalhada.
— Antes de começar, temos um anúncio a fazer. A final do
programa será transmitida ao vivo em uma festa na cidade de Zoyrus —
disse o apresentador.

Luna e Rys se entreolham.

— Os finalistas ficarão em uma sala, separados, e, quando o


programa acabar, comparecerão à festa.

Eles cravaram as mãos no sofá e arregalaram os olhos conforme


mordiam a boca.

— Os ingressos começarão a ser vendidos amanhã.

Eufóricos, os dois gritaram durante alguns segundos e balbuciaram


palavras ininteligíveis.

— Nós precisamos ir! — gritou Luna quando Rys se calou.

— Sim! Imagine conhecer Z’ohanah pessoalmente?! Eu acho que


desmaiaria.

— Meu Deus, sério, nós precisamos ir!

— Nós temos que ir!

— Nós temos que ir!

— Você precisa convencer Klaaoz a ir! Ponha aquele vestido, faça


um bolo, o embebede, qualquer coisa que for preciso!
— Eu ainda não acredito que estou fazendo isso — praguejou
Klaaoz enquanto entrava na festa de encerramento do LDRV. — E ainda
mais usando este disfarce ridículo.

— Ah, você está lindo. E hipster. — Luna sorriu, acariciando sua


mão.

— Eu não quero nem saber o que isso significa — disse e revirou


os olhos.

Klaaoz usava os óculos de Oberyn sem lentes, seu cabelo estava


preso em um coque no topo da cabeça. Só faltava uma camiseta xadrez
amarrada na cintura e ele estaria pronto para passar despercebido em
algum festival de música indie.

Ele havia usado inúmeras desculpas para não irem à festa, mas
Luna desarmara todas. Passara a semana toda insistindo
incansavelmente, parte dela desconfiava de que ele só concordara em ir
porque não aguentava mais sua insistência.

A festa era em Zoyrus, a capital de Teyrilia, e ficava numa enorme


casa noturna. O planeta tinha um clima desértico, mas o local da festa
era climatizado e sofisticado.

Luna e Rys estavam usando as maquiagens mais extravagantes


do makeuptor e suas roupas não ficavam atrás. Pela primeira vez
aquelas roupas escandalosas que Mira havia posto em sua mala
estavam sendo úteis.
— Nós gostaríamos de um camarote, por favor — pediu Klaaoz a
um garçom enquanto Luna e Rys tiravam holofotos freneticamente.

— Vocês têm reserva?

Ele olhou para Luna à espera da resposta.

— É… — Ela olhou para Rys à espera de uma resposta. Ele


apenas deu de ombros. — Não tem como arranjar algum? — Ela fez um
olhar suplicante.

— Querida, para entrar nos camarotes só se tiver reserva


antecipada ou se você for muito importante. — Ele a olhou dos pés à
cabeça de uma forma meio arrogante. — O que não é o caso.

Luna olhou para os lados. Não via problema algum em ficar no bar,
aliás, até preferia. Qual a graça de ficar num camarote? Ah, sim, Klaaoz
corria o risco de ser reconhecido. Ele a avisara na hora em que
apresentara sua lente de contato falsa para comprar o ingresso, mas ela
havia esquecido. Para comprar alguma coisa à distância era preciso
escanear o globo ocular no Holophone. Mas Klaaoz tinha uma lente falsa
que usava, digamos, em uma conta fantasma. Ele não podia usar sua
conta com seu olho verdadeiro, pois corria o risco de ser rastreado. É, a
situação era pior do que parecia. Ela realmente não poderia ter
esquecido esse detalhe do camarote.

Mas quem sabe o garçom não arranjava uma mesa mais


afastada? Quando Luna olhou para ele para sugerir isso, o garçom
estava fazendo caretas e tentando puxar a gola da sua camisa, que
parecia estar… ficando mais apertada.

Luna franziu a testa e, então, percebeu que Klaaoz o fuzilava com


o olhar.

— Klaaoz! — ela o repreendeu.


— O que foi? — ele perguntou cinicamente, como se tivesse mais
alguém ali capaz de enforcar pessoas usando a mente.

Ela estreitou os olhos. Sério?!

O garçom parou de se contorcer, respirou, aliviado, e depois saiu


correndo.

— Você não pode… — ela começou, mas foi interrompida por uma
voz eufórica gritando atrás dela:

— PELA LUZ DA ENERGIA, VOCÊ É A GAROTA DO "HOJE É


DIA DE ROCK, ET’S!"

— Oi, sou eu mesma! — Luna respondeu, rindo e se virando. Ela


realmente tinha acabado de ser reconhecida em uma festa?

— Eu adoro você! Mirk, venha cá, veja quem eu acabei de


encontrar! — disse o homem com uma roupa espalhafatosa e já
visivelmente embriagado, chamando outra pessoa.

— Eu não acredito! — gritou o outro, que acabara de chegar. —


Você precisa vir com a gente, Marcoziantszo vai amar conhecê-la!

— Peraí… você está falando de Marcoziantszo, o criador de


LDRV? — interrompeu Rys com a mão no peito.

— Sim, ele mesmo. Vamos, nós estamos no camarote um, venha


conosco — disseram, puxando Luna, que olhou para Klaaoz e Rys sem
saber o que fazer.

— Já volto! — gritou ela de longe enquanto os dois a


acompanhavam com o olhar, ambos sem reação.
— Então, somos só nós dois — balbuciou Klaaoz com um pouco de
irritação na voz, se sentando no bar.

Rys olhou para ele, desconfiado, enquanto o garçom escaneava o


olho de Klaaoz e lhe entregava uma garrafa. Não acreditava que Luna
tinha ido para o camarote do criador do LDRV, que provavelmente estava
lotado de famosos, e não o tinha levado. Que falsa! Pegou o Holophone e
começou a apagar todas as holofotos que tinha com ela. Ok, menos as
em que estava bonito.

Mas o pior mesmo era ela tê-lo abandonado sozinho com Klaaoz.
Ela sabia que Rys tinha medo dele. O que eles tinham para conversar?
Sobre as comidas de Coisina? Sobre o tempo?

Rys pegou um dos copos que estavam em cima do balcão e foi


tirar mais selfies. Por um bom tempo, o único barulho que se ouvia era a
música estridente tocando ao fundo conforme cada um bebia calado, por
dentro odiando Luna por tê-los colocado naquela situação.

Enquanto bebericava sua bebida, Rys havia reparado em um


rapaz incrivelmente lindo parado num canto ao lado, atrás dele. Estava
até com o pescoço doendo de tantas vezes que se virou para contemplá-
lo.

— Ele também está olhando para você — disse Klaaoz, quebrando


o silêncio.

— Oi? — perguntou Rys, surpreso.


— Aquele com o chapéu. — Meneou com a cabeça.

Rys virou a cabeça sem saber se estava mais chocado por Klaaoz
ser simpático ou por um cara como aquele estar olhando para ele.

— Ele está olhando pra mim? Ele é muito bonito. — Riu,


envergonhado. — Ele jamais olharia para mim.

— Sim, ele é muito bonito. E ele não para de olhar. — Rys se virou
para olhá-lo pela 31ª vez naquela noite. — Acho que você deveria ir lá.

Foi impossível controlar a risada por ele sugerir uma coisa dessas.

— Nem sonhando, claro que ele não estava olhando.

— Você está dizendo que estou mentindo? — Klaaoz falou


ameaçadoramente, de um jeito que Rys não sabia identificar se era sério
ou não.

Engoliu em seco. Como Luna aguentava?

— Não, não foi isso que eu quis dizer — gaguejou. — É que eu


não tenho coragem.

Klaaoz riu. Peraí, ele riu?

— Vá sem coragem mesmo.

— E além do mais, eu acho que ele nunca olharia para mim —


disse, depois completou: — Não que eu esteja dizendo que você está
mentindo… Eu apenas estou dizendo que… — Ai, como era difícil. — Eu
acho que ele nunca olharia para mim. Ele provavelmente está olhando é
para você.

— É, mas eu estou acompanhado. — Seu olhar varreu o ambiente,


provavelmente à procura daquela falsa que os abandonara.
— E se não estivesse?

Ele contorceu os lábios, depois deu de ombros.

— Eu iria lá, claro, ele é muito bonito. Mas, enfim, você só vai saber
se tentar. Veja eu e sua amiga por exemplo.

— Aaaaah, mas com vocês era diferente! — Rys riu. — Eu sempre


dizia a ela que estava tudo na cara, mas ela ficava negando.

— É mesmo? — Ele inclinou a cabeça, parecendo se interessar.

— É, ela dizia que preferia ficar um ano levando uma tapa na cara
todos os dias do que sair com você. — Deu uma risada alta. — Mas eu
sempre dizia: pretensekyea. — Pretensekyea é um provérbio gagrilyano
usado para indicar que, quando uma pessoa tem muita necessidade em
demostrar que não se importa com algo, isso mostra várias coisas,
inclusive que ela na verdade se importa.

Klaaoz riu. Nossa, ele tinha dentes?

— Estava tão na cara assim?

— Muito. Estava praticamente escrito na testa dela. Com uma tinta


neon.

— Pois é, se você não tentar, nunca vai saber. Foi um holograma


que me disse isso.

— Calma, eu preciso beber mais. — Rys se virou mais uma vez


para olhar o cara com chapéu.

Klaaoz chamou o garçom e pediu outra garrafa.


Batidas estridentes e animadas tomavam conta daquele ambiente
lotado. Pessoas dançavam, flertavam, tiravam holofotos, viravam copos
de bebida. Rys normalmente estaria fazendo o mesmo, mas percebeu
que não estava achando totalmente horrível ficar apenas sentado e
conversando. Já fazia um bom tempo que ele e Klaaoz estavam no bar,
mas não ficaram sem assunto por nem um momento.

Rys havia formado uma opinião completamente nova a respeito


dele. Ele não era tão ruim assim. Antes só o conhecia pelas coisas que
Coisina falava, seu patrão, que ela considerava praticamente como um
filho, que morava em Vindemiatrix, mas às vezes ficava nesse lugar
secreto, que Rys passou a saber que era Gagrilya. Ele tinha um pé atrás
porque Klaaoz fazia parte do Comando Omega, mas apreciava tudo que
ele havia feito por Coisina.

Quando o conhecera, não havia tido realmente chance de formar


uma opinião de verdade, pois mal o via. Tinha um pouco de medo por ele
aparentar ser uma pessoa séria e fechada, e para completar era
gagrilyano.

Conhecia-o também pelas histórias que Luna contava, mas,


naquele momento, Rys estava vendo que ela tinha sérios problemas, pois
distorcia a realidade. Talvez fosse o álcool, mas Klaaoz não se parecia
nada com aquela pessoa que tinha a arrogância proporcional à beleza.

— Eu nunca tive um relacionamento sério — Klaaoz disse, olhando


para o copo.
Rys piscou algumas vezes.

— Como assim? — Até Rys já tinha tido! Quer dizer, para ele não
fora tão sério assim, mas as outras pessoas envolvidas assim o
consideraram.

— Eu apenas saía com todo mundo e depois sumia. — Ele deu de


ombros. — Mas sempre deixava claro as minhas intenções.

— Como você era horrível — Rys observou, embora fosse


desnecessário.

— Acho que eu ainda sou. — Riu, como se não se importasse, e


voltou a vestir a máscara de frieza. Mas, dessa vez, ela não parecia tão
genuína quanto as outras.

— Mas… por que você fazia isso?

Ele ficou sério e seu olhar, perdido, entregando que sua mente
estava a anos-luz dali.

— Porque uma vez eu pensei que tinha algo sério e… a pessoa


me decepcionou. — Seus lábios se contorceram. — Depois disso, nunca
mais tive vontade de ter. Não vejo sentido.

Rys sorriu e virou o copo. Então estava tudo explicado, essa sua
aversão por afeto. E ele falou “não vejo” no presente? Será que ele
achava que o que tinha com Luna não era sério? Eles moravam na
mesma casa e passavam praticamente o dia inteiro grudados. O que era
sério para ele então?!

— Você… quer falar sobre isso? — Rys perguntou.

— Não. E é sua vez.


Eles estavam jogando um jogo que Luna inventou e que Rys
desconfiava de que ela o tinha usado para descobrir mais coisas sobre
Klaaoz. Rys também queria aproveitar para fazer isso, já que Klaaoz era
ingênuo demais para perceber que era essa a finalidade do jogo. Porém,
não tinha como Rys descobrir o que queria, pois, de acordo com as
regras do jogo, tinha que falar algo que nunca fizera, e ele já tinha feito a
coisa que queria falar só para ver se Klaaoz já fizera também. Mas, de
qualquer forma, era uma pergunta meio idiota de se fazer, já que Klaaoz
era de Caelestra, um planeta com 1.049 anos A.G., e só em Teyrilia
aquilo ainda não era considerado normal.

— Eu nunca… — começou.

Mas, antes que completasse a frase, Rys ouviu aquela voz


terrivelmente familiar dizer atrás dele:

— Olhe só pra você! Com essas roupas caelestreanas… A cada


dia envergonha mais nossa família!

Ao se virar, Rys avistou seu irmão Dhrumploslakohr, o tipo de


pessoa que fazia Teyrilia ainda ser tão atrasada. Ele era a combinação
perfeita entre preconceito, burrice e músculos.

Rys tentou dar uma resposta, mas as palavras não saíram. Não
por não ter o que falar, e sim por medo de que aqueles músculos
voltassem a machucá-lo como antigamente.

— E esse… — falou num tom de deboche, olhando para Klaaoz de


cima a baixo. — É seu namorado? — Ai, como Rys o odiava. Cada vez
que ele abria a boca, ficava evidente que não se preocupava em exercitar
o cérebro, apenas o corpo. Klaaoz somente observava tudo numa
quietude letal. — Acho que foi pouco papai ter te expulsado de casa
quando descobriu que você estava planejando se mudar para ser
escravo dos calies — ele continuou.

Rys cresceu vendo as pessoas do seu planeta odiarem os


caelestreanos só porque eles eram os queridinhos dos gagrilyanos e
fechavam os olhos para o que acontecia no resto do Sistema na época
da dinastia. Perdeu as contas de quantas vezes apanhou quando seus
pais o pegaram vestindo uma roupa de lá, ouvindo uma música ou
consumindo qualquer coisa da cultura deles. Mas nada disso fez Rys
desistir do seu sonho de morar em Caelestra. E não era porque os
considerava superiores, mas porque lá teria a liberdade de ser quem
quisesse sem precisar se esconder. Só que, quando estava com tudo
pronto para a mudança, seu pai descobriu e o expulsou de casa,
deixando-o sem nada. Coisina foi quem o socorreu.

Naquele momento, olhando para seu irmão, Rys tinha certeza de


que a única coisa que queria do resto dos seus parentes era distância.
Parecia que humilhá-lo alimentava o ego frágil do irmão, era a única
explicação. Em outros tempos, Rys se importaria e até deixaria aquilo
afetar sua autoestima. Mas, com um cara lindo como aquele de chapéu
olhando para ele, quem se importaria com o que aquele brutamontes
falava?

Dhrump se aproximou de Klaaoz, que o analisava.

— O que você está olhando, calie? — Dhrump perguntou, depois


se virou para Rys. — Ah, claro que ele é caelestreano. Você passou a
vida toda endeusando tudo que vinha de lá e, já que não pode ser um,
resolveu namorar um.

Quando ele começou a tentar afrouxar a gola de sua camisa, que


parecia se apertar, Rys teve um péssimo pressentimento.

— Preste atenção, eu só vou falar uma vez. — A voz de Klaaoz


era assustadoramente calma. — Arrume uma ocupação nessa sua vida
inútil de merda, pare de viver como se ainda estivesse na dinastia e de se
preocupar com o que os outros fazem. — Dhrump se contorcia, puxando
a gola de sua camisa, que o estava sufocando. — E se eu souber que
você importunou meu namorado mais uma vez, te garanto que será muito
pior.
O irmão de Rys deu alguns passos para trás, pegou a garrafa que
estava em sua mão e… quebrou na própria cabeça! Ele estava com os
olhos arregalados, sem entender o que havia acontecido, encharcado
pela bebida e com o sangue escorrendo pelo rosto, enquanto Klaaoz o
olhava com um sorriso satisfeito no canto da boca, como se estivesse
apreciando sua obra de arte.

Dhrump murmurou alguma coisa incompreensível e saiu correndo,


mas tropeçou e foi arremessado ao chão. Quando se levantou, com o
olhar terrificado, imediatamente desapareceu na multidão.

Rys olhava petrificado para os cacos de vidro com sangue no chão


a poucos metros de onde estava. Metade dele ria por dentro por ver seu
irmão finalmente tendo o que merecia, e a outra metade tinha certeza de
que queria a amizade sincera de Klaaoz e de que jamais seria seu
inimigo.

— Não vamos contar a ela essa parte da garrafa, ok? — Klaaoz


disse, pegando uma garrafa nova no bar, como se nada tivesse
acontecido.

— Z’ohannah vai vir pra cá? — perguntou Luna, varrendo o lugar


com o olhar. Ela já havia conhecido todos os participantes que foram
eliminados do LDRV, além de produtores, cantores e demais
celebridades teyrilianas. Ela até secretamente lera a mente de alguns e
estava louca para contar a Rys todos os segredos que havia descoberto.
Ele iria morrer quando soubesse que S’ahara havia beijado Mak.
— Assim que acabar o programa — respondeu um dos rapazes
que a levaram até o camarote.

— Meu Deus, eu não acredito. Meu amigo que está comigo vai
morrer quando vê-la.

— Pode trazê-lo pra cá se quiser.

— Sério? Eu acho que ele vai surtar quando encontrá-la.

— Quanto tempo você vai ficar aqui em Teyrilia? Em breve


começaremos as audições para a próxima temporada. Acho que você
daria uma ótima participante.

— Sério? — Luna jamais participaria, mas conhecia uma pessoa


que sonhava em participar mais do que tudo. — Eu tenho um amigo que
seria perfeito.

— Claro, mande-o me ligar. — Ele lhe entregou um cartão.

— Certo, vou mandar! Nossa, ele vai… — Luna começou a falar,


mas o rapaz a interrompeu:

— Estamos lançando uma marca nova de bebidas. Acho que você


seria ótima para o comercial. Podemos discutir isso depois.

Ela não sabia nem o que dizer. Queria contar aquilo para Klaaoz e
Rys imediatamente.

De repente, seu coração gelou. Meu Deus, Klaaoz e Rys! Onde


será que eles estavam? Ficara tão empolgada que perdera a noção do
tempo e não se dera conta de que os tinha abandonado há horas.

— Eu aceito! Mas agora preciso ir — disse ela, e foi embora.

Enviou uma mensagem para Rys:


A resposta dele fez Luna franzir a testa. Ela ainda perdeu alguns
segundos tentando decifrar aquele enigma, até se dar conta de que ele
deveria estar bêbado.

A festa estava bem mais lotada do que quando chagaram, estava


difícil até de andar para quem não estava no camarote. Depois de muito
sufoco, Luna conseguiu chegar ao bar no final do salão da festa e os
encontrou no mesmo lugar em que os havia deixado.

Quando Klaaoz a viu, agarrou-a pela cintura e deu um grande beijo


em sua bochecha. Depois apertou seu nariz.

— Lunaaa, conta tudo! — pediu Rys com a voz arrastada. Pelo


visto, eles souberam aproveitar o tempo que ela passara fora.

— Z’ohannah ainda não chegou, mas, quando ela chegar, eu levo


você lá.
— Você nem sonha, mas nós só estamos juntos por causa de
Z’ohannah — sussurrou Klaaoz, como se estivesse contando um segredo
de estado.

— Quê?! Você a conhece? — Luna não sabia se estava mais


incrédula por ele conhecê-la ou por ele dizer que eles “estavam juntos”.
Ele só podia estar embriagado.

— Somos ótimos amigos. Ela que me disse que eu gostava de


você. —Ele disse que gostava dela. Ok, aquilo estava muito estranho. Ele
tinha comido frutas daddas? Não poderia ser só álcool. — Luna!
Ryslokaoko… — Klaaoz balbuciou algo que deveria ser o nome
verdadeiro de Rys. — Está com vergonha de ir falar com um cara que
está olhando para ele a noite toda, você acha que ele deve ir? — Sua voz
saiu arrastada.

— Acho.

— Nããão, eu não estou bêbado o suficiente!

— Acho que se você beber mais não vai conseguir nem andar até
lá — ela afirmou o óbvio.

— Dois contra um. Vá — ordenou Klaaoz.

De repente, Rys foi empurrado por uma força invisível. Ainda ficou
tentando lutar contra ela, mas não tinha como.

— Não, não, não, Klaaoz! Pare, por favor — ele implorou.

Klaaoz ignorou e se virou para Luna com os olhos quase fechados


e 0,5 cm de um sorriso bobo enquanto ainda empurrava Rys com sua
mente. Ele realmente parecia outra pessoa. Devia ser por isso que ele
não gostava de beber: a bebida destruía sua armadura invisível, estava
tudo explicado!
— Às vezes eu me pergunto o que você viu em mim — ele soltou
sem mais nem menos.

— Como é?! — Ela tinha ouvido isso mesmo?

— Hum… Como eu me pareço pelos seus olhos?

O queixo de Luna caiu. Como responder àquilo? Como verbalizar o


modo como vemos quem amamos?

— Essa provavelmente é a pergunta mais difícil do mundo.

— Tente.

— Hum… Quando eu o vi pela primeira vez, achei você a pessoa


mais fascinante do mundo. Depois, a pessoa mais horrível. E todas as
vezes que te via, era literalmente de um jeito diferente.

Ele riu.

— E agora?

— Agora… eu não sei. Mas acho que, se nada der certo, você
deveria fazer comerciais de shampoo. — Ele revirou os olhos. —
Sério, essa pergunta é muito difícil. Prometo que um dia eu respondo.

— Eu acho que você é um anjo. — Mais uma vez, ele a pegou de


surpresa, fazendo seu coração palpitar.

— Perdão?

— Aquilo da neve. Pessoas bonitas, legais, que cuidam de você e


usam coisas douradas no cabelo.
Luna abriu a boca. Não sabia se estava mais chocada por ele se
lembrar daquilo ou… com tudo que estava acontecendo.

Ao ver sua expressão, Klaaoz a puxou mais para perto de si,


depois beijou seu ombro. Ele estava muito carinhoso. Seria muito errado
colocar álcool escondido em sua água todos os dias?

— Eu queria muito saber se nossos signos combinam — ela disse.

— Quê?!

— Signos, aquela coisa do meu planeta.

— Claro que combinam. — Ela gostou do tom presunçoso que ele


usou.

— Mas eu preciso saber qual o seu para saber se combinam.

— Não tem como saber, isso não existe.

Luna fez uma careta. Ao fundo, ela podia ver Rys finalmente
conversando com o cara de chapéu.

— Atenção, dentro de cinco minutos o programa começará — Uma


voz anunciou num alto-falante.

Imediatamente, Rys correu de volta para lá.

— O que eu perdi?

— Nada, só Klaaoz sendo signofóbico.

— Ryslokoakksoa — Klaaoz disse, abraçando-o de um jeito


engraçado. Álcool. Nada une as pessoas mais do que ele.
E então o programa começou. Restava apenas Z’ohannah e outro
participante na casa. Todos aguardavam ansiosos pelo resultado.
Quando faltava apenas dez minutos para anunciarem o ganhador, o
adversário começou a provocar Z’ohannah, que perdeu o controle, se
levantou e deu um soco no rosto dele. Faltando apenas cinco minutos
para acabar, Z’ohannah foi desclassificada e o ganhador
automaticamente foi o outro.

— NÃÃÃÃÃÃÃO! — gritou Rys. — Eu não acredito! Não, isso não


pode estar acontecendo!

— O quê?! Mas como?! — Luna também ficou em choque, mas


estava bem menos chateada que Rys, que estava aos prantos.

— Ah, pessoas… — Klaaoz balançou a cabeça. — São todas


loucas, se acostume. — E deu leves batidas no ombro de Rys.

Luna revirou os olhos e riu. Klaaoz tentando confortar alguém era


definitivamente a melhor coisa já que vira.

— Vamos, Z’ohannah deve estar chegando. — Ela os puxou e os


levou até a área dos camarotes. — Oi, eu sou amiga de Marcozia…
alguma coisa, o criador do programa. Eles estão comigo — disse ao
segurança na entrada.

— Desculpe, só com credencial.

— Olha a S’ahara! E Joyko! E Mak! — gritou Rys, eufórico, tirando


seu Holophone do bolso e fazendo várias holofotos, como se já tivesse
superado a tragédia do fim do programa. Luna olhou para Klaaoz, que
estava de cara feia, como se estivesse pronto para enforcar o segurança.

— Nem comece! Eu vou entrar para procurar Z’ohannah e a trago


aqui.
Luna entrou usando a credencial que ainda portava e logo avistou
Z’ohannah, que estava rodeada de fotógrafos, conversando com
empolgação, dando entrevistas, fazendo caras e bocas, exatamente
como Luna imaginava que ela seria na vida real. Luna avistou Mirk e fez
sinal para ele, que entendeu o recado e foi apresentá-la à vice-campeã
do LDRV.

— Z’ohannah, essa aqui é Luna, a garota do “hoje é dia de rock,


ET’s!”. Você não deve saber o que é porque estava dentro da casa do
LDRV já na época do vídeo, mas depois você precisa assistir, é hilário! E
ela é sua fã.

— Ai, meu Deus, eu não acredito que estou conhecendo você! Eu


a vi tantas vezes no holograma que eu… não sei explicar, mas sinto
como se fôssemos melhores amigas.

Z’ohannah virou de um gole só o conteúdo do copo que tinha em


sua mão e abriu um sorriso.

— Eu não a conheço, mas já gostei de você — ela disse, e Luna


abriu um sorriso que mal coube no rosto por saber que aquilo era
verdade, já que a bebida em sua mão era gin centauriano.

— Meu amigo Rys é simplesmente seu maior fã em todo o


Sistema. Ele está lá fora porque não tem credencial. Será que você
poderia sair um minuto para falar com ele? Eu prometo que não vai
demorar.

Ela pegou outra bebida, se virou e depois falou:

— Eu odeio meus fãs.

Luna piscou algumas vezes. Depois percebeu que ela tinha bebido
gin caelestreano, a bebida que faz contar uma mentira.
Elas foram até a entrada, e Rys estava de costas, tirando
holofotos.

— Rys, tem uma pessoa aqui que quer conhecer você. — Luna o
cutucou.

— Quer dizer então que você é o meu maior fã?

Rys se virou e, quando viu Z’ohannah à sua frente, empalideceu e


levou a mão até o peito. Ele ficou paralisado por alguns segundos, e
Luna já estava ansiosa para ouvir quais seriam suas primeiras palavras
para seu maior ídolo, a pessoa que ele mais venerava no universo,
praticamente sua razão de viver. Mas ele simplesmente… desmaiou.
Klaaoz até precisou segurá-lo. Todos ficaram sem reação.

— Ai, meu Deus, bem que ele disse que iria desmaiar se a visse.

— E agora? Joga um balde de gelo na cara dele pra ver se ele


acorda — sugeriu Z’ohannah.

— Eu adoro os seus conselhos — disse Klaaoz em tom


conspiratório. Desde quando ele assistia ao programa?

Z’ohannah olhou torto para Klaaoz, que estava com uma


expressão abobalhada, brincando com os óculos, que ficavam caindo do
seu rosto.

— Ele é seu namorado?

— Hum… — Que pergunta difícil! — Mais ou menos.

— O que você viu nessa criatura? — Ela apontou para Klaaoz, que
estava tentando acertar o canudo na boca, mas sem querer o enfiara no
nariz.
— Sinceramente, eu me pergunto até hoje. — Z’ohannah riu. Era
engraçado ver Z’ohannah sendo Z’ohanna ao vivo. Como Rys lidaria com
aquela situação? — O que você faria com o meu amigo desmaiado se
estivesse em meu lugar? — Luna perguntou, porque era o que ele faria.

— Hum… Eu tiraria uma holofoto dele comigo mesmo desmaiado,


depois editaria.

— Genial!

Klaaoz segurou Rys para que Luna pudesse tirar várias holofotos
dele com Z’ohannah. Fizeram várias poses. Todos segurando Rys nos
braços, Z’ohannah enfiando uma bebida no nariz dele, com a perna por
cima dele, holofotos suficientes para Rys passar um mês postando.

— Bom, eu tenho que ir, pena que ele não acordou. Eu preciso
beber.

— Tudo bem, foi um prazer conhecê-la! Tchau! E obrigada — se


despediu de Z’ohannah e se dirigiu a Klaaoz: — Acho que nós já
podemos ir. Rys parece ter apagado de verdade. Klaaoz, você tem
condições de pilotar? Ai, meu Deus.

— Piloto automático — ele balbuciou de olhos fechados.

Quando saíram da casa noturna em direção ao estacionamento


onde estava a nave, Luna quase caiu pra trás ao olhar para o céu.

— Meu Deus, isso é a coisa mais linda que eu já vi!

Klaaoz a olhou, estreitando os olhos, como se fosse desnecessária


toda aquela euforia.

— Um cometa?
Boquiaberta, ela olhava para aquela bola branca com cauda
cortando o céu. Nunca tinha visto um cometa, muito menos tão de perto.
Era tão lindo que dava vontade de chorar.

— O que você acha que é um cometa? — ela perguntou.

— Como assim?

— Eu acho que é… uma bola de sorvete perdida no espaço, à


procura de sua casquinha, que deixa um rastro por onde passa.

Ele riu.

— Sorvete?

— É uma coisa da Terra que é o equivalente a creamyce aqui.

— De fato, o cometa é composto de gelo, poeira e pequenos


fragmentos rochosos.

— Mas o que você acha que é?

— Como assim?

— Digamos que você não saiba qual é a explicação científica. O


que você acharia? — Ele fez uma careta. — O que você pensou que
fosse quando viu um pela primeira vez? — encorajou-o.

Klaaoz olhou para o cometa, pensativo.

— Achei que fosse… alguma coisa diferente de tudo que existe,


que não se encaixava em lugar nenhum e estava sempre vagando por aí
porque estava perdido.
Ela o observou atentamente enquanto ele falava. Definitivamente,
a bebida destruía sua armadura invisível.

— Eu costumava me sentir assim na Terra. — Luna se lembrou de


como constantemente tinha a sensação de que não pertencia àquele
lugar. Mas naquele momento… se sentia perdidamente encaixada. E não
era exatamente em um lugar.

— Se você fosse um cometa e eu, um planeta, eu jamais deixaria


você sair da minha órbita — ele disse, colocando Rys no chão e a
puxando para um beijo digno de levantar o pé. Ela poderia jurar ter visto
fogos de artifício, ouvido sinos, sentido borboletas no estômago e todos
os outros clichês.

Mas, de repente, todos os drinques que havia tomado durante a


festa pareciam estar querendo deixar o seu corpo de uma só vez,
fazendo Luna quebrar o romantismo do momento e interromper aquele
beijo hollywoodiano.

— Eu preciso ir ao banheiro — disse. — Vá colocar Rys na nave,


eu encontro vocês lá.

Olhando seu reflexo no espelho, Luna se sentia até mais bonita


depois do que Klaaoz havia dito. Talvez o amor deixasse as pessoas
mais bonitas. E, tecnicamente, deixava mesmo. Quando o conhecera,
achou-o a pessoa mais bonita que já vira. Depois do que ele fez, passou
a achá-lo horroroso. E naquele momento dizer que ele era lindo era
pouco. “Nós não vemos as coisas como elas são, vemos as coisas como
nós somos”, já dizia Anaïs Nin.

Quando você ama uma pessoa, talvez só consiga vê-la por trás de
um filtro embelezador. Mas filtros servem para filtrar as coisas.
Geralmente as ruins. O que será que Luna estava se recusando a ver
nele? Será que, quando esse filtro da paixão inicial acabasse, ela ainda o
veria como a pessoa que ela via naquele momento?

Luna deu um longo suspiro e sentiu um pouco de medo da


resposta.

— Você não é… — Uma mulher que havia entrado no banheiro


começou a falar enquanto a observava.

— Sou, sim. A garota do vídeo "hoje é dia de rock, ET’s" — Luna


disse, despertando de seus devaneios.

— Isso! — A mulher a olhou dos pés à cabeça. — Meus amigos


adorariam conhecê-la.

— Hum… Eu já estou de saída…

— Vai ser rápido.

Hum… Ok, por que não? Não era todo dia que Luna encontrava
fãs.

Ela saiu do banheiro e seguiu a mulher até um canto da festa. Uma


roda de pessoas parou para olhá-la.

— Essa é…? — perguntou um homem, e a mulher balançou a


cabeça. Ele pegou um Holophone e digitou algo. — Nós estamos com a
garota que foi sequestrada. — Luna o ouviu dizer em mensagem de voz
para o aparelho.
— O que… — Luna começou a perguntar, mas, antes de terminar
a frase, agarraram seu braço e a puxaram. Ela tentou gritar, mas uma
mão cobriu sua boca.

Ela foi levada a uma espécie de garagem, na qual havia uma nave
estacionada. Luna se contorcia e tentava, em vão, se desvencilhar de
quem a prendia. Tentou morder a mão que tapava sua boca, mas a pele
era muito grossa. Meu Deus, o que estava acontecendo? Outro
sequestro? Sério?!

Pelo canto do olho, Luna conseguia ver que a mulher do banheiro


e o cara do Holophone acompanhavam, indiferentes, a cena. Todos
entraram na nave, Luna se debatendo, dando chutes e cotoveladas para
todos os lados. Quando a colocaram em um banco e a amarram, o
desespero a invadiu.

— Para onde vocês vão me levar? — gritou, mas foi ignorada.

Quando um deles foi até o painel e acionou a ignição da nave, ela


gelou.

Não, aquilo não podia estar acontecendo.

Seus raptores conversavam bobagens entre si, sem deixar a


menor pista de para onde a levariam. Ela, então, voltou a gritar. Gritou,
gritou e gritou de novo, até que a mulher tapou sua boca com uma fita.

Luna tentou ler a mente deles. A mulher pensava em comida. O


homem, na mulher. O de pele grossa estava pensando no dinheiro que
ganharia com a recompensa.

Que recompensa?

A nave saiu do chão, e Luna sentiu as lágrimas começarem a


descer enquanto seu corpo todo tremia. Ela não conseguia mais nem
raciocinar direito.
Quando a nave foi para frente e pegou impulso para decolar, sua
visão ficou turva e o pânico tomou conta dela.
37

37- Luna sofre sua quarta tentativa de


sequestro

O ar entrava e saía de seus pulmões com dificuldade, o chão


parecia ter sumido debaixo dos seus pés. As lágrimas jorravam, e a
garganta de Luna doía de tanto que ela fazia força para gritar, em vão.
Não conseguia aceitar a ideia de que aquilo estava acontecendo. Só
poderia ser um pesadelo que acabaria quando ela acordasse.

Se ao menos já soubesse entrar na mente das pessoas, poderia


ordená-los a parar e estaria livre. Mas não. Tudo estava perdido.

Por que sempre que algo parecia estar dando certo na sua vida
alguma coisa acontecia e acabava com tudo?

Mas, de repente, como se estivesse sendo atraída ao centro do


planeta por um enorme campo magnético, a nave voltou para o chão,
provocando uma forte batida. As pessoas que estavam em pé se
desequilibraram com o impacto. Tudo parecia acontecer em câmera
lenta: a porta de entrada se abriu, e Luna viu aquela figura sombria e
maravilhosa que tanto amava parada a poucos metros dela, parecendo
até uma miragem.

As cordas que a prendiam se soltaram, a fita que tampava sua


boca caiu enquanto todas as pessoas pareciam estar presas ao chão.
Ela correu, desesperada, sem nem raciocinar, ofegando, e Klaaoz
a pegou nos braços, usando seu poder para fechar a porta da nave com
toda a força. Mesmo confortada nos braços dele, Luna ainda estava com
os batimentos a mil e algumas lágrimas continuavam a brotar de seus
olhos.

— Você está bem? — Ele beijou sua testa. O olhar dele parecia
atordoado.

Gritos ecoaram de dentro da nave.

— O que você está fazendo?

— Nada — ele disse, mas os gritos continuaram.

— Não faça isso. Só vamos embora.

Ele suspirou, e os gritos cessaram.

— O que eles queriam? — Ele parecia mais assustado do que ela,


que acabara de sofrer uma tentativa de sequestro.

— Eu li as mentes deles. Eles estavam pensando no que fazer


com o dinheiro da recompensa. — Klaaoz afundou a cabeça em seus
ombros, e ela sentiu seus batimentos irregulares conforme ele a
carregava para a nave. — Você está bem? — ela perguntou, a inquietude
dele a estava deixando preocupada.

— Não. — Seus olhos tinham um conflito interior que ele parecia


não conseguir esconder.

Quando Klaaoz a pôs no chão, os dois entraram na nave, mas ele


ficou um tempo olhando para o nada. Sua postura estava tensa. Parecia
até que ele quem havia sofrido a tentativa de sequestro, não ela. Por
quê?
— Z’ohannah já chegou? — perguntou Rys, que estava deitado em
um banco ao fundo, finalmente acordando.
38

38- Klaaoz continua com a mesma opinião


a respeito dos tornozelos de Luna

— Eu realmente preciso aprender a usar esse poder. — A


preocupação era evidente na voz de Luna, que, por incrível que
parecesse, chegara pontualmente em sua aula com Oberyn naquele dia.

Até aquele momento, não havia levado seu treinamento


verdadeiramente a sério. Quando foi forçada a ficar em Gagrilya, ela viu o
treinamento como um meio para escapar de lá, mas, depois que ir
embora deixara de ser uma prioridade, Luna estava levando o
treinamento tão a sério quanto levava a afirmação de Klaaoz de que nada
mudaria entre eles. Entretanto, o que havia acontecido na festa do LDRV
a fez rever completamente a importância que estava dando àquelas
aulas.

— Bom dia para você também. O que aconteceu que você chegou
na hora e não começou com a sua enrolação de sempre?

Depois que Luna relatou a tentativa de sequestro que sofrera,


Oberyn ficou em silêncio por um longo instante, como se maquinasse na
cabeça o que faria para ela aprender de uma vez por todas a usar aquele
bendito poder.

— Você precisa encontrar o seu gatilho.


— Como assim?

— A coisa que faz seu poder se manifestar.

— Tipo… pensar no que a pessoa está pensando e mentalizar o


fundo branco?

— Não. Isso é diferente. Para mim, ficar invisível também sempre


foi mais fácil do que criar campos de força. Eu preciso de uma emoção a
mais.

— Como assim?

— A primeira vez que eu consegui criar um campo de força foi com


essa minha amiga Lyrian. — Ele baixou a cabeça por alguns segundos,
Luna não conseguia identificar a emoção que estava ali. — Nós
estávamos na universidade, e ela se envolveu em uma briga com uma
garota vulgoriana que tinha o dobro do seu tamanho. Lyrian também era
gagrilyana, mas a outra garota tinha lhe dado uma pancada tão forte na
cabeça que a deixou inconsciente. Eu me lembro de que nunca havia tido
tanto medo como senti ao vê-la desmaiada no chão enquanto a
vulgoriana se aproximava para continuar a espancá-la, quem sabe até
mais que isso. E foi aí que o campo de força surgiu. Depois eu aprendi a
centralizar mais a emoção, não preciso mais sentir realmente o medo que
eu senti naquele dia, mas medo é o que destrava meu poder. Quando eu
mentalizo qualquer coisa que me cause medo, por menor que seja,
consigo criar um campo de força imediatamente.

— Eu não sei o que pode ser o meu gatilho.

— Talvez medo também?

— Eu não sei o que eu senti quando o usei. Eu não sei se era


medo exatamente. Quando Klaaoz se trancou comigo na festa, não
posso dizer que o que senti foi medo. Era outra coisa, não sei. Talvez
fosse porque eu estava bêbada ou porque eu sabia que ele já estava
louco por mim. — Ela riu. — E quando eu entrei na mente do monstro no
lago também não foi por medo. Para falar a verdade, eu acabei de me
dar conta de que nunca tive verdadeiramente medo de nada até essa
tentativa de sequestro.

Oberyn estreitou os olhos.

— Medo não é uma coisa ruim. Se você não tiver medo, significa
que você não se importa. É irresponsável.

— É, acho que eu nunca tive medo porque tinha uma atitude meio
de tanto faz perante a vida, não sei… Já estava tudo arruinado mesmo.
Então, eu não tinha medo. Na verdade, eu só tinha medo de continuar
tudo daquele jeito. — Ela olhou para ele de forma contemplativa, se
lembrando de Nietzsche. — Mas agora… acho que eu só tenho medo do
futuro. Medo de que as coisas mudem.

— Esse é o pior medo que você pode ter. Você não pode impedir
mudanças. Você deveria ter medo é de não mudar.

— Eu sei… Eu me sinto tão completamente diferente da pessoa


que eu era quando cheguei aqui… mas eu gosto das coisas do jeito que
estão.

— Mas elas não vão continuar assim para sempre — ele disse
aquilo, algo de que, nas profundezas do seu inconsciente, Luna sempre
teve plena certeza, mas se recusava até a pensar a respeito, com medo
de que se tornasse real.

— Eu sei. E eu não sei o que fazer. — Pensar no futuro a deixava


sem ar.

— Aproveite enquanto pode, não adianta se preocupar com o


futuro.
Esse era o problema. Ela não se preocupava com o futuro, na
verdade ela não conseguia nem o enxergar. E isso era o que mais a
atormentava.

Luna cerrou o punho e usou toda a força que conseguiu encontrar


para proferir aquele golpe. Mas seu alvo apenas desviou de forma sutil e
imobilizou o braço dela por trás, fazendo-o latejar.

Ignorando a dor que a invadia, ela tentou se soltar usando as


pernas, mas foi surpreendida por uma rasteira. Fechou os olhos e,
quando estava prestes a cair de cara na areia e provavelmente quebrar o
nariz, seu corpo flutuou e foi levado suavemente ao chão.

— E agora você já estaria presa e sendo levada sabe-se lá para


onde! — Klaaoz gritou de cima, seu corpo fazendo sombra no dela.
Desde o sequestro, ele estava obcecado em fazê-la aprender a se
defender sozinha, como se Luna estivesse correndo risco de vida o
tempo inteiro ou sua cabeça estivesse a prêmio, o que não era
totalmente mentira, diante do que lera na mente de seus sequestradores
em Teyrilia.

Depois de alguns segundos, ele estendeu a mão para que ela se


levantasse, mas Luna o puxou, fazendo-o se juntar a ela no chão.
Rapidamente, ela o imobilizou, deixando seu corpo sobre o dele e o
encarando com um sorriso.

O rosto de Klaaoz se suavizava enquanto ele emitia um suspiro.


— Se você aprendesse a usar seu poder, nada disso seria
necessário.

— Estou tentando!

— Tente mais! Vou precisar ficar encurralado por aquele monstro


nos cristais para você conseguir?

— Não! — O coração dela gelou só com a menção àquele


episódio.

Ele bufou, olhando para os lados, o pensamento indo para muito


longe.

— Vamos parar por hoje, nós não viemos aqui para isso — ela o
lembrou.

Eles haviam ido passar o dia em uma praia que ficava a uma hora
gagrilyana da casa de Klaaoz. Certa vez, Luna o perguntara se naquele
planeta existia praia, ele respondeu que sim, mas que odiava esse tipo
de viagem e que não iria de jeito nenhum. Entretanto, para sua surpresa,
naquele dia resolvera levá-la. Na verdade, ela quem o levara, já que fora
pilotando a moto-jet-ski, que ela descobrira que se chamava snowringer.

Klaaoz havia passado a semana toda a ensinando a pilotar, isso


também fazia parte do seu “projeto aprender a se defender”. Ele fora
muito atencioso e paciente na medida do possível. Os dois só discutiram
umas cinco vezes durante o processo.

Desde a festa, ele estava parecendo outra pessoa. Luna se


perguntava se algum verme tinha entrado pelo ouvido dele e passado a
controlar seu corpo. Era a única explicação. O álcool havia passado, mas
ele continuava agindo como quando estava bêbado, o que era ao mesmo
tempo estranho e maravilhoso.
Naquele dia, ele estava usando uma roupa simples, uma camisa
de tecido fino com os botões abertos, e seu cabelo estava emaranhado
pelo vento. Tão estranho quanto seu comportamento naquela semana.

A areia da praia tinha um tom de rosa pastel que ia de uma ponta à


outra, parecia aquele sal chique do Himalaya. Havia algumas árvores de
algodão-doce espalhadas ao redor, o mar se estendia no horizonte.
Devido ao clima, parecia até que estavam em outro planeta, e ela nem
acreditava que pela primeira vez pudera sair sem mil camadas de roupas.

Luna foi até o snowringer, pegou as toalhas que trouxera e as


estirou na areia. Se sentou, fez sinal para Klaaoz se sentar ao seu lado e
foi aí que se lembrou de um problema. Nunca havia ficado de biquíni na
frente dele. Quer dizer, meio que já tinha, mas tinha sido há meses,
quando não sentia nada por ele. Quer dizer, só aquele 1%.

Como qualquer outra garota, se sentiu um pouco insegura em


relação a isso. Todo mundo sente vergonha de ficar com roupa de banho
pela primeira vez na frente da pessoa que gosta. Ela não era todo
mundo, mas nisso ela não era diferente.

Luna estava usando um biquíni estranho e azul, que não lhe caíra
muito bem, mas era o único que havia na mala. Talvez Mira tivesse
comprado no tamanho errado ou talvez fosse por causa dos quilos a mais
que havia ganhado.

— Vai querer entrar no mar? — perguntou ele com falsa


casualidade, como se secretamente torcesse para que a resposta fosse
não.

— Hum… — disse, pensativa, tentando bolar uma desculpa para


ele não a ver de biquíni. — Vou, mas antes você poderia pegar meu
Holophone no snowringer? Acho que esqueci lá…

— Esse que está no seu bolso? — Ele levantou a sobrancelha.


Droga, Luna pensou, encarando-o sem saber o que dizer.

— Ok. A verdade é que eu engordei um pouco desde que cheguei


aqui e estou com vergonha de você ver minha barriga. Você poderia, por
favor, ficar de costas enquanto eu tiro a blusa e entro no mar?

Klaaoz a olhou como se ela tivesse acabado de pedir para ele


comer terra.

— É sério isso?

— É. E é perfeitamente normal uma garota se sentir insegura


quando vai ficar de biquíni na frente do… — O que eles eram, afinal?
Bom, esse não era o momento para descobrir. — De alguém que ela
goste pela primeira vez.

— Por quê? O que isso tem a ver?

— Bom, na Terra isso é supercomum.

— Que idiotice.

— E eu engordei alguns quilos…

Ele a encarou, como se realmente não entendesse que língua ela


estava falando.

— E qual é o problema?

— Você vai me achar feia — soltou, se sentindo meio idiota depois.

— Por causa disso?

— É… — Ok, agora que havia verbalizado seus pensamentos eles


não pareciam ser tão certos assim.
— Eu vou achar você feia… porque você engordou? — ele repetiu,
como se quisesse ter certeza de que ela estava realmente falando aquilo,
que ele não tinha entendido mal.

— É.

— Isso é ridículo. Não existe isso aqui. Ninguém olha para o corpo
de ninguém.

— Ah, mas na Terra olham.

— Como eu já te disse, essa Terra é muito atrasada.

— É sério que aqui, tipo, por exemplo… ninguém acha alguém feio
por ser mais gordo ou mais bonito por ser mais magro?

— Óbvio que não. De onde você tirou um absurdo desses?!

— E como vocês medem a beleza aqui?

— Existem várias coisas que fazem uma pessoa ser bonita, mas o
corpo não é uma delas.

— Então, o que é beleza pra você?

Ele olhou para o mar, pensativo.

— Beleza não tem nada a ver com a aparência, acredite. —Luna


olhou para os lados, envergonhada. Não tinha o que dizer. Só sabia que
na Terra as pessoas pensavam assim e pronto. — O que muda se você
for magra ou não? Sério, ficar com uma pessoa só pela aparência é a
mesma coisa que comprar um snacan pelo que ele é por fora e não pelo
recheio.

Luna baixou a cabeça. Parecia até uma pergunta meio estúpida de


se fazer porque a resposta era óbvia.
— Sabe, uma vez, nos anos sessenta, em um programa de rádio,
um cara chamado Orson Welles falou que a Terra estava sendo invadida
por alienígenas. E todo mundo acreditou. Tipo, as pessoas entraram em
pânico e começaram a estocar comida. De verdade.

— E…?

— E que, talvez, as pessoas acreditem em qualquer coisa que lhe


digam, contanto que esteja no rádio. Ou na TV. Ou na mídia do momento.

— Ainda não entendi aonde você quer chegar.

— Essa coisa de que você só é bonita se for magra é a mídia


terrestre quem diz. Mas, se dissesse que bonito é ser azul, as pessoas
também acreditariam. — E foi aí que a ficha caiu. — Meu Deus, as
pessoas realmente acreditam em qualquer coisa sem questionar. — Luna
riu por perceber que há alguns minutos estava inclusa naquele grupo.
Àbhaisteachkyea, uma palavra gagrilyana usada para indicar quando
uma coisa não faz o menor sentindo, mas é desse jeito há tanto tempo
que ninguém questiona.

— Ser azul é lindo. — Ele abriu um sorriso.

— E muitas pessoas no meu planeta morrem porque ficam sem


comer para ficarem magras, sabia? — Isso era triste.

— Ninguém devia fazer isso. Comer é a segunda coisa mais


prazerosa que existe — ele respondeu com 0,5 cm de um sorriso
malicioso.

— Hum… Vou dar uma de Oberyn agora… — Luna disse, fingindo


não ter entendido sua indireta. — Foi a sociedade quem as fez acreditar
que só seriam bonitas se seguissem o padrão imposto pela mídia.

— E você ainda pensa assim?


— Bom, agora que você falou isso, não. Desde que eu cheguei
aqui, eu fico repetindo: tudo em que eu acredito ser certo ou errado é só
porque a sociedade moldou meu pensamento desde que eu nasci para
que eu pensasse assim, blá-blá-blá. Mas eu não sabia que podia aplicar
isso também no quesito aparência.

— Eu já lhe disse para parar de tentar comparar as coisas de lá


com as daqui.

— É… Mas na Terra há muitas diferenças culturais e sociais entre


os próprios países, e até mesmo dentro deles. Diferenças muito maiores
do que as que vi aqui no Sistema. Vacas na Índia são sagradas,
maconha em Amsterdã é tolerada. Em alguns países, por exemplo, se
você for mulher, não pode votar. Em outros, pessoas do mesmo sexo não
podem se casar. Dá para acreditar?

— E você ainda acha que, num planeta onde existe esse tipo de
coisa, as pessoas têm o discernimento de saber o que é certo ou errado?

— É mesmo. — Ela riu.

— Então, vamos — ele disse, se levantando e tirando a camisa.

Luna piscou algumas vezes e ficou o observando com a boca


aberta por tanto tempo que ele precisou tossir para ela se dar conta de
que logo sua saliva escorreria caso continuasse assim. Ela já o tinha
visto sem camisa naquele dia na piscina, mas naquele momento ele
parecia bem mais atraente do que qualquer pessoa que ela já vira sem
camisa. Incluindo os caras sarados dos filmes. E a principal razão disso
era ele não se parecer em nada com eles.

Ela respirou fundo, deixou a vergonha de lado e fez o mesmo. Os


olhos dele pousaram sobre os seus, depois foram descendo lentamente,
parando nos seus pés. Luna sentiu o peito arfar nesses longos segundos
em que ele ficou em silêncio, parecendo analisá-la.
— Diga alguma coisa — ela soltou com a ansiedade de quem
esperava a nota de uma prova final.

— O quê?

— O que você achou?

Klaaoz levou a mão até o queixo de um jeito engraçado.

— Como eu já sabia… — Deu uma pausa longa o suficiente para a


respiração dela acelerar. — Você tem tornozelos muito bonitos.

Ela franziu o cenho.

— Mas e o resto? O que você achou?

— Eu já tinha visto. — E deu de ombros.

— Mas agora é diferente.

— Mas eu ainda tenho a imagem muito viva na minha mente. — E


deu um sorriso de 0,5 cm irônico enquanto pegava sua mão e a guiava
para a água. — Inclusive, eu penso nela pelo menos uma vez ao dia,
sabe? Para mantê-la fresca na memória.

A água do mar era morna, mas o rosto de Luna ficou com tantos
tons de vermelho que ela parecia estar dentro de um caldeirão fervente.

— A água daqui é mais molhada — falou, pondo em prática a


estratégia de mudar de assunto abruptamente.

Ele a encarou, semicerrando os olhos.

— Eu gosto dessas coisas que você fala para mudar de assunto,


mesmo não fazendo sentido às vezes.
Luna fez uma careta, depois jogou água nele. Ele jogou de volta
três vezes mais. Ela gritou e tentou fugir, mas ele a alcançou, fazendo
com que mergulhassem juntos. Quando emergiram, após esfregar os
olhos, ela reparou em como os cabelos dele ficavam incrivelmente ainda
mais bonitos molhados. Isso a fez ter uma súbita vontade de beijá-lo, e
então o beijou de surpresa.

— Quem foi a melhor pessoa que você já beijou? — perguntou ela


após o beijo.

Klaaoz olhou para o horizonte, pensativo.

— Hum… Minha melhor amiga de infância, Heats.

— O quê?!

Ela só poderia ter ouvido mal.

— É — ele disse, simplesmente rindo como se não fosse nada


demais. Imediatamente, ela se desvencilhou de seus braços e ficou o
encarando.

Klaaoz tentou abraçá-la novamente.

— Sai. — Luna o empurrou.

— Não, vem cá. — Ele parecia apenas achar graça da situação.

Luna tentou nadar para longe dele, mas começou a sentir aquela
maldita força superior a trazendo de volta. Toda vez isso. Como era
irritante! Ele a abraçou por trás e beijou sua orelha.

— Sai! — disse, encolhendo o pescoço.

— Você quer que eu saia? — ele perguntou.


Ela respirou fundo. Apesar de tudo… a resposta não era óbvia?

— Por que você disse isso? — Apesar das sensações causadas


pelo calor da respiração em sua orelha, Luna não cederia tão fácil.

— O quê? — Ai, como ele era cínico.

— Você sabe o quê.

— Porque você fica linda quando fica com raiva… — sussurrou,


como se apreciasse bastante sentir como os batimentos dela mudavam
assim que ele a tocava.

Luna ficou calada, apenas sentindo o calor da respiração de


Klaaoz. Ele descruzou os braços que a prendiam, colocando as mãos em
cima das dela, o que fez com que parecessem minúsculas embaixo das
dele, e passou a deslizá-las sobre o corpo dela. Lentamente, as levou até
o pescoço e foi descendo até sua barriga, fazendo carícias preguiçosas.

O corpo de Luna não tinha como estar mais tenso e relaxado ao


mesmo tempo.

— Eu fiz uns cálculos — sussurrou ele, abaixando a mão. O peito


de Luna arfou, e foi impossível permanecer de olhos abertos. — Como
um ano na Terra possui 365 dias, o dia tem 24 horas e a hora terrestre
tem a duração de 60 minutos… — continuou, mas ela não conseguia
prestar atenção. Deixou um leve suspiro escapar de seus lábios
enquanto sentia o calor aumentar. — E o ano gagrilyano possui 100 dias,
o dia, 26 horas e a hora, 120 minutos… Levando em consideração que
estamos no ano aureliano 205 D.G. e a Terra, em 2019… Juntando tudo
isso, o dia em que eu nasci nos cálculos da Terra foi aproximadamente
de 10 a 15 de… janeiro? É assim que se fala? — Dito isso, Klaaoz a
soltou, e ela afundou. Quando voltou à superfície, Luna tentou recuperar
o fôlego por alguns segundos. — Então, qual é o meu signo? — ele
perguntou.
— O que você está falando?

Do que ele estava falando?

— Eu disse que descobri o equivalente ao dia em que eu nasci na


Terra. — Ela o encarou de queixo caído, sem acreditar que ele tinha se
dado o trabalho de fazer tudo isso. Depois de um instante de silêncio, ele
abriu um sorriso tênue e declarou: — De 10 a 15 de janeiro. Então, o que
isso diz sobre minha personalidade?

— Você é de capricórnio. Você é chato, emo, frio, calculista e


cético.

— Eu não sou isso. — Ele franziu a testa. — E o que é emo?

— Hum… Emos são… pessoas que gostam de músicas tristes,


passam muito lápis de olho e usam o cabelo assim. — Nessa hora, Luna
esticou a mão e bagunçou o cabelo dele, deixando uma mecha cobrindo
metade do rosto.

Klaaoz jogou o cabelo para trás, igual a um cantor adolescente que


vive causando polêmica costumava fazer, e a agarrou pela cintura.

— E você? Qual é o seu?

— Eu sou de peixes. Somos legais, pacíficos, distraídos e


fantasiosos.

— E nós combinamos?

Ela levou a mão até o queixo. Na verdade, não sabia. Sempre


usava um site para fazer as combinações quando queria.

— Não — falou só para ver sua reação.


— Então, aí está a prova de que isso não existe — ele disse com
0,5 cm de deboche. — Porque eu acho que nós nos encaixamos
perfeitamente.

Quando ele disse aquilo, Luna olhou para aqueles olhos escuros e
teve uma sensação de felicidade tão torrencial que quase ficou tonta. De
que importava se os signos combinavam ou não? O que importava era
que ele tinha tido todo aquele trabalho para calcular a data. O que
importava era que, se ele fosse um cometa e ela fosse um planeta, ele
jamais a deixaria sair da sua órbita. O que importava era que ele tinha lhe
dado o controle.

Luna foi invadida por uma vontade ardente de beijá-lo sem


escrúpulos, e aquele alerta que existia em sua cabeça lhe dizendo para
esperar mais um pouco para ter certeza de que ele era a pessoa certa
pareceu se desligar. Mas quando ela olhou para o braço dele, gelou.

— Ai, meu Deus! — E se afastou imediatamente. Klaaoz a olhou,


confuso, depois olhou para o próprio braço e viu o animal semelhante a
uma água-viva colado nele. Falou um palavrão em gagrilyano, depois
jogou o animal para longe. — Ai, meu Deus — ela repetiu ao ver o
tamanho da queimadura no braço dele.

— Vamos sair.

— Calma, eu assisti a todas as temporadas de Grey’s Anatomy. Eu


sei o que fazer, mas você não vai gostar.

— Quê?!

— É um seriado médico…

— Eu tenho remédios no porta-malas. — Eles saíram da água e


foram até o snowringer, lá ele abriu um compartimento interno, pegou
aquele laser que certa vez usara no tornozelo dela e passou na
queimadura. — É por isso que eu odeio praia — murmurou.
— Mas nós já vamos embora? — Luna perguntou, fazendo a
mesma expressão que Morg fazia quando queria comida. — Não tem
mais nada para ver aqui? Demorou tanto tempo pra gente chegar…

— Tem uma cidade no meio do caminho de volta, mas eu prefiro ir


pra casa.

— Ah, já que estamos aqui vamos dar só uma passadinha. — Ele


a encarou. — Por favor?

— Não.

— Por favorzinho? Vai ser rápido, eu prometo.

Klaaoz revirou os olhos.

Em poucos minutos, chegaram à cidade, que se chamava Zoostilia


e era menor do que a outra que haviam visitado, mas era tão bonita
quanto. A arquitetura seguia o mesmo estilo, tudo em mármore branco,
neoclássico, só que com aqueles detalhes estranhos que a faziam se
lembrar de que estava em outro planeta.

— O que é esse prédio? — Luna perguntou, apontando para uma


grandiosa construção horizontal coberta de neve.

— A prefeitura.

— Podemos entrar? — Ela colocou seu melhor sorriso, e dessa


vez Klaaoz nem tentou discordar.

Por dentro, tudo era tão conservado que ninguém diria que estava
abandonado há centenas de anos. Se retirasse a poeira, poderia jurar
que ainda era habitado. Todo o interior era feito de madeira com textura,
igual à casa de Klaaoz. Luna admirava tudo, fascinada, imaginando como
teria sido na época em que existiam pessoas ali.
— Você já tinha vindo aqui?

— Só na cidade. No prédio, não.

— O que está escrito aqui? — Ela apontou para uma placa em


gagrilyano colada em uma porta.

— Obairkyea significa lugar agradável para cumprir suas


obrigações. E stiùirichekyea significa pessoa de confiança encarregada
de resolver os problemas. Seria o equivalente, nos dias de hoje, à sala do
prefeito.

Quando abriu a porta, Luna viu que era uma sala como todas as
outras.

— Pensei que a sala do prefeito seria mais… chique.

— Por quê? Um prefeito é uma pessoa como qualquer outra. Um


empregado. É um contratado pelo povo para administrar a cidade e tomar
as decisões importantes. Não tem que ter nada de especial. — O
tom de irritação em suas palavras a fez rir.

— Ah, na Terra os políticos são tratados praticamente como


deuses.

— Esse é o grande problema, eles deveriam ser empregados, não


autoridades. — Esse assunto parecia aborrecê-lo bastante.

— E você acha que a solução está no Comando Omega?

— Sim. Não é perfeito, mas é melhor que o modelo atual. Funciona


mais e tem mais disciplina. — Ele realmente parecia acreditar naquilo
que falava.

— Mas, pelo que eu entendi, eles querem uma ditadura. — Ela não
entendia muito, só sabia que eles eram os caras do mal.
— Não existe partido político bom, o que existe é o menos ruim.

— Mas isso significaria impor às pessoas um líder sem elas


escolherem.

— A proposta do Comando Omega talvez seja um pouco radical,


dependendo do ponto de vista, mas é a única que funciona. — É, ele
parecia bem irritado.

— Mas, Klaaoz, as pessoas precisam ter a liberdade de escolher.

— Por que, se elas só escolhem errado?

— De qualquer forma, elas têm o direito. Nossas escolhas são a


coisa mais importante que temos… — começou, mas ele a interrompeu:

— Não comece com essas filosofias de Oberyn, isso é política.


Existem escolhas certas, sim, mas a maioria das pessoas as faz se
baseando em seus interesses pessoais, não num todo.

— Mas, ainda assim, são suas escolhas.

— É, e é por causa dessas escolhas que o governo do Sistema


está cheio de… vigaristas.

— Claro que não devem ser todos vigaristas.

— Só se salva um ou outro. Mas eu garanto a você que 90% dos


que estão lá só buscam benefícios próprios, não desejam realmente fazer
a diferença.

— Mas o que o Comando Omega faz é errado. Bok me disse que


eles praticamente destruíram um laboratório para achar aquela pedra.

— Não dá para agradar todo mundo. Às vezes você tem que ser
duro para poder atingir seus objetivos. — Ele deu de ombros. Ela sabia
que ele fazia parte de uma organização do mal antes de ficarem juntos.
Agora não adiantava reclamar.

— Você, falando assim, nem parece que deixou de fazer parte


deles — ela disse, se lembrando do que ele falara antes de irem para
Gagrilya e quais as razões que ele usara para tentar convencê-la.

Mas ele não respondeu.

Ele não respondeu.

O silêncio havia sido a pior resposta. Por que ele não havia
respondido? As mãos de Luna começaram a formigar conforme seu peito
era invadido por fortes palpitações.

— Klaaoz, você não vai voltar a trabalhar para eles, vai?

Sua hesitação em responder a deixou ainda mais apreensiva. Eles


nunca haviam conversado sobre o futuro porque… por que nunca tinham
conversado?! Talvez porque os dois sabiam que… não existia futuro para
eles?

Luna sentiu um rebuliço no estômago, mesmo já sabendo daquilo


desde o começo.

— Não. Eu não vou. — Ele respirou fundo, agarrando sua mão.

Ela nunca soltou um suspiro tão aliviado.


Antes de irem embora, Klaaoz aproveitou para pegar algumas obras
de arte modernas gagrilyanas que estavam nas paredes do prédio.
Estava as levitando até o snowringer para levá-las para casa quando
Luna perguntou:

— Você não acha que já tem quadros demais na casa? — Como


se seu propósito naquele dia fosse irritá-lo.

— Não, eu não acho. E eu mal posso esperar pelo leilão anual de


Kryk para comprar mais.

— Você não deveria gastar dinheiro com objetos materiais. —


Klaaoz não respondeu. Se respondesse, ela começaria um monólogo
que duraria até o outro dia e, embora gostasse deles, não estava com
cabeça para aquilo no momento. — Sabe, as melhores coisas da vida
não são coisas. — Ele não iria cair nessa. Se a ignorasse, uma
hora ela desistiria. — Existe um provérbio indiano que diz: “você só
possui verdadeiramente aquilo que você não pode perder em um
naufrágio”. — Ignorar. Ignorar. Ele precisava ignorar. Ela estava fazendo
aquilo para discutir. Desde a praia estava querendo brigar. Ele não
poderia cair nessa. — E o que são coisas que você não perderia em um
naufrágio? Livros, viagens, momentos! Coisas que você carregará com
você para sempre mesmo depois que morrer. Por isso que eu digo que
você não deveria gastar dinheiro com coisas materiais. Porque as
melhores coisas da vida não são coisas.

Ele não aguentou mais.


— Eu jamais perderia minhas obras de arte em um naufrágio,
primeiro porque eu jamais as tiraria da minha casa. Mas, caso isso
acontecesse, eu levitaria todas.

Ela fez uma careta, e ele reparou como ela ficava adorável assim.

— Você entendeu o que eu quis dizer.

— Eu acho que você não perderia em um naufrágio qualquer coisa


que seja importante de verdade para você, independe de ser material ou
não. — E levantou as sobrancelhas.

— É, mas, quando você morrer, todas essas coisas vão ficar aqui.

— Que fiquem. Eu as aproveitei enquanto estava vivo, isso que


importa.

— Mas elas não têm valor de verdade, são supérfluas.

— Que sejam. — Ele deu de ombros.

Ela ficou o encarando com aquela expressão que indicava que não
aceitaria perder a discussão.

— Como você é fútil — disse, como se não tivesse argumentos


concretos.

Ai, que criatura irritante. Mas tão lindos os olhos…

— E você egoísta — rebateu com a mesma falta de maturidade.

— Não sou, estou apenas tentando desconstruir seu paradigma.

— Que paradigma? Pare de querer que todo mundo pense igual a


você e de achar que você está certa sempre. Isso é muito irritante.
— Eu só estou tentando mostrar que existem coisas mais
importantes na vida.

— Não tente. Argh! Por que você tem que transformar tudo em uma
briga? — Ela tinha tentado brigar na praia e na prefeitura, finalmente
tinha conseguido.

— Eu não brigo por tudo, apenas falo quando tem algo errado.

— Ok, não tem nada errado, vamos parar de falar.

— Não! — Não adiantava, ela não desistiria.

Klaaoz havia conseguido se manter calmo até ali, mas estava


impossível continuar.

— Por que você está tentando estragar nosso dia?

Luna se calou por um momento e ficou olhando para o chão. Ele


até se sentiu mal por ter dito aquilo.

— Por causa da bola de neve. — Klaaoz revirou os olhos. —


Porque eu prefiro colocar para fora tudo enquanto ainda é uma pequena
bola de neve. Porque vai doer, mas só um pouco. — Ela se abaixou,
juntou com as mãos uma bola de neve e jogou nele. — Você se lembra
daquela bola de neve que jogou em mim? Foi uma questão de segundos
para ela ficar gigantesca. Brigas são desse mesmo jeito. Começam com
uma coisa banal e, se você ficar juntando, sem resolvê-las, terminam se
tornando uma bola de neve gigante e não vai ter como parar!

É sério que ela tinha usado aquilo como desculpa para brigar?!

— Eu não vou fazer isso. Brigue sozinha. Você está querendo


arranjar um motivo para brigar desde que chegamos.
— Não estou, apenas não quero ficar juntando nada de ruim
dentro de mim. E você tem sérios problemas de comunicação. Cuidado
para não ficar sem conseguir respirar, sufocado pelas palavras que não
fala.

Nessa hora, Klaaoz fechou os olhos, sentindo o formigamento nas


mãos começar. O ar ficou rarefeito, mas ele não deixaria aquilo
acontecer. Se recusava a não estar no controle da situação. Eu estou
bem, nada vai acontecer, repetia a si mesmo.

Ficou tentando decidir em que lugar penduraria os quadros que


estava levando. Poderia colocar um na biblioteca e outro na sala de
HoloTV. Esses pensamentos fizeram as palpitações diminuírem, mas seu
estômago ainda estava queimando e, quando abriu os olhos, Klaaoz
observou que Luna saíra de perto dele e fora se sentar em uma calçada
de cara feia.

A tentativa de sequestro dela chegou à mente de Klaaoz, fazendo


sua crise recomeçar. Ele subiu no snowringer e respirou fundo várias e
várias vezes, começando a sentir um pânico causado pela
imprevisibilidade daquelas sensações. Desde que ele havia aprendido a
controlá-las, elas não duravam tempo suficiente para se tornarem
preocupantes. Era só encontrar o que as desencadearam. No fim, nunca
era nada que fizesse sentido de verdade. Ele estava bem, seu poder
estava estável, ele e Luna estavam bem, ninguém a sequestraria ali e
ninguém chegaria em Gagrilya.

Mas quem eram aquelas pessoas? Para quem elas trabalhavam?

Um suor frio escorreu pela nuca de Klaaoz enquanto uma


sensação de tontura o invadia. Dessa vez, era bem mais do que apenas
impulsos sem sentido de que algo estava errado. Não tinha apenas algo
errado. Tudo estava errado. Desde o começo. E não tinha como voltar no
tempo e apagar.

— Você vem? — ele perguntou com a sensação de que iria morrer.


Luna apenas virou o rosto.

— Não. Pode ir, eu vou andando — disse, sem nem ao menos


olhá-lo.
39

39- Eu cheguei primeiro

— Onde está Luna? — perguntou Coisina ao ver Klaaoz entrar


sozinho e com a cara de quem tinha acabado de comer um pote de x-
prax. Ele ficou olhando para ela e Oberyn no hall de entrada com aquele
olhar que indicava que tudo o que mais queria era evitar contato humano
pelas próximas vinte e seis horas gagrilyanas.

— Nós brigamos e eu a deixei lá. É o último endereço no painel —


disse, visivelmente irritado, entregando as chaves para Oberyn.

— Você o quê? — Coisina tinha certeza de que ouvira errado.


Aquilo era demais até para ele.

— Ela que pediu. — Ele lhe deu as costas e se dirigiu para o


quarto.

— E por que você deu ouvidos a ela? Você ainda não aprendeu
que isso tudo é joguinho?

— Como eu vou saber? EU NÃO SEI LER MENTES!

— Você deveria tê-la trazido de qualquer jeito.


— Eu vou buscá-la — avisou Oberyn, pegando as chaves e
saindo, se livrando da situação e deixando Coisina para desarmar a
bomba.

— Eu não vou ficar a obrigando a fazer coisas que ela não quer —
ele gritou das escadas.

— Você a trouxe para cá contra sua vontade e agora, no único


momento em que você deveria realmente intervir, você vem falar de não
a obrigar a alguma coisa? — Coisina não conseguiu se conter. Klaaoz
tirava qualquer um do sério.

Ao ouvir aquelas palavras, ele parou por um instante e se virou


para encarar Coisina.

— Talvez eu não seja mais essa pessoa! — falou com raiva na


voz, tentando esconder o desespero que Coisina já tinha visto tantas
outras vezes, e se virou, lhe dando as costas mais uma vez.

— Klaaoz, espere. Nós precisamos conversar. — Seu tom de


seriedade o fez ficar parado no meio das escadas por um momento,
olhando para o chão como se procurasse uma desculpa por entre os
batentes.

— Eu não tenho o que conversar.

— Ah, tem, sim! E muito. Vamos.

Ele revirou os olhos e suspirou. Ninguém conseguia fugir de


Coisina.

Se dirigiram à cozinha e se sentaram à mesa, mas Klaaoz ficou


encarando o teto, desconfiado, evitando contato visual feito uma criança
que acabara de quebrar o vaso favorito da mãe.
— Klaaoz, o que você está fazendo? — Ele continuou sem olhá-
la. — Sério, o que você está fazendo?

— O que eu faço de melhor. Destruir tudo! — ele explodiu e, junto


com ele, alguns potes de vidro na estante. Coisina já estava tão
acostumada com isso que nem ligava mais. Na verdade, estava era
surpresa pela ausência desses seus arroubos naqueles dias.

Depois ele baixou a cabeça, ela podia sentir a vergonha que ele,
uma pessoa tão metódica e controlada, sentia por não ter o domínio do
próprio poder.

— Você vai perdê-la assim, Klaaoz.

Ele levantou o rosto com um riso de deboche.

— Como eu vou perdê-la se não a tenho? Nunca vou ter! Uma


hora isso vai chegar ao fim e ela voltará para a Capital e se casará com
aquele paspalho.

Coisina revirou os olhos.

— Então, por que você a deixou sozinha?

— Porque eu sou assim! Ela sabia disso quando me conheceu. —


Mais alguns potes se destroçaram.

— Klaaoz, você percebe que não respondeu minha pergunta? O


que isso tem a ver com deixá-la lá?

— Porque eu fiquei com medo e achei que fosse morrer, como


sempre acontece desde que aquela merda aconteceu, e eu não vou
mudar. Eu não posso ser salvo.

Coisina sabia que ser dura com ele lhe custaria mais alguns vidros
de sua amada cozinha, mas aquele era um sacrifício que estava disposta
a fazer. Ele precisava ouvir.

— Klaaoz, desde que eu te conheço, você usa o que aconteceu


como desculpa para justificar todas as coisas impetuosas que faz.

— Eu não… — ele começou, mas ela o interrompeu:

— Supere isso! Pela luz da Energia, deixe para trás!

Ele baixou a cabeça. Coisina sentiu um aperto enorme no peito por


vê-lo assim, mas não cederia.

— Quando nós estávamos em Teyrilia e tentaram sequestrá-la,


eu… perdi a cabeça. Nunca me senti daquele jeito. — Ele suspirou. —
Foi assustador. E eu não consigo pensar em outra coisa. O medo de
fazerem algum mal a ela por minha causa está me consumindo. — Ele
afundou o rosto nas mãos, tentando esconder sua vulnerabilidade. — Eu
não sei mais o que fazer. — Sua voz foi quase inaudível.

Do que ele estava falando?

— Em relação a quê?

Coisina podia ver o conflito interno que ele travava, sabia que
escondia alguma coisa.

— Em relação a tudo! Eu não aguento mais.

— Tudo o quê?

— Tudo. Desde o começo. Está tudo errado.

— O quê, Klaaoz?

— Eu não posso mais fazer isso.


Mais uma vez, ela teve a sensação de que ele estava falando de
outra coisa.

— Então, por que vocês estão juntos? — Ele olhou para os cantos,
como se a resposta não fosse óbvia, o que deixou Coisina irritada. —
Você não consegue pensar em nenhum motivo para ficar com ela,
Klaaoz? — A incapacidade dele de se comunicar era inacreditável.

— Não sei.

— Por obséquio, Klaaoz, nenhum motivo?

Ele respirou fundo, como se demonstrar emoções lhe causasse


mais dor do que um corte na garganta.

— Porque… eu prefiro brigar com ela a beijar outra pessoa. Eu


prefiro ter momentos ruins com ela a ter momentos bons com outra
pessoa. Eu prefiro estar ao lado dela em uma tempestade a estar a salvo
sozinho. Mas eu não sei o que fazer e tenho medo de terminar
cometendo alguma estupidez.

— Sinto lhe informar, mas, quando o coração está envolvido, tudo


que você faz é estúpido.

— Essa droga de poder voltou a ficar assim. Depois de anos… —


Ele respirou fundo, inconformado.

— Arrume essa sua mente bagunçada, Klaaoz. Você já conseguiu


uma vez, se lembra?

— Eu estou tentando, mas às vezes é muito difícil. Você acha que


eu gosto disso? — Ele a olhou, balançando a cabeça. — De ser sempre
o vilão da história? É… exaustivo. — Os olhos dele estavam marejados.
— Se eu pudesse desligar essa coisa dentro de mim, que faz eu me
sentir assim, eu desligaria. Mas não tem como.
— Tem, sim. Você já conseguiu uma vez. Me diga uma coisa, você
a ama?

Ele balançou a cabeça como se aquela fosse uma pergunta


estúpida de se fazer.

— Às vezes eu acho que tomaria doses semanais de gorgana só


para garantir que meu poder não iria se descontrolar e ela pudesse ficar
segura ao meu lado.

Coisina não sabia o que dizer. Ela sabia o que ele falava sobre
quão doloroso era ter gorgana no organismo. E se ele estava dizendo
isso…

— Bom, ela também obviamente ama você, senão não estaria te


aguentando até agora. — Ele riu. — Então por ela, se você gosta dela de
verdade, vai conseguir se controlar. Quando duas pessoas realmente se
importam uma com a outra, sempre encontram um jeito de fazer dar
certo, não importa quão difícil pareça. Elas se recusam a desistir uma da
outra.

Luna estava sentada na calçada, olhando para o chão coberto de


neve, ainda sem acreditar que Klaaoz tivera a capacidade de deixá-la
sozinha, quando Oberyn apareceu.

Sabia que ele viria com alguma de suas filosofias hippies para
tentar justificar o eminente fato de que Klaaoz era um completo idiota e
não admitir que se ela tivesse um pingo de juízo iria embora dali e
arranjaria uma ordem judicial para ele não poder se aproximar dela.

— Você acredita que ele teve coragem de me deixar aqui? — disse


ao subir no snowringer. Oberyn não respondeu, mas ela continuou a falar
sem parar.

Falava qualquer coisa que lhe vinha à cabeça: como aquilo tinha
sido demais até para ele, que ainda não acreditava que ele tinha feito
aquilo, como ele era idiota por ter opiniões tão certas sobre tudo, que ela
tinha apenas dezessete anos e não deveria ter que passar por aquele
tipo de situação, entre outras coisas.

Na metade do caminho, Oberyn parou o veículo e falou:

— Luna, não está dando para ouvir nada do que você está falando
por causa do vento. Quando chegarmos em casa, podemos conversar se
você quiser.

Assim que chegaram em casa, Oberyn foi direto para o escritório,


mas Luna precisava fazer uma coisa antes e subiu depressa as escadas.

— VOCÊ É RIDÍCULO, NUNCA MAIS ME PROCURE! ESTOU


FALANDO SÉRIO! — gritou, batendo na porta de Klaaoz com o sangue
fervendo. Tentou girar a maçaneta, mas estava trancada.

Oberyn apareceu atrás dela.

— Luna, coma um ceecolini — disse calmamente e foi tentando


levá-la para o escritório, mas ela não lhe deu ouvidos.

Morg apareceu e ficou voando ao seu lado, provavelmente irritado


com todo aquele escarcéu.

— VOCÊ SABE QUE SEU DONO É A PESSOA MAIS IDIOTA DO


UNIVERSO, NÃO É? — Ele apenas a olhou com os olhos arregalados e
emitiu um grunhido, que significava algo como: “eu sei, mas nós
gostamos dele”.

De repente, Luna sentiu uma parede a afastando dali. Como


Klaaoz ainda tinha a audácia de fazer isso? Uma fúria enorme aqueceu
seu peito enquanto ela lutava contra a parede que a puxava para longe
do quarto dele.

— Eu que estou criando um campo de força para puxar você, Luna


— Oberyn disse.

Mas ela nem ouviu. Seus olhos escureceram conforme a


respiração começava a ficar pesada. Sentiu aquela sensação de ser
teletransportada enquanto seu corpo fervia. Luna fechou os olhos, mas
não foi a voz de Klaaoz que ecoou em sua mente. Sem entender o que
estava acontecendo, ela abriu os olhos e se deparou com Oberyn caído
no chão, petrificado. O que ela havia feito?

— Desculpe, eu… — Ela foi até ele, ajudando-o a se levantar.

Oberyn ficou calado por alguns instantes. Luna já estava se


preparando para ouvir um esporro, mas ele apenas começou a rir.

— Bom, pelo menos agora descobrimos qual o seu gatilho para


acessar o poder. — Ela tentou forçar um sorriso, mas ainda estava muito
alterada. — Eu devia ter imaginado que era raiva. Quer tentar de novo?

Ela engoliu em seco, depois fechou os olhos. A mesma sensação


de antes rapidamente a invadiu. Ela mentalizou Oberyn descendo as
escadas.

— Pela luz da Energia! — ouviu a voz dele ao longe. Quando Luna


abriu os olhos, ele estava no andar debaixo. — Vamos para o escritório.
—Chegando lá, cada um se acomodou em uma cadeira, e ele começou:
— Eu não estou nem acreditando que você realmente conseguiu. Vamos
tentar de novo. — Mas ela não estava tão feliz quanto ele com sua nova
conquista.

— Em outro momento. — Ele a olhou, como se finalmente se


lembrasse do que estava acontecendo antes.

— Certo. Desabafe — falou, um pouco receoso, como se estivesse


com medo de não conseguir sair dali a tempo do jantar.

Luna suspirou.

— Klaaoz acha que só a opinião dele é certa e a de mais ninguém.


Você sabe o quão frustrante é isso?

— A respeito de quê?

— De tudo! Você acredita que ele acha certo o que o Comando


Omega faz?

Oberyn balançou a cabeça.

— Eu realmente não entendo essa opinião política de Klaaoz. Mas


acho que nem ele acredita totalmente no que fala.

— Ele disse que as pessoas não deveriam ter direito de votar!

— É, eu já falei a ele que o Comando Omega continua o mesmo,


mas minha teoria é que ele não consegue enxergar as coisas com muita
clareza.

— Continua o mesmo? Como assim?

— O Comando Omega começou como um grupo rebelde há


muitos anos, depois se transformou num partido político. Foram eles que
conseguiram derrubar a opressora dinastia gagrilyana. Se lembra
daquela planta que vimos quando fomos na cidade? Gorgana?
— Me lembro.

— Foi a utilizando que conseguiram dominá-los. A gorgana é


capaz de cortar nosso poder por alguns dias, então, em pouco tempo,
todos os governantes gagrilyanos foram aniquilados. Mas depois disso, o
Comando começou a perseguir as pessoas comuns, até as crianças. Foi
um período sombrio na história.

Luna estremeceu. Nunca tinha lido essa parte nos livros.

— Nossa, por isso que Mira disse que não existe quase mais
nenhum gagrilyano…

— É. Foi uma verdadeira aniquilação. A população começou a


perceber que talvez o Comando Omega fosse pior do que os
governantes gagrilyanos. Começaram a fazer muitos protestos, revoltas,
guerras e, por fim, o Comando Omega saiu do poder e foi instaurada a
democracia.

— Mas, se perdeu o poder, como ainda existe?

— Eles se instalaram em Vindemiatrix, participando do Sistema de


uma forma mais… simbólica, digamos assim. Ninguém se metia nos
assuntos deles, e eles não se metiam nos assuntos do resto do Sistema.
Mas, há alguns anos, um homem chamado Zuuvak Vontees decidiu
reestruturá-lo, alegando que as propostas são diferentes e que eles
querem ter mais participação no senado e também concorrer à
presidência, que não existirá mais perseguição aos gagrilyanos… — Ele
baixou a cabeça, suspirando. — Até porque estamos praticamente
extintos.

— E o que eles querem exatamente?

— Um regime fechado. Uma ditadura.

— E você acha que isso é certo?


— Claro que não. E eu desconfio de que Klaaoz também não
ache. É como se ele só quisesse ficar contra o pai, independente do que
isso seja.

A cena de Klaaoz e o pai na festa invadiu a mente de Luna.

— Por quê?

— Bom, quem sabe? Por que você não pergunta a ele?

— Como se ele falasse… Hoje eu tentei dizer a ele para não


gastar dinheiro com quadros, que isso era futilidade, e ele me chamou de
egoísta! Você concorda que não devemos gastar dinheiro com objetos
materiais, não é?

— Bom, eu concordo, mas essa é apenas a minha opinião.

— Mas é o certo, e ele não consegue enxergar.

— Só você é capaz de julgar o que é importante para si mesma.


Se ele gosta de quadros, deixe-o. Se você gosta de livros, compre livros.
Ninguém pode dizer como as pessoas devem viver, Luna.

— Mas você me ensinou que…

— Que você pode pensar o que quiser, contanto que tenha


consciência de que o que você pensa não é a única coisa certa que
existe. É isso que eu estou tentando lhe ensinar desde que te conheci.
Eu não quero que você pense igual a mim, eu só quero que pense.

Luna não sabia muito bem o que responder. Ela estava se


achando a desconstruidora de paradigmas, mas será que esse tempo
todo não estava apenas reproduzindo automaticamente, sem pensar,
tudo que Oberyn falava?
Ficou o observando enquanto ele a olhava como se pacientemente
a esperasse digerir aquele turbilhão de informações. Ele sempre sabia a
coisa certa para lhe dizer sobre todos os assuntos da humanidade. Ele
era, literalmente, a pessoa mais… sábia e sensata que ela conhecia.
Será que era por isso que resolvera se isolar e viver longe de todos?
Será que o caminho para o conhecimento e a verdadeira sabedoria seria
viver sozinho?

Por alguns instantes, Luna se imaginou indo morar no planeta dele


no meio do nada. E imediatamente concluiu que enlouqueceria em
menos de uma semana.

— Oberyn, você é tão sábio e inteligente… Por que você não é


casado?

Ele franziu o cenho.

— O que casamento tem a ver com realização pessoal?

Ela riu.

— Não, o que eu estou querendo dizer é que… você é muito legal,


sábio e tudo mais. Por que você mora sozinho lá naquele planeta? Você
não tem ninguém especial que… roube seu bom senso e… enfim, você
entendeu.

Seu olhar ficou perdido, parecendo ir para muito longe.

— Eu tinha…

— Eu sabia! No dia em que eu te conheci, sabia que você era


daquele jeito por causa de problemas amorosos!

Ele a encarou, mas sem a irritação que normalmente teria.

— Não foi exatamente assim. Ela morreu.


Luna se encolheu na cadeira.

— Ah… — Que gafe enorme. Nunca mais iria falar nada. Ela que
estava precisando se refugiar de tudo para ver se adquiria um pouco de
noção. — Eu sinto muito… Eu não sabia. Desculpe.

— Já faz… vinte e cinco anos gagrilyanos. — Ele verdadeiramente


não pareceu ofendido, o que a deixou muito aliviada.

— E você mora lá desde que ela morreu? — Ele assentiu. — Você


não acha que foi pior? Tipo, se você estivesse ao redor das pessoas de
que gosta, talvez… fosse mais fácil lidar com a perda. Mira, por
exemplo… Quando eu a conheci, percebi que ela sentia muito sua falta.
Queria até que eu o convencesse a voltar para a Capital.

Oberyn balançou a cabeça negativamente.

— Eu não falo com ela desde esse tempo. — Luna engoliu em


seco. Ela havia notado alguma coisa estranha no dia em que o
conhecera, ele parecia ter ficado irritado quando Luna dissera que Mira
quem a enviara. Mas ela achou que fosse só porque… bom, uma pessoa
desconhecida chega na sua casa no meio do nada, pedindo aulas e
moradia. Quem não ficaria irritado? — Eu costumava achar que era culpa
dela. Mas hoje vejo que não.

Luna não sabia se deveria se intrometer ou não. Mas seu coração


lhe dizia para ser sem noção. Ele sempre dizia isso.

— Sabe, eu odiava as pessoas do meu colégio porque elas me


acusavam de mentir. Mas hoje eu vejo que… elas simplesmente não
tinham como saber que eu tinha lido a mente da garota. Então, resolvi
parar de culpá-las. Não guardo mais nenhuma mágoa delas. Se elas
estivessem pegando fogo e eu tivesse um copo d’água, eu daria a elas.
Em outros tempos, eu provavelmente jogaria a água no chão. — E riu. —
Então… se eu consegui perdoá-las, acho que você também consegue
perdoar Mira.
Ele deu uma longa pausa.

— É, acho que farei isso…

— E também deveria superar essa pessoa que morreu, instalar


algum aplicativo de namoro tipo o Tinder daqui, sei lá. Tenho certeza de
que ela iria querer que você fosse feliz.

— Sim, iria, sim… — ele falava tudo com uma serenidade no olhar
que indicava que realmente gostava muito daquela pessoa. — Obrigado
pelos conselhos, Luna. Acho que eu estava precisando.

Ela não conseguiu conter seu entusiasmo.

— Parece que o jogo virou, não é mesmo? Quem diria, eu lhe


dando conselhos?! Se alguém lhe dissesse que aquela garota que
chegou na sua casa uns meses atrás um dia estaria lhe dando
conselhos, você jamais acreditaria, né?

Ele riu.

— É… Você está se tornando uma pessoa muito sábia. Seus pais


ficariam muito orgulhosos em tê-la como filha. — Os olhos de Luna se
encherem de lágrimas e, para não começar a chorar na frente dele, ela
se despediu, mas, antes que saísse do escritório, ele falou: — Só mais
uma coisa… aithneachadhkyea. — Aithneachadhkyea é um ditado
gagrilyano usado para indicar que, quando uma pessoa fizer algo de
ruim, você não deve se esquecer de todas as coisas boas que ela já fez.
Conversar com Oberyn a havia desestressado, mas enchera a
cabeça de Luna de dúvidas sobre outro assunto. Agora estava em seu
quarto lendo um livro sobre a queda da dinastia gagrilyana e o
surgimento do Comando Omega:

Mirandynus Lynxzarsfeld, o último governador de Caelestra na


dinastia gagrilyana, entregou para o Comando Omega enormes
quantidades da antiga planta gorgana, que é capaz de cortar os poderes
dos gagrilyanos. Relatos indicam que Mirandynus retirou amostras da
planta no lendário planeta Gagrilya, o qual teria localizado por meio das
coordenadas geográficas contidas em um livro que possuía em sua casa,
escrito pelo primeiro governador de Caelestra no início da Era A.G.. O
acordo era que o Comando Omega usasse a gorgana exclusivamente
para destruir o impetuoso imperador, Knox Acrux-Alderaminn III, e acabar
com as atrocidades cometidas por ele em seu governo.
Mas depois de matá-lo, o Comando Omega resolveu usar a
gorgana para matar também toda a família do imperador, alegando que
seus parentes estavam corrompidos. A partir de então, um clima de
desespero tomou conta do planeta. Pessoas que possuíam qualquer
parentesco com Alderaminn III começaram a deixar a atual Capital do
Sistema e pedir asilo a planetas vizinhos, ação que ficou conhecida como
Exílio de Delta Mizar.
Nesse contexto, um fato curioso dessa história merece destaque:
todos os parentes de primeiro grau do imperador foram mortos, porém, o
seu filho mais novo, que na época era apenas um bebê, não foi
encontrado. Os soldados do Comando Omega afirmaram que, antes de
ser morta por eles, a esposa do imperador confessara que havia
mandado o filho caçula com a babá para Osnea, onde ele seria protegido
pelo governador do planeta.
Usando o pretexto de capturar o herdeiro do imperador, os soldados
do Comando Omega dirigiram-se a Osnea, onde também torturaram até
a morte o governador e seus familiares, mas o bebê não foi encontrado, o
que levou o Comando a invadir os demais planetas do Sistema Gamma
Aurellius, declarando guerra aos seus governadores. Todos foram
facilmente aniquilados pelo uso da gorgana, que os tornava presa fácil
para seus adversários.
A população comum de gagrilyanos revoltou-se com tamanha
atrocidade, passando a fazer protestos contra os métodos utilizados pelo
Comando. Entretanto, os protestos não surtiram o efeito desejado: em
vez de rever suas táticas de ação, o Comando passou a perseguir todos
os gagrilyanos.
O único planeta que ficou livre da aniquilação foi Caelestra. Muitos
ainda tentaram fugir para lá, mas poucos conseguiram.
Mirandynus Lynxzarsfeld não conseguiu conviver com a culpa de
ser indiretamente responsável pela morte de tantas pessoas inocentes e
tirou a própria vida.
Luna desligou o livro sem fôlego, sentindo vontade de vomitar.

A história daquele lugar parecia uma tragédia grega, era pior do


que qualquer coisa que já ouvira. Sentiu pena dos gagrilyanos e ódio
mortal do Comando Omega.

Como Klaaoz ainda tinha coragem de defendê-los?

De repente, seu Holophone apitou. Leu a mensagem vinda de um


número que ela desconhecia:

Cinco segundos depois, chegou outra mensagem:


Dez segundo depois, mais outra:

Mais dez segundos:

E cinco segundos depois:


Depois a louca sou eu, Luna pensou. Como ele havia conseguido
seu número? Não importava, ela apenas ignoraria. Ignorar era sempre o
mais sensato a se fazer.

Pena que sensatez era uma coisa da qual ela carecia.

Ela enviou a mensagem sabendo que, infelizmente, aquilo estava


longe de ser verdade apesar de toda a raiva que nutria por ele naquele
momento.

Poucos segundos depois, bateram à porta.

— Vá embora! — ela gritou.

Mas era apenas Rys, que também carecia de sensatez e entrou no


quarto mesmo assim.
— Oi, acabei de ler uma notícia dizendo que Z’ohannah vai ganhar
um programa novo só pra ela — ele falou, animado.

— Que bacana. — Por mais que gostasse de Z’ohannah, Luna não


conseguia partilhar da animação dele.

— Parece que será um reality show acompanhando a vida dela


nas melhores festas no Sistema.

— Que legal.

— Nossa, eu ainda não consigo acreditar que eu não a conheci…


— Ele suspirou.

— É… — Dessa vez, a resposta dela foi tão fraca que, mesmo ele
estando distraído em seu ataque de fã por Z’ohannah, não deixou de
notar.

— E o que foi isso hoje com Klaaoz? Vocês dois são uma novela
teyriliana.

Ela o encarou de boca aberta.

— Não teve graça.

— Ah, mas ele jamais te deixaria sozinha se soubesse que era


perigoso.

— Sinceramente, não sei.

Ele ficou calado alguns instantes.

— Luna, me poupe. Ele te ama, isso você não pode negar.

— Não, ele nunca disse.


— Ah, mas ele demonstra. É óbvio até para Nicoy, que é
auzuniano.

— Ele me ama de um jeito que eu não compreendo.

Rys ficou olhando para a parede por alguns segundos.

— Mas você não quer fazer as pazes mesmo? Nunca?

O sangue de Luna ferveu. Como ele sabia disso?

— Eu aposto que ele mandou você vir aqui sondar, não é?

— Quêêê? Não! — A teatralidade em sua voz entregou tudo.

— Jura?

— Juro.

Ela o encarou.

— Se você estiver mentindo, Z’ohannah vai morrer.

Ele ficou pálido.

— Não, escolha outra coisa para eu jurar. — Ela suspirou, mas


esboçou um sorriso. — Ok, vou indo. Tome um banho, você está muito
estressada — ele disse e foi embora.

Luna decidiu seguir o conselho de Rys e foi para o melhor lugar


que existia para tentar pôr os pensamentos em ordem.

— Eu acabei de mandar uma mensagem para Klaaoz dizendo que


não quero ser mais nada dele — falou mais para si mesma do que para o
chuveiro na tentativa de acreditar um pouco nas próprias palavras. Falar
coisas em voz alta fazia com que elas se tornassem verdades.

— E você realmente quer isso? — perguntou Freud.

Ela engoliu em seco. Não, pensou. Mas deveria.

— É o melhor a se fazer — tentou se convencer. Uma mentira


contada cem vezes se tornava uma verdade. Só faltavam noventa e oito.

— Existe alguma razão específica para isso?

— Dessa vez, ele foi longe demais. Ele defende o Comando


Omega apesar de tudo. E ele simplesmente foi embora e me deixou
sozinha na cidade. Oberyn que foi me buscar depois.

— Por que ele fez isso?

— Porque ele é um idiota.

— Se ele é um idiota, então por que você gosta dele? — rebateu,


deixando-a sem palavras e fazendo aquele ser o banho mais curto da
vida dela.

Por quê?, Luna se perguntava, deitada, olhando para o teto. Por


que diabos gostava dele?

Ele era uma pessoa horrível, e ela sabia. Mas mesmo assim
insistia em gostar. Seu cérebro certamente tinha algum defeito ou ela era
realmente louca.

Bok jamais a deixaria sozinha e iria embora. Ele era um príncipe.

Já Klaaoz… estava mais para o dragão que a prendera em uma


torre.
Luna foi acordada com batidas na porta. Dessa vez, era Klaaoz. Ela
rapidamente pegou o livro que estava lendo antes e o mandou entrar,
fingindo estar concentrada na leitura.

Quando ele se pôs na frente dela, Luna conseguia até sentir seu
olhar a penetrando, mas não ousava tirar os olhos do livro e encontrar os
dele. Era aquele tipo de olhar.

— Pare de me olhar desse jeito.

— De que jeito? — ele perguntou, sabendo exatamente de que


jeito a estava olhando.

Quando ele levitou o livro de sua mão, o sangue de Luna ferveu. A


cada dia que passava, sentia mais raiva quando ele fazia isso.

— Pare de fazer isso! Nunca mais use seu poder em mim! — ela
explodiu inesperadamente. — Eu não gosto disso. Seja para me puxar
até você, seja para tirar alguma coisa da minha mão. Estou farta. —
Sentimentos reprimidos desde o começo vieram à tona nessa briga que
estava se tornando uma bola de neve gigantesca. Não deveria ter juntado
tantas coisas. Ela estava se sentindo… saturada.

— Olha, eu uso meu poder para fazer tudo desde sempre. Isso é
tão normal para mim como respirar. E você nunca me disse que não
gostava. — Ele ergueu as sobrancelhas, um sorriso enviesado na face.
— Você deveria saber!

— Desculpe, eu não posso ler mentes. Você precisa ser mais


direta — disse com petulância.

Luna o encarou. Se ele estava triste, arrependido ou ao menos


balançado, não demonstrava. Se era por orgulho, por frieza sincera ou
porque simplesmente não dava a menor importância para os seus
sentimentos, ela jamais saberia.

Depois de alguns segundos, aqueles olhos escuros suavizaram um


pouco e um sorriso surgiu no canto da boca de Klaaoz.

— Eu vim te mostrar isso. — Ele levitou um tipo de tela de vidro, e


ela quase desmaiou de tanto que se esforçou para não rir. “Vamos ser
nada, já que nada dura para sempre”, estava escrito. — Eu sei que você
gostou e sei que quer rir. Sei também que quer tirar uma holofoto. Sei
que você não acredita em uma palavra que falou. Sei que você
provavelmente conversou com o chuveiro e isso a desestressou. Tudo
isso eu sei, mesmo sem conseguir ler sua mente.

Ela respirou fundo.

— Não. Isso não é suficiente para eu te perdoar. Você me deixou


sozinha, Klaaoz.

Ele entreabriu os lábios, como se fosse ele o ofendido.

— Você me disse para fazer isso — rebateu.

— Mas você não deveria. Isso é mais uma coisa que você deveria
saber. — Ela esfregou as têmporas. Não iriam chegar a lugar nenhum.

— Mas você disse!

— Podia ser perigoso, Klaaoz!


— Mas eu sabia que não era. — Estreitou os olhos e deu aquele
sorriso, como se soubesse de tudo sobre tudo e nunca estivesse errado.

Luna suspirou. Doeria em todas as células do seu corpo o que


estava prestes a dizer, mas precisava fazê-lo.

— Eu quero ir embora daqui.

Quando ela disse isso, Klaaoz pareceu congelar, o sangue


abandonou seu rosto, seus olhos se arregalaram, desfazendo a máscara
fria e calma que mantinha desde que entrara ali. Ele tentou falar alguma
coisa, mas as palavras saíram atravessadas.

— Não — disse por fim. Parecia assustado, desesperado,


autoritário, arrogante, ela não conseguiu interpretar. Mas deixava claro o
que ela era. O que ela ainda era.

— Não o quê? Você não vai me deixar ir embora? Vai continuar me


fazendo de prisioneira? — O ardor já subindo o nariz, Luna não
conseguia crer naquilo. Sua cabeça começou a latejar e sua vista, a
embaçar.

Klaaoz balançou a cabeça, suspirando, como se tivesse esquecido


como Luna havia chegado ali ou quem ele costumava ser e o que tinha
feito.

— Eu quis dizer não de não vá. — Seu olhar junto daquelas


palavras… se ela não o conhecesse, pensaria até que ele estava
implorando. — Se você quiser ir, eu a levo. Para onde você quiser. — Ele
deu de ombros, sua voz parecia arrogante e trêmula ao mesmo tempo. —
Mas, por favor, não queira. Fique. Vamos fazer isso.

— Isso o que, Klaaoz? — Luna não conseguiu segurar as


lágrimas. E não sabia nem por que estava chorando.

— Isso. — Ele gesticulou com as mãos ao redor.


— O que é isso, Klaaoz? — Parecia que ela estava exigindo uma
resposta quando nem ao menos compreendia a pergunta.

— Eu também não sei. — Seus lábios se contorceram enquanto


ele, mais uma vez, dava de ombros e desviava o olhar. — Mas… — a voz
dele era quase inaudível, como se relutasse em dizer as próximas
palavras. — Eu não quero que isso acabe.

Luna olhou bem dentro dos olhos dele e, quanto mais olhava,
menos entendia. Era como se ele fosse uma palavra difícil demais de
traduzir. Uma fórmula matemática confusa demais de entender. Uma
história complicada demais de explicar.

— Por quê? — Ele contraiu os lábios, fechou os olhos e deixou cair


os ombros, perdendo a postura de poder. A respiração parecia presa no
seu peito. — Me dê pelo menos uma razão, Klaaoz.

Mas ele não iria falar. Ele ainda era incapaz de falar. Porque não
sabia, porque não queria ou porque não havia razão. E nenhuma razão
para ficar é um bom motivo para partir.

— Porque eu… preciso disso. Seja lá o que isso for — ele disse.
Algo no fundo do estômago de Luna se revirou, e seu peito pareceu ficar
apertado demais ao ouvir aquela afirmação tão… inesperada e ao
mesmo tempo tão… paradoxalmente recíproca e perigosamente
inconstante.

Ele a fitou, totalmente desarmado, com aquela intensidade no


olhar. Aquela maldita intensidade.

— Nós já tentamos trinta vezes, Klaaoz.

— Vamos tentar trinta e uma então. — Em gestos lentos, ele


colocou o cartaz de lado e se deitou junto a ela, abraçando-a por trás.
Tudo com cautela, como se estivesse esperando para ver se ela o
expulsaria. Ela queria que ele fosse embora, mas ao mesmo tempo que
ficasse. Como era confusa e frustrante a controvérsia que ele causava
em seus sentimentos. — Trinta e duas, trinta e três… quantas vezes for
preciso, mas, por favor, nunca vamos parar de tentar. — A voz dele era
um mero sussurro, sua respiração acariciava o rosto dela, todos aqueles
sentimentos tão devastadores e reveladores começando a invadi-la.

— Você não vai nem ao menos se desculpar? — ela perguntou,


tentando lutar contra o estremecimento que a percorria.

— Olha, eu prefiro tentar realmente consertar as coisas a ser


apenas bom em usar a palavra desculpa — disse, a boca na orelha dela.
— Mas se você realmente ficou sentida com isso, então me desculpe. —
Ela não respondeu e, depois de um momento em silêncio, ele disse: — E
você não vai nem ao menos se desculpar?

— Pelo quê? Você que me deixou lá.

Ele a virou e a encarou.

— Você faz isso para ver até onde eu aguento? Porque se sim,
você vai ter que se esforçar bem mais do que isso, porque eu não vou
desistir facilmente. — E deu um sorriso indulgente. — Mas, por favor,
pare de fazer joguinhos.

Luna piscou algumas vezes, se dando conta daquilo pela primeira


vez.

— Certo. Me desculpe.

Klaaoz continuou a olhando bem dentro dos seus olhos. Tudo que
o envolvia tinha sempre uma intensidade tão grande e perturbadora, uma
sensação de pertencimento tão paradoxal… Ele não falava nada, só a
fitava e, mesmo assim, ela sentia que tinham uma conexão, talvez mental
ou espiritual, mas que certamente transcendia a mera atração física. Era
mais do que joguinhos de sedução baseados em afinidades superficiais.
Era como se ele a fizesse ver a vida sob uma luz mais clara e mais
intensa. Uma luz tão forte que a fazia sentir que estava se aproximando
de uma possível verdade sobre si mesma.

Os dois ficaram deitados assim por tanto tempo que perderam a


noção das horas. Sem falar nada. Apenas se olhando.

— Sabe, um dia meu príncipe irá chegar — ela disse.

— É, mas eu cheguei primeiro. — E abriu um sorriso de 0,5 cm


que a fez entender por que a princesa se apaixonou pelo dragão que
costumava mantê-la na torre.

Não tinha jeito. Ela realmente estava perdida e não queria ser
encontrada.
40

40- Pinte-me como uma de suas francesas

Oberyn sentiu seu corpo ficar invisível e depois reaparecer. Seu


braço se levantou. Deu alguns passos até a porta. Dançou uma dança
esquisita.

— Estou impressionado — ele disse, a voz embargada de emoção.

— Eu que estou impressionada, não sabia que você sabia dançar


Macarena tão bem — Luna disse enquanto as mãos dele continuavam
indo para frente, para os ombros, para a cintura e para a cabeça, seu
corpo se virando.

— Tente controlar minha voz — pediu. — Desse jeito? — ele


próprio respondeu. Impressionante. — Luna, você é, sem sombra de
dúvidas, a melhor aluna que eu já tive. — Ele não estava falando isso.

— Nossa, obrigada, Oberyn! Eu estou lisonjeada — ela respondeu


usando a própria voz.

— Como você está fazendo para conseguir usar tão bem o seu
poder?

— Bom, às vezes eu penso no que os gagrilyanos fizeram. Às


vezes penso no que o Comando Omega fez. Penso na política do meu
país, nos absurdos do mundo em geral, nas coisas que me deixam com
muita raiva… E aí eu consigo.

Oberyn ficou a observando com o queixo caído. Ele sempre


soubera que ela era capaz, apenas era desinteressada e preguiçosa.
Quem diria que um quase sequestro seria a coisa que a faria acordar
para a vida? Em uma semana, ela treinou ardorosamente, não fez nada
além disso, e aprendeu a usar a outra parte do seu poder. Parecia até
outra pessoa. Não tinha mais nada da garota desinteressada e sem
ambições que ele conhecera estações atrás.

— Luna, eu acho que nós acabamos. Sinto por não ter mais nada
para te ensinar — ele disse e, ao se dar conta disso, sentiu uma tristeza
o invadir, o que era estranho, já que, no começo, tudo o que mais
desejava era que ela aprendesse a usar o poder para ele poder voltar à
sua vida.

Os olhos dela ficaram marejados.

— Claro que tem. — Seu tom era zombeteiro.

— Não. Você aprendeu a usar seu poder totalmente. Você lê


pensamentos, consegue entrar na mente das pessoas, controlar seus
movimentos, suas falas… — Oberyn disse. — E suas expressões faciais.
— Luna completou por meio dele, que fez uma careta involuntária.
Oberyn estava, realmente, muito impressionado.

— Mas… eu gosto tanto de suas aulas. Eu odeio estudar, mas


amo aprender. Eu não quero que elas acabem. — Ela pareceu surpresa
com suas próprias palavras.

— Você não quer que as aulas acabem ou você não quer ir


embora daqui?

Ela olhou para os lados, tensa. Ele podia quase ver através dela.
— Os dois.

— Por mais que aprecie minha estadia aqui, sinto falta de Plutopra.

— Aquele meio do mato?

— Existem riquezas além da floresta, você apenas não chegou a


ver. Se um dia quiser me visitar, será muito bem-vinda.

— Por que você não vai para a Capital? Que eu me lembre, você
disse que iria fazer as pazes com Mira. Podemos todos ir para lá, tenho
certeza de que tem coisas mais interessantes do que em Plutopra.

— Luna… — Ele suspirou. Odiava ter que ser a pessoa a lhe dizer
isso, mas ela precisava se recordar. — Klaaoz não pode entrar na
Capital. Você está ciente disso, certo? E em nenhum outro planeta.

Os olhos dela se encheram de lágrimas mais uma vez. Ele sabia,


não deveria ter dito aquilo. Oh, cosmos. Mas àquela altura ela já deveria
saber.

— Não tem problema. Nós ficaremos aqui. Tem muita coisa pra se
conhecer ainda. — Ela poderia estar segurando as lágrimas o quanto
fosse, mas era impossível disfarçar a voz embargada e pesarosa com
que proferia aquelas palavras. O que ele poderia dizer? Ela sempre o vira
como seu sábio mentor, que falava as coisas de que precisava ouvir, não
as que queria. Ele podia quase ver em seus olhos o que ela queria, o que
precisava, o que achava que queria e o que achava que precisava. E
tudo apontava para as direções mais opostas possíveis.

— Luna… se você deixar de fazer as coisas que você quer por


causa de alguém, você estará apenas se enganando e, quando chegar lá
na frente e olhar para trás, talvez se arrependa. — ele falou o que ela
merecia ouvir.
— Estou bem, sério. — A voz saiu fraca, ainda segurando aquelas
lágrimas.

Ele suspirou.

— Você se lembra daquela pessoa de quem eu falei, por quem eu


possuía muito afeto?

— Me lembro.

— A coisa que eu mais apreciava a seu respeito era que ela


nunca, nunca deixava de seguir seu coração. Ela cometeu muitos erros
por conta disso, talvez tenha se arrependido, talvez não. — naquele
momento eram as lágrimas dele que ameaçavam cair. Já fazia tantos
anos, mas pensar em Lyrian ainda continuava a ser uma coisa muito
dolorosa. — Mas ela foi a pessoa mais livre e ao mesmo tempo mais
sozinha que eu já vi. Ela possuía o poder de se teletransportar, e eu
nunca vi alguém amar tanto o próprio dom. Você me lembra muito ela. —
Principalmente fisicamente, ele pensou. Talvez a semelhança entre elas
tenha sido o que o fez aturar Luna todos os dias quando ela não
demonstrava um pingo de interesse em aprender a usar o poder. — Só
que ela tinha tanto medo de não ser livre que acabou sozinha. E você
parece que tem tanto medo de ficar sozinha que não consegue ser livre.

Luna baixou a cabeça, uma expressão de tristeza no rosto.

— Eu passei minha vida inteira sozinha, Oberyn. — Os olhos dela


continuavam marejados. — Eu não quero me sentir assim de novo. Eu
nunca me senti tão feliz como eu me sinto agora. Eu poderia pular e gritar
no sofá de Oprah dizendo como eu me sinto feliz e como eu amo aquele
idiota. Ele nunca… me completou, sabe? Mas ele foi a pessoa que me
fez enxergar que eu era completa quando eu tinha esquecido. E eu não
estou deixando de seguir meu caminho por causa dele. Eu tenho a
liberdade de seguir o caminho que eu quiser. E estou escolhendo esse
porque eu quero. Essa é minha escolha. Talvez daqui a uma semana eu
mude de ideia, mas no momento é isso. Todos vão achar que eu não sou
uma pessoa livre se eu escolher ficar aqui por causa dele? Que achem.
O peito de Oberyn arfou enquanto ele se dava conta de quão
errado estava em relação a tudo, e ele nunca se sentira tão feliz em fazer
tal constatação. Se você acha que está certo o tempo todo, não aprende
nada. Talvez, no fim das contas, aquela garota tenha lhe ensinado bem
mais coisas do que ele a ela.

— Você não vai ser uma pessoa livre se fizer suas escolhas se
importando com o que os outros vão pensar.

— Não existe prisão maior do que essa, não é mesmo? — Luna


abriu um sorriso, que Oberyn retribuiu, orgulhoso, sentindo que sua
missão havia sido cumprida. E ela continuou: — Eu não pretendo morar
aqui para sempre. Um cara em Teyrilia me convidou para fazer um
comercial, e eu pretendo usar o dinheiro para viajar pela Terra em breve.
Mas viajar não é a única coisa que eu quero fazer da minha vida, sabe?
Eu também quero escrever um livro. Já comecei na verdade. Está muito
no começo, basicamente só tem alguns poemas bobos, mas já é alguma
coisa.

— Eu adoraria ler.

— Meu pai era jornalista, ou… a pessoa que eu acreditava ser


meu pai pelo menos. Antes eu pretendia cursar Letras ou
Jornalismo, mas não deu certo. Quem sabe um dia? Eu ainda tenho
muito tempo para decidir. É um absurdo nós sermos forçados a decidir o
que faremos para o resto de nossas vidas justamente quando não
sabemos de nada.

— Por que você não utiliza os cursos à distância das


universidades? Tenho certeza de que você iria adorar a de Caelestra.
Você pode fazer quase todos os cursos por meio do Holophone, é a
mesma coisa dos presenciais.

Luna ficou o encarando, contorcendo os lábios.

— Me deixe adivinhar por que você nunca me falou que existia


essa possibilidade: porque eu nunca perguntei? — falou entredentes.
— Sim. Como eu já lhe falei, se você quiser alguma coisa terá que
pedir. Senão a resposta sempre será não.

Ela bufou, mas depois sorriu.

— Vou sentir falta dessas lições de vida, Oberyn. Agora com


licença, que eu tenho uma universidade para me matricular.

— Bom, para começar… qual é sua cor favorita? — perguntou Luna


com seriedade. Klaaoz havia adorado sua ideia sobre a universidade,
inclusive tinha sugerido vários cursos, ela estava dividida entre História
Gagrilyana, Estudos sobre a Energia, Aureliano Aplicado e outras
milhares de opções. A universidade era pública, para ingressar bastava
se inscrever. Existia a opção presencial e a holográfica, em que você
participava da aula e parecia até que estava lá.

Luna estava decidida a ficar mais um tempo em Gagrilya antes de


ir para a Terra e fazer tudo que sempre quis, e Klaaoz estava decidido a
corrigir seu problema de comunicação. Naquele momento, ele estava
respondendo sobre tudo que Luna queria saber a seu respeito enquanto
tomavam café da manhã na varanda. O clima estava maravilhoso, não
havia nenhum resquício da tempestade que caíra há alguns dias.

Luna aproveitava enquanto o sol ainda brilhava, consciente de que


a noite longa e fria logo chegaria. Ela sempre chegava. Mas, por mais
que parecesse durar uma eternidade, o sol também sempre voltava. E
mesmo que durasse pouco tempo, quando o sol aparecia, mostrava
como valia a pena atravessar qualquer escuridão só para vê-lo brilhar
novamente no horizonte.

— É sério isso? — perguntou Klaaoz com um sorriso ensolarado.

— Claro. — Ela manteve a convicção.

— Eu não tenho cor favorita.

— Claro que tem. E não precisa nem responder: preto — Luna


afirmou, se baseando nas cores do seu vestuário.

— Talvez… — ele sibilou, levando a mão até o queixo, pensativo.


— Mas eu também gosto muito de azul.

— Azul?

— Sim.

— Mas você nunca usa nada azul.

— Mas a cor da coisa para a qual eu mais gosto de olhar é azul —


balbuciou, abrindo um sorriso torto. Ela demorou alguns segundos para
perceber que ele estava falando de seus olhos, e isso aqueceu seu
peito.

— Você canta no chuveiro? — Luna continuou. Ela gostava de fazer


perguntas bobas para conhecer melhor as pessoas, a atitude diante da
pergunta dizia mais do que a resposta.

— Não — havia uma expressão divertida em seu rosto.

— Conversa com ele?

— Também não.
— Se você fosse um animal, qual seria?

— Um mualhag. A raça de Morg.

— E se fosse uma comida?

— Qual é a sua comida favorita?

— Eu acho que você seria um Mentos. E eu seria uma Coca-cola


— Luna disse, olhando para o horizonte.

— E essa é mais uma das coisas que você fala que eu não faço a
menor ideia do que seja.

— Na Terra existe esse líquido maravilhoso e prejudicial chamado


Coca-cola. Se você colocar uma bala chamada Mentos dentro de uma
garrafa de Coca-cola, acontece uma reação inesperada. A Coca meio
que explode. E, às vezes, eu acho que nós somos exatamente assim.

Ele a encarou, tentando conter um sorriso que ameaçava


aparecer no canto da sua boca.

— Então, eu faço você explodir? — Ela deu de ombros. — E isso


é bom? — Klaaoz continuou.

— Não sei. — Não era bom nem ruim, era perigoso.

Klaaoz ficou a observando por alguns instantes, talvez tentando


entender o que aquilo significava.

— Ok, continue.

— Você já apertou a campainha do vizinho e saiu correndo?

— Quê?
— Ok, deixa pra lá… O que você gostaria que a sua página no
Wikipédia dissesse sobre você daqui a dez anos?

— Eu agradeceria se você fizesse perguntas as quais eu


soubesse responder — ele disse, revirando os olhos.

— Hum… Wikipédia é um tipo de enciclopédia virtual que contém,


entre outras coisas, pequenos resumos da vida de pessoas notórias,
digamos assim.

Ele olhou para o chão, pensativo.

— Então, a minha página diria que eu sou elegante, que tenho


uma das mentes mais brilhantes do Sistema e que ninguém deve se
meter comigo porque eu posso controlar qualquer coisa com meu
poder. — E deu um sorriso orgulhoso.

Luna abriu a boca. Momentos como aquele a faziam se lembrar de


quem ele costumava ser ou do que havia feito. Se perguntava se um dia
ele voltaria a ser aquela pessoa terrível, se tudo o que estavam vivendo
não passava de fingimento. Mas, se ela havia decidido ficar e fazer isso,
precisava deixar o passado de lado, mesmo tendo ainda tantas coisas
que gostaria de lhe perguntar.

— Qual a coisa mais louca que você já fez?

— Trazer você para cá. — Ele riu.

— Qual a coisa que você mais odeia?

— São muitas. É melhor perguntar o que eu não odeio.

— Você me odeia?

— Não. — Sua resposta foi acompanhada por um arquear de


sobrancelha divertido.
Parte dela se sentiu feliz com aquela resposta. Tem algo melhor do
que ser amada por alguém que odeia todo mundo? Mas quem disse que
ele a amava? Ele continuava sem dizer. Ele apenas dissera que não a
odiava.

— Você me… — Luna começou a formular a pergunta, meio


apreensiva e com medo da resposta, mas Coisina apareceu trazendo
mais comida, interrompendo-a.

Ela pôs tudo sobre a mesa que eles haviam levado para o lado da
piscina, com um daqueles sorrisos insinuadores de quem estava
aprontando alguma coisa.

— Então, vocês ainda são nada? Ou estão phasgadh-dàimhkyea?


— perguntou, segurando a vontade de rir. Klaaoz revirou os olhos, e Luna
foi olhar o significado daquela palavra no dicionário do Holophone:
“relacionamento indefinido e complicado que carece de sentimentos
concretos ou palavras precisas”.

Essa era a palavra perfeita para definir aquela relação, que era
mais incerta do que o clima daquele planeta e que àquela altura ela
mesma ainda não conseguia entender. Luna olhou para ele, que parecia
ter realmente ignorado a pergunta de Coisina, e suspirou. Se quisesse
uma resposta, ela mesma que teria que encontrar.

— Na verdade, nós estamos namorando.

Klaaoz se engasgou com a bebida ao ouvir isso.

Mas o que era namorar exatamente? Na Terra, geralmente era


quando você ficava só com uma pessoa e começava a postar fotos dos
dois com legendas bregas nas redes sociais.

Mas e lá, onde tecnicamente eram só eles dois e ela não precisava
postar fotos, o que seria?
— Ah, que maravilha! Nunca em todos esses anos eu pensei que
fosse chegar a ver Klaaoz… — Coisina começou, mas Klaaoz a fuzilou
com o olhar, e ela parou.

— Eu também! Inacreditável, não é? Se me contassem, eu não


acreditaria. Eu perguntaria: quem é a louca? — Luna riu.

Klaaoz revirou os olhos. Um dia ele ainda teria um descolamento


da retina de tanto que fazia isso.

— Então, você já colocou no holobook? — perguntou Coisina.

— Qual a necessidade disso? — perguntou Klaaoz com um leve


tom de irritação começando a surgir na voz.

— Para todos saberem que agora ela está comprometida.

— Klaaoz nem usa holobook, não tem motivo pra colocar…

— Mas e aquele rapaz? Era melhor para deixar de dar esperanças


a ele.

Klaaoz levantou a sobrancelha.

— Que rapaz? — perguntou, se virando para Luna com um leve


sorriso irônico, como se soubesse perfeitamente de quem Coisina estava
falando.

— Não, é só Bok.

— Coloque — Klaaoz ordenou.

— Não precisa!

Ele abriu a boca, como se estivesse mortalmente ofendido.


— Por que você não quer colocar?

— Porque eu não preciso ficar afirmando minha felicidade para as


outras pessoas para torná-la real. Inclusive, o que ninguém sabe,
ninguém estraga. — Sentindo o clima pesar, Coisina se retirou da
varanda, deixando Luna sozinha sob o olhar furioso de Klaaoz. — Vai
chorar? — Luna perguntou, encarando-o. Ela já conseguia encará-lo de
volta.

Os dois começaram uma disputa para ver quem encarava o outro


por mais tempo. A batalha interna pelo controle.

Luna não desviava dos olhos dele um instante sequer, não iria
ceder. Klaaoz continuava com o olhar fixo, fuzilando-a, o rosto como uma
máscara de gelo, sem demonstrar um pingo de emoção, apenas com o
olhar semicerrado e impetuoso como se quisesse arremessá-la da
varanda.

Mas então, já cansada dessa guerra silenciosa, Luna se esticou


em direção a Klaaoz, dando um beijo no canto de sua boca e, assim,
fazendo sua expressão suavizar aos poucos. Ele, enfim, encarou-a com
um olhar conformado de quem havia aceitado a derrota de bom grado.

A partir daquele momento, Luna seria completamente direta com


ele. Quando você quer uma coisa tem que dizer. Quando não quer,
também. Sem joguinhos. Dali para frente seria assim.

— Você também pode me fazer perguntas se quiser. — Ela deu


um sorriso de satisfação.

Klaaoz continuou a fitando em silêncio por mais alguns instantes,


depois seus lábios se curvaram sutilmente com 0,5 cm de um tipo novo
de sorriso.

— Como era sua vida em seu planeta?


— Era tipo um filme de Woody Allen.

— Explique.

— Coisas absurdas e inacreditáveis aconteciam constantemente e


pareciam não fazer sentido.

— Por quê?

— Justamente, não faço a menor ideia. Era como um livro com


páginas em branco no começo.

— Mas o que você fazia, como você vivia?

— Bom, não tem muita coisa interessante. Fui criada pelos meus
tios, minha tia morreu quando eu tinha sete anos, depois disso meu tio se
tornou uma pessoa que odeia o mundo, principalmente a mim. Quando
fui expulsa da escola, comecei a trabalhar na livraria dele. Mas a
convivência com ele em casa estava se tornando insuportável, então
resolvi me mudar para um quartinho improvisado nos fundos da livraria.

— O que aconteceu com seus pais?

— Eles morreram em um acidente de carro quando eu tinha dois


anos. Pelo menos era o que a minha tia falava. Mas, como Mira disse
que nossos poderes são genéticos, acho que eles não contaram a
história toda… De qualquer forma, não tenho a quem perguntar. Minha tia
nunca conheceu a cunhada e meu tio nunca conheceu nenhum dos dois.

— Você nunca teve curiosidade de saber quem eles são?

— Tive, e ainda tenho, mas chegou um momento em que eu


simplesmente me conformei e parei de questionar. Quando descobri os
meus poderes, sua mãe disse que Oberyn poderia saber de alguma
coisa, mas ele também não faz ideia.
Klaaoz ficou a olhando, meio abismado. Talvez mais inquieto do
que ela.

— Eu sinto muito — ele disse por fim.

— Tudo bem, eu já me conformei. Pode continuar com as


perguntas.

Ele pareceu hesitar um pouco, parecendo não ter engolido a


resposta de Luna, mas continuou:

— Tem alguma coisa que você sonha em fazer?

— Viajar o mundo. Mas principalmente ir a Praga. É uma cidade na


Terra onde se passa o meu livro favorito.

— E por que ainda não foi?

— Hum… Basicamente por causa de dinheiro. Mas quando eu


fizer o comercial em Teyrilia, usarei uma parte do que ganhar para
realizar esse sonho com certeza. E trarei chocolates de presente pra
você!

Ele franziu o cenho.

— Que tal realizá-lo amanhã?

O rosto de Luna se iluminou.

— Sério? Mas eu pensei que você não pudesse sair daqui.

— Não. Eu não posso entrar nos planetas do Sistema Gamma


Aurellius.
— Ai, meu Deus, eu não acredito. — Luna pulou em cima dele e o
abraçou. Por que ela nunca havia pensado nisso antes? Quer dizer, ela
havia pensado, só que com Bok. Como será que ele estava? Fazia
algumas semanas que ela não atendia nenhuma ligação dele. O que ela
iria falar? “Oi, Bok, desmarque nossa viagem, pois agora eu vou com seu
maior inimigo”? — Ah, tem uma pergunta que me esqueci de fazer na
minha vez! — ela falou e logo emendou: — Se houvesse um incêndio e
você só pudesse salvar um objeto, o que você salvaria?

Ele pareceu pensativo.

— Venha, vou te mostrar.

Klaaoz a levou até seu quarto, tecnicamente era a primeira vez


que Luna estava entrando lá, pois, no dia em que ele quase havia ido
embora, ela ficara tão atordoada que nem prestara atenção em nada. O
cômodo não era muito diferente do que ela imaginava. Era semelhante
ao seu, só que em tons mais escuros e com mais quadros. Na cama
enorme não tinha o amontoado de coisas como tinha na dela e tudo era
perfeitamente organizado. Havia também um tipo de tela digital em um
cavalete com um diagrama de cores ao lado, semelhante à que ele havia
lhe mostrado quando fora ao quarto dela outro dia.

Ele se dirigiu a um armário, de onde tirou um quadro.

— Eu salvaria isso.

Era um quadro de uma garota com um vestido preto usando uma


máscara da mesma cor, com o batom vermelho-sangue e…

— Peraí, essa sou eu?

— Sim.

Luna sentiu uma pontada no peito.


— Você que pintou? — Ela não conseguia acreditar.

— Uhum. — Ele balançou a cabeça, meio tímido. — Gostou?

— Se eu gostei? — Ele estava de brincadeira? — É a coisa mais


bonita que alguém já fez pra mim. Eu não sei nem o que dizer. Nossa,
obrigada, estou emocionada. — Ele deu aquele sorriso torto. — Eu não
sabia que você pintava — ela comentou, observando os outros quadros.
Alguns eram meio impressionistas, outros abstratos, mas todos pareciam
usar os mesmos tons de cores escuras. Menos o dela, que se destacava
em meio aos outros por causa do vermelho do batom. Havia um quê de
colorido não mais usado em nenhum outro quadro.

— Tem muitas coisas que você ainda não sabe sobre mim.

— Não vai dizer que todos os quadros da casa são seus…

— Quase todos.

Agora tudo fazia sentido.

— São muito bonitos. Sério, são maravilhosos. Meu Deus, eu


namoro o novo Picasso.

— Espero que esse Picasso seja, no mínimo, um dos melhores


pintores do seu planeta.

— Você não faz ideia.

— Diga isso para a minha avó.

— Você nunca falou sobre sua avó…

Klaaoz fez uma careta.


— A única coisa de que você precisa saber é que ela sente prazer
em criticar tudo e todos, mas principalmente meus quadros. E vamos
mudar de assunto.

Luna deu de ombros, pois sua atenção já estava voltada para


outro quadro. Esse era todo branco com um grande buraco preto no
centro. Olhar para ele a deixava… inquieta.

— Por que você pinta?

Os lábios dele se contraíram, e ela sentiu um lampejo de melancolia


passar por sua face.

— A arte alivia… a dor da existência.

— Nossa, como você está poético hoje.

— Sempre fui. — E deu um sorriso de 0,5 cm misterioso.

Aproveitando que estava ali, Luna decidiu tirar uma dúvida que
possuía desde que passara a conviver com Klaaoz: abriu as portas do
seu guarda-roupa e, como imaginou, não havia nenhuma roupa colorida.
Todas eram pretas ou em tons escuros.

— Gostaria de pintar um agora. Você poderia posar para mim? —


disse ele, ignorando o fato de ela estar mexendo em suas coisas.

— Sério?

— Se deite. — Ele apontou para um sofá longo e vermelho que


havia do lado oposto ao que estavam enquanto se sentava em frente à
tela digital.

Luna fez o que ele disse, e Klaaoz começou a desenhá-la com


bastante concentração. Por um momento, ela sentiu como se estivesse
em um filme. Mas, caso reviravoltas acontecessem e o navio deles
naufragasse, ela daria um lugar para ele na porta. Porque todo mundo
sabe que caberia.

Já fazia um bom tempo que Klaaoz estava concentrado atrás da


tela de pintura, e Luna estava começando a ficar entediada. Quem via
aqueles belos quadros renascentistas nem imaginava como era cansativo
ter que posar e ficar horas sem se mexer.

— Ainda falta muito para terminar?

— Não — ele respondeu sem tirar os olhos da tela.

— Posso ver?

— Não.

— Por favor?

— Não. E não se mexa. — Ele continuou a pintar, mas, naquele


momento, pareceu se lembrar de alguma coisa. Então, foi até uma
cômoda, abriu uma gaveta e retirou um objeto que ela não conseguiu ver.

Quando ele foi até ela, se abaixou e mostrou o que tinha na palma
de sua mão, o coração de Luna deu um pulo.

— Meu colar!
— Está comigo desde aquele dia. Eu tinha esquecido — disse,
afastando o cabelo dela e colocando o colar em seu pescoço.

— Eu… não me lembrava. — De fato, naquele dia, o colar era a


menor de suas preocupações. Luna tinha sentido falta dele, mas
imaginou que o tivesse deixado na Capital.

Klaaoz tirou uma mecha de cabelo que estava caindo no rosto de


Luna e ficou a observando e acariciando sua nuca. O olhar dele estava
calmo, sereno, de um jeito que, se alguém dissesse há alguns meses que
ele daria esse tipo de olhar, ela não acreditaria.

— Você sabe o que esse símbolo significa? — ele perguntou.

— Eu não sabia nem que isso era um símbolo.

— É uma estrela do caos. O meio representa o vazio do cosmos e


do universo e as oito pontas, as direções, como a rosa dos ventos,
composta pelos quatro elementos: terra, água, ar e fogo. E os quatro
estados intermediários da matéria: o seco, o úmido, o frio e o quente. —
Luna apenas ouvia tudo, mas não conseguia encontrar palavras para
responder. — É o símbolo de uma corrente de pensamento antiga
chamada Energia do Caos. Eles acreditavam na quebra de paradigmas e
na alteração do estado de consciência. Faziam rituais com aquelas frutas
de Oberyn. Os praticantes afirmavam que podiam modificar a realidade
por meio dessa forma de Energia. Oberyn costumava estudá-la.

— Caos… — ela balbuciou, sem saber o que mais falar.

— Hã? — Klaaoz franziu o cenho, e ela imediatamente o puxou


pela camisa mais para perto. Ele pareceu confuso por um instante, mas
logo pôs a mão na nuca de Luna e a beijou, toda a pele dela se arrepiou.
Seus batimentos se aceleravam à medida que a mão dele deslizava
suavemente por suas costas, passando por suas zonas erogénas,
fazendo com que ela se contorcesse.
Klaaoz se juntou a ela no sofá, agarrando-a com força enquanto a
beijava intensamente, e foi então que o Holophone de Luna começou a
tocar. Mas eles ignoraram.

De repente, o sofá se tornou pequeno demais para tanta tensão,


então ele a pegou nos braços e a levou para sua cama.

A cama era enorme e Luna se sentiria perdida se seus corpos não


estivessem colados a ponto de ela conseguir sentir os batimentos
acelerados dele contra seu peito. Dessa vez, ela não tinha desculpas,
não precisava nem queria. Inspirou, prendendo o fôlego, se entregando.

Por alguns instantes o único barulho ouvido era o de suas


respirações pesadas e o das camadas de tecido que os separavam
deixando de existir.

O Holophone dela tocou novamente, e eles ignoraram mais uma


vez.

O corpo de Luna entrava em combustão quando sentia a pele fria


dele sobre a sua. Klaaoz a beijava e a acariciava tão intensamente que
ela tomou um susto quando ele saiu de cima dela e ficou parado de
joelhos ao seu lado.

— É… como dizer isso? — Ele levou a mão ao queixo num tom


irônico. — Eu preciso que você libere o uso do meu poder nestas
situações.

Luna o olhou, confusa por alguns instantes, depois riu, assentindo


com a cabeça.

Ele abriu um sorriso de 0,5 cm perigoso enquanto observava a


calça dela ir embora lentamente. Ela arqueou as costas para a peça sair
flutuando com mais facilidade. Klaaoz continuava a fitá-la com o olhar
impassível ao voltar para cima dela. Só isso já seria suficiente para fazê-
la sentir coisas que ela nem sabia que eram possíveis, mas, quando ele
começou a beijar seu pescoço, ela estremeceu. Descendo lentamente
até sua barriga, deixando a pele arrepiada por onde passava… Ele
agarrou suas coxas, se livrando da última camada que os separava.

Klaaoz se abaixou, e só a respiração quente na lateral da coxa de


Luna a deixou desnorteada. Ele ergueu o olhar, como se estivesse se
divertindo ao vê-la sem conseguir esconder as sensações que ele lhe
causava, e o Holophone começou a tocar novamente.

Mas, para a felicidade dela, ele preferiu prestar atenção em outra


coisa, e Luna sentiu necessidade de agarrar o lençol da cama com força,
pois teve a sensação de que iria cair.

Era como se ela estivesse na queda livre de uma montanha-russa


e não tivesse mais certeza de estar respirando. Parecia que alguém
havia desligado a gravidade, porque estava completamente fora de
órbita. Seu sangue fervia, e ela perdeu totalmente a noção do tempo.
Poderiam ter se passado horas que ela não saberia.

De repente, um zumbido invadiu os ouvidos de Luna, como se um


asteroide tivesse colidido com o quarto e uma explosão acontecido,
deixando-a tonta e desorientada. O calor enchia seu coração a ponto de
quase explodir.

Após aquele ápice de sensações, seus batimentos foram


desacelerando, e, quando Luna finalmente conseguiu abrir os olhos,
percebeu que Klaaoz estava se deitando ao seu lado.

Ele beijou sua bochecha, que ainda queimava, e no rosto dele


tinha um sorriso de bem mais do que 0,5 cm que ela não conseguia nem
interpretar.

— Você está bem? — ele perguntou. Como se ela fosse capaz de


falar… Ela apenas o olhou pelo canto do olho, ainda de boca aberta, e
piscou algumas vezes conforme sua respiração ia voltando ao normal
aos poucos. O sorriso dele se alargou. — Antes de continuarmos, por
favor, atenda essa droga. — E o Holophone, que ainda tocava no sofá,
levitou até a mão dela.

Klaaoz levantou a sobrancelha ao ver o nome no visor. Luna


colocou na opção sem holograma e levou o aparelho até o ouvido.

— Oi — falou, ainda com a voz falhando. Do outro lado da linha,


Bok perguntava por que ela não estava atendendo suas ligações e se
havia acontecido algo. — Eu tinha perdido o Holophone. Está tudo bem,
sim, não precisa se preocupar. — Ele perguntou quando ela iria voltar. —
Er… eu não sei ainda, eu ainda não aprendi a usar o poder… — Ele,
então, perguntou por que ela não pedia para Klaaoz levá-la de volta, já
que os dois supostamente tinham se entendido. Luna respirou fundo. Bok
merecia uma explicação, mas ela não estava com cabeça para isso
naquele momento. — Eu não estou mais falando com ele. Você estava
certo, não dá para confiar. Mas, quando eu aprender a usar o poder,
posso obrigá-lo a me levar de volta.

Klaaoz a olhava com a boca aberta, como se percebesse do que


se tratava a conversa.

— É sério isso? — ele perguntou.

Luna fez sinal para ele fazer silêncio.

— Não, não aconteceu nada demais, pode ficar tranquilo. Bok, eu


estou bem, ele não vai me machucar. — Do outro lado da linha, Bok dizia
que já tinha perdido uma pessoa que amava por causa do Comando
Omega e que não queria que isso acontecesse de novo. Luna sentiu um
bolo se formar na garganta ao ouvir aquelas palavras e mais ainda por
precisar mentir. Mas esse não era o melhor momento para discutir.

— O que você está falando? — Klaaoz continuava a encarando.

— Não, foi a HoloTV — ela disse a Bok, que perguntava do


barulho. Luna tirou o Holophone de perto da boca e tentou tampar algo
que ela acreditava ser o microfone. — Por favor, faça silêncio, depois a
gente conversa.

— Eu não vou fazer silêncio, você está ouvindo o que está


dizendo? —Do outro lado, Bok também estava apreensivo, temendo pela
integridade dela. — Fale a verdade! — ordenou Klaaoz, como uma
criança fazendo birra.

— Depois eu ligo pra você — Luna disse ao Holophone e desligou


rapidamente.

Ela olhou irritada para Klaaoz, que estava com os olhos fervendo.

— É por isso que você não quis colocar no holobook, agora tudo
faz sentido!

— Klaaoz, isso não tem nada a ver. Apenas não tem motivo pra ele
saber.

— Claro que ele precisa saber, Coisina mesmo disse que ele tem
sentimentos por você.

— Mas eu estou com você, e não com ele. Não é isso que importa?

— Então, por que mentir?

— Eu não menti, eu omiti.

Ele abriu a boca, balançando a cabeça com os olhos semicerrados.

— Os dois são a mesma coisa!

Luna respirou fundo. Precisava ter muito cuidado com o que ia


dizer.
— Ok, Klaaoz, eu não queria dizer porque ninguém gosta de você,
ok? Satisfeito? Era isso que você queria ouvir?

A raiva no olhar dele foi substituída aos poucos por outra coisa.

— Pensei que você não se importasse com o que os outros


pensam.

— E eu não me importo, mas isso é diferente.

— Tem certeza? Porque não é o que parece.

— Klaaoz, você atirou no seu pai na frente de todo mundo.

— E eu pensei que você tinha deixado o passado para trás.

— E eu deixei. — Será mesmo?

— Nós estamos juntos há semanas e você não quer dizer a ele por
causa de algo que eu fiz há estações! Tem certeza de que você
esqueceu mesmo o passado? Porque parece que não importa o que eu
faça, você sempre vai me ver daquele jeito.

— Não, eu não vejo você assim, mas é que as outras pessoas


ainda veem. Você fez muita coisa ruim, não tem como apagar.

— Ah, que vão para o vácuo as outras pessoas! — Ele elevou a


voz. — Você acha que eu não sei o que estão falando? Que eu sou o
cara desprezível que sequestrou a noiva do herói da Capital e que a está
mantendo presa? Que eu sou um monstro hediondo e terei um final
horrível enquanto ele é o herói que vai ficar com você para sempre? Ah,
quer saber? Eu não me importo! Talvez eu seja mesmo a pior pessoa do
universo. Talvez eu seja até pior do que o que eles falam! Só que, para
você, eu sempre tento ser o melhor. Mas parece que nunca vai ser
suficiente, não é? — Os olhos dele ardiam, ela nunca o tinha visto assim.
— Acorda! Eu não me importo com ninguém, mas eu morreria por você!
— esbravejou, se levantou da cama e saiu, batendo a porta em seguida.

A noite chegou e Luna não soube o que fazer. So-leòntekyea. So-


leòntekyea é uma palavra gagrilyana usada para indicar determinado
sentimento quando você não sabe o que está sentindo.
41

41- Coisina, a conselheira

Coisina estava na cozinha preparando o jantar quando Luna


chegou. Ela desenhava uma escultura com plantas e uma casa com um
tipo de massa. Mesmo depois de todo esse tempo, Luna ainda achava
impressionante a capacidade de Coisina de transformar coisas banais em
coisas mágicas.

Em algum momento, Luna também achou que conseguiria


transformar Klaaoz, consertar seja lá o que estivesse quebrado nele. Ela
realmente acreditou. E tentou. Mas naquele momento não tinha mais
tanta certeza de que era capaz.

Ela continuou observando Coisina, sem falar nada. Apenas


observando, tentando entender qual era o seu segredo.

Quando ela terminou de preparar a comida, se virou para Luna.

— Desembucha.

Luna piscou algumas vezes.

— Eu gosto de ficar vendo você preparar as comidas e o modo


como transforma as coisas. Eu queria… também ter esse poder.
— É uma prática que se aprende com o tempo.

Luna ficou observando a comida com o olhar perdido por alguns


instantes até resolver soltar o que realmente a estava atormentando.

— Klaaoz deu um chilique quando eu estava falando com Bok ao


Holophone, e eu disse umas coisas horríveis a ele, nem sei por quê. —
Ela suspirou. — E agora eu estou com a sensação de que a vida com
Bok seria bem mais fácil.

— Você não deve ficar com uma pessoa só porque consegue viver
com ela, Luna. Você deve ficar com uma pessoa porque você não
consegue viver sem ela.

Coisina sempre defenderia Klaaoz, não daria para discutir esse


assunto com ela. Sempre arranjaria argumentos para fazer Luna se sentir
mal por causa das coisas horríveis que ele fazia.

— Coisina, por que você o defende tanto?

— Eu não estou o defendendo e não acho que nenhum dos dois


esteja certo. Pode até ser que ele costumasse ser uma pessoa ruim,
Luna. Mas ele não é um namorado ruim.

— Eu não quero namorar uma pessoa ruim.

— Você sabia quem ele era e o que fazia antes de começar a


namorá-lo.

— É, mas eu achei que ele tinha mudado.

— E ele não mudou?

Ela sentiu um nó se formar na garganta.

— Não sei. — Luna desviou o olhar.


— Não sabe ou não quer admitir?

— Ele mudou em algumas coisas, mas ainda precisa melhorar em


outras.

— E você acha que isso acontece da noite para o dia? Klaaoz


nunca teve ninguém na vida desse jeito, Luna. Ele nunca nem se
permitiu se aproximar de alguém. Ele não sabe como agir. Isso tudo é
novidade para ele e, se você quiser que dure, vai ter que ensiná-lo
como é a vida a dois.

Luna se calou. Não tinha o que dizer, então tentou mudar de


assunto abruptamente:

— Você nunca me contou por que veio para cá.

Pela primeira vez, Luna viu Coisina, que parecia sempre tão certa
e confiante, perder a postura.

— Você não vai querer ouvir essa história.

Luna sentiu um arrepio na espinha. Do que ela estava falando?

— Por quê?

— Porque… não é uma história feliz.

Seus olhos baixaram e Luna se viu incapaz de fazer qualquer


coisa além de ficar calada, aguardando-a ter a iniciativa de começar a
contar. Depois de quase um minuto de silêncio, Coisina puxou fôlego e
começou:

— Eu era casada antes de trabalhar aqui. No começo nós éramos


perdidamente apaixonados, e ele era extremamente ciumento, a ponto
de não me deixar usar as roupas que eu queria nem ter amigos. Eu
achava que isso era normal, que ele fazia porque me amava demais.
Mas depois vieram as humilhações quando eu não fazia o que ele
mandava e, para completar, ele ainda se fazia de vítima para eu me
desculpar por alguma coisa que ele havia feito. Depois, começou a
violência física. — Luna estremeceu. Ai, meu Deus. Então era por isso
que ela era tão… sábia e dava tantos conselhos bons. Sentiu um
aperto no peito ao perceber como fora egoísta todo aquele tempo. Vivia
alugando seu ouvido para desabafar, mas nunca tinha perguntado nada
sobre seu passado. Parabéns, Luna.

Coisinha continuou:

— Depois da primeira vez que ele me bateu, eu disse que estava


tudo acabado, que eu iria embora. Ele chorou, disse que isso nunca
mais aconteceria, que iria mudar. Mas, depois de um tempo de paz,
tudo sempre se repetia. Sempre. — Ela baixou a cabeça e deu um
longo suspiro. — Houve momentos em que eu realmente acreditei que
merecia aquelas palavras e xingamentos e tudo mais que ele fazia. Da
boca dele eu ouvi coisas que tinha vergonha de contar a alguém e,
então, sofria calada. Me sentia morta por dentro, não saía para lugar
nenhum. Eu tinha medo do que ele faria comigo ou com minha família
se eu saísse de casa. — Por mais trágica que fosse aquela história,
Coisina a contava com firmeza, como se fossem feridas já cicatrizadas.
Já Luna estava com os olhos ardendo de tanto chorar. — Eu não
aguentava mais e, quando vi a vaga de emprego no Comando Omega,
pensei ser minha chance de escapar. Eu sabia tudo o que falavam a
respeito deles, mas preferi trabalhar para eles a continuar vivendo
daquela maneira. — Luna tentou se recompor usando a barra da blusa
para enxugar as lágrimas que ainda escorriam. “Quando você olha para
uma pessoa, vê apenas aquilo que ela quer mostrar e aquilo que não
consegue esconder, e isso não é nem 50%.” — O emprego era para ser
governanta de uma casa. Foi aí que abandonei tudo sem pensar duas
vezes e conheci Klaaoz. Ele era um adolescente difícil, paranoico,
solitário, triste e… estava tão perdido quanto eu. — Ela riu. — Meu ex-
marido, então, passou a me mandar mensagens ameaçando matar
minha família caso eu não voltasse, mas Klaaoz foi lá e deu um jeito
nele.
Luna gelou.

— Ele o matou?

— Não. — Ela olhou para Luna como se aquilo fosse um absurdo.


— Ele conseguiu um mandado de prisão para ele. — Deu um sorriso
satisfeito. — Enfim, eu sei que Klaaoz às vezes é uma pessoa
complicada, mas eu o amo como se fosse meu filho e asseguro que ele
jamais lhe fará mal.

— Meu Deus, Coisina, mas por que você não fazia nada? Por que
você aguentou por tanto tempo?

— Porque ele realmente me fazia acreditar que tudo que ele fazia
era culpa minha e que eu estaria cometendo um erro se não o
perdoasse. Ele dizia que eu era o amor da vida dele, que aquela era
apenas uma fase ruim, e eu sempre acreditava. Acreditava nas lágrimas
que escorriam quando ele aparecia me pedindo perdão, dizendo que
nada se repetiria.

Luna sentiu seu estômago se revirar.

— Nossa, depois de você me contar sua história estou me


sentindo até fútil por reclamar de Klaaoz…

— Não, você faz bem em reclamar quando existe um problema. E


se ele não fizer nada para resolver, então, sim, você deve desistir.

— Você acha que algum dia ele vai… ficar perfeito?

— Não — disse, direta. — Nem você. Ninguém é perfeito. E você


não ama alguém pelo fato de essa pessoa ser perfeita. Você a ama
apesar de ela não ser.

Luna suspirou. Parecia que Coisina nunca dizia o que ela queria
ouvir. Ela falava exatamente o que ela precisava escutar.
— Ele é… tão irritante, cabeça-dura, se acha o dono da verdade e
às vezes é a pessoa mais idiota do mundo. Ele me faz querer gritar de
raiva e me causa coisas que eu não pensava ser possível sentir. Ele
arruína meu dia só com uma palavra, mas no último minuto consegue
consertar tudo sem nem precisar pedir desculpas. Quando ele está longe,
eu sinto a sua falta, mesmo sabendo que eu fico melhor sem ele. Eu o
quero fora da minha vida, mas eu nunca quero que ele vá embora. É
confuso, não é? E eu não sei o que fazer.

— Não existe uma receita de bolo quando o assunto é amor, Luna.


Os dois têm que descobrir o jeito de fazer dar certo.

— E eu odeio o fato de que todo mundo o odeia, mas eu não


tenho o que fazer, eu o amo.

— Se você gosta dele, do que importa a opinião das outras


pessoas?

— É, mas…

— Não, escute: você não pode ter um futuro com uma pessoa se
você não consegue esquecer seu passado.

— Eu estou tentando, mas é que…

— Tente mais. Nunca deixe de tentar. Mas, se você acha que não
vai conseguir esquecer, é melhor desistir. O passado nunca vai mudar.
Rys estava na sala de HoloTV assistindo ao novo programa de
Z’ohannah, sonhando em um dia participar dele e ao mesmo tempo
sentindo vontade de morrer ao se lembrar de que desmaiara na hora em
que iria conhecê-la pessoalmente. Z’ohannah representava tudo em que
ele acreditava. Ela era autêntica, falava o que pensava, não se importava
com a opinião dos outros. Ela era ela mesma e pronto. Alguém deveria
inventar uma religião para ela. Z’ohannicentrismo.

De repente, Klaaoz entrou na sala, se sentou ao seu lado sem falar


nada e ficou assistindo ao programa. Desde quando ele gostava da
Z’ohannah? Ah, que pergunta mais idiota, todos gostavam da Z’ohannah.

No programa daquele dia, Z’ohannah estava em algum tipo de


retiro espiritual em Auzuno, dirigido por um famoso guru, filósofo ou algo
do tipo, ao qual as pessoas iam para se desintoxicar da vida moderna. O
uso do Holophone era proibido, Z’ohannah tentara levar o seu escondido,
mas existia um satélite que bloqueava o sinal. Rys sentiu pena ao vê-la
passar por tamanho sofrimento. Ninguém merecia isso. Aquela
comunidade era horrível. Por que a mandaram para lá? Certamente era
uma jogada publicitária.

— Eu não sei mais o que fazer, Rysloslakkohr. — Klaaoz quebrou


o silêncio, e Rys não sabia se estava mais impressionado por ele estar
falando dos sentimentos dele ou por ter pronunciado seu nome
corretamente.

— Em relação a quê? — Rys perguntou só por perguntar, porque


já sabia do que se tratava. Se ele começasse a cobrar por cada vez que
Klaaoz e Luna o usavam como psicólogo, ele seria muito rico.

De repente, a mente de Rys se iluminou. Ele bem que poderia


começar uma universidade à distância e se profissionalizar na Psicologia.
Quem diria que todos esses dias sendo alugado por eles o faria encontrar
algo de que gostasse de fazer? Se ele não ficasse famoso até os
sessenta anos aurelianos, iria se tornar psicólogo, estava decidido.
Não. Quem ele estava tentando enganar? Jamais aguentaria ficar
ouvindo pessoas choramingando sobre seus problemas durante horas.
Só aguentava Luna e Klaaoz porque, por razões que não compreendia,
gostava muito daquelas criaturas.

— Não importa o que eu faça, nada vai apagar o passado. —


Klaaoz enterrou o rosto nas mãos.

Rys não sabia o que responder. Klaaoz era uma pessoa muito
dramática.

— Olha, sempre que eu não sei o que fazer, eu me pergunto: o


que Z’ohannah faria?

Klaaoz levantou o rosto com os olhos semicerrados.

— O que ela faria?

— Hum… Ela provavelmente mandaria a pessoa embora e


arranjaria outra.

Klaaoz o encarou, sua expressão era sombria.

— Você acha que, se eu pudesse, eu já não teria feito isso? —


perguntou com um tom divertido. Rys riu. Ele não podia ou ele não
queria? — Eu nunca quis isso — Klaaoz continuou, balançando a
cabeça. Ah, me poupe, pensou Rys. Todo dia ele descia para jantar como
se estivesse vestido para uma festa e quando um problema surgia dizia
que nunca quis? Quem ele queria enganar? — Eu passei minha vida toda
evitando isso. — E qual era a dele falando isso para lá, isso para cá? —
Eu só queria viver minha vida sem me importar com nada, mas, em
alguns momentos, quando ela sorria ou falava aquelas coisas sem
nexo… — Ele riu. — Eu percebi que estava perdido. — Ah, Rys entendeu
o que era isso. — E ela é uma puinnseankyea. — Puinnseankyea é uma
palavra gagrilyana usada para indicar que algo é veneno e cura.
— É, né? — Rys já havia aprendido há muito tempo a se manter
imparcial em brigas de casais, porque depois eles faziam as pazes e
sobrava para ele.

— O que eu devo fazer? — Por que Klaaoz insistia em pedir


conselhos logo a ele, que não tinha a menor ideia do que estava
acontecendo na maior parte do tempo?

— Olha, eu acho que você deve dizer a ela. Tudo que você falou e
também que mudou, que não é mais aquela pessoa que sequestra as
outras e sai quebrando coisas por aí… — respondeu, mas Klaaoz ficou o
olhando como se esperasse mais. O que ele iria dizer? — E não é só
falar, é mostrar que realmente mudou. — Klaaoz continuava o olhando,
ansioso. — E se não der certo, estarei aqui para ajudá-lo a beber todas
aquelas garrafas do bar até você esquecê-la.

Klaaoz deu uma gargalhada enquanto Rys sentia uma coisa


estranha puxando seu corpo para o lado e… pela luz da Energia, Klaaoz
tinha acabado de lhe dar um abraço?

O silêncio reinava na mesa de jantar naquela noite, era possível até


ouvir os grunhidos de Morg enquanto ele mordia um dos sapatos que
estavam na entrada. Não tinha as histórias antigas de Oberyn, as
receitas de Coisina, as novidades da vida de Z’ohannah, os comentários
sarcásticos de Klaaoz nem os sem nexo de Luna. Mas todos estavam lá,
reunidos durante o jantar como sempre faziam. E Luna viu aquilo como
uma oportunidade para resolver a situação.
— Klaaoz, eu sinto muito por todas as coisas idiotas, ingênuas,
arrogantes, mentirosas, mesquinhas, estúpidas, maldosas,
inconsequentes… Preciso continuar? — Ele balançou a cabeça em
negativa. — Que eu falei hoje. Eu não me importo com o que os outros
pensam. E mesmo que nós briguemos muito, eu ainda quero você em
minha vida.

Ele olhou para os lados, como se procurasse a saída mais


próxima. Deveria estar com mais raiva ainda por ela estar discutindo a
vida deles diante de uma plateia. Onde ela estava com a cabeça para
falar sobre os dois no meio do jantar?

— Não — ele disse com uma seriedade que causou um rebuliço


no estômago dela. Do que ele estava falando? Não o quê?! Ele não a
desculparia, era isso?! — Eu que te devo desculpas. — As palavras dele,
que a princípio trouxeram choque, foram, então, um alívio completamente
inesperado, misturado a uma promessa de que não existiam causas
perdidas. — Eu não posso… obrigar você a colocar sobre nosso
relacionamento no holobook nem exigir que você fale às pessoas se você
não quiser. E sinto muito pelo que eu falei. Eu não estou familiarizado
com esse tipo de situação e na hora eu fiquei um pouco… — Ele hesitou
por um instante, talvez por vergonha de verbalizar os sentimentos
óbvios? — Enfim, isso não vai se repetir. — Luna ficou alguns instantes
tentando digerir o que acabara de ouvir. Fora muita informação junta, e
ela não sabia exatamente qual a tinha deixado mais surpresa. —
Podemos simplesmente… começar de novo? — Ele pediu, os olhos
ansiosos.

— Ok. — Ela baixou a cabeça e, depois de alguns segundos,


levantou-a e tentou fazer a voz mais sexy que conseguiu: — Você parece
perdido. — E o encarou com um sorriso nos lábios.

Ele retribuiu com 0,5 cm de um sorriso nostálgico ao ouvir aquilo,


que já havia se tornado uma piada interna entre eles.

O jantar seguiu tranquilamente, sem grandes emoções. Rys


falando do programa novo de Z’ohannah, Coisina explicando como tinha
feito aquela comida, Oberyn contando histórias antigas, Luna fazendo
comentários sem nexo e Klaaoz, comentários sarcásticos enquanto vez
ou outra olhava para Luna e sorria. Tudo estava no seu devido lugar.
Aliás, quase tudo.

— A viagem à Terra ainda está de pé? — ela perguntou para


Klaaoz.

— Claro. — Ele sorriu com bem mais do que 0,5 cm.

Ela não conseguia conter o sorriso enquanto sonhava acordada


com todos os lugares aos quais queria ir e mexia nas pontas da estrela
do seu colar. Os dois poderiam até morar na Terra por uns tempos. Eles
morariam dentro da nave e iriam todos os dias para um lugar diferente.
Luna mal podia esperar por essa viagem, talvez estivesse mais ansiosa
para ver essa tal de Atlântida do que Praga.

Foi aí que Luna sentiu um embrulho no estômago.

— Klaaoz… você sabia que, para entrar na Terra, vai precisar


passar pela embaixada? — perguntou com o coração aflito, o pânico a
consumindo.

— Não iremos pela embaixada.

— Mas…

— Ninguém respeita essa lei ridícula. — Ele deu de ombros.

Ela ficou olhando para ele, apreensiva, mas depois relaxou. É, se


nem Bok que era Bok tinha seguido as regras…

— Onde você conseguiu isso? — Oberyn interrompeu os


pensamentos de Luna, olhando como se estivesse vendo uma alma atrás
dela.
— O quê?

— Esse colar.

— Ah, eu sempre tive. Foi presente dos meus pais, mas certa
pessoa o tinha roubado em uma festa e só me devolveu hoje.

Klaaoz riu, mas Oberyn continuou a olhando, perplexo por uns


instantes, depois se retirou. Voltou alguns minutos depois com uma
pequena caixa, abriu-a e tirou de dentro um colar igual, só que sem a
pedra no meio do pingente.

Luna gelou.

— AI, MEU DEUS, você é… — ela não conseguiu completar a


frase.

— Pela luz da Energia, Luna! Você beijou seu primo! — gritou Rys.
42

42- A carta de Oberyn

Luna sempre se conformou com a história que seus tios lhe


contaram, dizendo que seus pais morreram em um acidente de carro e
que eles não tinham fotos da sua mãe porque eles e seu pai não
moravam na mesma cidade. Quando Luna teve idade suficiente para sua
cabeça se encher de dúvidas, sua tia, que era irmã de seu pai, já havia
morrido, e seu tio, marido dela, dizia não ter conhecido nenhum dos dois.

Porém, depois de descobrir que tinha superpoderes genéticos,


Luna constantemente se questionava sobre quem realmente seriam seus
pais, onde estariam, se estavam vivos e por que a haviam abandonado
na Terra.

Mas, de todas as teorias que passavam em sua cabeça, jamais


imaginou que seu pai seria seu professor, que também era tio do seu
namorado. Que problema. Que problemão.

— Quê?! Não! Eu não tenho filhos — disse Oberyn, fazendo com


que Luna desse o suspiro mais aliviado de toda a sua vida. Klaaoz
também estava roxo. — Eu dei esse colar de presente para uma amiga.

— Ai, meu Deus, ainda bem… Peraí, que amiga?

— Lyrian.
Luna sentiu um tremor na espinha ao ouvir aquele nome. Já estava
acostumada a ouvi-lo nas histórias de Oberyn, mas naquele momento
parecia ter um significado diferente.

— E você está insinuando que ela pode… ser minha mãe?

— Não sei. Mas só ela tinha esse colar. E… — Ele olhou para o
teto como se estivesse se lembrando de alguma coisa, depois continuou:
— Pela luz da Energia, como eu não pensei nisso antes? Ela morou na
Terra por muitos anos! Mas como eu iria adivinhar que ela havia tido
filhos?

Luna não conseguia acreditar no que acabara de escutar. Seu


coração martelava no peito.

— E onde ela está agora? Por que ela me abandonou? — Ok, isso
era só uma remota possibilidade, mas já era mais informação do que ela
havia recebido até aquele instante.

— Ela morreu, Luna — ele disse com o olhar mais triste do mundo.
Multiplicado por três.

Por que ela sentiu uma tristeza tão grande a invadir se aquela era
apenas uma mera possibilidade?

— Mas como você não sabia que ela tinha tido filhos, já que eram
amigos?

— É uma longa história. — Suspirou Oberyn. Ele não parecia


confortável tocando naquele assunto. — Ela e Mira tiveram um
desentendimento, e ela sumiu sem dizer a ninguém para onde iria.
Cortou relações com todos. Alguns anos depois, recebemos a notícia de
sua morte, em Auzuno. — Luna estremeceu e seus olhos se encheram
de lágrimas. — Sabe, eu nunca me conformei. Foi por isso que eu me
isolei de todos. Uma parte de mim culpava Mira e a outra estava sofrendo
demais. — Os olhos dele estavam iguais aos de Luna.
— Então é por isso que vocês não se falam? Eu pensei que… —
Klaaoz começou, mas Luna o interrompeu:

— Então ela é a pessoa especial de quem você falou, que fez


despertar o seu poder? — Ele balançou a cabeça em afirmação, os olhos
ainda marejados. Aquela cena fez Luna prender a respiração. — Você
tem pelo menos alguma foto dela, qualquer coisa?

Oberyn retirou um aparelho metalizado semelhante a um


Holophone da caixa que estava à sua frente. Apertou um botão e
holofotos começaram a aparecer.

Na primeira havia Mira e Oberyn mais jovens com uma garota


sorridente de cabelos ruivos e olhos azuis. As duas usavam roupas
extravagantes. Mira parecia mais recatada enquanto a outra garota era
mais espontânea. Várias fotos dos três numa enorme varanda com vista
para um lago com montanhas ao fundo foram passando, dava pra
perceber a diferença de tempo entre elas por sutis mudanças na
paisagem e na aparência deles. Até que uma delas fez o coração de
Luna saltar: a garota estava mais velha, tinha franja e usava um casaco
de oncinha e uma blusa com o símbolo dos… Rolling Stones?! Em seus
braços, segurava um garotinho de cabelos pretos. Ela parecia uma
pessoa tão… feliz.

Luna não conseguia falar uma palavra, apenas olhar as holofotos.


Algumas lágrimas involuntárias escorriam por seu rosto, e Oberyn lhe
estendeu um pedaço de papel e falou:

— Ela foi embora sem avisar a ninguém. Mas antes me deixou esta
carta:

Querido Oberyn,
Sinto muito pelo decorrer dos acontecimentos. Talvez a única lição
que podemos tirar disso tudo é que ninguém manda no coração
(desconfio que você já saiba disso).
É uma droga, mas saiba que neste hotel bagunçado que é meu
coração sempre existirá um quarto que pertencerá só a você. E ele
jamais será desocupado, não importa o quão lotado este hotel fique.
Embora nunca tenhamos dito isso em voz alta, acho que nós dois
sabemos.
Mira também não manda no coração, eu entendo. Mas nada vai
tirar da minha cabeça que Stayon é culpado por tudo. Então, decidi partir.
Estou fazendo em segredo porque não aguento mais ver vocês brigando
por minha causa.
Talvez um dia eu volte e vocês percebam que eu estava certa ou
eu perceba que estava errada (não seria a primeira vez, não é?).
Por favor, cuide de Mira. Apesar das coisas horríveis que dissemos
uma para outra, eu ainda tenho aquela vaca (é uma coisa da Terra, ela
vai entender) como minha irmã.
Cuide do pequeno Klaaoz. Não poder vê-lo crescer parte meu
coração.
Cuide-se também. Sério. Tente se apaixonar por pessoas melhores
e que o merecem. Estou escrevendo com lágrimas nos olhos. Droga,
borrei minha maquiagem que só vende na Terra, já está acabando e eu
não sei quando vou voltar lá para comprar outra.
Espero que algum dia possamos rir de tudo isso na varanda,
bebendo conhaque broptoniano ao som de rock da Terra. Vamos
comemorar com uma festa daquelas, que vai fazer seu pai voltar do
túmulo só para brigar conosco como daquela vez. Bons tempos.
Sinto falta disso.
Não vou conseguir terminar esta carta.
Preciso ir, mas não consigo.
Por que é tão difícil?
Adeus.
Calma. Lembra-se daquela vez que você precisou mentir para o
seu pai por causa da viagem à Terra? A culpa não foi de Mira, foi minha
(senti que precisava confessar isso agora), mas eu acho que você já
desconfiava (quer dizer, acho que todos desconfiavam).
Ok, agora é sério. Preciso ir.
Até um dia.
Só mais uma coisa: aposto cem libras caelestreanas que Mira vai
se divorciar daquele idiota em no máximo dois anos gagrilyanos. Escreva
sua aposta aqui para quando nos reencontrarmos ver quem chegou mais
perto.
Agora eu vou mesmo, a nave já vai sair.
Com amor, Lyrian.
Pela primeira vez, Luna, que tanto lia e tantas palavras conhecia,
não conseguia pensar em nada para dizer. Tinha tantas perguntas
entaladas que não sabia nem por onde começar.

— Vocês dois…? — ela começou, a voz trêmula, mas Oberyn logo


a interrompeu:

— Não.

Ela tentou recuperar o fôlego enquanto lutava contra aquele nó


que tinha em sua garganta.

— Quem é meu pai?

— Eu não sei.

— Como você não sabe? — Ela levantou a voz.

— Lyrian era uma pessoa muito… imprevisível. Ninguém sabia


nem da sua existência, Luna.

— Ele é da Terra pelo menos? Ele é a pessoa que eu acho que ele
é? — Ela foi atropelando a resposta dele.
— Não sei. Provavelmente.

— E o que aconteceu com ela?

— Luna, ninguém sabe! Quando nós recebemos a notícia de sua


morte, já fazia mais de três anos gagrilyanos que ela havia desaparecido.

— Como é possível ninguém saber o que aconteceu com ela?


Você disse que ela era especial para você, como você pode não saber?

— Porque ela foi embora e não disse para onde! Você acha que eu
me sinto bem com isso? — A emoção embargava a voz de Oberyn, seus
olhos queimavam numa expressão terrível e triste.

— E como você tem tanta certeza de que ela morreu?

— Porque eu vi o corpo! — Ele parecia despedaçado ao proferir


aquelas palavras.

Luna sentiu uma pontada no coração. Não conseguia reagir. O


chão havia simplesmente sumido debaixo de seus pés.

— Eu… preciso ficar um pouco sozinha — disse, se levantando.

Ninguém tentou impedi-la.

Eram tantas emoções naquele momento que quase não cabiam


dentro dela. Se sentia completamente despedaçada.

Como era possível sentir tanta falta de algo que nunca teve? Como
teria sido ter uma mãe? Como teria sido poder abraçá-la, poder
compartilhar com ela suas mágoas, dúvidas, conquistas e sonhos? Qual
seria o som do seu riso, sua cor favorita? Será que suas semelhanças
iam além da aparência? Será que ela também odiava uva-passa? Será
que algum dia essas perguntas seriam respondidas? Como ela estaria se
não tivesse morrido? E quão diferente sua vida teria sido se aquilo não
tivesse acontecido?

Luna se deitou na cama e ficou olhando para o teto com os


pensamentos a mil. Tudo fazia ainda menos sentido do que antes. Todas
as perguntas sem respostas que a consumiam desapareceram e deram
lugar a novas. Mas pelo menos uma parte do começo estava escrita.

Luna adormeceu sem saber se aquilo era melhor ou pior.


43

43- Mil estrelas solitárias escondidas no


frio

Luna ouviu batidas na porta e, logo em seguida, Klaaoz entrou. Ele


tentou acordá-la, alegando que estava na hora de irem, mas ela apenas
murmurou alguma coisa e se virou.

Quando ela abriu os olhos, estava dentro da nave, sobrevoando


em baixa altitude.

— Como eu vim parar aqui? Para onde estamos indo? Para


Praga? Mas eu nem arrumei minhas coisas — disse com a voz
sonolenta.

— Você vai ver.

Alguns minutos depois, a nave pousou em frente a uma espécie de


caverna. Foi preciso Klaaoz utilizar uma lanterna para iluminar o
ambiente quando desceram da nave e entraram na gruta.

À sua frente era possível avistar uma luz, que ia se tornando maior
e mais próxima à medida que percorriam aquele caminho. Quando
alcançaram o lugar de onde vinha a iluminação, Luna quase caiu de
joelhos.
— Isso… é… a coisa mais bonita que eu já vi — falou pela
milésima vez desde que saíra da Terra, mas, dessa vez, ela tinha certeza
de que nada superaria o que via.

Aquela parte da caverna era completamente feita de cristais em


tons rosados, que cobriam todo o ambiente até o interior de um lago nas
mesmas nuances, semelhantes a quartzo. A água era iluminada por uma
abertura que existia no teto, de onde se podia ver o céu com suas
estrelas e constelações tão nítidas que mais pareciam uma imagem
telescópica da NASA.

Como se já não bastasse aquele cenário tão mágico que nem


parecia real, havia um recanto macio e aconchegante iluminado por velas
e um banquete como se estivesse esperando alguém muito especial.

— Você fez tudo isso? — ela perguntou.

— Sim.

Ela ficou um pouco em choque, mas continuou contemplando


aquilo tudo por mais um tempo.

— Podemos entrar? — Apontou para o lago.

— Sim. É aquecido.

Se ela soubesse, teria colocado peças íntimas mais bonitas, mas


àquela altura dos acontecimentos aquilo era irrelevante. Os dois
mergulharam naquela água reluzente, igual a um mar de estrelas, e
ficaram em silêncio por alguns minutos, apenas contemplando o
ambiente.

— Ainda está pensando no que Oberyn disse? — Klaaoz quebrou


o silêncio.

— Sim…
— Eu sinto muito.

— Você a conheceu?

— Sim, mas eu era muito pequeno, não me lembro de nada.


Diziam que ela era muito divertida. Como você. — Ele deu uma pausa,
procurando o que dizer. — Quando formos na Terra, você pode tentar
descobrir mais alguma coisa.

Luna sentiu seu coração se aquecer. Olhou para o alto, tentando


disfarçar as lágrimas de felicidade que brotaram nos seus olhos.

— Sabe, eu sempre achei clichê os momentos nos filmes em que


as pessoas ficam observando as estrelas e dizem que olhar para elas faz
você se esquecer dos problemas. Mas, agora que eu estou aqui, olhar
para elas faz tudo parecer tão… bobo e irrelevante. Qualquer problema
que existe realmente se torna pequeno se comparado à imensidão delas
— ela disse.

— São lindas, não é? — perguntou ele, seguindo seu olhar com o


0,5 cm no canto da boca.

— Eu pensava que só era possível vê-las assim por um telescópio.

— Não se tem essa vista em nenhum outro lugar. Só aqui nesta


parte do planeta — falou com orgulho da visão que, até aquele momento,
era um privilégio só seu.

— Será que elas não se sentem solitárias por estarem aqui


sozinhas, escondidas no frio?

O olhar dele baixou, ele a encarou com o sorriso envaidecido.

— Provavelmente. Mas nem todo mundo merece ver o brilho


delas.
Luna olhou para aquelas milhares de estrelas solitárias escondidas
no frio e só conseguiu pensar em uma coisa.

— Como você.

Klaaoz se aproximou mais de Luna e a entrelaçou em seus braços.


Ficou em silêncio por um bom tempo, apenas a abraçando como se
tentasse absorver a dor que ela sentia. Como se não soubesse o que lhe
falar, mas quisesse que ela soubesse que nenhum dos dois estava mais
sozinho nem precisava se esconder no frio.

— No que você está pensando? — perguntou Klaaoz. Eles estavam


deitados enquanto se deliciavam com o banquete e contemplavam
aquela bela visão. Não fazia tanto frio naquele dia, e o vapor que vinha
da água aquecida do lago deixava a temperatura ambiente tão agradável
que eles não precisavam nem usar os cobertores que Klaaoz levara.

— Que este provavelmente é o lugar mais bonito do universo e em


como a vida é imprevisível, tudo pode mudar de uma hora para outra.
Alguns meses atrás eu estava na Terra, sozinha, me sentindo perdida,
sem saber quem eu era. Agora estamos aqui, e eu não tenho palavras
pra explicar como tudo está perfeito. Como pode ser tudo tão efêmero?
Hoje de manhã eu estava te odiando e agora já estou te amando de
novo. Engraçada a vida, não?

Ele permaneceu calado por um momento, depois se aproximou


dela.
— É… Às vezes eu olho pra você e fico pensando… — Ele tocou
seu rosto com o dorso da mão.

Ela ficou esperando que ele completasse a frase, mas suas


palavras cessaram.

— No que você fica pensando? — encorajou.

Klaaoz entortou a boca, relutante em falar.

— Em como eu tive tanta sorte mesmo depois de tudo que


aconteceu. Mas não pode ser apenas sorte.

— Como assim?

— Pense bem. O universo existe há bilhões de anos e, por


coincidência, nós acabamos existindo na mesma época. Sério, isso deve
significar alguma coisa.

— A Energia?

Ele deu de ombros.

— Eu nunca acreditei nessa Energia que Oberyn tanto fala.


Sempre achei que era apenas uma coisa que inventaram para as
pessoas se conformarem com sua situação. Mas não acho que tenha
sido coincidência você ter encontrado a pedra nem a bússola ter me
levado até você na festa. Parece que tudo conspirou para que nós
estivéssemos aqui, agora, neste exato momento.

— Olha, nós já poderíamos ter vindo para cá há muito tempo se


você não tivesse sido um psicopata na festa.

Ele suspirou.

— Escute… é muito difícil para mim falar dessas coisas.


— Eu pensei que você nem sentia essas coisas. — Luna riu.

— É, realmente, antes de conhecer você, eu era uma pessoa


privada de sentimentos. Você realmente não tem noção do impacto que
causou na minha vida, não é? — Klaaoz fez uma pausa, desviando o
olhar. — Na verdade, eu nem via muito sentido na vida. Acho que muitas
vezes minha falta de ar começava porque eu tinha medo da ideia de
estar desperdiçando minha vida. Era um medo irracional, impulsos
involuntários de que algo estava errado, que sempre começavam do
nada. Eu tinha aprendido a controlá-los, mas nos últimos tempos tudo
piorou, estava horrível.

— Eu sinto muito pelo que eu falei no outro dia. Eu não fazia ideia.

— Você não tinha como saber — Klaaoz disse, olhando para


baixo, se lembrando, possivelmente, do que também havia dito quando
se conheceram. — Às vezes falamos coisas e nem imaginamos o que
uma pessoa está passando.

— É…

— Mas, depois que eu te conheci, essas sensações ruins


diminuíram. Na verdade, quase desapareceram. — Ele a encarou, os
olhos serenos. — Eu não estou querendo dizer que você ou isso que nós
temos tem dado sentido à minha vida, não é isso.

— Por que você continua chamando de isso?

— Porque eu não consigo encontrar nenhuma palavra, nem em


gagrilyano, que seja capaz de definir o que nós temos.

Luna ficou o olhando, também sem palavras para o que estava


sentindo. E pensar que até o momento ela achava que ele chamava de
isso porque não dava valor. Esse era apenas mais um exemplo das
vezes que fazia conclusões precipitadas e depois descobria que estava
completamente errada.
— Mas apesar de, sim, você, nós dois, isso, significar tudo para
mim, seria ingenuidade da minha parte depositar toda a minha vida em
algo que não depende só de mim. — Ele franziu o cenho, encarando-a
com um sorriso de 0,5 cm caloroso. — Mas o fato é que eu me sinto
assim porque você devolveu a minha fé no mundo, que eu havia perdido
por conta de… algumas coisas que aconteceram — baixou a cabeça
nessa hora.

— Me fale o que foram essas coisas — ela pediu, porém sem


esperanças.

Mas ele encolheu os ombros e vestiu uma expressão de


vulnerabilidade.

— Quando eu tinha vinte e seis anos gagrilyanos, me doparam


com gorgana e me deixaram trancado por quase uma semana em uma
cela. Você não faz ideia de como é horrível ficar com gorgana no sangue.
E ficar trancado só piorou tudo. Eu achei que fosse morrer. Depois disso
eu nunca mais fui o mesmo. Foi por causa disso que meu poder se
descontrolou, e, com ele, toda a minha vida.

Luna não sabia o que falar.

— Meu Deus… Quem fez isso?

— Eu não quero falar sobre isso agora. Não importa mais. A


questão é que eu tinha parado de acreditar nas pessoas, achava que
todas eram falsas… Mas você… me fez em parte voltar a acreditar. Você
me faz querer ser uma pessoa melhor. Você me faz achar que eu não
sou uma causa perdida. E isso é o mais importante, o que você me faz
enxergar. Eu sei que você provavelmente merece alguém melhor do que
eu… — Ele revirou os olhos. — Mas eu asseguro que ninguém em todo
esse universo tem mais medo de perder alguém como eu tenho medo de
perder você. No dia da festa, quando aquelas pessoas quase a levaram,
eu me senti… nem sei explicar. — Seus olhos escureceram. — Chega a
ser assustador. E o pior de tudo é que eu tenho esse medo todo de
perder você, mas você não é minha nem nunca vai ser. Talvez seja isso
que eu mais goste em você: nunca saber o que você está pensando ou
conseguir controlá-la e o fato de que, apesar de tudo que já aconteceu,
você me ver de uma maneira como ninguém nunca me viu. Por quê?

Luna tocou o rosto dele, decidida a fazê-lo entender de uma vez


por todas o que ela sentia. Fazê-lo ouvir o que ele já merecia ter ouvido
há muito tempo:

— Eu amo suas estrelas demais para temer a noite.

Seus olhos profundos e tristes se voltaram para a mão dela, que


acariciava seu rosto. O medo que parecia existir neles foi embora, dando
lugar a algo que ela nunca vira ali. Um sentimento novo em seu catálogo
de emoções, que ela estava ansiosa para decifrar.

— Luna, você é minha gràdhkyea. — Gràdhkyea é uma palavra


gagrilyana usada para indicar algo que nos deslumbra a ponto de nos
tornar quem somos, que é tão forte que quebra as paredes que temos
dentro de nós.

O quebra-cabeça está montado, Luna pensou.

“You need chaos in your soul to give birth to a dancing star”[4], já


dizia Nietzsche.

É justamente quando estamos em total desordem interior, nossas


ideias e sentimentos tão confusos, que por um momento acreditamos que
esse emaranhado de emoções estranhas nunca vai passar, que
conseguiremos achar a saída, a luz no fim do túnel, e, assim, gerar uma
estrela.

Luna apenas o puxou mais para perto e o beijou ardorosamente,


desejando nunca mais soltá-lo. Naquele instante tudo no mundo se
encaixou e nada seria capaz de desuni-los. Klaaoz prendeu as mãos dela
acima da cabeça e, quando as soltou, elas continuaram imobilizadas
enquanto ele desabotoava sua camisa apenas com o olhar.
— É… eu tenho uma dúvida. — Luna disse, ofegante, com o
coração martelando. — Como vocês fazem aqui pra… er… — Meu Deus,
como falar aquilo?! — Sabe… se não quiser, tipo… ter um filho?

Ele soltou uma leve risada entre os beijos.

— Não se preocupe, eu uso ogyzine.

— Hum… E como… — Suspirou. — Funciona exatamente?

— Posso explicar em outro momento?

E voltou a beijá-la e a acariciar seu corpo.

— Certo, então está tudo ok? Nós não… — Luna prendeu a


respiração. — Vamos precisar acordar de madrugada para limpar cocô,
certo?

Ele riu.

— Não vamos precisar.

Ele continuou a beijá-la, mas Luna o interrompeu novamente:

— Ok, mas… e as outras coisas?

— Que outras coisas? — Klaaoz perguntou, virando-a de bruços.

— Er… doenças sexualmente transmissíveis, essas coisas. Não


que eu esteja insinuando que você tenha, claro, mas… enfim…

Ele riu.

— Não existe isso aqui.


E, então, ele começou beijando sua bochecha, depois sua nuca e
foi descendo pelo seu pescoço até o dorso. Parecia que seu corpo todo
se tornava uma grande zona erógena perto dele. Ele beijava cada
centímetro de sua pele com fome e ferocidade, as mãos a acariciando a
todo momento.

Luna sentia o peso do corpo dele sobre ela, aprisionando-a. Não


podia resistir à urgência de deixá-lo continuar. Urgência, esse era o termo
correto. Era como se ele soubesse exatamente o que fazer, como fazer,
quando fazer e onde tocá-la para a deixar entorpecida e extasiada. Ela
não sabia explicar, mas amava a sensação.

Quando ele chegou a suas costas, foi difícil até respirar. Luna
apenas afundou a cabeça no travesseiro, se sentindo incapaz de abrir os
olhos. Ele a virou de frente e continuou. Ela segurou o cabelo dele
enquanto cada parte de seu corpo latejava com aquelas sensações já
familiares a invadindo.

Klaaoz fazia questão de olhá-la fixamente o tempo todo, como se


quisesse observar sua reação a cada coisa que ele fazia. Àquela altura,
Luna já havia se entregado por completo a seus impulsos e não
conseguia esconder o que sentia. Só conseguia pensar em como tudo
era maravilhoso. Como ele era maravilhoso. Como a vida era
maravilhosa.

Quando o ato finalmente aconteceu, o nervosismo passou, e ela se


entregou completamente àquela falta de controle, à intensidade das
sensações que a dominavam e à vontade de se deixar levar.

Luna podia ouvir a respiração ofegante de Klaaoz em seu ouvido


conforme os movimentos dele se intensificavam e ela ia sentindo aquela
avalanche de sensações.

O mundo girou mais devagar, naquele momento nada mais


importava. Eles estavam unidos em uma comunhão de sentidos. Sentiam
toda a sensibilidade e a energia emanando de cada célula de seus
corpos.
O calor aumentou, o coração disparou, o sangue correu e os lábios
dela coraram. Parecia até que a vida pulsante se condensara e explodira
no que pareceu ser os segundos mais efêmeros e importantes de sua
existência.

— Então, Freud, este é o famoso Klaaoz.

Após o banho, Klaaoz usou o poder para tirar todas as coisas que
estavam bagunçadas em cima da cama de Luna. Quando os dois se
deitaram, ele olhou por alguns segundos para o teto, depois fechou os
olhos.

— Você já vai dormir? Eu não estou com sono, espere — Luna


protestou.

— É só olhar para o teto. Essas imagens são soníferas.

Tudo estava explicado. Bem que ela desconfiava de que


adormecia com facilidade sempre que olhava para os desenhos no teto.

— Ei…

— O quê? — perguntou ele sem abrir os olhos, com a mão


apoiada no rosto de uma forma angelical.

— Sobre o que eu perguntei lá na caverna… Eu tinha medo de…


você sabe… porque eu já tinha feito com uma pessoa que depois se
mostrou um idiota e eu me arrependo.
Klaaoz imediatamente abriu os olhos.

— Quem? Aquele seu ex-namorado estúpido que foi horrível com


você e não ficou ao seu lado quando você foi expulsa do colégio?

— Nossa, você se lembra?

— Claro que eu me lembro. Quando formos na Terra amanhã,


poderemos encontrá-lo e usar nossos poderes para nos vingar dele de
alguma forma. Tenho muitas coisas em mente. Mas agora vamos dormir.
— E fechou os olhos, mas abriu um sorriso maléfico.

— Não, mas obrigada por me incluir no seu plano de vingança. —


Ela riu, mas seu peito se aqueceu devido à mensagem subliminar por
trás das palavras dele. “Nossos poderes.” Não era um cara babaca e
ciumento querendo brigar para se autoafirmar e marcar território. Era
alguém que queria ajudá-la a se vingar de uma pessoa que a fez mal
porque se importava com ela.

Talvez essa fosse a maneira dele de dizer que a amava e que


queria construir uma vida ao seu lado. Um jeito meio antiético, deturpado,
de valores morais duvidosos, mas, ainda assim, era um jeito.

Luna continuou o observando dormir com a sensação de que ele


era como uma peça de quebra-cabeça que ela nem sabia que lhe faltava.

— Também amo você. — Ela sentiu vontade de dizer isso, mesmo


sem ele estar ouvindo ou ter dito também. Mesmo que ele fosse incapaz
de pronunciar, mesmo que ele não merecesse. E mesmo que ela não
entendesse o motivo.

E estava quase tudo escrito.

Luna sabia quem eram seus pais, mesmo não sabendo o que
acontecera a eles.
Aprendeu a usar seus poderes.

Amava uma pessoa que a amava de volta, de um jeito estranho,


mas amava.

Tudo estava mais ou menos no lugar.

E mais ou menos já era mais do que esteve em toda a sua vida.

Por muito tempo, Luna ficou presa num espaço-tempo odiando sua
vida. Queria o passado de volta, sonhava com o futuro, mas não
conseguia se livrar do presente.

O Eterno Retorno representa a vontade de que os momentos em


nossas vidas se repitam infinitas vezes. Nietzsche levanta o
questionamento: você ainda seria feliz mesmo se determinado momento
de sua vida se repetisse continuamente? Se sim, você deve fazê-lo. A
busca pelo retorno de um momento é a busca pela eternidade do mesmo.

Luna morava na casa de uma pessoa que a sequestrara no meio


de uma festa, depois a sequestrara de novo, e essa pessoa também era
seu namorado, que ela amava mais do que tudo na vida.

O quão bizarro era isso?

Parecia a sinopse de um filme de Almodóvar, mas ela nunca


estivera tão feliz. Se sua vida se repetisse naquele momento milhares de
vezes, ainda estaria feliz.

Ela sorriu sozinha por um segundo e, quando olhou para Klaaoz,


viu que o 0,5 cm de sorriso ainda estava no canto de sua boca. Ninguém
acreditaria se ela dissesse, mas aquele 0,5 cm… Ah, aquele 0,5 cm seria
capaz de levar a paz ao Oriente Médio.

Luna desejou que aquele instante durasse para sempre e se


repetisse por toda a eternidade. Ela ficou apenas observando Klaaoz.
Não conseguia dormir, estava feliz demais.

Por um bom tempo, o único barulho que se ouvia era o de sua


respiração.

Até que a paz foi dissipada por um ruído vindo de muito longe.

A cada segundo dava para ouvi-lo se aproximando.

Eram passos. E estavam cada vez mais perto.

Estavam vindo do corredor.

Muitos passos. E apressados.

O que estava acontecendo?

De quem eram aqueles passos?

Então um barulho enorme veio da porta, que se abriu, e foi seguido


pelos dizeres:

— Klaaoz Lynxzarsfeld, você está preso.


44

44- Coração, porque ele?

Considerando que os olhos são capazes de dizer mais do que


nossa boca, no decorrer da nossa vida recebemos alguns olhares que
ficam marcados em nossa memória bem mais do que qualquer palavra.

Luna, apesar da pouca idade, já possuía uma vasta coleção


desses olhares. Das pessoas no dia do ocorrido, de seu tio quando ela
lhe contara o que acontecera, de Klaaoz na última briga que tiveram e o
de Bok naquele momento.

O olhar frio e decepcionado que Bok lhe lançava enquanto ela


tentava se esconder com as cobertas dos inúmeros guardas da Capital
era a única coisa que Luna conseguia ver.

— Você tem o direito de permanecer calado. Por favor, nos


acompanhe — disse um guarda, mas subitamente ele e os outros caíram
no chão.

Segundos antes, como se já previsse o que aconteceria, um deles


havia acionado uma arma que arremessou uma seringa na direção de
Klaaoz.

— Não — Klaaoz balbuciou, fraquejando, olhando a injeção


cravada em seu pescoço. Os guardas caídos no chão se levantaram
normalmente, como se seu poder não fizesse mais efeito algum sobre
eles.

— O que é isso? — Luna não tinha nem tido tempo de digerir o


que estava acontecendo.

— Gorgana — Klaaoz disse com a voz sofrida.

Luna demorou alguns instantes para se dar conta de que a injeção


continha a substância que paralisava seus poderes.

— Parem — ela gritou, desesperada, puxando a seringa dele.

Ele continuava imóvel, agonizando de dor, e ela foi invadida por


uma sensação de claustrofobia ao vê-lo daquele jeito. Alguns guardas se
aproximaram para levá-lo, e Luna nunca havia sentido tanta raiva e
desespero como naquele momento.

Ela fechou os olhos, e aquela sensação familiar da mente ser


teletransportada tomou conta dela. Quando os abriu, todos os guardas
estavam imóveis no chão.

— Vocês não podem levá-lo! — ela gritou. Toda a cena foi como
um borrão para Luna. Ela mal conseguia enxergar direito.

Bok continuava calado na porta, sem reação.

— Ele vai entregá-la para o Comando Omega, sua idiota! — gritou


um dos guardas que estavam sob seu controle.

Ela apenas ignorou.

— Recebemos denúncias de que ele estava planejando entregar


você para o Comando Omega — repetiu outro.

— Quê? Claro que não. Isso é mentira!


Klaaoz a olhava de soslaio, imóvel, sem proferir uma única
palavra. Até que Bok, o único que não estava sob a influência do seu
poder, pegou um Holophone e uma gravação de Klaaoz conversando
com alguém apareceu:

— A garota — disse o holograma de Klaaoz.

— O que tem essa maldita garota que foi o começo de todos esses
problemas? E por que você a raptou pra começo de conversa? —
perguntou o holograma de um homem velho e carrancudo.

— A bússola apontava para ela, achei que estivesse com a pedra,


mas era só um colar que ela possuía… O que importa é que ela é
gagrilyana. Ela entrou na minha mente. Nós poderíamos usá-la. Existem
relatos de gagrilyanos que conseguiam entrar na mente de milhares de
pessoas ao mesmo tempo.

— E como você acha que vai conseguir chegar até ela de novo?
Entrar na Capital com o Sistema todo atrás de você e sequestrá-la
novamente?

— E se ela não estiver na Capital? Pelo que eu percebi, ela não


fazia ideia do que estava fazendo. Foi como se ela tivesse descoberto
que era gagrilyana naquela hora.

— E o que isso tem a ver?

— Se ela quiser aprender a controlar seus poderes, eu tenho


certeza de para onde minha mãe vai mandá-la.

— Para ver seu tio Oberyn.

— Sim. Ela sempre quis arranjar uma desculpa para procurá-lo, e


encontrar uma gagrilyana que controla mentes é a desculpa perfeita. Ela
sabe como ele gosta de estudar nossa raça.
— E o que você pretende fazer?

— Bom, eu posso encontrá-los e dizer que estou arrependido e que


quero me redimir. Quando ela já tiver aprendido a usar seu poder, arranjo
um jeito de trazê-la para cá.

— E se ela não estiver lá?

— Bom, não custa nada tentar.

O vídeo terminou, e a vista de Luna escureceu.

Não. Não era possível. Era mentira, aquilo não podia ser real.

— Klaaoz? — ela chamou.

Ele não respondeu, estava mais pálido do que já era e lhe lançava
outro olhar inesquecível para sua coleção.

A sensação que Luna teve foi de que alguém havia arrancado o


coração de seu corpo e o pisoteado.

Não. Conseguia. Acreditar. Naquilo. Que. Estava. Acontecendo.

Não.

Não.

Não.

Aquilo só poderia ser um pesadelo que acabaria quando ela


acordasse.

— Klaaoz? — repetiu. Ele precisava dizer alguma coisa. Qualquer


coisa. Aquilo não poderia ser verdade.
Sua cabeça estava a mil, as lágrimas ameaçavam escorrer. Todos
os momentos que passaram juntos. Tudo. Era tudo mentira?

Seu mundo estava desmoronando. Ela sabia que ele não era a
melhor pessoa do mundo, mas aquilo era… doentio. Por que ele
precisava ter dito aquelas coisas, feito-a acreditar que ele a amava se
tudo não passava de um plano?

— Klaaoz, por favor. Diga que isso é mentira, que é montagem,


que é qualquer coisa, menos que é verdade — ela implorou, mais uma
vez tentando controlar o turbilhão de sentimentos que tomava conta dela.

Mas ele permaneceu calado, olhando-a com os olhos arregalados


cheios de desespero e confusão, o que a fez ficar tão atordoada que ela
não conseguiu continuar usando o seu poder.

— Levem-no — disse um guarda. Outros dois o algemaram e o


carregaram.

Ela não conseguiu fazer nada além de olhar para a parede, sem
reação. Tudo acontecia tão rápido que era difícil de entender.

Bok ficou no quarto até todos saírem, lhe deu uma última olhada e
balançou a cabeça negativamente. Ele não precisava dizer nada, seu
olhar já falava tudo. Ela não precisava nem ler sua mente.

— Por que ele? — Bok perguntou.

Essa era a pergunta que ela se fazia todos os dias e para a qual
não conseguia encontrar a resposta. É, coração, por que ele?
Luna estava dentro da nave voltando para a Capital, levando
apenas o chuveiro na mão. Seu estômago, que antes estava cheio de
borboletas, parecia estar cheio de abelhas.

Não estava indo por vontade própria. Praticamente havia sido


obrigada a ir para prestar esclarecimentos, mas pelo menos a levariam
de volta à Terra quando tudo acabasse.

Ninguém proferia uma única palavra, mas Luna podia sentir os


olhares de todos sobre ela, apedrejando-a mentalmente. Ela não
precisava entrar na mente de ninguém para saber o que eles estavam
pensando. Aquele estava sendo pior do que o dia em que fora expulsa do
colégio.

Não aguentava mais ficar ali, sendo julgada como se ela também
não estivesse odiando a si mesma por tudo que acontecera. Como ela
era idiota. Aquele tempo todo… tudo não passara de um plano. Meu
Deus.

Algo havia se quebrado dentro dela e não possuía mais conserto.


A náusea lhe assolava enquanto sentia que havia um elefante em cima
do seu peito e, por cima dele, um hipopótamo. Seu mundo estava
desmoronando de forma vertiginosa e seu coração, completamente
lacerado de angústias.

Luna ouviu ao fundo da nave Alynestra Rydzinski, a diretora de


publicidade da Capital:
— Vamos dizer que ele a mantinha presa e algemada — ela
sugeriu.

Luna sentiu vontade de vomitar.

— E a obrigava a… — começou um dos seus assistentes, mas


Luna interrompeu, incapaz de aturar um absurdo daquele:

— Parem de falar da minha vida como se eu não estivesse aqui!


Eu não vou compactuar mais com essas mentiras ridículas! Eu me
responsabilizo pelos meus atos. Ele pode ter feito o que fez, mas eu
tenho plena consciência do que eu sentia.

— Querida, você está com síndrome de Stockholm. Não é assim


que denominam na Terra?

— O quê?

— O nome que se dá para quando você é mantida em cativeiro e


desenvolve afeto pelo seu raptor.

— Eu não tenho isso! — gritou enquanto todos a olhavam.

Ela não tinha isso. Ela não tinha.

Será que tinha? Será que era louca a esse ponto?

Mas como Klaaoz pôde ter mentido tanto? Os sinais estavam lá,
ela que se recusara a enxergar. Por isso que ele apareceu de repente no
planeta de Oberyn. Por isso que ele os obrigou a acompanhá-lo. Por isso
que não a levou direto para o Comando Omega, precisava que ela
primeiro aprendesse a usar seus poderes. Por isso que ele não a deixava
partir. Por isso que ele ficou tão estranho quando tentaram sequestrá-la
na festa em Teyrilia. Tudo fazia sentido.

Estava tudo lá, como ela pôde ser tão idiota?


Não era amor? Era síndrome de Stockholm?

Quando a nave pousou em frente ao edifício Pryke, uma multidão


de repórteres se amontoou ao redor dela. Àquela altura, o vazio no peito
de Luna doía tanto que queimava.

— Você está bem? — Bok perguntou. Luna nem se lembrava de


que ele estava ali. Seu cérebro não conseguia raciocinar.

— Eu sinto muito — disse com lágrimas nos olhos. Ele merecia


uma explicação decente, mas isso era tudo o que conseguia dizer no
momento. — Espero que você me perdoe um dia.

Os guardas a retiraram da nave antes que ela pudesse ouvir sua


resposta. Dentro do prédio, como Alynestra havia informado, a coletiva
de imprensa oficial já estava a aguardando. Luna subiu no palanque,
podia sentir aquela coisa no microfone que a fazia chorar, mas nem
precisaria dela. As letras holográficas começaram a surgir ao fundo com
o seu discurso, mas ela nem sequer as olhou.

— Eu não tenho síndrome de Stockholm porque eu já tinha


sentimentos por ele desde a festa! E não acreditem em nada que eles
falam, é tudo mentira! — gritou, deixando todos sem reação, e correu o
mais depressa que conseguiu para o elevador.

Ela respirou aliviada ao descobrir que ele ainda continha o registro


do seu globo ocular. O apartamento também e, por sorte, estava vazio.
Ainda faltava uma hora para a levarem de volta à Terra. Se é que
ainda levariam depois do que ela fizera na entrevista.

Luna foi direto para o banheiro e posicionou Freud no lugar do qual


ele jamais deveria ter saído. Mas não o ligou. Não queria conversar com
ele. Não queria conversar com ninguém. Só queria desaparecer.

Olhou para seu reflexo no espelho e se sentiu feia e abatida como


nunca. O desgaste emocional, mental e físico das últimas horas estava
refletido ali. Havia olheiras profundas, seus olhos estavam inchados de
tanto chorar, pareciam até menos azuis. Seu cabelo estava sem vida, sua
pele seca e seus lábios, sem cor.

Luna se sentou no chão e cobriu o rosto com as mãos.

Por que aquilo estava acontecendo? Por que sempre que alguma
coisa na sua vida começava a dar certo outra coisa acontecia e
estragava tudo?

Ela ficou sentada olhando para a parede por tanto tempo que
perdeu até a noção da hora. Até que ouviu batidas à porta. Ignorou. Não
queria falar com ninguém. Não queria ver ninguém.

Mas então ouviu o barulho da porta indicando que estava sendo


aberta. Ela achou estranho, haviam informado a ela que Mira estava
viajando e só chegaria à noite. Luna não estava psicologicamente
preparada para encarar sua ex-sogra naquele momento. Escondeu o
Holophone no fundo falso do casaco que usava para, caso estivessem
prontos para levá-la para a Terra, Luna conseguisse passar pela
embaixada o portando.

Mas, para sua surpresa, não era Mira à porta.

— Eu vim saber se está tudo bem — disse o presidente com uma


expressão estranha.
Ela se levantou e ficou parada no meio do cômodo.

— Estou bem — mentiu, depois sentiu uma picada no braço e tudo


escureceu.
45

45- Klaaoz finge dormir para evitar um


constrangimento

O barulho da nave aterrissando no solo acordou Klaaoz. A


sensação insuportável de ferro ardente circulando em suas veias ainda
estava lá. Todo o seu corpo doía tão ardorosamente que não conseguia
nem raciocinar. Ele já havia sobrevivido a gorgana antes, mas por que
dessa vez parecia ser dez vezes pior?

Tentou ver se reconhecia o local onde pousaram, mas sua vista


ainda estava embaçada. Até ficar com os olhos abertos doía nas
primeiras horas em que a substância se encontrava em maior
concentração no sangue. Se lembrava perfeitamente.

As portas da nave se abriram e dois guardas o escoltaram. No lado


de fora, dezenas de repórteres aguardavam na pista de pouso. Todos
sedentos por holofotos daquele que tentara matar o presidente. O próprio
filho, que manchete ótima para a mídia manipuladora e ridícula da
Capital. Se estivesse com seu poder, Klaaoz explodiria todas aquelas
câmeras e daria fim àquela palhaçada.

Enquanto era conduzido pelos guardas, mesmo com a visão turva,


ele reconheceu o lugar. A prisão de segurança máxima da Capital, onde
as piores pessoas de todo o Sistema estavam presas.
Ele foi submetido a todos os processos burocráticos: holofoto,
amostra de sangue, escaneamento do globo ocular, troca de roupas…
Quando começaram a raspar seu cabelo, ele nem tentou impedir. Foi,
então, conduzido à área das celas e, enquanto caminhava naquele
corredor escuro que cheirava à morte, passava pelos criminosos mais
repugnantes do Sistema.

— Ei, eu conheço você! Você é aquele cara do Comando Omega


— disse um osneano de uma das celas.

— Você vai ver só quando eu puser minhas mãos em você —


provocou outro, duas celas depois.

— Ninguém aqui gosta do Comando Omega.

E assim foi até chegar à sua cela, a última do corredor.

Klaaoz se deitou naquela coisa que mal poderia ser chamada de


cama, sem se importar com o quão suja ela era, porque tudo em que
conseguia pensar era no olhar desesperado de Luna ao assistir aos
holovídeos de ele falando sobre o plano.

Ele costumava achar que o mais doloroso do mundo era ter


gorgana circulando no sangue, que era como fogo queimando em suas
veias. Mas estava enganado.

Klaaoz estava no refeitório da prisão com uma bandeja, esperando


sua vez na fila para pegar aquela comida que provavelmente o faria
vomitar. Normalmente as prisões da Capital eram mais modernas, mas
não aquela. Aquela era a prisão para os piores dos piores.

— Nos acompanhe. — Ele ouviu alguém dizer por trás dele


enquanto duas pessoas o agarravam pelos braços abruptamente.

Ele engoliu em seco ao perceber que eram dois guardas. Eles o


escoltaram para fora do refeitório e seguiram por um corredor diferente
do qual passara ao chegar ali. Para onde o estavam levando? Estava
muito cedo para o julgamento. A menos que… Naquele momento, um frio
de gelar a alma percorreu seu corpo.

Klaaoz não ficaria surpreso se certa pessoa tivesse mexido uns


pauzinhos para que seu julgamento fosse ignorado e ele,
automaticamente sentenciado à pena de morte.

— Para onde vocês estão me levando? — perguntou conforme um


novo tipo de medo o percorria.

A resposta do guarda foi uma forte pancada em sua cabeça.


Klaaoz ficou zonzo e se desequilibrou por alguns instantes, mas
continuou sendo levado, respirando de maneira ofegante, com a certeza
de que o que mais odiava no mundo era a falta de seus poderes.

Os guardas o deixaram em uma sala e, quando um holograma


apareceu à sua frente, o rosto de Klaaoz se iluminou de felicidade. Na
medida do possível.

— Você não está autorizado a receber visitas e eu não posso tirá-


lo daí agora sem começar uma guerra. Você vai precisar esperar pelo
menos uma estação — Zuuvak disse rápido e direto, mas preocupado.

— Onde está Luna? — Essa era a única coisa que ele queria
saber.
A hesitação de Zuuvak em responder fez a vista de Klaaoz
escurecer por um instante. Todas as sensações ruins que já sentia devido
à gorgana acabaram se intensificando.

— Não sei. Pelo que eu ouvi, ela deve ter voltado para aquele
planeta dela.

Um suor frio pingava do rosto de Klaaoz, a sensação de vertigem


aumentou.

— Ela está bem? Ela… — Ele não conseguia formar palavras


concretas. Seu cérebro tinha evaporado.

— Não sei. Deixe isso para lá. Estou fazendo o possível para
adiantar o julgamento para a próxima estação. Tentarei entrar em contato
assim que tiver uma data certa. Não foi fácil conseguir esta ligação. Tente
se manter vivo até lá.

E, então, desligou.

Os guardas levaram Klaaoz de volta e, durante todo o caminho, ele


não conseguiu respirar. O fôlego estava preso em seu peito, e ele só
conseguiu soltar o ar quando chegou ao refeitório. Ficou parado no meio
daquele pátio asqueroso, seus olhos não conseguiam focar em nada.
Não conseguia se mexer, seu estômago queimava.

Um dadonyano esbarrou nele e com grosseria o mandou olhar por


onde andava. Klaaoz apenas ignorou. Não tinha forças, disposição ou
vontade de entrar em um confronto.

Outro homem parou diante dele e disse:

— Eu te conheço de algum lugar. — Klaaoz continuou imóvel. —


Eu estou falando com você — insistiu o homem, lhe dando um empurrão.
— Eu não frequento seu tipo de lugar — Klaaoz respondeu de
forma automática ao ser despertado da inércia em que se encontrava.

E foi assim que começou a confusão. O homem o empurrou


novamente, Klaaoz levantou a mão para empurrá-lo para longe, mas ele
não se moveu um centímetro sequer. Sempre esquecia que ainda estava
sob efeito da maldita gorgana.

O homem golpeou sua cabeça com a bandeja, e ele caiu. Mesmo


atordoado, Klaaoz tentou se levantar conforme uma roda se formava
entre os dois e outras pessoas aproveitavam para começar a se agredir.
O homem tinha duas vezes o seu tamanho, ele sabia que iria apanhar
feio. Mas quem se importava? A única coisa que importava na sua vida
fora tirada dele e provavelmente o odiava.

Até que, no meio do tumulto, Klaaoz sentiu uma dor lancinante de


algo perfurando suas costas e caiu de joelhos enquanto outras pessoas
ainda brigavam entre si.

Sua visão ficou turva e tudo o que conseguiu ver antes de


desmaiar foram os guardas chegando e jogando fumaça ahroxe para
acabar com o tumulto.

O novo corte nas costas de Klaaoz ainda estava aberto e a agonia


da gorgana ainda persistia, mas sua dor interna era tão grande que fazia
tudo parecer um mero arranhão. Como era possível?
Ele sentia como se estivesse morrendo e simplesmente não
conseguia salvar a si mesmo. O seu psicológico estava o destruindo.

Luna fora a primeira pessoa em todo o universo que havia feito


com que tudo dentro dele se ajustasse e parecesse bem. Ninguém nunca
lhe tinha olhado como ela nem o feito se sentir daquela forma.

Mesmo quando ele tentava fazer a coisa certa, dava errado.


Parecia até que o destino dele era estragar tudo. Todos os planos que ele
e Luna tinham feito… Tudo havia ido por água abaixo. Ainda não
conseguia acreditar. Eles nunca iriam para a Terra juntos.

O que vácuos ele estava pensando? Que iria se casar com ela,
que eles viveriam felizes para sempre?

“Não existem finais felizes para pessoas como ele”, ela mesma
dissera.

Naquele momento, uma voz familiar, vinda do corredor, fez Klaaoz


despertar de seus devaneios. Uma voz que não ouvia há muito tempo,
que o fez sentir uma pontada no peito.

— Onde está ele? — A voz era alta e urgente.

— Primeira-dama, calma, a senhora não pode entrar aqui.

Sua mãe apenas ignorou os guardas e correu, olhando de cela em


cela com a ansiedade estampada em suas feições. Quando já estava
perdendo as esperanças, viu Klaaoz parado em frente a ela com os olhos
atônitos, uma parede de vidro entre os dois.

Klaaoz passara muitos e muitos anos pensando no que falaria


quando reencontrasse sua mãe, mas com ela ali, diante dele, ele travou.
Talvez tenha sido pelo confronto mais cedo no refeitório ou pelo turbilhão
de emoções que estava sentindo, mas naquela hora seu cérebro
congelou.
Ele sempre tivera uma esperança meio que ingênua de que, no
momento em que se vissem, o relacionamento deles continuaria do ponto
em que havia parado. Que ela o trataria da mesma forma que o tratara
quando ele era criança. Mas Klaaoz acabou caindo em si. Ela
provavelmente o odiava, assim como todas as pessoas no universo.

Ele observou as marcas do tempo em seu rosto. Seu cabelo tinha


mudado, mas a leveza de sua expressão continuava a mesma. Quando
olhou dentro de seus olhos e viu a emoção contida neles, Klaaoz não
conseguiu se segurar. Os olhos dele se encheram de lágrimas. Mas ele
não podia chorar. Ele não chorava, nunca. Ninguém podia vê-lo
chorando.

Mas sua mãe continuava firme e impassível à frente dele. Klaaoz


estava sem piscar os olhos, segurando as lágrimas o máximo que
conseguia, o peito doendo.

— Oi, mãe — disse e não conseguiu mais segurar, desabando a


chorar.

Mira olhava para seu filho, mas não conseguia enxergar nada
daquilo que as pessoas achavam a seu respeito, nem por um segundo.

Via apenas o bebê a quem dera à luz há trinta e dois anos


gagrilyanos e que não chorara ao nascer.

Via apenas a criança assustada que gostava de se isolar.


Via o adolescente complicado que ela nunca conseguira entender.

Via apenas seu filho, triste, sozinho e vulnerável, sofrendo e


precisando de ajuda.

Seus olhos escuros estavam terrivelmente tristes, seu lindo cabelo


preto se fora. Sua pele pálida acentuava as olheiras e a falta de
descanso.

Ela sentiu um aperto tão grande no peito que, assim como ele, não
conseguiu conter as lágrimas. E naquele momento dois guardas
apareceram e a levaram de volta antes que pudesse responder.

Mira olhava para ele através de um vidro no local de visitas que


improvisaram e sentia que havia decifrado algo que nunca tinha
conseguido entender. Ele sempre tivera olhos tristes, desde criança.
Naquele momento, pareciam ser os mais tristes do mundo. Mas havia
algo diferente por trás daquela tristeza. Não era a tristeza que ela estava
acostumada a ver refletida em seu olhar. Era uma tristeza diferente, como
se fosse uma tristeza de quem havia experimentado a felicidade e
realmente compreendia o que era a falta dela. Só poderia ficar triste
quem já fora feliz. O que ela tinha deixado de enxergar quando ele era
criança?

Ela não se importava com o que ele tivesse feito no passado, só


queria confortá-lo naquele momento. Estava feliz demais por vê-lo para
se importar com qualquer outra coisa.
— Tragam-no para cá — ordenou aos guardas. Não suportava ter
que vê-lo através de um vidro. Fazia mais de cinco anos gagrilyanos que
não o via, tudo o que mais queria era abraçá-lo e só.

— Mas, primeira-dama…

— Tragam.

Os guardas obedeceram e o levaram.

Quando ela viu Klaaoz parado na porta, hesitante, sentiu o coração


explodir dentro do peito e a única coisa que conseguiu fazer foi correr até
ele e abraçá-lo. Como sentira falta daquele abraço. Na última vez que o
abraçara, ele não era tão alto. Naquele momento, a cabeça dela ficava
posicionada exatamente no seu coração, que palpitava tanto quanto o
dela naquele momento.

Klaaoz apoiou o queixo no topo da cabeça da sua mãe, se sentindo


bem pela primeira vez desde que o prenderam. Tão bem que sua vista
começou a escurecer… e escurecer… e ele começou a perder os
sentidos e… não viu mais nada.

Aos poucos, Klaaoz foi abrindo os olhos e percebendo onde


estava. Estava numa cama, provavelmente no pronto-socorro da prisão.
Quando percebeu quem estava ao seu lado, fechou rapidamente os
olhos para fingir que continuava dormindo enquanto pensava no que iria
dizer.
— Eu vi que você acordou, Klaaoz.

Oh, foi pego em flagrante na situação mais boba e infantil possível.


Sentiu como se tivesse voltado a ter doze anos gagrilyanos.

— O que aconteceu? — ele perguntou.

— Você estava com um corte aberto que, junto à grande carga


emocional que vem carregando, fez sua pressão cair. Então, você
desmaiou e o trouxemos para cá. Há quanto tempo você está sem
comer?

Klaaoz vasculhou sua mente à procura da informação. A última vez


tinha sido quando ainda estava com Luna. Sentiu um aperto no coração
ao se lembrar dela. Como será que ela estaria naquele momento?

— Não… me lembro — disse ele com dificuldade.

Ele percebeu que sua mãe reparara na mudança de sua


expressão. Poderia fazer anos que não se viam, mas ela ainda conhecia
sua inexpressividade e o que ela significava melhor do que ninguém.

A lembrança de Luna fizera a cabeça de Klaaoz ir parar em outro


lugar, e ele quase se esquecera de que a mãe estava ali e que merecia
uma explicação.

— Eu… sinto muito. Eu queria dizer que…

— Não precisa dizer nada. Tudo bem — ela o interrompeu,


respirando fundo. — Eu já estou muito feliz por ter você de volta.

— Mas… — Ele não conseguia acreditar naquilo que ouvia. — Eu


queria que você soubesse que eu me arrependo profundamente por tudo
que eu fiz. Eu quero ajudar a consertar as coisas. Eu… não queria que
você me odiasse.
— Eu nunca o odiei, Klaaoz. Nesse tempo todo eu só queria ter
você de volta. Eu não me importo com o que você fez. — Seus olhos
estavam cheios de lágrimas. — Você é meu filho, e eu o amo mais do
que tudo. — Klaaoz não sabia o que dizer. Fechou os olhos e
ficou em silêncio. Era doloroso demais falar qualquer coisa. — Mas por
que você iria fazer aquilo com ela, Klaaoz?

Ele sentiu a garganta tampar, mas ela merecia uma explicação.

— Na hora parecia a coisa certa a se fazer. Parecia a única coisa a


se fazer. Mas foi antes de…

Ele se calou. Ela ficou o esperando completar a frase, mas ele


continuou calado.

— Amá-la? — Ele engoliu em seco. Como ela sabia? Ah, isso


importava? — Então, como é amar alguém? — ela continuou.

Seria ridículo demais se ele fingisse outro desmaio para se


esquivar de sua pergunta? Mas ela o olhava tão ansiosa… Ele precisava
dizer alguma coisa.

— Todas as coisas ridículas que as pessoas falam sobre… isso


são completamente verdadeiras. — Ela riu. Klaaoz percebeu como
sentira falta daquele som. Queria continuar a ouvi-lo. — Também dá um
pouco de dor de cabeça para falar a verdade. Às vezes é como se
tivesse uma flecha enfiada no seu peito, mas você não quisesse tirar e às
vezes até gostasse de enfiá-la um pouco mais. — Ele mesmo riu ao se
dar conta do que acabara de falar. — Olhando de fora parece uma coisa
impossivelmente dolorosa, que não vale o trabalho. Mas, ainda assim,
você quer fazer todo dia. E continua querendo mais.

— Por quê?

— Não sei. Sinceramente. Mas talvez, se não fosse tão incerto e


perigoso, nós não desejaríamos tanto.
Mira ficou observando o deleite com que seu filho proferia aquelas
palavras. Todos aqueles anos imaginara como seria quando o
reencontrasse, e lá estava ele: irreconhecível, diferente de tudo que
imaginara e do que se lembrava. Mas ainda assim era o mesmo.

— Como ela está? Ela… me odeia?

Mira suspirou.

— Vou tirar você daqui e te explico no caminho.

— Como você vai me tirar daqui?

Os lábios de Mira se curvaram em um tipo de sorriso que ela não


dava há muito tempo.
46

46- O que fizeram com o seu cabelo?

Luna acordou completa e absolutamente desnorteada, sentada em


uma cadeira com as mãos para trás. O ambiente era completamente
escuro, ela não conseguiria distinguir nada que estivesse a um palmo do
seu nariz. Não fazia ideia de onde estava ou de como fora parar ali. Tudo
o que se lembrava era de sentir uma picada no braço.

Também não sabia dizer se estava viva ou morta, mas tinha quase
certeza de que havia morrido. Pelo menos, era assim que se sentia.

Ela começou a se lembrar de como sua vida estava


completamente diferente há tão pouco tempo. Estava na caverna com
Klaaoz, onde ela ingenuamente achara que havia conseguido montar
aquele quebra-cabeça.

Ainda não conseguia acreditar.

A traição de Klaaoz partiu seu coração mais do que qualquer outra


coisa que já acontecera na sua vida. Como ele tinha sido capaz de
enganá-la daquela forma? Uma parte dela tinha esperanças de que ele
chegasse para salvá-la dizendo que tudo aquilo não passava de um mal-
entendido. Outra parte sabia que aquilo nunca aconteceria.
Luna o conhecia, tinha consciência de tudo que ele já havia feito e
decidira se entregar mesmo assim.

Ela era idiota. Muito idiota.

Será que ele realmente estava fingindo ser outra pessoa todo
aquele tempo que passaram juntos? Ela não sabia o que pensar. O
simples ato de se lembrar do que aconteceu fazia sua cabeça latejar.

Estava tudo tão escuro… Não havia nenhuma brecha de luz em


lugar algum. Suas mãos tremiam. Ela não queria ficar ali, não queria ir
para outro lugar, só queria poder sumir.

De repente, uma porta se abriu, as luzes se acenderam e, para


sua surpresa, o presidente entrou no lugar em que estava. Luna o
encarou por alguns instantes, sem entender.

— Pela Energia, o que fizeram com você? Ainda bem que eu


cheguei a tempo! — ele disse, apressado, soltando as algemas que a
prendiam.

Luna ficou livre, mas permaneceu sentada, tentando entender o


que estava acontecendo.

— Onde eu estou?

— No Comando Omega. Mas não se preocupe, estou aqui para


salvá-la.

— Como eu vim parar aqui? — A última coisa de que ela se


lembrava era de estar no banheiro do apartamento da Capital com ele.

— Quando eu cheguei para ver se estava tudo bem com você,


soldados invadiram o apartamento e nos trouxeram para cá. Mas não se
preocupe, o resgate já chegou, agora está tudo bem. — Ela não falou
nada. — Eu soube das… circunstâncias em que você foi encontrada em
Gagrilya. — A voz dele era receosa, como se estivesse se solidarizando
com sua humilhação. Isso fez o estômago de Luna embrulhar. — Sabe,
pelo que eu vi nas filmagens, isso não fazia parte do plano. Eu acho que
isso foi baixo demais até para ele. O plano era só esperar você aprender
a usar o poder e depois trazê-la pra cá. — Luna não conseguia nem falar.
As palavras entravam pelo seu ouvido, mas não faziam nenhum efeito.
Nada que ele dissesse conseguiria afetá-la mais, pois ela não sentia mais
nada. — Mas fingir que se importava com você? Ele fez isso porque
queria… te destruir.

As palavras do presidente ecoaram em sua mente. D-e-s-t-r-u-i-r.

Ela não sentia raiva.

Também não sentia tristeza.

Não sentia nada. Não conseguia sentir mais nada. Aquela era a
pior sensação do mundo e, ao mesmo tempo, não era sensação
nenhuma.

— Parece que ele te odiava muito, culpava você por ter que se
afastar do cargo que exercia — ele continuou. Era inacreditável como ela
ainda tinha lágrimas para chorar, demonstrando que não sentir nada era
mais um desejo do que a realidade. — Essas pessoas do Comando
Omega não têm caráter nem medem esforços para conseguir o que
querem. Não importa quem tenham que destruir. — Ele balançou a
cabeça, com tristeza no olhar. — Eu não sei como o meu próprio filho foi
capaz de se tornar uma pessoa assim. — O presidente levantou o rosto
para enxugar lágrimas que começaram a escorrer.— Nós precisamos
detê-los! Antes que eles consigam chegar ao governo. Você poderia usar
seu poder em algumas pessoas do Senado e convencê-los de que…

Nesse momento, Luna teve um estalo. Como ele sabia que ela era
gagrilyana? Fechou seus olhos e tentou ler a mente dele, mas não
conseguiu. Será que ela também estava sob efeito de gorgana? Mas por
que não sentia a dor toda de que falavam?
— Por que eu não consigo usar meu poder em você?

— Ah, é por causa deste bracelete que nós encontramos quando


fizemos uma intervenção no Comando Omega. Parece que ele foi um
dos artefatos usados para derrotar os gagrilyanos na guerra — ele falou,
tentando soar casual.

— Vocês fizeram uma intervenção no Comando Omega?

— Sim. Graças à sua entrevista. Era a prova de que precisávamos


para poder acusá-los de vez — ele falou em tom despreocupado
enquanto mexia em um Holophone.

Luna engoliu em seco.

— Onde Klaaoz está?

— Na pior prisão de todo o Sistema. — Os olhos dele brilharam de


satisfação ao dar aquela informação. Como alguém podia sentir tanto
deleite por ver o filho preso? Por mais que desprezasse Klaaoz naquele
momento, Luna não lhe desejava nenhum mal. — Você precisa nos
ajudar a acabar de vez com o Comando Omega, depois convencer os
senadores a alterar a lei para que nosso mandato continue em vigência,
se é que você me entende. Essa é a única forma de conseguirmos
manter a ordem e a paz do Sistema.

Por que ele insistia tanto naquela questão? Tinha alguma coisa
errada.

Nessa hora, Luna se lembrou da carta de sua mãe a Oberyn, em


que ela falava que Stayon era culpado por tudo. Mas tudo o quê?

— Por que minha mãe não gostava de você?

— Quem é sua mãe?


— Lyrian.

Ele arregalou os olhos. Luna daria tudo para conseguir ler o que se
passava em sua mente naquela hora.

— Não sei de onde você tirou essa ideia, nós éramos ótimos
amigos. —Alguma coisa estava muito errada. — Eu não sou seu inimigo,
Luna — ele falou em tom apaziguador. — Eu até coloquei uma
recompensa para quem conseguisse salvá-la das mãos daquele… — Ele
pronunciava as palavras com repulsa.

— Então era você quem estava por trás da tentativa de sequestro


em Teyrilia? — Ela ficou sem fôlego.

— Na verdade foi uma tentativa de resgate, já que você já havia


sido sequestrada. — Ela ficou o encarando. A lembrança daquela noite
vindo à tona a deixou sem palavras. — Agora nós precisamos de você
para controlar a mente de algumas pessoas. Meu querido cunhado
Oberyn a ensinou a fazer isso, certo?

Tinha algo realmente muito errado. Por que Oberyn não ficou
surpreso quando soube que Klaaoz atirara no próprio pai?

— Eu não vou ajudar você.

A expressão de incredulidade que ele fez escondia alguma coisa.

— Por quê? Você não entende a gravidade da situação?

— O que você está escondendo para usar um bracelete que me


impede de ler sua mente?

— Nada. Este bracelete serve para bloquear o efeito de qualquer


poder, não apenas o seu. Eu o uso por questões de segurança. Coisa de
presidente — disse em tom divertido.
— Mas você não disse que o achou quando fizeram uma
intervenção no Comando Omega? — Ela o pegou.

— Eles o haviam roubado. — Ele era ágil.

— Mas eles não o tinham usado na guerra? — Ela não desistiria.

— Mas estava na posse da Capital há muitos anos. — Não tinha


jeito. Ele continuaria inventando desculpas para tudo.

Naquela hora, o Holophone de Stayon tocou e, quando leu a


notificação no visor do aparelho, abriu um sorriso que fez Luna sentir um
calafrio em todo o corpo. Ele imediatamente se retirou do local.

Novamente sozinha, ela pôs a mão no fundo falso do casaco, onde


havia guardado seu Holophone, e, quando sentiu que ele ainda estava lá,
não conseguiu acreditar na própria sorte.

Precisaria ser rápida.

Oberyn olhava pensativo para a janela daquele apartamento nas


alturas, sentindo um embrulho no estômago que ele sabia não ser devido
à enorme quantidade de ceecolini que comera de nervosismo por conta
dos recentes acontecimentos.

Coisina, Rys, Morg e Nicoy também estavam com ele, e cada um


parecia ocupar sua mente de uma maneira diferente. Rys tirava fotos de
si mesmo, Coisina roía as unhas, Morg mordia o pé de uma cadeira e
Nicoy encarava a parede.

O barulho da porta de entrada se abrindo fez com que Morg


voasse apressadamente até lá, seguido por um grito histérico de Rys.

— PELA LUZ DA ENERGIA! O que fizeram com seu cabelo?

Oberyn se virou, mas não foi a imagem peculiar de Klaaoz careca


que prendeu sua atenção. Foi a sua irmã, com quem não falava há vinte
e cinco anos gagrilyanos, entrando atrás dele.

Ela ainda parecia frágil e ingênua como sempre e, pela sua


expressão de surpresa, Coisina não havia informado a presença dele
quando ligara para ela para relatar o que acontecera, marcando de
encontrá-la no apartamento secreto que mantinha na Capital.

Mira o analisou um pouco apreensiva, como se não soubesse


como proceder em uma situação que não havia planejado. Ele já estava
a esperando dizer algo como: “ai, me desculpem, se eu soubesse que
vocês viriam teria contratado um buffet”, ou algum comentário sobre
como a casa estava desarrumada mesmo estando tudo perfeitamente
organizado.

— Você fica péssimo de barba — foi a primeira coisa que ela falou,
mostrando que, apesar de todos aqueles anos, a relação deles ainda era
a mesma.

— Sua maquiagem está borrada — ele respondeu com um sorriso.

E, então, ela começou a chorar.

— Eu sinto muito. Por tudo. Eu realmente sinto muito. Ela estava


certa esse tempo todo — Mira balbuciou entre soluços.
Por muitos anos, Oberyn a culpou pela morte de Lyrian.
Inconformado, partira em busca de respostas para o que havia
acontecido e, quando não encontrou nada, entrou em depressão
profunda e resolveu se isolar. Viveu por muitos anos sozinho, vez ou
outra ia à parte habitada de Plutopra pegar suprimentos, mas a única
pessoa com quem manteve contato foi Klaaoz, que sempre o visitava no
dia de seu aniversário.

Em todos aqueles anos de exílio, ele refletiu, meditou e concluiu


que cultivar sentimentos ruins não levava a lugar nenhum e muito menos
traria Lyrian de volta.

Naquele momento, finalmente estava pronto para perdoá-la. Ele foi


até ela e a abraçou.

— Como eu pude ser tão cega? Esse tempo todo Stayon… — ela
disse entre soluços, falar em voz alta as coisas que ele fizera era
doloroso demais. — Como eu fui ingênua.

— Não é sua culpa.

— E eu sinto tanta falta dela. — Quando ela falou aquilo, os olhos


dele também se encheram de lágrimas. Parecia que falar sobre Lyrian e
não chorar era algo impossível de se fazer simultaneamente.

— Eu também. Ainda. — Não importava quantos anos se


passassem, aquela ferida nunca cicatrizaria.

Os dois choraram em silêncio, um tentando confortar a dor do


outro. Era difícil controlar todas as lembranças que aquele reencontro
trazia à tona. Todos aqueles sentimentos que foram por tanto tempo
reprimidos.

— Oi, eu não queria interromper, mas eu queria dizer que, na


minha opinião, você é a pessoa mais elegante, maravilhosa, chique e
bacana do Sistema — Rys disse por trás de Mira.
Mira até parou de chorar e riu enquanto enxugava as lágrimas,
tentando consertar a maquiagem borrada que escorria em seu rosto.

— Obrigada. Rys, não é? Klaaoz me falou de você. Depois, se


quiser, eu lhe mostro meu closet. — Ela sorriu, e Rys levou a mão ao
peito como se fosse infartar. — Mas agora precisamos focar no
importante. Stayon aplicou uma injeção de stradyte em Luna e a levou.
Eu vi nas câmeras. Nós precisamos fazer alguma coisa. O rastreador da
nave aponta que ele a levou para um laboratório em Osnea.

— Por que você não chamou os guardas para nos ajudar? —


Oberyn perguntou.

— Er… Klaaoz está aqui ilegalmente. — Ela olhou para os lados.

— O quê? Como você o tirou de lá?

— Nem queira saber…

— Você usou seus poderes? — Oberyn arregalou os olhos.

— Em tantas pessoas que perdi a conta. — Ela riu, como ria


quando tinha vinte e cinco anos gagrilyanos e fazia algo errado.

Nessa hora, as portas do elevador se abriram e um rapaz usando


um uniforme da GASP entrou, apressado.

— Mira, eu vim o mais rápido que pude… — ele começou a falar,


mas pareceu perder a voz quando avistou Klaaoz. — O que ele está
fazendo aqui?

Klaaoz o fuzilou com o olhar, abriu a boca para soltar alguma


insensatez, mas Mira o interrompeu:

— Bok, ele está aqui para ajudar a salvar Luna.


— Ele? — Bok se exaltou. — Mas o plano dele não era outro o
tempo todo?!

Klaaoz respirou fundo. Para a sorte de Bok, seu poder ainda não
havia voltado.

— Não, eu nunca tive a intenção de entregá-la. Talvez por alguns


dias, apenas. Mas depois que nós… ficamos juntos — ele pronunciava
essas palavras com deleite, prestando bastante atenção à expressão de
Bok. — Eu desisti completamente desse plano. Estava tudo bem até você
aparecer lá.

— Como eu iria saber?! Ela me ligava constantemente pedindo


que eu a socorresse porque não te suportava. Na última ligação, ela
parecia estar em perigo. Depois não me atendia mais nem retornava as
ligações. O que eu iria pensar? Eu rodei esse Sistema inteiro atrás de
informações de como chegar naquela droga de planeta! Quando
recebemos as filmagens de você contando do seu plano asqueroso, meu
alívio foi saber que a bússola apontava para o colar. Foi assim que
conseguimos.

— Ah, querido, isso foi antes — Rys interrompeu. — Depois, ela


que não queria sair de lá. Ela não tinha nem tempo de atender o
Holophone.

Bok pareceu incomodado com o comentário, já Klaaoz pareceu


sentir vontade de erguer um monumento para Rys.

— Olha, vocês podem continuar com essa discussão depois.


Agora precisam deixar suas diferenças de lado e salvá-la. — Mira tentou
dar um fim àquela criancice.

Klaaoz entortou a boca e olhou para os lados.

— Claro. — E sorriu, porque naquele momento deveria ter


preocupações bem maiores do que ciúmes.
— Mal posso esperar para que tudo isso acabe para nós podermos
ir para a Terra — Klaaoz disse para Rys, que apenas concordava com a
cabeça, mesmo achando ridículo ele ter passado a viagem toda tentando
contar vantagem. Bok permanecia calado num canto da nave, mas Rys
nunca vira uma pessoa revirar os olhos tantas vezes em tão pouco
tempo. Por que Klaaoz não conseguia ser maduro e fazer o que sua mãe
dissera, mesmo que fosse por algumas horas? Mães sempre sabem o
que é melhor para seus filhos, não importava em qual planeta fosse.

Nessa hora, Bok não aguentou mais as provocações e explodiu:

— Nós é que tínhamos combinado de ir para a Terra. Nós é que


iríamos fazer nossa viagem de pós-casamento lá.

Rys achou que havia demorado muito para aquela reação


acontecer. Qualquer pessoa naquela situação teria aguentado por bem
menos tempo.

— Ah, me poupe! Ela vivia falando como era ridículo esse


casamento de mentira, que tudo não passava de invenção da mídia
manipuladora da Capital para destruir a imagem do Comando Omega.

— Estava tudo ótimo antes de você aparecer. Se você não a


tivesse sequestrado de novo, ela agora não estaria correndo risco de
vida! — Bok se levantou e encarou Klaaoz com os punhos cerrados. Se
por acaso aquela discussãozinha fosse partir para o físico, Rys tinha
certeza de quem seria o vencedor. Klaaoz sem poderes não teria a
mínima chance contra os músculos de Bok, que ficavam salientes por
baixo da camisa. Ah, como eram definidos… Luna era uma desgraçada
de muita sorte por ter logo dois caras brigando por ela.

Rys ficou pensando qual dos dois escolheria em seu lugar. Bom, a
vida com Bok seria irrevogavelmente mais fácil. Ele era bem mais
musculoso, tinha lindos olhos verdes e tinha rodado o Sistema inteiro
para salvá-la. Já Klaaoz não era lá a melhor pessoa do mundo para se
conviver, sem contar que esse tempo todo estava planejando prendê-la e,
apesar de ter dito que estava arrependido… estava horroroso de cabeça
raspada.

Klaaoz era claramente a escolha errada. Mas todo mundo sabe


que tudo que é errado é sempre mais emocionante. Sem contar que eles
já tinham toda uma história. Por outro lado, com Bok ela teria a chance
de começar tudo do zero. Porque uma coisa que já começa errado não
tem como dar certo no fim.

Ai, que complicação. Rys se sentiu aliviado por não ser ele quem
tinha que quebrar a cabeça para escolher. Ele provavelmente faria o que
Z’ohannah faria. Daria um jeito de ficar com os dois sem um saber do
outro. Levaria a vida assim enquanto desse e, no dia em que eles
descobrissem, se mudaria para um planeta isolado de tudo e viveria o
resto da vida fazendo artesanato.

— Nós vamos resgatá-la e tudo vai ficar bem! Ela não teria ficado
com você de qualquer jeito. Eu poderia tê-la levado comigo desde a festa
e nem seria à força como você fez para trazê-la da Terra — Klaaoz o
provocou.

— Eu a trouxe da Terra para protegê-la! Você a levou para… nem


sei que termo usar! — Bok estava cada vez mais exaltado. Também…
Quem não ficaria?

— Dar muito prazer. — Klaaoz abriu um sorriso dissimulado.

Rys não conseguiu segurar a gargalhada.


Bok pelo visto também não conseguiu se conter e deu um soco no
rosto de Klaaoz, tão forte que ele caiu no chão. Ele estava quase
implorando por aquilo desde que chegaram ali.

— Olha, eu não sei o que ela tinha na cabeça para ficar com
alguém como você. Mas saiba que, se você fizer alguma coisa para
machucá-la, vai se ver comigo — Bok falou calmamente. Aquele soco
devia ter aliviado a tensão das últimas horas.

Klaaoz se levantou com dificuldade, limpando o sangue que


escorria do seu lábio inferior. No canto da sua boca, existia um sorriso
maligno, e Rys teve o pressentimento de que ele levaria outro soco pelo
que iria falar.

— Ok, anotado. Mas… e se… — Klaaoz começou, mas Bok o


interrompeu:

— Tem muito mais gorgana de onde veio aquela. Fique avisado. —


Bok sorriu.

Rys tampou a boca para impedir a gargalhada que ameaçou sair


após ver a expressão de Klaaoz. Ele ficou sem uma gota de sangue no
rosto, mais pálido do que já era.

— Vocês podem deixar isso para depois, já estamos chegando —


interrompeu Oberyn, a pessoa mais sensata dali.
A nave aterrissou em um local afastado da entrada do laboratório
em Osnea. Oberyn e Klaaoz desceram enquanto Bok e Rys ficaram
dentro da nave aguardando seu sinal. Foram andando sorrateiramente
até uma entrada lateral.

— Eu vou ficar invisível, dar a volta e tentar abrir por dentro.


Espere aqui.

Klaaoz ficou esperando e, depois de um tempo, quando a porta se


abriu e ele viu o que estava por trás dela, não conseguiu acreditar.

Aquele definitivamente não era seu dia.


47

47- A combinação de átomos mais


necessária que já existiu no universo

Quando viu Klaaoz entrar sendo arrastado por dois guardas, Luna
entendeu o motivo do sorriso venenoso que o presidente dera antes de
deixá-la. Os guardas o jogaram no chão, e ele parecia não ter forças para
se levantar.

Sua cabeça estava raspada, suas roupas, amarrotadas e o


semblante, abatido. Parecia ter acabado de voltar de uma guerra,
atravessado um apocalipse zumbi e ficado de quarentena sem comer ou
dormir. Seu olhar tempestuoso não tinha o mesmo brilho nem sua
postura a mesma elegância. Luna só o reconheceu porque ele era a
única pessoa no universo capaz de fazer seu coração bater tão forte
como estava batendo naquele momento.

— Ok, se você não quiser me ajudar por bem, então vai me ajudar
por mal — disse o presidente ao entrar novamente no recinto. Sem mais
delongas, ele retirou uma arma do bolso e a apontou para Klaaoz. Luna
gelou. — Você vai me ajudar a controlar a mente das pessoas ou eu
atiro.

O olhar dela cruzou com o de Klaaoz. Não importava o que ele


tinha feito, nada importava. Quando ela viu a arma apontada para sua
cabeça, sentiu um desespero tão grande que não conseguiu nem
raciocinar.

— NÃO! — ela gritou, sentindo seu coração quase saltar pela


boca, correndo em direção a Klaaoz. Se ajoelhou à sua frente para
protegê-lo sem pensar no que estava fazendo. Luna só sabia que, se
aquele tiro o atingisse, quem morreria seria ela.

Ela pôs as mãos em seu rosto, sentindo que nada mais importava.
Só queria que ele estivesse a salvo. Seu olho estava roxo e sua pele,
sem cor. Parecia ter sofrido tanto ou até mais do que ela.

E, então, como que por impulso, ela o beijou. Não foi um daqueles
beijos ardentes a que tanto estava acostumada, mas ainda teve o poder
de transportá-la para outro lugar e fazer tudo parecer bem, mesmo com o
mundo desmoronando.

— Desculpe por tudo. E saiba que eu amo você. Eu amo você com
todo esse meu coração desgraçado, inútil de merda. Não importa o que
aconteça — ele disse.

— Eu também amo você. — Ela olhou no fundo dos seus olhos e,


por um instante, tudo realmente pareceu estar bem.

Mas a mágica do momento foi dissipada por uma gargalhada


maldosa atrás deles.

— Nossa, eu não pensei que seria tão fácil assim. Mesmo depois
de tudo que ele fez? Você é mais idiota do que eu pensei.

Luna conseguiu segurar a língua mesmo tendo tanto a dizer.

— Diga o que você quer ou acabe logo com isso, Stayon! —


Klaaoz pelo visto não teve a mesma força que ela, suas palavras saíram
da forma mais áspera possível.
Stayon balançou a cabeça, um sorriso perverso nos lábios.

— Mesmo depois de todos esses anos, ainda com a mesma


arrogância de sempre, não é, Klaaoz? Vamos nos divertir um pouco —
ele disse com um olhar impetuoso sobre Luna. Ela sentiu as mãos
suarem e teve um péssimo pressentimento sobre o que estava por vir. —
Vamos testar suas habilidades de controle mental nas pessoas. Faça-o
quebrar o próprio braço. Ou eu atiro — disse, pegando a arma e voltando
a apontá-la para Klaaoz. Luna olhou para ele, horrorizada, uma sensação
apavorante tomando conta de seu estômago. Ele não podia estar falando
sério. — Ande logo! E se levante daí. Fique ao lado dele.

— Eu não vou fazer isso! — foi tudo que ela conseguiu dizer.

— Faça, senão eu atiro. Você escolhe. — E abriu um sorriso


enviesado.

Luna olhou para Klaaoz, mas ele não parecia tão abismado quanto
ela. Era como se já estivesse esperando por algo daquele tipo. Com a
expressão impassível, ele estendeu o braço e fez sinal positivo com a
cabeça.

— Não… — ela disse para ele, que a ignorou.

O presidente olhava para ele e depois para ela. Percebendo que


ela ainda hesitava, engatilhou a arma e a encarou.

Luna fechou os olhos, se concentrou e se conectou à mente de


Klaaoz. Klaaoz, eu não posso, disse. Depois de alguns segundos, seus
pensamentos responderam: faça o que ele está dizendo. Ela perguntou:
mas por quê?. Rapidamente, recebeu a resposta: para ganharmos
tempo, e foi tudo o que ele disse.

Luna se levantou e as lágrimas começaram a escorrer. Fechou os


olhos novamente, se concentrou, focalizou a mente dele, sentiu raiva e…
creck. O barulho de ossos quebrando foi seguido por um gemido
ensurdecedor.

Aquele som a deixou atordoada. O que ela havia feito? Seu instinto
inicial foi correr para ajudá-lo, fazer qualquer coisa, mas, antes que ela
pudesse dar dois passos, o presidente apontou a arma para ela.

— Não. Eu quero você assistindo parada.

Luna se sentiu despedaçada ao ver Klaaoz daquele jeito sem


poder fazer nada. Você está bem?, perguntou para ele, que demorou
alguns segundos para responder: vou ficar. Você precisa fazer o que ele
mandar até que os outros cheguem.

— Então, seu poder não é exatamente o que eu imaginei — Stayon


falou, parecendo meio decepcionado. — Não vai dar para fazer o que eu
planejava, mas ainda poderá ser útil. Enfim, agora quebre a perna dele.

Luna sentiu como se o coração parasse de bater ao ouvir aquilo.


Não podia continuar. Klaaoz, nós precisamos pensar em outra coisa, eu
não posso fazer isso, ela disse. Nós não temos escolha, foi sua resposta.

— Por que você o odeia tanto? — ela explodiu, se virando para


Stayon. Sentia tanta raiva daquele monstro que não conseguia raciocinar
direito nem encontrar um jeito de neutralizá-lo e acabar com aquela
atrocidade.

— A pergunta deveria ser por que não o odiar! Ele é tão


imprestável e inútil que até Zuuvak deu aquelas filmagens para a Capital
assim que ameaçaram cancelar a candidatura do Comando Omega à
presidência. Eu nem o julgo, porque… Olhe só para ele! — Ele apontou
para Klaaoz com desdém. — Ele não passa de um desperdício de
espaço!

Mas Luna olhava para Klaaoz e não via nada do que Stayon dizia.
Desde o dia em que se conheceram, ela o vira de tantas maneiras
diferentes que parecia que estava constantemente diante de outra
pessoa. Viu a pessoa mais bonita do mundo e a mais horrível. Um
príncipe, um monstro. Um sonho, um pesadelo. Até que percebera que,
embora ele tivesse um vestuário abrangente, não era ele quem mudava.
Eram os olhos dela.

Naquele momento, ela via apenas a pessoa que a salvara de


tantas maneiras, físicas e metafóricas, que não conseguia nem as
enumerar. A pessoa que a fez voltar a acreditar em si mesma e que, além
de mudar sua forma de ver o mundo, mudara também sua vida.

— Você está errado. Ele é a combinação de átomos mais


necessária que já existiu no universo — ela disse olhando para Klaaoz,
sentindo o coração se aquecer.

Seu tão amado 0,5 cm estava no canto da boca dele.

— Quê?! Quebre a perna dele, ande logo! — O presidente


vociferou.

Ela respirou fundo enquanto ele a olhava e assentia com a cabeça,


se sacrificando. Luna fechou os olhos, se concentrou e… creck. O
gemido dele foi ainda mais alto do que da primeira vez e o aperto no
peito de Luna, ainda mais doloroso. Ela não conseguia nem abrir os
olhos.

— Agora vamos melhorar as coisas. Eu quero que você o faça


atirar na outra perna.

Ao ouvir isso, a visão de Luna ficou turva. Como um pai era capaz
de fazer isso com o próprio filho?

Stayon retirou outra arma do bolso e a empurrou para o chão na


direção de Klaaoz.
— Por que você está fazendo isso? — ela gritou, caindo em
prantos.

— Isso é para ele aprender a nunca mais se meter no meu


caminho! — Seus olhos ferviam enquanto se virava para Klaaoz, a arma
ainda apontada para Luna. — Você deveria ter aprendido quando eu lhe
deixei trancado em Caelestra! — A voz dele era de puro veneno.

Meu Deus. Ele era pior do que Luna imaginava. Ele só iria parar
quando Klaaoz estivesse morto.

— Foi ele? — ela perguntou para Klaaoz, que balançou a cabeça


afirmativamente e gesticulou com os lábios as palavras: entre na minha
mente.

Luna fechou os olhos, se concentrou e se sentiu sendo


teletransportada para outro lugar. A voz de Klaaoz ecoou em sua cabeça:

Eu tinha vinte e seis anos gagrilyanos e ainda morava em


Caelestra. Minha mãe havia viajado para fazer seus trabalhos
voluntários. Meu pai não sabia quais eram, pois nunca se interessou. Só
queria que ela mantivesse uma boa imagem e fosse querida pelo povo.
Mas ela usava seu poder para apagar os traumas das pessoas. Ela
nunca havia dito a meu pai que possuía poderes por motivos que eu não
compreendia. Até para mim ela só contou quando eu estava mais velho,
pedindo segredo.

Bom, mas eu nunca tentei esconder o meu poder. Não o via como
algo para sentir vergonha, e sim para me orgulhar. Ela usava a desculpa
para o meu pai que o meu poder vinha de uma linhagem do meu avô,
algo que ela não havia herdado.

Eu evitava usá-lo em público, claro, pois conhecia a história da


dinastia gagrilyana. Oberyn sempre me deixou bastante informado sobre
tudo nas minhas visitas anuais, mas eu também gostava de pesquisar no
meu tempo livre.
Por isso, o lugar de que eu mais gostava na nossa casa de
Caelestra era a biblioteca. Ela era cheia de relíquias históricas, livros da
Era A.G. que não eram encontrados em nenhum outro lugar do mundo.
Nunca saía de lá sem descobrir algo novo.

Dessa vez, não foi diferente. No topo de uma estante, atrás de


alguns livros em gagrilyano, encontrei um fundo falso. Não consegui
conter a empolgação quando vi o que tinha lá dentro.

Era um diário com as iniciais do meu avô. Comecei a lê-lo e


perdi a noção do tempo. Havia vários relatos sobre Oberyn, minha mãe e
a amiga deles, Lyrian, aprontando tudo o que você possa imaginar. Eles
fizeram uma festa escondido quando ele estava viajando, mas nunca
entenderam como ele descobrira. Ele podia ver o futuro. Todos achavam
que era só o dele mesmo, mas o que ele nunca confessou foi que via
também o de seus dois filhos. Desde que eles nasceram, suas visões
sobre si diminuíram e deram lugar a visões alternadas dos dois. Como
estavam sempre juntos, meu avô sabia praticamente de tudo a respeito
deles e de Lyrian, que também estava sempre grudada neles. Como
Lyrian lhe dava dor de cabeça:

Lyrian continua sem conhecer os limites das coisas. Acho que ela
é uma péssima influência para meus filhos, desde criança sabia que ela
daria trabalho. Mas a essa altura não tenho o que fazer. Eu até gosto
dela. Sei que Oberyn é apaixonado por ela, mas ela só faz encher o
coitado de esperanças. E Mira é muito influenciável e aceita tudo que ela
diz sem contestar. Quando ela convenceu Mira a ir a um planeta de outro
Sistema por causa de um doce, choco… alguma coisa, como eu fiquei
irritado!
Mira foi mesmo sem minha permissão. Elas descobriram a
embaixada desse planeta na Capital e arranjaram um jeito de irem
escondidas. Lyrian tentou convencer Oberyn a ir também, mas graças à
Energia ele ficou mais ajuizado quando entrou na universidade. Ele se
tornaria professor de História Gagrilyana e Filosofia da Energia, eu já
havia tido visões sobre isso. Meu sonho era que ele virasse político,
como a tradição de nossa família, mas desisti de insistir nesse assunto.
Ele não leva jeito. Ao contrário de Stayon, meu novo assistente. Um
rapaz esforçado que veio de baixo e superou muitas dificuldades para
mudar de vida. Eu vejo um futuro brilhante em Stayon. Ele é o que eu
sempre sonhei que meus filhos fossem.
Por isso que, quando tive visões de que Mira em sua segunda
viagem para a Terra iria engravidar, não a impedi de ir. Porque eu havia
visto também que Stayon iria sugerir que dissessem que o filho era dele,
e que ela aceitaria por não ter coragem de me dizer quem era o
verdadeiro pai, um rapaz qualquer da Terra.
Talvez eu tenha sido muito rígido com meus filhos. Mas como não
ser?! Que pai no meu lugar, sabendo os erros que os filhos cometeriam
com antecedência, não tentaria evitá-los? Quando eu era jovem, ignorei a
visão que tive do suicídio do meu pai por ainda não ter certeza de como
funcionava o meu poder, não levei a sério. Não quero cometer o mesmo
erro com meus filhos. Às vezes, eu gostaria de não ter esse poder, mas o
único jeito de não ter essas visões seria tomar doses semanais de
gorgana e eu já li livros com relatos suficientes para saber o quão letal e
doloroso é.
Eu parei e precisei tomar fôlego antes de continuar a ler.

Meu pai não era meu pai? Isso explicava muita coisa. Todos
aqueles anos eu sentia algo estranho, como se ele não gostasse de mim.
Me perguntava o que eu havia feito de errado. Ele nunca foi um pai de
verdade, nunca se importou, mas sempre fingiu muito bem.
Principalmente na frente da minha mãe. Ele sabia que eu sabia que era
tudo falsidade. Eu só nunca entendi por que ele fazia isso.

Continuei a ler o diário:

Estou despedaçado. Hoje tive uma visão de que Stayon se tornará


governador de Caelestra, roubará nas eleições e irá me matar porque
descobrirei tudo.
Nem sempre minhas visões se concretizam, às vezes vêm
confusas, já que as pessoas com quem convivo podem mudar de planos
e afetar o meu destino. Espero sinceramente que esta seja uma dessas
vezes.
Essa era a última coisa escrita no diário, mas ainda restavam
muitas páginas em branco. Eu o fechei, ainda em choque. Não conseguia
acreditar no que havia lido.

Fui até o escritório daquele estranho que eu costumava chamar de


pai e, sem hesitar, perguntei:

— Você matou meu avô?

Ele pareceu ofendido.

— Claro que não! De onde você tirou um absurdo desse?

— Do mesmo lugar em que eu descobri que você não é meu pai.

Joguei o diário em sua mesa e fui para o meu quarto. Fiquei


pensativo, me perguntando se minha mãe tinha conhecimento daquelas
coisas e, se sim, por que nunca havia me contado. Eu sempre pensei que
ela confiava em mim, mas talvez estivesse enganado. Ela escondera a
identidade do meu próprio pai. O que mais ela escondia?

Poucos minutos depois, ouvi batidas na porta e, em seguida,


Stayon entrou, dizendo:

— Olha, é verdade que eu fraudei as eleições, eu era muito jovem,


não tinha discernimento de certo e errado. Mas eu não seria capaz de
matar o seu avô. Quanto a não ser o seu pai, nós estávamos esperando
você ficar mais velho para te contar.

Eu não sabia o que dizer. Só conseguia pensar em minha mãe.


Decidi ignorar todo o resto e perguntei:

— Minha mãe sabe que você fraudou as eleições?

Ele disse que sim. Eu me senti profundamente decepcionado.


Quem eram as pessoas com quem eu convivera a vida inteira?
Por impulso, eu disse que iria contar a todos, mas, antes de
qualquer coisa, ele atirou algo que penetrou na minha pele e foi seguido
pela dor mais intensa que qualquer pessoa poderia imaginar. Minha visão
escureceu enquanto minhas veias queimavam como fogo.

Acordei depois de algumas horas com vontade de morrer e, para


completar, estava trancado no calabouço do subsolo da casa. Era uma
casa muito antiga, da época da dinastia gagrilyana, e possuía quase uma
prisão subterrânea.

Passei o primeiro dia agonizando, a dor que eu sentia era


inimaginável.

No segundo dia começou a diminuir. Mas estar preso sozinho


naquele cárcere piorou tudo. Não comia nada há dois dias nem bebia
água. Senti meu corpo definhar. Sabia que iria morrer.

Foi então que Stayon apareceu.

— Isso é pra você aprender a não me desobedecer. Sua mãe está


decepcionada com você. Tudo que nós fizemos por você… É assim que
você retribui? Dizendo que vai contar para todo mundo? Você vai ficar
trancado aqui até eu decidir o que fazer com você.

Depois disso, ele só ia me levar comida, e eu continuei trancafiado


por mais três dias, me perguntando por que ele não me matava logo. Foi
então que Morg conseguiu entrar lá por uma passagem secreta no
subsolo, e eu descobri como escapar. Debaixo do chão existia uma
câmara com um arsenal e outras inúmeras relíquias da época da guerra
contra a última dinastia gagrilyana. Peguei apenas um livro que continha
a localização de vários planetas, inclusive Gagrilya, e decidi partir para
Vindemiatrix porque sabia que Stayon nunca me encontraria lá.

A minha sorte foi ter uma parte da herança do meu avô, era mais
do que o suficiente para viver o resto da minha vida da melhor maneira
possível, e eu podia acessá-la pelo globo ocular. Passei uns tempos
morando no melhor hotel de uma cidade de lá, levando um estilo de vida
completamente destrutivo. Eu vivia de festas e não aprofundava meus
laços com ninguém. As únicas pessoas com quem ainda mantive contato
por um tempo foram meus únicos amigos da escola, Heats e Kievan.

Mas nunca consegui superar o fato de minha mãe ter


compactuado com tudo isso. Stayon não me surpreendeu, mas ela…

Depois de um tempo, me mudei para outra cidade e um dia me


meti em uma confusão durante uma festa, usei meu poder e terminei
sendo preso por destruir algumas coisas. Quando fui liberado, Zuuvak
estava me esperando para ter uma conversa e me falou sobre o
Comando Omega. Eu já conhecia a história antiga, mas ele disse que
seria diferente.

Em um primeiro momento, eu não me interessei. Por que deixar


meu estilo de vida de prazeres, sem responsabilidades? Mas quando ele
disse que Stayon seria candidato a presidente do Sistema e que o
Comando Omega seria um jeito de derrubá-lo, eu aceitei. Meu ódio por
ele era tão grande que me fez querer deixar de lado aquele modo de vida
e encontrar um novo objetivo: destruir aquele que arruinou minha vida.

Comecei a trabalhar no Comando Omega. Eu era uma pessoa


muito fechada, não confiava em ninguém nem fazia questão de ser
agradável, mas aos poucos fui me afeiçoando a Zuuvak, que se mostrava
melhor do que aquele estranho que eu costumava chamar de pai. Ainda
sentia muita saudade de casa, principalmente da minha mãe, mas ela
nunca me procurou.

Morar num hotel tinha suas vantagens, mas não era um lar. Foi aí
que decidi procurar o planeta Gagrilya e conheci Coisina. Anos se
passaram, e as únicas pessoas com quem eu de fato convivia eram
Coisina, Zuuvak e Morg, que é mais que uma pessoa para mim.

Até que, no dia do meu aniversário deste ano, recebemos


informações da existência de um laboratório clandestino em Osnea, que
estava realizando testes com uma pedra Aünder para ver se conseguia
converter o poder dela para os genes humanos e criar novos gagrilyanos.
Não me surpreendi quando descobrimos que quem financiava o projeto
era Stayon.

Fui eu mesmo até lá e, quando um dos cientistas falou da minha


mãe, não me controlei. Como ele sabia quem eu era? Eu havia mudado
meu sobrenome para o do meu avô, meus pais usavam o de Stayon.
Quem era ele para falar qualquer coisa sobre minha família? Ele tinha um
laboratório ilegal financiado pelo maior vigarista do Sistema! Destruí tudo
o que havia na sala, mas nem sinal da pedra.

Quando cheguei no Comando Omega e descobri que a pedra


Aünder estava na Capital, não acreditei. O maldito Stayon sempre
conseguia sair por cima. Mas dessa vez eu não iria deixá-lo se safar. Por
isso, fui atrás da pedra na Capital, mesmo sabendo que era o aniversário
de casamento deles, pois era no mesmo dia do meu aniversário.

Foi fácil entrar na festa por ser um baile de máscaras, usei minha
lente falsa para passar pela segurança. Mas quando os vi, mesmo de
longe, não me senti tão confiante assim. Fui invadido por uma tristeza
incomum. Não por causa dele, e sim por minha mãe. Enquanto ele fazia
aquele discurso ridículo, prestei bastante atenção na expressão dela. Ela
não parecia feliz como ele.

Fiquei tentado a abordá-la, mas não sabia o que dizer.

Era meu aniversário, e eu deveria estar em qualquer outro lugar


menos ali. Peguei um uísque preozoles para ver se melhorava meu astral
mesmo estando sóbrio há anos. A lembrança boa que veio, obviamente,
foi da minha mãe.

Fiquei feliz. Mas durou apenas dez segundos.

E foi aí que, no meio de todas aquelas pessoas com seus sorrisos


forçados de uísque preozoles, eu vi uma garota olhando, pensativa, para
o chão, aparentemente tão triste quanto eu. Ela usava um vestido preto
que a deixava parecendo um presente o qual eu sentia uma estranha
vontade de desembrulhar.
Continuei a observando de longe, ela era tão frágil…

Até que ela se levantou e sumiu na multidão. Aquilo me deixou


aflito, senti vontade de procurá-la, mas eu não podia perder tempo,
precisava achar a pedra Aünder. Então, peguei a bússola, fui seguindo a
direção que ela apontava até que me mandou exatamente para as costas
da garota.

Ela pegava um copo de aguardente auzuniano.

Ela estava com a pedra? Que grande peripécia do destino.

Decidi falar com ela. Ela era incomum. Falava coisas estranhas.
Peixes, aquário, ascendente? Provavelmente estava bêbada. Bêbada
demais, porque nada que ela falava fazia sentido.

Senti vontade de levá-la para Gagrilya, mesmo nunca tendo levado


ninguém para lá, mas ela estava bêbada demais até para saber se queria
ou não. Era melhor só pegar a pedra e ir embora, mas não podia fazer
isso ali. Fui para a saída dos fundos. E para minha sorte, não precisei
nem usar meu poder para ela me seguir. Ah, se ela não estivesse tão
inconsciente…

Quando subimos pelo elevador, o suposto herói da Capital,


responsável por entregar a pedra a Stayon, apareceu, deixando-a
apreensiva. Qual seria a relação deles? Eu não queria saber, só pegaria
a pedra e seguiria meu caminho.

Comecei a interrogá-la. Ela não queria cooperar. Começou a gritar.


Iria estragar tudo. Precisava fazê-la parar. Mas… ela me mordeu!

Então descobri que a bússola apontava para ela por causa de um


pequeno colar. Por que ela tinha um colar com uma pedra Aünder? Quem
era ela?
Quando ela disse que entregou a pedra para Stayon, pareceu
perder 50% de sua beleza.

Quando ela entrou na minha mente, me senti tão… não sei


explicar.

Quando a porta abriu, o herói e Stayon entraram.

Eu disse que um dia todos saberiam quem ele era de verdade. Ele
disse: “não se eu lhe matar antes”. Ele colocou a mão no bolso para
pegar a arma, mas eu fui mais rápido. Atirei, ele caiu no chão, mas abriu
um sorriso venenoso.

Claro que sua roupa era blindada, como eu não imaginei? Ele
havia me induzido a fazer isso só para destruir a minha imagem e a do
Comando Omega. Como sempre, ele estava um passo à frente de todos.

O herói atirou em mim, e os repórteres e todo aquele circo


midiático da Capital apareceram. Fugi pela janela para a nave que me
aguardava. A última coisa que vi foi o olhar da garota, que permaneceria
comigo mais tempo do que eu imaginava.

Acordei no hospital, ainda pensando em seu olhar. Mas quando


Zuuvak me mostrou sua entrevista asquerosa e mentirosa, senti nojo
dela. Ela era só mais uma das marionetes de Stayon. Uma das típicas
pessoas da Capital que vivem em função da imagem. Como a odiei
naquele momento… O que ela estaria ganhando em troca?

Ela era gagrilyana, mas parecia não fazer ideia disso. Quando
soubesse o poder que ela tinha, com certeza minha mãe tentaria
convencê-la de ir para a casa de Oberyn só para ter uma desculpa para
falar com ele.

Nós precisávamos dela para recuperar a imagem do Comando


Omega, que ela destruíra. Foi aí que surgiu o plano. Não custava nada
tentar.
Cheguei em Plutopra e, como previ, lá estava ela. Vendo-a
pessoalmente, não consegui odiá-la tanto assim por ter dado aquela
entrevista.

Levei-a para Gagrilya contra sua vontade. Sabia que isso iria
destruir ainda mais minha imagem. Iriam inventar histórias horríveis de
que eu a estava mantendo em cativeiro. Mas quem ligaria? O importante
era que ela usasse seu poder para salvar o Comando Omega, para
destruir a imagem de Stayon. O mundo precisava saber quem ele era.

Na casa, Coisina ficava me mandando ser amigável com ela. Eu


até tentava, mas era difícil não me lembrar do que ela havia feito. Às
vezes, também me lembrava do que senti quando a vi na festa.
Especialmente quando ela entrou na piscina. Oh, cosmos. Eu nunca vou
tirar aquela imagem da minha cabeça.

Depois de um tempo, paramos de nos odiar. Ela não era tão ruim
assim. Talvez tivesse sido manipulada a fazer o que fizera. Talvez, se eu
explicasse o plano para ela, quem sabe ela não ajudaria por vontade
própria?

Ah, eu não admitia nem para mim mesmo, mas aqueles malditos
hologramas sabiam o que eu sentia por ela. Culpa das frutas daddas.

Lutei o máximo que pude contra meus sentimentos, mas


terminamos juntos. Eu não deveria ficar com ela, mas não conseguia
evitar.

Como eu a amava… Na caverna, queira contar tudo, mas não


queria estragar a noite nem parecer que eu estava tentando convencê-la
a ajudar o Comando Omega. Porque, àquela altura, eu não me importava
mais com nada disso. Nem me vingar de Stayon queria mais. Só queria
me esquecer de tudo que aconteceu. Só queria ficar com ela para
sempre. Ir para sua Terra, qualquer coisa.

Minha vida fazia sentido novamente. Ela me fez voltar a acreditar.


Então chegaram para me prender. Stayon mais uma vez venceu. E
dessa vez tirou a coisa que mais importava na minha vida.

Tudo o que Luna viu na mente de Klaaoz não durou mais do que
alguns segundos, foi como se as lembranças dele fossem as dela, como
se, no instante em que entrara na mente dele, tomasse ciência de tudo
instantaneamente.

Um nó se formou em seu estômago. Esse tempo todo ela achara


que…

Meu Deus.

Não conseguia pensar em nada, só em acabar com aquele que


destruiu a vida de tantas pessoas.

Subitamente fechou os olhos, entrou na mente de Klaaoz


novamente, o fez pegar a arma e, sem hesitar, atirou no presidente. O tiro
foi certeiro, bem no meio da mão em que ele segurava a arma. Luna
sabia que ele deveria estar usando um terno blindado, e, como imaginou,
a arma que ele dera a ela não era de verdade. A mão dele continuava
intacta após o tiro, mas o impacto da bala falsa junto com o susto foi o
suficiente para que ele derrubasse a arma que segurava no chão.

E Luna correu, não como se sua vida dependesse disso, mas


como se isso fosse garantir justiça para todos que foram prejudicados por
aquele homem. Como se isso fosse trazer de volta a vida que Klaaoz
perdera. Mira perdera. O avô dele perdera. Era difícil de acreditar como
uma única pessoa conseguira causar tanto mal a tanta gente. E esses
eram apenas os que ela sabia. Dizer que ele era um monstro seria uma
ofensa aos monstros.

E usando toda sua força de vontade e sede de justiça, Luna


conseguiu alcançar a arma antes dele. E sem pensar duas vezes, a
apontou em sua direção.

Stayon tinha um olhar de cautela sobre ela, como se não


esperasse que ela fizesse aquilo.

— Acabou. Você perdeu — ela disse, olhando bem dentro dos


olhos dele.

Ele olhou ao redor, sem deixar a vulnerabilidade que a situação lhe


proporcionava tomar conta das suas feições. Na verdade, até sorria
quando seu olhar encontrou o dela.

— Se você atirar em mim, jamais vai saber o que aconteceu com


sua mãe.

Luna estava no controle da situação, ela tinha uma arma em mãos,


mas ouvir aquilo a fez se sentir tão fraca e atordoada que parecia que era
ela quem estava encurralada.

— O que você fez com ela?

— Largue a arma, e eu te contarei. Direi até onde encontrá-la.

Seu peito se apertou, e se manter firme estava sendo a coisa mais


difícil que já fez.

— Você está blefando.

— Será mesmo?

Ela umedeceu os lábios, tentando encontrar uma saída. Olhou


para Klaaoz em busca de uma luz que clareasse seus pensamentos.
Entretanto, ele parecia mais perdido do que ela.

— Prove — ela disse.


— Eu vou pegar o meu Holophone para lhe mostrar — ele disse
calmamente, levando a mão até o bolso, olhando a todo momento para a
arma que Luna apontava em sua direção.

Ela engoliu em seco, seu peito arfando enquanto ele abria o


aparelho e procurava alguma coisa.

De repente, uma holofoto de sua mãe com uma criança de pouco


mais de um ano nos braços se projetou à sua frente. O cabelo ruivo dela
tinha a cor ainda mais viva por estar exposto aos raios do sol, e em seu
rosto havia o sorriso mais bonito que alguém poderia dar. As poucas
fotos que Luna vira de si mesma quando criança eram suficientes para
que conseguisse se reconhecer naqueles braços.

— Onde você conseguiu essa holofoto? — ela perguntou, sem


fôlego.

— Eu contarei se você soltar a arma no chão e empurrá-la na


direção daquela estante, onde nenhum de nós dois poderá alcançá-la —
ele disse calmamente, como aquelas pessoas que tentam negociar com
bandidos.

Luna tremia, não sabia o que fazer. Só conseguia olhar para os


olhos de sua mãe na holofoto, que ainda estava projetada. Seu peito
doía, a dúvida estava corroendo sua alma. Se fizesse o que ele pedia,
perderia o controle da situação, diminuiria suas chances de conseguir
salvar Klaaoz, de levar justiça para o mundo, de vingar todos aqueles que
sofreram por causa de Stayon.

Mas se não fizesse… Será que ela conseguiria viver para sempre
com aquele mistério?

O que eu faço?, ela perguntou a Klaaoz por meio do pensamento.


Você precisa saber o que aconteceu com ela. E mesmo que ele esteja
mentindo, os reforços vão chegar a qualquer momento, foi a resposta
dele.
Luna olhou para Stayon, que permanecia calmo e inexpressivo.
Ela suspirou e colocou a arma no chão, chutando para o local que ele
mandara.

Imediatamente, ele correu em direção a uma parede próxima de si,


tocou em um botão e um compartimento secreto foi aberto, revelando
outra arma. Assim que ele a pegou, a apontou para Klaaoz e deu um
sorriso venenoso.

— Não! — ela gritou, se jogando na frente de Klaaoz.

— Saia da frente!

— Não!

— Saia!

— Não!

Ele precisava dela viva para seu plano diabólico. Ele não atiraria
com ela na frente.

— Por que você quer dar a vida por uma pessoa que tentou tirar a
sua? Você é tão estúpida quanto sua mãe! Se aqueles amigos
asquerosos dela não tivessem levado você pra Terra, eu teria dado um
jeito em você também.

O quê?! Luna sentiu uma pontada no coração.

— O que você fez com ela?

— Ela estava se metendo onde não devia, e eu a tirei do meu


caminho. É, e eu matei também aquele velho estúpido do seu avô — ele
disse, se virando para Klaaoz.
Meu Deus. Ele havia destruído tudo o que Luna tinha. Ele era o
culpado por sua vida ser um livro com páginas faltando. E estava prestes
a tirar a última coisa que ainda lhe restava.

— Eu vou te ajudar! Não atire.

Stayon deu um sorriso satisfeito e puxou o gatilho.


48

48- Você já me salvou

O tiro passou bem ao lado de Luna e atingiu o peito de Klaaoz.


Tudo pareceu acontecer em câmera lenta. O sangue escorreu,
manchando sua camisa, e, ao ver aquela cena, Luna se perguntava se o
tiro não havia acertado o peito dela, tamanha a dor que sentiu naquele
momento.

Sua visão ficou turva, um zumbido tomou conta do seu ouvido e foi
seguido por um silêncio ensurdecedor, como se o mundo tivesse
acabado.

Ela sentiu que ia desmaiar ao olhar para Klaaoz daquele jeito. O ar


não chegava a seus pulmões, a seu cérebro, nada fazia sentido.

Klaaoz não podia morrer. Simplesmente não podia. A ideia de ele


morrer não existia. Pessoas como Klaaoz não morriam. Ele era singular
demais, não se encaixava em nenhuma categorização. Se ele morresse,
o mundo para sempre seria um quebra-cabeça faltando uma peça. A
peça mais importante.

Luna o segurava em seus braços, ele não conseguia sustentar o


próprio corpo. Estava desfalecido, pálido e frio. Meu Deus.
— Por favor, não morra — foi tudo o que ela conseguiu dizer, a voz
trêmula. Mas ele não respondeu. Seus olhos continuavam fechados, e
não era porque ele estava dormindo. Um beijo não o traria de volta, ele
não havia comido uma maçã enfeitiçada ou espetado o dedo no fuso de
uma roca. Uma bala perfurara seu corpo, sua roupa estava ensopada de
sangue e não havia nada que Luna pudesse fazer no momento. —
Klaaoz, você vai ficar bem — disse para ver se ela mesma acreditava.

Ele continuou imóvel, como se soubesse que o que ela falava era
mentira. Luna ainda podia sentir sua pulsação fraca, quase parando, mas
ainda sentia. Não podia desistir.

— Klaaoz, não ouse me deixar. Nós temos muito pelo que brigar
ainda. — Ele tentou esboçar um sorriso, mas os olhos dele continuavam
cerrados, como se ele estivesse indo para longe. Mas ele ainda estava
ali. — Pare de seguir a luz. Volte. — Luna tentava se manter calma, mas
por dentro estava completamente em pânico. Respirar tinha se tornado
uma tarefa muito difícil, assim como o simples ato de existir nesse meio-
tempo em que Klaaoz estava entre a vida e a morte. — Você veio aqui
para me salvar… — Ela pôs a mão em sua testa, acariciando seu rosto,
enquanto com a outra mão tentava segurar seu pescoço, que pendia
para trás. — Você já me salvou tantas vezes… Eu preciso salvá-lo agora,
eu não posso deixar você morrer.

A vista de Luna estava embaçada de tantas lágrimas, e a cabeça


de Klaaoz estava apoiada em seu colo. Por que ele não reagia? Era
inominável a dor que se alastrava em seu coração a cada segundo em
que ele continuava imóvel.

— Se lembra de quando você me perguntou como eu te vejo? Eu


ainda não respondi sua pergunta! Você precisa ficar bem para que eu
possa responder!

Luna tremia tanto que não conseguia nem verificar se Klaaoz ainda
estava respirando. Ele parecia não estar mais ali. Um buraco se abria no
chão à medida que ela ia tomando consciência do que havia acontecido.
Ele se fora.
Meu Deus. Não. Isso não podia estar acontecendo. Nem as
lágrimas Luna conseguia enxugar. Não conseguia raciocinar, respirar,
fazer nada. Ela foi invadida por um pânico total, que começou nas suas
mãos e foi subindo até a cabeça a ponto de deixá-la tonta. O mundo
havia sido tomado por escuridão.

— Me lembro. — A voz dele saiu fraca. O rosto dela se iluminou,


ele ainda estava ali.

— Você vai ficar bem, e eu vou responder como eu te vejo. Mas


não morra, por favor.

— Acho melhor você me dizer agora — era quase inaudível o que


ele dizia.

— Não! Você vai ficar bem, e eu vou te dizer. Você precisa


aguentar para poder saber.

Ela apertou sua mão, mas sentiu as forças dele se esvaindo. Não.
Não. Não.

— Ok, já chega! Eu não me importo se você ficar na frente dele ou


não! Eu vou atirar novamente — disse o presidente, apontando a arma,
e…

De repente, a porta de entrada se abriu, mas ninguém entrou.


Stayon desviou a atenção para ela e foi fechá-la. Será que os poderes de
Klaaoz estavam voltando?

— Saia da frente — Klaaoz disse. Ela sentiu um leve empurrão,


uma força incapaz de mover uma pena. — Deixe que ele atire em mim.
Ele não vai desistir, mas você ainda pode se salvar.

— Não!
— Saia. — Ele tentou de novo. Era doloroso vê-lo tão fraco
daquele jeito.

— Eu não vou sair. Eu preciso salvar você!

Klaaoz pareceu reunir todas as forças que ainda lhe restavam para
falar:

— Você já me salvou, não vê? Você me salva um pouco todos os


dias desde que nos conhecemos. — Ele fechou os olhos com o 0,5 cm
de sorriso no canto da boca. Luna sentiu um desespero inominável ao ter
a sensação de que aquela seria a última vez que o veria. Uma parte dela
parecia estar faltando. Uma parte que nunca iria conseguir recuperar. O
quebra-cabeça parecia ter sido jogado no chão, e todas as suas peças se
desintegrado.

A princesa não queria ser resgatada pelo príncipe porque


precisava salvar o dragão que a prendera na torre.

— Isso é por vocês — Luna sussurrou, pensando em todos os que


eram importantes para ela, ainda com aquela sensação de vertigem,
quando o presidente voltou e apontou a arma.

Mas ela não saiu da frente.

— Você está ciente de que eu fiz tudo isso só para me divertir, não
é? Eu sempre tive intenção de matá-lo, mas eu não queria perder a cara
dele vendo você fazer isso. Porque no fim você não vai se lembrar de
nada do que aconteceu e vai colaborar de todo jeito.

Uma raiva enorme ardeu dentro dela ao ouvir aquelas palavras.


Percebeu que, até aquele momento, por mais raiva que já tivesse
sentido, nunca tinha odiado realmente ninguém como odiava aquele
homem.
Luna levantou a cabeça e deu um sorriso de 0,5 cm, pois sabia
que Klaaoz ficaria orgulhoso do que ela estava prestes a fazer.

— Eu gravei tudo. Meu Holophone está ali, gravando tudo. — Ela


apontou para um local no fundo da sala, onde havia posicionado o
aparelho atrás de uma máquina, deixando apenas a câmera visível. A
Capital gostava de filmar tudo? Pois agora eles veriam o que era um
show de verdade. Stayon pareceu ficar sem nenhuma gota de sangue no
rosto. Foi até onde ela apontou e, quando achou o Holophone, jogou-o no
chão e pisou nele tão brutalmente que os pedaços voaram para todo
lado. — Ah, estava tudo ao vivo numa conversa com meu amigo
Rys. Ele já deve ter mandado para a polícia. Não adianta, todos já devem
saber quem você é. Você acha que está sempre um passo à frente de
tudo e de todos, mas dessa vez você ficou para trás. Eu não sou tão
estúpida assim no fim das contas, não é?

Dizer que os olhos dele ferviam, ardiam ou queimavam era pouco.


Luna sabia o que iria acontecer depois, mas sua consciência estava
tranquila.

Klaaoz não teria morrido em vão. Sua mãe não teria morrido em
vão. Se ela morresse, não seria em vão. O mundo saberia quem aquele
homem era. A causa pela qual Klaaoz passara a vida toda lutando… não
seria uma causa perdida, afinal.

Íobairtkyea, palavra gagrilyana usada para indicar quando você


precisa fazer um grande sacrifício por uma causa maior.

E Stayon atirou. A bala, vindo em sua direção, foi a última imagem


que Luna viu antes de fechar os olhos.

E ela nunca se sentira tão em paz.


E

Dois meses terrestres depois…

A reação Adversa do Caos, um livro por Luna Levine:

Se você tiver sorte, em algum momento na sua vida vai


experimentar um sentimento tão forte que vai deixar sua vida
completamente do avesso, e você vai descobrir que esse é o lado certo.
Será tão intenso que vai quebrar as paredes que você tem dentro de si, e
isso vai te tornar quem tu és.
Eu conheci Klaaoz nas mais improváveis circunstâncias, e foram
circunstâncias mais improváveis ainda que fizeram com que ele virasse
minha vida de cabeça para baixo.
Ele me ensinou coisas que eu jamais aprenderia nem se lesse
todos os livros de todas as bibliotecas do universo — e olhe que o
universo é realmente muito grande. Ele me ensinou a ver o mundo com
outros olhos, que nem tudo é o que parece, que eu não devo aceitar tudo
que me é imposto e, principalmente, que eu devo acreditar em mim.
Ele me fazia enxergar tudo tão claramente que parecia que eu
estava dentro de um buraco negro.
Ele foi a pessoa mais incrível que eu já conheci. E a que mais me
surpreendeu.
Ele foi o quebra-cabeça mais difícil. E o que mais valeu a pena
montar.
Ele foi meu grande paradoxo e minha reação adversa.
Ele foi o caos que trouxe ordem para a minha vida.
Ele me ensinou que o amor é muito mais do que um sentimento.
E que, quando você transforma uma pessoa em poesia, ela nunca
morrerá.
Eu sei que, onde quer que ele esteja agora, seus átomos estarão
em paz.
Uma vez ele me perguntou como eu o via, e foi assim que eu
finalmente encontrei o título do meu livro.
— E, então? O que você achou?

— Odiei. Está horrível. A pior coisa que eu já li.

Luna piscou algumas vezes esperando Klaaoz dizer que estava


brincando. Eles estavam deitados no apartamento de hóspedes da
Capital, que passou a ser deles.

Ele permaneceu sério. Ela deu um soco no seu braço engessado.

— Ai! — Ele gemeu de dor. — Por que você me matou? Por que
você não escreveu o que aconteceu de verdade? E o que vácuos
significa esse 0,5 cm de sorriso? Você sabe o que é 0,5 cm? Por acaso
você já viu uma régua?

No último segundo, quando o presidente atirou, o tiro parou no


meio do caminho. Ele atirou de novo e de novo, mas os projéteis não
chegavam até eles. Quando menos esperavam, Oberyn surgiu na frente
deles. Ele estivera invisível, protegendo-os com um campo de força.
Naquele momento em que a porta havia sido aberta, era ele entrando.

Oberyn manteve seu escudo invisível sobre eles até a polícia, que
assistira à transmissão ao vivo de todas as confissões do presidente,
chegar para prendê-lo. Stayon até tentou fugir, mas Oberyn bloqueou a
saída. Ele foi preso e estava na pior prisão que existia, tendo o que
merecia.

Klaaoz foi levado para o hospital às pressas e ficou bem. Porém,


ainda precisava cumprir o equivalente a cinco meses terrestres de prisão
domiciliar pelo que fizera naquela festa de aniversário de casamento.
Mas isso não estava sendo um problema. Apesar de estar com uma
perna e um braço engessados e um curativo no lugar do tiro, ele e Luna
estavam aproveitando seu tempo muito bem.

Quando ele melhorasse e pudesse legalmente sair de casa, os


dois iriam para a Terra.
Enquanto as aulas da universidade em que se inscrevera não
começavam, Luna decidiu escrever um livro e tentar contar aquela
história complicada. Tinha acabado de mostrar o primeiro esboço para
Klaaoz, mas ele não parecia estar muito feliz com suas pequenas
mudanças para tornar a história mais Shakespeariana.

— Eu te matei porque nos romances modernos o cara sempre


morre no final.

— Qual a finalidade disso? — Ele fez uma careta.

— Para mostrar que você não precisa de outra pessoa para ter um
final feliz! Você mesmo quem faz o seu final feliz.

Ele a encarou com um olhar que dizia muitas coisas, e ela já


conseguia identificar quase todas.

— Que idiotice. — E, claro, revirou os olhos.

Ela o beijou de surpresa, fazendo-o suavizar a expressão. Passou


a mão nos seus cabelos, que estavam começando a crescer, pensando
em como amava desesperadamente aquela pessoa e toda a sua chatice.

— Mas também tem aquele ditado: “se um escritor se apaixonar


por você, você nunca morrerá”.

Ele levantou a sobrancelha.

— Mas o final feliz junto é melhor. — O 0,5 cm de sorriso estava lá.

— É, eu concordo. Mas não quer dizer que esse seja o único jeito
de ter um final feliz. E como a minha intenção com esse livro é mudar a
vida das pessoas, elas precisam saber disso.

— E como seria o final feliz perfeito para você?


— Hum… Acho que seria algo um pouco surpreendente, meio
engraçado, que por um momento fizesse as pessoas acreditarem que o
pior aconteceu, mas que depois mostrasse que era só o autor brincando
com os sentimentos dos leitores.

— Então escreva o final assim.

— Mas quem disse que esse é o final?

— Então, qual é o final?

Luna olhou para frente e deu um sorriso.

— Ah… o final ainda não foi escrito.

FIM.
A

Agradecimentos

Primeiro: desculpa por esse final. Saiba que, se você estiver com
vontade de me xingar, me bater, me assassinar — os arianos sentiram
—, é normal. Todos que leram o final na minha frente tiveram a mesma
reação, e eu até criei uma palavra gagrilyana para traduzir o sentimento:
chluichkyea, quando você está com raiva por ter sido enganado, mas ao
mesmo tempo está feliz por ter sido enganado. Eu filmei a reação deles,
e você pode assistir aos vídeos no meu Instagram: @stephannesays.

Mas, brincadeiras à parte, a verdade é que eu sempre sonhei em


escrever um livro que mudasse o mundo. Ou, pelo menos, o mundo de
alguém. Nem que fosse um pouquinho.

Queria que, quando as pessoas terminassem de lê-lo, não


enxergassem mais o mundo da mesma forma. Pelo menos, o
mundo delas. Que questionassem, pensassem e não aceitassem tudo
que lhes é imposto.

Mas, enquanto eu estava escrevendo, li em algum lugar que livros


são mensagens saídas do nada dizendo que há pessoas por aí que
sabem como é ser você. E ao relembrar todas aquelas histórias que tanto
me ajudaram, eu resolvi que queria fazer um livro que mostrasse a
alguém que ele não está sozinho e que no fim tudo dá certo.
Porque já houve um tempo em que eu me senti tão perdida quanto
Klaaoz e Luna. Mas, assim como eles, eu tive uma pessoa para me dizer:
“deixa de ser besta, você ainda tem todo o tempo do mundo para fazer
tudo o que você sonhar”. Caso você não tenha alguém na sua vida para
lhe dizer isso, eu vou dizer: no fim tudo vai dar certo, mas não desista
antes de chegar ao fim.

A pessoa que me disse isso foi minha mãe, e não existem palavras
em nenhuma língua — nem em gagrilyano — capazes de traduzir minha
gratidão a ela. Primeiro que, sem ela, nem eu — obviamente —, nem
este livro existiríamos. Ela leu e revisou o primeiro esboço por meio de
chamada de vídeo, no meio dos corredores do hospital (ISEA) sem se
preocupar que as pessoas achassem que ela era louca por estar à uma
hora da manhã falando em outros planetas, gagrilyanos e outras palavras
estranhas no geral — até porque, convenhamos, eles já devem achar
mesmo; mas as melhores pessoas são loucas, e ela é a melhor pessoa
que eu conheço.

Este livro também só existe porque meu pai me presenteou com os


genes artísticos, que não me deixaram sair do mundo das artes.

Agradeço à minha família, por sempre me amar mesmo eu sendo


a ovelha negra. Especialmente, à Jéssica pelas brincadeiras de infância
com enredos mirabolantes, dignos de uma novela das nove. À Priscilla,
por ser meu ídolo inspirador com suas aventuras da adolescência. E às
minhas tias, Fátima e Elizabeth.

Agradeço à Lilian Vaccaro, à Bianca Gulim e a toda editora


Coerência por me dar essa oportunidade. Amanda e Teresa Barbosa,
obrigada, não sei nem o que escrever aqui, mas no próximo criarei uma
palavra gagrilyana ou uma comida com o nome de vocês.

Ok, dizer que eu sempre quis ser escritora é meio clichê. Eu


sempre quis ser é uma Kardashian. Escritora eu sempre fui, não era algo
que eu pudesse controlar. Mas por muito tempo eu só escrevia escondido
e não tinha coragem de mostrar para muita gente. Então, obrigada, Ana
Carla Porto, por sempre divulgar meus oito livros inacabados, por me dar
nota dez no caderninho do desabafo, por participar de todas as histórias,
por ser a Marnie da minha Hannah e o Ted do meu Barney.

Porém, todo escritor precisa de alguém para dar aquele empurrão


que o faz acreditar que ele pode fazer isso de verdade. A minha
empurradora foi Mayara Rocha. Obrigada por me ligar às oito da manhã
pedindo capítulos novos daquela fanfic e por ser a maior fã que existe do
meu livro — espero que agora você tenha com quem comentar.

Obrigada, Johanna Galdino, por ter sido a primeira pessoa a ler


este livro, por ter acreditado em mim quando nem eu mesma acreditava e
por ter me mandado continuar numa época em que eu pensava em
desistir uma vez por semana. Obrigada, Sarah Brito, por me ajudar a
resolver os problemas que me faziam entrar em desespero com apenas
um minuto de conversa. Você é o máximo, sou sua fã. E sua empolgação
lendo este livro me fez ver que esta história valia a pena ser contada.
Horrana Andrade, você voltou na hora certa. Eu não teria conseguido
sem você e nossas noites lendo aquelas coisas sem sentido, obrigada
por sempre arranjar tempo para ler nem que fosse na fila do dentista.

Lisa Aidar, você chegou no momento em que eu mais precisei e se


tornou praticamente a babá desses meus filhos malcomportados. Já te
disse mil vezes que você é a razão para eu não precisar fazer um
transplante de rosto, me mudar para o Chile e viver de vender miçangas,
né? Posso dividir minha carreira de escritora em antes e depois de você.
Obrigada por nunca desistir de ler mesmo quando parecia ter sido escrito
por uma pessoa do maternal — se você desistir, acho que não tem mais
livro, é sério. E que venham Asha, os berloques da Vivara e as entradas
na Disney de graça!

Alyne Dantas, obrigada por puxar minha orelha dizendo que eu


poderia fazer melhor e pelas ótimas conversas sobre escrever, que foram
essenciais para que eu encontrasse minha voz. Obrigada, Teresa
Barbosa, que é tão pisciana quanto Luna, mas, se não fosse pelas suas
correções, Klaaoz teria virado uma coluna no terceiro capítulo e não teria
mais história — eu vou rir disso para sempre mesmo que sejam três da
manhã.
Obrigada, Nicole Noy, por ler o primeiro esboço horrível — mesmo
existindo tantos outros livros melhores para ler — e pelos comentários
cheios de emojis. Obrigada, Karol Brito, por ter me mandado juntar as
histórias e me dado um empurrão quando disse que esse negócio iria
para frente. Obrigada, Petrúcio Reges, por desde 2008 estar sempre
presente na minha vida, fazendo comentários engraçados e comendo as
coisas vencidas da minha casa.

Obrigada, Giulia Tavares, pelo feedback sempre tão cheio de


empolgação. Obrigada, Julia Alcaide de Áries, sua reação ao último
capítulo me fez ver que eu realmente posso emocionar as pessoas, e o
seu vídeo é minha maior motivação na hora de escrever.

Obrigada, Ana Eduarda Saraiva, pelas frutas daddas e pelas


conversas filosóficas. Obrigada, Letícia Carvalho, por ter sido expulsa da
escola e ter servido de inspiração. Não estamos nos falando, mas claro
que eu não poderia deixar seu nome de fora. Obrigada, Pedro Henrique,
por usar o pijama do Pikachu e por ficar com o nariz vermelho.

Obrigada, Talitah Sampaio, pelos vídeos que mudam o mundo e


por amar vilões comigo. Obrigada, Nicole Vilhena, pelos textos
inspiradores e conversas sensatas. Obrigada, Alana Agra, por ser minha
inspiração cinéfila. Obrigada, Matheus Veloso, por ser Rys. Obrigada,
Ceicinha Figueiredo, por influenciar digitalmente o bem e me fornecer
material para histórias. Obrigada, Raynnara Lira, por sugerir a melhor
descrição de Luna e ser minha referência sagitariana.

Tem algumas pessoas que nunca leram nada, mas acompanharam


todo o drama de perto e merecem estar aqui: Lex Carvalho, obrigada por
aquele desenho fofíneo; Luiza Santos, toma aqui mais um vilão pra você
amar; Gabriela Miwa, os The Sims de Klaaoz e Bok ainda tão na casa do
McLan?; Cecília Colini, seu @ exótico virou nome de comida alienígena;
Beatriz Isaac, o livro combina com sua tatuagem; Camila Medeiros,
obrigada por salvar meu computador; Danielle Tavares, sua cadela foi
inspiração; Ana Paula Silveira, você inspirou uma cena, e Camilla
Silveira, peixes é o melhor signo, viu?
Agradeço a todos que nos últimos três anos me mandaram alguma
mensagem de incentivo. Vocês não fazem ideia de como suas palavras
foram motivadoras!

Agradeço aos iogurtes da minha geladeira que me mantiveram


viva em 2016, quando eu não parava de escrever nem para sair para
almoçar. Agradeço a Ozzy Prince of Darkness, meu fiel companheiro, que
esteve sempre ao meu lado nessa jornada solitária que é escrever.

Agradeço às pessoas que contribuíram para a expansão do meu


universo: Douglas Adams, Carrie Fisher, Ricki Riordan, J.K. Rowlling,
Lena Dunham, Tina Fey, Donald Glover, John Lennon, David Bowie,
George Lucas, Amy Poehler, Oscar Wilde, Fernanda Young, Victor
Martins, Raony Phillips, Milan Kundera, Mindy Kaling e Gregório Duvivier.

Neil Degrasse Tyson, Carl Sagan e Stephen Hawking por me


mostrarem que eu sou uma poeira, mas de uma forma simples que me
fizesse entender.

Agradeço por último à Stephanne do passado, que, mesmo sem


saber o que estava fazendo, mesmo morrendo de medo, mesmo com
preguiça, mesmo podendo estar indo para festas, não desistiu e
conseguiu dar luz a uma estrela dançante.
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garota que 5 anos atrás partiu seu coração e a fez questionar tudo em
que ela acreditava até então. Agora as duas precisam colocar as
desavenças do passado de lado para discutir assuntos mal resolvidos
enquanto aproveitam uma das festas juninas mais famosas do Brasil.
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[1]
Tradução: “Hoje é o dia em que seu livro começa, o resto ainda não
foi escrito”.
[2]
Referência ao trecho do livro Lolita de Vladimir Nabokov.

[3]
Tradução do trecho da música There Is a Light That Never Goes Out da banda The Smiths: “Morrer ao seu lado, que jeito divino de morrer”.

[4]
Tradução: “Você precisa ter o caos dentro de si para dar vida a uma estrela dançante”.

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