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ENTREVISTA, PÁGINAS 27 E 29
Alexandre Cabral
O escritor e camiliano
no seu centenário
JORNAL
PÁGINAS 16 A 18
DE LETRAS,
ARTES E
IDEIAS
Ano XXXVIII * Número 1248 * De 1 a 14 de agosto de 2018
* Portugal (Cont.) €3 * Quinzenário * Diretor José Carlos de Vasconcelos
Histórias
curtas
para dias Onze contos inéditos
de escritores lusófonos
longos
Ana Cristina Silva, António Tavares,
Cláudia Lucas Chéu, Clemente Bata,
Dênisson Padilha Filho, Filipa Martins,
Hugo Mezena, João Reis, Ondjaki,
Rodrigo Lacerda, Sandro William Junqueira
Imagens de José Carlos Carvalho
PÁGINAS 4 A 14
Elísio Summavielle
O crescimento e o futuro do CCB
ENTREVISTA, PÁGINAS 22 E 23
GETTYIMAGES
2* destaque jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
› b r e v e e nc o n t ro ‹
António Feijó
Clássicos e inéditos na
editora da Univ. de Lisboa
Quantos livros pensam publicar por ano? "Valorizar estudos ou João Canijo, Sérgio Tréfaut, Sons rurais e urbanos da mú- Com uma festa alemã,
Será um plano contido e modesto, na linha de outras editoras que já exis- projetos que contribuem Victor Hugo Costa, Agnès sica portuguesa de raiz tradi- que reinterpreta o legado
tem no círculo da Universidade de Lisboa, como a da Faculdade de Direito. para aumentar os hábitos Varda, Aki Kaurismäki e cional marcam a programação de Beethoven, Schumann,
Temos em mente a publicação de 18 novidades anuais. Começamos com e os índices de leitura da Giuseppe Tornatore são os de Agosto da Casa da Música, Brahms e Mozart, prossegue
oito, que não traçam necessariamente a linha editorial que vamos seguir, população, melhorar as realizadores em destaque da no Porto. Todas as tardes, sete hoje, quarta-feira, 1, às 21, a
mas que ilustram as potencialidades da IUL. É o caso, por exemplo, do vo- competências e os níveis de próxima edição do Festival perspetivas diferentes. Aos edição de 2018 do Festival
lume organizado por João Ferrão e José Manuel Pinto Paixão, Metodologias literacia dos portugueses, Internacional de Cinema domingos, fados tradicionais. Verão Clássico, do Centro
de Avaliação de Políticas Públicas, que reúne contributos de 45 investiga- promover o prazer e o de Marvão e Valência de Às segundas, guitarradas. Cultural de Belém, em Lisboa.
dores. É um atlas que procura mapear e pensar as políticas públicas e a sua gosto pela leitura e pela Alcântara, que se realiza Às terças, mestiçagens com A iniciativa prolonga-se até
possível avaliação. Deste modo estamos a contribuir para um debate que escrita" são alguns dos de 10 a 20. O festival, que outros sons ibéricos através dia 7, com concertos diários
supera qualquer conjuntura política. objetivos do Prémio Ler+, se destaca pela seleção do mesmo instrumento (a que percorrem os marcos dos
agora criado pelo Plano de filmes sobre Direitos Guitarra Portuguesa, presente séculos XVIII a XXI. Amanhã, 2,
Quais os restantes títulos? Nacional de Leitura. O Humanos, Meio Ambiente, nestes três dias). Outras dá-se continuidade às sessões
Ensaios em Persuasão, com a faceta mais política de John Maynard Keynes; galardão, no valor de dez mil Arte e Cultura, promove sonoridades nos dias seguintes. com jovens músicos, sempre
Cartas da Rússia, de Marquês de Custine, um excelente contraponto a Da euros, visa essencialmente sessões ao ar livre. Este Às quartas, com o Trio de Tiago às 16 horas, que se repetem
Democracia na América, de Alexis de Tocqueville; Vanguarda e Kitsch, de reconhecer o trabalho de ano, com duas novidades: Soares, que percorre temas do ainda nos dias 3, 5, e 6. As
Clement Greenberg, um dos grandes críticos de arte norte-americanos; agentes culturais, bibliotecas a passagem por Cedillo, cancioneiro popular das terras sessões principais, que contam
As vilas do norte de Portugal, um clássico de Alberto Sampaio; O azulejo em públicas, escolares ou do em Espanha, e Castelo de de Miranda, Beira, Alentejo e com alguns dos grandes
Portugal, coletânea de ensaio inéditos de Vergílio Correia, precursor dos ensino superior, escolas, Vide. Sessões ainda em Algarve. Às quintas e sextas, nomes do atual panorama
estudos deste género artístico; Monsieur Proust, de Céleste Albaret, com universidades, professores vários espaços de Marvão com o acordeão do Vítor musical, são retomadas a
as memórias da governanta do grande escritor francês. E, por último, a ou mediadores de leitura. A e de Valência de Alcântara, Monteiro e António Vieira. E, 4, também à noite, com
exceção à regra. Não publicaremos ficção, mas consideramos inspirador primeira edição do Prémio municípios promotores do ao sábado, com o ecletismo reportório eslavo (Dvořák e
disponibilizar, em reedição, A Leitora Incomum, de Alan Bennett. J LUÍS Ler+ aceita candidaturas até evento, e na cidade romana do multi-instrumentista César Schostakovich). Concerto de
RICARDO DUARTE 30 de setembro. de Ammaia. Prata. Sessões às 18 e 30. encerramento no dia 7.
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt
destaque * 3
H. G. Cancela é o vencedor
da edição deste ano do Grande
Prémio de Romance e Novela
da Associação Portuguesa de A Cimeira da CPLP
C
Escritores (APE) / Direção-Geral
do Livro, Arquivos e Bibliotecas,
pelo livro As Pessoas do Drama, omo em geral acontece nestas coisas, não teve surpresas
publicado em 2017 pela Relógio assinaláveis a bienal Cimeira de chefes de Estado e de
d'Água. A decisão coube ao júri Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
constituído por Isabel Cristina (CPLP), de 17 e 18 de julho, na ilha do Sal, em Cabo Verde,
Mateus, Isabel Ponce de Leão, nem a declaração e as conclusões finais. E, de certa forma,
José Carlos Seabra Pereira, José ainda bem, porque nunca foram boas as “surpresas” que
Manuel de Vasconcelos e Paula recordo… Desde a institucionalização da Comunidade e mesmo antes, no
Mendes Coelho, que descreve o difícil processo que a ela conduziu – que acompanhei desde o início, ao
escritor como detentor de "escrita lado do seu idealizador e grande obreiro José Aparecido de Oliveira.
densa" e de "um universo ficcional Para não ir mais atrás, onde estão as verdadeiras raízes da CPLP ter frus-
intenso e original, que desafia trado expectativas e incumprido objetivos, cito a inadmissível e vergo-
tabus civilizacionais e cria desas- nhosa admissão da Guiné Equatorial na Comunidade - embora quando
sossegos em quem lê". Na ata da ela se formalizou tal já ser “esperado”, apesar da grave violação dos seus
Prémio APE Para António Carlos Cortez (à esq.) e H. G. Cancela
decisão pode ler-se ainda que a próprios estatutos que isso representou. E cito, a culminar essa vergonha
distinção se deve à "leitura crítica (que ‘continua’ nos nºs 15 e 16 desta declaração…), a impensável cena
da História e da Cultura euro- do tirano Teodoro Obiang entrar de mão dada com Xanana Gusmão no
peia na sua relação com a cultura plenário da Cimeira de Timor que haveria de o acolher na CPLP.
árabe, através de uma temática Porto, é investigador no Instituto China. "Livro de um depuramento A crédito de um certo sucesso desta 12ª Cimeira estará, designadamente,
poderosa (a culpa, a impunidade, de Investigação em Arte Design e crescente da linguagem poéti- algum avanço no processo conducente à meta da liberdade de circula-
o drama, o olhar, o incesto, a ten- Sociedade. ca", destacou o júri constituído ção de pessoas e bens – indispensável para a criação de um “estatuto da
são e a violência familiares) e de A decisão de atribuir o Grande por Daniel Jonas, Isabel Cristina lusofonia” e para a existência de uma espécie de “cidadania lusófona”,
uma revisitação de personagens Prémio de Romance e Novela da Mateus e José Manuel Mendes. O sempre defendida pelo JL. Está também o facto de nela terem participa-
e de mitos do nosso património APE, no valor de 15 mil euros, a H. coletivo sublinhou ainda "a solidez do, o que nem sempre tem acontecido, os chefes de Estado e de Governo
cultural ocidental". G. Cancela foi tomada por maioria de um percurso que, evoluindo, se de todos os países membros, com exceção de Timor. E a crédito da CPLP
Nascido em 1967, Helder simples, cabendo os outros dois reconfigura em cada momento". está, enfim, o ter havido mais nove países, entre os quais a França, a
Gomes Cancela estreou-se votos (de Isabel Ponce de Leão Colaborador do JL, António Carlos Itália a Grã-Bretanha e a Argentina, e a OIA, a assumirem o estatuto
literariamente em 1999, com o e José Carlos Seabra Pereira) a Cortez é autor de vários volumes de observadores, o que constitui sinal, ou pelo menos indício, de uma
romance Anunciação, a que se Para onde Vão os Gatos quando de poemas. A Dor Concreta é uma visibilidade crescente da CPLP na cena internacional.
seguiram, entre outros, Novembro, Morrem?, de Luís Cardoso. antologia que recolhe poesia dos De resto, a interminável declaração final tem cerca de 40 mil carateres
volume de poemas, e os romances seus primeiros livros: Depois de (uma dúzia de páginas?), dividida em 88 números, só um dos quais, o
As Pessoas do Drama e A Terra de ... E GRANDE PRÉMIO DE Dezembro (2010), Linha de Fogo 81, com 23 resoluções. Ao longo desses 88 itens, há declarações, resolu-
Naumãn, este acabado de lançar POESIA TEIXEIRA (2012), ções, reiterações, reafirmações, renovações, recomendações, anotações,
pela Relógio d'Água. Também pu- DE PASCOAES O Nome Negro (2013) e Animais saudações, congratulações, feli-
“
blicou ensaios, como Relativismo Entretanto, António Carlos Feridos (2016). Já este ano lançou citações, manifestações, enalte-
Axiológico e Arte Contemporânea: Cortez foi distinguido com o Corvos, Cobras, Chacais. Professor cimentos, regozijos, destaques,
Critérios de Receção Crítica das Grande Prémio de Poesia Teixeira e ensaísta, leciona no Colégio registos, endossos, para todos
Obras de Arte ou O Exercício da de Pascoaes da APE / Câmara Moderno, em Lisboa, sendo inves- os gostos e feitios. Fora mais 35
Violência. A Arte enquanto Tempo. Municipal de Amarante, no valor tigador Centro de Literatura de declarações e resoluções anexas,
Além de professor na Faculdade de 12.500 euros, pelo livro A Dor Expressão Portuguesa e Lusófona
A crédito da CPLP a última das quais de apreço ao
de Belas Artes na Universidade do Concreta, editado pela Tinta-da- da Universidade de Lisboa. J está o facto de mais falecido ministro da Defesa da dita
nove países, entre Guiné Equatorial…
› O n z e c o n t o s L u s ó f o no s ‹
Abre-se a página com tempo, demora-se na leitura e parte-se para outras paragens. Agosto rima tantas vezes com evasão, o
que pode ser encontrado dentro de livro ou folheando um jornal. No mês em que por norma se tem mais vagar, o JL propõe onze
viagens aos universos pessoais de outros tantos escritores. São contos para o verão, mas não necessariamente estivais. Ao nosso
convite, cada escritor respondeu como quis. Uns vasculharam a gaveta em busca de um inédito; outros decidiram escrever
propositadamente para este espaço. E houve quem aproveitasse a oportunidade para partilhar um excerto de um livro ainda não
publicado. Histórias de escritores portugueses, angolanos, moçambicanos e brasileiros, alguns em estreia em Portugal:
Ana Cristina Silva, António Tavares, Cláudia Lucas Chéu, Clemente Bata, Dênisson Padilha Filho, Filipa Martins, Hugo Mezena,
João Reis, Ondjaki, Rodrigo Lacerda, Sandro William Junqueira. Contos ilustrados pelo fotojornalista José Carlos Carvalho
N
tido tempo e espaço de o visitar,
as lágrimas quase verdadeiras do
momento de deitar haviam regado
ovos baianos é um cara que o sonho, a menina, quem seria?,
não admitiu deixar de ser aqueles olhos!, aquelas mãos leves
menino. Novos baianos é um cara
guiando-o sem medo pelo jardim
alegre, que acredita que a vida está só
quase escuro, a força da leveza que
começando”
traz a paz que permite chorar sem
[declarações de galvão] tentar impedir as lágrimas
acabou chorare, galvão
acabou o sonho, o dia é real, o
no dia da apreciação, depois de atraso também, falam em compor,
atravessar as galerias do fórum mas tão cedo?, falam em con-
algemado, ouve do juiz pergunta versas alegres e cerveja, mas tão
lacônica: “luiz dias galvão. você cedo?
fuma maconha?”. a resposta é um acabou sonhare!
drible nos caprichos da ditadura: galvão chegou, ninguém reclamou
“sou poeta desde menino”. do atraso, outros tinham acabado
“
[in correio da bahia, 02.09.2007] de chegar também, a noite havia
esquerda, coçou a mão como que lembrar mais sido longa para toda a cidade
provocando o futuro acabou chorare! galvão sentiu que o sonho não o
galvão acordou com comichão na na cabeça, um resto de sonho galvão sorriu satisfeito celebrando abandonava, as imagens repe-
palma da mão esquerda e abriu persistia não uma lembrança nítida mas Caminhar, deixar tiam-se como que encenadas, uma
os olhos pensando que um fino a voz de uma menina que cami- uma sensação poética
raio de sol havia passado pela nhara a noite toda dentro do seu acabou chorare, galvão
o vento arejar o corpo janela aberta deixava entrar um
fio de sol parecido com o do seu
janela e, por entre a vidraça verde sonho, de mãos dadas com ele, de a menina, com olhar de anjo, fala- por dentro, deixar quarto, galvão sorriu porque não
e amarela, tivesse o poder de lhe
causar tal sensação. galvão desco-
sorriso tranquilo e mãos tão leves,
levando-o a passear pela imensi-
va tranquilidades, as horas haviam
já passado, galvão estava atrasado,
os pensamentos ruins saberia explicar o que observava,
nem ele mesmo, respirando fundo,
nhecia – nesse momento – que as dão do jardim botânico, a menina outra vez saírem para longe, soube compreender se a sensa-
asas da abelha já se moviam desde brincava de apanhar no ar as camisa branca, calça jeans de deixar a brisa trazer ção era real, sorriu, comeu algo,
a madrugada. lágrimas que galvão chorava outras madrugadas, café frio, bebeu café quente, ouviu o som
o quarto desarrumado galvão via as árvores antigas e se chinelos, hora de sair outras tendências dos outros como efeitos especiais
a madrugada havia criado uma emocionava mais, a menina apa- já nas escadas lembrou do caderno de uma peça de teatro, a ence-
tempestade de roupas e cinzas, nhava as lágrimas no ar, soprando encarnado e voltou atrás, agora nação continuava, iria entrar ali
o mundo que galvão olhava era as flores que os circundavam, sim, um fino fio de sol fácil lhe músicas misturadas que vinham uma menina de olhos alagadiços e
um espelho do que ele sentia por galvão procurou o sol e não viu, invadia o quarto, feixe de magia do céu, da altura dos prédios, frases mágicas?
dentro, o pó, a poeira voando, a mas a menina procurou o sol e em busca de mão ausente, batendo mas também de quintais e bares, acabou sonhare, galvão
brisa do mar havia aberto a janela, imaginou-o, galvão parou cansado nas bordas do travesseiro onde a botecos, casas de cultura espon- hora de trabalhar, moço, galvão
mas não o sol de não saber que sofrimento era mão dele usava dormir tânea, museus humanos, terreno sorriu da voz que só ele ouvia,
àquela hora o sol brincava do outro aquele, a menina olhou-o com a um sol atrasado, pensou, como eu experimental para a poesia sentou perto da janela
lado do prédio e galvão não enten- firmeza dos anjos e murmurou a desceu e viu a rua adiantada nos bom dia, seu galvão cadeira de madeira antiga, quase
deu a sensação na palma da mão frase que agora ele não conseguia seus movimentos dominicais, caminhar, deixar o vento arejar pronta a cair, daquelas onde é pre-
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt CONTOS DE VERÃO
tema * 5
O solitário coração
ciso saber sentar e estar, porque a e como veio, a abelha foi
madeira tem veios respirados e a galvão olhou a sua mão vazia ainda
poesia também com as sensações tão vívidas, cada
ensaio é coisa lenta, não começa, pata, cada olhar, cada hesitação
vai começando da minúscula cabeça da abelha
sonho é parecido e ambos têm tranquila que escutava a música e
caçador
música, silenciosa ou não, regada a esperava o sol, mas não esperou,
cerveja ou estrelas, ensaio e sonho foi como veio, pelo buraquinho,
ensaio é sonho, galvão zum-zum, imitação de ca-ca-cá
a voz falou de novo na fe-fe-fé, algo que antes não
a abelha vinha vindo, mas o rosto parece mas que depois é, e foi
da menina não vinha, o pessoal galvão lembrou do compromis-
entrou no ritmo, magia é a música so, o outro, o das comidas que se
chegar como pressentimento e de- almoçam com amigos e família e
pois ser tocada, ser fixada, a gente saiu, encantado e silencioso como
lembrar e reproduzir, criada como convém a quem transporta nas
se já estivesse pronta e o momento mãos um tesouro de areia que não
da descoberta fosse só celebração pode ser vertido, o chão é zona de
por conseguir repescar algo que pés, aquele tesouro de mãos galvão
sempre esteve tão perto quis guardar dentro, mesmo que
a abelha veio, lenta, como um pás- não seja tão certo, disse galvão
saro sem medo em busca de uma quero guardar o tesouro no coração
migalha rara depois do almoço pesado, o man-
a mão de galvão esperava o fio to transparente da cachaça levou-
de sol, galvão julgou calcular a -o para outros sonos, mas sem
trajectória da luz – oito minutos sonho, tudo limpo, vazio, sono
antes, cada jacto de luz largava do em branco como voo sem pouso
planeta sol em direcção ao planeta nem lugar, nem nuvem nem Sandro William
terra estrela, nem espuma nem mar, Junqueira
N
acabou sonhare, galvão nem concha nem brilho, nem
será que consegues esperar parado força nem braço, nem corda nem
um raio de luz fina que vem de tão violão, nem milho nem mato,
longe para descobrir essa janela nem cor nem bandeira, um sonho a clareira junto do bosque,
onde a tua mão repousa, tu, a tua vazio como um voo sem pássaro, um homem.
cadeira, os pensamentos e a músi- nem asa nem pata, nem corpo Está vestido de cowboy e avança
ca que os outros vão descobrindo nem cabeça, nem papel nem pelo campo aberto. Passos lentos,
com se fosse só lembrança poema, nem medo nem mira- titubeantes. Mas tudo é farsa, logro,
galvão arriscou na direcção do gem, nem rede nem cadeira, nem estratagema. Este homem tem ossos
buraquinho esperando sem espe- solidão nem susto, nem mato nem e musculatura suficientemente pos-
rança que a sua manhã poética lhe fogo, nem moço nem menina, santes para se largar a correr e atingir
permitisse ainda sonhar acorda- mas, nessa tarde, quando galvão aquele cedro lá ao fundo em menos
do, a abelha que voava sem parar acordou, uma comichão invadiu- de 20 segundos. Mesmo calçado de
desde a madrugada chegou em -lhe a palma da mão esquerda, botas de cano alto e com a caçadeira
zum-zum discreto e um levíssimo ele abriu os olhos pensando que nas mãos.
odor a mel um fino raio de sol havia chegado Por momentos, o homem detém-se.
não foi só galvão que viu, os outros de novo à palma da sua mão, por Olha o bosque. Os seus olhos são
não pararam de tocar para não entre vidraças verdes e amarelas, claros. As árvores quietas. Tem um
interferir na magia, a abelha vinha um fio que tivesse o poder de lhe rosto distinto apesar de lhe faltar um
vindo e veio despertar, galvão desconhecia dos dentes da frente.
acabou chorare, galvão que nesse momento, as asas da Cinco metros à sua frente, um cão co-
a abelha passou pelo buraquinho abelha já haviam cessado o seu reografa uma dança improvisada entre
como os poetas descobrem no movimento, ela já repousava ali os arbustos rasteiros: avança para lá,
meio da madrugada, no meio do como quem aterriza no brilho de para cá, inventa um pinote, cabriola
mundo, o lugar ilógico de uma uma estrela uma volta, para depois farejar, para
vírgula que traz força ao poema, acabou sonhare, galvão? depois recuar, para depois parar outra
que lhe dá robustez de sonho, uma menina perguntava, menina vez, e alçar a perna, e urinar o terre- -se tempo de reação. O homem que A seguir: larga três latidos.
intensidade inexplicável real, de olhos que olham para ver, no, e raspar as patas traseiras, e correr se veste de cowboy sabe isso: na cur- É o que basta: para a explosão do
a abelha veio e pousou no centro de mãos que acordam, a menina a direito, e estacar, finalmente. va do gatilho, a flexão do indicador voo repentino, para o abandonar da
da sua mão esquerda, no meio do acordou-o devagar para sorrir e Cauda em pose de espada. não tem a resposta pronta das asas. E camuflagem do solo, para o pum,
mundo apontar a abelha na mão esquerda Nariz húmido em tiquetaque. assim, sem canto que oriente ou cão pum, pum, até tudo se transformar
acabou sonhare, galvão? tudo bem? Focinho arregaçado numa exibição que guie, o chumbo chegará tarde ao em silêncio de bosque.
nem os olhares, nem o ruído alegre galvão perguntou à menina como de caninos. lugar onde o voo tinha estado. E não O cão faz o regresso de codorniz
dos violões, nem a brisa, nem o se falasse com a abelha O cão está ali para o auxiliar. haverá codornizes para o banquete presa à boca. Tem o cuidado de não
feixe de luz, nada perturbava o tudo ca-ca-cá na fe-fe-fé! Prepara-se para servir de tradutor de amanhã. lhe ferrar os dentes. O seu dono já
quieto modo de estar da abelha, a menina riu, divertida, estre- e intérprete entre a natureza bruta Após eriçar as orelhas, o cão precipi- o tinha ensinado a abocanhar com
a mão de galvão parou de tremer, mecendo sem que a abelha se e o solitário coração caçador; para ta-se pelo descampado. gentileza, a não despedaçar a carne:
os lábios tremeram um sorriso assustasse, e galvão – acordado servir de mediador entre a carne e os É uma flecha de pelo a esventrar a umas vezes com biscoitos, outras
que era um desejo, quem seria – fechou os olhos para ver se acor- chumbos de 30 gramas. terra cor de barro. com pontapés no lombo.
a menina do sonho?, podia ser dava, suavemente, com a abelha Quando se trata de caçar codornizes O homem que se veste de cowboy se- Este cão obediente, de mandíbulas
sugestão ou verdade, mas galvão, parada na mão esquerda e falando o primeiro contacto é sempre audi- gue o ataque com a coronha acostada amestradas, foi gentilmente cedido
que conhecia tão mal o cheiro do com a menina tivo. Com o tamanho reduzido e a ao ombro. O olho afiado pousado na pelo cozinheiro ruivo ao homem que
mel, sentiu que a brisa vinha car- eu já estive com essa abelha hoje, capacidade mimética da plumagem, mira. se veste de cowboy para o auxiliar
regada dele, os outros não pararam você acredita? têm de ser os ouvidos a ganhar os Não se mexe. Não treme. Pouco res- na caça. É por isso que abocanha a
de tocar a menina estirou os olhos – como atributos da visão. pira. Apenas o coração se sobressalta codorniz com carícia. O cão sabe que
a cidade escutava a melodia que fazem os anjos É o canto repentino que as denuncia. na jugular. O homem que se veste de aquilo que traz seguro aos dentes terá
vinha dali, o fumo dos cigarros galvão deixou a palma da mão O canto ou um cão munido de faro cowboy semicerra os olhos. de chegar intacto às mãos do homem
acesos e abandonados, os olhares quieta, ajeitou o sonho de areia bem artilhado. Sussurra: que o fita com um chapéu enterrado
incrédulos mas calmos e a abelha, ameaçado pelo vento, o vento veio Quase podem ser pisadas se, ao Acerta quem atira com o espírito. na cabeça.
que voava desde madrugada, a a abelha fez zum-zum e pronto. J avançarmos por um terreno aberto, O cão imobiliza-se. Permanecerá Alegre, de rabo a fazer de chicote,
quem apeteceu descansar ali, calcarmos as proximidades do lugar estático durante o comprido segundo avança pelo terreno.
cúmplice de um sonho que galvão * Escritor angolano, Prémio José Saramago, do embuste. A ser assim, a proximi- que antecede o momento decisivo, Do focinho, o sangue pinga, gota a gota.
não sabia se tinha sonhado autor de Os da Minha Rua, dade com a ave de nada serve. É até perto do lugar onde talvez se disfarce Gota a gota, pula o pó.
acabou sonhare? Os Transparentes ou Há Gente em Casa. um entrave. Um empecilho. Perde- uma codorniz. Começa a entardecer. ›
6 * tema CONTOS DE VERÃO jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
O Bode
de cowboy puxa o chapéu de feltro
para trás. Encosta a coronha ao chão.
Dobra um dos joelhos na terra árida
para receber o fruto com penas. O
hálito quente daquele fim de tarde
lambe-lhe o rosto. Soergue-se.
Prende mais esta codorniz junto de
codornizes iguais que, agarradas
à anilha de metal na presilha das
calças, executam um coletivo pino
ensanguentado. Tira o chapéu de
feltro. Limpa o suor da testa com
a manga da camisa aos quadrados
azuis e pretos. Sente os miolos a late-
jar encostados ao crânio que ferve.
Ele sabe que está sujo. Sabe que fede.
Tem a boca seca. A língua encor-
tiçada. Lamenta-se por ter bebido
tanto antes de vir para a caça. Ainda
por cima com um calor assim. Mas
durante os breves instantes em que Clemente Bata
V
permite que a lamúria se hospede
dentro de si tem ainda rasgo para um
repentino momento de lucidez:
Quando bebemos nunca somos ivia, não faz muito tempo,
apenas um. num bairro chamado T4, um
Somos o que somos e um outro homem conhecido por Prenúncio,
que nos é distante e que só o diabo com três dos seus quatro filhos e
conhece. com Mamate, a mulher. Tornou-se
Dilata as narinas. Prepara o olfato. famoso no bairro, pouco antes do – Este bode lembra uma antiga Rapagão de Guhulo, várias ve- – Bode? – coçou a cabeça,
Cofia o bigode. O homem que se casamento de Zaveta, a filha. Esta promessa da minha avó Zaveta, zes surpreendido, no bairro, com Prenúncio.
veste de cowboy fita o horizonte que veio a morrer, juntamente com o que dá nome à noiva… – falou patos roubados, Andzibhiwe foi – E não é um bode qualquer.
se desmancha. Aproxima-se uma marido, num acidente de viação, Prenúncio – o espírito de Zaveta encontrado com o bode. Os patru- Deve ser um bode roubado.
trovoada seca. É a isso que cheira. voltavam, de chapa, do passeio é forte. Nós somos o que somos, lhas assaram-no e enterraram-no, – Como encontrar um bode,
Uma trovoada que talvez provoque nupcial. A fama de Prenúncio e o graças a este espírito. respirava ainda. ainda mais um roubado?!
um incêndio ali perto. Labaredas que aconteceu com a filha foi tal Alimentava pessoalmente o bode. Zaveta casou-se. Semanas – Roubando!... Esse é o seu
amarelas que deitarão cores sobre o que depois no bairro só se falava da Dormia com ele no quarto, até que, depois, aconteceu o julgamento. destino.
verde e o castanho para depois ficar morte de Andzibhiwe. nas vésperas do casamento, Mamate Encontrou-se a fonte do problema: Sentindo as forças escaparem-
tudo preto. E ele gosta do fogo. Zaveta não teria chegado ao reclamou. Temos que ter cuidado Prenúncio. O tribunal condenou-o -se-lhe, e quando amadureciam
O cão ladra. casamento, não fosse a gritaria que com esse espírito, já está a ocupar a 18 anos de cadeia. Não ficou três rumores de que Aurélio, o filho
Quer a recompensa ou a reprimenda. soltou meses antes. Com os gritos espaço demais – disse. Nessa noite, anos. Evadiu-se. Viajou até à África desaparecido, tinha sido enterra-
Um biscoito ou um pontapé no lombo. ela afugentou os homens chama- ele amarrou o animal fora. A patru- do Sul, onde lhe eclodiu uma do numa vala comum, chamou a
O homem cospe uma saliva seca. dos pelo nome dos objectos com lha amainara. Prenúncio desper- doença sem nome. Consultou um mulher e um dos filhos.
Leva a mão ao bolso da camisa. os quais assaltavam residências: tou-se, sacudido por um pesadelo. curandeiro. Isto não é uma doença, – Família! – disse. – Estão a
Saca um cigarro do maço. De boca Catanas. Roubavam, violavam, Violando o protocolo da desavença é um aviso… – alertou o nhanga ver a ventania que está a sacudir
inclinada, faz estalar o isqueiro. assassinavam... Como ela própria que tinha com Nyeketa, ordenou que – o teu mal é grande. Os espíritos a nossa família?! Não sei quanto
Um pequeno incêndio portátil. dizia, a Providência salvou-a de este o vigiasse. exigem que saias, imediatamente, tempo de vida me resta. Nyeketa,
Dá várias baforadas enquanto ob- morte certa. Os espíritos é que te – Diabo! – gritou Prenúncio, deste país, e que voltes para a tua seja como for, cuida da tua mãe
serva o cão sentado sobre as patas protegeram, minha filha – corrigia inconformado, ao amanhecer. – terra, se não queres que tu e a tua e do teu irmão. Fica sabendo que
traseiras, junto das botas de cano o pai. Roubaram o bode. Isto só confirma família morram como cães! deves roubar um bode que vai
alto, a lamber os beiços, naquela Os Catanas encolheram quando o meu sonho, e mostra que eu Desconfiando do espírito ser sacrificado, para sanarmos a
obediência de quem aguarda. começaram as patrulhas em T4. tinha razão – falou. – Mas não vai zulo, Prenúncio refugiou-se na maldição.
Enquanto fuma tem-no sempre Gente da vizinhança empunha- terminar assim! Tu, meu filho, pre- Suazilândia. A doença piorou. O filho cumpriu. A patrulha
debaixo de olho. va, também, catanas e ajuntava para os teus amigos e tragam-me Resistiu até que lhe chegou a surpreendeu Nyeketa com o bode.
Com os animais nunca se sabe. pedras e pneus. Quem violasse o o bode de volta, se ainda esperas notícia da morte de Zaveta. Voltou. Queimaram-no até morrer.
É como com as pessoas. recuar obrigatório, e não escapasse bênçãos minhas nesta vida. Faz- Vivia escondido, numa cave. Só Mamate, que já emagrecia
O cão, com o tapete da língua ainda à desconfiança, era esquartejado, -me esse favor! aparecia de noite. Saiu, uma vez, de desgosto, vendo, agora, Joel,
de fora, fita-o em postura de loiça. queimado e enterrado, vivo até. Nyeketa mobilizou homens. para desvendar o mistério. o filho que sobrava, em perigo,
Aguarda nova ordem. Prenúncio orgulhava-se. – Com Empunhavam paus. Ao sondarem – Estou a ver culpa aqui. Há internou-o numa igreja. Falou
O homem que se veste de cowboy o casamento da minha família nin- as pegadas que encaminhavam o morte nas suas mãos. Confirma? – com os patrulhas. Contou-lhe
puxa uma última baforada. guém mais vai piar aqui no bairro! bode, descobriram o respectivo falou um adivinho. tudo. Por favor ajudem-
Deixa cair o cigarro à sua frente. – ufanava-se. dono: – Não confirmo. -me – pediu. No mesmo dia,
Mata-o com a sola da bota. Como dizia Mamate, aquela – É pé de Andzibhiwe! – jurou – Você sacrificou a sua filha, Prenúncio foi roubar um bode.
Este cão não presta, pensa. era uma dádiva de Deus. Zaveta é um dos homens. verdade? Apanhado pelos patrulhas,
Sacode o pó das calças com o auxílio a única que se casou. Joel era pe- – Aquilo não foi sacrifício. Ela só foi poupado. Vamos entregá-
“
das abas do chapéu. Limpa as co- queno. Aurélio, o mais velho, tinha tinha dois homens, o marido dela -lo à esquadra, é a melhor
missuras da boca com as costas da três filhos de mães diferentes. O e o meu falecido avô. Eu até tentei protecção – decidiram. A polícia
mão. Volta a cobrir a cabeça. Puxa o segundo filho, Nyeketa, que deci- evitar o pior mas, pela prosperi- devolveu-o às celas.
chapéu por cima dos olhos. No céu, dira não mais falar com o pai, fazia dade da família, não havia como Passaram uns anos,
o sol é um ovo em sangue. Faz cair apostas com T4, a bebida lá do Mamate que já divorciá-la do falecido. Prenúncio agradecia à mulher e
vermelho sobre todas as coisas. bairro: ummm dia nãão me me vais – Está conforme. Mas estou ao filho. Pelo menos escapei! –
Aponta a caçadeira à cabeça do cão embebebedar mais! – titubeava. emagrecia de desgosto, a ver perseguição e você a fugir. dizia, em liberdade condicional.
que varre o chão com a cauda. Não tendo grande coisa para vendo, agora, Joel, o Confirma? Joel estudara direito, e defendia
A sombra de um homem de chapéu oferecer, porque em casa passavam – Confirmo. o pai. Eish, esta zona! – falavam
com uma caçadeira apontada a um cão necessidades, Prenúncio levou filho que sobrava, em – Uma coisa implica a ou- de T4. Nunca mais ninguém
sentado sobre os quadris estende-se um dia inteiro para chegar, a pé, perigo, internou-o tra. Como é que você foge e não foi lá queimado nem enterrado
por muitos metros à sua ilharga. J à terra onde nasceu. Ia informar confirma a culpa? Quem não deve vivo. J
os seus pais e os defuntos sobre o numa igreja. Falou com não teme! Não brinque com os
* O Solitário Coração Caçador é um excerto casamento. Voltou com um bode os patrulhas. Contou- espíritos. A única solução é fazer * Escritor moçambicano, inédito em
do romance que o escritor português, autor de às costas, três dias depois. Foi uma missa com um bode, para Portugal. Este conto integra o seu novo livro,
Um Piano para Cavalos Altos ou Quando as festa lá em casa. Só se aguardava o lhe tudo. Por favor acalmar o espírito ndau que vocês a coletânea Outras Coisas, a publicar pela
Girafas Baixam o Pescoço, está a escrever. casamento. ajudem-me – pediu provocaram. Cavalo de Mar no final de agosto.
7
RE
1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt
*
J
TRA
Natural — Inquérito ao Retrato
Português é uma edição da
Imprensa Nacional.
Celebrando os 500 anos do
nascimento de Francisco de Holanda,
o Museu Nacional de Arte Antiga
organiza uma exposição dedicada
ao retrato em Portugal utilizando
o título do tratado holandiano
Do Tirar polo Natural, o primeiro
tratado europeu sobre essa
disciplina artística. A curadoria
propõe um olhar contemporâneo
sobre a fascinante história do
género, em sucessivas etapas
concetuais, desde a presença de
uma ausência às representações
TO
contraditórias entre poder e
vulnerabilidade, passando pela
imagem ficcionada do sujeito.
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editorial.apoiocliente@incm.pt
Binóculos
porque o prédio em frente lhe ta-
pava a visão, tratava-se do prédio
onde habitavam os britânicos que
davam aulas de inglês, moravam
no rés-do-chão e deitavam-se de
barriga para cima, em tronco nu e
com garrafas de cerveja ao lado, no
chão de cimento do terraço.
Eu também via mal sem óculos,
não discernia com nitidez os
entre dois edifícios defronte da contornos dos jogadores ou a bola,
escola. As grades eram verdes. estivesse esta mais afastada, o que
Do outro lado das grades, um não raras vezes acontecia. E ponta-
campo de futebol estendia-se em peava, por vezes, as pedras que se
cimento irregular, pontilhado de projetavam do cimento.
pedras salientes, pontiagudas, co- Junto ao campo, numa nesga de
berto de gravilha e areias infectas. terra ocupada pelas silvas, vi, um
O campo era sobremaneira tosco dia, um pintassilgo quando numa
e as balizas não estavam sequer aula que decorria no laboratório.
“
centradas, pelo que um dos flancos
João Reis era mais largo do que o outro: o
A
direito ou o esquerdo, conforme se Tinha os óculos postos, claro. árvore, um pinheiro, creio. Não
jogasse virado para oeste ou leste. Jamais revi um pintassilgo em sei se era um pinheiro-manso. A
Ao fim da tarde, o sol encandeava Frequentei a escola liberdade. Também paravam por minha avó não via a comida para
minha avó via mal, restava- quem jogasse com o flanco direito ali alguns gatos. Um colega meu as pombas, pois o prédio conti-
-lhe apenas um décimo de mais estreito. Amiúde me cabia em durante seis anos. tentou apedrejar um deles, um gato nuava no mesmo sítio. Todavia,
visão, dizia-se. Ela tentava avistar- sorte ser guarda-redes e, de costas Nesse período, tive preto que fugiu e se escondeu nas quem circundasse a escola veria,
-me por entre o gradeamento da para leste, marquei, certa vez, um plantas que ladeavam a parede se- decerto, a comida por ali espa-
escola, a fim de saber se chegara ao golo de baliza a baliza, e não foi aulas, se não me tentrional do pavilhão. Ele gostava lhada, e recordo-me inclusive de
local em segurança, se atravessara em arco, dessa forma é fácil, não engano, e, depois, de animais, pelos vistos. O campo grãos de arroz, estariam cozidos ou
a rua sem morrer atropelado ou tem fineza, classe, não dignifica de futebol fervilhava de vida, não crus? Lembro-me também de um
vitimado por um qualquer acidente. a atividade desportiva, mas num fui-me embora. Nas era como o polivalente ou o campo cogumelo, um amanita que crescia
Eu descia no elevador, ela dirigia-se remate seco e horizontal, com a aulas aprendem-se de basquete, situado mais aci- sob uma árvore enorme no peque-
à varanda, colocava-se no seu posto bola ao nível do peito – portanto, ma, junto ao ginásio antigo. Uma no largo diante do polivalente. Era
de vigia. O mais que conseguia, a cerca de metro e meio do chão. coisas importantes. funcionária entretanto aposentada vermelho, tinha pintas brancas e,
com os binóculos e os óculos de Não interessa. Futebol, esse, pouco Parece-me que não sou deixava no campo de futebol pão e bem, crescia invariavelmente na-
lentes grossas, era ver-me percor- se jogava. De qualquer maneira, milho para as pombas; em certas quele local, na esquina do caminho
rer parte da rua, ora para cima, ora a velhota não assistia aos jogos.
dado à aprendizagem. ocasiões, para as rolas, gaivotas. que permitia o acesso exterior à
para baixo, um trecho de cidade Ela morava a oeste e não via nada, É assim a vida Ela punha a comida diante de uma secretaria, atrás de um banco de
Helena
pro quarto e ele caía roncando no
sofá. Só assim a gente saía do nosso
esconderijo. Depois das surras, ele
sempre viajava e a gente ficava com
saudade dele. De um tempo pra cá,
ando sentindo algo assim. Saudade
de meu pai e de seu cheiro de loção
pós-barba, suas camisetas alvíssi-
mas de malha. Ele às vezes batia na
minha mãe e dizia, ‘você me fez que-
– Você tem razão, eu fui grosseiro. A brar a jura’. Saudade de minha mãe
gente nem se conhece. também, seu silêncio na cozinha.
– Tudo bem, deixa pra lá. Acho que é um pouco doentio, mas
A tarde avança lenta no parque multiu- cheguei a desejar que tudo voltasse
so à beira-mar. – até as surras – só pra tê-los outra
– Você vem sempre aqui? – e a moça vez.
interrompe sua contemplação ao mar – Por que acha que eu tenho que ouvir
e só olha. isso?
– Sempre que posso. – Não acho, você apenas foi ficando
– Você é daqui? aqui. É interessante que não tenha se
Dênisson Padilha Filho – Que importa? Você não tem me movido, não?
-O
visto? Agora sou. verde azulado pro branco da espuma – Pare de me chamar de Helena! – Sim, mas o que eu tenho a ver com
– Isso quer dizer... e pro negro das pedras da praia. E o – Tudo bem, desculpe novamente. Não tudo isso?
– Que todos são daqui – agora ela fala homem assiste pasmado ao carrossel posso esconder o que aconteceu. Desde – Tem muito. Eu sabia que eu não
i, desculpe perguntar. Seu menos séria, entre minipunhados de de cores. que me mudei pra cá... poderia ter meus pais de novo, voltar
nome é Helena? pipoca. – Helena... – Por que se mudou pra cá? no tempo. E, naquela tarde cinzenta, saí
– Olá, como sabe? – Helena... – Não me chame assim, não confirmei – O banco me transferiu. Desde andando pras pedras, achei que o mar
– Eu não sei, só estou perguntando. Ela se distrai vendo as manobras dos se sou Helena. então, venho aqui na hora do almoço podia ao menos calar essa saudade. Ia me
– Mas por que acha que meu nome é skatistas na tarde dourada e olha as ma- – Você mora aqui perto? e fins de semana. Preciso lhe dizer. jogar das pedras. Foi no dia em que seu
Helena? rolas preguiçosas batendo nas pedras. – Mais ou menos. Uma tarde dessas, não havia uma nome veio dentro da cabeça. Helena.
– Também não sei. Mas olha, isso não é – Por que é tão importante saber se eu – Sabe, o que mais me intriga é: como nuvem no céu, mas tudo tava muito – Helena. Você insiste nisso.
uma cantada ou coisa parecida, ok? me chamo Helena? sei que seu nome é Helena? cinzento pra mim. Eu tive uma sau- – Olhei pra esse calçadão. Foi a primei-
– Não? Ok. – Não sei... É que acho que te conheço – Você acha que é. dade danada de meus pais, de minha ra vez que vi você.
– Posso me sentar? de algum lugar. – Acho que sim. infância no Interior. Meu pai bebia – E...?
– A praça é publica, o banco é grande. – Isso agora tá parecendo uma cantada. – E que diferença vai fazer se eu me muito e morreu disso há alguns anos. – E perdi a vontade de me jogar.
– Licença... É a terceira vez que vejo – Não. É sério. chamar Helena? Chegava das rodas de jogo e sempre Da íris de água-marinha dela se
você aqui em menos de um mês. Antes, – E você, vem sempre aqui? – Desculpe, mais uma vez. Minha dava uma surra na gente. A gente expandem, bem nítidas, gaivotas e
nunca te vi. Mora aqui faz pouco tempo? – Costumava vir mais. cabeça tá confusa. corria pra baixo da mesa e minha maçaricos, catando caranguejos nas
– Por que acha que eu daria detalhes As marolas são reflexos nos olhos – Isso tá bem claro, nem se preocupe. mãe ficava gritando e soluçando pedras. Ele percebe que nos olhos dela
da minha vida? da moça. Seus olhos alternam do – Preciso lhe contar uma coisa, Helena. ‘por quê, por quê?’, e meu pai dizia vida e morte são uma coisa só.
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt CONTOS DE VERÃO
tema * 9
ferro pintado de verde, onde eles se
E
anos. Nesse período, tive aulas, se
não me engano, e, depois, fui-me
embora. Nas aulas aprendem-se
coisas importantes. Parece-me le nunca tocou nas filhas, nem
que não sou dado à aprendizagem. num fio de cabelo, senhor
É assim a vida. De resto, a minha guarda. Houve aquela vez da cadei-
avó não assistia, de binóculos, na ra. Mobiliário pesado em ferro. Um
varanda, às aulas que decorriam acidente. Ficou com um travessão no
atrás das paredes. J pé esquerdo, talvez precisasse de levar
pontos, cicatriz de tom rosado ao sol,
* Escritor e tradutor português, autor de A Avó já mal se vê. E ela tão boa nos diálogos:
e a Neve Russa e A Devastação do Silêncio. um travessão à superfície da pele faz
falta para lhe apontar a impertinência
da argumentação. A pele a indicar
o sentido das palavras ao coração,
– Não sei do que você tá falando, mas senhor guarda. Uma gramática de
se desistiu de conhecer o fundo do afetos. E a mão, a manápula dele,
mar, parabéns. numa aproximação à pista, que nunca
– Naquela tarde, parece que veio com aterrava, essa é a verdade, nunca ater-
você outra cor, sua presença veio rava, abria - no máximo - um túnel de
empurrando uma luz dourada, canção vento, sacudia-lhe os cabelos para a
diferente pra todos aqui, skatistas, frente dos olhos, mechas humedecidas já viu muita coisa, que já matou pretos para as compras, para a escola, para se atreva, senhor guarda, a elogiar-lhe
ciclistas, o pessoal nas quadras. num orvalho de lágrimas. E é isto. Ele na Guiné com a coronha de metra- a catequese. O que é que um homem as filhas. O que mais um homem que
– Agora tenho certeza de que isso é nunca tocou num fio de cabelo das lhadoras, pode dizer a duas flores que que já viu muito, já viveu muito, um trabalha pode fazer, senhor guarda?
uma cantada. Mas olha, sem chance, filhas. Ninguém pode ser acusado por desabrocham de formas e de púbis e homem que já matou animais - por- Isto e mantê-las trancadas em casa.
só vim aqui pra respirar um pouco; não trabalhar bem o suspense da agres- de ancas e de mamas num matagal de que aquilo não era gente - no mato, Isto e mantê-las fechadas no quarto.
estou atrás de envolvimento. são. Há tipos que ganham prémios gandulos e de drogados e de viola- faz nestes casos, senhor guarda? Isto e correr os estores, afastar o
E os dois ficaram em silêncio, olhando em Hollywood por menos. Quantos dores e de funcionários públicos a Arranja uma arma, claro está, ou mundo e deixar duas gretas de luz
o mar já meio acobreado. esgotam o efeito dramático num arrastarem os pés? Se te apanho com várias, senhor guarda, porque aquela para que entre Kafka e Camus e Joyce
– Eu já vou – ela disse. gesto irrefletido? Quantos conseguem um preto, mato-te. Pois, está claro. E anedota da caçadeira atrás da porta e Calvino e Borges e uma revista de
– Já vai? Olha, desculpa, acho que manter o equilíbrio do fio de prumo do a ele esmago-lhe o crânio. Pois, está para pai recente de meninas só tem adolescentes, com posters do Brad
acabei te assustando. terror anos corridos? claro. É o que resta a um homem que graça para os que não as veem crescer, Pitt, escondida no fundo da mochila.
– Não, tudo bem, se cuide. E diga-me você, senhor guarda, trabalha, dizer coisas destas: garanto ter formas, e as podem guardar o tem- Isto e dizer-lhes que, enquanto for ele
– Tá achando que eu posso me jogar o que faria se lhe crescessem duas que te mato se levas essa saia, se te po todo. Arranjar uma arma, senhor a pagar as contas, é ele quem manda.
das pedras qualquer dia desses? rosas num canteiro de enxovia? Olhe pintas desse jeito, se não apareces em guarda, mostrá-la amiúde pelo bairro, Não houve melhor coisa que lhes
– Qualquer um pode. Não foi o que eu em volta. Linha de Sintra, anos 90: casa antes das dez da noite. Ele nunca sacá-la ao balcão ao terceiro café tra- pudesse dizer, senhor guarda. É isto
quis dizer. marquises fechadas sem autoriza- lhes tocou num fio de cabelo, senhor çado a aguardente, apontar à cara do que um homem pode fazer, senhor
– E o que quis dizer? ção camarária, gordas em roupa guarda. É o que resta a um homem, primeiro engraçado que se atreva, que guarda, sem lhes tocar, nem num fio de
“
– Só quis ser gentil. interior a fumar à janela com filhos dizer estas coisas. Dizer estas coisas cabelo, erguendo as grades mais fortes
– Obrigado, Helena. ranhosos ao colo, cheiro a doença, e a calibre .25, encostada ao tórax em do medo. Até que, senhor guarda, ele
Ela apenas sorriu de leve, ficou de pé e a sífilis apanhada no Ultramar, suor vez do coração, por baixo do casaco de deixa de pagar as contas e de mandar.
saiu andando. Os postes já estavam ace- de transportes públicos, comida couro. Está a ver onde fica? No lugar Nenhuma família é perfeita,
sos, jogando seu ocre no fim da tarde. embalada trazida para casa em sacos do coração, uma semiautomática Ele nunca lhes tocou senhor guarda. Ele nunca tocou nas
– Só me diz mais uma coisa: de onde eu de papel, frango assado em frente à encaixada no coldre do peito onde, num fio de cabelo, filhas. Consola-me saber que as edu-
conheço você? televisão a ver o Carlos Cruz, a Bota em outros tempos, houve sangue a ser quei bem porque uma pessoa vai para
A pergunta se foi com a brisa morna. Botilde, a conferir os números da bombeado, balas de açúcar e corantes, senhor guarda. É o que velha. E num lar ou no diabo, elas vão
Saltitando, a moça desviou de dois Casa Cheia e aquele concurso em que um sonho escondido, talvez. resta a um homem, dizer saber cuidar do pai como ele soube
skatistas; o terceiro passo já foi eles se enfiavam todos num twingo. Em miúdas não lhe largavam as cuidar delas: deixar-lhe a arma sobre
dentro de uma nuvem perolada de Quatro canais e uma hipoteca, o car- cavalitas; o pior é que crescem e vem estas coisas. Dizer estas a cabeceira a bordejar-lhe as têm-
salitre. E saiu flanando, confundida ro que só dá problemas. Mas temos o medo. Nem tinham grandes mamas, coisas e a calibre .25, poras e duas gretas de luz nos estores
com gaivotas e maçaricos, rumo à carro, senhor guarda. mas tinham atitude, uma cara a para que não se confunda no escuro a
curva do mundo. J O que um pai pode dizer a duas rebentar de sardas, formas vincadas, encostada ao tórax em mão trémula do torturador.J
filhas bonitas que crescem num am- um jeito de andar que punha os tipos vez do coração, por baixo
* Escritor brasileiro, inédito em Portugal, biente destes? Se te apanho a fumar, do café, agarrados ao cigarro e ao
autor dos livros Trilogia do Asfalto ou mato-te. Pois, está claro. O que é que subsídio de desemprego, a pensar em
do casaco de couro. Está * Escritora portuguesa, Prémio Revelação
APE 2004, autor de Mustang Branco ou Na
Eram Olhos Enfeitados de Sol. um homem no seu juízo perfeito, que agarrar a pila quando elas passavam a ver onde fica? Memória dos Rouxinóis.
1o * tema CONTOS DE VERÃO jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
A Mulher-bala
filha. O público não reage. Para
quem não conhece o mecanismo
do canhão, a situação não
parece tão dramática, mas nós,
os do circo, sabemos que a Aura
não pode simplesmente sair
pelo seu próprio pé depois do
estoiro e repetir a coreografia.
Porque uma vez disparado
o mecanismo, se o êmbolo
de ferro a apanha a meio, o
mais certo é a morte. O maior
risco deste número reside
precisamente na entrada e no
disparo. E hoje há um problema
qualquer com a máquina, o
gatilho soltou-se. Eu e o meu
marido, que está nos bastidores
vestido de palhaço, preparado
para o número seguinte, quase
Cláudia Lucas Chéu morremos de expectativa. Não
A
sou capaz de dizer nada ao
microfone, estou paralisada.
O meu filho Leonardo, arranca-
ura entra sempre -me o micro das mãos e fala à
com a perna direita plateia para não deixar cair a
dentro do canhão. O cano cena.
ornamentado com trovões laranja – Vivemos um dos momentos
fluorescente tem treze metros de mais dramáticos do show,
comprimento. Contudo, e graças senhoras e senhores, meninos e
à técnica da artista e da máquina, meninas, sustenham a respiração.
nunca se deu o infortúnio. O Aguardemos pela mulher-bala. –
mecanismo demorou mais de anuncia o meu filho, sem vestígio
dois anos a construir. Foram de pavor. Passaram apenas uns
investidas bastantes horas para 2 minutos, embora me pareça
que a vida humana não fosse uma eternidade à apneia. O meu
posta em perigo. Na lateral do marido vestido de palhaço entra
enorme tubo, ocupando uns na arena e volta a engatilhar o
“
bons cinco metros, pode ler-se canhão já em chamas. Ouve-
“Aura” – o seu nome de circo. O se um novo disparo e vejo, por
que fora registado em criança não económicas da técnica. Aura é ilusionista, mas no intervalo fim, Aura a sair disparada – sã e
soava bem quando anunciado tem alargado tanto nas ancas do nosso show também vende salva e redonda. É a primeira vez
ao microfone na tenda. Por isso, que, não tarda, deixará de caber pipocas ou tira fotografias aos que assisto ao número completo
rebatizámo-la. De Aurélia passou
Não entendo, tenho na calha e teremos de construir espetadores. Todos fazemos da mulher-bala. Aterra alguns
a Aura: a mulher-bala. medo. As mães outra máquina. Como calculam, várias coisas, o que nos calhar metros à frente do canhão; a
Há muito que deixei de ser
domadora de elefantes, devido
nasceram para o medo estas coisas levam tempo e
dinheiro, e o circo há muito que
para o dia. O meu marido, por
exemplo, é o palhaço principal
cútis que está visível, a pele do
rosto e das mãos – já que o resto
a um acidente com um dos porque os filhos não não vive de receitas auspiciosas. e o diretor da companhia, e se encontra coberto pelo fato e
enormes mamíferos que me
lesionou severamente a espinha.
são de ferro. – E agora, peço a vossa
máxima atenção – rogo, através
também ocupa muitas vezes o
lugar na bilheteira a vender as
pelas botas de cano alto prateados
–, encontra-se completamente
Desde então, tinha a Aurélia Temo pela sua saúde do microfone .– Cinco, quatro, entradas. cinzenta. Não parece queimada ou
ainda o rabo acolchoado por e também pelas três, dois, um. Fogo! Aura entra sempre com suja, mas a sua pele está antracite
fraldas e já sonhava em ser bala, Viro a cara e tapo os olhos a perna direita no canhão – e mate como uma bola de
circulo pela arena sentada. questões económicas com as duas mãos. Custa-me fiz-lhe prometer que o faria canhão. Vejo-a enrolar-se sobre
Fiquei agarrada a uma cadeira, da técnica ver a minha filha ser cuspida sempre assim. A sequência da si própria, tal qual um bicho-
mas nem por isso perdi o gáudio pelo canhão em chamas. mulher-bala dura 3 minutos e de-conta, e rebola até à minha
de viver. Costumo dizer que, Oiço o coro exclamativo da 21 segundos, o disparo demora cadeira de rodas. Pára junto aos
desde o acidente, a vida me gestação alienígena, já teríamos audiência, o som não deixa apenas 2 segundos. Há que criar meus pés inertes. A minha filha
corre sobre rodas; literalmente. tido alguma revelação vinda da de me impressionar, por mais tensão através da coreografia transformou-se numa enorme
Há vantagens; por exemplo, sua barriga. Preocupa-me que vezes que o tenha ouvido. É que antes do salto. O circo vive da bola. – Aura – chamo-a num
nunca me canso e a minha voz a minha filha, além de esférica, eu, apesar de ser uma pessoa teatralidade exagerada. Nós sussurro. Não responde. Insisto –
ao microfone da grande tenda esteja com um aspeto doente do circo, tenho um coração vivemos para isso. Mas hoje, Aura! –, e nada. Percebo, enfim,
soa a fresco, dizem-me que – a pele macilenta, o cabelo igualzinho ao das outras mães. depois do som do disparo do que a minha menina não era um
“
parece despreocupada. A minha quebradiço e os olhos azulados na Por isso, prefiro não ver. caso de obesidade gradual. Aura
única preocupação é a Aura. zona que se quer branca. Depois do salto, destapo nunca quis ser uma rapariga,
Nos últimos tempos tem ganho – Tens de ir ao médico. Há os olhos e assisto ao resto ambicionava ser uma coisa.
peso – as suas ancas estão cada alguma coisa no teu corpo que do número. A minha filha – Hélas! – escapou-
vez mais largas e arredondadas. não está bem. volta a trepar para cima do se-me a exclamação de
O diâmetro crescente da minha – Sinto-me formidável, mãe. canhão e agradece os aplausos A sequência da ascendência francesa. Não
filha inquieta-me. Não se entende
que a forma corpórea de uma
Não há motivo para alarme.
Os medos desapareceram,
esfuziantes da plateia. O som
das palmas assemelha-se ao
mulher-bala dura 3 sei que misteriosos desígnios
metamorfosearam Aura numa
rapariga de vinte e dois anos de domestiquei-os. Não tenho estalar de batatas ao lume numa minutos e 21 segundos, bala, ou melhor, numa bola.
idade, cuja atividade desportiva medo de nada. Sinto-me forte enorme frigideira. O maillot o disparo demora Sei que o meu coração de mãe
é diária e intensa, esteja de como o aço – diz a minha filha completo prateado e coleante se apaziguou. A minha menina
dia para dia mais avantajada. enquanto coloca o capacete e revela as formas cada vez apenas 2 segundos. não correria mais perigos,
Desengane-se quem estiver os óculos de proteção antes de mais generosas de Aura. Fá-la Há que criar tensão finalmente adequada ao seu
a pensar em gravidez – foi a entrar na arena. parecer ainda mais avantajada. próprio desejo e à educação de
primeira coisa que me ocorreu Não entendo, tenho medo. Não há antecedentes de gordos através da coreografia família – a munição ideal.J
–, calculo que a vós também. As mães nasceram para o na família, que saibamos; somos antes do salto. O circo
Todavia, há três temporadas que medo porque os filhos não todos magros e do circo. Eu, * Escritora e dramaturga portuguesa,
não pára de crescer em largura, são de ferro. Temo pela sua Aura, o meu marido e o nosso vive da teatralidade autora do romance Aqueles que Vão
por isso, a não ser que fosse uma saúde e também pelas questões filho mais novo – o Leonardo exagerada Morrer.
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt CONTOS DE VERÃO
tema * 11
estava casada e com filhos.
-C
tá-la por um conjunto de nomes – A El…
de que preferia não se lembrar. Agora era o braço todo que
Devia ter bebido. Era daqueles tremia e perdia a força. Já nem
oitado – murmurou, por quem ela não conseguira uma palavra lhe saía como deve
na antiga sala onde fazer nada. Quando a criança ser, quando reparou que toda a
dava explicações. nasce torta, não há maneira de a turma se ria dela.
O médico já lhe tinha dito que endireitar. – A…
não devia ficar tanto tempo a – Quando a criança nasce Mas já não havia nada para
pensar em coisas para as quais torta, não há maneira de a endi- dizer. Sentiu que não conseguia
não havia remédio. Podia ser reitar – proferiu, alto e bom som. chegar a conclusão nenhuma,
mau para o coração. Era melhor – Estás outra vez com esse E lembrava-se de como, esquecer uma vida inteira e não sabia se fizera bem ou mal
levantar-se e caminhar, varrer disparate do Barros – respondeu de facto, os que haviam tido aquelas crianças todas que pre- em ter voltado à escola, ter ido
o chão. Fazer qualquer coisa. o marido. – Já te disse que nin- boas notas tinham conseguido cisavam dela. dar uma última aula quando
– Outra vez a mesma histó- guém reparou. É um bêbedo. empregos decentes. O Norberto – Vamos pegar no lápis – tudo aquilo acontecera há tanto
ria? Toda a gente tinha reparado. era engenheiro, a Isabel montara começou – e escrever em cima: tempo. J
Deitado no sofá, o marido de Toda a gente se tinha rido dela. consultório. Di-ta-do.
Dona Maria da Conceição já nem Ela, que fizera tudo por eles! "Bati na Cristiana por não – Como? – perguntou a * Escritor português, autor do romance
escutava o que ela dizia. Estava a Quando o corpo ficava saber indicar o maior osso do Liliana, que tinha emigrado, Gente Séria.
ler o jornal. corpo humano, é verdade. Mas
“
– Parece que o estou a ouvir não foi por mal. Queria que ela
chorar. aprendesse."
E lá estava o João Belmiro, Então pensava como seria
pedindo-lhe que parasse, de justo que lhe fizessem uma festa
cada vez que a régua lhe caía na Quando o corpo ficava a agradecer os serviços presta-
mão.
O ranho a escorrer pelo nariz.
tenso e sentia a mão dos ao longo de quatro décadas
de ensino. Parecia-lhe incom-
Era uma reguada por cada tremer, era atingida preensível que ninguém tomasse
erro no ditado. pelo remorso de ter a iniciativa. Ninguém como ela
Depois via o outro, o tinha conseguido salvar tanta Vem por este meio o Centro de Neurociências e Biologia ao abrigo
Armindo, que tinha a mania forçado tantas vezes as gente da pobreza e da ignorân-
do Ao abrigo do Decreto n.º 57/2016, de 29 de agosto, alterado
de saltar pela janela quando ela crianças a aprenderem cia. A ignorância! A ignorância
pela lei 57/2017, publicitar a abertura de 1 posição para investiga-
avançava para o pôr na ordem. fazia tão mal às pessoas. E quan-
Que raiva! Em quatro anos não dando-lhes com a testa do deu por si já tinha atraves- dor doutorado (m/f).
lhe conseguira ensinar nada. no quadro. “Mas não sado a ponte e estava na estrada
Local de trabalho: Centro de Neurociências e Biologia Celular, Pólo
E o pai do Renato, quando foi à para a antiga escola. Lá estava
escola para lhe bater, a ela, que havia outra maneira”, o campo que via da janela en- 1, Rua Larga, Edifício da Faculdade de Medicina.
fazia tudo para a criança ter um pensava quanto dava as aulas, a casa com A remuneração mensal a atribuir é a prevista nível 33 da tabela
futuro. Desse não conseguia o telhado abatido e o cão que
sentir pena. E o resultado estava ladrava o dia todo. E o carro. Lá remuneratória única, aprovada pela Portaria n.º 1553-C/2008, 31
à vista: andava pelos cafés a estava o carro que tinha usado de dezembro, sendo de 2.128,34 Euros ilíquidos.
deixar calotes e a beber. Já o pai tenso e sentia a mão tremer, era até não poder mesmo conti-
Os candidatos apresentam os seus requerimentos e documentos
era igual. atingida pelo remorso de ter nuar a dar aulas e ter entrado
Mas tudo isso acabara há forçado tantas vezes as crianças na reforma, parado em frente comprovativos, por carta registada dirigida ao Presidente do Júri
muito. a aprenderem dando-lhes com a ao portão. Depois as escadas, a indicando a referencia do anuncio para a morada: Centro de Neuro-
– Olha o coração – disse o testa no quadro. funcionária com a sineta a dar
marido quando percebeu que ela "Mas não havia outra manei- ordens para toda a gente entrar,
ciências e Biologia Celular, Departamento de Recursos Humanos,
estava a apertar os punhos. ra", pensava. a porta que chiava. Rua Larga, FMUC, 1.º Piso, Universidade de Coimbra, 3004-504
– Se eu pudesse! E depois: E Dona Maria da Conceição Coimbra, Portugal.
– Se pudesses estar quieta a "Eram só crianças". deu por si numa sala a abarro-
ler é que fazias bem. Levantou-se e saiu, tal como tar de crianças, tantas que não
E um minuto depois: o médico a tinha aconselhado cabiam sentadas, nem de pé, AS DEMAIS CONDIÇÕES CONTRATUAIS PODEM
– O que lá vai, lá vai. a fazer quando não parava de e muitas estavam penduradas SER CONSULTADAS EM:
Na cabeça de Dona Maria cismar. na janela e ela só lhes via as
• http://www.eracareers.pt/opportunities/index.aspx?task=show
da Conceição, continuavam a "Talvez tenha exagerado. cabeças.
AnuncioOportunities&jobId=102099&lang=pt&idc=1
desfilar as centenas de alunos Uma vez ou outra." Ao ver tudo isto, não conse-
que teve ao longo de quarenta E logo a seguir: guiu deixar de se perguntar se • http://www.eracareers.pt/opportunities/index.aspx?task=show
anos de ensino primário: o Luís, "Eles precisavam era de ainda teria força para ensinar AnuncioOportunities&jobId=102409&lang=pt&idc=1
o Armandino, a Justina, a Carla, aprender. Os que não apren- tanta gente. Lembrou-se do • http://www.eracareers.pt/opportunities/index.aspx?task=show
um gordo a quem nunca preci- deram continuaram pobres e marido no sofá, com o jornal AnuncioOportunities&jobId=102414&lang=pt&idc=1
sou de bater. Muitas das caras já bêbedos. É mesmo assim. Não há ao alto, aconselhando-a a ter
se misturavam com os nomes. outra maneira." calma. Mas como? Não podia
12 * tema CONTOS DE VERÃO jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
Filhotes do exagero
adulterações graves em sua
composição. Ela é suspeita
de ter contratado a morte de
duas fiscais da Agência, ambas
encontradas com severas
deformações glúteas e sinais
de envenenamento. Sua vasta
clientela, incluído possivelmente
o dr. Bumbum, era inteira
formada por indivíduos sem
habilitação para o exercício da
sofrimento das vítimas. medicina.
O episódio, em seu exagero,
não é isolado. No Brasil de
hoje, a norma é a desmedida.
Como chegamos a tal ponto?
Eis a pergunta sem resposta.
Ela ecoa dentro de todos nós e
desestabiliza-nos ainda mais que
as crises política e económica,
pois evidencia um país em crise
Rodrigo Lacerda com sua humanidade.
M
Ora, quando a razão
enlouquece, subverter a
loucura pode ser uma opção
esmo aqueles que interessante. No tranco, as
acompanham as notícias coisas podem voltar ao lugar.
do Brasil, terra orgulhosa de Proponho, assim, usarmos
suas bizarrices, devem ter se o veneno como remédio,
espantado com o caso do dr. amplificando até o ridículo, com CONEXÃO ROBALINHO
Bumbum, o pop star da medicina nossa própria fantasmagoria Victor Hugo Robalinho, de 37 anos,
estética, preso recentemente. delirante, a extravagância do também foragido, é o pioneiro
Ativo em todas as redes sociais, noticiário nacional. da caralhoplastia entre nós. O
ele chegava a ter mais de 600 mil criminoso mercado do gigantismo
seguidores somente no Instagram, peniano não existiria sem ele.
onde enaltecia seus talentos Conhecido como “Professor”, hoje
como escultor de corpos. Quando parece estar aposentado, mas é
exibia o “antes” e o “depois” das réu em inúmeras queixas-crime
intervenções, chegava a ter picos na justiça e suspeita-se que ainda
de dez mil curtidas. oriente interessados no lucrativo
Sua especialidade – como ramo de negócios. Segundo boatos
era fatal que fosse num país não confirmados, foi o mestre do dr.
machista, sim, mas sobretudo Bumbum no início de sua carreira.
escapista e obcecado pelas A aparência tímida e o ar
aparências (a física e todas circunspecto escondem um
as outras) – era o aumento de homem insensível ao sofrimento
coxas e glúteos femininos. Ele que espalhou por todo o território
prometia concretizar, na vida de nacional. Há relatos de pacientes
centenas de mulheres, o ideal de com necrose peniana e que, após a
beleza difundido pelas estrelas inevitável amputação, se suicidaram,
do funk carioca, entre as quais PROCURA-SE A “RAINHA deixando famílias desamparadas;
se destaca (como símbolo de DO METACRIL” outros foram condenados por
“
empoderamento feminino!?) a Conheçam Hannah Bering, homicídio culposo, após provocarem
mundialmente famosa Anita. silhueta e, mais grave ainda, à 50 anos, identificada como a hemorragias internas nas parceiras.
Os serviços do dr. Bumbum formação de nódulos, infeções, “Rainha do Metacril”. Trata-se Sua pseudo-clínica, desbaratada em
também estendiam-se aos necroses ou até mesmo embolias da maior revendedora ilegal de 2015 numa ação conjunta da Polícia
homens. O procedimento Estes são os fatos, pulmonares. polimetilmetacrilato no Brasil. A Federal e da equipe do Fantástico,
“estético” a eles oferecido O dr. Bumbum sequer possuía polícia trabalha com a hipótese funcionava nas dependências de
era – de novo, fatalmente – a levantados pela polícia registo ativo no Conselho de de que tenha deixado o país após uma clínica de beleza, no município
bioplastia peniana, que aumenta e divulgados pelos Medicina do Rio de Janeiro, e a prisão do dr. Bumbum, com fluminense de Queimados. Imagens
o comprimento e o diâmetro atendia sem condições mínimas destino a Portugal. da época mostram, emoldurados
do órgão sexual masculino. A
media, e neles tudo num apartamento na Barra da De origem dinamarquesa, numa parede, ao lado de falsos
existência efetiva dessa clientela, parece excessivo: os Tijuca, ajudado pela mãe e pela Hannah B. naturalizou-se diplomas médicos, os seguintes
porém, não é comprovada. Desde namorada, também presas. O brasileira em 1993. Foi modelo versos do hino local:
que o escândalo veio a público,
riscos à saúde em que ele tinha, além dos 600 mil famosa até 1998, quando uma
várias mulheres apresentaram- nome da estética, seguidores, eram processos na lipoescultura malsucedida pôs Nosso nome tem história
se com novas e velhas denúncias
contra o médico; ainda nenhum
a inconsequência justiça, relativos a má prática
da medicina, e passagens na
fim a sua carreira. Depois disso,
e durante vinte anos, viveu no
De escravos, leprosos, imperador.
Não importa sua origem,
homem fez o mesmo. perversa dos acusados, polícia, por homicídio, porte anonimato. Acredita-se que Hoje tem o seu valor!
As bundas e coxas de suas a ineficácia ou a de arma, resistência à prisão tenha estabelecido os primeiros Queimadenses, eia avante!
clientes eram esculpidas com etc. Apesar disso tudo, suas contactos no mercado negro da
uma substância chamada irresponsabilidade atividades somente foram medicina estética no início dos Informações sobre o paradeiro
polimetilmetacrilato, conhecida das instituições, interrompidas após a morte anos 2000. desses criminosos podem ser for-
como Metacril. Ela é composta trágica de uma paciente. Sua audácia criminosa necidas via Whatsapp, Facebook,
por microesferas que, uma o desnecessário Estes são os fatos, levantados impressiona. O produto por o aplicativo Disque-Denúncia do
vez injetadas em determinada sofrimento das vítimas pela polícia e divulgados ela comercializado vinha de Rio de Janeiro e o site Portal dos
região do corpo, amalgamam- pelos media, e neles tudo contrabando e era pago com rins Procurados-BR. Oferece-se uma
se às gorduras e aos tecidos parece excessivo: os riscos à humanos, cuja procedência a recompensa equivalente
naturais. Deve ser aplicada saúde em nome da estética, polícia ainda desconhece. Além a € 1.000. J
somente por profissionais possível retirá-la do organismo, a inconsequência perversa disso, o Metacril de Hannah
idóneos, em clínicas e hospitais, havendo o risco de não se fixar dos acusados, a ineficácia B. está reprovado pela Agência * Escritor e editor brasileiro, Prémio Jabuti,
em pequenas doses e para no ponto pretendido, levando ou a irresponsabilidade das Nacional de Vigilância Sanitária autor de Vista do Rio, Outra vida ou
casos específicos, pois não é a indesejadas alterações na instituições, o desnecessário desde 2012, quando se detetaram Reserva Natural.
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt CONTOS DE VERÃO
tema * 13
ouvia eram seus: a respiração, Tinha crescido a apascentar
Opar
a casca de sunu esfregando o gado e a cuidar das crias.
chão, o roçagar dos tecidos na Cultivava uma horta e passava
pele e o suave marulhar da água horas a dar de beber às plantas.
nas paredes da cabaça. Naquela Às vezes, as secas e as pragas
altura, não havia sequer uma de insetos levavam tudo.
brisa ou o mais leve movimento Preferia tratar dos animais.
do ar. Uma imensa quietude Tinha sete irmãos e todos
abraçava-o. O Sahel é a frigideira faziam a mesma coisa. A mãe
do mundo. tinha morrido de parto e o pai
arranjara outra companheira,
Opar. Saltitava de estrela em O homem partira do campo uma rapariga ainda jovem.
Antes de falecer, o pai pediu-lhe estrela, como se os caminhos do de Filingué e, caso se voltasse, Um dia, a moça fugiu. O pai
que fosse a Opar e descreveu- céu fossem iguais aos da Terra. mal o veria agora. Há muito entristeceu-se e, melancólico,
II
lhe a cidade. Estavam no que deixara de ouvir as vozes passava os seus dias diante
campo havia quase dois anos, das mulheres. Naquele lugar, de uma pequena fogueira a
esperando que o velho morresse. o silêncio só se quebrava com alimentá-la de galhos secos. Os
O progenitor falou-lhe de cada ligeiros rumores ou o choro filhos davam-lhe uma bebida
recanto da povoação, mas inquieto de uma criança. O feita de um tubérculo que as
garantiu-lhe que ninguém campo já não oferecia mais do mulheres mastigavam para o
chegava até ela fazendo uma A madrugada alaranjava-se. que alguma sombra e água. fermentarem com a sua saliva.
António Tavares simples viagem. Dizia-lhe
que para passar a cidadela era
As sandálias restolhavam nas Igualava-se, na sua morte, a uma
batalha após a ira e os disparos.
pedras miudinhas do carreiro. O velho tinha visões
I
preciso ter dado o número O homem nunca olhava para As organizações de ajuda assombrosas e nelas surgia
certo de passos e ter seguido o trás. Tinha um pano enrolado tinham partido e o lugar estava majestática a cidade de Opar.
caminho indicado, ter parado na cabeça, cujas pontas lhe moribundo. Era sempre assim. Os seus olhos, esgarabulhados,
o tempo imprescindível nos caíam sobre as costas e o peito. O brilhavam na noite. Ele
sítios corretos, ter feito o que era corpo balançava-se para diante Não é possível dizer em que descrevia como rodeava o lago
devido e encontrado as pessoas, como a proa de um barco e a pensava o homem. Olhando o seu Chade e como seguia para
No Níger, um homem partiu coisas e animais conformes, cabeça sincopava o movimento rosto nada transparecia. Diz-se Norte em direção a Nguigmi;
de um campo de refugiados de aqueles e não outros. Só assim as cadenciado das pernas, uma após que quando se segue um trilho depois, caminhava na crista
Filingué a caminho de Opar. portas de Opar se lhe abririam. outra, passo à frente de passo. pela primeira vez não é possível das dunas, soltando no andar a
Levava uma pequena cabaça com Os olhos, serenos, divisavam o ter qualquer pensamento, porque areia flamejante. Até que surgia
água e uma trouxa com panos já Num campo de refugiados horizonte sem um lampejo. a cabeça está a fixar o percurso. Opar.
velhos. Calçava sandálias feitas morre-se de tudo, mesmo do que Inscrevem-se os passos na memó-
a partir da casca de uma árvore não se deve. A morte é uma boa Depois de assim seguir, dir-se-ia ria como se os pés transmitissem Depois de ter parado por
chamada sunu, da qual fizera desculpa para se deixar de viver. que o homem tinha encontrado todos os sinais que vão sentindo. instantes, Madaoua recolheu
também os fios que as seguravam O pai tinha morrido desidratado, o seu andar. Este não se faz Um dia, a cabeça dirá aos pés os seus haveres e retomou o
aos tornozelos. Pendurado às seco como um galho de um apenas do curso que se toma, como e por onde seguir. Assim se caminho. Circundou vários
costas, um pedaço de casca, arbusto sedento. Parecia ter mas também da pressa com que fazem os caminhos. rochedos e regressou ao
ainda verde, serviria para ir mirrado dentro de um corpo que se vai, do compasso com que se plaino aberto, pontuado com
“
refazendo o calçado ou para tecer se encolhera até não poder mais. avança. É uma envolvência do tufos de stipa e astrágalos que
outros fios. Assim faria, à medida Era como um fio balouçando ao caminhante com a terra e com a começavam a vicejar com as
que caminhava. vento. Tinha os olhos cavados e sua própria sombra. primeiras chuvas. Pensou que
III
andar e os pedaços de prata
do caminho o magoassem.
O deslumbramento de Opar
superaria toda a sua dor. Deixou
de olhar os pés e fixou-se numa
nuvem de poeira ao longe. Tinha
O homem chamava-se muita distância para vencer.
Madaoua. Era assim porque
tinha nascido numa terra Milhares de refugiados
com este nome, uma pequena atravessam o Níger para
aldeia no sul do Níger, perto da chegarem ao Mediterrâneo.
nascente do rio Yo. O caudal Milhares morrem no deserto.
corre para norte e desagua no Em África, a distância
lago Chade. Ter um nome é ser deixou de ser sonho para ser
o que ele determina. Se se tem o morte. J
nome de uma árvore ou de um
animal, é-se cada uma dessas * Escritor português, Prémio
coisas. LeYa, autor de O Coro dos
Defuntos e Todos os Dias
Madaoua levava a aldeia Morrem Deuses.
consigo. Era sereno e humilde.
14 * tema CONTOS DE VERÃO jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
A
as razões da existência do mundo.
Tanto Wilhem como Salomon
sabiam que provavelmente
s estrelas estavam estra- acabariam mortos às mãos dos
nhamente vivas para uma nazis, não existindo mãos piedosas
noite de Inverno. Brilhavam como que os carregassem para um
se o céu fosse alemão e até os astros túmulo. Bastava serem apanhados
reconhecessem nos invasores nazis e levados para os campos de
os donos da sua luz difusa. Ao concentração como acontecera
longo dos canais, dois homens ca- com tantos judeus holandeses
minhavam furtivamente nas ruas desde o último Verão. A sua
sombrias de Amesterdão, tentando sepultura seria uma vala comum
ignorar as estrelas, esforçando-se ou o fumo insondável de um
por acreditar na força da escuri- crematório. Os seus corpos fundir-
dão. Andavam com passos largos se-iam, dissolvendo-se ao vento,
e brasas acesas nos olhos, para numa queda infinita. Desviando
tentar ver mais longe, para além do os pensamentos desse desfecho,
fundo das ruas. Alguma espe- concentravam-se na tarefa de
rança persistia viva nas passadas salvar os livros. Restringindo
apressadas, mesmo que a ansieda- o mundo àquela biblioteca,
de os invadisse da cabeça aos pés. tornavam-se imortais.
Para aqueles dois homens, o corpo Eram cinco da manhã quando
tornara-se um elemento estranho, finalmente deram por terminada a
coberto de suor, exausto, mas ex- tarefa. Passariam mais umas horas
citado como um animal em perigo. na biblioteca e de manhã fariam o
Ambos eram judeus. Os seus rostos funeral dos livros. Com sorte, con-
não revelavam a raça nem traziam seguiriam escapar, simulando uma
as estrelas de David ao peito como austera cerimónia. Era perigoso,
era obrigatório. sobretudo se alguma autoridade
Wilhem e Salomon, assim quisesse abrir os caixões.
se chamavam, ainda não se Cada um dos homens tentou
encontravam suficientemente afastar os sinais da angústia como
destruídos para sentirem através podia, para não comprometer o seu
“
do medo o fim de todo o futuro. descanso. Salomom encostou-se
Procuravam, no entanto, ser à parede e imediatamente ador-
cuidadosos. Viraram-se várias palavras murmuradas entre os dois distinguir os elementos de perigo e meceu, começando a ressonar.
vezes ao longo do percurso homens - pareciam captar a luz empurrá-los para longe. Tarefa que Wilhem sentou-se. À sua frente,
para ver se não vinha ninguém
no seu encalço. Caso fossem
remanescente dos canais, trazendo
uma perigosa cintilação aos seus
Quem sabe se não no momento era quase impossível.
Como num pesadelo, continuava
viu nitidamente o rosto da mulher,
o olhar angustiado de quem vive
interpelados, haviam decidido movimentos, fazendo ecoar os seus conseguiria deixar a ver o vulto dos soldados, a fechada à espera de que a venham
dizer aos soldados alemães, que sussurros. algum alemão com intensidade terrível da fogueira buscar. Os dias iguais, como se
eram portugueses. Em parte era Tinham saído das suas casas e a luz de um candeeiro de rua fosse sempre o mesmo. Quanto
verdade. Os seus antepassados para salvar da fogueira os livros um olho negro ou com que cortava a zona do passeio mais tempo iria ela sobreviver?
tinham chegado a Amesterdão mais preciosos da biblioteca o maxilar desfeito rigorosamente a meio. Para desvanecer essas ideias,
em finais do século XVI para da sinagoga portuguesa de Esperaram mais um bocado, levantou-se e retirou da estante
escapar à fúria da Inquisição. Amesterdão. O fogo trabalhava antes de cair morto. talvez cinco minutos, talvez dez, um dos exemplares que não seriam
Apesar da distância de séculos, com afinco nos templos judaicos, Era preferível a ser depois subiram cuidadosamente ao resgatados. De dentro da encader-
continuavam a falar a língua dos desde há anos que as labaredas andar de cima para se dedicarem nação caiu um monte de folhas que
seus antepassados nos rituais destruíam livros e objectos de deportado para um ao trabalho. Dois caixões se espalhou no chão. Com um dedo
litúrgicos e faziam os registos da culto ao serviço dos nazis. Tanto campo de concentração vazios estavam abertos na zona aflorou o frágil relevo das letras
Sinagoga ainda em Português. Wilhem como Salomon não faziam central da biblioteca. A ideia cheias de floreados e pelas primei-
Agora precisavam de regressar ideia de qual seria a sua reacção viera de Salomon, responsável ras palavras que decifrou, percebeu
à Pátria de origem para escapar se encontrassem um contingente pelos serviços fúnebres, e fora que iria explorar os meandros de
do extermínio. Aguardavam há das SS ou da polícia holandesa. via uma luz nas janelas . Até o vento imediatamente aceite por Wilhem, um espírito atormentado. Sentou-
meses que o consulado português Salomon elaborara o vago plano de acalmara. Do outro lado do passeio, secretário da sinagoga. Era se numa das cadeiras e, em vez de
em Bruxelas reconhecesse a se atirar a eles de punhos cerrados, junto a uma fogueira, três sentinelas brilhante! Iriam escolher os livros dormir como o amigo, começou a
sua nacionalidade. Apenas o que faria com que o alvejassem e alemãs da Wehrmacht, com as suas mais preciosos e metê-los em duas ler. J
por essa razão, não tinham acabasse tudo de uma vez. Quem metralhadoras, batiam com os pés urnas. Depois, transportá-los-iam
sido deportados. Os apelidos sabe se não conseguiria deixar no chão defendendo-se do frio. para um dos jazigos do cemitério. * Escritora portuguesa, Prémio Fernando
de Wilhem - Mendes da Costa algum alemão com um olho negro Wilhem e Salomon desapareceram No dia seguinte, simular-se-iam Namora, autora de A Noite não É Eterna ou
- e de Salomon – Coutinho - ou com o maxilar desfeito antes por entre as sombras, aspirando o os funerais dos livros numa carreta Salvação.
J
ORGANIZAÇÃO
1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt
* 15
MECENAS
Alexandre Cabral
na órbita de irradiação de Abel
Salazar naquele mesmo ano
de 1937. É um ano de extrema
importância nacional e
e
convicção) da iminência de
António Pedro PitA Mocidade e no Clube Radiofónico uma viragem civilizacional
de Portugal. superadora das limitações
O conhecimento das redes de da sociedade capitalista e no
sociabilidades culturais desse meio de muitas contradições
período lisboeta talvez ainda não e polémicas, estão a inventar
permita avaliar com precisão processos e meios para fazer
o significado das trajetórias participar o pensamento e as
de figuras muito presentes nas artes nessa luta decisiva.
páginas de Memórias de um Em Portugal, nesse mesmo
resistente (MR), texto referencial de 1937, a revista Cadernos da
da sua obra. O Café Chiado, Juventude constitui um ensaio
“a academia laica do tempo” de afirmação polifónica de uma
(MR, p. 48) era o ponto de nova consciência intelectual,
cruzamento de jovens como organizada em torno do eixo
Em 1973 (12 de abril), Leonel Neves, Fernando Augusto, marxista. E Sol Nascente é uma
numa pequena nota quase José Fontinhas (o futuro poeta outra onda da mesma maré.
insignificante, a propósito do Eugénio de Andrade), Sidónio A apreciação da estreia
intenso labor camiliano de Muralha, Nascimento Rodrigues de Alexandre Cabral traduz
Alexandre Cabral (AC), o jornal e Mário Mota (“o Marinetti cá o desencontro de uma nova
República perguntava: “Terá o destas aldeias saloias”, MR, 49). racionalidade já organizada e
investigador e ensaísta matado Mas não custa imaginar que uma literatura que documenta
o ficcionista das Histórias do se trata de percursos juvenis, o tateio de caminhos por uma
Zaire e de O Sol Nascerá um que prolongam um tanto as personalidade à descoberta de
Dia? Mais de uma década de autodescobertas da adolescência si mesma. O que então polariza
imersão no universo camiliano enquanto afirmam princípios de o esforço do jovem publicista é a
(desde As Novelas de Camilo, vontade adulta. ambição adolescente de tornar
1ª ed.: 1961 e As polémicas de A apreciação de Sol a Literatura e a Arte meios de
Camilo, 4 volumes: 1962-1979), Nascente compreende-se. O desenvolvimento da mentalidade
justificava a pergunta. Todavia, periódico portuense, mantido da juventude portuguesa,
o seu percurso estava longe de pela dedicação de um grupo como o editorial de A Voz da
circunscrever-se a essa longa e doutrinariamente heterogéneo Mocidade claramente enuncia.
reafirmada dedicação camiliana sintonizado numa plataforma Aí pode ler-se: “Conservar-nos-
– a dedicação de um especialista antifascista, tinha sido fundado emos completamente alheios à
e não a idolatria de um fiel, como política, sendo só o nosso fim e
“
fez questão de sublinhar (em o nosso grande desejo servir de
entrevista concedida à revista incitamento aos rapazes pelo
Ler, nº 8, outono. 1989). amor da literatura e mostrar
Alexandre Cabral "Experiência autobiográfica alimenta a ficção" aos Mestres até onde chega o
ENTRE A ADOLESCÊNCIA Ainda adolescente, nosso poder intelectual”. Por
E A JUVENTUDE fim: “Contamos portanto desde
Começa muito jovem. Nascido alimentava vários já com a colaboração de todos os
em 1917, Alexandre Cabral está Sol Nascente, L.V. (Lobão com o espírito renovador de jornais de circulação jovens de Portugal, quer sejam
cronologicamente próximo de Vital?) consagrou uma hoje”. de Lisboa, quer da província
Joaquim Namorado (1914-1986), apreciação pouco simpática. Na realidade, esses regional com um (…), desde que se coadunem às
Mário Dionísio (1916-19993), Considera-o “pincelado por “primeiros sintomas da brotoeja caudal de textos de diretrizes por nós traçadas e
Vergílio Ferreira (1916-1996), um vago misticismo que em literária” em forma de livro a que não queremos de forma
Fernando Namora (1919-1989) parte está em desacordo com eram a ínfima parte de uma
todos os géneros e alguma fugir”. O interesse dos
ou João José Cochofel (1919- as próprias afirmações do atividade cultural febril. estava envolvido na oito números publicados, entre
1982). Em 1937, publicou os autor”, apresenta-o como Pouco mais que adolescente, maio e setembro de 1936, reside
dois primeiros livros, Cinzas “um conjunto de comentários alimentava vários jornais de
Tertúlia Autodidata “nessa característica, comum
da nossa alma e Parque Mayer pessimistas” e sustenta que circulação regional com um Naturalista e no Clube a estes jornais de moços entre
em chamas, como Z. Larbak,
variação do seu nome próprio
alguns dos seus conceitos (como
os que se referem à Mulher)
caudal de textos de todos os
géneros e estava envolvido na
Radiofónico a adolescência e a juventude,
de uma irreprimível vontade
(José dos Santos Cabral). Ao estão em “desarmonia com as Tertúlia Autodidata Naturalista, de Portugal de revelação de valores,
primeiro, nas páginas de necessidades da época e mesmo no Núcleo Cultural de A Voz da de espontâneo impulso em
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt ALEXANDRE CABRAL
letras * 17
participar, em aparecer a público exemplar da ficção de Ferreira vai nascer versus a noite em há uma estratégia específica; no poema “África”, de Joaquim
através das letras”, para utilizar de Castro. Por isso, nesta linha, que vivemos (que o título do um estudo mais aturado das Namorado, tema-chave de Ilha
a síntese de Luís Augusto Costa de certo modo, toda a grande já citado Sol Nascente, entre várias estratégias mostrará de Nome Santo, de Francisco
Dias, em trabalho infelizmente literatura é autobiográfica: 1937 e 1940, permanentemente como a vivência sexual é José Tenreiro. Contos da Europa
ainda não publicado. “Em vez de Rodolfo, em vez de recordou). De facto, traz à levada a esclarecer a densidade e da África (1947), Terra Quente
É num ideal de moderação Marcus, em vez de Afrânio do constelação neorrealista materialista dos múltiplos (1953) e Histórias do Zaire (1956)
autodisciplinada entendida Êxito Fácil, em vez de Manuel alguns elementos que merecem desdobramentos do real. são, porventura de acima de
como fulcro de retidão moral da Bouça de Emigrantes, em destaque. É interessante que a tudo, ficções de uma relação (ora
que se concentra nesses anos o vez de Alberto de A Selva, em Em primeiro lugar, são textos realidade alucine numa dessas compreensiva, ora áspera) entre
combate de AC, cujo adversário vez de Juvenal de Eternidade, de ambiência urbana. Lisboa experiências sexuais. Mas a olhares europeus e realidades
primeiro era o universo fechado coloquemos em seus lugares já não é a cidade-perdição consequência é mais larga. A africanas.
do Instituto dos Pupilos do este outro nome: Ferreira de contraposta à pureza da realidade, sem deixar de ser E é obrigatório lembrar o
Exército, onde era aluno. A Castro” (p. 12). ruralidade: é o meio gerado pela a realidade, pode mover-se romance Malta Brava (1955):
literatura impunha-se como Nesta noção de que a revolução industrial, propício a no sentido da alucinação. A como exemplo de literatura
“a expressão exata e veraz literatura prolonga a experiência um processo de diferenciações alucinação é um dos modos adolescentista, deve ser
do mundo que, no fim de de vida, embora o faça no sociais, violento (no sentido possíveis de a realidade ser colocado de par com As Sete
contas, tão precariamente modo de ficção, está presente em que pode extremar essas realidade. Por outras palavras: Partida do Mundo (1938), de
se conciliava com a minha a “importância do trabalho diferenças) e múltiplo (no sentido uma opção realista não pode Fernando Namora, Internato
experiência vivencial,
“
restringida aos episódios mais
ou menos rocambolescos de
uma existência em constante
rebeldia contra os altos muros
da cerca conventual (onde Com a sua obra,
estava instalado o Instituto Alexandre Cabral
[dos Pupilos do Exército]) que
delimitavam os horizontes” mostra como o
(como escreve no artigo neorrealismo se
“Ferreira de Castro – Como
o conheci ou um pouco de fez inventando
história literária”, publicado em processos e meios e
O Comércio do Porto, 26/7/1966).
não, simplesmente,
UMA NOÇÃO DE seguindo um cânone
LITERATURA
É, pois, atraído pela literatura
enquanto veículo de uma
revolta consciente de si (1946) de João Gaspar Simões,
mesma, que AC abre o seu Adolescente (1948), de José
caminho, desprendendo-se Marmelo e Silva, ou Manhã
progressivamente de uma Submersa (1954), de Vergílio
consciência modelada pelo Ferreira, entre outros. Sem
ideal da elevação moral em esquecer como lembrou Carina
favor de uma posição perante as Infante do Carmo a partir de
contradições históricas da época. um ensaio de Jorge de Sena,
A inquietação e a espontaneidade que o romance "potencia uma
impulsiva, traços embrionários interpretação metafórica do
da experiência juvenil, vão Portugal repressivo daquele
transformar-se em consciência tempo".
refletida cada vez mais Em todos estes textos, a
correlativa de um horizonte de experiência autobiográfica
expectativas cedo polarizado alimenta a ficção mas é
pela ideia de comunismo. transfigurada nela. É delegada
Ferreira de Castro é um nos dispositivos da ficção:
mediador decisivo dessa enredos e personagens não
transformação. No estudo mimam as circunstâncias
publicado em 1940, sob o título Estudioso de Camilo Dedicação de um especialista e não a idolatria de um fiel" reais. Mas a lição de Ferreira de
Ferreira de Castro. O seu drama Castro tem uma consequência
e a sua obra (FC), encontramos longínqua. Refiro-me a
uma noção de literatura Memórias de um Resistente e em
– melhor: um esforço de consciente de efabulação” em que se não trata unicamente reservar a palavra “realidade” particular à insistência reiterada
fundamentação antropológica (expressão de José Cândido de diferenças económicas mas unicamente para o que se dá da sua dimensão ficcional.
da disposição artística. O Oliveira Martins) e pode ser também sociais e simbólicas). imediatamente à perceção dos Estratagema para despistar os
jovem Alexandre Cabral retoma uma chave interessante para a A expressiva galeria de sentidos. No conto “Solução”, a olhares censórios? Certamente.
uma distinção romântica, leitura de toda a ficção de AC. personagens está em relação estátua de Sousa Martins move- Mas, possivelmente, também
entre o “génio” e o “indivíduo Sobretudo se interrogarmos estreita com a reconstrução se e fala e a cidade tem momentos a outra vertente da estratégia
vulgar”. E interpreta o que os possíveis vários graus de ficcional dos seus espaços de transfiguração em gigantesco romanesca, em que podemos
decide num sentido ou noutro: ficcionalidade que circulam vivenciais e com a dimensão Luna-Park. A incorporação considerar uma dupla elaboração
a capacidade de a sensibilidade na sua obra até ao apogeu de simbólica destes espaços. da alucinação à constelação ficcional: por um lado, a
se purificar no fogo lento do Memórias de um Resistente. São textos de uma forte neorrealista merece referência. experiência autobiográfica
sofrimento. Escreve: “É essa presença sexual. Melhor: O Sol Nascerá um Dia marca, que quer ficcionalizar-se; por
miséria e esse sofrimento que PROCESSOS FICCIONAIS textos em que a relação sexual assim, claramente, a sintonia outro, a ficção a rebater-se
vamos encontrar intactos, os O Sol Nascerá um Dia contém, constitui o limite (quero dizer: de Alexandre Cabral com o afirmativamente sobre o real. E,
mesmos, em todas as vidas deste ponto de vista, alguns a referência máxima) do que neorrealismo – mas mostra nesta linha de intenções, talvez
dos homens de génio: naqueles elementos que vale a pena é a relação eminentemente que o neorrealismo fez-se não seja excessivo ensaiar uma
que conseguiram exprimir sublinhar. Publicada em 1942 humana. O leitor não deixará inventando processos e meios aproximação com o José Gomes
genialmente os seus anseios, (2ª ed.: 1951; 3ª ed.: 1983), de notar a atenção aos corpos, e não, simplesmente, seguindo Ferreira de Imitação dos Dias. J
como Camões, Wagner, Gorki na primeira leva da ficção à proximidade e distância um cânone. Ao neorrealismo,
e agora Ferreira de Castro” (p. chamada neorrealista, a obra dos corpos, à sua linguagem ele irá incorporar mais tarde * António Pedro Pita é prof.
11). É o modo como o sofrimento não se limita a concretizar e aos seus imperativos (onde uma experiência africana, catedrático da Faculdade de Letras
ganha expressão na Arte (em ficcionalmente um dos tópicos o corpo pode exceder aquilo que não é inédita mas é rara: de Coimbra, ensaísta e crítico, e
particular, como é o caso, na retóricos mais fortes de toda de que a sua consciência é presente (e influente) no jovem foi diretos científico do Museu do
literatura) que define o caráter esta movimentação: o dia que capaz). Em cada circunstância, Redol, poeticamente elaborada Neorrealismo
18 * letras ALEXANDRE CABRAL jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
“
oso projeto de trabalho obri- Círculo de Leitores (24 volumes),
gou-o a vasculhar bibliotecas, com grande tiragem e assinalável
arquivos e espólios, públicos ou Alexandre Cabral Num desenho de Luís Dourdil popularidade. As preocupações
privados. antes afirmadas manifestam-se
sobretudo na inclusão de uma
BIÓGRAFO RIGOROSO A ideia-chave do seu “Cronologia Biográfica” e de uma
Ora, um dos domínios funda- vasto programa de era imprescindível editar com o Branco3; ou Correspondência de “Cronologia Bibliográfica”9.
mentais da sua investigação foi maior cuidado e abnegação. Camilo Castelo Branco4, num Reafirma-se a ideia-chave
justamente o da biografia do
pesquisa: o retrato O conhecimento da infin- notável e paciente trabalho de do vasto programa de pesquisa:
escritor. Partindo da tradição completo de Camilo dável correspondência cami- recolha, introdução e anota- o retrato completo de Camilo
dos estudos camilianos, inici- liana – com os mais diversos ção. A este trabalho preside o constrói-se através do conheci-
ados ainda em vida do escritor,
constrói-se através interlocutores (escritores, mesmo espírito de depuração mento escrupuloso de toda a sua
mostra-se ciente de uma labirín- do conhecimento editores, políticos, amigos, etc.) informativa, com o investiga- vida e atividade de escrita. Na
tica e “exuberante bibliografia
passiva” e herdeiro – e renovador
escrupuloso de toda a – constituía outro caminho
de atingir a desejável verdade
dor a mostrar plena consciência
dos desafios da íntima relação
ofensiva anti-lendária deste es-
tudioso, sobressai a obsessão pela
– de uma alargada sequência de sua vida e atividade de da vida e obra de Camilo; uma entre a vida e obra de Camilo, verdade da biografia camiliana:
devotos estudiosos camilianos, escrita forma de combater as lacu- nos enlaces e projeções de ex- “Verdade e pureza, autenticidade
desde os coevos Vieira de Castro nas e de superar a lenda que, periências biográficas na escrita e comprovação, serão as palavras
e Alberto Pimentel, passando manifestamente, perturbavam literária. de ordem do trabalho camiliano
por Henrique Marques, Ludovico É credor de enorme o conhecimento de um Camilo Procedeu também à edição que tem no Dicionário de Camilo
de Meneses, António Cabral e natural e verídico; enfim, um de textos de polémica e outros o ponto mais alto, afinal guiado
Júlio da Costa Dias, entre muitos dívida. A melhor modo de descortinar o homem dispersos camilianos. Afinal, pela profunda convicção de que
outros. homenagem que por detrás do mito, sem a “fili- estes textos sublinham uma a denúncia da lenda e a reposição
Deste modo, sujeitou esses grana da lenda” dos “biógrafos faceta muito relevante e quase da verdade numa nova biografia
trabalhos precedentes a um se lhe pode prestar panegiristas”. congenial da personalidade do contribuirão por força para o
rigoroso e continuado exame. é continuarmos a Neste domínio, empreende escritor e da sua intervenção no engrandecimento de Camilo”10.
Era urgente apurar as informa- uma das mais laboriosas tarefas campo literário. Esta laboriosa Corolário de uma vida, a
ções sobre a biografia camiliana,
recorrer ao sólido da sua pesquisa – a edição exumação revelou-se igualmen- publicação do notável Dicionário11
através de averiguação séria resultado das suas de uma vasta epistolografia te um trabalho de reconhecida é reconhecida como a suma dos
e comprovada, com base em do escritor: Correspondência importância. Afinal, editar os longos e beneditinos trabalhos do
documentos historicamente
investigações nos Epistolar entre José Cardoso inúmeros textos de polémicas e investigador, espaço de con-
credíveis; mas também através estudos camilianos Vieira de Castro e Camilo Castelo demais dispersos era também fluência de rigorosas pesquisas
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt COLUNA
letras * 19
“
1 As Novelas de Camilo Castelo Branco mos, para buscar o fluxo natural das ção de tudo. É na série “Noturno de
(Portugália Ed., 1961; Livros Horizonte, palavras. O poeta não escreve; fala. Ipanema” (1, 2 e 3) e em “Diurno de existir o leva a um verso que mime-
1979); 2 Cf. Alexandre Cabral (1917- E não com o leitor; consigo mesmo, Ipanema”, um dos centros estru- tiza tais qualidades, demarcando um
1996), Dedicado Camilianista, V. N. dando ao livro um tom de renúncia turais do livro, que a inviabilidade respeito pela extensão maior daquilo
Famalicão, Câmara Municipal / Casa a qualquer desejo de interferência da permanência histórica se revela. O poeta agora quer que se retrai em si mesmo.
de Camilo – Museu / Centro de Estudos no real. Tudo conduz para a morte, Contemplando a praia, habitada por dissolver-se na No antípoda se encontra o sexo,
Camilianos, 2017. Apresentada nos 4.os horizonte próximo e inalcançável, corpos inocentes, que ignoram a visto a distância ou como algo
Encontros Camilianos de São Miguel de experiência do depois no agora. densidade temporal, o poeta “passa linguagem de todos, inócuo, ainda quando não pode ser
Seide (13-14 Out. 2017), além de um estu- Tendo-se destacado em uma na pele o creme do esquecimento”, em uma comunhão contornado. O poeta agora entende
trajetória de cronista, a crónica surge metáfora para o estado atual do a busca do prazer (a alegria da carne)
do crítico introdutório, esta obra contém
uma detalhada “Bibliografia Camiliana aqui como um modelo poético, um eu, a caminho da imersão em um
com a vida que se esvai, como miragem de quem ainda não
de Alexandre Cabral” (pp. 79-93). Cf. estado lírico a partir do qual obtém fluxo obscuro. Já se sentindo fora do apagando-se enquanto tem o conhecimento terminal da
poesia. A roupagem cotidiana da tempo, embora ainda esteja dentro, existência, o que o leva a conclu-
ainda Aguinaldo Cabral, “No centenário
do nascimento de Alexandre Cabral”, linguagem permite que ele tire a sole- resta a este eu ajudar a dissolver-se
individualidade ir: “O orgasmo distrai. / Mas não
Seara Nova, nº 1738 (2017), pp. 46-47; 3 nidade do verbo poético, construindo em algo maior, que abarca o infinito resolve” (p.58). Tudo pulsa intenso,
Parceria A. M. Pereira, 1968, 2 vols; 4 poemas em tom prosaico. É que o desconhecido. Em outras passa- mas em uma frequência fraca, nesta
Livros Horizonte, 1984-87, 7 vols; 5 Ed. poeta agora quer dissolver-se na lin- gens, ele vai destacar o seu diálogo oferenda à morte que é esta antolo-
Inova, 1972-73, 2 vols; 6 Portugália Ed., guagem de todos, em uma comunhão agora com as bactérias, com a parte recerá a condição calma e inanimada gia octogenária. Nela, a palavra “es-
1962-70, 4 vols; 7 Livros Horizonte, 1981- com a vida que se esvai, apagando-se putrescível do eu, em uma comu- da pedra como ideal de permanência panto” aparece várias vezes para nos
82, 9 vols; 8 Parceria A. M. Pereira, 1966- enquanto individualidade. nhão com a matéria mutante. Esta estática no universo indesvendável. alertar que, na reta final, continua-
1973, 7 vols; 9 Cf. Prefácio à edição do 1º Há uma compreensão da di- ideia reforça o projeto que chama de É a forma pela qual o eu assume um remos sem saber quase nada diante
volume, Anátema, Círculo de Leitores, mensão irrelevante da experiência anulação propiciada pela morte e por ritmo menos tumultuado. Objetos daquilo que nos coube viver.
1981; 10 Abel Barros Baptista, “O exame do tempo de cada indivíduo que quem se aproxima dela, um estágio livres de memória, a pedras se Em A vida é um escândalo,
escrupuloso: Alexandre Cabral ou o funciona para acalmar um eu que em que a aventura humana ganha colocam aquém e além do tempo. “E Affonso Romano de Sant’Anna
camilianismo como herança”, Colóquio/ não vê mais sentido em fazer coisas, a sua verdadeira razão de ser: “A volto a pensar/ nas pedras silenci- apresenta-nos um retrato do poeta
Letras, nº 147-148 (1998), pp. 299-306; em acumular história. Tudo tem uma busca da felicidade/ foi totalmente osas/ do Deserto de Atacama”. Os enquanto pedra que pulsa, apesar
11 Caminho, 1ª ed., 198; reedição em profundidade obscura, inviabilizan- ultrapassada./ Os mortos atingiram/ seres inanimados, aos quais o poeta da aparente neutralidade da matéria
2003, “revista e aumentada”; 12 Livros do o projeto utópico de permanência o que os vivos almejam/ – a neutra- passa a prestar atenção nesta fase rochosa. Se em Farewell (1997), de
Horizonte, 1986;13 Veja-se a entrevista pela arte e pela história. Em vários lidade absoluta” (p.37). de recolhimento, dão uma lição de Carlos Drummond de Andrade,
concedida a Fernando Venâncio, no ano poemas, haverá referência a idades O livro é o elogio da vida como silêncio, estabilidade e suavidade. livro equivalente a este de Affonso, o
do seu falecimento – “Alexandre Cabral, imemoriais, tanto no futuro quanto apagamento, o que coloca em cena “Comecei a me interessar pelos seres poeta se debatia entre o entusiasmo
o doutor insatisfeito”, revista Ler (Livros no passado, produzindo um efeito outro movimento do ser, a luta que não se mexem” (p. 16). Esta erótico e o amortecimento, aqui a
& Leitores), nº 33 (Inverno, 1996), pp. melancólico para quem acredita na contra a dissolução e os entusiasmos descoberta de que está neles um morte se fez um tom, um tema e um
44-49. permanência do nome: “... o buraco juvenis. Em mais de um verso apa- ritmo mais lento e menos violento de tempo. O perene. J
2o * letras LIVROS jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
Arder na neve
arte. Estes, porventura: “Altas escreverá: “Porra nos meus versos!
mulheres de pescoço alegre/ Merda para as linhas engarrafadas
fogem pelos campos” (p.19), “E das minhas prosas cabalísticas
por cima de tudo as tuas mãos/ onde nem sequer god, deus, diabo,
uma pequena coisa que do pulso ou Tu, puta ou deusa infernal, ha-
nasce” (p.22); “Turismo na farda. bitam, habitas, coabitam.” (p.125).
No bolso o desdém” (p.27); “Fácil Irmana-se o seu universo com as
se torna este jogo de esquecer e figuras de Dylan Thomas e Malcolm
Em boa hora a editora Língua o octossílabo, a redondilha), às pouco/ a pouco um hábito nos Lowry, também eles reféns dos
Morta reedita Eduardo Guerra sugestões cultas, passando pelo habita de torpor e nojo” (p.28); seus demónios e constroí-se a
Carneiro, um dos grandes esque- corte de versos com que melhor se “Há palavras lança-chamas./ cena da escrita: estamos em face
cidos da nossa poesia. Com uma salientam determinados sintag- Conheço algumas que nos de um sujeito que deambula, qual
paginação cuidada, uma capa mas e imagens. Seja por citação fazem viver [...]/ Nas palavras Cesário, ou O’Neill, numa cidade
extremamente sugestiva, a escolha ou paráfrase, por alusão ao nível me encontro./ Cansado, quase pré-apocalíptica (“Estamos no
antológica, criteriosa e justa, do subtexto, ou à glosa de versos morto, à espera. Nas palavras extremo ocidental de uma europa
coube a Miguel Filipe Mochila. vindos da tradição literária e cine- vivo./ Denuncio ou ataco. Há gangrenada [...]/ Estamos quase a
Reproduzem-se quer o prefácio matográfica, ou outros processos um grande sol/ à nossa espera. rebentar as costuras deste maldito
de 1978, de Vítor Silva Tavares, de reenvio, lemos aqui um poeta Quantos somos?” (p.31); “Entro soutien com que nos apertam as
inicialmente integrado no volume culto. Para o autor de Algumas na arquitectura da cidade e o mamas da invenção” (p.126)).
Como Quem Não Quer a Coisa, quer Palavras (1969) o tema da poesia – calor bate-me em cheio”; “março Resta-lhe conversar com
o texto evocativo que o mesmo central nos volumes de 1966 (Corpo cresce agressivo em nevoeiro”; ... fantasmas, seus émulos: “Mário,
escreveu sobre o poeta, saído na Terra) até Isto Anda Tudo Ligado podia-se continuar... tens razão. O tédio é o mesmo/
revista Telhados de Vidro, nº 2, de (1970) – assume uma relevância A escrita de Eduardo Guerra entre o brilho da vidraça e o copo/
Maio de 2004. Trata-se, portanto, capital, relacionando-se esse tema Carneiro assume-se como “desafio
de uma compilação que visa dar a Eduardo Guerra Carneiro com a realidade comezinha de permanente”, uma luta “corpo-a-
ler um número diverso de textos um país a prazo – como a vida... -corpo com o desejo de inventar
do autor segundo uma orienta- Muitos são os poemas em que se a comunicação ou de descrever o
ção cronológica, útil neste tipo pensa sobre sílabas, sobre “pala- desejo.” (p.141) e por isso não é
de edições. O universo de Guerra e mágico mundo novo” no pobre vras conhecidas”, “palavras que ela nunca “jogo calculado – nun-
Carneiro, assim lido, na sua his- real quotidiano duma Lisboa sala- soam a aventura”; o poeta é aquele ca calculista”, mas antes escrita
toricidade, resulta mais completo, zarenga e pós-revolução, que num que está “sentado nas palavras” encostada a um estilo de vida in-
mais acessível a quantos queiram seguidismo de estéticas passadas, (p.32), ou melhor, que se encontra subordinado, como Thoreau, “mais
descobrir uma voz original e exata. Guerra Carneiro sabe relacionar, com a memória de um tempo ori- livre na prisão do que milhares de
De Rimbaud (o poema em com mestria, os registos popular e ginal e puro; tempo perdido, o da americanos, ao ar livre”, lê-se. A
prosa, a procura de um rigor erudito. infância e o da juventude urgente este respeito, quase poderíamos
diamantino, sob a aparência de A dicção pícara, o fraseado – o corpo, os ideais, o sexo, a feliz falar de um idiolecto que reenvia › Eduardo Guerra
um mero registo de crónica) a um coloquial e retirado do modo ignorância. a Assis Pacheco ou a certo Carlos Carneiro
surrealismo que soube fazer seu, lisboeta de falar, conjuga-se com Fazendo dos seus textos de Oliveira (o das meditações em MIL E OUTRAS
bebido mais na atitude provoca- a destreza composicional que vai lições de prosa, pela plasticida- O Aprendiz de Feiticeiro), a Gomes NOITES
tória de descobrir “um profundo da atenção rítmica (o decassílabo, de e fluidez de um discurso que Ferreira (o memorialista de A Língua Morta, 210 pp, 12 euros
Apatia
(atrevo-me a dizer: com menos li- mente sublinham, até melhor que o
mitações) da adaptação para cinema preto e branco, o “cinzentismo” do
(de Roberto Faenza em 1996, com período; bem como as angústias do
Marcello Mastroianni). protagonista e o seu evoluir enquan-
A estreita ligação de Tabucchi a to cidadão. De resto, até a escolha
Portugal é bem conhecida, e Afirma de papel utilizado contribui para o
Pereira uma visão lúcida da vida excelente trabalho global da G. Floy
no Estado Novo, em 1938. Fugindo Studio, dando ao livro uma quali-
Adaptar um romance para banda um pouco do registo de interro- dade de nostalgia mate. E se o autor
desenhada é sempre uma tarefa gatório do original, a BD segue a arranja soluções gráficas engenhosas
ingrata. Mesmo com descrições transformação do protagonista, de para os diálogos (monólogos) inter-
detalhadas a componente visual é reservado cronista de cultura num nos de Pereira, define muito bem as
imaginada no original, em BD há um jornal de Lisboa, a questionador restantes personagens, que devem
ponto de partida gráfico que define a ativo da realidade que o rodeia. ser vistas, não como entidades em
interpretação, e do qual não se pode Uma realidade feita de opressão, de si mesmas, mas enquanto interpre-
fugir. Perdem-se umas dimensões, verdades sonegadas, de pequenos tações do próprio Pereira. Algo que
ganham-se outras. Na sua premiada informadores; de apatia medíocre. justifica, quando necessário, a cari-
adaptação de “Afirma Pereira” (2016) Mas também das (algo previsíveis) suas consequências. Atormentado sofia, política, ou medicina, Pereira catura demasiado óbvia, ou mesmo a
o francês Pierre-Henry Gomont faz jovens perspetivas de mudança, por fantasmas de vidas que não vai-se deixando contaminar por não-definição (como a que carac-
um trabalho notável na abordagem inflamadas pela Guerra Civil na teve, profundamente desiludido por outras visões que, no entanto, não teriza a polícia política). Em Afirma
do romance homónimo (1994) do vizinha Espanha, que, no entanto, um presente (o corpo, as amizades, só não entende bem, como não sabe Pereira assume-se que grande
escritor italiano Antonio Tabucchi parecem oscilar entre o ingénuo e o a profissão) do qual se aliena refu- como operacionalizar. No fundo, parte do poder opressivo resulta de
(1943-2012). Não é (bem) o mes- inconsequente. Até que o equilíbrio gindo-se em traduções de Balzac Tabucchi e Gomont discutem o resignação e concordância genéricas
mo livro, nem poderia ser, mas é é perturbado, alguma ação se torna ou Daudet, procurando respostas papel da cultura (e dos intelectuais) que ninguém parece saber muito
uma obra excelente, muito distinta inevitável, como inevitáveis serão as possíveis na religião, literatura, filo- em tornar possível uma, aparente- bem como foram definidas; coisas
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt LIVROS
letras * 21
no balcão. Na mesa vejo taças/
pegajosas e pergunto ao Cesário/
se as ruas ainda são a humidade/
ou é a luz dos empedrados/ que
A PAIXÃO GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
nos dá a outra vida” (p.183). É à
literatura que se pede, embora
sem ilusões, a redenção possível.
DAS IDEIAS
Nobre e Sá-Carneiro, Pessanha
e Pascoaes, poetas de um tédio
S
uma mesma cadeia (leia-se “As
frases elegantes muito à Herberto
Helder (Dedicatória)”), “Colinas
de Pavese”, ou Thelonius Monk. ão três documentos publicados, que têm autonomia para as glórias que seu pai gostaria de lhe ter reservado, em virtude do
Poesia de espetros, saudade e e vida própria e, sem uma única ilustração, dão vida sucessor de Pinto da Fonseca ter posto fim a um tal sonho, arredando-a
melancolia dizem-se com ecos de a personagens de ilustração, para além do que seria de quaisquer honras. E assim pudemos descobrir a estirpe portuguesa de
Camões (“Transforma-seo amador esperável. Memórias Secretas, de Mário Cláudio (D. Corto, que ganhara tal nome dada a exiguidade do seu corpo à nascença
na coisa amada. Por entre lágri- Quixote) encadeia textos inesperados, onde se dá vida – por ser curto.
mas e suspiros [ecos de Bergman], a personagens célebres da Banda Desenhada (BD). De Novas luzes podemos ter, nesta leitura de Memórias Secretas – e talvez
prossegue o jogo” (p.139)) e facto, não são glosas das aventuras que conhecemos as compreendamos melhor um fundo aventureiro, de quem se apaixo-
ressuscita-se Nuno Bragança; Ruy que verdadeiramente estão em causa, mas um outro nara pela obra-prima de Thomas Morus, ou não fosse português Rafael
Belo reemerge na consciência da lado dessa vida que entusiasma os cultores da nona Hitlodeu, a cujo epílogo não chegaria… E como chegou a Portugal? Pela
poesia como “invenção da lingua- arte, para usar a classificação de Ricciotto Canudo. Hugo Pratt, de quem mão de Dinis Machado e Vasco Granja – que, contra ventos e marés,
gem”. iremos falar, referia a “literatura desenhada” e quando comecei nestas decidiram apostar em Corto Maltese. Dir-se-ia que agora Mário Cláudio
Urge redescobrir Eduardo andanças falávamos de Histórias aos Quadradinhos (HQ). Com o meu legitima essa escolha e completa-a. Hugo Pratt faz desaparecer Corto
Guerra Carneiro, fazedor de amigo e mestre José Ruy, andamos por vezes às voltas sobre a melhor Maltese durante a guerra de Espanha, mas agora vamos adiante…
um “novo discurso, importante designação. Não desapareceu então. A 3 de novembro de 1941, apesar da guerra
porque [lhe] importa”, mes- Mário Cláudio consegue um verdadeiro milagre – faz-nos entrar sangrenta, arrendou uma casinha na Ilha de Burano mesmo defronte do
tre da alusão e da elipse; exímio em pleno no tema e põe-nos perante a literatura, que afinal é madre de Adriático, onde também moram, com Maltese, Tarao, Pandora, Abel e
na evocação impressionante da tantas cousas. E devo dizer que me deleitei Sephora. Mas aí temos matéria para mais misté-
Guerra Colonial, dos anos sessenta deveras nestas viagens para além do que já se rio, porque também aqui o testemunho do herói
e setenta. Com ele vemos as cenas sabia sobre estas personagens a quem Memórias termina abruptamente.
das separações, as mortes absur- Secretas dão vida. E vieram naturalmente à Há um momento em que graças à natureza
das, os exílios, o baço contorno do memória Max e Moritz, o impagável Yellow Kid, desta arte nona, Bianca Castafiore irrompe no
que veio depois: anos oitenta e no- os Sobrinhos do Capitão, o Little Nemo e os seus testemunho de Maltese, numa missiva enviada
venta, solidão e spleen... No fim de sonhos inverosímeis, as viagens de Becassine, de Lisboa por Pandora Groovesnore, que
tudo, o desejo da poesia, essa lin- os pioneiros Quim e Manecas de Stuart (que perdera o marido, rico herdeiro de armadores e
guagem Contra a Corrente (1988); chegaram à minha geração no saudoso Cavaleiro médico voluntário da Cruz Vermelha na batalha
voz da angústia à portuguesa, Andante), além de Zig e Puce, Tintin, Blake e de Sicília… Bianca (Castafiore, claro) afirma-se
nossa, nascida dessa dor mansa, Mortimer e tudo o mais… Limito-me a escrever satisfeita por aqui estar, mas não esquece toda
quase vegetal: “A barba é o meu ao correr da pena, pois o tema é inesgotável. sua a petulância e antipatia, de que são vítimas
gato. Afago-a [...]/ Mora a barba/ E lembro “O Mosquito”, “O Papagaio”, “O Haddock (em cujo nome a diva nunca acerta)
noutras eras, noutro espaço. É ela/ Senhor Doutor”, o “Mundo de Aventuras”, “O e o próprio Hergé, pela insistência nos traços
que me afaga a mim: última ter- Diabrete”, “Cavaleiro Andante”, “Foguetão”, caricaturais. E descobrimos um abundante
nura” (p.164). Mil e Outras Noites, “Zorro”, “Tintin”… e nomes essenciais como repertório para além de querido Gounod e das
Mário Cláudio
antologia para ler e reler.J Rafael Bordalo Pinheiro, Cottinelli, Emmérico, tranças de Margarida na “Ária das Joias” do
Botelho, Júlio Resende, Eduardo Teixeira Fausto. E, muito mais do que a Sildávia e Klow,
“
Coelho, Fernando Bento, José Garcês, José o que aparece é a Europa em plena guerra, com
Ruy, Vítor Péon, Adolfo Simões Müller, ou a angústia de quem foge e a soberba de quem
das quais não parece haver liberta- ainda Maria Teresa Andrade Santos (Mitza), detém o efémero poder do tempo. O encontro
ção, e que todos sabem que sabem. Maria Isabel Mendonça Soares, além da célebre com Mussolini explica muita coisa.
Tanto do lado dos convictamente “tribo dos pincéis” (Roque Gameiro e Martins Memórias Secretas, de Mário Subitamente é Portugal que surge nas noites
a favor, como dos assumidamente Barata)… Quantos nomes esquecidos. Mas do S. Carlos de Lisboa. Castafiore é, por exem-
contra. Como ainda dos resignados, ficamos gratos a Mário Cláudio por ter podido Cláudio, encadeia textos plo, Sélika de L’Africaine, de Meyerbeer, numa
distraídos ou ignorantes, que, de vez suscitar estas lembranças. inesperados, onde se dá peça em que os portugueses e Vasco da Gama
em quando, acordam e podem fazer É um mundo de fantasmas – uma plataforma se evidenciam. Até Corto Maltese aparece… Ah!
tombar balanças. É que por vezes a de ironia e pesadelo com “Casanova, saltando vida a personagens célebres temos os éclairs e babás, merengues e du-
mudança vem de onde menos se es- da masmorra para uma coluna, e depois para da Banda Desenhada. Não chesses que lhe “encheriam as medidas”, com
pera; basta não ter medo. De falhar, um telhado, Scarlatti vogando de rosto velado heroicos quatro quilos a mais. E Bianca torna-
mas, também, de triunfar. Mesmo por tules vermelhos, cautério para a sua incurá- são glosas das aventuras -se paradigma de certos panegíricos que se
que nada aconteça senão o exílio, ao vel antropofobia, quem poderá garantir que não que conhecemos, mas um aproveitam das dificuldades momentâneas e as
menos tentou-se.J resultante da obsessão cultivada pelas ninfetas confundem com momentos de glória, quando,
órfãs, e cantoras de um coro de querubins”.
outro lado dessa vida que de facto, do que se trata é de uma sucessão de
Falamos da Sereníssima República dos Doges – entusiasma os cultores da momentos sombrios.
Veneza, naturalmente. E entre Byron e George A terceira parte leva-nos até ao Príncipe
Sand, Ruskin e Hemingway, aparece-nos o
nona arte Valente nos Dias do Rei Artur, de Harold Foster,
improvável Corto Maltese, que Mário Cláudio, que começou a publicar-se nos Estados Unidos
como eu próprio, só conhecemos tardiamente em 1937 – e que Mário Cláudio descobriu em
por não ter feito parte da nossa infância, já que só em 1967, na revista tiras em O Primeiro de Janeiro (a partir de 1959), sendo que antes fora em
Sgt. Kirk, Hugo Pratt lhe deu corpo e história. Mas a verdade é que o O Mosquito que apareceu em Portugal (1948), seguindo-se os continua-
adotámos como mito romanesco – nascido a 10 de julho de 1887, filho de dos do Mundo de Aventuras. O protagonista é filho do rei de Thule, lugar
Vânia “la Niña de Gibraltar” na ilha de Malta, sede da Soberana Ordem, mítico do norte europeu que vai até Camelot.
na descendência atribulada de um português célebre mas controverso, A reconstrução da História baseia-se em Geoffrey Art, o cronista de
o grão-mestre Frei Manuel Pinto da Fonseca (1681-1773), em honra que Thule. As aventuras não se limitam ao cenário de Camelot ou Avalon,
› Argumento e desenhos quem Qormi em Malta se designou como Cittá Pinto. referem-se à transição para o período medieval. Reino expectante,
de Pierre-Henry Gomont, Lembremos os outros três Grão-Mestres: frei Afonso de Portugal enigmas do tempo, ilhas de Bruma. O Príncipe Valente torna-se cavaleiro
adaptando o romance (falecido em 1207),frei Luís Mendes de Vasconcelos (falecido em 1623) da Távola Redonda, encontra Merlin, Lancelote, a rainha Genebra, numa
homónimo de Antonio Tabucchi e frei António Manoel de Vilhena (1663-1736). Pinto da Fonseca fora glosa da História das Guerras do Imperador Justiniano, de Procópio de
AFIRMA PEREIRA milagrosamente salvo, depois de um grave acidente de saúde, pela sedu- Cesareia. Mas não é a escrita que interessa, e sim a imagem fulgurante.
G. Floy Studio. 160 pp., 18 Euros tora Severiana, mãe da avó de Corto, Maria de los Milagros – não fadada Sente-se o nosso fundo céltico, tão presente em D. Sebastião…J
22 * artes jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
Elísio Sumavielle
CCB, uma cidade em crescimento
O Centro Cultural de Belém faz 25 anos e tem um grande projeto para o futuro. Em breve, será lançado o concurso para
a construção dos módulos 4 e 5, previstos no projeto inicial de Vittorio Gregotti e Manuel Salgado, que consistem num
hotel e numa galeria comercial. Uma nova vida para esta cidade aberta, que permitirá uma maior sustentabilidade e uma
programação mais ambiciosa. O JL falou com Elísio Summavielle, atual presidente da Fundação CCB, sobre este projeto, o
balanço dos últimos 25 anos e o futuro do emblemático espaço cultural da cidade
f
Manuel Halpern remanescente e fazer a programação
cultural, mas obviamente com mui-
ta prudência, para não voltar a dese-
quilibrar as contas. Introduzimos a
ideia de Cidade Aberta, a partir das
palavras de Gregotti, o que significa
mais ecletismo. Inflacionava-se um
pouco a música erudita, numa com-
petição saudável com a Fundação
Gulbenkian. No meu ponto de vista,
há que dar mais espaço ao teatro,
dança, jazz, pop, fado ou o cinema,
que é uma novidade na vida do CCB,
Foi chamado por João Soares, então que se tem revelado um sucesso.
Ministro da Cultura, para gerir o Replicamos o ambiente do cine-
destino do Centro Cultural de Belém. ma-espetáculo, repondo grandes
A sua fama de gestor cultural meti- clássicos, com intervalo e folha de
culoso, capaz de 'endireitar' contas, sala, e as sessões esgotam
terá contribuído para a nomeação.
Na reta final do seu primeiro man- Também têm dedicado mais espaço
dato, Elísio Summavielle conseguiu, à literatura e pensamento...
para já, lançar os alicerces para É uma área que não é dispendiosa.
cumprir a segunda fase do projeto Lembro-me de uma entrevista do
arquitetónico de Vittorio Gregotti Vasco Graça Moura, quando entrou
e Manuel Salgado, que consiste na LUÍS BARRA
a troika em Portugal e lhe pergun-
criação dos módulos IV e V, que taram pelo futuro do CCB. Ele res-
correspondem a um hotel e a uma pondeu que quem não tem cão caça
galeria comercial. As rendas desses com gato e que por isso ia puxar
equipamentos permitirão uma maior Elísio Summavielle "A cultura é o alimento de quem nos visita" pela literatura. Há um público muito
sustentabilidade do projeto cultural e fiel e constante. A História está na
até uma programação mais exigen-
“
moda. Vamos ter um ciclo sobre os
te. Até aqui, Summavielle tem tido grandes conflitos mundiais, com
uma gestão cautelosa, recorrendo JL:É possível fazer um balanço de 25 No tempo da Fundação das Nuno Gonçalo Monteiro, Rui Ramos
mutas vezes a parcerias e também anos de CCB? Como olha o percur- Descobertas... e Bernardo Vasconcelos e Sousa,
a iniciativas menos dispendiosas,
que têm sido um sucesso, com o
so desde a sua inauguração até ao
momento presente?
A cultura não está A Fundação das Descobertas dura
até 1999, altura em que o ministro
que já tem praticamente esgotadas
as sessões. E também uma grande
Cinema em Belém ou a os ciclos de Elíso Sumavielle: Desde o início acima da economia. Manuel Maria Carrilho muda os homenagem ao Vitorino Magalhães
literatura e pensamento. Contudo, que, até por razões profissionais, Esta casa tem um estatutos. Era um período próspero, Godinho, o pai da historiografia da
na próxima temporada já estão acompanhei o processo de constru- com alguma abundância. Antes, minha geração. Além de um ciclo
agendados grandes espetáculo, como ção do CCB. Cheguei a visitar a obra. potencial muito grande havia um conselho de mecenas da dedicado à Europa entre as duas
Venezuela, da companhia de dança Ao contrário de outros, sempre fui de sustentabilidade. Fundação, mais ou menos como guerras, coordenado pelo Nuno
israelita Betsheva; A Paixão de Cristo, entusiasta. E quando soube do pro- acontece hoje em Serralves. Com a Severiano Teixeira. Na literatura,
encenada por Romeo Vastellucci; o jeto do Vittorio Gregotti e do Manuel O nosso objetivo é alteração dos estatutos, o financia- algumas efemérides, o dia mundial
concerto de Branford Marsallis; ou a Salgado, logo percebi que era vence- colher um rendimento mento passou a ser exclusivamente da poesia é dedicado à Sophia.
exposição dedicada a Gregotti. Nas dor. Acompanhei a construção perto estatal. É uma situação que talvez
letras também haverá homenagens do Daciano da Costa que desenhou generoso pela secessão mais tarde possamos corrigir, E nas artes performativas?
a Sophia de Mello Breyner, Jorge de todos os interiores. Integro o públi- do direito de superfície porque não faz sentido para um Na dança, vamos ter a Betsheva Dance
Sena e Vitorino Magalhães Godinho. co, desde o concerto inaugural com equipamento com uma complexida- Company, de Israel, uma das grandes
Nascido em Lisboa, em 1956, Elísio a Montserrat Caballé. O CCB fez um
desse terreno que de destas. A subvenção que chegou companhias de dança mundiais. No
Summavielle, licenciou-se em percurso que atinge agora a maio- permita tranquilidade a ser de dez milhões de euros foi fado, Camané, Katia Guerreiro, Pedro
História, pela Faculdade de Letras ridade, mas as conjunturas modifi- reduzida para sete. E a realidade Joia, Celeste Rodrigues... Nas óperas,
da Universidade de Lisboa, com caram-se ao longo do tempo, muito
financeira e uma é muito diferente do que era. As des- retomámos a parceria com Teatro São
especialização em História da embora se tenha procurado manter ambição maior na pesas de funcionamento do edifício Carlos. Teremos A Paixão de Cristo,
Arte.Técnico Superior do Instituto
Português do Património Cultural,
a qualidade na programação. Nos
primeiros tempos, havia uma sub-
programação cultural andam à volta de 8,4 milhões de
euros por ano. Ou seja, a subvenção
encenada por Romeo Vastellucci, com
a participação da Orquestra e Coro da
foi responsável pela programação venção estatal maior, que permitiu do Estado, por si só, não nos permite Gulbenkian. Em vez de exclusividades,
Cultural de Lisboa 94 e secretário- momentos muito importantes, quer manter as portas abertas. É com procuramos projetos conjuntos, mais
-de-Estado da Cultura, no governo nas exposições, quer nos concertos, grandes espetáculos de ópera, as receitas das rendas das lojas, do fáceis de projetar financeiramente. No
de José Sócrates. Foi nomeado presi- em que a fasquia teve a grande nível. concertos sinfónicos de orquestras aluguer de espaços para congres- jazz, em meados de setembro vamos
dente do CCB em março de 2016. Como por exemplo, Pina Bausch, internacionais, Keith Jarrett... sos, etc, que conseguimos cobrir o ter a European Jazz Conference, um
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt ENTREVISTA
artes * 23
congresso com especialistas de todo o para 140 quartos, nesta zona, traz o nível da atividade cultural, mas,
mundo. Candidatámos Lisboa, com o cidade para aqui, que é uma zona que ao mesmo tempo, dar mais acesso
apoio da Câmara, e ganhámos a Roma fica deserta ao final da tarde. às pessoas. Há uma experiência que
e a Atenas. Durante oito dias seremos a está a correr muito bem. O João
capital do jazz. Será naturalmente um hotel de Paulo Cotrim lançou-me uma pro-
luxo? posta: fazer um encontro quinzenal
Há uma componente aberta ao Sim, seguramente. A arquitetura é sobre livros. Lembrei-me vender a
público? esta e será um hotel de uma fasquia ideia à Rádio Renascença, que é a
Sim, com recitais, concertos, show- alta. Há vários grupos interessados. que ouço quando ando de táxi. Foi
cases, workshops... Não preten- Estão criadas as condições para um sucesso. É gravado aqui e emiti-
demos importar grandes músicos lançar o concurso em setembro ou do. Há uma envolvência social que é
estrangeiros, mas sim mostrar a outubro deste ano. O nosso objetivo necessário estimular.
quem nos visita o enorme potencial é colher um rendimento generoso
dos jovens músicos portugueses. É pela secessão do direito de superfície Com mais meios o que faria melhor
um tema que eu conheço bem, sou desse terreno ao promotor. Será uma em termos de programação?
sócio 34 do hot clube, pelo que fico renda. Pelos nosso cálculos essa ren- Bem, gostava de ter cá a Companhia
muito feliz de reunir em Lisboa esta da vai dar-nos tranquilidade finan- I de Bolshoi, a Filarmónica de Nova
LUÍS BARRA
cimeira. Também haverá um grande ceira e permitir uma ambição maior Iorque, tudo o que de melhor há no
concerto de jazz, em março, do na programação cultural, sem que mundo... Como já houve aqui oca-
Branford Marsallis. Na garagem sul, se onerem mais os contribuintes. A sionalmente. Mas é preciso nunca
espaço dedicado à arquitetura, va- cultura não está acima da economia. Elísio Summavielle "Queremos 'democratizar' o espaço do CCB" perder de vista essa noção de equi-
mos ter uma grande exposição sobre Nesse aspeto sou muito pragmático. líbrio, de quem gere uma pequena
o Gregotti. O Vittorio tem 90 anos e A cultura tem que ser transversal. cidade e não apenas dinheiro para
quer vir a Lisboa, até porque vamos Esta casa tem um potencial muito fazer espetáculos.
lançar o concurso internacional para grande de sustentabilidade. ter autonomia. Isto também pode Mesmo assim, passados 25 anos,
a conclusão dos módulos quatro e ajudar a que se revejam os estatu- havia lisboetas que nunca cá tinham Uma das mais emblemáticas inicia-
cinco, que corresponde ao hotel e à Em que fase vai? tos no sentido de envolver o tecido entrado e vieram, por exemplo, ao tivas do CCB foi a Festa da Música,
galeria comercial. Está tudo concluído, a parte da económico na vida cultural cinema. A nossa ideia é democra- entretanto rebatizada de Dias da
regularização dos terrenos. Como tizar o espaço. Houve sempre uma Música. É para manter?
Esse é que será o grande projeto para as nossas receitas não superam Quanto tempo demorará? leitura enviesada, solene, de quem A Festa da Música criada no
o CCB... Como vai o processo? os sete milhões, segundo a nova Se for lançado em outubro, demora- vinha ao CCB. Nós queremos abrir tempo do Mega Ferreira era muito
Foram dois anos de muita per- lei, estamos na esfera pública. Por rá no máximo seis meses. Em mea- a cidade, mantendo padrões de dispendiosa, mesmo quando o
sistência e burocracia. Com uma isso temos de proceder sempre a dos do próximo ano, espero que o qualidade. orçamento era maior, pelo que se
subvenção generosa, é natural que concursos públicos. O que para processo esteja concluído, para que transformou nos Dias da Música.
as anteriores administrações não se mim não é nada de novo, porque se entre numa nova fase no próximo Mas com toda essa parte comercial, Nós mantemos. É um fim de sema-
preocupassem com isso, mas é óbvio fui funcionário público toda a vida. mandato. não tem medo que se desvirtue? na alucinante, em que as pessoas
que, para além da coerência de ter- Isto numa casa como esta, que exige A parte da galeria pode ter escri- da casa vestem a camisola e eu
minar o projeto de Vittorio Gregotti, agilidade nas decisões e rapidez É uma mudança muito grande, tórios, lojas, restauração... Sempre próprio ando por aí a orientar as
vai ser uma âncora muito importante nos projetos é constrangedor. Mas estrutural e socialmente... com alguma qualidade... É tudo um pessoas, a indicar onde é a casa de
na cidade, JEA_ad-JL_2018_AF.pdf
um hotel com capacidade1 estou convencido
20/07/2018 17:22 que voltaremos a A ideia da cidade aberta é essa. processo evolutivo. É preciso manter banho... É uma das marcas do CCB,
CM
MY
CY
CMY
Andanças
forma muito livre e despreocupada,
sem grandes limitações, nem
temporais nem físicas. O que a
Jorge Ferraz
JAZZ POP
Máquina de sons
exhibition A edição
física em CD
Looks of a Lot é de uma
teve início simplicidade
em 2014 a desarmante.
partir de um Um cartão,
encomenda com ar de
do sobra de uma
Symphony embalagem dos correios, dobrado
Fundador dos míticos Santa Maria Gasolina Center de ao meio, com um disco roxo
em seu Ventre, Jorge Ferraz aventura-se num Chicago para uma projeto enfiado numa argola. Carimbos
segundo disco a solo, com o sugestivo título multimédia que Jason Moran com a data e a ficha técnica.
Machines for Don Quixote et Viva la Muerte. pôs em cena com uma O número da cópia escrito à
Com um tom exploratório, percorre géneros e multidão de músicos e artistas. mão, assim com a assinatura
subgéneros, em faixas que também poderiam O que ouvimos agora é um dos músicos. Belíssimo. E tudo
fazer parte de uma instalação sonora. O JL falou desenvolvimento síntese o mais é poesia... e música. E
com o músico. sobre essa encomenda; uma assim, de alguma forma, chama-
viagem alucinante através da se a atenção para a essência. A
Há um momento no disco em que revisitas a riquíssima tradição musical de boa notícia é esta: acaba de sair
tua mítica banda Santa Maria Gasolina em teu Chicago que se prolonga por o segundo volume do projeto
ventre. Descobres um fio condutor entre a formas musicais inesperadas, Bruta, de Ana Deus e Nicolas
sonoridade da banda e do teu trabalho atual? tendo como base a The Tricot. Ana Deus, que por mais
Claro que sim, embora a escolha desse tema Bandwagon a que Moran juntou projetos em que se envolva será
“Beirut, the policeman said” não tenha convidados de peso: Theaster sempre reconhecida pelos Três
apenas a ver com isso. Por um lado, tanto nos Gates, que partilhou a direção Tristes Tigres, tem tido um
SMGETV como no meu trabalho atual sempre do projeto artístico, a voz de percurso sem comparação na
entendi cada tema musical como uma aventura Katie Ernst, o saxofonista free ligação entre música e poesia.
poética (com ambientes e choques oníricos de Chicago Ken Vandermark, O seu projeto com Alexandre
e caleidoscópicos), centrada no prazer de e a toda Kenwood Academy Soares (ex-GNR), Osso Vaidoso,
explorar e me expressar através da guitarra Band, uma orquestra de trinta acabou por ter ramificações
elétrica em interação com o que as tecnologias e jovem estudantes. com outros músicos, não só
máquinas permitissem: desde o processamento A viagem é composta de com Tricot, mas também com
analógico e eletrónico até às atuais onze temas, como Pictures Luca Argel, com o qual lançou
possibilidades que o digital permite desvendar. at an exhibition, com temas recentemente um álbum de
Há também lugares estéticos ou sugestões de que remetem todos eles homenagem a Fernando Pessoa.
estilos musicais que existiam nos SMGETV e para motivos e universos Se com Alexandre Soares havia
que estão presentes no meu trabalho a solo, diferentes, distintos também uma cumplicidade entre voz e
pesem embora as aprendizagens e as mudanças Jorge Ferraz na abordagem. guitarra - uma guitarra, que tal
técnicas, estéticas, emocionais e ideológicas O disco começa com como a voz, fugia dos padrões
para as quais sempre estive e estou ativamente uma evocação de Schubert, simplistas de acompanhamento.
disponível. Este tema em particular também é uma versão inglesa de Der Com Tricot, sem perder de
um gesto de ternura e de alguma compensação ambiente multidimensional de sentidos vários, Doppelgänger pela voz vista um conceito minimal,
pelo fim abrupto dos SMGETV, indo buscar mais produtor de desorientação e encantamento. declamada de Theaster abrem-se janelas para mais
uma música que não entrou no que devia ter Igualmente, sempre a vi como coordenadas Gates com ruídos de rua instrumentos, como banjo,
sido LP e foi um Máxi. iniciais para experiências dos sentidos e para em fundo, logo cortada por baixo, serrote, percussão e
sonhos imaginados. Depois nunca fiz assentar Katie Ernst numa canção em até eletrónica. Contudo, fica
Cada parte do disco aparece com um título a comunicação da minha música na fisicalidade ambiente lúgubre, mas outras sempre clara a ideia, que
que não é mais do que uma descrição muito da minha presença: não sou, não quero ser e composições incluem um este desenho melódico serve
sugestiva daquilo que se ouve ou a (re)criação não consigo ser animal de palco (tenho sempre stomp de Roy Eldridge, depois essencialmente para potenciar as
de um subgénero musical. Qual é a relação desejo e de tocar ao vivo e, ao mesmo tempo, South Side Digging: um motivo palavras, oferecendo-lhe novas
de forças entre a música e o conceito? É o vontade de desaparecer ou de o fazer atrás de de sete notas, quase um arpejo, possibilidades ou horizontes. E
conceito que serve a música ou vice-versa? uma cortina qualquer). Aliás, essa é também que se repete ao longo de três é o que de facto acontece. Este
Esta descrição não pode de alguma forma uma das razões pela qual, para os concertos, minutos, dir-se-ia retirado poemas, na voz de Ana Deus,
sugestionar delimitando a escuta do ouvinte? faço sempre versões radicalmente diferentes de Fats Waller, News; um ganham ainda mais graciosidade
Prefiro antes falar em um estado dos temas gravados – é preciso outras coisas, trecho composto para caixa de e intenção. E está cheio de
deliberadamente consciente onde trabalho com prazeres e interesses que não assentem na mi- música, que surge recriado por momentos surpreendentes. Se é
ideias e intenções estéticas vs a expressividade nha presença física perante o público. Por fim, mais duas vezes com arranjos expectável o tema de abertura,
à solta, a emoção e um estado onírico, onde também estou habituado a pensar cada música diferentes; um tema free com Bruta, de Regina Guimarães,
me deixo ir com a guitarra, os dedos, os sons, como um poema visual e verbal mas sem letras o saxofone de Vandermark intervenção menos convencional
as máquinas que se acoplam à guitarra, etc. (vejam os títulos das músicas desde sempre, por em destaque; uma balada; é aquela sobre Camões, De Que
E, nesse caso, existem sempre as duas que exemplo) e integro o coletivo multimédia “Ce- uma percussão a sugerir as me Serve Fugir - resulta numa
vão sempre se revezando, interagindo, se llarius Noisy Machinae” onde, criar música em bandas de rua do Brasil; e uma belíssima canção pop. Já em
ajudando e, às vezes, até se sabotando uma à interação com vídeo, cenografia e performance marcha: o épico Shoulder to Mea Culpa, a partir de Antero
outra. Quanto aos títulos e aos pseudo-géneros é a base do meu trabalho. J Shoulder em remate. de Quental, há uma maior
musicais (prefiro chamar-lhes assim) que Disco intenso, apenas melancolia, quase demencial.
segmento neste disco, vejo sugestões de viagem, quarenta minutos de música Negra Fúria Ciúme, de Bocage,
mais pontos de partida possíveis - à falta de em euforia rítmica, o próprio tem uma força negra de rock,
melhor definição - do que catálogos redutores. piano stride de Moran, nunca um dos mais fortes temas do
Ou melhor, linhas e pontos em aberto de um tão percussivo, e Tarus disco. Acrescente-se que por este
esquisso de mapa para que quem queira se Mateen e Nasheet Waits poemário ainda passam Camilo
aventurar por certos lugares mais ou menos nunca, nunca despiciendos: o Pessanha, Júlio Dinis, Miguel
imprecisos, porque nunca sabemos realmente o mais poderoso trio de Jazz da Torga, Augusto Gil e António
que lá vamos encontrar. atualidade. Gancho. Todos funcionam
como se fossem letristas,
O teu disco sugere-me a ideia de uma instalação › Jason Moran and num disco de fina beleza.
sonora? Concebes o conceito de o apresentar › Jorge Ferraz the Bandwago
num espaço expositivo, criando uma ligação MACHINES FOR DON LOOKS OF A LOT › Bruta
com o ambiente das artes plásticas? QUIXOTE ET VIVA LA Yes Records, 2018 2
Concebo e quero. Sempre desejei que a mi- MUERTE Fundação GDA
nha música fizesse parte de um universo ou Cobra LEONEL SANTOS MANUEL HALPERN
| Agenda Cultural |
1 a 14 de agosto 2018
teatro villaret
Av. Fontes P. de Melo, 30ª. Tel.: 213 538 586
teatro esther de Carvalho
r. dr. José Galvão. Tel. (info.): 917 909 607
Fundação de serralves
r. d. João de Castro, 210. Tel.: 226 156 500
tomar
t mais respeito Que sou tua mãe t 40º Citemor: Cuaderno de trabajo 3 ª A 6 ª , dAs 10 h às 13 h e dAs 14 h às 17 h ;
s áb ., doM . e FeriAdos dAs 10 h às 19 h Convento de Cristo
Texto de hernán Casciari. encenação Criação e interpretação de Angélica Liddell.
e Zero em Comportamento: Tel.: 249 315 089
e Adaptação de Joaquim Monchique. 9 de agosto – 22h30
5ª A s áb ., 21 h 30; d oM ., às 18 h obras da Coleção de serralves e no rasto da devoção,
até 26 de agosto até 9 de setembro escultura em Pedra no Convento
Ponte de sor e há luz no Parque 2018 de Cristo - séculos Xiv a Xvi
até 14 de setembro
maFra Centro de artes e
Com participação especial de João Paulo Feliciano.
até 9 de setembro
ideias * 27
Ramón Villares
dificulta qualquer tradução mecâ-
nica. E além das muitas nuances
semânticas, também importa o
D
ideia de que só a língua concede
identidade. Não é verdade, muitos
outros aspetos também. Veja-se o
caso da América do Sul. A Argentina
e o Uruguai usam ambos o castelha-
no, com sotaques muito próximos,
mas são países com diferentes e fortes
identidades nacionais.
“
seu destino. Haveria de ser, como
sempre foi, um homem de diálogo, Quando teve consciência, pela
mais curioso pela diferença do que Professor catedrático desde Jornal de Letras: Qual a palavra primeira vez, de que fazia parte dessa
interessado em impor semelhan- 1987 e membro da Real Academia galega de que mais gosta? comunidade que se expressa em
ças. E dedicar-se-ia ao estudo das Galega, tem exercido os mais di- Ramón Villares: Não é fácil responder O que mais pode galego? Houve algum episódio na
suas raízes, sendo hoje um dos versos cargos em várias instituições sem pensar longamente. O que pode- infância que o marcou?
grandes especialistas em História galegas, nas quais deixou sempre ria ser? Colo, por exemplo, diferente unir os galegos é a Curiosamente, foi um pouco mais
da Galiza, com um conjunto muito a sua marca. Entre outros, fundou do mais frequente regazo castelhano. confiança na sua tarde, na entrada para a faculda-
significativo de estudos pioneiros, e dirigiu a Associação de História Ou ledicia, que é uma variante parti- de, quando fui uns tempos estudar
que têm valorizado a presença Contemporânea, entre 1996 e 2002. cular de alegria. condição de membros para fora da Galiza, em Santander.
do galego nos quatro cantos do E, entre 2006 e 2018, presidiu ao de uma nação cultura, Aí apercebi-me das diferenças lin-
mundo, como Identidade e Afectos Conselho Galego de Cultura, hoje Não deixa de ser curioso as duas guísticas e culturais, de como via os
Patrios ou História da Galiza – Uma membro do Conselho Consultivo da palavras apontarem para os afetos, que representam outros e de como era visto. Foi muito
Memória dos Avós Europeus, este CPLP. É uma aproximação ao mun- para as emoções positivas. um espírito, não importante para mim e reforçou a
com um enfoque especial na diás- do da língua portuguesa que sempre Todas as línguas têm de expressar vontade de entender a nossa história,
pora galega, outro campo em que defendeu, pois na diversidade se a razão, mas ainda mais os afetos,
necessariamente ligada saber o que somos, enquanto galegos,
se destaca. encontra a unidade da Galiza. as emoções, os sentimentos, o que a um Estado e porquê.
28 * ideias ENTREVISTA jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
Nos seus estudos, tem salientado Mas como vê o caso catalão? e Japão. Apenas duas instituições que fomenta o ensino do Português língua minoritário, tem naturalmen-
muito a ideia de nação cultura. Em Com um novo governo em Espanha, galegas, o Conselho da Cultura Galega como língua estrangeira. Não é tudo, te muitos desafios, alguns difíceis
que medida se aplica à especificidade abriu-se uma via de diálogo. É im- e a Real Academia Galega, têm uma mas é um sinal, até porque a própria de prever. O isolamento não será
galega? possível não associar esta mudança ligação à CPLP, integrando o órgão legislação advoga o aprofundamento certamente o caminho, nunca é. Há
O que mais pode unir e amalgamar os política ao problema catalão. Urge, consultivo. Repensar a Ibéria é deixar das relações institucionais. Fica por forças que dizem que a solução é o
galegos é a confiança na sua condição agora, superar os desencontros, os para trás preconceitos, admitir a dife- resolver o intercâmbio dos meios de Português, na medida em que devia
de membros de uma nação cultura, tais antis. Há um afastamento muito rença e encontrar pontos em comum. comunicação social, o que envolve haver uma língua base com vários
que não está necessariamente ligada forte da parte dos catalães, que se interesses empresariais. Pelo tempo dialetos populares. Outros movi-
a um Estado que representam um sentem fora do projeto comum No caso de Portugal e a Galiza, seria, que se levou a tratar do problema das mentos dizem que esse caminho teria
espírito, como defendiam os teóricos espanhol, o que me preocupa. Houve por exemplo, o Atlântico e todas as portagens nas autoestradas [dos gale- uma enorme rejeição por parte do
alemães do século XIX, mas que um salto grande na percentagem de suas potencialidades? gos que entram em Portugal] já se vê povo. Outros antecipam ainda uma
se associa a uma multiplicidade de votantes nos partidos mais radicais. Exatamente. Se virmos o mapa que não é matéria simples. Uma coisa incorporação no castelhano. É um
manifestações. À língua galega, às A situação parece estar bloqueada. noturno da Europa, encontrare- que tecnicamente podia se feita numa processo dinâmico que apenas tem
tradições ou à gastronomia. Tudo isso Vai ser necessário voltar a iniciar o mos uma faixa de luz de Setúbal até semana, demorou três anos. Com as uma regra: não se pode fazer nada
forma o tecido da nossa cultura. processo, com outros líderes, pers- Ferrol. É um potencial que está a ser gerações mais novas, esta relação vai contra a sociedade galega, que tem
petivas e expectativas. Talvez assim desatendido politicamente pelos dois avançar ainda mais. de ser constantemente ouvida. E uma
O que mais se destaca nessa seja possível chegar a algum lado. Estados. Os problemas com os com- coisa é certa: não se resolve da noite
perspetiva é não assentar numa Mas há coisas que se podem fazer. boios de alta velocidade é um bom Que papel pode ter a CPLP neste para o dia. O ideal seria uma forte in-
reivindicação política? Um reconhecimento explícito da exemplo desse desinvestimento. Não processo? Tem participado nas trodução do Português na Galiza sem
Que não precisa de desaparecer, matéria cultural catalã, a sua língua,
“
pelo contrário. Mas se não há nação cultura e património. É constitu-
política sem sustento cultural, é pos- cional. O que não pode admitir-se
sível imaginar uma forte identidade constitucionalmente, por enquanto,
cultural com algum apoio institu- é o Estado espanhol reconhecer
cional. Insisto muito nesta ideia para formalmente outro estado. E sem Repensar a Ibéria
transmitir uma mensagem de espe- um acordo. A maioria espanhola não é deixar para trás
rança à atual sociedade galega. Nas está a favor. Houve aqui um excesso
muitas viagens que fiz pelo mundo, de ingenuidade, talvez, por parte das preconceitos,
percebi que onde há um galego (quer elites catalãs. Pensaram que sendo admitir a diferença
seja conservador ou liberal, de direita democráticos, manifestando-se de
ou de esquerda) há um sentimento da forma democrática, a independência e encontrar pontos
Galiza. Somos um caso especial den- não poderia ser negada. Não chega. em comum
tro de outro caso igualmente único. Era bom dar um tempo, um ou dois
anos, para o ambiente esfriar, para se
Em que sentido? pensar, o que não garante uma saída,
É preciso ter em conta que Espanha mas pode ajudar. Sou por definição
é diferente de quase tudo o que se mais adepto do diálogo do que da que isso significasse um desprezo ou
conhece. Tem muitas identidades du- confrontação. eliminação do Galego, o que teria um
plas, duplos patriotismos. Na Galiza, impacto muito negativo.
se falarmos com as pessoas nas ruas, Vai organizar, em outubro, um
DIANA TINOCO
chegaremos à conclusão de que nin- seminário na Fundação Casa Mateus, Este debate, que continuará, acontece
guém se sente só galego, ou só espa- em Vila Real, dedicado ao tema num momento pujante da cultura
nhol. Esse inquérito desequilibra-se "Repensar a Ibéria". No século XXI, galega?
no País Basco e na Catalunha ou, em isso implica novos pressupostos? Completamente. A transição
sentido contrário, na Andaluzia, em- Sim. Estamos longe dos termos da Ensino "O ideal seria uma forte introdução do Português na Galiza sem que isso democrática e a autonomia foram
bora os andaluzes também tenham união das duas coroas do passa- significasse um desprezo ou eliminação do Galego" essenciais. Desde logo, no ensino,
orgulho na sua região. É curioso do. Vivemos num espaço comum com a introdução da língua e cultura
notar que mesmo os catalães, até há económico, energético, ambiental, galegas nos currículos. Quando fui
bem pouco tempo, queriam acima de cultural, científico e demográfi- reitor da Universidade de Compostela
tudo transformar Espanha a partir da co. Os Estados têm aqui um papel estamos a falar de usar a mesma lín- reuniões do conselhos consultivo. muito trabalho teve de ser feito
Catalunha. Ao longo do século XX, importante, mas não devem estar no gua ou crer no mesmo deus. Apenas O que tem defendido? para normalizar o galego dentro das
o regionalismo evoluiu para projetos primeiro plano, porque aí tropeça- de desenvolver políticas públicas Quando o Conselho de Cultura faculdades. No Parlamento aconteceu
nacionais alternativos e antagónicos. mos longo em problemas. Há que que realmente desemboquem numa Galego foi integrado nas estruturas da o mesmo.
Também não podemos esquecer que caminhar em paralelo. Quem fala de sociedade que proporcione mais CPLP houve uma celebração muito
existem muitos antis: anti-espanhol, países de costas voltadas? Ficaram conforto aos seus membros. franca e entusiástica no Parlamento E o que resultou no campo cultural?
basco, galego, catalão, clerical. apenas muros simbólicos. E desafios. galego. Temos tentado cumprir com Numa rede editorial e uma indus-
Estou na Galiza e não tenho notícias E a nível cultural, esse trânsito essa expectativa. Queremos sobretu- tria cultural muito fortes. Os nossos
O combate político radicaliza o de Portugal. E vice-versa. também está interrompido? do promover parcerias e desenvolver criadores são capazes de romper
discurso e esquece o que é essencial? Em primeiro lugar, é preciso distin- atividades conjuntas. Brevemente fronteiras. E o importante não é
Há muitos níveis no combate Essa superação histórica do ditado guir as elites políticas dos cidadãos. vamos organizar um encontro sobre serem traduzidos, mas terem a Galiza
político. Os que que acreditam "De Espanha nem bom vento, nem Os galegos entram e saem de Portugal o património de fronteira. na agenda e como tema. Do ponto
num sentimento nacional muito bom casamento" não tem reflexos no a toda a hora sem problema. O mes- de vista literário, já passámos o vo-
forte, os que querem aprofundar a dia-a-dia? mo em sentido contrário. Essa proxi- Mas em concreto, qual a filosofia luntarismo do romantismo. Vivemos
autonomia, os que radicalizam a sua Temos tido alguns êxitos. De um midade está plenamente conquista- desta aproximação à CPLP? uma época madura, aberta, o que me
posição. Na situação histórica em cenário em que pouquíssimo se da. Os problemas surgem quando se A CPLP é um lugar interessante conduz ao início desta conversa.
que estamos, a criação de uma na- declaravam iberistas, normalmen- fala no que fazer em relação à Cultura porque é uma organização multila-
ção só se pode dar em contextos de te escritores, por sinal, passamos e à Língua portuguesas. Em Portugal teral, não tem uma visão única, pois Às suas palavras galegas preferidas?
grandes crises, conflitos bélicos ou para um contexto em que existem também há uma posição de não criar depende dos interesses dos estados Sim. Em algumas cidades gale-
terramotos financeiros. O assunto cimeiras ibéricas e acordos. Os ruído, não participar em algo que membros. Neste particular, Portugal gas, sobretudo em Santiago de
nacional é misterioso, está cheio de resultados são muito positivos. Foram possa ser problemático... foi muito importante para a adesão Compostela, usa-se uma formulação
enigmas. criados centros de pesquisa (o de das duas instituições galegas, em muito curiosa para dizer "Beco sem
Nanotecnologia, sediado em Braga, Mas também sente que a Galiza mais um sinal de cumplicidade diplo- Saída" ou, no inglês, "Dead End". Nós
Que mistério e enigmas são esses? por exemplo), de análises dos recur- "abraça" muito mais Portugal e que mática. Para a Galiza, é importante usamos o "Sal se podes". É uma forma
Como nasce um país? É impossí- sos hídricos, de controlo do meio am- nem sempre é correspondida? dar passos no sentido de se supera- de entender o mundo verdadei-
vel responder a esta pergunta. Há biente. São avanços que nos mostram Há claramente um défice, sim. rem algumas diferenças linguísticas. ramente original. Não nos diz que
territórios pequenos que são Estados o muito que ainda está por fazer. Devíamos tentar corrigi-lo. A Galiza As normas são por vezes paralisantes. aquele caminho está fechado, mas
e grandes que também o são. O que seria muito mais forte se tivesse E depois há um trabalho enorme de que dele sairás se conseguires. E à
une o Nepal? E a Índia? As nações Quer exemplificar? melhores relações com Portugal. Mas conexão cultural ou universitária. tua maneira. Confia nos demais para
não são diretamente racionais. Sé em A nível diplomático, a Espanha não podemos impor a nossa posição. resolver a situação que enfrenta. Pode
parte, o resto é sentimento, emoção já devia ter trabalhado para ser Temos de partilhar interesses. Não há o risco de o Galego ser ser irónico, mas é aberto. E é assim
e incerteza. Pode ter dependido de admitida na CPLP com o estatuto de Recentemente, na Galiza, deram-se esmagado por duas grandes forças: o que gosto de pensar a cultural galega:
elites mais esclarecidas, ousadas e observador associado, como fizeram passos muito importantes, como português e o castelhano? aberta ao mundo, em busca da sua
preparadas. Itália, França, Andorra, Reino Unido a aprovação da Lei Paz-Andrade, Penso que não. O Galego, como própria saída.J
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt COLUNA
ideias * 29
A esquerda e a “austeridade”
(todas) lho mostraria – que detrás da fachada
das palavras “austeras” não há austeridade
nenhuma. Não se trata de comportamentos
individuais (que também contam) mas de
escolhas de princípio e reflexos de estrutura que
permanecem inalterados e mesmo, agravados,
desde o 25 de Abril.
Já o dizia Garrett: há poucos povos tão
Este texto inédito, sobre o governo chamado do “bloco central”, tendo como primeiro-ministro sofredores como o português. Durante séculos
habituou-se a dar a camisa a quem lha tira. O
Mários Soares (PS) e como vice Mota Pinto (PSD) é datável de 1984-85*, quando o país esteve atual Governo não é precisamente um governo
sob intervenção do FMI. E, para lá da opinião do pensador especificamente sobre esse período reacionário, uma mera emanação das forças
políticas mais retrógadas da Nação. Seria uma
e governo, diz muito também sobre o que ocorreu com a ainda maior “austeridade” imposta injúria gratuita afirmá-lo. Mas não tem força
pelo anterior governo, de Passos Coelho (PSD/CDS), igualmente em contexto de intervenção nem vontade para resistir às suas exigências
cada vez mais fortes, aos seus reflexos cada vez
externa, e sobre certas realidades que, apesar de diversas melhorias, subsistem. “O povo mais análogos aos dos grupos que durante 40
adivinha que detrás da fachada das palavras ‘austeras’ não há austeridade (...) mas escolhas de anos condicionaram o viver anti-democrático
do País. O tipo de austeridade que foi obrigado
princípio e reflexos de estrutura que permanecem inalterados desde o 25 de Abril”, escreve
A
a cultivar é o de uma austeridade seletiva, mas
seletiva no sentido mais intolerável: é a grande
massa que suporta quase só o peso dessa neces-
s políticas nacionais - e sária austeridade. Se António Sérgio fosse vivo
em particular, a dos teria de repetir até ao enjoo a sua famosa litania
países de escasso relevo do “tubaronismo”. E outras. Sob a “fachada”
económico, como o da austeridade, confortados com o mágico
nosso – não podem ser aval da democracia, o País assiste ao triunfo
mais do que micros- impune do negocismo na ordem económica e
sistemas. As ondas de do nepotismo na ordem política e moral. Como
choque que nelas se são os beneficiários de um e outro que dispõem
refletem têm o seu epi- ou controlam a quase totalidade dos órgãos de
centro longe e fora do nosso alcance. Podemos informação la boucle est bouclée, o círculo (do
limitar-lhes os efeitos mas não subtrair-nos a vício) quase perfeito.
eles, a menos de sair do macrossistema. O que Portugal atravessou já, no passado, situações
não é fácil. A níveis diferentes que o digam a parecidas. Parecidas, só que nesses tempos o
França ou Cuba. Uma parte importante da opo- português comum vivia à margem do Estado e
sição de esquerda à atual política do Governo dos interesses que nele confluíam. Uma centena
Ernâni Lopes* age como se Portugal fosse, em de caciques servia de televisão ambulante e
si, um “sistema” de particular configuração dizia a “verdade” nos tempos do bom Júlio
controlada por gente apostada numa política Dinis, que enjoava com ela. Hoje basta um
ao mesmo tempo obtusa e eficaz no género Cacique-Mor, com a mão noturna e diurna no
ARQUIVO A CAPITAL
anti-popular. Ora é evidente que a política santo dos santos, para condicionar e anestesiar
económica e social deste governo é, dentro do um povo inteiro. É o que há de mais angustiante
esquema restauracionista que lhe é próprio, não na atual conjetura: a normalidade dessa fan-
só uma política coerente como inevitável, se a tástica confiscação da voz pública convertida
avaliarmos em termos de política de austeri- na voz do “nosso dono”. Praticamente deixou
dade. Exactamente como o são, em contextos Mário Soares e Mota Pinto Líderes do governo do bloco central, entre 1983 e 1985 de haver crítica política em Portugal, salvo a
diferentes, e perspetivas não sobreponíveis, as codificada em clivagens partidárias e, por isso
“
estratégias de austeridade em vigor na França, mesmo, pouco operantes. Tudo se passa como
na Bélgica, na vizinha Espanha. se o País estivesse disposto a aceitar o inexo-
Nenhuma outra solução política, na hora Mário Soares-Mota Pinto. Se não é possível rável: o triunfo absoluto do clientelismo mais
atual, por mais progressista e popular que de- fugir à austeridade e impopularidade que ela desaforado de que há memória nos anais pouco
sejasse ser, se poderia eximir a uma exigência acarreta, é possível, e seria bem necessário, democráticos da Nação. E o que torna a situação
– essa da austeridade – imposta por um Sistema Sob a 'fachada' da vivê-las, suportá-las e tentar remediá-las de mais desesperada é que este condicionamen-
ou conexa com ele. E também não é honesto austeridade, confortado com outra maneira. Em termos de discurso econó- to, esta anestesia geral se processa sob a égide
imaginar que a melhor das políticas de auste- mico, o discurso do autêntico homem forte da daquele Partido e daquele Homem (do partido
ridade possa ser outra coisa do que impopular. o mágico aval da democracia, atual equipa dirigente não é particularmente deste Homem) que mais do que nenhum outro
A oposição de esquerda perde o seu precioso o País assiste ao triunfo demagógico. A natureza da solução que preco- consubstanciou, em dado momento, não só a
tempo, concentrada a sua crítica na glosa dos niza é outra história. esperança como a certeza de nova vida para a
malefícios de uma austeridade e nos efeitos de
impune do negocismo na Mas é, e não pode deixar de o ser, intrinse- grande maioria do povo português.J
impopularidade que arrasta, na medida mesma ordem económica e do camente demagógico o global discurso político
em que uns e outros são inevitáveis. que enquadra o referente dessa política econó-
Todavia, não é no que denuncia que a opo-
nepotismo na ordem política mica. E não apenas por ser difícil a Mário Soares
* Datável de 1984-85 uma vez que se alude à “austerida-
de” provocada pela segunda missão em Portugal do FMI,
sição se engana ou bate em vão, é no que cala. e moral exprimir-se em outros termos ou situar-se durante a qual foi necessário aumentar impostos e preços
A situação económica da maioria do povo por- noutra perspetiva, apesar dos acentos “chur- de bens sociais, congelar investimentos públicos, cortar
tuguês é calamitosa – e mais o parece depois da chilianos” que é capaz de utilizar para pregar a quase 30% nos subsídios de Natal em 1983, enquanto se
enganadora euforia em que nadou – e verificá- pularidade. Os níveis de desemprego atingido, austeridade… aos outros. A demagogia intrín- assistia ao acumular de salários em atraso, ao crescimento
-lo, apontá-lo, descobrir-lhe as causas e dese- a descida de nível de vida coletivo, num prazo seca do atual discurso consiste precisamente na do desemprego e à desvalorização do escudo. O Governo
nhar os remédios, é direito e dever da oposição. previsível, consentem poucas ilusões acerca da tentativa de esconder, de escamotear, através do Bloco-Central (IX Governo Constitucional), recorde-se,
Mas qualquer que seja o diagnóstico (no qual a permanência da impopularidade, mesmo com de simulacros e subterfúgios vários, a impopu- tomou posse a 9 de junho de 1983 e cessou funções em 6 de
sua atuação no passado será lembrada), o pro- diversa orientação político-ideológica. laridade, por incapacidade e impossibilidade novembro de 1985. O economista Ernâni Lopes, ministro das
cesso ou a crítica às soluções atualmente pro- Não se pensam e, sobretudo, não se escre- de a assumir. Soares pode verter lágrimas nos Finanças e do Plano, teve então um papel decisivo na aplica-
postas têm de implicar a consciência bem nítida vem tão pouco consoladoras reflexões para ecrãs de televisão. O público sabe, de antemão, ção do programa do FMI, na consolidação da orientação da
de que uma nova política económica e social levar um suplemento de boa-consciência ao que são de cera. O povo adivinha – e se não política macroeconómica do país e na negociação da adesão
não pode escapar também a uma fatal impo- bem pouco “austero” tandem socio-democrata adivinhasse, o espetáculo das classes dirigentes de Portugal à CEE. JNA
3o * ideias COLUNA jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
O
eficaz. Lutam com os conceitos e as armas
que têm mas, no fundo, não confiam nem
nuns nem noutras. Suspeitam que enquanto
s seres humanos, não tiverem confiança para criar outros
ao contrário dos conceitos e inventar outras lutas correrão
pássaros, voam sempre o risco de serem inimigos de si
com raízes. Parte mesmos.
das raízes estão Tal como tudo o resto, os conceitos
nos conceitos que estão à beira do abismo e olham para trás.
herdámos para Menciono, a título de exemplo, um deles:
analisar ou avaliar direitos humanos. Nos últimos 50 anos os
o mundo em que direitos humanos transformaram-se na
vivemos. Sem eles, o mundo pareceria caó- linguagem privilegiada da luta por uma
tico, uma incógnita perigosa, uma ameaça sociedade melhor, mais justa, menos desi-
desconhecida, uma jornada insondável. Os gual e excludente, mais pacífica. Tratados
conceitos nunca retratam exatamente as e convenções internacionais existentes
nossas vivências, até porque estas são muito sobre os direitos humanos foram sendo
mais diversas e mutantes que as que servem fortalecidos por novos compromissos no
de base aos conceitos dominantes. Estes plano das relações internacionais e do
são, afinal, os conceitos que servem os inte- direito constitucional, ao mesmo tempo
resses dos grupos social, política, económi- que o elenco dos direitos se foi ampliando
ca e culturalmente dominantes, ainda que de modo a abranger injustiças ou discri-
matizados pelas modificações que lhes vão minações anteriormente menos visíveis
sendo introduzidas pelos grupos sociais que (direitos dos povos indígenas e afro-des-
resistem à dominação. Estes últimos nem cendentes, mulheres, LGBTI; e direitos
sempre recorrem exclusivamente a esses ambientais, culturais, etc.). Movimentos
conceitos. Muitas vezes dispõem de outros sociais e organizações não-governamen-
que lhes são mais próximos e verdadeiros, tais foram-se multiplicando ao ritmo das
mas reservam-nos para consumo interno. mobilizações de base e dos incentivos
No entanto, no mundo de hoje, sulcado por de instituições multilaterais. Em pouco
tantos contactos, interações e conflitos, A queda do Muro de Berlim tempo, a linguagem dos direitos humanos
não podem deixar de tomar em conta os passou a ser a linguagem hegemónica da
conceitos dominantes, sob o risco de verem dignidade, uma linguagem consensual,
“
as suas lutas ainda mais invisibilizadas ou eventualmente criticável por não ser sufi-
mais cruelmente reprimidas. Por exemplo, quer porque os grupos sociais dominados cientemente ampla, mas nunca impugná-
os povos indígenas e os camponeses não ou subalternos não podem correr o risco vel por algum defeito de origem.
dispõem do conceito de meio ambiente de deitar fora o bebé com a água do banho. Claro que se foi denunciando a distância
porque este reflete uma cultura (e uma eco-
nomia) que não é a deles. Só uma cultura
Democracia, paz, Sobretudo quando estão a perder, o medo
mais paralisante é perder tudo. Penso que
entre as declarações e as práticas e a du-
plicidade de critérios na identificação das
que separa em termos absolutos a sociedade soberania, multilateralismo, vivemos um período com estas caracte- violações e nas reações contra elas, mas
da natureza, de modo a pôr esta à dispo- primado do direito, rísticas. Paira sobre ele uma contingência nada disso abalou a hegemonia da nova li-
sição incondicional daquela, precisa de tal que não é resultado de nenhum empate teracia da convivência humana. Cinquenta
conceito para dar conta das consequências progresso - todos estes entre forças antagónicas, longe disso. Mais anos depois, qual é o balanço desta vitória?
potencialmente nefastas (para a sociedade) conceitos sofrem o mesmo parece uma pausa à beira do abismo e a Vivemos hoje numa sociedade mais justa,
que de tal separação podem resultar. Em olhar para trás. mais pacífica? Longe disso, a polarização
suma, só uma cultura (e uma economia) processo de erosão dos Os grupos dominantes nunca senti- social entre ricos e pobres nunca foi tão
que tende a destruir o meio ambiente preci- direitos humanos, a mesma ram tanto poder nem nunca tiveram tão grande, guerras novas, novíssimas, re-
sa do conceito de meio ambiente. pouco medo dos grupos dominados. A sua gulares, irregulares, civis, internacionais
Em verdade, ser dominado ou subalterno facilidade com que arrogância e ostentação não têm limites. No continuaram a ser travadas, com orça-
significa antes de tudo não poder definir a se deixam confundir entanto, têm um medo abissal do que ainda mentos militares imunes à austeridade, e
realidade em termos próprios, com base em não controlam, uma apetência desmedi- a novidade é que morrem nelas cada vez
conceitos que reflitam os seus verdadeiros
com práticas que os da por aquilo que ainda não possuem, um menos soldados e cada vez mais populações
interesses e aspirações. contradizem desejo incontido de prevenirem todos os civis inocentes: homens, mulheres e, so-
Os conceitos, tal como as regras do riscos e terem apólices contra todos eles. bretudo, crianças. Em consequência delas,
jogo, nunca são neutros e existem para No fundo, suspeitam serem menos defini- do neoliberalismo global e dos desastres
consolidar os sistemas de poder, sejam tivamente vencedores da história quanto ambientais, nunca como hoje tanta gente
estes velhos ou novos. Há, no entanto,
períodos em que os conceitos dominantes
Concebeu-se como passado pretendem, serem senhores de um mundo
que se pode virar contra eles a qualquer
foi forçada a deslocar-se das regiões ou dos
países onde nasceu, nunca como hoje foi
parecem particularmente insatisfatórios superado o que afinal momento e de forma caótica. Esta fragilida- tão grave a crise humanitária. Mais trágico
ou imprecisos. São-lhes atribuídos com
igual convicção ou razoabilidade signi-
era o presente mais do que de perversa, que os corrói por dentro, fá-los ainda é o facto de muitas das atrocidades
cometidas e atentados contra o bem-estar
temer pela sua segurança como nunca,
ficados tão opostos, que, de tão ricos de nunca determinado a ser imaginam obsessivamente novos inimigos, das comunidades e dos povos terem sido
conteúdo, mais parecem conceitos vazios. futuro. Nisto consistiu estar e sentem terror ao pensar que, depois de perpetrados em nome dos direitos huma-
Este não seria um problema de maior se as tanto inimigo vencido, são eles, afinal, o nos.
sociedades pudessem facilmente substituir no abismo a olhar para trás, inimigo que falta vencer. Claro que houve conquistas em mui-
esses conceitos por outros mais escla- confiante em o passado do Por sua vez, os grupos dominados nunca tas lutas, e muitos ativistas de direitos
recedores ou condizentes com as novas se sentiram tão derrotados quanto hoje, as humanos pagaram com a vida o preço
realidades. A verdade é que os conceitos futuro nada tem a ver com exclusões abissais de que são vítimas pa- da sua entrega generosa. Acaso eu não
dominantes têm prazos de validade inson- o futuro do passado. Esta a recem mais permanentes do que nunca, as me considerei e considero um ativista de
dáveis, quer porque os grupos dominantes suas reivindicações e lutas mais moderadas direitos humanos? Acaso não escrevi livros
têm interesse em mantê-los para disfarçar maior monstruosidade do e defensivas são silenciadas, trivializadas sobre as conceções contra-hegemónicas e
ou legitimar melhor a sua dominação, tempo presente pela política do espetáculo e pelo espetáculo interculturais de direitos humanos? Apesar
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt COLUNA, LIVROS
ideias * 31
disso, e perante uma realidade cruel que só OS DIAS DA PROSA
não salta aos olhos dos hipócritas, não será
tempo de repensar tudo de novo? Afinal, Miguel Real
a vitória dos direitos humanos foi uma
vitória de quê e de quem? Foi a derrota de
quê e de quem? Terá sido coincidência que
a hegemonia dos direitos humanos se acen-
tuou com a derrota histórica do socialismo
Um manifesto anti-pósmodernista
como os grupos dominados? Não terão sido
os direitos humanos uma armadilha para
centrar as lutas em temas setoriais, deixan-
do intacta (ou até agravando) a dominação
N
capitalista, colonialista e patriarcal? Não se
terá intensificado a linha abissal que separa
os humanos dos sub-humanos, sejam eles
negros, mulheres, indígenas, muçulmanos, a dúzia de anos entre 2006 e 2018, João Maurício freudiano e da Igualdade marxiana, que, mais do que o seu prolongamen-
refugiados, imigrantes indocumentados? Brás (JMB) publicou nove livros, de desigual es- to e cumprimento, efetuaram uma verdadeira perversão, ao limite, uma
Se a causa da dignidade humana, nobre em tatuto, mas todos importantes para a genealogia depravação: é o “mundo às avessas”, ou seja, “o manicómio contemporâ-
si mesma, foi armadilhada pelos direitos do pensamento do autor em torno da teorização neo” em que a Europa se tornou após a II Guerra Mundial.
humanos, não será tempo de desarmar a e exploração do elemento da negatividade do Neste sentido, JMB aponta os pensadores emergidos na década de 1960
armadilha e olhar para o futuro para além mundo. Com efeito, na figura do Negativo ou como autores de um desregramento conceptual que, invertendo os pilares
da repetição do presente? da Negatividade reside a vertente dominante e ético-sociais do Liberalismo e da ideologia do Progresso, raia o horizonte
Estas são perguntas fortes, perguntas singular do seu pensamento e, neste aspeto, é de delírio na análise cultural (as múltiplas formas de multiculturalismo,
que desestabilizam algumas das nossas um pensamento único em Portugal. com cruzamento de valores sem hierarquia axiológica), na religião (iden-
crenças mais enraizadas e das práticas A obra de JMB inicia-se com a análise da filosofia de E. Cioran (a única tificação de grupos e de seitas a religiões, com obediência, sem inquirição
que sinalizam o modo mais exigentemente existente em Portugal), O Pensamento Insuportável de Cioran: um itinerário crítica, aos dogmas de cada uma delas), as novas modas anti-carnistas e
ético de sermos contemporâneos do nosso do desespero à lucidez (1998, publicado em 2006). Com exceção dos três vegetarianistas, a moda dos estudos de género, do especismo, do femi-
tempo. São perguntas fortes para as quais livros versados sobre o pensamento de Onésimo T. Almeida (Utopias em Dói cídio, os estudos pós-coloniais e culturais, os estudos LGBT, os estudos
apenas temos respostas fracas. E o mais Menor. Conversas transatlânticas com Onésimo, 2012, e Identidade, Valores, da sexualidade…, que o autor assim ajuíza: “Quando tudo se pode tornar
trágico é que, com algumas diferenças, Modernidade. O Pensamento de Onésimo Teotónio Almeida, 2015, bem como [culturalmente] ainda mais opaco e mais confuso, ser uma coisa e o seu
o que acontece com os direitos humanos uma seleção de textos deste autor, Onésimo. Único e Multímodo, 2015 – contrário e tudo em simultâneo, o que em linguagem antiquada signi-
acontece com outros conceitos igualmente um tríptico que, na sua diversidade, constitui o melhor estudo publicado ficava infringir os princípios básicos da lógica, são agora patamares de
consensuais. Por exemplo, democracia, sobre este pensador de origem açoriana), todos os restantes cultivam uma excelência do pensamento pós-moderno” (p. 154). Dito de outro modo,
paz, soberania, multilateralismo, primado filosofia exploradora dos elementos da negati- Foucault, Deleuze, Lacan, Derrida, Zizek, mas
do direito, progresso. Todos estes concei- vidade, que os títulos denunciam: Exercícios de também Z. Bauman e o “pensamento líquido”,
tos sofrem o mesmo processo de erosão, a Desencanto e Inutilidade (2002), A Importância de são apresentados, sobretudo nos segundo e
mesma facilidade com que se deixam con- Desconfiar (2010), Filosofia Inútil. Sobre as nossas terceiro capítulos, como os autores principais
fundir com práticas que os contradizem, a ilusões indispensáveis (2011), e, já nos últimos deste desvirtuamento e subversão da moral
mesma fragilidade perante inimigos que os dois anos, numa fase de maturidade, O Negativo. liberal moderna num infausto “politicamente
sequestram, cooptam e transformam em A importância do conceito na cultura e na história correto” que gere hoje os nossos comportamen-
instrumentos dóceis das formas mais arbi- (2017), a que acresceu, O Mundo às Avessas. O tos. Subcapítulos como “Evoluímos – mais de
trárias e repugnantes de dominação social. Manicómio Contemporâneo (2018). Notem-se 50 géneros humanos” (pp. 63 ss.), “Caldeirada
Tanta desumanidade e chauvinismo em os prefixos dominantes das palavras dos títulos: pós-moderna” (pp. 68 ss.), “O século do cu. O
nome da defesa dos direitos humanos, tan- “in”, “des”, típicos de uma visão às “avessas”, Cu é lindo” (pp. 94 ss.), “O humor de Lacan a
to autoritarismo, desigualdade e discrimi- denunciadora do momento e da atualidade da Zizek” (pp. 127 ss.), “As conferências de ciências
nação transformados em normal exercício filosofia e da cultura ocidentais. humanas são burlescas?” (pp. 156 ss.) são exem-
da democracia, tanta violência e apologia Neste último estudo, a Introdução, numa plificativas de como, segundo JMB, o pensa-
bélica para garantir a paz, tanta pilhagem síntese perfeita, esclarece a visão de JMB: “No mento filosófico e social atingiu, sob disfarce de
João Maurício Brás
colonialista dos recursos naturais, huma- mundo contemporâneo ocidental, triunfa uma um criticismo louvável, um nível hediondo de
nos e financeiros dos países dependentes pseudo-democracia alicerçada em dois pilares: relativismo, no qual, para as novas gerações, os
com o respeito protocolar da soberania, uma versão desfigurada do liberalismo e da antigos valores possuem um mínimo poder de
tanta imposição unilateral e chantagem em educação liberal, o neoliberalismo, e um novo progressismo, perversão atração, para não dizer nenhum.
nome do novo multilateralismo, tanta frau- deliberada dos antigos valores do progresso, do iluminismo e do marxismo” Não sabemos se o autor tem razão, nem é esse o sentido de uma recen-
de e abuso de poder sob a capa do respeito (p. 9). O autor evidencia os dois conceitos fundamentais da sua visão da são, porventura nem temos sabedoria para aquilatar da razão ou falta dela
das instituições e do cumprimento da lei, atual sociedade europeia e americana: o neoliberalismo e o neoprogres- das teses do autor. Devemos, sim, sem mácula, chamar a atenção do leitor
tanta destruição arbitrária da natureza e da sismo, caricaturas atuais do moderno liberalismo anglo-saxónico (Locke, para o pensamento singular de JMB, uma radiografia implacável e burlesca
convivência social como preço inevitável Stuart Mill…) e das filosofias fundadoras do Iluminismo do século XVIII, da das filosofias em moda concebidas nos últimos 50 anos. JMB tem a ousadia
do progresso! teoria do Progresso nascida da Revolução Industrial inglesa e alemã e do de se postar contra as correntes em moda, critica autores, universidades,
Nada disto tem de ser inevitavelmente Marxismo da I Internacional dos Trabalhadores. De um certo modo, JMB, congressos internacionais, postando-se, não à parte, mas determinante-
assim e para sempre. A mãe de toda esta para além da moral kantiana, aceita a autenticidade filosófica e ideológica mente contra a pós-modernidade. Escreve ele: “Aquilo a que chamamos
confusão, induzida por quem beneficia dos pais fundadores da contemporaneidade, Nietzsche, Marx e Freud, os pós-modernismo é uma poderosa ameaça aos fundamentos da democracia
dela, de toda esta contingência disfarçada três pensadores da “Suspeita” (Paul Ricoeur, de certo modo semelhante ao ocidental e aos valores da modernidade. (…) A pós-modernidade coloca
de fatalismo, de toda esta paragem vertigi- conceito de “Desconfiança” que JMB desenvolverá num em causa a existência da realidade, da objetividade e da
nosa à beira do abismo reside na erosão bem dos livros acima referidos), como a autenticidade inqui- verdade, alegando que tudo é construção e perspetiva.
urdida nos últimos 50 anos da distinção ritiva (digamos) clássica de Heidegger, pondo, porém, em Até certo ponto, as ideias pós-modernas não podem ser
entre ser de esquerda e ser de direita, uma causa os seus continuadores da segunda metade do século contestadas, são dogmáticas e a sua defesa é intransigente
erosão levada a cabo com a cumplicidade XX, aliás, mais epígonos do que continuadores, verdadei- e fanática. Este proselitismo conta com a manipulação da
de quem mais seria prejudicado por ela. Foi ros avatares que substituíram a ousadia de pensar de Kant opinião pública e a criação de um clima de sentimenta-
por via dessa erosão que desapareceram do pelo sucesso das modas jornalísticas e académicas. lismo e emotivismo permanentes, onde tudo é superficial
nosso vocabulário político as lutas anti- O neoliberalismo, perversão económico-financei- mas muito reativo” (p. 33, n-r-pé, muita longa para aqui
-capitalistas, anti-colonialistas, anti-fas- ra do anterior liberalismo, tudo submetendo ao deus ser transcrita. Aconselha-se, porém, o leitor a lê-la na
cistas, anti-imperialistas. Concebeu-se “mercado”, despreza a obediência moral aos antigos totalidade).
como passado superado o que afinal era o valores éticos, incentivando o consumismo desenfreado Finalmente, para além de Onésimo (cf. “Modernidade,
presente mais do que nunca determinado a e a mania obsessiva da riqueza, e o neoprogressismo, pós-modernidade e outras nublosidades”, Revista de
ser futuro. Nisto consistiu estar no abis- como corrupção e apodrecimento atual dos novos valores › João Maurício Brás História e Teoria das Ideias, vol. XXII, 2006), sem ser cató-
mo a olhar para trás, confiante o passado anti-kantianos teorizados pelos três filósofos da Suspeita, O MUNDO ÀS AVESSAS. lico ou conservador, alguém tem a coragem de dizer que o
do futuro nada tem a ver com o futuro do contaminaram a tal ponto o pensamento contemporâneo, O MANICÓMIO rei vai (quase) nu.
passado. Esta a maior monstruosidade do numa ostentação do perspetivismo e das qualidades do CONTEMPORÂNEO Afinal, não aprofundámos o conceito de “negativida-
tempo presente.J novo Homem nietschiano, num enaltecimento do Desejo Opera Omnia, 162 pp., 10,60 euros. de” de JMB – fica prometido para uma próxima vez.J
32 * ideias CRÓNICA, LIVROS jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
ENSAIO
Cristianismo e
ECOLOGIA VIRIATO SOROMENHO MARQUES mundo clássico
O declínio económi-
co e cultural é um dos
H
Estudos Clássicos em Cambridge e
jornalista em The Times, desenvolve
uma linha igualmente importante:
á mais verdade a intolerância religiosa. O título do
nas grandes livro é, nesse sentido, paradigmá-
ficções da tico: A Chegada das Trevas. A é tese
literatura e do muito clara: do mundo clássico,
cinema do que os cristão destruíram intencional-
nos tratados mente mais do que preservaram.
de ciência e de E a demonstração é ainda mais
filosofia. Mas, apelativa. O que torna este livro
por vezes, essa fascinante é a forma como Nixey
verdade é tão agressiva que se assemelha põe em diálogo (e em confronto)
a um murro…que sai pelas nossas costas. as fontes da época. De um lado, as
O mais recente filme de Paul Schrader, hagiografias cristãs. Do outro, os
No Coração da Escuridão (First Reformed) testemunhos e não poucas vezes
é uma daquelas obras-primas que não sátiras dos filósofos da tradição
nos escapam do pensamento, mesmo greco-romana. De um lado, a
muitos dias depois de termos saído da imposição de um ódio religioso
sala de cinema. O poder das forças puras: monoteísta nunca antes visto. Do
da representação (magistral no caso de outro, a melancolia por um mundo
Ethan Hawke, no papel de um pastor que conhecia o seu ocaso.
que é o personagem central da trama),
da simplicidade de meios, as palavras › Catherine Nixey
depuradas erguendo-se contra o fundo A CHEGADA DAS TREVAS
da monótona paisagem rural norte- Tradução de Pedro Carvalho e Guerra,
americana, como numa estilizada tela de Desassossego, 336 pp, 18,80 euros
Edward Hopper. Poderia dizer-se que se
trata da tragédia da condição humana.
Que Sófocles ou os estoicos já o disseram,
milénios antes de Shakespeare. Mesmo No Coração da Escuridão Filme de Paul Schrader
Filhos da Guerra
a culpa que persegue o pastor não é O tempo, tão
inédita. O aedo do fardo imperial do necessário à feitura
“
homem branco, o britânico Rudyard da História, tem
Kipling, também empurrou um filho permitir que um mal desta dimensão permitido aborda-
quase imberbe para o heroísmo bélico, possa ter sucedido?” A pergunta certa, gens mais profundas
para ser trespassado por uma bala alemã hoje, é: “será que Deus alguma vez nos das consequências
nas primeiras semanas do matadouro Somos a primeira geração perdoará o que fizemos à sua obra em da Guerra Colonial,
da I Guerra Mundial. Não, o drama de nome da nossa alegada liberdade?” em particular as
Paul Schrader é sobre nós, agora e no que olha para a catástrofe O mais inquietante neste filme é que que se centram no sofrimento
futuro próximo. Somos a geração que que produzimos todos os ele surpreende algo que poucas vozes das pessoas e nas marcas que
sabe e sente a realidade das alterações ainda identificaram. Nesta época em guardam. Nos seu trabalho
climáticas, esse Adamastor que a
dias, como alguém que que a mediocridade impera, em que enquanto jornalista (no Público)
arrogância dos candidatos a super- vislumbrasse pelo telescópio as democracias elegem imbecis ou e co-argumentista de docu-
homem tecnológico e a Dr. Fausto do criminosos para apaziguarem os medos mentários, Catarina Gomes tem
motor de combustão despertaram para
um asteroide devastador e de rebanho, a imagem da condição abordado um dos grandes tabus
reinar no próximo milénio. Somos se limitasse a encolher os humana e do projeto humano entrará da sociedade portuguesa: os
a primeira geração que olha para a
catástrofe que produzimos todos os
ombros num enorme e perigoso crepúsculo.
Os tempos que já despontaram serão
filhos de militares portugueses,
"crianças que ficaram para trás
dias, como alguém que vislumbrasse cada vez mais marcados pela raiva do (em Angola, Moçambique e na
pelo telescópio um asteroide devastador homem contra si mesmo. Pelo desprezo Guiné-Bissau) e que há anos
e se limitasse a encolher os ombros. produto da civilização prometeica. por si próprio. A vida humana será buscam uma identidade perdi-
Temos os cenários, conhecemos as O pastor encontra uma jovem ovelha cada vez mais barata e descartável. O da". O livro centra-se em his-
projeções, sabemos que não são só tresmalhada, uma que não consegue suicídio e o homicídio combinam-se tórias específicas, fruto de um
os ursos polares que estão a perder desviar o olhar do que aí vem. O pastor na perfeição, na figura do homem- longo trabalho de reportagem,
território. Nós também. Enquanto já não se ergue contra um Deus, em bomba, que se torna cada vez mais mas elenca, no fim, outros casos
tivermos pão em cada dia, aceitamos que continua a acreditar. Esse Deus, o sacerdote da religião universal do conhecidos e por esclarecer. Em
que se construam muros (por todo o que vergastávamos para sacudir os niilismo. Definitivamente, um filme só todos, a mesma tristeza: o não
lado!), criminalizamos os miseráveis e nossos pesadelos, morreu no século para adultos. Para uma cada vez mais reconhecimento desta realidade
desapossados que nos chegam à porta, e XIX. No século XXI, a ausência de Deus pequena minoria. Uma extraordinária por parte do Estado português.
nos incomodam com o seu sofrimento. é condição da liberdade humana até comprovação de que no meio das
Somos mestres inexcedíveis na arte para os teólogos menos imaginativos. E ruínas, o cinema se ergue como a mais › Catarina Gomes
de nos protegermos num casulo de quando olhamos para o que fizemos da esplendorosa arte metafísica. Imitando a FURRIEL NÃO
consumismo e de estupidez, tanta que Natureza, a pergunta a fazer não é a da natureza profunda e dolorosa das coisas. É NOME DE PAI
até parece ser natural, e não um notável teodiceia de Leibniz: “como pôde Deus Ao serviço, apenas, da Verdade.J Tinta-da-China, 224 pp, 16,90 euros
J 1 a 14 de agosto de 2018 * jornaldeletras.pt
* 33
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34 * debate-papo jornaldeletras.pt * 1 a 14 de agosto de 2018 J
Obras em casa
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PRINCIPAL ACIONISTA: Luís Delgado (100%)
PUBLISHER: Mafalda Anjos
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azer obras em casa enfrenta-se com DIRETOR: José Carlos de Vasconcelos
em obras. Algumas pessoas prometem fazer-nos uma sopa, isso PAGINAÇÃO: Patrícia Pereira
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REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇOS COMERCIAIS: Rua Calvet de
Magalhães, nº 242, 2770-022 Paço de Arcos - Tel.: 214 698 000
assim não sabemos de Fax: 214 698 500 - email: jl@jornaldeletras.pt. Delegação Norte: Rua
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cheiram mais e outras podermos continuar. Talvez nos seja impedida a devolução à Registo na ERC com o nº 112 348
que já nem cheiram, são em modo saudável para não induzi- normalidade. Talvez nos desloquemos para sempre depois de Depósito Legal nº 127961/98 – ISSN nº 0872-3540
rem intoxicações, enxaquecas e até diarreias. Enquanto a casa acabada a casa com outra cor, uma cama diferente, o espelho A Trust in News não é responsável pelo conteúdo dos anúncios
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A respetiva veracidade e conformidade com a realidade, são da integral
sofrimento, tudo urge em ser escolhido e urge em chegar. Os alguma, apenas risco. As casas novas não sabem de nós, nem e exclusiva responsabilidade dos anunciantes e agências ou empresas
homens fabricam à pressa. O que não impede que, para o que que o queiramos muito. As casas novas são centradas em si publicitárias. Interdita a reprodução, mesmo parcial de textos,
fotografias ou ilustrações sob qualquer meios, e para
padecemos, seja violentamente devagar. Fabricam cheios de mesmas. O habitante é um apontamento menor, uma inscrição quaisquer fins, inclusive comerciais.
encomendas mas com resultado demasiadamente lento. Cada ainda ténue. PORTE PAGO
dia são também cem anos. Confundi o fornecedor com a farmácia. Ao telefone, pare-
Ando com a biblioteca em caixas. Os livros amontoados. ceu-me dizerem-me que os materiais haviam chegado à minha
Escondidos de mim, sem lhes poder mexer. E agora é que me dá farmácia. Desfeito o equívoco, segui pensando que um cuidado
Ligue já 21 870 5050
uma necessidade aguda de completar as leituras dos russos, que médico não seria desadequado a quem reforma a casa. É da mais Assine o
Dias úteis: 9h às 19h
ando com a mania do Dostoievski e quase compro outra vez as pura verdade a dor que nos dá em todos os pagamentos e todas
edições que tenho. Resgato alguns livros para juntar na pasta de as notícias de que, afinal, é necessário partir mais um bocado,
todos os dias, que pesa indecentemente, mas a tentação é a de mais um bocado a cada dia, até partir tudo, absolutamente
fazer caber a casa inteira na pasta, para a termos segura debaixo tudo. Como se a casa nem fosse mais uma cada. E nós, ninguém.
do braço, para dispormos dela. Fugir para lá dos banhistas Vou estar deste modo o verão inteiro. Se me encontrarem
ávidos e abrir a pasta numa sombra para regressar ao centro na rua, aflito com a vida, é só isso. Pondero sobre joelhos de
logístico da nossa própria identidade. Para regressarmos ao cobre e castelos altos para os passadores de três quartos, não vá
centro do nosso lugar mental, equilibrado por anos de escolha e alagar-se a casa. J
debate-papo * 35
1427333
PRETEXTOS
Helder Macedo
O HOMEM
DO LEME
Plausibilidade e veracidade MANUEL HALPERN
O futuro passado
O O
teatro, como dizia o outro, é o também não são favorecidos pelos islamitas e alguns
espelho da sociedade. É por isso outros. Em suma, na própria sociedade de que o teatro é o passado fará sempre parte do
interessante notar que em alguns espelho nem sempre é possível distinguir entre quem é e futuro e do presente. Somos
países, como a Inglaterra, há quem não é quem parece ser. Na Alemanha dos anos 30 e habitados de memórias e de
uma crescente tendência para 40 do século passado, quando os nazis retiraram aos judeus saber de experiência feito, di-
o blind casting (não sei qual é a os seus legítimos direitos de cidadania, impuseram-lhe o ficilmente partimos para uma
expressão portuguesa equivalente, uso exterior de uma estrela amarela para os conseguirem situação de um opaco vazio.
desculpem lá a minha ignorância distinguir à primeira vista dos “genuínos” cidadãos Valha-nos talvez o esquecimento seletivo para
de expatriado), que consiste em supostamente arianos. que a vida não se torne uma mera repetição
usar atores ou actrizes, independentemente da sua etnia Por essas e por outras razões, li com muito agrado que de movimentos quotidianos. Somos seres re-
ou género, para representar papeis que, no contexto da na França estão a querer abolir qualquer caracterização plicantes, monótonos, clones de nós próprios.
peça, são caracterizados como de uma determinada raça rácica nos documentos de identidade. Só espero que Mas não é nada disto que está em discussão.
ou sexo. Por exemplo, um em breve também retirem Não precisamos de ensaboadelas filosóficas,
negro a ser o escandinavo qualquer referência ao sexo das nem éticas superficiais para compreender o
Hamlet que poderia ter pessoas. Pelas mesmas razões, perigo em que este invento coloca à huma-
havido, ou uma mulher a considero que a legislação nidade. Concordo com o excelentíssimo sr.
ser o Júlio César que tivesse discriminatória que acaba de Deputado quando diz, do alto da sua reputação
havido. É um terreno minado ser imposta em Israel é, no académica, que o homem também se faz das
por confusões, das quais mínimo, perversa e aberrante. máquinas que cria. E seria de uma cegueira
porventura a principal é entre O quê, segregação étnica nesta ideológica que não me assiste, se me recusasse
plausibilidade e veracidade. fase do campeonato?! É claro a admitir que a máquina por muitas vezes tem
O facto, no entanto, é que que a indignação e os protestos salvo o homem. O que está aqui em causa é
nenhum ator, macho ou fêmea, já começaram a manifestar-se algo ainda mais profundo e socialmente cor-
de pele escura ou clara, é dentro do próprio Israel, que é rosivo do que a própria bomba de Hiroshima,
Hamlet ou Júlio César, mas onde essa nefasta situação terá uma vez que mexe, influi, com a natureza
simplesmente outra pessoa de ser resolvida. E ao menos os humana na sua índole mais individual e quo-
que na representação dessas discordantes cidadãos israelitas tidiana, colocando em causa os seus alicerces,
peças escritas por um inglês que, sendo judeus, são por não apenas morais, mas existenciais. Estamos
há mais de quatro séculos, isso também democráticos e em risco de patrocinar a criação de um novo
está agora a fingir – ou seja, pluralistas, não poderão ser homem. Só que em vez de ganhar uma di-
no sentido etimológico da acusados de antissemitismo. mensão espiritual e humana superior, como o
palavra, está a ficcionar – ser Por falar em campeonato. semideus dos mitos bíblicos e pagãos, será um
quem não é onde nunca esteve. O de futebol, que terminou há infra-homem. A liberalização do uso disposi-
A sua veracidade de ator ou pouco mais de uma semana com tivo vulgarmente conhecido como Recall pode
de atriz em qualquer obra a França a ser campeã do mundo, significar o princípio do fim da nossa civiliza-
teatral consiste apenas na levou a celebrações que nem ção. Tal não será feito com o meu voto.
plausibilidade atual da ficção Napoleão depois de Austerlitz. E Reconheço, sem pudor, que o Recall, que
que estiver a representar. E aliás centradas no mesmo Arco tão cegamente o sr. Deputado defende, tem
essa plausibilidade fictícia vai do Triunfo de guerreira memória algumas vantagens aparentes. Todos gostamos
mudando com o tempo. Ira Aldridge O primeiro negro a representar Shakespeare em 1824 napoleónica. Sou totalmente de mergulhar nas nossas mais felizes memó-
“
No tempo de Shakespeare, a favor. Acho ótimo que as rias, com a maior nitidez e precisão possíveis
o ator que representava o competições desportivas tomem - muito embora alguns se desiludem ao notar
escandinavo Hamlet andava o lugar patriótico das antigas que as falsas memórias superam largamente as
por ali em amores mal guerras. Antes fosse assim em verdadeiras. Contudo o que o Recall propõem
consumados com uma Ofélia O desporto, e sobretudo o futebol, todo o mundo. Com o Trump a é um abdicar prematuro da própria vida, uma
que era um rapazito a fingir jogar pingue-pongue “to make eutanásia para não doentes, com padrões
ser rapariga. E o Júlio César de
já se tornou num equivalente teatral America great again”. demenciais. Um dos problemas mais graves
Shakespeare falava em inglês ou operático nas nossas sociedades Mas também é verdade desta tecnologia é a correspondência exata do
e não na língua plausível dos
romanos. É muito possível
atuais. Até o futebol feminino está que o desporto, e sobretudo
o futebol, já se tornou num
espaço de tempo. Ou seja, chegou-se a um tal
grau de precisão, que o tempo despendido a
que o ator que fazia de Otelo agora em pleno crescimento equivalente teatral ou operático reviver um dia do passado corresponde ao de
escurecesse a cara com um nas nossas sociedades atuais. um dia presente. Assim torna-se irresponsa-
pouco de graxa, mas não Até o futebol feminino está agora velmente tentador prescindir do futuro
era por isso que durante três em pleno crescimento. E veja- Se tais experiências podem ser admissíveis
horas ele se transformava no “mouro de Veneza”, era pelos se a composição étnica das principais equipas europeias. em doentes em fase terminal, são intoleráveis
comportamentos e pelas palavras que Shakespeare lhe Jogadores das mais diversas origens e convicções religiosas em todos os outros casos. Imagine-se, no
atribuiu no fingimento da peça. Correspondentemente, em a cantarem os respetivos God Save the Queen, Deutschland limite, uma criança órfã que legitimamente
ópera – que é a forma exacerbada da inverosímil veracidade Über Alles, La Marseillaise, o hino belga que eu nunca tinha deseja usar ininterruptamente o Recall para
teatral – os grandes heróis viris foram personificados ouvido, e o nosso insensato “contra os canhões marchar reviver os anos que passou com os pais. Apesar
por castrados até há pouco mais de um século e, nas marchar”. Por isso, e a despeito da tradicional rivalidade de ser justo o consolo, não seria demasiado
representações atuais de, por exemplo, as óperas de Handel futebolística entre Portugal e a França, acabei por gostar grave retirar-lhe tão cedo o futuro? Não se
ou de Gluck, esses papeis masculinos são cantados por que esses franceses multicolores tivessem ganho na final à encontrariam métodos realistas para supe-
mulheres. O heroísmo está no timbre da voz, na dinâmica da branquinha e anti-semítica Croácia. rar o trauma e permitir-lhe a experiência da
música e na significação das palavras. Bom, sim, mas se não fosse aquele penalti falhado do vida? O Recall é uma sofisticação moribunda,
Por maioria de razão, também nunca foi necessário Cristiano Ronaldo contra o Irão, ou o falso penalti marcado cúmulo da decadência humana. Apelo ao srs.
verificar se um ator que representasse Shylock era mesmo contra nós por insistência do ressentido Carlos Queirós, deputados, independentemente da cor parti-
judeu, espreitando-lhe a circuncisão dentro das calças antes teríamos ficado num grupo que talvez nos permitisse chegar dária, a rejeição desta proposta e a interdição
de começar a peça. O que aliás seria uma inútil precaução, à final. Pois é, mas todas essas coisas são também ficções da tecnologia. Não deixem que a obsessão pelo
como nas óperas cómicas, porque os prepúcios intactos teatrais. J passado extinga o futuro. Tenho dito. J
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© Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1427333 - centro.lusitania@gmail.com - 172.17.21.102 (01-08-18 08:40)
Fingir-se de morto
ranja que se deitam de lado, deixam de agitar as
barbatanas e deixam de respirar pelas guelras.
Ficar quieto é o melhor mecanismo de defesa.”
tão completamente
Visto um tailleur num bege pastel desmaiado
que não combina com nada e que desapare-
ce quando em contraste com as paredes de
qualquer escritório.
A
orçamentos reduzidos, em prazos apertados,
horários novos de serviço, tabelas de lucro e no
cordo no chão da casa de deficit geral do país. Culpe en passant o mundo
banho. Não me lembro de ter exterior pelas condições actuais da empresa, o
desmaiado. mundo exterior é aquele infinita, vaga, e diversa
feira popular repleta de armadilhas que qualquer
“Sabe o quanto gostamos de si, um reconhece.
Manuela, é muito criativa, mas
saiba que por vezes causa algum desconforto Não encontro uns collants sem malhas nem
no departamento, a equipa não se sente muito à um baton que tenha a cor certa.
vontade com tanta iniciativa sua, tem de ter mais Cubro os arranhões na cara e as olheiras com
calma, não precisa de se envolver em todos os uma base que me faz ainda mais pálida do que
projetos como se fossem a sua obra prima.” sou. Não sei se quero fazer chá, ou café, ou beber
um sumo, ou comer cereais, ou uma torrada.
Ainda tenho a voz da directora a martelar-
-me como um eco na cabeça. Dirijo-me “Reforço que deve pensar nas pessoas que tem
para a sanita de gatas. à frente como uma ameaça externa. Não se
esqueça que estes são os trabalhadores que não
“Quando a convidei para dar um novo look ao trazem qualquer benefício para a empresa e por
nosso projecto não imaginava que o fizesse de consequência para todos nós, podendo levar a
forma tão radical. O que trouxe para a imagem nossa empresa à falência. Há que recuperar dos
da nossa empresa é incalculável mas penso que danos causados sem olhar para trás.”
está na altura de mudar para outra secção, ter
uma nova equipa, experimentar novos desa- Saio sem tomar o pequeno almoço. Ainda
fios, o que pensa de se mudar para os recursos é cedo, tenho tempo de ir a pé. Chego ao
humanos, ou para o gabinete jurídico, já que emprego com bolhas nos pés.
tem formação em direito? Interessa-lhe?” Entro pela porta principal e cumprimento,
Sapo burmeister a fingir-se de morto como sempre, o segurança na recepção com
Agarro-me ao tampo da sanita e de joelhos o “tudo de bom” diário que trocamos há
tento vomitar mas tenho o estômago vazio. anos. Engano-me no corredor e volto atrás
Arranho a garganta com o esforço. Deve-se com esta multinacional com sede na Tunísia que daqueles programas da National Geographic porque continuo com o hábito de me esque-
ouvir no prédio todo, penso. nos vai catapultar para o mercado internacional. sobre o mundo selvagem, ou deixe-se ficar cer que trago o farnel que tenho de deixar
Temos todas as condições para isso.” num parque a observar bem os animais e primeiro no frigorífico da sala comum antes
“Agradeço-lhe muito as suas sugestões para prepare-se para amanhã. Veja como muitos de me sentar à minha secretária.
motivar os nossos empregados mas permita-lhe A directora sugeriu almoçarmos no António animais se fazem de mortos quando se sentem
dizer-lhe que não se deve envolver tanto com os dos Leitões depois das duas e meia para es- ameaçados e como essa é a melhor estratégia “Escape-se da reunião na primeira oportuni-
seus colegas de trabalho, a Manuela é sempre mui- tarmos mais à vontade para reunirmos só as de ataque numa situação de perigo. Estude os dade. Despeça-se no geral, não perca tempo
to empática e isso não é bom para si. Está sempre duas. Eu tinha trazido o farnel de casa mas o seus mecanismo e faça como eles amanhã, na com apertos de mão, palmadinhas nas costas
com um sorriso na cara, parece que não leva nada convite não era recusável. reunião. Pense nos trabalhadores como uma individuais ou confissões pessoais; não se en-
a sério, tem de ser mais assertiva, falar sem deixar ameaça para o futuro da empresa. volva, é pior para si. Se sentir alguma agitação
margem para dúvidas ou negociações que possam "Amanhã não vista nada que chame muito a na sala atenda o telefone, peça à sua filha para
ser prejudiciais para a ideia central da empresa. atenção sobre si. E não venha maquilhada. É Seis meses de terapia e várias caixas de lhe ligar a uma hora marcada, diga que já está
O seu trabalho é óptimo mas tem um cunho muito preferível que aparente ter perdido alguma cor ansiolíticos mais tarde e continuo sem a caminho e que pede muita desculpa pelo
pessoal que se torna por vezes disruptivo.” devido à gravidade da situação que está prestes saber porque continuo neste emprego onde atraso para que todos a possam ouvir.”
a anunciar. Por dentro mantenha-se confiante e ninguém parece apreciar os meus préstimos
Respiro com dificuldade pela boca. Assoo cheia de vivacidade como a conhecemos.” e onde as minhas qualidades são defeitos e Entro no escritório e já tenho as pastas com
um nariz entupido de raiva com uma força servem apenas para propósitos ruins. os contratos de rescisão sobre a mesa. Faltam
que o esfola e limpo as lágrimas com papel Pediu-me para esperar por ela à porta do 15 minutos. Ensaio a minha imobilidade
higiénico arranhando as bochechas. elevador enquanto mudava o carro de lugar na “Para iniciar a reunião de despedimento tónica e, devagarinho, vou paralisando cada
garagem para já estar apontado para a saída colectivo, abra de imediato os contratos de um dos membros. Finjo-me tão completa-
“A Manuela tem de começar a desenvol- norte e eu aguardava um dossier com infor- rescisão assim que todos entrarem na sala, mente de morta que quando dou por mim
ver alguns mecanismos de defesa, a ter um mação imprescindível para a nossa conversa. tenha canetas de sobra sobre a sua mesa e não estou com dificuldade em respirar.
comportamento um pouco mais agressivo se Pediu duas entradas e o prato do dia (que sirva café. Peça-o à sua secretária já depois Quando os trabalhadores entram na sala de
não vai acabar a dar cabo de si. A Manuela é sempre pataniscas com arroz de feijão) de todos estarem na sala, e repreenda-a por se reuniões eu já estou morta.
esforça-se demasiado, não é preciso tanto. Por descrevendo em pormenor como pretende ter esquecido de o fazer antes. O café chegará O despedimento foi adiado, mas apenas por
vezes basta um silêncio para fazer chegar a expandir o selo da companhia. Enquanto quando já ninguém o quiser tomar. vinte e quarto horas e após todas as dili-
mensagem a todos que lhe quero pedir.” mexia o café com o pauzinho de canela Informe com brevidade todos os trabalhadores do gências necessárias para ilibar a empresa
informou-me que teria de despedir de 123 propósito desta reunião inesperada e depois fin- de qualquer responsabilidade sobre o meu
Dispo a roupa de ontem. Ligo o esquentador. pessoas no dia seguinte por motivos orça- ja-se de morta. Mantenha-se sempre consciente inusitado falecimento.J
Deixo-me estar debaixo do chuveiro com mentais e que deveria falar com todas elas e ouça tudo, Manuela, mas não responda a nada,
a cabeça e as mãos apoiadas na parede de como se esta fosse uma oportunidade única deixe-se simplesmente ficar imóvel, paralisada
azulejos. Falta-me a força nas pernas. de grande mudança nas suas vidas. e sem resposta a qualquer estímulo. Enquanto
aguarda uma reacção imagine que está num
"Amanhã de manhã despedimos 123 pessoas e de “Não volte hoje ao trabalho, dou-lhe a tarde aquário e que o estamos simplesmente a mudar a
tarde temos tudo a postos para ganhar o contrato livre. Vá para casa, descanse no sofá, veja um água para o limpar. Faça como os peixinhos la-