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KA
US
DA AMÉRICA LATINA À ESPANHA
DEZ ANOS DE DRAMATURGIA HISPÂNICA
Catalogação na fonte: Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
T253
Teatro Kaus: da América Latina à Espanha – dez anos de
dramaturgia hispânica / Reginaldo Nascimento (Org.)
São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2018.
176 p., il.; 17 X 24 cm.
ISBN 9978-85-64107-46-5
CDD 792.09
PROJETO GRÁFICO E
DIAGRAMAÇÃO Christian Piana
Creative Commons by, nc, sa. As licenças deste livro permitem copiar,
distribuir, exibir e executar a obra e fazer trabalhos derivados dela, con-
quanto que sejam para fins não comerciais, que deem créditos devidos
ao autor e à Lamparina Luminosa, e que as obras derivadas sejam
distribuídas somente sob uma licença idêntica à que governa esta.
Cadernos do Kaus N0 3
Teatro Kaus
DA AMÉRICA LATINA À ESPANHA
DEZ ANOS DE DRAMATURGIA HISPÂNICA
1a edição
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PRÓLOGO – TEATRO KAUS
UMA TRAJETÓRIA DE VINTE ANOS
Hugo Villavicenzio
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CADERNOS DO KAUS
DRAMATURGIAS DE LÍNGUA HISPÂNICA
de Esteve Soler, trad. Hugo Villavicenzio
165
CONCLUSÃO
Reginaldo Nascimento
KA
US
I
S
Alessandro Hernandez no processo da peça
Contrarrevolução, do dramaturgo espanhol
Esteve Soler.
Desde a primeira publicação definimos que, sempre que o grupo fosse be-
neficiado com algum edital, iríamos documentar o processo de trabalho e
lançar os cadernos como forma de compartilhar as nossas pesquisas e
dramaturgias inéditas que levamos à cena. O presente caderno só se tor-
nou realidade pela contemplação do grupo na 30ª Edição do Programa de
Fomento ao Teatro para Cidade de São Paulo da Secretaria Municipal de
Cultura da Prefeitura de São Paulo. O registro documental de processos de
coletivos cênicos na cidade de São Paulo é uma maneira de levar ao co-
nhecimento do público os caminhos percorridos por grupos e pensadores
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de teatro e suas criações e processos, sejam aqueles de cunho teórico ou
os que ganham a cena em experimentos e espetáculos.
Nas páginas que se seguem, é possível rever essas ações do atual projeto
de pesquisa do Teatro Kaus, retomar os processos vivenciados pelo grupo
nos últimos anos e perceber nosso investimento no registro como algo que
pode contribuir para traçar um panorama histórico do grupo e da dramatur-
gia de língua hispânica.
Por fim, é importante deixar registrado que neste período pudemos verificar
o quanto é enriquecedor para o público ter em mãos um material que com-
plementa as apreensões sentidas em uma experiência teatral, e isto nos
alimenta e dá sentido ao trabalho do Grupo Teatro Kaus.
Eis, então, mais um registro de nosso trabalho, para que sirva a esta e a
futuras gerações como material de estudo e pesquisa para o teatro – arte
efêmera por excelência.
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FICHA TÉCNICA
NASCENÇA
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Borges, e as acolhidas Beth Brait, oriunda de São Paulo, e Dona Lili Fi-
gureira, de Minas Gerais. Também é oportuno mencionar – para termos
uma ideia da importância da atividade teatral na próspera cidade – que
desde 1985, São José dos Campos promove o FESTIVALE, um dos mais
importantes e concorridos festivais de teatro do Brasil.
PRÓLOGO
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publicações realizados pelo grupo, descobriremos quatro momentos cla-
ramente delineados nessa trajetória. São quatro andamentos acompa-
nhados de mudanças significativas no foco da pesquisa dramatúrgica e
estilística do coletivo que estabelecem uma nítida sequência progressiva,
que inicialmente fica restrita ao âmbito regional, mas que logo ganha uma
abrangência nacional, evoluindo posteriormente para uma identificação
continental que, por sua vez, acaba atingindo o horizonte pós-dramático
do universo ibérico.
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revertido, resultou na descoberta de autores espanhóis contemporâneos
da envergadura de Fernando Arrabal, o criador do Teatro Pânico que, em
2009, veio celebrar seu 77º aniversário com o debate Um certo Arrabal,
no auditório do Instituto Cervantes de São Paulo. Do escritor espanhol,
encenaram no ano seguinte O grande cerimonial. Outra importante des-
coberta foi a polêmica dramaturga Angélica Liddell, de quem encenaram
O casal Palavrakis em 2012 e Hysterica Passio em 2015. Assim como
também a sua mais nova descoberta, o jornalista e dramaturgo catalão
Esteve Soler, de quem estão preparando a encenação de Trilogia da Re-
volução, espetáculo com estreia prevista para o segundo semestre 2018
e que integra o projeto Teatro Kaus - Da América Latina À Espanha - Dez
Anos De Dramaturgia Hispânica contemplado pela Lei de Fomento ao
Teatro do município de São Paulo.
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SEGUNDO ANDAMENTO: BRASILIDADE
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a pós-ditadura latino-americana. Sem lugar a dúvidas, foi essa monta-
gem que qualificou a jovem companhia para a elaboração do projeto
Fronteiras – O teatro na América Latina, com o qual pretendiam prosse-
guir a pesquisa iniciada, se afirmando como o grupo independente de
reconhecida atividade na cidade de São Paulo. A iniciativa foi vitoriosa
e acabou possibilitando que o Teatro Kaus fosse contemplado pela Lei
de Fomento ao Teatro do município de São Paulo, em agosto de 2006.
O novo e ambicioso projeto, que também contava com o auspício do
Instituto Cervantes, propunha-se a realizar inúmeras atividades, como
o ciclo de debates sobre O Teatro na América Latina, protagonizado por
dramaturgos de Argentina, Chile, Venezuela e México, que também mi-
nistraram palestras e oficinas. Dramaturgos, atores, diretores e pesquisa-
dores brasileiros foram igualmente convocados para realizar um ciclo de
leituras e para participar de mesas de debates, que renderam acaloradas
discussões sobre as relações entre arte, cultura e política na América
Latina atual.
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Antônio de la Parra fez um apelo sobre a necessidade de se investir na
tradução de peças teatrais. Hugo Villavicenzio destacou a importância
de divulgar o teatro hispano-americano no Brasil. Reginaldo Nascimento
assinalou que o motivo da escolha da trilogia encenada pelo Kaus de-
pois de pesquisar 280 peças, foi porque encontraram muito do Brasil
nas obras selecionadas. Santiago Serrano confessou que na Argentina
se conhece muito pouco o teatro brasileiro – Nelson Rodrigues, quando
muito. Marco Antônio Rodrigues defendeu a Arte como reserva ética da
sociedade, como instrumento crítico de conhecimento e afirmação de
identidade. E, finalmente, Sérgio de Carvalho assinalou a importância da
junção entre arte e política e a possibilidade que a dramaturgia tem de
traduzir uma reflexão crítica da sociedade.
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ação desenvolve-se no latifúndio de um país imaginário latino-america-
no comandado por uma desapiedada matriarca que enfrenta um intenso
levantamento popular que ela ordena reprimir a sangue e fogo pelos es-
birros do governo central. É bom acrescentar também que alguns meses
depois, em julho de 2007, o espetáculo A Revolta foi convidado para
participar do XVIII Temporales Internacionales de Teatro em Puerto Montt,
no Chile, a viagem acabou servindo para o Teatro Kaus estreitar relações
com diretores, atores e grupos independentes representativos do novo
teatro hispano-americano que participavam do festival.
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valioso e detalhado registro documental de todas as ações desenvolvi-
das pelo coletivo, no seu admirável estudo sobre o teatro latino-america-
no contemporâneo.
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vítimas de maus tratos durante a infância e que levam uma vida monóto-
na em um bairro onde a única diversão consiste em insossos concursos
de baile, que eles perdem sistematicamente. Em uma série de imagens
apocalípticas, que surgem na forma de flashbacks, assistimos perplexos
ao desenrolar do convívio insensato do casal, que começa antes mesmo
da concepção da filha Chloé, em um lúgubre cemitério no dia do seu
primeiro fracasso no concurso de baile, e chega ao paroxismo sete anos
depois por causa do brutal assassinato da menina. Após essa tragédia, a
vida do casal se desmorona por completo: medos, angústias, dor e vio-
lência vêm à tona, fazendo emergir o complexo mecanismo de culpas e
frustrações que revelam a desagradável face oculta dos pacatos pais. O
espetáculo estreou em agosto de 2012, no SESC Consolação da capital
paulista e também fez temporada no Teatro Viga de outubro a novembro
daquele ano. Em dezembro do mesmo ano, se apresentou em São José
dos Campos e cumpriu temporada no Studio Heleny Guariba de São
Paulo, de abril a novembro de 2013. Completou turnê pelo interior do
estado apresentando-se em São Carlos ainda em agosto de 2013 e em
Ribeirão Preto, em janeiro de 2014.
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nho, cujas práticas pedófilas o tornam homicida e suicida. Por outro lado,
temos Thora, a esquálida e depressiva mãe. Enfermeira de ofício e encar-
regada de limpar a sujeira dos pacientes do hospital, ela mostra-se tanto
submissa à tirânica figura da mãe, como lúbrica em relação ao marido
“redentor”, assim como também sádica e manipulável na sua relação com
o fruto da sua histérica paixão. Em um canto do espelho esperpêntico
está Hipólito, o filho coitado que, sendo vitima do abuso materno, decide
encarnar uma versão diabólica do justiceiro anjo exterminador bíblico. To-
mado pelo Dies Irae, arquiteta uma terrível vingança que parece ter sido
ruminada durante muito tempo, relatando para a mãe a traição cometida
pelo pai durante a ausência desta. Delação que por sua vez alimentará o
sentimento de vingança de Thora que, levada por um impulso inopinado,
denunciará o marido à polícia. Completar-se-á, assim, o círculo vicioso
que destruirá definitivamente a perpetuação do perverso convívio familiar
existente até então? Não o sabemos, mas cabe indagarmos pelo desfe-
cho da peça, cuja narrativa apresenta o enforcamento do pai antecipan-
do-se à chegada da polícia, a ulterior prisão da desconsolada mãe, assim
como também a solitária orfandade do filho. Mas o verdadeiro elemento
desconcertante desta história esperpêntica está presente no tom cáustico
dos diálogos durante toda a obra e que se torna especialmente pertur-
bador nas palavras de Hipólito, ao encerrar este pretenso conto natalino:
“Vocês estão completamente a salvo. A justiça se encarregará de julgá
-los sem piedade. Vocês são inocentes. Não se assustem. Toquem nos
monstros. Toquem nos monstros. É a vida real.” O matiz de apresentador
de circo dos horrores de tempos remotos, empregado brilhantemente na
encenação do Teatro Kaus, tem o poder de semear o desassossego na
alma de qualquer espectador que assista esta peça. O efeito das palavras
finais, mesmo que de maneira muito sutil, provoca um enorme descon-
forto justamente pela reiteração da inexistência de qualquer semelhança
entre nós e os monstros expostos à contemplação pública. Pois para bom
entendedor, uma única insinuação é suficiente.
EPÍLOGO
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“Nossa busca é pelo incômodo que assola a humanidade, as mazelas
sociais, os conflitos e o estado absurdo da vida. O grupo nasce com o
desejo de investigar a dramaturgia brasileira focada em temas sociais
de relevância para a compreensão dos males do homem, calcada no
realismo e no naturalismo. Com o passar dos anos, vamos afunilando o
processo de trabalho e pesquisa para ampliar o pensamento, em busca
de um teatro que transcenda esse realismo e que encontre em experiên-
cias das mais diversas, novas possibilidades cênicas para dar conta de
tantas questões acerca do homem contemporâneo. Desta forma estabe-
lecemos uma estética híbrida, que continua buscando, nas mais variadas
dramaturgias, histórias e personagens que nos incitem ao debate, porém,
experimentando novas linguagens como o surrealismo, o absurdo e as
poéticas cênicas do teatro contemporâneo”. Portanto, constatamos que
o Teatro Kaus Companhia Experimental continua sua caminhada apos-
tando todas suas fichas na valorização do trabalho do ator, no poder co-
municativo da excelência dramatúrgica, na possibilidade que representa
o espetáculo teatral enquanto experimentação criativa e, principalmente,
acreditando de forma inabalável na extraordinária capacidade de trans-
formação da arte teatral que permite aos verdadeiros discípulos de Dio-
nísio reinventar-se constantemente.
Hugo Villavicenzio
Professor da Escola Superior de Artes Célia Helena de São Paulo, mestre em Artes pela
UNESP, bacharel em Comunicação Social pela ECA-USP e ator pela Escola Nacional de Arte
Dramática de Lima, Peru. Dirige a Conexão Latina de Teatro e publicou, em 2004, a antologia
Teatro da América Latina.
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Alessandro Hernandez e Amália Pereira,
em O Grande cerimonial.
Amália Pereira
Amália Pereira e
Alessandro Hernandez
Hugo Villavicenzio
Alessandro Hernandez e
Vera Monteiro
Foto: Castor
Trajetória Revisitada
Radicado em São Paulo desde outubro de 2001, o Teatro Kaus Cia Expe-
rimental foi criado em dezembro de 1998, em São José dos Campos, pelo
ator e diretor Reginaldo Nascimento e pela atriz e jornalista Amália Pereira.
Na capital paulista, a Cia encenou as peças Hysterica Passio (2015/2017,
Espaço Parlapatões, Teatros distritais e Oficina Cultural Oswald de Andra-
de) e O Casal Palavrakis (2012/2014, Sesc Consolação, na sala Beta, Viga
Espaço Cênico e Teatro Heleny Guariba), ambas de Angélica Liddell; O
Grande Cerimonial, de Fernando Arrabal (2010/2011, Teatro Augusta, sala
Experimental e Teatro de Arena Eugênio Kusnet); A Revolta, do argentino
Santiago Serrano (2007, Centro Cultural São Paulo, sala Jardel Filho e Te-
atro União Cultural); El Chingo, do venezuelano Edilio Peña (2007/2008,
Centro Cultural São Paulo, sala Jardel Filho, Teatro União Cultural e Cen-
tro Cultural da Juventude); Infiéis, do chileno Marco Antonio de la Parra
(2006/2009, Centro Cultural São Paulo, salas Paulo Emílio e Jardel Filho,
Teatro Sergio Cardoso, sala Paschoal Carlos Magno, Teatro X e Centro Cul-
tural da Juventude); Vereda da Salvação, de Jorge Andrade (2005/2004,
Espaço Galpão Cinco e Centro Cultural São Paulo, espaço Ademar Guerra)
e Oração para um pé de chinelo, de Plínio Marcos (2002, Centro Cultural
São Paulo, espaço Ademar Guerra).
Amália Pereira e Julio Suñe,
em Oração para um Pé de chinelo;
2000-2001
Fotos: Castor
Alessandro Hernandez, Roberto Gomes, Eric Lenate e Cris Tavares,
em Vereda da Salvação;
2004-2005
Agosto de 2009
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Contra a liberdade
SETE MICROCENAS SURREALISTAS
Em algum lugar entre o mistério e o acaso, a imaginação desliza como a liberdade absoluta do
homem. A imaginação é o nosso privilegio elementar, é tão inexplicável quanto o azar que a provoca.
É a felicidade do inesperado
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largadas ao Deus-dará, como perdiam todos Van Gogh; a Madri esperpêntica, de Valle
seus pertences, como eram confinados em Inclán; o cineasta Tarkovski, falando para a
acampamentos, onde eram roubados pelas humanidade, desde Solaris; os protagonistas
máfias que matavam seus filhos e violavam tímidos de Jane Austen; as fotos em preto
suas mulheres. e branco de Cartie-Bresson; a natureza
exuberante de Gaudí; Orlando furioso e o
Mãe: Posso falar uma coisa?
Enamorado, de Ludovico Ariosto; a intensi-
Filho: Pode. dade de Jacques Brel; O grito, de Munch; os
Mãe: Václav Havel, presidente da Repúbli- rostos pálidos do cineasta Roy Andersson;
ca Tcheca, discursando no parlamento eu- os jogos olímpicos; a não-violência de Tols-
ropeu no dia sete de março de 1994, disse toi; Oxford; A Fonte, de Duchamp; o Verde
que a Europa precisava de um estatuto que que te quiero verde, de Garcia Lorca; O sor-
especificasse o que significa ser europeu. riso da Gioconda; Spinoza igualando Deus
Um estatuto de identidade europeia para à natureza; a obsessão pela leitura de Dom
o novo milênio de um planeta que luta Quixote; o clown Charlie Rivel; a divina
pela sua iminente e inevitável unificação. contradição de Pasolini; Galileu Galilei e o
A Europa tinha que ser uma comunidade universo; a carne humana nas pinturas de
exemplar, a mãe de todas as revoluções do Francis Bacon; o sagrado para Leni Riefens-
mundo moderno, baseada na tolerância, tahl; o maciço sobre Vitocha, na Bulgária;
humanidade e fraternidade que disseminou o espaço vazio de Peter Brook; as patas dos
pelo mundo afora. A Europa inventou as Elefantes, de Dalí; O Capital, de Marx; a
nações, estava na hora de inventar a huma- frieza de Heathcliff em O morro dos ventos
nidade. A Europa deixará de ser Europa se uivantes; O Vermelho e o Negro, de Stendhal:
não conseguir que o mundo inteiro assuma A caverna, de Platão; o Museu do Louvre; a
os valores europeus. realidade fragmentada em Calderón de la
Barca; o gênero para Sophie Call; a Peres-
Filho: É por causa disso que estamos aqui? troika; o concerto de réveillon em Viena; a
Mãe: (Falando lentamente) Deste lado perspectiva continental de Curzio Malapar-
do alambrado encontrarás: As Maçãs, de te; Chaplin comendo um sapato Em busca
Cézanne; o nevoeiro de Praga em Kafka; A do ouro; a Acropolis de Atenas; Voltaire e a
Quinta Sinfonia, de Beethoven; a Moscou justiça; a dedução em Descartes; o horror
almejada pelas Três Irmãs, de Tchekhov; da África, segundo Joseph Conrad; a luz
o coro dos mortos do Sétimo Selo, de em Rembrandt; Coco Chanel; a teoria da
Bergman; Aristóteles com sua ação miseri- relatividade; o Renascimento; a basílica de
cordiosa; O Elogio da Imperfeição, de Rita Santo Estevão em Budapeste; Shakespeare e
Levi-Montalcini; A Porta de Brandenburgo; a mimese; a emoção abstrata em Pina Baus-
a memória em Pinter; a filósofa Hipácia de ch; o réquiem de Mozart; a falta de senso
Alexandria; a procura por Deus, de Bach; de Polanski; a pureza das cores em Matisse;
Picasso, redefinindo a arte; o arquiteto Ei- a dedicação aos doentes de Florence Nigh-
ffel; o tempo em A Senhora Dalloway, de tingale; a outra beleza de Baudelaire em As
Virginia Woolf; a ironia de Oscar Wilde; a flores do mal; Beckett e a impossibilidade de
noite que inspirou Mary Shelley; o mímico um final no teatro; o Mediterrâneo e a ali-
Marcel Marceau; Os Atos dos apóstolos, de mentação; o Clarão da Lua, de Debussy; a
São Paulo; A Divina Comédia, de Dante e A juventude em Morte em Veneza, de Thomas
Comédia Humana, de Balzac; Os girassóis, de Mann; a Basílica de São Pedro; a fatalidade
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do amor em Racine; os espaços abertos de Sofia em Istambul; Sexta-feira de Robinson
Le Corbusier; a técnica de Maria Callas; Crusoé, de Defoe; Newton e a Lei da gravi-
a frase “a morte virá e terá teus olhos”, de dade; Cambridge; a noite de Molly Bloom
Pavese; a Oktoberfest de Munique, as crian- no Ulisses de Joyce; Joana D’Arc; a Fontana
ças perdidas de Dickens; a vida irresistível de Trevi; o claro-escuro de Caravaggio; O
de Fellini; o Barroco; os anjos sexuados de Pensador, de Rodin; a Crítica da Razão Pura,
O paraíso perdido; a peste em Os noivos, de de Kant; Verdi e a Traviata; As Marionetes,
Manzoni; Molière e o “corrigir os costu- de Kleist; o Atomium de Bruxelas; a obses-
mes rindo”; o misticismo de Santa Teresa; são segundo Hitchcock; o humano em Gar-
a praça do mercado de Cracóvia; Wagner gantua, de Rabelais; o Festival de Cannes;
e O anel dos nibelungos; a trilogia colorida Strauss e o Danúbio Azul; a técnica do vio-
de Kieslovski; Sócrates e o “só sei que nada lino em Paganini; o museu Hermitage; as
sei”; a mudança em David Bowie; a morte bicicletas de Copenhagen; Flaubert sentin-
de Marie Curie; Jesus cristo visto por Pe- do-se morrer no final de Madame Bovary; o
trarca; os lagos escoceses; o abstracionismo vermelho no dia de São Valentim; a procura
de Kandinsky; Laurence Olivier; a madalei- pelo conhecimento no Fausto de Goethe; o
ne de Proust; o Dramaten de Estocolmo; a Coliseu Romano; O toque do cineasta Er-
inteligência humana no Decameron, de Bo- nest Lubitsch; a frase de Heinrich Heine “lá
caccio; Tesla e a eletricidade; O Messias, de onde queimam livros acabarão queimando
Haendel; a alegria de Renoir; os Duomos seres humanos também”; a classe média nas
de Milão e Florenza; a bebedeira do Senhor peças de Carlo Goldoni; o cineasta Carl
Puntilla de Brecht; Thomas Bernhard e os Theodor Dreyer e o transcendental; os Hi-
solitários; a qualidade de O homem sem nos à Noite, do poeta Novalis; “O homem é
qualidades, de Robert Musil; a coragem de bom por natureza” de Rousseau; a Capela
Nietzsche; “sob qualquer céu, a felicidade Sistina do Vaticano, Cosette em Os mise-
sempre fica em outro lugar” de Giacomo ráveis, de Victor Hugo; As Quatro Estações,
Leopardi; os Alpes; Arquimedes; a atmosfe- de Vivaldi; São Tomas de Aquino e o Deus
ra de William Turner; Schiller abandonan- necessário. (Breve pausa)
do Maria Stuart; o V de Vingança, a viagem
Filho: Não esquecerei. Nunca me esquece-
à Espanha de Lord Byron; o epicurismo; as
rei disso.
moralidades de Godard; O Lago dos cisnes;
A maja desnuda, de Goya; o verdadeiro em Mãe: Lembra que é para teu bem.
Anna Politkoviskaia; a Transilvânia de Bram Filho: Estou ciente disso.
Stoker; a sétima personagem de Pirandello;
o evolucionismo de Darwin; Velásquez Mãe: Ficaremos unidos para sempre.
refletido em As meninas; a infância em Uma Filho: Amo você.
proposta modesta de Jonathan Swift; Ensaio
sobre a cegueira, de Saramago; a casa de Mãe: Não imaginas como gostaria de te
Anne Frank em Amsterdam; os prisioneiros abraçar.
de Buñuel em O anjo exterminador; a Dialé- A Mãe se aproxima e, com muita dificuldade,
tica de Hegel; o masculino para Armani; a consegue passar seus braços pelo alambrado,
Revolução dos Beatles; o mundo coloquial abraçando o Filho amorosamente, apesar dos
de Rilke; as receitas do chef Michel Bras; arames. Pausa. A Mãe pega o cordão umbilical
Um Noturno, de Chopin; a basílica de Santa e enrola o pescoço do Filho sem que este perceba.
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Mãe: Lembra que é para teu bem. Noiva: Não, mas acontece que gostaria de
saber exatamente quais são as implicações
A Mãe se afasta e puxa o cordão até estrangu-
dessa frase que podem me prejudicar.
lar seu Filho. Pausa. O Filho cai no chão. A
Mãe fica esgotada pelo esforço. Breve pausa. O Noivo: Prejudicar? Você falou prejudicar?
alambrado é aberto e a Mãe retira seu Filho
Noiva: Desculpa, mas eu tinha pedido para
puxando-o pelo cordão umbilical.
pular essa parte.
Escuro.
Noivo: O que está acontecendo com você?
A frase é bem simples, ou não é?
2 Noiva: Eu não acho tão simples assim...
Padre: Desculpe senhorita, tem certeza que
Igreja praticamente lotada, iluminada e en- quer casar?
feitada para um casamento. O Padre está na Noiva: Quero sim, mas não de qualquer
frente dos noivos. Pausa. jeito.
Noivo: Espera um pouco. O que você está
Padre: E então? (Breve pausa) querendo aprontar, hein?
Noivo: Vamos lá... (Breve pausa) Noiva: Faz um favor para mim? Será que a
gente pode conversar um minutinho?
Noiva: Desculpa, mas... (Breve pausa)
Padre: Bela juventude, a de hoje em dia.
Noivo: Vai... Responde…
Noivo: Façamos uma coisa, seu Padre, me dá
Noiva: Desculpa, mas não entendi a per- um minutinho que eu resolvo tudo com ela.
gunta. (Breve pausa)
Padre: Ah, tudo bem... Eu disse… senhorita
Marisa, jura amar e proteger Genésio, na O burburinho cresce por toda a igreja.
saúde e na doença, na pobreza e na riqueza,
até que a morte os separe? (Breve pausa)
Noiva: Sinto muito, mas...
Noiva: O que é que o senhor quer dizer exa-
Noivo: Aqui, todo mundo vai ficar ouvindo.
tamente com “até que a morte os separe”?
Noiva: Estou pouco ligando para isso.
Noivo: Bom, o que está acontecendo?
O Noivo fica com cara de quem não está
entendendo nada, enquanto olha para sua Noiva: Não dá para pular a frase “até que a
mãe e para o público. Ouvem-se burburinhos morte os separe”?
na igreja. Noivo: É pegadinha, é?
Noiva: Dá para me levar a sério, pelo me-
Noivo: É o seguinte... (Breve pausa) nos uma vez? Estou prestes a casar.
Padre: A senhorita não vai inventar agora, Noivo: Muito bem, isso já é alguma coisa
não é? certa na sua cabeça.
72
Noiva: Quando ele fala “até que a morte Noiva: O senhor cala a boca! (O Padre, sur-
os separe” significa que perante Deus, ou preso, é acometido por um incontrolável tique
seja lá quem for, a gente vira um casal, uma nervoso no rosto que o faz recuar).
célula indivisível, aconteça o que acontecer.
Noivo: Fique calado, por favor, só um mi-
Noivo: É só formalismo. O que você está nutinho.
querendo, hein?
Noiva: Vou dar um exemplo de submissão
Noiva: Não conheço ninguém que tenha consentida.
casado e continue sendo eternamente livre Noivo: Por favor.
e feliz. Você está careca de saber. Quantos
amigos nossos continuam juntos? Noiva: Quando a gente está trepando...
73
Noiva: Tem mais: fala o que você gosta de Noivo: Não é nada disso.
fazer com o cachorrinho, pode falar.
Noiva: O que é então? Que não lavo nem
Noivo: Temos que dar detalhes? passo minha roupa? Dá para explicar?
Noiva: Gosta ou não gosta de bater na mi- Noivo: É o jeito de falar...
nha bunda? Noiva: Não lavo a louça, não gosto de to-
Noivo: Mas, é com carinho. mar banho?
Noiva: São tabefes. Leves, mas de qualquer Noivo: Todo mundo sabe que você não é
jeito é agressão. uma vadia.
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Noiva: Mas você me chama de puta. O que Noivo: É! Isso não justifica você fazer esse
é exatamente uma puta para você? Por gen- escândalo todo.
tileza, explica para todo mundo saber aqui
Noiva: Quer dizer que serei tua puta por
o significado do título que você me dá.
toda minha vida, na saúde e na doença, na
Noivo: É só uma brincadeirinha amorosa, e pobreza e na riqueza?
nada mais.
Noivo: Pelo andar da carruagem, está quase
Noiva: Você gostaria de ser tratado de filho merecendo ser chamada desse jeito. Fala sério.
da puta? Só de brincadeirinha? Fala!
Noiva: Ah, é? Então você topa que os
Noivo: Algumas vezes, sim. homens que estão aqui cheguem e me
Noiva: (Para o público) Fiquem sabendo comam diante de todo mundo? Que fa-
todos vocês que são uns filhos das putas. É çam fila para me comer? (Para o público)
só uma brincadeirinha, viu? Coragem! Venham foder a noiva que é
uma vadia, uma puta! (Para o Noivo) Por-
Noivo: Você não está entendendo nada.
que é isso que as putas fazem. Viu? É dessa
Noiva: Entendi, tenho que ser sua puta forma que você me trata.
pelo resto da minha vida. É só isso.
Noivo: Você está exagerando.
O Padre volta à cena, com um revólver na mão.
Noiva: Já sei, que tal perguntar para alguém
que já foi puta durante toda sua vida?
Noivo: Não, pelo amor de Deus! Padre: Agora vocês dois vão dar o fora daqui!
Noiva: Sei lá, pode ser qualquer mulher. Por Noivo: Ficou doido!
exemplo, tua mãe que está sentada bem ali.
A senhora é uma puta?
(O Noivo e o Padre lutam. A pistola dispara
Noivo: Não mexa com minha mãe. matando o Noivo. Confusão geral. Depois, o
Noiva: Afinal, ela é ou não é? Padre totalmente chocado decide dar um tiro
na boca. A Noiva olha para o público, en-
Noivo: Claro que não.
quanto passa da consternação à doce alegria).
Noiva: Porém, eu suponho que você deve
achar normal que teu pai, que também está
sentado bem ali, chame tua mãe de puta Noiva: “Até que a morte os separe”.
quando fode com ela.
(O Noivo fica calado)
Os sinos da igreja começam a tocar e uma luz
Noiva: Acho que agora você entendeu, ra- destaca a figura da Noiva.
paz!
Noivo: Qual é o problema se chamo você
Noiva: Agora entendi... Enfim livre.
de puta quando trepamos? Qual é problema
se falo puta toda vez que trepamos?
Noiva: Ah, é? Escuro.
75
3 B: (Lendo) “Curti”.
A: Chegou outro “Curti”?
São dois homens, A e B, e uma mulher, C. Os B: Chegou.
três levam um fuzil nas costas. Há uma gran-
A: Por que tanta gente curte a foto do teu
de janela por onde mal entra a luz. Escuta-se
um bipe e os três consultam o minúsculo apa- perfil?
relho digital que carregam consigo. A tela do B: Sei lá. Em todo caso, não fico chateado
aparelho ilumina-se ao receber a mensagem por isso.
que é para B, mas, mesmo assim, todos eles
conferem nos seus aparelhos. B fica observando A: Acha que estou ligando para quem curte
a mensagem. a foto do teu perfil?
B: Você é o primeiro a comemorar as curti-
das. Não fica assim, vai.
A: Está dizendo o que?
A: Fico do jeito que eu quiser.
B: Diz que está tudo bem. (Ouvem-se tiros
do lado de fora. Pausa) B: Calma, tudo bem.
C: Fala de um pistoleiro que acreditava ser A: Tudo bem, é o caralho!
atingido por um tiro, toda vez que alguém
C: (Levantando-se com cautela, descreve o que
o olhava. Até que um dia, decidiu se escon-
der numa caverna escura cheia de outros vê, desde a grande janela) Eles tiraram tudo
pistoleiros como ele. Certo dia, alguém de nós: casa, dinheiro e dignidade. Eu estou
ligou a luz e o pistoleiro percebeu o medo, com fome. Não existe futuro para mim.
a mentira e a solidão que todos eles sen- Nenhum de nós tem futuro, porra nenhu-
tiam. Era tanta gente que a caverna parecia ma. Não somos tratados como ingênuos,
pequena, mesmo sendo enorme. Ele saiu da somos tratados como...
caverna no ato e pediu para a primeira pes-
soa que encontrou para que o matasse.
C é atingida por um tiro, A e B se agacham.
A: (Aproximando-se da janela) Está tudo
Eles tentam se aproximar de C, que vai mor-
bem? É isso? Por que falou aquilo? (Pausa,
rendo, enchendo o cenário de sangue. Pausa.
depois atira para a rua) O que a gente faz,
então? Fica ou vai embora? Toca novamente o bipe de B, ambos ficam
quietos. Esquecem-se de C e ficam conferindo
B: A mensagem diz que está tudo bem. a mensagem do aparelho.
A: Mas está tudo bem lá fora? Mesmo?
B: Sim, parece que lá fora está tudo bem. A: O que é?
(Ouve-se o estrondo de uma bomba, acom-
panhado de intensa metralhada. A, B e C se B: Diz que está se sentindo maravilhosa.
escondem). Calma, tudo bem, não aconte- A: É isso que ela diz? Não faz sentido ne-
ceu nada.
nhum, porra.
B: Pode conferir você mesmo. (Mostra o
O Aparelho de B recebe outra mensagem. To- aparelho para A. Ambos olham para C, que
dos conferem seus aparelhos. continua sangrando).
76
C: Ajuda. B: (Mostrando a tela do seu aparelho) Eu
A: Fazer o que? também estou achando esquisito... Mas está
escrito aqui!
B: Não dá para entender. Ela diz que se
sente maravilhosa! A: Ela estava certa: não somos ingênuos,
somos imbecis. Estamos aqui dentro por
C: Ajuda. culpa dessa bosta.
B: Você também fica conectado o tempo
Toca o bipe novamente, B lê a mensagem. todo. Ela não tem culpa dos nossos proble-
mas.
A: O que fala agora, a porra desse aparelho? A: Essa bosta vai nos matar. (Aponta sua
arma contra B, mas ele não liga).
B: Pede para ser amiga.
B: Essa bosta é compartilhada pelos que fi-
A: Quem? caram sós que nem nós. Vai atirar em mim?
C: Ajuda. A: Você é um deles. Já não é mais ninguém.
O barulho externo é cada vez mais forte e Deixou de ser você mesmo.
agressivo. B: Sou muito melhor do que já fui.
B: Aceito? A: Você não sabe mais quem fala pela tua
A: Fecha a matraca! boca.
B: Você também dá o rabo para conseguir B: É simples, sou mais bem informado e
amigos. E, acho que é dos nossos. Será que tenho muito mais influência do que você.
está querendo ajudar a gente? Comunicar- A: Você só recebe as notícias que eles que-
se conosco? rem publicar e o que você publica só é visto
A: Mas quem é? É amiga de quem? Porra! pelos teus seguidores mais próximos. Mora
numa bolha e não percebe.
B: Não conheço.
B: Este aparelho tem feito por mim muito
A: Ela compartilha muitos amigos com
mais do que você fez. Onde você estava
você?
quando eu precisava de ajuda? Quando não
B: Alguns. dava para contar com você, tinha o mundo
C: Aju... inteiro na minha mão.
77
B: Agora ficamos sabendo o que realmente Chega uma nova mensagem, mas desta vez
acontece no mundo. Agora todo mundo para B que olha no seu aparelho. O barulho
está junto, podemos nos conectar em um externo fica mais intenso.
segundo e reagir.
A: Para, por favor, não aguento mais.
A: Que acontece? (B não responde)
B: O mundo é um grande lugar de encon-
tros onde a gente decide o que vai acontecer. C: Por favor...
A: Enfiaram escutas em todo canto, em A: Que dizem? É uma mensagem?
cada porra de aparelho. Não percebe? Eles C: Por… Favor…
podem prever tudo.
A: Quem é? É a mesma de antes? (B confir-
ma com a cabeça) O que diz? (B fica descon-
Pausa. certado) O que diz? Fala, porra!
B: Não estou acreditando.
C: Ajuda. A: Que acontece?
A abaixa sua arma. B: Não faz sentido.
B: Está viva. Percebeu que eles tinham ra- A: (Aproximando-se de B) Fala de uma vez!
zão? (Pausa)
A: Mas vai morrer. B: É a história que C contou agora.
B: Vamos salvar ela. (Ouve-se um bipe e B A: Como é?
olha para seu aparelho) Não é para mim.
B: Ao pé da letra.
A: Que porra é isso aí?
A olha para seu aparelho.
B: Sei lá.
A: Vejamos... (Aproxima-se e lê a mensagem
B: O que diz?
do aparelho de B) Fala de um pistoleiro que
A: Quer ser minha amiga. acreditava ser atingido por um tiro, toda
B: Será que é a mesma? (Aproxima-se para vez que alguém o olhava. Até que um dia,
conferir) É a própria. decidiu se esconder numa caverna escura,
cheia de outros pistoleiros como ele. Certo
A: Mas eu não conheço.
dia, alguém ligou a luz e o pistoleiro per-
B: Se alguém quer te conhecer, é só abrir cebeu o medo, a mentira e a solidão que
teu perfil. todos eles sentiam. Era tanta gente que a
A: Sei lá. caverna parecia pequena, mesmo sendo
enorme. Ele saiu da caverna no ato e pediu
B: Ela não lembra alguém? para a primeira pessoa que encontrou para
A: Lembra, mas não sei bem quem pode ser. que o matasse.
B: É alguém dos nossos, tentando entrar em B: Isso quer dizer que ficaram ouvindo a
contato. gente? (A e B aproximam-se de C)
A: Pode ser. Ou não. A: Você tirou essa história de onde?
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C que está agonizando não consegue responder. Mulher: Obrigada por me receber, doutor.
Médico: Urgência é urgência.
B: É sua? Mulher: É isso mesmo.
A: Copiaram você? Médico: Está confortável? Precisa de algu-
ma coisa?
Escuro. Um momento depois, silêncio total. Mulher: Não me olhe desse jeito, doutor,
eu tentei evitar...
Médico: É claro, mas depois chegam aqui
4 pensando que posso fazer milagres!
Mulher: Entendo. Desculpe, doutor, acon-
O casal, Homem e Mulher, entra no consultó- tece que ele é doente, não dá para evitar, é
rio do Médico, que se levanta da cadeira para compulsivo.
cumprimentar só a Mulher.
Médico: Que nojo!
Mulher: Olha que eu sempre falei para ele:
Médico: Pode entrar. Marcelo, deixa disso, esse vício vai acabar
com você. E olha no que deu.
O Médico e a Mulher sentam, enquanto o Mulher e Médico olham para o Homem.
Homem fica em pé, apesar de haver uma
Médico: Onde já se viu.
cadeira onde ele poderia se sentar. O Homem
age com toda naturalidade. Mulher: Justo agora que a gente acabou de
79
pagar a última prestação da casa e estava Médico: Já entendi.
dando para viver à vontade.
Mulher: Alguns vizinhos até evitavam a
Médico: Ele estava lendo o que? gente no elevador.
Mulher: Não vai pensar o senhor que eu Médico: E mesmo assim ele não mudava?
gostava de mexer no... no lixo dele, mas
Mulher: Cada vez lia mais, gostava mais
acho que eram ensaios.
daquilo.
Médico: (Apavorado) Ensaios? É o pior caso.
Médico: Que asqueroso.
Mulher: Verdade? Bem que eu desconfiava…
Mulher: Acabou gostando. (Faz o gesto de
Médico: Se ainda fosse romance, porém... masturbação masculina) O livro.
Ensaio? Estava pretendendo fazer o que,
Médico: Chega! (Pausa) Acho que sei o que
Pensar?
aconteceu.
Mulher: Quando ele ficava lendo, eu fecha-
Mulher: O que? Fale, por favor!
va as janelas para que os vizinhos não perce-
bessem, mas ele lia sem remorso nenhum. Médico: Seu marido é vítima de um surto
de autonomia pensante.
Médico: A senhora deve ter sofrido muito.
Mulher: Que horror!
Mulher: (Fala em tom agudo, porém usa o
registro grave para “o livro”) O senhor não Médico: Pois é.
faz ideia. Ele gostava de ler nos parques, Mulher: Como é que isso acontece?
em público, ao ar livre. Ficava sentado lá,
no meio de todo mundo, e então? Tirava Médico: Ataca quando a pessoa começa a
o livro para fora na frente das pessoas, e pensar por si mesma, deixa de ser influen-
então? Manuseava as páginas sem parar, de ciado pelos telejornais, e principalmente
trás para frente e de frente para trás. pelos editoriais repetitivos. É nesses casos
que...
Médico: Imagino a cara das crianças que
costumam ficar nos parques. Mulher: Desaparece.
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de conta que lia os livros. Mas depois perce- Mulher: Livre arbítrio de bosta! (Bate vio-
bemos e os abandonamos. lentamente no seu marido, sem piedade
Mulher: Era horrível. alguma, até ele afastar-se, dolorido).
Médico: Esquecidos na estante, até não Médico: Para recuperá-lo, vou empregar um
atrapalhavam. Agora, tentar abrir um livro método experimental que está sendo testa-
era alguma coisa... do. Vamos tentar falar com ele. (Abre uma
gaveta da sua mesa e pega dois comprimidos,
Mulher: Nojenta. um para o Homem tomar, e o outro para ele)
Médico: Era. Sujeitos dependentes, como Vamos falar com ele honestamente.
seu marido, eram muito poucos. Mulher: Honestamente?
Mulher: Casei com um terrorista. Certa vez, Médico: Honestamente e sem preconceitos.
jogou um livro em um estádio de futebol e
fugiu correndo. Mulher: Sem preconceitos?
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Mulher: Morra a inteligência! parque de diversões para crianças, cheio de
luzes e cores. Os adultos são como crianças
Médico: Viva a morte!
endividadas. Com dívidas econômicas e
emocionais. É isso aí, somos crianças endi-
Escuro. vidadas, apenas isso. A passagem do Mono-
poly ao cassino é curta, a única diferença é
que teu adversário na mesa de jogo, no
5 lugar de um sorvete de morango, está be-
bendo seu sexto uísque. (Ri) Não é que eu
gaste todo meu dinheiro nos cassinos. É
Crepúsculo que antecede o anoitecer em um verdade, somos um casal bem de vida, não
parque de diversões de uma grande cidade. nego, mas também não gosto de esbanjar.
Uma Mulher conversa com outra, que perma- Não sou dessas mulheres. Boto apenas algu-
nece em silêncio. mas moedinhas na minha bolsa e enfrento a
máquina durante um tempo. Um longo
tempo. Às vezes, o dia passa voando e eu lá,
Mulher: Meu marido adora crianças. (Breve me divertindo. (Breve pausa) Certa vez, vi
pausa) A gente está pensando em ter uma. um moço que passou o dia inteiro em fren-
(Pausa. Sorri) Está tudo bem com você? te à máquina. À noite, chegou uma mulher
Precisa de outro comprimido? Consegue que falou: “Escuta aqui, a gente não tinha
me ouvir? Se quiser eu acompanho você até combinado casar às oito?”. (Ri) Meu mari-
sua casa, é só pedir. (Breve pausa) Afinal, do vive fazendo viagens de negócios. Mas
acho que você deve estar um pouco enjoada, também sei que se um dia a gente tiver um
não é? Também acontece comigo, acredite. filho, vai ser mais difícil viajarmos juntos.
Mas você toma dois comprimidos daqueles Por enquanto é só aproveitar, já que agora
e, no ato, o mundo some de vez. Bom, por isso é possível. O que quero te contar é uma
onde posso começar? (Breve pausa) Você história que não tem nenhuma importância,
acredita na liberdade? Meu marido adora ir de verdade. Mas, enfim… Você quer água?
aos Estados Unidos, a terra da liberdade, (Breve pausa) Tenho uma garrafinha. Não
como todo mundo fala. Arranha-céus gi- quer? Ok! Tudo começou numa dessas via-
gantescos, musicais espetaculares e as garo- gens com meu marido. Eu estava em algum
tas da Califórnia. Quem não gosta disso, buraco de Las Vegas, saindo do cassino uma
fala a verdade? (Ri) Até que estou bem con- tarde dessas, quando recebo uma chamada
servada, não é? Falam que nos Estados Uni- da minha casa, da minha própria casa.
dos, o contrato de casamento inclui um Como você pode imaginar, achei muito
lifting dez anos depois e um par de tetas esquisito, porque na época não tinha nin-
novas, depois de vinte cinco anos de casa- guém na minha casa. A gente estava viajan-
dos. (Ri) Sim, é verdade. (Breve pausa) Toda do. Pensei que fosse minha irmã que tivesse
vez que eu posso acompanho meu marido entrado, sei lá. (Ri nervosa) Bom, atendi a
aos Estados Unidos. Ele viaja a negócios, a chamada e escutei: “Mamãe?” Era a voz de
trabalho e a outras cositas mais, e eu vou ao uma criança de mais ou menos cinco ou
cassino para me distrair um pouco. É bem sete anos. Tentei falar com a criança, mas só
legal lá. No cassino a gente esquece as boba- conseguia ouvir: “Mamãe”, várias vezes
gens da vida. Um cassino é que nem um seguidas. A criança chorava, parecia que
82
estava procurando pela mãe. Olhei para o tida que vai explodir ela fala: “Me dá mais
celular e verifiquei se não era engano, mas um e fica longe, cara”. (Ri) Isso quer dizer
era o número da minha casa mesmo. E a que… Bom, não vou te chatear com o ne-
criança continuava choramingando. Desli- gócio da responsabilidade fiscal porque não
guei. Durante alguns minutos fiquei pen- quero que você fique completamente apaga-
sando o que poderia ter acontecido, até que da, mas... (Sorriso cúmplice) Quem mexe
decidi ligar para casa. Liguei para minha com muito dinheiro sofre muita pressão,
própria casa, acreditando que deveria ter não é? Mas se acertar, em um belo dia você
sido uma interferência ou coisa parecida. O leva uma bolada de 20 ou 30 milhões. Não
que aconteceu foi horrível. Atenderam e é piada, não, mas me deixa continuar. Eu
quem falou foi uma criança. Perguntei o estava apavorada no meio de Las Vegas,
que estava fazendo lá, se tinha entrado pela quando voltam a ligar da minha casa. Qua-
janela ou... Sei lá... A criança era muito se pirei achando que estava sendo persegui-
pequena, só perguntava pela mãe o tempo da por fantasmas, ou sei lá o que. Fui per-
todo. Desliguei. Liguei para minha vizinha guntar na recepção do hotel e me disseram
que fica com a chave, em caso de emergên- que meu marido sempre pegava um táxi
cia. Falei que ela poderia não acreditar, mas para ir ao mesmo lugar. Então peguei o táxi
que uma criança tinha se enfiado na minha e fui procurá-lo. E não é que voltam a ligar
casa e pedi para entrar e olhar o que estava da minha casa e as mensagens começam a
acontecendo. Depois de um tempo, ela se acumular? Eu não queria nem saber das
ligou para dizer que tinha olhado pela casa mensagens. Era uma doideira, um pesadelo.
toda e achava impossível que tivesse alguém, Achava que ia pirar de vez. (Breve pausa)
muito menos uma criança. (Breve pausa) Ainda bem que tinham sobrado alguns
Falando nisso, será que teu pessoal já foi comprimidos. Foram-me receitados para eu
embora do parque? Você mesma não está ficar chapada. (Pausa) Você está me ouvin-
querendo ir? (Breve pausa) Então, o celular do? (Breve pausa) Bom, achei que estava
voltou a tocar, porém era meu marido di- sendo seguida. Cheguei, subi no quarto
zendo que tinha uma reunião numa cidade dele e o encontrei na cama com uma crian-
próxima e que não viria para dormir comi- ça. Estava... É, não foi fácil. Você pode ima-
go. Eu que estava completamente histérica ginar. Não vou negar que fiquei muito cho-
e apavorada, contei o que tinha acontecido cada. Aí, ele ficou puto. Falou um monte
e falei: “Não fico só de jeito nenhum, fala de coisas horríveis. Que ia se divorciar, que
onde você está que eu te procuro”. Aí ele ia me deixar sem um puto, que… Entendo
desligou. Às vezes meu marido é muito que ficasse descontrolado, pode acreditar. A
estressado porque fica negociando pacotes despeito do constrangimento da situação, a
de imóveis com os bancos, que estão muito despeito de tudo, eu compreendia por que
desacreditados por causa da “bolha imobili- ele reagia assim. (Breve pausa) É porque
ária”. Mas isso não tem a menor importân- existem coisas difíceis de entender e de acei-
cia. De fato, faz já um tempo. No início da tar. (Breve pausa) Ele falava como um verda-
crise pediram para regulamentar as contas, deiro apaixonado: “Você nunca vai conse-
mas eles não mexeram um dedo. Tem uma guir imaginar o que é sentir-se no interior
piada do setor financeiro que diz que a bo- de algo tão vivo e pequenino”, ele disse.
lha é que nem uma criança que acabou de “Mexer lentamente para dentro e para fora
comer cinquenta donuts, e quando é adver- dessa vagina ou desse ânus, e fazer que esse
83
pequeno corpo consiga mudar de tamanho nossa relação continue, eu acho que tudo
quando ficar...” “Bom, você sabe quando.” bem. (Pausa) Enfim, quando chegamos em
“É uma sensação inacreditável...” “É algo casa tudo ficou acertado, descobrimos o
divino”, ele disse. Claro que eu não conse- que tinha acontecido, foi um cruzamento
guiria ficar no lugar dele, mas sei lá, de de chamadas. A telefônica declarou que
certa forma, eu o entendo. (Breve pausa) erraram nas ligações. Não existia nenhuma
Todo esse deus-nos-acuda que acontece criança que tinha ligado para meu celular.
hoje com os padres católicos, tem tudo a Logo, não era nenhum fantasma, e muito
ver com isso aqui. Mas eles não são doidos. menos algo paranormal. Deve ter sido algu-
Você acha que todos esses padres, esses reli- ma criança choramingas que procurava pela
giosos, ficaram doidos de repente? Não tem sua mãe, em algum lugar do mundo. Não
cabimento que centenas, milhares de pesso- existia nenhuma razão para eu ficar preocu-
as cultas, preparadas e educadas para fazer o pada. (Pausa) Tem mais, acho que em uma
bem, terminem desejando, preferindo mais das mensagens de voz, a criança disse que se
as crianças que os adultos? Isso está aconte- chamava Luiz. E olha só, esse vai ser o
cendo no mundo inteiro. Acontecendo pelo nome que vamos dar a nosso filho, quando
mundo afora. Se acharmos que algo tão chegar. Pois, ainda dá tempo, eu não sou
pontual e doentio conseguiu, só por coinci- tão velha assim, viu? Vai ser Luiz, sempre
dência, atingir tantos religiosos ao mesmo gostamos desse nome, Luizinho. (Ri. Pausa)
tempo, o mais provável é que a gente não Você não quer que eu te acompanhe até sua
tenha refletido tempo suficiente. Porque, casa? Seus filhos seguramente já foram em-
vejamos, escolher ter relações com uma bora. Ainda está com dor de cabeça? Você
criança é apenas uma questão de opção. está acordada? Em todo caso, acho que eu
Mais uma, entre as muitas que existem. É vou indo. Está ficando tarde e… a gente
tão legítimo quanto fazê-lo com uma mu- tem que dormir, não é? Ou tentar, pelo
lher ou com um homem. A pulsão sexual é menos. Embora, eu, com um par de com-
cega e livre. Portanto, é completamente primidos daqueles, não tem quem consiga
normal. Não faz nenhum mal à criança me acordar. (Breve pausa) Boa noite, tchau.
porque existe amor. (Breve pausa) Você está
escutando? (Breve pausa) O que acontece é
que somos uma sociedade hipócrita. Forni- A Mulher sai do palco. Escuro.
car com crianças é algo que sempre foi per-
mitido por sociedades mais complexas. Ou
você acha que na Roma Antiga não aconte- 6
cia? Acontecia. E hoje mesmo, é só ir para
Las Vegas, para Tailândia, para... Acontece
em escala mundial! (Ri) Não é pouca gente, Grande closet de uma casa. Ouvem-se baru-
não. Centena de milhares de pessoas viajam lhos provenientes do chão. Aparece uma Mu-
toda semana para esses lugares, para trepar lher, muito agitada, que começa a jogar fora
com crianças. Mas é claro que aqui não roupas e sapatos dos armários, até abarrotar
pode fazer, porque fica feio. E assim vamos o palco com esses objetos. A Mulher grita e
indo. Eu gosto dele e ele gosta de mim, te- aparece um Homem extremamente calmo,
nho certeza. E gosto dele como ele é. Agora, contudo, ele fica surpreso diante da bagunça
se ele precisa ter certas liberdades para que generalizada.
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Mulher: É horrível! Estou muito estressada! O barulho fica mais forte. O Homem tenta
disfarçar batendo no chão com os pés, fingindo
Homem: O que acontece com você?
que é ele quem provoca o barulho.
Mulher: Não aguento mais!
Homem: Não aguenta mais o que?
Mulher: Está ouvindo agora?
Mulher: Não acredito que você não consiga
Homem: Sou eu que estou...
perceber. (Pausa)
Mulher: Não é você. É esse barulho esquisi-
Homem: Parabéns para você.
to que fica cada vez mais forte.
Mulher: Como assim? (Breve pausa) Não é
Homem: Não sei do que você está falando.
meu aniversário!
Mulher: (Começa a procurar a origem do
barulho) É daqui embaixo.
Pausa.
Homem: É imaginação sua.
Mulher: Imaginação?
Homem: Vou dar uma dura nessa empregada.
Mulher: Do que você está falando? A em-
pregada não tem culpa nenhuma disso aqui. O Homem tenta organizar a bagunça de rou-
(Breve pausa) Você não percebe? pas, caixas e sapatos, mas a Mulher desarru-
ma tudo, procurando pela origem do barulho.
Homem: Claro que percebo.
Mulher: Percebe coisa nenhuma! (Breve
pausa) Não tenho uma roupa decente para Homem: Não tem mais barulho.
vestir. Vou sair na rua de que jeito? Mulher: Tem sim. (Dá um berro) Ai!
Homem: Que foi?
Ouve-se novamente o barulho do chão. Mulher: O meu pé! Meu pé! (Uma mão fica
segurando o pé dela)
Mulher: Está ouvindo agora? Homem: Como é?
Homem: O que? Mulher: Você não está vendo? Uma mão
está segurando meu pé. (O Homem tenta de
Mulher: O barulho.
várias maneiras livrar o pé da Mulher, mas
Homem: Que barulho? não consegue).
Mulher: Que horror! Faz esse cara soltar
O barulho aumenta. meu pé!
Homem: É o que estou tentando fazer!
(Remove uma tábua do assoalho e consegue li-
Mulher: Esse barulho aí, que é constante. bertar o pé da Mulher, porém os dois acabam
Não para nunca.
caindo no chão. Aproximam-se lentamente do
Homem: Não estou ouvindo nada. buraco e observam o interior).
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Mulher: Mas o que é isto aqui? um jeito nessa escravidão toda. Agora!
Homem: Não faço a mínima ideia. Homem: Mas...
Mulher: Você botou todo esse monte de Mulher: Só fala comigo quando resolver.
gente para trabalhar aqui? (Sai de cena muito irritada)
Homem: Eu não! (Confere no buraco) Bom, Homem: (Olhando pelo buraco do assoalho)
digamos que botei. Então... O que foi que a gente combinou?
Aí dentro está mais do que ótimo para
Mulher: Está coalhado de gente, não cabe
vocês! Era para não sair, nem mortos. Um
mais ninguém.
mínimo de responsabilidade, senhores.
Homem: Acho que ainda sobra algum es- Desse jeito não dá. Vocês estão muito bem
paço. aí dentro. Se escutassem barulhos aqui em
Mulher: Como é que eles comem? cima, era para vocês trabalharem em silên-
cio. E tem mais: vocês estão carecas de saber
Homem: São terceirizados. que cortar esses tecidos libera um pó nocivo.
Mulher: Isso é escravidão! Muito ruim mesmo. E que se uma porta,
janela ou o que for, ficasse aberta podia
Homem: A escravidão já foi abolida faz contaminar as pessoas. Vocês estavam cien-
tempo. tes disso. Peço que sejam mais responsáveis.
Mulher: Como você conseguiu botar toda Esse pó acaba queimando a pele da pessoa.
essa gente aí? Eu sei que vocês adoram isso, que virou
uma brincadeira esse negócio de ficar com a
Homem: Bom, você sabe, eu sou muito cara colorida. Vocês não me enganam, não.
mais organizado que você. (Ri) É obvio que quem fica de cara verde
Mulher: Poderiam ter ficado melhor embai- ou roxa é um sujeito que não dá mole, que
xo da garagem. Ou fechados no terraço. trabalha mais e que merece ganhar mais.
Eu entendo esse entusiasmo todo. Sei que
Homem: Acho que não, teu closet é o maior
vocês adoram seus rios eternamente colo-
cômodo da casa.
ridos pelo azul dos jeans da última moda.
Mulher: Se botarmos a tábua de novo, será Antigamente, a cor desses rios não tinha a
que eles vão embora? menor graça. Mas, mesmo assim, não dá
para desculpar vocês. E olha que eu admiro
Homem: Duvido.
o jeitão de vocês. Um povo esquisito é ver-
Mulher: Não custa tentar. (Tenta recolocar a dade, mas... com uma capacidade enorme
tábua do assoalho, mas uma mão não deixa) de ser feliz, de esquecer o lado negativo,
Não Deixa! A mão não deixa! Por que não de celebrar em conjunto as coisas boas da
deixa? vida de forma descontraída. Gosto das suas
Homem: Deve ser uma mão marxista. fiestas. Afinal, vocês também têm o direito
de serem felizes, caralho! Nas lojas de rou-
Mulher: (Dando a tábua para o Homem) pas experimentamos essa mesma alegria de
Quero que você resolva esse troço é agora! viver, esses mesmos valores. Uma loja em
Homem: Resolver o que? liquidação é uma verdadeira fiesta. Vocês
tinham que ver aquilo. Todo mundo sabe
Mulher: O cativeiro. Quero que você dê que as oficinas de confecções são uma fiesta
86
também. E que para a criança que costurou as achassem escritas em lugar nenhum.
o moletom bebendo água bichada, os bi- Isso seria uma sorte e tanto. E falando em
chos acabaram virando suplemento alimen- sorte, tem lugar melhor para ficar do que
tar energético. E que se aquela outra criança aqui? Quem quer enfrentar a rua com a
apanhava para costurar mais rápido, era insegurança que existe hoje? Sair para que?
apenas para fazer música no contato entre Para ficar olhando as putas, ou tomar uma
madeira e corpo. (Bate ritmicamente no chão, cerveja com o amigo que acabou de sair da
fazendo música) Vocês pertencem a uma cadeia? É gente que não presta! Aqui, pelo
cultura que vive em eterna fiesta. Nas ofici- menos, durante doze horas, de segunda a
nas de costura se escutam concertos infin- sábado, vocês ficam protegidos dessa gen-
dáveis. A maior recompensa a tudo isso, são talha. Aqui vão ficar bem protegidos, se
as filas que as pessoas fazem para comprar tornando pessoas melhores, em um lugar
aquela camiseta costurada por aquela crian- onde o trabalho e a disciplina são apre-
ça. São filas enormes porque aquela criança ciados. Por isso, quando alguém atrasa ou
merece. Aquela criança merece uma fila de enrola, é praxe tirar a roupa, apanhar e ser
clientes esperando na rua para comprar o demitido. É necessário ter rigor e orgulho,
que ela fez. E o cliente fica muito agradeci- para merecer trabalhar com os melhores.
do, desfrutando e celebrando o trabalho da Porque pode ter certeza, aqui trabalhamos
criança. É uma festa e tanto. É que vocês já todo dia de cabeça erguida, pela honra de
nasceram assim, desse jeito. É uma cultura trabalhar para as melhores marcas do mun-
bem solidária. Poderiam viver em grandes
do. É por isso que vosso salário mensal vale
casas, mas não, preferem morar com seis ou
cinco moletons das lojas. Para serem mais
mais parceiros num cubículo de dez metros
prestigiados ainda. Embora, quem quer ter
quadrados. Se chegam às oficinas como
cinco moletons em casa? Não sendo minha
gado, não é porque não exista outro jeito,
mulher, claro? Mas, fala sério, quem vai
mas é porque vocês gostam disso. Assim
querer cinco moletons em casa se não tem
podem cutucar-se melhor; olha que eu já
onde enfiá-los. Fora o baita calor dos mole-
vi cada coisa... As mais empolgadas são as
tons, haja ventilador que aguente. Fiquem
crianças, não é? Só desse jeito para entender
aqueles dois mil mortos anuais, naquelas sabendo que se um dia vocês forem presos,
Kombis lotadas. É por causa disso, porque vai ser por terem me roubado, por invasão
vocês pertencem a uma cultura muito, mas de moradia, por briga de bêbados ou por
muito solidária. Gostam de andar sempre mentirosos quando alguém...
juntos, seja no lugar que for. Morrer desse
jeito é tão próprio de vocês, de vossa cultu-
Reaparece a Mulher.
ra. O mesmo acontece com o esquecimento.
Esquecer também é algo muito típico de
vocês. Deve ser por causa do calor, da fiesta,
Mulher: Pronto? (Aproxima-se do buraco)
da umidade do ar, do álcool. INDITEX,
Ainda não consertou?
H&M, ZARA, EL CORTE INGLÊS,
C&A, BENETTON, MARKS&SPEN- Homem: Vão ficar sufocados, saíram por isso.
CER, ADIDAS... São palavras que sendo
Mulher: Não é problema meu.
ouvidas pela primeira vez, acabam esqueci-
das em cinco minutos. Talvez nunca antes Homem: Estão acabando a próxima coleção.
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Mulher: (Olhando compassiva para o buraco. Cliente: Bom... Se olharmos dessa perspec-
Pausa) Se não estivessem aqui, estavam se tiva, o senhor tem razão.
prostituindo, ou coisa pior. Corretor: Tenho certeza que a senhora ficou
Homem: Pode ter certeza disso. impressionada.
Cliente: Totalmente.
O Homem recoloca a tábua no assoalho. Corretor: A gente entra em um aparta-
mento e...
Cliente: Fica pirado.
Mulher: E então?
Corretor: Falou e disse, a gente pira. Dá
Homem: Então o que?
para não gostar de um apartamento como
Mulher: Vai resolver meu problema ou não? este? (Breve pausa)
Homem: Desculpe, eu achava que... Cliente: Veja bem...
Mulher: Vamos ou não vamos ao shopping? Corretor: Pois não?
(Breve pausa, olhando o público) Não vão
Cliente: Eu acho que...
ser algumas mortes, rolezinhos ou outros
horrores que farão a gente perder as maravi- Corretor: Não vai inventar desculpas agora,
lhosas ofertas de hoje, não é mesmo? não é?
Cliente: Só um detalhe. Está um pouco
bagunçado.
Escuro.
Corretor: Não ligue para isso. O problema
são os pedreiros que deixam tudo bagunça-
7 do. Mas, depois de mudar, é só passar uma
vassoura que tudo fica uma beleza.
88
Corretor: Falei com o decorador, mas ele Cliente: É mais por causa da lembrança, sabe?
nunca escuta o que falo.
Corretor: Compreendo.
Cliente: Calma, não é por causa disso.
Cliente: Não me leve a mal. (Avança lenta-
Corretor: Esse papel custa o olho da cara, mente em direção da porta)
sabia? Corretor: Mas na foto da web já tinha o
Cliente: Acho que não estou interessada no enforcado.
apartamento. Cliente: Pois é, não reparei.
Corretor: A gente resolve isso rápido com Corretor: Dava até para ver as luzes de Na-
duas camadas de tinta, prometo. tal com que os antigos inquilinos o enfeita-
Cliente: Pode deixar, fique sossegado, mas ram. Está certo, não ficou muito bom, foi
não é por causa disso. que nem o papel de parede. Eu teria feito
diferente. É que cada residência tem suas
Corretor: Por que é, então? particularidades, seu próprio potencial.
Cliente: Que tem de ser otimizado, não é?
Breve pausa. A Cliente aponta para o enforcado. Corretor: Estou vendo que a senhora me
entende. Olha que já vi verdadeiras obras
de arte, hein? Anciãos mortos nos sofás,
Cliente: Bom, acho que o enforcado não belamente adornados com trepadeiras. Uma
decora. (Breve pausa) mulher que cortou as veias na banheira foi
Corretor: O que? (Breve pausa) Ah, a senho- transformada numa linda porta-saboneteira.
ra está falando do... (Breve pausa) Mas... Cliente: Chocante!
Cliente: Não é nenhum problema ter al- Corretor: No mínimo é algo justo, não
guém pendurado no lustre, pode acreditar, acha? Você é decorador e falam para você
mas acontece que me faz lembrar coisas do que tem um apartamento com um suicida
passado. inadimplente do consórcio imobiliário. O
que você faz? Agrega o defunto ao ambiente
Corretor: A senhora é a primeira a reclamar. da melhor forma possível, não é? Que pelo
Cliente: Não, não estou reclamando. menos fique bonito.
Corretor: Tenho trazido clientes umas três Cliente: Está ficando tarde para mim.
vezes por semana aqui, e ninguém falou Corretor: A oferta é enorme. Milhares de
nada. pessoas se suicidaram recentemente nos
Cliente: Então peço desculpas. seus apartamentos porque não tinham
como pagá-los. Merecem um mínimo de
Corretor: É fato, aqui morou uma família respeito estético.
com três crianças durante uns dois anos.
Mas nunca reclamaram do... Cliente: Preciso ir embora.
Corretor: Um casal de amigas pintou seu
Cliente: Estou falando, até que ficaria com
defunto de cor prateada e depois grudou
ele pendurado, mas não é bem o caso.
imãs coloridos nele. Ficou muito melhor do
Corretor: Certo, cada qual com sua mania. que grudado na geladeira.
89
Cliente: Certamente. suas. (Breve pausa) Não foi por causa de
você, viu? Pode ter certeza disso, você não
Corretor: Posso fazer uma chamada? Tenho
teve culpa alguma. (Pausa. A cliente não
outro cliente daqui a pouco.
consegue responder, fica imóvel. Não consegue
Cliente: Eu já estou indo. olhar para o enforcado) Foi só uma coinci-
Corretor: É só um minuto. dência. Desculpa, não quero incomodar
você. E a vida, como vai? Tem filhos? Não
acho estranho, não. Sempre achei que você
O Corretor sai de cena. Silêncio constrangedor. tinha filhos. Eles devem ser tão bonitos e
A Cliente tenta sair discretamente. espertos como a mãe. Sei lá. (Breve pausa)
Certamente você está com alguém, não é?
Acho que você já estava com alguém. Quer
Enforcado: Paloma? dizer, que já tem filhos e coisa e tal. Bom,
isso é normal, não é, Paloma? (Breve pau-
Cliente: Oi?
sa) O que estou tentando dizer é que eu
Enforcado: É você, Paloma? gostaria que tivesse. Certo? Pode acreditar,
estou falando de coração aberto. (Breve
Cliente: Emílio? Pôxa, não tinha te reco-
pausa) Continua trabalhando no banco? Ah,
nhecido.
desculpa isso não tem nada a ver. Que você
continua trabalhando no banco, não tem
A Cliente se aproxima do Enforcado. nada a ver com o que aconteceu. Tenho
certeza disso. (Breve pausa) Desculpa, não
quero voltar a... Simplesmente aconteceu,
Enforcado: O que você faz por aqui? assinei a hipoteca com quem não devia... O
despejo era inevitável... Sinto muito… Não
Cliente: Olha que coincidência. Não sabia era para falar disso. Desculpa. (Breve pausa)
que você... Além do mais, a culpa foi toda minha. Eu
Enforcado: Tudo bem, tudo bem. era livre para fazer o que quisesse. Não dá
para esperar que os bancos e as instituições
Cliente: Por que só falou agora? públicas sejam nossos pais. Eles não são! Se
Enforcado: Não gosto de atrapalhar os o sujeito não ganha dinheiro suficiente é
clientes. porque é besta. Mas não voltemos ao tema.
Desculpa, não era minha intenção. Como
Cliente: Olha... Faz tanto tempo... Como
vai a sua mãe? Paloma? (Breve pausa) Palo-
você está?
ma? Lembro-me de sua mãe, uma graça de
Enforcado: Bom, é... Estou bem... Isso… pessoa, mesmo idosa era muito atenciosa.
Estou bem. E você? Tenho uma excelente lembrança da sua mãe.
Cliente: Eu estou bem, também.
Enforcado: Pois é, pois é. (Breve pausa) En- O Corretor volta a entrar em cena.
tão, a gente está bem, não é?
Cliente: Bom, é um jeito de falar.
Corretor: Desculpa ter que sair correndo,
Enforcado: Lógico... (Silêncio constrange- tenho outra vistoria a fazer daqui a dez mi-
dor) Faz um tempão que não tinha notícias nutos. (Silêncio) Desculpe, mas tenho que...
90
Cliente: Fico com ele.
Corretor: Como é?
Cliente: Fico com o apartamento.
Correto: Mas a senhora não viu tudo ainda.
Cliente: Não precisa.
Corretor: Tem certeza?
Cliente: Toda.
Corretor: Bom, com isso ganhei o dia.
Cliente: Ótimo.
Corretor: A senhora queria ficar para fazer
as medições? Eu tenho que sair agora mes-
mo, mas volto em vinte minutos.
Cliente: Tudo bem.
Corretor: Fica bem acompanhada.
91
TRILOGIA DA INDIGNAÇÃO
Contra a Democracia
Contra o Progresso
Contra o Amor
Contra a democracia
SETE MICROCENAS DE GRAND GUIGNOL1
Tudo é discutido neste mundo, menos uma coisa: a democracia. Mas como podemos falar de
democracia se aqueles que realmente governam o mundo não são eleitos pelo povo?
Jose Saramago
93
não sabe? Estão pensando o que? Que não Mulher: Não precisou, não. Já falei que
sabemos votar? Que nosso voto não conta? estou bem.
Mulher: Deixa eles pensarem desse jeito. Marido: Essas coisas a gente nunca sabe.
Talvez seja algo que não dá para perceber só
Marido: Não é brincadeira, não. É a gente
olhando. Você deveria ir.
que dá emprego para esses vagabundos. Es-
tão achando o que? Pagamos para eles resol- Mulher: Fica frio.
verem o problema do trânsito, ou qualquer
Marido: Você não quer que leve ao médico
outro tipo de problema que a gente quiser!
agora? É num “triz”.
Mulher: É isso aí.
Mulher: Estou perfeitamente bem, de ver-
Marido: A gente não é idiota! Quando dade.
enche, enche e pronto. Não vou votar mais
Marido: Então, por que você desmaiou?
nesses vagabundos, não. Não vou mexer
um dedo sequer para votar nesses caras, não. Mulher: Sei lá, não lembro exatamente por
Você vai ver. quê. Quando estava limpando o banheiro
achei um buraco lá em cima, entre o armá-
Mulher: Vamos votar em outros.
rio e o espelho. Estava tudo muito sujo e ao
Marido: Como todo mundo diz que vai passar o pano, percebi que algo se mexia.
fazer.
Marido: O que se mexia?
Mulher: É isso aí.
Mulher: O que? Sei lá, uma coisa, uma...
Marido: Vamos pôr na rua, você vai ver. Achei que algo estava se mexendo e então...
Vamos mandar embora, no murro.
Marido: Era o que? Como era?
Mulher: No murro.
Mulher: Ah, sei lá, não quero nem lembrar.
Marido: É isso aí. (Pausa) E você, como foi
Marido: Tem certeza que você está bem?
seu dia?
Você quer um copo de água?
Mulher: É isso aí.
Mulher: Sabe de uma coisa? (Breve pausa)
Marido: Como foi? Quero sim, obrigada. (Breve pausa) Gelada.
Mulher: Ah, sim. Foi tudo bem, mas… Marido: Pode deixar.
Marido: Fico contente.
Mulher: Mas quando estava limpando o Breve pausa.
banheiro...
Marido: Que aconteceu?
Mulher: Da geladeira.
Mulher: Desmaiei.
Marido: Nossa! Mas agora você está bem?
Pausa.
Mulher: Estou sim. Deve ser a gravidez.
Marido: Por que você não me chamou?
Marido: Esses políticos são o “ó”: todos
Mulher: Passou rápido. iguais. Todo mundo corrupto. Todos são
Marido: Foi no médico? iguais. Não têm um pingo de decência.
94
Aos poucos, a Mulher vai ficando cada vez Marido: Não fica com medo.
mais incomodada.
Mulher: Não estou com medo, quero che-
gar ao hospital!
Marido: Mas tudo isso vai mudar, a gente Marido: Estamos quase chegando. Tem
vai fazer mudar. Vai ser pela menina. A gente carro que não acaba mais!
pode mudar tudo isso, é a nossa obrigação.
Mulher: Não vamos conseguir chegar!
Marido: Vamos conseguir sim!
Alguma coisa começa a se mexer no ventre da
Mulher: Vai nascer antes de chegarmos ao
Mulher. Ela fica muito nervosa.
hospital.
Marido: Deixa comigo. Eu não vou falhar.
Mulher: Acho que…
Marido: O que?
A Mulher dá um grito, uma aranha sai da sua
Mulher: Acho que já. barriga. A aranha é horrível e enorme, como
Marido: Já? se tivesse ficado encolhida durante a gestação e
agora ganhasse o seu tamanho real. Por causa
Mulher: Vai logo pegar o carro! das teias onde eles estão aprisionados, o Mari-
Marido: Estou indo! Começa a respirar pela do e a Mulher não conseguem se olhar entre si,
boca. muito menos enxergar a aranha. Pausa.
Mulher: Pode deixar. Vai embora! (Começa
a respirar pela boca)
Mulher: Como ela é?
Marido: É para já!
Pausa.
Longa pausa. O casal está muito ansioso.
Mulher: Acho que rompeu a bolsa! Mulher: Conta para mim como ela é, conta.
95
Marido: Parece que está sorrindo. Parece Quando caíres. Para apoiar-te... toda vez
muito com a gente. É como se estivéssemos que precisares. Para secar tuas lágrimas... (A
nos olhando no espelho, os dois ao mesmo fala fica difícil de acompanhar porque o Ma-
tempo. rido está prestes a desfalecer) Quando você
chorar. Para rir contigo... Quando fores rir...
Para ouvir você quando precisar... (Acaba
A aranha começa a devorar o Marido que aos desfalecendo)
poucos vai percebendo e alterando sua fala por
causa da dor. Mulher: Posso pedir uma coisa?
Mulher: O que você falaria para ela se en- A aranha para de devorar o Marido e aproxi-
tendesse? ma-se da Mulher.
Marido: Queremos ser os pais que você A aranha começa a comer a perna da Mulher.
merece. Queremos estar sempre à sua altura,
mas deve nos perdoar se alguma vez não
conseguirmos. Quero que você saiba que se Mulher: Gelada, viu?
isso acontecer, nunca será por falta de... de...
amor. Você é a criatura que completa nossa
vida e, mesmo sem conhecer você ainda, Breve pausa.
já fez de nós o casal mais feliz do mundo.
Queremos que nunca falte nada a você e
que possamos devolver a felicidade que... Mulher: Da geladeira.
que... você está nos dando agora.
Breve pausa.
Pausa.
Mulher: Eu bem que mereço você não acha?
Mulher: Continua.
Marido: Pode achar que é um pouco egoísta Pausa.
de nossa parte, a gente trazer você a este
mundo que talvez não seja muito bom,
nem agradável, mas que também tem al- Mulher: Daqui posso ver a rua, ver a cidade,
gumas pequenas alegrias que você... você... toda ela cheia daquilo que está à nossa volta.
certamente vai conseguir curtir. Com cer- As ruas estão presas entre si. A cidade não
teza. (Fala sentindo uma dor insuportável) é mais nossa, talvez nunca tenha sido. Mas
Vamos tentar ensinar a você. Nós estaremos. um dia você consertará tudo. Você vai dar
Sempre. Ao teu lado, para levantar-te... um jeito de mudar as coisas.
96
A aranha para de comer a perna da Mulher Y: No fundo, eles fizeram o que achavam
que fica praticamente no osso. que era necessário fazer.
X: Isso mesmo. Caso contrário, a gente os
Mulher: Você é nossa esperança. O futuro deixava sem ter o que comer, sem remédios,
será bem melhor. sem tecnologia, até que eles mudassem de
opinião. Como testamos em Cuba.
Y: Transferir um grande número de empre-
A Mulher desfalece. Pausa. A aranha aproxi- sas para outras cidades também costuma
ma-se do público. Escuro. funcionar, para derrubar governos.
X: É verdade, mas desta vez a gente queria
2 deixar claro qual era nosso poder. Desta vez
falamos para nós mesmos: chega de moleza,
a cidade é nossa. Por causa disso, a gente
Um escritório futurista com uma grande jane- leva embora. Ela toda, inteira.
la, que deixa à mostra uma cidade destruída,
Y: Eles já a tinham perdido, por sua própria
quase deserta. Y contempla a paisagem. Ele está
incompetência. A cidade era de vocês.
impressionado, mas não comovido. X sentado
ao seu lado, também observa os escombros. X: Fico contente que você tenha percebido.
É bom saber que não errei, ao chamar você.
X: Era nossa, a gente tinha o direito de fazer. Y: Ainda lembro das fotos que mostravam
a cara de pavor daqueles sujeitinhos que
foram devolver os livros da biblioteca e
Pausa. ficaram vendo como o prédio inteiro era
removido.
X: É, isso foi bom demais, bota bom nisso.
Y: O que? A gente ainda se lembra disso por aqui.
X: A cidade, ela era nossa cidade. A gente
Y: Também tem um vídeo que mostra como
tinha o direito de fazer. Você não acha?
removeram um balanço de brinquedo, com
Y: Acho. (Senta-se em frente a X) uma criança sentada nele.
X: No começo pensamos repetir a eleição X: Sempre vejo esse vídeo quando fico com
até que o resultado batesse com nossas pre- vontade de rir.
visões, mas... depois...
Y: O resto foi removido aos poucos? Foi
Y: Certo... aquilo fazia sentido? tudo mesmo? Praças, semáforos, asfalto?
X: Não sei. A verdade é que ficamos com X: Num par de dias, não ficou mais nada na
preguiça de refazer aquela palhaçada de elei- cidade, nada mesmo. Às vezes é bom fazer
ção, aprontar de novo tudo isso para dar em uma faxina, esquecer sentimentos incômodos.
nada. A gente correndo como idiotas daqui
para lá, com aquele monte de votos. O que Y: É justo, não é? Esse pessoal gosta de de-
tem dentro dos envelopes? Por que é que eles fender causas autenticamente soberanas?
achavam que podiam mudar alguma coisa Tudo bem, vão em frente. Agora, quero ver
com um único voto, a cada quatro anos? onde vai ser defendida.
97
X: Sem um único poste, sem uma única fo- Y: Pode acreditar, estou com vocês e não
lha flutuando no ar, sem um eventual grito abro.
de mulher, sem nada.
X: Queremos voltar a ser a cidade das gran-
Y: Vocês queriam de volta apenas o que lhes des oportunidades, até mesmo para as pes-
pertencia; dá para entender. A propriedade soas comuns. Mas isso não é para qualquer
deve ter alguma serventia, não é? Mas teve tipo de pessoa.
arruaça, mortes ou coisa parecida?
Y: Desta vez, vocês não vão deixar que rou-
X: Não costumo ler a página policial dos bem o que é seu.
jornais, pulo direto para economia.
X: Mas, logicamente, vamos precisar fazer
Y: Entendo. uma seleção.
X: Você ficou sabendo que o pessoal acabou Y: Uma seleção… para virar cidadão?
indo embora para outro lugar, sei lá onde?
X: Isso mesmo. Não queremos ter infiltra-
Criaram aqueles grupos de cidadãos nômades.
do quem pense diferente da gente. Aliás,
Y: Bom, deve ser muito chato não ter o que essa é a questão fundamental na criação
fazer num lugar onde tiraram tudo de você, de fronteiras.
até mesmo a própria cidade.
Y: E você quer que eu...
X: Em todo caso, tenho que admitir que a
gente acabou cansando de ter tudo. Além
do mais, gostamos é de fazer alarde, de os- X levanta-se da sua cadeira, aproxima-se de Y
tentar que temos tudo. e apoia suas mãos nos ombros dele.
Y: Com certeza, esse é o maior barato de se
ter tudo. X: Queremos que você faça a seleção.
X: A gente não estava contente com esses Y: É uma honra.
cidadãos, com esse pessoal todo. Mas isso
não impediu que a gente dissolvesse o povo, X: Você tem que fazê-los acreditar que pre-
escolhendo outro no seu lugar. cisam de governo, que precisam de você.
98
X: Estamos pensando nisso. Acreditamos Y: Fissurados por comprar tudo e em foder
que, agora com todos esses votos favoráveis, todo mundo, certo?
pode ser um bom momento para voltar a
X: Existe jeito melhor de virar a cabeça do
convocar eleições. No fundo, a democracia
é tão lucrativa como o Mc Donald’s. São sujeito? Uma vez instalada a sedução em
poucas as franquias que conseguiram tanto qualquer situação ou lugar, ninguém liga
prestígio, divulgação e confiabilidade como mais para coisas supérfluas como, por exem-
essas duas. plo, a dignidade humana. Numa sociedade
em que todo mundo só pensa em trocar de
Y: E os novos cidadãos, como devem ser? parceiro o tempo todo, é impossível aconte-
cer uma revolução que seja emocionalmente
forte. Nenhuma mulher vai conseguir do-
Sem X nem Y perceberem, no interior do saco
aumenta a movimentação, parece que alguém minar você, pode apostar.
está acordando. Y: Está certo. Será que vou precisar de opo-
sição no meu governo?
99
X: Deixa ver. (Olha dentro do saco e não X: Puta do caralho! Rancorosa!
acredita no que seus olhos veem) Onde você Y: Ai, meu Deus!
achou isso?
Z: Filho da puta… Como é que você teve
Y: Que foi? Peguei um nômade qualquer e coragem? Agora vou botar a boca no trom-
trouxe como a gente combinou, para de- bone. Vou perseguir você, nessa tua nova
monstrar que alguns podem ser reciclados e cidade e vou fazer tua vida impossível.
readmitidos na cidade. X: Você sempre foi uma filha da puta.
X: Essa é minha ex! Z: Vou convidar todas minhas amigas, para
me ajudar, principalmente aquelas que você
Y: É o que? não gostava.
X: Como conseguiu trazer minha ex aqui, Y: Isto vai acabar muito mal.
cara? Z: Vou falar para toda cidade porque lar-
Y: Sei lá. guei você, e o quanto você é patético e
desprezível.
Y: Calma…
A mulher, Z, acorda e sai do saco.
X tenta botar Z de volta no saco, mas ela
escapa.
Z: Onde estou? Que porra você faz aqui?
X: Oi querida, tudo bem? Como vai?
Z: Desta vez, não vai ser fácil você sumir
Y: Ai, meu Deus! comigo.
Z: (Olha pela grande janela) O que você fez
com a cidade? Y ajuda X que consegue ensacar Z, mas ela
continua gritando dentro do saco.
X: Está passando por um processo de remo-
delação.
Y: Você fez tudo isso por causa dela?
Z: Remodelação? Qual é? Não sobrou nada!
Isso aí é um troço enorme e horroroso.
Pausa. X começa a chutar violentamente o
X: Não é bem assim, a gente queria...
saco. Y também se anima a chutar. O saco
Z: Você fez tudo isso por minha causa? começa a sangrar. Eles param esgotados, e lim-
pam os sapatos enquanto recuperam o fôlego.
Y: Como é que é?
Z: Falou que jogaria fora tudo o que te lem-
X: Então… talvez não seja uma boa ideia
brasse de mim, tudo! Foi o que prometeu
reformar essa cidade.
no dia em que deixei você.
Y: E se a gente construir um mega puteiro?
X: Deixa de ser egocêntrica e achar que
X: Para mim, qualquer coisa é bem melhor.
tudo gira em torno de você.
Y: Então, vamos nessa!
Z: Você falou que ia detonar a cidade por-
que não suportava nada que te lembrasse
de mim, porque não queria voltar a pensar Eles pegam o saco e levam fora de cena.
em mim. Escuro.
100
3 para perguntar que número vem depois do
número seis?
Homem: Sim, já percebi, desculpe, é mui-
Um homem bate à porta da sua vizinha. É o to tarde.
típico corredor de um prédio de apartamentos.
Vizinha: O problema não é que seja tarde...
Acontece que é uma besteira.
Homem: Boa noite. Homem: Besteira? Por quê?
Vizinha: Boa noite. Vizinha: Escute aqui. Olha, eu estou com
Homem: Desculpe ter acordado vocês. sono. Amanhã tenho que acordar cedo.
Vizinha: Não tem problema, a gente ainda Homem: Certo, mas entenda…
não foi dormir. Bom, quer dizer, meu mari- Vizinha: Não, quem tem que entender é o
do já foi, mas eu ainda não. senhor. Amanhã tenho que acordar muito
Homem: Acho que não vai dar certo. cedo e não gosto que me façam de besta.
Vizinha: Fique calmo. Pode falar. Homem: Tudo bem, mas fale para mim e
vou embora.
Homem: Desculpe, mas é que eu estava
indo para minha casa e não conseguia parar Vizinha: Essa é boa. É muita cara de pau!
de pensar em... Chega bêbado e enche o saco da gente.
Vizinha: Em que?
Homem: Eu ficava me perguntando… A Vizinha fecha a porta e o Homem se aproxima.
Vizinha: Vejamos.
Pausa.
Homem: É.
Vizinha: Certo.
A Vizinha quer resolver logo o problema.
Homem: Fiquei a tarde inteira pensando
nisso.
Vizinha: Você está brincando? Vizinha: Primeiro é o um.
Homem: Brincando? Como assim? Homem: Isso eu sei.
Vizinha: Desculpe, mas você acaba de Vizinha: Depois vem o dois. Depois o...
bater na nossa porta às duas da manhã (Ela fica na dúvida. Breve pausa.)
101
Homem: O três… O Homem continua tentando contar com os
dedos, mas não consegue passar do número
Vizinha: O quatro... O cinco… O seis...
seis. A Vizinha volta com seu marido que está
Homem: E? caindo de sono.
Vizinha: E... e... e acabou.
Homem: Não, não acabou. Vizinho: O que está acontecendo aqui?
Vizinha: Caraca! Vizinha: Vai, começa a contar aí.
Homem: Percebeu? Vizinho: O que você está falando?
Vizinha: Não estou acreditando, não estou Vizinha: Falei que é para você contar. Vai,
acreditando. Espera aí... Um... Dois... eu ajudo. Um… Dois…
Vizinho: Que bobagem é essa?
Breve pausa. Vizinha: Acorda homem. É muito impor-
tante. Um… Dois...
Homem: Três. Vizinho: Ah, sei lá…
Vizinha: Certo, Três... Quatro... Cinco...
Seis… Caraca, é muito louco! Breve pausa.
Homem: Então, o que vem depois?
Vizinha: Como é que você percebeu? Homem: Três.
Homem: Sei lá, estava contando não sei o Vizinha: Três, Eugenio! Três!
que e de repente...
Homem: Quatro.
Vizinha: Muito louco! Ainda bem que você
avisou a gente. Vizinha: O próximo?
Homem: Pensei: “já que eles moram no Vizinho: Não estou entendendo o que está
sexto andar, tenho que avisá-los”. acontecendo? Cinco. Seis.
Vizinha: Vou falar agora mesmo para o
Eugenio. Breve pausa.
Homem: Mas, ele não está dormindo?
Vizinha: Sim, mas é bom ele ficar sabendo Vizinha: E?
disto.
Vizinho: E o que?
Homem: É bom, sim.
Vizinha: É muito louco. Eugenio, qual é o
próximo número?
A Vizinha entra no seu apartamento para
Vizinho: Bom, é o... Não sei.
acordar seu marido.
Vizinha: Não tem mais nada! Eugenio, não
tem próximo número. Percebe? Acabou
Vizinha: Acorda, Eugenio! Acorda, homem! tudo! Não tem mais nada!
102
Homem: Eu percebi hoje quando estava Vizinha: O que você está querendo insinuar?
indo para casa.
Vizinho: Bom, talvez daqui a pouco isso
Vizinho: Não dá para acreditar, mulher. Te- passe e tudo volte a ser como era antes. Volte
nho certeza que ainda sobrou alguma coisa. a existir alguma coisa depois do número seis.
Vizinha: Ah, é? Olha como é esperto! Fala Vizinha: Sei. Como num passe de mágica,
então qual é! certo?
Vizinho: Deixa eu pensar. Vamos ver... A Homem: Eu acho que estamos diante de
gente mora no sexto… um problema muito, mas muito difícil.
Homem: É por isso que vim avisar vocês Vizinha: Ouviu Eugenio? E você falando
primeiro. que não está acontecendo nada.
Vizinha: Eugenio, que andar tem acima da Homem: Fiquei pensando aqui... Não te-
gente? O que tem lá em cima? Pelo amor de nho certeza, mas acho que...
Deus, isto está ficando muito perigoso, hein.
Vizinha: Fale, pode falar. Achei interessante...
Vizinho: Ah, não sei, acho que deve ter
Homem: Pode ser que... É só uma hipótese,
outro andar. Sei lá.
hein. Mas... E se fosse uma conspiração?
Vizinha: Mas qual, Eugenio, qual?
Vizinha: Uma conspiração? De quem?
Vizinho: Não faço ideia, juro.
Homem: Lembra quando as escolas foram
Vizinha: E como foi acontecer um negócio fechadas pra gente ser mais livre?
desses?
Vizinha: Lembro.
Homem: Também não sei. É um mistério.
Mesmo. Homem: Teve alguns professores, muito
poucos, que ficaram vivos.
Vizinha: Ai! Acabei de ter um calafrio, olha.
Vizinha: Claro, você está certo.
Vizinho: Eu estou caindo de sono.
A Vizinha aproxima-se do Homem que fica
surpreso. Vizinha: É uma conspiração…
Homem: Está com cara disso. E pode ser
muito, mas muito perigoso.
Vizinho: Vai ver que amanhã, com mais
calma, tudo fica esclarecido. Vizinha: Ai meu Deus!
Vizinha: Não, isto a gente tem que resolver Homem: E ficamos sem saber o que tem no
agora mesmo. Já pensou se alguém acorda andar de cima.
antes da gente e encontra essa confusão Vizinha: Pois é. O que você acha que tem lá?
toda armada?
Homem: Se não descobrirmos o que existe
Homem: Eu não gostaria de estar no lugar além do sexto andar... De duas uma: ou é o
dele. infinito ou é o nada.
Vizinha: É lógico, ninguém gostaria. Vizinha: Eugenio, por favor, vai lá conferir.
Vizinho: Vai ver que é algo passageiro. Vizinho: A gente confere amanhã.
103
Vizinha: Nada disso. Não dá para esperar que depois de seis não existe mais nada.
até amanhã.
Vizinha: O que a gente faz agora?
Homem: É pelo bem de tudo mundo.
Homem: Eu tenho que subir.
Vizinho: Depois posso voltar a dormir, certo?
Vizinha: Não! Não faz sentido outro sacrifí-
Vizinha: Ai, Eugenio, sobe logo, não custa cio. Não posso ficar sozinha. Quem vai me
nada! proteger de tudo isto?
Homem: É verdade. Então, eu fico.
O Vizinho sobe a escada. O andar de cima
tem uma iluminação bastante esquisita.
Breve pausa.
Breve pausa.
Depois de o Vizinho ter subido ao andar
superior:
Homem: Eu gosto do lado esquerdo.
Breve pausa.
Pausa.
Vizinha: Eugenio?
Homem: Fala, o que tem por lá? É o infini- Vizinha: Que horas você acorda?
to ou o nada? Homem: Entre as seis e...
Breve pausa.
Breve pausa.
104
4 aqueles executivos que disparam bolas de
tinta, uns contra os outros, no paintball. É
muito engraçado, não é? Você tem boas
Manhã quente num parque abandonado e ideias, hein. Gostei. (Breve pausa) Traba-
imundo. Entra Homem 1. Veste terno e gra- lhar gera muita agressividade. Isso é muito
vata e leva um estilingue na mão; está pronto triste. Posso te explicar uma coisa? Estou
para atirar a qualquer momento. Fica inquie- falando isso porque acho que estamos em
to. Espera que alguém lhe jogue uma pedra confiança. Às vezes tenho a impressão que
como a que tem nos seus dedos. De repente, essa tal liberdade de mercado só serve para
escuta-se o zumbido de uma pedra voando promover a destruição do concorrente. Para
que se aproxima. Ela se revela uma rocha gi- arrasá-los do jeito que for. Estou falando
gantesca que esmaga o Homem 1, de quem só numa linguagem muito técnica? Você
vemos os braços. O estilingue caiu da sua mão, percebe o que estou querendo dizer, não é?
ficando muito longe, sem chance para pegá-lo. Fala para mim, qual é a vantagem para um
Pausa. Entra Homem 2 com seu estilingue. economista minimamente inteligente em
Veste-se com a mesma elegância que o Homem ter uma atitude civilizada com o próximo?
1. Prudentemente, Homem 2 comprova que Qual é o benefício de ser uma boa pessoa?
acertou o Homem 1. Comemora o fato. Nenhum. Por isso fiquei emocionado quan-
do você percebeu minha fragilidade no
escritório e propôs a gente sair para brincar
Homem 2: Yes! Isso que é pontaria! Acertei um pouco no parque. (Pausa) Que as coisas
em cheio. Bem no alvo! É demais! (Parando saiam erradas para o concorrente é uma boa
de comemorar) Desculpa aí. Talvez não seja notícia para sua empresa. Isso é líquido e
legal comemorar, não é? É falta de conside- certo. (Golpeando em cima da pedra) Mas
ração da minha parte, isso sim. Não quero o que a gente pode fazer de positivo com
parecer um brutamontes... (Breve pausa) uma ideia dessas? Do mesmo jeito, quan-
Mas, se você quer saber a verdade mesmo, do o pessoal protesta na rua; isso não tem
gostei muito de te acertar de primeira. Isso que ser uma notícia ruim para o sistema.
não é fácil, não. Às vezes… falta um pingo Muito pelo contrário. Enquanto for mais
de concentração para acertar o alvo. Apren- fácil demitir as pessoas dos seus empregos,
di com meus filhos. Falei para você que que estão cada vez mais precarizados, tanto
eles são o máximo. Sabem de tudo. (Breve melhor para a empresa, tanto melhor para
pausa. Homem 2 deixa seu estilingue ao lado a economia. Desse jeito a pessoa é induzida
do Homem 1) Olha, estou deixando o meu a ser perversa. (Começa a escalar a pedra)
aqui, hein. No chão, ao lado do seu. (Deixa Atitudes egocêntricas são enaltecidas. Ainda
o estilingue) Agora estamos quites, em igual- mais: os egoístas são vistos como pessoas in-
dade de condições. Eu não posso te atacar, teligentes que estão acima dos outros. (Fica
nem você pode me atacar. (Breve pausa) em cima da pedra) Percebeu? Legitimaram o
Tenho que te cumprimentar. Você tinha mal. Está percebendo? O mal venceu. Isso é
razão. Vir aqui no parque para resolver algo muito ruim! (Respira fundo, fica calmo
nossas diferenças é muito bom. Vou tentar e sereno. Sem Homem 2 perceber, Homem 1
fazê-lo com mais frequência. É perfeito mexe levemente a sua mão. Ele está exausto e
depois de uma reunião estressante, depois sente muita dor) O capitalismo é... é total-
das broncas do diretor-gerente. Parecemos mente incompatível com qualquer iniciativa
105
que fomente a igualdade entre as pessoas. É Foi uma ideia ótima, reconheço. É, tenho
incompatível, por exemplo, com a demo- que reconhecer. (Percebendo a movimentação
cracia. Inclusive com essa falsa democracia do Homem 1) O que você está fazendo? O
na qual vivemos. Sempre existirá alguém que você está querendo? (Homem 1 estica a
que ficará pisando os outros. Abusando. mão tentando pegar o estilingue) Achei que
(Fazendo alongamento em cima da pedra) O a gente já tivesse renunciado à violência.
maior desejo do capitalista é detonar tudo. Nossa brincadeira acabou ou não acabou?
Encher o bolso o máximo possível e fugir. Você não ouviu tudo o que eu falei sobre
Sabe o que dá mais lucro? Você vai achar a guerra? Minhas palavras não fizeram ne-
engraçado, se levar em consideração a brin- nhum sentido para você? (Homem 1, deses-
cadeira que você me propôs. (Breve pausa) perado, persiste no seu intento) A gente tinha
Vai, pode falar. (Breve pausa) É a guerra. feito um acordo de não agressão, de sermos
(Homem 1 para de mexer a mão) Você já iguais. Você não aceita que a gente tenha
tinha sacado, não é? Todos nós, os países condições iguais? (Aproximando-se da mão
civilizados, todos mesmo, deixamos que o do Homem 1) O que me deixa ainda mais
resto dos países se despedacem e se matem puto, é que eu estava me abrindo para você.
com as armas que a gente vende para eles. Estava revelando minhas emoções mais
Todos, sem nenhuma exceção. Ocidente in- íntimas! Você não liga para nada? (Pisando
teiro vive da morte. As guerras criam o mer- na mão de Homem 1) Isso é por ser traidor.
cado e o mercado cria as guerras. E a guerra (Divertindo-se) Acredite, no fundo isso dói
manda no mundo inteiro. Porque guerra mais em mim do que em você.
é dinheiro. Quando estamos em guerra, as
medidas de exceção fazem com que a justiça
seja enrabada. A guerra manda. (Homem 1 Escuro.
tateia o chão) O que é que a nossa patética
democracia pode fazer perante isso? Nada.
A guerra paira por cima das pessoas. O 5
impulso agressivo, promovido pelo desejo
de fazer dinheiro, tem muito mais valor
do que milhares de vidas, do que milhares Noite. A Mãe e o Pai se aproximam da cama
de boas intenções. E alguns ainda têm a do filho adolescente. Os pais, cúmplices, ficam
pachorra de falar que o capitalismo trouxe a juntos, ao lado da cama, observando o filho.
paz para o mundo. (Pula da pedra) Cara, o A Mãe chacoalha bruscamente o Garoto que
capitalismo vai esmagar a gente! Isso é um acorda assustado.
fato. Um sistema baseado na expansão infi-
nita dos seus benefícios não tem cabimento
Garoto: Ah? O que está acontecendo?
em um mundo que tem recursos finitos. É
óbvio! Por isso, quando falei para você que Mãe: Acordou?
não sabia o que hoje ia dar de comer aos Garoto: O que?
meus filhos, quando confessei que estou na
mais absoluta miséria e você falou para a Pai: Acorda Zé;
gente sair brincar no parque para relaxar... Garoto: Que está acontecendo?
Foi isso mesmo... Fiquei emocionado, você
me impressionou fortemente, de verdade. Mãe: Nada, só queremos falar com você.
106
Garoto: Que horas são? Pai: O que estamos querendo falar é sobre o
momento em que você foi concebido.
Pai: Quatro e meia.
Mãe: Você sabe o que significa coitus inter-
Garoto: Vocês querem falar comigo agora?
ruptus?
O que está acontecendo? Fiz algo errado?
Pai: Quando eu e sua mãe éramos jovens
Mãe: A gente só quer falar um pouco com
e transávamos, antes de gozar, eu saía da
você.
vagina dela.
Garoto: Não dá para falar amanhã de manhã?
Garoto: Para com isso.
Pai: Não, tem que ser agora, Zé. Para de
Pai: E enchia de esperma o corpo dela.
bancar o dorminhoco.
Mãe: Sobretudo nas minhas tetas.
Mãe: Faz muito tempo que a gente pensou
em falar isso para você. Garoto: Chega!
Pai: Já faz um bom tempo que gente discu- Mãe: Ele ainda gosta de fazer isso.
tiu o assunto. Pai: Tudo bem, mas isso não tem a menor
Mãe: A gente sempre tratou bem você, não importância. O negócio é que não usáva-
é verdade? mos camisinha e, para não deixá-la grávida,
eu gozava fora da tua mãe.
Garoto: O que você está querendo dizer?
Garoto: Sei perfeitamente o que é coitus
Pai: Devagar, rapaz. O que tua mãe quer di- interruptus! Que porra vocês estão querendo
zer é que você acabou de completar 18 anos de mim?
e achamos que seria bom você ficar sabendo
Mãe: É exatamente disso que queremos fa-
de algumas coisas.
lar. Você é o coitus interruptus mal resolvido
Garoto: Uia! Qual é, sou adotado? da gente. Teu pai não conseguiu se segurar
e gozou dentro de mim.
Mãe: Não é. Garanto que carreguei você
nove meses na minha barriga. Pode ficar Pai: Dá para entender?
sossegado.
Garoto: Estão querendo falar de educação Pausa.
sexual ou algo parecido?
Mãe: De certa forma.
Garoto: Dá, mas com certeza não queria
Garoto: Então não precisa nenhuma expli- saber disso. Puxa!
cação, já faz muito tempo que deixei de ser
virgem. Pai: É importante que você saiba.
Pai: A gente não quer falar da tua vida se- Garoto: Acho que agora não vou conseguir
xual. dormir, pensando nesse troço.
Pai: Estamos tentando ser sinceros.
Mãe: Porém, da nossa.
Garoto: Maravilha.
Garoto: O que? Ficaram doidos? Sinto mui-
to, mas não estou minimamente interessado Mãe: Foi por causa disso que tentamos o
em saber como vocês transam. aborto.
107
Garoto: O que? Mãe: Parir me deixou tão abalada, que que-
ria dar cabo de você de qualquer jeito.
Mãe: Não desejávamos você, Zé. É normal.
Pai: Achamos que teus problemas respira-
Garoto: Normal?
tórios foram provocados pelo incidente da
Mãe: Faltou pouco para você acabar no piscina.
urinol de um hospital de quinta.
Garoto: Não estou acreditando. E agora
Garoto: Como é que é? que vocês decidem falar? Como é que con-
Pai: Para tua mãe e para mim você foi a segui sobreviver a tudo isso?
nossa maior decepção. Nossas vidas, nossos Pai: Foi novamente teu avô, ele salvou você
planos, estavam sendo virados pelo avesso. no último minuto. Depois ele ficou com
A gente queria continuar trabalhando, con- você até você completar quatro anos.
solidando a empresa, sem...
Garoto: Ainda bem, hein. Pelo menos al-
Mãe: Sem nenhum impedimento. guém gostava de mim.
Pai: É isso aí. Pai: Olha Zé, mas o fato é que...
Garoto: E o que aconteceu? Mãe: Não, não conta não. Essa parte eu
quero contar. Quando o avô morreu, fica-
Pai: Teu avô ficando sabendo. E você sabe
mos sabendo que ele tinha abusado sexual-
como são religiosos na casa da minha mãe.
mente de você desde o início. Sodomizou
Mãe: Mas nem escondida consegui fugir você de um jeito horroroso, todos os dias
para o hospital. Eu só pensava em como do ano. Como se fosse pouco, ele gravava
fazer isso. tudo com sua câmara.
Garoto: Muito bonito, tem mais alguma Garoto: Não, assim não dá. Pior do que isso
coisa? é impossível.
Mãe: Eu tentei provocar o aborto, mas aca- Mãe: Lembra alguma coisa do vovô?
bei machucando minha coxa. Não é nada Garoto: Pelo menos ele me queria vivo, não é?
fácil livrar-se de uma criança.
Mãe: É, mas olha para que mesmo.
Garoto: Não foi nada fácil se livrar de mim,
mamãe. Lembra que era eu de quem você Garoto: Vocês não queriam que eu vivesse.
queria se livrar. Pai: Mas, o que a gente podia fazer?
Pai: Também é ruim para nós, viu? Você Mãe: Falar a verdade acima de tudo.
tem que concordar que a gente precisava
Garoto: E agora, não tem nenhum parente
falar disso para você.
que esteja querendo enfiar uma faca nas
Garoto: Estão certos, vocês não podiam minhas costas nesse natal? Ou alguma tia
ficar calados, mas tinham que transformar que está querendo me torturar nas férias de
esta noite num pesadelo? janeiro?
Mãe: Quando o joguei na piscina, você Mãe: Não esculhamba, Zé, o que estamos
tinha só alguns meses de vida. falando é muito sério.
Garoto: Não acabou ainda? Pai: Seríssimo.
108
Garoto: E também muito útil. Agora per- Mãe: Você é um desastre, Zé. E você sabe
cebi que vocês me transformaram numa disso. Você foi apenas uma perda de tempo
pessoa melhor. irreparável.
Mãe: Muito bem, pelo menos agora já sabe Pai: Menos, mulher. (Para o Garoto) Falan-
por que decidimos matar você.
do claro, você não vai dar lucro para a gente,
é simples assim.
Pausa. Garoto: Por que não me deixam ir embora?
Pai: Porque de certa forma nós somos os
Garoto: Mãe, o que você está falando? responsáveis.
Pai: O que você acabou de ouvir. Mãe: Se você não gera lucro para nós, nun-
Garoto: Essa brincadeira não tem graça ca vai gerar para ninguém.
nenhuma. Pai: Quando o estado declarou falência
Mãe: Você é a brincadeira sem graça. Uma financeira e aquela multinacional dos ham-
brincadeira de 18 anos sem graça nenhuma. búrgueres assumiu toda a dívida do governo,
Garoto: O que? escancararam-se as portas para reduzir o
pessoal. Igual agora, no seu caso.
Pai: Achamos que quando você completasse
os 18 anos… Talvez fosse o momento ideal Garoto: Reduzir o pessoal?
para… Bom… Você já sabe.
Mãe: Bom, quer dizer, hoje somos três e
Garoto: Mas, o que eu fiz de errado? amanhã de manhã seremos dois. Reduzir o
Mãe: Não percebeu ainda? pessoal!
Pai: Acreditamos que a gente não leva jeito Pai: É o nosso jeito de contribuir com o
para ser pais, sempre achamos isso. E no bem-estar social, você não acha?
momento a situação econômica da família
não está nada boa. Garoto: Vocês não são ninguém para ficar
me ameaçando.
Mãe: Não precisa ficar dando explicações.
Mãe: É você que não é ninguém, Zé. Não
Pai: Não precisa, mas é bom falar tudo.
devia ter nascido, nem crescido, muito me-
(Para o Garoto) Você também não tira boas
notas e isso é um fato real. Quando sair da nos pensado. Nunca!
escola... Pai: Você nunca deveria ter existido, é sim-
Mãe: Se um dia conseguir sair. ples assim.
Pai: A gente sabe que você vai ter problemas Garoto: É uma loucura!
para arrumar emprego.
Pai: Lembra que graças nós dois, você con-
Garoto: Posso trabalhar na empresa de vocês. seguiu viver algo mais do que 18 anos.
Pai: Mas você não leva jeito, rapaz. Você Mãe: Caso contrário, hoje você não pas-
é o típico filho de empresário que só vai
saria de resto de espermatozoide ressecado
arrumar encrenca com os operários, pode
no lençol do hospital, misturado ao óvulo
apostar.
109
coagulado da minha menstruação que ficou meio da plateia e traduz as falas dela para o
numa gaze esterilizada. público presente. As falas de Farah, traduzidas
simultaneamente por José, estão entre aspas.
Pai: Você não é nada, simples assim. É um
erro que agora vai ser corrigido.
Garoto: É sinistro. Quero ir embora daqui José: “Acredito na democracia.” (Pausa)
agora mesmo. “Vocês precisam saber disso.” “Foi muito
difícil para eu vir hoje aqui, falar com
vocês.” Com a gente, é claro. “Pelos mais
O Garoto rapidamente se dispõe a ir embora. diferentes motivos.” “Mas se agora estou
aqui é porque para mim é sumamente im-
portante.” “Sou muito grata ao José” Quer
Pai: Não, não vá embora. dizer, a mim. “Ele mora no prédio 5A e
agradeço que possa traduzir minha língua
Mãe: Brincadeirinha!
para vocês.” “Ele sempre foi bom e muito
Garoto: O que? bem comportado comigo e com minha
Pai: Brincadeirinha! filha.” اركشObrigado, Farah, eu que
agradeço. “Espero que ele traduza minhas
palavras com a serenidade que eu não consi-
O Pai puxa um revólver e atira no Garoto. go ter neste momento.” “É muita sorte para
Pai e Mãe ficam olhando o cadáver. Pausa. mim que ele saiba a minha língua.” “Gos-
taria muito de um dia poder falar a língua
de vocês, nestas reuniões de condomínio.”
Mãe: Talvez algum necrófilo fique afim do “Não entendo o motivo pelo qual isso não
cadáver. (Breve pausa) Mas só pagando. possa acontecer no futuro. Especialmente
agora.” (Breve pausa) “Sei que nunca me
Pai: Podemos fazer hambúrguer e vender. comuniquei com vocês, embora sejamos vi-
Mãe: Ou pastel de carne. zinhos faz três anos. Provavelmente, muitos
nem imaginavam que eu estava morando
Pai: Joia! no mesmo prédio que vocês. Talvez, algum
dia tenham cruzado com meu marido, mas
comigo já é mais difícil.” (Breve pausa) “Sou
Pai e Mãe tiram de cena o cadáver do filho,
uma profunda admiradora de vossa cultura,
puxando-o pelo pé.
acredito em todas as coisas que vocês acre-
Escuro. ditam, podem ter certeza disso. Meu pai
tinha muito dinheiro e nos deu, a mim e
as minhas irmãs, uma educação que o resto
6 das mulheres do Afeganistão não costuma
ter. Porém, eu também quero preservar
minha crença, meus costumes.” (Breve
Entra em cena Farah, uma mulher de Burca, pausa) “São muito poucas as mulheres que
o vestido islâmico que cobre o corpo inteiro. utilizam a burca.” “Embora eu saiba que
Farah tem por volta de quarenta e cinco anos isso incomoda a muitos de vocês.” Agora
e fala em árabe. José, o seu vizinho, está no ela faz uma espécie de brincadeira e diz:
110
“Sei o que vocês pensaram quando eu entrei, e eu precisamos de você.” (Breve pausa, Jose
alguns devem ter sentido um pouco de está passado, Farah o manda continuar tradu-
medo, outros devem ter achado graça, mas zindo.) Sim, sim, vou continuar traduzindo.
a maioria deve ter sentido vergonha. Isso eu Meu Deus! “Vim aqui para explicar o que
posso entender.” (Breve pausa) “A partir de aconteceu logo agora na minha casa.” (Fa-
amanhã não vestirei mais a burca.” Nossa! rah continua falando, mas José não fala nada
(Breve pausa) “Seguramente, não vão me durante um bom tempo) Oh, não, não, por
deixar usar.” Como assim? (Breve pausa) favor, não. (Farah para de falar e reclama de
“Vocês tem que entender que a burca faz José) Está certo, certo. Vou traduzir. “José”.
parte da minha cultura, o que não significa Quer dizer, eu. “Esteve falando com minha
nenhum problema para mim ou para mi- filha, pela janela.” Por favor… Ela é uma
nha filha. Não nos sentimos, de jeito algum, criança… “Não era a primeira vez que isso
vítimas de nossas roupas. Vocês se sentem acontecia e meu marido já sabia. Então,
vítimas por terem de pagar as prestações quando ele os viu ficou muito chateado.” É
da hipoteca de suas casas, quando a terra um horror. Estou passando mal, Farah. “Ele
deveria ser propriedade de todo mundo? não parou de bater, não parou, ele queria
Vocês se sentem afrontados pelas vítimas que minha filha nunca esquecesse essa sur-
dos acidentes de trânsito? Dirigir em alta ra, queria que não voltasse a fazê-lo nunca
velocidade é muito mais irresponsável do mais.” “Achei que fosse matar minha filha.”
que vestir uma burca. Se vocês querem ةياغلل ةئيس ملعأ انأو... Estou pas-
viver numa sociedade que seja justa, ou sando mal. (José não sabe como desculpar-se)
pelo menos que pareça justa.” Ela quer Não tem cabimento. Eu devia ter suspeita-
dizer. “Em um lugar onde todo mundo do. Estou me sentindo muito culpado. “Ele
pode fazer o que quer, vocês deveriam nos ficou descontrolado e passou dos limites.
deixar vestir do jeito que a gente quer.” “Se Ela não concordou e pegou uma faquinha
vocês pretendem viver numa sociedade bem de abrir as cartas. Não para espetá-lo, tenho
mais justa, teriam que acabar com o trans- certeza, mas para se defender. Eu tentei tirar
porte privado e dar um jeito para que todo da mão dela, mas ele não parava de bater na
mundo tenha um lugar onde morar, mas minha filha. Ficou ainda mais descontrola-
não ficar perturbando duas ou três pessoas do e no meio dessa confusão toda, quando
que não representam qualquer ameaça para a faquinha já estava quase em minhas mãos,
vocês.” (Breve pausa) “Quis explicar isso não sei como, a faca acabou no pescoço
antes de falar para vocês o motivo que hoje dele. Eu não tinha intenção de... Não sei
me trouxe aqui.” (Breve pausa. Farah põe como aconteceu...” (Breve pausa) رعشأ
suas mãos ensanguentadas para fora da burca)
[ لجخلابSinto-me envergonhado.] Todo
Oh, meu Deus! O que você fez? ! اذام isso aconteceu por minha culpa. (Farah
( ؟متلعفLonga pausa. Farah mostra suas aproxima-se de Jose e o acaricia com suas
mãos ao público) ؟اذاملPor que, Farah? O mãos sujas de sangue. Farah volta a falar.)
que você fez? (Pausa. José deixa de traduzir. Ela está pedindo para a gente ajudar a salvar
Mas, Farah continua falando, desesperada) sua filha. Concorda que alguém tem que
Não sei se vou conseguir traduzir… Meu pagar pela morte do seu marido, mas acre-
Deus! Ela falou: “José, me ajude, por favor!” dita que não deve ser sua filha, senão ela.
Não sei se devo traduzir isso. “Minha filha Diz que se sente afortunada por ela poder
111
pagar sozinha pela morte do marido, por- governo de George Bush Junior, e que ainda
que se acontecesse no Afeganistão as duas hoje é uma das pessoas mais poderosas, ricas e
iriam morrer apedrejadas. Ela diz: “Sinto- influentes do mundo.
me afortunada. Isso significa para mim que
posso considerar-me igual a vocês”. (Breve
pausa) Ela diz: “Mas não posso aceitar per- Garçonete: Eu não quero ser cúmplice.
der minha identidade. Entendo que cometi Dick: O que? Que merda você falou?
uma falha terrível e que devo pagar por
isso, mas sem a burca eu deixarei de ser eu Garçonete: Aquilo que você ouviu.
mesma. Para mim, é algo mais do que fun-
damental. Talvez para vocês eu não devesse
A Garçonete vai atender a outra ponta do
me preocupar com isso agora, mas quando
balcão.
chegar a polícia, por favor, peçam para que
não tirem minha burca. Não quero deixar
de ser eu mesma. Sei que eles vão querer Dick: Ah, é? (Breve pausa) Você está me
tirar de mim. Por favor, José. Estou com ouvindo? Estou esperando por uns amigos.
medo!” (Breve pausa) Estou me sentindo (Breve pausa) Então... Por que você não
muito mal, Farah. Ela fala para vocês: “Sei quer trazer uma cerveja para mim? (Breve
que vão me denunciar à polícia. Eu enten- pausa) Que porra é isso aqui, um bar ou o
do, e não desaprovo vocês.” (Breve pausa) que? Que bosta de bar é isso aqui? (Breve
“Porque vão me denunciar, não é? Não vão? pausa) Você está me ouvindo?
Eu entendo, não se preocupem.” (Pausa)
“Podem fazê-lo. Talvez um dia, quando sair Garçonete: (Aproximando-se) Não vou servir
da prisão, eu consiga falar com vocês no seu nada para você.
idioma e possamos ter uma conversa. Uma Dick: Não vai o que? Você sabe quem porra
linda conversa.” Foi isso que ela falou. sou eu? Sabe meu nome, não sabe? Se eu
quiser... Se quiser agora mesmo… podia
dar um jeito para que amanhã ninguém
Farah sai de cena, José levanta-se rapidamente mais lembrasse seu nome. (Pausa) É só fazer
e também sai atrás dela. uma ligação. (Breve pausa. Dick mostra seu
Escuro. celular) A gente pode começar por você, e
não ia conseguir voltar para casa. O pessoal
enfiava você num carro e apagava com uma
7 injeção de bosta daquelas. Depois, quando
você despertasse ia perceber que foi obri-
gada a engolir a carne da tua própria cara.
Noite escura. Bar tenebroso com iluminação Olhos, nariz, lábios, tudo. Pode apostar,
vermelha. Ruído ambiente de público no ninguém mais ia reconhecer você. Você ia
bar. Uma jovem garçonete atende os clientes pedir pelo amor de Deus para morrer. (Bre-
enquanto, do outro lado do balcão, vemos ve pausa) Não custa nada. (Pausa) É só fazer
Dick, um cinquentão, de terno e gravata. Ele uma ligação. (Breve pausa) Depois posso
é incrivelmente parecido com Richard Cheney, mandar apagar toda sua família. Sempre há
vice-presidente dos Estados Unidos durante o um motivo para justificar: doenças, epide-
112
mias fora de controle, terroristas perigosos Dick olha feio para a garçonete que fica pa-
etc... As pessoas nunca reparam onde foram ralisada por um instante, mas depois volta a
parar seus vizinhos, sobretudo se ficam servir os clientes. Dick e Leopoldo instalam-se
sabendo que sofriam doenças altamente numa mesa.
contagiosas. (Breve pausa) E não custa nada,
hein? Amanhã ninguém ia saber que você
existiu. (Breve pausa) Uma retardada da Dick: Como vão as crianças?
minha empresa em Bagdá foi estuprada por Leopoldo: Os quatro estão ótimos. Você
sete chefes dela. Um depois do outro. Já tinha que ver. A Clementina está linda, é
imaginou o que eu faria contigo? (Pausa) a alegria do papai. E o pequeno Leopoldo,
Olha aqui. É só dar um toque para fazer a então. Sei lá, acho que vai ser o grande her-
ligação. (Pausa) Dá para trazer uma cerveja deiro da coroa, leva jeito. Fico muito orgu-
para mim? (Pausa) Por favor? lhoso deles, sabia?
Dick: Dá para imaginar.
No momento que a garçonete estava quase Leopoldo: Não quero parecer antiquado,
atendendo ao pedido de Dick, entra no bar mas... quanto mais velho fico, mais acredito
o rei Leopoldo da Bélgica (1835-1909). Ele na importância da família.
está muito à vontade no seu uniforme militar
e ostenta a sua característica barba volumosa. Dick: Acredito que não mais do que eu,
meu amigo.
Leopoldo: Ela é a pedra fundamental da so-
Leopoldo: Olá, todo mundo! ciedade, Dick. Não existe nada além disso.
Dick: Leopoldo! (Aproxima-se alegre e o Sem família, tudo vira um caos; nenhum
abraça) Por onde você andava, seu puto? tipo de sociedade sobrevive sem ela.
Leopoldo: Por aí, querendo chegar logo Dick: Família é vida, é amor. É tudo aquilo
para beber uma cerveja com vocês. O Gre- pelo que lutamos. Pensa nisso quando al-
gório já chegou? guém contrariar você.
Dick: Deve andar muito ocupado, como Leopoldo: Só tem duas coisas nas quais eu
sempre. acredito tanto quanto na família: a consti-
tuição e a liberdade.
Leopoldo: Daqui a pouco ele conta. O que
você quer beber? Dick: Você devia escrever o que fala. Leo-
poldo, é uma honra compartilhar essa mesa
Dick: Coisa nenhuma.
contigo. E os negócios, como vão? Conti-
Leopoldo: Isso por quê? nua viajando muito?
Dick: (Olhando para a garçonete) Essa aí Leopoldo: De jeito nenhum. O Congo
não quer me servir uma cerveja. fica muito longe para mim. Além do mais,
detesto viagem de navio. E tem outra: eu
Leopoldo: O que foi que você fez para ela?
tenho que governar a Bélgica. Não posso
Dick: Juro que não fiz nada. fazer tudo ao mesmo tempo. E você, como
Leopoldo: Vai, senta. Depois a gente decide foi a última eleição?
o que fazer. Dick: Foi mamão com açúcar.
113
Leopoldo: Mas vocês perderam, não tenta papo: “Por que só com as mulheres e com
me enganar. os homens não?”
Dick: Nada disso. Botamos o negro para Leopoldo: Se temos que violentar alguém
trabalhar, que nem vocês no Congo, só isso. para desmoralizá-lo, é muito melhor que
Adivinha quem patrocinou? Quem investiu sejam as mulheres. Por causa da futura gra-
no triunfo do crioulo? Foi a gente Leopoldo, videz.
não se engane. Nunca brincamos com nos-
Dick: Está certo, é verdade. Dá muito mais
so patrimônio.
trabalho engravidar os homens.
Leopoldo: Um negro no comando. Acho
Leonard: Não sei não, tem uns veados por
exótico e perigoso demais.
aí que tentam ficar grávidos.
Dick: Não tem perigo nenhum. Ele já sabe
quem é que manda mesmo. E os seus ne-
gros, como é que estão? Leopoldo e Dick riem.
Leopoldo. Estão me deixando um pouco
preocupado. Dick: Foram quantos até agora?
Dick: Por quê? Leopoldo: Quantos o que? Quantos veados?
Leopoldo: Ultimamente andam praticando Dick: Não, você sabe do que estou falando.
aquele negócio de suicídio coletivo. Isso Quantos são agora?
realmente me preocupa. A negrada se junta
e se apunhala entre eles, com a própria faca Leopoldo: Ah, sim! Olha, desde que chega-
de cortar seringueira. Isso resulta numa bai- mos em 1878... A gente deve estar por volta
xa considerável da produção. Como é que a dos dez milhões de mortos, pouco mais ou
gente vai fazer para controlar esse pessoal? menos. Mas esse índice já foi superado de
longe no quesito das mãos cortadas. Faze-
Dick: Medo. Botar medo sempre funciona. mos isso com os que não produzem borra-
Leopoldo: O que você sugere? cha suficiente.
Dick: Tudo tem que ser bem bolado. De Dick: É muito mesmo, hein. Vocês ganham
repente você denuncia que tem gente de goleada.
atacando os prédios mais importantes do Leopoldo: O que importa é a determinação.
país, depois é só jogar a culpa nos negros. E vocês? Quantos vão até agora no Iraque?
Aí você pode fazer o que quiser com quem
quiser. Você vai ver. Dick: E eu sei? Ninguém consegue chegar
num acordo.
Leopoldo: Preciso de algo mais contunden-
te, a Bélgica fica muito longe do Congo. Leopoldo: Fala, vamos. Tudo bem.
Por enquanto, o que a gente inventou para Dick: Na melhor hipótese, um milhão e
eles se empenharem no trabalho foi tomar meio, quando muito. Mas a situação do Ira-
suas mulheres como reféns. que não é nem de longe tão favorável como
Dick: Acho que isso não ia funcionar para a de vocês, lá no Congo.
nós. (Breve pausa) A gente seria acusado Leopoldo: Isso é o de menos. Que seja mais
de sexista. Você já deve ter ouvido aquele ou menos favorável, pouco importa. O que
114
realmente importa é a nossa contribuição de cultura?”. É um péssimo exemplo que
na vida dos homens e das mulheres desses deve ser exterminado.
lugares remotos.
Leopoldo: Não esquece que foi por causa
Dick: Sim, isso é verdade. do urânio, que a gente extraiu do Congo,
que vocês conseguiram fazer a bomba com
que arrasaram o Japão.
Pausa. Dick hesita.
Dick: Não esqueço, de jeito nenhum. O
progresso é irreversível.
Leopoldo: Levamos democracia. Se você Leopoldo: Essa palavra me deixa confuso
tivesse visto como viviam antes. sempre.
Dick: Na pior… Dick: Qual palavra?
Leopoldo: Bota pior nisso! Leopoldo: Progresso.
Dick: Antes de a gente chegar também não Dick: É progresso quando o benefício é teu.
tinha democracia no Iraque. Quando não é, não é.
Leopoldo: Agora, podem até votar naqueles Leopoldo: Você progrediu um bocado.
patrícios que eles acham que os representam. Qual é teu patrimônio atual?
Dick: É obvio que só tem uma única condi- Dick: Segundo os últimos dados oficiais da
ção, eles têm que fazer exatamente o que a minha companhia petroleira, a primeira
gente quer.
provedora de petróleo do mundo, este ano
Leopoldo: Mais claro impossível. Coita- teve um ingresso de 18 bilhões e 300 mi-
dos, eles não têm critério suficiente para lhões de dólares.
governar a si próprios! Por exemplo, o que
Leopoldo: Com esses números você ganha
eles iam fazer com as riquezas naturais, o
desta vez.
petróleo e a borracha? Eles iam dar de graça
a qualquer um. Dick: É, tenho que reconhecer. O tempo é
de prosperidade.
Dick: Os recursos devem estar nas mãos
daqueles que são bons gestores. Começam a rir.
Leopoldo: Justamente no ano de 1884 fui Leopoldo: Fala, quantas pessoas ficaram
membro fundador da Sociedade Inter- com as mãos cortadas, hein?
nacional para a Supressão dos Costumes
Dick: Não esculhamba.
Selvagens. Estavam envolvidos os mais im-
portantes países do mundo.
Dick: Quem sabe a gente não refunda agora? Continuam rindo. A Garçonete que estava
passando junto deles fica apavorada quando
Leopoldo: Ela ainda existe. Agora, se chama
Leopoldo pega na sua mão.
ONU.
Dick: Quando eu vejo uma criança do
terceiro mundo, penso: “eles não têm ver- Leopoldo: O que você pode trazer para a
gonha na cara para continuar com essa falta gente, bonitona?
115
Garçonete: Desculpe. Dick: Até que não é má ideia. Acho que
Leopoldo: Como assim? vou copiá-lo no futuro e fazer minha cruza-
da na China ou na Índia.
Garçonete: Sinto muito, não posso servir
vocês. Leopoldo: Quem diria, o Gregório! Até
parece um cara inofensivo quando está en-
Leopoldo: Por que você não quer servir a xugando um par de uísques.
gente?
Dick: É, mas você já viu, aqui não deixam a
Garçonete: Porque sei quem são vocês dois. gente beber.
Leopoldo: E se um dia tudo isso mudar?
Dick ri.
Dick: O que você está querendo dizer?
Leopoldo: Você não fica com medo que um
Leopoldo: Qual é o problema? dia... Evidente que continuamos donos do
Garçonete: Vocês são os maiores filhos da poder e que a coisa nunca vai mudar. Isso
puta que ninguém conseguiu encontrar é mais antigo do que andar pra frente. Mas,
jamais. imagina só por um instante que o pessoal
fica contra nós e acaba jogando pedras no
Leopoldo: Uau! Você ouviu isso Dick? nosso cortejo fúnebre...
Dick: Impressionante, rapaz. Dick: (Rindo) Henry Kissinger, o homem
Garçonete: Tenho minhas convicções. Vo- que arquitetou golpes de estado do Chile,
cês podem fazer o diabo lá fora, mas aqui, Argentina, Camboja, Laos, Sahara ocidental
no bar que eu trabalho, não bebem uma e Uruguai... O filho da puta do Kissinger
cerveja sequer. conseguiu ganhar o prêmio Nobel da Paz! A
porra do prêmio Nobel da Paz!
116
Contra o progresso
SETE MICROCENAS BURLESCAS1
117
sua Mulher, mas ela continua imperturbável, (Aproxima-se da criança)
olhando para a televisão. O Homem volta a
Homem: O que?
cutucar e ela acaba olhando para o Homem,
que indica a presença da criança. A Mulher Mulher: Ligar para o conserto.
olha a criança e fica perplexa. O Homem pega Homem: Que conserto?
o controle remoto, estudando pacientemente
qual é o botão que deve apertar. Logo, aponta Mulher: Para o conserto da televisão.
para a criança. Tenta várias vezes “mudar de Homem: (Procurando pelo celular) Cadê o
canal”, mas não consegue. A Mulher tira o celular?
controle do Homem para tentar “mudar de
canal”, mas também não consegue. Os dois se Mulher: Deixei em cima da mesa pequena.
olham embasbacados.
118
Mulher: O que faremos até amanhã sem Mulher: Então, vai ficar ligado a noite inteira?
televisão?
Homem: Acontece que não entendo de...
Homem: Sei lá, podemos jogar baralho ou...
Mulher: Quero que desligue essa TV, é já!
Mulher: Jogar baralho?
Homem: Tá bom, tá bom. (Aproximando-se
Homem: É. do aparelho) Vai ver que ligando de novo
Mulher: Eu detesto jogar baralho! para o técnico, ele poderia...
Mulher: Você está cansado de saber que não Homem: Tudo bem.
gosto de jogar baralho!
Homem: Desculpa, desculpa. Então, o que Com prudência, o Homem aproxima-se pri-
você quer fazer? meiro da criança e depois do aparelho. Con-
Mulher: Sei lá, você poderia tentar... segue desligar o televisor, mas a criança conti-
nua sentada na mesa, como no início da cena.
Homem: O que?
Mulher: Desligar a televisão.
Mulher: Não vai embora.
Homem: Desligar a televisão?
Homem: Espera. Às vezes o aparelho demo-
ra um pouco para desligar.
Os dois olham para a criança. Mulher: Ele não vai embora, não vai embora.
Homem: Falei? Falei que não era para des-
Homem: Desligar a televisão... De que ligar!
jeito? Mulher: E agora? O que a gente vai fazer?
Mulher: Sei lá, foi você mesmo que... Você Será que ele não vai embora nunca mais?
desliga todo dia antes de dormir, não desliga? Homem: Sei lá…
Homem: Desligo, mas hoje é diferente. Mulher: A gente não pode ajudar o tempo
Mulher: Sei não, isso aí é com você. todo.
Homem: (Olhando para a criança) Eu não Homem: O que você quer que eu faça?
entendo de televisores. Mulher: Eu não quero saber de nada. O
Mulher: Mas foi você que ligou. Se você problema é seu. A culpa é sua. (Sai)
ligou, agora você desliga. Homem: A culpa é minha? É muito engraça-
Homem: Não estou entendendo. do. Você acha que minha função é qual, hein?
Mulher: Eu não vou deitar até você desligar Mulher: (Volta com um saco de lixo embru-
essa TV. (Breve pausa) lhado) Pega aí.
Homem: Não faça isso comigo. Homem: O que é isso aqui?
Mulher: Se você não desligar esse troço, eu Mulher: Pode abrir.
não deito. Homem: (Abre o embrulho) Um saco de
Homem: Mas vão consertar amanhã. lixo? Você não está querendo...
119
Mulher: Nesta casa ninguém dorme até 2
você sumir com isso aí.
Homem: Não seja dura, Mulher.
Noite. Um homem deitado no meio da rua
Mulher: Nem dura, nem mole. Faça! está se queixando. Acaba de ser atropelado por
Homem: Fazer o que? Enfiar a criança den- um bonde e está gravemente ferido e confuso.
tro do saco e depois... Chega uma Garota e fica olhando para ele. A
Garota veste roupa comum, levemente fora de
Mulher: Faça você mesmo. moda, e uma bolsa. Longa Pausa.
Homem: Eu mesmo o que?
Mulher: Ponha essa criança para fora. Ferido: Chame uma ambulância, por favor.
Homem: Lá fora? Onde?
Mulher: Onde é que você deixa a sacola de A Garota fica olhando, sem reagir.
lixo? No alpendre? Na sala? No dormitório?
Homem: Entendi, já entendi. (Olha para a Ferido: Uma ambulância. (Pausa) Chame
criança e respira fundo) E se ele não quiser uma ambulância, preciso ser levado ao
entrar no saco de lixo? hospital.
Mulher: Você é mais forte do que ele, não
é? (Breve pausa) É ou não é? A Garota se aproxima. Longa pausa.
Homem: Sou, mas…
Mulher: Além do mais, essa casa pertence a Ferido: Preciso ser levado...
quem? Joga ele fora de uma vez, porra!
Garota: Pode ficar sossegado, o que você
Homem: Tá bom, tá bom. (Aproxima-se da tem é bem grave.
criança, mas recua e volta a falar com a Mu- Ferido: (Olhando sem entender) Preciso...
lher) E se a gente...
Garota: Estou querendo dizer que realmen-
Mulher: Você não volta a falar comigo até te é muito grave. Pode ficar sossegado.
por o lixo para fora. (Sai batendo porta)
120
Garota: Uma ambulância? Demora muito, Ferido: Alguém me ajuda, pelo amor de
sempre chegam tarde. Eu perdi dois fami- Deus!
liares, esperando pela ambulância, pode
Garota: (Tapando a boca do Ferido) Ainda
acreditar em mim.
não entrou no túnel de luz? Desta vez vai,
pode acreditar. (O Ferido desiste) Assim é me-
Pausa. lhor. As pessoas não devem morrer de forma
traumática. (Retira a mão da boca do Ferido)
Ferido: Pode pegar todo o dinheiro da
Ferido: Avise minha... minha carteira. Acabo de tirar dinheiro do
Garota: Puta merda, dá para parar de en- caixa eletrônico. Mas, pelo amor de Deus,
cher!? Vai ser chato assim... “Uma ambulân- chame alguém.
cia, uma ambulância” Acha que sou besta? Garota: (Pega a carteira e olha o documento
de identidade) Por acaso o senhor é besta,
seu Garcia? (Bota a carteira no bolso do Feri-
A Garota abre sua bolsa e tira um maço de ci-
do) Ai, senhor Garcia, senhor Garcia... Pro-
garros, acende e fuma um. O Ferido olha em
mete que o senhor avisa quando aparecer a
volta como procurando ser visto por alguém.
morte? Me conta se carrega uma foice, e se
ela também o confunde com um cachorro.
Garota: Quer fumar? (Bota o cigarro na boca Já pensou se ela se engana e leva o senhor
do Ferido, mas ele recusa) É para você mes- ao céu dos cachorros? Puta que pariu! Ficar
mo. Fumar relaxa. (Ela fuma) a eternidade inteira cheio de pulgas e chei-
rando o cu dos seus companheiros? Agora
Ferido: Por que você está fazendo isso?
está perdendo os sentidos, não é, senhor
Garota: Por que o senhor atravessou a rua Garcia? Já imaginava isso. Permite que leia
com o bonde andando? Será que é idiota? um negócio para o senhor? (Tira um livro
Com certeza o motorista não parou porque do sua bolsa e lê) “Arthur Koestler”. Eu tam-
achou que tinha atropelado um cachorro. bém não sei quem ele é, mas isso não tem
Acontece sempre, e eles não podem chegar a menor importância. Não seja esnobe, seu
atrasados ao próximo ponto por causa de Garcia. “Arthur Koestler participava de um
um cachorro morto. Certo? congresso de escritores comunistas na déca-
Ferido: Eu não sou cachorro, não. da de 1930, quando uma pergunta provo-
cou um silêncio muito incômodo. Depois
Garota: Ficou ofendido? Muito bem, o se-
de ficar chateado com os elogios do mundo
nhor “daqui a dez minutos serei um cadáver”
perfeito que seria trazido pelo socialismo
ficou ofendido. Desculpe, então.
cientifico, André Malroux perguntou em
Ferido: Socorro! Alguém me ajude! alto e bom tom: “O que acontecerá com
Garota: (Deixando de fumar, tenta fazê-lo o homem quando for atropelado por um
se calar) Dá para saber o que o senhor pre- bonde?” Agora ficou interessado pelo livro,
tende fazer? É muito tarde da noite. Nessa não é? Repetindo. “Malroux perguntou em
hora tem gente que precisa dormir. Como é alto e bom tom: “O que acontecerá com
possível que o senhor seja tão irresponsável o homem quando for atropelado por um
com o próximo? bonde”? Todo mundo ficou calado até que
121
um camarada destemido achou a resposta: Vizinho: Poxa, acabou de acontecer comigo
“No sistema socialista, o transporte será algo muito esquisito. Estava na minha casa
perfeito, nunca haverá acidentes.” (Fecha sem conseguir dormir, então fiquei lendo
e guarda o livro) O que achou, seu Garcia? um conto que... Sei lá, é muita coincidên-
Vai contar a anedota a Deus quando chegar cia. Era um conto sobre um homem Ferido
ao céu? Bom, talvez conte para o diabo, vai pedindo ajuda e outro que ficava olhando
saber. Foi bem comportado nessa vida, seu sem fazer nada. Muito esquisito, não é?
Garcia? Então ouvi um grito e pensei comigo: “você
está imaginando que há um homem Ferido
Ferido: (Tenta juntar forças para gritar)
e não vai fazer nada”?
Socorro!!!
Garota: Nossa! Isso é muito esquisito.
Garota: Sim senhor, muito bem. Assim
vamos acordar toda a vizinhança. Vizinho: Desci voando, caso estivesse acon-
tecendo justamente isso. E olha o que en-
Ferido: (Quase desfalecendo) Socorro. (Fica
contro: um homem Ferido! Você não acha
exausto pelo esforço)
extraordinário?
Garota: Não me olhe desse jeito, não fui eu
Garota: Do caralho.
quem o jogou debaixo do bonde.
Vizinho: É raro isso acontecer, não é?
Chega um Vizinho que acabou de sair da
cama. Garota: Acho que é.
Vizinho: O homem está Ferido? Vizinho: Muito esquisito! Quando contar
para meu filho ele não vai acreditar.
Garota: Está.
Garota: Coincidência, não é?
Vizinho: Forte, hein.
Vizinho: (Reparando no homem Ferido)
Garota: Acabei de achar.
Acho que está inconsciente.
Vizinho: Ligou para a ambulância?
Garota: (Volta a se aproximar do homem
Garota: (Tira o celular da bolsa) Acabei de Ferido e verifica o pulso) Morreu, acabou de
ligar. morrer.
Ferido: (Consegue falar suas últimas palavras) Vizinho: É triste demais.
Não, não, não, não...
Garota: Demais.
Garota: Coitado desse homem.
Vizinho: Coitado do homem.
Vizinho: Foi o bonde, não foi?
Garota: Coitado. Olha, não precisa ficar;
Garota: Acho que foi. fui eu que liguei para a ambulância. Você
Vizinho: Os garis do bairro não aguentam fez o que deu para fazer.
mais recolher cachorros atropelados pelo Vizinho: Certeza? Para mim não é proble-
bonde. ma.
Garota: É triste demais. Garota: Pode ficar sossegado. Além do mais,
Vizinho: Quer que volte a ligar? já é muito tarde. O pessoal da ambulância
vai pedir documentos para preencher a pa-
Garota: Acabei de ligar. pelada, essas coisas.
122
Vizinho: Como você quiser. (Vai embora Amigo 1: Isso mesmo. Acabo de fundar
olhando para o homem Ferido) Esquisito uma nova religião.
demais! Coincidência!
Amigo 2: Faz quanto tempo disso?
Garota: Boa noite.
Amigo 1: Um par de meses.
Vizinho: Boa noite. Ainda não acredito.
Amigo 2: E como vai?
Garota: Eu também não.
Amigo 1: Por agora estamos nas prelimina-
Vizinho: Meu filho não vai acreditar. Boa res, mas tudo está indo muito bem.
noite.
Amigo 2: Tem muita gente?
Garota: Boa noite.
Amigo 1: Por enquanto, somos eu e os
meus empregados.
A Garota volta a ficar só ao lado do homem Amigo 2: É pouca gente.
Ferido. Pausa. Ela vai embora rindo, não
Amigo 1: O cristianismo começou com
consegue acreditar no que aconteceu.
pouca gente.
Amigo 2: O que tua mulher acha disso?
Escuro.
Amigo 1: Enquanto achar que é mais boni-
ta e mais rica do que suas amigas, ela não
3 liga para o que eu faço.
Amigo 2: O que você é precisamente nessa
religião? Deus ou...
Dois Amigos empresários estão tomando café
com biscoitos, no escritório de um deles. Silên- Amigo 1: No início, tentei convencer todo
cio. O Amigo 2 pega um biscoito e come. mundo que eu era Deus, mas as contas do
telefone continuavam chegando.
Amigo 2: Ninguém mais respeita Deus.
Amigo 1: Por falar nisso… Acabei de fundar
(Volta a dar outro gole de café)
uma nova religião.
Amigo 1: Pode acreditar, mas depois amea-
Amigo 2: Sério?
cei lançar uma praga de lagostas nos escritó-
Amigo 1: Sério. (Toma um gole de café. Bre- rios da telefônica.
ve pausa) Tem um resto de biscoito...
Amigo 2: Por conta disso, você pensou que
Amigo 2: Onde? era melhor converter-se em...
Amigo 1: O enviado de Deus. (Pega um
Amigo 1 indica com a mão que o resto de biscoito)
biscoito está perto da boca. Amigo 2: Muito bem. Ser o enviado de
Deus é bem melhor. Como é que surgiu a
ideia de uma nova religião?
Amigo 2: (Livra-se do resto de biscoito) Obri-
gado. (Breve pausa) E como é esse negócio Amigo 1: Foi numa reunião do conselho
de nova religião? patronal. Um idiota qualquer propôs um
123
brainstorming, com ideias para melhorar Amigo 1: Lá é igual a aqui, mas lá pagam
as condições de trabalho. Cansado de hora extra. Com licença, me dá um minuto.
babaquices, lembrei que eu acredito é na (Fala com sua secretária pelo interfone) Por
produtividade. Quando cheguei em casa, favor, Sônia, pode trazer uma daquelas sa-
meu pensamento tinha se transformado nos colas que tem no depósito?
fundamentos da nova religião. Sonia: (Voz em off) As que chegaram hoje?
Amigo 2: Como repercutiu isso na empresa? Amigo 1: Aquelas, obrigado.
Amigo 1: O conselho ainda está estudando o Sonia: Obrigada a você, Santidade.
assunto. No início, ficaram chocados, quan-
do falei que era o enviado de Deus. Acontece Amigo 1: (Para Amigo 2) Acredite que des-
que no começo não é fácil de aceitar, mas de que entrei na empresa – você pode achar
agora estão acreditando que o fato de ter um até exótico, sei lá –, mas desde aquela época,
diretor que possui conexão divina pode ren- sempre passou pela minha cabeça a ideia
der um excelente retorno financeiro. de realizar sacrifícios humanos para Deus,
porque...
Amigo 2: Deve trazer muitas vantagens.
Amigo 2: Faz muito tempo que você pensa
Amigo 1: Certamente. Você já imaginou? assim?
Quem vai ter coragem de me contrariar?
Amigo 1: Faz, mas é de ficar besta. Você
Quem? Não tem problema nenhum, eu sou
paga o décimo terceiro aos empregados
o escolhido de Deus, sempre estou certo. Os
antes do Natal e, não sei por que cargas
fornecedores fazem greve? A greve é pecado.
d’água, eles parece que ficam desmotivados.
Amigo 2: Muito interessante, mas você não Acabam achando que o décimo terceiro é
fica apavorado se teus empregados não acre- totalmente natural. Como se não tivesse
ditarem em teu Deus? graça nenhuma.
Amigo 1: É só prometer pelo menos seis Amigo 2: Agora se…
meses no céu para eles e plano dental gra-
Amigo 1: Certo! Se o empregado que tra-
tuito para a alma dos filhos.
balhar menos você pode sacrificar na frente
Amigo 2: Muito bem bolado. de todo mundo... Primeiro: Você se livra de
um péssimo trabalhador. Segundo: A moti-
Amigo 1: Levando em conta como ficou o
vação dos outros...
mundo, não é de se jogar fora, não.
Amigo 2: Aumenta.
Amigo 2: O pessoal não liga para o salário
quando fica sabendo que tem gente mais Amigo 1: Aumenta e muito! Como enviado
pobre do que eles. Nós comemoramos o do Senhor, posso organizar todos os sacri-
Natal enviando cartões da Unicef. fícios que eu quiser, não é? Sou o enviado
de Deus.
Amigo 1: Se pagássemos o justo, depois
eles iam querer pedir mais. Pedir qualquer Amigo 2: E se alguém da família reclamar?
absurdo. Amigo 1: Todo mundo está careca de saber
Amigo 2: Como é o céu que você está arti- que no mundo de hoje a vida não é nada
culando? rendosa.
124
Amigo 2: O que você está falando é ilegal, Agora ninguém acredita nisso, porque já foi
imoral e criminoso. feito muito tempo atrás.
Amigo 1: Fui eu sozinho que bolei essa Amigo 2: A ideia já está patenteada.
ideia. Você está pensando o que?
Amigo 1: Falou e disse.
Amigo 2: Tenho que dar os parabéns, é de
Amigo 2: Até parece óbvio. E a tua mulher,
tirar o chapéu. (Breve pausa) Você acha que
o que acha de tudo isso?
daria certo na minha nova empresa?
Amigo 1: Prefiro evitar o assunto do sacrifí-
Amigo 1: Estou pensando em fazer fran-
cio humano. Vai que ela gosta da ideia. Está
quias. O meu plano de expansão contempla
difícil achar boa criadagem atualmente, os
a possibilidade de comprar igrejas que
coitados não durariam três dias em casa.
foram abandonadas, para convertê-las em
nossas filiais.
Amigo 2: Você é um gênio, um empresário Batem discretamente na porta do escritório.
inovador!
Amigo 1: Nada disso. Sou apenas um Amigo 1: Sônia?
humilde seguidor dos pais do capitalismo
moderno. Nossas empresas já conseguem Sonia: Santidade?
ser mais poderosas do que governos e esta- Amigo 1: Pode entrar.
dos, inclusive nós mesmos bolamos as leis
que regem os países mais importantes. O
fato de a gente ter virado uma nova religião Sônia entra carregando uma sacola enorme
é apenas uma questão de evolução natural. e faz uma reverência. Amigo 1 abre a sacola,
As pessoas sempre precisaram acreditar em retira um crucifixo e mostra para Amigo 2.
alguma coisa. (Breve pausa) Você não acha?
Olha, quando falo essas coisas no espelho,
às vezes fico emocionado. Amigo 1: Estamos reciclando os crucifixos
abandonados nas igrejas fechadas. Retira-
Amigo 2: Eu também poderia ser um envia-
mos a imagem do outro cara e colocamos a
do de Deus, ou coisa parecida?
minha.
Amigo 1: Você poderia ser… Pastor ou
Amigo 2: Você ficou muito bem na fita.
diácono.
Amigo 1: A gente não queria repetir o pro-
Amigo 2: Papa. Que tal? Já faz muito tem-
blema de imagem que tinha o cristianismo.
po que a gente se conhece e, além do mais,
eu fico ótimo de branco. Amigo 2: Tem muitos crucifixos desses?
Amigo 1: Deixa eu pensar um pouco. Atu- Amigo 1: Acabei de fundar uma religião,
almente, estamos começando. Nós temos tenho que pensar em grande. (Para Sonia)
que ocupar os melhores cargos, é lógico. Obrigado, Sonia, pode levar de volta.
Esse foi o mesmo problema quando quis Sonia: Obrigada ao senhor, Santidade.
me converter ao budismo e a outras cren- (Leva a sacola de volta)
ças. Não dá para chegar falando: “Olá, sou
o novo Dalai Lama”, “Eu falo com Deus”. Amigo 2: É de cair o queixo.
125
Amigo 1: Isto vai render mais do que a Amigo 1: É a consciência universal típica,
Coca Cola. tem aparência de homem branco e barbado.
É o que sempre funcionou.
Amigo 2: Quem ia acreditar que o meu
colega do colegial acabaria sendo o repre- Amigo 2: Estou perguntando se é um cara
sentante de Deus na terra? legal? Perdoa algumas infidelidades?
Amigo 1: As pessoas não tem tempo para se Amigo 1: No nosso caso, ele perdoa.
perguntar qual é o sentido da vida, porque Amigo 2: Tratando-se da gente, ele vai ser
ficam trabalhando. Entretanto, elas querem legal, não é?
que alguém saiba qual é o sentido da vida.
Amigo 1: Não vai nos prejudicar justo ago-
Esse alguém sou eu.
ra que estamos começando, que estamos
Amigo 2: E qual é o sentido da vida? fazendo um favor para ele. Por que você
pergunta?
Amigo 1: Não acredito que você não saiba
qual é o sentido da vida. Achava que você Amigo 2: Estava pensando na tua secretária.
tinha feito faculdade de economia. Amigo 1: Para com isso. Ela é minha secre-
Amigo 2: Mas, então, qual é o sentido da tária! Se eu escolhi para trabalhar comigo,
vida para aqueles que não fizeram faculdade foi para eu comê-la.
de economia? Amigo 2: É isso que fala tua religião?
Amigo 1: Isso é o que justamente temos que Amigo 1: Você comer sua secretária está
evitar que eles se perguntem. Não queremos regulamentado não só pela minha religião,
que fiquem estressados com esse tipo de per- como também por qualquer tipo de lógica
gunta. Não podemos admitir, por exemplo, empresarial.
que a terceirização deixe nossos trabalhado- Amigo 2: Eu não podia pedir para Deus..?
res deprimidos. Precisamos que eles assinem
os contratos cheios de ilusões. Por causa Amigo 1: Sou eu quem fala com Deus! Se
disso, qualquer outro contrato, por mais tiver alguém eleito por Deus, você deve
capenga que seja, vai ser considerado divino, louvá-lo, não a secretária dele!
um contrato assinado com Deus. Amigo 2: Os caminhos do senhor são tor-
tuosos.
Amigo 2: Acho difícil não dar certo.
Amigo 1: Acontece que trata-se do meu
Amigo 1: O contrato terceirizado com Deus
Deus, não do teu.
vai virar um santo remédio, mas desta vez
o lucro será nosso. Lembra aquele ditado: Amigo 2: Se tenho que acreditar num Deus,
“O trabalho vos fará livres”? Então, é algo quero que ele me patrocine!
muito parecido com isso. Amigo 1: Acontece que eu sou o eleito.
Amigo 2: Isso não ficava na entrada dos Deus fala exclusivamente por meio de mim!
campos de concentração nazistas? Amigo 2: Não sei se estou gostando da tua
Amigo 1: Temos que aprender com os me- religião.
lhores. Hitler foi o maior progressista do Amigo 1: Você é um herege!
século passado.
Amigo 2: Nesse caso… Vou copiar tua ideia
Amigo 2: Escuta… Como é teu Deus? para te fazer concorrência.
126
Amigo 1: Não ouse! Pai: Vai saber.
Amigo 2: Vamos ser como os muçulmanos, Mãe: Mas é...
só que diferentes. Poderemos comer toda a
carne de porco que a gente quiser e vamos Pai: Incrível, não é?
nos vestir com elegância. Mãe: Será que é uma pegadinha?
Amigo 1: Mandarei meus obreiros bater nos Pai: Estou tão surpreso quanto você, juro.
teus, como se fosse uma nova cruzada con-
tra os infiéis. Mãe: Mas... Como é que...
Amigo 2: Eu vou inventar um Deus maior e Pai: A maçã é muito grande, não pode ter
mais poderoso para castigar vocês. (Sai) entrado pela porta.
Amigo 1: A partir deste momento, você é Mãe: Eu não ouvi nenhum barulho ontem
meu diabo! à noite. Você?
Pai: Não ouvi nada, também. (Aproxima-se
Escuro. e pega na maçã)
Mãe: É gigantesca.
4 Pai: Quanto será que pesa?
Mãe: Lá eu sei? Um absurdo.
Um homem com uma sacola cheia de laranjas
Pai: Uma tonelada?
entra na sala de jantar da sua casa. Ele veste
pouca roupa. De repente percebe que tem Mãe: (Conferindo de longe) Quase bate no
uma maçã gigantesca que ocupa quase toda a teto.
habitação.
Pai: Cheira bem, é uma maçã Fuji.
Mãe: Maçãs Fuji não têm três metros de
Pai: (Grita apavorado) Mãe! (Surpreso, volta
altura.
olhar para a maçã) Mãe! Venha correndo!
Mãe: (Voz off) O que você quer? Estou me Pai: O que você acha que é?
vestindo. Você já deve ter... Mãe: (Aproxima-se e pega na maçã) Vai saber.
Mas, convenhamos, não é normal.
Mãe entra, é uma mulher da mesma idade do Pai: É ou não é uma maçã Fuji?
Pai, é sua companheira e está quase nua.
Mãe: Vejamos... Nunca fui acordada de
manhã com um troço que ocupa quase toda
Mãe: Nossa! O que é isso? minha sala de jantar. Estou passada, seja
maçã Fuji ou qualquer coisa parecida.
Pai: Uma maçã.
Pai: (Pulando) Lá em cima tem o galho.
Mãe: Dá para perceber que é uma maçã.
Pai: É enorme. Mãe: Para início de conversa, onde foi co-
lhida esta maçã?
Mãe: Nossa senhora! Mas como é que essa
maçã entrou aqui? Pai: O que você está querendo dizer?
127
Mãe: Onde é que dá esse tipo de maçã? Mãe: Mas isto não tem cabimento. Não é
Tem árvore que produz maçãs desse tama- normal. Temos que ligar para o município,
nho? Onde é que fica a plantação? para os bombeiros, para alguém.
Pai: Pelo jeito, deve ser uma bruta árvore, Pai: E falar o que?
não é? Mãe: A verdade. Que a gente acordou e
Mãe: Justamente por isso é que estou falando. achou uma maçã gigante tomando conta da
nossa sala de jantar.
Pai: Deve ser um transgênico, que nem
aquela árvore manipulada dos cientistas que Pai: Eles vão falar que tivemos sorte.
produzem melancias quadradas. Então, esta Mãe: Sorte?
é uma maçã transgigante.
Pai: Sorte, sim. Porque não precisaremos
Mãe: Teria dado no jornal, sei lá. comprar maçãs durante muito tempo.
Pai: Será que o supermercado se enganou? Mãe: E como vai fazer para tirar essa maçã
daqui?
Mãe: O supermercado?
Pai: Podemos comê-la. Aos poucos, é claro.
Pai: Ontem a gente fez um pedido e entre-
garam hoje, deixaram no alpendre. (Aponta Mãe: (Olhando a face oculta da maçã) Será
para a sacola de laranjas) Agora mesmo apa- que tem a etiqueta do fabricante? Às vezes
nhei a sacola de laranjas. tem, não é?
Mãe: Ontem eu só encomendei laranjas, Pai: Está pensando em fazer o que? Devol-
não pedi maçã. ver a maçã?
Pai: Às vezes erram nas entregas. Não é a Mãe: Sei lá. Para perguntar se eles têm co-
primeira vez que isso acontece. nhecimento de uma maçã desse porte.
Mãe: Que eu saiba o supermercado não Pai: Mas, se deixaram aqui, agora é nossa.
Achado não é roubado.
tem carreta para entregar maçã desse tama-
nho. Além do mais, como é que enfiaram a Mãe: Bem lá no fundo você gostou de achar,
maçã aqui dentro, hein? Você mesmo falou, não foi?
a porta é muito pequena e a janela menor Pai: Bom, sei lá, é normal a gente achar
ainda. qualquer coisa dentro de casa. Até ficar
Pai: (Examina cuidadosamente a casca da assustado com um camundongo ou um
maçã) Também acho que não foi cortada ladrão, agora achar uma maçã... Achar uma
em pedaços que depois juntaram aqui den- maçã não é ruim, não.
tro. Ora, daria para perceber. Mãe: Será que é um agouro?
Mãe: As crianças já estão sabendo? Pai: Um agouro?
Pai: Fui eu que descobri agora. Mãe: É, agouro.
Mãe: Não fala nada para eles, não quero Pai: Agouro do que?
que fiquem assustados.
Mãe: Vai saber. No caso, a gente não sabe se
Pai: Eles vão achar engraçado, isso sim. é um bom, ou um mau agouro.
128
Pai: Não acho que seja um mau agouro. Pai: Podemos fazer compota de maçã.
Mãe: Vai saber. Mãe: Ou geleia de maçã.
Pai: O que você está querendo dizer? Pai: Isso, geleia de maçã!
Mãe: Acho que... Mãe: Temos que cortar em pedaços e...
Pai: Você fez alguma coisa errada? Pai: Tomara que não esteja podre. (Bate
Mãe: Não, não fiz nada errado, mas... levemente na maçã) Podemos convidar tua
família para almoçar e, se quiserem, ficam
Pai: Mas o que? para o jantar.
Mãe: Vai saber, não sei. Estou até aqui com Mãe: Isso.
esse negócio.
Pai: Não era tua sobrinha que gostava de
Pai: Que negócio? maçã ao forno?
Mãe: Ter de tudo. Mãe: Vou ligar agora, para que eles venham
Pai: Ter de tudo? Como assim? amanhã.
Mãe: Logo que olhei para a maçã gigante Pai: Isso vai dar um trabalhão, hein.
pensei: “era só o que faltava, uma maçã Mãe: Oh, se vai.
gigante!”.
Pai: Mas a sala de jantar só vai cheirar a
Pai: Certo. maçã.
Mãe: Quer dizer que… Você também pen- Mãe: Não vamos precisar mais comprar
sou nisso, não pensou?
desodorizador artificial de ambiente.
Pai: Não, eu não pensei.
Pai: Vou procurar a serra elétrica na gara-
Mãe: Mas, eu sim, eu pensei. E não é a gem para adiantar o serviço.
primeira vez, viu?
Mãe: Muito bem pensado.
Pai: Não estou entendendo.
Pai: Mas antes, vou avisar as crianças. Eles
Mãe: Esqueça. não podem perder isto.
Pausa.
Escuro.
129
5 não ligou e continuou pulando e cantando,
enquanto se aproximava da casa da vovozi-
nha, de quem tinha muita saudade porque
A Professora lê um conto para a classe. Um fazia muitos dias que não a visitava.”
grupo de meninos e meninas, sentados nas
suas respectivas carteiras, acompanha a leitura
nos seus livros. Um efeito de iluminação faz desparecer Hen-
rique e a última fileira de carteiras.
Henrique, o menino da última fila, tira o Uma Aluna que estava sentada na frente de
olhar do livro e levanta a mão para falar. Henrique interrompe a leitura.
130
Professora e por todo mundo. Era a criança fazer, batendo no seu filho.” (Descobre que
típica que ninguém perceberia se um lobo está só) “Então, Chapeuzinho sentiu um in-
negro quisesse abocanhar, para depois mas- teresse esquisito pela carnificina que o lobo
tigar sua carne macia”. estava fazendo. Ela subiu numa árvore onde
ficou comendo os biscoitos e bebendo o
mel da vovozinha, enquanto olhava fascina-
A Professora fecha o livro e confere a capa. da para o assassino, que fazia estalar os ossos
Depois procura Henrique com o olhar por de Henrique com sua enorme mandíbula”.
toda a sala de aula. Assustada, fica de costas
para os alunos e continua lendo, desta vez em
voz baixa. Ouvem-se muitos uivos de lobos.
6
O efeito de iluminação faz desaparecer sucessi-
vamente todos os alunos.
Bar de uma estação de trem. O casal Carolina
e David. Há duas malas no chão.
Professora: “Então, Chapeuzinho foi pedir
ajuda para a vovozinha, mas descobriu
que ela estava deitada no chão da cabana. David: Temos cinco minutos.
Tinha morrido fazia já alguns meses, por
causa da doença, e ninguém tinha percebi- Carolina: Quero que você seja feliz, ouviu?
do. O lobo não conseguiu se segurar mais
e começou a devorar Henrique à dentadas.
Enquanto o menino suplicava pela ajuda Pausa.
do lenhador, os seus olhos viam como o
bosque ficava vermelho”.
David: O que você vai fazer depois?
Uma luz vermelha ilumina a Professora. Carolina: O que você está querendo dizer
com depois?
David: Quando tudo estiver acabado.
Professora: “Infelizmente, o lenhador do
bosque tinha acabado de ser demitido e Carolina: Começar de novo. Não tem ou-
estava na sua casa deprimido sem ter o que tro jeito.
131
David: Nunca vou te esquecer. Carolina: Agora está faltando só três minu-
tos para o nosso prescrever.
Carolina: Eu também não.
David: E tudo ficará acabado para sempre.
David: Gosto de você.
Carolina: Gosto muito de você. Carolina: Não é justo.
David: (Tocado, vira o rosto) Não, não fala David: Lembra quando os contratos eram
assim, por favor. por tempo indefinido?
Carolina: É verdade, não consigo mentir Carolina: Com certeza as pessoas eram mais
para mim mesma. felizes.
David: Porque não eram pressionadas pelo
tempo.
Pausa. Carolina, debulhada em lágrimas,
olha para David. Carolina: Acreditavam que conseguiriam
passar a vida inteira com a mesma pessoa.
David: Junto à pessoa amada.
David: Passamos bons momentos juntos,
não é? Carolina: Amando-se como no primeiro dia.
132
Carolina: Nossos amigos nos odiariam se David: Vai se chamar José, como teu pai.
virássemos o casal eternamente apaixonado.
Carolina: José?
E eu não conseguiria viver assistindo nosso
amor esmorecer. David: Terá olhos verdes que nem você.
David: Quer saber de uma coisa? Admiro Carolina: David, o que você fez?
você.
David: Quando sorrir, terá a mesma expres-
Carolina: Eu também admiro você. são no rosto que nem tua mãe.
Carolina: Não estou acreditando. Não estou
O casal se abraça. preparada para ser mãe.
David: Não deu para aguentar.
133
Carolina: Não venha me chantagear para ter pelas deficiências afetivas do casal. A pessoa
um filho agora por causa do contrato. tem que ser doente mesmo para esticar o
David: Sinto muito, não consegui evitar. relacionamento até à exaustão.
Fiz... E pronto. David: Como eu e você.
Carolina: As pessoas não podem ter filho Carolina: Tudo bem. A gente concordou
com contrato de relação fechado. Isso é algo que nossa amizade era amor, ok. Mas não
abominável. convertamos isso num drama.
David: Pensa nisso, por favor. David: É amizade agora?
Carolina: Olha David, eu não queria falar, Carolina: Você vai entender daqui a um
mas... Tenho contrato com outro homem! tempo. Vai ter muitos outros contratos de
David: Como é que é? casamento com outras mulheres. Talvez
mais longos do que o nosso.
Carolina: Não é por amor. É só uma relação
burocrática, convencional e rotineira. David: E o contrato com esse homem aí vai
durar quanto?
David: Mas como é que pode?
Carolina: Deixa de ser bobo.
Carolina: Essas coisas acontecem.
David: Quanto tempo? Fala!
David: E por que você assinou?
Carolina: Porque nunca imaginei que nosso Carolina: David.
casamento durasse mais de um ano. Que David: Quanto tempo?
posso fazer? Conheci o cara e fui atrasando
Carolina: Quatorze meses.
o início da nossa relação até amanhã de
manhã, que é quando começa meu novo David: Quatorze meses? O contrato é mais
contrato. longo que eu meu.
David: Foi você mesma que falou. Nossa Carolina: Não fica ciumento.
afinidade podia durar mais de um ano.
David: Por que fez um contrato tão longo?
Carolina: Respeitamos integralmente nosso
Carolina: Sinto muito.
contrato de um ano de casamento. O que
mais você está querendo agora? David: Quatorze meses é uma eternidade.
David: Eu quero você. Vocês não vão conseguir.
Carolina: Você já me teve. Durante um ano Carolina: Desculpa, tenho que ir embora
fui legalmente sua. Ninguém pode ficar senão perco o trem.
indefinidamente com outra pessoa, isso é David: O que vou fazer com Zezinho?
antinatural.
Carolina: Não sei. Quando o tiver, me
David: Acontece que nosso amor é anti- manda uma foto.
natural.
Carolina: Amor é uma questão de química
que só dura três meses. O resto do tempo Carolina caminha apressada em direção ao
de uma relação mais longa é determinado trem, encontra o Funcionário.
134
Funcionário: Sinto muito, faz três minutos ou que escape nadando. Este trabalho me
que vi o trem indo embora. faz sentir um ser desprezível, de verdade,
mas não tem outro jeito. Lembro quando
Carolina: Não pode ser. (Mostra o bilhete) eles não eram tantos assim. Mas no ano
Tenho contrato com o trem. 2050 chegaram a ser oito bilhões na face da
Funcionário: Ah, nesse caso, vai ver que terra. É impossível sustentar oito bilhões de
ainda está aí. humanos sem destruir o planeta. (Larga o
pau e senta-se no chão) Para falar a verdade,
eles já estavam se matando entre si – sem-
Carolina sai correndo. David fica chorando, o pre o fizeram. Possuem uma tendência
Funcionário o conforta, dando-lhe uns tapas natural para as guerras – mas isso não era
nas costas enquanto o retira da estação. suficiente. Se a gente não eliminar o excesso
de humanos com este procedimento, eles
são capazes de acabar com a biodiversidade
Escuro. do planeta inteiro. E isso é algo muito grave.
Essa espécie derrubou as últimas florestas
tropicais que ainda existiam. (Levanta-se e
aproxima-se da criança agonizante) Segundo
7
nossas leis, esses filhotes devem ser abati-
dos com um único golpe na cabeça, mas
acontece que, às vezes, isso não é suficiente.
Um encapuzado bate com um pau numa
Aquilo é apenas um problema de ordem
criança de nove meses; ela fica ferida e tenta
prática. Esse filhote aqui, por exemplo, eu
fugir engatinhando. Depois de acreditar ter
tentei acertar a cabeça, mas só consegui
acabado com a criança, o encapuzado tira o
afundar-lhe o ombro. Só consegui acertar
capuz. Então percebemos que apesar de sua
a cabeça na segunda tentativa. Falam que
aparência humana, o rosto dele é o de uma
40% desses filhotes têm a pele arrancada
foca. Enquanto seca o suor da testa aproxima-
para fazer casacos e outras coisas horroro-
se da plateia para falar com ela.
sas, que os deixam agonizando de um jeito
muito ruim. Mas eu juro que nunca pensei
Foca: Sei, sei que é... Mas alguém tem que em fazer isso. Alguns colegas levam a carne
fazer este trabalho, não é? Todo ano assis- para alimentar suas famílias, mas eu não.
timos às mesmas imagens na televisão. Sei Eu tenho nojo. (Aproxima-se novamente da
que é macabro e cruel. Sim, seria melhor plateia) A história desta espécie é muito
que ninguém assistisse a isto, mas alguém triste. Vocês a conhecem? Estas pobres
tem que fazer este trabalho. Acreditem. criaturas acreditavam que estavam por
Nosso governo permite que exterminemos cima das outras espécies porque possuíam
aproximadamente 500 mil filhotes huma- o conhecimento que as tornava superiores.
nos por ano, como forma de controlar a Mas, me diga, o que é conhecimento? Saber
expansão demográfica. Foi uma decisão álgebra? Reconhecer as leis da simetria? Isso
difícil, muito dura, porque não é popular. é conhecimento? Eles acreditavam que isso
No fim das contas, dá muita aflição. Eles os faria melhores. Acreditavam piamente
ficam com seus olhinhos voltados para você. que o conhecimento os libertaria da natu-
Confesso que, às vezes, faço vista grossa reza e que com isso poderiam, depois de
quando algum filhote me olha desse jeito. um tempo, evitar as imperfeições da sua
Aí, o chuto até a água e deixo que se afogue condição. Que um dia poderiam até deixar
135
de ser humanos. Eles acreditavam que a melhorá-los, a natureza os deixou cegos e
tecnologia conseguiria refazer o mundo e solitários, incapazes de se comunicar com
que com o passar do tempo, essa tecnologia a própria espécie. A consciência individual,
acabaria com as desigualdades, a corrup- que eles acreditavam que os faria superiores
ção, a fome e a pobreza. (Ri) Não sei se aos animais, não é outra coisa senão uma
vocês estão familiarizados com os costumes espécie de cio que os deixa excitados apenas
humanos, mas... É muito engraçado. No para favorecer sua expansão e destruir o seu
início, acreditaram que Deus os salvaria dos entorno. Coitados! É verdade, alguns dos
seus problemas – inventaram Deus. Depois meus colegas, que vêm aqui para eliminar
acreditaram que seriam salvos pelos ideais o excesso de filhotes humanos, não sentem
– falaram de comunismo, sem entender o nenhum remorso. Nosso governo não pede
que era comunidade. E, finalmente, depois para eliminarmos todos os filhotes, mas
de estragarem tudo, passaram a acredi- meus melhores amigos falam que o mundo
tar no conhecimento científico. De fato, seria muito mais sossegado sem os humanos
quando vejo um grupo destes filhotes, esta e que quanto menos forem, melhor. Eles
carne miúda fugindo dos caçadores, eu me falam que os homens estão em decompo-
pergunto por que cargas d’água esta raça sição, que não são bons, que estão podres
apostou todo seu futuro no conhecimento, por dentro e que é por isso que ninguém
em coisa nenhuma. Porque o conhecimento quer comer os restos da grande quantidade
nunca transformou realmente a condição de filhotes que todos os dias ficam por aqui.
humana, pelo contrário, a tornou mais pe- Tenho um filho, um filho que eu gosto
rigosa ainda. Acumularam uma quantidade muito. Quando ele crescer, eu vou contar
de armamento, capaz de destruir mil vezes como são os humanos. Vou falar o que
o planeta, enquanto continuavam aumen- faziam com seus semelhantes, dos horrores
tando as desigualdades entre eles e teima- que não quiseram evitar, do triste legado
vam em ser irresponsáveis e egoístas, aliás, que deixaram. Vou falar para meu querido
como sempre foram. Percebam, não estou filho que...
querendo dizer que nós, as focas, somos
melhores. Nós não somos perfeitos, mas ao
menos não ficamos nos maltratando, nem Ouvimos o choro frágil da criança. O homem-
ficamos mexendo nas entranhas da terra à foca percebe que a criança tenta fugir nova-
procura de petróleo, para depois jogar tone- mente. Pausa.
ladas de poluentes no ar. Eles acreditavam
que era a consciência o que os diferenciava
de, sei lá, de um leão ou de uma ostra. Que Já falei isso antes, às vezes, um único golpe
era o entendimento que os fazia melhores, não resolve. Não olhem, por favor. (Apro-
quando, em realidade, a comunicação entre xima-se da criança, mas no último momento
eles era complicada demais. Engraçado, vira-se para a plateia) Bom, mas se querem
dá vontade de rir. A vida de cada um dos olhar, pensem ao menos que não é o coita-
chamados seres humanos pode ser definida do de um bebê-foca. (O homem-foca dá o
pelo tipo de confusão que provoca quando golpe de misericórdia na criança) Tenho que
tentam se comunicar entre si. E também ir embora. Meu filho está esperando. Boa
pelo sofrimento que provocam a si mesmos noite.
e as pessoas à sua volta. (Ri) É só olhar um Escuro.
exemplar mais velho para perceber. Não
conseguem se entender entre si. Em vez de
136
Contra o amor
SETE MICROCENAS BURLESCAS
Princesa: Para conseguir isso não precisa se Princesa: Fale com os vossos ouvidos, man-
aproximar. de-os escutar, porque é verdade.
Camponês: Então vou ficar duplamente feliz. Camponês: Se precisar, eu sou capaz de
obrigá-los a cheirar a verdade como se fosse
Princesa: Decidi justamente chamá-lo para
perfume de rosas.
triplicar vossa felicidade. Fiquei surpresa
com vossa ousadia de pedir minha mão ao Princesa: Aspire fundo o perfume das rosas,
meu pai, o rei. é um perfume agradável e efêmero.
137
Camponês: O coração da minha mãe vai o camponês com um saco nas mãos, está suma-
dar pulos de alegria. mente intranquilo.
Princesa: Serei vossa, mas em troca faço um
pedido.
Camponês: Sou o melhor filho dela, por
Camponês: Peça tudo o que quiser, sempre isso esta noite não precisará ficar angustiada.
será pouco. Sou o melhor filho dela, por isso não me
Princesa: Quero que me entregue o cora- verá hesitar. Sou o melhor filho, por isso da-
ção da sua mãe, arrancado pelas suas pró- rei a ela a melhor nora. Que nenhum deus
prias mãos. ouse me contrariar: hoje realizei a felicidade
de uma mãe.
138
O camponês aproxima o saco com o coração. Princesa: Meu conselho é que você coma o
coração que carrega, seja qual for o animal,
fica delicioso se for cozinhado com amor.
Princesa: Como fez?
Camponês: Sem palavras.
As pequenas cortinas encerram o espetáculo de
Princesa: Mas não as poupe comigo. marionetes.
Camponês: Acredite, um filho nunca arran-
cou o coração da sua mãe com tanta amabi- Escuro.
lidade e discrição.
Princesa: Acredito que é capaz. Mostre para
mim. 2
139
daqui. Com certeza. Ele: O que você está querendo? (Pausa)
Mulher: Tem certeza? Que está querendo realmente?
Ele: Absoluta.
Mulher: Tudo bem com o senhor? Pausa.
Ele: Mas o que é isso? Olha aqui... É, que- Ele: Falei cadê minha mulher?
brou alguma coisa, sim... Foi o espelho, só Mulher: Eu vim recolher… o espelho que o
isso. Eu sei muito bem que não é meu. Mas, senhor quebrou. Certo?
eu não sou daqueles clientes que vão em-
bora sem pagar o que quebraram. Amanhã
passo na recepção e pago o que for necessá- Pausa.
rio. É verdade, não estou me sentindo bem.
Se você puder...
Mulher: Cadê a mulher? Ele: Esses cacos não são de um espelho.
Mulher: Ah, não?
Pausa. Ele: Não são de um espelho.
140
Mulher: Não são? Bom, então não sei do Mulher: Muito bem.
que são.
Ele: São da “minha” mulher.
A Mulher tenta sair do quarto, mas ele se
adianta e fecha a porta impedindo-a de sair.
A Mulher para com o serviço.
Ele: Fala.
Mulher: O senhor está certo, não está pas- Mulher: Se eu fosse o senhor não faria bo-
sando bem. Tente descansar um pouco. bagens.
Ele: Por que tudo isso? Vai me quebrar
A Mulher continua catando os cacos debaixo como quebrou minha mulher?
da cama com a vassoura. Ele se abaixa para Mulher: Eu não quebrei nenhuma mulher.
pegar uns cacos do chão.
Ele: Mas reconheceu que era minha mulher.
Mulher: Eu não falei isso.
Ele: Por quê?
Ele: Quer parar de enrolar? Mereço uma
Mulher: Por que, o quê? resposta.
Ele: Você sabe do que estou falando.
Mulher: Tente descansar, o senhor não está A Mulher volta a recolher os últimos cacos
passando bem. debaixo da cama.
Ele: Estou bem para caralho! Que aconte-
ceu com minha mulher?
Mulher: Se não quer devolver a vassoura,
Mulher: Fique calmo. por que o senhor mesmo não... Já falei que
Ele: Porra! Como é que pode pedir para estou aqui para fazer meu serviço, ponto
ficar calmo, se você está recolhendo os cacos final. Não fique irritado. Alguma coisa que-
da minha mulher? brou, algo seu, do hotel, ou seja lá de quem
for. Eu venho, recolho, vou embora e pron-
Mulher: Esse comportamento não ajuda to. Combinado? Não quero ter problemas.
em nada.
Ele: Tudo bem, eu entendo você, mas…
perceba também que…
Ele se aproxima da Mulher agressivamente. Mulher: O senhor está confuso, fique
sossegado, daqui a pouco tudo ficará bem
esclarecido.
Ele: Você está sabendo de alguma coisa, não
é? Ele: Não sei não, tudo isso é tão...
Mulher: Eu só vim aqui para fazer o meu Mulher: Fique tranquilo, daqui a pouco o
trabalho. senhor melhora.
Ele: Fala o que você sabe. (Tira a vassoura Ele: Mas... Acontece que quando acendi a
das mãos dela) luz ela tinha...
141
Mulher: Não fique remoendo. Mulher: As coisas quebram, não as pessoas.
O senhor está ficando paranoico.
Ele: Mas...
Mulher: Pense em outra coisa. Talvez se...
Ele mostra alguns dos estilhaços que há na
Ele: O que você vai fazer com os cacos?
lixeira.
Não pode jogá-los assim, afinal trata-se da
minha…
Mulher: Faz parte de... Ele: Isto é uma orelha. Uma orelha! E isto
deve ser um pedaço de ombro. Tudo isso
pertence a alguém!
Ele se aproxima da grande lixeira e olha Mulher: O senhor tem muita imaginação.
dentro dela.
Ele: O que você está fazendo? O que acon-
teceu com minha mulher? Fale de uma vez!
Ele: O que tem ali dentro? Mulher: Bem que o senhor gostaria de...
Ele: Você fica catando os cacos das pessoas
A Mulher se detém. que vai encontrando nos quartos?
Ele tira da lixeira os cacos de outros corpos Mulher 2: (Para Mulher) Você não acabou
quebrados. ainda?
Ele: Quem é você?
Ele: O que é tudo isso? Mulher: Acabei.
142
Mulher 2: Fica esperta. No primeiro andar 3
tem três casais e no quarto andar...
Mulher: Cala essa boca e ajuda aqui.
Terraço de um bar numa praça pública. Ami-
Ele: O que está acontecendo com os casais ga 1 é uma mulher jovem, ela está sentada
do primeiro andar? tomando um café e aparenta um certo nervo-
sismo. Amiga 2 chega muito apressada, tem a
Mulher: Não está acontecendo nada.
mesma idade que a Amiga 1.
Mulher 2: Está levando tudo?
Mulher: Estou sim.
Amiga 2: Desculpa.
Ele: Isso acontece com todos os casais?
Mulher: Vamos dar o fora daqui.
Elas se beijam.
Ele: Por que vocês não respondem?
Mulher 2: Está levando a vassoura?
Amiga 1: Não tem problema.
Mulher: Ih, estava esquecendo.
Amiga 2: Você sabe que não costumo atra-
sar, mas não sei o que está acontecendo
comigo hoje.
A primeira mulher pega a vassoura.
Amiga 1: Relaxa.
143
Amiga 1: Não é isso. Amiga 2: Você foi no médico?
Amiga 2: Vai, fala. Amiga 1: Não.
Amiga 1: Falo, mas antes você tem que Amiga 2: Por que não?
prometer que nossa conversa morre aqui, Amiga 1: É difícil de acreditar.
ninguém pode saber.
Amiga 2: Mas, esse negócio é... É... Sei lá o
Amiga 2: Não conto nada a ninguém. Você que é, mas... É horroroso.
já me conhece.
Amiga 1: Senta aí.
Amiga 1: Tem que jurar.
Amiga 2: Juro. De verdade.
Amiga 2 obedece.
Amiga 2: O que é isso? (Levantando-se) Está Amiga 1: Porque não é mosquito, nem ver-
mexendo? (Aproximando-se) O que é isso? me, como você falou. Não é solitária, nem
Pelo amor de Deus, o que você tem aí? Mas, tumor esquisito, nenhuma dessas coisas. É
esse negócio está mexendo! o meu ex.
Amiga 2: Não brinca com essas coisas que
Amiga 1: Só tinha que acontecer comigo.
eu não gosto.
Amiga 2: (Aproximando o dedo) Posso tocar?
Amiga 1: Está quase acabando comigo.
Olha o que esse cara me faz.
Sofregamente Amiga 1 aceita. Amiga 2: Mas, como é que você..?
Amiga 1: Sei lá como, acontece que é ele, é
ele. Fala comigo quando não tem ninguém,
Amiga 2: Pelo amor de Deus! O que é isso
fala dentro de mim, o tempo todo.
que você tem aí? Machuca?
Amiga 2: Fala com você?
Amiga 1: Muito, às vezes.
Amiga 1: Está puto comigo. Muito puto.
Amiga 2: Como assim?
Amiga 2 abraça Amiga 1, mas evita encostar
no objeto que lhe provoca aflição. Amiga 1: Fica todo o santo dia se mexendo
144
como um doido dentro de mim, parece que Amiga 2: A coisa vai acabar com teu relacio-
não consegue sossegar. Me faz vomitar tudo namento.
o que como, bate nos meus ossos...
Amiga 1: Acordo toda noite com a coisa
Amiga 2: Tem que expulsar ele, lá de dentro tão grudada no meu coração que acaba me
de você. Tudo isso é... dando taquicardia. Sou sua escrava. Já pen-
Amiga 1: Já sei, já sei, já sei. sou o que esse filho da puta é capaz de fazer
comigo. Já imaginou? Pode estourar meu
Amiga 2: É muito esquisito, mas... Você estômago ou encher de mijo meus pulmões,
conferiu se ainda mora na casa dele? ou sei lá o que? Meu Deus do céu! Já imagi-
Amiga 1: Não mora mais. Faz um mês e nou? Não posso fazer nada! Nada!
meio que não tem ninguém na casa dele.
Amiga 2: E esse é o tempo que você..?
De repente a Amiga 1 para de falar.
Amiga 2: Você tem que explicar para ele. Amiga 1: É, não dava. Mas, eu já acabei
com ele, lembra? Não foi fácil.
Amiga 1: Não posso! Não percebe que não
posso? Amiga 2: Lembro perfeitamente.
Amiga 2: Você tem que aceitar a ajuda dele. Amiga 1: Me recuso a fazer de novo tudo o
que ele mandava fazer.
Amiga 1: Sou refém desta coisa, em qual-
quer momento pode me atacar. Você não Amiga 2: Está certo, mas agora mudou tudo,
percebe? agora você não consegue mais livrar-se dele.
145
Amiga 1: O que você está propondo? Amiga 1: Sempre jogava na minha cara,
toda vez que o encontrava. Era um cara
Amiga 2: Não sei… Fazer aquelas coisas
ruim e...
que ele gostava de fazer com você.
Amiga 1:O que por exemplo?
Amiga 1 começa a sufocar.
Amiga 2: Sei lá.
Amiga 1: Me humilhar diante das amigas?
Amiga 2: O que está acontecendo com
Amiga 2: É claro que isso não.
você?
Amiga 1: Encher a cara e ficar jogada no
sofá até o sol nascer?
No ato, Amiga 2 levanta-se e fica perto de
Amiga 2: Não sei. Deve ter algo que fez
Amiga 1.
você gostar dele, não é?
Amiga 1: Acredita que agora não consigo
lembrar. Amiga 2: O que é que ele está fazendo com
você?
Amiga 2: Vocês não gostavam de ir naquele
pequeno restaurante que ficava...
Amiga 1: O que você quer que eu faça? Que Amiga 1 explica com gestos que tem algo atra-
o leve a praia para comer mariscos? Para vancando a sua garganta.
comemorar que virou meu tumor favorito?
Amiga 2: Vocês não iam numas capelas bem
Amiga 2: Fala pelo amor de Deus! Vou pro-
afastadas?
curar ajuda!
Amiga 1: A última vez que a gente foi ele me
largou lá. Era um cara muito esquisito.
Amiga 1 pede para Amiga 2 desistir.
Amiga 2: Então, minha amiga, não sei
não. O jeito é tentar fazer que o cara pare
de foder tua vida, como está fazendo nesse Amiga 2: Ai meu Deus do céu!
exato momento. Falando nisso, onde ele
está agora?
Amiga 1: Não sei direito, sei que está me- Finalmente, Amiga 1 acaba expelindo o que a
xendo no meu estômago, mas não sei o que sufocava. É uma língua de sogra colorida. As
está aprontando. duas amigas ficam olhando com um misto de
horror e respeito.
Amiga 2: Você já parou para falar franca-
mente com ele?
Amiga 1: Já falei um monte de vezes. Você Amiga 2: Vai ver que ele está querendo fazer
sabe que ele não gostava de ser contrariado. a festa.
Amiga 2: Não gostava, não.
Amiga 1: Era um magoadão, nunca me Escuro.
perdoou que o traísse com o Miguel.
Amiga 2: Soube disso.
146
4 Garoto: Quero experimentar sem.
Garota: Para que?
Um casal de jovens está se agarrando em um Garoto: Porque quero saber o que se sente.
quarto. Aproximam-se da cama, caem nela e Garota: Acho que não vai ser legal fazer sem.
vão tirando a roupa com a decidida intenção
de trepar. Garoto: Eu acho que vai sim.
Garota: Sem, eu não faço de jeito nenhum.
147
Garota: É alucinante... Radiante… Narco- Garoto: Estou querendo dizer que o amor é
tizante… uma comédia.
Garoto: Já sei qual é a tua. Garota: Que bobagem.
Garota: É como se você falasse com Deus Garoto: Por trás desses comprimidos existe
bebendo uma cuba-libre. um monte de mentiras.
Garota: Agora pago para ver qual é a surpresa.
Garoto: Você está parecendo os caras da
firma. “Tem todas as qualidades da religião Garoto: Você já viu alguém falando que não
e do álcool e nenhum defeito”. toma? Que rejeita o amor?
Garota: Sempre vamos encontrar algum
amargurado por aí.
O Garoto se livra da Garota.
Garoto: É justamente disso que estou falan-
do. Deixar de tomar comprimidos de vez é
o mesmo que ficar excluído de tudo.
Garota: Como você é burro.
Garota: É o mesmo que ser idiota. Por que
Garoto: Você já parou para pensar na en-
cargas d’água alguém vai querer largar uma
crenca que a gente está se metendo? coisa que é benéfica para ele?
Garota: Do que você está falando? Garoto: Alguém fabricou esses comprimi-
Garoto: Das consequências da gente ficar dos para você ficar cego de amor e endivi-
tomando bolinhas. dado até o pescoço, para você comprar um
carro, para você se vestir melhor do que
Garota: Uia! Você está muito rebelde para o suas amigas, para você ter duas crianças que
meu gosto. Qual é o livro de perversões que vão nascer com a mesma dívida que seus
está lendo? avós já tinham. Estou falando de controlar.
Garoto: Já pensou no que aconteceria se a
gente não ficasse com o rabo tão fissurado Pausa.
pelo amor?
Garota: Você fala como se isso não fosse
Garota: Está querendo me dizer alguma
bom. coisa e não consegue, não é?
Garoto: Não chega sermos obrigados a Garoto: Você está me ouvindo?
assistir a esse monte de filmes americanos,
Garota: Tudo bem, percebi o que você
também temos que engolir bolinhas de
quer. Está querendo me deixar, não é? Vai
hora em hora?
em frente, pode falar, estou preparada para
Garota: Mas é bom. Qual é o problema? Eu superar.
só compro Coca Cola porque tem um amor Garoto: O que estou falando é sério, muito
a mais que as outras marcas não têm. sério.
Garoto: Não, não é bom, é isso que estou Garota: Você está percebendo o efeito que
querendo falar. É uma comédia. essas ideias podem provocar em mim?
Garota: Uma comédia? Você está querendo Garoto: O mundo seria muito melhor
dizer que nosso amor é uma comédia? sem...
148
Garota: Por favor, estou falando de nós! Eu Garota: Você acha que vai encontrar outra
e você! Para de salvar o mundo um momen- que tope viver sem bolinha?
to só e tenta me salvar. Ou você acha que
Garoto: Tem gente muito esquisita pelo
eu quero ficar com alguém que não gosta
de consumir amor? mundo afora.
Garoto: Por favor, você sabe que... Garota: Gente que tope viver sem consór-
cios, sem carro, sem roupas melhores do
Garota: Não sei de nada, não! Só sei que que das amigas, sem crianças, sem dívidas?
gosto de você e que não faz sentido você
recusar os comprimidos! Garoto: Talvez.
Garota: Você vai ficar sozinho. Não vai con-
seguir fingir diante dos outros que é normal,
A Garota o abraça chorando. Pausa. Ele, im-
que está apaixonado.
passível, se livra da Garota.
Garoto: Talvez.
Garoto: Não faz sentido nenhum gostar de Garota: Posso denunciar você.
alguém se esse alguém é obrigado a gostar Garoto: Pode?
de você em troca de alguma coisa.
Garota: Posso falar para a firma, para tua
Garota: Você é um idiota, mais do que isso, família, para teus amigos, para todo mundo.
você é um mal agradecido. Posso falar que você finge estar namorando
Garoto: E você não quer entender. O amor comigo e que não toma os comprimidos
foi deturpado. Não fomos ensinados a con- porque quer fuder com a gente.
trolar nossas emoções porque querem que
Garoto: Você é uma filha da puta.
fiquemos dependentes delas. Não dá para
perceber que o que acontece com a gente
não tem nada que ver com amor?
Pausa.
Garota: Entender você não tem proveito
nenhum. Acha que é capaz de fazer alguma
coisa além de estragar sua vida? Garota: Posso falar, mas não vou falar.
Garoto: Por quê?
O Garoto volta a pegar a caixa de comprimidos. Garota: Porque gosto de você.
Garoto: Olha, acho que você...
Garoto: Engolir isto não é viver. Garota: Porque quero uma coisa mais de
Garota: Engolir isso é qualidade de vida. É você.
desse jeito que eu quero viver. Garoto: O que você quer?
Garoto: Então, eu não quero viver do teu
Garota: Uma trepada com amor. A última
jeito.
pelo menos.
Garoto: Faz você com amor, deixa que eu
Pausa. faço do jeito que eu quiser.
149
Garota: Nada disso, quero que nós dois Garota: Falava por você. Não quero que
transemos como dois apaixonados. Pode engasgue.
achar que sou uma desesperada, se quiser. Garoto: Tudo bem, tudo bem.
Que sou capaz de qualquer coisa por tran-
sar uma última vez, pode achar que sou Garota: Sempre faço tudo por você. Tem
dependente química. Essa é a minha única que confiar mais em mim, de verdade.
condição, depois deixo você livre para viver Garoto: Estou confiando, mas...
como você quiser.
Garota: Para de encucar, você só tem que
relaxar.
O Garoto não sabe o que dizer. Garoto: Sei, já sei.
Garota: Dá aquele abraço.
Garota: Eu aceito porque gosto de você.
Abraçam-se. Devagar, começam a se acariciar
e acabam tendo depois uma atitude mais
O Garoto fica pensativo. sexual. Começam a transar, mas ela para, de
repente.
Garota: Você topa?
Garoto: É a última vez com amor? Depois, Garota: Amanhã, bem cedo, a gente podia
nunca mais? Combinado? resolver aquele negócio do consórcio, não é?
150
5 Pausa. Astronauta 2 fica quieta ao lado do
Astronauta 1.
151
Astronauta 1: Não tem nada que pensar. Astronauta 2: Sinto muito.
(Pausa) Acho que não vale a pena você con-
Astronauta 1: Sente nada! Sente porra
tinuar consertando esse rádio.
nenhuma!
152
Astronauta 1: Mesmo se tivermos um casal Astronauta 2: Deixa para lá. É coisa minha.
de filhos, e é isso que você tem em mente, Talvez alguém queira lhe ouvir falar no
eles também ficariam só e perdidos. futuro.
Astronauta 2: Você é um poço de egoísmo. Astronauta 1: Duvido.
Astronauta 1: Mal conseguiremos sobrevi- Astronauta 2: Essas coisas a gente nunca sabe.
ver, você e eu, pelo resto das nossas vidas
por causa das escassas chances que temos.
Pausa.
Astronauta 2: Mas é a nossa obrigação.
Astronauta 1: Você está errada, não é bem
assim. Astronauta 1: Desculpa. Acho que fico cha-
to por causa da nossa situação.
Astronauta 2: É sim.
Astronauta 2: Com certeza, eu também fico.
Astronauta 1: Ah é? Então explica para mim
como é que é. Astronauta 1: Em todo caso, nunca duvide
que eu continuo... Enfim...
Astronauta 2: Você não acha que é óbvio?
Astronauta 2: O que?
Astronauta 1: Não acho não.
Astronauta 1: Você já sabe.
Astronauta 2: Você é demais!
Astronauta 2: O que?
Astronauta 1: Nada.
O aparelho que Astronauta 2 estava desman-
chando ficou reduzido a uma quantidade de Astronauta 2: Fala, vai.
fragmentos facilmente transportáveis.
153
Astronauta 2: Com certeza, eu também fico. 6
Astronauta 1: Em todo caso, nunca duvide
que eu continuo... Enfim...
Um casal de meia idade está vestido com
Astronauta 2: O que? extrema elegância. Eles estão afundados até o
Astronauta 1: Você já sabe. pescoço numa substância viscosa e desagradá-
vel, que lembra areias movediças, limitando
Astronauta 2: O que? completamente seus movimentos. Inclusive,
Astronauta 1: Nada. há quem diga se tratar de uma grande merda
de profundidade desconhecida, talvez infini-
Astronauta 2: Fala, vai. ta. Só é possível enxergar as cabeças do casal
Astronauta 1: É algo que eu não quero que e a mão dela que está limpando o ouvido
você conte para ninguém. dele com um cotonete.
Astronauta 2: Muito engraçado.
Astronauta 1: Tal vez você custe a acreditar, Senhora: Detesto quando você fica sujo
mas... Não esqueça que... desse jeito.
Astronauta 1: Nunca esqueça que eu amo O ritmo do diálogo fica cada vez acelerado.
você.
154
Senhora: Detesto quando você vai ao teatro Senhora: Detesto ouvir o que você acha da
sem pensar que talvez eu queira ir também. minha família.
Senhor: Detesto que você fique perguntan- Senhor: Detesto que você ache que tua
do a que horas eu volto do trabalho, porque família é o máximo.
sempre volto na mesma hora.
Senhora: Detesto saber que você me trata
Senhora: Detesto quando você não lim- pior do que suas ex-mulheres, sobretudo na
pa, pelo menos, a metade da casa, mesmo frente da tua família.
quando eu tenha decidido, nesse dia, lim-
par o dobro. Senhor: Detesto que você tenha coisas es-
condidas dos seus ex-maridos.
Senhor: Detesto quando você acha, de forma
errada, que a casa está suja ou desarrumada. Senhora: Detesto você ficar olhando filme
pornô às escondidas.
Senhora: Detesto quando você entra no
banheiro sem bater na porta. Senhor: Detesto que você compartilhe se-
gredos com outras pessoas.
Senhor: Detesto quando você deixa todas
suas pomadas jogadas pelo banheiro. Senhora: Detesto que você faça compras
demais escondido, sobretudo naquele dia
Senhora: Detesto quando você deixa a cama
que eu não comprei nada.
sem fazer.
Senhor: Detesto sair às compras.
Senhor: Detesto que você precisa que eu
agradeça quando faz a cama. Senhora: Detesto quando você perde a
fome antes de comer porque comeu alguma
Senhora: Detesto quando você dorme e fica
coisa antes de chegar a casa.
roncando no sofá, sobretudo quando estou
assistindo aquele filme que me faz chorar. Senhor: Detesto quando deixa de comer
Senhor: Detesto você me acordar quando para emagrecer.
fico dormindo no sofá e você precisa de Senhora: Detesto quando você não come a
alguém para te levar à cama. comida que eu fiz.
Senhora: Detesto quando você levanta da Senhor: Detesto quando você cozinha algo
cama logo depois de trepar. que eu não gosto só para me encher.
Senhora: Detesto você ficar lendo o jornal
O diálogo fica cada vez mais agressivo. Se quando estamos comendo.
pudessem bateriam cabeças. Senhor: Detesto a sua obsessão por lavar a
louça logo depois de comer.
Senhor: Detesto quando você acha que a Senhora: Detesto você sempre lavar mal a
gente tem algo de especial para falar depois louça.
de trepar. Senhor: Detesto você falar da péssima edu-
Senhora: Detesto a simpatia falsa que você cação que eu recebi toda vez que bebo uma
demonstra antes de trepar. garrafa pelo gargalo.
Senhor: Detesto quando você fica mais de Senhora: Detesto você não perceber os fare-
hora falando ao telefone toda vez que liga los de pão que deixa no chão, como se não
uma amiga tua. soubesse que eu não gosto.
155
Senhor: Detesto quando você acha que Senhora: Detesto quando você fica falando
tudo é pessoal. das suas ex-mulheres.
Senhora: Detesto quando você critica as Senhor: Detesto quando você não deixa
pessoas com a intenção de me dar uma lição. claro se seus ex-maridos tem o pau maior
ou menor do que o meu.
Senhor: Detesto quando você faz drama por
qualquer coisa.
Senhora: Detesto você ficar gritando quan- Pareceria que estão transando com as palavras
e alguém poderia achar que talvez estivessem
do percebe que não tem razão.
fazendo qualquer coisa com as mãos por de-
Senhor: Detesto quando você começa falan- baixo da substância viçosa.
do “Você sempre”...
Senhora: Detesto quando você começa fa- Senhora: Detesto que você fique olhando
lando “Eu nunca”... mais para as outras mulheres do que para
Senhor: Detesto você deixar suas coisas mim, quando saímos juntos.
jogadas pelo chão. Detesto não saber o que Senhor: Detesto quando fica muito deslum-
tem aqui embaixo, no fundo. Detesto que brante, sobretudo se há outro homem por
as coisas que tem aqui embaixo fiquem perto.
querendo pegar no meu pé. Senhora: Detesto quando, depois de ter
ficado deslumbrante para um outro homem,
tenho que falar que era gay, mesmo sendo
O diálogo para. Reinicia-se aos poucos, numa mentira.
atitude mais relaxada.
Senhor: Detesto que você adore mentir
para mim.
Senhora: Detesto suas piadas sem graça, Senhora: Detesto que você não ligue para
sobretudo na frente das minhas amigas. todas as coisas que eu não falo.
Senhor: Detesto quando usa esse tom de Senhor: Detesto quando você veste roupa
voz para me expor ao ridículo, sobretudo na que a deixa muito sexy.
frente das suas amigas. Senhora Detesto quando você veste roupa
que o deixa gordo.
Senhora: Detesto quando você fica pa-
querando na internet, entrando naqueles Senhor: Detesto você achar que todas as
bate-papos. mulheres têm obrigação de mostrar que
estão gozando, entre quatro paredes.
Senhora: Detesto você não entender porque
O diálogo vai ficando cada vez mais romântico. nós, mulheres, fingimos que gozamos.
Senhor: Detesto quando você fica falando Parece que eles estão tendo um orgasmo.
do seu ginecologista.
156
Senhora: Detesto quando você pensa que A Senhora vira-se para não olhar o que Se-
uma briga faz esquecer que te amo. nhor 2, fala com o Senhor.
A Senhora joga um beijo para o Senhor. Senhor: Detesto quando pegam no meu
joelho e puxam para baixo.
Senhor: Detesto quando você quer me bei- Senhora: Detesto quando a sua família me
jar na frente dos meus amigos. olha feio na rua.
Senhora: Detesto quando você não quer Senhor: Detesto que vocês usem a mesma
que beije os meus amigos. marca de preservativo que nós usamos.
Senhora: Detesto que vocês não consigam
Entra o Senhor 2. É também um homem chegar a um acordo.
elegantemente vestido. Ele caminha com cau- Senhor 2: Detesto que ele demore para ir
tela pela parte superior do palco por causa da embora.
substância viçosa, acaba ficando próximo da
cabeça do Senhor.
O Senhor 2 pisa na cabeça do Senhor com
insistência tentando afundá-la, entretanto, o
Senhor: Detesto seus encontros frequentes
Senhor 2 também acaba adentrando na subs-
com esse homem em particular.
tância viçosa sem perceber.
Senhora: Detesto quando você fica ciumen-
to, sobretudo se está certo.
Senhor: Detesto você não ser minha. Senhor: Detesto saber que já não sou eu
quem faz você falar que “detesta” qualquer
Senhora: Detesto não saber de quem sou.
coisa.
Senhora: Detesto você fazer chantagem
O Senhor 2 começa a pisar cuidadosamente a emocional como forma de demonstrar que
cabeça do Senhor. me ama.
Senhor: Detesto amar você.
Senhor 2: Detesto atrapalhar, mas... Senhora: Detesto que ele possa pensar que
Senhor: Detesto que você fique mais com sou uma puta porque ainda gosto que
ele do que comigo. você me ame.
Senhora: Detesto você não entender que Senhor: Detesto que... Que...
preciso de um pouco mais de espaço.
Senhor: Detesto entender o que realmente
significa ter “um pouco mais de espaço”. O Senhor mal consegue falar.
157
O Senhor vai ficando completamente imerso A senhora fica surpresa com a resposta. Respon-
na substância viçosa até desaparecer, enquanto de no ato, chateada.
isso, o Senhor 2 fica preso à substância sem
conseguir mexer as pernas.
Senhora: Detesto essa resposta.
158
Ri. trata-se de gente fazendo o que qualquer
um faz na sua casa, trepar, só isso. Não tem
nada de errado nisso, não é? Sinceramente,
Bom, vocês entendem, eu acho que minha eu não acho nada de errado nisso. Além do
história não é muito diferente da do resto mais, todo mundo é livre para viver como
de vocês. quiser e ver os filmes que quiser. É ou não é?
Breve pausa.
Breve pausa.
Breve pausa.
Trabalho com pornografia, mas não sou
artista de filme pornô, eu faço casting. Ex-
Bom, sei lá, a coisa é que eu mexia com plico. Não é todo mundo que pode fazer
isso. É um trabalho como outro qualquer.
Se bem que não é, não é porque você pode filme pornô, você não pode pegar a pri-
ganhar muita grana. meira mulher que aparecer e filmar uma
cena com ela, não dá. Tem gente que não é
suficientemente... bonita, e às vezes... Estou
Ri. querendo dizer que não é suficientemente…
descarada. Vocês estão entendendo o que
estou querendo dizer, não é? Olha, tem
Quando falo muita grana, é muita grana
mesmo. Acho que alguns devem estar pen- algumas que até você comer, não dá nem
sando que sou um tarado e outros devem para imaginar as coisas que são capazes de
me achar um super-herói. Bom, isso acon- fazer. Da boca para fora, todo mundo faz
tece todo dia que falo disso. Mas isso não é tudo, mas quando chega a hora da verdade,
problema, não. Eu entendo. Tem gente que aí é diferente. É um serviço de muita res-
pensa de um jeito e tem gente que pensa de ponsa que alguém tem que fazer. Eu fazia o
outro. Mas o pessoal que é contra tem que
seguinte. Viajava para o leste europeu, para
saber que se corre tanta, mas tanta grana, é
porque tem muita, mas muita gente que Budapeste ou Praga, por exemplo, para ficar
assiste. E se tem tanta gente que assiste deve duas ou três semanas fazendo casting. Tiran-
ser porque é alguma coisa, não é? De fato, do fotos, checando as qualidades mínimas
a gente não faz nada que não seja natural, do material. Não dá para escolher nenhuma
159
rechonchuda, trabalho para uma firma mui- quiser, tinha Tânia, minha noiva. A maior
to sofisticada. E tinha que comê-las. Pode parte do pessoal do pornô acaba saindo
crer, ainda não encontrei mulher alguma com atrizes, produtoras ou coisa parecida...
que tenha criado caso, juro, nenhuma mes- Mulheres que também trabalham com isso.
mo. Às vezes, tinha a sensação que podia Lógico, não querem ninguém perguntando
escolher a primeira mulher que aparecesse pelo que eles fazem no serviço. Já falei antes,
nas ruas de Budapeste, levá-la para o quarto tem gente que não curte essas coisas. Tem
e dar conta do recado. É incrível a quanti- gente pra tudo.
dade de mulheres que querem fazer filme
pornô. Olha que são muito bonitas, hein.
Pode crer. Na sequência o Mário, meu Breve pausa.
chefe, dava uma olhada na gravação e se
gostasse da moça, ela era convocada e tra-
Conheci Tânia numa discoteca de Valencia.
zida aqui para as filmagens. Acredite, para
Eu estava de férias com uns amigos que não
elas era como se tivessem sido contratadas
eram do pornô e um deles conhecia uma
para Hollywood. Aí eu ficava me sentindo...
amiga da sua irmã que... Resultado, ele
o máximo fazendo isso; de verdade, não
apresentou Tânia para mim.
só por que podia trepar com elas de todos
os jeitos possíveis, mas também porque eu
sabia que estava dando para elas a grande Respira fundo.
oportunidade de mudar as suas vidas, que
estava salvando-as do terrível desemprego
dos seus países e das brigas familiares... Sei Era gostosona, linda e além do mais parecia
lá. Eu sentia – pode parecer brega, mas é que era legal, quer dizer, que é legal. Aquilo
verdade – eu sentia o maior amor fazendo que a gente chama de “boa moça”, uma
isso, é verdade. Seja da minha parte como moça que dá para confiar, que não vá enfiar
da parte delas. Tenho a impressão que agora uma faca nas tuas costas.
vocês voltaram a pensar assim: “esse aí está
blefando”, não é?
Breve pausa.
Ri.
E funcionou. Desde aquele mesmo dia
trepamos como loucos. Eu tenho certa
Acho que nunca consegui ser tão sincero na vantagem no assunto, não é? E sei tirar
minha vida. Vocês também foram sinceros partido disso. Para você prosperar nesse
comigo, por isso acho justo que eu também trabalho deve possuir certos talentos. Não
seja sincero com vocês. Seguramente, vocês quero parecer metido, mas uma pessoa que
estão se perguntando, “o que esse cara aí faz trabalha com isso não pode ficar gozando
em casa”? “Tem mulher e filhos esperando a qualquer hora e deve conseguir fazê-lo
depois do turismo sexual em Praga”? Não todas as vezes que for necessário. Resultado,
dá para acreditar, não é? Pois é, acredite se a gente ficava o dia inteiro com um sorriso
160
de orelha a orelha. Tânia era animada, acho Breve pausa.
que algo mais do que animada, lembro que
ficava cantando o dia todo. Quando a gente
trepava ela gostava de botar um disco de Não, de jeito nenhum. Tenho certeza que
música romântica e eu percebia que ela me- não teria sido diferente se eu tivesse conta-
xia a bunda no ritmo lento das canções. Ela do. Ela achava que eu fazia comercial para
sempre botava um elepê que se chamava... uma empresa de informática, era isso. A
“Noites de brancos lençóis”? Vocês lembram? gente ia levando. Cada um morava na sua
A primeira música era “Without you”, de casa. Quando podíamos nos encontrávamos,
Harry Nilsson. É uma dessas canções piegas, principalmente nos finais de semana. Lem-
super piegas. bro que uma vez puxei o assunto da porno-
grafia, assim como quem não quer nada. A
gente estava na praia fazendo o esquenta e
Cantarola a canção.
falando safadezas, quando perguntei: “Você
já viu filme pornô?” Falou que sim, que
Então falei comigo mesmo: “Porra, essa é uma vez encontrou um filme que seu irmão
uma daquelas mulheres que...” Achava que tinha escondido e que assistiu inteiro. Pois
depois de ter casos com muitas vadias da é, esse negócio de assistir ao filme inteiro é
vida, finalmente tinha encontrado minha coisa que só mulher faz. Para a gente, um
meia laranja, e que isso era uma questão trecho já é suficiente. Falou que chegou a
de justiça poética. Sim, antes eu falava esse se masturbar enquanto olhava, ela disse que
tipo de coisas. “Justiça poética”. E foi justo foi só para experimentar.
nesse momento que eu pensei o que vocês
estão pensando já faz um bom tempo. De
que jeito você vai falar que trabalha fazendo Breve pausa.
casting pornô?
161
jeito, com o sujeito gozando na cara de uma pouco, mas dava. Acho que alguém deve ter
dona, de duas ou de quantas forem. É de me reconhecido e contou para ela, ou então
praxe, sempre acaba desse jeito. A gente sabe ela mesma me reconheceu e decidiu me
que quando gozamos na cara de uma dona largar. Será que foi por isso que me largou?
é muito mais gostoso, não pergunta por quê, Não sei, não. Tenho medo de perguntar
mas é assim, é cultural ou coisa parecida. Os para ela. Mas não era tão monstruoso assim
homens presentes aqui na sala podem con- o que eu fazia, não é verdade? Ela própria
firmar isso. Você se sente o máximo, é por reconheceu ter assistido a um filme pornô,
isso que os filmes acabam desse jeito. pelo menos uma vez, não foi?
O pior dia da minha vida foi o dia que vol- Desde que diagnosticaram câncer nos meus
tei para casa e percebi que Tânia não tinha bagos, só tenho contado com vocês, com
chegado. Pensei, “hoje não, porra, hoje estas reuniões para superar minha doença.
não”. Foi justo no dia que eu estava vol- Tenho medo de falar para ela que não tenho
tando do médico e ela não estava em casa mais balangandãs, que só tenho duas pe-
como a gente tinha combinado. Comecei a quenas bolas de plástico que implantaram
na cirurgia, e mais medo ainda que me diga
ligar para ela, mas não dava jeito. Ela tinha
bem feito. Fico com medo que ela diga
bloqueado meu número. Passaram-se dias
que a culpa foi minha, que mereço tudo o
até que consegui falar com sua irmã, ela
que aconteceu comigo, perder o emprego,
falou que Tânia não queria voltar a me ver
perder as bolas e tê-la perdido. Que deve ter
nunca mais, e não deu explicação nenhuma.
sido a tal justiça poética ou coisa parecida.
Na hora pensei que a Tânia tivesse fuçado
Não ia suportar que falasse isso: que foi
nas minhas coisas e encontrado algum filme,
justiça poética. Mas não estou sabendo o
mas isso era impossível porque os arquivos
que fazer. Devo continuar ligando para ela?
estavam com senha no computador, assim,
Falem para mim.
isso era impossível. Eu não publicava nada
do que eu fazia.
Breve pausa.
Breve pausa.
Não é uma pergunta direta, mas... Acontece
que... Sei lá… No final, com certeza vocês
Pelo menos, era isso que eu pensava. Al- devem ter problemas maiores do que…
gumas semanas antes, sem falar comigo, o Mas… Não sei o que fazer.
Mário decidiu comercializar uma recom-
pilação das cenas finais dos meus castings.
Acontece que em algumas dava para me ver, Sorri.
162
Acho melhor ir embora. Desculpa se hoje
não fico para ouvir os outros. É que... Bom...
Acho que… Hoje não vai dar… Não sei. A
gente se fala outro dia, tudo bem?
Homem saindo.
Fim.
163
Amália Pereira no processo da peça
Contrarrevolução, do dramaturgo
espanhol Esteve Soler.
Ainda assim, não é possível concluir essa etapa sem deixar de lembrar
amigos que foram cruciais nessa jornada e que já não estão nesse
165
plano, como o crítico e pesquisador Sebastião Milaré, os diretores Moises
Miastkowski e Jose Renato Pécora, o autor e diretor Reinaldo Maia, entre
outros, que de alguma maneira estiveram presentes, contribuindo na
pesquisa e na prática do grupo Kaus e que ainda hoje alimentam nossa
trajetória, com tudo o que deixaram escrito e com a lembrança das boas
conversas que tivemos.
166
sempre presente, Maritta Cury, que começou essa jornada com o grupo,
entre outros que caminharam com o Kaus, e os que agora estão nessa
nova empreitada, Vera Monteiro e Evandro Netto. Hoje podemos dizer que
os projetos traçados em poucas linhas no papel se tornaram realidade no
palco graças a essa conjuntura positiva que sempre esteve ao lado do
grupo Teatro Kaus, tudo isso tornou possível e viável fazermos o que foi
feito.
167
para que possamos cada vez mais refletir sobre quem somos e para onde
caminhamos nesse mundo coisificado.
Um viva ao teatro que tanto nos deu e nos dá todo dia! Um brinde a este
lugar em que o homem se transforma e no qual a vida ganha significados
poéticos, críticos, reais ou inventados; onde o confronto de ideias está
sempre presente, buscando, para além da representação, um estado real
de vida, em que possamos de alguma forma acordar todos os dias com a
mesma gana de vencer as barreiras e seguir nossa caminhada! Um salve a
todos que com o Teatro Kaus caminharam e que nos ajudaram a caminhar
nessa estrada que já remonta vinte anos de pegadas!
Reginaldo Nascimento
Ator e Diretor Teatral, fundou o Teatro Kaus Cia Experimental em 1998. Desde 1993 se
dedica especificamente à Direção Teatral e à pesquisa do teatro de grupo. Tendo assinado a
direção de mais de 20 espetáculos, organizou e editou duas publicações sobre dramaturgia
de língua hispânica. A primeira foi o livro Cadernos do Kaus - O Teatro na América Latina,
publicado no projeto Fronteiras, em 2007, a segunda foi a revista Hysterica Passio, em 2016.
168
Reginaldo Nascimento