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O BANCO DO BRASIL apresenta e patrocina a 6ª edi-

ção da JANELA DE DRAMATURGIA , projeto que promove,


anualmente, em Belo Horizonte, a estreia de textos de
diversas dramaturgas e dramaturgos brasileiros.

Desde 2012, o projeto traz ao público a leitura


dramatizada de obras inéditas e, neste ano, entre agosto
e dezembro, apresentará no teatro do CENTRO CULTURAL
BANCO DO BRASIL dez textos de autoras e autores brasi-
leiros, além de dois textos estrangeiros.

A mostra, que também é um espaço de investiga-


ção da escrita teatral e interlocução entre dramaturgos e
público, já contou com a presença de nomes da dramatur-
gia nacional contemporânea como Grace Passô, Leonardo
Moreira, Silvia Gomez, Eid Ribeiro e Alexandre Dal Farra,
bem como textos que se tornaram espetáculos represen-
tativos da jovem geração de teatro belo-horizontina.

Com a realização deste projeto, o CCBB contribui


para o fomento e estímulo à produção local, além da
valorização de uma nova dramaturgia contemporânea
brasileira, e reafirma o seu apoio às novas formas do fazer
teatral em nosso país.

CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL


“Um singular acampamento dramatúrgico!”, foi Primeira Campainha; Risco, um solo da atriz Luísa Bahia;
assim que a poeta e desenhista Júlia Panadés chamou O narrador, de Diogo Liberano, do Teatro Inominável (RJ);
a Janela de Dramaturgia quando esteve por lá, numa das Ovelha Dolly, de Fernando Carvalho (DF), com atuação de
noites de leituras, na terceira edição do projeto, em 2014. Maria Marighella (BA); dentre muitos outros. Em 2016, os
Dois anos antes, a dramaturga Sara Pinheiro e eu inven- textos das três primeiras edições da mostra foram publica-
távamos esse espaço que se dedicaria a ler textos tea- dos pela Editora Perspectiva, através do Programa Rumos
trais inéditos de autoras e autores de Belo Horizonte. No Itaú Cultural. Em 2017, uma edição especial do projeto foi
baixo centro da cidade – região que nesse mesmo tempo realizada em parceria com o SESC-MG, inteiramente
viu crescer a Praia da Estação e um intenso movimento dedicada à dramaturgia infantojuvenil, resultando em dez
político e artístico – uma vez ao mês, um amontoado de textos inéditos para crianças e adolescentes, escritos por
gente, se reunia para ouvir novas vozes da dramaturgia, autoras e autores de Belo Horizonte.
com música e cerveja nos intervalos. Estava feito o acam-
pamento! Com o apoio do Teatro Espanca! e o engaja- O acampamento, agora, chega à sua 6ª montagem,
mento de diversos artistas, técnicos e críticos, o projeto fincando suas varetas no Centro Cultural Banco do Brasil
solidificou seu formato e tornou-se um dos espaços mais de Belo Horizonte, a fim de mostrar a um público cada vez
importantes de divulgação, fomento e discussão de dra- maior a inventividade e experimentação que têm marcado
maturgia contemporânea na capital mineira. as produções dramatúrgicas do nosso tempo. A edição
começa com um encontro com a autora argentina Romina
Nos anos seguintes, a Janela ampliou seus hori- Paula, dando continuidade ao intercâmbio com a América
zontes e passou a apresentar também textos de auto- Latina iniciado em edições anteriores. A premiada drama-
ras e autores de outras regiões do Brasil e fora dele. turga – que também é atriz, diretora, roteirista e escritora
Além disso, incluiu em sua programação anual lança- de romances – contou em uma entrevista que “coleciona
mentos e feira de livros, oficinas, workshops, palestras, palavras”, e com elas parece explorar as intersecções
rodas de conversa e tradução de textos estrangeiros, entre teatro e literatura, diálogo e narrativa, ficção e
todos dedicados à dramaturgia contemporânea. Grande realidade, masculino e feminino, amor e morte. A autora
parte dos textos teatrais apresentados no projeto ganhou apresenta uma palestra e ministra uma oficina de drama-
a cena mais tarde, dentre eles: Vaga Carne, um solo da turgia. A abertura dessa edição conta também com uma
atriz e dramaturga Grace Passô; Danação, de Raysner roda de conversa com as dramaturgas convidadas Ave
de Paula, com atuação de Eduardo Moreira; Get Out!, um Terrena, Janaína Leite e Maria Shu, na qual elas relatam
solo de Assis Benevenuto, montado pelo Quatroloscinco; seus processos criativos e a inserção de suas vozes no
Isso é para a dor, de Byron O’Neill, encenado pela panorama da dramaturgia contemporânea brasileira.
Luísa Bahia, artista multifacetada, também dramaturga, A edição deste ano conta ainda com a participação
é quem se apresenta na festa de abertura, com um show de mais de quinze críticos, pesquisadores e artistas que
de canções autorais, que exploram a palavra falada, can- estarão por conta de produzir textos críticos, provocar e
tada, performatizada. aprofundar os debates a cerca das dramaturgias apre-
sentadas, conduzidos por Luciana Romagnolli, que desde
A mostra de textos, que segue de agosto a dezem- a primeira edição do projeto coordena a programação de
bro deste ano, apresenta dez trabalhos inéditos, que jun- crítica. A curadoria da mostra foi realizada por mim e
tos compõem um quadro de grande diversidade formal, pelos curadores convidados: Daniele Avila Small, crítica
estética e temática, que vai do drama ao performativo, e pesquisadora de teatro, na programação nacional; e
da conversa ao solilóquio, do fragmento à narrativa con- Marcio Abreu, diretor e dramaturgo, na programação
tínua, da fala impulsiva à pausa silenciosa, dos encontros internacional. Nesta edição, o projeto inaugura também
amorosos aos departamentos trabalhistas, das narrativas uma parceria com a incor.poro, produtora que, através
de guerra aos mitos indígenas. O conjunto de autoras e de um trabalho cuidadoso, torna possível as ideias e os
autores convidados também expõe variados perfis, encontros imaginados.
diferentes formações e gerações, distintas geografias:
sul, centro-oeste, sudeste e nordeste do país. Como descreveu a dramaturga mineira Grace
Passô, a Janela de Dramaturgia é “um encontro cuja maté-
O encerramento conta com a leitura de dois textos ria-prima é o estado de escuta”. Nos colocamos mais uma
estrangeiros – Fauna, da já citada dramaturga argentina, vez de ouvidos abertos, confrontados a outras vozes e
Romina Paula, e Bovary, do reconhecido dramaturgo línguas. Desse modo, a Janela – tal qual o teatro – é, sobre-
português Tiago Rodrigues. Os dois textos exploram os tudo, um espaço para o encontro, o exercício da escuta e
conflituosos territórios da ética e da arte, do real e da da convivência, tão urgente e necessário no nosso atual
representação, do trato da figura feminina na arte: o texto contexto. Enaltecemos o engajamento de todos os artistas
de Romina coloca em cena personagens tentando docu- e profissionais envolvidos na produção dessa mostra e,
mentar cinematograficamente a história de uma mulher sobretudo, a iniciativa do Banco do Brasil de patrocinar
contestadora de valores tradicionais; já o texto de Tiago um evento como esse, tão importante para a divulgação,
leva à cena o julgamento do famoso autor francês Gustave estímulo e pensamento da nova dramaturgia brasileira.
Flaubert, acusado de obscenidades pelo Ministério
Público ao escrever um livro sobre uma mulher que, infeliz Boa Janela!
no casamento, se aventura em relações de adultério.

VINÍCIUS SOUZA

Coordenador geral e um
dos curadores da mostra
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INDICE
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foto Mariana Barcelos

PROGRAMAÇÃO
NACIONAL

A matéria do teatro é a cena: o momento em que acontece um espetáculo (ou


como preferirmos chamar), quando todas as suas partes estão em ação ao
mesmo tempo na presença de quem assiste. Não é tarefa simples pensar o
teatro a partir de um dos seus aspectos. E a dramaturgia – que não é mera-
mente texto – é um dos mais complexos aspectos do teatro, por ser, em larga
medida, invisível e difícil de separar. Penso a dramaturgia como o pensamento
que sustenta a estrutura da cena, que dá suporte para que apareça a noção de
teatro de quem escreve, atua ou encena. Na leitura de tantos experimentos,
na curadoria de um projeto como a Janela de Dramaturgia, é quase impossível
dizer o que faz o teatro saltar do papel. Como em tudo na arte contemporânea,
não há uma régua com a qual se possa medir todos os textos. Cada caso é um
caso. Cada leitura demanda uma escuta. Qualidade, esse conceito cretino,
pseudoneutro, já não nos serve – ainda bem. O que nos resta, e que não é
pouco, é a possibilidade do encontro entre pensamentos: o que fala na escrita
e o que escuta na leitura. Não se pode dizer que a química dos encontros é
uma coisa imparcial, que não tem a priori. Mas, como no amor, quem adivinha
as suas premissas?

DANIELE AVILA SMALL foi cocuradora da programação nacional da


mostra; é doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO. Autora do livro O crítico

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ignorante – uma negociação teórica meio complicada (Editora 7Letras, 2015)
e da peça Garras curvas e um canto sedutor (Cobogó, 2015). É idealizadora e
editora da Questão de Crítica, integra o Complexo Duplo e a DocumentaCena.
É presidente da seção brasileira da Associação Internacional de Críticos de
Teatro (IACT-AICT).
PROGRAMAÇÃO
INTERNACIONAL
foto Nana Moraes

Ler é um ato. Reconhecimento do mundo. Construção de memória. Modo


de existência. Movimento que gera percepções dinâmicas. Afirmação de
vida. Penso em leituras plurais, expandidas. Ler como ato criativo. Criar e
CURADORIA
transformar entendidos como quase sinônimos. Lemos peças de teatro, lite-
ratura, poesia, lemos uma paisagem, o corpo de alguém, lemos cartas, mãos, o
futuro, somos lidos pelo outro, alguma coisa lê em nós. Tudo move, repercute,
reverbera. Ler é escrever. Esta frase, se formulada ao contrário, revela um
não- segredo, a chave da grande porta, um não- mistério, pois sabemos no
fundo, mesmo fingindo não saber, que tudo o que sai de nós foi lido antes, de
alguma forma, em algum tempo, ancestral ou de agora, foi lido por nós ou em
nós. Escrever é, portanto, ler.

Vejo a Janela de Dramaturgia como um ato coletivo de leituras, portanto, de


criação. Ato de convivência e de escuta. Esta, sim, uma política. Fico feliz em
colaborar de algum modo para que esse encontro aconteça e permaneça.

MARCIO ABREU foi cocurador da programação internacional da mostra; é


dramaturgo, diretor e ator. Criou e integra a Companhia Brasileira de Teatro,
sediada em Curitiba. Desenvolve projetos de pesquisa e criação de dramatur-
gia própria, releitura de clássicos e encenação de autores contemporâneos
inéditos no país. Realiza ações de intercâmbio com artistas do Brasil e da
França. Recebeu inúmeros prêmios e indicações, dentre eles o prêmio Bravo!,
o prêmio Shell, o APCA, o prêmio Governador do Estado, no Paraná, o APTR
e o Questão de Crítica. Foi escolhido pelo jornal Folha de S.Paulo como per-
sonalidade teatral do ano, em 2012.
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ABERTURA
22 DE AGOSTO
RODA DE CONVERSA
COM AS DRAMATURGAS
AVE TERRENA, MARIA SHU
E JANAÍNA LEITE
(São Paulo/SP)

+
ENCONTRO
COM A DRAMATURGA
ROMINA PAULA
(Buenos Aires/AR)

+
FESTA DE ABERTURA
SHOW “COISA DE BICHO”
ENTRADA FRANCA
COMO VOCÊ FAZ?
PROCESSOS E VOZES
CONTEMPORÂNEAS
NA DRAMATURGIA
BRASILEIRA
divulgação

Roda de conversa AVE TERRENA ALVES é escritora, dramaturga, poeta


e performer transvestigênera, integrante do grupo de tea-
22 de agosto, 19h tro Laboratório de Técnica Dramática desde 2015. Sua
peça as 3 uiaras de SP city foi uma das premiadas na IV
Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos
do Centro Cultural São Paulo, estreando no Espaço
Ademar Guerra em maio, também publicada pelo CCSP
em brochura; e seguindo em curta temporada no Itaú
Cultural ainda em 2018. Sua peça O corpo que o rio levou
foi contemplada pelo Prêmio Zé Renato da Secretaria de
Cultura de São Paulo, cumprindo duas temporadas no ano
de 2017. O texto foi publicado pela editora Giostri. Em 2018,
lançou seu primeiro livro de poesias, Segunda Queda,
pela Editora Kazuá, contemplado pelo PROAC-Poesia da
Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Autora do
texto Lugar da Chuva, resultante de um intercâmbio cria-
tivo entre os Estados de São Paulo e do Amapá. Passou
pelo Núcleo de Dramaturgia do SESI-British Council,
tendo sua peça O amor canibal publicada pela editora do
SESI. Atualmente, está no processo de pesquisa para a
escrita do Barbante Vermelho do Mural da Memória, com o
LABTD; no processo de escrita da peça BlancheMachine;
além de integrar o elenco do longa Tlazolteótl – para onde
voam as feiticeiras, dirigido por Eliane Caffé, Carla Caffé
e Beto Amaral.

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divulgação divulgação

JANAÍNA LEITE é doutoranda no departamento de MARIA SHU é professora, dramaturga e roteirista.


Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes com Já teve textos lidos e encenados na Suécia, Cabo Verde,
pesquisa apoiada pela Capes. É atriz, diretora, dramatur- Portugal e França. É formada em Letras, pós-graduada
gista e também uma das fundadoras do premiado Grupo em Língua Portuguesa pela PUC-SP, em Dramaturgia
XIX de Teatro (APCA, Shell, Bavo!, Nscente, entre outros), pela SP Escola de Teatro e, atualmente, estuda roteiro
companhia existente desde 2001, que participou dos prin- audiovisual na Academia Internacional de Cinema.
cipais festivais do Brasil e de outros países. Concebeu o Shu é autora dos espetáculos Cabaret Stravaganza, com
espetáculo Festa de Separação: um documentário cênico a Cia de Teatro Os Satyros, direção de Rodolfo Garcia
e Conversas com meu pai, consolidando sua pesquisa Vasquez; Giz, com a GAL (Grupo Arte Livre), direção de
sobre autobiografia e documentário no teatro. É também Marcelo Valle; A Cobradora, com a Trupe Sinhá Zózima,
atriz e diretora do espetáculo Branco: o cheiro do lírio e Peça para quem não veio, parceria entre a brasileira Cia.
do formol, criado com o apoio do edital Proac e estreado Pau D’Arco e a francesa Compagnie Nie Wiem, Epifania,
na MIT 2017, e coordenou os núcleos de estudo Feminino monólogo com Lilian Prado, e O sorriso da rainha, com
Abjeto e Memórias, arquivos e (auto)biografias. Ministra Cacau Merz, direção de Alexandre Brazil. Foi assistente de
oficinas e cursos por todo o país em diversas instituições, dramaturgia da peça Território Banal, de Marici Salomão,
como SESI e SESC. Em 2017, lançou o livro Autoescrituras com direção de Jorge Vermelho. Seu monólogo Epifania
performativas: do diário à cena pela Editora Perspectiva apresentou-se no Festival Internacional de Teatro de
e estreou os novos espetáculos do Grupo XIX de Teatro: Mindelo e cumpriu temporadas no Viga Espaço Cênico
Intervenção Dalloway – O rio dos malefícios do diabo e e na SP Escola de Teatro. Sua peça Ar Rarefeito ganhou
Hoje o escuro vai atrasar para que possamos conversar. Foi primeiro lugar do 3º Concurso Feminina Dramaturgia-
curadora em 2018 do Festival Internacional de São José Prêmio Heleny Guariba. Sua peça Relógios de areia foi
do Rio Preto. Atualmente, desenvolve seu novo trabalho publicada na Revista A[L]berto - #especial Dramaturgias,
Stabat Mater e orienta o núcleo de pesquisa Feminino prefaciada pela Professora Doutora Silvia Fernandes, do
abjeto 2 – O vórtice do masculino. Departamento de Artes Cênicas da USP. Foi orientadora
do projeto SP Dramaturgias, em 2013, na SP Escola de
Teatro. Está em processo de montagem de seus textos
Sobre Alices e Leoa na Baia. Ministra oficinas de texto e
escreve para diferentes grupos de teatro.
ENCONTRO
COM A DRAMATURGA
ROMINA PAULA
(Buenos Aires/AR)

Palestra Oficina*
22 de agosto, 20h30 24 a 26 de agosto, 14–17h
*Participação mediante inscrição prévia

ESTAR/ PENSAR/ FAZER ESTRANGEIRO EM SUA PRÓPRIA LÍNGUA

A autora fala sobre suas obras, seus processos de criação “A câmera é um instrumento que ensina as pessoas a
e lê trechos de suas peças teatrais. ver quando não há câmera” (DOROTHEA LANGE , fotógrafa
norte-americana.)

Romina Paula, tentando usar a favor o seu desconhe-


cimento da língua portuguesa, trabalha nessa oficina
a partir do conceito de ostranenie (ou estranhamento).
Os formalistas russos, especialmente Viktor Chklóvski,
utilizaram a palavra ostranenie (остранение) para se referir
aos modos de proceder na linguagem literária, cujo obje-
tivo é proporcionar uma nova perspectiva à visão habitual
da realidade, apresentando-a em contextos diferentes do
cotidiano ou representando-a de uma maneira em que se
nota que a representação é uma ficção.

Chklóvski expressamente define ostranenie ou estranha-


mento como: “O propósito da arte é transmitir a sensa-
ção das coisas como elas são percebidas e não como
são conhecidas (ou concebidas). A arte é uma maneira
de experimentar a qualidade ou essência artística de um
objeto; o objeto não é importante”. Em outras palavras,
a arte apresenta os objetos de outra perspectiva. Isso os
afasta de sua percepção automatizada e cotidiana, dando-
-lhes vida em si mesmos e em seu reflexo na arte. Chklóvski
argumentava que a cotidianidade fazia que se “perdesse
o frescor de nossa percepção dos objetos”, tornava tudo
automatizado. Como um salvamento a esse meio alienado
pela automatização, a arte faz uma entrada triunfante.

Nos três encontros que compõem a oficina, os participan-


tes fazem um ou dois exercícios rumo a escrita de uma
obra a partir da premissa de estranhamento dentro da

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própria língua. A ideia é trabalhar com um procedimento
que afaste os participantes da língua, ou que proponha
algum tipo de intervenção sobre ela. No trabalho sobre
os materiais, a ideia é trocar e discutir sobre a escrita de
um texto teatral e sua potencial encenação.
ROMINA PAULA é dramaturga, atriz, diretora, roteirista
e escritora. Nasceu em Buenos Aires, em 1979. Formada
em Dramaturgia pela Escola Metropolitana de Arte
Dramática (EMAD – Buenos Aires). Como atriz se formou
com Alejandro Catalán, Ricardo Bartís e Pompeyo Audivert
e participou de distintas obras de teatro e cinema. Como
dramaturga e diretora estreou as obras Si te digo, muero,
sobre textos de Héctor Viel Temperley (2005), Algo de ruido
hace (2007), El tiempo todo entero (2010), sobre O zoológico
de cristal, de Tennessee Williams, e Fauna (2013) junto
com a Companhia El Silencio. Sua última obra, Cimarrón,
estreou em 2016 na Sala Tacec do Teatro Argentino de
La Plata. A editora Entropía publicou suas obras Fauna,
El tiempo todo entero e Algo de ruido hace e seus romances
¿Vos me querés a mí?, Agosto e Acá todavía. Atualmente
realiza Norte, seu primeiro filme como autora e diretora,
e o cineasta Fernando Salem filmará uma versão de seu
romance Agosto, também em 2018.

foto Valencia
ENTREVISTA COM
ROMINA PAULA
(Buenos Aires/AR)

por Luciana COMO VOCÊ ESCREVE? QUAIS SÃO SEUS HÁBITOS DE


ESCRITA E COMO SEU PROCESSO DE CRIAÇÃO DE UMA
Romagnolli PEÇA FLUI?

Eu não tenho hábitos tão precisos, mas poderia


dizer que, em geral, escrevo os romances pri-
meiro à mão, já as peças de teatro diretamente
no computador. Ainda que não seja assim em
todo caso. Também tenho um diário, em que
sempre escrevo à mão com uma caneta, mas
são coisas que eu não publico. Em geral,
os processos das peças de teatro são muito
mais curtos do que os dos romances. As peças,
por sua vez, costumam ter uma versão para
cena e outra para edição. Não são diferenças
abismais, mas existem.

COMO A DRAMATURGIA SE RELACIONA COM SUAS ATIVI-


DADES COMO ATRIZ E DIRETORA DE TEATRO? SUA ESCRITA
É AUTÔNOMA OU DIALOGA COM TRABALHOS NA SALA
DE ENSAIO? E DE QUE MANEIRA ELA INCORPORA ESSAS
OUTRAS EXPERIÊNCIAS DO FAZER TEATRAL?

A escrita de uma peça de teatro é bastante


autônoma. Encontro os atores com um texto
finalizado, embora escrito para eles. É raro que
eu escreva uma obra genérica, quase sempre
escrevo já pensando em certos corpos e quase
sempre sabendo, também, em qual espaço ela
será representada. Então, na verdade, a encena-
ção já está presente na escrita. Depois, durante
os ensaios, vou suavizando ou modificando o
texto com os atores, se necessário, mas essas
mudanças tampouco costumam ser
tão substanciais.

DE QUE MANEIRA O ATUAL CONTEXTO SOCIAL E POLÍTICO


ARGENTINO AFETA O SEU TRABALHO COMO DRAMA-
TURGA? E, NO CAMINHO INVERSO, COMO O SEU TEATRO
PROCURA INTERFERIR NESSE CONTEXTO?

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A resposta que tenho a essa pergunta é a
própria pergunta: é algo que nunca deixo de
perguntar e que, tampouco, respondo, porque
é uma pergunta cuja resposta está viva e em
constante mutação. Neste exato momento,
eu me pergunto como e o quê pode ser repre-
sentado, sobre o que seria interessante falar e
para quê. Eu transitei por diferentes lugares e OUTRO CAMPO DE DISCUSSÃO AGUDA NO BRASIL, HOJE,
estou um pouco desencantada com o sistema SÃO AS QUESTÕES DE IDENTIDADE. CADA VEZ MAIS,
teatral em si, não por um motivo especial, DRAMATURGAS E DRAMATURGOS REFLEXIONAM SOBRE
mas apenas com um sistema que tem uma AS MANEIRAS PELAS QUAIS MULHERES E HOMENS,
série de leis e, às vezes, me sufoca. Nesse FEMININOS E MASCULINOS, NEGROS E BRANCOS SÃO
sentido, tento não fazer uma obra por fazê-la. REPRESENTADOS OU CONSTRUÍDOS EM SEUS TEXTOS.
Se eu não tenho uma razão, um “como” ou um COMO ESSAS QUESTÕES APARECEM – SE APARECEM –
“o quê”, não escrevo nada até que essa neces- NA DRAMATURGIA ARGENTINA CONTEMPORÂNEA QUE
sidade apareça. VOCÊ ACOMPANHA?

RECENTEMENTE, VIVEMOS NO BRASIL UM AGRAVAMENTO Sinto que mesmo as questões de gênero, na


DA CRISE DOS SISTEMAS DE REPRESENTAÇÃO NO ÂMBITO maioria dos casos, aparecem explicitamente,
DA POLÍTICA E DA COMUNICAÇÃO. E, NÃO APENAS AQUI, quase como se se tratasse de um gênero literá-
O PROBLEMA CRESCENTE DAS NOTÍCIAS FALSAS, DAS FAKE rio, “uma obra que fala sobre isso”. Meu desejo
NEWS, COMO SÃO CONHECIDAS. SUA OBRA FAUNA PROPÕE é que se possa dar mais um passo e não seja
UMA REFLEXÃO SOBRE A VERDADE E SOBRE O QUE SERIA um tema explícito, mas implícito na linguagem,
REPRESENTÁVEL. VOCÊ PODE NOS CONTAR UM POUCO que não seja um tema de agenda, mas algo
SOBRE COMO PENSA SOBRE ESSA QUESTÃO DA REPRESEN- intrinsecamente humano. Mas entendo que
TAÇÃO NA RELAÇÃO ENTRE A ARTE E A VIDA HOJE? são processos que levam muito tempo para se
instalarem no inconsciente coletivo.
Na semana passada estive na montanha,
na província de Missões. Eu nunca havia A QUESTÃO DE GÊNERO SOBRE O “SER MULHER”,
estado lá antes, mas é o lugar onde eu imaginei SUA ATUAÇÃO NA ESFERA PÚBLICA E NA MATERNIDADE,
que Fauna acontecesse. Eu tive essa sensação APARECE EM FAUNA. QUAL É O DESAFIO PARA VOCÊ,
que os personagens têm de alguma forma. AO ABORDAR ESSAS QUESTÕES, ESPECIALMENTE EM
Na natureza as coisas são: uma fruta é uma TERMOS DE LINGUAGEM?
fruta, uma árvore é uma árvore e a chuva
é água. Não há opinião nem abstração. Tem um pouco a ver com a resposta anterior:
Na cidade vivemos entregues à abstração: eu acho que o desafio reside em não cair no
viajo em um ônibus lotado e finjo não estar a politicamente correto no momento da escrita,
dois centímetros do rosto do outro com quem mas sim poder habitar a problemática com o
não vou conversar, porque todos nós vamos corpo, atravessá-la com um corpo e ver como
agir como se estivéssemos sozinhos nesse isso se torna linguagem. O perigo é replicar os
transporte. Vivo em um prédio, acima e abaixo discursos sem habitá-los, sinto que isso empo-
de muitas pessoas, e me comporto como se breceria a linguagem, lhe tiraria a poesia.
isso fosse normal. Voo em um assento a milha-
res de quilômetros da terra como se não signi- O QUE VOCÊ ESTÁ ESCREVENDO AGORA? QUAIS SÃO AS
ficasse nada e me alimento de um pedaço de QUESTÕES E INQUIETUDES MAIS PRESENTES?
carne vermelha, como se não tivesse vindo de
um animal, porque vivendo na cidade não tive Recentemente comecei a escrever um texto nar-
eu mesma que matá-lo. Toda essa alienação, rativo, que pode se tornar um romance. É uma
se a observamos, é insuportável. Então, sinto criança adotada que escreve para a sua mãe
que a única maneira de tolerá-la é provocar biológica, a quem ela não conhece. Ela tenta nar-
uma reviravolta: ficcionalizá-la. Ao construir rar sua vida e a de sua mãe adotiva. Então, mais
ficção, a pessoa assume que tudo é uma con- imersa do que nunca na mulheridade e sobre o
venção e se entrega ou não a esse jogo. Não que é maternar, porque essa criança, às vezes,
mais como um autômato, mas com vontade. parece ser a mãe de suas mães. Essa inversão
de papéis também me interessa.
COISA DE BICHO
SHOW AUTORAL DE
LUÍSA BAHIA
com Thiago Miotto,
Gladson Braga
e Matheus Félix

Festa de abertura COISA DE BICHO é o show de estreia das composições


da multiartista LUÍSA BAHIA . O projeto versa o desejo, o
22 de agosto, 22h destino, a fé e o movimento. Mantra, blues, rock, baião,
samba funk e poesia compõem essa dramaturgia cheia
de cor, suingue e instinto. Acompanhada pelos músicos
Salumeria Central Thiago Miotto, Matheus Félix e Gladson Braga, que sus-
R. Sapucaí, 527, Floresta tentam uma instrumentação incomum, Luísa apresenta
suas canções solo e parcerias com Gabo da Luz, Nath
Rodrigues, Luiza Brina e Rafael Pimenta.

O show é um pequeno feitiço para girar a energia, pintar


paisagens, sons e personagens feito gente e feito bicho.
Uma caminhada em baile, na cidade e no sertão, no ritmo
e na coragem! Essa é uma oferta elétrica criada no seio
da sua vivência poética e política de mulher, embalada
pela alma do mundo!

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LUÍSA BAHIA
Composição, voz e shruti box

THIAGO MIOTTO
Guitarra, violão e flauta bansuri

GLADSON BRAGA
Percussões

MATHEUS FÉLIX
Violino e bandolim

LUIZ DIAS
Direção de arte

LARISSA SCARPELLI
Produção

foto Maíra Cabral


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MOSTRA
QUARTAS-FEIRAS,
ÀS 19H
LEITURAS DE
TEXTOS INÉDITOS
CCBB – TEATRO II
ENTRADA FRANCA
29 DE AGOSTO
O CANDIDATO
Joelson Jogosi
(Cuiabá/MT)

+
SEM DONO: exílio-
agência-existência
Will Soares e Daniel Toledo
(Belo Horizonte/MG)

BATE-PAPO COM OS AUTORES

MEDIAÇÃO: LUCIANA ROMAGNOLLI

DEBATEDORA CONVIDADA:

NINA CAETANO é professora, dramaturga e pesquisadora.


Doutora em Artes Cênicas pela ECA-USP e professora adjunta
do Departamento de Artes e do Mestrado em Artes Cênicas da
UFOP. Coordena o grupo de pesquisa HÍBRIDA – poéticas híbri-
das da cena contemporânea (CNPq) e o Obscena, agrupamento
independente de pesquisa cênica.

ESCRITA DE CRÍTICAS

CAROL MACEDO é jornalista e mestre em Comunicação Social


pela UFMG. É também editora e coidealizadora da Revista
Marimbondo (www.revistamarimbondo.com.br).

GUILHERME DINIZ é licenciando em Teatro pela UFMG, ator e


pesquisador teatral. Como crítico, colabora com o site Cena em
Pauta. Estudou Literaturas e Dramaturgias Africanas de Língua
Portuguesa e Análise e Crítica do Espetáculo na Universidade de
Coimbra, pelo programa Abdias Nascimento/CAPES.
O CANDIDATO
necessária. Tenho me dedicado a ter mais contato com
dramaturgias do século passado para o nosso presente,
procurando entender os processos e as rupturas que seus
autores realizaram, e quiçá saber quais os processos e as
rupturas que poderei empreender.

PROCESSOS

A função da dramaturgia é contar uma história. A questão


primordial é como essa história será contada. Optei por
abordar esse “como” pelo viés da metalinguagem e da
Joelson Jogosi intertextualidade, empreendendo um passeio pelos três
eixos dramáticos: personagem em conflito, narratividade
(Cuiabá/MT) e performatividade. A presença de cada um, acredito,
revela um nível de intimidade e experiência que tenho
com elas. Desejei criar uma forma híbrida que assumisse
esse lugar do metateatro. No campo do conteúdo, a cons-
Na peça O CANDIDATO, seguimos os passos de um
trução da personagem central buscou inspiração tanto no
homem que se lança num labirinto de entrevistas, testes,
Quixote quanto nos heróis da mitologia greco-romana,
avaliações, mais testes, mais entrevistas, mais avaliações,
não em luta contra gigantes, monstros ou deuses, mas
almejando no final de tudo conseguir um emprego, seja
sim contra indústrias, bancos e corporações.
ele o que for. O sistema prima por um profissional bem
qualificado, mas, acima de tudo, que seja leal, dedicado
e totalmente comprometido com a empresa contratante. CONTE XTOS
Os rejeitados movem as engrenagens da atividade laboral,
lubrificadas com suor e lágrimas ao som de valsas e latidos. Procuro me informar e acompanhar as notícias que têm
No céu, pássaros voam. No chão, o silêncio de Antígonas. tido maior impacto em nossa sociedade, mas me resguar-
Tudo é permitido nesse universo corporativista. Depois dando para não levar para o convívio social um senti-
de tomar chá com o Minotauro no intervalo da pausa do mento constante de medo da violência e dos discursos de
café, o candidato precisa se mostrar bem disposto para ódio. As notícias boas parecem que ficam meio jogadas
ser sacrificado em nome do deus da meritocracia. de lado. Gosto muito de ler literatura, assim como ler a
realidade que nos cerca, mas chega um momento em
JOELSON JOGOSI iniciou sua vida teatral nas oficinas do que não basta ler as coisas que estão acontecendo,
grupo Pessoal do Ânima, dedicando-se à atuação e à é preciso registrá-las, no caso da arte, expressá-las de
direção. Em 2003, teve sua peça A Trama premiada no alguma forma. No meu caso, faço uso das palavras. Na
FestiÂnima como melhor espetáculo e dramaturgia, além mão contrária, tenho visto muitos espetáculos que têm
de melhor ator e outros prêmios técnicos. Foi membro devolvido ao público essa realidade de forma espan-
fundador do grupo teatral Mariposas Amestradas. tosa, crítica e reflexiva. Não que seja função do artista
Formou-se em Letras e fez especialização em Literatura resolver problemas sociais, mas afetar o indivíduo para
Ibero-americana na Universidade Federal de Mato Grosso que ele deseje as transformações, acredito que cabe a
(UFMT). Atualmente, leciona língua espanhola na Escola nós, artistas, não ignorar essa responsabilidade. É esse
do Legislativo da ALMT. Além disso, é membro do cole- o lugar em que me coloco quando escrevo para o teatro.
tivo de leitura de cena Parágrafo Cerrado e participa do Não é uma atividade tranquila para mim. É mais como um
grupo de dramaturgia Drama do Mato. Também colabora estado febril, que alterna entre momentos de forte delírio
no curso de teatro Cena Livre (UFMT) com oficinas de e outros de calmaria. Sempre lendo, relendo, formulando,
interpretação e direção, e estudo de literatura dramática. reformulando, medindo na balança do açougue para não
pesar no bolso do cliente e tampouco deixá-lo de barriga
MOSTR A — 2 9 DE AGOSOTO, 19H

vazia depois de comer.


TR AJETÓRIAS

Na inquietação de discutir questões inerentes à nossa


época, dediquei-me a problematizar a exclusão social
do mercado de trabalho. A partir desse tema, busquei na
linguagem técnico-científica criar um ambiente em que
a reificação beirasse o absurdo e a loucura, tendo como
referência obras de Kafka e Gogol; e contrapô-la com
uma linguagem metafórica, poética, sem perda da fluidez
discursiva. Penso que forma e conteúdo coexistem, ou

26
seja, forma também é conteúdo – e isso, às vezes, se dá
em níveis mais (ou menos) visíveis. Encontrar a forma que
melhor expressa seu conteúdo é algo que me empenho em
fazer quando lido com o domínio da escrita. A dramaturgia
textual, mesmo que não haja diálogos, é um dos elementos
primordiais da atividade teatral, porém ela também pre-
cisa se reinventar constantemente para se manter viva e

VOZ – Senhor Silva, como o senhor conseguiu
falar comigo?

H – Apertei alguns botões.

VOZ – Por que o senhor apertou os botões?

H – Não havia nenhuma instrução dizendo que


não podia apertar botões.

VOZ – Pois bem, o que o senhor deseja?

H – Poderíamos trocar algumas palavras ou


quem sabe eu poderia lhe preparar um café ou
quem sabe um chá.

VOZ – Chá?

H – Sim.

VOZ – Mas eu não estou aí.

H – Podemos fingir que está e aí aproveito para


treinar para um possível emprego de garçom.

VOZ – Não sei não.

H – Você não disse que o sistema está em manu-


tenção? Posso lhe chamar de você?

VOZ – Sim, o sistema está em manutenção. E


sim, pode me chamar de você, não há nenhum
protocolo que proíba eu ser chamada de você.

H – Pois bem, o que gostaria de pedir, café ou


chá?

VOZ – Chá, por favor.

H – Como gostaria que fosse servido seu chá? À


maneira dos ingleses ou dos franceses, como o
bem descreveu Balzac em seus romances.

VOZ – Dos franceses então.

H – Très bien, mademoiselle.

VOZ – Merci.

Ele prepara o chá para ela e serve.

H – Voilà.

VOZ – Merci beaucoup. Espere um instante.


(começa a tocar La Bohemia) Agora ficou perfeito.

H – Me permitiria a dança? Je voudrais danser


avec vous.

VOZ – Oui, monsieur.

Ele começa a dançar sozinho.

VOZ – Você aprendeu a dançar com os livros?

H – Não. Minha mulher me ensinou.

foto Ângelo Varella


SEM DONO: exílio-
possíveis relações entre uma cena e outra. Sem dúvida,
pra mim, há um componente terapêutico nessa escrita,
assim como muito espaço para o silêncio e o não dito.

agência-existência
(DANIEL TOLEDO) Desde que o Will me mostrou fragmentos
do que vinha escrevendo, tive uma empatia muito grande
pelo texto, as questões tratadas e os modos de tratá-las.
Me chamou a atenção a complexidade das figuras, seus
modos de romper silenciamentos, de transitar entre o
abandono e a liberdade. Aos poucos consegui me aproxi-
mar da obra, e hoje acredito que ela também fala por mim.
Como processo dramatúrgico, me parece interessante
Will Soares e perceber que memórias pessoais, quase documentais,
acabaram se desdobrando em uma crítica poética e poli-
Daniel Toledo fônica sobre a herança colonial brasileira.
(Belo Horizonte/MG)
PROCESSOS
Primeiro solo do ator mineiro Will Soares, SEM DONO
convida o público a experimentar três perspectivas de (DT) O processo de criação foi atravessado por várias
uma mesma história, bastante familiar à realidade bra- questões e inquietações, todas de algum modo relacio-
sileira. Inspirado em memórias pessoais que remetem à nadas a situações de opressão e subalternização. Entre
vida nas bordas de grandes cidades latino-americanas, as camadas mais visíveis, estão relações familiares,
o texto reúne vestígios de uma herança colonial marcada mas também relações de trabalho, assim como um uni-
pela ausência paterna e a luta por liberdade e autonomia. verso social marcado por abandono, violência e solidão.
A partir de situações e reflexões cotidianas, propõe-se ao Ao mesmo tempo, um contínuo pulso de liberdade atra-
espectador uma jornada rumo à complexa intimidade de vessa a narrativa, muitas vezes, a partir de referências a
três personagens, desconstruindo criticamente os típicos infância, memória e ancestralidade. (WS) SEM DONO foi
conflitos da modernidade e as tradicionais estruturas do construída a partir de diferentes pontos de vista sobre
drama burguês. um mesmo contexto social e familiar. A narrativa é com-
posta por conversas distorcidas, situações inacabadas,
WILL SOARES é ator, bailarino e performer. Formado pelo histórias que se revelam gradualmente, e sob diferentes
Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado perspectivas. Talvez, essa estrutura reflita o processo de
(Palácio das Artes/Cefar), estudou Licenciatura em Dança criação, em que reunimos e articulamos nossas memórias
pela UFMG e fez parte da Trans Residência Experimento íntimas e sociais, transformando essas memórias nos
Queer, realizada no Galpão Cine Horto, durante o Festival múltiplos discursos da peça.
de Cenas Curtas 2015. Entre 2012 e 2014, integrou a Cia.
Solo de Teatro. Atualmente faz parte dos coletivos T.A.Z,
Impossível, Espaço Preto e Beijo no seu Preconceito.
CONTE XTOS

(WS) Acho que a cada dia fica mais evidente que a estru-
DANIEL TOLEDO é dramaturgo, ator, performer e diretor
tura política brasileira privilegia alguns e prejudica outros,
teatral, além de mestre em Sociologia pela UFMG, com
de modo que injustiças históricas acabam se repetindo ao
pesquisa sobre descolonização e crítica da modernidade.
longo do tempo. Enquanto alguns poucos têm seus privilé-
Em 2018, integrou o curso “O que significa descolonizar?”,
gios assegurados, há um grande descaso com a população
oferecido pela Utrecht University (Holanda). Fundador do
negra, as mães negras, os jovens negros, as LGBTIQs, as
coletivo T.A.Z., colabora com variados artistas e cole-
periferias, as donas de casa e os idosos, somente para dar
tivos de Belo Horizonte, como Toda Deseo, Cia. Vórtica
alguns exemplos. (DT) Acredito que uma das forças desse
e Cia. Afeta. Fundador do coletivo T.A.Z., assina também
MOSTR A — 2 9 DE AGOSOTO, 19H

trabalho seja reunir vivências, conhecimentos e práticas


a dramaturgia de Nossa Senhora (Toda Deseo), Rua das
historicamente invisibilizados e subalternizados, asso-
Camélias (Cia. Vórtica) e Talvez eu me despeça (Cia. Afeta).
ciando-os, aqui, a novas imagens e sentidos, estimulando
no espectador consciência e atitude crítica em relação a
TR AJETÓRIAS um sistema social excludente, que insiste em nos reduzir,
segregar e hierarquizar.
(WILL SOARES) É a primeira vez em que me aventuro a criar
um texto teatral, mas desde criança eu escrevia poemas,
paródias e músicas que diziam sobre meus anseios. Mais
tarde, já como ator, participei de alguns processos colabo-
rativos, e atualmente tenho me aventurado na escrita de

28
letras musicais usadas em trabalhos que realizo no teatro
e no cinema. Já vinha de algum tempo, então, o desejo de
escrever uma peça que fosse mais próxima de mim e que
pudesse falar das realidades sociais que eu presencio.
Há cerca de um ano comecei a escrever essa peça, e mais
adiante convidei o Daniel para colaborar na dramaturgia
do trabalho, pensando tanto no texto em si quanto nas

Se ninguém aparece, eu cato as madeiras
do entulho da rua e queimo tudo. O fogo
queimando é bonito, esquentando a gente,
estourando a madeira. Diz que o fogo purifica
a gente. Acalma. Faz a gente esquecer os
problemas. A gente olha pro fogo queimando
tudo, até dá tempo de pensar em nada. A brasa
queimando. Tudo virando cinza. Virando pó.
E aí, quem sabe, começar tudo de novo igual
que nem era antes, que nem era antes de me
arrancarem tudo, me separarem de tudo,
antes de eles me deixarem aqui, sem saber
onde é a casa.

Eu carrego muita coisa comigo, carrego minha


mãe, minha vó, minha gente. E outras gentes
também, que eu gosto de misturar. Antes eu
alisava o cabelo, agora eu parei com isso.
Aprendi muita coisa com a Beyoncé. Elza
Soares. Racionais. Eu também já caí em muita
cilada na vida, já aceitei muita coisa que não
tinha que aceitar, mas agora eu tô ligada. Se a
gente fica ligada a gente aprende coisa todo dia,
toda hora. Aprende com quem a gente achava
que não tinha nada pra aprender. Aprende e
desaprende também. Porque ao longo da vida
a gente aprende muita coisa ruim, coisa que
não faz bem pra ninguém. Quem passa por aqui
acaba aprendendo muito. E mesmo antes de
entrar, a gente já sabe muita coisa.

Mesmo com os meninos entrando na frente ele


não parava de bater. Mesmo com os meninos.
Lembro como se fosse hoje de todo mundo
gritando junto. A família unida. A família unida
que nem era nas festas, que nem na fotografia
que ele levou embora quando saiu de casa e me
deixou aqui com os meninos. Meu pai deixou
minha mãe, meu avô nunca casou com minha
avó, minha história não foi diferente. Agora ele
tá lá: morto. Que nem nosso primeiro menino.
E o segundo está lá: preso. Tanta gente ruim
do lado de fora. Os do meio saíram de casa pra
trabalhar, nunca mais voltaram. Parece que
foram construir estrada, hidrelétrica, coisa de
mineração, cada hora é uma coisa mais longe
que a outra. Saíram os dois juntos e nunca mais
deram notícia, mas eu acho que é porque tá
tudo bem. Se acontecer alguma coisa de ruim,
a empresa avisa. Eu acho que avisa. Às vezes
parece que a vida da gente não vale nada.
Pra mim vale muito. Os caçulas cada um tomou
um caminho, mas eu não acho que eles se per-
deram. Eles tão caminhando, cada um do seu
jeito. A gente tá sempre perdido, caminhando.
Na caminhada a gente vai ganhando confiança.

foto Mirela Persechini / foto Leonardo Lima


19 DE SETEMBRO
AMOR FAST-FOOD
Amarildo Felix
(São Paulo/SP)

+
PEQUENO TRATADO
AMOROSO
Anderson Feliciano
(Belo Horizonte/MG)

BATE-PAPO COM OS AUTORES

MEDIAÇÃO: LUCIANA ROMAGNOLLI

DEBATEDORA CONVIDADA:

RAQUEL CASTRO é atriz, diretora e professora de teatro.


Doutora e mestra em Artes da Cena pela UFMG. Pesquisadora
associada ao Centro de Pesquisa EUR’ORBEM (Universidade
Paris-Sorbonne/CNRS). Trabalhou com os coletivos Toda Deseo,
Bacurinhas, Cia. Candongas, entre outros.

ESCRITA DE CRÍTICAS

ANA ELISA RIBEIRO é escritora, autora de livros de poesia,


crônica, conto e infantojuvenis. Seus livros mais recentes são
Álbum (Relicário, 2018), O que é um livro? (Editora da UFMG, 2018)
e Renascença (Conceito, 2018). É linguista, professora e pesquisa-
dora do CEFET-MG, no Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens.

CLÓVIS DOMINGOS é doutor em Artes da Cena pela Escola de


Belas Artes da UFMG. Artista cênico, pesquisador e crítico tea-
tral no site Horizonte da Cena. Integra o Obscena – Agrupamento
Independente de Pesquisa Cênica (Belo Horizonte/MG).
AMOR FAST-FOOD
de nos tirar o eixo, pois acredito que mais importante que
dar respostas é realizar perguntas. Realizar uma grande
pergunta é capaz de movimentar placas tectônicas.
Acredito que é isso: a dramaturgia serve – dentre tantas
coisas – para fomentar questionamentos que nos tirem
da naturalidade das relações estabelecidas.

PROCESSOS

Quando estou pensando em escrever um texto, o questio-


namento maior que me move é a pergunta central: qual a
Amarildo Felix relação entre forma e conteúdo que pretendo estabele-
(São Paulo/SP) cer? Acredito que essa é a constante em todos os meus
textos, de que maneira a forma – o concreto da escrita –
pode contribuir para melhor contar a história que pretendo
escrever. É assim que começo a escrever ou, ao menos,
Em um encontro às escuras, um médico e um escritor se pensar o texto que pretendo fazer. Quando estabeleço
conhecem para realizar uma prática sexual pouco comum. essa relação, a escrita se desenvolve de forma fluida e até
Poderia ser somente sexo, daqueles que acontecem ape- – em algumas vezes – fácil. No caso de AMOR FAST-FOOD,
nas para o passar das horas e matar do tédio, no entanto, pretendia falar sobre a liquidez das relações contemporâ-
outro tipo de conexão acontece e eles acabam por atra- neas, dos encontros fugazes sob a luz da prática sexual do
vessar um limite não esperado. first fucking. Fetiche e amor, duas facetas de uma mesma
moeda. Toda forma de amor é uma espécie de encontro
AMARILDO FELIX é dramaturgo e ator, formado pela de fetiches, posto que amor é linguagem. Para dar forma
Escola de Arte Dramática (EAD/ECA/USP) e Psicólogo a esse conteúdo, trabalhei uma escrita que transita entre
formado pela Pontifícia Universidade Católica de São diálogos rápidos e grandes monólogos, uma escrita que
Paulo (PUC/SP). Em 2014, integrou a 6º Turma do Núcleo vai se revelando aos poucos, formando ao final um grande
de Dramaturgia SESI British Council, sob orientação de mosaico desse encontro pouco usual.
Marici Salomão e César Augusto Batista. Neste período
escreveu a peça Solilóquios, publicada em 2015 pela edi-
tora SESI-SP, que foi encenada com direção de Johanna
CONTE XTOS
Albuquerque. O texto foi premiado com o ZESCAR, um
Etimologicamente, a palavra grega Teatro significa “o
prémio virtual oferecido pelo crítico de teatro José Cetra
lugar de onde se vê”, ou seja, a palavra teatro significa,
Filho, como um dos melhores textos encenados em 2015.
antes de mais nada, o público. Nesse sentido, teatro é
Ainda em 2015 escreveu e dirigiu a comédia Teatro Infantil,
encontro e todo o encontro é um ato político. Portanto,
em uma montagem que questionava o padrão normativo
o fenômeno teatral, todo ele, é um fenômeno político, de
dos contos de fada, a peça ficou dois meses em cartaz
comunhão. É preciso estar atento a esse fato, que, muitas
e obteve uma boa repercussão tanto de crítica quanto
vezes, deixamos passar batido e, talvez, seja este um dos
de público. Em 2017 lançou seu primeiro livro de poesias
motivos da escassez cada vez maior do público. Quando
Sotaque/Sintoma pela Editora Patuá. Em 2018 dirigiu o
penso na minha escrita, penso que ela comunique, que ela
espetáculo O Desmonte, que recentemente saiu vencedor
atinja as pessoas, que faça algum sentido. Pode parecer
no Festival Nacional de Teatro de Mogi Guaçu nas cate-
banal, mas é preciso ficar atento a esse fato, para não
gorias Melhor Direção, Melhor Ator, Melhor Cenografia,
cairmos em um hermetismo elitista. Além desse fato, acre-
Melhor Iluminação e Melhor Espetáculo. Apresentou-se
dito que a dramaturgia deve estar atenta aos fatos que
ainda no I Festival Nacional de Teatro de Bolso de Brasília,
nos rodeiam e, no caso do Brasil atual, nós, dramaturgos
MOSTR A — 19 DE SETEMBRO, 19H

onde conquistou a categoria de Melhor Ator, além da indi-


e artistas de um modo geral, precisamos estar atentos
cação para Melhor Direção.
e fortes para o cenário de intolerância e fomentação do
medo e do ódio. Por isso, estou cada vez mais interessado
TR AJETÓRIAS em falar a partir de um contraponto, ou seja, se vivemos
sob o império do ódio, estou afim de falar do amor, das
Minha relação com a escrita vem desde adolescente, possibilidades do encontro com o outro e de como é pos-
quando comecei a ler poesia e aquilo, por algum motivo, sível pensar possibilidades melhor de convivência nesse
abriu falanges em meu pensamento. Entendi ali, ado- mundo cada vez mais cruel e desumano. Acredito que a
lescente cheio de sonhos, que a poesia podia – e pode escrita, como disse, pode fazer perguntas que mudem
– mudar o mundo, ao menos, alguma espécie de mundo. essa relação estabelecida.
De leitor, passei a querer fazer parte daquilo, queria e

32
necessitava escrever algo meu. Foi assim que comecei:
em um processo intuitivo, a rabiscar os cadernos da escola
enquanto não prestava atenção nas aulas de Matemática.
Hoje sou um completo analfabeto no mundo dos números,
mas julgo saber algo do mundo da escrita. O que eu tenho
pensado sobre a dramaturgia? Eu penso que a dramaturgia
é capaz de captar, realizar perguntas que sejam capazes

FISTEE – Não achei que você me responderia.

FISTER – Por quê?

FISTEE – Achei que não fazia o seu tipo.

FISTER – E não faz mesmo.

FISTEE – Então por que estou aqui?

FISTER – Por que você é feio. Desculpe dizer


assim sem rodeios, mas é verdade. E se nunca
te disseram, estou dizendo agora, mas se nunca
te disseram é impossível que você nunca tenha
percebido. É impossível que você nunca tenha
notado que a ausência de rotatividade em sua
cama, ou mesmo a frequência com que se deita
na cama de estranhos seja tão baixa e você
acredite que isso seja apenas uma escolha sua.
O que te resta é achar bonita a solidão. E com o
tempo a gente aprende até a gostar dela. Dizem
que toda vez que alguém aceita a solidão nasce
um poeta. Brincadeira, tô zoando. Mas você
concorda que a poesia é feita por gente solitária
e estranha? Gente tipo você. Gente feia.

divulgação
PEQUENO TRATADO
em afirmação, brechas e lutas que rasga o instituído e
vislumbra fabular outras imagens, outras narrativas,
estabelecendo um lugar de enunciação que me permita

AMOROSO
criar rupturas, abrir frestas num pensamento colonizado.

PROCESSOS

Me propus a delicada e complexa tarefa de pensar uma


escrita performática, composta por fragmentos de gêne-
ros textuais diferentes que, articulados ao pensamento
do que se tem denominado arte contemporânea negra e
Anderson Feliciano também considerando reflexões referentes a represen-
(Belo Horizonte/MG) tação do corpo negro, suas subjetividades, particulari-
dades e multiplicidades, fosse capaz de criar uma obra
onde me crio e recrio como objeto de arte.

E, no entanto, nos momentos em que, desavisados, con-


seguimos suportá-lo, descobrimos com certo alívio que,
CONTE XTOS
do convívio desencontrado dessas figuras, destila-se já
Acredito ser imprescindível a uma dramaturga/o estar
uma nova suavidade. (Suely Rolnik)
atento e sensível ao contexto em que vive. Assim como
Nina Simone, penso que artistas devam pensar sobre seu
ANDERSON FELICIANO é performer e dramaturgo. É também
tempo. O contexto social e político brasileiro atual impacta
curador assistente do Festival Internacional de Teatro
violentamente meu trabalho como sempre impactou,
de Belo Horizonte / 2018 e da Mostra Polifônica Negra.
o racismo estrutural que sempre insistiu em nos invisibi-
Coordena em Buenos Aires o Laboratório de Experimentos
lizar de forma violenta ainda mantém suas bases firmes.
Performáticos. Mestrando em Dramaturgia (UNA), tem
É inevitável não pensar nessas questões, são elas que
escrito para artistas do Brasil, Argentina, Chile, Colômbia,
nos atravessam e produzem subjetividades. E são essas
Equador e Itália. Como performer participou de festivais
subjetividades elaboradas esteticamente que podem,
por vários países da América Latina. Em 2017 ganhou o
devagar, devagarinho, contribuir para a reconfiguração
Prêmio Leda Maria Martins de melhor performance pela
do comum ou da redistribuição da violência como aponta
obra Apologia III. É autor dos livros infantis: A Verdadeira
Jota Mombaça.
História do Saci Pererê (2009) e Era Uma Vez em Pasárgada
(2011).

TR AJETÓRIAS

Era verão de 2014 quando cheguei à Buenos Aires,


depois de uma longa viagem pela América Latina, decidi
instalar-me na cidade da fúria. Desenvolver um mes-
trado em Dramaturgia num país que não conhecia trazia,
além daquele medo inerente ao novo, a expectativa de
inventar uma obra que dialogasse com essa experiência.
Sem conhecer ninguém na cidade, minha primeira grande
companheira foi a Lemebel, minha bicicleta. Com ela,
as ruas longas e planas serviam de refúgio para momen-
MOSTR A — 19 DE SETEMBRO, 19H

tos de angústia. Sentir o vento no rosto me trazia mui-


tas memórias e perguntas. De que forma elaborar uma
poética que traduza essas memórias? Como pensá-las
esteticamente? Como pensar essas memórias para além
de “representar um conflito”? Sem me dar conta, meu
quarto se transformava no que, tempos depois, nomeei
de Laboratório de Experimentos Performáticos. No meu
quarto/laboratório, como um alquimista, buscava fórmulas
de mesclar a escrita dramatúrgica com outras linguagens
artísticas na expectativa de materializar essa experiência.
Trabalhá-las esteticamente tornou-se meu desafio.

34
Como proposta de conclusão do mestrado em Dramaturgia,
busco associar dramaturgia à metáfora do tropeço.
Nela concebo Tropeço como ressignificação poética
de uma fragilidade que não é fraqueza. Nesse sentido,
o conceito sugere o pensar sobre os devires negros que
sustentam esse tropeço com a constituição de um corpo

E aquele menino que saiu correndo e deixou
a bicicleta pra trás, voltará. Voltará caminhando
tranquilamente sem medo do escuro e da
imensidão da rua. A bicicleta estará lá, caída no
chão molhado pela chuva. O menino ficará feliz
e com o coração acelerado vai sorrir.
Não sei se coração de criança é menor, mas
isso não importa agora. O coração dele, de
menino, vai bater acelerado e ele vai tirar os
sapatos e também vai molhar a sola dos pés até
o coração dele bater tranquilo. O cheiro de terra
molhada fará com que ele feche os olhos e
fique ali parado em frente a bicicleta por alguns
segundos. Quem passar por ele acreditará que
aquilo não faz o menor sentido. Mas sim.
Tudo ali faz sentido. E se não fizer, tudo bem.
A gente continua andando de mãos dadas.

foto Lucas Bois


10 DE OUTUBRO
OSMARINA
PERNAMBUCO NÃO
CONSEGUE ESQUECER
Keli Freitas
(Rio de Janeiro/RJ)

+
CRIATURA
Raysner de Paula
(Belo Horizonte/MG)

BATE-PAPO COM OS AUTORES

MEDIAÇÃO: LUCIANA ROMAGNOLLI

DEBATEDOR CONVIDAD0:

GUILHERME MORAIS é multiartista e estudioso do corpo.


Criador da plataforma multicultural This is noT (2011), na qual
investiga possíveis cruzes entre arte, cultura e sociedade, em
parceria com outros artistas de diferentes áreas, tendo como
ponto de partida relações entre o corpo e a cidade.

ESCRITA DE CRÍTICAS

TATIANA CARVALHO DA COSTA é realizadora audiovisual e


integra o movimento SegundaPRETA. Mestre em Comunicação
Social, é docente no Centro Universitário UNA nos cursos de
Cinema e Jornalismo. Coautora dos livros Olhares contemporâneos
(2013) e Mulheres comunicam: mediações, sociedade e feminismos (2016).

VICTOR GUIMARÃES é crítico de cinema na Cinética e de


teatro no Horizonte da Cena. Colaborou com publicações como
Senses of Cinema (Austrália), La Furia Umana (Itália), Desistfilm
(Peru) e El Agente Cine (Chile). Doutorando em Comunicação
Social pela UFMG, com passagem pela Université Sorbonne
Nouvelle - Paris 3.
OSMARINA
alguns diários da avó (ele nunca os tinha lido, não conhecia
seu conteúdo), começamos uma saga de tentativas para
entender como poderíamos transformar isso juntos em

PERNAMBUCO NÃO
uma peça de teatro. Convidamos artistas amigas a colabo-
rarem, fomos muitas vezes para a sala de ensaio. Por mais
que estivesse conscientemente escrevendo para o Alex,
querer contar a história de Maria Félix tornou-se parte

CONSEGUE ESQUECER
significativa da minha vida. A certa altura eu finalmente
compreendi que essa relação não poderia estar ausente
do texto, porque eu já havia perdido há muito a minha
imparcialidade documental. Foi só então que foi possível
Keli Freitas escrever; quando consegui escrever, ao mesmo tempo,
para o Alex, para mim, para quem quer que seja.
(Rio de Janeiro/RJ)
CONTE XTOS

Ao encontrar alguns dos diários escritos por uma bra- O nosso contexto impacta tudo, e não deve parar tão cedo
sileira nascida em 1919, uma pessoa decide que não irá de impactar tudo. Acho que escrevemos para tentar falar
esquecê-la. sobre isso. Não sei dizer como o teatro pode interferir
de volta no contexto, porque uma característica basilar
KELI FREITAS (1983) é atriz e dramaturga. Colecionadora desse contexto é que cada vez menos gente tem acesso
de correspondências de anônimos, é criadora do Projeto à cultura. Não desistir de pensar e de fazer teatro é, por
Carimbaria. Como pesquisadora da escrita ordinária enquanto, a minha única resposta possível.
cotidiana desenvolveu trabalhos como Museu Particular
de Esquecimentos Privados (contemplado com a Bolsa
Faperj de Estímulo à Criação, Experimentação e Pesquisa
Artística 2016) e Correspondência e Diário – Rastreando
Escritas Literárias, premiado como melhor trabalho de
Iniciação Científica do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio 2017. Como atriz, trabalhou com
os diretores Aderbal Freire-Filho, Enrique Diaz, João
Fonseca, Pedro Brício, Jefferson Miranda, Paulo de
Moraes, Cristina Moura, Antônio Abujamra, Dani Lima,
Tiago Rodrigues (Portugal), Lola Arias (Argentina).
Indicada ao prêmio Cesgranrio 2015 de Melhor Texto
Nacional Inédito por Consertam-se Imóveis, é graduanda
em Letras pela PUC-Rio/Universidade de Lisboa.

TR AJETÓRIAS

A minha história com a escrita tem a ver com a criação


desta peça, porque esta foi a primeira peça que eu idealizei,
que decidi que escreveria. Isso foi mais ou menos em 2012
e, como a vida tem as suas maneiras, acabei escrevendo
7 peças antes desta e nunca conseguindo escrever esta.
MOSTR A — 10 DE OUTUBRO, 19H

Muitos fatores contribuíram para que fosse assim, mas


acho que o mais relevante era: eu não sabia o que fazer
com estes diários. Eu sou lenta, e me permiti fazer esta
peça com lentidão. Fui fazer outras coisas. Fui estudar.
Fui pensar. Tive que dar muita volta para permanecer no
mesmo lugar, com a mesma pergunta, deixá-la viva, não
desistir dela. Pensar a dramaturgia e pensar a vida não
são coisas diferentes para mim. É por isso que é tão difícil.

PROCESSOS

38
Por ser escrito a partir dos diários reais de uma mulher
real, e ser escrito para um ator específico, as questões
acerca da criação desse texto sempre tocaram em muitos
questionamentos que não só os artísticos. Esta mulher
real chama-se Maria Félix, e este ator específico é o neto
dela, Alexandre Pinheiro. Desde que o Alex me confiou

A primeira vez que li um diário de Osmarina
Pernambuco, lembrei-me daquela que ficou
conhecida como a mulher que não consegue
esquecer. Assisti a uma reportagem sobre ela
na televisão, e nunca mais a esqueci.

A mulher que não consegue esquecer chama-se


Jill Price.

Americana nascida em 1965, Jill Price entrou


para a história da neurociência como o primeiro
ser humano desprovido da capacidade de
esquecer. Não é nenhum gênio da matemática
ou da física, registra funcionamento normal
de todos os outros aspectos do seu intelecto,
exceto este: é capaz de lembrar, em detalhes,
cada momento de cada dia que viveu.

Por isso, é claro que quando li pela primeira vez


um diário de Osmarina Pernambuco, pensei
em Jill Price, assim como já não posso me
lembrar de Jill Price sem pensar nos diários de
Osmarina Pernambuco.

Osmarina Pernambuco não tinha nenhuma sín-


drome rara da memória, mas escreveu diários a
sua vida inteira.

A sua vida inteira, Osmarina Pernambuco escre-


veu em diários.

Uma mulher comum, na casa dela, uma pessoa


que, à partida, não tem um dia a dia assim tão,
não tem um dia a dia tão interessante, mas
consegue, tem vontade, tem coragem de relatar
esse dia a dia. Relata esse dia a dia.

Preciso comprar laranjas

Preciso comprar bananas

Preciso comprar laranjas e bananas

Todo sábado eu vou à feira de Honório Gurgel


comprar laranjas bananas peixe

Eu gosto muito de peixe

Laranjas bananas peixe

Chega em casa preparo o almoço e depois do


almoço descasco as laranjas

Cada filho meu ganha uma laranja

E é bonitinho, fica uma fila de crianças, cada


uma à espera da sua laranja

E eu as descasco quase com perfeição, as


laranjas

Quase como se fosse uma tira só de laranja

Eu costumo cortar com a faca uma tampinha

Então as crianças quase que abrem a laranja,


costumam geralmente chupar primeiro a tampi-
nha e depois a outra parte da laranja

foto Elisa Mendes


CRIATURA PROCESSOS

Tenho convivido e criado teatro com o ator Eduardo


Moreira desde 2014, quando escrevi o texto do espetá-
culo Ópera de Sabão (do grupo Maria Cutia, cuja direção
é assinada pelo Eduardo). Naquele mesmo ano, depois
dele ler na Janela de Dramaturgia o meu texto A menina
de lá, realizamos em 2016 a montagem dessa peça que
passou a ser chamar Danação. Nesse tempo, Eduardo me
contou da sua vontade de atuar em uma peça com a sua
filha, Bárbara Luz, e me convidou a pensar/escrever uma
Raysner de Paula dramaturgia para esse encontro. Desde então, já arris-
quei alguns começos, elaborei algumas ideias, brinquei
(Belo Horizonte/MG) com as formas, cheguei a alguns argumentos, mas nada
pareceu ter força para ir adiante até que me deparei com
uma série de reportagens sobre o 200º aniversário da
obra Frankenstein, da escritora Mary Shelley. Ao lê-las,
No interior dessa peça, habita uma jovem, ainda que
passeei por diversos universos cujo cerne também é
contra a sua vontade. No entanto, por mais que se mova,
habitado por figuras monstruosas (tais como O médico e
confabule, almeje estar do lado de fora, se indigne e aja,
o monstro, de Robert Louis Stevenson; O homem elefante,
permanecerá ali, confinada com aquilo que ela não sabe
de David Lynch; e o próprio conto de fadas A bela e a fera).
dar um nome, nem compreender suas formas, sua exis-
Foi fazendo esse percurso que imaginei a situação-chave
tência, sua presença e, tão pouco, o elo invisível que a
de CRIATURA: o confinamento e a convivência de uma
mantém ligada, dia após dia, a essa Criatura.
jovem e uma criatura desumanizada. Para criar o texto,
tenho me alimentado principalmente das imagens vis-
RAYSNER DE PAULA é dramaturgo, ator e professor de
lumbradas ao confabular os conflitos e situações (im)
teatro. É um dos fundadores do “Mamãe tá na plateia”,
possíveis desse convívio (amor x ódio; cuidado x repulsa;
grupo com o qual estreou seu primeiro trabalho como
humano x desumano) e também do tensionamento das
dramaturgo, em 2012. Também tem desenvolvido trabalhos
camadas simbólicas alcançadas por essa situação-chave.
como dramaturgo com outros artistas e coletivos: assinou
o texto de Danação (solo de Eduardo Moreira, do grupo
Galpão); Janeiros, peça da Cia. Carroça de Mamulengos; CONTE XTOS
Receitas para não morrer de amor, dirigido por Ângela
Mourão e Ópera de Sabão, do grupo Maria Cutia (que Como eu disse na primeira pergunta, acho que estamos
recebeu, em 2017, o prêmio de “Melhor texto original”, na vivendo um tempo de certezas e verdades demais. Acho
premiação promovida pelo SINPARC/Copasa). Coordenou, não: eis a invenção da “pós-verdade”, que não me deixa
junto com Vinícius Souza, o Laboratório de Dramaturgia mentir. Então, quando eu me coloco no movimento de
Infantojuvenil, em 2017, promovido pelo SESC-MG. escrita, mergulhado nessa experiência que é viver em
Seu texto João e Maria foi um dos vencedores do prê- 2018, só posso acreditar e almejar um teatro que seja
mio “Jovens Dramaturgos”, concurso promovido pelo o oposto dessa falta de perspectiva, esperança, utopia
SESC-RJ, na edição 2013. – que se apresente como alternativa a essas palavras
cansadas que amargam nossas vidas, nos embrutece e
arranca a nossa capacidade de imaginar (e concretizar)
TR AJETÓRIAS outras formas – mais justas e solidárias – de estar no
mundo. Acreditar que a imaginação é revolucionária é
Assumir a dramaturgia como ofício foi um dos aconte-
a minha forma de habitar esse tempo como quem luta
cimentos mais determinantes da minha vida: vinha de
numa revolução: o que eu posso oferecer com o meu tra-
MOSTR A — 10 DE OUTUBRO, 19H

menino o desejo de contar histórias e, no Teatro, encon-


balho, então, é um pressuposto para nos encontrarmos
trei esse lugar potente e revolucionário onde eu poderia
e imaginarmos juntos. Li dia desses uma tirinha que diz
viver inventando mundos, formas, palavras, convívios,
muito dessa minha bandeira. Nela, um dos personagens
criaturas e narrativas. Teria a possibilidade também de
se perguntava: “o que faremos agora?”, ao que outro res-
remodelar as percepções do tempo e do espaço – criar
pondia: “Poesia! Esses canalhas não suportam poesia”.
lacunas, confabular silêncios – supor, por em xeque,
Não suportam mesmo todos os dribles que a linguagem
distorcer – sonhar concretamente. Tenho como norte a
consegue inventar. Então, driblemos com a linguagem
ficção. Gosto de escrever como quem propõe um passeio
esses podres poderes que nos querem cada vez mais
por esse infinito de possibilidades, inclusive de formas.
anêmicos de vida e de sonho.
Acho que assim eu invento um teatro com menos certezas
em meio a essa avalanche de verdades demais. Uma das

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primeiras coisas que adotei nessa profissão foi o hábito
de escrever e logo mostrar para alguém. Com isso, fui
encontrando pessoas interessadas em concretizar ideias
teatrais junto comigo. Numa dessas, surgiu essa peça,
Criatura, escrita especialmente para os artistas Bárbara
Luz e Eduardo Moreira.

Um silvo da chaleira.

escuta

eu sei que você está aí

acordado

como ontem, como antes de ontem, como


sempre esteve

espreitando

cada passo, cada gesto, tudo de mim.

pois bem:

hoje não tenho história nenhuma

estão todas contadas

a última delas foi aquela de ontem

(...)

e agora

é isso.

resta só isso

essa coisa que somos

e o que nos passa

aqui e agora.

Outro silvo: não mais o da chaleira – outro. nascido na


profundeza da cena. vem de um corpo feroz, desumano,
contrariado.

foto Higor Martins


14 DE NOVEMBRO
DISRITMIA
Camila Bauer
(Porto Alegre/RS)

+
FÁBULAS
Luciana Campos
(Belo Horizonte/MG)

BATE-PAPO COM AS AUTOR AS

MEDIAÇÃO: LUCIANA ROMAGNOLLI

DEBATEDORA CONVIDADA:

ELEN DE MEDEIROS é professora de Literatura e Teatro na


Faculdade de Letras da UFMG. Suas pesquisas são voltadas às
dramaturgias brasileiras modernas e contemporâneas.

ESCRITA DE CRÍTICAS

MARIO ROSA é professor, pesquisador, dramaturgo e crítico


teatral. Graduado em História (FAFICH-UFMG) e mestre em arte
e educação (FaE-UFMG), escreve como crítico convidado para o
site Horizonte da Cena e integra o projeto SegundaPRETA.

SORAYA MARTINS é doutoranda em Literaturas de Língua


Portuguesa, mestre em Estudos Literários, graduada em Letras
e atriz. Desde 2015 pesquisa o teatro negro brasileiro. Escreve
críticas para o SegundaPRETA e para o Horizonte da Cena. É uma
das curadoras do Festival Internacional de Teatro Palco e Rua
FIT-BH 2018.
DISRITMIA
vem me instigando de modo particular. No nosso coletivo,
o Projeto GOMPA, estamos pesquisando e construindo espe-
táculos nos quais, às vezes, a instalação gera a dramaturgia,
que também pode emergir de uma música ou sequência core-
ográfica. A palavra pensada não só como ponto de partida e
disparador de criação, mas também como algo que resulta
da articulação entre outros signos cênicos.

PROCESSOS

Em DISRITMIA eu parto de uma performance que fizemos


Camila Bauer intitulada Orgânicos (que depois virou fotoperformance,
(Porto Alegre/RS) realizando exposições em POA). Tratava-se de dois ato-
res que interagiam em silêncio, enquanto seus rostos iam
sendo modificados por argila, tinta, pedra, folhas, serragem.
Naquele momento nos inspiramos nas obras de alguns
DISRITMIA é um ensaio sobre a perda das pulsões. A peça artistas visuais para compor uma linguagem dramatúrgica
parte da questão: o que nossos silêncios diriam sobre na qual estas duas figuras pudessem se comunicar e intera-
nossas pulsões se pudessem falar. O silêncio como lugar gir sem o uso de palavras, transformando em imagens o que
que guarda as violências e atrocidades que nos acometem as figuras não conseguiam verbalizar. O que eles se diriam
diariamente, mas que guarda também nossos segredos e se conseguissem falar, é meu ponto de partida. Parto da
sonhos, o que nos impulsiona a seguir, apesar de. A perda estrutura do silêncio para construir pequenos monólogos e
do pulso ocorre devido à desmotivação do coração em diálogos que poderiam ser ditos por aquelas pessoas, dando
bater. Isso sucede cada vez que o ser humano perde a voz às violências que sofremos diariamente e que nos fazem
conexão consigo ou com outro ser humano. O coração silenciar. Quero refletir sobre como essas violências afetam
para por alguns instantes porque precisa ser lembrado da nossas pulsões e nossa vontade de viver. No coletivo vie-
sua razão de existir. Às vezes, o coração silencia demais. mos há um tempo abordando a questão da violência contra
a mulher como mote central, impregnado das outras tantas
CAMILA BAUER é encenadora, dramaturga e professora violências. Sempre nos perguntamos como encontrar ener-
de teoria teatral e dramaturgia no Departamento de Arte gia e pulsão pra seguir em meio a tudo isso. Neste texto,
Dramática – UFRGS. Dirige o coletivo Projeto GOMPA, quero investigar como – do ponto de vista formal – posso
com o qual criou espetáculos como Inimigos na Casa de estruturar uma dramaturgia a partir de um trabalho prévio
Bonecas (2018 – vencedor do Prêmio Internacional Ibsen feito sobre o silêncio, como gerar palavras a partir do não
Awards), Chapeuzinho Vermelho (texto de Joël Pommerat, dito e como, a partir do texto, este silêncio pode ser em
2017 – Troféu Tibicuera de Melhor Direção e Espetáculo), parte preenchido e ressignificado com questões que não
entre outros. Doutora em “Ciências do Espetáculo” pela estariam a princípio impressas nas imagens que o geraram,
Universidade de Sevilha e em “Informação e Comunicação: construindo contrastes e novas significações.
menção Artes da Cena” pela Universidade Livre de Bruxelas
(2010), com estâncias na Espanha, França, Grécia e Bélgica.
Encenou e escreveu diferentes espetáculos de teatro, dança
CONTE XTOS
e ópera, em países como Espanha, México, Grécia e Brasil.
Tem sido impossível pra mim falar de algo que não esteja
relacionado ao que está acontecendo no Brasil hoje.
TR AJETÓRIAS O contexto impacta na nossa forma de falar, de escutar,
de nos sentirmos ou não ouvidos, contemplados ou não
A dramaturgia está presente na minha vida como docente em diferentes discursos; impacta na nossa dificuldade
MOSTR A — 14 DE NOVEMBRO, 19H

e encenadora. Penso muito na dramaturgia em campo de manter a esperança, na desigualdade social que é
expandido, na dramaturgia que dialoga inteiramente com assoladora no Brasil. Tudo isso acaba aparecendo na
a cena. Meus últimos textos têm sido escritos em processo nossa criação. Este ano fizemos uma adaptação de duas
colaborativo, a partir de contribuições do elenco e de mate- obras do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen ao contexto
riais diversos que têm me tocado de alguma maneira. Tenho brasileiro (Uma Casa de Bonecas e O Inimigo do Povo).
pensado muito nas relações entre a dramaturgia, a cena e A peça chama-se Inimigos na Casa de Bonecas, que é
o mundo real. Não no sentido de um teatro documentário, exatamente sobre o Brasil pós-impeachment e a situação
mas como tudo o que está acontecendo nos afeta e como de mulheres e negros nesse contexto. Foi nossa forma
pode ser pensado e dito em cena. Tenho me debruçado no de nos posicionarmos, esteticamente. Acredito muito no
“como” da escrita, mais do que nos temas ou histórias. lugar do teatro como um espaço onde estas reflexões
A forma vem sendo uma questão fundamental pra mim. Como podem emergir, como o lugar da dúvida. Não é um lugar

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a dramaturgia pode gerar desafios à encenação e vice-versa, de moralidade, mas de ética, lugar de uma estética que
ou, como construir a dramaturgia da encenação pensando no surge aliada a questões éticas e existenciais. O teatro
lugar da palavra que se desenha ao mesmo tempo em que os como disparador de sensações e reflexões, disparador
outros signos vão sendo construídos. Venho pensando muito de processos singulares e de questionamentos. A aber-
o lugar da dramaturgia na dança, na ópera, nos musicais, tura a estes processos pode ser transformadora. É neste
nas instalações e exposições. Esse lugar de cruzamento lugar que o tipo de teatro que busco pode agir, no lugar
da escrita com outras possibilidades artísticas e estéticas do encontro, da dúvida, da complexidade.

Trago a história do meu pai em mim, a história
da vida que abandonei depois de anos de
tentativa. Guerra atrás de guerra. Eu cresci em
uma família que me ensinou a diferença entre
o certo e o errado, a diferença entre dar e rece-
ber, a diferença entre homem e mulher, entre
rico e pobre, entre feio e belo. Mas daí um dia
veio a guerra e me ensinou que tudo isso não
existia. Morreram todos. Bem, quase todos.
Eu sobrevivi. Pausa. Eu e meu pai. Que é,
depois de mim mesmo, a pessoa que eu mais
odeio no mundo. Ele, que me deu a vida, tentou
tirá-la de mim. Para dá-la a outro. A ela.
Ele queria doar pedaços meus, partes do meu
corpo, por dinheiro, por amor. Mas daí, veio a
guerra e mudou tudo, os barcos foram atacados
e, bom, enfim.

Corta.

Silêncio.

Ruídos.
Silêncio.

CENA 3

Sim, eu caminhava na rua e num dado


momento eu o encontrei. Sim, de fato eu o
encontrei, subitamente, na rua. Eu caminhava,
como faço todos os dias, e ele, ele apareceu pra
mim, assim, subitamente, na minha frente.
E eu me pergunto, como eu posso seguir com a
minha vida, assim, normalmente, agora que eu,
eu o vi. Sim, eu o vi, assim, bem perto de mim,
de fato, bem perto de mim, na rua. E como eu
posso seguir, agora que eu o encontrei. Bom,
enfim, não ele assim, como a gente imagina,
às vezes, mas enfim, uma de suas faces, na ver-
dade. Porque ele, ele tem muitas faces, vocês
sabem né. Uma face para cada um de nós e
eu, eu encontrei a minha face. E agora que eu
a encontrei, eu não sei como seguir. Porque
agora eu sei que ele existe porque eu o vi. E eu
sei onde ele mora. E é bem perto daqui, na ver-
dade. E se acabou o mistério. Mas ele me disse
coisas contraditórias, bem bem contraditórias.
Ele me disse, por exemplo, que ele não existia,
que era coisa da nossa cabeça isso tudo e que,
enfim, que ele não existia. Não é contraditório,
alguém que você nunca viu mas acreditava que
existia aparecer na sua frente e dizer na sua
cara que não existe? Eu achei contraditório e
depois disso eu não sei bem como seguir.

foto Adri
FÁBULAS PROCESSOS

Desde o início, me vi instigada a dialogar com questões


do nosso tempo, que constantemente vemos mas que não
são noticiadas, às vezes, sequer são ditas. Então, quis falar
sobre a guerra, sobre morte e sobre vida, elementos que
estão aí (e que são a própria vida) e que modificam por
completo nossas existências. Mesmo reconhecendo a
amplitude do assunto e, embora o tema seja constante-
mente tratado a partir de um outro lugar, distante, isto é,
no âmbito e nos salões de tomada de decisão, aqueles que
Luciana Campos a vivenciam diariamente nunca são ouvidos. Quis dar um
pouco de voz a eles. Nasceu, então, o enredo e as perso-
(Belo Horizonte/MG) nagens; decorre daí também a escolha pelos monólogos,
para que elas pudessem falar, sem que seus discursos,
percepções, sentimentos e memórias pudessem ser alte-
rados, manipulados ou silenciados.
Três personagens, em três momentos distintos de suas
vidas. O mesmo evento atravessa suas vidas: a guerra.
Estabelecendo o público como interlocutor, as persona- CONTE XTOS
gens narram suas experiências.
Acredito que o contexto social e político brasileiro atual
LUCIANA CAMPOS é natural de São José do Rio Preto, SP. impacta profundamente em meu trabalho. É o atual estado
Possui formação em Letras pela Universidade Estadual de coisas que me impulsiona ainda mais a pensar sobre
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e atualmente cursa dramaturgia, a forma como estamos passando por tudo,
Ciências do Estado na Universidade Federal de Minas a construção de narrativas que emergem e se chocam
Gerais. Atuou como professora e produtora cultural. com a dura realidade na qual estamos imersos e a forma
Atualmente trabalha como redatora e revisora. Integra o como essas tensões e problemas são pensados no âmbito
coletivo de poesia Nós, de versos. Cursou Dramaturgia no da cena. Para mim, o papel do dramaturgo é esse tam-
Galpão Cine Horto em 2017 e desde então vem estudando bém: refletir, pensar e criticar sobre o mundo em que vive.
e pesquisando procedimentos para a escrita de novos E, a partir disso, criar formas para sua expressão. De igual
textos teatrais. modo, penso que ao olhar a realidade e o contexto em que
vivo sou instigada a criar textos que, de alguma forma,
recriem e critiquem a nossa (triste) realidade.
TR AJETÓRIAS

A minha história com a escrita é um pouco antiga,


da época de minha graduação em Letras, embora eu tenha
resistido um pouco quanto à criação ficcional. Isso porque
o curso que fiz priorizava uma formação para a análise
do texto, não para a sua elaboração e criação no que se
refere a seus aspectos artísticos. Olhávamos para um
texto e, de imediato, estabelecíamos uma outra relação:
a de distanciamento, de contemplação, nunca de inquie-
tação para nos colocarmos no lugar do escritor, criando
textos. Foi preciso tempo e um certo distanciamento para
que eu começasse a pensar na possibilidade de escrever
MOSTR A — 14 DE NOVEMBRO, 19H

esse tipo de texto. Então, isso só ocorreu muito mais tarde,


quando ingressei no Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia
do Galpão Cine Horto, sob coordenação do Vinícius Souza.
Lá, comecei a entrar em contato com pessoas que também
criavam e que mantêm uma outra relação com o texto e
com a escrita, o que me estimulou a produzir também.

Tenho pensado que a dramaturgia ainda é um lugar de


resistência, de risco e de entrega, tão necessários nesse
momento histórico em que vivemos. Penso que as formas
devem, de alguma forma, dialogar com questões que atra-

46
vessamos, sejam as de ordem pessoal (a sobrevivência
do sujeito em um mundo cada vez mais atomizado, que
exige muita produtividade) quanto as de ordem mais
geral, sobretudo política. Acredito que as experimen-
tações estéticas – tanto no âmbito da cena quanto no
texto – devem ser cada vez mais exploradas e recriadas,
extrapolando os limites estabelecidos.

O NÃO-DEPOIS

Acabei encontrando um trecho de uma carta


que recebi semanas após ter ido à guerra. Era
de um amigo, o qual não me recordo o nome.
Mas suas palavras ainda parecem reais, pare-
cem se materializar diante de mim. Ele dizia
assim:

Lucas,

Nem tivemos tempo de nos despedir. Por isso lhe


escrevo, porque isso que tentam definir como tempo
nunca funcionou pra mim, como você sempre soube. Foi
pouco antes de você partir que decidi fazer essa carta. A
guerra acaba com o que somos. Ou com o que queremos
ser. Tente continuar, porque é isso que fazemos, todos
os dias. Estou escrevendo uma peça, queria dividir com
você um trecho que ainda estou trabalhando, mas ainda é
dúvida pra mim. Leia e me responda o que acha:

Amigos de longa data, José e Antônio sentam na beira


de um rio em um final de tarde. O sol já começava a se
esconder e uma barreira de silêncio ia se construindo
entre nós quando subitamente disse:

ANTÔNIO – O passado nunca termina.

JOSÉ – O quê? Não entendi…

ANTÔNIO – O passado vive em nós, é nosso presente.


Veja você, às voltas com essa história. Nem o que se
quer esquecer termina. Apenas um fio que resgatamos
e ele volta cada vez maior, com nova roupa, polido. E vai
tomando conta de tudo.

JOSÉ – Irremediável…

ANTÔNIO – E a morte?

JOSÉ – A morte ainda me parece inconciliável.

ANTÔNIO – Essas perguntas brotam em mim, como rosas


que desabrocham em meus pesadelos noturnos.

p.s. ainda não sei como darei sequência a este diálogo,


mas ele de alguma forma me incomoda. Depois me
escreva, dizendo o que acha. Espero lê-lo em breve.

Pausa.

Fiquei com vocês nesse espaço de tempo para


tentar construir uma lembrança. Mas me reco-
lho agora. A experiência da vida é insuficiente.

divulgação
12 DE DEZEMBRO
OS BONS
COLONIZADORES
Pedro Vilela
(Recife/PE)

+
OBSTINADA NOITE
Assis Benevenuto
(Belo Horizonte/MG)

BATE-PAPO COM OS AUTORES

MEDIAÇÃO: LUCIANA ROMAGNOLLI

DEBATEDORA CONVIDADA:

LUDMILLA RAMALHO é performer, atriz, diretora e feminista.


Pós-graduada em Arte da Performance/FAV e graduada em
Teatro/UFMG. Atua como curadora e gestora de projetos de resi-
dências artísticas, núcleos de criação e atividades de formação.
É coidealizadora do Solo em Foco, Fórum de Fotoperformance e
Mostra Entre Fronteiras.

ESCRITA DE CRÍTICAS

JULIA GUIMARAES é pesquisadora, professora, crítica e jor-


nalista. Pós-doutoranda em Artes Cênicas na EBA/UFMG, onde
atua como professora colaboradora. Atuou como crítica nos
sites Horizonte da Cena (MG) e Teatrojornal (SP) e trabalhou nos jor-
nais O Tempo e Pampulha, como repórter e crítica de artes cênicas.

RICARDO ALEIXO é poeta, artista visual/sonoro, performador e


pesquisador das poéticas intermídia. Lançou recentemente, pela
editora Todavia, a antologia poética Pesado demais para a ventania e
prepara o volume de ensaios Uma poética da performance.
OS BONS PROCESSOS

A ideia inicial de investigação está ligada à história da

COLONIZADORES
colonização portuguesa e a persistência do silêncio acrí-
tico que prolonga o mito do bom colonizador. Certa vez
me deparei com alguns escritos da Marta Araújo e Sonia
Maeso, investigadoras do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra que falavam sobre a “institucio-
nalização do silêncio”, da “naturalização das relações de
poder e violência” e da “trivialização” no que se refere à
escravatura no ensino da história em Portugal.
Pedro Vilela
A ideia é investir sobre o ato de documentar, de construir
(Recife/PE) narrativas, pontos de vista, para uma mesma situação.
Tentarei analisar imagens, discursos que, em suas cria-
ções e reproduções, se tornam narrativas de contradições,
para assim, revelá-las aos espectadores/leitores, camada
PEDRO VILELA é gestor, diretor artístico e idealizador
a camada, criando reflexos comoventes do nosso mundo,
da TREMA! Plataforma de Teatro (PE). Atualmente é
desfocando os limites entre ficção e documentário, entre
mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Artes
imaginação e manipulação.
Cênicas da Universidade Federal da Bahia. Com o Grupo
Magiluth dirigiu os espetáculos O canto de Gregório, Luiz
Lua Gonzaga e Viúva, porém honesta. Em 2012 foi escolhido CONTE XTOS
entre 13 latino-americanos para integrar o WEYA – World
Event Young Artist –, encontro mundial de jovens criado- Recentemente, os brasileiros foram obrigados a ouvir, de
res em Nottingham-UK. No ano seguinte foi apontado pela um candidato à presidência da república, que não houve
revista especializada em teatro, Antro Positivo, como um escravidão no Brasil... fomos obrigados também a ouvir
dos principais encenadores do país. É também o curador que a ditadura brasileira não foi bem o que se conta.
do TREMA! Festival de Teatro e um dos coordenadores
editorial da TREMA! Revista de Teatro. Em 2017 estreou Nesta era da pós-verdade, pouco importa a veracidade
o solo Altíssimo, com dramaturgia de Alexandre Dal Farra. dos fatos que você conta, mas sim a maneira de dizê-los.
Este ano integrou a delegação brasileira no programa No campo social e político brasileiro esta “mentirinha”
Momentum promovido pelo British Council, em Edimburgo, do candidato que narrei acima, tem assumido dimensões
além de ter sido curador do Festival Nordestino de Teatro catastróficas, fruto de uma conta em aberto do nosso
de Guaramiranga. processo educacional.

Coisas que julgo parecer claras, evidentes, certamente


TR AJETÓRIAS podem não ter a mesma leitura para todas as pessoas.
Se eu chego para o eleitor do dito candidato, prontamente
Uai.... talvez seja bom eu começar dizendo que não sou
taxando-o de burro, acabou por ali a oportunidade de diá-
dramaturgo de ofício? Ou melhor, talvez esclarecer para
logo e esta é a urgência do nosso tempo, o diálogo.
mim mesmo que tenho desenvolvido, em minha trajetória,
diferentes procedimentos ligados a composição, mas
nunca formalizado a escrita dramatúrgica em minha vida?
Não sei bem... Quando era mais novo, costumava exercitar
a liberdade de enveredar por diferentes caminhos, sem
tanta preocupação com o resultado. Lá atrás, escrevia
MOSTR A — 12 DE DEZEMBRO, 19H

deliberadamente, remexia em textos com adaptações,


que ainda hoje acho bem interessante, mas que teimo em
mantê-las no baú. Nestes últimos anos, tenho procurado
novos desafios, que me desestabilize, como o de envere-
dar pelo pensamento crítico. Acabei também sendo convi-
dado pelo Sesc, para desenvolver o projeto Dramaturgias.
Nessa partilha de conhecimentos em diversos estados do
Brasil, precisei remontar minha trajetória em busca dos
diferentes dispositivos que, enquanto encenador, utilizei
para potencializar a composição dos atores no campo
dramatúrgico, dentro da sala de ensaio. Reforcei então

50
a ideia, talvez até simplória, de que tudo pode ser texto,
tudo pode ser discurso. Com o convite/desafio da Janela,
resolvi então assumir esta última partezinha, a de tentar
dar forma e assinar todas essas potências que poderão
surgir neste meu novo processo de construção. Sabe-se
Deus o que virá...
foto Bernardo Dantas
OBSTINADA NOITE
de ambas as partes. Mais do que contar algo, experienciar
algo. É o que busco com Obstinada Noite.

PROCESSOS

O que não vemos quando vemos? E por que não estamos


vendo quando vemos? Aquilo que vemos não é aquilo o
que vemos quando vemos? Como trazer para uma obra
outras vozes que não são as minhas? Eu estou me tor-
nando outro? Estamos? Como provocar o público a partir
do ato de estarmos juntos, antes de dizer o texto? Como
Assis Benevenuto o próprio público pode ser agente provocador a partir
(Belo Horizonte /MG) e durante a peça? O que é uma ideia de algo? O que da
vida vivemos apenas como ideia e o que vivemos de fato,
na experiência? Realizar algum sacrifício para provocar
deslocamento. Qual sacrifício? Qual provocação? E se eu
Uma obstinada ideia invadiu o meu ser. Matar os olhos. não disser nenhuma palavra?
Nesta noite, talvez eu tenha muito pouco a dizer. Mais
prudente será ouvir as vozes, as ideias do mundo. Disse um São muitas perguntas no processo de criação. Muitas
índio Yanomami que só começaremos a enxergar alguma vezes, elas entram na obra na forma de perguntas mesmo,
coisa quando não houver mais nada a ver. Aí poderemos em outras entram transformadas em imagens, em sons,
avaliar o que perdemos. ou de forma mais irracional, entram na forma de contato
com o público, outras entram como segredos. Outras não
ASSIS BENEVENUTO (1982) é dramaturgo, ator, diretor e entram, são expulsas.
editor. Integrante do Grupo Quatroloscinco Teatro do
Comum (BH). Graduado em Letras pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Realiza pós-graduação
CONTE XTOS
em dramaturgia na Universidade Nacional das Artes
O contexto social e político brasileiro é muito mais com-
(UNA, Buenos Aires-ARG). Formado pelo Curso Técnico
plexo do que parece ser. Neste exato momento existem,
de Teatro (CEFART) da Fundação Clóvis Salgado, Palácio
no Brasil, pessoas conversando em mais de 290 línguas, só
das Artes. É um dos criadores, coordenadores e editores
línguas indígenas são 274. Quantas línguas indígenas você
da Editora Javali, única editora brasileira que se dedica
fala? Agora, no Brasil, há pessoas milionárias, pessoas, na
exclusivamente à publicação de teatro.
maioria negros e índios, sendo assassinadas, pessoas rea-
lizando trabalho escravo, miseráveis... Quem somos nós
TR AJETÓRIAS nesse contexto? De onde eu grito, para onde eu grito, com
quem grito? Existem muitas camadas... Nos últimos anos
Foi durante o curso técnico de teatro que comecei a tive a possibilidade de me apresentar por quase todos os
estudar e produzir dramaturgia. Lendo peças, os clás- estados brasileiros, capitais e cidades do interior, onde,
sicos, fazendo adaptações dos textos para as cenas e às vezes, nem edifício teatral havia, e sair “de casa” tem
escrevendo cenas autorais. Durante a graduação tive aberto muito a minha percepção do contexto social e polí-
a oportunidade de estudar dramaturgia de forma mais tico do Brasil e de onde me encontro. O que me importa? O
profunda e problematizada, com atravessamentos polí- que te importa? Você, que está lendo agora, quem é você?
ticos e filosóficos, com a professora Sara Rojo. Fiz parte
da Uma Cia, especializada em pesquisar improvisação, Tudo isso interfere na forma de pensar e criar dramaturgia,
onde pude desenvolver uma consciência de jogo entre a as peças de teatro. Acredito que uma delas é de tentar
MOSTR A — 12 DE DEZEMBRO, 19H

atuação, a dramaturgia e a direção. Depois, entrei para escrever peças que abram espaço para descortinarmos
a formação do Grupo Quatroloscinco Teatro do Comum as ideias das coisas que estamos vendo (de como nos
que foi, e é até hoje, um lugar de grande aprendizado e ensinam a ver), que abram espaço para as diversidades,
experimentação para mim. A troca que existe entre nós que criem tensões no ato do encontro que é o teatro. Criar
me possibilita experimentar, conhecer, realizar diversas peças que exijam da presença do público, para além do
formas de dramaturgias. Nos últimos anos desenvolvi, jun- ato de ir ao teatro, ou seja, de alguma forma de exposição
tamente com o Vinícius Souza, os Ateliês de Dramaturgia do público. Acredito que isso é uma forma de provocar e
em Belo Horizonte. Inspirados em experiências realizadas dialogar com o contexto brasileiro.
em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, como os da
pesquisadora e dramaturga Adélia Nicolete. Além disso,
Vinícius e eu, criamos a Editora Javali, especializada em

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publicar teatro.

Pensar dramaturgia é pensar sobre muitas coisas. Algo


que tem me interessado, e tenho experimentado em alguns
trabalhos, é uma dramaturgia que propicie alguma experi-
ência em quem atue e quem assista, criar um jogo que exija
alguma ação, uma certa exposição e tomada de decisão

(...)

Primeiro recado dado.

Afasta-se das pessoas. Fala com o público em geral.

O que houve com ela? Ela! Ela não está bem.


Por que veio até aqui, então? Alguém sabe o
que houve com ela? Parece que ela levou um
murro. Um soco. Alguém te obrigou a vir aqui?
... Tem gente querendo ir embora deste país...
E por que não foi? ... Não! Não segure essa
vontade de urinar por tanto tempo... Anda, saia,
depois você volta. Tem gente aqui com a cons-
ciência pesada... tem gente aqui com a consci-
ência pesada porque traiu. Traiu! Voltou para
casa correndo e pensou: o que os olhos não
veem o coração não sente. Um ditado popular
para consolar o desejo. (ri) Talvez Tirésias nos
dissesse que o que os olhos não veem, o cora-
ção nu sente. Nu. O coração nu. Nu, o coração
sente. O coração nu, sem a mídia dos olhos.
Quando os olhos não veem é o coração que se
despe e, nu, ele sente.

Volta, tateando o público.

Agora eu não estou vendo vocês, mas estou


cheio de imagens dentro de mim. Muitas ima-
gens. Algumas são engraçadas. Outras me dão
medo. Ódio. Um sensação estranha. Outras me
dão interesse, me dão tesão! Eu poderia me
apaixonar por alguma dessas imagens. Beijar,
comer, odiar, adoecer, eu poderia viver com
alguns de vocês (Fala com alguém) Quem é você?
... Quem é você? ... Quem é você? ...

Não. Eu não sou cego. Não estou cego. Nem


represento um. Fechei os olhos para tentar ver
diferente, enxergar algo daquilo que não con-
sigo ver quando vejo.

Segundo recado dado.

foto Beatriz Goulart


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ENCERRAMENTO
20 DE DEZEMBRO,
ÀS 19H
LEITURA DE TEXTOS
ESTRANGEIROS
FAUNA
de Romina Paula

+
BOVARY
de Tiago Rodrigues

ENTRADA FRANCA
FAUNA BOVARY
Romina Paula Tiago Rodrigues
(Buenos Aires/AR) (Lisboa/PT)

Um diretor de cinema e uma atriz vão para o litoral investi- Retrato da vida de uma mulher que, buscando fugir ao tédio
gar o mito de Fauna, uma espécie de amazona, uma mulher de uma existência banal, embarca em relações adúlteras e
culta e selvagem, para fazer um filme sobre ela. Lá seus vive muito acima das suas possibilidades, Madame Bovary
filhos, Maria Luisa e Santos, serão responsáveis por acer- é hoje considerada a obra seminal do realismo e um dos
car-se da figura de sua mãe para que possam desenvolver marcos da literatura mundial. Publicado pela primeira vez
seu projeto. Então, os quatro personagens ensaiam cenas em fascículos na revista literária do século XIX, La Revue
para o filme e discutem sobre o que seria representável de Paris, o romance de Gustave Flaubert foi acolhido por
e sobre a veracidade das histórias, e a importância ou uma parte da sociedade francesa como um atentado à
não dessa verdade. Os personagens vão se descamando, boa moral cristã. Bastaram alguns meses depois da data
como se essa exposição à ficção, em vez de protegê-los, de sua publicação para que começasse o julgamento que
os expusesse. sentou o autor no banco dos réus, acusado de obsceni-
dade pelo Ministério Público. É deste episódio que parte
ROMINA PAULA é dramaturga, atriz, diretora, roteirista e o espetáculo BOVARY, de Tiago Rodrigues, caminhando
escritora. Nasceu em Buenos Aires, em 1979. Formada em em seguida para uma adaptação contemporânea da obra-
Dramaturgia pela Escola Metropolitana de Arte Dramática -prima Madame Bovary.
(EMAD – Buenos Aires). Como atriz se formou com
Alejandro Catalán, Ricardo Bartís e Pompeyo Audivert TIAGO RODRIGUES é ator, diretor, dramaturgo e produtor
e participou de distintas obras de teatro e cinema. teatral. Nascido em Lisboa, em 1977, foi diretor artístico
Como dramaturga e diretora estreou as obras Si te digo, da Mundo Perfeito, companhia criada em 2003 com a qual
muero, sobre textos de Héctor Viel Temperley (2005), desenvolveu mais de 30 peças, e desde 2014 é diretor
Algo de ruido hace (2007), El tiempo todo entero (2010), artístico do Teatro Nacional D. Maria II. É autor de textos
sobre O zoológico de cristal, de Tennessee Williams, representados em português, inglês e francês em cerca
e Fauna (2013) junto com a Companhia El Silencio. de 14 países da Europa, Oriente Médio e América do Sul.
Sua última obra, Cimarrón, estreou em 2016 na Sala Tacec Das suas obras destacam-se: Tristeza e Alegria na Vida
do Teatro Argentino de La Plata. A editora Entropía publi- das Girafas, considerada pela Time Out um dos melhores
cou suas obras Fauna, El tiempo todo entero e Algo de ruido espetáculos de 2011; Três dedos abaixo do joelho, dupla-
hace e seus romances ¿Vos me querés a mí?, Agosto e mente premiada na categoria de Melhor Espetáculo de
Acá todavía. Atualmente realiza Norte, seu primeiro filme Teatro 2012 pela SPA e pelos Globos de Ouro; e Bovary,
como autora e diretora, e Fernando Salem filmará uma distinguido pela crítica francesa com o Prêmio de Melhor
versão de seu romance Agosto, também em 2018. Criação de uma Peça em Língua Francesa, em 2016.
É ainda professor de teatro convidado em várias escolas
de artes europeias, destacando-se a escola de dança
contemporânea PARTS, dirigida pela coreógrafa Anne

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Teresa De Keersmaeker.
foto Valencia / divulgação
FICHA TÉCNICA Coordenação geral
Vinícius Souza

Curadoria nacional
Daniele Avila Small
e Vinícius Souza

Curadoria internacional
Marcio Abreu e
Vinícius Souza

Assessoria de
planejamento e gestão
Leonardo Lessa

Coordenação de
produção
Vinicius Santos
e Renan Camilo

Produção
incor.poro

Coordenação de crítica
Luciana Romagnolli

Coordenação técnica
Jésus Lataliza
Comunicação Agradecimentos
A Dupla Informação Ariel Farace, Anderson
Feliciano, Cris Moreira,
Identidade visual Filipe Costa, João
Estúdio Lampejo Emediato, Sara Pinheiro,
e Jade Marra Fabrício Lins, Thaís Souza
e todos que contribuíram
Tradução de textos de alguma forma para a
(Espanhol) realização desta edição.
Renan Camilo

Tradutora-Intérprete Janela de Dramaturgia


(Espanhol) é um projeto idealizado
Gabriela Figueiredo em 2012 por Sara
Pinheiro e Vinícius Souza.
Fotos
Athos Souza

Vídeos
Byron O’Neill

Gestão financeira
Vinicius Santos

Apoios
Salumeria Central,
Café com Letras e
Savassi Hotel
Mais detalhes da programação,
da ficha técnica das leituras e a
produção de textos críticos da
mostra podem ser acessados em:
www.janeladedramaturgia.com

Facebook e Instagram:
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Mais informações:
janeladedramaturgia2018@gmail.com

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