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Título: Da Representação à «Prixle»

Autor: José Barata-Moura

Capa: Ivone Ralha

Arranjo gráfico: Secção Gráfica


da Editorial Caminho
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© Editorial Caminho, SARL
Lisboa, 1986

Tiragem: 3000 exemplares

Composição e impressão: Guide - Artes Gráficas, Lda.

Data de impressão: Maio de 1986

Depósito legal n.* 10671/85


JOSÉ BARATA-MOURA
DA REPRESENTAÇÃO

À "PRÃXIS”
ITINERÁRIOS DO
IDEALISMO CONTEMPORÂNEO

CAMINHO
15 |coJeccõo universitária
O AUTOR

Licenciatura em Filosofia (1970), Doutoramento (1980), Agre­


gação (1985).
Professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa.
Publicou: Kant e o Conceito de Filosofia (1972), Da Redução das
Causas em Aristôteles (1973), Estética da Canção Política (1977),
Totalidade e Contradição (1977), Ideologia e Prática (1978), EPIS-
TEME. Perspectivas Gregas sobre o Saber. Heraclito — Platão — Aris-
tóteles (1979), Para uma Crítica da «Filosofia dos Vedores* (1982),
Da Representação à «Práxis» (1986).
No prelo: Ontologias da «Práxis* e Idealismo.
índice

INTRODUÇÃO .................................................................................. 13

POSIÇÃO CSE TZU N G ) E M A TERIALID AD E. H EID EG G ER


E A TESE D E K A N T SOBRE O SER ........................... 21

§ 1. Questionário, problemática, horizonte de supostos, crítica 23

§ 2. Da relação ser/pensar à questão da materialidade ou do


fundam ento objectivo do ser. O «ausente» que por
detrás do «manifesto» acaba por sempre estar «presente» 25

9 3. A pergunta pelo fundam ento da ligação entre pensar


e ser. D a cópula lógica à posição (Setzung) ontológica.
O ser 6 função de um a S e tz u n g ....................................... 28

9 4. A tese de K ant sobre o ser: não é predicado real, é


m eramente a posição absoluta de um a coisa. A irredu-
tibilidade da materialidade à co n sciên cia........................... 33

9 5. A interpretação heideggeriana: o ser não é nada de


«real». A depreciação do «em si mesmo» (da materiali­
dade). A «posição» por outrem. A Setzung na órbita
da representação ...................................................................... 37
§6. A interpretação heideggeriana: o carácter relacional
(e não absoluto) da «posição». O existente é função de
uma posição «que afecta os sentidos». A acção instaura-
dora originária. Fichte: a posição doNão-Eu ................. 42

§7. A ocultação da fundamentação material do ser. Posição,


proposição, «Verbindung». A mesmidade de pensar e ser,
encarada de umponto de vistaidealista........................... 47

§8. A investida de Heidegger contra a materialidade — in­


cógnita, mas necessária — em Kant. Articulação «ideal»
de forma e matéria no conhecer e exigência kantiana
de um suposto hilético na intuição sensível. A temática
heideggeriana da condição originária de possibilidade
do «ser» ............................................................................... 50

NOTAS.............................................................................................. 55

O CONCEITO DE «PRAXIS» PARA MERLEAU-PONTY... 67

I. Introdução................................................................................... 69

§ 1. Da ambiguidade e da sua ultrapassagem histórica pela


prática e pelo pensar. A mediação interrompida. A uni­
dade fluente da contradição e o emparelhamento de
contrários ............................................................................. 69

§ 2. Do conceito de «práxis» em Merleau-Ponty. Uma pre­


sença não centralmente tematizada. Vertentes e interlo­
cutores ................................................................................... 74

II. Práxis e constituição fenomendógica..................................... 77

§ 3. Intencionalidade e práxis. A dinâmica corporal e a pro-


jecção de uma espacialidade compreendida como Grund
da manifestação em geral. O «sistema prático» da espa­
cialidade ............................................................................. 77

§ 4. Constituição praxiológica ou comportamental de um


mundo, que não é imediatamente o do cognoscível (re-
presentável), mas o do operávcl (praticável). A proble­
mática do Ich kann. Do idealismo da teoria ao idea­
lismo da acção ..................................................................... 79

§5. A contraposição entre «representação» e «práxis». A de­


terminação do «práxico» segundo as dimensões do origi­
nário e do originante. O horizonte intersubjectivo da
linguagem e da comunicação ............................................. 83

§ 6. Da constituição no âmbito do conhecer representativo à


«practognosia» originária. Compreensão teórica e com­
preensão práxica do objecto ............................................ 87

§7. A manifestação de uma estrutura subjectiva com funções


instituintes. O corpo como «textura» e «instrumento» da
objectividade em geral e da sua compreensão. Do hori­
zonte do «conhecido» para o horizonte do «vivido» ... 89

§ 8. Significação e acção. Uma intencionalidade corpórea.


Parole parlante e parole parlée. O carácter activo da
fala: parole e p r á x is ................................................................ 92

§9. A ontogénese linguística. Vorhabe e ontologia da práxis,


no horizonte de uma valorização da actividade linguística 95

§ 10. Linguagem e viver. Um intento de superar a dicotomia


do subjectivo e do objectivo numa unidade que instaure
a sua recíproca pertença originária. A linguagem como
veículo privilegiado da manifestação. Depreciação ou
silenciamento da dimensão transform adora da prática ... 99

III. Práxis e comunicação intersubjectiva ................................. 105

§ 11. Remissão para eventuais elementos marxianos na com­


preensão merleau-pontyana da «práxis». Prática e inter-
subjectividade. A convivência comunicante como hori­
zonte da actividade vital práxica ....................................... 105

§ 1 2 . A «novidade» da categoria marxiana de «práxis», segundo


Merleau-Ponty. Valorização da práxis e crítica do mate­
rialismo. O intento de dissociação entre o pensamento
de Marx e o de Engels quanto à prática. A inspiração
lukácsiana. A incompreensão do carácter determinante
da transformação material e do seu fundamento ........ 109

9 13. Produtividade humana versus materialismo: o carácter


transformador da acção humana nega o estatuto onto­
lógico autónomo da matéria. Dialéctica e intersubjecti-
vidade. Entre a positividade da existência e a transcen-
dentalidade da posição pela consciência, a originariedade
de uma práxis instituinte ................................................ 114

§ 14. Matéria e práxis. Um necessário esclarecimento do «ma­


terialismo prático» de Marx. Objectividade e intersub-
jectividade. Fenomenologia e marxismo. Os termos da
«conquista» do objecto pelo homem. Criação humana
pelo trabalho e Natureza ................................................ 118

§15. A reivindicação de uma originação humana da «visibili­


dade» que transcenda materialismo e idealismo. Chair,
chiasme, entrelacs. A tese do «cruzamento» originário
conserva o paradigma idealista da presença ontologica-
mente constitutiva do subjectivo ..................................... 123

§ 16. Práxis e «entrelaçamento». Uma dialéctica do «sentido».


Racionalidade práxica e instauração intersubjectiva do
«sentido» num certo recoupement de experiências.
Mundo e «sentido». Imanência do «sentido» à história
e advento práxico do mesmo. A práxis como absoluto 127

§17. A verdade como constitutiva função de uma «práxis»


comunicativa. Uma constituição da «transcendência» na
imanência. Processualidade da verdade e mediação hu­
mana: entrelaçamento do subjectivo e do objectivo ... 132

§18. A práxis como dimensão da consciência. O núcleo


«filosófico» e «crítico» da práxis. A identificação de
transformação material e manipulação técnica. Comu­
nicação versus transformação .......................................... 135

§19. Os supostos ontológicos da concepção merleau-pontyana.


Materialidade e referência necessária a uma subjectivi-
dade (corpórea). A passividade como deturpação de uma
actividade originariamente instituinte. Uma ontologia
fenomenológica: a redução da esfera do real à esfera do
«vivido». Uma radical incompreensão do estatuto onto­
lógico da materialidade ......................................................... 138

§ 20. Fenomenologia merleau-pontyana e ontologia da práxis.


Corporeidade e intersubjectividade são traços essenciais,
mas insuficientes, para uma subtracção à fundamental
m atriz idealista de anteposição de uma subjectividade
como radical condição de possibilidade. Vorhabe, «fé
perceptiva» e ordem do «vivido». A obnubilação do ca­
rácter prático da «práxis» ................................................. 144

N O T A S .................................................................................................... 149

ÍN D IC E D E NOMES ................................................................... 177


Introdução

1.
Uma questão fundamental pode não se apresentar como
uma questão primeira. Geralmente, não se apresenta como
uma questão primeira. Tanto na ordem do viver, como na
ordem do agir, com o na ordem do pensar, o que primeiro
cai sob a consideração de um olhar reflexivo e suscita a sua
atenção indagante pode, na verdade, não se identificar de
pronto com aquilo que de fundam ental se encontra em jogo
nesse m esmo objecto de tematização.
A pergunta pelo fundam ento é sempre uma pergunta
mediata e mediada. Uma pergunta que envolve e reflecte um
compromisso prévio com a própria questão que está a ser
examinada. Ê por isso que a estrutura da compreensão, em ­
bora passando pela descrição inteligível do objecto de pesquisa,
se não reduz <* um seu acompanhamento como que fenom e-
rtológico. O dar razão constitutivo da inteligibilidade remete
para outras camadas do ser que desde o fundo da sua própria
presença se anunciam.
A inventariação serial de cadeias causais é, sem dúvida,
um indício e um a expressão desta procura de fundam entos
ou razões, se bem que em gerei se reconduza a uma rememo-
14 JOSÉ BARATA-MOURA

ração ou reconstrução de uma linhagem de «presenças


A análise da imediatez de umç presença é, em conformidade,
completada por um alinhamento diacrónico de presenças,
segundo um encadeamento de antecedente a consequente.
A procura das essências representa um certo esforço de
inteligibilização tendencialmente sincránico. Norteia-a a inten­
ção de substituir à imediatez variável do aparente a persis­
tência de uma generalidade de traços característicos, defini­
dora de uma certa comunidade de determinações susceptível
de instaurar uma invariância possibilitadora de referências a
unidades de sentido.
O fundamento, por sua vez, não dissocia o uno e o múl­
tiplo, a estabilidade relativa e o devir. Afirma-se e insinuasse
na própria unidade dialéctica destas dimensões. O fundamento
não é mera afirmação de permanência contra a mutabilidade
daquilo que devém, nem registo das diversidades emergentes
contra a imutabilidade de um qualquer resíduo ou substrato
reitor.
A estrutura «logóica» (de &yo;) ou racional do fundamento
recolhe no seu próprio seio a dialéctica mídtideterminada do
ser. Ê uma unidade em movimento, como movimento é o
próprio real na sua historicidade determinada, na sua totali­
dade concreta, na sua contraditoriedade objectiva.
Ê somente neste horizonte que o fundamento funda; é
dentro e de dentro desta historicidade radical que o funda­
mento funda. Porque a historicidade não requer fissura dua­
lista no ser; porque a historicidade tem e é radicação material.

2.
A questão do materialismo é uma questão fundamental,
porque o ser na sua concreção é fundamento e horizonte de
fundamentação.
O materialismo não é, portanto, praticamente uma ques­
tão de opção. A nossa colectiva pertença prática a um real
em devir e transformação não é uma questão preliminar de
opção. É, sim, o solo ou terreno — consistente e movente —
que possibilita as opções, o horizonte concreto em que se vão
determinando.
A contradição de materialismo e idealismo não se estabe­
lece nem se resolve por uma questão de opção. A materiali­
dade do real tem estatuto ontológico, não é um instituto
DA REPRESENTAÇÃO A tPRÀXIS» 15
jurídico. Não se decreta; e por isso também não se revoga,
por subtis e espirituosas que sejam as argumentações ou por
intensa e determinada que se afigure a «vontade política».
Discute-se, debate-se, por certo; mas o propósito mesmo de a
denegar teoreticamente é simultânea afirmação prática da sua
presença histórica, da sua actualidade deveniente.

Estamos a falar de filosofia. Estamos a falar de funda­


mentação. Estamos a falar de itinerários — diversos e contra­
ditórios — de procura de inteligibilidade para um real em cuja
órbita não apenas nos situamos, mas activamente intervimos.
A inteligibilização é um processo teórico, mas não se esgota
na teoria Arranca da própria prática em que o nosso viver
consiste, acompanha-a, perspectiva-a, enquadra a nossa pró­
pria intervenção material num a realidade que é objectiva não
apenas diante de nós, mas em cuja objectividade o nosso
operar — pensante, desejante, afectuoso, volente, prático —
se dá.

Do ponto de vista teórico, o materialismo não faz mcàs do


que procurar pensar de um modo consequente e radical a
materialidade do real. Do ponto de vista prático, o materia­
lismo funda e anima toda uma intervenção colectiva no real
que visa desenvolver, frutificar e estender ou socializar (a de­
mocratização é radicalmente uma universalização) as poten­
cialidades que histórica e dialecticamente se vão constituindo
e configurando sempre novos horizontes.
É por isso que o materialismo consequente é revolucionário.
É por isso que aponta ao comunismo — à materialização
efectiva, m aterialmente fundada (e não apenas nostálgica e
axiologicamente celebrada), da comunidade hum ana—, não
como um modelo idealizado pré-concebido e utopicamente
im-posto, mas como m ovim ento real, a que o desenvolvimento
da humanidade (que também é desenvolvimento do real),
mesmo sendo contraditório, vai abrindo novas perspectivas.

3.

Um dos traços centrais do idealismo, do ponto de vista


filosófico, consiste precisamente não tanto numa eventual
negação da materialidade, mas na tentativa de condicionar
subjectivamente o estatuto ontológico dessa mesma matéria-
16 JOSÉ BARATA-MOURA

lidade, no sentido de lhe antepor estruturas (subjectivas) de


possibilitação e de determinação.
O idealismo não é, pois, uma opção prévia. Por meãs que
a temática da originação lhe seja cara, é uma resposta, é uma
tomada de posição face à materialidade do real.
A idealidade nunca é um primum. Nem ontologicamente,
nem gnosiologicamente; nem ontogeneticamente, nem filoge-
neticamente. A idealidade, em termos radicais, também nunca
é um fundamentum. A idealidade está estruturalmente depen­
dente de contextos materiais e é inseparável de uma mediação
subjectiva, sempre intra-real e nunca pré- ou ante-real.
Historicamente, o idealismo tem conhecido e conhece uma
diversidade significativa de itinerários. Parte, em regra, nos
seus mais destacados cultores, de uma determinada vivência de
aspectos centrais da actividade subjectiva. Ê esse o seu mérito.
O seu vício desenvolve-se, em geral, em torno de uma abso-
lutização ou de uma extensão abusiva desses mesmos aspectos,
no quadro de uma certa incapacidade de surpreender a sua
efectiva concreção, a sua dialéctica fundamentação material.
A actividade da consciência representativa, a actividade
da consciência moral, a actividade do desejo e da vontade,
a actividade poética da linguagem, têm sido alguns dos seus
paradigmas mais afortunados. No entanto, também a activi­
dade prática pode funcionar e tem funcionado como ocasião
de desenvolver e matizar concepções idealistas.
A o lado de um tradicional idealismo da teoria vemos,
assim, desenhar-se um novo idealismo da «práxis». Trata-se
de um idealismo que em regra rejeita esse mesmo qualificativo,
na medida em que se pretende crítico «radical» das absolu-
tizações costumeiras da consciência representativa e dos seus
mecanismos, bem como das tentações monadológicas que as
acompanham. No entanto, perfila-se, de facto, como idea­
lismo, uma vez que por sistema antepõe à materialidade do
real uma condição sitbjectiva de possibilidade.
Haverá, portanto, que precisar o conteúdo temático da
própria categoria materialista de «idealismo». Ela não se
restringe à designação genérica de concepções que visam
pro-duzir o ser a partir de uma espontaneidade constitutiva
protagonizada por uma consciência ou uma vontade — indi­
viduais, intersubjectivas ou divinas. Ela pode e deve abarcar
também doutrinas que sustentam uma instauração ontológica
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 17
do real na sua materialidade e/ou determinação a partir de
uma instância «próxica» originante.

4.

N este livro — e num outro já escrito e que a Editorial


Caminho publicará m uito proximamente: Ontologias da
«Práxis» e Idealismo— trato de abordar alguns itinerários
deste idealismo contemporâneo, procurando surpreender aquela
que é talvez a sua tendência actual mais significativa: a de ir
empreendendo um progressivo encaminhamento do terreno
representativo da consciência egóica para o terreno da prática
intersubjectiva.
Daí o presente título: Da Representação à «Práxis». Dm
também as articulações emblematicamente surpreendíveis no
percurso que se desenha de K ant a Merleau-Ponty, passando
por Heidegger.
O criticismo transcendental kantiano é assumidamente
um idealismo da representação. Heidegger não pretende assu­
mir-se nem como idealista nem como filósofo submetido ao
paradigma da representação. Merleau-Ponty, sem ao nível dos
supostos escapar ao idealismo, pretende no entanto fugir-lhe
m ediante a atribuição a uma «práxis» — cuja determinação
efectiva haverá que precisar— de uma dada função na cons­
tituição fenomenológica bem como um certo contorno «comu­
nicativo» de natureza intersubjectiva.

Aliás, junto com esta tendência do idealismo contempo­


râneo para um encaminhamento temático do terreno da repre­
sentação para o de uma «práxis» sui generis, uma outra ten­
dência igualmente se insinua: a da persistente ocultação ou
disfarce dos seus supostos efectivos. Traço de boa parte do
idealismo contemporâneo é, na verdade, a sua preocupação
de assinalar demarcações relativamente ao que por sua vez
entende por «idealismo», quando não mesmo a sua pretensão
a exibir-se na cena filosófica com o o «autêntico» representante
do materialismo ou com o o intérprete veraz do «materialismo
genuíno».
Para além de razões de natureza intrafilosófica, estas
inflexões estratégicas do idealismo contemporâneo têm segu­
ramente razões que se não restringem ao domínio abstracto
da filosofia. A crise de prestígio epistemológico decorrente
18 JOSÉ BARATA-MOURA

da sua própria fragilidade e amplamente demonstrada nos


múltiplos confrontos críticos a que vai sendo submetido, jun-
tamente com uma agudização crescente das contradições e
dificuldades em que se debate o mundo que se constituiu como
seu viveiro «natural» ou com a necessidade de delinear e de
reavivar estratégias mais adaptadas às novas condições da
batalha ideológica nacional e internacional — são certamente
direcções de pesquisa a ter em conta na busca de um escla­
recimento concreto destas questões.
Não será, todavia, a perspectiva da crítica ideológica do
idealismo que aqui assumirei. Não porque não considere rele­
vante (e até determinante, em termos de crítica) procurar
desvendar e desmontar os mecanismos que patrocinam a
«fama» de que determinadas concepções e autores desfrutam
na opinião pública — mesmo se apenas de segmentos das
camadas intelectualizadas —, no quadro de gigantescas e com­
plexas operações de marketing ideológico. Não porque não
considere teoricamente importante pesquisar algumas condi­
ções da sua génese e mostrar o alcance político-social de algu­
mas das suas implicações.
Não enveredarei nestes escritos pela crítica ideológica de
algumas manifestações do idealismo contemporâneo apenas
porque o meu objectivo é mais modesto e está mais circuns­
crito. Procurarei, assim, explorar com algum detenimento
o terreno propriamente filosófico, a que, porventura, nem
sempre a literatura disponível sobre este assunto atende
pormenorizadamente, não por incapacidade ou incúria, mas
porque, precisamente, os seus objectivos temáticos são, em
geral, outros ou têm um outro alcance.
Pela minha parte, trata-se, portanto, apenas de uma con­
tribuição para o esclarecimento de um controverso problema
e não de uma visão sintética concreta de todos os diversos
elementos que o constituem e nele dialecticamente se digla-
diam.

5.

O presente livro retoma e reelabora trabalhos meus recen­


tes que têm procurado materializar a minha reflexão sobre
estas novas configurações de um idealismo da «práxis». Na
sua forma exterior, começaram por ser escritos de circuns-
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 19
íância. Animando-os desde o fundo, subsiste, porém, um inte­
resse temático uno e uma mesma problemática.
Ê por estas razões que o presente volume não é um mero
somatório de artigos vagamente aparentados, sem ser também
um livro unitariamente pensado e desenvolvido ao longo de
capítulos articulados segundo um esquema global. Pode bem
dizer-se que é um reflexo das minhas limitações subjectivas
e das condições objectivas 4p 'meu próprio trabalho. A histo­
ricidade, de facto, não começa por estar na teoria, mas na
prática. Não é a consciência que faz a história quando reme­
mora, é o viver que faz a consciência

«Posição (Setzung) e materialidade. Heidegger e a tese de


K ant sobre o ser» começou por consubstanciar os tópicos de
uma exposição que efectuei num seminário inform al de docen­
tes do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras de
Lisboa, no âmbito dos trabalhos preparatórios do lançamento
de um curso de Filosofia do Conhecimento. Uma sua primeira
versão saiu no primeiro número da revista Filosofia, publi­
cada pela Sociedade Portuguesa de Filosofia.
«O conceito de “práxis” para M erleau-Ponty» retoma um
artigo publicado na revista História e Filosofia da Universi­
dade Nova de Lisboa, em correspondência a um amável con­
vite de colaboração que me foi endereçado pelo seu director,
Professor Silva Dias.

Não quero terminar esta introdução sem deixar expresso


o m eu reconhecido agradecimento a todos aqueles que directa
e indirectamente — por vezes até sem o saberem — tomaram
possível a redacção e a publicação destes escritos.
A o leitor que tiver a paciência de comigo dialogar através
deste trabalho desejo que, mesmo na eventual diferença de
interpretações, ele lhe possa servir de estímulo ou de ocasião
para um aprofundamento destas matérias.
Porque a verdade é uma demanda conjunta sempre reno­
vada, há, particularmente nos dias de hoje, que não abdicar
demasiado facilm ente da coragem de a ir rasteando. Por isso
se escreve. Por isso um livro não é o fim de um itinerário,
mas um continuado recomeço.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 1986.


Posição («Setzung»)
e materialidade.
Heidegger
e a tese de Kant
sobre o ser
§ 1. Questionário, problemática, horizonte de supostos,
crítica.

O pensar é constitutiva mediação. Neste movimento se


desenha e vai condensando a sua determinação, ou a sua
«determinatez» — a sua Bestimmtheit.
Embora possuindo sempre um conteúdo determinado
— não se definindo, por conseguinte, essencialmente como
um mero procedimento formal ou «vazio»—, não é todavia
na imediatez da sua determinação que o pensar se esgota.
Como movimento, como processo, o pensar determina-se ele
próprio sempre num horizonte de concreção.
Nos termos desta determinação concreta, todo o pensar
é conduzido por um questionário, ora expressamente assumido
na própria consecução da demanda que o constitui, ora latente
e, por assim dizer, subterrâneo à tarefa que se desenrola.
Por isso o questionário é suposto; por isso também se
apresenta como um dos caminhos privilegiados que conduzem
de uma problemática ao horizonte de supostos que a funda.
Se o pensar, no seu exercício, é função de um questionário
— embora não exclusivamente—, por maioria de razão, a
tarefa hermenêutica o terá de ser. Daí que, de certa maneira,
24 JOSÉ BARATA-MOURA

se faça falar um texto pondo-lhe perguntas, isto é, constituindo


um horizonte problemático a partir do qual possam eventual­
mente fazer sentido as respostas, afirmações ou posições que
ele encerra.
Somente a partir daqui será, então, possível desenvolver
e fundamentar toda uma crítica que, centrada ao nível dos
supostos, se pronunciará sobre a legitimidade e alcance das
teses, da argumentação, do estabelecimento da problemática,
dos fundamentos.
Vem tudo isto a propósito de um ensaio de Martin Hei-
degger (Kants These uber das Sein, publicado em 1962l) sobre
que, por razões de natureza pedagógica, fui de novo levado
a debruçar-me.
Tratava-se de preparar um debate com alguns colegas da
Faculdade de Letras de Lisboa sobre perspectivas fundamen­
tais a detectar nesse texto, tendo em vista a sua utilização
no âmbito da Teoria do Conhecimento, particularmente, no
quadro de uma sensibilização dos alunos a diferentes dimen­
sões da problemática geral do ser e do pensar.
A reflexão, inicialmente empreendida com este objectivo
predominantemente pedagógico, acabou, no seu desenvolvi­
mento, por aprofundar-se e por dar lugar à redacção deste
texto.

O escrito que aqui vos apresento supõe, portanto, a lei­


tura do ensaio de Heidegger e mais não pretende, afinal, do
que chamar a atenção para uma problemática radical em cujo
contexto ele se desenvolve.
E talvez que, neste caso — como, de certa maneira, no da
metodologia das «tábuas», de que nos falava Francis Bacon2—,
possamos claramente recordar que se as «presenças» (ou refe­
rências expressas) são significativas, as «ausências» (silêncios
ou silenciamentos) certamente que também podem não o ser
menos...
Daí, porventura, a justificação da nossa afirmação segundo
a qual as teses de um autor não podem deixar de ser vistas
no horizonte de um questionário que vise detectar uma pro­
blemática e, a partir daí, considere as respostas dadas, tanto
na sua positividade ou conteúdo imediato como nas omissões
e dissimulações (de outras possibilidades ou soluções) a que,
nem sempre consciente e deliberadamente, procedem.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXISt 25
§ 2. Da relação ser/pensar à questão da materialidade ou
do fundamento objectivo do ser. O «ausente» que por
detrás do «manifesto» acaba por sempre estar
«presente».
Qual será, então, o grande tema do ensaio de Heidegger
acerca da tese de K ant sobre o ser?
O grande tema é a relação- ser e pensar. Devendo, talvez,
sublinhar-se mesmo: a relação.
Heidegger poderá não estar de acordo com esta acentua­
ção. Poderá preferir/sugerir uma outra. Poderá, inclusiva­
mente, pretender dizer-nos — no quadro de uma rememoração
aos seus olhos essencial e ao nível do seu discurso assumido,
ao nível da doutrina que com unica— que o grande tema é
afinal o ser.
«Tudo o que nos atinge e para que nós tendemos
passa pelo “é” (es ist) pronunciado ou não pronun­
ciado.» 3
Atente-se, todavia, em como esta mesma proclamação da
indispensabilidade da mediação do ser acaba por remeter ela
própria, nos termos em que é apresentada, para o horizonte
de uma relação necessária, tácita ou não. Toda a relação passa
pelo «é», parece no fundo dizer-nos Heidegger.
Deste modo, talvez possamos precisar algo mais a nossa
afirmação de que o grande tema deste ensaio é a relação ser
e pensar.
Progredindo, diremos que o grande tema é o estatuto do
«ser» nessa relação: a condição que lhe corresponde num
âmbito relacional onde o pensar também está essencialmente
presente.
Esta precisão, no entanto, poderá levar-nos àquele que
talvez seja o verdadeiro terreno em que toda esta reflexão
(bem como as suas implicações) se desenvolve: o terreno da
materialidade. Em jogo estará, por conseguinte, aqui verda­
deiramente a questão do fundamento objectivo do «ser».
Esta talvez seja, no fundo, a grande questão. Presente, não
tanto pelo facto de Heidegger a tematizar expressa ou positi­
vamente, mas porque afinal é perante ela que Heidegger
procura tomar posição, quer iludindo-a quer «rarefazendo-a».
É para o problema da materialidade do «ser», é contra a
tese da materialidade do «ser», que Heidegger pretende encon-
26 JQSÉ BARATA-MOURA

trar uma resposta ou uma saída. Não porque apresente di-


recta e expressamente o seu próprio pensar nos termos deste
combate, mas porque, apesar dos intentos declarados (a-través
desses intentos), é esse o combate que ele trava.

A leitura heideggeriana da tese de Kant sobre o ser não


remete apenas para o retomar de uma velha contestação aca­
démica do neo-kantismo de Marburg e das suas interpretações.
Também não se restringe ao ensaio hermenêutico de um filó­
sofo maior revisitado com frequência assinalável ao longo de
cinquenta anos4.
!É um confronto recheado de intenções simultaneamente
críticas e instituintes: críticas, tanto das roupagens linguístico-
-conceptuais da «subjectividade», como da tendência materia­
lista; instituintes, na medida em que há — para Heidegger —
um núcleo fundamental do que Kant tem para nos dizer, que,
depois de «trabalhado» (isto é, depois de assimilado e elabo­
rado na constelação de um novo pensar), deverá ser conser­
vado, porque corresponde a um suposto estrutural.
É, precisamente, o esforço heideggeriano de abrir caminho,
ou de criar condições de possibilidade, para a emergência ou
o restabelecimento desse suposto fundamental que o leva a,
confrontando-se com Kant a propósito da sua tese sobre o ser,
confrontar-se com a questão da materialidade. Não no sentido
de uma sua abordagem expressa ou temática, mas no âmbito
de um esforço requintado para «volatilizar» a materialidade,
aprofundando ou reeditando — num contexto enriquecido por
uma nova linguagem e um leque de interlocutores mais amplo
(gregos, poetas, etc.) — uma leitura de Kant que o idealismo
clássico alemão (por exemplo, Fichte ou o jovem Schelling) não
haviam deixado de empreender.

A direcção principal desta grande linha interpretativa apre­


senta-se, aliás, já claramente marcada em textos bastante ante­
riores de Heidegger, como, por exemplo, Kant und das
Problem der Metaphysik:

«A fundação kantiana da metafísica conduz à ima­


ginação (Einbildungskraft) transcendental. É esta a raiz
dos dois troncos: sensibilidade e entendimento. Como
tal, ela possibilita a unidade originária da síntese onto­
lógica.» ®
DA REPRESENTAÇÃO A cPRÀXISi 27
Mais importante do que a transitória roupagem antropo­
lógica da Widerholimg desta instauração da metafísica atri­
buída a K ant — e que Heidegger expressamente sublinha • —
afiguram-se-nos ser os supostos em que assenta a própria ma­
neira de interrogar e, em conformidade, as «soluções» encon­
tradas.
Com uma resposta de cunho assumidamente antropológico
ou não, aquilo que se nos depara é um intento de estabelecer
o problema do «ser», descartando ou «volatilizando» a ques­
tão da sua materialidade. Função da «subjectividade do sujeito
humano» ou não, a instauração ontológica permanece com
continuada recusa da materialidade.
Sob este ponto de vista, as respostas de Heidegger poderão
ter conhecido diferentes sensibilidades expressivas ao nível dos
filosofemas, poderão ter sofrido ligeiras deslocações no ângulo
de problematização (que alguns desenvolvem, explorando o
tema da K e h re 7), mas nunca abandonaram este terreno idea­
lista fundamental.
A tonalidade mais antropológica ou mais ontológica que
se procura dispensar ao colorido do Da do Da-sein — como
lugar humano (não empírico, mas estrutural, ek-sistencial-
mente cuidante) da possibilitação da verdade do Ser ou como
lugar (igualmente humano e não-empírico) onde o Ser falando
vem à fala — é seguramente sinal de uma acentuação que se
pretende operar. Não é, todavia, suficiente para dissipar as
ambiguidades da anteposição estrutural ao ser de condições
tendencialmente subjectivas de possibilidade.

É por tudo isto que dizemos — e procuraremos mostrar —


que o grande tema de Kants These iiber das Seirt é a questão da
materialidade ou do fundamento objectivo do «ser», que Hei­
degger se esforça por afastar, precisamente, através de uma
interpretação de K ant que visa distrair o leitor da sua tendên­
cia (e não mais do que isso) «materialista».
Tal como em tantos outros casos, o grande tema é aqui o
directa ou expressamente «ausente»: o «outro» que, embora
primando pela ausência imediatamente anunciada, não deixa,
contudo, de estar presente. Isto é, aquele cuja ausência é signi­
ficativa e, em larga medida, procurada.
Referindo-se justamente a Kant, em Der Satz von G rund8,
Heidegger fala, como é sabido, da importância de das Unge-
dachte, de das Noch-nicht-Gedachte, do impensado, do ainda-
28 JOSÉ BARATA-MOURA

-não-pensado, que todo o pensamento verdadeiramente grande


encerra ou traz em si.
Relativamente ao texto de Heidegger, não é de uma «au­
sência» deste tipo que falamos. Não é de uma «ausência» que
tem de ser acordada, «construída» ou trazida à luz da conside­
ração por um diálogo hermenêutico consciencializador que se
trata.
O «impensado» não corresponde aqui apenas aos supostos
em que qualquer pensar assenta e que comandam parte deci­
siva do seu desenvolvimento. O impensado funciona aqui como
um quase-reprimido, como uma dimensão outra que sistema­
ticamente se vai deixando na sombra, não do esquecimento
distraído, mas da não-consideração deliberada.
A «ausência» para que chamamos aqui a atenção é a ques­
tão da materialidade do ser, que constitui, porventura, o
grande tema do ensaio heideggeriano. É uma «ausência» que
está a cada passo «presente», e bem desperta, espreitando por
detrás das «soluções» procuradas para, precisamente, evitar
ou não evocar essa materialidade.
Cremos que para mostrar uma eventual razão de ser da
nossa leitura e, fundamentalmente, para elucidar o horizonte
problemático que aqui se encontra em jogo poderíamos, por­
ventura, tomar dois caminhos. O primeiro parte de um motivo
propriamente heideggeriano. O segundo parte da tese de Kant
sobre o ser e da interpretação que Heidegger dela apresenta.
São esses caminhos que agora vamos passar a percorrer.

§ 3. A pergunta pelo fundamento da ligação entre pensar


e ser. Da cópula lógica à posição («Setzung») ontoló­
gica. O ser é função de uma «Setzung».

Este primeiro caminho para a manifestação daquele que,


porventura, é o terreno fundamental da preocupação heidegge-
riana neste texto sobre Kant e o problema do «ser» poderá
talvez ser qualificado de mais «ontológico», de mais «difícil»
ou de mais «heideggeriano».
Tendo em conta o conteúdo do ensaio e a sua organização,
poderíamos mesmo dizer que, de algum modo, se trata de
«começar pelo fim», isto é, de iluminar o corpo do texto, a
mediação que em extensão nos oferece, a partir de algumas
«sugestões» finais, a partir daquilo que, no fundo, constitui o
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 29
fazer de uma agulha para a passagem do discurso de que Kant
é imediatamente termo dominante de referência a um discurso
mais directamente heideggeriano onde — a par de uma crí­
tica — se trata também de recuperar uma direcção fundamen­
tal para que a «solução» kantiana apontaria.
Tomando este caminho, diríamos que se trata de tentar
agarrar o que há de nuclear na tese heideggeriana deste escrito
a partir do tema daquilo a que aí também se chama das
Denkwurdige: o digno de ser pensado.

No quadro da temática geral do ser e do pensar, que per­


passa todo o ensaio e, no fundo, todo o itinerário do pensa­
mento ocidental, o que verdadeiramente acaba por merecer,
não tanto a honra de um pensamento, mas um lugar central
na reflexão, é, segundo Heidegger, o próprio «e» (und) que
estrutura a expressão «Denken und Sein».

«Ser e pensar: neste “e” oculta-se o digno-de-ser-pen-


sado (<das Denkwurdige), tanto da filosofia até agora,
como também do pensar hodierno.» 9

A ocultação deste «digno de ser pensado» tem a ver com


a tradicional instrumentalidade conjuntiva que é atribuída
ao «e», a qual desatende e passa em silêncio tudo o que,
para além — e por detrás— da fórmula gramatical, estru­
tura e define uma «síntese».
Este und é também ev : unidade, definição de uma per­
tença comum, se é que não mesmo lugar (O rt) a partir do
qual toda e qualquer conjunção é susceptível de se verificar.
O und é, pois, e decisivamente, ligação, Verbindung, e «lu­
gar» no qual ou a partir do qual a pertença originária de ser
e de pensar deve, segundo Heidegger, ser pensada.

Parecem decorrer daqui duas observações, porventura,


interessantes.
A primeira é a de que perguntar pelo und, perguntar pelo
que é «digno de ser pensado», é, afinal, perguntar pelo fu n ­
damento da ligação entre pensar e ser. Isso é o que há que
pensar. Isso é o que emerge ou subjaz — viwxeraôai — à e na
relação que o «e» estrutura.
O que é «digno de ser pensado», na perspectiva de Hei­
degger, é o lugar a partir do qual esta relação entre o pensar
e o ser se determina, ou seja, a instância que finalmente
30 JOSÉ BARATA-MOURA

comanda a sua conjunção. É desta instância que o und radi­


calmente dá sinal.
A segunda observação a que aludíamos poderá levar-nos
um pouco mais longe. É que, para Heidegger, o fundamento
da ligação pensar e ser é também o fundamento da manifes­
tação ou da revelação do próprio ser, neste caso, dos entes.
O que permite ligar pensar e ser é também o que permite fazer
com que os entes se mostrem e des-ocultem.
O und é ist — o «é» que (logicamente) é cópula e ontolo-
gicamente é posição (Setzung) ou afirmação de algo. É neste
sentido que das Denkwúrdige é o «ist» que não se mostra ou
não aparece (é unscheinbar), escondendo por isso a sua ver­
dadeira e fundamental função religante.

«No “é” que não aparece oculta-se todo o digno-de-


-ser-pensado do ser.»10

O «ser» surge, portanto, na forma do «ist», como o fun­


damento da ligação do pensar e do ser. Só que, de acordo
com tudo aquilo que Heidegger nos diz anteriormente no
ensaio, o ser é fundamentalmente posição (Setzung), o ser
repousa finalmente numa posição.
É precisamente neste contexto que julgo que nos traz algum
esclarecimento o facto de não esquecermos que, para Hei­
degger, o modo de relação entre o pensar e o ser é a Selbig-
keit, a mesmidade, a identidade.
«A relação entre pensar e ser é a mesmidade
(Selbigkeit), a identidade (Identitát).»11
Contrariamente ao que à primeira vista poderia parecer,
não estamos em presença de uma mera circularidade, desin­
teressante porque desprovida de conteúdo. Pelo contrário,
a aparência de circularidade é que, segundo julgamos, pro­
cura obnubilar aquilo em cuja presença efectivamente esta­
mos: o gímnico propósito de operar a dissolução da materia­
lidade do ser.
O fundamento da relação entre pensar e ser reside num
«e» que é ligação, Verbindung. Esse «e» acaba por desven­
dar-se ele próprio também como sendo de natureza ontoló­
gica— o «e» (und) é «é» (ist).
DA REPRESENTAÇÃO A iPRÁXIS» 31
Ora, o ser que é «ligação» e «ligado» é, no fundo, idêntico
ao pensar; são o «mesmo», e é nessa condição que se dis­
tinguem do domínio dos entes e dos objectos, das «coisas»:

«Ambos [pensar e ser] não são, manifestamente,


nada de parecido com coisas e objectos, [ ...] » 11

Ou seja, é o próprio pensar que, afinal, parece ter de vir


a ser o fundamento da ligação, da Verbindung (como, aliás,
Kant dizia ao denotar a sua radicação subjectiva13), ao mesmo
tempo que, pela mesma razão, se apresenta como fundamento
do ser. E cá temos, porventura, o que a tal aparência de cir­
cularidade pretenderia apagar ou diferir.
A relação entre o pensar e o ser é a mesmidade, a Selbig-
keit; porquê?
Porque, no fundo — e, de algum modo, esta é a resposta
do ensaio —, o fundamento da própria ligação do pensar e do
ser repousa no pensar, não andando K ant — apesar de tudo —
muito longe da «verdade» ou da posição básica que, segundo
Heidegger, a ela conduz.
Como Heidegger refere, aludindo à interpretação de Kant
que leva a cabo:

«A posição da existência (Dasein) e as suas moda­


lidades determinam-se a partir do pensar.»14

O ser — mesmo pensado como existência— tem de radi­


car numa Setzung, numa posição e esta, por sua vez, será
função de um pensar (na versão de Heidegger ou, mais preci­
samente, de um a «unidade sintética originária da apercepção»,
na expressão de K a n t15), sendo apenas a partir daqui que se
apresenta como estabelecível o estatuto do ser.

Afigura-se-nos ser este o princípio decisivo que Heidegger


procura descortinar em K ant — apesar de todas as reservas
expressas quanto à «empobrecedora» roupagem linguística e
conceptual da egoidade e da subjectividade, mesmo se trans­
cendentais.
Este será também o princípio decisivo que Heidegger in­
tenta conservar e, por assim dizer, albergar na raiz do seu
próprio itinerário pensante. Apesar de todo o seu cuidado em
32 JOSÉ BARATA-MOURA

evitar expressões como «sujeito», «homem», «consciência»,


etc., e apesar mesmo das repetidas negações quanto ao bem
fundado de uma aproximação das suas doutrinas relativa-
mente a tais posições «ônticas» ou «redutoras», a dependên­
cia do ser relativamente a uma Setzung mantém-se num hori­
zonte de originariedade para além e por detrás de todos os
matizes com que se pretende atenuá-la, para além e por detrás
de toda a engenhosa cosmética linguístico-erudita com que se
procura disfarçá-la.
Por nossa parte, cremos não estar a incorrer nas referidas
simplificações abusivas quando efectuamos esta atribuição,
mas tão-só a contribuir para um esclarecimento dos supostos
onto-gnosiológicos desta concepção.
Não nos estamos a referir imediatamente à positividade
da nomenclatura e das «soluções» que no pensamento de
Heidegger se encontram. Estamos a referir-nos, sim, e basica­
mente, àquilo para que elas remetam: à problemática em
que se movem, aos supostos em que assentam.
É a este nível e nesta perspectiva que se nos afigura ser
esta questão da radicação do ser num pensar ou numa
Setzung — de cuja natureza haverá que falar mas em que o
modelo «kantiano» ou pretensamente kantiano está bem pre­
sente)— o que fundamentalmente se encontra em jogo no
ensaio.
Esta «solução» heideggeriana da dependência estrutural
do ser relativamente a uma posição visa, antes do mais, des­
cartar o problema da materialidade do ser. O ser passaria,
nestes termos, a ser fruto de uma Setzung (de facto subjectiva
ou com raiz subjectiva).
Claro que Heidegger nos poderia dizer que essa posição
do ser não é posição de um «sujeito» individual ou colectivo;
que essa posição do ser é obra do próprio ser, que é auto-
-posição.
Poderíamos estar de acordo. É, precisamente, para a «ló­
gica» de toda esta forma de argumentar e de encarar o fun­
damento do ser que queremos chamar a atenção. É ela que
está em jogo, como veremos, em toda a interpretação que
Heidegger faz de Kant.
Não esqueçamos, na verdade, que também para Fichte
— que igualmente partia de Kant e do que nele havia de
essencial a conservar—, também para Fichte o ser se dis-
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXfS» 33
tingue dos entes (porque é acção, Handlung, Tathandlung,
ou impulso, Trieb) e se apresenta radicalmente como auto-
aposição:

«Pôr-se a si próprio e ser sáo, usados a partir do


eu, completamente iguais.»1"

Esta é, de facto, a grande matriz do idealismo, particular­


mente, do idealismo subjectivo pré-hegeliano.

§ 4. A tese de Kant sobre o ser: não é predicado real, é


meramente a posição absoluta de uma coisa. A irre-
dutibilidade da materialidade à consciência.

Tínhamos dito atrás que entrevíamos outro caminho sus-


ceptível de levar a uma sensibilização acerca do que de fun­
damental se encontra em jogo neste ensaio de Heidegger a
propósito de K ant e da sua tese sobre o ser. Para utilizar o
mesmo paralelismo formal na caracterização simplificada des­
tas vias, poderíamos talvez dizer que este segundo caminho
é mais gnosiológico, mais kantiano e mais escolar ou de expo­
sição mais «acessível».
Articula-se segundo dois momentos principais.
Numa primeira etapa, trata-se de considerar os traços
fundamentais da tese de K ant sobre o ser, segundo uma pers-
pectiva em que ao pensamento do próprio Kant advém o lugar
preponderante. Numa segunda etapa, iremos ver qual a inter­
pretação que Heidegger dá desta posição ou, mais precisa-
mente, como é que ele a vai fazer inflectir num sentido que
melhor sirva a sua própria concepção.

Qual é a tese de Kant sobre o ser?


Numa das suas expressões clássicas da Crítica da Razão
Pura — que, entretanto, segue as direcções principais já apon­
tadas no Beweisgrurtd17 — enuncia-se assim:

«Ser CSein) não é manifestamente nenhum predi­


cado real, isto é, um conceito do que quer que seja
que se pudesse acrescentar ao conceito de uma coisa.
É meramente a posição de uma coisa, ou de certas
determinações, em si mesmas. No uso lógico, é unica­
mente a cópula de um juízo.» l"
34 JOSÉ BARATA-MOURA

Quais serão os traços fundamentais desta concepção?


Temos, em primeiro lugar, a afirmação de que o ser não
é um predicado real. A existência não é predicado. A exis­
tência não é dedutível de um conceito — o que, tendo, parti­
cularmente, em conta o caso específico que Kant examina
(a existência de deus), corresponde a um importante princípio
clarificador; isto é, a existência não deriva da posição de
um conceito.
Os conceitos, as determinações formais de algo, podem
dizer-nos o que esse algo é; mas, a partir desse horizonte
formal somente, não é possível concluir ou estabelecer que
esse algo é.
A existência apresenta-se, por conseguinte, como tal num
horizonte de transcendência relativamente ao alcance deter­
minante da consciência. A determinação transcendental/cate-
gorial prende-se com a posição de predicados, com a projecção
formal de propriedades; não com a outorga ou a instituição
de existências.
Em segundo lugar, e complementarmente, temos a afir­
mação de que o ser é posição absoluta ou, como Kant refere,
que o ser é meramente a posição de uma coisa em si mesma
(bloss die Position eines Dinges art sich selbst).
Ao vincular o ser, neste contexto, à posição em si de algo,
Kant está a procurar garantir ou assinalar (teoricamente) uma
certa autonomia da existência. Uma autonomia que segura-
mente, nos parâmetros gerais do criticismo transcendental,
não vem a verificar-se em termos de determinação do seu
conteúdo ou de apresentação de um fundamento objectivo
para as suas determinações — que permanecem entendidas
de modo e com uma raiz subjectivos —; mas uma autonomia
que se traduz em termos de mera posição ou presença de algo
afectando materialmente a sensibilidade humana.
A posição absoluta denota, assim, uma estação indepen­
dente na existência, a efectividade de um estatuto ôntico de
presença susceptível de se impor à receptividade da condição
humana e de acolher, no quadro — concreto, sintético— de
uma experiência possível, uma pluralidade de determinações
formais, ao nível da sensibilidade e do entendimento.
Kant diz-nos ainda que, no uso lógico, o ser é simples­
mente a cópula de um juízo.
Com tudo isto nos pretende pôr de sobreaviso contra os
perigos decorrentes da tentação de extrapolar deste uso, de ra­
dicação eminentemente subjectiva — é sempre de uma função
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXISi 35
sintética que repousa na unidade da apercepção19 que se
tra ta — para qualquer pretensão de, a partir do juízo e da
utilização do «ser» a que ao seu nível se procede, deduzir ou
estabelecer qualquer intenção objectiva existencial.
Mais: é precisamente a possibilidade de uma qualquer ex­
trapolação deste tipo que se combate quando se nega a dedu-
tibãidade da existência a partir do conceito e quando se traduz
essa existência como posição absoluta.
O ser lógico expressa tanto a redução do diverso à unidade
conceptual de um objecto, quanto a o-posição transcenden­
tal deste a um pólo unificador da consciência— a unidade
originária da apercepção. Corresponde, por conseguinte, a
uma objectualidade constituída num horizonte de subjectivi-
dade intransposto. Não é instituinte de materialidade, de exis­
tência objectiva.

Mas, que pretenderá K ant com toda esta sua interpretação


do problema do ser?
Cremos que K ant procura, no fundo, chamar a atenção
para a necessidade de se considerar a irreduúbilidade do mate­
rial à consciência.
Segundo Kant, as determinações das coisas são redutíveis
à consciência representativa — na medida em que, precisa-
mente, apresentam um fundamento subjectivo (transcendental)
e são manifestação de uma certa espontaneidade do entendi­
mento; o fundamento material, porém, não o é. Possui uma
radicação trans-consciente, que é impenetrável — no sentido
de que o «em si» não nos é acessível em termos de conheci­
mento determ inado—, mas que não é menos necessária para
que possamos verdadeiramente falar de algo de existente e,
mesmo, de algo de conhecido e não de meramente pensado:
o conhecimento supõe evidenciação numa experiência possível
e esta requer, entre outras coisas, a afectação da nossa sensi­
bilidade por algo de hilético.
A distinção kantiana entre conhecer (Erkennen) e pensar
(Denkeri) desenvolve-se igualmente neste horizonte. A «objec­
tualidade» inerente à intencionalidade de um qualquer pensar
não pode de modo algum identificar-se sem mais com a «objec-
tividade» que, apesar de tudo e por acréscimo, o conhecimento
requer.

«Pensar-se um objecto e conhecer-se um objecto


não é, portanto, a mesma coisa. Ao conhecimento per-
36 JOSÉ BARATA-MOURA

tencem, nomeadamente, duas partes: em primeiro lu­


gar, o conceito, através do qual, em geral, um objecto
é pensado (a categoria), e, em segundo lugar, a intui­
ção, através da qual ele é dado; pois, se ao conceito
não pudesse de modo algum ser dada uma intuição
correspondente, [esse conceito] seria um pensamento
segundo a forma, mas sem qualquer objecto e através
dele não seria possível nenhum conhecimento de uma
qualquer coisa; porque, não haveria nada, tanto quanto
eu sei, nem poderia haver, a que o meu pensamento
pudesse ser aplicado.» 20
A necessária presença do momento intuitivo — mesmo
quando a Anschauung corresponde ela própria a uma deter­
minação transcendental do seu conteúdo cognoscitivo— visa
garantir, por intermédio dos pressupostos em que assenta, uma
fundamental heterogeneidade material do objecto conhecido
relativamente às estruturas transcendentais que formalmente
o determinam.
É neste contexto que assume particular relevo toda a con­
cepção kantiana da intuição, designadamente, a referência
expressa de que, no âmbito da condição humana, a intuição
{Anschauung) é essencial e propriamente sensível e não intui­
ção intelectual.
«Um entendimento, no qual por meio da autocons­
ciência (iSelbstbewusstsein), ao mesmo tempo, fosse
dado todo o diverso, seria [um] intuir; o nosso só pode
pensar e tem de procurar a intuição nos sentidos.»21
j Em termos kantianos, há que falar, por certo, de uma
I espontaneidade do entendimento, de uma criatividade intrín-
I seca, que a partir de si projecta — transcendentalmente —
i determinações formais (categorias, conceitos, etc.) que virão
! a possibilitar que, no conhecer, algo se nos apresente como
• conhecido.
Todavia, essa espontaneidade do entendimento não possui
um alcance objectivo, transcendente, instaurador ou posicio-
nador de um ser com estatuto de existência.
A realidade, como existência objectiva, equaciona-se com
a intuição. É a ela que cabe dar o objecto a uma determinação
possível de conteúdos cognoscíveis.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 37
O carácter não-intuitivo do entendimento humano visa,
assim, entre outras coisas, garantir que a sua capacidade
podcionadora (de determinações formais) não tem, todavia,
um alcance ontológico. Como o próprio Kant reconhece na
Crítica da Faculdade de Julgar: «Se, nomeadamente, o nosso
entendimento fosse intuitivo, não teria nenhuns [outros] objec-
tos senão o real.»22
Como o entendimento humano não é intuitivo, também
não é instaurador de ser. A sua espontaneidade constitutiva
não é, no entanto, posicionadora de existência. Esta, apesar
de tudo — apesar, nomeadamente, da sua inacessibilidade,
como tal, «em si», ao conhecimento hum ano—, possui um
estatuto ôntico de transcendência.
O diverso (das M annigfaltige) 23 da sensação — não, em
termos de conteúdo determinado, mas de efectividade de pre­
sença ou posição— não pode ser resultado de uma autocons­
ciência, de uma auto-posição do entendimento humano. Ra­
dica numa esfera que o transcende.
É por tudo isto que, em sentido pleno, para Kant, o ser
é posição absoluta ou posição em si mesmo. Face à natureza
e raiz subjectivas das determinações conceptuais, há que su­
blinhar ou assinalar uma certa heterogeneidade subjacente
— materialmente subjacente— que não pode ser ignorada
na constituição ôntica de algo de existente.
Nesta posição de Kant é, pois, fundamentalmente, a pre­
sença da matéria ou da materialidade que nos surge como
não podendo ser eludida, ainda que no quadro de uma
compreensão global — a do idealismo transcendental— que,
por certo, não deixará de envolver motivos de crítica, desig-
nadamente, no que diz respeito à incognoscibilidade do material
e à correlativa independência e autonomia da ordem formal
«transcendental», para não referir outros aspectos igualmente
relevantes.

§ 5. A interpretação heideggeriana: o ser não é nada de


«real». A depreciação do «em si mesmo» (da mate­
rialidade). A «posição» por outrem. A «Setzung» na
órbita da representação.
Ora, como é que Heidegger vai interpretar esta tese de
Kant sobre o ser? — questão que, afinal, corresponde ao tema
do ensaio que consideramos.
38 JOSÉ BARATA-MOURA

Sem nos pretendermos antecipar, poderíamos contudo dizer


que Heidegger vai interpretar Kant, operando uma decisiva
inflexão na direcção dominante em que haveria que pers-
pectivar as suas afirmações. A uma tendência kantiana — té­
nue, ambígua, mas efectiva— para a afirmação, ainda que
agnóstica quanto ao seu conteúdo determinado, da materiali­
dade, vai substituir-se uma acentuação heideggeriana da con­
dição subjectiva de toda a determinação e de toda a posição.
Heidegger parece construir esta linha interpretativa atra­
vés da confluência de dois caminhos principais que estruturam
t a sua reflexão. Ambos partem de enunciados que, na sua ime-
diatez, traduzem posições kantianas.
O primeiro caminho parece partir da seguinte tese de
Kant: «O ser não é predicado real.»
Heidegger vai «trabalhar» a noção de «real» e apresentá-la
como designando — aliás, não sem paralelo com Sein und
Z e it24— aquilo que é próprio da coisa, da res. O «real» seria,
no fundo, o «reico». Como ele próprio refere:
«Realidade (Realitàt) significa para Kant, não rea­
lidade efectiva (Wirklichkeit), mas coisidade (Sach-
heit). Um predicado real é aquele que pertence ao
conteúdo reico (Sachgehcdt) de uma coisa e pode ser-
-lhe atribuído.» 25
Importa, no entanto, ter presente que, no contexto kan­
tiano a que nos estamos a referir, «real» qualifica directa-
mente «predicado». Kant fala de predicados lógicos e de
predicados reais, assinalando que, na medida em que a lógica
faz abstracção do conteúdo, tudo pode servir de predicado
lógico, enquanto o predicado real é, fundamentalmente, a
determinação (Bestimmimg) de uma coisa28.
Ora, Heidegger vai ligar o qualificativo de «real», não a
«predicado», mas ao «ser», Sein ist nichts Reales, o ser não
é nada de real27, no sentido de que não é «reico», de que
não corresponde a uma propriedade da coisa, o que, no en­
tender de Heidegger, seria equivalente à tese kantiana de que
o ser não é dedutível do conceito!
Isto é — e aqui reside um dos momentos fulcrais da infle­
xão a que Heidegger submete o pensamento de Kant sobre
esta matéria—, onde Kant refere expressamente que o ser,
a existência, não é um predicado (real)*8, Heidegger lê (ou
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 39
treslê) que o ser não é real, não é reico, não é da natureza
da coisidade (Sachheit).

E, a partir daqui, desdobra toda a lógica da sua interpre­


tação.
Se o «ser» não é «real» — isto é, se a existência não é
propriedade da coisa, se não radica n ela— tem de ter outra
origem, outro fundamento, outro lugar (Ort) a partir do qual
possa ser estabelecida. Se a existência não é propriedade
«reica», tem de ser posta por alguém, por alguma outra ins­
tância. Perde, por conseguinte, a sua independência ou «auto­
nomia»; deixa de ser posição ou positividade (Gesetztheit)
para passar a ser posta por outrem ou a ser algo de posto
(Etwas Gesetztes) por uma instância que não ela.
Para K ant, o fundamental era que o «ser» não podia ser
um predicado, algo da natureza do conceito, algo que é posto
pela espontaneidade legisladora ou ordenadora do entendi­
mento humano.
Para Heidegger, o fundamental é que o ser não é real,
ou seja, que é distinto da materialidade ou da presença efec-
tiva (que são silenciadas) e se apresenta como função de
alguém que o estabelece e funda.

Compreendemos agora, porventura, melhor, por que é que


é neste contexto que Heidegger nos quer fazer acreditar que
a «posição em si» — de que K ant nos fala repetidamente —
afinal não é «em si», mas é apenas «posição» (Setzung, Positio).
A alteração é subtil, mas é teórica e materialmente deter­
minante:

«A expressão “em si mesmo” não significa: algo


“ em si”, algo que existe não relacionado com uma
consciência. [...]. S e r“é meramente a posição”.» 29

Onde K ant diz: «mera posição em si», Heidegger solicita


que se entenda: «mera posição». Não é de um inocente pedido
visando uma simplificação que se trata. Ê de uma inflexão
grave que distorce o sentido fundamental de toda uma tese.
A «mera posição em si» da tese kantiana aponta para o
facto da presença material de algo de irredutível ao pensar
que afecta a sensibilidade humana. Trata-se de uma expressão
que visa sublinhar a necessidade de contar com algo de
«exterior» ou de transcendente — que o sujeito não poderá
40 JOSÉ BARATA-MOURA

conhecer naquilo mesmo que é e que, portanto, terá de per­


manecer como uma incógnita, impenetrada e impenetrável
teoricamente, mas não menos necessária por isso.
Transformar a afirmação fundamental que esta tese encerra
na expressão de uma «mera posição» é tentar fazer inflectir
o seu sentido principal da constatação de uma materialidade
para a função subjectiva de uma Positio, de uma Setzung.
A concepção kantiana de uma positividade materialmente
posta irredutível ao sujeito passa a ser interpretada como
posição — acto de pôr — de que uma subjectividade se desem­
penha. A inflexão é significativa e configura uma tese bas­
tante diferenciada da kantiana.

Efcctivamente, na leitura a que Heidegger procede, como


da afirmação de Kant de que «o ser não é predicado real»
se deve concluir que «o ser não é res», que o ser não depende
da res\ o «ser» terá, então, de depender de um outro. O ser
não será mais a propriedade ou o facto da presença material,
mas o modo de aparecer a uma subjectividade dada ou a
modalidade de «presença» que perante e em função dela se
determina.
A tese de Kant quereria, no fundo, significar que o «ser»
e as suas modalidades acabam por não nos dizer que o objecto
é, mas essencialmente como é que ele se relaciona com o
sujeito.
O factum da posição (independente, em si) é, de algum
modo, substituído pela consideração de que o «ser» só é, ou
está posto, para e por uma consciência ou subjectividade. Ao
carácter absoluto da positividade, que Kant assinalava à sua
maneira, substitui-se a estrutura marcadamente relacional da
posição de algo por um sujeito, segundo esta ou aquela moda­
lidade:
«O ser e, portanto, com ele também os modos de
ser — ser possível, ser real e ser necessário— não
enunciam [nada] acerca do que o objecto (<Gegenstand,
Objekt) é, mas acerca do como da relação do objecto
com o sujeito.» so
Atente-se, uma vez mais, em que estamos em presença
de diferentes incidências no perguntar, que apresentam impli­
cações teóricas muito mais significativas do que uma mera
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 41
variação no jeito de inquirir ou no vocabulário da interro­
gação.
N a perspectiva de Kant, parece-nos óbvio que o «ser»
nada nos diz acerca de «o que» o objecto é — precisamente,
na medida em que não é «predicado», isto é, na medida em
que não possui um conteúdo conceituai especificado, de tipo
«essencal»; um tal conteúdo suporia, na perspectiva do Kant
da K ritik der reinen Vernunft, uma determinação e uma sín­
tese— melhor, uma dupla síntese: ao nível da sensibilidade
e do entendimento — de radicação transcendental, subjectiva.
Ora, o que Kant nos diz é que o «ser» nos mostra que um
objecto é, não apenas formalmente com estas ou aquelas
características, mas materialmente como algo de «exterior» que
afecta (ainda que não determine em termos de conteúdo cog-
noscível) a nossa sensibilidade.
Face a tudo isto, a instância que Heidegger acentua é
ainda uma outra: a de que, afinal, para Kant, o ser não
expressaria mais do que uma modalidade de como o «ser»
poderia estar em relação com a subjectividade, isto é, de como
ele poderia ser posto — não como «estar posto em si», mas
como activamente posto por um outro que a ele se referisse.
Não admira, deste modo, que Heidegger acabe por inter­
pretar a Setzung kantiana no horizonte da função represen­
tativa. A posição seria o estar ou ser posto num representar
( Vorstellen) instituinte. Como Heidegger escreve:

«No representar (Vorstellen), colocamos (stellen)


algo diante (vor) de nós, de maneira a que, como desse
modo colocado (Gestelltes) — posto (G esetzes)—, se
nos contraponha como objecto (Gegenstand). O ser
como posição significa a positividade [Gesetztheit9 a
condição de estar posto] de algo no representar que
põe (setzenden).» 81

Kant acentua inequivocamente o carácter absoluto, ma­


terial — não dependente da subjectividade— do que está
posto, do existente. Heidegger centra-se na representação
(Vorstelhmg), que para Kant é, sem dúvida, posição — no sen­
tido activo da «espontaneidade» produtora de formas e da
actividade originariamente sintética do eu e da Einbildungs-
kraft —, mas posição de conteúdo formal, posição de «sen­
tido», posição do cognoscível determinadamente no conhecer,
e não posição de existência ou posição na existência.
42 JOSÉ BARATA-MOURA

É precisamente esta inflexão interpretativa a que Hei-


degger submete a tese de Kant que nos leva a dizer que o
tema do ensaio que consideramos se prende decisivamente
com a questão da materialidade do ser e com o intento de
a «volatilizar».
Heidegger procura aqui, porventura, sugerir-nos — to­
mando Kant como pretexto e fomecendo-nos da sua tese uma
«leitura», talvez não «sintomal», mas sintomática— que a
existência não tem um fundamento material, que no fundo
ela é fruto de um representar, de uma Setzung subjectiva, de
uma relação em que à subjectividade advém um poder insti-
tuinte (certamente não total, nem arbitrário — de onde tam­
bém a preocupação heideggeriana em se demarcar de uma
linguagem do «sujeito», da «subjectividade» e da «consciên­
cia», embora permanecendo e reiterando um horizonte de
supostos que é basicamente, mas não no pormenor das dou­
trinas, o mesmo).

§ 6. A interpretação heideggeriana: o carácter relacional


(e não absoluto) da «posição». O existente é função
de uma posição «que afecta os sentidos». A acção
instauradora originária. Fichte: a posição do Não-Eu.

Este seria, por conseguinte, nos seus traços gerais, o pri­


meiro caminho que Heidegger empreenderia para a sua inter­
pretação da tese de Kant sobre o ser. Como vimos, partia de
uma afirmação central de Kant: «o ser não é predicado real».
O segundo caminho, a que aludimos, partiria de uma tese
kantiana complementar: «o ser é posição absoluta, e os sen­
tidos é que a atestam».
O objectivo de Heidegger parece-nos, aliás, ser muito
semelhante àquele a que as primeiras diligências conduziram:
subestimar as implicações do carácter absoluto da «posição»,
para antes insistir no seu carácter relativo/relacional e na sua
correspondente dependência face a uma acção originária de
radicação subjectiva.
Se, quanto a este tema, Heidegger não atinge os cumes
do requinte no intento de justificar — e de disfarçar— os
supostos francamente idealistas do seu pensamento, pelo me­
nos adquire uma embalagem bastante confortável para essa
ascensão.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 43
Depois de remeter a posição do ser para as tarefas repre­
sentativas em que o entendimento assume um papel determi­
nante, Heidegger parece retroceder ou, pelo menos, interro­
gar-se sobre se, afinal, a existência para K ant não envolveria
a necessidade de uma afecçõo pelos sentidos e sobre se esta
posição, claramente presente no texto kantiano, não viria
prejudicar a sua «leitura».
O ser seria função de um acto de posição de que o enten­
dimento se desempenharia; mas esta Setzung, por cujo inter­
médio, no pensar (ou na representação, Vorstellung) algo de
oposto (Gegen-stand, O b-jekt) se lhe contrapõe, não terá ela
própria de contar com algo — de «diverso» ou de «hetero­
géneo», arriscaríamos nós — que se apresente como «ponível»
ou «oponível»?
A ordenação transcendental do diverso da sensação não
terá de contar com a «materialidade» ou com o carácter hilé-
tico desses dados que afectam a receptividade em que a sen­
sibilidade consiste?
Heidegger parece responder afirmativamente:

«“Ser” significa, é certo, posição (Position), condi­


ção de estar posto (G esetztheit) no pôr pelo pensar
como acção do entendimento. Mas, esta posição só
pode, então, pôr algo como objecto (<Objekt), como
trazido à contraposição (Entgegengebrachtes), e trazê-
-lo, assim, à estação (Stand) como oójecto (Gegenstand),
se [algo de] ponível (Setzbares) for dado à posição
pela intuição sensível, isto é, pela afecção dos senti­
dos.» 32

O Setzbares, o tal «ponível» ou oponível, a raiz do «Gegen-


stand», aparece-nos aqui reconhecido como algo de «dado»
(gegeben) por intermédio dos sentidos e na modalidade da
afecçõo, isto é, como algo que afecta ou impressiona a — ou
que «resiste» à — sensibilidade.
No entanto, Heidegger vai facilmente dissipar a ameaça
de qualquer necessidade de reconhecer a materialidade ou, ao
menos, um fundamento material para o existente.
Se o «ser» é algo que nos afecta9 isso não significa contudo
que ele deixe de ser função de uma posição (subjectiva). Basta
dizer que é essa posição (subjectiva) que, precisamente, o põe
como afectando, para termos — no marco dos supostos idea-
44 JOSÉ BARATA-MOURA

listas (nunca transcendidos e, precisamente, a «justificar») —


o problema «resolvido»!
Apesar da nossa intenção crítica, cremos não estar de
modo algum a forçar ou a violentar os fundamentos em que
a leitura heideggeriana repousa. Com efeito, é ele próprio
quem afirma, logo na sequência do texto que referíamos:

«Somente a posição como posição de uma afecção


[sublinhado J. B.-M.] nos permite entender o que sig­
nifica para Kant ser do ente.»ss
No quadro das possibilidades consentidas para este jogo
teórico-doutrinário, a «posição» será susceptível de se efectuar
segundo uma pluralidade de modos. Assim, entre estes, poderá
sem dúvida imaginar-se também — e com legitimidade— o
da posição de algo «como afectando os sentidos».
«Afectar os sentidos» deixaria, nestes termos, de se apre­
sentar como garantia de independência relativamente a uma
qualquer posição (subjectiva). O «posto» poderia, em confor­
midade, continuar a sê-lo,jsó que ao abrigo de uma modalidade
específica segundo a qual seria suposto que «afectasse os
sentidos».
Toda a eventual problemática da materialidade do real se
veria, deste modo, à partida agasalhada pelo pressuposto, pela
condição prévia, de que também ela seria resultado de uma
posição por parte de uma outra instância, de tendência e
vocação subjectiva. A objectividade do ser — aparentemente
não negada (como poderia, aliás, sê-lo, face aos constantes
imperativos da prática em que o nosso viver consiste?) —
ver-se-ia, nestes termos, tolerada, desde que anteriormente
compreendida como constituindo-se no interior de uma subjec-
tividade, originária ou radical, de intenção posicionante.
Emaranhadas deambulações desta índole deveriam, assim,
habilitar Heidegger a poder conservar o princípio de que o
existente é função de uma posição — em termos genéricos,
pelo pensar, pelo sujeito, pelo eu, etc. — ao mesmo tempo que
a afirmação de que esse ser impressiona a nossa sensibilidade.
De facto, para além de outras coisas, o que impressiona
é a flagrante semelhança com a linhagem interpretativa de
Kant e da concepção idealista, em geral, que, por exemplo,
um Fichte leva a cabo.
DA REPRESENTAÇÃO À «PRÀXISt 45
Se recordarmos, além disso, que, em Sein imd Z eit, Hei-
degger também já havia dito que «a resistencialidade (Wider-
stàndigkeit) caracteriza o ser do ente intram undano»54 e que,
em seu entender, o Widerstàndig, o resistente, é strebenmãssig,
é conforme a um impulso (itrid.), mais clara se nos afigura
ainda a possibilidade de uma aproximação dos horizontes
problemático e de supostos de Heidegger e de Fichte.
O que «resiste», o que é «dado» (de modo ainda não deter­
minado, mas como mera presença impositiva) é aquilo que,
afinal, corresponde ou é conforme a uma acção originária
e originante.
O «material» não tem em si o seu fundamento — não é
reico, não é ontologicamente subsistente— depende de um
impulso (Trieb, Streben) prévios, cuja missão é, precisamente,
estabelecer isso que aparece como «materialidade», no fundo,
como correlato de uma posição fundante, mais radical.
A matéria — aparentemente auto-suficiente no seu ser de
existente objectivo— ver-se-ia, assim, reduzida à condição de
mero acompanhante necessário (e indeterminado?) de um
esforço, de um impulso, de determinação teórica e de ope­
ração prática (tendencialmente manipuladora, «técnica»).
Seria, no fundo, a actualidade do Streben a pôr ou a im-pôr
a vigência de obstáculos, de resistências, de «realidades», a
vencer, a determinar ou, simplesmente, a acolher e a fazer
vir à fala na luminosidade do «Ser».
Neste contexto problemático, e no quadro do paradigma
de soluções que aqui se desenha, não podemos deixar de
recordar a concepção fichteana do Não-Eu como função de
uma originária posição de um Eu, não teórico — não limitado
por qualquer «ob-jecto» que de antemão o enfrente ou se lhe
contraponha—, mas fundamental e primordialmente activo.
Como Fichte afirma na Wissenschaftslehre de 1794:

«Por conseguinte, a passagem do pôr (Setzeri) ao


contrapor (Entgegensetzen) também só é possível pela
identidade do Eu.
Por esta acção absoluta, então, e somente por ela,
é que o contraposto, na medida em que é algo de con­
traposto (como mero contrário, em geral), é posto.
Todo o contrário, na medida em que o é, é muito sim­
plesmente por força de uma acção do Eu, e não a partir
de qualquer outro fundamento. O ser contraposto, em
geral, é muito simplesmente posto pelo Eu.» ”
46 JOSÉ BARATA-MOURA

O Não-Eu defronta-se-nos imediatamente, à primeira vista,


como algo de independente, de a nós materialmente contra­
posto. Toda a argumentação de Fichte, neste particular, vai
no sentido de, sem anular a condição empírica de contraposto
a um Eu que o Não-Eu possui, reduzir ou dissolver integral-
mente a aparente independência ou autonomia ontológica
desse Não-Eu.
A partir do remeter da condição de afectante de que o
«ser» se reveste ao nível da sua imposição à sensibilidade, para
uma modalidade de posição mais requintada em que, precisa-
mente, o ser é posto (pelo pensar) como afectando os sentidos,
Heidegger pode tranquilamente desenrolar — só à primeira
vista, acompanhando Kant — toda a sua interpretação.
O existente é uma posição atestada ou dada pelos sentidos.
Todavia, argumenta Heidegger, para Kant, os sentidos são
incapazes de unificar; manifestam uma diversidade, uma
Mannigfaltigkeit, que recebe de uma outra origem a sua arti­
culação, a sua ordenação, a sua ligação (Verbindung):

«A ligação nunca pode, contudo, vir pelos sentidos.


Todo o ligar provém, segundo Kant, daquela força
[ou faculdade] de representação (V orstellungskraft)
que se chama entendimento (Verstand).»36
Assim, segundo o que Fichte entende dever ser tarefa
central da ontologia do conhecimento, haverá que mostrar
como o aparentemente irredutível, no âmbito de uma cons­
ciência empírica, pode ser e é deduzido com necessidade de
uma acção originariamente instauradora de um Eu que, na
sua radicalidade e primordialidade, se não confunde com a
multiplicidade empírica dos eus individuais.
O essencial não é, pois, aos olhos do idealismo moderno,
negar a ob-jectividade do real, o facto de termos diante e fora
de nós um mundo com que nos defrontamos. O essencial será,
sim, procurar negar, através dos expedientes doutrinários mais
sofisticados ou exóticos, a materialidade desse real, antepon­
do-lhe, designadamente, todo um sortido de condições s\à>
jectivas de possibilidade, de matriz assumidamente egóica ou
outra.
Apesar de todas as manifestas diferenças, ao nível ime­
diato ou superficial das doutrinas de Fichte e de Heidegger
no que respeita a estas questões, mas também através de todas
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÀXISi 47
essas diferenças, é, no fundo, um mesmo solo comum de
supostos que paulatinamente se nos vai revelando.

§ 7. A ocultação da fundam entação m aterial do ser. P osi­


ção, proposição*, «Verbindung». A m esm idade de
pensar e ser, encarada de um ponto de v ista idealista.

Ainda que deixando de lado toda a importante questão


de saber como é que no conjunto do pensamento de Kant
— e, designadamente, da primeira e da terceira Críticas — se
articulam instâncias tão relevantes como o entendimento
(Verstand), a imaginação (Einbild ungskraft) e a faculdade de
julgar (U rteilskraft), no que toca à compreensão da proble­
mática da síntese e da sua radicação última, voltamos aqui
ao suposto que norteia a tal inflexão que Heidegger introduz
na tese de Kant.
A unificação ou Verbindung de que Kant fala tem a ver
com a produção das formas que vão constituir e estruturar
a cognoscibilidade dos fenómenos; não se prende com a con­
dição de eles apresentarem uma base hilética, que é uma
incógnita. No entanto, Heidegger volta a interpretar esta
ligação transcendental — que aponta para a determinação de
um conteúdo formal a conhecer — como reportando-se à mera
posição (seguramente, não absoluta) do existente.
Isto é, segundo Heidegger, o ser é posição, mas esta posi­
ção é uma Verbindung, uma ligação. Do mesmo modo que
a posição, como vimos, não tem um fundamento na materia­
lidade das coisas — já que, para Heidegger, o «ser» não seria
real, reico—, por maioria de razão, também a ligação tem
de remeter para outra instância (um pensar) que a sustente.
A posição — heideggerianamente entendida — assume, pois,
o carácter de uma Verbindung:

«A posição (Position) tem o carácter da proposição


(Proposition), isto é, do juízo, pelo qual algo é proposto
(vorgesetzt) como algo, pelo qual um predicado é atri­
buído a um sujeito por meio do “ 6”.» 37
Mais: esta posição como ligação é assimilada ao juízo, à
estrutura predicativa de que explicitamente Kant pretendia
arrancar a determinação do «ser» como existência (vejam-se
os textos que citamos nas notas 17 e 18).
48 JOSÉ BARATA-MOURA

A predicação é, por certo, uma ligação — e Kant entende-a


como possuindo um fundamento subjectivo: a unidade ori­
ginária da consciência —, mas o que Kant justamente procura
evitar é que o problema do ser como «posição absoluta» venha
a ser encarado segundo o paradigma da predicação que, de
algum modo, é também o esquema da atribuição de conceitos
e não o atestar de uma presença material.
Conduzindo o seu raciocínio na base dos pressupostos
desta inflexão da tese kantiana, Heidegger facilmente chega
a mostrar que, para Kant, o fundamento da ligação se encon­
tra no entendimento, no «eu penso», etc. Isto é, admitida
esta leitura do «ser» como «posição» — ou seja, para Hei­
degger, posição para e por um sujeito— e como ligação
(Verbindung), trata-se de seguir Kant e de declarar que o
fundamento da ligação (isto é, da posição, do «ser») é o enten­
dimento ou o que na sua raiz se encontre.

A Zusammengehôrigkeit, a pertença comum ou conjunta,


do ser e da unidade, de que Heidegger fala S8, pode agora ser
vista a uma nova luz.
Não se trata apenas de sublinhar o carácter radicalmente
unificador do ser, de que o £v iwÉvrot de HeraclitoM ou a
esfericidade do ser de Parménides40 poderiam ser expressão.
Trata-se, sim, de vincular a dimensão unificante do ser a um
fundamento (pensar) que o põe e consequentemente o faz
unificar: e, por isso, segundo Heidegger, há que ressuscitar
(interpretado nestes termos) o yàp a utò voefv èarív tc xai etvat
«é, com efeito, o mesmo pensar e ser», de Parménides41.
Na raiz do carácter unificador de um ser que é posição
quer Heidegger descobrir uma fundamental acção instituinte:
a unidade originariamente sintética da apercepção que, pre­
cisamente, seria o ev que permitiria o surgimento do <xúv
(zusammen) de qualquer Q&iç (Setzung) 42.
Isto é, a «tese» ( 0é<Jtí, Setzung) nunca é mera posição,
mero estar posto. A «tese» seria sempre «síntese» ( <Túu9eaiç9
Zusammen setzung), porque o posto, o contraposto, está sem­
pre acompanhado, está sempre junto com (zusammen) algo
de outro — a instância que o põe— de que é função.
O ser nunca é mera posição absoluta; é sempre com-posi-
ção, posição juntamente com outrem, porque, em última ins­
tância, é sempre posição por outrem.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 49
O «positivo» teria, pois, de ser encarado verdadeiramente
como um positum ou, mais originariamente, como um com-
-pósito. Não apenas porque na sua determinação se entrelaçam
diferentes propriedades que definem formalmente a sua con­
creção, mas radicalmente porque todo o dado supõe um doador,
uma fonte originária da sua própria dação. Todo o ente,
toda a existência, pressuporia, assim, na sua própria actuali-
dade, a presença ou a função de uma outra instância sua
instituinte ou posicionadora.
Tudo se passaria, nestes termos, como se o essencial do
idealismo residisse na mera outorga de um estatuto de ante­
rioridade à condição subjectiva de possibilidade do real e
como se, uma vez decretada a con-temporaneidade ou a posi­
ção con-junta (sín-tese) de «posicionador» e de «posto», o
espectro desse mesmo idealismo tranquilamente se desvane­
cesse.
Uma vez mais, é ainda a questão da materialidade do ser
que continua a aparecer-nos mistificada — e, efectivamente,
negada.

Como o próprio Heidegger refere:

«A diversa positividade [G esetztheit, as diferentes


coisas que estão postas] é determinada a partir da fonte
da posição originária. Esta é a síntese pura da aper-
cepção transcendental. Ela é o acto originário (Urakt)
do pensar que conhece.»43

A tese de K ant não quereria, portanto, dizer que o ser é


em si posição, mas: que o ser é posto. E é posto a partir da
unidade originariamente sintética da apercepção, que possui
uma função determinante, instituinte.
Não deixa, aliás, de ser uma vez mais de assinalar a inter­
pretação heideggeriana desta unidade como Urakt des Den-
kens.

O tema do U rakt evoca-nos, de novo, Fichte, o Ur-Ich e


as funções instituintes que lhe são cometidas, embora num
quadro em que ele, designadamente, intenta transcender o
plano limitado da contraposição representativa para alcançar
a instância mais radical de uma Tathandlung originária 44.
O acto originário da síntese — que em K ant alcança uma
significação fundamentalmente formal, ao desenvolver-se ex-
50 JOSÉ BARATA-MOURA

clusivamente no âmbito transcendental da objectivação e da


determinação daquilo que é dado ao conhecimento— reveste,
em Heidegger, uma intenção ontológica mais funda: a sín-tese
originária devém com-posição, posição conjunta, do dado e
da sua condição de possibilidade «existencial».
Esta inflexão heideggeriana recupera afinal uma dupla
temática querida ao idealismo alemão, em geral, e particular­
mente a Fichte. Por um lado, a dissolução ou a evacuação
do «em si» kantiano, que, apesar da inacessibilidade gnosio-
lógica do seu estatuto, não deixava de tornar presente a neces­
sidade de um material irredutível à consciência, à «razão».
Por outro lado, a interpretação da condição instauradora
essencialmente como acto, como acção originária que, sus­
tentando a consciência empírica individual, comanda não
apenas a sua operação como também e previamente a posição
do respectivo horizonte de objectos ou «realidades».
A vinculação deste acto originário ao pensar, como ocorre
nesta passagem de Heidegger que referimos, recorda-nos que,
em última análise, é deste mesmo pensar que o ser — como
posto por ele ou por um seu Urakt — decorre.
Em última instância, temos a tese idealista «clássica» de
que, mesmo através de uma requintada sequência de media­
ções com laivos greco-kantianos, é o pensar que comanda o
ser. Por simplista que possa parecer, é abertamente para aí
que somos finalmente remetidos. !É este o «segredo» das con­
cepções de Heidegger, e é a partir dele que opera toda a série
de inflexões e torções à tese de Kant sobre o ser, em ordem a
afeiçoá-la mais a seu jeito.

§ 8. A investida de Heidegger contra a materialidade


— incógnita, m as necessária — em Kant. Articulação
«ideal» de forma e m atéria no conhecer e exigência
kantiana de um suposto hilético na intuição sensível.
A tem ática heideggeriana da condição originária de
possibilidade do «ser».

Já é tempo de concluir.
A tese de Kant sobre o ser aponta, em nosso entender,
para a posição de uma materialidade incógnita, mas necessária.
A leitura heideggeriana interpreta fundamentalmente a posi­
ção como relação (do sujeito à coisa) e não como afirmação
da materialidade do seu núcleo objectivo.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXISi 51
Isto é, K ant proclama inegavelmente a idealidade das
determinações formais que o conhecimento requer para orde­
nar o diverso e o poder conhecer; mas, de modo algum, advoga
a completa idealidade de todos os elementos ou instâncias
em presença. Há dados — em si, indeterminados formalmente,
no sentido de que toda a determinação é subjectiva, mas, por
isso mesmo, determ ináveis— com que é indispensável contar
(até para que algo — Etwas — possa ser conhecido e não apenas
pensado*5) e que têm uma radicação material.
Para Kant, a «posição» em que o ser consiste é fundamen­
talmente: posição de uma matéria incognoscível, mas presente.
Na interpretação de Heidegger, a «posição» é essencial­
mente relação ou ligação com uma subjectividade unificadora:
a posição reside na articulação da forma e da matéria.
Como Heidegger escreve:

«A posição mostra-se na articulação de forma e


matéria. [...]. O ser como posição está situado [erõrtert
wird, é-lhe dado um lugar], isto é, submetido à arti­
culação da subjectividade humana como o lugar da
sua proveniência essencial.»48

Ora, é claro que, mesmo para K ant, na articulação da


forma e da matéria (do conhecimento), o sujeito — a unidade
originária da apercepção — já se encontra envolvido. Daí que
o que ele, precisamente, pretenda — e que Heidegger não
considera— seja chamar a atenção para a necessidade da
presença de algo antepredicativamente posto ou presente na
sua materialidade.
O «sentido», o conhecimento, vêm, para Kant, da forma;
mas, da forma, no quadro de uma peculiar e complexa arti­
culação final com algo de material, incógnito.
A forma, que confere as determinações, aplica-se, por
certo, a uma «matéria» (do conhecimento, «ideal»47) que lhe
é fornecida pelos sentidos, na intuição, espacio-temporalmente
organizada (e, portanto, já sujeita, ela também, a uma deter­
minada síntese, mediante a intervenção das formas a priori
da sensibilidade).
No entanto, a própria sensibilidade, na sua raiz, é funda­
mentalmente receptividade, afectabilidade, por instâncias hilé-
ticas, materiais — indetermináveis no que em si sejam, incog-
52 jo sé BARATA-MOURA

noscíveis em si mesmas (porque todo o conhecimento requer,


para Kant, o nível fenomenal, e o nível numénico lhe está
vedado), mas objectivamente indispensáveis a qualquer expe­
riência, a qualquer conhecimento.
É para procurar dar conta da necessidade da presença
dessa instância material irredutível, irracional, não dedutível
do pensar (dos conceitos), que Kant desenvolve a sua tese
sobre o ser como «posição absoluta em si mesmo».
Esta tese, como vimos, perpassa — quanto ao essencial e
apenas com os correspondentes ajustamentos à adopção do
idealismo transcendental— toda a obra de Kant, desde o
Beweisgrund de 1763, à primeira e segunda edições da Kritik
der reinen Vem unft de 1781 e 1787, às três edições da Kritik
der Urteilskraft de 1790, 1793 e 1799, onde a realidade
(Wirklichkeit) de uma coisa continua a significar algo que
se estende ou encontra para além do mero conceito que pro­
videncia a sua cognoscibilidade. A realidade — e, com ela,
a existência—, portanto, «significa a posição da coisa em si
mesma (fora desse conceito)» 48.

Heidegger, por sua vez, move-se no horizonte de supostos


algo diversos. Necessita de se desembaraçar da materialidade
para poder desenvolver e justificar as suas teses acerca da
identidade ou da mesmidade (Selbigkeit) do pensar e do ser.
Tal como dizíamos no começo, o grande tema do ensaio
é a relação pensar e ser, que acaba por revelar-se, aos olhos
de Heidegger, sob a forma da mesmidade.
A Selbigkeit do ser e do pensar significa, de alguma ma­
neira, que o pensar é o ser (e, portanto, só como reflexão de
reflexão será pensar do ser, isto é, pensar de si próprio como
unificação ou condição de manifestação dos entes — tarefa
do ser, no âmbito da temática da diferença ontológica) e
também, inversamente, que o ser é o pensar.
Ora, esta identidade ambígua que tenta não assumir o
idealismo que lhe está na raiz, não nos restem dúvidas, só
pode manter-se e sustentar-se no pressuposto teórico de uma
negação ou de uma dissolução da materialidade. Só porque
o ser não é material pode a identidade do ser e do pensar
operar-se na base do pensar.
É no quadro desta ambiguidade fundamental — que pro­
cura desvanecer ou extirpar a questão da materialidade —
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 53
e dos supostos em que assenta que são, designadamente, de
entender estas palavras da Carta sobre o Humanismo:

«O pensar, dito simplesmente, é o pensar do ser.


O genitivo tem um duplo sentido. O pensar é do ser,
na medida em que o pensar acontece (ereignet) a partir
do ser, pertence ao ser. O pensar é, ao mesmo tempo,
pensar do ser, na medida em que o pensar, pertencendo
ao ser, escuta o ser. Como aquilo que pertence ao ser
e o escuta, o pensar é aquilo que é segundo a sua
proveniência originária. O pensar é — isto significa: o
ser, segundo a sua destinação, tomou a cargo a sua
essência.»49

Esta referência dupla do pensar ao ser vai, no entanto,


revelar um peculiar sujeito ontológico: a estrutura de ligação
ou de vinculação do pensar ao seu objecto, a instância pro­
piciadora da manifestação, em geral. Este é o segredo de toda
a ontologia heideggeriana. Este é o suposto uno que atravessa
e dá sentido ao próprio projecto de uma Kehre.

Referindo-se ao «ser» e ao «pensar», Heidegger diz-nos


que «ambos não são, manifestamente, nada de parecido com
coisas e objectos...»50. Nesta medida, o mais importante não
será questioná-los na sua especificidade ou diversidade — a
multiplicidade que é característica ou sinal dos entes —, mas
pensar a sua ligação: a instância que articula a sua mesmidade
ou identidade.

«Ser e pensar: neste “ é” oculta-se o digno-de-ser-


-pensado (das Denkwurdige), tanto da filosofia até
agora, como também do pensar hodierno.»51

Este «e» transforma-se, porém, para Heidegger, como vi­


mos, num «é», já que ser e pensar são idênticos ou o mesmo.

«No "é ” que não aparece esconde-se todo o digno-


-de-ser-pensado do ser.»52

Isto é, o que importa pensar como digno de ser pensado


é o ser que faz «ser» e «pensar» revelarem a sua identidade
radical, é o ser que faz com que haja entes (não se confun­
dindo nem reduzindo a eles ou às suas modalidades ônticas de
54 JOSÉ BARATA-MOURA

manifestação), é o ser que é radical condição de possibili­


dade 5#.
Para Heidegger, esse Ser não pode ser como os entes,
pois deixaria de poder constituir-se como condição (prévia)
de possibilidade, como instância verdadeiramente inaugural
ou instituinte.
«O Ser não pode ser. Se fosse, não permaneceria
mais: Ser, mas seria um ente.»M
A procura deste «Ser», grafado de modos vários, riscado
ou identificado com o «nada», é, sem dúvida, um dos temas
fundamentais — se não mesmo: o tema fundamental— de
investigação de Heidegger.
Tão persistente quanto esta demanda é, por certo, o intento
de se demarcar relativamente ao vocabulário do «eu», da
«consciência», do «sujeito», do «homem», da «antropologia»,
etc. — isto é, das diversas figuras predominantes por que a
modernidade tem expressado o idealismo e a sua justificação.
Curiosamente, esta demarcação não visa abandonar o idea­
lismo, mas tão-só reentronizá-lo sob outras roupagens ou com
um guarda-roupa renovado.
A ambiguidade, as dificuldades, as «hesitações», a procura
e o forjar de novas fórmulas não provêm de qualquer pesquisa
ou de qualquer alteração ao nível radical dos fundamentos,
mas das tentativas de encontrar novas ou diferentes expressões
para traduzir o mesmo suposto idealista, classicamente emer­
gente, por exemplo, no idealismo alemão — tantas vezes dene­
gado por Heidegger na superfície das soluções e permanente-
mente afirmado/confirmado na persistência reitora dos su­
postos.
Haverá, sem dúvida, que pensar, que falar de e que apro­
fundar toda uma unidade do ser e do pensar que, de modo
algum, está em si mesma condenada a ter de arrastar pressu­
postos idealistas, confessos ou encapotados.
A aventura do pensar filosófico por estas paragens tem
decorrido e discorrido; neste horizonte continuará também a
desenvolver-se.
Notas

1 Cf. M. Heidegger, K ants These iiber das Sein (doravante: Kants


These); Wegmarken (doravante: Wm), F ran k fu rt am Main, Vittorio
Klostermann, 1967, pp. 273-307.
Publicado, pela primeira vez, em: Existenz und Ordnung, Fest-
schrift fu r E rik W olf zum 60, Geburtstag, F rankfurt am Main,
V. Klostermann, 1962, pp. 217-245.
1 Cf. F. Bacon, N ovum Organum, II, aph. xi-xm ; ed. T. Fowler,
Oxford, Clarendon Press, 1898, pp. 360-395.
* «Alies, was uns erreicht und wohin wir reichen, geht durch
das gesprochene oder ungesprochene “es ist" hindurch.», M. Heidegger,
Kants These; Wm, p. 273.
4 Das Recditãtsproblem in der modernen Philosophie foi publi­
cado, em 1912, no Philosophisches Jahrbuch.
Sobre o problema das relações entre o pensamento de Heidegger
e o de Kant: Hansgeorg Hoppe, «Wandlungen in der Kant-Auffassung
Heideggers», Durchblicke. Festschrift fu r Martin Heidegger zum 80.
Geburtstag, F rankfurt am M ain, V. Klosterm ann, 1969, pp. 284-317;
e H enri Declève, Heidegger e t K ant, L a Haye, M. Nijhoff, 1970.
Podem ver-se também: Charles M. Sherover, Heidegger, K ant
and Tim e, Bloomington, Indiana University Press, 1971; José Luis
Molinuevo, «EI diálogo de Heidegger con K ant en “Ser y Tiempo"»,
Anales del Seminário de Metafísica, M adrid, 9 (1974), pp. 177-194, e
«La fundamentación kantiana de la metafísica según Heidegger»,
Pensamiento, M adrid, 32 (1976), pp. 259-279; José M aria A rtola
Barrenechea, «Kant en la interpretación de M artin Heidegger»,
Anales del Seminário de M etafísica, Madrid, 12 (1977), pp. 37-57;
Jozef van de Wiele, «Kant et Heidegger. Le sens d’une opposition»,
R evue Philosophique de Louvain, Louvam, 76 (1978), pp. 29-53; Pio
Colonnello, Heidegger interprete di K ant, Génova, Studio Editoriale
di Cultura, 1981.
56 JOSÉ BARATA-MOURA

5 «Kants Grundlegung der Metaphysik fiihrt auf die transzen-


dentale Einbildungskraft. Diese ist die Wurzel der beiden Stamme
Sinnlichkeit und Verstand. Ais solche ermoglicht sie die urspríingliche
Einheit der ontologischen Synthesis.», Heidegger, Kant und das
Problem der Metaphysik, Bonn, Cohen, 1929 (doravante: KPM),
p. 194.
* Como igualmente no Kantbueh se refere:
«A pergunta pela essência da metafísica 6 a pergunta
pela unidade das faculdades fundamentais do “espírito" hu­
mano. A fundação kantiana mostra que a fundamentação
da metafísica é um perguntar pelo homem, isto é, antropo­
logia.»,
«Die Frage nach dem Wesen der Metaphysik ist die Frage nach
der Einheit der Grundvermõgen des menschlichen “Gemiits". Die
Kantische Grundlegung ergibt: Begrundung der Metaphysik ist ein
Fragen nach dem Menschen, d. h. A nthropologie.», Heidegger, KPM,
p. 196.
Um comentário mais aprofundado desta passagem obrigaria
seguramente a um detenimento na discussão da tradução proposta
— e meramente aproximativa— de Gemut por «espírito», particular­
mente no contexto de um diálogo com a problemática de Kant.
Se é certo que não seria de aceitar pacificamente a identificação
sugerida por Heidegger entre o Gemut kantiano e um «sujeito humano»
compreendido em termos de «reflexividade» (como Reflexion, Ueber-
legung; cf. Kants The se, Wm, p. 300), igualmente problemática e
indiciadora de forte contaminação fenomenológica de inspiração
merleau-pontyana me parece ser a proposta de Henri Declève (cf.
Heidegger et Kant, La Haye, Nijhoff, 1970, p. 239) de tradução por:
«corps agent», «corps-sujet», corpo agente, corpo-sujeito.
Segundo a caracterização kantiana:
«Por Gemut entende-se apenas a faculdade (animus) que
põe em conjunto as representações dadas e que efectua a
unidade da apercepção empírica, não ainda a substância
(anima), segundo a sua natureza totalmente diferenciada da
matéria, de que então se abstrai.»,
«Unter Gemut versteht man nur das die gegebenen Vorstellungen
zusammensetzende und die Einheit der empirischen Apperzeption
bewirkende Vermõgen (animus), noch nicht die Substanz (anima),
nach ihrer von der Materie ganz unterschiedene Natur, von der man
alsdann abstrahiert», Kant, Aus Sommering: Ueber das Organ der
Seele\ Ak., vol xn, p. 32.
1 Heidegger pronuncia-se ele próprio sobre o sentido da Kehre
no que se refere ao seu pensamento, designadamente, numa carta a
Richardson: cf. William J. Richardson, Heidegger: Through Pheno-
menology to Thought, The Hague, M. Nijhoff, 1963, pp. vm-xxui.
Veja-se também Otto Põggeler, Der Denkweg Martin Heideggers,
Pfullingen, Neske, 1963, e Orlando Pugliese, Vermittlung und Kehre.
Grundzuge des Geschichtsdenkens bei Martin Heidegger, Freiburg-
-Miinchen, Karl Alber, 1965.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 57
Tendo em conta a problemática de Platons Lehre von der
Wahrkeit e, sobretudo, de Brief uber den Humanismus: Otto F.
Boilnow, «Heideggers neue Kehre», Zeitschrift fúr Religions- und
Geistesgeschichte, Leiden-Heidelberg, 2 (1949-1950), pp. 113-128 e
Karl Lowith, «Heideggers “K ehre”», Die neue Rundschau, 62 (1951),
pp. 48-79, retomado em Heidegger D enker in durftiger Z eit, Frank-
furt am Main, S. Fisher, 1953, pp. 7-42.
• Como aí se refere:
«Quanto maior é a obra de pensamento de um pensador
— o que, de modo nenhum, coincide com o volume e o
número dos seus escritos— tanto mais rico é o impensado
nesta obra de pensamento, isto é, aquilo que, pela primeira
vez e só através desta obra de pensamento, assoma como o
ainda não pensado.»,

«Je grõsser das Denkwerk eines Denkers ist. das sich keineswegs
mit dem Umfang und der Anzahl seiner Schriften deckt, um so reicher
ist das in diesem Denkwerk Ungedachte, d. h. jenes, was erst und
allein durch dieses Denkwerk ais das Noch-nicht-Gedachte herauf-
kommt.», Heidegger, Der Satz vom G rundf Pfullingen, Neske, 1965*
pp. 123-124.
No ensaio sobre Platão e a verdade, Heidegger afirmava também:

«A “doutrina” de um pensador é o não-dito no seu di­


zer [...]»,

«Die “Lehre” eines Denkers ist das in seinen Sagen Ungesagte


[...]», Heidegger, Platons Lehre von der Wahrheit; Wm, p. 109.
* «Sein und Denken: in diesem “und” verbirgt sich das Denk-
wúrdige sowohl der bisheringen Philosophie ais auch des heutigen
Denkens.», Heidegger, Kants These; Wm, pp. 304-305.
" «Im unscheinbaren “ist” verbirgt sich alies Denkwiirdige des
Seins.», Heidegger, Kants These; Wm, p. 306.
11 «Die Beziehung zwischen Denken und Sein ist die Selbigkeit,
die Identitat.», Heidegger, Kants These; Wm, p. 304.
12 «Beide sind offenkundig nichts dergleichen wie Dinge und
Gegenstande, [...]», Heidegger, Kants These; Wm, p. 304.
13 A Verbindung, a ligação, como «Vorstellung der synthetischen
Einheit des Mannigfaltigen», como representação da unidade sinté­
tica do diverso, é «ein Actus der Spontaneitat der Vorstellungskraft»,
um acto da espontaneidade do poder de representação, é um acto da
auto-actividade (Selbsttâtigkeit) do sujeito. Cf. Kant, K ritik der reinen
V em unft (doravante: KrV), B 130.
14 «Die Position und ihre Modalitaten des Daseins bestimmen
sich aus dem Denken.», Heidegger, Kants These; Wm, p. 296.
58 JOSÉ BARATA-MOURA

14 Na sequência da pergunta pelo fundamento da possibilidade


de uma qualquer Verbindung, Kant vai chamar a atenção para o
papel do «eu penso» e falará da «urspriinglich-synthetische Einheit
der Apperzeption», da unidade originária-sintética da apercepção.
«Portanto, todo o diverso da intuição tem uma relação
necessária com o “eu penso**, no mesmo sujeito em que esse
diverso se encontra. Esta representação, porém, é um acto
da espontaneidade, isto é, ela não pode ser considerada como
pertencente à sensibilidade.»,
«Also hat alies Mannigfaltig der Anschauung eine notwendige
Beziehung auf das: Ich denke, in demselben Subjekt, darin dieses
Mannigfaltige angetroffen wird. Diese Vorstellung aber ist ein Actus
der Spontaneitat, d. i. sie kann nicht ais zur Sinnlichkeit gehorig
angesehen werden.», Kant, KrV, B 132.
w «Sich selbst setzen und Sein sind, vom Ich gebraucht, võllig
gleich.», J. G. Fichte, Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre,
I, § 1; Werke, ed. I. H. Fichte (doravante: W), Berlin, W. de Gruyter,
1971, vol. i, p. 98.
17 Como neste texto de 1763 se pode ler:
«[...] num existente não está posto nada mais do que num
mero possível (pois o discurso é acerca dos seus predicados);
simplesmente: através de algo de existente é posto mais do
que através de um mero possível, pois aquele trata também
da posição absoluta da própria coisa. Com efeito, na mera
possibilidade, não é posta a própria coisa, mas meras relações
de alguma coisa com alguma coisa segundo o princípio de
contradição, e permanece firme que a existência propriamente
[dita] não é nenhum predicado de nenhuma qualquer coisa.»,
«[...] in einem Existierenden wird nichts mehr gesetzt ais in
einem bloss Mõglichen (denn alsdenn ist die Rede von den Pradikaten
desselben), allein durch etwas Existierendes wird mehr gesetzt ais
durch ein bloss Mõgliches, denn dieses gehet auch auf absolute Posi-
tion der Sache selbst. So gar ist, in der blossen Mõglichkeit, nicht die
Sache selbst, sondem es sind blosse Beziehungen von etwas zu etwas
nach dem Satz des Widerspruchs gesetzt, und es bleibt fest, dass das
Dasein eigentlich gar kein Prádikat von irgend einem Dinge sei.», Kant,
Der einzig mògliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins
Gottes, I, I, 3; Ak., vol. n, p. 75.
14 «Sein ist offenbar kein reales Prádikat, d. i. ein Begriff von
irgend etwas, was zu dem Begriffe eines Dinges hinzukommen kõnne.
Es ist bloss die Position eines Dinges, oder gewissen Bestimmungen
an sich selbst. Im logischen Gebrauche ist es lediglich die Kopula
eines Urteils.», Kant. KrV, A 598, B 626.
14 Procurando combater a indeterminação em que tradicional-
mente é deixada a relação (entre conceitos) em que o juízo é dito
consistir, Kant sublinha o papel transcendentalmente constitutivo que
aí desempenha a unidade originária da apercepção:
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS* 59
« [...] um juízo não é outra coisa do que a maneira de
trazer conhecimentos dados à unidade objectiva da apercep­
ção. A partícula-de-relação é, nele [no juízo], visa isso:
diferenciar a unidade objectiva de representações dadas da
[unidade] subjectiva. Pois, ela designa a relação daquelas
[representações] à apercepção originária e a unidade neces­
sária delas, mesmo se o juízo é ele próprio empírico e, por­
tanto. contingente.»,
«[...] ein Urteil nichts andres sei, ais die A rt, gegebene Erkennt-
nisse zur objektiven Einheit der Apperzeption zu bringen. D arauf
zielt das Verhàltniswõrtchen ist in denselben, um die objektive Einheit
gegebener Vorstellungen von der subjektiven zu unterscheiden. Denn
dieses bezeichnet die Beziehung derselben auf die urspríingliche
Apperzeption und die notwendige Einheit derselben, wenn gleich das
Urteil selbst empirisch, mithin zufãllig ist.», K ant, KrV, B 141-142.
Não nos devemos, todavia, precipitar quanto a este uso kantiano
dos qualificativos de «objectivo» e de «subjectivo». O «objectivo» diz
aqui respeito àquilo que se prende com a unidade conceptual do
objecto, por contraste, designadamente, com a dispersão empírica do
diverso que ele contém.
«A unidade transcendental da apercepção é aquela pela
qual é reunido num conceito de objecto todo o diverso dado
numa intuição. Ela chama-se, por isso, objectiva e tem de ser
diferenciada da unidade subjectiva da consciência, que é
uma determinação do sentido interno pela qual esse diverso
da intuição é dado empiricamente para uma tal ligação.»,
«Die transzendentale Einheit der Apperzeption ist diejenige,
durch welche alies in einer Anschauung gegebene Mannigfaltige in
einen Begriff von Objekt vereinigt wird. Sie heisst darum objektiv,
und muss von der subjektiven Einheit des Bewusstseins unterschieden
werden, die eine Bestimmung des inneren Sinnes ist, dadurch jenes
Mannigfaltige der Anschauung zu einer solchen Verbj&dung empi­
risch gegeben wird.», K ant, KrV, B 139.
A object uaiidade — a condição de objecto para uma consciência
possível— que a unidade sintética da apercepção proporciona não
encerra, por conseguinte, como tal qualquer implicação ontológico-
-existencial. Para Kant, a referência necessária à unidade originária
da apercepção é fautora de objectualidade, não de objectividade ou
de materialidade.
«A unidade sintética da consciência é, portanto, uma
condição objectiva de todo o conhecimento, não apenas pre­
ciso dela para conhecer um objecto, mas também cada intui­
ção tem de permanecer sob ela para se tornar objecto para
mim, pois, de outro modo, e sem essa síntese, o diverso não
se unificaria numa consciência.»,
«Die synthetische Einheit des Bewusstseins ist also eine objektive
Bedingung aller Erkenntnis. nicht deren ich bloss selbst bedarf, um
ein Objekt zu erkennen, sondem unter der jede Anschauung stehen
muss, um fiir mich O bjekt zu werden, weil, auf andere Art, und
60 JOSÉ BARATA-MOURA

ohne diese Synthesis, das Mannifaltige sich nicht in einem Bewusstsein


vereinigen wiirde.», Kant. KrV, B 138.
A referência ao sujeito, para Kant, é, pois, condição de possi­
bilidade da sua apresentação numa consciência sob a figura de
«objecto» e também condição da sua própria unidade interna (uma
vez que as determinações formais carecem de qualquer fundamento
material); de modo algum, porém, é como tal condição da sua exis­
tência ou da sua posição absoluta no ser. Cf. Kant, KrV, B 140-142.
30 «Sich einen Gegenstand denken, und einen Gegenstand erken-
nen, ist also nicht einerlei. Zum Erkenntnisse gehoren námlich zwei
Stiicke: erstlich der Begriff, dadurch uberhaupt ein Gegenstand
gedacht wird (die Kategorie), und zweitens die Anschauung, dadurch
er gegeben wird; denn, kõnnte dem Begriffe eine korrespondierende
Anschauung gar nicht gegeben werden, so wáre er ein Gedanke der
Form nach. aber ohne allen Gegenstand, und durch ihn gar keine
Erkenntnis von irgend einem Dinge mõglich; weil es, so viel ich
wiisste, nichts gabe, noch geben kõnnte, worauf mein Gedanke
angewandt werden kõnne.», Kant, KrV, B 146.
31 «Ein Verstand, in welchen durch das Selbstbewusstsein zugleich
alies Mannigfaltige gegeben wiirde, wiirde anschauen; der unsere kann
nur denken und muss in den Sinnen die Anschauung suchen.», Kant,
KrV, B 135.
33 «Wáre námlich unser Verstand anschauend, so hàtte er keine
Gegenstánde ais das Wirkliche.», Kant, Kritik der Urteilskraft (dora­
vante: KU), § 76; Ak., vol. v, p. 402.
33 Em recente e muito interessante trabalho, 9 Professor Oswaldo
Market ocupa-se, precisamente, deste tema do diverso (das Mannig­
faltige) na gnosiologia kantiana — cf. O. Market, «Das Mannigfaltige
und die Einbildungskraft», Akten des 5. Internationalen Kant-Kon-
gresses, Teil /./, ed. G. Funke, Bonn, Bouvier, 1981, pp. 255-267.
No horizonte da sua tese — que me parece ser a de que a imagi­
nação é a condição radical da experiência, em virtude do seu poder
«produtivo», ordenador, havendo, portanto, que ir mais além de
Kant — assume particular relevo a aproximação da «matéria» e do
«diverso».
O «diverso» é o portador do único esclarecimento acerca do
conteúdo da matéria («[...] der Trager der einzigen Erklárung des
“Inhalts” der Materie ist.»; ibid., p. 262). E, nessa medida, ele tem
fundamentalmente que ser visto como o correlato ou o correspondente
da forma, da determinação subjectiva.
«A matéria é um X, porque tudo o que conhecemos dela
faz já uso da forma e, portanto, do elemento subjectivo do
conhecimento. E, quando temos, contudo, de falar de ma­
téria, é então apenas no sentido transcendental como “corres-
pondens” da forma, como o outro de si própria.»,
«Die Materie ist ein X, weil alies, was wir davon erkennen, schon
Gebrauch von der Form macht, also vom subjektiven Element der
Erkenntnis. Und wenn wir dennoch von Materie sprechen diirfen,
dann nur im transzendentalen Sinne ais dem “Correspondens" der
Form, ais dem Anderen derselben.», O. Market, artf cit., p. 262.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 61
Se nos colocarmos do ponto de vista idealista, este enfoque é
certamente o mais conveniente e sugestivo, na medida em que abre
o caminho para a consideração do papel última ou radicalmente pro­
dutor, criador, da actividade originária do «eu», do impulso que sus­
tenta e funda a subjectividade (e a objectividade).
É nesta linha, aliás, que se desenvolveram as grandes interpreta­
ções críticas de Fichte ou mesmo de Hegel, para quem, precisamente,
a existência kantiana não pode deixar de ser encarada como corre­
lato de um outro que a determina é procede à sua mediação. Como
Hegel afirma na Ciência da Lógica:
« [...] K ant entende por existência (E xistem ) a existência
(Dasein) determinada, pela qual algo entra no contexto de
toda a experiência, isto é, na determinação de um ser-outro
e na relação com outro. Por conseguinte, como existente, algo
é mediado por outro e a existência em geral é o lado da sua
mediação.»,
«[...] K ant unter Existenz das bestimmte Dasein versteht wodurch
etwas in den Kontext der gesamten Erfahrung, d. h. in die Bestim-
mung eines Andersseins und in die Beziehung au Anderes tritt. So
ist aís Existierendes Etwas vermittelt durch Anderes und die Existenz
uberhaupt die Seite seiner Vermittlung.», G. W. F. Hegel, Wissen-
schaft der Logik; Theorie Werkausgabe, red. E. Moldenhauer e K. M.
Michel (doravante: TW), F rankfurt am Main, Suhrkamp, 1969, vol. 6 ,
p. 126.
Por minha parte, sem deixar de sublinhar o interesse hermenêu­
tico e a importância histórica desta linha interpretativa, não posso,
contudo, omitir que, embora consciente de algumas dificuldades e de
eventuais incoerências quanto à pureza da lógica idealista, é precisa-
mente para a «irracionalidade» da m atéria que K ant pretende apon­
tar. «Irracionalidade», no sentido de que — se tomarmos o ponto de
vista dominante do espírito, do entendimento, do sujeito, etc. — a
materialidade surje como algo de irredutível a um seu poder insti-
tuinte.
* Cf. Heidegger, Sein und Z eit (doravante: S. u. Z.), § 43,
Túbingen, Max Niemeyer, 197213, pp. 200-212. A Realitãt seria,
assim, «o ser do ente intram undanam ente dado [ou existente, porque
está à mão] (res)», «das Sein des innerweltlich vorhandenen Seien-
den (res)» (p. 209). Anteriormente (p. 203), Heidegger havia já tentado
estabelecer uma equação entre o Dasein kantiano e a sua Vorhanden-
heitt uma existência que é fundamentalmente «um estar dado» — que
sub-repticiamente não deixa de pressupor alguma instância (teórica
ou prática) perante a qual a dação «está» ou pela qual a dação se dá.
* «Realitãt heisst fúr K ant nicht Wirklichkeit, sondem Sachheit.
Ein reales Prádikat ist ein solches, was zum Sachgehalt eines Dinges
gehórt und ihm zugesprochen werden kann.», Heidegger, Kants These;
Wm, p. 279.
M Como K ant afirma:
«De predicado lógico pode servir tudo o que se quiser,
mesmo o sujeito pode ser predicado de si próprio; pois, a
62 JOSÉ BARATA-MOURA

lógica abstrai de todo o conteúdo. Mas a determinação é um


predicado que se acrescenta ao conceito do sujeito e o au­
menta. Tem, portanto, que não estar já contida nele.»,
«Zum logischen Prãdikate kann alies dienen, was man will, so
gar das Subjekt kann von sich selbst prãdiziert werden; denn die Logik
abstrahiert von aliem Inhalte. Aber die Bestimmung ist ein Pradikat,
welches úber den Begriff des Subjekts hinzukommt und ihn vergrõs-
sert. Sie muss also nicht in ihm schon enthalten sein.», Kant, KrV,
A 598, B 626.
” Cf. Heidegger, Kants These; Wm, p. 279.
* Como Kant refere:

«Quando, portanto, penso uma coisa, através dos e de


quantos predicados eu quiser (mesmo na determinação cor­
rente), pelo facto de eu ainda apor que essa coisa é, não
acrescento o mínimo à coisa.»,
«Wenn ich also ein Ding, durch welche und wie viel Prãdikate
ich will (selbst in der durchgàngigen Bestimmung), denke, so kommt
dadurch, dass ich noch hinzusetze, dieses Ding ist, nicht das mindeste
zu dem Dinge hinzu.», Kant, KrV, A 600, B 628.
Ao pensar que uma coisa «é», não lhe acrescento, pois, qualquer
determinação, não enriqueço o seu conteúdo determinado (que os pre­
dicados reais, designadamente, expressam). Apenas afirmo a posição
dessa coisa na existência, o facto de que essa coisa, com aquilo que
determinadamente é, se encontra posta em si (an sich selbst).
Daqui a consequência da necessidade de abandonar o terreno dos
conceitos — da mera determinação transcendental— para alcançar e
fundar a dimensão da existência.

«O nosso conceito de um objecto podia, portanto, conter


o que e quanto quisesse, apesar disso teríamos de sair dele
para atribuir a este [objecto] a existência.»,

«Unser Begriff von einem Gegenstande mag also enthalten, was


und wie viel er wolle, so mtissen wir doch aus ihm herausgehen, um
diesem die Existenz zu erteilen.», Kant, KrV, A 601, B 629.
” «Der Ausdruck “an sich selbst** meint nicht: etwas “an sich”,
etwas, das unbezogen auf ein Bewusstsein existiert. [...]. Sein “ist
bloss die Position**.», Heidegger, Kants These; Wm, p. 280.
Para Heidegger, o «an sich selbst» assinalaria apenas a diferença
ou a distinção relativamente a outros entes igualmente representados
ou postos por alguma consciência ou instância subjectiva instaura-
dora. De modo algum o «em si» apontaria para a subsistência material.

«Temos de entender o “em si mesmo** como a contrade-


terminação [Gegenbestimmung, isto é, a determinação que
se contrapõe porque é diferente] àquilo que é representado
como isto ou aquilo em relação a outro.»,
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 63
«Das Man sich selbst” míissen wir verstehen ais die Gegenbestim-
mung zu solchem, was im Hinblick auf anderes ais dies und jenes
vorgestcllt wird.», Heidegger, Kants These; Wm, p. 280.
As Gegenbestimmungen são «em si», porque se o-põem umas em
relação às outras; de um ponto de vista ontológico, nunca são radi­
calmente, materialmente, em si, já que sempre se apresentam como
algo de posto, algo que apenas na e pela posição de outrem constitu­
tivamente é.
33 «Sein und somit auch die Weisen von Sein — Môglichsein,
Wirklichsein, Notwendigsein — sagen nicht aus íiber das, was der
Gegenstand, das Objekt, ist, sondem iiber das Wie des Verháltnisses
des Objekts zum Subjekt.», Heidegger, Kants These; Wm, p. 294.
31 «Im Vorstellen stellen wir etwas vor uns, dass es ais so Gestel-
ltes (Gesetztes) uns entgegen, ais Gegenstand steht. Sein ais Position
meint die Gesetztheit von etwas im setzenden Vorstellen.», Heidegger,
Kants These; Wm, p. 281.
” «“Sein” besagt zwar Position, Gesetztheit im Setzen durch das
Denken ais Verstandeshandlung. Aber diese Position vermag nur dann
etwas ais Objekt, d. h. ais Entgegengebrachtes zu setzen und so zum
Stand ais Gegenstand zu bringen, wenn der Position durch die sin-
nliche Anschauung, d. h. durch die Affektion der Sinne Setzbares
gegeben wird.», Heidegger, Kants These; Wm, p. 285.
33 «Erst die Position ais Position einer Affektion lásst uns ver­
stehen, was fiir K ant Sein von Seienden bedeutet.», Heidegger, Kants
These; Wm, p. 285.
34 «Widerstãndigkeit charakterisiert das Sein des mnerweltlich
Seienden.», Heidegger, S. u. Z ., § 43, p. 210.
33 «Mithin ist auch der Uebergang vom Setzen zum Entgegen-
setzen nur durch die Identitãt des Ich môglich.
Durch diese absolute Handlung nun, und schlechthin durch sie,
wird das entgegengesetzte, insofem es ein entgegengesttztes ist (ais
blosses Gegenteil uberhaupt) gesetzt. Jedes Gegenteil, insofem es das
ist, ist schlechthin, kraft einer Handlung des Ich, und aus keinem
anderen Grunde. Das Entgegengesetztsein uberhaupt ist schlechthin
durch das Ich gesetzt.», Fichte, Grundlage der gesammten Wissen-
sehaftslehre, I, § 1; W, vol. i, p. 103.
39 Die Verbindung kann jedoch niemals durch die Sinne kommen.
Alies verbinden stammt nach K ant aus derjenigen Vorstellungskraft,
die Verstand heisst.», Heidegger, K ants These; Wm, p. 285.
37 «Die Position hat den Charakter der Proposition, d. h. des
Urteils, wodurch etwas ais etwas vorgesetzt, ein Prãdikat einem
Subjekt durch das “ist” zugesprochen wird.», Heidegger, Kants These;
Wm, p. 286.
33 Como Heidegger salienta:

«A pertença comum (Zusammengehòrigkeit) de ser e


unidade, de écv e iv , manifesta-se já ao pensar no grande
começo da filosofia ocidental.»,
64 JQSÉ BARATA-MOURA

«Die Zusammengehorigkeit von Seín und Einheit, vou èóv und év


zeigt sich dem Denken schon im grossen Anfang der abendlándischen
Philosophie.», Heidegger, Kants These; Wm, p. 287.
5# Cf. Heraclito, frag. B 50; Die Fragmente der Vorsokratiker,
ed. H. Diels e W. Kranz (doravante: D. K.), Berlin-Charlottenburg,
Weidmann, 1956*, vol. i, p. 161.
49 Cf. Parménides, frag. B 8 , 43; D. K., vol. i, p. 238.
41 Cf. Parménides, frag. B 3; D. K., vol. i, p. 231.
42 Referindo-se à unidade fundante, afirma Heidegger:

«Ela é o év (unidade que unifica) que, só ele, faz surgir


todo o ovv (com) de cada Qéaiz (posição). Kant chama-lhe, por
isso, Ma unidade originariamente sintética**. Ela já está pre­
sente (adest) antecipadamente em todo o representar, na per-
cepção. Ela é a unidade da síntese originária da apercepção.
Porque ela possibilita o ser do ente, dito kantianamente: a
objectividade do objecto, ela está fora mais alto, acima do
objecto.»,
«Sie ist das alies aáv<zusammen) jeder 0£<n; (Setzung) erst entsprin-
genlassende h (emende Einheit). Kant nennt sie deshalb “die
urspninglich synthetische Einheit**. Sie ist in aliem Vorstellen, in der
Perzeption im vorhinein schon dabei (adest). Sie ist die Einheit der
urspninglichen Synthesis der Apperzeption. Weil sie das Sein des
Seienden, Kantisch gesprochen: die Objektivitat des Objekts, ermo-
glicht, liegt sie hoher, iiber das Objekt hinaus.», Heidegger, Kants
These; Wm, pp. 287-288.
43 «Die verschiedene Gesetztheit wird bestimmt aus dem Quell
der urspninglichen Setzung. Dies ist die reine Synthesis der transzen-
dentalen Apperzeption. Sie ist der Urakt des erkennenden Denkens.»,
Heidegger, Kants These; Wn, p. 296.
É de notar que, referindo-se, precisamente, ao fragmento B 3
D. K. de Parménides, que enuncia a mesmidade de pensar e ser,
Heidegger, na Introdução à Metafísica, havia já remetido para uma
fundamental instância humana de instauração.
«O que a sentença de Parménides expressa é uma deter­
minação da essência do homem a partir da essência do pró­
prio ser.»,
«Was der Spruch des Parménides ausspricht, ist eine Bestinimung
des Wesens des Menschen aus dem Wesen des Seins selbst.», Heidegger,
Einfúhrung in die Metaphysik, Tubingen, Niemeyer, 1966*, p. 110.
Sobre a mesma problemática do ser e do pensar, com referências
abundantes a Parménides, veja-se também: Heidegger, Was heisst
denken?, Tubingen, Niemeyer, 1954.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 65
44 Como Fichte refere, logo na abertura da Wissenschaftslehre:
«Temos de procurar o princípio absolutamente primeiro,
muito simplesmente incondicionado, de todo o saber humano.
Não se deixa demonstrar nem determinar, uma vez que deve
ser um princípio absolutamente primeiro.
Ele deve expressar aquela Tathandlung [uma acção, que
para Fichte é originária] que não aparece sob as determina­
ções empíricas da nossa consciência, nem pode aparecer, mas
antes jaz como fundamento de toda a consciência e somente
a torna possível.»,
«Wir haben den absolut-ersten, schlechthin unbedingten Grund-
satz alies menschlichen Wissens aufzusuchen. Beweisen oder bestim-
men lasst er sich, nicht, wenn er absolut-erster Grundsatz sein soll.
E r soll diejenige Tathandlung ausdriicken, welche unter den em-
pirischen Bestimmungen unseres Bewusstseins nicht vorkommt, noch
vorkommen kann, sondem vielmehr aliem Bewusstsein zum Grande
liegt, und allein es moglich macht.», Fichte, Grundsâtze der gesam-
m ten Wissenschaftslehre, I, § 1; W, vol. i, p. 91.
45 Cf. Kant, KrV, B 146.
41 «Die Position zeigt sich im Gefiige von Form und Materie.
[...]. Das Sein ais Position wird erõrtert, d. h. untergebracht in das
Gefiige der menschlichen Subjektivitat ais den O rt seiner Wesens-
herkunft.», Heidegger, Kants These; Wm, p. 302.
47 Esta «matéria» é também ela «ideal», no sentido de que é já
«dado na consciência»; «matéria» por referência a uma «forma» (cate­
goria, conceito a priori) e não como elemento materialmente existente
fora da consciência.
41 «Die Setzung des Dinges an sich selbst (ausser diesem Begriffe)
bedeutet», Kant, KU, § 176; Ak., vol. v, p. 402.
4# «Das Denken, schlicht gesagt, ist das Denken des Seins. Der
Genitiv sagt ein Zwiefaches. Das Denken ist des Seins, insofern das
Denken, vom Sein ereignet, dem Sein gehõrt. Das Denken ist zu-
gleich Denken des Seins, insofern das Denken, dem Sein gehõrend, auf
das Sein hort. Ais das hõrend dem Sein gehorende ist das Denken,
was es nach seiner W esensherkunft ist. Das Denken ist — dies sagt:
das Sein hat sich je geschicklich seines Wesens angenommen.», M. Hei­
degger, Brief iiber den Humanismus; Wm, pp. 147-148.
38 Cf. nota 12.
81 Cf. nota 9.
52 Cf. nota 10.
52 Atente-se em como, em K ant e o Problema da Metafísica, esta
investigação da condição radical de possibilidade, remetendo para uma
ontologia fundamental — a que um decisivo contexto antropológico
de modo algum é estranho, apesar de todos os matizes de que Hei­
degger procura colorir os seus filosofemas — passa por toda uma rein-
66 JOSÉ BARATA-MOURA

terpretação da imaginação transcendental que deverá acabar por reve­


lar o carácter constituinte do tempo.
Na interpretação de Heidegger, a imaginação transcendental, ao
costituir-se como raiz (Wurzel) de sensibilidade e entendimento,
possibilita a unidade originária da síntese ontológica:
«Mas esta raiz está enraizada no tempo originário.
O fundamento originário que se toma manifesto na fundação
[da metafísica] é o tempo.»,
«Diese Wurzel aber ist in der urspriinglichen Zeit verwurzselt.
Der in der Grundlegung offenbar werdende urspriingliche Grund ist
die Zeit.», M. Heidegger, KPM, p. 194.
A partir deste contexto, pode também a problemática de Sein
und Zeit ganhar uma mais precisa aclaração.
Por sua vez, em A Pergunta pela Coisa, esta problemática da con­
dição originária de possibilidade assoma na figura do Zwischen, do
«entre», apresentado como princípio supremo de todos os juízos sin­
téticos.
«[...] temos sempre de nos mover no Entre, entre homem
e coisa; [...] este Entre só é, na medida em que nós aí nos
movemos»,
«[...] wir uns immer im Zwischen, zwischen Mensch und Ding
bewegen míissen; [...] dieses Zwischen nur ist, indem wir uns darin
bewegen», Heidegger, Die Frage nach dem Ding. Zu Kants Lehre
von den transzendentalen Grundsátzen, Tubingen, Niemeyer, 1962,
p. 188.
M «Sein kann nicht sein. Wiird es sein, bliebe es nicht mehr Sein,
sondern wãre ein Seiendes.», Heidegger, Kants These; Wm, p. 306.
O conceito de «práxis»
para Merleau - Ponty
I. Introdução

S 1. D a am biguidade e da su a ultrapassagem h istórica


pela prática e pelo pensar. A m ediação interrom pida.
A unidade flu en te d a contradição e o em parelham ento
de contrários.

A ambiguidade é sempre sinal de imediação. Melhor talvez:


de mediação interrompida. Corresponde ao resultado de uma
actividade exploratória da multiplicidade (e/ou da complexi­
dade) do real que se não prossegue consequentemente até à
consumação plena da inteligibilidade. Reconhece o contraditó­
rio, mas não pensa a contradição até ao fundo.
Da dialéctica guarda a diversidade e oponibilidade dos mo­
mentos, mas recusa ou descura a inteira reapropriação da «ló­
gica». O «espectáculo» da diferença e do contraditório (pensa­
dos, não raro, no elemento da reversibilidade) como que satis­
faz epistemologicamente a ambiguidade, levando-a a quedar-se
por esse estádio sem continuar até às árduas paragens — teó­
ricas e práticas — da unidade movente da contradição.
Da crítica conserva a ambiguidade uma vigilância indispen­
sável que, todavia, não é feita frutificar em plenitude, já que
se vê circunscrita a um labor «negativo», até certo ponto ini-
bidor de uma conquista inteira daquele «sentido» que tanto
se diz demandar.

A ambiguidade pode, por conseguinte, corresponder a um


momento determinado de uma investigação, de um itinerário.
70 JOSÉ BARATA-MOURA

Pode até traduzir um certo fundo estrutural de uma situação


existencial: estamos mergulhados num mundo e numa história,
que sofremos e transformamos, mas que jamais contemplamos
do miradouro olímpico de uma transcendência que se desejaria
absoluta (e que se continua a sentir — numa peculiar saudade
do que nunca foi — como infelizmente inacessível).
No entanto, uma ambiguidade erigida em teoria corres­
ponde sempre a uma paralisação da pesquisa. Se não em ter­
mos de quantidade (continuam a multiplicar-se os exemplos de
contraditórios que alegadamente vão reforçar e justificar a
antidogmática ambiguidade, tudo é ambíguo, fluente, rever­
sível, etc.), seguramente que em termos de qualidade: se a
ambiguidade é alçada a teoria explicativa, então a busca do
sentido prossegue apenas até ao estabelecimento da diversidade
contraditória que a motiva, pára aí, não tem de prosseguir na
demanda de um lógos (objectivo e subjectivo) susceptível de
desvendar a legalidade concreta material do real como totali­
dade (in-conclusa) em devir.
Nesta medida, a ambiguidade manifesta-se, por vezes, como
uma primeira tentativa (até simpática) de procurar compreen­
der uma multiplicidade contraditória que, no fundo, se supõe
que não deveria existir ou que é escândalo para a «razão»,
que o pensar dominante silencia, etc. A ambiguidade pode ser
um primeiro intento de penetração pensante na complexidade
contraditória do real. Pode ser uma primeira aproximação da
dialéctica.
No entanto, transformada em teoria geral, revela-se incapaz
de dar convenientemente conta — tanto prática como teorica­
mente— dos processos reais. Devém impotente avocação de
«terceiras vias», que podem certamente ser mostradas nas suas
raízes e implicações1, mas a mais não chegam efectivamente
do que a um mascaramento das tomadas de posição perante
contradições que eventualmente se formulam, mas que se não
enfrentam frontalmente em termos de resolução prática.
Em La Structure du comportement, a ambiguidade en­
quanto compreensão do comportamento como forma, indepen­
dentemente de qualquer consideração de conteúdo (indispensá­
vel, no entanto, para uma avaliação concreta da concepção),
é publicitada como «meio de evitar as antíteses clássicas»3.
Por um lado, Merleau-Ponty parece compreender aqui a
contradição como um emparelhamento de contrários em antí-
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXISt 71

teses. Por outro lado, parece advogar a «ambiguidade» como


expediente para escapar aos dilemas ou alternativas (metafí­
sicos?).
O sistema de antíteses pode corresponder a uma fixação de
aspectos ou traços emergentes numa contradição. No entanto,
faz essencialmente abstracção do m ovim ento, do processo pelo
e no qual esses elementos agindo um sobre o outro se negam
e se transformam, no horizonte concreto de um devir que cons­
titui o quadro fundamental da sua unidade e luta.
As antíteses podem, por certo, ser expressão de contradi­
ções. Todavia, não passam de expressões pobres dessas contra­
dições, uma vez que não atentam devidamente nem reflectem
em termos de concreção a sua dialecticidade.
N o meu livro Totalidade e Contradição tive já ocasião de
tecer algumas considerações em torno desta problemática, de-
signadamente, da necessidade de operar uma distinção entre
contradições dialécticas e listas de parelhas de contrários*.
Entre os Antigos, Heraclito poderia ser, sem dúvida, um dos
interlocutores privilegiados a ter em conta no debate desta
questão, com os seus «diferentes» (Tá Stcwépowd) que com-põem
a mais bela harmonia, onde o «contrário» (rò chntíow) é tam­
bém aquele que opondo-se se «encaixa» numa unidade arti­
culada para a qual o seu concurso é útil (avuvépov)4. Curiosa e
sintomaticamente, uma das referências à dialéctica patentes em
Le Visible et TinvisiMe evoca os «sens doubles ou même multi-
ples», os duplos ou mesmo múltiplos sentidos8, de Heraclito.

Por outro lado, e retomando um segundo aspecto que há


pouco assinalávamos, a ambiguidade pode efectivamente apre­
sentar-se como um expediente de fuga à antítese, mas não
como meio adequado para um seu cabal esclarecimento e reso­
lução.
À abstracta metafísica dos jogos de antíteses pretende res­
ponder-se com uma não menos abstracta «dialéctica» da am­
biguidade.
A proclamação da universal ambiguidade não permite sair
da contradição. De facto, apenas a «evita» pela simples razão
de que nem chega a «entrar» nela.
O «tratamento» ambíguo da contradição limita-se a assi-
nalá-la (segundo formas por cujo bem-fundado, aliás, ainda
haveria, no entanto, que perguntar). Constata a pluralidade
72 JOSÉ BARATA-MOURA

das «significações» que nela se reúnem. Todavia, não conduz


para além delas. Por isso dizíamos atrás que a ambiguidade
é sinal de imediação ou de mediação interrompida, não plena­
mente desenvolvida.

«Deste modo, a dialéctica humana é ambígua: ma-


nifesta-se primeiro pelas estruturas sociais ou culturais
que faz aparecer e nas quais se aprisiona. Mas os seus
objcctcs de uso e os seus objectos culturais não seriam
o que são se a actividade que os faz aparecer não tivesse
também por sentido negá-los e ultrapassá-los.»6
A circularidade ambíguo-dialéctica para que aqui se
aponta é predominantemente descritiva. A ambiguidade como
que vem classificar a pluralidade das dimensões activamente
intervenientes nas contradições e, ao mesmo tempo, estancar
um seu eventual aprofundamento teórico e prático. Procla­
ma-se a ambiguidade e parece estar tudo resolvido.

Em meu entender, e pelo contrário, é precisamente a par­


tir daí que os verdadeiros problemas surgem. 1É a partir daí
que a dialéctica é verdadeiramente chamada a intervir.
Contrariamente ao que Merleau-Ponty afirma, a inerên­
cia ao tempo e ao mundo não impõe inelutavelmente a ambi­
guidade. Na Phénoménologie de la perception refere-se que

«eu não me conheço senão na minha inerência ao tem­


po e ao mundo, isto é, na ambiguidade»7.
Ora, o que a constitutiva historicidade do viver humano
material e concreto impõe é a superação da ambiguidade como
atitude teórica, quer pelo aprofundamento constante das raízes
e desenvolvimentos da sua polissemia quer pela superação
prática igualmente constante dos seus eventuais impasses.
A ambiguidade — como o absurdo— são atitudes não-
-radicais. São atitudes que abandonam a radicalidade de uma
pesquisa e de um compromisso vital para se «consolarem» com
a repetição da existência de uma pluralidade contraditória de
vias e de caminhos que, depois, não são concretamente explo­
rados nem prosseguidos.
Convém, aliás, que se recorde que a interpretação do pen­
samento de Merleau-Ponty como uma filosofia da ambigui-
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 73

dade tem mais a ver com o afã catalogador de determinados


leitores privilegiados8 — por certo que «consentido» pelo pró­
prio a u to r9 — do que com um intento claramente assumido
de Selbstverstândigimg-, de auto-entendimento ou de auto-expli­
cação, por parte do filósofo em causa.
De qualquer modo, é inegável que o próprio Merleau-Ponty
emprega o conceito em contextos temáticos onde justamente
se trata ou de fugir a aporias — cujo estabelecimento e funda­
mentação haveria que precisar e discutir — ou de «caracteri-
zar» um comportamento genericamente «dialéctico» na abor­
dagem e tratamento de diversas questões.

Diziam os Gregos que rò GavfiaÇeiv, o admirar-se, era àp%rt


fifovcfíaç, princípio da filosofia — para usar a expressão de
P latão 10 — ou que foi por intermédio dele (àiz) que os homens
começaram a filosofar, segundo Aristóteles11.
Houve quem pensasse que a filosofia se reduziria ao es­
panto, quando, no fundo, o que acontece é que a admiração
é apenas um começo, um princípio, pelo qual há que passar
no horizonte da concretização de uma indispensável proble­
mática, mas para além do qual há também que remontar.
É «vencendo» o espanto, no sentido de uma sua superação
dialéctica (Aufhebim g), que a filosofia se exerce.
Algo de semelhante ou de aparentável ocorre com a
«ambiguidade».
É vencendo a ambiguidade que o filosofar se determina
e desenvolve. O reconhecimento da ambiguidade poderá ser
ponto de chegada de uma primeira mediação pensante; é
certamente ponto de partida para novas e diversificadas
incursões teóricas e práticas; não se constitui é como inelutável
e derradeiro ponto de chegada. O «valor» da ambiguidade está
na sua superação, que desta vez é mais Ueberwindung (triunfo/
/supressão) do que Aufhebim g (negação/conservação/elevação
a um estádio superior).
Aliás, a própria prática, assim como o próprio desenvol­
vimento da actividade em que o pensar consiste, se encarre­
gam de proceder a esta ultrapassagem da «ambiguidade», que
apenas como momento passageiro pode emergir no curso do
devir e a partir daí ser abstractamente fixada em fictícia
última palavra teórica.
74 JQSÉ BARATA-MOURA

§ 2. Do conceito de «práxis» em Merieau-Ponty. Uma pre­


sença não centralmente tematizada. Vertentes e inter­
locutores.

A nossa presente investigação determina-se por uma per­


gunta em torno da prática. Tem por material de trabalho os
principais escritos de Merieau-Ponty e por fio condutor as
referências não muito abundantes que ai se fazem à «práxis».
Haverá um conceito de «práxis», teoricamente operativo,
em Merieau-Ponty?
Como se determina ele?
Em que contextos temáticos sobrevém predominantemente?
Que funções principais aí desempenha?
Trata-se de um conjunto de interrogações de que no mí­
nimo se poderá dizer que não é muito frequente entre os
estudiosos (e mesmo os comentadores ocasionais) de Merleau-
-Ponty, a avaliar pela bibliografia publicada de que tenha
conhecimento.
Se bem que não tenha quaisquer pretensões de reivindicar
para o estudo bibliográfico a que procedi a qualidade da
exaustão (e, portanto, algo de verdadeiramente importante,
quanto a este ponto preciso, me possa ter escapado), creio que,
no geral, as referências ao tema da prática em Merieau-Ponty
são muito escassas — comparadas, nomeadamente, com as que
se dedicam a temas à partida conexos como os da «dialéctica»
ou do «marxismo» — e, em regra, se situam mais ao nível dos
títulos e subtítulos (por vezes, inegavelmente sugestivos) do
que propriamente de uma tematização que procure surpreender
a «práxis» no seu contexto problemático funcional.
A «práxis» figura, por exemplo, no título de um capítulo
de uma obra de Alphonse De Waelhens — «Du présujet au
sujet de la práxis. Les mutations de niveau du sens et de la
forme»12—, mas não conhece aí um tratamento nem siste­
mático nem aprofundado. Surge como promessa numa mono­
grafia de Andrés OUero Tassara13 que, no entanto, rapida­
mente se orienta para um tratamento genérico do pensamento
de Merieau-Ponty em detrimento de uma reflexão em tomo
da problemática anunciada.
A bem dizer, a questão da «práxis» em Merieau-Ponty
conhece apenas algumas referências temáticas em textos de
Alfred Schmidt14 — na sequência, aliás, de algumas observa­
ções já produzidas por Jurgen Habermas15—, se bem que
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 75
umas e outras não cheguem propriamente a ir mais longe do
que um assinalar da relação merleau-pontyana entre «práxis»
e «comunicação», num horizonte problemático onde Gyõrgy
Lukács permanece referência central e Les Aventures de la
dialectique o texto preponderantemente aludido.
Para além dos casos mencionados, subsistem por certo
outras indicações esparsas em diversas obras e artigos que não
chegam, todavia, para constituir uma tentativa de diálogo com
Merleau-Ponty em torno do tema da prática.

Ao reler as obras de Merleau-Ponty no âmbito de uma


recolha de materiais concernentes ao tema da dialéctica, e en­
contrando-me igualmente a preparar alguns estudos no domínio
daquilo a que costumo chamar «modernas ontologias da
práxis», foram-se paulatinamente desenhando os contornos
de um debate focalizado na determinação da categoria da
«práxis».
São os resultados dessa investigação e deste debate que
aqui irei procurar registar e transmitir.
Em jogo estará, de um modo central, uma caracterização
da «práxis» por parte de Merleau-Ponty que secundariza ou
obnubila a dimensão — em meu entender — essencial da prá­
tica: a transformação material. Este exame desenvolver-se-á
simultaneamente no horizonte de um a discussão de supostos
ontológicos que Merleau-Ponty partilha, entre outros, com
a Fenomenologia e que o obrigam a sempre ter de antepor
à materialidade do real uma instância subjectiva pensada como
sua condição originária (e originante) de possibilidade.

Na problematização merleau-pontyana da práxis conver­


gem, em fases porventura diversas (ou diferenciadas) e com
acentuações igualmente diversas, duas vertentes principais do
seu pensamento que em unidade e coerência se desenvolvem:
por um lado, a temática intencional da constituição entendida
em termos que visam transcender o marco intelectualista da
representação «desencarnada» e, por outro lado, a dimensão
da intersubjectividade e do «sentido» que emerge e se sedi­
menta no âmbito da comunicação que no seu seio ocorre.
Ao nível dos interlocutores, no que toca a esta temática,
aqueles que Merleau-Ponty privilegia são, sem dúvida, Husserl
(muito particularmente, o «último» Husserl) e Lukács (o
Lukács jovem de Geschichte und Klassenbewusstseint por
intermédio do qual a problemática de Marx assoma, nos ter-
76 JOSÉ BARATA-MOURA

mos de uma complexa mediação a que a lição e o ensinamento


de Alexandre Kojève não serão por certo estranhos). No
entanto, para além destes interlocutores, para além do comen­
tário e da veiculação de uma terminologia «nova» em voga
num determinado círculo, perfila-se de facto uma tematização
própria, que não deriva tanto de uma categorialização espe­
cífica da prática por Merleau-Ponty, mas mais da problemá­
tica própria no horizonte da qual ele por vezes a utiliza.
Sem se constituir como um conceito central do vocabulário
categorial merleau-pontyano, a «práxis» manifesta-se, todavia,
com alguma frequência em diferentes contextos. Correndo
embora o risco de alguma simplificação, diríamos que é um
conceito empregue, ainda que não um conceito explicitamente
tematizado com suficiente detenimento. De qualquer forma é
um conceito presente e operante e que guarda uma certa esta­
bilidade fundamental nas suas determinações.
Caberá, até certo ponto, ao nosso questionário a tarefa
de o revelar, de o fazer falar na função que desempenha e no
horizonte de supostos em que constitutivamente se movimenta.
II. Práxis
e constituição fenomenológica

§ 3. Intencionalidade e práxis. A dinâm ica corporal e a


projecção de um a espacialidade com preendida como
cGrund» da m an ifestação em geral. O «sistem a prá­
tico» da espacialidade.

O tema da «práxis», em contexto predominantemente feno-


menológico, começa por nos aparecer no pensamento de Mer-
leau-Ponty no quadro daquilo que designaríamos por um novo
matiz na compreensão geral da intencionalidade.
Nas suas formulações, a intencionalidade fenomenológica
como que perde a sua tradicional vocação teórica de algo que
ocorre fundamentalmente no domínio do pensar, para regres­
sar às suas origens significativas no domínio do fazer. A inten­
ção não se limita mais ao puro visar consciente representativo
— onde a acção dominante é essencialmente teórica —; devém
visar «prático» ou práxico envolvendo as esferas do «querer»,
do «poder» e do «fazer».
Em conformidade, a temática da constituição do mundo
recolhe uma mais viva coloração activa. O visar constitutivo
não remete só para uma consciência que representa; envolve
igualmente um corpo que «funciona», que actua, que «per-faz»
determinados comportamentos.

Para Merleau-Ponty, a espacialidade que o corpo «projecta»


não é apenas a espacialidade resultante de um corpo teori­
camente representante ou percepcionante. É também, e ainda,
78 JOSÉ BARATA-MOURA

a espacialidade de um corpo agente, não apenas posto ou colo­


cado, mas situado, isto é, sede de um sistema prático de rela­
ções.
Acentuando o carácter dinâmico do esquema corporal,
afirma:
«o meu corpo aparece-me como postura em vista de
uma certa tarefa actual ou possível. E, com efeito, a
sua espacialidade não é, como a dos objectos exteriores
ou como a das “sensações espaciais”, uma espacialidade
de posição, mas uma espacialidade de situação»19.
A «tarefa» assoma como condição privilegiada da «posição»
(activa) ou postura própria do corpo. A tarefa desenha e
antecipa, por assim dizer, a acção, a «práxis».
O corpo determina-se em termos funcionais17, isto é, de
funcionamento, de operação, de motricidade. Aí radica uma
primeira dimensão fundamental da constituição prática do
mundo.
O sistema aberto de posições ou possibilidades que ao corpo
se prende supõe, por sua vez, o exercício de uma prática que
o medeia e projecta. A presença no mundo adquire assim uma
peculiar tonalidade activa.
«[...] o sujeito normal tem o seu corpo não apenas
como sistema de posições actuais, mas ainda e por isso
mesmo como sistema aberto de uma infinidade de
posições equivalentes em outras orientações»18.
É por isso que Merleau-Ponty fala de um «sistema prático»
da espacialidade. A «práxis» possibilitaria tanto o cumpri­
mento do corpo próprio no desenvolvimento/afirmação da sua
essencialidade, como — e aqui assoma uma dimensão deçisiva
a que mais adiante temos de regressar — a emergência do pró­
prio objecto/objectivo (buí, Ziel, t &oç) do visar intencional
«prático».
Retomando uma terminologia cara à mística — le fond
não deixa de nos fazer recordar o (3«0oç, a «profundeza», do
pseudo-Dinis o Areopagita ou o Abgrund, o «abismo», de
Meister Eckhart ou do Heidegger de, por exemplo, Der Satz
vom Grund19— ou, mais modestamente, cara ao existencia­
lismo francês (le vide anda bastante perto do néant sartreano),
DA REPRESENTAÇÃO A cPRÁXIS» 79

Merleau-Ponty instala-nos perante uma curiosa relação da


espacialidade e da prática: o espaço corporal é o «fundo» de
onde deriva, por intermédio da práxis, o aparecer do objecto.

«Se o espaço corporal e o espaço exterior formam


um sistema prático, sendo o primeiro o fundo sobre o
qual se pode destacar, ou o vazio diante do qual pode
aparecer, o objecto como objectivo [buí] da nossa
acção, é evidentemente na acção que a espacialidade
do corpo se completa.»20

Vemos, portanto, que o «espaço corporal» nos aparece aqui


como G ntnd, como fundo/fundam ento, da manifestação, me­
diada não propriamente por um visar representativo, mas por
um agir corpóreo, por uma práxis comportamental.
A relação do corpo e da exterioridade espacial é, assim,
pensada por Merleau-Ponty em termos de um vínculo de acção
ou de prática. O corpo subjectivo continua a ser encarado
como instância fundante do aparecer em geral — quer como
fond, quer como vid e—; só que esse estatuto inaugurador
ou possibilitante é feito residir e revelar-se numa práxis.

§ 4. C onstituição praxiológica ou com portam ental de um


m undo, que não é im ediatam ente o do cognoscível
( represen tavel), m as o do operável (p raticável).
A problem ática do «Ich kann». D o idealism o da teoria
ao idealism o da acção.

Deparamos aqui com um determinado esboço de uma certa


ontologia da práxis. O comportamento é-nos apresentado
como propiciando todo um mundo. A «prática» vê-se, assim,
arvorada em condição de possibilidade do mundo, ainda que
segundo um itinerário de reflexão mais sugerido ou indicado
do que propriamente seguido e explorado tematicamente pelo
autor.
Esta constituição praxiológica ou comportamental do
mundo por parte de Merleau-Ponty vem já de La Structure
du comportement. Parece apontar para a salvaguarda de
dois objectivos doutrinários de monta. Por um lado, a evacua­
ção da objectividade ou da materialidade do real; por outro
lado, a congeminação de uma alternativa à função constituinte
da transcendentaildade da consciência representativa, mas
80 JOSÉ BARATA-MOURA

determinável, no entanto, igual e estruturalmente, em termos


radicais de subjectividade.
Relativamente ao primeiro aspecto, Merleau-Ponty sugere
que o comportamento, no cumprimento da sua própria função
projectiva de espacialidade, de mundaneidade, perde ele pró­
prio a sua condição objectiva, fazendo ao mesmo tempo com
que o mundo assim constituído (ou fenomenalmente emer­
gente) a perca também.
«O comportamento desprende-se da ordem do em
si e torna-se a projecção para fora do organismo de
uma possibilidade que lhe é interior. O mundo, na me­
dida em que traz seres vivos, deixa de ser uma matéria
cheia de partes justapostas, cava-se no sítio em que
aparecem comportamentos.» 21
Por outro lado, a grande preocupação teórica parece ser
a de quebrar o tradicional monopólio da consciência repre­
sentativa. Se é certo que o grande modelo ou paradigma que
rege este filosofema continua aqui actuante, é, no entanto,
verdade que para a consciência se procura apresentar uma
alternativa, um complemento ou uma outra instância mais
radical e englobante: o «comportamento».
O gesto comportamental não visaria (não constituiria) o
mundo do verdadeiro, o mundo do conhecimento, do teorica­
mente representável, mas o mundo do praticável, o mundo
da existência ou da situação, que estruturalmente se encon­
traria ligado a toda a práxis como seu horizonte de exerci-
tação.
«Os gestos do comportamento, as intenções que
traça no espaço em volta do animal, não visam o mundo
verdadeiro ou o ser puro, mas o ser-para-o-animal, isto
é, um certo meio característico da espécie; eles não
deixam transparecer uma consciência, isto é, um ser
cuja essência toda é conhecer, mas uma certa maneira
de tratar o mundo, de “estar no mundo” ou de “exis­
tir”.» 22
O comportamento não estatui/institui um mundo do ime­
diatamente apenas, ou dominantemente, cognoscível, não põe
um mundo do à partida captado como conhecido segundo uma
DA REPRESENTAÇÃO A tPRAXIS» 81

determinada essencialidade (eventual ou tendencialmente eidé-


tica); dis-põe, sim, um campo de operações.
Característica deste campo é igualmente uma certa per­
tença de referência específica ou genérica, por oposição ao
âmbito privado (particular) de uma subjectividade individual
representante, cognoscente. O confronto do «conhecer» e do
«tratar» remete constitutivamente para esta dualidade de
dimensões.
A «estadia num mundo» ou a «existência» são, assim,
concebidas num horizonte que se pretende radicalmente mais
rico ou abrangente do que o de uma mera consciência que
representando conhece.
Como dimensões dignas de nota há, por conseguinte, neste
texto, a registar: a oposição entre «ser-puro» e «ser-para», a
vinculação à «espécie» (isto é, a um dado colectivo) do carácter
relacional atribuído ao ser (é um «ser-para») como horizonte
ou «meio» da acção, a oposição entre consciência/conheci-
mento e estar no m undo/tratar o mundo/«existir». Trata-se
de aspectos muito significativos que não deixarão de ser mais
tarde retomados e desenvolvidos noutros escritos, mas que
desde já se encontram presentes, ainda que segundo formas
não integralmente assumidas, de um ponto de vista sistemático.

É num contexto problemático que se desenvolve em arti­


culação com o que acabamos de ver que Merleau-Ponty vai
buscar uma expressão de Husserl (que encontramos repetida-
mente nas Ideen II) e lhe vai atribuir um alcance que, se bem
que preparado já nos textos husserlianos, todavia os trans­
cende.
Afirma Merleau-Ponty na Phénoménologie de la percep-
tion:

«A consciência é originariamente não um “eu penso


que”, mas um “eu posso”.» 23

Husserl analisa a temática do Ich kann essencialmente no


domínio endógeno da acção 24 e no quadro de uma fenome-
nologia da vontade e do seu horizonte de possibilidades.
O poder querer supõe, para Husserl, que o querido se
mostre no âmbito de uma determinada possibilidade prática.
O poder fazer define, assim, uma esfera de potencialidades
indispensável à determinação autêntica de um querer e de um
decidir. O querer e o decidir autênticos supõem a vigência
82 JOSÉ BARATA-MOURA

de possibilidades práticas, isto é, de um fazer que caia dentro


do âmbito daquilo que pela minha práxis pode ser cum­
prido 25.
Merleau-Ponty como que explora as possibilidades de alar­
gamento ou de extensão deste filosofema. O poder como um
«poder fazer» devém instância constitutiva intencional de um
mundo.
O mundo não é apenas horizonte da percepção represen­
tativa. É também horizonte da destinação prática, da orienta­
ção comportamental, do gesto corporal que não apenas designa
(idealmente), mas apreende ou preende (fisicamente).
«Ser corpo é estar atado a um certo mundo, [...]
e o nosso corpo não está primeiro no espaço: é do
espaço.»20
O essencial nesta passagem é que a ligação corporal ao
mundo, à espacialidade, se não faz aqui sob o fundo da repre­
sentação, da teoria, mas da prática.
Tanto a visão representativa, como o movimento corporal,
fazem com que haja um mundo. Isto é, definem uma estrutura
de intencionalidade.
«No gesto da mão que se ergue para um objecto
está encerrada uma referência ao objecto, não como
objecto representado, mas como essa coisa muito deter­
minada para a qual nos projectamos, junto da qual
estamos por antecipação, que nós perseguimos.»27
Tanto a visão — paradigma tradicional— como o movi­
mento são «expressões» que nos orientam para um «mundo»
intersensorialmente constituído 28.
A «comunicação» dos sentidos — tanto a nível pessoal como
interpessoal — só na aparência poderá significar uma ultra­
passagem da assunção da subjectividade como princípio onto­
lógico (ou como princípio fenomenológico de que se pretendem
retirar ilações ontológicas, nem sempre transparentemente
assumidas).
Como de um texto que atrás citávamos facilmente se
depreendia, o que se altera é a caracterização «original» ou
originária da consciência; não o seu fundante papel instituinte.
A consciência não diz apenas «eu penso» (terreno privilegiado
do idealismo da representação, ou teórico); diz também «eu
posso» (fazer) ou até mesmo «eu faço».
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXISi 83
Com esta mudança saímos eventualmente do terreno da
teoria para o da acção; mas o que não saímos, por certo, é
do horizonte do idealismo. A anteposição da subjectividade
como condição ontológica de possibilidade persiste.
Aliás, para o fim de Phénoménologie de la perception,
Merleau-Ponty não deixará de confessar:

«A primeira verdade é bem “eu penso”, mas na


condição de se entender por tal “eu estou em mim” [je
suis à m oi\ estando no mundo [en étant au m onde].» 29

O contexto problemático é, como seria de esperar, imedia­


tamente diverso daquele que temos vindo a considerar, mas
no limite não deixa de ser sintomático o reconhecimento deste
regresso radical ao modelo da intencionalidade pensante.
É que, de facto, nos termos globais das concepções de
Merleau-Ponty, não se trata de um regresso, porque essa pers-
pectiva fundamental nunca chegou verdadeiramente a ser
abandonada ao nível dos supostos em que assenta e das impli­
cações que traz consigo.

§ 5. A contraposição entre «representação» e «práxis».


A determ inação do «práxico» segundo as dim ensões
do originário e do originante. O horizonte intersub-
jectivo da linguagem e da com unicação.

Em todo este primeiro contexto dominantemente fenome-


nológico da temática da práxis para Merleau-Ponty assume
particular relevo a contraposição que se pretende estabelecer
entre representação e práxis.
Esta contraposição remete, aliás, para a questão mais fun­
damental do estatuto e da própria compreensão da «cons­
ciência». Dir-se-ia que Merleau-Ponty pretende conservar a
categoria de consciência (e o seu conteúdo fundamental de
instância constituinte), mas entendê-la de uma modo tal que
a não restrinja à área e determinações da representação.

O movimento, em geral, teria de pressupor uma dada


antecipação que lhe desenhasse o âmbito e os contornos do
objecto/objectivo a alcançar. No entanto, para Merleau-Ponty,
esta antecipação não pode verificar-se nos moldes exclusivos
da representação.
84 JOSÉ BARATA-MOURA

Não há primeiro a representação do objecto ou do fim a


atingir e, depois, a práxis ou o movimento em direcção a
ele. Desde logo, há que contar à partida de cada movimento
comportamental com uma referência não representativa a um
mundo que nessa mesma acção é intencionalmente visado, não
em termos teóricos, mas práticos ou práxicos.
«[...] o movimento a fazer pode ser antecipado sem
o ser por uma representação, e isto mesmo só é possível
se a consciência for definida, não como posição explí­
cita dos seus objectos, mas mais geralmente como refe­
rência a um objecto tanto prático como teórico, como
ser no mundo; se o corpo, por seu lado, for definido
não como um objecto entre todos os objectos, mas
como o veículo do ser no mundo»30.
Ao tradicional esquema da posição transcendental repre­
sentativa de objectos haveria assim que substituir o modelo
da referência (in-determinada num primeiro momento?) a um
domínio de objectos mundanos. Esta referência determinar-
-se-ia não apenas em termos teóricos ou representativos mas
também e primordialmente (anteriormente) em termos «prá­
ticos», de orientação comportamental para um horizonte mun­
dano, mediado ou veiculado pela própria corporeidade mo-
vente e instituinte.
Já em La Structure da comportement a mensagem final
que se desprende é precisamente a de que a constituição do
sentido continua a ser necessária e fundante, mas se não pode
determinar verdadeiramente ao nível exclusivo ou dominante
da representação ou da consideração meramente teórica,
intelectiva.
Nem, por um lado, a existência se apresenta como uma
exterioridade nos limites do conhecimento (e a ele kantiana­
mente inacessível), nem a intencionalidade se resume, por
outro, a uma mera projecção representativa de significações.
Sob certos aspectos podemos efectivamente dizer que La
Structure du comportement se termina por uma abertura ao
domínio da «práxis» aludido, todavia, mais na forma nega­
tiva de um «além» da representação do que própria e clara-
mente apontado e denominado.
«A “coisa” natural, o organismo, o comportamento
de outrem e o meu, não existem senão pelo seu sentido
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 85

[serts] , mas o sentido que brota neles não é ainda um


objecto kantiano, a vida intencional que os constitui
não é ainda uma representação, a “compreensão” que
lhe dá acesso não é ainda uma intelecção.»31

Este domínio da práxis virá,, no entanto, a ser progressi­


vamente elaborado, no sentido de uma sua maior determinação
conceptual. O práxico assomará cada vez mais segundo as
dimensões do originário e do originante, no quadro de uma
compreensão que acusa a sua necessária diferenciação do
elemento do representativo.
A práxis instala-se de pronto num terreno que não é o
da representação. Há, pois, que detectar e descrever toda uma
intencionalidade m otora que transcende os parâmetros da
consciência que representa.
Ao saber que teoriza e conhece — e nessa medida põe objec-
tos e objectivos— há que antepor um outro tipo de «saber»
que conta com objectos que sinalizam um horizonte de movi­
mentação possível.
Esta intencionalidade práxica, originária, não representa­
tiva, é igualmente intencionalidade constitutiva, só que segundo
uma outra dimensão.

«A história da apraxia mostraria como a descrição


da Práxis está quase sempre contaminada e é final­
mente tornada impossível pela noção de representa­
ção.» 82

Aliás, mais tarde, quando o contexto imediatamente feno-


menológico da emergência do tema da prática em Merleau-
-Ponty aparecer dobrado por referências terminológicas e
problemáticas de recorte marxiano (acentuadamente por via
lukácsiana), esta mesma contraposição do plano da prática e
do plano do conhecimento ou da representação continuará
presente.
Em Les Aventures de la dialectiquey Merleau-Ponty dirá:

«O sentido profundo, filosófico, da noção de práxis


é instalar-nos numa ordem que não é a do conheci­
mento, mas a da comunicação, da troca, da frequenta­
ção. H á uma práxis proletária que faz com que a classe
exista antes de ser conhecida.»83
86 JOSÉ BARATA-MOURA

Mesmo de um modo isolado em relação à reflexão a que


adiante procederemos sobre esta dimensão da temática da prá-
xis, há desde já alguns aspectos que aqui poderão ser feitos
ressaltar.
Em primeiro lugar, a determinação do conceito de práxis
como pertencente a uma ordem que não é a do conhecimento.
É uma nítida remanescência do tema da crítica da representa­
ção como expressão exclusiva da instância subjectiva fundante
de constituição.
A práxis não é, para Merleau-Ponty, da ordem do conhe­
cimento, fundamentalmente porque é da ordem da comunica­
ção, da intersubjectividade, como adiante procuraremos ver
mais em pormenor. De qualquer forma, registe-se desde já esta
vinculação da «prática» ao horizonte de uma intersubjectivi­
dade entendida fundamentalmente sob a figura da comunica­
ção e da linguagem.
É precisamente esta a dimensão que Alfred Schmidt põe
em destaque num seu artigo sobre a categoria de «práxis»:

«Merleau-Ponty sublinha o papel da comunicação


linguística.»84

Por sua vez, este aspecto não deixará também de andar


associado não só à atenção que Jiirgen Habermas dedica a
Merleau-Ponty como ainda à sua determinação de um kom-
munikatives Handeln, em conexão com o qual

«A realidade se constitui no quadro de uma forma


de vida de grupos comunicantes, organizada de modo
linguístico-quotidiano [umgangssprachlich]. É real o
que sob [unter] as interpretações de uma simbólica em
vigor \geltend] pode ser experimentado.»85

Toda a referência no passo de Les Aventures de la dialecti-


que citado à existência de uma práxis proletária anterior ao
conhecimento que dela se tenha precisa de ser entendida, no
que toca a Merleau-Ponty, nestes parâmetros genéricos de um
primado da comunicação intersubjectiva e não em outros
como, por exemplo, os da distinção de Marx entre classe «em
si» e classe «para si»8e, os da diferenciação de Lukács entre a
consciência psicologicamente individualizada do proletariado e
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 87
a consciência de classe8T ou, num plano sistemático de consi­
deração do problema, os de uma transformação material cons­
titutiva do próprio viver.

§ 6. D a con stitu ição no âm bito do conhecer representativo


à «practognosia» originária. Com preensão teórica e
com preensão práxica do objecto.

A crítica de Merleau-Ponty relativamente à redução da


instância fundamental de constituição à consciência represen­
tativa remete, como vimos, para um a outra compreensão da
consciência que, designadamente, a abra ou disponha igual­
mente para uma aceitação da práxis no seu seio.
A consciência não se limitaria, assim, a pôr — teórica ou
representativamente — objectos diante de si como termos
intencionalmente visados num atender dominantemente cog-
noscitivo; a consciência teria também de começar por incluir
um tipo de referência intencional que se desprende da, e sur­
preende na, actividade comportamental.
IÉ ao passar em revista a problemática da motricidade que
Merleau-Ponty, em Phénoménologie de la perception, progres­
sivamente vai encontrando uma dimensão significativa da prá­
xis a que a fenomenologia tradicionalmente não atendia de
modo relevante.

«A experiência motora do nosso corpo não é um


caso particular de conhecimento; fomece-nos uma ma­
neira de aceder ao mundo e ao objecto, uma "prac-
tognosia” que deve ser reconhecida como original e
talvez como originária. O meu corpo tem o seu mundo
ou compreende o seu mundo sem ter de passar por
"representações”, sem se subordinar a uma "função
simbólica” ou "objectivante”.» 38

Este texto suscita-nos diversas observações.


Em primeiro lugar, começa por aduzir uma diferenciação
entre «experiência» e «conhecimento» que, desenvolvendo-se
no âmbito de um a relativização do poder exclusivo da repre­
sentação, parece remeter o «conhecimento» para o domínio
de uma reflexividade susceptível de se determinar como con­
teúdo preciso, «cognoscível», enquanto a «experiência» aponta
88 JOSÉ BARATA-MOURA

para uma primeira e elementar sinalização de um «mundo»


ou da presença de um mundo.
A experiência motriz mediada pelo corpo não assume, as­
sim, um carácter propriamente cognoscitivo — isto é, susceptí-
vel de apurar um conteúdo determinado como verdadeiro—,
mas apenas um carácter «practognóstico» que franqueia o
acesso a um mundo que o próprio movimento comportamental
projecta.
A práxis leva-nos, assim, a contar com a presença de um
mundo, se bem que se venha a tratar de uma presença mais
suspeitada do que teoricamente desvendada nas suas determi­
nações, mais imediatamente sempre suposta do que representa­
tivamente elaborada em termos de um conteúdo formalmente
expressável e analisável.
Todavia, este acesso «prático» ou esta dis-ponibilidade «prá­
tica» de um mundo de objectos — não de objectos de conhe­
cimento, mas de objectos de comportamentos ou acções/inten-
ções motoras várias— aparece aos olhos de Merleau-Ponty
como revestindo uma condição peculiar de originariedade.
A «practognosia» é dita ser «original» e «originária».
«Original», na medida em que, em termos de radicalidade,
corresponde a uma instância e a uma situação mais fundas ou
mais primitivas, no âmbito estrutural da intencionalidade em
geral. A atitude existencial, comportamental, de visar (prati-
camente) um objecto surge como mais primitiva relativamente
à orientação imediatamente teórica ou representativa, na me­
dida em que expressa uma orientação vital básica para/no
mundo, ipso facto constituído.
«Originária», no sentido de que essa «practognosia» é ela
própria originante, instituinte, da própria possibilidade de exis­
tência de um mundo em geral. Como no texto é afirmado,
o corpo «compreende» o mundo sem ter de passar pela media­
ção — segunda, reflectida ou «reflexiva» — da consciência re­
presentativa.
Nesta ordem de ideias, a práxis aparece aqui para Merleau-
-Ponty como um verdadeiro poder instituinte de novo tipo.
Mais radical do que a posição dos objectos — e do mundo como
estrutura geral— por uma consciência representativa indivi­
dual, a experiência práxica no seu constitutivo referir-se inten­
cional faz com que originária e originalmente comece por ha­
ver um mundo da orientação comportamental.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÀXIS» 89
§ 7. A m anifestação de um a estrutura su bjectiva com
funções in stítu in tes. O corpo com o «textura» e «ins­
trum ento» da objectividade em geral e da su a com ­
preensão. D o horizonte do «conhecido» para o hori-
rizonte do «vivido».

Deparamos aqui, efectivamente, com uma variante doutri­


nária de relevo, no âmbito do que poderemos designar por
temática idealista da constituição, em geral.
A constituição de um mundo continua a ser obra de uma
instância subjectiva, compreendida como condição genérica de
possibilidade da existência de um mundo, em geral. Simples­
mente, a faculdade ou o poder que a levam a cabo não se vêem
mais reduzidos ao horizonte da consciência teórica que repre­
senta objectos de conhecimento.
O poder instituinte aparece, assim (também), conferido a
uma outra instância — compreendida como ainda pertencente
ao domínio da consciência, mas determinada fundamental­
mente em termos de corporeidade e de actividade. A consti­
tuição de um mundo, em geral, faz-se, não pela representação,
mas pelo movimento práxico corporal.
Como Merleau-Ponty também refere:

«Aquilo que descobrimos pelo estudo da motrici­


dade é, em suma, um novo sentido da palavra “sen­
tido”.» 39

A estrutura subjectiva da dação de sentido permanece, ao


nível dos seus supostos básicos, intocada. O «sentido» continua
a ser fundamentalmente algo que se dá ou dispensa. A «novi­
dade» apenas consiste na instância e nos mecanismos que se
vêem chamados a protagonizar a doação: o corpo e a práxis.
A im-posição do sentido persiste como perspectiva reitora
de toda a concepção. É o grande modelo transcendental da
constituição que jamais abandona o horizonte e os alicerces
da doutrina. Apenas a consciência representativa se vê apeada
da sua aspiração à dominação imperial, absoluta.

«A experiência do corpo faz-nos reconhecer uma


imposição do sentido que não é a de uma consciência
constituinte universal, um sentido que está aderente a
certos conteúdos. O meu corpo é esse núcleo significa­
tivo que se comporta como uma função geral [ ...] .» 40
90 jo sé BARATA-MOURA

Merleau-Ponty crê poder livrar-se do idealismo em geral


assinalando apenas algumas limitações do idealismo da repre­
sentação. Em termos doutrinários, é relevante e chega para
concitar as atenções para uma diferença que merece ponde*
ração; ao nível dos supostos em que a concepção assenta, é
insuficiente para a libertar dos seus fundamentos idealistas.
A pura interioridade de um Cogito auto-suficiente e auto-
justificador é, sem dúvida, posta em causa por Merleau-Ponty,
o mesmo acontecendo à determinação significativa por inter­
médio da operação de um puro Eu pensante ou re-presentante.
Só que a instância chamada a proceder à substituição continua
ela própria a ser entendida e a movimentar-se dentro dos
mesmos parâmetros (idealistas) fundamentais: a anteposição
de um instrumento subjectivo como condição de possibilidade
da existência, em geral.
A novidade resume-se a uma apresentação da instância
subjectiva não como consciência representativa, teoricamente
ob-jectivante, mas como corpo, e em compreender esse corpo
não apenas como suporte de uma operação meramente inte-
lectiva, mas como actividade práxica, comportamental, como
função de orientação prática num/para um mundo.
O corpo aparece-nos, assim, pensado como «textura» e
como «instrumento» da objectividade, em geral, e da sua com­
preensão (practognóstica).
«O meu corpo é a textura comum de todos os ob-
jectos e é, pelo menos, no que respeita ao mundo per­
cebido, o instrumento geral da minha “compreensão”.
É ele que dá um sentido não apenas ao objecto natural,
mas ainda a objectos culturais como as palavras.»41
Pelo seu jeito práxico de operar, o corpo é a instância que
se desempenha da fundamental atribuição ou outorga do «sen­
tido».
A compreensão quase-feuerbachiana42 do corpo como ins­
trumento vibrátil, sensível, a um mundo que o rodeia e que
ele constitutivamente projecta também, apenas serve para profr*
crever a sua mera própria condição de objecto e para deslocar
o terreno fundamental da sua intervenção constituinte.
«Em suma, o meu corpo não é apenas um objecto
entre todos os outros objectos, um complexo de quali-
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 91
dades sensíveis entre outras, é um objecto sensível a
todos os outros, que ressoa com todos os sons, vibra
com todas as cores, e que fornece às palavras a sua
significação primordial pela maneira como as aco­
lhe.» 43

O corpo não é coisa entre as coisas, mas lugar do advento


delas à significação, mediante a doação de sentido de que ele
operativamente se desempenha. O corpo vibra com os objectos
de um mundo, é afectado pelos objectos de um mundo, que
ele próprio suscita.
Acolhe uma «objectividade» que goza de um estatuto algo
curioso. Ê uma «objectividade» que ele próprio consente ou de
que ele próprio é condição estrutural de possibilidade, enquanto
instância radicalmente constituinte, quase ao jeito de um Sein-
-lassen de ressonâncias heideggerianas (tal como, aliás, o pró­
prio tema do comportamento instituinte como V erhalten44).

Quanto ao deslocamento fundamental do terreno em que


esta problemática é prosseguida, Merleau-Ponty entende-o,
uma vez mais, no horizonte de uma crítica da exclusividade
do âmbito da representação, como um descentramento ou um
recentramento. Há, no entender dele, que avançar do terreno
do «conhecido» para o terreno do «vivido».
Já desde La Structure du com portem ent, ao tentar preci­
sar-se os traços característicos da distinção radicalmente deter­
minante de todo o projecto fenomenológico merleau-pontyano,
é-nos afirmado:

«A distinção que nós introduzimos é antes a do vi­


vido [vécu] e do conhecido [connu ].»4B

A oposição de «representação» e «práxis» de que falávamos


tem subjacente esta distinção. O «vivido» não é apenas a Er-
lebnis, a vivência, pensada ou sentida — cf. o tema do
G efuhl, do «sentimento» —, por Dilthey, Husserl ou Heidegger,
num marco apesar de tudo teórico-cognoscitivo, ainda que não
estritamente intelectualista.
O «vivido» abre-se aqui, para Merleau-Ponty, a uma expe­
riência do corpo e da praticidade que deverá revelar outras
possibilidades estruturais (igualmente subjectivas) de pensar a
constituição de um mundo e dos objectos em geral.
92 JOSÉ BARATA-MOURA

$ 8. Significação e acção. Uma intencionalidade corpórea.


«Parole parlante» e «parole parlée». O carácter activo
da fala: «parole» e práxis.
A temática da práxis no pensamento de Merleau-Ponty,
bem como a determinação do conteúdo conceptual dela que aí
se desenvolve, remetem ainda para todo um horizonte de signi­
ficação onde se entrelaçam dinamicamente as dimensões cons-
titutivas da intencionalidade, da doação de sentido e da lin­
guagem.
No âmbito genérico da problemática intencional da consti­
tuição, a significação vai emergir activamente como uma signi­
ficação, como uma acção de significação, que acabará por
caracterizar também uma dimensão fundamental da práxis.
A práxis será, nestes termos, um agir significador, que por
intermédio do corpo e da sua orientação mundana se estabe­
lece e projecta.
O sentido imanente dos signos é pensado por Merleau-
-Ponty como relevando, não do puro domínio transcendental
representativo ou teórico, mas do âmbito daquela acção que
comportando-se ou exercendo-se na sua essencialidade começa
por aludir a um mundo pré-compreendido de actuação, de
orientação.
O horizonte de significação assim aludido ou referido é, em
conformidade, mais pre-suposto (praticamente) do que posto
teoricamente como campo de uma explicitação de conteúdos,
susceptíveis de análise e de discriminação avaliável em termos
de verdade.
Desta fundamental tarefa constitutiva se desempenha toda
uma intencionalidade originária (e originante) que no corpo e
pelo corpo se materializa, quer como antecipação possibilita-
dora de existência, quer mediatamente como instrumento de
revelação ou des-vendamento (teoricamente) concreto.
Como Merleau-Ponty escreve na sua lição inaugural no
Collège de France:
«Os signos organizados têm o seu sentido imanente,
que não releva do “eu penso”, mas do “eu posso”. Esta
acção à distância da linguagem que alcança as signifi­
cações sem as tocar, esta eloquência que as designa de
maneira peremptória sem jamais as trocar por palavras
nem fazer cessar o silêncio da consciência, são um caso
eminente da intencionalidade corporal.»46
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS* 93
Esta intencionalidade corpòrea ou corporal estruturalmente
básica traz consigo um esboço de diferenciação ontológica que
é mister não descurar.
De acordo com ela, o ser tem de cindir-se na dualidade de
dois horizontes fundamentais (e articulados): o da consciência
e o das coisas, no quadro de uma distinção que acertadamente
Merleau-Ponty se recusa a fazer derivar exclusivamente da
contribuição fenomenológica de Husserl, recordando na oca­
sião os nomes de Descartes e de Kant.
Esta diferenciação ontológica, em certa medida inaugura-
dora de uma matriz fundamental do moderno idealismo da re­
presentação, é, todavia, interpretada por Merleau-Ponty se­
gundo uma dimensão de radicalidade que visa, precisamente,
transcender os limites de uma consciência pensada como ins­
tância ou entidade meramente teórica.
A intencionalidade é, por certo, apresentada como a carac-
terística fundamental da consciência. No entanto, nesta última
é a dimensão activa, práxica, que se vê posta em destaque.
A «coisa» é algo que apenas está, espácio-temporalmente loca­
lizado, numa presença ou oferecimento à des-coberta revela­
dora de uma intenção que se não cumpre como mera estação
determinada pelos traços do «em si».
O «soi» característico da consciência, possibilitador do
«pour soi» como estrutura e reflexividade, tem, por conse­
guinte, que ser entendido em termos fundamentalmente de
acção, práxicos.

«Se um ser é consciência, é preciso que ele não seja


senão um tecido de intenções. Se ele cessa de se definir
pelo acto de significar, volta a cair na condição de
coisa, sendo a coisa, justamente, aquilo que não conhe­
ce, aquilo que repousa numa ignorância absoluta de
si e do mundo, aquilo que, por conseguinte, não é
um "si” [soí] verdadeiro, isto é, um "para si” [pour soi]
e apenas tem a individuação espácio-temporal, a exis­
tência em si [en soi].» 47

Na consciência intencional fala, por conseguinte, tenden-


dalm ente uma dimensão cognoscitiva, teórica. No entanto, ela
é como que sustentada por toda uma actividade significativa
ou significadora que aponta e começa por remeter para uma
verdadeira acção instituinte, para um gesto, um feito.
94 JOSÉ BARATA-MOURA

«A fala [parole] é um verdadeiro gesto, e ela con­


tém o seu sentido como o gesto contém o seu. É o que
torna possível a comunicação. [...]. A fala é um gesto
e a sua significação um mundo.» 4“

Sustentando a representação e o seu conteúdo cognosdtivo


(teórico) há, pois, todo um comportamento, toda uma prá-
xis — pertinentes à própria estrutura da consciência—, que
importa destacar e apreender no seu funcionamento instituinte.

É neste contexto problemático que Merleau-Ponty procede


a uma distinção entre a parole parlante — registe-se a sua di­
mensão activa, accionante — e a parole parléef em que na pri­
meira se procura particularmente surpreender a intenção signi­
ficativa no seu estado nascente, isto é, no seu poder originante.
A parole assinala ou marca uma diferença relativamente ao
mundo das coisas, mas, simultaneamente, é o acto que, expres-
sando-o, o constitui.
«A fala é o excesso da nossa existência sobre o ser
natural. Mas o acto de expressão constitui um mundo
linguístico e um mundo cultural [...].» 49
Na parole importa, por conseguinte, sublinhar fundamen­
talmente o seu lado ou carácter activo, mas num sentido bem
determinado que há que não perder de vista. Não se trata de
uma acção qualquer, ou melhor: de uma acção que de pronto
possa ser sem mais assimilada ou identificada com a operação
própria do pensar, com aquilo que poderíamos designar como
uma acção ou actividade meramente teóricas. Trata-se, sim,
de uma acção que é compreendida como proticamente opera-
tiva, como práxis.
Como Merleau-Ponty afirma, no quadro do resumo tópico
de um curso onde Die Frage nach dem Ursprung der Geome-
trie ais intentionalhistorisches Problem de Husserl é particular-
mente visado:

«A fala não é um produto do meu pensamento


activo, segundo em relação a ele. Ela é prática minha,
operação minha, Fimktion minha, destino meu. Toda
a produção do espírito é resposta e apelo, co-produ-
ção.»co
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁX1S» 95
Esta fala intencionalmente significativa, constitutiva de um
mundo através e na significação, não é um mero subproduto
do pensamento, da actividade pensante. É resultado de um
comportamento prático orientado para, e projectante de, um
mundo como horizonte de referência práxico e significativo.
Se é certo que Husserl, na Krisis, também fala de uma
theoretische Praxis, historicamente tardia, intracientífica e
dedicada à arte (Kunst) de elaborar teorias51, é, todavia, de
uma prática trans-teórica ou pré-científica, existencialmente
primeira, que aqui se pretende falar neste novo contexto mer-
leau-pontyano.
A parole é prática minha como cumprimento do meu cons­
titutivo destino de doador ou dador de significações.
Por um lado, é para um a prática que transcenda o campo
teórico (transcendental) da representação que se procura enca­
minhar a reflexão. Por outro lado, esta práxis é essencialmente
pensada no âmbito linguístico da atribuição de significações.
Do nosso ponto de vista, por um lado, procura centrar-se
a atenção do pensar num terreno que é efectivamente o da
prática material; por outro lado, acaba por se comprometer
decisivamente a possibilidade de um a sua elucidação concreta
e material com a sua constitutiva remissão para o terreno da
linguagem, da actividade linguística.
Creio que esta é uma limitação estrutural, que se desen­
volve ao nível dos supostos fundamentais do pensamento de
Merleau-Ponty e que, como tal, condiciona e determina os ali­
cerces de toda a sua concepção, designadamente, ao nível das
opções ontológicas de fundo.

§ 9. A on togén ese lin gu ística. «Vorhabe» e ontologia da


práxis, no horizonte de um a valorização da actividade
linguística.

É precisamente esta emergência lateral de toda uma onto­


logia da linguagem que alguns textos de L e Visible et Vinvisible
claramente documentam. Merleau-Ponty chega mesmo a falar
de uma ontogénese linguística.
A linguagem, no entender dele, não deve ser apenas pers-
pectivada sob o ângulo de um repositório de informações ou
de significações. Na linguagem não fala apenas o adquirido de
uma experiência ou de uma cultura. Na linguagem fala tam­
bém o falar, o significar, o aludir intencional que projecta
96 JOSÉ BARATA-MOURA

ou constitui um mundo, para retomar um determinado modo


de dizer de Phénoménologie de la perception, num quadro pro­
blemático onde a distinção de parole parlée e parole parlante,
já referida, de certo modo volta a assomar.
A linguagem na sua imediatez esconde um poder de ante­
cipação, de referência em horizonte, que a hermenêutica filo­
sófica tem precisamente de recuperar, de tematizar, de recen-
trar ou de restabelecer nos seus legítimos direitos. Isto é, no
seu cumprimento efectivo, na sua práxis — imediatamente
oculta ou desatendida, mas originariamente actuante —, a lin­
guagem revela-se como intencionalmente constituinte de um
mundo.
«[...] a linguagem não é apenas o conservatório das
significações lixadas e adquiridas, [...] o seu poder
cumulativo resulta ele próprio de um poder de anteci­
pação ou de pré-possessão, [...] a linguagem a fazer-se
lse jaisant\ exprime, pelo menos lateralmente, uma
ontogénese de que ela faz parte»a2.
Aquilo para que Merleau-Ponty, uma vez mais, procura
chamar a atenção é para esta linguagem «se faisant», para este
fazer-se da linguagem que, no entender dele, é literalmente
um fazer, um 7cpàTT£tv—de onde a sua compreensão como práxis.
Apesar da reticência de que se poderá tratar de uma eficá­
cia apenas «lateral» ou da pertença a um processo instaurador
em que especificameníe se integra — por exemplo, a de uma
constituição transcendental representativa (que verdadeira-
mente nunca é negada em termos de validade principiai, mas
apenas relativizada e completada)— não deixa, contudo, de
ser manifesta a associação da operação linguística, na sua
dimensão práxica originária (e originante) a uma verdadeira
ontogénese.
Deparamos aqui, de facto, com uma curiosa variante da­
quilo que costumo designar por «ontologia da práxis». Uma
variante que poderíamos qualificar de variante linguística.
As modernas ontologias da práxis intentam uma tematiza-
ção da problemática da constituição que no-la apresente como
função, não da consciência representativa, mas da prática hu­
mana. O ser seria o resultado ou o correlato, não de uma
posição do pensar ou da consciência, mas do trabalho ou da
práxis.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 97
A base fundamentalmente idealista destas concepções per­
siste, na medida em que ao domínio da realidade objectiva con­
tinua a ser anteposta uma instância subjectiva, interpretada
como instância ontologicamente instauradora, como instância
doadora das determinações da objectividade ou apenas como
instância definidora da possibilidade de manifestação ou exis­
tência em geral 5\
A variante que Merleau-Ponty aqui nos proporciona desen­
volve-se por intermédio de um desvio pela temática da lingua­
gem, pensada ela própria, em termos de acção significativa,
como práxis. A «prática» instituinte assume, assim, um modelo
linguístico que pretende insíaurar-se como alternativa herme­
nêutica ao modelo representativo teórico da intencionalidade
como mera «consciência de ...».
A «chave» doutrinária que Merleau-Ponty procura mane­
jar neste contexto organiza-se em torno de uma exploração do
tema da Vorhabe, que expressa a dupla dimensão simultânea
de um «ter diante» e de uma «pré-tenência». A significação
operada por uma práxis pré-põe um mundo diante de si, num
movimento que ainda não implica a plena explicitação teórica
do conteúdo, das determinações, dos objectos.

«Sujeito falante: é o sujeito de uma práxis. Não


mantém diante de si as palavras [paroles] ditas e com­
preendidas como objectos de pensamento ou ideatos.
Não as possui senão por uma Vorhabe que é do tipo
da Vorhabe do lugar pelo meu corpo que vai até lá.
Isto é: ele é uma certa falta de... tal ou tal significante,
que não constrói a Bild daquilo de que tem falta. Há
portanto aqui uma neo-teologia que não suporta, tão
pouco quanto a teleologia perceptiva, ser sustentada
por uma consciência de..., nem por um ek-stase, um
projecto construtivo.» 54

O falar que um sujeito protagoniza é, pois, entendido como


uma práxis, precisamente, para o diferenciar da modalidade
intencional do relacionamento representativo. A linguagem
tem antecipadamente os seus objectos (de significação) diante
de si, segundo uma intenção prévia não teoricamente analisada
ou explicitada de modo completo ou integral.
Daqui a referência a uma neo-teleologia, a uma teleologia
de novo tipo que se não identifica com a construção ek-stática
ou projectada dos objectos. No fundo, o que Merleau-Ponty
98 JOSÉ BARATA-MOURA

procura assinalar é uma modalidade de relacionamento origi­


nário que não obrigue de antemão à entrada em jogo de uma
reflexividade: a «consciência de...» previamente instituída.
Trata-se, por conseguinte, sempre de um relacionamento,
e de um relacionamento entendido como condição subjectiva
de possibilidade da mostração ou da existência na mostração
(posteriormente analisável segundo um sistema diversificado
de intenções teóricas). No entanto, o que se procura é dissociar
a determinação teórica (definida como posterior) da determi­
nação estrutural originária, aludida no âmbito de um vocabu­
lário práxico.
Há, todavia, um efeito linguístico que Merleau-Ponty pre­
tende converter em expressão autêntica da prática. A parole
«perturba», interfere com o ser pré-linguístico, leva-lhe um
fermento55 de transformação. Isto é, assume-se como activa,
operacional; quase que toca as raias de uma transformação
material que sempre se perfila à espreita por detrás das carac­
terizações da práxis, mas nunca avança com franqueza e de­
terminação para o primeiro plano da consideração.
«O que é preciso esclarecer: é a perturbação [bou-
leversement] que a fala [parole] introduz no Ser pré-
-linguístico. A princípio, ela não o modifica, ela é ela
própria, a princípio, “linguagem egocêntrica”. Mas ela
traz apesar de tudo um fermento de transformação que
dará a significação operatória.»56
£ é aqui que as dúvidas e as hesitações quanto ao alcance
ultimamente ontológico de toda esta concepção se avolumam
e forçam a passagem até à penumbra da tematização. São,
aliás, preocupações de que o próprio Mérleau-Ponty algo pudi­
camente se faz ele próprio eco.
Não constituirá esta des-viação por territórios linguísticos
um regresso ao poder instituinte da práxis, um retomo à inten­
cionalidade do Cogito, uma simples modulação do esquema
básico que rege a estrutura da representação em geral?
«O que é este fermento? Este pensamento de práxis?
É o mesmo ser que percebe e que fala? [É] impos­
sível que não seja o mesmo. E se é o mesmo, não é
isto restabelecer o “pensamento de ver e de sentir”,
o Cogito, a consciência de...?»57
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXISt 99

Do nosso ponto de vista, só não se trata de um regresso


porque, no fundo, aqui apenas se insinuam alguns contornos
de um território fundamental que nunca foi verdadeiramente
abandonado: o da anteposição sistemática de uma condição
subjectiva de possibilidade à existência da realidade objec-
tiva — isto é, a grande matriz estruturante de qualquer idea­
lismo, tanto da teoria como da «práxis».

§ 10. L inguagem e viver. Um in ten to de superar a dicoto­


m ia do su b jectivo e do ob jectívo num a unidade que
instaure a su a recíproca pertença originária. A lin­
guagem com o veículo privilegiado da m anifestação.
D epreciação ou silenciam ento da dim ensão tran s­
form adora da pratica.

Para Merleau-Ponty, esta vinculação da linguagem e da


práxis surge mediada por toda uma compreensão do próprio
viver e da sua essencialidade. M uito a propósito, como que
deparamos aqui com uma utilização da ambiguidade na sua
função dissimuladora de uma radicalidade de posições não
perscrutada nem frontalmente assumida.
Se a linguagem é uma vida, como que nos é sugerido que
a vida é ela própria linguagem. Se a linguagem é práxis, como
que se nos deixa a pensar que a prática é fundamentalmente
linguagem. O segundo membro da Zw eideutigkeit nunca é cla­
ramente enunciado, mas nem por isso deixa de se encontrar
«antecipadamente» expresso ou aludido; é por isso mesmo,
aliás, que se trata de algo de reversível na sua «ambiguidade».
É que formular assumidamente o segundo membro da sime­
tria obrigaria a reconhecer implicações de natureza ontológica
que, porventura, Merleau-Ponty não estaria preparado para
acolher frontalmente no seu pensamento.

«A linguagem é uma vida, é a nossa vida e a delas


[a vida das coisas nuas, das choses nues] .» 68

A linguagem é o elemento que consubstancia e reúne — te­


nha-se em conta todo o relevo dado ao tema do «chiasma» e
do «imtrelacs» em L e Visible et Vinvisible\ Heidegger, por seu
lado, também falara do Z m sc h e n 58— o subjectivo e o objec-
tivo, a consciência e as coisas. Ou seja, é, de certo modo, por
e na linguagem— outros diriam certamente: por e na cons-
100 JOSÉ BARATA-MOURA

ciência, por e na práxis— que a unidade do ser se constitui


ou reconstitui.
(O jovem Lukács ou Theodor Adorno60, exemplos apenas
entre alguns outros possíveis, igualmente insistem na necessi­
dade de se superar a dicotomia sujeito-objecto e para ela apre­
sentam alternativas, em última instância, marcadas por esses
traços idealistas. Michel Foucault, por outro lado, em Les
Mots et les choses, na senda de toda uma tematização cara ao
estruturalismo, virá por sua vez a falar da linguagem como
estrutura efectivamente fundante, destinada a submergir e a
fazer desaparecer o próprio Homem, enquanto lugar episté-
mico privilegiado e instituinte, no Oceano de uma radicalidade
finalmente em vias de se des-envolver em toda a sua pleni­
tude61.
De qualquer modo, para Merleau-Ponty, a associação fun­
damental parece ser aqui a do vivido e do falado. Le vécu est
du vécu-parlé. O «vivido» é um «praticado» que na e pela
linguagem assoma.
«[...] tendo experimentado nele mesmo a necessi­
dade de falar, o nascimento da palavra [parole] como
uma bolha no fundo da sua experiência muda, o filó­
sofo sabe melhor do que ninguém que o vivido é vivido-
-falado, que, nascida a essa profundidade, a linguagem
não é uma máscara sobre o Ser, mas, se se souber rea­
vê-la com todas as suas raízes e toda a sua frondescên-
cia, a mais válida testemunha do Ser [...]»**.
A linguagem, na intenção ontológica de Merleau-Ponty,
não será, pois, um véu ou um ocultamento dos entes, mas
veículo privilegiado da sua manifestação, no horizonte de uma
temática que não deixa de levar a pensar — no quadro de uma
aproximação, por certo, imediatamente «exterior», mas que,
uma vez aprofundada, pode revelar raízes à primeira vista in-
suspeitadas — no pastoreio linguístico do Ser que Heidegger6S
preconiza e a que à sua maneira se entrega.
Esta remissão para o viver reverte-nos, uma vez mais, para
o problema da prática e da sua caracterização por parte de
Merleau-Ponty. A dimensão do viver devolve-nos um con­
fronto com a prática, entendida em termos que é mister ana­
lisar.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 101
Na verdade, para Merleau-Ponty — e já atendemos a diver­
sos aspectos da sua concepção — a prática não nos surge fun­
damentalmente marcada pelos traços da transformação m ate­
rial. Em geral, aponta para outras dimensões segundo as quais
é predominantemente pensada.
É assim que, por exemplo, já, em La Structure du compor-
temera a transformação nos aparece pensada essencialmente
como uma limitação da actividade que, de algum modo, a
degrada ao nível da animalidade. Para Merleau-Ponty, o ani­
mal transforma, enquanto o homem assume o trabalho como
des-vendador ou projectador de um mundo de possíveis ou de
viáveis.
Merleau-Ponty retira da incapacidade animal de fabricar
utensílios conclusões que afectam pela base o reconhecimento
do papel determinante da transformação na actividade prá­
tica. Tudo parece passar-se como se na prática humana o
essencial não fosse também a transformação, ainda que no
quadro de uma nova qualidade ligada ao desenvolvimento das
suas capacidades teóricas e expressável no fabrico regular e
intencional/propositado de instrumentos de trabalho.
Sugere-se-nos, assim, que, enquanto o animal transforma,
o homem vai mais além, e que é nesse ir mais além, que é
nesse perspectivar de um leque de possibilidades trans-imedia-
tas, que se encontra o fundamental da sua actividade prática.

«[...] a actividade animal revela os seus limites:


perde-se nas transformações reais que opera e não pode
reiterá-las. Pelo contrário, para o homem, o ramo de
árvore tornado pau permanecerá justamente um ramo-
-de-árvore-tornado-pau, uma mesma “coisa” em duas
funções diferentes, visível “para ele9* sob uma plurali­
dade de aspectos» •*.

O trabalho humano apareceria, então, não determinante-


mente como actividade materialmente transformadora da rea­
lidade objectiva, mas essencialmente como reconhecimento
(teórico?, práxico?) de um horizonte de possibilidades. Esta
Anerkennung como que nos reconduz às paragens onde im­
pera, tutelar, o grande modelo da intencionalidade represen­
tativa.
O trabalho — e, por conseguinte, a prática — assinalariam
um mundo viável sob uma pluralidade de aspectos. É a dimen­
são do ver que sobressai.
102 JOSÉ BARATA-MOURA

Atente-se em que, mesmo sem uma alteração de monta nos


supostos ontológicos que comandam toda esta concepção,
Merleau-Ponty poderia dizer que a práxis projecta um mundo
praticável, transformável, etc.; todavia, não acontece assim.
Aquilo que vem sempre ao de cima é a contaminação da práxis
pelo vocabulário (e pelo ideário) de uma constituição transcen­
dental do mundo pela consciência, não por uma consciência
exclusivamente teórica ou representante, mas por uma cons­
ciência igualmente práxica.
«O sentido do trabalho humano é, portanto, o reco­
nhecimento, para além do meio actual, de um mundo
de coisas visível para cada Eu sob uma pluralidade de
aspectos, a tomada de posse de um espaço e de um
tempo indefinidos, e mostrar-se-ia facilmente que a
significação da palavra [parole] ou a do suicídio e do
acto revolucionário é a mesma. Estes actos da dialéc-
tica humana revelam todos a mesma essência: a capa­
cidade de se orientar em relação ao possível, ao me­
diato, e não em relação a um meio limitado [...].» 68
A ambiguidade — que algo mais cruamente seria aqui,
porventura: essencial confusão de planos — manifesta-se, desta
vez, na apressada identificação das significações da parole e do
acto revolucionário, de uma actividade teórica e de uma prá­
tica materialmente transformadora. Todos estes aspectos nos
ajudam, portanto, a circunscrever melhor o núcleo significa­
tivo central daquilo que Merleau-Ponty entende por práxis.
Em sentido muito semelhante a este vão também as afir­
mações de Merleau-Ponty sobre os traços fundamentais do
viver. Decorre essencialmente no horizonte do «impor signi­
ficações» e do «experimentar»: não propriamente do trans­
formar.
«Viver, para um homem, não é apenas impor per-
petuamente significações, mas continuar um turbilhão
de experiência que se formou, com o nosso nascimento,
no ponto de contacto do “exterior” [dehors] e daquele
que é chamado a vivê-lo.»66
Não é que Merleau-Ponty exclua a prática — e até talvez
mesmo a prática como transformação. O que ocorre é que,
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 103

no quadro do seu pensamento, em virtude dos próprios supos­


tos em que assenta, esta referência à práxis está sempre essen­
cialmente marcada e controlada pelo esquema fenomenológico
(teórico) do des-vendamento, da constituição, da im-posição
de significações. Em suma, de uma tendencial teorização, on-
tologicamente interpretada como instauração concreta (deter­
minada) do mundo do conhecer e do agir, em geral.
Como nos é dito em Les Aventures de la dialectique, no
âmbito de toda uma polémica subtil com Sartre, o que have­
ria que assegurar era «uma acção que seja um desvendamento,
um desvendamento que seja uma acção, em suma, uma dia-
léctica» 6T.
Só que nesta articulação dialéctica, tal como Merleau-
-Ponty a entende, o primado vem sempre de algum modo a
caber ao desvendamento. Não só a acção é essencialmente pen­
sada, em termos de objecto, como desvendamento — o desven-
damente de um m undo —, como subjectivamente, no seu pró­
prio operar, ela é vista como «acto de desvendar».
Contra o que seria a absolutização teórica de um regard —
que apenas poderia apresentar como reverso uma acção intei­
ramente «pura»; e este é, precisamente, um contexto de debate
em que Merleau-Ponty se enfrenta com Sartre — procura de-
senvolver-se uma intencionalidade constituinte que albergue
também algo mais: determinações práticas.
Mas, Merleau-Ponty de modo algum coloca consequente­
mente a prática no lugar central do viver, nem de modo algum
a entende como fundamental actividade material de transfor­
mação. O reconhecimento tanto de um como do outro aspecto
obrigaria, por certo, a uma revisão, e a um revolucionamento
mesmo, dos supostos ontológicos em que a sua filosofia assenta.
I
IIL Práxis
e comunicação intersubjectiva

§ 11. K em lssâo para eventuais elem entos m arxianos na


compreensão* m erleau-pontyana da «práxis». P rática
e intersubjectívidade. A convivência com unicante
com o horizonte da actividade v ita l práxica.

A temática da práxis em Merleau-Ponty não se limita a


acolher elementos, problemas e perspectivas oriundas da feno-
menologia de Husserl e da filosofia da linguagem. Para além
da problemática da constituição, da intencionalidade, da signi­
ficação, etc., há também toda uma outra contribuição — cuja
origem está no pensamento de Marx e que nos surge funda­
mentalmente mediada por uma determinada compreensão de
Geschichte und Klassenbewusstsein de Gyõrgy L ukács— que
se reflecte no pensar da prática a que Merleau-Ponty procede.
Referimo-nos, como é óbvio, a contextos temáticos enca­
rados sob o ângulo predominantemente filosófico do material
categorial e problemático disponível e interveniente; sobre o
contexto social, político e ideológico, mais vasto e determi­
nante, o sentido e as implicações da intervenção de Merleau-
-Ponty nesse âmbito, sobre o contexto imediatamente ideoló­
gico de todos esses debates, já muitos se têm debruçado e pode­
mos contar hoje com larga bibliografia80.
Como temos vindo a mostrar, o objectivo do nosso trabalho
é outro e, por conseguinte, igualmente outra é a incidência
directa da nossa análise, assim como o horizonte da nossa
crítica. Não pretendemos aqui julgar um homem e a sua inter-
106 JOSÉ BARATA-MOURA

venção cultural e política, mas tão-só analisar alguns aspectos


de um pensamento e esclarecer alguns dos supostos em que
assentam.
As referências tópicas ao pensamento de Marx, a interven­
ção de elementos marxianos no vocabulário e no tratamento
da problemática da práxis por parte de Merleau-Ponty, orga­
nizam-se, entre outros, em tomo de dois ou três aspectos prin­
cipais que, curiosamente, uma passagem de Eloge de la phila-
sophie claramente anuncia:
«[...] a intuição tão nova da práxis voltava a pôr
em causa as categorias filosóficas usuais[...]. Esse
sentido imanente dos acontecimentos inter-huma-
nos [...]» 70.
Como se vê, os três aspectos aqui postos em destaque são
a contestação da dominância das categorias filosóficas tradi­
cionais, a temática do «sentido» e a intervenção constitutiva
da intersubjectividade.
Para Merleau-Ponty, a novidade da práxis como cate­
goria filosófica veiculada por Marx prende-se com tudo aquilo
que até agora temos vindo a ver. Fundamentalmente, por­
tanto, com o intento de fundar a constituição do mundo, não
apenas numa intencionalidade representativa assente na ope­
rosidade do pensamento, mas igual e originariamente numa
acção comportamental envolvendo uma orientação corporal.
Do nosso ponto de vista, esta concepção pouco ou nada
terá a ver com a compreensão marxista da prática, naquilo
que ela tem de essencial. No entanto, também aqui não é
mister nosso aquilatar tematicamepte da correcção ou incor-
recção da Marx-Rezeption operada por Merleau-Ponty.
O nosso objectivo é surpreender a determinação da cate­
goria de práxis que se desprende dos textos de Merleau-
-Ponty e é essa tarefa que intentaremos prosseguir, passando
a considerar este novo horizonte de referência e vocabulário
mais acentuadamente marxianos.
A intersubjectividade desde sempre se apresentou como
uma das preocupações centrais da fenomenologia de Merleau-
-Ponty, juntamente com as temáticas do corpo e do compor­
tamento. Na Phénoménologie de la perception, aparece-nos
pensada muito como uma presença necessária na própria cons-
DA REPRESENTAÇÃO A cPRÁXIS» 107

ciência, como uma descoberta que no Cogito se faz de uma


situação em que se está n , como uma condição de alteridade
em que a própria percepção do m eu mundo decorre e in co rre7t.
N o quadro da problemática da práxis, igualmente a
intersubjectividade se manifesta como aspecto fundamental.
E, uma vez mais, importa detectar qual a dimensão dessa
intersubjectividade que é retida por Merleau-Ponty como deci­
siva ou essencial para uma caracterização da prática.
A intersubjectividade é apresentada como o elemento,
como o horizonte, da prática. E, nela, o fundamental parece
ser, não a transformação material — que, de novo, não nos
é referida —, mas a mera coexistência (eventualmente comu-
nicante) dos humanos.
Ensaiando um esboço de comparação entre Hegel e Marx
quanto à questão do sentido da história — preocupação que,
para Merleau-Ponty, se assevera central—, esta coexistência
é apresentada como suporte da práxis, não indo a determi­
nação do seu modo de operar além de uma associação à temá­
tica (existencialista) da inquietude.

«Se há um quietismo hegeliano, há necessariamente


uma inquietude marxista. Se Hegel pode encomen­
dar-se cegamente ao curso das coisas, porque perma­
nece nele [Hegel] um fundo de teologia, a práxis
marxista não tem o mesmo recurso, ela não tem outro
suporte senão a coexistência dos homens.» 78

Ora, a inquietude, dimensão por certo ponderável no âm­


bito da reflexão antropológica e ética, não é, em nosso enten­
der, suficiente para expressar o que de fundam ental há a
detectar na actividade prática. Ao quietismo da teoria poderão
opor-se muitas coisas, inclusivamente, uma inquietude que
pode ela própria não transcender também o plano da teoria.
Isto é, o terreno decisivo da prática tem de ser encontrado a
outro nível e segundo outras dimensões fundamentais.

É certo que Merleau-Ponty, dando a sua interpretação das


Thesen iiber Feuerbach de Marx, afirma que a práxis de­
signa «uma actividade imanente ao objecto da história» 7\
Só que aqui múltiplas interrogações se têm de levantar em
ordem a precisar o sentido e o alcance desta concepção, e
designadamente duas: quem /que é este objecto da história?, de
108 JOSÉ BARATA-MOURA

que tipo é essa actividade que em termos de imanência lhe


é atribuída?
De novo somos revertidos ao horizonte do humano e do
seu viver. Mas, de novo também esta actividade vital, práxica,
nos aparece assimilada à mera convivência comunicante. Tudo
se passa como se, para Merleau-Ponty, a prática fosse apenas
ou constitutivamente a circunstância de os homens comuni­
carem entre si, procederem a trocas de experiências e de
perspectivas.
É como se, para Merleau-Ponty, o plano da teoria, para
ser transcendido, tivesse apenas de se ver alargado a uma
comunidade intersubjectiva, que obrigatoriamente não pode
deixar de relativizar as pretensões da consciência individual
à posse intelectiva absoluta dos seus conteúdos.
É como se, para Merleau-Ponty, o terreno da práxis se
circunscrevesse a esta entrada em jogo comunicativa da inter-
subjectividade, parecendo não se atentar devidamente em que
o plano da comunicação pode ele próprio permanecer domi­
nantemente no elemento da teoria..., que supõe uma prática
(por certo; mas não é ele próprio imediatamente e como tal
uma prática), que encerra toda uma actividade (por certo; mas
que é ela própria actividade teórica).
«[...] a práxis não está sujeita ao postulado da
consciência teórica, à rivalidade das consciências. Para
uma filosofia da práxis, o próprio conhecimento não é
a posse intelectual de uma significação, de um objecto
mental, e os proletários podem carregar o sentido da
história sem que seja na forma de um “eu penso”.
Esta filosofia toma por tema, não consciências encer­
radas na sua imanência natal, mas homens que se
explicam um com o outro [...]» 7B.
A teoria vê-se, assim, chamada a dar conta, a traduzir,
a expressar, uma prática. Só que essa prática acaba por ver-se
identificada com o vivido, isto é, de certo modo, com algo
de já passado pela mediação de uma consciência «reflexiva»,
onde os elementos afectivos, pensantes, comportamentais, etc.,
intervêm segundo proporcionalidades diversas, mas sempre se
encontram recolhidos em algo que é do domínio da «teoria».
No entanto, para Merleau-Ponty, parece continuar a bastar
que a teoria reflicta o vivido, isto é, que passe pela prática,
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 109

curiosamente interpretada, uma vez mais, como uma mera


«confrontação» intersubjectiva de perspectivas e experiências.
«Por este confronto [entre os homens “que se expli­
cam”] a teoria atesta-se como expressão rigorosa da­
quilo que é vivido [...].» ™
No mesmo passo, e sintomaticamente, o termo encontrado
por Merleau-Ponty para se opor ao que seria a perspectiva
teórica, representativa, das «consciences oisives, silencieuses et
souveraines» é, não a categoria de prática, mas o apelo à sim­
ples échange, no caso em questão: entre os operários e os
«teóricos» ou os intelectuais77.
A intersubjectividade é suporte da práxis, afirma Mer­
leau-Ponty. Mas, essa intersubjectividade é pensada como mera
comunicação ou troca de experiências entre os indivíduos, e
não como co-operação material em processos de transformação
da realidade objectiva. A práxis na teorização de Merleau-
-Ponty permanece deficientemente entendida, sobretudo, se
se pretender encontrar na sua tematização qualquer renova­
ção ou restabelecimento do marxismo segundo alguma inspi­
ração mais autêntica e originária, até agora insuspeitada78.

§ 12. A «novidade» da categoria m arxiana de «práxis»,


segundo M erleau-Ponty. V alorização da práxis e
crítica do m aterialism o. O in ten to de dissociação
en tre o pensam ento de M arx e o de E n gels quanto
à prática. A inspiração lukácsiana. A incom preensão
do carácter determ inante da transform ação m aterial
e do seu fundam ento.

O que acabamos de afirm ar não invalida, todavia, que


Merleau-Ponty não intente, em diferentes contextos, uma
certa aproximação interpretativa do pensamento de Marx.
Mais: há que reconhecer que, nas principais passagens em que
se refere a uma compreensão «marxista» da prática, o tema
da transformação — ou melhor: o vocabulário da transforma­
ç ã o — emerge com uma frequência que em outros contextos
não ocorre.
Daqui se poderá, porventura, concluir que há efectiva-
mente uma compreensão merleau-pontyana da práxis que,
inspirando-se de Marx e de outras fontes de vocabulário e
problemática, não acaba, todavia, por a elas se reduzir. Claro
110 JOSÉ BARATA-MOURA

que não permanece completamente fora de questão que alguma


desta especificidade no tratamento do tema da práxis por
Merleau-Ponty não provenha de determinados equívocos, de
ilações e consequências, porventura, ilegitimamente traçadas
(de um ponto de vista histórico-filosófico material), designa-
damente, no que às concepções de Karl Marx diz respeito.
Creio que, por conseguinte, poderá ser de alguma utilidade
examinarmos um conjunto de textos de Merleau-Ponty onde
se aborda a temática da práxis segundo Marx. Teremos
talvez a oportunidade de surpreender, aí e assim, não apenas
algumas das linhas fundamentais da interpretação de Marx
que Merleau-Ponty subscreve como também — sobretudo pelos
interstícios das dissonâncias, das extensões abusivas, etc. —
a intromissão/expressão do seu pensamento próprio sobre as
matérias em causa.
Para Merleau-Ponty, a «práxis» apresenta-se como a cate­
goria central do pensamento de Marx. Uma categoria que, em
virtude da sua novidade no âmbito da história da filosofia
e da sua intrínseca dificuldade, não tem sido entendida da
melhor maneira e cujo conteúdo urge, por conseguinte,
rectificar.
Referindo-se à práxis em Les Aventures de la dialectique,
afirma:
«Esta difícil noção, justamente porque era nova,
foi mal compreendida. É ela, no entanto, que faz do
marxismo uma outra filosofia, e não apenas uma trans­
posição materialista de Hegel.»70
O passo é todo ele de inspiração lukácsianaê0, ainda que
sejam por isso mesmo de assinalar alguns «acrescentos» da
lavra de Merleau-Ponty que nos permitem detectar algumas
direcções fundamentais do seu próprio pensamento, ao enca­
minhar nesse sentido seu concepções (de Lukács, por um lado,
e de Marx, por outro) que temática ou sistematicamente apon­
tam, ao nível material, para teses algo diferenciadas das suas.
Assim, Merleau-Ponty associa desde logo a valorização
do tema da práxis a uma velada crítica do materialismo.
Porque é fundamentalmente prática, a filosofia de Marx não
poderia ser materialista ou não poderia ser «transposição
materialista» de Hegel.
Claro que a filosofia de Marx não é uma mera «transpo­
sição» da filosofia de Hegel; no entanto, Merleau-Ponty logo
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 111

se apressa a acrescentar o qualificativo de «materialista»,


ensaiando uma subtil associação entre a admissão (até certo
ponto pacífica) de que M arx não é uma «transposição» de
Hegel e a dissociação (altamente contestável de um ponto de
vista material — temático e textual) de Marx relativamente
ao materialismo.
Adiante voltaremos ainda a esta questão que, aliás, é uma
das preocupações temáticas de Merleau-Ponty. A valorização
da práxis parece ter como suposto, em seu entender, um
afastamento radical em relação ao materialismo (como, aliás,
acontece com a generalidade das modernas concepções idea­
listas de uma ontologia da práxis, que Merleau-Ponty, no
entanto e por outro lado, não partilha de um modo franco
e integral).

Há no entanto ainda um outro aspecto em toda esta pas­


sagem de Les A ventures de la dialectique para a qual gostaria
de chamar a atenção por me parecer bastante sintomática.
Seguindo, uma vez mais, Lukács — e, aliás, referindo-o
expressamente —, Merleau-Ponty, para dar ênfase à novidade
teórica da categoria marxista de práxis, entende que o me­
lhor caminho é enveredar pelas batidas sendas do tema da
oposição (essencial?) entre M arx e Engels. Para Marx, a
práxis seria fundamentalmente uma «actividade revolucio­
nária crítico-prática», enquanto, para Engels, a práxis não
passaria da «experiência [sic] e da indústria».
Algumas precisões se impõem quanto à interpretação de
Merleau-Ponty, tanto no que toca a Marx, como no que toca
a Engels, como mesmo no que toca a Lukács. Designadamente,
o que Merleau-Ponty parece não acautelar devidamente é a
básica compreensão das relações dialécticas entre essência e
fenómeno, entre traço essencial determinante e formas par­
ticulares de uma sua manifestação.
Quando nas Thesen uber Feuerbach Marx fala da prática
como actividade revolucionária, de modo algum afirma que
só a actividade revolucionária é práxis. Pelo contrário, para
Marx,

«Todo o viver social é essencialmente prático.» 81,

na precisa medida em que consiste em diversificados sistemas


materiais de transformação da realidade objectiva natural e
social.
112 JOSÉ BARATA-MOURA

Em Das Kapitai, esta Stoffwechsel, esta troca material,


com a Natureza é expressamente compreendida no horizonte
de um processo material de transformação, protagonizado
pelo trabalho:
«O trabalho é, antes do mais, um processo entre
homens e Natureza, um processo em que o homem
medeia, rege e controla a sua troca material [Stoff­
wechsel] com a Natureza pela sua acção própria. Ele
faz face à própria matéria da Natureza [Naturstoff]
como um poder da Natureza [Naturmacht]. Ele põe
em movimento as forças da Natureza que pertencem
à sua corporalidade — braços e pernas, cabeça e mão —
para se apropriar da matéria da Natureza numa forma
útil para a sua própria vida. Ao actuar, por este movi­
mento, sobre a Natureza fora dele e ao transformá-la,
transforma, ao mesmo tempo, a sua própria natureza.»82
Relativamente a Engels, importa obviamente não esquecer
que ao dar comc exemplos — nàmliche das Experiment und
die Industrie — a experimentação (e não a «experiência»; não
é de Erfahrung que se trata, mas de Experimeníl) e a indús­
tria, de modo nenhum ele pretende excluir do domínio da
prática a actividade revolucionária, nem fazer constituir a
essência da práxis na exclusiva actividade experimental ou
industrial.
Aliás, o passo em questão é de Ludwig Feuerbach und der
Ausgang der klassischen deutschen Philosophie e aí Engels
limita-se a recordar aos que sustentam que a realidade objec-
tiva (material) é incognoscível que, no fundo, há formas
práticas de verificação da correcção ou justeza dos nossos
conhecimentos; isto, na sequência teórica ou sistemática de
algo que Marx já muito antes apontara como perspectiva
gnosiológica fundamental: a adequação do nosso conheci­
mento ao real não é questão apenas da teoria (por exemplo,
mediante esquemas formais de coerência, compossibilidade,
etc.), mas da prática 88.
Aludindo, precisamente, aos que segundo orientações
inspiradas de Hume ou de Kant defendiam a incognoscibili-
dade do «em si», escreve Engels:
«O decisivo para a refutação desta perspectiva foi
já dito por Hegel, tanto quanto isso era possível de
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 113

um ponto de vista idealista; o que Feuerbach acres­


centa de materialista é mais espirituoso do que pro­
fundo. A mais percuciente refutação desta, como de
todas as outras tinetas filosóficas, é a prática, nomea­
damente, a experimentação e a indústria. Quando nós
podemos demonstrar a' correcção da nossa concepção
de um processo natural, fazendo-o a ele próprio nós,
engendrando-o a partir das suas condições, fazendo-o,
acima de tudo, servir os nossos objectivos, põe-se termo
à inapreensível “coisa em si” de Kant.»*4

Não se trata, por conseguinte, de uma passagem onde


Engels esteja a proceder a uma determinação conceptual ou
essencial da categoria de práxis, mas apenas de uma refe­
rência a formas elementares e próximas de refutar determi­
nadas manifestações de agnosticismo.
Interessante é ainda verificar como Engels associa o pró­
prio Hegel a esta refutação e relativiza ou limita a contribuição
materialista de Feuerbach. Não é que Engels apadrinhe o
idealismo de Hegel e censure o materialismo de Feuerbach.
É, sim, que, para Engels, o materialismo, èem deixar de ser
materialismo, tem de ser prático e dialéctico também.
Em Geschichte und Klassenbewusstsein *6, Lukács trabalha
igualmente esta passagem, mas no sentido de detectar nela
uma errónea utilização por Engels do conceito kantiano de
Ding an sich, não vendo, por sua vez, que, em todo o contexto
referido, Engels dá um conteúdo materialista às noções de
«em si» e «para si», diferente da sua tradicional determinação
no âmbito do idealismo transcendental e da filosofia alemã
clássica, em geral.

Finalmente, no que a Merleau-Ponty diz respeito, é de reter


a incompreensão que parece manifestar, em termos de teo­
rização, relativamente ao papel nuclear da transformação na
determinação categorial da práxis.
Entendendo erroneamente que Engels reduz a prática à
«experimentação» e à «indústria», Merleau-Ponty não con­
segue ver também nestas aquilo que de fundamentalmente
prático encerram: o seu núcleo transformador. Por isso, trata
de as associar à teoria: a experiência é uma modalidade de
conhecimento, a indústria repousa também sobre um conhe­
cimento. A dimensão prática, transformadora, da experimen­
tação (que é aquilo a que Engels se refere, e não à experiência/
114 JOSÉ BARATA-MOURA

/ Erfahrung) e da produção industrial parece passar-lhe desper­


cebida.
Citando de Engels apenas a frase: «Die Praxis nàmlich das
Experiment und die Industrie», Merleau-Ponty comenta:
«Se a práxis não fosse mais nada, não se vê como
é que Marx a poderia pôr em concorrência com a con­
templação como modo fundamental da nossa relação
com o mundo: a experiência e a indústria postas no
lugar do pensamento teórico seria um pragmatismo
ou um sensualismo; noutros termos: o todo da theoria
[seria] reduzido a uma das suas partes, pois a expe­
riência é uma modalidade do conhecimento e a indús­
tria repousa, ela também, sobre um conhecimento
teórico da natureza.» *e
Esta «cegueira», pelo menos, parcial, para a temática da
transformação é, em nosso entender, sintomática da própria
ideia que Merleau-Ponty faz da práxis; uma ideia que é,
de facto, diferente daquela que no marxismo ocorre.

§ 13. Produtividade humana «versus» materialismo: o


carácter transformador da acção humana nega o
estatuto ontológico autónomo da matéria. Dialéctica
e intersubjectividade. Entre a positividade da exis­
tência e a transcendentalidade da posição pela cons­
ciência, a originariedade de uma práxis instituinte.
Há, no entanto, contextos significativos onde Merleau-
-Ponty parece ser um pouco mais sensível à dimensão trans­
formadora da prática. Trata-se, sobretudo, de passagens onde
ele procura associar a valorização da práxis a uma recusa
do materialismo, quer nos termos do que seria, no entender
dele, o genuíno pensamento de Marx, quer — no quadro de
uma certa sequência lógica — em passos onde Merleau-Ponty
intenta reduzir a dialéctica a um pensar ou a uma forma de
consciência intersubjectiva, apartando-a decididamente da
Natureza e da materialidade, em geral.
O motor da dialéctica, para Marx, segundo Merleau-Ponty,
é «o homem», Vhomme:
«[...] é a intersubjectividade humana concreta, a
comunidade sucessiva e simultânea das existências a
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 115

realizar-se num tipo de propriedade que elas sofrem


e que elas transformam, cada uma criada por outrem
e criando-o. [...] no marxismo a “m atéria”, como aliás
a “consciência”, nunca é considerada à parte, está inse­
rida no sistema da coexistência humana, funda aí uma
situação comum dos indivíduos contemporâneos e su­
cessivos, assegura a generalidade dos seus projectos e
torna possível uma linha de desenvolvimento e um
sentido da história; mas, se esta lógica da situação é
posta em movimento, desenvolvida e completada, é pela
produtividade humana sem a qual o jogo das condições
naturais dadas não faria aparecer nem uma economia,
nem, com mais razão, uma história da economia»87.

Julgando interpretar M arx correctamente, Merleau-Ponty


salienta uma «produtividade humana» que é vista como trans­
formação, mas apenas para negar um estatuto ontológico
autónomo à matéria, para inviabilizar qualquer «explicação»
do homem a partir da matéria.
De qualquer modo, a referência fundamental da práxis
continua a ser uma intersubjectividade encarada fundamental­
mente em termos de comunidade «comunicativa». Continuam
a ser esses, para Merleau-Ponty, os traços decisivos a destacar,
os traços que, no fundo, se aproximam daquilo que ele próprio
entende por práxis.

Em Eloge de la philosophie, esta temática irrompe ainda


em termos de maior clareza. A dialéctica não é das coisas,
é da consciência, é dos homens intersubjectivamente coexis­
tentes; só nessa medida ela terá algo a ver com a prática.

«[...] Marx não pode, portanto, como os seus


sucessores julgaram e como ele próprio talvez tenha
julgado, transformar a dialéctica da consciência em
dialéctica da matéria ou das coisas: quando um homem
diz que há uma dialéctica nas coisas, não pode ser
senão nas coisas enquanto ele as pensa, e esta objec-
tividade é finalmente o cúmulo do subjectivismo, como
o exemplo de Hegel tinha mostrado. Marx não desloca,
portanto, a dialéctica para as coisas, desloca-a para os
homens, tomados, bem entendido, com toda a sua
aparelhagem humana e enquanto comprometidos pelo
116 JOSÉ BARATA-MOURA

trabalho e pela cultura num empreendimento que


transforma a natureza e as relações sociais.»*8
A alusão à transformação do mundo encontra-se aqui,
efectivamente; no entanto, poderemos por certo perguntar­
mos, creio que fundamentadamente, se em termos de teoriza­
ção da prática, se em termos de compreensão das suas estru­
turas materiais determinantes, essa será, para Merleau-Ponty,
a instância ou a dimensão mais relevante.
Aliás, referências à transformação podemos encontrá-las
noutros passos das suas obras; trata-se, porém, sempre de refe­
rências, não de um tratamento temático, de conteúdo, do
problema da vinculação estrutural, constitutiva, determinante,
da prática à transformação material.
Em Humarúsme et terreur, Merleau-Ponty, por exemplo,
escreve:
«A crítica do sujeito pensante, em geral, o recurso
ao proletário como aquele que não pensa apenas a
revolução, mas que é a revolução em acto, a ideia de
que a revolução não é apenas questão de pensamento
e de vontade, mas questão de existência, de que a razão
“universal” é uma razão de classe e de que inversamente
a práxis proletária traz nela a universalidade efectiva,
numa palavra, o mínimo vestígio de marxismo revela
(no sentido que se dá à palavra em química) a força
criadora do homem na história [...].»**
Todavia, creio, que daqui não tira Merleau-Ponty as con­
sequências teóricas esperadas ou implícitas. Persiste sempre
a questão de saber a que nível e em que termos é que esta
«força criadora do homem na história» se manifesta: se no
plano material da transformação objectiva, se no plano ideal
de uma criação de significações que no horizonte da cultura
engloba e dissolve o próprio trabalho produtivo.
Esta questão obriga-nos forçosamente a regressar à temá­
tica da dialéctica e da intersubjectividade.
A dialéctica remete inevitavelmente, segundo Merleau-
-Ponty, para a vivência intersubjectiva, para o comércio inter­
pessoal no seio de uma comunidade dada.
«Não há dialéctica senão nesse tipo de ser onde se
faz a junção dos sujeitos e que não é apenas um espec-
DA REPRESENTAÇÃO À «PRAXISi 117
táculo que cada um deles dá a si mesmo por sua conta,
mas a residência comum deles, o lugar da sua troca e da
sua recíproca inserção. [...]. Ela pensa-se sempre como
expressão ou verdade de uma experiência onde o comér­
cio dos sujeitos entre si e com o ser estava previamente
instituído. É um pensamento que não constitui o todo,
mas que está situado nele.»90
Neste sentido, a dialéctica fala-nos, como pensamento em
que é dita consistir, de um mundo já constituído onde, na
intersubjectividade, se desenvolve. Neste sentido, a dialéctica
seria teoria de uma práxis intersubjectiva, intercomunicante,
essa sim, constitutiva ou pro-jectante de um horizonte mun­
dano, na sequência das análises mais imediatamente fenome-
nológicas a que em parágrafos anteriores fizemos referência.
A práxis para Merleau-Ponty teria, assim, a ver com
essa estadia originária num lugar comum de residência ou
habitação mundanas: o lugar da troca co-existencial ou comu­
nicativa, determinada essencial e radicalmente sempre no
horizonte da significação.
Merleau-Ponty pretende, assim, recusar à dialéctica, como
pensamento de uma experiência comunicante intersubjectiva,
tanto a exterioridade das coisas objectivas, como a interiori­
dade de um pensamento puro teoricamente constituinte.
A dialéctica traduziria ou procuraria traduzir a radical me­
diação intersubjectiva.
Seria pensamento do «entre», pensamento do ser-visto,
isto é, do ser em trabalho ou acto de revelação.
«[...] a dialéctica é o pensamento do Ser-visto, de
um Ser que não é positividade simples, Em Si, e que
não é o Ser-posto de um pensamento, mas manifestação
de Si, desvendamento, a fazer-se [ ...] » “ .
Entre a positividade de uma existência exterior objectiva,
material, e a mera posição transcendental por uma consciência
representativa, há lugar, segundo Merleau-Ponty, para uma
práxis simultaneamente constituinte e, à sua maneira, des-
-vendadora de um horizonte mundano.
É, precisamente, este tipo de operação e a função de que
ela se desempenha que constituem o essencial a ter em conta
numa determinação da práxis tal como efectivamente ela
intervém enquanto categoria — não central ou nuclear, mas
apesar de tudo presente — no pensamento de Merleau-Ponty.
118 JQSÉ BARATA-MOURA

§ 14. Matéria e pràxis. Um necessário esclarecimento do


«materialismo prático» de Marx. Objectividade e
intersubjectividade. Fenomenologia e marxismo. Os
termos da «conquista» do objecto pelo homem. Cria­
ção humana pelo trabalho e Natureza.

É, de algum modo, neste contexto doutrinário da procura


de alternativas tanto à positividade da existência como ao posi­
cionamento transcendental que a matéria nos é apresentada
por Merleau-Ponty como um mero «corpo» da práxis. Mais:
esta peculiar interpretação é-nos servida como se da herme­
nêutica genuína do pensamento de Marx se tratasse.
«Marx chamou frequentemente ao seu materialismo
um “materialismo prático”. Queria dizer que a matéria
intervém na vida humana como ponto de apoio e corpo
da práxis. Não se trata de uma matéria nua, exterior
ao homem, e pela qual o comportamento do homem
se explicaria.»”
A ambiguidade faz aqui de novo a sua aparição, mas
segundo aquela sua significação negativa ou pejorativa que
aponta para os domínios da confusão e do induzir em conse­
quências que os supostos de uma dada concepção não auto­
rizam.
Merleau-Ponty afirma-nos, no essencial, que o materia­
lismo de Marx seria prático, melhor: seria apenas prático, no
sentido de que a matéria não passaria de um mero «instru­
mento» da práxis (instrumento passivo?, indeterminado?,
dependendo da subjectividade ou da intersubjectividade para
ser?).
Isto é, partindo do fácil reconhecimento de que para Marx
a matéria não é uma instância «nua» metafisicamente isolada
da prática social, mas pode conter trabalho humano incorpo­
rado, Merleau-Ponty intenta saltar para o esquecimento do
traço fundamental da categoria materialista de matéria: que é,
precisamente, a existência objectiva, independente da vontade,
da representação ou da acção de um qualquer sujeito (indivi­
dual, social, transcendental ou divino).
Aliás, bastaria recordar um pequeno texto de Marx onde
é questão do «materialismo prático» para se ver sem grande
dificuldade até que ponto Merleau-Ponty é fiel na sua herme­
nêutica. Não digo fiel, em termos de aceitação ou de adesão
DA REPRESENTAÇÃO À «PRAXIS» 119

ao conteúdo de uma dada concepção, mas fiel no sentido


— minimamente exigível a qualquer intérprete, e muito mais
a qualquer crítico — de traduzir adequadamente o pensamento
sobre que se debruça.
Escreve Marx em Die deutsche Ideologie:
«[...] para os materialistas práticos, isto é, os comu­
nistas, trata-se de revolucionar o mundo existente
[bestehendé], de agarrar e de transformar as coisas
encontradas [como já estando dadas, vorgefundnen] » 9a.
Marx entende aqui o seu materialismo como prático, não
no sentido de que a matéria só exista ou só tenha significado
em função de uma prática, mas no sentido de que ele não
corresponde apenas a uma atitude teórica de reconhecimento
do primado da realidade objectiva ou da unidade material do
real: ele apresenta igualmente uma constitutiva dimensão prá­
tica, interveniente, transformadora, nessa realidade mundana
objectiva em que dialecticamente se inscreve.
É precisamente a esta dimensão fundamental, constitutiva,
do materialismo de Marx e da sua concepção da prática que
Merleau-Ponty não atende, e que desfigura mesmo, nas expo­
sições que nos dá da sua práxis, vagamente evocativa da prá­
tica, tal como Marx a pensou e expressou.
A associação essencial que Merleau-Ponty entende estabe­
lecer (e que atribui a Marx) é a da matéria ao homem (ou à
intersubjectividade humana) e não a da matéria à existência
objectiva, à materialidade.
Merleau-Ponty trata, assim, de dissolver a dimensão deter­
minante constitutiva da matéria — a sua materialidade, a sua
objectividade— numa outra dimensão que ela igualmente
pode apresentar, que é a de ser susceptível de conter trabalho
humano, significações humanas, etc.
Mais: contrariamente a Marx — mas, porventura, na se­
quência de Husserl para quem a objectividade significa ape­
nas o estar dado para todos como horizonte —, Merleau-Ponty
poderá talvez pensar que a objectividade depende essencial­
mente da intersubjectividade.
Ora, a questão central reside efectivamente no modo como
ontologicamente se compreende a relação entre estas instân­
cias: a materialidade define um horizonte mundano para todos
porque é objectivamente existente; não é o facto de ser hori­
zonte vital de todos que faz dela algo de material!
120 JOSÉ BARATA-MOURA

Seja como for, Merleau-Ponty continua a insistir na sua


concepção de que, para Marx, a matéria é sempre
«[...] uma “matéria humana”, isto é, tomada no movi­
mento da praxis» 9®.
Esta associação poderá explicar-se, porventura, mais facil­
mente se atentarmos na aproximação que o próprio Merleau-
-Ponty pretende descortinar entre a temática da fenomenologia
e a do marxismo. A noção de «objecto humano» de Marx seria
aquela que sob a mesma designação a análise fenomenológica
teria agarrado e desenvolvido.
«Compreende-se, portanto, que tenha sido reservado
a Marx introduzir a noção de objecto humano que a
fenomenologia retomou e desenvolveu. [...]. Marx,
ao falar de objectos humanos, quer dizer que esta sig­
nificação está aderente ao objecto tal como ele se
apresenta na nossa experiência.» M
Entre algumas outras coisas importantes, Merleau-Ponty
descura aqui as diferenças capitais subsistentes ao nível dos
supostos entre o pensamento de Marx e a fenomenologia.
É sabido que não têm faltado os intentos de aproximar
— do ponto de vista teórico e até do ponto de vista metodo­
lógico— fenomenologia e marxismo. Herbert Marcuse, num
artigo de 1928 9T, defendia que o método dialéctico se devia
tomar fenomenológico. Tran Duc Thao98 queria ver em
Husserl uma possibilidade de descrição marxista do mundo,
enquanto Michel H enry99 quer ver em Marx o protótipo de
uma descrição fenomenológica. Enzo Paci100, por sua vez, no
quadro de um diálogo com a Krisisy procura igualmente uma
assimilação do marxismo e da fenomenologia, em torno de
tópicos tão importantes — e controversos— como o ser e o
«sentido», a matéria enquanto «modalidade da vivência», a
dialéctica e a subjectividade, etc.
Seja como for e quaisquer que tenham sido os anteceden­
tes e o contexto das tentativas de associação protagonizadas
por Sartre e por Merleau-Ponty, entre outros, há efectiva-
mente questões centrais de divergência ao nível dos supostos
que não podem ser escamoteadas, nem devem ser iludidas ou
mistificadas. Sob este ponto de vista, afirmações confusionistas
como as de um Ante Pazanin101 sobre a inclusão correlativa
do naturalismo no idealismo de Husserl e do idealismo no
DA REPRESENTAÇÃO A cPRAXIS» 121

materialismo de Marx não podem apresentar-se nem como


rigorosas nem como fecundas.
No plano material, e ao nível dos supostos, tanto no plano
ontológico como no plano propriamente gnosiológico da deter­
minação do «sentido», os princípios em jogo são acentuada-
mente diferentes.

Nos Manuscritos de 1844, M arx escreve efectivamente:

«O homem só não se perde, então, no seu objecto,


se este se tornar para ele objecto hum ano ou homem
objectivo. Isto só é possível na medida em que ele
[objecto] se tornar para ele [homem] objecto social
e ele próprio [homem] se tornar ser social, assim como
[na medida em que] a sociedade se tornar ser [Wesen]
para ele nesse objecto.»102

Muito provavelmente, é este o texto que Merleau-Ponty


tem em vista, nas referências, a que atrás aludíamos, ao
«objecto humano». No entanto, projecta sobre ele as suas pró­
prias preocupações fenomenológicas em torno da problemá­
tica do «sentido» e da «significação», sem atender devidamente
a que, pelo contexto, a problemática que M arx trata — mesmo
nos termos, com o aparelho conceptual e os supostos em que
o seu pensamento ainda se movia em 1844— é a de uma con­
quista do objecto pelo homem, pela prática humana, funda­
mentalmente, em termos éticos e económicos: não em termos
gnosiológicos, e ainda menos ontológicos.
Esta socialidade do objecto de que Marx aqui nos fala
prende-se directa e explicitamente com a temática da supe­
ração da propriedade privada (die Aufhebung des Privat-
eigentums). Esta última torna-nos estúpidos e unilaterais ao
ponto de nos levar a considerar uma relação própria com os
objectos, apenas quando essa relação se define nos termos
utilitários e imediatistas de uma mesquinha posse privada10*.
Esta temática prende-se, como é sabido (mas Merleau-Ponty
parece não o ter na devida conta), com a problemática do
trabalho alienado na sociedade capitalista e com a necessidade
de encarar uma actividade humana social que seja gratificante
e realizadora da própria humanidade do homem.
Para Marx — mesmo para o jovem Marx —, o homem cria
a Natureza, não porque estatua o seu sentido, não porque
faça com que ela exista, mas porque a trabalha, porque a
122 JOSÉ BARATA-MOURA

transforma, porque a modela em contorno da sua própria


afirmação 10\ É por isso que ele escreve:
«O engendrar prático de um mundo objectivo, a
elaboração da Natureza inorgânica, é a confirmação
do homem como um ser genérico [Gattungswesen]
consciente, isto é, um ser que se comporta para com
o género como sua essência [Weseri] própria ou para
consigo como ser genérico.»108
Todavia, tudo isto acontece num contexto económico e
ontológico muito bem definido pelo próprio Marx.
Por um lado, o apelo à afirmação transformadora da rea­
lidade objectiva verifica-se num contexto de denúncia (ética,
política e económica) das condições vigentes para a produção
e o trabalho, em geral, na sociedade do seu tempo. No quadro
das relações capitalistas de produção, na radicalidade do seu
exercício, o trabalho assalariado criador de uma mais-valia
embolsada pelo capitalista manifesta-se efectivamente como
desapossamento.
«No estádio da economia nacional [isto é, no modo
de produção capitalista], esta realização [Verwirklich-
ung\ do trabalho aparece como des-realização [Era-
wirklichung] do operário, a objectivação [aparece]
como perda e servidão do objecto, a apropriação
[aparece] como alienação [Entfremdung], como desa­
possamento [Entàusserimg\. A realização do trabalho
aparece a tal ponto como des-realização que o operário
é des-realizado até à morte pela fome.»106
Por outro lado, de um ponto de vista ontológico, está sem­
pre perfeitamente claro que o trabalho, a prática, são sempre
um retrabalho, um trans-formar, e, de modo nenhum, uma
instauração no ser. Menos ainda são qualquer condição (sub-
jectiva) instituinte e determinante de possibilidade de mani­
festação (teórica ou prática) do real.
O trabalho é «criador», mas sobre uma basè material
sensível sempre pressuposta, ontologicamente subsistente e
consistente. Como nos próprios Manuscritos de Paris de 1844
claramente se refere:
«O operário não pode criar nada sem a Natureza,
sem o mundo exterior sensível Ela é a matéria [Stoff]
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 123

em que o seu trabalho se realiza, em que ele [trabalho]


é activo, a partir da qual e por meio da qual ele [tra­
balho] produz.»107

Estes são supostos ontológicos fundamentais de toda a


concepção marxista da prática. Contrariamente ao que boa
parte da marxologia poderá insinuar e mesmo escrever, a prá­
tica humana jamais se constitui como alternativa à, ou adver-
sária da, materialidade. É sempre sobre a base desta última,
é apenas sobre a base desta última, que ela efectivamente pode
desenvolver as suas potencialidades formadoras, trans-forma-
doras.
Como já em Die heilige Familie se pode ler:

«A matéria mesma, não a criou o homem. Ele, mes­


mo, só cria qualquer capacidade produtiva da matéria
no pressuposto da m atéria.»108

As afirmações de Das Kapital sobre o estatuto ontológico


dos Gebrauchswerte, dos valores de uso, e sobre a função
en-formadora do trabalho — M arx insiste em que se trata de
uma F orm im g109 — vão inteiramente neste sentido.
O trabalho não cria ontologicamente, não estatui (como sede
e fundamento radical da atribuição) significações; o trabalho
trans-forma. Os (novos) entes por ele produzidos, os (novos)
«sentidos» por ele proporcionados, têm de ser vistos e pensados
primordialmente a partir da sua própria determinação mate­
rial: é aí que a prática está objectivamente incorporada, é esse
horizonte de materialidade que é Voraussetzung, pressuposto,
do seu funcionar.

§15. A reivindicação de uma originação hum ana da «visi­


bilidade» que transcenda m aterialism o e idealism o.
«Chair», «chiasm e», «entrelacs». A tese do «cruza­
m ento» originário conserva o paradigm a id ealista
da presença ontologicam ente con stitu tiva do sub-
jectivo.

Não é, todavia, assim que Merleau-Ponty entende nem


Marx nem a determinação da prática em geral. Para ele,
importa estabelecer uma originação humana da visibilidade
124 JQSÉ BARATA-MOURA

que transcenda tanto a materialidade do «naturalismo» como


a pura idealidade do «antropologismo» da consciência repre­
sentativa.
Para Merleau-Ponty, todo o esforço vai no sentido de nos
tomar patente uma filosofia que, sem admitir o seu idealismo,
recuse e critique o materialismo, ao mesmo tempo que não
quer abrir mão da atribuição ao homem de um fundamental
papel instituinte. O último plano que figura nas anotações
de Le Visible et Vinvisible, datado de Março de 1961, é, sob
este ponto de vista, altamente elucidativo.

«É preciso descrever o visível como alguma coisa


que se realiza através do homem, mas que não é de
modo nenhum antropologia (portanto, contra Feuer-
bach-Marx 1844)
a Natureza como o outro lado do homem (como
carne [chair] — de modo nenhum como “matéria”)
o Logos também como realizando-se no homem,
mas de modo nenhum como propriedade sua.

Matéria-obrada-homens = qiáasma.» 110

A tese central que aqui transparece é a de que o visível


é realizado através do homem. Atentemos em que se trata do
«visível» — daquilo que há para ver, daquilo que está dado
a uma vista ou visão — e não apenas da visãoy pensável como
acto e resultado de um ver. Isto é, para Merleau-Ponty, decla-
radamente ou não, esta tese aponta para um território funda­
mentalmente ontológico.
Todo o esforço vai, pois, no sentido de des-antropologizar
ao máximo aquilo que no seu próprio fundamento e estrutura
básica é anteposição de subjectividade humana, segundo algu­
ma das suas modalidades, não apenas a qualquer discurso sobre
o real, mas à própria possibilidade de haver qualquer real.
É até certo ponto um curioso exercício gímnico de denegação
de um idealismo que, a cada novo passo, mais se reafirma e
consolida, na medida em que para instâncias cada vez mais
profundas vai sendo remetido.
Merleau-Ponty diz não a uma antropologia segundo o mo­
delo do que ele julga serem as posições de Feuerbach111 e do
Marx de 1844, as quais, todavia, talvez não sejam tão «antro-
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 125

pológicas» quanto ele supõe, já que, apesar de todas as cedên


cias e inconsequências, continuam, no entanto, a apresentar
uma base e um endereço claramente materialistas.
Por outro lado, Merleau-Ponty diz não, de uma forma
bastante mais categórica, a um qualquer reconhecimento da
objectividade material do real. A Natureza não é o homem, é
um outro; mas esse outro é sempre e já — a tal anteposição
da subjectividade como condição de possibilidade recorta-se
aqui com nitidez, ainda que não segundo a modalidade (vulgar)
da dominação ou do império exclusivos— o outro lado do
homem.
Daí os desenvolvimentos sobre o tema da chair e a siste­
mática precaução de a todo o momento dar aviso da necessi­
dade de a não confundir com a matéria.
A «chair» é o «enrolamento» do visível sobre o corpo do
vidente112. A chair é o que nenhuma filosofia ainda denomi­
nou — se bem que não seja propriamente uma inefabilidade
mística —, embora designe uma massa já interiormente traba­
lhada (pelo homem ou pela intersubjectividade, ainda que não
pelo homem enquanto «proprietário» de um logos que a sua
consciência magnânime e imperialmente dispensa ou outorga)
que, por sua vez, tem de ser vista como o meio formador do
sujeito e do objecto (se bem que, de certa maneira, ela também
já contenha o objecto e o sujeito, embora talvez não como tal
especificamente considerados)118.

É de facto por isso que Merleau-Ponty insiste numa arti­


culação ontológica originária entre a matéria-obrada ou traba­
lhada e os homens, no quadro de uma igualdade que ele tam­
bém designa pelo nome de quiasma.
Como é sabido, o xí**l“a é a disposição em forma de X, e o
X*«<7juós, na retórica antiga, refere-se à disposição de um período
em quatro membros, segundo uma determinada ordem de cor­
respondência ou de proporcionalidade entre eles: o primeiro
com o quarto e o segundo com o terceiro.
Na biologia celular, os quiasmata são, por outro lado, os
pontos de cruzamento dos cromatídios, parecendo formar um
X, numa determinada fase da meiose.
É, precisamente, esta dimensão significativa do «cruza­
mento» que Merleau-Ponty pretende agarrar quando, em todo
este contexto das relações do homem e do mundo, do sujeito
126 JOSÉ BARATA-MOURA

e do objecto, tanto de um ponto de vista gnosiológico como


de um ponto de vista ontológico, aponta para a noção de
qiàasma ou de «entrelaçamento» (entrelacs).
«[...] o que procuramos é uma definição dialéctica
do ser, que não pode ser nem o ser para si, nem o ser
em si — definições rápidas, frágeis, lábeis, e que, como
Hegel disse e bem, nos reconduzem de uma para a
outra—, nem o Em-si-para-si que leva ao cúmulo a
ambivalência, [uma definição] que deve encontrar o
ser antes da clivagem reflexiva, em volta dele, no seu
horizonte, não fora de nós e não em nós, mas ali onde
os dois movimentos se cruzam, ali onde “há” alguma
coisa» n\
Este contexto temático parece-nos da maior importância
para um intento de situação na sua radicalidade das diversas
incursões de Merleau-Ponty pelo território de um pensar da
práxis.
!É sempre perante a tentativa de alcançar o campo que
antecede a «clivagem reflexiva» que nos encontramos. É sem­
pre para aí que o percurso fundador e fundamentador da
démarche fenomenológica nos vai encaminhando e remetendo.
No fundo, é sempre o problema da realidade objectiva que
assoma. Mas é também sempre esse problema prejudicado e
enclausurado pelas directrizes estruturais de todo o projecto
fenomenológico que nunca conseguem alcançar um plano que
não pressuponha, que não pré-ponha, uma instância subjectiva
fundante.
O quiasma, o entrelaçamento, são aqui o ensaio de definir
uma instância ontológica primeira onde o «subjectivo», sem
deixar de ser subjectivo e condição subjectiva instituinte (pré-
-reflexivamente instituinte), seja, todavia, o mais objectiva, o
mais material, possível.
O «haver» alguma coisa já não requer apenas a existência
de uma subjectividade ontologicamente instituinte mediante a
criação (existencial) de algo ou mediante a posição (a Setzung)
transcendental. O «haver» ser é, sim, feito depender do «cru­
zamento», do entrelacs, de objectivo e de subjectivo — sendo
mesmo este subjectivo entendido não como poder de reflexi­
vidade ou de representação, mas como corpo, isto é, como a
instância «mais material» da subjectividade115.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRÁXIS» 127

Só que, de um ponto de vista estrutural, a matriz (idealista)


dominante permanece. A «simplicidade» ou a «espiritualidade»
do princípio (anímico) instaurador ou possibilitador de uma
ontologia, é substituída pela «quantidade», pela «extensão»,
pela «camalidade», de um corpo revalorizado e trazido da (tra­
dicional) condição ancilar de mero instrumento ao primeiro
plano de instância protagonista.
No entanto, é efectivamente um mesmo modelo fundamen­
tal que preside às concepções de uma constituição (quer trans­
cendental quer práxica) que seja assumida por um intelecto
que representa ou por um corpo que se comporte, sejam esse
intelecto e esse corpo individuais ou colectivos ou encon­
trem-se eles fundidos numa comunicação intersubjectiva.
Há, sem dúvida, diferenças de m onta entre estas con­
cepções. Há inegavelmente traços específicos do pensamento
merleau-pontyano. Na sua radicalidade, porém, o grande pa­
radigma que rege estas concepções é o mesmo.

§ 16. P ráxis e «entrelaçam ento». U m a dialéctica do «sen­


tido». R acionalidade práxica e instauração intersub­
jectiva do «sentido» num certo «recoupem ent» de
experiências. Mundo e «sentido». Im anência do
«sentido» à h istória e advento práxico do m esm o.
A práxis com o absoluto.

A temática da práxis em Merleau-Ponty tem directamente


a ver com toda esta situação problemática. A práxis para Mer-
leau-Ponty é também assunto de entrelaçamento e de cruza­
mento, desenvolvendo-se constitutivamente na órbita do «sen­
tido».
A práxis, na perspectiva de Merleau-Ponty — mas que ele,
todavia, atribui a Marx —, é fundamentalmente o sentido que
se desenha no cruzamento das acções.

«Aquilo a que Marx chama práxis é este sentido que


se desenha espontaneamente no entrecruzamento das
acções pelas quais o homem organiza as suas relações
com a natureza e com os outros.»116

A afirmação capital não pode deixar de ser a vinculação


essencial estabelecida por Merleau-Ponty entre a práxis e o
sentido. A práxis é, para ele, sentido; e isso é o fundamental,
128 JOSÉ BARATA-MOURA

as acções colectivas ou intersubjectivas são o horizonte da


emergência ou da constituição desse sentido e a temática da
transformação está, uma vez mais, significativamente ausente
de qualquer aprofundamento teórico nuclear.
O fundamental da dimensão activa ou accional da práxis
é o sentido que ela permite constituir ou instituir, isto é, é
afinal um seu resultado teórico. Não podemos, por conse­
guinte, falar, em Merleau-Ponty, de qualquer primordialidade
da prática. Sempre que se fala de práxis é apenas para intro­
duzir um outro caminho teórico de acesso à teoria, de consti­
tuição do sentido.
Não se trata verdadeiramente aqui de qualquer unidade da
prática e da teoria, de qualquer chamada de atenção para a
dialéctica que concretamente entre essas duas instâncias se
desenvolve. Trata-se apenas de procurar encontrar um outro
caminho da consciência teórica, que não o imediatamente pen­
sante ou representativo ou reflexivo.
A dialéctica de que Merleau-Ponty fala, a dialéctica para
a qual se encontra desperto ou disponível, é apenas uma dialéc­
tica do sentido. Aliás, é essa também — e, inegavelmente, com
coerência— a dimensão fundamental que ele reconhece en­
contrar no marxismo por intermédio do Lukács de Geschichte
und Klassenbewusstsein.
«Este cruzamento do acontecimento e do sentido é
para Lukács o essencial do marxismo como filosofia
dialéctica.»117
Como vimos já, para Merleau-Ponty, a práxis seria funda­
mentalmente esse sentido imanente dos acontecimentos inter-
-humanos11*.
A racionalidade vem, assim, a aparecer no coração da pró­
pria práxis, como que avocada por ela, se é que não mesmo
pura e simplesmente constituída por ela.
«A racionalidade passa do conceito para o coração
da práxis inter-humana [...]. [...] o acontecimento to­
ma o valor de uma génese da razão.»119
A intenção de Merleau-Ponty parece ser a de pretender
retirar ao «sentido» da história qualquer dimensão transcen­
dente, assimilável aos insondáveis desígnios da providência di-
DA REPRESENTAÇÃO À tPRAXIS* 129

vina (que apesar de humanamente imperscrutáveis «estão já


lá» e actuam em obediência estrita às suas razões exemplares)
ou à necessidade de manifestação de um qualquer Geist de
recorte hegeliano ou para-hegeliano (mas de filiação muito
mais remota; baste recordar a temática da complicatio e da
explicatio em Nicolau de Cusa e em Giordano B runo120) con­
denado a repetir-se concretizadamente na revelação temporal
daquilo que abstractamente desde toda a eternidade já era.
No entanto, para esconjurar estes fantasmas, o caminho
que Merleau-Ponty encontra é o de fazer depender o sentido
da mera práxis. Esta posição é, aliás, inteiramente coerente
com as teses já mencionadas de uma constituição do sentido
na e pela práxis.
Os fundamentos de toda esta articulação já, pelo menos,
desde o prefácio de Phénoménologie de Ia perception que se
encontram delineados com bastante clareza:

«Há racionalidade, quer dizer: as perspectivas inter-


sectam-se [se recoupent], as percepções confirmam-se,
aparece um sentido. Mas ele não deve ser posto à parte,
transformado em Espírito absoluto ou em mundo no
sentido realista. O mundo fenomenológico é, não ser
puro, mas o sentido que transparece na intersecção das
minhas experiências e na intersecção das minhas expe­
riências e das experiências de outrem, pela engrenagem
de umas sobre as outras; ele é, portanto, inseparável
da subjectividade e da intersubjectividade que estabe­
lecem a sua unidade pela retomada das minhas expe­
riências passadas nas minhas experiências presentes, da
experiência de outrem na m inha.»121
A racionalidade é manifestamente feita depender de um
sentido que aparece no recoupement, na sobreposição confir-
matória, das perspectivas intersubjectivamente partilhadas.
À racionalidade não deve, portanto, ser conferido nem um
estatuto espiritual de transcendência nem uma radicação ima­
nente em qualquer ordem mundana material. Estamos efecti-
vamente longe da heraclitiana que governa wóvra faá
TOtvTuv, que rege todas as coisas através de todas as coisas m.
A racionalidade é o sentido, e o sentido passa a ser o
mundo (fenomenológico). Assim se passando (sem rigorosa-
mente se reconhecer nem afirmar que se passa) do âmbito da
«significação» à efectiva dimensão ontológica.
130 JOSÉ BARATA-MOURA

Por outro lado, o «sentido» é apresentado como resultando


da intersecção das experiências individuais e colectivas (inter-
subjectivas) vindo afinal a entender-se por práxis, precisa-
mente, essa actividade vital comunicativa — mas dominante­
mente teórica— de que intersubjectivamente o sentido (que,
por sua vez, também é mundo, não material, mas fenomeno-
lógico) é declarado inseparável.
Estamos agora em medida de entender talvez melhor por
que é que, para Merleau-Ponty, a história é justamente «1’avè-
nement du sens»123, na sequência, aliás, de uma tematização
bastante próxima de Husserl, para quem também a história
mais não é do que o movimento vivo da formação originária
do sentido e da sua sedimentação num horizonte intersubjec-
tivo de comunicação124.
A história não seria, assim, mais do que o advento de um
sentido resultante de uma práxis intersubjectiva entendida, não
como o viver material concreto, interveniente na realidade
objectiva porque materialmente transformadora, mas como
uma mera comunicação de experiências que, confirmando-se
e/ou completando-se, consumam ou elaboram uma significa­
ção que a fala fala e falando avoca.
É este o verdadeiro contexto significativo da afirmação de
Merleau-Ponty segundo a qual «a história não é senão a ampli­
ficação da prática»125. A história cumpre esta função ampli-
ficante porque, de algum modo, totaliza praxeis particulares,
instituintes de «sentidos» particulares que, assim, se vêem reco­
lhidos e ordenados numa unidade.
A imanência do sentido à história só consegue ser pensada
por Merleau-Ponty em termos de mediação humana. Mas de
uma mediação que se não limita a contemplar a dimensão da
tomada de consciência, mas se afirma como constitutiva.
No entanto, esta mediação humana não é constitutiva do
«sentido» da história porque transforma objectivamente, mate­
rialmente, o real; mas tão-só porque o compreende, porque
lhe encontra ou impõe significações.

«A história tem sentido, mas não é um puro desen­


volvimento da ideia: ela faz o seu sentido no contacto
com a contingência, no momento em que a iniciativa
humana funda um sistema de vida retomando dados
dispersos.»128
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXISi 131

O «sentido» nunca tem, assim, a ver com qualquer m ate­


rialidade. É sempre função de uma instância subjectiva, de
uma intersubjectividade, que só o faz porque o pensa ou que
só o faz porque lhe atribui praxicamente uma significação.
Em suma, a «práxis» merleau-pontyana nunca é uma verda­
deira prática. Será um comportamento, uma operação, origi­
nária e constitutivamente geradora de significações, no entre­
laçamento com alguma coisa que afinal só é — ou só há —
porque se entrelaça ou cruza com a própria corporeidade hu­
mana, no horizonte da carnalidade partilhada ou repartida,
mas sempre original e originante.
A práxis merleau-pontyana poderá ser tudo isto (e ainda
algo mais, no quadro das suas congeminações sobre a lingua­
gem praxicamente falante). O que, por certo, não será — e
aqui reside uma sua definição ou determinação negativa (omnis
determ inado... ) — é processo material de transformação da
realidade objectiva.

!É nestes parâmetros igualmente que creio que vem a cobrar


o seu verdadeiro alcance a afirmação atribuída por Merleau-
-Ponty ao marxismo, segundo a qual a práxis inter-humana
seria o absoluto.

«Ele [o marxismo] repousava sobre esta ideia pro­


funda de que as perspectivas [vues] humanas, por
muito relativas que sejam, são o próprio absoluto, por­
que não há nada mais e nenhum destino. Pela nossa
práxis total, se não pelo nosso conhecimento, tocamos
no absoluto, ou antes: a práxis inter-humana é o abso­
luto.» 127

Por mais humanista que o projecto marxista seja — e se­


guramente que o é — nada autoriza a que se faça dele um
idealismo, designadamente, em matéria de ontologia. É que
nem mesmo a prática de Marx — que não é a «práxis» de Mer-
leau-Ponty, similares & «ontólogos» correlativos— monopo­
liza ou coincide com o domínio do ser. Para o marxismo, nem
o ser se reduz à prática nem a história se reduz à prática; do
mesmo modo, também a prática não é condição estrutural e
instituinte de possibilidade nem do ser, nem da história, nem
da materialidade.
132 JQSÉ BARATA-MOURA

§ 17. A verdade como constitutiva função de uma práxis


comunicativa. Uma constituição da «transcendência»
na imanência. Processualidade da verdade e media­
ção humana: entrelaçamento do subjectivo e do
objectivo.

Jiirgen Habermas, numa das suas alusões ao pensamento


de Merleau-Ponty, trata de assinalar a vinculação das temá­
ticas da racionalidade e da verdade à temática da práxis. Não
havendo uma «garantia metafísica» para a lógica da história,
esta tem sempre que se apresentar como um produto de que
a práxis opera a mediação.
Como ele refere em Theorie und Práxis, precisamente, a
propósito de Merleau-Ponty:
«A verdade que há que estabelecer não está, no­
meadamente, já imanente na razão filosofante; razão
e verdade precisam, pelo contrário, da mediação pela
práxis.» lzg
Esta mediação práxica da verdade assume, todavia, aspec­
tos e intenções específicos, bem diferentes, por exemplo, ape­
sar da semelhança de vocabulário, daqueles que ocorrem num
contexto problemático de inspiração marxista. A razão funda­
mental desta diferença reside, precisamente, na diversidade
das posições ao nível dos supostos gerais em que os respectivos
pensamentos assentam.
Para Merleau-Ponty, a verdade supõe uma «transgressão
intencional» que remete para o domínio do outro, mas nunca
chega a ultrapassar verdadeiramente o horizonte básico da
comunicação. A verdade e a práxis continuam a ser, como aliás,
já vimos, fundamentalmente questões da ordem do sentido, da
significação.
A «impossibilidade teórica» da verdade, a que Merleau-
-Ponty se refere, decorre da inexistência de uma objectividade,
de uma materialidade. Toda a «objectividade» é construída ou
constituída na interioridade de um comportamenta ou de uma
experiência liminares, não como um «constructo», mas como
um «dado» ou um «encontrado» — precisão teórica ou dou­
trinária que visa justificar uma ficção de materialidade: a
objectividade seria constituída subjectivamente... como objec­
tividade, a «independência» seria constituída na e pela depen­
dência.
DA REPRESENTAÇÃO À «PRAXIS» 133

Dai que a verdade tenha de surgir como um «a fazer» e


não como reflexo ou expressão de um já feito. Este «fazer»
originário e originante que subjaz a qualquer verdade como
sua condição primeira vai revelar-nos, não propriamente o
horizonte material de um a prática transformadora, mas o ter­
ritório «primitivo» da comunicação geradora de significações.
Como Merleau-Ponty afirma num ensaio sobre a fenome-
nologia da linguagem:

«[...] o fenómeno da verdade, teoricamente impos­


sível, não se conhece senão pela práxis que a faz. Dizer
que há uma verdade é dizer que, quando a minha reto­
mada encontra o projecto antigo ou estranho e a ex­
pressão conseguida liberta o que estava desde sempre
cativo no ser, na espessura do tempo pessoal e inter­
pessoal, estabelece-se uma comunicação interior pela
qual o nosso presente se tom a a verdade de todos os
outros acontecimentos cognoscentes [...]. Nesse mo­
mento, alguma coisa foi fundada em significação, uma
experiência foi transformada no seu sentido, tornou-se
verdade. A verdade é um outro nome para a sedimen­
tação que, ela própria, é a presença de todos os pre­
sentes no nosso. Isto quer dizer que, mesmo, e sobre­
tudo, para o sujeito filosófico último, não há objectivi-
dade que dê conta da nossa relação sobre-objectiva a
todos os tempos, não há luz que ultrapasse a do pre­
sente vivo»129.

O problema da verdade aparece aqui, portanto, sempre


como um problema de significações intersubjectivamente cons­
tituídas a partir de um instituinte presente originário e liminar
que tudo recupera no seu seio ou elemento: a alteridade, o
passado, a objectividade, etc. É a este nível e com esta função
que a «práxis» se exerce.
A verdade devém, assim, não posse de qualquer contempla-
ção/representação privilegiada — garantida por uma eventual
objectividade —, mas constitutiva função de uma práxis comu­
nicativa, no entrecruzamento de cujas perspectivas e inten­
ções significativas se desenha e finalmente aparece. A verdade
supõe a práxis, para Merleau-Ponty, porque requer o recou-
pement de diferentes sujeitos, instituintes de sentido (ou reve­
ladores de sentido), em confronto num viver.
134 jo sé BARATA-MOURA

À privacidade representativa da teoria opõe, assim, Mer­


leau-Ponty a publicidade comunicativa da prática agenciadora
das significações.
«A verdade não se encontra em certos sujeitos his­
tóricos existentes, nem na tomada de consciência teó­
rica, mas na sua confrontação, na sua prática e na sua
vida comum.»130
A mundaneidade do ser humano revela-se, por conseguinte,
ao mesmo tempo, como pertença essencial ao território da ver­
dade, por intermédio da intersubjectividade e da linguagem em
indissolúvel unidade fundamental e fundante.
Estes são os parâmetros decisivos de uma redução do real
ao pensar, que, no entanto, se pretende conservar como um
pensar aberto à transcendência, a uma transcendência que
— em certa medida seguindo a matricial lição de Husserl131 —
não deixa de ser constituída, dada, ou des-coberta, numa ima­
nência universalmente possibilitadora.
«[...] a nossa garantia de estar na verdade não faz
senão um com a de estar no mundo. Falamos e com­
preendemos a palavra [parole] muito tempo antes de
saber por Descartes (ou de achar por nós mesmos) que
a nossa realidade é o pensamento»ia*.
A verdade é de facto caracterizada por Merleau-Ponty
como «um processo de verificação indefinida»138, só que os
limites desta concepção são eles também bastante precisos.
A processualidade da verdade é toda ela sempre e apenas
subjectiva. Não porque o sujeito a imponha desde fora de uma
forma exclusiva e integral, mas porque sem o sujeito ela jamais
ocorreria.
Como Merleau-Ponty noutro contexto refere, a mediação
não é obra nem da positividade (material, objectiva) nem de
uma subjectividade entendida como absoluta e completa nega-
tividade exterior de uma consciência dialectizante que, por
outro lado, deixaria intocado ou intacto esse positivo134.
A mediação ocorre no tal entrelaçamento, no momento
quiásmico, «carnal», que — apesar de todas as metáforas —
não deixa de se apresentar como decisivamente comandado
pela posição ou pela pre-posição da subjectividade como con-
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXISt 135

dição originária de possibilidade de tudo o mais. mesmo do


que ... é declarado independente.
É com isto que a processualidade da verdade tem a ver.
E não propriamente, por exemplo, com a historicidade mate­
rial do real.

§ 18. A pritads como dimensão da consciência. O núcleo


«filosófico» e «crítico» da práxis. A identificação
de transform ação m aterial e manipulação técnica.
Comunicação «versus» transform ação.

Vemos, por conseguinte, que, para Merleau-Ponty, toda a


compreensão da práxis remete fundamentalmente para o ter­
reno da comunicação intersubjectiva. Esta é a dimensão deci­
siva que ele entende destacar. Esta é a perspectiva comporta-
mental que ele considera dever fazer avançar, em ordem a con­
trariar uma certa dominação absoluta dos modelos estrita­
mente representativos, na maneira fenomenológica de pensar
a intencionalidade.
O apelo à práxis é apelo não apenas à existência de uma
pluralidade de sujeitos, mas à reciprocidade da sua acção, ao
seu mútuo concurso na formação das significações, na consti­
tuição das experiências múltiplas que, sobrepondo-se total ou
apenas parcialmente, acabam por desenhar os contornos do
mundo, como lugar colectivo de habitação e de funcionamento
dos «sentidos».
Esta dimensão mtersujectiva é, pois, essencial para todo
o projecto de Merleau-Ponty. A sua inexistência será mesmo
uma das críticas apontadas à multiplicidade insular da con­
cepção sartreana1S5. É no seu horizonte que a práxis emerge
e se exerce na sua essencialidade.

Para Merleau-Ponty, a práxis opõe-se à privacidade repre­


sentativa da teoria, encarada como solitária operação pen­
sante de uma subjectividade reduzida à consciência e iludida
quanto à posse de poderes imperialistas de instituição.
No entanto, como em diversas ocasiões tivemos ensejo de
verificar, nunca a práxis de Merleau-Ponty assume como di­
mensão essencial a perspectiva da transformação material.
Para além das razões de natureza ideológica — sem dúvida,
presentes nesta concepção, mas de que nos não ocuparemos
tematicamente neste trabalho—, há neste caso a considerar
136 JOSÉ BARATA-MOURA

o peso, apesar de tudo grande, que a componente teórica


assume na compreensão merleau-pontyana da prática.
A grande expressão da práxis continua a ser para Merleau-
-Ponty a dimensão filosófica ou filosofante. Muito na sequên­
cia do jovem Lukács, a práxis é ainda uma certa dimensão
da consciência.
Introduzindo uma certa lamentação crítica relativamente
ao marxismo de Lénine, afirma-se em Les Aventures de la
dialectique:
«A acção que mudará o mundo, já não é a práxis
filosofia e técnica indivisas, movimento das infra-estru-
turas, mas também apelo a toda a crítica do sujeito,
é uma acção de tipo técnico, como a do engenheiro
que constrói uma ponte.» 1W
O núcleo «nobre» da práxis aparece aqui como um núcleo
acentuadamente «teórico»: filosófico e crítico. A componente
propriamente transformadora, essa, é, por assim dizer, degra­
dada ao nível de uma pura «técnica», manipuladora, menor.
É este o sentido da crítica que se faz a Lénine. Do mesmo
modo que ele confere à dialéctica uma dimensão objec-
tiva — que para Marx não teria?!—, constituindo assim um
autêntico «materialismo metafísico», trataria igualmente de
vedar o caminho à perspectiva da compreensão teórica, ao
esforçar-se por «substituir a práxis total por uma acção téc­
nica» 13T.
A técnica visaria apenas a transformação (da realidade
objectiva), enquanto a «práxis total» — envolvendo necessa­
riamente o momento da teoria, da compreensão, da cons­
ciência — exerceria uma acção muito mais completa: a da pe­
dagogia do pensar.
Enquanto o jovem Lukács insiste na dimensão prática da
consciência, com a intenção de, em seu entender, melhor dei­
xar vincada a perspectiva da transformação do real188, Mer-
leau-Ponty como que dissocia a transformação da «práxis», fa­
zendo da primeira, até certo ponto, um complemento secun­
dário do núcleo central da segunda, que tem de ser procurado
em outra dimensão.
«O realismo revolucionário nunca visa, como a
acção técnica, apenas resultados exteriores, não quer
senão um resultado que possa ser compreendido, pois,
DA REPRESENTAÇÃO À «PRÀXIS» 137

se ele não o fosse, não haveria revolução. Cada acto


revolucionário é eficaz, não apenas por aquilo que faz,
mas por aquilo que dá a pensar. A acção é pedagogia
das massas, e é ainda agir explicar às massas aquilo que
se faz.»139

Merleau-Ponty parte aqui da assunção de uma dicotomia


entre «transformação» e «compreensão», não entendendo nem
a sua unidade dialéctica no horizonte do processo prático, nem,
de um ponto de vista essencial, a diferença ou a assimetria que
se verifica na própria relação que constituem, quanto ao seu
respectivo poder ultimamente determinante.
IÉ mais uma consequência metodológica de como de modo
algum subsiste identidade entre ambiguidade e dialéctica...

Os aspectos teóricos envolvidos nos processos práticos con­


cretos — envolvidos e, de modo nenhum, excluídos por estes
últim os— encontram-se, todavia, sistematicamente sobrevalo-
rizados por Merleau-Ponty, a ponto de aparecerem como as­
pectos determinantes, no quadro de uma certa confusão entre
primordialidade na determinação da essencialidade de uma
categoria e presença na caracterização ou associação à carac­
terização dessa categoria.
Claro que o esclarecimento político é uma acção — e, mes­
mo, uma componente prática essencial de um processo revolu­
cionário nas nossas sociedades. No entanto, de modo algum,
se pode confundir ou reduzir o processo revolucionário mate­
rial prático ao momento ou à sua componente política de escla­
recimento. Não é o esclarecimento que faz a revolução. Coo­
pera nela, mas requer que um poder material, prático, objecti-
vamente transformador da realidade, seja accionado e se cum­
pra...
A eficácia das ideias nunca é imediata. Quando existe supõe
sempre a mediação de uma prática social, materialmente trans­
formadora, que, essa sim, é a instância verdadeiramente deter­
minante.
Como, já em 1845, Marx não deixava de observar:

«Ideias nunca podem levar para além de um velho


estado do mundo, mas sempre apenas para além das
ideias do velho estado do mundo. Ideias, em geral,
nada podem realizar. Para o realizar das ideias são pre­
cisos os homens, que empregam um poder prático.»140
138 JOSÉ BARATA-MOURA

A sobressaliência da comunicação, que Merleau-Ponty leva


a cabo em detrimento da transformação, no que toca à deter­
minação categorial da prática, não faz mais do que sublinhar,
por outro lado, a dependência estrutural do seu pensamento
relativamente a um conjunto de supostos ontológicos que ele
efectivamente nunca transcende. A este nível de radicalidade,
ser-nos-á, porventura, dada uma visibilidade em que a ambi­
guidade, repetidamente aduzida, acaba, no entanto, por se des­
vanecer...

§ 19. Os supostos ontológicos da concepção merleau-pon-


tyana. Materialidade e referência necessária a uma
subjectividade (corpórea). A passividade como de­
turpação de uma actividade originariamente instí-
tuinte. Uma ontologia fenomenológica: a redução da
esfera do real à esfera do «vivido». Uma radical
incompreensão do estatuto ontológico da materia­
lidade.
Efectivamente, em toda esta tematização merleau-pontyana
da práxis os supostos ontológicos em que o seu pensamento
assenta nunca deixam de se encontrar activamente intervenien­
tes e, porventura, de um modo mais essencial, coerente e per­
sistente do que à primeira vista se suspeitaria.
Já em La Structure du comportement surge uma afirma­
ção capital que, apesar de todas as precisões e reformulações
que conhecerá ao longo da explicitação do pensamento do seu
autor, nunca será fundamentalmente posta em causa na essen-
cialidade para que remete.
«A ideia de uma filosofia transcendental, isto é, a
da consciência como constituindo o universo diante de
si e apreendendo os próprios objectos numa experiên­
cia externa indubitável, parece-nos uma aquisição defi­
nitiva como primeira fase da reflexão.»141
A exterioridade da experiência jamais pode passar sem a
interioridade da própria constituição mundana. Legalidade e
estrutura dos processos «objectivos» são sempre «conhecimen­
tos», são sempre algo que no e pelo conhecimento — por certo,
não exclusivamente reduzido à representação — se constituem.
Jamais se trata de pensar um fundamento material; o mundo
a pensar é sempre mundo «percebido».
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXISt 139
«De facto e de direito, a lei é um instrumento de
conhecimento e a estrutura um objecto de consciência.
Elas não têm sentido senão para pensar o mundo per­
cebido.» 142
Toda a objectividade, em geral, supõe, assim, um factum
inaugural e inultrapassável na sua indispensabilidade: a refe­
rência a um a subjectividade inicial, ainda que de tipo espe­
cial — corpóreo.
Como nos é dito em «Le philosophe et son ombre»:
«Todo o conhecimento, todo o pensamento objec-
tivo, vivem deste facto inaugural que senti, que tive
[...] uma existência singular que parava de golpe o
meu olhar e, contudo, lhe prometia uma série de expe­
riências indefinida [...]. A intencionalidade que religa
os momentos da minha exploração, os aspectos da coisa,
e as duas séries uma à outra, não é a actividade de liga­
ção do sujeito espiritual, nem as puras conexões do
ob-jecto, é a transição que efectuo como sujeito carnal
de uma fase do movimento a outra, sempre possível
para mim por princípio, porque eu sou este animal de
percepções e este movimento que se chama um cor­
po.» 148
«Eu sou a fonte absoluta» do sentido ou da significação
num discurso onde não me encontro sozinho, mas de que não
posso deixar de assumir a protagonização (não apenas ética,
mas também gnosiológica e epistemológica, se é que não mes­
mo, muito provavelmente também: ontológica).
Este é o contexto estrutural e originário de toda e qualquer
objectividade que, por outro lado, pretende ser conservada ou,
pelo menos, não frontalmente excluída.
A este nível, Merleau-Ponty movimenta-se numa esfera
problemática e de supostos que não se diferencia substancial­
mente daquela que é característica do modelo idealista na sua
generalidade.
Tal como para Fichte, o realismo é assimilado a uma fun­
damental passividade que descura e não atende à actividade
originante que sustenta todo e qualquer objecto da e na cons­
ciência.
Na Wissenschaftslehre de 1794, no contexto de uma análise
do problema da G efuhl, escrevera Fichte:
140 JOSÉ BARATA-MOURA

«Por conseguinte, em relação ao Não-Eu, o Eu,


para si próprio, é sempre passivo, de modo algum se
torna consciente da sua actividade, nem reflecte sobre
ela. Daí que a realidade da coisa pareça ser sentida,
quando, no entanto, apenas o Eu é sentido.»144

De um modo análogo, também para Merleau-Ponty a expe­


riência da passividade não passa de um fenómeno superficial,
grosseiramente imediato, que, ao ser compreendido na sua
autêntica efectivação, tem de desvendar toda uma outra acti­
vidade aparentemente insuspeitada.
E neste sentido que o realismo deturparia a experiência,
ao apresentar como receptividade passiva aquilo que, no fundo,
é resultado de uma actividade (subjectiva) instituinte, que tem
de começar por lhe ser anteposta.

«A experiência da passividade não se explica por


uma passividade efectiva. Mas ela deve ter um sentido
e poder compreender-se. O realismo é um erro como
filosofia porque transpõe para tese dogmática uma
experiência que ele deforma ou por isso mesmo toma
impossível.» 145

Merleau-Ponty não pretende, na verdade, negar a existên­


cia da «objectividade», em geral, mas apenas fazê-la origina-
riamente depender de uma acção subjectivamente instituinte
do seu sentido ou significação.
Despojada da sua fundamental materialidade ontológica, a
«transcendência» devém imanência, o ser devém pensar (ou
melhor: «perçu», «vécu»).
«O percebido é apreendido de uma maneira indivi­
sível como “em si”, isto é, como dotado de um interior
que nunca terei acabado de explorar, e como «para
mim», isto é, como dado em pessoa através dos seus
aspectos momentâneos.»148
A objectividade do mundo e das coisas não é, a bem dizer,
negada, mas apenas é conservada pelo preço de uma sua indis­
pensável conexão com alguma subjectividade. A existência
objectiva do real nunca se liberta de um «parece» que previa-
mente lhe proporciona uma ficção de «independência».
DA REPRESENTAÇÃO A tPRÁXIS» 141

A esfera do real surge-nos, assim, liminarmente reduzida


à esfera do «vivido». Todas as suas eventuais modalidades de
manifestação — existentes ou potenciais— surgem como de­
correndo nesse primário horizonte de evidenciação, actual ou
possível.
De certa maneira, as coisas não passam do «sentido» que
são, e este é indissociável de um viver colectivo e comuni-
cante que vai sedimentando significações e, por esse facto,
erigindo um mundo, colocando-o à disposição de uma refe­
rência intencional, fazendo com que ele «seja».
Como em La Phénoménologie de la perception se afirma:

«A coisa e o mundo não existem senão vividos por


mim ou por sujeitos tais como eu, uma vez que são o
encadeamento das nossas perspectivas, mas eles trans­
cendem todas as perspectivas porque esse encadeamento
é temporal e inacabado. Parece-me que o mundo se
vive a ele próprio fora de mim, como as paisagens au­
sentes continuam a viver-se para além do meu campo
visual e como o meu passado se viveu outrora aquém
do meu presente.»147

É certo que Merleau-Ponty fala de uma anterioridade do


mundo. Só que essa anterioridade é essencialmente relativa à
análise reflexiva. É neste sentido que ele diz:

«O real é para descrever, e não para construir ou


para constituir.»148

O mundo não é resultado de uma construção representa­


tiva. Ê campo, meio, fundo, de todas as acções e de todos os
pensamentos; do mesmo modo que a percepção é uma dimen­
são originária que se não confunde, enquanto estrutura de pos­
sibilidade, com as intencionalidades representativas particula­
res, deliberadas. Nesta medida, também a percepção é um
fundo inultrapassável, porque inaugural, de qualquer trajecto
humano.

«A percepção não é uma ciência do mundo, não é


mesmo um acto, uma tomada de posição deliberada,
ela é o fundo sobre o qual todos os actos se destacam
e é pressuposta por eles. O mundo não é um objecto de
que possuo diante de mim a lei de constituição, ele é o
142 jq sé BARATA-MOURA

meio natural e o campo de todos os meus pensamentos


e de todas as minhas percepções explícitas.»149
Isto é, a ontologia de Merleau-Ponty é acentuadamente
uma ontologia fenomenológica, uma ontologia que sempre
supõe à partida, ao menos, a possibilidade de um discurso hu­
mano como condição estrutural e estruturante de qualquer apa­
recer e dos seus conteúdos ou «sentidos» (determinações).
É por isso que o mundo de que a fenomenologia fala não
é explicitação de algo de ontologicamente prévio, mas simul­
tânea descrição de um «sentido» e instauração de «ser», na
órbita de uma linguagem instituinte e desvendadora. É por
isso que a fenomenologia inaugura uma fundação do ser que
na «realização» da sua própria verdade — sentido— assoma.
«O mundo fenomenológico não é a explicitação de
um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não
é o reflexo de uma verdade prévia, mas, tal como a
arte, a realização de uma verdade.»150
Tudo se passa como se para Merleau-Ponty o facto de ha­
ver mundo fosse correlato de uma determinada intenção sub-
jectiva originária e originante. A objectividade, a materiali­
dade, não são, a bem dizer, para ele, categorias ontológicas
primeiras; são sempre já fruto de uma estrutura possibilitadora
geral onde a subjectividade — uma subjectividade especial,
mais radical do que a reflexão analítica ou uma operação
particular — desde sempre está já suposta. É essa a função do
comportamento, do corpo, da «carne», do entrelaçamento
quiasmático, etc.
O lugar do mundo é o da sua visibilidade, e esta visibilidade
aparece ou transparece na e pela própria subjectividade.
«Estou lançado numa natureza e a natureza não
aparece apenas fora de mim, nos objectos sem história,
ela é visível no centro da subjectividade.»151
É este um dos supostos decisivos da filosofia de Merleau-
-Ponty, um dos supostos que ele quase obsessivamente procura
dissociar de uma matriz idealista radical de que, no entanto,
objectivamente se não pode desfazer.
O grande equívoco é sempre o de uma identidade inicial
do mundo e do pensamento do mundo, do mundo como exis-
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 143

tência objectiva e do mundo como termo de uma intenciona­


lidade radical teórica e/ou práxica. Daí a constante ambigui­
dade do real e do discurso sobre/do real que visa uma trans­
cendência (ontológica) que estruturalmente começa por não
reconhecer, ao antepor-lhe um condicionamento subjectivo
originário.

«O mundo e o corpo ontológicos que encontramos


no coração do sujeito não são o mundo em ideia ou o
corpo em ideia, é o próprio mundo contraído numa
tomada global, é o próprio corpo como corpo cognos-
cente.»152

A recusa daquilo a que Merleau-Ponty chama o objecti-


vismo é ainda, e uma vez mais, o sintoma de uma radical
incompreensão do estatuto ontológico da materialidade.
O objectivismo seria a ficção de uma objectividade sem
subjectividade instituinte; isto é, para Merleau-Ponty, a objec­
tividade terá sempre de ser função de alguma subjectividade.
Mesmo que essa subjectividade seja corpórea e não apenas in-
telectual/representativa; mesmo que essa subjectividade seja
intersubjectiva e não apenas egologicamente individual; mes­
mo que a subjectividade originante revista as roupagens de
uma coexistência comunicante que na sua elementaridade se
julgue suficiente para caracterizar a práxis.

«A filosofia é bem, é sempre, rotura com o objecti­


vismo, regresso dos constructa ao vivido, do mundo a
nós mesmos. [...] o “interior” para que nos reconduz
não é uma “vida privada”, mas uma intersubjectividade
[...] o social não é apenas um objecto, mas, em pri­
meiro lugar, a minha situação [...]. [...] ela [a filoso­
fia] dispõe de uma dimensão própria, que é a da coe­
xistência, não como facto consumado e objecto de
contemplação, mas como acontecimento perpétuo e
meio da práxis universal.»168

Só neste sentido a práxis tal como Merleau-Ponty a entende


poderá cumprir a sua destinação instituinte. Não propriamente
como posicionadora ontológica de um mundo, mas como pos-
sibilitadora do seu advento à órbita da significação, num hori­
zonte intersubjectivo de comunicação onde a marca do «vivido»
faz a sua aparição essencial.
144 JOSÉ BARATA-MOURA

S 20. Fenomenologia merieau-pontyana e ontologia da


práxis. Gorporeldade e intersubjectividade são traços
essenciais, mas insuficientes para uma subtracção
à fundamental matriz idealista de anteposição de
uma subjectividade como radical condição de possi­
bilidade. «Vorhabe», «fé perceptiva» e ordem do
«vivido». A obnubÚação do carácter prático da
«práxis».

Será o pensamento de Merleau-Ponty organizável no qua­


dro daquilo que geralmente designamos por «ontologias da
práxis»?
Creio que sim, desde que se proceda a todo um conjunto
de precisões que, acolhendo a especificidade das doutrinas mer-
leau-pontyanas e respeitando a peculiaridade das suas propos­
tas de solução, permitam diferenciar a sua filosofia de outras
que no âmbito das ontologias da práxis se perfilam, sem, no
entanto, esbater a similitude radical da matriz fundamental
que ao nível dos supostos se manifesta.
A práxis de Maurice Merleau-Ponty não é a de Gyõrgy
Lukács ou a de Antonio Gramsci. Institui uma ontologia, não
pela edificação da ordem da materialidade mediante a trans­
formação do real no âmbito do trabalho, mas pela instalação
da intersubjectividade numa órbita de comunicação. Nesta
medida, é mais uma ontologia fenomenológica, uma ontologia
do sentido ou da significação.
Seja como for, porém, a presença tutelar da grande matriz
idealista permanece como fundo primeiro de inspiração e hori­
zonte reitor básico. Nos referidos termos, não há objectividade
sem anteposição de uma condição subjectiva (intersubjectiva)
de possibilidade.

Os traços peculiares a reter neste caso do pensamento de


Merleau-Ponty serão, porventura, as dimensões do corpo e da
intersubjectividade. Chegarão para caracterizar uma certa es­
pecificidade na abordagem da fenomenologia por parte de Mer­
leau-Ponty, não conseguem, todavia, afastar o espectro funda­
mental do idealismo.
A constituição transcendental de um mundo como corre­
lato intencional de uma subjectividade apontando para a mo­
dalidade da intersubjectividade permanece, se bem que no
quadro das modulações práxicas referidas. A eventual objecti-
DA REPRESENTAÇÃO À tPRÂXIS» 145

vidade do real é sempre apresentada como requerendo o con­


curso (prévio e/ou concomitante) de instâncias subjectivas.
Numa perspectiva de radicalidade, a ambiguidade desvane­
ce-se. O que parece apresentar-se como circularidade ou con­
fluência na determinação acaba por se m ostrar na sua ver­
dadeira e complexa luz: uma vez não admitida com clareza e
frontalidade a materialidade do real, trata de fundar-se a sua
«objectividade» numa modalidade peculiar de experiência per-
ceptiva e/ou práxica.
O ser «vertical» ou «selvagem», «carnal», de que uma pré-
-tenência trans-cognitiva ou Vorhabe nos dá conta, será o
grande tema da filosofia:

«A filosofia é o estudo da Vorhabe do Ser. Vorhabe


que não é conhecimento, por certo, que está em falta
para com o conhecimento, a operação, mas que os
envolve como o Ser envolve os seres.»164

Isto pode, no fundo, acontecer, porque esta Vorhabe é o


lugar do originário, o lugar de uma «fé perceptiva» que urge
interrogar, que há que começar por interrogar.
Só que esta originariedade acaba sempre por remeter para
«a ordem do vivido ou do fenomenal, que se trata justamente
de justificar e de reabilitar como fundamento da ordem objec-
tiva»1BB.
Remete-se, portanto, sempre para um vivido, para uma
fundamental e fundante estrutura de subjectividade que, toda­
via, Merleau-Ponty se esforça repetidamente por distinguir da
«vivência» meramente privada, individual, psicológica, etc.

«A interioridade que o filósofo procura é igualmente


também a intersubjectividade, a Urgemein Stiftung
que está muito para além do “vivido” — A Besinnung
contra as Erlebnisse.» 188

As vivências, as Erlebnisse, seriam os conteúdos determi­


nados de uma consciência ou de um atender ao mundo suscep-
tíveis de especificação (e correlativa descrição fenomenoló-
gica), enquanto a Besinnung traduziria aquela «consciência»
ou aqueles «sentidos» que, designadamente quando se desmaia,
«se perdem» e que no estado de vigília se conservam. Isto é,
a Besinnung designa uma ligação primária ao mundo enquanto
146 JOSÉ BARATA-MOURA

susceptível de admissão a, ou de tradução em, uma consciência


vivível ou visível.
A subjectividade condicionante de qualquer objectividade,
de qualquer mundaneidade, situa-se, por conseguinte, para
Merleau-Ponty, não ao nível da mera vivência individualizàvel
e descritível na sua particularidade, mas no plano radical da
articulação primeira com um mundo, da emergência ou do
«aparecimento» originários de um mundo. É, em consequência,
uma subjectividade menos empírica e mais «transcendental»,
mas nem por isso deixa de se constituir, afirmar e operar estru­
turalmente como subjectividade (ainda que plural, ainda que
pré-representativa, ainda que prática).
A Vorhabe e o «sentido» são, para Merleau-Ponty, temas
que têm a ver com a práxis, temas que funcionalizam uma
sua intervenção.
Trata-se de uma intervenção que, no entanto, acaba por
ser mais valorizada e atendida pelos elementos teóricos que
encerra, do que pelo cerne efectivamente prático, material­
mente transformador, da sua essencialidade. Esta circunstância
não deixa de ser significativa.
A primeira justificação que nos poderia ocorrer para esta
verdadeira obnubilação do carácter prático da práxis seria
a de que — algo curiosamente— Merleau-Ponty se esforça
por a silenciar para, precisamente, melhor a poder praticar...
Ironia com ironia se paga. Não foi o próprio Merleau-
-Ponty que declarou que quem fala da acção está a declarar
que não quer agir?
Como se pode ler em Eloge de la philosophie:
«Falar da acção, mesmo com rigor e profundidade,
é declarar que não se quer agir.»157
Claro que algo mais maliciosamente poderíamos também
pensar que, para Merleau-Ponty, aquilo que não é falado é
declarado não existente ou ameaçado com um (filosófico-feno-
menológico) decreto de não-existência.
A haver simplificação da nossa parte ela residiria, neste
caso, mais na definição do problema do que propriamente no
sentido fundamental da resposta merleau-pontyana.
É que, de facto, para Merleau-Ponty, a privação do nome
é uma ameaça de não-reconhecimento, do mesmo modo que
DA REPRESENTAÇÃO A cPRAXIS» 147

a denominação é um passo decisivo na acreditação da sua


objectividade.
Na órbita de uma ressonância temática, onde a recordação
de Alexande K ojève158 e da sua hermenêutica hegeliana não
deixam de se insinuar, escreve Merleau-Ponty em Le Visible
et Vinvisible, mais exactamente no esboço de um capítulo
introdutório que viria, no entanto, a ser substituído:

«É passando pelo desvio dos nomes, ameaçando as


coisas de não serem reconhecidas por nós, que se acre­
dita finalmente, se não como princípio próprio delas,
pelo menos, como condição da sua possibilidade para
nós, a objectividade, a identidade a si, a positividade,
a plenitude.»159

Por intermédio deste détour denominativo, a materialidade,


a objectividade do real, toma-se dependente de uma acredita­
ção. Afastado o espectro da crença (neo-religiosa) fideísta, a
ontologia devém diplomacia: o ser tem de apresentar creden­
ciais que podem ser (ou não) reconhecidas. A materialidade
transforma-se em questão de decisão — talvez de uma decisão
a que, por vezes, se seja compelido, mas sempre, originária
e finalmente, de decisão.
A «objectividade» do ser é apenas a «condição» da sua
presença num para nós («fatalmente» inultrapassável). O cír­
culo da fenomenológica imanência nunca é transcendido.
É perscrutado (e enriquecido) pelas percées e incursões pelos
domínios e ângulos de visão da linguagem, da intersubjecti-
vidade, da práxis; mas nunca é quebrado. O seu poder inau­
gural e reitor mantém-se.

Por tudo isto se vê, uma vez mais, que, também no terreno
fundamental da ontologia, a ambiguidade merleau-pontyana,
tomada na sua radicalidade, é sempre algo de muito relativo.
É uma ambiguidade anunciada e presumida. Não é uma ambi­
guidade efectiva. Os supostos em que o pensamento de Mer-
leau-Ponty assenta não são ambíguos.
Notas

1 Cf., por exemplo, G. Lukács, «De la phénoménologie à 1’exis-


tentialisme», Existentialisme ou marxisme?, trad. E. Kelemen, Paris,
Nagel, 1961, pp. 69-109.
7 «moyen d*éviter les antithèses classiques», M. Merleau-Ponty,
L a Structure du com portem ent (doravante: SC), Paris, PU F, 1953 3,
p. 138.
* Cf. J. Barata-M oura, Totalidade e Contradição. Acerca da Dia-
léctica, § 37, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, pp. 172-176.
4 Como o fragmento B 8, transm itido por Aristóteles, refere:
«O contrário é útil, e a partir dos diferentes a mais bela
harmonia»,
«tò àmíZcw (Tupykçov kou *x twv àtaq>£pcvTMv xaÀÀÚTTYjv ápptcvtav»,
Heraclito, B 8; Die Fragmente der Vorsokraiiker, ed. H. Diels e
W. Kranz, Berlin, W eidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1956*, vol i,
p. 152.
5 Cf. M. Merleau-Ponty, L e Visible et Vinvisible (doravante: VI),
ed. Claude Lefort, Paris, Gallimard, 1964, p. 125.
* «Ainsi la dialectique humaine est ambiguê: elle se manifeste
d’abord par les structures sociales ou culturelles qu’elle fait apparaitre
et dans lesquelles elle s’emprisonne. Mais ses objets d ’usage et ses
objets culturels ne seraient pas ce qu ’ils sont si 1’activité qui les fait
paraitre n*avait aussi pour sens de les nier et de les dépasser.», M er­
leau-Ponty, SC, p. 190.
7 «je ne me connais que dans m on inhérence au temps et au
monde, c’est-à-dire dans Pambiguité.», M. M erleau-Ponty, Phénomé­
nologie de la perception (doravante: PhP), Paris, Gallimard, 1945,
p. 397.
150 JOSÉ BARATA-MOURA

' Cf. Ferdinand Alquié, «Une philosophie de 1'ambigulté: Texis-


tentialisme de Maurice Merleau-Ponty», Fontaine, Paris, 8 (1947), pp.
47-70; Alphonse De Waelhens, Une philosophie de Vambigúité: Vexis-
tentialisme de Maurice Merleau-Ponty, Louvain-Paris, Nauwelaerts,
1951. A designação rapidamente se espalhou, estendendo-se mesmo a
outras áreas linguísticas. Cf. Helmut Kuhn, «Existentialismus versus
Marxismus. Zu Maurice Merleau-Pontys Philosophie der Zweideutig-
keit», Philosophisches Jahrbuch, Miinchen, 62 (1953), pp. 327-346.
• Logo a partir da segunda edição (1949), SC é precedido de um
ensaio de A. De Waelhens intitulado, precisamente: «Une philosophie
de Tambiguité».
1# Como ele próprio refere:
««Ê, com efeito, inteiramente próprio do filósofo este
sentimento: admirar-se; não há, com efeito, outro princípio
da filosofia senão este»,
«MaÀa yàp fikooôyou rovro rò náOo;t r i davfjLcíÇtiv ov yàp ôftkn
àp/r, cptXoíToipta: vj ocjtíi », Platão, Teeteto, 155 d.
11 A formulação é muito parecida com a de Platão:
«Quer agora quer primeiro, os homens começaram a
filosofar através, com efeito, do admirar-se»,
« dià yàp rò OaupaÇetv oi ctvÔpanwi xat vúv xod rò TcpwTov yJpÇavro»,
Aristóteles, Metafísica, A, 2, 982 b 12-13.
A dimensão seminal, e não terminal ou bloqueadora, do «admi­
rar-se» é repetidamente posta em destaque por Aristóteles:
«Ora, no admirar-se está, com efeito, o desejar instruir-se
[ou aprender, isto é, o prosseguimento numa actividade que
visa a compreensão]»,
« h pèv yáp Tw 0avfiáÇetv rò èrtiBvfjieiu paQtiv èarív», Aristóteles,
Retórica, I, 11, 1371 a 32.
Sobre esta problemática pode ver-se também: J. Barata-Moura,
Episteme. Perspectivas Gregas sobre o Saber. Heraclito, Platão,
Aristóteles, § 55 Lisboa, 1979, pp. 254-256. A vinculação do tema do
«espanto» à aporeticidade e à ordem do conhecimento é igualmente
sublinhada por Fernando Gil, «Os tempos do pensamento», Mimésis
e Negação, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 18-20.
M Cf. A. De Waelhens, La Philosophie et les expériences natu-
relles, La Haye, Martinus Nijhoff, 1961, pp. 86-106.
Apesar da referência à «acção» no título, também não encontra­
mos qualquer tratamento temático da práxis no ensaio de. Pierre Au-
benque, «Dialectique et action. A propos des “Aventures de la dia-
lectique” de Maurice Merleau-Ponty», Aspects de la dialectique, Paris,
Desclée de Brouwer, 1956, pp. 329-344.
” Cf. A. Ollero Tassara, Dialéctica y Praxis en Merleau-Ponty,
Granada, Universidad de Granada. Facultad de Derecho, [1971].
OA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 151

M Cf. A. Schmidt, «Praxis», Kritische Theorie. Humanismus,


Aufklàrung. Philosophische Arbeiten 1969-1979, Stuttgart, Reclam,
1981, pp. 110-164.
M Cf. J. Habermas, «Literaturbericht zur philosophischen Diskus-
sion um M arx und den Marxismus (1957)» (doravante: «Literatur­
bericht»), Theorie und Pfaxis. Sozialphilosophische Studien (doravante:
TP), F rankfurt am Main, Suhrkamp, 19823, sobretudo pp. 425-428.
" «mon corps m ’apparait comme posture en vue d'une certaine
tâche actuelle ou possible. E t en 'effet sa spatialité n ’est pas comme
celle des objets extérieurs ou comme celle des “sensations spatiales"
une spatialité de position, mais une spatialité de situation.», Merleau-
-Ponty, PhP, p. 116.
CT «o corpo não é um mecanismo fechado sobre si, sobre o
qual a alma pudesse agir de fora. Não se define senão pelo
seu funcionamento que pode oferecer todos os graus de
integração.»,
«le corps n*est pas un mécanisme fermé sur soi, sur lequel 1’âme
pourrait agir du dehors. II ne se définit que par son fonctionnement
qui peut offrir tous les degrés d*intégration.», Merleau-Ponty, SC,
p. 218.
” le sujet normal a son corps non seulement comme système
de positions actuelles, mais encore et par là même comme système
ouvert d'une infinité de positions équivalentes dans d’autres orienta-
tions.», Merleau-Ponty, PhP, p. 165.
” O próprio M erleau-Ponty faz também referência à temática
do G rund e do Abgrund, no quadro de uma determ inada oposição
entre «condicionamento» e «fundamentação» e num contexto onde
igualmente Heidegger é citado, se bem que por meio de uma remissão
para Unterwegs zur Sprache. Cf. Merleau-Ponty, V I, p. 303.
M «Si Tespace corporel et 1’espace extérieur form ent un système
pratique, le premier étant le fond sur lequel peut se détacher ou le
vide devant lequel peut apparaltre Tobjet comme but de notre action,
c’est évidemment dans 1'action que la spatialité du corps s*accomplit»,
Merleau-Ponty, PhP, p. 119.
" «le comportement se détache de Pordre de Pen soi et devient
la projection hors de Porganisme d’une possibilité qui lui est intérieure.
Le monde, en tan t qu*il porte des êtres vivants, cesse d*être une
matière pleine de parties juxtaposées, il se creuse à 1’endroit oú
apparaissent des comportements.», Merleau-Ponty, SC, p. 136.
” «Les gestes du comportement, les intentions qu’il trace dans
Tespace autour de 1’animal ne visent pas le monde vrai ou l’être pur,
mais Têtre-pour-ranimal, c'est-à-dire un certain milieu caractéristique
de Tespèce, ils ne laissent pas transparaítre une conscience, c*est-à-dire
un être dont toute Tessence est de connaltre, mais une certaine ma-
nière de traiter le monde, d*“être au monde" ou d,<4exister".», Mer­
leau-Ponty, SC, p. 136.
152 JOSÉ BARATA-MOURA

33 «La conscience est originairement non pas un “je pense que”,


mais un “je peux”.», Merleau-Ponty, PhP, p. 160.
34 Nas Ideen II pode ler-se:
«Em ligação com os meus actos de Eu centrípetos tenho
a consciência do Eu posso.»,
«In Beziehung auf meine zentripetalen Ichakte habe Ich das Be-
wusstsein des Ich kann.», E. Husserl, Ideen zu einer reinen Phãnome-
nologie und phànomenologischen Philosophie. Zweites Buch: Phâno-
menologische Untersuchungen zur Konstitution (doravante: Ideen II),
ed. Marly Biemel; Husserliana, Den Haag, Martinus Nijhoff, 1969
vol. rv, p. 257.
™ «O que eu posso [...] isso é uma possibilidade prática.
Só entre possibilidades práticas posso eu “decidir”-me, só uma
possibilidade prática pode (este é um outro posso, [um posso]
teórico) ser tema da minha vontade. Não posso querer nada
que não tenha, em conformidade com a consciência, diante
dos olhos, que não esteja no meu poder, [dentro] da minha
capacidade.»,

«Was ich kann [...] das ist eine praktische Mõglichkeit. Nur
zwischen praktischen Móglichkeiten kann (das ist ein andres, theo-
retisches “kann”) Thema meines Willens sein. Ich kann nichts wollen,
was ich nicht bewusstseinsmassig vor Augen habe, was nicht in meiner
Macht, in meiner Fãhigkeit liegt.», Husserl, Ideen II, p. 258.
M «Être corps, c’est être noué à un certain monde, [...] et notre
corps n ’est pas d’abord dans Tespace: il est à 1’espace.», Merleau-
-Ponty, PhP, p. 173.
37 «Dans le geste de la main qui se lève vers un objet est enfer-
mée une référence à Tobjet non pas comme objet representé, mais
comme cette chose très déterminée vers laquelle nous nous projetons,
auprès de laquelle nous sommes par anticipation, que nous hantons.»,
Merleau-Ponty, PhP, pp. 160-161.
" É a unidade intersensorial de um mundo e as instâncias da
sua constituição que aqui se encontram em causa:
«A visão e o movimento são maneiras específicas de nos
relacionarmos com objectos, e se, através de todas estas expe­
riências, uma função única se exprime é o movimento da
existência, que não suprime a diversidade radical dos con­
teúdos, porque os liga, não colocando-os a todos sob a domi­
nação de um “eu penso” , mas orientando-os para a unidade
intersensorial de um “mundo” .»,

«La vision et le mouvement sont des manières spécifiques de nous


rapporter à des objets, et si, à travers toutes ces expériences, une
fonction unique s’exprime, c’est le mouvement d*existence, qui ne
supprime pas la diversité radicale des contenus, parce qu*il les relie
OA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 153

non pas en les plaçant tous sous ia domination d ’un 39*44je pense**, mais
en les orientant vers l'unité intersensorielle d’un “monde” .», Merleau-
-Ponty, PhP, p. 160.
* «La première vérité est bien 44Je pense”, mais à condition qu*on
entende par là 44je suis à moi” en étant au monde.», Merleau-Ponty,
PhP, p. 466.
39 « [...] le mouvement à faire peut être anticipé, sans 1’être par
une représentation, et cela même, n ’est possible que si la conscience
est définie non comme position explicite de ses objets, mais plus
généralement comme référence à un objet pratique aussi bien que
théorique, comme être au monde, si le corps de son côté est défini
non comme un objet parmi tous les objets, mais comme le véhicule
de 1’être au monde.», Merleau-Ponty, PhP, p. 163.
31 «La 44chose” naturelle, 1'organisme, le comportement d’autrui
et le mien n*existent que par leur sens, mais le sens qui jaillit en eux
n*est pas encore un objet kantien, la vie intentionnelle qui les cons-
titue n ’est pas encore une représentation, la “compréhension” qui y
donne accès n*est pas encore une intellection.», Merleau-Ponty, SC,
241.
33 «L’histoire de Papraxie m ontrerait comment la description de
la Praxis est presque toujours contaminée et finalement rendue impos-
sible par la notion de représentation.», Merleau-Ponty, PhP, p. 161.
33 «Le sens profond, philosophique, de la notion de praxis est de
nous installer dans un ordre qui n ’est pas celui de la connaissance,
mais celui de la communication, de 1'échange, de la fréquentation. II
y a une praxis prolétarienne qui fait que la classe existe avant d*être
connue.», Merleau-Ponty, Les Aventures de la dialectique (doravante:
AD), Paris, Gallimard, 1955, p. 78.
34 «Merleau-Ponty unterstreicht die Rolle sprachlicher Kommu-
nikation.», A. Schmidt, «Praxis», Kritische Theorie. Humanismus.
Aufklãrung, Stuttgart, Reclam, 1981, p. 150.
39 «Die W irklichkeit konstituiert sich im Rahmen einer um-
gangssprachlich organisierten Lebensform kommunizierender Gruppen.
Wirklich ist, was unter den Interpretationen einer geltenden Symbolik
erfahren werden kann.», J. Habermas, Erkenntnis und Interesse,
Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1981 *, p. 237.
39 Referindo-se às condições dos primórdios da grande indústria
e à situação da massa dos trabalhadores, escreve Marx:
« [...] esta massa é já uma classe face ao capital, mas
ainda não para si própria.»,
« [...] cette masse est déjà une classe vis-à-vis du capital, mais pas
encore pour elle même.», K. Marx, Misère de la philosophie, II. 5:
Oeuvres, ed. M. Rubel, Paris, Gallimard, 1965, vol. i, p. 135.
37 Como Lukács escreve:
«Ora, a reacção racionalmente adequada que desta ma­
neira é imputada [zugerechnet] a uma situação típica deter-
154 JOSÉ BARATA-MOURA

minada no processo de produção é a consciência de classe.


Esta consciência, portanto, não 6 nem a soma nem a média
daquilo que os indivíduos isolados que formam a classe pen­
sam, sentem, etc. E, contudo, o agir historicamente signifi­
cativo da classe como totalidade é ultimamente determinado
por esta consciência, e não pelo pensar, etc., do singular, e só
a partir desta consciência é [esse agir] cognoscivel.»,
«Die rationell angemessene Reaktion nun, die auf diese Weise
einer bestimmten typischen Lage im Produktionsprozess zugerechnet
wird, ist das Klassenbewusstsein. Dieses Bewusstsein ist also weder die
Summe noch der Durchschnitt dessen, was die einzelnen Individuen,
die die Klasse bilden, denken, empfinden, usw. Und doch wird das
geschichtlich bedeutsame Handeln der Klasse ais Totalitãt letzthin von
diesem Bewusstsein und nicht vom Denken usw. des Einzelnen bes-
timmt und ist nur aus diesem Bewusstsein erkennbar.», G. Lukács,
«Klassenbewusstsein», Geschichte und Klassenbewusstsein (doravante:
GK); Werke (doravante: W), Darmstadt-Neuwied, Luchterhand,
1977 a, vol. 2, pp. 223-224.
Sobre a concepção marxista da consciência de classe: Erich Hahn,
Materialistische Dialektik und Klassenbewusstsein, Berlin, Akademie-
-Verlag, 1974.
" «L*expérience motrice de notre corps n*est pas un cas par-
ticulier de connaissance; elle nous fournit une manière d’accéder au
monde et à 1’objet, une “praktognosie” qui doit être reconnue comme
originale et peut-être comme originaire. Mon corps a son monde ou
comprend son monde sans avoir à passer par des “représentations",
sans se subordonner à une “fonction symbofique” ou “objectivante".»,
Merleau-Ponty, PhP, p. 1(54.
” «Ce que nous avons découvert par l’étude de la motricité,
c*est en somme un nouveau sens du mot "sens”.», Merleau-Ponty,
pp. 171-172.
** «L’expérience du corps nous fait reconnaitre une imposition
du sens qui n*est pas celle d'une conscience constituante universelle,
un sens qui est adhérent à certains contenus. Mon corps est ce noyau
significatif qui se comporte comme une fonction générale [...]», Mer­
leau-Ponty, PhP, p. 172.
41 «Mon corps est la texture commune de tous les objets et il est,
au moins à Fégard du monde perçu, 1’instrument général de ma “com-
préhension". C est lui qui donne un sens non seulement à l*objet
naturel, mais encore à des objets culturels comme les mots.», Merleau-
-Ponty, PhP, p. 272.
° Nos Princípios Fundamentais da Filosofia do Futuro, escreve
Feuerbach:
«Se a velha filosofia tinha como ponto de partida o prin­
cipio: Eu sou um [ser] abstracto, um ser apenas pensante, o
corpo não pertence ao meu ser; a nova filosofia começa, pelo
contrário, com o princípio: Eu sou um [ser] real, um ser
sensível; o corpo pertence ao meu ser; sim, o corpo na suã
totalidade é o meu Eu, o meu próprio ser.*,
OA REPRESENTAÇÃO A iPRAXIS» 155

«Wenn die aite Philosophie zu ihrem Ausgangspunkt dcn Satz


hattc: Ich bin ein abstraktes, ein nur denkendes Wesen, der Leib
gehôrt nicht zu meinem Wesen; so beginnt dagegen die neue Philo­
sophie mit dem Satze: Ich bin ein wirkliches, ein sinnliches Wesen:
Der Leib gehôrt zu meinem Wesen; ja, der Leib in seiner Totalit&t
ist mein Ich, mein Wesen selber.», Ludwig Feuerbach, Grundsãtze
der Philosophie der Z u k u n ft, § 37; Gesammelte W erke, ed. W emer
Schuffenhauer, Berlin, Akademie-Verlag, 1982 a, vol. 9, pp. 319-320.
Seria interessante atentar ainda em como também o tema da
«carne» — chair, Fleisch — é unr tema feuerbachiano, valendo, toda­
via, quanto a este ponto, as mesmas observações de ordem metodoló­
gica a que aludo na nota 44, mutatis mutandis.
49 «En somme, mon corps n ’est pas seulement un objet parmi
tous les autres objets, un complexe de qualités sensibles parmi d*au-
tres, il est un objet sensible à tous les autres, qui résonne pour tous
les sons, vibre pour toutes les couleurs, et qui fournit aux mots leur
signification primordiale par la manière dont il les accueille.», Mer-
leau-Ponty, PhP, p. 273.
44 De modo algum estamos aqui a sugerir qualquer matriz de
influências lineares de Heidegger sobre M erleau-Ponty ou de Merleau-
-Ponty sobre Heidegger. Apenas registamos um a aproximação temá­
tica, cuja fonte originária de inspiração deverá, porventura, ser pro­
curada num património fenomenológico comum de sugestão ou ascen­
dência husserliana, trabalhado não apenas segundo esquemas de
«influência», mas pelo próprio desenvolvimento coordenado das pos­
sibilidades temáticas de um determinado núcleo teórico originário e
da sua «lógica».
Sobre a condição estrutural do Verhalten, do comportamento,
escreve Heidegger:
«O comportamento está aberto para o ente. Toda a rela­
ção de abertura é comportamento.»,
«Das Verhalten ist offenstãndig zum Seienden. Jeder offenstan-
dige Bezug ist Verhalten.», M. Heidegger, Vom Wesen der Wahrheit;
Wegmarken (doravante: Wm), F rankfurt am Main, V. Klostermann,
1967, p. 80.
E sobre o Seinlassen:
«A liberdade para o revelado de um aberto deixa o res-
pectivo ente ser o ente que é. A liberdade descobre-se agora
como o deixar-ser do ente.»,
«Die Freiheit zum Offenbaren eines Offenen lãsst das jeweilige
Seiende das Seiende sein, das es ist. Freiheit enthullt sich jetzt ais das
Seinlassen von Seiendem.», M. Heidegger, ibid., p. 83.
41 «La distinction que nous introduisons est plutót celle du vécu
et du connu.», Merleau-Ponty, SC, p. 232.
44 «Les signes organisés ont leur sens immanent, qui ne relève
pas du Mje pense**, mais du **je peux”. Cette action à distance du lan-
gage, qui rejoint les significations sans les toucher, cette éloquence
156 JQSÉ BARATA-MOURA

qui les désigne de manière péremptoire, sans jamais les changer en


mots ni faire cesser le silence de la conscience, sont un cas éminent
de Tintentionalité corporelle.», Merleau-Ponty, «Sur la phénoméno-
logie du langage», Eloge de la philosophie et autres essais (doravante:
EP), Paris, Gallimard, 1960 a, p. 93.
47 «Si un être est conscience, il faut qu*il ne soit rien qu*un tissu
d*intentions. S’il cesse de se définir par 1’acte de signifier, il retombe
à la condition de chose, la chose étant justement ce qui ne connaft
pas, ce qui repose dans une ignorance absolute de soi et du monde, ce
qui par suit n’est pas un «soi» véritable, c’est-à-dire un “pour soi”, et
n'a que 1’individuation spatio-temporelle, Texistence en soi.», Merleau-
-Ponty, PhP, p. 141.
44 «La parole est un véritable geste et elle contient son sens
comme le geste contient le sien. C est ce qui rend possible la commu-
nication. [...]. La parole est un geste et sa signification un monde.»,
Merleau-Ponty, PhP, p. 214.
49 «La parole est Fexcès de notre existence sur 1’être naturel.
Mais 1’acte d’expression constitue un monde linguistique et un monde
culturel [...]», Merleau-Ponty, PhP, p. 229.
" «La parole n’est pas un produit de ma pensée active, seconde
par rapport à elle. Elle est ma pratique, mon opération, ma Funktion,
ma destinée. Toute production de 1’esprit est réponse et appel, co-
-production.», Merleau-Ponty, «Husserl aux limites de la phénomé-
nologie», Résumés de Cours. Collège de France, 1952-1960, (dora­
vante: RC), Paris, Gallimard, 1968, pp. 165-166.
M Tal como ele refere:
«Para o homem, no mundo que o rodeia [Umwelt], há
diversas espécies de prática; entre estas, específica e histori­
camente tardia: a prática teórica. Ela tem os seus métodos
profissionais próprios, é a arte das teorias, do achamento e
consolidação de verdades de um certo novo sentido ideal,
estranho à vida pré-científica, de uma certa “definitividade”,
validade para todos.»,
«Es gibt fur den Menschen in seiner Umwelt vieleriei WeTsen
der Praxis, darunter diese eigenartige und historisch spate: die theo-
retische Praxis. Sie hat ihre eigenen berufsmãssigen Methoden, sie
ist die Kunst der Theorien, der Auffindung und Sicherung von
Wahrheiten eines gewissen neuen, dem vorwissenschaftlichen Leben
fremden, idealen Sinnes, des einer gewissen “Endgiiltigkeit”, Allgiil-
tigkeit.», Husserl, Die Krisis der europâischen Wissenschaften und die
transzendentale Phànomenologie (doravante: Krisis), § 28, ed. Walter
Biemel; Husserliana, Den Haag, Martinus Nijhoff, 1962a, vol. vi,
p. 113.
,a «[...] le langage n*est pas seulement le conservatoire des
significations fixées et acquises, [...] son pouvoir cumulatif résulte
lui-même d’un pouvoir d*anticipation ou de prépossession, [...] le
langage se faisant exprime, au moins latéralement, une ontogénèse
dont il fait partie.», Merleau-Ponty, VI, p. 139.
DA REPRESENTAÇÃO A (PRAXIS» 157

33 Sobre este ponto veja-se o meu livro: Ontologias da Práxis e


Idealismo, que a Editorial Caminho publicará brevemente.
34 «Sujet parlant: c*est le sujet d*une praxis. II ne tient pas
devant lui Ies paroles dites et comprises comme des objets de pensée
ou des idéats. II ne les possède que par une Vorhabe qui est du type
de la Vorhabe du lieu par mon corps qui s’y rend. Cest-à-dire: il est
un certain manque de... tel ou tel signifiant, qui ne construit pas le
Bild de ce dont il manque. II y a donc ici une néo-téléologie qui ne
supporte, pas plus que la téléologie perceptive, d*être soutenue par
une conscience de..., ni par une ek-stase, un projet constructif.»,
Merleau-Ponty, VI, p. 255.
33 Em PhP, Merleau-Ponty dissera já:
«O espaço corporal só pode verdadeiramente tornar-se
um fragmento do espaço objectivo se na sua singularidade de
espaço corporal contiver o fermento dialéctico que o trans­
form ará em espaço universal.»,
«L’espace corporel ne peut vraiment devenir un fragment de
1’espace objectif que si dans sa singularité d’espace corporel il con-
tient le ferm ent dialectique qui le transform era en espace universel.»,
Merleau-Ponty, PhP, p. 118.
*• «Ce qu’il faut éclaircir: c’est le bouleversement qu*introduit
la parole dans l*Être pré-linguistique. Elle ne le modifie pas d’abord,
elle est d’abord elle-même “langage égocentrique”. Mais elle porte
tout de même un ferm ent de transform ation qui donnera la signi-
fication opératoire», Merleau-Ponty, VI, p. 255.
37 «Qu’est-ce que ce ferment? Cette pensée de praxis? Est-ce le
même être qui perçoit et qui parle? Impossible que ce ne soit pas le
même. E t si c’est le même, n ’est-ce pas rétablir la “pensée de voir
et de sentir”, le Cogito, la conscience de...?», Merleau-Ponty, VI,
p. 255.
M «Le langage est une vie, est notre vie et la leur.», Merleau-
-Ponty, VI, p. 167.
" Considerando, precisamente, o Zwischen como o supremo prin­
cípio fundamental de toda a actividade sintética, afirma Heidegger:
« [...] temos sempre de nos mover no Entre, entre homem
e coisa; [...] este Entre só é, na medida em que nós aí nos
movemos»,
« [...] wir uns immer im Zwischen, zwischen Mensch und Ding
bewegen mussen; [...] dieses Zwischen nur ist, indem wir uns darin
bewegen», M. Heidegger, Die Frage nach dem Ding. Z u Kants Lehre
von den transzendentalen Grundsãtzen, Tubingen, Max Niemeyer,
1962, p. 188.
O jovem Lukács considera como «á acção recíproca mais
essencial: a ligação dialéctica do sujeito e do objecto no processo
histórico» («die wesentlichste Wechselwirkung: die dialektische Be-
158 JOSÉ BARATA-MOURA

ziehung des Subjekts und Objekts im Geschichtsprozess», Lukács,


«Was ist orthodoxer Marxismus?», GK; W, vol. 2, p. 173).
Em seu entender, porém, é o comportamento contemplativo
— para Lukács, um comportamento que, entre outros aspectos, aceita
a materialidade ontológica da Natureza e levanta a questão do re­
flexo— que cria o problema da objectividade e da subjectividade
enquanto dualidade a superar:
«todo o comportamento contemplativo, portanto, todo o “pen­
samento puro**, que tem de fazer tarefa sua o conhecimento
de um objecto que lhe está diante, levanta, com isso, o pro­
blema da subjectividade e objectividade. O objecto do pensar
(como contraposto) é feito algo de estranho ao sujeito e, com
isso, levanta-se o problema de [saber] se o pensar coincide
com o objecto.»,
«jedes kontemplative Verhalten, also jedes “reine Denken**, das sich
die Erkenntnis eines íhm gegeniiberstehenden Objekts zur Aufgabe
machen muss, damit zugleich das Problem von Subjektivitat und
Objektivitat aufwirft. Das Objekt des Denkens (ais Gegeniiber-
gestelltes) wird zu etwas Subjektsfremdem gemacht und damit ist das
Problem aufgeworfen: ob das Denken mit dem Gegenstand iiberein-
stimmt?», Lukács, «Die Verdinglichung und das Bewusstsein des
Proletariats», GK; W, vol. 2, p. 388.
Na perspectiva de uma «práxis» reunificadora ou unificadora,
tudo seria diverso, já que, de certo modo, a diferença ontológica se
desvaneceria (nos termos de um tendencial — mas não expressamente
procurado— idealismo da prática).
Theodor Adorno, por seu lado, aponta também para uma uni­
dade estrutural ou estruturante de sujeito e objecto.
«Mediação do objecto diz que ele não pode ser estati­
camente, dogmaticamente, hipostasiado, mas que é de conhe­
cer apenas no seu enlaçamento com subjectividade; mediação
do sujeito [diz] que, sem o momento da objectividade, ele
não seria literalmente nada.»,
«Vermittlung des Objekts besagt, dass es nicht statisch, dogma-
tisch hypostasiert werden darf, sondem nur in seiner Verflechtung
mit Subjektivitat zu erkennen sei; Vermittlung des Subjekts, dass es
ohne das Moment der Objektivitat buchstablich nichts wãre.», Adorno,
Negative Dialektik; Gesammelte Schriften (doravante: GS), ed. R. Tie-
demann, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1973, vol. 6, pp. 186-187.
O enlaçamento ou entrelaçamento (Verflechtung) de objecto e
subjectividade tem a ver com as «imagens» mediante as quais ela
o enriquece, no quadro de um «experienciar» — que, para Adorno,
não é «constituinte», mas «agente» do próprio objecto.
Em qualquer caso, a «prioridade» do objecto jamais poderá
passar efectivamente sem a inclusão de «determinações» que são
«obra» do sujeito.
«Só é legítimo falar da prioridade do objecto quando
esta prioridade é, de algum modo, determinável relativamente
ao sujeito no sentido mais amplo, mais [determinável], por-
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 159
tanto, do que a coisa em si kantiana como causa desconhe­
cida do fenómeno.»,
«Vom Vorrang des Objekts ist legitim zu reden nur, wenn jener
Vorrang, gegenúber dem Subjekt im weitesten Verstande, irgend
bestimmbar ist, mehr also denn das Kantische Ding an sich ais unbe-
kannte Ursache der Erscheinung.», Adorno, «Zu Subjekt und Objekt»,
Stichworte, Kritische Modelle; GS, vol. 10.2, p. 748.
Merleau-Ponty é ele próprio também sensível à questão da rela­
ção sujeito-objecto: cf. VI, p. 218. Quanto à sua própria interpreta­
ção da unidade sujeito-objecto no âmbito do próprio processo histó­
rico, a partir, uma vez mais, de uma determinada compreensão de
Lukács: cf. AD, pp. 80-81.
#1 «Ê que toda a epistémè moderna — a que se formou para
os finais do século xviii e ainda serve de solo positivo ao
nosso saber, a que constituiu o modo de ser singular do
homem e a possibilidade de o conhecer empiricamente — toda
esta epistémè estava ligada à desaparição do Discurso e do
seu reino monótono, ao deslizamento da linguagem para o
lado da objectividade e à sua reaparição múltipla. Se essa
mesma linguagem surge agora com cada vez mais insistência
numa unidade que nós devemos mas não podemos ainda
pensar, não é isto o sinal de que toda esta configuração vai
agora bascular, e que o homem está a perecer à medida que
brilha mais forte no nosso horizonte o ser da linguagem?
Tendo-se o homem constituído quando a linguagem estava
votada à dispersão, não vai ele ser dispersado quando a lin­
guagem se concentra?»,
«C est que toute 1*epistémè moderae — celle qui s’est formée vers
la fin du xvm* siècle et sert encore de sol positif à notre savoir, celle
qui a constitué le mode d ’être singulier de 1'homme et la possibilité
de le connaitre em piriquem ent— toute cette epistémè était liée à la
disparition du Discours et de son règne monotone, au glissement du
langage du côté de Tobjectivité et à sa réapparition multiple. Si ce
même langage surgit m aintenant avec de plus en plus d’insistance en
une unité que nous devons mais que nous ne pouvons pas encore pen-
ser, n'est-ce pas le signe que toute cette configuration va maintenant
b a iu le r, et que rhom m e est en train de périr à mesure que brille plus
fort à notre horizon Pêtre du langage? L*homme s’étant constitué
quand le langage était voué à la dispersion, ne va-t-il pas être dispersé
quand le langage se rassemble?», M. Foucault, Les m ots et les cho-
ses. Une archéologie des Sciences humaines, Paris, Gallimard, 1966,
p. 397.
" « [...] ayant éprouvé en lui-même le besoin de parler, la
naissance de la parole comme une bulle au fond de son expérience
muette, le philosophe sait mieux que personne que le vécu est du
vécu-parlé, que, né à cette profondeur, le langage n’est pas un
masque sur 1'Être, mais, si l’on sait le ressaisir avec toutes ses racines
et toute sa frondaison, le plus valable témoin de l*Être [...]», Mer-
leau-Ponty, VI, p. 167.
160 JOSÉ BARATA-MOURA

•* O pastoreio heideggeriano do ser tem a ver com toda a pro­


blemática de um «cuidar», de uma Sorge, por aquilo que, estando
mais longe, começa, todavia, por estar mais perto:
«O homem é o pastor do ser. O ser está mais afas­
tado que todo o ente e, todavia, está mais perto do homem
que todo o ente, [...]. O ser é o mais próximo. Contudo, a
proximidade permanece para o homem o mais afastado. O ho­
mem atém-se sempre, antes do mais, ainda e só ao ente.
Quando, porém, o pensar representa o ente como ente, liga-se,
com efeito, ao ser.»,
«Der Mensch ist der Hirt des Seins. [...]. Das Sein ist weiter
denn alies Seiende und ist gleichwohl dem Menschen náher ais jedes
Seiende [...]. Das Sein ist das Nãchste. Doch die Nâhe bleibt dem
Menschen am weitesten. Der Mensch hàlt sich zunáchst immer schon
und nur an das Seiende. Wenn aber das Denken das Seiende vorstellt,
bezieht es sich zwar auf das Sein.», M. Heidegger, Brief uber den
«Humanismus»; Wm, p. 162.
M «[...] Pactivité animale révèle ses limites: elle se perd dans
les transformations réelles qu’elle opère et ne peut les réitérer. Au
contraire, pour Phomme, la branche d’arbre devenue bâton restera
justement une branche-d'arbre-devenue-bâton, une même "chose"
dans deux fonction différentes, visible “pour lui" sous une pluralité
d’aspects.», Merleau-Ponty, SC, p. 190.
w «Le sens du travail humain est donc la reconnaissance, au
delà du milieu actuel, d’un monde de choses visible pour chaque Je
sous une pluralité d*aspects, la prise de possession d’un espace et d'un
temps indéfinis, et Pon montrerait aisément que la signification de la
parole ou celle du suicide et de Pacte révolutionnaire est la même.
Ces actes de la dialectique humaine révèlent tous la même essence:
la capacité de s*orienter par rapport au possible, au médiat, et non
par rapport à un milieu limité [...]», Merleau-Ponty, SC, p. 190.
•• «Vivre, pour un homme, n’est pas seulement imposer perpé-
tuellement des significations, mais continuer un tourbillon d*expé-
rience qui s’est formé, avec notre naissance, au point de contact du
“dehors” et de celui qui est appelé à le vivre.», Merleau-Ponty, «Le
problème de la passivité: le sommeil, Pinconscient, la mémoire», RC,
p. 67.
m «une action qui soit un dévoilement, un dévoilement qui soit
une action, bref une dialectique», Merleau-Ponty, AD, p. 208.
** Cf. Merleau-Ponty, AD, pp. 224-225.
De entre a bibliografia existente sobre a temática das relações
Sartre/Merleau-Ponty podem ver-se: Albert Rabil Jr., Merleau-Ponty.
Existencialist of the social world, New York-London, Columbia Uni-
versity Press, 1967, pp. 116-140 e, sobretudo, Eduardo Bello, De Sartre
a Merleau-Ponty. Dialéctica de la libertad y el sentido, Murcia, Publi-
caciones de la Universidade de Murcia, 1979.
** Vejam-se, por exemplo: Roger Garaudy, Georges Cogniot et
al., Mésaventures de Vantimarxisme, Paris. Editions Sociales, 1956;
DA REPRESENTAÇÃO À «PRAXIS» 161

Raymond A ron, «Aventures et mésaventures de la dialectique»,


Marxismes imaginaires. D ’une sainte famille à 1’autre, Paris, Galli-
mard, 1970, pp. 63-116; M. A. Bum ier, Les existentialistes et la
politique, Paris, Gallixnard, 1966; Simone Goyard-Fabre, «Merleau-
-Ponty et la politique», R evue de Métaphysique et de M o rd e, Paris,
85 (1980), pp. 240-262.
74 « [...] 1'intuition si neuve de la praxis rem ettait en cause les
catégories philosophiques u s u e l l e s C e sens immanent des événe-
ments inter-humains [...]», Merleau-Ponty, EP, p. 62.
De entre a bibliografia mais recente sobre as relações de Merleau-
-Ponty e do marxismo: John L. Borg, «Le marxisme dans la philo-
sophie socio-politique de Merleau-Ponty», R evue philosophique de
Louvam , Louvain, 73 (1975), pp. 481-510; John CVNeill, «Merleau-
-Pontys K ritik am marxistischen Szientismus», Phànomenologie und
Marxismus, ed. B. Waldenfels, J. Broekman e A. Paianin, Frankfurt
am Main, Suhrkamp, 1977, vol. 2, pp. 200-234; E. Bello, «EI m ar­
xismo heurístico de Merleau-Ponty», Pensamiento, Madrid, 33 (1977),
pp. 269-296; G. L. Brena, A lia ricerca del marxismo: M. Merleau-
-Ponty, Bari, Dédalo, 1977; Barry Cooper, Merleau-Ponty and Mar-
xism. From Terror to R eform , Toronto, Toronto University Press,
1979.
71 «O Cogito deve descobrir-me em situação, e é apenas nesta
condição que a subjectividade transcendental poderá, como
Husserl diz, ser uma intersubjectividade.»,
«Le Cogito doit me découvrir en situation, et c’est à cette con-
dition seulement que la subjectivité transcendentale pourra, comme
le dit Husserl, être une intersubjectivité.», Merleau-Ponty, PhP, p. vn.
79 «O mundo percebido não é apenas o meu mundo, é nele
que eu vejo desenharem-se as condutas de outrem, também
elas o visam e ele é o correlativo, não apenas da minha cons­
ciência, mas ainda de toda a consciência que eu possa encon-
trar.»,
«Le monde perçu n ’est pas seulement mon monde, c*est en lui
que je vois se dessiner les conduites d’autrui, elles le visent elles aussi
et il est le corrélatif, non seulement de ma conscience, mais encore
de toute conscience que je puisse rencontrer.», Merleau-Ponty, PhP,
p. 390.
73 «S’il y a quiétisme hégélien, il y a nécessairement un inquié-
tude marxiste. Si Hegel peut s’en rem ettre aveuglément au cours des
choses, parce qu’il reste chez lui un fond de théologie, la praxis
marxiste n’a pas la même ressource, elle n’a pas d’autre support que
la coexistence des hommes.», Merleau-Ponty, «La querelle de 1’exis-
tentialisme», Sens et Non-Sens (doravante: SNS), Paris, Nagel, 19668,
p. 142.
74 «une activité immanente à 1’objet de Phistoire», Merleau-
-Ponty, AD, p. 194.
79 « [...] la praxis n'est pas assujettie au postulat de la conscience
théorique, à la rivalité des consciences. Pour une philosophie de la
162 JOSÉ BARATA-MOURA

praxis, la connaissance elle-même n’est pas la possession intellectuelle


d’une signification, d*un objet mental, et les prolétaires peuvent porter
le sens de l’histoire sans que ce soit dans la forme d’un “je pense**.
Cette philosophie prend pour thème, non pas des consciences enfer-
mées dans leur immanence natale, mais des hommes qui s*expliquent
l*un avec 1’autre [...]», Merleau-Ponty, AD, p. 77.
74 «Par cette confrontation, la théorie s’atteste comme expression
rigoureuse de ce qui est vécu [...]», Merleau-Ponty, AD, p. 77.
77 Cf. Merleau-Ponty, AD, p. 77.
n Por aqui podemos desde já avaliar das ponderáveis limitações
— quer no que toca a Marx quer no que toca a Merleau-Ponty —
de intentos, como os de Jiirgen Habermas, por exemplo, de entender
a Marx-Rezeption por Merleau-Ponty nestes termos:
«Restabelecimento do marxismo como uma filosofia da
história numa perspectiva prática.»,
«Wiederherstellung des Marxismus ais einer Geschichtsphilosophie
in praktischer Absicht», J. Habermas, «Literaturbericht»; TP, p. 425.
Sem dúvida que não faltarão autores para quem, no quadro de
uma «estranha» marxologia — estranha, designadamente, ao pensa­
mento de M arx—, são, pelo contrário e precisamente, concepções
como as de Merleau-Ponty ou de Habermas que verdadeiramente
restauram o marxismo «autêntico».
Para John 0*Neill, por exemplo, é mesmo aí que reside todo o
interesse da vinculação constitutiva da «práxis» à esfera da comu­
nicação.
«Na verdade, a práxis não está subdividida em teoria
e agir prático, mas reside no terreno muito mais interessante
da comunicação e da expressão. Aqui, a argumentação de
Merleau-Ponty antecipa já a ulterior correcção por Haber­
mas da confusão de Marx entre os domínios emancipadores
do trabalho e da interacção simbólica.»,
«In Wahrheit ist Praxis nicht unterteilt in Theorie und praktisches
Handeln, sondern sie liegt in dem viel weiter gespannten Gebiet
der Kommunikation und des Ausdrucks. Hier antizipiert Merleau-
-Pontys Argumentation schon die spatere Habermassche Korrektur
der Marxschen Vermengung der emanzipatorischen Bereiche von
Arbeit und symbolischer Interaktion.», J. 0*Neill, «Merleau-Pontys
Kritik am marxistischen Szientismus», Phanomenologie und Marxis­
mus, ed. cit., vol. 2, p. 224.
Claro que, por nossa parte, poderíamos sempre perguntar se o
modelo mais ajustado para pensar as relações da prática e da teoria
foi alguma vez o da «subdivisão», o de uma Unterteilung; è se, muito
pelo contrário, não será o da unidade dialéctica, no horizonte de uma
consideração da unidade material do real — modelo que 0*Neill
manifestamente não aceita— o mais apropriado.
Igualmente poderíamos perguntar, face à insistência/persistência
de determinadas «correcções» restauracionistas e de certas repetidas
denúncias de «confusões» e «misturas», quem é que efectivamente
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 163

confunde, e o quê; designadamente, quem é que confunde o carácter


material (prático) da emancipação com uma sua eventual «realização»
ou processamento meramente «simbólicos»...
78 «Cette difficile notion, justement parce qu’elle était neuve, a
été mal comprise. C e st elle pourtant qui fait du marxisme une autre
philosophie, et non pas seulement une transposition matérialiste de
Hegel.», Merleau-Ponty, AD, p. 74.
*# Efectivamente, na interpretação de Lukács, também a cate­
goria de práxis recebe um lugar de grande relevo no pensamento
de Marx, juntam ente com a categoria de totalidade.
«A solução que Marx, nas suas teses de Feuerbach, dá
é a mudança da filosofia para o prático.»,
«Die Losung, die M arx in seinen Feuerbachthesen angibt, ist die
Verwandlung der Philosophie ins Praktische.», Lukács, «Die Verding-
lichung und das Bewusstsein des Proletariats», GK; W, vol. 2, p. 391.
No entanto, a dimensão da transformação do real encontra-se,
para Lukács, intimamente associada a toda esta problemática e cons­
titui até um dos supostos para a sua (muito discutível) concepção da
natureza essencialmente social do próprio real.
«O agir, a práxis — cuja exigência M arx colocou à
cabeça das suas teses sobre F euerbach— é, na sua essência,
um penetrar, um m udar da realidade. A realidade, porém, só
pode ser apreendida e penetrada como totalidade, e só é capaz
desta penetração um sujeito que seja ele próprio totalidade.»,
«Das Handeln, die Práxis — deren Forderung M arx seinen Thesen
iiber Feuerbach an die Spitze gestellt h a t— ist ihrem Wesen nach
ein Durchdringen, ein Verwandeln der Wirklichkeit. Die Wirklichkeit
kann aber nur ais Totalitat erfasst und durchdrungen werden, und
zu dieser Durchdringung ist nur ein Subjekt, das selbst Totalitat ist,
fáhig.», Lukács, «Rosa Luxemburg ais Marxist», GK; W, vol. 2,
pp. 211-212.
81 «Alies gesellschaftliche Leben ist wesentlich praktische, Marx,
Thesen iiber Feuerbach, 8; MEW, vol. 3, p. 7.
«Die Arbeit ist zunãchst ein Prozess zwischen Mensch und
N atur, ein Prozess, worin der Mensch seinen Stoffwechsel mit der
N atur durch seine eigne T at vermittelt, regelt und kontrolliert. Er
tritt dem N aturstoff selbst ais eine N aturm acht gegeniiber. Die seiner
Leiblichkeit angehorigen N aturkráfte, Arme und Beine, Kopf und
Hand, setze er in Bewegung, um sich den N aturstoff in einer fiir
sein eignes Leben brauchbaren Form anzueignen. Indem er durch
diese Bewegung auf die N atur ausser ihm wirkt und sie veràndert,
verandert er zugleich seine eigne Natur.», Marx, Das Kapital. Kritik
der politischen Oekonomie, 1 . B., 5.K.; MEW, vol. 23, p. 192.
“ «A questão de [saber] se ao pensar humano cabe [uma]
verdade objectiva — não é nenhuma questão da teoria, mas
um a questão prática.»,
164 JQSÉ BARATA-MOURA

«Die Frage, ob dem menschlichen Denken gegenstandliche


Wahrheit zukomme — ist keine Frage der Theorie, sondern eine
praktische Frage.», Marx, Thesen uber Feuerbach, 2; MEW, vol. 3,
p. 5.
Já em 1844 Marx chamara a atenção para o facto de que «a
solução dos enigmas teóricos é uma tarefa da prática e é pratica-
mente mediada, [bem como de que] a prática verdadeira é a con­
dição de uma teoria real e positiva» («die Lôsung der theoretischen
Rátsel eine Aufgabe der Praxis und praktisch vermittelt ist, wie die
wahre Praxis die Bedingung einer wirklichen und positiven Theorie
ist», Marx, Oekonomisch-philosophische Manuskripte aus dem Jahre
1844 [doravante: OphM]; MEW, EB, 1. T., p. 552.
M «Das Entscheidende zur Widerlegung dieser Ansicht ist be-
reits von Hogel gesagt, soweit dies vom ideal istischen Standpunkt
mõglich war; was Feuerbach Materialistisches hinzugefiigt, ist mehr
geistreich ais tief. Die schlagendste Widerlegung dieser wie aller andern
philosophischen Schrullen ist die Praxis, nàmlich das Experiment und
die Industrie. Wenn wir die Richtigkeit unserer Auffassung eines
Naturvorgangs beweisen kõnnen, indem wir ihn selbst machen, ihn
aus seinen Bedingungen erzeugen, ihn obendrein unsem Zwecken
dienstbar werden lassen, so ist es mit dem Kantschen unfassbaren
“Ding an sich" zu Ende.», F. Engels, Ludwig Feuerbach und der
Ausgang der klassischen deutschen Philosophie, II; MEW, vol. 21,
p. 276.
Seria, aliás, interessante recordar — pelo menos, a alguns marxó-
logos, porventura, menos atentos aos próprios textos de Marx (e, no
fundo, ao seu pensamento)— que a aproximação entre «indústria»
e «prática» de modo algum é invenção ou distorção «mecanicista/posi-
tivista», mais ou menos grosseira, do «pouco subtil» Engels.
É o tão celebrado Marx dos Manuscritos de 1844 que, com efeito,
escreve:
«A indústria é a relação histórica real da Natureza e,
portanto, da ciência natural ao homem»,
«Die Industrie ist das wirkliche geschichtliche Verháltnis der
Natur und daher der Naturwissenschaft zum Menschen», Marx,
OphM; MEW, EB, 1. T., p. 543.
t5 Cf. Lukács, «Die Verdinglichung und das Bewusstsein des Pro-
letariats», GK, p. 311.
M «Si la praxis n’était rien de plus, on ne voit pas comment
Marx pourrait la mettre en concurrence avec la contemplation comme
mode fondamental de notre relation avec le monde: Pexpérience et
Pindustrie mises à la place de la pensée théorique, ce serait un prag-
matisme ou un sensualisme, en d’autres termes, le tout de.la theoria
réduit à une de ses parties, car 1 ’expérience est une modálité de la
connaissance, et Pindustrie repose, elle aussi, sur une connaissance
théorique de la nature.», Merleau-Ponty, AD, p. 74.
17 «[...] c’est 1 ’intersubjectivité humaine concrète, la commu-
nauté successive et simultanée des existences en train de se réaliser
dans un type de propriété qu’elles subissent et qu*elles transforment,
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS* 165
chacune créée par autrui et le créant. [...] dans le marxisme la “ma-
nère”, comme d’ailleurs la “conscience”, n*est jamais considérée à
part, elle est insérée dans le système de la coexistence humaine, elle
y fonde une situation commune des individus contemporains et suces-
sifs, elle assure la généralité de leurs projects et rend possible une ligne
de développement et un sens de Fhistoire, mais si cette logique de la
situation est mise en train, développée et accomplie, c’est par la
productivité humaine sans laquelle le jeu des conditions naturelles
données ne ferait paraitre ni une économie ni, à plus forte raison,
une histoire de Féconomie.», Merleau-Ponty, «Marxisme et philoso-
phie», SNS, pp. 228-229.
“ « [...] M arx ne peut donc, comme Font cru ses successeurs et
comme il l’a peut-être cru lui-même transform er la dialectique de la
conscience en dialectique de la matière ou des choses: quand un
homme dit qu’il y a une dialectique dans les choses, ce ne peut être
que dans les choses en tant qu’il les pense et cette objectivité est fina-
lement le comble de subjectivisme, comme Fexemple de Hegel Favait
montré. M arx ne déplace donc pas la dialectique vers les choses, il la
déplace vers les hommes, pris, bien entendu, avec tout leur appareil-
lage humain et en tant qu’ils sont engagés par le travail et la culture
dans une entreprise qui transforme la nature et les rapports sociaux.»,
Merleau-Ponty, AD, pp. 60-61.
“ «La critique du sujet pensant en général, le recours au prolé-
tariat comme à celui qui ne pense pas seulement la révolution, mais
qui est la révolution en acte, Fidée que la révolution n’est pas seu­
lement affaire de pensée et de volonté, mais affaire d’existences, que
la raison “universelle” est une raison de classe et qu*inversement la
praxis prolétarienne porte en elle Funiversalité effective, en un mot
la moindre trace de marxisme révèle (au sens que Fon donne au mot
en chimie) la force créatrice de 1’homme dans Fhistoire [...]», Merleau-
-Ponty, Humanisme et terreur. Essai sur le problème communiste
(doravante: HT), Paris, Gallimard, 1947, p. 6 8 .
90 «II n ’y a dialectique que dans ce type d’être ou se fait la
jonction des sujets et qui n’est pas seulement un spectacle que chacun
d*eux se donne pour son compte, mais leur commune résidence, le
lieu de leur échange et de leur réciproque insertion. [...]. Elle se
pense toujours comme expression ou vérité d*une expérience oú le
commerce des sujets entre eux et avec Fêtre était préalablement
institué. C’est une pensée qui ne constitue pas le tout, mais qui y est
située.», Merleau-Ponty, AD, p. 298.
91 « [...] la dialectique et la pensée de l*Être-vu, d’un Être qui
n ’est pas positivité simple, En Soi, et pas 1'Être-posé d’une pensée, mais
manifestation de Soi, dévoilement, en train de se faire...», Merleau-
-Ponty, VI, p. 125.
” «Marx a souvent appelé son matérialisme un “matérialisme
pratique”. II voulait dire que la matière intervient dans la vie humaine
comme point d’appui et corps de la praxis. II n'est pas question d ’une
matière nue, extérieure à 1 'homme, et par laquelle le comportement
de Fhomme s’expliquerait.», Merleau-Ponty, «Marxisme et philoso-
phie», SNS, p. 231.
166 JOSÉ BARATA-MOURA

•* «[...] fur den praktischen Materialisten, d. h. Kommunisten,


darum handelt, die bestehende Welt zu revolutionieren, die Vorge-
fundnen Dinge praktisch anzugreifen und zu verândern.», K. Marx-
-F. Engels, Die deutsche ldeologie; MEW, vol. 3, p. 42.
M «Mundo objectivo é, antes do maist mundo para todos, o
mundo que “toda a gente" tem como horizonte mundano.»,
«Objektive Welt ist von vomherein Welt fiir alie, die Welt, die
“jedermann” ais Welthorizont hat.», Husserl, «Die Frage nach dem
Ursprung der Geometrie ais intentionalhistorisches Problem» (dora­
vante: «Ursprung der Geometrie»); Krisis, p. 370.
Tenha-se em conta que Merleau-Ponty trabalhou este texto num
dos seus cursos no Collège de France de 1959-1960: Cf. RC, pp. 159
e segs.
" «[...] une “matière humaine", c’est-à-dire prise dans le mou-
vement de la praxis.», Merleau-Ponty, EP, p. 63.
w «On comprend donc qu*il ait été réservé à Marx d’introduire
la notion de Vobject humain que la phénoménologie a reprise et déve-
loppée. [...]. Marx, en parlant d*objets humains, veut dire que cette
signification est adhérente à 1'objet tel qu*il se présente dans notre
expérience.», Merleau-Ponty, «Marxisme et philosophie», SNS, pp.
231-232.
91 Cf. H. Marcuse, «Beitrãge zu einer Phãnomenologie des His-
torischen Materialismus», Philosophische Hefte, Berlin, 1 (1928),
pp. 45-68.
Para uma interpretação relativamente recente do método de Marx
como fenomenologia dialéctica: Roslyn W. Bologh, Dialectical Pheno-
menologyr Marx's Method, London-Boston, Routledge & Kegan
Paul, 1979.
Neste particular tem por certo razão Alfred Schmidt, sobretudo
na primeira das duas observações que faz relativamente à conexão do
pensamento de Marcuse com o dos existencialistas franceses:
«Tal como Sartre e Merleau-Ponty, também ele [Mar­
cuse] progride de Husserl e Heidegger para a história mate­
rial, pelo que ele, por um lado — o que raramente é consi­
derado —, muito tempo antes dos autores franceses tenta ligar
o pensamento fenomenológico e o marxista, [e], por outro
lado, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, toma dos
existencialistas franceses certos correctivos de um materia­
lismo da história evolucionistamente desfigurado.»,
«Wie Sartre und Merleau-Ponty dringt auch er von Husserl und
Heidegger zu materialer Geschichte vor wobei er einerseits, was selten
beachtet wird, lange vor den franzõsischen Autoren phànomenologi-
sches und marxistisches Denken zu verbinden sucht, andererseits, vor
aliem nach dem Zweiten Weltkrieg, den franzõsischen Existentialisten
gewisse Korrektive eines evolutionistisch entstellten Geschichtsmate-
rialismus entnimmt.», A. Schmidt, «Existential-Ontologie und histo-
rischer Materialismus bei Herbert Marcuse», Antworten auf Herbert
Marcuse, ed. J. Habermas, Frankfurt am Maín, Suhrkamp, 19683,
p. 18.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXISt 167

H á também quem pretenda associar o jovem Lukács a um pri­


meiro intento de ligação da fenomenologia e do marxismo, no quadro,
designadamente, de um debate da temática da Wesensschau. Cf. Win-
fried Dallmayr, «Phánomenologie und Marxismus in geschichtlicher
Perspektive», Phánomenologie und Marxismus, ed. cit., vol. 1, pp. 13-44.
" Cf. T ran Duc Thao, Phénoménologie et matérialisme diaJecti-
que, Paris, Editions Minh-Tân, 1951.
•• Cf. Michel Henry, Marx. í: une philosophie de la realité. II: une
philosophie de Véconomie, Paris, Gallimard, 1976, 2 vols.
10* Cf. Enzo Paci, Funzione delle Scienze e Significato delV Uomo,
Milano, II Saggiatore, 1963.
101 «A fenomenologia de Husserl, e o seu “idealismo”, abriga,
portanto, o naturalismo ou, como o próprio Husserl diz:
[abriga] “o realismo natural totalm ente em si”, do mesmo
modo que o materialismo de M arx abriga em si o idealismo.»,
«Die Husserlsche Phánomenologie und ihr “Idealismus” birgt also
den Naturalismus oder, wie Husserl selbst sagt, “den natúrlichen Rea-
lismus ganz in sich” — ãhnlich wie der Marxsche Materialismus den
Idealismus in sich birgt.», Ante Pazanin, «Ueberwindung des Gegen-
satzes von Idealismus und Materialismus bei Husserl und Marx»,
Phánomenologie und Marxismus, ed. cit., vol. 1 , p. 124.
«Der Mensch verliet sich nur dann nicht in seinem Gegen-
stand, wenn dieser ihm ais menschlicher Gegenstand oder gegenstan-
dlicher Mensch wird. Dies ist nur moglich, indem er ihm ais gesell-
schaftlicher Gegenstand und er selbst sich ais gesellschatliches We-
sen, wie die Gesellschaft ais Wesen fiir ihn in diesem Gegenstand
wird.», Marx, OphM; MEW, EB, 1. T., p. 541.
1,3 «A propriedade privada tomou-nos tão estúpidos e uni­
laterais que um objecto só é nosso quando o temos, portanto,
quando existe para nós como capital ou é por nós imediata­
mente possuído, comido, bebido, usado sobre o nosso corpo,
habitado por nós, etc., em suma, utilizado.»,
«Das Privateigentum hat uns so dumm und einseitig gemacht,
dass ein Gegenstand erst der unsrige ist, wenn wir ihn haben, also
ais Kapital fiir uns existiert oder von uns unm ittelbar besessen, geges-
sen, getrunken, an unsrem Leib getragen, von uns bewohnt, etc.,
kurz, gebraucht wird.», M arx, OphM; MEW, EB, 1. T., p. 540.
w «Portanto, o homem só se confirma realmente como um
ser genérico, precisamente, na elaboração do mundo objectivo.
Esta produção é sua activa [operosa, werktàtiges] vida gené­
rica. Através dela a Natureza aparece como obra sua e reali­
dade sua. O objecto do trabalho é, portanto, a objectivação
da vida genérica do hom em : uma vez que ele não se duplica
apenas intelectualmente como na consciência, mas se [duplica]
activamente, realmente, e se institui a si próprio, portanto,
num mundo por ele criado.»,
168 JQSÉ BARATA-MOURA

«Eben in der Bearbeitung der gegenstãndlichen Welt bewáhrt sich


der Mensch daher erst wirklich ais ein Gattungswesen. Diese Pro-
duktion ist sein werktãtiges Gattungsleben. Durch sie erscheint die
Natur ais sein Werk und seine Wirklichkeit. Der Gegenstand der
Arbeit ist daher die Vergegenstãndlichung des Gattungslebens des
Menschen: indem er sich nicht nur wie im Bewusstsein intellektuell,
sondern werktàtig, wirklich verdoppelt und sich selbst daher in einer
von ihm geschaffnen Welt anschaut.», Marx, OphM; MEW, EB, 1 . T.,
p. 517.
109 «Das praktische Erzeugen einer gegenstãndlichen Welt, die
Bearbeitung der unorganischen Natur ist die Bewáhrung des Menschen
ais eines bewussten Gattungswesens, d. h. eines Wesens, das sich zu
der Gattung ais seinen eignen Wesen oder zu sich ais Gattungswesen
verhàlt.», Marx, OphM; MEW, EB, 1. T., pp. 516-517.
106 «Diese Verwirklichung der Arbeit erscheint in dem national-
õkonomischen Zustand ais Entwirklichung des Arbeiters, die Verge-
genstàndlichung ais Verlust und Knechtschaft des Gegenstandes, die
Aneignung ais Entfremdung, ais Entàusserung. Die Verwirklichung
der Arbeit erscheint so sehr ais Entwirklichung, dass der Arbeiter bis
zum Hungertod entwirklicht wird.», Marx, OphM; MEW, EB, 1, T.,
p. 512.
197 «Der Arbeiter kann nichts schaffen ohne die Natur ohne die
sinnliche Aussenwelt. Sie ist der Stoff, an welchem sich seine Arbeit
verwirklicht, in welchem sie tatig ist, aus welchem und mittelst wel­
chem sie produziert.», Marx, OphM; MEW, EB, 1. T., p. 512.
194 «Die Materie selbst hat der Mensch nicht geschaffen. Er
schafft sogar jede produktive Fáhigkeit der Materie nur unter der
Voraussetzung der Materie.», Marx-Engels, Die heilige Familie; MEW,
vol. 2, p. 49.
109 «Na sua produção, o homem sô pode proceder como a pró­
pria Natureza, isto é, só [pode] alterar as formas das matérias.
Mais ainda. Neste trabalho da própria formação [en-forma-
ção, Formung] ele é constantemente apoiado por forças da
Natureza. O trabalho não é, portanto, a única fonte dos
valores de uso por ele produzidos, [a única fonte] da riqueza
material. O trabalho é o pai dela, como diz William Petty,
e a terra a sua mãe.»,
«Der Mensch kann in seiner Produktion nur verfahren, wie die
Natur selbst, d. h. nur die Formen der Stoffe andem. Noch mehr.
In dieser Arbeit der Formung selbst wird er bestándig unterstiitzt von
Naturkráften. Arbeit ist also nicht die einzige Quelle der von ihr pro-
duzierten Gebrauchswerte, das stofflichen Reichtums. Die Arbeit ist
sein Vater, wie William Petty sagt, und die Erde seine Mutter.», Marx,
Das Kapital, 1. 3., 1. K.; MEW, vol. 23, pp. 57-58.
110 «II faut décrire le visible comme quelque chose qui se réalise
à travers 1’homme, mais qui n’est nullement anthropologie (donc con-
tre Feuerbach-Marx, 1844)
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 169
la N ature comme Pautre côté de 1'homme (comme chair — nulle-
ment comme “m atière”)
le Logos aussi comme se réalisant dans Phomme. mais nullement
comme sa propriété.
Matière-ouvrée-hommes = chiasme», Merleau-Ponty, VI, p. 328.
U1 Sobre o materialismo de Feuerbach, veja-se, por exemplo,
J. Barata-M oura, «O “materialismo intuitivo” de Feuerbach», Revista
da Faculdade de Letras, Lisboa, IV /n. 3 (1979-1980), pp. 445-498.
m [...] a carne de que falamos não é a matéria. É o enrola­
mento do visível sobre o corpo do vidente, do tangível sobre
o corpo tocante [...]» ,
« [...] la chair dont nous parlons n ’est pas la matière. Elle est
1 ’enroulement du visible sur le corps du voyant, du tangible sur le
corps touchant [...]» , Merleau-Ponty, VI, p. 191.
u> «Aquilo a que chamamos carne, esta massa interiormente
trabalhada, não tem nome em nenhuma filosofia. Meio for­
mador do objecto e do sujeito [...]»,
«Ce que nous appelons chair, cette masse intérieurement travail-
lée, n ’a de nom dans aucune philosophie. Milieu form ateur de 1 ’objet
et du sujet [...]» , Merleau-Ponty, VI, p. 193.
114 « [...] ce que nous cherchons, c’est une définition dialectique
de 1 'être, qui ne peut être ni 1 ’être pour soi, ni 1’être en soi, — défi-
nitions rapides, fragiles, labiles, et qui, comme Hegel Pa bien dit, nous
reconduisent Pune à Pautre, — ni 1’En-soi-pour-soi qui met le comble
à Pambivalence, [une définition] qui doit retrouver 1’être avant le
clivage réflexif, autour de lui, à son horizon, non pas hors de nous
et non pas en nous, mais là ou les deux mouvements se croisent, là
oú “il y a ” quelque chose.», Merleau-Ponty, VI, p. 130.
1M «O corpo une-nos directamente às coisas pela sua própria
ontogénese, soldando um ao outro os dois esboços de que ele
é feito, os seus dois lábios: a massa sensível que ele é e a
massa do sensível onde ele nasce por segregação, e à qual,
como vidente, ele permanece aberto. É ele, e só ele, porque
é um ser a duas dimensões, que pode levar-nos às coisas
mesmas, que não são elas próprias seres planos, mas seres em
profundidade, inacessíveis a um sujeito de sobrevoo, abertas
apenas àquele, se é possível, que coexiste com elas no mesmo
mundo.»,
«Le corps nous unit directement aux choses par sa propre onto-
génèse, en soudant Pune à 1’autre les deux ébauches dont il est fait,
ses deux lèvres: la masse sensible qu’il est et la masse du sensible ou
il nait j>ar ségrégation, et à laquelle, comme voyant, il reste ouvert.
C’est lui, et lui seul, parce qu’il est un être à deux dimensions, qui
peut nous mener aux choses mêmes, qui ne sont pas elles-mêmes des
êtres plats, mais des êtres en profondeur, inaccessibles à un sujet de
survol, ouvertes à celui-là seul, s’il est possible, qui coexiste avec
elles dans le même monde.», Merleau-Ponty, VI, p. 179.
170 JOSÉ BARATA-MOURA

u‘ «Ce que Marx appelle praxis, c’est ce sens qui se dessine


spontanément dans 1’entrecroisement des actions par lesquelles l’hom-
me organise ses rapports avec la nature et avec les autres.», Mer­
leau-Ponty, EP, p. 59.
117 «Ce croisement de Tévénement et du sens est pour Lukács
1 ’essentiel du marxisme comme philosophie dialectique.», Merleau-
-Ponty AD, p. 82.
m Cf. Merleau-Ponty, EP, p. 62.
110 «La rationalité passe du concept au coeur de la praxis inter-
humaine [...]. [...] Tévénement prend la valeur d’une genèse de la
raison.», Merleau-Ponty, EP, p. 60.
no Para Nicolau de Cusa, efectivamente, a «complicatio» remete
para a consideração da unidade suprema do todo como horizonte de
inerência de todas as coisas, enquanto a «explicado» se refere ao
como desdobramento do múltiplo a partir da sua unidade originária
e fundamental.
«Todas as coisas, com efeito, qualquer que seja o modo
como são ou possam ser, estão complicadas no próprio prin­
cípio e quaisquer coisas que tenham sido criadas ou venham
a ser criadas são explicadas a partir do próprio [princípio]
em que complicadamente estão.»,
«Omnia enim quae quocumque modo sunt aut esse possunt, in
ipso principio complicantur, et quaecumque creata sunt aut creabun-
tur, explicantur ab ipso in quo complicite sunt.», Nicolau de Cusa,
De Possest, 171 r [Codex Cusanus].
Daqui resulta uma peculiar unidade do real. Tudo está no uno
(deus) e o uno está em tudo, segundo uma determinada modalidade
de continuar a pensar radicalmente o £y *at irâv.
«É necessário, pois, confessar [...] que Deus é compli­
cação e explicação de todas as coisas»,
«Necesse est igitur fateri [...] Deum omnium rerum complica-
tionem et explicationem», Nicolau de Cusa, De Docta Ignorantia, II, 3.
Nos seus traços gerais, a mesma matriz de solução ocorre tam­
bém em Giordano Bruno. No De la Causa, por exemplo, escreve:
«Toda a potência, portanto, e [todo o] acto, que no
princípio está como complicado, unido e uno, nas outras coi­
sas está explicado, disperso e multiplicado.»,
«Ogni potenza dunque ed atto, che nel principio è come compli-
cato, unito e uno, nelle altre cose è esplicato, disperso e moltiplicato.»,
G. Bruno, De la Causa, Principio e Uno, III; Dialoghi italiani, ed. G.
Aquilecchia, Firenze, Sansoni, 1958 s, pp. 281-282.
m «II y a de la rationalité, c*est-à-dire: les perspectives se recou-
pent, les perceptions se confirment, un sens apparait. Mais il ne doit
pas être posé à part, transforme en Esprit absolu ou en monde au
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 171

sens réaliste. Le monde phénoménologique, c’est, non pas de Fêtre


pur, mais le sens qui transparait à Fintersection de mes expériences et
à Fintersection de mes expériences et de celles d'autrui, par Fengre-
nage des unes sur les autres, il est donc inséparable de la subjectivité
et de Tintersubjectivité qui font leur unité par la reprise de mes expé­
riences passées dans mes expériences présentes, de Fexpérience d’autrui
dans la mienne.», Merleau-Ponty, PhP, p. xv.
m Cf. H eradito, frag. B 41; Die Fragmente der Vorsokratiker,
ed. H. Diels e W. Kranz, Berlin, Weidmannsche Verlagsbuchhandlung,
1956*, vol. i, p. 160.
133 Cf. Merleau-Ponty, AD, p. 30.
134 Colocando a tónica, precisamente, nesta aproximação de his­
tória e sentido, afirm a Husserl:
«De antemão, a história não é senão o movimento vivo
do um-com-o-outro e do um-no-outro da formação originária
do sentido e sedimentação [originária] do sentido.»,
«Geschichte ist von vom herein nichts anderes ais die lebendige
Bewegung des M iteinander und Ineinander von urspninglicher Sinnbil-
dung und Sinnsedimentierung.», Husserl, «Ursprung der Geometrie»,
KrisiSy p. 380.
139 «Fhistoire n ’est que Famplification de la pratique», Merleau-
-Ponty, «Matériaux pour une théorie de Fhistoire», RC, p. 50.
133 «L’histoire a du sens, mais elle n ’est pas un pur développe-
m ent de 1 ’idée: elle fait son sens au contact de la contingence, au
moment oii 1 ’initiative humaine fonde un système de vie en reprenant
des données dispersées.», Merleau-Ponty, AD, p. 28.
137 «H reposait sur cette profonde idée que les vues humaines,
toutes relatives qu*elles soient, sont Fabsolu même parce qu’il n ’y a
rien d’autre et aucun destin. Par notre praxis totale, sinon par notre
connaissance, nous touchons Fabsolu, ou plutôt la praxis interhumaine
est Fabsolu.», Merleau-Ponty, HT, p. 53.
m «Die W ahrheit, die herzustellen ist, ist námlich der philoso-
phierenden Vernunft nicht schon immanent; V em unft und W ahrheit
bedurfen vielmehr der Vermittlimg durch Praxis.», J. Habermas, «Lite-
raturbericht»; TP, p. 425.
m « [...] le phénomène de la vérité, théoriquement impossible,
ne se connait que par la praxis qui la fait. Dire qu’il y a une vérité,
c’est dire que, lorsque ma reprise rencontre le projet ancien ou étran-
ger et que 1’expression réussie délivre ce qui était captif dans Fêtre
depuis toujours, dans Fépaisseur du temps personnel et interperson-
nel s*établit une communication intérieure par laquelle notre présent
devient la vérité de tous les autres événements connaissants, [...].
A ce moment quelque chose a été fondée en signification, une expé-
rience a été transformée en son sens, est devenue vérité. La vérité
est un autre nom de la sedimentation, qui elle-même est la présence
de tous les présents dans le nótre. C’est dire que, même et surtout
172 JOSÉ BARATA-MOURA

pour le sujet philosophique ultime, il n’est pas d’objectivrte qui rende


compte de notre rapport surobjectif à tous les temps, pas de lumière
qui passe celle du présent vivant.», Merleau-Ponty, «Sur la phénomé-
nologie du langage», EP, pp. 108-109.
u® «La vérité ne se trouve pas dans certains sujets historiaues
existants, ni dans la prise de conscience théorique, mais dans leur
confrontation, dans leur pratique et dans leur vie com mune.», Mer­
leau-Ponty, «Matériaux pour une théorie de Phistoire», RC, p. 55.
131 «A transcendência, sob qualquer forma, é um carácter
de ser imanente, que se constitui dentro do ego. Todo o sentido
pensável, todo o ser pensável, chame-se-lhe imanente ou trans­
cendente, cai no domínio da subjectividade transcendental
como constituinte do sentido e do ser.»,
«Transzendenz in jeder Form ist ein immanenter, innerhalb des
ego sich konstituirender Seinscharakter. Jeder erdenkliche Sinn, jedes
erdenkliche Sein, ob es immanent oder transzendent heisst, fãllt in
den Bereich der transzendentalen Subjektivitat ais der Sinn und Sein
konstituirenden.», Husserl, Cartesianische Meditationen, § 41; Husser-
liana, ed. S. Strasser, Den Haag, M. Nijhoff, 1973’, vol. i, p. 117.
133 «[...] notre assurance d*être dans la vérité ne fait qu*un avec
celle d*être dans le monde. Nous parlons et comprenons la parole
longtemps avant d’apprendre par Descartes (ou de retrouver par nous-
-mêmes) que notre réalité est la pensée.», Merleau-Ponty, VI, p. 28.
133 «un processus de vérification indéfinie», Merleau-Ponty, AD,
p. 81.
134 «Está, portanto, excluído que a mediação tenha a sua
origem no termo positivo, como se fosse uma das suas pro­
priedades, — mas igualmente [está excluído] que ela lhe venha
de um abismo de negatividade exterior, que não teria poder
sobre ele e o deixaria intacto.»,
«II est donc exclu que la médiation ait son origine dans le terme
positif, comme si elle était une de ses propriétés, — mais aussi bien
qu*elle lui vienne d*un abisme de négativité extérieure, qui n’aurait pas
prise sur lui et le laisserait intact.», Merleau-Ponty, VI, p. 127.
1M «Em Sartre, há uma pluralidade de sujeitos, não há uma
intersubjectividade.»,
«II y a chez Sartre une pluralité de sujets, il n*y a pas d*inter-
subjectivité.», Merleau-Ponty, AD, p. 300.
138 «L*action qui changera le monde, ce n*est plus la praxis
philosophie et tecnique indivises, mouvement des infrastructiires, mais
aussi appel à toute la critique du sujet, c*est une action du type techni-
cien, comme celle de 1'ingénieur qui construit un pont.», Merleau-
-Ponty, AD, p. 96.
137 «Remplacer la praxis totale par une action technicienne»,
Merleau-Ponty, AD, p. 99.
DA REPRESENTAÇÃO A «PRAXIS» 173
“ • Parece ser essa, com efeito, a intenção — materialistamente
contestável — de sobre valorizar o carácter «revolucionante» da teoria:
«Deste modo, o pensar proletário é, primeiro, meramente
uma teoria da prática, para só gradualmente se transformar
(frequentemente, é certo, por meio de saltos) numa teoria
prática que revoluciona a realidade »,

«So ist das proletarische Denken vorerst bloss eine Theorie der
Praxis, um erst allmáhlich (freilich oft sprungweise) sich in eine die
Wirklichkeit umwalzende praktische Theorie zu verwandeln.», G.
Lukács, «Die Verdinglichung und das Bewusstsein des Proletariats»,
GK; W, vol. ii , p. 394.
13# «Le réalisme révolutionnaire ne vise jamais, comme Faction
technique, aux resultats extérieurs seulement, il ne veut qu’un résultat
qui puisse être compris, car, s’il ne Fétait pas, il n’y aurait pas révo-
lution. Chaque acte révolutionnaire est efficace non seulement par ce
qu’il fait, mais par ce qu’il donne à penser. L ’action est pédagogie des
masses, et c’est encore agir que d’expliquer aux masses ce que l’on
fait.», Merleau-Ponty, AD, p. 114.
144 nldeen kónnen nie iiber einen alten Weltzustand, sondem
immer nur iiber die Idee des alten Weltzustandes hinausfiihren. Ideen
kónnen iiberhaupt nichts ausfúhren. Zum Ausfiihren der Ideen bedarf
es der Menschen, welche eine praktische Gewalt aufbieten.», K. Marx-
-F. Engels, Die heilige Familie; MEW, vol. n, p. 126.
141 «L*idée d’une philosophie transcendentale, c*est-à-dire celle de
la conscience comme constituant 1 ’univers devant elle et saisissant les
objets mêmes dans une expérience externe indubitable, nous parait
une acquisition définitive comme première phase de la réflexion.»,
Merleau-Ponty, SC, p. 232.
143 «En fait et en droit, la loi est un instrument de connaissance
et la structure un objet de conscience. Elles n ’ont de sens que pour
penser le monde perçu.», Merleau-Ponty, SC, p. 157.
143 «Toute la connaissance, toute la pensée objective vivent de
ce fait inaugural que j’ai senti, que j ’ai eu [...] une existence singu-
lière qui arrêtait cFun coup mon regard, et pourtant lui promettait
une série d’expériences indéfinie [...]. L'intentionalité qui relie les
moments de mon exploration, les aspects de la chose, et les deux
séries Fune à Fautre, ce n'est pas Factivité de liaison du sujet spirituel,
ni les purés connexions de Fob-jet, c’est la transition que j’effectue
comme sujet charnel d’une phase du mouvement à Fautre, toujours
possible pour moi par príncipe parce que je suis cet animal de percep-
tions et de mouvements qui s*appelle un corps.», Merleau-Ponty, «Le
philosophe et son ombre», EP, pp. 258-259.
Num outro ensaio também dirá:

«A subjectividade é um desses pensamentos aquém dos


quais não se volta, mesmo, e sobretudo, se os ultrapassamos.»,
174 JOSÉ BARATA-MOURA

«La subjectivité est une de ces pensées en deçà desquelles on ne


revient pas, même et surtout si on les dépasse.», Merleau-Ponty, «Par-
tout et nulle part», EP, p. 231.
Aliás, toda esta ideia de uma originariedade da subjectividade per­
passa a obra de Merleau-Ponty. No prefácio de Phénoménologie de
la percepíion, escreve:
«Eu sou, não um “ser vivo” ou mesmo um “homem” ou
mesmo “uma consciência”, com todos çs caracteres que a zoo­
logia, a anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem
a esses produtos da natureza ou da história — eu sou a fonte
absoluta, a minha existência não vem dos meus antecedentes,
do meu ambiente físico e social, ela vai para eles e susten­
ta-os, pois sou eu que faço ser para mim (e, portanto, ser no
único sentido que a palavra pode ter para mim) essa tradição
que eu escolho retomar ou esse horizonte cuja distância de
mim se desmoronaria, pois não lhe pertence como uma pro­
priedade, se eu não estivesse cá para a percorrer com o
olhar.»,
«Je suis non pas un “être vivant” ou même un “homme” ou
même “une conscience”, avec tous les caractères que la zoologie, l’ana-
tomie sociale ou la psychologie inductive reconnaissent à ces produits
de la nature ou de Phistoire, — je suis la source absolue, mon exis-
tence ne vient pas de mes antécédents, de mon entourage physique
et social, elle va vers eux et les soutient, car c’est moi qui fais être
pour moi (et donc être au seul sens que le mot puísse avoir pour
moi) cette tradition que je choisis de reprendre ou cet horizon dont
la distance à moi s*effondrerait, puisqu’elle ne lui appartient pas
comme une propriété, si je n’étais là pour la parcourir du regara.»,
Merleau-Ponty, PhP, p. m.
144 «Das Ich ist dennach fur sich selbst in Beziehung auf das
Nicht-Ich immer leidend, wird seiner Tãtigkeit sich gar nicht bewusst,
noch wird auf dieselbe reflektiert. Daher scheint die Realitãt des
Dinges gefúhlt zu werden, da doch nur das Ich gefiihlt wird.», Fichte
Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre; Werke, ed. I. H. Fichte
(doravante: W), Berlin, De Gruyter, n. ed., 1971, vol. i, p. 301.
145 «L’expérience de la passivité ne s'explique pas par une passi-
vité effective. Mais elle doit avoir un sens et pouvoir se comprendre.
Le réalisme est une erreur comme philosophie parce qu*il transpose
en thèse dogmatique une expérience qu*il déforme ou rend impossible
par là même.», Merleau-Ponty, SC, p. 233.
Fichte, por sua vez, também afirmava:
«No representar de um objecto ou de ti próprio, encon­
tras-te activo.»,
«Du fandest irn Vorstellen emes Objektes, oder deiner selbst,
dich tátig.», Fichte, Versuch einer neuen Darstellung der Wissenschafts­
lehre; W, vol. i, p. 531.
14a «Le perçu est saisi d’une manière indivisible comme “en soi”,
c’est-à-dire comme doué d'un intérieur que je n’aurai jamais fini
OA REPRESENTAÇÃO A iPRAXIS» 175

d'explorer, et comme “pour moi" c’est-à-dire comine donné en per-


sonne à travers ses aspects momentanés.», Merleau-Ponty, SC, p. 201.
MT «La chose et le monde n*existent que vécus par moi ou par
des sujets tels que moi, puisqu’ils sont Penchalnement de nos perspec-
tives, mais ils transcendent toutes les perspectives parce que cet
enchainement est temporel et inachevé. II me semble que le monde se
vit lui-même hors de moi, comme les paysages absents continuent de
se vivre au-delà de mon cham p visuel et comme mon passé s*est vécu
autrefois en deçà de mon présent.», Merleau-Ponty, PhP, pp. 384-385.
149 «Le réel est à décrire et non pas à 'construire ou à consti-
tuer.», Merleau-Ponty, PhP, p. iv.
149 «La perception n ’est pas une Science du monde, ce n ’est pas
même un acte, une prise de position délibérée, elle est le fond sur
lequel tous les actes se détachent et elle est présupposée par eux.
Le monde n*est pas un objet dont je possède par devers moi la loi
de constitution, il est le milieu naturel et le champ de toutes mes
pensées et de toutes mes perceptions explicites.», Merleau-Ponty,
PhP, p. v.
199 «Le monde phénoménologique n*est pas Pexplication d*un
être préalable, mais la fondation de 1 ’être, la philosophie n’est pas
le reflet d'une vérité préalable, mais comme l’art la réalisation d*une
vérité.», Merleau-Ponty, PhP, p. xv.
m «Je suis jeté dans une nature et la nature n*apparait pas seu-
lement hors de moi, dans les objets sans histoire, elle est visible au
centre de la subjectivité.», Merleau-Ponty, PhP, p. 398.
in «Le monde et le corps ontologiques que nous retrouvons au
coeur du sujet ne sont pas le monde en idée ou le corps en idée, c*est
le monde lui-même contracté dans une prise globale, c’est le corps
lui-même comme corps-connaissant.», Merleau-Ponty, PhP, p. 467.
1M «La philosophie est bien, est toujours, rupture avec 1’objec-
tivisme, retour des constructa au vécu, du monde à nous-mêmes. [...]
r Mintérieur” auquel elle nous ramène n*est pas une “vie privée”, mais
une intersubjectivité [...] le social n ’est pas seulement un objet, mais
d’abord ma situation [...]. [...] elle dispose d*une dimension propre,
qui est celle de la coexistence, non comme fait accompli et objet
de contemplation, mais comme événement perpétuel et milieu de la
praxis universelle.», Merleau-Ponty, «Le Philosophe et la sociologie.»,
EP, p. 143.
154 «La philosophie est 1’étude de la Vorhabe de l*Être, Vorhabe
qui n ’est pas connaissance, certes, qui est en défaut envers la connais-
sance, 1 ’opération, mais qui les enveloppe comme l*Être enveloppe
les êtres.», Merleau-Ponty, V, p. 257.
1M «Pordre du vécu ou du phénoménal qu*il s’agit justement
de justifier et de réhabiliter comme fondement de Pordre objectif.»,
Merleau-Ponty, VI, p. 263.
176 JOSÉ BARATA-MOURA

ls* «L*intériorité que cherche le philosophe c’est aussi bien l*inter-


subjectivité, la Urgemein Stiftung qui est très au-delà du “vécu” — la
Besinnung contre les Erlebnisse.», Merleau-Ponty, VI, p. 235.
157 «Parler de Paction, même avec rigueur et profondeur, c’est
déclarer qu*on ne veut pas agir», Merleau-Ponty, EP, pp. 68-69.
1M A centralidade do tema do «reconhecimento» na interpretação
que Kojève dá da Phànomenologie des Geistes de Hegel é conhecida.
Intercalando o seu comentário, escreve a dado passo:
«Seja como for, a realidade humana não pode engen­
drar-se e manter-se na existência senão como realidade “re­
conhecida”. Não é senão sendo “reconhecido” por outro,
pelos outros, e — no lim ite— por todos os outros, que um
ser humano é realmente humano: tanto para ele próprio como
para os outros. E não é senão falando de uma realidade
humana “reconhecida” que se pode, ao chamar-lhe humana,
enunciar uma verdade no sentido próprio e forte do termo.
Pois é apenas nesse caso que pelo discurso se pode revelar
uma realidade.»,
«Quoi qu’il en soit, la réalité humaine ne peut s’engendrer et se
maintenir dans Pexistence qu’en tant que réalité “reconnue”. Ce
n’est qu*en étant “reconnu” par un autre, par les autres, et — à la
limite— par tous les autres, qu’un être humain est réellement hu-
main: tant pour lui-même que pour les autres. Et ce n’est qu*en
parlant d’une réalité humaine “reconnue” qu*on peut, en Pappelant
humaine, énoncer une vérité au sens propre et fort du terme. Car
c’est seulement dans ce cas qu*on peut révéler par son discours une
réalité.», A. Kojève, Introduction à la lecture de Hegel, Paris, Galli-
mard, 1947, p. 16.
c’est seulement dans ce cas qu*on peut révéler par son discours une
choses de n’être pas reconnues par nous, qu’on accrédite finalement,
sinon comme leur principe à elles, du moins comme la condition de
leur possibilité pour nous, 1'objectivité, 1 ’identité à soi, la positivité,
la plenitude », Merleau-Ponty, VI, p. 215.
índice de nomes

Adorno, T. W. — 100. K ant, I. — 17, 19, 25-29, 31-35,


Aristóteles — 73. 37-44, 46-52, 93, 112-113.
Kojève, A. — 76, 147.
Bacon, F. — 24
Bruno, G. — 129. Lénine, V. I. — 136.
Lukács, G. — 75, 8 6 , 100, 105,
Descartes, R . — 93, 134. 110-111, 113, 128, 136, 144.
De Waelhens, A. — 74.
Dilthey, W. — 91. Marcuse, H. — 120.
M arx, K. — 75, 8 6 , 105-107, 109-
Eckhart, M. — 78. -112, 114-115, 118-124, 127.
Engels, F — 109, 111-114. 131, 136-137.
Merleau-Ponty, M. — 17, 19, 70,
Feuerbach, L. — 112-113, 124. 72-83, 85-103, 105-111, 113-
Fichte, J. G. — 26, 32, 42, 44^6. 121, 123-147.
49-50, 139.
Foucault, M. — 100. Nicolau de C u sa— 129.
Gramsci, A. — 144. Ollero Tassara, A. — 74.
Habermas, J. — 74, 86, 132. Paci, E. — 120.
Hegel, G. W. F. — 107, 110-113, Parménides — 48.
115, 126. Paianin, A. — 120.
Heidegger, M. — 19, 24-33, 37-54, Platão — 73.
78, 91, 99-100.
Henry, M. — 120. Sartre, J.-P. — 103, 120.
Heraclito — 48, 71. Schelling, F. W. J. — 26.
Hume, D. — 112. Schmidt, A. — 74, 8 6 .
Husserl, E. — 75, 81, 91, 93-95,
105, 119-120, 130, 134. Tran Duc T h a o — 120.
CAMIN-tO
cdeccõo universitária

V o lu m e s p u b lic a d o s :

INTELIGÊNCIA, HEREDITARIEDADE E RACISMO


Jam es R. Law ler

A REVOLUÇÃO DE 1820 (2.* edição)


Manuel Femandea Tomás
(Introduçflo, recolha e notaa de José Tengarrlnha)

O JOVEM MARX
Nlkolal Láplne

DE TALES A EINSTEIN
História da Física e da Quím ica
Jean Roamorduc

ANTERO DE QUENTAL
Vida e Legado de Uma Utopia
ó scar Lopea

QUESTIONAR A HISTÓRIA (2.* edição)


Ensaios sobre a História de Portugal
António Borges Coelho

ESTUDOS DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DE PORTUGAL


J m 4 Tangarrlnha
Q. ALBUM OE FAMÍLIA
Ensaios sobre autores portu g u eses do sóculo XX
6scar Lopes

9. A REVOLUÇÃO DE 1383 (5.* adlçflo)


António Borges Coelho

10. o PENSAMENTO JURÍDICO BURGUÊS CONTEMPORÂNEO


Vl.dfmir Tuménov

11. OS SINAIS E OS SENTIDOS


óscar Lopes

12. O POEMA IMPOSSÍVEL


O «Fausto» de Pessoa
Manuel Gusmlo

13. QUADROS PARA U M A VIAGEM A PORTUGAL NO SÉCULO XVI


António Borgei Coalho

14. INTRODUÇÃO A TEORIA DO ESTADO


Lllft S*

15. DA REPRESENTAÇÃO A aPRAXIS»


Joté Barata-Moura

16. A ORIGEM DO CRISTIANISMO


lakov Lantaman
CAMthHO

N e s te liv ro , dosé B a­ c o n s c iê n c ia e g o i c a
r a t a - M o u r a , s it u a n p a ra o te rre n o da
d o -s e no c am p o d a p rá tic a «.itersuBjfHr-
filo s o fia , a b o rd a a l­ tiv a .
gu n s itin e rá rio s do D a í o títu lo : D a Re­
id e a lis m o c o n te m p o ­ p resen tação à «P rá-
râ n e o , p ro c u ra n d o x is * . D a í ta m b é m as
s u r p r e e n d e r a q u e la a r tic u la ç õ e s e m fc !e -
* q u e é ta iv e z «ua m a tíz a m e n te s u rp re -
te n d ê n c ia a c tu a l roais enrtfveis no percurso
S ig n ific a tiv a : a d e ir q u e se d e sen h a de
e m p re e n d e n d o um Kant 3 M erieau-
p ro g re s s iv o e n c a m i­ -P o n ty . pasmando por
n h a m e n to do te rre n o H e ld e g g e r.
re p r e s e n ta tiv o da O c ritic ís m o tra n s ­
c e n d e n ta l Kantiano é
a s s u m id a r n e n t e u m
id e a lis m o da re p re ­
sentação. H e id e g g e r
não p re te r te assu-
í ir-se nem c o it u
idoãíicVa nem coroe
filó so fo s u b m e tid o ac
p a ra d ig m a d a re p re ­
s e n ta ç ã o . M e r í e a u -
-P onty s em ao n i v ei
dds supostos escapar
ao i d e a l i s m o , p r e ­
te n d e no e n ta n to fu-
, * t..
Faculdade da Latri a m da Lisboa

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iiv a .

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