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DO SILÊNCIO À LIBERDADE:

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.

Renata Ribeiro Tavares da Silva

1
O deserto cresce. Ai de quem guarda desertos dentro de si.

Nietzsche

2
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................04

1 O HUMANO ENQUANTO TRAVESSIA ....................................................08

1.1 LÓRI: SILÊNCIO E DOR ...............................................................................11

1.2 A PAIXÃO COMO HORIZONTE DO INVISÍVEL..........................................40

2 A DESCOBERTA DA VIDA DOS SENTIMENTOS....................................53

2.1 ULISSES E A ESCUTA ....................................................................................53

2.2 O AMOR COMO DIÁ-LOGO............................................................................62

3 “É DIFÍCIL PERDER-SE”..............................................................................68

3.1 A INICIAÇÃO ...................................................................................................74

3.2 “MAS ANTES PRECISAVA TOCAR EM SI MESMA, ANTES PRECISAVA

TOCAR O MUNDO” .....................................................................................................87

4 A EXPERIENCIAÇÃO DA LIBERDADE................................................... 98

CONCLUSÃO .................................................................................................104

REFERÊNCIAS ..............................................................................................106

3
INTRODUÇÃO

Fazer ciência, filosofia, teoria da arte, ou dedicar-se a qualquer área do

conhecimento humano é hoje um enorme desafio. Não apenas pela velocidade da

mudança, pela quantidade de conhecimentos disponíveis ou pelo avanço das técnicas,

que exigem cada vez mais e mais especialização e dedicação, mas pela questão que ora

nos toma, enquanto homens de uma época.

Que questão é essa? Desde o fim do séc. XIX e início do séc. XX, se tem

tentado apontar para ela: é a questão da relação do homem com a tradição, com a grande

tradição da filosofia, que defende e justifica a hegemonia da racionalidade, e entende o

pensamento como capacidade conhecimento e controle de um sujeito em relação a um

objeto. Esta tradição não concerne apenas a filósofos mas a nós todos, pois seus

fundamentos se expressam muito claramente na vida cotididana, na hegemonia da

técnica, e da relação técnica com o mundo, na radicalização da subjetividade, nas

decisões sempre calcadas numa certa idéia de domínio do homem sobre a realidade.

Queremos partir, neste trabalho, das reflexões propostas por estes grandes

revolucionários, que colocaram por terra a naturalidade com que, filhos de uma tradição

incontestada, acostumamo-nos à idéia do domínio do sujeito sobre si mesmo, sobre a

natureza e sobre o pensamento. Nomes como Nietzsche, Freud, Einstein, Heisenberg, e

Heidegger são aqui pressupostos, ainda que não sejam diretamente mencionados. Pois

não se trata, agora, de estudar como cada um deles contribuiu para pôr em questão a

tradição com que muito confortavelmente nos movíamos antes deles, mas apenas de

reconhecer a necessidade de ouvi-los e de fazer a experiência deste questionamento.

4
Destes pensadores, aquele com quem dialogaremos mais amiúde será Heidegger,

exatamente pelo fato de ter formulado claramente, com sua obra, esta questão, e dado a

ela a importância suficiente para que nos voltássemos e víssemos o que estávamos (ou

estamos) esquecendo. Heidegger aponta para o esquecimento como uma questão

primordial, pois entende que, em relação à experiência que os gregos fizeram da

manifestação do Ser, o nosso tempo é um tempo de retração. Na experiência grega, o

Ser foi entendido como presença e manifestação no tempo, desvelamento dado no seio

de um infinito mistério. Isto significa que, nesta experiência originária da filosofia

grega, não se negou uma dimensão incompreendida da realidade que é fonte de todo

conhecimento. Até que, com as decisões tomadas ao longo da história do ocidente, “o

Ser torna-se uma simples objetividade para a ciência, e, hoje, um simples fundo de

reserva para a dominação técnica do mundo.”1 Desta maneira, vivemos uma época que

se enraíza profundamente na dimensão filosófica, uma vez que a ciência e a técnica são

livres desdobramento desta dimensão filosófica, mas não se move nesta dimensão, pois

se perdeu do seu originário questionamento, do próprio Ser enquanto questão.

Assim, a questão do que é ou do que deve ser o pensamento hoje nos coloca,

mais uma vez, diante da questão mais antiga: o que é tudo o que é? O que é ser? E esta

questão primordial nos coloca ainda diante de outra, que a tradição filosófica – desde a

interpretação da filosofia grega até a sua radicalização na modernidade – parecia ter

dado uma resposta satisfatória com a idéia de sujeito: a própria questão do homem. O

que é isto – o homem? O que em nós nos faz humanos?

Mas, em função da reflexão iniciada por Nietzsche, Freud, pela física da

relatividade e tantas outras revoluções do pensamento no século XX, sabemos que esta

questão não pode mais ser respondida com velhas fórmulas e os mesmos pressupostos

1
HEIDEGGER, Martin. Entrevista concedida ao Professor Richard Wisser. In: O que nos faz pensar n.
10, vol. 1, outubro de 1996, p.11.

5
que nos levaram a nos perder da essência do humano, a nos afastar da presença do

presente, a esquecer a questão do sentido do Ser. Precisamos encontrar novos caminhos,

mas talvez estes caminhos não digam mais respeito a uma busca de respostas. Talvez o

que precisemos, mesmo, seja a busca das perguntas. E este é o apelo que procuramos

ouvir.

Para corresponder a este apelo, algumas posturas precisam ser desfeitas, por

exemplo, a da idéia de uma verdade a ser encontrada através de algum método definido,

que levasse a um ponto onde o homem tivesse todas as respostas. Ao contrário disto,

entendemos que os métodos são caminhos, e que a filosofia, a ciência, a arte, a busca do

sagrado, todas as experienciações humanas são experienciações de pensamento, e que

nenhuma deve ser considerada mais ou menos efetiva na busca de uma resposta última à

questão da realidade, justamente porque a realidade é uma questão que não pode ser

respondida. Defender a supremacia de uma experienciação de pensamento sobre outra é

uma postura limitadora, que pré-define a realidade de acordo com alguns pressupostos e

isto é o que desejamos evitar.

Assim, entendemos que nossa busca pelo conhecimento é motivada

primordialmente pelo desconhecimento, e pela própria vicissitude da realidade que,

naquilo que se mostra, imediatamente se retrai, mostrando a imensidão do mistério da

qual procede. Por isso, toda busca deve ser aberta a todas as escutas, e permitir, antes de

qualquer coisa, que a realidade enquanto questões se faça presente em nós.

É neste horizonte que desejamos proceder à leitura de uma obra literária, a saber,

Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector. Acreditamos que

esta tentativa de escuta das questões que uma obra literária nos traz responde a um

conselho de Heidegger, de um novo cuidado com a linguagem. A linguagem não é vista

aqui de maneira instrumental, portanto não serve a nenhum projeto, seja social, seja

6
intelectual, ou de qualquer espécie. Entendemos que uma obra de arte não é outra coisa

senão o operar de questões em nós. Portanto, não se trata de buscar na obra uma

resposta ou defender uma postura clariciana diante do mundo ou das questões. Trata-se,

tão simplesmente, de ouvir o apelo que se dá em toda obra, das questões que nos tomam

enquanto seres humanos.

Assim, a tentativa feita aqui é a de que nos deixemos tomar pela escuta da obra

em imagens-questões, ou seja, imagens que nos lançam diretamente à presença de

questões. Tentaremos, assim, ainda que incipientemente, nos lançar ao apelo de um

novo pensamento, no sentido que explicita Heidegger no trecho abaixo:

O pensamento que, nessa conferência2, eu distingo da filosofia – o que se faz


sobretudo quando tento esclarecer a essência da aletheia grega – esse
pensamento é fundamentalmente, em sua relação com a metafísica, muito mais
simples do que a filosofia, mas precisamente em razão de sua simplicidade,
muito mais difícil de se realizar.3

A tentativa é tímida, mas enquanto a escuta do apelo for verdadeira, isto sempre

será, como diz Clarice, um exercício profundo de ser um ser humano. Todo o sentido

deste trabalho se deu nesta escuta como exercício.

2
Heidegger se refere aqui à Conferência: O fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento, publicada em
português em: COL. OS PENSADORES, vol. XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
3
HEIDEGGER, Martin. Entrevista concedida ao Professor Richard Wisser. In: O que nos faz pensar n.
10, vol. 1, outubro de 1996, 17.

7
Capítulo I O HUMANO ENQUANTO TRAVESSIA

É lugar comum dizer que Clarice Lispector é uma autora de tendência intimista,

ou seja, que se volta primordialmente para as imagens da vida interior das personagens.

Mas o que significa isto, mais propriamente? Em literatura, não se pode falar em

tendências fortuitas, como se não houvesse nada além de meros acasos que compõem

uma arte do divertimento. Esta postura é uma tentativa de planificar a arte no seu

entendimento, mas, na verdade nada há de banal nem de acaso na “tendência” de um

autor. Pois cada palavra e cada cena e cada imagem põe em obra o que há de mais

humano no homem: as questões.

Neste horizonte, entendemos a poética de Clarice Lispector como a poética da

proximidade do mistério. Suas imagens-questões, sempre envolvidas no tom do

pensamento e sentimento das personagens, não se resumem a abusar, como estilo, de

nuances psicológicas, mas o que fazem, mais primordialmente, é colocar-nos diante da

realidade do ser e não ser destas personagens. O horizonte do que não são está sempre

presente num desconhecimento patente ou latente de si próprias, na possibilidade da

descoberta, no desentendimento do mundo, num jogo de ocultamento e revelação.

O “e”, que une contrários enquanto identidade e diferença, põe-se em obra na

obra de Clarice. Revela-se assim o silêncio fundamental que precede e procede em toda

realização humana. Poeticamente, Clarice põe manifesto o que se cala em toda fala, pois

lembra-nos, a todo momento e em toda imagem, do “e”.

O “e” do fato do ser humano ser o tempo todo vida e morte. No e, de vida e

morte, nada pode ser definitivo. No e de prazer e dor, de amor e ódio, de atração e

retração, de dia e noite, vivemos. E este verbo viver precisa ter toda a carga e todo o

8
peso da humanidade com sua História e com suas descobertas afinal tão ínfimas diante

de seu mistério.

Em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, o mistério move uma mulher

até às últimas possibilidades da descoberta de si mesma. A estória é a de sua travessia,

dura caminhada, pelas dificuldades do humano, movida por uma paixão. Uma paixão

tão grande que é um estremecimento de vida que não lhe permite fugir de seu telos, a

procura do sentido, e a descoberta do impossível no possível, do extraordinário no

ordinário. Este impossível e extraordinário é a apropriação de si mesma, o sentido do

philei grego, apropriar-se do que nos é próprio, do que já nos é dado. Esta é a grande

experienciação do amor que a personagem viverá: infinito no finito, e finito no infinito

– liberdade propriamente dita.

Este caminho começa e precisa começar pelo silêncio. Pois na maior parte do

tempo estamos imersos em falas e mais falas e mais falas, que nunca cessam e nunca

nos permitem realmente pensar se somos ou não estas falas. Lóri, antes de ser

interpelada pelo silêncio, como fruto dos encontros com Ulisses, tem o comportamento

de uma mulher medíocre em suas ações e desejos, que tentava aflorar sua feminilidade e

se encontrar, mas parecia sempre descompassada consigo. Não sabia se vestir,

maquiava-se de forma exagerada. Tinha medo do próprio estar viva. A maneira com que

Clarice abre o livro, com uma vírgula, e letra minúscula, parece não apenas indicar um

salto para dentro do mundo de Lóri, sem aviso, como na própria vida nos acontece,

como também demonstrar seu estado radicalmente angustiado. Lóri nos é mostrada já

nas primeiras páginas como alguém cujo estar no mundo é dificultoso e dolorido, como

se mancasse o tempo todo, ou como se ouvisse diversas falas sem saber onde se situar,

sem ter nenhuma propriamente sua.

9
Ela parece tentar compactuar com uma vida aquém da vida, calando o que no

peito diz que há uma fruta melhor e mais saborosa, uma experienciação de vida com

mais sentido e beleza: “Ulisses acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemplo

embelezar uma fruteira”4, coisa que ela não sabia fazer, coisa que pertence muito

propriamente ao ser uma mulher, no sentido profundo de embelezar uma casa, trazer

beleza à vida simples e cotididana. Mas Lóri não consegue nem calar este desejo, nem

abrir-se a uma nova experienciação. Deseja violentamente Ulisses, o que a desespera,

por precisar dele. Mas, ao mesmo tempo, sabe que está muito longe dele e de

considerar-se pronta para dormir com ele. Sabe que se move por esse desejo, mas não

encontra em si a capacidade de sair do sofrimento para ser uma mulher mais pronta.

A Lóri que abre o romance nos dá a pensar a paralisia e a secura de uma vida

que não toma a si mesma e não se enfrenta, mas também não desiste de tornar-se o que

é, o que precisa ser. E é esta Lóri que terá de abrir o coração, ainda que à força, para o

silêncio que agora já a tomou.

4
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 13.

10
1.1 LÓRI: SILÊNCIO E DOR

“O Deus que me ajude nessas trevas geladas que são as minhas”5, Lóri diz

baixinho, quando, em Paris, a “neve grossa e ruim” caía em seu rosto e ela começara a

chorar de manso.

“As trevas geladas que são as minhas”: quem não conhece esta espécie de

engasgo e vontade de chorar diante do próprio caminho, sempre descaminho, diante do

próprio desassossego, ou depois de uma longa madrugada de lutas contra si mesmo?

Como abrir os olhos no silêncio da manhã de neve branca, sem sentir-se absolutamente

exausta, exausta de gritar e de sofrer, e de buscar e mergulhar em rios de águas frias e

insaciáveis? Frias e insaciáveis são as águas de nossas vidas, de uma vida marcada

primordialmente pela história da solidão humana.

É o silêncio de Berna...

O silêncio de Berna é o silêncio da própria vida. Mas a sua escuta não é como

aquela do sábio, com paz e renúncia. Incomoda-nos o fato de a vida não poder ser

resumida e explicada em regras claras e verdades absolutas. Estar no silêncio de Berna

é, de maneira muito angustiosa, tocar o grave e crucial da condição humana, o que não

se deixa dizer em palavras, mas nem tampouco aquieta. Aqui não há ainda entrega, mas

uma luta humana muito dura: a necessidade de viver e de ser, que ao mesmo tempo em

que é afirmativa de prazer e alegria, só pode se dar na presença do desconhecido e da

morte como horizonte. Isto significa: “a dor de não ter futuro senão o de continuar

existindo”6, a ausência de respostas que dói no corpo quando é reconhecida, a morte das

justificativas, das teorias que explicam o homem por fora, mas nunca nos preenchem

5
Op. cit., p. 45.
6
Op. cit., p. 70.

11
por dentro. É quando não temos outra coisa senão dizer: “É tão vasta a noite na

montanha, tão despovoada.”7

Talvez se queira pensar que estes momentos não passam de impressões

subjetivas, que não interessam ao conhecimento. Ou, ainda, que além de subjetivos, não

passem de momentos raros, e desligados de nossas vidas, como fantasias. Mas não.

Estes momentos somos nós, a humanidade de hoje, tão ausente do próprio silêncio, tão

distantes uns homens dos outros como as noites despovoadas das montanhas.

Sentir a dor deste silêncio (“Viver na orla da morte e das estrelas é vibração

mais tensa do que as veias podem suportar”8) é como inesperadamente adentrar o nosso

tempo, o tempo de um destino que há alguns séculos vem se configurando como trágico

e de grande perigo. É como subitamente respirar uma grave ausência de sentido, e

perder todas as esperanças. “Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos

que passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio.”9 E,

finalmente, saber que, apesar de termos caminhado por um longo tempo, crendo na

possibilidade de todas as respostas, realmente não há outra coisa senão o silêncio:

Mas há um momento em que do corpo todo descansado se ergue o espírito


atento e da Terra e da Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao
reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente.10

Terra e Lua são palavras que remetem a uma imensidade de questões

relacionadas à mulher, ao seu silêncio e à sua dor. Pois Terra é aquilo que gera, no

interior silencioso, a vida que eclode no aberto. Da mesma maneira a mãe gera em seu

interior silencioso uma nova vida que eclodirá. E ao mesmo tempo em que a Terra dá,

ela se recolhe no seu silêncio de Terra, como a mãe. Terra é o silêncio da renúncia que

7
Op. cit., p. 36.
8
Op. cit., p. 38.
9
Op. cit., p. 37.
10
Op. cit., p. 37.

12
permite sempre, na morte para uma realidade, gerar uma nova, reformular, transformar.

Terra é, ainda, o lugar para o qual sempre se irá voltar: ao silêncio, à morte, ao nada.

Terra é Ítaca para Ulisses.

Assim também a lua remete à mulher: sua fecundidade, o ritmo de seu corpo, a

capacidade de gerar, de transformar, de morrer e renascer. Assim como a mulher, a lua

se esconde para depois crescer em brilho, e novamente se retrair. Na alternância de

visível e invisível, a mulher é lua, incapaz de se mostrar brilhante e completamente

como o Sol. Revela-se aí a presença misteriosa do duplo, do jogo de sim e não que faz

da mulher a própria vigência do diá, palavra grega que significa “dois”, mas também

“entre” e “através de”, por isso remete à presença do entre enquanto tensão de ser e não-

ser, do Ser e do Nada. Lóri sabe que é mais lunar que solar, e por isso prefere a

companhia da Lua para a descoberta da vida. Ela é lunar porque é mulher. E é este

incompreensível diá, que fecunda, como a Lua, a vida.

“Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de

dentro da gente.”11 No erguer-se da Terra e da Lua aparece o silêncio. É o que Terra e

Lua dizem, enquanto imagens-questões: silêncio do entre.

O que é este entre? Para compreendê-lo precisamos partir da questão que eclode

em toda realização humana, a questão das questões: o que é o humano? O que torna o

homem humano? O que é o humano do homem?

Por um longo tempo, a tradição metafísica tentou responder a esta questão com

conceitos baseados no indivíduo como centro e possuidor de características essenciais

(homem, racional). Mas a proposição “o homem é um animal racional” não dirá nada

em relação ao humano do homem se não colocar em questão o ser.

11
Op. cit., p. 38.

13
O verbo ser, no pensamento lógico-proposicional traduzido a partir de

Aristóteles, foi anulado quando foi considerado um “mero” verbo de ligação. Desta

maneira, a representação, na forma de conceitos sobre o ser dos entes, tem precedido a

nossa experienciação do ser dos entes. Isso significa o esquecimento do vigor das

questões sem o qual é impossível pensar o homem. O homem é, e é somente no ser,

somente sabendo-se como um ente que está sendo. Porque dado no ser, o homem é

tomado pela impossibilidade de conhecer e saber este ser. Por isso é tomado

primordialmente pelo mistério, situado no entre ser e não ser, no Ser que se dá no e a

partir do Nada. Sobre este limite de luta (Streit) do Ser e do Nada, o homem é

constantemente inaugurado enquanto homem e mundo. Por isso só podemos entendê-lo

como liminaridade, constante inauguramento do que é a partir do Ser e do Nada. O

homem está assim jogado num projeto que desconhece, e dado como doação do Ser que

é, mas que não se deixa dizer. Por isso, jogado no silêncio e por ele tomado.

O silêncio do entre é imediatamente reconhecido pelo coração. A imagem-

questão “coração” é extremamente importante e ainda é vigorante, apesar do uso

exaustivo desta palavra. Ela diz o “centro” primordial da vida, o lugar do movimento da

vida, e da presença divina. O mais de dentro, o mais próximo do humano do homem, de

seu grande mistério, é o coração. E é ali ele que sente: a dor da vida enquanto entre.

“Então, se há coragem, entra-se nele, vai-se com ele para o Inferno”.12 O inferno

é o rasgo desta dor. O inferno é o in. In é uma preposição latina que significa “em”, que

diz, rasgando, “entre”. E ferus, o radical, vem de “fero”, levar conduzir. Inferno é o

conduzir ao entre, ao estar cravado na dor, entre duas condições, entre ser e não ser,

dentro do impermanente sem modo de saída. In é onde sempre estamos e estivemos, é o

soluço, é o silêncio.

12
Op. cit., p. 38.

14
É o silêncio de Berna quando as crianças dormem. É o silêncio de uma noite em

que não há dança, não há gritos, não há barulho de mar. Nem sequer uma folha que se

mova num galho, ou caia. Não há respostas, não há esperanças de que uma porta se abra

e “diga” alguma coisa. Não há amor. Ainda que tente enganá-lo: “deixa-se como por

acaso o livro da cabeceira cair no chão. Mas – horror – o livro cai dentro do silêncio e se

perde na muda e parada voragem deste”.13 Esta é a verdade insuportável de que a

verdade é sempre muda, assim como a vida, quando o peito se contrai no essencial de

cada vida.

Pois quando se toca nisto, “o essencial de cada vida”, a tradição filosófica traça

suas respostas, as tradições religiosas traçam suas respostas, mas nunca ninguém calou

o imponderável, e a dor rasgante do questionamento daqueles que, de fato, no

pensamento, colocaram tudo em risco.

O que significa colocar tudo em risco? A questão é difícil. É a questão por

excelência para o Ocidente. Pois a História do Ocidente parece ter sido a História de

uma de-cisão, mais especificamente, de uma de-cisão por uma idéia de certeza. Há

muito tempo, como coloca Heidegger em O que é isto – a filosofia?, algo tomou de

assalto o homem grego: o Hen Panta: o ente é no Ser. Mas essa surpresa não nos foi

legada sem uma re-apropriação baseada numa possibilidade de certeza.

A transliteração da cultura grega para a língua latina parece ser o momento desta

re-apropriação um tanto conturbada. O pensamento grego era o pensamento da

presença, e presença significa ser e não ser. Este e não era problemático pois a filosofia

não estava ainda na busca de conceitos abstratos, proposições que não podem ser

contraditas. Ao contrário, a filosofia grega foi o resultado de uma pergunta viva,

pulsante, imperante: o que é tudo o que está sendo? Ti to on? em grego. Esta pergunta

13
Op. Cit., p. 38.

15
não se deu ao acaso. Ela é fruto, em primeiro lugar, do espanto, o thaumatzein, a

revelação primordial nomeada pelos pensadores originários: o ente é no Ser. Na Grécia

dos pensadores da physis, surge pela primeira vez o pensamento da permanência na

multiplicidade, o vigor do eterno vigora enquanto telos e arché em toda mudança.

Arché, como sabemos, é o princípio. O que significa princípio? É aquilo que

principia, e está contido no que principia, sempre mais uma vez principiando

originariamente. Da mesma maneira, telos é o consumar, levar à plenitude o que é dado.

Estas duas palavras evocam o invisível no visível, o não-ser presente no ser, a abertura

para todas as possibilidades. Isto é: o permanente enquanto questão, e não como

pensamento do abstrato. Pois o ser só se pode apreender no sendo. Mas o sendo só é na

clareira do ser e não ser.

Na passagem do mundo grego para o romano, para um modo proposicional de

pensamento, porém, parece se perder a experienciação desta presença, desta concretude

do ser/não-ser na vida humana. E as idéias de permanência e eternidade vão passar a

conceitos, separados da existência. A partir de então, abre-se uma dificultosa trilha em

que o sendo prevalece, em detrimento do dar-se do Ser.

Mas isto apenas na teoria. Na dor humana, a realidade naturalmente continuou se

dando em todo o seu infinito de vicissitudes.

E esta é a dor do silêncio. Nunca se provaram, por mais que se tenha tentado, as

fronteiras do ilimitado. Por mais que nos debatamos uns contra os outros, e dentro de

nós mesmos, pela preponderância de um ou outro caminho, sempre há a possibilidade

de se colocar mais em risco a própria experienciação humana de todos os caminhos. E,

no fim, é preciso render-se. “O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e

sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas.”14

14
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.38.

16
Mais uma vez, coração. A grande dor humana, situada bem no centro da vida, é

estar no Nada sozinho. Estamos no Nada e somos a partir dele, e o silêncio nos diz isso.

E então sentimos a dor de viver nestas trevas, na escuridão que vela e revela, enquanto

duramente caminhamos, taquicárdicos, tomados pelo desconhecido, pelo anseio, pelo

apelo de ser.

Mas justamente porque sempre houve seres que se renderam, profundamente, a

ouvir o apelo do ser, que misteriosamente se dá, é que nas grandes obras de literatura,

filosofia, pensamento, e na experienciação do sagrado, o silêncio sempre teve vez como

silêncio. Nas grandes obras do ser humano, o silêncio vibra numa presença inequívoca.

Ele está presente todas as vezes em que uma obra é escrita ou realizada num coração

tomado: não é o ser humano que tem questões, são as questões que nos têm. Como

coloca Heidegger, é a que linguagem fala, não o homem. O falar do homem é muito

mais propriamente uma correspondência ao apelo da linguagem.

Esta frase de Heidegger soa, a princípio, um disparate, tão acostumados estamos

à concepção moderna do homem enquanto indivíduo e da linguagem como poder e

instrumento deste indivíduo. E, claro, para questionar a linguagem e dizer isto que

Heidegger diz é preciso questionar todo o sistema de pensamento conceitual-metafísico

construído nos últimos vinte e cinco séculos. Mas é justamente isto que Heidegger faz, e

não é necessário nada além de voltar ao sentido originário das palavras, com os ouvidos

abertos: a idéia que temos hoje de linguagem se desenvolve como um desdobramento de

uma antiga palavra grega, praticamente intraduzível: logos. Logos evoca um sentido

originário de reunião, o que reúne e apresenta, e coloca, traz ao desvelamento.

Desvelamento do ser é mundo. A linguagem é assim, mundo sendo a todo tempo criado,

é poiesis, o vigor da criação contínua, do inauguramento contínuo, da verdade enquanto

desvelamento do ser, do próprio dar-se do real que é ser e não ser.

17
Esta concepção de linguagem é, de fato, uma inversão de um pressuposto

largamente aceito, por todo o tempo que agora nos separa de Platão e Aristóteles, que é

o da idéia de sujeito. O sujeito é algo que possui características. Ele é uma fonte, ele é

um ente definido e dono da capacidade de controle sobre o que ele é e não é. Mas é

preciso compreender como nasceu esta idéia, pois isso significa nos aprofundarmos no

movimento da História, e entender as inter-pretações do mundo que esquecemos que

são sempre interpretações.

Em A Origem da Obra de Arte, Heidegger aponta três interpretações daquilo que

os gregos denominaram ón, que podemos traduzir como sendo-ser, realidade, coisa, ou

tudo o que é. Estas três interpretações se tornaram canônicas para a filosofia e,

consequentemente, formam uma espécie de base fundamental do pensamento ocidental.

A interpretação que mais nos interessa aqui é a primeira: a idéia do ón como

substância. A coisa “tem” características. A coisa não é o somatório de suas

características, mas aquilo em torno do qual estão reunidas as propriedades. O grego via

na vigência do que está vigente o “cerne” da coisa, ao que denominavam hypokeimenon:

aquilo em torno do qual as propriedades se reuniram15, aquilo que é procurado na

questão da permanência, questão primordial para o pensamento pré-socrático e grego

em geral. Neste contexto, symbebekota é “aquilo que também sempre já foi posto com

cada existente e em virtude disso com ele aparece”.16

Quando se traduziram estas palavras, sem a experiência grega do ser do ente

como a vigência do vigente, Hypokeimenon virou sub-jectum, “jogar debaixo de”, e

symbebekota virou accidere, “cair em direção a”. Esta interpretação inaugura um novo

modo de pensar: a estrutura da proposição sujeito – verbo – objeto toma o lugar do que

o grego via no dar-se da realidade. Essentia em latim, e essência, em português,

15
HEIDEGGER, Martin. A origem da Obra de Arte. Trad. Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo
da Silva, Faculdade de Letras da UFRJ, mimeo. § 18.
16
Op. cit., §18.

18
traduzem a palavra grega ousía. A ousía é a entidade do ente, é aquilo que o ente é.

Temos aqui duas coisas que não podemos deixar de pensar: primeiro, que a essência

pensada abstratamente, alijada da vigência, perde seu sentido pois seu sentido é apenas

a busca do ser que é em cada ente; e segundo, que a história do pensamento deu a esta

entidade do ente diversas interpretações – para Platão ela é idea, para Aristóteles,

energeia. O que importa é, assim, não nos deixar tomar por uma espécie de ilusão de

que se possam esquecer as inúmeras interpretações do ser em favor de uma, e de que se

possam esquecer o tempo e o vigor de manifestação da poiesis no tempo.

Se nos deixamos tomar, acontece como na imagem de Clarice: “Fazia meio-dia

com um barulho atento de máquina de bomba de água, bomba que trabalhava há tanto

tempo sem água e que virara ferro enferrujado”.17 Da mesma maneira que a bomba

trabalha sem água, as palavras perdem o vigor do seu dizer.

Conceitos, quando não passam de palavras sem vigor, tomam nossas vidas, mas

não respondem ao que, no homem, é inquietude, condição, apelo.

A coisidade da coisa – a realidade – só pode ser entendida em sua vigência. Se é

procurada fora da coisa, cai no absurdo. Nós podemos, muito mais diretamente, viver as

coisas e falar das coisas:

No que o homem se torne coisal – corrompem-se nele os veios comuns do


entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das
palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas.
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.18

17
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.23.
18
BARROS, Manoel de. O Guardador de Águas. Rio de Janeiro: Record. 2003, p. 62.

19
Por que será que o poeta diz que “no que o homem se torne coisal”, que atinja o

estado de coisa, é necessário corromper os veios comuns do entendimento? Que será

que tem a ver coisa com subtexto, agramaticalidade, poesia, vareios do dizer?

No horizonte da pergunta pelo humano do homem, encontramos a realidade de

sua liminaridade. Mas o homem só é liminar, vige no entre, e não no domínio apenas do

sendo, porque é linguagem. É a linguagem que inaugura o sendo, e não o contrário. É a

linguagem que está sempre inaugurando, e trazendo o ente para a realidade de seu

aparecer.

Assim, “esses vareios do dizer” são muito simplesmente a linguagem que se dá

livremente no entre da fala e do silêncio. Por se dar livremente, não está comprometida

com nenhum projeto posterior ao próprio projeto de ser e tornar-se, inaugurar falas e

mundos. Coisa tão velha quanto andar a pé, coisa que sempre aconteceu. Ainda que não

saibamos dizer em conceitos, sempre estivemos e estamos na vivência das próprias

coisas, e do nada. Estamos nesta vivência na medida em que co-respondemos à

linguagem.

Este questionamento radical dos conceitos, dos princípios da metafísica

tradicional, das justificativas de todo argumento baseado na verdade como

correspondência não é uma exclusividade da filosofia pós-metafísica do último século.

Em primeiro lugar, ele sempre se deu na arte. E nos últimos tempos, tornou-se

necessariamente uma questão para a ciência. Não podemos mais falar tão impunemente

em verdade abstrata correspondente às coisas, numa época em que a física mostra,

concretamente, que 95% do universo é constituído de vazio.19

19
“A física moderna nos informa que nem tudo é constituído de átomos. A matéria atômica – da forma
que conhecemos – representa hoje menos de 5% da matéria total do universo. (...) A ciência é forçada a
admitir, portanto, que esse vazio está cheio de uma estranha energia que se condensa para formar a
matéria dos átomos.” Cit in: A Ilusão da Matéria e a Física Quântica.
www.geocities.com/CapeCanaveral/Lab/5328/Forum12.html.

20
É necessário perceber que nos movemos em caminhos já escolhidos, e que

aquilo que tomamos como evidente, talvez tenha fundamentos não tão sólidos assim. E

este é o questionamento que se tornou, para nós, hoje, o mais urgente e complicado.

O diálogo com a tradição do pensamento ocidental é riquíssimo nesta obra de

Clarice, na imagem do que Lóri é, no início, e na sua possibilidade de transformação.

Lóri é a mulher presa e crestada na secura de um viver que não a satisfaz: um viver rico

em condições materiais, em que há trabalho, há o que chama de liberdade, há algum

afeto, há respostas bem planejadas e bem confortáveis, enfim, há o que Lóri ou qualquer

ser humano poderia desejar. Mas, oprimidos pela perspectiva de que deveríamos

encontrar todas as respostas, como Lóri desejaria, temos medo da não-resposta. Temos

medo do silêncio que apesar de todo o nosso conforto, a todo tempo nos acossa. Como

imagem-questão, Lóri é o ser humano lutando para manter-se calmo e numa espécie de

“zona de conforto”, enquanto seu coração grita, sua alma pede, sua vida aparece como

uma dor imensa e inexplicável.

Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres é um dialogo entre Lóri e Ulisses,

dos dois consigo mesmos e, numa dimensão mais profunda, de cada um deles com o

silêncio que nos faz questões. Isto implica, de maneira extremamente provocadora, um

diálogo no leitor: o próprio leitor é confrontado com o silêncio que grita na dor de Lóri,

e que sussurra na voz irritantemente calma de Ulisses. E é Ulisses mesmo que faz uma

belíssima apresentação deste tema, o quanto nós não ouvimos o silêncio que nos

constitui:

Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso
considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as
coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por
tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído
catedrais, e ficado do lado de fora, porque as catedrais que nós mesmos
construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós

21
mesmos pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. (...) temos
mantido em silêncio a nossa morte para tornar nossa vida possível.20

Amar, aceitar o que não se entende, se entregar, são uma profunda oposição a

nossos atos comuns como amontoar coisas, catalogar, construir, fugir, temer. Essa

oposição os une, pois estamos jogados na necessidade de amar que tanto tememos, ao

desejo insaciável de uma vida larga que não temos coragem de abraçar. E por que não

temos? Há uma História de decisões, há um destino do pensamento, há uma idéia

primordial de que o real é apenas o utilizável, e que o próprio humano é apenas

disponibilidade para fins definidos.21

Movemo-nos já por palavras vazias, tradições que foram perdendo, a cada

século, o vigor, a vida do movimento da palavra, e se deixando esconder por uma

montanha de poeira e cinza, em nome dos poderes, e das verdades que os garantissem.

A automatização não é algo que está apenas nas máquinas, mas também nos toma,

enquanto seres voltados exclusivamente para a preocupação da produtividade. A

distância de nós mesmos é, em grande medida, apenas um medo criado, sob os

interesses sempre de alguns que pretendem gozar das vantagens sobre a capacidade de

trabalho dos demais. A lógica da exploração e da dominação é muito clara, e explica em

grande medida como viemos parar num tempo de tanta distância: enquanto uns podem

usufruir e viver numa cultura vastíssima, de um acesso ao conhecimento nunca antes

imaginado, e outros possam estar tão alijados deste conhecimento que sequer imaginam

a sua importância. Esta humanidade excluída, os homens que a humanidade abandona,

são frutos da História da dominação, uma história de des-humanização que sempre

serviu ao estabelecimento de vantagens. O tempo em que vivemos é a exacerbação e

radicalização desta história, que agora, dá mostras de sua insustentabilidade.

20
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.48.
21
Cf. HEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001.

22
“São os tempos de grande perigo em que aparecem os filósofos”22 diz Nietzsche.

E esta frase não poderia ser mais atual. Pois os nossos tempos são de grande perigo. Isto

não compreende somente as duas Grandes Guerras, o perigo da energia atômica

utilizada para fins bélicos, a soberania da tecnologia e da técnica, os desastres

ecológicos iminentes; compreende de maneira muito mais radical, o fato de que os seres

humanos hoje vivem ausentes de si mesmos.

A ausência de nós mesmos tem raízes muito profundas. A compreensão desta

História e dos tempos que hoje vivemos abre-se diante de nós como um grande desafio,

e exige filósofos. Parece nos pedir, como na imagem do Mito da Caverna de Platão, um

voltar-se de toda a alma para algo novo, deixando para trás um caminho. Que caminho?

Simplicadamente podemos dizer: o caminho da metafísica, ou, mais especificamente: o

caminho de uma certa interpretação do que seja a metafísica, levado a cabo como um

destino pelo Ocidente.

Numa mesma palavra “metafísica” estão unidos dois sentidos que precisam ser

distinguidos e esclarecidos. Em uma primeira instância, a palavra metafísica fala de uma

tradição que conduz o pensamento filosófico desde os gregos até o século XX, calcada

nos pressupostos científicos de comprovação e argumentação lógica. Por outro lado,

este conceito advém da tomada da metafísica pela tradição ocidental, e parece ser

justamente a transformação da palavra originária em seu contrário. Antes e para além da

acepção tradicional, Heidegger coloca em O que é Metafísica?, esta significou e

significa o modo de ser do homem tomado pelo pathos da liminaridade: um ser que não

pode se resumir ao domínio dos entes, pois só pode se dar, o tempo todo, como doação

do nada.

22
NIETZSCHE, Friedrich. A Vontade de Potência. São Paulo: Ediouro, s.d.

23
Em um diálogo efetivo com a modernidade científica, Heidegger diz: “A ciência

nada quer saber do nada.”23 Na atitude científica, conceitual, do pensamento da técnica,

das certezas e do cálculo, furtamo-nos ao silêncio e esquecemos que o ser é questão em

aberto e manifestação no tempo.

Mas nós, cotidianamente, nos referimos à palavra nada. O que é esta palavra,

algo que não deveria existir? Por que ela nos assedia a todo tempo, em nossa existência

diária?

Nós conhecemos o nada. Estamos cotidianamente imersos nele, como estamos

na totalidade do ente. Ainda que não possamos representar nem uma coisa nem outra, há

disposições de humor (Stimmungen) que os revelam claramente. Chamaremos a partir

de agora as disposições de humor de pathos, (palavra grega riquíssima cujo sentido será

mais propriamente tratado no próximo capítulo). O tédio, que nos mergulha numa

bruma de estar entre os entes somente, ou a alegria da presença de um ser querido

revelam-nos a totalidade do ente. Já o pathos que manifesta o nada é a angústia.

Lóri é tomada pela angústia, porque é eroticamente arrastada para um encontro

com um outro ser. Mas não sabe o que fazer deste desejo, pois ele a tira do controle que

um dia ela pensara ter, e questiona os pressupostos que lhe permitiam passar pela vida

de maneira ausente, para não sofrer. Para amar, precisava passar pela queda humana,

pelo reconhecimento de sua condição humana, onde o nada é presença cotidiana:

Através de seus graves defeitos – que um dia ela talvez pudesse mencionar sem
se vangloriar – é que chegara agora a poder amar. Até aquela glorificação: ela
amava o Nada. A consciência de sua permanente queda humana a levava ao
amor do Nada. E aquelas quedas, como as de Cristo que várias vezes caiu ao
peso da cruz – e aquelas quedas é que começavam a fazer sua vida. Talvez
fossem os seus “apesar de”, Ulisses dissera, cheios de angústia, e
desentendimento de si própria, a estivessem levando a construir pouco a pouco
uma vida. Com pedras de material ruim ela levantava talvez o horror, e aceitava

23
HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo: Abril
Cultural 1973, p. 234.

24
o mistério de com horror amar ao Deus desconhecido. Não sabia o que fazer de
si própria, já nascida, senão isto: Tu, ó Deus, que eu amo como quem cai no
nada.24

A queda: esta talvez seja a imagem que há mais tempo coloque a questão do ser

humano no mundo. É fato que a queda no pensamento cristão já não diz nada se a

entendermos apenas num sentido de pecado e punição. Mas há a queda, e é queda

porque é dolorosa, o estar no mundo para o homem é doloroso.

Resta perguntar o que é esta dor. Não é a dor pela dor. É a dor que é a vida, pois

é o mistério, o não saber, e primordialmente o não saber o que fazer de si próprio. É a

dor do silêncio de Berna. A dor de estar diante do nada, no nada: e neste nada ter apenas

uma única forma de vida: amar um Deus. O que é Deus, e o que é amor? É o próprio

mistério pelo qual Lóri é tomada.

Diz Heidegger:

Na angústia, todas as coisas e nós mesmos afundamo-nos numa indiferença.


Isto, entretanto, não no sentido de uma simples desaparecer, mas em afastando
elas se voltam para nós. Este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos
assedia na angústia, nos oprime. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos
sobrevém – na fuga do ente – este nenhum.25

Estamos, na angústia, frente ao que não pode ser determinado, da essencial

impossibilidade de determinação, diferentemente de quando estamos refugiados no seio

dos entes. “A angústia nos corta a palavra. Nos acossa o nada, em sua presença, e

emudece qualquer dicção do “é”.”26

Precisamos entender, assim, que o nada se revela na angústia, mas não enquanto

ente, tampouco como objeto. “Na angústia se manifesta um retroceder diante de, que

24
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.27.
25
HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo: Abril
Cultural 1973, pág. 237.
26
Op. Cit., p. 237.

25
sem dúvida não é mais uma fuga, mas uma quietude fascinada.”27 E é nesta quietude

fascinada que Lóri entrará, para a descoberta do viver.

Há um pequeno capítulo que mostra claramente a necessidade da qual Lóri está

diante: a necessidade de aceitação de uma vida real, em que há silêncio, e em que se

vive e morre:

De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter fé – muita coragem, fé em que?


Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no
abismo. Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de
Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo – em breve
ela teria que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida
não é de se brincar porque em pleno dia se morre.
A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano.28

Cair, quando vida e morte se tornam, finalmente, o que são: questão em aberto, o

próprio ser humano como questão, abismo. Ulisses a empurrava para o abismo, mas

será que é Ulisses? Não. Não o homem Ulisses, simplesmente. Quem empurra para o

abismo é unicamente a necessidade de cada ser humano tornar-se um ser humano. Isto,

por mais que nos seguremos com toda a nossa força, é como Lóri à beira do abismo:

uma resistência pobre, um pobre ser humano contra uma mão simplesmente mais forte.

Esta proximidade que Lóri consegue, tão dolorosamente, é proximidade do

humano no homem:

Somente à base da originária revelação do nada pode o ser-aí do homem chegar


ao ente, e nele entrar. Na medida em que o ser-aí se refere, de acordo com sua
essência, ao ente que ele próprio é, procede já sempre como tal ser-aí, do nada
revelado.29

Chamamos à atenção a dificuldade de traduzir a palavra Dasein. Ernildo Stein,

utiliza na citação acima a palavra ser-aí, que é uma tradução bastante comum para o

27
Op. Cit., p. 237.
28
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.32.
29
HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo: Abril
Cultural 1973, pág. 239.

26
português. Mas esta não explicita tão propriamente a liminaridade que a palavra Dasein

diz em alemão. Em primeiro lugar, porque ela é uma palavra comum da língua alemã

que foi utilizada por Heidegger de uma maneira nova, e significa “existência”. Mas

também esta tradução é prejudicada por todo um jargão criado pelas idéias do

existencialismo. Então, temos que perguntar: o que significa Dasein, em alemão. O que

quer dizer o tão debatido prefixo da? Segundo Márcia Sá Cavalcante Schuback:

Da não diz nem aí nem lá nem cá. O da é etimologicamente palavra de


intensificação, tendo a função primária de avivar, marcar, ressaltar, não
possuindo propriamente nenhuma determinação espacial.30

E, ainda: “o da diz precisamente a abertura da cura, um anteceder-se-a-si-mesmo

em já sendo em e junto a.”31 Isto é explicado por Heidegger em O que é Metafísica.

Neste texto, Heidegger defende que entre-ser (Dasein) é estar suspenso dentro do nada.

Este estar suspenso dentro do nada é a transcendência: o entre-ser está sempre além do

ente em sua totalidade. A interrogação pelo nada apresenta a própria metafísica, na

medida em que estar suspenso dentro do nada é transcendência. Tà metà physicá é

justamente a interrogação que vai metà – trans, além do ente enquanto tal. Metafísica é

o perguntar além do ente, para recuperá-lo, enquanto tal e em sua totalidade, para a

compreensão.32

A pergunta pelo nada, o reconhecimento da experienciação do nada, nos leva ao

abismo de pensamento que é o que revoluciona a filosofia no século XX, ao mesmo

tempo em que é o que Heráclito já dizia há mais de vinte séculos: o ser não se resume

30
GRIMM, Deutsches Wörterbuch. Munchen: Detscger Taschenbuch Verlag: 1984. Cit in: SCHUBACK,
Márcia Sá Cavalcante. A Perplexidade da Presença. In: HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis:
Vozes, 2006, p. 27.
31
SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante. A Perplexidade da Presença. In: HEIDEGGER, Martin. Ser e
Tempo. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 27.
32
HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo: Abril
Cultural 1973, pág. 240.

27
ao calculável e controlável no domínio dos entes, e o pensamento não se pode reduzir à

capacidade de representação. Como coloca Manuel Antônio de Castro:

A realidade em seu devir permanente é sempre paradoxal, poética. O conceito é


a tentativa constante e necessária de o conhecimento anular o paradoxo da
realidade em sua manifestação poética. Ele não consegue porque a todo
conceito subjaz sempre um interstício, um vazio, um silêncio, um velar-se. O
que é um interstício? É um estar-entre. A questão é o mover-se do entre-estar
no entre-ser. É a nossa liminaridade, a passagem estreita entre conhecer e não
conhecer e de ser e não-ser.33

O paradoxo da realidade em sua manifestação nos é tão próximo quanto difícl de

admitir. Isto é o que aponta o professor Manuel Antônio de Castro: enquanto estamos na

ilusão de que o conhecimento, que se constitui na tarefa de trazer para o conhecido o

não-conhecido tudo vê e tudo alcança, não admitimos que mesmo na nossa tentativa de

conhecer, há ainda uma outra dimensão: a das questões. As questões que nos tomam nos

falam do velado em todo desvelado, do interstício, do vazio. É o que Heidegger diz

quando mostra que algumas disposições de humor nos revelam o nada, e entre estas

disposições de humor estão justamente aquelas que nos levam à vontade de conhecer e

ao pensar: a angústia, a admiração, o reconhecimento do não-saber.

Assim, também a ciência nasce da dor. Assim como a poesia. A pretensão de

calar o pathos da vida é um equívoco:

somente porque o nada está manifesto nas raízes do ser-aí (entre-ser) que pode
sobrevir-nos a absoluta estranheza do ente. Somente quando a estranheza do
ente nos acossa, desperta e atrai ele admiração. Somente baseado na admiração
– quer dizer, fundado na revelação do nada – surge o porquê. Somente porque é
possível o porquê enquanto tal, podemos nós perguntar, de maneira
determinada, pelas razões, e fundamentar.34

33
CASTRO, Manuel Antônio de. Interdisciplinaridade Poética: o Entre. In: Revista Tempo Brasileiro.,
Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan-mar 2006,
34
HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo: Abril
Cultural 1973, pág. 240.

28
Assim, estes seres que somos, tão apegados à idéia de que há uma certeza em

nossas fundamentações, esquecemos que a fundamentação só nasce da dor de viver, que

é dor de ser e não ser, de saber e não saber, de viver e morrer ao mesmo tempo, a todo

tempo. Quando nos damos conta do nada, da morte, ficamos diante das questões de uma

maneira que não podemos mais fugir. Aqui começa o processo de transformação. Aqui

começa a aprendizagem. Com a questão do nada, a lógica perde seu lugar (não num

processo de invenção de um mundo paralelo, mas na nossa própria experiência

cotididana). A lógica se revela limitada para o pensamento. Assim como para qualquer

ser humano diante da morte, da dor de viver, como está Lóri.

Manuel Antônio de Castro e Idalina de Azevedo da Silva, em recente tradução

de A Origem da Obra de Arte, propõem como tradução de Dasein a expressão entre-

ser.35 Pois o que Heidegger procura sempre mostrar é esta condição de liminaridade, o

entre como essência do paradoxo que é o dar-se da realidade em sua manifestação

poética, ambígua, também sempre liminar.

Para compreender esta palavra, é preciso, porém, aprender a ver ao contrário.

Estamos acostumados a ver de fora para dentro, trazendo todas as explicações para a

coisa a ser explicada. Sabemos muito das sombras que se formam no fundo de nossas

cavernas (as representações), mas não conseguimos o ter que voltar a cabeça e o

pescoço para onde estão as próprias coisas. Olhar para as coisas é uma ascese

necessária. Nosso olhar não o consegue de primeira, tão acostumado está a procurar os

conceitos e os contextos que as expliquem, e nunca adentrá-las como o que são:

questões. Apenas no silêncio, concentrados, podemos tentar o exercício de olhar algo:

por exemplo, o movimento de um corpo, corpo apenas, sem cor e sem ritmo a seguir. E

é aí que fala:

35
CASTRO, Manuel Antônio. As questões da arte em Heidegger. In:___(org.)A arte em Questão: as
questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, p. 38.

29
O tempo, que é o mistério maior do não-saber e da morte humana;

O Ser, que, no estar sendo de tudo mostra – como se fosse a mais bela arte – que

se dá no extraordinário.

Nossa liminaridade, o fato de estarmos sempre no entre, no interstício de todo

conceito, no vazio que nos chama a cada fala, tudo isto nos mostra o extraordinário, que

é a transcendência a que se refere Heidegger. O homem é um ser transcendente porque é

sempre além de si mesmo. E isto não diz respeito a nenhuma experienciação de caráter

não terreno. O extraordinário aparece justamente quando vemos o silêncio, o infinito

mistério do homem. E isso acontece no ordinário, no cotidiano.

Nesse dar-se inexplicável aparece a dor, a dor viva de Lóri. É a dor que nasce

quando percebemos que buscávamos uma explicação da utilidade da vida, ao invés da

própria vida, e quando percebemos que afinal, mal temos vida. É a dor que vai muito

além de desconforto, material ou psicológico, ou qualquer outra coisa que se pudesse

curar com remédios, ilusões, ou mesmo filosofia. Uma dor que só podemos entender no

horizonte do difícil caminho de quem tem que aprender a ser, e que surge somente

porque este nosso ser é também ainda sempre não-ser e dor.

Assim, o silêncio de Berna não é uma mera lembrança, mas a vigência dolorosa

da incerteza, da inquietude, do próprio in, o estar cravado no entre. Como já colocamos,

In é o pré-verbo e a preposição latina que significa lugar. In é o nosso lugar, tanto

espacial quanto ético, na medida em que de todas as maneiras já estamos lançados,

como seres viventes, neste entre paradoxal da realidade.

E então, como viver? Como compreender qualquer coisa? O que é, afinal, o

homem e a vida? Estas são as perguntas de Lóri que jamais são formuladas senão por

sua grave dor de estar no mundo. Pois esta personagem não pergunta pelo mundo de

fora de si mesma. Ela percebe o mundo no ordinário, no cotidiano, com uma

30
simplicidade que quase a caracteriza como uma mulher sem maiores interesses do que a

mediocridade de continuar vivendo:

,estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às
pressas porque cada vez mais matava serviço, embora só viesse para deixar
almoço e jantar prontos, dera vários telefonemas tomando providências,
inclusive um dificílimo para chamar o bombeiro de encanamentos, (...)
enquanto notara que o terraço pequeno que era privilégio de seu apartamento
por ser térreo precisava ser lavado, recebera um telefonema convidando-a para
um coquetel de caridade em benefício de alguma coisa que ela não entendeu
totalmente mas que se referia ao seu curso primário, graças a Deus estava em
férias (...)36

Isto, até certo ponto, é o que ela é. Mas só podemos compreender a obra de

Clarice se tivermos a sutileza de ver (como Ulisses, “que sabia ver a beleza tão

recôndita que um ser vulgar não poderia”37), justamente sob a camada de pó de

mediocridade, uma mulher inconquistada e inalcançável, não só para si, mas para os

outros e para o mundo. “Ela vivia de um estreitamento no peito: a vida.”38

Este estreitamento no peito é aquilo que ninguém pode julgar. Pois, apesar de

todas as “associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda”39, e apesar

de todos os sorrisos, e de todos os disfarces, sempre há o momento em que se tem que

estar na noite silenciosa. E isto, só cada um sabe.

Só cada um sabe a sua dor. Mas Lóri é, para além disto, imagem-questão do ser

humano que se indaga: o que é este silêncio de tanta dor? Vida é esta dor?

Ela, de alguma maneira, pressente algo, desconfia de um sentido. Como ser

humano que é, sabe e não sabe. Há um estremecimento dentro dela. Um estremecimento

que se revela pelo encontro com Ulisses, mas que sempre houve. Sempre houve nela

uma busca. É a pro-cura que sempre precisamos realizar por já sermos uma doação de

36
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.13.
37
Op. cit., p. 27.
38
Op. cit., p. 40.
39
Op. cit., p. 48.

31
algo que não conhecemos. É a realidade que sempre se dá em ser e não ser, apesar de

desejarmos certezas abstratas.

E talvez justamente por não suportar a busca, é que Lóri aprendeu a viver num

sofrimento que é aquele de quando se nega a dor. Não sabendo vivê-la, simplesmente,

decidiu “cortá-la”. Fazendo isto, ao mesmo tempo cortava o seu contato com a vida:

O que acontecia na verdade com Lóri é que, por alguma decisão tão profunda
que os motivos lhe escapavam – havia por medo cortado a dor. Só com Ulisses
viera aprender que não se podia cortar a dor – senão se sofreria o tempo todo. E
ela havia cortado a dor sem sequer ter outra coisa que em si substituísse a visão
das coisas através da dor de existir, como antes. Sem a dor, ficara sem nada,
perdida no seu próprio mundo e no alheio sem forma de contato. 40

Esta dor não pode ser encontrada em nenhum exame de laboratório, tampouco o

prazer nas substâncias químicas que o provocam. Dor e prazer são sentidos humanos.

São pathos. Esta palavra diz essencialmente “ser tomado por”. Nós já somos tomados:

não decidimos se queremos ou não viver ou ser. Já somos, já somos no entre, já somos

tomados pelo ser. Mas Lóri resiste a reconhecer que é o pathos que diz “vida.” As

primeiras cenas nos dão uma Lóri numa vida absolutamente seca, infértil, quente. Não é

só a dor que a toma, mas a incapacidade de sentir qualquer coisa, de criar qualquer

coisa, de viver qualquer coisa. Lóri é a mulher paralisada no medo de viver.

É o paradoxo: temos medo de sofrer, e medo é resistência, paralisia diante de

algo que pode trazer dor. Mas é em si uma dor profunda, porque corta qualquer

possibilidade, mata, estanca. O medo de sofrer é um modo de ficar paralisado no

sofrimento. Por isso diz Clarice: “só com Ulisses viera a aprender que não se podia

cortar a dor – senão se sofreria o tempo todo.”41 Lóri sofre o tempo todo por estar diante

40
Op. cit., p. 40.
41
Op. cit., p. 40.

32
da fonte, mas não querer aceitar todas as vicissitudes que a vida dada por essa fonte

pode trazer.

Este medo é tão grande que cria, na verdade, um ódio pela vida. Ódio é negação,

afastamento. Isto é colocado na imagem-questão da falta de sede: há água, há vida, mas,

por algum motivo, há uma forte negação. Clarice nos mostra, no segundo capítulo do

romance, a imagem de um verão quente e infértil que é o estado de Lóri, mas o mais

grave é: um verão sem sede. Tudo era “de uma ternura quente insuportável” 42, “faltava

água em diversas zonas da cidade”43

Ah, e a falta de sede. Calor sem sede seria suportável. Mas, ah, a falta de sede.
Não havia senão faltas e ausências. E nem ao menos a vontade. Só farpas sem
pontas salientes por onde serem pinçadas e extirpadas. Só os dentes estavam
úmidos. Dentro de uma boca voraz e ressequida os dentes úmidos mas duros – e
sobretudo a boca voraz para o nada. E o nada era quente naquele fim de tarde
eternizada pelo planeta marte.44

Que negação pode ser essa? Justamente a negação do nada, do vazio, do

mistério. Para Lóri, como para qualquer ser humano preso à tentativa de resolver suas

questões calculando matematicamente a vida, o nada é a presença que tira a ilusão do

controle. Isto nos desespera e por isso o verão seco de Lóri é como muitas vezes nos

encontramos: numa vida seca, mas na qual preferimos continuar fingindo, para não

termos que admitir seu vazio e a nossa dor.

Mas, para Lóri, já atingida pelo diálogo proposto por Ulisses – diálogo consigo

mesma, com a vida e com o silêncio - não há mais como fugir. Então ela se percebe,

percebe como está longe, como está vazia de si mesma, do que lhe é próprio. Sua vida,

infértil e paralisada, mais parece o verão quente e insuportável, verão largo como o

pátio vazio da escola:

42
Op. cit., p. 22.
43
Op. cit., p. 23.
44
Op. cit., p. 23.

33
Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura pesada:
como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez límpida e
quente. A noite que não vinha, que não vinha, não vinha e era impossível. E seu
amor que agora era impossível – que era seco como a febre de quem não
transpira era amor sem ópio nem morfina. E “eu te amo” era uma farpa que não
se podia tirar com uma pinça.45

Sem suor, sem sal, sem lágrima, sem água: neste deserto, o que é a noite

impossível? A noite é, mais uma vez, uma imagem-questão ligada ao nada, ao

inexprimível, ao inexplicável. Livres da luz imponente do Sol que a tudo faz ver, os

seres humanos se encontram no abismo das trevas, do inconsciente, dos sentimentos,

dos sonhos. E nela podem os deuses realizar todas as suas proezas. A noite é, ao mesmo

tempo pesadelos e monstros, encontro com o desconhecido de nós mesmos, mas

também sono reparador, possibilidades de vida, engendramento de um novo dia. Assim,

a noite nos põe muito próximos da presença do nada, das infinitas possibilidades, do

silêncio, da doação inexplicável de tudo. Neste horizonte, vemos uma mulher tomada

pelo impossível do amor: completo silêncio. Aquilo que nos deixa sem saber nada. E

isto é intolerável. A palavra é esta: intolerável.

Mas Lóri diz:

Quero que isto que é intolerável continue porque quero a eternidade. Quero esta
espera contínua como o canto avermelhado da cigarra, pois tudo isso é a morte
parada, é a Eternidade de trilhões de anos das estrelas e da Terra, é o cio sem
desejo, os cães sem ladrar.46

Lóri aceita o intolerável, isto quer dizer: o intolerável de ser um ser humano e

necessitar prementemente ser o que é, e isso ser doloroso e cortar o ar. E só então

45
Op. cit., p. 23.
46
Op. cit., p. 24.

34
ela ouve alguma coisa. Uma coisa também seca que a deixa seca de atenção. É
um rolar de trovão seco, sem uma saliva, que rola, mas aonde? No céu nu e
absolutamente azul nenhuma nuvem de amor que chore. Deve ser de muito
longe o trovão. 47

O processo da mulher que Lóri é, procurando-se no horizonte do que não é,

revela-se aqui:

a urgência é ainda imóvel mas já tem um tremor dentro. Lóri não percebe que o
tremor é seu, como não percebera que aquilo que a queimava não era o fim da
tarde encalorada e sim o seu calor humano. Ela só percebe que agora alguma
coisa vai mudar, que choverá ou cairá a noite.48

O que vai mudar? Qual é o processo? Qual é o caminho? Essas são as nossas

perguntas. As perguntas de nossas vidas. Mas que Lóri e nós não sabemos responder. E

é nessa angústia (a angústia é o que nos permite saber-nos humanos, doação do vazio)

que Lóri telefona a Ulisses.

Ulisses dá então a Lóri a sabedoria do silêncio. Não saber tudo. Mas

compreender – talvez a dor, talvez a salvação – do “apesar de”:

Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer.
Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi
o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha
própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você
enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo
que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com
alma também. Por isso não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo
for preciso.49
A locução “apesar de” tem o sentido claro de um conflito, mais especificamente,

da ação de ir contra algo que obstacula um caminho. Mas amar, comer, morrer, são

coisas que, a princípio, pensamos fazer simplesmente. O que há nas ações humanas que

47
Op. cit., p. 24.
48
Op. cit., p. 25.
49
Op. cit., p. 26.

35
elas nos pareçam oferecer resistência, que elas signifiquem obstáculos a algo?

Justamente o fato de não haver nada mais ambíguo do que o agir humano, de, ao

contrário de nós sermos previamente delimitados e definirmos nosso agir, nós nos

situarmos na busca incessante que nos toma no agir como questão.

Lóri, “apesar de”, é alguém repleta do desejo por algo diferente, indeterminado,

já pressentido como uma vida num modo de ser outro que a dor. É nisto que Lóri se

debate. O não-saber é, para ela, realidade intolerável, ao mesmo tempo, concreta e viva

e fértil dentro de si. A realidade do não-saber nela se faz viva e inicia uma

transformação. A transformação de um ser humano naquilo que é: o encontrar-se no

entre ser e não ser.

E Ulisses, que também só quer o impossível, isto é, o humano do homem, se

coloca em espera.

A transformação começa pelo silêncio. Só o silêncio permite começar um

diálogo, em primeiro lugar, um auto-diálogo. Pois, contrariando suas tentativas de

compactuar com uma espécie de mediocridade de viver, é o silêncio que diz a Lóri de

sua perdição real: como quando procurara a costureira, num bairro distante de Paris, e

não sentira a noite gelada cair. No medo e na dor, esquecera o nome de seu hotel,

tanto o nome dos hotéis em todas as cidades do mundo se pareciam e ela


morara ou apenas pousara em tantos. Se não se lembrasse nunca do nome do
hotel, ninguém a encontraria, ela ficaria morando naquele bairro sujo e negro e
de edifícios enegrecidos, isolada do resto de Paris, e teria que mudar de vida
para sobreviver.50

O hotel era um abrigo temporário, em meio a uma viagem. Viagem é passagem,

é travessia. Travessia vem de trans, que é a tradução da palavra grega metá, que diz

entre (como vimos no questionamento de Heidegger em O que é Metafísica), e de

50
Op. Cit., p. 46.

36
vertere, que significa verter. Nós somos vertidos para além de nós mesmos, no entre, no

metá, e ao mesmo tempo nele também nós vertemos. Este verter-se a todo tempo no

entre são os caminhos que fazemos ao longo da vida.

Nestes caminhos ainda pouco propriamente seus, Lóri havia feito muitas

viagens. Passara muito tempo em lugares desconhecidos e distantes. E morar em

diversos hotéis, todos iguais, é mais ou menos o que vamos fazendo durante a vida.

Moramos em locais parecidos, dentro de nós mesmos. Buscamos pessoas e realizações

que nos pareçam com abrigos. Afinal, no meio do desconhecido, precisamos de uma

habitação.

No ensaio Construir, Habitar, Pensar, Heidegger nos lembra que o verbo bauen

(construir) tem sua origem no alto-alemão buan, que significa habitar, permanecer,

morar. Estas palavras têm uma relação profunda com o verbo ser, por exemplo em ich

bin, eu sou, du bist, tu és. Pois “a maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual

somos, os homens sobre esta terra é o buan, o habitar.”51 E este habitar significa

essencialmente demorar-nos junto às coisas, no resguardo da simplicidade dos quatro

(Geviert): terra, céu, mortais e imortais. Os mortais habitam na medida em que salvam a

terra, acolhem o céu como céu, aguardam os deuses como deuses e coduzem seu próprio

vigor, como seres capazes de morte, fazendo uso dessa capacidade com vistas a uma

boa morte.

Esquecer o nome do hotel é um sentimento de perder a habitação: alijar-se do

abrigo do humano, perder a proximidade do que somos enquanto demora junto às

coisas. Por um momento, Lóri esquecia o lugar para onde deveria voltar e caía numa

liberdade abissal de poder ir a qualquer lugar ou não achar lugar algum para ir.

51
HEIDEGGER, Martin. Construir, Habitar, Pensar. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes,
2001, p. 127.

37
Esta liberdade nos é profundamente desconfortável, enquanto possibilidade para

todas as possibilidades, se quisermos nos manter presos a um limite definido. Mais uma

vez, isto é silêncio.

Silêncio, dor e liberdade são palavras-questões que, nesta obra, vão muitas vezes

se interligar e se substituir. Uma Aprendizagem é justamente a travessia de Lóri por

diversos níveis de silêncio, tons de dor e horizontes de liberdade. A personagem se

transforma: o silêncio, a dor e a liberdade, vistos com angústia pela Lóri que abre o

romance e com alegria pela Lóri que o fecha, são os mesmos. A realidade é a mesma. É

a concretude do viver. Justamente isto é o que se coloca de uma maneira inaugural na

obra de Clarice: a concretude da realidade e a capacidade e o desejo de um ser humano

de vivê-la.

Assim, o silêncio como perdição é o inferno, o estar cravado na dor do entre. É o

dar-se conta de que há um real, e que este real não é produzido por mim, nem pelos

meus desejos e nem por minhas decisões. É o real que se dá, de maneira inexplicável,

sempre liminar, sempre ainda retirando-se e não se deixando compreender

completamente. E Lóri, no início do romance, é um ser humano com muita dificuldade

de viver a concretude deste entre, a vigência do dar-se da realidade, no tempo, na

multiplicidade. “Você é das que precisam de garantias”,52 diz Ulisses, quando propõe a

Lóri viver a alegria. E isto é exatamente o que Lóri é. Diante do silêncio, da

fundamental impossibilidade de definir a vida, Lóri se fecha, se guarda, contém suas

possibilidades, esconde o rosto sob uma maquiagem, uma máscara. E isto por um medo,

uma decisão profunda de não sentir a dor. A dor de sua perdição real.

O medo, porém, é um sofrimento perene. É a necessidade de proteção o tempo

inteiro. É a necessidade de fechar portas e afivelar máscaras, e a decisão de preferir o

52
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.59.

38
sentimento conhecido à experienciação incerta, a dor conhecida à possibilidade da

alegria.

E as palavras de Lóri, em sua carta a Ulisses são: “Então, se há coragem, entra-

se nele, vai-se com ele para o Inferno”53. Lóri vai viver a travessia, e este é o ponto

importante: ela sabe que é difícil abrir-se ao desconhecido, mas deseja, e procura

coragem.

O silêncio vibra a cada página deste romance, e vai, na verdade, construindo-o.

E o silêncio é Terra: terra que se retrai em todo manifestar-se da physis. Terra que diz

exatamente o movimento que Heráclito nomeia: “Physis kryptestai philei.”54

então, do ventre mesmo, como um estremecer longínquo de terra que mal se


soubesse ser sinal de terremoto, do útero, do coração contraído veio o tremor
gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo – e em sutis caretas
de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um petróleo rasgando a terra –
veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som algum até para ela
mesma, aquele que ela não havia adivinhado, aquele que não quisera jamais e
não previra.55

Terra, terremoto, útero, são palavras que remetem ao mistério criador da vida.

Mistério criador da vida é também a mulher. A mulher vai nascer do silêncio. Do

silêncio da terra precisa nascer uma Lóri capaz de viver concretamente o real, no seu

entre ser/não ser, apropriar-se de si mesma neste entre, e só nele poder descobrir

efetivamente o sentido do amor.

53
Op. cit., p. 38.
54
HERÁCLITO, Fragmento 123.
55
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.13.

39
1.2 A PAIXÃO COMO HORIZONTE DO INVISÍVEL

Como no amor em que a oposição pode ser um pedido secreto. 56


Clarice Lispector

Lóri vivia uma vida comum, sem grandes questionamentos – para evitar a dor –

até o momento em que se apaixona por Ulisses. A partir daí, o turbilhão, o terremoto, o

silêncio do entendimento de si mesma e da vida, e dele, e do amor, fazem uma presença

que ela não é capaz de conter. Parece que algo se move dentro dela, ao qual ela resiste,

mas não sabe a quê. E isto é mais forte do que ela.

O que acontece a Lóri é que, nesta paixão, ela é tomada por uma procura

originária.

Uma procura originária significa a busca que não pode se satisfazer com

explicações sobre o sendo, pois reconhece que o sendo só é em seu elemento próprio,

que é o ser. Lóri quer a vida em seu elemento próprio e não sabe dizê-lo.

E não poder dizê-lo é uma condição. Uma condição do pensamento que, já

intensamente dominado pelos conceitos de uma tradição metafísica (como explicitamos

no ponto anterior) pensa poder ser sempre somente representação. Mas é preciso

reconhecer que, em toda representação, há uma condição de possibilidade da

representação, que já não pode ser representada. Como diz Emmanuel Carneiro Leão,

“ninguém pode pular a própria sombra.”57 Isto que é irrepresentável, este caráter pré-

ontológico é o elemento próprio que permite o pensar, é o ser.

O ser não pode ser dito, não pode ser representado, porém, é experienciado

originariamente por nós o tempo todo. Isto, de maneira muito simples. Tão simples que

tem se tornado o mais complicado para nós, que esquecemos o vigor de toda

56
Op. Cit. p. 79
57
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Introdução a Ser e Tempo, In: HEIDEGGER, Ser e Tempo. Petrópolis:
Vozes, 2006, pág. 550.

40
manifestação imediata, o vigor originário da physis enquanto dar-se e retrair-se, fala e

silêncio, aparecimento e velamento. Mas que poderíamos e podemos compreendê-lo

imediatamente uma vez que nos voltássemos às próprias coisas. Não há um lugar

especial onde esta busca originária se dá: nem a literatura, nem a filosofia, nem o mito,

nem a religião. Essa é a busca de todas as experienciações humanas. Por isso Heidegger

não vê a filosofia, primordialmente como uma construção de conhecimento, o que o

difere de todos os filósofos da tradição metafísica. Como coloca Manuel Antônio de

Castro, Heidegger entende a filosofia como uma “experiência de pensamento, do

mesmo nível ontológico da religiosidade, da mitologia, da poesia, da vida e da morte e

de toda mentalidade, no sentido de todos os processos mentais e não mentais do

homem”.58

A questão aqui parece ser: o conhecimento não é uma espécie de chave que abre

portas para a verdade, ou ser, que está atrás das coisas. E isto não porque o

conhecimento não abra portas. É porque as portas que abre, escancaram o Nada. E,

diante do Nada, ao invés de se jogar, o conhecimento se retrai.

A busca originária para além do conhecido e do conhecimento desfaz, muito

simplesmente, a posição de controle e criação de tudo a partir de si, que o sujeito

metafísico tanto teima em manter. E isto nos remete a uma palavra muito antiga, mas

primordial: pathos.

Pathos vem do verbo paskhein, que significa “sofrer, agüentar, tolerar, deixar-se

levar por, deixar-se convocar por”.59 E vamos procurar evitar aqui que ela seja tomada

no sentido que adquiriu a partir da modernidade, como paixão, no âmbito de uma

psicologia/filosofia do indivíduo. Se reconhecermos que o que o pensamento faz é

buscar o elemento originário de tudo o que é, que é o ser, e que só nos movemos e

58
CASTRO, Manuel Antônio de. A Poiesis como Amor. Faculdade de Letras da UFRJ, mimeo.
59
HEIDEGGER, Martin. O que é isto – a filosofia? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo:
Abril Cultural 1973, pág. 219.

41
somos isto ou aquilo porque já somos doação deste elemento originário, o “ser tomado

por” configura algo muito mais amplo e de conseqüências ontologicamente mais

profundas, do que uma mera paixão – vista como paixão do sujeito por um objeto, no

domínio dos entes e à luz do entendimento científico.

Heidegger traduz a palavra pathos por Stimmung, disposição.60 Dis-posição, o

ser tomado por, diz essencialmente de um ente que transcende a si mesmo por ser

perpassado por um silêncio essencial – pelo nada – e ser, assim, tomado por todas as

suas questões. As questões, o nada, o silêncio são o mais primordial, e originário do

homem, e não o contrário. Isto nos coloca na dor de modo que não podemos fugir. Mas

tentamos.

Heidegger coloca que Stimmung, disposição, pathos, não é um sentimento

secundário como gostamos de pensar, mas um acontecimento fundamental do entre-ser.

Queira ou não o homem se ver desta maneira, a realidade se dá sempre na tensão e na

liminaridade, pois o homem não é apenas ente. É um ente aberto e jogado num projeto

do ser, tentando realizar neste aberto aquilo que é. É, assim, o pathos que nos diz o que

somos: seres no horizonte da morte, e sempre em tensão (real e efetiva) com o não saber

e o não-ser. É o que diz a palavra travessia.

O que Lóri teme, desde o início, é a travessia. Assim, o medo de viver, o medo

da dor com que Lóri se debate não é algo superficial nem simples. É o problema grave

de um comportamento há muito tempo adotado por nós, ao longo de séculos de

esquecimento das questões, numa tentativa de conter a incerteza da vida.

A filosofia, no último século dedicou-se intensamente a nomear e compreender,

e buscar os motivos desta dificuldade. Para Nietzsche, por exemplo, a tradição da

interpretação filosófica – tendente sempre para a afirmação das verdades mais

60
Op. cit. p. 219/220.

42
interessantes para os grupos dominantes – transverteu todo o sentido do questionamento

filosófico numa simples afirmação de uma moral, transformando aquilo que era to

agathon, a característica do bom e do forte, da afirmação da vida, nos valores da

submissão e do ressentimento, e na fantasia do além-mundo que os justifica.61

Já Heidegger busca, no âmbito deste questionamento, e a partir da tentativa

fenomenológica de retomada do “dar-se” das coisas, voltar ao sentido originário de cada

uma das palavras e conceitos clássicos da filosofia. E com isto, durante toda a sua vida,

elabora um pensamento voltado para estas questões originárias, aberto para o dizer da

língua grega e dedicado a ouvir a fala do ser, a fala da linguagem, para além da

linguagem instrumentalizada, pautada sobre o esquecimento da pergunta pelo sentido.

Heidegger propõe todo um esforço de buscar mais profundamente o pensamento grego,

tirando de sua frente o esquecimento do não-saber, o esquecimento da ambigüidade e da

liberdade fundamentais, o esquecimento do ser como questão.

Neste contexto talvez possamos entender melhor a paixão de Lóri. Uma paixão

que, para ela mesma, a princípio, é “apenas” uma paixão. A paixão por um homem, que

ela deseja, ao qual quer se ligar – “o que é que ele queria dela além de tranquilamente

desejá-la?62 Não parece, mas esta é uma pergunta com uma dimensão muito profunda.

Pois, para a pessoa que Lóri sempre havia sido, era simples ligar-se a alguém, de

preferência da maneira menos sofrida possível. E tudo o que ele poderia querer era

tranquilamente desejá-la, pois isso seria fácil, ela era uma mulher “fácil”. Porém, nesta

ligação – aquela que ela teve com os seus cinco amantes – o envolvimento tem que ser

falso. Não pode haver um deixar-se tomar. Não é como com Ulisses, a quem ela

realmente permite, ou não consegue evitar, por estar tomada, que entre em sua vida. Em

61
Sobre isto, ver: NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
62
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.16.

43
diálogo com Ulisses – que, veremos, traz a questão do sentido e da escuta – ela já não

consegue não estar em diálogo consigo mesma e com tudo.

e agora a angústia lhe vinha de novo porque de novo descobria que precisava de
Ulisses, o que a desesperava – queria poder continuar a vê-lo, mas sem precisar
tão violentamente dele. Se fosse uma pessoa inteiramente só, como antes,
saberia como sentir e agir dentro de um sistema. Mas Ulisses, entrando cada
vez mais plenamente em sua vida, ela, ao se sentir protegida por ele, passara a
ter receio de perder a proteção - 63

Ela tenta, em diversas passagens, uma ligação com Ulisses parecida com a que

ela faria dentro do “sistema de uma pessoa totalmente só”. Faltava aos encontros sem

lhe avisar nada, tentando convencer a si mesma que não precisava dele. Ou como no dia

em que Ulisses fora à sua casa para dissuadir o homem que a esperava: Lóri de camisola

curta e transparente convida-o para entrar. Ulisses pára, fica no limiar, e recusa a

proposta.

Ela precisa se ouvir. Precisa ouvir o próprio silêncio. E precisa se transformar.

Não sabe em quê, nem como. Não sabe o que pede este homem que, de maneira

arrasadora toma a sua vida. A pessoa que ela era já não é capaz de amá-lo como ele

pede, como esta experienciação exige dela. Ela sofre e foge, mas também não consegue

calar essa necessidade dele, talvez justamente porque já não possa mais fingir e calar a

paixão de viver. Essa paixão de viver já não diz algo definido, pois como definir vida,

para sabermos o que é paixão por vida? A partir da experiência de Lóri, já não podemos

mais dizer o que é paixão. Que paixão é esta entre Lóri e Ulisses que já não satisfaz os

cânones de uma relação amorosa como costumamos entender? O que Ulisses quer de

Lóri? Ou será que a pergunta não seria: o que a paixão quer dos dois? De cada um de

nós?

63
Op. cit., p. 19.

44
Lóri começa a perceber que a paixão por Ulisses não é uma paixão que ela tem,

mas a paixão que ela é. Isto se tornou para nós uma questão.

A paixão é como um rasgo no centro da vida: o frêmito; o absoluto tomamento

do corpo; a incapacidade de conter a febre; o não saber dizer. E o desespero do abismo,

e o salto, e a iniqüidade do sangue. Ou nas palavras de Florbela Espanca: “E o meu

coração que tu não sentes / Vai boiando ao acaso das correntes / Esquife negro sobre um

mar de chamas…”64

O meu coração: o cerne, o permanente, a essência de tudo que se concentra e

impele toda a vida a circular no meu corpo. O meu coração que o outro não sente, pois

se sentisse, como poderia não ser também tomado por tanta intensidade, por tão

absoluto mistério? Não sentido, tomado, só pode boiar em chamas, ser queimado e

consumido por isso que pode ser somente vivido...

Quanta mentira há em querer esquecer que é no acaso das correntes que somos

vida, e quão profundos mares de chamas são os nossos dias! Mas as verdades acerca da

vida, aquelas que decorrem da nossa cultura moral pouco questionada, nos remetem

simplesmente à vulgaridade e à nocividade da paixão. A partir do ponto de vista do

sujeito que não pode perder o “controle” sobre a realidade, (“sistema de pessoa

inteiramente só”) – a paixão só pode ser mesmo algo perigoso, indesejável. Paixão é,

afinal, quando nos perdemos daquele caminho definido, e podemos traí-lo. Trair vem

do verbo traere, que significa arrastar, e é exatamente o que faz a paixão: arrasta, leva,

não pergunta.

Lóri é arrastada por um desejo incoercível. Esse desejo pode ser muito

vulgarmente o desejo dos sentidos. E que é, naturalmente, o sentido imediato do verbo

64
ESPANCA, Florbela. Frêmito. In: Sonetos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 147.

45
erasthai, “desejar ardentemente”, de onde vem Eros, a dimensão profunda da questão

que estamos tratando.

É preciso deixar que o mito fale, enquanto imagem-questão. Pois Eros tem

estado presente em toda a História da nossa civilização pelo menos desde as teogonias

gregas mais antigas. Em Hesíodo, Eros é uma das três entidades primordiais, que

preexistem à formação do universo, junto com Caos (o Abismo) e Gaia (a Terra). Eros

tem aí e sempre um enorme poder, o da geração, capaz de manter a coesão e a

perenidade do universo. Essa característica de Eros como uma força fundamental do

Cosmos jamais será perdida, ainda que este deus, que primitivamente foi representado

como uma pedra bruta em Téspias, fosse sendo antropomorfizado até a figura que se

tornou clássica do menino alado, do cupido.

Aristófanes, em Os Pássaros, conta, sob inspiração órfica, o mito de Eros:

No começo era o Vazio, e a Noite e o negro Érebo e o vasto Tártaro; nem a


terra, nem o ar, nem o céu existiam. No seio infinito do Érebo, primeiro a noite
de negras asas produziu um ovo sem germe, do qual, no curso das estações,
nasceu Eros.65

De cada metade da casca deste Ovo de que Eros nasceu, se originaram Gaia (a

Terra) e Urano (o Céu). Assim, Eros é a força primordial entre Céu – os imortais, os

deuses, e Terra – a physis e o velar-se, a força criadora.

Nada é mais originário no homem do que esta força geradora, que se dá pelo fato

de estar sempre entre céu e terra. A palavra Eros nomeia um deus, mas pede que

entendamos que Amor é esta força do entre, seja ela divina ou mortal.

Como podemos ver, Eros não pode ser entendido numa mera paixão dos

sentidos, como poderíamos dizer na postura dicotômica que sustenta o homem

metafísico. Aliás, esta separação de corpo e alma, matéria e espírito, res extensa e res

65
BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

46
cogitans já não se sustenta mais nem diante da perspectiva do conhecimento científico.

Cada vez mais os biólogos, geneticistas, físicos e neurocientistas provam que não há

nada como um “eu” abstrato dentro, ou acima, ou em qualquer lugar do corpo humano.

Eros assim como pathos são sentidos misteriosos da vida, vividos pelos humanos, e é

neste pensamento que desejamos nos situar para compreender Lóri e Ulisses como seres

humanos tomados pela paixão, pelo amor, por um entre que os pede para viver além do

viver que conhecem.

O Banquete de Platão nos oferece uma interpretação de Eros como este entre

que estamos buscando compreender. Em seu discurso, Sócrates diz que Eros é um

dáimon, um intermediário entre deuses e homens, que, por estar a igual distância dos

dois, preenche o espaço e configura uma força de união. “O intervalo que separa uns

dos outros, os daimons o enchem; são o vínculo que une o Grande Todo.”66 Por ser um

dáimon, tem que ser filho de um deus e uma mortal, ou vice-versa. Platão coloca que

Eros é filho de Penía, a pobreza, e Poros, o expediente. Da mãe herdou a necessidade,

os pés descalços, a fome, e do pai a capacidade de estar sempre buscando sair do apuro

da necessidade (poros significa “aberturas para o todo”). Está, assim, a meio caminho

entre a feiúra e a beleza, a ignorância e a sabedoria e é sempre buscador daquilo que

ama.

O amor é filósofo. Aqui Platão demonstra um posicionamento mencionado por

Heidegger em O que é isto – a filosofia? Pois, para o pensamento originário, a sabedoria

era um acordo com o logos, o homolegein, o dizer de acordo com, sob a inspiração do

logos. A partir de Platão, modifica-se a idéia de filosofia de um singular acordo, para

uma aspiração a, na tentativa de resguardar a sabedoria contra os ataques dos sofistas.

66
ROBLEDO, Antônio Gómez. Platón. Lós Seis Grandes Temas de su Filosofia. México DF: Fondo de
Cultura Econômica: 1993, p. 401.

47
Eros, para Platão, está pleno deste sentido de aspiração a, aspiração ao bem, à

sabedoria, à beleza.

Um sentido muito próximo tem a palavra philía. Eros e philía não podem ser

entendidos separadamente, como dois conceitos estanques, pois falam da mesma

maneira deste aspirar a, que é condição humana. Isto podemos ver ainda em dois outros

diálogos de Platão, no Lisis, e no Fedro.

Lísis é o diálogo onde aparece, em germe, esta concepção de Platão do amor

como tendo uma natureza sintética, intermediária, ou seja, radicada no entre. Neste

diálogo, Sócrates pergunta pela natureza da amizade, e não encontra outra senão o fato

de que o homem tende para o bem absoluto, e a amizade se dá em função do bem. Não

queiramos entender este bem como o bem moral, pois, em Platão, o bem é algo de uma

profundidade toda especial. Assim como lemos na República, o Bem – a Idéia do Bem –

é o Sol. E o Sol é o que dá possibilidade de tudo ser, e de tudo vir à luz, é a

possibilidade de toda possibilidade. “O Dia e a Noite são a clareira do Sol, assim como

o Ser e o Não-ser são a clareira do Nada”67. A tentativa de definir o Bem absoluto como

algo – seja em que esfera for – desfigura completamente o pensamento aberto à

infinitude do próprio pensamento, à radicalidade da vida do ser humano enquanto ser

que não pode se definir por conceitos.

O diálogo Lísis é cortado exatamente no ponto em que Platão fala do bem,

terminando forma aporética: Sócrates afirmando que aqueles que se julgavam amigos,

não foram capazes de descobrir o que era a amizade. Isto é mais uma maneira deste

pensador demonstrar o quanto pensar é estar tomado por este abismo de não-saber.

67
CASTRO, Manuel Antônio. O Sol e o Nada. In: www.travessiapoetica.blogspot.com

48
O abismo do não-saber é a paixão de cada um, é o estar tomado que cada ser

humano sofre e tem que atravessar. E quando esta paixão torna-se pensamento, ela é um

lançar-se.

Por isso é o thaumatzein que é a arché da filosofia, isto é, aquilo que nela impera

e a carrega através dos tempos. “Thauma” significa admiração, e o verbo “thaumatzein”

é admirar-se, assustar-se, retroceder diante de. É a admiração que nos faz pensar: o

susto do abismo do Nada. Tanto Platão quanto Aristóteles reconhecem nisto o pathos da

filosofia, o que não quer dizer o pathos de uma disciplina destinada a algumas pessoas,

mas o pathos de uma vida de pensamento.

No Fedro, Sócrates se vê diante da necessidade de dizer uma palinódia, para

compensar a ofensa que teria feito ao deus do Amor, no discurso em que afirmava que

seria de mais valia conceder favores a quem não nos ama, pois aqueles que amam estão

tomados de delírio. Isto seria verdade somente se todo delírio fosse ruim, porém,

Sócrates se retrata, reconhecendo que há quatro espécies de delírios que são bons, e

divinos, isto é, inspirados pelos deuses. A quarta e última espécie de delírio é

justamente o delírio amoroso. É neste delírio que “voltam a nascer as asas da alma”68,

com as quais pode voar e contemplar tudo o que é belo, sábio e bom.

A contemplação da beleza, da sabedoria e do bem é, para Platão, a filosofia.

Assim, temos que a filosofia é o amor por excelência, e um dom dos deuses. Mais uma

vez, não podemos pensar que filosofia aqui signifique a disciplina filosofia como a

conhecemos hoje. Mas, muito mais primordialmente, Platão diz que estamos tomados

pelo amor enquanto seres viventes – tendentes ao bem, à beleza, à sabedoria, isto é, no

caminho do entre, no que somos e não somos: “nós que também somos atingidos pelo

sopro do deus do Amor, fugindo e nos aproximando da verdade.”69

68
PLATÃO. Fedro. In: Diálogos. Mênon – Banquete – Fedro. Porto Alegre: Ed. Globo, 1954, p. 243
69
PLATÃO. Fedro. In: Diálogos. Mênon – Banquete – Fedro. Porto Alegre: Ed. Globo, 1954, pág. 243

49
Entendemos, com Platão, que o amor é aquela busca originária, que nos leva à

apropriação daquilo que nos é próprio. Por isso a filosofia é uma paixão. É por isso que

a paixão nos envolve e “nos toca, em nosso ser, de maneira inegável e que não nos

permite rodeios.”70 Como Lóri e Ulisses, que, envolvidos numa paixão, precisam

transformar-se e transformar-se é essencialmente transformar-se no que são.

Lóri é uma personagem que nos lembra da paixão o tempo todo. Em primeiro

lugar, pelo seu nome: Lóri é o diminutivo de Loreley, e Loreley é uma figura mítica de

significados intensos relacionados à paixão, à sedução, ao perigo, à morte, à busca, ao

surpreender-se, ao render-se. Sua lenda tem origem em uma região rochosa do Reno,

uma das de maior perigo para a travessia dos barqueiros. Este perigo sempre suscitou

fascinação, e Loreley foi cantada em diversas versões. A versão mencionada por Ulisses

é a do poema Die Loreley, de Heine, a partir do qual tenta explicar a Lóri a beleza de

seu nome. A Loreley de Heine é uma sereia de longos cabelos dourados que se penteia

nos rochedos do Reno, e canta uma melodia estranhamente maravilhosa e poderosa. O

barqueiro que passa em seu “pequeno barco” é tomado por uma “dor selvagem”,

“indomável” (Ergreift es mit wildem Weh), de maneira que nem sequer vê o rochedo, e

só tem olhos para “as alturas”. E o poeta termina:

Ich glaube, die Wellen verschlingen


Am Ende Schiffer und Kahn,
Und das hat mit ihrem Singen,
Die Loreley getan

Que poderia ser traduzido assim:

Penso que as ondas irão devorar


Afinal, o homem e o barco,

70
Como diz Heidegger em O que é isto – A Filosofia? In: COL. Os Pensadores, vol. XLV, Sartre e
Heidegger. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1973.

50
E isto, com seu canto,
Foi Loreley quem fez.

O canto poderoso de Loreley é capaz de tomar o barqueiro de maneira tão

completa que ele não vê o perigo. E isto parece ser o que a paixão faz, seja ela uma

paixão vulgar dos sentidos, seja a paixão pelo pensamento, pois ambas dizem

fundamentalmente o mesmo: que somos nós os barqueiros em pequenas canoas,

navegando por rios de águas bravias em meio de rochedos perigosos.

Este ser barqueiro é o pathos de que somos tomados enquanto seres do entre.

Toda tentativa de pensamento e toda experienciação humana é tentativa de corresponder

a um apelo do ser, da realidade, que já nos toma desde o princípio.

A travessia de Lóri nos dá a pensar toda esta questão do amor como entre, e do

ser humano no horizonte do ser e não-ser. Pois a sua travessia não é outra coisa senão

necessidade de corresponder a isto: ser e não ser – o mistério de tudo. Lóri não busca

outra coisa senão transformar-se no que é, originando-se, como a vida, daquilo que

ainda não é.

É esta a aprendizagem que Ulisses propõe a ela, desde o início: “que ela, ao lhe

perguntarem seu nome, não respondesse “Lóri”, mas que pudesse responder “meu nome

é eu, pois teu nome, dissera ele, é um eu”71. Ele quer que ela consiga não pensar mais

ela mesma, as pessoas e tudo o mais apenas como nomes, pois o nome não basta: há um

eu. Há um eu que é e não é. Eu, portanto, é liminaridade. A aprendizagem como

conquista do que é próprio é o poder dizer o próprio eu, que é o pathos, que é philei,

que é entre.

O desejo de Lóri de conquistar vida é a vibração deste pathos. Seu estado, seu

Stimmung, no início do romance, é o de ódio, de repulsa – “Era por ódio que não havia

água. (...) Por seco e calmo ódio, quero isso mesmo, este silêncio feito de calor que a
71
Op. cit., p. 13

51
cigarra rude torna sensível”.72 Mas sabemos que esta afirmação é apenas a fala do

sofrimento de se entregar à dor/paixão. Mas “Ah, a falta de sede. Calor com sede seria

suportável, Mas ah, a falta de sede.”73 A sede que se precisa ter pela vida, a sede que se

precisa ter pelo amor. A sede que nos toma e nos faz pro-cura. Tudo o que Lóri quer,

por mais que se debata e sofra, é aprender a querer a vida, a pro-cura, o amor.

Este querer é uma escuta. Pois a vida já nos foi dada, na pro-cura já fomos

dispostos, no entre já estamos jogados, e o querer já nos constitui enquanto seres

tomados – paixão e destino de cada um. Na paixão como pathos e philei, reconhecemos

mais uma vez o apelo do real, o apelo do mistério, o silêncio vibrando como vida.

E, precisamos reconhecer: é de vida que precisamos, desesperadamente.

72
Op. Cit., p. 24.
73
Op. Cit., p. 23.

52
Capítulo II A DESCOBERTA DA VIDA DOS SENTIMENTOS

2.1 Ulisses e A Escuta

“O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto


sob montanhas de cinzas.”
João Guimarães Rosa

Assim como Lóri, Ulisses é um nome que remete a uma infinidade de questões.

Pois, se Lóri é a sereia cujo canto é capaz de dominar o barqueiro, Ulisses é o barqueiro

heróico, capaz de resistir ao canto de qualquer sereia.

Esta resistência, porém, é muito diferente da resistência paquidérmica de Lóri de

deixar a vida entrar nela: é resistência com vida e pela vida. Ela se mostra na imensa

inteligência que Ulisses, como personagem mítico, encarna. Não se trata de uma

inteligência de quem adquiriu uma longa experiência intelectual, mas de um trato

inteligente com a vida, isto é de uma postura de quem não tenta fugir dela, mas

desvendar seus enigmas. Esta postura é possível a Ulisses porque ele sim já está aberto

à escuta do um apelo que a realidade lhe faz, em seu mistério. Ele já está na travessia.

Desde o princípio do romance, a relação de Lóri e Ulisses se configura sobre

uma diferença – a de que ele seria muito mais “adiantado” na aprendizagem do que ela,

sendo ele quem aconselha, quem espera, quem ensina. Ele demonstra domínio no que

para Lóri é desesperador, demonstra calma diante do fato da vida ser uma condição

inexplicável. É ele quem resiste a ir para a cama com ela desde o primeiro momento,

pois quer mais dela, quer tudo, o que ela não quer dar nem a ele nem a ela mesma.

Inegavelmente, a figura de Ulisses remete à travessia, à busca e ao retorno à

casa, à terra. Remete ainda a uma profunda fidelidade que é a do nunca desistir deste

53
retorno. O Ulisses de Clarice demonstra na busca do amor a mesma força e persistência

do Ulisses homérico: o cumprimento heróico de um destino humano.

O episódio que une diretamente os dois personagens míticos Ulisses e Loreley é,

naturalmente, o da passagem de Ulisses pelas sereias na Odisséia. O herói manda tapar

com cera os ouvidos de todos os seus marinheiros, sendo, porém, o único que escuta o

seu canto. Para não se render, amarra-se ao mastro do navio, e manda que os

marinheiros remem o mais rápido possível.

O que diferencia Ulisses dos marinheiros que também passam pelas sereias é

que ele sim escuta o canto. Escutar, aqui, é a questão.

Como o Ulisses de Homero, o Ulisses de Clarice tem o desejo de escutar mais

profundamente a fala da própria vida. Ainda que seu caminho seja o de chegar um dia a

ser mais humilde, coisa que – como conhecedor de muita coisa – ele não era, há um

apelo que ele demonstra buscar escutar. A sua primeira escuta do apelo está na filosofia.

Ele se abre à escuta da filosofia enquanto diálogo, e talvez por isso se coloque de uma

maneira em relação à vida que se torne mais capaz do que Lóri de suportar o silêncio, de

ser mais capaz de não fugir e mais capaz de querer. “Eu não choro, Lóri. Se precisar um

dia eu grito”.74

Ulisses reúne duas características do herói que contrastam com a fragilidade de

Lóri: a argúcia e a força. Sua argúcia se revela no modo como tem sempre respostas

rápidas e claras, sempre mais rápidas e mais claras do que as de Lóri. Esta sua

inteligência se mostra na transparência que tem com a vida, reconhecendo com clareza o

que o homem é, principalmente, o tamanho da desgraça que é o homem que não se faz

homem, que é a vida que se deixa ser aquém da vida. “Mas eu escapei disso, Lóri,

74
Op. cit., p. 47.

54
escapei com a ferocidade com que se escapa da peste, Lóri, e esperarei até você também

estar mais pronta.”75

A ferocidade é algo primordial. Não se trata de um “mero” instinto, ou de um

“mero” desejo. Somos ferocidade para escapar da peste, nas palavras de Ulisses, porque,

enquanto seres da liminaridade, estamos sempre no Ursprung, no salto primordial.

Ursprung é uma palavra alemã composta do verbo springen, pular e o prefixo Ur-, cujo

som gutural já dá idéia do seu significado: o primordial. Em português, dizemos origem,

que vem do verbo latino oriri, que significa levantar. Mas, metafisicamente, origem é

entendida no sentido de algo causado, com um início no tempo. Se entendermos assim a

essência, ela perde a dimensão que tem de um princípio que continua presente em tudo,

uma vigência da fonte em tudo o que dela se origina. A palavra Ursprung pode ser

melhor entendida, assim, como o originário, o que a todo tempo continua originando.

O originário é, assim, o salto inaugural, que a todo tempo inaugura tudo o que é,

e é aquilo em que a todo tempo estamos nos inaugurando. Compreendendo isto,

movemo-nos numa dimensão de pensamento que já não é mais as dos conceitos

metafísicos, mas o pensamento das questões, do enigma, do abrir-se à escuta da

realidade. A nossa ferocidade é a de poder nos inaugurar o tempo todo, não a partir de

uma vontade individual mas a partir e no diálogo com o real. Pois a realidade não é algo

estático a ser descoberto e dito em conceitos, mas uma essencial disputa do limite no

ilimitado, e do ilimitado no limite. Desta disputa e deste abrir-se a escutá-la, já falava

Heráclito: “Transformando-se, repousa”76

“Transformando-se” fala da physis, dos entes, da multiplicidade, do mutável, do

tempo, do impermanente, do dar-se de tudo o que é, como é. E “repousa” fala do

silêncio, do eterno, do imutável, do permanente, do que é. A pergunta grega “ti to on”

75
Op. Cit., p. 49.
76
HERÁCLITO. Fragmento 84.

55
radicava na questão da permanência deste devir. E Heráclito propõe como resposta:

transformando-se, repousa. Isto é: não há oposição entre o permanente e o mutável,

entre o que é e o como é. O que há é sempre uma essencial disputa entre o permanente e

o mutável que é onde vige e vigora mundo.

Escutar é situar-se no pensamento deste fragmento de Heráclito: é escutar a fala,

as falas, mas também o silêncio. É saber-se imerso no mistério de maneira que não há

outro modo de viver a não ser escutando, que não há outro modo de ser, a não ser co-

respondendo ao ser.

Isto foi dito na palavra grega “logos”, na aurora do pensamento ocidental. Esta

palavra é riquíssima, mas o que nos ficou dela foi muito pouco. Nossa compreensão

habitual de linguagem é baseada na idéia de utensílio, de um código que pode ser

utilizado pelo sujeito para alguma finalidade. Mas a palavra grega falava de uma outra

experienciação, que já mencionamos: a da vigência. A língua grega diz a todo tempo,

em suas palavras, esta vigência.

Neste horizonte, Heidegger apresenta na conferência Logos (Heráclito,

fragmento 50), como a palavra logos chegou a significar falar e dizer. Pois falar e dizer

não tem o sentido instrumentalizado que costumamos dar. Isto se dá a pensar quando

nos remontamos ao verbo legein. Ele diz o mesmo que o verbo legen em alemão:

de-por, no sentido de estender e prostrar e pro-por, no sentido de adiantar e


apresentar. Em legen vive o colher, recolher, escolher, o latim legere, no
sentido de apanhar e juntar.77

Há um traço fundamental que une estes sentidos ao sentido corriqueiro de legein

como dizer: o abrigar. Mas em que medida o dizer abriga?

77
HEIDEGGER, Martin. Logos. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, pág. 184.

56
O único empenho do de-por e pro-por, como legein, é deixar que o que se
dispõe por si mesmo num conjunto, seja entregue, como real, à proteção que o
que preserva disposto. Que proteção é esta? É a proteção da verdade. Pois o
disposto num conjunto está posto e de-posto no des-encobrimento, está
instalado no des-encobrimento, é substrato subjacente no des-encobrimento,
isto é, está abrigado pelo e no des-encobrimento. Ao deixar o real dispor-se
num conjunto, o legein se empenhar por abrigar o real no des-coberto.78

A palavra chave para nos situarmos no apelo de pensamento que faz Heidegger à

respeito da linguagem é o desencobrimento. Pois no pensamento grego, verdade não é

proposição correspondente ao real, mas vigência de algo no desencobrimento: aletheia.

Isto nos abre, mais uma vez, para o imenso e intenso diálogo proposto por

Heidegger com a tradição, agora, acerca do conceito de verdade. Sabemos que toda a

crítica de Heidegger se move no sentido de demonstrar que a interpretação tradicional e

conceitual da metafísica tem respostas muito válidas para o domínio dos entes, como a

ciência, mas esqueceu-se da questão do ser, isto é, do próprio fato de que o ser é uma

questão.

A questão na qual precisamos pensar é a de quais são os conceitos fundamentais

que subjazem às nossas concepções de maneira já tão corriqueira que se tornaram

inquestionáveis? O conceito de verdade é um deles. Desde que o vivo questionamento

de Platão e Aristóteles se transformaram em sistemas – platonismo e aristotelismo – a

verdade passou a ser entendida como uma adequação do conhecimento à coisa. Este

conhecimento é dado em proposições. Mas para que possa haver proposições, a própria

coisa precisa dar-se como tal. Este dar-se, por mais simples que possa parecer, é uma

dificuldade imensa para o homem. Pois o dar-se é ser e não-ser, em que o e tem a força

da palavra philei: “physis kryptestai philei”.79 A physis, tudo o que se dá, ama retrair-se,

velar-se. Isso é um mero jogo de palavras se não formos capazes de compreender a

efetividade do real, o fato de que todo manifestar-se é ambíguo, incerto, temporal e

78
HEIDEGGER, Martin. Logos. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 187/8.
79
HERÁCLITO, fragmento 123.

57
incompleto. Este nos é um fato próximo, simples, mas que buscamos simplesmente

ignorar.

Não seríamos nada com nossas corretas representações, também não


poderíamos nem mesmo pressupor que algo já esteja manifesto, pelo qual nos
guiamos, se o desvelamento do ente já não se tivesse ex-posto a nós naquela
clareira, na qual todo ente se ex-põe para nós e da qual todo ente se retrai.80

O desvelamento do ente é a sua verdade. Assim, o que é dizer, no sentido de

dizer algo verdadeiro, senão situar-se na correspondência desta vigência que é a verdade

do ente? Neste horizonte, só o co-responder é dizer. Todo pensar e todo falar só se dá

nesta dimensão. Na obra de Clarice, a necessidade deste co-responder é colocada de

maneira profunda: “a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre. A mais

premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano.” 81

Tornar-se humano é cor-responder, e este cor-responder só pode se dar numa

escuta. Escuta é, propriamente, pertencimento ao apelo que nos traz a fala, ao apelo que

nos traz o dispor do real em sua disponibilidade. Nas palavras de Heráclito, o escutar é

homolegein, falar-com o logos, colocar-se na postura recolhedora e acolhedora do logos.

Se o ser humano é philei, enquanto ser do entre, e reconhece pelo pathos de ser

tomado pelo silêncio, torna-se então impossível afirmar conceitos que o expliquem e

determinem completamente. Cessa a pretensão da verdade como posse do indivíduo, e

cessa a possibilidade de não mais viver a vida. Por mais que tentemos evitar e conter, a

vida se dá a nós o tempo todo, e nós somos a partir de e neste dar-se.

E é justamente aí que está o prazer e a grandeza de experienciar a vida, ao invés

de ficar o tempo todo buscando máscaras e tentando “cobrir os nervos com uma fina

camada protetora.” É justamente neste horizonte que pode acontecer uma

80
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Tradução: Manuel Antônio de Castro e Idalina
Azevedo da Silva. Faculdade de Letras da UFRJ, mimeo. §101.
81
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.32.

58
Aprendizagem, e uma Aprendizagem dos Prazeres. Ulisses e Lóri, unidos por uma

paixão, tomados no pathos do pensamento, já não podem e não querem mais evitar a

vida: a vida dos sentimentos. O pathos do pensamento, que é, ao mesmo tempo, a vida

dos sentimentos, se dá como questão o tempo todo na obra de Clarice. O fato de Ulisses

ser professor de filosofia já nos recoloca nesta questão. A filosofia é normalmente

entendida como uma disciplina ensinada dentro das universidades, num ambiente e

numa postura radicalmente tomados pela perspectiva da ciência. Mas a possibilidade do

pensamento já diz aquilo que poderíamos colocar adjetivos para dizer: pensamento

livre, pensamento aberto, pensamento filosófico. Adjetivos tautológicos, sem dúvida,

pois tudo o que se faz fora da liberdade, desconsiderando o aberto e ignorando o pathos

erótico da filosofia, simplesmente não é pensamento, é ciência. O horizonte em que a

filosofia como ciência se move é este do já conhecido e já dito pela História da

Filosofia.

Estudar as épocas e refazer o percurso do pensamento é extremamente

importante, uma vez que filosofar é dialogar com o que no dito dos filósofos é dito e

não dito, o pensado e o a se pensar, que nos move. Assim, conhecer é um passo, mas

apenas conhecer é estar sempre falando sobre a filosofia, estando fora dela. Apenas

conhecer é nunca penetrar na filosofia e nunca filosofar.

“A tradição não nos entrega à prisão do passado e irrevogável. Transmitir,


82
delivrer, é um libertar para a liberdade do diálogo com o que foi e continua sendo.”

Esta é a postura filosofante, em relação à filosofia. Pois o que foi e continua sendo já

nos toma muito primordialmente, estudemos ou não filosofia. O que é e continua sendo

é a realidade que em nosso pathos nos toma, nos move, nos tem. O que é e continua

sendo é sempre o a se pensar para o pensamento, é o homem enquanto questão.

82
HEIDEGGER, Martin. O que é isto – a filosofia? In: Col. Os Pensadores, volume XLV. São Paulo:
Abril Cultural 1973, pág. 213.

59
O filósofo no sentido originário é, assim, o entre-ser radicado no amor, no philei,

no apropriar-se do que lhe é próprio: pathos, vida, questão. E o nome Ulisses é uma

imagem-questão muito própria para isto. O homem, como questão, está sempre

buscando uma volta à casa, vivendo a vida como a travessia e aventura de um Odisseu.

O silêncio e a paixão comparecem aqui inegável e concretamente. Sua casa é Terra, é

silêncio – é mulher.

Assim, o que Ulisses e Lóri fazem é trazer para a vida silêncio e paixão, um

trazer que não significa nem provocar nem criar, uma vez que nenhum ser humano seria

capaz de inventar o silêncio e a paixão. O silêncio e a paixão os constituem. E, para

Lóri, são “um monte intransponível no seu próprio caminho.”83 Mas justamente porque

é de silêncio e paixão que ela também é feita, ainda que, para ela, pareça tão difícil

aceder a isto.

Como Ulisses, que “é mais adiantado” faz isso, ou ajuda Lóri a fazê-lo?

Esperando. Esperando que Lóri se perceba como silêncio e paixão e busque apropriar-se

de si mesma, em todo o horizonte de vida que é e não é. À medida que ela vai

diminuindo a resistência à vida, ele a vai chamando para um caminho: o caminho da

escuta. Que é, afinal, o único caminho do pensamento. O único caminho de fidelidade

às questões e à nossa própria vida como pathos do philei, como travessia de amor.

Este caminho é, na obra, muito bonito. Ulisses, talvez já tivesse realmente feito

algumas descobertas importantes no sentido da vida realizar-se plenamente como vida.

Mas a única real diferença que existe entre ele e Lóri é que enquanto ela resolveu cortar

a dor, e preferir uma vida de secura e sede, ele não desistiu.

83
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.53.

60
Eu não digo que tenha muito, mas tenho ainda a procura intensa e uma
esperança violenta. (...) Estou em plena luta e muito mais perto do que se chama
de pobre vitória humana do que você, mas é vitória.84

Pobre vitória humana, mas vitória, é o próprio viver, quando o tomamos

propriamente como nosso, sem fugas. A busca de Ulisses não é de algo pré-definido,

mas sua luta com a vida diz simplesmente de uma entrega a viver.

Não é mesmo com bons sentimentos que se faz literatura: a vida também não.
Mas há algo que não é bom sentimento. É uma delicadeza de vida que
inclusive exige a maior coragem para aceitá-la.85

A delicadeza que Ulisses encontra não pode ser, afinal, uma resposta abstrata.

Delicadeza de vida é quase algo que não se pode nomear: é conhecer o extraordinário

que a todo tempo se dá no ordinário cotidiano: o philei, o entre, o apesar de.

Vivendo e lutando no apesar de em que aprendeu a ver a beleza da vida, Ulisses

ouviu por acaso o canto de uma sereia. Esta sereia era Lóri, de um canto triste e

poderoso, sedutora, sem nada a dar nem a perder. Ouviu um canto de enigma que se

escondia em olhos de prostituta. Um canto que só ele seria capaz de ouvir. Um canto

que só ouve aquele que está aberto à escuta.

Mas esta é uma nova escuta. Não aquela da filosofia que ele poderia ensinar.

Não é mais a escuta de si mesmo, nem a de seus dialogantes, filósofos. E é uma escuta

que ultrapassa todos os seus conhecimentos, que o toma, o apaixona e só não o mata

porque se amarra ao mastro do navio. Seria esta uma escuta de amor?

84
Op. cit. p. 47.
85
Op. cit. p. 52.

61
2.2 O AMOR COMO DIÁ-LOGO

Quais são as escutas que nos fazem sucumbir como os barqueiros do poema de

Heine? Ou quais as escutas que precisamos nos amarrar ao mastro para atravessar?

A escuta do apelo do amor é, sem dúvida, uma das mais difíceis. E Clarice a traz

como questão em Lóri e em Ulisses, na travessia entre o desencontro e o encontro, e na

transformação dos dois, que maravilhosamente perfaz esta obra.

Seria extremamente arbitrário falar da transformação dos dois personagens como

um caminho em direção ao amor. Isto seria um conceito injustificado e não é disto que

tratamos aqui. Não desejamos mostrar que o amor de Lóri e Ulisses é o amor, ou algum

tipo de amor superior. O caminho do amor é indefinível e único para cada um, como

qualquer experienciação humana. Mas o amor enquanto questão se coloca de maneira

universal, no aberto e como o a ser pensado. E Clarice nos lança no abismo, na nossa

mais profunda dor de ausência que é o rasgo do entre na experienciação do amor.

Lóri e Ulisses nos levam pelo caminho de um silêncio que nos diz: a seriedade

da questão do amor se encontra no fato de ela ser radicalmente dada a nós como uma

questão de ser.

E então adentramos a questão mais premente, mais inaugural e mais inaudita:

nós somos, a todo tempo, mas, o que é ser?

Todos sabemos que a questão do sentido e da verdade do ser é a grande questão

da filosofia de Heidegger. Mas para compreendê-la, a primeira coisa que temos que

saber é que esta não é uma pergunta teórica, que nasce de uma espécie de reflexão

isenta e imparcial, que imaginamos que os filósofos alcancem. A pergunta expressa o

nosso ser tomado, o nosso pathos, a nossa dor. Nas palavras de Lóri:

62
mas à idéia de que a paciência de Ulisses se esgotaria, a mão subiu-lhe à
garganta tentando estancar uma angústia parecida com a que sentia quando se
perguntava “quem sou eu? quem é Ulisses? quem são as pessoas? 86

A dor se faz em nós quando perguntamos as perguntas mais cotidianas: o que

sou? O que quero ser? Qual é o sentido do meu agir? O que amo? O que é amar?

Clarice nos joga no abismo desta questão com a obra Uma Aprendizagem, pois

nos abre a um horizonte de amor que nos diz ser, e de ser que nos diz amor. Lóri e

Ulisses buscam ser o que eles são, e nesta busca sim encontram amor. Quando buscam

amor só o encontram em ser propriamente o que são. Uma coisa não se revela sem a

outra. Os personagens são, enquanto questões, aprendizagem de que só podemos amar

no horizonte do ser, e que só podemos ser no horizonte do amor, entendendo aqui ser

como a tensão do ser e do não ser, e do ser e do Nada, e entendendo amor com toda a

sua “contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios”.87

Como veremos mais detalhadamente ao longo deste trabalho, Lóri e Ulisses não

fazem outra coisa senão conquistarem-se a si mesmos, e no auge desta conquista

encontrarem o que há de mais essencialmente humano: a escuta do silêncio que os leva

à liberdade de ser. Só na liberdade de ser experienciam o que de fato é o amor.

Pois assim como não podemos dizer que a questão do ser seja uma questão

teórico-filosófica com uma resposta a ser encontrada em algum lugar, também a

resposta de Lóri e Ulisses é impossível. Ela é o próprio impossível, que só podemos,

afinal, passar a vida a buscar, vivendo. A dor de cada página, o silêncio de cada página,

falam a nossa vida de pro-cura, que não cessa nunca, enquanto somos vida.

E qual é a opção? Cortar esta dor. Desistir da vida experienciada, do impossível,

porque é doloroso demais. Escolher viver como Lóri vivia. Mas esta também é uma

opção muito difícil. É preciso ignorar muito violentamente o humano do homem e a

86
Op. cit. p. 18.
87
Op. cit. p. 48.

63
necessidade da felicidade. É preciso estar atento a sofrer o tempo todo, para proteger-se

dos grandes sofrimentos. E é preciso esperar tempo demais até que o pequeno e o

grande sofrimento se extingam juntos, com a morte.

Lóri e Ulisses, se os pensarmos como imagens-questões, dizem da opção

extremamente rara para nós (especialmente sob o grave peso da cultura ocidental), de

não cortar esta dor. Ambos mergulham a buscar o sentido, na via contrária de toda vida

fácil e definida, na imensamente difícil escuta entre os ecos dos rochedos e sobre o mar

bravio e poderoso.

Sentido se diz em grego telos. Esta palavra é colocada por Aristóteles em sua

interpretação da coisa no horizonte de suas quatro causas (aitiai). Há quatro modos

segundo os quais todos os utensílios respondem e devem, a saber: a matéria, a forma, o

sentido e o ser humano que o produz, (uma vez que o utensílio não é uma pro-dução

natural da physis). A tradição interpreta estas quatro causas como modos absolutos em

que todas as coisas se originam, como efeitos que, uma vez prontos, descansam na

absoluta e estática verdade do ser. Neste sentido, telos é entendido como a finalidade, a

meta a ser atingida, que, de alguma maneira inexplicada, já está dada. Mas telos não

significa isto em grego. É preciso, mais uma vez, apontar a reapropriação do termo,

elucidando-o. Telos é o levar algo à sua plenitude, como faz o ourives com o cálice de

prata, se pensarmos o exemplo dado por Heidegger em A questão da Técnica para o

entendimento das quatro causas. O ourives conduz uma matéria a uma forma, mas não

simplesmente a esta: ele leva o cálice a ser o que será depois de pronto, não apenas uma

matéria formada, mas um utensílio inscrito no sentido do sagrado.


88
As quatro causas são o que deixa “chegar à vigência o que ainda não vige.”

Elas são os modos segundo os quais se dá uma pro-dução, isto é, poiesis. Poiesis é uma

88
HEIDEGGER, Martin. A questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p.
16.

64
palavra que não deve ser compreendida no horizonte que nos é mais comum, da ciência

e da técnica, “cobertos pelas tintas com que nos pintaram os sentidos”, como diz

Caiero.89 Ela nos diz da realidade concreta que somos e com a qual lidamos todos os

dias, mas que não queremos ver. Ela nos diz do mistério que é o real se doando a nós a

cada segundo, mistério do qual nos sentimos criadores e causadores, mas não somos.

Em verdade, é o ser que se dá: poiesis. É a linguagem que fala: poiesis. O homem só é e

fala na correspondência, só é e fala na medida em que já foi doado como poiesis pela

physis. Isto é o dar-se inaugural de tudo a todo tempo: aletheia, desvelamento, verdade.

Aqui deixamos de compreender verdade como proposição de correspondência

lingüística, e passamos a nos abrir à verdade como única concretude de nossas vidas. “A

verdade se dispõe no ente tão verdadeiramente que é o próprio ente que ocupa o aberto

da verdade.”90

Situamo-nos, então, num âmbito em que nada resta senão a tentativa de ouvir.

Abrir-se ao apelo da realidade dando-se a cada instante como poiesis, como disputa

entre ser e não ser, entre vida e morte, entre limite e ilimitado. Isto nos leva a pensar a

nossa vida como escuta. Nem mesmo os limites estão dispostos. Nós somos os

barqueiros em nossas pequenas canoas, e nada mais fazemos do que tentar escutar o

canto da sereia, e atravessar ou sucumbir.

Somos, afinal, o diá-logo. Falas e escutas perfazem nossas experienciações

enquanto tentamos ser, correspondendo ao logos, jogados inevitavelmente no diá. Este é

o telos que já nos foi dado, por já estarmos no entre. Assim chegamos um pouco mais

perto de tentar compreender o telos. Como coloca Emmanuel Carneiro Leão:

89
PESSOA, Fernando. Poema XLVI. In: Alberto Caieiro. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
90
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Tradução: Manuel Antônio de Castro e Idalina
Azevedo da Silva. Faculdade de Letras da UFRJ, mimeo. §137

65
Todavia telos não diz nem a meta a que se dirige a ação, nem o fim em que a
ação finda, nem a finalidade a que serve a ação. Telos é o sentido, enquanto
sentido implica princípio de desenvolvimento, vigor de vida, plenitude de
estruturação. Assim o telos, o sentido, de toda ação é consumar a atitude, é o
sumo desenvolvimento do vigor em sua plenitude. A atitude, como a
consumação de todos os sentidos das ações, to teleiotaton, é, pois, a perfeita
integração de penhor e bem.91

Telos é o princípio em que já estamos, e é o princípio que precisamos com-

sumar. Isto significa apropriar-nos do que já nos é próprio, ser o que somos, realizar o

humano do homem, o vigor de todo o nosso estar-vigendo enquanto vida. Não é outra

coisa o philei de Heráclito.

E também não é outro o sentido da aprendizagem. Uma Aprendizagem ou o

Livro dos Prazeres nos acossa com a pergunta: qual é o sentido? Nós buscamos o

sentido?

Lóri e Ulisses o buscam. E só o encontram quando percebem que não é “algo” o

que buscam, mas simplesmente o silêncio que desde o primeiro momento já havia se

feito presente neles. A caminhada que se abre com uma vírgula se fechará com dois-

pontos e silêncio. O sentido é justamente estar o tempo todo imerso no sentido e

experiênciá-lo enquanto escuta.

Diá-logo, assim, não é algo que o ser humano faz, a partir de sua constituição

como ente. No diálogo fomos lançados na medida em que fomos lançados num projeto

do ser que a todo tempo se retrai para nós. Diá é o prefixo grego que diz essencialmente

“entre”. E logos é a reunião, o desvelar, o que significa: o mundo a cada instante

mundificando. Pensar em diálogo não é possível senão reconhecendo o philei que

somos. E a aprendizagem de Lóri e Ulisses é então este diálogo de cada um dos

personagens consigo mesmo, de um com o outro, e, essencialmente o diálogo com o

silêncio.

91
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II, 156, Vozes, 2000, p 156.

66
Podemos observar como a própria estrutura da obra é intensamente dialogal. Há,

antes de tudo, um encontro, o encontro casual de Lóri e Ulisses. A partir deste, seguem-

se diversos encontros para o diálogo, o heterodiálogo, isto é, o diálogo com o outro.

Mas o que estes diálogos provocam é mais profundo. É o diálogo de cada um consigo

mesmo, o auto-diálogo em que se revela claramente a dimensão de fala e escuta de uma

pessoa em sua interioridade. Diálogo íntimo, diálogo dado no in, é justamente o que nos

faz reconhecer o paradoxal do entre que está em nós mesmos.

O inaugural na obra é, porém, este terceiro diálogo – como em todas as obras de

arte. Lóri e Ulisses só tocarão no que realmente são quando se deixarem tomar pelo

silêncio. Neste momento sim, estão prontos. Neste momento aproximam-se da realidade

do philei que é viver, e podem dar-se. Só podem se dar porque estão no horizonte do

que se doa inauguralmente, porque já não estão mais na tentativa de conter a vida.

Este é o longo caminho do diálogo como transformação. Transformação no

apelo do telos de cada um: encontrarmo-nos no mais essencial, no vigor da vida, no que,

essencialmente, chamamos de amor.

67
Capítulo III “É DIFÍCIL PERDER-SE”

A frase que intitula este capítulo é de A Paixão segundo GH, no parágrafo que

se segue:

Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova
covardia – a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha maior
aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem
me leva a aceitá-la –, na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na
casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É difícil
perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me
achar, mesmo que achar-me mesmo seja de novo a mentira que vivo.92

Este e muitos outros trechos de obras de Clarice Lispector serviriam para

mostrar o quanto ela vivia mergulhada nestas questões do perder-se diante do silêncio e

do mistério, e que só por isso as escrevia. São recorrentes em Clarice temas como o

medo e a coragem, a necessidade de ir, o estranho, o estrangeiro, e a mentira no sentido

mais profundo que é a de não viver. Esta recorrência mostra não simplesmente traços

biográficos – o que não importa focalizar – mas primordialmente o como a literatura (e

a arte em geral) se dá pondo questões em movimento em nós, e que a questão em que a

literatura de Clarice nos mergulha é a da necessidade primordial de cada um de nós

sermos o que somos.

Necessidade primordial, coragem e covardia de se perder e de se achar, de viver

ou de mentir: é exatamente a mesma questão que se desencadeara em Lóri. Sua imensa

covardia a havia mantido em uma vida de mentiras, principalmente da mentira para si

mesma de tentar viver fora da dor - liminaridade de viver. Esta dor que é a nossa

condição de seres-do-entre, e, consequentemente a nossa possibilidade de sermos

humanos. Lóri, tentando se livrar do que sentia apenas como dor, esqueceu a própria

necessidade de vida. Tentava viver como se não fosse humana.

92
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H.. Rio de Janeiro: Rocco, p. 12.

68
Em verdade, muitos de nós, muito profundamente, temos a luta imensa diante do

ter de viver humanamente. Ao mesmo tempo, há uma imensa coragem em abrir-se para

este humano do homem, este apelo que nos toma quando nos damos conta de nós

mesmos como pathos, como paixão.

Covardia e coragem têm ambas a mesma origem: cor, coração, lugar do pathos.

Ainda que uma negue e a outra aceite, ambas falam exatamente do nosso coração que

“há de apresentar-se sozinho diante do Nada e sozinho bater em silêncio, de uma

taquicardia nas trevas”.93

Voltamos, assim, à mesma imagem que demos no início: “as trevas geladas que

são as minhas”. Mas, agora, Lóri não é mais somente medo e dor. Ela começa a se abrir.

Começa a se dar um processo que culminará numa entrega. A entrega tem um sentido

amplo demais para que pudéssemos dizer simplesmente: entrega a Ulisses, à vida ou a

qualquer outra coisa. É tudo isto ao mesmo tempo, é entrega a tudo. A entrega de Lóri

nos levará assim a um dito muito antigo de Heráclito: “escutando não a mim, mas ao

Logos, é sábio dizer-com: tudo é um”.94

Tudo é um é o apelo que Heráclito ouve e nos faz, e a todo tempo em que se dá

vida, realidade, ser, este é o apelo que escolhemos ouvir ou não.

Este é o apelo que muito de longe se faz sentir neste mundo já tão intensamente

tomado pela técnica, pelas certezas do cálculo, pela constituição do indivíduo moderno.

Um mundo onde, muito pior que a morte de Deus anunciada por Nietzsche, é o

esquecimento do sentido da poiesis.

Em Hölderlin e a Essência da Poesia, Heidegger aponta para esta dimensão não

dimensionada da constante doação da realidade, voltando-se a cinco palavras-guia,

retiradas das obras de Hölderlin:

93
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 38.
94
HERÁCLITO, frag. 50.

69
A primeira, de uma carta do poeta de 1799 para sua mãe, diz: “Poetizar é a mais

inocente de todas as ocupações”.95 Esta frase nos dá a falsa impressão de que se fala da

poesia como jogo inocente de palavras, sem realidade, sem compromisso com a ação.

Esta é a aparência exterior da poesia. Mas não será esta sua essência. A frase até aqui

apenas aponta para onde devemos olhar para buscar sua essência: a linguagem.

A segunda palavra-guia do poeta é então algo que diz sobre a linguagem: “E se

deu ao homem o mais perigoso dos bens, a linguagem... para que mostre o que é”.96

Esta frase está em um rascunho para uma poesia de 1800. Como podem se conciliar

estas duas frases? Como a linguagem pode ser ao mesmo tempo o mais inocente e o

mais perigoso dos bens?

Heidegger procede então à pergunta: como é a linguagem um bem? Esta

pergunta só pode ser respondida se perguntamos a grande pergunta: quem é o homem?

O homem é aquele que deve mostrar quem é. É diferente de todos os outros entes da

natureza porque é o que é manifestando sua própria existência, e esta manifestação não

é exterior ou suplementar, mas constitui a própria existência. E nisto, o que mostra o

homem? O seu pertencimento à terra, como herdeiro e aprendiz de todas as coisas. Mas

todas as coisas estão em conflito, e Hölderlin chama de intimidade aquilo que mantém

todas as coisas em conflito e ao mesmo tempo em uma unidade. O pertencimento do

homem a esta intimidade acontece como criação de um mundo, o que significa também

que o pertencimento à totalidade dos entes acontece como História. E História não seria

possível sem a fala.

A fala é, assim, o perigo dos perigos, porque está imediatamente no entre:

95
Tradução livre a partir de: HEIDEGGER, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesia. In: RAMOS,
Samuel, Heidegger, Arte y Poesía. Buenos Aires: F.C.E, 1992. Cit in: www.heideggeriana.ar
96
Op. cit.

70
Mas o homem dado em virtude da fala é um Revelado a cuja existência como
ente assedia e inflama, e como não-ente engana e desengana. A fala é o que
primeiro cria o lugar aberto da ameaça do erro do ser e a possibilidade de
perder o ser, isto é, o perigo.97

A fala pode ser sagrada ou transformada em vazio, pode ser ao mesmo tempo

uma palavra essencial e uma ilusão. Ao mesmo tempo em que ela diz e traz algo à

claridade, revela o abismo, o sem fundo do silêncio que é de onde brota. Joga-nos,

assim, no desvelamento, enquanto faz presente a enormidade do velamento, fonte do

que se desvela. A etimologia da palavra “palavra” já nos diz: pará (entre) e ballein

(jogar). Palavra é o que nos joga no entre, ou o que eclode no ser jogado no entre. Por

isso é a propriedade do homem, o que lhe é próprio. Mas é uma propriedade no sentido

mais essencial do que a de uma posse ou instrumento. Ela não está ao dispor do homem.

Antes de qualquer posse, ela é o acontecimento que permite ao homem ser homem.

A terceira palavra-guia diz: “O homem experimentou muito, nomeou muitos

deuses, já que somos um diálogo e podemos ouvir uns dos outros”.98 Heidegger entra

então mais propriamente no como acontece a fala: acontece como diálogo. Este diálogo

é o que apontamos antes: a fala se dando como mundo e o homem se dando como ser

histórico. Diz Hölderlin: desde que somos um diálogo, vieram os deuses à palavra e

apareceu um mundo. Mas o que é importante é perceber: isto não é uma consequência

do acontecimento da fala, mas fala e mundo são coisas coincidentes.

Mas a fala só surge como resposta a um apelo, isto é, ao apelo da própria

realidade. Só podemos nomear os deuses, diz o poeta, se estamos sob sua invocação.

Assim, a frase “desde que somos um diálogo” significa: “Desde que os deuses nos

levam ao diálogo, desde que o tempo é tempo, o fundamento de nossa existência é um

97
Op. cit.
98
Op. cit.

71
diálogo”99 Isto é o que justifica e fundamenta a idéia da fala como acontecimento mais

alto da existência humana.

“Mas o que permanece o instauram os poetas”100, diz a quarta palavra-guia. Não

deveria ser assim, pensamos. O permanente não é aquilo que já sempre foi? Não. Ao

contrário: o permanente deve ser retido do impermanete, o simples retirado do

complexo, a medida deve ser anteposta à desmedida. E o ser deve ser descoberto para

que apareça o ente. E esta tarefa é confiada aos poetas. O poeta não nomeia o

conhecido, mas nomeia com uma palavra pela primeira vez o ente pelo que é assim

conhecido como ente. Esta livre doação é instauração.

Assim, chegamos à quinta palavra-guia, que diz: “Cheio de méritos, mas

poeticamente, o homem habita esta terra.”101 A existência do homem é poética em seu

fundamento, pois é doação da linguagem. Poesia, então, em nada tem a ver com esta sua

imagem comum de jogo, de inessencial, de descompromisso com a ação. Poesia é a

essência da ação, é a ação mais inocente, a linguagem primitiva de um povo histórico.

Precisamos compreender a essência da linguagem a partir da essência da poesia, e não o

contrário.

Mas, se o fundamento da existência humana é o diálogo como o próprio

acontecer da linguagem, e a linguagem mais primordial é a poesia, não será a poesia a

obra mais perigosa? Compreender a poesia como a ocupação mais inocente e a obra

mais perigosa em um mesmo pensamento é conceber a plena essência da poesia.

Este pensamento é de uma luz tão clara que Hölderlin, tomado pela loucura no

fim de sua vida, pode dizer, como disse Édipo: “Apolo me feriu”. A clareza extrema que

leva à loucura é o estar diante dos deuses de cabeça erguida: é a tarefa e o perigo dos

poetas.

99
Op. cit.
100
Op. cit.
101
Op. cit.

72
Temos diante de nós o dar-se de mundo e do homem, quando nos damos a

pensar a essência da poiesis. Mas nisto encontramos o silêncio. Por isso, evitamos

reconhecer que a vida tenha uma dimensão poética, e que esta dimensão nada tem de

superficial ou banal. Ao contrário, situa-se no fulcro da dor de viver. Por isso, muito

duro nos parece o encontro com o silêncio. Mas seria bom que nos lembrássemos

sempre das últimas palavras da elegia Pão e Vinho, de Hölderlin, citada por Heidegger

para finalizar este texto:

E para que poetas em tempos de penúria?


Mas são, como dizes, como os sacerdotes sagrados do Deus do vinho,
Que erravam de terra em terra, na noite sagrada.102

Nossos tempos são os de esquecimento de que a poiesis é, em última instância,

liberdade. Poiesis é o dar-se inaugural de tudo, que traz ao aberto o que estava velado,

ao mesmo tempo em que acena com a verdade do que se vela, apontando para a morte

como plenitude de vida. É o que se dá, que com tanta ênfase nomeamos a todo tempo

real, realidade, com tanto cuidado para que isto não seja confundido com mentiras e

irrealidades, esquecendo, porém, o mais essencial que é o seu caráter de doação. O ser

doação da realidade nos passa despercebido, assim também nos passa despercebida a

liberdade fundamental que reside na doação e nos constitui como seres humanos.

Na doação compreendemos o dito de Heráclito, em que se nomeia: nada pode

estar separado. E é nesta doação que podemos enfim compreender que apelo é este que

nos toma tão profundamente na paixão, no amor, como acontece com Lóri e com

Ulisses.

A escuta do apelo é um caminho. Isto significa que ela é não apenas um entre

outros caminhos, mas fundamentalmente um estar a caminho, e não uma chegada. A

102
Op. cit.

73
própria vida é este estar a caminho. No caminho há paisagens, há fontes, há paragens,

há dias e noites. Clarice nos brinda com o caminho a ser trilhado por Lóri, e junto com

ela, vamos descobrindo paisagens interiores que só se revelam quando nos olhamos

naquele horizonte muito especial que é o do pathos de viver. Vamos nos aprofundando

em nós em cada estância do caminho, buscando cada vez mais primordialmente a fonte.

Pois de alguma maneira, nós sempre buscamos voltar à fonte, sempre nos jogamos na

direção daquilo que nos atrai. E o que nos atrai? O que nos atrai é o que se doa, e em

que se doando traz ao ser o dia e a noite, a luz e as trevas. Isto cuja nomeação é a tarefa

do poeta e a dor da flecha de Apolo. Isto que talvez não possamos expressar em teorias,

mas que indubitavelmente podemos viver, mergulhando-nos profundamente no silêncio

e nos deixando tomar por ele.

Lóri resiste, mas percebe afinal que este caminho – o do longo silêncio, das

paisagens inesperadas, das duras travessias – é o caminho que lhe diz mais

fundamentalmente de si mesma, mulher, humana. E decide trilhá-lo.

3.1 A INICIAÇÃO

É um costume antigo das religiões que, uma vez decidido a trilhar um caminho,

o neófito passe por um rito de iniciação, do qual o batismo é o exemplo mais comum. E

por que há este rito? Ele significa sempre a morte do antigo ser, para que haja um

esvaziamento, e um novo espaço, em que possa surgir um novo ser. Este é o sentido do

verbo teleutai, em grego, fazer morrer. A morte é a entrada de uma passagem, onde se

deixa as vestes, as posses e o próprio corpo para iniciar um caminho desconhecido, do

qual se pressente levar ao ponto onde se quer ou se necessita chegar.

74
Mas o que é um rito? O rito é o vigor de manifestação do mito na palavra, na

dança, na música, etc. O rito traz, assim, toda a força do mito, toda a presença do mito.

No rito somos postos na presença do mistério, diretamente, sem representação nem

mediação. Um rito não é símbolo. Não precisa de elementos além de si mesmo. Ao

contrário, diz por si mesmo, coloca plenamente na presença do sagrado. Rito é, assim,

experienciação do sagrado. Não é uma mera experiência sensorial, nem intelectual. Não

pode ser vivido senão como o vigor da tensão mito/rito

Um rito de iniciação é a experienciação daquele ser que que se abre pela

primeira vez para a presença do sagrado. Esta palavra sagrado não tem aqui um

significado dentro de uma teoria teológica. Como fonte de vigor de toda busca religiosa,

o sagrado é aquele inominável, o isto, o thaumátzein, o tudo um do dito de Heráclito.

O diálogo entre Lóri e Ulisses a leva ao momento de tensão máxima, diante do

thaumatzein. Lóri percebe que terá de deixar morrer seu antigo ser, que há muito

“funcionava” dentro do sistema de pessoa inteiramente só. Apesar da dor que significa o

viver contendo o sentir e negando as possibilidades de viver, ela não quer deixar o

conhecido. Abrir-se ao thaumatzein, romper com o sistema do individualismo mais

profundo é muito difícil. Parece mais difícil do que continuar contendo a dor e semi-

vivendo. É quando finalmente diz:

- Parece tão fácil à primeira vista seguir conselhos de alguém. Seus conselhos,
por exemplo. Já agora falava sério:
- Seus conselhos. Mas existe um grande, o maior obstáculo para eu ir adiante:
eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. É como enorme
esforço que consigo me sobrepor a mim mesma.
Ela jamais falara tantas palavras em seguida. Por isso, queria evitar o principal.
De repente porém notou que se não dissesse o final, nada teria dito, e falou:
- Sou um monte intransponível no meu próprio caminho. Mas às vezes, por uma
palavra tua ou por uma palavra lida, tudo se esclarece.
Sim, tudo se esclarecia e ela surgia de dentro de si mesma quase com
esplendor.103

103
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.
53.

75
Seguir os conselhos de alguém era o que Lóri procurava antes, e é a nossa

postura de busca de certezas. De fato tentara se enganar pensando que Ulisses poderia

ensiná-la algo de um estilo de vida filosófico ou literário. Mas logo percebeu que não

poderia seguir conselhos, e inclusive, irritava-se com a inutilidade desta tentativa diante

do que realmente buscava. O que realmente buscava era algo que não só não se resolvia

com fórmulas prontas, mas, além disto, esbarrava na maior dificuldade que pode um ser

humano ter: realizar-se como aquilo que é, no horizonte do que ainda não é. “Eu sou um

monte intransponível no meu próprio caminho” remete, mais uma vez, à tensão humana

do entre. O entre-ser vige no aberto, que é possibidade tanto da maior solidão quanto da

maior entrega.

Da solidão, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres nos dá uma série de

imagens-questões. A infértil e desesperada tentativa de cortar a dor reaparece ainda na

imagem de Lóri pintada demais, como se fosse uma prostituta, na tentativa de esconder

seu rosto sob uma máscara, e no reconhecimento de sua incapacidade de ligar-se à terra,

com as crianças na escola, como se não estivesse preparada para a ligação que para a

mulher significa ser mãe. A imagem se repete mais uma vez no jogo que faz com

Ulisses o tempo todo, dizendo que quer mas não quer, e que não quer, mas quer. Exibe

o corpo e se pinta, ao mesmo tempo em que se comporta como uma virgem. Seduz e se

retira. Na piscina, demonstra, além de ter medo de mostrar sua alma, que ainda tem

vergonha de possuir um corpo.

Mas quais são os esforços de Lóri para romper com este sistema de solidão, para

ligar-se à terra, para encontrar-se consigo mesma, humana, corpo, alma? Ela lutava

bravamente contra si mesma, e contra a necessidade de se encontrar. Ulisses

aconselhando e ela querendo e não querendo. E ele esperando. Pois esta conquista não é

76
realmente fácil. São pequenos passos, são tentativas e embates que não resultam tão

facilmente na entrega à alegria e à liberdade. Em primeiro lugar, a tentativa é penosa

porque estamos absolutamente imersos num mistério, naquilo que toca nosso ser. É a

nossa dor: “viver é um negócio muito perigoso”.104 Isto já é desde sempre a nossa

condição. Mas, decorrente disto e como se não bastasse, há ainda, dentro de cada um de

nós, as marcas de uma longa cultura contra a alegria e a liberdade. Há, dentro de cada

um de nós, a lembrança do medo, da tortura, da real manifestação do bruto poder de

dominação do corpo e da alma, inscrita em nossas células.

Quando Lóri fala em seguir conselhos, diz: parece fácil. Dentro da nossa cultura

comunicacional, esta é a resposta mais óbvia, buscar uma receita e seguir os passos em

busca de um objetivo. Mas que cultura comunicacional é esta? É a do mundo em que se

pensa, age, vive no horizonte da técnica, isto é, do ser enquanto disponibilidade para

gerar mais e mais recursos para manter em andamento este mesmo mundo da técnica.

Neste sentido, a natureza é recurso natural, e o homem é recurso humano. Tudo se

planifica na disponibilidade, e o homem, neste horizonte, tende a se ver na planificação,

sem necessidade de auto-conquista. Por sua vez, a explosão de um mundo como mundo

da técnica só pode se dar a partir de certas decisões primordiais, como pensar o homem

como sujeito possuidor da natureza, ou mesmo muito simplesmente como ser capaz de

eliminar a angústia diante do mistério estabelecendo respostas. A simplificação dos

sentimentos, a explicação simplória da vida a que se mantém preso o homem de hoje,

para não se questionar, não muda a intensidade com que o real se manifesta em seu

infinito de possibilidades.

Sentindo isto, Lóri diz: seguir conselhos não é tão simples assim. Normalmente,

conselhos não passam de respostas pré-estabelecidas, conceitos que podem nos parecer

104
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 26.

77
desejáveis, porém, como não se dão no envolvimento de nosso próprio ser, como não

são uma correspondência própria de cada um de nós ao apelo do dar-se da realidade. O

horizonte de um homem que segue conselhos não pode ser o horizonte do humano. É

ainda muito pouco. O humano continua sendo uma enorme dificuldade, um monte

intransponível.

“Mas, de repente, a uma palavra tua ou uma palavra lida, tudo se esclarece.”105

Como algo se esclarece para nós? Como se dá este surgir de dentro de nós

mesmos quase com esplendor? É aí que saem de cena todas as respostas. E começa um

caminho em que são as palavras que fazem surgir, e não mais a exigência que nós

encontremos a palavra correta. “A uma palavra tua, tudo se esclarece.” Como se

esclarece? É o próprio desvelamento, a que os gregos, nomeavam aletheia. É um feixe

de luz, na escuridão imensa. Então se tem de repente uma pequena amostra do que seria

encontrar-se, um vislumbre do que seria realizar-se enquanto ser humano. “São

manchas cósmicas que substituem entender.”106

Na via contrária de toda a cultura ocidental, a obra de Clarice nos toca com a

possibilidade de intuir o humano, ao invés de entendê-lo segundo parâmetros e

conceitos. À primeira vista isto nos soa como uma espécie de fuga daquilo que

realmente leva à verdade, como se quiséssemos apenas nos deixar levar por uma crença

indemonstrável. Mas se nos deixamos tocar, percebemos que Clarice nos coloca diante

de uma possibilidade extremamente concreta: a de viver o humano, como busca,

caminho, travessia.

O esplendor de surgir de dentro de si mesma é a luz que não esconde as trevas. É

a resposta que, ao invés de pretender eliminar, põe em manifesto cada vez mais a

pergunta de onde surge. É uma aceitação ainda que momentânea do mover-se entre

105
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.
53.
106
Op. cit. p. 44.

78
questões. É um breve sopro da liberdade que nos constitui. Mas como fazer para surgir

de dentro de si mesmo em toda a grandeza do telos do humano?

O começo é uma prece. Ulisses, que nada tinha de religioso, surpreendentemente

pergunta a Lóri: Você sabe rezar? “Não rezar o padre-nosso, mas pedir a si mesma,

pedir o máximo a si mesma?”107 Não, ela nunca havia pedido. Havia reinvindicado,

havia exigido, mas nunca se colocado humildemente diante do mistério, para pedir,

pedir o que realmente importa. “Pede-se vida? Pede-se vida. Mas já não se está tendo

vida? Existe uma mais real. O que é real?”108

Sua dor de viver, de, nessa dor, saber que existe uma vida mais real a leva a

desistir da prepotência de sozinha encontrar uma saída, e a pedir. E a sua prece é a

beleza extraordinária que se dá no ser humano quando, convencido de sua pequenez

diante do universo, mas certo do infinito dentro de si, apenas fecha os olhos e se

entrega:

Alivia minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze
com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na
eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si
mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e
diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão
misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há
explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no
entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois
para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também
incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o
nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la,
abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como que eu como, o
sono que eu durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma pois senão
não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de
desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a
minha, amém.109

107
Op. cit. p. 53.
108
Op. cit. p. 55.
109
Op. Cit. p. 56.

79
Um momento de alívio, a palavra emocionada, o gesto infinitamente prolongado

da mão que busca o que ali já não está mais. Esta é a a prece, o silêncio que esvaziou o

espaço, onde agora a mão se estende sozinha, na plenitude do que é.

Lóri está agora onde nunca esteve antes: concentrada, humilde, voltada a seu

próprio ser sem intermediários, sem insinuações, sem a tentativa de parecer o que não é.

Pode parecer estranho, mas o quanto a presença no nada, a suave aceitação do

vazio nos preenche! Há muitos séculos atrás, Heráclito nos disse: “Physis kryptestai

philei.” Isto significa: a excessividade poética ama velar-se. Excessividade poética é

tudo o que se dá e se constitui como mundo, no dar-se da linguagem. Mas tudo o que se

dá ama velar-se. É próprio do que se dá, o velar-se.

Condição e mistério do mundo: mas nós não conseguimos admitir este velar-se.

Se admitíssemos, talvez víssemos com mais frequência que é ele que nos

preenche, na sua magnitude, na sua presença enquanto infinito. Não, diz Lóri, que eu

não tenha vergonha de desejar que na hora da minha morte haja um ser amado para

segurar a minha mão. Que eu não tenha mais tanta vergonha de admitir o que sou, que

tenho medo da morte, que o infinito é demais para a minha capacidade humana. Se a

morte é meu telos, que eu aceite sem prepotência e sem heroísmo, num diálogo

protegido por uma mão humana amiga. É tão simples o pedido: só precisamos uns dos

outros.

Não é de outra maneira que Lóri precisa de Ulisses e Ulisses de Lóri. No

horizonte deste pedido, compreendemos mais profundamente o amor que roga, humano,

a presença de um outro ser. É a dor/amor em que desde sempre nos damos, que já

estendemos os olhos a nossos pais, quando pequenos, e a cada dia de nossas vidas

buscamos uns aos outros. E podemos tentar nos enganar com um falso amor. Mas, cedo

ou tarde, reconhecemos que um falso amor não nos basta. A dor de ser não permite

80
enganos. Ela só se cura na plena presença da verdade do amor como entre, como

liberdade e doação. Por isso, Lóri e Ulisses não se satisfazem em viver um amor que

não está pronto. Eles querem um amor de verdade, o impossível, e precisam realizar-se

muito além do que conhecem e têm de certezas acerca de si mesmos. Escutaram, um no

outro, e em si mesmos, o apelo do pathos que é viver. E já não pode haver mais fuga.

Lóri então se aquieta, e diz a prece que talvez tenha buscado dizer durante toda a sua

vida. É um esvaziar-se, o esvaziar-se que prepara o nascimento do novo ser. Na lua que

que vela, a noite absolutamente escura, o silêncio se torna maior e mais vivo, para dele

nascer o dia.

O ódio de Lóri, que era a imensa resistência a todo este apelo, começa a se

desfazer. Como se aos poucos se preparasse para iniciar-se numa nova vida. Um

vislumbre dessa nova vida havia se dado na imagem de Ulisses na piscina. Lóri sentira

ali “um primeiro passo assustador para alguma coisa.”110 É quando, desarmada, como

uma criança “em encantamento pelas cores orientais do Sol que desenhava figuras

góticas nas sombras”111 se dá conta da beleza de Ulisses. Da beleza que havia em

Ulisses apenas por ser um homem, e existir nele uma calma virilidade. Lóri descobre “o

sublime no trivial, o invisível sob o tangível”112. É é como se de repente descobrisse

que a sua capacidade de descobrir os segredos da vida natural ainda estivesse


intacta. E desarmada também pela leve angústia que lhe veio ao sentir que podia
descobrir outros segredos, talvez um mortal. 113

Descobrir o sublime sob o trivial, o extraordinário em uma experiência ordinária

é, sem dúvida, uma experienciação de felicidade. De repente, nesta experienciação, Lóri

estranha a si mesma. Não está mais no fulcro da dor. Está apenas vivendo um momento
110
Op. cit., p. 70.
111
Op. cit., p. 70.
112
Op. cit., p. 70.
113
Op. cit., p. 71.

81
em plena presença. Neste estranhamento, pode dizer, encantada, humilde, e pela

primeira vez: “estou sendo”.

Estou sendo, diz Lóri. Estou sendo, diz Ulisses. Nisto, há um encontro. Porque o

estar sendo não é mais banal, como fazemos parecer todos os dias. Dois seres humanos

se encontram quando encontram-se no humano, e o humano é presença, vigor do entre-

ser. O entre nunca se apresenta como banal, ao contrário, toda banalidade o esconde.

Toda tentativa de conter a dor deste entre tende simplesmente a diminuir a ambigüidade,

tornar tudo conhecido e planificado. E, na maravilhosa riqueza da realidade que se dá,

da physis que se oferece, velando-se, nada é simplesmente plano e sem vigor.

E é então que se dá o momento da verdadeira iniciação: a entrada no mar.

Estamos mais uma vez diante da a imagem-questão água. Da ausência da água

em sua vida até ali, Lóri passa a desejar mais que tudo matar aquela sede. E agora, ela

está diante do mar, no momento mais silencioso do dia e na sua maior solidão. Somente

ela, uma mulher, toda a sua humanidade sentida a cada contração de seu coração, e a

imensidade de possibilidades no mistério do mar.

O que é o mar? O mar é a imensidão, é horizonte. E horizonte é aquilo que,

quanto mais caminhamos em sua direção, tanto mais ele se afasta, e mostra a tensão do

ilimitado no limite: o limite de nossa visão, no ilimitado do que não podemos ver. E

assim, o mar é o lugar das grandes travessias. A travessia de Ulisses, o barqueiro, no

mar cheio de perigo. A maior travessia de todas, aquela que se dá dentro de nós: a

tempestade que tantas vezes destrói nossos corações, ou a calmaria que alcançamos

quando estamos em paz.

Segundo o Dicionário de Símbolos, “as significações simbólicas da água podem

reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de

82
regenerescência.”114 Todas elas remetem a uma idéia de possibilidade: toda vida surge

da água, toda força e fecundidade dela dependem. Ao mesmo tempo, submergir nas

águas é ser absorvido no indiferenciado, no todo. E emergir dele é reencontrar-se como

ser diferenciado, mas renovado, renascido, revigorado por uma fonte de energia doadora

de infinitas possibilidades.

Esta imagem da indistinção primordial de onde nasce a vida nos remete ao

grande mistério da realidade que se doa, e nos entrega ao silêncio do sentido desta

doação. Por isso, a entrada no mar, que durante o dia, na balbúrdia dos divertimentos,

parece algo superficial, é, na verdade, um encontro do homem com tudo o que ele não

conhece, mas do qual faz parte, do qual vive, no qual espera, numa espera sagrada,

numa permanência junto a. O homem habita, nesta permanência. Esta permanência é

seu modo de ser.

Mas não somos a todo tempo conscientes deste nosso permanecer e habitar junto

às coisas e no aberto misterioso da doação. Quando isto acontece? Apenas quando tudo

está em silêncio, como num começo de manhã, e nos assustamos diante da grandeza do

mar, um susto e uma admiração diante do ordinário do que sempre esteve ali, do que

sempre nos pareceu determinado e coerente.

Na praia vazia, a mulher diante do mar, nada há de coerente. Há apenas: ser.

Dois seres absolutamente ininteligíveis, incompreensíveis: a mulher e o mar. Diante do

mar, o entendimento frio, a compreensão, revela seu limite. O cão preto nas areias é

mais livre, porque é o mistério que não se indaga. O incompreensível se revela mais

pleno, e atração da mulher para ele é forte demais, para que ela resista.

114
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio,
2007, p. 15.

83
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a
entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se
entregariam duas compreensões.115

Finalmente, a necessidade do encontro se torna maior do que a dura resistência

da compreensão. Só quando esta necessidade chega ao limite e irrompe em coragem, é

que se dá um consolo da dor:

Seu corpo se consola de sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar


porque é a exiguidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o
que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cãos nas areias.
Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da
madrugada.116

A dor que não podia ser curada se apresenta como coragem de entrar no mar, de

adentrar o silêncio frio. Clarice chama isto de cumprir uma coragem:

Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande,
e isso é uma realização da Natureza. A coragem de Lóri é a de, não se
conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige
coragem117.

Por que cumprir? Porque não foi Lóri que escolheu que a vastidão do mar fosse

uma realização da Natureza. É ela que está inscrita nesta realização antes de tudo. Mas o

mar é uma realização da Natureza apenas. Como toda realização da Natureza, é o dar-se

do Ser, apenas, plenitude de realização, presença, sem a dor da indagação, que é

exclusivamente humana. Sendo humana, agir exige coragem. Ela tem que prosseguir na

dor. Não pode se dar como realização da Natureza, apenas, mas precisa levar a si

mesma à plenitude do que é.

115
Op. cit., p. 78.
116
Op. Cit., p. 78.
117
Op. Cit., p. 79.

84
Lóri aceita: “Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e

agride em ritual as pernas.”118 Esta aceitação é um susto profundo. Nada é tão

assustador do que o frio e o silêncio batendo contra um corpo no vazio de uma

madrugada. Nele, Lóri experiencia o que não pode dizer em palavras: estar plenamente

vivendo, de repente, inteira, se lançando em frente dentro de si mesma, ao invés de

recuar e se proteger como sempre havia feito. Não, ao contrário, ela se lançava contra o

mais desafiador, o mar gelado, o silêncio, os seus próprios limites de indivíduo. E

aceitava exatamente o que é ser: tensão de um corpo rígido e ao mesmo tempo frágil

contra o mar absolutamente poderoso.

A entrada no mar é o momento em que Lóri toma posse de si mesma, entrando

em contato com o humano que a faz humana. Ela está no pleno vigor de sua ação,

escolhendo cumprir o telos do apelo mais profundo que se dá aos seres humanos. Isto

vai de encontro, porém, à idéia que fazemos de posse, como se o humano fosse algo que

se pudesse ter ou não ter, escolher ou não escolher. Apropriar-se de si não é o encontro

de nada que se precise inventar ou obter, ao contrário, é apenas reconhecer o horizonte

do ser, e o entre que somos. Por isso, a apropriação de si mesma é uma entrega:

A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda – e abre caminho na
gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor
em que a oposição pode ser um pedido secreto.119

A oposição que é um pedido secreto é o movimento da realidade em sua

manifestação poética, em seu devir. É uma oposição que não configura aprisionamento,

ao contrário, diz da maior liberdade que é a realidade em constante movimento. Ser, e

ser humano, precisa ser entendido no horizonte deste pedido secreto, a não ser que nos

118
Op. Cit., p. 79.
119
Op. Cit., p. 79.

85
contentemos com faces e disfarces do humano, que queiramos excluir do humano o

mistério, como temos feito até hoje. Lóri experiencia a possibilidade de adentrar o

mistério, e isso significa adentrar sem medo o humano. Por isso parece despertar de um

profundo sono secular. Torna-se alerta, torna-se um ser humano de maneira plena:

“O caminho lento aumenta sua coragem secreta – e de repente ela se deixa


cobrir pela primeira onda! O sal, o iodo tudo líquido deixam-na por uns
instantes cega, toda escorrendo – espantada de pé – fertilizada.”120

E isto é “uma alegria fatal”. Ela não precisa mais de coragem para adentrar a

realidade, agora parece uma iniciada. “Agora já é antiga no ritual retomado que

abandonara há milênios”.121 Pode brincar com a água e beber o mar com a concha das

mãos. E ficar “toda igual a si mesma.”122

Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois já
conhece e já tem um ritmo de vida no mar. Ela é a amante que não teme pois
sabe que terá tudo de novo.123

O que Lóri sempre temeu era a experienciação do amor, porque esta é como o

susto do mar gelado e silencioso. Mas uma coragem antiga nos seres humanos – o apelo

que, como Ulisses, ouvimos – a leva a se entregar. E como quem, pela primeira vez, se

assusta e se encanta na dor e prazer do amor, Lóri sabe que não importa o que tente

fazer ou conter: ser amante é saber que se pode ter, de alguma maneira e em algum

momento que não se sabe, tudo de novo.

E agora, pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que
o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. De algum modo obscuro, seus

120
Op. Cit., p. 79.
121
Op. Cit., p. 79.
122
Op. Cit., p. 80.
123
Op. Cit., p. 80.

86
cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um
perigo tão antigo quanto o ser humano.124

Perigo da vida que se realiza, se dá constantemente na liminaridade do entre.

Perigo de não estar mais atrelado aos conceitos e amarras que perfazem o estreito

campo de visão de nossa vida cotidiana e abrir-se ao horizonte do ilimitado. Perigo,

afinal, de ser: de ser humano no horizonte do impossível.

3.2 “MAS ANTES PRECISAVA TOCAR EM SI PRÓPRIA, ANTES PRECISAVA

TOCAR NO MUNDO.”125

Lóri, iniciada pelo silêncio, tocara o perigo do humano, o humano enquanto

perigo.

O que significa perigo? Peri, em grego, significa o limite e nos remete

novamente à tensão do entre. Pois o que é um limite? Não há um limite no humano que

saibamos jamais poder ser ultrapassado, ao contrário, nossos limites são sempre uma

manifestação temporal, uma tensão entre o que aparece como limite e a possibilidade do

não-limite.

Sempre nesta tensão, o entre-ser é, a todo tempo, tomado pelo perigo, pela

possibilidade tanto de se conquistar quanto de se perder.

A experienciação de Lóri é uma tensão de limites, enquanto uma experienciação

para além da disponibilidade, e das certezas que definem a vida. Esta experienciação

coloca em cheque, muito profundamente o sentido do destino que até hoje temos vivido,

o sentido de nosso tempo. Mas o que sustenta esse destino? A imagem-questão Lóri

entrando no mar aponta para uma resposta possível. Aquilo que ela retia a todo custo, o

124
Op. Cit., p. 80.
125
Op. cit. p. 57.

87
seu medo da dor, era a idéia de um poderio sobre a realidade, que se quebra com aquela

entrega, com a entrada no mar.

De maneira geral, todos os conceitos fundamentais da filosofia e da cultura

ocidental sustentam a idéia de um sujeito capaz de poder sobre a realidade. A este poder

sobre a realidade se dá, há muito tempo, o nome de liberdade. Liberdade é a capacidade

de agir de maneira autônoma, ou seja, não determinada por nada que não a própria

vontade do sujeito que age. Assim, o conceito de liberdade como capacidade de decisão

pressupõe o conceito de sujeito e de vontade.

Mas isto só pode ser entendido no horizonte de um sujeito que domina todas as

dimensões de seu viver, inclusive aquilo que temos falado desde o início:o pathos, a dor

de viver. E a questão com que Clarice nos enfrenta é justamente: é possível dominar a

dor de viver? Será esta tentativa o único caminho? Diante da experienciação que Lóri e

Ulisses fazem, podemos ainda admitir como único horizonte o do domínio?

Muito pelo contrário, a única coisa que faz com que Lóri se sinta viva é admitir

que este domínio sobre a realidade, o seu poderio sobre tudo, que sempre prezara como

sua liberdade e personalidade mais valiosa, não passam de uma pretensão. Isto é

confirmado para ela quando, mesmo no auge de sua fragilidade, resolve vestir-se,

maquiar-se exageradamente como quem prega sobre o rosto uma máscara, e ir a um

coquetel. Sozinha, com uma persona sobre o rosto que sabia não mais ser ela, Lóri

tentava sustentar a bravata de que sua alma não estava nua, de que ela não estava infeliz.

Num imenso salão, onde a conversa com um e com outro não poderia passar de

banalidades, Lóri se sentia profundamente sozinha. Percebia quanto a sua vida até ali

tinha sido de indiferença e solidão. Viu dois homens que tinham sido seus amantes e

que agora não passavam de semi-amigos. Não havia nada, nenhuma dor de amor,

nenhuma vida, apenas indiferença. E percebia então que nunca havia comunicado a dor

88
humana a ninguém, que nunca havia se dado pela dor de seu rosto. Ao final, humilhada,

corria para casa como quem soluça,

“e de repente a máscara de guerra da vida crestava-se toda como lama seca, e


os pedaços irregulares caíam no chão com um ruído oco.”126

A máscara não servia para os outros, como pensava Lóri. Era uma necessidade

sua de esconder a própria solidão. Agora, o rosto nu se revelava para ela, e era a ela

mesma que incomodava. “Era inútil esconder. A verdade é que não sabia viver.”127

Quanto nos custa chegar a esta conclusão? Muito, muitíssimo. Em geral, damos

nossa vida para não ter que admitir o nosso fracasso em lidar com a própria realidade

humana. A idéia de domínio, ou, como diz Nietzsche, a vontade de vontade, é uma

escolha mais óbvia e só com muito custo reconhecemo-na como uma ameaça.

Mas como Hölderlin nos lembra:

Ora, onde mora o perigo


É lá que também cresce
O que salva.128

O perigo de nos perdermos nos leva ao limite a que Lóri foi levada. A dor nos

toma tão profundamente que somos forçados a reconhecer a nossa finitude. É como nos

acontece hoje: o destino que envia tudo à dis-ponibilidade está plenamente posto. A

perspectiva da técnica domina o pensamento, sustenta o sistema de produção e a

consequente desigualdade de condições materiais que reina absoluta no planeta. Basta

um olhar para esta situação mundial que o confronto com nossas escolhas passadas se

faz absolutamente necessário. Todos os modelos parecem insuficientes para responder

ao homem de hoje, completamente perdido, alheio a si mesmo.


126
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.
86.
127
Op. cit. p. 86.
128
Cit in: HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 31.

89
Precisamos perguntar, então: o que nos cabe hoje? Qual é a tarefa do

pensamento em tempos como o nosso?

O que nos cabe em tempos de deserto e de penúria? O único que cabe ao


pensamento é preparar as condições para a entrada numa outra dimensão de
experiência do que a da determinação do homem como sujeito.129

Mas que outra experiência é esta? Como falar de algo que não podemos sequer

supor como ou o que seria? Como demonstrar essa possibilidade de uma outra dimensão

que não a do sujeito em pleno domínio da realidade?

Apesar de uma possível ansiedade em encontrar esta resposta, precisaremos nos

conformar ao fato de que os próprios pensadores que nos chamaram com o apelo desta

questão também não obtiveram resposta alguma. Heidegger sabia que com sua obra não

pretendia contribuir para o corpus filosófico com um novo sistema de explicação da

realidade, mas, muito pelo contrário, que apenas lançava sementes para o vislumbre do

caráter absolutamente assistemático de tudo o que é. E que essas sementes eram

realmente sementes para um futuro ainda muito distante, uma vez que a proposta de

situar-nos no apelo da escuta é algo inteiramente diferente da experiência de

pensamento que a humanidade tem realizado predominantemente nos últimos vinte e

cinco séculos.

Por isso, passamos muito longe da pretensão de encontrar uma nova fórmula ou

defender uma nova teoria. Não será jamais um autor, um filósofo ou uma idéia que dirá,

definitivamente, qual é a dimensão do pensamento e como o homem realiza sua

travessia tornando-se humano. E nem Clarice, em momento algum, defende posturas, ou

quer dizer, através de seus personagens, qual é o caminho a seguir.

129
UNGER, Nancy Mangabeira. Heidegger e a Espera do Inesperado. In: Revista Tempo Brasileiro, Rio
de Janeiro, 164: 179;188, jan – mar 2006, p. 185.

90
Porque, além do fato de acreditar na salvação por um autor ou idéia ser algo

extremamente ingênuo, existe, acima de tudo, a realidade mais cruel de que

simplesmente não há caminho a seguir. O que o homem de hoje precisa se ver é com a

ausência, com o paradoxo, com a inutilidade de suas crenças, com a fragilidade de suas

certezas, para perceber que as decisões até agora tomadas – supondo o domínio da

realidade pela inteligência humana – apenas levaram ao mundo mais desumano que se

poderia experienciar. E que conter esta desumanidade já se mostra como condição da

própria continuidade da existência humana, uma vez que o agravamento de todo este

sistema – que em cada um se manifesta como individualismo e solidão, mas que, em

escala planetária se faz como injustiça social, fome, miséria, sofrimento brutal para

populações inteiras, desigualdade, desrespeito – poderá levar a um colapso global onde

nem ricos nem pobres poderão sobreviver à ausência de condições naturais de

sustentação da vida.

Mas as definições e conceitos, por mais inovadores que possam ser, a esta altura

não mais podem estabelecer uma nova dimensão de experiência, que levasse o homem a

se demorar um pouco mais no encontro consigo mesmo e com os outros. Seria preciso,

antes, quebrar com a predominância da definição sobre a vida, para que nos abríssemos

à vida.

Uma Aprendizagem é um caminho de experienciação desta abertura à vida, mas

não uma receita. Pois apenas cada um pode fazer, à sua maneira, a seu tempo, na

concretude de sua existência, a experienciação do viver.

A obra narra uma experienciação, um caminho singular, que não pode nem

precisa ser generalizado. Ela configura, muito antes de uma resposta, um convite. O

convite a viver em nós a aprendizagem, de nascer para nós mesmos a partir do que

ainda não somos, de desatar os nós que nos prendem a um horizonte pré-determinado e

91
nos impedem de mergulhar verdadeiramente nesta busca de nós mesmos no horizonte

da liberdade.

Quando Lóri entra no mar, um primeiro passo é dado. O mais difícil, aquele que

ela havia evitado a todo custo desde o início. Aquilo que a prendia em sua dor, pois a

impedia de entender que a dor é condição de viver. E agora, Lóri compreende a dor, vê

que é justamente ela que lhe permite ser humana. É o momento então, da decisão. Nada

virá por milagre, e mesmo ela, Lóri, não deseja mais um milagre. O que ela precisa

fazer, a partir de agora, é ir experienciando, passo a passo, quem ela é, em sua pergunta

primordial: o que sou/o que é ser?

“Meu mistério é simples: eu não sei como estar viva.”130 Lóri chegou ao ponto

de poder dizer. Ela se tornara consciente de sua dificuldade em entregar-se a viver.

Escancara-se a ferida humana mais cuidadosamente escondida pelos séculos e séculos.

Não é uma pessoa com o nome Loreley que não sabe viver. O que temos é uma imagem

questão: a sereia aprisionada por seu próprio canto.

Escutar e não sucumbir, eis agora a decisão. Abrir-se à vida como vida, como

inesperado, como perigo. Mas não desistir da travessia.

Travessia é tudo o que existe, mas como, como vivê-la?

Que a resposta seja impossível, é imediatamente concedido. Mas há um ponto

crucial para o qual a obra de Clarice aponta, e sobre o qual precisamos nos voltar com

muito cuidado: a experienciação da vida no horizonte do prazer.

O que é isto – o prazer, para que se proponha uma aprendizagem tão essencial?

O prazer é um grande mistério, o maior e mais pleno mistério. E ao invés de defini-lo,

aqui, procuremos seguir junto com Lóri a sua descoberta do prazer. Assim

compreenderemos em nosso próprio ser o apelo a que Lóri responde.

130
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.89.

92
Em primeiro lugar, situemos a questão. O prazer a que O Livro dos Prazeres nos

convida não é uma fuga, mas exatamente uma tentativa de resposta mais sincera à

grande dor de viver. Nas palavras de Ulisses:

“A tragédia de viver existe sim e nós a sentimos. Mas isso não impede que
tenhamos uma profunda aproximação da alegria com esta mesma vida.”131

E é preciso perguntar: a alegria é algo assim tão difícil? Por que complicamos

tanto nosso caminho para a alegria? Por que, como Lóri, resistimos a nos aproximar das

pessoas e coisas que nos trariam alegria? Quantas vezes, em nossas vidas, agimos por

este medo da tragédia de viver – que existe e que é vida concreta – deixando, porém, de

ver possibilidades menos estreitas, de experienciações e aproximações mais verdadeiras

e prazeirosas? Cada um de nós responderá: muitas. E quantos de nós somos como Lóri

ou como Ulisses, em quem a busca da alegria toma ares de revolução?

Mais uma vez, respostas inconclusas. Em cada um de nós se inscreveu a dor

como única possibilidade, de maneira mais ou menos vaga, sob conceitos que não

ousamos questionar. Estes porquês se escondem por entre as misérias de uma História,

como já mencionamos muitas vezes, desumana e desumanizadora. Nosso próprio

destino se ocultou para nós desde que nos fizemos aqueles que não queriam ver.

Querer ver e ouvir e adentrar o mistério é agora, para Lóri, saber que estar viva

não é somente estar viva através da dor. Então, o que é? O que é isto que Ulisses

propõe? Como é estar viva através do prazer?

Lóri agora já sabia o quanto ela era uma foragida do mundo, o quanto ela havia

estado longe de tudo por escolha, e também o quão ruim era a dor de não saber viver.

Por não se abrir a uma busca mais profunda, havia sentido que a busca do prazer era

água ruim: “colava a boca e sentia a bica enferrujada, de onde escorriam dois ou três

131
Op. cit. p. 94.

93
pingos de água amornada: era água seca”132 E agora já podia dizer isto a Ulisses, podia

se comunicar com ele, mostrando quem ela era, não a máscara, mas a mulher que não

sabia viver e lhe contava emocionada que havia se lançado ao abismo entrando no mar

de madrugada. Agora já podia reconhecer sua condição: “Mas é triste só enxergar o

óbvio como eu, e achá-lo estanho”133, (o que Ulisses admirava intensamente). Já podia

ver claramente o quanto havia fugido de viver, e o quanto não queria mais isto. Sentia,

pela primeira vez, que podia dizer sua alma a Ulisses, e era a primeira vez que se

aproximava tanto de outro ser humano. Lóri se emocionava, se desesperava diante das

possibilidades que viriam – dos grandes prazeres e grandes dores do amor por um

homem, e sentia “uma extraordinariamente boa sensação de ir desmaiar de amor”134

Acordara dentro de si própria, por estar se deixando tomar, pela primeira vez, pelo

prazer de viver.

E assim, se deixou tomar pela espera. “Seguiu-se um longo e tenebroso inverno,

assim Lóri recitou para as crianças em classe e elas compreenderam por que o frio as

enrodilhava em si mesmas e não havia como combatê-lo”135 Ulisses a procurava pouco

e ela seguia por si mesma, tentando abrir-se ao mundo, amando as crianças,

agasalhando-as do frio, ligando-se a elas sem medo. “Não havia aprendizagem de coisa

nova: era só a redescoberta”.136 Lóri redescobria a si mesma, vivendo o cotidiano de

maneira extraordinária, ao invés de continuar buscando, para além ou na fuga deste

mundo concreto da vida, o falso prazer do controle sobre tudo. Ao invés disso, comer e

beber sem pressa, enquanto crepitava o fogo na lareira.

132
Op. cit. p. 104.
133
Op. cit. p. 90.
134
Op. cit. p. 99.
135
Op. cit. p. 100.
136
Op. cit. p. 100.

94
Às vezes, a dor voltava, e era como se ela fosse perder tudo o que alcançara. “A

dor é o mistério”137.Mas agora que se iniciara no mundo, podia sentir tudo: ira, paixão,

violência, clemência, amor. Estava vivendo:

De repente Lóri não suportou mais e telefonou para Ulisses:- Que é que eu faço,
é de noite e eu estou viva. Estar viva está me matando aos poucos e eu estou
toda alerta no escuro.
Houve uma pausa, ela chegou a pensar que Ulisses não ouvira. Então ele disse,
com voz calma e apaziguante:
- Agüente.138

Aguentar é reconhecer a vida como pathos. Estava vivendo, e tinha que

aguentar, isto é, saber-se tomada por algo do qual não sabemos o que fazer. Mas

aguentar não significa ter de viver como vivia antes, ao contrário:

Quando desligou o telefone, a noite estava úmida e a escuridão suave, e viver


era ter um véu cobrindo os cabelos. Então com ternura aceitou estar no mistério
de ser viva.
Antes de se deitar foi ao terraço: uma lua cheia estava sinistra no céu. Então ela
se banhou toda nos raios lunares e se sentiu profundamente límpida e tranquila.
Pouco a pouco, foi adormecendo de doçura e a noite era bem dentro. Quando a
noite amadurecesse viria o véu mais cheio de brisa da madrugada. Por enquanto
ela estava delicademente viva, dormindo.139

Isto é, na vida de Lóri, e na vida de todos nós, uma nova estação, uma

primavera, rica em vida, em cores, em possibilidades. Lóri encontrava nela mesma, na

própria vida que antes só conseguia ver como um fardo infinito e doloroso, algo já

muito diferente:

Muito antes de vir a nova estação já havia o prenúncio: inesperadamente uma


tepidez de vento, as primeiras doçuras do ar. Impossível! Impossível que esta
doçura de ar não traga outras! diz o coração se quebrando.

137
Op. cit. p. 108.
138
Op. cit. p. 113.
139
Op. cit. p. 113.

95
Impossível! diz em eco a mornidão ainda tão mordente e fresca da primavera.
Impossível que esse ar não traga o amor do mundo! Repete o coração que parte
sua secura crestada num sorriso. E nem sequer reconhece que já o trouxe, que
aquilo é um amor. Esse primeiro calor ainda fresco trazia: tudo. Apenas isso, e
indiviso: tudo.140

Seu coração, a vida que pulsa em seu peito, não era mais como lama seca. E para

sua surpresa, aquilo era amor! Porque se havia buscado amor, antes, havia buscado onde

ele não estava, em um coração que não se dá à vida. Agora experienciava a doçura de se

dar como amor, que é como a vida se dando como primavera.

E que ela não se esquecesse, naquela sua fina luta travada, que o mais difícil de
se entender era a alegria.
Que ela não se esquecesse que a subida mais escarpada e mais à mercê dos
ventos era sorrir de alegria.141

A alegria que Lóri vive não é aquela dos clubes e salões, onde “sorrimos do que

não sorriríamos se estivéssemos sozinhos”. Não é a alegria daquele que se negou à dor.

Ao contrário, é alegria daquele que mergulhou na vida como se mergulha no mar

gelado, sem medo do abismo que é ser um ser humano. Não é a alegria que virá depois,

no mundo da eternidade, na compensação pelo sofrimento. E não é, afinal, a alegria que

se buscou: é a alegria que se recebeu de graça, que se deixou ser no corpo a própria

Natureza, a vida que pulsa, o extraordinário sob o ordinário.

Descobrir que cada dia é sempre extraordinário e que a nós cabe sofrê-lo ou ter

prazer nele é a grande conquista, a delicada conquista, capaz de derrubar os alicerces de

todo um mundo que há tempos nos faz habituados à vida como sofrimento necessário. É

com isto que o pensamento hoje se defronta: este sentir que o desconhecido do mundo e

que o devir da realidade sejam afinal o que nos preenche, não o que nos faz temer. Esse

sentir que se pode não compreender, e nisto obter uma compreensão ainda mais

140
Op. cit. p. 114
141
Op. cit. p. 115.

96
profunda e verdadeira. Este saber que o mistério insondável da vida foi disfarçado por

muito tempo, mas a farsa não mais se sustenta.

Não havendo mais um teatro de verdades estabelecidas no qual crer, o que há

para o homem de hoje? Há a clareza da finitude, e o desejo de, nesta finitude, comer o

mundo infinitamente. Há a grande sede de vida que Nietzsche apontava ao golpear a

tradição metafísica de moralidade cristã e racionalidade socrática. Há a sede de Lóri, o

desejo de uma nova aproximação, da experienciação da realidade na sua totalidade: no

entre de vida e morte, de amor e dor. Que o prazer de viver no mundo concreto seja real

e infinito, como um estado de graça que se possa ter sem ser santo.

97
Capítulo IV A EXPERIENCIAÇÃO DA LIBERDADE

A sede de Lóri a levou pelos caminhos de um mundo que não lhe era mais

estrangeiro. Sua sede encontrara finalmente a fonte, o próprio real, a concretude de

viver os dias buscando a si mesma e aos outros:

Por aquele mundo, passou a vagar. Encontrava-se com Ulisses, na sua busca,
viajava dentro de si bem longe. E então veio finalmente o dia em que ela soube
que não era mais solitária. Reconheceu Ulisses, tinha encontrado o seu destino
de mulher.142

Ulisses, as pessoas, as crianças na escola, as coisas na feira, Lóri agora tinha o

mundo inteiro para explorar, e caminhava nele como se conhecesse pela primeira vez a

grandeza de tudo o que é. Via em tudo a abundância da vida que se dá tão livremente,

que não se pode conter. A vida era tão forte que se sustentava em si mesma, não

precisava de nada para explicá-la.

Ela mesma era inexplicável. Não sabia os seus próprios limites, porque não é

possível saber os limites de uma pessoa. Uma pessoa é uma vida se dando, e isto é

ilimitado. “Ser-se o que se é, era grande demais e incontrolável.”143 Ela tentava se

conter, se guardar, mas para quê? Não havia para quê se guardar se a própria vida era

aquela doação. Então finalmente, resolveu:

Foi no dia seguinte que andando devagar e cansada pela rua, viu a moça de pé
esperando o ônibus. E seu coração começou a bater – porque resolvera fazer a
tentativa de contato com uma pessoa. Parou.
- O ônibus está demorando?
- Está.
Falhara. Seu coração bateu mais forte ainda porque sentiu que não ia desistir.
- Seu vestido é muito bonito, gosto de estampa grande com roxo.
A moça sorriu imediatamente:

142
Op. cit. p. 116.
143
Op. cit. p. 126.

98
- Comprei pronto, e saiu mais barato do que se tivesse mandado fazer. Minha
costureira é de morte, vive aumentando o preço de um vestido para o outro, e
isso sem contar os aviamentos que ficam por minha conta. Por isso acho que –
Lóri não ouviu mais nada: sorria beatificada: entrara em contato com uma
estranha. Interrompeu-a um pouco bruscamente mas com uma doçura e gratidão
na voz:
- Adeus. Obrigada, muito obrigada.144

A solidão havia sido seu único modo de ser até então. Mas Lóri, ao se lançar ao

abismo de aprender a ser e a conquistar-se, aprendera que podia se lançar ao encontro

com outros seres humanos. Isso era novo, era a descoberta de uma vida impossível,

reservada apenas àqueles que têm a coragem de se entregar.

Todo o processo que Clarice descreve, ao longo de toda a obra, era a busca de

escutar o apelo da vida como livre instauração do ser, como doação do silêncio, como

dar-se inexplicável ao qual o humano tenta corresponder, ouvindo e buscando-se a si

mesmo como ser em travessia. E o que disto resultou?

O caminho de pro-curas trouxe Lóri a romper com a solidão, a encontrar a si

mesma num contato profundo com a realidade, com a physis, com Ulisses e com o

silêncio. Lóri encontrava não os limites de si mesma enquanto indivíduo, o que lhe

serviria para se definir e se guardar, mas uma liberdade de saber-se humana, ser

indefinível, ter o ilimitado dentro de si.

E então:

O amor por Ulisses veio como uma onda que ela tivesse podido controlar até
então. Mas de repente ela não queria mais controlar.
E quando notou que aceitava em pleno o amor, sua alegria foi tão grande que o
coração lhe batia por todo o corpo, parecia-lhe que mil corações batiam-lhe nas
profundezas de sua pessoa. Um direito-de-ser tomou-a, como se ela tivesse
acabado de chorar ao nascer. Como? Como prolongar o nascimento para a vida
toda?145

144
Op. cit. p. 127
145
Op. cit. p. 128.

99
No momento em que não pôde mais controlar a vida que pulsava em seu peito, o

pathos, a paixão de viver plenamente como humana, Lóri nascia para si mesma,

descobria a própria existência com uma alegria de quem nasce para um infinito de

possibilidades. Mil corações batiam-lhe nas profundezas de sua pessoa: ser humana não

era um pequeno mundo de dores, era a possibilidade de um infinito de realizações, era

uma abertura para a grandeza inestimável do silêncio e do mistério. E, nesta abertura,

havia o prazer profundo de tocar o infinito e sentir a beleza do humano no homem.

Na abertura ao humano, acontece então o grande susto:

- Ulisses, não encontro uma resposta quando me pergunto quem sou eu. Um
pouco de mim eu sei: sou aquela que tem a própria vida, e também a tua, eu
bebe a tua vida. Mas isso não responde quem sou eu!146

Quem sou eu é a pergunta que mais plenamente nos abre para o mistério, porque

reconhece que somos uma questão. Que reconheçamos isso, pela mais breve parte de

um segundo, coloca por terra o pressuposto único da cultura da dor e da certeza, pois

destrói a naturalidade com que acreditamos no domínio do indivíduo sobre a realidade.

Basta isso, um suspiro, uma breve desconfiança, e tudo aquilo que foi criado para ser

eterno desmorona. Desde que, é claro, esta não seja apenas uma pergunta intelectual.

Do mais profundo da minha dor, pergunto: afinal, quem sou? Sou o infinito?

Sou essa vida inesgotável que pulsa em meu peito? Quem sou dentro deste infinito que

sequer cabe nos limites de uma pessoa?

- Isso não se responde, Lóri. Não se faça de tão forte perguntando a pior
pergunta. Eu mesmo ainda não posso perguntar quem sou sem ficar perdido.
E sua voz soara como a de um perdido.147

146
Op. cit. p. 129.
147
Op. cit. p. 129.

100
A voz de um perdido, o silêncio como resposta: o homem é exatamente isto, o

silêncio como resposta. Pois tudo é doação deste silêncio, e o homem é o ser que deve

saber-se desta maneira.

Aí sim, a plenitude. Lóri, que tudo tinha feito para não se entregar, descobre

afinal que a entrega de si mesma não significava a morte, como havia pedido em sua

prece. Que a entrega de si mesma ao desconhecido, ao apelo do amor em nós, era a sua

única forma de vida humana, e isto era pleno.

“Sem gratidão ou ingratidão, Lóri era uma mulher, era uma pessoa, era uma

atenção, era um corpo habitado olhando a chuva cair”.148 E isto, justamente estar plena

no momento em que se vive, era a única felicidade possível e era o que havia buscado a

vida inteira.

E de súbito, mas sem sobressalto, sentiu a vontade extrema de dar essa noite
secreta a alguém. E esse alguém era Ulisses. Seu coração começou a bater forte,
ela se sentiu pálida pois todo o sangue, sentiu, descera-lhe do rosto, tudo porque
sentiu tão repentinamente o desejo de Ulisses e o seu próprio desejo.149

E finalmente se dará o encontro dos dois. Amadurecidos na relação com a vida,

plenos de si mesmos e de amor pelo mundo e pelo viver humanos, Lóri e Ulisses não

têm mais o que conter de si. Podem se dar plenamente ao prazer do sexo, sem o perigo

de desumanizarem-se. Podem enfim sentir a realidade inacreditável de estar tão perto de

outro ser humano:

Nunca um ser humano tinha estado mais perto de outro ser humano. E o prazer
de Lóri era o de enfim abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-
pleno que estava antes escarniçadamente prendendo-a. E de súbito o sobressalto
de alegria: notava que estava abrindo as mãos e o coração mas que se podia
fazer isso sem perigo! Eu não estou perdendo nada! Estou enfim me dando e o
que acontece quando eu estou me dando é que reebo, recebo. Cuidado, há o
perigo do coração estar livre?

148
Op. cit. p. 142.
149
Op. cit. p. 142.

101
Percebeu, enquanto alisava de leve os cabelos do homem, percebeu que nesse
seu espraiar-se é que estava o prazer ainda perigoso de ser. No entanto, vinha
uma segurança estranha também: vinha da certeza súbita de que sempre teria o
que gastar e dar. Não havia pois mais avareza com seu vazio-pleno que era a
sua alma, e gastá-lo em nome de um homem e de uma mulher.150

Não havia mais medo de que esta “profunda existência na terra”151 se perdesse.

“Depois que Ulisses fora dela, ser humana parecia-lhe agora a mais acertada forma de

ser um animal vivo.”152 Havia desabrochado em rosa-escarlate e chegado à soleira da

porta de uma vida nova. Assim também Ulisses:

Ulisses, o sábio Ulisses, perdera a sua tranquilidade ao encontrar pela primeira


vez na vida o amor. Sua voz era outra, perdera o tom de professor, sua voz
agora era a de um homem apenas. Ele quisera ensinar a Lóri através de
fórmulas? Não, pois não era um homem de fórmulas, agora que nenhuma
fórmula servia: ele estava perdido num mar de alegria e de ameaça de dor. Lóri
pôde enfim falar com ele de igual para igual. Porque enfim ele se dava conta de
que não sabia de nada e o peso prendia sua voz. Mas ele queria a vida nova
perigosa.153

No amor, também o sábio se perde, e se torna um homem comum. Diante do

mar bravio e dos rochedos e da travessia, Ulisses é, mais uma vez, o homem em luta,

assim como Lóri, em luta, ainda que agora fosse novo: os dois pertencendo a si mesmos

e um ao outro. Era a porta de um começo:

A madrugada se abria em luz vacilante. Para Lóri a atmosfera era de milagre.


Ela havia atingido o impossível de si mesma. Então ela disse, porque sentia que
Ulisses estava de novo preso à dor de existir:
- Meu amor, você não acredita no Deus porque nós erramos ao humanizá-lo.
Nós O humanizamos porque não O entendemos, então não deu certo. Tenho
certeza de que Ele não é humano. Mas embora não sendo umano, no entanto,
Ele às vezes nos diviniza. Você pensa que –
Eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafada porque ele
estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte:154

150
Op. cit. p. 145
151
Op. cit. p. 149
152
Op. cit. p. 149.
153
Op. cit. p. 151.
154
Op. cit. p. 155.

102
O romance havia começado com uma vírgula e agora termina em dois-pontos. E

este é o seu ápice: o silêncio.

O silêncio em que Clarice nos deixa, perdidos, plenos da dor/amor de viver. O

silêncio que nos leva, junto com Lóri e Ulisses, a tocar o ponto crucial de nossa

condição: a pressentir e desejar profundamente que se dê o humano como liberdade.

103
CONCLUSÃO

A leitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres nos lança em um

diálogo intenso com todos os conceitos inquestionados com que costumamos viver. E

agora, tendo percorrido este caminho, é preciso perguntar: no horizonte da

experienciação de Lóri e Ulisses de uma nova relação com o viver, com a dor, com o

amor e com o silêncio, não será possível compreender mais propriamente o apelo a uma

nova abertura de pensamento?

Sem dúvida, o dar-se e retirar-se da realidade é o tema central desta obra. O

devir de que nos falam os pensadores, faz-se presença diante de nós, e nos coloca em

questionamento. Nossa própria vida, nossa busca de garantias, nossas máscaras, tudo é

questionado em nome de uma experienciação muito simples: ser feliz.

E diante dessa simplicidade o complexo esquema de teorias explicativas da vida,

o pesado fardo das relações não-verdadeiras, e o nosso perene esforço de manter tudo

sob controle, caem por terra. Como Lóri, somos tomados por um imenso amor pela vida

que quisemos conter a todo custo, mas que não conseguimos. Somos lançados no

silêncio e deste silêncio surgimos para nós mesmos, em nossa concretude, em nossa

vivência efetiva como manifestação no tempo, em nossa condição de seres-do-entre.

Junto com Lóri, ousamos nos libertar de toda necessidade de explicação, para nos

entregar à experienciação do real enquanto doação poética. Nisto, encontramos a

possibilidade imensa da vida: o aberto em que se dá o Ser, como infinidade de

realizações em tensão com o mistério do Nada.

Ficamos, assim, na presença da clareira. A clareira que nos permite ver o

horizonte, mas não deixa esquecer a floresta. Tocamos, assim, a essência do real que é o

seu dar-se em completa liberdade.

104
A compreensão desta essência é impossível se tentarmos nos utilizar apenas do

pensamento conceitual e abstrato. A liberdade, a aprendizagem, o pensamento, o amor,

todas estas questões tocadas por Clarice necessitam ser experienciadas, vividas no

corpo, compreendidas numa dimensão em que o homem seja completo e não limitado

dentro de uma definição. E permitir que isso se dê em nós é a experienciação da vida

como um imenso prazer. “Pois o prazer não era de se brincar com ele. O prazer era

nós.”155

155
Op. cit. p. 120.

105
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