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1
O deserto cresce. Ai de quem guarda desertos dentro de si.
Nietzsche
2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................04
3 “É DIFÍCIL PERDER-SE”..............................................................................68
4 A EXPERIENCIAÇÃO DA LIBERDADE................................................... 98
CONCLUSÃO .................................................................................................104
REFERÊNCIAS ..............................................................................................106
3
INTRODUÇÃO
que exigem cada vez mais e mais especialização e dedicação, mas pela questão que ora
Que questão é essa? Desde o fim do séc. XIX e início do séc. XX, se tem
tentado apontar para ela: é a questão da relação do homem com a tradição, com a grande
objeto. Esta tradição não concerne apenas a filósofos mas a nós todos, pois seus
decisões sempre calcadas numa certa idéia de domínio do homem sobre a realidade.
Queremos partir, neste trabalho, das reflexões propostas por estes grandes
revolucionários, que colocaram por terra a naturalidade com que, filhos de uma tradição
Heidegger são aqui pressupostos, ainda que não sejam diretamente mencionados. Pois
não se trata, agora, de estudar como cada um deles contribuiu para pôr em questão a
tradição com que muito confortavelmente nos movíamos antes deles, mas apenas de
4
Destes pensadores, aquele com quem dialogaremos mais amiúde será Heidegger,
exatamente pelo fato de ter formulado claramente, com sua obra, esta questão, e dado a
ela a importância suficiente para que nos voltássemos e víssemos o que estávamos (ou
Ser foi entendido como presença e manifestação no tempo, desvelamento dado no seio
grega, não se negou uma dimensão incompreendida da realidade que é fonte de todo
Ser torna-se uma simples objetividade para a ciência, e, hoje, um simples fundo de
reserva para a dominação técnica do mundo.”1 Desta maneira, vivemos uma época que
se enraíza profundamente na dimensão filosófica, uma vez que a ciência e a técnica são
livres desdobramento desta dimensão filosófica, mas não se move nesta dimensão, pois
Assim, a questão do que é ou do que deve ser o pensamento hoje nos coloca,
mais uma vez, diante da questão mais antiga: o que é tudo o que é? O que é ser? E esta
questão primordial nos coloca ainda diante de outra, que a tradição filosófica – desde a
dado uma resposta satisfatória com a idéia de sujeito: a própria questão do homem. O
relatividade e tantas outras revoluções do pensamento no século XX, sabemos que esta
questão não pode mais ser respondida com velhas fórmulas e os mesmos pressupostos
1
HEIDEGGER, Martin. Entrevista concedida ao Professor Richard Wisser. In: O que nos faz pensar n.
10, vol. 1, outubro de 1996, p.11.
5
que nos levaram a nos perder da essência do humano, a nos afastar da presença do
mas talvez estes caminhos não digam mais respeito a uma busca de respostas. Talvez o
que precisemos, mesmo, seja a busca das perguntas. E este é o apelo que procuramos
ouvir.
Para corresponder a este apelo, algumas posturas precisam ser desfeitas, por
exemplo, a da idéia de uma verdade a ser encontrada através de algum método definido,
que levasse a um ponto onde o homem tivesse todas as respostas. Ao contrário disto,
entendemos que os métodos são caminhos, e que a filosofia, a ciência, a arte, a busca do
nenhuma deve ser considerada mais ou menos efetiva na busca de uma resposta última à
questão da realidade, justamente porque a realidade é uma questão que não pode ser
uma postura limitadora, que pré-define a realidade de acordo com alguns pressupostos e
qual procede. Por isso, toda busca deve ser aberta a todas as escutas, e permitir, antes de
É neste horizonte que desejamos proceder à leitura de uma obra literária, a saber,
esta tentativa de escuta das questões que uma obra literária nos traz responde a um
aqui de maneira instrumental, portanto não serve a nenhum projeto, seja social, seja
6
intelectual, ou de qualquer espécie. Entendemos que uma obra de arte não é outra coisa
senão o operar de questões em nós. Portanto, não se trata de buscar na obra uma
resposta ou defender uma postura clariciana diante do mundo ou das questões. Trata-se,
tão simplesmente, de ouvir o apelo que se dá em toda obra, das questões que nos tomam
Assim, a tentativa feita aqui é a de que nos deixemos tomar pela escuta da obra
A tentativa é tímida, mas enquanto a escuta do apelo for verdadeira, isto sempre
será, como diz Clarice, um exercício profundo de ser um ser humano. Todo o sentido
2
Heidegger se refere aqui à Conferência: O fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento, publicada em
português em: COL. OS PENSADORES, vol. XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
3
HEIDEGGER, Martin. Entrevista concedida ao Professor Richard Wisser. In: O que nos faz pensar n.
10, vol. 1, outubro de 1996, 17.
7
Capítulo I O HUMANO ENQUANTO TRAVESSIA
É lugar comum dizer que Clarice Lispector é uma autora de tendência intimista,
ou seja, que se volta primordialmente para as imagens da vida interior das personagens.
Mas o que significa isto, mais propriamente? Em literatura, não se pode falar em
tendências fortuitas, como se não houvesse nada além de meros acasos que compõem
uma arte do divertimento. Esta postura é uma tentativa de planificar a arte no seu
autor. Pois cada palavra e cada cena e cada imagem põe em obra o que há de mais
realidade do ser e não ser destas personagens. O horizonte do que não são está sempre
obra de Clarice. Revela-se assim o silêncio fundamental que precede e procede em toda
realização humana. Poeticamente, Clarice põe manifesto o que se cala em toda fala, pois
O “e” do fato do ser humano ser o tempo todo vida e morte. No e, de vida e
morte, nada pode ser definitivo. No e de prazer e dor, de amor e ódio, de atração e
retração, de dia e noite, vivemos. E este verbo viver precisa ter toda a carga e todo o
8
peso da humanidade com sua História e com suas descobertas afinal tão ínfimas diante
de seu mistério.
dura caminhada, pelas dificuldades do humano, movida por uma paixão. Uma paixão
tão grande que é um estremecimento de vida que não lhe permite fugir de seu telos, a
philei grego, apropriar-se do que nos é próprio, do que já nos é dado. Esta é a grande
Este caminho começa e precisa começar pelo silêncio. Pois na maior parte do
tempo estamos imersos em falas e mais falas e mais falas, que nunca cessam e nunca
nos permitem realmente pensar se somos ou não estas falas. Lóri, antes de ser
interpelada pelo silêncio, como fruto dos encontros com Ulisses, tem o comportamento
de uma mulher medíocre em suas ações e desejos, que tentava aflorar sua feminilidade e
maquiava-se de forma exagerada. Tinha medo do próprio estar viva. A maneira com que
Clarice abre o livro, com uma vírgula, e letra minúscula, parece não apenas indicar um
salto para dentro do mundo de Lóri, sem aviso, como na própria vida nos acontece,
como também demonstrar seu estado radicalmente angustiado. Lóri nos é mostrada já
nas primeiras páginas como alguém cujo estar no mundo é dificultoso e dolorido, como
se mancasse o tempo todo, ou como se ouvisse diversas falas sem saber onde se situar,
9
Ela parece tentar compactuar com uma vida aquém da vida, calando o que no
peito diz que há uma fruta melhor e mais saborosa, uma experienciação de vida com
mais sentido e beleza: “Ulisses acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemplo
embelezar uma fruteira”4, coisa que ela não sabia fazer, coisa que pertence muito
propriamente ao ser uma mulher, no sentido profundo de embelezar uma casa, trazer
beleza à vida simples e cotididana. Mas Lóri não consegue nem calar este desejo, nem
por precisar dele. Mas, ao mesmo tempo, sabe que está muito longe dele e de
considerar-se pronta para dormir com ele. Sabe que se move por esse desejo, mas não
encontra em si a capacidade de sair do sofrimento para ser uma mulher mais pronta.
A Lóri que abre o romance nos dá a pensar a paralisia e a secura de uma vida
que não toma a si mesma e não se enfrenta, mas também não desiste de tornar-se o que
é, o que precisa ser. E é esta Lóri que terá de abrir o coração, ainda que à força, para o
4
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 13.
10
1.1 LÓRI: SILÊNCIO E DOR
“O Deus que me ajude nessas trevas geladas que são as minhas”5, Lóri diz
baixinho, quando, em Paris, a “neve grossa e ruim” caía em seu rosto e ela começara a
chorar de manso.
“As trevas geladas que são as minhas”: quem não conhece esta espécie de
Como abrir os olhos no silêncio da manhã de neve branca, sem sentir-se absolutamente
insaciáveis? Frias e insaciáveis são as águas de nossas vidas, de uma vida marcada
É o silêncio de Berna...
O silêncio de Berna é o silêncio da própria vida. Mas a sua escuta não é como
aquela do sábio, com paz e renúncia. Incomoda-nos o fato de a vida não poder ser
é, de maneira muito angustiosa, tocar o grave e crucial da condição humana, o que não
se deixa dizer em palavras, mas nem tampouco aquieta. Aqui não há ainda entrega, mas
uma luta humana muito dura: a necessidade de viver e de ser, que ao mesmo tempo em
morte como horizonte. Isto significa: “a dor de não ter futuro senão o de continuar
existindo”6, a ausência de respostas que dói no corpo quando é reconhecida, a morte das
justificativas, das teorias que explicam o homem por fora, mas nunca nos preenchem
5
Op. cit., p. 45.
6
Op. cit., p. 70.
11
por dentro. É quando não temos outra coisa senão dizer: “É tão vasta a noite na
subjetivas, que não interessam ao conhecimento. Ou, ainda, que além de subjetivos, não
passem de momentos raros, e desligados de nossas vidas, como fantasias. Mas não.
Estes momentos somos nós, a humanidade de hoje, tão ausente do próprio silêncio, tão
distantes uns homens dos outros como as noites despovoadas das montanhas.
Sentir a dor deste silêncio (“Viver na orla da morte e das estrelas é vibração
mais tensa do que as veias podem suportar”8) é como inesperadamente adentrar o nosso
tempo, o tempo de um destino que há alguns séculos vem se configurando como trágico
perder todas as esperanças. “Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos
finalmente, saber que, apesar de termos caminhado por um longo tempo, crendo na
relacionadas à mulher, ao seu silêncio e à sua dor. Pois Terra é aquilo que gera, no
interior silencioso, a vida que eclode no aberto. Da mesma maneira a mãe gera em seu
interior silencioso uma nova vida que eclodirá. E ao mesmo tempo em que a Terra dá,
ela se recolhe no seu silêncio de Terra, como a mãe. Terra é o silêncio da renúncia que
7
Op. cit., p. 36.
8
Op. cit., p. 38.
9
Op. cit., p. 37.
10
Op. cit., p. 37.
12
permite sempre, na morte para uma realidade, gerar uma nova, reformular, transformar.
Terra é, ainda, o lugar para o qual sempre se irá voltar: ao silêncio, à morte, ao nada.
Assim também a lua remete à mulher: sua fecundidade, o ritmo de seu corpo, a
como o Sol. Revela-se aí a presença misteriosa do duplo, do jogo de sim e não que faz
da mulher a própria vigência do diá, palavra grega que significa “dois”, mas também
“entre” e “através de”, por isso remete à presença do entre enquanto tensão de ser e não-
ser, do Ser e do Nada. Lóri sabe que é mais lunar que solar, e por isso prefere a
companhia da Lua para a descoberta da vida. Ela é lunar porque é mulher. E é este
O que é este entre? Para compreendê-lo precisamos partir da questão que eclode
em toda realização humana, a questão das questões: o que é o humano? O que torna o
Por um longo tempo, a tradição metafísica tentou responder a esta questão com
(homem, racional). Mas a proposição “o homem é um animal racional” não dirá nada
11
Op. cit., p. 38.
13
O verbo ser, no pensamento lógico-proposicional traduzido a partir de
Aristóteles, foi anulado quando foi considerado um “mero” verbo de ligação. Desta
maneira, a representação, na forma de conceitos sobre o ser dos entes, tem precedido a
nossa experienciação do ser dos entes. Isso significa o esquecimento do vigor das
somente sabendo-se como um ente que está sendo. Porque dado no ser, o homem é
tomado pela impossibilidade de conhecer e saber este ser. Por isso é tomado
primordialmente pelo mistério, situado no entre ser e não ser, no Ser que se dá no e a
partir do Nada. Sobre este limite de luta (Streit) do Ser e do Nada, o homem é
homem está assim jogado num projeto que desconhece, e dado como doação do Ser que
é, mas que não se deixa dizer. Por isso, jogado no silêncio e por ele tomado.
exaustivo desta palavra. Ela diz o “centro” primordial da vida, o lugar do movimento da
seu grande mistério, é o coração. E é ali ele que sente: a dor da vida enquanto entre.
“Então, se há coragem, entra-se nele, vai-se com ele para o Inferno”.12 O inferno
é o rasgo desta dor. O inferno é o in. In é uma preposição latina que significa “em”, que
diz, rasgando, “entre”. E ferus, o radical, vem de “fero”, levar conduzir. Inferno é o
conduzir ao entre, ao estar cravado na dor, entre duas condições, entre ser e não ser,
soluço, é o silêncio.
12
Op. cit., p. 38.
14
É o silêncio de Berna quando as crianças dormem. É o silêncio de uma noite em
que não há dança, não há gritos, não há barulho de mar. Nem sequer uma folha que se
mova num galho, ou caia. Não há respostas, não há esperanças de que uma porta se abra
e “diga” alguma coisa. Não há amor. Ainda que tente enganá-lo: “deixa-se como por
acaso o livro da cabeceira cair no chão. Mas – horror – o livro cai dentro do silêncio e se
verdade é sempre muda, assim como a vida, quando o peito se contrai no essencial de
cada vida.
Pois quando se toca nisto, “o essencial de cada vida”, a tradição filosófica traça
suas respostas, as tradições religiosas traçam suas respostas, mas nunca ninguém calou
excelência para o Ocidente. Pois a História do Ocidente parece ter sido a História de
uma de-cisão, mais especificamente, de uma de-cisão por uma idéia de certeza. Há
muito tempo, como coloca Heidegger em O que é isto – a filosofia?, algo tomou de
assalto o homem grego: o Hen Panta: o ente é no Ser. Mas essa surpresa não nos foi
A transliteração da cultura grega para a língua latina parece ser o momento desta
presença, e presença significa ser e não ser. Este e não era problemático pois a filosofia
não estava ainda na busca de conceitos abstratos, proposições que não podem ser
pulsante, imperante: o que é tudo o que está sendo? Ti to on? em grego. Esta pergunta
13
Op. Cit., p. 38.
15
não se deu ao acaso. Ela é fruto, em primeiro lugar, do espanto, o thaumatzein, a
principia, e está contido no que principia, sempre mais uma vez principiando
Estas duas palavras evocam o invisível no visível, o não-ser presente no ser, a abertura
E esta é a dor do silêncio. Nunca se provaram, por mais que se tenha tentado, as
fronteiras do ilimitado. Por mais que nos debatamos uns contra os outros, e dentro de
no fim, é preciso render-se. “O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e
14
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.38.
16
Mais uma vez, coração. A grande dor humana, situada bem no centro da vida, é
estar no Nada sozinho. Estamos no Nada e somos a partir dele, e o silêncio nos diz isso.
E então sentimos a dor de viver nestas trevas, na escuridão que vela e revela, enquanto
apelo de ser.
ouvir o apelo do ser, que misteriosamente se dá, é que nas grandes obras de literatura,
silêncio. Nas grandes obras do ser humano, o silêncio vibra numa presença inequívoca.
Ele está presente todas as vezes em que uma obra é escrita ou realizada num coração
tomado: não é o ser humano que tem questões, são as questões que nos têm. Como
coloca Heidegger, é a que linguagem fala, não o homem. O falar do homem é muito
instrumento deste indivíduo. E, claro, para questionar a linguagem e dizer isto que
construído nos últimos vinte e cinco séculos. Mas é justamente isto que Heidegger faz, e
não é necessário nada além de voltar ao sentido originário das palavras, com os ouvidos
uma antiga palavra grega, praticamente intraduzível: logos. Logos evoca um sentido
Desvelamento do ser é mundo. A linguagem é assim, mundo sendo a todo tempo criado,
17
Esta concepção de linguagem é, de fato, uma inversão de um pressuposto
largamente aceito, por todo o tempo que agora nos separa de Platão e Aristóteles, que é
o da idéia de sujeito. O sujeito é algo que possui características. Ele é uma fonte, ele é
um ente definido e dono da capacidade de controle sobre o que ele é e não é. Mas é
preciso compreender como nasceu esta idéia, pois isso significa nos aprofundarmos no
os gregos denominaram ón, que podemos traduzir como sendo-ser, realidade, coisa, ou
características, mas aquilo em torno do qual estão reunidas as propriedades. O grego via
em geral. Neste contexto, symbebekota é “aquilo que também sempre já foi posto com
symbebekota virou accidere, “cair em direção a”. Esta interpretação inaugura um novo
modo de pensar: a estrutura da proposição sujeito – verbo – objeto toma o lugar do que
15
HEIDEGGER, Martin. A origem da Obra de Arte. Trad. Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo
da Silva, Faculdade de Letras da UFRJ, mimeo. § 18.
16
Op. cit., §18.
18
traduzem a palavra grega ousía. A ousía é a entidade do ente, é aquilo que o ente é.
Temos aqui duas coisas que não podemos deixar de pensar: primeiro, que a essência
pensada abstratamente, alijada da vigência, perde seu sentido pois seu sentido é apenas
a busca do ser que é em cada ente; e segundo, que a história do pensamento deu a esta
entidade do ente diversas interpretações – para Platão ela é idea, para Aristóteles,
energeia. O que importa é, assim, não nos deixar tomar por uma espécie de ilusão de
com um barulho atento de máquina de bomba de água, bomba que trabalhava há tanto
tempo sem água e que virara ferro enferrujado”.17 Da mesma maneira que a bomba
Conceitos, quando não passam de palavras sem vigor, tomam nossas vidas, mas
procurada fora da coisa, cai no absurdo. Nós podemos, muito mais diretamente, viver as
17
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.23.
18
BARROS, Manoel de. O Guardador de Águas. Rio de Janeiro: Record. 2003, p. 62.
19
Por que será que o poeta diz que “no que o homem se torne coisal”, que atinja o
que tem a ver coisa com subtexto, agramaticalidade, poesia, vareios do dizer?
sua liminaridade. Mas o homem só é liminar, vige no entre, e não no domínio apenas do
linguagem que está sempre inaugurando, e trazendo o ente para a realidade de seu
aparecer.
livremente no entre da fala e do silêncio. Por se dar livremente, não está comprometida
com nenhum projeto posterior ao próprio projeto de ser e tornar-se, inaugurar falas e
mundos. Coisa tão velha quanto andar a pé, coisa que sempre aconteceu. Ainda que não
linguagem.
Em primeiro lugar, ele sempre se deu na arte. E nos últimos tempos, tornou-se
necessariamente uma questão para a ciência. Não podemos mais falar tão impunemente
19
“A física moderna nos informa que nem tudo é constituído de átomos. A matéria atômica – da forma
que conhecemos – representa hoje menos de 5% da matéria total do universo. (...) A ciência é forçada a
admitir, portanto, que esse vazio está cheio de uma estranha energia que se condensa para formar a
matéria dos átomos.” Cit in: A Ilusão da Matéria e a Física Quântica.
www.geocities.com/CapeCanaveral/Lab/5328/Forum12.html.
20
É necessário perceber que nos movemos em caminhos já escolhidos, e que
aquilo que tomamos como evidente, talvez tenha fundamentos não tão sólidos assim. E
este é o questionamento que se tornou, para nós, hoje, o mais urgente e complicado.
Lóri é a mulher presa e crestada na secura de um viver que não a satisfaz: um viver rico
afeto, há respostas bem planejadas e bem confortáveis, enfim, há o que Lóri ou qualquer
ser humano poderia desejar. Mas, oprimidos pela perspectiva de que deveríamos
encontrar todas as respostas, como Lóri desejaria, temos medo da não-resposta. Temos
medo do silêncio que apesar de todo o nosso conforto, a todo tempo nos acossa. Como
imagem-questão, Lóri é o ser humano lutando para manter-se calmo e numa espécie de
“zona de conforto”, enquanto seu coração grita, sua alma pede, sua vida aparece como
dos dois consigo mesmos e, numa dimensão mais profunda, de cada um deles com o
silêncio que nos faz questões. Isto implica, de maneira extremamente provocadora, um
diálogo no leitor: o próprio leitor é confrontado com o silêncio que grita na dor de Lóri,
e que sussurra na voz irritantemente calma de Ulisses. E é Ulisses mesmo que faz uma
belíssima apresentação deste tema, o quanto nós não ouvimos o silêncio que nos
constitui:
Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso
considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as
coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por
tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído
catedrais, e ficado do lado de fora, porque as catedrais que nós mesmos
construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós
21
mesmos pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. (...) temos
mantido em silêncio a nossa morte para tornar nossa vida possível.20
Amar, aceitar o que não se entende, se entregar, são uma profunda oposição a
nossos atos comuns como amontoar coisas, catalogar, construir, fugir, temer. Essa
oposição os une, pois estamos jogados na necessidade de amar que tanto tememos, ao
desejo insaciável de uma vida larga que não temos coragem de abraçar. E por que não
montanha de poeira e cinza, em nome dos poderes, e das verdades que os garantissem.
A automatização não é algo que está apenas nas máquinas, mas também nos toma,
interesses sempre de alguns que pretendem gozar das vantagens sobre a capacidade de
grande medida como viemos parar num tempo de tanta distância: enquanto uns podem
imaginado, e outros possam estar tão alijados deste conhecimento que sequer imaginam
20
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.48.
21
Cf. HEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001.
22
“São os tempos de grande perigo em que aparecem os filósofos”22 diz Nietzsche.
E esta frase não poderia ser mais atual. Pois os nossos tempos são de grande perigo. Isto
ecológicos iminentes; compreende de maneira muito mais radical, o fato de que os seres
História e dos tempos que hoje vivemos abre-se diante de nós como um grande desafio,
e exige filósofos. Parece nos pedir, como na imagem do Mito da Caverna de Platão, um
voltar-se de toda a alma para algo novo, deixando para trás um caminho. Que caminho?
caminho de uma certa interpretação do que seja a metafísica, levado a cabo como um
Numa mesma palavra “metafísica” estão unidos dois sentidos que precisam ser
tradição que conduz o pensamento filosófico desde os gregos até o século XX, calcada
este conceito advém da tomada da metafísica pela tradição ocidental, e parece ser
significa o modo de ser do homem tomado pelo pathos da liminaridade: um ser que não
pode se resumir ao domínio dos entes, pois só pode se dar, o tempo todo, como doação
do nada.
22
NIETZSCHE, Friedrich. A Vontade de Potência. São Paulo: Ediouro, s.d.
23
Em um diálogo efetivo com a modernidade científica, Heidegger diz: “A ciência
Mas nós, cotidianamente, nos referimos à palavra nada. O que é esta palavra,
algo que não deveria existir? Por que ela nos assedia a todo tempo, em nossa existência
diária?
na totalidade do ente. Ainda que não possamos representar nem uma coisa nem outra, há
de agora as disposições de humor de pathos, (palavra grega riquíssima cujo sentido será
mais propriamente tratado no próximo capítulo). O tédio, que nos mergulha numa
com um outro ser. Mas não sabe o que fazer deste desejo, pois ele a tira do controle que
um dia ela pensara ter, e questiona os pressupostos que lhe permitiam passar pela vida
de maneira ausente, para não sofrer. Para amar, precisava passar pela queda humana,
Através de seus graves defeitos – que um dia ela talvez pudesse mencionar sem
se vangloriar – é que chegara agora a poder amar. Até aquela glorificação: ela
amava o Nada. A consciência de sua permanente queda humana a levava ao
amor do Nada. E aquelas quedas, como as de Cristo que várias vezes caiu ao
peso da cruz – e aquelas quedas é que começavam a fazer sua vida. Talvez
fossem os seus “apesar de”, Ulisses dissera, cheios de angústia, e
desentendimento de si própria, a estivessem levando a construir pouco a pouco
uma vida. Com pedras de material ruim ela levantava talvez o horror, e aceitava
23
HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo: Abril
Cultural 1973, p. 234.
24
o mistério de com horror amar ao Deus desconhecido. Não sabia o que fazer de
si própria, já nascida, senão isto: Tu, ó Deus, que eu amo como quem cai no
nada.24
A queda: esta talvez seja a imagem que há mais tempo coloque a questão do ser
humano no mundo. É fato que a queda no pensamento cristão já não diz nada se a
Resta perguntar o que é esta dor. Não é a dor pela dor. É a dor que é a vida, pois
dor do silêncio de Berna. A dor de estar diante do nada, no nada: e neste nada ter apenas
uma única forma de vida: amar um Deus. O que é Deus, e o que é amor? É o próprio
Diz Heidegger:
dos entes. “A angústia nos corta a palavra. Nos acossa o nada, em sua presença, e
Precisamos entender, assim, que o nada se revela na angústia, mas não enquanto
ente, tampouco como objeto. “Na angústia se manifesta um retroceder diante de, que
24
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.27.
25
HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo: Abril
Cultural 1973, pág. 237.
26
Op. Cit., p. 237.
25
sem dúvida não é mais uma fuga, mas uma quietude fascinada.”27 E é nesta quietude
vive e morre:
Cair, quando vida e morte se tornam, finalmente, o que são: questão em aberto, o
próprio ser humano como questão, abismo. Ulisses a empurrava para o abismo, mas
será que é Ulisses? Não. Não o homem Ulisses, simplesmente. Quem empurra para o
abismo é unicamente a necessidade de cada ser humano tornar-se um ser humano. Isto,
por mais que nos seguremos com toda a nossa força, é como Lóri à beira do abismo:
uma resistência pobre, um pobre ser humano contra uma mão simplesmente mais forte.
humano no homem:
utiliza na citação acima a palavra ser-aí, que é uma tradução bastante comum para o
27
Op. Cit., p. 237.
28
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.32.
29
HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo: Abril
Cultural 1973, pág. 239.
26
português. Mas esta não explicita tão propriamente a liminaridade que a palavra Dasein
diz em alemão. Em primeiro lugar, porque ela é uma palavra comum da língua alemã
que foi utilizada por Heidegger de uma maneira nova, e significa “existência”. Mas
também esta tradução é prejudicada por todo um jargão criado pelas idéias do
existencialismo. Então, temos que perguntar: o que significa Dasein, em alemão. O que
quer dizer o tão debatido prefixo da? Segundo Márcia Sá Cavalcante Schuback:
Neste texto, Heidegger defende que entre-ser (Dasein) é estar suspenso dentro do nada.
Este estar suspenso dentro do nada é a transcendência: o entre-ser está sempre além do
justamente a interrogação que vai metà – trans, além do ente enquanto tal. Metafísica é
o perguntar além do ente, para recuperá-lo, enquanto tal e em sua totalidade, para a
compreensão.32
tempo em que é o que Heráclito já dizia há mais de vinte séculos: o ser não se resume
30
GRIMM, Deutsches Wörterbuch. Munchen: Detscger Taschenbuch Verlag: 1984. Cit in: SCHUBACK,
Márcia Sá Cavalcante. A Perplexidade da Presença. In: HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis:
Vozes, 2006, p. 27.
31
SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante. A Perplexidade da Presença. In: HEIDEGGER, Martin. Ser e
Tempo. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 27.
32
HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo: Abril
Cultural 1973, pág. 240.
27
ao calculável e controlável no domínio dos entes, e o pensamento não se pode reduzir à
admitir. Isto é o que aponta o professor Manuel Antônio de Castro: enquanto estamos na
não-conhecido tudo vê e tudo alcança, não admitimos que mesmo na nossa tentativa de
conhecer, há ainda uma outra dimensão: a das questões. As questões que nos tomam nos
quando mostra que algumas disposições de humor nos revelam o nada, e entre estas
disposições de humor estão justamente aquelas que nos levam à vontade de conhecer e
somente porque o nada está manifesto nas raízes do ser-aí (entre-ser) que pode
sobrevir-nos a absoluta estranheza do ente. Somente quando a estranheza do
ente nos acossa, desperta e atrai ele admiração. Somente baseado na admiração
– quer dizer, fundado na revelação do nada – surge o porquê. Somente porque é
possível o porquê enquanto tal, podemos nós perguntar, de maneira
determinada, pelas razões, e fundamentar.34
33
CASTRO, Manuel Antônio de. Interdisciplinaridade Poética: o Entre. In: Revista Tempo Brasileiro.,
Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan-mar 2006,
34
HEIDEGGER, Martin. O que é Metafísica? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo: Abril
Cultural 1973, pág. 240.
28
Assim, estes seres que somos, tão apegados à idéia de que há uma certeza em
é dor de ser e não ser, de saber e não saber, de viver e morrer ao mesmo tempo, a todo
tempo. Quando nos damos conta do nada, da morte, ficamos diante das questões de uma
maneira que não podemos mais fugir. Aqui começa o processo de transformação. Aqui
começa a aprendizagem. Com a questão do nada, a lógica perde seu lugar (não num
cotididana). A lógica se revela limitada para o pensamento. Assim como para qualquer
ser.35 Pois o que Heidegger procura sempre mostrar é esta condição de liminaridade, o
Estamos acostumados a ver de fora para dentro, trazendo todas as explicações para a
coisa a ser explicada. Sabemos muito das sombras que se formam no fundo de nossas
cavernas (as representações), mas não conseguimos o ter que voltar a cabeça e o
pescoço para onde estão as próprias coisas. Olhar para as coisas é uma ascese
necessária. Nosso olhar não o consegue de primeira, tão acostumado está a procurar os
por exemplo, o movimento de um corpo, corpo apenas, sem cor e sem ritmo a seguir. E
é aí que fala:
35
CASTRO, Manuel Antônio. As questões da arte em Heidegger. In:___(org.)A arte em Questão: as
questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, p. 38.
29
O tempo, que é o mistério maior do não-saber e da morte humana;
O Ser, que, no estar sendo de tudo mostra – como se fosse a mais bela arte – que
se dá no extraordinário.
conceito, no vazio que nos chama a cada fala, tudo isto nos mostra o extraordinário, que
sempre além de si mesmo. E isto não diz respeito a nenhuma experienciação de caráter
Nesse dar-se inexplicável aparece a dor, a dor viva de Lóri. É a dor que nasce
própria vida, e quando percebemos que afinal, mal temos vida. É a dor que vai muito
curar com remédios, ilusões, ou mesmo filosofia. Uma dor que só podemos entender no
horizonte do difícil caminho de quem tem que aprender a ser, e que surge somente
Assim, o silêncio de Berna não é uma mera lembrança, mas a vigência dolorosa
homem e a vida? Estas são as perguntas de Lóri que jamais são formuladas senão por
sua grave dor de estar no mundo. Pois esta personagem não pergunta pelo mundo de
30
simplicidade que quase a caracteriza como uma mulher sem maiores interesses do que a
,estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às
pressas porque cada vez mais matava serviço, embora só viesse para deixar
almoço e jantar prontos, dera vários telefonemas tomando providências,
inclusive um dificílimo para chamar o bombeiro de encanamentos, (...)
enquanto notara que o terraço pequeno que era privilégio de seu apartamento
por ser térreo precisava ser lavado, recebera um telefonema convidando-a para
um coquetel de caridade em benefício de alguma coisa que ela não entendeu
totalmente mas que se referia ao seu curso primário, graças a Deus estava em
férias (...)36
Isto, até certo ponto, é o que ela é. Mas só podemos compreender a obra de
Clarice se tivermos a sutileza de ver (como Ulisses, “que sabia ver a beleza tão
mediocridade, uma mulher inconquistada e inalcançável, não só para si, mas para os
Este estreitamento no peito é aquilo que ninguém pode julgar. Pois, apesar de
todas as “associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda”39, e apesar
Só cada um sabe a sua dor. Mas Lóri é, para além disto, imagem-questão do ser
humano que se indaga: o que é este silêncio de tanta dor? Vida é esta dor?
que se revela pelo encontro com Ulisses, mas que sempre houve. Sempre houve nela
uma busca. É a pro-cura que sempre precisamos realizar por já sermos uma doação de
36
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.13.
37
Op. cit., p. 27.
38
Op. cit., p. 40.
39
Op. cit., p. 48.
31
algo que não conhecemos. É a realidade que sempre se dá em ser e não ser, apesar de
E talvez justamente por não suportar a busca, é que Lóri aprendeu a viver num
sofrimento que é aquele de quando se nega a dor. Não sabendo vivê-la, simplesmente,
decidiu “cortá-la”. Fazendo isto, ao mesmo tempo cortava o seu contato com a vida:
O que acontecia na verdade com Lóri é que, por alguma decisão tão profunda
que os motivos lhe escapavam – havia por medo cortado a dor. Só com Ulisses
viera aprender que não se podia cortar a dor – senão se sofreria o tempo todo. E
ela havia cortado a dor sem sequer ter outra coisa que em si substituísse a visão
das coisas através da dor de existir, como antes. Sem a dor, ficara sem nada,
perdida no seu próprio mundo e no alheio sem forma de contato. 40
Esta dor não pode ser encontrada em nenhum exame de laboratório, tampouco o
prazer nas substâncias químicas que o provocam. Dor e prazer são sentidos humanos.
São pathos. Esta palavra diz essencialmente “ser tomado por”. Nós já somos tomados:
não decidimos se queremos ou não viver ou ser. Já somos, já somos no entre, já somos
tomados pelo ser. Mas Lóri resiste a reconhecer que é o pathos que diz “vida.” As
primeiras cenas nos dão uma Lóri numa vida absolutamente seca, infértil, quente. Não é
só a dor que a toma, mas a incapacidade de sentir qualquer coisa, de criar qualquer
algo que pode trazer dor. Mas é em si uma dor profunda, porque corta qualquer
sofrimento. Por isso diz Clarice: “só com Ulisses viera a aprender que não se podia
cortar a dor – senão se sofreria o tempo todo.”41 Lóri sofre o tempo todo por estar diante
40
Op. cit., p. 40.
41
Op. cit., p. 40.
32
da fonte, mas não querer aceitar todas as vicissitudes que a vida dada por essa fonte
pode trazer.
Este medo é tão grande que cria, na verdade, um ódio pela vida. Ódio é negação,
por algum motivo, há uma forte negação. Clarice nos mostra, no segundo capítulo do
romance, a imagem de um verão quente e infértil que é o estado de Lóri, mas o mais
grave é: um verão sem sede. Tudo era “de uma ternura quente insuportável” 42, “faltava
Ah, e a falta de sede. Calor sem sede seria suportável. Mas, ah, a falta de sede.
Não havia senão faltas e ausências. E nem ao menos a vontade. Só farpas sem
pontas salientes por onde serem pinçadas e extirpadas. Só os dentes estavam
úmidos. Dentro de uma boca voraz e ressequida os dentes úmidos mas duros – e
sobretudo a boca voraz para o nada. E o nada era quente naquele fim de tarde
eternizada pelo planeta marte.44
mistério. Para Lóri, como para qualquer ser humano preso à tentativa de resolver suas
controle. Isto nos desespera e por isso o verão seco de Lóri é como muitas vezes nos
encontramos: numa vida seca, mas na qual preferimos continuar fingindo, para não
Mas, para Lóri, já atingida pelo diálogo proposto por Ulisses – diálogo consigo
mesma, com a vida e com o silêncio - não há mais como fugir. Então ela se percebe,
percebe como está longe, como está vazia de si mesma, do que lhe é próprio. Sua vida,
infértil e paralisada, mais parece o verão quente e insuportável, verão largo como o
42
Op. cit., p. 22.
43
Op. cit., p. 23.
44
Op. cit., p. 23.
33
Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura pesada:
como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez límpida e
quente. A noite que não vinha, que não vinha, não vinha e era impossível. E seu
amor que agora era impossível – que era seco como a febre de quem não
transpira era amor sem ópio nem morfina. E “eu te amo” era uma farpa que não
se podia tirar com uma pinça.45
Sem suor, sem sal, sem lágrima, sem água: neste deserto, o que é a noite
inexprimível, ao inexplicável. Livres da luz imponente do Sol que a tudo faz ver, os
dos sonhos. E nela podem os deuses realizar todas as suas proezas. A noite é, ao mesmo
a noite nos põe muito próximos da presença do nada, das infinitas possibilidades, do
silêncio, da doação inexplicável de tudo. Neste horizonte, vemos uma mulher tomada
pelo impossível do amor: completo silêncio. Aquilo que nos deixa sem saber nada. E
Quero que isto que é intolerável continue porque quero a eternidade. Quero esta
espera contínua como o canto avermelhado da cigarra, pois tudo isso é a morte
parada, é a Eternidade de trilhões de anos das estrelas e da Terra, é o cio sem
desejo, os cães sem ladrar.46
Lóri aceita o intolerável, isto quer dizer: o intolerável de ser um ser humano e
necessitar prementemente ser o que é, e isso ser doloroso e cortar o ar. E só então
45
Op. cit., p. 23.
46
Op. cit., p. 24.
34
ela ouve alguma coisa. Uma coisa também seca que a deixa seca de atenção. É
um rolar de trovão seco, sem uma saliva, que rola, mas aonde? No céu nu e
absolutamente azul nenhuma nuvem de amor que chore. Deve ser de muito
longe o trovão. 47
revela-se aqui:
a urgência é ainda imóvel mas já tem um tremor dentro. Lóri não percebe que o
tremor é seu, como não percebera que aquilo que a queimava não era o fim da
tarde encalorada e sim o seu calor humano. Ela só percebe que agora alguma
coisa vai mudar, que choverá ou cairá a noite.48
O que vai mudar? Qual é o processo? Qual é o caminho? Essas são as nossas
perguntas. As perguntas de nossas vidas. Mas que Lóri e nós não sabemos responder. E
é nessa angústia (a angústia é o que nos permite saber-nos humanos, doação do vazio)
Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer.
Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi
o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha
própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você
enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo
que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com
alma também. Por isso não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo
for preciso.49
A locução “apesar de” tem o sentido claro de um conflito, mais especificamente,
da ação de ir contra algo que obstacula um caminho. Mas amar, comer, morrer, são
coisas que, a princípio, pensamos fazer simplesmente. O que há nas ações humanas que
47
Op. cit., p. 24.
48
Op. cit., p. 25.
49
Op. cit., p. 26.
35
elas nos pareçam oferecer resistência, que elas signifiquem obstáculos a algo?
Justamente o fato de não haver nada mais ambíguo do que o agir humano, de, ao
contrário de nós sermos previamente delimitados e definirmos nosso agir, nós nos
Lóri, “apesar de”, é alguém repleta do desejo por algo diferente, indeterminado,
já pressentido como uma vida num modo de ser outro que a dor. É nisto que Lóri se
debate. O não-saber é, para ela, realidade intolerável, ao mesmo tempo, concreta e viva
e fértil dentro de si. A realidade do não-saber nela se faz viva e inicia uma
coloca em espera.
compactuar com uma espécie de mediocridade de viver, é o silêncio que diz a Lóri de
sua perdição real: como quando procurara a costureira, num bairro distante de Paris, e
não sentira a noite gelada cair. No medo e na dor, esquecera o nome de seu hotel,
é travessia. Travessia vem de trans, que é a tradução da palavra grega metá, que diz
50
Op. Cit., p. 46.
36
vertere, que significa verter. Nós somos vertidos para além de nós mesmos, no entre, no
metá, e ao mesmo tempo nele também nós vertemos. Este verter-se a todo tempo no
Nestes caminhos ainda pouco propriamente seus, Lóri havia feito muitas
diversos hotéis, todos iguais, é mais ou menos o que vamos fazendo durante a vida.
que nos pareçam com abrigos. Afinal, no meio do desconhecido, precisamos de uma
habitação.
No ensaio Construir, Habitar, Pensar, Heidegger nos lembra que o verbo bauen
(construir) tem sua origem no alto-alemão buan, que significa habitar, permanecer,
morar. Estas palavras têm uma relação profunda com o verbo ser, por exemplo em ich
bin, eu sou, du bist, tu és. Pois “a maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual
somos, os homens sobre esta terra é o buan, o habitar.”51 E este habitar significa
(Geviert): terra, céu, mortais e imortais. Os mortais habitam na medida em que salvam a
terra, acolhem o céu como céu, aguardam os deuses como deuses e coduzem seu próprio
vigor, como seres capazes de morte, fazendo uso dessa capacidade com vistas a uma
boa morte.
coisas. Por um momento, Lóri esquecia o lugar para onde deveria voltar e caía numa
liberdade abissal de poder ir a qualquer lugar ou não achar lugar algum para ir.
51
HEIDEGGER, Martin. Construir, Habitar, Pensar. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes,
2001, p. 127.
37
Esta liberdade nos é profundamente desconfortável, enquanto possibilidade para
todas as possibilidades, se quisermos nos manter presos a um limite definido. Mais uma
Silêncio, dor e liberdade são palavras-questões que, nesta obra, vão muitas vezes
transforma: o silêncio, a dor e a liberdade, vistos com angústia pela Lóri que abre o
romance e com alegria pela Lóri que o fecha, são os mesmos. A realidade é a mesma. É
de vivê-la.
dar-se conta de que há um real, e que este real não é produzido por mim, nem pelos
meus desejos e nem por minhas decisões. É o real que se dá, de maneira inexplicável,
multiplicidade. “Você é das que precisam de garantias”,52 diz Ulisses, quando propõe a
possibilidades, esconde o rosto sob uma maquiagem, uma máscara. E isto por um medo,
uma decisão profunda de não sentir a dor. A dor de sua perdição real.
52
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.59.
38
sentimento conhecido à experienciação incerta, a dor conhecida à possibilidade da
alegria.
se nele, vai-se com ele para o Inferno”53. Lóri vai viver a travessia, e este é o ponto
importante: ela sabe que é difícil abrir-se ao desconhecido, mas deseja, e procura
coragem.
E o silêncio é Terra: terra que se retrai em todo manifestar-se da physis. Terra que diz
Terra, terremoto, útero, são palavras que remetem ao mistério criador da vida.
silêncio da terra precisa nascer uma Lóri capaz de viver concretamente o real, no seu
entre ser/não ser, apropriar-se de si mesma neste entre, e só nele poder descobrir
53
Op. cit., p. 38.
54
HERÁCLITO, Fragmento 123.
55
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.13.
39
1.2 A PAIXÃO COMO HORIZONTE DO INVISÍVEL
Lóri vivia uma vida comum, sem grandes questionamentos – para evitar a dor –
até o momento em que se apaixona por Ulisses. A partir daí, o turbilhão, o terremoto, o
que ela não é capaz de conter. Parece que algo se move dentro dela, ao qual ela resiste,
O que acontece a Lóri é que, nesta paixão, ela é tomada por uma procura
originária.
Uma procura originária significa a busca que não pode se satisfazer com
explicações sobre o sendo, pois reconhece que o sendo só é em seu elemento próprio,
que é o ser. Lóri quer a vida em seu elemento próprio e não sabe dizê-lo.
no ponto anterior) pensa poder ser sempre somente representação. Mas é preciso
representação, que já não pode ser representada. Como diz Emmanuel Carneiro Leão,
“ninguém pode pular a própria sombra.”57 Isto que é irrepresentável, este caráter pré-
O ser não pode ser dito, não pode ser representado, porém, é experienciado
originariamente por nós o tempo todo. Isto, de maneira muito simples. Tão simples que
tem se tornado o mais complicado para nós, que esquecemos o vigor de toda
56
Op. Cit. p. 79
57
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Introdução a Ser e Tempo, In: HEIDEGGER, Ser e Tempo. Petrópolis:
Vozes, 2006, pág. 550.
40
manifestação imediata, o vigor originário da physis enquanto dar-se e retrair-se, fala e
imediatamente uma vez que nos voltássemos às próprias coisas. Não há um lugar
especial onde esta busca originária se dá: nem a literatura, nem a filosofia, nem o mito,
nem a religião. Essa é a busca de todas as experienciações humanas. Por isso Heidegger
homem”.58
A questão aqui parece ser: o conhecimento não é uma espécie de chave que abre
portas para a verdade, ou ser, que está atrás das coisas. E isto não porque o
conhecimento não abra portas. É porque as portas que abre, escancaram o Nada. E,
metafísico tanto teima em manter. E isto nos remete a uma palavra muito antiga, mas
primordial: pathos.
Pathos vem do verbo paskhein, que significa “sofrer, agüentar, tolerar, deixar-se
levar por, deixar-se convocar por”.59 E vamos procurar evitar aqui que ela seja tomada
buscar o elemento originário de tudo o que é, que é o ser, e que só nos movemos e
58
CASTRO, Manuel Antônio de. A Poiesis como Amor. Faculdade de Letras da UFRJ, mimeo.
59
HEIDEGGER, Martin. O que é isto – a filosofia? In: COL Os Pensadores, volume XLV. São Paulo:
Abril Cultural 1973, pág. 219.
41
somos isto ou aquilo porque já somos doação deste elemento originário, o “ser tomado
profundas, do que uma mera paixão – vista como paixão do sujeito por um objeto, no
ser tomado por, diz essencialmente de um ente que transcende a si mesmo por ser
perpassado por um silêncio essencial – pelo nada – e ser, assim, tomado por todas as
homem, e não o contrário. Isto nos coloca na dor de modo que não podemos fugir. Mas
tentamos.
liminaridade, pois o homem não é apenas ente. É um ente aberto e jogado num projeto
do ser, tentando realizar neste aberto aquilo que é. É, assim, o pathos que nos diz o que
somos: seres no horizonte da morte, e sempre em tensão (real e efetiva) com o não saber
O que Lóri teme, desde o início, é a travessia. Assim, o medo de viver, o medo
da dor com que Lóri se debate não é algo superficial nem simples. É o problema grave
60
Op. cit. p. 219/220.
42
interessantes para os grupos dominantes – transverteu todo o sentido do questionamento
filosófico numa simples afirmação de uma moral, transformando aquilo que era to
uma das palavras e conceitos clássicos da filosofia. E com isto, durante toda a sua vida,
elabora um pensamento voltado para estas questões originárias, aberto para o dizer da
língua grega e dedicado a ouvir a fala do ser, a fala da linguagem, para além da
Neste contexto talvez possamos entender melhor a paixão de Lóri. Uma paixão
que, para ela mesma, a princípio, é “apenas” uma paixão. A paixão por um homem, que
ela deseja, ao qual quer se ligar – “o que é que ele queria dela além de tranquilamente
desejá-la?62 Não parece, mas esta é uma pergunta com uma dimensão muito profunda.
Pois, para a pessoa que Lóri sempre havia sido, era simples ligar-se a alguém, de
preferência da maneira menos sofrida possível. E tudo o que ele poderia querer era
tranquilamente desejá-la, pois isso seria fácil, ela era uma mulher “fácil”. Porém, nesta
ligação – aquela que ela teve com os seus cinco amantes – o envolvimento tem que ser
falso. Não pode haver um deixar-se tomar. Não é como com Ulisses, a quem ela
realmente permite, ou não consegue evitar, por estar tomada, que entre em sua vida. Em
61
Sobre isto, ver: NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
62
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.16.
43
diálogo com Ulisses – que, veremos, traz a questão do sentido e da escuta – ela já não
e agora a angústia lhe vinha de novo porque de novo descobria que precisava de
Ulisses, o que a desesperava – queria poder continuar a vê-lo, mas sem precisar
tão violentamente dele. Se fosse uma pessoa inteiramente só, como antes,
saberia como sentir e agir dentro de um sistema. Mas Ulisses, entrando cada
vez mais plenamente em sua vida, ela, ao se sentir protegida por ele, passara a
ter receio de perder a proteção - 63
Ela tenta, em diversas passagens, uma ligação com Ulisses parecida com a que
ela faria dentro do “sistema de uma pessoa totalmente só”. Faltava aos encontros sem
lhe avisar nada, tentando convencer a si mesma que não precisava dele. Ou como no dia
em que Ulisses fora à sua casa para dissuadir o homem que a esperava: Lóri de camisola
curta e transparente convida-o para entrar. Ulisses pára, fica no limiar, e recusa a
proposta.
Não sabe em quê, nem como. Não sabe o que pede este homem que, de maneira
arrasadora toma a sua vida. A pessoa que ela era já não é capaz de amá-lo como ele
pede, como esta experienciação exige dela. Ela sofre e foge, mas também não consegue
calar essa necessidade dele, talvez justamente porque já não possa mais fingir e calar a
paixão de viver. Essa paixão de viver já não diz algo definido, pois como definir vida,
para sabermos o que é paixão por vida? A partir da experiência de Lóri, já não podemos
mais dizer o que é paixão. Que paixão é esta entre Lóri e Ulisses que já não satisfaz os
cânones de uma relação amorosa como costumamos entender? O que Ulisses quer de
Lóri? Ou será que a pergunta não seria: o que a paixão quer dos dois? De cada um de
nós?
63
Op. cit., p. 19.
44
Lóri começa a perceber que a paixão por Ulisses não é uma paixão que ela tem,
mas a paixão que ela é. Isto se tornou para nós uma questão.
coração que tu não sentes / Vai boiando ao acaso das correntes / Esquife negro sobre um
mar de chamas…”64
impele toda a vida a circular no meu corpo. O meu coração que o outro não sente, pois
se sentisse, como poderia não ser também tomado por tanta intensidade, por tão
absoluto mistério? Não sentido, tomado, só pode boiar em chamas, ser queimado e
Quanta mentira há em querer esquecer que é no acaso das correntes que somos
vida, e quão profundos mares de chamas são os nossos dias! Mas as verdades acerca da
vida, aquelas que decorrem da nossa cultura moral pouco questionada, nos remetem
sujeito que não pode perder o “controle” sobre a realidade, (“sistema de pessoa
inteiramente só”) – a paixão só pode ser mesmo algo perigoso, indesejável. Paixão é,
afinal, quando nos perdemos daquele caminho definido, e podemos traí-lo. Trair vem
do verbo traere, que significa arrastar, e é exatamente o que faz a paixão: arrasta, leva,
não pergunta.
Lóri é arrastada por um desejo incoercível. Esse desejo pode ser muito
64
ESPANCA, Florbela. Frêmito. In: Sonetos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 147.
45
erasthai, “desejar ardentemente”, de onde vem Eros, a dimensão profunda da questão
É preciso deixar que o mito fale, enquanto imagem-questão. Pois Eros tem
estado presente em toda a História da nossa civilização pelo menos desde as teogonias
gregas mais antigas. Em Hesíodo, Eros é uma das três entidades primordiais, que
preexistem à formação do universo, junto com Caos (o Abismo) e Gaia (a Terra). Eros
Cosmos jamais será perdida, ainda que este deus, que primitivamente foi representado
como uma pedra bruta em Téspias, fosse sendo antropomorfizado até a figura que se
De cada metade da casca deste Ovo de que Eros nasceu, se originaram Gaia (a
Terra) e Urano (o Céu). Assim, Eros é a força primordial entre Céu – os imortais, os
Nada é mais originário no homem do que esta força geradora, que se dá pelo fato
de estar sempre entre céu e terra. A palavra Eros nomeia um deus, mas pede que
entendamos que Amor é esta força do entre, seja ela divina ou mortal.
Como podemos ver, Eros não pode ser entendido numa mera paixão dos
metafísico. Aliás, esta separação de corpo e alma, matéria e espírito, res extensa e res
65
BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
46
cogitans já não se sustenta mais nem diante da perspectiva do conhecimento científico.
Cada vez mais os biólogos, geneticistas, físicos e neurocientistas provam que não há
nada como um “eu” abstrato dentro, ou acima, ou em qualquer lugar do corpo humano.
Eros assim como pathos são sentidos misteriosos da vida, vividos pelos humanos, e é
neste pensamento que desejamos nos situar para compreender Lóri e Ulisses como seres
humanos tomados pela paixão, pelo amor, por um entre que os pede para viver além do
O Banquete de Platão nos oferece uma interpretação de Eros como este entre
que estamos buscando compreender. Em seu discurso, Sócrates diz que Eros é um
dáimon, um intermediário entre deuses e homens, que, por estar a igual distância dos
dois, preenche o espaço e configura uma força de união. “O intervalo que separa uns
dos outros, os daimons o enchem; são o vínculo que une o Grande Todo.”66 Por ser um
dáimon, tem que ser filho de um deus e uma mortal, ou vice-versa. Platão coloca que
os pés descalços, a fome, e do pai a capacidade de estar sempre buscando sair do apuro
da necessidade (poros significa “aberturas para o todo”). Está, assim, a meio caminho
ama.
era um acordo com o logos, o homolegein, o dizer de acordo com, sob a inspiração do
66
ROBLEDO, Antônio Gómez. Platón. Lós Seis Grandes Temas de su Filosofia. México DF: Fondo de
Cultura Econômica: 1993, p. 401.
47
Eros, para Platão, está pleno deste sentido de aspiração a, aspiração ao bem, à
sabedoria, à beleza.
Um sentido muito próximo tem a palavra philía. Eros e philía não podem ser
maneira deste aspirar a, que é condição humana. Isto podemos ver ainda em dois outros
como tendo uma natureza sintética, intermediária, ou seja, radicada no entre. Neste
diálogo, Sócrates pergunta pela natureza da amizade, e não encontra outra senão o fato
de que o homem tende para o bem absoluto, e a amizade se dá em função do bem. Não
queiramos entender este bem como o bem moral, pois, em Platão, o bem é algo de uma
profundidade toda especial. Assim como lemos na República, o Bem – a Idéia do Bem –
possibilidade de toda possibilidade. “O Dia e a Noite são a clareira do Sol, assim como
o Ser e o Não-ser são a clareira do Nada”67. A tentativa de definir o Bem absoluto como
terminando forma aporética: Sócrates afirmando que aqueles que se julgavam amigos,
não foram capazes de descobrir o que era a amizade. Isto é mais uma maneira deste
pensador demonstrar o quanto pensar é estar tomado por este abismo de não-saber.
67
CASTRO, Manuel Antônio. O Sol e o Nada. In: www.travessiapoetica.blogspot.com
48
O abismo do não-saber é a paixão de cada um, é o estar tomado que cada ser
humano sofre e tem que atravessar. E quando esta paixão torna-se pensamento, ela é um
lançar-se.
Por isso é o thaumatzein que é a arché da filosofia, isto é, aquilo que nela impera
é admirar-se, assustar-se, retroceder diante de. É a admiração que nos faz pensar: o
susto do abismo do Nada. Tanto Platão quanto Aristóteles reconhecem nisto o pathos da
filosofia, o que não quer dizer o pathos de uma disciplina destinada a algumas pessoas,
compensar a ofensa que teria feito ao deus do Amor, no discurso em que afirmava que
seria de mais valia conceder favores a quem não nos ama, pois aqueles que amam estão
tomados de delírio. Isto seria verdade somente se todo delírio fosse ruim, porém,
Sócrates se retrata, reconhecendo que há quatro espécies de delírios que são bons, e
justamente o delírio amoroso. É neste delírio que “voltam a nascer as asas da alma”68,
com as quais pode voar e contemplar tudo o que é belo, sábio e bom.
Assim, temos que a filosofia é o amor por excelência, e um dom dos deuses. Mais uma
vez, não podemos pensar que filosofia aqui signifique a disciplina filosofia como a
conhecemos hoje. Mas, muito mais primordialmente, Platão diz que estamos tomados
pelo amor enquanto seres viventes – tendentes ao bem, à beleza, à sabedoria, isto é, no
caminho do entre, no que somos e não somos: “nós que também somos atingidos pelo
68
PLATÃO. Fedro. In: Diálogos. Mênon – Banquete – Fedro. Porto Alegre: Ed. Globo, 1954, p. 243
69
PLATÃO. Fedro. In: Diálogos. Mênon – Banquete – Fedro. Porto Alegre: Ed. Globo, 1954, pág. 243
49
Entendemos, com Platão, que o amor é aquela busca originária, que nos leva à
apropriação daquilo que nos é próprio. Por isso a filosofia é uma paixão. É por isso que
a paixão nos envolve e “nos toca, em nosso ser, de maneira inegável e que não nos
permite rodeios.”70 Como Lóri e Ulisses, que, envolvidos numa paixão, precisam
Lóri é uma personagem que nos lembra da paixão o tempo todo. Em primeiro
lugar, pelo seu nome: Lóri é o diminutivo de Loreley, e Loreley é uma figura mítica de
surpreender-se, ao render-se. Sua lenda tem origem em uma região rochosa do Reno,
uma das de maior perigo para a travessia dos barqueiros. Este perigo sempre suscitou
fascinação, e Loreley foi cantada em diversas versões. A versão mencionada por Ulisses
é a do poema Die Loreley, de Heine, a partir do qual tenta explicar a Lóri a beleza de
seu nome. A Loreley de Heine é uma sereia de longos cabelos dourados que se penteia
barqueiro que passa em seu “pequeno barco” é tomado por uma “dor selvagem”,
“indomável” (Ergreift es mit wildem Weh), de maneira que nem sequer vê o rochedo, e
70
Como diz Heidegger em O que é isto – A Filosofia? In: COL. Os Pensadores, vol. XLV, Sartre e
Heidegger. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1973.
50
E isto, com seu canto,
Foi Loreley quem fez.
completa que ele não vê o perigo. E isto parece ser o que a paixão faz, seja ela uma
paixão vulgar dos sentidos, seja a paixão pelo pensamento, pois ambas dizem
Este ser barqueiro é o pathos de que somos tomados enquanto seres do entre.
A travessia de Lóri nos dá a pensar toda esta questão do amor como entre, e do
ser humano no horizonte do ser e não-ser. Pois a sua travessia não é outra coisa senão
necessidade de corresponder a isto: ser e não ser – o mistério de tudo. Lóri não busca
outra coisa senão transformar-se no que é, originando-se, como a vida, daquilo que
ainda não é.
É esta a aprendizagem que Ulisses propõe a ela, desde o início: “que ela, ao lhe
perguntarem seu nome, não respondesse “Lóri”, mas que pudesse responder “meu nome
é eu, pois teu nome, dissera ele, é um eu”71. Ele quer que ela consiga não pensar mais
ela mesma, as pessoas e tudo o mais apenas como nomes, pois o nome não basta: há um
conquista do que é próprio é o poder dizer o próprio eu, que é o pathos, que é philei,
que é entre.
O desejo de Lóri de conquistar vida é a vibração deste pathos. Seu estado, seu
Stimmung, no início do romance, é o de ódio, de repulsa – “Era por ódio que não havia
água. (...) Por seco e calmo ódio, quero isso mesmo, este silêncio feito de calor que a
71
Op. cit., p. 13
51
cigarra rude torna sensível”.72 Mas sabemos que esta afirmação é apenas a fala do
sofrimento de se entregar à dor/paixão. Mas “Ah, a falta de sede. Calor com sede seria
suportável, Mas ah, a falta de sede.”73 A sede que se precisa ter pela vida, a sede que se
precisa ter pelo amor. A sede que nos toma e nos faz pro-cura. Tudo o que Lóri quer,
por mais que se debata e sofra, é aprender a querer a vida, a pro-cura, o amor.
Este querer é uma escuta. Pois a vida já nos foi dada, na pro-cura já fomos
tomados – paixão e destino de cada um. Na paixão como pathos e philei, reconhecemos
mais uma vez o apelo do real, o apelo do mistério, o silêncio vibrando como vida.
72
Op. Cit., p. 24.
73
Op. Cit., p. 23.
52
Capítulo II A DESCOBERTA DA VIDA DOS SENTIMENTOS
Assim como Lóri, Ulisses é um nome que remete a uma infinidade de questões.
Pois, se Lóri é a sereia cujo canto é capaz de dominar o barqueiro, Ulisses é o barqueiro
deixar a vida entrar nela: é resistência com vida e pela vida. Ela se mostra na imensa
inteligência que Ulisses, como personagem mítico, encarna. Não se trata de uma
inteligente com a vida, isto é de uma postura de quem não tenta fugir dela, mas
desvendar seus enigmas. Esta postura é possível a Ulisses porque ele sim já está aberto
à escuta do um apelo que a realidade lhe faz, em seu mistério. Ele já está na travessia.
uma diferença – a de que ele seria muito mais “adiantado” na aprendizagem do que ela,
sendo ele quem aconselha, quem espera, quem ensina. Ele demonstra domínio no que
para Lóri é desesperador, demonstra calma diante do fato da vida ser uma condição
inexplicável. É ele quem resiste a ir para a cama com ela desde o primeiro momento,
pois quer mais dela, quer tudo, o que ela não quer dar nem a ele nem a ela mesma.
casa, à terra. Remete ainda a uma profunda fidelidade que é a do nunca desistir deste
53
retorno. O Ulisses de Clarice demonstra na busca do amor a mesma força e persistência
com cera os ouvidos de todos os seus marinheiros, sendo, porém, o único que escuta o
seu canto. Para não se render, amarra-se ao mastro do navio, e manda que os
O que diferencia Ulisses dos marinheiros que também passam pelas sereias é
profundamente a fala da própria vida. Ainda que seu caminho seja o de chegar um dia a
ser mais humilde, coisa que – como conhecedor de muita coisa – ele não era, há um
apelo que ele demonstra buscar escutar. A sua primeira escuta do apelo está na filosofia.
Ele se abre à escuta da filosofia enquanto diálogo, e talvez por isso se coloque de uma
maneira em relação à vida que se torne mais capaz do que Lóri de suportar o silêncio, de
ser mais capaz de não fugir e mais capaz de querer. “Eu não choro, Lóri. Se precisar um
dia eu grito”.74
Lóri: a argúcia e a força. Sua argúcia se revela no modo como tem sempre respostas
rápidas e claras, sempre mais rápidas e mais claras do que as de Lóri. Esta sua
inteligência se mostra na transparência que tem com a vida, reconhecendo com clareza o
que o homem é, principalmente, o tamanho da desgraça que é o homem que não se faz
homem, que é a vida que se deixa ser aquém da vida. “Mas eu escapei disso, Lóri,
74
Op. cit., p. 47.
54
escapei com a ferocidade com que se escapa da peste, Lóri, e esperarei até você também
“mero” desejo. Somos ferocidade para escapar da peste, nas palavras de Ulisses, porque,
Ursprung é uma palavra alemã composta do verbo springen, pular e o prefixo Ur-, cujo
que vem do verbo latino oriri, que significa levantar. Mas, metafisicamente, origem é
essência, ela perde a dimensão que tem de um princípio que continua presente em tudo,
uma vigência da fonte em tudo o que dela se origina. A palavra Ursprung pode ser
melhor entendida, assim, como o originário, o que a todo tempo continua originando.
O originário é, assim, o salto inaugural, que a todo tempo inaugura tudo o que é,
realidade. A nossa ferocidade é a de poder nos inaugurar o tempo todo, não a partir de
uma vontade individual mas a partir e no diálogo com o real. Pois a realidade não é algo
estático a ser descoberto e dito em conceitos, mas uma essencial disputa do limite no
75
Op. Cit., p. 49.
76
HERÁCLITO. Fragmento 84.
55
radicava na questão da permanência deste devir. E Heráclito propõe como resposta:
entre o que é e o como é. O que há é sempre uma essencial disputa entre o permanente e
as falas, mas também o silêncio. É saber-se imerso no mistério de maneira que não há
outro modo de viver a não ser escutando, que não há outro modo de ser, a não ser co-
respondendo ao ser.
Isto foi dito na palavra grega “logos”, na aurora do pensamento ocidental. Esta
palavra é riquíssima, mas o que nos ficou dela foi muito pouco. Nossa compreensão
utilizado pelo sujeito para alguma finalidade. Mas a palavra grega falava de uma outra
fragmento 50), como a palavra logos chegou a significar falar e dizer. Pois falar e dizer
não tem o sentido instrumentalizado que costumamos dar. Isto se dá a pensar quando
nos remontamos ao verbo legein. Ele diz o mesmo que o verbo legen em alemão:
77
HEIDEGGER, Martin. Logos. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, pág. 184.
56
O único empenho do de-por e pro-por, como legein, é deixar que o que se
dispõe por si mesmo num conjunto, seja entregue, como real, à proteção que o
que preserva disposto. Que proteção é esta? É a proteção da verdade. Pois o
disposto num conjunto está posto e de-posto no des-encobrimento, está
instalado no des-encobrimento, é substrato subjacente no des-encobrimento,
isto é, está abrigado pelo e no des-encobrimento. Ao deixar o real dispor-se
num conjunto, o legein se empenhar por abrigar o real no des-coberto.78
A palavra chave para nos situarmos no apelo de pensamento que faz Heidegger à
Isto nos abre, mais uma vez, para o imenso e intenso diálogo proposto por
Heidegger com a tradição, agora, acerca do conceito de verdade. Sabemos que toda a
conceitual da metafísica tem respostas muito válidas para o domínio dos entes, como a
ciência, mas esqueceu-se da questão do ser, isto é, do próprio fato de que o ser é uma
questão.
verdade passou a ser entendida como uma adequação do conhecimento à coisa. Este
conhecimento é dado em proposições. Mas para que possa haver proposições, a própria
coisa precisa dar-se como tal. Este dar-se, por mais simples que possa parecer, é uma
dificuldade imensa para o homem. Pois o dar-se é ser e não-ser, em que o e tem a força
da palavra philei: “physis kryptestai philei”.79 A physis, tudo o que se dá, ama retrair-se,
78
HEIDEGGER, Martin. Logos. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 187/8.
79
HERÁCLITO, fragmento 123.
57
incompleto. Este nos é um fato próximo, simples, mas que buscamos simplesmente
ignorar.
dizer algo verdadeiro, senão situar-se na correspondência desta vigência que é a verdade
maneira profunda: “a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre. A mais
escuta. Escuta é, propriamente, pertencimento ao apelo que nos traz a fala, ao apelo que
nos traz o dispor do real em sua disponibilidade. Nas palavras de Heráclito, o escutar é
Se o ser humano é philei, enquanto ser do entre, e reconhece pelo pathos de ser
tomado pelo silêncio, torna-se então impossível afirmar conceitos que o expliquem e
cessa a possibilidade de não mais viver a vida. Por mais que tentemos evitar e conter, a
de ficar o tempo todo buscando máscaras e tentando “cobrir os nervos com uma fina
80
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Tradução: Manuel Antônio de Castro e Idalina
Azevedo da Silva. Faculdade de Letras da UFRJ, mimeo. §101.
81
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.32.
58
Aprendizagem, e uma Aprendizagem dos Prazeres. Ulisses e Lóri, unidos por uma
paixão, tomados no pathos do pensamento, já não podem e não querem mais evitar a
vida: a vida dos sentimentos. O pathos do pensamento, que é, ao mesmo tempo, a vida
dos sentimentos, se dá como questão o tempo todo na obra de Clarice. O fato de Ulisses
entendida como uma disciplina ensinada dentro das universidades, num ambiente e
pensamento já diz aquilo que poderíamos colocar adjetivos para dizer: pensamento
pois tudo o que se faz fora da liberdade, desconsiderando o aberto e ignorando o pathos
Filosofia.
importante, uma vez que filosofar é dialogar com o que no dito dos filósofos é dito e
não dito, o pensado e o a se pensar, que nos move. Assim, conhecer é um passo, mas
apenas conhecer é estar sempre falando sobre a filosofia, estando fora dela. Apenas
Esta é a postura filosofante, em relação à filosofia. Pois o que foi e continua sendo já
nos toma muito primordialmente, estudemos ou não filosofia. O que é e continua sendo
é a realidade que em nosso pathos nos toma, nos move, nos tem. O que é e continua
82
HEIDEGGER, Martin. O que é isto – a filosofia? In: Col. Os Pensadores, volume XLV. São Paulo:
Abril Cultural 1973, pág. 213.
59
O filósofo no sentido originário é, assim, o entre-ser radicado no amor, no philei,
no apropriar-se do que lhe é próprio: pathos, vida, questão. E o nome Ulisses é uma
imagem-questão muito própria para isto. O homem, como questão, está sempre
buscando uma volta à casa, vivendo a vida como a travessia e aventura de um Odisseu.
silêncio – é mulher.
Assim, o que Ulisses e Lóri fazem é trazer para a vida silêncio e paixão, um
trazer que não significa nem provocar nem criar, uma vez que nenhum ser humano seria
Lóri, são “um monte intransponível no seu próprio caminho.”83 Mas justamente porque
é de silêncio e paixão que ela também é feita, ainda que, para ela, pareça tão difícil
aceder a isto.
Como Ulisses, que “é mais adiantado” faz isso, ou ajuda Lóri a fazê-lo?
Esperando. Esperando que Lóri se perceba como silêncio e paixão e busque apropriar-se
de si mesma, em todo o horizonte de vida que é e não é. À medida que ela vai
às questões e à nossa própria vida como pathos do philei, como travessia de amor.
Este caminho é, na obra, muito bonito. Ulisses, talvez já tivesse realmente feito
Mas a única real diferença que existe entre ele e Lóri é que enquanto ela resolveu cortar
83
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.53.
60
Eu não digo que tenha muito, mas tenho ainda a procura intensa e uma
esperança violenta. (...) Estou em plena luta e muito mais perto do que se chama
de pobre vitória humana do que você, mas é vitória.84
propriamente como nosso, sem fugas. A busca de Ulisses não é de algo pré-definido,
mas sua luta com a vida diz simplesmente de uma entrega a viver.
Não é mesmo com bons sentimentos que se faz literatura: a vida também não.
Mas há algo que não é bom sentimento. É uma delicadeza de vida que
inclusive exige a maior coragem para aceitá-la.85
A delicadeza que Ulisses encontra não pode ser, afinal, uma resposta abstrata.
Delicadeza de vida é quase algo que não se pode nomear: é conhecer o extraordinário
ouviu por acaso o canto de uma sereia. Esta sereia era Lóri, de um canto triste e
poderoso, sedutora, sem nada a dar nem a perder. Ouviu um canto de enigma que se
escondia em olhos de prostituta. Um canto que só ele seria capaz de ouvir. Um canto
Mas esta é uma nova escuta. Não aquela da filosofia que ele poderia ensinar.
Não é mais a escuta de si mesmo, nem a de seus dialogantes, filósofos. E é uma escuta
que ultrapassa todos os seus conhecimentos, que o toma, o apaixona e só não o mata
84
Op. cit. p. 47.
85
Op. cit. p. 52.
61
2.2 O AMOR COMO DIÁ-LOGO
Quais são as escutas que nos fazem sucumbir como os barqueiros do poema de
Heine? Ou quais as escutas que precisamos nos amarrar ao mastro para atravessar?
A escuta do apelo do amor é, sem dúvida, uma das mais difíceis. E Clarice a traz
um caminho em direção ao amor. Isto seria um conceito injustificado e não é disto que
tratamos aqui. Não desejamos mostrar que o amor de Lóri e Ulisses é o amor, ou algum
tipo de amor superior. O caminho do amor é indefinível e único para cada um, como
universal, no aberto e como o a ser pensado. E Clarice nos lança no abismo, na nossa
Lóri e Ulisses nos levam pelo caminho de um silêncio que nos diz: a seriedade
da questão do amor se encontra no fato de ela ser radicalmente dada a nós como uma
questão de ser.
da filosofia de Heidegger. Mas para compreendê-la, a primeira coisa que temos que
saber é que esta não é uma pergunta teórica, que nasce de uma espécie de reflexão
nosso ser tomado, o nosso pathos, a nossa dor. Nas palavras de Lóri:
62
mas à idéia de que a paciência de Ulisses se esgotaria, a mão subiu-lhe à
garganta tentando estancar uma angústia parecida com a que sentia quando se
perguntava “quem sou eu? quem é Ulisses? quem são as pessoas? 86
sou? O que quero ser? Qual é o sentido do meu agir? O que amo? O que é amar?
Clarice nos joga no abismo desta questão com a obra Uma Aprendizagem, pois
nos abre a um horizonte de amor que nos diz ser, e de ser que nos diz amor. Lóri e
Ulisses buscam ser o que eles são, e nesta busca sim encontram amor. Quando buscam
amor só o encontram em ser propriamente o que são. Uma coisa não se revela sem a
no horizonte do ser, e que só podemos ser no horizonte do amor, entendendo aqui ser
como a tensão do ser e do não ser, e do ser e do Nada, e entendendo amor com toda a
Como veremos mais detalhadamente ao longo deste trabalho, Lóri e Ulisses não
Pois assim como não podemos dizer que a questão do ser seja uma questão
afinal, passar a vida a buscar, vivendo. A dor de cada página, o silêncio de cada página,
falam a nossa vida de pro-cura, que não cessa nunca, enquanto somos vida.
porque é doloroso demais. Escolher viver como Lóri vivia. Mas esta também é uma
86
Op. cit. p. 18.
87
Op. cit. p. 48.
63
necessidade da felicidade. É preciso estar atento a sofrer o tempo todo, para proteger-se
dos grandes sofrimentos. E é preciso esperar tempo demais até que o pequeno e o
extremamente rara para nós (especialmente sob o grave peso da cultura ocidental), de
não cortar esta dor. Ambos mergulham a buscar o sentido, na via contrária de toda vida
fácil e definida, na imensamente difícil escuta entre os ecos dos rochedos e sobre o mar
bravio e poderoso.
Sentido se diz em grego telos. Esta palavra é colocada por Aristóteles em sua
sentido e o ser humano que o produz, (uma vez que o utensílio não é uma pro-dução
natural da physis). A tradição interpreta estas quatro causas como modos absolutos em
que todas as coisas se originam, como efeitos que, uma vez prontos, descansam na
absoluta e estática verdade do ser. Neste sentido, telos é entendido como a finalidade, a
meta a ser atingida, que, de alguma maneira inexplicada, já está dada. Mas telos não
significa isto em grego. É preciso, mais uma vez, apontar a reapropriação do termo,
elucidando-o. Telos é o levar algo à sua plenitude, como faz o ourives com o cálice de
entendimento das quatro causas. O ourives conduz uma matéria a uma forma, mas não
simplesmente a esta: ele leva o cálice a ser o que será depois de pronto, não apenas uma
Elas são os modos segundo os quais se dá uma pro-dução, isto é, poiesis. Poiesis é uma
88
HEIDEGGER, Martin. A questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p.
16.
64
palavra que não deve ser compreendida no horizonte que nos é mais comum, da ciência
e da técnica, “cobertos pelas tintas com que nos pintaram os sentidos”, como diz
Caiero.89 Ela nos diz da realidade concreta que somos e com a qual lidamos todos os
dias, mas que não queremos ver. Ela nos diz do mistério que é o real se doando a nós a
cada segundo, mistério do qual nos sentimos criadores e causadores, mas não somos.
Em verdade, é o ser que se dá: poiesis. É a linguagem que fala: poiesis. O homem só é e
fala na correspondência, só é e fala na medida em que já foi doado como poiesis pela
physis. Isto é o dar-se inaugural de tudo a todo tempo: aletheia, desvelamento, verdade.
lingüística, e passamos a nos abrir à verdade como única concretude de nossas vidas. “A
verdade se dispõe no ente tão verdadeiramente que é o próprio ente que ocupa o aberto
da verdade.”90
Situamo-nos, então, num âmbito em que nada resta senão a tentativa de ouvir.
Abrir-se ao apelo da realidade dando-se a cada instante como poiesis, como disputa
entre ser e não ser, entre vida e morte, entre limite e ilimitado. Isto nos leva a pensar a
nossa vida como escuta. Nem mesmo os limites estão dispostos. Nós somos os
barqueiros em nossas pequenas canoas, e nada mais fazemos do que tentar escutar o
o telos que já nos foi dado, por já estarmos no entre. Assim chegamos um pouco mais
89
PESSOA, Fernando. Poema XLVI. In: Alberto Caieiro. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
90
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Tradução: Manuel Antônio de Castro e Idalina
Azevedo da Silva. Faculdade de Letras da UFRJ, mimeo. §137
65
Todavia telos não diz nem a meta a que se dirige a ação, nem o fim em que a
ação finda, nem a finalidade a que serve a ação. Telos é o sentido, enquanto
sentido implica princípio de desenvolvimento, vigor de vida, plenitude de
estruturação. Assim o telos, o sentido, de toda ação é consumar a atitude, é o
sumo desenvolvimento do vigor em sua plenitude. A atitude, como a
consumação de todos os sentidos das ações, to teleiotaton, é, pois, a perfeita
integração de penhor e bem.91
sumar. Isto significa apropriar-nos do que já nos é próprio, ser o que somos, realizar o
humano do homem, o vigor de todo o nosso estar-vigendo enquanto vida. Não é outra
Livro dos Prazeres nos acossa com a pergunta: qual é o sentido? Nós buscamos o
sentido?
que buscam, mas simplesmente o silêncio que desde o primeiro momento já havia se
feito presente neles. A caminhada que se abre com uma vírgula se fechará com dois-
Diá-logo, assim, não é algo que o ser humano faz, a partir de sua constituição
como ente. No diálogo fomos lançados na medida em que fomos lançados num projeto
do ser que a todo tempo se retrai para nós. Diá é o prefixo grego que diz essencialmente
silêncio.
91
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II, 156, Vozes, 2000, p 156.
66
Podemos observar como a própria estrutura da obra é intensamente dialogal. Há,
antes de tudo, um encontro, o encontro casual de Lóri e Ulisses. A partir deste, seguem-
Mas o que estes diálogos provocam é mais profundo. É o diálogo de cada um consigo
pessoa em sua interioridade. Diálogo íntimo, diálogo dado no in, é justamente o que nos
arte. Lóri e Ulisses só tocarão no que realmente são quando se deixarem tomar pelo
silêncio. Neste momento sim, estão prontos. Neste momento aproximam-se da realidade
do philei que é viver, e podem dar-se. Só podem se dar porque estão no horizonte do
que se doa inauguralmente, porque já não estão mais na tentativa de conter a vida.
apelo do telos de cada um: encontrarmo-nos no mais essencial, no vigor da vida, no que,
67
Capítulo III “É DIFÍCIL PERDER-SE”
A frase que intitula este capítulo é de A Paixão segundo GH, no parágrafo que
se segue:
Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova
covardia – a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha maior
aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem
me leva a aceitá-la –, na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na
casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É difícil
perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me
achar, mesmo que achar-me mesmo seja de novo a mentira que vivo.92
mostrar o quanto ela vivia mergulhada nestas questões do perder-se diante do silêncio e
do mistério, e que só por isso as escrevia. São recorrentes em Clarice temas como o
mais profundo que é a de não viver. Esta recorrência mostra não simplesmente traços
mesma de tentar viver fora da dor - liminaridade de viver. Esta dor que é a nossa
humanos. Lóri, tentando se livrar do que sentia apenas como dor, esqueceu a própria
92
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H.. Rio de Janeiro: Rocco, p. 12.
68
Em verdade, muitos de nós, muito profundamente, temos a luta imensa diante do
ter de viver humanamente. Ao mesmo tempo, há uma imensa coragem em abrir-se para
este humano do homem, este apelo que nos toma quando nos damos conta de nós
Covardia e coragem têm ambas a mesma origem: cor, coração, lugar do pathos.
Ainda que uma negue e a outra aceite, ambas falam exatamente do nosso coração que
Voltamos, assim, à mesma imagem que demos no início: “as trevas geladas que
são as minhas”. Mas, agora, Lóri não é mais somente medo e dor. Ela começa a se abrir.
Começa a se dar um processo que culminará numa entrega. A entrega tem um sentido
amplo demais para que pudéssemos dizer simplesmente: entrega a Ulisses, à vida ou a
qualquer outra coisa. É tudo isto ao mesmo tempo, é entrega a tudo. A entrega de Lóri
nos levará assim a um dito muito antigo de Heráclito: “escutando não a mim, mas ao
Tudo é um é o apelo que Heráclito ouve e nos faz, e a todo tempo em que se dá
Este é o apelo que muito de longe se faz sentir neste mundo já tão intensamente
tomado pela técnica, pelas certezas do cálculo, pela constituição do indivíduo moderno.
Um mundo onde, muito pior que a morte de Deus anunciada por Nietzsche, é o
93
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 38.
94
HERÁCLITO, frag. 50.
69
A primeira, de uma carta do poeta de 1799 para sua mãe, diz: “Poetizar é a mais
inocente de todas as ocupações”.95 Esta frase nos dá a falsa impressão de que se fala da
poesia como jogo inocente de palavras, sem realidade, sem compromisso com a ação.
Esta é a aparência exterior da poesia. Mas não será esta sua essência. A frase até aqui
apenas aponta para onde devemos olhar para buscar sua essência: a linguagem.
deu ao homem o mais perigoso dos bens, a linguagem... para que mostre o que é”.96
Esta frase está em um rascunho para uma poesia de 1800. Como podem se conciliar
estas duas frases? Como a linguagem pode ser ao mesmo tempo o mais inocente e o
O homem é aquele que deve mostrar quem é. É diferente de todos os outros entes da
natureza porque é o que é manifestando sua própria existência, e esta manifestação não
homem? O seu pertencimento à terra, como herdeiro e aprendiz de todas as coisas. Mas
todas as coisas estão em conflito, e Hölderlin chama de intimidade aquilo que mantém
homem a esta intimidade acontece como criação de um mundo, o que significa também
que o pertencimento à totalidade dos entes acontece como História. E História não seria
95
Tradução livre a partir de: HEIDEGGER, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesia. In: RAMOS,
Samuel, Heidegger, Arte y Poesía. Buenos Aires: F.C.E, 1992. Cit in: www.heideggeriana.ar
96
Op. cit.
70
Mas o homem dado em virtude da fala é um Revelado a cuja existência como
ente assedia e inflama, e como não-ente engana e desengana. A fala é o que
primeiro cria o lugar aberto da ameaça do erro do ser e a possibilidade de
perder o ser, isto é, o perigo.97
A fala pode ser sagrada ou transformada em vazio, pode ser ao mesmo tempo
uma palavra essencial e uma ilusão. Ao mesmo tempo em que ela diz e traz algo à
claridade, revela o abismo, o sem fundo do silêncio que é de onde brota. Joga-nos,
que se desvela. A etimologia da palavra “palavra” já nos diz: pará (entre) e ballein
(jogar). Palavra é o que nos joga no entre, ou o que eclode no ser jogado no entre. Por
isso é a propriedade do homem, o que lhe é próprio. Mas é uma propriedade no sentido
mais essencial do que a de uma posse ou instrumento. Ela não está ao dispor do homem.
Antes de qualquer posse, ela é o acontecimento que permite ao homem ser homem.
deuses, já que somos um diálogo e podemos ouvir uns dos outros”.98 Heidegger entra
então mais propriamente no como acontece a fala: acontece como diálogo. Este diálogo
é o que apontamos antes: a fala se dando como mundo e o homem se dando como ser
histórico. Diz Hölderlin: desde que somos um diálogo, vieram os deuses à palavra e
apareceu um mundo. Mas o que é importante é perceber: isto não é uma consequência
realidade. Só podemos nomear os deuses, diz o poeta, se estamos sob sua invocação.
Assim, a frase “desde que somos um diálogo” significa: “Desde que os deuses nos
97
Op. cit.
98
Op. cit.
71
diálogo”99 Isto é o que justifica e fundamenta a idéia da fala como acontecimento mais
deveria ser assim, pensamos. O permanente não é aquilo que já sempre foi? Não. Ao
complexo, a medida deve ser anteposta à desmedida. E o ser deve ser descoberto para
que apareça o ente. E esta tarefa é confiada aos poetas. O poeta não nomeia o
conhecido, mas nomeia com uma palavra pela primeira vez o ente pelo que é assim
fundamento, pois é doação da linguagem. Poesia, então, em nada tem a ver com esta sua
contrário.
obra mais perigosa? Compreender a poesia como a ocupação mais inocente e a obra
Este pensamento é de uma luz tão clara que Hölderlin, tomado pela loucura no
fim de sua vida, pode dizer, como disse Édipo: “Apolo me feriu”. A clareza extrema que
leva à loucura é o estar diante dos deuses de cabeça erguida: é a tarefa e o perigo dos
poetas.
99
Op. cit.
100
Op. cit.
101
Op. cit.
72
Temos diante de nós o dar-se de mundo e do homem, quando nos damos a
pensar a essência da poiesis. Mas nisto encontramos o silêncio. Por isso, evitamos
reconhecer que a vida tenha uma dimensão poética, e que esta dimensão nada tem de
superficial ou banal. Ao contrário, situa-se no fulcro da dor de viver. Por isso, muito
duro nos parece o encontro com o silêncio. Mas seria bom que nos lembrássemos
sempre das últimas palavras da elegia Pão e Vinho, de Hölderlin, citada por Heidegger
liberdade. Poiesis é o dar-se inaugural de tudo, que traz ao aberto o que estava velado,
ao mesmo tempo em que acena com a verdade do que se vela, apontando para a morte
como plenitude de vida. É o que se dá, que com tanta ênfase nomeamos a todo tempo
real, realidade, com tanto cuidado para que isto não seja confundido com mentiras e
irrealidades, esquecendo, porém, o mais essencial que é o seu caráter de doação. O ser
doação da realidade nos passa despercebido, assim também nos passa despercebida a
liberdade fundamental que reside na doação e nos constitui como seres humanos.
estar separado. E é nesta doação que podemos enfim compreender que apelo é este que
nos toma tão profundamente na paixão, no amor, como acontece com Lóri e com
Ulisses.
A escuta do apelo é um caminho. Isto significa que ela é não apenas um entre
102
Op. cit.
73
própria vida é este estar a caminho. No caminho há paisagens, há fontes, há paragens,
há dias e noites. Clarice nos brinda com o caminho a ser trilhado por Lóri, e junto com
ela, vamos descobrindo paisagens interiores que só se revelam quando nos olhamos
naquele horizonte muito especial que é o do pathos de viver. Vamos nos aprofundando
em nós em cada estância do caminho, buscando cada vez mais primordialmente a fonte.
Pois de alguma maneira, nós sempre buscamos voltar à fonte, sempre nos jogamos na
direção daquilo que nos atrai. E o que nos atrai? O que nos atrai é o que se doa, e em
que se doando traz ao ser o dia e a noite, a luz e as trevas. Isto cuja nomeação é a tarefa
do poeta e a dor da flecha de Apolo. Isto que talvez não possamos expressar em teorias,
Lóri resiste, mas percebe afinal que este caminho – o do longo silêncio, das
paisagens inesperadas, das duras travessias – é o caminho que lhe diz mais
3.1 A INICIAÇÃO
É um costume antigo das religiões que, uma vez decidido a trilhar um caminho,
o neófito passe por um rito de iniciação, do qual o batismo é o exemplo mais comum. E
por que há este rito? Ele significa sempre a morte do antigo ser, para que haja um
esvaziamento, e um novo espaço, em que possa surgir um novo ser. Este é o sentido do
verbo teleutai, em grego, fazer morrer. A morte é a entrada de uma passagem, onde se
74
Mas o que é um rito? O rito é o vigor de manifestação do mito na palavra, na
dança, na música, etc. O rito traz, assim, toda a força do mito, toda a presença do mito.
contrário, diz por si mesmo, coloca plenamente na presença do sagrado. Rito é, assim,
experienciação do sagrado. Não é uma mera experiência sensorial, nem intelectual. Não
primeira vez para a presença do sagrado. Esta palavra sagrado não tem aqui um
significado dentro de uma teoria teológica. Como fonte de vigor de toda busca religiosa,
thaumatzein. Lóri percebe que terá de deixar morrer seu antigo ser, que há muito
“funcionava” dentro do sistema de pessoa inteiramente só. Apesar da dor que significa o
viver contendo o sentir e negando as possibilidades de viver, ela não quer deixar o
profundo é muito difícil. Parece mais difícil do que continuar contendo a dor e semi-
- Parece tão fácil à primeira vista seguir conselhos de alguém. Seus conselhos,
por exemplo. Já agora falava sério:
- Seus conselhos. Mas existe um grande, o maior obstáculo para eu ir adiante:
eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. É como enorme
esforço que consigo me sobrepor a mim mesma.
Ela jamais falara tantas palavras em seguida. Por isso, queria evitar o principal.
De repente porém notou que se não dissesse o final, nada teria dito, e falou:
- Sou um monte intransponível no meu próprio caminho. Mas às vezes, por uma
palavra tua ou por uma palavra lida, tudo se esclarece.
Sim, tudo se esclarecia e ela surgia de dentro de si mesma quase com
esplendor.103
103
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.
53.
75
Seguir os conselhos de alguém era o que Lóri procurava antes, e é a nossa
postura de busca de certezas. De fato tentara se enganar pensando que Ulisses poderia
ensiná-la algo de um estilo de vida filosófico ou literário. Mas logo percebeu que não
poderia seguir conselhos, e inclusive, irritava-se com a inutilidade desta tentativa diante
do que realmente buscava. O que realmente buscava era algo que não só não se resolvia
com fórmulas prontas, mas, além disto, esbarrava na maior dificuldade que pode um ser
humano ter: realizar-se como aquilo que é, no horizonte do que ainda não é. “Eu sou um
monte intransponível no meu próprio caminho” remete, mais uma vez, à tensão humana
do entre. O entre-ser vige no aberto, que é possibidade tanto da maior solidão quanto da
maior entrega.
imagem de Lóri pintada demais, como se fosse uma prostituta, na tentativa de esconder
seu rosto sob uma máscara, e no reconhecimento de sua incapacidade de ligar-se à terra,
com as crianças na escola, como se não estivesse preparada para a ligação que para a
mulher significa ser mãe. A imagem se repete mais uma vez no jogo que faz com
Ulisses o tempo todo, dizendo que quer mas não quer, e que não quer, mas quer. Exibe
o corpo e se pinta, ao mesmo tempo em que se comporta como uma virgem. Seduz e se
retira. Na piscina, demonstra, além de ter medo de mostrar sua alma, que ainda tem
Mas quais são os esforços de Lóri para romper com este sistema de solidão, para
ligar-se à terra, para encontrar-se consigo mesma, humana, corpo, alma? Ela lutava
aconselhando e ela querendo e não querendo. E ele esperando. Pois esta conquista não é
76
realmente fácil. São pequenos passos, são tentativas e embates que não resultam tão
porque estamos absolutamente imersos num mistério, naquilo que toca nosso ser. É a
nossa dor: “viver é um negócio muito perigoso”.104 Isto já é desde sempre a nossa
condição. Mas, decorrente disto e como se não bastasse, há ainda, dentro de cada um de
nós, as marcas de uma longa cultura contra a alegria e a liberdade. Há, dentro de cada
Quando Lóri fala em seguir conselhos, diz: parece fácil. Dentro da nossa cultura
comunicacional, esta é a resposta mais óbvia, buscar uma receita e seguir os passos em
pensa, age, vive no horizonte da técnica, isto é, do ser enquanto disponibilidade para
gerar mais e mais recursos para manter em andamento este mesmo mundo da técnica.
sem necessidade de auto-conquista. Por sua vez, a explosão de um mundo como mundo
da técnica só pode se dar a partir de certas decisões primordiais, como pensar o homem
como sujeito possuidor da natureza, ou mesmo muito simplesmente como ser capaz de
para não se questionar, não muda a intensidade com que o real se manifesta em seu
infinito de possibilidades.
Sentindo isto, Lóri diz: seguir conselhos não é tão simples assim. Normalmente,
conselhos não passam de respostas pré-estabelecidas, conceitos que podem nos parecer
104
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 26.
77
desejáveis, porém, como não se dão no envolvimento de nosso próprio ser, como não
horizonte de um homem que segue conselhos não pode ser o horizonte do humano. É
ainda muito pouco. O humano continua sendo uma enorme dificuldade, um monte
intransponível.
“Mas, de repente, a uma palavra tua ou uma palavra lida, tudo se esclarece.”105
Como algo se esclarece para nós? Como se dá este surgir de dentro de nós
mesmos quase com esplendor? É aí que saem de cena todas as respostas. E começa um
caminho em que são as palavras que fazem surgir, e não mais a exigência que nós
de luz, na escuridão imensa. Então se tem de repente uma pequena amostra do que seria
Na via contrária de toda a cultura ocidental, a obra de Clarice nos toca com a
conceitos. À primeira vista isto nos soa como uma espécie de fuga daquilo que
realmente leva à verdade, como se quiséssemos apenas nos deixar levar por uma crença
indemonstrável. Mas se nos deixamos tocar, percebemos que Clarice nos coloca diante
caminho, travessia.
a resposta que, ao invés de pretender eliminar, põe em manifesto cada vez mais a
pergunta de onde surge. É uma aceitação ainda que momentânea do mover-se entre
105
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.
53.
106
Op. cit. p. 44.
78
questões. É um breve sopro da liberdade que nos constitui. Mas como fazer para surgir
pergunta a Lóri: Você sabe rezar? “Não rezar o padre-nosso, mas pedir a si mesma,
pedir o máximo a si mesma?”107 Não, ela nunca havia pedido. Havia reinvindicado,
havia exigido, mas nunca se colocado humildemente diante do mistério, para pedir,
pedir o que realmente importa. “Pede-se vida? Pede-se vida. Mas já não se está tendo
Sua dor de viver, de, nessa dor, saber que existe uma vida mais real a leva a
diante do universo, mas certo do infinito dentro de si, apenas fecha os olhos e se
entrega:
Alivia minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze
com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na
eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si
mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e
diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão
misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há
explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no
entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois
para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também
incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o
nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la,
abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como que eu como, o
sono que eu durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma pois senão
não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de
desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a
minha, amém.109
107
Op. cit. p. 53.
108
Op. cit. p. 55.
109
Op. Cit. p. 56.
79
Um momento de alívio, a palavra emocionada, o gesto infinitamente prolongado
da mão que busca o que ali já não está mais. Esta é a a prece, o silêncio que esvaziou o
Lóri está agora onde nunca esteve antes: concentrada, humilde, voltada a seu
próprio ser sem intermediários, sem insinuações, sem a tentativa de parecer o que não é.
vazio nos preenche! Há muitos séculos atrás, Heráclito nos disse: “Physis kryptestai
tudo o que se dá e se constitui como mundo, no dar-se da linguagem. Mas tudo o que se
Condição e mistério do mundo: mas nós não conseguimos admitir este velar-se.
Se admitíssemos, talvez víssemos com mais frequência que é ele que nos
preenche, na sua magnitude, na sua presença enquanto infinito. Não, diz Lóri, que eu
não tenha vergonha de desejar que na hora da minha morte haja um ser amado para
segurar a minha mão. Que eu não tenha mais tanta vergonha de admitir o que sou, que
tenho medo da morte, que o infinito é demais para a minha capacidade humana. Se a
morte é meu telos, que eu aceite sem prepotência e sem heroísmo, num diálogo
protegido por uma mão humana amiga. É tão simples o pedido: só precisamos uns dos
outros.
horizonte deste pedido, compreendemos mais profundamente o amor que roga, humano,
a presença de um outro ser. É a dor/amor em que desde sempre nos damos, que já
estendemos os olhos a nossos pais, quando pequenos, e a cada dia de nossas vidas
buscamos uns aos outros. E podemos tentar nos enganar com um falso amor. Mas, cedo
ou tarde, reconhecemos que um falso amor não nos basta. A dor de ser não permite
80
enganos. Ela só se cura na plena presença da verdade do amor como entre, como
liberdade e doação. Por isso, Lóri e Ulisses não se satisfazem em viver um amor que
não está pronto. Eles querem um amor de verdade, o impossível, e precisam realizar-se
outro, e em si mesmos, o apelo do pathos que é viver. E já não pode haver mais fuga.
Lóri então se aquieta, e diz a prece que talvez tenha buscado dizer durante toda a sua
vida. É um esvaziar-se, o esvaziar-se que prepara o nascimento do novo ser. Na lua que
que vela, a noite absolutamente escura, o silêncio se torna maior e mais vivo, para dele
nascer o dia.
O ódio de Lóri, que era a imensa resistência a todo este apelo, começa a se
desfazer. Como se aos poucos se preparasse para iniciar-se numa nova vida. Um
vislumbre dessa nova vida havia se dado na imagem de Ulisses na piscina. Lóri sentira
ali “um primeiro passo assustador para alguma coisa.”110 É quando, desarmada, como
uma criança “em encantamento pelas cores orientais do Sol que desenhava figuras
Ulisses apenas por ser um homem, e existir nele uma calma virilidade. Lóri descobre “o
estranha a si mesma. Não está mais no fulcro da dor. Está apenas vivendo um momento
110
Op. cit., p. 70.
111
Op. cit., p. 70.
112
Op. cit., p. 70.
113
Op. cit., p. 71.
81
em plena presença. Neste estranhamento, pode dizer, encantada, humilde, e pela
Estou sendo, diz Lóri. Estou sendo, diz Ulisses. Nisto, há um encontro. Porque o
estar sendo não é mais banal, como fazemos parecer todos os dias. Dois seres humanos
ser. O entre nunca se apresenta como banal, ao contrário, toda banalidade o esconde.
Toda tentativa de conter a dor deste entre tende simplesmente a diminuir a ambigüidade,
em sua vida até ali, Lóri passa a desejar mais que tudo matar aquela sede. E agora, ela
está diante do mar, no momento mais silencioso do dia e na sua maior solidão. Somente
ela, uma mulher, toda a sua humanidade sentida a cada contração de seu coração, e a
quanto mais caminhamos em sua direção, tanto mais ele se afasta, e mostra a tensão do
ilimitado no limite: o limite de nossa visão, no ilimitado do que não podemos ver. E
mar cheio de perigo. A maior travessia de todas, aquela que se dá dentro de nós: a
tempestade que tantas vezes destrói nossos corações, ou a calmaria que alcançamos
82
regenerescência.”114 Todas elas remetem a uma idéia de possibilidade: toda vida surge
da água, toda força e fecundidade dela dependem. Ao mesmo tempo, submergir nas
ser diferenciado, mas renovado, renascido, revigorado por uma fonte de energia doadora
de infinitas possibilidades.
grande mistério da realidade que se doa, e nos entrega ao silêncio do sentido desta
doação. Por isso, a entrada no mar, que durante o dia, na balbúrdia dos divertimentos,
parece algo superficial, é, na verdade, um encontro do homem com tudo o que ele não
conhece, mas do qual faz parte, do qual vive, no qual espera, numa espera sagrada,
Mas não somos a todo tempo conscientes deste nosso permanecer e habitar junto
às coisas e no aberto misterioso da doação. Quando isto acontece? Apenas quando tudo
está em silêncio, como num começo de manhã, e nos assustamos diante da grandeza do
mar, um susto e uma admiração diante do ordinário do que sempre esteve ali, do que
mar, o entendimento frio, a compreensão, revela seu limite. O cão preto nas areias é
mais livre, porque é o mistério que não se indaga. O incompreensível se revela mais
pleno, e atração da mulher para ele é forte demais, para que ela resista.
114
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio,
2007, p. 15.
83
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a
entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se
entregariam duas compreensões.115
A dor que não podia ser curada se apresenta como coragem de entrar no mar, de
Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande,
e isso é uma realização da Natureza. A coragem de Lóri é a de, não se
conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige
coragem117.
Por que cumprir? Porque não foi Lóri que escolheu que a vastidão do mar fosse
uma realização da Natureza. É ela que está inscrita nesta realização antes de tudo. Mas o
mar é uma realização da Natureza apenas. Como toda realização da Natureza, é o dar-se
exclusivamente humana. Sendo humana, agir exige coragem. Ela tem que prosseguir na
dor. Não pode se dar como realização da Natureza, apenas, mas precisa levar a si
115
Op. cit., p. 78.
116
Op. Cit., p. 78.
117
Op. Cit., p. 79.
84
Lóri aceita: “Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e
madrugada. Nele, Lóri experiencia o que não pode dizer em palavras: estar plenamente
recuar e se proteger como sempre havia feito. Não, ao contrário, ela se lançava contra o
aceitava exatamente o que é ser: tensão de um corpo rígido e ao mesmo tempo frágil
em contato com o humano que a faz humana. Ela está no pleno vigor de sua ação,
escolhendo cumprir o telos do apelo mais profundo que se dá aos seres humanos. Isto
vai de encontro, porém, à idéia que fazemos de posse, como se o humano fosse algo que
se pudesse ter ou não ter, escolher ou não escolher. Apropriar-se de si não é o encontro
do ser, e o entre que somos. Por isso, a apropriação de si mesma é uma entrega:
A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda – e abre caminho na
gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor
em que a oposição pode ser um pedido secreto.119
manifestação poética, em seu devir. É uma oposição que não configura aprisionamento,
ser humano, precisa ser entendido no horizonte deste pedido secreto, a não ser que nos
118
Op. Cit., p. 79.
119
Op. Cit., p. 79.
85
contentemos com faces e disfarces do humano, que queiramos excluir do humano o
mistério, como temos feito até hoje. Lóri experiencia a possibilidade de adentrar o
mistério, e isso significa adentrar sem medo o humano. Por isso parece despertar de um
profundo sono secular. Torna-se alerta, torna-se um ser humano de maneira plena:
E isto é “uma alegria fatal”. Ela não precisa mais de coragem para adentrar a
realidade, agora parece uma iniciada. “Agora já é antiga no ritual retomado que
abandonara há milênios”.121 Pode brincar com a água e beber o mar com a concha das
Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois já
conhece e já tem um ritmo de vida no mar. Ela é a amante que não teme pois
sabe que terá tudo de novo.123
O que Lóri sempre temeu era a experienciação do amor, porque esta é como o
susto do mar gelado e silencioso. Mas uma coragem antiga nos seres humanos – o apelo
que, como Ulisses, ouvimos – a leva a se entregar. E como quem, pela primeira vez, se
assusta e se encanta na dor e prazer do amor, Lóri sabe que não importa o que tente
fazer ou conter: ser amante é saber que se pode ter, de alguma maneira e em algum
E agora, pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que
o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. De algum modo obscuro, seus
120
Op. Cit., p. 79.
121
Op. Cit., p. 79.
122
Op. Cit., p. 80.
123
Op. Cit., p. 80.
86
cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um
perigo tão antigo quanto o ser humano.124
Perigo de não estar mais atrelado aos conceitos e amarras que perfazem o estreito
TOCAR NO MUNDO.”125
perigo.
novamente à tensão do entre. Pois o que é um limite? Não há um limite no humano que
saibamos jamais poder ser ultrapassado, ao contrário, nossos limites são sempre uma
manifestação temporal, uma tensão entre o que aparece como limite e a possibilidade do
não-limite.
Sempre nesta tensão, o entre-ser é, a todo tempo, tomado pelo perigo, pela
para além da disponibilidade, e das certezas que definem a vida. Esta experienciação
coloca em cheque, muito profundamente o sentido do destino que até hoje temos vivido,
o sentido de nosso tempo. Mas o que sustenta esse destino? A imagem-questão Lóri
entrando no mar aponta para uma resposta possível. Aquilo que ela retia a todo custo, o
124
Op. Cit., p. 80.
125
Op. cit. p. 57.
87
seu medo da dor, era a idéia de um poderio sobre a realidade, que se quebra com aquela
ocidental sustentam a idéia de um sujeito capaz de poder sobre a realidade. A este poder
de agir de maneira autônoma, ou seja, não determinada por nada que não a própria
vontade do sujeito que age. Assim, o conceito de liberdade como capacidade de decisão
Mas isto só pode ser entendido no horizonte de um sujeito que domina todas as
dimensões de seu viver, inclusive aquilo que temos falado desde o início:o pathos, a dor
de viver. E a questão com que Clarice nos enfrenta é justamente: é possível dominar a
dor de viver? Será esta tentativa o único caminho? Diante da experienciação que Lóri e
Muito pelo contrário, a única coisa que faz com que Lóri se sinta viva é admitir
que este domínio sobre a realidade, o seu poderio sobre tudo, que sempre prezara como
sua liberdade e personalidade mais valiosa, não passam de uma pretensão. Isto é
confirmado para ela quando, mesmo no auge de sua fragilidade, resolve vestir-se,
coquetel. Sozinha, com uma persona sobre o rosto que sabia não mais ser ela, Lóri
tentava sustentar a bravata de que sua alma não estava nua, de que ela não estava infeliz.
Num imenso salão, onde a conversa com um e com outro não poderia passar de
banalidades, Lóri se sentia profundamente sozinha. Percebia quanto a sua vida até ali
tinha sido de indiferença e solidão. Viu dois homens que tinham sido seus amantes e
que agora não passavam de semi-amigos. Não havia nada, nenhuma dor de amor,
nenhuma vida, apenas indiferença. E percebia então que nunca havia comunicado a dor
88
humana a ninguém, que nunca havia se dado pela dor de seu rosto. Ao final, humilhada,
A máscara não servia para os outros, como pensava Lóri. Era uma necessidade
sua de esconder a própria solidão. Agora, o rosto nu se revelava para ela, e era a ela
mesma que incomodava. “Era inútil esconder. A verdade é que não sabia viver.”127
Quanto nos custa chegar a esta conclusão? Muito, muitíssimo. Em geral, damos
nossa vida para não ter que admitir o nosso fracasso em lidar com a própria realidade
humana. A idéia de domínio, ou, como diz Nietzsche, a vontade de vontade, é uma
escolha mais óbvia e só com muito custo reconhecemo-na como uma ameaça.
O perigo de nos perdermos nos leva ao limite a que Lóri foi levada. A dor nos
toma tão profundamente que somos forçados a reconhecer a nossa finitude. É como nos
acontece hoje: o destino que envia tudo à dis-ponibilidade está plenamente posto. A
um olhar para esta situação mundial que o confronto com nossas escolhas passadas se
89
Precisamos perguntar, então: o que nos cabe hoje? Qual é a tarefa do
Mas que outra experiência é esta? Como falar de algo que não podemos sequer
supor como ou o que seria? Como demonstrar essa possibilidade de uma outra dimensão
conformar ao fato de que os próprios pensadores que nos chamaram com o apelo desta
questão também não obtiveram resposta alguma. Heidegger sabia que com sua obra não
realidade, mas, muito pelo contrário, que apenas lançava sementes para o vislumbre do
realmente sementes para um futuro ainda muito distante, uma vez que a proposta de
cinco séculos.
Por isso, passamos muito longe da pretensão de encontrar uma nova fórmula ou
defender uma nova teoria. Não será jamais um autor, um filósofo ou uma idéia que dirá,
129
UNGER, Nancy Mangabeira. Heidegger e a Espera do Inesperado. In: Revista Tempo Brasileiro, Rio
de Janeiro, 164: 179;188, jan – mar 2006, p. 185.
90
Porque, além do fato de acreditar na salvação por um autor ou idéia ser algo
simplesmente não há caminho a seguir. O que o homem de hoje precisa se ver é com a
ausência, com o paradoxo, com a inutilidade de suas crenças, com a fragilidade de suas
certezas, para perceber que as decisões até agora tomadas – supondo o domínio da
realidade pela inteligência humana – apenas levaram ao mundo mais desumano que se
própria continuidade da existência humana, uma vez que o agravamento de todo este
escala planetária se faz como injustiça social, fome, miséria, sofrimento brutal para
sustentação da vida.
Mas as definições e conceitos, por mais inovadores que possam ser, a esta altura
não mais podem estabelecer uma nova dimensão de experiência, que levasse o homem a
se demorar um pouco mais no encontro consigo mesmo e com os outros. Seria preciso,
antes, quebrar com a predominância da definição sobre a vida, para que nos abríssemos
à vida.
não uma receita. Pois apenas cada um pode fazer, à sua maneira, a seu tempo, na
A obra narra uma experienciação, um caminho singular, que não pode nem
precisa ser generalizado. Ela configura, muito antes de uma resposta, um convite. O
convite a viver em nós a aprendizagem, de nascer para nós mesmos a partir do que
ainda não somos, de desatar os nós que nos prendem a um horizonte pré-determinado e
91
nos impedem de mergulhar verdadeiramente nesta busca de nós mesmos no horizonte
da liberdade.
Quando Lóri entra no mar, um primeiro passo é dado. O mais difícil, aquele que
ela havia evitado a todo custo desde o início. Aquilo que a prendia em sua dor, pois a
impedia de entender que a dor é condição de viver. E agora, Lóri compreende a dor, vê
que é justamente ela que lhe permite ser humana. É o momento então, da decisão. Nada
virá por milagre, e mesmo ela, Lóri, não deseja mais um milagre. O que ela precisa
fazer, a partir de agora, é ir experienciando, passo a passo, quem ela é, em sua pergunta
“Meu mistério é simples: eu não sei como estar viva.”130 Lóri chegou ao ponto
Não é uma pessoa com o nome Loreley que não sabe viver. O que temos é uma imagem
Escutar e não sucumbir, eis agora a decisão. Abrir-se à vida como vida, como
crucial para o qual a obra de Clarice aponta, e sobre o qual precisamos nos voltar com
O que é isto – o prazer, para que se proponha uma aprendizagem tão essencial?
aqui, procuremos seguir junto com Lóri a sua descoberta do prazer. Assim
130
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.89.
92
Em primeiro lugar, situemos a questão. O prazer a que O Livro dos Prazeres nos
convida não é uma fuga, mas exatamente uma tentativa de resposta mais sincera à
“A tragédia de viver existe sim e nós a sentimos. Mas isso não impede que
tenhamos uma profunda aproximação da alegria com esta mesma vida.”131
E é preciso perguntar: a alegria é algo assim tão difícil? Por que complicamos
tanto nosso caminho para a alegria? Por que, como Lóri, resistimos a nos aproximar das
pessoas e coisas que nos trariam alegria? Quantas vezes, em nossas vidas, agimos por
este medo da tragédia de viver – que existe e que é vida concreta – deixando, porém, de
e prazeirosas? Cada um de nós responderá: muitas. E quantos de nós somos como Lóri
como única possibilidade, de maneira mais ou menos vaga, sob conceitos que não
ousamos questionar. Estes porquês se escondem por entre as misérias de uma História,
destino se ocultou para nós desde que nos fizemos aqueles que não queriam ver.
Querer ver e ouvir e adentrar o mistério é agora, para Lóri, saber que estar viva
não é somente estar viva através da dor. Então, o que é? O que é isto que Ulisses
Lóri agora já sabia o quanto ela era uma foragida do mundo, o quanto ela havia
estado longe de tudo por escolha, e também o quão ruim era a dor de não saber viver.
Por não se abrir a uma busca mais profunda, havia sentido que a busca do prazer era
água ruim: “colava a boca e sentia a bica enferrujada, de onde escorriam dois ou três
131
Op. cit. p. 94.
93
pingos de água amornada: era água seca”132 E agora já podia dizer isto a Ulisses, podia
se comunicar com ele, mostrando quem ela era, não a máscara, mas a mulher que não
sabia viver e lhe contava emocionada que havia se lançado ao abismo entrando no mar
óbvio como eu, e achá-lo estanho”133, (o que Ulisses admirava intensamente). Já podia
ver claramente o quanto havia fugido de viver, e o quanto não queria mais isto. Sentia,
pela primeira vez, que podia dizer sua alma a Ulisses, e era a primeira vez que se
aproximava tanto de outro ser humano. Lóri se emocionava, se desesperava diante das
possibilidades que viriam – dos grandes prazeres e grandes dores do amor por um
Acordara dentro de si própria, por estar se deixando tomar, pela primeira vez, pelo
prazer de viver.
assim Lóri recitou para as crianças em classe e elas compreenderam por que o frio as
agasalhando-as do frio, ligando-se a elas sem medo. “Não havia aprendizagem de coisa
mundo concreto da vida, o falso prazer do controle sobre tudo. Ao invés disso, comer e
132
Op. cit. p. 104.
133
Op. cit. p. 90.
134
Op. cit. p. 99.
135
Op. cit. p. 100.
136
Op. cit. p. 100.
94
Às vezes, a dor voltava, e era como se ela fosse perder tudo o que alcançara. “A
dor é o mistério”137.Mas agora que se iniciara no mundo, podia sentir tudo: ira, paixão,
De repente Lóri não suportou mais e telefonou para Ulisses:- Que é que eu faço,
é de noite e eu estou viva. Estar viva está me matando aos poucos e eu estou
toda alerta no escuro.
Houve uma pausa, ela chegou a pensar que Ulisses não ouvira. Então ele disse,
com voz calma e apaziguante:
- Agüente.138
aguentar, isto é, saber-se tomada por algo do qual não sabemos o que fazer. Mas
Isto é, na vida de Lóri, e na vida de todos nós, uma nova estação, uma
própria vida que antes só conseguia ver como um fardo infinito e doloroso, algo já
muito diferente:
137
Op. cit. p. 108.
138
Op. cit. p. 113.
139
Op. cit. p. 113.
95
Impossível! diz em eco a mornidão ainda tão mordente e fresca da primavera.
Impossível que esse ar não traga o amor do mundo! Repete o coração que parte
sua secura crestada num sorriso. E nem sequer reconhece que já o trouxe, que
aquilo é um amor. Esse primeiro calor ainda fresco trazia: tudo. Apenas isso, e
indiviso: tudo.140
Seu coração, a vida que pulsa em seu peito, não era mais como lama seca. E para
sua surpresa, aquilo era amor! Porque se havia buscado amor, antes, havia buscado onde
ele não estava, em um coração que não se dá à vida. Agora experienciava a doçura de se
E que ela não se esquecesse, naquela sua fina luta travada, que o mais difícil de
se entender era a alegria.
Que ela não se esquecesse que a subida mais escarpada e mais à mercê dos
ventos era sorrir de alegria.141
A alegria que Lóri vive não é aquela dos clubes e salões, onde “sorrimos do que
não sorriríamos se estivéssemos sozinhos”. Não é a alegria daquele que se negou à dor.
gelado, sem medo do abismo que é ser um ser humano. Não é a alegria que virá depois,
se buscou: é a alegria que se recebeu de graça, que se deixou ser no corpo a própria
Descobrir que cada dia é sempre extraordinário e que a nós cabe sofrê-lo ou ter
todo um mundo que há tempos nos faz habituados à vida como sofrimento necessário. É
com isto que o pensamento hoje se defronta: este sentir que o desconhecido do mundo e
que o devir da realidade sejam afinal o que nos preenche, não o que nos faz temer. Esse
sentir que se pode não compreender, e nisto obter uma compreensão ainda mais
140
Op. cit. p. 114
141
Op. cit. p. 115.
96
profunda e verdadeira. Este saber que o mistério insondável da vida foi disfarçado por
para o homem de hoje? Há a clareza da finitude, e o desejo de, nesta finitude, comer o
entre de vida e morte, de amor e dor. Que o prazer de viver no mundo concreto seja real
e infinito, como um estado de graça que se possa ter sem ser santo.
97
Capítulo IV A EXPERIENCIAÇÃO DA LIBERDADE
A sede de Lóri a levou pelos caminhos de um mundo que não lhe era mais
Por aquele mundo, passou a vagar. Encontrava-se com Ulisses, na sua busca,
viajava dentro de si bem longe. E então veio finalmente o dia em que ela soube
que não era mais solitária. Reconheceu Ulisses, tinha encontrado o seu destino
de mulher.142
mundo inteiro para explorar, e caminhava nele como se conhecesse pela primeira vez a
grandeza de tudo o que é. Via em tudo a abundância da vida que se dá tão livremente,
que não se pode conter. A vida era tão forte que se sustentava em si mesma, não
Ela mesma era inexplicável. Não sabia os seus próprios limites, porque não é
possível saber os limites de uma pessoa. Uma pessoa é uma vida se dando, e isto é
conter, se guardar, mas para quê? Não havia para quê se guardar se a própria vida era
Foi no dia seguinte que andando devagar e cansada pela rua, viu a moça de pé
esperando o ônibus. E seu coração começou a bater – porque resolvera fazer a
tentativa de contato com uma pessoa. Parou.
- O ônibus está demorando?
- Está.
Falhara. Seu coração bateu mais forte ainda porque sentiu que não ia desistir.
- Seu vestido é muito bonito, gosto de estampa grande com roxo.
A moça sorriu imediatamente:
142
Op. cit. p. 116.
143
Op. cit. p. 126.
98
- Comprei pronto, e saiu mais barato do que se tivesse mandado fazer. Minha
costureira é de morte, vive aumentando o preço de um vestido para o outro, e
isso sem contar os aviamentos que ficam por minha conta. Por isso acho que –
Lóri não ouviu mais nada: sorria beatificada: entrara em contato com uma
estranha. Interrompeu-a um pouco bruscamente mas com uma doçura e gratidão
na voz:
- Adeus. Obrigada, muito obrigada.144
A solidão havia sido seu único modo de ser até então. Mas Lóri, ao se lançar ao
com outros seres humanos. Isso era novo, era a descoberta de uma vida impossível,
Todo o processo que Clarice descreve, ao longo de toda a obra, era a busca de
escutar o apelo da vida como livre instauração do ser, como doação do silêncio, como
mesma num contato profundo com a realidade, com a physis, com Ulisses e com o
silêncio. Lóri encontrava não os limites de si mesma enquanto indivíduo, o que lhe
serviria para se definir e se guardar, mas uma liberdade de saber-se humana, ser
E então:
O amor por Ulisses veio como uma onda que ela tivesse podido controlar até
então. Mas de repente ela não queria mais controlar.
E quando notou que aceitava em pleno o amor, sua alegria foi tão grande que o
coração lhe batia por todo o corpo, parecia-lhe que mil corações batiam-lhe nas
profundezas de sua pessoa. Um direito-de-ser tomou-a, como se ela tivesse
acabado de chorar ao nascer. Como? Como prolongar o nascimento para a vida
toda?145
144
Op. cit. p. 127
145
Op. cit. p. 128.
99
No momento em que não pôde mais controlar a vida que pulsava em seu peito, o
pathos, a paixão de viver plenamente como humana, Lóri nascia para si mesma,
descobria a própria existência com uma alegria de quem nasce para um infinito de
possibilidades. Mil corações batiam-lhe nas profundezas de sua pessoa: ser humana não
- Ulisses, não encontro uma resposta quando me pergunto quem sou eu. Um
pouco de mim eu sei: sou aquela que tem a própria vida, e também a tua, eu
bebe a tua vida. Mas isso não responde quem sou eu!146
Quem sou eu é a pergunta que mais plenamente nos abre para o mistério, porque
reconhece que somos uma questão. Que reconheçamos isso, pela mais breve parte de
um segundo, coloca por terra o pressuposto único da cultura da dor e da certeza, pois
Basta isso, um suspiro, uma breve desconfiança, e tudo aquilo que foi criado para ser
eterno desmorona. Desde que, é claro, esta não seja apenas uma pergunta intelectual.
Do mais profundo da minha dor, pergunto: afinal, quem sou? Sou o infinito?
Sou essa vida inesgotável que pulsa em meu peito? Quem sou dentro deste infinito que
- Isso não se responde, Lóri. Não se faça de tão forte perguntando a pior
pergunta. Eu mesmo ainda não posso perguntar quem sou sem ficar perdido.
E sua voz soara como a de um perdido.147
146
Op. cit. p. 129.
147
Op. cit. p. 129.
100
A voz de um perdido, o silêncio como resposta: o homem é exatamente isto, o
silêncio como resposta. Pois tudo é doação deste silêncio, e o homem é o ser que deve
Aí sim, a plenitude. Lóri, que tudo tinha feito para não se entregar, descobre
afinal que a entrega de si mesma não significava a morte, como havia pedido em sua
prece. Que a entrega de si mesma ao desconhecido, ao apelo do amor em nós, era a sua
“Sem gratidão ou ingratidão, Lóri era uma mulher, era uma pessoa, era uma
atenção, era um corpo habitado olhando a chuva cair”.148 E isto, justamente estar plena
no momento em que se vive, era a única felicidade possível e era o que havia buscado a
vida inteira.
E de súbito, mas sem sobressalto, sentiu a vontade extrema de dar essa noite
secreta a alguém. E esse alguém era Ulisses. Seu coração começou a bater forte,
ela se sentiu pálida pois todo o sangue, sentiu, descera-lhe do rosto, tudo porque
sentiu tão repentinamente o desejo de Ulisses e o seu próprio desejo.149
plenos de si mesmos e de amor pelo mundo e pelo viver humanos, Lóri e Ulisses não
têm mais o que conter de si. Podem se dar plenamente ao prazer do sexo, sem o perigo
Nunca um ser humano tinha estado mais perto de outro ser humano. E o prazer
de Lóri era o de enfim abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-
pleno que estava antes escarniçadamente prendendo-a. E de súbito o sobressalto
de alegria: notava que estava abrindo as mãos e o coração mas que se podia
fazer isso sem perigo! Eu não estou perdendo nada! Estou enfim me dando e o
que acontece quando eu estou me dando é que reebo, recebo. Cuidado, há o
perigo do coração estar livre?
148
Op. cit. p. 142.
149
Op. cit. p. 142.
101
Percebeu, enquanto alisava de leve os cabelos do homem, percebeu que nesse
seu espraiar-se é que estava o prazer ainda perigoso de ser. No entanto, vinha
uma segurança estranha também: vinha da certeza súbita de que sempre teria o
que gastar e dar. Não havia pois mais avareza com seu vazio-pleno que era a
sua alma, e gastá-lo em nome de um homem e de uma mulher.150
Não havia mais medo de que esta “profunda existência na terra”151 se perdesse.
“Depois que Ulisses fora dela, ser humana parecia-lhe agora a mais acertada forma de
mar bravio e dos rochedos e da travessia, Ulisses é, mais uma vez, o homem em luta,
assim como Lóri, em luta, ainda que agora fosse novo: os dois pertencendo a si mesmos
150
Op. cit. p. 145
151
Op. cit. p. 149
152
Op. cit. p. 149.
153
Op. cit. p. 151.
154
Op. cit. p. 155.
102
O romance havia começado com uma vírgula e agora termina em dois-pontos. E
silêncio que nos leva, junto com Lóri e Ulisses, a tocar o ponto crucial de nossa
103
CONCLUSÃO
diálogo intenso com todos os conceitos inquestionados com que costumamos viver. E
experienciação de Lóri e Ulisses de uma nova relação com o viver, com a dor, com o
amor e com o silêncio, não será possível compreender mais propriamente o apelo a uma
devir de que nos falam os pensadores, faz-se presença diante de nós, e nos coloca em
questionamento. Nossa própria vida, nossa busca de garantias, nossas máscaras, tudo é
o pesado fardo das relações não-verdadeiras, e o nosso perene esforço de manter tudo
sob controle, caem por terra. Como Lóri, somos tomados por um imenso amor pela vida
que quisemos conter a todo custo, mas que não conseguimos. Somos lançados no
silêncio e deste silêncio surgimos para nós mesmos, em nossa concretude, em nossa
Junto com Lóri, ousamos nos libertar de toda necessidade de explicação, para nos
horizonte, mas não deixa esquecer a floresta. Tocamos, assim, a essência do real que é o
104
A compreensão desta essência é impossível se tentarmos nos utilizar apenas do
todas estas questões tocadas por Clarice necessitam ser experienciadas, vividas no
corpo, compreendidas numa dimensão em que o homem seja completo e não limitado
como um imenso prazer. “Pois o prazer não era de se brincar com ele. O prazer era
nós.”155
155
Op. cit. p. 120.
105
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Vozes, 2001.
Vozes, 2001.
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ROBLEDO, Antônio Gómez. Platón – Los Seis Grandes Temas de su Filosofia. México
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VERNANT, Jean Pierre. Mito e Sociedade na Grécia Antiga. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1999.
110