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O Sócrates de Platão: entre a filosofia e a retórica


Gustavo Henrique Lopes Machado

Parmênides: Que farás então da filosofia [Sócrates]? Para onde te voltarás,


sendo estas questões desconhecidas?
Sócrates: Creio não vislumbrar caminho algum, pelo menos neste momento.
Parmênides: [...] esforça-te e exercite mais, através dessa prática
aparentemente inútil a que a maioria chama vã charlatanice, enquanto é
jovem. Caso contrário, a verdade lhe escapará.

Platão (Parmênides 135b-d)

Os diálogos de Platão, tal como foram interpretados no curso da história da filosofia oci-
dental, consolidaram uma imagem depreciativa dos sofistas. No entanto, em suas primeiras
aparições, o termo significava sábio e era aplicado, por isso mesmo, aos poetas. Segundo Guth-
rie 1 , o termo se origina do verbo sophisesthai que significa praticar sophia. É assim que a
palavra sophistes aparece com o sentido de poeta em Pı́ndaro. Será apenas no século V a.C. que
o termo passa a designar escritores em prosa, e mais particularmente, mestre ou professor espe-
cializado na arte do discurso. Em As Nuvens de Aristófanes, a profissão sofista recebe, talvez
pela primeira vez, caracterı́sticas pejorativas. Os sofistas nada mais seriam do que ‘charlatões’:
um profissional que cobra por aquilo que não é capaz de ensinar. Mas foi com Platão, ou melhor,
graças a uma dada interpretação do filósofo ateniense, que o termo sofista será entrelaçado defi-
nitivamente a imagem de um falsário e charlatão, um imitador da realidade que, pelo discurso,
produz uma falsa aparência de uma ciência universal.

É sob o juı́zo dos diálogos platônicos que os sofistas, os principais adversários de Sócrates
nos diálogos, foram relegados a um papel subalterno no interior do pensamento grego e, mesmo,
excluı́dos do panteão dos filósofos. Conforme nos anuncia Kerferd:

Não restaram escritos de nenhum dos sofistas e temos de depender de fragmen-


tos insignificantes e muitas vezes obscuros, ou discutı́veis, de suas doutrinas.
Pior ainda, dependemos, para grande parte da nossa informação, de Platão,
que os tratou de maneira profundamente hostil, com todo o poder de seu gênio
literário, acertando-os em cheio com um impacto filosófico quase arrasador.2

Isto é assim porque os primeiros extratos escritos de muitos dos que chamamos sofistas se
devem exatamente a Platão. No entanto, uma ambiguidade significativa emerge de todo esse
1 (GUTHRIE, 1995, p. 31-34)
2 (KERFERD, 2003, p. 9)
2

desenvolvimento. Se em As Nuvens de Aristófanes é Sócrates a imagem suprema do sofı́sta,


nos Diálogos de Platão é exatamente Sócrates, tomado por muitos como o porta voz de Platão
nos diálogos, quem cumpre o papel de antagonista principal da sofı́stica.

Neste breve artigo, pretendemos problematizar esta interpretação clássica que opõem Sócrates
aos sofistas partindo não de Aristófanes, mas dos próprios diálogos de Platão. Seguimos, toda-
via, uma abordagem distinta daquela que se consagrou na tradição. Longe de tomar Sócrates
como o portador absoluto do lógos de Platão, pretendemos, seguindo os passos da célebre meto-
dologia defendida por Hector Benoit3 , ler os Diálogos como e enquanto diálogos, isto é “discur-
sos, palavras entrecruzadas pronunciadas por múltiplos personagens opostos e contraditórios”4 .
Em outras palavras, tomamos os Diálogos em si e por si mesmo, sem sobrepor as palavras
nele inscritas elementos externos e subjetivos introjetados arbitrariamente pelo intérprete. As-
sim considerado, acreditamos, não apenas cai por terra a interpretação convencional que opõem
Sócrates aos sofistas, como a relação mesma entre retórica e filosofia se mostra muito mais
complexa e mediada do que se poderia supor a primeira vista.

Para tal, analisaremos a relação entre o personagem Sócrates e os sofistas em dois mo-
mentos privilegiados para o tratamento de tal questão na obra de Platão. Em primeiro lugar, o
Diálogo Górgias em que a conexão entre retórica e sofı́stica se insinua pela primeira vez. Em
seguida, analisamos o Diálogo Sofista em que a caça ou a determinação dos sofistas aparece
como tarefa principal.

3 No livro Platão e as temporalidades: a questão metodológica (BENOIT, 2015), Benoit apresenta sua proposta
de leitura imanente dos diálogos. Tal proposta é materializada no livro: A Odisseia de Platão: as aventuras
e desventuras da dialética (BENOIT, 2017), quando o autor procede a exposição do conjunto dos diálogos de
Platão, ordenando-os segundo sua temporalidade interna. Apesar da absoluta orginalidade e rigor, seu trabalho
permanece inexplicavelmente ignorado pela maior parte dos platonistas e estudiosos de filosofia antiga no Brasil.
4 (BENOIT, 2015)
3

1 Sócrates como imagem do sofista no


Górgias de Platão

No diálogo Górgias, ocorrido supostamente no ano 427a.C.1 , Sócrates debate com o célebre
sofista que intitula o Diálogo e dois de seus discı́pulos, Polos e Cálicles, quando da visita do
primeiro a cidade de Atenas. Logo no começo do diálogo, Sócrates desqualifica Polos e, assim,
força um diálogo com o ilustre Górgias. No entanto, chama atenção o modo como como se
dá tal depreciação: “tornou-se-me evidente que ele se tem dedicado mais à arte denominada
retórica(retoriké) do que à do diálogo (dialégesthai)”(448d)2 . Como se vê, Sócrates opõem o
diálogo à retórica.

Ainda que este seja o primeiro uso conhecido do termo: retoriké, aquilo que podemos de-
nominar como a prática da retórica é algo bem atestado tanto nas práticas pedagógicas como
polı́ticas gregas no século V e IV a.C.. Segundo Yunis3 , era um fato básico da atividade polı́tica
grega nesse perı́odo a relação entre cidadão (polites) e polı́tico, sendo o termo rétor um dos
utilizados para designar o polı́tico. Mesmo assim, uma novidade de primeira importância in-
troduzida por este trecho é a diferenciação que se inicia entre filosofia e sofı́stica, diálogo e
retórica.

A primeira diferenciação, neste sentido, repetida diversas vezes por Sócrates, tanto em seu
diálogo com Polos como naquele com Gorgias, é sua insistência na brevidade das respostas,
diferenciando-as dos longos discursos em reuniões públicas que caracterizariam a atividade
retórica. Dirá Sócrates: “E não consentirias, Górgias, em prosseguir numa troca de perguntas
e respostas, assim como estamos conversando, e em deixar para outra ocasião a amplitude dos
discursos com que Polo iniciou? Porém cumpre o que nos prometeres e dispõe-te a responder
1 Benoit ordena os diálogos de Platão seguindo os elementos léxicos deixados pelo próprio autor nos Diálogos.
No caso da cena do Górgias, pode ser datada no ano de 427 a.C., já que menciona a morte então recente de Péricles,
ocorrida em 429. Além disso, ocorreu quando da visita de Górgias à Atenas. Sabemos por Tucı́dides e Diodoro
que sua primeira visita a Atenas se deu exatamente em 427 a.C. (BENOIT, 2015, p. 140-1).
2 Todas as citações do diálogo Górgias correspondem edição brasileira traduzida por Carlos Alberto Nunes:

(PLATÃO, 2002).
3 (YUNIS, 1996, p. 154)
4

por maneira concisa às perguntas que te forem apresentadas”(449b). Górgias concorda e, de
fato, no curso de todo o diálogo, procura responder as questões colocadas de forma breve. No
entanto, é o próprio Sócrates que, em diversos momentos, descumpre as próprias regras que
propôs e estabelece longos discursos. No curso do Diálogo ele faz 25 intervenções com mais de
30 linhas, sendo que ao menos 6 delas violam claramente os critérios definidos com Górgias4 .

A discrepância se torna tão alarmante que o próprio Sócrates sente a necessidade de desculpar-
se: “É possı́vel que minha conduta seja inconseqüente, pois, tendo-te proibido discursos esti-
rados, eu próprio me alonguei desta maneira”. Mas como quem confessa a impotência de
sua arte dialógica, continua Sócrates: “Enquanto me exprimi em termos curtos, não me com-
preendias nem sabias interpretar minhas respostas e exigias sempre explicações. Por isso, se eu
também me mostrar incapaz de aproveitar tuas respostas, espicha, do mesmo modo, teus discur-
sos”(465e). Nota-se portanto que, ao menos nesse aspecto, foi o método dos longos discursos
dos assim chamados retóricos que se mostrou eficaz ao próprio Sócrates. No entanto, a questão
se torna ainda mais paradoxal quando passamos ao conteúdo mesmo dos discursos nada breves
proferidos por Sócrates.

Após a admição de Górgias de que sua profissão é a retórica, Sócrates a define como
“empirismo[experimentação] e rotina” (empeirı́a kai tribé) (463b4), “uma prática que nada tem
de arte, e que só exige um espı́rito sagaz e corajoso e com a disposição natural de saber lidar
com os homens. Em conjunto, dou-lhe o nome de adulação”(463a). Seria, assim, mera empei-
ria, uma prática baseada na experiência, sem lógos e uma fundamentação conceitual rigorosa.
E mais adiante: “a retórica é o simulacro de uma parte da polı́tica”. Mas o que faria a retórica
um simulacro em relação à polı́tica e, em última instância, à própria filosofia? Ora, Sócrates
nessa linha recorre, pela primeira vez, ao método da divisão, tão presente em outros diálogos,
como veremos mais adiante.

As artes verdadeiras são voltadas ao corpo e alma. As do corpo se dividem em duas par-
tes: “a ginástica e a medicina”(464b). As da alma se dividem “na legislação das cidades e na
justiça”(464b). Eis aqui artes verdadeiras, artes solidarias entre si no desenvolvimento tanto
do corpo como da alma. A estas se contrapõem atividades regidas pela adulação: simulacros
(eidolon). A ginástica é substituı́da pela cosmética e a medicina pela culinária. Mais adiante,
procurando fundamentar a natureza mais profunda que diferencia esses domı́nios contrapos-
tos dirá: a culinária não é arte “não passa de uma rotina, pois não tem a menor noção dos
4 Como indica Hector Benoit (BENOIT, 2017, p. 73), as passagens com mais de 30 linhas são as seguintes:
451a-c; 452a-d; 455a-d; 457c-458b; 459c-460a ; 463a-c; 464b-466a; 469c-e; 471e-472d; 480b-d; 480e-481b;
481c-482c; 486e-488b; 492e-493d; 493d-494a ; 500a-d; 500e-501c; 503d-504a ; 506c-507e; 507a-509c; 511c-
513c; 517b-519d; 521d-522a; 522c-e; 523a-527e. Especificamente, nas seguintes passagens, Sócrates viola o
acordo com Górgias: 451a-c; 452a-d; 455a-d; 457c-458b; 459c-460a ; 453b-c.
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meios a que recorre, nem de que natureza possam ser, como não sabe explicar a causa deles
todos”(465a). Enquanto a medicina procura a razão de ser daquilo que investiga, a culinária
procede diretamente a finalidade proposta, sem uma investigação prévia da natureza e causa do
prazer que almeja, sendo, por isso, uma atividade irracional (álogon prâgma(465a)). Do mesmo
modo, a prática da adulação criou os simulacros a que corresponderia a legislação das cidades
e a justiça, sendo estes respectivamente a sofı́stica e a retórica.

Ora, se parece bastante evidente que as práticas criticadas por Sócrates não cumprem os
requisitos que ele exige de toda e qualquer arte5 : basear-se em conhecimentos (episteme) e
operar com eles(448b), justificar-se por uma dada razão de ser e ser capaz de lógon (465a),
definir com clareza o objeto a que se refere (450b), passı́vel de ser ensinado (455c; 458e; 514a-
c) dentre outros aspectos; cabe perguntar: onde estaria, no final das contas, a atividade racional
ou lógos das práticas que advoga Sócrates?

Ora, se ao dialogar com Górgias, Sócrates diferencia a convicção ou crença (pı́stis), tı́pica
da retórica, do “conhecimento” (epistéme), já que a primeira pode ser “verdadeira ou falsa”
enquanto a segunda deve ser necessariamente verdadeira (454d5-9); na terça parte do diálogo,
agora com Cálicles, diz Sócrates: “Então ouve, como se diz, uma bela história, que decerto
tomarás como fábula, segundo penso, mas que eu digo ser verdadeira(hos alethê ónta), pois
insisto em que é a pura verdade tudo o que nela se contém”(523a). Ou seja, para corroborar toda
sua argumentação, Sócrates faz uso de um mito6 , uma imagem, que ele acredita ser verdadeira.
E realmente, na sequência, continua Sócrates “Eis, Cálicles, o que ouvi contar e creio (pisteúo)
ser verdadeiro”(524a10-b1).

Assim, uma vez mais pronunciando longos discursos como os retóricos, Sócrates terminar
o diálogo com uma narrativa sobre o julgamento das almas no Hades. Mais ainda. Termina sua
argumentação com uma fábula, um mito, uma narrativa que tão somente visa produzir crença
no interlocutor. Sócrates, aparece, então, segundo seus próprios critérios, como a imagem do
retórico e do sofista que no curso de vários diálogos procurou combater tão arduamente. Mas eis
que, passados quase trinta anos, no ocaso de sua vida, ele será confrontado diretamente como o
ser mesmo do sofista.

5 (OSMANCZIK, 2000, p. 32)


6 Interessantenotar que Sócrates denomina sua narrativa de lógos. Segundo Stauffer: “A coisa mais impressi-
onante sobre o relato de Sócrates é que ele o chama de logos, ao invés de mito (ver 522e5–6, 523a1–2). O que
ele quer dizer com isso, no entanto, não é claro. A explicação mais simples, naturalmente, seria que Sócrates
pensa que o relato é verdadeiro, e que, chamá-lo de logos é uma maneira de expressar a própria convicção em sua
verdade.” (STAUFFER, 2006, p. 168)
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2 Sócrates como ser do sofista no Sofista


de Platão

No segundo fragmento de seu poema, Parmênides enuncia a tese que, em diversos sentidos
e em múltiplas direções, constituı́ um marco singular no pensamento grego e na filosofia oci-
dental. Primeiramente, se enuncia a via da verdade: “que é, e que não é possı́vel não ser”(2.3)1 .
Neste verso, a segunda afirmação ligada a primeira indica que somente ser é possı́vel, em sen-
tido absoluto, sendo o único caminho “de investigação que há para pensar”(2.2). Em seguida
é enunciada a via da opinião: “que não é, e que é necessário não ser”(2.3). Esta segunda via é
interditada pelo filósofo eleata, e com relação à ela somente é permitido dizer: não é possı́vel
não ser, ou seja, toda e qualquer possibilidade de se atribuir consistência ontológica ao não
ser é negada, caminho de antemão colocado como incognoscı́vel, sendo algo em si mesmo im-
pensável, similar a noção de nada (medén). Trata-se, assim, de absolutizar o conceito do ser, de
sua radical afirmação, para, em seguida, negar unilateralmente a possibilidade do contraditório,
do não ser.

A tese parmenı́dica não é susceptı́vel, verdadeiramente, a uma demonstração. Como indica


Charles Kahn “[...] Parmênides não fornece nenhum [argumento]. Ele simplesmente faz uma
asserção de que sua tese é verdadeira”(KAHN, 1968/69, p. 711). Trata-se, deste modo, de uma
verdade tautológica, da soberania absoluta do princı́pio da identidade. Não por acaso encontra-
se implı́cito no pensamento de Parmênides os princı́pios que futuramente caracterizariam a
lógica aristotélica: o princı́pio de identidade, “o que é, é” (6.1); o princı́pio de não contradição,
“é ou não é” (8.16) e também o terceiro excluı́do, “é necessário ser absolutamente, ou não
ser em absoluto” (8.11). Como indica Cordero, “a estrutura primária do caminho da verdade
consiste, então, em afirmar ou predicar uma noção com respeito a ela mesma: ela estabelece o
ser do ser e o não ser do não ser”(CORDERO, 2011, p. 86). Em seguida, o mesmo autor ressalta
o caráter tautológico da tese parmenı́dica: “Não restam dúvidas: trata-se de uma tautologia ou,
se assim se prefere, do princı́pio de identidade; mas sem a postulação desta tautologia, todo tipo
1 Todas citações do Poema de Parmênides foram retiradas da tradução de Nestor Cordero presente no apêndice

de seu livro (CORDERO, 2011, p. 221-249).


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de pensamento é impossı́vel”(CORDERO, 2011, p. 86). Certamente, todo tipo de pensamento


seria impossı́vel sem a identidade que permite identificar um dado ente entre todos os outros,
todavia, seria correto afirmar tal princı́pio como absoluto e inviolável? Sua postulação absoluta
e a negação radical do contraditório como condição de possibilidade para o pensamento e,
consequentemente, de todo conhecimento?

Como se sabe, o sofista Górgias foi o antagonista radical de Parmênides na filosofia grega.
Conforme nos informa Sexto Empı́rico, Górgias em seu tratado: Sobre o não ser ou sobre a
Natureza sustenta a tese de que “nada é”; “se é, não pode ser apreendido pelo ser humano”;
“se pode ser apreendido, não pode, portanto, ser formulado e explicado a seu próximo”2 . Neste
caminho, o discurso não tem por referente o real, não representa aquilo que é, mas, tão somente,
a si mesmo. Trata-se, aqui, de um uso reflexivo da linguagem, um lógos que não se refere as
coisas, mas se auto-alimenta.

Como se vê, tanto em Górgias como em Parmênides, aquilo que é, o ser, permanece ex-
terno e solene na mais absoluta indeterminação. Apesar do caráter aparentemente oposto das
respectivas teses, ambas apontam para a impossibilidade de um discurso informativo sobre o
ser, ambos permanecem aquém de toda e qualquer determinação daquilo que é. Entre o ser e o
discurso “dos mortais” se impõem um abismo intransponı́vel, afinal, tanto a afirmação como a
negação absoluta do ser levaram à um beco sem saı́da: a cisão entre discurso e realidade, a total
impossibilidade de uma racionalidade objetiva voltada para as coisas mesmas. Levando ao li-
mite as teses de ambos os autores, a possibilidade do conhecimento das coisas que se encontram
no mundo está, de antemão, sepultada.

Ora, se Sócrates fora, segundo a exposição interna dos diálogos platônicos, o antagonista ra-
dical dos sofistas, sabemos que ele negou-se no curso dessa mesma vida a enfrentar Parmênides.
Ainda em sua juventude, no diálogo Parmênides, viu sua teoria das formas ser refutada pelo ve-
lho eleata. Ao fim de seu diálogo com Sócrates, Parmênides diz: “esforça-te e exercite mais,
através dessa prática aparentemente inútil a que a maioria chama vã charlatanice, enquanto é
jovem. Caso contrário, a verdade lhe escapará” (135d2-6) 3 .

Após um longo silêncio e muitas idas e vindas, Parmênides permaneceu sem ser enfren-
tado. Tanto é assim que, na véspera do diálogo Sofista, declara o próprio Sócrates no Tee-
teto: “A Parmênides poderı́amos atribuir as palavras de Homero, pois me pareceu a mim ‘ve-
nerável e terrı́vel’. Eu conheci, efetivamente, a este homem quando era muito jovem e ele
muito velho, e me pareceu possuir uma profundidade absolutamente cheia de nobreza” (183e2-
2 (EMPÍRICO, 2013, p. 208)
3 (PLATON, 1981a, p. 56)
8

6)4 . Neste mesmo diálogo que trata da própria natureza do conhecimento(episteme), que no
Górgias Sócrates contrapôs a crença e a retórica, termina de forma aporética e indeterminada.
Em certa altura diz o próprio Sócrates a respeito de si mesmo: “Me irrita a torpeza de minha
própria charlatanice. Que outro nome daremos a uma pessoa que arrasta os argumento para
cima e para baixo e, devido a sua indolência, não é capaz de convencer-se nem desprender-se
de nenhum deles?” (195c1-2)5

Pois bem, será somente no diálogo Sofista6 que se dará o anunciado enfrentamento com
Parmênides. No entanto, não pelas palavras de Sócrates, mas de um Estrageiro natural de Eléia.
Sócrates, já acusado pela cidade justamente de sofista, assiste em silêncio quase absoluto ao
diálogo entre o Estrangeiro e Teeteto. Ambos os personagens saem a caça do sofista fazendo
uso do já aludido método da divisão, produzindo, assim, as várias definições do sofista. Pre-
tendemos mostrar que, paradoxalmente, nas sete divisões propostas, Sócrates se aproxima cada
vez mais do sofista, até que, na sétima divisão, Sócrates e a sofı́stica coincidem plenamente.

É assim que as cinco primeiras divisões exploram a possibilidade de alçar o sofista como
um tipo de arte apropriativa ou aquisitiva. Trata-se daquelas artes que se apropriam das coisas
existentes quer seja por palavras, quer seja por atos. Se na segunda divisão o sofista é consi-
derado como um vendedor de discursos sobre a virtude, que realiza sua atividade externa a sua
própria pólis, como fazia Górgias quando da sua visita a Atenas, na terceira divisão a definição
de sofista abarca, também, aqueles que comercializam seus discursos no interior da sua própria
pólis, como é o caso da atividade praticada por Sócrates. Mas é exatamente na a quinta e última
divisão concernente a arte apropriativa que o vı́nculo da sofı́stica com Sócrates se estreita de
modo inquestionável.

Agora, na quinta divisão, ao se dividir a arte apropriativa, não se segue o caminho da


apropriação por meio da troca ou pelo comércio, mas sim da apropriação por captura. Cap-
tura que se estabelece pela luta de lógos contra lógos. A divisão prossegue explicitando que
tal luta entre discursos opostos não é aquela de “ı́ndole judicial” desenvolvida em ambiente
público, mas “quando se leva a cabo em privado, por meio de perguntas e respostas”(225b), o
que o Estrangeiro denomina contestação. Até aqui não há nada que diferencie nosso Sócrates
do sofista, até que, na última divisão, o sofista é definido como uma “forma de ganhar dinheiro
com as discussões privadas”(225d-e).

Há algo aqui, porém, a ser notado. Em todas as sete divisões que constam no Diálogo, após
o corte definitivo que define o sofista, a via alternativa é mencionada para, logo em seguida, ser
4 (PLATON, 1981b, p. 259)
5 (PLATON, 1981b, p. 284)
6 Todas citações do diálogo Sofista pertencem a seguinte tradução de Nestor Cordero :(PLATON, 1996).
9

abandonada. Neste caso, curiosamente, o Estrangeiro analisa a alternativa ao sofista no corte


último da divisão. Agora, a contestação não visa ganhar dinheiro, mas gastá-lo: “Me parece
que quando se leva a cabo por prazer de divertir-se, descuidando assim os assuntos privados, e
quando o discurso é recebido sem prazer algum pela maioria dos que escutam, o único nome
que lhe corresponde, em minha opinião, é a charlatanice”(225d).

Ora, não foi a figura do charlatão aquela a que Sócrates a si mesmo associou no diálogo
Teeteto, ocorrido no dia anterior? Mais ainda. No diálogo Górgias, e em cenas análogas em
muitos outros diálogos, Sócrates praticamente obrigara o célebre retórico a debater com ele e,
ao final, travara com Cálicles um embate nada amigável.

Nestor Cordeiro, ao comentar esta passagem, diz que “seria exagerado crer que também
aqui Platão se refere ao seu mestre”7 , já que no Teeteto, quando atribui a si o termo charlata-
nice ou tagarelice, tratava-se unicamente de uma “ironia autocrı́tica por ter admitido afirmações
contraditórias”. No entanto, este mesmo autor admite que as outras sugetões verificadas na bi-
bliografia são inadequadas. Por exemplo, Proclus e Diès assimilam a charlatanice aos dialéticos,
o que seria estranho, já que, no presente diálogo, os dialéticos são assimilados à filosofia. Já
Cornford acredita ser os megáricos, mas ainda segundo a avaliação do próprio Cordero, toda
sua argumentação demonstra que os megáricos são discutidores ou erı́sticos, mas não charlatães.
Parece prevalecer, assim, a posição de Lewis Campbell segundo o qual “é possı́vel que a obra
de Sócrates seja ironicamente descrita como charlatanice”8 .

De qualquer forma, seja, aqui, a atividade socrática caracterizada ou não como charlata-
nice, ela ainda se afasta da atividade sofı́stica propriamente dita pelo fato desta última ter em
vista ganhar dinheiro, diferença esta também presente nas divisões que antecederam. Na sexta
divisão contudo, o Estrangeiro e Teeteto caminham em outra direção. Agora, a divisão não se
origina mais das artes apropriativas, mas das das artes que visam a separação. Seguem o cami-
nho da separação que é purificação, isto é, destacar o melhor do pior. Purificação da alma por
meio da educação, mais precisamente, educação pela refutação. O Estrangeiro assim detalha tal
atividade refutativa: “Interrogam primeiro sobre aquilo que alguém crê dizer, quando em reali-
dade não diz nada. [...] depois de sistematizar os argumentos, os confrontam uns com os outros
e mostram que, a repeito das mesmas coisas, sustentam afirmações contrárias”(230b)9 . Não
temos na passagem aqui descrita a súmula mesmo do método socrático? Na sequência, a re-
ferência torna-se ainda mais contundente. Explica o Estrangeiro que a alma “não aproveitará os
conhecimentos recebidos até que o refutador consiga que o refutado se envergonhe, eliminando
7 (PLATON, 1996, p. 230)
8 (CAMPBELL, 1867, p. 40)
9 (PLATON, 1996, p. 240)
10

assim as opiniões que impedem os conhecimentos, e mostre que ela está purificada”(230b).
A respeito desta passagem Nestor Cordero admite que “a analogia com o método atribuı́do a
Sócrates é mais que evidente”. Complementa ainda que “entre as numerosas aluções a atividade
socrática que apresenta esta sexta definição a mais direta é a de produzir certa purificação” 10
11 .

Aqui, na sexta divisão, a maior parte dos intérpretes são unanimes em admitir, ao menos,
certas alusões a atividade Socrática. A maior parte deles, contudo, procura salvar Sócrates de
um juı́zo tão servero e, sobretudo, contraditório com a longa tradição que assimila acrı́ticamente
o personagem Sócrates como portador soberano do lógos platônico. Assim, Kerferd atribui tal
definição diretamente a Protágoras e sua técnica de contradizer12 . Uma argumentação mais
sofisticada, contudo, deve-se a Bluck. Para esse autor, sendo o sofista um imitador do filósofo
(268c), a “melhor maneira de descrever um método falso consiste em indicar o método genuı́no
que imita”13 . Seria apenas em aparência, portanto, que o caminho descrito coincidiria com
aquele de Sócrates. No mesmo trilho, Marcelo Marques comenta que “ao caçar o lobo, pegamos
o cão, ao caçar esta ‘aparição’ do filósofo que é o sofista, chegamos ao próprio filósofo. Não há
outro modo de se chegar ao filósofo que não seja o de caçar sua diferença própria, de caçar seu
outro determinado”14 .

De fato, a definição do sofista como refutador irônico está entremeada pela analogia en-
tre o lobo e o cão. Dirá o Estrangeiro que “como o lobo ao cão, como o animal mais sel-
vagem ao mais dócil. Mas o homem sensato deve sempre ficar em guarda, acima de tudo,
diante das semelhanças, pois esse é um gênero muito escorregadio. Mas, admitamos que sejam
semelhantes”(231a6-9)15 . Ora, mas quais são os gêneros que o Estrangeiro analoga ao lobo e ao
cão? Não se trata da filosofia e da sofı́stica, como sugerem Marques e Bluck, mas do refutador
e do sofista, como analisa corretamente Hector Benoit16 . Após descrever a atividade refuta-
tiva em termos próximos a prática socrática como indicamos acima e chamá-los de sofistas,
o Estrangeiro se pergunta se estes últimos “mereceriam honra tão grande”(231a4). Os termos
analogados, portanto, são: de um lado, o refutador e o sofista e, de outro, o lobo e o cão. Logo
adiante o refutador é definido como “a sofı́stica nobre em estirpe”(231b7-8).
10 Comentáriosde Nestor Cordero em: (PLATON, 1996, p. 241-2)
11 Nessamesma direção, comenta Jaa Torrano: “a sexta definição de sofista – que em resumo o descreve como
‘quem purifica as almas de opiniões que são um obstáculo às ciências’(Sofista, 231 e 5-6) – parece não se aplicar
a ninguém mais senão a Sócrates.”(TORRANO, 2006, p. 85)
12 (KERFERD, 1954, p. 89)
13 (BLUCK, 1975, p. 45)
14 (MARQUES, 2006, p. 111)
15 (PLATON, 1996, p. 242-3)
16 (BENOIT, 2017, p. 279-80)
11

Nos termos explicitados pelo Estrangeiro, portanto, a refutação não é caracterizada como
a atividade do filósofo que o sofista imita, mas a mais nobre prática sofistica dentre outras
possı́veis. Seja como for, se na sexta divisão, Sócrates se entrelaça de forma mais estreita com a
sofı́stica, aparecendo como uma de suas aparições ou imagens, será somente na sétima divisão
que este entrelaçamento chega ao nı́vel da plena identificação.

Agora o Estrangeiro procede a divisão da arte produtiva, aquelas que não apenas separam ou
se apropriam do que já existia, mas as que levam ao ser o que antes não existia. Esta definição,
além de ser a última, encerra dois terços do diálogo e é quando a tese de Parmênides será
examinada e definitivamente enfretada, não pelo próprio Sócrates, que permanece em silêncio,
mas pelo filho de Eleia ali presente.

As artes produtivas que caracterizam a sofı́stica, dando marcha a novo processo divisório,
são aquelas humanas produtoras de imagens, imagens que não são cópias, mas simulacros cons-
truı́dos por imitação. Mais precisamente, o sofista “se revela como alguém que possui uma
ciência aparente (doxastiké) sobre todas as coisas, mas não a verdade”(233c10-11), pois pro-
duzem “imagens sonoras de todas as coisas, de modo a lhes fazer acreditar que o que dizem
é real e que quem o diz é o mais sábio de todos em tudo”(234c4-7). Mas o que seria esta
ciência aparente? Esta arte do parecer, esta doxastiké epistéme? Ambos reconhecem se tratar
da mimética, da imitação que, por seu turno, se divide na arte figurativa (tékhne eikastiké), em
que as imagens produzidas tem a pretensão de ser tão reais quanto os objetos a que se referem;
e na arte de produzir simulacros (phantastiké) que, por sua vez, não reproduz a coisa em suas
reais proporções, mas algo que parece e se assemelha, sem representar precisamente o que a
coisa é.

É na esteira dessa última afirmação que decorre a maior parte do diálogo, a busca de se
atribuir ser ao não-ser, sem o qual os simulacros, esse parecer ser ou, ainda, o falso não seriam
algo real. Para fundamentar ontologicamente a imagem e a falsidade como algo efetivamente
existente, é necessário demonstrar a possibilidade do não-ser. Eis que após longa demonstração,
seguindo a via que Sócrates evitou no curso de toda sua vida, desde o encontro juvenil com o
sábio eleata, a demonstração é levada a bom termo. Não é nosso intuito, de modo algum,
analisá-la aqui.

Mas eis que ao fim da demonstração, quando ao se atribuir ser ao não-ser, funda-se a possi-
bilidade da sofı́stica como produtoras de imagens e o processo de divisão prossegue. De inı́cio
ele é recapitulado: “A imitação, com efeito, é um certo tipo de produção, se bem decidimos
que produz imagens e não realidades individuais”(265b1-2). O processo divisório é repetido
até que se chega ao ponto de que se tinha partido: “o de produção de cópias e o de produção de
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simulacros”(266d8-9). Agora é possı́vel avançar na caça ao sofista por este último caminho, já
que se demonstrou que “o falso é falso efetivamente”(266d9-e1).

Este simulacro se divide naqueles que se fazem com auxı́lio de instrumentos ou por meio do
próprio produtor, quando temos uma espécie de técnica imitativa ou mı́mesis. Ambos concor-
dam que o sofista repousa nesta última divisão. Prossegue o Estrangeiro: “Entre os que imitam,
alguns conhecem o que imitam e outros não”(267b7-8). É aı́ que o Estrangeiro situa o sofista
naqueles que não conhecem o que imitam e exemplifica de modo que nos remete diretamente
a figura de Sócrates: “que dizer do aspecto da justiça e, em geral, de toda perfeição? Não
ocorre que, sem a conhecer-las, e possuindo dela apenas uma certa opinião, há muitos que ten-
tam produzir essas semelhanças neles mesmos, esforçando-se em mostrar que estão presentes
em seu interior, imitadas especialmente por atos e por palavras?”(267c2-6). Mas aqui a figura
de Sócrates certamene confunde-se com muitos outros denominados sofistas, que procedem da
mesma maneira.

O Estrangeiro, então, divide estes imitadores que não conhecem o que imitam no “simples
imitador” e no “imitador irônico”(268a6-7). No primeiro caso, trata-se do imitador “ingênuo,
que acredita saber as coisas que opina”(267e10-268a1). Aı́ certamente se insere boa parte da-
queles sofistas que acreditavam saber sobre o que falavam. Nos diversos diálogos que antecede-
ram o encontro com o Estrageiro, personagens como Protágoras, Górgias, Cálicles, Trası́maco,
Hı́pias sempre apresentaram algo que julgavam conhecer, nem que fosse uma verdade que ne-
gasse a possibilidade mesma do conhecimento. Mas não é na figura do imitador ingênuo que o
Estrangeiro encontra o sofista, mas ao contrário, no imitador irônico. Diz ele: “a figura do ou-
tro, por ter grande rodagem entre os argumentos, tem muita desconfiança e temor, pois ignora
isto que lhe confere ante os demais a aparência de sábio”(268a1-4). Como se vê, o sofista é
mais propriamente aquele que, além de nada saber, sabe que não sabe; tendo sua atividade, por
isso mesmo, adjetivada como irônica.

As divisões propostas pelo Estrangeiro não param por aqui. Este imitador irônico que
sabe não saber a respeito do que imita, divide-se, ainda, em dois outros gêneros: o primeiro
é aquele “capaz de ironizar em público com discursos longos dirigidos a multidão” (268b1-
3). Ora, aqui se encontra boa parte daqueles que Sócrates, em toda sua vida, defrontou-se
como sendo sofistas. Mas não é nesse gênero que nosso sofista é encontrado. O Estrangeiro
questiona: “Como poderı́amos caracterizar o que faz longos discursos? Como polı́tico ou orador
popular?”(268b7-8). Ao que Teeteto responde: “Orador popular”(268b9).

Resta analisar o outro gênero de imitador irônico. Sobre este, explica o Estrangeiro: “o
outro [gênero], ao contrário, vale-se de discursos breves em privado e obrigando o interlocutor
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a contradizer a si mesmo”(268b3-5). E pergunta logo em seguida: “Como chamaremos o outro:


sábio ou sofista?”(268b10).

O próprio Teeteto conclui: “Sábio é impossı́vel, pois sustentamos que não sabe nada. Como
é um imitador do sábio, é evidente que tomará um nome semelhante a este, e compreendemos
que é necessário afirmar que ele é, em verdade, absoluta e realmente, um sofista”(268c1-4). Eis
que o Estrangeiro recapitula toda a definição e afirma ser o percurso trilhado o que podemos
afirmar ser “a verdade máxima, isto é, a raça e o sangue do sofista”(268c1c8-d4).

Cabe perguntar, que outro personagem dos Diálogos de Platão, senão Sócrates, poderia
ser caracterizado como sendo um produtor de imagens, um imitador irônico que não conhece
o que imita, mas que sabe não conhecer e, assim sendo, utiliza discursos breves procurando
contradizer o interlocutor? Sócrates que, não por caso, já acusado pela cidade de sofista, per-
manecera em profundo silêncio no curso de todo o diálogo? Justamente aquele que no Diálogo
Górgias, mas também em outros Diálogos como o Primeiro Alcibı́ades, insistira na necessidade
de respostas breves, algo, até onde os textos legados nos permitem inferir, de todo ausente em
qualquer outro autor tido como sofista.

Esses resultados mostram, por um lado, como a relação entre a sofı́stica e filosofia, ao me-
nos aos olhos de Platão, é de natureza muito mais complexa do que normalmente se reconhece.
Se no curso dos diálogos vemos a tentativa quase onipresente de se separar Sócrates dos sofistas
e, nesse sentido, demonstrar o quão injusta foi sua acusação e morte; ao fim e ao cabo Platão
concluı́ ser Sócrates o ser mesmo do sofista, cujas sutilezas de seus escorregadios discursos
mostraram-se os mais difı́ceis de apanhar. Se tomarmos a sério as implicações de tais resulta-
dos, poderı́amos nos perguntar se, à luz da argumentação do Estrangeiro de Eleia no diálogo
Sofista, não seria sofı́stica boa parte daquilo que denominamos filosofia ocidental.

Seja como for, a perplexidade de tais resultados à luz de tão longa tradição de interpretação
da obra de Platão, interpretações que não separam o personagem Sócrates do autor, sempre
ausente, dos diálogos: Platão; que a este último trecho do Diálogo(268c1-4), em que a sétima
e definitiva divisão no processo de caça ao sofista se encerra, a maior parte dos comentadores
dedicam o mais absoluto silêncio. Citemos alguns exemplos.

Em primeiro lugar as clássicas traduções comentadas do diálogo Sofista de Francis Corn-


ford, A teoria platônica do conhecimento17 , e a edição mais recente de Nestor Cordero18 , cuja
tradução tomamos como base. Ambas edições, apesar de estarem povoadas de comentários,
cometários presentes a cada página cuja extenção provavelmente excede a do próprio diálogo
17 (CORNFORD, 1968, p. 297-9)
18 (PLATON, 1996, p. 355-6)
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em questão, não reservam uma única linha sequer para analisar justamente as páginas finais em
que se dá o desfecho da caça ao sofista. No máximo, um ou outro apontamento de natureza
meramente filológica.

Em artigo que procura analisar exatamente as possı́veis figuras históricas por trás de cada
divisão presente no Sofista, Oscanyan19 analisa unicamente o trecho relativo as seis primeiras
divisões, propondo a seguinte lista: 1a def.: Gorgias; 2a def.: Protágoras; 3a e 4a def.: Hı́pias
e Pródico; 5a def.: Eutidemo: 6a def.: Trası́maco (ou, talvez, Sócrates). Oscanyan sequer
menciona a sétima divisão e não oferece nenhuma justificativa para tal.

Deleuze encontra-se entre os poucos20 que destacaram este aspecto. Dirá ele que “A
definição final do sofista nos leva a um ponto em que não mais podemos distingui-lo do próprio
Sócrates: o ironista operando, em conversas privadas, por meio de argumentos breves”21 . Mas
o faz apenas para caracterizar o resultado final do diálogo Sofista como a mais “extraordinária
aventura do platonismo”, ainda sem diferenciar Sócrates, o personagem, de Platão, o autor.

Talvez, este longo silêncio dos comentadores sobre a referência altamente provável ao per-
sonagem Sócrates nessas linhas finais do Sofista, guardem certas semelhanças com o silêncio
mesmo de Sócrates no curso do presente diálogo.

19 (OSCANYAN, 1972)
20 Daqueles que examinaram esta passagem, e se perguntaram a quem se refere o Estrangeiro, a conclusão
possı́vel é sempre Sócrates, seja qual for a explicação global desses resultados desconsertantes à luz da longa
tradição interpretativa dos diálogos. A respeito dos últimos passos dessa definição, assim escreve Jaa Torrano
“Podemos dizer que esses últimos traços diferenciais do sofista – a saber, a ironia instaurada pela consciência
de não saber o que parece saber e a respeito de que em particular e com falas curtas obriga o seu interlocutor a
contradizer-se – esses traços são os mais distintivos desta mais sedutora e enigmática personagem filosófica criada
por Platão: – Sócrates”(TORRANO, 2006, p. 93).
21 (DELEUZE, 1974, p. 262)
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