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Trabalho reprodutivo e capital: a interpretação de Silvia Federici

Evolução ou ruptura com o marxismo?

Nesse artigo fazemos uma resenha crítica dos livros de Silvia Federici: El patriarcado del
salario Críticas feministas al marxismo e, também, Calibán y la bruja. Mujeres, cuerpo y
acumulación originaria. O objetivo, no entanto, não é abordar todos aspectos contidos em
tais obras, mas a sua relação com o pensamento de Marx. Importante destacar que não
gastaremos nosso tempo para mostrar que a elaboração de Silvia Federici não condiz com
aquelas apresentada por Marx em O Capital. Afinal, a autora está plenamente consciente
disso. A sua leitura procura reformular conscientemente vários aspectos centrais da obra
principal de Marx, porque estariam incorretas. Esses aspectos teriam como núcleo central
o que a autora denomina trabalho reprodutivo. No entanto, Federici não pretende jogar
toda obra de Marx pela janela, ao contrário, parte do pressuposto de que, ao menos em
alguns de seus contornos fundamentais, O Capital constitui um ponto de partida válido,
mas que deve ser rearranjado naquilo que ela considera seu principal erro: o papel do
trabalho doméstico no interior da sociedade capitalista, enquanto produto genuíno dessa
forma social e fomentada por ela.
O que procuraremos mostrar, assim, é que, tendo em vista os objetivos de Marx em
O Capital, todas as reformulações e inserções propostas por Federici estão incorretas.
Ainda que o problema por ela tratado nos pareça absolutamente justo e relevante, ela não
compreendeu o modo como ele se articula com o modo de produção capitalista.
Cabe, portanto, alguns comentários prévios sobre O Capital de Marx, para
avaliarmos em que medida são válidos os elementos colocados pela crítica da autora
italiana.

O que Marx procura realizar em O Capital

Uma das críticas comumente direcionadas a O Capital de Marx não foi aquilo que
ele examinou e efetivamente analisou em sua obra, mas o que deixou de analisar. Já que
está em análise o modo de produção capitalista, tudo aquilo que envolve este modo de
produção deveria estar ali contido. Fosse esse o caso, a empreitada de Marx seria,
evidentemente, impossível.
Em O Capital Marx não está preocupado em analisar nenhuma realidade particular
ou nacional. Não lhe preocupa a Inglaterra ou França do século XIX, nem qualquer outro
caso. Sua análise possui abrangência maior: são os aspectos necessários do modo de
produção capitalista, presentes em todo lugar e tempo em que domina este modo de
produção. Esses aspectos são duplamente importantes para um autor que tem por
finalidade de sua obra, e vida, a destruição desse modo de produção.
Em primeiro lugar, porque tais aspectos, ao figurarem em toda e qualquer forma
capitalista de sociedade, devem ser levados em conta em toda e qualquer análise
particular. Em segundo lugar, mostram que laços devem ser necessariamente dissolvidos
se quisermos destruir essa forma de sociedade. É porque o capitalismo se desenvolve sob a
base dessas relações universais e necessárias que torna não apenas possível, como
necessário, uma organização socialista mundial, com objetivo de destruir esta forma de
organização também mundial, levando em conta todas particularidades quando aplicado a
um contexto particular, mas sem jamais perder de vista a base universal sob a qual se
desenvolve cada particularidade.
Vejamos apenas algumas dessas categorias universais e necessárias que Marx
desenvolve no Livro I de O Capital:

Mercadoria → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Valor → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Trabalho abstrato → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Dinheiro → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Capital → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Classe
trabalhadora e Classe Capitalista → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Processo de valorização do valor → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Mais-valia
absoluta → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Cooperação Industrial → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Mais-valia relativa → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Forma salário → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe
Acumulação de Capital → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Exército Industrial de Reserva e assim por diante.

Será que a estas categorias deveria se agregar aquela do trabalho reprodutivo? É o


que sustenta Silvia Federici. Vejamos em que consiste seu argumento.

O Capital em fragalhos
A tese de Silvia Federici é a seguinte: Marx abordou apenas a separação do
campesinato da terra, dos meios de produção, tornando-os aptos a venderem sua força de
trabalho como mercadoria, no entanto, não teria visto outra faceta da questão: o trabalho
reprodutivo1. Este último diz respeito ao trabalho de produção e reprodução da força de
trabalho, desenvolvido no âmbito doméstico, pelo trabalho não assalariado
majoritariamente feminino. Isto é, o trabalho que possibilita a classe trabalhadora se
reproduzir, no sentido de voltar a trabalhar depois de serem consumidos em fábricas ou
escritórios. Não seria algo pré-capitalista, mas um desenvolvimento específico da
sociedade capitalista, ainda não totalmente desenvolvido nos tempos de Marx, quando o
trabalho doméstico e a família nuclear estavam incipientemente desenvolvidas. Seria justa
esta crítica de Federici? Para termos maior clareza a este respeito, iremos fazer algumas
considerações sobre o modo como ela interpreta e analisa a obra principal de Marx.
É importante ter claro que Marx não sai por aí criando conceitos de nenhum tipo.
Quando analisa e expõem a mais-valia ou o a acumulação de capital, Marx em absoluto não
criou um conceito. O que ele faz é traduzir conceitualmente certos tipos de relações reais e
necessárias que se dão no interior do modo de produção capitalista. Por isso, os conceitos
não são uma escolha de nossa cabeça, mas definidos no interior deste modo de produção.
Mas em todo seu livro a autora italiana considera a obra de Marx em pedaços, sem
conectar cada uma de suas partes e definindo cada aspecto de forma superficial, de modo a
justificar o que irá propor na sequência. Tomemos um exemplo modelar, nesse sentido.
Em seu livro El patriarcado del salario Críticas feministas al marxismo, Federici diz:

Se o trabalho reprodutivo só pode ser mecanizado em parte, o programa de Marx pelo qual a
expansão da riqueza material depende da automação e a conseqüente redução do trabalho necessário
são interrompidos, porque o trabalho doméstico e, principalmente, o cuidado de filhos, constitui a
maior parte do trabalho neste planeta. O mesmo conceito de trabalho socialmente necessário perde
muito de sua força de convicção. Como definir o trabalho socialmente necessário quando o maior e
mais indispensável setor trabalhista do mundo não é sequer reconhecido como parte essencial do
conceito? E que critérios e princípios governariam a organização do trabalho assistencial, sexual e
procriativo, quando essas atividades não são consideradas parte do trabalho socialmente necessário?
(pag. 91)

Como se vê, para Federici, o conceito de trabalho socialmente necessário perde


muito de sua eficácia quando consideramos o trabalho reprodutivo, já que não levaria em
conta o maior setor trabalhista do mundo. Este setor seria pouco afetado pela automação,
além de ser gratuito e, portanto, não valorado pelo tempo de trabalho socialmente
necessário. Assim, esse conceito deveria ser reformulado ou, talvez, até deixado de lado.
Mas vejamos. Do que exatamente está a falar Silvia Federici? O que é o tempo de
trabalho socialmente necessário? Ora, é a medida do valor das mercadorias que se
encontram e se equiparam umas com as outras no mercado. Sua medida surge do fato de
que ao se compararem todas umas com as outras, se reduzem a única substância social
comum que há entre elas: o trabalho genérico e abstrato, medido por unidades de tempo.
Seguindo o próprio argumento de Federici, o trabalho reprodutivo seria o “produtor” da
mercadoria força de trabalho. Ocorre que na análise feita por Marx, ainda que Federici
1 A primeira elaboração desse conceito, na verdade, pertence ao trabalho conjunto de Mariarosa della Costa e Selma
James: “Women and the Subversion of the Community” (As Mulheres e a Subversão da Comunidade):
https://libcom.org/files/Dalla%20Costa%20and%20James%20-%20Women%20and%20the%20Subversion%20of
%20the%20Community.pdf
tenha razão e a força de trabalho fosse mesmo produzida pela atividade por ela
donominada trabalho reprodutivo, isto não alteraria em absolutamente nada a medida do
valor das mercadorias, pelo simples fato de que tal medida não é determinada pelo valor
da força de trabalho.
Quando Marx examina a medida do valor das mercadorias no Capítulo I de O
Capital, a mercadoria força de trabalho ainda não surgiu, ela irá aparecer apenas no
capítulo 4. E isto tem sua razão de ser. Conforme a exposição de Marx, o valor da força de
trabalho não interfere em absolutamente nada na medida do valor das mercadorias,
porque esta medida as mercadorias possuem em si mesmas, objetivamente, conforme o
tempo socialmente necessário de trabalho para produzi-la. Atentemos ao fato de que a
força de trabalho não constitui a imensidão de mercadorias que o capitalista acumula
como capital. A força de trabalho é propriedade do trabalhador, é uma capacidade interna
sua e materialmente inseparável dele mesmo. O capitalista não compra a propriedade da
força de trabalho do trabalhador, mas o seu direito de uso por determinado tempo. O valor
da força de trabalho não altera, portanto, em absolutamente nada o elemento de medida
dos valores das mercadorias, o tempo de trabalho socialmente necessário, cujo processo
ocorre independentemente do valor da força de trabalho2.
Fica claro, portanto, que ainda que assumamos que todas considerações de Federici
sobre o trabalho reprodutivo sejam corretas, que o conceito está injustamente ausente de
O Capital, seguindo a exposição de Marx ele não alteraria em nada a determinação da
medida do valor das mercadorias. Mas Federici acompanha e comenta este procedimento
expositivo de Marx? Não. Ela mostra os equívocos na demonstração da medida do valor
das mercadorias? Absolutamente não. Ela unicamente faz alusão de que nessa medida
empregou-se a palavra “trabalho”: “tempo de trabalho socialmente necessário” e como
Marx deixou de fora um desses tipos fundamentais de “trabalho”, o trabalho reprodutivo,
segue-se que a determinação da medida de valor está incorreta. Ora, mas Federici mostra
como este trabalho reprodutivo determina o valor das mercadorias? Nem uma só linha a
este respeito.
Acontece que quem define o que é o trabalho no modo de produção capitalista não é
a cabeça de Marx ou de qualquer outra pessoa, mas o próprio modo de produção
capitalista. Não é nossa escolha. Ali, o trabalho, aquele que valoriza o valor do capitalista
individual, é o consumo da força de trabalho no processo de produção de mercadorias. Não
é o dispêndio genérico de energia, não é a realização de uma atividade, nem tampouco o
quão importante tal atividade é para o próprio capital. Mas Federici responde a esta
questão de um modo um tanto quanto estranho. Diz ela:

Cabe ressaltar que, ao afirmar que o trabalho que realizamos em casa é a produção capitalista não
estamos expressando o desejo de que este seja legitimado como parte das "forças produtivas". Em
outras palavras, não é um recurso ao moralismo. Somente do ponto de vista capitalista, ser
produtivo é uma virtude moral, mesmo um imperativo moral. Do ponto de vista da classe
trabalhadora, ser produtivo significa simplesmente ser explorado. (pag. 32-33)

Confessamos que incrédulos lemos a presente passagem várias vezes. O


subjetivismo que a domina, e em outras tantas passagens, é assombroso. Ela diz não “ter o
desejo” de legitimar o trabalho reprodutivo como parte das forças produtivas. Ora, mas
não são os desejos de Silvia Federici que nos interessa. Queremos saber, como e de que
forma o trabalho reprodutivo se apresenta objetivamente como trabalho para o capital e o
valoriza. Mas ela denomina este procedimento de “moralismo”. Como assim? Significa que
a acumulação de capital não existe? Que é um mero produto moral do capitalismo? Na
frase seguinte, fica um pouco mais claro, na medida do possível, o que passa pela cabeça de
nossa autora. Ser parte das forças produtivas é uma análise “do ponto de vista capitalista”.
2 Cabe ressaltar que um manuscrito de Marx publicado posteriormente com o título de “Salário, preço e lucro” é um
discurso pronunciado na AIT justamente para refutar a ideia de que a magnitude dos salários interfere no valor das
mercadorias.
Ela está interessada no “ponto de vista da classe trabalhadora”. Este procedimento pode
até parecer ser muito revolucionário, mas é bem o contrário. Vejamos.
Certamente é possível enxergar a forma social em que vivemos do “ponto de vista da
classe capitalista” e também “do ponto de vista da classe trabalhadora”. Mas não se trata,
de forma alguma, de uma análise subjetiva do processo visto sob dois pontos de vista
diferentes. Para Marx “o ponto de vista da classe trabalhadora” é aquele que permite ver a
sociedade capitalista em seu conjunto, sem tapar uma única parte, pois a classe
trabalhadora não tem nada a esconder. O “ponto de vista do capitalista”, no entanto, vê o
processo unicamente do ponto de vista da circulação de mercadorias, esfera superficial da
valorização do capital, esfera em que ele atua como agente direto na infinita busca de
valorização de seu capital. Mas para Federici a situação é bem diversa. “O ponto de vista do
capitalista” é um pedaço do processo. O “ponto de vista da classe trabalhadora” é outro
pedaço. A ciência que ela propõem fazer é aquela que pega o pedaço que lhe interessa e
apetece tendo em vistas seus objetivos.
Da perspectiva de Federici, “ser produtivo significa simplesmente ser explorado”, já
que ser parte das “forças produtivas” é o pedaço que corresponde ao ponto de vista do
capitalista. Com este procedimento estranhíssimo, a autora joga no lixo em uma tacada só
toda análise de Marx do funcionamento interno da sociedade capitalista e retêm algo de
absolutamente genérico: ser explorado, algo que não é suficiente sequer para distinguir o
trabalhador assalariado de um escravo ou servo. Daí ela pode partir para sua análise
específica do trabalho reprodutivo, desconectado de qualquer aspecto determinado da
forma de sociedade que se propõem analisar.

Enfim, o trabalho reprodutivo


De nossa parte, e seguindo a perspectiva de Marx, que toma o conjunto da sociedade
e não um pedaço como sendo “o ponto de vista da classe trabalhadora”, a noção de
trabalho reprodutivo está equivocada por dois motivos principais: 1) não é trabalho. 2) não
é reprodutivo. Antes, devemos alertar que o que se quer fazer aqui não é minimizar a
relevância do trabalho doméstico, mas entender que papel ele cumpre na sociedade
capitalista. Dizer que algo é ou não trabalho não é elogiá-lo, não é elevá-lo ao patamar de
atividade suprema e sagrada; mas entender o papel de tal atividade no interior da
sociedade em questão.
Vejamos, em primeiro lugar, o fato do trabalho trabalho reprodutivo não ser
trabalho na função específica que cumpre no interior da forma de sociedade capitalista.
Nessa forma de sociedade, o trabalho é o consumo da força de trabalho que pode ser
vendida abertamente no mercado enquanto tal. Sem o consumo da força de trabalho não
há valor, não há mais-valia, não há acumulação de capital e todo o resto. Não é o caso de
fazer um juízo moral de se isto é bom ou ruim, de quais atividades são de maior ou menor
importância, mas de entender como a sociedade funciona. Como vimos, o que Federici
denomina trabalho reprodutivo não é vendido no mercado, mas exercido de forma
opressiva no âmbito doméstico. Para fazer isto, somente des-historicizando o conceito de
trabalho e não o considerando em sua forma capitalista, mas genericamente como
dispêndio de esforços e energia em uma atividade qualquer. Não existe, do ponto de vista
do capital, trabalho doméstico, exceto quando se vende sua força de trabalho como
trabalhador(a) doméstico.
Mas não é somente isto. O trabalho reprodutivo de Federici também não é
reprodutivo. É impressionante que Silvia Federici discorra páginas e mais páginas sobre o
fato do trabalho doméstico não ser assalariado. E diz constantemente da ditadura do
salariato. Mas ela esquece de comentar que o salário é exatamente a fatia de capital que
garante a subsistência da classe trabalhadora. Mais ainda. Diferentemente do trabalho
doméstico, esta é a condição necessária que possibilita ao trabalhador sobreviver.
Qualquer família de trabalhadores deixa de existir sem o salário. No capitalismo, esta é a
condição necessária de sua subsistência e, não sem razão, “do ponto de vista do
trabalhador”, é o elemento fundamental a ser revolucionado, sem o qual não há
transformação socialista concebível. Por outro lado, o trabalho doméstico não é condição
necessária para reprodução da força de trabalho dos trabalhadores, mas uma condição
contingente e, por esse motivo, não teria porque aparecer como uma categoria específica
em O Capital de Marx.
Onde entra então o trabalho doméstico? Na medida que é uma atividade não paga
realizada no âmbito doméstico, ela reduz o valor da força de trabalho. Não é responsável
pela sua reprodução (por isso não é reprodutivo), mas interfere no seu valor, não no valor
das mercadorias, mas no valor da própria força de trabalho. O valor da força de trabalho,
por sua vez, interfere na fatia da riqueza a ser distribuída entre trabalhadores e patrões.
Quanto maior o valor da força de trabalho, menor a mais-valia (ou lucro) e vice-versa.
Mas aqui o leitor poderia indagar. Ora, se o trabalho doméstico reduz o valor da
força de trabalho, por ser uma atividade gratuita realizada pelas mulheres no âmbito
doméstico, não se segue que ele é algo importante ao interfir na fatia de valor que o
capitalista acumula na forma de capital?
A resposta é afirmativa. Certamente o trabalho doméstico interfere na magnitude da
mais-valia, sendo, portanto, algo de grande relevância.. Acontece que em O Capital Marx
não está estudando tudo aquilo que é importante. Fosse esse o caso a tarefa dessa obra
seria impossível e cada capítulo abriria outras 1000 páginas sobre aspectos relevantes e
que interferem na acumulação de capital. A questão é: o trabalho doméstico é uma
condição necessária para a acumulação de capital? Evidentemente não.
O trabalhador vende sua força de trabalho, mas é a efetivação desta força que cria
valor. O capitalista, enquanto comprador desta mercadoria específica, pode, a princípio,
consumi-la ao seu bel-prazer e estender seu consumo para além dos limites necessários ao
pagamento da mercadoria que comprou. Isto é, pode estender o uso da força de trabalho
para além do necessário ao pagamento do salário e extrair daí um excedente, a mais-valia.
Assim, seja qual for o valor da força de trabalho, mais baixo ou mais elevado em função,
por exemplo, do trabalho doméstico, o capitalista pode estender a jornada de trabalho para
além do necessário ao pagamento dessa força de trabalho e, assim, obter uma mais-valia e
dar marcha ao processo de acumulação de capital. Não há nenhum motivo para inserir a
categoria de trabalho doméstico em O Capital, já que ele não é condição necessária para o
processo de reprodução de capital. Afinal, a acumulação de capital pode ocorrer sem ele. E,
de fato, Silvia Federici argumenta a respeito da relevância do trabalho doméstico na
sociedade capitalista, sua extensão e abrangência, seu papel especificamente capitalista e
seu desenvolvimento histórico. No entanto, em nenhum lugar ela demonstra ser um
elemento necessário para a reprodução de capital, nem demonstra seu vínculo direto com
o processo de reprodução de capital.
O mesmo problema que analisamos acima, propaga, em seguida, em diferentes
níveis nas elaborações de Federici. Por exemplo, sua crítica de que Marx não tratou do
problema do trabalho doméstico no capítulo da Acumulação Originária. Ora, o que Marx
busca nesse célebre capítulo não são todos os processos historicamente específicos que
fizeram parte da formação do modo de produção capitalista. Marx não pretende fazer a
história do surgimento do capitalismo nesse célebre capítulo. Ele procura os seus
pressupostos necessários, conforme a investigação anterior já indicara quais seriam estes:
a liberação dos trabalhadores de todos os meios de produção, de um lado, e sua
acumulação no polo oposto. Este processo que pressupõe a expropriação violenta da massa
de trabalhadores de todos os meios de produção. A este processos analisados por Marx
certamente poderíamos elencar outros que também ocorreram duramente o período
formativo do capitalismo. Esses processos poderiam povoar dezenas e dezenas de novos
livros. Mas Marx não está preocupando com isso nesse momento de sua elaboração.
Procura os pressupostos necessários e não aqueles historicamente contingentes. Por isso
mesmo, a crítica de Silvia Federici de que Marx não analisou o papel do trabalho doméstico
no surgimento do capitalismo não procede, já que ela não demonstra que seria preciso
inseri-lo enquanto um momento necessário para a formação do capital.

A relevância do debate
Por que tal debate é importante? Seria uma mera querela conceitual sem qualquer
relevância? Não é, definitivamente, o caso. Não é por mero preciosismo teórico que Marx
procura em O Capital aquelas relações necessárias no processo de reprodução do modo de
produção capitalista. Tais relações necessárias são aquelas que devem ser reconfiguradas
se quisermos caminhar apara além do modo de produção capitalista, com as mazelas e
opressões que lhe são próprias. Ao deixar de fora a categoria de trabalho reprodutivo de O
Capital a conclusão a que chegamos não é que o problema seja menor. A questão é que, se
temos por objetivo superar essa forma de sociedade, a questão do trabalho doméstico
jamais poderá ser tomada de forma isolada e descolada das demais relações necessárias e
estruturais do capital e do capitalismo. Não sem razão, uma das principais palavras de
ordem da AIT é a “supressão do trabalho assalariado”.
Observemos que isto não torna a palavra de ordem “supressão do trabalho
doméstico” de menor importância. Mas desautoriza, do ponto de vista da classe
trabalhadora e da destruição da sociedade capitalista, seu uso isolado como eixo e centro
da intervenção, porque isoladamente ela não conduz invariavelmente a necessidade de
destruição dessa forma de sociedade. E esta vinculação do trabalho doméstico as
determinações da força de trabalho não é uma opção para os marxistas. É o próprio
capitalismo que as vincula objetivamente, em função da forma como funciona e se
organiza. Mas este aspecto passa ao largo na análise da autora italiana, pois, segundo ela,
não é seu desejo fazer essa vinculação.
Pensamos, ao contrário, que independente de nossos desejos, nós temos que levar
em conta a realidade tal como ela é, para traçarmos então nossa intervenção. Não é o caso
de fazermos uma eleição subjetiva de qual trabalho é mais importante: o doméstico ou o
assalariado. É o caso de entendermos como tudo isso se articula dentro da forma de
sociedade em questão. Nessa análise vemos que o trabalho assalariado é condição
necessária desse modo de produção. O trabalho doméstico, por sua vez, destinado de
forma opressiva às mulheres, fragmenta a classe trabalhadora: um polo que realiza o
trabalho doméstico e outro que se beneficia dele. Daí que seu combate é fundamental para
a unidade da classe. Não se trata de uma conclusão moral, mas objetiva.
O moralismo está em procurar combater algo porque este algo seria um “mal em si”
sem entendermos a base que o possibilita e, assim, as possibilidades reais de destruí-lo. Se
isolarmos o trabalho doméstico estaremos nos movendo ainda no interior das
determinações contingentes do capital – o que pode abstratamente ser e o que pode
abstratamente não ser no interior desse modo de produção – e jamais no campo
revolucionário. Nesse sentido, longe de aprimorar, o que Federici realiza é uma ruptura
com o marxismo, seu programa, finalidade e meios.
É importante aqui abrirmos um parênteses para aprofundar a questão. Inúmeros
outros aspectos interferem na magnitude de valor da força de trabalho. Todos esses
aspectos são relevantes, devem ser levados em conta na aplicação programática específica
das organizações marxistas, mas nem por isso fazem parte das determinações necessárias
do capital, das suas condicionantes estruturais. Por exemplo, o desenvolvimento histórico
e cultural de um dado povo determina ou não a inserção de certos produtos como
necessidades de consumo, causando uma enorme diversidade nacional dos salários, que
variam de país para país em conformidade com tais necessidades. Daí não se segue que a
revindicação por um certo padrão de consumo e vida da classe trabalhadora (por exemplo,
um padrão brasileiro de consumo similar ao europeu) seja, em si, uma luta pela destruição
da sociedade capitalista. Da mesma forma, os preconceitos de todos os tipos entre setores
da classe de distintas nacionalidades e raças comumente rebaixa o valor da força de
trabalho da classe trabalhadora no geral e dos setores oprimidos em particular. É a mesma
situação. Isto faz dessas revindicações específicas uma questão de vida ou morte para uma
organização marxista, mas de forma alguma uma revindicação que deve ser tomada de
forma isolada, como se fosse em si mesma anti-capitalista, socialista e revolucionária.

Uma síntese debilidades das críticas de Federici a Marx


Gostaríamos de ser bastante sinceros a respeito das elaborações de Federici a que
tivemos acesso. Elas padecem dos seguintes problemas:
1) Não acompanha e desconstrói internamente os argumentos de Marx que são alvo de
sua crítica, mas os arranca fora já na largada como correspondendo a fatia da
realidade ligada “ao ponto de vista do capitalista” ou que simplesmente não é seu
desejo investigar este ou aquele aspecto. Por exemplo: como o trabalho doméstico
poderia interferir no “tempo de trabalho socialmente necessário” das mercadorias?
Não há nenhum desenvolvimento nesse sentido.
2) Ignora pontos centrais que feririam de morte a sua tese: como o papel do salário
como condição necessária de reprodução da força de trabalho. Se ela levasse em
conta este aspecto, como ficaria sua demonstração de que a força de trabalho é
produzida e reproduzida pelo trabalho doméstico? Ela simplesmente desconsidera o
papel do salário no modo de produção capitalista e se foca unilateralmente no fato
dele servir de base para a opressão doméstica.
3) Faz críticas a Marx por não ter tratado de vários temas particulares em O Capital,
sem problematizar porque eles deveriam ser tratados tendo em vista os objetivos de
Marx nessa obra. Marx não procurou escrever uma megalomaníaca obra que trata
de tudo que envolve o capitalismo, mas o capitalismo enquanto todo.
4) Apela recorrentemente para a extensão quantitativa de um dado aspecto da
realidade (como a extensão do trabalho doméstico) sem problematizar a fundo o
papel qualitativo que este aspecto cumpre na realidade capitalista. É como se a
extensão falasse por si só e eliminasse a necessidade de examinarmos sua dimensão
qualitativa.
5) Recorrentemente, utiliza o artifício de se apropriar de certas noções de Marx para
fundamentar suas teses. Mas o faz desistoricizando-as. Por exemplo, reduzindo o
papel do trabalho no capitalismo a exploração de um indivíduo sobre o outro,
permitindo assim enquadrar o trabalho doméstico nesse conceito tornado abstrato e
a-histórico.
6) Confunde a relevância empírica do tema, com seu papel enquanto determinação
necessária do modo de produção capitalista: o objetivo de Marx em sua obra.

Concluindo, acreditamos que Federici detecta muito honestamente o problema do trabalho


doméstico e tem uma vontade sincera de atacar o problema. Mas sua subjetividade
impede, na maioria das vezes, um tratamento científico e objetivo da questão. Seu trabalho
traz informações empíricas e históricas interessantes, mas é contaminado pela ausência de
critérios objetivos claros no desenvolvimento do tema e pela propensão chegar, custe o que
custar, a determinadas conclusões. Não vemos tal trabalho como cientificamente sério e
acreditamos que não agrega muita coisa ao tema e problemas que propõem do ponto de
vista dos conceitos que reformula e critica.
A grande dificuldade de tratar de sua obra é que a explicitação de sua debilidade
conceitual pode fazer parecer que o problema por ela colocado é pouco relevante. Devemos
alertar que este não é o caso. O problema que aborda é de grande relevância, mas a forma
como ela o faz é frágil teoricamente, sem critérios objetivos claros, com uma coerência
artificialmente forjada ao inserir na análise apenas os elementos que lhe interessa tendo
em vista seus objetivos e desconsiderando sem qualquer crítica interna todos os demais
que trariam problemas para suas conclusões. Do ponto de vista de sua crítica aos conceitos
descobertos e desenvolvidos por Marx em sua obra principal devemos dizer com todas as
letras que seu trabalho não tem absolutamente nada a agregar.

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