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Nesse artigo fazemos uma resenha crítica dos livros de Silvia Federici: El patriarcado del
salario Críticas feministas al marxismo e, também, Calibán y la bruja. Mujeres, cuerpo y
acumulación originaria. O objetivo, no entanto, não é abordar todos aspectos contidos em
tais obras, mas a sua relação com o pensamento de Marx. Importante destacar que não
gastaremos nosso tempo para mostrar que a elaboração de Silvia Federici não condiz com
aquelas apresentada por Marx em O Capital. Afinal, a autora está plenamente consciente
disso. A sua leitura procura reformular conscientemente vários aspectos centrais da obra
principal de Marx, porque estariam incorretas. Esses aspectos teriam como núcleo central
o que a autora denomina trabalho reprodutivo. No entanto, Federici não pretende jogar
toda obra de Marx pela janela, ao contrário, parte do pressuposto de que, ao menos em
alguns de seus contornos fundamentais, O Capital constitui um ponto de partida válido,
mas que deve ser rearranjado naquilo que ela considera seu principal erro: o papel do
trabalho doméstico no interior da sociedade capitalista, enquanto produto genuíno dessa
forma social e fomentada por ela.
O que procuraremos mostrar, assim, é que, tendo em vista os objetivos de Marx em
O Capital, todas as reformulações e inserções propostas por Federici estão incorretas.
Ainda que o problema por ela tratado nos pareça absolutamente justo e relevante, ela não
compreendeu o modo como ele se articula com o modo de produção capitalista.
Cabe, portanto, alguns comentários prévios sobre O Capital de Marx, para
avaliarmos em que medida são válidos os elementos colocados pela crítica da autora
italiana.
Uma das críticas comumente direcionadas a O Capital de Marx não foi aquilo que
ele examinou e efetivamente analisou em sua obra, mas o que deixou de analisar. Já que
está em análise o modo de produção capitalista, tudo aquilo que envolve este modo de
produção deveria estar ali contido. Fosse esse o caso, a empreitada de Marx seria,
evidentemente, impossível.
Em O Capital Marx não está preocupado em analisar nenhuma realidade particular
ou nacional. Não lhe preocupa a Inglaterra ou França do século XIX, nem qualquer outro
caso. Sua análise possui abrangência maior: são os aspectos necessários do modo de
produção capitalista, presentes em todo lugar e tempo em que domina este modo de
produção. Esses aspectos são duplamente importantes para um autor que tem por
finalidade de sua obra, e vida, a destruição desse modo de produção.
Em primeiro lugar, porque tais aspectos, ao figurarem em toda e qualquer forma
capitalista de sociedade, devem ser levados em conta em toda e qualquer análise
particular. Em segundo lugar, mostram que laços devem ser necessariamente dissolvidos
se quisermos destruir essa forma de sociedade. É porque o capitalismo se desenvolve sob a
base dessas relações universais e necessárias que torna não apenas possível, como
necessário, uma organização socialista mundial, com objetivo de destruir esta forma de
organização também mundial, levando em conta todas particularidades quando aplicado a
um contexto particular, mas sem jamais perder de vista a base universal sob a qual se
desenvolve cada particularidade.
Vejamos apenas algumas dessas categorias universais e necessárias que Marx
desenvolve no Livro I de O Capital:
Mercadoria → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Valor → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Trabalho abstrato → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Dinheiro → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Capital → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Classe
trabalhadora e Classe Capitalista → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Processo de valorização do valor → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Mais-valia
absoluta → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Cooperação Industrial → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Mais-valia relativa → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Forma salário → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe
Acumulação de Capital → Valor → Trabalho abstrato → Dinheiro → Capital → Classe Exército Industrial de Reserva e assim por diante.
O Capital em fragalhos
A tese de Silvia Federici é a seguinte: Marx abordou apenas a separação do
campesinato da terra, dos meios de produção, tornando-os aptos a venderem sua força de
trabalho como mercadoria, no entanto, não teria visto outra faceta da questão: o trabalho
reprodutivo1. Este último diz respeito ao trabalho de produção e reprodução da força de
trabalho, desenvolvido no âmbito doméstico, pelo trabalho não assalariado
majoritariamente feminino. Isto é, o trabalho que possibilita a classe trabalhadora se
reproduzir, no sentido de voltar a trabalhar depois de serem consumidos em fábricas ou
escritórios. Não seria algo pré-capitalista, mas um desenvolvimento específico da
sociedade capitalista, ainda não totalmente desenvolvido nos tempos de Marx, quando o
trabalho doméstico e a família nuclear estavam incipientemente desenvolvidas. Seria justa
esta crítica de Federici? Para termos maior clareza a este respeito, iremos fazer algumas
considerações sobre o modo como ela interpreta e analisa a obra principal de Marx.
É importante ter claro que Marx não sai por aí criando conceitos de nenhum tipo.
Quando analisa e expõem a mais-valia ou o a acumulação de capital, Marx em absoluto não
criou um conceito. O que ele faz é traduzir conceitualmente certos tipos de relações reais e
necessárias que se dão no interior do modo de produção capitalista. Por isso, os conceitos
não são uma escolha de nossa cabeça, mas definidos no interior deste modo de produção.
Mas em todo seu livro a autora italiana considera a obra de Marx em pedaços, sem
conectar cada uma de suas partes e definindo cada aspecto de forma superficial, de modo a
justificar o que irá propor na sequência. Tomemos um exemplo modelar, nesse sentido.
Em seu livro El patriarcado del salario Críticas feministas al marxismo, Federici diz:
Se o trabalho reprodutivo só pode ser mecanizado em parte, o programa de Marx pelo qual a
expansão da riqueza material depende da automação e a conseqüente redução do trabalho necessário
são interrompidos, porque o trabalho doméstico e, principalmente, o cuidado de filhos, constitui a
maior parte do trabalho neste planeta. O mesmo conceito de trabalho socialmente necessário perde
muito de sua força de convicção. Como definir o trabalho socialmente necessário quando o maior e
mais indispensável setor trabalhista do mundo não é sequer reconhecido como parte essencial do
conceito? E que critérios e princípios governariam a organização do trabalho assistencial, sexual e
procriativo, quando essas atividades não são consideradas parte do trabalho socialmente necessário?
(pag. 91)
Cabe ressaltar que, ao afirmar que o trabalho que realizamos em casa é a produção capitalista não
estamos expressando o desejo de que este seja legitimado como parte das "forças produtivas". Em
outras palavras, não é um recurso ao moralismo. Somente do ponto de vista capitalista, ser
produtivo é uma virtude moral, mesmo um imperativo moral. Do ponto de vista da classe
trabalhadora, ser produtivo significa simplesmente ser explorado. (pag. 32-33)
A relevância do debate
Por que tal debate é importante? Seria uma mera querela conceitual sem qualquer
relevância? Não é, definitivamente, o caso. Não é por mero preciosismo teórico que Marx
procura em O Capital aquelas relações necessárias no processo de reprodução do modo de
produção capitalista. Tais relações necessárias são aquelas que devem ser reconfiguradas
se quisermos caminhar apara além do modo de produção capitalista, com as mazelas e
opressões que lhe são próprias. Ao deixar de fora a categoria de trabalho reprodutivo de O
Capital a conclusão a que chegamos não é que o problema seja menor. A questão é que, se
temos por objetivo superar essa forma de sociedade, a questão do trabalho doméstico
jamais poderá ser tomada de forma isolada e descolada das demais relações necessárias e
estruturais do capital e do capitalismo. Não sem razão, uma das principais palavras de
ordem da AIT é a “supressão do trabalho assalariado”.
Observemos que isto não torna a palavra de ordem “supressão do trabalho
doméstico” de menor importância. Mas desautoriza, do ponto de vista da classe
trabalhadora e da destruição da sociedade capitalista, seu uso isolado como eixo e centro
da intervenção, porque isoladamente ela não conduz invariavelmente a necessidade de
destruição dessa forma de sociedade. E esta vinculação do trabalho doméstico as
determinações da força de trabalho não é uma opção para os marxistas. É o próprio
capitalismo que as vincula objetivamente, em função da forma como funciona e se
organiza. Mas este aspecto passa ao largo na análise da autora italiana, pois, segundo ela,
não é seu desejo fazer essa vinculação.
Pensamos, ao contrário, que independente de nossos desejos, nós temos que levar
em conta a realidade tal como ela é, para traçarmos então nossa intervenção. Não é o caso
de fazermos uma eleição subjetiva de qual trabalho é mais importante: o doméstico ou o
assalariado. É o caso de entendermos como tudo isso se articula dentro da forma de
sociedade em questão. Nessa análise vemos que o trabalho assalariado é condição
necessária desse modo de produção. O trabalho doméstico, por sua vez, destinado de
forma opressiva às mulheres, fragmenta a classe trabalhadora: um polo que realiza o
trabalho doméstico e outro que se beneficia dele. Daí que seu combate é fundamental para
a unidade da classe. Não se trata de uma conclusão moral, mas objetiva.
O moralismo está em procurar combater algo porque este algo seria um “mal em si”
sem entendermos a base que o possibilita e, assim, as possibilidades reais de destruí-lo. Se
isolarmos o trabalho doméstico estaremos nos movendo ainda no interior das
determinações contingentes do capital – o que pode abstratamente ser e o que pode
abstratamente não ser no interior desse modo de produção – e jamais no campo
revolucionário. Nesse sentido, longe de aprimorar, o que Federici realiza é uma ruptura
com o marxismo, seu programa, finalidade e meios.
É importante aqui abrirmos um parênteses para aprofundar a questão. Inúmeros
outros aspectos interferem na magnitude de valor da força de trabalho. Todos esses
aspectos são relevantes, devem ser levados em conta na aplicação programática específica
das organizações marxistas, mas nem por isso fazem parte das determinações necessárias
do capital, das suas condicionantes estruturais. Por exemplo, o desenvolvimento histórico
e cultural de um dado povo determina ou não a inserção de certos produtos como
necessidades de consumo, causando uma enorme diversidade nacional dos salários, que
variam de país para país em conformidade com tais necessidades. Daí não se segue que a
revindicação por um certo padrão de consumo e vida da classe trabalhadora (por exemplo,
um padrão brasileiro de consumo similar ao europeu) seja, em si, uma luta pela destruição
da sociedade capitalista. Da mesma forma, os preconceitos de todos os tipos entre setores
da classe de distintas nacionalidades e raças comumente rebaixa o valor da força de
trabalho da classe trabalhadora no geral e dos setores oprimidos em particular. É a mesma
situação. Isto faz dessas revindicações específicas uma questão de vida ou morte para uma
organização marxista, mas de forma alguma uma revindicação que deve ser tomada de
forma isolada, como se fosse em si mesma anti-capitalista, socialista e revolucionária.