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NOTAS INTRODUTÔRIAS

À
LÓGICA DIALÉTICA
DO AUTOR:

EVOLUÇÃO POLiTICA DO BRASIL


2.6 ediçéio - 1947 - esgotada

U.R.S.S., UM NOVO MUNDO


2.a edição - 1935 - esgotada

FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEM·


PORANEO (COLôNIA)
6.ª edição - 1961

HISTóR!A ECONôMICA DO BRASIL


6.ª edição - 1961

EVOLUÇÃO POLfTICA DO BRASIL


E OUTROS ESTUDOS
3.ª edição - 1961

DIALÉTICA DO CONHECIMENTO
do1s tomos - 3,ª edição - 1960

ESBôÇO DOS FUNDAMENTOS


DA TEORIA ECONOMICA
3.a edição - 1961

NOTAS INTRODUTóRIAS A LóGICA


.fi.
DI LÉ11CA:.. .....::.:_(:z�a·edição -:----- 1961
.
CAIO PRA DO JÚNIOR

NOTAS INTRODUTÔRIAS
À

LÓGICA DIALÉTICA

2.' ED IÇÃO

EDITÕRA BRA S ILIENS E


À memória de Yolanda, minha irmã

A Nena, minha companheira


INTRODUÇÃO

A L6gica, em sentido amplo, se destina, como disciplina cientí­


fica, a determinar e fixar a condução do pensamento na elaboração
do Conhecimento. Não há assim como fugir à necessidade de abor­
dar o tratamento da L6gica, pela análise da atividade pensante. Do
seu kLdo, a L6gica formal - em que se inclui tanto a L6gica aristo­
télica, como a moderna Logistica- -, tem por ob;eto a análise e
pesquisa das formas l6gicas incluídas e implícitas na Linguagem
(tanto a L·inguagem discursiva, como o si1nbolis1no mate1nático, que
também constitui uma linguagem), formas essas análogas às formas
gramaticais nisso que se destinam, tanto quanto estas últimas, a
darem estrutura à Linguagem e a tornarem apta a exprimir o pen­
samento e o eonheciniento:
Mas uma vez que Linguage1n e Pensamento não se confunde1n,
não sendo a primeira senão expressão e exteriorização da afívidade
pensante, resulta que a L6gica formal não esgota a matéria que
lhe diz respeito e que diretamente a interessa. É preciso, a par" da
análise da Linguagem e de suas formas l6gicas (ob;eto específico
da L6gica formal), ligar essa análise à da função pensante de que
a Linguagem e suas formas não são mais que instrumento de ex­
p1•essão e exteriorização; instrumento aliás ne1n sempre adequado
e fiel. Ter-se-á com isso, e sàmente assim, o panorama geral do
assunto, a saber, a natureza funcional das formas l6gicas, isto é, a
maneira pekL qual as formas l6gicas desempenham sua função ex­
pressiva do pensamento, bem como do Conhecimento que se ekLbora
pelo pensamento.
É essa a posição dialética em frente à L6gica. Posição que leva,
corno logo se vê, a situar o ponto de partida da pesquisa l6gim, na
consideração da função e atividade pensante, o que constitui obieto
da Psicologia.
A finalidade do presente livro consiste precisamente em abordar
a análise da atividade pensante na sua função elaboradom do cº"
nhecimento, bem como nas suas ligações com a Linguagem em geral
e suas formas l6gicas em particular. "Abordar'' é bem a palavm,

[1 J
pois não se trata aqui de desenvolver exaustivamente o assunto, e
nem mesmo de procurar faze-lo. O objetivo deste livro é tão-sàmente
o de apresentar algumas indicações relativamente à maneira de orien­
tar e conduzír a indagação e pesquisa cientificas da atividade do
pensamento, naquilo que diz respeito à sua função elaboradora do
Conhecimento, e às suas relações com as formas lógicas em que a
niesma atividade se exp1'ime e exterioriza.
Essa posição em frente ao problema lógico abre perspectivas, de
um lado, para a determinação do "método lógico", isto é, da ma­
neira nwis acertada possível com que se há de orientar e conduzir
o pensamento na elaboração do Conhecimento. E doutro lado, para
a elaboração das formas verbais em geral, e das lógicas em parti­
cular, adequadas à expressão do pensamento e do produto desse
pensanwnto que é o Conhecimento. E isso a partir de uma base
experimental e científica, isto é, a partir da Psicologia como ciência,
e não da simples intuição, como ocorre no tratamento usual da Lógica.

[2J
NOTAS INTRODUTÓRIAS
A
LÓGICA DIALÉTICA
I. - LÓGICA DIALJ1:TICA E DIALJ1:TICA
DA NATUREZA

Sob a designação de Dialética, tal como hoje se entende a pa­


lavra, abrigam-se dois conceitos, ou dois sentidos da expressão, que
e1nbora se entrosem intimamente, são distintos. Essa distinção con­
tudo não tem sido suficientemente caracterizada, resultando daí certa
confusão, origem de muitas dúvidas (1.) 11: meu objetivo no presente
capítulo, contribuir na medida do possível para dissipar tais dú­
vidas. "Dialética", de um lado, é uma expressão empregada para
designar o comportamento geral da Natureza, naquilo que ela tem
de mais característico e essencial, isto é, a mutabilidade e instabili­
dade de suas feições, a permanente transformação delas. Assim
entendida, a dialética constitui um fato natrll"al, um aspecto da Na­
tureza, e certamente o mais importante, cuja consideração e pes­
quisa pertencem às ciências em geral. Representa a "propliedade"
fundamental - digamos assim numa tenninologia meio obsoleta -
dos acontecimentos da Natureza, que são "acontecin1entos" na me­
dida precisamente em que por êles se mudam e transformam as
situações natr1rais. Nesse sentido, a dialética constitr1i objeto das
diferentes disciplinas científicas; e como tal deve ser tratada. Isso
parece bastante claro: é à Física que compete ocupar-se com os
acontecimentos ou fatos físicos; tanto como é às ciências sociais que
cabe tratar da maneira pela qual se desenrolam os acontecimentos
de orden1 social. Afora êsse «comportamento dos fatos", o que quer

(1) Depois da publicação da Dialética do Conhecimento, tive bem a


1nedida dessas dúvidas e confusões, chegando alguns críticos a ine acusarem
de "hegeliano" e ".idealista" porque fazia da Dialética uma Lógica, e portanto
um fato mental! Essa a razão por que insisto no presente capítulo em certos
pontos que parecerão aos leitores mais bem infonnados, um excesso em assunto
que para êles não oferece maiores dificuldades.
6 CAIO PRADO JÚNIOR

dizer rr.11 dança, h·ansfonnação, clialética em suma, não se vê he1n


do que se ocupariam as ciências respectivas. É precisamente êsse
ponto de vista que caracteriza a posição da Dialética (como filo­
sofia) em contraste com a Metafísica. Se esta última procura ah·ás
dos fatos e do seu comportamento ou dialética, sêres ou entidades
que seriam como que os autores e responsáveis de tais fatos, é pre­
cisamente nesse ponto que a posição dialética se afasta das vell1as
e obsoletas concepções filosóficas. A ciência moderna, que de al­
guns séculos para cá vem ensaiando seus primeiros passos, embora
mais ou menos inconscientes, no caminho da dialética, o que visa
são fatos, e não supostos sêres de que tais fatos seriam simples ma­
nifestação exterior e sensível. Já se resumiu isso numa fórmula im­
pecável que hoje não tem mais patrono porque é de todos os ho­
mens de ciência: A ciência não se ocupa com o que é, e sim Unica­
mente co1n o que se passa.
Respondemos assim, ao que parece, à questão da existência ou
não de uma ciência ou disciplina especial que devesse ocupar-se
da Dialética da Natureza em si e independentemente dos fatos con­
cretos que são objeto das ciências particulares. A saber, uma dis­
ciplina específica da Dialética da Natureza, e sem particularização
dos fatos de que se ocupam as diferentes ciências particulares. Uma
tal disciplina nos parece altamente contestável, pois não vemos, por
exemplo, como a dialética dos fatos físicos (que não é afinal de con ·

tas outra coisa mais que êsses mesmos fatos) possa ser considerada,
descrita e expressa independentemente de tais fatos, isto é, fora da
Física que se ocupa precisamente daquela consideração, descrição
e expressão em linguagem. Não discutiremos aqui o assunto mais
a fundo, porque julgamos que pelo menos nas circunstâncias atuais
do conhecimento científico, a questão é inócua, e não tem mesmo
cabimento. Uma tal ciência específica da Dialética da Natureza,
não existe por enquanto; ninguém, ao que se saiba, dela se ocupa
sistemàticamente, inclusive naqueles países onde a nova filosofia
dialética tem o consenso geral, a saber, nos países do socialismo.
Nem essa falta se faz por enquanto sentir. Debater portanto sua
c'possibilidade" ou ,.eventualidade", é além de estéril, aventurar-se
num labirinto de especulações sem grandes perspectivas.
NOTAS INTRODUTÓ RIAS A LÓGICA DIALJ\:TICA 7

Outro sentido da Dialética, é o da dialética como método 16gico,


isto é, como maneira de abordar e considerar os fatos da Natureza,
como posição ou ângulo em que se há de colocar o pensamento em
frente a êles. É nesse sentido, por exemplo, que o assunto é tra­
tado no capítulo, redigido por Stálin, da História do Partido Comu­
nista ila U.R.S.S. dedicado à matéria. Trata-se do capítulo IV, onde
no § 2.º vêm enumerados os traços característicos fundamentais,
segundo o autor citado, da Dialética entendida como método, traços
êsses que dizem expressamente respeito à maneira de considerar
os fatos da Natureza, à mientação a ser seguida pelo analista e pes­
quisador de tais fatos. O texto de Stálin é o seguinte:

(a) Contràriamente à metafísica, a dialética olha a


nah1reza, não como uma acumulação acidental de objetos,
de fenômenos destacados, isolados e independentes uns dos
outros, mas como um todo unido, coerente, onde os objetos,
os fenômenos são ligados orgânicamente entre si, dependem
uns dos outros e se Condicionam reciprocamente.
(b) Contràriamente à metafísica, a dialética olha a
natureza não como um estado de repouso e de imobilidade,
de estagnação e imutabilidade, mas como um estado de
movimento e mudança perpétuos, de renovação e desenvol­
vimento incessantes, onde sempre algo nasce e se desenvolve,
e algo se desagrega e desaparece.
(c) Contràriamente à metafísica, a dialética considera
o processo do desenvolvimento não como um simples pro­
cesso de crescimento em que as mudanças quantitativas não
resultam em mudanças qualitativas, mas como um desen­
volvimento que passa de mudanças quantitativas insignifi­
cantes e latentes a mudanças aparentes e radicais, a mu­
danças qualitativas; em que as mudanças qualitativas não
são graduais, mas rápidas, súbitas, e operando por saltos
de um estado a outro; elas são o resultado da acumulação
de mudanças quantitativas insensíveis e graduais.
(d) Contràriamente à metafísica, a dialética parte do
ponto de vista que os objetos e fenômenos da natureza im­
plicam contradições internas, portanto êles têm sempre
um lado negativo e um lado positivo, um passado e um
futuro, todos têm elementos que desaparecem ou que se
desenvolvem; a luta dêsses contrários, a luta do antigo e
do novo, entre o que morre e o que nasce, entre o que de­
perece e o que se desenvolve é o conteúdo interno do pro-
8 CAIO PRADO Jú N I O R

cesso de desenvolVimento, da conversão das mudanças qu


titatívas em mudanças qualitativas (2.)

Como se vê, aquilo que Stálin aponta como "traços caracter


ticos" da Dialética, são na verdade normas de análise e pesqui
dos fatos da Natureza. Elas indicam uma certa maneira, oposta
da Metafísica, de considerar tais fatos; aquilo que o pesquisad'
e indivíduo pensante que elabora o conhecimento, deve procura
nos mesmos fatos. Nesse sentido, o texto citado é suficientement
claro; e nêle se resume o que se deve entender por Dialética com
método de pesamento, como L6gica, portanto.

Consideremos agora mais de perto essa distinção entre os doí'


apontados conceitos da Dialética. Uma análise atenta do assuntc
e de suas raízes hist6rico-filosóficas, nos permitirá compreendê-lo
melhor; e contribuí também para esclarecer a confusão assinalada.
Isso para nós aqui é tanto mais importante que estamos apresen­
tando um livro de Lógica Dialética; e devemos por isso, antes de
n1ais, circunscrever nosso assunto e indicar o que se pretende, ou
pode pretender com essa L6gíca Dialética.
Precisamos para isso, inicialn1ente, de alguns desenvolvimentos
preliminares. A natureza, que é a realidade objeto do pensamento
e do conhecimento humanos, pode ser considerada sob dois aspectos.
Ou antes, a ação do homem em face da Natureza e nas relações dêle
com o n1eío que o cerca, deve tornar em consideração duas circuns­
tâncias - aliás contraditórias porque parecem se excluir mtltua�
mente -, a saber: de um lado, a multiplicidade e variabilidade da
Natureza; doub·o, sua uniformidade e estabilidade. Isso porque se
é certo, e portanto não pode ser desconsiderado, que as feições que
constituem o meio no qual vivemos, a Natureza en1 suma, são de
tal maneira múltiplas a ponto de ntmca se repetirem rigorosamente,
bem como incessante1nente va1·iáveis., também é certo, doutro lado,
q11e se o pensamento e o conhecimento humanos se fixassem Unica­
mente em tal multiplicidade e variabilidade, não seria possível ao
homem conduzir sua ação. Para fazê-lo, como a experiência nos

(2) llistoire du Paiti Communiste (Bolchévik) de l'V.R.S.S. Précis i·é­


<ligé par une conunission du Comité Central du P.C, (b) de l'U.R.S.S. Edition.!
en langues étrangeres. li.1ost:ou, 1949, pág. 118.
NOTAS INTRODUTóRIAS A LóGIGA DIALl!:TICA 9

1nostra, êle precisa identificar certas feições tanto no tempo como


no espaço, fixar certas uniformidades e permanências; em outras
palavras, assimilar entre si aspectos da Natureza em rigor distintos,
be1n como certos momentos, embora diversos entre si, no fluxo e
transformação incessantes das feições naturais. M-esmo no mais ele­
mentar plano da ação e conduta (e talvez mais ainda nesse plano),
aquela posição em face da Natureza é necessária, e se hnpõe por
si JJ?.CSma, porque é condição precípua, para o homem, fazer a dis­
, tinção para êle vital entre aquilo que lhe é propício e favorável, e
o qne lhe é prejudicial e deve ser evitado e afastado. A fim de
que sua experiência lhe sirva de algo, e que não esteja a cada
instante partindo de nada, o homem, no seio da multiplicidade e
transformação pe1manente da Natureza, há de assimilar entre si e
identificar certas feições que distintas embora, são uniformes e idên­
ticas no que diz respeito às necessidades de sua integridade e sub­
sistência. ll:le poderá assim "qualificar'' aquelas feições identificadas,
isso é, reconhecer-lhes qualidades ou característicos comuns e uni­
formes, determinando em conseqüência sua ação em frente a elas.
A e.identificação", ou em outras palavras, aquela relativa uniformi­
zação e fixação da Natureza que constitui o processo ou ato de iden­
tificação, para o fim de reconhecimento do meio em que vive, e de
reagir em conseqüência, é asslln para o homem uma condição ne­
cessária de sua própria subsistência(3.)
ll:sse processo de identificação faz parte aliás de nossa expe­
riência e atividade mental correntes e rotineiras, onde podemos fà­
cilmente observá-lo. A todo momento, permanentemente mesmo,
estaffios ''identificando" feições da Natureza; o que quer dizer, assi-
niilando-as a oub:as já experimentadas. Se por exemplo, ao cami-

(3) Como aliás do animal, seja a identificação pré-formada no instinto,


seja a aprendida na experiência. A consciência e intencionalidade que estan1os
atribu'indo ao homem nos seus processos mentais de identificação, não ocorren1
evidentemente senão em estágios já muito elevados de sua evolução psíquica,
tanto ontogenética quanto filogenética. Nos planos inferiores, o processo faz
parte- de seu automatismo orgi\nico, tal con10 se dá nos animais. - Note-se
aqui de passagem que os métodos experin1entais de condicionamento de reflexos
(.Pavlov), se destinam em última instância a provocar artificialmente processos
de identificação, forçar o paciente a .. identificar" certas situações: o toque da
campainha, o choque elétrico, etc.
10 CAIO PRADO JÚNIOR

nhar, deparo pela frente com uma árvore, identifico-a como tal, ou
mais precisamente como um obstáculo que há de ser contornado.
:t::sse processo de identificação envolve desde logo a noção não so­
mente da «árvore como obstáculo", como algo portanto idêntico e
assimilável a outras feições embora bem distintas, mas que even­
tualmente constituiriam também obstáculos (como seria uma parede,
uma rocha, etc.) - e temos aí o caso da identidade ou uniformidade
na multiplicidade -; como ainda a noção de permanência da árvore,
que embora se encontre num processo incessante de aniquilamento
(morte, decomposição, desaparecimento ...), tem pelo menos a per­
manência que interessa no caso, a saber, durante os poucos instantes
que me separam dela n o curso de minha marcha. Estaremos aí,
com o nosso processo de identificação, fixando e corno que imobi­
lizando a árvore e sua história; emprestando-lhe permanência no
fluxo e transformação incessante das feições da Natureza e da nossa
árvore em particular.
Temos aí uma visão bem clara, parece-nos, do aspecto contra­
ditório com que se apresenta a Natureza ao homem e seu pensa­
mento e ação: de um lado, múltipla e diversa, instável e fluida;
doutro, uniforme e idêntica, estável e permanente. Ora ela se apre­
senta sob um, ora sob outro aspecto. A árvore do nosso exemplo
será uma uniformidade e pe1manência se nos aproximarmos dela
como simples caminhante. Se o fizermos contudo corno botânicos,
contarão muito n1ais para nós as distinções que fazemos entre ela
e outras feições que não são vegetais e que po1ianto não nos inte­
ressãriam como botânicos. Contarão também muito mais as even­
tuais mutações da árvore e sua transitoriedade desde a semente que
foi até o simples lenho que será. Mas êsse mesmo botânico que se
deteria assim na multiplicidade e variabilidade que a árvore repre­
senta, terá também de considerar o que há nela de unifol'me no
conjunto dos vegetais - o que lhe dará a espécie, família, classe
e1n que a árvore se inclui; e a própria transformação da árvore será
vista através de "estados" ou fases estáveis: semente, formas suces­
sivas mas cada qual bem caracterizada, como sejam a caducidade
das fôlhas, a floração, etc.
Nessa contradição, qual o critério geral que deverá orientar o
pensamento e a elaboração do conhecimento? Para que aspecto da
NOTAS' INTRODUTóRIAS A LÓGICA DIAL1'TICA 11

Natureza se h á d e atentar de preferência, e qual a medida dessa


preferência? Como em suma entrosar e harmonizar os dois aspectos
contraditórios da Natureza que vimos, de maneira a que o conhe­
cimento dê cabal conta de ambos, sem exclusão ou subestimação
de nenhum dêles? Eis o problema que se propõe. Se é verdade
que numa primeira aproximação e aparência da Natureza, tudo é
diverso e instável, o uniforme e permanente se impõem necessària­
mente logo depois. Isso porque aquêle processo elementar de identi­
ficação referido acima e que nos per1nite reconhecer o meio que
nos cerca, que nos guia cada passo e nos é fundamentalmente indis­
pensável na conduta de nossa ·existência, tal processo implica desde
logo, e como que postula a uniformidade e permanência da Natu­
reza (4.) Efetivamente, a possibilidade da identificação, e o pró­
prio sentido e razão de ser dela, são condicionados pela admissão da
estabilidade e regularidade dos fatos naturais. Assim por exemplo
a côr e forma de um fruto, sàmente têm interêsse e sentido do
ponto de vista da identificação e das atividades hmnanas que nela
se inspiram e apoiam, na medida e1n que tal côr e forma são gerais
a todos os frutos do mesmo sabor e propriedades nutritivas. Se côr
e fonna fôssem iguais em f1utos comestíveis e não comestíveis, que
interêsse teriam elas como característicos identificadores para o in­
divíduo que procura alimentos? O processo de identificação pos­
tula assim (porque doutro modo se1ia inútil e nem seria conside­
rado) a estabilidade e permanência das feições da Natureza; e tende
a fazer de tal postulado o critério do conhecimento humano.
M_as doutro lado, a experiência mostra que um f1uto hoje co­
mestível deixará de o ser amanhã, quando estará podre; e que, por
exemplo, cogumelos comestíveis se confundem com outros venenn­
sos. Transformação e multiplicidade, portanto. Como conciliá-las
com o critério de permanência e uniformidade impôsto ao conheci­
mento humano? É essa contradição, originada na própria natureza
da constituição universal, que o homem enfrenta, e de que sofre as
contingências em suas atividades. Atividades essas que fundadas

(4) i!:sse postulado é reconhecido e se enconh·a implícito em tôda evolu­


ção do conhecimento humano, variando Unicamente sua explicação e justifi­
cação. Coube a Stuart Mill dar-lhe fonna acabada no seu conhecido axlo111a
da unifor1nidade do curso do Universo.
12 CAIO PRADO JÚNIOR

csscnciahnente, de início pelo n1enos, na uniformidade e estabili­


dade, se desorientam na irregularidade, mutabilidade e transforma­
ção incessantes das feições da Natureza. Daí brotam os primeiros
problen1as do conhecünento, que projetados na sua generalidade,
dão origem à questão fundamental e inicial da Filosofia e geradora
de tôdas as demais: a da tmifo1'midade na muliiplicidade, e da
pe1'manência no fluxo. Isso é muito bem ilustrado pela filosofia
grega, qne na riqueza de seu pensamento, largueza e variedade dos
pontos de vista em que se coloca, centraliza-se entretanto em tôrno
daquela questão essencial(5.)
Encontramos aqui uma prüneira aproxin1ação e visão de con­
junto do assunto que nos propusemos, e que é o das relações enh·e
a Dialética respectívan1ente como fato da Natureza e como método
16gico. Acabamos de ver a dialética da Natureza (que não é senão
aquela multiplicidade e fluxo incessante dos fatos universais) dando
origem ao problema fundamental e inicial do conhechnento humano.
Em que consiste, essencialn1ente, um tal proble1na? Na elaboração,
corno vin1os, de um critério geral de interpretação dos fatos, em que
se conciliem os aspectos contradit6rios em que se apresenta a Nah1-
reza; ou mais precisamente, uma maneira de considerar e por con­
seguinte conceituar os fatos em que se não exclua ou subestime nen1
a uniformidade e permanência postulados na identificação e que
correspondem a um aspecto da Natureza em suas relações com o
homem, nem tampouco a multiplicidade e variabilidade que cons­
titu.ern outro ·aspecto que se há de igualmente tomar em conside­
ração. Tal é o problema fundamental do conhecimento de que irá
resultar, ao cabo da longa jornada do pensamento humano, e atra­
vés de sucessivas soluções parciais, um método de conceih1ação ca­
paz de dar conta cabal daquele problema e tornar possível a repre­
sentação adequada e sem deformações dos fatos da Natureza no
pensamento humano. �sse método será a Lógica Dialética, suces·
sora e continuadora da tarefa realizada parceladamente e por etapas

(5) Unifonnidadc na 11iultlplicidade e pennanrJncia no fluxo, embora apa·


rentando problcn1as diversos, se reduzem de fato ao n1esn10. Não é o caso
de desenvolvcrn1os aqui o assunto, e assinalemos apenas que os textos da filo·
sofia grega são bcn1 claros a respeito, como entre outros e em ptnticular, a
obra de Aristóteles, Dti Geração e Corrupção.
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA D IALJ':TJ CA 13

através <le <lois milênios de evolução <la cnltura humana, <les<le a


filosofia grega e a lógica aristotélica, até a ciência moderna e a
Matemática pura de nossos dias.
Não faremos aqui naturalmente a história daquele longo pro­
cesso do pensamento humano que vai <la fonnulação do problema
<lo conhecimento proposto pela dialética da Natureza, à sua solução
final na Lógica Dialética (6.) Analisemos contudo, esquemàtica-
111ente embora, os traços mais salientes daquela sinuosa trajetória
percoITida pelo homem na solução do problema filosófico. Nótem­
.-se preliminarmente os têrmos em que se formula o problema, e que
esboçan1os acima. Não se trata no caso de desconl1ecimento ou
ignorância da dialética da Natureza, que pelo contrário representa
o dado inicial e mais relevante dos sentidos e da experiência, sendo
como tal reconhecido e proclamado por todos os filósofos e pensa­
dores. A dificuldade estava precisamente na maneira perturbadora
com que êsse dado incontestável e incontestado da experiência se
propunha em face do processo de identificação que representa sem
dúvida o ponto de partida do pensamento humano na elaboração
<lo conhecimento(7.) Tão perturbadora, aliás, que o maior esfôrço
dos primeiros filósofos que se ocuparam sistemàtican1ente do assunto,
consistiu em excluir a dialética da Natureza, deixá-Ia de lado e des­
considerá-la, relegando-a quando muito a um plano secundário em
que ela é de fato eliminada. O exemplo máximo disso se encontra
na filosofia dos Eleatas, e de Parmênides em particular, para quem,

(6) Essa qualificação de "final" poderá parecer não só pretensiosa, 1nas


ainda incoerente em face das próprias premissas do assunto. A "dialética"
implica um processo permanente que nã.o pode por isso mesmo desem ' bocar
num estado �'final". Aliás uma das grandes se não a principal crítica a se
fazer a Hegel e seu sistema, consiste precisamente em ter dado êsse estado
final à sua dialética. Mas con10 se verá melhor adiante, a solução é "final"
Unicamente em que abre perspectivas para a compreensão do processo lógico,
sem contudo o lin1itar ou lhe dar um têrmo.
(7) Sem insistirmos nesse ponto, observe-se contudo que o processo de
identificação tem suas raízes filogenéticas mais remotas em processos orgânicos
rudimentares. :Êle constitui a transposição, em processo pensante, racional
(isto é, b·ansposição numa atividade das esferas superiores do sisten1a nervoso
central) de processos orgânicos primários, desde o tropismo da matéria viva,
até os reflexos orgânicos mais rudimentares.
14 C A I O P R AD O Jú NI OR

como se sabe, a multiplicidade e variabilidade não passam de ilusão


dos sentidos. O próprio Parmênides, conh1do, é obrigado a con­
cessões, e admite a consideração daquela multiplicidade e variabi­
lidade, mas não como matéria ou assunto da Verdade (que êle
reserva ao Uno e Imutável); e sim apenas da Opinião.
Seja embora sob essa ou aquela forma, a dialética da Natureza
é contornada e afinal escamoteada na generalidade dos sistemas da
filosofia grega (8); escamoteação essa que tem por diretriz e norma
geral a subordinação da dialética à estaticidade, isto é, à interpre­
tação da mudança e do movimento em função da estabilidade. E
isso se realiza pela introdução de um elemento estável e fixo em
tôda transformação. A filosofia grega, que estendendo-se até Aris­
tóteles, encontra nêle a sua síntese e resultante final; e que legará
ao mundo o primeiro grande sistema lógico-filosófico ou esquema
conceptual sistemático destinado a estruturar a interpretação dos
fatos naturais, a filosofia grega definirá claramente e consagrará
aquela concepção. Ela se centraliza na noção de SER, que exprime
o elemento estável e fixo dos fatos da Natureza, e cuja essência
(o que faz com que o Ser seja o que é) se mautém através de tôdas
as transformações que o Ser possa sofrer e de que resultam o apa­
rente fluxo e variedade da Natureza. A mudança não é assin1
senão de "estados" sucessivos e diferentes do mesmo Ser.
Observe-se que essa concepção, que encontra na filosofia grega
sua primeira expressão sistemática, tem raízes muito mais remotas,
pois enconh·amos traços dela na própria estrutura da linguagem.
E não pode haver dúvidas que é aí que os filósofos gregos buscaram
sua primeira e principal inspiração ao ·delinear:em seus sistemas e a
solução que deram ao problema do conhecimento. Se não vejamos.
O que essencialmente caracteriza a estrutura da linguagem (e isso
é universal e comum a tôdas as línguas -conhecidas, vivas ou mortas,
o que bem mostra a essencialidade de tal estrutura) é a distinção,
dentro da oração ou proposição, entre o sujeito e o predicado, repre­
sentando aquêle o agente e êste último a ação. Ora o que significa
isso se não a consagração, pela expressão verbal, de um.a interpr�-

(8) Costuma-se excetuar Heráclito. Sem querer debater aqui o assunto,


penso todavia que Heráclito só aparentemente inclui a dialética no seu sistema,
pois a elimina logo em seguida com o seu Logos.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DlALltTICA 15

tação dos fatos que a oração pretende exprimir e descrever, pela


qual se introduz nos mesmos fatos um elemento estável e perma­
nente, representado pelo sujeito da oração, que permanece o mesmo
através de todo o fato expresso .e descrito; e que existe mesmo inde­
pendentemente do fato, e sempre o mesmo e como tal?

Para se compreender o alcance disso (porque à primeira vista


nada há que objetar a urna tal estrutura da linguagem, e parece
mesmo não haver oub·a maneira de representar os fatos), conside­
rem-se as orações impessoais, onde não há sujeito, ou aiites onde
o sujeito é o pr6prio predicado (verbo) e nêle se confunde: "chover"
é o mesmo que «chuva", "trovejar" que "trovão''. Ora, a rigor, em
todos os fatos o sujeito que aparece na expressão verbal dêles, con­
funde-se efetivamente com o predicado (verbo), e não pode ser
dêle separado. Isso porque o agente que o sujeito representa, não
se distingue realmente da ação representada pelo predicado. Na
realidade dos fatos, e tal como êles são dados na experiência que
é nossa fonte originária de conhecimento, agente e ação represen­
tam um conjunto, constituem um todo que não pode ser ·desmem­
brado senão abstratamente, isto é, por uma operação mental. Num
fato por exemplo como o de um pássaro que voa (e que se exprime
verbalmente: o pássa1'0 voa) a ação de voar adere integralmente ao
agente pássaro que voa. Não é possível senão por abstração (uma
operação mental portanto, com que o fato em si nada tem a ver,
pois sua ocorrência independe completamente do observador) não
é possível apartar os dois elementos: ação e agente, o voar e o
pássaro. Dir-se-á que o pássaro pode estar em repouso, e que por­
tanto se distingue da ação de voar; mas êsse repouso será outro fato
que podemos assimilar ao primeiro a fim de destacar seu elemento
comum que é o pássaro. Mas já aí estaremos intervindo no assunto
com uma operação mental de assimilação (a identificação a que
nos referimos páginas acima), reduzindo absh·atamente, isto é, no
pensamento, fatos diversos a um só. E compreendemos com isso
porque é possível aquela estmtura verbal que separa o sujeito do
predicado: é porque encontramos em fatos embora bem diferentes,
elementos comuns ou semelhantes. O que não ocorre tão diferen­
ciadamente nos acontecimentos que costumamos exprimir com ora­
ções impessoais: no chover, por exemplo, não há nada que se des-
16 C AI O PR AD O J O NI OR

taque numa comparação de várias chuvas e que diferencie inter­


na1nente tais acontecimentos. Noutras palavras, temos a impressão,
na generalidade dos casos, que ·o agente pode ser destacado da
ação, porque podemos figurá-lo, com base na experiência, incluido
em outros fatos ou ações. Mas isso é pura abstração, o que logo
se verifica pela circunstància que tal agente não poderia ser desta­
cado simultâneamente de todos os fatos. Qualquer que seja a hipó­
tese, o pássaro do nosso. exemplo poderá não estar em vôo porque
está .em repouso, ou saltitando, ou engajado em outra ação qualquer.
Mas estará sempre "agindo" desta ou daquela forma, incluído num
fato qualquer; isso mesmo quando morto, quando sobrarão :q.êle
pelo nienos as ações químicas que decompõem seu organisID:O·
.Note-se que não estamos aq1ú por ora discutindo a propriedade
ou impropriedade da estrutura verbal à nossa disposição para ex­
primir e descrever os fatos da Natureza. O que pretendemos é uni­
camente 1nostrar que tal estn1tura pressupõe uma certa concepção
filosófica, ou pelo menos leva a ela, e que é a da permanência na
mudança, ou melhor, que subordina a mudança à permanência, pois
introduz na dialética dos fatos naturais elementos estáveis e perma­
nentes que coloca em primeiro e principal plano. De fato a lin­
guagem, estruturando-se na base de um sujeito que representa o
agente, o motor, o responsável (digamos assim) pela ocorrência de
um fato, desloca a ação, o movimento, a mudança observada _nesse
fato, para um plano secundário e subordinado: simples efeito da
coisa ou entidade que preside ao fato e que é representada pelo
suieità. O fato e sua dialética tornam-se em simples modo de ser
de uma suposta entidade imutável que figura na oração como su'
jeito. O pássaro do nosso exemplo será sempre a mesma e idêntica
entidade que ora voa, ora repousa, ora saltita, ora constrói seu
ninho, ora perece ... Todos êsses fatos (o vôo, o repouso, o saltitar,
a nidificação, a morte) serão sempre e ape:i;ias manifestações ou
inodos de ser da ines1na entidade pássaro, ·entidade essa per1nanente,
idêntica e imutável através da dialética daqueles fatos.
Mudança, movimento, variação, dialética da Natureza em su1na,
faze1n-se assim em simples estados diferentes de elementos estáveis
e imutáveis em ineio da transformação aparente. Tanto isso é exato,
e que a lingi1agem implica ou sugere essa concepção, que na sua
NOTAS INT RODUTÓRIAS A LóG!GA DlALltT IGA 17

essência a ação que é aquela mudança, 111ovimento ou variação,


aparece como um mero estado do sujeito da oração. Não é se1n
fundamento que na terminologia gramatical corrente, o verbo,. que
é a ação, se denomina "predicado", o que quer dizer qualidade, ah·i­
buto, estado. E já os velhos logicistas tinham notado que tôda
oração é essencialmente predicativa ou atributiva, podendo ser trans­
formada de maneira a fazer expressamente do verbo um atributo
011 estado do sujeito: em vez de dizern1os o pássaro voa, diríamos
com igual propriedade o pássaro é voador. Os lingüistas modernos
se insurgem: violentamente contra isso, e mostra1n com carrada:s de
argumentos e razão que a oração predicativa ou s\lbstantiva se dis­
tingue da oração verbal pràpriamente. Sem entrarmos nesse de­
bate, podemos contudo afirmar que o fato é que embora em certas
línguas mais que em outras, a transformação da oração verbal en1
predicativa parece làgicamente legítima. Assim sendo, como expli­
car essa aparência de legitimidade, inesmo que seja ilus6ria · como
pretendem os lingüistas, se nãó porque ela se apóia em concepções
lógicas, certas ou erradas, não importa, mas bem implantadas en1
nosso espírito? (9)
Essa ligeira incursão no domínio da linguagem nos permite con­
cluir que a concepção lógico-filosófica elaborada pelos gregos e le­
gada por êles à posteridale, tem raízes muito profundas, uma vez
que ela se encontra implícita na própria estrutura da linguagem
que preexiste de muito à formulação daqueles sistemas filosóficos.
Ela poderia talvez ser atribuída, em última instância (no plano do
pensamento humano) ao antropomorfismo, que parece constituir uma
tendência natural e espontânea (isso é, de raízes biológicas). do
espírito humano, e que se revela em outras mru1ifestações paralelas
e bem próximas daquela concepção, como no animi· smo, E1n ambo.s
os casos vemos projetado no seio da Natureza extra-humana, o tipo
ou modêlo da ação humana, em que o agente home1n, como ele­
mento permanente e estável, representa o ponto de partida e o
impulso da ação que o mesmo homem pratica. Do n1esmo modo

(9) Veremos adiante (cap. 13) como essa eshutura da linguagem inspi­
rada em concepções filosóficas, se ajusta aos processos pensantes que exprime
ou deve exprimir,
18 CAIO P R ADO JúNIO R

que o fato em que figura o indivíduo humano é interpretado e con­


cebido por êle como efeito e resultado de sua ação e impulso, os
fatos da Natureza extra-humana serão atribuídOs a outros tantos
sêres, entidades ou coisas com as mesmas qualidades de individua­
lidade e permanência do seu ser, que o homem atribui a si próprio.
Seja contudo como fôr, o fato é que a solução do problema do
conhecimento que vimos acima e que se orienta no sentido de con­
ceder a preeminência, na interpretação dos fatos da N ah1reza, ao
estável e permanente, em prejuízo da multiplicidade e do fluxo da­
queles fatos, essa solução tem raízes muito profundas na cultura
humana; e raízes tanto mais sólidas que tal solução se consagra
na linguagem, essa linguagem através da qual os homens adquirem
a maior parte de seus conhecimentos, e que influi tão considerà­
velmente na predisposição e orientação de seus contactos e relações
com a Natureza exterior, condicionando assim decisivamente a sua
exper1encia. Não admira assim a poderosa influência e ação que
as concepções lógicowfilosóficas clássicas sempre tiveram e ainda
têm para ofuscar a real dialética da Natureza, e orientar a atividade
pensante do homem e a elaboração de seu conhecimento em sentido
diferente, a saber, forçando a interpretação dos fatos naturais para
dentro de moldes lógico-filosóficos rigidos em que a dialética é
subestimada e relegada a um papel subordinado em proveito da
consideração estática da Natureza.
Isso aparece claramente em todo transcurso da evolução cul­
tural da humanidade até época muito recente; e ainda hoje destaca­
-se como elemento fortemente saliente. Na impossibilidade de pro­
cedermos aqui a uma análise pormenorizada e sistemática daquela
evolução, limitamo-nos aos exemplos mais característicos daquele
fato. Já não é preciso falar do fenômeno religioso e na natureza
eminentemente estaticista da Religião, com suas entidades eternas
e imutáveis, e sua explicação do Universo e dos fatos da Nah1reza
em geral, em função dessas entidades. As religiões, como concep­
ções interpretativas e explicativas ·do Universo, situamwse em pólo
oposto à dialética; e sómente não a renegam de todo na medida
estrita e exclusiva em que são obrigadas a concessões que a vida
prática e experiência rotineira dos homens impõem além de qual­
quer eventual posição. Mesmo contudo na Ciência pràpriamente,
NOTAS INTRODUTóRIAS A LóGICA DIALÉTICA 19

isto é, naqueles setores do conl1ecimento que lograram desvencilhar­


-se pelo menos em grande parte, do influxo de crenças religiosas,
vamos encontrar a ação flagrante da concepção estaticista. Assim
na própria Física, isto é, naquele setor do conhecimento que sem­
pre marchou adiante dos demais; e desde a Mecânica, a inais ele-
1nentar das ciências físicas e reputada tão rigorosa.

Isso é tanto mais sintomático, que o movünento mecânico cons­


tituiu sempre o grande problema da filosofia antidialética, porque
nesta experiência tão co1Tiqueira que é o movimento local (a mu­
dança de lugar), a dialética da Natureza se propõe de maneira tal
que não há como disfarçá-la. Somente pela negação pura e sim­
ples dêle, como já opinavam os Eleatas. Dentro das concepções
clássicas, o movimento é um paradoxo, e não é possível enquadrá-lo
numa conceituação que não seja lügicamente incoerente. Os argu­
mentos de Zenon de Eléia, já velhos de muito mais de dois mil
anos, e que provavam sem COil;tradita 16gica a inexistência do movi­
n1ento, aí estão ainda, sólidos como uma rocha, a desafiare1n a
argúcia dos logicistas da velha escola. Coube a Arist6teles, como
se sabe, uma solução, ou antes pseudo-solução do paradoxo, e que
einbora não passe de grosseira escamoteação, se perpetuou sob for­
mas rejuvenescidas até a ciência moderna. Conhece-se a distinção
aristotélica entre a potência e o ato, essa misteriosa "enteléquia" tão
artificiosamente arquitetada pelo fil6sofo para fazer do movimento
(como aliás de qualquer mudança além da simples mudança de lu­
gar) um estado a se realizar e que nêle se realiza. Elin1ina-se assim
o movimento prOpriamente, e com êle a dialética do fato, concen­
trando-o por assim dizer nos dois extremos estáticos da trajetória,
como estados sucessivos do corpo movido: em potência num dêles,
enteléquia no outro. Ora êsse jôgo verbal de Arist6teles (realizável
graças únicamente à estrutura e natureza estaticista da linguagem)
se manteve, em essência, na Mecânica moderna, e 1nal se disfarça
na generalidade de suas noções, como em particular nas de inércia,
momento, fôrça viva, energia, etc. O influxo do estaticismo é aí
patente. Além disso, o que vem a ser o mecanicismo como con­
cepção geral que pretendeu um momento abranger todo o conheci­
mento científico - e a tendência nesse sentido ainda se faz tanto
sentir - se não em essência um programa de escamoteação da dia-
20 CA I O P R AD O JúN!OR

!ética, uma vez que o movhnento n1ecânico ou mudança de luga·r


a que se tratava de reduzir todos os fatos da Natureza, é precisa­
mente a única mudança que não hnplica modificação, pelo n1cnos
aparente e considerável, de estado. O n1ecanicisn10 consagra assün
a permanência e imutabilidade.

Não precisamos insistir. A primeira solução dada ao problema


inicial e fundamental do c011hecimento, e .que é o da uniformidade
na multiplicidade, e da per1nanência no fluxo, sol11ção essa que tão
flagrantemente sacrificou a consideração da dialética dos fatos natu­
rais em proveito da da estaticidade, imprimiu fundamente seu cunho
na evolução elo con11ccbnento l1u1nano, estruturando a interpretação
dos fatos da Natureza, isto é, estabelecendo a norma geral da con­
ceituação dêsses fatos, em função exclusiva ou pelo menos prepon­
derantemente de u1n dos têrn1os contraditórios do problen1a: a uni­
formidade e permanência. Daí as deformações que a conceituação
vai sofrer como representação adequada dos fatos da Natureza, e sua
falta de flexibilidade em se ajustar corretamente a êles. Abre-se
assim o fértil campo dos debates filosóficos e da construção de
sistemas em que se procura incluir e enquadrar a experiênca hu-
1nana que se vai alargando co1n o correr dos tempos, nos rígidos
e inadequados esquemas conceptuais da Lógica clássica. Está claro
que os fatos reais sairão daí torturados e deformados; mas essa de­
formação ainda se faz pouco sentir nos primeiros estágios do desen­
volvimento da cultura. É que a tarefa do conhecimento ainda se
propç>e então mais acentuadan1.ente con1 o objeto prellininar de
um simples reconhecimento da Realidade, e identificação de suas
feições nocivas e favoráveis a serem respectivamente evitadas e pro­
curadas pela ação do homem. É ainda a fase de adaptação passiva
do homem a seu meio, em que o objetivo essencial dêle consiste
Unica1nente naquilo que se exprime na clássica fónnula ética: "'evitar
o mal e procurar o bem". O assunto s(nnente se proporá de 011h·a
inaneira quando se h·atar de "transformar o mal em bem", e intervir
ativamente para isso nos fatos da Natureza; quando, na expressão
famosa de Descartes, se objetivar "uma prática pela qual, conhe­
cendo a fôrça e as ações do fogo, da água, dos astros, dos céus e de
todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como CO-·
nhecemos os diferentes misteres de nossos artesãos, pudésse1nos
NOTAS INTRO DUTÓRIAS A LÓ GICA DlAL1':TICA 21

a1jlicá-los pela mesma forma a todos os usos para os quais são pró­
prios, e tornando-nos as.sin1 co1no senhores e possuidores do Uni­
verso.'· (Discours de la Méthode).
Antes disso, e enquanto a tarefa principal do Conhecimento
consiste apenas ou sobretudo em utilizar o pensamento no plano
inicial e primário da sünples preservação e adaptação passiva à Na­
tlrreza, plano êsse em que outras funções orgânicas já desempenha1n
um papel (como aliás tanto no homem como no animal), intervindo
o pensamento apenas como refi\rço suplementar e de alta enverga­
dma e potencialidade; aí o processo pensante elementar da iden­
tificação siniples1nente discrimínat6ria é relativamente suficiente. E
assim a uniformidade e permanência da Natureza, cuja consideração
constitui o essencial daquele processo, tomam relêvo desproporcio­
nado, e a multiplicidade e fluxo dos fatos naturais, a dialética da
Natureza, em suma, pode em rigor passar, e passa efetivamente a
um segundo plano.
Essa posição contudo se tornará, co1n o correr do tempo e
a6úmulo da experiência 11umana, cada vez mais falsa, pois as clás­
sicas concepções lógicas-filosóficas encontrarão dificuldades crescen­
tes para enquadrarem convenientemente um tal acúmulo de novas
experiências, e estruturarem adequadamnte a conceituação q11e re­
sulta daquele progresso do conhecimento; e bem assim, p01tanto, para
fazerem face às necessidades da ação humana. Isso se observará
particularmente bem na incompatibilidade cada vez maior entre as
clássicas concepções lógico-filosóficas e a ciência, isto é, o setor
da elaboração sistemática do conhecimento. Enb·e outros, a crítica
de Descartes e o esfôrço estéril dos filósofos dos sécs. XVII e XVIII
em harmonizar ciência e filosofia, inostra1n isso claramente. A si.:.
tuação se toma particularmente aguda naqueles séculos, quando por
circunstâncias históricas várias, a elaboração da ciência se intensi'"
fica consideràvelmente. E se a crise final do esquema lógico-filo­
sófico foi diferida para um ou dois séculos depois, isso se deve ao
fato que tal elaboração científica se fará na 111aior parte à margem
daquele esquema e dentro de outro sistema lógico que é o da Mate-
1nática. Mas êsse assunto não nos interessa aqui particularmente.
O fato é que o primeiro a dar o sinal de rompimento com a
Lógica clássica será Hegel. A solução hegeliana se reduz em última
22 C AI O P R AD O J ú NI OR

análise a uma reinterpretação (que êle fundamentará com os dados


da ciência e da elaboração científica de seu tempo) da noção fun­
damental do esquema lógico-filosófico clássico, a saber, da noção
de SER. Como vimos, foi para · dar «consistência" à Natureza tão
variável e fluida, que a filosofia clássica criara a noção de SER
imutável, imóvel e sempre idêntico a si próprio, no seio do apa­
rente fluxo universal que não seria senão o acidental e contingente
dêsse Ser. Numa palavra, o SER é sempre êle próprio, e exclui
por isso necessàriamente o que não é êle, o não-ser. E de fato,
como se sabe, a Lógica clássica se fundamenta precisamente na
exclusão dessa contradição entre o Ser e o Não-ser, o que constitui
o principio da identidade inscrito no ponto de partida de tôda aquela
Lógica. E nessa base ou com êsse critério ela estrutura a concei­
tuação, e considera e interpreta por conseguinte os fatos da Natu­
reza, ressalvando assim a uniformidade e permanência, em prejuízo,
como vimos, da dialética. A Lógica de Hegel, pelo contrálio par­
tindo embora da filosofia clássica, isto é, dessa mesma noção de
SER (que é dada no processo de identificação e por isso necessália
e inelutável, pois explime a uniformidade e peimanência da Natu­
reza que representam o dado essencial na base de que o pensamento
opera e o conhecimento se elabora) considera o SER não em si e na
sua identidade, como faz a Lógica clássica, mas como incluindo
a não-identidade, ou antes, tomando-se permanentemente em NÃO­
-SER por fôrça de sna própria identidade. Em suma, a Lógica de
Hegel deriva a dialética da própria identidade, isto é, deriva a
multiplicidade da uniformidade e o fluxo da permanência. E assim,
em vez de contornar a contradição dialética pela exclusão de um

de sens têrmos, à moda da Lógica clássica (contradição essa, note­


-se, imanente nos fatos naturais e que se enconh·a por isso necessà­
riamente implícita na conceituação em geral, e nos conceitos em
particular, em que se representam mentalmente aquêles fatos), a
nova Lógica tratará pelo contrário, em cada caso, de descobrir e
pôr em evidência aquela contradição do SER e NÃO-SER que ex­
p1ime conceptualmente a dialética dos fatos. E permitirá assim
conceituar, isto é, representar mentalmente em tê1mos conceptuais,
o fluxo incessante da Natureza, a sua dialética em suma.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGICA DIALl<TICA 23

Vejamos isso numa exemplificação dos procedimentos da Lógica


de Hegel que é o da conceituação do movimento rnecânico ou mu­
dança local, exemplo êsse que escolhemos por ser precisamente da­
queles que mais premahiramente evidenciaram as dificuldades da
Lógica clássica. Dificuldades ainda hoje sem solução satisfatória.
A definição, ou mais precisamente, a conceituação clássica do mo­
vimento se funda essencialmente na consideração da ocupação su­
cessiva dos diferentes pontos da trajetória. Essa consideração é
perfeitamente justa porque realmente um corpo em movimento, como
logo se vê, vai sucessivamente ocupando diferentes pontos. Mas ela
é insuficiente, porque a simples· ocupação significa repouso e não­
-movimento - é aí que tropeça a Lógica clássica -; e assim, da
consideração da ocupação precisamos passar desde logo para a da
passagem para fora do ponto ocupado, para a não-ocupação, por­
tanto. Noutras palavras, caracterizar e conceituar o movimento
como "ocupação sucessiva de diferentes pontos", é enxergar apenas
um aspecto do fato, pois essa Ocupação, para não significar repouso,
envolve necessàriamente o abandono da mesma posição, a não­
Rocupação. O que caracteriza o movimento não é assim apenas a
circunstância de o corpo em movimento «ocupar" os diferentes pon�
tos da trajetória, e sim também a de "não os ocupar"; sendo por­
tanto necessário, ao conceituar o movimento, considerar ao mesmo
tempo tanto a ocupação (o sei- num ponto) como a não-ocupação
(o não-ser nesse mesmo ponto.)

Essa a posição da Lógica Dialética. Generalizando - embora


estejamos aqui Unicamente numa primeira aproximação muito esque­
mática do assunto -, a Lógica de Hegel, embora partindo da con­
ceituação e dos conceitos tal como êles já são dados na Lógica
clássica que a precedeu (e nem poderia ser de outra forma, uma vez
que não é possível fazer tábua rasa do acúmulo de conhecimentos
anteriormente elaborados, e recomeçar de novo essa elaboração) , a
Lógica de Hegel considera naqueles conceitos não apenas o SER
que êles exprimem, mas também e simultâneamente o NÃO-SER
que nêles llnplicitamente se contém. E o conceito assim conside­
rado nos dará, com o elemento estável e permanente dos fatos, con­
siderado com exclusividade pela Lógica clássica, também a dialé­
tica dêsses mesmos fatos. Vemos assim que a Lógica de Hegel,
24 CAIO PRADO JúNIOR

em Contraste com a Lógica clássica, é capaz de dar conta e con­


ceituar adequadamente a dialética que caracteriza a mudança e o
fluxo ,incessantes da Natureza. Mais que isso mesmo, ela constih1i
por excelência a lógica do fluxo, da variabilidade, da mudança. Isso
porque se a noção de SER inclui sempre e necessàriamente em si
o seu contrário, que é o NÃO-SER (como propõe a Lógica Dialé­
tica), a Natureza que fundamentalmente se conceitua com essa no­
ção de SER, se considerará sempre, através da Lógica Dialética,
como em incessante transformação, porque o NÃO-SER estará sem­
pre aí presente como o contrário do SER e que há de destruí-lo a
fim de o transformar em outro SER.
Note-se bem, e insistimos mais uma vez nesse ponto, que a
Lógica hegeliana não exclui o SER, a identidade, e portanto o pro­
cesso de identificação que a observação concreta dos fatos do co­
nhecimento patenteiam de forma evidente, e sem o qual, como vimos,
não haveria conhecimento. A Lógica hegeliana inclui êssé SER
num processo de autodestruição pela sua negação que se contém
na sua própria identidade e se desenvolve por fôrça dela mesma.
Respeitam-se assim as circunstâncias fundamentais da Natureza tal
como ela se apresenta à experiência e ação do homem (10), e em
vez de sacrificar uma dessas circunstâncias, que é o fluxo, a· mu­
dança, a transformação, em proveito da uniformidade e permanên­
cia, como faz a Lógica clássica, funde ambas numa noção única
em que as duas são respeitadas e devidamente consideradas; tanto
quanto é considerada a contradição interna e imanente em tôdas
as feições e fatos da Natureza.
É essa a solução a que chega com Hegel, depois de mais de
vinte �éculos de evolução e maturação da cultura hu1nana, o pro-

(IO)' :t.: de notar que certas concepções recentes procuram resolver as


dificuldades da Lógica clássica eliminando pura e simplesmente o SER. É
o que faz o fenomencilismo; e entre outras correntes fenomenalistas, o existen:­
ciaUsmo quando pretende substituir a "essência" pela "existência". Tudo
isso não passa no entanto de jôgo de palavras que se vale dos embaraços das
concepções lógico-filosóficas clássicas, para reintroduzir na circulação as mes­
mas concepções sob disfarce adequado. Não é aqui o lugar pró prio para dis­
cutir o assunto, mas de início se pode opor a improcedência de filosofias que
não toma1u em consideração os dados concretos da experiência que substituem
pela pura especulação em tôrno de palavras vazias de conteúdo.
NOTAS !NTRODUTóRIAS À LÓGICA D!ALl':TICA 25

blema fundamental do Conhecimento. A Lógica Dialética, ou antes


as premissas e primeiras sementes da Lógica Dialética estavam lan­
çadas. Premissas apenas, porque a Dialética, tal como sai das
mãos de Hegel, está mal colocada. Hegel é idealista, e um filósofo
com todos os vícios da filosofia especulativa. Por isso confunde os
processos do seu pensamento que exprimem a Dialética, com a
própria dialética da Natureza. Para êle não há distinção entre o
esquema lógico que engendra ou revela ( e que é o do pensamento
dialético), e os fatos naturais e exteriores ao pensamento. E assim,
em vez de derivar a Lógica a partir dêsses fatos, inverte o processo,
e no seu sistema deriva os "fatos" da Lógica: a dialética da Natu­
reza não será para Hegel senão uma expressão da Lógica Dialética,
e os fatos q11e êle apresenta e analisa em sua obra histórico-cientí­
fica, não aparecem nela senão como ilush·ação dos procedhnentos
daquela Lógica. Tais fatos constituem a realização da Lógica Dia­
lética que exp1ime a dinilmica da Idéia.

A germinação da semente da Dialética lançada por Hegel ocor­


rerá com seus discípulos e sucessores Marx e Engels; e as condi­
ções necessárias para isso serão dadas pelas ciTcunstâncias ltlst6-
ricas do momento, a saber, a profunda transformação sacia] em curso
na Europa por efeito da revolução industrial iniciada no século
XVIII, e o conseqüente aparecimento de uma nova classe social em
rápido crescimento e desenvolvimento: o proletariado industrial.
Marx e Engels, ao contrário de Hegel, não se apresentam como filó­
sofos que se ocupam em resolver e levar adiante a solução do pro­
blema filosófico do Conhecimento, problema êsse de que tinham
brotado as premissas da nova Lógica (tanto como, séculos antes,
brotara a Lógica de Aristóteles ) . Marx e Engels são sobretudo ho­
mens de ação, e se propõem resolver o problema político gerado
pela transformação social acima refeiida. E por isso não cuidam
de filosofia nem da solução do problema do Conhecimento. Mas
como homens de ação que se inspiram e procuram consciente e
sistemàticamente inspirar-se na filosofia que constitui a expressão
máxima e como que condensada do conhecimento científico de cada
época, orientam-se pela lição de Hegel e vão cuidar dos fatos sociais
e políticos que os interessam, inspirando-se naquela lição. Empre·
garão por isso a nova Lógica; mas isso pràticamente e com o
26 CAIO PRADO JúNIOR

objetivo de resolverem os problemas da ação que se lhes apresen­


tam. Invertem assim a posição de Hegel, e em vez de partirem
da Lógica, para daí alcançarem os fatos simbólicos e ilustrativos
dos procedimentos daquela Lógica (como fizera Hegel), procuram
os fatos; os fatos sociais em particular, que são os que imediata­
mente os interessam. Em suma, Marx e Engels, como políticos que
conduzem sua ação inspirando-se na Dialética de Hegel, vão consi­
derar dialCtícamente os fatos, isto é, observar a dialética da Nah1-
reza com os instrumentos, o método da Lógica Dialética. Desloca­
-se assim o centro das atenções, da Lógica em si (como o assunto
se propõe na Filosofia), para aquela dialética da Natureza. E des­
faz-se por conseguinte a confusão hegeliana.
Nias isso assegura, à Lógica Dialética, a sua consolidação, por­
que de um lado se revelam as perspectivas que oferece e a fecun­
didade de seu método: a obra científica e prática de Marx e Engels
o demonstram. E doutro lado, êsse emprêgo da L6gica Dialética
vai contribuir poderosamente para esclarecê-la e melhor a definir,
caracterizar mais rigorosamente seu método e seus procedimentos.
A obra de Marx e Engels, tôda ela inspirada na Dialética, e ofe­
recendo os mais belos exemplos de aplicação dos seus métodos à
análise e interpretação dos fatos, trará para a Filosofia, embora,
aquela obra não tenha sido especificamente filosófica, u1na .contri­
buição considerável e decisiva. Encontra-se em Marx e Engels o
material necessário para a caracterização definitiva da Lógica Dia­
lética e a definição de seus métodos. O que quer dizer a nova filo­
sofi1l e suas concepções que resolvem o problema fundamental da
filosofia de todos os tempos.
Sem entrar em pormenores e no desenvolvimento sistemático do
assunto aqui incabíveis, procuremos com alguns exemplos da análise
marxista mostrar a luz que ela projeta sôbre o método dialético e o
emprêgo da Lógica Dialética. Trata-se essencialmente, em Marx
e Engels, da questão do proletariado, e ao abordá-la, não se limitará
o marxi;mo, como tôdas as demais correntes ideológicas da época,
em considerar a oposição e a luta do proletariado e da burguesia
do ponto de vista de uma ou de outra das fôrças em choque. Isto
é, o marxismo não se colocará na posição de um dos têrmos da
oposição - ou de ambos, mas sucessivamente, um depois do outro,
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 27

como faziam e ainda fazem aquêles que procuram entre as classes


em luta uma distribuição '"equitativa" de direitos e obrigações -;
e logo em seguida, em nome de alguma fôrça exterior àquela opo­
sição (Justiça, interêsse social ou outra qualquer), propõem medidas
e reformas, até mesmo ·�revolução''. O marxismo procede diferen­
temente, porque é a dialética dos fatos que procura, e não pretende
introduzir nêles, de fora e no momento oportuno, elementos ou fôrças
estranhos àqueles fatos e escolhidos no arsenal de instrumentos e
preferências subjetivas do observador e político. É certo que o
ponto de partida do marxismo é o mesmo: começa sua análise, como
não podia deixar de ser, pela · consideração das classes em que se
divide a sociedade, proletariado e burguesia, como identidades que
são, isto é, que exprimem respectivamente, de u m lado, a condição
de milhares de indivíduos que embora tão diferentes uns dos outros,
se assimilam e identificam entre si como pessoas que privadas dos
meios de produção, são obrigadas, para viverem, a alienarem a
.
fôrça de seu trabalho que não se pode aplicar sem a disposição da­
queles meios de produção; e exprimem doutro lado, outros indi­
víduos também assimiláveis e identificáveis entre si como proprie­
tários dos mesmos meios de produção, a saber, os capitalistas. Marx
e Engels contudo não consideram essas identidades "em si" (como
faria a Lógica clássica), e sim em função uma da outra: a identidaà.e
operário em função da identidade capitalista, e vice-versa a identi­
dade capitalista em função da identidade operário. É assim em fun­
ção ou na perspectiva urna da outra, que o marxismo procul'a carac­
terizar essas identidades: o ser operário em função de um não-ser
operário que no caso é o capitalista; o ser capitalista em função do
não-ser capitalista, a saber, o operário. É tal maneira de considerar
essasidentidades que representam fatos ou feições da Natureza so­
cial que Marx e Engels analisam, que lhes permite descobrir e
observar, sob uma justa luz, as relações capitalistas de produção,
pois é precisamente através de tais relações que se passa do ser
operário ou capitalista, para o não-ser respectivamente capitalista e
operaria. Efetivamente, é nas relações capitalistas de produção, e
sàmente nelas, que o ser operário é o não-ser capitalista, e o ser
capitalista o não-sei' operário; relações essas que opõem um a outro
(operário e capitalista) precisamente porque operário e capitalista
28 CAIO PRADO JúNIOR

são nelas respectivamente expressão do oposto: o operário existe en1


função do capitalista (sem capitalista não haveria operário), e se
opõe a êle por isso mes1no - porque o capitalista, como tal, existe
para se apropriar de parte do produto do trabalho do operário.
Assiin também, e vice-versa, o capitalista existe em função do ope­
rário (sem operário não haveria capitalista), e se opõe a êle por isso
1nesmo - porque o operário, como tal, existe para ser desapropriado
de uma parte do produto de seu trabalho, pelo capitalista. Observa­
-se por aí como a caracterização das relações capitalistas de produção
resulta da consideração das identidades respectivamente do operário
e capitalista, em função ou na perspectiva uma da outra.
Essas considerações pennitem a Marx e Engels passar da noção
de classes e da oposição de operários e capitalistas (onde a Lógica
c.lássica estagna, ou só pode sair por um salto imprevisto e arbitrário)
para outra identidade que é o Capitalismo; Capitalismo êsse que
se é certo que se identifica como um regime econômico-social deter­
minado, identifica-se como tal precisamente pelas relações de pro­
dução em que figuram operários e capitalistas. Assim a identidade
do Capitalismo não é dada apenas "em si", como detenninado re­
gime econômico-social, mas em função das relações que o estrutu­
ram e compõem. Isso permite a Marx e Engels revelar o Mo-ser,
a negação dêsse Capitalismo que êles como políticos revolucionários
que são, e preocupados antes de mais com a dialética dos fatos que
analisam, precisam descobrir; negação essa que deve estar incluída
e implícita nas próprias relações que estruturam e representam a
identidade do Capitalismo.
De que modo, nesta altura, procede a Lógica marxista? Consi­
dere-se novamente a n1aneira pela qual operários e capitalistas se
identificam uns pelos outros e por isso mesmo se opõem. Porque,
essencialn1ente, certos indivíduos humanos são identificáveis como
operários, outros como capitalistas? Já vimos isso: êstes últimos são
proprietários dos ineios de produção, de que os outros são privados.
Assim o que caracte1iza essencialmente o Capitalis1no será natural­
n1ente o fato que dá origem tanto a operários e capitalistas, como
em conseqüência também às demais relações que daí derivam, a
saber, a propriedade dos meios de produção e a privação dêles,
respectivameute por parte dos capitalistas e dos operários. A iden-
NOTAS INTRODUTóRIAS A LÓGICA DIALll:T!CA 29

tidade do Capitallsmo é pois, em essência, a propriedade privada


dos meios de produção, isto é, a propriedade de uns e a não-pro­
priedade de outros. E assim o não-sel' do Capitalismo (isso que
Marx e Engels procuravam), a sua não-identidade ou negação será
a não-propriedade privada das meios de produção; a propriedade
coletiva ou social, portanto. O Socialismo, como se convencionou
chamá-lo. A dialética do Capitalismo, a sua mudança, será a socia­
lização dos meios de produção. Marx e Engels, graças a seu mé­
todo de análise, têm agora a chave do problema político que se
propuseram, ou antes, que a sociedade em que viviam e a transfor­
mação que nela se observava, tinham proposto. Sabiam portanto
para onde se dirigiam, e podiam por conseguinte traçar normas para
sua ação e para a luta do proletaiiado: a abolição da propriedade
privada dos meios de produção e a socialização dêles. E essas con·
clusões êles não as extraem de seu fôro íntimo, de suas preferências
e opiniões pessoais; e sim da pr6pria dialética dos fatos que a Ló·
gica Dialética lhes permitiu desvendar, interpretar e adequadamente
conceituar.

Tudo isso é naturalmente muito esquemático, e serve apenas


de orientação na análise da obra marxista e da aplicação da L6gica
Dialética aos fatos considerados por Marx e Engels. Traduzamos
todavia a interpretação marxista, que aquela análise nos permite
compreender, em têrmos gerais e lógicos; e isso nos dará desde logo
a estrutura do pensamento dialético aplicado à consideração dos
fatos em geral; o método dialético em suma. Em essência, o que
a análise da obra de Marx e Engels revela é que uma vez propostas
as identidades que se apresenta1n nos fatos considerados (no exem­
plo que demos tratava-se inicialmente de classes sociais, operários
e capitalistas) a caracterização, definição ou melhor, conceituação
dessas identidades se fará não "em si" (como procede a L6gica clás­
sica ao procurar a «natureza" ou "essência" das coisas consideradas,
isto é, "o que faz a coisa ser o que ê'), mas em função precisamente
da não-identidade, da negação. Essa direção da análise orienta a
pesquisa para a posição relativa que as circunstâncias do fato ou
fatos considerados, ocupam respectivamente umas com referência às
demais; e revela-se assim o conjunto, tanto espacial como temporal,
com que todos os fatos observados se articulam enh·e si (espacial
30 CAIO PRADO JúNIOR

quando os fatos são considerados na sua simultaneidade ou coinci­


dência no tempo; tempoTal, quando considerados na sua sucessão).
Essencialmente, portanto, o que se trata sempre de revelar é o rela­
cionamento dos fatos. Note-se contudo que êsse relacionamento não
consiste numa ligação exterior e por justaposição: as relações que
se procuram devem caracterizar-se pela circunstância d e constituírem
elas pr6prias a identidade dos fatos considerados, e serem dispostas
de tal maneira que a identidade dos fatos a relacionar exprima a
não-identidade de outros. Como se viu no exemplo acima refe­
rido, as relações entre operário e capitalista não se procuram fora
dêsses têrrnos a relacionar, em ligações exteriores, e sim na própria
identidade de cada qual; e identidade essa vista sempre em função
ou na perspectiva da do outro têrmo da relação: o operário em
função do capitalista, o capitalista em função do operário. É êsse
o -tipo de relação que se trata de revelar, e não a pseudo-relação
da Lógica clássica, concebida como ligação externa e posterior de têr­
mos preexistentes que se ligam ou "relacionam" já depois de cons­
tituídos; e sim relação cujos têrmos existem Unicamente em função
dela, e portanto sOmente depois de estabelecida a relação e como
decorrência dela.
É êsse método de relacionamento que permitirá a Marx e Engels
orientarem a sua observação, pesquisa e análise da vida social de
inaneira a revelar a estrutura profunda e a dinâmica real dos fatos.
Isto é, conceituá-los adequadamente, e dar assim a solução aos pro­
blemas de ação e conduta que se tinham proposto. Ao mesmo tempo,
a obr� daqueles precursores do inarxismo e o manejo do método
dialético que se encontra tão fartamente exemplificado naquela obra,
porá tal método em evidência, e com êle a natureza e os procedi­
mentos da Lógica Dialética. E isso permitirá aos continuadores do
marxismo, em particular Lénin e Stálín, empregá-la con1 segurança
e precisão crescentes na interpretação dos fatos sociais, tornando-a
as.sim cada vez mais definida e caracterizada con10 método de pen­
samento.
Mas a Lógica Dialética não é específica para os fatos sociais, e
sua aplicação há de se estender a todos os fatos da Natureza. Mais
ou menos conscientemente, embora muito "menos" do que "mais'�
já é o que ocorre, e de maneira crescente, em todos os domínios do
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 31

Conhecimento. Empregado emplricamente, e não metàd·icamente


( o que implicaria consciência plena do método dialético ) o relacio­
namento constitui o procedimento essencial da moderna elaboração
científica, e não há ho1nem de ciência que não o reconheça. E
quando se aventura em considerações de ordem geral e lógica, ex­
pressamente o reconhece. Aliás o maior embaraço que se observa
naqueles setores da filosofia contemporânea ainda apegados às con­
cepções da Lógica clássica, consiste precisamente na dificuldade aí
encontrada (dificuldade aliás insuperável) em harmonizar os proce­
dimentos da ciência moderna com aquelas concepções; e é por isso
que vemos tantos pensadores contemporâneos (quando não são outros
motivos de ordem política que os levam a isso) repudiarem a ciência,
ou pelo menos lhe oporem restrições. É que a relação dialética é o
oposto da essência metafísica em que se funda a Lógica clássica;
e a incompatibilidade entre ambas é irredutível.
A L6gica Dialética se propõe assim claramente, e trata-se de pre­
cisá-la definitivamente, caracteri�á-la plenamente como processo cien­
tífico de pensamento, como instrumento lógico a ser aplicado siste­
mática e metôdicamente na observação, análise e interpretação dos
fatos, isto é, na elaboração do Conhecimento, bem como na sua apli­
cação prática em função da qual o Conhecimento se constitui. Trata­
-se em suma de completar e sistematizar a Lógica Dialética que se
há de aplicar como método plenamente caracte1izado à interpreta­
ção da dialética da Natureza.
Isso responde suficientemente, ao que parece, à questão pro­
posta no início do presente capítulo, e justifica, se não êste livro
(que is;.;o caberá ao leitor fazer ou não fazer), pelo n1enos seu objeto
que é aquela Lógica Dialética que na presente altura já não se con­
fundirá n1ais, acreditamos, com a dialética da Natureza.
2. - LóGICA CLASSICA E NOVA LóGICA

A Lógica clássica, tal como data da linha de pensadores gregos


que precedem imediatamente Aristóteles e vão nêle dar, tem sua
origem nas necessidades do discnrso verbal, sobreh1do daquele em­
pregado no debate entre disputantes. Tratava-se - e é isso que
visava iniciahnente a Lógica (11) - do emprêgo adequado e cor­
reto da linguagem com o fito se não de convencer o adversário des­
tituído de razão e incurso em êrro, pelo menos de o confundir, exi­
bindo as incoerências de suas teses. Acreditavam os pensadores
gregos - e dados os costumes e as instituições públicas da Grécia,
as políticas e as judiciárias, onde o debate oral tinha um papel de
primeiro plano, isso tinha sua razão de ser - que era essa a maneira
de expurgar o êrro e descobrir a verdade. Sabe-se como Sócrates
empregava o diálogo (a "dialética", como se dizia) para o fim de
pôr à mostra as incoerências eventuahnente contidas em qualquer
opinião, e assim reajustá-la convenientemente e a corrigir, fazendo
então brotar a Verdade. Platão considerará a Dialética, assim com­
preendida, como instrumento máximo do Conhecimento e da desco­
berta da Verdade, e a empregará invariàvehnente na sua .obra. E
Aristóteles, continuador daqueles seus antecessores e mestres, se
limitará a completar e sistematizar as regras do discmso por êles
apontadas (12.) Daí resultará a Lógica tal como foi compreendida
durante séculos, e até época muito recente da história da Filosofia.

Efetivamente, a tradição grega se perpetuou, e a Lógica, enten­


dida como instrumento racional para a descoberta da Verdade, con-

(11) li: de notar que a denonúnação de "lógica" só foi dada ao conjunto


de regras sistematizadas por Aristóteles, depois dêsse filósofo, Nem êle, ''1},_il!!!I'__,,,
muito menos seus antecessores a empregam no sentido que hoje lhe d
(12) A comprovação disso se encontra em Caio Prado Júnio
do Conhecimento, I, 166 e segs.
34 CAIO PRADO JúNIOR

tinuou ocupada com a estrutura formal da linguagem e com o mé­


todo próprio de a manejar e dispor convenientemente no discurso,
para o fim da revelação da Verdade. íl:sse modo de considerar o
assunto se mostrou histàricamente, isto é, através da experiência
muitas vêzes secular da humanidade, improcedente e totalmente in­
fecundo. Isso porque, de um lado, êle pressupõe uma hipótese in­
fundada que de fato nunca foi possível justificar, e que por isso
mesmo se tornou a principal, e em últü::p a análise causa originária
de t&das as dificuldades da Filosofia, a saber, a concepção de um
paralelismo rigoroso e necessário se não mesmo confusão e unidade,
entre a realidade objetiva e exterior ao espírito humano, e a estru­
tura do pensamento tal como êle se revela e exprime na linguagem.
Em outras palavras, a Lógica clássica se funda no postulado que a
Lógica é necessària1nente «real", que corresponde rigorosamente à
«realidade"; e que a coerência ou incoerência do pensameinto ex­
presso em linguagem, coincide ou não coincide respectivamente com
a Verdade, com o real e verdadeiro comportamento dos fatos da
Natureza. Essa concepção encontra sua expressão vulgar e cO'r­
Tente na tão empregada afirmação «Isso é lógico", para exprimir a
rigorosa verdade daquilo a que se atribui o caráter de "lógico."
Doutro lado, o progresso moderno do conhecimento, realizado
inteiramente à margem da Lógica formal, mostrou cabalmente e
além de qualquer dúvida, que a descoberta da verdade não depen­
dia daquela Lógica. Lógica e Ciência se tinham completamente

aparta o, e aquela primeira, como objeto de consideração, ficara res­
trita a exíguos círculos filosóficos, desprezada se não ridicularizada
por aquêles que estavam efetivamente const1uindo a ciência mo­
derna.
Caberia todavia perguntar se com isso se eliminou a Lógica do
terreno das preocupações realmente fecundas e necessárias ao pro­
gresso do conhecimento humano. É o que sustentaria um Descartes;
e é o que está no pensamento geral, e expresso muitas vêzes, de
grande parte se não da quase totalidade dos homens de ciência
modernos. Mas apesar disso, a Lógica subsiste, e não apenas como
anacronismo e assunto obsoleto de que se ocupam uns poucos e extra­
vagantes indivíduos. Realmente, não presenciamos em nossas dias,
até mesmo êste espetáculo, inaudito há pouco mais de meio século
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALÉTICA 35

passado, d.e homens de ciência dos mais autorizados, retomando


os velhos temas da filosofia especulativa, e procurando desespera­
damente na L6gica um guia e fio condutor que lhes parece faltar
no interior de suas ciências respectivas? E não se está procurando
galvanizar a velha e decrépita L6gica formal com esta jovem Lo­
gística de tão grande sucesso nos mais autorizados círculos da ela­
boração científica de nossos dias? Essas observações permitem a
conclusão que no nível atual da elaboração científica, já não é mais
suficiente, ao pesquisador e homem de ciência, louvar-se U·nicamente
na intuição como guia de seus procedimentos, havendo mister de
algo mais consciente e 1netodizado.
Há mais contudo. É sob o signo ideol6gico de um método de
interpretação dos fatos humanos, o que significa «Lógica", que se
vê1n realizando, de um século para cá, as maiores transfor1nações
sociais jamais presonciadas pela humanidade. Século êsse que vem
do Manifesto Comunista de 1848, quando se abre a luta consciente
do proletariado e das massas trabalhadoras em geral por uma nova
ordem social; até a revolução socialista de 1917, a construção do
socialismo numa parte da humanidade que já hoje representa quase
um têrço de seu total, e a germinação acelerada da revolução em
todos os quadrantes da terra. Mas não estamos mais aqui no ter­
reno nem sob a inspiração da velha L6gica clássica legada pelos
gregos. Nem mesmo das retificações, i-eformas e transfo1mações
nela operadas mais recentemente pelos modernos logicistas ortodo­
xos e ainda impregnados da Metafísica. É uma nova L6gica que
eclodiu, ou está em vias de eclodir, filha e legítima expressão da
ciência moderna. E é essa nova Lógica que se trata de exprimir
em têrmos claros e precisos, de maneira a se poder utilizá-la cons­
cientemente e com rigor na elaboração da ciência em geral.
Como proceder a isso? Aquêles que se inspira1n ainda nas mes­
mas concepções em que se funda a Lógica clássica, vão procurar
uma nova L6gica (ou antes que julgam nova) no pr6prio formalismo
em que a Lógica se há de apresentar, e que é no essencial o mesmo
de que se serviu Aristóteles, a saber, nas formas verbais tal como
elas se apresentam na expressão do conhecimento e da ciência. É
dessas fo1mas que partiu Aristóteles, em continuação a Sócrates e
Platão, na estruturação de sua Lógica. São elas ainda o material
36 CAIO PRADO JúNIOR

de que se servem as lógicas mais recentes. A diferença está ape­


nas em que Aristóteles se achava limitado à linguagem discursiva
elementar em que se exprimiam os rudimentares conhecimentos do
seu tempo; enquanto os seus modernos sucessores e continuadores
(renegando embora muitas vêzes sua filiação) dispõem para isso, a
par de uma linguagem discursiva muito mais elaborada em que se
exprime o alto nível atingido pela ciência moderna, também d a lin­
guagem mate1nática em que se traduz boa parte da mesn1a ciência
moderna. A diferença pode ser assim considerável. E de fato é,
mas só aparentemente, porque no fundo os processos empregados
são essencialmente os mesmos. Encerram-se no formalismo, e dêle
não procuram sair. A Lógica Dialética, pelo contrário, vai para
trás, ou procura ir para trás dêsse formalismo e para aquilo que
o mesmo formalismo exprime, a saber, o próprio conhecimento e o
processo de sua elaboração. Toma em consideração (e adota essa
consideração como ponto de partida) os processos mentais (psico­
nervosos) através dos quais ou pelos quais se realiza a constituição,
no psiquismo humano (a "esfera subjetiva", na terminologia clássica
da Filosofia), de uma "reprodução" ou "representação" do mundo
exterior ao pensamento elaborador do conhecimento (a "esfera objeti­
va" do conhecimento). Empreguemos, para simplificar, essas expres­
sões usuais e consagradas: ccrepro<lução" ou <<representação", sem con­
tudo perdermos de vista o seu caráter figurado e essencialmente con­
vencional. O que se estampa no psiquismo humano como resultado
dos contactos do indivíduo pensante com o mundo exterior - e
que figurada e convencionahnente denominamos «reprodução'� ou
ccrepresentaçãó' - são de fato processos nervosos que se manifes ­
tam para o mesmo indivíduo pensante em estados subjetivos que
vão desde a sensação física e a imagem sensível (13), até a con­
ceituação ahsh·ata, e que assim dão conta para .êle da realidade
exterior a seu pensamento.
Considerado o assunto nesses têrmos, a natureza e o objeto
da Lógica (como ciência e com métodos da ciência, e não apenas
como arrolamento e sistematização de normas formais e intuitivas

(13) Não entraremos aqui na controvertida questão da natureza das ima­


gens sensíveis que não referire1nos senão no sentido da representação mental
diretamente provocada pela sensibilidade, e que se conserva na memória.
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LôGICA D!AUTICA 37

do pensamento discursivo) desde logo se revelam e definem pelo


lugar que ela (a Lógica) vai ocupar no campo da pesquisa e ela­
boração cientificas. Isso porque a análise do progresso cognitivo
representará o têrmo de ligação e entrosamento da Lógica, em dis­
ciplinas afins já constih!Ídas em bases cientificas e dispondo de
métodos e procedimentos científicos de elaboração que se estenderão
assim nahU"almente à Lógica. São essas disciplinas a fisiologia do
sistema nervoso central e a psicologia.

Efetivamente, a teoria do processo cognitivo, concebido e carac­


terizado como acima, situa-se p_aturalmente na confluência daquelas
disciplinas e da lógica. De um lado, a fisiologia do sistema ner­
voso central tem por objeto os processos nêuricos pelos quais se
realiza aquela reprodução ou representação acima referida, das fei­
ções da Natureza no psiquismo do indivíduo pensante; e a psico­
logia ocupa-se da nahU"eza, formação e eventuais reações dos esta­
dos psíquicos constituídos por efeito daqueles processos nervosos.
Restará para completar o assunto, a consideração do conteúdo dês­
ses estados; noutras palavras, como se dispõe, organiza e estrutura
no individuo pensante, a reprodução ou representação que êle tem
<lo mlmdo exterior a seu pensamento.
Para tomarmos a matéria mais clara, podemos apresentá-la da
segninte forma: a reprodução ou representação das feições da Na­
tureza no psiquismo h11mano, se faz por imagens sensíveis e sobre­
tudo por «idéiaS' ou conceitos. Isso é evidente, pois na medida
em que o conhecimento (seja cientifico ou vulgar) constitui para
nós, indivíduos pensantes, a reprodução ou representação do mundo
exterior, e é êle mesmo (o conhecimento) constituído essencialmente
de conceitos, êstes serão evidentemente aquela reprodução 011 re­
presentação. E é a consideração dessa conceituação que sobrará
para completar a teoria do processo cognitivo, depois das contri­
buições acima referidas da fisiologia e da psicologia. E isso é
L6gica, ou antes, o ohjeto de que a L6gica se ocupa e de cuja aná­
lise decorrerá naturalmente (como ainda se verá melhor adiante)
tôda a matéria ordinària1nente incluída na Lógica normativa. Nias
já agora não de maneira apriorística, como se as normas formais
da Lógica constituíssem um lado irredutível e expressão não se
sabe de que Razão ou Intuição (e é assim que são consideradas no
38 CAIO PRADO JúNIOR

tratamento clássico do assunto); e portanto destituídas desde logo


de critério ou fundamentação científica, a não ser em misteriosas
inspirações subjetivistas em tôrno das quais a Filosofia vem inUtil­
mente deblaterando durante séculos de especulação infecunda. O
que se impõe é derivar a Lógica e suas normas, de suas premissas
reais e concretas, que são o conhecimento humano em elaboração
e sistematização através das operações do pensamento; e só então,
e como conseqüên-cia, suscetíveis de formalização, isto é, de tra­
dução em expressões verbais e gráficas.O mal do tratamento clás­
sico da Lógica e que acima referimos, é que se parte nêle do for­
malismo lógico já constituído, sem procurar o que está por detrás
dêsse formaHsmo; isto é, qual a sua origem e gênese. Tem-se assim
uma visão parcial e por isso, além de limitada, deformada do as­
sunto. É aquela gênese que sobretudo interessa, porque é ela sà­
mente que nos pode revelar o sentido e valor do formalismo. A
tarefa lógica não consiste Unicamente, como pretende o tratamento
clássico do assunto, em pesquisar e sistematizar as formas lógicas
incluídas na linguagem. É preciso ir além. E mesmo para realizar
aquela pesquisa de maneira adequada, torna-se necessário saber
como e donde tais formas se originam. E isso sàmente pode ser
dado pela análise do processo cognitivo em que a conceituação
se elabora e constih1i, isto é, pela análise do processo psicológico
derivado dos contactos do indivíduo pensante com seu mundo ex­
terior, e que resultam para êle em representações mentais que re­
produzem êsse mundo em seu pensamento.
.
Há que prevenir aqui desde logo um possível mal-entendido. Não
se trata no caso, como talvez pudesse parecer à primeira vista, de
ressuscitar, para a análise da conceituação, os métodos subjetivistas
de introspecção que constituíam o arsenal de uma velha psicologia
já ultrapassada. A conceituação é um fato subjetivo, não há dúvida,
pois sua existência se desenrola no interior da esfera subjetiva dos
indivíduos. Mas não é aí que se há de alcançá-la para os fins que
temos em vista, e sim em suas manifestações exteriores, seja na
linguagem em que se exibe, seja sobretudo nas expressões e na his­
tória do conheciinento humano. Êsse conhecimento é um fato tão
objetivo, no sentido científico da palavra, como outro qualquer, fí­
sico ou social; e êle pode ser observado tanto diretame:r:ite ( co1no
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALllTICA 39

no corpo em constituição e no já constituído da ciência), como indi­


retamente através da ação e comportamento humanos que nêle se
inspiram.
Ora isso abre desde logo perspectivas amplas para a experi­
mentação destinada a proporcionar a observação, análise e interpre­
tação da representação mental e do processo de sua constituição.
É certo que a Psicologia experimental não se tem preocupado muito
com o que per1nanece na esfera mental do indivíduo por efeito
das sensações e outros estímulos que lhe provêm do exterior. Ela
se ocupa do assunto no capítulo da memória, mas co1n ouh·os cri­
térios que não o da natureza, constituição e atividade da represen­
tação mental, e da conceituação em particular. Ora é isso preci­
samente que interessa o nosso assunto. Apesar disso, a experimen­
tação psicológica ; devidamente reinterpretada, traz para a obser­
vação e análise da representação mental e para os fatos 16gic.os uma
larga contribuição, como teremos ampla ocasião de verificar. Êsse
é o caso até da Psicologia do Comportamento, por mais que contra­
rie as concepções usuais na matéria. É de notar que a Psicologia
do Comportamento não constitui de fato senão observação indireta
do psiquismo através de suas manifestações exteriores que são o
comportamento do indivíduo considerado. Não é evidentemente
em si que o comportamento interessa a Psicologia (embora nem sem­
pre se ateri.te suficientemente para isso), pois doutro modo não
haveria mais distinção entre ela e as ciências que se ocupam espe­
cüicamente .da ação humana, como as ciências sociais. O que diz
respeito à Psicologia própriamente, é o comportamento como ex­
pressão e resultante de um processo psíquico.
3. - NATUREZA DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS

Ein última instância, nosso problema inicial se reduz à inda­


gação de como as representações mentais "reproduzem'� o mundo
exterior no psiquismo do indivíduo pensante; e o que do mundo
exterior é por elas reproduzido. Comecemos pelo caso mais sim­
ples das representações sensíveis, isto é, aquelas que derivam direta
e imediata1nente da sensibilidade, e que ordinària1nente denomina-
1nos «imagens". :E':sse asstl'nto das imagens é no terreno da Psico­

logia, como se sabe, muito controvertido. Não precisamos contudo,


para o que nos interessa aqui� entrar no debate, pois basta-nos de
início a noção de imagem como sendo aquilo, não importa o quê,
que persiste das sensações em nossa mente, depois de eliminado o
estímulo exterior que provoco11 essas sensações. Essa persistência,
seja sob que forma fôr, e que cl1amamos "'representação sensível",
é indubitável, pois é ela, e somente pode ser ela que permite por
exemplo a 11m artista reproduzir gràficamente, de memória, u1n
objeto ou urna cena percebida anteriormente; bem como a qual­
quer um de nós reconhecer um objeto antes visto. Como escreve
um psicólogo: "O desacôrdo relativo a imagens não deve obscurecer
o acôrdo sôbre o pensamento acêrca de objetos . . . Há evidente
afinidade entre pensamento e percepção sensível. Com os olhos aber­
tos nós vemos os objetos, com .êles cerrados, pensamos acêrca de
ohjetos" (14). Coisa semelhante se passa com outras sensações, como
as auditivas que formam in1agens ou representações sensíveis bem
caracterizadas que se revelam na lembrança que guardamos de me-

(14) Robert S. Woodworth e Harold Schlosberg. Exper-imental Psychology.


Rcviscd Edition. New Yor� 1955, pág. 816.
42 CAIO PRADO JÚNIOR

lodias musicais anteriormente ouvidas. E não é difícil generalizar­


mos essa observação para as demais sensações.

A observação geral que podemos fazer acêrca dessas represen­


tações sensíveis, é que elas não constituem reproduções rigorosas;
e são mesmo, em regra, bastante afastadas do modêlo sensível que
as produziu. Isso se verifica desde logo no fato da grande varie­
dade de maneiras com que um mesmo indivíduo pode reproduzir
e de f ato reproduz um objeto qualquer. A caricatura de uma pes­
soa, por exemplo, é bem distinta da fotografia dessa mesma pessoa
- poderíamos considerar aqui, para argumentar, que a fotografia
seja uma reprodução exata, embora isso esteja longe de verdadeiro.
No entanto a caricatura constituí a representação mental, ou uma
das representações que se tem ou se pode ter da pessoa reb·atada.
Tanto que essa pessoa é reconhecida na caricatura.

No terreno das imagens auditivas, a situação é sen1elhante. Na


representação mental de um trecho musical, a 1nelodia independe
largamente dos sons elementares que a compõem, isto é, das notas
particulares que a constituem, com as circunstâncias específicas q11e
caracterizam essas notas: intensidade, tonalidade, timbre, etc. O
que muitas vêzes se retém da melodia, e que constitui essencial­
mente a representação mental dela, é tão-sàmente o ritmo. Tanto
assim que ela pode ser sugerida até por simples pancadas uníssonas.

Isso mostra, entre outros fatos semelhantes que podem ser ob­
jeto de experimentos muito simples, que a representação sensível não
é s� bsidiária, em grande parte pelo menos, das sensações elernenta­
res de que · se compõem. Em outras palavras, a representação não é
específica dessas sensações, e se constitui não dos elen1entos que
i)ràpriamente a produzem, e sim da disposição relativa dêsses ele­
mentos, da maneira pela qual êles se compõem entre si, espacial­
mente, no caso por exemplo da percepção visual, temporalmente
no da percepção auditiva. A representação mental resulta das sen­
sações elementares, isso é certo; n1as em seguida, passa a ter uma
existência de certo modo independente dêsses elementos. Ouço uma
melodia� e ela se grava 11.q memória, constituindo o que entendemos
por representação sensível ou iinagem da melodia. 1\!Ias essa repre­
sentação não é solidária das notas particulares e sons específicos
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALÉTICA 43

que a produziram, tanto que pode ser evocada por notas e sons bem
distintos, mas combinados entre si, isto é, dispostos relativamente
uns aos outros de uma determinada maneira. É pois essa combi­
nação ou disposição relativa que constitui essencialmente a repre­
sentação.
Examinemos o assunto mais de perto. Considere-se o caso de
uma figura muito simples: uma linha reta. O que essencialmente
constitui a representação mental que ternos dessa figura? É difícil
precisá-lo, pois há uma infinidade de "feições" ou "situações" na­
turais bem diferentes un1as das outras, em que reconhecemos a
nossa representação mental e que correspondem a essa represen­
tação, e que por isso poderíamos legitimamente designar por "linha
reta". Isso desde um traço numa fôlha de papel ou um fio a prumo,
até o recorte, numa paisagem que observamos pela janela, produ­
zido pela parede que enquadra a janela; ou a disposição de um
renque de árvores. Tôdas essas feições correspondem à nossa re­
presentação de "linha reta." Réconhecemos nelas, ou podemos nelas
reconhecer a imagem e representação que temos da linha reta. O
que há de comum entre elas e que portanto constitui o essencial
da nossa representação? únicamente uma certa "'disposição", Mas
disposição do quê? De elementos que são quaisquer e não gozam
de especificidade alguma.
Essa conclusão muito nos aproxima das teses fundamentais da
Psicologia da Gestalt, segundo as quais o que é apreendido na per­
cepção (e portanto se representa mentalmente) não são os dados
elementares da sensibilidade, e sim disposições, configurações, "for­
mas'' em .suma; sendo possível o reconhecimento posterior de um
objeto já antes percebido, graças ao exato equivalente da impressão
prévia no sistema nervoso central (15). Podemos até aí acompa­
nhar as conclusões da Gestalt; e aproveitar assim o grande acervo
de comprovações experhnentais reunidas pelos gestaltistas em apoio
às mesmas conclusões, para fundamentar as nossas próprias conside­
rações feitas acima. Mas onde os psicólogos da Gestalt vão muito
além daquilo que sua comprovada tese inicial autoriza, é na inter-

(15) David Katz, Gestalt Psychology, its nature and significance. Trad.
de Robert Tyson. London, 1951, pág. 97.
CAIO PRADO JúNIOR

pretação e explicação da percepção da "forma", percepção essa que


êles atribuem a não se sabe que fatôres ou propriedades que tor­
nam as formas perceptíveis.
Analisemos com atenção a argumentação dos psicólogos da
Gestalt. Segundo êles, não é possível explicar a percepção de uma
forma (que constitui um todo unitário) a partir de seus elementos
constituintes, no estilo ela clássica psicologia aton1ista e associacio­
nista. A percepção da figura de um triângulo, por exemplo, não
pode resultar da sorna das diferentes sensações visuais provocadas
por wna figura triangular, como sejam linhas, vértices, etc. "O todo,
dizem os gestaltistas com boa parcela de razão, é mais que a soma
de suas partes separadas, e não sàmente a soma" (16). Mas porque
o ·"todo'' é mais que a simples soma das "partes", a ''forma" mais
que o agrupamento de seus "elementos" constituintes, nem por isso
se é forçosamente levado à conclusão, como querem os gestaltistas
(aliás sem o justificarem) que não é possível explicar a percepção
de urna "forma" a partir de seus elementos; e que a forma percep­
tível (que os gestaltistas chamam a boa forma) contém algwna pro­
priedade particuluar intrínseca Ilatura!mente afim com tendências
espontâneas e preexistentes na percepção dos indivíduos. Para ex­
plicar a percepção da forma a partir das sensações elementares pro­
vocadas pelo objeto da percepção, é suficiente substituir a noção
estática de percepção puramente passiva (noção essa implícita na
interpretação da percepção pela generalidade dos psicólogos, dos
gestaltistas inclusive) pela hipótese de wna atividade perceptiva,
de um processo ou operação mental dinâmica que efetua o .relacio­
namento dos dados elementares da sensibilidade, e assim constitui
wna totalidade unitária que dá a percepção da forma. 1'sse processo
de relacionamento dos dados elementares da sensibilidade repre­
senta urna explicação muito mais simples e consistente da percepção
da fonna que o associacionismo não leva em conta, e que a Gestalt
explica co1n a introdução de suposições arbitrárias e experimental­
n1ente inverificáveis. A nossa hipótese, pelo contrário, como teremos
ocasião de verificar, é pe1feitamente comprovável.

(16) David Katz, oh. cit., 6.


NOTAS INTRODUTóRIAS A LóGICA DIALllT!CA 45

Em que consiste a operação de relacionamento? Considere-se


a figura ao lado. Se desviamos nossa atenção dos losangos que
constituem os elementos da figura, e consideramos de
preferência o conjunto da mesma figura, podemos dis-
Â
cernir nela uma linha reta dada pela disposição rela- V
tiva dos losangos. Os losangos se encontram "alinha-
dos", isto é, dispostos em linha. E como percebemos À
isso? Como "descobrimos" a linha implícita no agru-
V
pamento dos losangos? Para verificá-lo, compare-
-se a percepção do alinhamento ou linha, com a •
do simples agrupamento dos losangos. O alinha-
mento e agrupamento constituem de fato percepções distintas. A
distinção poderá parecer, à !Jrin1eira vista, algo custosa, porque se
trata de figura muito simp1es. Mas ela existe, e podemos comprová­
-lo com o fato que .se estivéssemos jogando cartas, uma figtu·a co1uo
essa que nos ocupa, seria perc�bida como um três-de-01u·os; e nin­
guém desprevenido se lembraria de discernir aí uma linha. Ora qual
a diferença entre as duas percepções respectivamente do agrupa­
mento de losangos e da linha que êles formam? No caso do agru­
pamento (é o que se observaria na carta três-de-ouros) o observador
se detém nos losangos, isto é, os losangos seriam considerados na sua
individualidade, e como indivíduos-losangos, agrupados e em número
de três. No caso do alinhamento, o processo seria outro, a saber,
não se estacionaria nesses elementos da figura que são os losangos,
mas transitar-se-ia de um para outro. Essa transição ou passagem
de um para outro dos elementos constituintes da figura, os faz desa­
parecer como indivíduos e elementos, para deixar apenas subsistir
a sua "disposição", o seu alinhamento on linha reta que êles formam
i-elativamente uns a outros.
Em conclusão, a percepção da forma (no caso a linha reta ) em­
bora fundada nos elementos que a compõem (os losangos), deixa-os
de parte, a fim de se fixar unicamente na passagem ou transição de
um para outro. É essa passagem ou transição que constitui a per­
cepção da forma. Desfez-se a individualidade dos elementos; e tanto
é assim que êles poderiam ser outros, como simples pontos, pe1ma­
necendo contudo a forma que é a linha reta. Note-se que em nosso
exemplo os losangos, embora elementos originários da forma que
46 CAIO P R i\ D O JÚNIOR

é a linha percebida no seu conjunto, são êles próprios também f01·­


ma:; constituídas de elementos mais simples (segmentos de linhas
retas entre si paralelas duas a duas, ângulos de certas dimensões,
circunscrição de uma área bem determinada, etc.) que dão a per­
cepção dos losangos do mesmo modo que os losangos dão a linha.
A noção de "elemento" é portanto relativa; e não se pode caracterizar
muito bem (pelo menos no nível atual do conhecimento psicológico
e fisiológico) o que seja uma sensação "elementai'', em têrmos abso­
lutos; se é que existe algo que mereça a designação. É preferível
por isso falar sempre em percepções mais ou menos complexas que
se reaHzam por efeito da transição ou passagem do pensamento entre
percepções mais simples. E o que se grava na memória por efeito
da percepção, a «impressão" que ela deixa e que constitui a imagem
ou representação mental do objeto percebido, é um processo, um
inovímento do pensamento, e não uma situação estática. A repre­
sentação sensível constitui um fato essencialmente dinâmico que pro­
curaremos caracterizar melhor em outra parte dêste trabalho, mas
que desde já assimilaremos a um relacionamento ou mais simples­
mente "relação", pois trata-se de uma situação que se configura entre
dois tênnos, ou melhor na transição de um para outro, e não pró­
priamente nesses têrmos que podem ser e em regra são muito va­
Iiáveis.
A natureza dinâmica e relacional da representação sens�vel se
esclarece melhor nos experimentos realizados por H. C. Bingham
collJ. pintos (17), e que consistem em condicionar êsses animais de
maneira a fazê-los escolher seu alimento num círculo de 6 cm. de
diâmetro, e rejeitar o colocado num outro círculo de 4 cm. Substi­
tuindo depois o círculo de 6 cm. por um de 3, os pintos escolheram
o de 4 cm., e rejeitaram o de 3. ·E num ensaio subseqüente, esco­
lheram um círculo de 9 cm., rejeitando outro de 6. Em suma, os
pintos faziam ·sua escolha sempre no círculo maior, rejeitando o
rnenor. Conclui-se daí que o estímulo que provocou a resposta dos
pintos (o ato de tomarem o alimento colocado no interior dos cír­
culos) não eram as circunstâncias específicas da situação, o tama-

(17) H. C. Bingham, Size and form perception in "gallus domesticus."


Jonrnal of Animal Behaviour, 1913, 3, 65-113.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 47

nho absoluto dos círculos, e sim a relação inaior. Kühler repetiu


êsse tipo de experimentos, dois anos mais tarde, com galinhas, em­
pregando em vez de círculos de dimensões diferentes, superfícies de
côr cinzenta mais ou menos escura, e fazendo seus pacientes reagi­
rem pelo estímulo da relação mais escuro (18.) Outros experimenta­
dores fizera1n pesquisas semelhantes con1 os mesmos e com outros
animais {macacos, ratos, pombas, etc.), e utilizando modalidades
várias de experimentos. A conclusão geral é a mesma, a saber, que
as "relações" (isto é, aquilo que se passe entre os elementos consti­
tuintes da situação) constituem estímulos cujo papel é idêntico ao
de quaisquer estímulos sensíveis provocados diretamente por ele­
mentos específicos.

Essa conclusão já podia ser prevista com fundamento nos expe­


rimentos de condicionamento realizados por Pavlov, que empregou
como estímulo de reflexos condicionados tanto circunstâncias provo­
cadoras de sensações element:;i.res e específicas (como sejam o toque
de uma campainha e o choque elétrico), como outros de natureza
mais complexa que são as batidas de um metrônomo. O que serve
de estímulo no metrônomo não são as batidas em si (não essencial­
mente pelo menos), e sim o número de batidas por minuto, o seu
ritmo. Uma relação portanto, que no caso é uma relação temporal.
Os experimentadores não têm dado maior atenção a essa circuns­
tância, e têm empregado o metrônomo indiscriminadamente a par
de outros estímulos, sem atentar para sua natureza especial e dis­
tintiva. A diferença contudo é grande, pois num caso é a sensação
específica produzida pelo toque de campainha ou pelo choque elé­
trico que provoca a resposta; quando no outro não são as sensações
auditivas específicas produzidas pelas batidas do metrônomo que
desencadeiam a reação, e sim a "disposição" temporal dessas batidas,
aquilo que ocorre entre elas, e que são lapsos de tempo. A "relação"
entre as batidas, portanto.

De tudo isso se pode legitimamente concluir que as relações


se imprimem e gravam na representação mental dos animais expe­
f

(18) W. Kõhler, Optische UnterStbChungen am Schimpansen und hausühne.


Abh. der Treussigen Akademie der Wissenschaft, Thys. mathen1atische Kl.
1915, n.0 3.
48 CAIO PRADO JúNIOR

rimentados tal como as sensações específicas - as visuais, as audi­


tivas ou outras quaisquer. Realmente, conceba1n-se as representa­
ções mentais como se queira (e não estamos aqui implicando ne­
nhuma teoria acêrca da natureza das representações, o seu substrato
psicológico ou fisiológico), o fato é que para um estí1nulo prod11zir
seu efeito (a resposta a que está ligado) é necessário que haja na
memória do estimulado algum remanescente ou marca do fato ori
ginal que se repete no estímulo. Se por exemplo a salivação é
condicionada por um certo ritmo do metrônomo, fazendo-se assim
êsse ritmo estímulo da salivação, isso quer dizer que na esfera men­
tal (cortical, se preferirem) do paciente, o ritmo originário que de­
terminou o reflexo condicionado permanece nêle marcado de um
modo qualquer ( imagem, arco reflexo, traço, senda . . . ) . É isso que
chamamos genericamente de "representaçãd'. Diremos que o ritmo
escolhido do metrônomo, depois de constituído o reflexo, se encontra
"representado" n a esfera mental do indivíduo. Essa representação
é de uma "relação", e não de sensações específicas.
Devemos contudo notar que essa representação de relações com­
porta diferentes graus de pureza, isto é, envolve em maior ou menor
proporção os elementos específicos da situação original que deter­
minou a representação. Assim os pintos de Bingham, apesar do
sucesso de suas realizações, não tinham por certo alcançado a re­
presentação pura da relação "maior" comparável à de n6s humanos.
O que se prova pelo fato de não lhes ser possível transpor ou trans,
ferir o seu adestramento para circunstâncias muito diferentes em
que 0por exemplo se empregassem retângulos em vez de círculos.
Cada mudança dessas exigia novo adestramento. É mesmo provável
que o adestramento realizado em determinadas circunstâncias inter­
fira pe1turbadoramente em adestramentos posteriores, dificultando-os
e contribuindo para confundir o paciente (19.) E isso de maneira
tanto mais acentuada quanto mais se multiplicassem os diferentes
adestramentos em períodos muito próximos uns dos outros. A razão
de tudo isso está em que a relação maior, embora indubitàvelmente

(19) Essa probabilidade, que mereceria comprovação experimental, pode


ser inferida, entre outros fatos, dos resultados observados por Pavlov em cães,
com respeito à discriminação entre círculos e diferentes elipses.
NOTAS INTRODUTóRIAS A LÓGICA DIALl>TICA 49

presente na representação mental dos pintos de Bingham, é ainda,


até certo ponto, solidária com os estímulos e impressões derivados
da sensação imediata. Elas são ainda, de algum modo, específicas
destas últimas.
Encontramo-nos no caso dêsse.s experimentos, no nível ainda
essencialmente sensorial do psiquismo, em contraste acentuado com
o nível mais elevado que seria o da conceituação e do pensamento
abstrato. Podemos contudo observar nelas os rudimentos de uma
pré-conceitnaçãó, que no caso dos pintos de Bingham seria a relação
maior, evidentemente esboçada. na representação mental dos pacien­
tes, embora sem destaque completo das circunstâncias específicas
em que se realizaram os experimentos; ou pelo menos de algumas
dessas circunstâncias - como por exemplo a circularidade das fi­
guras onde se enconb·a colocado o alimento. En1 conseqüência, as
impressões específicas proporcionadas pelas inesmas ·circunstâncias
ainda aderem à representação ·mental da relação pura.
Consideremos outros experimentos e observações de nível mais
elevado, e que embora relativos a animais (e portanto incluídos ainda
na esfera pré-conceptual), não envolvem, como nos experimentos ana­
lisados, llm adestramento em que concorrem fatôres con1pletamente
estranhos aos indivíduos experimentados, e que é a participação do
experimentador. Vejamos as observações de Kohler acêrca dos chim­
panzés, onde a elaboração da representação mental é original e da
iniciativa exclusiva dos pacientes experimentados. Entre essas obser­
vações de Kohler há uma categoria particularmente ilustrativa do
nosso assunto. Referimo-nos àquelas que dizem respeito ao em­
prêgo, pelos animais, de instrumentos na resolução dos problemas
propostos pelo experimentador, como sejam atingir e arrastar para
perto alimentos fora do alcance do braço; alcançar alhnentos sus­
pensos a grande altura. Vemos os chimpanzés, nesses casos, esco­
lhendo objetos os mais variados, sem consideração pela especificidade
dêles, e exclusivamente em função da situação defrontada. Assim
para atrair o alimento colocado além das grades e delas distanciado,
o chimpanzé utilizará ou tentará utilizar paus, galhos que arranca
de um arbusto, urna tranca de ferro fixa numa porta, trapos e até
50 CAIO PRADO JúNIOR

mesmo uma pedra (20.) E para alcançar o alimento suspenso, pro­


curará fazê-lo trepando sôbre objetos muito variados que coloca
sob o alimento : além de mesas e caixotes (que havendo necessidade
empilha uns sôbre os outros), também pedras, latas, blocos de ma­
deira, rolos de arame, etc. (21.) Não é assim a especificidade do
objeto que o animal procura, e sim a natureza funcional dêle (como
Kühler observa muito bem.) Ora o que vem a ser essa ''natureza
funcional" se não uma «relação" implícita na situação enfrentada e
no problema a resolver? Paus, trapos, pedras, etc., num caso; me­
sas, caixotes, latas e mais uma vez pedras, no outro, se identificam
respectivamente entre si, apesar de sua grande diversidade do ponto
de vista dos dados sensoriais que uns e outros proporcionam, evi­
dentemente porque e somente porque funcionalmente êles são de
fato idênticos. Ora êsse aspecto funcional dos objetos empregados
pelos chimpanzés somente se propõe na situação considerada como
uma "relação", como maneira ou forma segunda a qual os elementos
materiais constituintes da situação, entre si se dispõem e se rela­
cionam e estruturam em conjunto. A representação mental do "chim­
panzé, que ao lançar mão do objeto apropriado já visualizou men­
talmente ou "concebeu" a solução do problema, e portanto a re­
presentou mentalmente (22), essa representação constituirá pois uma

(20) W. Kõhler, The Mentality of Apes. Trad. de Elia Winter, B. Se.,


London, 1948, pág. 105.
{21) Id., 48. O chimpanzé chega mesmo a puxar o tratador, e colocá-lo
cm posição conveniente, trepando por êle em seguida.
(22) H:sse ponto é muito importante, e decorre nitidamente dos fatos
observados por Kõhler. Os chimpanzés experimentados não procedem por
ensafos e erros sucessivos, ou antes, êsse processo de ensaios e erros não é
circunstância essencial do procedimento dêles. Não é por acasos sucessivos
que os chimpanzés se vão aproximando da solução. IG:'ihler se preocupa gran­
demente co1n êsse ponto, e suas observações são a respeito absolutamente
seguras. Embora a princípio muitas vêzes hesitante, o chimpanzé age em
seguida de tal maneira que não pode haver dúvida que êle conhece a solução,
e é bem deliberada e advertidamente que procura aplicá-Ia. - Kõhler, como
gestaltista que é, explica o mecanismo mental pelo qual o chimpanzé alcança
a solução, atribuindo-a a qualidades intrínsecas da "forma" que se apresenta
nessa solução: o instrlunento usado prolongando o braço e formando assim
llDl conjunto que engloba o braço, o instrumento e o alimento a ser alcançado.
NOTAS INTRO DUTÓRIAS A LÓ GI CA DIAL!lT ICA 51

relação, um processo mental que embora partindo das percepções


específicas experimentadas pelo chimpanzé na situação por êle en­
frentada, se desenvolve entre essas percepções, deixando de lado a
individualidade e especificidade delas. Tal relação representará
n1entalmente a disposição dos elementos e circunstâncias materiais
constituintes da situação representada: o alimento e a posição em
que se acha, os objetos que o chimpanzé encontra a seu alcance
e que são adequados para o fim que êle tem em vista, etc. :í'!:sses
elementos, embora concorram para a "disposição" em que se encon­
tram, e componham a situação que em conjunto constituem, perdem
nela sua especificidade; e a representação que vão formar no psi­
quismo do chimpanzé, dirá respeito Unicamente àquela "disposição"
dêles; disposição que constitnirá a solução do problema. Nessas
condições, os paus, galhos, pedras, etc. da prilneira série de expe­
rimentos, e a mesa, os caixotes, etc. da segunda, entrarão para a
representação mental do chimpanzé não especificamente e como tais
(como paus, galhos, caixotes, etc.) e sim respectivamente num e
noutro caso como "instrumento para arrastar para perto objetos alme­
jados", e "suporte para alcançá-los."
Note-se que sob essa forma, a representação mental do chim­
panzé será evidentemente muito mais rica e eficiente, no que diz

O u então os objetos empilhados completando o conjunto ou "forma" total


composta pela estatura do chimpanzé, os objetos empilhados e o alimento
suspenso a grande altura. A s "formas" assim compostas se imporiam ao
animal por fôrça de suas pr6prias qualidades intrínsecas, e êle não teria mais
que reproduzi-las. - N ão vamos aqui discutir a hipótese gestaltista, e cha­
n1ando Unicamente a atenção para o artificialismo da explicação, interpretare­
n1os o procedimento dos chimpanzés e a solução dos problemas a êles pro­
postos, com um processo mental de relacionamento e sistematização em con­
junto dos elementos componentes da situação, a saber, o alimento e a situação
en1 que se encontra, os objetos que o chilnpanzé tem a seu alcance e que
são utilizáveis como instrumentos adequados ao fim proposto, etc. Para a
realizaçfto dêsse processo, o chimpanzé conta com experiências anteriores e as
representações inentais produzidas por essas experiências que servem para orien­
tá-lo. :tvlas não insistiremos aqui neste ponto, que diz respeito mais ao fato
da elaboração do conhecimento, assunto que será tratado noub·o capítulo. Por
ora, estan1os nos limitando às representações mentais já constituídas e seus carac­
terísticos essenciais. E essas representações, sejam produto a priori de predis­
posições psíquicas em favor de certas "formas" privilegiadas, como querem os
52 CAIO PRADO JúNIOR

respeito à ação do animal, que sob a forma de impressões sensoriais


elementares. .F.:Ie poderá responder convenientemente, como a ex_pe­
riência mostra a uma variedade muito maior de situações, e a sua
ação não ficará restTita a estímulos específicos. E é isso que faz a
superioridade dos chimpanzés sôbre outros animais inferiores que
não são capazes (isto é, não dispõem de aparelhamento orgânico
próprio para isso), de elaborarem representações da natureza da­
quelas que descrevemos.
É claro que a designação que nos permitimos dar às represen­
tações do chimpanzé ("instrumento para arrastar objetos", "suporte
para alcançá-los") é de nossa exclusiva responsabilidade. Não sa­
bemos, nem podemos evidentemente saber como as representações
do chimpanzé se apresentam à "consciência" do animal. Sabemos
apenas que elas existem co1n o caráter que lh-es atribuímos, porque
de outra maneira o comportamento do animal se torna incompreen­
sível. Não se explicaria, por exemplo, porque para êle uma pedra
equivale em certos casos a um pau, em outros a um caixote; e por­
que objetos tão distintos, no plano da percepção sensível pura, como
uma mesa e um rôlo de arame, são em certas situações idênticos.
Se podemos contudo aventar possíveis designações para a represen­
tação mental dos chimpanzés, e de:�;ignações que condizem tão be1n
com os fatos do comporta1nento que observamos naqueles animais,
e para nós os explicam, é que uma tal representação deve ser, no
essencial, semelhante a represntações nossas.
Podemos aliás fàcilmente verificar, na espécie humana, repre­
sentações análogas às que encontramos nos animais experhnentados .
Isto é, representação de relações não específicas dos têrmos ou ele­
mentos que originalmente as constituíram. É o caso da relação
�·maior", que encontramos em estado tão rudimentar nos pintos de
Bingham, e que também para nós, como para aquêles animais, ser­
viria entre outros muitos fins, para o de distinguir e discriminar cír­
culos de diferentes tamanhos. É o caso também das relações "ins-

gestaltistas, sejam resultante de um processo de elaboração baseada e1n expe­


riências anteriores, essas representações serão sempre de "relações". Nesse
ponto, as conclusões da Gestalt, e de Kõhler em particular, coincidem perfei­
tamente com as nossas.
NOTAS INTRODUTóRIAS A LóGICA DIALJ':TICA 53

tru1nento para arrastar objetos almejados para perto" e "suporte para


alcançar tais objetos", da representação mental dos chimpanzés de
Kóhler. A diferença principal entre essas representações respectiva-
1nente nos animais e na espécie humana, diferença sem dúvida con­
siderável, está em que na espécie humana tais representações são
ou podem ser C<denon1inadas", isto é, substituídas ou suscetíveis de
serem substituídas por outro tipo de representação que são as re­
presentações verbais. Os pintos de Bingham e os chimpanzés de
Kühler, embora tenham representações mentais que sob certos as­
pectos e em determinadas circunstâncias são análogas às do indi­
víduo da espécie humana, e iêm funções semelhantes, não encon­
tram nêles substituto verbal.
Qual a conseqüência disso no que diz respeito à natureza da
representação mental? É sobretudo o fato que substituindo-se pela
expressão verbal, a representação perde i'nteiramente sua especifi­
cidade sensorial, libertando-se, ou abrindo caminho para se libertar
de sua dependência direta dos dados imediatos da sensação. En­
quanto sensível, a representação mental será mais ou menos, mas
sempre diretamente ligada aos dados imediatos da sensibilidade; e
portanto às circunstâncias específicas - ou pelo menos algumas de­
las - em que a representação 01iginàriamente se elaborou e onde
aquêles dados se ofereceram. Com a sua substituição pela expressão
veTbal, a representação se liberta dessa ligação direta; ou pelo me­
nos essa libertação se faz possível.
Podemos esclarecer êsse ponto, e comprová-lo desde logo de
Jnaneira indireta, com uma das séries mais interessantes dos expe-
1imentos de Pavlov. Sabe-se que Pavlov logrou condicionar a sali­
vação de um cão ao estímulo provocado pela figtua de uma elipse,
conservando-se o paciente indiferente à figura de um círculo. O
cão portanto distinguia a elipse do círculo. Isso contudo apenas no
caso de elipses em que a diferença entre os .dois eixos não fôsse
muito pequena. Abaixo de um mínimo de diferença, isto é, quando
a figura da elipse se aproximava excessivamente da de lllll círculo,
o cão não conseguia mais fazer a distinção. Por que isso? Evi­
dentemente porque o cão se deixa'.'a levar apenas pela configuração
e aspecto geral das duas figuras, isto é, respondia Unicamente a
dados sensíveis imediatos e específicos. Pelo contrário, nós outros
54 CAIO PRADO JúN!OR

indivíduos humanos, se no plano puramente sensível, isto é, empre­


gando só a inspecção visual, podemos cometer e de fato cometemos
o mesmo engano que o cão, distinguiremos fàcilmente as duas fi­
guras se atentamos para o fato que todos os pontos do círculo são
equidistantes de um único ponto que é o cenn·a do círculo; o que
não ocorre na elipse. Isto é, não nos enganaremos se atenta1mos
para a definição do círculo, que é o substituto verbal da represen­
tação do círculo, substituto êsse liberto da dependência direta dos
dados sensíveis,
Em suma, enquanto círculos e elipses quase circulares se con­
fundem no plano da sensibilidade, quando a representação ';)inda
é largamente solidária dos dados sensíveis imediatos, e se inspira
diretamente na disposição concreta das figuras consideradas e na
especificidade de seus elementos constituintes, os mesmos círculos e
elipses se distinguem n!tidamente quando traduzidos em linguagem,
isto é, representados mentalmente por expressões verbais. É que
aí a representação mental perdeu inteiramente sua especificidade,
destacou-se por completo dos dados sensíveis específicos que con­
correram origi1nàriamente para sua formação, tornando-se en1 relação
pura. Será então prüpriamente um conceito verbalmente expressível.
Voltaremos adiante, com mais vagar, sôbre essa questão da espe­
cificidade das relações. Antes disso, detenhamo-nos na consideração
atenta da natureza relacional dos conceitos, isto é, da representação
conceptual.
4. - NATUREZA RELACIONAL DA REPRESENTAÇÃO
CONCEPTUAL (CONCEITOS)

Chegamos no capítulo anterior à observação de que a represen­


tação mental, quando perde inteiramente sua especificidade sensível,
isto é, quando se liberta dos dados da sensação que lhe deram ori­
gem e se transforma em relação pura, faz-se em representação abs­
trata que é o conceito traduzido ou suscetível de se traduzir em
expressão verbal. Essa expressão verbal constituirá a "designação''
ou "denominação" da relação, e concederá assim a essa relação uma
forma concreta: um conjunto de sons vocais que permitem exprimi­
-la verbalmente e que a representam sensivehnente com aquêles sons.
o que de certo modo restitui à relação runa forma sensível e con­
creta, em substituição à que perdeu ao se desligar da especificidade
.sensorial originária e se fazer pura, isto é, abstrata (23!)
A noção que de ordinário se tem das expressões verbais, con­
tràriamente ao que ficou dito, é que elas se referem diretamente às
feições e aos fatos concretos e exteriores ao pensamento. A palavra
«habitação", por exemplo, costuma-se considerar como denominando
lugares onde se abrigam ou onde se encontram homens ou animais;
isto é, uma f.@_ição concreta do mundo exterior. ·Essa interpretação
das expressõ.ist-}verbais (ou de algumas delas pelo menos, como em
particular os substantivos), é fonte de grandes confusões, como já
tem sido notado (24.) Como todavia ela tem raízes filosóficas muito

(2·3) A expressão verbal que "denomina" a relação conceptual ou con­


ceito, não é apenas o vocábulo ou palavra isolada, mas também expressões
verb.ais mais complexas, como a proposição e inesmo um grupo de proposições.
A definição, por exemplo, constitui uma das n1aneiras com que o conceito ou
relação abstrata se representa e exprime verbalmente. Por ora, todavia, não
é necessário insistir no assunto que se esclarecerá naturalmente inais adiante.
(24) Veja-se por exemplo Ogden e Richards, Meaning of Meaning, Tenth
Edition. London, 1949, pág. 12.
56 CAIO P ll A D O JUNIOR

profundas, não a discutiremos aqui em particular, deixando que o


assunto se esclareça naturalmente no desenvolvimento da matéria
que estamos tratando. E lembramo-lo Unicamente para assinalar
que o fato da ligação direta da expressão verbal com as feições do
mundo exterior a que só indiretamente elas se referem, contribui
c.onsideràvelmente para obscurecer e disfarçar a relação conceptua]
que se abriga atrás daquelas expressões, e o conceito que elas expri­
me1n. Vamos por isso insistir aqui neste último ponto, a fim de
tornar bem clara a natureza relacional do conceito, bem como (o
que vem a ser outra maneira de dizer a mesma coisa) que as ex­
pressões verbais traduzem e exprimem relações conceptuais. Esta
nossa análise contribuirá também para esclarecer e caracterizar me­
füor a noção de "relação conceptual."
Co1nece1nos com a análise e interpretação de alguns experimen�
tos muito simples e bastante conhecidos. Refiro-me ao chamado
teste de analogias. Sabe-se que êsse teste consiste em apresentar
ao paciente três têrmos, perguntando-se por um quarto que esteja
para o terceiro como o segundo está para o primeiro. Exemplo:
pttSsaro está para gaiola assim como homem está para . . . A res­
posta é naturalmente casa (ou outro têrmo equivalente). Nesse teste
de analogias, o que sugere o quarto têrmo? Isto é, o que faz lem­
brá-lo e desperta a representação mental ou conceito correspon­
dente? Em nosso exemplo, que circunstância sugeriu o têrmo «casa",
ou melhor, a idéia ou conceito que se exprime na palavra «casa"?
Evi.dentemente a relação entre os dois primeiros têrmos. Não foi
nenhum dêsses têrmos em particular, nem «pássarn�',, nem "gaio­
la"; nem tampouco o terceiro ("homem") por si só. C. ,i1ue interveio
no caso como fator determinante da resposta, é a relaçiio na qual
os dois primeiros se apresentam, e que se transpõe para o terceiro.
Relação essa que se apresenta assim independentemente dos têr­
mos com os quais se propôs. Tanto assim que poderíamos substituir
êsses têrmos por outros, como respectivamente por ''cavalo" e c'estre­
bariá', ou "pombo'' e "pombal", bem como uma infinidade de
outros pares: a resposta seria a mesma. Donde se conclui que essa
resposta não depende especlfica1ncnte dos têrn1os apresentados (pás­
saro e gaiola), ou outrüs quaisquer equivalentes; e depende sim da
relação que une êsses tênnos. Depende daquilo que os une e os
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGICA DIALÉTICA 57

engloba num todo, e não dêles próprios na sua especificidade e indi­


vidualidade. E "aquilo" que os une, é o que entendemos por relação,
que tem uma existência, como se vê, autônoma, e que independe de
quaisquer têrmos em particular que eventualmente a compõem.
Podemos notar também (e isso vem em abono do que acabamos
de observar) que a relação evocada no curso de um teste de ana­
logias, preexiste no psiquismo, ideação ou conceituação ( a desig­
nação pouco importa) do paciente interrogado e que dá a resposta
certa. Essa preexistência ou presença anterior da relação é evi­
dentemente condição necessária da resposta acertada. Diremos por­
tanto que na esfera psíquica do · paciente (que poderia ser qualquer
indivíduo humano de nível mínimo de desenvolvimento intelectual)
acham-se estampadas ou representadas, de um ou de ouh·o modo,
rnlações conceptuais que independem de quaisquer tê1mos especí­
ficos, mas que são sugeridos ou evocados pelo emparelhamento de
dois têrmos que podem ser quaisquer dentro de uma grande varie­
dade de expressões verbais.
Dir-se-á, em contradita1 que se trata no caso da representação
de um outro conceito que embora não expresso se inclui impB.cita­
mente no nosso teste, e constitui a denüminação de um fato concreto
do mundo exterior, a saber1 no exe1nplo dado1 a palavra "habitação".
:li;sse argumento todavia não convence, pois êle não exclui o fato
que o conceito ou idéia de "habitação" se encontra na esfera mental
do indivíduo sob forma de relação. É 1un processo mental de rela­
cionamento que o sugeriu - o relacionamento de "pássaro" e "gaio­
la'', como poderia ser de "fera" e "jaula", ou de outro qualquer par
equivalente, isto é, cujos têrmos estejam na mesma relação ou que
se unam pela mesma relação. Pelo n1enos no caso vertente, a ex­
pressão verbal "habitação'', que não foi proferida, e poderia nem
mesmo ter sido lembrada, não tem outro papel que o de substituir
uma relação. De a deno1ninar, em suma.
Isso se faz tanto mais claro que a relação pode existir - isto
é1 estar presente no psiquismo e representação mental do individuo
- independentemente de expressão verbal alguma capaz de a expri­
mir, ou de a referir diretamente, na qualidade ·de nome ou desig­
nação, a feições concretas do mundo exterior. Um experimento
descrito por Dallembach, aliás de fácil reprodução, nos mostra
58 CAIO PRADO JúN!OR

isso (25.) Dallembach perguntou a seu filho de 6 anos o que sig­


nificava a expressão "têrmos opostos". Não se satisfazendo com a
resposta negativa do filho, perguntou-lhe o oposto de "bom" e "gran­
de", obtendo respectivamente as respostas "menino" e "homem".
Ficou be1n claro aí que o paciente ignorava o significado de ªopos­
to", pois suas respostas correspondiam evidentemente a simples asso­
ciações fortuitas. Nos elogios e nas admoestações que o menino re­
cebera anteriormente, as palavras "bom" e �'menino" tinham certa­
mente estado muitas vêzes ligadas: ''voe& é um bom menino . . ."
"um bom menino não faz isso . . ." Quanto à associação de "grande"
com "homem", ela provém nah1ralmente do fato de ser o homem,
para os meninos, o padrão clássico de «grandeza,"
Dallembach deu então as respostas acertadas ("mau" e "peque­
no"); depois do que o filho respondeu corretan1ente e sem hesitação
em todos os casos análogos, dando os têrmos opostos de ''prêto",
"comprido'7, "longe", "gordo", etc. Dallembaoh confirmou seu expe­
rimento co1n a observação de cem crianças. Evidencia-se aí que
as crianças observadas conheciam muito bem a relação "oposição",
e que portanto essa relação estava representada em sua esfera inen­
tal. De outro modo seriam incapazes de dar têrmos opostos. Bas­
tou-lhes um modêlo de "oposição", e êsse modêlo despertou nêles
desde logo a representação de mna relação que aplicada aos novos
têrmos propostos, suscitou as respostas adequadas. E isso ocorreu
sem que os pacientes "conhecessem" o conceito de oposição, no sen­
tido de serem capazes de o exprimir ou explicar. Isto é, o con­
ceito ou relação conceptual que chamamos «oposição", não tinha
para as crianças uma designação ou denominação. No entretanto,
encontrava-se presente no psiquismo delas, não só con10 relação
pura (isto é, desacompanhada dos têrmos particulares relacionados)
e da referência direta a fatos concretos), mas ainda desprovida de
qualquer expressão ou sinalização sensível.
.'Êste último ponto é aliás freqüe11ten1ente confirmado nos testes
de analogias, pois os pacientes, quando são crianças de pouca idade
(geralmente até os 6 ou 7 anos) encontram grande dificuldade em

(25) K. M. Dallembach, A Note on the Immedlacy of Understanding a


Relation. Psych. Forsch., 7. Cit. p. K. Koffka, Principles of Gestalt Psychology.
London, 1950, pág. 509.
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALÉTICA 59

exprimir ou explicar a relação de que se trata, e mesmo não o con­


seguem de todo nos casos mais complexos, embora resolvam os
testes satisfatàriamente e com tôda facilidade. A conclusão só pode
ser que a relação conceph1al se acl1a presente na mente das crian­
ças experimentadas, isto é, se encontra nelas mentalmente represen­
tada, independentemente de qualquer expressão verbal. Em suma,
a representação mental de relações não se acha necessàriamente
ligada a expressões verbais, nem se encontra na dependência ime­
diata dessas expres-sões. Pode subsistir, e efetivamente subsiste por
si só. E se define Unicamente pela passagem ou pelo movimento
do pensamento de uma 8-"-l?ressão para outra; pela sucessão dessa:�
expressões, e não particular e especlficamnte pelas mesmas expres­
sões. Podemos, é certo, ·depois de configurada ou .suscitada uma
relação conceptual, "denominá-la", e dar-lhe assim uma fon11a ver­
bal, como fizemos acima no caso da relação "pássaro-gaiola" ou «ho­
mem-casa", para a qual a.cha1nos a expressão "habitação'', como po­
deríamos achar outras: moradá, vivenda . . . ou mesmo uma definição
ou explicação: "lugar onde se passa a maior parte do tempo", ou
"onde se dorme " O que prova que a expressão verbal da rela­
. . .

ção não sürnente não é essencial para a existência desta última, mas
ainda tem um valor precário que não a esgota, pois ela é múltipla1
variável e sempre insuficiente. Mas seja como fôr, o certo é que
essa expressão pode ser e freqüentemente é posterior à relação que
exprime, e a relação portanto não depende daquela expressão. O
que o experimento de Dallembach deixa bem claro: o paciente,
tendo embora em mente a relação, não sabia exprimi-la verbalmente,
não a "conhecia" sob forma de sua expressão verbal "oposição" ou
outra qualquer. Essa expressão veio depois da relação.
Em suma, na relação conceptual - diríamos mell1or "relacio­
namento'» uma vez que se trata de uma operação ou processo men­
tal, de um fato dinâmico que podemos assimilar a um movimento
do pensamento - a representação independe dos elementos parti­
culares e específicos de que se constitui ou que a evocam, no sen­
tido de não derivar direta1nente dêles, e sim de seu emparelhamento,
ou melhor, da sucessão ou passagem de um para ouh·o. A relação
conceptual (e pois a representação mental ou conceito que a relação
configura) consiste naquela sucessão ou passagem, e não nos têrmos
60 CAIO PRADO JúNIOR

entre os quais a mesma sucessão ou passagem se realiza. Tanto


assim que tais têrmos não são determinados, podem ser variáveis
e permutáveis por outros em escala mais ou menos an1pla. Nessas
condições, a relação adquire individualidade e existência próprias
e à parte dos elementos (têrmos) que eventualmente a constituem.
Assim por exemplo a relação derivada da estimulação sucessiva pelos
ti\rmos de qualquer um dos seguintes pares de expressões: grande
e pequeno, pr.êto e branco . . . , embora derive dêsses estímulos e
dêles se constitua, independe dêles no sentido que subsiste sem ne­
nhum dêles em particular, e se configura na simples sucessão ou
passagem de um para outro têrmo de qualquel' um dos pares. Com­
põe assim uma representação que subsiste por si só. Tanto mais
assim que a relação constituída dêsse modo, pode ter uma expressão
própria e distinta dos elementos que a compõem, e que no exem­
plo refe1ido será a expressão "oposição", "contrário'' ou outra qualquer
equivalente; expressão essa que empregan1os sem recurso às repre­
sentações particulares que constituem seus têrmos. Numa palavra, a
relação é não-específica dos elementos componentes; representa Uni­
camente a sucessão ou passagem de um para outro, e não assim
os têrmos que compõem e marcam os momentos extremos da pas­
sagem. A expressão verbal dêsses momentos extremos (em nosso
exemplo, respectivamente ··grande" e "pequeno", "prêto" e "branco"),
e a representação que dêles se tem, intervêm Unicamente como ba­
lizas e suportes provisórios do conceito, que necessita dêles para se
constituir, mas dispensa-os em seguida, representando-se por si só
e au1:ônomamente.
É de notar que êsse fato é análogo ao que ocorre no caso de
estímulos sensíveis, segundo vimos anteriormente, caso em que as
sensações elementares determinantes de nossa percepção e da re­
presentação que permanece depois dela (a imagem), desaparecem,
sobrando apenas as relações em que aquelas sensações elementares
se dispõem. É o que se verifica por exemplo no citado caso de uma
melodia. A percepção da melodia e a representação mental que
dela fica, têm evidentemente sua origem nas notas e sons de que
a melodia se compõe. Mas êsses elementos, isto é, as notas parti­
culares qt1e fizeram perceber e depois representar mentalmente a
inelodia, essas passam em seguida a um segundo plano, constituindo-
NOTAS INTRODUTóRIAS À LÓGICA DIALÉTICA 61

-se a representação mental ( a imagem) da melodia, das relações em


que aquêles sons se dispõem. Tanto que essa representação se
identifica, como a experiência mostra, com conjuntos de notas com­
pletamente distintas, contanto que essas notas conservem uma dis­
posição relativa, isto é, relações mútuas análogas. A melodia existe
portanto, isto é, se representa mentalmente, independentemente das
notas ou sons específicos que a compõem. Podemos também lem­
brar, a propósito, o caso dos pintos de Bingham, que segundo vi­
mos, chegaram à representação mental da relação maior; relação
essa independente, até certo ponto, dos estímulos sensoriais espe­
cíficos determinantes da relação.
Observamos assim perfeito paralelismo entre os casos de repre­
sentações mentais apoiadas respectivamente em dados sensíveis (sen­
sações elementares), e expressões verbais. A observação dêsse para­
lelismo é muito importante, e nos servirá mais adiante para con­
clusões de grande relêvo a propósito do processo pensante em geral.
Por enquanto, o essencial que devemos reter do que ficou dito aci­
ma, é que há representações mentais que constituem simples rela­
ções, isto é, que não traduzem estímulos ou dados específicos, e
que embora dêles se constituam, também dêles independem e sub­
sistem por si sós.
Nas representações prõpriamente de conceitos, isto é, que se
exprimem ou podem exprimir-se por formas verbais, temos conside­
rado Unicamente o caso de relações entre dois têrmos apenas. Trata­
-se aí, todavia, de uma simplificação do assunto, pois na realidade
as relações conceptuais, mesmo aquelas de que nos ocupamos, são
muito mais complexas. Só aparentemente, e assim mesmo apenas
em certos casos muito especiais, é possível reduzir os têrmos a dois,
como fizemos, pois na realidade outros se encontram sempre implí­
citos na formulação. Não interessa aqui aprofundar 1nais o assunto;
e observaremos Unicamente que a própria consideração de ''númerou
de têrmos ·de u1na relação conceptual, constitui sbnples esquema­
tização da realidade dos fatos. Não é possível, a rigor, singularizar
e individualizar tais têrmos, e portanto discriminá-los numa série
numer1ca. Isso todavia não tem importância essencial para a com­
preensão do nosso assunto, e serve apenas de advertência para o
caso de eventuais mal-entendidos.
5. - NATUREZA RELACIONAL DA
CONCEITUAÇÃO EM GERAL

Consideramos e analisamos no capítulo anterior a ocorrência de


representações conceptuais (conceitos) que constituem simples rela­
ções, isto é, que independem de elementos específicos constituintes,
sejam .êles dados sensíveis, sejam expressões verbais; e que se com­
põem Unicamente das relações em que os elementos que concorreram
para sua formação, se dispõem. Procuraren1os agora estender nossas
conclusões e generalizá-las para tôda a conceituação. E faremos isso
procedendo à observação e �nálise da conceituação ah·avés da ex­
pressão verbal ou linguagem em que a mesma conceituação se ex­
prime. Trata-se de determinar aquilo que a linguagem exprime;
e isso é naturalmente a conceituação. Nossa análise, por conse­
guinte, na medida em que revelar o que se encontra por detrás da
linguagem, e que esta última exprime, nos fornecerá dados a res­
peito da conceituação.
Um campo de observação altamente fecundo para êsse fim, se
encontra nos dicionários analógicos. Nesse tipo de dicionário, como
se sabe, os vocábulos são agrupados, essencialmente, de acôrdo com
suas relações recíprocas, isto é, segundo os conceitos ou idéias que
êles têm em comun1, Os dicionários analógicos são organizados na
base de certos vocábulos-chaves, sob os quais se apresentam os de­
mais vocábulos que exprimem conceitos derivados da relação entre
êstes e outros vocábulos. Assim sob o vocábulo refôrço, encontro
num_ dicionário analógico, entre outros, os vocábulos: sacr·ifício,
fórça, forceio, diligJncia, empenho, etc. í':sses vocábulos exprimem
conceitos que se constituem da relação entre o conceito de esfôrço
e outros conceitos que o leito r encontrará ao exprimir verbalmente
o que entende por esfôrço em têrmos respectivamente de sacrifício,
fôrça, etc. Ou vice-versa, ao exprimir o que entende por sacrifício,
64 CAIO PRADO JúNIOR

fdrça, etc, em têrn1os de esf8rço. Em suma, um dicionário analó­


gico nos apresenta os vocábulos de uma língua sob o aspecto de
suas relações recíprocas; relações essas de que derivam os conceitos.
Exibe assim aquela língua como uma densa h'ama de relações que
interligam os vocábulos entre si, e das quais brotam os conceitos
expressos por aquêles mesmos vocábulos. .Estes vocábulos apare­
cem pois sob um duplo aspecto: como têrmos de relações que dão
conceitos, e corno expressão de tais relações ou conceitos. Assim no
exemplo que escolhemos acima, os vocábulos sacrifício, fôrça, etc.,
exprimem conceitos que derivam das relações em que entra o têrmo
esfôrço. Mas ao mesmo tempo, são êles próprios têrmos de ouh·as
relações e conceitos, como é fácil verificar quando se procuram
êsses vocábulos no índice do dicionário, ·que nos remeterá aos vo­
cábulos expressivos de tais relações (sacrifício, por exemplo, nos
dará, entre outros, expiação, holocausto, vítima, peniténcia, etc.)
Verifica-se assim que os conceitos expressos nos vocábulos arro­
lados em dicionários analógicos (conceitos êsses que representam
se não a totalidade dos conceitos, pelo menos parcela considerável
dê!es) aparecem sempre derivando de relações, isto é, do relaciona­
mento de outros vocábulos, ou antes, dos conceitos expressos por
êsses vocábulos que por seu turno derivam também de outros rela­
cionamentos. Os dicionários analógicos exibem, atrás de cada vo­
cábulo, as relações conceptuais que os mesmos vocábulos exprimem.
Oferecem assiin uma perspectiva bem clara sôbre a natureza rela­
cional da conceituação. Mostram que em cada conceito se inclui
uma· relação; n1elhor ainda, que os conceitos se constituem de re­
lações, são pràprimarnente essas relações.
Estendamos agora nossa observação e análise para o terreno
mais amplo da linguagem como expressão do conhecimento em geral.
Como realiza a linguagem essa expressão? No conhecimento cien­
tífico em particular, isto é, no conhecimento mais sistematizado (co­
mecemos por aí), como se apresenta a conceituação respectiva, tal
como a podemos apreender através da linguagem em que a Ciência
se exprime? Considere-se por exemplo, no domínio da Física, as
expressões fôrça, massa, velocidade, tempo, espaço ou outra qual­
quer: elas nada exprimem senão no conjunto do conhecimento cien­
tífico, na sistemática geral daquela disciplina científica. Por si s6s,
NOTAS INTRODUTóRIAS À LóG!CA DIAL1'TICA 65

nada significam. Tanto assim que os filósofos se têm debalde esfor­


çado em caracterizá-las à parte e cada qual por si e independente­
mente das demais, bem como da sistemática geral a que pertencem.
Esfôrço que sàmente tem resultado em confusão e que se mostra
desde logo inócuo, uma vez que a Física e os físicos, sem dúvida
os maiores interessados no assunto, dispensam inteiramente aquela
caracterização individual e autônoma dos conceitos que se abrigam
nas citadas expressões. O conceito que se exprime por exemplo
na palavra fôrça (o conceito científico de fôrça, bem entendido, e
não a eventual intuição sensível de fôrça, o que é outra coisa) inclui
necessàriamente os conceitos .de massa e ·movhnento, que por seu
turno implicam os de aceleração, velocidade, tempo, espaço, etc.
E inclui no sentido de se integrar com êles num todo indecompo­
nível. É todo um sistema conceptual que a expressão "fôrça" traduz
em linguagem. Sistema êsse entrosado e articulado por relações que
a Física exprime fmmalmente, na sua linguagem peculiar que é a
Matemática, por equações cujos têrmos componentes (que equiva­
lem às expressões verbais da linguagem discursiva) aparecem sem­
pre indissoluvelmente ligados uns aos outros, formando um conjunto
·que vale sõmente como conjunto, e não pelas suas pa1tes e têrmos
componentes. O físico que ·desmembra essas equações para consi­
derar seus têrmos isoladamente, já não é mais físico, mas fi16sofo
ou outra coisa qualquer. É que os têrmos que compõem a lingua­
gem científica (sejam êles expressões matemáticas ou da linguagem
discursiva) só têm sentido próprio na medida em que traduzem as
relações de que participam. A conceituação ou representação_ con­
ceptual que exprimem, constitui por conseguinte relações.
O que muitas vêzes ilude o principiante, e os pr6prios cientistas
quando não se ocupam i1rofissionalrnente de sua ciência, é a ma­
neira deformada em que essa ciência se apresenta usualmente em
trabalhos didáticos ou de simples vulgarização. Começa-se aí pela
,,
<<definição dos conceitos, isto é, .êles se consideram cada qual por
si - e separados dos demais, procurando-se em seguida desenvolver - o
assunto a partir dêsses conceitos assim individualizados, pela com­
binação dêles de diferentes maneiras. :Esse método já em si se
inspira numa concepção atomística da conceituação, e nada tem a
ver com a verdadeira natureza do conhecimento. Trata-se de uma
66 CAIO PRADO JúN!OR

forma artificial e construída a posteriori, isto é, que procura simular


o verdadeiro método de constituição da ciência, depois de ela já
constihiída. Mas de fato diverge radicalmente daquele método, pois
o inverte, substituindo-lhe esquemas 16gico-filos6ficos preestabeleci­
dos que de fato não intervieram em nada na elaboração científica.
Derivam daí não poucas das dificuldades, incompreensões e confu­
sões observadas em estudantes que· para compreenderem realmente
sua disciplina, e dispensarem a memorização que tão freqüentemente
caracteriza a aprendizage1n realizada pelos inétodos clássicos, são
obrigados antes a superar com suas próprias fôrças aquêles esque4
mas lógicos que desconhecem e que são portanto tão difíceis de
elüninar.
Em suma, ao contrário do que impHcitamente propõem e .fazem
crer as concepções lógico-filosóficas clássicas, bem como as do senso
comum formado em tais padrões filosóficos clássicos e por êles con­
dicionado, o conhecimento científico não se constitui de um aglo­
merado de conceitos individualizados e dispostos entre si em justa­
posição. E sim se compõe de um sistema de conjunto cujas partes,
que seriam os conceitos particulares, reclprocamente se incluem
u·mas nas outras, e têm sentido e conteúdo Unicamente dentro do
sistema em que se integram, e em função dêle.
No conhecimento vulgar (assim chamado para o distinguir do
"'científico'', o que, se no nível atual da cultura ainda é necessário,
não significa nenhuma diferença essencial entre os dois setores)
no ponhecimento vulgar ocorre a mesma coisa que no científico.
Observa-se nêle menor sistematização, isto é, um entrosamento me­
nos rigoroso da conceituação e n1aior fluidez conceptual. Donde
aliás menor precisão e rigor dos conceitos, o que está longe de se
originar numa insuficiente caracterização e expressão formal dos
conceitos, como ordinàriamente se afirma, mas pelo conh·ário é atri­
buível ao deficiente entrosamento, em sistemas de conjunto, da gene­
ralidade da chamada conceituação vulgar. Afora isso, que constitui
o aspecto negativo dessa conceituação vulgar, a situação é em essên­
cia a mesma que na conceituação científica vista acima. São sO­
mente as fortes preconcepções lógico-filosóficas clássicas - muito
mais an·aigadas neste terreno que no da ciência - que dificultam
a observação daquele fato desde logo. Considere-se com atenção
NOTAS INTRODUTóR!AS A LÓGICA DIALllT!CA 67

qualquer conceito vulgar através de sua expressão verbal, e veri­


ficar-se-á que êle representa sempre u1n sistema, no sentido acima
indicado e que é o próprio. Isto é, o conceito se dispõe nlUil
conjunto conceptual de que participa integral e indissoluvelmente;
e dentro do qual encontra tôda sua razão de ser. Nem é concebível
fora do sistema a que pertence.
Assim por exemplo o conceito expresso no vocábulo cadeira,
não pode ser separado do conceito relativo ao uso a que a cadeira
se destina, e da expressão verbal dêsse uso que é "sentar"; conceito
êste último que por seu turno. é inseparável da conceituação que
diz respeito à fadiga e outras circunstâncias fisiológicas e mecâ­
nicas incluídas no ato de sentar. A inte1pretação gran1ático-lógica
dessa situação se faz usualmente, como se sabe, com a noção de
..compreensão" ou '"conotação", e se explica pela atribuição de pre­
dicados, como se dá na definição que seria para o caso da cadeira
(segundo Cândido de Figueiredo) "assento com costas para pessoas".
O conceito expresso por "cadeira" estaria ligado aos conceitos ex­
pressos pelos diferentes tê1mos da definição, por simples atribuição
exterior. Mas essa maneira de ver as coisas não explica o fato que
a pr6pria identidade do conceito de cadeira envolve e implica os
conceitos "assento" e os demais que se incluem na definição dada,
ou outras que aparecem em definições ou descrições diferentes.
Conceitos êsses de que o de cadeira não se pode destacar e separar
sem que êle pr6prio não desapareça. Na expressão verbal, à pri-
1neira vista, os conceitos aparecem destacados uns dos outros e sim­
plesmente justapostos entre si e acrescentados uns aos outros. Mas
isso é fornwlmente apenas, porque se considerarmos atentamente o
que vai por detrás dessa fornia, verificaremos que os conceitos ex­
pressos se entrosam intimamente e de tal maneira que se fazem
inseparáveis; e significam alguma coisa Unicamente no conjunto de
que participam e a que integralmente pertencem. Isso é tão exato
que o sentido das palavras, isto é, o pensamento que nelas se con­
tém, e que é o conceito que exprimem, é dado e se define necessà­
riamente por outras palavras, de tal maneira que o conjunto de
tôdas as definições vai dar num imenso mas não menos fatal círculo
vicioso onde em última instância tôdas as palavras se definem por
elas mesmas, isto é, por tôdas as mesmas palavras. Isso se comprova
68 CAIO PRADO JúN!OR

fàcilmente com a análise exaustiva de qualquer dicionário léxico.


Ora como se explica essa indissolúvel interligação das expressões
.verbais dos conceitos, se não pela interdependência irredutível dos
próprios conceitos? Nessas condições, pode-se concluir que os con­
ceitos são função uns dos outros e do conjunto da conceituação que
entre si êles integram. O que quer dizer que êles se configuram
nesse conjunto, e portanto nas relações que o estruturam. Os con­
ceitos, como representação mental que constituem da realidade obje­
tiva exterior ao pensamento, realízam essa representação, não indi­
vidualmente e numa correspondência bi-unívoca entre cada um dêles
e as diferentes feições daquela realidade, e sim pelas 1•elações em
que êles se dispõem e em que a conceituação, em conjunto, se
estrutura.
6. - A LINGUAGEM COMO EXPRESSÃO DO
PENSAMENTO E CONCEITUAÇÃO

Aprofundemos mais a nossa análise da maneira pela qual a lin­


guagem exprime a conceituação. E.ssa análise, corno já temos veri­
ficado, e veremos agora inelhor, nos proporciona a observação da
conceituação através de sua expressão verbal. Proposta em seus
têrmos mais gerais, a nossa questão diz respeito ao problema do
"sentido" da expressão verbal; "sentido" êsse que de um lado cons­
titui o traço característico e a propriedade específica da linguagem
- que a faz outra coisa mais ,que um simples flatus voeis, e a dis­
tingue de outros fatos sonoros, co1no o ruído de u1na máquina em
funcionamento ou a música -; e doutro lado constitui o fato pen­
sante, a conceituação transposta em sons vocais e que por isso mes-­
mo, de uma ou outra maneira, está contida na linguagem. Que
"'maneira" é essa? Onde e como se abriga na linguagem o "sentido"
que ela exprime e veicula? Como logo se vê, a resposta a urna tal
questão nos deve mostrar a maneira pela qual a linguagem traduz
a conceituação. E é êsse o nosso assunto.
Num paralelo com outros fatos sonoros, como os acima lembra�
<los, encontraremos o específico dêste fato sonoro em particular
que é a linguagem. Específico êsse que é precisamente o "sentido"
que a linguagem compmta. Do mesmo modo que para se deter­
minar o que na música produz o efeito que a caracteriza (digamos,
o efeito estético), se considerará aquilo que a distingue de simples
iuídos - e se encontrará assim, entre outros, o ritmo, a melodia, a
harmonia . . . -, assim também o que na linguagem lhe dá "sentido",
será aquilo que especificamente a distingue e caracteriza. Ora o
que sem dúvida singulariza o fato físico da linguagem, entre os
fatos sonoros em geral, são as suas uforrnas" peculiares, a saber,
as formas gramaticais e lógico-formais em que ela se estrutura e
70 CAIO PRADO JúNIOR

em que se dispõem os sons que fundamentalmente a constituen1.


São tais formas, como se sabe, entre outras, o fonema, o vocábulo
com seus componentes morfológicos - sílaba, raíz, afixos . . . -, a
frase ou proposição, e finalmente os agrupamentos ou conjuntos de
frases ou proposições que constituem o «estilo" e os raciocínios ló­
gico-fonnais (como o sílogisnio). É com essas for1nas, ou através
delas, que êste fato sonoro que é a linguagem, se faz instrumento
do pensamento; e exprime, veicula e registra objetivamente (isto é,
fora da esfera mental e subjetiva dos indivíduos pensantes), o "sen­
tido" que ela contém, isto é, a conceituação que se reflete e traduz
naquele "sentido."
Não há aí novidade, e tudo issn é geralmente reconhecido : é
nas formas verbais que tanto gramáticos e lingüistas, como logi­
cistas e psicológos - como ta1nbém a intuição vulgar - procura1n
localizar e de fato localizam o "'sentido" que a linguagem transporta.
Mas o que tem freqüentemente .servido para desorientar essa · inda­
gação e confundir o assunto, é a verdadeira inversão que se faz
no método da pesquisa. Realmente, tratando-se das formas verbais,
e partindo-se delas, procura-se inadvertidamente uma pressuposta,
mas ainda não provada e na verdade falsa correspondência bi-uní­
voca entre aquelas formas e os fatos pensantes. Noutras palavras,
em vez de indagar como o pensamento se traduz na linguagem e
nas suas formas - e isso sem pressuposição implícita alguma a res­
peito da natureza do pensamento -, inverte-se o método, e 1)rO­
cu.ra-se no pensamento aquilo que em face da hipótese, admitida
implicitamente e . por isso mesmo não analisada e comprovada, de
uma perfeita correspondência entre as formas verbais e o pensa­
mento, aquilo que nesse caso deve corresponder a tais formas. Admi­
te-se a ptiori (e isso sem mesmo considerar expressamente êste pos­
tulado que passa assim desapercebido) admite-se que as formas da
linguagem espelham fielmente a estrutura do pensamento; e reduz­
-se assim o assunto à tarefa de representar essa estruh1ra segundo
o modêlo verbal que lhe foi arbitràriamente concedido.
Resulta .dessa maneira equivocada e invertida de propor o as­
sunto, que as formas da linguagem são inadvertida1nente, e sem jus­
tificativa alguma, projetadas nos processos do pensamento. É isso
que tem sido feito, disfarçando-se verbalmente a projeção realizada,
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 71

com a simples tradução da nomenclatura das formas gramaticais e


lógicas, em designações de fatos mentais. Assim o vocábulo (forma
gramatical ) e o têrmo ( forma lógica ) se traduzem por idéia ou con­
ceito; a frase, oração ou sentença (forma gramatical) e a proposição
(forma lógica) se traduzem por ittizo ou julgamento. Assim tam­
bém o raciocínio formal (como por exemplo o silogismo) que, real­
mente é uma simples forma lógico-verbal, se faz inadvertidamente
em processo pensante. Neste último caso a confusão é mesmo tão
flagrante, que a mesma expressão "'raciocínio", serve indiferente­
mente, ou antes simultâneamente e com plena propriedade, nas duas
esferas: na formal da linguagem, e na do pensamento (26).
Partindo-se de tais premissas, está-se evidentemente prejulgando,
de maneira não-crítica e inadvertidamente, o assunto em foco, pois
conclui-se a respeito da estrutura do pensamento e de suas opera­
ções - e isso preliminarmente e sem indagação prévia alguma -,
com base exclusivamente na estrutura verbal. Essa tem sido u1na
das principais razões, se não a' principal, porque Lógica e Psicologia
encontram tamanha dificuldade em se hamonizarem. Note-se que
a extrapolação sumária e a pr·iori da forma verbal para o fato pen­
sante é muito antiga, pois vem da mais remota filosofia grega; e
desde então não fêz senão enraizar-se cada vez mais nas concepções
correntes, tanto as vulgares corno da Filosofia e da própria Ciência.
E isso tem constituído, como ainda constitui, grave embaraço à con­
sideração adequada e análise fecunda de inúmeras questões atinen­
tes em particular à Psicologia, Lógica e Lingüística. Com ela, o

(26) Não se trata aí nem mesmo de homonímia, pois a expressão "racio­


cínio" tem em ambos os casos, segundo a concepção corrente, exata1nente a
mesma acepção. Ao se falar em "raciocínio", refere-se ao mesmo tempo e
indistintamente aos dois fatos, o fonnal e o mental. "Raciocínio" é tanto o
esquema lógico-formal, como a operação mental que eventualmente se pode
traduzir nesse esquema. A confusão não é assim shnplesn1ente gramatical o
semântica, mas está nas próprias concepções lógico-filosóficas que inspiraran1
a criação da palavra "raciocínio", Esta é un1a instância flagrante da n1aneira
pela qual concepções filosóficas ignoradas se insinuam inadvertidainente nas
expressões verbais que correntemente en1pregamos, e através delas em nossa
maneira habitual de pensar, dando com isso origem a confusões cuja gênese
se faz depois tão difícil de esclarecer. A Filosofia e a própria Ciência abun­
dam nesses casos.
72 CAIO PRADO JÚNIOR

pensamento se faz, por definição, "linguagem interior" (alguns psi­


c61ogos recentes julgam que isso é "descobertá' dêles; mas tem de
fato pelo menos vinte e cinco séculos de antiguidade); e o psic6logo
se ocupará dêle usando das mesmas categorias que o gramático e
o lingüista.
Interessante observar que são os lingüistas, e não os psic6logos,
que atinaram antes com a confusão. Enquanto a Psicologia se em­
baraça ainda consideràvelmente com o ponto de vista tradicional
e deformante em que durante séculos se colocou a Filosofia, os lin­
güistas, ou pelo menos a sua vanguarda mais liberta de preconceitos,
já se aperceberam que as relações entre as formas verbais e o pen­
samento não são tão simples corno implicitamente sempre se admi­
tiu; e reconhecem não haver entre as duas categorias de fatos, a
linguagem e o pensamento, a pressuposta correspondência rigorosa
e até decalque que levou tantos psicólogos a confundirem mesmo
inteiramente aquêles fatos.
É assim no ponto de vista dos lingüistas (daqueles pelo menos
que já compreenderam que a linguagem é algo mais que um ca­
dáver a ser dissecado por um anatomista) que nos devemos colocar.
A saber, considerar a linguagem, antes de tudo, na sua função con­
cre�a e viva de expressão do pensamento, de tradução exterior de
algo que se passa na esfera interior do indivíduo pensante, mas que
não se confunde com êsse «algo". É sàmente aí, e nessa esponta­
neidade da linguagem e maneira pela qual ela concretamente fun­
ciona, que se há de encontrar alguma indicação acêrca do que nada
se contém, do seu ''sentido" e da natureza da conceituação que êsse
"sentido" reflete. Ora o que a linguagem assim considerada exibe
e nos apresenta, não são formas estáticas e analisáveis parcelada e
separadamente (como se costuma fazer) e sim uma sucessão e con­
tinuidade de formas que se articulam, entrosam e relacionam entre
si num dinamismo ininterrupto em que as partes e conjuntos que
se vão progressivamente constih1indo (vocábulos, frases, complexos
de frases . . . ) agem e reagem contlnuamente uns sôbre os outros.
E assim o «sentido" ou pensamento expresso na linguagem, embora
condicionado e carreado pelas formas em que o discurso se vaza.
não se reparte por elas, nem nelas se concentra; mas deriva do
pr6plio desenrolar da expressão verbal através da sucessão daquelas
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LóG!CA DlALltTICA 73

formas e da sua estruturação progressiva em conjunto cada vez


mais amplos - vocábulos, frases, complexos de frases . . . (27).
Vma consideração atenta dêsse fato já nos mostra que a con­
ceituação expressa na linguagem e que lhe dá o sentido que nela se
contém, não pode consistir numa coleção de elementos punctifor­
mes e �eparados uns dos outros, em "idéias" que desfilam umas de­
pois das outras em correspondência bi-unívoca co1n as formas ver­
bais que se sucedem. O "sentido" é dado não por essas formas em
s4 nem se reparte por elas em parcelas ql1e se justapõem; e sim
deriva da própria sucessão delas e do dina1nismo de sua seqüência.
Isso faz naturahnente prever que a conceituação não se liga parce­
ladamente e por partes distintas, com tais formas; e não é assim
representada mentalmente por êsses elementos considerados em si e
isÓladamente, sob forma de idéias atômicas. E sim que se constitui
de representações mentais eventualmente despertadas ou estimula­
das pela passagem de uma para outra daquelas formas.
Isso tudo corresponde àqttllo que impllcitamente se reconhece
na observação corrente e tão amiúde lembrada (embora não se leve
de ordinário às suas naturais conseqüências), de que o "sentido"
da expressão lingüística, inclusive de suas partes, deriva do contexto,
isto é, do conjunto em que ela se apresenta. Ora .êsse. contexto não
vem a ser outra coisa que a maneira com que se dispõem entre si
as formas verbais empregadas, as 1·elações que as articulam e entro­
sam num todo unitário. O "sentido" é assim dado menos pelas
formas em si, que pelas relações delas, pelo sistema em que se orga­
nizam e dispõem. O que se comprova pelo fato que essas formas
(vocábulos, frases, agrupamentos de frases . . .) poderiam ser outras

(27) Isso ainda é, a rigor, simplificar o assunto, pois o "sentido" ela lin­
guagem expressa (em oposição à linguagem mumificada da Gramática e dos
dicionários) não pode ser destacado da situação geral em que se processa,
desde a mhnica dos interlocutores e entoação que empregam, até as circuns­
tâncias em que êles se encontram, sejam as externas, sejam as interiores e
psicológicas, Isso tudo deve ser levado em conta, inclusive na linguagem escrita,
onde a mímica e a entoação são supridas por expedientes gráficos (ilustrações,
pontuação, variedade de tipos empregados, etc.); e onde a situação de quem
escreve, como de quem lê, concorre poderosamente para o "sentido" que a
CÀ'Pressão verbal veicula. Todo escritor experimentado conhece a importância
dêsse fato, e procura ntt n1edida do possível levá-lo em conta ao escrever.
74 CAIO PRADO JúN!OR

bem diversas, dando embora o mesmo sentido. Sempre há muitas


maneh·as. de dizer a mesma coisa, dar o mesmo "sentido.',
A natureza relacional do conceito (que é o fato mental repre­
sentado pelo "sentido" da expressão verbal) se deixa ai claramente
enh·ever. Isto é, o conceito se traduz não diretamente pelas formas
específicas empregadas (determinados fonemas, vocábulos, frases,
etc.), mas pelo sistema em que se apresentam. Em outras palavras,
tais formas não concorrem para o conceito com a sua especificidade,
e sim com a sua sistemática.
Apesar contudo dessa conclusão que a observação dos fatos
ordinários da expressão lingüística nos impõem, resta a circunstân­
cia, igualmente incontestável, que algumas formas verbais pelo me­
nos, se apresentam à nossa intuição como elementos semânticos ca­
racterísticos, isso é, com um sentido próprio expresso por elas de
maneira autônoma e unívoca. Esse é pa1ticularmente o caso da pa­
lavra ou vocábulo, que parece conter e exprimir lim "sentido" que
não encontramos em outras formas verbais mais elementares, como
por exemplo o fonema ou sílaba; e que se define inesmo ordinà­
riamente, isto é, se caracteriza como "som articulado que tem tun
sentido''. O vocábulo seria assim uma entidade completa no que
diz respeito ao "sentido"; e representaria portanto - é esta a con­
clusão que se costuma daí inferir - uma parcela igualmente com­
pleta e integral de pensamento, parcela essa que seria a "idéia"
ou «conceito."
Esclareçamos o assunto com a análise atenta e cuidadosa da

natureza funcional do vocábulo (e não apenas do seu aspecto está­


tico). Observe-se em primeiro lugar que se a cada vocábulo cor­
respondesse um sentido específico e 11ma idéia própria e exclusiva,
deveríamos sempre, experimentahnente, encontrar u1na resposta ou
reação idêntica ao estimulo produzido pela mesma palavra. Não é
contudo o que se dá, como é fácil verificar; e em regra u1na palavra
isolada se apresenta na experimentação como destituida de "sentido".
Aborde-se abruptamente uma pessoa desprevenida, e sem mais, pro­
fira-se u1na palavra qualquer. E.m circunstâncias neutras - isto é,
circunstâncias sem relação imediata com a palavra proferida - a ,

pessoa abordada não encontrará nela sentido algum, e fará pergun­


tas sôbre a razão por que foi proferida. Sôbre o "contexto'', por-
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGICA DIALJ':TICA 75

tanto, que dará à palavra seu "'sentido". E nos casos em que a


pessoa abordada "compreende" a palavra, ou lhe artibui um sentido,
é porque as circunstâncias do momento ll1e dão um contexto qual­
quer, contexto êsse que determinará o sentido. Assim a palavra
FOGO proferida numa sala de espetáculos, ou pelo comandante de
uma tropa em operações, ou ainda por um fumante que se apro­
xima de outro com um cigarro apagado à rnosh·a, provocará em
cada -caso reação be1n distinta, e terá "sentido" diverso.
Dir-se-á que se trata aí, como em casos semelhantes, de situa­
ções excepcionais ou de emprêgo metafórico dos vocábulos. Mas
o fato é que o sentido de grande parte, se não da maioria dos vocá­
bulos, tem origem e1n metáforas, em empregos figurados, em ana­
logias. E no mais das vêzes, só um filólogo muito experimentado
será capaz de determinar qual o sentido original e qual o derivado.
É essa uma das razões por que os vocábulos têm em regra tantos
"sentidos", sobretudo no uso corrente, fazendo com que êles só se
possa1n distinguir entre si pelas circuntâncias em que o vocábulo
é empregado. O vocábulo "casa", por exemplo, que tem sentido
tão conhecido e à primeira vista tão determh1ado, aparece nas se­
guintes frases com acepções bastante diferenciadas: vou para casa,
o Govdrno está empenhado num progmma de casas popuT.ares, pre­
firo morar num.a casa a num apartamento.
A ambigüidade do sentido dos vocábulos considerados isolada­
mente, é muito inaior do que pode à primeira vista parecer. Uma
análise atenta do sentido da generalidade dos vocábulos, tal como
são efetiva1nente empregados no uso corrente, nos mostra que os
diferentes sentidos indicados no inais completo dos dicionários, estão
em regra muito aquém da realidade. E nenhum dicionário será ja­
mais capaz de referir, mesmo aproximadamente (sobretudo quando
se trata de palavras mais abstratas e gerais) todos aquêles sentidos
e sua infinidade de matizes tanto mais variáveis que u11nca estão
definitivamente marcados, e se acl1am em constante transformação,
Um dicionário nunca é mais que lima codificação mais ou menos
aproximada e momentânea de algumas indicações a respeito do q11e
constitui efetivamente o sentido dos vocábulos, O principiante no
estudo de línguas estrangeiras tem constantemente a experiência
disso.
76 CAIO PRADO JÚNIOR

Isso tudo comprova a ausência de especificidade dos vocábulos,


no que se refere ao sentido da expressão verbal. Os vocábulos, por
si sós, não encerram prOpriamentne "'sentido'', que lhes advém real-
1nente do conjunto verbal ou circunstâncias em que· ocorrem. Em
si, êles compmiam apenas um "sentido" potencial (28.) Teremos
ocasião, no final dêste capítulo, de precisar mais o papel repre-
3entado pela · linguagem e suas formas na sua função expressiva da
conceituação e do pensamento; e aí se terá melhor a medida em
que essas formas, os vocábulos inclusive, comportam "sentido". Por
ora, o que nos importa é a conclusão de que não existe correspon­
dência bi-unívoca entre conceitos e idéias, de um lado, e vocábulos
de outro. O "<sentido", co1no expressão dêsses conceitos ou idéias,
deriva do contexto e1n que os vocábulos ocorrem, do sistema em
que êles se dispõem e que em conjunto configuram. E assim o
"sentido" sàmente pode ser interpretado como resultante do deslo­
camento do pensamento, da passagem dêle de um vocábulo para
outro, ou entre vocábulos e as circunstâncias extralingüísticas ocor­
rentes quando os vocábulos são evocados. É ne_sse deslocamento,
erp_ que se vai progressivamente configurando o sistema de con­
junto onde aquêles vocábulos e circunstâncias se enh·osam e uni­
ficam num todo, é aí que pràpriamente o «sentido" se revela. Aqui
ainda, por conseguinte, o conceito revelado no «sentido" da expres­
são verbal, aparece como uma relação; isto é, se evoca e propõe
num relacionamento, e consiste pois nesse relacionamento de vocá­
bulos e circunstâncias extralingüísticas concorrentes.
· Analisemos contudo êsse assunto mais de perto, considerando,
na medida do possível, o vocábulo em si e como entidade autônoma
com «sentido" próprio e discriminado, tal como usualmente o apre­
sentan1 os gramáticos e logicistas. Damos assim de barato todo
artificialismo ( do ponto de vista psicológico ) que apresenta essa

(28) Se1n querermos desenvolver aqui o assunto, observe-se que situação


semelhante se apresenta no terreno da linguagem pràpriamente científica. Con­
sidere-se por exemplo o caso da· palavra partícula, que tem ta1nanho relêvo na
linguagem da Física moderna. A que corresponde precisamente essa expressão?
Para co1nprovar a dificuldade, íamos dizer impossibilidade da resposta, consulte­
-se a abnndante literatura científico-filosófica contemporânea relativa1nente aos
conceitos da Física atual - os Jeans, De Broglie e tantos outros.
NOTAS INTRODUTÓRIAS Ã LóG!GA DIALJ':TIGA 77

maneira de considerar o assunto. Veremos que apesar disso as con­


clusões são as mesmas.
Preliminarmente, uma vez que vamos tratar especificamente dos
vocábulos em si, devemos precisar melhor o que se entende por esta
entidade verbal que nos é tão familiar desde a escola de primeiras
letras, e que nos parece à primeira vista tão clara e definida. Isso
porque apesar de uma tal clareza e definição aparentes, os lingüis­
tas, ao aprofundaren1 a questão, já há muito verificaram a dificul­
dade em traduzi-las de maneira precisa. O vocábulo, fora de sua
expressão gráfica, onde êle se isola e destaca entre dois espaços
vazios, não apresenta nenhum éaracterístico distintivo aplicável ge­
neralizadamente. Se as partes de que se compõe o vocábulo, as
silabas, gozam de individualidade fonética (corno se depreende,
enh·e outros, do fato da espontaneidade e generalidade da versifi­
cação baseada na disposição silábica), o agrupamento das sílabas
em vocábulo não obedece a normas gerais, fonéticas ou outras; e
contém muito de arbitrário no sentido de depender Unicamente de
uma prática empírica. Na linguagem falada, os vocábulos não se
distingue1n uns dos outros, como podemos verificar quando ouvllnos
uma língua inteiramente estranha. ·E te1n-se observado que na apren­
dizagem da escrita, bem como entre semiletrados, a composição e
separação inadequada dos vocábulos são freqüentes. Isto é, os vo­
cábulos aparecem partidos, e sílabas finais de u1n vocábulo são
agregadas ao vocábulo seguinte. Observa-se também que o critério
segundo o qual se constituem e compõem os vocábulos, é diferente
de uma para outra língua, sobretndo quando se trata de famílias
lingüísticas distintas. E êsse critério não é geral nem mesmo com
relação a uma s6 língua.
Sem entrar nos pormenores dêsse assunto, e para o que nos
interessa aqui, e que vem a ser as relações entre o vocábulo e o
"sentido" da expressão verbal, pode-se afirmar que a divisão dessa
expressão em vocábulos não comporta maior interêsse ou te1n um
valor secundário e derivado. Não tem portanto relação essencial
com o "sentido" que a expressão verbal traduz, e com a concei�
tuação que êsse "sentido" exprime, uma vez que não há coincidência
entre vocábulos e "sentido". Comprova-se isso com o fato de exis­
tirem em tódas as línguas, inclusive nas dos grupos Indo-europeu
78 CAIO PRADO JúNIOR

e Semítico onde a individualidade e autonomia aparentes do vocá­


bulo são mais acentuadas, vocábulos considerados geralmente, tanto
por lingüistas como pela intuição vulgar, co1no sem sentido, ser­
vindo apenas para ligar e relacionaT os demais. Seriam, afirma-se,
1neros auxiliares, como por exemplo as preposições. E em certas
línguas êsses vocábulos constituem uma categoria à parte e bem
caracterizada, como no chinês, onde com a designação de palavras
"vazias", êles se opõem às demais ou "cheias."
É devido a isso que os lingüistas costtunam subordinar a con­
sideração dos vocábulos à distinção que fazem entre semantemas
e morfemas que designam os elementos da linguagem que formando
ou não vocábulos independentes, exprimiriam respectivamente, se­
gundo aquêles lingüistas visivelmente inspirados nas concepções ló­
gico-filosóficas consagradas, as "idéias" e as «relações entre idéias".
Assim os semantemas teriam «sentido" próprio; os morfemas não,
funcionando apenas corno elementos auxiliares que ligam e articulam
enh·e: si os elementos significativos ou sen1antemas. Não discuti­
remos aqui o valor gramatical da distinção entre semantemas e mor­
femas; mas observaremos que a caracterização semântica que lhes
dá a noção consagrada de elementos expressivos respectivamente de
"idéias" e "relações entre idéias", é evidentemente inadequada, por­
que tanto uns como outros concoTrem igualmente para o "sentido"
da expressão verbal e se completam mlltuamente, estando o "sen­
tido", nessa complementação de um pelo outro. Isso é evidente
nos. casos em que os se1nanten1as constituem simples raiz de vocá­
bulos, e raiz que freqüentemente não tem por si só individualidade
alguma, como em português a raiz do verbo rir, que é a leb:a r.
Mesmo contudo quando a raiz conserva algo de sua individualidade
significativa, o "sentido" do vocábulo que a raiz compõe, resulta
do conj11nto; e não há razão plausível alguma para considerar a raiz
como representativa de uma "'idéia" e os afi'íOS como "relação entre
idéias" . Assim em desgatrar, o "sentido" e portanto o conceito re­
presentado pela expressão, não está evidentemente em nenhum dos
elementos con1ponentes do vocábulo, e sim precisamente no con­
junto de ambos, na relação em que se aTticulam. Nã.a se trata no
caso nem ao menos de uma somação de "idéias", pois no conceito de
desgarrar, a eventual idéia específica de garra, 011 o que poderia
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 79

ser considerado corno tal, se dissolve completamente no conjunto


e não se encontra mais presente nêle com a sua especificidade. De
fato, onde podemos descobrir o que poderían1os cnnsíderar a idéia
específica de "garra" (a garra de uma ave de rapina, por exemplo),
na idéia de um navio que perdeu o mmo e portanto "desgarroú'?
Considerações análogas podem ser feitas quando os morfemas
constituem vocábulos independentes. Veja-se o caso das preposições.
É fácil observar que é da união delas com as palavras que regem
e que encerram os semantemas, que resulta o «sentido" e expressão
do conceito considerado. E não se trata, aí também, de urna idéia
que se "acrescenta" a outra, ou· de urna «relação" no sentido de sim­
ples ligação exterior, como dizem os gramáticos e lingüistas numa
formulação vaga e cheia de ambigüidades. Preposição e palavra
por ela regida, constituem u1n conjunto, um todo; e o que é mais,
bem distinto de suas partes:
ped1·a, por exemplo, 011 na pedra, com
pedra, (mesmo na medida em que podemos considerar tais expres­
sões fora de qualquer contexto), têm "sentido" evidentemente bem
distinto.
Sem insistir no assunto, que não pretendemos senão i!ustrar com
algumas observações suficientes para orientar uma análise mais ri­
gorosa e geral que não caberia aquj, podemos concluir que se gra­
maticahnente a distinção entre semantemas e morfemas tem inte­
r.êsse e se justifica - e não entra1nos nessa matéria -, ela não
repousa na discriminação entre "idéias" e "relação entre idéias",
O que distingue semantemas de morfemas é tão-sõmente a forma
gramatical, onde certos elementos (os semantemas) se fazem como
que centros em tôrno de que se dispõem os demais elementos ou
morfemas (29), a fim de em conjunto darem o "sentido" próprio da
expressão verbal. :ítsse «sentido", contudo, não se constitui de uma
adição ou acrescentamento de partes; e é um só, resultando do relaw
cionamento e sistematização num todo unitário, de seus elemei1tos
componentes que perdem nesse conjunto sua especificidade.
Que podemos concluir daí relativamente às eventuais indica­
ções que nos dá sôbre a natureza da conceituação - que é o nosso
problema central no momento? É que mesmo considerando vocá-

(29) Lembremos que entre os morfen1as também se inclui a posição


respectiva e o ordenamento en1 que se distribuem os semantemas.
80 CAIO PRADO JúNIOR

bulos isolados, e na medida em que isso se justifica, o ''sentido" e


portanto o conceito expresso nesses vocábulos deriva de seu rela­
cionamento. O fato mental que acompanha a elocução verbal ou
que é por ela despertado ou estimulado, não consiste numa repre­
sentação ou acontecimento punctiforme e estático, e sim num pro­
cesso dinâmico em que os estímulos específicos provocados pelos
diferentes elementos componentes do vocábulo, se relacionam e con­
jugam num todo unitário, perdendo com isso a sua especificidade.
O conceito é dado não por êsses elementos em si e pelos estímulos
específicos que produzem; nem dêles se constitui. E sim pelo seu
relacionamento que é o que de fato compõe o conceito. O con­
ceito não se explica só por êles próprios, porque os transcende.
Consiste prüpriamente naquilo que os tme e relaciona, no processo
que realiza essa união e relacionamento (30.)
Isso ainda é comprovado pelos fatos históricos tanto da evo­
lução do "sentido" das palavras, como da formação de palavras
novas. Não podemos desenvolver aqui essa matéria que é ·das mais
complexas e controvertidas da Lingüística; mas que, com o que já
dela se conhece com bastante segurança, permitiria generalizar no«
sas conclusões para o conjunto do vocabulário. Assinalemos to­
davia, a título de indicação, que qualquer que seja o tipo de alte­
ração semântica ou de criação de novas palavras, elas envolvem
pràticamente sempre uma perda de especificidade, seja, num caso,
do "sentido" da palavra que sofre a alteração semântica; seja no
outro, do ··sentido" dos elementos que concorrem para a formação
das novas palavras criadas. Neste último caso, o fato tão conhecido
da aglutinação - com que até já se pretendeu uma explicação geral
da evolução morfológica dos vocábulos - é uma instância carac­
terística daquela perda de especificidade. O mesmo se pode dizer
com relação a êstes fatos tão amplos de alteração semântica que
têm sua origem na abstração e generalização crescentes do sentido
dos vocábulos (31.) Tudo isso mostra que a conceituação inspira-

(30) Lembremos a propósito que os lógicos mais recentes reconhecem


que o julgamento precede o t�rmo.
(31) Ver em particular, a &sse respeito, a síntese de G. Bonfante, no
artigo Semantics da Encyclopedia of Psychology, ed. p. Philip Lawrence Har­
riman, Citadel Press, New York, 1951.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIAL1':TICA 81

dora dessas modificações semânticas e inovações lingüísticas - e


não pode haver dúvidas que elas brotam dos processos pensantes
e conceptuais dos indivíduos que foram através dêsses processos
forjando a sua linguagem - consiste num relacionamento que se
realiza precisamente na operação de ligar e fundir elementos dis­
cretos - sejam palavras ou partículas que se aglutinam, sejam estí­
mulos de fatos e circunstâncias novamente propostas à experiência
do homem, e que se trata de representar com palavras já existentes
- pela eb'minação progressiva de sua especificidade.
Vemos portanto que mesmo a consideração do vocábulo em si
e isolado do contexto em que ·normalmente se inclui, nos permite
concluir que também atrás dêsse vocábulo assim mutilado, tanto
como de outras formas verbais mais complexas, a conceituação que
se traduz nas formas verbais é constituída de um processo de rela­
cionamento, uma relação; e não se compõe de unidades discretas
quej tal como as "'idéias" da l;sicologia tradicional, estruturariam o
fato mental por simples justaposição e acrescentamento de elemen­
tos individualizados e atômicos.
Retornemos contudo ao conjunto da expressão lingüística que
deixamos momentâneamente para analisar o vocábulo em particular.
Completaremos assim nossas observações acêrca da natureza da con­
ceituação, o que nos permitirá considerar a questão específica da
linguagem como fator diretamente participante do processo con­
ceptual.
No que já foi visto anteriormente, verificamos que o C<sentido"
que a linguagem traduz, constitui um devenir peimanente que se
vai determinando ao longo da expressão verbal, na seqüência de
mnas para outras formas. Assim o "sentido" dos vocábulos se de­
terminará e precisará na sucessão dêles, e finalmente na frase que
se constitui dessa sucessão. Assim também a sucessão e seqüência
de frases determinará o "sentido" próprio de cada mna delas. As
formas verbais todavia não se justapõem umas às outras em sucessão
linear, como pode parecer a quen1 considerar Unicamente seu aspecto
formal e gramatical, desprezando o "sentido" que encerram. Elas
de fato se dispõem em conjuntos sistematizados cada vez inais am­
plos que se vão pogressivamente constituindo - palavras, locuções,
frases, agrupamentos de frases . . . - e que abrangem cada qual
82 CAIO PRADO JúNIOR

todo processo anterior. Conjuntos êsses em que os elementos cons­


tituintes se caracterizam pràpriamente e se determina1n precisa­
mente por aquela sistematização progressiva. E o "sentido" será
dado por essa sistematização progressiva; ou em outras palavras, a
conceituação .s e exprimirá através das relações que estruturam os
sistemas assim formados (32.)
Encontramos isso bem caracterizado na formação das frases,
onde o "sentido" dos elementos constih1intes (vocábulos e locuções),
embora já dado na enunciação dêsses elementos, mas como que po­
tencialmente apenas, só se determinará prüpriamente no conjunto
da frase, isto é, nas relações que estruturam êsse conjunto. E são
essas relações que exprimirão o conceito ou conceituação que se
pretendeu apresentar. A mesma observação se aplica aos conjuntos
ou sistemas forn1ais constituídos pelos agrupamentos de frases. Nesse
caso, farão o papel de «elementos", as frases que compõem o agrupa-
1nento. Em direção inversa, encontraríamos situação análoga nos vo�
cábulas singulares e locuções, que formam conjuntos no que diz res­
peito a .seus elementos constituintes: raízes e afixos dos vocábulos;
vocábulos componeutes das locuções (33.)
Em todos os casos, a conceituação, que se revela no «sentido"
da expressão verbal, traduzir.:se-á nas formas e nos sistemas que
essas forrr1as constituem; formas e sistemas êsses que vão sendo
sucessiva e progressivamente substituídos por outros mais amplos
em que os anteriormente constituídos se englobam e perdem sua

(32) Estamos naturalmente considerando o caso optimum da expressão


lingüística de legítimos processos racionais, como por exen1plo as exposições
científicas, cm contraste com formulações em que predomina u1n conteúdo for­
malístico e preponderantemente verbal - o verbalismo, em sun1a. Essas for­
mas verbalistas não nos ocupaxão aqui, uma vez que não refletindo elas autên­
ticos processos pensantes, não interessan1 a quem como nós investiga, através
da forn1a verbal, precisamente êsses processos.
(33) ."É preciso nfto esquecer o fonema, cujo valor semântico se observa
nos casos, embora raros, da onomatopéia; e mais freqüentemente, no valor
.simbólico de alguns sons. Será com certeza mais que simples coincidência o
fato de o som i se associar em muitas línguas à noção de «pequeno'�, enquanto
os sons o e u se ligarem àquilo que é "grande". E:sse assunto todavia se en­
contra ainda inexplorado pela Lingüística. Ver a respeito o artigo acin1a
citado de .Bonfante, Encyclopedia, 842·,
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 83

individualidade. A cada um dêsses sistemas corresponderá um valor


semântico próprio e unitário, embora momentâneo e destinado a
se determinar novamente na forma e sistema seguintes en1 que aquêle
sisten1a anterior se vai rearticular. Cada vocábulo, e mesmo os
elementos constituintes do vocábulo; depois os grupos de vocábulos
ou locuções; em seguida as frases, e ainda os diferentes e sucessivos
agrupamentos sempre mais amplos de frases, cada urna dessas for­
mas e sistemas de relações terá por si um "sentido" próprio e uni­
tá.Tio que através daquelas relações em que se apresenta, traduz
parceladamente o pensamento 011 conceituação em processo de ex­
pressão. Mas essas parcelas se vão fundindo progressivamente nas
formas seguintes cuja sistemática substitui a -do sistema anterior.
E o novo "sentido" será f1mção dessa sistemática.
Tudo isso se reduz em últiina instância à observação já feita
a propósito do "contexto" onde prüpriamente se exprüne a concei­
tuação. 1vias êsse contexto não constitui uma continuidade homo­
gênea em sucessão linear; e sim compõe uma estruturação progres­
siva e cada vez mais ampla em que novos e maiores contextos se
vão sucessiva1nente substituindo aos anteriormente for1nados. Esque­
màticamente, díriamos por exemplo que a frase seria o contexto
dos vocábulos que a compõem, como o agrupamento de frases seria
o contexto destas últimas individualmente consideradas, e também
das palavras antes incluídas apenas no contexto das frases, O "sen­
tido'' da expressão verbal evolui assim por etapas sucessivas e des­
contínuas, configurando-se uma outra etapa de cada vez que pelo
acrescentemento de novos elementos, se constitui un1 novo conjunto
e sistema em que todos os elementos e partes anteriores adquirem
novo "sentido''. Isso se pode observar no fato de tão fácil verifi­
cação, que o "sentido" do que relen1os de um texto, sejam trechos
dêle, frases ou mesmo simples palavras, se apresenta sempre mais
ou menos modificado. É que o relido se inclui agora em contexto
diferente, porque mais amplo, daquele ou daqueles da primeira
leitura.
Em conclusão, a conceituação se traduz na linguagem pelas
relações formais que ocorrem nesta última, isto é, pela disposição
relativa das formas lingüísticas. Tais relações se integram em su­
cessivos conjuntos e sistemas unitários que se vão progressivamente
84 CAIO PRADO JúN!OR

constituindo no desenvolvimento da exposição da expressão verbal.


A conceituação traduzida e expressa de tal maneira, comportará
assim um duplo aspecto: de um lado, consistirá num relacionamento
- e podemos em conseqüência dizer que a representação concep­
tual tem a natureza de um processo dinâmico que se exprime na
transição de um para outro dos elementos componentes da expressão
verbal. Isto é, não são os elementos em si e na sua especificidade
que exprimem a conceituação, e sim a sucessão e relacionamento
dêles. Mas de outro lado, e na medida em que êsse relacionamento
se integra em sistema, a representação conceptual assume caráter
de um conjuuto unitário que se exprime naqueles sistemas integrados
(o vocábulo, a frase, o agrupamento de frases . . .) É então pro­
priamente o que se entende por ''conceito."
Daí a ilusão que a conceituação se compõe de elementos dis­
cretos e autônomos que seriam as "idéias" ou os "conceitos" atô�
micos da Psicologia clássica. Isso é efeito da linguagem, que rea­
liza a integração, ou em que, direta e imediatamente, se exprime a
integração do processo conceptual de relacionamento em conjuntos
unitários e aparentemente estanques e estáticos que se apresentam
externamente, a cada momento, com o aspecto de tais idéias ou
conceitos atômicos. Mas essa unidade e aparente individualidade
logo se desfazem nu1n momento subseqüente, seja e1nbora para se
reconstruírem em seguida com a integração de um novo sistema,
mas já então em outro conjunto e sistema maior em que o anterior
se desfaz.
Em sun1a, pode-se afirmar que a conceituação se desenvolve
como um processo balizado por expressões verbais em que se con­
figura o relacionamento de que essencialmente a conceituação se
constitui. A conceituação consiste numa relação ou representação
relacional e dinâmica que não é especifica das expressões verbais
singulares e individualizadas que lhe servem apenas de balizas e
suportes momentâneos. Ela é todavia suscetível de se traduzir>
e de fato se traduz unitária e estàticamente em sistemas integrados
nos quais aquelas expressões se estruturam, e que são as formas
verbais: vocábulos, frases, agrupamentos de frases . . . Tradução
essa que não se realiza e ocorre Unicamente na elocução verbal, mas
pode também não se exprimir exterio1mente, como de fato se dá,
NOTAS INTRODUTóRIAS À LÓGICA D!ALltTICA 85

conservando-se então no interior do pensamento, e participando assim


da própria dinâmica do pensamento.
Temos uma ilustração muito simples, e1nbora quase esquemática
da dupla natureza da conceituação - processo de relacionamento,
e elemento estático e punctifo11ne - nas ocorrências verificadas na
resolução dos testes de analogias que analisamos anteriormente.
Vimos aí que a relação por exemplo entre os têrmos dos pares: grande
e pequeno, longo e curto, branco e prêto . . ., é representada concep­
tualmente por um processo dinâmico e relacional que se desenvolve
entre aquêles têrmos, sem ser específico de qualquer dêles e1n par­
ticular. A mesma relação todavia é suscetível de se traduzir uni­
tàriamente, e de fato assim se traduz no sistema de conjunto em
que tais têrmos se estruturam, a saber, no emparelhamento dêles.
Emparelhamento êsse, e sistema integrado, que pode ser e efetiva­
mente é designado por expressões unitárias em que o relaciona­
mento se disfarça: como seja, "oposição", "contrário", ou outras
semelhantes.
Essas circunstâncias se reproduzem no conjnunto e generalidade
das relações entre a conceituação e a linguagem. Ao emparelha­
mento de têrrnos realizado no teste de analogias, corresponde, quan­
do se trata do caso geral e ordinário da conceituação expressa em
linguagem, con·esponde o estruturamento das formas verbais, tanto
os vocábulos isolados, como seus eventuais componentes (raiz, afi­
xos) e compostos (locuções, frases, agrupamentos de frases , . .) Tal
como a representação mental resultante do teste de analogias não
deriva dos têrmos emparelhados em particular, e não é específica
dêles, e sim decorre do próprio emparell1amento e sistema em que
os têrmos se dispõem; assim também a conceituação expressa na
linguagem ordinàriamente empregada, não resulta de formas lingüís­
ticas específicas, e sim da estrutura e sistema de conjunto em que
essas formas se dispõem. A conceituação, em suma, não é especí­
fica de tais formas (34), e repousa Unicamente no sistema e nas re-

(34) Não é específica nero das forn1as verbais na sua expressão fonética
(isto é, as forn1as verbais como representações sensíveis, auditivas ou outras),
nem tampouco das formas gramaticais em que a expressão fonética se dispõe,
como por exemplo, entre outras, a função proposicional da Logística. 11: certo
que essas formas gran1ático-lógicas não são específicas das eventuais palavras,
86 CAIO PRADO JúNIOR

lações em que as mesmas formas se acham dispostas. Psicologica­


mente considerado, isso corresponde a dizer que a conceituação não
se liga diretamente às expressões e formas verbais, mas à �'transi­
ção" ou "passagem" do pensamento ou atividade mental, de umas
para outras - qualquer que seja fisiolàgicamente o significado e
conteúdo dessa "transição" ou "passagem". É o que se dá no caso
muito simples e esquemático do emparelhamento de têrmos; é assim
também nos casos normais e ordinários da conceituação, em que
ela é dada e repousa na seqüência da expressão verbal e sucessão
de suas formas.
Para concluir, pode-se dizer que a observação dos fatos lingüís­
ticos autoriza a afirmação de que a conceituação ou conceito con­
siste na representação mental de um sistema de relações, sistema
êsse onde os têrmos ou elementos constitumtes de tais relações (as
expressões verbais em geral e as suas formas em particular) perdem
sua especificidade, ou valem não por essa especificidade (como 'tais
e quais ele1nentos em particular), mas Unicamente pela sistemática
em que êles se dispõem relativamente uns a outros. É isso que
permanece através de tôdas as possíveis e eventuais substituições
de expressões e formas específicas. É aquela sistemática, portanto,
que se representa mentalmente no psiquismo o indivíduo pensante,
através de um processo fisiológico de que não cogitamos por ora;
e que constitui sua conceituação, o conteúdo de seu pensamento(35.)

ou antes, conjuntos fonéticos que entra1n na sua co1nposição. Mas a represen­


tação conceptual tampouco é específica das mesmas formas. Está aí talvez
a confusão fundamental do formalismo lógico erigido, co1no pretendem fazer
muitos logicistas, em teoria do conhecimento, pois confunde-se aí um primeiro
nível de perda de especificidade (a forma gramático-lógica com relação à ex­
pressão fonética), com o nível inais elevado da conceituação, onde aquela perda
de especificidade é total - salvo naturalmente no que diz respeito aos pro­
cessos fisiológicos que a constituem, e sen1 os quais ela não oco1Teria.
(35) Essa interpretação da linguage1n em sua função expressiva do pen­
samento e da conceituação, explica desde logo a potencialidade das expressões
e formas verbais em possíveis relações, o que lhe permite, através da dispo­
sição relativa dessas formas, realizar um número incalculável de relações que
constituiria111, ou representariam outros tantos conceitos. A plasticidade da
expressão lingüistisa é assim inesgotável, particularmente devido a seu dina­
mismo sempre latente e suscetível de ser pôsto em jôgo, como de fato ocorre,
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALilTICA 87

Daí a circunstância de uma inesma língua servir com modificações relativa­


mente insigóificantes, através de períodos históricos muito longos em que a
conceituação ( que encerra o conhecimento) se transforma consideràvelmente.
O aspecto negativo dessa plasticidade lingüística é a facilidade que daí de­
corre para a especulação verbalista, e portanto para um pscudoconhecimento
formal e fantasista.
7. - REPRESENTAÇÃO SENSíVEL,
CONCEPTUAL E VERBAL

Insista1nos em nossa análise da representação mental, comple­


tando-a com mais particularidades, e esclarecendo alguns pontos
que tenham possivelmente ficado menos claros. O que nos ocupa
é a natureza relacional da representação mental, e em particular
da representação puramente abstrata, isto é, sem ligação direta com
as impressões sensíveis.
São estas últimas que constih1em a base sôbre que assenta tôda
a representação mental. É através dos sentidos e sõmente dêles,
que o indivíduo pensante entra em contacto e comunicação com a
realidade exterior ao pensamento, nêle "representa" a mesma reali�
dade, e constih.1i com isso o seu Conhecimento. O gra11 contudo
de dependência e ligação da representação com sua base e origem
sensível, é variável. O nosso problema central consiste em deter­
minar como se estrutura a representação mental a partir daquela
sua base e origem nas impressões sensíveis elementares ot1 simples
sensações, até -dar nos níveis mais abstratos da representação, isto é,
níveis aparentemente desligados por completo da sensibilidade. No­
temos desde logo que para não complicar a exposição, não faremos
referência expressa à sensibilidade interna, isto é, derivada dos ór­
gãos proprioceptores, embora ela naturalmente se inclua no assunto.
Ao falarmos genericamente de «sensações", estaremos impllcita1nente
nos referindo também àquela sensibilidade interna.
Não discutiremos a natureza "elementar" das sensações, que é
negada pelos gestaltistas. É necessário todavia dintinguir as sim­
ples sensações das percepções mais complexas. Entendemos por
sensações elementares os estímulos sensíveis que se apresentam de
maneira punctiforme e direta, sem participação, pelo menos imedia­
tamente observável, de qualquer elaboração mental, como sejam a
90 CAIO PRADO JúNIOR

audição de um som ou ruído isolado, a visão da côr, a sensação


táctil de um choque e outros fatos semelhantes. Pode-se a rigor
discutir a elementaridade dessas sensações. Não por certo como o
faz a Gestalt que subordina êsse tipo de sensações, como outro mais
complexo qualquer, à percepção de conjuntos ou formas em que
elas se dispõem. Os abundantes argumentos da Gestalt, tão pro­
cedentes a outros respeitos, não conseguem todavia excluir a reali­
dade de fatos sensíveis que independem de outras circunstâncias,
como aquêies que referimos e nos quais não se propõem conjuntos
ou formas. Se nas percepções relativamente complexas que são
as ilustrações sempre invocadas pela Ge81alt, se propõe a questão
da "percepção da forma'', não vemos como o mesmo se poderá
alegar no caso de sensações que consideramos ''elementares" e de
que demos as instâncias acima.
O que talvez introduza uma cunha na noção de sensações ele­
mentares, é que elas resultam de fatos físicos complexos, como a ex­
periência mostra. Assim a sensação auditiva, por simples � �ele­
mentar'' que seja, provém de um processo vibratório que se comunica
ao tímpano, e a qualidade da sensação depende das características
da vibração. Assim também a visão é efeito da luz cuja trans­
missão até os órgãos receptores da vista, obedece a padrões vibra­
tórios (embora não se pronuncie a Física sôbre a natureza ou
suporte dessas vibrações). Nessas condições, é lícito conclui�· que
pelo menos nesses casos, as sensações derivam de um processo f.isio-
16gico mais complexo que simples impressões produzidas por mn
impacto punctiforme provindo. do exterior. Mas seja qual fôr aquêle
processo, êle é distinto, no plano em que nos colocamos, daquele
de que resultam percepções mais complexas, isto é, aquelas que im­
plicam "fonnas", corno sejam a percepção visual de figuras georné­
bicas, a percepção auditiva de uma peça musical etc. Nessas per­
cepções complexas, a par das sensações elementares, ocorrem outras
circunstâncias que são, como vimos relações. Relações essas que
dão a "forma", e que independem da especificidade daquelas sen­
sações elementares, que originàriamente pelo menos, provocaram a
percepção considerada. Isso nos parece ter ficado suficientemente
claro em nossas anteriores considerações, e se comprova com todo o
amplo arsenal experimental da Gestalt, cujo desacêrto não se en-
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LóGIGA DIALJ':TICA 91

contra na sua concepção de "percepção da forma", que é incontes­


tável, e sim na maneira em que procura explicar essa percepção,
atribuindo-a a não se sabe que propriedade intrínseca e misteriosa
da própria "forma'' percebida.
Não nos importa particularmente aqui, todavia, êsse aspecto
da questão, pois o que nos interessa não é pràpriamente a sensação
ou percepção, e sim o resíduo que sensação e percepção deixam
no psiquismo do indivíduo estimulado, depois de suprimido o objeto
do estímulo. Em outras palavras, aquilo de que nos ocupamos não
é da sensação ou percepção, mas da representação mental delas.
Que aquêle resídno que fica da sensação e percepção, e que cons­
titui a representação mental delas, existe, não pode ser pôsto em
dúvida. A introspecção o mostra de maneira concludente; e a in­
trospecção, no caso, é perfeitamente legítima como processo de
análise, porque não deixa margem para dúvidas e é fácil e perfei­
tamente controlada pela co"f!lunicação, entre pessoas distintas, da
introspecção por elas realizada. Ora ninguém nega ou mesmo ja­
mais duvidou que nos recordamos, às vêzes até com grande viva­
cidade, de sensações e percepções anteriormente experimentadas.
Conclui-se daí, que de um ou outro modo, elas estão representadas
na mellte ou psiquismo do indivíduo que antes as experimentou e
conserva depois a memória delas. Essa memória constitui o que
entendemos por "representação."
Mas isso que a observação introspectiva nos oferece, é compro­
vado com o fato do "reconhecimento" de situações análogas a outras
anteriormente experimentadas. Reconhecimento êsse que decorre da
semelhança ou coincidência das sensações e percepções obtidas res­
pectivamente nas duas experiências. Quando "reconhecemos" uma
pessoa nossa conhecida, somos obrigados a admitir que as sensações
e percepções verificadas quando anteriormente "conhecemos" essa
pessoa, se conservaram de algum modo em nossa memória, acham-se
representadas em nosso psiqtúsmo. Sendo que o "reconhecimento'�
derivou do chamamento à consciência dessa representação por efeito
de novas sensações e percepções análogas àquelas que proporcio­
naram o "conhecimento" anterior. O fato do reconhecimento, que
é um dado experimental incontestável, sàmente pode resultar de
um "confronto" entre estímulos passados e presentes, seja qual fôr
92 CAIO PRADO JúNIOR

a natureza e o mecanismo fisiológico dêsse «confronto", questão essa


em que não precisamos aqui entrar. Ora os estímulos passados, para
serem «confrontados" com estímulos presentes, precisam estar de
algum modo representados no psiquismo do individuo que realiza
o confronto.
O fato do reconhecimento, ao mesmo te1npo que co1nprova a
realidade da representação mental, abre perspectivas para a obser­
vação e análise dessa representação. Isso porque a representação,
dado o papel que exerce no relacionamento, deverá coincidir ou
assemelhar-se com aquilo que há de co1num enh·e o conhecimento
anterior de um objeto, e o reconhecimento posterior do mesmo objeto.
O transferido de uma experiência para outra, e que constitui a re­
presentação, é necessàriamente algo do objeto da primefra experiên­
cia que se reencontra no objeto da experiência seguinte.
Dispomos assim de uma base objetiva e experimental para a
consideração e observação da representação mental. São essas cir­
cunstâncias que nos permitiram nos capítulos anteriores, ohegar à
conclusão da natureza relacional da representação mental, uma vez
que o «comum'' entre experiências anteriores e posteriores, o «trans­
ferido" de umas para outras, consiste não em estímulos e dados
específicos, e sim relações entre êsses dados. Nos pintos de Bin·
gharn, por exemplo, o que se transfere de uma série de experimentos
para ouh·a, não são estímulos específicos - o tamanho absoluto
dos círculos -; e sim uma relação entre êsses tamanhos: o fato de
uns círculos serem rnaiores que outros. O «reconhecimento" das
situações enfrentadas pelos pintos não se faz pelas circunstâncias
específicas dessas situações, e sim pelas relações inclllidas nas mes­
mas situações: o tamanho relativo dos círculos.
Observamos ocorrências análogas dos demais expe1'i1nentos con­
siderados. E chegamos assim à conclusão que a representação sen­
sível consiste em relações. Mais precisamente: a percepção sen­
sível resulta de um processo de relacionamento das circunstâncias
presentes no objeto percebido, ou antes, dos dados sensoriais for­
necidos por essas circunstâncias (36); e êsse processo se grava de
certo modo (que cumpre à fisiologia determinar) no psiquismo do

{ 36) A percepção através do processo de relacionamento será analisada


com mais atenção noutro capítulo.
NOTAS INTRODUTóRIAS À LóGICA DIALllTICA 93

indivíduo sujeito da percepção, constituindo a hnpressão assim pro­


duzida, a representação mental do objeto percebido. A represen­
tação mental consiste assim num processo como que latente, que
assim se conserva até ser reativado pelos estímulos produzidos q_uan­
do o objeto representado é novamente percebido. Dá-se então o
que entendemos por "reconhechnento.''
A relação que constitui a representação mental, associa-se no
ser humano a formas verbais. Enquanto nos animais as relações
são inexpressíveis (a não ser pelo comportamento do indivíduo que
nos permite inferir a existência da representação relacional, pois é
a ela, como vimos, e não às sensações específicas que o animal
responde com o seu comportamento), o homem pode exprimir e efe­
tivamente em geral exprime verbalmente sua representação de re­
lações, mesmo que não o faça exteriormente, e conserve a expressão
encerrada em seu pensamento. Pode-se mesmo como que assistir
ao aparecimento da linguagem co1no expressão de relações, nos
testes de analogias realizadoS com crianças: assim nos experimen­
tos de Dallembach referidos no capítulo 4, a criança, embora a prin­
cípio incapaz de exprimir verbalmente as relações que se acham
representadas em seu psiquis1no, aprende logo em seguida a fazê-lo.
Isto é, ela adquire a linguagem necessária para isso. Em suma,
o indivíduo humano dispõe, a par da representação de relações, do
instrumento da linguagem destinada a exprimir essas relações. Lin­
guagem essa cujos sons articulados de que se compõe, também se
representam mentalmente, isto é, se gravam no psiquismo em asso­
ciação com as mesmas relações, e fazem assim possível sua expressão
verbal (37).
Qual a conseqüência disso no que diz respeito à natureza da
representação mental? É em primeiro lugar o fato que substi­
tuindo-se pela expressão verbal, ou mais precisamente, associando­
-se a ela, .a representação perde inteiramente sua específicidade, li-

( 37) É da representação conceptual ou conceituação que nos ocupamos,


e não tratamos por isso da linguagem em si. Não nÜs preocupa assim, entre
outros, o fato se1n dúvida essencial de que é através da linguagem que o
pensamento se faz comunicável entre os homens, e assim se socializa. É nessas
circunstâncias que a linguagem tem suas origens e encontra os fatôres de seu
desenvolvimento; bem como as raízes de seu papel no próprio interior do
94 CAIO PRADO JúN!OR

bertando-se de sua dependência direta dos elementos sensíveis. Abre­


-se pelo menos o caminho para essa libertação. Enquanto sensível,
a representação mental se acha ·sempre mais ou menos, mas sempre
diretamente ligada às circunstâncias específicas em que se elaborou,
ou a algumas delas. Com a possibilidade de sua substituição pela
expressão verbal, ela se desprende dessa ligação.
íl';sse fato tem grande importância, e cornp.orta conseqüências de
monta, pois vai permitir a aplicação da representação a um nún1ero
crescente de situações objetivas, que se fazem por êsse modo assi­
miláveis umas às outras. Em ouh·as palavras, o emprêgo da ex­
pressão verbal, e a perda em maior proporção da especificidade da
representação com respeito aos dados sensíveis, faz possível a gene�
1·alização. Enquanto a representação mental se mantém no nível
da sensibilidade - é então imagem ou impressão sensível - ela será
sempre largamente solidária com as circunstâncias específicas da
experiência ou das experiências em que se elaborou. En1 conse­
qüência, o comportamento dos indivíduos, comportamento êsse que
envolve ou implica aquela representação sensível, será limitada por
lnna tal especificidade que nahualmente restringe a transferência
ou transposição da aprendizagem realizada. No adestramento de
animais, 1nesmo dos mais inteligentes, a reprodução fiel ou pelo
1nenos muito aproximada das circunstâncias em que tal adestramento
se realizou, é necessário para que êles se comportem da maneira
que lhes foi ensinada. Ê que a representação mental que conduz
ou o,rienta sua ação, acha-se muito ligada aos estímulos específicos
que condicionaram seu comportamento. Ela não logra por isso
estender-se para outras situações que embora semelhantes, não im­
plicam ou só implicam em pequena escala aq11êles estímulos exces­
sivamente específicos. �sses estímulos se fizeram insubstituíveis, ou
substituíveis apenas em grau 1nínimo. Compare-se isso co1n a plas­
ticidade do comportamento humano em que tais estímulos e reprc-

processo pensante. Reconhecemos assim que êsse papel, que é o que parti­
cu1annente nos interessa aqui, se explica pelo fato de ser através da linguagem
que a conceituação se comunica entre os homens. Sem comunicação, o pensa�
menta hun1ano não seria o que é. Não entraremos contudo nesse assunto,
e analisaremos a participação da linguagem no processo pensante, sem indagar
<las circunstâncias que determinaram e condicionaram tal participação.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALltT!CA 95

sentações mentais foram substituídos ou são suscetíveis de se subs­


tituírem pela expressão verbal.
Note-se que a substituição da representação sensível pela repre­
sentação verbal não significa desde logo uma perda total de espe­
cificidade. Trata-se antes de uma potencialidade. Potencialidade
muito ampla, mas aproveitada sempre mais ou menos, segundo o
indivíduo e seu desenvolvimento mental; e que por isso se realiza
por graus sucessivos, tanto na escala ontogenética como na filoge­
nética, isso é, na evolução respectivamente do indivíduo e da cultura
humana. Confronte-se a êsse respeito, e respectivamente, a criança
e o adulto (no plano ontogenético), e no plano filogenético, as cul­
turas chamadas primitivas e o homem civilizado. Na criança e nas
culturas primitivas, o conteúdo da representação, embora traduzida
em linguagem, é como se sabe predominantemente "concreta", o que
é outra maneira de designar a sua especificidade com respeito às
circunstâncias particulares dadas na experiência. Pelo contrário no
adulto civilizado, e sobretudo nos meios de cultura mais elevada,
o que predomina é uma representação "abstratá' e liberta em alto
grau de elementos sensíveis.
Não é preciso insistir nesse assunto bastante conhecido e tantas
vêzes referido e analisado por psicólogos, etnologistas e lingüistas.
Não existe um limite absoluto e uma divisão estanque entre a repre­
sentação sensíve� isso é, a representação direta e imediatamente
ligada aos dados sensíveis, e com êles inteiramente solidária, e a
rnpresentação conceptual livre daqueles dados. O que encontramos
é uma escala de abstração crescente que podemos acompanhar, ao
analisarmos a maneira pela qual se realiza e desenvolve através da
linguagem, e com o seu concurso, o processo daquela abstração cres­
cente e perda progressiva de especificidade sensorial da conceitua­
ção, ou antes, das relações conceptuais.
Temos co1no ponto de partida dêsse processo, a representação
mental de relações dadas diretamente na sensibilidade, como a re­
lação "círculo maior" representado mentalmente pelos pintos de Bin­
gham. Como se pode fàcilrnente observar, o primeiro passo na tra­
dução verbal dessa representação consiste na simples e sumária "de­
signação" delas por expressões verbais. É assim que as crianças
aprendem suas primeiras palavras, ligando ou associando llID som
96 CAIO PRADO JúNIOR

articulado (que é uma expressão verbal), enunciado em sua presença,


com as imagens formadas nessa ocasião pelo estímulo de ocorrências
então verificadas. A expressão verbal que a criança então adquire
- isto é, que ela representa n1entalmente e se faz para ela un1a
representação verbal incluída em sua memória e com que passará
a ��designar" ceita imagem (38) será a princípio ainda solidária,
-

até certo ponto, com os estímulos específicos que produziu a ima­


gem por ela designada.
Podemos ilustrar êsse ponto com o caso de uma criança a quem
se procura ensinar, apenas pela image1n, o que seja um triângulo.
Depois de umas poucas apresentações de figuras triangulares, a
criança adquirirá o que poderíamos designar por representação da
"triangularidadé', pois reconhecerá triilngulos bastante diferentes.
Terá pois generalizado sua representação, o que inostra que essa
representação se acha apreciàvelmente liberta da especificidade sen­
sorial. Mas se lhe f6r apresentada a figura abaixo, que é de um

triângulo, mas de u1n triângulo figurativamente bem distinto da­


queles que lhe foran1 antes mostrados, ela certa1nente não reconhe­
cerá aí um triângulo, e relutará mesmo em aceitar que o seja -
isto é, que seja assimilável aos triângulos anteriormente vistos. Por
que isso? Porque sua representação mental de triângulo, embora
já b�stante liberta de dados sensíveis específicos, e portanto já muito
genérica, ainda assim conserva uma acentuada solidariedade com a
sensibilidade -e as formas sensíveis que lhe serviram na aprendizagem
de triângulo.
Êsse não será o caso do estudante de Geometria, para o qual
o triângulo se fêz gradativa1nente menos uma forma sensível, que

( 38) :É daí que provém a ilúsão, consagrada pelo senso comum e gene­
ralidade dos filósofos e psicólogos do passado, que a expressão verbal "designa"
un1 certo objeto. Isso é exato se tomado em sentido figurado e indireto: real­

n1ente a expressão verbal designa o objeto cu;a imagem se associou a ela. Mas
empregando-se o verbo "designar" nesse sentido, é preciso não perder de vista
que entre o objeto e1n questão e a expressão verbal que o "designa", se inter­
põe um fato mental que é a representação mental dêsse objeto.
NOTA5 INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALllTICA 97

uma figura abstrata que corresponde à definição de triângulo : figura


plana fechada por três linhas retas. A representação sensível do
triângulo se acha em nosso estudante substituída, ou antes comple­
mentada e duplicada por outra que a ela se associa: a representação
mental absh·ata que se exprime verbalmente na definição de triân­
gulo.
Consideremos outra ilustração do nosso assunto que diga res­
peito a experiências mais usuais de ·uma criança. Assim por exe1n­
plo a palavra BOLA se referirá inicialmente à "bola" em particular
que a criança tinha nas mãos quando tal palavra se fêz para ela
em representação verbal. Em seguida BOLA se generalizará para
todos os objetos semelhantes - isto é, objetos nos quais concorrem
algumas pelo menos das circunstâncias cujos estímulos respectivos,
relacionando-se e se sistematizando em conjunto na percepção da
criança, e fixando-se assim em sua representação mental, repetem
aproximadamente os mesmos processos mentais ocorridos quando da
apresentação da bola modêlo. Aquela assimilação e generalização,
contudo, importando embora numa perda progressiva de especifi­
cidade (da côr, do tamanho, do material de que é feita a bola . . . )
conservará sempre, no entretanto, alguma daquela especificidade li­
gada à percepção sensível - assim, por exemplo, o fato de a bola
ser um corpo sólido, mais ou menos resistente à pressão, formando
uma superfície única e uniforme, sem arestas e descontinuidades . . .
Se aco1npanharmos agora a evolução psíquica dessa represen­
tação mental de bola (ou mais precisamente, uma de suas linhas
evolutivas) chegaremos, quando a criança em questão iniciar seus
estudos de Geomet1ia, à representação, já acentuadamente abstrata,
que denominamos esfera, e que se traduz ou na expressão verbal:
"figura no espaço cuja superfície tem todos os pontos equidistantes
de um ponto central", ou na expressão matemática x2 + y2 + z2 := a2•
Uma tal representação é um '"puro" conceito, isto é, completamente
apartado e livre da impressão sensível, que sàmente muito indireta
e remotamente a ela se liga. E tanto é assim que em geral os mate­
máticos sustentam que tal ligação nem ao inenos existe. Opinião
que não vamos discutir aqui, mas que prova, alé1n de qualquer dú­
vida, o afastamento em que naqueles matemáticos se encontra seu
conceito ou representação inental de esfera, das impressões sensíveis
98 CAIO PRADO JúNIOR

que se acha1n na origem embora remota daquela representação de


esfera.
Que significa isso? Que em nossa observação da evolução da
conceituação, passamos do nível em que as representações mentais,
mesmo verbalmente expressas, resultam imediatamente do relaciona­
mento de impressões sensoriais - é o que encontramos na represen­
tação de bola da criança, e até certo ponto na de esfera do estu­
dante -, para outro nível em que ocorre um relacionamento dife­
rente que se realiza com elementos ou têrrnos relacionáveis e rela­
cionados de natureza diversa. Que elementos ou têrmos são êsses?
A observação dos fatos nos apresenta Unicamente expressões verbais,
discursivas ou matemáticas - a definição acima de esfera, e as equa­
ções ou fórmulas relativas à esfera. Isso é tão verdade (pelo menos
no limite do processo de abstração que vimos acompanhando) que
os matemáticos apoiam ou procuram apoiar tôda a conceituação de
sua ciência, inclusive essa de «esfera", em definições puran1ente ver­
bais em que se exclui inteiramente a intuição sensível. Não é outra
coisa o a."Cioniatismo, ideal da ciência moderna. E se assim proce­
dem os matemáticos - e êles estão acertados, como provam os
resultados positivos que alcançam com seus procedimentos - é que
efetivamente o conceito ou representação mental de esfera se apóia,
diretamente IJelo menos, só e Unicamente em elementos verbais. Tra­
ta-se em suma de uma relação, ou antes de um sistema de relações
cujos têrmos são expressões verbais, e não dados, estímulos ou im­
pressões sensíveis.
Encontramos situação semelhante na generalidade dos conceitos
chamados abstratos, onde a observação e experimentação mostram
" grande dificuldade em apontar dados sensíveis em que os apoiar
- embora êsses elementos sensíveis se encontrem, em última ins­
tância, na sua 01igem, como se dá em tôda conceituação. É muito
difícil, se não impossível sem grandes desenvolvimentos teóricos, isto
é, puramente verbais, ligar a dados sensíveis, conceitos mesmo tão
familiares e correntes como os expressos por JUSTIÇA, RELATIVI­
DADE, BONDADE, RELUTÂNCIA . (39) E podemos fàcilmente
. .

(.39) E1n muitos casos, essa ligação é apenas aparente e tem um valor
Unicamente exemplificativo. Assim o conceito de "liberdade" será reportado,
por um prisioneiro, ao constrangimento físico que sofre, e que para êle é bem
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALltTICA 99

ve1ificar que quando os empregamos no uso corrente, evoca1nos seu


sentido ou significação Unicamente em têrmos verbais (sua definição,
descrição ou explanação), nunca recorrendo a elementos sensoriais
ou à intuição sensível. É que em tais conceitos já desapareceu e
se desfez completamente a sua especificidade no que respeita às im­
pressões sensíveis de que originàriamente e e1n derradeira instância
êles se constituem.
Assim pois, os conceitos absb·atos - e isso é tanto mais verda­
deiro quanto mais elevado o nível de abstração - se apoiam dire­
tamente apenas em expressões .verbais. Mais precisamente, em re­
presentações verbais, pois é com o fato mental da representação que
as expressões verbais se fazem participantes dos processos do pen­
samento e da conceituação. Como vimos, as representações verbais
( isto é, a representação mental das expressões verbais, da linguagem
em suma) se associam às relações conceptuais (como a palavra esfera,
por exemplo, se associa às relações concephiais constituintes do con­
ceito de esfera); e nesse sentido as "designam". Assim a represen­
tação verbal, que é a expressão verbal ou lingüística representada
mentalmente, designa relações conceptuais. Mas nessa qualidade de
designação de uma relação conceptual ou conceito, a representação
verbal pode figurar e efetivamente figt1ra em outras relações como
"têrmo" delas. Assim por exemplo o conceito de oposição, já con­
siderado em outro capítulo, se pode construir ou configurar (e de
fato êste é um dos relacionamentos em que o conceito de oposição
se esh·utura, como experimentalmente se demonstra nos testes de
analogias que descrevemos) como o relacionamento dos tê1mos grande
e pequeno, que por seu turno são relações conceptuais dados numa
escala de intensidade que se origina provàvelmente, em última ins­
tância, na intensidade relativa das impressões sensíveis. Vemos
assim as relações conceptuais que se acha1n associadas às represen­
tações verbais grande e pequeno, e são assim por elas "designadas",
relacionando-se para constituírem un1 novo conceito ''designado''

"sensível''. Mas evidentemente nesse caso, como nos infinitos outros análogç,$;,-c�'z' -J J . , .....,·."·�'4+;

que poderíamos figurar, os eventuais ele1nentos sensíveis porventura evoc�d6S_, . ,

como funda1nento do conceito de liberdade, estão inuito longe de esgofâr,elll ,


o conteúdo do conceito. E mesmo, por si sós e considerados isol,adàn,ie'.o:te,
se encaixam muito mal nesse conteúdo. ff ,-j
100 CAIO PRADO JúNIOR

pela representação verbal oposiçao. E êsse conceito de oposição,


relacionando-se por exemplo com o de ação, dará entre outras a
relação representada verbalmente por impugnação.
Temos aí instâncias muito simples, e podemos dizer quase es­
quemáticas, de relações conceptuais derivadas do emparelhamento
,
de dois têrmos que são representações verbais designadoras das re­
lações matrizes. Não é essa todavia a maneira ordinária e mais
freqüente de relacionamento e estruturação conceptual com expres­
sões verbais. Isso se faz norn1almente com as formas usuais da lin­
guagem discursiva - proposições ou frases, e agrupamento dessas
proposições. É com essas formas (elas próprias relações que em
última instância, e nos seus elementos, se constituem da disposição
relativa de fonemas) que as relações conceptuais se traduze1n ou são
«designadas", e se estruturam ein outras relações mais amplas.
Podemos agora, parece-nos, enxergar melhor o papel da lingua­
gem nos processos pensantes. Na qualidade de representação sen­
sível (que é como naturalmente a linguagem se representa mental­
mente, como som vocal que é) (40), a linguagem dá um conteúdo
imediatamente sensível às relações conceptuais. E con1 êsse con­
teúdo, as relações se fixam muito melhor. Desligada de represen­
tação sensível, a relação conceptual, que em si constihli um processo
ou atividade mental indistinto, não é claramente perceptível e por
isso semi-inconsciente. Isso se pode observar no desenrolar do pen­
samento, quando falta1n expressões verbais (ou antes representação
de êxpressões verbais) para traduzirem êsse pensamento. �ste último
se torna fluido e impreciso. Temos a experiência disso quando no5
sobrevém uma idéia para a qual não encontramos desde logo uma
forma verbal adequada. As dificuldades que encontramos tão fre­
qüenten1ente ao falar e escrever, e que são tanto maiores quanto
mais complexo o pensamento, isto é, mais rico de relacionamentos1
é uma instância daquela flutuação do pensamento, pois é só quando
alcançamos a formulação verbal adequada, que o nosso pensamento
se clarifica e precisa.

( 40} A representação da linguagem simbólica da matemática també1n 6


sensível, mas visual, uma vez que diz mais respeito à figura gráfica dos
símbolos.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 101

A conceituação, inesmo nos níveis mais iudimentares do conhe­


cimento humano, é constituído por um amplo e intrincado sistema
de relações que não se pode estruturar e sobretudo fixar e manter,
sem o apoio da linguagem e das representações sensíveis com que
a linguagem se inclui no pensamento dos indivíduos. A represen­
tação puramente sensível e desprovida de acompanhamento verbal,
como aquela que encontramos nos anilnais (por exemplo a repre­
sentação da relação maior que nêles observamos experimentahnente)
é sempre solidária em larga escala dos dados sensíveis específicos q11e
para ela concorreram, como se viu anteriormente. Ela (a representação
puramente sensível) não é assim suscetível, inesmo nas mais favo­
ráveis circunstâncias, de grande generalização. O que restringe con­
sideràveln1ente seu alcance no que respeita à experiência sensível
que é capaz de articular em conjunto e assim representar. Em ou­
tras palavras, a potencialidade da representação puramente sensível,
por efeito da dependência em que se encontra de circunstâncias
experimentais muito específicas, é necessàriamnte limitada e restri­
ta quanto aos objetos e dados da experiência que consegue abranger.
É certo que alguns indivíduos, dotados de especiais faculdades,
chegam a representar formas sensíveis relativa1nente complexas. É
êsse em ·particular o caso dos artistas. Assim o músico que consegue
reter de memória, o que vem a ser "representar mentalmente", rit-
1nos, nlelodias e harn1onias extre1na1nente complicados. Corr1pare-se
contudo essa complexidade com a da experiência sensível incluída
em conceitos abstratos, como o de "liberdade'', por exemplo, do qual
não temos a mais leve intuição sensível, devido precisamente à
imensa variedade e complexidade dos dados sensíveis que para êle
concorrem, o que fêz com que perdesse inteiramente qualquer espe­
cificidade. Não fôsse a expressão verbal e sua representação, e não
seria possível representar mentahnente o pensamento que se contém
naquele conceito de liberdade.
O pensamento incluído nos conceitos abstratos, que é aquilo
que ordinària1nente denominamos o seu "sentido", não pode ser, de
maneira adequada, representada sensivelmente. Para isso se torna
necessária a linguagem que porporcionanclo com a representação ver­
bal un1 apoio sensível ao imenso e complexo sistema de relações de
102 CAIO PRADO JúNIOR

que se compõe e e1n que se estrutura o pensamento incluído naque­


les conceitos, e que vem a ser o seu "sentido", lhes concede a coesão
e fixidez de q11e precisam para se conservarem na representação
mental.
8. - ESTRUTURA DA REPRESENTAÇÃO MENTAL

Façamos a súmula da análise a que procedemos nos capítulos


anteriores, procurando ver a matéria em seu conjunto. Verificamos
que a conceituação consiste essencialmente num processo de rela­
cionamento; podendo-se nesse sentido dizer que a representação
conceptual, o conceito, constitui uma re"lação. Isso não importa em
prejulgamento algum, já o notamos, acêrca da natureza fisiológica
daquele processo; e significa apenas que a representação concephrnl
se apresenta como um fato mental onde os elementos que para êle
concorrem e que o constitue�, e que em última instância são os
estímulos sensoriais elementares, se integram em conjuntos e cons­
tituem com isso um sistema no qual os mesmos elementos perdem
sua especificidade e individualidade, desaparecendo como tais. O
que permanece é apenas a disposição, a organização ou relação re­
cíproca em que os elementos em conjunto se estruturam.
Verificamos isso nos diferentes planos ou níveis psicológicos
em que esquemàticamente podemos considerar a atividade pensante.
Primeiramente no nível da sensação, onde os estímulos sensoriais
diretos se relacionam e sistematizam em conjunto para darem a per­
cepção das formas sensíveis, e constituírem assim a representação
mental dessas formas (representação sensível ou imagem); represen­
tação essa em que os estímulos sensoriais originários perdem sua
especificidade. Conservar-se-á dêles, na representação da forma
sensível Unicamente a "disposição" relativa, o sistema ou relação
em que êles entre si se entrosam. Assim a representação ou imagem
visual de uma linha, independe até certo ponto do fato de seu tra­
çado ser contínuo ou descontínuo; e neste último caso, da natureza
dos elementos que balizam o traçado e que podem, dentro de certos
limites de grandeza, ser quaisquer figuras.
104 CAIO PRADO JúNIOR

Num segundo nível do pensamento, êsses próprios sistemas re­


sultantes do relacionamento e sistematização dos dados primários e
imediatos da sensação, sistemas êsses que constituem as representa­
ções ou imagens sensíveis, se relacionam, por seu turno entre si,
organizando-se e se estruh1rando em novos sistemas mais amplos
que dão os conceitos pràpriamente e se traduzem em expressões
verbais, ou mais precisamente, em representações mentais daquelas
expressões. Tais conceitos, num plano inferior e ainda bem pró­
ximo da pura sensibilidade, são aquêles que ordinàriamente cha-
1namos conc1'etos. O conceito de "árvore", por exemplo, inclui dire­
tamente tanto elementos sensíveis (como seja a forn1a sensível carac­
terística das árvores en1 geral, a sua "figura"), como outros elementos
inais complexos que já são relações pràpriamente conceph1ais, isto
é, de um certo nível de abstração. Assim a natureza "vegetal" da
árvore.
:É do relacionamento dos conceitos concretos, o que se faz di­
reta e imediatamente através de sua forma ou expressão verbal, que
resultam os conceitos abstratos e a conceituação em geral que se
estn1tura com sucessivos relacionamentos e progressivas sistemati­
zações em conjuntos conceptuais cada vez mais amplos, que se ex­
primem e -representam nas diferentes formas e representações ver­
bais - vocábulos e seus componentes, locuções, frases ou proposi­
ções, agrupamentos de frases . . . Os elementos que constituem os
"têrmos" dêsse relacionamento e das relações ou sistemas de relações
assim • estruturados, serão aquelas formas e expressões verbais que
com respeito ao que as precede na elocução verbal, constituem rela­
cionamentos, e com respeito ao que as segue, elementos ou têrmos
de novas relações mais amplas. Assim uma frase, por exemplo, será
quando completa, expressão de um relacionamento estruturado com
os elementos componentes da n1esma frase - vocábulos e suas par­
tes, locuções . . . -; e a conceih1ação ou conceito que a frase ex­
p1ime, e que lhe concede o "sentido" pr6prio que tem, derivará da­
quele relacionamento. 1vlas com respeito a contextos mais amplos
- agrupamentos ou seqüências de frases -, tal frase constituirá um
dos elementos componentes. Elementos êsses cuja elementaridade
e ·unidade serão dadas pelo sistema de conjunto em que a frase se
estruh1ra. E a nova conceituação ou conceito expresso naquele
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALll:TICA 105

agrupamento de frases, derivará das relações em que tais elementos


componentes se dispõem relativamente uns aos outros; do seu rela­
cionamento, em smna (41).
Assim, em Hnhas gerais e muito esquemáticas, se estrub..n·a a
conceituação, a partir de sua base sensível onde encontramos os da­
dos ou estímulos imediatos da sensação, até os sistemas conceptuais
inais elevados e abstratos em que os conceitos se relacionam através
das expressões verbais. Em cada um dos níveis sucessivos em que
se desenrola e realiza êsse processo de relacionamento, observamos
a perda de especificidade, dentro da relação, dos elementos que
para ela concorrem. Isso se dá, no plano sensível, com as sensações
específicas que concorreram para a representação mental. E no
plano pràpriamente conceptual, dá-se com o "sentido" próprio e
específico das formas verbais elementares que se relacionam. É
por isso que poden1os falar em "relacionamento", que não é simples
justaposição, ligação exterior ou associação de elementos, e significa
sim o desvanecimento dêsses elementos na relação para a qual êles
cóncorrem. Na relação, e como relação, o que conta não são mais
êsses elementos, que nela se desfazem, e entram para ela com perda
ele sua especificidade e individualidade; e conta sim o siste1na rela­
cional que co1n êles se constitui. No plano da sensibilidade, ilus­
tramos isso com a representação sensível de uma linha, cuja figura,
que dá a representação, pode ser formada de quaisqt1er outras fi­
guras ele1nentares (pontos, pequenos traços, etc.), e não é assim
especifica de nenhuma delas. Anàlogamente no plano prôpriamente
da conceituação, vemos as expressões verbais perderem no seu rela­
cionamento a especificidade do seu "sentido", como no empare­
lharnento de grande e pequeno, onde no sistema que em conjunto
essas expressões formam, elas se esvaziam de "sentido" próprio e
de especificidade, e são apenas "têrmos", sem valor próprio e espe-

( 41) Isso é naturahnente só uma descrição esquemática da situação, que


de fato é mais complexa, pois não se podem considerar as frases do nosso
exemplo, mes1no quando completas, como ele1nentos últimos, únicos e irredu­
tíveis do agrupamento de frases, un1a vez que nesse agrupan1ento, cada uma
das partes ou elementos de que a frase se compõe - vocábulos, etc. - ainda
têm por si sós, participação individualizada; como ta1nbém têm o seu "sen­
tido" influenciado pelo contexto maior de que passa a participar co1n a inclusão
da frase a que pertence, num agrupamento de frases.
106 CAIO PRADO JúNIOR

cífico, da Telação contrário. O mesmo se verifica no caso mais


complexo dos contextos da linguagem discursiva, onde o que dá o
"sentido" próprio das expressões não são elas, e sim aquêles con­
textos em que se incluen1 como tênnos da relação estruturado nos
mesmos contextos. A especificidade de tais expressões, o seu "sen­
tido" específico, se desfaz no "sentido" de conjunto que o contexto
em que figuram lhes concede.
Isso contudo não exclui, note-se bem, a presença como que po­
tencial ou implícita, dos elementos que figuram ou antes podem
figurar como eventuais têrmos da relação. As figuras elementares
que constituem ou balizam o traçado da linha, com as respectivas
sensações que provocam e que em conjunto vão formar a represen­
tação mental daquela linha, podem ser quaisquer de proporções in­
significantes com respeito ao comprimento da linha. Mas têm de
ser alguns, pois do contrário não haverá linha nem tampouco ima­
gem da linha. Conservam assim uma presença potencial ou im­
plícita. Do mesmo modo, na estn1turação do sistema conceptual ou
conceito que se traduz por contrário, as expressões emparelhadas e
relacionadas que compõem aquela estrutura, podem ser diversas
- "grande" e "pequeno", ou "longo" e "curto", ou "branco" e "prê­
to" . . . -, mas têm de ser algumas. Assim també1n as expressões
e formas verbais que se estruturam em conjuntos vocais para darem
a linguagem discursiva, tais expressões e formas são sempre substi­
tuíveis - e é por isso que dizemos não serem elas específicas do
'
sistema relacional que em conjunto compõem -; mas têm de ser
algumas, e de um "sentido" determinado, embora êsse "sentido'' se
perca e· faça outro no conjunto ou contexto em que se incluem. Po­
demos portanto dizer que se a relação exclui a especificidade de
seus elementos componentes, e portanto desfaz e anula êsses ele­
mentos que se tomam em simples têrmos de llllla relação em função
da qual êles passam a existir, nem por isso a relação independe dos
mesmos elementos, no sentido de poder subsistir sem o seu con­
curso, e menos ainda no de se constituir sem êles. A relação resulta
e se constitui dos elementos que para ela concorrem, e depende
portanto de sua presença, seja embora essa presença Unicamente
potencial. A relação se alimenta pois permanentemente, e1nbora
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALltTICA 107

de maneira indireta, da especificidade que seus elementos compo­


nentes têm fora da relação.
Isso pode parecer, à primeira vista, de so1nenos importância, e
talvez mesmo uma subtileza dispensável. li; no entretanto essen­
cial, pois de sua desconsideração, ou mesmo simples subestimação,
decorrem conseqüências de largo alcance, inclusive de ordem filo­
sófica. De uma adequada caracterização da natureza da relação,
do fato do relacionamento, depende o esclarecimento de questões
fundamentais da filosofia, da ciência e do conhecimento em geral.
Mas para abreviarmos a matéria, restringir-nos-emos Unicamente
àquilo que diz respeito diretamente à Psicologia (42.)
A interpretação correta, e pela maneira que se viu aciina, do
processo de relacionamentno e da perda de especificidade que nêle
se observa, dos elementos relacionados, permite explicar êstes
conjuntos e totalidades autônomos e individualizados que constituem
a representação mental - a saber, as imagens sensíveis e os con­
ceitos -, sem que isso impo�te na exclusão dos elementos que paTa
êles concorrem, mas que direta e explicitamente nêles não se desco­
brem. É que, como se viu, aquêle concurso é indireto. A relação
é entre têrmos que sàmente existem em função da mesma relação,
e que portanto não a precedem, uma vez que se constituem no pró-

( 42) Isso permitirá retificar certas interpretações dos fatos psicológicos


que levam implicitamente ao idealis1uo, embora com aparência de um grande
rigor científico. Referin10-nos em particular à Gestalt. Em sua reação contra
o atomismo do associacionismo clássico, a Gestalt se inspira em fatos expe­
rimentais e de observação psicológica rigorosa, que incontestàvelmente não
cabem nos acanhados quadros daquele associacionismo. Tais fatos, em que
não insistire1uos porque além de conhecidos, são da mesma ordem que os
analisados no texto dêste livro, mostram o papel que exercem tanto na per­
cepção como nos processos pensantes, as totalidades, em contraste com os ele-
1uentos ou as partes de que se comporiam essas totalidades, elementos êsses
a que o associacionismo clássico procura reduzir os fatos psicológicos. Para
o associacionismo, as totalidades não seriam mais uma soma de partes ou ele­
mentos, o que os fatos psicológicos mostram não ser exato.
Partindo dessas premissas, a Gestalt procurou excluir completamente a
consideração dos ele1nentos constituintes das totalidades; como em particular,
na percepção, os estímulos dados diretamente na sensação, que a Gestalt
elimina, ou pelo menos subestima a ponto de pràticamente eliminar, inter­
pretando a percepção, que reahnente é sempre de totalidade, como resultante
108 CAIO PRADO JúNIOR

prio relacionamento. Isso é exato. Mas doutro lado; a eventuali­


dade dos têrmos da relação deriva do concurso de elementos pre­
existentes; e é sümente depois que êsses elementos concorrem para
a relação e nela se desfazem em simples têrmos dessa relação, sem
individualidade e existência por si, é sàmente aí que os elementos
deixam de existir. É na relação que perdem sua especificidade e
desaparecem como elementos. Mas isso não impede, antes pelo con­
trário, que tenham u1na existência anterior. Existência essa que con­
diciona e determina as relações e representações para que êles con­
correm; e que fora da representação assim formada e alheia à mesma
representação, se mantém e perpetua, sempre apta a contribuir para
outras e novas representações.
É por isso que considerando-se -as representações inentais (ou
as percepções que as constituem) não distinguimos freqüentemente
nelas, ou distinguimos com dificuldade, os seus co1nponentes sen­
síveis que originàriamente as constituíram, mas se desfizeram ao cons­
tituí-las. E não sabemos por isso corno retraçá-las a tais elementos,
e referi-las aos fatos da nossa experiência sensível (43.) É que nes­
sas representações, tais elementos se reduziram a simples têrmos
de uma relação em que sua especificidade se desfez. Para encontrá-

de um fator que se inclui no próprio campo da percepção, e que deriva da


interação de fôrças que atuam nesSe can1po. Isso importa e1n projetar os
fatos psicológicos para um hipotético campo perceptual que seria como que
um mundo interposto entre o mundo real e concreto, e a esfera psicológica.

Não vem a ser outra coisa o que Koffka denornina o behavioural environment,
cm contraste com o geographical environment. Mas Koffka, bem como os
de1nais gestaltistas, são muito reticentes e vagos quanto à caracterização do
que seja êsse mundo ou ineio intermediário entre o mundo real e concreto ( o
geographical envi1'onment ), e a esfera psicológica dos indivíduos. E não se
vê outra localização para êsse mundo senão numa esfera suprapsicológica que
se assemelha muito à Razão kantiana, como já foi notado, e contra que o
próprio Koffka se defende, mas co1u explicações que muito se assemelham aos
conceitos kantianos. Veja-se entre Outros textos gestaltistas, K. Koffka, Prin­
ciples of Gestalt Psychology. London, 1950, pág. 305.
( 43) Daí a inversão idealista do realismo ingênuo, que para realizar essa
referência a todo transe, postula hipotéticas entidades modeladas à imagem
das representações mentais, e situadas na realidade objetiva e exterior ao
pensamento, desde as "divindades" dos espiritualistas, até a "matéria-subs­
tância" do 1naterialis1no vulgar.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALJ':TICA 109

-los, é preciso observar as representações não de frente, mas de trás


para diante; considerar o seu passado e gênese, a sua perspectiva
histórica. O que nem sempre é fácil, e mesmo em geral é apenas
conjeturável, pois como 1nétodo de orientação para isso, dispomos
Unicamente de sondagens e pesquisas inseguras na complexa histó­
ria da formação mental dos indivíduos pensantes (44.) Mas tanto
quanto alcançam as nossas observações, a concorrência da expe­
riência sensível na gênese de nossa representação mental, é incon­
testável. Não vamos contudo fazer aqui, por nos parecer dispensável,
a defesa do materialismo contra o idealismo.
O que é necessário, é mostrar como se harmonizam, na inter­
pretação que estamos dando à natureza da representação mental, de
um lado a falta de especificidade de tais representações com res­
peito aos dados sensíveis de que originàriamente elas derivam (o
que freqüentemente lhes concede sua aparência de desligamento da
experiência sensível); e douh·o, o fato daquela origem. A obser­
vação e análise do processo de relacionamento nos dá essa expli­
cação. Tanto como na representação sensível se excluem as ,serisa­
ções específicas que as constituíram (como se verificou nos expe­
rimentos que referimos), assim também se dá na representação con­
ceptual. Com a diferença que neste último caso a exclusão é rnuito
mais pronunciada e completa, uma vez que nesse nível mais ele­
vado da atividade mental, que é o da conceituação prôpriamente,
é a linguagem e suas formas que fazem as vêzes daqueles elen1entos.
E a linguagem não retém especificidade sensível alguma.
Assim a representação mental, embora como relação que é, não
seja específica dos elementos que para ela concorrem, traz êsses
elementos, potencialmente, em seu bôjo, pois é sempre ·dêles que
parte. E deve1nos notá-lo com tanto mais atenção, que é preci­
samente através dessa potencialidade em elementos componentes -
que em última instância e na base são os dados diretos da sensação
e experiência sensível em geral - que se faz possível o relaciona­
mento e sistematização em conjuntos sempre mais amplos, das re-

( 44) Em parte êsses processos diretos podem ser supridos com os dados
da antropologia e da evolução cultural da espécie humana, que revelariam
como que a filogênese de nossa conceituação; filogênese essa extensiva, por
analogia, à sua ontogênese.
110 CAIO PRADO JúNIOR

presentações existentes - o que em outras alavras quer dizer ela­


bo1'ação do conhecimento. Isso é comprovado pela prática dessa
elaboração, onde a representação mental que se vai estruturando
no psiq11ismo dos indivíduos, é sempre reportada, direta ou indire­
tamente, ou pelo menos deve sê-lo, à experiência sensível, seja essa
experiência provocada e artificial, como se dá na experimentação
científica; seja a experiência natural e espontânea que decorre da
ação e prática ordinárias do indivíduo pensante.
A nahireza relacional da representação mental (e da represen­
tação conceptual em particular) não exclui assim os elementos que
concorrem para o processo de relacionamento em que tais repre­
sentações se constituem. �les se mantêm a par das relações de que
derivam e para que concorrem. E devemos tanto mais acentuá-lo,
que a observação dos fatos mentais nos mostra claramente a ocor­
rência dêsses elementos a par das relações prOpriamente. É êsse
o caso dos dados elementares e diretos da sensação, onde não encon­
tramos mais que fatos punctiformes e destituídos (aparentemente
pelo menos de qualquer circunstância de nah>reza relaeional (45.)
Encontramos a mesma coisa nas imagens (representação sen­
sível de formas), que se apresentam num todo indecomponível em
que o relacionamento que as constitui não se mostra desde logo.
Na representação imaginativa (imagem) não se incluem imediata­
mente os processos de relacionamento que estão na sua gênese e
deram naquela representação. �sses processos se acham mesmo em
geral ausentes, embora implícitos e derivados da experiência ori­
ginária que determinou a representação. É isso aliás que permite
aos psicólogos da Gestalt ignorá-los e interpretar seus experimentos
com exclusão e desconhecimento de tais processos que uma análise
mais atenta revela.
OcorTe o mesmo com a representação conceptual ,dada nas ex­
pressões verbais (vocábulos, .locuções, frases, agrupamento de fra-

( 45) Uma ilustração característica disso - embora constitua exceção que


lembramos Unicamente para exibir um caso extremo e bem caracterizado de
representação sensível punctiforme e indecomponível - é o da representação
de notas musicais nos indivíduos dotados do que se chama ouvido absoluto.
Nesse caso, a representação conserva rigorosamente a especificidade do estí­
mulo originário.
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALÉTICA 111

ses . . . ) cujo "sentido" traduz aquela representação, e onde esta últi­


ma se apresenta como um dado elementar, isto é, unitário e apa­
rentemente indecomponível em relações.
Encontra-se aqui a parcela de acêrto do atomismo do associa­
cionosmo clássico. Mas em que consistem tais "'elementos" aparen­
temente irredutíveis em que se funda a interpretação atomista? Na
base, isto é, no nível inferior e fundamental da atividade pensante,
são êles, como acabamos de ver, os dados imediatos da sensação,
cuja irredutibilidade, pelo menos em casos extremos, parece indu­
bitável (46.). Dai em diante, na escala ascendente da atividade
psíquica, os '�elementos" são aquêles sistemas sensíveis que analisa­
mos anteriormente e que resultam da integração progressiva de rela­
cionamentos _cada vez mais amplos, desde a representação ou imagem
sensível (47), até os complexos sistemas conceptuais de nível pro­
gressivamente mais elevados. No plano conceptual, onde intervém
a linguagem, tais sistemas, em sua forma integrada, aparecem nas
diferentes "fonnas" verbais (vocábulos e seus componentes, lo­
cuções, frases . . . ), cada qual considerada em si e por si. A repre­
sentação conceptual, que é o conceito, e é dado prüpriamente no
1·elaciona1nento dessas formas e transição de umas para outras, 011
mais precisamente, que é dada no "sentido" que daí deriva (como
foi descrito), se exprime em seguida e se traduz unitàriamente no
sísterna em que se integram aquêles relacionamentos. O relacio­
namento dá os sisten1as e as representações respectivas que tradu­
zidas numa expressão verbal unitária e individualizada (vocábulo,
etc.) constitui o elemento, ou um dos elementos que concorrem para
o reL'lcionamento, sistema e representação seguintes.
A representação conceptual se apresenta assim sob dois aspectos:
p1imeiro corno relação, que é o aspecto essencial donde pràpria­
mente a representação deriva e com que se constitui. Doutro lado

( 46 ) É de crer que o fato sensível se articule, num plano rudimentar,


com processos de natureza subsensível onde a situação se apresente possivel­
mente sob outro aspecto, Isso contudo não pode, por enquanto, passar de
conjetura muito pouco precisa.
( 47) Não há evidentemente limite preciso entre a in1agem e o que deno­
minamos os "dados elementares e diretos da sensação". Mas isso aqui não
tem maior impo1t{incia.
112 CAIO PRADO JúNIOR

a representação conceptual se apresenta con10 sistema relacional


integrado, propondo-se então como um fato unitário e individuali­
zado, um ele1nento punctiforme e atômico. Para ilustrar essa distin­
ção, reportemo-nos novamente ao exemplo do emparelhamento de
têrrnos como ''grande" e "pequeno", ou "longo" e "curto"; onde obser­
vamos co1no a relação e siste1na constituído por êsse e1nparelhamento
e relacionamento, resulta num elemento unitário e punctiforme, _em
que já não se dinstinguem mais os têrmos concorrentes. «Elemento"
aliás expressível numa simples palavra, oposição, com um ''sentido"
pr6prio bem determinado, o que traduz bem aquêle aspecto ele­
mentar, unitário, punctiforme da representação.
9. - RELAÇÃO E ELEMENTO. RELACIONAMENTO
E ASSOCIAÇÃO

Na análise a que proceden1os dos dois aspectos ou tipos em


que a representação conceptual se apresenta, ou sejam a represen­
tação "relacional" e a "elementar" - isto é, a representação como
relação e como elemento autônomo -, consideramos até agora a
conceituação como um dado estático, como um todo apresentado
em conjunto e exibindo-se inteiramente nmn só momento. Assim
procede1nos porque se tratava. sobretudo de observar, no conjunto
da conceituação, a ocorrência daqueles dois tipos de natureza dis­
tinta em que ela se apresenta. Mas no processo real do pensa­
mento, tal como .êle efetivamente se desenvolve no psiquismo do
indivíduo pensante, não é assim que a conceituação se mostra. Isto
é, ela não é dada ou não se evoca em conjunto, mas vai desfilando,
e os conceitos se sucedem uns após os outros, constituindo aquilo
que ordinàriamente denominamos o "curso do pensamento". Trata­
-se assim para nós agora verificar, no que respeita aos dois tipos ou
aspectos da conceituação, como êles se sucedem um a outro, e como
ambos se manifestam numa seqüência efetiva do pensamento, isto
é, no cursÜ ordinário da atividade pensante. Pergunta-se em suma
quando e em que circunstâncias se propõe no pensamento um e
outro tipo de representação conceptual, e qual a função própria que
cada qual exerce.
Comecemos por relembrar o experimento de Dallembach a que
nos referimos no cap. 4. Perguntado ao paciente (um menino de
7 anos) quais os "têrmos opostos" respectivamente de bom e grande,
retrucou êle, depois de declarar que ignorava a significação de "têr­
mos opostos": menino e homem. Dallembach deu então as res­
pastas acertadas (mau e pequeno), depois do que o paciente deu
114 CAIO PRADO JúNIOR

acertadamente e sem hesitação o «têrmo oposto" de prêto, com�


prido, longe, gordo etc.

Considere-se com atenção a natureza dos conceitos ou da con­


ceituação que foram nesse caso evocados no pensamento do pa­
ciente, natureza essa que as respostas dadas evidenciam. Ao res­
ponder a prêto com o têrmo branco, a comprido com o têrmo curto,
e assim por diante, é claro (e já frisamos êsse ponto) que o paciente
trazia à baila ou evocava uma representação relacional, uma rela­
ção, que foi o que desencadeou a resposta. De fato, o que assimila
os emparelhamentos dados por Dallembach como modêlo (bom e
mau; grande e pequeno), aos emparelhamentos realizados pelo pa­
ciente (prêto e branco; comp1'ido e curto etc.) é tão-sàmente a re­
lação "oposição", que constitui a única circunstânCía comum a todos
os emparelhamentos realizados, tanto os do modêlo oferecido pelo
experimentador, como os da resposta do paciente. É assim sómente
através da relação "oposição" que o paciente pôde transpor o ensi­
namento dado no modêlo, para as suas respostas. Podemos tam­
bém concluir que as representações de prêto e branco, tanto como
as de comprido e curto, etc., eram respectivamente e de certo modo,
na mente do paciente, solidárias entre si (prêto com braco, com­
prido com curto . . . ) Isso porque sàmente conjugadas nesse entro­
samento, que respectivamente as representações de prêto e branco,
de comprido e curto etc. podiam figurar a representação mental
de "oposição" que se achava presente na conceituação do paciente,
embora êle ignorasse sua designação.

Coisa muito diversa se deu no caso das primeiras e erradas


respostas, quando a bom o paciente respondeu menino, e a grande,
homem. As representações mentais de bom e grande não tinham
respectivamente com as de menino e homem, relação alguma, nada
tinham entre si de comum. Não se achavam relaclonadas entre si,
constituindo um sistema conceptual de conjunto. Encontravam-se
apenas ligadas exteriormente e justapostas umas às outras em con­
seqüência de sua contigüidade ou ocorrência simultânea na expe­
riência anterior do paciente. Contigüidade fortuita, evidentemente,
e que não diz respeito ao conteúdo próprio dos conceitos em jôgo,
ou "sentido'' dos têrmos que os exprimiam.
NOTAS INTRODUTóRIAS À LÓGICA DIALÉTICA 115

Assim num caso - o das perguntas-respostas prêto e branco,


comprido e curto, etc., temos instâncias de um processo relacional
de pensamento; de um entrosamento de representações sucessivas,
no curso do pensamento, por relações conceph1ais em que aquelas
representações se conjugam e articulam, e assim mlituamente se com­
pletam. No outro caso (bom e menino, grande e homem) as repre­
sentações mentais, embora sucedendo-se umas em seguimento às ou­
tras, e evidenciando co1n isso uma ligação mútua (bom com 11ienino,
grande com homem), conservam-se todavia exteriores umas às outras,
e a sua ligação é Unicamente de justaposição. Em cada caso, ambas
as representações que se sucedem uma à outra, são e1n si completas,
cm nada dependem da outra; e nesse sentido constituem elementos
autônomos e que assim se conservam mesmo depois de realizado o
emparelhamento. O que não ocorre no caso do emparelhamento de
ptêto e branco, comp-rido e curto, etc., onde vemos os emparelha­
mentos realizados darem num conceito novo em que os anteriores
se fusionam e unificam, perdendo sua autonomia, individualidade
e "sentido" próprio que se desvanece no "sentido" do novo conceito
por êles formado, o conceito de oposição.
Encontramos assim no experimento de Dallembach não sàmente
os dois aspectos ou tipos em que a conceituação se apresenta (rela­
ção e elemento individualizado), mas ainda as duas maneiras, ímpli­
citas naqueles tipos, com que os conceitos se ligam e sucedem no
curso do pensamento. Realmente, assistimos aí ao processamento
consecutivo, com passagem brusca de um para outro, de dois fatos
mentais distintivos: 1un de natureza 1·elac·íoool; outro que implica sim­
ples associação. Às primeiras perguntas, o paciente apresentou res­
postas que evidentemente envolvem apenas associação por contigüi­
,
dade - é por "associação . que menino se achava ligado a bom, e
homem a grande. E é assim por "associação" que o peusamento
do paciente passou respectivamente de bom para 1nenino, e de granm
de para homem. Até aí, portanto, é por associação que o paciente
de Dallembach "pensou". Mas uma vez advertido de seu êrro, e
confrontado com um modêlo da resposta acertada para o tipo de
interrogatório que lhe era feito, deslocou bruscamente sua atividade
inental para outro plano ou tipo de pensamento, pois se assim não
fôsse, e continuasse a empregar o mesmo padrão de pensamento,
116 CAIO PRADO JúNIOR

e a pensar "associativa1nente", teria com tôda certeza respondido a


prêto com uma referência a objetos escuros, ou a uma situação qual­
quer "associada" à cór preta (a "noite", por exemplo). E assim
anàlogamente nos demais casos (comprido, longo, etc.)
Podemos concluir daí que a conceituação s� interliga (isto é, os
conceitos e representações mentais se ligam entre si) ou por rela­
ciona1nento, ou por simples justaposição ou associação de elementos
conceptuais individualizados e autónomos (não relacionados). O
que não quer dizer que êsses elementos, que se apresentam como
conceitos autônomos, o sejam de fato. Como foi visto, os conceitos
se compõem efetivamente de sistemas relacionais integrados e tota­
lizados unitàriamente. É por isso, como sistemas assim integrados,
que assumem o caráter individualizado e aparentemente autônomo
com que à primeira vista se apresentam.
� com êsse caráter, contudo, que êles participam ordinària1nente
da atividade pensante, onde, suprindo ou substituindo os relacio­
namentos, êles se manipulam na base da simples associação. Isto
é, êles se ligam entre si e se evocam por associação. Para comprová­
-lo, faça-se um balanço dos conhecimentos a que ordinàriamente re­
corremos no curso de nossas i·eflexões; e atendamos em especial à
maneira com que aquêles conhecimentos se apresentam e ao modo
como são utilizados. Boa parte, se não a maioria dos conceitos
relativos aos nossos conhecimento, são exteriores uns aos otitros,
mUtuamente não se entrosam em conjuntos unitários, e conserva1n
cada qual sua individualidade pr6pria. E se evocam uns aos outros
por simples rnem6ria associativa. Assim o conceito de "pássaro"
levará ao de "vertebrado", e o de "democracia" ao de "eleições".
Mas isso se fará ordinàriamente sem ocorrência e mesmo necessi­
dade dos processos mentais de relacionamento que no curso de nos­
sas experiências, observações e estudos anteriores, deran1 origem num
caso à conceituação que diz respeito à sistemática zoológica e ao
complexo de relações que ela implica, nas quais o conceito de "pás­
saro" se entrosa com o de "vertebrado"; e no outro, ao Ílnenso sis­
tema de relações no qual conjugamos os conceitos de "democracia"
e "eleições," sistema êsse em que se estrutura em conjunto a con­
ceituação que diz respeito às instituições políticas, sua evolução
histórica, e tantas outras circunstâncias de ordem sociológica. Nada
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALllTICA 117

disso· ocorre de ordinário. O processo pelo qual a representação


,
mental de "pássaro" evoca a de "vertebrado ., e a de "democracia'',
a de "eleições", consiste no comu1n dos casos em shnples "associa­
ção", isto é, deriva do fato de aquêles conceitos ou representações
se achare1n contíguos em nossa experiência passada, ou melhor, te­
rem antes ocorrido simultâneamente, repetidas vêzes, em nosso pen­
samento; e por isso nêle se associaram. O que não exclui, antes
pelo cüntrário implica a eventualidade de ter sido essa ocorrência
simultânea no passado proporcionada no curso de processos concep­
tuais de relacionamento. Mas uma vez verificada e consolidada por
repetição, o que permanece é Unican1ente, ou pelo menos sobre­
tudo a "associação", não passando o relacionamento de u1na poten­
cialidade inais ou menos esquecida e desconsiderada. Também é
certo dar-se o caso, conforme o nível de cultura do indivíduo con­
siderado, e a natureza do assunto e1n foco, de não ter ocorrido pro­
cesso anterior pràpriamente d� elaboração conceptual, isto é, pro­
cessos de relacionamento que deram a conceituação de que se trata;
e ter havido apenas simples aprendizagem por decoração, isto é,

associação mnen1ônica.
Pode-se ilustrar os fatos acima co1n exemplos de ocorrências
ordinárias no curso de nossas reflexões. Quando rememoramos um
assunto qualquer - o que importa sempre em ordenar o nosso pen­
samento a respeito -, estaremos em certas partes inais importantes
e centrais da n1atéria considerada, esforçando-nos por "relacionar''
entre si os diferentes dados de que a propósito dispomos. E pas­
saremos com o pensamento de um para outro ponto através de rela­
cionamentos que se vão propondo. E1n outras partes, pelo contrário,
louvamo-nos na simples memorização, procurando evocar os pensa­
mentos (idéias ou conceitos) pelas suas conexões associativas com
outros presentes. Assim quando refletimos sôbre u1n fato histórico,
é dentro do quadro geral das condições da época (sociais, políticas,
econômicas, psicológicas, etc.), isto é, nu1n co1nplexo de relações
que procuraremos situar o comporta1nento dos indivíduos ou gru­
pos de indivíduos envolvidos no fato considerado. E as circuns­
tâncias que configuran1 êsse fato se proporão ah·avés de tal rela..
cioamento. Se contudo no correr de nossas reflexões se propuser
por exemplo que o curso de uma batalha ou outro acontecimento
118 CAIO PRADO JúNIOR

foi inten·ompido pelo advento da noite e sua escuridão, essas repre­


sentações respectivamente de "noite" e de "escuridão" serão evo­
cadas uma pela outra simples1nente por associação e sem necessi­
dade de nenhum esfôrço e processo de relacionamento que envol­
vesse considerações de ordem cosmológica, como entre outras os
movimentos de rotação e translação da ten·a que implicam o sistema
de relações em que se dispõem os corpos celestes. Evidenten1ente
não nos ocuparemos disso. Isso não significa todavia que tais repre­
sentações não estejam ou não possam estar também articuladas enh·e
si de outra maneira que não por simples contigüidade na experiên­
cia anterior e por associação. Em outros casos elas serão evocadas
num sistema conceptual de relações, como, digamos, num trabalho
de cosmografia.
Podemos ainda ilustrar o nosso assunto co1n o caso do emprêgo
de fórmulas matemáticas, quando é a simples memória associativa
que se põe em jôgo. Uns têrmos e partes da equação expressa na
fórmula, evocam imediatamente os demais por simples associação de
idéias ou conceitos; o que não exclui evidentemente, e pelo contrário
implica o fato de êsses têrmos ou partes se entrosarem entre si num
sistema de relações de que a equação não é senão expressão formal
e exterior.
Em suma, e no que diz respeito à atividade conceptual tal
como ela se apresenta no curso do pensamento, encontra1nos a par
do essencial dela e que se constitui de processos de relacionamento,
outr,o tipo de operações consistentes na as8Dciação; isto é, na evo­
cação de uma representação mental por outra e1n conseqüência úni­
camente da contigüidade de ambas na experiência anterior, e não
da particiuação delas num sistema relacional de conjunto. Depara­
mos neste ponto com o acêrto do as.sociacionísmo moderno, em opo­
sição à Psicologia da Gestalt que nega a oconência dessa ligação
Unicamente exterior de elementos autônomos por outro lado desll1-
dividualizados e integrados em sistemas de conjunto. Uma coisa
não exclui a outra, e antes pelo contrário elas mlltuamente se ún­
plicam. A autonomia dos conceitos e representações mentais confi­
gurando-se em elementos individualizados, e ligando-se entre si
por simples justaposição e associação em que a individualidade dêles
se conserva intacta, isto é, num certo aspecto e em determinadas
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGICA DIALÉTICA 119

circunstâncias, um fato incontestável. Onde o associacionismo erra,


é quando se esforça em reduzir tôda a atividade psicológica à sim­
ples associação. Mas en1bora o associacionismo assuma em prin­
cípio uma tal posição, êle reconhece implicitamente, sem contudo
querer confessá-lo - o que o faz em geral tão inconseqüente - a
insuficiência da interpretação puramente associacionista que não dá
conta e não explica satisfatOriamente um grande número de fatos
experimentais, e dos mais importantes, em particular no terreno da
Aprendizagem. Tais fatos são contudo verificados e muito bem
descritos pelos próprios psicólogos do associacionismo, abrindo co1n
isso largas perspectivas para a proposição adequada do problema
do pensamento.
Realmente, no considerável material experimental da Psicologia
da Aprendizagem, vamos encontrar, bem caracterizadas, ambas as
maneiras com que a conceituação se articula no curso do pensa­
mento, tanto o relacionamento ou participação das representações
mentais em sistemas relacionais de conjunto, como a ligação exte­
rior delas, conservando cada qual autonomia e individualidade pró­
prias, através de simples associação derivada de sua contigüidade
na experiência anterior - e portanto no ato da sua inclusão no
psiquismo do indivíduo pensante. Distinguem os psicólogos - e
não há entre êles, a êsse respeito, divergência - dois processos
de aprendizagem que se costumam designar respectivamente de mé­
todo lógico, e mnemônico ou mecânico (48). No método wgico,
o material experimental apresentado ao paciente se compõe, além
dos dados ou itens a serem aprendidos (como seja por exemplo uma
seqüência de palavras ou ni'imeros ) , de um sistema geral em que
aquêles itens articulam entre si e se organizam em conjunto.
Exemplos dêsses materiais de aprendizagem organizados em sistemas
de conjunto, são séries de números arrumados numa certa progres­
são, listas de sílabas com uma seqüência ordenada de letras iniciais,

( 48) Os psicólogos alemães preferen1 o têrmo "mecânico"; os de fala


inglêsa, "decoração" ( rote method). A designação "mnemônico" ou «deco­
ração" é de uso mais generalizado, mas ambíguo, pois implica outros fatos
que não são aquêles de que se trata na matéria considerada. O próprio método
lógico também in1porta em men1ória, e é assim a rigor, "mnemônico".
120 CAIO PRADO JúNIOR

ou séries de palavras em que se disfarçam frases significativas (49).


Nessas condições, os itens a serem aprendidos não se individualizam
e isolam entre si, e sim se encontram de algum modo relacionados.
No método nineniônico, pelo contrário, os itens independem com­
pletamente uns dos outros - ou pelo menos procura-se que assim
seja, escolhendo-se mesn10, para tanto, num tipo de experimento
muito conhecido e empregado, as chamadas «sílabas sem sentido"
(nonsense syllables, (como sejam DOG, ZEH, XAB (50), que não
oferecem ao paciente outra maneira de ligação que sua contigüi­
dade do material que há de aprender, e lhe impõe portanto uma
aprendizagem por simples associação mnemônica.
Que êsses métodos s11bstancialmente se distinguem - com que
aliás os psicólogos são concordes -, provam-no os resultados que
os experimentos conduzidos respectivamente por um e outro apre­
sentam, resultados êsses que divergem largamente: tempo de apren­
dizagem, índices e prazos de retenção, etc. Ora no método lógico,
o que é essenciahnente retido pelo paciente, isto é, representado
mentalmente por êle, é como logo se vê, a organização de conjunt_o,
o sistema, as relações que entrosam os itens ou partes do material
de aprendizagem num todo unitário. 1t asshn através dessas "rela­
ções" que o paciente, ao recitar o aprendido, evocará as represen­
tações mentais dos sucessivos itens. O que mostra ser por relacio­
namentos que se desenvolve sua atividade mental. Pelo contrário
no método 1nnemônico, a evocação de uma representação em se­
qüência a outra se faz por simples memória associativa. A ativi­
dadê mental do paciente se processa de maneira puramente asso­
ciativa.
Note-se que êsses 1nétodos que implicam processos mentais dis­
tintos (embora não sejamos capazes ainda de precisar em que, fisio­
lügicamente, a distinção se caracteriza) não se excluem. Citemos
a propósito McGeoch, que no livro já referido acima, e hoje clás­
sico e fundamental na matéria, dá a súmula conclusiva das obser­
vações experimentais realizadas nesse terreno, com as seguintes pa-

(49) Para o desenvolvbnento <la matéria, ver John A. McGeoch, The


Psychology of I:Iuman Learning.Seconde Edition revised by Arthur L. lrion,
1952. pág. 477.
(50) John A. McCeoch, ob. cit.,12.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 121

lavl'as: "As duas aprendizagens não são exclusivas uma da outra,


mas são extremos de um continuum ao longo do qual se distribuem
os métodos de ataque. A , distinção entre êles depende tanto do
material empregado, como do paciente" (51). Em suma, ambos os
métodos são empregados na aprendizagem� conforme as circunstân­
cias e em proporções variáveis; e estão continuamente substituindo­
-se um a outro no curso ela aprendizagem, e completando-se mUtua­
mente.
A representação mental do aprendido refletirá em conseqüên­
cia essas circuntâncias. E se disporá - sendo depois assim evocada
no curso do pensamento - em · seqüências ora configuradas numa
sistemática relacional em que as partes sucessivas se articulam atra­
vés de relações conceptuais; ora constituídas por elementos indi­
vidualizados e autônomos que se interligam por simples associação.
Ésse caráter . do funcionamento de nossa atividade pensante é
de grande imp01tância. l!:le resulta numa considerável economia
de esforços. Nem é imaginável o que seria o nosso pensamento se
êle se desenvolvesse na base Unicamente dos · complexos e conforme
o caso, demorados processos de relacionamento. A substituição das
relações conceptuais por elementos em que elas se integram e tota­
liza1n, e que embora por essa maneira as disfarce e aparentemente
anule, isso dispensa aquêles processos de relacionamento e lhes dá
um sucedâneo muito mais simples e expedito: a associação. Não
seria aliás nem possível ao pensamento desenvolver-se normalmente
sem que isso ocorra. Podemos fazer uma idéia bem clara disso
com o caso muito simples das operações arihnéticas fundamentais,
que de tão elementares que são com o emprêgo de associações mne­
mônicas, como usualmente se procede, se tornariam evidentemente
impraticáveis se em cada um de seus mais elementares procedi­
mentos, fôssemos obrigados a recorrer a todo complexo relaciona­
mento que se abriga atrits de tais procedimentos e os justifica (52).

( 51 ) Oh. cit., 475-6,


( 52) A propósito da substituição do relacionamento pela associação, alguns
experimentos no campo da Aprendizagem fornecem dados particularmente inte­
ressantes. Tem-se obServado que na aprendizagem do material submetido ao
paciente, é de grande utilidade o emprêgo de dispositivos destinados a orga­
nizar, isto é, relacionar e sistematizar os itens a serem aprendidos. E os dis�
122 CAIO PRADO JúNIOR

Teremos ocasião de adiante utilizar as observações e conclusões


dêste capítulo. Por ora, o que mais importa é a caracterização que
fizemos dos dois aspectos em que se apresenta a conceituação, a
saber, estruturada em relações e constituindo sistemas de conjunto
que podem abranger e de fato abrangem porções maiores ou me­
nores da conceituação (inclusive, em princípio pelo menos, a sua
totalidade), ou então fracionada em elementos autônomos que se�
riam os conceitos individualmente considerados, e que não se cons­
tituem senão dos sistemas acima referidos, quando integrados e uni­
ficados. Elementos êsses dotados de individualidade própria, dis­
postos simplesmente em justaposição de uns a outros, e ligados entre
si por conexões associativas.
Essa distinção entre os dois aspectos da conceituação e repre­
sentação mental com que ela se inscreve no psiquismo do indivíduo
pensante, é da máxima importância, pois abre caminho para a inter­
pretação adequada de fatos psieológieos de outro modo impossíveis
de compreender e explicar.

positivos empregados serão tanto mais vantajosos, quando êles derivam natu­
rahnente do material a ser aprendido, e não consistem en1 shnples esquc1nas
artificiosos em que o material é forçadamente enquadrado. Tan1bém se obsei·­
vou que à medida que a aprendizagem progride, os dispositivos auxiliares
empregados são abandonados, e o paciente passa a ligar os itens diretamente
entre si e por simples associação ( McGeoch, ob. cit., 478 ) , Isso parece indicar
que se a me1norização é facilitada pela sisten1atização e relacionan1ento, há
uma tendência, no que se refere à retenção do material memorizado, para o
abandono daquele relacionan1ento, e sua substituição pela associação. O que
se explica pela economia de esfôrço que isso proporciona, pois o relaciona­
namento implica uma atividade pensante intensa, pràpriamente o raciocínio,
o que não se dá na associação.
10. - PROCESSO DE RECONHECIMENTO
E IDENTIFICAÇÃO

Em 11ossa análise da representação mental e da conceituação


em particular, te1nos procurado caracterizar a sua natureza e a ma­
neira como compõem o psiquis1no do indivíduo pensante e nêle se
dispõem. Vejamos agora, com mais atenção, a representação men­
tal como participante da atividade e dos processos do pensamento.
Pareceria, à primeira vista, que o ponto de partida de nossa análise
devesse ser o processo 01iginá�io da elaboração e constituição da
representação conceptual, o que quer dizer elaboração e constitui­
ção do Conhecimento que não é, para cada indivíduo, senão o co11-
junto de sua representação conceptual ou conceituação. É por aí
que em regra o tratamento usual .da teoria do conhecimento pro­
cura abordar o assunto, tentando configurar um psiquismo como
que vazio de conteúdo e despido de conhecimento, e colocado e1n
face do mundo exterior que ainda vai apreender e representar men­
talmente. Essa posição do problema é todavia falsa, porque irreal:
o pensamento, ou melhor, a função pensante, não constitui um dado
ou fato inicial e originário do organismo humano, pois deriva de
seu próprio funcionamento. f:le é êsse funcionamento, e se_ cons­
titui e desenvolve no seu processamento; e não antes dêsse proces­
samento e para o realizar. Não se pode assim propor um "pensa­
mento" independente de sua atividade e conteúdo de conhecimento,
pois êle não é outra coisa mais que essa própria atividade e êsse
conteúdo. Em outras palavras, a função pensante se conf11nde com
a função de conhecer, -com o fato do conhecimento. Trata-se de
duas maneiras de dizer a mesma coisa; ou quando muito, de duas
perspectivas do mesmo fato.
O que leva a distinguir o pensamento do conhecimento, pela
maneira como isso é usualmente feito, ainda é a persistência mais
124 CAIO PRADO JúNIOR

ou menos disfarçada e implícita, de velhas tradições da Psicologia


das faculdades, onde o pensamento, como uma dessas faculdades,
seria como que um mecanismo ou dispositivo pré-formado e com­
pleto já antes do exercício de sua função específica de elaborar o
conhecimento, e que nun1 certo inomento se puses.se a funcionar
e exercitar sua atividade. Está claro que afastada essa concepção
que nenhum psic6logo digno dêsse nome ousaria mais sustentar ex­
pressamente, propõe-se um novo problema que é o da gênese e
processo originário ·de constituição do pensamento e conhecimento.
É êsse um problema de Psicologia genética, fora do nosso assunto,
e ünde a ciência ainda se encontra em seus primeiros e mais rudi­
mentares passos. Essa mesma Psicologia genética deve aliás esperar
da Teoria do Conhecimento sua principal e fundamental inspiração.
Mas seja como fôr, o nosso campo de observação é aqui o do
pensamento humano já maduro e num alto grau de desenvolvimen­
to, tal como êle se apresenta no indivíduo adulto da humanidade
histórica, isto é, postedor aos primitivos da pré-história de que aliás
nada se sabe e muito pouco se poderá saber no referente ao do­
mínio que nos ocupa. E naquele homem histórico, por mais baixo
que seja o seu nível de civilização e cultura, encontramos já um
pensa:mento e conhecimento largamente desenvolvidos e cujas ori�
'gens se acham completamente apagadas. Mesmo porque o processo
propriamente de elaboração cognoscível se faz aí na base de uma
larga conceituação preexistente, é impossível discrin1inar naquele
processo o que possa ser originário e independente de tal base. In­
dagaçâo essa aliás que não tem mesmo sentido, porque num "pro­
cesso," como é êsse da conceituação e conhecimento q11e se elabo­
ram, é a continuidade que vale e significa algo, e não o ponto de
partida que somente poderia ser alcançado por uma marcha inversa
e gradativa, uma vez que cada momento de um processo é função
de todos os momentos anteriores, e não Unicamente ào primeiro.
Sendo assim, e uma vez que não nos é acessível a observação das
origens ·do pensamento conceptual, a não ser por meios indiretos
e muito precários (53), é a própria atividade conceptual já de alto

( 53 ) Refiro-me à Psicologia infantil e animal. Quanto a esta última,


o abismo que existe entre o mais desenvolvido dos animais e o mais primitivo
dos indivíduos humanos conhecidos, torna sumamente difícil e arriscada qual-
NOTAS INTHODUTóRIAS À LÓGICA DlALf:TICA 125

nível de desenvolvhnento, e ah·avés de uma observação retrospec­


tiva e marchando por recuos, que a ciência poderá algum dia alcan­
çar aquela origem.
Não é êsse contudo nosso objetivo, muito mais modesto; e o
que é possível co1no me}hor aproxhnação da matéria que nos ocupa,
é procurar na continuidade permanente da atividade conceptual, os
pontos de máxima solução, embora relativa, de tal continuidade.
Isso nos permitirá abordar o assunto e lhe conceder um ponto de
partida. São tais pontos as articulações dos ciclos através dos quais
se desenvolve o pensamento, e que constituem o início de cada novo
ciclo. li:sse momento, que natural.mente se oferece, é o da ocor­
rência de novos estímulos da atividade conceptual, seja por ocasião
dos contactos con1 o meio exterior - a percepção sensível -, seja
quando por outras circuntãncias se propõe um novo objeto qual­
quer de reflexão. Trata-se em suma do momento em que se con­
figura o assunto ou objeto de que o indivíduo pensante passa a se
ocupar; assunto ou objeto êsse que êle deve por isso, preliminar­
mente e desde logo, reconhecer e identificar (54). Chamemos por­
tanto êsse momento preliminar e inicial de um curso qualquer de
nosso pensamento, de processo de reconhecimento e identificação.
ll:sse ponto de partida de nossa análise da atividade conceptual
é tanto mais legítimo e de perspectivas mais fecundas, que é Se1n
dúvida no processo de reconhecimento e identificação que se hão
de buscar as origens filogenéticas daquela atividade, origens essas

quer generalização, que se restringe sempre, por isso e necessàriamente, a


conclusões de ordem muito geral e ampla que servem no máximo de roteiros
muito imprecisos. No que se refere à Psicologia infantil, a contribuição é
senslvelmente maior. Mas assim mesmo, é pràticainente impossível isolar a
criança observada do meio social de alto nível cultural em que se encontra,
tornando-se por isso extremamente complexo discernir as influências dêsse
meio que se insinuam mes1no nos experimentos realizados com máximo rigor,
pois os próprios dispositivos en1pregados trazem a "marca" do experimenta­
dor, e portanto a sua cultura, pensamento e conhecimento, que por essa· via
se insinuam imperceptlvelmente no paciente. Os psicólogos freqüentemente
se esquecem disso, e mesmo o ignoram co1npletamente, como parece ser o
caso até ntun cientista tão experimentado como Piaget, o fundador pode-se
dizer da Epistemologia genética, como disciplina à parte.
( 54) O grau de participação direta e imediata do meio exterior na
determinação dos objetos de reflexão, não pode ser apreciada de mn modo
126 CAIO PRADO JúNIOR

em que ela se articula com as demais funções orgânicas que a pre­


cedem e preparam na gênese e evolução da espécie humana. Real­
mente, a conceituação considerada funcionalmente, isto é, no papel
e função que desempenha e que é de representar mentalmente o
mundo exterior à esfera subjetiva do indivíduo, constitui llfil pro­
longamento, em plano superior do psiquismo, de função orgânica
semelhante cujos rudimentos filogenéticos encontramos já no tro­
pismo da matéria orgânica. Tropis1no êsse que no reagir de certo
inodo em frente à determinada feição do meio exterior, e não o
fazendo em frente a outra, estabelece se1n dúvida l1ma discriminação
que importa numa for1na de reconhecimento e identificação da feição
estimulante. O h·opismo implica assim um processo, rudllnentar e1n­
bora, de reconhecimento e identificação. Processo êsse que se espe­
cializa e em conseqüência se complica, com o desenvolvimento do
sistema .nervoso, no plano da sensibilidade animal; para se tornar
afinal em ftu1ção pensante pràpriamente, isto é, em atividade con­
ceph1al, no plano do indivíduo racional que é o homem. A ativi­
dade conceptual, nos seus fundamentos funcionais, isto é, naquilo
en1 que se emparelha e confunde com aquela função que evolve do
tro1Jismo, não representa senão um desenvolvünento considerável
e altamente aperfeiçoado e especializado, da função ·de reconl1ecer
e identificar o meio circundante em que o organismo vivo se desen­
volve, a fim de nêle se comportar de maneira adequada à conser­
vação própria e de sua espécie. O processo de reconhecimento e

geral, • porque essa participação é muito variúvcl, e freqüentemente impercep­


tível. Deve por isso ser considerada em cada caso paiticuJar. Pode consistir
numa simples sugestão que por associação de idéias nos leva a assunto bem
distinto do estimulo inicial, e que não te1n co1n êle relação direta, como se
dá por exemplo quando a vitrina de uma livraria, nos faz pensar no assunto
do livro que estamos lendo. 1.!:sse ponto aliás não nos interessa aqui parti­
culannente, e queremos apenas caracteriar com a 1naior generalidade pos­
sível o mo1nento en1 que se configura em nosso pensan1ento um novo objeto
de reflexão, e se inicia portanto un1 novo ciclo ou curso de pensamento, o
que ocorre tanto quando nos pon1os deliberada1nente en1 contacto con1 a expe­
riência a fim de a utilizarn1os para a reflexão, como quando nos ocorre, por
qualquer outro motivo que não interessa particularizar no caso, um assunto
de reflexão. E1n qualquer hipótese, o primeiro passo consistirá sen1pre na
caracterização, isto é, no reconhecimento e identificação do objeto que vai
ocupar nosso pensamento.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGIGA DIALÉTICA 127

identificação constitui assim, fílogen6ticamente, o ponto de partida


da atividade conceptual. E podemos por isso adotá-lo também, na
falta de melhor, como ponto de partida da ontogênese da mesma
atividade.
Em que consiste, e como atua o processo conceptual de reco­
nhecimento e identificação? Em outras palavras, como reconhece­
mos e identificamos um objeto qualquer que se nos depaTa? A ex­
periência corrente, consagrada aliás na expressão vulgar de "con­
ceituar", nos mostra que tal processo se faz .essencialmente pela
"aplicação" ao objeto considerado, da representação mental ou con­
ceito adequado, o que ordinàriamente se consuma e exprime pela
denominação e caracterização do objeto por expressões verbais. "Or­
dinàriamente", é o caso de dizeT, porque os dois fatos de identi­
ficar o objeto, e dar-lhe a denominação adequada, são distintos, e
mesmo independem tnn do outro. Realmente, podemos muito bem
reconhecer e identificar t1m objeto qualquer, sem que nos ocorra
a denominação ou outra forn1á verbal adequada de expressão que
lhe caiba. E a procura dessa denominação em que freqüentemente
nos esforçamos, e às vêzes até mesmo em vão, mostra bem que
estamos reconhecendo e identificando o objeto considerado, porque
de outro modo não saberíamos nem ao menos como orientar nosso
esfôrço de memória. Essa é ·uma experiência que qualquer um
terá por certo tido alguma vez. Embora sem as expressões verbais
representativas de um objeto que consideramos, ou n1ais precisa­
mente, da representação mental dês.se objeto, ignorando seu no1ne
e sendo incapazes ·de o definir ou descrever, podemos contudo com­
preendê-lo bastante bem, o que significa que a nossa conceituação
ou representação ment:'ll que lhe diz respeito, se acha despertada.
Lembremos a propósito o já referido experimento de Dallembach,
em que o paciente, embora tendo presente a representação mental
de "oposição", tanto que a aplicava com perfeita propriedade, mos­
trava-se incapaz de a denominar ou explicar.
Essa questão da separação relativa entre o pensamento e a
linguagem, já referida anterior1nente e a que voltaremos com mais
vagar, não nos interessa particularmente por ora. O q·ue podemos
concluir das observações acima, e que se liga diretamente ao assunto
em foco, é que a identificação pressupõe) na mente do indivíduo
128 CAIO PRADO JúNIOR

que a realiza, urna representação mental aplicável ao objeto iden­


tificado, ou melhor, uma representação a que se assimil e a nova
representação produzida pela percepção daquele objeto. E a iden­
tificação se efetua ao se fazer a assimilação. Mas em que circuns­
tâncias se efetua essa assimilação? Constituindo a representação
mental, como se viu, urna "relação;' um sistema relacional, a as­
similação é possível e se fará quando a disposição dos elementos ou
partes constituintes do objeto considerado, coincidir com aquela -re­
lação conceptual. Assim na ilustração que demos, no capítulo 3,
da percepção - q11e vem a ser, no plano sensível, o mesmo que
identificação -, de uma linha fo1mada de pontos, essa percepção ou
identificação se fêz porque a representação mental ou imagem que
tínhamos da linha, se constituía de uma c'relação" que dizia res­
peito a uma certa disposição fig1u·ativa, disposição essa encontrada
no agrupamento dos pontos. Reconhecemos e identificamos a linha
porque a disposição das partes que a compõem (a "disposição'', note­
-se bem, e não as partes em si, pois es.sas poderiam ser, denh·o de
certos limites, quaisquer), se ajusta no sistema de relações que cons­
titui nossa representação mental de linha.
Vejamos isso com outra ilustração mais complexa. Ao nos d�­
pararmos com uma árvore, encontramos, na impressão visual e per­
cepção que ela em nós provoca, urna disposição relativa das dife­
rentes côres que compõem a figura e imagem da árvore, bem como
formas, correspondentes a um sistema de relações incluído em nossa
representação mental de árvore, representação essa constituída por
ocasião de nossas experiências anteriores. A visão da árvore, ou
mais precisamente, as sensações elementares e específicas que a
árvore provoca em nós, sejam impressões luminosas, sejam sensações
cinestésicas determinadas pelos movimentos dos olhos e eventual-
1nente da cabeça, que fazemos no ato de observar a árvore, sejam
ainda outros fatos sensíveis ·mais indefinidos, vão estimular ou indu­
zir um processo mental em que se reproduzem os processos ocor­
ridos por ocasião de nossa visão anterior de outras feições semelhan­
tes da Natureza, isto é, outras árvores. Processos êsses últimos que
se gravaram em nossa mente, e por isso nela se representam como
sistema de relações que constituem a nossa imagem ou represen­
tação sensível do objeto árvore. E daí o reconhecimento e identi-
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALJ;;TICA 129

ficação, que se revelarão à nossa consciência na familiaridade da


impressão produzida pela visão da árvore.
Estamos, nas ilustrações dadas, situando-nos no terreno da
percepção sensível e da identificação de feições da Natureza
dixetamente oferecidas. No plano puramente conceptual ocorre
processo semelhante. Assim, consideremos que em vez da visão
de uma árvore, o que nos é dado é a palavra ARVORE ( seja
ouvida, seja escrita. Recordemos todavia que sendo a lingua­
gem um fato origlnàriamente sonoro, a palavra lida desperta
antes uma imagem ou representação auditiva, e é isso que preclpua­
mente conta). Essa palavra vai estimular ou induzir em nosso psi­
quismo uma recorrência dos processos pensantes e conceptuais ante­
rio,re.s em que essa mesma palavra ocorreu. O que quer dizer, su­
gere e chama à consciência a representação preconstituída em nossa
�ente e elaborada por ocasião da passada ocorrência daqueles pro­
cessos. E. é isso que constituirá o reconhecimento e identificação
da árvore, o que se revelará ·no '"sentido" encontrado na expressão
verbal apresentada que é a palavra ARVORE. Sentido êsse que
poderá ser e efetivamente será diferente confo1me o contexto e as
circunstâncias em que a palavra ARVORE, se propõe, dependendo
daí o conteúdo da representação mental evocada, isto é, o sistema
de relações conceptuais nela incluído e que poderá referir-se ao
objeto árvore tanto como elemento botânico (a árvore como tipo
de vegetal), ou como fator de atividades econômicas (a árvore como
produtora de matérias-primas industriais: madeira, celulose, lenha,
etc.); e assim a outros objetos "árvoré', representados por outros
tantos sistemas conceptuais em que se integra o conceito expresso
verbalmente pela palavra ARVORE.
:E:ste último ponto é de particular importância, a saber, o papel
da identificação realizada, no fato de despertar e trazer à consciên­
cia tôda a conceituação, ou melhor, trazer alternativamente, e con­
forme as circunstâncias, os diferentes setores da conceiuação e do
conhecimeno relativos ao objeto considerado e identificado. Po­
demos observá-lo e o compreender melhor numa instância mais com­
plexa do processo de reconhecimento e identificação - mas sempre,
como nas instâncias anteriores, de verificação e comprovação rela­
tivamente fáceis, seja em nossa experiência pessoal, seja nas circuns­
tAncias ordinárias que acompanham o tipo de processo psicológico
130 CAIO PRADO JúNIOR

que estamos analisando -. Vamos supor que numa viagem de geó­


grafos pelas montanhas da Boêmia, deparamos com a paisagem re­
presentada na fotografia ao lado (55.) Trata-se aí, como nos informa
a legenda da estampa, de um lago ele circo glaciar, com valum ele
1norenas. Mas como ohegamos, nesta nossa hipotética encarnação
de geógrafos, a "reconhecer e identificar" a paisagem em questão,
e exprimir êsse reconhecimento e identificação com a referida lo­
cução verbal: Lago etc.?
Em primeiro lugar, distinguimos e identificamos certas feições
particulares da paisagem: urna superfície clágua, uma depressão elo
terreno, blocos ele pedra mais ou menos polidos etc. As palavras
grifadas constih1e1n designação verbal de certas "formas,, sensíveis
cujas imagens 011 representações mentais respectivas se encontram
pré-constituídas em nossa mente, e que são induzidas e evocadas
pelas impressões visuais provocadas pela nossa contemplação da pai­
sage1n. Distinguimo-las aliás precisamente por isso: se não dispusés­
semos de representações e imagens de "'superfície dágua", "'depressão
de terreno'', "blocos de pedra", etc., elaboradas no curso de nossa
experiência e aprendizagem anteriores, não poderíamos agora distin­
gui-las, isto é, as perceber na paisagem contemplada.
Dessas primeiras identificações de "superfície dágua" etc., bem
como de outras que não consideramos para não complicar excessi­
van1_ente a exposição do assunto, passaremos ao seu relac·ionamento .
Uma coisa são êsses dados considerados separadamente, outra,
no seu conjunto, na sua disposição relativa. Como se fará êsse rela­
cionamento? Aqui também há que fazer intervir uma nova repre­
sentação mental que diga respeito à posição relativa dos elementos
já identificados. Essa representação, também elaborada e apren­
dida em experiências anteriores, é suscitada e chamada à nossa cons­
ciência por efeito ·d a consideração sucessiva das diferentes imagens
já identificadas, em função umas das outras e com vistas à inte�
gração delas numa totalidade ou sistema de conjunto.
Compreende-se a necessidade dessa representação mental ade­
quada para a percepção do conjunto da paisagem, e não apenas de

( 55) Extraída de En1. de Martonne. Europe Centrale, tomo IV, l.ª parte,
pág. 47, da Géographie Universelle de Vidal de la Blache.
o
ü

El
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DlALf:TICA 131

suas partes destacadas, quando se considera que se não fôssemos


os geógrafos hipotéticos em que nos fizemos, e não passássemos de
simples caminhantes à procura de passagem para um destino além
da paisagem defrontada, e sem inaior interêsse por ela, não nos preo­
c11pa1íamos com aquêle conjunto constituinte da mesn1a paisagem
e teríamos ce1iamente Luna visão e percepção diferentes dos elemen­
tos de que ela se compõe. O conjunto e paisagem pràpriamente,
são apreendidos porque, corno geógrafos, estamos predispostos a per­
ceber dêsses conjuntos. E estamos predispostos porque no curso
de nosso adestramento e aprendizagen1 anteriores, e graças a êles,
constituíram-se em nosso entendimento representações mentais ·de
tais conjuntos, isto é, de acidentes geográficos dispostos entre si de
certas maneiras, relacionados uns com os outros e formando urna
totalidade integrada em suas partes onde essas partes não são mais
consideradas em si, mas em função umas das 011tras. Com a assi­
n1ilação dos dados que ora se apresenta1n (superfície dágua, depres­
são do terreno, blocos de pedra, étc., e mais a disposição relativa
dêsses elementos) a uma dessas representações pré-constituídas em
nossa mente, apreenderemos o conjunto da paisagen1 que nos ocupa.
E essa apreensão mental ou percepção da paisagem, que corresponde
à sua "identificação", se traduzirá, ou poderá traduzir-se formal e
verbalmente na locução: superfície dágua situada numa depressão
de terreno e se1nead.a eni seu redor de blocos de pe{lra 1naís o-u
1nenos polida. Co1n isso todavia não teren1os ainda co1npletado nossa
observação e identificação de geógrafos. Te1nos lUna percepção
do conjunto da paisagem, mas que não difere da de um viajante
curioso e atento. Como geógrafos, poderemos ir adiante, e assim
faremos porque a paisagem percebida despertará novas e 1nais am­
plas e complexas representações mentais arquivadas em nossos co­
nhecimentos de geógrafos, e consistindo na conceituação que diz
respeito à iuorfologia da crosta terrestre. Essas representações e
conceituação geográfica, como sistemas relacionais que são, terão o
papel de modelos de relações que permitem por isso relacionar os
dados fornecidos na percepção da paisagem, de inaneira nova e
dentro do sistema conceptual da Geografia como ciência, e no da
mecânica da erosão glaciar em pa1iicular. E daí resultará a assi­
milação, e portanto identificação da nossa percepção de paisagem,
132 CAIO PRADO JúNIOR

ao conceito geográfico que se traduz verbalmente na expressão: lago


de circo glaciar com valuni de morenas.
Temos aí a identificação que se procurava. Mas o que signi­
fica essa identificação? Qual o seu "sentido" profundo, e a que
nos conduz? Desde logo, e entre outras conseqüências, ela nos leva
àquilo que se entende por "explicação" da paisagem observada, sua
origem e maneira como se formou. Realmente, a identidade ex­
pressa verbalmente pela locução "lago de circo glaciar com valum
de morenas", representa um conceito, um sistema conceptual em
que se contém, entre outros, a conceituação e os conhecimentos que
dizem respeito à "ação mecânica de massas de gêlo acumulado que
deslizando por uma superfície inclinada, a desgastam e marcam de
depressões onde posteriormente, e dissolvido o gêlo por efeito da
mudança de temperatura ambiente, se depositam as águas prove­
nientes da dissolução do gêlo, bem como blocos de pedra arran­
cados pela massa gelada em movimento e por ela transportados,
blocos êsses que o atrito e fricção no transporte, tornaram polidos . . ,"
f:sse conteúdo da identidade conceptual expressa na locução "lago
de circo glaciar etc", representa não sàmente, como logo se vê, a
explicação da paisagem, mas ainda relaciona a conceituação que a
ela se refere (e que se traduz na mesma expressão verbal) com o
conjunto da sistemática conceph1al da geografia, situando-a nessa
sisten1ática.
É a isso que conduz ou eventualmente pocle conduzir a iden­
tificação realizada. E. é êsse o seu sentido profundo, que não se
detém na simples constatação passiva de uma ocorrência ou feição
do mundo exterior, mas vai além, despertando um processo mental
muito mais amplo e1n que potencialmente se contém o desfilar de
todo nosso conhecllnento. Da .sistemática conceptual da Geografia,
a que chegamos na análise acima, passa-se, ou é possível passar,
do mesmo modo que vimos, ao conhecimento em geral que aquela
sistemática implica e pressupõe, como se dá com qualquer parte
do conhecimento com respeito ao conl1ecimento em conjunto. Co1no
sistema de relações que constituem, a conceih1ação e o conheci­
mento que nela se configuram, tanto implicam as partes no todo,
como o todo em cada uma das partes.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIAL!lTICA 133

Isso é muito importante, porque é precisamente o que permite


à identificação realizar sua função de momento preliminar da re­
flexão e preparatório da ação. De fato, t6da ação é precedida do
reconhecimento e identificação do objeto em frente ao qual a ação
se há de realizar. Ao agir, o indivíduo humano deve antes reco­
nhecer e identificar as circunstâncias nas quais se encontra e que
defronta. Mas não lhe basta para isso a simples constatação dessas
cirCllllstâncias; e para que sua ação seja a mais adequada e acer­
tada possível, torna-se mister mobilizar, na condução dela, todo o
eventual conhecimento de que, como agente, êle dispõe. Essa é
a característica essencial da ação racional, privilégio do indivíduo
pensante, em contraste com a ação meramente reflexa e por isso
estereotipada dos iúveis inferiores de organização da matéria viva.
E é a partir da identificação, e por efeito dela, que se realiza aquela
mobilização do conhecimento em função da ação. Pela maneira
que vimos acima no caso particular da observação de uma paisa­
gem que desperta o conheciniento geográfico - caso êsse de fácil
generalização -, o processo de reconhecimento e identificação põe
em jôgo, em frente ao objeto confrontado e identificado, e em face
do qual se deve desenvolver a ação, o acervo de conhecimentos
que sob forma de conceitoação e representações mentais pré-cons­
tituídas na experiência pregressa, se encontram no psiquismo do in­
divíduo agente.

Observe-se que o "objeto" da identificação não se restringe a


feições concretas do mundo exterior e diretamente acessíveis à. sen­
sibilidade, como foi o caso em nosso exemplo; e te1n lugar, com
os mesmos caracteres essenciais, no que respeita a quaisquer ocorrên­
cias e situações configuradas por circunstâncias que embora apoia­
das em última instância em fatos sensíveis, a êles não se ligam di­
reta e imediatamente. No caso por exemplo em que se trata de
reconhecer e identificar as instituições econômicas de uma coleti­
vidade, o ponto de partida do processo de identificação serão ordi­
nàriamente dados já conceptualizados e de alto nível de abstração
- longe portanto dos dados sensíveis imediatos -, como seriarn,.,r;i� _r4·'":
"' �, '''ir·�..
Não é necessário, como logo . .
·por exemplo dados estatísticos. ,�d��;.
nem conveniente, nem mesmo em geral possível descer �of""ç_asb.S
' '
como êsse até os dados sensíveis imediatos, que seriam, ,,.,óUtros,

�/)- ''
134 CAIO PRADO JúNIOR

os derivados do esfôrço físico, inaterial e concreto de traball1adores


efetivamente ocupados em atividades produtivas. Vai-se desde logo
aos dados já conceptualizados, a que se "aplicarão", pela maneira
que vimos, os conceitos de produção, circulação, distribuição, con­
sumo, etc. Isso permitirá reconhecer e identificar o modo pelo
qual, na coletividade considerada, os bens econômicos são produ­
zidos, transferidos de mãos, distribuídos e consumidos. Do rela­
cionamento dessas identificações - produção, circulação, distribui­
ção, consumo, etc., que se apresentam como outros tantos conceitos
ou sistemas conceptuais -, passar-se-á a uma conceituação mais
ampla e geral que entrosa aquêles conceitos em novos sistemas de
conjunto nos quais se vai config1uando a eshutura econômica fun­
damental da coletividade considerada, permitindo a seu respeito
conceituações q11e se .b·aduzem em expressões verbais como sejam
«agrícola" ou «industrial", "desenvolvida" ou «subdesenvolvida", etc.
Conceituações essas preenhes de infinitas significações . . .
Em suma, o processamento do reconhecimento e identificação
consiste essencialmente em incluir e articular no conhecimento pre­
existente, os dados relativos ao objeto que se apresenta à reflexão
e que se trata de reconhecer e identificar. Essa inclusão e arti­
culação se realizam pelo relacionamento daqueles dados, o que sig­
nifica a consideração dêles em função uns dos outros, constituindo-se
com isso um sistema de relações assimilável a representações men­
tais e conceitos pré-constituídos, com o que se realiza a identifi­
cação. Por essa for1na, os dados oferecidos pelo objeto considerado
se entrosam na sistemática geral da conceituação presente no co­
nhecimento do mesmo indivíduo, conhecimento êsse que assim se
acresce e enriquece dos mesmos dados.
É de notar que segundo se depreende de nossa análise, a iden­
tificação, tal como afinal se apresenta, inclui outras identificações
parciais que concorreram para aquela identificação final. Antes de
alcançarmos a identificação da paisagem glaciar, identificamos seus
elementos constituintes (superfície dágua, blocos de pedra, etc.)
Assim também chegamos à identificação da estrutw·a econômica de
uma coletividade, identificando preliminarmente seus elementos
componentes (produção, circulação, etc.) �sse escalonamento e su­
cessão de identificações será constituído, conforme o caso, de pla-
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 135

nos mais ou menos numerosos, dependendo isso da complexidade


do objeto a ser identificado. Mas seja qual fôr êsse número, sem­
pre se intercala entre as identificações preliminares e preparatórias
sucessivas, u1n relacionamento que partindo ·de -._unas identificações
realizadas, alcança outra seguinte n1ais ampla ·que as compreende.
O processo de identificação implica assim um ce1to ritmo em
que se alternam identificações e relacionamentos. O desenvolvi­
mento do processo pensante é pontilhado pela configuração suces­
siva de iclentidades que se propõem sempre que se consuma um
grupo de identificações parciais e preparatórias. Mas essas identi­
dades, que são conceitos considerados no seu "sentido" próprio, espe­
cífico, e exclusivo de outros '°sentidos", desaparecem para dar lugar
a êsses mesmos conceitos, mas já agora considerados não em si,
mas em função uns dos outros, e portanto já sem especificidade
exclusivista de outros "sentidos". A identidade dos conceitos deu
lugar às relações que entre si entrosam os mesmos conceitos.
Assim em nossa ilustração de uma paisagem glaciar, verjfica­
mos que os conceitos de "superfície dágua", '"·depressão do terreno'',
"blocos de pedra", que tem cada qual uma identidade própria e
sentido específico e exclusivo (a superfície dágua não é depressão,
nem bloco de pedra; nem tampouco bloco de pedra é depressão,
e vice-versa . . . ), êsses conceitos perdem aquêle seu sentido próprio
e exclusivo dos demais, para se proporem em função llllS dos outros,
isto é, desfazem sua identidade em relações. O que se observa
muito bem no sistema de relações que em conjunto vão constituir,
sistema êsse que é um novo conceito co1n identidade própria e dis­
tinta: lago de circo glaciar com valum de morenas, onde os con­
ceitos originários de ".superfície dágua", "depressão do terreno", "blo­
cos de pedra", perderam sua especificidade anterior, e sümente sub­
sistem em função uns dos outros e do relacionamento que os con­
grega: é o conjunto e sistema conceptual expresso por lago de circo
glaciar, etc., que dá a cada uma de suas partes - os primitivos
conceitos de superfície dágua, depressão do terreno, blocos de pedra
- o sentido que agora comportam.
Em suma e no essencial, identidade e relacionamentos se alter­
nam, no curso do processo de identificação, em momentos sucessivos
136 CAIO PRADO JúNIOR

nos quais a identidade dá o relacionamento, e vice-versa, o relacio­


namento a identidade. Noutras palavras, e mais precisamente, o
processo de identificação se desenvolve através de relacionamentos,
com a sucessiva integração das relações configuradas, em conjuntos
momentâneos - momentâneos porque logo em seguida o processo
prossegue -; conjuntos êsses que constituem as identidades.
ll:sse desenvolvimento do processo de identificação corresponde,
como logo se vê, aos dois aspectos em que a conceituação ou repre­
sentação conceptual se apresenta, e que vimos no capítulo 9. Con­
sideramos aí a conçeituação de maneira mais estática, e encontramo­
-la ora sob forma de relações, ora de sistemas integrados de tais re­
lações, e exibindo-se em elementos unitários e individualizados. Po­
demos verificar agora que êsses dois aspectos da representação con­
ceptual nada mais são que momentos sucessivos do pensamento no
curso do processo de identificação. Realmente, o «elemento" uni­
tário e individualizado anteriormente referido, corresponde à iden-­
tidade do conceito, o seu conteúdo de sentido próprio e exclusivo;
tal como o conceito se apresenta em conseqüência da integração
do relacionamento que o compôs, num conjunto unitário. Sendo
assim, podemos estender ao processo de identificação as nossas ve­
rificações relativamente à interligação da conceituação. Essa inter­
ligação, segundo o exposto no capítulo 9, se realiza de dois modos:
seja por relacionamento, seja por simples justaposição ou associação.
Podemos pois dizer que as representações conceptuais, no curso do
proceSso de identificação, se articulam e entrosam entre si por essas
duas maneiras. E é através delas que se desenvolve a identificação.
Tal é realmente o caso. É certo que na análise acima feita
da identificação, insistimos Unicamente na articulação realizada por
relacionamentos. Lembremos o que a propósito se disse: as iden­
tidades, resultantes do relacionamento, se relacionam em seguida
entre si para dare1n novas identidades. Teríamos então, esquemà­
ticamente, a seguinte sucessão:
. . . identidade -+ relacionamento -+ identidade . . .

J<sse é de fato o mecanismo fundamental e originário de todo


processo pensante e do conhecimento. Mas também é certo que
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 137

como derivação e simplificação dêsse processo, encontramo-lo redu­


zido à sucessão
. . . . identidade -> identidade . . .

em que o relacionamento é suprido pela justaposição das identi­


dades, que por conseguinte se sucedem sem mediação do relacio..
namente.
Co1no se dá isso? e1n que circunstâncias o relacionamento é
dispensável, e a identificação se pode realizar e efetivamente, em
muitas instâncias, se realiza pe1a transição direta de umas para
outras identidades sem intercorrência do relacionamento? A consi­
deração pormenorizada dêsse ponto implica a análise da expressão
verbal da conceituação, a que procederemos nouh·o capítulo. Desde
já todavia, é possível adiantar que a transição direta da atividade
pensante de umas para outras identidades, sem intercorrência (pelo
menos explícita) do relacionamento, se verifica quando os conceitos
qµe ·se sucedem -na identificação se acham dispostos na representação
mental do indivíduo pensante que realiza a identificação, por "asso­
ciaçao . Associação essa determinada pela contigüidade dos mes­
mos conceitos, como identidades, na experiência anterior do indiví­
duo. Em -outras palavras, a associação é determinada pela ocor­
r�ncia simultânea dos conceitos associados naque'.a experiência; e
,0corrência tão repetida ou tão marcante que consolidou a justa­
posição dos conceitos considerados na representação mental, de ma­
neira a que a evocação de um dêles traz à consciência de3de logo
o outro, sem que seja necessário para isso reconstituir êste outro
pelo relacionamento de que se constitui e que o articula com o
conceito anteriormente evocado e a que êle se associou.
Assim por exemplo a representação mental (conceito) de "so­
ciedade humana'' evocará imediatamente, no pensamento de um so­
ciólogo, o de "classe social", sem transição alguma através do com­
plexo sistema conceptual de relações em que aquêles dois conceitos
se entrosam e no qual ambos, em conjunto, se configuram. A iden­
tificação, em casos como êsse, se fará instantânea: a consideração
de uma coletividade (sociedade) humana, que constitui a identifi­
cação do objeto "sociedade humana", leva desde logo à identifi­
cação das situações incluídas nessa coletividade e que importam na
138 CAIO PRADO JúNIOR

discrin1inação em classes sociais. Podemos ainda ilustrar o assunto


com o mesmo exemplo acima referido do geógrafo em face da pai­
sagem representada na pág. 130: .êsse geógrafo assimilará os dados
sensíveis que a contemplação da paisagem lhe proporciona, bem
como as representações conceptuais sugeridas por aquêles dados,
ao seu conceito de "modelado glaciai', de maneira instantânea e
sem necessitar para isso, pelo menos explicitamente, das operações
preliminares de relacionamento daqueles dados e representações. lt
que êsses mesn1os dados e representações, com que o geógrafo expe­
rimentado já se familiarizou no cmso de seu adesh·amento profis­
sional, lhe permitem associá-los ao conceito de "modelado glaciar".
Identificará assim instantâneamente a paisagem, traduzindo verbal�
mente essa identificação, mesmo que não o faça exterior e expres­
samente, com a locução: lago de circo glaciar com valurn de rno-
1•enas. O mesmo se poderá dizer da maior paite das identificações
a que procedemos no curso de nossas atividades e reflexões ordi­
nárias. Estamos a todo momento reconhecendo e identificando
objetos do mundo exterior, que se apresentam quer seja através de
dados sensíveis, quer sob forma conceptt1al expressa verbalmente,
pela transição imediata de tais dados e conceitos, para outros, e
dispensando, ao menos explicitamente, operações de relaciona1nento.
Se vemos o céu encoberto, logo identificaremos aí a eventualidade
de chuva, sem nenhuma - intervenção da complexa sistemática de
relações conceph1ais que constituem o conhechnento meteorológico,
e que se interpõe (pelo menos no pensamento de um meteorologista)
entre as representações de �'céu encoberto" e de "chuva", e as rela­
ciolla num siste1na de conjunto.
É claro todavia que a associação não exclui o relacionamento,
e que ambas as operações participam em regra de tôda identifica­
ção, combinando-se nela das mais variadas maneiras.
11. - ELABORAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO MENTAL
E DA CONCEITUAÇÃO

Os processos pensantes se centralizam na identificação, e esta


se realiza pela assimilação do objeto do pensamento e da identi­
ficação, a representações mentais - imagens ou conceitos - preexis­
tentes e pré-constituídos no psiquismo do indivíduo pensante. li:
isso, em suma, que vimos no último capítulo onde se pôde verificar
que o processo de identificação e seu natural desenvolvimento dão
conta de boa parte da atividade pensante. Resta-nos saber como
se originam as representações .mentais, como se constituem. Trata­
-se da questão essencial da teo1ia do conhecimento, a saber, o pro­
cesso de elaboração dêsse conhecimento, uma vez que o conheci­
mento de cada indivíduo nada n1ais é que o conjunto de represen­
tações mentais presentes no psiquismo dêsse indivíduo.
De um modo geral, pode-se dizer que as representações men­
tais se constituem no psiquismo do indivíduo pensante, no curso
de sua fo11nação e desenvolvimento; e se realizam pela sua apren­
dizagem que se faz ou por experiência própria, ou pelo ensinamento,
intencional ou não, que lhe é ininistrado. Essa distinção entre ex­
periência própria e ensinamento é mais de natureza teórica, pois
na prática a1nbas as formas de aprendizagem geralmente se con­
fundem. De um lado, a experiência de que o indivíduo se vale
e1n' sua aprendizagem lhe é proporcionada, pode-se dizer que na sua
totalidade, pelo meio social de que participa, embora sua contri­
buição própria e a do ineio se combh1em nos diferentes casos em
proporções variadas. Doutro lado, os ensinamentos que recebe con­
siste1n igualmente, em regra, no ensejo de experiências próp1ias. O
ensinamento consiste freqüenten1ente apenas no fato de abrir pers­
pectivas e proporcioar oportunidades a experiências próprias. Não
nos deteremos nestas questões que pertencem antes à Pedagogia e
140 CAIO PRADO JúNIOR

vão muito além de nosso assunto. Consideraremos apenas o pro­


blema pràpriarnente psicológico da aprendizagem, o que vem a ser
a maneira pela qual se constituem no indivíduo pensante as suas
representações mentais a partir dos estímulos exteriores que recebe,
sejam êsses estímulos derivados de sua experiência própria, sejam
resultantes de ensinamentos.
Como relações ou sisten1as de relações que são, as representa­
ções mentais derivam de um processo de "organização" dos dados
que o indivíduo recebe através dos estímulos exteriores que o alcan­
çam, sejam aquêles dados sensíveis, sejam de outra natureza -
isto é, conceptualizados e recebidos pela expressão verbal oral ou
escrita. Podemos indiretamente observar o processo de organização
de tais dados em representações mentais, através do comportamento
dos indivíduos em diferentes experimentos bem conhecidos no campo
da Psicologia, como entre ouh·os os chamados de "escolha múltipla'',
em que o paciente deve escolher, dentre várias alternativas, aquela
que conduz à solução acertada do problema que lhe é proposto.
Citemos, entre êsses experimentos, pelo seu particular interêsse no
caso, o realizado por Guillaume com galinhas adestradas para esco­
lherem, nu1na seqüência de grãos semelhantes e dispostos em linha,
um de cada dois ou três, sem tocarem nos intermediários (56.) Essas
galinhas, uma vez convenientemente adestradas, farão a escolha
aCe1tada mesmo quando se substitue1n os grãos por outros de côr,
tamanho e qualidade diferentes. Isso mostra que o que orienta o
comporta1nento dos pacientes adestrados, não são os dados espe­
cíficos da sua sensibilidade, e sim a "disposição" dêles. Disposição
essa que naturalmente mantém uma certa correspondência, isto é,
é isomorfa com a disposição dos elementos estimulantes, e que vem
a ser a disposição dos grãos em duas categorias a serem respectiva­
mente urna escolhida e outra rejeitada. Pode-se concluir daí que
os pacientes "'organizaram" sua representação mental dos dados in­
cluídos no experimento, de maneira a lhes facultar a percepção da
disposição dêles. Excluída essa "organização" que naturalmente a
percepção da disposição implica, os grãos seriam indiferentemente

( 56) Paul Guillaume, Manuel de Psychologie. Nouvelle édition revue


et augmentée. Paris, 1950, pág. 240.
NOTAS INTRODUTORIAS A LÓGICA DIALETICA 141

escolhidos, como de fato oc0rre no início do adestramento, quando


os pacientes ainda se conduzem Unicamente pelos dados específicos
da sua sensibilidade estimulada pela côr, tamanho e qualidade dos
grãos. O que o adestramento acrescentou foi precisamente uma
certa organização dos dados da percepção. Organização essa que
se representou no psiquismo do paciente (constituindo portanto uma
determinada representação mental ou imagem), e em que a especifi­
cidade daqueles dados se acha excluída e substituída pela dispo­
sição dos mesmos. Em suma, o que as galinhas adestradas percebem
- como se pode verificar no seu comportamento e na escolha que
realizam - é a "disposição" dos grãos, e não a especificidade dêles,
uma vez que os grãos podem variar e terem uma especificidade
diferente. O que mentalmente se representa nas galinhas adestra­
das é portanto essa "disposição", E isso implica "organização" dos
dados oferecidos no experimento; dados êsses que é tudo quanto
a princípio as galinhas percebiam.
Note-se contudo que a representação mental das galinhas ades­
tradas por Guillaume ainda comporta uma grande parcela de especi­
ficidade, uma vez que elas não acertarão na escolha se o alihha­
mento dos grãos não fôr regular ou não obedecer ao padrão em­
pregado no adestramento. Também se confundirão se os grãos
forem substituídos por outros objetos muito diferentes, particular­
mente quando são relativamente muito volumosos. A representação
mental das galinhas adestradas ainda se acha portanto ligadà a
muitas circunstâncias particulares do experimento, e aos dados espe­
cíficos que essas circunstâncias proporcionam, e que se conservam
solidárias com a representação da "disposição" por elas adquirida.
Os experimentos de Guillaume nos apresentam assim o que
poderíamos considerar, a rigor, um primeiro e muito nldimentar
nível de aprendizagem da contagem: as galinhas adestradas apren­
deram, de certo modo, a contar até 2 ou 3. "Certo modo" de alcance
evidentemente limitadíssimo, porque rlgidamente atado a circunstân­
cias muito específicas e particularizadas: as galinhas "contam" só
grãos, e grãos alinhados de determinada maneira; sua contagem
nunca ultrapassa três; e será sempre e sàmente de dois ou tfês,
conforme o adestramento escolhido. Compare-se isso com outros
níveis da aprendizagem aritmética - o da �riança em seus primei·
142 CAIO PRADO JúNIOR

ros anos, e o de culturas primitivas -, e se observará uma pro­


gressiva libertação das contingências verificadas nas experiências, e
da especificidade dos dados oferecidos por essas experiências. A
criança e o primitivo já «contam'' prOp1iamente, o que não é evi­
dentemente o caso das galinhas de Guillaume. lVIas assim mesmo,
referem sua contagem a inodelos concretos, como os dedos da mão.
Os dados hauridos nas experiências em que efetuaram Sl1a apren­
dizagem, ainda são, até certo ponto, solidários com a operação de
contagem que realizam. Trata-se contudo de passos decisivos para
a contagem definitiva e totalmente liberta da especificidade da expe­
riência concreta, e para a representação mental e conceituação da
numeração (série de números). A tôdas essas etapas sucessivas,
corresponde uma organização mais ampla de dados, e pois uma
representação mental mais complexa que vai dar afinal na siste-
1nática conceptual de numeração aplicável generalizadamente a
quaisquer conjuntos de partes, inclusive aos conjuntos inteiramente
abstratos da 1natemática pura.
Retornemos todavia à consideração dos experimentos de "'esco­
lha múltipla'', que têm sido realizados em larga escala e com inú­
meras variantes, oferecendo em conseqüência um vasto campo de
observação. Verifica-se na análise comparativa e de conjunto dês­
ses experi�ntos, que o adestramento ou aprendizagem se 01ientam
nêle genêricamente no sentido da elaboração, no psiquismo do pa­
ciente, de u1n prh1cípio ou no1ma geral, de um niétodo em suma
de realização de tun certo tipo de tarefa. Dizemos "tipo", porque
o mais interessante nesses experimentos de "escolha múltipla'' (em­
bora isso não seja se1npre colocado pela interpretação de seus re­
sultados, na devida evidência) é que precisamente nêles se exclui
a especificidade das circunstâneias particulares em que o experi­
n1ento se realiza. Obtém-se com essa exclusão o destaque de um
comportamento genérico, precisando-se em conseqüência a natureza
"abstrata" (porque desligada de dados específicos) do método ade­
quado para o acêrto na escolha do paciente. E o que é mais inte­
ressante, é observar como êsse "método" se vai configurando à me­
dida que o adestramento ou aprendizagem avança, substituindo-se
pTogressivamente no comportamento do paciente, as respostas dita�
das par estímulos específicos das circunstâncias peculiares do expe-
NOTAS INTRODUTóRIAS A LÓGICA DIALltTICA 143

rimento, por respostas orientadas pelo '1sistema" em que o experi-


1nento se dispõe. O que revela que aos dados específicos se subs­
tituem, na percepção do paciente, a organização dêsses dados. Pode­
-se assim acompanhar a elaboração progressiva, no psiquismo do pa­
ciente, da representação mental correspondente àquela organização,
e inspiradora do método utilizável para uma solução aceitada.

São de notar também a espontaneidade e por assim dizer auto­


matismo com que opera em regra o psiquismo do paciente naquela
organização dos dados oferecidos nos experimentos e na elabora­
ção da representação adequada. A atividade mental do p.aciente
converge natural e espontâneamente naquele sentido, impelido Uni­
camente pelo fim ahnejado que é a realização da tarefa proposta.
Isso é sobretudo flagrante (porque se trata de paciente já de rela­
tivo desenvolvimento e de consciência bem despeitada) nos expe­
mentos de Rey e Lambercier referidos por Guillaume (57), em que
crianças devem descobrir a regra que dá a posição, variável em
cada ensaio, de uma caixa, elln·e muitas outras, que contém uma
recompensa. E:sses experhnentos n1ostraram que a proporção das
escolhas acertadas começa a aumentar, e ulh·apassa a probabilidade
calculada segundo as leis do acaso, antes que o paciente se aper­
ceba dos critérios pelos quais se conduz, e possa formular a regra
à qual obedece. Coisa semelhante pode ser observada com bas­
tante nitidez, e já aí em qualquer nível mental, na solução de pro­
blemas matemáticos em que freqiientemente o paciente equaciona
satisfatoriamente a questão proposta (isto é, aponta a operação for­
mal aplicável ao caso), mostrando-se embora incapaz de explicar
a razão do seu procedimento e do equacionamento realizado. É
que o processo de organização dos dados e a disposição dêles da
maneira adequada - o que é condição necessá1ia da escolha con­
veniente da operação aplicável - se realizou na esfera subliminal
do paciente. A função pensante, estimulada pela proposição do
problema e pelo desejo do paciente de a resolver, p6s-se em ativi­
dade e se orientou de maneira acertada, por efeito Unicamente do
estímulo dos dados oferecidos e por ação automática e como que
mecânica dêles. Essa observação é importante, e nos permite con-

( 57) Ob. cit., 274.


144 CAIO PRADO JúNIOR

trastar essa ação automática e espontânea, com processos mentais


mais complexos que veremos adiante e em que vem em auxílio da
mesma ação um impulso deliberado e perfeitamente consciente do
indivíduo · pensante.
Outra série de observações proporcionadas pelo confronto dos
experimentos de «escolha múltipla" que vimos considerando, diz res­
peito à maior ou n1enor facilidade da aprendizagem. Nos níveis
inferiores do psiquismo - como no caso das galinhas de Guillaume
- encontramo-nos no plano do simples adestramento. Trata.-se
aí de uma aprendizagem longa e penosa, e sobretudo onde a ini­
ciativa e orientação cabem exclusivamente ao experimentador, seja
diretamente, seja indiretamente pelos dispositivos que introduz no
experimento. O comportamento do paciente se caracteriza nesse caso,
principalmente por aquilo que se entende ordinàriamente por· «en­
saios e erros"; e a aprendizagem se fará por sucessivas e insignifi­
cantes· aproximações do objetivo almejado que é a execução acer­
tada da tarefa proposta no experimento.
Em níveis mais elevados - animais superiores e particular­
mente nas crianças - a aprendizagem tem um ritmo diferente. Não
só é mais rápida e menos penosa, mas o que é mais importante,
encontram-se nela momentos ou fases bem marcados de transição
brusca onde se observa progressos súbitos e decisivos, o que se
veiifica em mudanças repentinas de comportamento. Em vez de
séries consecutivas de «ensaios e erros'' recon·entes a propósito de
cada, parte da tarefa, e um esfôrço contínuo e mais ou menos homo­
gêneo na coordenação progressiva, num método geral, dos dados
oferecidos na experiência, observam-se saltos e transições · súbitos
de um plano da aprendizagem para outro diferente. Ê como se
a representação mental do "método" objeto do experimento, se fôsse
configurando de maneira descontínua e por escalões bem marcados
e cada vez mais próximos da integração total daquele método. O
ce;to é que a par dos ''ensaios e erros'', ocorre um outro fator e
processo pero qual se coordenam os dados obtidos no curso daqueles
"ensaios e erros"; processo êsse que não pode ser senão uma · ati­
vidade organizadora própria do psiquismo do paciente.
O tipo de experimentos que vimos referindo vai entroncar-se,
como é fácil observar, nos fatos da transferdncia da aprendizagem,
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALÉTICA 145

onde também se ofeece um amplo terreno experimental que a Psi­


cologia vem explorando. Realmente, entende-se por "transferência
da aprendizagem" a utilização do adquirido numa situação dada,
em outra que posteriormente se apresenta; o que importa eviden­
temente em "transferência" do adquirido. O interessante nesses
experimentos é que a par dos dados específicos, ou aparentemente
específicos de urna situação, transfere-se também, e muito mais fá­
cil e generalizadamente, o não-específico, a saber, a disposição ou
estrutura das circunstâncias daquela situação. E apesar dos esforços
de Thorndike e de outros associacionistas ortodoxos em explicarem
essa transferência pela "identidade" dos elementos transferidos, êles
são obrigados a estender de tal maneira sua noção de "elementos",
que vão dar afinal na mesma coisa, isto é, na transferência de 1·e...
lações. Os associacionistas efetivamente o reconhecem quando for..
mulam o princípio da transferência, como fazem, nos seguintes têr­
mos emprestados de um clássico do associacionismo, e autoridade
inconteste na matéria: "Um fator, como seja um princípio ou mé­
todo, que é não-específico da situação dada na aprendizagem, ten­
de a ser evocado por situações semelhantes" (58). ltsse fator, exem­
plificado com um "'princípio ou método", que vem a ser se não
as r�lações ou estrutura em que se dispõem as circuntâncias par4
ticulares específicas da sih1ação, em contraste com essas mesmas
circunstâncias?

Pode-se concluir daí que a elaboração da representação mental


por meio da qual o aprendido numa situação se transfere para outra,
consiste na organização dos dados específicos e diretos oferecidos
na .aprendizagem. Uma vez que são sOmente êsses dados que dire­
tamente se apresentam e são apreendidos pelo indivíduo, a per­
cepção do que se encontra além e como que fora dêles, e que cons­
siste em sua disposição relativa, isso só pode ser explicado por uma
operação do pensamento distinta da simples percepção direta e
elementar dos mesmos dados (59). Operação essa que vai dar no

( 58) John A. McGeoch. The Psychology of }Juman Learning. Second


édition revised by Arthur L. Irion, 1952, pág. 332.
( 59) A Psicologia da Gestalt atribui a percepção daquilo que não é e
não pode ser dado na sensação elementar e direta, a uma propriedade intrín­
seca do objeto daquela percepção, que se combina com uma predisposição
146 CAIO PRADO JúNIOR

que pode1nos co1n tôda propriedade considerar uma ''organização",


dos rnesn1os dados em função dos objetivos que o mesmo indivíduo
tem em vista, organização essa promovida e efetuada pela atividade
psíquica própria do indivíduo que realiza a aprendizagem. Essa
participação ativa do psiquismo na "organização" dos dados apren­
didos, em contraste com o que seria uma posição puramente recep­
tiva e de simples reflexo, pode ser observada, enh·e outros, nos
experimentos de transferência em que o paciente utiliza os cha1na­
dos "métodos mnemônicos" destinados a facilitar a retenção e pos­
terior reprodução dos dados aprendidos. ll:sses métodos envolvem
ordinàriamente, como se sabe, un1a certa «organização" dos mesmos
dados, organização essa que pode variar muito, e é mesmo freqüen­
temente artificiosa e completamente estranha àqueles dados. Ora
isso evidencia a introdução ele llm fator fora da sih1ação experimen­
tal oferecida, e pr6pria apenas do psiquismo do paciente.

Veren1os adiante, con1 mais generalidade, êsse papel ativo do


psiquismo na organização dos dados experimentais oferecidos dire­
tamente na aprendizagem. !Essa organização, como logo se vê, subs­
titui e supre os dados que organiza. Permite que a representação
inental resultante da organização, se aplique a dados especificamente
distintos daqueles de que originàriamente partiu e com que se cons­
tituiu; mas que, apesar disso, se enquadram na mesma organização,
ou podem ser nela enquadrados. É nisso aliás que -consiste, em
essência, a transferência, uma vez q11e de uma para outra situação,
ocorr� sempre alguma diferença, por mínima que seja, das circunS­
tâncias peculiares a cada uma delas. Em conseqüência, os dados
específicos oferecidos numa e no11tra serão algo diferentes. E para
que a transferência se realize, será preciso que na representação
mental através de que ela se faz, os dados especificas da situação
presente na aprendizagem, e que não reaparecem na situação que
em seguida se apresenta, sejam substituídos e supridos pela sua

psicológica natural do indivíduo percipiente. Essa interpretação e explicação


do fato que estamos considerando, introduz nêle circunstâncias misteriosas e
in1possívcis de precisar, que por sua própria natureza escapam a qualquer
verificação experhnental. Ela é assim puramente arbitrária e cientllicamente
injustificável, alén1 de conduzir a conclusões de ordem geral e filosófica intei­
ra1nente insustentáveis.
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LóG!GA DIAL!lTIGA 147

organização. Mas a substituição dos dados específicos de uma si­


tlk'lÇão pela organização dêsses n1esmos dados, pode ser e efetiva­
mente é variável e se realiza em proporções diferentes. Noutras
palavras, a substituição pode ser mais ou menos extensa, sobrando
e1n conseqüência, na resultante representação mental, e em propor­
ção inversa, menos ou mais dos dados originais e da especificidade
<la situação em que a aprendizagem se realizou. Assim por exem­
plo no experimento de Guillaume com galinhas, como aliás já se
notou, a representação mental transferida se acha extremamente im­
pregnada de dados específicos. Pelo contrário, quando o que se
transfere são métodos muito gerais, o específico se reduz a um
inínimo.
É precisamente essa eliminação da especificidade, em alto grau,
que se dá no caso dos experimentos onde se acham envolvidos fatos
prOpriamente da inteligência, isto é, em que se propõe a solução
de problemas de elevado nível de abstração. E as observações e
conclusões acima vão nos servir na interpretação daqueles fatos, o
que abre caminho para a compreensão de todo processo de elabo­
ração do conhecimento.
O papel da transferência da aprendizagem na interpretação e
explicação dos fatos da inteligência, tem sido assinalado e estudado
pela Psicologia experimental (60), e a conclusão em geral aceita e
bastante bem comprovada por un1 sem-número de experimentos de
inteligência, é que a solução de problemas é sempre facilitada, e
muitas vêzes imediata e decisivamente condicionada por uma apren­
dizagem anterior em situações semelhantes. Qualquer professor de
matemática sabe aliás disso muito bem; e o método utilizado no
ensino da Aritmética, de reduzir os problemas a "tipos" que com­
portam cada qual uma solução genérica para todos os problemas do
inesmo tipo, se inspira naquele fato.
Caracteriza-se muito bem, em todos .êsses casos, a transferência
da aprendizagem. É claro todavia que isso sàmente conta metade

(60) Veja-se entre outros, e particularmente para a informação biblio­


gr{úica sôbre o assunto, Problem solution as 1·elated to transfer e1n Robert S .
Woodworth e Harold Schlosberg, Experlmental Psychology, Revised l!:dition,
Ne\.v York, 1955, pág. 825; e John A. McGeoch, The Psychology of Iiuman
Learning, cit., 347.
148 CAIO PRADO JúNIOR

da história, pois há que explicar também a própria aprendizagem.


A dificuldade da questão consiste em que a solução dos problemas
de inteligência - e é isto precisamente que no essencial os carac­
teriza - implica algo de novo e original que não se acha direta­
mente contido, e desde Jogo, nos dados do problema. É nisso que
tem tropeçado o associacionismo, porque a própria noção de asso­
ciação inclui a de "repetição"; e a não ser que se introduza o acaso
- e é o que fazem os associacionistas quando apelam para a expli­
cação pelo processo dos "ensaios e erros" - não há como chegar
ao novo e original da solução "inteligente" (61).
A dificuldade se desfaz quando se considera na situação apre­
sentada no problema a ser resolvido, não sümente a especificidade
dos dados oferecidos, e sim também a sua generalidade. Essa gene­
ralidade, embora inclusa nos dados, não se apresenta desde logo.
Há que ser descoberta, e essa descoberta em que se encontram as
raízes do novo e original da solução, é condicionada e facilitada pela
experiência anterior do indivíduo. E assim, ainda nesse caso, como
logo se verá, encontra-se em jôgo um fato de transferência.
Considere-se por exemplo a observação de Birch (62) a pro­
pósito de jovens chimpanzés que nunca tinham antes brincado com
paus, mostrando-se incapazes de resolver o problema de atingir e
trazer para perto, com a ajuda de um pau, objetos fora de alcance.
E:sses mesmos chimpanzés resolveram instantâneamente a dificul­
dade depois que lhes foi dada oportunidade, durante alguns dias,
de brincar com paus - embora não se tratasse, nesses dias, do
problema em questão.
Trata-se aí, evidentemente, de uma solução original para os
chimpanzés, pois antes do brinquedo, era-lhes desconhecida. E
mesmo depois dêle, conservava sua originalidade, pois há naturalM
mente diferença entre o brinquedo com paus, e o emprêgo de uni
pau como instrumento para alcançar objetos. Como passou o chim-

( 61) A crítica do associacionismo, e a insuficiência dos "ensaios e


erros" para explicar a solução dos problemas de inteligência, são bastante
conhecidas e con1provadas para nos determos agora no assunto. Lembraremos
a propósito 1'mica1nente a profunda e exaustiva análise da questão realizada
pelos psicólogos da Gestalt.
(62) Cit. p. Woodsvvorth e Schlosberg, Experimental Psychology, cit., 825.
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALltTICA 149

panzé de uma para outra dessas "concepções"? Não pode haver


dúvida que foi pela eliminação da especificidade dos dados ime­
diatos, relativos a paus, oferecidos nas duas situações. Eliminação
essa proporcionada e preparada pelo brinquedo, ou mais precisa­
mente, pelo cotejo e comparação, no curso do brinquedo, das dife­
rentes maneiras de manejar paus. ·Nesse manejamento variável, se
destacou a permanência do objeto pau e de sua função instrumental,
isto é, a possibilidade de sua utilização como instrumento para a
realização de fins almejados, inclusive portanto o de alcançar objetos.
Esse experimento ainda não esclarece inteiramente o assunto,
e não é totalmente conclusivo. A rigor, e com algum esfôrço inter­
pretativo, a solução encontrada para o problema poderia ser consi­
derada em continuidade com o brinquedo, e resultante de ensaios
e erros sucessivos. A instantaneidade com que a solução se apre­
sentou, exclui esta hipótese. V.ejamos contudo como sua improce­
dência se comprova de man.eira definitiva. Completemos para isso
nossa observação com os experimentos de Kohler (63), também com
um chimpanzé, mas êsse já bem adestrado no manejo de paus uti­
lizados para alcançar objetos. O animal, privado de paus, resolveu
o problema de alcançar o alimento indo buscar um lençol que se
encontrava em seu abrigo e fora do local em que se realizava o
experimento e com êle alcançou e arrastou o alimento para perto.
Não há aí possibilidade de explicar a solução, evidentemente
originalíssima, senão pela identificação e assimilação mental, feita
pelo animal, do pau e do lençol. Esses objetos, embora tão dife­
rentes, inclusive naturalmente para o chimpanzé que utilizava o len­
çol Unicamente para se aconchegar no seu abrigo, foram por êle
identificados. E identificados, está claro, como C<instru1nentos para
alcançar objetos". Sàmente assjm, e despidos de sua especificidade
respectivamente de pau e lençol, é que os dois objetos poderiam ser
assemelhados e identificados. Em suma, paus e lençóis, apesar de
especificamente tão -distintos, são idênticos, para o chimpanzé, na
sua função de inst1'umento para alcançar obietos. O que os une e
identifica, a unidade e conjunto em que êles se fundem, é a função

( 63 ) Wolfgang Kõhler, The Mentality of Apes, trad. de Ella Winter,


B. Se., London, 1948, pág. 25.
150 CAIO PRADO JúN!OR

dêles, que não se apresenta direta e imediatamente nos dados ele­


mentares ·da situação e1n que o chimpanzé se encontrava, mas re­
sultou dela por fôrça da disposição relativa em que tais elementos
se articulam dentro do conjnnto experin1ental: a distância, excessiva
para o alcance dos membros do animal, em que se achava o ob;eto
almejado. O chimpanzé, para chegar à solução que seu comporta­
mento pôs em evidência, devia pois necessàriarnente representar
mentalmente aquela disposição relativa do conjunto experimental.
·
E isto a partir dos dados específicos que são os únicos que a situação
imediatamente lhe proporcionava. Sua atividade mental consistiu
assim em eliminar essa especificidade, substituindo-lhe a organização
em que essa mesma especificidade se dispunl1a.
Não pode haver dúvida que o sucesso do chimpanzé de Ki:ihler
se deve em grande parte ao fato que .êle contava com sua familia-
1idade anterior com o emprêgo de paus para a realização do mesmo
fim em que utilizou o lençol. O experimento de Kóhler pode assim
ser ligado ao de Birch acima referido. É no brinquedo com paus
que o chimpanzé se inicia na elaboração de sua representação men­
tal de instrumento para alcançar ob;etos. Representação essa que
já estará presente quando efetivamente a tarefa de alcançar objetos
lhe é proposta. Mas ainda aí envôlta na especificidade de um ins­
trumento em particular: o pau. O novo problema apresentado no
experimento de Kohler, no qual o chimpanzé não dispõe de paus,
lhe per1nitirá libertar definitiva1nente sua representação mental da
especificidade do "'pau", e elaborar assim a representação mais <<abs­
trata�' de inst"1'tt1nento, etc., que lhe servirá então para tentar a ope­
ração de alcançar objetos com as mais variadas coisas. "Todos os
objetos, escreve Ki:ihler, especialmente os de forma alongada ou
oval (64), e que pareçam móveis, tornam-se "paus" no sentido pura-
1nente funcional de "instrumento para apanhar . . ."
Como se vê, a análise dos eXperimentos de inteligência, análise
essa que poderia ser facilmente generalizada, permite-nos observar
como se organizam progressivamente, no curso da experiência do
indivíduo pensante, e e1n função dela, as representações mentais. E

( 64) Note-se que há aí u1na preferência que significa de fato uma res­
trição e que indica a parcela de especificidade ainda presente na noção ou
representação de "instrumento . . ." do chimpanzé.
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LóGICA DIALÉTICA 151

isso significa elaboração dessas representações, e por conseguinte


do conhecimento, que não vem a ser, com respeito a cada indivíduo,
senão o conjunto de suas representações mentais. Em essência, o
processo consiste na eliminação da especificidade dos dados da ex­
periência, o que per1nite articular e conjugar tais dados em sistemas
organizados de relações, sistemas êsses que vão compor a repre­
sentação mental. Os experimentos que analisa1nos dizem respeito
ao pensamento em nível muito próximo da sensibilidade, isto é,
envolvendo dados imediatos da sensibilidade. Mas no nível do pen­
.sarnento pràpriamente conceptual e humano, o processo é essencial-
1nente o mesmo. Tratar-se-á se1npre da eliminação da especifici­
dade dos dados da experiência, sejam embora êsses dados indiretos
e já resultantes de elaboração prévia dos dados sensíveis, e tradu­
zidos ou traduzíveis em linguagem. Assiin o estudante de aritmé­
tica que incidentemente lembramos acima, e que aprende a solução
genérica de um "tipo'' de problemas, devendo para isso excluir os
dados particulares e específicos · dos diferentes problemas que o "tipo"
considerado compreende, a flln de apreender, isto é, representar
inentalmente, o sistema ou est1utura geral das situações presentes
nos mesmos problemas, êsse estudante estará elaborando esta sua
representação mental na base não de -dados sensíveis, e sim de con­
ceitos m1lito abstratos expressos en1 linguagem. Mas ne1n por isso
procederá, em essência e no funda1nental, de maneira distinta dos
chimpanzés de Birch e Kiihler,
Assim, apesar de tudo aquilo que a conceituação abstrata e o
concurso da linguagem introduzem na atividade pensante do homem
e na elaboração de sua representação mental, em contraste com o
que ocorre no nível do psiquismo dos a11in1ais superiores, não há
aí, no que nos interessa presentemente, distinção essencial. Em todos
os casos, refletir-se-ão na representação mental resultante daquela
elaboração, não as circunstâncias particulares das si-mações que se
oferecem na experiência e reflexão dos indivíduos, e sim a disposição
relativa daquelas circunstâncias, a 1naneira pela qual se estrutuxam
em conjunto. Disposição e estrutura essas que se configuram na
representação mental através de uma organização adequada dos
dados oferecidos. É por isso mesmo que a representação mental
reflete uma esttutura, e não a particularidade e especificidade da
152 CAIO PRADO JúNIOR

situação e de suas circunstâncias peculiares, ela poderá se aplicar


a tôdas as situações que embora diferentes no que respeita àquela
particularidade e especificidade, se identificam pela sua estrutura(65.)

Será essa "aplicação" da representação mental à situação pro­


posta no problema a resolver, que fornecerá a solução procurada
e condicionará o comportamento do indivíduo. Assim o que para
os observadores e psic61ogos experimentadores constitui um com­
portamento solucionador ·de problemas originais, é para o indivíduo
observado e sujeito da eXperimentação, a "aplicação" ·de uma re­
presentação mental elaborada e adquirida no curso de sua expe­
riência anterior. Representação essa que com tal "aplicação" se
reorganiza, ampliando-se e se generalizando ainda mais.

Ora essa "aplicação" não significa outra coisa, no essencial, que


o processo de identificação que consideramos no capítulo anterior.
Trata-se nela, tanto como na identificação que descrevemos, de assi­
milar dados oferecidos na situação que se identifica, à represen­
tação mental conveniente no caso. É dessa assimilação, segundo se
viu, que resulta a identificação; e é essa mes1na assimilação, como
também verificamos, que condiciona o fato que designamos por apli­
cação da representação mental.
A única diferença que encontramos nos dois casos, é que na
"aplicação'' da representação mental a uma situação, tal como a
entendemos nas linhas acin1a, intervém um elemento dinâmico e ativo
que não consideramos na análise a que procedemos, da identifica-

( 65) Apenas a título de esclarecimento do assunto exposto, lembramos


o caso da Física subatômica em que o conceito de "partícula" se aplica a
situações naturais onde a noção de partícula se acha despida de parte consi­
derável da especificidade que lhe pertence quando referida às partículas ordi­
nárias do mundo macroscópico. Realmente, a partícula da Física subatômica
não conserva a maior parte das características e circunstâncias daquilo que
comumente entendemos por "'partícula". �sse fato, que cria os maiores em­
baraços para o realismo ingênuo do materialismo vulgar, e abre largas pers­
pectivas para a especulação idealista, é de fácil compreensão quando se con­
sidera que as "partículas" da Física subatômica não passam de um conceito,
e portanto representação mental da estrutura con1um em que se dispõem as
circunstâncias específicas de um grande número de situações concretas bem
distintas entre si no que respeita aquelas circunstâncias específicas e peculiares
a cada qual das mesmas situações.
NOTAS INTRODUTõRIAS A LôGIGA DIALllTIGA 153

'· Isto é, a representação sofre uma transformação e se amplia


·a dar conta adequada da nova sihmção que há de representar.
l é isso que se dá em todo processo de identificação sempre que

:ituação a ser identificada, embora conservando alguma analogia


n situações anteriormente experimentadas, diverge delas o sufi­
nte para não se ajustar inteiramente nas representações mentais
)-constituídas em função daquelas situações já experimentadas.
�im sendo, para se efetuar a identificação, há que eliminar aquela
1ergência, o que significa eliminar mais uma parcela da especifi­
lade dos dados que concorrem para a representação. Esta por-
1to se modifica e amplia, porque se faz menos específica, e é
is capaz ·de dar conta de uma situação mais genérica. Em outras
laVTas, representará uma estrutu1'a em que se enquadra maior nú­
ll"O de situações particulares. Assim na instância que referimos
ima, dos experimentos com chimpanzés, assistimos à elaboração de
1a nova representação mais ampla e geral, a partir de outra ante­
'r mais restrita e particularizada, pela, eliminação, nesta última,
uma parcela de sua especificidade. Da representação específica,
?ois restrita, de paus como instrumentos para alcançar o alimento,
ssou o chimpanzé para a representação mais ampla de um grande
mero de ohjetos que indiferentemente servem para o mesmo fim.
representação genérica e abstrata de ccinstrumento', já faz aí sen­
a sua presença.

É preciso atentar aqui para o fato que entre o que denomina­


JS "'estrutura" de uma sih1ação, e as circunstâncias particulares
Le compõem essa situação, não existe uma separação completa e
ferenciação absoluta. A estrutura diz respeito à disposição rela­
'ª daquelas circunstâncias, e essa "disposição" dependerá do modo
1m que as circunstnâcias componentes são consideradas. Isto é, do
au de especificidade que nelas se inclui. Conforme êsse grau, a
sposição será variável, e nessas condições, a mes1na situação pa­
irá comportar e efetivamente em regra comportará estrutoras clife­
ntes, cada qual ligada a uma determinada disposição. Em conse­
iência, e correspondentemente, a representação mental relativa ou
Jlicável a uma mesma situação poderá ser distinta, implicando essa
stinção uma diferença no grau de especificidade.
154 CAIO PRADO JúN!OR ,

Consideremos por exemplo, para ilustração do assunto, o caso


da paisagem glaciar de que nos ocupamos no capítulo anterior. Um
geógrafo, na sua qualidade de homem de ciência, desconsiderará a
maior parte dos caracteres específicos da situação dada naquela
paisagem. Assim a distribuição dos blocos de pedra, a posição e
tamanho da superfície dágua etc. O que lhe importa na paisagem
são Unicamente a configuração e disposição nela incluídas e que
lhe dão a caracterização de "paisagem glaciar''. Ou mais precisa­
mente, importarão ao geógrafo apenas os dados que a paisagen1
proporciona e que sejam assimiláveis à representação mental .que
êle tem de "paisagem glaciar''. Representação essa muito geral e
ampla, aplicável a uma infinidade de outras paisagens igualmente
de origem morfológica glaciar, mas tôdas elas tão diferentes entre
si nas suas particularidades.

Para o simples caminl1ante, pelo contrário, e para o próprio


geógrafo quando sua atenção, esforços e atividade estão dirigidos
principalmente para o fim de atravessar a paisagem que se apre­
senta, tôdas as particularidades da mesma paisagem, ou pelo menos
grande parte delas deverão ser levadas em conta, pois é na sua
base e na disposição na qual se encontram relativamente ao fato
«passagem por elas", que o caminhante orientará seus passos. Assim
a representação mental a que procurará assimilar a situação que
enfrenta, e conseqüentemente a «estrutura" que considerará na mes­
ma situação a fim de orientar seu comportamento de passante, serão
necessàriamente distintas daquelas que ocorrem no caso do geógrafo
que identifica cientificamente a mesma situação. E onde essencial­
mente reside a distinção, para o que nos interessa aqui, é no grau
de especificidade evidentemente muito menor da representação men­
tal do geógrafo em confronto com a do simples passante.

A origem remota dessa diferença está na amplitude muito maior


da base experimental sôbre que se assentam, ou em virtude da
qual se elaboram as representações mentais do geógrafo, que além
de sua expe1iência ordinária de indivíduo que há de necessària­
mente ter transitado por tantas situações, teve ainda a seu dispor
a ampla experiência de infinitas outras situações que lhe propor­
cionou sua aprendizagem científica. Ê no curso da experiência, em
função dela e do número e variedade de situações que ela propor-
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGICA DIALJ;;TJCA 155

cionou ao indivíduo pensante, que as representações mentais dêsse


indivíduo logram despojar-se em maior grau de especificidade, adqui­
rindo em conseqüência maior generalidade.
Generalidade de algumas representações, contudo, que não ex­
clui as anteriores menos gerais e específicas. O fato de o nosso
geógrafo ter alcançado uma representação ampla como aquela que
vimos, e que lhe permite identificar a paisagem considerada no ele­
vado plano de inespecificidade e generalidade que é o da ciência
geográfica, não exclui nêle a presença de outras representações da
mesma categoria que as do simples passante. Além de geógrafo
e homem de ciência, êle continua sendo também, 011 poderá even­
tualmente ser um simples passante. E nesse caso empregará e "apli­
cará" nas situações que enfrenta, outras representações que não as
do cientista. A "estrutura" da situação que o interessa não será a
considerada pela Geografia, e sim aquela que diz respeito simples­
mente à «passagem" pela mesma situação. Representações mentais
de todos ou de vários níveis de · especificidade e generalidade se
encontra1n, ou podem encontrar-se no n1esmo indivíduo. E con­
forme os momentos, os objetivos que êle visa ao considerar uma
situação qualquer, e em particular, conforme as necessidades de sua
ação, êle se utilizará, ao identificar aquela situação, umas ou ouh·as
das representações presentes em sua esfera mental.
As diferentes representações mentais do indivíduo pensante não
se acham todavia reunidas desconexamente, ou simplesmente justa­
postas l1mas às outras. Elas se ·dispõem entre si com um certo
vínculo orgânico que é dado pela própria natureza delas. As re­
presentações mentais constituem sistemas de relações, como temos
visto, e êsse relacionamento c·ompõe os quadros em que elas se orga­
nizam e dispõem com respeito mnas às outras. Elas forman1 assim
um conjunto internamente entrosado e sistematizado, embora o grau
dessa siste1natização seja inuito variado, conforme o indivíduo e
seu nível ·de cultura, bem como o setor do conhecimento em
causa (66.)
Mas seja como fôr, um nexo orgânico pelo menos se observa

( 66) :lr:sse assunto se acha desenvolvido em Caio Prado Júnior, Dialétíc<i


do Conhecimento, São Paulo, 1952, I, 102.
156 CAIO PRADO JúN!OR

necessàriamente nesse entrosamento das representações: é aquêle


que articula os diferentes planos representativos nos quais ocorre
progressiva perda de especificidade, e portanto maior generalidade.
�-?se nexo resulta da própria maneira com que se realiza aquela
progressão, que se faz, como tivemos ocasião de ver, pela conju­
gação e relacionamento de representações com maior teor de espe­
cificidade que perdem essa especificidade precisamente no cuTso
do relacionamento realizado. As representações mentais de nível
mais elevado de generalidade que assim .se constituem, se apresen­
tam por conseguinte e por fôrça de sua própria constituição, em
si�temas nos quais se inclue1n, e em que se dispõem relacionada­
rnente e pois organizada e sistematizadamente, as representações
anteribres que para ela concorreram. Observa-se assim que a pró­
pria elaboração das representações concorre para sua organização e
sistematização em conjunto. As representações de nível mais ele­
vado de generalidade compõem os quadros gerais em que se dis­
põem as representações de nível inferior. E isso de maneira tanto
mais sistematizada quanto mais elevado o nível atingido. E é dessa
generalidade crescente que se alimenta a elaboração do conheci­
mento, que não é, em cada indivíduo conhecedor, senão o entro­
samento em conjunto de suas representações mentais.

* * *

Podemos assim concluir que o processo do conhecimento se re­


sume, .no essencial, a dois atos que vêm afinal a dar no mesmo, ou
melh_or, que são contínuos um a outro. A saber, identificar, e dou­
tro lado elaborar representações mentais destinadas a servir na iden­
tificação, isto é, a se fazerem como que modelos predispostos a que
se assimilem as ''est1uturas" das eventuais situações que se apresen­
tam ao indivf.duo pensante, seja em sua experiência concreta, seja
naquela que lhe chega através da expressão verbal. Realmente,
é pela identificação, como vimos, que se constituem as representa­
ções n1entais, desenvolvendo-se a partir das preexistentes e pela
ampliação e generalização progressiva destas últimas. Pode-se assim
dizer que o conhecimento consiste essencialmente na faculdade de
identificar; sendo que essa faculdade se constihli e desenvolve no
próprio ato de seu exercício.
12. - LINGUAGEM: FORMA DO PENSAMENTO
E CONHECIMENTO

Consideramos o conl1ecimento, nos capítulos precedentes, em


seu aspecto subjetivo, isto é, o conhecimento tal como se apresenta
na esfera mental de cada indivíduo em particular. Transformando­
-se contudo em linguagem, ou antes, tornando-se suscetíveis de ex­
pressão em linguage1n, as representações mentais que em conjunto
constituem o conhecimento do indivíduo, poderão b·ansmitir-se enb·e
os homens. E em conseqüência o conhecimento que as represen­
tações contêm, se exterioriza, d�ixando com isso de constituir un1
fato exclusivamente subjetivo, para se fazer també1n objetivo, isto
é, um fato social independente do psiquismo de cada indivíduo em
particular. Mas objetivizando-se na linguagem, o conhecimento,
agora expresso ou expres.sível verbalmente, seja sob forma oral, seja
escrita, vai em ação de retôrno participar da atividade mental . do
indivíduo pensante, condicionando co1n isso a aquisição, elaboração,
e o dinamismo em geral de sua representação mental. E essa parti­
cipação se realiza de maneira tão íntima e indissolúvel, que se faz
afinal impossível a separação entre pensamento - no qual o conhe­
cimento se traduz e representa - e a linguagem que registra o
conl1ecimento.

A impossibilidade da separação entre pensamento e linguagem


(salvo para os efeitos da análise a que vimos procedendo) não exclui
todavia a distinção dêles. Essa distinção se comprova, experimen­
talmente, com o fato que observamos processos pensantes típicos,
embora rudimentares, em crianças que ainda não adquiriram o uso
da linguagem; e n1esmo nos animais, que não dispõem de nada
que mesmo remotamente se aparente àquilo que entendemos prO�
priamente por linguagem. É aliás nesses níveis pré-lingüísticos que
se encontra um dos mais fecundos campos de observação dos pro-
158 CAIO PRADO JúNIOR

cessas pensantes - e isso precisamente por se apresentare1n aí em


sua pureza originária e sem as modificações que nêles introduz a
linguagem.
A distinção entre o pensamento e a linguagem pode muito bem
ser verificada no fato concreto e diretamente observável do pensa­
mento (e da representação mental ou conceituação que o compõe)
ao se exprimir ou transpor na fornia verbal, corno por exemplo na
exposição oral ou escrita de um assunto qualquer; e tanto melhor
quanto o assunto fôr mais complexo. Quantas vêzes se tem a idéia
(que é pensamento ou conceito), mas falta a palavra apropriada
para enunciá-la. Sabe1nos muito bem o que quere1nos dizer, mas os
têrrnos próprios para exprimi-lo nos escapam. Essa experiência,
que é de todos nós, e que observamos· tão freqüentemente em ora­
dores que embora senhores do assunto de que tratam, hesitam e ga­
guejam, é uma circunstância flagrante do hiato que ocorre entre
pensamento e linguagem.
Tais fatos, bem como outros semelhantes e tão fàcihnente obser­
váveis em nossa experiência corrente, mostram a distinção (distinção
que todavia não quer dizer, m1ti.to pelo conh·ário, independência ou
separação), entre a linguagem e o pensamento, pois evidenciam a
ocorrência, em nossa atividade mental, de idéias ou pensamento
desacompanhados das respectivas expressões verbais convenientes.
Pelo menos momentâneamente. É nisso aliás que se inspira a
organização dos dicionários analógicos, que derivam daí sua prin­
cipal •utilidade, pois van1os buscar nêles precisamente as expressões
verbais capazes de traduzirem adequadamente as idéias que temos
em mente.
Das mesmas observações se pode também concluir que a lin­
guagem constitui assim como um receptáculo predisposto, em que
o pensamento procura se vazar a fim de adquirir forma expressível,
isto é, con1unicável e capaz de despertar em outros indivíduos pro­
cessos mentais semelhantes àqueles que a idéia que se comunica, con­
figurou no indivíduo pensante. É isso que fundamenta a necessi­
dade que te1nos de bem conhecer a língua que utilizamos em nosso
intercurso social, aparelhando-nos assim para traduzir nela e co1n
ela o pensamento que desejamos exprimir e transmitir. Encontra-
1nos tan1bé1n aí a mola n1estra da evolução semântica, isto é, do
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALllTICA 159

sentido das palavras e das formas verbais em geral. Essa evolução


resulta do esfôrço de adaptação e adequação da linguagem ao pen­
samento e conceituação que se desenvolvem e b·ansforrnam em fun­
ção da experiência e conhecimento crescentes dos indivíduos que
empregam a linguagem, e precisam nela ajusta� aquela sua con­
ceituação em evolução.

Mas se a linguagem se fo1ma e dispõe para exprimir o pensa­


mento, ela também, em sentido conh·ário, retroage sôbre o pensa­
mento. A linguagem é mais que simples instrumento de expressão
do pensamento; e embora tenha sua 01igem nessa função, a ultra­
passa de muito. Corno forma Sensível que é, registrando-se por
conseguinte no psiquismo humano como imagem sensível, a lingua­
gcn1 contribui poderosamente para fixar o pensamento: dando-]he
fo1ma sensível, grava-o acentuadamente na memória. Registra as­
sim a conceituação de que o pensamento se compõe, facilitando,
e mesmo a rigor, na maior parte dos casos, tornando possível a evo­
cação dêle e a reprodução do processo que nêle se contém. (67)
Simultâneamente, a linguagem estabiliza o pensamento e o disci­
plina e torna preciso, eliminando-lhe as flutuações e o dinamismo
de outra maneira incontrolável. Sem entrar aqui nas circunstâncias
psico-fisiol6gicas dêsse fato (ligado sem dúvida à natureza sensível
da forma verbal), o certo é que êle pode ser observado muito bem
por contraste, quando comparamos o de.scontrôle e a divagação da
atividade pensante quando deixada a si própria, e sua firmeza e
precisão quando convenientemente balizada e bitolada pela expressão
lingüística. Aliás mesmo naquela divagação, as formas verbais assi­
nalam pontos de apoio em que o pensamento como que se sustenta
no curso de seu desenvolvimento. (68) É fato de observação corrente
que quando uma idéia que temos em mente não nos parece bem

( 67) É o que já observara Hobbes: ..Um nome, escreve êle, é uma palavra
livrc1ncnte escolhida como uma marca que pode suscitar em nosso espírito
um pensamento semelhante a um que tivemos anteriormente . . ." Computatio
sive Logica, cap. II.
( 68) É muito provável que mais que mn apoio, a forma verbal constitui
um estímulo sensível dos processos pensantes, estímulo êsse que na falta
de outros, como sensações e imagens sensíveis, é indispensável ao progresso
do pensamento.
160 CAIO PRADO JúNIOR

clara, uma for1nulação verbal que nos ocorre sUbitamente ou que


nos é sugerida, apresenta-se n1uitas vêzes, e desde logo, como uma
revelação que torna a nossa idéia ainda imprecisa, perfeitamente
clara e definida.
É ce1to que con1 essa estabilização e precisão, o pensamento,
quando verbahnente formalizado, muitas vêzes se deforma em maior
ou menor grau, o que se observa no fato que freqüentemente, quan­
do se trata de assunto de certa complexidade, ou quando a pessoa
que se exprime não tem habilidade no manejo da linguagem, as
formulações enunciadas deixam de traduzir fielmente o que se tem
em mente. A formalização verbal, por sua próp1ia natureza, enri­
jece o pensamento que deve exprimir, e por isso o deforma. Essa
deformação produzida pela linguagem chega em suas conseqüên­
cias extremas e n1ais graves a quase eliminar o pensa1nento, como
se dá naquilo que vulgarmente se conhece por verbali&mo.
A fixação e estabilização do pensamento e conceituação pela
linguagem são determinadas sobretudo pelo fato (que analisaremos
melhor no próximo capítulo) que nela se substitui o processo pro­
priamente do pensamento, o seu n1ovinlento e dinamismo, por uma
síntese dêle, co1no que a projeção d e tal inovimento nmn único
plano. A linguagem apresenta o conceito na sua unidade e con­
junto, dando uma condenação do processo de que o conceito se
constitui. A Tazão disso se encontra em que a expressão verbal dá
e1n primeiro e destacado lugar, sCnnente a identidade do conceito,
o s.eu mon1ento final em que o ciclo do pensamento se encerra, e
integra com isso o sistema daquele conceito e o relacionamento que
nêle se contém (69.)
Para avaliar o que tal faculdade da linguagem representa no
funcionamento da atividade pensante, faculdade essa de que deri­
vam tanto os caracteres e conseqüências de ordem positiva, como
as negativas da forn1alização verbal do pensamento, considere-se por
exemplo o caso de um conceito complexo corno o traduzido pela
expressão "sociedade humana", conceito êsse em que se reúne, num
conjunto sistematizado e unitário, uma infinidade de elementos os
mais variados - condensando por conseguinte as inúmeras opera-

( 69 ) Ver cap. 10, pág. 136.


NOTAS INTRODUTÓRIAS À LóGICA DIALllTICA 161

ções do pensamento que configuraram aquêle conjunto. E tudo


isso é dado pela expressão "sociedade humana", que se poderá in­
cluir, no curso da atividade mental, como mn dado unitário e ele­
mentar. Pensar-se-á e se falará em "sociedade humana" como se
fôsse uma entidade simples e imediatamente dada. Avalie-se a sim­
plificação que isso traz para a condução do pensamento.
Sem a linguagem, isso seria evidentemente impraticável: a idéia
ou conceito de "sociedade humana", para ser evocada, exigiria a
rnprodução de tôda a imensa e complexa atividade mental e con­
ceituação através de que se constituí aquêle conceito, e que êle
implica. Encontra-se aí por certo a razão imediata por que o pen­
samento dos animais, mesmo dos superiores ·de maior inteligência,
é incapaz de apreender e fixar a representação mental de situações
além de um nível muito elementar de complexidade, embora até êsse
nível êle se comporte exatamente como o dos homens. É que falta
aos animais êste poderoso fixador e sucedâneo da representação men­
tal de tais situações que é a expressão verbal.
A importância da linguagem no desenvolvimento e na condução
da atividade pensante é assim considerável. Há porém mais. Aquela
faculdade ·de fixação do pensamento, bem como as conseqüências
que daí derivam, vão grandemente -contribuir para a organização,
estruturação e por conseguinte disciplinamento da atividade concep­
tual. A observação da lingüística histórica evidencia essa ação da
linguagem sôbre o pensamento de cada época ou civilização. A
evolução da criança nos mostra a mesma coisa, isto é, como na
medida em que a criança se desenvolve, o emprêgo da linguagem
e o progresso de seus conhecimentos lingüísticos vai atuando sôbre
a organização do seu pensamento, sôbre sua maneira de pensar. Ê
finalmente da fácil verificação em nossa experiência corrente, co1no
o emprêgo da linguagem retroage sôbre o pensamento que ela ex­
prime, organizando êsse pensamento e o estruturando conveniente­
mente para dar conta e apreender o objeto de que se ocupa. Assim
na exposição de um assunto, sobretudo quando êsse assunto é de
ceita complexidade, pode-se notar como a medida que a exposição
se desenvolve, o assunto tratado vai assumindo formas insuspeitadas
e configurando-se de maneira original. Isso é efeito sobretudo do
162 CAIO PRADO JúNIOR

pensamento que se organiza e estrutura em função das formas Iin­


güísticas que estão sendo empregadas (70).
Em suma, a observação da linguagem nas suas relações com
0 pensamento que exprime, no_s mostra que essa expressão tem o
efeito, numa ação de retôrno, de contribuir para a organização e
estruturação do pr6prio expressado, isto é, do pensamento. E para
concluirmos essa análise da pa1ticipação direta e "interna" da lin­
guagem na atividade pensante, lembremos que é pela estabilização,
fixação e organização do pensamento - que são função em grande
parte, segnndo acabamos de ver, da linguagem -, que se configura
o corpo do conhecimento de que todos somos portadores; conhe­
cimento êsse que é fn1to de uma permanente acumulação que seria
in1possível se1n aq·uela fixação e ürganização ,de nossos processos
pensantes e conceptuais. A maior parte de nossos conhecimentos
nos provêm através da linguagem; e mesmo aquêles conhecimentos
que nos são proporcionados pela nossa experiência direta, pessoal
e exclusiva, são em regra condicionados pelo lastro de conhecimentos
anteriores derivados de ensinamentos que nos chegam por via da
linguagem oral ou escrita. O pensamento portanto, que sempre e
necessàriamente se alimenta de conhecimentos preexistentes, e se
·desenvolve na base dêles, sofrerá a conformação que lhe :transmite
êsse conhecimento que nos chego11 verbalmente formalizado.

Não é assim possível separar, na atividade mental, o pensamento


e a linguagem, apesar daquilo que essencialmente os distingue. Am­
bos, os fatos evoluem conjuntamente e mais ou menos confundidos.
A elaboração do conhecünento, que se traduz numa elaboração con­
ceptual, é acompanhada da elaboração das formas verbais capazes
d e traduzir e exprhnir a conceituação elaborada e a atividade pen­
sante que isso implica. Mas simultâneamente, essas formas verbais,
em ação de retôrno, imprimem no mesmo pensamento suas feições

( 70) Quen1 conhece mais de um idioma com stúiciente desembaraço


para "pensar" num e noutro, poderá observar que seu pensamento evolui
diferentemente em ambos os casos. Aliás a solidariedade entre a maneira de
pensar e as fonnas idiomáticas de sua expressão, é sobejamente conhecida e
assinalada pelçi. generalidade dos lingüistas; não sendo fácil distinguir nela
o que representa influência do pensan1ento sôbre a linguagem, ou inversamente
da linguage1n sôbre o pensamento.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGICA DIAL1':TICA 163

próprias. Isto é, o balizam e estruturam com suas for-mas. Se a


linguagem reflete o dinamismo do pensamento, êste último parti­
cipa também da estrutura formal peculiar da expressão verbal em
que o pensamento se vaza.

1'sse processo conjunto da elaboração conceptual e da lingua­


gem se faz de ordinário espontâneamente e como função natural do
psiquismo humano. A linguagem e suas formas se vão elaborando
em correspondência imediata e espontânea do desenvolvimento do
conhecimento do indivíduo pensante, e sem consciência da parte
dêle. Observa-se contudo - e êsse fato lança muita luz sôbre as
relações entre o pensamento e a linguagem - que eventualmente
se introduz nesse processo de elaboração da linguagem e de suas
formas, em maior ou menor grau, a atividade mental consciente e
deliberada, e um fator intencional daquele indivíduo. Isto é, a
linguagem se faz objeto, por parte do indivíduo pensante, de obser­
vação e análise propositadas; - e mesmo en1 casos extremos, de pes­
quisa muito ativa e com o objetivo mais ou menos claramente defi­
nido e expresso, de alcançar com isso um mell1or inanejo da lin­
guagem empregada, e a realização mais perfeita, com isso, da fun­
ção que a linguage1n e suas .forn1as dese1npenha1n, e que ven1 a ser
a expressão do pensamento e o seu ordenamento e disciplinamento .
.í!.:sse é um fato histórico muito conhecido, e a Gramática, em seguida
a Lógica formal, como disciplinas ou setores do conhecimento, têm
nêle sua origem e razão de ser.

Encontramo-lo já na Filosofia grega. Os sofistas, através de um


sutil manejo da linguagem no curso dos debates (fato êsse que
injustamente lhes vale11 a má fan1a que acompanhará seu nome pelos
séculos a fora), e embora sem muita consciência do que realizavam,
lograram observar e aos poucos desvendar as formas gramaticais
e lógicas em que se estruturava a linguagem e com que se exprimia
a atividade pensante e conceptual. Un1 dêles, Protágoras, será a11tor
da primeira Gramática. Sócrates e Platão, continuadores dos so­
fistas (embora também seus adversários, inas por outros inativos
de ordem antes política), já serão mais conscientes da tarefa que
realizavam. Sobretudo Platão, que na parte verdadeiramente fe­
cunda de sua . obra, apresenta tuna análise inin11ciosa e extre1nan1ente
perspicaz das formas lógicas da linguagem - como em particular
164 CAIO PRADO JÚNIOR

nos seus diálogos Teaetetus e Sofista. Seu discípulo Aristóteles


coroará afinal êsse longo processo de progressiva revelação da es­
trntura l6gica incluída na linguagem, estrutura esta através da qual
o pensamento e con11ecimento verbalmente expressos se organizam,
ordenam e disciplinam. É isso que realizará Aristóteles com seu
sistema de Lógica, onde já aparecem claramente e pela primeira
vez, as linhas mestras e fundamentais da estrutura lingüística, de
que se podem derivar, e Aristóteles derivou efetivamente, as nor�
mas e um método geral bem definido para o ordenamento do co­
nhecimento e conceituação, e para a condução do pensamento. (71)
Acontece todavia que como paralelamente à especulação filo­
sófica dos gregos não se desenvolveu uma elaboração científica su­
ficientemente ativa e siste1natizada, faltou àqueles pensadores o con­
traste necessário para a tarefa 16gica que estavam realizando. í':Ies
eram ao mesmo tempo ho1nens de ciência - de u1na ciência muito
rudimentar, bem entendido, à qual faltavam ainda diretrizes e mé­
todo seguro de investigação e elaboração -, e lógicos que mais
por instinto genial que por outro motivo qualquer, procuravam ela­
borar aquêle método cuja falta êles pressentiam e111 seu trabal110
científico. Encontra-se i1essa circunstância um dos principais mo­
tivos da confusão imanente na obra de Aristóteles, co1no já em
Platão, e em seguida nos filósofos que pelos séculos a fora se inspi­
raram essencialmente na tradição grega (e são todos da nossa civi­
lização e cultura até os tempos modernos), confusão essa entre o
ob/eto dos conhecimentos de que se ocupavam e para os quais davam
as normas gerais e fundamentais de organização e estruturação, e
doutro lado essas próprias norrnas cujo sisten1a deveria constituir
a Lógica. Em outras palavras, fazendo Lógica, julgaram muitas
vêzes fazer Ciência natural; e lidando com conceitos e com a lin­
guagem em que .êsses conceitos se exprimem, pensavam lidar con1
as feições da Natureza e as situações concretas do inundo exterior
representadas mentalmente naqueles conceitos e formas verbais.

Coube aos Iogicistas modernos, e particularmente àqueles que


formaram o denominado Círculo de Viena (Positivismo 16gico) cha-

( 71 ) :f:sse fato histórico se encontra analisado em Caio Prado Júnior,


Dialética do Conhecimento, I, 162.
NOTAS INTRODUTõRIAS A LÕGICA DIALÉTICA 165

mar a atenção para êste fato de a maior parte da Filosofia, e sobre­


tudo os tópicos que com legitimidade lhe pertencem, não terem por
objeto e conteúdo verdadeiro e real senão aquelas formas verbais.
Isto é, a Filosofia não se ocupava e não se podia efetivamente ocupar
senão com tais formas. Ela era apenas uma L6gica, e não como
pensavam os filósofos, também uma Ontologia. Tinha-se assim per­
dido, em conseqüência dessa confusão e da decorrente falta de
objetivos claros, a maior parte do esfôrço especulativo despendido
pelos filósofos durante séculos; esfôrço êsse que de outra maneira
teria revertido plena1nente à elaboração fecunda e construtiva da
Lógica. Essa elaboração ficou conseqüentemente restrita a pouco
mais que uma hermenêutica e desenvolvimento - mas desenvolvi­
mento no mesmo plano - da rudimentar Lógica aristotélica.

Contudo, uma vez desfeita a confusão pelos logicistas moder­


nos, caíram êstes últimos no extremo oposto, e restringiram a aná­
lise da estrutura da linguageµi, isto é, de suas formas lógicas, à
própria linguagem em si e à fo1"ma em que ela se apresenta. Isto é,
desconsideraram, ou procuram desconsiderar a linguagem na função
que desempenl1a e que é a expressão do pensamento e conhecimento.
Interessa-os apenas, em suma, a fornia verbal pul'a, e não o pensa­
mento e conhecimento que essa forma contém, e que ela tem por
finalidade única exprimir.

Essa posição do problema lógico será talvez procedente, e as­


sim mesmo apenas num plano restrito e de interêsse prático ime­
diatista, no que se refere a um corpo dado de conhecimentos j á
formalmente expressos e verbalmente registrados, e que s e trata
Unicamente de formalizar de manira mais precisa e rigorosa. É
aliás nesse plano, e sOmente nêle, que os logicistas de q11e nos
ocupamos têm sido fecundos: é de um setor restrito do conheci­
mento, o da Física, e exclusivamente em sua etapa atual e mon1en­
tânea, que êles se ocupam de maneira adequada. Mas uma tal
restrição do can1po da investigação e elaboração lógicas não tem
justificativa quando o que se quer e pretende - e querem e pre­
tendem U1clusive os logicistas modernos (e nisso com tôda razão)
- é uma verdadeira ciência lógica, uma disciplina científica que
tenha caráter geral.
166 CAIO PRADO JúNIOR

Para realizar êsse objetivo, não se pode ficar na pura forma,


porque a forma não é independente de seu conteúdo de Conheci­
mento. Se em cada nível e setor do Conhecimento a forma e estru­
tura lógicas expressíveis ·dêsse Conhecimento são deter1nináveis, e
por isso suscetíveis de um tratamento em si por si, o mesmo não
ocone quando se trata da Lógica como disciplina geral, que deve
cobrir a generalidade espacial e temporal do Conhecimento. Na
medida em que o Conhecimento se desenvolve - desenvolvimento
êsse irregular e assimétrico, o que determina níveis diferentes de
desenvolvimento em cada setor particular -, se transpõe em. con­
seqüência para níveis qualitativamente distintos dos anteriores, a
estrutura lógico-formal da linguagem que o exprime se deverá mo­
dificar, e ·de fato se inodifica. O ele1nento imutável nesse processo
- imutabilidade relativa, e dentro do previsível e na hip6tese que
temos por enquanto de admitir da imutabilidade da natureza hu-
1nana -, é Unicamente a função orgânica do pensamento e o modo
de ser do seu dinamismo. É a ela portanto que se deverá referir,
em últin1a instância, o problema lógico.
Este e os demais pontos de que generalizadamente e em sín­
tese nos ocupamos no presente capítulo, serão desenvolvidos e por­
menorizados em continuação nos capítulos que seguem, onde entra­
remos na análise da forma verbal e do seu condicionamento pela
atividade pensante. Em outras palavras, vamos tratar das formas
da expressão verbal, e em particular de suas formas lógicas, repor­
tando essa nossa análise aos processos pensantes anteriormente con­
siderados.
13. - CORRESPONDJ!:NCIA ENTRE A ATIVIDADE DO
PENSAMENTO E A ESTRUTURA DA LINGUAGEM (I)

O processo em que se centraliza e donde parte a atividade


pensante, é como vimos a identificação. É êsse processo, por co11-
seguinte, que essenciahnente condiciona a eshutura da linguagen1
e a natureza de suas formas. A começar pelo vocábulo, que de­
signa sempre tuna "identidade", isto é, um conceito co1n que se
traduz na representação mental do indivíduo pensante, um deter1ni­
-nado objeto do pensamento em contraste com os demais. Já nos
ocupamos em capítulo anterior ( cap. 10) da identidade. Trata-se do
fato mental resultante do processo de identificação (que é um pro­
cesso de relacionamento) no têrmo do qual se configura a repre­
sentação mental da situação exterior ao pensamento e que constitui
o objeto dêsse pensamento. Situação essa que assim se caracteriza
e particulariza no conhecimento do indivíduo pensante, e se dis­
tingue nêle das demais situações. Isto é, conceptualmente se dis­
crimina e identifica.
A essa identidade ou representação mental de uma situação iden­
tificada, se associa ordinàriamente um vocábulo que constituirá a
expressão verbal de tal representação; e que reportado à situação
considerada, passa a designá-la, fazendo-se em conseqüência o que
se entende por denominação ou nome dessa situação. Segundo vi­
mos (cap. 10), da operação de relacionamento aplicada a uma si­
tuação exterior que é objeto de consideração do indivíduo pensante,
resulta um sistema conceptual de relações, isto é, uma represen­
tação mental que se exprime por um vocábulo que constituirá o
nome daquela sihiação.
Todos os vocábulos - salvo apenas algumas partículas de fun­
ção puramente morfológica ou 16gica (72) - são nomes designa-

72) Assim as conjunções, que não têm sentido próprio, e servem apenas
como articulação das proposições. Excluem-se também naturahnente as excla-
168 CA!O PRADO JúNIOR

dores d e situações ou feições exteriores ao pensamento, ou tidas


como tal. Isso é bastante claro, e se enquadra nas noções grama­
ticais e lógicas consagradas, no que se refere à generalidade dos
vocábulos, com exclusão possivelmente apenas das preposições, que
exprimen1 diretamente relações, e não têm por isso, de acôrdo com
aquelas noções consagradas, um objeto específico exterior ao pen­
samento a que se aplicar. A discussão a fundo dêsse ponto de­
mandaria a consideração particularizada das diferentes preposições,
o que dispersaria excessivamente, e sem interê.sse essencial, a nossa
exposição. Observe-se apenas que qualquer que seja o emprêgo das
preposições, elas comportam sempre um "sentido" que pode ser
reportado a situações exteriores ao pensamento, uma vez que indi­
cam circunstâncias de lugar e tempo dos objetos designados nas
palavras que as mesmas preposições relacionam. Concorrem pois
para essa designação, e são assim também designadoras de situações
exteriores ao pensamento. Teremos aliás ocasião, logo adiante, de
incidentemente considerar o caso particular de uma preposição, o
que servirá de ilustração do que afirmamos.

O vocábulo (com as restrições acima) desempenha assim uma


dupla função: de um lado êle constitui expressão de uma repre­
sentação mental, e pois do sistema conceptual incluído nessa repre­
sentação e que a compõe. Douh·o lado, constitui o nome de uma
situação ou feição natural exterior ao pensamento e traduzida con­
ceptualmente naquela representação. Como nome, o vocábulo serve
pa�a assinalar e particularizar a representação mental que exprime,
e distingui-la enh·e as demais representações, e com elas a con­
trastar. E por extensão ·dessa função, o nome constitui uma iden­
tificação do objeto do pensamento a que se aplica e que designa,
distinguindo-o e o discriminando entre os demais e possíveis obje­
tos do pensamento.

Dessa dupla função do vocábulo, deriva também um duplo "sen­


tido" que o vocábulo encerra e exprime. Entendemos por "senti.dó'
ele um vocábulo a referência que êle ·desperta na consciência de
que1n o considera - que o ouve pronun·ciado, que o lê escrito, que

n1ações ( interjeições ) que denotam estados emocionais, e não exprime1n refe�


rência a situações exteriores.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGIGA DIALÉTICA 169

o profere ou evoca mentalmente -. Como norne, o vocábulo te1n


-um sentido tão sàmente discriminatório, isto é, êle serve apenas
para distinguir o objeto do pensamento que designa, dos demais obje­
tos. Doutro lado, como expressão de representação mental e do
relacionamento que essa representação inclui, o vocábulo traduz um
sentido muito mais amplo e profundo que envolve aquêle relacio­
namento e a êle refere a consciência do indivíduo pensante ao qual
o vocábulo se apresenta.
Ilustremos essa distinção, considerando o vocábulo ARVORE.
Como nome, êsse vocábulo, assinalando e particularizando a repre­
sentação mental de um determinado objeto do pensamento - re­
presentação mental essa que se poderá propor e ser evocada sob
forma por exemplo de imagem visual ou outra, ou de tuna sucessão
de imagens, etc. -, designará aquêle objeto específico do pensa­
mento. E com isso o vocábulo ARVORE, tal como um rótulo dis­
tintivo, servirá para marcar e discriminar conceptualmente o objeto
do pensamento que designa, de outros objetos quaisquer como se­
jam mesas, cadeiras . . ., ou mais pràxima1nente, arbustos, plantas
rasteiras etc. O vocábulo ARVORE servirá para exprimir o fato
pensante que se trata no caso da representação mental do objeto
"árvore", e não de outro qualquer. É êsse e sõmente êsse o "sentido"
que o vocábulo ARVORE no caso exprime.
Mas como expressão de sistema conceptual incluído numa re­
presentação mental, o vocábulo ARVORE servirá também de refe­
rência a êsse sistema e às relações que o compõem e constitueni.
Exprimirá êsse sistema e essas relações, envolvendo com isso a Ie­
presentação mental das operações de relacionamento efetuadas no
curso do reconhecimento e identificação passados do objeto do pen­
samento agora nêle traduzidos verbalmente. O que quer dizer, entre
outras, uma das seguintes alternativas, ou várias delas simultânea­
mente: 1) o objeto árvore como disposição figurativa de elementos
numa certa forma visual; 2) o mesmo objeto como relacionado com
outros objetos de que decorre sua qualidade de organismo vivente;
3) corno elemento de sistemas relacionais tais co1no aquêles que de­
signan1os por Botânica, Arquitetura paisagística, Agronomia, Eco­
nomia Rural, etc . . . O conceito expresso pelo vocábulo ARVORE
se articula e entrosa por vias mais ou menos complexas com todo
170 CAIO PRADO júNIOR

nosso conhecimento. Na realidade, é um aspecto específico e par­


ticularizado de tôda sistemática conceptual do indivíduo pensante,
um ''ponto de vista" ou ângulo particular e1n que essa sistemática
é visualizada, embora centralizando-se num ponto mais ou menos
preciso que é o d a representação mental específica do objeto árvore.
Em suma, ao contrário do que ocorre con1 o "'sentido" puramente
discriminatório do vocábulo na sua função de nome, e que referimos
acima, êste segundo sentido de que estamos agora h·atando, dá o
relacionamento da representação mental a que se refere, e exprime
com essa representação a disposição dela no conjunto da conceitua­
ção e con.hecimento do indivíduo pensante.
Note-se que essa distinção do sentido expresso no vocábulo não
diz respeito senão à função eventual que o vocábulo desempenha
em circunstâncias diferentes. O vocábulo não tem duas naturezas
distintas, nem se trata mesmo no caso de "sentidos" pràpriamente
apartados· entre si e contrastando-se 111ôtuamente. An1bos se ligan1
e penetra1n reclprocarnente, ou antes se prolongam um a o-utro. l!::
no seu en1prêgo que o vocábulo se apresentará, conforme as cir­
cunstâncias, sob u1n ou ouh·o aspecto; ou melhor, com acenhiação
maior de u1n ou outro.
Podemos verificá-lo na observação atenta do emprêgo da lin­
guagem. Na generalidade e mesmo quase totalidade dos casos, os
vocábulos utilizados na elocução verbal - oral ou escrita -, be1n
corno na linguagem interior, não se apresentam senão na função ou
com • o sentido simplesmente discriminativo. O que se observa no
fato que o "sentido" de tais vocábulos é dado desde logo e sem
profundidade, isto é, sem que se ponha em jôgo nada de seu con­
tet'ido próprio. Quando entendemos uma frase qualquer que ouvi­
mos proferida, não pode haver dúvida que "compreendemos" os di­
ferentes vocábulos de que aquela frase se con1põe, e essa co1npreen­
são resulta naturalmente do "sentido" dos mesmos vocábulos. No
entretanto, êsse ..sentido" é extre1namente ·superficial, e mal é notado.
Ouve-se por exemplo afirmar que ..o capitalismo se acha em · crise".
É possível, conforme as circunstâncias do contexto geral em que a
afirmação é feita, que o vocábulo CAPITALISMO venha caITegado
de sentido profundo que se ramifica e insinua por largos setores da
conceituação e do conhecimento. O mesmo não se dirá contud,..
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LóGICA DIAL!tTICA 171

dos demais vocábulos empregados. Por o quê, exemplificando, se


fará notar a preposição EM, que no entretanto tem fo1malmente o
mesmo estatuto de outro vocábulo qualquer, e comporta também
um "sentido" que penetrado a fundo se revela extremamente com­
plexo? (73) E mesmo um vocábulo que no caso é mais significativo,
como o próprio verbo SE ACHA, o que das consideráveis e com­
plexas implicações conceptuais que nêle se incluem, e que se pro­
jetam no mais amplo e profundo plano filosófico, encontra-se em
jôgo? Evidentemente nada. A que título portanto êsses vocábulos
que passam por assim dizer despercebidos, figuram em nossa afir­
mação, e lhe são essenciais? A simples titulo discriminat6rio. Isto
é, êles têm a função de traduzir tipos de "situações exte1iores ao
pensamento e nêle representadas, que servem no caso para compor
e representar a situação geral que se pretende reproduzir e des­
crever na afirmação feita, em contraste com outras que comporiam
uma situação diferente que se trata precisamente de excluir. Assim
a preposição EM traduz a situação que se configura ordinàriamente
pela "disposição" de um estado, um atributo ou qualidade, com
respeito ao objeto qualificado, atribuído ou em tal estado - ferro
em brasa; árvore em flôres; estrada em rampa . . . -, em contraste
com outras "disposições" diferentes, como seja1n: de exclusão ou
não-atribuição, de exterioridade ou não-impregnação, etc., para não
falar senão na discriminação entre situações de contraste mais acen­
tuado.
:É isso que se passa quando o vocábulo é tomado no seu <"sen­
tido" puramente discriminatório: êle se liga direta e exclusivamente,
neste caso, ao objeto considerado, isto é, a uma determinada situação
com exclusão das demais. Aparece como simples nome de uma si­
tuação exterior ao pensamento; e o relacionamento implícito na re·

(73) A preposição EM exprhne, no caso em aprêço, uma circunstância


de estado, isto é, ela é atributiva do "estado crítico" ao capitalismo. Ora essa
função de «atribuição de estado" desempenhada pela preposição empregada,
sàmcnte se pode propor, e ser utilizada para expressão do pensamento, por
fôrça de uma complexa estrutura de relações conceptuais. É nessa estrutura
e através dela. que se configura o "sentido" representado pela preposição EM.
No entretanto, nada disso se propõe, como logo se vê, quando ela é enun­
ciada na afúmação que consideramos.
172 CAIO PRADO JúNIOR

presentação que êle exprime, é desconsiderado. O "sentido" do vo­


cábulo se reduzirá assim ao simples fato da denominação ou rotu­
lagem da situação, o que permite distinguil' essa situação e a dis­
criminar de outras possíveis.
É como nome, e sümente assim, que ordinàriamente se toma o
"sentido" do vocábulo. Decorrem daí grandes dificuldades para a
interpretação da natureza e função da expressão verbal. Assim,
como explicar a razão por que os vocábulos de uma língua qualquer
se acham todos interligados, dependendo o "sentido" de cada um
dêles dos demais, como se verifica no própria definição que objetiva
precisamente dar o "sentido" do vocábulo; definição essa que se
faz com outros vocábulos para os quais se apresentará a mesma
questão que vai assim dar num imenso mas nem por isso menos
fatal círculo vicioso? Não bastará evidentemente, como usualmente
se faz para contornar a dificuldade, responder que é pela elaboração
do conhecimento que os vocábulos representativos das diferentes si­
tuações se vão ligando e entrosando entre si. Isso porque essa li­
gação e entrosamento refletem situações exteriores ao pensamento
cujo '�conhecimento'' preexiste aos vocábulos, os quais são precisa­
mente c1·iados, ou têm o seu sentido anterior modificado, para da­
rem conta dessas situações. A lingüística histórica e a sem:lntica
em particular fazem isso bem claro.
Farta literatura, que já encontramos esboçada em Platão, tem
sido dedicada ao assnuto. Ogden e Richards a compendiaram num
livro. que se tornou clássico, mas não lhe acrescentaram nenhum
esclarecimento definitivo (74.) Colocada em seus devidos têrmos,
a questão se resolve sem maior dificuldade. O "sentido" do vocá­
bulo se encontra na representação mental que o vocábulo exprime.
Essa representação se compõe de um sistema relacional que se en­
trosa no conjunto da sistemática conceptual do indivíduo pensante,
sistemática essa que constitui o Conhecimento do mesmo indivíduo.
Cada vocábulo exprime pois uma parcela, ou antes um aspecto dessa
sistemática, e serve precisamente para distinguir e particularizar
êsse aspecto, contrastando e discriminando-o dos de1nais aspectos

(74) C. K. Ogden and I. A. Richards. The Meaning af Meaning. Tenth


édition. London, 1945.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIAL!l:TICA 173

possíveis que também se traduzem verbalmente por ouh·os tantos


vocábulos. Na medida em que os vocábulos realizam essa discri­
minação, êles funcionam como simples nomes, de situações ou ""es­
truturas·" objetivas e exteriores ao pensamento. E assim se apre­
sentam, fazendo-se cada qual, e exprimindo-o, um sistema relacional
particularista e unitàriamente totalizado, em que por efeito disso
o relacionamento não aparece desde logo, pe1manecendo oculto e
e1n estado Unicamente potencial.
Mas como aspecto que é de uma sistemlitica geral, a represen­
tação se articula e entrosa dentro dessa sistemática e com as demais
representações que compõem a mesma sistemática. Assim o vocá­
bulo que exprime verbalmente aquela representação mental, e que
de um lado, como acabamos de ver, traduz a sua particularidade e
discriminação no conjunto conceptual, doutro lado traduz ou é sus­
cetível de traduzir o seu relacionamento e entrosamento naquele ·con­
junto constituído de outras representações. E como tôdas essas re·
presentações também se exprimem por ouh·os tantos vocábulos, a
expressão verbal do relacionamento se fará com tais vocábulos esh·u­
turados formalmente de maneira a dar conta do mesmo relaciona­
mento e entrosamento. Essa forma verbal em que os vocábulos se
estruturam para exprimir o relacionamento incluso em cada repre­
sentação mental, é fundamentalmente a proposição.
Analisemos a proposição, com suas componentes essenciais que
são o sujeito e a ptedicação, a fim de compreendermos sua natureza
e função expressiva do relacionamento conceptual. Pora proceder­
mos a essa análise, distingamos inicialmente as duas categorias de
proposições que encontramos em tôdas as línguas, e que por isso
constituem um fato universal e fundamental da linguagem discursiva.
São essas categorias, como não se ignora, as proposições ve1'bais e
as substantivas, que ordinàriamente se costumam caracterizar como
indicando respectivamente "ação" e "estado" do sujeito. O que for­
malmente distiugue as últimas (substantivas) é o emprêgo da cópula
- o verbo "ser'', ou outra partícula que faz as vêzes da cópula (75.)

( 75) Em certas línguas, como no russo, não se emprega a cópula, e o


predicado é simplesmente aposto ao sujeito. Nesses casos, a proposição subs­
tantiva se apresenta em sua fonna pura, e é assim larga1nente empregada,
entre outros no S�n1ítico e no fino-úgrio. A distinção entre proposições ver-
174 CAIO PRADO JúNIOR

Vejan1os a natureza respectiva dessas duas categorias de propo­


sições. Na proposição substantiva, o sujeito exprime a identidade
do conceito. Nêle se exprime o objeto e revela o "assunto" (diga-
1nos assin1) do que se h·ata, entre outros quaisquer que pode1iam
ser tratados. O predicado exprime o sistema do mesmo conceito,
tal como êle é dado no sujeito. Em outras palavras, o predicado
exprime o entrosamento e relacionamento conceptual da identidade
expressa pelo sujeito, tal como ela é concebida quando o sujeito
é empregado e enunciado. N a proposição por exe1nplo: a árvore
é um grande vegetal, o predicado «grande vegetal" exprime o con­
teúdo da identidade expressa pelo sujeito, e sàmente êsse conteúdo
tal como ae é dado pelo sujeito. Isto é, "grande vegetal" exprime
o que o indivíduo pensante q11e emprega a proposição tem em mente
já quando enuncia o sujeito àrvore; e o predicado não acrescenta
nada a êsse sujeito, exprimindo e revelando apenas o sistema con­
ceptual incluso no conceito expresso por árvore. Trata-se de um
"sistema" porque estão em jôgo enh·osamento e relações entre con­
ceitos, a saber, as relações de "vegetal" com "grande''. O conceito
expresso no sujeito «árvore" se constih1i ou resulta do entrosamento

bais e substantivas é universal, co1no referin1os no texto, e se encontra en1


tôdas as línguas. A caracterização que delas se faz é todavia Unicamente
formal ( a cópula ou a ausência do verbo ), porque o outro critério geralmente
apresentado ( indicação respectivan1ente de "ação" ou "estado" ) é inteiramente
insuficiente, porque de fato tanto a "ação" pode ser concebida como "estado",
como yice-versa o "estado" como uma "ação'', sendo assin1 possível, a rigor,
interpretar qualquer proposição como indicando "ação" ou "estado", e não
:-;endo a preferência por uma ou outra interpretação senão uma questão de
concepção filosófica. Assim, segundo as concepções aristotélicas, tôdas as
proposições são redutíveis à forma substantiva, com a introdução da cópula
c a transformação do verbo indicador da ação numa indicação de estado;
como por exemplo na inodificação da proposição os pássaros voam, em os
pássaros são voadores, onde a ação de voar é reduzida a um "estado" dos
pássaros. A redução inversa também é possível, porque o "estado" pode
semÍ.Jr e ser concebido e interpretado co1no sin1ples momento de uma· ação
ou processo. No português, por exemplo, essa redução se poderia fazer -pela
substituição da cópula pelo verbo estar; redução essa sen1pre imanente na
generalidade das línguas e1n que há apenas uma única forn1a verbal para os
dois verbos ser e estar. Encontram-se aliás vestígios daquela concepção, in­
versa da de Aristóteles, de que tôdas as proposições são redutíveis à forma
verbal, em cortas línguas onde em lugar da cópula se e1nprega um verbo cujo
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGICA DIALÉTICA 175

e das relações do conceito de "vegetar' com o de ªgrande". E é


êsse sistema assim constituído que co1npõe, na proposição, o con­
teúdo e a identidade do conceito expresso no sujeito "árvore."
Na proposição verbal a sih1ação é outra, pois o predicado in­
dica a articulação e inclusão da iclentida·de expressa pelo sujeito num
sistema conceptual mais amplo que não se acha incluído naquela
identidade e.x.'Pressa pelo sujeito, e que se constitui pelo entrosamento
do sistema representado pela identidade do sujeito, com o sistema
representado pelo predicado. Na proposição os portugueses desco­
brirmn o Brasil, o sujeito "portuguêses" exprime uma certa identi­
dade à parte e independente do fato da descoberta do Brasil; iden­
tidade essa que é dada desde logo no ato de se enunciar a propo­
sição. Acrescentando-lhe o predicado "descobriram o Brasil", entro­
sa1nos conceptualmente aquela identidade e o sistema que contém
� sistema que vem a ser as relações de ordem geográfica, étnica,
política, etc. que estruh1ram e compõem o conceito expresso por
"porh1guêses" -, com os conceitos de "descoberta" e "Brasil"; ou
mais precisamente, co1n a conceituação expressa em conjtmto pelas
palavras "descobriram o Brasil."

sentido próprio é "crescer", "atunentar" ( exemplos em J. Vendryes, Language.


A linguisti'c int1'oduction to history. Tradução do francês por Raul Radin,
London, 1949, pág. 124). Esse assunto é dos mais controvertidos entre logi­
cistas e lingüistas e não pode haver entendimento porque a controvérsia envolve
concepções filosóficas implícitas n1as não declaradas e nem mesmo reconhe­
cidas. Estão nesse caso, em particular, as concepções relativas ao dualismo da
Natureza ( dualismo para os indivíduos pensantes que procuram interpretar a
Natureza) a que nos referhnos no primeiro capítulo dêste livro, e que ven1
.
a ser o da estabilidade e 1nutabilidade das feições do Universo A linguagem,
tal co1no se e:'itrutura e apresenta, reflete a maneira pela qual se harmonizou
ou procurou hannonizar êsse dualismo: coisas, entidades ou sêres em geral
( que seriam os elementos estáveis da Natureza) representados no sujeito das
proposições; cabendo ao verbo representar a ação dêsses sêres, isto é, o ele­
n1ento mutável. Não discutiremos aqui a impropriedade e oposição aos fatos
reais que se encontram implícitas en1 tal concepção. Mas ela vicia tôdas as
conh·ovérsias que ocorrem na matéria que aqui nos interessa; e nos limita­
remos por isso a observar que a distinção entre proposições substantivas e
verbais se encontra na circunstância que se trata de formas diferentes de
exprimir a conceituação cabível respectivamente num e noutro caso. É o que
se verá no texto.
176 CAIO PRADO JúNIOR

Insistamos no assunto. Na proposição substantiva, o predicado


constitui expressão e descrição da identidade do conceito expresso
pelo sujeito, isto é, do sistema dêsse conceito. Ocorre apenas lU11
único sistema conceptual que se apresenta desde o início con1 a sün­
ples elocução do mesmo conceito e que compõe a sua identidade.
A rigor, o predicado poderia ser dispensado do ponto do vista do
indivíduo que enuncia o sujeito, e que já tem em mente, ao enun­
ciá-lo, o conceito dêsse sujeito. Mas não do ponto de vista do indi­
víduo a quem o enunciador se dirige, uma vez que a simples enun­
ciação do sujeito não o informa do conteúdo que o enunciador lhe
está dando; e é necessário acrescentar o predicado que precisamente
fornecerá tal informação. Mas seja como fill', a identidade evocada
na proposição é sempre a mesma e uma só, seja expressa pelo su­
jeito, seja pelo predicado.

Diverso é o caso da proposição verbal, onde de fato são dois


os conceitos presentes, o do sujeito e o do predicado; conceitos êsses
que se entrosando um com o outro - a proposição verbal tem pre­
cisamente por finalidade exprimir êsse entrosamento - vão dar um
novo conceito mais amplo. Do entrosamento ou integração num
só, ·dos sistemas respectivos daqueles dois conceitos, resulta u1na nova
identidade. Assim em nosso exemplo da proposição verbal os por­
tuguêses descobriram o Brasil, o entrosamento dos conceitos expressos
respectivamente pelo sujeito e pelo predicado, vai dar um novo con­
ceito mais amplo cuja identidade é diferente da identidade expressa
por "portuguêses". A saber, a identidade que expressaríamos pela
proposição os portuguêses são os descobridores do Brasil. O sujeito
"portuguêses", neste último caso, não exprime o mesmo conceito que
o sujeito "portuguêses'' do primeiro, isto
é, da proposição os portu­
gutl,ses descobriram o Brasil. Na proporção os portugubes são os
descobridores do Brasil, resultante da proposição os portuguêses
descobriram o Brasil, e expressiva do novo conceito constituído por
esta última proposição, a identidade do sujeito inclui "portuguêses"
como "descohridores do Brasil". O que não se dá na proposição
os portuguêses descobriram o Brasil, onde se tratava apenas dos "por­
tuguêses" como uma certa nacionalidade; de um conceito que ainda
não incluía o "descobrimento do Brasil", o que lhe foi acrescentado
pelo predicado. Note-se que a nova identidade (poituguêses desco-
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALf:TICA 177

bridnres do Brasil) será eventualmente expressa pelo sujeito de no­


vas proposições verbais, como por exemplo "os portuguêses (tendo
descoberto o Brasil) colonizaram seu território". Aí o conceito ex­
presso pelo sujeito inclui o fato da descoberta.

Encontramos aqui um fato de grande importância que ordinària­


mente não é tomado em consideração por gramáticos e logicistas,
a saber, que a mesma expressão verbal pode traduzir e mesmo ge­
ralmente traduz, conforme as circunstâncias (como em particular o
contexto em que se enconb:a), conceitos diferentes. Em nossa ilus­
tração, o sujeito ''portuguêse.s" exprime conceitos diferentes nas duas
proposições que referimos: os poi·tuguJses descobriram o Brasil e
os portuguJses colonizaram o Brasil. Deriva dessa eventual ambi­
gilidade d o conceito expresso pelo sujeito, a finalidade e razão de
ser das proposições substantivas, cuja função, como se viu é de
descrever e exprimir a identidade do conceito, sem a alterar ou dela
derivar nova identidade, . como Qcorre com as proposições verbais.
Nestas últimas, que constituem o essencial da expressão conceptual,
passa-se da identidade expressa pelo sujeito, para uma nova iden­
tidade que embora incluindo a anterior, com ela não se confun­
de (76.) A proposição verbal nada exprime assim acêrca da iden­
tidade do sujeito, e a pressupõe como já dada na simples elocução
dêsse sujeito, Mas essa pressuposição e sua legitimidade se fundam
precisamente no fato de que o sujeito exprime realmente um con­
ceito; conceito êsse como outro qualquer, resultante de processo
anterior de integração de determinado sistema conceptual, Ora
aquilo que verbalmente exprime êsse sistema, e po1tanto o conteúdo
e razão de ser do conceito, é a proposição substantiva.

( 76) Essa inclusão, note-se be1n, não se faz por simples acrescentamento
e justaposição de um conceito a outro. Em nossa ilustração, o conceíto de
"descobrimento do Brasil" não se acrescenta simplesmente ao conceito de "por­
tuguêses como nacíonalidade, etnia, organização social, política, econômica
etc." E sim se entrosa unitàrian1ente nesta última para constituir um sistema
conceptual novo e original que inclui a representação n1ental da "interação
do fato da descoberta do Brasil co1n aquêles outros fatos da nacionalidade,
etnia, etc, dos portuguêses". Há ai mn novo fato e situação histórica que se
representa mentalmente no conceito expresso por portugu�ses descobridores
do Brasil.
178 CAIO PRADO JúNIOR

No emprêgo ordinário da linguagem, não há evidentemente ne­


cessidade de recorrer, a propósito de tôda expressão verbal à pro­
posição substa-ntiva que exprin1a o conceito ou «sentido" que lhe é
atiibuído pelo indivíduo que emprega tal expressão No decurso de
uma elocução verbal (ou registro escrito dela) o conceito expresso
encontra-se em geral predeterminado pelas circunstâncias em que
se dá a elocução seja pelo contexto geral (as proposições anterior­
mente proferidas), seja pela situação em ·que se encontram os indi­
víduos entre os quais se .transmite1n as expressões verbais conside­
radas. Freqüentemente todavia, torna-se necessário precisar o as­
sunto, e então a proposição substantiva se faz indispensável. Até
pa�a o próprio locutor ou escritor, e mesmo quando se trata apenas
de evocação mental e interior da conceih1ação (como no caso da re­
flexão), é muitas vêzes importante fixar e precisar com rigor o con­
ceito traduzido pela expressão empregada; e particularmente quan­
do se trata do sujeito ele uma proposição verbal. Sobretudo porque,
co1no tal proposição deve exprin1ir o entrosamento dos conceitos
expressos respectivamente pelo sujeito e pelo predicado, e êsse entro­
samento se faz através dos sistemas cnnceptuais respectivos, é im­
portante precisar bem o sistema incluído na identidade expressa pelo
sujeito. Por exemplo, retomando nossa ilustração anterior, para es­
truturarmos adequadamente os conceitos relativos à "colonização do
Brasil pelos porh1guêses", e traduzirmos êsses conceitos em propo­
sições verbais, pode ser muito ünportante precisar bem o conceito
de "portuguêses" aí empregado, como descobridores do Brasil, pois
é c ômo descobridores, e porque descobridores, que os portuguêses
se fizeram senhores e colonizadores do território brasileiro.
Já se terá observado que a proposição substantiva corresponde,
em linhas gerais, àquilo que a Lógica clássica entende por "defi­
nição''. Podemos adotar essa designação, que é consagrada, mas
i1otando bem as diferenças essenciais que há entre o ·definição tal
como a concebe a Lógica clássica, e a posição em que colocamos
aqui o assunto. A definição clássica tem como referência a coisa
011 objeto exterior ao pensamento a que ela se aplica. Para nós ela
se refere ao conceito, e exprime o sistema dêsse conceito (77). Além

( 77) Seria então o que a Lógica clássica entende, em contraste com a


definição real, por definição nominal. Tampouco, porque não se trata aqui
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALltTICA 179

disso, a Lógica clássica objetiva co1n a definição exprilnir a "essên­


cia" do definido, o que implica a concepção de definições absolutas
e definitivas. Para nós, pelo contrário, a "definição" que diz respeito
à Lógica e exprime adequadamente a atividade conceptual - e é
isso ql1e nos interessa e nos está ocupando - é Unicamente a even­
tual expressão de um sistema conceptual, considerado no momento
da elocução verbal que está traduzindo aquêle sistema. E aquela
expressão se faz pela proposição substantiva que assim toma feição
de uma "definição,"

Compreende-se agora a razão de ser e a significação da con­


versão da proposição verbal em. substantiva, assunto que tanto tem
preocupado a Lógica clássica e a Lingüística. Enquanto a propo­
sição verbal exprime o entrosamento de um conceito ou sistema con­
ceptual num sistema mais amplo, a conversão daquela proposição
de verbal em substantiva, exprimirá o novo sistema resultante do
entrosan1ento realizado; e co:µi isso, u1na nova identidade cuja ex­
pressão verbal irá eventualmente compor, na qualidade de sujeito,
urna outra proposição verbal; repetindo-se em seguida o ciclo. Note­
-se mais 11rna vez, que a expressão verbal empregada corno sujeito
da nova proposição, poderá ou não ser for1nalmente a mesma que
no caso da proposição anterior: em qualquer eventualidade, tratar­
-se-á de um novo conceito e identidade, e1nbora inclua o precedente.
Assim nas duas proposições verbais consecutivas que referimos acima
como exemplo - os portugui!ses descobriram e colonizaram o Bra­
sil -, o sujeito da segunda proposição não exprime o mesmo con­
ceito que o da primeira, embora a expressão verbal "portuguêses",
seja a mesma. Isso porque na primeira - os po1tuguêses desco­
bi'iram o Brasil - , o conceito expresso por "portuguêses" diz res­
peito (representa mentalmente) apenas a uma "nacionalidade"; en-

para nós da substituição de palavras de sentido obscuro ou desconhecido, por


outras claras e conhecidas, o que não tem outro valor que precisar e ajustar
convenções lingüísticas, ou explicar o uso de uma palavra a quem a desconhece,
o que também não passa de convencionalismo. Isso não interessa diretamente
à Lógica. A definição nominal tem interêsse não como "definição" (no sentido
clássico) mas como expressão da relação de equivalência entre os vocábulos,
relação de equivalência essa que configura a estrutura geral e fundamental
da linguagem. Veremos êsse assunto no próximo capítulo.
180 CAIO PRADO JúNIOR

quanto na segunda, o vocábulo "portuguêses" substitui a locução


descobridores do Brasil incluída na proposição substantiva (os portu­
gui3ses são os descobridores do Brasil) que resultaria da conversão
daquela primeira proposição verbal, e que exprime a identidade do
conceito traduzido verbalmente no sujeito da outra proposição ver­
bal: os portugui3ses colonizaram o Brasil. Em snma, no caso da elo­
cução ou registro escrito das proposições consecutivas: os po11uguê­
ses descobriram e colonizaram o Brasil, uma b·adução e expressão ver­
bal mais fiel e completa da conceituação ocorrente, seria a seguinte:
os portugiiêses descobriram o Brasil --+ os portuguêses são os des­
cobridores do Brasil __.,. os portugui3ses (descobridores do Brasil)
colonizaram o Brasil (78.)
O sujeito de uma proposição é assiin sempre uma resultante de
predicações, e representa a reunião e acumulação de predicações
anteriores configuradas com diferentes proposições verbais. Isso
se observa muito bem na linha geral de desenvolvimento de qual­
quer exposição de Conhecimento. Exposição essa que constitui
expressão exterior, vocal ou escrita, da conceituação, e serve assim
para retratá-Ia, proporcionando ao psicólogo uma perspectiva sôbre
ela. Numa exposição sistemática de conhecimentos, os su;eitos das
diferentes proposições que se sucedem são sempre constituídos de
predicações anteriores. Isto é, substituem essas predicações. Vamos
supor, para ilush·ar a questão, que se trata de exposição que se ini­
cia com uma proposição que dá a conceituação de "peixes". O
expositor começará, digamos, com a definição de peixes: animals
vertebrados, aquáticos, que t"espiram po1' guefras(19.) É dêsse con­
ceito assim "constituído" com tais predicações (animais) vertebrados,
aquáticos, respirando por guelras), predicações essas já anteriormente
estabelecidas, que partirá o nosso expositor. As proposições seguin-

( 78) Isso naturalmente no caso de pretendennos ligar, como realmente


é o caso, a colonização à descoberta.
( 79) Esta última predicação se apresenta sob fonna verbal. Mas como
sempre, acha-se nela implícita uma proposição substantiva, que seria no caso
os peixes são respiradores por guelras, o que se estillsticamente seria impróprio
dizer, exprime no entanto de maneira mais adequada o pensamento que está
por detrás da fonna verbal empregada, uma vez que não se cuida no caso
de "peixes" no ato ou fato de respirar, e sim como respiradores que são.
NOTAS INTRODUTóRIAS A LóGICA DIALltTICA 181

tes se referirão eventualmente à classificação dos peixes, se11s modos


de · vida, sua distribuição geográfica . . . Isso representará o entro­
samento do conceito de peixe inicialmente dado, _com outros tantos
conceitos, ou antes sistemas conceptuais que dizem respeito ( repre­
Bentam mentalmente) a circunstâncias e relações anatomo-fisiol6gi­
cas, biológicas, bio-geogrltficas, geo-morfol6gicas . . . E isso se fará
formalmente através de sucessões de proposições verbais que ex­
pressa ou implicitamente vão dando origem a novas proposições
substantivas e1n que se -descreverão e definirão conceitos represen­
tativos de novas relações configuradas naquelas proposições verbais.
Note-se que à inedida q·ue a exposição se desenvolve, o conceito
inicial referido acima, se foi modificando e ampliando. Já não se
tratará mais do simples conceito de peixe expresso pelas predicações
iniciais: animal, aquático, etc., mas dêsse 1nesmo conceito articulado
dentro de .sistemas progressivamente mais amplos. Em conseqüên­
cia, o sujeito das novas proposições será outro, ou serão outros.
·
Assim por exemplo, articulado e entrosado, sempre ah·avés de pro­
posições verbais, com a conceituação relativa a circunstâncias que
dizem respeito à composição físico-química dos tecidos do peixe,
bem como às atividades econômicas do homem, o primitivo conceito
de "pei'Ce: animal vertebrado, aquático, respirando por guerlas",
dará o novo conceito expresso pelo vocábulo PESCA. Vocábulo êsse
que figurará como sujeito de uma possível proposição substantiva
expressa ou implícita em que potencialmente se contêm tôdas as pre­
dicações configuradas nas proposições verbais anteriores que leva­
ram até o conceito de "pesca". E a mesma expressão verbal PESCA
figurará eventualmente em seguida, em proposições verbais que
objetivam exprimir o entrosamento do conceito de "pesca'', obtido
pelo modo acima, dentro de sistemas conceptuais ainda mais amplos
que abranjam, com aquêle conceito de "pesca", outros relativos por
exemplo a assuntos econômico-financeiros: compra e venda, co­
mércio . . .

Isso tudo é evidentemente muito esquemático, porque a lingua­


gem discursiva, corno forma de expressão conceptual, e mesmo ex­
cl11ídas suas variantes afetivas (isto é, que envolve1n, alé1n da con­
ceituação pràpriarnente acêrca das feições da Natureza, dos fatos,
das situações objetivas em geral e exteriores ao indivíduo que as
182 CAIO PRADO JúNIOR

emprega, também os estados psíquicos próprios daquele indivíduo,


seja quando êle conjentura, duvida, comanda, solicita, interroga, etc.),
mesmo assim a expressão lingüística é ordinàriamente muito 1nais
complexa. E não se ajusta mesmo sempre nas formas puras da Gra­
mática. O que ficou dito contudo, é o suficiente, parece-nos, como
linha geral para observar o essencial das formas através das quais
a linguagem traduz e exprime a conceib1ação e o pensamento. E
através da proposição verbal, alternando-se com a conversão dela em
proposição substantiva, que se desenrola a linguagem discursiva. E
isso reproduz (é êsse o ponto essencial a que queremos chegar) o
rihno que encontramos no processo de identificação em que alterna­
damente se .sucedem, como vimos, relaciona1nentos e identidades. Na
proposição verbal se exprime o relacionamento que vai dar na iden­
tidade expressa na proposição substantiva. É na proposição verbal
que se traduz a configuração e constituição, pelo relacionamento, da
identidade que será expressa na proposição substantiva.
A proposição verbal exprime assin1 o entrosamento em conjunto,
isto é, o relacionamento entre si das identidades anteriormente dadas
e expressas nos diferentes vocábulos que compõem o sujeito e o pre­
dicado da proposição. Dêsse relacionamento vai resultar uma nova
identidade mais ampla, isto é, constituída por mn sistema mais desen­
volvido de relações. Assim na proposição que consideramos acima,
os portugttêses descobdram o Brasil, as identidades particulares ex­
pressas respectivamente nos vocábulos PORTUGUESES, DESCO­
BRIRAM, BRASIL, entrosando-se e se relacionando no desenvolvi­
mento da proposição, vão dar numa nova identidade que é a dos
partuguêses descob1'idores do B1'asil, diferente, está visto, e mais
ampla que as identidades anteriormente expressas. Trata-se agora
dos "porh1guêses" não apenas como nacionalidade ( que é o caso de
"portuguêses" figurando no sujeito da proposição os portuguêses des­
cobriram o Brasil), mas de "portuguêses descobridores do Brasil".
Oh.serve-se como isso se a1nolda ao processo de identificação.
Aí também, segundo vimos, as identidades se constituem pelo con­
curso e ralacionamento de outras identidades anteriormente dadas.
A proposição verbal, portanto, exprime o processamento da identi­
ficação. Por seu lado, a proposição substantiva exprimirá o momento
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALJ':TICA 183

final e a conclusão daquele processamento, a saber, a identificação


realizada.

Em suma, o que a linguage1n discursiva essenciahnente traduz


e exprime, é o processo de identificação. Note-se todavia que essa
tradução e expressão se realiza de maneira peculiar e de certo
modo deformadora da naturalidade do processo. O essencial da
identificação reside no enh·osamento e relacionamento que nela se
realiza, como vimos, entre os dados da percepção sensível (no plano
da sensibilidade); e no plano propriamente conceptnal, enh·� os sis­
temas conceptuais; sistemas êsses que se revelam no "sentido" dos
conceitos nêles configurados. Vimos também que o relacionamento
se faz pela perda de especificidade d o "sentido" dos conceitos rela­
cionados. Isso é mesmo condição essencial do relacionamento, pois
é de tal circunstância q·ue a «relação" se constituí. Assim na iden­
tificação, as identidades originàrian1ente dadas, ao se relacionarem
no sistema conceptual inais amplo e1n que se configura a nova iden­
tidade, perdem sua especificidade. O que se revela na anulação de
seu "sentido" pr6prío e peculiar, que se vai confundir no "sentido"
da nova identidade.

Ora na estrutura formal ·da linguagem discm·siva, os vocábulos


conservam, pelo menos naquilo que os contrasta com os demais,
seu "sentido". Mantém sua particularidade e individualidade, e
portanto sua especificidade. É certo que isso constihli apenas u1na
primeira aparência (80), pois o "sentido" geral da expressão lingüís­
tica não se encontra nos vocábulos empregados em si e isolada-
1nente. Nem mesmo em outra qualquer forma verbal. Já trata1nos
dêsse assunto no capítulo 6. Assin1 mesmo contudo, o "sentido"
particular e específico traduzido pelos vocábulos em si, se marca
e destaca ·Suficientemente para fazer o relaciona1nento passar a um
s0gundo plano semidisfarçado, como acima já se notou (Cap. 6,
pág. 74.) O "sentido" profundo que a linguagem exprime, e que
são as relações de que a conceituação expressa se constitui, é assim
atribuída não a essas relações pràpríamente, e sim à disposição

(80) Seria preciso verificar até que ponto essa "aparél;ncia" é sàn1ente
para o espírito excessivamente analista do gra1nático, do lingüista, do Iogicista.
No emprêgo usual da linguagem, não ocorre isso.
184 CAIO PRADO JúNIOR

gramatical e fonnal em que a linguagem se exibe. Isto é, à simples


justaposição e disposição exterior das expressões verbais.
Essa deformação da natureza da conceituação, e em conseqüên­
cia do Conhecimento que se constitui da conceituação, têm os mais
graves efeitos, pois importa em projetar a forma verbal em que a
atividade pensante se traduz, nos fatos reais do pensamento e co­
nhecimento. O que dá na preenúnência concedida ao formalismo,
em prejuízo da realidade e naturalidade da função orgânica do
pensamento. Deriva daí que o pensamento e conhecimento dos ho­
mens, até hoje ainda, e apesar de todos os progressos culturais rea­
lizados, se acham profundamente impregnados daquele formalismo,
o que lhes embaraça consideràvehnente o desenvolvimento e pro­
gresso. É a( que a L6gica Dialética encontra sua principal tarefo,
a saber, o restabelecimento, na sua integridade, da naturalidade da
função pensante, conservando a justa correspondência entre o pen­
samento e sua for1na verbal, a fim de que esta última se mantenha
estritamente nos limites de sua função pr6pria de expressão do pen­
samento, e fixadora e disciplinadora dêle. E não de um substituto
que não é e não deve ser.
14. - CORRESPOND1'NCIA ENTRE A .ATIVIDADE DO
PENSAMENTO E A ESTRUTURA DA LINGUAGEM (Il)

A deformação para que chamamos a atenção no final do capí­


tulo anterior, tem sua origem em que na estrutura formal da lin­
guagem, as identidades se configuram direta e imediatamente a
partir das identidades componentes. Isto é, elas se justapõem umas
às outras, e se fazem assim função direta das ·demais, e não do seu
relacionamento. O que a linguagem vulgar (em contraste com outro
tipo de linguagem, que é em particular o da Matemática a que nos
referimos adiante) exprime ime0-iatarnente, são assim apenas as iden­
tidades. O relacionamento conceptual, que é o que compõe em pri­
meiro lugar, e essencialmente, a conceituação e o pensamento (e que
é por isso o que de fato dá o "sentido" da expressão lingüística,
«sentidd' êsse revelado no desenvolvimento dessa expressão, conforme
se viu no capítulo 6) se traduz na linguagem por uma organização
e estruturação próprias e implícitas no sistema geral dessa lingua­
gem, e que vamos em seguida analisar.

Note-se que essa organização e esh·uturação, como se verá, não


aparecem desde logo; e daí porque o relacionamento permanece
disfarçado. O que aliás constitui a razão imediata da deformação
referida no final do capítulo anterior; e faz muitas vêzes difícil
a compreensão do sentido de uma expressão verbal, que por falta
de estruturação aparente e que desde logo se exiba, tende a se diluir
em vocábulos isolados. l!:sse é um fato da experiência corrente de
qualquer um, e que se repete tôdas as vêzes que nos deparamos
com l1ma elocução verbal, seja oral, seja escrita, de assunto que
não nos é familiar e de natureza relativamente complexa. Ficamos
na compreensão isolada dos diferentes vocábulos que são emmcia­
dos, sem compreender o seu nexo que é o que dá o "sentido" da
elocução e que se encontra precisamente na estruturação implícita
186 CAIO PRADO JúNIOR

da expressão verbal, e nela disfarçada. O inesmo fato ainda se


comprova, por contraste, con1 o que se observa na linguagem mate­
mática, onde a expressão do relacionamento é direta e imediata,
e é dada numa organização e estmtura desde logo patentes. Tere­
mos ocasião, no final do presente capítulo, de proceder a essa aná­
lise comparativa entre a linguagem vulgar e a da Matemática.
O nosso objetivo, no presente capítulo, consistirá precisamente
em desvendar, pela análise da linguagem, a disfarçada estrutura e
organização que nela se escondem, e através de que se exp1'ime o
relacionamento conceptual. Observe-se inicialmente que essa estru­
tura em que se dispõe a linguagem vulgar, deve constituir, em face
do que já se viu anteriormente, llffi sistema geral em que os vocá­
bulos se articulam e entrosam de maneira a que através dessa arti­
culação e entrosamento, se expriina ou possa exprimir, no inanejo
da linguagem, o relacionamento das identidades conceptuais que os
mesmos vocábulos verbalmente traduzem. Tal sistema se funda por­
tanto nas relações mútuas enlTe os vocábulos. Ora o que f-unda-
1nentalmente caracteriza a natureza dos vocábulos de uma língua
qualquer, no que respeita a suas relações mútuas, é o fato de todos
êles serem suscetíveis de conversão de m1s em outros. Em outras
palavras, qualquer vocábulo pode sempre ser substituído por um
agrupamento ou con1binação de outros vocábulos, com o mesmo
valor que o vocábulo substituído (81.)
Essa eventual substituição se indica fonnahnente pela cópula;
tratando-se portanto no caso de proporções substantivas em que o
sujeito é o vocábulo substituendo, e o predicado, o vocábulo subs­
tituído. Mas como todo sujeito, segundo vimos no capítulo ante­
rior, é sempre resultante de uma acumulação ou reunião , de predi­
cações, teremos que o sistema que nos ocupa se reduz a uma orga­
nização de predicações. É nessa organização que se exibem as equi­
valências entre os vocábulos; e é nela, e através das mesmas equi­
valências, que os vocábulos se articulam entre si no sistema estru­
tural da linguagem que estamos analisando.

(81) Isso corresponde à noção de definição nominal (definitio qttid no­


mines da Escolástica), que vem a ser o conjunto de têrmos conhecidos cuja
combinação detem1ina o têrmo definido.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALltTICA 187

Em que consiste essa organização das predicações? Para veri­


ficá-lo, vamos supor que passamos e1n revista, usando para isso a
linguagem (uma vez que é essa linguagem que estamos observando),
todo o nosso conl1ecimento, o que quer dizer tôda a conceituação
e as predicações através de que, conforme se viu, a conceituação
se exprime. Observe-se que o que estaremos fazendo é exp,rimir
verbalmente a conceituação a fim de observar e analisar a sua ex­
pressão. Isso se realiza corrente1nente e inadvertidamente no curso
da aprendizagem e emprêgo da linguagem. Estaremos portanto re­
petindo aqui, de maneira condensada e abreviada, lIID processo longo
e laborioso que implica inclusive a elaboração e fomrnção da lin­
guagem.
Pràticamente, o nosso programa é realizável pela leitura e aná­
lise de um dicionário, onde encontramos o significado de todos os
vocábulos - isto é, as suas equivalências recíprocas -, e a expressão
verbal de tôdas as identida.des conceptuais, isto é, as suas desig­
nações ou no1nes. O que concluiríamos dessa observação da ex­
pressão verbal da conceituação ou conhecimento? Em primeiro lu­
gar, aquilo que referimos anteriormente, a saber, a formação dos
sujeitos das predicações pela reunião ou acurri-ulação dessas n1esmas
predicações. (Note-se que nos dicionários, os sujeitos figuram como
verbetes.) Observamos que cada sujeito faz as vêzes ou representa
várias predicações. Abro um dicionário ao acaso, e leio MORIN!,
pano branco e fino de algodão que se emprega para roupa branca.
Que significa isso? Que o vocábulo MORIM é formalmente equi­
valente ao agrupamento ou combinação dos vocábulos pano branco
e fino etc., que constituem várias predicações. E assim para todos
os vocábulos que figuram como verbetes do dicionário (82.)
Confrontando agora os g1upos de predicações que assim reu­
nidas e acumuladas vão formar os diferentes sujeitos (lembramos
mais uma vez que isso que estan1os fazendo corresponde a uma
reprodução condensada do processo de formação, aprendizagem e

(82) Na expressão do nosso conhecimento, cada sujeito empregado, ou


mais precisamente, cada vocábulo empregado como sujeito comporta sempre
predicações mais ou menos diferentes. Daí aliás a diferença entre dicionários
que procuram apresentar o que os seus autores julgam ser a predicação rr1édia
ou mais típica, para a generalidade dos empregos.
188 CAIO PRADO JONIOR

emprilgo da linguagem, tratando-se pois de um expediente natural


e espontàneo que por isso tanto inais se justifica e recomenda), obser­
va1nos, em grupos diferentes, as mesmas predicações. Assim por
exemplo� grande número de g1upos inclui entre outras a predicação
ani1nal. E considerando-se êsses grupos em que ocorre tal predi­
cação, veremos que muitos dêles, mas não todos, contêm entre outras
a predicação ave; e ainda que várias destas últhnas que incluem a
predicação ave, também incluem a predicação doniéstica . . .
Essa repetição de predicações, e a maneira como se repetem,
µos permite observar uma certa estrutura, ou várias estrutul'as para­
lelas, em que as predicações se distribuem por conjuntos que se
contêm uns aos outros, ou em que uns abrangem outros. Van1os

1
dar, a título de exemplificação, uma ·dessas estruturas:

de fôlhas
de madeira de taipa

{
j artificial de barro . . .
de sopapo
habitação de alvenaria
( humana)

{
caverna
natural árvore

Está aí uma classificação de predicações que realizei - como


qualquer um poderá fàcilmente realizar - sem preocupação alguma
com o sentido concreto dessas expressões apresentadas, e conside­
rando simplesmente e formalmente as predicações encontradas em
diciÔnário e outros textos onde se acha registrada a expressão ver­
bal do Conhecimento. Poderíamos repetir o procedimento com
outras predicações, usando sempre do mesmo critério de observação
objetiva, e sem 011tra preocupação que essa que nos orienta e que
é de nahrreza puramente !6gico-gramatical, da expressão verbal do
conhecimento e conceituação ali onde essa expressão pode ser encon­
trada, a saber, em textos científicos, em exposições didáticas de
professôres e conferencistas, em conversas onde os interlocutores
expõein seus conhecimentos . . . Verificaremos que sempre é pos­
sível estruturar as predicações de que necessàriamente se compõe
a expressão verbal da conceituação, nos moldes que acima empre­
gamos.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGICA DIALllTICA 189

Pode-se concluir .daí que é através dessa estrutura que encon­


tramos na linguagem, nesse sistema em que se organizam suas for­
mas, que o pensamento e o conhecimento se exprimem. A saber,
através da disposição das predicações, seja em grupos (dando com
isso os sujeitos que são os nom.es expressivos das identidades ), seja
em classes, em que as predicações se dístrib11em segundo suas coin­
cidências nos diferentes grupos. Logo veremos a função expressiva
própria dessas classes, isto é, qual o seu papel na expressão do
pensamento. Podemos representar isso mais concretamente, dizendo
q11e ao nos exprünirmos verbalmente, ou com mais precisão, ao dar
expressão verbal à nossa conceituação, ora "circunscrevemos" g1u­
pos de predicações (é o que fazemos quando enunciamos o sujeito
de nma proposição, bem como os diferentes nomes que compõem
a predicação, exprimindo com isso identidades), ora refe1imos êsses
grupos uns aos ouh·os. Realizaremos então uma classificação, e
estaremos exprimindo o relacipnamento das diferentes identidades
expressas pelos grupos de predicações entre si referidos (83.)
.l<:sses dois momentos da expressão lingüística se vão alternando
no curso da elocução verbal ou do seu registro escrito. E é essa
alternância autodinâmica (autodinâmica porque um momento deriva
necessà1iamente do outro para o fim de dar o "sentido'' que a ex­
pressão lingüística encerra e h·ansmite) que exprime o processo de
identificação, que é o essencial e fundamental, como já temos insis­
tido, dos processos pensantes. Identificação essa no curso da qual
alternadamente se sucedem o relacionamento e a integração dêsse
relacionamento em sistemas unitários constituintes de identidades
que se vão relacionar no ciclo subseqüente.
Note-se que voltamos com isso de certo modo, mas agora já
en1 nível superior e mais profundo, à sucessão de proposições ver­
bais e substantivas que descrevemos no capítulo anterior. É con1

(83) Grosso inodo, e sàmente como ilustração geral do assunto, pode­


ríamos dizer que os dicionários dão sobretudo o agrupamento das predicações.
Nos textos científicos, sobressai a sua classificação. Talvez auxilie o leitor
a observação de que há uma certa afinidade, longínqua embora, entre o que
entendemos aqui por agl'upamento e classificação, e aquilo que a Lógica for­
mal clássica entende respectivamente por detwtação e conotação.
190 CAIO PRADO JÚNIOR

a proposição substantiva que "circunscreve1nos" um grupo de pre­


dicações que reunimos sob a designação do que será prüpriamente
u1n nome, e que terá a função de sujeito de tuna eventual propo­
posição verbal; proposição verbal essa em cuja construção juntare-
1nos aquelas predicações agrupadas e implícitas no no1ne do sujei.to
às predicações implícitas nos nomes con1ponentes do predicado de
tal proposição verbal. Com essa junção formal exprimir-se-á a arti­
culação .da identidade expressa no sujeito, no sistema conceptual
expresso na predicação. Será contudo uma expressão como que in­
direta, realizada através do sistema de classes implícita na lingua­
gc1n; e que impo1ta na inclusão do sujeito, na estrutura ou nas
estruturas de classe representadas pelo predicado.
Essa inclusão, uma vez consumada, se exprimirá na propos1çao
subst:.intiva ein que se conve1te a proposição verbal considerada;
proposição substantiva essa que exprimirá a identificação realizada
e a nova identidade configurada, isto é, a identidade expressa pelo

sujeito, acrescida daquilo que lhe trouxe o relacionamento efetuado


e sua expressão na predicação. Essa nova identidade será assin1
constituída do siste1na conceptual em que, em conjunto e 11nità�
riamente, se relacionam os sistemas expressos respectivamente pelo
sujeito e pelo predicado da proposição considerada.
U1na ilustração, esquemática e1nbora, esclarecerá melhor o as­
sunto. Retornemos nossa proposição verbal os portiiguêses desco­
briram o Brasil, e vejamos o que ocorre quando a enunciamos. Isto
é, consideremos o que essa proposição exprime de conceituação e
__

pensamento, e como o exprime. O nome "porh1guêses" representa


um grupo de predicações ( . . . habitantes de um território situado
n<i extremidade sudoeste da Eurnpa . . . descendentes dos celtibe­
ros . . . organizados politicamente nu1n.a nionarquia . . . navegado­
res. . . co1lU31'ciantes . . . etc. etc.) que «circunscrevemos" no con­
junto de tôdas as predicações que constituem a expressão verbal
possível e eventual de nosso conhecimento e conceituação. <<Cir­
cunscrição" essa que visa exprünir uma parcela ou aspecto daquela
conceituação, e que configura uma certa identidade. Constih1Ímos
assin1 o sujeito da nossa proposição verbal que const1uirernos ajun­
tando aquêle nome-sujeito "porh1guêses" ao nome '"descobe1ta do
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALJ\:TICA 191

Brasil" (84) - nome êsse representativo de ouh·o grupo de predica­


ções que "circunscrevemos" ao enunciá-lo, e que seria1n entre outras:
revelação de algo desconhecido . . . território até uma certa época.
igna.rado dos eúropeus . . . "habitat" hoje de diferentes raças mes··
cku.ln.s . . . país de 8.500.000 km' . . . etc. Comporemos assim o pre­
dicado de nossa proposição verbal que ficará assim completa.

A junção efetuada (do sujeito e do predicado), o que se realiza


co1n a forma verbal descobriram o Brasil, exprimirá a articulação
conceptual da identidade expressa por "portuguêses", no sistema
expresso na predicação "descoberta do Brasil''. Isso se veTificará
na conversão da proposição verbal pro11osta, na proposição substan­
tiva correspondente: Os portuguJses são os descobridores do Bra­
sil (85), com a qual o nome "portuguêses", bem como o nome das
predicações implícitas en1 «portuguêses", se incluirão, entre outras,
nas classificações seguintes em que as predicações implícitas no
su;eito da proposição verbal proposta, são referidas às do predicado
da mesma proposição:

da América

da Austrália

do Brasil ( = portuguêses)

divulgação <le un1 segrêdo

{
II - revelação de ,. .,. . l científica
algo desconhecido
descoberta geo�l0.ó ·g,:i,�
.·0
a'
. de rotas tnarítitnas
'ui

J ::: ::::
g g i ca

l
de territ6rio :
Brasil
( = porh1guêses)

(84) Trata-se aí do non1e de uma ·identidade en1 que mentalmente se


representa o fato ou a situação histórico-geográfica de que tratamos. Identi­
tidade essa que também tem seu passado evolutivo conceptual e verbo-expres­
sivo, isto é, proposições verbais convertendo-se em proposições s11bstantivas,
dando predicações que agrupadas se representa1n por um nome . , .

(85) Poderia ser nesta outra: o Btasil é unia descoberta dos po1tuguêses,
que tem "sentido" nlgo diferente, isto é, cxprilne outra conceituaç�10. �.'las
. { terrestres { em rotas conhecidas {
192 CAIO PRADO JúNIOR

III - comerciantes América


inarítimos ein rotas desconhecidas • . . . . .

( descobridores) Brasil ( portuguêses)


=

, .
não-europeus

I
IV - descobertas de ,.

I I
navegadores rotas marltm1as Flór1'da
europeus . africanoslRio da Prata
terntonos americanos . . . . .
Brasil
.

asiáticos
( po1tuguêses)
=

. . . e assim uma infinidade de outras possíveis e eventuais classi­


ficações.
Essas classificações que apresentamos são certamente muito fa­
lhas, Falta-lhes sistematização suficiente, elas encerram ambigüi­
dades. Poderiam certa1nente ser inuito melhoradas co1n algu1n es­
fôrço de elaboração, Deixamo-las contudo assim mesmo, porque
para a generalidade dos homens e no plano do conhecimento vul­
gar, as classificações não são em regra de padrão superior. Somente
no que se refere ao conhecimento científico, elas são mais satisfa­
tórias. Mas nunca serão perfeitas. Issn porque não há sistema ne­
nhum de classificação capaz de realizar o enquadramento adequado
do pensamento, pela razão que a isso se opõe a própria natureza
da linguagem discursiva, O pensamento é relacional, isto é, se dis­
põe �u estrutura em relações que importam em conjuntos unitários
onde os elementos constituintes se desfazem e desaparecem para
dar lugar ao todo que constituíram. Precisamente o contrário do
que ocorre com as classes que funda1nentalmente est1utura1n a lin­
guagem vulgar, classes essas que são agrupamentos de elementos
simplesmente ajuntados e acrescentados uns aos outros, e conser-

não insistiremos nesses pormenores da expressão verbal, para que chanlamos


a atenção Unicamente a fim de mostrar que o simples formalismo não dá
conta adequada do pensamento que objetiva exprimir. Isto é, um procedi�
mento formalmente correto e perfeito, pode não ser adequado ao pensamento
e conceituaçã,o que entende exprimir.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 193

vando sua individualidade própria e especificidade. Provêm daí,


em última instância, as deformações que a expressão verbal do pcn­
san1ento tende a introduzir nesse pensamento, e a que já nos temos
referido.
O fato contudo é que bem ou mal, com maior ou menor ade­
quação, a linguagem exprime o pensamento. Isto é, reproduz o
processo de identificação que constitui o essencial e fundamental
da atividade pensante, traduzindo através de seu sistema estrutu­
rado em classes, o relacionamento conceptual de que se constitui
aquêle processo. Assim no nosso exemplo, a proposição os po1tu­
guêses descobriram o Brasil exprime o relacionamento do conjunto
dos sistemas conceptuais incluídos na identidade expressa por "por­
tuguêses", com os sistemas incluídos no predicado "descobriram o
Brasif', através de classificações do tipo que indicamos. Acham-se
implícitos no relacionamento assim expresso, e por isso nêle estrutt1�
rados, tôda a conceituação e pois conhecimentos relativos ao fato
da descoberta, seus antecedeÍ:ttes e conseqüentes, e que podemos
assim eventualmnte evocar a partir daquela proposição. A situa­
ção representada na mesma proposição se encontra perfeitamente
''identificada1', isto é, caracterizada e situada no conjunto do Co­
nhecimento. A partir dela, e na base da estrutura de classes con­
figurada pela maneira que vimos, torna-se possível ao pensamento
recorrer tôda aquela conceituação e conhecimento que dizem res­
peito à mesma situação.

• • •

Para tornar o assunto inais claro, contrastemos êsses procedi­


mentos do pensamento ao se exprimir na lingnagem vulgar, com
o que ocorre quando a expressão do pensamento e conhecimento
se faz em outra linguagem que é a da Matemática. O que distingue
e caracteriza o simbolismo matemático, é que êle se amolda de
111aneira inuito mais perfeita ao processo de relacionamento concep­
tual de que essencialmente se constitui a atividade pensante. Daí
seu rigor e precisão maiores, em contraste com a tendência que se
observa na linguagem vulgar, para o obscurecimento e deformação
daquele processo. Daí também o interêsse em compará-lo, na função
expressiva do pensamento, com a linguagem vulgar. Destaca-se as-
194 CAIO PRADO JúNIOR

sim melhor o peculiar da atividade pensante em suas relações com


a expressão verbal dessa mesma atividade.
Na linguagem vulgar o pensamento se exprime fundamental-
1nente, como vimos, através da forma proposicional em que o.s vocá­
bulos expressivos de íden,ticl.ades conceptuais se agrupam e inter­
ligam entre si para dar o 1'elaciona11iento. Direta1nente, por conse­
guinte, a forma proposicional exprime apenas as identidades. Pelo
contrário, a expressão do pensamento através do simbolismo mate­
mático, traduz desde logo e diretamente, o relacionamento, q·ue COIL5-
tih1i o essencial da atividade do pensamento. Em suma, na lingua­
gem vulgar, a expressão do relacionamento resulta das identidades,
enquanto no sin1bolismo matemático, é a expressão das identidades
que resulta da do relacionamento. É por isso que a expressão sim­
bólica empregada na Matemática se ajusta e acompanha melhor o
dinamismo da atividade pensante que como se viu progride do rela­
cionamento· para as identidades.
Não caberia aqui llffia análise extensiva da natureza do simbo­
lismo matemático. Limitar-nos-emos por isso à consideração e aná­
lise sumárias dos procedllnentos dêsse simbolismo na expressão do
fato central e essencial do pensamento que consiste na identificação,
isto é� na representação mental de uma situação exterior ao pen­
samento. Trata-se em suma de deter1ninar o modo pelo qual se
exprime na forma simbólica da �1ate1nática, aquela representação
1nental de uma situação concreta e exterior ao pensamento. Consi­
dere-si; o caso extremamente simples do movimento mecânico. A
expressão matemática geral da representação mental (conceito) dêsse
fato (que é, como se sabe, a equação F=mg) traduz desde logo e
diretamente o relacionamento conceptual de que resulta aquela re­
presentação. O que se conclui da circunstância que os diferentes
símbolos particulares que aparecem na equação, não têm na reali­
dade individualidade própria e autônoma, pois todos êles se pro­
põem em conjunto e em função uns dos outros e dêsse conjunto
que compõem. Ê verdade que podemos discernir na equação dife­
rentes identidades expressas respectivamente pelas letras F, m, g (86);

(86) O sinal = também constitui u1na identidade. :rvfas não discuti­


remo;; êsse caso que é mais complexo e não interessa diretamente o assunto
que tratamos.
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALÉTICA 195

letras essas que correspondem aos vocábulos da linguagen1 vulgar:


FôHÇA, MASSA, ACELEHAÇÃO. Essas identidades todavia não
se exprimem diretamente na equação referida, isto é, não se tradu­
zem pelos símbolos F, m, g, considerado e1n si e isoladamente. E
sim são função do conjunto expresso na equação que constitui um
todo indecomponível. A expressão das identidades resulta e de1iva
dêsse conjunto que constitui um sistema de relações, e que po1tanto
absorve integralmente as partes que o compõem e que nêle não
conservan1 11enl1uma autonomia e especificidade. Em su1na, o que
se exprime na equação é um relacionamento de que resultam as
identidades que nêle e por fôrça dêle se constituem. É isso que
a expressão simbólica da Matemática traduz e exprime, acompa­
nhando assim e reproduzindo com bastante fidelidade o processa-
111ento da atividade pensante, onde também, corno se viu, é do
relacionamento que resultam as identidades (87.)
Contraste-se isso, mais umá vez, com o que ocorre na expressão
verbal pela linguagem vulgar, onde, segundo se viu, são as iden­
tidades, expressas nos vocábulos, que se propõem e ex'Primen1 dire­
tamente e e1n primeiro lugar. É sômente e1n seguida, depois dessa
expressão das identidades, e por efeito da interligação dos vocábulos
na forma proporcional, que resulta a expressão do relacionamento.
E mesmo estruturados em conjunto na proposição e demais formas
verbais, os vocábulos conservam sua individualidade e "sentido"
próprio e exclusivo. São nomes, e continuam nomes, conservando
seu caráter ·discriminató1io e portanto sua autono1nia individual. O
que quer dizer que as identidades conceptuais que os vocábulos
respectivamente exprhnem, se mantêm, ou antes são aparentemente
mantidas separadas e só exteriormente ligadas entre si. Ligação
exterior que pela sua própria natmeza de "ligação exterior", é bem
distinta do relacionamento; mas apesar disso faz as vêzes dêsse rela­
cionan1ento.

(87) Essa interpretação da expressão n1ate1nática se confirn1a pela aná­


lise de sua origem e gênese histórica nesse n1esmo caso do inovimento inecâ­
nico, análise que tentamos na Di<llética do Conhécímento, 1, 250 e segs. Em­
bora visando outra finalidade, e apresentando-se por conseguinte de maneira
particular e específica, a análise referida esclarece, a nosso ver, o assunto.
196 CAIO PRADO JúNIOR

A situação é outra na expressão matemática, onde os simples


sinais gráficos (letras ou outros) que exprimem as identidades con­
ceptuais, nada traduzem por si sós, não são "nomes", e não existem
independentemente do conjunto ou conjuntos em que se integram
e donde retiram todo seu valor e "sentido" (88.) Por isso as iden­
tidades traduzidas verbalmente (aliás gràficamente) nas expressões
matemáticas, não são artificialmente isoladas umas das outras, como
se dá quando do emprêgo da expressão lingüística vulgar. E se
conservam incluídas no sistema relacional em que se integram e de
que provêm (89.)

(88) Daí provém a ilusão do formalisnio, que pretende não terem as


expressões matemáticas "sentido" algum, isto é, não serem expressão de fatos
pensantes - e muito menos de representações n1entais de fatos exteriores ao
pensamento -, substituindo por si sós e independentemente da esfera psicológica.
(89) Interessante observar que as conseqüências da deformação do pro­
cesso pensante produzidas pela expressão dêsse processo na linguagem vulgar,
têm sido transportadas para o caso da expressão mate1nática, pelas especulações
da chamada Filosofia Mate1nática. Essa Filosofia, inspirada e iludida pelo
que ocorre na linguagem vulgar, tem partido da presunção de que a e}>.'Pressão
matemática se constitui também de elementos autônon1os, ou aparentemente
autónomos. Essa fragmentação da expressão matemática, transportada para
o pensamento que exprime, dá origem à noção de "entes" matemáticos, isto
é, à noção de que a conceituação matemática (a conceituação expressa no
simbolismo n1atemático), se constitui, tal como ocorre na conceituação ordinà­
riamente expressa na linguagem vulgar, de conceitos punctiformes, de iden­
tidades separadas e isoladas entre si. 11fas no caso da Matemática, a falsidade
dessa noção aparece desde logo, e a desconsideração disso tem levado a
grandes dificuldades na interpretação da natureza da Matemática. Lembremos
Unicamente, a título de simples ilustração, o caso do número, conceito básico
da Matemática, e que em si e por si é incompreensível, pois sOmente se entende
quando reportado ao sistema concept1.1al da numeração a que pertence e de
que deriva.
15. - CONHECIMENTO E LINGUAGEM (I)

Vimos no capítulo anterior como a linguagem e suas formas


e estrutura se ajustam à atividade do pensamento que ·nelas se
exprime. Mas o pensamento é urna função orgânica (biológica)
através de que se elabora o Conhecimento, isto é, através de q11e
se elabora a representação n1en-tal da realidade exterior ao pensa­
mento. É assim o Conhecimento que se traduz na linguagem e nela
se registra. Em conseqüência, a linguagem que se constitui preci­
samente para êsse fim de exprimir o pensamento, e traduzir e re­
gistrar o seu conteúdo de Conhecimento-, se faz como que um recep­
táculo do Conhecimento já elaborado e que assim traduzido e re­
gistrado verbalmente, se conserva na b·adição oral e nos textos es­
critos das coletividades humanas que empregam aquela linguagem.
A linguagem, ou mais precisamente as formulações verbais consti-
. tuídas com o emprêgo dêste instrumento vocal e gráfico que é a
linguagem, formam assim um registro do Conhecimento que os ho­
mens transmitem entre si, e de geração em geração, orahnente ou
por escrito.
É certamente fundados nisso que os inodemos formalistas, como
em particular os positivistas lógicos ou logicalistas, afirmam, com
Tarski, que "tôda teoria científica [e dentro de suas concepções
poderiam dizer "todo Conhecimento"] é mn sistema de proposições
aceitas como verdadeiras" (90.) A parcela de verdade da afirmação
está em que realmente é sob urna forma verbal que o Conhecimento
se apresenta, conserva e n·ansmite - inciusive na aprendizagem.
Mas não se esgota, com isso, a natureza do Conhecimento, que por
se externar, não deixa por isso de conservar suas amarras e raízes
no pensamento dos indivíduos. Mais q11e isso, êle continua sendo

(90) Alfred Tarski. Introduction to Logic and to the Metho&Jlogy of


Dedu(.,'tive Sciences. Trad. de Olaf Helmer. New York, 1946, pág. 3.
198 CAIO PRADO JúNIOR

um fato essencialn1ente subjetivo que embora se externando e obje­


tivizando num registro fora do pensamento dos indivíduos, se man­
té1n Unicamente em função da esfera subjetiva dêsses indivíduos.
É na inedida em que o Conhecünento expresso e registrado na lin­
guagem é evocado e utilizado pelos indivíduos pensantes - e por­
tanto retorna à esfera subjetiva -, é nessa medida que o Conheci­
mento significa algu1na coisa. E isso é tanto mais necessá1io acen­
tuar, que aquela evocação, n1obilização e utilização do Conheci-
1nento, embora isso se faça a partir de seu registro lingüístico (isso
é, embora o indivíduo pensante se inspire, como efetivamente e1n
geral ocorre, na expressão verbal), aquela evocação se realiza atra­
vés e co1n atividade pensante que imprime nas formulações verbais
empregadas a verdadeira natureza e conteúdo do fato cognoscível.
Numa palavra, o Conhecimento, na sua realidade e integridade, não
é o mesmo que sua expressão verbal, e com ela não se confunde.
Um texto científico, por exemplo, não é en1 si e por si apenas, ciên­
cia ou conhecimento; e se torna tal únicamente na n1edida en1 que
suscita a atividade mental do indivíduo pensante e nela assim se
inclui. São pois baldados os esforços do formalismo absoluto que
pretende encontrar uma pura forma verbal que contenha ou repre­
sente integralmente o Conhecimento. As formulações verbais, para
se caracterizarem plenan1ente con10 conhechnento, hão de parti­
cipar antes dos processos do pen_samento para os quais concorrem
únicamente na qualidade de matéria-prima daquele Conhecimento;
e hão de ser nêles e por êles vivificados. Antes dessa vivificação,
con'stituirão Unicamente, e na melhor das hipóteses, ptuo verba­
lismo (91.)
Doutro lado, contudo, também é certo que enh·e a linguagem
e o Con-hecimento se estabelece uma íntin1a simbiose, de tal modo
que as feições peculiares à p1imeira - isto é, a sua maneira de ser
e de exprimir o pensamento e conhecimento - se imprime1n acen­
tuadamente no último. O Conhecünento, que é antes fato subjetivo
- pois é na esfera psíquica dos indivíduos pensantes que se ela­
bora -, e que se compõe da representação mental, ou antes, do
_conjunto das representações mentais daquele indivíduo, refletindo

(91) Rcton1aremos êsse assunto no capítulo seguinte.


NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALJ':TICA 199

no seu psiquismo a realidade objetiva, o Conhecllnento, ao se exte­


riorizar e objetivizar pela linguagem, é nas formas dela que se irá
vazar. e em conseqüência por elas se modelará. E é asshn q11e
em seguida o Conhecimento se apresentará ao mesmo indivíduo.
Em outras palavras, as representações mentais do indivíd110 pensante
se disporão e sistematizarão, e1n grande parte, obedecendo aos mol­
des da estrutura lingüística que constitui a forma delas. Decorre
daí que na evocação, exposição ou -utilização do Conhecimento, a
linguagem, suas formas e estmtura, operarão como canalizadores e
orientadores do pensamento. Ou mais precisamente, como canali­
zadores e orientadores do desfilar da representação mental de que
se compõe a atividade pensante que preside àquela exposição e uti­
lização. E é isso que condiciona o emprêgo da estrutura formal
da linguagem na condução do pensamento. De ordinário, o Conhe­
cimento se traduzirá mentalmente para o indivíduo pensante, e even­
tualmente será exteriorizado, através de formas verbais, isto é, por
uma sucessão de vocábulos estruturados en1 proposições que por
seu turno se sucedem e estrutul'am em conjuntos de proposições.
A sucessão de vocábulos se amoldará a formas que são as usúal­
mente consideradas na Gramática; e a sucessão de proposições se
ordenará segundo o que pràpriamente se entende por fonnas "16gi­
cas" - embora essa distinção entre formas gramaticais e lógicas
não possa ser tomada em sentido absoluto, pois ambas as categorias
se penetram mllb1amente e nos seus limites se confundem. Com o
emprêgo das formas gramaticais e lógicas, o indivíduo organizará
suas representações mentais - embora o faça no mais das vêzes,
e mesmo em regra, sem nenhuma consciência disso e propósito deli­
berado. Agirá por simples inspiração que lhe é transmitida na
aprendizagem ordinária que faz da linguagem, e no convívio social
onde a utiliza. E tendo assim organizado sua representação men­
tal, poderá em seguida evocá-la - isto é, rememorá-la e a trazer
à consc1encia, e eventualmente exteriorizá-la - de maneira arde�
nada, e por isso mais segura e precisa.
.
Realizando isso, o indivíduo pensante não estará de fato,. ,.,fi.(;.?>Y;,
;)
. ,.. ., • ."',"',,, ,

não reproduzindo o processo de ordenamento já efetuado :q9�;;�úrso.. �-\


da elaboração do Conhecimento de que êle é portadO\",r ÇlftÍêna­ �


mento êsse de que as formas e a estmtura liogüístic��'19JPOsam ,os
200 CAIO PRADO JúNIOR

contornos gerais. Encontramos aqui a questão capital do assunto


que ora nos ocupa, a saber, a ligação e ajustamento da forma
verbal (gramatical e lógica) ao conteúdo de Conhecimento (e por­
tanto de pensamento) que aquela forma encerra e que traduz e
exprime. Trata-se em suma de determinar a correspondência e de­
rivação do sistema formal analisado no capítulo anterior - e que é
o da linguagem vulgar a que nos limitaremos -, com respeito à
organização da conceituação tal como ela resulta do processo de
elaboração conceptual (que é outro nome para a elaboração do Co­
nhecimento) analisado no capítulo 11. Vimos aí que a conceituação
se organiza em função do relacionamento implícito no processo de
perda progressiva de especificidade das representações mentais que
se vão em conseqüência disso ampliando, generalizando e fazendo­
-se maís abstratas. Isto é, constih1indo-se de relações cada vez mais
"puras'', isto é, inespecíficas, que refletem no psiquismo do indi­
víduo pensante as "estruturas" cada vez mais amplas em que se
dispõem as situações e feições concretas do mundo exterior objeto
do pensamento e conhecimento.

O mais amplo e geral sistema de relações (porque de certo


modo centraliza os demais) em que se clispõe a representação men­
tal, é aquela que constitui o conceito de qualidade, que deriva
direta e imediatamente do processo de identificação, ou antes dos
repetidos processos de identificação realizados pelo indivíduo pen­
sante. Essa repetição e sucessão de identificações importam em
f
con rontos permanentes em que por efeito da perda progressiva de
especificidade das situações e feições mentahuente representadas
(perda que os confrontos proporcionam), estas situações e feições
se relacionam dando ao mesmo tempo que identidades conceptuais
'
(conceitos), o sistema ou sistemas em que essas identidades se dis­
põem em conjunto. Disposição essa na qual as identidades, discri-
1ninando-se entre si, se configuram em função umas das outras. Essa
configuração de umas identidades pelas outras, e pelo contraste entre
elas, constituirá a sua qualificação; e o sistema geral de qualificação
será o conceito de qualidade em que se organiza e estrutra o con­
junto das identidades referidas entre si, e umas às outras, na função
discriminatória de "'qualidades,"
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 201

Ilustremos isso com o conceito de "capitalismo". Nesse conceito


e seu implícito sisten1a de relações, representa-se mentalmente no
indivíduo pensante, uma certa situação ou fato histórico, em confronto
(que .implica tanto contraste como coincidência) com outras situa­
ções, como sejam o coletivismo primitivo, o agrarismo escravocrata
ou feudal, o artesanato, a economia mercantil, o socialismo, etc. A
"identidade" do capitalismo (isto é, o conceito de capitalismo tal
como resulta do processo de identificação e discriminação, entre
outros fatos hist6ricos, do fato histórico do capitalismo) envolve em
conseqüência daquele confronto realizado, outros conceitos que são
outras tantas "identidades em função de que a "identidade'' do capi­
talismo, contrastando e também coincidindo com outros fatos histó­
ricos, se configura. São essas outras "identidades", por exemplo,
a "exploração do trabalho", a "escravidão", a "servidão", o "salariato",
a "circulação monetária'', etc. A identidade do capitalismo se con­
figura portanto, isto é, se deter:mina e caracteriza, em função dessas
outras identidades que constituirão, nessa função, "qualidades" do
capitalismo, sejam positivas (presença), sejam negativas (ausência).
Numa palavra, constituirão qualificações do capitalismo.
Ê nessa função qualificativa que se organiza fundamentalmente
a conceituação; e é por ela, ou sobretudo por ela, que se estruturam
as formas lingüísticas. A forma p1'edicativa (predicações) conside­
rada no capítulo anterior, é como verbalmente se exprimem as qua­
lidades. E constituindo essa fotma, como se viu, o elemento essen­
cial das proposições, ela estabelece ao mesmo tempo o sistema for­
mal geral em que as proposições, articulando-se entre si, se dispõem
na expressão e registro do Conhecimento. "Disposição" esta que
corresponde àquilo que se entende por forma l6gica.
Vejamos esquemàticamenf'e como isso se realiza. Segundo se re­
feriu acima, a qualificação resulta do confronto de situações reali­
zado no cm·so da identificação; confronto êsse que envolve tanto
contrastes co1no coincidências. As identidades elaboradas na iden­
tificação, se configuram assim em "contraste'� ou "coincidência" entre
si. Contrastarão enh·e si, ou coincidirão umas com outras, em certos
aspectos, e não em outros. Estabelece-se em conseqüência, entre as
identidades, "compatibilidades" e "incompatibilidades". A compati­
bilidade entre duas ou mais identidades se exprimirá verbalmente
202 CAIO PRADO JúNIOR

pelo ag111_pamento, na proposição, das expressões verbais dessas iden­


tidades; expressões essas que vêm a ser os nonies a que as mesmas
identidades se acham respectivamente associadas(92.) O nome da
identidade que se trata de configurar en1 função de outras, consti­
tuirá o suieito da proposição. Aquelas outras constituirão o predicado.
Quanto à "incompatibilidade", ela se exprimirá pela inclusão, na
proposição assim formada, da partícula NÃO (ou equivalente). Em
outras palavras, a expressão verbal da compatibilidade e incompa­
tibilidade das identidades, se fará por proposições respectivamente
afirmativas e negativas.
Quanto ao sistema de conjunto das compatibilidades e incom­
patibilidades entre as identidades, êla se traduzirá na organização
das predicações que consideramos no capítulo anterior. Organiza­
ção essa que dará as narinas segundo as quais as predicações se
dispõem ou devem dispor na expressão do Conhecimento. O que
quer dizer, a maneira pela qual se formam as diferentes proposições
expressivas do conhecimento. Essas proposições, todavia, como logo
se vê, não independem urnas das outras. Mas pelo contrário, se
articulam dentro de um "siste1na", uma vez que exprimem, em con­
junto, um sistema conceptual que é o das identidades dispostas nn
estrutura qualificativa que analisamos. Que sistema de articulação
das proposições (sistema êsse que constitui fundamentalmente a
forma lógica da expressão verbal) é êsse? Pelo fato de as identidades
se copfigurarem em conjunto, relacionadas entre si e na dependência
umas das outras no sistema qualificativo, e e1n função de suas mú­
tuas compatibilidades e incompatibilidades, a expressão das mesmas
identidades, nessa função (o que constitui a natureza do sisten1n
qualificativo) há de refletir aquelas compatibilidades e incompatibi­
lidades. Isto é, há de dar conta adequada das inclusões e exclusões
recíprocas que compatibilidades e incompatibilidades determinam.
Ora essas inclusões e exclusões entre identidades se configuram na­
turahnente no sistema relacional de conjunto em que as identidades
se dispõem. Decorre daí que a expressão verbal das compatibilidades
e incompatibilidades, expressão essa que se realiza nas proposições,

{92) Co1n respeito a natureza do no1ne, veja-se cap. 13, pág. 167.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGIGA DIALJ\;T!CA 203

ta1nbé1n constitui um sistema de conjunto, isto é, as proposições se


articulam entre si de mna certa "forma''. É essa a forma lógica.
Não podemos aqui desenvolver êsse assunto que cabe prõpria­
mente e1n disciplina específica, a Lógica formal, consistente na pes­
quisa e revelação da forma lógica da linguagem. Assinalemos Uni­
camente seus lJrimeiros passos e linhas muito gerais, a fim de esta­
belecermos a ligação do que foi dito acima com a tarefa da Lógica
formal. Assim, o fato que as proposições se estruturam para expri­
mir as compatibilidades e incompatibilidades entre identidades (pela
maneira que se viu acima), e que a compatibilidade e incompatibi­
lidade são por natureza exclusivas uma da outra, êsse fato faz con1
que no conjunto das proposições não se possam exprimir, simultâ­
nea1nente, compatibilidades e incompatibilidades entre as mesmas
proposições. O que dito em outras palavras que decorrem do
que se viu a propósito da distinção entre proposições afirma­
tivas e negativas, vem a ser que urna propo;;ição nunca poderá
afirmar o que ouh·a nega. :Êsse' é o princípio, conhecido na Lógica
formal, da contradição. Doutro lado, exprimindo-se nas proposições
as identidades em função umas das 011h·as, e consistindo essa "fun­
ção" Unica1nentc na ocorrência de compatibilidades e incon1patibi­
li.dades que se exprimem respectiva1nente por proposições afinnati­
vas e negativas, só há duas alternativas possíveis para as proposições
ein que se exprimem ·as mesmas identidades: ou a afirmação ou a
negação. Decorre daí o princípio do terceiro excliddo.
É essencialmente na base dêsses princípios (93) que se estrutura
a forma lógica através da qual se articulam entre si as proposições
na expressão e registro vocal ou escrito do Conhecimento.
Que significação tem essa forma 16gica? Em outras palavras,
qual o papel dessa forma, e que função lhe cabe? Interpreta-se ordi­
nàriamente a lógica como "norn1a condutora do pensamento". Isto
é certo, mas com duas restrições. Em primeiro lugar, essa "norma"
não deve ser entendida co1no lei funcional e orgânica do pensa­
mento: ela constituí simples derivação 011 decorrência das formas
lingüísticas, isto é, da maneira peculiar com que as formas verbais,

(93) Aos quais se costuma acrescentar o da identldade (tiJda ptoposlçâo


equivale a ela própria) que não há interêsse especial em analisar aqui.
204 CAIO PRADO JúNIOR

e em especial as proposições, se interligam ou devem interligar-se


para dar a expressão do conhecimento. Doutro lado, a norma lógica
não é orientadora ou reguladora do pensamento em sua atividade
de .elaboração do Conhecimento; e sim Unicamente na evocação do
Conhedmento já elaborado e verbalmente expresso.
Vejamos êsse assunto com atenção. O Conhecimento elaborado
se apresenta em formulações verbais. Já nos referimos a isso, no­
tando que embora o Conhecimento não se constitua dessas formu­
lações (como parecem querer os formalistas), é assim que êle se apre­
senta, tanto no convívio social dos indivíduos pensantes, como tam­
bém, ordinàrian1ente, na própria esfera mental de cada um dêsscs
indivíduos em particular. Em outras palavras, o Conhecimento se
apresenta, socialmente, na sua fo1ma lingüística, isto é, em formu­
lações verbais. Isso é evidente, porque é sàmente sob essa forma
que o Conhecimento se pode comunicar e transmitir entre os indi­
víduos, e pois adquirir realidade social. Doutro lado, para o indi­
víduo em particular, e no curso de seu pensamento e evocação do
Conhecimento, mesmo sem exte1iorização, .êsse Conhecimento se
apresenta ordinàriamente, e pelo menos em grande parte, tambén1
em formulações verbais.
Nesse sentido, portanto, pode-se dizer que a linguagem, mais
precisamente as formulações verbais, e especificamente as proposi­
ções em que as formulações se organizam e dispõe1n, "contém" o
Conhecimento elaborado que a linguagem expressa, seja oral, seja
escrita, traduz. E contém porque o Conhecllnento, ou mais preci­
samente a conceituação q11e compõe o Conhecimento, à medida que
vai sendo elaborada pelos indivíduos pensantes, é ordinàriamente
por êles expressa e traduzida em linguagem. E assim se transmite
e conserva no convívio social.
Nessas condições, e uma vez que a lingt1agem, nas suas for­
mulações expressivas do Conhecimento elaborado, "contém" êsse Co­
nhecimento, isso quer dizer que o fato de ter presentes aquelas for-
1nulações, significa ''con11ecer". Ora essa "presença" quer dizer, para
o indivíduo pensante, rne1norização. ·E assim, ter presentes e memo­
rizadas as forn1ulações verbais relativas a uma disciplina ou setor
do Conhechnento, e que se acham regisb.·adas nos textos escritos e
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGIGA DIAL1':TICA 205

na tradição oral de uma comunidade humana, constitui para o indi­


víduo pensante, "conhecer" aquela disciplina ou setor.
Seria preciso aqui distinguir e excluir a memorização pura1nente
verbal que é a simples decoração e não constitui pràpriamente Co­
nhecimento. É difícil todavia traçar uma linha divisória nítida
entre as duas categorias de memorização que são contínuas uma à
outra, e se apresentam numa escala gradativa que vai desde aquela
simples decoração - como se dá no caso extremo e bem caracte­
rizado da memorização de uma texto em língua estranha e comple­
tamente ignorada -, até o mais legítimo dos conhecimentos que
seria por exemplo o do cientista que memoriza a formulação das
leis. que constituem sua ciência. Não entraremos aqui nesse assunto,
bem mais complexo do que à primeira vista parece, e contentar­
-nos-emos com o critério distiI1tivo ordinário e usual, fundado no
grau em que a formulação verbal memorizada suscita ou é capaz de
suscitar uma atividade mental ,mais intensa e profunda que a veri­
ficada com a simples evocação daquela formulação. Em outras pa­
lavras, a formulação verbal memorizada será tanto menos "deco­
ração pura", na medida em que o fato mental produzido pela for­
mulação, consistir em mais que essa simples formulação desacom­
panhada de quaisquer outras ocorrências mentais.
Verificamos anteriormente que na linguagem vulgar se expri­
mem expl\citamente só as identidades conceptuais (sob a forma de
seus respectivos nomes) referidas entre si ab·avés do sistema de qua­
lificações que se traduzem em predicações. Supre-se assim, na ex­
pressão -lingüística, o sistema de relacionamento conceptual em que
as identidades se integram e que as compõe. Resulta daí que na
evocação do Conhecimento traduzido em linguagem, o que se ma­
nifesta explicitamente são sàmente as identidades, dispensando-se
por conseguinte a atividade mental de relacionamento que importa­
ria, no caso de a ela se ter de recorrer em cada vocação do conhe­
cimento, na reprodução mental de tôda a atividade pensante que
presidiu à elaboração do mesmo Conhecimento.
Tornemos isso mais claro com uma ilustração. Considere-se
por exemplo a evocação do Conhecimento relativo ao fato econô­
mico da moeda. Formularíamos êsse Conhecimento, digamos, com
a seguinte proposição: Emp1'ega-se a moeda como instrumento de
206 CAIO PRADO JúNIOR

troca dos bens econôniicos. E essa simples formulação verbal, sem


n1ais nada, já traduzll·ia de maneira bastante clara - naturalmente
para um iniciado no assunto - un1a conceituação ou idéia a res­
peito do fato considerado. Atrás dessa simplicidade, contudo, se
abriga um vasto corpo de conhecimentos que representa1n o resul­
tado de longa e laboriosa atividade elaboradora do pensamento.
PTova está que o «sentido" da for1nulação e1npregada s6 é acessível,
desde logo, à compreensão de indivíduos que já contam com apre­
ciável bagagen1 cultural. Isto é, que percorreram, no dec11rso de
sua passada aprendizagem, um complexo processo de elaboração
conceptual. A cada uma das identidades expressas na formulação
citada, identidades essas traduzidas nos diferentes vocábulos que
aparecem na formulação ('empregar", "instrumento", "troca", etc.)
corresponde um considerável sistema conceptual que se entranha
e insinua co1n suas infinitas e complexas ra1nificações, por largos

setores do Conhecimento. O Conhecimento expresso em nossa for­


n1ulação envolve e implica, portanto, uma conceituação muito ampla
e um processo de elaboração ta1nbém considerável. A evocação
dêsse Conhecimento, por conseguinte, sem ser através da forma
sintética e simplificadora da linguagem, importaria na evocação de
tôda aquela conceituação com que se relaciona, o que exigiria a
reprodução do longo e complexo processo em que se elaborou. Coisa
evidentemente hnpraticável.
A expressão lingüística obvia a êsse obstáculo insuperável à
evôcação do Conl1ecimento. A sisten1ática conceptual se acha nela
traduzida pela simples expressão das identidades referidas urnas às
outras através do sistema qualificativo incluído na forma verbal. A
evocação do Conhecimento por intermédio de formulações verbais,
oferece asshn aquela sistemática, desde logo e numa forma con­
densada. O conhechnento memorizado com a linguagem (verbal­
mente memorizado) se reduz assim, naquilo que essencialmente im­
porta na maior parte dos casos de evocação de conhecimento, à
retenção dos nomes das identidades que se ligarão umas às outras
(dando com isso a reprodução verbal do sistema qualificativo) por
sin1ples associação mnemônica. E o processo de evocação daquele
Conhecimento - evocação essa que constituirá o que se entende
por "pensa1nento" - se fará por simples associação, e com o recurso
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 207

às ligações estabelecidas entre as identidades concephrnis no curso


da aprendizagem do indivíduo pensante e da elaboração de seus
conhecimentos. O mais pertence à esfera subliminar do indivíduo,
e nela se desenvolverá de maneira espontânea e à revelia da cons­
ciência.
A linguagem trará as.sim um considerável refôrço às associa­
ções conceptuais referidas no capítulo 9, pois as expressões verbais
representativas das identidades constituem por natureza imagens
sensíveis (auditivas ou visuais) que se gravam mais acentuadamente
na memória que os processos conceptuais; e se ligam e associan1
mnemônicamente de maneira mais sólida. É isso sem dúvida que
constitui um dos principais, se não o principal fator da estabilidade
e permanência do conhecimento na esfera mental dos indivíduos pen­
santes. Se o conhecimento estivesse na dependêncic'l exclusiva dos
complexos e sutis processos mentais de que fundamentalmente se
constitui, e fôsse assim privado de apoios sensíveis diretos, êle não
perd1rraria.
Mas seja como fôr, o certo é que a maior parte dos nossos

c nhecimentos se constitui, ou melhor, se apóia em formulações
verbais memorizadas. Não é contudo só dessas formulações verbais
que se compõe o Conhecimento verbalmente memorizado. Se assim
não fôsse, o conhecimento implicaria, ·na medida em que se apóia na
linguagem e dela depende, a memorização de tôdas as formulações
verbais expressivas do mesmo Conhecimento. Para se conhecer uma
disciplina qualquer, seria necessário ter de cor, e sempre de ma­
neira prontamente evocável, tôdas as proposições relativas a essa
disciplina. O que é evidentemente impossível alén1 de limites muito
restritos. Intervém aí a forma lógica e sua função auxiliadora e
reforçadora da capacidade de memorização.
Efetiva1nente a forma lógica, segundo já se referiu, representa
a maneira com que se dispõem as proposições na expressão do co­
nhecimento; corno elas se articulam entre si. Dêsse modo, o co­
nhecimento dessa "disposição" ou forma lógica, permite ao indivíduo
lJensante passar de umas proposições presentes à memória - ou
que ouve proferidas ou lê escritas - para outras que se acha1n
esquecidas ou mesmo que nunca teve .oportunidade de consider':lr;
mas que se encontram a seu alcance graças àquela forma lógica
208 CAIO PRADO JúNIOR

que as articula com as que lhe são presentes. Assim, considerando­


-se que as proposições exprünem conhecimentos, a forma lógica
não sümente facilita, e pode-se mesmo dizer que torna possível, em
muitos casos, a memorização de conhecimentos q11e hibernam na
esfera subliminar do indivíduo pensante; como ainda põe a seu ·

alcance outros conhecimentos que embora não possua diretamente,


se encontram implícitos na linguagem expressa que emprega e que
nela se incluíram por ocasião de sua elaboração. Em suma, a forma
16gica supre a ciência direta, da parte de cada indivíduo pensante
em particular, de um número considerável de conhecimentos · -
certamente a maior part� dêles em culturas de certo nível -; co­
nhecimentos êsses que êle possui potencialmente por fôrça apenas
do conhecimento que êle tem da linguagem que emprega e de suas
formas lógicas. Linguagem e formaS essas que "contêm'' e em que
se exprime ou pode exprimir-se todo conhecimento elaborado.
O emprêgo da forma 16gica para os fins de h·ansição de umas
proposições para outras - e portanto para a evocação de conheci­
mentos uns pelos outros, uma vez que as proposiçõ.�s representam
a expressão do conhecimento - se realiza pelo raciocínio formal,
que não é senão a tradução ou expressão, em normas para- a con­
dução do pensamento, do sistema em que as proposições se arti­
culam entre si. O silogismo, por exemplo, não exprime fundamen­
talmente se não o sistema em que as predicações se dispõem · entre
si por imbricamento de classes (94.)
Çl manejo das formas 16gicas da linguagem, tanto quanto as da
Gramática que constitui preliminar e introdução à Lógica, não pres­
supõe necessàriamente a consciência, e muito menos conl1ecimento
pr6prio e rigoroso delas. Aquêle manejo se faz ordinàriamente de
maneira espontânea, e se inspira na aprendizagem natural que todos
adquirem da linguagem que usualmente empregam. Tanto. assim
que muito antes de conhecer Gramática e Lógica, isto é, de ter
consciência das formas gramaticais e lógicas - e a maior parte
dos indivíduos nunca chega a conhecê-las, em particular as da Ló­
gica - aquelas formas são correntemente empregadas, embora nem
sempre de maneira adequada e precisa. É aliás em momento his-

(94) Veja-se a respeito de "classes", o capítulo 14, pág. 188.


NOTAS INTRODUTóR!AS À LÓGICA DIALÉTICA 209

tórico relativa1nente recente e muito mais próximo de nossos dias


que da origem da linguagem, que os homens se deram conta da
ocorrência de tais "formas" da linguagem que sem saber emprega­
vam. E procuraram revelá-las. Essa tarefa pioneira coube em par­
ticular, como já se lembrou, aos gregos, e dela resulta, com Protá­
goras, a primeira Gramática, introdução necessária ao assunto; e
com Arist6teles, depois da contribuição decisiva de seu mestre Pla­
tão (e não esqueçamos Sócrates que preparou o caminho dêste últi­
mo), resultou a primeira sistematização geral da matéria e a confi­
guração de uma disciplina científica, que é a L6gica formal, cujo
objetivo consiste precisamente em revelar as formas verbais em que
o Conhecimento elaborado se estrutura. Isto é, consiste em expri­
mir verbalmene o sistema ou sistemas em que se dispõem as for­
mulações verbais expressivas do Conhecimento. Revelação e ex­
pressão essas que permitiram não sàmente um ajustamento melhor,
mais preciso e seguro daquele sistema - e em conseqüência a con­
dução de maneira mais ordenáda e disciplinada do pensamento na
evocação e explicitação do Conhecimento incluído na linguagem ex­
pressa (isso que denominamos o Conhecimento verbalmente regis­
trado, seja em textos escritos, seja oralmente no convívio e na h·a­
dição sociais), corno ainda tornaram possível estruturar e exprimir
verbahnente, de maneira mais adequada e precisa, o Conhecimento
no curso de sua elaboração. Isto é, tornaram possível dispô-lo me­
lhor nas formas 16gicas da expressão verbal - tanto como igual­
mente nas formas gramaticais. .:t!:sse processo, de espontâneo e em­
pírico, e por isso grandemente falho, se fará percebido e delibera­
damente empreendido e orientado com pleno conhecimento de causa.
E poderá pois se realizar de maneira mais conveniente.

São essas as finalidades práticas da L6gica formal, cujas nor­


mas orientadoras de tal prática se inspiram e fundamentam no sis­
tema estmtnral da linguagem que a Lógica, como disciplina cientí­
fica, trata de revelar, isto é, extrair e destacar do conhecimento
expresso na mesma linguagem; e que numa fase mais adiantada,
trata de aperfeiçoar, criando então formas mais adequadas. Na lin­
guagem natural e espontânea (isto é, elaborada empiricamente e sem
consciência clara de seus fins e objetivos), a articulação e estrutu­
ração de suas formulações é freqüentemente imprecisa. O conhe-
210 CAIO PRADO JúNIOR

cimento moderno, sob o d11plo estímulo de sua crescente amplidão


e complexidade, e da demanda que dêle fazem as necessidades prá­
ticas do ho1nem, exige a eliminação dessa imprecisão, o que quer
d.izer insegurança. Fazem-se assim mister coesão e sistematização
mais completas para uma linguagem que pretende exprimir aquêle
Conhecimento altamente desenvolvido. É daí que derivam as mo­
dernas técnicas formalizadoras que encontram no axiomatismo seu
mais alto padrão.
16. - CONHECIMENTO E LINGUAGEM (II)

O grande desenvolvimento recente da pesquisa lógica e da téc­


nica de formalização do conhecimento, acabou por extravasar seus
limites, e de simples pesquisa e elaboração de fotmas verbais e
gráficas, se torno11 em teoria do conl1ecimento e mesmo concepção
filosófica. Não discutiremos aqui essa extrapolação filosófica do
formalismo; e limitamo-nos a observar que na .sua base está a con­
fusão, velha aliás de séculos, podemos 1nesmo dizer de milênios (pois
encontramo-la já na filosofia grega) entre forma e conteúdo do co­
nhecimento. 'Essa confusão se acha de tal modo arraigada, que
deparamos com ela até mesmo naqueles logicistas e psicólogos que,
en1 princípio, separam a linguagem do pensamento. São mesmo
êstes últimos a maioria, pois hoje sà1nente alguns behavíoIDistas ex­
tremados assünilariam os dois fatos. Mas se em princípio aquêles
logicistas e psicólogos fazem a devida distinção entre linguagem
e pensa1nento - e pois conl1ecimento, que se reduz a pensamento�
como êste último se reduz ao conhecimento {uma vez que todo
pensan1ento envolve conhecimento) - incorrem logo em seguida na
confusão, pois se ocupam em sua análise sàmente do "pensamento
com palavras", como se fôsse todo pensamento; e tratam do conhe­
cimento como essencialmente constituído de for1nulações verbais.
É assim, como já se notou (cap. 6), que equiparam o conceito ao
têrtno; e o fufzo ou fulganiento à proposição. A confusão se mostra
flagrante na noção de "'raciocínio", onde a mesma palavra designa
indiferente e simultâneamente a expressão verbal {a transição ou
passagem de un1as proposições para outras, como por exemplo no
silogismo), e o processo mental traduzido nessa expressão verbal.
Ora a linguagem - seja a oral ou a escrita, a discursiva ou a sim­
bólica - não é senão fo1ma de llffi conteúdo que é o fato mental
212 CAIO PRADO JúNIOR

do pensamento e conhecimento. Pensamento e conhecimento são


essencialmente ocorrências psíquicas que pertencem à esfera mental
do indivíduo pensante; não constituindo a linguagem senão expressão
"exterior" e forma concreta que aquelas ocorrências assumem. A
função da linguagem consiste em representar e traduzir sob forma
sensível, e portanto em eventualmente despertar no indivíduo pen­
sante os processos mentais que reproduzem aquêles outros processos
oco1Tidos por ocasião da elaboração do conl1ecimento expresso na
mesma linguagem. É o que já vimos anteriormente, citando a' pro-
pósito uma observação de Hobbes (95.)
A expressão verbal, por conseguinte, não faz senão "assinalar"
o processo pensante que largamente a ultrapassa, e se desenvolve
à sua margem ou além dela. Tanto assim que as formulações ver­
bais, em si, e desacompanhadas daquele processo, não constituerri
conhecimento. Isso se observa fàcilmente na distinção que todos
fazemos, e q11e· não deixa inargem para dúvidas, entre aquilo q11e
se entende pràpriamente por conhecimento, e a simples memoriza­
ção verbal. Inútil insistir em que ''aprender", isto é, adquirir conl1e­
cimentos, não consiste simplesmente em decorar formulações ver­
bais, por mais que essa "decoração" seja fator hnportante no _con11e­
cimento. O papel das. formulações verbais decoradas e retidas na
memória será sempre e Unicamente de servfr de estímulo para ati­
vidades mentais de natureza diferente em que o pensamento e co�
nhecimento própriamente se manifestam. Na ausência dessa ativi­
dade, jsto é, quando a formulação verbal não é por ela seguida e
acompanhada, e não constitui portanto para o indivíduo conside­
rado, sinal ou estímulo de outro processo mental, conservando-se êle
na simples- formulação, essa formulação não terá para êle conteúdo
ou sentido algum. Um texto científico, por exemplo, lido embora
com a maior atenção por um leigo no assunto, será por êle inteira­
mente incompreendido. Não é difícil, para qualquer um de nós, fazer
a experiência disso.
Os próprios formalistas mais intransigentes e extremados no seu
''antipsicologismo'�, são forçados a reconhecer irnpllcitamente a .insu­
ficiência da simples forma verbal como expressão do conhecimento.

(95) Cap. 12, pág. 159.


NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGICA DIALltTICA 213

Se êsses formalistas se cingissem rigorosa1nente à sua concepção de


que, na definição já citada de Tarski, "tôda teoria científica [e pois
conhecimento] é um sistema de proposições aceitas como verdadei­
ras", êles não precisariam, na exposição e comunicação de suas pró­
p1ias teorias, lançar mão de extensas considerações, exemplos, ana­
logias escolhidas e1n assuntos familiares a seus leitores, etc.,, para
se .fazere1n compreender.
Poder-se-á argumentar - e é isso que expressa ou impllcita­
inente fazem os forn1alistas - que uma coisa nada tem a ver com a
outra, e que uma é o conhecimento como fato psíquico, outra o
conhecimento expresso em linguagem e independente do pensamento
humano. Mas que significação pode ter êste último "conhecimento"
que não implica um conhecedor, o indivíduo pensante que elabora
o conhecimento:, e o faz para si e seus fins, a saber, para utilizá-lo
como norma orientadora de sua ação? Percebem-se nitidamente
atrás dessa concepção - e é �ste seu único fundamento - as pre­
missas ideológicas de urna idéia independente do fato orgânico <lo
pensamento. Premissas essas que pertencem à esfera da ''crença'',
e sem nenhu1na base científica.
Há mais contudo, porque restringindo-se a noção de "conheci­
mento" à expressão formal dêle - e fora do pensamento hun1ano,
o conhecimento só existe e só pode existir co1no forma verbal -
é-se naturaln1ente e insensivelmente levado a considerar e inter­
p�·etar as feições naturais e concretas do inundo exterior ao pensa­
mento, através da forma verbal, e portanto configurar aquelas fei­
ções dispostas e1n correspondência com as mesmas formas e mode­
ladas por elas. Essa tendência se observa tanto na filosofia e epis­
temologia, como no bom senso vulgar; e tem graves conseqüências,
como logo veremos, na elaboração e interpretação do conhechnento.
É dela em particular que deriva esta noção aparentemente in­
tuitiva e evidente de um m11ndo constih1ido de "coisas", "entidades",
"sêres"., que se encontra, expressa ou implícita, na base da inter­
pretação ordinária da realidade objetiva. "Coisas" essas - as "coi­
sas" entendidas generalizadamente, compreendem as "entidades'' -
separadas entre si e isoladas umas das outras, e de cujo con1porta­
mento resultariam os fatos. A Metafísica clássica se apóia inteira­
mente nessa noção. E ela é retomada, tal qual - ou com variantes
214 CAIO PRADO JúNIOR

de segunda importância - pelos formalistas conte1nporâneos, que


aliás, nas suas formulações, já nos indicam desde logo onde se encon­
tram as raízes da rnes1na noção. É assim que Wittgenstein, um
reconhecido precursor do moderno forn1alismo, alinha as seguintes
afirmações que esclarecem be1n o assunto: «o n1undo está dividi.do
em fatos" (1.2) . . . "Um fato atômico é uma combinação de objetos
(entidades, coisas)" (2.01) . . . "A coisa é independente na me­
dida em que pode ocorrer em tôdas as possíveis circunstâncias, inas
essa forma de independência é uma forma de conexão co1n o
fato atô1nico, u1na for1na de dependência. É in1possível as palavras
ocorrerem de duas maneiras diferentes: isoladas e na proposição"
(2.0122) (96.) Refiramos ainda um simples manual de Lógica, em
que o autor escreve, sem ao menos sentir necessidade de justificá-lo
(o que mostra tratar-se de algo para êle evidente e indiscutível):
"Physical objects devide into things such as individual human beings,
tables, atoms, anel situaUons, also called 8tates of affairs, whicb
·

constitute the denotata of sentences. Thus the sentence "the battle­


ship Bismarck was Stlnk" denotes a situation; the ship itself is <l
thing" (97.)
Essas citações, colhidas respectivan1ente nu1na obra fundan1en­
tal do 1noderno formalis1no, e n1una exposição ele1nentar do mesmo
assunto, não sàmente confirmam a visão e interpretação clássicas
da realidade objetiva, como ainda 1nostra1n expressamente que seus
a11tores concebem aquela realidade co1no modelada de conformi­
dade 'Com as for1nas da linguage1n. E asshn é efetivamente (para o
formalismo), pois uma realidade objetiva con1posta de "coisas" inde­
pendentes entre si, e na qual os "fatos" ou '"situações" resultan1 elo
comportamento das mes1nas "coisas", constitui u1na visão e interpre­
tação que não pode1n ter outra origem que nas for1nas lingüísticas
en1 que precisamente os substantivos (que ordinària1nente fazem as

(96) Ludwig VVittgenstein, Tractatus Logico-Phílosopliicus ( Edição bi­


língüe - alc1não e tradução inglêsa - na Inter11acional Library of Psychology,
Philosophy and Scíentific Afethod, de Routledge & Kegan Paul Ltd . ) . London,
Fifth impression, 1951. Os números indicados são os da orden1 das proposições
dada pelo autor.
(97) H. Reichenbach. Ele1nents of Syn1boric Logic. 1947, pág. 14.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 215

vêzes de sujeito das proposições) representam as "coisas cujo com­


portamento, de que resultam os "fatos'' ou "situações", é represen­
tado pelos verbos que fazem de predicados da proposição. Assim,
graças à maneira com que se configuram e dispõem as formas da
linguagem, a realidade objetiva se apresenta, e assim é considerada,
como um aglomerado de "coisas", "entidades" ou genericamente
"sêres", de cujo modo-de-ser ou co1nporta1nento resultam os fatos
e as situações daquela realidade.
Essa é a inaneira habitual e ordinária de inte1pretEtr a realidade
objetiva, n1aneira essa sancionada pela Filosofia e pelas teorias cor­
rentes do conhecimento, mas que nada tem de real, no sentido <le
corresponderem àquela realidade; e de fato a deforma. Aliás os
maiores problemas e questões da Filosofia de todos os tempos, e
ainda hoje, têm sua origem na dificuldade, que ve1n a ser impossi­
bilidade, de se ajustar a realidade objetiva, tal como ela se apresenta
à nossa experiência, àquele modêlo lingüístico ql1e só indiretamente,
,
e de maneira insuficiente, lhe corresponde.
A deformação "coisista" da realidade objetiva, produzida pela
linguagem quando, tomada como descrição dessa realidade, é consi­
derada exclusiva e restritiva1nente e1n si, se verifica relativa1nente
às mais simples e elementares feições ou situações daquela realidade.
Para comprová-lo, retomemos uma ilustração que já consideramos
no primeiro capítulo e que podemos agora analisar con1 n1ais pre­
cisão e desenvolvimento. Referimo-nos à situação «descrita" pela
proposição "o pássaro voa." Enconh·amos nessa proposição dois ele­
mentos: pássaro (que voa) e vôo (do pássaro), bem diferenciados
e destacados um do outro, e ligados Unicamente, e a posteriori, pela
atribuição que a proposição realiza, de um comportamento (o vôo)
a uma "coisa'' que é o sujeito pássaro. Ora no objeto pretendida­
mente descrito na proposição, não ocorre, de fato e realmente, essa
duplicidade. Nem o vôo tem realidade fora de algo que voa (no
caso o pássaro), nem o pássaro tem realidade fora de algum com­
portamento ou modo-de-ser que no caso é o vôo.
Para nos certificamos disso, considere-se atentamente o assunto,
com o maior cuidado para não ser traído pelas falsas ilusões car­
readas pela linguagem que naturalmente somos obrigados a utilizar
em nossa exposição. O pássaro tem necessàriamente algum co1npor-
216 CAIO PRADO JÚNIOR

tamento ou modo-de-ser; e dêsse comportamento ou modo-de-ser,


seja .êle qual fôr, não se pode destacar. Se não está voando,
estará pousado, ou saltitando. . . Além disso, êle é sede e centro
de outros modos-de-ser e acontecimentos de que, tanto quanto no
vôo, o pássaro constitui aspecto parcial e simples decorrência, como
sejam, s11a constituição orgânica, os fatos fisiológicos, químicos e
físicos que o compõem e constituem, as circunstâncias exteriores que
o condicionam, e que condicionam também seu vôo - como por
exemplo a resistência do ar . . . O pássaro fora de tudo isso, não
existe, não constitui Tealidade objetiva. Será uma absttação. Nias
a abstração é urna operação do pensamento, e não realidade exterior
a êsse pensamento.
Considerações análogas podem ser feitas a propósito do segundo
elemento da nossa proposição, a saber, o vôo, em confronto, com
objeto real (o vôo do pássaro) que a mesma proposição pretende
descrever. Ve1ifica-se portanto que o vôo atual do pássaro não se
constitui, objetivamente, de uma "coisa" ou um "ser., autônomo e
completo em si ( o pássaro ) a que eventualmente se acrescenta uma
certa ação também existente por si e independentemente de qual­
quer circunstância. A situação objetiva que a nossa proposição
pretende descrever, nada mais é que um momento, uma parcela
de um conjunto e continuidade de fatos e circunstâncias de tôda
ordem de que tanto o pássaro como o vôo são inseparáveis. Mais
que isso, em que ambos se integram em conjunto e indissolU.vel­
mente conjugados.
O "vôo do pássaro" (que se procui-a descrever ou referir na pro­
posição citada) constitui assim um aspecto, feição, parcela, momento
da realidade objetiva, que se configura num processo ou complexo de
processos interligados, e em função dêles. Isto é, o "vôo do pássaro"
deriva dêsses processos, e ao mesmo tempo para êles concorre, con­
tribuindo na sua composição e feitura. Processos êsses que vêm de
antes e se prolongam depois daquele momento ou parcela imediata
e diretamente referida da realidade objetiva qne é o "vôo do pás­
saro" considerado. E isso sem solução de continuidade. Assim
sendo, o conl1ecimento completo (melhor diríamos: a conceituação
e representação adequadas) do fato descrito, deveria implicar aquê­
les processos - pois êle constih1i Unicamente uma parcela ínfima
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LóGICA DIAL1'TICA 21 7

dêles -. No entretanto, os mesmos processos não se encontram


expressamente inclui.dos na proposição, que pelo contrário começa
por propor, separadamente, o sujeito pássaro, por si e independen­
temente de qualquer ação, comportamento ou modo-de-ser objetivos,
para sàmente em seguida 111e atribuir e acrescentar um certo com­
portamento, o v6o, também considerado em si e isoladamente.
Não nos damos conta desde logo daquele isolamento e corte
artificial praticado na realidade objetiva pelas formas da linguagem,
porque o fazemos com o concurso de uma operação mental que
ordínàriamente se designa por "abstração.,, e que precisamente por
constituir operação de abstrair; separar, implica a unidade origi­
nária do separado pela mesma abstração. Quando afirmamos "pás­
saro'', e em seguida "vôo", já aplicamos ao objeto de que nos ocupa­
mos, uma operação mental que isola e separa, no complexo dos pro­
cessos de que se constitui a realidade objetiva, uma simples parcela,
um aspecto ou feição dela. Tanto o «pássarô' como o "vôo" da
nossa proposição, constituem pois simples abstrações, ·produtos arti­
ficiais de uma operação mental. Mas isso não se encontra incluído
diretamente na expressão verbal em si e por si, que ·portanto, para
representar adequadamente a realidade objetiva, deverá ser consi­
derada à luz ou em função de um fato extralingüísticO> a operação
mental de abstração realizada, sem' a qual a expressão será inade­
quada e insuficiente para representar e refletir a realidade objetiva.
Efetivamente, não se levando em conta a operação mental rea­
lizada e na qual a expressão verbal se inspira e fundamenta; e
ficando-se exclusivamente na mesma expressão verbal, que se consi­
derará como tradução e descrição adequadas da realidade objetiva,
é-se levado a presumir uma correspondência bi-unívoca entre essa
realidade e as formas verbais empregadas para a designar. Assim
os sujeitos das proposições serão tidos simplesmente como «nomes"
de diferentes parcelas bem discriminadas e particularizadas em que
se postulada dividida a realidade objetiva; enquanto os predicados
(verbos) designariam as ações, comportamentos ou modos-de-ser das
mesmas parcelas. Ter-se-á então a deforn1ada interpretação "coi­
sista" que vimos acima, pois aquelas ·parcelas nada mais serão que
as coisas, entidades ou sêres de cujo comportamento resultaria1n os
fatos e ocorrências da realidade objetiva.
218 CAIO PRADO JúNIOR

A essa deformada perspectiva da realidade objetiva, pode-se opor


e efetivamente se opõe outra que dá conta muito mais adequada
da experiência, e que vem a ser a daquelas pseudocoisas autônomas
e propulsaras ·de fatos e ocorrências, como integradas, conjunta­
mente com seus respectivos "comportamentos", em processos nos
quais tanto u1nas como outras não constituiriam mais que aspectos
parciais e particulares, dependentes do ponto-de-vista momentâneo
em que se coloca o indivíduo pensante no ato de apreensão e co­
nhecimento da realidade objetiva. Na realidade, o comportamento
das "coisas" seriam as próprias «coisas" em transformação e muta­
ção; e as "coisas" seriam configurações momentâneas num processo
de transformação.
Ilustremos o assunto, embora esquemàticamente e como sllnples
tentativa de · aproximação, com uma instância escolhida entre aque­
las onde o contraste entre as duas perspectivas da realidade objetiva
que acabamos de ver, se mostra mais acentuado. Refiro-me ao
Conhecimento do Homem na sua mais ampla acepção. Segundo a
primeira daquelas perspectivas, que é a clássica, e constitui a natu­
reza própria da Metafísica em sua expressão mais completa, o Ho­
mem seria, como as demais "coisas" ou "entidades" que são objetos
do conhecimento, um ser que se caracteriza por si próprio, que é
dotado de uma certa "essência'' distinta das demais e que permanece
sempre a mesma através de tôdas as ocorrências, vicissitudes e con­
tingências que atravessa; constituindo os fatos de que o Homem
é participante, resultado do comportamento e modo-de-ser dêle ho­
mem, comportamento e modo-de-ser êstes que têm sua origem e
fôrça propulsara na própria essência.
O Conhecimento do Homem, nessa perspectiva, consistiria as­
sün em penetrar o interior dêste ser que é o homem, "apreender­
-lhe'' a essência, descobrindo nela os determinantes interiores do
1nodo-de-ser e do comportamento do indivíduo humano; e pois tam­
bém os determiantes dos fatos de que êsse indivíduo é participante
e de que constitui a fôrça propulsara originária.
Na outra perspectiva, que é o oposto da Metafísica, e que vem
a ser, pelo menos em princípio, a da ciência moderna, o Conheci­
mento do Hon1e1n teria por objeto os processos con�tituídos por
tôda ordem de fatos (físicos, químicos, biológicos, psicológicos, so-
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALJ!:TICA 219

crn1s, éticos, etc.) que se desenrolam na realidade objetiva e que


a constituem, processos êstes em que .se configuram como mo1nentos
ou partes conceptuahnente destacáveis por abstração elos mesmos
processos, mas de fato e realmente nêles incluídos e integrados, dêles
participando e derivando, certas feições próprias e específicas da
realidade objetiva, distintas de outras e portanto identificáveis por
fôrça dessa distinção; feições essas que seriam os indivíduos hu�
manos. O Conhecimeno do Homem visaria assim o conhecimento
(a representação mental e expressão verbal) daqueles processos, das
condições de sua dinâmica e das circunstâncias em que e por fôrça
das quais se configuram nos mesmos processos, entre outras, as
feições que constituem o que se entende por homem. Melhor ainda,
em que tais processos se caracterizam como homens.
As duas perspectivas da realidade objetiva, embora em seus
extremos se excluam reciprocamente, se acham de fato combinadas
em proporções variadas nas diferentes concepções relativas àquela
realidade. Essa heterogeneidade se reflete na generalidade das
teorias e dos sistemas filosóficos, e também no tratamento dado aos
objetos da ciência prôpriamente. É particularmente nas ciências
humanas que isso mais se manifesta, mas as próprias ciências físicas,
apesar de seu alto nível de elaboração científica, não se acl1am
de todo isentas da interpretação "coisista", que se encontra bem pa­
tente, entre outros, nas "partículas" constituintes da matéria e da
energia, partículas essas que não são senão "coisas" que embora já
bem adulteradas pelas necessidades da explicação dos fatos físicos,
ainda se conservam na qualidade de agentes e suportes daqueles
fatos que são representados sob forma de comportamento de par­
tículas ( 98.)
A rigor, as duas perspectivas se propõem impllcitamente em
cada processo pensante em particular, tanto nas operações de ela-

(98) Note-se que a concepção de pa1tículM-coisas sà1nente ocorre na­


quelas partes exposição da teoria física em que se emprega a linguagem
discursiva. Ela se acha totalmente ausente no tratamento mate1nático do as­
sunto, Escusado lembrar que nem existe, nem pode existir representação
matemática de "partículas". As equações da Física representam situações obje­
tivas (em que a teoria discursiva introduz sua figuração de partículas), sem
nenhuma referência a essas partículas.
220 CAIO PRADO JúNIOR

boração como de simples evocação do conhecimento, dependendo


o papel xespectivo de cada uma, nas diferentes ocorrências, da maior
ou menor participação, naqueles processos pensantes, das formas
verbais e do acento que lhes é dado. Nas formas verbais em si,
abrígan1-se se1npre, por fôrça de sua própria nah1reza, segundo se
viu, a perspectiva e concepção "coisista" dos objetos do pensamento
e conhecin1ento. E essa concepção se atenua e corrige pela outra,
na medida em que o pensamento não se detém nas formas verbais
representativas daqueles objetos. Nessa medida, o pensamento se
deslocará elas identidades conceptuais (que segundo vimos no capí­
tulo 13, é o que diretamente se exp1ime na linguagem) para o rela­
cionamento que compõe essas identidades e que constitui prüpria-
incnte a atividade pensante. E é nesse relacionan1ento que se re­
presentarão mentalmente os processos, propondo-se em conseqüên­
cia a perspectiva adequada da realidade objetiva. Isto é, propor­
-se-ão as "coisas'' integradas e1n processos, e nêles e por êles se
configurando; o que mentaln1ente se representará por identidades
conceptuais (os conceitos em seu aspecto estático e punctiforme)
resultando da sistemática relacional da conceituação e nela se re­
solvendo.
Reconsideremos, à luz dessas observações, a nossa propos1çao
"o pássaro voa". A pura forma verbal dessa proposição nos apre­
senta uma entidade ou coisa (pássaro) acrescentada de uma certa
ação, atividade ou comportamento, o vôo, que é corno uma quali­
dade ou propriedade atribuída à "coisa" pássaro. Conceptualmente
enUam em jôgo os conceitos correspondentes respectivamente aos
vocábulos agrupados na proposição, a saber, duas iclenticlacles con­
ceptuais associadas, o que quer dizer exteriormente ligadas. A pro­
posição, restrita à sua fo1111a verbal, e sem consideração à atividade
pensante que implica e que eventualmente pode suscitar, não ex­
prime mais que aquela associação e ligação exterior de dois co11-
ceitos.
Considere-se agora o eventual desencadeamento daquela ativi­
dade pensante. 1Ela consistirá no deslocamento do pensamento para
os sistemas respectivos de que se compõem os conceitos de pássaro
e vdo. Deslocamento êsse que refletirá ele maneira adequada e por­
tanto "real", o objeto de que se trata e que é o "vôo do pássaro."
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALBTICA 221

Efetiva1nente, con10 se viu acima, os conceitos de pássaro


e vôo se resolven1 respectivamente em sistemas conceptuais en1
que se exibem, enh·e outros, e no caso do primeiro, os seguintes:
a conceituação relativa aos fatos físicos, químicos, biológicos que
condicionam esta feição da realidade objetiva que é o pássaro, seu
inodo-de-ser e seus diferentes tipos de comportamento . . . No caso
do conceito de vôo, o que se inclui nêle, e que o co1npõe, é a co11-
ceituação relativa às circunstâncias mecânicas da ação de voar; à
liberdade de movünentos em perc1u·,sos pelo ar, em contraste co1n
os embaraços que se apresentam em percursos na superfície da
ten·a; e assim por diante.
Ocon·em nessas conceituações respectivamente de pássaro e vôo,
planos comuns nos quais se realiza ou pode realizar-se o entrosa­
mento e relacionamento daq11elas conceituações. Relacionamentos
êsses que se propõem logo que o siste1na conceptual pássaro é con­
siderado em função ou na perspectiva do sistema conceptual vôo;
e vice-versa. Lembremos apenas, como ilustração esque1nática de
um fato mental efetivamente muito mais amplo e con1plexo, o rela­
cionamento da conceituação que diz respeito à "função biológica
de alimentação do pássaro", com a da "liberdade de movin1entos
proporcionada pelo percurso aéreo" que o v6o implica. Nesse rela­
cionamento, o "vôo do pássaro" se apresentará como instância par­
ticular do fato geral da "busca de alimentos pelos animais", uma
feição ou mo1nento de lUTI processo biológico.
Nessas condições, os conceitos de pássaro e de vôo não se ligam
mais exteriormente apenas, como era antes na simples expressão
verbal, mas se entrosam e relacionam nu1n sistema conceptual de
conjunto em que sua identidade será função do todo; e que se
integrará numa identidade 1nais larga e complexa que constituirá
a representação mental de uma ampla feição da realidade objetiva.
Isso é apenas, repetimos, uma ilustração 1nuito esquemática
da complexa conceituação - e portanto conhecimento - que po­
tencialmente se exprime ou é suscetível de se exprhnir na citada
proposição, e nos serve para assinalar a eventual atividade pensante
que a forma verbal pode suscitar e que constitui o verdadeiro e
profundo conteúdo do conhecimento. Isto é, a adequada represen­
tação da realidade objetiva na sua unidade, no enh·elaçamento de
222 CAIO PRADO JúNIOR

suas feições e situações que reciprocamente se condicionam. Numa


palavra, a representação da dinâmica dos processos que compõem
a realidade objetiva.
Nada disso é dado, direta e imediatamente, na furma verbal,
que pelo contrário, em si e por si, apresenta uma realidade obje­
tiva cindida e1n feições e situações, se não partes de situações, apar­
tadas e isoladas entre si. Um aglomerado de "'coisas" ou "entida­
des" autônomas que se propõen1 independentemente umas das
outras, estáticas e cortadas de seu passado e futuro. Isto é, sepa­
radas dos processos que as constituem e em que se configuram, e
de que não são de fato mais que momentos e instantânea manifes­
tação. Essa visão seccionada da realidade objetiva constitui gene­
ralização descabida de um aspecto parcial e restrito da mesma rea­
lidade, a saber, o da d'iscri1ninação pa1'a o fini do 1·econhecimento
e identificação. Nesse plano do pensamento, preliminar do pro­
cesso de elaboração do conhecimento e da ação prática imediata,
trata-se ele distinguir e discriminar as feições e situações da reali­
dade objetiva, a fim de orientar aquela ação para o favorável e
desviá-la do desfavorável. Dá conta das necessidades imediatas da
ação, e constitui, nesse sentido, um prolongamento na esfera do
pensamento humano, do tropismo da matéria orgânica.
A simples forma verbal traduz êsse plano elementar do pensa-
1nento e conhecimento. E nê'le ·desempenha inuito adequadamente
sua função de designação e rotulagem das feições e situações da
Tealidade objetiva, discriminadas para o fim que acabamos de ver.
Mas se faz insuficiente e inadequada quando transposta, por exten­
são e ex:h·apolação, para o plano geral do conhecimento, e conside­
mda então como representação fiel e integral da realidade objetiva.
Essa realidade, visualizada exclusivamente através da forma verbal,
isto é, disposta em correspondência com essa forma, aparece defor­
mada, ou n1ais precisamente, aparecerá sob um aspecto muito par­
cial e pa1iicularizado. A feição da linguagem não é assim de "re­
presentai'' a realidade objetiva, ou descrevê-la (no sentido dos for­
malistas), e sim de exprimir a conceituação e suscitar a atividade
conceptual (pensamento) relativas ao objeto a que ela se refere e
aos processos que constituem a natureza própria dêsse objeto. Ela
é tão-sàmente um modo de expressão do pensan1ento e conheci-
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LóGICA DIALÉTICA 223

mento, e o registro dilles fora da esfera subjetiva do indivíduo pen­


sante. E não reflete ou representa a realidade objetiva senão na
medida em que se completa pelo estímulo e suscitação que realiza,
da .atividade pensante que constitui o conhecimeno.
É nisso que essencialmente consiste a função da linguagem e
suas formas como expressão do conhecimento, a saber� na sua po­
tencialidade em estimular e suscitar a atividade pensante de que
se compõe o conhecimento e em que êle se exibe. O conhecimento
elaborado se encontra ordinàriamente traduzido em formulações
verbais que se conservam na memória dos indivíduos e na sua
tradição oral e escrita. Mas nessa tradução verbal, o que se apre­
senta imediata e diretamente é tão-sàmente a forma do conheci­
mento. O conteúdo dêle será dado pela atividade pensante e con­
ceptual que acompanha ou deve acompanhar aquela forma.
Isso se pode observar no hiato que ocorre entre a audição ou
leihua de uma formulação verbal, e aquilo que se entende por
«compreensão" dela. Essa <Ccoillpreensão", sem a qual não se pode
falar em conhecimento pràpriamente, não decorre imediata e direta­
mente da proposição da formulação verbal. Ela implica uma certa
atividade mental que a determina, e que consiste precisamente na
evocação da conceituação relativa ao assunto referido na formulação,
e que é despertada por essa formulação. Tanto assim que a compreen­
são será diferente, e muito variável, conforme o indivíduo, os conhe­
cimentos que possui relativamente ao assunto, o seu estado de espí­
rito quando se enuncia a formulação. Isso mostra a intervenção,
no processamento da compreensão, da conceituação, isto é, do co­
nhecimento preexistente no indivíduo, e sua mobilização em função
do assunto referido na formulação proposta.
Observação análoga se poderá fazer a prop6sito da efaboração
do conhecimento. Tôda elaboração se realiza sempre a partir de
conhecimentos anteriormente elaborados (99) que de ordinário, e
pelo menos em grande parte, se apresentam sob forma verbal. Ora
a atividade mental elaboradora não se concentra e restringe a essa
forma: nem às formulações apresentadas (formulações aliás que
para o mesmo caso, podem ser e em geral são muito variáveis) nem

(99) Veja-se a êsse propósito o Cap. 11.


224 CAIO PRADO JúNIOR

tampouco a outras que delas se derivam formahnente, isto é, atra­


vés de operações formais (raciocínio formal.) A elaboração do co­
nl1ecimento se faz por operações que na maior parte, e certamente
a principal , são verbahnente inexprimidas e mesmo inexpressíveis .
Isto é, elas se processam independentemente das formas verbais (lOO.)
Em que consistem tais operações, através das quais a concei­
tuação é evocada, proporcionando a nco1npreensão» dos assuntos
propostos, e dando eventualmente lugar à elaboração de novos co­
nhecimentos? Qual o seu dinamismo, isto é, como se realizam?
É êsse o ponto central e fundamental da teoria do conhecimeno
posta em têrmos psicol6gicos que são os únicos em que o assunto
pode ser cientlfica1nente situado. A análise a que procedemos i10
curso dêste trabalho acêrca do pensamento, procura lançar alguma
luz s6bre a questão, e abrir perspectivas para a pesquisa que lhe
diz respeito. A atividade mental através de que se evoca e elabora
o conhecimento, é ordinàriamente conduzida de maneira espontânea,
sem direh·izes pré-fixadas. É por isso, no essencial, empírica. Não
permitirá o conhecimento adequado do dinamismo daquela ativi­
dade, fazê-lo de maneira deliberadamente orientada, e por isso me­
tódica e ordenada, com pe1feito discernimento do caminho a per­
correr? É isso que se propõe; e na medida ein que fôr realizado,
configurar-se-á uma nova Lógica q·ue não será mais a .simples Ló­
gica formal que tem por objeto a estruturação, articulação e enca­
deamento de formas verbais expressivas do pensamento e conheci­
mento, e sim será a teoria das leis orgânicas da função pensante,
cujo Conhecimento permitirá dirigir e orientar metàdicamente, coni_
u1n máximo de rendimento e um mínimo de divagação, o exercício
daquela função. Tanto quanto o conhecimento das leis reguladoras
de ouh·as funções orgânicas (a digestão, a respiração, a ação mus­
cular. . . ) peimite anàlogamente adequar o seu exercício, da melhor
maneira possível, às necessidades e aos objetivos do indivíduo 1111-
mano.

(100) O mecanismo psicológico da descoberta científica, que vem a


ser elaboração de conhecimento, tem sido amplamente analisado, embora sem
grandes resultados práticos. Lembremos aqui a contribuição que lhe trouxe
o grande matemático francês Jaques Haddamard ( Psicologia de la invenció11
en el campo matem.átir.o, trad. e.�panhola de L. A. Santaló Sors, 1947 ) , que
reuniu o depollnento de muitos cientistas e matemáticos, inclusive de Ell1stcin.
17. - ELABORAÇÃO DO CONHECIMENTO

Na base das observações e da análise realizada no curso dêste


livro, são possíveis algumas conclusões, embora de simples aproxi­
mação do assunto, acêrca da a�vidade pensante em sua função evo­
cadora e elaboradora do conhecimento. Trata-se de uma atividade
conceptual, isto é, em que se configura uma sucessão de conceitos;
e a nossa questão consiste em indagar como se realiza essa confi­
guração e sucessão. ·Em outras palavras, como se propõem os con­
ceitos em seguimento uns aos outros, e de que maneira êles se
articulam e entrosam entre sii Está claro que consideramos aqui
a hipótese optima de um desenvolvimento rigorosamente metódico
e ordenado do pensamento, e livre de qualquer divagação ( 101. )
Consideremos em primeiro lugar a simples evocação do conhe­
cimento elaborado, que vem a ser a evocação da conceituação já
presente na memória do indivíduo pensante; conceituação essa que
constitui seu conhecin1ento atual e presente. Veremos em seguida
a eventualidade da elaboração de novos conceitos, e portanto a
extensão do conhecimento. A evocação de u1n conceito resulta
do entrosamento em conjunto de conceitos anteriormente evocados.
Como se faz essa evocação? Segundo se viu, os conceitos não cons­
tituem elementos atômicos entre si isolados e separados uns dos
outros, como pode parecer quando considerados exclusivamente na
sua expressão verbal. :í!:les de fato se estruturam em sistemas de
relações, 011 mais precisamente, se configuram dentro da sistemática
geral da conceituação, pela integração em conjunto de uma parte
daquela sistemática. Assim sendo, o conceito evocado resultaria do

( 101) Excluímos também o caso da simples associação mnemônica, que


não interessa no momento, uma vez que a associação constitui Unica1nente um
eventual substituto da atividade mental prõpriamente pensante. Veja-se a pro­
pósito o que a respeito se disse no capítulo 9.
226 CAIO PRADO JúNIOR

relacionamento entre si dos sistemas constituintes de conceitos ante­


riormente evocados, sistemas êsses que assim inter-relacionados e
conjugados, daria1n um novo sistema mais amplo ou mais complexo,
que na sua forma integrada constituiria um novo conceito.
Ilustremos isso com um exemplo escolhido na conceituação da
Ciência Econômica. Considere-se o conceito de "operário" Esse
conceito se constitui de um sistema conceptual em que se entrosam
em conjunto, para constituí-lo, entre ouh·as os conceitos de trabalho,
saMrio, sustento (do trabalhador) etc. Dizemos que se trata de
um "sistema'>, no sentido que êsses conceitos que concorrem na
composição do conceito de operário (conceito êsse que sem êles
não existiria), constituem partes entre si coordenadas, isto é, êles se
acham dispostos num certo conjunto integrado, no qual tôdas as
partes dependem das demais, bem corno do todo que em conjunto
compõem. O conceito de operário não resulta da simples soma dos
conceitos de trabalho, salário, etc., e sim da coordenação dêles e
fusão íntima em nova totalidade de conjunto. Os conceitos que
concorrem para a configuração ·do conceito de operário, perdem
nêle sua especificidade e individualidade, e se desfazem no todo
por êles constituído. Tanto assim que reunidos e conjugados no
conceito de operário, êles se tomam em simples função uns dos
outros e do conjunto que constituem. O conceito de trabalho (do
operário) depende do de salário, do de sustento, etc., tanto como
cada qual dêstes últimos depende do de trabalho e dos demais a
que s,e reuniu e com que se coordenou para compor o conceito de
operar10. Poderíamos figurar o caso con1 o de uma est111tura metá­
lica em que as parte.s componentes - vigas, parafusos, arrebites . . .
- se confudem e anulam na esh·utura para a qual em conjunto
concorrem.
Consideremos agora outro conceito, o de "capitalista", em cuja
composição entram os conceitos de propriedade e contrôle dos meios
de produção, lucro, etc. Dá-se com êsses conceitos o mesmo que
com os de "trabalho", "salário", etc., relativamente ao de "operário'',
a saber, êles se constituem em sistema de conjunto que integrado
numa totalidade, dá o conceito de "capitalista''. Temos assim dois
sistemas conceptuais, respectivamente de "operário" e de "capit.a­
lista", que poderemos considerar (e é nisso precisamente que con-
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALllTICA 227

siste o essencial da atividade conceptual que estamos analisando)


em função um do outro: o conceito de operário em função do de
capitalista, e o de capitalista em função do de operário. Dessa
«consideração" vai resultar o relaciona1nento e entrosamento dos
dois sistemas. Isso muito simplesmente porque todos os conceitos
que concorrem na constituição respectivamente do conceito de ope­
rário e do de capitalista, participam tan1bém, de certo modo, do
outro. O que se verificará ao considerar qualquer dos conceitos
componentes do conceito de operário, na perspectiva do conceito
de capitalista; e vice-versa, os componentes dêste últh110, na pers­
pectiva do outro. Assim por exemplo o conceito de trabalho que
t.::oncorre para o conceito de operário, pode ser considerado na pers­
pectiva do conceito de capitalista, pois que o objeto de que o con­
ceito de capitalista constitui a representação mental, e que vem
a ser esta feição ou situação da realidade objetiva que é o capita­
lista real e concreto, utiliza o "trabalho" do "operárió'; e êsse "tra­
balho" se realiza e pode ser fornecido em troca de "salário", graças
à existência do capitalista.
Considerações análogas poderiam ser feitas, niutatis niutandis,
a propósito ·dos demais conceitos componentes tanto do conceito de
operário relativamente ao de capitalista, co1no dêste último com
respeito ao de operário. E em virtude e como conseqüência dessas
"considerações" (que, mais urna vez repetimos, constituem precisa­
mente a atividade conceptual que nos ocupa no momento), os sis­
ten1as conceptuais respectivos de �·operário" e ·de ·�capitalista" vão
perdendo sua individualidade e especificidade, e se fundem um no
outro para comporem um único e novo sistema que será, digamos,
o conceito de relações capitalistas de trabalho e produção. Con­
ceito êsse que ampliado e entrosado em conjunto com outros sis­
temas, daria o conceito de capitalismo, em que se representa uma
parcela apreciável da realidade objetiva, e que tem um papel con­
siderável no estabelecimento de modos de comportamento dos ho­
mens e normas de conduta orientadoras das atividades humanas.
Nessa esquemática e sun1ária descrição da atividade conceptual,
o essencial para nós aqui é o dinamismo segundo que os conceitos
se sucedem no desfilar do pensamento; e como êles se configuram
e propõem uns a partir de outros anteriormente evocados. A su-
228 CAIO PRADO JúNIOR

cessão não se faz por simples justaposição (associação) de conceitos


consecutivos, e sim resulta de uma progressiva estruturação de con­
ceitos cada vez mais amplos e complexos que se vão constituindo
pelo relacionamento e entrosamento em sistema de conjunto, dos
conceitos anteriores da progressão.
A consideração dêsse dinarnis1no do pensamento e conceituação,
abre perspectivas para a questão da constituição de conceitos novos
e originais, o que vem a ser elaboração do conhecimento, problema
ináximo da teoria do conhecimento e da Lógica. Tratar-se-á sem­
pre de compor, ou melhor organizar un1 sistema conceptual original,
empregando para isso os sistemas anterior1nente dados. Em que
consiste essa ·�organização"? Em entrosar tais sistemas elementares
num conjunto onde os conceitos constituintes perdem sua especifi­
cidade e identidade próprias, e se fusionam numa identidade dife­
rente. Originàriamente, os conceitos constituintes se distinguem e
entre si se discriminan1; cada qual tem sua individualidade e iden­
tidade peculiares que contrastam entre si, e por isso n1Utuamente
se excluem. O novo sisten1a que há de reuni-los deve ser tal, c1ue
êsse contraste e exclusão recíproca .sejam eli1ninados; e que nessas
condições, os conceitos constituintes se possam fundir no novo sis­
tema que conjuntamente os comportará. É isso que observamos
na ilustração acima: os conceitos de operário e capitalista se dis­
tingue1n entre si e reclprocamente se excluem. O conceito de ope­
rário não é o n1esn10 que o de capitalista, cada qual reflete e repre­
senta pa conceituação e pensamento dos ú1divíduos uma feição ou
situação distinta da realidade objetiva. Mas no conceito de relações
capitalistas de produção, bem con10 em outros, êles se fusionam
e confundem; e ao contrário de contrastarem e mUtuamente se
excluírem, corno se dá quando considerados em si e por si, êles se
harmonizam e compõem em conjunto(l02.)

(102) Note-se que para se fazer possível essa co1npos1çao em conjunto,


os conceitos de operário e capitalista se despojaran1 de sua especificidade res�
pectiva. No conceito de relações capitalistas de produção - que compreende
tanto um como o outro, pois não são concebíveis "relações capitalistas _ ele pro­
dução" sem operários e capitalistas - já não se b·ata mais dos i11divíduos
operário e capitalista, e sim tão-sàmente das "relações" entre êles, relações
essas que se reduzen1 a um complexo de direitos e obrigações recíprocos, e
modos de comportamento de uns co1n re�peito aos outros.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALltTICA 229

É isso que constitui o "relacionamento" de que brotam os con­


ceitos que são relações conceptuais. "Relações conceptuais" repre­
sentam sistemas em que os elementos constituintes (conceitos ele­
mentares), embora origínàriamente distintos e discriminados, e por
isso se excluindo mUtuamente, se confundem. O relacionamento é
a operação mental de que derivam as relações. Da operação men­
tal que consiste em relacionar o conceito de operário com o de capi­
talista, resulta entre outras a relação conceptual capitalismo, que é
um novo conceito representativo de uma determinada feição ou
situação da realidade objetiva, conceito êsse em que os conceitos
constitu:intes de operário e capitalista (bem como outros mais) já
não contrastam entre si e se excluem um ao outro, pois o conceito
de capitalismo derivou precisamente da inclusão recíproca dêles um
no outro, e composição de ambos em conjunto.
O relacionamento será assim a operação mental em que se en­
gendram novos conceitos, elabórando-se em conseqüência o conhe­
cimento. Nlas a operação inental, con10 fato .subjetivo que é, e
encerrada como se encontra na esfera mental do indivíduo pensante,
não pode, por si só, engendrar a representação adequada da reali­
dade objetiva. Mas pode configurar um "ensaio" ou uma "tenta­
tiva" de conceito, ensaio ou tentativa que corresponderá ou não à
realidade; que constituirá ou não uma representação adequada dessa
realidade objetiva. Será pois o que ordinàriamente se entende por
conjetura ou hipótese, que não é senão pré-figuração, na mente
do indivíduo pensante, de iJma possível e eventual representação
adequada da realidade objetiva; pré-figuração essa sujeita a pos­
terior verificação experimental e observação da mesma realidade.
Mas como se elabora, e em que consistirá, essa pré-figuração ou
hipótese representativa da realidade objetiva? Ela se constitu:irá
naturain1ente a partir da conceituação preexistente e já elaborada,
e pela maneira em que os conceitos se estruturam, a saber, pelo
reUicionamento. Um relacionamento, no caso, original e ainda não
tentado, e que às vêzes corresponderá, às vêzes não, à realidade
objetiva. Isto é, dará ou não dará dessa realidade uma represen­
tação adequada. É à verificação experimental e observação que
caberá responder.
230 CAIO PRADO JúNIOR

É assim, esquernàticamente ilustrando o assunto, que Marx, re­


lacionando entre si os conceitos de valor de troca (que vem a ser
a proporção em que os bens econômicos são entre si permutados,
e que se mede pelo esfôrço produtivo despendido nos mesmos bens)
e o de salário ( que constitui a contrapartida da f8rça do trabalho
produtivo fornecido pelo trabalhador e que lhe assegura o sustento
necessário), Marx elaborou o conceito de mais-valia. Isto é, elimi­
nando o contraste e exclusão recíproca que· separam e discriminam
entre si os conceitos já anteriormente elaborados e bem conhecidos}
de valor de troca e de salário, o pensamento de Marx realizou a
síntese dêles num sistema de conjunto mais amplo, geral e com­
plexo que os compreende numa unidade e totalidade integrada; a
saber, num conceito extremamente geral e abstrato (o de =is-valia)
em que se contém potencialmente tôda a represenação conceptual
relativa aos fatos do capitalismo. E essa representação mental de
uma feição ou situação da realidade objetiva elaborada no pensa­
mento de Marx a partir da conceituação anteriormente elaborada,
e que Marx encontrou nos economistas seus antecessores, em par­
ticular Adam Smith e Ricardo, se verificou perfeitamente adequada
na experiência, já hoje mais que secular, da humanidade.
Do mesmo modo, em outra ilustração do assunto, Newton, rela­
cionando os conceitos de gravidade (pêso de corpos) e de fôrça
- com que obteve o conceito de fôrça de gravidade , com a -

conceituação referente ao niovimento dos corpos celestes (expressa


e compendiada nas leis de Kepler), Newton elaborou o sistema con­
ceptual que serviria de quadro fundamental à Mecânica clássica, e
no qual se configuram em função uns dos outros, e do conjunto
em que se estruturam, os conceitos de massa, fôrça, tempo, espaço}
velocidade, aceleração . . (103)
.

(103) Note-se bem a maneira com que Éisses conceitos se entrosam e


conjugam na conceituação que constitui a teoria geral da Mecânica, e que
proporciona uma ilustraçflo característica da constituiçflo e natureza relacional
dos conceitos. Nenhun1 dos conceitos referidos têm individualidade e espe­
cificidade próprias, tanto que sümente se podem caracterizar e determinar em
relação de uns com os outros e do conjunto em que se integram. Embora
quando considerados em si, cada um dêles tenha sua individualidade própria
e exclusiva dos demais ( massa não é fôrça, nem tempo, etc., tanto como fôrça
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALltTICA 231

Na operação mental de relacionamento, através de que se con­


figt1ram os conceitos, sejam os já anteriormente elaborados, retidos
na memória e que se evocam, sejam os novos que se elaboram, qual
a intervenção e o papel da linguagem e forma verbal? Essencial­
mente o relacionamento - que é "pensamentó', e mesmo a prin­
cipal e fundamental atividade pensante - independe da linguagem.
A forma verbal contudo - e já nos referiinos a êsse ponto - tem
uma função essencial nas operações do pensamento, pois lhe concede
os pontos de apoio, sem os quais a atividade pensante fàcilmente
se desgarra, e não logra mesmo progredir além de limites muito
estreitos. Segundo se viu, as sucessivas operações de relaciona­
mento partem sempre de relacionamentos antes realizados, e dos
sistemas conceptuais integrados (conceitos) que os relacionamentos
configuram. A linguagem, concedendo como concede forma sensível
a êsses conceitos e sistemas de relações nêles integradas - forma
sensível essa que é das imagens auditivas e visuais da linguagem
oral e escrita - torna muito Ínais fácil, e nos casos mais complexos,
até mesmo possível, a retenção e fixação das relações conceptuais,
permitindo assim o prosseguimento do relacionamento a partir de
bases fixas e estáveis representadas por aquela forma e imagens
sensíveis. Sem êsses pontos de apoio, os relacionamentos sucessivos
se teriam de efetuar em continuação direta e imediata uns dos outros,
tomando necessária sua permanente repetição. Isso que além de
certo limite se tornaria impraticável, é obviado pela forma verbal,
que de certo modo 'icondensa" os relacionamentos anteriores, e os
apresenta em bloco e dados de uma vez por tôdas(104.)

não é massa, nem tempo, etc. e assim por diante), quando coordenados e rela­
cionados na teoria mecânica, êlcs perdem essa sua individualidade, desapa­
recendo sua exclusão recíproca, como se verifica em que não é possível fazer
referência a qualquer dêles, que não importe ao mesmo tempo em referência
a todos os outros. Basta para comprová-lo, considerar a sua conceituação e
definição dentro da teoria mecânica, o que se realiza com equações em que
todos se acham sempre presentes expressa ou impllcitamente, e reunidos.
(104) O papel da forma verbal (em que se inclui a forma gráfica) na
condução da atividade pensante, pode ser avaliado no confronto da resolução
de problemas matemáticos respectivamente pelo método aritmético e pelo
equacionamento algébrico. Neste últüno caso, o relacionamento dos dados
oferecidos no problema proposto se representa co1n expressões simbólicas (fun-
232 CAIO PRADO JúNIOR

Além disso, a linguagem tem a função ele balizar e orientar a


atividade pensante, imprimindo direção, ou dando a natureza dos
relacionamentos interessantes no caso. Isso a linguagem realiza na
base de padrões conceptuais preestabelecidos e consagrados que se
exprimem e registram em formulações verbais retidas por associa­
ção mnemon1ca. Sem êsse balizamento, o pensamento arrisca per­
der-se no infinito desdobramento de possíveis relacionamentos que
sempre se apresentam. Finalmente, permite repassar, por um pro­
cesso mais siinples e preciso, a conceituação elaborada e latente
na memória, que se acha contida nas formas gramaticais e lógicas
da mesma linguagem (l05.) Faz-se possível assim, de maneira mais
expedita e segura, alcançar com ela e evocar aquelas partes da con­
ceihiação e seus conceitos que imediatamente interessam. A lin­
guagem opera nesse c'aso como substituto e auxiliar momentâneo, e
em muitas circunstâncias s11ficiente, da atividade conceptual e das
operações de relacionamento que se acham nela fo1malizadas e por
isso simplificadas.

cionalmente similares à linguagem). Concede-se assim forma expressa e sen­


sível às relações estabelecidas, o que não ocorre na resolução pelo método arit­
mético, onde as operações de relacionamento se efetuam sem apoio algum.
Daí a relativa facilidade da solução por equacionamento, e a dificuldade, e
n1csmo, n1uitas vêzes, impossibilidade de solucionar problemas de certa comple­
xidade pelo método aritmético.
( 105) E:sse assunto se acha desenvolvido no capítulo 15.
18. - LóGICA DIALÉTICA E LóGICA DE HEGEL

Encontramos nas operações de relacionamento, tal como as


descrevemos no capítulo anterior, um procedimento que corresponde
àquilo que a traços gerais e em têrmos filosóficos, se propõe nas
leis fundamentais da Lógica de Hegel. Trata-se apenas, para com­
pletar a correspondência, de dar a essas leis o conteúdo que prà­
priamente lhes cabe, a .saber, um proce,sso 1nental do indivíduo pen­
sante; despindo-as assim do disfarce de fatos do Un.iverso exteriores
ao pensan1ento, com que o idealismo hegeliano as fantasiou. Aquilo
de que Hegel se ocupa em sua Lógica (como aliás em sua obra e1n
geral), não são os fatos da realidade objetiva, e .sim da represen­
tação mBntal dêsses fatos pelo indivíduo pensante; da conceituação
e dos conceitos de que essa representação se con1põe.
Feita essa restrição, a Lógica hegeliana descreve com suficiente
propriedade, e de maneira bastante sugestiva - para quem se ha­
bituou e familiarizou com o pesado linguajar do filósofo -, a inter­
conexão dos sistemas conceptuais que compunham no seu tempo,
e em parte ainda compõem o Conhecimento e a Ciência, ou pelo
menos seus fundamentos. Mas o que sobretudo essa Lógica · nos
apresenta - e é nisso que consiste a genial e ilnorredoura contri­
buição de Hegel para o progresso da cultura humana -, é o sistema
geral e essencial em que a conceituação se dispõe. Sistema êsse
que se exibe na dinâmica segundo a qual os conceitos se sucedem
e engendram uns aos outros no desfilar organizado do pensamento
hu1nano. Hegel, o que de fato realiza em sua obra, é descrever
a atividade conceptual e a dinâmica das operações de relaciona-
1nento de que tal atividade se constitui. E revelou com isso o iné­
todo adequado de pensamento, método êsse que não é senão aquela
inesma dinâmica das operações de relacionamento, colocada em
têrmos lógico-normativos; e que nos fornece a maneira acertada de
234 CAIO PRADO JúNIOR

conceituar, e pois representar mentalmente a realidade objetiva.


Assim Hegel, embora com seu característico e tão confuso linguajar
filosófico-idealista, foi antes de tudo, e ao mesmo tempo, um psicó­
logo e um logicista. E se não com mais, contribuiu para a Psico­
logia com uma hipótese altamente fecunda no que respeita a ati­
vidade do pensamento, pois ela abre amplas perspectivas para a
síntese da Psicologia e da Lógica, cujo isolamento mútuo sempre
constituiu e ainda constitui o maior embaraço oposto ao desenvol­
vimento adequado de ambas as disciplinas. Trata-se pois de uti­
lizar essa hipótese hegeliana, e verificá-la na observação dos fatos
do pensamento. Mas para isso é necessário traduzi-la antes en1
têrmos da Psicologia. É o que tentaremos em seguida fazer.
O modêlo de duas das leis fundamentais da Lógica hegeliana
- a interpenetração dos contrários e a negação da negação - en­
contra�se no desenvolvin1ento da operação de relacionamento de
que nos vimos ocupando no correr dêste livro. Trata-se, quanto à
primeira, da maneira com que evoluem os conceitos, co1n respeito
uns aos outros, ao se proporem no curso da atividade pensante.
Todos os conceitos, por natureza, se excluem reclprocamente, uma
vez que precisamente representam feições ou situações discriminadas
e pois distintas da realidade objetiva. Isso se observa e verifica
muito bem, quando se consideram os conceitos na sua expressão e
forma verbal, quando então êles se apresentam, segundo vimos
corno designação ou no1ne das feições ou situações reais rnental­
ment@ representadas. Uma designação ou nome destina-se precisa­
mente a distinguir e identificar; e pois a discriminar, contrastar
e mlltuamente excluir os objetos designados ou nomeados. Essa
distinção e contraste que os conceitos, considerados em si e na sua
identidade, hnplicam, serão tanto mais acentuados quanto mais
próximos e ligados se encontram, pois é aí que aquela distinção e
contraste se fazem mais necessários, uma vez que há então maior
risco de confusão. É por isso que conceitos muito próximos e inter­
ligados serão ditos por Hegel "em oposição uns aos outros"; que
são entre si ''contrários". Retomando a nossa ilustração do capítulo
anterior, dos conceitos respectivamente de operário e capitalista,
verificamos que por representare1n feições ou situações da realidade
objetiva intimamente ligadas entre si, êles contrastan1 nitidamente
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALÉTICA 235

um com o outro. Na linguagem hegeliana, diriamos ' que esses con-


'

ceitos de operário e capitalista se opõem e são contrários um a


outro.
No entretanto, apesar dessa oposição e contradição, ou antes,
precisamente por isso, os conceitos que por estarem entre si ligados,
entre si contrastam e se contrariam e opõem, pela mesma razão
também se interpenetram. Em nossa illustração com os conceitos de
operário e capitalista, é fácil observar que na medida em que êsses
conceitos refletem e representam adequadamente a realidade objetiva,
ou parcelas da realidade objetiva a que respectivamente se referem,
um depende do outro, e ambos :reciprocamente se compõem e con­
figuram. O conceito de operário é função do de capitalista, como
o de capitalista é função do de operário - em correspondência
adequada com a realidade objetiva onde a observação e experiência
nos mostram que sempre um operário se acha reunido a um capi­
talista, e vice-versa, um capitalista a um operário. Não há operário
sem capitalista, nem capitalista· sem operário, e ambos se determi­
nam e condicionam mlltuamente: o que faz um operário ser ope­
rário, é estar a serviço de um capitalista; tanto quanto o q·ue faz
um capitalista ser capitalista, é ter a seu serviço um operário (106.)
Uma ilustração do mesmo assunto colhida em outro setor da
realidade objetiva e da conceituação que lhe diz respeito, comple­
tará, assim pensamos, o esclarecimento da questão. Consideremos
os fatos físicos, e a Física, disciplina científica que se ocupa dêsses
fatos. Dois conceitos fundamentais da Física, espaço e tempo, são
nitidamente contrastantes e se identificam bem à parte um do ouu·o.
Isso _aliás em correspondência bem ajustada às feições ou situações
reais que aq-uêles conceitos respectivamente representam na esfera
conceptual, uma vez que essas duas feições ou situações são bem

(106} Não vamos naturalmente entrar aqui em distinções e pormenores,


para n6s perfeita1nente dispensáveis, relativos à estrutura do sistema capitalista;
e considerar por exemplo o caso do capitalista que não tem relações diretas
com operários, e sim por interpostas pessoas ou organizações que manejam seu
capital e o faze1n frutificar. To1nada a sociedade capitalista em conjunto,
onde há um capitalista, há necessàriamente operál'ios trabalhando para êle,
seja direta ou indiretamente. E vice-versa, todo operário trabalha natural­
mente para algum capitalista, pois doutro modo não é "operário" no sentido
técnico do têrmo.
236 CAIO PRADO JúNIOR

distintas urna da outra. Ninguém confundirá, na sua observação


e experiência, aquilo que designa por "tempo'', com aquilo que
designa por "espaço", O tempo que uma planta leva para crescer,
é bem diferente do espaço que ela ocupa. Ora é precisamente na
base da i:nterpeneh·ação mútua dos dois conceitos de tempo e es­
paço, que se funda todo o principal e fundamental capítulo da Física,
q�e Vem a ser a Mecânica. O que se verifica no fato que os con­
ceitos de movimento e fôrça (veja-se bem, "'conceitos", e não sim­
pI�s intuições sensíveis)� conceitos êsses que dão todo o conteúdo
da Mecânica, não são mais que coordenação e con1posição em con­
junto dos conceitos de espaço e tempo. Interpenetração portanto.
A interpenetração dos contrários> como lei lógica, não exprime
assim senão a maneira pela qual se dispõe a conceituação ou repre­
sentação conceptual; e como ela internamente se articula. Portanto
a lei lógica da interpenetração dos contrários descreve a dinân1ica
da atividade conceptual, segundo que os conceitos se compõem entre
si no processo de geração, ou inelhor, de evocação da conceituação,
e progresso da mesma atividade. Descrição essa que con·esponde,
co·mo logo se vê, ao que observamos na operação de relacionamento
analisada no capítulo anterior. Nlais precisa1nente, que corresponde
ao primeiro momento ou fase daquela operação, quando os con­
ceitos se confrontam e entre si se entrosam.
A fase seguinte e final da operação de relacionamento consiste na­
quilo que Hegel batizou em têrmos filos6ficos, de negação da nega­
<i
ção ue é a segunda lei dialética acima refe1ida. Trata-se do ino1nen­
to em que os conceitos uma vez entrosados e integrados e1n conjunto,
compõem u1n novo sistema conceptual distinto dos anteriores que
entraram em sua composição, e os engloba numa unidade e novo
conceito que então se configura. A designação dada por Hegel
a essa fase se justifica - ou pelo menos se compreende - porque
os conceitos elementares e componentes do novo conceito, pelo fato
de serem distintos, e assim "contrários" (vimos aciina o porquê dessa
«contradição"), .se nega1n mlltuamente. A superação e supressão
dessa negação se realiza no novo conceito, que har1nonizando aquê­
les conceitos anteriores que se opõem e negam, nu1n conjunto e
sisten1a único em que êles se integran1, nega a negação anterior.
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALÉTICA 237

Resta-nos considerar a terceira e última lei fundamental da Dia­


lética, a transfo1mação da quantidaclc em qualidaclc. Esse assunto
é mais complexo, e requer alguns esclarecimentos preliminares acêrca
da natureza respectiva das conceituações qualitativa e quantitativa,
e das relações entre ambas. A conceituação qualitativa constitui
o sistema conceptual geral em que se dispõem e coordenam entre
si as representações mentais das feições e situações da realidade
objetiva, em função de suas diferenças e das correspondências entre
umas e outras. A representação dessas diferenças e correspondên­
cias segundo que as feições e situações da realidade objetiva se
discriminam e coincidem entre "Si? constitui as qualidades (107.)
É na base da qualidade que se estrutura a maior e fundamental
parte da conceituação. E isso se reflete de maneira direta e muito
destacadamente, segundo se viu no capítulo 15, na linguagen1 ordi­
nana. Mas a par da qualidade, propõe-se no processo de discrimi­
nação e identificação dos objetos do pensamento (isto é, discrimi­
nação e identificação das feições e situações da realidade objetiva),
a quantidade, que vem a ser uma subdivisão da qualidade. Naquela
discriminação e identificação dos objetos do pensamento, insere-se,
ou pode-se inserir uma subdiscriminação no interior da qualidade.
Em outras palavras, a mesma qualidade comporta quantidades dife­
rentes, de tal maneira que feições e situações objetivas "qualitati­
vamente" idênticas ou análogas, isto é, da mesma "qualidade", po­
derão ser discriminadas e entre ·Si distinguidas segundo suas res­
pectivas "quantidades". Assim por exemplo uma árvore se distingue
de outros 'objetos pelas suas qualidades próprias - vegetal, tronco
lenhoso encimado por uma copa formada de galhos e fôlhas, etc. -.
Mas duas ou mais árvores, embora tôdas com essa mesma quali­
dade de "árvore", poderão distinguir-se entre si por seu "porte'' ou
"tamanho", o que constitui uma discriminação quantitativa) isto é,
segundo a "quantidade" de suas dimensões ( 108 ) .
Ora a conceituação quantitativa se fêz objeto de uma larga e
específica elaboração, realizada em grande parte à margem da con­
ceituação qualitativa e independentemente dela. Refiro-me à Ma-

(107) Veja-se a respeito o capítulo 15, pág. 200,


(108) Sôbre a natureza e origen1 da conceituação quantitativa, ver Dia­
lética do Conheciniento, ob. cit., en1 especial, I, 198 e segs.
238 CAIO PRADO JúNIOR

temática. Não entraremos aqui na consideração das circunstâncias


e estímulos histórico-culturais que levaram a evolução do Conhe­
cimento humano por êsse rumo. O certo é que para isso contribuiu
decisivamente o fato de a conceituação quantitativa, e sua expressão
verbal e gráfica, superarem e corrigirem em boa parte a deformação
produzida na concepção e representação mental da realidade obje­
tiva, pela simples conceituação qualitativa tomada em si e por si,
como ocorreu durante séculos de elaboração cultural da humanidade.
Na conceituação quantitativa, isto é, na representação quantitativa
dos objetos do pensamento, faz-se possível, a rigor, dispensar a qua­
lificação. As feições e situações da realidade objetiva se ?onside­
ram Unicamente segundo suas "quantidades" respectivas. E em­
bora isso acarrete inconvenientes de outra natureza (que logo ve­
remos ) , tem como vantagem obviar ao fracionamento e pulveri­
zação da realidade objetiva em "coisas" ou "entidades" estanques
e entre si isoladas, o que o apêgo exclusivista à qualificação traz
como tendência muito acentuada, .segundo vimos em capítulo ante­
rior. As qualidades, por sua própria natureza e destinação, distin­
guem e discriminam; introduzam por isso na realidade objetiva uma
divisão que nos limites estritos da qualidade, se mostra insuperável.
Ora a conceituação quantitativa, embora gerada no seio da concei­
tuação qualitativa, e dela oriunda, se sobrepõe à qualificação e sua
função discriminadora. Isso porque tendo ela por objeto unica­
mente a discriminação interior da qualidade, coloca tildas as quali­
dades• no mesmo plano, e faz ou pode fazer delas abstração. Con­
sideradas na sua estrutura interna, isto é, nas suas diferenças inte­
riores, as qualidades se equivalem e por isso se confundem: um
monte de cinco pedras, ou cinco graus de temperatura são quantita­
tivamente o mesmo. Assim a quantidade, embora discriminando,
como discrimina indiferentemente, e pelo mesmo padrão, tôda e qual­
quer qualidade, de fato as congrega e refunde num conjunto, res­
tabelecendo com isso a visão e concepção da unidade da realidade
objetiva, seccionada e desmembrada pela discriminação qualitativa.
Esta é a razão profunda por que, de um lado, a natureza relacional
da quantidade é tão mais aparente que a da qualidade, onde o rela­
cionamento tende sempre a se disfarçar atrás da função discrimina­
dora; e doutro, porque a quantidade tomará em tão larga escala
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LóGICA DIALÉTICA 239

o lugar da conceituação qualitativa que constitui a forma originária


do conhecimento humano. E servirá de ponte que permite ao Co­
nhecimento saltar por cima do divisionismo que a qualidade intro­
duzira na realidade objetiva.
Todavia a reintrodução, pela conceituação quantitativa, da uni­
dade da realidade objetiva desmembrada pela conceituação quali­
tativa, é de uma "unidadé' essencialmente estável e imutável. Abs­
traindo da qualidade, e portanto das mudanças de qualidade, a con­
ceituação quantitativa exclui e não leva em conta o que há de essen­
cial nos processos de que se constitui a realidade objetiva: a trans­
formação qualitativa, a passagem de uma qualidade para outra.
Essa transformação é escamoteada, e os processos através de que
se realiza, são reduzidos, ou tendem a sl-"-lo, a simples mudanças de
quantidade. A expressão máxima e mais completa dessa concepção
deformadora da realidade objetiva, se encontra na Física, que ela­
borada na base da conceituação quantitativa - isto é, procurando
e realizando efetivamente a redução da qualidade à simples quan­
tidade -, figurou um Universo cujos fatos componentes se consti­
tuem Unicamente de variações quantitativas. Variações essas para
as quais se buscou um suporte concreto e "materiaf' na extensão (l09.)
A "extensão" seria a única qualidade real, e subst1'atum de tôdas as
demais que se caracterizariam e distinguiriam entre si tão-sómente
pelas respectivas "quantidades de extensão''. Resulta daí a redução
de tôdas as modificações - e portanto de todos os fatos e processos
reais - à simples mudança local, ao deslocamento no espaço em
que a extensão se configura, seja pela progressão (ocupação suces­
siva de espaços diferentes, o que vem a ser o movimento local),
seja pelo crescimento ou amplificação do espaço ocupado.
O mais grave contudo do quantitativismo, ou antes, do modo
com que se constituiu, à margem pode-se dizer da conceituação
qualitativa, foi sem dúvida o contraste irredutível que por fôrça

( 109) Como se sabe, foi Descartes quem deu a essa concepção a forma
acabada que se perpetuaria. - Sendo a quantidade uma discriminação inte­
rior da qualidade, segundo se viu, a generalização e universalização da con­
ceituação quantitativa impunha a determinação de un1a qualidade geral e uni­
versal de que tôdas as quantidades fôssem discriminação interior. Essa quali­
dade geral e universal, e por isso mesmo única, seria a extensão.
240 CAIO PRADO JúN!OR

dêle se estabeleceu entre as duas categorias conceptuais. Já sem


contar os embaraços que isso determina para a harmonização da
expressão verbal ordinária - a da linguagem vulgar e corrente que
é fundamentalmente qualitativa -, com a expressão mate1nática (que
constitui a forma expressiva geral e essencial da conceituação quan­
titativa), embaraÇos êsses de que as infindáveis dúvidas e os estéreis
debates no terreno da Física n1oderna e da filosofia matemática são
uma ilustração flagrante, o dualismo da qualidade e da quantidade,
colocado nos têrmos em que se encontra, representa séria dificuldade
oposta à elaboração do conhecimento de nossos dias, isto é, à ela­
boração de uma conceituação capaz de dar conta adequada da ampla
experiência, que se vem precipitadamente acumulando. A supe­
ração daquele dualismo, de maneira ordenada e coerente, se mostra
em muitos casos irrealizável, o que determina graves inconvenientes.
A tão sensível crise da cultura contemporânea, que se manifesta
partícular1nente no domínio dos fatos humanos, te1n aí uma de suas
principais 1·aízes teóricas.
Orà é precisamente aquela superação do dualismo da quali­
dade e da quantidade, isto é, a coordenação e sistematização em
conjunto coerente da conceituação quantitativa e qualitativa, que
se acha prevista na terceira lei dialética acima referida, a saber, a
transformação da quantidade em qualidade. O que se traduz na
circunstância que tôda qualidade comporta sempre certos limites
quantitativos, além dos quais ela se transforma em outra qualidade.
Aplicaçla essa concepção, à guisa de ilustração, à realidade objetiva;
temos por exemplo a conceituação, tão conhecida e simples, relativa
ao fato de os corpos mudarem de estado físico, isto é, se ti·ansfor­
mare1n qualitatlvamente, além de ceitas limites quantltat·ívos de
temperatura - a água se transforma em vapor a 100° Cent, e e1n
gêlo a 0°.
A generalização dessa concepção e maneira de visualizar a rea­
lidade objetiva, resulta em que considerada sob o ângulo da lei
dialética da transformação da quantidade em qualidade, as qu!tli­
dades (e pois as coisas, entidades ou sêres em que qualitativamente
se discrimina a realidade objetiva), perdem a natureza fixa e estável
que lhes é atribuída nas concepções clássicas da Filosofia e da L6-
gica. E se apresentam como simples estados ou situações momen-
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA DIALl':TICA 241

tâneos, em transformação incessante por fôrça de_ suas mudanças


interiores de quantidade.
Verifica-se por ai que a lei dialética da transformação da quan­
tidade em qualidade permite não sàmente coordenar a quantidade
e a qualidade (pois a quantidade não se apresenta na lei senão como
qualificação da quatidade; em outras palavras, como nma discrimi­
nação e distinção no interior da qualidade, e dela mesma com re­
lação a si própria), como ainda rompe o caráter estático do rela­
cionamento quantitativo (a que se fêz referência mais acin1a, e que
constitui o vício essencial ·da conceituação quantitativa quando ex­
clus.iva da qualidade.) Isso permite tarnspor aquêle relacionamento
quantitativo para um plano dinâmico, oferecendo assim um sistema
conceptual apto para a representação adequada dos processos de
que essencialmente se constitui a realidade objetiva, processos êsses
que se conceituarão pela transformação qualitativa gerada no seio
da mudança quantitativa.
Para ilustrar isso concretamente com uma instância de max1ma
dificuldade e complexidade de conceituação da realidade objetiva
( o que corresponde à "explicação" ou "teoria" dessa realidade), con­
sidere-se o caso da evolução histórica das instituições sociais. À luz
da dialética da transformação da quantidade em qualidade, essa
evolução se conceituará (e pois "explicará") muito simplesmente e
claramente, pois a passagem ou transição de uma para outra insti­
tuição (do feudalismo para o capitalismo, ou do capitalismo para
o socialismo, por exemplo) não se considerará mais como "substi­
tuição" de uma organização social por outra diferente - concei­
tuação essa prenhe de dificuldades, obscuridades e inconsistências
- e sim como "transformação" de uma qualidade (no caso, a orga­
nização que desaparece) em outra que lhe toma o lugar por fôrça
da mudança quantitativa dos índices da primeira, alé1n dos limites
que ela comporta, a saber, pelo crescimento da população, intensi­
ficação das relações econômicas e políticas, progressão das ativi­
dades, etc. É essa a inaneira de considerar a realidade objetiva,
e portanto de conceituar as feições, sih1açõcs e processos que a
compõem, que a lei dialética da h·ansformação da quantidade em
qualidade proporciona.
242 CAIO P RA D O JÚNIOR

Essa lei exprime assim um método de pensamento, uma norma


de condução da atividade pensante e das operações que a constituem,
e que tem por fim a conceituação e representação mental adequadas
da realidade objetiva. O mesmo ocorre com as duas outras leis
dialéticas que vimos anteriormente. O pensamento constitui uma
função orgânica do homem, e corno tal, ela decorre natural e espon­
tâneamente da própria natureza humana; mais precisamente, ela
deriva dos processos biológicos de que o organismo humano é sede.
Mas quando a essa naturalidade e espontaneidade da função pen­
sante, se acrescenta a consciência e o conhecimento de sua dinâ­
mica, do modo de ser de sua atividade, faz-se possível conduzi-Ia
e a tomar mais eficiente; e com um mínimo de esfôrço e máximo
de rendimento, segurança e acêrto, alcançar a representação mais
adequada possível da realidade objetiva, que é o que constitui a
função específica do pensamento.
Aquêle conhecimento é objeto da Psicologia, mas a transpo­
sição dêle em normas condutoras da atividade pensante, isso repre­
senta a finalidade visada pela Lógica Dialética.
19. - FISIOLOGIA DO PENSAMENTO

Procuraremos no presente capitulo referir os fatos do pensa­


mento de que se tratou até agora, aos processos fisiológicos de que
derivam. Uma vez que não é · possível, no estado atual dos conhe­
cimentos relativos ao sistema nervoso central, sede da atividade
pensante, abordar o assunto diretamente, somos obrigados a nos con­
tentar com simples conjeturas de grande generalidade e bastante
imprecisas. Mas assim sendo, qual o interêsse dessas conjeturas?
Primeiramente, porque elas põem em foco a identidade dos pro­
cessos psicológico e fisiológico, que na realidade constituem mn
único fato considerado de ângulos distintos. Não vamos discutir
aqui essa identidade, assunto essencialmente polêmico e que envolve
matéria extracientífica ligada a convicções se não expressamente
religiosas, pelo menos de raízes e origem em crenças e preconceitos
fideístas. O que nos autoriza a afirmar e aceitar de início a iden­
tidade psicofisiológica, como ponto de partida das conjeturas a res­
peito da correspondência entre as duas ordens de fatos - os psi­
cológicos e os fisiológicos - é a circunstância que realmente, e há
muito tempo, Psicologia e Fisiologia do sistema nervoso central
convergem uma para a outra. E o terreno comum em que ambas
s e encontram e cónfundem, se amplia cada vez mais. Não é assim
possível ignorar as relações entre as duas ordens de fatos que se se
acham ainda de certo modo apartados e afastados entre SI, Isso se
deve Unicamente às limitações de nossos conhecimentos científicos
a respeito do assunto.
Doutro lado, tanto quanto não é possível à Fisiologia ocupar-se
do sistema nervoso central sem tomar em consideração as funções
dêsse sistema em que o pensamento ocupa, no homem, a posição
central e essencial, assim também não podemos nos ocupar do pen­
samento, que é uma função biol6gica (se não, o que será?) sem
244 CAIO PRADO JúNIOR

referência à base fisiológica e1n que essa função assenta. Psicologia


e Fisiologia devem pois tomar-se mlltuamente e1n consideração, e
encaminharem suas pesquisas e indagações em função uma da outra,
procurando ligar-se e se harmonizar, mesmo que isso não se faça
por enquanto, e na maior parte dos casos, senão através de simples
conjeturas relativamente às eventuais correspondências entre os fa­
tos observados e verificados respectivamente num e nouh·o campo.
Essas conjeturas terão se1npre, e pelo menos, o significado e o
mérito de abrir perspectivas para futul'as observações e experimen­
tações.
Do ponto de vista da Psicologia, que é o que nos interessa· aqui
particularmente (pois é nela que procuramos assentar a teoria do
conhecin1ento e a Lógica) a consideração dos fatos fisiológico.s e da
eventual correspondência que nêles poden1os encontrar com os fatos
do pensamento revelados na observação pràpriamente psicológica,
tem a vantagem de dar maior precisão e rigor à análise dêstes últi­
mos. Ela fornece, como se verá, um conteúdo mais concreto a
certas circunstâncias e noções que em têrmos puramente psicológicos
apresentam incertezas e imprecisões. Isso diz respeito, entre outros
e particularmente, àquilo a que nos temos referido com a desig­
nação de «relacionamento conceptual", isto é, o sistema de relações
em que se dispõe a conceituação.
Nessas condições, o que pretende1nos no presente capítulo, é
indicar, en1bora apenas com conjeturas mais ou menos plausíveis,
quais �s processos fisiológicos que podem ser tidos co1no correspon­
dentes, no plano da observação fisiológica, . aos fatos do pensamento
tal como os descrevemos no curso dos capítulos anteriores. Na de­
terminação dessa correspondência, será preciso tomar em conside�·a­
ção as seguintes circunstâncias essenciais que se revelam na obser­
vação dos fatos psicológicos:
1.
- O pensamento se confunde com «atividade conceptuaF',
de que é apenas outro nome. Isso foi amplamente caracterizado no
curso de nossa análise anterior, e podemos resumi-lo aqui na exce­
lente expressão do Prof. J. B. Pratt: "Como de fato nos é passive]
pensar? Certa1nente .só por meio de conceitos! O conceito é assim
. não o objeto de nosso pensamento, mas o meio de pensarmos; e ter
NOTAS INTRODUTóRIAS Ã LÓGICA DIALJ';TICA 245

o conceito de um amigo, é pensar nêle" (110.) Assim o correspon­


dente do pensa1nento, nos processos fisiológicos, ·deverá ser pro­
curado naquilo que nesses processos corresponde ou pode corres­
ponder ao conceito, à conceituação e seu dinamismo.
2. - O conceito é um fato dinâmico, implica um rnovhnento
e processo, sendo -asshn muito mal caracterizado pelas expres­
sões usuais co1n que se costuma figurar a sua função repre­
sentativa do mundo exterior, como sejam «imagem", «impressão",
"reflexo'', que dão t6das idéias de algo estático e fixo. Como se
viu em nossa análise, o conceito se revela à observação psicológica
con10 uma atividade, um movimento do pensamento. E isso 11á de
ser levado em conta na determinação de seu correspondente fisio­
lógico.
3. - Os conceitos não constituem elementos autônomos e como
que dispostos, no Conhecimento, um ao lado do outro, e entre si
nitidamente diferenciados e separados tal como faz crer sua expressão
verbal en1 vocábulos que inUtuamente se excluem. Pelo -contrário
os conceitos se compõem uns aos outros, se interpeneh·am e con­
fundem, formando entre si sistemas de conjunto que constituem
outros tantos conceitos, e que se enh·osam e coordenam uns com
os outros para formar sistemas inais amplos que são tambén1 con­
ceitos inais gerais. En1 suma, os conceitos não são -senão partes
rnais ou n1enos amplas do sistema geral em que tôda a conceituação
em conjunto se estrutura, partes essas que se compõe1n mUtuamente
e mutuamente se condiciona1n.

4.- Isso todavia não exclui o fato de que os conceitos conservam


cada qual lnna individualidade e identidade próprias. Nesse sen­
tido, os conceitos .se discriminan1 e se distinguem uns dos outros.
Ê precisamente nesse duplo aspecto dos conceitos, ao mesmo tempo
simples partes de um conjunto, e nêle e por êle se configurando; e
doutro lado, constituindo elementos individualizados que entre si
se discriminan1, é nisso que coniste a natureza própria e caracte­
rística da conceituação tal co1no ela se apresenta à observação psi-

(110) J. B. Pratt, Essays in C1·itical Realis1n, London, 192.0, pág. 97,


cit. p. George G. Ca1npion and Sir Grafton Elliot Snllth, F. R. S., The Neural
Basi,s of Thoughat, London, 1934, pág. 41.
246 CAIO PRADO JúNIOR

cológica; e que deve portanto encontrar sua correspondência e con­


trapartida na fisiologia do sistema nervoso central que é onde os
conceitos têm suas raízes.

• • •

Para dar conta do dinamismo de que o fato conceptual se cons­


titui, parece lícito recorrer, no terreno fisiológico, à consagrada hi­
pótese dos "fluxos nervosos", que embora não se possam caracterizar
precisamente, designam de maneira suficientemente sugestiva a tran­
sição dos fatos nêuricos de um para outro ponto dos tecidos ner­
vosos; no caso, o córtex cerebral onde se centralizam os processos
pensantes, e onde portanto a conceituação tem sua sede.
Os conceitos se identificariam então, segundo essa hipótese, com
os fluxos nervosos que transitam pelo córtex. :E:sses fluxos seguiriam
vias que se vão estabelecendo no correr da existência do indivíduo
pensante, formando uma densa trama predisposta a canalizar aquêles
fluxos. É essa "predisposição" que constituiria a «memória", po­
dendo-se conjeturar que o apêlo à memória e a evocação do con­
ceito - isto é, a cha1nada dêle à consciência - resultariam do fato
de a via respectiva, ou conjunto de vias correspondentes a um certo
conceito, serem percorridas por fluxos de suficiente intensidade. A
atividade conceptual (pensamento) consistiria assim no trânsito dos
fluxos nervosos pelas diferentes vias traçadas no córtex. A intensidade
dêsses.fluxos, conforme as ocasiões, seria variável - podendo mesmo
admitir-se uma intensidade nula. De uma intensidade acentuada e
acima de um limite mínimo, decorreria a «consciência" da concei­
tuação correspondente às vias assim animadas por fluxos suficien­
temente intensos. Essa conjetura permite dar conta tanto do pen­
samento "consciente", como de atividades mentais análogas que se
desenrolam em nível subliminar, não sendo por isso ordinària1nente
incluídas naquilo que pràpriamente se designa por "pensamento",
embora sejam essencialmente da mesma natureza. As tão conhe­
cidas observações do matemático francês Poincaré a propósito de
sua atividade mental no curso de trabalhos intelectuais, observações
essas repetidas depois tantas vêzes e confirmadas por outros obser­
vadores, comprovam alé1n de qualquer dúvida a ocorrência de pen-
NOTAS INTRODUTóR!AS À LÓGICA DIAL!!:TICA 247

sarnento racional subliminar perfeitamente análogo àquele que se


desenrola na consciência. Sendo que um nada mais é que prolon­
gamento do outro, sem nenhuma solução de continuidade. A nossa
conjetura acima proposta, permite dar perfeitamente conta dêsse
fato, bem como de outros semelhantes.
Ela dá conta igualmente da íntima conexão interna da concei­
tuação, do emaranhado dos conceitos e infinita variedade e comple­
xidade de seu inter-relacionamento, No plano da observação psico­
llógica, isso se revela, como tivemos ocasião de referir, na conside­
ração e análise de um dicionário analógico ou de "idéias afins", como
é freqüentemente designado, ollde através da expressão verbal dos
conceitos, é possível observar como êsses conceitos se formam, en­
trosam, compõem entre si, e se configuram em função llns dos outros
e da imensa variedade de relações que entre .êles ocorrem. É per­
feitamente plausível reportar essas ciTcunstâncias à trama, que se
pode figurar igualmente complexa, em que se dispõem as vias con­
dutoras dos fluxos nervosos em que os conceitos se propõem.
Nem se sacrifica, com isso, a individualidade dos conceitos, in­
dividualidade que a observação psicológica amplamente comprova,
e que se pode conjeturar, no terreno dos fatos fisiológicos, como
resultante da circunstância de as vias se conjugarem em trajetos
encerrados sôbre si mesmos, de tal maneiTa que o fluxo nervoso
lançado por êsses trajetos, realize circuitos fechados, e assün se
particularize à parte dos demais. Tais circuitos transitados pelo
fluxo nervoso, configurariam então os conceitos na sua individuali­
dade e especificidade próprias. Sem contudo os isolar, pois as mes­
mas vias se disporiam igualmente em circuitos distintos, isto é,
participariam em parte ou na sua totalidade e conjunto, de outros
circuitos, compondo assim, como a circulação nêles do fluxo nervoso,
conceitos diferentes, mas intimamente enh·osados com os primeiros
e co1n êles se compondo. A trama das vias nervosas do córtex se
disporia assim nmna multiplicidade de trajetos particularizados que
os fluxos nervosos perco1Teriam em circuito fechado; resultando
do encerramento de cada circuito, um conceito particular. Pode­
mos inserir nesse esquema a linguagem e sua função (tal como a
descrevemos anterionnente), supondo cada circuito do fluxo nervoso
248 CAIO PRADO JÚNIOR

associando-se a uma expressão verbal que designaria o conceito


respectivo.
.E:sse conjetural esquema fisiol6gico do pensamento, dá conta
adequada dos fatos psicol6gicos que observamos no curso dêste livro.
E permite mesmo, em muitas instâncias, co1npreendê-los melhor ___:_
do mesmo modo que a hipótese da "corrente elétrica" faz possível
a interpretação de muitos fatos físicos, e os torna mais claros - .
.
É o caso e1n particular da relação conceptual e ela operação de rela.,.
cionaniento. Referida à trama das vias nervosas do córtex, e aos
fluxos que percorrem essas vias, configurando co1n isso os conceitos,
a telação conceptual não seria senão a disposição entre si dos cir­
cuitos acima referidos, a maneira com que êsses circuitos se coor­
denam para formar outros circuitos que englobam os primeiros. Mas
que "englobam" não no sentido de simplesmente u1n "conter" o outro,
conservando-o tal qual embora encerrado em si. Coordenados uns
com outros, e integrados e1n conjunto, os circuitos perderiam no novo
circuito assim formado, sua particularidade e individualidade ori­
ginais. Isso corresponde perfeitamente ao fato do 1·elacionamento,
operação psicológica· essa que consiste, conforme vimos, em inte­
grar num todo, que dará um novo e distinto conceito, os conceitos
anteriormente dados. Le1nbremos a propósito, entre outros e mais
uma vez, o experimento de Dallembach ( cap. 4, pág. 57) em que
se observa a integração numa totalidade e novo conceito (o de «opo­
sição"), dos conceitos elementares de "grande" e "pequeno", ou de
"bom", e "mau", conceitos elementares êsses que se desfazem e desa­
parecem completamente naquele novo conjunto que constituíram.
Dissemos então, interpretando êsse fato, que o conceito de "oposi­
ção" consiste na relação que articula e entrosa um com o outro, os
conceitos de "grande" e «pequeno", tanto como os de "bom�' e "mau",
e assim ot1tros pares análogos de conceitos. Diremos agora, relati­
vamente ao co1Tespondente fisiológico do mesmo fato, que dois cir­
cuitos nervosos (em outros casos o número será maior) se coorde­
naram entre si, constituindo novo e distinto circuito que se comporá
e1n conseqüência da "disposição" relativa dos circuitos constituintes,
da "maneira" com que êsses circuitos se coordenam entre si.
A transição do fluxo nervoso pelos diferentes circuitos que as
vias do córtex configura1n, corresponde adequadamente à atividade
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LóGICA DIALETICA 249

conceptual (desenrolar do pensamento) que se apresenta à obser­


vação psicológica corno uma sucessão de conceitos compondo-se entre
si de diferentes modos, gerando-se mU.tuamente e passando um no
outro através das relações que os articulam entre si. Anàlogamente
os fluxos que respectivamente percorrem os diferentes trajetos das
vias nervosas, fechando-se em circuito, ao confluírem configuram
novos conceitos em que os anteriores se confundem, no todo ou em
parte. E essa sucessão dará o desfilar dos conceitos, a atividade
conceptual ou pensamento.
Quanto à elaboração de novos conceitos (o que constitui, como
se viu, o essencial da elaboração do conhecimento) essa Tesultaria
do estabelecimento de novos circuitos, seja pela abertura de novas
vias nervosas, seja por modificação dos trajetos anteriores que em­
pregando embora as mesmas vias, configurariam circuitos diferentes.
Essas duas ocorrências seriam mesmo em regra concorrentes e de­
terminando-se mlituamente. Isto é, tanto o estabelecimento de uma
via nervosa original levaria a uma reestruturação dos trajetos ante­
riores, e portanto à formação de outros circuitos; como uma modi­
ficação dos trajetos por vias já presentes, estimularia a abertura de
novas vias.
A generalidade dos fatos da elaboração do conhecimento, tal
como êles se apresentam à observação psicológica, cabe suficiente­
mente bem dentro dêsse hipotético dinamismo fisiológico.
íNDICE ANALíTICO

Abstração, 95, 97, 98, 99, 101, 104, Enteléquia, 19.


105, 133, 142, 147, 151, 153 200, Entidade, 175 n., 196 n., 213, 2-14,
216, 217, 218. 215, 217, 218, 220, 222, 238, 240.
Ação, 17, 133, 213, 216, 217, 220, 222. "escolha múltipla" (experin1ento psi-
Adestramento, ver Aprendizageni. cológico), 140, 144.
Afirmação, 202, 203. Espiritualismo, 108 n.
Aglutinação ( Lingüística), 80. Essência, 24 n., 29, 31, 179, 218.
Analogia, 63-64.
Existência, 24 n.
Analogias, teste de, 56, 58, 85, 93, 99.
Existencialismo, 24 n.
Animismo, 17.
Aprendizagem, 94, 119 e segs., 139, Explicação (científica}, 132, 241.
141, 144, 145, 147, 148.
Fenomenalismo, 24 n.
Associação, 115 e segs., 137, 138, 206,
207, 220, 225 n., 228, 231. Fonema, 74, 82 n., 100.
Associacionismo, 107 n., 111, 118, 119, Fonna 16gica, 201 e segs., 207, 208.
145, 147, 148 n. Formas gramaticais e lógicas, 69-70,
Axiomatismo; 98, 210. 71, 85 n., 163-164, 165, 166, 199,
200, 208, 209, 232.
Classe (lógica), 189, 190, 191-192, Frase, 71, 72, 81, 82, 84, 85, 100,
193, 208. 104, 105 n., 110, 111.
Coisa, 175 n., 213, 214, 215, 216, 217, Função proposicional, 85 n,
218, 219, 220, 222, 238, 240.
Compreensão ( Lógica ) , 67, Generalização, 94, 97, 101, 148, 153,
Conjunção, 167 n. 155, 156, 200.
Conotação, 67, 189.
Contexto, 73, 74, 75, 81, 83, 170, 178. Hipótese, 229.
Contradição, princípio da, 203. I-Ion1e1n, conhechnento do, 218-219,
Contradição dialética, 234, 235, 236.
Cópula, 173, 174n., 186. Idealismo, 109, 152 n., 234.
Identidade, 27, 28, 29, 30, 132, 135,
Decoração, 117-118, 122 n., 145, 136, 137, 149, 152, 153, 155, 156,
149 n., 205, 207, 212. 160, 167, 174, 175, 176, 177, 178,
Definição, 55, 65, 67, 99, 172, 178, 179, 180, 182, 183, 185, 186, 187,
179, 186 n. 189, 190, 191, 193, 194, 195, 196,
Denominação, 57, 172. 200, 201, 202, 205, 206, 207, 219,
Denotação, 189. 221, 228, 234, 245.
Designação, 55, 57, 95, 99, 100, 127, Identidade, princípio da, 203 n.
130, 168, 169, 187, 222, 234. Identificação, 8, 9, 11, 13 n., 15, 22,
23, 123 e segs., 182, 183, 189, 193,
"ensaios e en·os", 50 n., 144, 148, 194, 200, 201, 222, 234, 237.
149. Inteligência, 147, 148, 150, 161.
252 CAIO PRADO JúNIOR

Interjeição, 168 n. 182, 186, 190, 191, 193, 194, 195,


Introspecção, 38, 91. 197, 199, 201, 202, 203, 204, 207,
208, 211, 213, 214, 215, 216, 217,
Juízo, 71, 211. 220, 221.
Julgamento, 71, 80 n., 211. Qualidade, 9, 200, 201, 202, 206, 220,
237 e segs.
Linguagem e pensan1ento, 72, 157- Quantidade, 237 e segs.
158, 179, 212, 223, 231.
Lingüística, 17, 71, 72, 77, 80, 82n., Raciocínio, 70, 71, 122 n., 208, 211,
161, 172, 179 n. 224.
Logística, 35, 85 n. Raiz, 70, 74, 78, 82, 85.
Reconhecimento, 91, 92, 93, 123 e
:tdatemática, 21, 65, 97, 100 n., 118, segs., 222.
121, 142, 143, 147, 151, 185, 186, Reflexo condicionado, 47, 48.
193, 194, 195, 196, 219 n., 224 n., Religião, 18, 243.
231 n., 237-238, 240.
Materialismo, 108 n., 109, 152· n. Se1nantema, 78-79.
:tviccanicismo, 19, 239. Sentido, 67, 69, 70, 72, 73, 74, 75,
Men1ória, 36 n., 39, 91, 101, 119 n., 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 101,
127, 146, 204, 205, 207, 223, 231, 102, 104, 105, 106, 111, 112, 114,
115, 129, 132, 135, 136, 158-159,
232, 246. 168, 169, 170, 171, 172, 178, 183,
11emolização, ver Decoração. 185, 191 n., 195, 196, 206, 212.
Metafísica, 6, 7, 8, 213, 218. Ser, 14, 22, 23, 27, 175 n., 213, 215,
M,etáfora, 75. 216, 217, 218, 240.
11Iorferna, 78-79. Sílaba, 70, 74, 77.
rvlovimento {mudança local), 23, 194, Silogismo, 70, 71, 208, 211.
239. Socialismo, 29.
Substantivo, 55,, 214.
Negação, 202, 203. Sujeito, 14, 16, 17, 173, 174, 175,
Negação dialética, 29, 234, 236. 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182,
Nome1 167, 168, 169, 170, 171, 172, 186, 187, 189, 190, 191, 202, 215.
173, 187, 189, 190, 191, 195, 196,
202, 205, 206, 217, 234. Tempo e espaço, 235-236.
Norma lógica, 203-204, 209, 233, 242. Terceiro exclusivo, princípio do, 203.
Têrmo, 71, 80 n., 211.
Oposição dialética, 234, 235, 236.
Transferência, 92, 94, 144, 145, 146,
147, 148.
Palavra, ver Vocábulo.
Transposição, ver Transfer�ncia.
Percepção, 43, 44, 51, 52, 60, 90, 91,
Tropismo, 13 n., 126, 222.
103, 145, 183.
Predicado, 14, 17, 173, 174, 175, 176, Verbalismo, 82 n., 87, 160, 198.
177, 178, 180, 181, 182, 186, 187,
Verbo, 175 n., 215, 217.
188, 189, 190, 191, 193, 201, 202,
215, 217. Vocábulo, 71, 72, 74 e segs., 77, 82,
83, 84, 85, 104, 105 n., 110, 111,
Preposição, 78, 79, 168, 171. 167, 168, 169, 170, 172, 173, 183,
Proposição, 71, 100, 104, 173, 174, 185, 186, 187, 194, 195, 199, 214,
175, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 220.
íNDICE DE NOMES PRóPRIOS

Aristóteles, 12, 14, 19, 25, 33, 35, Kepler, 230.


36, 163, 164, 174 n., 209. Koffka (K.), 108 n.
Kiihler (Wolfgang), 47, 49, 50 n., 149,
150, 151.
Bingham (H. C.), 46, 48, 49, 53, 61,
92, 95.
Birch (H. G.), 148, 150, 151. Lénin, 30.
Bonfante (G.), 80 n.

Martonne (Em. de), 130 n.


Campion (George G.), 245 n. Marx (Karl), 25, 26, 27, 28, 29, 230.
Círculo de Viena, 164. McGeoch (John A.), 120 n., 122 n.,
145 n., 147 n.
Dallembach (K. M.), 57, 59, 93, Í l3,
114, 1 15, 127, 248 n.
de Broglie (L.), 76 n. Newton, 230.
Descartes, 20, 21, 34, 239 n.
Ogden (C. K.), 55, 172.
Einstein (Albert), 224 n.
Engels (Friedrich), 25, 26, 27, 28, 29.
Parn1&nides, 13, 14.
Pavlov (!. P.), 9 n., 47, 53.
Gestalt (Psicologia da), 43, 44, 50 n., Platão, 33, 35, 163, 164, 172, 209.
89, 90, 107 n., 110, 118, 145 n., Poincaré (Henri), 246.
148n. Positivismo lógico, 164; 197.
Guillaume (Paul), 140, 144, 147. Pratt (J. B.), 244.
Protágoras, 163, 209.
Haddamard (Jaques), 224 n.
Harriman (Philip Lawrence), 80 n.
Reichenbach (H.), 214 n.
Hegel, 13 n., 21, 22, 23, 24, 25, 26, Ricardo (David), 230.
233 e segs. Richards (I. A.), 55, 172.
IIeráclito, 14 n.
Hobbes, 159, 212.
Schlosberg (Harold), 4 1 n., 147 n.,
148 n,
Irion (Arthur L.), 120 n., 145 n. Smith (Adam), 230.
Smith (Grafton Elliot), 245 n.
Jeans (James), 76 n. Sócrates, 35, 163, 209.
Sofistas, 163.
Stálin, 7, 30.
Katz (David), 43 n., 44 n. Stuart Mill (John), 1 1 n.
254 CAIO PRADO JúNIOR

Tarnki (Alfred), 197, 213. Wittgenstein (L.), 214.


11wrndike (E. L.), 145. VVoodworth (Robert S.), 41 n., 147 n.,
148n.

Vendryes (J.), 175 n. Zenon de Eléia, 19.


fNDICE

INTRODUÇÃO 1

1. Lógica Dialética e Dk'llética da Natureza 5


2. Lógica clássica e Nova Lógica . . . . . . . . . . . . . 33
3. Natureza das representações mentais 41
4. Natureza relacional da representação conceptual (conceitos) 55
5. --Natureza relacional da conceituação en1 geral ...,....... 63
6. - A linguagem co1no expressão do pensamento e conceituação . . . . 69
7. - Representação sensível, conceptual e verbal 89
8. - Estrutura da representação mental ......... l 03
9. - Relação e elemento. Relacionan1ento e associação 113
10. - Processo de reconhecimento e identificação ......... . 123
11. - Elaboração da representação mental e da conceituação 139
12. Linguage1n: forma do pensamento e conhecimento . . . . . . . . . . 157
13. - Correspondência entre a atividade do pensan1ento e a estrutura
da linguagem (!) . ....... .......... .
. . . . . . . . . . . . . . . . • • . 167
14. --Correspondência entre a atividade <lo pensmnento e a estrutura
da linguagem (II) .......... .. ...... ........ .. .... .. .. .
. 185
15. - Conhecimento e linguagen1 (I) . . ...,.. . . . 197
16. - Conhecimento e linguagem (II) .. ...,.. . 211
17.- Elaboração do conhecimento ........ ........... 225
18. - Lógica Dialética e Lógica de Hegel ............ 233
19. - Fisiologia do pensamento
· .,.., ...... ................. 243

ÍNDICE ANALÍTICO 251

ÍNDICE DE NOMES PRÓPRIOS 253

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