Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CAPÍTULO VI (INÉDITO)
DE MARX
Cláudio Napoleoni
Tradução de
Carlos Nelson Coutinho
L IV R A R IA E D IT O R A C IÊ N C IA S HUMANAS
; Y São Paulo
t-UJ 1981
Título original:
LEZIONI SUL CAPITOLO SESTO INÉDITO Dl MARX
Copyright © 1972, Editore Boringhieri Società per azioni, Torino, Itália.
Capa de:
RAUL MATEOS CASTELL
Advertência................................................................................................ 7
Nota biográfica .............................................................................. 9
lição 1 Introdução. A crítica da economia política...................... 13
lição 2 Processo âe trabalho e processo de valorização.............. 26
Lição 3 Digressão sobre o papel histórico do capital.................... 33
lição 4 Trabalho útil e trabalho abstrato; trabalho socialmente
necessário; trabalho vivo e trabalho morto. As mistifi
cações da economia política............................................... 43
lição 5 A compra-e-venda da força-de-trabalho. Capital e traba
lho assalariado........................................................................ 51
lição 6 Ainda sobre a troca entre capital e força-de-trabalho.
Subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital 64
Lição 7 Mais-valia absoluta e mais-valia relativa . . ......................... 76
Lição 8 As m áquinas........................................................................... 86
Lição 9 Trabalho produtivo e trabalho improdutivo .................... 96
lição 10 Ainda sobre o trabalho produtivo e improdutivo............ 104
lição i 1 A “produtividade” do capital. Ainda sobre o papel his
tórico do capital.................................................................... 112
5
r
6
ADVERTÊNCIA
10
crito; uma edição crítica, que restabeleceu o texto em sua íntegra, foi
publicada na URSS em 19561.
6) Um outro manuscrito, dos anos 1864-1865, forneceu a Engels
o material para o Livro III de O Capital, publicado por ele em 1894.
7) Logo após ter concluído o referido manuscrito, Marx preparou
para impressão o Livro I de O Capital, que foi publicado em 1867.
8) Do matérial utilizado para a publicação do Livro I, Marx excluiu
um caderno intitulado “Primeiro Livro. O Processo de Produção do
Capital. Sexto Capítulo. Resultados do Processo de Produção Imediato”.
Esse Capítulo VI (inédito) foi publicado na URSS, em 1933.
9) Outros manuscritos de Marx, redigidos em 1870 e 1878, foram
utilizados por Engels pára a publicação do Livro II de O Capital, que
saiu em 1885.
Para posteriores leituras sobre os assuntos tratados nestas lições,
podem-se consultar as seguintes obras:
1. Uma exposição elementar da teoria econômica de Marx é a de
Paul M. Sweezy, A Teoria do Desenvolvimento Capitalista (ed. brasileira,
trad. de Waltensir Dutra, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1962). A edição
italiana (Boringhieri, Turim, 1970) contém também, como apêndices, as
contribuições mais importantes ao problema da “transformação” (J.
Winternitz, R. L. Meek, M. Dobb, F. Seton).
2. Ainda sobre o problema da “transformação”, os escritos do
primeiro autor que se ocupou dele — L. von Bortkiewicz — encontram-
se agora em italiano, com o título La Teoria Economica di Marx (Einaudi,
Turim, 1971), aos cuidados de L. Meldolesi, do qual recomenda-se a
introdução: “A Contribuição de Bortkiewicz à Teoria do Valor, da Distri
buição e da Origem do Lucro”.
3. Uma boa introdução à leitura de Marx é Rosa Luxemburgo,
Introdução à Economia Política (ed. brasileira, Martins Fontes, São Paulo,
1978).
4. Sobre a interpretação da teoria marxiana do valor, cf.: M. Dobb,
Economia Política e Capitalismo (ed. brasileira, Edições Graal, Rio de
Janeiro, 1978); L. Colletti, Bernstein e il Marxismo delia Seconda Inter-
nazionale, in Ideologia e Società (Laterza, Bári, 1969); L. Colletti, II
Marxismo e Hegel (Laterza, Bári, 1969), parte 29, cap. 12; M. Bianchi,
La Teoria dei Valore dai Classici a Marx (29 ed., Laterza, Bári, 1973).
11
5. Um texto, escrito como comentário aos Grundrisse, mas que é
— mais amplamente — muito útil para orientar-se no vastíssimo material
constituído pelos escritos de Marx, é R. Rosdolsky, Genesi e Struttura
dei “Capitale” di Marx (Laterza, Bári, 1971).
12
Lição 1
INTRODUÇÃO. A CRÍTICA DA
ECONOMIA POLÍTICA
25
Lição 2
PROCESSO DE TRABALHO E PMOCESSO
DE VALORIZAÇÃO
28
trato material” do capital, sendo portanto separados do trabalhador e
erguendo-se diante dele, embora o trabalho (que é todavia a explicitação
da vida do operário) tenha de se realizar em face de coisas que são
estranhas ao próprio trabalho, na medida em que são propriedade alheia,
embora isso aconteça, repito, sob o aspecto da determinação natural do
processo produtivo, é o operário quem utiliza esses meios, numa relação
portanto que, malgrado o capital, mantém seu caráter natural. E Marx
acrescenta:
“Do ponto de vista do processo de valorização, entretanto, as
coisas se apresentam diferentemente” .
Vejamos por quê, continuando a ler na página 19:
“[Aqui] não é o operário quem utiliza os meios de produção:
são os meios de produção que utilizam o operário. Não é o
trabalho vivo que se realiza no trabalho objetivo como em seu
órgão objetivo; é o trabalho objetivo que se conserva e aumenta
pela absorção do trabalho vivo, graças ao qual se converte em
um valor que se valoriza, em capital, e como tal funciona. Os
meios de produção aparecem unicamente como absorventes da
maior quantidade possível de trabalho vivo. Este se apresenta
apenas como meio de valorização de valores existentes e, por
conseguinte, de sua capitalização.”
A relação, portanto, se inverte, em comparação com a condição
“natural, eterna” : “não é o operário quem utiliza os meios de produção,
mas são os meios de produção que utilizam o operário”. Com efeito, o
trabalho enquanto trabalho abstrato — e, no processo de valorização, o
trabalho é trabalho abstrato — tem apenas uma função a desempenhar:
conservar e aumentar o valor do capital, produzindo um valor que contém
o valor do capital e uma mais-valia. Mas, então, os meios de produção
— enquanto portadores materiais do valor que deve ser conservado e
ampliado — estão dados no princípio e no fim do processo de produção,
o qual, precisamente por isso, é processo especificamente capitalista;
e, dado que a conservação e o aumento do valor dos meios de produção
exigem trabalho, ou seja, a explicitação da “substância valorizadora”, o
próprio trabalho não é senão meio para a valorização; e, nesse sentido,
é gasto pelos meios de produção, que “absorvem” ou “sugam” a quanti
dade dele necessária para tal valorização. Além disso,
“prescindindo-se do que foi assinalado antes, justamente por
isso os meios de produção aparecem de novo e se defrontam
com trabalho vivo na qualidade de modo de existência do
capital, e, agora, como domínio do trabalho passado e morto
sobre o trabalho vivo” .
29
O que quer dizer “prescindindo-se do que foi assinalado antes”?
Marx já havia dito que os meios de produção se erguem diante do ope
rário na medida em que são propriedade alheia; os meios para o trabalho,
ou seja, para a explicitação, a realização, da vida do operário, não são
do operário. Mas, aqui, essa separação entre o trabalho que produz e os
meios de produção é captada com uma ulterior determinação: não se
trata mais apenas do fato de que os meios de produção são apropriados
por outro, mas trata-se também — e sobretudo — do fato de que o
processo produtivo, enquanto processo historicamente determinado, isto
e', enquanto processo capitalista, tem tal natureza que esses meios, como
valores, não são mais meios porém fins, e o trabalho é que passa a ser
meio para a sua valorização, para o incremento do seu valor inicial; de
modo que eles se “erguem diante do trabalho” não apenas no sentido
de que, quanto à propriedade, não estão em mãos do trabalhador mas
de outros, como também (e “em grau eminente”) no sentido de que
subordinaram a si o trabalho, pondo de cabeça para baixo uma relação
natural. Trata-se, substancialmente, de uma ulterior determinação da
alienação do trabalho: o trabalho é alienado, ou seja, tornou-se diverso
de sua condição natural, não apenas porque foi eliminada a condição
natural de unidade entre trabalhador e meio de produção, mas também
porque se eliminou a condição natural segundo a qual o trabalho subor
dina a si o instrumento em vista de suas próprias finalidades.
Essa situação de alienação é implicitamente reafirmada duas linhas
mais abaixo:
“Como esforço, como dispêndio de força vital, [o trabalho] é a
atividade pessoal do operário. Mas, enquanto criador de valor,
implicado no processo de sua objetivação, o próprio trabalho
do operário é, tão logo ingressa no processo de produção, um
modo de existência do valor do capital, a este incorporado.
Essa força conservadora do valor e criadora de novo valor é,
em conseqüência, a força do capital, e tal processo se apresenta
como processo de autovalorização do capital e, muito mais, de
pauperização do operário, o qual, criando um valor, cria-o ao
mesmo tempo como um valor que lhe é alheio.”
A alienação, portanto, reside nisto: que o trabalho, que seria a
realização da vida do homem, transforma-se em outra coisa quando é
trabalho do operário, já que nesse caso é valorização do capital; a força
do homem torna-se força da coisa e, portanto, também ela torna-se coisa.
Essa reificação, enquanto substância da alienação capitalista, é
precisada nas páginas 20 e 21. O domínio que se exerce sobre o operário
é domínio de uma coisa, já que o próprio capitalista não é mais do que
“capital personificado” . Podemos ler na metade final da página 20:
3C
“As funções exercidas pelo capitalista não são mais do que as
do próprio capital — do valor que se valoriza sugando trabalho
vivo — exercidas com consciência e vontade. O capitalista só
funciona na condição de capital personificado', é o capital
enquanto pessoa; do mesmo modo, o operário funciona unica
mente como trabalho personificado."
E logo em seguida:
“O domínio do capitalista sobre o operário é, por conseguinte,
o da coisa sobre o produtor, o do trabalho morto sobre o trabalho
vivo, do produto sobre o produtor, já que, em realidade, as
mercadorias, que se convertem em meios de dominação sobre os
operários (mas apenas como meio de domínio do próprio capital),
não são senão meros resultados do processo de produção, os
seus produtos.”
Antes de mais nada, deve-se recordar que, na Lição 1, lemos um
trecho de Para a Crítica da Economia Política, no qual se dizia: “0
trabalho [ . .. ] aparece não como o trabalho de diferentes sujeitos, mas,
ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como meros
órgãos do trabalho”. Na passagem do Capitulo VI que acabamos de ler,
quando se diz que “o operário funciona unicamente como trabalho
personificado”, diz-se a mesma coisa, ou seja, que o trabalho não é mais
um atributo do homem, mas que, é ohomem, enquanto operário, que não
é- senão sua “personificação”; o trabalho é abstraído do homem, e o
homem — o operário — conta apenas na medida em que o personifica,
isto é, em que fornece a condição subjetiva da sua explicitação. Aqui se
acrescenta: quando o trabalho é separado do homem, quando conta
apenas como trabalho genérico ou abstrato, o trabalho não pode deixar
de ser assimilado à coisa, a qual, precisamente por força dessa assimilação,
domina o homem na condição de capital; e esse produto que domina o
produtor tem ele próprio uma personificação na figura do capitalista;
desse último, precisamente enquanto é personificação de uma coisa,
Marx dirá, na página 21, que “deitou raízes no processo de alienação”.
Mas, antes de vermos esse ponto, vamos ler ainda — na mesma
página 21 —um comentário ao fato do produto que domina o produtor:
“Na produção material, no verdadeiro processo da vida social
— pois o processo de produção é isso — dá-se exatamente a
mesma relação que, no terreno ideológico, se apresenta na
religião', a conversão do sujeito em objeto e vice-versa.”
Como se sabe, temos aqui um motivo constante do pensamento
de Marx: assim como na religião os homens são dominados pelos seus
31
produtos mentais, já que se consideram criaturas do que eles próprios
criaram na imaginação, do mesmo modo os homens — na produção
mercantil capitalista — são dominados pelos seus produtos materiais, as
mercadorias, já que são dominados de fato por coisas que emanam do
processo produtivo no qual o trabalho deles se explicita. Portanto, assim
como na religião o objeto (a divindade) é posto como sujeito, enquanto
os sujeitos que o produziram se pensam como seus objetos, do mesmo
modo o objeto da produção capitalista (a mercadoria, o capital) é posto
realmente como o sujeito ao qual os produtores são submetidos na
condição de seus objetos.
Decerto, sobre esse ponto, surge o problema do sentido que se pode
atribuir a uma condição tão “insensata” como a condição capitalista.
A resposta de Marx a essa questão é a seguinte (p. 21):
“Considerada historicamente, essa conversão [do sujeito em
objeto e vice-versa] surge como momento de transição necessário
para impor, às expensas da maioria, a criação da riqueza enquanto
tal, isto é, das brutais forças produtivas do trabalho social, as
únicas que podem constituir a base material de uma sociedade
humana livre. É necessário passar através dessa forma contradi
tória, do mesmo modo por que a princípio o homem deve
comportar-se de forma religiosa com relação a suas faculdades
intelectuais consideradas como poderes independentes. Trata-se
do processo de alienação de seu próprio trabalho.”
Buscaremos, na próxima lição, comentar essas proposições.
32
Lição 3
DIGRESSÃO SOBRE O
PAPEL HISTÓRICO DO CAPITAL
42
Lição 4
TRABALHO ÚTIL E TRABALHO ABSTRATO;
TRABALHO SOCIALMENTE NECESSÁRIO;
TRABALHO VIVO E TRABALHO MORTO.
AS MISTIFICAÇÕES DA ECONOMIA POLÍTICA.
PS
£2 Qá
1 u,
Q Hoje nos ocuparemos dos dois parágrafos intitulados “Unidade do
UJ
44
“Indiquei [ .. . ] que a análise da mercadoria sobre a base do
'trabalho’ é, em todos os economistas anteriores, ambígua e
incompleta. Não basta reduzi-la ao ‘trabalho’, mas ao trabalho
sob a dupla forma em que se apresenta: por um lado, como
trabalho concreto, no valor-de-uso das mercadorias-, e, por outro
lado, calculado como trabalho socialmente necessário, no valor-
de-troca
Ou seja, a primeira questão é esta: não basta dizer que a merca
doria é trabalho incorporado; e' preciso dizer que a mercadoria incorpora
trabalho em dois sentidos, que correspondem exatamente aos dois aspectos
da mercadoria, o valor-de-uso e o valor-de-troca, e, paralelamente, aos
dois aspectos do processo de produção capitalista, o processo de trabalho
e o processo de valorização. A mercadoria incorpora trabalho num
primeiro sentido, que é o seguinte: a mercadoria enquanto valor-de-uso,
ou seja, enquanto objeto dotado de propriedades úteis, e, portanto,
enquanto produto do processo de trabalho, incorpora um trabalho que é
qualificado sob certo aspecto, ou seja, é um trabalho útil, um trabalho
completamente determinado quanto à sua qualidade. Por outro lado,
essa mesma mercadoria, enquanto valor-de-troca, e, portanto, enquanto
resultado específico do processo de valorização, incorpora trabalho num
outro sentido. Ou seja: no sentido de que ela, enquanto valor, é o produto
de um trabalho separado de suas determinações qualitativas concretas,
um trabalho que é, como sabemos, trabalho genérico, ou comum, ou
abstrato. Assim como, em outras palavras, — essa é a tese de Marx, — o
processo de produção tem os dois aspectos do processo de trabalho e do
processo de valorização, assim também — correspondentemente — o
trabalho incorporado na mercadoria tem os dois aspectos de trabalho
concreto e de trabalho abstrato.
“Do primeiro ponto de vista,”
ou seja, quando se refere ao trabalho concreto,
“tudo depende de seu valor-de-uso particular, de seu caráter
específico, o qual, justamente, imprime sua marca específica
no valor-de-uso criado pelo trabalho e o converte em valor-de-uso
concreto, diferente dos demais — em um artigo determinado.”
O trabalho do marceneiro, por exemplo, produz um bem especificado
qualitativamente como seu produto, algo que, por isso, tem um valor-de-
uso particular.
Chamo a atenção para a frase citada a seguir, que é um dos locais
onde Marx define o trabalho abstrato. A frase é a continuação da que
citamos antes:
45
“Por outro lado, faz-se abstração de sua utilidade particular, de
sua natureza e modo determinado de trabalho, quando é levado
em conta como elemento formador de valor, e a mercadoria
[é vista] como sua objetivação. Como tal, é trabalho indife
renciado, socialmente necessário, geral, trabalho inteiramente
indiferente acerca de todo conteúdo particular, pelo que alcança,
também, em sua expressão autônoma — no dinheiro, na merca
doria como preço — uma expressão comum a todas as merca
dorias, diferençável apenas pela quantidade.”
O que temos aqui, portanto, é que o trabalho formador (ou criador)
de valor é trabalho geral, cuja indiferença “acerca de todo conteúdo
particular” é a manifestação do fato de que a única razão pela qual o
valor-de-troca assume esse ou aquele valor-de-uso, enquanto própria base
material, é tão-somente a sua afirmação como valor-de-troca; ou, mais
precisamente, como veremos melhor, sua expansão como capital.
Deve-se sublinhar, no trecho que acabamos de ler, que uma das
qualidades atribuídas a esse trabalho geral ou abstrato é a de ser “social
mente necessário” . Essa determinação do trabalho socialmente necessário
foi freqüentemente entendida num sentido estreitamente quantitativo,
ou seja, como a quantidade de trabalho necessária para produzir uma
mercadoria nas condições técnicas predominantes na sociedade e não nos
capitais individuais que produzem tais mercadorias. Mas há um significado
qualitativo do termo “socialmente” que, a meu ver, predomina em Marx
com relação ao significado quantitativo. O que Marx pretende dizer é
que a quantidade de trabalho necessária para produzir uma mercadoria
se afirma no processo social, o qual, nesse caso, é processo concorrencial;
isso significa, portanto, que essa quantidade não pode ser pressuposta
em relação ao processo. O próprio estágio da técnica (que, certamente,
é um elemento importante na determinação do trabalho objetivado nas
mercadorias) é também ele um resultado desse processo social, o qual
consiste essencialmente na distribuição do capital global entre as várias
atividades, de acordo com as necessidades da reprodução do capital social
e do grau de desenvolvimento que, em cada oportunidade, é alcançado
pelas forças produtivas.
Portanto, para retomarmos a linha da argumentação, esse é um
primeiro corolário da relação que Marx estabelece entre processo de
trabalho e processo de valorização.
Um segundo corolário pode ser encontrado logo após, na página 24,
terceiro parágrafo:
“O trabalho contido nos meios de produção é um quantum
determinado de trabalho social geral, e, portanto, se apresenta
como certa grandeza de valor ou soma de dinheiro: de fato, no
46
preço desses meios de produção. O trabalho agregado é um
quantum adicional determinado de trabalho social geral e se
apresenta como grandeza de valor e soma de dinheiro adicionais.”
Ate' aqui, nada de novo. A frase que se segue, porém, clarifica um ponto
que talvez seja importante ter presente:
“O trabalho já contido nos meios de produção é o mesmo que o
imediatamente acrescentado.”
Ou seja: o trabalho contido nos meios de produção e o trabalho que se
agrega a eles por ser explicitação viva da força-de-trabalho, o trabalho
contido nos meios de produção e o trabalho dispendido pelo operário
no âmbito do processo de produção, esses dois trabalhos — diz Marx na
frase citada —são a mesma coisa.
“Só se distinguem pelo fato de o primeiro estar objetivado em
valores-de-uso,”
que são os meios de produção determinados,
“e o segundo [estar] implícito no processo dessa objetivação;
um é o passado, outro é o presente; um está morto, o outro,
vivo; um está objetivado no pretérito perfeito; o outro está se
objetivando no presente.”
Também esse é um ponto importante. Em que sentido, portanto,
esses dois trabalhos são a mesma coisa? No sentido de que se trata sempre
de partes, de cotas, do trabalho abstrato geral, genérico, indiferenciado,
socialmente necessário, dessa substância comum que está em todas as
mercadorias. Aliás, melhor dizendo: dessa substância comum, a que todas
as mercadorias são redutíveis. É nesse sentido que são idênticos. A única
diferença está no fato de que um deles é captado quando o processo de
objetivação na mercadoria já ocorreu (tanto é verdade que ele se apresenta
sob a forma sensível de certos valores-de-uso, ou seja, os meios de
produção); o outro, ao contrário, é captado durante o processo de
objetivação, já que é captado no momento em que está produzindo
mercadorias, não é captado no momento em que já as produziu; portanto,
um é trabalho passado, o outro é trabalho presente; um é trabalho morto,
o outro é trabalho vivo. Também essas são determinações importantes,
já que toda a essência da teoria marxiana do capital pode, no fundo, ser
resumida na proposição de que o processo capitalista, enquanto é essencial
mente processo de valorização, é processo de domínio do trabalho morto
sobre o trabalho vivo, do trabalho passado sobre o trabalho presente, do
trabalho já objetivado sobre o trabalho que está apenas em processo de
objetivação. Portanto, o processo capitalista é um processo de reificação,
47
não apenas no sentido (que seria imediatamente evidente) de que o
trabalho só conta enquanto produz uma coisa exterior a si mesmo (o
valor), como também — mais especificamente — no sentido de que a
parte do trabalho que já se converteu em coisa domina a outra parte do
trabalho que ainda não se tornou uma coisa e, por isso, é ainda trabalho
vivo. Por que isso? Porque todo o sentido do processo está no acréscimo
de valor novo ao velho valor, ou seja, ao valor já incorporado nos meios
de produção; e, portanto, esse trabalho vivo não tem outro sentido senão
o de ser meio com o qual se aumenta o valor do capital, isto é, com o
qual se aumenta o valor dos meios que foram antecipados no processo
produtivo; não tem outro sentido, esse trabalho vivo, além do de ser
meio para aumentar o valor correspondente ao trabalho morto.
É assim que, segundo Marx, as coisas se processam no que se refere
à relação entre processo de trabalho e processo de valorização, na qual
o primeiro é meio para o segundo; assim se processam as coisas no que se
refere à relação entre trabalho concreto e trabalho abstrato; assim se
processam as coisas no que se refere ao sentido do “trabalho socialmente
necessário” ; assim, finalmente, se processam as coisas no que se refere
à distinção e à relação entre trabalho objetivado e trabalho vivo no
âmbito do processo de valorização. Porém, o que Marx diz aqui é o
seguinte: se as coisas se processam desse modo, isso não significa que a
economia as reconheça do modo como são. Ao contrário: ela absoluta
mente não as reconhece do modo como são.
A economia política, em outras palavras, é um espelho deformante;
e a origem dessa deformação está no fato de que a essencialidade do
processo de trabalho enquanto base material para o processo de valori
zação, e, por isso, para o capital, é transformada em seu contrário, ou
seja, na essencialidade do capital para o processo de trabalho; uma
transformação que pode ocorrer, e efetivamente ocorre, tão-somente
quando o capital é identificado com as “coisas”, com os valores-de-uso,
que intervêm no processo de trabalho. Lemos na página 27:
“Pelo fato de o dinheiro — em sua transformação em capital —
se converter em fatores do processo de trabalho — e adotar,
necessariamente, a figura de material de trabalho e meios de
trabalho — o material de trabalho e os meios de trabalho não
se tornam, por natureza, capital, do mesmo modo que ouro e
prata não se convertem por natureza em dinheiro, embora esse
se apresente, entre outras coisas, como ouro e prata. Os próprios
economistas modernos — que zombam do simplismo do sistema
monetário, que à pergunta: que é dinheiro?, respondem: ouro e
prata são dinheiro — não sp envergonham de responder à
pergunta: que é o capital? [do seguinte modo:] O capital é o
algodão. Não afirmam outra coisa quando declaram que o
48
material e os meios de trabalho, os meios de produção e os
produtos utilizados para a nova produção, — em suma, as
condições objetivas do trabalho, — são por natureza capital, e o
são na medida em que servem, graças às suas propriedades
naturais, como valores-de-uso no processo de trabalho.”
E um tal modo de proceder, ou seja, como se diz na página 28,
“esse absurdo — o de considerar que determinada relação social
de produção representada em coisas é propriedade natural dessas
mesmas coisas — salta à vista logo que abrimos o primeiro
manual de economia que nos venha às mãos, e vemos já na
primeira página que os elementos do processo de produção,
reduzidos à sua forma mais geral, são a terra, o capital e o
trabalho.”
Em nota, Marx se refere como exemplo aos Princípios de Economia
Política, de J. S. Mill; mas o mesmo erro pode ser encontrado na
maior parte dos livros que ainda hoje são utilizados nas escolas. Nem se
trata de uma simples ingenuidade. Na realidade, como lemos na página 29,
“resulta ser esse um método cômodo para demonstrar a eterni
dade do modo capitalista de produção ou para fazer do capital
um elemento natural imperecível da produção humana.”
Vejamos como, logo em seguida, volta a ser descrito esse “método
cômodo” :
“O trabalho é condição natural eterna da existência humana.”
Digamos entre parênteses: é bom que vocês liguem essa proposição sobre
o trabalho — que é muito freqüente em Marx — com o que é dito na
passagem dos Grundrisse (vol. 2, pp. 277-279), que lemos no final da
lição anterior, e na qual, contra A. Smith, afirma-se a possibilidade de
que, superada a condição de alienação, o trabalho perca sua característica
demero custo e se apresente como positividade. Mas prossigamos na
leitura do trecho do Capítulo VI:
“O processo de trabalho não é outra coisa senão o próprio
trabalho, visto no momento de sua atividade criadora. Os mo
mentos gerais do processo de trabalho, por conseguinte, são
independentes de todo desenvolvimento social determinado.”
Ou seja, esses elementos gerais — o fato de que tenha lugar um “inter
câmbio orgânico entre homem e natureza” — são sempre os mesmos,
qualquer que seja o contexto histórico no qual estão inseridos. Prosse
guindo:
49
“Os meios e materiais de trabalho, dos quais uma parte é já
produto de trabalhos precedentes, desempenham seu papel em
todo processo de trabalho, em qualquer época e sob quaisquer
circunstâncias. Se, portanto, lhes aplico o nome de capital, na
certeza de que semper aliquid haeret [sempre algo restará], terei
demonstrado”
(isto é, a economia política terá “demonstrado”)
“que a existência do capital é uma lei natural eterna da pro
dução humana e que o Kirgiz — que com uma faca roubada aos
russos corta juncos para fazer o seu barco — é capitalista como
o senhor Rotschild. Do mesmo modo, poderia demonstrar que
gregos e romanos tomavam a comunhão porque bebiam vinho e
comiam pão.”
Mas essa demonstração se volta, em última instância, contra quem
a pratica, pois — se o capital é identificado com as coisas, isto é, com as
condições objetivas da produção, e depois, sobre essa base, se afirma que
o capital é eterno — pode-se então, com toda razão, responder que eternas
serão precisamente aquelas coisas, mas não certamente os capitalistas.
Vejamos, com efeito, como se expressava, em 1839, J. F. Bray (citado
em nota por Marx, p. 30):
“Se cada capitalista e cada ricaço da Grã-Bretanha ficasse, de
repente, morto como pedra, nem uma só partícula de riqueza
ou de capital desapareceria com ele, nem a nação se empobre
ceria sequer no valor de um farthing. É o capital e não o capita
lista o essencial para as operações do produtor, e medeia entre
os dois a mesma diferença que existe entre o carregamento real
de um navio e o recibo da carga.”
Mas, para destacar e comentar o erro que identifica o capital com
as coisas, Marx — nos Grundrisse (vol. 1, p. 289) e referindo-se ao próprio
J. F. Bray - já havia dito:
“Os socialistas costumam dizer: precisamos do capital, não do
capitalista. Mas então o capital figura como simples coisa, não
como relação de produção que, refletida em si, é precisamente
o capital. Posso facilmente separar o capital de um capitalista
individual determinado e fazê-lo passar para as mãos de outro.
Mas, se ele perde o capital, perde a sua qualidade de capitalista.
Por isso, o capital pode muito bem ser separado do capitalista
individual, mas não do capitalista, que enquanto tal se contrapõe
ao operário.”
50
Lição 5
A COMPRA-E-VENDA DA
FORÇA-DE-TRABALHO.
CAPITAL E TRABALHO ASSALARIADO.
63
Lição 6
AINDA SOBRE A TROCA ENTRE CAPITAL
E FORÇA-DE-TRABALHO.
SUBSUNÇÃO FORMAL E SUBSUNÇÃO REAL
DO TRABALHO AO CAPITAL
67
tiva. Devemos tentar ver o que significa essa distinção, que se expressa
em um desses dois modos.
Antes de mais nada, a subsunção formal — como observa Marx no
início da página 51 - é entendida em dois sentidos: em sentido genérico
e em sentido específico. Em sentido genérico, Marx entende por subsunção
formal ao capital tão-somente o fato de que o trabalho está inserido num
processo produtivo cujo sentido é a produção de mais-valia; e, portanto,
o trabalho está inserido num processo em que são os meios de produção
que usam o trabalho e não vice-versa, num processo cujo significado
reside exclusivamente no aumento de valor do capital inicial; subsunção
formal do trabalho ao capital, num primeiro sentido genérico, não significa
portanto mais do que isso. Mas, depois, essa mesma determinação
— subsunção formal — é entendida também, por Marx, num sentido
não mais genérico porém específico, ou seja, para indicar a situação
na qual, embora o trabalho esteja inserido num processo capitalista de
produção, dotado das características a que acabamos de aludir, o processo
de trabalho — do ponto de vista técnico — mantém ainda as formas em
que se processava antes que a relação capitalista interviesse. Em outras
palavras, estamos naquela situação, não apenas lógica mas também crono
logicamente inicial, na qual o capital se assenhoreou do processo produ
tivo, do processo de trabalho, mas assenhoreou-se apenas formalmente,
no sentido de que o conteúdo particular do processo de trabalho
continuou a ser o antigo; o processo produtivo, do ponto de vista do
processo de trabalho, desenvolveu-se sob formas técnicas que o capital
ainda não conseguia influenciar e tornar homogêneas a si mesmo. Trata-se
de uma fase historicamente bastante longa, como dirá Marx, essa da
simples subsunção formal entendida em sentido específico. Ao contrário,
a subsunção real do trabalho ao capital é a situação na qual não se
trata apenas do fato de que o trabalho se encontra inserido num processo
produtivo cujo sentido reside na produção de mais-valia; mas se trata
também do fato de que o próprio processo de trabalho — enquanto
processo técnico de relação entre o trabalho e os meios de produção —foi
transformado pelo capital a ponto de torná-lo homogêneo à relação formal
já existente entre trabalho e capital; isto é, a técnica produtiva não é
mais a antiga, é uma técnica nova, especificamente capitalista, na qual
a subsunção do trabalho ao meio de produção não é mais apenas uma
subsunção que pode ser captada no terreno econômico, mas é uma
subsunção que se capta também no terreno material; ou seja, o trabalho
é subsumido ao instrumento, no sentido material da palavra. É essa a
época da técnica capitalista em sentido propriamente dito, que tem sua
culminação na máquina; de fato, o uso da máquina é a realização plena
da subsunção real do trabalho ao capital.
Agora será bom ler os textos, e ver como Marx especifica essas
coisas; no momento oportuno, examinaremos em que sentido a subsunção
68
formal, entendida em sentido específico, equivale à produção de mais-
valia absoluta, e em que sentido a subsunção real equivale, ao contrário,
à produção de mais-valia relativa; isso é algo que explicaremos quando
Marx falar dessas categorias particulares; então pararemos para ver do
que se trata. Retomemos a leitura, no início da página 51:
“O processo de trabalho converte-se em instrumento do processo
de valorização,”
(observem que se fala aqui de uma característica geral da produção
capitalista, para a qual o processo de trabalho é efetivamente e sempre
um meio para a processo de valorização),
“do processo de autovalorização do capital — da fabricação
de mais-valia. O processo de trabalho é subsumido ao capital
(é seu próprio processo), e o capitalista se enquadra nele como
seu dirigente, condutor; para este, é ao mesmo tempo, de
imediato, um processo de exploração do trabalho alheio. É a
isso a que denomino subsunção formal do trabalho ao capital.”
— temos aqui, portanto, a subsunção formal em sentido genérico.
“É a forma geral de todo processo capitalista de produção.”
(E isso porque, em qualquer processo de produção capitalista, tem-se o
fato de que o processo de trabalho é meio para o processo de valorização).
“Mas é ao mesmo tempo uma forma particular, ao lado do
modo de produção especificamente capitalista em sua forma
desenvolvida”
onde vigora a subsunção real e não formal,
“já que a última inclui a primeira, mas a primeira não inclui
necessariamente a segunda.”
Ou seja: a subsunção real é também e sempre subsunção formal (enten
dendo-se essa em sentido genérico), mas a recíproca não é verdadeira;
a subsunção formal pode também não implicar a subsunção real. Vejamos
agora o significado não mais genérico, porém específico, da subsunção
formal.
“O processo de produção converteu-se em processo do próprio
capital; é um processo que se desenvolve com os fatores do
processo de trabalho, e no qual o dinheiro do capitalista se
transforma; é um processo que se efetua sob a direção deste,
com o fim de fazer de dinheiro mais dinheiro.”
69
Ou seja: é um processo capitalista. Começamos agora com exemplos
históricos:
“Quando o camponês, antes independente e que produzia para
si mesmo, se torna diarista e trabalha para um agricultor”
(agricultor e' aqui o capitalista);
“quando a estrutura hierárquica característica do modo de
produção corporativo-medieval desaparece ante a simples opo
sição de um capitalista que faz trabalhar para si os artesões
convertidos em assalariados”
(mas, poderíamos aduzir, que mantêm ainda a sua característica técnica
de artesãos);
“quando o escravista de outrora emprega seus ex-escravos como
assalariados, etc.”
(mas, acrescentamos, que continuam a fazer um trabalho não disseme
lhante do que faziam os escravos);
“[quando tudo isso ocorre], temos então que processos de
produção determinados socialmente de outro modo se trans
formam no processo de produção do capital.”
Portanto, o processo de produção do capital incorpora processos produ
tivos que tiveram uma vida social diversa da vida do capital e que mantêm
a herança dessa diversidade, na medida em que se processam tecnicamente
ainda como o faziam antes, em que não foram ainda transformados pelo
capital.
“Com isso, entram em cena modificações analisadas anterior
mente. O camponês, antes independente, cai — como fator do
processo de produção — na dependência do capitalista que o
dirige, e sua ocupação depende de um contrato que ele, como
possuidor de mercadoria (como possuidor de força-de-trabalho),
firmou previamente com o capitalista, na qualidade de possuidor
de dinheiro.”
(Ou seja, temos o contrato salarial.)
“O escravo deixa de ser instrumento de produção pertencente
a seu empregador.”
Com efeito, a pessoa do operário não pertence mais ao capitalista:
pertence-lhe tão-somente a força-de-trabalho do operário.
70
“A relação entre mestre e oficial desaparece. O mestre, cuja
relação anterior com o oficial era a de um conhecedor do oficio,
se lhe defronta agora apenas como possuidor de capital, assim
como o outro se contrapõe a ele simplesmente como vendedor
de trabalho.”
“Anteriormente ao processo de produção, todos eles se
defrontavam como possuidores de mercadorias”
(“anteriormente ao processo de produção” quer dizer: no processo de
circulação: agora eles, ao contrário do que ocorria antes que o capital
tivesse englobado essas formas, enfrentam-se todos do mesmo modo
como possuidores de mercadorias, força-de-trabalho por capital)
“e mantinham entre si unicamente uma relação monetária”
— de troca;
“dentro do processo de produção se defrontam como agentes
personificados dos fatores que intervêm nesse processo: o capi
talista, como ‘capital’; o produtor direto, como ‘trabalho’.”
E, pouco depois, já na página 52:
“Em que pese tudo isso, com tal troca (change) não se efetuou,
a priori, mudança essencial no modo real do processo do tra
balho, do processo real de produção.”
Tecnicamente, o processo de trabalho conservou-se o mesmo. O camponês
não é mais camponês independente, mas camponês assalariado; porém
faz as mesmas coisas que fazia antes. O artesão da oficina medieval não
é mais o aprendiz (ou oficial): é um assalariado que se encontra diante
não mais do mestre da corporação, mas do capitalista; porém faz ainda
as mesmas coisas que fazia antes como artesão.
“Pelo contrário, faz parte da natureza da questão o fato de que
a subsunção do processo de trabalho ao capital se opere à base
de um processo de trabalho preexistente, anterior a essa sub
sunção ao capital, e que se configurou à base de diferentes
processos de produção anteriores e de outras condições de
produção; o capital”
— e essa é a questão —
“se subsume a determinado processo de trabalho existente”
(ou seja, que é existente para ele, capital); o capital ainda não o trans
forma, mas
71
“se subsume a determinado processo de trabalho existente, como,
por exemplo, o trabalho artesanal ou o tipo de agricultura
correspondente à pequena economia camponesa autônoma,”
que permanecem, portanto, como eram antes.
“Se nesses processos de trabalho tradicionais, que ficaram sob
a direção do capital, se operam modificações, essas só podem
ser conseqüências paulatinas da subsunção de determinados
processos de trabalho tradicionais ao capital.”
Quais são esses processos que podem ocorrer sem que o velho
processo de trabalho se transforme em outra coisa, homogênea ao capital?
Eles são elencados, exemplificados, por Marx.
“Que o trabalho se faça mais intensivo ou que se prolongue a
duração do processo de trabalho; que o trabalho se torne mais
contínuo, e, sob as vistas interessadas do capitalista, mais orde
nado, etc., não altera em nada o caráter do processo real de
trabalho, do modo real de trabalho."
Ou seja: algumas modificações provocadas pela presença do capitalista
têm efetivamente lugar, mas não são modificações substanciais. O traba
lhador trabalha mais, trabalha mais intensamente, trabalha de modo mais
ordenado, mais contínuo; mas era artesão, e continuou artesão; era
camponês, e continuou camponês. É essa a situação, portanto, no que
diz respeito à subsunção formal em sentido particular ou específico.
Agora, Marx passa a descrever a subsunção real:
“Isso constitui um grande contraste com o modo de produção
especificamente capitalista (trabalho em grande escala, etc.),
que, como indicamos”
(o “como indicamos” refere-se ao texto de O Capital e, portanto, não
se vincula necessariamente ao conteúdo desse pequeno volume que
contém o Capitulo Inédito),
“se desenvolve no curso da produção capitalista e revoluciona
não só as relações entre os diversos agentes da produção, mas,
simultaneamente, a índole desse trabalho e a modalidade real
do processo de trabalho total. É por oposição a essa última que
chamamos a subsunção até aqui considerada do processo de
trabalho (de uma modalidade de trabalho já desenvolvida antes
que surgisse a relação capitalista) ao capital de subsunção formal
do trabalho ao capital
Portanto, poder-se-ia dizer que, em substância, com a subsunção formal
72
do trabalho ao capital, temos um capitalismo ainda incompletamente
realizado, no qual foram colocadas algumas premissas fundamentais para
sua realização: ou seja, o trabalho foi separado dos meios de produção,
foi incluído dentro de um processo de trabalho que é tão-somente meio
para um processo de valorização. Portanto, o capital já domina inteira
mente a forma, mas ainda não é completamente a matéria; ou seja,
esse processo de trabalho não se tornou ainda homogêneo ao capital.
Em outras palavras (e essa seria a fórmula mais exata): o capital
subsumiu a si o trabalho enquanto determinação econômica, mas ainda
não o subsumiu a si enquanto determinação material, ou seja, enquanto
conjunto de meios de produção. Quando se chega à subsunção real, o
capital subsumiu a si o trabalho também materialmente, isto é, também
o capital considerado em sua base material subsumiu o trabalho, enquanto
antes o capital havia subsumido o trabalho apenas em sua determinação
econômica, não ainda em sua determinação material. Essa é a distinção
entre as duas fases. Com efeito, para esclarecer mais ainda essa diferença,
pode-se tomar em consideração o elemento de continuidade que existe
entre essas duas formas, a fim de que não nos limitemos — o que seria
errado — a examinar simplesmente uma sua diametral contraposição; há
uma passagem, no próprio terreno do processo de trabalho, entre a
simples subsunção formal e a subsunção real. São as modificações que
Marx já começou a indicar, e que se verificam no processo de trabalho
mesmo no interior da simples subsunção formal; agora, na parte final
do parágrafo, Marx as resume sob uma determinação única, que se
refere à escala do processo produtivo. Vejam o que ele diz na página 53:
“O que disntingue, desde o início, o processo de trabalho sub
sumido ainda apenas formalmente ao capital — e em relação a
que se vai distinguindo cada vez mais, ainda que siga tendo por
base a velha modalidade tradicional —”
ou seja, o que caracteriza o processo de trabalho ainda antigo, mas já
subsumido formalmente ao capital,
“é a escala em que se efetua; ou seja, por um lado, a amplitude
dos meios de produção adiantados; e, por outro, a quantidade
de operários dirigidos pelo mesmo patrão (employer).”
Em suma: o processo de trabalho permanece tecnicamente o mesmo,
mas intervém quando menos a seguinte modificação: a sua escala
— atenção para este ponto! — não apenas é maior do que a que ocorria
antes da intervenção do capital, mas, sobretudo, deixa de ser uma escala
dada para ser uma escala que aumenta continuamente. Por que isso?
Porque antes, quando o capital não havia ainda intervindo nem mesmo
formalmente, a finalidade não era a produção de mais-valia, razão pela
qual a produção se dava dentro de limites circunscritos; agora, ao
73
contrário, sendo a meta a mais-valia, e dado que a mais-valia não
tem outra determinação possível além de sua quantidade, o processo de
trabalho se encontra, por assim dizer, comprimido no interior da forma
da simples subsunção formal: é ainda o modo antigo, mas aumenta-se
sua escala e tenta-se aumentá-la além de qualquer limite, a fim de que
possa realmente servir à meta específica da produção capitalista, que
é o aumento indefinido da mais-valia. Mas é precisamente essa compressão
que, em dado ponto, determina a passagem da subsunção formal à
subsunção real, pois em dado ponto torna-se impossível ampliar ulterior
mente o processo de trabalho se ele se conserva dentro das formas
antigas; se se quer ampliar o processo de produção além de qualquer
limite, não se pode mais manter o caráter artesanal e camponês do
trabalho; é preciso que o trabalho seja colocado, inclusive materialmente,
no interior de uma lei diversa; e tão-somente se o trabalho é posto
também tecnicamente no interior de uma lei diversa é que começa a
se tornar possível esse aumento contínuo da quantidade de mais-valia,
que significa aumento contínuo da escala do processo de trabalho.
Então se rompe esse último obstáculo material que ainda subsistia para a
realização plena da produção capitalista. O que ocorre então? Ocorre a
transformação descrita sob o nome de subsunção real, que é apresentada
por Marx, em seus elementos essenciais, na página 55. Nela se diz:
“No capítulo III”
(Marx refere-se a O Capital, Livro 1, cap. 10),
“havíamos exposto detalhadamente como, com a produção da
mais-valia relativa”
(vamos por enquanto deixar de lado essa “mais-valia relativa”, que ainda
não sabemos bem o que quer dizer; depois o veremos),
“[ . . . ] modifica-se toda a figura real do modo de produção,
e surge (inclusive do ponto de vista tecnológico) um modo de
produção especificamente capitalista, sobre cuja base e com o
qual se desenvolvem ao mesmo tempo as relações de produção
— correspondentes ao processo de produção capitalista - entre
os diversos agentes da produção, e em particular entre os
capitalistas e os assalariados.”
“[Aumentam] as forças produtivas sociais do trabalho, ou
as forças produtivas do trabalho diretamente social, socializado
(coletivizado), por força da cooperação, [da] divisão do trabalho
na fábrica, [da] aplicação da maquinaria,”
realizando-se assim plenamente a subsunção real. Esse é um ponto sobre
o qual, nas próximas lições, deter-nos-emos com certa atenção, já que
74
um dos pontos mais interessantes de O Capital é precisamente a descrição
dos princípios sobre os quais se baseia a adequação da forma técnica a
forma econômica no âmbito do capital.
75
Lição 7
MAIS-VALIA ABSOLUTA
E MAIS-VALIA RELATIVA
1. Há aqui uma lacuna na edição brasileira; nois o que Marx diz, efetiva
mente, é: “um modo de produção tecnologicamente (e não só tecnologicamente)
específico” , como se pode ver no original (Nota do Tradutor).
82
analisáramos anteriormente. Desenvolvem-se as forças produ
tivas sociais do trabalho, e, por força do trabalho em grande
escala, chega-se à aplicação da ciência e da maquinaria à produção
imediata. Por um lado, o modo capitalista de produção, que
agora se estrutura como um modo de produção ‘sui generis’,
dá origem a uma figura modificada da produção material.”
(Dá origem a uma figura modificada não só no processo econômico,
mas também na produção material.)
“Por outro lado, essa modificação da figura material constitui
a base para o desenvolvimento da relação capitalista”
— a relação capitalista já se estabeleceu desde o tempo da subsunção
formal, mas seu desenvolvimento requer a subsunção real -
“cuja figura adequada corresponde, em conseqüência, a determi
nado grau de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho.”
Ou seja: o processo de trabalho assume uma figura adequada à relação
econômica em que está inserido, à relação econômico-social em que
está inserido, ou seja, à relação capitalista. Na página 67, diz-se:
“Simultaneamente, a produção capitalista tende a conquistar
todos os ramos industriais dos que até então não se apoderara,
e nos quais ainda [se dá] apenas a subsunção formal. Tão logo
se apodera da agricultura, da indústria de mineração, da manu
fatura das principais matérias têxteis, etc., invade os outros
setores onde unicamente [se encontram] artesões formalmente
independentes ou ainda independentes [de fato]. Na análise
da maquinaria, havíamos assinalado como a introdução desta
em um ramo provoca o mesmo fenômeno em outros ramos,
e ao mesmo tempo em outros setores do mesmo ramo.”
Aqui, a diferença entre setor e ramo é a seguinte: ramo quer dizer, por
exemplo, indústria têxtil; setor quer dizer lã, algodão, etc.; ramo quer
dizer metalurgia; um seu setor é a siderurgia. Portanto, ramo é mais amplo,
setor é mais restrito.
“[Por exemplo:] a fiação mecânica leva à mecanização da tece
lagem; a fiação mecanizada na indústria algodoeira [leva] à fiação
mecanizada da lã, do linho, da seda, etc. O emprego intensivo
da maquinaria nas minas de carvão, nas manufaturas de algodão,
etc., tornou necessária a introdução do modo de produção
em grande escala na construção das próprias máquinas”.
Em outras palavras: o emprego da máquina é também a difusão da
máquina, já que o emprego da máquina num ponto permite, por um
83
lado, e consente, por outro, o emprego da máquina em outro ponto,
tendo em vista que entre os vários setores existem relações de comple-
mentariedade técnica, as quais não permitem que um certo setor se
desenvolva rapidissimamente, enquanto outros setores se mantêm atra
sados, porque — caso contrário — essas relações de completariedade
técnica, que de resto se expressam em última análise numa troca de
produtos de setor a setor, não poderiam ocorrer. Haveria uma carência
contínua de produtos necessários a certos setores, carência que bloquearia
o desenvolvimento também nos setores nos quais a máquina já foi introdu
zida; por isso, a máquina tem essa característica peculiar: a generalidade;
ou seja, é impossível que um setor seja mecanizado e um outro não: no
fim das contas, todos os serão. E isso explica a proposição, que lemos
na página anterior, na qual se diz que o desenvolvimento do modo de
produção capitalista é ligado à subsunção real do trabalho ao capital.
Não basta a subsunção formal. Esse é o ponto sobre o qual é sempre
preciso conservar a atenção. Vocês se recordam que um dos modos —
mas o principal — através do qual Marx estabelece a diferença entre a
produção capitalista e outros modos de produção é o seguinte: que,
enquanto outros modos de produção são essencialmente orientados
para o consumo de alguém, o modo de produção capitalista é produção
de riqueza abstrata, ou seja, de riqueza destinada essencialmente a
reconverter-se em riqueza adicional; com a conseqüência de que, enquanto
no primeiro caso o valor-do-uso tem uma relevância decisiva, — precisa
mente porque o processo tem como meta o consumo — no segundo
caso, já que a produção é orientada para uma riqueza que se reconverte
em riqueza, o valor-de-uso se torna irrelevante, não no sentido de que
desapareça, pois isso naturalmente não é possível, mas no sentido de
que o valor-de-uso se torna - como já dissemos tantas vezes - um simples
suporte material para a riqueza enquanto tal. Riqueza enquanto tal,
cuja expressão formal é o valor, que tem no valor-de-troca sua represen
tação ou expressão fenoménica necessária. É esse, portanto, como já
sabemos, o modo pelo qual Marx estabelece a diferença entre o capita
lismo e os outros modos de produção. O que aqui se diz é que esse fato,
ou seja, a orientação da produção para a ampliação da produção, a orien
tação da riqueza para a própria riqueza, - que é a essência do capital,
da produção capitalista, — esse fato ocorre de modo pleno precisamente
com a subsunção real e não com a subsunção formal. Por que isso? Porque,
se vocês pensarem bem, verão que a tecnologia é ligada aos valores-de-uso.
O fato de que exista esta técnica e não aquela implica a produção de
certos bens qualitativamente determinados e não de outros. Portanto,
enquanto a subsunção é formal, e por isso o capital não domina a tecno
logia, é a tecnologia que domina o capital. E a tecnologia que obriga
o capital a produzir certas coisas e não outras, já que a tecnologia é a
tecnologia dada. Portanto, nesse caso, não pode ocorrer o fato — que
é característico do capital — de que se produzam precisamente as coisas
84
que permitem acelerar-se ao máximo o processo de formação do capital.
Em outras palavras, a plenitude da produção capitalista só tem lugar
quando o capital determina a tecnologia, ou seja, quando o capital
orienta a tecnologia para os valores-de-uso que, em cada oportunidade
concreta, fornecem o melhor suporte material para a expansão do
valor-dé-troca.
85
Lição 8
AS MÁQUINAS
90
“A ciencia, que obriga os membros inanimados das máquinas —
graças à sua construção — a agirem conforme a sua finalidade,
como um autômato, não existe na consciência do operário,
mas atua, através da máquina, como um poder estranho sobre
ele, como poder da própria máquina. A apropriação do trabalho
vivo pelo trabalho objetivado, — da força ou atividade valori-
zadora pelo valor existente em si mesmo, — que está no próprio
conceito de capital, é posta, na produção baseada em máquinas,
como caráter do próprio processo de produção, inclusive do
ponto de vista dos seus elementos materiais e do seu movimento
material.”
Temos aqui duas coisas importantes: antes de mais nada, a questão
da ciência, que será retomada mais tarde. Ou seja: a máquina (ou, melhor
dizendo, o sistema das máquinas), que agora substituiu o trabalho no
início do processo produtivo inclusive sob o ângulo técnico, essa máquina,
precisamente, situa-se nessa posição não mais intermediária, porém
inicial, em conseqüência do fato de que é a expressão, a materialização,
a manifestação da ciência, ou seja, de um ato de conhecimento. Essa
ciência, porém, como diz Marx, não está “na consciência do operário” .
O que quer dizer isso? A coisa, ao que me parece, se torna clara se nova
mente recorrermos à comparação com a situação pré-capitalista. Na
situação pré-capitalista, como de resto lemos há pouco, o trabalhador
utiliza o instrumento, utiliza-o como um próprio órgão e, por isso,
utiliza-o como sempre o homem utiliza as coisas, ou seja, de modo
racional, mediante o uso, de algum modo e em alguma medida, da própria
inteligência e, conseqüentemente, do próprio conhecimento; em particular,
do conhecimento da natureza desse instrumento, de suas possibilidades,
e do objeto sobre o qual tal instrumento é utilizado. Por isso, quando
o trabalhador se encontra em posição inicial e não em posição interme
diária com relação ao processo tecnológico, a sua ação — a ação que o
leva a utilizar o instrumento enquanto instrumento - é uma ação que
parte de uma consciência, de uma ciência, que o sujeito possui acerca
do processo produtivo e de suas características. Aqui, o processo voltou
a se inverter. É claro que há um conhecimento das leis da natureza, o
qual governa o processo tecnológico, nem poderia ser de outro modo.
E essa ciência, que está sempre no início do processo técnico, continua
obviamente a situar-se no início também agora; mas, dado que dessa
feita o início não é o sujeito que produz, mas a máquina, essa ciência
é colocada na máquina e está assim fora da consciência do operário,
precisamente porque esse não está mais em posição inicial, mas em
posição intermediária.
Desse modo, a separação entre o operário e o instrumento, a inversão
da relação natural entre trabalhador e instrumento de trabalho, implica
91
também a separação entre trabalhador e conhecimento, entre trabalhador
e ciência. É esse, portanto, o primeiro ponto importante contido nesse
trecho. Num segundo ponto, repete-se uma coisa que agora já conhe
cemos, porque a vimos expressa mais de uma vez durante a leitura do
Capitulo VI, ou seja: faz parte da essência do capital, ou, como se diz
aqui, está incluído no “próprio conceito de capital”, o fato de que agora
o processo de trabalho é instrumento do processo de valorização; ou seja,
a essência do processo reside no fato de que o trabalho objetivado, o
trabalho contido nos meios de produção, subordina a si o trabalho vivo,
já que o trabalho vivo não tem outro sentido além de ser fator de valori
zação do trabalho objetivado. Isso, portanto, ocorre em geral; mas agora
as coisas não se dão mais simplesmente assim; agora aconteceu também
uma outra coisa. Agora essa subordinação não se dá apenas na forma;
não se trata mais simplesmente do fato de que um processo de trabalho
ainda dotado de características naturais foi posto a serviço de um processo
de valorização. Trata-se de outra coisa: trata-se do fato de que o próprio
processo de trabalho perdeu suas características naturais e adquiriu as
características técnicas em conseqüência das quais a subordinação do
processo de trabalho ao processo de valorização tornou-se subordinação
material do trabalho ao que é chamado de capital técnico, isto é, ao
instrumento de trabalho. Assim, também aqui temos um movimento
de agregação; enquanto antes se tratava simplesmente de orientar um
processo técnico, ainda natural, para as finalidades do capital, agora
há uma transformação do próprio processo técnico; tanto isso é verdade
que esse processo perdeu a sua naturalidade e o trabalho tornou-se,
também ele, um instrumento e não o ponto inicial do processo. Nesse
sentido, o capital assimilou toda a realidade econômica; o que ainda lhe
escapava na subsunção formal, ou seja, a relação natural trabalho-instru-
mento-natureza, até isso — mediante a inversão dos dois primeiros
termos — foi subordinado ao capital. Se vocês descerem algumas linhas,
poderão ler o seguinte:
“A transformação do processo de trabalho em simples momento
do processo de valorização do capital”
— o que faz parte do próprio conceito de capital e, portanto, acontece
sempre, ou seja, em todas as fases da vida histórica do capital —
“é colocada também pelo lado material, através da transfor
mação do meio de trabalho em máquinas e do trabalho vivo
em simples acessório animado dessas máquinas, em instrumento
da ação delas.”
E esse ponto é esclarecido mais ainda nas duas páginas sucessivas:
Passemos agora ao segundo parágrafo da página 393, onde se diz:
92
“O pleno desenvolvimento do capital, portanto, tem lugar -
ou, em outras palavras, o capital chega a pôr a forma de pro
dução que lhe é adequada — quando o meio de trabalho não só é
determinado formalmente como capital fixo, mas é suprimido
em sua forma imediata, e o capital fixo se apresenta diante do
trabalho, no interior do processo de produção, como máquina”
(“é suprimido em sua forma imediata” quer dizer: e' suprimido como
meio, é suprimido como instrumento);
“e o inteiro processo de produção não se apresenta como subsu
mido à habilidade imediata do operário”
- atenção para esse ponto! —
“mas se apresenta como emprego tecnológico da ciência. Por
tanto, dar à produção caráter científico é a tendência do capital;
e o trabalho imediato é reduzido a um simples momento desse
processo.”
Repete-se aqui uma coisa que já vimos; de qualquer modo, vamos nos
deter nela ainda por um momento, porque — se vocês pensarem bem -
verão que se expressa aqui toda a quase incrível gravidade do processo
produtivo dominado pelo capital. No fundo, o que Marx disse acima
é o seguinte: que, enquanto naturalmente o trabalho humano - precisa
mente porque é trabalho do homem —é de imediato um trabalho racional,
isto é, um trabalho no qual se encontra expresso o conhecimento que
o homem tem do mundo e da possibilidade de uma ação sobre ele, o
processo tornou-se aqui, ao contrário, de tal natureza que esses dois
momentos, o trabalho e o conhecimento, são separados, não estão mais
juntos; e, então, o trabalho se tornou uma mera ação mecânica e a ciência
se colocou fora da subjetividade de quem trabalha; foi pensada em outro
local e, no processo de trabalho, encontra-se presente não em quem
trabalha, mas dentro de uma coisa, pois é isso que é a máquina; essa
será a característica central do processo de produção enquanto ele for
determinado pelo capital. Vêm aqui à mente muitas e muitas coisas,
mesmo se restarmos no âmbito dos escritos de Marx; e a primeira coisa
que vem à mente é a extraordinária intuição da natureza desse processo,
que Marx teve ainda jovem, em 1844, nos Manuscritos, quando, intuindo
a natureza do processo capitalista, falava da condição operária como de
uma condição de separação entre essência e existência; poder-se-ia dizer
que temos aqui o desenvolvimento, a confirmação, a concretização, a
exposição detalhada desse fato; aqui, a existência —e, para Marx, a exis
tência não pode estar presente a não ser como trabalho, como atividade —
está verdadeiramente separada da essência. Ou seja, de quê? Da raciona
lidade, do conhecimento, da consciência, poderíamos dizer; mais precisa-
93
mente, do conhecimento do mundo dentro do qual se trabalha, já que
esse conhecimento — repito — não está mais em quem trabalha, mas
fora dele; e, em face de quem trabalha, encontra-se incorporado numa
coisa, na máquina, a qual —justamente porque tem em si, incorporada
a ela, a ciência —pode dominar o operário.
Temos assim, novamente, uma relação invertida: enquanto, natural
mente, o conhecimento e a atividade consciente estão no sujeito traba
lhador e a atividade mecânica no instrumento utilizado, aqui ocorre
o contrário: o conhecimento — e, portanto, utilizando uma linguagem
um pouco metafórica, mas não inteiramente, a atividade consciente —
está na máquina, quando menos porque ela é a representação de um
momento de consciência que se verificou quando foi pensada a ciência
que se encontra incorporada na máquina; e, ao contrário, a atividade
mecânica está em quem trabalha, que é reduzido a isso. Em sentido
próprio, estrito, específico, nada genérico ou alusivo, é isso que pode
ser chamado de alienação operária. Depois, Marx prossegue:
“Dar à produção caráter científico é a tendência do capital.”
Vemos assim algo bastante celebrado em todas as formulações apologé
ticas. O que fez o capitalismo? Ora, precisamente isto: desenvolveu a
ciência. Não só a ciência como conhecimento abstrato da natureza, mas
a ciência em seu prolongamento, a tecnologia, que nos permitiu conquistar
o mundo. O que é verdade, em certo sentido; mas trata-se justamente
de uma ciência que agora nada mais tem a ver com o trabalho, que está
separado dele, uma ciência que torna a generalidade dos homens privados
de ciência, subordinando-os à coisa na qual a própria ciência se acha
incorporada.
Nesse ponto, intervém certamente um problema de enorme rele
vância prática e teórica. Se a máquina é o que vimos, isso quer dizer
que a máquina, enquanto tal, é ligada à alienação do trabalho, e que
um processo de trabalho que tenha lugar fora de alienação tem de se
verificar sem máquinas? Penso que todos sabem que a resposta de Marx
a essa pergunta é muito clara: uma coisa é a máquina, outra é o uso capi
talista da máquina; a máquina que se contrapõe ao operário e submete-o
a si não é, para Marx, a máquina em geral, mas sim a máquina que é
colocada no interior do processo de produção capitalista. Essa questão
é tratada amplamente no capítulo 13 do Livro 1 de O Capital (vocês
podem ver, em particular, o Livro 1, pp. 423 e ss.). Aqui me limitarei
a ler um trecho da página 394 do texto de que estamos nos ocupando
(os Grundrisse):
“Mas, se o capital só chega a receber sua figura adequada como
valor-de-uso, no interior do processo de produção, nas máquinas
e em outras formas de existência material do capital fixo, como
94
as ferrovias (sobre as quais voltaremos em seguida), isso não
significa absolutamente que esse valor-de-uso — as máquinas
em si mesmas — seja capital, ou que a sua existência como má
quina se identifique com a sua existência como capital; assim
como o ouro não deixaria de ter o seu valor-de-uso quando
deixasse de ser dinheiro, também as máquinas não perderiam
o seu valor-de-uso quando cessassem de ser capital. O fato de
que as máquinas sejam a forma mais adequada do valor-de-uso
do capittal fixo não implica, de modo algum, que a subsunção
à relação social do capital seja a relação de produção última
e mais adequada ao emprego das máquinas.”
Assim, a tese geral que freqüentemente vimos reaparecer em Marx, de
queo fato de o capital ter por base material o meio de produção não
implica que o meio de produção seja sempre e em geral capital, essa
tese geral, portanto, é aplicada em particular ao específico meio de
produção que é a máquina. Todavia, deve-se admitir que aqui surge um
problema adicional: se, com a máquina, realiza-se até o fim o processo
da subsunção real do trabalho ao capital, precisamente no sentido (como
vimos) de que tal subsunção se manifesta no terreno material do processo
de trabalho, então é claro que o próprio corpo do instrumento, sua própria
estrutura material, tem a marca dessa subordinação do trabalho; portanto,
uma máquina não utilizada de modo capitalista deveria ser uma máquina
diversa da que é utilizada de modo capitalista. Em outras palavras: as
máquinas, tais como as conhecemos, são o fruto de uma tecnologia (e
talvez também de uma ciência) que foi toda pensada sobre a base do
pressuposto do trabalho alienado. Numa situação diversa, a mudança
deveria envolver o próprio processo de conhecimento e de realização
tecnológica, do qual a máquina é o resultado.
95
Lição 9
TRABALHO PRODUTIVO
E TRABALHO IMPRODUTIVO
103
Lição 10
AINDA SOBRE
TRABALHO PRODUTIVO E IMPRODUTIVO
111
Lição 11
A “PRODUTIVIDADE” DO CAPITAL.
AINDA SOBRE O PAPEL HISTÓRICO
DO CAPITAL
Para precisar ainda mais as coisas ditas na lição anterior, vou ler
uma passagem da página 575 do volume 2 dos Grundrisse, sob o título:
“Alienação das condições do trabalho com o desenvolvimento do capital.
(Inversão). A inversão está na base do modo capitalista de produção,
não apenas de sua distribuição” .
“O fato de que, com o desenvolvimento das capacidades produ
tivas do trabalho, as condições objetivas do trabalho aumentem
com relação ao trabalho vivo [...], esse fato assume, do ponto
de vista do capital, o seguinte aspecto: que não é um dos mo
mentos da atividade- social — ou seja, o trabalho objetivado —
que se torna um corpo cada vez mais poderoso que o outro
momento, o do trabalho vivo, mas sim que são as condições
objetivas do trabalho que assumem, em face do trabalho vivo,
uma autonomia cada vez mais colossal e que se manifesta através
de sua própria extensão.”
O que Marx diz aqui é o seguinte: independentementè do fato de ser
capitalista ou não, a produção sempre se desenvolve com a presença
simultânea de um trabalho vivo e de um trabalho objetivado, ou seja,
de um trabalho que é correntemente desempenhado no processo de
produção e de um trabalho que, ao contrário, encontra-se objetivado
nos meios de produção, que são frutos de processos produtivos ocorridos
112
anteriormente. Esse fato não é uma peculiaridade da produção capitalista;
se se quer, pode-se dizer que, na produção capitalista, do ponto de vista
do processo técnico de produção, há um extraordinário desenvolvimento
do trabalho objetivado com relação ao trabalho vivo; porém, pondo-se
de lado esse aspecto quantitativo da relação entre esses dois momentos
do trabalho global, permanece o fato de que a presença simultânea do
trabalho vivo e do trabalho objetivado é um traço característico geral
de toda espécie de produção. Ou seja, o homem sempre trabalha utilizando
instrumentos; e faz parte do próprio caráter racional do seu trabalho
o fato de que a produção não seja uma produção imediata, mas sim uma
produção mediata; a relação entre o homem e a natureza é mediatizada
por um instrumento produzido, que não se encontra já pronto e acabado
na natureza.
Portanto, desse ponto de vista, o capital não inova nada, a não ser -
repito — sob o aspecto quantitativo, já que a importância do trabalho
objetivado em relação ao trabalho vivo é muito maior no capitalismo
que nas formações precedentes. Desse modo, — e essa é a questão, —
o capital introduz, na opinião de Marx, uma qualificação, que o torna
inconfundível com qualquer situação anterior. Poder-se-ia dizer • que
o capital se aproveita da divisão (de resto necessária) do trabalho global
em trabalho objetivado e trabalho vivo para configurar, entre essas duas
partes do trabalho global, uma relação inteiramente peculiar, que jamais
existira antes do próprio capital. Qual é essa relação peculiar? Precisa
mente o fato de que não é mais o trabalho vivo que utiliza o trabalho
objetivado para obter um certo produto, mas sim o contrário: é o trabalho
objetivado que utiliza o trabalho vivo para obter um produto particula
ríssimo, o único produto que pode ser obtido quando essa inversão da
relação teve lugar, isto é, um produto que se qualifica não tanto por
sua utilidade quanto por seu valor-de-troca. Da situação (digamos assim)
normal, ou seja, da situação na qual seria o trabalho vivo a empregar
o trabalho objetivado, Marx diz o seguinte: que o trabalho objetivado
se tornaria “um corpo cada vez mais poderoso que o outro momento”,
ou seja, que o trabalho vivo. Em outras palavras: nesse caso, o trabalho
objetivado — os instrumentos nos quais o trabalho se objetivou — seriam
uma espécie de prolongamento, de ampliação, de desenvolvimento do
próprio corpo do homem. É como se o corpo do homem, ao invés de
permanecer (como o corpo dos animais) circunscrito no interior de uma
determinada forma orgânica, se expandisse desmesuradamente, já que
o instrumento — ou seja, o trabalho que se objetivou nele —é uma espécie
de órgão complexo do homem, capaz de desenvolvimento contínuo.
Um órgão artificial, criado pela razão e não presente na natureza. Essa
seria a condição normal: o desenvolvimento do corpo do homem e,
portanto, o aumento — através dessa via — das capacidades de domínio
sobre a natureza que o homem possui. Um domínio sobre a natureza,
113
por isso, que não é estático, mas suscetível de desenvolvimento infinito.
O capital é o contrário disso. Não é o trabalho objetivado a se tornar
corpo do trabalho vivo; é o trabalho vivo que se toma corpo do trabalho
objetivado, e tanto mais quando esse corpo inanimado, esse corpo
constituído pelo trabalho objetivado, incorpora a si mesmo o conheci
mento, a ciência. Então a subordinaçpo do trabalho vivo ao trabalho
morto torna-se total, como acontece precisamente na fase das máquinas.
Marx prossegue:
“O acento cai”
- no caso da produção capitalista —
“não sobre o fato de que o imenso poder objetivo, que o próprio
trabalho social contrapôs a si como um dos seus momentos,
se tenha objetivado, mas sobre o fato de que ele se tenha alie
nado , que pertença não ao operário, mas às condições de produ
ção personificadas, isto é, ao capital.”
O objeto da frase é aqui o seguinte: o poder objetivo que o trabalho
social adquire em conseqüência do fato de ser um trabalho que se explicita
mediante o instrumento, mediante o trabalho objetivado. Ora, não se
trata — como diz Marx — simplesmente do fato de que existe um trabalho
passado incorporado num instrumento utilizado no presente; não se
trata apenas disso, pois isso ocorre em todos os casos, seja ou não capita
lista a produção; trata-se, sim, do fato de que essa objetivação, embora
seja uma característica natural da atividade produtiva do homem, torna-se
a base de uma alienação; alienação no sentido literal, no sentido de que
as coisas que deveriam ser corpo do homem, e, portanto, pertencerem
a ele de modo intrínseco, estão ao contrário separadas dele e são coisa
diversa dele; e tanto isso é verdade que elas o dominam, além de apare
cerem como aquilo em função do que o próprio trabalho vivo funciona
e se exerce. Toda a polêmica de Marx contra o modo vulgar de ver as
coisas, isto é, tanto contra a economia vulgar quanto contra o senso
comum influenciado por pontos de vista burgueses, a polêmica de Marx
contra tudo isso pode ser resumida na seguinte proposição: que todas
essas posições confundem uma objetivação com uma alienação; pensam
que, na situação de fato, não exista nada mais do que um momento
da história geral da objetivação do trabalho, quando na verdade não
existe só isso na situação real, mas existe uma objetivação que serve
de base a uma alienação, no sentido que expusemos acima. A frase que
vem depois tem também uma certa importância, já que serve de confir
mação a coisas que afirmamos na lição passada, ou, mais precisamente,
ao seguinte fato (sobre o qual jamais insistirei bastante, porque penso
que se trate de um traço extremamente característico da teoria marxiana
do capital): que quando Marx diz, por exemplo, que as forças produtivas
114
do trabalho se apresentam ou aparecem como forças produtivas do capital,
ele não se refere a uma mera aparência, mas sim a uma realidade. Essa
transferência da força produtiva do trabalho para o capital não é uma
aparência, é uma realidade. Isso é dito com todas as letras na frase que
vou ler agora:
“Até o momento em que, no nível do capital e do trabalho
assalariado”
(ou seja, enquanto existir uma situação capitalista),
“a criação desse corpo objetivo da atividade”
(ou seja, do trabalho objetivado nos instrumentos)
“ocorrer em antítese à força-de-trabalho imediata”
(enquanto isso ocorrer, atenção para o que vem a seguir),
“essa distorção e inversão são efetivas, não são uma mera opi
nião, ou seja, não existem apenas na representação de operários
e capitalistas.”
Ou seja: quando a produtividade é atribuída ao capital, não se trata
de um modo particular de representar as coisas por quem não se libertou
da escravidão da alienação (seja o operário ou capitalista); portanto,
não se trata de uma realidade que resida simplesmente na cabeça dos
que consideram as coisas sem ter superado a situação de alienação em
que todos se encontram. Não se trata simplesmente disso, pois essa
transposição é uma transposição real; o trabalho realmente cedeu ao
capital sua força produtiva.
Chegando a esse ponto, penso que temos todos os elementos para
estabelecer qual seja, para Marx, a relação entre a proposição segundo
a qual o capital é produtivo e a proposição de que o trabalho é produtivo.
O fato de que no capital, ou seja, no conjunto dos meios de produção
enquanto são monopolizados por uma parte da sociedade, e portanto
contrapostos ao trabalho, encontre-se a “combinação social” das forças
produtivas, tal fato significa que, sob o ângulo da produção da riqueza,
ou seja, dos valores-de-uso, a peculiaridade da produção capitalista está
precisamente em colocar a capacidade produtiva fora do trabalho. Por
outro lado, a riqueza produzida em tais condições, ou seja, a riqueza
em cuja produção o trabalho intervém apenas em posição de “subordi
nação” à coisa, é uma riqueza que reproduz em si mesma aquela subor
dinação: e, com efeito, os valores-de-uso — enquanto produzidos em
condições capitalistas — não são mais do que suportes materiais do
valor-de-troca: a riqueza concreta não é senão meio para a riqueza abs
trata. Mas, com relação a essa última, que é o produto real do processo
115
capitalista, não pode deixar de se restabelecer a relação normal entre
produtividade e trabalho, ainda que isso só possa ocorrer na forma de
abstração: é o trabalho, enquanto trabalho abstrato, que produz o valor.
A subsunção do trabalho ao capital está na origem de ambos os lados da
produção capitalista: da produtividade material, por parte do capital, e
da produtividade em valor, por parte do trabalho.
O fato de que a produtividade tenha esses dois lados, distintos
e contrapostos, não é senão a manifestação do caráter invertido das rela
ções entre homens e coisas, um caráter que caracteriza o capitalismo.
Sobre essa inversão, Marx diz, logo após os trechos que lemos há pouco:
“Mas, evidentemente, esse processo de inversão”
(ou seja, esse processo pelo qual as coisas se personificam e as pessoas
se reificam ou coisificam),
“é uma necessidade meramente histórica, é uma necessidade
para o desenvolvimento das forças produtivas tão-somente no
quadro de um determinado ponto de partida histórico, ou de
uma determinada base histórica; portanto, não é de modo algum
uma necessidade absoluta da produção; trata-se, antes, de uma
necessidade transitória, e o resultado e a finalidade (imanente)
desse processo é suprimir tanto essa base como essa forma do
processo” .
Temos aqui um trecho muito importante. Tentarei agora decom
pô-lo em suas várias partes. Antes de mais nada, vejamos a primeira parte
dessa proposição: “esse processo de inversão é uma necessidade meramente
histórica”. Isso é de fácil compreensão, pois está substancialmente incluído
em tudo o que dissemos até agora. A inversão, ou seja, a transferência
da força produtiva do trabalho para a coisa, é precisamente uma inversão,
e, como tal, não pode deixar de ser atribuída a uma fase do movimento
da história. Portanto, como diz Marx, “não é de modo algum uma neces
sidade absoluta da produção” , isto é, uma circunstância que pertença
ao conceito e à realidade da produção enquanto tal, mas algo que pertence
apenas à produção em uma de suas determinações históricas particulares.
Esse é o primeiro ponto. Por outro lado, Marx prossegue apresentando
uma importante concretização, a meu ver, já que rica de notáveis impli
cações; é quando diz que essa inversão “é uma necessidade para o desenvol
vimento das forças produtivas tão-somente no quadro de um determinado
ponto de partida histórico, ou de uma determinada base histórica” . O
que significa isso? Em minha opinião, Marx diz aqui algo mais do que
simplesmente o fato de que essa inversão é necessária apenas historica
mente e não como característica absoluta da produção. Aqui se diz que
é necessária historicamente em conseqüência da existência de um determi
nado ponto de partida histórico, do fato de que o processo começa a
116
partir de uma determinada base histórica. Que ponto de partida histórico
é esse? Essa proposição pode ser entendida de dois modos, não perfeita
mente coincidentes, de maneira que a escolha de um ou de outro tem
implicações muito amplas.
Limito-me agora, simplesmente, a dizer quais são esses dois modos;
não vou além disso, porque a discussão em torno da escolha implica
problemas muito amplos, que não podem ser enfrentados neste local.
Portanto, trata-se de uma necessidade a partir “de uma determinada
base histórica”. Uma primeira interpretação — que se poderia dizer
imediata, a que talvez se apresente ao intérprete como a mais natural —
é esta: a base histórica é a redução do trabalho a trabalho assalariado;
se o trabalho é trabalho assalariado, então é que já foi separado do corpo
objetivo constituído pelo conjunto dos instrumentos; esse corpo objetivo,
portanto, já se constituiu como capital, e disso decorrem todas as demais
coisas. Qual é, por conseguinte, a base histórica a partir da qual se desen
volve essa situação? A base histórica, o ponto de partida histórico é a
redução do trabalho a trabalho assalariado. Essa é uma interpretação
possível e, em certo sentido, até mesmo óbvia. A outra interpretação,
que não contradiz essa primeira, mas a amplia um pouco, numa direção
cuja legitimidade foi freqüentemente contestada na literatura marxista,
vale a pena ser exposta aqui, quando menos para que possa servir como
elemento de reflexão. Trata-se, em outras palavras, de recuar mais essa
base histórica, dizendo que a própria redução do trabalho a trabalho
assalariado exige explicação; a própria redução do trabalho a trabalho
assalariado faz parte daquela situação cujo ponto de partida estamos
procurando. Então, qual poderia ser essa precedente base histórica?
Esta: no momento em que o trabalho foi reduzido a trabalho assalariado,
o trabalho já era trabalho alienado através da exploração ocorrida em toda
a história até aquele momento. Ou seja: o trabalho já fora privado de
suas características naturais. O trabalho, tal como se apresentava naquele
momento, já era resultado de um processo histórico no qual, ainda que
em formas não capitalistas, a alienação do trabalho de si mesmo já era
um fato amplamente estabelecido. Sobre a relação entre alienação pré-
capitalista e alienação capitalista, envio ao que disse na terceira lição.
Aqui me limito a observar que, sobre a base dessa interpretação, o incre
mento das forças produtivas ou o incremento sistemático das forças
produtivas, que até então não ocorrera, só podia ocorrer mediante a
redução do trabalho à sua forma assalariada. Então, a base histórica
do modo capitalista de produção em seu conjunto é a condição à qual
historicamente o trabalho foi desde sempre reduzido, ou seja, desde que
existe processo histórico.
Essa segunda espécie de interpretação — digamos, essa tese, que
consiste em atribuir a Marx uma tal posição — pressupõe um certo modo
de interpretar os locais de origem, em Marx, do conceito de alienação,
117
e, em particular, as obras juvenis, sobretudo os Manuscritos de 1844
e certas passagens da Ideologia Alemã. Além do mais, na terceira lição,
como vocês talvez se recordem, tínhamos lido uma passagem dos Grun-
drisse que confirmava essa interpretação. Deixo essa questão em aberto
porque é impossível tratar dela agora. Ao contrário, o que há de seguro,
ou seja, de não controverso, nessa passagem, é o fato de que a inversão
entre o trabalho vivo e o corpo (ou melhor, o que deveria ser o corpo
mas não o é ) é uma determinação histórica e não uma determinação
absoluta.
Mas não há só isso na passagem que lemos. Há uma terceira coisa
igualmente muito importante. Depois de ter dito que “não é de modo
algum uma necessidade absoluta da produção; trata-se, antes, de uma
necessidade transitória” , Marx acrescenta: “e o resultado e a finalidade
(imanente) desse processo é suprimir tanto essa base quanto essa forma
do processo”. Ou seja (e isso Marx diz aqui): o capitalismo não pode
ser compreendido até o fundo se não se vê sua duplicidade; a duplicidade
que o faz ser, por um lado, aquela inversão de que falamos, aquela alie
nação a que nos referimos, o fato de tomar o trabalho um corpo do
seu corpo, corpo que deveria ser a extensão do seu corpo; mas, por outro
lado, — e, nesse sentido, o capitalismo é dúplice e não unitário, não é
uma unidade indiferenciada, mas uma unidade complexa, —o capitalismo
é o que permite a supressão dessa inversão. Aliás, Marx chega mesmo
a dizer que “o resultado e a finalidade desse processo” — ou seja, do
processo capitalista — “é suprimir tanto essa base quanto essa forma do
processo” . De que modo? Evidentemente, esse é um problema que deve
ser inteiramente examinado. Vamos por enquanto nos ater ao texto
e nos contentar em ter descoberto que é essa a opinião de Marx. Um
outro ponto. Qualquer que seja o modo pelo qual se chegará à supressão
dessa inversão, coloca-se uma questão: quando essa supressão ocorrer,
o que acontecerá, o que será posto no lugar dessa inversão? Vocês se
recordam que, na terceira lição, lemos alguns textos importantes sobre
esse tópico. Voltamos aqui a encontrar um texto referente ao problema,
sempre na página 576, que passo a ler:
“Com a supressão do caráter imediato do trabalho vivo enquanto
trabalho apenas singular-, com a atribuição à atividade dos indi
víduos de um caráter imediatamente geral ou social, essa forma
da alienação é cancelada dos momentos objetivos da produção.
Com isso, eles são postos como propriedade, como corpo orgâ
nico social no qual os indivíduos se reproduzem como indivíduos,
mas como indivíduos sociais.”
O que quer dizer esse grupo de proposições? Lembrem-se do que
dissemos na lição anterior. Ao trabalho do homem, pertence a caracte
rística da socialidade. Mas o que ocorre com‘o capital? Que a socialidade
118
é inteiramente tranferida para a coisa. Lembrem-se: uma coisa é a força-
de-trabalho antes de entrar na capital; outra é essa força após tal ingresso.
Antes do capital, é uma força-de-trabalho meramente individual e, como
tal, improdutiva. Quando entra, torna-se uma força-de-trabalho social
e, como tal, produtiva. Mas a passagem da improdutividade à produtivi
dade é assinalada pelo ingresso no capital, ou seja, pelo ingresso na coisa.
Poderíamos dizer que a aquisição da produtividade, ou seja, da socialidade,
é mediatizada pela coisa. O que diz Marx aqui? Diz que, quando essa
inversão for suprimida, então a aquisição ou realização da socialidade —
como aqui se diz — será imediata. Vejam: “a atribuição à atividade dos
indivíduos de um caráter imediatamente social” , ou seja, não através
da mediação da coisa. Então a socialidade é recuperada como um traço
essencial do trabalho e não mais transferida para a coisa. Tudo o que
faz com que o trabalho seja social passa a pertencer ao próprio trabalho
e não está mais situado em algo que é alheio ao trabalho. O que isso
significa em termos positivos é um problema aberto, já que quando Marx
afirma esse princípio (na passagem que lemos e também em outras) o
faz em termos negativos, ou seja, como contraposição à atual situação.
De qualquer modo, o princípio é este: é a restauração da característica
da socialidade no interior do trabalho operante, de modo que ele a mani
feste imediatamente e sem a mediação das coisas, ou seja, sem o capital.
119
Lição 12
A FORMAÇÃO DA MAIS-VALIA
121
por um preço mais baixo. Por que a explicação não pode ser essa? Por
dois motivos: porque, se fosse assim, deveríamos admitir o absurdo de
que, no mercado, uma certa mercadoria pudesse ter dois preços: um
preço mais baixo, quando o capitalista a compra, e um preço mais alto,
quando o capitalista a vende; o que é absurdo, porque uma mercadoria
qualitativamente idêntica, no mercado, não pode ter senão sempre o
mesmo preço. A segunda razão do absurdo dessa explicação está no
fato de que, mesmo se algue'm conseguisse vender a mesma mercadoria
por preço mais alto do que o preço pelo qual a comprou, é evidente
que — ao lado do ganho desta pessoa — existiria a perda de uma outra;
e, nesse caso, os ganhos e as perdas se compensariam, de modo que,
ao nível do sistema, não poderia jamais surgir um incremento do valor
inicial do capital, que é precisamente o que se trata de explicar.
Tudo isso significa que a explicação não pode ser encontrada, se
se resta no âmbito do processo de circulação. A explicação do aumento
deve ser buscada em alguma circunstância que tenha lugar no interior
do processo de produção. Ou seja, em outras palavras, o segredo da pas
sagem de D a D’, o segredo do incremento que transforma o dinheiro
em capital, deve ser buscado — de acordo com Marx — naquele termo
médio M que aparece na fórmula. Esse M deve representar algo que
permite a explicação desse aumento de valor que o capital experimenta
no processo de circulação. A explicação não é difícil, uma vez que o
valor das mercadorias seja relacionado com o trabalho objetivado nas
próprias mercadorias. A explicação, em substância, já é conhecida de
vocês. Vou repeti-la agora para fechar a argumentação. De que se, trata
em substância? Trata-se do fato de que as mercadorias que são simbo
lizadas por M são, na realidade, um grupo, um conjunto de mercadorias,
entre as quais há uma mercadoria inteiramente peculiar, que é a força-
de-trabalho. Essa força-de-trabalho, que é uma mercadoria no sentido
de ser uma coisa comprada e vendida, possui algumas características que,
por um lado, são características genéricas, comuns a ela e a todas as
demais mercadorias, e, por outro, são características especiais, ou seja,
que pertencem a ela e apenas a ela. Quais são as características que a
força-de-trabalho tem em comum com as demais mercadorias, e quais
são, ao contrário, as características especiais, que lhe são peculiares e
que não se encontram em nenhuma outra mercadoria? As características
genéricas são duas, ou seja: 1) o fato' de que, como todas as outras
mercadorias, também ela possui um valor; 2) o fato de que, como o
valor de todas as outras mercadorias, também o seu valor é trabalho
objetivado nela. A única observação que deve ser feita, nesse nível, é
que, na determinação do trabalho objetivado na força-de-trabalho, é
preciso concretizar com exatidão o que isso significa, pois se dá o caso
de que a força-de-trabalho, ao contrário de outras mercadorias, não está
no termo de um processo de produção específico; a força-de-trabalho
122
não sai de um processo produtivo no mesmo sentido que um par de
sapatos ou um quintal de ferro sai de um processo produtivo; enquanto
existe um processo produtivo que produz sapatos e um processo produtivo
que produz ferro, não existe — em sentido próprio — um processo
produtivo que produza força-de-trabalho. Apesar disso, a lei geral do
valor pode igualmente ser aplicada nesse caso porque, como todas as
demais mercadorias, também a força-de-trabalho tem um custo determi
nado; ou seja, também a força-de-trabalho é de tal natureza que existe
um conjunto de outras mercadorias, cujo consumo constitui o custo
de produção dessa mercadoria particular. Quais são as mercadorias que
constituem, em sentido físico, o custo da força-de-trabalho? São os meios
de subsistência que essa força-de-trabalho deve consumir para conservar-se
e se manter. Assim como é necessário o couro para produzir o sapato,
do mesmo modo é preciso o pão para produzir a força-de-trabalho. E
não há nada de estranho nesse fato; se alguém se escandalizasse com
o modo pelo qual é tratada a força-de-trabalho, Marx responderia —
mas, de resto, já Ricardo teria implicitamente respondido no mesmo
sentido, — que precisamente nisso consiste a redução da subjetividade
do trabalhador, pela ação do capital, à força-de-trabalho, a redução da
pessoa do trabalhador a uma coisa. E, precisamente porque ocorre esse
processo de reificação, precisamente por isso podemos falar de custo
da força-de-trabalho, no mesmo sentido em que falamos de custo de
um quintal de ferro ou de um par de sapatos; então, após essa propo
sição, diremos que o trabalho objetivado na força-de-trabalho é o trabalho
objetivado nos meios de subsistência necessários para conservar e repro
duzir a própria força-de-trabalho, de modo que quem adquire a força-
de-trabalho do operário (nesse caso, o capitalista), e a adquire por um
tempo determinado (digamos: por um dia), ou seja, quem adquire a
disponibilidade da força-de-trabalho por um tempo determinado, deve
pagar um valor, que é determinado pela quantidade de trabalho contida
nos meios de subsistência que são consumidos durante aquele mesmo
período, ou seja, durante a jornada de trabalho. Portanto, a proposição
exata é a seguinte: o valor da força-de-trabalho disponível por um dia
é a quantidade de trabalho objetivada nos meios de subsistência consu
midos naquele dia. Desse modo, é no fato de possuir um valor redutível
a trabalho objetivado que reside a característica que essa mercadoria
(a força-de-trabalho) tem em comum com as demais mercadorias.
Todavia, — e essa é a questão, - tal mercadoria possui também
uma característica que lhe é peculiar, que não se encontra em outras
mercadorias. Trata-se de uma propriedade fundamental da força-de-
trabalho; fundamental porque, na construção teórica de Marx, essa
propriedade da força-de-trabalho joga precisamente um papel essencial
na explicação do processo capitalista. Qual é essa propriedade? Embora
se trate de uma propriedade particular, ela pode ser descoberta com
123
exatidão se fizermos uma comparação com as outras mercadorias. Toda
mercadoria —que é sempre fisicamente determinada de modo concreto —
é utilizada pelo comprador quando se torna sua posse; ou seja, o compra
dor desfruta do valor-de-uso que adquiriu ao pagar o valor daquela
mercadoria. Quem compra um par de sapatos consumirá esse par de
sapatos. A mesma coisa acontece com a força-de-trabalho; o comprador
da força-de-trabalho, ou seja, o capitalista, pode usá-la na medida em
que a comprou, no mesmo sentido que alguém que comprou os sapatos
pode usá-los; o único problema — e aqui está o núcleo da questão —
é saber o que quer dizer exatamente “usar a força-de-trabalho”. Se se
quer, as coisas podem ser postas nos seguintes termos: em que consiste
exatamente o valor-de-uso da força-de-trabalho? Ou seja: o valor-de-uso
pelo qual o capitalista pagou um valor-de-troca? A resposta é: o valor-
de-uso da força-de-trabalho é o próprio trabalho. É o trabalho que pode
ser efetuado pelo operário precisamente enquanto o operário é força-
de-trabalho; de modo que o capitalista, que comprou a disponibilidade
por um dia da força-de-trabalho, a utilizará, durante aquele dia, da única
maneira pela qual é ela utilizável, ou seja, extraindo dela o trabalho que
pode ser efetuado durante um dia. Assim como o valor-de-uso de um
par de sapatos é calçá-lo e caminhar com ele, ou seja, é a função parti
cular que têm os sapatos, assim também existe uma função particular
da força-de-trabalho, que consiste na prestação de trabalho, no trabalho
em ato. Mas esse trabalho, esse trabalho vivo que brota da força-de-
trabalho, não é uma coisa qualquer, já que — e essa é uma questão de
que já falamos no início destas lições — o trabalho é substância do valor,
é a substância valorizadora, é a coisa que, quando é realizada, dá lugar
a produtos que são valores. Mas, com essa premissa, a explicação da
mais-valia, da diferença entre D’ e D, torna-se imediata. O problema
é que não existe nenhuma relação — atenção para isto! —entre a quanti
dade de trabalho objetivado na força-de-trabalho e a quantidade de
trabalho que pode ser extraída dessa força-de-trabalho; trata-se de duas
quantidades de trabalho que nada têm a ver uma com a outra; esse é o
ponto essencial da explicação marxiana do lucro. Ou seja: se eu digo
que os meios de subsistência consumidos pelo operário num dia contêm
quatro horas de trabalho, porque são necessárias quatro horas para
produzi-los, isso não significa que o operário, cuja força-de-trabalho
foi comprada e posta para funcionar por um dia, possa dar quatro horas
de trabalho. Se a jornada de trabalho é de oito horas, serão extraídas
oito horas de trabalho vivo daquela força-de-trabalho. Então, o que
acontece? Acontece que o capitalista, comprador da força-de-trabalho,
pagou o valor correspondente a quatro horas e tem em mãos um valor
correspondente a oito horas. A diferença entre essas duas quantidades
de trabalho — o que Marx chama de trabalho excedente - é a origem
do valor excedente, da mais-valia, que se apresenta como incremento
do valor do capital. É essa, precisamente, a explicação da mais-valia dada
124
por Marx. A mais-valia, como qualquer outro valor, é trabalho. E que
trabalho? A diferença entre o trabalho prestado e o trabalho contido
na força-de-trabalho.
Por outro lado, deve-se acrescentar que o conjunto de mercadorias
simbolizado por M na fórmula D-M-D’ não compreende apenas a força-
de-trabalho, mas também outras coisas; ou seja, para usar a terminologia
que já vimos ao 1er o Capítulo VI, há aqui não apenas a compra da
condição subjetiva da produção, mas também a compra das próprias
condições objetivas da produção, ou seja, os meios de produção. De
que modo os meios de produção operam nesse processo? Esses meios
de produção possuem naturalmente um valor e, por isso, a aquisição
dos mesmos implica que uma parte do capital é empregada na compra
desses meios. De modo que o capital inicial global se subdivide em duas
partes, uma das quais compra os meios de produção por seu valor e outra
compra a força-de-trabalho também pelo seu valor. Essas duas partes
do capital, como já sabemos, são indicadas por Marx com as expressões
“capital constante” e “capital variável”. Essas palavras são usadas aqui
num sentido especial, que já esclarecemos, mas sobre o qual insistiremos
para evitar possíveis equívocos. 0 que Marx quer dizer quando fala em
“capital constante” e “capital variável”? Quer dizer o seguinte: o capital
constante é o valor dos meios de produção; por que é chamado de capital
constante? Não certamente porque o valor dos meios de produção não
se altere ao longo do tempo; aliás, em função do tempo, o valor dessa
parte do capital se altera como qualquer outra grandeza econômica;
portanto, não é esse o sentido da palavra “constante” ; não é essa a razão
(pois seria uma razão errada) que faz o capital constante se chamar capital
constante. Chama-se “constante” , ao contrário, por esta outra razão:
porque esses meios de produção transferem para o produto apenas o seu
valor-, ou seja, o valor dos meios de produção reaparece sem modificação
no valor do produto; e é precisamente porque reaparece sem modificação
no valor do produto que Marx o chama de “constante” ; podemos dizer
que é um valor que não se modifica sob o ângulo da constituição do
valor do produto. Ao contrário, o valor da força-de-trabalho é chamado
de “capital variável” pelo motivo oposto. Por que é variável? Porque a
força-de-trabalho transmite ao produto final não simplesmente seu próprio
valor, mas transmite seu próprio valor mais o valor devido ao trabalho
excedente, ou seja, a mais-valia. Isto quer dizer que a força-de-trabalho
é portadora de uma quantidade de trabalho maior do que a que ela
mesma contém; por isso, o valor do capital variável se modifica sob o
ângulo da constituição do valor do produto.
Vocês podem encontrar as definições em O Capital, Livro 1, páginas
234-235. A definição de Marx é a seguinte:
“A parte do capital, portanto, que se converte em meios de
produção, isto é, em matéria-prima, materiais acessórios e meios
125
de trabalho, não muda a magnitude do seu valor no processo
de produção. Chamo-a, por isso, parte constante do capital,
ou, simplesmente, capital constante.
“A parte do capital convertida em força-de-trabalho, ao
contrário, muda de valor no processo de produção. Reproduz
o próprio equivalente e, além disso, proporciona um excedente,
a mais-valia, que pode variar, ser maior ou menor. Esta parte
do capital transforma-se continuamente de magnitude constante
em magnitude variável. Por isso, chamo-a parte variável do capital,
ou simplesmente, capital variável.”
Sendo assim, do que é constituído o valor global de uma mercadoria
segundo essa teoria do valor de Marx? O valor global de uma mercadoria é
constituído de três partes: o valor do capital constante, o valor do capital
variável e a mais-valia. Indicando com c o capital constante, com v o
capital variável, com m a mais-valia, com M o valor do produto, temos:
c + v +m =M
Vejam que essas três partes do valor são todas elas quantidades
de trabalho: c é a quantidade de trabalho objetivada nos meios de
produção; v é a quantidade de trabalho objetivada dos meios de subsis
tência; m é a quantidade de trabalho fornecida a mais pelo trabalhador,
ou seja, o trabalho excedente: v, ou seja, a quantidade de trabalho objeti
vada nos meios de subsistência, coincide com uma parte do trabalho
que o operário executa durante o período de trabalho; m coincide com
a outra parte do período laborativo; finalmente, M é a quantidade de
trabalho globalmente objetivada no produto.
A distinção entre capital constante e capital variável é fundamental
para compreender a natureza do capital. Bem menos importante do que
ela, porque se desenvolve não no terreno dos princípios da economia,
mas tão-somente no simples terreno contábil, é uma outra distinção,
ou seja, a que existe entre capital “circulante” e capital “fixo” . Teremos
também de falar dessa segunda distinção, pois ela está implícita em
algumas das questões de que deveremos tratar.
Os meios de produção, cujo valor é o capital constante, são de
várias es écies: edifícios, máquinas, fontes de energia, matérias-primas.
Trata-se, portanto, de coisas bem diversas do ponto de vista do valor-
de-uso. Uma primeira diferença, que imediatamente salta à vista, é a
seguinte: uma máquina dura muitos anos, enquanto a matéria-prima,
ao contrário, desaparece inteiramente em um produto. O edifício, por
seu turno, tem uma duração longuíssima; por certo não desaparece no
produto. Para se ter um critério objetivo de julgamento sobre essa
durabilidade, raciocina-se do seguinte modo: a mercadoria produzida
126
pelo capital de que estamos falando é uma mercadoria produzida durante
um certo período, que deve ser considerado como pré-fixado de uma
vez por todas; portanto, quando se diz “valor” , pretende-se dizer: valor
do que foi produzido num dado período de tempo. Convencionalmente,
diz-se um ano, mas trata-se de um ano inteiramente convencional, que
pode não ter nada a ver com o ano solar. Em nossa fórmula do valor,
M é portanto o valor da produção anual numa certa atividade, num certo
processo. No início do ano, o capitalista que controla esse processo
compra os edifícios, as máquinas, as matérias-primas, tudo o que lhe é
necessário para levar adiante sua produção. Ora, um certo capital se chama
capital fixo se sua duração é maior que um ano; um edifício e uma máqui
na são evidentemente capital fixo; ao contrário, chama-se capital circu
lante o capital cuja duração é igual ou menor que um ano; por exemplo,
as matérias-primas são adquiridas através da constituição, no início do
ano, de um estoque, ou seja, de uma certa quantidade de matéria-prima
que servirá para alimentar o processo produtivo por um período não maior
que um ano; quando o estoque acaba, o capitalista o reconstitui, compran
do-o de novo. A magnitude do estoque com relação à produção depende
do período que essa produção deverá durar (que se chama período de
rotação); portanto, se no início do ano o capitalista quer comprar um
estoque para um ano, comprará uma certa quantidade de matéria-prima,
que renovará no início do ano seguinte; mas poderia comprar um estoque,
por exemplo, para um mês, caso em que deverá renová-lo doze vezes;
por ano; se comprar um estoque para seis meses, renova-o duas ve
zes; se compra um estoque para uma semana, deve renová-lo 52 ve
zes, etc.
Para os salários, é a mesma coisa. Os salários — de acordo com a
colocação que Marx sempre adota e que é a típica da economia clássica —
são pagos antecipadamente; e, dado que são pagos por períodos não
superiores a um ano, o valor deles - ou seja, o capital variável - faz
parte do capital circulante. Temos, assim, que o capital fixo é consti
tuído por uma parte do capital constante (máquinas, edifícios), enquanto
o capital circulante é a soma da outra parte do capital constante (matérias-
primas) e do capital variável (salários).
Devemos agora estabelecer que relação existe entre o capital com
o qual se inicia o processo produtivo e o valor que esse capital transfere
para o produto anual. Aqui, a distinção entre capital fixo e capital circu
lante torna-se evidentemente importante. O capital fixo transfere para
o produto anual um valor igual à relação entre o valor desse capital fixo
e a sua duração em anos. Por exemplo, um capital fixo de valor 1.000
que dure 10 anos transfere para o produto anual um valor igual a
1.000/10 = 100. O capital circulante transfere para o produto anual
um valor igual ao produto do próprio valor multiplicado pelo número
dos períodos de rotação contidos em um ano. Por exemplo, se as anteci
127
pações salariais forem feitas para uma semana, o valor transferido para
o produto anual é igual ao valor desse capital multiplicado por 52.
Uma hipótese simplificadora muito cômoda, que adotaremos com
freqüência e que é freqüentemente adotada por Marx, consiste em supor
que tanto o capital constante quanto o capital variável sejam capital
circulante antecipado para um ano. Nesse caso, o valor do capital e o
custo anual do produto coincidem.
128
Lição 13
A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA
130
Antes de prosseguir, vamos fazer uma antecipação, que aliás é
feita pelo próprio Marx na passagem do Livro 1 em que fala da taxa
de mais-valia. Diz Marx: se se prescinde do modo pelo qual a mais-valia
é distribuída entre as classes proprietárias — portanto, se se prescinde
da sua distribuição em lucro, renda fundiária e juro, e se se imagina que
toda ela se resolva em lucro, que é hipótese com a qual se trabalha sempre
no Livro 1, deixando de lado essas outras cotas apropriadas pelas classes
proprietárias — então, dessa mais-valia que se resolve em lucro, diz
Marx: habitualmente, na prática contábil, na ideologia dos capitalistas,
na colocação dos- economistas vulgares, esse lucro é referido ao capital
global, não apenas a v, mas a c + v, dando assim lugar a uma figura ou
categoria particular, que se chama taxa de lucro. Aliás, em sentido
próprio, a mais-valia torna-se lucro apenas no âmbito dessa referência
ao capital global, ou seja, apenas enquanto é um dos termos que consti
tuem a taxa de lucro. Ora, não é que a taxa de lucro não seja uma coisa
importante; veremos em que sentido o é para o próprio Marx, já que
o fato mesmo de que o lucro seja contabilmente referido ao capital global
empresta um certo andamento e um certo tipo de funcionamento ao
capitalismo; portanto, é preciso levar esse fato em conta; todavia, deve
restar claro — e é isso que Marx diz —que, quando a mais-valia é referida
ao capital global, encobre-se assim a sua origem, já que surge a aparência
de que é o capital global que produz esse lucro, de que capital variável
e capital constante são análogos desse ponto de vista, estando numa
mesma posição em relação ao lucro (o que implicaria, entre outras coisas,
a falta de sentido de distinguir entre capital constante e capital variável,
passando-se a ver o capital como um todo homogêneo); ao contrário,
se o lucro é referido apenas ao capital variável, põe-se então em evi
dência — revela-se — sua origem; por isso, a taxa de mais-valia tem um
significado muito diverso do da taxa de lucro, porque é certamente, como
a taxa de lucro, uma relação numérica, mas uma relação numérica que
constitui a expressão de uma relação substancial, de geração, de causa
e efeito; disso resulta a importância que essa categoria tem para Marx.
Uma circunstância que deve ser observada é a seguinte: que a explo
ração capitalista — tal como é revelada e mesmo mensurada pela taxa
de mais-valia — possui, segundo Marx, uma relação de continuidade e ao
mesmo tempo de descontinuidade, de ruptura, com a exploração que
tem lugar nas sociedades e economias pré-capitalistas. Em determinado
sentido, a exploração capitalista é como a exploração pré-capitalista;
em outro sentido, é muitíssimo diferente da exploração pré-capitalista.
Para introduzir essa questão, vamos ler um trecho de Marx, bastante
interessante; esse trecho se encontra em O Capital, Livro 1, página 265,
no parágrafo intitulado “A avidez por trabalho excedente” :
“Não foi o capital que inventou o trabalho excedente.”
131
Aqui se começa imediatamente por estabelecer uma relação com o que
aconteceu antes.
“Toda vez que uma parte da sociedade possui o monopólio
dos meios de produção, tem o trabalhador, livre ou não, de
acrescentar ao tempo de trabalho necessário à sua própria manu
tenção um tempo de trabalho excedente destinado a produzir
os meios de subsistência para o proprietário dos meios de produ
ção. Pouco importa que esse proprietário seja o nobre ateniense,
o teócrata etrusco, o cidadão romano, o barão normando, o
senhor de escravos americanos, o boiardo da Valáquia, o moderno
senhor de terras ou o capitalista. Todavia, é evidente que numa
formação econômico-social em que predomine não o valor-
de-troca mas o valor-de-uso do produto”
(como sempre ocorreu antes do capitalismo),
“o trabalho excedente1 fica limitado por um conjunto mais
ou menos definido de necessidades, não se originando da natu
reza da própria produção nenhuma cobiça desmesurada por
trabalho excedente.”
Repito: no pré-capitalismo, “o trabalho excedente fica limitado por um
conjunto mais ou menos definido de necessidades, não se originando
da natureza da própria produção nenhuma cobiça desmesurada por
trabalho excedente” . Nessa breve passagem, está contida sinteticamente
a ilustração tanto do elemento de continuidade quanto do elemento
de descontinuidade entre a exploração capitalista e a pré-capitalista.
Qual é o elemento de continuidade? O elemento de continuidade consiste
nisto: que, também no capitalismo, o trabalho global se divide em suas
duas partes, em trabalho necessário e trabalho excedente, como sempre
ocorreu. O apropriador do produto desse trabalho excedente, do produto
excedente, foi muito diferente de acordo com as várias formas que a
exploração assumiu ao longo da história. Todavia, o tipo de apropriação
era sempre o mesmo. E, na realidade, o que era? Era a apropriação do
produto correspondente ao trabalho excedente, ou seja, o produto exce
dente. Esse elemento é um elemento idêntico, que se encontra tanto
na Grécia Antiga quanto no capitalismo, como vocês puderam ler na
frase que citei. Com isso, dá-se um conteúdo determinado àquela propo
sição, já enunciada por Marx no Manifesto de 1848, segundo a qual a
história foi até hoje a história de lutas de classe, e foi história da relação
entre classes dominantes e classes dominadas, entre exploradores e explo
132
rados; isso é dito no Manifesto de 1848; aqui, em 0 Capital, formula-se
mais precisamente o problema e diz-se que essa espécie de constante
histórica não é mais do que a divisão do trabalho global em trabalho
necessário e trabalho excedente, com a apropriação do produto exce
dente — ou seja, do produto que corresponde ao trabalho excedente —
pela classe dominante ou exploradora; nesse sentido, precisamente, é
verdadeira a proposição inicial, ou seja, “não foi o capital que inventou
o trabalho excedente” ; o trabalho excedente sempre existiu, desde que
existe exploração. Esse é o lado da questão que se refere à continuidade.
Mas é evidente que tão ou mais importante é a descontinuidade, ou
seja, a especificidade da exploração capitalista; e vejam bem que se trata
de uma especificidade particularíssima, no seguinte sentido: que, se é
verdade que todas as formas de exploração possuem suas características
específicas que as distinguem das demais, a especificidade da exploração
capitalista, para Marx, reside no seguinte: que a exploração capitalista
se contrapõe a todas as outras em bloco; isto é, em outras palavras, todas
as outras constituem, em seu conjunto, uma categoria particular, que
poderia ser chamada de “exploração pré-capitalista” ; diante dessa cate
goria, está a outra categoria, “a exploração capitalista”. Em que consiste
a diferença? A diferença consiste em dois elementos, intimamente ligados
entre si, .mas que convém examinar separadamente por comodidade
de exposição.
Em primeiro lugar, a diferença entre a exploração capitalista e
a exploração pré-capitalista consiste no fato — ainda superficial, se se
quer, mas do qual já se pode começar a esclarecer a questão — de que,
enquanto a exploração pré-capitalista é uma exploração evidente, clara,
imediatamente perceptível, a exploração capitalista, ao contrário, não
é nada clara, nem imediatamente perceptível, mas deve ser descoberta
mediante uma análise, até mesmo mediante uma ciência particular, que
é precisamente a economia política; não a economia política “clássica”,
nem muito menos a “vulgar” , mas a economia política “crítica”. E por
que a exploração capitalista é assim tão pouco evidente? Porque, enquanto
a exploração pré-capitalista é direta, no sentido de que o trabalho exce
dente se configura sempre em formas visíveis, dando lugar a uma parte
do produto que é sempre materialmente separada da parte do produto
que o trabalhador conserva consigo para se manter vivo, no caso do
capitalismo, ao contrário, a exploração é indireta, é mediatizada, e media
tizada precisamente pela troca; é mediatizada pelo valor. Em suma: se
se toma o valor da mercadoria, a parte que constitui o valor do capital
variável e a parte que constitui a mais-valia são dois valores; e só uma
análise é capaz de nos dizer que um corresponde a um trabalho necessário,
enquanto o outro corresponde a um trabalho excedente; a relação de
exploração, portanto, oculta-se por trás da relação de troca; e tanto
é verdade que as coisas se dão assim que esse fato tem um importan
133
tíssimo reflexo jurídico, no sentido de que —enquanto no pré-capitalismo
o explorador e o explorado não participavam de um direito comum,
já que o explorador era juridicamente um privilegiado segundo o próprio
direito — no caso da exploração capitalista, ao contrário, o operário
e o burguês estão postos no interior de um direito comum; é verdade
que, de fato, um é explorador e o outro é explorado, mas do ponto de
vista do direito ambos são iguais. Em O Capital, Marx retoma um seu
velho filão de pensamento, que começa com a Introdução à Crítica da
Filosofia do Direito de Hegel e com A Questão Judaica, e reafirmado
nos Manuscritos de 1844 para desembocar depois precisamente em O
Capital, onde se diz que é a exploração que está na origem da desigual
dade substancial que se encontra por trás da igualdade jurídica; porém,
o fato de que a relação de exploração seja mediatizada por uma relação
de troca, ou seja, o fato de que essa relação se verifique entre dois sujeitos
de troca (o operário e o burguês), assim como o fato de que esses dois
sujeitos, além de serem dois sujeitos de troca quaisquer no terreno eco
nômico, são também juridicamente iguais, isto é, estão ambos situados
no quadro de um direito comum: tudo isso oculta a exploração capitalista,
faz com que ela não seja evidente, enquanto a exploração pré-capitalista
era algo evidente. Só a análise é que consegue descobrir que, na realidade,
as coisas continuam a se processar como antes, ou seja, do ponto de
vista da relação essencial entre as duas classes, na medida em que —
repito — uma vive do trabalho necessário e a outra do trabalho excedente.
É esse, portanto, o primeiro elemento de diferença: o caráter
indireto ou mediato da relação de exploração. Mas, desse elemento,
decorre uma segunda diferença, que, entre outras, é a que Marx tem
em mente no texto que estamos analisando: precisamente porque a explo
ração, no sistema capitalista, está no interior de uma relação de troca,
o produto excedente — que existe tanto no capitalismo como antes -
tem porém uma veste particular, uma forma particular, tem a forma de
um valor; o produto excedente é um valor excedente, uma mais-valia;
essa é uma característica específica da exploração capitalista; o produto
excedente é uma mais-valia apenas no capitalismo, pois somente no
capitalismo é que o valor-de-troca tem relevância e extensão sistemática,
abarcando em si todo o processo produtivo e o condicionando; portanto,
o que é apropriado pelo explorador é um valor; não é um valor-de-uso;
desse modo, entre outras coisas, não serve essencialmente para o seu
consumo; só serve para o seu consumo subordinadamente. Mas, se o
produto excedente apropriado como mais-valia não serve essencialmente
ao consumo do explorador, então para que serve? Já o sabemos; já lemos
a resposta muitíssimas vezes, como vocês se lembram, no Capítulo VI:
a mais-valia serve para a ampliação sistemática do próprio valor; é por
isso que Marx pode dizer na frase que lemos: enquanto antes “o trabalho
excedente fica limitado por um conjunto mais ou menos definido de
134
necessidades” (ou seja, pelas necessidades da classe exploradora, as quais,
como corretamente diria Adam Smith, são condicionadas pelo fato de
que o estômago tem um certo tamanho e não pode se ampliar indefini
damente), razão pela qual a produção de produto excedente e a prestação
de trabalho excedente não podem ser jamais tendencialmente ilimitadas
porque estão nos limites desse círculo determinado de necessidades,
que são as necessidades de consumo da classe exploradora, no capitalismo,
ao contrário, isso desaparece, porque o produto excedente é uma
mais-valia e não serve ao consumo, mas sim ao incremento do próprio
valor; portanto, pode ter uma dimensão qualquer e tende a ampliá-la
cada vez mais, a torná-la cada vez maior; é por isso que o capital tem
cobiça de mais-valia, de trabalho excedente, o que jamais aconteceu antes.
Acerca dessa tendência ilimitada ao aumento do capital, através
da transformação da mais-valia em capital, poderíamos ler muitas passa
gens; já lemos algumas, mas vou ler agora uma outra, muito bela, contida
no primeiro volume dos Grundrisse, na página 330:
“O capital, representando a forma geral da riqueza (ou seja,
o dinheiro)” —
O dinheiro é a riqueza enquanto tal, a riqueza separada, até mesmo mate
rialmente, dos valores-de-uso; a riqueza capitalista é sempre separada
dos valores-de-uso, os quais são indiferentes em relação a ela; mas o
dinheiro é também materialmente separado dos valores-de-uso, e, portanto,
é a riqueza em geral tornada concretamente sensível.
“O capital, representando a forma geral da riqueza (ou seja,
o dinheiro), é impulso ilimitado e desmesurado a ultrapassar
os seus obstáculos. Todo limite é e. deve ser para ele um obstá
culo. Caso contrário, ele deixaria de ser capital, ou seja, dinheiro
que produz a si mesmo. Tão logo deixasse de sentir um determi
nado limite como obstáculo, passando a senti-lo como limite
tolerável, decairia da condição de valor-de-troca para a de valor-
de-uso, da condição de forma geral da riqueza, para a de conteúdo
substancial determinado pela própria riqueza.”
E, na verdade, se o crescimento desse dinheiro, que se tornou capital,
estancasse em certo ponto, e o capital pudesse aceitar esse estancamente
e parar num determinado ponto de sua evolução, o que aconteceria?
Aconteceria que os valores-de-uso, nos quais o capital se encontra incorpo
rado, naquele momento, tomar-se-iam imediatamente relevantes, precisa
mente porque não seriam superados por outros valores-de-uso, que o
capital assumiria continuamente como suporte de sua ulterior expansão;
em tal caso, o valor-de-uso não seria mais subordinado ao valor-de-troca -
como o é no capital — e, por assim dizer, faria valer os seus próprios
135
direitos; mas, então, o capital não mais seria capital, já que a relação
entre valor-de-uso e valor-de-troca se inverteria em comparação com
aquela que é característica do capital. Depois, Marx concretiza —e esse
é um ponto importante:
“0 capital enquanto tal cria uma mais-valia ilimitada”
(é certo que, em cada oportunidade concreta, a mais-valia não pode
ser infinita; é sempre finita em cada oportunidade),
“já que não pode criar subitamente um ilimitado; mas ele [o
capital] é o movimento que tende perenemente a criar mais
capital” .
Esse movimento, que passa de toda determinação singular a uma outra
determinação sucessiva no que se refere à magnitude da mais-valia —
esse movimento é o capital. Temos aqui, portanto, o segundo elemento
de diferenciação entre a exploração capitalista e a pré-capitalista. Se se
quisesse, poder-se-ia dizer sinteticamente: a exploração pré-capitalista
é estática, a capitalista é evidentemente dinâmica. Embora se trate de
duas palavras extraordinariamente equívocas, podem ser empregadas
para facilitar a memorização.
Vamos ainda colocar uma outra premissa antes de abordar, na
próxima lição, a questão da taxa de lucro. Dos elementos que aparecem
na fórmula do valor da mercadoria, Marx deduz uma outra grandeza
ou categoria, muito peculiar a seu raciocínio; essa grandeza ou categoria
se chama “composição orgânica do capital” . É geralmente indicada com
a letra q, e é a relação entre o capital constante e o capital variável. Por
que essa categoria? Por que Marx a define? Antes de mais nada, há um
interesse imediato nessa relação, bastante óbvia, a ponto de ser ela usada
inclusive em colocações inteiramente exteriores ao quadro do marxismo,
em contextos diversos, ainda que numa forma um pouco diferente: se
se imagina por um momento que a taxa de salário seja dada (de modo
que as variações do capital variável coincidam com as variações do
emprego), então a composição orgânica do capital indica quanto capital
constante — ou seja, quanto valor em meios de produção —é posto em
movimento por cada operário singular; esse índice, que é freqüentemente
utilizado nas argumentações econômicas correntes, sob o nome de
“intensidade de capital”, é um índice extraordinariamente eficiente (como
diria Marx) do grau alcançado pelas forças produtivas; é um índice da
estrutura tecnológica do processo produtivo; e, grosso modo, pode-se
dizer que, quanto maior é o desenvolvimento das forças produtivas, tanto
mais alta é a composição orgânica do capital, ou, na hipótese empregada,
a intensidade de capital. Pode-se dizer isso de imediato; e, no fim das
contas, já é algo suficientemente relevante para justificar a atenção que
Marx dedica a essa relação; mas pode-se dizer algo mais.
136
Com efeito, se vocês refletirem por um momento na significação
desses símbolos, poderão observar o seguinte: uma vez que a mercadoria,
cujo valor M foi produzido, se encontra concluída, completa, ela sai
do processo produtivo; então, todo o trabalho que a produziu, subdi
vidido em suas três componentes, é trabalho objetivado no interior dessa
mercadoria; porém, enquanto o processo produtivo está em curso, o
capital constante corresponde a um trabalho que se objetivou antes desse
processo produtivo, ao passo que tanto v quanto m representam o trabalho
que se está objetivando na mercadoria; é uma objetivação em processo,
uma objetivação em curso; por isso, se considerarmos o capital global,
ou seja, c + v, e o considerarmos no uso que dele se faz no processo
de que falamos, então podemos dizer que c representa o trabalho obje
tivado, enquanto v representa (pelo menos no âmbito do capital) o
trabalho vivo. Por isso, a composição orgânica do capital é a relação
entre a parte do capital que é trabalho objetivado ou morto e a parte
do capital que é trabalho vivo. Ora, vocês se recordam —pois essa é uma
definição que lemos mais de uma vez no Capítulo VI — que, na opinião
de Marx, um dos aspectos mais caracterizantes do capital é a dominância,
a prevalência, a preponderância do trabalho morto sobre o trabalho vivo,
a inclusão do trabalho vivo no interior do trabalho morto, o fato de que
o trabalho vivo se explicita em função do trabalho objetivado nos meios
de produção e não vice-versa; ou ainda: não é o trabalho vivo que utiliza
o trabalho morto, mas é o trabalho morto que utiliza o trabalho vivo.
Marx disse isso inúmeras vezes. Ora, na opinião dele, precisamente porque
existe essa relação entre trabalho objetivado e trabalho vivo no interior
do capital, precisamente porque faz parte da própria natureza do capital
que o trabalho morto adquira preponderância cada vez maior, precisa
mente por isso, esse fato —quando é considerado em seu aspecto quantita
tivo — se reflete no aumento da composição orgânica do capital, que
expressa assim uma característica intrínseca à vida do capital.
137
Lição 14
A TAXA DE LUCRO
tl= -M -
c+v
Façamos agora estas simples operações algébricas: vamos dividir tanto
o numerador quanto o denominador por v e obteremos sucessivamente:
m
_v__ _ tm _ _ taxa de mais-valia^
c__l_ j q+ 1 comp. org. do capital + 1
v
A taxa de lucro resulta assim expressa como função da taxa de mais-valia
e da composição orgânica do capital; e vê-se imediatamente, através
dessa expressão, que a taxa de lucro é tanto maior quanto maior é a
taxa de mais-valia, e é tanto menor quanto maior é a composição orgânica
do capital.
A partir dessa fórmula, pode-se imediatamente ver o problema que,
nesse ponto, aparece para Marx, e que deveremos abordar nas próximas
lições. Vocês se lembram que Marx adota sempre a hipótese, justificada
pela realidade capitalista, de que a taxa de mais-valia é igual em todas
as atividades, já que se pressupõe que sejam iguais por toda parte a
extensão da jornada de trabalho e a taxa de salário. Portanto, qualquer
que seja o capital em discussão, esse tm tem sempre o mesmo valor.
Por outro lado, a composição orgânica do capital — diz Marx —é geral
mente diferente de setor para setor; existem setores que empregam
143
muitíssimo capital constante com relação ao variável, outros que empre
gam pouco. Pensem bem: uma central hidrelétrica, por exemplo, tem
um enorme capital constante e um pequeníssimo capital variável; uma
fábrica têxtil, ao contrário, tem muito menos capital constante com
relação ao variável. Isso quer dizer que, se tm é igual em todas as ativi
dades, enquanto q é geralmente desigual entre as várias atividades, então
a taxa de lucro será diversa nas diferentes atividades. Mas isso é impos
sível, porque a concorrência tem, como aspecto fundamental, a capacidade
de nivelar as taxas de lucro. Então, surge aqui um problema. Na próxima
lição, veremos qual seja esse problema.
144
Lição 15
VALOR-DE-TROCA E PREÇO DE PRODUÇÃO
c V m M tm <7 tl rm
I 8 2 2 12 100% 4 20% 4
II 1 1 1 3 100% 1 50% 1
c V L P P
I 8 2 2,5 12,5 5
II 1 1 0,5 2,5 1
Pode-se ver que os preços são diversos dos valores: os valores estão entre
si como 4 para 1, enquanto os preços estão como 5 para 1. Em outras
palavras, a relação de troca entre as mercadorias, em condições de equi
líbrio, é diversa da relação entre as quantidades de trabalho objetivadas
nas próprias mercadorias.
E esse, portanto, o processo de “transformação”, tal como é exe
cutado por Marx. Nesse procedimento tão simples, há um ponto funda
mental: temos, por um lado, um sistema de valores, e, por outro, um
sistema de preços; entre o sistema de valores e o sistema de preços, há
uma ligação; essa ligação é fornecida pelo termo médio, que se encontra
tanto no sistema dos valores quanto no sistema dos preços; esse termo
médio é a taxa de lucro. Essa última é calculada em termos de valor, já
que 25% é, em nosso exemplo, a relação entre a mais-valia e o valor do
capital (entenda-se: mais-valia e capital do sistema em seu conjunto);
mas ela reaparece idêntica no sistema de preços; e é precisamente por
isso que o sistema de preços é extraído do sistema de valores, já que
os preços são deduzidos dos valores, aplicando-se aos capitais uma taxa
149
de lucro determinada operando sobre os valores. Precisamente aqui está
a essência do raciocínio de Marx.
Cabe a pergunta: poderíamos determinar os preços das mercadorias
se não conhecêssemos os valores? A resposta de Marx e': não. De fato,
como faz Marx para determinar os preços? Aplica aos capitais singulares
uma taxa média de lucro. Mas essa taxa média de lucro, como poderíamos
conhecê-la se não conhecêssemos os valores sobre cuja base essa taxa
de lucro é calculada? Como teríamos podido saber, em nosso exemplo,
que a taxa média de lucro é de 25%, se não tivéssemos tido, como ponto
de partida, o valor das mercadorias? Eis, portanto, a conclusão de Marx:
os preços seriam incognoscíveis sem os valores. Vejamos como Marx se
expressa, na página 179:
“Os preços que obtemos, acrescentando a média das diferentes
taxas de lucro dos diferentes ramos aos preços de custo dos
diferentes ramos, são os preços de produção.”
Essas taxas de lucro, das quais a taxa geral de lucro é a média,
“devem ser inferidas [.. .] do valor da mercadoria. Sem essa
inferência, esvazia-se de sentido e conteúdo a noção de taxa
geral de lucro e, por conseguinte, a de preço de produção da
mercadoria”.
Portanto: a taxa geral de lucro e, em conseqüência os preços de
produção, são conceitos esvaziados de sentido e conteúdo sem os valores,
já que — sem os valores — não teríamos nenhum modo de determinar
a taxa geral de lucro e, portanto, os preços de produção. Uma impor
tante conseqüência do raciocínio de Marx é a seguinte. Voltando a nosso
exemplo, vocês podem ver que a mais-valia global é 2 + 1 e o lucro global
é 2,5 + 0,5, ou seja, são ambos iguais a 3. A mais-valia do sistema e o
lucro do sistema têm a mesma grandeza. A diferença está no seguinte:
no que se refere à origem, a mais-valia global 3 se distribui entre os dois
capitais na proporção de 2 para 1; ao contrário, no que se refere à desti-
nação, a mesma mais-valia se distribui entre os capitais na proporção
de 2,5 para 0,5; mas é a mesma mais-valia que se distribui de outro modo.
Qual é, então, a natureza do processo de concorrência, de acordo com
esse esquema? É muito simples: a concorrência redistribui entre os capitais
uma mais-valia que nasceu de determinada maneira. Como nasceu a mais-
valia? Nasceu assim: 2 de um capital e 1 de outro capital; esses dois troncos
de mais-valia, 2 e 1, formam uma espécie de pool igual a 3; esse pool,
a concorrência o redistribui entre os capitais numa outra proporção,
de modo a nivelar as taxas de lucro. Portanto, repito: quanto à origem,
a mais-valia é 2 e 1; quanto à destinação é, ao contrário, 2,5 e 0,5. Mas,
então, compreende-se por que o preço é uma forma transfigurada do
valor-de-troca: na realidade, os preços resultam dessa redistribuição entre
150
os capitais de uma mais-valia, que outra coisa não é senão trabalho exce
dente, de acordo com a teoria do valor-de-trabalho.
Vejamos como Marx se expressa sobre isso, lendo O Capital, livro 3,
página 179:
“Em virtude da diversa composição orgânica dos capitais inves
tidos em diferentes ramos de produção; em virtude de capitais
de igual magnitude mobilizarem quantidades muito diferentes
de trabalho, de conformidade com a diversa percentagem que
o capital variável representa num capital global de grandeza
dada, apropriam-se esses capitais de quantidades muito diversas
de trabalho excedente, ou seja, produzem quantidades muito
diferentes de mais-valia. Por isso, originariamente diferem muito
as taxas de lucro reinantes nos diferentes ramos de produção.
As taxas diferentes de lucros, por força da concorrência, igua
lam-se numa taxa geral de lucro, que é a média de todas elas.”
E na página 180:
“Os capitalistas dos diferentes ramos, ao venderem as merca
dorias, recobram os valores de capital consumidos para produzi-
las; mas a mais-valia (ou lucro) que colhem não é gerada no
próprio ramo com a respectiva produção de mercadorias, e sim
a que cabe a cada parte alíquota do capital global, numa repar
tição uniforme da mais-valia (ou lucro) global produzida, em
dado espaço de tempo, pelo capital global da sociedade em
todos os ramos.”
O problema, nesse ponto, pareceria resolvido se não interviesse
uma dificuldade, que o próprio Marx indicou com grande precisão,
embora — como veremos —não a tenha considerado decisiva. A natureza
dessa dificuldade pode ser vista com exatidão retomando o nosso exemplo
e raciocinando do seguinte modo: os valores das duas mercadorias do
exemplo, ou seja, 12 e 3, foram transformados, mediante o procedimento
que indicamos, respectivamente nos dois preços 12,5 e 2,5; mas — e
essa é a objeção que Marx mesmo se faz — também o capital constante
e o capital variável são compostos de mercadorias que têm determinados
valores; também esses valores deveriam ser transformados em preços de
produção; ou seja, a passagem dos valores aos preços não pode se efetuar
aplicando-se uma taxa geral de lucro a capitais determinados em termos
de valor, já que também esses capitais deveriam ser determinados em
termos de preços. Em outras palavras: o procedimento de transformação
que vimos antes é parcial, porque — se se aplica aos produtos —não se
aplica aos elementos que constituem o capital; ou seja, das mercadorias
presentes no sistema, só uma parte é incluída no processo de transfor
mação, ou seja, a parte constituída pelos produtos, ao passo que a parte
151
constituída pelos meios de produção e pelos meios de subsistência nao é
englobada no processo de transformação.
E essa questão é ainda mais grave do que parece, bastando, para
comprová-lo, que vocês reflitam um momento sobre a seguinte questão.
No sistema econômico em seu conjunto, as mercadorias que constituem
o capital social, tanto sob a forma de meios de produção quanto sob
a de meios de subsistência, são as mesmas mercadorias que emergem
do processo de produção na condição de produtos. O que significa que,
no procedimento de transformação que vimos acima, uma mesma merca
doria é calculada de duas maneiras diferentes: é calculada como preço
se sai do processo produtivo, mas é calculada como valor se nele ingressa.
Quando, por exemplo, o fertilizante sai da fábrica química, é calculado
em termos de preço; mas, quando entra na agricultura, é calculado em
termos de valor. Portanto, chega-se ao absurdo de que uma mesma merca
doria tem duas relações de troca, uma das quais coincide com o preço,
quando a mercadoria é produto, enquanto outra coincide com o valor,
quando a mercadoria é meio de produção. O que, evidentemente, não tem
sentido. Por isso, não podemos dizer que esse procedimento nos dê a condi
ção de equilíbrio. Se asituação em que as taxas de lucro são diversas não é uma
situação de equilíbrio, tampouco pode ser concebida como tal uma situação
na qual uma mesma mercadoria tem duas diferentes relações de troca.
Vejamos como Marx indica essa dificuldade. Ele escreve na página
187 (devemos recordar que, com a expressão “preço de custo”, Marx
entende a soma do capital constante e do capital variável, enquanto,
com a expressão “preço de produção” , indica o preço):
“E virtude do exposto, modificou-se a determinação do preço
de custo das mercadorias.”
Ou seja: daquele preço de custo que, de acordo com o procedimento
seguido, permaneceu inalterado na passagem do sistema dos valores para
o sistema dos preços, quando na verdade —como se começa a dizer aqui —
também ele deveria sofrer uma modificação.
“No início, admitimos que o preço de custo de uma merca
doria era igual ao valor das mercadorias consumidas para pro-
duzi-la. Mas, para o comprador”
(ou seja, para quem compra os meios de produção),
“o preço de produção de uma mercadoria é o preço de custo,
podendo por isso entrar na formação do preço de outra merca
doria como preço as custo.”
Isso quer dizer: o preço de produção de uma mercadoria é o que importa
para quem compra essa mercadoria como meio de produção, já que quem
152
compra o meio de produção não o compra por seu valor, mas pelo seu
preço de produção e, portanto, não o pode calcular depois como um
valor.
“Uma vez que o preço de produção da mercadoria pode des
viar-se do valor, também o preço de custo de uma mercadoria,
no qual se inclui esse preço de produção de outra mercadoria,
está acima ou abaixo da parte do valor global formada pelo
valor dos correspondentes meios de produção consumidos.”
Ou seja: os meios de produção, se calculados (como se deve fazer) em
termos de preços, não coincidem com os mesmos se calculados em termos
de valor.
“Em virtude dessa significação modificada do preço de custo,
é necessário lembrar que é sempre possível um erro quando
num ramo particular da produção se iguala o preço de custo
da mercadoria ao valor dos meios de produção consumidos
para produzi-la.”
Portanto, Marx observa com grande clareza a necessidade de incluir os
valores das mercadorias que compõem o capital no processo de transfor
mação. Por outro lado, conclui:
“Em nossa pesquisa atual, é desnecessário insistir nesse ponto.”
E a questão é deixada nesse nível. Naturalmente, nessa última
proposição, está implícita a sugestão de seguir adiante. O acolhimento
dessa sugestão e o desenvolvimento da investigação sobre a sua base
constituem o que hoje se apresenta como a complicada história daquela
parte da literatura econômica, marxista e não marxista, que se ocupa
precisamente do problema da transformação. Veremos, nas próximas
lições, quais são os pontos essenciais dessa história. Por ora, gostaria
de concluir com a seguinte observação. Se digo que os meios de produção
não podem ser considerados em termos de valor, mas devem ser consi
derados também em termos de preços, então há uma coisa que certamente
não se pode mais fazer: ou seja, não se pode mais calcular a taxa de lucro
do modo pelo qual a calculamos; não se pode mais calcular a taxa de
lucro como relação entre o valor do produto excedente e o valor do
capital, precisamente porque são esses valores que devem ser transfor
mados em outra coisa. Se tenho de transformá-los em outra coisa, não
posso assumi-los como elementos determinantes da taxa de lucro. Se
se quer, pode-se formular a questão em outros termos, embora equi
valentes: no processo de transformação de Marx, a sucessão lógica das
categorias empregadas é a seguinte: valor, taxa de lucro, preço. Ou seja:
o valor é o ponto de partida, é o dado desse processo; a taxa de lucro
é determinada uma vez que os valores sejam conhecidos; uma vez conhe-
153
cida a taxa de lucro, ela é aplicada ao capital, calculado em termos de
valor; e, desse modo, obtém-se o preço. Mas é precisamente essa operação
que não pode mais ser feita: em primeiro lugar, porque não se pode calcu
lar a taxa de lucro em termos de valor, dado que o capital já está ele
mesmo se transformando de valor em preço; e, em segundo, independen
temente do modo como seja calculada a taxa de lucro, ela não pode
ser aplicada a um capital determinado em termos de valor. Então, aquela
sucessão lógica resulta evidentemente destroçada.
A conclusão é a seguinte: não se pode mais determinar a taxa de
lucro antes de haver determinado os preços, já que a taxa de lucro é
uma relação entre grandezas determináveis como preços; portanto, é
impossível pressupor a taxa de lucro como algo anterior ao sistema de
preços. Vejam bem: tampouco é possível fazer o contrário, ou seja,
calcular primeiro os preços e depois — uma vez conhecidos os preços —
calcular a taxa de lucro. Como seria possível determinar os preços sem
a taxa de lucro, uma vez que os preços incluem a taxa de lucro? Não é
possível nem supor a taxa de lucro como anterior aos preços, nem supor
os preços como anteriores à taxa de lucro. Então, que caminho resta?
Somente um: determiná-los simultaneamente. Ou seja, é preciso formular
um procedimento no qual um único conjunto de condições —e veremos
quais — determina simultaneamente, ou seja, através de um sistema
de equações, o sistema dos preços e a taxa de lucro. Resta ainda uma
última coisa a dizer aqui. A fim de que esse procedimento, com o qual
se determinam simultaneamente os preços e a taxa de lucro, tenha ainda
algo a ver com o problema de Marx, exige-se uma condição, ou seja,
que os dados de onde se parte para determinar simultaneamente os preços
e a taxa de lucro sejam ainda os valores das mercadorias. É esse o problema
da transformação, como foi interpretado até agora. Ele se expressa assim:
formular um sistema de equações de tal natureza que, tendo como dados
os valores das mercadorias e refletindo em sua estrutura as condições
do regime concorrencial, determine simultaneamente a taxa de lucro
e os preços.
154
Lição 16
A HISTÓRIA DO PROBLEMA DA
“TRANSFORMAÇÃO” DOS
VALORES-DE-TROCA EM PREÇOS DE
PRODUÇÃO
Taxa de lucro
163
Lição 17
CONCLUSÕES
168
A primeira posição é uma posição que, de modo explícito (e esse
caráter explícito é precisamente um de seus méritos), vale-se dessas vicissi
tudes para colocar-se fora do marxismo. Ela consiste em dizer que esse
resultado da história do problema da transformação obriga a abandonar
a teoria do valor-trabalho, assim como todas as conseqüências que derivam
da teoria do valor-trabalho, particularmente uma, que é porém a mais
importante de todas, ou seja, a proposição de que a relação capitalista
é uma relação de exploração; essa, que é a primeira conseqüência que se
extrai da teoria do valor-trabalho, deve cair juntamente com a queda
da teoria do valor-trabalho, pelo menos segundo essa posição. Como,
por outro lado, a teoria da exploração é essencial ao marxismo, o aban
dono da mesma significa abandonar o marxismo.
Mas essa posição prossegue afirmando que, com isso, não se aban
dona necessariamente a posição crítica em face da economia e da socie
dade capitalista; e que, para a definição dessa posição crítica, muitas
das coisas ditas por Marx continuam válidas. Para manter esse ponto,
tal posição deve acentuar com grande força todos os aspectos de Marx
que, de um ou de outro modo, contêm a descrição ou a definição do
caráter alienado da atividade que se processa em condições capitalistas;
naturalmente, esse tipo de alienação não pode mais ser captado através
da categoria do trabalho abstrato, que é certamente posta em discussão
ao se abandonar a teoria do valor-trabalho; mas isso não impede que
certos aspectos da alienação do trabalho, tais como se expressam (apenas
para indicar uma referência) em algumas passagens do Capítulo VI lidas
por nós, ou no texto sobre as máquinas contido nos Grundrisse, possam
ser acolhidos. Então, essa posição concluiria do seguinte modo: o que
Marx chama de subsunção do trabalho ao capital, que é precisamente
o máximo da alienação, determina o efetivo desaparecimento do trabalho
como categoria autônoma, englobado que foi pelo capital; e trata-se
do desaparecimento não apenas do trabalho concreto enquanto produtor
de valores-de-uso, mas também do trabalho como possível substância
valorizadora; e, por isso, é natural que — no âmbito do problema da
transformação — chegue-se a dizer que os preços e a taxa de lucro podem
ser determinados em base a circunstâncias que são inteiramente internas
à realidade do capital, sem que haja assim necessidade de fazer referência
a uma realidade externa e contraposta ao capital, como seria precisa
mente o trabalho. Temos aqui, assim, uma das posições assumidas
diante do problema em questão.
Uma outra posição, que talvez seja a mais difundida de todas, tem
em comum com a primeira o ponto de partida; depois, como veremos,
afasta-se radicalmente dela, mas o ponto de partida é o mesmo. Essa
segunda posição consiste em dizer que o resultado da história do problema
da transformação indica que a teoria do valor-trabalho não pode ser
mantida; nesse sentido é que a segunda posição tem um ponto de partida
169
igual ao da primeira. Porém, após esse ponto de partida comum, as duas
posições divergem radicalmente, já que essa segunda posição continua
dizendo que a tese de Marx de que a relação capitalista é uma relação
de exploração não requer, para ser afirmada, a teoria do valor-trabalho;
e que, por isso, o fim da teoria do valor-trabalho, determinada pelo
resultado do problema da transformação, não engloba a tese da explo
ração. Como é que essa posição defende essa tese? Defende-a mediante
uma argumentação que pode ser expressa nos seguintes termos: qualquer
que seja o modo pelo qual se determinem as relações de troca entre as
mercadorias e, de modo correspondente, a taxa de lucro; e, portanto,
mesmo admitindo-se que a determinação dessas grandezas ocorra
mediante uma pura e simples referência a certa configuração produtiva,
fora portanto da referência aos valores, umi fato resta porém seguro:
que temos, no sistema econômico, uma certa quantidade de trabalho;
que essa quantidade de trabalho se distribui, segundo uma certa propor
ção; entre a produção de meios de subsistência para os trabalhadores
e a produção de todas as outras coisas, ou seja, essencialmente de produto
excedente; que a subdivisão do trabalho global nessas duas partes (uma
subdivisão que se conserva qualquer que seja a relação de troca entre
as mercadorias) é suficiente para afirmar que o trabalho é explorado.
Com efeito, o que é que o trabalho recebe de volta? O trabalho
recebe de volta apenas a parte do produto que se apresenta sob a forma
de meios de subsistência para o assalariado; mas há uma outra parte
do produto — quaisquer que sejam os modos de determinar os valores-
de-troca das mercadorias que o compõem — que não volta para os traba
lhadores; portanto, há uma parte do trabalho que serve para produzir
coisas que não são apropriadas pelo trabalhador. Basta isso para dizer
que o trabalho é explorado. É precisamente em conseqüência dessa fideli
dade à tese da exploração que os defensores dessa posição pretendem
continuar no interior do marxismo. Essa pretensão não me parece
fundada, porque não creio que se possa estar dentro do marxismo quando
não se aceita a teoria do valor-trabalho. Por que, segundo Marx, a teoria
do valor-trabalho é uma etapa essencial no curso da demonstração de
que a relação capitalista é uma relação de exploração? A razão, a meu
ver, pode ser resumida nos seguintes termos: quando Marx diz que o
trabalho do operário se distingue em duas partes, um trabalho necessário
e um trabalho excedente, fornece uma noção particular, mas muito impor
tante, de trabalho necessário; ou seja, Marx diz, por exemplo, que se
a jornada de trabalho dura 10 horas e nos bens-salário estão contidas
6 horas de trabalho, as primeiras 6 dessas 10 horas servem para recons
tituir o valor dos bens-salário, enquanto o resto é mais-valia. Prestem
atenção ao que está implícito nessa posição, só aparentemente sim
ples: está implícito que as primeiras 6 horas de trabalho executadas
pelo operário reconstituem por inteiro o valor dos bens-salário que o
170
operário recebe; isso implica a tese de que, no valor dos bens-salário,
que o operário recebe em pagamento de sua força-de-trabalho, não está
contido mais do que trabalho, de modo que as primeiras 6 horas do
operário são suficientes para reconstituir aquele valor, porque no valor
não há mais do que 6 horas de trabalho. Se existisse alguma outra
coisa, como não casualmente pretende toda a economia burguesa; se,
por exemplo, nos bens-salário recebidos pelo trabalhador existissem
6 horas de trabalho e mais alguma outra coisa, que fosse de algum modo
relativa a uma participação ativa do capitalista no processo produtivo,
como precisamente pretende a economia burguesa, é claro que esse
raciocínio de Marx não poderia mais ser feito, porque então se diria:
na realidade, o trabalhador produz mercadorias que não contêm só 6 horas
de trabalho, mas contêm também um outro X, que é a contribuição
do capitalista. Portanto, não é absolutamente verdade que o operário,
nas primeiras 6 horas de trabalho, reconstitua o valor do próprio salário,
porque ele reconstitui apenas uma parte desse valor, apenas a parte
imputável ao trabalho; a outra parte não é reconstituída por ele; e, desse
modo, o operário precisa de todas as dez horas a fim de reconstituir
aquele valor, isto é, a fim de compensar com um trabalho a mais a parte
do valor do salário que é atribuível à contribuição do capitalista. Assim,
a relação de exploração não existiria, pois o trabalhador receberia exata
mente o que dá.
Segundo Marx, nada disso é verdade. Por quê? Precisamente porque,
nos bens-salário, estão contidas apenas seis horas de trabalho. Mas do
que é que Marx precisa para fazer essa afirmação? Evidentemente, da
teoria do valor-trabalho. Portanto, fora da teoria do valor-trabalho —
pelo menos no sentido de Marx —, a exploração capitalista não pode
ser afirmada. Diante da consideração feita por essa segunda posição,
e que consiste em dizer que, qualquer que seja o modo de determinar
os preços, mantém-se o fato de que o trabalho global se divide em duas
partes, a que produz os meios de subsistência e a que produz o resto,
a crítica burguesa poderia facilmente objetar que certamente é verdade
que o trabalho se divide nessas duas partes, mas que existe uma outra
coisa, além do trabalho, que é a contribuição do capitalista, também
ela dividida em duas partes: uma que serve para produzir os bens-salários,
e outra que serve para produzir o resto. Repito, então: essa posição não
pode pretender estar no interior do marxismo; mas, precisamente porque
essa pretensão é infundada, tal posição se priva das armas que o marxismo
buscara construir, com a teoria do valor-trabalho, para responder, já
na época, às possíveis críticas à tese da exploração, provenientes da eco
nomia burguesa. Essa, portanto, é a segunda posição.
Um modo pelo qual essa posição é por vezes exposta consiste em
pôr diretamente em relação a produtividade em sentido material, ou seja,
o produto excedente, com o trabalho. A argumentação pode então ser
171
formulada nps seguintes termos. Na teoria de Sraffa, que mencionei
no fim da lição passada, descreve-se o processo produtivo de um modo
que torna possível a determinação do produto excedente em termos
materiais, ou seja, como conjunto de quantidades de mercadorias, sem
necessidade de passar pelos valores. A existência de um produto exce
dente é então julgada, por essa posição, como suficiente para definir
uma produtividade do trabalho; e, dado que esse produto excedente
não retorna (ou retorna só parcialmente) às mãos dos trabalhadores,
isso é julgado como suficiente para definir a situação como uma situação
de exploração. O quanto tudo isso esteja distante do marxismo, e também
da realidade das coisas, resulta do que eu disse na lição 11 sobre a relação
que Marx põe entre “produtividade do trabalho” e “produtividade do
capital” : para Marx, repito, sob o ângulo da produção de valores-de-uso
'(ângulo no qual, evidentemente, entra a determinação do produto
excedente em termos materiais), não se pode atribuir a produtividade
ao trabalho, pelo fato de as forças produtivas como “combinação social”
serem todas colocadas fora do próprio trabalho. Ou seja: para Marx,
a produtividade do trabalho é definível apenas no terreno do valor e,
portanto, da produção da riqueza abstrata, e não da produção de
valores-de-uso.
Há ainda uma terceira posição, análoga à segunda, mas que dela
se distingue por algumas particularidades que vale a pena mencionar.
Essa terceira posição parte da idéia de que os produtos da economia
capitalista são valores antes da troca e independentemente das modali
dades em que a troca se processa. Por isso, independentemente do fato
de a troca ocorrer ou não segundo as relações entre valores, resta que
os produtos não são senão objetivações do trabalho e, portanto, resta
a possibilidade de identificar a mais-valia como objetivação de trabalho
excedente. A troca intervém num segundo momento (“segundo” em
sentido lógico, naturalmente), a fim de redistribuir a mais-valia entre os
capitais singulares; mas isso não retira nem acrescenta nada à constituição
do valor como trabalho objetivado.
Essa argumentação se caracteriza, em suma, pela omissão, na análise
do capital, da categoria do valor-de-troca: por um lado, há o valor; por
outro, o preço de produção; nem o valor tem seu prolongamento no
valor-de-troca, nem o valor-de-troca é a premissa imediata do preço de
produção. Assim, certamente, o problema da “transformação” é elimi
nado, porque o valor e o preço de produção estão cada qual em sua
própria esfera, sem que sequer se coloque o problema da relação entre
eles. Mas, com isso, não parece que a pretensão — que também essa
posição avança — de estar no interior do marxismo possa ser acolhida.
Para Marx, com efeito, um valor que não tenha sua própria “expressão
necessária” ou “forma fenoménica” no valor-de-troca (isto é, na relação
entre valores, entre quantidades de trabalho objetivado) não é sequer
172
pensável. 0 valor é a forma que o produto assume enquanto é mercadoria,
ou seja, enquanto a sociedade se constitui sobre a base da mediação
das coisas e não da relação direta entre os homens; mas, se o valor é
necessariamente valor de mercadorias (aliás, se o valor não tem sentido
a não ser quando é aquilo a que a mercadoria pode ser reduzida), isso
significa que o valor se realiza na relação entre quantidades de trabalho
objetivado nas mercadorias, ou seja, se realiza precisamente como valor-
de-troca. Isso não significa negar que a categoria de “valor” tenha
precedência com relação à de “valor-de-troca” ; e isso precisamente no
sentido (que é o de Marx) de não ser verdade, como afirma a economia
burguesa, que “as mercadorias têm valor porque são trocadas”, mas de
ser verdade, ao contrário, que “as mercadorias são trocadas porque são
valores” ; mas significa reafirmar que, sem o valor-de-troca, ou seja, sem
a realização do valor no mercado como conjunto de relações entre quanti
dades de trabalho, o valor nem sequer existiria, pois os produtos não
assumiriam a forma do valor. Mas, se é assim (e, de qualquer modo,
para Marx é assim), o problema da relação com o “preço de produção”
se coloca, porque também o preço de produção é uma relação de troca.
Portanto, tampouco a posição que elimina o problema da transfor
mação, afastando a categoria do valor-de-troca, pode ser aceita. Parece
então que a única posição que se pretenda seriamente no interior do
marxismo deva partir da constatação de um problema em aberto; e deva
investigar se as categorias que Marx coloca como fundamento da análise
do capital deram lugar, em Marx, a uma análise realmente correspon
dente à sua riqueza, e, portanto, se não existirá espaço para um desen
volvimento da análise marxiana que resolva os problemas que, no atual
estágio, aparecem como contradições.
173
■