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LICÕES SOBRE O

CAPÍTULO VI (INÉDITO)
DE MARX

Cláudio Napoleoni

Tradução de
Carlos Nelson Coutinho

D EPA R -16 ^ HISTÓRIA.


MESTEADC - U F R. 5-

L IV R A R IA E D IT O R A C IÊ N C IA S HUMANAS
; Y São Paulo

t-UJ 1981
Título original:
LEZIONI SUL CAPITOLO SESTO INÉDITO Dl MARX
Copyright © 1972, Editore Boringhieri Società per azioni, Torino, Itália.

Capa de:
RAUL MATEOS CASTELL

Direitos adquiridos para a língua portuguesa pela


LECH - LIVRARIA EDITORA CIÊNCIAS HUMANAS LTDA.
Rua 7 de Abril, 264, Subsolo B - Sala 5 - São Paulo - SP - CEP 01044
Impresso no Brasil Printed in Brasil
ÍNDICE

Advertência................................................................................................ 7
Nota biográfica .............................................................................. 9
lição 1 Introdução. A crítica da economia política...................... 13
lição 2 Processo âe trabalho e processo de valorização.............. 26
Lição 3 Digressão sobre o papel histórico do capital.................... 33
lição 4 Trabalho útil e trabalho abstrato; trabalho socialmente
necessário; trabalho vivo e trabalho morto. As mistifi­
cações da economia política............................................... 43
lição 5 A compra-e-venda da força-de-trabalho. Capital e traba­
lho assalariado........................................................................ 51
lição 6 Ainda sobre a troca entre capital e força-de-trabalho.
Subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital 64
Lição 7 Mais-valia absoluta e mais-valia relativa . . ......................... 76
Lição 8 As m áquinas........................................................................... 86
Lição 9 Trabalho produtivo e trabalho improdutivo .................... 96
lição 10 Ainda sobre o trabalho produtivo e improdutivo............ 104
lição i 1 A “produtividade” do capital. Ainda sobre o papel his­
tórico do capital.................................................................... 112
5
r

Lição 12 A formação da mais-valia..................................................... 120


Lição 13 A exploração capitalista ..................................................... 129
Lição 14 A taxa de lu c ro ................................................ .................... 138
Lição 15 Valor-de-troca e preço de produção................................... 145
lição 16 A história do problema da “transformação” dosvalores-
de-troca em preços de produção.......................................... 155
Lição 17 Conclusões............................................................................. 164

6
ADVERTÊNCIA

As lições aqui publicadas foram ministradas na Faculdade de


Ciências Políticas da Universidade de Turim, nos meses de março, abril e
maio de 1971. O texto gravado sofreu pouquíssimas reelaborações para
esta publicação, e manteve por isso o caráter discursivo que é próprio de
uma aula. Nem sequer foram eliminadas todas as repetições que são
inevitáveis em exposições orais.
As citações foram extraídas das traduções italianas disponíveis1.
Os grifos nelas existentes encontram-se todos nos textos originais.
Agradeço à Sra. Rita Rocco e à Srta. Bianca Baratto, que gravando
e transcrevendo com grande cuidado as minhas lições tornaram possível
esta publicação.
C.N.

i . ' 1. Utilizei as edições brasileiras disponíveis, indicadas a seguir na “Nota


Bibliográfica” (Nota do Tradutor).
NOTA BIBLIOGRÁFICA

As obras de Marx referidas nestas lições são citadas segundo as


seguintes edições:
a) Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844, em Opere Filoso-
fiche Giovanili, tradução de G. Della Volpe (Editori Riuniti, Roma, 1959).
b) Trabalho Assalariado e Capital, ed. brasileira, sem indicação de
tradutor, in Marx-Engels, Obras Escolhidas (Editorial vitória, Rio de
Janeiro, 1956, vol. 1, pp. 59-92).
c) Lineamentos Fundamentais da Crítica da Economia Política,
ed. italiana dos Grundrisse, trad. de E. Grillo (La Nuova Italia, Firenze,
1968-1970, 2 vols.).
d) Para a Crítica da Economia Política, ed. brasileira, trad. de J. A.
Giannotti e E. Malagodi, in “Os Pensadores” (Editora Abril Cultural, São
Paulo, 1974, vol. XXXV: “Marx” , pp. 107-263).
e) Teorias sobre a Mais-Valia, ed. italiana, vol. 1, trad. de G.
Giorgeti (Ed. Riuniti, Roma, 1971); vol. 2, trad. de L. Perini (Ed.
Riuniti, Roma, 1973).
f) O Capital, ed. brasileira, trad. de Reginaldo de Sant’Anna (Ed.
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968-1974).
g) O Capital. Livro I, capítulo VI (inédito), ed. brasileira, trad. de
Eduardo Sucupira Filho (Ciências Humanas, São Paulo, 1978).
9
É importante ter presente a sucessão temporal dos escritos de Marx
(que nasceu em 1818 e morreu em 1883) para poder dar a cada um deles
a colocação que lhe cabe no processo de formação da teoria marxiana do
capital. Sobre isso, tenha-se presente o seguinte:
1) Os Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844 são fragmentos
de um manuscrito mais amplo, que se perdeu, redigido por Marx em 1844
em Paris, como primeiro resultado dos estudos de economia que empreen­
dera na e'poca. Foram publicados pela primeira vez em 1932.
2) O opúsculo Trabalho Assalariado e Capital foi escrito sobre a
base de algumas conferências pronunciadas por Marx em 1847, na
Associação dos Operários Alemães de Bruxelas. Publicado pela primeira
vez em 1849.
3) Entre julho de 1857 e março de 1858, Marx redigiu um volu­
moso manuscrito, que pode ser considerado como a primeira redação de
O Capital. Permaneceu desconhecido, com toda probabilidade, do próprio
Engels; foi publicado em Moscou, entre 1939 e 1941, e, dada a natureza
desse período, não teve praticamente difusão no Ocidente, até ter conhe­
cido uma nova edição em 1953, em Berlim. Na versão italiana, o título
dessa obra é Lineamentos Fundamentais de Crítica da Economia Política
(as palavras “lineamentos fundamentais” traduzem o termo alemão
Grundrisse, com o qual esse escrito é freqüentemente citado também
em italiano).
4) Fruto do trabalho desses mesmos anos é o livro Para a Crítica
da Economia Política, publicado por Marx em 1859. Contém a exposição
das categorias da mercadoria e do dinheiro, dois assuntos que serão
retomados no Livro I de O Capital.
5) Entre agosto de 1861 e junho de 1863, Marx redigiu —conforme
a informação prestada por Engels no Prefácio ao Livro II de O Capital —
um manuscrito de 1.472 páginas, com o título geral de “Para a Crítica da
Economia Política” , que deve ser considerado como o prosseguimento do
livro de mesmo título publicado em 1859. Sempre de acordo com o
testemunho de Engels, esse manuscrito contém: a) assuntos depois tratados
no Livro I de O Capital (Engels diz que essa é a primeira redação do
Livro I, o que leva precisamente a pensar que ele não conhecia os
Grundrisse)', b) assuntos depois tratados no Livro III de O Capital (capital
e lucro, taxa de lucro, capital comercial e monetário); c) uma história
do pensamento econômico, com o título “Teorias sobre a Mais-Valia” ,
que Marx concebera como Livro IV de O Capital. De todo esse material,
foi publicado apenas, por K. Kautsky, entre 1905 e 1910, o manuscrito
relativo às Teorias sobre a Mais-Valia, que correspondem mais ou menos
à metade do manuscrito completo. Na preparação para publicação,
Kautsky introduziu modificações e alterações bastante graves no manus­

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crito; uma edição crítica, que restabeleceu o texto em sua íntegra, foi
publicada na URSS em 19561.
6) Um outro manuscrito, dos anos 1864-1865, forneceu a Engels
o material para o Livro III de O Capital, publicado por ele em 1894.
7) Logo após ter concluído o referido manuscrito, Marx preparou
para impressão o Livro I de O Capital, que foi publicado em 1867.
8) Do matérial utilizado para a publicação do Livro I, Marx excluiu
um caderno intitulado “Primeiro Livro. O Processo de Produção do
Capital. Sexto Capítulo. Resultados do Processo de Produção Imediato”.
Esse Capítulo VI (inédito) foi publicado na URSS, em 1933.
9) Outros manuscritos de Marx, redigidos em 1870 e 1878, foram
utilizados por Engels pára a publicação do Livro II de O Capital, que
saiu em 1885.
Para posteriores leituras sobre os assuntos tratados nestas lições,
podem-se consultar as seguintes obras:
1. Uma exposição elementar da teoria econômica de Marx é a de
Paul M. Sweezy, A Teoria do Desenvolvimento Capitalista (ed. brasileira,
trad. de Waltensir Dutra, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1962). A edição
italiana (Boringhieri, Turim, 1970) contém também, como apêndices, as
contribuições mais importantes ao problema da “transformação” (J.
Winternitz, R. L. Meek, M. Dobb, F. Seton).
2. Ainda sobre o problema da “transformação”, os escritos do
primeiro autor que se ocupou dele — L. von Bortkiewicz — encontram-
se agora em italiano, com o título La Teoria Economica di Marx (Einaudi,
Turim, 1971), aos cuidados de L. Meldolesi, do qual recomenda-se a
introdução: “A Contribuição de Bortkiewicz à Teoria do Valor, da Distri­
buição e da Origem do Lucro”.
3. Uma boa introdução à leitura de Marx é Rosa Luxemburgo,
Introdução à Economia Política (ed. brasileira, Martins Fontes, São Paulo,
1978).
4. Sobre a interpretação da teoria marxiana do valor, cf.: M. Dobb,
Economia Política e Capitalismo (ed. brasileira, Edições Graal, Rio de
Janeiro, 1978); L. Colletti, Bernstein e il Marxismo delia Seconda Inter-
nazionale, in Ideologia e Società (Laterza, Bári, 1969); L. Colletti, II
Marxismo e Hegel (Laterza, Bári, 1969), parte 29, cap. 12; M. Bianchi,
La Teoria dei Valore dai Classici a Marx (29 ed., Laterza, Bári, 1973).

1. A Editora Civilização Brasileira anuncia para breve uma edição integral


das Teorias sobre a Mais-Valia em português, em tradução de Reginaldo de
Sant’Anna e sobre a base da edição crítica (Nota do Tradutor).

11
5. Um texto, escrito como comentário aos Grundrisse, mas que é
— mais amplamente — muito útil para orientar-se no vastíssimo material
constituído pelos escritos de Marx, é R. Rosdolsky, Genesi e Struttura
dei “Capitale” di Marx (Laterza, Bári, 1971).

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Lição 1
INTRODUÇÃO. A CRÍTICA DA
ECONOMIA POLÍTICA

O presente curso será dedicado à leitura e comentário de algumas


passagens relevantes do Capítulo VI (inédito) do Livro I de O Capital de
Marx. Trata-se de um texto escrito por Marx por volta de 1865, e por
ele não incluído no material que, em 1867, foi publicado como Livro I
de O Capital. Esse Capítulo Inédito é de grande interesse porque, de
maneira extremamente lúcida, contém uma espécie de resumo de quase
todo o conteúdo teórico essencial do Livro I. Seu exame, por isso,
permite penetrar mais profundamente na essência da argumentação de
Marx, em comparação com o que aconteceria com outros textos de igual
dimensão.
No curso da leitura, referir-me-ei de quando em quando também a
outras passagens de Marx, extraídas principalmente dos Grundrisse (Linea­
mentos Fundamentais) ou do Livro I de O Capital, de modo a comple­
mentar oportunamente as coisas que irei dizendo como comentários ao
Capítulo Inédito. Ademais, quando o exame desse texto estiver concluído,
espero que ainda teremos tempo para dedicar algumas lições à exposição
de certos problemasinternos à teoria marxiana do valor, tais como eles
se apresentam através do examedos capítulos iniciais do Livro III de
O Capital, aos quaistambém me referirei, lendo seus trechos principais.
Todavia, antes de iniciar a leitura do Capítulo VI, será oportuno
que — ainda que de modo muito esquemático —eu exponha certos traços
fundamentais do pensamento de Marx, apenas com a finalidade de
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introduzir algumas categorias, cujo conhecimento é pressuposto pelo
texto que vamos ler. Na realidade, teremos de retornar detalhadamente a
muitos desses conceitos por ocasião da leitura dos textos; e, precisamente
nesse sentido, as coisas que direi nessa primeira lição têm caráter mera­
mente introdutório.
O ponto do qual se deve partir é a verificação do significado que
tem para Marx a “crítica da economia política”. Precisamente no
Capítulo VI, na página 95, falando sobre os economistas burgueses,
diz-se que eles,
“presos às representações capitalistas, [ .. . ] vêem, sem dúvida,
como se produz dentro da relação capitalista, mas não como se
produz essa própria relação.”
Portanto, a crítica da economia política consiste para Marx em
considerar a relação capitalista, o capital, não como um dado, mas como
um problema. Essa colocação se encontra em Marx já nos Manuscritos
Económico-Filosóficos de 1844, onde — na página 193 — se lê:
“Partimos dos pressupostos da economia política. Aceitamos a
sua linguagem e as suas leis. Pressupomos assim a propriedade
privada, a separação entre trabalho, capital, terra, e igualmente
entre salário, lucro do capital e renda fundiária, assim como
pressupomos a divisão do trabalho, a concorrência, o conceito
de valor-de-troca, etc. Com a própria economia política, com
suas próprias palavras, mostramos que o operário é degradado a
mercadoria, à mais miserável mercadoria; que a miséria do
operário está em relação inversa à potência e à grandeza de sua
produção; que o resultado inevitável da concorrência é a acumu­
lação do capital em poucas mãos e, portanto, uma restauração
ainda mais espantosa do monopólio; e, finalmente, que desaparece
a distinção entre capitalista e proprietário fundiário, assim como
aquela entre camponês e operário fabril, com o que a inteira
sociedade deve dilacerar-se nas duas classes dos possuidores e dos
trabalhadores sem propriedade.
A economia política parte do fato da propriedade privada.
Expressa o processo material da propriedade privada, o seu
processo realizado na realidade, em fórmulas gerais, abstratas,
que ela depois tenta impor como leis. Ela não compreende essas
leis, ou seja, não mostra como resultam da existência da proprie­
dade privada. A economia política não nos dá nenhum esclare­
cimento sobre a razão da divisão entre trabalho e capital, entre
capital e terra. Quando, por exemplo, determina a relação entre
o salário e o lucro do capital, vale para ela —como razão última —
14
o interesse do capitalista: ou seja, supõe o que deve explicar.
Também a concorrência entra por toda parte: é explicada por
meio de condições externas. De que modo tais condições externas,
aparentemente acidentais, são apenas a expressão de um desenvol­
vimento necessário, isso a economia política não nos diz. Vimos
como a própria troca aparece-lhe como um fato acidental. As
únicas engrenagens que a economia política põe em movimento
são a cupidez e a guerra entre cúpidos, a concorrência”.
Em outras palavras: tudo o que a economia política pressupõe deve,
ao contrário, ser explicado; a separação entre trabalho, capital e terra, as
categorias do salário, do lucro e da renda, e, ademais, o valor-de-troca, a
concorrência, o monopólio e assim por diante, são coisas que a economia
política recolhe diretamente da realidade, colocando-se simplesmente o
problema do seu funcionamento. A operação crítica de Marx consiste em
investigar, antes de mais nada, a razão pela qual todas essas coisas existem,
ou seja, qual é a característica essencial do processo histórico em ato, que
constitui a raiz comum de todas essas categorias, e, portanto, o funda­
mento daquele conjunto de relações que as constitui em sistema. Em
suma, a pergunta não é: como é o capital?; mas sim: por que existe o
capital?
A resposta a essa pergunta, por outro lado, forma-se em Marx a
partir da reflexão sobre os resultados da economia política e, em particular,
sobre.Smith e Ricardo. Portanto, convém proceder do seguinte modo: em
primeiro lugar, expor como se apresentava a solução teórica da economia
política no momento em que Marx a estuda; em segundo, examinar de
que modo a solução que Marx encontra para os problemas que a economia
política deixou em aberto é capaz de problematizar, ou seja, de historicizar.
a relação capitalista.
A economia política clássica se apóia em duas proposições funda­
mentais. A primeira é que a sociedade (e se trata naturalmente da
sociedade capitalista, ainda que os clássicos a pensem eojno a sociedade
tout court) se baseia na relação de troca, com a conseqüência ae que a
explicação do valor-de-troca é o ato preliminar da explicação científica
da própria sociedade. A segunda proposição é que os valores-de-troca
são, de alguma maneira, vinculados com as quantidades de trabalho. Mas,
na definição das quantidades de~ trabalho, das quais dependem os valores
de troca, há uma diferença importante entre Smith e Ricardo. Verificar a
natureza dessa diferença entre as duas teorias do valor é algo essencial,
já que — como direi — a teoria do valor de Marx nasce precisamente da
consideração do significado dessa diferença e coloca-se como a superação
de duas formulações igualmente parciais.
Segundo Smith, o valor de uma mercadoria é a quantidade de
trabalho que essa mercadoria pode adquirir. Essa teoria é conhecida
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com o nome de teoria do trabalho “comandado”, com uma tradução
literal do verbo inglês command, que Smith emprega para indicar preci­
samente o “comando” sobre o trabalho que o possuidor da mercadoria
adquire quando, com essa mercadoria, compra trabalho. É claro que o
trabalho comandado de Smith não é nada mais que o trabalho assala­
riado: a aquisição de trabalho no mercado implica de fato, por um lado,
um vendedor que, enquanto vendedor de trabalho, é precisamente o
operário assalariado; e, por outro lado, um comprador que, enquanto
comprador de trabalho, é o capitalista, para quem a venda da mercadoria
tem sentido na medida em que o poder de compra assim obtido é reuti­
lizado para a aquisição de trabalho. O grande mérito da teoria smithiana
do trabalho comandado enquanto determinante do valor reside, precisa­
mente, na referência que ela implica ao ato de troca que caracteriza a
especificidade do capitalismo, ou seja, àquele ato que tem como objeto
de compra-e-venda precisamente o trabalho.
Tendo-se presente que, em condições capitalistas, o valor de uma
mercadoria compreende não apenas os salários, mas também o lucro
(se, para simplificar, prescindimos da renda), vê-se então que — com o
conceito de trabalho comandado - Smith conseguia mensurar em trabalho
não apenas os salários, mas também o lucro: do trabalho global comandado
por uma mercadoria, uma primeira parte, com efeito, corresponde aos
salários contidos na própria mercadoria, enquanto uma outra parte
corresponde ao lucro, também contido na mercadoria.
A objeção de Ricardo à teoria smithiana do valor pode ser formulada
nos seguintes termos: o trabalho comandado é ele próprio um efeito da
troca e, por isso, não pode ser tomado como explicação do valor-de-troca.
Em outras palavras: se se pergunta “de que depende o trabalho coman­
dado?”, não se consegue encontrar uma resposta no âmbito da teoria
smithiana, precisamente porque o conceito de trabalho comandado insere-
se no interior do fenômeno da troca, que tal conceito pretenderia explicar.
É por isso que Ricardo contrapõe ao conceito de trabalho comandado o
conceito de trabalho contido numa mercadoria; ou seja, contrapõe a um
fato que está inteiramente na esfera da troca e da circulação um fato que
é anterior a essa esfera, já que constitui uma característica do processo
produtivo. Para Ricardo, portanto, a relação de troca entre duas merca­
dorias coincide com a relação entre as quantidades de trabalho contidas
nas próprias mercadorias. Deve-se observar que, quando se diz “trabalho
contido numa mercadoria”, deve-se entender tanto o trabalho empregado
diretamente na produção da própria mercadoria, quanto o trabalho
contido nos meios de produção que são necessários para produzir essa
mercadoria; ou seja, trata-se tanto do trabalho direto quanto do trabalho
indireto contido nas mercadorias. Dessa feita, à pergunta “de que depende
o trabalho contido? ”, pode-se responder fazendo referência as condições
técnicas a que está submetida a produção de mercadorias em determinadas
16
condições históricas, isto é, fazendo referência ao grau de desenvolvi­
mento alcançado pelas forças produtivas em determinadas condições de
tempo e de espaço. Nesse sentido, a solução de Ricardo representa um
passo à frente decisivo com relação à teoria de Smith. Mas, na teoria de
Ricardo, há um ponto débil que a compromete gravemente. 0 ponto é
este: já que nas condições capitalistas também o trabalho é uma merca­
doria e, portanto, possui também um valor, será preciso determinar algo
que seja o valor do trabalho; no quadro da teoria ricardiana, será preciso
responder que o valor do trabalho é o trabalho contido no trabalho;
mas, desse modo, desemboca-se num evidente círculo vicioso.
Nesse ponto, podemos tentar retomar os aspectos positivos e nega­
tivos, tanto da posição de Smith quanto da de Ricardo. O aspecto positivo
de Smith consiste no fato de que, com o conceito de trabalho comandado,
ele se refere a um aspecto especificamente capitalista do mercado: o fato
de que o trabalho comandado corresponda, por uma parte, aos salários e,
por outra, ao lucro, é índice de uma situação especificamente capitalista,
ou seja, de uma situação na qual — precisamente em virtude da presença
do lucro - a quantidade de trabalho que se pode pôr em movimento, ou
que se pode comandar, mediante uma mercadoria é maior do que a
quantidade de trabalho que essa mercadoria exigiu para ser produzida
Pode-se também dizer: se a aquisição, por parte do_ capitalista, de uma
certa quantidade de trabalho permite a produção de uma mercadoria
com a qual se pode depois obter uma maior quantidade de trabalho,
isso significa que a troca entre capitalista e operário processa-se sob o
signo de uma desigualdade de fundo; e é precisamente o fato de ter
percebido essa desigualdade que faz da teoria smithiana uma representação
singularmente eficaz da realidade capitalista. O aspecto negativo de Smith
está no fato de que, por restar o trabalho comandado privado de expli­
cação, a sua própria diferença em relação ao trabalho contido aparece
como algo misterioso; e o lucro, cuja função Smith vê tão lucidamente,
permanece todavia inexplicado quanto às suas origens. O mérito de
Ricardo está no relacionamento, operado pela sua teoria, entre o valor
e as condições de produção, mediante o conceito de trabalho contido.
O aspecto negativo está no fato de que a impossibilidade de explicar —ou
melhor, até mesmo de dar um sentido — ao “valor do trabalho” torna
impossível, também nesse caso, explicar o lucro, já que é claro que esse
último depende da cota-parte do valor global que resulta excedente com
relação precisamente ao “valor do trabalho” .
O problema teórico que a economia política clássica deixava em
aberto pode, então, se configurar nestes termos: encontrar o modo de
ligar o valor às condições da produção, como em Ricardo, mas salvando
o conceito smithiano de “troca desigual” ; desse modo, seriam conservados
os dois aspectos positivos de Smith e Ricardo, ao mesmo tempo em que
seriam eliminados os dois aspectos negativos.
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Essa operação teórica foi precisamente o que Marx conseguiu fazer:
mas ela exigiu dele uma completa superação das categorias clássicas, a
ponto de que a referida operação terminou por configurar-se, como
veremos, não simplesmente como a resolução de um problema deixado
em aberto, porém — mais precisamente — como a crítica radical da colo­
cação geral em cujo âmbito aquele problema tinha podido tomar corpo.
O ponto de partida de Marx é precisamente a crítica do conceito
de trabalho que está na base da categoria clássica do valor-de-troca.
Segundo Marx (ainda nos Manuscritos, p. 196):
“A economia política oculta a alienação que está na essência
do trabalho; e o faz porque não considera a relação imediata
entre o operário (o trabalho) e a produção.”
Isso significa, em substância, que há — por parte da economia
política — uma aceitação acrítica do trabalho nas condições em que ele
se encontra historicamente; acrítica, no sentido de que o trabalho histori­
camente determinado é imediatamente assumido como trabalho natural.
O ponto, então, é este: trata-se de pôr a nu o caráter mistificador
da economia política, isto é, de esclarecer que o trabalho do qual ela
fala, quando relaciona o valor ao trabalho, não é o trabalho enquanto
tal, ou seja, o trabalho em suas determinações naturais, mas é o trabalho
alienado, ou seja, o trabalho que, desenvolvendo-se numa situação histórica
determinada, como a capitalista, foi transformado em algo diverso do
que estaria implicado em suas determinações naturais.
Em que consiste, portanto, para Marx, essa alienação do trabalho?
Em Marx, esse conceito tem uma história, que não dificilmente pode ser
reconstruída, a qual — partindo dos Manuscritos de 1844 — chega até
O Capital, passando pelos Grundrisse e por Para a Crítica. Não narrarei
essa história, embora seja de grande interesse, por evidentes razões de
tempo; limitar-me-ei a expor o conceito em sua forma mais madura, a
que aparece em Para a Crítica e em O Capital.
Podemos começar com uma proposição, que presumo seja bastante
conhecida, e que está no fundo da argumentação de Marx: o capital não
é uma coisa, mas sim uma relação social. Já em 1847, falando à Associação
dos Operários Alemães de Bruxelas (e o texto dessas conferências seria
publicado dois anos depois com o título Trabalho Assalariado e Capital),
Marx dizia (p. 79):
“Como então uma soma de mercadorias, de valores-de-troca,
se transforma em capital?
Conservando-se e multiplicando-se, como força social inde­
pendente, isto é, força de uma parte da sociedade, através de
sua troca pela força-de-trabalho imediata, viva. A existência de
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uma classe que possui apenas sua capacidade de trabalho é uma
condição preliminar necessária do capital.
É exclusivamente o domínio do trabalho acumulado, passado,
materializado, sobre o trabalho imediato, vivo, que transforma
o trabalho acumulado em capital.
O capital não consiste em que o trabalho acumulado sirva de
meio ao trabalho vivo para uma nova produção. Consiste em
que o trabalho vivo serve de meio ao trabalho acumulado para
manter e aumentar o valor-de-troca desse último.”
Portanto, o capital pressupõe: 1) que o trabalho, a “condição
subjetiva” da produção, esteja separado das condições objetivas da própria
produção, ou seja, tanto da terra quanto do conjunto de meios de
produção e de meios de subsistência que constituem o trabalho acumu­
lado, o trabalho passado; e, portanto, que exista uma classe que nada
possui além de sua simples capacidade laborativa, ou “força-de-trabalho” ;
2) que essas condições objetivas da produção sejam possuídas por uma
outra classe, a qual, precisamente por isso, pode comprar aquela força-de-
trabalho, com a única finalidade de obter — mediante o processo produ­
tivo que assim se torna possível — a conservação e o aumento do valor-de-
troca em sua posse. Tão-somente nessas condições é que os meios de
produção e de subsistência são capital. E torna-se claro, então, que o
capital — trazido à existência por essas condições sociais — implica a
inversão da relação natural entre trabalho vivo e trabalho acumulado:
não se trata do fato de que “o trabalho acumulado serve ao trabalho
vivo como meio para uma nova produção” , mas do fato de que “o trabalho
vivo serve de meio ao trabalho acumulado para manter e aumentar o seu
valor-de-troca”.
Mas de que modo, e por quê, o trabalho pode cumprir essa função
de valorização? Para responder a essa pergunta, é preciso justamente
verificar o que é exatamente o trabalho nas condições capitalistas.
Podemos partir da seguinte proposição, que se encontra em Para a
Critica da Economia Política, nas pp. 143-144:
“O trabalho que é medido desta maneira, isto é, pelo tempo,
aparece não como o trabalho de diferentes sujeitos, mas, ao
contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como
meros órgãos do trabalho.”
Essa passagem pode facilmente ser ligada à anterior, extraída de
Trabalho Assalariado e Capital.
Para Marx, o trabalho é a realização do homem, a sua “essência” .
Por isso, se — como ocorre no caso do capital — o trabalho tem com o
trabalho acumulado, com a coisa, uma relação invertida, já que é dominado
19
por ela, é seu instrumento, então também a relação entre o homem e o seu
trabalho é invertida: o homem, alienado de sua essência, não é mais o
sujeito do qual o trabalho constitui o predicado essencial, mas, ao
contrário, é o trabalho que foi elevado a substância independente; e os
homens, em relação a ele, não são mais que simples veículos de realização,
simples suportes materiais da sua explicitação. O trabalho, convertido
assim numa hipóstase, é trabalho abstrato, ou seja, trabalho separado
dos sujeitos, os quais, precisamente em conseqüência dessa separação,
deixam de ser sujeitos e se tornam simples apêndices do que, se as coisas
se processassem de outro modo, seria um atributo deles. O trabalho
abstrato é evidentemente um trabalho privado de qualidades, precisa­
mente porque a única fonte possível de tais qualidades seriam aquelas
subjetividades que foram suprimidas; tem, por isso, uma simples dimensão
quantitativa, cuja medida é o tempo.
O homem (ou seja, o operário) — na medida em que é reduzido a
simples, embora necessária, base material para a realização de trabalho
abstrato ou genérico, ou seja, na medida em que é reduzido a simples e
indiferenciada capacidade laborativa — é força-de-trabalho.
Sobre essa base teórica, isto é, essencialmente sobre a definição do
trabalho como trabalho abstrato e sobre a distinção entre trabalho e
força-de-trabalho, Marx pôde chegar a conclusões decisivas para a recons­
trução em sentido crítico da análise da economia capitalista. Em primeiro
lugar, o trabalho abstrato não pode deixar de ter um produto adequado a
si mesmo; o único produto possível do trabalho abstrato (e um produto
deve existir, pois de outro modo nem mesmo se poderia falar de trabalho)
é um produto igualmente genérico e abstrato, ou seja, precisamente o
valor. Trabalho abstrato e valor são substancialmente a mesma coisa,
vista uma vez como atividade e outra vez como resultado. A “riqueza”
produzida no processo capitalista, portanto, é também ela uma riqueza
genérica, uma riqueza que conta apenas por sua quantidade e não também
por sua qualidade; uma riqueza, portanto, que nesse sentido é valor, e
que tem — em relação aos elementos singulares que a compõem - a
simples relação de um todo homogêneo com suas partes, ou seja, com os
valores singulares, que não são mais do que porções desse valor global.
Os valores, isto é, as objetivações de trabalho abstrato, recebem todo o
seu sentido de sua recíproca substitutibilidade ou intercambialidade. De
resto, a alienação da subjetividade que está na base do trabalho abstrato
permite uma só espécie de sociedade, que é a sociedade na qual a relação
entre os homens se resolve numa relação entre as coisas, isto é, se resolve
no intercâmbio, na troca. Por isso, os valores são os produtos de uma
sociedade mercantil, isto é, são necessariamente valores de mercadorias,
e não podem deixar de ter a forma de valor-de-troca. O valor-de-troca,
diz Marx, é a “forma fenoménica” do valor; e se trata, note-se bem, de
uma forma fenoménica necessária.
20
E deve-se ter presente que tudo isso não quer dizer que a mercadoria
não seja também um produto útil, um determinado valor-de-uso, capaz
de satisfazer - direta ou indiretamente — carecimentos; quer dizer (e a
coisa é clara, se se leva em conta a natureza do capital) que os dois
aspectos da mercadoria, o que a torna um valor-de-uso e o que a torna
um valor-de-troca, têm entre si a seguinte relação (como se lê no Capitulo
VI, p. 21):
“O valor-de-uso do produto aparece apenas como suporte de
seu valor-de-troca.”
Ora, sobre a base da distinção entre força-de-trabalho e trabalho,
e, por isso, da definição rigorosa do valor e do valor-de-troca, torna-se
possível resolver imediatamente o problema ricardiano: o que constitui
objeto de troca entre o operário e o capitalista não é, como os clássicos
pensavam, o trabalho, mas a força-de-trabalho.
A economia política não podia chegar à idéia de que a mercadoria
vendida pelo operário e comprada pelo capitalista fosse a força-de-trabalho
porque, obviamente (mas a coisa é óbvia só a posteriori, ou seja, depois
de Marx), se se diz que o operário vende a si próprio, ainda que por um
tempo determinado, vê-se também que o operário é a expropriação
absoluta, é a “miséria absoluta: a miséria não como privação, mas como
completa exclusão da riqueza objetiva” (Grundrisse, vol. I, p. 279). Desse
modo, a economia política teria visto o que precisamente não podia ver,
ou seja, que o capital é uma relação social, historicamente determinada,
e não uma coisa, isto é, uma propriedade natural de todo processo produ­
tivo. Referindo-se a Ricardo, diz Marx (tenha-se presente que neste texto,
Teorias sobre a Mais-Valia, vol. II, p. 435, Marx designa como “capacidade
de trabalho” o que depois chamaria de “força-de-trabalho”):
“Ele deveria ter falado não de trabalho, mas antes de capacidade
de trabalho. Mas, com isso, o capital apareceria representado
também como as condições de trabalho objetivas que se contra­
põem, enquanto potência tornada autônoma, ao operário. E o
capital apareceria imediatamente representado como relação so­
cial determinada.”
A força-de-trabalho é a mercadoria-base da sociedade capitalista; e,
como todas as outras mercadorias, tem um valor, que é o trabalho nela
objetivado, ou seja, o trabalho objetivado nas mercadorias que permitem
à força-de-trabalho subsistir e se reproduzir. O ponto fundamental que
se deve ter presente é que o trabalho objetivado na força-de-trabalho, e
que constitui seu valor, é algo inteiramente diverso do trabalho vivo que
pode ser extraído daquela mesma força-de-trabalho; e todo o fundamento
da produção capitalista reside no fato de que o capitalista pode extrair,
21
de uma força-de-trabalho que tem um certo valor, mais trabalho do que
o que está nela objetivado. Esse mais-trabalho (ou trabalho excedente)
objetiva-se, portanto, numa mais-valia (ou valor excedente), que — na
medida em que pertence ao capitalista — constitui o seu lucro.
Vemos então em que sentido as verdades de Smith e Ricardo
podem ser conservadas à margem dos seus aspectos negativos. 0 valor
é o trabalho contido e objetivado, como Ricardo pensava; mas, precisa­
mente na base do trabalho contido, a origem do lucro deve ser atribuída
ao caráter de desigualdade da troca capitalista, que Smith havia entrevisto;
com efeito, se é verdade que o capitalista não rouba nada do operário, já
que o salário corresponde precisamente ao valor do que o operário lhe
vendeu, ou seja, a força-de-trabalho, é também verdade, por outro lado,
que o que o capitalista extrai da força-de-trabalho, cuja disponibilidade
adquiriu, é um trabalho maior do que o contido nessa força-de-trabalho.
Ou seja: o que ele extrai é um valor maior do que o valor que pagou ao
operário. A diferença smithiana entre trabalho comandado e trabalho
contido é, em termos marxianos, a diferença entre o trabalho gerado pela
força-de-trabalho e o trabalho contido na própria força-de-trabalho.
Em que medida a conquista desse ponto de vista superior coloca
Marx em condições de entender e julgar os termos do problema deixado
em aberto pela economia política é algo que pode ser visto no seguinte
trecho das Teorias sobre a Mais-Valia (pp. 183-185), cuja leitura não
apresenta dificuldades (contanto que se tenha presente a distinção entre
trabalho e força-de-trabalho), e no qual se expõe em termos extremamente
lúcidos a relação entre Smith e Ricardo, bem como os méritos e os demé­
ritos de cada um deles. Depois de ter notado que o operário, com o salário
que recebeu, apresenta-se no mercado como um comprador qualquer,
visando transformar seu dinheiro em mercadorias, Marx prossegue:
“Todavia, já que ele — com o seu trabalho que se materializou
no produto — não apenas acrescentou tanto tempo de trabalho
quanto o que estava contido no dinheiro que recebeu, não só
pagou um equivalente, mas forneceu gratuitamente mais-valia,
que constitui precisamente a fonte do lucro, ele de fato (o
movimento de mediação incluso na venda da capacidade de
trabalho desaparece no resultado) forneceu um valor superior
ao valor da soma de dinheiro que constitui seu salário. Em troca,
ele comprou a quantidade de trabalho realizada no dinheiro que
obteve como salário com um tempo de trabalho maior. Portanto,
pode-se dizer que ele, ao mesmo tempo, compra indiretamente
todas as mercadorias nas quais se resolve o dinheiro por ele
adquirido (e isso não é senão a expressão independente de uma
determinada quantidade de tempo de trabalho social) com um
tempo de trabalho maior do que o que está nelas contido,
22
embora ele as compre pelo mesmo preço que qualquer outro
comprador ou possuidor da mercadoria em sua primeira transfor­
mação. Ao contrário, o dinheiro com que o capitalista compra
o trabalho contém uma quantidade de trabalho mais limitada,
um tempo de trabalho menor, do que a quantidade de trabalho
ou de tempo de trabalho do operário que está contido na merca­
doria por ele produzida; além da quantidade de trabalho contida
nessa soma de dinheiro, que constitui o salário, ele compra uma
quantidade adicional de trabalho que não paga, um excedente
sobre a quantidade de trabalho contida no dinheiro que ele
desembolsou. E essa quantidade adicional de trabalho constitui
precisamente a mais-valia criada pelo capital.
Mas, dado que o dinheiro com o qual o capitalista compra o
trabalho (e esse é efetivamente o resultado, embora mediatizado
pela troca não diretamente por trabalho, mas pela capacidade
de trabalho) não é mais do que a forma transfigurada de todas
as outras mercadorias, sua existência independente enquanto
valor-de-troca, dado isso, deve-se também dizer que todas as
mercadorias, em sua troca por trabalho vivo, compram mais
trabalho do que o trabalho contido nelas. Esse excedente constitui
precisamente a mais-valia.
É grande mérito de Adam Smith ter intuído, precisamente
nos capítulos do Livro I (caps. 6, 7, 8) nos quais ele passa da
troca simples das mercadorias e da sua lei do valor para a troca
entre capital e trabalho assalariado, para o exame do lucro e da
renda fundiária em geral, — em suma, para a origem da mais-
valia, — é seu mérito ter intuído que, nesse ponto, ocorre uma
ruptura, e (qualquer que seja a mediação através da qual ela se
verifica, uma mediação que ele não compreende) que a lei é de
fato abolida em seu resultado, que se troca mais trabalho contra
menos trabalho (do ponto de vista do operário), menos trabalho
contra mais trabalho (do ponto de vista do capitalista); e é grande
mérito seu ter salientado (o que o induz a erro no que se refere
à forma) que, com a acumulação do capital e com a propriedade
fundiária — portanto, com a efetivação da independência das
condições de trabalho em face do próprio trabalho — verifica-se
aparentemente (e efetivamente no que se refere ao resultado)
uma nova mudança, uma inversão da lei do valor em seu oposto.
Assim como sua força teórica está em ter intuído e sublinhado
essa contradição, do mesmo modo sua debilidade teórica está
no fato de que isso o levou a engano no que se refere à lei geral,
inclusive no que tange à troca simples de mercadorias; está em
não ter compreendido como essa contradição surge do fato de
que a própria capacidade de trabalho se torna mercadoria, e que
23
— para essa mercadoria particular — o valor-de-uso, que nada
tem a ver com seu valor-de-troca, consiste precisamente na
energia que cria o valor-de-troca. A superioridade de Ricardo
sobre Smith está em não se ter deixado enganar por essas
contradições aparentes, mas reais quanto ao resultado. A sua
inferioridade, com relação a Smith, está em não ter nem sequer
intuído que aqui se coloca um problema; e, por isso, o desenvol­
vimento especifico que a lei do valor sofre com a formação do
capital não o surpreende e não o preocupa, nem mesmo por
um instante”.
Portanto, é verdade que, com Marx, as questões deixadas sem
solução pelopensamento clássico são resolvidas. Mas é essencial ter
presente que não se trata simplesmente disso, já que a resolução dessas
questões se dá — nem poderia ser de outro modo — num contexto
teórico, ou seja, sobre a base de um conjunto de categorias, que implicam
uma nítida superação da colocação clássica, já que todas elas são igual­
mente conseqüência da proposição segundo a qual o trabalho é trabalho
alienado, isto é, trabalho abstrato, e que, correspondentemente, a relação
capitalista é uma relação historicamente determinada e não uma relação
eterna.
Antes de iniciar a leitura do Capítulo VI, parece-me oportuno
definir um conjunto de categorias que se ligam à categoria — geral —
do valor.
Recordo, antes de mais nada, o ponto fundamental que destaquei
há pouco: o produto do trabalho abstrato não pode deixar de ter as
mesmas características de generalidade, precisamente de abstração, daquilo
que o produz: por isso, esse produto é valor. Por outro lado (e também
esse é um ponto sobre o qual já falei), o valor não pode ser senão valor
de mercadorias, e, portanto, tem necessariamente a forma de valor-de-
troca.
Toda mercadoria, portanto, na medida em que é essencialmente
valor, tem um determinado valor-de-troca. E esse valor-de-troca tem três
partes componentes, que resultam do que dissemos acerca da força-de-
trabalho. Uma primeira parte do valor da mercadoria é constituída pelo
valor da parte do capital que se destina à aquisição de meios de produção.
Essa primeira parte do valor da mercadoria é chamada por Marx de
“capital constante”, no sentido de que ele transmite ao produto um
valor igual ao seu próprio valor. A segunda parte do valor da mercadoria é
constituída pelo “capital variável”, ou seja, pela parte do capital desti­
nada à aquisição de força-de-trabalho. Diz-se que é variável porque
transmite ao produto não apenas seu próprio valor, mas também um
valor adicional ou mais-valia, que se deve, como sabemos, ao trabalho
excedente que pode ser gerado por aquela força-de-trabalho. Essa mais-
24
valia é precisamente a terceira parte componente do valor da mercadoria.
De resto, veremos tais categorias empregadas no curso do Capítulo VI;
e, à medida que surgir a oportunidade, daremos uma explicação mais
detalhada das mesmas.

25
Lição 2
PROCESSO DE TRABALHO E PMOCESSO
DE VALORIZAÇÃO

Sobre a parte inicial do Capítulo VI, a que vai da página 6 à 18,


não me deterei, já que nela são tratados conceitos e questões que serão
posteriormente retomados por Marx, em locais que nos permitirão exa­
miná-los mais amplamente. Há, porém, um ponto que é oportuno
sublinhar desde agora. Na página 10, diz-se:
“Assim como a mercadoria é a unidade imediata dos valores
de uso e de troca, o processo de produção, que é processo de
produção de mercadorias, é a unidade imediata dos processos
de trabalho e de valorização.”
Já vimos, na lição anterior, que a mercadoria tem um duplo
aspecto: por um lado, é um fragmento de natureza transformado pelo
trabalho, e, enquanto tal, possui uma determinada utilidade, um certo
valor-de-uso; por outro, é um valor (e, por isso, um valor-de-troca), ou
seja, uma cota da riqueza abstrata, genérica, produzida pelo capital.
Marx aqui precisa que, em correspondência com esses dois aspectos da
mercadoria, o processo produtivo — do qual a própria mercadoria é
resultado — tem também ele dois aspectos: por um lado, é processo de
trabalho, ou seja, para usar as palavras de Marx numa passagem do Livro
I de O Capital (vol. 1, p. 208),
“é atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso, de
apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é
condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a
natureza; é condição natural eterna da vida humana.”
26
Por outro lado, o processo produtivo é processo de valorização,
ou seja, é um processo cuja finalidade não é a produção de objetos que
satisfaçam necessidades, mas é produção de valores e, mais especifi­
camente, é produção de mais-valia. Marx diz que há unidade imediata
entre processo de trabalho e processo de valorização; e isso no sentido
de que não se trata de dois processos diversos, mas de dois aspectos de
um único processo, visto uma vez em sua determinação natural, e outra
vez em sua determinação social; uma vez no que tem de genérico, ou
comum ao processo de produção em geral, independentemente da forma
de sociedade, e outra vez no que tem de específico, isto é, de histori­
camente determinado.
Deve-se notar, por outro lado, que a argumentação de Marx sobre a
relação entre processo de trabalho e processo de valorização não se
esgota na afirmação de sua “unidade imediata”; como veremos na
próxima lição, há para Marx —entre os dois aspectos do processo produ­
tivo capitalista — uma relação de meio e fim; e veremos também que
essa relação é inevitável, já que é conseqüência da própria natureza do
processo de valorização.
Mas, por enquanto, quero chamar a atenção para outro ponto. O
fato de que, no processo produtivo capitalista, o processo de valorização
seja imediatamente unido ao processo de trabalho leva a economia política,
a teoria não crítica do capital, a supor que não possa existir outro
processo de trabalho além do que se desenvolve sob o signo do capital;
a supor que o capital, por isso, seja também eie uma “condição natural
eterna da vida humana”. Com isso, o capital —em vez de ser visto como
uma relação social de produção - é visto como uma coisa, ou seja,
é identificado com os meios de produção. Nas páginas 12-13, depois
de ter notado que o “substrato material” do capital tem necessaria­
mente a forma de meios de produção, Marx observa como os econo­
mistas (e a coisa vale também para os economistas “burgueses” de
hoje) chegam
“à conclusão de que todos os meios de produção, potencial­
mente (dinamei), e na medida em que funcionem como meios
de produção, são realmente (actu) capital, portanto, [de que] o
capital é elemento necessário ao processo de trabalho humano
em geral, abstração feita de todas as suas formas históricas;
[de que] o capital é algo eterno e condicionado pela natureza
do trabalho humano.”
E logo após, na página 13, acrescenta:
“Igualmente, chega-se à conclusão de que, como o processo de
produção do capital é em geral processo de trabalho, assim o
27
processo de trabalho, em todas as formas sociais, é necessaria­
mente processo de trabalho do capital. O capital é visto, desse
modo, como coisa, que no processo de produção desempenha
certo papel próprio de uma coisa, adequado à sua condição de
coisa. Trata-se da mesma lógica segundo a qual, se o dinheiro
é ouro, infere-se que o ouro é dinheiro em si mesmo; de que o
trabalho assalariado é trabalho e, portanto, todo o trabalho é
forçosamente trabalho assalariado. Demonstra-se a identidade
atendo-se ao que é idêntico em todos os processos de produção,
prescindindo-se de suas diferenças especificas. A identidade é
demonstrada deixando-se de lado a diferença.”
Repito: sobre a distinção e sobre as relações entre processo de
trabalho e processo de valorização, o Capítulo VI voltará com novas
especificações; e novamente será retomada a argumentação sobre as
mistificações da economia burguesa. Também nós voltaremos ao assunto,
no momento oportuno.
Vamos ler agora o parágrafo que tem início na página 18, com o
título: “O processo de valorização do capital, processo de alienação do
trabalho” 1. A primeira especificação que encontramos é a seguinte: a
relação entre operários e meios de produção é diferente, conforme essa
relação seja posta no interior do processo de trabalho ou no interior no
processo de valorização. Lemos na página 18:
“Os meios de produção utilizados pelo operário no processo
real de trabalho são, certamente, propriedade do capitalista, e
na condição de capital se defrontam — tal como vimos antes —
com o trabalho, que é a própria manifestação vital do operário.
No processo de trabalho efetivo, o operário consome os meios
de trabalho como veículo de sua atividade, e o objeto de trabalho
como a matéria na qual seu trabalho se apresenta.”
Antes de mais nada, um esclarecimento sobre a terminologia que
Marx emprega nesse trecho, e que ele mesmo explicou pouco antes, nas
páginas que deixamos de ler. “Meio de trabalho” é o instrumento com o
qual o trabalho transforma um material que é o “objeto de trabalho” :
os meios de trabalho e os objetos de trabalho, em conjunto, constituem
os “meios de produção” . Meio de trabalho, por exemplo, é uma máquina;
objeto de trabalho, por exemplo, é a matéria-prima. Ora, Marx diz aqui
que, no processo de produção capitalista enquanto processo de trabalho,
enquanto processo natural, embora os meios de produção sejam o “subs­

1. A edição brasileira de que nos estamos valendo não contém os subtítulos


a que Napoleoni se refere, tanto aqui quanto em seguida (N o ta do Tradutor).

28
trato material” do capital, sendo portanto separados do trabalhador e
erguendo-se diante dele, embora o trabalho (que é todavia a explicitação
da vida do operário) tenha de se realizar em face de coisas que são
estranhas ao próprio trabalho, na medida em que são propriedade alheia,
embora isso aconteça, repito, sob o aspecto da determinação natural do
processo produtivo, é o operário quem utiliza esses meios, numa relação
portanto que, malgrado o capital, mantém seu caráter natural. E Marx
acrescenta:
“Do ponto de vista do processo de valorização, entretanto, as
coisas se apresentam diferentemente” .
Vejamos por quê, continuando a ler na página 19:
“[Aqui] não é o operário quem utiliza os meios de produção:
são os meios de produção que utilizam o operário. Não é o
trabalho vivo que se realiza no trabalho objetivo como em seu
órgão objetivo; é o trabalho objetivo que se conserva e aumenta
pela absorção do trabalho vivo, graças ao qual se converte em
um valor que se valoriza, em capital, e como tal funciona. Os
meios de produção aparecem unicamente como absorventes da
maior quantidade possível de trabalho vivo. Este se apresenta
apenas como meio de valorização de valores existentes e, por
conseguinte, de sua capitalização.”
A relação, portanto, se inverte, em comparação com a condição
“natural, eterna” : “não é o operário quem utiliza os meios de produção,
mas são os meios de produção que utilizam o operário”. Com efeito, o
trabalho enquanto trabalho abstrato — e, no processo de valorização, o
trabalho é trabalho abstrato — tem apenas uma função a desempenhar:
conservar e aumentar o valor do capital, produzindo um valor que contém
o valor do capital e uma mais-valia. Mas, então, os meios de produção
— enquanto portadores materiais do valor que deve ser conservado e
ampliado — estão dados no princípio e no fim do processo de produção,
o qual, precisamente por isso, é processo especificamente capitalista;
e, dado que a conservação e o aumento do valor dos meios de produção
exigem trabalho, ou seja, a explicitação da “substância valorizadora”, o
próprio trabalho não é senão meio para a valorização; e, nesse sentido,
é gasto pelos meios de produção, que “absorvem” ou “sugam” a quanti­
dade dele necessária para tal valorização. Além disso,
“prescindindo-se do que foi assinalado antes, justamente por
isso os meios de produção aparecem de novo e se defrontam
com trabalho vivo na qualidade de modo de existência do
capital, e, agora, como domínio do trabalho passado e morto
sobre o trabalho vivo” .
29
O que quer dizer “prescindindo-se do que foi assinalado antes”?
Marx já havia dito que os meios de produção se erguem diante do ope­
rário na medida em que são propriedade alheia; os meios para o trabalho,
ou seja, para a explicitação, a realização, da vida do operário, não são
do operário. Mas, aqui, essa separação entre o trabalho que produz e os
meios de produção é captada com uma ulterior determinação: não se
trata mais apenas do fato de que os meios de produção são apropriados
por outro, mas trata-se também — e sobretudo — do fato de que o
processo produtivo, enquanto processo historicamente determinado, isto
e', enquanto processo capitalista, tem tal natureza que esses meios, como
valores, não são mais meios porém fins, e o trabalho é que passa a ser
meio para a sua valorização, para o incremento do seu valor inicial; de
modo que eles se “erguem diante do trabalho” não apenas no sentido
de que, quanto à propriedade, não estão em mãos do trabalhador mas
de outros, como também (e “em grau eminente”) no sentido de que
subordinaram a si o trabalho, pondo de cabeça para baixo uma relação
natural. Trata-se, substancialmente, de uma ulterior determinação da
alienação do trabalho: o trabalho é alienado, ou seja, tornou-se diverso
de sua condição natural, não apenas porque foi eliminada a condição
natural de unidade entre trabalhador e meio de produção, mas também
porque se eliminou a condição natural segundo a qual o trabalho subor­
dina a si o instrumento em vista de suas próprias finalidades.
Essa situação de alienação é implicitamente reafirmada duas linhas
mais abaixo:
“Como esforço, como dispêndio de força vital, [o trabalho] é a
atividade pessoal do operário. Mas, enquanto criador de valor,
implicado no processo de sua objetivação, o próprio trabalho
do operário é, tão logo ingressa no processo de produção, um
modo de existência do valor do capital, a este incorporado.
Essa força conservadora do valor e criadora de novo valor é,
em conseqüência, a força do capital, e tal processo se apresenta
como processo de autovalorização do capital e, muito mais, de
pauperização do operário, o qual, criando um valor, cria-o ao
mesmo tempo como um valor que lhe é alheio.”
A alienação, portanto, reside nisto: que o trabalho, que seria a
realização da vida do homem, transforma-se em outra coisa quando é
trabalho do operário, já que nesse caso é valorização do capital; a força
do homem torna-se força da coisa e, portanto, também ela torna-se coisa.
Essa reificação, enquanto substância da alienação capitalista, é
precisada nas páginas 20 e 21. O domínio que se exerce sobre o operário
é domínio de uma coisa, já que o próprio capitalista não é mais do que
“capital personificado” . Podemos ler na metade final da página 20:

3C
“As funções exercidas pelo capitalista não são mais do que as
do próprio capital — do valor que se valoriza sugando trabalho
vivo — exercidas com consciência e vontade. O capitalista só
funciona na condição de capital personificado', é o capital
enquanto pessoa; do mesmo modo, o operário funciona unica­
mente como trabalho personificado."
E logo em seguida:
“O domínio do capitalista sobre o operário é, por conseguinte,
o da coisa sobre o produtor, o do trabalho morto sobre o trabalho
vivo, do produto sobre o produtor, já que, em realidade, as
mercadorias, que se convertem em meios de dominação sobre os
operários (mas apenas como meio de domínio do próprio capital),
não são senão meros resultados do processo de produção, os
seus produtos.”
Antes de mais nada, deve-se recordar que, na Lição 1, lemos um
trecho de Para a Crítica da Economia Política, no qual se dizia: “0
trabalho [ . .. ] aparece não como o trabalho de diferentes sujeitos, mas,
ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como meros
órgãos do trabalho”. Na passagem do Capitulo VI que acabamos de ler,
quando se diz que “o operário funciona unicamente como trabalho
personificado”, diz-se a mesma coisa, ou seja, que o trabalho não é mais
um atributo do homem, mas que, é ohomem, enquanto operário, que não
é- senão sua “personificação”; o trabalho é abstraído do homem, e o
homem — o operário — conta apenas na medida em que o personifica,
isto é, em que fornece a condição subjetiva da sua explicitação. Aqui se
acrescenta: quando o trabalho é separado do homem, quando conta
apenas como trabalho genérico ou abstrato, o trabalho não pode deixar
de ser assimilado à coisa, a qual, precisamente por força dessa assimilação,
domina o homem na condição de capital; e esse produto que domina o
produtor tem ele próprio uma personificação na figura do capitalista;
desse último, precisamente enquanto é personificação de uma coisa,
Marx dirá, na página 21, que “deitou raízes no processo de alienação”.
Mas, antes de vermos esse ponto, vamos ler ainda — na mesma
página 21 —um comentário ao fato do produto que domina o produtor:
“Na produção material, no verdadeiro processo da vida social
— pois o processo de produção é isso — dá-se exatamente a
mesma relação que, no terreno ideológico, se apresenta na
religião', a conversão do sujeito em objeto e vice-versa.”
Como se sabe, temos aqui um motivo constante do pensamento
de Marx: assim como na religião os homens são dominados pelos seus

31
produtos mentais, já que se consideram criaturas do que eles próprios
criaram na imaginação, do mesmo modo os homens — na produção
mercantil capitalista — são dominados pelos seus produtos materiais, as
mercadorias, já que são dominados de fato por coisas que emanam do
processo produtivo no qual o trabalho deles se explicita. Portanto, assim
como na religião o objeto (a divindade) é posto como sujeito, enquanto
os sujeitos que o produziram se pensam como seus objetos, do mesmo
modo o objeto da produção capitalista (a mercadoria, o capital) é posto
realmente como o sujeito ao qual os produtores são submetidos na
condição de seus objetos.
Decerto, sobre esse ponto, surge o problema do sentido que se pode
atribuir a uma condição tão “insensata” como a condição capitalista.
A resposta de Marx a essa questão é a seguinte (p. 21):
“Considerada historicamente, essa conversão [do sujeito em
objeto e vice-versa] surge como momento de transição necessário
para impor, às expensas da maioria, a criação da riqueza enquanto
tal, isto é, das brutais forças produtivas do trabalho social, as
únicas que podem constituir a base material de uma sociedade
humana livre. É necessário passar através dessa forma contradi­
tória, do mesmo modo por que a princípio o homem deve
comportar-se de forma religiosa com relação a suas faculdades
intelectuais consideradas como poderes independentes. Trata-se
do processo de alienação de seu próprio trabalho.”
Buscaremos, na próxima lição, comentar essas proposições.

32
Lição 3
DIGRESSÃO SOBRE O
PAPEL HISTÓRICO DO CAPITAL

Esta lição é, de certo modo, um parêntese com relação ao desenvol­


vimento do nosso curso. Valho-me nela do trecho citado no fim da
liçãoanterior, para submeter à atenção de vocês uma série detextos de
Marx, que se referem à função histórica do capitalismo e à sociedade
pós-capitalista, da qual o capitalismo constitui — na opinião de Marx — a
preparação.
Releio, antes de mais nada, o trecho lido na lição passada, extraído
da página 21 do Capitulo VI:
“Considerada historicamente, essa conversão [do sujeito em
objeto e vice-versa] surge como momento de transição necessário
para impor, às expensas da maioria, a criação da riqueza enquanto
tal, isto é, das brutais forças produtivas do trabalho social, as
únicas que podem constituir a base material de uma sociedade
humana livre. É necessário passar através dessa forma contradi­
tória, do mesmo modo por que a princípio o homem deve
comportar-se de forma religiosa com relação a suas faculdades
intelectuais consideradas como poderes independentes. Trata-se
do processo de alienação de seu próprio trabalho.”
Há três pontos nesse trecho que podem ser diferenciados: 1) o
capital, que embora seja a “inversão de sujeito e objeto” e seja uma
“forma contraditória” , é porém necessário ao desenvolvimento das forças
33
produtivas e, por isso, à constituição da “base material” de uma nova
sociedade; 2) o capital, nessa sua função, é um “momento de transição”
de uma situação para outra; 3) a sociedade nova, da qual o capitalismo
fornece a base material, é uma “sociedade livre”; o capital, portanto,
situa-se no fim de uma fase histórica que se desenvolveu sob o signo da
exploração e da alienação.
Limitar-me-ei aqui à indicação de outros textos, que contribuem
para ilustrar o pensamento de Marx sobre essas questões, escolhendo-os
entre os muitos aos quais poderíamos nos referir.
1) Nos Grundrisse, vol. 1, pág. 317, lemos:
“O grande papel histórico do capital é o de criar esse trabalho
excedente, esse trabalho supérfluo do ponto de vista do simples
valor-de-uso, da mera subsistência; e a sua função histórica se
realiza quando, por um lado, os carecimentos chegaram a tal
ponto de desenvolvimento que o trabalho excedente além do
necessário torna-se ele próprio um carecimento geral, ou seja,
decorre dos próprios carecimentos individuais; e quando, por
outro lado, a laboriosidade geral, mediante a rigorosa disciplina
do capital através da qual passaram sucessivas gerações, tornou-se
um processo geral da nova geração. Finalmente, sua função
histórica se realiza quando tal laboriosidade — mediante o
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, que o capital,
em sua ilimitada ânsia de enriquecimento e naquelas condições
que somente ele pode realizar, impulsiona constantemente a ir
adiante — amadurece a tal ponto que, por um lado, o processo
e a conservação da riqueza geral exigem um tempo de trabalho
inferior para a inteira sociedade, e, por outro, a sociedade
trabalhadora enfrenta cientificamente o processo de sua progres­
siva e cada vez mais rica reprodução; e, portanto, cessa o trabalho
em que o homem faz o que pode deixar que as próprias coisas
façam em seu lugar.”
Descrevem-se aqui dois processos concomitantes: por um lado, o
capital, criando trabalho excedente (em O Capital, Livro 1, pp. 265-266,
Marx dirá que “não foi o capital que inventou o trabalho excedente.
[ . .. ] Todavia, é evidente que numa formação econômico-social em que
predomine não o valor-de-troca mas o valor-de-uso do produto, o trabalho
excedente1 fica limitado por um conjunto mais ou menos definido de

1. Na edição brasileira que utilizamos, ao invés de “trabalho excedente”


- como no original alemão (Mehrarbeit) - aparece aqui, e logo adiante, a expressão
“mais-valia” (Nota do Tradutor).
34
necessidades, não se originando da natureza da própria produção nenhuma
cobiça desmesurada por trabalho excedente”); o capital, portanto, criando
trabalho excedente e reconvertendo a mais-valia em capital adicional,
desenvolve as forças produtivas até o ponto de reduzir substancialmente
o tempo de trabalho que as gerações subseqüentes deverão dedicar à
conservação do patrimônio no qual se incorpora o alto nível de produti­
vidade, de modo que cresce o tempo à disposição da sociedade, dado que
o trabalho voltado para conservar e desenvolver o legado recebido das
gerações passadas pode ser cada vez mais transferido para as coisas (para
os meios de produção aperfeiçoados); por outro lado, esse tempo à
disposição tornou-se também ele um carecimento, já que — satisfeitos,
mediante o trabalho confiado às “coisas” , os carecimentos de “mera
subsistência” — nascem sobre essa base carecimentos novos, que o tempo
disponível é chamado a satisfazer.
2) Nos Grundrisse, vol. 2, p. 182 (Marx acabou de falar da
tendência do capital a ampliar o mercado além de qualquer limite):
“Manifesta-se aqui a tendência universal do capital, que o
distingue de todos os outros estágios anteriores da produção.
Embora limitado por sua própria natureza, o capital tende a um
desenvolvimento universal das forças produtivas e torna-se assim
a premissa de um novo modo de produção, que não se baseia
sobre um desenvolvimento das forças produtivas voltado para a
reprodução e, quando muito, para a ampliação de uma situação
determinada, mas no qual o desenvolvimento livre, articulado,
progressivo e universal das forças produtivas constitui a própria
premissa da sociedade e, por isso, de sua reprodução; no qual a
única premissa é superação do ponto de partida. Essa tendência
— que é própria do capital, mas que representa ao mesmo tempo
uma contradição com o capital enquanto forma de produção
limitada, e, por isso, pressiona no sentido de sua dissolução —
distingue o capital de todos os precedentes modos de produção
e implica, ao mesmo tempo, que ele seja posto como simples
ponto de transição,”
É de notar, aqui, que o futuro pós-capitalista é ainda “um modo
de produção”, mas caracterizado por um desenvolvimento das forças
produtivas “livre, articulado, progressivo e universal”. E é de notar,
mais uma vez, a caracterização do modo de produção capitalista como
“simples ponto de transição” .
3) Em O Capital, Livro 3, p. 297:
“O desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social é
a tarefa histórica do capitalismo e o legitima. Exercendo justa­
35
mente essa função, cria ele as condições materiais de uma forma
superior de produção, sem que esteja consciente disso.”
4) Em O Capital, Livro 3, p. 303:
“O capital cada vez mais se patenteia como força social: tem
o capitalista por agente e não se relaciona mais com o que pode
criar o trabalho de cada indivíduo; mas patenteia-se como força
social alienada, autônoma, que enfrenta a sociedade como coisa
e como poder do capitalista por meio dessa coisa. A contradição
entre a força social geral que o capital encarna e o poder privado
dos diferentes capitalistas sobre essas condições sociais torna-se
cada vez mais aguda e acarreta que se dissolva essa relação, e a
dissolução implica que os meios de produção se tornem sociais,
coletivos e gerais. Essa transformação está ligada ao desenvol­
vimento das forças produtivas na produção capitalista e à maneira
como se efetua esse desenvolvimento.”
Deve-se notar, aqui, em primeiro lugar, a tese segundo a qual a
realização da tarefa histórica do desenvolvimento das forças produtivas
é acompanhada, no capital, pela maturação dos obstáculos que porão
fim ao modo de produção capitalista, como efeito de uma contradição
de fundo, ou seja, a contradição entre o capital como “força social” e o
caráter privado da apropriação capitalista (no “Prefácio” a Para a Crítica
da Economia Política, p. 136, dizia-se: “As forças produtivas que se
encontram em desenvolvimento no seio da sociedade burguesa criam ao
mesmo tempo as condições materiais para a solução deste antagonismo” ,
ou seja, da forma que assume na sociedade capitalista “o conflito existente
entre as forças produtivas sociais e as relações de produção” ; de modo que
o desenvolvimento das forças produtivas é, a um só tempo, a base material
para o nascimento da nova sociedade e a condição para a dissolução do
modo de produção capitalista). Em segundo lugar, deve-se notar — e
voltaremos a esse assunto — a definição das novas “condições de
produção” como condições “sociais, comuns, gerais”.
Sobre a segunda questão, ou seja, sobre o capital como fase de
transição, de passagem, de uma situação para outra, podemos ler dois
trechos notáveis.
1) Nos Grundrisse, vol. 1, pp. 98-99:
“As relações de dependência pessoal (no início, sobre uma base
inteiramente natural) são as primeiras formas sociais nas quais
a produtividade humana se desenvolve apenas num âmbito
restrito e em pontos isolados. A independência pessoai fundada
sobre a dependência material é a segunda forma importante na
qual se constitui um sistema de intercâmbio social geral, urn
36
sistema de relações universais, de carecimentos universais e de
capacidades universais. A livre individualidade, fundada sobre o
desenvolvimento universal dos indivíduos e sobre a subordinação
da sua produtividade coletiva, social, à condição de seu patri­
mônio social, constitui o terceiro estágio. O segundo cria as
condições do terceiro.”
Distinguem-se aqui três fases do desenvolvimento histórico da huma­
nidade: a fase da dependência pessoal (as formas de exploração pré-capi-
talista); a fase da independência pessoal, mas baseada sobre a dependência
material (a exploração capitalista, na qual — num sentido que já escla­
recemos — os indivíduos são juridicamente iguais, mas uma parte da
sociedade é dominada pela mercadoria, ou seja, pelo capital, que se
“personifica” na outra parte); a fase na qual os homens, livres, subordinam
a si a produtividade social deles. Portanto, o capital: a) abole as relações
de dependência pessoal nas quais, sendo a finalidade da produção o
valor-de-uso dos exploradores, o crescimento das forças produtivas é
necessariamente muito lento; b) constitui o domínio das “coisas” sobre
o homem e, por isso, através da colocação da produção a serviço da riqueza
abstrata, do aumento do valor, desenvolve as forças produtivas e substitui
o particularismo das velhas sociedades pela universalidade das relações e
dos carecimentos; c) é, por sua vez, substituído por uma condição que
restitui aos homens, como patrimônio social deles, no qual cada um se
reconhece, a produtividade da atividade e a universalidade dos careci­
mentos e das capacidades.
2) Nos Grundrisse, vol. 2, pp. 149-150:
“A forma mais extrema da alienação na qual, na relação entre
capital e trabalho assalariado, apresenta-se a atividade produtiva
diante de suas próprias condições e ao seu próprio produto, essa
forma mais extrema é um necessário ponto de passagem; e,
portanto, já contém em si — só que ainda em forma invertida,
de cabeça para baixo — a dissolução de todos os pressupostos
limitados da produção', ou melhor, ela cria e prodiiz os pressu­
postos incondicionados da produção e, por conseguinte, de todas
as condições materiais para o desenvolvimento total, universal,
das forças do indivíduo.”
O início desse trecho, que na edição que utilizamos é traduzido
literalmente (Grundrisse, ed. alemã, p. 414: “die äusserste Form der
Entfremdumg, worin, im Verhältnis des Kapitals zur Lohnarbeit, die
Arbeit, die produktive Tätigkeit zu ihren eignem Bedingungen un ihren
eignem Produkt erscheint, ein notwendiger Durschgangspunkt ist”), deve
ser lido do seguinte modo: “A alienação da relação na qual o trabalho, a
atividade produtiva, se encontra diante de suas condições e do seu produto
37
tem uma forma extrema, que é a que se refere à relação entre capital e
trabalho assalariado: e essa forma extrema é um necessário ponto de
passagem”. Chamo a atenção para esse trecho porque é um dos locais
onde Marx (como já havia feito nos Manuscritos e na Ideologia Alemã)
põe a alienação capitalista na perspectiva mais ampla da alienação que
vigora nas épocas que, no trecho anteriormente citado, são' indicadas
como sendo as duas primeiras fases do desenvolvimento histórico. Nas
condições pré-capitalistas, dado que a atividade produtiva tem como
meta o consumo do explorador (ou, genericamente, do “senhor”), o
trabalho serve sempre aos outros (daí sua “alienação”), ou porque se
trata do explorador ou porque se trata da mera animalidade do traba­
lhador (do “servo”); nesse caso, portanto, a alienação consiste no fato
de que a relação que o trabalhador estabelece com seu próprio trabalho,
não é a relação com algo que seria o realizador da sua “essência”, mas é
a relação com o simples meio da sua “existência” (para usar a terminologia
dos Manuscritos de 1844). De qualquer modo, o que resta de natural nessa
situação é que a relação entre o homem e o trabalho é a relação entre
sujeito e atributo do sujeito, ainda que o primeiro tenha sido despojado
de sua humanidade e o segundo desviado do seu fim. No capital, como
vimos, não se trata apenas disso, já que aqui a relação é invertida, no
sentido de que o papel do sujeito é assumido pelo trabalho, enquanto o
de atributo cabe ao trabalhador. A conseqüência é que, ao passo que na
situação pré-capitalista o processo produtivo ainda se liga à naturalidade
do instrumento de trabalho e do carecimento, no capital —ao contrário -
oprocesso produtivo liga-se essencialmente à riqueza como tal. E, de
resto, é precisamente essa a razão pela qual, como se diz na segunda
parte do trecho, o capital — sendo, ainda que de modo invertido, a
dissolução dos limites ao crescimento do processo produtivo — cria os
pressupostos para o desenvolvimento real do homem.
Sobre o terceiro ponto, isto é, precisamente sobre a natureza da
situação pós-capitalista, além das referências já contidas nos trechos
citados, pode-se ler estes outros textos:
1) Dos Grundrisse, vol. 1, pp. 116-118:
“O trabalho do indivíduo, considerado no prórpio ato da pro­
dução, é dinheiro com o qual ele compra imediatamente o
produto, o objeto de sua atividade particular; mas se trata
de dinheiro particular, que compra precisamente apenas este
determinado produto. Para ser imediatamente dinheiro geral,
ele deveria ser desde o início não um trabalho particular, mas
um trabalho geral, ou seja, ser posto desde o início como um
elemento da produção geral. Sob tal pressuposto, porém, não
seria a troca a conferir-lhe o caráter geral, mas seria o seu caráter
social pressuposto a determinar a participação nos produtos.
38
0 caráter social da produção tornaria o produto, desde o início,
um produto social, geral. A troca que se verifica originariamente
na produção — a qual não seria uma troca de valores-de-troca,
mas de atividades determinadas por carecimentos e finalidades
sociais — incluiria, desde o início, a participação do indivíduo
no mundo social dos produtos. Sobre a base dos valores-de-troca,
o trabalho é posto como trabalho geral tão-somente por meio
da troca. Sobre essa outra base, ele seria posto como tal antes da
troca; ou seja, a troca dos produtos não seria em geral o
médium que mediatizaría a participação do indivíduo na pro­
dução geral. Naturalmente, uma mediação tem de existir. No
primeiro caso, que decorre da produção autônoma dos indi­
víduos (embora essas produções autônomas se determinem e se
modifiquem post festum por meio de suas relações recíprocas),
a mediação tem lugar através da troca de mercadorias, através
do valor-de-troca, do dinheiro, três expressões de uma única e
mesma relação. No segundo caso, o próprio pressuposto é
mediatizado, ou seja, é pressuposta uma produção social, a
socialidade como base da produção. O trabalho, do indivíduo é,
desde o início, posto como trabalho social. Por isso, qualquer
que seja a forma material particular do produto que ele cria ou
ajuda a criar, o que ele comprou com seu trabalho não foi um
produto particular e determinado, mas uma determinada cota
da produção social. Por isso, ele não tem nem sequer de trocar
um produto particular. O seu produto não é um valor-de-troca.
O produto não tem de ser previamente convertido numa forma
particular a fim de poder receber um caráter geral para o
indivíduo. Em vez de uma divisão do trabalho, que se gera
necessariamente na troca de valores-de-troca, ter-se-ia uma orga­
nização do trabalho que tem como conseqüência a participação
do indivíduo no consumo social. No primeiro caso, o caráter
social da produção é posto apenas mediante a elevação dos
produtos a valores-de-troca; e a troca desses valores-de-troca
ocorre post festum. No segundo caso, o caráter social da pro­
dução é pressuposto; e a participação no mundo dos produtos,
no consumo, não é mediatizada pela troca de trabalhos ou de
produtos de trabalho reciprocamente independentes. Ela é media­
tizada pelas condições sociais da produção no interior das quais
o indivíduo atua. Portanto, querer transformar o trabalho do
indivíduo (ou seja, também o seu produto) imediatamente em
dinheiro, em valor-de-troca realizado, significa determiná-lo ime-
I diatamente como trabalho geral, ou seja, significa negar precisa­
mente as condições sob as quais ele deve ser transformado em
dinheiro e em valores-de-troca, e sob as quais ele depende da
troca privada. A exigência só pode ser satisfeita em condições
39
nas quais ela não pode mais ser posta. O trabalho, sobre a base
dos valores-de-troca, pressupõe precisamente que nem o trabalho
do indivíduo nem o seu produto sejam imediatamente gerais;
pressupõe que eles só obtenham essa forma através de uma
mediação objetiva, através de um dinheiro diferente deles.”
Reproduzi por inteiro essa longa passagem porque me parece que,
na determinação do modo pelo qual Marx vê a sociedade pós-capitalista,
é muito importante ter presente este ponto (que lança luz sobre a
interpretação do próprio capitalismo): a saber, que - como continua­
mente se afirma nesse trecho que acabamos de citar — enquanto com o
capital a sociedade é construída a posteriori com relação ao trabalho,
exigindo portanto a mediação do produto (que, precisamente nesse
sentido, é valor), na nova situação, ao contrário, o trabalho já é posto
como imediatamente social e constitui diretamente a sociedade, sem o
recurso necessário à mediação das coisas, sem a necessidade, portanto,
de que os produtos sejam valores.
2) A mesma coisa se diz, em polêmica com a economia burguesa
e sobre a base da distinção entre “objetivação” e “alienação”, nos
Grundrisse, vol. 2, p. 576:
“Os economistas burgueses são tão prisioneiros dos esquemas de
um determinado nível de desenvolvimento histórico da sociedade
que a necessidade da objetivação das forças sociais do trabalho
se lhes apresenta como indissociável da necessidade da alienação
dessas mesmas forças em oposição ao trabalho vivo. Mas, com
a supressão do caráter imediato do trabalho vivo como trabalho
somente singular (ou apenas interiormente, ou apenas exterior­
mente geral), com a atribuição à atividade dos indivíduos de
um caráter imediatamente geral ou social, essa forma da alie­
nação é cancelada dos momentos objetivos da produção; com
isso, esses momentos são postos como propriedade, como corpo
orgânico social no qual os indivíduos se reproduzem como
indivíduos, mas como indivíduos sociais. As condições desse
modo de reproduzir a própria vida, desse tipo de processo vital
produtivo, foram postas pelo próprio processo histórico-econô-
mico; tanto pelas condições objetivas quanto pelas condições
subjetivas, que são apenas as duas formas distintas das mesmas
condições.”
3) Para concluir, vou ler dois textos muito conhecidos, citados com
bastante freqüência. O primeiro é extraído de O Capital, Livro 3 ,p. 942:
“De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa
de ser determinado por necessidade e por utilidade exterior-
40
mente impostas; por natureza, situa-se além da esfera da produção
material propriamente dita. O selvagem tem de lutar com a natu­
reza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir
a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado, sejam quais forem
a forma de sociedade e o modo de produção. Acresce, desenvol-
vendo-se, o reino do imprescindível. É que aumentam as neces­
sidades, mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas
para satisfazê-las. A liberdade nesse domínio só pode consistir
nisto: o homem social, os produtores associados regulam racio­
nalmente o intercâmbio material com a natureza, controlam-no
coletivamente, sem deixar que ele seja a força cega que os
domina; efetuam-no com o menor dispêndio de energias e nas
condições mais adequadas e mais condignas à natureza humana.
Mas esse esforço situar-se-à sempre no reino da necessidade.
Além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como
um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só
pode florescer tendo por base o reino da necessidade. E a
condição fundamental desse desenvolvimento é a redução da
jornada de trabalho.”
Essa passagem é importante por causa da distinção, nela contida,
entre uma fase na qual os produtores, mesmo controlando socialmente
o processo da produção material e não mais sendo controlados por ele,
permanecem ainda no interior de um “reino da necessidade” ; e uma fase
de “liberdade” , posterior a essa e tendo-a como premissa, uma fase que
é a única a garantir o “desenvolvimento das capacidades humanas”.
Disso poderia ser fácil deduzir que Marx imaginasse o comunismo como
uma evasão do trabalho. Todavia, os trechos anteriormente citados
requerem, em minha opinião, uma interpretação diversa. Marx pensava
na evasão de um trabalho particular, ou seja, do trabalho caracterizado:
a) pelo condicionamento das necessidades de subsistência; b) pela não-
socialidade, ou seja, por ser um trabalho de tal tipo que a sociedade é
construída depois dele e por meio da mediação das coisas (dos valores).
4) Além disso, nos Grundrisse, vol. 2, pp. 277-279, pode-se ler
o seguinte:
“Trabalharás com o suor do teu rosto! Essa foi a maldição que
Adão ouviu de Jeová. E assim, como maldição, é que A. Smith
considera o trabalho. O ‘repouso’ figura como estado adequado,
que se identifica com a ‘liberdade’ e a ‘felicidade’. A idéia que
o indivíduo, ‘em seu normal estado de saúde, força, atividade,
habilidade e destreza’, tenha também necessidade de uma cota
normal de trabalho, assim como de eliminar o repouso, parece
nem sequer passar pela cabeça de A. Smith. Sem dúvida, a
41
medida do trabalho apresenta-se como um dado externo, que
se refere à meta a alcançar e aos obstáculos que, para alcançá-la,
devem ser superados mediante o trabalho. Mas que essa neces­
sidade de superar obstáculos seja em si uma manifestação de
liberdade, — e que, além disso, as metas externas sejam enco­
bertas pela aparência da pura necessidade natural interna, sendo
postas como metas colocadas pelo próprio indivíduo, — isto é,
que seja auto-realização, objetivação do sujeito, e, por isso,
liberdade real, cuja ação é precisamente o trabalho: isso é algo
que A. Smith imagina menos ainda. Sem dúvida, ele tem razão
quando vê que nas formas históricas do trabalho, enquanto
trabalho escravo, servil ou assalariado, o trabalho se apresenta
sempre como algo repelente, sempre como trabalho coercitivo
externo, diante do qual o não-trabalho se apresenta como ‘liber­
dade’ e ‘felicidade’. Trata-se de duas coisas: desse trabalho
antitético; e, ligado a ele, do trabalho que ainda não criou as
condições, subjetivas e objetivas (ou mesmo que as perdeu, se
pensarmos nas condições do pastoreio, etc.), para fazer do
trabalho um trabalho atraente, uma auto-realização do indivíduo
o que não significa absolutamente que se trate de um puro jogo,
de uma pura diversão, como supõe a concepção ingênua e
bastante frívola de Fourier. Um trabalho realmente livre (por
exemplo, compor música) é, ao mesmo tempo, a coisa desgraça­
damente mais séria deste mundo, o esforço mais intenso que
possa haver. O trabalho consagrado à produção material só pode
adquirir esse caráter: 1) se seu caráter social for posto; 2) se
for de natureza científica, e, ao mesmo tempo, for trabalho
universal, se for esforço do homem não como força natural
intencionalmente treinada, mas sim como sujeito que não se
apresenta no processo de produção sob forma puramente natural,
primitiva, porém como atividade reguladora de todas as forças
naturais.”
Deve-se notar aqui os termos, importantes, nos quais é retomado
o conceito de trabalho como “condição natural eterna” da vida, subli-
nhando-se o seu caráter de positividade (fora da alienação), em oposição
à idéia smithiana (mas na verdade de toda a ciência econômica) do
trabalho como puro custo. E deve-se notar, igualmente, como a possibi­
lidade de um “trabalho livre”, nesse trecho, seja estendida também à
“produção material” .
Afirmei, no início desta lição, que ela seria uma espécie de parên­
tese no âmbito do curso. Na próxima aula, retomaremos a leitura do
Capitulo VI.

42
Lição 4
TRABALHO ÚTIL E TRABALHO ABSTRATO;
TRABALHO SOCIALMENTE NECESSÁRIO;
TRABALHO VIVO E TRABALHO MORTO.
AS MISTIFICAÇÕES DA ECONOMIA POLÍTICA.
PS
£2 Qá
1 u,
Q Hoje nos ocuparemos dos dois parágrafos intitulados “Unidade do
UJ

(j processo de trabalho e do processo de valorização”, na página 22; e


£; ^ “O processo de produção capitalista no espelho deformante da economia
u:F cc< política” , na página 26.
* cõ Vejamos então a primeira questão, lendo (p. 22) uma definição
05 Êg muito nítida da relação que se dá entre os dois lados do processo produ-
^ tivo capitalista, isto é, o processo de trabalho e o processo de valorização,
cuja definição já vimos no início da segunda lição. Diz-se aqui, na
primeira metade da página:
“Contudo, o processo de trabalho não é mais do que um meio
do processo de valorização.”
VQ Essa mesma coisa é repetida, em termos quase idênticos, no primeiro
•fy parágrafo da página 32:
( _ “O produto do processo de produção capitalista não é simples-
''V mente produto (valor-de-uso), nem simples mercadoria, isto é,
produto que tem um valor-de-troca; seu produto especifico é a
mais-valia. Seu produto são mercadorias que possuem mais
[ valor-de-troca, isto é, que representam mais trabalho do que o
a adiantado para sua produção sob forma de dinheiro ou de
Vú mercadorias.”
Por isso, no processo capitalista assim definido, a relação se põe nos
seguintes termos:
43
“No processo capitalista de produção, o processo de trabalho só
se manifesta como meio; o processo de valorização ou a pro­
dução de mais-valia, como fim.”
Assim, nesse ponto, a relação entre esses dois aspectos é afirmada de
modo muito mais claro. O processo de trabalho, isto é, o aspecto natural
do processo de produção capitalista, não tem sentido em si mesmo,
como haveria a tentação de supor, precisamente em conseqüência de
sua própria naturalidade; mas, ao contrário, é meio para outra coisa,
ou seja, para o processo de valorização.
Dessa definição, dessa concretização, decorrem alguns corolários
que têm certo interesse. Antes de mais nada, na página 23, primeiro
parágrafo, afirma-se:
“Do exposto,”
ou seja, precisamente dessa relação de meio e fim existente entre os dois
aspectos do processo de produção capitalista,
“se depreende que a expressão ‘trabalho objetivado', assim como
a contradição entre o capital — como trabalho objetivado — e o
trabalho vivo, pode dar lugar às mais errôneas interpretações.”
Vejamos, em primeiro lugar, ao que Marx pretende se referir nesse
trecho. A idéia de que o conjunto das mercadorias que constituem o
capital não é mais do que trabalho acumulado havia sido expressa,
exatamente nesses termos, pela economia política clássica. Tanto Smith
quanto Ricardo definiram o capital, no sentido do valor das mercadorias
usadas como meios de produção, como sendo nada mais que trabalho
objetivado, que trabalho incorporado em tais meios. Ora, o que Marx diz
aqui, em substância, é o seguinte: que conceber o capital dessa maneira
é certamente um passo adiante e já é um início importante da teoria
científica, tendo em vista que a consideração do capital como trabalho
objetivado é o primeiro passo necessário para poder chegar depois à
redução de todas as partes que compõem o valor das mercadorias a
trabalho; mais precisamente, considerar o capital como trabalho obje­
tivado é o primeiro passo para reduzir a mais-valia a uma quantidade
de trabalho, ou seja, a um mais-trabalho (ou trabalho excedente). Todavia,
— e esse é o ponto que está aqui em discussão, — embora (diz Marx)
esse seja um passo importante no caminho da elaboração científica da
teoria econômica, não é um passo suficiente; e, se for considerado em
si mesmo, sem as necessárias concretizações, poderão surgir equívocos,
que, em sua opinião, são graves do ponto de vista da construção da
ciência. Vejamos em que sentido estamos diante de equívocos, conti­
nuando a leitura do trecho:

44
“Indiquei [ .. . ] que a análise da mercadoria sobre a base do
'trabalho’ é, em todos os economistas anteriores, ambígua e
incompleta. Não basta reduzi-la ao ‘trabalho’, mas ao trabalho
sob a dupla forma em que se apresenta: por um lado, como
trabalho concreto, no valor-de-uso das mercadorias-, e, por outro
lado, calculado como trabalho socialmente necessário, no valor-
de-troca
Ou seja, a primeira questão é esta: não basta dizer que a merca­
doria é trabalho incorporado; e' preciso dizer que a mercadoria incorpora
trabalho em dois sentidos, que correspondem exatamente aos dois aspectos
da mercadoria, o valor-de-uso e o valor-de-troca, e, paralelamente, aos
dois aspectos do processo de produção capitalista, o processo de trabalho
e o processo de valorização. A mercadoria incorpora trabalho num
primeiro sentido, que é o seguinte: a mercadoria enquanto valor-de-uso,
ou seja, enquanto objeto dotado de propriedades úteis, e, portanto,
enquanto produto do processo de trabalho, incorpora um trabalho que é
qualificado sob certo aspecto, ou seja, é um trabalho útil, um trabalho
completamente determinado quanto à sua qualidade. Por outro lado,
essa mesma mercadoria, enquanto valor-de-troca, e, portanto, enquanto
resultado específico do processo de valorização, incorpora trabalho num
outro sentido. Ou seja: no sentido de que ela, enquanto valor, é o produto
de um trabalho separado de suas determinações qualitativas concretas,
um trabalho que é, como sabemos, trabalho genérico, ou comum, ou
abstrato. Assim como, em outras palavras, — essa é a tese de Marx, — o
processo de produção tem os dois aspectos do processo de trabalho e do
processo de valorização, assim também — correspondentemente — o
trabalho incorporado na mercadoria tem os dois aspectos de trabalho
concreto e de trabalho abstrato.
“Do primeiro ponto de vista,”
ou seja, quando se refere ao trabalho concreto,
“tudo depende de seu valor-de-uso particular, de seu caráter
específico, o qual, justamente, imprime sua marca específica
no valor-de-uso criado pelo trabalho e o converte em valor-de-uso
concreto, diferente dos demais — em um artigo determinado.”
O trabalho do marceneiro, por exemplo, produz um bem especificado
qualitativamente como seu produto, algo que, por isso, tem um valor-de-
uso particular.
Chamo a atenção para a frase citada a seguir, que é um dos locais
onde Marx define o trabalho abstrato. A frase é a continuação da que
citamos antes:

45
“Por outro lado, faz-se abstração de sua utilidade particular, de
sua natureza e modo determinado de trabalho, quando é levado
em conta como elemento formador de valor, e a mercadoria
[é vista] como sua objetivação. Como tal, é trabalho indife­
renciado, socialmente necessário, geral, trabalho inteiramente
indiferente acerca de todo conteúdo particular, pelo que alcança,
também, em sua expressão autônoma — no dinheiro, na merca­
doria como preço — uma expressão comum a todas as merca­
dorias, diferençável apenas pela quantidade.”
O que temos aqui, portanto, é que o trabalho formador (ou criador)
de valor é trabalho geral, cuja indiferença “acerca de todo conteúdo
particular” é a manifestação do fato de que a única razão pela qual o
valor-de-troca assume esse ou aquele valor-de-uso, enquanto própria base
material, é tão-somente a sua afirmação como valor-de-troca; ou, mais
precisamente, como veremos melhor, sua expansão como capital.
Deve-se sublinhar, no trecho que acabamos de ler, que uma das
qualidades atribuídas a esse trabalho geral ou abstrato é a de ser “social­
mente necessário” . Essa determinação do trabalho socialmente necessário
foi freqüentemente entendida num sentido estreitamente quantitativo,
ou seja, como a quantidade de trabalho necessária para produzir uma
mercadoria nas condições técnicas predominantes na sociedade e não nos
capitais individuais que produzem tais mercadorias. Mas há um significado
qualitativo do termo “socialmente” que, a meu ver, predomina em Marx
com relação ao significado quantitativo. O que Marx pretende dizer é
que a quantidade de trabalho necessária para produzir uma mercadoria
se afirma no processo social, o qual, nesse caso, é processo concorrencial;
isso significa, portanto, que essa quantidade não pode ser pressuposta
em relação ao processo. O próprio estágio da técnica (que, certamente,
é um elemento importante na determinação do trabalho objetivado nas
mercadorias) é também ele um resultado desse processo social, o qual
consiste essencialmente na distribuição do capital global entre as várias
atividades, de acordo com as necessidades da reprodução do capital social
e do grau de desenvolvimento que, em cada oportunidade, é alcançado
pelas forças produtivas.
Portanto, para retomarmos a linha da argumentação, esse é um
primeiro corolário da relação que Marx estabelece entre processo de
trabalho e processo de valorização.
Um segundo corolário pode ser encontrado logo após, na página 24,
terceiro parágrafo:
“O trabalho contido nos meios de produção é um quantum
determinado de trabalho social geral, e, portanto, se apresenta
como certa grandeza de valor ou soma de dinheiro: de fato, no
46
preço desses meios de produção. O trabalho agregado é um
quantum adicional determinado de trabalho social geral e se
apresenta como grandeza de valor e soma de dinheiro adicionais.”
Ate' aqui, nada de novo. A frase que se segue, porém, clarifica um ponto
que talvez seja importante ter presente:
“O trabalho já contido nos meios de produção é o mesmo que o
imediatamente acrescentado.”
Ou seja: o trabalho contido nos meios de produção e o trabalho que se
agrega a eles por ser explicitação viva da força-de-trabalho, o trabalho
contido nos meios de produção e o trabalho dispendido pelo operário
no âmbito do processo de produção, esses dois trabalhos — diz Marx na
frase citada —são a mesma coisa.
“Só se distinguem pelo fato de o primeiro estar objetivado em
valores-de-uso,”
que são os meios de produção determinados,
“e o segundo [estar] implícito no processo dessa objetivação;
um é o passado, outro é o presente; um está morto, o outro,
vivo; um está objetivado no pretérito perfeito; o outro está se
objetivando no presente.”
Também esse é um ponto importante. Em que sentido, portanto,
esses dois trabalhos são a mesma coisa? No sentido de que se trata sempre
de partes, de cotas, do trabalho abstrato geral, genérico, indiferenciado,
socialmente necessário, dessa substância comum que está em todas as
mercadorias. Aliás, melhor dizendo: dessa substância comum, a que todas
as mercadorias são redutíveis. É nesse sentido que são idênticos. A única
diferença está no fato de que um deles é captado quando o processo de
objetivação na mercadoria já ocorreu (tanto é verdade que ele se apresenta
sob a forma sensível de certos valores-de-uso, ou seja, os meios de
produção); o outro, ao contrário, é captado durante o processo de
objetivação, já que é captado no momento em que está produzindo
mercadorias, não é captado no momento em que já as produziu; portanto,
um é trabalho passado, o outro é trabalho presente; um é trabalho morto,
o outro é trabalho vivo. Também essas são determinações importantes,
já que toda a essência da teoria marxiana do capital pode, no fundo, ser
resumida na proposição de que o processo capitalista, enquanto é essencial­
mente processo de valorização, é processo de domínio do trabalho morto
sobre o trabalho vivo, do trabalho passado sobre o trabalho presente, do
trabalho já objetivado sobre o trabalho que está apenas em processo de
objetivação. Portanto, o processo capitalista é um processo de reificação,
47
não apenas no sentido (que seria imediatamente evidente) de que o
trabalho só conta enquanto produz uma coisa exterior a si mesmo (o
valor), como também — mais especificamente — no sentido de que a
parte do trabalho que já se converteu em coisa domina a outra parte do
trabalho que ainda não se tornou uma coisa e, por isso, é ainda trabalho
vivo. Por que isso? Porque todo o sentido do processo está no acréscimo
de valor novo ao velho valor, ou seja, ao valor já incorporado nos meios
de produção; e, portanto, esse trabalho vivo não tem outro sentido senão
o de ser meio com o qual se aumenta o valor do capital, isto é, com o
qual se aumenta o valor dos meios que foram antecipados no processo
produtivo; não tem outro sentido, esse trabalho vivo, além do de ser
meio para aumentar o valor correspondente ao trabalho morto.
É assim que, segundo Marx, as coisas se processam no que se refere
à relação entre processo de trabalho e processo de valorização, na qual
o primeiro é meio para o segundo; assim se processam as coisas no que se
refere à relação entre trabalho concreto e trabalho abstrato; assim se
processam as coisas no que se refere ao sentido do “trabalho socialmente
necessário” ; assim, finalmente, se processam as coisas no que se refere
à distinção e à relação entre trabalho objetivado e trabalho vivo no
âmbito do processo de valorização. Porém, o que Marx diz aqui é o
seguinte: se as coisas se processam desse modo, isso não significa que a
economia as reconheça do modo como são. Ao contrário: ela absoluta­
mente não as reconhece do modo como são.
A economia política, em outras palavras, é um espelho deformante;
e a origem dessa deformação está no fato de que a essencialidade do
processo de trabalho enquanto base material para o processo de valori­
zação, e, por isso, para o capital, é transformada em seu contrário, ou
seja, na essencialidade do capital para o processo de trabalho; uma
transformação que pode ocorrer, e efetivamente ocorre, tão-somente
quando o capital é identificado com as “coisas”, com os valores-de-uso,
que intervêm no processo de trabalho. Lemos na página 27:
“Pelo fato de o dinheiro — em sua transformação em capital —
se converter em fatores do processo de trabalho — e adotar,
necessariamente, a figura de material de trabalho e meios de
trabalho — o material de trabalho e os meios de trabalho não
se tornam, por natureza, capital, do mesmo modo que ouro e
prata não se convertem por natureza em dinheiro, embora esse
se apresente, entre outras coisas, como ouro e prata. Os próprios
economistas modernos — que zombam do simplismo do sistema
monetário, que à pergunta: que é dinheiro?, respondem: ouro e
prata são dinheiro — não sp envergonham de responder à
pergunta: que é o capital? [do seguinte modo:] O capital é o
algodão. Não afirmam outra coisa quando declaram que o
48
material e os meios de trabalho, os meios de produção e os
produtos utilizados para a nova produção, — em suma, as
condições objetivas do trabalho, — são por natureza capital, e o
são na medida em que servem, graças às suas propriedades
naturais, como valores-de-uso no processo de trabalho.”
E um tal modo de proceder, ou seja, como se diz na página 28,
“esse absurdo — o de considerar que determinada relação social
de produção representada em coisas é propriedade natural dessas
mesmas coisas — salta à vista logo que abrimos o primeiro
manual de economia que nos venha às mãos, e vemos já na
primeira página que os elementos do processo de produção,
reduzidos à sua forma mais geral, são a terra, o capital e o
trabalho.”
Em nota, Marx se refere como exemplo aos Princípios de Economia
Política, de J. S. Mill; mas o mesmo erro pode ser encontrado na
maior parte dos livros que ainda hoje são utilizados nas escolas. Nem se
trata de uma simples ingenuidade. Na realidade, como lemos na página 29,
“resulta ser esse um método cômodo para demonstrar a eterni­
dade do modo capitalista de produção ou para fazer do capital
um elemento natural imperecível da produção humana.”
Vejamos como, logo em seguida, volta a ser descrito esse “método
cômodo” :
“O trabalho é condição natural eterna da existência humana.”
Digamos entre parênteses: é bom que vocês liguem essa proposição sobre
o trabalho — que é muito freqüente em Marx — com o que é dito na
passagem dos Grundrisse (vol. 2, pp. 277-279), que lemos no final da
lição anterior, e na qual, contra A. Smith, afirma-se a possibilidade de
que, superada a condição de alienação, o trabalho perca sua característica
demero custo e se apresente como positividade. Mas prossigamos na
leitura do trecho do Capítulo VI:
“O processo de trabalho não é outra coisa senão o próprio
trabalho, visto no momento de sua atividade criadora. Os mo­
mentos gerais do processo de trabalho, por conseguinte, são
independentes de todo desenvolvimento social determinado.”
Ou seja, esses elementos gerais — o fato de que tenha lugar um “inter­
câmbio orgânico entre homem e natureza” — são sempre os mesmos,
qualquer que seja o contexto histórico no qual estão inseridos. Prosse­
guindo:
49
“Os meios e materiais de trabalho, dos quais uma parte é já
produto de trabalhos precedentes, desempenham seu papel em
todo processo de trabalho, em qualquer época e sob quaisquer
circunstâncias. Se, portanto, lhes aplico o nome de capital, na
certeza de que semper aliquid haeret [sempre algo restará], terei
demonstrado”
(isto é, a economia política terá “demonstrado”)
“que a existência do capital é uma lei natural eterna da pro­
dução humana e que o Kirgiz — que com uma faca roubada aos
russos corta juncos para fazer o seu barco — é capitalista como
o senhor Rotschild. Do mesmo modo, poderia demonstrar que
gregos e romanos tomavam a comunhão porque bebiam vinho e
comiam pão.”
Mas essa demonstração se volta, em última instância, contra quem
a pratica, pois — se o capital é identificado com as coisas, isto é, com as
condições objetivas da produção, e depois, sobre essa base, se afirma que
o capital é eterno — pode-se então, com toda razão, responder que eternas
serão precisamente aquelas coisas, mas não certamente os capitalistas.
Vejamos, com efeito, como se expressava, em 1839, J. F. Bray (citado
em nota por Marx, p. 30):
“Se cada capitalista e cada ricaço da Grã-Bretanha ficasse, de
repente, morto como pedra, nem uma só partícula de riqueza
ou de capital desapareceria com ele, nem a nação se empobre­
ceria sequer no valor de um farthing. É o capital e não o capita­
lista o essencial para as operações do produtor, e medeia entre
os dois a mesma diferença que existe entre o carregamento real
de um navio e o recibo da carga.”
Mas, para destacar e comentar o erro que identifica o capital com
as coisas, Marx — nos Grundrisse (vol. 1, p. 289) e referindo-se ao próprio
J. F. Bray - já havia dito:
“Os socialistas costumam dizer: precisamos do capital, não do
capitalista. Mas então o capital figura como simples coisa, não
como relação de produção que, refletida em si, é precisamente
o capital. Posso facilmente separar o capital de um capitalista
individual determinado e fazê-lo passar para as mãos de outro.
Mas, se ele perde o capital, perde a sua qualidade de capitalista.
Por isso, o capital pode muito bem ser separado do capitalista
individual, mas não do capitalista, que enquanto tal se contrapõe
ao operário.”

50
Lição 5
A COMPRA-E-VENDA DA
FORÇA-DE-TRABALHO.
CAPITAL E TRABALHO ASSALARIADO.

Comecemos pelo exame do parágrafo contido nas páginas 32-33,


intitulado “Esfera da circulação e esfera da produção: o trabalho assala­
riado como pressuposto necessário da produção capitalista”.
A tese geral abordada nesse parágrafo, tese a que já me referi na
primeira lição, é a questão do duplo caráter da relação de troca que se
verifica entre o capitalista e o operário. Dupla no sentido de que essa
relação, se por um lado e' assimilável a qualquer outra relação de troca,
processando-se portanto segundo a lei geral do valor e implicando a troca
(entre esses dois sujeitos) de valores equivalentes, é por outro lado uma
troca entre quantidades desiguais de trabalho, e, nesse sentido, diferencia­
se de todos os outros atos de troca. Esse parágrafo é dedicado à ilustração
desse elemento comum e dessa diferença específica que se verificam entre
a troca da força-de-trabalho e a troca em geral. Para apreender bem essa
duplicidade da troca salarial, é necessário fazer a distinção - que Marx
faz no início do referido parágrafo - entre a parte da relação capitalista-
operário que pertence à esfera da circulação, e a parte dessa mesma relação
que pertence, ao contrário, à esfera da produção. Com efeito, o início
do parágrafo (p. 32) diz o seguinte:
“Vimos que a transformação de dinheiro em capital decompõe-se
em dois processos autônomos, que pertencem a esferas comple­
tamente diferentes e existem separadamente um do outro. O
primeiro processo pertence à esfera da circulação de mercadorias
51
e, portanto, se efetua no mercado. Trata-se da compra-e-venda
da capacidade de trabalho1. O segundo processo consiste no
consumo da capacidade de trabalho adquirida ou no próprio
processo de produção.’’'
Segue-se uma ilustração detalhada dessas duas fases do processo,
ou melhor, desses dois processos. No que se refere ao primeiro, a ilustração
começa logo após, na página 33, primeiro parágrafo, onde se diz:
“O primeiro processo, a compra-e-venda da capacidade de tra­
balho, só nos mostra o capitalista e operário como comprador
e vendedor de uma mercadoria.”
Portanto, sob esse aspecto, são dois agentes de troca, os quais, pelo menos
até então, ou seja, até que não saiam da esfera da circulação, não se
distinguem entre si, já que um vende e outro compra.
“O que distingue o operário de outros vendedores de mercadorias
é a natureza especifica, o valor-de-uso específico da mercadoria
vendida por ele.”
Portanto, entre o operário e os demais vendedores existe uma
diferença simplesmente de mercadoria vendida, até o momento em que
se permanece na esfera da circulação. Assim como o vendedor de trigo
difere do vendedor de sapatos por venderem dois valores-de-uso diversos,
do mesmo modo o operário difere de ambos por vender um valor-de-uso
diverso, ou seja, a sua força-de-trabalho. Enquanto nos limitarmos a
considerar a esfera da circulação, — é o que diz Marx, — o operário é um
vendedor como qualquer outro e se distingue dos outros somente por
razões físicas, mercadológicas. Com efeito, Marx aduz:
“Mas o valor-de-uso peculiar das mercadorias não modifica, em
absoluto, a determinação formal econômica da transação”;
ou seja, trata-se de uma troca como qualquer outra;
“em nada modifica o fato de que o comprador representa
dinheiro, e o vendedor, mercadoria.”
E é isso o que sempre ocorre em qualquer transação. Ora, essa
proposição — assim como a que vem logo após — mostram como essa
circunstância, pertencente à esfera da circulação, é um dos incentivos
que a relação capitalista oferece à economia política para ocultar a

1. Não se deve esquecer que, com a expressão “capacidade de trabalho”,


Marx indica aqui o que mais tarde chamaria de “força-de-trabalho” (Nota do
Tradutor).
52
natureza real do capital e da relação entre capital e trabalho, assimilando
essa relação a um ato de troca em geral e, desse modo, retirando-lhe sua
especificidade. Com efeito, diz Marx:
“Para demonstrar que a relação entre o capitalista e o operário é
apenas uma relação entre possuidores de mercadorias, os quais
trocam dinheiro e mercadorias com base em contrato livre, de
mútuo benefício”
(precisamente como ocorre na troca em geral); para demonstrar tudo isso,
“basta isolar o primeiro processo, atendo-se ao seu caráter
formal,”
isto é, o referente à esfera da circulação.
“Esse simples jogo de prestidigitação”
— ou seja, esse isolamento da esfera da circulação em face da esfera da
produção —
“não chega ao nível da bruxaria, mas constitui o repositório
da sabedoria à disposição da economia vulgar.”
Desse modo, uma vez verificado que tal compra-e-venda ocorreu,
uma vez portanto, constatado que o capitalista está de posse da força-
de-trabalho, não há mais nada a acrescentar; tudo o que se tinha de saber
já se sabe. E então, detendo-se nesse ponto, é fácil assimilar essa relação
de troca particular à relação de troca em geral. De modo que, nas linhas
que se seguem, Marx formula esse outro ponto importante: que, embora
para captar a diferença existente entre esse ato de troca e os atos de troca
em geral, ou seja, para demonstrar que esse ato de troca é também, aliás
é essencialmente, uma troca desigual, não uma troca de equivalentes,
sendo portanto uma relação particular, ou seja, uma relação de exploração;
embora, portanto, para demonstrar isso, deva-se chegar a descrever
propriamente o que ocorre no âmbito do processo produtivo, consta-
ta-se que —mesmo sem se chegar a tanto, diz Marx, mas apenas conside­
rando com um mínimo de atenção a simples esfera da circulação — já
pode surgir a suspeita de que existe algo diferente, e que estamos numa
situação não perfeitamente assimilável à situação geral da troca.
Busquemos ver por quê. A sugestão de Marx é que essa suspeita
pode derivar já da particularíssima natureza da mercadoria em questão.
Continuemos a leitura na página 33:
“Como vimos, o capitalista deve transformar seu dinheiro não
só em capacidade de trabalho, mas também em fatores objetivos
do processo de trabalho, os meios de produção. Se, não obstante,
53
considerarmos o capital integral, por um lado, isto é, o conjunto
dos adquirentes de capacidade de trabalho, e, por outro, a
totalidade dos vendedores de capacidade de trabalho, da totali­
dade dos operários, veremos que o operário se vê obrigado a
vender, em lugar de uma mercadoria [ qualquer]”.
(vemos aqui que já aparece a diferença: essa mercadoria, mesmo permane­
cendo na esfera da circulação, aparece não como uma mercadoria qualquer)
“sua própria capacidade de trabalho como mercadoria. Isso
se deve a que, por outro lado, [o operário] vê como propriedade
alheia todos os meios de produção, todas as condições objetivas
do trabalho, assim como todos os meios de subsistência; e
isso porque toda a riqueza objetiva surge aos olhos do operário
como propriedade dos possuidores de mercadorias. A premissa é
que o operário trabalha como não proprietário, e as condições
de seu trabalho se lhe antepõem como propriedade alheia.”
A argumentação, então, é a seguinte: se nós, ao invés de conside­
rarmos um ato singular de troca relativa à força-de-trabalho, conside­
rarmos essa troca de força-de-trabalho em sua generalidade, ou seja, como
uma troca entre duas classes, considerando o conjunto dos capitalistas,
por um lado, e, por outro, o conjunto dos operários, então começaremos
a perceber que a mercadoria em questão é uma mercadoria particula­
ríssima e descobrimos também as razões dessa particularidade. A merca­
doria é particularíssima porque, ao invés de ser um objeto possuído
pelo operário, é o próprio operário em sua determinação particular, ou
seja, enquanto força-de-trabalho. Trata-se, portanto, da alienação da
própria subjetividade do trabalhador, já que a força-de-trabalho é o que
permite a explicitação do trabalho, que é a própria explicitação da vida
do trabalhador. Portanto, podemos dizer uma primeira coisa: que não
se trata aqui de uma mercadoria possuída pelo operário, mas se trata
do próprio operário nessa determinação particular. Mas pode-se dizer
ainda outra coisa: olhando os fatos desse modo, percebemos também
quais são as razões por que essa relação se refere a uma mercadoria
tão particular, tão peculiar; as razões são estas: que, dado ser o operário
(como diz Marx) um não proprietário, ou seja, alguém que não possui
nem os meios de produção nem os meios de subsistência necessários
para viver e portanto para trabalhar, então nada lhe resta a vender senão
precisamente sua própria subjetividade. Essa particularidade - e particu­
laridade, note-se bem, ainda no nível da esfera da circulação, ou seja,
sem abordar ainda diretamente o problema do que acontece no âmbito
do processo produtivo, depois de efetivada a compra-e-venda da força-
de-trabalho - essa particularidade, dizia, pode ser especificada ainda
melhor se refletirmos no fato de que, em conseqüência dessa separação
54
do operário tanto dos meios de produção quanto dos meios de subsis­
tência que lhe são necessários para viver e trabalhar, verifica-se a circuns­
tância fundamental indicada no fim da página 34:
“Não é o operário quem compra meios de subsistência e meios
de produção, mas os meios de subsistência compram o operário
para incorporá-lo aos meios de produção.”
Vamos nos deter um momento nessa frase, pois ela — que expressa
o ponto essencial da teoria marxiana do capital — não pode certamente
ser considerada como uma proposição de senso comum. Ela já é resultado
de uma elaboração analítica bastante complexa; portanto, embora a
tese devesse agora ser quase óbv¡a, depois das coisas que lemos, vale a
pena que nos detenhamos nela ainda por um momento. Onde está a sua
não obviedade? No fato de que se poderia ser levado a crer, encarando
as coisas superficialmente, que o operário compra meios de subsistência;
afinal, não é verdade que, quando gasta o seu dinheiro, o operário os
compra? Então por que é que Marx diz que “não é o operário quem
compra meios de subsistência”? E chega mesmo a dizer que ocorre o
contrário? Ou seja: que são os meios de subsistência que o compram,
o que é certamente uma afirmação muito distante do senso comum e da
percepção imediata? Todavia, a coisa é evidente no seguinte sentido:
os meios de subsistência fazem parte do capital e constituem o que
chamamos de capital variável. Em outras palavras: a essência do processo,
ou seja, a essência da relação entre capitalista e operário, só seria captada
até o fundo se a relação fosse considerada do seguinte modo: o capitalista,
já que é o possuidor direto dos meios de produção, é também o possuidor
direto da outra parte do capital, constituída pelos meios de subsistência;
e, de posse desses meios de subsistência, compra com eles a força-de-
trabalho do operário. Nesse caso, são os meios de subsistência, através
da mediação do capitalista, que compram o operário pela sua força-de-
trabalho. Na prática, as coisas não aparecem assim, já que o capitalista
antecipa, como salário, uma determinada soma ao operário, e, depois, o
operário se arruma para comprar por sua conta os meios de subsistência
no mercado. Mas esse é um modo prático de resolver a relação entre
capitalista e operário, que oculta a verdadeira natureza desse processo.
Na realidade, a soma de dinheiro antecipada como salário já é a repre­
sentação de meios de subsistência, que estão realmente sob a posse dos
capitalistas enquanto classe. Se se considera o processo no nível do
sistema, o estoque de meios de subsistência presentes no sistema é
propriedade da classe dos capitalistas, do mesmo modo como são sua
propriedade os meios de produção. E esses meios de subsistência cons­
tituem uma parte do capital da classe dos capitalistas, mediante a qual
essa classe compra força-de-trabalho no mercado. É verdade que, na
prática, a relação salarial é de tal natureza que o capitalista dá ao ope-
55
rário uma soma de dinheiro, solicitando ao próprio operário que com­
pre as mercadorias particulares que constituem sua subsistência; mas
a presença dessa mediação do mercado esconde — mas certamente não
destrói — a essência da relação, que é de outro tipo. Vemos aqui,
portanto, uma outra peculiaridade dessa relação de troca. Como faz o
capitalista para comprar a força-de-trabalho do operário? Quem lhe dá
os meios para fazê-lo? Ele possui os meios porque possui capital; e
possui especificamente a parte do capital que corresponde em valor ao
valor dos meios de subsistência, ou seja, que é constituída, em última
análise, por meios de subsistência. De fato, logo após a última citação,
ainda na página 34, Marx diz:
“Os meios de subsistência são forma material particular de
existência sob a qual o capital se contrapõe ao operário antes
que esse os adquira mediante a venda de sua capacidade de
trabalho.”
Portanto, a apropriação dos meios de subsistência pelo operário é um
ato posterior, que confirma o fato de que, na realidade, esses meios
— através da mediação do salário — já lhe foram antecipados pelo capi­
talista que os possui, tal como possui todo o capital.
Ora, ficando claro que essa transação é uma transação particu­
laríssima, tendo em vista a peculiaridade da mercadoria em questão
(a própria subjetividade do trabalhador), já pode se começar a ver que,
no âmbito da esfera da circulação, as coisas não podem ser redutíveis
sem resíduos à configuração geral da troca; e, com efeito, que as coisas
sejam precisamente assim é algo confirmado pela consideração, feita na
página 36, de que esse ato de troca é a premissa necessária para o posterior
processo de produção capitalista. Coisa que se pode dizer tão-somente
desse ato particular de troca e de nenhum outro. Portanto, podemos
ler logo no início da página 36:
“Por conseguinte, ainda que a compra-e-venda da capacidade
de trabalho — que condiciona a transformação de uma parte
do capital em capital variável — seja um processo anterior,
separado e independente do processo imediato de produção,
constitui, não obstante, o fundamento absoluto do processo
capitalista de produção, e, igualmente, um momento desse
processo produtivo, se o considerarmos como um todo e não
no momento da produção imediata de mercadorias.”
Ou seja: se o processo capitalista é considerado na sua totalidade, vê-se
que o processo de produção — no qual esse processo capitalista se
realiza especificamente — é necessariamente precedido por esse singula-
ríssimo momento da esfera da circulação, ou seja, o momento que
56
determina necessariamente a passagem da esfera da circulação para o
processo produtivo, já que o capitalista, através da aquisição da força-
de-trabalho, compra precisamente a condição subjetiva do procêsso produ­
tivo. Portanto, o ato de troca que tem por objeto a força-de-trabalho
possui uma peculiaridade que o transforma em premissa imediata de uma
outra coisa, que transcende a esfera da circulação, ou seja, a produção.
Isso confirma uma tese que vimos exposta ao longo do parágrafo
anterior, ou seja, a ilegitimidade de tratar o capital como se fosse uma
coisa e não uma relação entre pessoas. O capital é tão pouco uma coisa,
e é tão verdade que se trata de uma relação entre pessoas (isto é, entre
classes, ou seja, uma relação social), que esse particular ato de troca,
que configura precisamente uma relação entre duas classes sociais, é a
premissa necessária da relação de produção capitalista. De fato, no meio
da página 36, a tese é novamente repetida, quase monotamente, já que
esse é um motivo constante de toda a argumentação de Marx:
“O capital não é nenhuma coisa, do mesmo modo que o dinheiro
não o é. No capital, como no dinheiro, determinadas relações
sociais de produção entre pessoas se apresentam como relações
de coisas para com pessoas, bem como determinados relacio­
namentos sociais surgem como propriedades sociais naturais das
coisas. Sem trabalho assalariado, nenhuma produção de mais-
valia existe, já que os indivíduos se relacionam como pessoas
livres; sem produção de mais mais-valia, não existe produção
capitalista, e, por conseguinte, nenhum capital e nenhum capi­
talista!”
Os meios de produção não são capital a não ser que sejam trocados por
trabalho assalariado; o trabalho não é trabalho assalariado a não ser que
seja comprado pelo capital; portanto, capital e trabalho assalariado
nascem numa só operação e são duas faces da mesma realidade.
“O dinheiro não pode transmudar-se em capital se não é inter-
cambiável pela capacidade de trabalho, enquanto mercadoria
vendida pelo próprio operário. Por outro lado, o trabalho só
pode aparecer como trabalho assalariado quando suas próprias
condições objetivas”
— isto é, os meios de produção e os meios de subsistência —
“se lhe opõem como poderes autônomos, propriedade alheia,
valor existente para si e preso a si mesmo; em suma: como
capital.”
A coisa é novamente repetida, na passagem da página 36 para a pá­
gina 37:
“O trabalho assalariado é, pois, para a produção capitalista,
uma forma socialmente necessária do trabalho, assim como o
capital, o valor elevado a uma potência” ,
— ou seja, o valor que cresce sobre si mesmo —
“é forma socialmente necessária às condições objetivas do tra­
balho para que esse último seja trabalho assalariado.”
Portanto, o capital é essencial ao trabalho assalariado; o trabalho assala­
riado é essencial ao capital. Ou seja: trata-se precisamente de dois
momento de uma mesma realidade.
Prossegue Marx, na página 37:
“Assim, o trabalho assalariado constitui condição necessária
para a formação de capital e se mantém como premissa neces­
sária e permanente da produção capitalista. Em conseqüência,
ainda que o primeiro processo — a troca de dinheiro por capaci­
dade de trabalho, ou a venda da capacidade de trabalho — não
entre como tal no processo imediato de produção”,
precisamente porque pertence inteiramente à esfera da circulação,
“participa pelo contrário na produção da relação global.”
Ou seja: entra na produção da relação capitalista, sendo seu primeiro
momento.
O segundo momento é o processo produtivo em sentido estrito,
do qual se começa a falar logo após a última citação; até agora, portanto,
Marx falou do processo de circulação, da analogia entre a troca de
força-de-trabalho e a troca em geral, mas referiu-se já a uma primeira
diferença que começa a surgir em face da troca em geral; agora ele
passa a abordar o processo do qual aquela troca é o pressuposto neces­
sário, ou seja, o processo produtivo. E então a diferença será captada
em toda a sua amplitude. A primeira coisa que aqui se começa a dizer
(aliás: a dizer novamente) do processo produtivo é que ele é, antes de
mais nada, processo de trabalho. E trata-se de uma determinação que
já conhecemos. Mas depois se acrescenta - e é isso que nos interessa - que
o processo produtivo é processo de valorização. Lemos na passagem da
página 38 para a 39:
“No processo de trabalho considerado em si mesmo, o operário
emprega os meios de produção. No processo de trabalho que é,
ao mesmo tempo, processo capitalista de produção, os meios de
produção utilizam o operário, de tal sorte que o trabalho só
aparece como um meio graças ao qual determinada grandeza de
58
valor, ou seja, determinada massa de trabalho objetivado extrai
trabalho vivo para conservar-se e multiplicar-se. O processo de
trabalho aparece assim como processo de autovalorização, por
intermédio do trabalho vivo, do trabalho objetivado.”
Aqui se começa a mostrar que a troca de força-de-trabalho por capital,
se por um lado é uma troca como todas as outras, ou seja, uma troca de
valores equivalentes, é porém, por outro lado, uma troca cuja peculia­
ridade — que já podia ser entrevista no processo de circulação - mani­
festa-se aqui em toda a sua verdadeira natureza, já que se descobre que,
abaixo dessa troca de equivalentes, há uma troca desigual. Por que uma
troca desigual? Porque, uma vez que a força-de-trabalho passou a posse
do capitalista, surge dela mais trabalho do que o trabalho nela objetivado.
Vamos relembrar, para maior clareza, qual é —segundo Marx —a essência
desse processo. 0 capitalista compra a força-de-trabalho, cedendo ao
operário o exato equivalente do valor dessa força-de-trabalho. Se o valor
dessa força-de-trabalho é, por exemplo, de seis horas de trabalho, já que
essas seis horas são o necessário para reconstituir os meios de subsistência,
o capitalista dá aquela quantidade de dinheiro na qual está objetivado
um valor de seis horas de trabalho. Nesse sentido, a troca é uma troca
que respeita a lei geral do valor: é uma troca de equivalentes. As duas
mercadorias trocadas, ou seja, o dinheiro do capitalista e a força-de-
trabalho do operário, têm o mesmo valor, isto é, objetivam em si a mesma
quantidade de trabalho. Apesar disso, apesar dessa paridade, dessa equi­
valência, que tem lugar na esfera da circulação, a peculiaridade da
mercadoria em questão é que, quando se chega ao processo produtivo,
tem-se uma mudança dessa equivalência, porque na realidade o capitalista
entra de posse não simplesmente da quantidade de trabalho objetivada
na força-de-trabalho que comprou, mas de uma quantidade de trabalho
maior, em conseqüência do fato ,de que o operário pode dar numa
jornada de trabalho, digamos, não simplesmente aquelas seis horas, mas
dez horas de trabalho, ou seja, quatro horas a mais do que as horas
objetivadas em sua força-de-trabalho. Temos aqui, portanto, a não equi­
valência. A troca, quando se completa no processo produtivo, revela ser
uma troca entre entidades desiguais; aliás, pode-se dizer que aquela
troca de equivalentes que se verifica no processo de circulação só tem
sentido quando se transforma, no processo produtivo, numa troca desigual.
Vejamos como a coisa é descrita, com muita precisão, na página 39:
“No próprio processo de troca, são trocados um quantum
de trabalho objetivado no dinheiro como mercadoria por
um quantum igual de trabalho objetivado na força-de-trabalho
viva.”
Portanto, desse ponto de vista, a lei geral do valor é cumprida:
59
“De acordo com a lei do valor que rege a troca de mercadorias,
trocam-se equivalentes, quantidades iguais de trabalho objetivado,
embora um quantum esteja objetivado em urna coisa”
—no dinheiro do capitalista —
“e o outro em uma pessoa viva”
(na força-de-trabalho do operário).
Já na página 40, prossegue Marx:
“Essa troca, entretanto, não faz mais do que servir de prólogo
ao processo de produção, através do qual, de fato, se troca mais
trabalho em forma viva do que o que se havia dispendido em
forma objetivada.”
“Mais trabalho em forma viva” é o trabalho realizado pelo operário
no processo produtivo; “do que o que se havia dispendido em forma
objetivada” é a idêntica quantidade de trabalho que está contida tanto
no dinheiro gasto pelo capitalista quanto na força-de-trabalho que o
capitalista comprou. Portanto, aquela primeira quantidade de trabalho
é maior do que essa segunda, e, por isso, no processo de produção,
troca-se mais trabalho por menos trabalho. Consiste exatamente nisso o
que Marx chama de exploração capitalista. Precisamente nisto: que a
troca, que é de equivalentes no processo de circulação, torna-se uma
troca de coisas desiguais no processo produtivo. Recorde-se que Marx
sempre insistiu, com muito cuidado, sobre o fato de que a exploração
capitalista não apenas não é uma violação da lei geral- do valor, mas é
inclusive essa própria lei. A exploração capitalista não consiste no fato
de que se pague ao operário menos do que lhe é devido; ao operário se
paga exatamente o que lhe é devido, já que o operário vende uma
mercadoria particular, a força-de-trabalho, que é comprada exatamente
pelo seu valor. Só que é da peculiaridade dessa mercadoria que surge
depois a relação de exploração, que deve ser buscada, portanto, não na
esfera da circulação, mas na esfera da produção, já que a exploração
— enquanto nos mantivermos na esfera da circulação — não pode ser
vista, pela simples razão de que não existe. E então, como Marx disse
poucas páginas antes, toda a sabedoria da economia política consiste em
limitar as próprias considerações à esfera da circulação, com a conse­
qüência de que não se sabe o que ocorre na esfera da produção, simples­
mente porque evita-se falar dela. De fato, nessa mesma página 40, existem
duas críticas dirigidas à economia política, mas particularmente a Ricardo,
embora seu nome não apareça. Vamos ler esse trecho:
“O grande mérito da economia clássica, pois, é o de haver
apresentado o processo inteiro de produção como um processo
60
entre o trabalho objetivado e o trabalho vivo, e, portanto, haver
representado o capital, por oposição ao trabalho vivo, apenas
como trabalho objetivado, ou seja, como valor que se valoriza
a si mesmo mediante o trabalho vivo.”
E até aqui a economia clássica está certa.
“Sua falha, a esse respeito, consiste tão-somente no seguinte:
primeiro, foram fos economistas clássicos] incapazes de de­
monstrar como essa troca de mais trabalho vivo por menos
trabalho objetivado corresponde à lei da troca de mercado­
rias, à determinação do valor das mercadorias pelo tempo de
trabalho.”
Ou seja: a economia política de Ricardo (mas por outro lado, como já
sabemos, também a de Smith) encontra-se paralisada precisamente diante
deste fato: como é possível que, no âmbito do processo capitalista,
existam essas duas coisas? A troca de equivalentes e a troca de não
equivalentes? Como é possível que a relação capitalista seja, por um lado,
uma troca de equivalentes, como ocorre sempre nas trocas que se
processam segundo a lei do valor, e, por outro lado, haja ao contrário
um mais-valor ( ou mais-valia), que denuncia a existência de uma troca
entre valores desiguais? A presença simultânea dessas duas coisas sempre
foi considerada um absurdo pela economia política clássica, que se
apegou ora a uma, ora a outra, e desse modo, em última análise, deixou
que ambas escapassem. Como sabemos, pois já falamos disso na primeira
lição, Ricardo se fixa no ponto em que se trata de uma troca de equiva­
lentes, redutível portanto à lei geral da troca. Smith se fixa no ponto
em que se trata de uma troca entre entidades desiguais, com a contra­
posição entre trabalho contido e trabalho comandado. Portanto, esses
dois economistas captam, cada um deles, um lado do dilema; e, não
conseguindo vê-los como dois momentos de uma mesma realidade, —que
não se contradizem entre si, masantes constituem, em seu conjunto, a
essência da relação capitalista, — têm da relação capitalista, precisamente
por isso, uma visão insuficiente, cuja conseqüência, em ambos, é exata­
mente o fato de que a mais-valia não é explicada, não se sabendo qual a
sua origem. O segundo aspecto da insuficiência da economia clássica é
assim formulado:
“e, segundo, confundiram [os economistas clássicos] de imediato
a troca de determinado quantum de trabalho objetivado pela
capacidade de trabalho, troca que se efetua no processo de
circulação,"
— e é de recordar que, com a expressão “trabalho objetivado”, Marx se
refere aqui ao trabalho contido no dinheiro cedido pelo capitalista ao
61
operário, e portanto, em última análise, nos meios de subsistência desse
último, —
“[confundiram isso] com a absorção, no processo de produção,
do trabalho vivo pelo trabalho objetivado existente sob a figura
de meios de produção. Confundiram o processo de troca entre
capital variável e capacidade de trabalho com o processo de
absorção do trabalho vivo pelo capital constante.”
Vamos nos deter por um momento nessa colocação. Antes de mais
nada: a economia política havia visto bastante bem que o que se chama
de “mercado de trabalho” dá lugar a esse tipo de troca: que uma certa
quantidade de dinheiro em mãos do capitalista, que traz incorporada
uma certa quantidade de trabalho, é trocada por força-de-trabalho; que,
por isso, a parte do capital do capitalista que se chama capital variável
e' trocada pela força-de-trabalho do operário. Esse ponto, portanto, foi
visto. Por que, contudo, eles pararam aqui? Porque não viram que tudo
isso era a premissa de uma outra realidade, que começaria no âmbito
do processo de produção. O que é essa outra coisa que se dá no processo
de produção? No processo de produção, dá-se que o capitalista não tem
mais em mãos o capital variável em sua forma de dinheiro; tampouco
tem o capital variável na forma de meios de subsistência; no lugar do
capital variável, que o capitalista não possui mais porque o gastou, está
a força-de-trabalho viva, a qual entra em contato, dessa feita, com o
capital constante, ou seja, com os meios de produção. Portanto, enquanto
na esfera da circulação a força-de-trabalho relaciona-se com o capital
variável, porque é trocada pelo capital variável, no âmbito do processo
de produção a força-de-trabalho, agora comprada, relaciona-se com o
capital constante, ou seja, com os meios de produção. E é através da
relação com o capital constante que surge o trabalho excedente (o mais-
trabalho), porque é o capital constante que — absorvendo o trabalho vivo
— absorve-o em quantidade maior do que a quantidade de trabalho
contida na força-de-trabalho.
Ora, já que assim são as coisas, a distinção entre processo de
produção e processo de circulação pode também se expressar — e é
aqui efetivamente expressa — como a diferença existente entre a relação
entre força-de-trabalho e capital variável, na circulação, e a relação entre
força-de-trabalho e capital constante, no processo de produção. Portanto,
podemos dizer: as duas partes do capital, com as quais a força-de-trabalho
entra sucessivamente em contato, estabelecem esse contato com a força-
de-trabalho uma vez na esfera da circulação e outra vez na esfera da
produção. Ora, Marx diz: já que a economia política jamais distinguiu
entre capital constante e capital variável, chegando mesmo (sobretudo
graças ao incentivo dado por Smith) a reduzir todo o capital antecipado
a salário, então o fato de não ver a parte do capital à qual é imputável, no
62
processo de produção, a absorção de trabalho vivo em quantidade
superior ao trabalho objetivado na força-de-trabalho, faz com que não
se veja tampouco o processo pelo qual é responsável o capital constante
e que deve lhe ser imputado. Na medida em que a economia política
não vê o capital constante, que ela reduz sempre a antecipações salariais,
não vê tampouco o processo imputável ao capital constante, que é
precisamente o processo de absorção do trabalho em quantidade sufi­
ciente para determinar a formação de um trabalho excedente ao lado do
trabalho necessário. Nas quatro linhas finais na página 40, encontra-se a
confirmação de tudo isso:
“Essa apropriação”
—ou seja, a apropriação do trabalho vivo alheio por parte do capitalista —
“é mediatizada pela troca que se efetua no mercado entre
capital variável e capacidade de trabalho, mas não se leva a
termo cabalmente senão no processo de produção.”
Portanto, a troca é necessária para que o capitalista se aproprie de
força-de-trabalho; mas a apropriação de força-de-trabalho não é senão o
meio para a apropriação de trabalho vivo, do trabalho vivo que pode
emanar precisamente da força-de-trabalho; e, enquanto a apropriação de
força-de-trabalho se faz através do capital variável, a apropriação de
trabalho vivo se faz mediante o capital constante. Temos aqui, portanto,
o caráter essencial dessa distinção, que não foi feita pela economia
política.

63
Lição 6
AINDA SOBRE A TROCA ENTRE CAPITAL
E FORÇA-DE-TRABALHO.
SUBSUNÇÃO FORMAL E SUBSUNÇÃO REAL
DO TRABALHO AO CAPITAL

Concretizamos, na lição passada, em que sentido se deve dizer que


a troca entre capital e força-de-trabalho é uma troca entre equivalentes
e em que outro sentido se deve dizer, ao contrário, que é uma troca
entre não-equivalentes. Seguem-se agora, a partir da página 43, alguns
parágrafos que são substancialmente a repetição, embora mais rica, de
coisas que já lemos ou dissemos; por isso, creio que os elementos que
permitirão a vocês lerem essas páginas sozinhos já foram colocados.
Trata-se, em substância, do parágrafo intitulado “Continuidade do pro­
cesso produtivo etc.”, nas páginas 43-44, que é interessante essencialmente
porque em certo momento, ou seja, na página 44, Marx dá novamente
uma caracterização da categoria de trabalho abstrato, mas em termos
— repito — que já nos são conhecidos.
O parágrafo que começa na página 45 — intitulado “Ainda sobre
as relações entre processo de circulação e processo de produção do
capital” — é um parágrafo onde existem dois conceitos interessantes:
em primeiro lugar, a distinção entre divisão social e divisão técnica do
trabalho como característica típica do processo produtivo capitalista;
em segundo, o conceito — que já vimos e expusemos mais de uma vez —
segundo o qual a relação entre capital e trabalho é essencialmente uma
personificação de coisas e uma reificação de pessoas. Trata-se de um
ponto que já conhecemos. Por isso, penso que vocês podem ler sozinhos
esse parágrafo. Em troca, poderemos examinar juntos o parágrafo que
64
começa na página 47, e que tem como título “O processo de produção
capitalista visto em seu conjunto”. Também aqui se diz uma coisa que,
especialmente nas últimas aulas, vimos mais de uma vez, a saber, que o
processo capitalista — considerado em seu conjunto — consta de dois
processos articulados entre si, um dos quais pertence à esfera da circu­
lação e o outro à esfera da produção. O primeiro processo, o que pertence
à esfera da circulação, é o processo de compra-e-venda da força-de-
trabalho, e é precisamente o processo em relação ao qual se pode dizer
— como vimos — que ocorre uma troca de equivalentes, com pleno
respeito pela lei do valor, já que o capital variável cedido pelo capitalista
tem um valor exatamente igual ao valor da força-de-trabalho cedida pelo
operário. Estamos na esfera da circulação, e a troca é uma troca entre
equivalentes, com pleno respeito pela lei do valor. Por isso, pode-se
dizer que ainda não entramos no coração e na peculiaridade do processo
capitalista. Essa entrada se dá com a segunda fase do processo, que
pertence à esfera da produção e que é, como se diz no início da
página 49,
“o processo real em que se consome a capacidade de trabalho”,
ou seja, o processo através do qual — da força-de-trabalho adquirida
— se liberta um trabalho vivo em quantidade maior do que o trabalho
contido na própria força-de-trabalho, a qual foi paga pelo seu valor
mediante o dispêndio de capital variável; isto quer dizer que reside aqui
a peculiaridade do processo capitalista, já que é aqui que o trabalho se
transforma em elemento fundamental do processo de valorização, precisa­
mente porque a força-de-trabalho é capaz de liberar mais trabalho do
que o nela contido e, portanto, é capaz de fornecer não apenas um
trabalho necessário, que reconstitui o valor da força-de-trabalho, mas
também um trabalho excedente, um mais-trabalho, que se materializa
em um produto excedente, ou mais-produto, o qual, precisamente em
virtude dessa absorção de mais-trabalho, é uma mais-valia (ou mais-valor),
isto é, a matriz do lucro do capitalista. E também esse é um processo
que examinamos, juntos mais uma vez. Porém, vale a pena ler a conclusão
que Marx coloca no final desse exame, já que — de modo bastante
sintético e incisivo, além de mnemonicamente útil — resume a essência
desse complexo processo capitalista. Trata-se do início da página 50,
onde Marx diz o seguinte:
“Se se consideram ambos os momentos, primeiro, o intercâmbio
de força-de-trabalho por capital variável”,
ou seja, se consideramos o que ocorre na esfera da circulação,
“segundo, o processo real de produção (no qual o trabalho
vivo se incorpora como agente ao capital)”,
65
isto é, se consideramos o processo produtivo, a esfera da produção,
“o processo em seu conjunto”
- o processo capitalista -
“apresenta-se como um processo em que: 1) se troca menos
trabalho objetivado por mais trabalho vivo, porquanto o que o
capitalista recebe realmente (realiter) pelo salário é o trabalho
vivo.”
0 que quer dizer isso? Repito: um menor trabalho objetivado é trocado
por um maior trabalho vivo. Isso significa que o trabalho, que se objetiva
no capital variável e que reaparece idêntico na força-de-trabalho, é
trocado por um trabalho maior do que o trabalho vivo que provém dessa
força-de-trabalho. Portanto, os termos são os seguintes: primeiro termo:
capital variável, ou seja, uma certa soma de valor que se apresenta sob ò
aspecto de dinheiro, isto é, uma certa quantidade de trabalho; segundo
termo: a força-de-trabalho, que esse capital variável adquire o que tem,
segundo a lei geral do valor, o mesmo valor do capital variável pelo qual
é trocada; terceiro termo: o trabalho vivo, que provém dessa força de
trabalho e que é maior do que a quantidade comum de trabalho que
está contida tanto no capital variável quanto na força-de-trabalho; disso
resulta a troca do menor pelo maior; e é por isso que o processo contém
em si a origem da mais-valia. Vejam também o que Marx acrescenta aqui:
essa troca ocorre
“porquanto o que o capitalista recebe realmente (realiter) pelo
salário é o trabalho vivo.”
Que quer dizer esse realiter? Quer dizer que, embora o que o capitalista
receba imediatamente, em troca do salário, seja a força-de-trabalho;
embora o capitalista ceda um certo valor para possuir um valor idêntico,
o que recebe porém na realidade, o que recebe realiter, não é simples­
mente essa força-de-trabalho, mas é o valor-de-uso dessa força-de-trabalho;
e o valor-de-uso dessa força-de-trabalho é o trabalho vivo que essa força-
de-trabalho pode fornecer e que é maior do que o trabalho objetivado
nela. Portanto, dizemos: o que o capitalista recebe imediatamente é uma
certa coisa, mas na realidade é uma outra: ou seja, recebe na realidade o
trabalho vivo, e não simplesmente o trabalho objetivado nessa merca­
doria que compra; em outras palavras, é como se se dissesse — e, de
resto, o próprio Marx o diz mais de uma vez — que essa mercadoria que
é comprada, ou seja, a força-de-trabalho, é uma mercadoria peculiaríssima,
porque nenhuma outra tem essa qualidade extraordinária: a de que seu
valor-de-uso é precisamente o trabalho, ou seja, a substância valorizadora,
e um trabalho maior do que o trabalho nela contido. Portanto, é essa a
66
primeira conclusão, considerando o processo em seu conjunto. Depois,
resulta uma segunda. Com efeito,
“2) as formas objetivas sob as quais o capital aparece direta­
mente no processo de trabalho, os meios de produção (uma vez
mais, trabalho objetivado), são meios para a extorsão e absorção
desse trabalho vivo.”
Também esse é um conceito que encontramos mais de uma vez. Ou
seja: quando se trata de um processo de produção capitalista e não de
um processo de produção genérico, não é o operário quem utiliza os
meios de produção, mas são os meios de produção que o utilizam. Em
que sentido? No sentido de que o trabalho do operário só tem significado
na medida em que dá lugar a um aumento do valor incorporado nesses
meios de produção. Portanto, o trabalho do operário é meio para a
valorização do capital inicial; nesse sentido, enquanto é meio para isso,
são os meios de produção que utilizam esse trabalho e não o trabalho que
utiliza os meios de produção; isto é, pode-se dizer que a relação está
invertida em face do modo como se apresentaria normalmente em um
processo produtivo natural ou genérico. Portanto, repito, não se trata
de nada de novo com relação ao que já lemos em outras ocasiões; mas
essa passagem, de modo muito mais incisivo, e portanto também mnemoni-
camente útil, resume a substância da questão.
A partir do parágrafo seguinte, “Subsunção formal do trabalho ao
capital” 1, começa um outro assunto, que deveremos enfrentar agora, um
assunto diverso do anterior, mas estreitamente ligado a ele. Vou tentar
expor de maneira muito esquemática a questão em pauta; e, depois,
lendo juntos, veremos esse esquema ganhar substância com considerações
e argumentações ulteriores. Trata-se de uma passagem que se tornou das
mais conhecidas desse Capitulo VI, porque em nenhum outro local Marx
tratou desse assunto com a mesma amplitude: referimo-nos à distinção
entre dois modos de subsunção (ou subordinação) do trabalho ao capital,
ou seja, de uma subsunção formal e de uma subsunção real do trabalho
ao capital. Essa distinção entre subsunção formal e subsunção real
encontra-se também no Livro 1 de O Capital, onde porém - em vez de
se dizer subsunção formal e subsunção real ao capital — diz-se mais
freqüentemente “produção de mais-valia absoluta” e “produção de mais-
valia relativa”. No capítulo 14 do Livro 1 de O Capital, Marx observa
que a distinção entre subsunção (ou subordinação) formal e real é a
mesma coisa que a distinção entre mais-valia absoluta e mais-valia rela-

1. Nesse caso, também a edição brasileira traz o subtítulo: cf. p. 51 (Nota


do Tradutor).

67
tiva. Devemos tentar ver o que significa essa distinção, que se expressa
em um desses dois modos.
Antes de mais nada, a subsunção formal — como observa Marx no
início da página 51 - é entendida em dois sentidos: em sentido genérico
e em sentido específico. Em sentido genérico, Marx entende por subsunção
formal ao capital tão-somente o fato de que o trabalho está inserido num
processo produtivo cujo sentido é a produção de mais-valia; e, portanto,
o trabalho está inserido num processo em que são os meios de produção
que usam o trabalho e não vice-versa, num processo cujo significado
reside exclusivamente no aumento de valor do capital inicial; subsunção
formal do trabalho ao capital, num primeiro sentido genérico, não significa
portanto mais do que isso. Mas, depois, essa mesma determinação
— subsunção formal — é entendida também, por Marx, num sentido
não mais genérico porém específico, ou seja, para indicar a situação
na qual, embora o trabalho esteja inserido num processo capitalista de
produção, dotado das características a que acabamos de aludir, o processo
de trabalho — do ponto de vista técnico — mantém ainda as formas em
que se processava antes que a relação capitalista interviesse. Em outras
palavras, estamos naquela situação, não apenas lógica mas também crono­
logicamente inicial, na qual o capital se assenhoreou do processo produ­
tivo, do processo de trabalho, mas assenhoreou-se apenas formalmente,
no sentido de que o conteúdo particular do processo de trabalho
continuou a ser o antigo; o processo produtivo, do ponto de vista do
processo de trabalho, desenvolveu-se sob formas técnicas que o capital
ainda não conseguia influenciar e tornar homogêneas a si mesmo. Trata-se
de uma fase historicamente bastante longa, como dirá Marx, essa da
simples subsunção formal entendida em sentido específico. Ao contrário,
a subsunção real do trabalho ao capital é a situação na qual não se
trata apenas do fato de que o trabalho se encontra inserido num processo
produtivo cujo sentido reside na produção de mais-valia; mas se trata
também do fato de que o próprio processo de trabalho — enquanto
processo técnico de relação entre o trabalho e os meios de produção —foi
transformado pelo capital a ponto de torná-lo homogêneo à relação formal
já existente entre trabalho e capital; isto é, a técnica produtiva não é
mais a antiga, é uma técnica nova, especificamente capitalista, na qual
a subsunção do trabalho ao meio de produção não é mais apenas uma
subsunção que pode ser captada no terreno econômico, mas é uma
subsunção que se capta também no terreno material; ou seja, o trabalho
é subsumido ao instrumento, no sentido material da palavra. É essa a
época da técnica capitalista em sentido propriamente dito, que tem sua
culminação na máquina; de fato, o uso da máquina é a realização plena
da subsunção real do trabalho ao capital.
Agora será bom ler os textos, e ver como Marx especifica essas
coisas; no momento oportuno, examinaremos em que sentido a subsunção
68
formal, entendida em sentido específico, equivale à produção de mais-
valia absoluta, e em que sentido a subsunção real equivale, ao contrário,
à produção de mais-valia relativa; isso é algo que explicaremos quando
Marx falar dessas categorias particulares; então pararemos para ver do
que se trata. Retomemos a leitura, no início da página 51:
“O processo de trabalho converte-se em instrumento do processo
de valorização,”
(observem que se fala aqui de uma característica geral da produção
capitalista, para a qual o processo de trabalho é efetivamente e sempre
um meio para a processo de valorização),
“do processo de autovalorização do capital — da fabricação
de mais-valia. O processo de trabalho é subsumido ao capital
(é seu próprio processo), e o capitalista se enquadra nele como
seu dirigente, condutor; para este, é ao mesmo tempo, de
imediato, um processo de exploração do trabalho alheio. É a
isso a que denomino subsunção formal do trabalho ao capital.”
— temos aqui, portanto, a subsunção formal em sentido genérico.
“É a forma geral de todo processo capitalista de produção.”
(E isso porque, em qualquer processo de produção capitalista, tem-se o
fato de que o processo de trabalho é meio para o processo de valorização).
“Mas é ao mesmo tempo uma forma particular, ao lado do
modo de produção especificamente capitalista em sua forma
desenvolvida”
onde vigora a subsunção real e não formal,
“já que a última inclui a primeira, mas a primeira não inclui
necessariamente a segunda.”
Ou seja: a subsunção real é também e sempre subsunção formal (enten­
dendo-se essa em sentido genérico), mas a recíproca não é verdadeira;
a subsunção formal pode também não implicar a subsunção real. Vejamos
agora o significado não mais genérico, porém específico, da subsunção
formal.
“O processo de produção converteu-se em processo do próprio
capital; é um processo que se desenvolve com os fatores do
processo de trabalho, e no qual o dinheiro do capitalista se
transforma; é um processo que se efetua sob a direção deste,
com o fim de fazer de dinheiro mais dinheiro.”
69
Ou seja: é um processo capitalista. Começamos agora com exemplos
históricos:
“Quando o camponês, antes independente e que produzia para
si mesmo, se torna diarista e trabalha para um agricultor”
(agricultor e' aqui o capitalista);
“quando a estrutura hierárquica característica do modo de
produção corporativo-medieval desaparece ante a simples opo­
sição de um capitalista que faz trabalhar para si os artesões
convertidos em assalariados”
(mas, poderíamos aduzir, que mantêm ainda a sua característica técnica
de artesãos);
“quando o escravista de outrora emprega seus ex-escravos como
assalariados, etc.”
(mas, acrescentamos, que continuam a fazer um trabalho não disseme­
lhante do que faziam os escravos);
“[quando tudo isso ocorre], temos então que processos de
produção determinados socialmente de outro modo se trans­
formam no processo de produção do capital.”
Portanto, o processo de produção do capital incorpora processos produ­
tivos que tiveram uma vida social diversa da vida do capital e que mantêm
a herança dessa diversidade, na medida em que se processam tecnicamente
ainda como o faziam antes, em que não foram ainda transformados pelo
capital.
“Com isso, entram em cena modificações analisadas anterior­
mente. O camponês, antes independente, cai — como fator do
processo de produção — na dependência do capitalista que o
dirige, e sua ocupação depende de um contrato que ele, como
possuidor de mercadoria (como possuidor de força-de-trabalho),
firmou previamente com o capitalista, na qualidade de possuidor
de dinheiro.”
(Ou seja, temos o contrato salarial.)
“O escravo deixa de ser instrumento de produção pertencente
a seu empregador.”
Com efeito, a pessoa do operário não pertence mais ao capitalista:
pertence-lhe tão-somente a força-de-trabalho do operário.
70
“A relação entre mestre e oficial desaparece. O mestre, cuja
relação anterior com o oficial era a de um conhecedor do oficio,
se lhe defronta agora apenas como possuidor de capital, assim
como o outro se contrapõe a ele simplesmente como vendedor
de trabalho.”
“Anteriormente ao processo de produção, todos eles se
defrontavam como possuidores de mercadorias”
(“anteriormente ao processo de produção” quer dizer: no processo de
circulação: agora eles, ao contrário do que ocorria antes que o capital
tivesse englobado essas formas, enfrentam-se todos do mesmo modo
como possuidores de mercadorias, força-de-trabalho por capital)
“e mantinham entre si unicamente uma relação monetária”
— de troca;
“dentro do processo de produção se defrontam como agentes
personificados dos fatores que intervêm nesse processo: o capi­
talista, como ‘capital’; o produtor direto, como ‘trabalho’.”
E, pouco depois, já na página 52:
“Em que pese tudo isso, com tal troca (change) não se efetuou,
a priori, mudança essencial no modo real do processo do tra­
balho, do processo real de produção.”
Tecnicamente, o processo de trabalho conservou-se o mesmo. O camponês
não é mais camponês independente, mas camponês assalariado; porém
faz as mesmas coisas que fazia antes. O artesão da oficina medieval não
é mais o aprendiz (ou oficial): é um assalariado que se encontra diante
não mais do mestre da corporação, mas do capitalista; porém faz ainda
as mesmas coisas que fazia antes como artesão.
“Pelo contrário, faz parte da natureza da questão o fato de que
a subsunção do processo de trabalho ao capital se opere à base
de um processo de trabalho preexistente, anterior a essa sub­
sunção ao capital, e que se configurou à base de diferentes
processos de produção anteriores e de outras condições de
produção; o capital”
— e essa é a questão —
“se subsume a determinado processo de trabalho existente”
(ou seja, que é existente para ele, capital); o capital ainda não o trans­
forma, mas
71
“se subsume a determinado processo de trabalho existente, como,
por exemplo, o trabalho artesanal ou o tipo de agricultura
correspondente à pequena economia camponesa autônoma,”
que permanecem, portanto, como eram antes.
“Se nesses processos de trabalho tradicionais, que ficaram sob
a direção do capital, se operam modificações, essas só podem
ser conseqüências paulatinas da subsunção de determinados
processos de trabalho tradicionais ao capital.”
Quais são esses processos que podem ocorrer sem que o velho
processo de trabalho se transforme em outra coisa, homogênea ao capital?
Eles são elencados, exemplificados, por Marx.
“Que o trabalho se faça mais intensivo ou que se prolongue a
duração do processo de trabalho; que o trabalho se torne mais
contínuo, e, sob as vistas interessadas do capitalista, mais orde­
nado, etc., não altera em nada o caráter do processo real de
trabalho, do modo real de trabalho."
Ou seja: algumas modificações provocadas pela presença do capitalista
têm efetivamente lugar, mas não são modificações substanciais. O traba­
lhador trabalha mais, trabalha mais intensamente, trabalha de modo mais
ordenado, mais contínuo; mas era artesão, e continuou artesão; era
camponês, e continuou camponês. É essa a situação, portanto, no que
diz respeito à subsunção formal em sentido particular ou específico.
Agora, Marx passa a descrever a subsunção real:
“Isso constitui um grande contraste com o modo de produção
especificamente capitalista (trabalho em grande escala, etc.),
que, como indicamos”
(o “como indicamos” refere-se ao texto de O Capital e, portanto, não
se vincula necessariamente ao conteúdo desse pequeno volume que
contém o Capitulo Inédito),
“se desenvolve no curso da produção capitalista e revoluciona
não só as relações entre os diversos agentes da produção, mas,
simultaneamente, a índole desse trabalho e a modalidade real
do processo de trabalho total. É por oposição a essa última que
chamamos a subsunção até aqui considerada do processo de
trabalho (de uma modalidade de trabalho já desenvolvida antes
que surgisse a relação capitalista) ao capital de subsunção formal
do trabalho ao capital
Portanto, poder-se-ia dizer que, em substância, com a subsunção formal
72
do trabalho ao capital, temos um capitalismo ainda incompletamente
realizado, no qual foram colocadas algumas premissas fundamentais para
sua realização: ou seja, o trabalho foi separado dos meios de produção,
foi incluído dentro de um processo de trabalho que é tão-somente meio
para um processo de valorização. Portanto, o capital já domina inteira­
mente a forma, mas ainda não é completamente a matéria; ou seja,
esse processo de trabalho não se tornou ainda homogêneo ao capital.
Em outras palavras (e essa seria a fórmula mais exata): o capital
subsumiu a si o trabalho enquanto determinação econômica, mas ainda
não o subsumiu a si enquanto determinação material, ou seja, enquanto
conjunto de meios de produção. Quando se chega à subsunção real, o
capital subsumiu a si o trabalho também materialmente, isto é, também
o capital considerado em sua base material subsumiu o trabalho, enquanto
antes o capital havia subsumido o trabalho apenas em sua determinação
econômica, não ainda em sua determinação material. Essa é a distinção
entre as duas fases. Com efeito, para esclarecer mais ainda essa diferença,
pode-se tomar em consideração o elemento de continuidade que existe
entre essas duas formas, a fim de que não nos limitemos — o que seria
errado — a examinar simplesmente uma sua diametral contraposição; há
uma passagem, no próprio terreno do processo de trabalho, entre a
simples subsunção formal e a subsunção real. São as modificações que
Marx já começou a indicar, e que se verificam no processo de trabalho
mesmo no interior da simples subsunção formal; agora, na parte final
do parágrafo, Marx as resume sob uma determinação única, que se
refere à escala do processo produtivo. Vejam o que ele diz na página 53:
“O que disntingue, desde o início, o processo de trabalho sub­
sumido ainda apenas formalmente ao capital — e em relação a
que se vai distinguindo cada vez mais, ainda que siga tendo por
base a velha modalidade tradicional —”
ou seja, o que caracteriza o processo de trabalho ainda antigo, mas já
subsumido formalmente ao capital,
“é a escala em que se efetua; ou seja, por um lado, a amplitude
dos meios de produção adiantados; e, por outro, a quantidade
de operários dirigidos pelo mesmo patrão (employer).”
Em suma: o processo de trabalho permanece tecnicamente o mesmo,
mas intervém quando menos a seguinte modificação: a sua escala
— atenção para este ponto! — não apenas é maior do que a que ocorria
antes da intervenção do capital, mas, sobretudo, deixa de ser uma escala
dada para ser uma escala que aumenta continuamente. Por que isso?
Porque antes, quando o capital não havia ainda intervindo nem mesmo
formalmente, a finalidade não era a produção de mais-valia, razão pela
qual a produção se dava dentro de limites circunscritos; agora, ao
73
contrário, sendo a meta a mais-valia, e dado que a mais-valia não
tem outra determinação possível além de sua quantidade, o processo de
trabalho se encontra, por assim dizer, comprimido no interior da forma
da simples subsunção formal: é ainda o modo antigo, mas aumenta-se
sua escala e tenta-se aumentá-la além de qualquer limite, a fim de que
possa realmente servir à meta específica da produção capitalista, que
é o aumento indefinido da mais-valia. Mas é precisamente essa compressão
que, em dado ponto, determina a passagem da subsunção formal à
subsunção real, pois em dado ponto torna-se impossível ampliar ulterior­
mente o processo de trabalho se ele se conserva dentro das formas
antigas; se se quer ampliar o processo de produção além de qualquer
limite, não se pode mais manter o caráter artesanal e camponês do
trabalho; é preciso que o trabalho seja colocado, inclusive materialmente,
no interior de uma lei diversa; e tão-somente se o trabalho é posto
também tecnicamente no interior de uma lei diversa é que começa a
se tornar possível esse aumento contínuo da quantidade de mais-valia,
que significa aumento contínuo da escala do processo de trabalho.
Então se rompe esse último obstáculo material que ainda subsistia para a
realização plena da produção capitalista. O que ocorre então? Ocorre a
transformação descrita sob o nome de subsunção real, que é apresentada
por Marx, em seus elementos essenciais, na página 55. Nela se diz:
“No capítulo III”
(Marx refere-se a O Capital, Livro 1, cap. 10),
“havíamos exposto detalhadamente como, com a produção da
mais-valia relativa”
(vamos por enquanto deixar de lado essa “mais-valia relativa”, que ainda
não sabemos bem o que quer dizer; depois o veremos),
“[ . . . ] modifica-se toda a figura real do modo de produção,
e surge (inclusive do ponto de vista tecnológico) um modo de
produção especificamente capitalista, sobre cuja base e com o
qual se desenvolvem ao mesmo tempo as relações de produção
— correspondentes ao processo de produção capitalista - entre
os diversos agentes da produção, e em particular entre os
capitalistas e os assalariados.”
“[Aumentam] as forças produtivas sociais do trabalho, ou
as forças produtivas do trabalho diretamente social, socializado
(coletivizado), por força da cooperação, [da] divisão do trabalho
na fábrica, [da] aplicação da maquinaria,”
realizando-se assim plenamente a subsunção real. Esse é um ponto sobre
o qual, nas próximas lições, deter-nos-emos com certa atenção, já que
74
um dos pontos mais interessantes de O Capital é precisamente a descrição
dos princípios sobre os quais se baseia a adequação da forma técnica a
forma econômica no âmbito do capital.

75
Lição 7
MAIS-VALIA ABSOLUTA
E MAIS-VALIA RELATIVA

Antes de retomarmos a leitura, talvez seja oportuno um esclare­


cimento sobre a questão do vínculo, por um lado, entre a subsunção
formal do trabalho ao capital e a formação de mais-valia absoluta, e,
por outro, entre a subsunção real do trabalho ao capital e a formação
de mais-valia relativa. Dado que os termos “mais-valia absoluta” e
“mais-valia relativa” não são explicados no Capítulo VI, mas sim em
O Capital, torna-se necessário — para torná-los compreensíveis — um
mínimo de explicação da minha parte. Vejamos então o que significam
mais-valia absoluta e mais-valia relativa, e em que sentido se vinculam
aos outros dois termos: subsunção formal e subsunção real. Devemos
retomar a argumentação a partir de algumas conclusões às quais chegamos
no final da primeira lição. Como vocês se recordam, de acordo com essa
teoria, o valor de uma mercadoria se divide em três partes componentes,
de cuja soma resulta o valor total. Essas partes componentes são o valor
do capital constante, o valor do capital variável e a mais-valia. Cada uma
dessas três partes tem por trás de si uma certa quantidade de trabalho:
a primeira parte, ou seja, o capital constante, tem por trás de si o trabalho
objetivado nos meios de produção; o valor do capital variável tem por
trás de si o trabalho objetivado nos meios de subsistência, que são pagos
ao trabalhador na forma do salário; e, finalmente, a mais-valia tem por
trás de si o mais-trabalho (ou trabalho excedente), ou seja, o trabalho
que o operário efetua além do que é necessário para reconstituir sua
própria subsistência. Desses três elementos componentes, Marx deduz
76
algumas relações significativas, uma das quais nos interessa agora em
particular: a relação entre a mais-valia e o capital variável, que coincide
— pelo que dissemos — com a relação entre trabalho excedente e trabalho
necessário, que Marx chama não só de taxa de mais-valia, mas também
de taxa de exploração. Ela representa, de fato, a intensidade com que
ocorre a exploração da força-de-trabalho pelo capitalista. A proposição
geral de onde devemos partir para esclarecer tanto o conceito de
mais-valia absoluta quanto o de mais-valia relativa é que, para o capi­
talista, a situação é evidentemente tanto mais favorável quanto maior
for a relação de exploração, a taxa de exploração: quanto maior for
a mais-valia com relação ao capital variável, tanto mais favorável será
a situação para o capitalista, já que tanto maior será - com relação
ao trabalho global — o trabalho não pago, o trabalho excedente, preci­
samente o que forma a mais-valia, da qual o capitalista se apropria. Ora,
segundo a terminologia de Marx, tal como é exposta no Livro 1 de O
Capital, tanto a formação da mais-valia absoluta quanto a formação da
mais-valia relativa são dois modos (não excludentes um do .outro, mas
de qualquer modo distinguíveis) para aumentar a taxa de mais-valia e,
por conseguinte, para tornar a situação o mais possível favorável ao
capitalista.
Comecemos examinando o primeiro modo: a formação da mais-valia
absoluta. A formação da mais-valia absoluta é um processo que parte do
pressuposto de que a formação da mais-valia ocorre no âmbito de uma
condição técnica dada para o conjunto do sistema econômico. O que
quer dizer condição técnica dada para o conjunto do sistema econômico?
Quer dizer que, dado que é preciso fornecer ao operário determinados
meios de subsistência, a quantidade de trabalho necessária para produzir
esses meios de subsistência resulta univocamente determinada por essa
situação tecnológica que se tomou como um dado. Se ao operário é
fornecida uma determinada cesta de meios de subsistência, a quantidade
de trabalho necessária para produzir esses meios é univocamente deter­
minada pela condição técnica que se supõe dada-para o inteiro sistema
econômico. É oportuno esclarecer melhor essa noção,- que só aparente­
mente é simples. Quando se diz que a quantidade de trabalho necessária
para produzir os meios de subsistência resulta univocamente determinada
pela condição técnica que se supõe dada, a primeira coisa que poderia
vir à mente é que, na realidade, a situação técnica — que importa para
o caso que examinamos — é a situação técnica das indústrias, das
atividades que produzem os meios de subsistência. Estamos falando da
quantidade de trabalho contida nos meios de subsistência; portanto,
poder-se-ia aparentemente dizer que a quantidade de trabalho contida
nos meios de subsistência é determinada pelas condições técnicas predo­
minantes nos setores que produzem tais meios de subsistência; ao mesmo
tempo, poder-se-ia aparentemente dizer que a condição técnica dos
77
demais setores, por mais importante que seja sob outros aspectos, não
o é em face dessa questão concreta. Na realidade, se pensarmos bem
sobre isso, veremos que as coisas não se apresentam absolutamente
assim; e, salvo casos excepcionais que podemos aqui deixar de lado,
ocorre na verdade que, a fim de determinar a quantidade de trabalho
necessária à produção dos meios de subsistência, é relevante a situação
técnica dominante não apenas nos setores que produzem meios de
subsistência, mas em todos os setores da economia. A razão não é
difícil de descobrir. O setores que produzem os meios de subsistência o
fazem mediante o emprego de um certo número de horas de trabalho.
Essas horas de trabalho têm uma dupla proveniência. Por um lado, são
horas de trabalho ativamente dispendidas nos setores que produzem
meios de subsistência, mas, por outro lado, são as horas de trabalho
contidas nos meios de produção que são empregados pelos setores que
produzem os meios de subsistência. Assim, por exemplo, se tomamos
o trigo como representativo dos meios de subsistência, poderemos dizer
que a quantidade de trabalho contida em um quintal de trigo não é
apenas o trabalho efetuado na produção de trigo, mas também o trabalho
contido na parte do arado que serve para produzir um quintal de trigo.
E o arado foi produzido por um setor que produz meios de produção,
não por um setor que produz meios de subsistência; de modo que,
se — num setor que produz meios de produção — a quantidade de
trabalho se alterasse em conseqüência de uma mudança tecnológica, isso
teria influência também sobre a quantidade de trabalho contida no trigo,
ou seja, nos meios de subsistência. Por isso, para voltar à nossa questão:
se afirmamos supor como dada a quantidade de trabalho contida nos
meios de subsistência, com isso supomos implicitamente como dada a
situação tecnológica do sistema econômico em seu conjunto. Esclarecido
esse ponto, portanto, admitamos o seguinte pressuposto: a condição
tecnológica do sistema econômico em seu conjunto é dada, e, por isso, é
dada a quantidade de trabalho que constitui o valor do capital variável
investido no conjunto do sistema econômico.
Nessa situação, se o capital variável tem um valor dado em conse­
qüência daquele pressuposto, que meio existe para aumentar a taxa de
mais-valia? Já que a taxa de mais-valia é a relação entre a mais-valia e o
capital variável, e já que admitimos o pressuposto de que o capital
variável é dado, não resta outro caminho além do aumento da mais-valia,
do aumento absoluto do numerador dessa fração. Ora, como se faz para
aumentar a mais-valia em sua grandeza absoluta? Evidentemente, alon­
gando a jornada de trabalho, ou seja, extraindo do operário o máximo
de trabalho possível durante uma jornada laborativa. Ou seja: se, em
conseqüência de todas as hipóteses estabelecidas, são necessárias, por
exemplo, seis horas para reconstituir o valor dos meios de subsistência, e
esse é um dado que não pode ser modificado, já que a técnica é pressuposta
78
para o conjunto do sistema econômico, então se se quer aumentar a
taxa de mais-valia não resta outra via que a de aumentar o trabalho, o
trabalho excedente, que vai além dessas seis horas; portanto, por exemplo,
prolongar a jornada de trabalho de dez para doze horas; nesse caso, a
taxa de mais-valia passaria da relação 4:6 à relação 6:6 e, por conseguinte,
aumentaria. Ora, esse processo de aumentar a taxa de mais-valia mediante
o prolongamento da jornada de trabalho, numa situação tecnologicamente
dada para o conjunto do sistema econômico, é o processo que Marx chama
de processo de formação da mais-valia absoluta.
Vejamos, em troca, em que consiste o processo de formação da
mais-valia relativa. Pode-se facilmente deduzi-lo do que dissemos até aqui,
através da simples modificação das hipóteses. Basta supor que a situação
tecnológica do sistema econômico, em vez de ser um dado, seja uma
circunstância suscetível de modificação, no sentido naturalmente normal,
ou seja, do “progresso” , de um progresso que se expressa, de um ou de
outro modo, numa diminuição da quantidade de trabalho contida nas
mercadorias; e, nesse sentido, resolve-se portanto numa diminuição do
valor das mercadorias. Por isso, se ocorre esse progresso, pelo qual a
quantidade de trabalho contida nas mercadorias diminui, então - para
uma mesma quantidade de valores-de-uso fornecidos ao trabalhador sob a
forma de salário, ou seja, para uma igual quantidade de mercadorias
dadas ao trabalhador sob a forma de salário — o valor do capital variável
diminui, porque naquela quantidade de mercadorias está objetivada uma
quantidade de trabalho menor do que antes. Em conseqüência do que
dissemos antes, não é preciso que a diminuição da quantidade de trabalho,
isto é, o progresso técnico, tenha lugar num setor que produz meios de
subsistência; pode muito bem ter lugar num setor que produz meios de
produção, já que —tendo em vista as razões que expusemos antes — esse
fato repercutirá também na quantidade de trabalho contida nos meios
de subsistência, e, por isso, dará igualmente lugar a uma diminuição do
valor do capital variável. Nesse caso, mesmo que a jornada de trabalho se
mantenha idêntica, teremos um aumento da taxa de mais-valia. Por
exemplo: se a jornada de trabalho permanece de 10 horas, mas não são
mais necessárias 6 horas e sim apenas 5 para reconstituir o valor do
capital variável, a taxa de mais-valia aumenta da relação 4:6 para a
relação 5:5. Então, dizemos: o processo que acabamos de descrever,
mediante o qual — através de uma modificação tecnológica —tem lugar
uma diminuição do valor do capital variável, e, por isso, por esse
caminho, um aumento da taxa de mais-valia, esse processo é chamado
por Marx de formação da mais-valia relativa.
Agora veremos em que sentido a formação da mais-valia absoluta
se liga ao que Marx chama de subsunção formal do trabalho ao capital
e em que sentido, ao contrário, a formação da mais-valia relativa se liga
ao que Marx chama de subsunção real do trabalho ao capital. Recordo que
79
a subsunção formal do trabalho ao capital, segundo a definição dada por
Marx, consiste no fato de que o capital subsume a si o trabalho,
deixando-o porém nas mesmas determinações técnicas que ele tinha
antes que o capital interviesse no sentido de dominar o processo produ­
tivo; por isso, ocorre certamente —já que é essa a lei geral do capital - a
subordinação do processo de trabalho ao processo de valorização, porque
se isso não ocorresse não estaríamos no âmbito da relação capitalista;
mas esse fato ainda não chegou a atingir, a modificar os modos técnicos
nos quais se processa o trabalho, os quais são ainda de tipo artesanal
(ou camponês, quando a coisa tem lugar na agricultura); de modo que a
atividade produtiva processa-se segundo formas que se realizaram histori­
camente não sob o domínio do capital, mas sob o domínio de outras
formações histórico-sociais. Ora, nesse caso, já que a tecnologia ainda
não foi atingida pelo capital e, por isso, é aquilo que é, e o capital não a
modifica, o capital não tem outro modo de extrair maior mais-valia do
trabalho operário além do modo que se dá através do prolongamento da
jornada de trabalho. Com efeito, a única modificáção que o processo de
trabalho sofre, quando ocorre a simples subsunção formal do trabalho
ao capital, está no fato de que ele — conservando-se qualitativamente
idêntico — torna-se porém mais longo, dura mais, e, por isso, gera
trabalho excedente (que, nesse caso, torna-se mais-valia) maior do que
ocorreria em outras circunstâncias. Portanto, submissão simplesmente
formal e formação da mais-valia absoluta são a mesma coisa.
Naturalmente, enquanto a subsunção formal do trabalho ao capital
implica um aumento da taxa de mais-valia apenas através da formação
da mais-valia absoluta, a recíproca' não é verdadeira: a formação da
mais-valia absoluta pode muito bem ocorrer numa situação capitalis-
ticamente desenvolvida, na qual já tenha ocorrido uma subsunção real
do trabalho ao capital (com a conseqüente influência do capital sobre a
tecnologia); pode muito bem ocorrer um aumento da jornada de trabalho,
e, por esse caminho, uma formação de mais-valia absoluta. Isso é evidente.
Todavia, deve-se observar — pelo menos é o que pensa Marx — que esse
caso, no fim das contas-, é excepcional, já que a história da jornada de
trabalho é uma história, em geral, irreversível; ou seja, a jornada de
trabalho tende a diminuir, na história do capitalismo, e só excepcio­
nalmente tende a aumentar novamente. Por essa razão, quando o capi­
talismo formou-se e difundiu-se de modo estável, e portanto influenciou
a tecnologia, o modo principal, fundamental de aumento da taxa de
mais-valia se dá através da formação de mais-valia relativa e não de
mais-valia absoluta, coisa que pode ocorrer agora precisamente porque
o capital subsumiu a si o processo de trabalho não apenas formalmente,
mas o subsumiu também materialmente, isto é, conseguiu modificar,
qualificar o próprio processo tecnológico no qual o processo de trabalho
tem lugar. Então, nesse caso, se verifica o processo do qual falamos,
80
ou seja, a tecnologia se altera, as quantidades de trabalho contidas nas
mercadorias diminuem, diminuem os valores das mercadorias, e isso
de algum modo, direta ou indiretamente, implica uma diminuição do
valor do capital variável, e por isso, através desse caminho, tem-se um
aumento da taxa de mais-valia. É por isso que a formação da mais-valia
relativa, liga-se à subsunção real do trabalho ao capital.
Nas páginas que lemos mais recentemente, vimos Marx desenvolver
a distinção entre subsunção formal e subsunção real. Isso, digamos, até
a página 56. No meio dessa página, Marx — que já havia terminado de
se ocupar da subsunção real — retoma o tema da subsunção formal, trata
dele durante algumas páginas, e em certo momento volta novamente
ao tema da subsunção real, no início da página 66, e leva adiante a
questão durante outras tantas páginas. Não gostaria de me deter nesse
novo parágrafo relativo à subsunção formal, não porque ele não seja
interessante (aliás, é bastante: pode-se mesmo dizer que se trata de uma
das partes mais interessantes, mais belas desse livrinho); porém não me
detenho, porque não me parece que existam nele questõe*s graves ou
de difícil interpretação, depois do que já dissemos. São notáveis essas
páginas, porque Marx dá uma série de exemplos históricos sobre a subsun­
ção formal do trabalho ao capital, alguns dos quais muito interessantes.
Há, por exemplo, uma parte notável na qual se estabelece a diferença
entre o artesão e o operário do sistema capitalista, por um lado, e a
diferença respectiva — que é a mesma coisa colocada em outro plano
entre o mestre da corporação artesã da cidade medieval e o capitalista,
por outro lado; e há também uma referência aos modos através dos quais
pode ocorrer a passagem, num certo plano, do artesão ao operário, e,
num outro plano, do mestre artesão ao capitalista. Essa é uma parte
bastante interessante. Como é também interessante, nessas mesmas
páginas, a descrição dos elementos diferenciais - bastante evidentes,
mas que em nenhuma outra parte Marx desenvolve como o faz aqui
que existem entre o escravo e operário assalariado. Também essas são
páginas interessantes. Mas são páginas que deixo para a leitura individual
de vocês.
Ao contrário, gostaria agora que víssemos conjuntamente o texto
que começa na página 66, onde se retoma o tema da subsunção real.
Comecemos lendo o início do parágrafo:
“A característica geral da subsunção formal”
— aqui, portanto, o termo subsunção formal é empregado no seu signi­
ficado genérico, sobre o qual já falamos —
“continua sendo a direta subordinação do processo de trabalho
— qualquer que seja, tecnologicamente falando, a forma em que
se efetue - ao capital".
81
Esse é um fato geral, porque se trata da definição do capital: a subor­
dinação do processo de trabalho ao processo de valorização; subordinação
que existe, quer se trate de subsunção formal ou de subsunção real.
“Nessa base, entretanto” ,
—e aqui vem a diferença específica -
“se ergue um modo de produção tecnologicamente específico1,
que metamorfoseia a natureza real do processo de trabalho
e suas condições reais: o modo capitalista de produção. Somente
quando este entra em cena, se dá a subsunção real do trabalho
ao capital ”
Portanto, essa subsunção real implica, como de resto já dissemos, que
o próprio processo de trabalho, em seus aspectos técnicos, tenha sido
modificado pelo capital. De que modo? Essa é a pergunta que surge
nesse ponto. O que significa exatamente fazer um processo de trabalho
tornar-se homogêneo ao capital também do ponto de vista técnico? Marx
diz, no quarto parágrafo da página 66.
“A subsunção real do trabalho ao capital se desenvolve em
todas as formas que produzem mais-valia relativa, diferentemente
da absoluta.”
Há pouco explicamos o sentido dessa expressão. Depois, Marx insiste:
“Com a subsunção real do trabalho ao capital, dá-se uma revo­
lução total (que prossegue e se repete continuamente) no próprio
modo de produção, na produtividade do trabalho e na relação
entre o capitalista e o operário”.
Portanto, um revolucionamento contínuo do modo de trabalho, do
próprio processo técnico, e, por isso - como é inevitável -- também
da relação existente entre capitalistas e operários. Em que consiste
exatamente esse revolucionamento, é algo que veremos mais detalha­
damente na próxima lição, lendo alguns trechos decisivos dos Linea­
mentos Fundamentais de Critica da Economia Política (ou Grundrisse).
Mas também aqui se dizem coisas importantes. Continuemos a ler na
página 66:
“Na subsunção real do trabalho ao capital, fazem sua aparição
no processo de trabalho todas as modificações (changes) que

1. Há aqui uma lacuna na edição brasileira; nois o que Marx diz, efetiva­
mente, é: “um modo de produção tecnologicamente (e não só tecnologicamente)
específico” , como se pode ver no original (Nota do Tradutor).

82
analisáramos anteriormente. Desenvolvem-se as forças produ­
tivas sociais do trabalho, e, por força do trabalho em grande
escala, chega-se à aplicação da ciência e da maquinaria à produção
imediata. Por um lado, o modo capitalista de produção, que
agora se estrutura como um modo de produção ‘sui generis’,
dá origem a uma figura modificada da produção material.”
(Dá origem a uma figura modificada não só no processo econômico,
mas também na produção material.)
“Por outro lado, essa modificação da figura material constitui
a base para o desenvolvimento da relação capitalista”
— a relação capitalista já se estabeleceu desde o tempo da subsunção
formal, mas seu desenvolvimento requer a subsunção real -
“cuja figura adequada corresponde, em conseqüência, a determi­
nado grau de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho.”
Ou seja: o processo de trabalho assume uma figura adequada à relação
econômica em que está inserido, à relação econômico-social em que
está inserido, ou seja, à relação capitalista. Na página 67, diz-se:
“Simultaneamente, a produção capitalista tende a conquistar
todos os ramos industriais dos que até então não se apoderara,
e nos quais ainda [se dá] apenas a subsunção formal. Tão logo
se apodera da agricultura, da indústria de mineração, da manu­
fatura das principais matérias têxteis, etc., invade os outros
setores onde unicamente [se encontram] artesões formalmente
independentes ou ainda independentes [de fato]. Na análise
da maquinaria, havíamos assinalado como a introdução desta
em um ramo provoca o mesmo fenômeno em outros ramos,
e ao mesmo tempo em outros setores do mesmo ramo.”
Aqui, a diferença entre setor e ramo é a seguinte: ramo quer dizer, por
exemplo, indústria têxtil; setor quer dizer lã, algodão, etc.; ramo quer
dizer metalurgia; um seu setor é a siderurgia. Portanto, ramo é mais amplo,
setor é mais restrito.
“[Por exemplo:] a fiação mecânica leva à mecanização da tece­
lagem; a fiação mecanizada na indústria algodoeira [leva] à fiação
mecanizada da lã, do linho, da seda, etc. O emprego intensivo
da maquinaria nas minas de carvão, nas manufaturas de algodão,
etc., tornou necessária a introdução do modo de produção
em grande escala na construção das próprias máquinas”.
Em outras palavras: o emprego da máquina é também a difusão da
máquina, já que o emprego da máquina num ponto permite, por um
83
lado, e consente, por outro, o emprego da máquina em outro ponto,
tendo em vista que entre os vários setores existem relações de comple-
mentariedade técnica, as quais não permitem que um certo setor se
desenvolva rapidissimamente, enquanto outros setores se mantêm atra­
sados, porque — caso contrário — essas relações de completariedade
técnica, que de resto se expressam em última análise numa troca de
produtos de setor a setor, não poderiam ocorrer. Haveria uma carência
contínua de produtos necessários a certos setores, carência que bloquearia
o desenvolvimento também nos setores nos quais a máquina já foi introdu­
zida; por isso, a máquina tem essa característica peculiar: a generalidade;
ou seja, é impossível que um setor seja mecanizado e um outro não: no
fim das contas, todos os serão. E isso explica a proposição, que lemos
na página anterior, na qual se diz que o desenvolvimento do modo de
produção capitalista é ligado à subsunção real do trabalho ao capital.
Não basta a subsunção formal. Esse é o ponto sobre o qual é sempre
preciso conservar a atenção. Vocês se recordam que um dos modos —
mas o principal — através do qual Marx estabelece a diferença entre a
produção capitalista e outros modos de produção é o seguinte: que,
enquanto outros modos de produção são essencialmente orientados
para o consumo de alguém, o modo de produção capitalista é produção
de riqueza abstrata, ou seja, de riqueza destinada essencialmente a
reconverter-se em riqueza adicional; com a conseqüência de que, enquanto
no primeiro caso o valor-do-uso tem uma relevância decisiva, — precisa­
mente porque o processo tem como meta o consumo — no segundo
caso, já que a produção é orientada para uma riqueza que se reconverte
em riqueza, o valor-de-uso se torna irrelevante, não no sentido de que
desapareça, pois isso naturalmente não é possível, mas no sentido de
que o valor-de-uso se torna - como já dissemos tantas vezes - um simples
suporte material para a riqueza enquanto tal. Riqueza enquanto tal,
cuja expressão formal é o valor, que tem no valor-de-troca sua represen­
tação ou expressão fenoménica necessária. É esse, portanto, como já
sabemos, o modo pelo qual Marx estabelece a diferença entre o capita­
lismo e os outros modos de produção. O que aqui se diz é que esse fato,
ou seja, a orientação da produção para a ampliação da produção, a orien­
tação da riqueza para a própria riqueza, - que é a essência do capital,
da produção capitalista, — esse fato ocorre de modo pleno precisamente
com a subsunção real e não com a subsunção formal. Por que isso? Porque,
se vocês pensarem bem, verão que a tecnologia é ligada aos valores-de-uso.
O fato de que exista esta técnica e não aquela implica a produção de
certos bens qualitativamente determinados e não de outros. Portanto,
enquanto a subsunção é formal, e por isso o capital não domina a tecno­
logia, é a tecnologia que domina o capital. E a tecnologia que obriga
o capital a produzir certas coisas e não outras, já que a tecnologia é a
tecnologia dada. Portanto, nesse caso, não pode ocorrer o fato — que
é característico do capital — de que se produzam precisamente as coisas
84
que permitem acelerar-se ao máximo o processo de formação do capital.
Em outras palavras, a plenitude da produção capitalista só tem lugar
quando o capital determina a tecnologia, ou seja, quando o capital
orienta a tecnologia para os valores-de-uso que, em cada oportunidade
concreta, fornecem o melhor suporte material para a expansão do
valor-dé-troca.

85
Lição 8
AS MÁQUINAS

Os trechos que vamos ler, extraídos dos Lineamentos Fundamentais


(iGrundrisse), vol. 2, — e deve-se ter presente que os Grundrisse são 8-9
anos anteriores ao Capitulo VI Inédito, — esses trechos são essencial­
mente dedicados por Marx à ilustração do modo pelo qual a introdução
das máquinas modifica o processo produtivo num sentido homogêneo
ao capital, ou seja, no sentido de que a máquina, também tecnicamente,
torna o processo produtivo submetido ao capital, a ponto de determinar
a passagem da simples subsunção formal à subsunção real. Na página 389
dos Grundrisse, podemos ler:
“Enquanto o meio de trabalho permanece, no sentido próprio
da palavra, meio de trabalho, tal como - histórica, imediata­
mente — foi englobado pelo capital em seu processo de valori­
zação, ele sofre apenas uma mudança formal pelo fato de que
agora não se apresenta mais pelo seu lado material como meio
de trabalho, mas, ao mesmo tempo, como um modo particular
de existência do capital, determinado pelo seu processo global,
como capital fixo".
Aqui se repete uma coisa que já vimos escrita no Capitulo VI mais de
uma vez, ou seja, que — imediatamente — o meio de trabalho é assu­
mido pelo capital tal como se encontra historicamente, e, portanto,
como momento de um processo técnico que o capital não determinou
86
por sua própria conta, mas que é resultado de um processo histórico
pré-capitalista. Depois, porém, se diz ainda:
“Mas, uma vez assumido no processo produtivo do capital,
o meio de trabalho percorre diversas metamorfoses, a última
das quais é a máquina, ou, melhor dizendo, um sistema auto­
mático de máquinas, movimentado por um autômato, força
motriz que move a si mesma; esse autômato é constituído de
numerosos órgãos mecânicos e intelectuais, de modo que os
próprios operários são determinados como órgãos conscientes
desse autômato” .
Comecemos por esta proposição: “os operários são determinados como
órgãos conscientes desse autômato”. Em outras palavras: o operário —
começa-se a dizer aqui — aparece não mais como quem utiliza deter­
minados meios de produção e os orienta para determinados fins, mas
o operário torna-se órgão de uma coisa que se move fora dele, de um
sistema automático, movido por um autômato, ou seja, por uma força
motriz que certamente não é, nem poderia ser, a força física do operário.
O meio de produção tornou-se um sistema de máquinas, movido por
uma força motriz, que não é a força motriz humana, e com relação à
qual os homens — os operários — são simples órgãos, certamente cons­
cientes (porque é isso que funda a diferença entre um órgão puramente
mecânico e o particularíssimo órgão que é o homem), mas nada mais
que órgãos. Essa é a primeira determinação, ainda aproximativa, feita
por Marx; veremos agora, à medida que avançarmos, como essa noção
será exposta em termos cada vez mais precisos.
“Na máquina, e ainda mais no maquinário como sistema auto­
mático, o meio de trabalho é transformado, do ponto de vista
de seu valor-de-uso, ou seja, de sua existência material, numa
existência adequada ao capital fixo e ao capital em geral; e
a forma na qual ele foi assumido como meio de trabalho imediato
no processo de produção do capital”
— portanto, a forma que ele tinha na tecnologia anterior ao advento
do capital —
“é superada numa forma posta pelo próprio capital e a ele corres­
pondente.”
Portanto, o capital não se contenta mais com a estrutura técnica que
encontra, mas a transforma em algo homogêneo a si. Em que consiste
exatamente essa homogeneização da forma técnica ao capital?
“A máquina não se apresenta, sob nenhum aspecto, como meio
de trabalho para o operário individual. Sua diferença especí­
87
fica não é absolutamente, como no meio de trabalho, a de media­
tizar a atividade do operário diante do objeto; mas, ao contrário,
essa atividade agora é posta de modo que ela mediatiza apenas
o trabalho da máquina, a ação da máquina sobre a matéria-
prima —que ela vigia essa ação e evita suas interrupções.”
Em certo sentido, esse é o trecho fundamental, o que orienta o restante;
portanto, vamos nos deter um momento para buscar compreender o
que significa. A questão colocada por Marx é a seguinte: em todas as
tecnologias que precederam o capitalismo, em todas as tecnologias nas
quais o capital ainda não interviera como elemento determinante, a relação
entre o trabalho e o instrumento de trabalho se apresentava da seguinte
forma: o instrumento de trabalho era o termo de mediação entre o traba­
lho e a natureza, ou seja, o trabalho agia sobre a natureza por meio do
instrumento de trabalho. Temos, portanto, um termo inicial ou ativo,
que é o trabalho; um termo final ou passivo, que é a natureza; e um
termo intermediário, que é precisamente o instrumento. Essa é a caracte­
rística generalísima de todo processo produtivo considerado pelo ângulo
do processo de trabalho.
Como as máquinas, essa relação se apresenta de certo modo inver­
tida, já que o instrumento não está mais em posição intermediária e,
portanto, não desempenha mais uma função de mediação. É precisamente
essa função de mediação que é despejada sobre o operário. Ou seja: a
máquina, ou um sistema automático de máquinas, é o ponto de partida,
o lado ativo do processo e da relação. Esse sistema de máquinas atua
sobre o objeto, isto é, sobre a natureza, e a relação das máquinas com
a natureza é mediatizada pelo operário. Desse modo, o operário — que
antes estava em posição inicial ou ativa - agora se encontra em posição
intermediária e, por isso, instrumental, a ponto de que a denominação
de instrumento de trabalho aplicada à máquina resulta evidentemente
imprópria, porque o que ocorre é o inverso: foi o trabalho do operário
que se transformou em instrumento desse “instrumento”. Em outras
palavras: a própria essência da tecnologia capitalista reside no fato de
que é invertida a relação entre o trabalho e o instrumento; enquanto,
inicialmente, o instrumento é precisamente instrumento em sentido
próprio, agora é exatamente o contrário; é o trabalho que se torna
instrumento e, portanto, o termo de mediação com o qual o sistema
das máquinas — que agora não está mais na posição de instrumento —
entra em contato com a coisa, com o objeto trabalhado, com o processo.
Nesse sentido, por conseguinte, o capital intervém para gerar uma
modificação. Então, poderíamos dizer o seguinte: que, assim como
formalmente o capital é um processo geral de reificação, no sentido
de que o processo produtivo, quando dominado pelo capital, é um
processo produtivo não mais vinculado ou tendo como meta a subjeti­
vidade do homem, ou seja, seus carecimentos, mas tendo o próprio fim
em si mesmo, razão por que o processo se esgota na coisa (que é precisa­
mente a valorização do valor já existente), assim também essa reificação,
que formalmente já está incluída no conceito e na realidade do capital,
torna-se efetiva e realizada na própria tecnologia produtiva, no sentido
de que, também essa tecnologia, perde-se o elemento de subjetividade,
a partir do momento em que o trabalho não é mais o elemento inicial
da relação técnica com a natureza para a ativação do processo produtivo,
mas é ele mesmo posto em posição instrumental e, desse modo, torna-se
uma coisa; torna-se uma coisa enquanto é subordinado a uma coisa,
ao sistema de máquinas, que se põe agora em situação inicial e não em
situação intermediária. Vejamos como esse fato, essa profunda transfor­
mação do processo produtivo, é ulteriormente ilustrado (sempre na
página 390):
“Desse modo, diferentemente do instrumento, que é animado
(como um órgão) pela própria habilidade e atividade do ope­
rário, e cuja manipulação depende por isso de sua virtuosidade”,
ou seja, a máquina age de modo diverso do instrumento que o operário
anima com sua própria habilidade e atividade, quase como se fosse um
órgão seu. O que é o instrumento na tecnologia pré-capitalista? É um
prolongamento dos órgãos que o operário já possui naturalmente em
seu próprio corpo. E desse modo, assim como o trabalhador anima os
próprios órgãos enquanto trabalha, também anima esse prolongamento
material dos próprios órgãos que é constituído pelos instrumentos produ­
tivos. Isso antes; agora, ao contrário,
“a máquina, que possui habilidade e força em lugar do operário,
é ela mesma o virtuose, que possui uma alma própria nas leis
mecânicas que operam nela; e, tal como o operário consome
meios alimentares, assim ela consome carvão, óleo, etc., para
manter-se continuamente em movimento. A atividade do ope­
rário, reduzida a uma simples abstração de atividade, é deter­
minada e regulada, em todas suas componentes, pelo movimento
da máquina, e não vice-versa.”
Aqui, vale a pena buscar entender plenamente, em todo seu alcance,
esse termo “abstração”, que novamente —como em tantos outros locais —
Marx utiliza nesse contexto. Na produção capitalista, o trabalho humano é
trabalho abstrato já na primeira fase, a da subsunção formal do trabalho
ao capital, porque — também naquele estágio - a abstração do trabalho
consiste nisto: que a separação do trabalhador das condições objetivas
da produção provoca a separação do trabalhador do próprio trabalho,
com a conseqüência de que o trabalho se destina essencialmente à produ­
ção de valor e não à produção de bens dotados de utilidade. Por conse­
guinte, inclusive apenas por causa disso, o trabalho é abstrato: tanto
é verdade que é produtor de riqueza abstrata. O trabalho conta como
dispêndio genérico da energia laborativa humana, não conta pelas quali­
dades que possui e que encontram expressão nos valores-de-uso dos
objetos, naqueles valores-de-uso que, precisamente, não têm mais impor­
tância. Porém, esse processo de abstração do trabalho, que certamente
faz parte das conotações essenciais do capital e, por isso, já está contido
na subsunção formal do trabalho ao capital, recebe aqui um ulterior
desenvolvimento, no sentido de que não se trata mais simplesmente
do fato de que o trabalho humano não conta pelas qualidades que o
tornam capaz de produzir valores-de-uso, mas se trata do fato de que
essas qualidades perderam-se inteiramente, inclusive do ponto de vista
material, precisamente porque o trabalho não é o ponto de início de
um processo técnico, mas é apenas inserido num lugar intermediário
desse processo, e recebe, por assim dizer, — no caso de ter qualificações
e especificidades, — recebe essas qualificações e essas especificidades
não de si mesmo, mas precisamente da máquina. Talvez se pudesse dar
desse processo que Marx descreve uma imagem, que como todas as
imagens deve ser acolhida como um mínimo de prudência, a fim de que
ela não seja superposta à representação exata e conceituai da coisa, mas
que pode ajudar; a imagem é a seguinte: quase parece que Marx pretenda
falar aqui de um duplo movimento de abstração, realizado pelo capital
em face do trabalho. Um primeiro processo de abstração, mediante o
qual o trabalho é destacado de toda sua naturalidade possível, e, nesse
sentido, é reduzido realmente a contar como mera explicitação de energia
laborativa humana genérica. E, uma vez que esse primeiro movimento
de abstração se realizou e, portanto, que o trabalho se destacou de sua
naturalidade possível, então —e precisamente por isso — pode-se exercer
sobre ele um segundo movimento de abstração, isto é, de separação,
de afastamento, da subjetividade, um movimento mediante o qual é uma
coisa exterior ao operário, a máquina, que imprime sobre o trabalho
do operário as qualificações que não são mais provenientes da subjeti­
vidade do operário e do trabalho, mas são provenientes das exigências,
da estrutura, da natureza dessa coisa que é a máquina, que se põe agora
no início do processo produtivo. Por conseguinte, estaríamos diante
de uma espécie de segunda fase de afastamento da naturalidade; não mais
simplesmente a genericidade do trabalho, mas a sua especificação readqui­
rida, porém de um modo absolutamente estranho a qualquer naturalidade
possível, já que é uma especificação feita inteiramente em função de
uma coisa, do instrumento, o qual, tendo-se elevado ao nível da má­
quina, está no início do processo técnico e não mais num seu ponto
intermediário.
Posteriormente, segue-se um ponto muito importante, no qual
se esclarece a questão fundamental da relação entre a ciência e o processo
produtivo, tal como essa ocorre na situação capitalista:

90
“A ciencia, que obriga os membros inanimados das máquinas —
graças à sua construção — a agirem conforme a sua finalidade,
como um autômato, não existe na consciência do operário,
mas atua, através da máquina, como um poder estranho sobre
ele, como poder da própria máquina. A apropriação do trabalho
vivo pelo trabalho objetivado, — da força ou atividade valori-
zadora pelo valor existente em si mesmo, — que está no próprio
conceito de capital, é posta, na produção baseada em máquinas,
como caráter do próprio processo de produção, inclusive do
ponto de vista dos seus elementos materiais e do seu movimento
material.”
Temos aqui duas coisas importantes: antes de mais nada, a questão
da ciência, que será retomada mais tarde. Ou seja: a máquina (ou, melhor
dizendo, o sistema das máquinas), que agora substituiu o trabalho no
início do processo produtivo inclusive sob o ângulo técnico, essa máquina,
precisamente, situa-se nessa posição não mais intermediária, porém
inicial, em conseqüência do fato de que é a expressão, a materialização,
a manifestação da ciência, ou seja, de um ato de conhecimento. Essa
ciência, porém, como diz Marx, não está “na consciência do operário” .
O que quer dizer isso? A coisa, ao que me parece, se torna clara se nova­
mente recorrermos à comparação com a situação pré-capitalista. Na
situação pré-capitalista, como de resto lemos há pouco, o trabalhador
utiliza o instrumento, utiliza-o como um próprio órgão e, por isso,
utiliza-o como sempre o homem utiliza as coisas, ou seja, de modo
racional, mediante o uso, de algum modo e em alguma medida, da própria
inteligência e, conseqüentemente, do próprio conhecimento; em particular,
do conhecimento da natureza desse instrumento, de suas possibilidades,
e do objeto sobre o qual tal instrumento é utilizado. Por isso, quando
o trabalhador se encontra em posição inicial e não em posição interme­
diária com relação ao processo tecnológico, a sua ação — a ação que o
leva a utilizar o instrumento enquanto instrumento - é uma ação que
parte de uma consciência, de uma ciência, que o sujeito possui acerca
do processo produtivo e de suas características. Aqui, o processo voltou
a se inverter. É claro que há um conhecimento das leis da natureza, o
qual governa o processo tecnológico, nem poderia ser de outro modo.
E essa ciência, que está sempre no início do processo técnico, continua
obviamente a situar-se no início também agora; mas, dado que dessa
feita o início não é o sujeito que produz, mas a máquina, essa ciência
é colocada na máquina e está assim fora da consciência do operário,
precisamente porque esse não está mais em posição inicial, mas em
posição intermediária.
Desse modo, a separação entre o operário e o instrumento, a inversão
da relação natural entre trabalhador e instrumento de trabalho, implica

91
também a separação entre trabalhador e conhecimento, entre trabalhador
e ciência. É esse, portanto, o primeiro ponto importante contido nesse
trecho. Num segundo ponto, repete-se uma coisa que agora já conhe­
cemos, porque a vimos expressa mais de uma vez durante a leitura do
Capitulo VI, ou seja: faz parte da essência do capital, ou, como se diz
aqui, está incluído no “próprio conceito de capital”, o fato de que agora
o processo de trabalho é instrumento do processo de valorização; ou seja,
a essência do processo reside no fato de que o trabalho objetivado, o
trabalho contido nos meios de produção, subordina a si o trabalho vivo,
já que o trabalho vivo não tem outro sentido além de ser fator de valori­
zação do trabalho objetivado. Isso, portanto, ocorre em geral; mas agora
as coisas não se dão mais simplesmente assim; agora aconteceu também
uma outra coisa. Agora essa subordinação não se dá apenas na forma;
não se trata mais simplesmente do fato de que um processo de trabalho
ainda dotado de características naturais foi posto a serviço de um processo
de valorização. Trata-se de outra coisa: trata-se do fato de que o próprio
processo de trabalho perdeu suas características naturais e adquiriu as
características técnicas em conseqüência das quais a subordinação do
processo de trabalho ao processo de valorização tornou-se subordinação
material do trabalho ao que é chamado de capital técnico, isto é, ao
instrumento de trabalho. Assim, também aqui temos um movimento
de agregação; enquanto antes se tratava simplesmente de orientar um
processo técnico, ainda natural, para as finalidades do capital, agora
há uma transformação do próprio processo técnico; tanto isso é verdade
que esse processo perdeu a sua naturalidade e o trabalho tornou-se,
também ele, um instrumento e não o ponto inicial do processo. Nesse
sentido, o capital assimilou toda a realidade econômica; o que ainda lhe
escapava na subsunção formal, ou seja, a relação natural trabalho-instru-
mento-natureza, até isso — mediante a inversão dos dois primeiros
termos — foi subordinado ao capital. Se vocês descerem algumas linhas,
poderão ler o seguinte:
“A transformação do processo de trabalho em simples momento
do processo de valorização do capital”
— o que faz parte do próprio conceito de capital e, portanto, acontece
sempre, ou seja, em todas as fases da vida histórica do capital —
“é colocada também pelo lado material, através da transfor­
mação do meio de trabalho em máquinas e do trabalho vivo
em simples acessório animado dessas máquinas, em instrumento
da ação delas.”
E esse ponto é esclarecido mais ainda nas duas páginas sucessivas:
Passemos agora ao segundo parágrafo da página 393, onde se diz:

92
“O pleno desenvolvimento do capital, portanto, tem lugar -
ou, em outras palavras, o capital chega a pôr a forma de pro­
dução que lhe é adequada — quando o meio de trabalho não só é
determinado formalmente como capital fixo, mas é suprimido
em sua forma imediata, e o capital fixo se apresenta diante do
trabalho, no interior do processo de produção, como máquina”
(“é suprimido em sua forma imediata” quer dizer: e' suprimido como
meio, é suprimido como instrumento);
“e o inteiro processo de produção não se apresenta como subsu­
mido à habilidade imediata do operário”
- atenção para esse ponto! —
“mas se apresenta como emprego tecnológico da ciência. Por­
tanto, dar à produção caráter científico é a tendência do capital;
e o trabalho imediato é reduzido a um simples momento desse
processo.”
Repete-se aqui uma coisa que já vimos; de qualquer modo, vamos nos
deter nela ainda por um momento, porque — se vocês pensarem bem -
verão que se expressa aqui toda a quase incrível gravidade do processo
produtivo dominado pelo capital. No fundo, o que Marx disse acima
é o seguinte: que, enquanto naturalmente o trabalho humano - precisa­
mente porque é trabalho do homem —é de imediato um trabalho racional,
isto é, um trabalho no qual se encontra expresso o conhecimento que
o homem tem do mundo e da possibilidade de uma ação sobre ele, o
processo tornou-se aqui, ao contrário, de tal natureza que esses dois
momentos, o trabalho e o conhecimento, são separados, não estão mais
juntos; e, então, o trabalho se tornou uma mera ação mecânica e a ciência
se colocou fora da subjetividade de quem trabalha; foi pensada em outro
local e, no processo de trabalho, encontra-se presente não em quem
trabalha, mas dentro de uma coisa, pois é isso que é a máquina; essa
será a característica central do processo de produção enquanto ele for
determinado pelo capital. Vêm aqui à mente muitas e muitas coisas,
mesmo se restarmos no âmbito dos escritos de Marx; e a primeira coisa
que vem à mente é a extraordinária intuição da natureza desse processo,
que Marx teve ainda jovem, em 1844, nos Manuscritos, quando, intuindo
a natureza do processo capitalista, falava da condição operária como de
uma condição de separação entre essência e existência; poder-se-ia dizer
que temos aqui o desenvolvimento, a confirmação, a concretização, a
exposição detalhada desse fato; aqui, a existência —e, para Marx, a exis­
tência não pode estar presente a não ser como trabalho, como atividade —
está verdadeiramente separada da essência. Ou seja, de quê? Da raciona­
lidade, do conhecimento, da consciência, poderíamos dizer; mais precisa-

93
mente, do conhecimento do mundo dentro do qual se trabalha, já que
esse conhecimento — repito — não está mais em quem trabalha, mas
fora dele; e, em face de quem trabalha, encontra-se incorporado numa
coisa, na máquina, a qual —justamente porque tem em si, incorporada
a ela, a ciência —pode dominar o operário.
Temos assim, novamente, uma relação invertida: enquanto, natural­
mente, o conhecimento e a atividade consciente estão no sujeito traba­
lhador e a atividade mecânica no instrumento utilizado, aqui ocorre
o contrário: o conhecimento — e, portanto, utilizando uma linguagem
um pouco metafórica, mas não inteiramente, a atividade consciente —
está na máquina, quando menos porque ela é a representação de um
momento de consciência que se verificou quando foi pensada a ciência
que se encontra incorporada na máquina; e, ao contrário, a atividade
mecânica está em quem trabalha, que é reduzido a isso. Em sentido
próprio, estrito, específico, nada genérico ou alusivo, é isso que pode
ser chamado de alienação operária. Depois, Marx prossegue:
“Dar à produção caráter científico é a tendência do capital.”
Vemos assim algo bastante celebrado em todas as formulações apologé­
ticas. O que fez o capitalismo? Ora, precisamente isto: desenvolveu a
ciência. Não só a ciência como conhecimento abstrato da natureza, mas
a ciência em seu prolongamento, a tecnologia, que nos permitiu conquistar
o mundo. O que é verdade, em certo sentido; mas trata-se justamente
de uma ciência que agora nada mais tem a ver com o trabalho, que está
separado dele, uma ciência que torna a generalidade dos homens privados
de ciência, subordinando-os à coisa na qual a própria ciência se acha
incorporada.
Nesse ponto, intervém certamente um problema de enorme rele­
vância prática e teórica. Se a máquina é o que vimos, isso quer dizer
que a máquina, enquanto tal, é ligada à alienação do trabalho, e que
um processo de trabalho que tenha lugar fora de alienação tem de se
verificar sem máquinas? Penso que todos sabem que a resposta de Marx
a essa pergunta é muito clara: uma coisa é a máquina, outra é o uso capi­
talista da máquina; a máquina que se contrapõe ao operário e submete-o
a si não é, para Marx, a máquina em geral, mas sim a máquina que é
colocada no interior do processo de produção capitalista. Essa questão
é tratada amplamente no capítulo 13 do Livro 1 de O Capital (vocês
podem ver, em particular, o Livro 1, pp. 423 e ss.). Aqui me limitarei
a ler um trecho da página 394 do texto de que estamos nos ocupando
(os Grundrisse):
“Mas, se o capital só chega a receber sua figura adequada como
valor-de-uso, no interior do processo de produção, nas máquinas
e em outras formas de existência material do capital fixo, como
94
as ferrovias (sobre as quais voltaremos em seguida), isso não
significa absolutamente que esse valor-de-uso — as máquinas
em si mesmas — seja capital, ou que a sua existência como má­
quina se identifique com a sua existência como capital; assim
como o ouro não deixaria de ter o seu valor-de-uso quando
deixasse de ser dinheiro, também as máquinas não perderiam
o seu valor-de-uso quando cessassem de ser capital. O fato de
que as máquinas sejam a forma mais adequada do valor-de-uso
do capittal fixo não implica, de modo algum, que a subsunção
à relação social do capital seja a relação de produção última
e mais adequada ao emprego das máquinas.”
Assim, a tese geral que freqüentemente vimos reaparecer em Marx, de
queo fato de o capital ter por base material o meio de produção não
implica que o meio de produção seja sempre e em geral capital, essa
tese geral, portanto, é aplicada em particular ao específico meio de
produção que é a máquina. Todavia, deve-se admitir que aqui surge um
problema adicional: se, com a máquina, realiza-se até o fim o processo
da subsunção real do trabalho ao capital, precisamente no sentido (como
vimos) de que tal subsunção se manifesta no terreno material do processo
de trabalho, então é claro que o próprio corpo do instrumento, sua própria
estrutura material, tem a marca dessa subordinação do trabalho; portanto,
uma máquina não utilizada de modo capitalista deveria ser uma máquina
diversa da que é utilizada de modo capitalista. Em outras palavras: as
máquinas, tais como as conhecemos, são o fruto de uma tecnologia (e
talvez também de uma ciência) que foi toda pensada sobre a base do
pressuposto do trabalho alienado. Numa situação diversa, a mudança
deveria envolver o próprio processo de conhecimento e de realização
tecnológica, do qual a máquina é o resultado.

95
Lição 9
TRABALHO PRODUTIVO
E TRABALHO IMPRODUTIVO

Retomemos a leitura do Capitulo VI, na página 70, onde encon­


tramos o título “Trabalho Produtivo e Trabalho Improdutivo”. Como
veremos, esse assunto não introduz substancialmente nenhum conceito
novo com relação aos que examinamos até aqui; mas é muito útil para
esclarecer uma série de questões relativas à teoria do capital, que de
outro modo poderiam não ficar inteiramente claras. Antes de mais
nada, é necessária uma brevíssima premissa: esses dois termos, “trabalho
produtivo” e “trabalho improdutivo” , não são originários de Marx; ele
os toma da economia política clássica, a qual, por sua vez, os havia tomado
da fisiocracia. Portanto, esses dois conceitos têm uma história já bastante
longa quando Marx escreve. Muito esquematicamente, a questão é a
seguinte: Adam Smith define o trabalho produtivo como sendo o trabalho
que, ao produzir, além de reconstituir sua própria subsistência, produz
também algo mais, que é apropriado — na situação dada, na situação
capitalista que, aliás, constitui para A. Smith uma situação natural —
por outra classe. Esse conceito se reencontra na definição bastante
explícita de Malthus, que chama de trabalho produtivo o trabalho que,
além de produzir o próprio salário, produz também um lucro para o
patrão. Malthus foi muito claro na definição de trabalho produtivo.
Toda a economia política clássica estava substancialmente de acordo
com tal definição; portanto, a definição se acha nos mesmos termos
tanto em Adam Smith quanto em Ricardo, para não falar em Malthus,
de modo que não houve controvérsias entre eles no que se refere a esse
96
conceito. Todavia, já então essa definição de trabalho produtivo tinha
um certo sabor polemico em face de outras posições, minoritárias na
época, que tinham sido formuladas mais na França que na Inglaterra,
posições que contrapunham a esse conceito clássico de trabalho produtivo
um outro conceito, o qual, do ponto de vista do bom senso, parece ter
decisivas razões de superioridade com relação à definição usada pela
economia política inglesa.
Segundo essa outra definição (que, insisto, era minoritária na época),
trabalho produtivo é o trabalho que, ao produzir, gera algo útil, produz
um valor-de-uso; seria improdutivo, ao contrário, o trabalho que produz
coisas inúteis. Naturalmente, deve-se notar que também a -economia
política clássica, como é óbvio, supõe a existência de um trabalho impro­
dutivo. O que é trabalho improdutivo para a economia clássica? Trabalho
improdutivo é o trabalho que não produz um lucro. Por exemplo: o
trabalho de um servidor; o trabalho de um servidor não produz lucro,
já que produz um serviço que é imediatamente consumido por quem
pagou esse trabalho. Se se quiser, a questão pode ser expressa nos seguintes
termos, aliás freqüentemente usados naquela época: trabalho produtivo
é o trabalho pago pelo capital; trabalho improdutivo é o trabalho pago
com o gasto da renda. Smith empregou, a esse respeito, uma imagem
extremamente eficiente quando disse: um homem rico fica ainda mais
rico se compra trabalho produtivo, mas se empobrece se compra trabalho
improdutivo; com efeito, um homem rico — segundo a terminologia
de Smith, — se comprar trabalho produtivo, compra trabalho de quem
lhe dará um lucro e, portanto, lhe enriquecerá; ao contrário, se comprar
trabalho improdutivo, dissipará os próprios recursos; irá se cercar —
para usar sempre a imagem de Smith — de servidores e puxa-sacos, irá
se cercar de parasitas; esse é o trabalho improdutivo, que ele pode
comprar; portanto, por este caminho, como é claro, irá empobrecer.
Segundo a outra colocação, ao contrário, a diferença entre trabalho
produtivo e trabalho improdutivo não é essa; é, pelo menos aparente­
mente, muito mais simples, muito mais elementar: ou seja, é produtivo
o trabalho que produz coisas úteis, improdutivo o que produz coisas
inúteis. Por outro lado, pode-se observar que, sendo o trabalho que produz
coisas inúteis obviamente uma exceção, já que normalmente —se produz —
produz algo útil, essa definição termina por considerar todo trabalho
como trabalho produtivo; e, no interior do trabalho que efetivamente
produz, não tem lugar a distinção entre produtivo e improdutivo. Segundo
essa acepção, não importa que o trabalho seja executado por um operário
ou por um servidor, já que ambos produzem, de algum modo, coisas
úteis. Essa era mais ou menos a situação. Repito, para que se tenha bem
presente o quadro de então: a posição dos economistas clássicos ingleses
era uma posição majoritária, enquanto a outra era uma posição minori­
tária. Hoje, porém, as posições se inverteram, pois se tornou majoritária
97
a posição que afirma que trabalho produtivo é trabalho que produz coisas
úteis, enquanto — pelo menos nas universidades — tornou-se minoritária
a outra posição, de derivação clássica, e sobretudo marxista, que afirma
ser trabalho produtivo o trabalho que produz um lucro.
Vejamos agora como Marx enfrenta essa questão. Qual é o principio
sobre o qual Marx baseia sua retomada da posição smithiana e ricardiana
e — é preciso dizer neste caso — também malthusiana? O argumento
de Marx é um argumento de certo modo definitivo. Ou seja: de que esta­
mos discutindo? Não estamos discutindo sobre o trabalho em geral;
estamos discutindo sobre o trabalho que se dá no interior de uma forma­
ção histórico-social determinada. Estamos discutindo sobre o trabalho
que se acha numa situação capitalista, não do trabalho humano em geral;
e, por isso, quando definimos esse trabalho como produtivo, devemos
defini-lo em função do âmbito no qual esse trabalho se encontra inserido
na realidade; esse trabalho é subordinado ao capital —aqui não importa
se através da subsunção formal ou real — e, portanto, conta somente
enquanto opera em função do capital. Mas, em função do capital, qual
é o trabalho produtivo? Evidentemente, o que produz capital. E que
significa produzir capital? Produzir capital significa: valorizar valores
existentes. Mas valorizar valores existentes significa, precisamente, produ­
zir uma mais-valia, ou, se se quer, — fazendo referência à apropriação
dessa mais-valia, — trata-se de um trabalho que produz lucro. Desse modo,
a definição clássica tem essa verdade: tem toda a verdade, que lhe vem
de conceber o trabalho produtivo como o trabalho que desempenha,
exata e rigorosamente, a função que é chamado a desempenhar quando
se encontra numa situação histórica determinada, tal como a capitalista.
Por isso, têm razão os clássicos contra os outros. Vejamos como Marx
se expressa no Capítulo VI, página 70, terceiro parágrafo:
“Como o fim imediato e [o] produto por excelência da produção
capitalista é a mais-valia, temos que só é produtivo aquele tra­
balho — e só é trabalhador produtivo aquele que emprega a
força-de-trabalho” —
ou seja, o operário
“que diretamente produza mais-valia-, portanto, só o trabalho
que seja consumido diretamente no processo de produção com
vistas à valorização do capital” .
Ou seja, em outras palavras: o trabalho produtivo é, evidentemente,
o trabalho que produz. Mas o que é que o trabalho produz quando
se encontra em situação capitalista? Produz o produto específico dessa
situação. Qual é esse produto específico? É a mais-valia. Portanto, trabalho
que não produz mais-valia é trabalho não produtivo, no sentido de que
não produz, ou seja, não produz nada que seja relevante na situação
98
historicamente dada. Qual é o único produto relevante nessa situação
histórica dada? Não certamente as coisas úteis enquanto úteis. A única
coisa relevante na situação dada é a mais-valia. Pode-se assim argumentar,
quase na linha do bom senso: O que é o trabalho produtivo? É o trabalho
que produz. O que quer dizer trabalho que produz? Trabalho que gera
um produto. Mas o que é o produto, na situação histórica dada? É a
mais-valia. Nada mais. Portanto, trabalho produtivo é trabalho que produz
mais-valia. Há um trabalho que produz coisas úteis? Certamente; mas
as coisas úteis não contam enquanto tais nessa situação, pois a situação
capitalista é precisamente a situação na qual o valor-de-uso é um simples
suporte material do valor-de-troca, e não tem sentido em si mesmo, só
tem sentido mediatamente. Portanto, dizer que é produtivo um trabalho
que produz coisas úteis é tão absurdo quanto dizer que é produtivo um
trabalho que não produz nada, já que o valor-de-uso, considerado em
si, não é nada na situação capitalista. Se, em troca, o valor-de-uso é suporte
real de uma mais-valia, então efetivamente o trabalho produz. Mas, nesse
caso, o critério da produtividade não é o valor-de-uso, é a mais-valia.
É por isso que a definição clássica é a certa, enquanto a outra é um
flatus voeis. Prestem atenção ao modo como a questão é reafirmada
na proposição que vem em seguida, e reafirmada por contraposição:
“Do simples ponto de vista do processo de trabalho em geral”
(ou seja, não ainda do processo de trabalho considerado como meio para
o processo de valorização, mas do ponto de vista do processo de trabalho
como tal),
“apresentava-se-nos como produtivo o trabalho que se realiza
em um produto”
(o que aqui quer dizer: num valor-de-uso);
“mais concretamente, em mercadoria. Do ponto de vista do
processo capitalista de produção, acrescenta-se a determinação
mais precisa: de que é produtivo o trabalho que valoriza direta­
mente o capital, o que produz mais-valia, ou seja, que se realiza —
sem equivalente para o operário, para seu executante — em
mais-valia (surplusvalue), representada por um produto exce­
dente (surplusproduce)*, ou seja, um incremento excedente
de mercadorias para o monopolizador dos meios de trabalho
(monoppliser dos means o f labour), para o capitalista.”
1. Na edição brasileira, está “sobreproduto” . Prefixo “produto excedente” , -
a tradução literal seria “mais-produto” (M ehrprodukt), correspondente a “mais-valia”
(Mehrwert) e “mais-trabalho” (Mehrarbeit), — porque é a tradução já consagrada
entre nós; cf., por exemplo, a edição brasileira de O Capital, citada (Nota do
Tradutor).
99
Ou seja. é como se Marx dissesse: certo, do ponto de vista do processo
de trabalho considerado em si, é produtivo o trabalho que gera umvalor-
de-uso; mas aqui não se trata do processo do trabalho em geral: trata-se
do processo de trabalho que se desenvolve em função do processo de
valorização; e é quando o processo de valorização teve lugar que podemos
decidir se o trabalho produziu efetivamente ou não. Se há mais-valia,
diremos que há produto;se não há mais-valia, diremos que não há produto,
ou seja, que o trabalho não foi produtivo. Vamos voltar a ler o trecho
em questão (na passagem da página 70 para a 71):
“O processo de trabalho capitalista não anula as determinações
gerais do processo de trabalho. Produz produtos e mercadorias.
O trabalho continua sendo produtivo na medida em que se
objetiva em mercadorias como unidade de valor-de-uso e de
valor-de-troca. Mas, o processo de trabalho é apenas um meio
para o processo de valorização do capital. É produtivo, pois,
o trabalho que se representa em mercadorias; mas, se conside­
rarmos a mercadoria individual, o é aquele que, em uma parte
alíquota dessa, representa trabalho não pago, ou, se levarmos
em conta o produto total, é produtivo o trabalho que, em uma
parte alíquota do volume total de mercadorias, representa sim­
plesmente trabalho não pago”
(isto é, precisamente um trabalho excedente, portanto uma mais-valia
ou valor excedente),
“ou seja,produto que nada custa ao capitalista.”
Podemos ver: o trabalho produtivo é produtivo quando, em relação à
própria quantidade, há uma parte dessa quantidade que é trabalho não
pago, ou seja, trabalho que não custa nada. Somente então é que o traba­
lho verdadeiramente produziu. Depois, na página 71, valendo-se de uma
proposição que se pode aplicar muito bem também à situação teórica
atual, Marx diz:
“Somente a estreiteza mental burguesa, que toma a forma capita­
lista de produção pela forma absoluta, e, em conseqüência,
pela única forma natural de produção, pode confundir a questão
do que seja trabalho produtivo e trabalhador produtivo do
ponto de vista do capital com a questão do que seja trabalho
produtivo em geral, contentando-se assim com a resposta tauto­
lógica de que é produtivo todo trabalho que produz, todo o
que redunda em um produto ou em um valor-de-uso qualquer;
resumindo: em um resultado.”
É essa precisamente a noção de produtividade que habitualmente é apre­
sentada pela economia burguesa, ou seja, por aquela economia para a
100
qual - não existindo uma especificidade da produção capitalista, já que
essa produção é a produção em geral - não existe tampouco a possibili­
dade de captar a especificidade da produtividade do trabalho nessa
situação. Assim como o produto específico da situação capitalista é
a mais-valia, do mesmo modo a produtividade em sentido capitalista
específico é produção de mais-valia.
Há uma série de conseqüências que pode ser extraída dessa concre­
tização do conceito de produtividade. A primeira delas, extraída por
Marx, tem uma certa relevância. Aqui, nas páginas 71-72, retira-se essa
primeira conclusão:
“Primeiro: como, com o desenvolvimento da subsunção real
do trabalho ao capital ou do modo de produção especificamente
capitalista, não é o operário individual, mas uma crescente capa­
cidade de trabalho socialmente combinada que se converte no
agente (.Funktionär) real do processo de trabalho total, e como
as diversas capacidades de trabalho que cooperam e formam
a máquina produtiva total participam de maneira muito dife­
rente no processo imediato de formação de mercadorias, ou
melhor, de produtos — este trabalha mais com as mãos, aquele
trabalha mais com a cabeça, um como diretor (manager), enge­
nheiro (engineer), técnico, etc., outro como capataz (overloo-
cfcer), um outro como operário manual direto, ou inclusive
como simples ajudante —, temos que mais e mais funções da
capacidade de trabalho se incluem no conceito imediato de
trabalhadores produtivos, diretamente explorados pelo capital
e subordinados em geral a seu processo de valorização e produção.
Se se considera o trabalhador coletivo, de que a oficina consiste,
sua atividade combinada se realiza materialmente (materialiter)
e de maneira direta num produto total que, ao mesmo tempo,
é um volume total de mercadorias', absolutamente indiferente
que a função de tal ou qual trabalhador - simples elo desse
trabalhador coletivo — esteja mais próxima ou mais distante
do trabalho manual direto”.
Para compreender esse trecho, comecemos pela seguinte reflexão:
a definição de trabalho produtivo como o trabalho que produz mais-valia
é uma definição ela mesma geral em relação ao capital, ou seja, põe em
evidência uma conotação própria do trabalho em situação capitalista,
independentemente do fato de que a relação entre trabalho e capital
seja ainda uma relação de subsunção formal ou já uma relação de subsun­
ção real. Em outras palavras: assim como a subsunção do processo de
trabalho ao processo de valorização é uma característica geral do capital,
tanto na época da subsunção formal quanto na da subsunção real, do
mesmo modo o conceito de produtividade — que depende da subsunção
101
do processo de trabalho ao processo de valorização — é uma conotação
geral do trabalho em situação capitalista, independentemente do fato
de que se esteja em situação simplesmente de subsunção formal ou de
subsunção real. Tanto em um caso como no outro, trabalho produtivo
é trabalho que produz mais-valia.
Isso posto, vejamos o que é dito no trecho que acabamos de ler:
quando se chega à subsunção real, isto é, quando o capital subsumiu
a si a tecnologia, e, por isso, opera fora de qualquer vínculo externo
e tem agora apenas um número maior de vínculos internos, então o
próprio processo de produtividade do trabalho, de produtividade capita­
lista do trabalho, resulta influenciado por esse fato. De que modo, exata­
mente, se dá essa influência? Enquanto o trabalho é apenas formalmente
subsumido ao capital, podemos falar já de sua produtividade em sentido
capitalista, como trabalho produtivo de mais-valia; todavia, é sempre
possível uma confusão a esse respeito, já que o trabalhador singular, na
situação suposta, produz algo útil, tal como fazia antes de ter o capital
se assenhoreado do processo de trabalho, e, portanto, pode sempre surgir
a impressão de que sua produtividade consista nessa produção de coisas
úteis. Quando chegamos à subsunção real, também a base real dessa
ilusão se desfaz, já que com a subsunção real do trabalho ao capital —
os trabalhadores singulares já não produzem mais nada útil, pois sua
própria produtividade material, ou seja, a possibilidade para eles de
confeccionarem um produto, depende do fato de estarem inseridos numa
espécie de trabalhador coletivo, constituído precisamente pela fábrica.
Em outras palavras: é verdade que se continua a chegar a algo útil; mas
essa coisa útil é o efeito de um conjunto de trabalhos combinados, cada
um dos quais, fora dessa combinação, é incapaz de produzir também
coisas úteis. E dado que, por outro lado, aquela combinação não se deve
ao trabalho enquanto tal, mas sim ao capital, já que é o capital que
combina os trabalhadores, então a própria produtividade do trabalho
resulta também materialmente subordinada ao capital; em suma, dado
que a própria possibilidade de chegar a coisas úteis depende dessa feita
do capital e não mais do trabalho, disso decorre que, com a subsunção
real do trabalho ao capital, a tese segundo a qual a produtividade do
trabalho consiste em produzir coisas úteis toma-se imediatamente
impossível, já que a própria possibilidade de chegar a coisas úteis
depende não mais diretamente do trabalho, mas de uma situação tecno­
lógica — a combinação de vários trabalhos — que é o efeito específico
do capital.
A tese em questão é sempre errada, já que o processo de trabalho
subordina-se ao processo de valorização e, portanto, o que realmente
se produz é sempre a mais-valia; mas, quando se chega à subsunção real,
então a própria produção de coisas úteis depende de uma técnica que
é inconcebível fora da relação capitalista, e, por conseguinte, a própria
102
base da ilusão de que a produtividade esteja ligada à utilidade desaparece;
e tão-somente se se fecha os olhos diante dessa realidade é que se pode
continuar a afirmar que é produtivo o trabalho que produz coisas úteis.

103
Lição 10
AINDA SOBRE
TRABALHO PRODUTIVO E IMPRODUTIVO

No que se refere à definição da diferença entre trabalho produtivo


e improdutivo, vou ler agora algumas passagens de um outro texto de
Marx, onde esse assunto é tratado longamente e de modo mais detalhado
que no Capitulo VI; refiro-me às Teorias sobre a Mais-Valia. Portanto,
nessa obra, — que, como imagino, vocês sabem ser formada pela parte
de O Capital onde está coletada uma espécie de história do pensamento
econômico, — Marx, falando de Adam Smith, faz uma longa e detalhada
exposição dessa questão. Comecemos com a definição que se encontra
na página 269:
“Trabalho produtivo, no sentido da produção capitalista”,
— temos aqui uma concretização importante, precisamente porque, como
vocês estão lembrados, se está falando não da produtividade em geral,
mas da produtividade do ponto de vista capitalista, —
“é o trabalho assalariado que, no intercâmbio com a parte variável
do capital, não só reproduz essa parte do capital (ou seja, o
valor da própria capacidade de trabalho), mas - além disso —
produz mais-valia para o capitalista” .
Reencontramos a definição já nossa conhecida; produtividade é
entendida aqui no sentido da produção de mais-valia. Ora, para se conservar
104
coerente com essa definição, como Marx o faz, é preciso substancialmente
duas coisas: antes de mais nada, não excluir do âmbito do trabalho
produtivo nenhuma atividade, contanto que dela se possa dizer que,
direta ou indiretamente, produz uma mais-valia; ou seja, não excluir
do âmbito do trabalho produtivo nenhuma categoria que de algum modo
seja essencial ao processo que leva à produção de mais-valia; por outro
lado, ao contrário, significa excluir rigorosamente do âmbito do trabalho
produtivo todo tipo de atividade que não se relacione com processos
produtivos voltados para a produção de mais-valia. Veremos como Marx
aplica com rigor esse critério, praticando precisamente aquela inclusão
e essa exclusão. Comecemos pela inclusão, lendo na metade da página 275:
“Pertencem naturalmente à categoria de trabalhadores produtivos
todos os que colaboram, de um modo ou de outro, para a produ­
ção da mercadoria, desde o trabalhador manual propriamente
dito até o diretor, o engenheiro (enquanto forem distintos do
capitalista). E, desse modo,”
—diz Marx aprobativamente, -
“inclusive o último relatório oficial inglês sobre as fábricas
calcula ‘expressamente’ na categoria dos assalariados ocupados
todas as pessoas empregadas na fábrica e nos escritórios anexos”.
Portanto, pode-se ver que todos os que, a qualquer título, intervêm
num processo produtivo que tenha como meta a criação de mais-valia,
todos eles —independentemente do fato de se tratar de um simples ope­
rário manual ou de um diretor — são considerados por Marx como
trabalhadores produtivos; e Marx aprova o procedimento de um relatório
oficial do governo inglês, que inclui na categoria dos assalariados todas
essas espécies de trabalhadores. Isso, portanto, no que se refere à inclusão.
Ao contrário, no que se refere à exclusão, lerei duas passagens que tratam
dessa questão, ambas bastante interessantes. Uma primeira passagem,
não diferente de outras que se encontram também no Capítulo VI, faz
uma espécie de classificação dos trabalhadores improdutivos; e esses
trabalhadores improdutivos (ou seja, trabalhadores que não produzem
mais-valia porque não estão inseridos numa relação capitalista) são distin­
guidos em duas categorias, conforme sejam suscetíveis de se tornar
produtivos, no caso em que o processo produtivo de que participam
viesse a ser incluído numa relação capitalista, ou conforme sejam inevita­
velmente improdutivos, por participarem num processo produtivo que
de nenhum modo poderia ser incluído numa relação capitalista. À primeira
categoria pertence uma série de produtores de mercadorias, que produzem
tais mercadorias de modo não capitalista; todavia, se poderia pensar
sem dificuldade que essa produção de mercadorias se inclua numa relação
capitalista, caso em que tais trabalhadores, de improdutivos, tornar-se-iam
105
produtivos. Portartto, são improdutivos, por assim dizer, de fato, mas
não em princípio. Ao contrário, existem outros que Marx julga improdu­
tivos em princípio, pois o que fazem não poderia ser feito no intericír
de uma relação capitalista; os exemplos que dá são: os domésticos, os
padres, os funcionários públicos, os soldados. Há sempre uma margem
de indeterminação nessas classificações; mas, para julgar sobre uma certa
atitude típica de Marx, esse elenco é significativo. Porém, ainda mais
significativa é essa outra passagem, que se torna de particular atualidade,
entre outras coisas, por vir exposta num contexto específico, ou seja,
num ponto em que Marx diz: essa distinção entre trabalho produtivo
e improdutivo — introduzida por Adam Smith, aceita por todos os outros
clássicos, por Ricardo, Malthus, etc. precisamente por ser um espelho
fiel da realidade capitalista, sofreu uma série de objeções por parte de
vários personagens, entre os quais, em primeiro lugar, os próprios trabalha­
dores improdutivos, ou pelo menos os chamados estratos altos dos
trabalhadores improdutivos, os quais dificilmente podiam suportar que
se colocasse em evidência, com aquela distinção, o fato de que, no âmbito
da economia capitalista (que, além do mais, eles consideram como a
economia em geral), a função por eles exercida havia decaído da posição
de grande importância econômica e relevância social que desfrutara no
passado. Na página 298, diz Marx:
“À grande massa dos chamados trabalhadores ‘superiores’ -
como os funcionários estatais, os militares, os artistas, os médicos,
os padres, os magistrados, os advogados, etc., —”
ou seja, o que chamaríamos hoje de profissões livres, ou de profissionais
liberais, como por vezes se diz com outra intenção,
“alguns dos quais não só não são produtivos, porém são substan­
cialmente destrutivos, mas que sabem como se apropriar de uma
imensa parte da riqueza ‘material’, um pouco vendendo suas
mercadorias ‘imateriais’, um pouco as impondo pela força, a
esses não causava nenhum prazer serem relegados, do ponto
de vista econômico, à mesma classe dos bufões e dos domés­
ticos, e aparecerem —diante dos produtores propriamente ditos —
como consumidores, como parasitas. Tratava-se de uma singular
profanação precisamente daquelas funções que, até agora, eram
circundadas de uma auréola e haviam desfrutado de uma vene­
ração supersticiosa. A economia política, em seu período clássico,
exatamente como a própria burguesia no primeiro período
de seu processo de afirmação, assume uma atitude severa e
crítica em face da máquina estatal, etc. Posteriormente”
(esse “posteriormente” é, substancialmente, a fase em que nos encon­
tramos),
106
“ela compreende e aprende com a experiência que a necessidade
da combinação social, herdada do passado, de todas essas classes”
(que se tornam socialmente aliadas da burguesia e, por isso, são tratadas
de modo diverso pela economia política —essa é a tese)
“a necessidade da combinação social, herdada do passado, de
todas essas classes, em parte completamente improdutivas,
deriva de sua própria organização.”
Em suma, há uma fase (a fase nascente da burguesia) na qual essas
classes, outrora importantíssimas, são realmente convertidas em algo
supérfluo; a sua improdutividade se manifesta claramente nos fatos,
e, como tal, é tratada pela própria ciência da economia política. Chega
um momento, uma fase sucessiva, na qual essas classes não são mais
socialmente supérfluas, mas se tornam essenciais à própria organização
da sociedade burguesa; e, então, a economia política — em sua versão
vulgar, como diria Marx — muda de atitude e renuncia até mesmo à distin­
ção entre trabalho produtivo e improdutivo, a fim de não considerar
essas classes como improdutivas, limitando-se a dizer — como, de resto,
já dissera em época pré-burguesa — que a produtividade coincide com
a utilidade, que o trabalho produtivo é o trabalho útil em geral, é o
trabalho que faz alguma coisa, e, portanto, deixa de lado toda especifi-.
cidade capitalista na definição de trabalho produtivo, e precisamente
por isso pode incluir no conceito de produtividade realidades não capita­
listas, como é o caso dessas que estamos analisando. Portanto, parece-me
que as coisas —pelo menos no que se refere a Marx —são bastante claras.
Em substância, o critério é bastante nítido para que seja possível
evitar cometer erros. Em resumo, o critério é este: o trabalho produtivo
é trocado por capital; o trabalho improdutivo é trocado por renda. Portan­
to, o trabalho produtivo —precisamente enquanto é trocado por capital —
reproduz o valor desse capital pelo qual é trocado e algo mais; o trabalho
improdutivo não reproduz sequer o valor pelo qual foi trocado, não
reproduz sequer a parte da renda com a qual foi comprado. Todavia,
embora possa parecer, tendo-se chegado a esse ponto, que a questão
do conceito de trabalho produtivo já esteja de certo modo esgotada,
na verdade não o está. Não o está para o próprio Marx; pois, após ter defi­
nido o trabalho produtivo do modo aludido acima, nasce para Marx
um problema, um problema muito característico, já que assinala a dife­
rença entre Marx e os clássicos sobre a questão da produtividade. Quando
se fala de trabalho produtivo e de trabalho improdutivo, a qualificação
da produtividade é predicada precisamente daquela realidade que é o
trabalho; o trabalho é o sujeito do qual se diz que é ou não produtivo.
Todavia, há uma circunstância - que Marx considera de certa impor­
tância — constituída pelo fato de que a linguagem comum, a linguagem
107
imediata, a linguagem não culta, não a linguagem dos economistas, precisa­
mente a linguagem comum, atribui freqüentemente o adjetivo “produtivo”
não ao trabalho, mas ao capital; e fala assim de capital produtivo. Ora,
segundo Marx, isso não acontece por acaso; e não se pode nem mesmo
dizer, de modo simples e imediato, que a atribuição do adjetivo “produ­
tivo” ao capital seja conseqüência de uma mistificação, seja conseqüência
de um modo ainda primitivo e ingênuo, e portanto substancialmente
errôneo, de considerar as coisas; na realidade, a atribuição do adjetivo
“produtivo” ao capital tem razões, segundo Marx, muito importantes,
cujo exame esclarece a natureza do capital, assim como a natureza da
relação entre capital e trabalho, melhor do que poderia acontecer exami­
nando outras questões. Ora, precisamente aqui, no Capitulo VI, temos
uma das passagens onde Marx enfrenta essa questão e busca dar conta
do sentido que tem a expressão “capital produtivo” , a qual — malgrado
o quese seria levado a pensar — tem um sentido não vulgar, mas sim
um sentido teoricamente rico de conseqüências, um sentido que tem
uma relevância teórica precisa.
Vejamos como Marx enfrenta essa questão, que não é uma questão
fácil; é, ao contrário, uma questão cheia de sutilezas, e, por isso, deve
ser examinada com certa atenção. Peguem o Capítulo VI e abram na
página 83. (Gostaria de observar que o trecho que começa na página 83,
com o título “Mistificação do Capital etc.” , e que vai até à página 90,
é um trecho que — salvo diferenças não essenciais — reencontra-se tal
e qual nas Teorias sobre a Mais-Valia, páginas 585 e seguintes). Lemos
na página 83 do Capítulo VI:
“Como o trabalho vivo — no processo de produção — está já
incorporado ao capital, todas as forças produtivas sociais do
trabalho apresentam-se como forças produtivas do capital, como
propriedades que lhe são inerentes, da mesma forma que, no
caso do dinheiro,o caráter geral do trabalho, na medida em que
este cria valor, aparecia como propriedade de uma coisa.”
Há aqui uma primeira afirmação de Marx, que poderíamos interpretar -
e depois veremos se essa interpretação será confirmada ou não no que
é dito depois — do seguinte modo: a produtividade é certamente, em
sentido originário, uma qualidade do trabalho; mas essa produtividade
do trabalho, na situação social determinada que é a situação capitalista,
apresenta-se como produtividade do capital, quase como se - fora de
sua relação com o capital — o trabalho não pudesse de modo algum rea­
lizar essa sua produtividade. Em suma, o que Marx diz é isto: que, embora
se possa e se deva dizer que produtivo é o trabalho, o trabalho na verdade
só é produtivo na medida em que tem uma relação essencial com o capital;
só nessa relação com o capital é que o trabalho é produtivo; fora dessa
relação, o trabalho não é produtivo; pelo menos não o é no sentido e
108
com o grau de produtividade que possui quando é inserido num contexto
capitalista. Essa parece ser a interpretação a ser dada imediatamente.
Agora vejamos se as explicações sucessivas de Marx confirmam ou não
essa interpretação.
“Tanto mais que neste caso: 1) precisamente o trabalho, enquan­
to exteriorização da força de trabalho, enquanto esforço”
(enquanto função da força-de-trabalho —isso quer dizer, enquanto força-
de-trabalho realizada, enquanto valor-de-uso da força-de-trabalho),
“pertence ao operário individual (é com ele que o operário
realmente paga ao capitalista o que este lhe dá), ainda que obje­
tivado no produto e pertencente ao capitalista; pelo contrário,
a combinação social, na qual as diversas forças-de-trabalho funcio­
nam tão-somente como órgãos particulares da capacidade de
trabalho que constitui a oficina coletiva, não pertence a estas
[forças-de-trabalho], mas se lhes contrapõe como ordenamento
(arrangement) capitalista, é-lhes imposta".
Vejamos o que isso quer dizer; há, antes de mais nada, um sentido inteira­
mente óbvio, no qual a exteriorização da capacidade de trabalho é um
atributo do operário singular. O que é essa exteriorização? É a sua força-
de-trabalho em função. Já que a força-de-trabalho é o conjunto das
qualidades pessoais que tornam o operário apto para o trabalho, compreen-
de-se que a exteriorização da força-de-trabalho, ou seja, o trabalho, seja
um fato que pertence antes de mais nada ao operário individual. Isso é
óbvio. Mas isso por um lado; por outro, todavia, ocorre que essas forças-
de-trabalho, no processo produtivo concreto, encontram-se combinadas
entre si; e essa combinação não é de modo algum indiferente com relação
à produtividade do trabalho; ou seja, essa combinação, como sempre
acontece em tais casos, é mais que a soma das partes; é algo sem o qual
essas forças-de-trabalho individuais não teriam a capacidade produtiva
que têm enquanto partes daquela combinação. Porém, por outro lado, -
e essa é a questão, — tal combinação, que dá lugar àquela força coletiva
que constitui a fábrica total, não apenas não é fruto, não é efeito, não
é conseqüência das forças-de-trabalho individuais consideradas isolada­
mente, mas, ao contrário, “se lhes contrapõe como ordenamento capita­
lista, é-lhes imposta” . Essa combinação não decorre da mera presença
lado a lado das forças-de-trabalho individuais; essa combinação é algo
diverso delas; é exterior a elas; é até mesmo imposta a elas; apresenta-se
inclusive como o ordenamento do capital; a força-de-trabalho coletiva
não é a soma, ou o conjunto, ou o agregado das forças-de-trabalho
individuais; é outra coisa; inclusive algo exterior a cada uma delas
tomada isoladamente. Na verdade, o que é? É o capital. Esse é um
primeiro ponto.
109
“2) essas forças produtivas sociais do trabalho, ou forças produ­
tivas do trabalho social, não se desenvolvem historicamente
senão com o modo de produção especificamente capitalista,
e, portanto, aparecem como algo imanente à relação do capital
e dele inseparável” .
Temos aqui a confirmação do que se disse antes. Ou seja: antes
do capital, isso ainda não acontecia; isto é, quando várias forças-de-tra-
balho se uniam, o que resultava era um agregado dessas forças, um
conjunto delas; agora, ao contrário, há uma força produtiva do trabalho
que não é mais a soma do trabalho dos indivíduos, mas é algo do qual
o trabalho dos indivíduos não é mais que momento particular, atributo
particular. Como vocês se recordam, ao examinarmos na primeira lição
o conceito de trabalho abstrato em Marx, lemos também uma frase —não
de O Capital, mas de Para a Crítica da Economia Política — na qual se
dizia precisamente isto: o operário é um atributo do trabalho, não é mais
o trabalho que é um atributo do operário; é o contrário: é o operário que
é um atributo do trabalho; no texto que acabamos de ler, esse fato é
reafirmado: e o é exatamente na medida em que esse trabalho, do qual
o operário é um atributo, não é mais seu trabalho pessoal, mas é um
trabalho geral, coletivo, social, cuja realidade social foi posta por um
fato externo ao trabalhador, precisamente pelo capital, o qual, aliás,
se coloca diante do trabalho — como Marx diz aqui — como uma força
estranha. Essa é uma especificidade do modo capitalista de produção.
“3) as condições objetivas do trabalho, com o desenvolvimento
do modo capitalista de produção, assumem uma forma modifi­
cada em conseqüência das dimensões em que, e da economia
com que, são utilizadas (abstraindo-se por completo da forma
da maquinaria, etc.). Tornam-se mais desenvolvidas como meios
de produção concentrados, representantes de riqueza social, e
o que realmente esgota a totalidade — graças à amplitude e
ao resultado das condições de produção do trabalho combinado
socialmente” .
Não é que se diga aqui algo substancialmente novo com relação
ao que se disse nos itens 1 e 2. Mas qual é o ponto sobre o qual se insiste?
Insiste-se nisto: que essa combinação de forças-de-trabalho individuais —
que não é simplesmente um conjunto ou um agregado das forças-de-
trabalho individuais, mas algo mais que a soma delas — essa combinação
encontra correspondência material no fato de que as condições objetivas
do trabalho, ou seja, os meios de produção, não são mais meios de
produção individuais, isto é, não podem mais ser utilizados por operários
individuais, mas devem ser utilizados tão-somente pelo operário coletivo
que constitui a fábrica, a oficina, de modo que essa combinação de
forças-de-trabalho, essa coisa que transcende as forças-de-trabalho
110
singulares que entram na combinação, torna-se materialmente visível
sob a forma de condições objetivas da produção, que em sua corposidade
e fisicidade adquiriram o caráter de condições sociais da produção, e não
simplesmente de condições individuais; tanto é verdade que não poderiam
mais ser combinadas com trabalhadores independentes, mas só podem
ser combinadas com trabalhadores coletivos, ou seja, com aquela combi­
nação de forças-de-trabalho que constitui precisamente a fábrica. Esse
ponto 3), portanto, tem uma espécie de corolário ou integração em toda
a página 84, mas em particular no que se afirma no primeiro parágrafo
da página 85. Também o que se diz aqui já foi visto por nós quando
falamos da subsunção real do trabalho ao capital:
“A ciência, como o produto intelectual em geral do desen­
volvimento social, apresenta-se, do mesmo modo, como dire­
tamente incorporada ao capital (sua aplicação como ciência,
separada do saber e da potencialidade dos operários considerados
individualmente, no processo material de produção); e o desen­
volvimento geral da sociedade - porquanto é usufruído pelo
capital em oposição ao trabalho e opera como força produtiva
do capital contrapondo-se ao trabalho — apresenta-se como
desenvolvimento do capital-, e isso porque, para a grande maioria,
esse desenvolvimento corre paralelo com o esvaziamento da
força-de-trabalho.”
Aqui importa observar sobretudo o seguinte: o caráter social, assu­
mido materialmente pelas próprias condições objetivas de produção,
atinge sua culminação quando essas condições objetivas incorporam
a si uma ciência que, como vimos em outro local, está separada da
consciência do operário, razão pela qual essas condições objetivas —
enquanto suporte material do trabalho coletivo — recebem seu caráter
de estranheza e de contraposição com relação ao trabalho do fato de
serem o efeito de um conhecimento da natureza que está fora do trabalho;
de modo que, nesse caso, a proposição geral segundo a qual a relação
com o capital é essencial à realização da produtividade do trabalho recebe
um sentido e um conteúdo particulares, pelo fato de que a capacidade
realizadora da produtividade do trabalho, que está no capital, é confirmada
pela presença no próprio capital de uma coisa que não está no trabalho
(e que ademais é essencial àquela produtividade), ou seja, a ciência. Por­
tanto, são essas as circunstâncias de fato que Marx examina, e sobre cuja
base é possível dizer o que se disse na frase inicial do texto que lemos,
ou seja, que as forças produtivas sociais do trabalho se apresentam como
forças produtivas do capital.

111
Lição 11
A “PRODUTIVIDADE” DO CAPITAL.
AINDA SOBRE O PAPEL HISTÓRICO
DO CAPITAL

Para precisar ainda mais as coisas ditas na lição anterior, vou ler
uma passagem da página 575 do volume 2 dos Grundrisse, sob o título:
“Alienação das condições do trabalho com o desenvolvimento do capital.
(Inversão). A inversão está na base do modo capitalista de produção,
não apenas de sua distribuição” .
“O fato de que, com o desenvolvimento das capacidades produ­
tivas do trabalho, as condições objetivas do trabalho aumentem
com relação ao trabalho vivo [...], esse fato assume, do ponto
de vista do capital, o seguinte aspecto: que não é um dos mo­
mentos da atividade- social — ou seja, o trabalho objetivado —
que se torna um corpo cada vez mais poderoso que o outro
momento, o do trabalho vivo, mas sim que são as condições
objetivas do trabalho que assumem, em face do trabalho vivo,
uma autonomia cada vez mais colossal e que se manifesta através
de sua própria extensão.”
O que Marx diz aqui é o seguinte: independentementè do fato de ser
capitalista ou não, a produção sempre se desenvolve com a presença
simultânea de um trabalho vivo e de um trabalho objetivado, ou seja,
de um trabalho que é correntemente desempenhado no processo de
produção e de um trabalho que, ao contrário, encontra-se objetivado
nos meios de produção, que são frutos de processos produtivos ocorridos
112
anteriormente. Esse fato não é uma peculiaridade da produção capitalista;
se se quer, pode-se dizer que, na produção capitalista, do ponto de vista
do processo técnico de produção, há um extraordinário desenvolvimento
do trabalho objetivado com relação ao trabalho vivo; porém, pondo-se
de lado esse aspecto quantitativo da relação entre esses dois momentos
do trabalho global, permanece o fato de que a presença simultânea do
trabalho vivo e do trabalho objetivado é um traço característico geral
de toda espécie de produção. Ou seja, o homem sempre trabalha utilizando
instrumentos; e faz parte do próprio caráter racional do seu trabalho
o fato de que a produção não seja uma produção imediata, mas sim uma
produção mediata; a relação entre o homem e a natureza é mediatizada
por um instrumento produzido, que não se encontra já pronto e acabado
na natureza.
Portanto, desse ponto de vista, o capital não inova nada, a não ser -
repito — sob o aspecto quantitativo, já que a importância do trabalho
objetivado em relação ao trabalho vivo é muito maior no capitalismo
que nas formações precedentes. Desse modo, — e essa é a questão, —
o capital introduz, na opinião de Marx, uma qualificação, que o torna
inconfundível com qualquer situação anterior. Poder-se-ia dizer • que
o capital se aproveita da divisão (de resto necessária) do trabalho global
em trabalho objetivado e trabalho vivo para configurar, entre essas duas
partes do trabalho global, uma relação inteiramente peculiar, que jamais
existira antes do próprio capital. Qual é essa relação peculiar? Precisa­
mente o fato de que não é mais o trabalho vivo que utiliza o trabalho
objetivado para obter um certo produto, mas sim o contrário: é o trabalho
objetivado que utiliza o trabalho vivo para obter um produto particula­
ríssimo, o único produto que pode ser obtido quando essa inversão da
relação teve lugar, isto é, um produto que se qualifica não tanto por
sua utilidade quanto por seu valor-de-troca. Da situação (digamos assim)
normal, ou seja, da situação na qual seria o trabalho vivo a empregar
o trabalho objetivado, Marx diz o seguinte: que o trabalho objetivado
se tornaria “um corpo cada vez mais poderoso que o outro momento”,
ou seja, que o trabalho vivo. Em outras palavras: nesse caso, o trabalho
objetivado — os instrumentos nos quais o trabalho se objetivou — seriam
uma espécie de prolongamento, de ampliação, de desenvolvimento do
próprio corpo do homem. É como se o corpo do homem, ao invés de
permanecer (como o corpo dos animais) circunscrito no interior de uma
determinada forma orgânica, se expandisse desmesuradamente, já que
o instrumento — ou seja, o trabalho que se objetivou nele —é uma espécie
de órgão complexo do homem, capaz de desenvolvimento contínuo.
Um órgão artificial, criado pela razão e não presente na natureza. Essa
seria a condição normal: o desenvolvimento do corpo do homem e,
portanto, o aumento — através dessa via — das capacidades de domínio
sobre a natureza que o homem possui. Um domínio sobre a natureza,
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por isso, que não é estático, mas suscetível de desenvolvimento infinito.
O capital é o contrário disso. Não é o trabalho objetivado a se tornar
corpo do trabalho vivo; é o trabalho vivo que se toma corpo do trabalho
objetivado, e tanto mais quando esse corpo inanimado, esse corpo
constituído pelo trabalho objetivado, incorpora a si mesmo o conheci­
mento, a ciência. Então a subordinaçpo do trabalho vivo ao trabalho
morto torna-se total, como acontece precisamente na fase das máquinas.
Marx prossegue:
“O acento cai”
- no caso da produção capitalista —
“não sobre o fato de que o imenso poder objetivo, que o próprio
trabalho social contrapôs a si como um dos seus momentos,
se tenha objetivado, mas sobre o fato de que ele se tenha alie­
nado , que pertença não ao operário, mas às condições de produ­
ção personificadas, isto é, ao capital.”
O objeto da frase é aqui o seguinte: o poder objetivo que o trabalho
social adquire em conseqüência do fato de ser um trabalho que se explicita
mediante o instrumento, mediante o trabalho objetivado. Ora, não se
trata — como diz Marx — simplesmente do fato de que existe um trabalho
passado incorporado num instrumento utilizado no presente; não se
trata apenas disso, pois isso ocorre em todos os casos, seja ou não capita­
lista a produção; trata-se, sim, do fato de que essa objetivação, embora
seja uma característica natural da atividade produtiva do homem, torna-se
a base de uma alienação; alienação no sentido literal, no sentido de que
as coisas que deveriam ser corpo do homem, e, portanto, pertencerem
a ele de modo intrínseco, estão ao contrário separadas dele e são coisa
diversa dele; e tanto isso é verdade que elas o dominam, além de apare­
cerem como aquilo em função do que o próprio trabalho vivo funciona
e se exerce. Toda a polêmica de Marx contra o modo vulgar de ver as
coisas, isto é, tanto contra a economia vulgar quanto contra o senso
comum influenciado por pontos de vista burgueses, a polêmica de Marx
contra tudo isso pode ser resumida na seguinte proposição: que todas
essas posições confundem uma objetivação com uma alienação; pensam
que, na situação de fato, não exista nada mais do que um momento
da história geral da objetivação do trabalho, quando na verdade não
existe só isso na situação real, mas existe uma objetivação que serve
de base a uma alienação, no sentido que expusemos acima. A frase que
vem depois tem também uma certa importância, já que serve de confir­
mação a coisas que afirmamos na lição passada, ou, mais precisamente,
ao seguinte fato (sobre o qual jamais insistirei bastante, porque penso
que se trate de um traço extremamente característico da teoria marxiana
do capital): que quando Marx diz, por exemplo, que as forças produtivas
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do trabalho se apresentam ou aparecem como forças produtivas do capital,
ele não se refere a uma mera aparência, mas sim a uma realidade. Essa
transferência da força produtiva do trabalho para o capital não é uma
aparência, é uma realidade. Isso é dito com todas as letras na frase que
vou ler agora:
“Até o momento em que, no nível do capital e do trabalho
assalariado”
(ou seja, enquanto existir uma situação capitalista),
“a criação desse corpo objetivo da atividade”
(ou seja, do trabalho objetivado nos instrumentos)
“ocorrer em antítese à força-de-trabalho imediata”
(enquanto isso ocorrer, atenção para o que vem a seguir),
“essa distorção e inversão são efetivas, não são uma mera opi­
nião, ou seja, não existem apenas na representação de operários
e capitalistas.”
Ou seja: quando a produtividade é atribuída ao capital, não se trata
de um modo particular de representar as coisas por quem não se libertou
da escravidão da alienação (seja o operário ou capitalista); portanto,
não se trata de uma realidade que resida simplesmente na cabeça dos
que consideram as coisas sem ter superado a situação de alienação em
que todos se encontram. Não se trata simplesmente disso, pois essa
transposição é uma transposição real; o trabalho realmente cedeu ao
capital sua força produtiva.
Chegando a esse ponto, penso que temos todos os elementos para
estabelecer qual seja, para Marx, a relação entre a proposição segundo
a qual o capital é produtivo e a proposição de que o trabalho é produtivo.
O fato de que no capital, ou seja, no conjunto dos meios de produção
enquanto são monopolizados por uma parte da sociedade, e portanto
contrapostos ao trabalho, encontre-se a “combinação social” das forças
produtivas, tal fato significa que, sob o ângulo da produção da riqueza,
ou seja, dos valores-de-uso, a peculiaridade da produção capitalista está
precisamente em colocar a capacidade produtiva fora do trabalho. Por
outro lado, a riqueza produzida em tais condições, ou seja, a riqueza
em cuja produção o trabalho intervém apenas em posição de “subordi­
nação” à coisa, é uma riqueza que reproduz em si mesma aquela subor­
dinação: e, com efeito, os valores-de-uso — enquanto produzidos em
condições capitalistas — não são mais do que suportes materiais do
valor-de-troca: a riqueza concreta não é senão meio para a riqueza abs­
trata. Mas, com relação a essa última, que é o produto real do processo
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capitalista, não pode deixar de se restabelecer a relação normal entre
produtividade e trabalho, ainda que isso só possa ocorrer na forma de
abstração: é o trabalho, enquanto trabalho abstrato, que produz o valor.
A subsunção do trabalho ao capital está na origem de ambos os lados da
produção capitalista: da produtividade material, por parte do capital, e
da produtividade em valor, por parte do trabalho.
O fato de que a produtividade tenha esses dois lados, distintos
e contrapostos, não é senão a manifestação do caráter invertido das rela­
ções entre homens e coisas, um caráter que caracteriza o capitalismo.
Sobre essa inversão, Marx diz, logo após os trechos que lemos há pouco:
“Mas, evidentemente, esse processo de inversão”
(ou seja, esse processo pelo qual as coisas se personificam e as pessoas
se reificam ou coisificam),
“é uma necessidade meramente histórica, é uma necessidade
para o desenvolvimento das forças produtivas tão-somente no
quadro de um determinado ponto de partida histórico, ou de
uma determinada base histórica; portanto, não é de modo algum
uma necessidade absoluta da produção; trata-se, antes, de uma
necessidade transitória, e o resultado e a finalidade (imanente)
desse processo é suprimir tanto essa base como essa forma do
processo” .
Temos aqui um trecho muito importante. Tentarei agora decom­
pô-lo em suas várias partes. Antes de mais nada, vejamos a primeira parte
dessa proposição: “esse processo de inversão é uma necessidade meramente
histórica”. Isso é de fácil compreensão, pois está substancialmente incluído
em tudo o que dissemos até agora. A inversão, ou seja, a transferência
da força produtiva do trabalho para a coisa, é precisamente uma inversão,
e, como tal, não pode deixar de ser atribuída a uma fase do movimento
da história. Portanto, como diz Marx, “não é de modo algum uma neces­
sidade absoluta da produção” , isto é, uma circunstância que pertença
ao conceito e à realidade da produção enquanto tal, mas algo que pertence
apenas à produção em uma de suas determinações históricas particulares.
Esse é o primeiro ponto. Por outro lado, Marx prossegue apresentando
uma importante concretização, a meu ver, já que rica de notáveis impli­
cações; é quando diz que essa inversão “é uma necessidade para o desenvol­
vimento das forças produtivas tão-somente no quadro de um determinado
ponto de partida histórico, ou de uma determinada base histórica” . O
que significa isso? Em minha opinião, Marx diz aqui algo mais do que
simplesmente o fato de que essa inversão é necessária apenas historica­
mente e não como característica absoluta da produção. Aqui se diz que
é necessária historicamente em conseqüência da existência de um determi­
nado ponto de partida histórico, do fato de que o processo começa a
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partir de uma determinada base histórica. Que ponto de partida histórico
é esse? Essa proposição pode ser entendida de dois modos, não perfeita­
mente coincidentes, de maneira que a escolha de um ou de outro tem
implicações muito amplas.
Limito-me agora, simplesmente, a dizer quais são esses dois modos;
não vou além disso, porque a discussão em torno da escolha implica
problemas muito amplos, que não podem ser enfrentados neste local.
Portanto, trata-se de uma necessidade a partir “de uma determinada
base histórica”. Uma primeira interpretação — que se poderia dizer
imediata, a que talvez se apresente ao intérprete como a mais natural —
é esta: a base histórica é a redução do trabalho a trabalho assalariado;
se o trabalho é trabalho assalariado, então é que já foi separado do corpo
objetivo constituído pelo conjunto dos instrumentos; esse corpo objetivo,
portanto, já se constituiu como capital, e disso decorrem todas as demais
coisas. Qual é, por conseguinte, a base histórica a partir da qual se desen­
volve essa situação? A base histórica, o ponto de partida histórico é a
redução do trabalho a trabalho assalariado. Essa é uma interpretação
possível e, em certo sentido, até mesmo óbvia. A outra interpretação,
que não contradiz essa primeira, mas a amplia um pouco, numa direção
cuja legitimidade foi freqüentemente contestada na literatura marxista,
vale a pena ser exposta aqui, quando menos para que possa servir como
elemento de reflexão. Trata-se, em outras palavras, de recuar mais essa
base histórica, dizendo que a própria redução do trabalho a trabalho
assalariado exige explicação; a própria redução do trabalho a trabalho
assalariado faz parte daquela situação cujo ponto de partida estamos
procurando. Então, qual poderia ser essa precedente base histórica?
Esta: no momento em que o trabalho foi reduzido a trabalho assalariado,
o trabalho já era trabalho alienado através da exploração ocorrida em toda
a história até aquele momento. Ou seja: o trabalho já fora privado de
suas características naturais. O trabalho, tal como se apresentava naquele
momento, já era resultado de um processo histórico no qual, ainda que
em formas não capitalistas, a alienação do trabalho de si mesmo já era
um fato amplamente estabelecido. Sobre a relação entre alienação pré-
capitalista e alienação capitalista, envio ao que disse na terceira lição.
Aqui me limito a observar que, sobre a base dessa interpretação, o incre­
mento das forças produtivas ou o incremento sistemático das forças
produtivas, que até então não ocorrera, só podia ocorrer mediante a
redução do trabalho à sua forma assalariada. Então, a base histórica
do modo capitalista de produção em seu conjunto é a condição à qual
historicamente o trabalho foi desde sempre reduzido, ou seja, desde que
existe processo histórico.
Essa segunda espécie de interpretação — digamos, essa tese, que
consiste em atribuir a Marx uma tal posição — pressupõe um certo modo
de interpretar os locais de origem, em Marx, do conceito de alienação,
117
e, em particular, as obras juvenis, sobretudo os Manuscritos de 1844
e certas passagens da Ideologia Alemã. Além do mais, na terceira lição,
como vocês talvez se recordem, tínhamos lido uma passagem dos Grun-
drisse que confirmava essa interpretação. Deixo essa questão em aberto
porque é impossível tratar dela agora. Ao contrário, o que há de seguro,
ou seja, de não controverso, nessa passagem, é o fato de que a inversão
entre o trabalho vivo e o corpo (ou melhor, o que deveria ser o corpo
mas não o é ) é uma determinação histórica e não uma determinação
absoluta.
Mas não há só isso na passagem que lemos. Há uma terceira coisa
igualmente muito importante. Depois de ter dito que “não é de modo
algum uma necessidade absoluta da produção; trata-se, antes, de uma
necessidade transitória” , Marx acrescenta: “e o resultado e a finalidade
(imanente) desse processo é suprimir tanto essa base quanto essa forma
do processo”. Ou seja (e isso Marx diz aqui): o capitalismo não pode
ser compreendido até o fundo se não se vê sua duplicidade; a duplicidade
que o faz ser, por um lado, aquela inversão de que falamos, aquela alie­
nação a que nos referimos, o fato de tomar o trabalho um corpo do
seu corpo, corpo que deveria ser a extensão do seu corpo; mas, por outro
lado, — e, nesse sentido, o capitalismo é dúplice e não unitário, não é
uma unidade indiferenciada, mas uma unidade complexa, —o capitalismo
é o que permite a supressão dessa inversão. Aliás, Marx chega mesmo
a dizer que “o resultado e a finalidade desse processo” — ou seja, do
processo capitalista — “é suprimir tanto essa base quanto essa forma do
processo” . De que modo? Evidentemente, esse é um problema que deve
ser inteiramente examinado. Vamos por enquanto nos ater ao texto
e nos contentar em ter descoberto que é essa a opinião de Marx. Um
outro ponto. Qualquer que seja o modo pelo qual se chegará à supressão
dessa inversão, coloca-se uma questão: quando essa supressão ocorrer,
o que acontecerá, o que será posto no lugar dessa inversão? Vocês se
recordam que, na terceira lição, lemos alguns textos importantes sobre
esse tópico. Voltamos aqui a encontrar um texto referente ao problema,
sempre na página 576, que passo a ler:
“Com a supressão do caráter imediato do trabalho vivo enquanto
trabalho apenas singular-, com a atribuição à atividade dos indi­
víduos de um caráter imediatamente geral ou social, essa forma
da alienação é cancelada dos momentos objetivos da produção.
Com isso, eles são postos como propriedade, como corpo orgâ­
nico social no qual os indivíduos se reproduzem como indivíduos,
mas como indivíduos sociais.”
O que quer dizer esse grupo de proposições? Lembrem-se do que
dissemos na lição anterior. Ao trabalho do homem, pertence a caracte­
rística da socialidade. Mas o que ocorre com‘o capital? Que a socialidade
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é inteiramente tranferida para a coisa. Lembrem-se: uma coisa é a força-
de-trabalho antes de entrar na capital; outra é essa força após tal ingresso.
Antes do capital, é uma força-de-trabalho meramente individual e, como
tal, improdutiva. Quando entra, torna-se uma força-de-trabalho social
e, como tal, produtiva. Mas a passagem da improdutividade à produtivi­
dade é assinalada pelo ingresso no capital, ou seja, pelo ingresso na coisa.
Poderíamos dizer que a aquisição da produtividade, ou seja, da socialidade,
é mediatizada pela coisa. O que diz Marx aqui? Diz que, quando essa
inversão for suprimida, então a aquisição ou realização da socialidade —
como aqui se diz — será imediata. Vejam: “a atribuição à atividade dos
indivíduos de um caráter imediatamente social” , ou seja, não através
da mediação da coisa. Então a socialidade é recuperada como um traço
essencial do trabalho e não mais transferida para a coisa. Tudo o que
faz com que o trabalho seja social passa a pertencer ao próprio trabalho
e não está mais situado em algo que é alheio ao trabalho. O que isso
significa em termos positivos é um problema aberto, já que quando Marx
afirma esse princípio (na passagem que lemos e também em outras) o
faz em termos negativos, ou seja, como contraposição à atual situação.
De qualquer modo, o princípio é este: é a restauração da característica
da socialidade no interior do trabalho operante, de modo que ele a mani­
feste imediatamente e sem a mediação das coisas, ou seja, sem o capital.

119
Lição 12
A FORMAÇÃO DA MAIS-VALIA

Considero concluída a leitura das partes do Capítulo VI que


pretendia pôr em evidência. Retomo agora, como havia anunciado no
início do curso, algumas questões da teoria marxiana do valor. Essas
questões surgem em relação com a categoria da taxa de lucro e com
a formação da taxa geral (ou média) de lucro.
Para começar, porém, teremos de ir um pouco longe, retomando
e desenvolvendo coisas já ditas. O ponto de partida pode ser constituído
pela contraposição, efetuada por.Marx, entre os dois modos com que
se apresentam a circulação e a troca. Esses dois modos são apenas a repre­
sentação esquemática da diferença existente entre a troca simples e a
troca capitalista, ou seja, entre a troca que tem como meta a aquisição
de valores-de-uso e a troca que tem como finalidade o acréscimo do
valor-de-troca. Marx (como se pode ver nos capítulos 3 e 4 do livro 1
de O Capital) representa essas duas espécies de troca, respectivamente,
com as fórmulas M-D-M, mercadoria-dinheiro-mercadoria, e D-M-D’,
dinheiro-mercadoria-dinheiro. Em que sentido a primeira fórmula é a
representação da circulação simples? No sentido de que, na circulação
simples, na troca simples, a finalidade do processo é a mercadoria, e
o dinheiro se coloca simplesmente como termo de mediação da troca;
ou seja, quem executa a troca se apresenta no mercado com uma merca­
doria, que ele produziu, e, através da aquisição de dinheiro mediante
a venda da mesma, trasmuta sua mercadoria primitiva numa outra merca­
doria que serve para satisfazer seus carecimentos. Por isso, o processo
120
começa e termina com a mercadoria: começa com a mercadoria possuída
por quem troca, termina com a mercadoria que ele adquiriu por meio
da troca. 0 dinheiro é simplesmente o termo médio dessa transformação
de uma mercadoria na outra. Ao lado dessa circulação, a troca simples,
existe um outro tipo de circulação, que se caracteriza pelo fato do
dinheiro, em vez de ser um termo médio que relaciona a mercadoria
inicial com a mercadoria final, é o início e o fim do processo, enquanto
é a mercadoria que se põe, dessa feita, como termo médio.
Essa segunda fórmula se refere evidentemente à circulação capita­
lista. O primeiro termo da mesma, D, é capital em sua forma monetária
(ou “capital-dinheiro”). O segundo termo, M, é o capital que passou
da forma monetária à forma de um conjunto de meios de produção e
de força-de-trabalho (“capital produtivo”). O terceiro termo, D’, é o
capital valorizado, ou seja, é o conjunto de mercadorias produzidas, no
qual se encontra objetivado mais valor do que se encontra em M (“capital-
mercadoria”). Por outro lado, esse capital-mercadoria, enquanto se realiza
no mercado e é novamente transformado em dinheiro (precisamente
em D’), volta a ser capital-dinheiro, ou seja, o início de um novo ciclo
da circulação capitalista. A terminologia usada aqui — “capital-dinheiro”,
“capital produtivo”, “capital-mercadoria” — se encontra no capítulo 1
do Livro 2 de O Capital.
Uma outra coisa que Marx põe em evidência é o seguinte: que,
enquanto na primeira fórmula todo o sentido está na mudança de quali­
dade, que se dá na passagem da primeira mercadoria para a segunda,
pois o que interessa a quem troca é precisamente passar de uma merca­
doria determinada para outra mercadoria qualitativamente diversa, na
segunda fórmula — ao contrário — todo o sentido reside na mudança
não mais da qualidade, porém sim da quantidade, que se obtém com a
passagem do primeiro dinheiro ao segundo. Por que de quantidade e
não de qualidade? Evidentemente porque o dinheiro não pode mudar
de qualidade; é sempre dinheiro, razão por que, se muda, só pode mudar
em quantidade. Portanto, na realidade, esse dinheiro — que se encontra
como termo final na fórmula — é uma quantidade diversa (mais precisa­
mente: uma quantidade maior) do que o dinheiro que se encontra no
início.
yejamos agora de que modo essas coisas se ligam aos problemas
do valor, dos quais falamos até agora. Todo o problema, diz Marx, rela­
tivo ao exame, à interpretação do capitalismo e do capital reside em
explicar como pode ocorrer, não de modo ocasional mas sistemático,
a transformação de uma soma de dinheiro numa soma maior, tendo-se
presente — e esse é o ponto que deve ficar bem claro —que essa transfor­
mação não pode consistir (como seria a tendência normal a pensar, diante
de um fato desse gênero) em que se venda mais caro uma coisa comprada

121
por um preço mais baixo. Por que a explicação não pode ser essa? Por
dois motivos: porque, se fosse assim, deveríamos admitir o absurdo de
que, no mercado, uma certa mercadoria pudesse ter dois preços: um
preço mais baixo, quando o capitalista a compra, e um preço mais alto,
quando o capitalista a vende; o que é absurdo, porque uma mercadoria
qualitativamente idêntica, no mercado, não pode ter senão sempre o
mesmo preço. A segunda razão do absurdo dessa explicação está no
fato de que, mesmo se algue'm conseguisse vender a mesma mercadoria
por preço mais alto do que o preço pelo qual a comprou, é evidente
que — ao lado do ganho desta pessoa — existiria a perda de uma outra;
e, nesse caso, os ganhos e as perdas se compensariam, de modo que,
ao nível do sistema, não poderia jamais surgir um incremento do valor
inicial do capital, que é precisamente o que se trata de explicar.
Tudo isso significa que a explicação não pode ser encontrada, se
se resta no âmbito do processo de circulação. A explicação do aumento
deve ser buscada em alguma circunstância que tenha lugar no interior
do processo de produção. Ou seja, em outras palavras, o segredo da pas­
sagem de D a D’, o segredo do incremento que transforma o dinheiro
em capital, deve ser buscado — de acordo com Marx — naquele termo
médio M que aparece na fórmula. Esse M deve representar algo que
permite a explicação desse aumento de valor que o capital experimenta
no processo de circulação. A explicação não é difícil, uma vez que o
valor das mercadorias seja relacionado com o trabalho objetivado nas
próprias mercadorias. A explicação, em substância, já é conhecida de
vocês. Vou repeti-la agora para fechar a argumentação. De que se, trata
em substância? Trata-se do fato de que as mercadorias que são simbo­
lizadas por M são, na realidade, um grupo, um conjunto de mercadorias,
entre as quais há uma mercadoria inteiramente peculiar, que é a força-
de-trabalho. Essa força-de-trabalho, que é uma mercadoria no sentido
de ser uma coisa comprada e vendida, possui algumas características que,
por um lado, são características genéricas, comuns a ela e a todas as
demais mercadorias, e, por outro, são características especiais, ou seja,
que pertencem a ela e apenas a ela. Quais são as características que a
força-de-trabalho tem em comum com as demais mercadorias, e quais
são, ao contrário, as características especiais, que lhe são peculiares e
que não se encontram em nenhuma outra mercadoria? As características
genéricas são duas, ou seja: 1) o fato' de que, como todas as outras
mercadorias, também ela possui um valor; 2) o fato de que, como o
valor de todas as outras mercadorias, também o seu valor é trabalho
objetivado nela. A única observação que deve ser feita, nesse nível, é
que, na determinação do trabalho objetivado na força-de-trabalho, é
preciso concretizar com exatidão o que isso significa, pois se dá o caso
de que a força-de-trabalho, ao contrário de outras mercadorias, não está
no termo de um processo de produção específico; a força-de-trabalho
122
não sai de um processo produtivo no mesmo sentido que um par de
sapatos ou um quintal de ferro sai de um processo produtivo; enquanto
existe um processo produtivo que produz sapatos e um processo produtivo
que produz ferro, não existe — em sentido próprio — um processo
produtivo que produza força-de-trabalho. Apesar disso, a lei geral do
valor pode igualmente ser aplicada nesse caso porque, como todas as
demais mercadorias, também a força-de-trabalho tem um custo determi­
nado; ou seja, também a força-de-trabalho é de tal natureza que existe
um conjunto de outras mercadorias, cujo consumo constitui o custo
de produção dessa mercadoria particular. Quais são as mercadorias que
constituem, em sentido físico, o custo da força-de-trabalho? São os meios
de subsistência que essa força-de-trabalho deve consumir para conservar-se
e se manter. Assim como é necessário o couro para produzir o sapato,
do mesmo modo é preciso o pão para produzir a força-de-trabalho. E
não há nada de estranho nesse fato; se alguém se escandalizasse com
o modo pelo qual é tratada a força-de-trabalho, Marx responderia —
mas, de resto, já Ricardo teria implicitamente respondido no mesmo
sentido, — que precisamente nisso consiste a redução da subjetividade
do trabalhador, pela ação do capital, à força-de-trabalho, a redução da
pessoa do trabalhador a uma coisa. E, precisamente porque ocorre esse
processo de reificação, precisamente por isso podemos falar de custo
da força-de-trabalho, no mesmo sentido em que falamos de custo de
um quintal de ferro ou de um par de sapatos; então, após essa propo­
sição, diremos que o trabalho objetivado na força-de-trabalho é o trabalho
objetivado nos meios de subsistência necessários para conservar e repro­
duzir a própria força-de-trabalho, de modo que quem adquire a força-
de-trabalho do operário (nesse caso, o capitalista), e a adquire por um
tempo determinado (digamos: por um dia), ou seja, quem adquire a
disponibilidade da força-de-trabalho por um tempo determinado, deve
pagar um valor, que é determinado pela quantidade de trabalho contida
nos meios de subsistência que são consumidos durante aquele mesmo
período, ou seja, durante a jornada de trabalho. Portanto, a proposição
exata é a seguinte: o valor da força-de-trabalho disponível por um dia
é a quantidade de trabalho objetivada nos meios de subsistência consu­
midos naquele dia. Desse modo, é no fato de possuir um valor redutível
a trabalho objetivado que reside a característica que essa mercadoria
(a força-de-trabalho) tem em comum com as demais mercadorias.
Todavia, — e essa é a questão, - tal mercadoria possui também
uma característica que lhe é peculiar, que não se encontra em outras
mercadorias. Trata-se de uma propriedade fundamental da força-de-
trabalho; fundamental porque, na construção teórica de Marx, essa
propriedade da força-de-trabalho joga precisamente um papel essencial
na explicação do processo capitalista. Qual é essa propriedade? Embora
se trate de uma propriedade particular, ela pode ser descoberta com
123
exatidão se fizermos uma comparação com as outras mercadorias. Toda
mercadoria —que é sempre fisicamente determinada de modo concreto —
é utilizada pelo comprador quando se torna sua posse; ou seja, o compra­
dor desfruta do valor-de-uso que adquiriu ao pagar o valor daquela
mercadoria. Quem compra um par de sapatos consumirá esse par de
sapatos. A mesma coisa acontece com a força-de-trabalho; o comprador
da força-de-trabalho, ou seja, o capitalista, pode usá-la na medida em
que a comprou, no mesmo sentido que alguém que comprou os sapatos
pode usá-los; o único problema — e aqui está o núcleo da questão —
é saber o que quer dizer exatamente “usar a força-de-trabalho”. Se se
quer, as coisas podem ser postas nos seguintes termos: em que consiste
exatamente o valor-de-uso da força-de-trabalho? Ou seja: o valor-de-uso
pelo qual o capitalista pagou um valor-de-troca? A resposta é: o valor-
de-uso da força-de-trabalho é o próprio trabalho. É o trabalho que pode
ser efetuado pelo operário precisamente enquanto o operário é força-
de-trabalho; de modo que o capitalista, que comprou a disponibilidade
por um dia da força-de-trabalho, a utilizará, durante aquele dia, da única
maneira pela qual é ela utilizável, ou seja, extraindo dela o trabalho que
pode ser efetuado durante um dia. Assim como o valor-de-uso de um
par de sapatos é calçá-lo e caminhar com ele, ou seja, é a função parti­
cular que têm os sapatos, assim também existe uma função particular
da força-de-trabalho, que consiste na prestação de trabalho, no trabalho
em ato. Mas esse trabalho, esse trabalho vivo que brota da força-de-
trabalho, não é uma coisa qualquer, já que — e essa é uma questão de
que já falamos no início destas lições — o trabalho é substância do valor,
é a substância valorizadora, é a coisa que, quando é realizada, dá lugar
a produtos que são valores. Mas, com essa premissa, a explicação da
mais-valia, da diferença entre D’ e D, torna-se imediata. O problema
é que não existe nenhuma relação — atenção para isto! —entre a quanti­
dade de trabalho objetivado na força-de-trabalho e a quantidade de
trabalho que pode ser extraída dessa força-de-trabalho; trata-se de duas
quantidades de trabalho que nada têm a ver uma com a outra; esse é o
ponto essencial da explicação marxiana do lucro. Ou seja: se eu digo
que os meios de subsistência consumidos pelo operário num dia contêm
quatro horas de trabalho, porque são necessárias quatro horas para
produzi-los, isso não significa que o operário, cuja força-de-trabalho
foi comprada e posta para funcionar por um dia, possa dar quatro horas
de trabalho. Se a jornada de trabalho é de oito horas, serão extraídas
oito horas de trabalho vivo daquela força-de-trabalho. Então, o que
acontece? Acontece que o capitalista, comprador da força-de-trabalho,
pagou o valor correspondente a quatro horas e tem em mãos um valor
correspondente a oito horas. A diferença entre essas duas quantidades
de trabalho — o que Marx chama de trabalho excedente - é a origem
do valor excedente, da mais-valia, que se apresenta como incremento
do valor do capital. É essa, precisamente, a explicação da mais-valia dada
124
por Marx. A mais-valia, como qualquer outro valor, é trabalho. E que
trabalho? A diferença entre o trabalho prestado e o trabalho contido
na força-de-trabalho.
Por outro lado, deve-se acrescentar que o conjunto de mercadorias
simbolizado por M na fórmula D-M-D’ não compreende apenas a força-
de-trabalho, mas também outras coisas; ou seja, para usar a terminologia
que já vimos ao 1er o Capítulo VI, há aqui não apenas a compra da
condição subjetiva da produção, mas também a compra das próprias
condições objetivas da produção, ou seja, os meios de produção. De
que modo os meios de produção operam nesse processo? Esses meios
de produção possuem naturalmente um valor e, por isso, a aquisição
dos mesmos implica que uma parte do capital é empregada na compra
desses meios. De modo que o capital inicial global se subdivide em duas
partes, uma das quais compra os meios de produção por seu valor e outra
compra a força-de-trabalho também pelo seu valor. Essas duas partes
do capital, como já sabemos, são indicadas por Marx com as expressões
“capital constante” e “capital variável”. Essas palavras são usadas aqui
num sentido especial, que já esclarecemos, mas sobre o qual insistiremos
para evitar possíveis equívocos. 0 que Marx quer dizer quando fala em
“capital constante” e “capital variável”? Quer dizer o seguinte: o capital
constante é o valor dos meios de produção; por que é chamado de capital
constante? Não certamente porque o valor dos meios de produção não
se altere ao longo do tempo; aliás, em função do tempo, o valor dessa
parte do capital se altera como qualquer outra grandeza econômica;
portanto, não é esse o sentido da palavra “constante” ; não é essa a razão
(pois seria uma razão errada) que faz o capital constante se chamar capital
constante. Chama-se “constante” , ao contrário, por esta outra razão:
porque esses meios de produção transferem para o produto apenas o seu
valor-, ou seja, o valor dos meios de produção reaparece sem modificação
no valor do produto; e é precisamente porque reaparece sem modificação
no valor do produto que Marx o chama de “constante” ; podemos dizer
que é um valor que não se modifica sob o ângulo da constituição do
valor do produto. Ao contrário, o valor da força-de-trabalho é chamado
de “capital variável” pelo motivo oposto. Por que é variável? Porque a
força-de-trabalho transmite ao produto final não simplesmente seu próprio
valor, mas transmite seu próprio valor mais o valor devido ao trabalho
excedente, ou seja, a mais-valia. Isto quer dizer que a força-de-trabalho
é portadora de uma quantidade de trabalho maior do que a que ela
mesma contém; por isso, o valor do capital variável se modifica sob o
ângulo da constituição do valor do produto.
Vocês podem encontrar as definições em O Capital, Livro 1, páginas
234-235. A definição de Marx é a seguinte:
“A parte do capital, portanto, que se converte em meios de
produção, isto é, em matéria-prima, materiais acessórios e meios
125
de trabalho, não muda a magnitude do seu valor no processo
de produção. Chamo-a, por isso, parte constante do capital,
ou, simplesmente, capital constante.
“A parte do capital convertida em força-de-trabalho, ao
contrário, muda de valor no processo de produção. Reproduz
o próprio equivalente e, além disso, proporciona um excedente,
a mais-valia, que pode variar, ser maior ou menor. Esta parte
do capital transforma-se continuamente de magnitude constante
em magnitude variável. Por isso, chamo-a parte variável do capital,
ou simplesmente, capital variável.”
Sendo assim, do que é constituído o valor global de uma mercadoria
segundo essa teoria do valor de Marx? O valor global de uma mercadoria é
constituído de três partes: o valor do capital constante, o valor do capital
variável e a mais-valia. Indicando com c o capital constante, com v o
capital variável, com m a mais-valia, com M o valor do produto, temos:
c + v +m =M
Vejam que essas três partes do valor são todas elas quantidades
de trabalho: c é a quantidade de trabalho objetivada nos meios de
produção; v é a quantidade de trabalho objetivada dos meios de subsis­
tência; m é a quantidade de trabalho fornecida a mais pelo trabalhador,
ou seja, o trabalho excedente: v, ou seja, a quantidade de trabalho objeti­
vada nos meios de subsistência, coincide com uma parte do trabalho
que o operário executa durante o período de trabalho; m coincide com
a outra parte do período laborativo; finalmente, M é a quantidade de
trabalho globalmente objetivada no produto.
A distinção entre capital constante e capital variável é fundamental
para compreender a natureza do capital. Bem menos importante do que
ela, porque se desenvolve não no terreno dos princípios da economia,
mas tão-somente no simples terreno contábil, é uma outra distinção,
ou seja, a que existe entre capital “circulante” e capital “fixo” . Teremos
também de falar dessa segunda distinção, pois ela está implícita em
algumas das questões de que deveremos tratar.
Os meios de produção, cujo valor é o capital constante, são de
várias es écies: edifícios, máquinas, fontes de energia, matérias-primas.
Trata-se, portanto, de coisas bem diversas do ponto de vista do valor-
de-uso. Uma primeira diferença, que imediatamente salta à vista, é a
seguinte: uma máquina dura muitos anos, enquanto a matéria-prima,
ao contrário, desaparece inteiramente em um produto. O edifício, por
seu turno, tem uma duração longuíssima; por certo não desaparece no
produto. Para se ter um critério objetivo de julgamento sobre essa
durabilidade, raciocina-se do seguinte modo: a mercadoria produzida
126
pelo capital de que estamos falando é uma mercadoria produzida durante
um certo período, que deve ser considerado como pré-fixado de uma
vez por todas; portanto, quando se diz “valor” , pretende-se dizer: valor
do que foi produzido num dado período de tempo. Convencionalmente,
diz-se um ano, mas trata-se de um ano inteiramente convencional, que
pode não ter nada a ver com o ano solar. Em nossa fórmula do valor,
M é portanto o valor da produção anual numa certa atividade, num certo
processo. No início do ano, o capitalista que controla esse processo
compra os edifícios, as máquinas, as matérias-primas, tudo o que lhe é
necessário para levar adiante sua produção. Ora, um certo capital se chama
capital fixo se sua duração é maior que um ano; um edifício e uma máqui­
na são evidentemente capital fixo; ao contrário, chama-se capital circu­
lante o capital cuja duração é igual ou menor que um ano; por exemplo,
as matérias-primas são adquiridas através da constituição, no início do
ano, de um estoque, ou seja, de uma certa quantidade de matéria-prima
que servirá para alimentar o processo produtivo por um período não maior
que um ano; quando o estoque acaba, o capitalista o reconstitui, compran­
do-o de novo. A magnitude do estoque com relação à produção depende
do período que essa produção deverá durar (que se chama período de
rotação); portanto, se no início do ano o capitalista quer comprar um
estoque para um ano, comprará uma certa quantidade de matéria-prima,
que renovará no início do ano seguinte; mas poderia comprar um estoque,
por exemplo, para um mês, caso em que deverá renová-lo doze vezes;
por ano; se comprar um estoque para seis meses, renova-o duas ve­
zes; se compra um estoque para uma semana, deve renová-lo 52 ve­
zes, etc.
Para os salários, é a mesma coisa. Os salários — de acordo com a
colocação que Marx sempre adota e que é a típica da economia clássica —
são pagos antecipadamente; e, dado que são pagos por períodos não
superiores a um ano, o valor deles - ou seja, o capital variável - faz
parte do capital circulante. Temos, assim, que o capital fixo é consti­
tuído por uma parte do capital constante (máquinas, edifícios), enquanto
o capital circulante é a soma da outra parte do capital constante (matérias-
primas) e do capital variável (salários).
Devemos agora estabelecer que relação existe entre o capital com
o qual se inicia o processo produtivo e o valor que esse capital transfere
para o produto anual. Aqui, a distinção entre capital fixo e capital circu­
lante torna-se evidentemente importante. O capital fixo transfere para
o produto anual um valor igual à relação entre o valor desse capital fixo
e a sua duração em anos. Por exemplo, um capital fixo de valor 1.000
que dure 10 anos transfere para o produto anual um valor igual a
1.000/10 = 100. O capital circulante transfere para o produto anual
um valor igual ao produto do próprio valor multiplicado pelo número
dos períodos de rotação contidos em um ano. Por exemplo, se as anteci­
127
pações salariais forem feitas para uma semana, o valor transferido para
o produto anual é igual ao valor desse capital multiplicado por 52.
Uma hipótese simplificadora muito cômoda, que adotaremos com
freqüência e que é freqüentemente adotada por Marx, consiste em supor
que tanto o capital constante quanto o capital variável sejam capital
circulante antecipado para um ano. Nesse caso, o valor do capital e o
custo anual do produto coincidem.

128
Lição 13
A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA

Podemos retomar os comentários à fórmula de Marx a que havíamos


chegado na lição passada: o valor da mercadoria é a soma desses três
termos: capital constante, capital variável e mais-valia. Repito o que disse
no fim da lição passada, a saber, que — por motivos de simplicidade
expositiva —nós também faremos uso da hipótese de que se valeu freqüen­
temente Marx no curso do livro 1 de O Capital, isto é, a de que tanto
o capital constante quanto o variável são capital circulante antecipado
por um ano; trata-se, portanto, de capital circulante, cujo período de
antecipação coincide com o período ao qual se faz referência quando
se determina a quantidade produzida; indiquemos com M o valor anual
da mercadoria produzida; c e v são o capital constante e o capital variável,
ambos na forma de capital circulante antecipado por um ano; m é a
mais-valia que se forma durante o ano:
M= c + v+ m
Então, tanto M quanto m têm a natureza de fluxos ao longo do tempo:
M é o valor da mercadoria que se constitui durante o ano; m é a mais-valia
que se forma durante o ano; c e v têm uma dupla natureza, tanto de
estoque quanto de fluxo; são estoques iniciais, já que se trata de capital
antecipado no início do ano; porém, uma vez que a antecipação é anual,
o custo anual imputável a essas duas espécies de capital coincide numerica­
mente com o próprio capital; portanto, c e v são também fluxos anuais.
É essa — segundo Marx e sobre a base dessas hipóteses simplificadoras —
129
a constituição do valor da mercadoria. Como vocês se recordam, havíamos
esclarecido, na lição passada, a razão por que o capital constante se chama
constante e por que o capital variável se chama variável. Repito breve­
mente essas duas razões: o capital constante se chama constante porque
transfere para a mercadoria um valor idêntico ao seu próprio valor, nem
mais nem menos; já o capital variável se chama variável porque transfere
para a mercadoria, além de seu próprio valor, também um valor agregado,
que é precisamente a mais-valia simbolizada por m.
Disso resulta uma primeira conseqüência: que, sob essa aparência
neutra da soma de três elementos, já existem diferenciações que devem
ser examinadas. A primeira, a mais importante de todas, é a seguinte:
segundo tal colocação, o terceiro termo, a mais-valia, é gerado pelo
segundo, mas não pelo primeiro; ou seja, a mais-valia, o valor agregado
que a mercadoria possui com relação ao valor do capital antecipado,
é um valor agregado que é criado pela força-de-trabalho, cujo valor consti­
tui o capital variável. Portanto, a relação entre m e v é diferente da relação
entre m e c; entre v e m h á uma relação de causa e efeito; é v que causa
m ; ao contrário — pelo menos até esse momento e enquanto não tivermos
introduzido uma outra categoria, isto é, a taxa de lucro — temos de dizer
que a relação que existe entre c e m é simplesmente uma relação de justa­
posição: são dois elementos componentes de uma mesma totalidade.
Mas não existe outra relação, por ora, além dessa. Em virtude disso, como
creio já ter dito na aula passada, há uma primeira grandeza que tem sentido
definir no interior dessa fórmula (e que efetivamente Marx define), que
é a taxa de mais-valia, que se pode indicar com m¡v\ é a relação entre
a mais-valia e o capital variável. Repito brevissimamente a argumentaçío
que leva Marx a essa conclusão: se o operário fornece globalmente oito
horas de trabalho numa jornada, se nos meios de subsistência que ele
recebe como salário diário estão contidas quatro horas de trabalho, temos
então que, das oito horas de trabalho que ele fornece, as quatro primeiras
servem para reconstituir o valor da própria subsistência, ou seja, do capital
variável que ele recebe em pagamento, enquanto o resto é trabalho
excedente, ou seja, trabalho não pago. Nesse caso, a taxa de mais-valia
é quatro sobre quatro, isto é, 100%.
Essa taxa de mais-valia, depois de tudo o que dissemos, não é para
Marx um simples número, já que põe em relação duas grandes grandezas
entre as quais intercorre um vínculo de causa e efeito; põe em relação
recíproca duas grandezas intimamente vinculadas; é uma fração que,
além de seu óbvio aspecto aritmético, tem também um aspecto substancial,
no sentido de que o numerador é gerado pelo denominador; por isso,
quando se põem em relação essas duas grandezas, tem-se um índice do
grau de exploração; quanto maior for essa relação, maior é o trabalho
não pago, o trabalho excedente, com relação ao trabalho pago.

130
Antes de prosseguir, vamos fazer uma antecipação, que aliás é
feita pelo próprio Marx na passagem do Livro 1 em que fala da taxa
de mais-valia. Diz Marx: se se prescinde do modo pelo qual a mais-valia
é distribuída entre as classes proprietárias — portanto, se se prescinde
da sua distribuição em lucro, renda fundiária e juro, e se se imagina que
toda ela se resolva em lucro, que é hipótese com a qual se trabalha sempre
no Livro 1, deixando de lado essas outras cotas apropriadas pelas classes
proprietárias — então, dessa mais-valia que se resolve em lucro, diz
Marx: habitualmente, na prática contábil, na ideologia dos capitalistas,
na colocação dos- economistas vulgares, esse lucro é referido ao capital
global, não apenas a v, mas a c + v, dando assim lugar a uma figura ou
categoria particular, que se chama taxa de lucro. Aliás, em sentido
próprio, a mais-valia torna-se lucro apenas no âmbito dessa referência
ao capital global, ou seja, apenas enquanto é um dos termos que consti­
tuem a taxa de lucro. Ora, não é que a taxa de lucro não seja uma coisa
importante; veremos em que sentido o é para o próprio Marx, já que
o fato mesmo de que o lucro seja contabilmente referido ao capital global
empresta um certo andamento e um certo tipo de funcionamento ao
capitalismo; portanto, é preciso levar esse fato em conta; todavia, deve
restar claro — e é isso que Marx diz —que, quando a mais-valia é referida
ao capital global, encobre-se assim a sua origem, já que surge a aparência
de que é o capital global que produz esse lucro, de que capital variável
e capital constante são análogos desse ponto de vista, estando numa
mesma posição em relação ao lucro (o que implicaria, entre outras coisas,
a falta de sentido de distinguir entre capital constante e capital variável,
passando-se a ver o capital como um todo homogêneo); ao contrário,
se o lucro é referido apenas ao capital variável, põe-se então em evi­
dência — revela-se — sua origem; por isso, a taxa de mais-valia tem um
significado muito diverso do da taxa de lucro, porque é certamente, como
a taxa de lucro, uma relação numérica, mas uma relação numérica que
constitui a expressão de uma relação substancial, de geração, de causa
e efeito; disso resulta a importância que essa categoria tem para Marx.
Uma circunstância que deve ser observada é a seguinte: que a explo­
ração capitalista — tal como é revelada e mesmo mensurada pela taxa
de mais-valia — possui, segundo Marx, uma relação de continuidade e ao
mesmo tempo de descontinuidade, de ruptura, com a exploração que
tem lugar nas sociedades e economias pré-capitalistas. Em determinado
sentido, a exploração capitalista é como a exploração pré-capitalista;
em outro sentido, é muitíssimo diferente da exploração pré-capitalista.
Para introduzir essa questão, vamos ler um trecho de Marx, bastante
interessante; esse trecho se encontra em O Capital, Livro 1, página 265,
no parágrafo intitulado “A avidez por trabalho excedente” :
“Não foi o capital que inventou o trabalho excedente.”

131
Aqui se começa imediatamente por estabelecer uma relação com o que
aconteceu antes.
“Toda vez que uma parte da sociedade possui o monopólio
dos meios de produção, tem o trabalhador, livre ou não, de
acrescentar ao tempo de trabalho necessário à sua própria manu­
tenção um tempo de trabalho excedente destinado a produzir
os meios de subsistência para o proprietário dos meios de produ­
ção. Pouco importa que esse proprietário seja o nobre ateniense,
o teócrata etrusco, o cidadão romano, o barão normando, o
senhor de escravos americanos, o boiardo da Valáquia, o moderno
senhor de terras ou o capitalista. Todavia, é evidente que numa
formação econômico-social em que predomine não o valor-
de-troca mas o valor-de-uso do produto”
(como sempre ocorreu antes do capitalismo),
“o trabalho excedente1 fica limitado por um conjunto mais
ou menos definido de necessidades, não se originando da natu­
reza da própria produção nenhuma cobiça desmesurada por
trabalho excedente.”
Repito: no pré-capitalismo, “o trabalho excedente fica limitado por um
conjunto mais ou menos definido de necessidades, não se originando
da natureza da própria produção nenhuma cobiça desmesurada por
trabalho excedente” . Nessa breve passagem, está contida sinteticamente
a ilustração tanto do elemento de continuidade quanto do elemento
de descontinuidade entre a exploração capitalista e a pré-capitalista.
Qual é o elemento de continuidade? O elemento de continuidade consiste
nisto: que, também no capitalismo, o trabalho global se divide em suas
duas partes, em trabalho necessário e trabalho excedente, como sempre
ocorreu. O apropriador do produto desse trabalho excedente, do produto
excedente, foi muito diferente de acordo com as várias formas que a
exploração assumiu ao longo da história. Todavia, o tipo de apropriação
era sempre o mesmo. E, na realidade, o que era? Era a apropriação do
produto correspondente ao trabalho excedente, ou seja, o produto exce­
dente. Esse elemento é um elemento idêntico, que se encontra tanto
na Grécia Antiga quanto no capitalismo, como vocês puderam ler na
frase que citei. Com isso, dá-se um conteúdo determinado àquela propo­
sição, já enunciada por Marx no Manifesto de 1848, segundo a qual a
história foi até hoje a história de lutas de classe, e foi história da relação
entre classes dominantes e classes dominadas, entre exploradores e explo­

1. Como já observamos antes, a edição brasileira traz aqui “mais-valia”


e não - como é o certo - “trabalho excedente” (Nota do Tradutor).

132
rados; isso é dito no Manifesto de 1848; aqui, em 0 Capital, formula-se
mais precisamente o problema e diz-se que essa espécie de constante
histórica não é mais do que a divisão do trabalho global em trabalho
necessário e trabalho excedente, com a apropriação do produto exce­
dente — ou seja, do produto que corresponde ao trabalho excedente —
pela classe dominante ou exploradora; nesse sentido, precisamente, é
verdadeira a proposição inicial, ou seja, “não foi o capital que inventou
o trabalho excedente” ; o trabalho excedente sempre existiu, desde que
existe exploração. Esse é o lado da questão que se refere à continuidade.
Mas é evidente que tão ou mais importante é a descontinuidade, ou
seja, a especificidade da exploração capitalista; e vejam bem que se trata
de uma especificidade particularíssima, no seguinte sentido: que, se é
verdade que todas as formas de exploração possuem suas características
específicas que as distinguem das demais, a especificidade da exploração
capitalista, para Marx, reside no seguinte: que a exploração capitalista
se contrapõe a todas as outras em bloco; isto é, em outras palavras, todas
as outras constituem, em seu conjunto, uma categoria particular, que
poderia ser chamada de “exploração pré-capitalista” ; diante dessa cate­
goria, está a outra categoria, “a exploração capitalista”. Em que consiste
a diferença? A diferença consiste em dois elementos, intimamente ligados
entre si, .mas que convém examinar separadamente por comodidade
de exposição.
Em primeiro lugar, a diferença entre a exploração capitalista e
a exploração pré-capitalista consiste no fato — ainda superficial, se se
quer, mas do qual já se pode começar a esclarecer a questão — de que,
enquanto a exploração pré-capitalista é uma exploração evidente, clara,
imediatamente perceptível, a exploração capitalista, ao contrário, não
é nada clara, nem imediatamente perceptível, mas deve ser descoberta
mediante uma análise, até mesmo mediante uma ciência particular, que
é precisamente a economia política; não a economia política “clássica”,
nem muito menos a “vulgar” , mas a economia política “crítica”. E por
que a exploração capitalista é assim tão pouco evidente? Porque, enquanto
a exploração pré-capitalista é direta, no sentido de que o trabalho exce­
dente se configura sempre em formas visíveis, dando lugar a uma parte
do produto que é sempre materialmente separada da parte do produto
que o trabalhador conserva consigo para se manter vivo, no caso do
capitalismo, ao contrário, a exploração é indireta, é mediatizada, e media­
tizada precisamente pela troca; é mediatizada pelo valor. Em suma: se
se toma o valor da mercadoria, a parte que constitui o valor do capital
variável e a parte que constitui a mais-valia são dois valores; e só uma
análise é capaz de nos dizer que um corresponde a um trabalho necessário,
enquanto o outro corresponde a um trabalho excedente; a relação de
exploração, portanto, oculta-se por trás da relação de troca; e tanto
é verdade que as coisas se dão assim que esse fato tem um importan­
133
tíssimo reflexo jurídico, no sentido de que —enquanto no pré-capitalismo
o explorador e o explorado não participavam de um direito comum,
já que o explorador era juridicamente um privilegiado segundo o próprio
direito — no caso da exploração capitalista, ao contrário, o operário
e o burguês estão postos no interior de um direito comum; é verdade
que, de fato, um é explorador e o outro é explorado, mas do ponto de
vista do direito ambos são iguais. Em O Capital, Marx retoma um seu
velho filão de pensamento, que começa com a Introdução à Crítica da
Filosofia do Direito de Hegel e com A Questão Judaica, e reafirmado
nos Manuscritos de 1844 para desembocar depois precisamente em O
Capital, onde se diz que é a exploração que está na origem da desigual­
dade substancial que se encontra por trás da igualdade jurídica; porém,
o fato de que a relação de exploração seja mediatizada por uma relação
de troca, ou seja, o fato de que essa relação se verifique entre dois sujeitos
de troca (o operário e o burguês), assim como o fato de que esses dois
sujeitos, além de serem dois sujeitos de troca quaisquer no terreno eco­
nômico, são também juridicamente iguais, isto é, estão ambos situados
no quadro de um direito comum: tudo isso oculta a exploração capitalista,
faz com que ela não seja evidente, enquanto a exploração pré-capitalista
era algo evidente. Só a análise é que consegue descobrir que, na realidade,
as coisas continuam a se processar como antes, ou seja, do ponto de
vista da relação essencial entre as duas classes, na medida em que —
repito — uma vive do trabalho necessário e a outra do trabalho excedente.
É esse, portanto, o primeiro elemento de diferença: o caráter
indireto ou mediato da relação de exploração. Mas, desse elemento,
decorre uma segunda diferença, que, entre outras, é a que Marx tem
em mente no texto que estamos analisando: precisamente porque a explo­
ração, no sistema capitalista, está no interior de uma relação de troca,
o produto excedente — que existe tanto no capitalismo como antes -
tem porém uma veste particular, uma forma particular, tem a forma de
um valor; o produto excedente é um valor excedente, uma mais-valia;
essa é uma característica específica da exploração capitalista; o produto
excedente é uma mais-valia apenas no capitalismo, pois somente no
capitalismo é que o valor-de-troca tem relevância e extensão sistemática,
abarcando em si todo o processo produtivo e o condicionando; portanto,
o que é apropriado pelo explorador é um valor; não é um valor-de-uso;
desse modo, entre outras coisas, não serve essencialmente para o seu
consumo; só serve para o seu consumo subordinadamente. Mas, se o
produto excedente apropriado como mais-valia não serve essencialmente
ao consumo do explorador, então para que serve? Já o sabemos; já lemos
a resposta muitíssimas vezes, como vocês se lembram, no Capítulo VI:
a mais-valia serve para a ampliação sistemática do próprio valor; é por
isso que Marx pode dizer na frase que lemos: enquanto antes “o trabalho
excedente fica limitado por um conjunto mais ou menos definido de
134
necessidades” (ou seja, pelas necessidades da classe exploradora, as quais,
como corretamente diria Adam Smith, são condicionadas pelo fato de
que o estômago tem um certo tamanho e não pode se ampliar indefini­
damente), razão pela qual a produção de produto excedente e a prestação
de trabalho excedente não podem ser jamais tendencialmente ilimitadas
porque estão nos limites desse círculo determinado de necessidades,
que são as necessidades de consumo da classe exploradora, no capitalismo,
ao contrário, isso desaparece, porque o produto excedente é uma
mais-valia e não serve ao consumo, mas sim ao incremento do próprio
valor; portanto, pode ter uma dimensão qualquer e tende a ampliá-la
cada vez mais, a torná-la cada vez maior; é por isso que o capital tem
cobiça de mais-valia, de trabalho excedente, o que jamais aconteceu antes.
Acerca dessa tendência ilimitada ao aumento do capital, através
da transformação da mais-valia em capital, poderíamos ler muitas passa­
gens; já lemos algumas, mas vou ler agora uma outra, muito bela, contida
no primeiro volume dos Grundrisse, na página 330:
“O capital, representando a forma geral da riqueza (ou seja,
o dinheiro)” —
O dinheiro é a riqueza enquanto tal, a riqueza separada, até mesmo mate­
rialmente, dos valores-de-uso; a riqueza capitalista é sempre separada
dos valores-de-uso, os quais são indiferentes em relação a ela; mas o
dinheiro é também materialmente separado dos valores-de-uso, e, portanto,
é a riqueza em geral tornada concretamente sensível.
“O capital, representando a forma geral da riqueza (ou seja,
o dinheiro), é impulso ilimitado e desmesurado a ultrapassar
os seus obstáculos. Todo limite é e. deve ser para ele um obstá­
culo. Caso contrário, ele deixaria de ser capital, ou seja, dinheiro
que produz a si mesmo. Tão logo deixasse de sentir um determi­
nado limite como obstáculo, passando a senti-lo como limite
tolerável, decairia da condição de valor-de-troca para a de valor-
de-uso, da condição de forma geral da riqueza, para a de conteúdo
substancial determinado pela própria riqueza.”
E, na verdade, se o crescimento desse dinheiro, que se tornou capital,
estancasse em certo ponto, e o capital pudesse aceitar esse estancamente
e parar num determinado ponto de sua evolução, o que aconteceria?
Aconteceria que os valores-de-uso, nos quais o capital se encontra incorpo­
rado, naquele momento, tomar-se-iam imediatamente relevantes, precisa­
mente porque não seriam superados por outros valores-de-uso, que o
capital assumiria continuamente como suporte de sua ulterior expansão;
em tal caso, o valor-de-uso não seria mais subordinado ao valor-de-troca -
como o é no capital — e, por assim dizer, faria valer os seus próprios
135
direitos; mas, então, o capital não mais seria capital, já que a relação
entre valor-de-uso e valor-de-troca se inverteria em comparação com
aquela que é característica do capital. Depois, Marx concretiza —e esse
é um ponto importante:
“0 capital enquanto tal cria uma mais-valia ilimitada”
(é certo que, em cada oportunidade concreta, a mais-valia não pode
ser infinita; é sempre finita em cada oportunidade),
“já que não pode criar subitamente um ilimitado; mas ele [o
capital] é o movimento que tende perenemente a criar mais
capital” .
Esse movimento, que passa de toda determinação singular a uma outra
determinação sucessiva no que se refere à magnitude da mais-valia —
esse movimento é o capital. Temos aqui, portanto, o segundo elemento
de diferenciação entre a exploração capitalista e a pré-capitalista. Se se
quisesse, poder-se-ia dizer sinteticamente: a exploração pré-capitalista
é estática, a capitalista é evidentemente dinâmica. Embora se trate de
duas palavras extraordinariamente equívocas, podem ser empregadas
para facilitar a memorização.
Vamos ainda colocar uma outra premissa antes de abordar, na
próxima lição, a questão da taxa de lucro. Dos elementos que aparecem
na fórmula do valor da mercadoria, Marx deduz uma outra grandeza
ou categoria, muito peculiar a seu raciocínio; essa grandeza ou categoria
se chama “composição orgânica do capital” . É geralmente indicada com
a letra q, e é a relação entre o capital constante e o capital variável. Por
que essa categoria? Por que Marx a define? Antes de mais nada, há um
interesse imediato nessa relação, bastante óbvia, a ponto de ser ela usada
inclusive em colocações inteiramente exteriores ao quadro do marxismo,
em contextos diversos, ainda que numa forma um pouco diferente: se
se imagina por um momento que a taxa de salário seja dada (de modo
que as variações do capital variável coincidam com as variações do
emprego), então a composição orgânica do capital indica quanto capital
constante — ou seja, quanto valor em meios de produção —é posto em
movimento por cada operário singular; esse índice, que é freqüentemente
utilizado nas argumentações econômicas correntes, sob o nome de
“intensidade de capital”, é um índice extraordinariamente eficiente (como
diria Marx) do grau alcançado pelas forças produtivas; é um índice da
estrutura tecnológica do processo produtivo; e, grosso modo, pode-se
dizer que, quanto maior é o desenvolvimento das forças produtivas, tanto
mais alta é a composição orgânica do capital, ou, na hipótese empregada,
a intensidade de capital. Pode-se dizer isso de imediato; e, no fim das
contas, já é algo suficientemente relevante para justificar a atenção que
Marx dedica a essa relação; mas pode-se dizer algo mais.
136
Com efeito, se vocês refletirem por um momento na significação
desses símbolos, poderão observar o seguinte: uma vez que a mercadoria,
cujo valor M foi produzido, se encontra concluída, completa, ela sai
do processo produtivo; então, todo o trabalho que a produziu, subdi­
vidido em suas três componentes, é trabalho objetivado no interior dessa
mercadoria; porém, enquanto o processo produtivo está em curso, o
capital constante corresponde a um trabalho que se objetivou antes desse
processo produtivo, ao passo que tanto v quanto m representam o trabalho
que se está objetivando na mercadoria; é uma objetivação em processo,
uma objetivação em curso; por isso, se considerarmos o capital global,
ou seja, c + v, e o considerarmos no uso que dele se faz no processo
de que falamos, então podemos dizer que c representa o trabalho obje­
tivado, enquanto v representa (pelo menos no âmbito do capital) o
trabalho vivo. Por isso, a composição orgânica do capital é a relação
entre a parte do capital que é trabalho objetivado ou morto e a parte
do capital que é trabalho vivo. Ora, vocês se recordam —pois essa é uma
definição que lemos mais de uma vez no Capítulo VI — que, na opinião
de Marx, um dos aspectos mais caracterizantes do capital é a dominância,
a prevalência, a preponderância do trabalho morto sobre o trabalho vivo,
a inclusão do trabalho vivo no interior do trabalho morto, o fato de que
o trabalho vivo se explicita em função do trabalho objetivado nos meios
de produção e não vice-versa; ou ainda: não é o trabalho vivo que utiliza
o trabalho morto, mas é o trabalho morto que utiliza o trabalho vivo.
Marx disse isso inúmeras vezes. Ora, na opinião dele, precisamente porque
existe essa relação entre trabalho objetivado e trabalho vivo no interior
do capital, precisamente porque faz parte da própria natureza do capital
que o trabalho morto adquira preponderância cada vez maior, precisa­
mente por isso, esse fato —quando é considerado em seu aspecto quantita­
tivo — se reflete no aumento da composição orgânica do capital, que
expressa assim uma característica intrínseca à vida do capital.

137
Lição 14
A TAXA DE LUCRO

A primeira questão teórica que iremos enfrentar agora é a relativa


ao significado da taxa de lucro. Essa questão se resume inteiramente,
em substância, na seguinte pergunta: por que o lucro é referido ao capital
global e não apenas à parte variável do mesmo? Em outras palavras: já
que o lucro, enquanto mais-valia, tem sua origem no trabalho excedente,
já que o capital variável, portanto, enquanto gerador de trabalho vivo,
é a única parte do capital que dá origem ao lucro, por que então o próprio
lucro é referido ao capital global, dando assim lugar à categoria da taxa
de lucro? Pode-se ainda dizer que o problema consiste em determinar
a diferença de significado entre a taxa de mais-valia e a taxa de lucro.
Já vimos qual seja o significado da taxa de mais-valia: como vocês se
recordam, a relação entre a mais-valia e o capital variável põe imediata­
mente em evidência a origem da mais-valia; não é por acaso, como se
sabe, que Marx a chama também de taxa de exploração. Trata-se então
de saber qual é o significado, para Marx, da relação entre mais-valia e
capital global, ou seja, daquela relação em cujo âmbito a mais-valia assume
especificamente a forma do lucro.
Comecemos lendo o início do capítulo 2 do Livro 3 de O Capital
(pp. 44-45):
“A fórmula geral do capital é D-M-D’: lança-se uma soma de
valor na circulação, para retirar dela soma maior. O processo
que gera essa soma maior é a produção capitalista; o processo que
a realiza em dinheiro é a circulação do capital. O capitalista não
produz a mercadoria por amor a ela, pelo valor-de-uso que en­
cerra, nem para consumi-la pessoalmente. O produto que o
138
interessa efetivamente não é o produto concretamente consi­
derado, mas o valor excedente do produto acima do valor do
capital consumido para produzi-lo. O capitalista adianta todo
o capital, sem se preocupar com os papéis que seus compo­
nentes desempenham na produção da mais-valia. Adianta igual­
mente esses componentes, não só para reproduzir o capital
adiantado, mas também para produzir, acima dele, um valor
excedente. Só pode converter em valor maior o valor do capital
variável que adianta, trocando-o por trabalho vivo, explorando
o trabalho vivo. Mas só pode explorar o trabalho adiantando
ao mesmo tempo as condições requeridas para se efetivar esse
trabalho: meios e objeto de trabalho, maquinaria e matérias-
primas, isto é, transformando em condições de produção soma
de valor em seu poder. E só é capitalista, podendo empreender
o processo de exploração do trabalho, por ser o dono das condi­
ções de trabalho e encontrar o trabalhador que possui apenas
a força-de-trabalho.”
O ponto essencial, posto em evidência nesse texto, é que para
explorar o trabalho, ou seja, para extrair da força-de-trabalho não apenas
o “trabalho necessário”, mas também um “trabalho excedente” , o capi­
talista deve não apenas antecipar o capital variável, ou seja, a parte do
capital com a qual compra precisamente a força-de-trabalho, mas deve
antecipar também o capital constante, ou seja, a parte do capital que
fornece as condições objetivas para a excecução do trabalho. Essas duas
espécies de antecipação são ambas tão essenciais que o capitalista não
distingue entre elas e, portanto, executa o seu investimento “sem se
preocupar com os papéis diversos que seus componentes desempenham
na produção de mais-valia” ; ou seja, sem se preocupar com o fato de que,
enquanto a parte constitutiva variável se traduz naquela mercadoria
singularíssima que é a força-de-trabalho, que põe em ação a substância
valorizadora, a parte constitutiva constante, ao contrário, traduz-se em
mercadorias que são simples condição material para a explicitação daquela
substância.
Vejamos como essa posição de indiferença (poder-se-ia mesmo dizer:
de confusão por parte do capitalista) é posteriormente concretizada:
“Para o capitalista, tanto faz considerar que adianta capital
constante para tirar lucro do variável, ou que adianta o variável
para valorizar o constante; que dispende dinheiro em salário
para valorizar máquinas e matérias-primas, ou que adianta dinhei­
ro em maquinaria e matérias-primas para explorar trabalho.”
O exame da realidade objetiva, portanto, permite, por um lado,
precisar quão distante da realidade está a atitude do capitalista, e, por
139
outro, descobrir qual é a origem real desse erro e da ilusão que dele
decorre. Vejamos como esses dois elementos são colocados por Marx,
com grande clareza, em continuação à passagem que acabamos de ler
(sempre na página 45):
“Embora unicamente a parte variável do capital gere mais-valia,
só a gera se forem adiantadas as outras partes, as condições
de produção requeridas pelo trabalho. Não podendo o capi­
talista explorar o trabalho sem adiantar capital constante, e
não podendo valorizar esse sem adiantar o variável, parece-
lhe que ambos são iguais. Reforça seu ponto de vista a circuns­
tância de a proporção real de seu ganho ser determinada não
pela relação deste com o capital variável, mas com o capital
todo; não pela taxa de mais-valia, mas pela taxa de lucro, que,
conforme veremos, pode permanecer a mesma e, apesar disso,
corresponder a taxas de mais-valia diferentes.”
Mas, embora a complementariedade entre capital constante e capital
variável forneça a base objetiva para a relação entre mais-valia e capi­
tal total, ou seja, para a transformação da mais-valia em lucro, resta o
fato de que tal relação implica uma mistificação. Está escrito na página 48:
“A mistificação da relação do capital decorre de todas as partes
dele aparecerem igualmente como fonte do valor excedente
(lucro).”
A mistificação, portanto, consiste no fato de essa relação do lucro com
o capital global fazer pensar que seja o capital em seu conjunto a produzir
a mais-valia, e não apenas a parte variável do capital, ou seja, o trabalho
que é posto em função mediante essa parte variável; mas, a propósito
dessa mistificação, o trecho seguinte oferece um comentário e uma
posterior ilustração:
“A maneira como, por intermédio da taxa de lucro, a mais-valia
se transforma em lucro decorre de já se terem invertido as posi­
ções de sujeito e objeto no processo de produção.”
Vejamos o que isso quer dizer.
“Já vimos que, neste [no processo de produção], todas as forças
produtivas subjetivas do trabalho assumem a aparência de forças
produtivas do capital.”
Vocês se recordam que já vimos essa questão exposta no Capítulo VI.
“De um lado, personifica-se no capitalista o valor, o trabalho
pretérito que domina trabalho vivo; do outro, ao contrário,
aparece o trabalhador como força-de-trabalho considerada como
140
simples objeto, mercadoria. Dessa relação transtornada surge
necessariamente, já na simples relação de produção, a corres­
pondente concepção invertida, uma percepção transposta que
se desenvolve com as transformações e modificações do processo
de circulação propriamente dito.”
O que é dito aqui, em substância? Diz-se o seguinte: na medida
em que o trabalho vivo está incluído no processo de produção sob a
forma da força-de-trabalho, o trabalho vivo, por isso mesmo, torna-se
objetivamente uma parte do capital, precisamente a parte que se chama
variável. Precisamente porque intervém essa inversão entre sujeito e
objeto, pela qual o que é sujeito da produção (o trabalho) transmuta-se
em objeto que é parte do capital; precisamente porque essa inversão
já ocorre no interior do próprio processo de produção (precisamente
porque esse é o fato básico), torna-se depois possível para o capitalista
individual, e para o sistema em geral, colocar o capital como um bloco
único, no interior do qual não se pode fazer nenhuma distinção; um
bloco único que se toma o termo de referência para a mais-valia. Portanto,
a mais-valia se destaca, por assim dizer, de sua fonte real, precisamente
porque o trabalho, na forma de força-de-trabalho, é reificado, e, como
tal, englobado pelo capital, assimilado por esse, negado em sua especifi­
cidade. E o capital pode, após essa operação, apresentar-se como um
todo unitário, que se torna o único termo de referência possível para
a mais-valia, a qual, no âmbito dessa relação, torna-se lucro. O que se
diz aqui é uma espécie de corretivo - se assim quisermos - para um
possível equívoco, que podia decorrer das frases anteriores; elas poderiam
dar a impressão de que a referência da mais-valia ao capital total, feita
pelo capitalista, seria uma operação que se passaria apenas no interior
da subjetividade do próprio capitalista, quando na verdade o capitalista
realiza essa operação porque, objetivamente, o trabalho foi reduzido
a uma parte do capital. Ainda sobre essa questão, podemos ler nas
páginas 50-51:
“Relacionar quantitativamente o excedente do preço de venda
sobre o preço de custo com o valor de todo o capital adian­
tado é importante e natural, pois permite obter-se a proporção
em que se valoriza a totalidade do capital, ou seja, o grau de
valorização.”
Em outras palavras: qual .é a finalidade da produção capitalista?
Nada mais que o desenvolvimento sistemático do capital. Mas há um
modo de medir esse desenvolvimento? Há: é o grau de valorização do
capital em seu conjunto. Portanto, a taxa de lucro tem esse sentido
“importante” e “natural” : ele mede a velocidade de crescimento do
capital. Se digo que o capital tem uma taxa de lucro de 15 por cento,
digo que esse capital cresce a essa velocidade; digo que, a cada ano,
141
aumenta 15 por cento. Por que, então, é “importante” a taxa de lucro?
Porque é a representação da própria finalidade da produção capitalista,
já que fornece a medida em que tal finalidade teve êxito. Tudo isso,
poroutro lado, não deve fazer esquecer que a determinação da origem
do lucro implica que, na análise, se vá além dele, que se descubra o algo
do qual o lucro é a “forma transfigurada”. Com efeito, novamente Marx
afirma na página 51:
“A taxa de lucro difere quantitativamente da taxa de mais-
valia, embora mais-valia e lucro sejam de fato idênticos e quanti­
tativamente iguais; entretanto, o lucro é a forma transfigurada
da mais-valia”
(é aquilo em que a mais-valia se transforma quando é referida ao capital
total),
“desta dissimulando e apagando a origem e o segredo da exis­
tência. A mais-valia aparece sob a forma de lucro, e é mister
a análise para dissociá-la dessa forma.”
Decerto, imediatamente, o que se apresenta não é a taxa de mais-valia,
porém a taxa de lucro, tal como se encontra escriturada nos livros
contábeis do capitalista; necessita-se, portanto, de uma análise para
descobrir que, sob a taxa de lucro, oculta-se precisamente a taxa de
mais-valia.
O ponto fundamental a ter presente é o seguinte: que ambos os
momentos são essenciais, tanto o momento da mistificação quanto o
momento da objetividade. Por um lado, a taxa de lucro implica uma
mistificação, já que se refere o valor ao capital total e, com isso, perde-se
o conhecimento da origem do lucro, que é o trabalho não pago. Mas
essa mistificação tem uma base objetiva, não é uma mera ilusão, já que
a taxa de lucro é uma coisa - como Marx diz —“importante” e “natural”,
pois sem a taxa de lucro não se teria o grau de valorização do capital,
a medida da velocidade com a qual o próprio capital se desenvolve;
portanto, a taxa de lucro é um elemento constitutivo fundamental da
realidade capitalista. E o fato de que se coloque como elemento funda­
mental da realidade uma categoria que, entre outras coisas, esconde
a origem real do próprio lucro, tal fato se deve a que a realidade capi­
talista é em si mesma uma realidade contraditória: por um lado, o trabalho,
enquanto é produção de valor e de mais-valia, está na origem do lucro,
que, portanto, só pode ser reconhecido em sua essência quando é relacio­
nado ao que resulta do trabalho, isto é, ao capital variável; por outro
lado, o trabalho está incluído no capital, o qual, desse modo, enquanto
capital total, é o único ponto de referência para a avaliação da magni­
tude relativa do lucro; e, assim como o primeiro lado dessa contradição
expressa a origem dos fenômenos inerentes ao capital e, por isso, refere
142
o capital ao outro que o coloca em existência (o trabalho), do mesmo
modo o segundo lado expressa uma norma, uma lei de desenvolvimento,
que é implícita ao capital que se tornou totalidade. Se se perde um ou
outro desses lados, a análise resta incompleta. Ou se torna uma análise
“vulgar”, como é o caso da economia “burguesa” que se mantém presa
à superfície, isto é, ao lucro e à taxa de lucro, não indo até a mais-valia
e a taxa de mais-valia; ou, quando leva em conta apenas a mais-valia e
a taxa de mais-valia, e não também o lucro e a taxa de lucro, não consegue
representar o capital em sua lei interna de desenvolvimento.
Devemos agora estabelecer com exatidão que relação quantitativa
existe entre a taxa de lucro, por um lado, e, por outro, a taxa de mais-valia.
Essa fórmula expressa a taxa de lucro como função da taxa de mais-
valia e da composição orgânica do capital. A hipótese simplificadora
sobre a qual a fórmula se baseia é, mais uma vez, a de que tanto o capital
constante quanto o capital variável são capital circulante antecipado
por um ano. Sendo assim, a expressão que fornece a taxa de lucro (tl)
é simplesmente:

tl= -M -
c+v
Façamos agora estas simples operações algébricas: vamos dividir tanto
o numerador quanto o denominador por v e obteremos sucessivamente:
m
_v__ _ tm _ _ taxa de mais-valia^
c__l_ j q+ 1 comp. org. do capital + 1
v
A taxa de lucro resulta assim expressa como função da taxa de mais-valia
e da composição orgânica do capital; e vê-se imediatamente, através
dessa expressão, que a taxa de lucro é tanto maior quanto maior é a
taxa de mais-valia, e é tanto menor quanto maior é a composição orgânica
do capital.
A partir dessa fórmula, pode-se imediatamente ver o problema que,
nesse ponto, aparece para Marx, e que deveremos abordar nas próximas
lições. Vocês se lembram que Marx adota sempre a hipótese, justificada
pela realidade capitalista, de que a taxa de mais-valia é igual em todas
as atividades, já que se pressupõe que sejam iguais por toda parte a
extensão da jornada de trabalho e a taxa de salário. Portanto, qualquer
que seja o capital em discussão, esse tm tem sempre o mesmo valor.
Por outro lado, a composição orgânica do capital — diz Marx —é geral­
mente diferente de setor para setor; existem setores que empregam
143
muitíssimo capital constante com relação ao variável, outros que empre­
gam pouco. Pensem bem: uma central hidrelétrica, por exemplo, tem
um enorme capital constante e um pequeníssimo capital variável; uma
fábrica têxtil, ao contrário, tem muito menos capital constante com
relação ao variável. Isso quer dizer que, se tm é igual em todas as ativi­
dades, enquanto q é geralmente desigual entre as várias atividades, então
a taxa de lucro será diversa nas diferentes atividades. Mas isso é impos­
sível, porque a concorrência tem, como aspecto fundamental, a capacidade
de nivelar as taxas de lucro. Então, surge aqui um problema. Na próxima
lição, veremos qual seja esse problema.

144
Lição 15
VALOR-DE-TROCA E PREÇO DE PRODUÇÃO

Vocês se recordam que, na aula passada, chegamos à conclusão


de que se nós, seguindo o tratamento de Marx, admitirmos conjunta­
mente as duas hipóteses seguintes, a saber, que a taxa de mais-valia é
igual em todos os ramos e que a composição orgânica do capital é geral­
mente diversa de capital a capital, teremos que a taxa de lucro dos vários
capitais resulta desigual. Ou seja: resulta uma situação que não pode
ser considerada como uma situàçâo de equilíbrio, já que, em condições
de equilíbrio, a concorrência distribui os capitais entre as várias ativi­
dades, de modo a que as taxas de lucro sejam iguais em todas as partes.
Temos aqui, portanto, uma dificuldade. O primeiro modo de descrever
essa dificuldade pode ser exposto assim: a natureza da produção capitalista
é de tal ordem que, aparentemente, deverão se verificar ao mesmo tempo
três coisas impossíveis, ou seja, a igualdade das taxas de mais-valia, a
desigualdade das composições orgânicas de capital e a igualdade das
taxas de lucro; essas três coisas não podem se dar simultaneamente; mas
como, por outro lado, todas as três parecem ser necessárias, então nos
encontramos evidentemente em face de uma dificuldade.
Essa dificuldade é resolvida naturalmente, em certo sentido, pela
realidade do mercado. A realidade a resolve no sentido de determinar
um equilíbrio concorrencial, ou seja, no sentido de fazer com que as
taxas de lucro sejam iguais em toda parte. Mas quais são as condições
145
nas quais isso pode ser feito? Atenção para esse ponto, pois é o ponto
crucial. Quando dizemos que, se as taxas de mais-valia são iguais e as
composições orgânicas são desiguais, as taxas de lucro são desiguais,
estamos dizendo o seguinte: suponhamos que a troca entre as merca­
dorias ocorra segundo os valores. Se então a concorrência é um processo
que leva ao nivelamento das taxas de lucro, isso significa que esse nivela­
mento é obtido na condição de tomar as relações de troca diferentes
dos valores. Vejamos como Marx descreve essa dificuldade, em O Capital,
Livro 3, página 173:
“Mostramos portanto: em diferentes ramos industriais reinam
taxas de lucro desiguais que correspondem à diversa composição
orgânica dos capitais e, dentro dos limites referidos, aos dife­
rentes tempos de rotação.”
Essa segunda circunstância, relativa aos tempos de rotação, pode aqui
ser deixada de lado, pois — como já o fizemos — podemos supor que
os períodos de rotação sejam todos iguais a um ano; a questão, portanto,
é que temos taxas de lucro diferentes de acordo com a diversa compo­
sição orgânica dos capitais, subentendendo (aqui Marx não o diz, mas
o subentende sempre) que as taxas de mais-valia são iguais em todos
os ramos.
“E, por isso, também para igual taxa de mais-valia”
(ou melhor, precisamente no caso de taxas iguais de mais-valia),
“só para capitais de igual composição orgânica”
(decerto, se os capitais tivessem todos a mesma composição orgânica,
então não existiria a dificuldade; mas a têm diferente e, por isso, surge
a dificuldade)
“E, por isso, também para igual taxa de mais-valia, só para capi­
tais de igual composição orgânica —admitidos tempos de rotação
iguais —, é válida a lei segundo a qual os lucros se comportam
de acordo com as magnitudes dos capitais.”
(Em suma, trata-se da lei da igualdade da taxa de lucro, a qual, como
se viu, só tem validade “para capitais de igual composição orgânica” .)
“A validade do exposto depende da base em que se fundamentou
até agora nosso estudo: a de que as mercadorias são vendidas
pelo valor. Por outro lado, não há a menor dúvida de que, na
realidade, excluídas diferenças não essenciais, fortuitas e que
se compensam, não existe diversidade nas taxas médias de lucro
relativas aos diferentes ramos industriais”
(ou seja: não podem ser diferentes as taxas de lucro),
146
“nem poderia existir, sem pôr abaixo todo o sistema de produção
capitalista. Parece portanto que a teoria do valor é neste ponto
incompatível com o movimento real, com os fenômenos positivos
da produção e que por isso se deve renunciar a compreendê-los.”
Qual é o dilema diante do qual Marx se encontra? Até aquele
momento, ele representara e descrevera o movimento real, ou seja, a
natureza e as leis da economia capitalista, através da lei do valor; agora,
ele descobre que esse movimento real, tal como se expressa na realidade
da concorrência, é inconciliável com a lei do valor. Mas, se é inconciliável
com a lei do valor (que, ademais, continua a ser para Marx o fundamento
da produção capitalista), então isso significa que o movimento real é
incompreensível, ou seja, não se regula por nenhuma lei. Esse é o problema
diante do qual Marx se encontra. Ora, os capítulos que se seguem àquele
do qual lemos uma passagem, ou seja, os capítulos nono e décimo, contêm
a resposta de Marx a essa questão. O que se deve fazer para pôr de acordo
a lei do valor com o movimento real? Que fazer para evitar que o movi­
mento real resulte incompreensível, dada essa sua — pelo menos apa­
rente — divergência com a lei fundamental da produção capitalista? Qual
é a solução de Marx?
A idéia fundamental implícita na solução marxiana deve ser
expressa nos seguintes termos. Como vocês se recordam, quando formula
a teoria do valor, Marx dá uma definição particular do valor-de-troca
“enquanto distinto do valor como tal” ; e Marx diz: “o valor-de-troca é
a forma fenoménica do valor” . Ora, a solução que Marx propõe para o
problema que estamos examinando é um desenvolvimento ulterior dessa
linha. Ou seja: assim como o valor-de-troca é a forma fenoménica do valor,
do mesmo modo os preços pelos quais as mercadorias são efetivamente
trocadas em condições de equilíbrio concorrencial, ou seja, os preços
que realizam o nivelamento das taxas de lucro, não são mais do que
uma “forma transfigurada” dos valores-de-troca; isto é, assim como o
valor-de-troca seria incompreensível sem o valor (já que não passa do
modo pelo qual o valor se manifesta), do mesmo modo o preço seria
incompreensível sem o valor-de-troca, já que esse preço não é mais do que
uma transformação do próprio valor-de-troca, e, portanto, não poderia
sequer ser concebido se não tivéssemos como ponto de partida o que
deve ser transformado. É por isso, entre outras coisas, que esse problema
da dedução dos preços a partir dos valores é conhecido, na literatura
marxista, precisamente como “problema da transformação” ; o termo
é do próprio Marx. Trata-se, portanto, de determinar em que consiste
o procedimento mediante o qual os preços são deduzidos dos valores.
E, para tal fim, servir-nos-emos de um exemplo numérico; naturalmente,
a questão poderia muito bem ser tratada em termos gerais; porém, com
o exemplo numérico, a questão é mais simples; e, por outro lado, o que
se diz a respeito desse exemplo é — como vocês perceberão —imediata-
147
mente generalizável. Ou seja: nada do que é dito liga-se à particularidade
do exemplo numérico escolhido. Tomemos, portanto, em consideração
dois capitais, que geram dois processos produtivos, que produzem duas
mercadorias particulares; vamos estudar a composição em valor das
mercadorias assim produzidas, bem como a composição das várias partes
do capital, de um e de outro capital, advertindo que todas as grandezas
que serão determinadas desse modo serão determinadas em termos de
valor, ou seja, serão mensuradas pelas quantidades de trabalho que estão
contidas em cada uma dessas grandezas.
Utilizemos os seguintes símbolos: c é o capital constante, v é o
capital variável, m é a mais-valia, M é o valor do produto, tm é a taxa
de mais-valia (ou seja, m/v), q é a composição orgânica do capital (ou
seja, c/v), fl é a taxa de lucro, rm é a relação entre o valor da primeira
mercadoria e o valor da segunda mercadoria. O exemplo é o seguinte:

c V m M tm <7 tl rm
I 8 2 2 12 100% 4 20% 4
II 1 1 1 3 100% 1 50% 1

Como vocês podem ver, a taxa de mais-valia é a mesma nos dois


capitais, enquanto é diferente a composição orgânica; disso resulta que,
se os dois produtos forem trocados segundo a relação entre os valores
(isto é, 4:1), a taxa de lucro será de 20% para o capital I e de 50% para
o capital II. Portanto, não temos uma situação de equilíbrio. Para
empregar as palavras de Marx, que lemos há pouco:
“[. . .] não há a menor dúvida de que, na realidade, excluídas
diferenças não essenciais, fortuitas e que se compensam, não
existe diversidade nas taxas médias de lucro relativas aos dife­
rentes ramos industriais, nem poderia existir, sem pôr abaixo
todo o sistema de produção capitalista.”
Já que a situação não é de equilíbrio, ocorrerá um processo concor­
rencial, que — partindo dessa hipotética situação inicial — tenderá a
produzir o equilíbrio, ou seja, uma situação na qual a taxa de lucro seja
igual em toda parte. E o que será essa taxa de lucro igual para todos?
Esse é o ponto essencial da questão. O raciocínio de Marx pode ser
esquematizado do seguinte modo: a taxa de lucro que se realizará como
taxa geral, e, por isso, como taxa presente em todos os setores, será uma
taxa de lucro média, ou seja, não será nem uma nem outra das duas taxas
iniciais, mas uma média entre as duas. Que tipo de média? Será — como
é evidente — uma média aritmética ponderada, ou seja, ponderada com
148
a magnitude dos capitais em questão; do ponto de vista do cálculo, pode-se
chegar a essa média de um modo muito simples. Basta fazer o seguinte
raciocínio: há um lucro geral do sistema que coincide com a mais-valia
do sistema; ele é igual a 2 + 1, isto é, 3; existe um capital do sistema,
que é igual à soma de todo o capital, onde quer que esteja investido;
portanto, é 10 + 2, ou seja, 12. Portanto, a taxa média de lucro é a
relação entre o lucro do sistema e o capital do sistema, ou seja, 25%
(3 sobre 12); essa é a taxa média de lucro. Essa taxa média de lucro,
portanto, não é uma média abstrata, já que a concorrência a realiza em
todos os capitais. E qual é o resultado desse processo concorrencial?
O primeiro capital é 10; se a taxa de lucro é de 25%, o lucro realizado
pela concorrência é de 25% sobre 10, ou seja, 2,5. O segundo capital
é 2; o lucro é portanto 25% de 2, ou seja, 0,5. Quais serão, então, os
preços pelos quais as mercadorias irão ser vendidas? Eles serão obtidos
somando-se aos capitais — que, em nosso exemplo, correspondem também
ao custo das mercadorias — o lucro calculado segundo a taxa geral;
portanto, 8 + 2 + 2,5 = 12,5; e 1 + 1 + 0,5 = 2,5. A situação pode ser
resumida na seguinte tabela, onde L indica o lucro calculado segundo
a taxa geral,P o preço de produção e rp a relação entre os preços:

c V L P P
I 8 2 2,5 12,5 5
II 1 1 0,5 2,5 1

Pode-se ver que os preços são diversos dos valores: os valores estão entre
si como 4 para 1, enquanto os preços estão como 5 para 1. Em outras
palavras, a relação de troca entre as mercadorias, em condições de equi­
líbrio, é diversa da relação entre as quantidades de trabalho objetivadas
nas próprias mercadorias.
E esse, portanto, o processo de “transformação”, tal como é exe­
cutado por Marx. Nesse procedimento tão simples, há um ponto funda­
mental: temos, por um lado, um sistema de valores, e, por outro, um
sistema de preços; entre o sistema de valores e o sistema de preços, há
uma ligação; essa ligação é fornecida pelo termo médio, que se encontra
tanto no sistema dos valores quanto no sistema dos preços; esse termo
médio é a taxa de lucro. Essa última é calculada em termos de valor, já
que 25% é, em nosso exemplo, a relação entre a mais-valia e o valor do
capital (entenda-se: mais-valia e capital do sistema em seu conjunto);
mas ela reaparece idêntica no sistema de preços; e é precisamente por
isso que o sistema de preços é extraído do sistema de valores, já que
os preços são deduzidos dos valores, aplicando-se aos capitais uma taxa
149
de lucro determinada operando sobre os valores. Precisamente aqui está
a essência do raciocínio de Marx.
Cabe a pergunta: poderíamos determinar os preços das mercadorias
se não conhecêssemos os valores? A resposta de Marx e': não. De fato,
como faz Marx para determinar os preços? Aplica aos capitais singulares
uma taxa média de lucro. Mas essa taxa média de lucro, como poderíamos
conhecê-la se não conhecêssemos os valores sobre cuja base essa taxa
de lucro é calculada? Como teríamos podido saber, em nosso exemplo,
que a taxa média de lucro é de 25%, se não tivéssemos tido, como ponto
de partida, o valor das mercadorias? Eis, portanto, a conclusão de Marx:
os preços seriam incognoscíveis sem os valores. Vejamos como Marx se
expressa, na página 179:
“Os preços que obtemos, acrescentando a média das diferentes
taxas de lucro dos diferentes ramos aos preços de custo dos
diferentes ramos, são os preços de produção.”
Essas taxas de lucro, das quais a taxa geral de lucro é a média,
“devem ser inferidas [.. .] do valor da mercadoria. Sem essa
inferência, esvazia-se de sentido e conteúdo a noção de taxa
geral de lucro e, por conseguinte, a de preço de produção da
mercadoria”.
Portanto: a taxa geral de lucro e, em conseqüência os preços de
produção, são conceitos esvaziados de sentido e conteúdo sem os valores,
já que — sem os valores — não teríamos nenhum modo de determinar
a taxa geral de lucro e, portanto, os preços de produção. Uma impor­
tante conseqüência do raciocínio de Marx é a seguinte. Voltando a nosso
exemplo, vocês podem ver que a mais-valia global é 2 + 1 e o lucro global
é 2,5 + 0,5, ou seja, são ambos iguais a 3. A mais-valia do sistema e o
lucro do sistema têm a mesma grandeza. A diferença está no seguinte:
no que se refere à origem, a mais-valia global 3 se distribui entre os dois
capitais na proporção de 2 para 1; ao contrário, no que se refere à desti-
nação, a mesma mais-valia se distribui entre os capitais na proporção
de 2,5 para 0,5; mas é a mesma mais-valia que se distribui de outro modo.
Qual é, então, a natureza do processo de concorrência, de acordo com
esse esquema? É muito simples: a concorrência redistribui entre os capitais
uma mais-valia que nasceu de determinada maneira. Como nasceu a mais-
valia? Nasceu assim: 2 de um capital e 1 de outro capital; esses dois troncos
de mais-valia, 2 e 1, formam uma espécie de pool igual a 3; esse pool,
a concorrência o redistribui entre os capitais numa outra proporção,
de modo a nivelar as taxas de lucro. Portanto, repito: quanto à origem,
a mais-valia é 2 e 1; quanto à destinação é, ao contrário, 2,5 e 0,5. Mas,
então, compreende-se por que o preço é uma forma transfigurada do
valor-de-troca: na realidade, os preços resultam dessa redistribuição entre
150
os capitais de uma mais-valia, que outra coisa não é senão trabalho exce­
dente, de acordo com a teoria do valor-de-trabalho.
Vejamos como Marx se expressa sobre isso, lendo O Capital, livro 3,
página 179:
“Em virtude da diversa composição orgânica dos capitais inves­
tidos em diferentes ramos de produção; em virtude de capitais
de igual magnitude mobilizarem quantidades muito diferentes
de trabalho, de conformidade com a diversa percentagem que
o capital variável representa num capital global de grandeza
dada, apropriam-se esses capitais de quantidades muito diversas
de trabalho excedente, ou seja, produzem quantidades muito
diferentes de mais-valia. Por isso, originariamente diferem muito
as taxas de lucro reinantes nos diferentes ramos de produção.
As taxas diferentes de lucros, por força da concorrência, igua­
lam-se numa taxa geral de lucro, que é a média de todas elas.”
E na página 180:
“Os capitalistas dos diferentes ramos, ao venderem as merca­
dorias, recobram os valores de capital consumidos para produzi-
las; mas a mais-valia (ou lucro) que colhem não é gerada no
próprio ramo com a respectiva produção de mercadorias, e sim
a que cabe a cada parte alíquota do capital global, numa repar­
tição uniforme da mais-valia (ou lucro) global produzida, em
dado espaço de tempo, pelo capital global da sociedade em
todos os ramos.”
O problema, nesse ponto, pareceria resolvido se não interviesse
uma dificuldade, que o próprio Marx indicou com grande precisão,
embora — como veremos —não a tenha considerado decisiva. A natureza
dessa dificuldade pode ser vista com exatidão retomando o nosso exemplo
e raciocinando do seguinte modo: os valores das duas mercadorias do
exemplo, ou seja, 12 e 3, foram transformados, mediante o procedimento
que indicamos, respectivamente nos dois preços 12,5 e 2,5; mas — e
essa é a objeção que Marx mesmo se faz — também o capital constante
e o capital variável são compostos de mercadorias que têm determinados
valores; também esses valores deveriam ser transformados em preços de
produção; ou seja, a passagem dos valores aos preços não pode se efetuar
aplicando-se uma taxa geral de lucro a capitais determinados em termos
de valor, já que também esses capitais deveriam ser determinados em
termos de preços. Em outras palavras: o procedimento de transformação
que vimos antes é parcial, porque — se se aplica aos produtos —não se
aplica aos elementos que constituem o capital; ou seja, das mercadorias
presentes no sistema, só uma parte é incluída no processo de transfor­
mação, ou seja, a parte constituída pelos produtos, ao passo que a parte
151
constituída pelos meios de produção e pelos meios de subsistência nao é
englobada no processo de transformação.
E essa questão é ainda mais grave do que parece, bastando, para
comprová-lo, que vocês reflitam um momento sobre a seguinte questão.
No sistema econômico em seu conjunto, as mercadorias que constituem
o capital social, tanto sob a forma de meios de produção quanto sob
a de meios de subsistência, são as mesmas mercadorias que emergem
do processo de produção na condição de produtos. O que significa que,
no procedimento de transformação que vimos acima, uma mesma merca­
doria é calculada de duas maneiras diferentes: é calculada como preço
se sai do processo produtivo, mas é calculada como valor se nele ingressa.
Quando, por exemplo, o fertilizante sai da fábrica química, é calculado
em termos de preço; mas, quando entra na agricultura, é calculado em
termos de valor. Portanto, chega-se ao absurdo de que uma mesma merca­
doria tem duas relações de troca, uma das quais coincide com o preço,
quando a mercadoria é produto, enquanto outra coincide com o valor,
quando a mercadoria é meio de produção. O que, evidentemente, não tem
sentido. Por isso, não podemos dizer que esse procedimento nos dê a condi­
ção de equilíbrio. Se asituação em que as taxas de lucro são diversas não é uma
situação de equilíbrio, tampouco pode ser concebida como tal uma situação
na qual uma mesma mercadoria tem duas diferentes relações de troca.
Vejamos como Marx indica essa dificuldade. Ele escreve na página
187 (devemos recordar que, com a expressão “preço de custo”, Marx
entende a soma do capital constante e do capital variável, enquanto,
com a expressão “preço de produção” , indica o preço):
“E virtude do exposto, modificou-se a determinação do preço
de custo das mercadorias.”
Ou seja: daquele preço de custo que, de acordo com o procedimento
seguido, permaneceu inalterado na passagem do sistema dos valores para
o sistema dos preços, quando na verdade —como se começa a dizer aqui —
também ele deveria sofrer uma modificação.
“No início, admitimos que o preço de custo de uma merca­
doria era igual ao valor das mercadorias consumidas para pro-
duzi-la. Mas, para o comprador”
(ou seja, para quem compra os meios de produção),
“o preço de produção de uma mercadoria é o preço de custo,
podendo por isso entrar na formação do preço de outra merca­
doria como preço as custo.”
Isso quer dizer: o preço de produção de uma mercadoria é o que importa
para quem compra essa mercadoria como meio de produção, já que quem
152
compra o meio de produção não o compra por seu valor, mas pelo seu
preço de produção e, portanto, não o pode calcular depois como um
valor.
“Uma vez que o preço de produção da mercadoria pode des­
viar-se do valor, também o preço de custo de uma mercadoria,
no qual se inclui esse preço de produção de outra mercadoria,
está acima ou abaixo da parte do valor global formada pelo
valor dos correspondentes meios de produção consumidos.”
Ou seja: os meios de produção, se calculados (como se deve fazer) em
termos de preços, não coincidem com os mesmos se calculados em termos
de valor.
“Em virtude dessa significação modificada do preço de custo,
é necessário lembrar que é sempre possível um erro quando
num ramo particular da produção se iguala o preço de custo
da mercadoria ao valor dos meios de produção consumidos
para produzi-la.”
Portanto, Marx observa com grande clareza a necessidade de incluir os
valores das mercadorias que compõem o capital no processo de transfor­
mação. Por outro lado, conclui:
“Em nossa pesquisa atual, é desnecessário insistir nesse ponto.”
E a questão é deixada nesse nível. Naturalmente, nessa última
proposição, está implícita a sugestão de seguir adiante. O acolhimento
dessa sugestão e o desenvolvimento da investigação sobre a sua base
constituem o que hoje se apresenta como a complicada história daquela
parte da literatura econômica, marxista e não marxista, que se ocupa
precisamente do problema da transformação. Veremos, nas próximas
lições, quais são os pontos essenciais dessa história. Por ora, gostaria
de concluir com a seguinte observação. Se digo que os meios de produção
não podem ser considerados em termos de valor, mas devem ser consi­
derados também em termos de preços, então há uma coisa que certamente
não se pode mais fazer: ou seja, não se pode mais calcular a taxa de lucro
do modo pelo qual a calculamos; não se pode mais calcular a taxa de
lucro como relação entre o valor do produto excedente e o valor do
capital, precisamente porque são esses valores que devem ser transfor­
mados em outra coisa. Se tenho de transformá-los em outra coisa, não
posso assumi-los como elementos determinantes da taxa de lucro. Se
se quer, pode-se formular a questão em outros termos, embora equi­
valentes: no processo de transformação de Marx, a sucessão lógica das
categorias empregadas é a seguinte: valor, taxa de lucro, preço. Ou seja:
o valor é o ponto de partida, é o dado desse processo; a taxa de lucro
é determinada uma vez que os valores sejam conhecidos; uma vez conhe-
153
cida a taxa de lucro, ela é aplicada ao capital, calculado em termos de
valor; e, desse modo, obtém-se o preço. Mas é precisamente essa operação
que não pode mais ser feita: em primeiro lugar, porque não se pode calcu­
lar a taxa de lucro em termos de valor, dado que o capital já está ele
mesmo se transformando de valor em preço; e, em segundo, independen­
temente do modo como seja calculada a taxa de lucro, ela não pode
ser aplicada a um capital determinado em termos de valor. Então, aquela
sucessão lógica resulta evidentemente destroçada.
A conclusão é a seguinte: não se pode mais determinar a taxa de
lucro antes de haver determinado os preços, já que a taxa de lucro é
uma relação entre grandezas determináveis como preços; portanto, é
impossível pressupor a taxa de lucro como algo anterior ao sistema de
preços. Vejam bem: tampouco é possível fazer o contrário, ou seja,
calcular primeiro os preços e depois — uma vez conhecidos os preços —
calcular a taxa de lucro. Como seria possível determinar os preços sem
a taxa de lucro, uma vez que os preços incluem a taxa de lucro? Não é
possível nem supor a taxa de lucro como anterior aos preços, nem supor
os preços como anteriores à taxa de lucro. Então, que caminho resta?
Somente um: determiná-los simultaneamente. Ou seja, é preciso formular
um procedimento no qual um único conjunto de condições —e veremos
quais — determina simultaneamente, ou seja, através de um sistema
de equações, o sistema dos preços e a taxa de lucro. Resta ainda uma
última coisa a dizer aqui. A fim de que esse procedimento, com o qual
se determinam simultaneamente os preços e a taxa de lucro, tenha ainda
algo a ver com o problema de Marx, exige-se uma condição, ou seja,
que os dados de onde se parte para determinar simultaneamente os preços
e a taxa de lucro sejam ainda os valores das mercadorias. É esse o problema
da transformação, como foi interpretado até agora. Ele se expressa assim:
formular um sistema de equações de tal natureza que, tendo como dados
os valores das mercadorias e refletindo em sua estrutura as condições
do regime concorrencial, determine simultaneamente a taxa de lucro
e os preços.

154
Lição 16
A HISTÓRIA DO PROBLEMA DA
“TRANSFORMAÇÃO” DOS
VALORES-DE-TROCA EM PREÇOS DE
PRODUÇÃO

Recomecemos da constatação de que, após ter executado um certo


tipo de “transformação” dos valores em preços de produção. Marx julgou
insuficiente ó procedimento que ele mesmo seguiu. Como vocês se recor­
dam, a insuficiência do procedimento consistia no fato de que o processo
de transformação era incompleto, já que eram submetidos à transfor­
mação os valores dos produtos, mas não também os valores das merca­
dorias que constituem o capital, tanto o constante quanto o variável.
A sugestão, contida implicitamente nessa observação de Marx, é que o
processo de transformação deve ser completado, ou seja, estendido dos
valores dos produtos aos valores das mercadorias que formam o capital.
Vocês também se recordam do problema que surge nesse ponto. O proce­
dimento seguido por Marx consiste em calcular a taxa de lucro em termos
de valor; depois, em aplicar essa taxa de lucro aos capitais singulares,
determinados também em termos de valor, e chegar assim aos preços
de produção. Desse modo, a taxa de lucro é calculada antes de se terem
determinado os preços; aliás, é a via através da qual se chega a calcular
os preços. Porém, se o próprio capital sobre o qual o lucro deve ser
calculado não pode ser determinado em termos de valor, mas tem de
ser determinado em termos de preço, então é impossível calcular a taxa
de lucro antes de se ter calculado os preços. Esse é o ponto ao qual
havíamos chegado; trata-se agora de ver de que modo se possa resolver
esse problema. Sempre por razões de simplicidade, convém proceder
155
novamente mediante o exemplo numérico que vimos na lição anterior,
e que agora reproduzo para facilitar a exposição:
Sistema dos valores
c V m M rm
I 8 2 2 12 4
II 1 1 1 3 1

Taxa de lucro

Sistema dos preços


c V L P P
I 8 2 2,5 12,5 5
II 1 1 0,5 2,5 1

Repito que o princípio sobre o qual se baseia esse procedimento


da transformação é o seguinte: parte-se dos valores; desses valores,
deduz-se a taxa de lucro; dessa taxa de lucro, aplicada aos capitais calcu­
lados sempre em termos de valor, deduz-se os preços de produção. Se
esse método se conservasse de pé, poderíamos dizer — como Marx diz —
que efetivamente os preços são determinados pelos valores. A tese segundo
a qual os preços são determinados pelos valores resulta claramente confir­
mada por esse procedimento, já que ele se apóia inteiramente no fato de
que os preços são determinados em função da taxa de lucro, a qual por
sua vez é determinada em função dos valores; portanto, tem sentido dizer
que os preços dependem dos valores, e que, como diz Marx, se não
conhecêssemos os valores, não poderíamos jamais calcular os preços, pois
não poderíamos calcular jamais a taxa geral de lucro que é essencial
para calcular os preços.
Ora, qual é a crítica que o próprio Marx faz a esse procedimento?
A crítica — como vocês se recordam — é esta: enquanto os dois valores
dos produtos acabados, 12 e 3, foram transformados respectivamente
nos preços 12,5 e 2,5, as mercadorias que constituem o capital, ao
contrário, foram ainda calculadas segundo seus valores. E isso é absurdo.
O processo de transformação deve englobar os preços de todas as merca­
dorias, qualquer que seja sua posição no processo produtivo. Então,
156
repito: isso significa que não se pode mais calcular a taxa de lucro anteci­
padamente, isto é, antes dos preços; toma-se assim necessário um proce­
dimento que determine a taxa de lucro e os preços simultaneamente.
Esse problema — como já disse — tem uma longa historia atrás de si;
e são muitos os autores que dele se ocuparam. Mas não seguirei essa
historia passo a passo, pois seria demasiado longo; ao contrário, tentarei
simplesmente mostrar, num esquema unitário, qual é o núcleo dessa
história.
Continuemos, por enquanto, a trabalhar com nosso exemplo, em
vez de usar um caso geral; depois, tentaremos generalizar. Deveremos,
portanto, estabelecer um sistema de equações de tal ordem que, sendo
nele conhecidos apenas os valores, ou seja, as quantidades de trabalho,
esse sistema determine ao mesmo tempo os preços e a taxa de lucro.
Para simplificar, façamos a seguinte hipótese (que depois abando­
naremos): suponhamos que as duas mercadorias produzidas pelo capital
de nosso exemplo sejam, respectivamente, capital constante e capital
variável. Em outros termos: suponhamos que o capital constante seja
constituído por uma única mercadoria, a produzida pelo primeiro capital
(digamos: ferro); e que o capital variável seja constituído por uma outra
única mercadoria (digamos: o trigo), que é produzida pelo segundo capital;
de modo que temos aqui dois capitais e duas mercadorias para representar
todo o sistema econômico. Portanto, voltando ao exemplo, temos uma
produção em valor igual a 12 de ferro; e, para produzi-la, emprega-se
0 valor 8 de ferro e 2 de trigo. Depois, temos uma produção em valor
igual a 3 de trigo; e, para produzi-la, emprega-se o valor 1 de ferro e
1 de trigo.
Indiquemos agora com x a relação entre o preço do ferro e o valor
do ferro, e com y a relação entre o preço do trigo e o valor do trigo;
de modo que, se Pi e Mt são respectivamente o preço e o valor do ferro,
e P2 e M2 respectivamente o preço e o valor do trigo, temos:
Pi_ P2
M2 ’
ou:
Pi = MjX, P2 = M2y.
Por isso, o capital investido na produção de ferro, calculado em termos
de preços, é 8x + 2y, e a produção do ferro, sempre em termos de preços,
é \2 x\ o capital investido na produção de trigo é x + y, e a produção
do trigo é 3y. Se indicamos com tl a taxa de lucro, teremos esse sistema:
(8x 4- 2y) (1 + tl) = 12x
( x + y) (1 + tl) = 3y
157
São duas equações com três incógnitas: tl, x e y. Trata-se, por outro
lado, de um sistema homogêneo em x e y, que só pode dar a relação
entre essas duas incógnitas e não também o nível absoluto delas. Assu­
mindo então y como unidade de medida e pondo portanto y = 1, o
sistema permite determinar x e tl. A solução é :
x = 1,37
y = 1
tl = 26,5%
Recordando como foram definidos x e y , pode-se deduzir dessa solução
os dois preços, que serão: Pt = 12 • 1,37 = 16,44; P2 = 3 • 1 = 3. Apli­
cando x e y a todos os outros elementos da tabela dos valores, obtém-se:

Sistema dos preços


c V TL P rp
I 10,96 2 3,48 16,44 5,46
II 1,37 1 0,63 3 1

Nessa tabela, ao contrário do que acontecia na anterior tabela


de preços, a transformação englobou todos os valores e não apenas os
valores dos produtos. Quais as diferenças que resultam da comparação
entre a transformação correta dessa tabela e a transformação incompleta
da tabela anterior? Enquanto com o primeiro método de transformação
os preços se situavam numa relação de 5 para 1, agora estão numa relação
de 5,46 para 1. Portanto, já obtivemos um resultado diverso do que
teríamos obtido com o procedimento de Marx. Mas a coisa mais impor­
tante é que obtivemos uma taxa de lucro de 26,5 por cento e não de
25, como se obtinha com o procedimento de Marx. Ora, trata-se de um
resultado que deve ser meditado, já que aqueles 25% que eram obtidos
mediante o procedimento do Livro 3 de O Capital eram uma taxa de
lucro inteiramente peculiar: esses 25% eram a relação entre o trabalho
excedente do sistema e o trabalho objetivado no capital do sistema;
esses 25%, desse modo, eram uma relação entre duas quantidades de
trabalho. Ou seja: essa taxa de lucro, precisamente porque havia sido
determinada em termos de valor, era uma relação entre quantidades
de trabalho. E, na medida em que a taxa de lucro se identifica com a
relação entre aquelas duas quantidades de trabalho, ou seja, entre a
mais-valia do sistema e o trabalho contido no capital do próprio sistema,
pode-se dizer que a taxa de lucro é o que é em conseqüência direta da
teoria do valor-trabalho. Nesse caso, se os preços não coincidem com
158
o valor, pouco importa, pois o que importa é que a taxa de lucro conser­
vou bem mais que a simples marca de sua origem: conservou todas as
características da sua origem, ou seja, uma relação entre quantidades
de trabalho. E, se a taxa de lucro é uma relação entre quantidades de
trabalho, então podemos dizer — como Marx dizia — que o desvio dos
preços em relação ao valor é realmente o efeito de uma redistribuição,
entre os vários capitais, de um lucro, o qual, quanto à sua origem, continua
porém a ser a mais-valia do sistema.
Esse é o ponto importante. Mesmo que os preços divirjam dos
valores, podemos dizer com Marx — neste caso — que essa divergência
deve-se ao fato de que o lucro, sempre idêntico à mais-valia, isto é, ao
trabalho excedente, do sistema, distribui-se entre os vários capitais, como
conseqüência da concorrência, em proporções diversas daquelas com as
quais, em sua origem se distribuía entre os vários capitais. Mas se, para
a taxa de lucro, obtemos um valor que nada tem a ver com a relação
entre aquelas duas quantidades de trabalho, então parece que essa linha,
que esse raciocínio, na realidade, não tem mais validade. Em outras pala­
vras, a pergunta que pode ser colocada é a seguinte: se a taxa de lucro
não é mais a relação entre aquelas duas quantidades de trabalho, então
que sentido pode tera afirmação de que os preços são determinados
pelos valores, que é a tese central do Livro 3 de O Capital? Essa é a
questão. Repito: se a taxa de lucro não é determinada em termos de
valores, isto é, de trabalhos incorporados, então que significado podemos
continuar a dar à proposição segundo a qual os preços são determinados
pelos valores? Antes, os preços eram determinados pelos valores, já que
a taxa de lucro servia de mediação entre valores e preços; tanto é verdade
que ela aparecia idêntica em ambos os esquemas: em nosso exemplo,
tanto no esquema do valor quanto no esquema dos preços, a taxa de
lucro seria sempre de 25%. Mas, quando essa ligação se quebra, já que
a taxa de lucro não pode mais ser determinada em termos de valor e seu
nível numérico é diverso da relação entre aquelas quantidades de trabalho,
então que sentido podemos ainda atribuir à proposição de que os valores
determinam os preços? Esse é o problema. Por outro lado, poderíamos
dizer: o ponto de partida continua sempre a ser constituído por valores,
e, nesse sentido, os valores desempenham um papel preciso na determi­
nação da taxa de lucro.
Mas, para vermos melhor esse ponto, devemos seguir adiante na
exposição da história do problema da transformação. O método de
transformação a que aludimos não tem o defeito do apresentado no
Livro 3 de O Capital, já que nele tudo é incluído no processo de transfor­
mação; ou seja, não apenas os produtos acabados, mas também as
mercadorias que compõem o capital. Portanto, poder-se-id dizer que o
problema foi resolvido. Pelo menos, é o que parece. Todavia, exami­
nando com atenção esse sistema, o que resulta é que, na realidade, a
159
solução para a dificuldade indicada pelo próprio Marx é, com esse sistema,
uma solução apenas aparente. Também esse é um ponto delicado, que
devemos examinar agora. Por que a solução é apenas aparente? Como
vocês se lembram, nós supusemos que o capital constante e o capital
variável eram constituídos de uma única mercadoria, ou seja, respecti­
vamente, de ferro e de trigo. Mas é evidente que temos aqui uma
simplificação inteiramente irrealista: na realidade, as coisas não se passam
assim de modo algum; tanto o capital constante quanto o capital variável
são constituídos por mercadorias diversas. Se se leva em conta esse fato,
o que quer dizer, por exemplo, esse número 81? Este número indica,
numa unidade qualquer de medida, a quantidade de trabalho contida
no conjunto das mercadorias que constituem o capital constante. E
mais: o que é o número 1 que está na rubrica do capital variável no
segundo capital? Em uma unidade qualquer de medida, é. a quantidade
de trabalho contida nos meios de subsistência, que são pagos como
salário aos trabalhadores que trabalham no setor que produz meios de
subsistência. E o que quer dizer este 3? Este 3 é a quantidade de trabalho
globalmente contida nos meios de subsistência produzidos. Em outros
termos: todos esses coeficientes que aparecem nas equações representam,
na verdade, agregados de mercadorias; não são mercadorias singulares,
mas agregados, conjuntos de mercadorias. Mas, então, se eu escrevo —
como escrevi aqui — 8x para indicar a transformação do cálculo em
valor para o cálculo em preços daquele agregado de mercadorias que
constitui o capital constante investido no primeiro setor, o que é que
eu suponho na realidade? Suponho que as mercadorias que constituem
esse capital constante são ainda trocadas entre si de acordo com os valores
e não segundo os preços, já que aplico um coeficiente único de transfor­
mação de valores em preços ao inteiro agregado, o que significa que -
no interior desse agregado — dou por suposto que as relações de troca
entre as mercadorias são correspondentes às relações entre os valores.
Em outras palavras: para tornar a coisa mais evidente, vamos supor que
sejam duas as mercadorias contidas neste 8; que, na realidade, este 8
seja constituído por 5 do valor de certa mercadoria e por 3 do valor
de uma outra. Para passar aos preços, multiplico tanto o 5 quanto o
3 por x; tanto isso é verdade que multipliquei por x a sua soma, isto
é, 8. Ora, a relação entre preços, isto é, 5x/3x é igual à relação entre
valores, ou seja, 5/3; portanto, continuo a supor que, no interior do
agregado, as relações de troca entre as mercadorias processam-se segundo
os valores e não segundo os preços. Desse modo, malgrado o passo adiante
que certamente dei em relação ao método do livro 3, apliquei de fato

1. O autor refere-se, evidentemente, a números contidos nas tabelas apresen­


tadas em páginas anteriores, às quais o leitor deve recorrer para seguir aqui sua
argumentação (Nota do Tradutor).
160
um método de transformação ainda incompleto, já que resta um resíduo,
no sentido de que se continua a supor que, no interior de cada um dos
agregados que aparecem no sistema, as relações de troca entre as merca­
dorias são relações entre valores. Todavia, como vocês podem facilmente
imaginar, essa diferença certamente não é decisiva, porque pode ser resol­
vida com segurança. Qual é o modo de resolver essa diferença? Basta
reescrever nosso sistema, mas de tal modo que os coeficientes das equações
refiram-se sempre não a agregados, mas apenas a mercadorias singulares.
Agora, convém evidentemente abandonar o exemplo numérico
e tratar a questão em termos gerais.
Indiquemos com Ty o valor da mercadoria i empregada na produção
da mercadoria /. Valor significa quantidade de trabalho: portanto, esse
símbolo indica a quantidade de trabalho que está contida naquela quanti­
dade das mercadorias i que serve para produzir aquela quantidade da
mercadoria j que é produzida pelo sistema. Essa mercadoria — aqui não
é mais necessário distinguir — pode ser um meio de produção, assim
como pode ser um meio de consumo; isso é inteiramente indiferente;
pode fazer parte do capital constante ou do capital variável. Depois,
indiquemos com Tj o valor da mercadoria / produzida no sistema. Então,
a que sistema de equações chegamos? É muito simples: se indicamos
com p i , p2 . . . . pn os coeficientes de transformação dos valores em
preços, e, como de hábito, com tl a taxa de lucro, teremos:
(L 11 P 1 + L 21 P2 + . . . . + Ln lPn) (1 + tl) = L 1 P 1
(L 12P 1 + t 22p2 + -----+ Ln2Pn) (1 + tl) = L2p2

(LinPi + L2np2 + . . . . + Lnnpn) (1 + tl) —Lnpn


É claro que a incógnita genérica pi não é mais do que o preço daquela
quantidade de mercadorias i que uma unidade de trabalho contém
objetivada. Por isso, esses p podem sem problemas ser chamados de
preços. Repito: trata-se dos preços unitários de cada mercadoria, contanto
que — como unidade de medida da mercadoria — seja tomada aquela
quantidade de trabalho que é contida em uma unidade de trabalho (por
exemplo: uma hora de trabalho).
Temos, portanto, um sistema de n equações com n + 1 incógnitas,
que são os n preços e a taxa de lucro; porém, esse é um sistema homo­
gêneo nos pp, e, portanto, determina apenas a relação entre esses e não
os termos absolutos. Trata-se de estabelecer uma unidade de medida.
Pode-se pôr, por exemplo, p t = 1; perde-se assim uma incógnita e chega-se
a um sistema de n equações com n incógnitas, ou seja, n — 1 preços e
a taxa de lucro. Resolvido esse sistema, encontram-se os preços e a taxa
161
de lucro. Em função de quê? Dos coeficientes das equações, que são
os valores. Desse modo, a dificuldade a que nos referimos é superada.
De fato, não se pode dizer que, no interior de cada uma das quantidades
tomadas como dadas, tenham lugar relações de troca iguais às relações
entre as quantidades de trabalho contidas, já que cada uma dessas
quantidades refere-se agora a uma mercadoria singular, e, portanto, exis­
tem tantos preços quantas sejam as mercadorias presentes no sistema.
A transformação dos valores em preços, desse modo, é realmente
completa.
Podemos, então, afirmar ter resolvido satisfatoriamente o problema
marxiano da transformação? É verdade — e já observamos isso — que
a taxa de lucro não é mais igual à relação entre a quantidade de trabalho
contida no produto excedente, ou trabalho excedente, e a quantidade
de trabalho contida no capital; mas parece que se possa dizer que cabe
aos valores, de qualquer modo, um papel decisivo, a partir do momento
em que tanto a taxa de lucro quanto o sistema de preços de produção
são determinados precisamente a partir dos valores, que são efetivamente
as únicas grandezas dadas em nosso sistema de equações. Mas a questão,
infelizmente, não é tão simples; e precisamente o fato de termos colocado
o problema da transformação em termos desagregados, ou seja, assumindo
como valores dados não os valores de grupos de mercadorias, mas os
valores das mercadorias singulares, permite-nos ver exatamente onde se
aninha a última dificuldade dessa complexa questão.
Tomemos qualquer um dos coeficientes de nosso sistema de
equações: por exemplo, Ln l. O que representa? Representa a quantidade
de trabalho contida na quantidade da enésima mercadoria que serve
para produzir uma certa quantidade da primeira mercadoria (precisa­
mente aquela quantidade da primeira mercadoria na qual está contida
a quantidade de trabalho L i). Ora, prestem atenção para isto: a quanti­
dade de trabalho contida numa certa quantidade de uma certa mercadoria
pode muito bem ser considerada como um modo para medir essa quanti­
dade física da mercadoria. Se me pergunto que quantidade de trigo foi
produzida no sistema, posso responder dizendo: tantos quintais, o que
significa que assumi o quintal como unidade de medida da quantidade
de trigo. Mas, se sei quanto trabalho está contido num quintal de trigo,
posso também responder que a quantidade de trigo produzida foi tantas
horas de trabalho. Em outras palavras: a quantidade unitária de cada
mercadoria pode ser definida como aquela quantidade da mercadoria
que contém uma hora de trabalho.
E não só isso. Se olharmos bem, descobriremos que, no sistema
de equações que antes escrevemos, as quantidades de trabalho que
aparecem como coeficientes não desempenham nenhuma outra função
além, precisamente, da de simples meios de mensurar as quantidades
das mercadorias. Tanto isso é verdade que, no lugar daquelas quanti­
162
dades de trabalho, podemos colocar as correspondentes quantidades
físicas de mercadorias; e, desse modo, podemos determinar a taxa de
lucro e o sistema dos preços, independentemente das quantidades de
trabalho contidas nas mercadorias.
Em 1960, como talvez vocês saibam, apareceu um livro de um
economista italiano, Piero Sraffa, cujo título é Produção de Merca­
dorias por meio de Mercadorias, que está no centro dos principais
debates de teoria econômica dos últimos anos e no qual se faz precisa­
mente essa operação: a taxa de lucro e o sistema de preços de produção
são determinados a partir simplesmente de uma determinada configuração
produtiva, ou seja, a partir de quantidades físicas de mercadorias, de
quantidades físicas de produtos e meios de produção, sem nenhuma
referência às quantidades de trabalho objetivadas nas próprias merca­
dorias. O esquema com o qual se realiza essa determinação é análogo
ao sistema de equações a que chegamos, com a diferença de que os coefi­
cientes das equações não são quantidades de trabalho, mas precisamente
quantidades físicas. Mencionei os resultados a que chegou Sraffa para
confirmar a possibilidade de se fazer a determinação dos preços e da
taxa de lucro independentemente da teoria do valor. Por isso, é justo
assumir o que diz Sraffa como sendo o ponto terminal da história do
problema da transformação.
Mas, então, torna-se claro em que sentido esse ponto terminal
coloca um imenso problema. De fato, ocorre que — se o problema da
transformação é abordado através do desenvolvimento rigoroso da linha
sugerida por Marx — esse problema, por assim dizer, se autodestrói: pois
o ponto ao qual se chega já não é uma transformação dos valores em
preços, mas uma determinação dos preços independentemente dos
valores.

163
Lição 17
CONCLUSÕES

Gostaria de tentar fazer uma espécie de recapitulação do que foi


dito durante este curso; e não tanto para trazer à memória coisas já ditas,
mas antes para avaliar melhor a conclusão a que chegamos na lição
passada, ao tratar do problema da “transformação” , conclusão que parece
pôr em dúvida algumas das considerações e dos comentários que havia
feito ao examinar a teoria marxiana do valor. Em substância, qual é
a questão que deve ser discutida? A questão é a seguinte: se é verdade
o que se afirma no livro 1 de O Capital, ou seja, que as mercadorias
são equivalentes por causa da presença nelas de uma substância comum,
o trabalho abstrato; se é verdade, em outras palavras, que as mercadorias
são equivalentes porque podem se reduzir sem resíduos ao trabalho abs­
trato nelas objetivado, então é inevitável a conclusão de que os valores-
de-troca, precisamente enquanto “expressão necessária” e “forma
fenoménica” dos valores, ou seja, dos trabalhos objetivados, não podem
ser outra coisa que não as relações entre as quantidades de trabalho às
quais as mercadorias são redutíveis.
Por outro lado, Marx sabe que as efetivas relações de troca não
são iguais às relações entre as quantidades de trabalho. Busca então
colocar ao mesmo tempo duas coisas, que aparentemente não podem
de modo algum estar juntas; e busca fazê-lo mediante a proposição, que
é a proposição básica do Livro 3 de O Capital, segundo a qual os preços
certamente são diferentes dos valores, mas não podem ser determinados
de outro modo se não a partir dos valores. Essa proposição, que se torna
164
inevitável em vista de todas as premissas até agora elencadas, e que preci­
samente por isso é a proposição básica do Livro 3 de O Capital, é especi­
ficada por Marx no seguinte sentido: de que a derivação dos preços a
partir dos valores (ou, se preferirem, a transformação dos valores em
preços) tem um termo médio, que é a taxa de lucro, uma grandeza dotada
de uma característica peculiar no sistema de Marx: ela é a mesma tanto
no sistema dos valores quanto no sistema de preços, e, por isso, pode
constituir o termo médio entre esses dois sistemas. Portanto, e repito
o que já disse na lição passada, a sucessão lógica, tal como é apresentada
por Marx no Livro 3 de O Capital, é a seguinte: 1) os valores; 2) a taxa
de lucro; 3) os preços. A proposição segundo a qual os preços só podem
ser determinados pelos valores é especificada no sentido de que os preços
só podem ser determinados se se conhece a taxa geral de lucro, e, por
sua vez, a taxa geral de lucro só pode ser determinada se se conhecem
os valores. Por isso, graças a esse termo intermediário — ou seja, a taxa
de lucro enquanto relação entre valores —, ganha conteúdo específico
a proposição segundo a qual não há outro modo de determinar os preços
a não ser o de assumir os valores como ponto de partida. É por isso que,
segundo Marx, os preços são a parte visível da realidade, enquanto os
valores são a parte invisível; mas isso não é senão a manifestação do
fato de que os preços estão na superfície da realidade capitalista, enquanto
os valores, ao contrário, fazem parte da sua essência; e é próprio de uma
superfície só poder ser explicada plenamente quando se recorre à essência.
Por isso é que, fora do conhecimento dos valores, os preços —para Marx —
não podem ser determinados e, mais geralmente, perdem inclusive
qualquer significado.
Por outro lado, vimos que houve uma certa história do problema
da “transformação”, história que parece de certo modo inevitável, pois
nasceu de uma sugestão formulada pelo próprio Marx e desenvolveu-se
depois com grande rigor formal; e vimos que essa história teve uma culmi­
nação peculiar, talvez inesperada, que coloca um grande problema no
interior do marxismo, já que essa culminação é que os preços, .assim
como a taxa de lucro ligada ao sistema dos preços, podem ser determi­
nados independentemente dos valores, oü seja, simplesmente pondo
como pressuposto dos próprios preços de uma determinada “configuração
produtiva” , isto é, um certo conjunto de mercadorias que se relacionam
entre si como produtos e meios de produção. Então, se as coisas se
passassem efetivamente assim, teríamos de concluir que a ligação suposta
por Marx entre valores e preços não existe na realidade; que não há absolu­
tamente necessidade de conhecer os valores para conhecer os preços.
Por conseguinte, pode nascer a dúvida de que toda a teoria do valor
de Marx perdeu significação, já que não serve para explicar a realidade;
por mais que essa realidade seja chamada de superficial, é certo que se
trata de uma realidade; e, se essa realidade da concorrência pode ser
165
explicada por si mesma, sem necessidade de se recorrer aos valores, então
o sentido da teoria do valor torna-se, quando menos, um problema. Ora,
o que pretendo fazer agora não é certamente resolver esse problema,
mas simplesmente mostrar que atitudes podem ser tomadas diante dele,
ou melhor, elencar as posições que foram efetivamente assumidas por
marxistas e não marxistas (em geral, por quem se ocupou da questão)
diante desse problema.
Porém, antes de indicar quais são essas posições possíveis e quais
são, por conseguinte, as linhas de investigação que cada uma delas implica,
parece-me oportuno — precisamente para que a definição dessas linhas
resulte mais clara — fazer uma tentativa, nesta lição, de restabelecer,
em seus princípios fundamentais (ainda que um pouco esquematicamente,
já que não temos muito tempo à disposição), o conteúdo que é próprio
à teoria do valor, ou seja, àquela teoria do valor que, depois do resultado
a que chegou o problema da “transformação” , apresenta certamente
aspectos problemáticos. Vou agora repetir coisas que já disse muitas
vezes ao longo deste curso; e vou repeti-las resumidamente, com a finali­
dade específica de tomar mais claras as alternativas de pesquisa que,
diante desse problema, se tornam possíveis.
Como vocês se recordam, o ponto de partida da teoria do valor
de Marx é o seguinte: que, não certamente em condições naturais, mas
quando a produção se processa em condições capitalistas, e, portanto,
no âmbito de uma determinada relação de classe, que é a relação burguesia-
proletariado, e quando, em conexão com e em conseqüência disso, o
processo produtivo assume uma fisionomia inteiramente peculiar, já
que é um processo que se subordina tão-somente à ampliação progressiva
da própria produção, a qual, precisamente por isso, apresenta-se como
capital, ou seja, como uma realidade que é movida pelo impulso à própria
auto-ampliação, quando tudo isso se verifica, quando se verificam portanto
as condições capitalistas de produção, então o trabalho humano assume
uma configuração determinada e particular. Essa configuração —histórica
e socialmente determinada — do trabalho humano na situação capitalista
é expressa por Marx com o termo sintético “trabalho abstrato”. Ou
seja, trata-se — como vocês sabem — de uma condição na qual o trabalho
não conta pelas qualidades específicas que lhe derivam da circunstância
de ser efetuado por esse ou aquele indivíduo particular, mas conta apenas
como explicitação genérica de energia laborativa humana. Segundo a
indicação dada por Marx, em Para a Crítica da Economia Política, já
por mim recordada outras vezes, a essência do trabalho abstrato consiste
no seguinte: que o trabalho não é mais, como o seria em condições natu­
rais, um atributo dos sujeitos humanos, uma qualidade deles; mas, ao
contrário, esse trabalho assumiu a qualidade de sujeito, enquanto os
indivíduos, isto é, os homens que o efetuam, tornaram-se na realidade
seus atributos, ou seja, simples veículos de realização do trabalho, meras
166
ocasiões para que esse trabalho — que se tornou a verdadeira realidade
subjetiva — seja executado. Ou seja, a relação entre sujeito e objeto se
inverteu; nisso consiste a alienação capitalista; o trabalho perde sua
posição de atributo ou qualidade de um sujeito e é elevado ele próprio
à posição de sujeito, com a degradação dos indivíduos que o executam
à situação de atributos do que, em condições naturais, seria um atributo
deles; ou seja, os homens não contam mais por sua subjetividade, contam
apenas enquanto ocasiões nas quais o trabalho é executado.
Esse é o trabalho abstrato para Marx. Disso, Marx deduz uma
primeira conseqüência imediata: que esse trabalho, precisamente porque
é separado dos indivíduos, dos sujeitos, é um trabalho igual, comum,
genérico, não importa como e onde seja executado; e, precisamente
nesse sentido, ele é — de acordo com a terminologia de Marx — a subs­
tância comum das mercadorias; e as mercadorias, enquanto possuem
essa substância comum, são valores. Se se quer, pode-se também pôr
a questão assim: o trabalho, em geral, evidentemente não é trabalho
a não ser que dê origem a um produto; se não dá origem a um produto,
é trabalho apenas em sentido analógico; trabalho em sentido próprio
só existe quando dá origem a um produto; mas esse fato, que é verdade
no nível geral, deve ser verdade também para o trabalho abstrato. Para
ser trabalho, portanto, o trabalho abstrato deve também dar origem
a um produto. Mas qual pode ser o produto do trabalho abstrato? Deve
ser um produto igualmente abstrato. E qual é esse produto abstrato?
É precisamente o valor. É o produto não enquanto valor-de-uso, ou seja,
não enquanto objeto dotado de determinadas propriedades, mas enquanto
valor, ou seja, enquanto parte alíquota de uma riqueza genérica. É por
isso que, do conceito de trabalho abstrato, segue-se em Marx —e segue-se
necessariamente —a relação entre trabalho e valor, a ponto que, eu creio,
deva-se dizer que, se tivéssemos (se alguém tivesse) de concluir que a
ligação entre trabalho e valor é uma ligação que não pode ser afirmada,
então deveríamos ser tão conseqüentes como Marx e renunciar ao conceito
de trabalho abstrato como instrumento interpretativo da realidade capi­
talista. É assim que as coisas se colocam no que se refere a Marx. E é
por isso que, para Marx, a teoria do valor —tal como é exposta no Livro 1
de O Capital — desempenha um papel fundamental, já que essa teoria
do valor é a conseqüência direta de uma categoria — a do trabalho
abstrato — que é para Marx a categoria central da interpretação da reali­
dade capitalista. É por isso também que, diante da realidade de fato,
da realidade de que as relações de troca das mercadorias não coincidem com
as relações entre valores, Marx deve encontrar uma conciliação, e tende a
essa conciliação do modo a que nos referimos, um modo que —segundo a
história do problema da “transformação” —parece ter fracassado.
Portanto, é este o problema diante do qual nos encontramos. Notem
bem que, quando teve início essa história do problema da “transfor­
167
mação” , alimentavam-se muitas esperanças a respeito. Os primeiros autores
que abordaram essa questão mostraram a necessidade de acolher a sugestão
de Marx, a sugestão que consistia em dizer que o processo da transfor­
mação devia englobar todas as mercadorias, não só as que apareciam
como produtos, mas também as que apareciam como elementos do capital;
e puseram conseqüentemente em evidência que, por outro lado, se se
acolhe essa sugestão, não é possível determinar a taxa de lucro antes
de ter determinado os preços; por isso, propuseram uma estrutura analí­
tica que se manteve imodificada ao longo de toda aquela história, uma
estrutura segundo a qual os valores das mercadorias constituíam os
coeficientes de um sistema de equações que tem como incógnitas, ao
mesmo tempo, os preços relativos e a taxa de lucro. Essa história prosse­
guiu depois através de uma série de etapas; muitos autores contribuíram
paulatinamente para tornar mais sutil esse método inicial, até chegar
às últimas formulações, as quais — partindo da constatação de que,
enquanto se continuasse a raciocinar em termos agregados, pelo menos
algumas relações de troca ainda eram determinadas em termos de valor
e não em termos de preço —reformularam o problema em termos desa­
gregados, de acordo com o esquema que expus na aula passada. É
precisamente diante desse modo de solução (que não pode ser submetido
a objeções formais de nenhum tipo) que se pode fazer, porém, a objeção
substancial: a de que, desse modo, as quantidades de trabalho deixam
de ter um papel essencial, já que podem ser substituídas, em sua eficácia
determinativa dos preços e da taxa de lucro, — e, poderíamos dizer,
substituídas com vantagem, — simplesmente por quantidades físicas
de mercadorias. E assim a história se conclui; o problema da transfor­
mação é destruído pela raiz, porque não resolve mais uma passagem
dos valores aos preços mas consegue determinar os preços sem partir
dos valores. Portanto, é essa a história tal como a vimos e como agora
eu a resumi.
Vejamos agora que atitudes se podem assumir diante do problema
que assim surge. Por uma razão elementar de prudência, deve me corrigir:
vou me referir não a atitudes que se podem assumir, mas simplesmente
a atitudes que foram assumidas, de fato, em face desse problema. É claro
que não se pode excluir a possibilidade de que venham a surgir, no futuro,
novas sugestões. Naturalmente, antes de passar à exposição, quero advertir
que falo das posições que têm um mínimo de importância teórica; excluo
assim como irrelevante a posição dos que (e são ainda muitos) pensam
que esse problema não existe, e, portanto, reapresentam exposições
escolásticas de Marx, quase como se a história desse problema da transfor­
mação não nos tivesse obrigado a repensar toda a questão do valor.
Portanto, deixando de lado essa posição, que me parece teoricamente
muito pouco interessante e muito pouco fecunda, passo a apresentar
em seguida as que têm um sentido teórico.

168
A primeira posição é uma posição que, de modo explícito (e esse
caráter explícito é precisamente um de seus méritos), vale-se dessas vicissi­
tudes para colocar-se fora do marxismo. Ela consiste em dizer que esse
resultado da história do problema da transformação obriga a abandonar
a teoria do valor-trabalho, assim como todas as conseqüências que derivam
da teoria do valor-trabalho, particularmente uma, que é porém a mais
importante de todas, ou seja, a proposição de que a relação capitalista
é uma relação de exploração; essa, que é a primeira conseqüência que se
extrai da teoria do valor-trabalho, deve cair juntamente com a queda
da teoria do valor-trabalho, pelo menos segundo essa posição. Como,
por outro lado, a teoria da exploração é essencial ao marxismo, o aban­
dono da mesma significa abandonar o marxismo.
Mas essa posição prossegue afirmando que, com isso, não se aban­
dona necessariamente a posição crítica em face da economia e da socie­
dade capitalista; e que, para a definição dessa posição crítica, muitas
das coisas ditas por Marx continuam válidas. Para manter esse ponto,
tal posição deve acentuar com grande força todos os aspectos de Marx
que, de um ou de outro modo, contêm a descrição ou a definição do
caráter alienado da atividade que se processa em condições capitalistas;
naturalmente, esse tipo de alienação não pode mais ser captado através
da categoria do trabalho abstrato, que é certamente posta em discussão
ao se abandonar a teoria do valor-trabalho; mas isso não impede que
certos aspectos da alienação do trabalho, tais como se expressam (apenas
para indicar uma referência) em algumas passagens do Capítulo VI lidas
por nós, ou no texto sobre as máquinas contido nos Grundrisse, possam
ser acolhidos. Então, essa posição concluiria do seguinte modo: o que
Marx chama de subsunção do trabalho ao capital, que é precisamente
o máximo da alienação, determina o efetivo desaparecimento do trabalho
como categoria autônoma, englobado que foi pelo capital; e trata-se
do desaparecimento não apenas do trabalho concreto enquanto produtor
de valores-de-uso, mas também do trabalho como possível substância
valorizadora; e, por isso, é natural que — no âmbito do problema da
transformação — chegue-se a dizer que os preços e a taxa de lucro podem
ser determinados em base a circunstâncias que são inteiramente internas
à realidade do capital, sem que haja assim necessidade de fazer referência
a uma realidade externa e contraposta ao capital, como seria precisa­
mente o trabalho. Temos aqui, assim, uma das posições assumidas
diante do problema em questão.
Uma outra posição, que talvez seja a mais difundida de todas, tem
em comum com a primeira o ponto de partida; depois, como veremos,
afasta-se radicalmente dela, mas o ponto de partida é o mesmo. Essa
segunda posição consiste em dizer que o resultado da história do problema
da transformação indica que a teoria do valor-trabalho não pode ser
mantida; nesse sentido é que a segunda posição tem um ponto de partida
169
igual ao da primeira. Porém, após esse ponto de partida comum, as duas
posições divergem radicalmente, já que essa segunda posição continua
dizendo que a tese de Marx de que a relação capitalista é uma relação
de exploração não requer, para ser afirmada, a teoria do valor-trabalho;
e que, por isso, o fim da teoria do valor-trabalho, determinada pelo
resultado do problema da transformação, não engloba a tese da explo­
ração. Como é que essa posição defende essa tese? Defende-a mediante
uma argumentação que pode ser expressa nos seguintes termos: qualquer
que seja o modo pelo qual se determinem as relações de troca entre as
mercadorias e, de modo correspondente, a taxa de lucro; e, portanto,
mesmo admitindo-se que a determinação dessas grandezas ocorra
mediante uma pura e simples referência a certa configuração produtiva,
fora portanto da referência aos valores, umi fato resta porém seguro:
que temos, no sistema econômico, uma certa quantidade de trabalho;
que essa quantidade de trabalho se distribui, segundo uma certa propor­
ção; entre a produção de meios de subsistência para os trabalhadores
e a produção de todas as outras coisas, ou seja, essencialmente de produto
excedente; que a subdivisão do trabalho global nessas duas partes (uma
subdivisão que se conserva qualquer que seja a relação de troca entre
as mercadorias) é suficiente para afirmar que o trabalho é explorado.
Com efeito, o que é que o trabalho recebe de volta? O trabalho
recebe de volta apenas a parte do produto que se apresenta sob a forma
de meios de subsistência para o assalariado; mas há uma outra parte
do produto — quaisquer que sejam os modos de determinar os valores-
de-troca das mercadorias que o compõem — que não volta para os traba­
lhadores; portanto, há uma parte do trabalho que serve para produzir
coisas que não são apropriadas pelo trabalhador. Basta isso para dizer
que o trabalho é explorado. É precisamente em conseqüência dessa fideli­
dade à tese da exploração que os defensores dessa posição pretendem
continuar no interior do marxismo. Essa pretensão não me parece
fundada, porque não creio que se possa estar dentro do marxismo quando
não se aceita a teoria do valor-trabalho. Por que, segundo Marx, a teoria
do valor-trabalho é uma etapa essencial no curso da demonstração de
que a relação capitalista é uma relação de exploração? A razão, a meu
ver, pode ser resumida nos seguintes termos: quando Marx diz que o
trabalho do operário se distingue em duas partes, um trabalho necessário
e um trabalho excedente, fornece uma noção particular, mas muito impor­
tante, de trabalho necessário; ou seja, Marx diz, por exemplo, que se
a jornada de trabalho dura 10 horas e nos bens-salário estão contidas
6 horas de trabalho, as primeiras 6 dessas 10 horas servem para recons­
tituir o valor dos bens-salário, enquanto o resto é mais-valia. Prestem
atenção ao que está implícito nessa posição, só aparentemente sim­
ples: está implícito que as primeiras 6 horas de trabalho executadas
pelo operário reconstituem por inteiro o valor dos bens-salário que o
170
operário recebe; isso implica a tese de que, no valor dos bens-salário,
que o operário recebe em pagamento de sua força-de-trabalho, não está
contido mais do que trabalho, de modo que as primeiras 6 horas do
operário são suficientes para reconstituir aquele valor, porque no valor
não há mais do que 6 horas de trabalho. Se existisse alguma outra
coisa, como não casualmente pretende toda a economia burguesa; se,
por exemplo, nos bens-salário recebidos pelo trabalhador existissem
6 horas de trabalho e mais alguma outra coisa, que fosse de algum modo
relativa a uma participação ativa do capitalista no processo produtivo,
como precisamente pretende a economia burguesa, é claro que esse
raciocínio de Marx não poderia mais ser feito, porque então se diria:
na realidade, o trabalhador produz mercadorias que não contêm só 6 horas
de trabalho, mas contêm também um outro X, que é a contribuição
do capitalista. Portanto, não é absolutamente verdade que o operário,
nas primeiras 6 horas de trabalho, reconstitua o valor do próprio salário,
porque ele reconstitui apenas uma parte desse valor, apenas a parte
imputável ao trabalho; a outra parte não é reconstituída por ele; e, desse
modo, o operário precisa de todas as dez horas a fim de reconstituir
aquele valor, isto é, a fim de compensar com um trabalho a mais a parte
do valor do salário que é atribuível à contribuição do capitalista. Assim,
a relação de exploração não existiria, pois o trabalhador receberia exata­
mente o que dá.
Segundo Marx, nada disso é verdade. Por quê? Precisamente porque,
nos bens-salário, estão contidas apenas seis horas de trabalho. Mas do
que é que Marx precisa para fazer essa afirmação? Evidentemente, da
teoria do valor-trabalho. Portanto, fora da teoria do valor-trabalho —
pelo menos no sentido de Marx —, a exploração capitalista não pode
ser afirmada. Diante da consideração feita por essa segunda posição,
e que consiste em dizer que, qualquer que seja o modo de determinar
os preços, mantém-se o fato de que o trabalho global se divide em duas
partes, a que produz os meios de subsistência e a que produz o resto,
a crítica burguesa poderia facilmente objetar que certamente é verdade
que o trabalho se divide nessas duas partes, mas que existe uma outra
coisa, além do trabalho, que é a contribuição do capitalista, também
ela dividida em duas partes: uma que serve para produzir os bens-salários,
e outra que serve para produzir o resto. Repito, então: essa posição não
pode pretender estar no interior do marxismo; mas, precisamente porque
essa pretensão é infundada, tal posição se priva das armas que o marxismo
buscara construir, com a teoria do valor-trabalho, para responder, já
na época, às possíveis críticas à tese da exploração, provenientes da eco­
nomia burguesa. Essa, portanto, é a segunda posição.
Um modo pelo qual essa posição é por vezes exposta consiste em
pôr diretamente em relação a produtividade em sentido material, ou seja,
o produto excedente, com o trabalho. A argumentação pode então ser
171
formulada nps seguintes termos. Na teoria de Sraffa, que mencionei
no fim da lição passada, descreve-se o processo produtivo de um modo
que torna possível a determinação do produto excedente em termos
materiais, ou seja, como conjunto de quantidades de mercadorias, sem
necessidade de passar pelos valores. A existência de um produto exce­
dente é então julgada, por essa posição, como suficiente para definir
uma produtividade do trabalho; e, dado que esse produto excedente
não retorna (ou retorna só parcialmente) às mãos dos trabalhadores,
isso é julgado como suficiente para definir a situação como uma situação
de exploração. O quanto tudo isso esteja distante do marxismo, e também
da realidade das coisas, resulta do que eu disse na lição 11 sobre a relação
que Marx põe entre “produtividade do trabalho” e “produtividade do
capital” : para Marx, repito, sob o ângulo da produção de valores-de-uso
'(ângulo no qual, evidentemente, entra a determinação do produto
excedente em termos materiais), não se pode atribuir a produtividade
ao trabalho, pelo fato de as forças produtivas como “combinação social”
serem todas colocadas fora do próprio trabalho. Ou seja: para Marx,
a produtividade do trabalho é definível apenas no terreno do valor e,
portanto, da produção da riqueza abstrata, e não da produção de
valores-de-uso.
Há ainda uma terceira posição, análoga à segunda, mas que dela
se distingue por algumas particularidades que vale a pena mencionar.
Essa terceira posição parte da idéia de que os produtos da economia
capitalista são valores antes da troca e independentemente das modali­
dades em que a troca se processa. Por isso, independentemente do fato
de a troca ocorrer ou não segundo as relações entre valores, resta que
os produtos não são senão objetivações do trabalho e, portanto, resta
a possibilidade de identificar a mais-valia como objetivação de trabalho
excedente. A troca intervém num segundo momento (“segundo” em
sentido lógico, naturalmente), a fim de redistribuir a mais-valia entre os
capitais singulares; mas isso não retira nem acrescenta nada à constituição
do valor como trabalho objetivado.
Essa argumentação se caracteriza, em suma, pela omissão, na análise
do capital, da categoria do valor-de-troca: por um lado, há o valor; por
outro, o preço de produção; nem o valor tem seu prolongamento no
valor-de-troca, nem o valor-de-troca é a premissa imediata do preço de
produção. Assim, certamente, o problema da “transformação” é elimi­
nado, porque o valor e o preço de produção estão cada qual em sua
própria esfera, sem que sequer se coloque o problema da relação entre
eles. Mas, com isso, não parece que a pretensão — que também essa
posição avança — de estar no interior do marxismo possa ser acolhida.
Para Marx, com efeito, um valor que não tenha sua própria “expressão
necessária” ou “forma fenoménica” no valor-de-troca (isto é, na relação
entre valores, entre quantidades de trabalho objetivado) não é sequer
172
pensável. 0 valor é a forma que o produto assume enquanto é mercadoria,
ou seja, enquanto a sociedade se constitui sobre a base da mediação
das coisas e não da relação direta entre os homens; mas, se o valor é
necessariamente valor de mercadorias (aliás, se o valor não tem sentido
a não ser quando é aquilo a que a mercadoria pode ser reduzida), isso
significa que o valor se realiza na relação entre quantidades de trabalho
objetivado nas mercadorias, ou seja, se realiza precisamente como valor-
de-troca. Isso não significa negar que a categoria de “valor” tenha
precedência com relação à de “valor-de-troca” ; e isso precisamente no
sentido (que é o de Marx) de não ser verdade, como afirma a economia
burguesa, que “as mercadorias têm valor porque são trocadas”, mas de
ser verdade, ao contrário, que “as mercadorias são trocadas porque são
valores” ; mas significa reafirmar que, sem o valor-de-troca, ou seja, sem
a realização do valor no mercado como conjunto de relações entre quanti­
dades de trabalho, o valor nem sequer existiria, pois os produtos não
assumiriam a forma do valor. Mas, se é assim (e, de qualquer modo,
para Marx é assim), o problema da relação com o “preço de produção”
se coloca, porque também o preço de produção é uma relação de troca.
Portanto, tampouco a posição que elimina o problema da transfor­
mação, afastando a categoria do valor-de-troca, pode ser aceita. Parece
então que a única posição que se pretenda seriamente no interior do
marxismo deva partir da constatação de um problema em aberto; e deva
investigar se as categorias que Marx coloca como fundamento da análise
do capital deram lugar, em Marx, a uma análise realmente correspon­
dente à sua riqueza, e, portanto, se não existirá espaço para um desen­
volvimento da análise marxiana que resolva os problemas que, no atual
estágio, aparecem como contradições.

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