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“A

- Louis Althusser
“Étienne Balibar
Roger Establet
VOLUMEI! * | ZAHAR

Z
o

biblioteca de ciências sociais


EDITORES.

E
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Índice

Louis Althusser: O Objeto de O Capital


1. Advertência ..cccccceecerecertererarercrcercseccasoo 7
IH. Marx e suas Descobertas .....c.. IA a eitaad 14
HI. Os -Méritos da Economia Clássica ..iccsiccsaereis 19
IV. Os Defeitos da Economia Clássica.
Esboço do Conceito de Tempo Histórico ......cc. 29
V. O Marxismo não é um Historicismo cics 61
VI.. Proposições Epistemológicas de
O Capital (Marx, Ehgels) .iccccceseresereresesasasas 91
VII. O Objeto da Economia Política ,.cscrerersenianeasars 105
Estrutura do objeto da Economia Política 107
VIH. A Sis deiMARO tis sa bei dita cdliaria vid ea 113
A. OCONSUMO “ps sidade risco verenia titia 113
B, A distribuição ....... E Dice in diitda 1
C. A produção ,.... PRC CCURESTC ESSE TE ITA 119
IX. A Imensa Revolução Teórica de MAR amaiieass ai 133
Apêndice: Sobre a “Média Ideal”
e as formas de transição .icccccsseciaris 147

Etienne Balibar; Sobre os Conceitos Fundamentais


do Materialismo Histórico ,..iiciiccas 153
|. Da Periodização nos Modos de Produção ,......... 163

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INDICE
6

|. Modo de produção: maneira de produzir .... 164


3. Os elementos do sistema das formas ,........ 166
3. A determinação em última instância ........, 171
|. Os Elementos da Estrutura e sua História ....ccc.. 181
1. Que vem a ser “Propriedade”? ............. 183
2. Forças produtivas (ofício e maquinaria) ..... 191
3. Desenvolvimento e deslocamento ...... Rs pera 200
4. A história e as histórias.
Formas da individualidade histórica ......... 207
HI. Da Reprodução ........ccccce eres cre rs 215
|, Função da reprodução “simples” ............ 221
2. A reprodução das relações sociais ........... 227
IV. Elementos para uma Teoria da Transição ooo. 46
|. Acumulação primitiva: uma pré-história ..... 239
2. Tendência e contradição do modo de produção 247
3. Dinâmica e história ............. Es ÉgaCa ddsd 257
4. Característica das fases de transição ......... 267
Roger Establet: Apresentação do Plano de O Capital
...... 275
I. Apresentação de O Capital pelo Próprio Marx
IH. As Articulações de O Capital ...io ....... 285
2... 289
A. Estudo da articulação 1 ......... USAS cruas
290
B. Estudo da articulação III ....z 0) 294
C. Estudo das articulações do livro 1 .........
! 297
D. Estudo da articulação II .......cicr
I. d Campo 305
Teórico Não-Elaborado,
as Exatamente Delimitado, dos
€ O seu Nome: Li
“A ancorado
4. Definição do Objeto da 24 Parte da TOA em
Artiduicci lino
310
Relução desse Objeto com as suas A "ticulação 11.
V. Estudo das Subarticulações da 2* Part
VI. Definição da niecipações de
Articulação || neda Articulação ILRR 315
317
VIH, Conclusão io Sttttrtenenerararara rr iss
teremas Crinecattosarartaseras, 325
ADI

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Louis Althusser:

O Objeto
de O Capital

I. Advertência

Na divisto do trabalho, um tanto deliberada e um tanto espon-


tânca que presidiu à organização deste estudo coletivo de O Capital,
in-
coube-me falar da relação de Marx com a sua obra. Tomei como

cumbência, sob esse título, a seguinte questão: que ídéia faz Marx
no-la apresenta da natureza de seu empreendimento? Em que con-
se distingue
ceitos pensa elo a sua originalidade, e portanto no que ele
dos econonilstas clássicos? Em que sistema de conceitos exprime
Clássica,
us condições quo suscitaram as descobertas da Economia
Para esse
por um ludo, 6, por outro, as suas próprias descobertas? ver quan-
fim, assumi como tarefa interrogar o próprio Marx, para
sua obra com as
do e como ele refletira teoricamente u relação de desse modo
condições teórico-históricas de sua produção, Pretendia
fundamental, que
propor-lho diretamente a questão epistemológica r o mais
constitul o próprio objeto da filosofia marxista - € avaliaita a que
exatamente possível o grau de consciência filosófica explíc avalia-
Marx chegou durante a elaboração de O Capital, Fazer essa nado
ilumi
ção significava do fato comparar à parte que Marx havia
com a parto que ficara na sombra, no campo filosófico novo que ele
abrira pelo próprio ato de sua baso clentífica, Avaliando o que Marx

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LER “O CAPITAL”

fizera, pretendia eu representar, tanto quanto possível, aquilo


ele mesmo nos convidou a fazer, para determinar O campo, avaliaro
sua extensão e torná-lo acessível à descoberta filosófica -. em rá
determinar o mais exatamente possível o espaço teórico ab erto pra,
flexão filosófica marxista. ce Ea
Esse era o meu projeto: à primeira vista, podia Parecer simpl
e plenamente executável, De fato, Marx nos deixou no texto Pi
Notas de O Capital, em todo O itinerário percorrido, q mucem 5
número de juízos sobre sua própria obra, além de comparações
cas com os seus predecessores (os fisiocratas, os economistas clássi.
cos: Smith, Ricardo e outros), e finalmente observações metodológi.
cas muito rigorosas, que aproximam seus processos de análise do
método das ciências matemáticas, físicas, biológicas, etc, e do méto-
do dialético definido por Hegel. Como temos a nosso dispor, tam-
bém, a Introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política de
1857 - que desenvolve de maneira extremamente profunda as pri-
meiras observações teóricas e metodológicas do livro II de Miséria
da Filosofia (1847), parecia lícito crer que esse conjunto de obras
abrangia realmente o nosso objeto de reflexão, e que bastaria, em
suma, submeter essa matéria, já elaborada, a uma ordenação siste-
mática, para que o projeto epistemológico de que falei há pouco as-
- sumisse corpo e realidade. Parecia de fato natural pensar que, falan-
do de sua obra e de seus descobrimentos, Marx refletisse em termos
filosoficamente adequados sobre a originalidade, portanto sobre a
distinção específica do seu objeto - e que essa reflexão filosófica
adequada se exercesse por sua vez sobre uma definição do objeto
científico de O Capital, fixando em termos manifestos a sua distin-
ção específica,
Ora, os protocolos de leitura de O Capital de que dispomos na
história da interpretação do marxismo, como a experiência que nós
mesmos podemos ter da leitura de O Capital, pôem-nos diante de di-
ficuldades reais, inerentes ao próprio texto de Marx. Eu as gruparel
sob duas rubricas, que constituirão objeto de minha exposição:
1) Contrariamente a certas aparências, e em todo o caso contra
a nossa expectativa, as reflexões metodológicas de Marx em O Capt-
tal não nos dão o conceito desenvolvido, nem mesmo o conceito
explícito do objeto da filosofia marxista. Elas nos dão sempre algo
com que o reconhecer, identificar e discernir, e afinal com que pen-
sá-lo, mas não raro ao cabo de longa procura e desde que destrin-
chado o enigma de certas expressões. Nossa questão exige, pois,
mais que uma simples leitura literal, ainda que atenta; exige, a
Sim, uma verdadeira leitura crítica, que aplique ao texto de Marx O
próprios princípios dessa filosofia marxista que todavia procuram
1 s os. ê É É os

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 9

em O Capital. Essa leitura crítica parece constituir um círculo, dado


que parecemos esperar a filosofia marxista de sua própria aplicação.
Esclareçamos, pois: esperamos do trabalho teórico dos princípios fi-
losóficos que Marx nos deu explicitamente, ou que podem ser ex-
traídos de suas “obras do corte” e da maturidade - esperamos do
trabalho teórico desses princípios aplicados a O Capital, seu desen-
volvimento, seu enriquecimento, ao mesmo tempo que O requinta-
mento do seu rigor. Esse círculo aparente não poderia surpreender-
nos: toda “produção” de conhecimento o implica em seu processo.

2) Essa pesquisa filosófica choca-se no entanto com outra difi-


distinção do
culdade real, que se refere agora não mais à presença e
€ distinção
objeto da filosofia marxista em O Capital, mas à presença
do objeto científico do próprio O Capital. Para nos atermos à uma.
quase
única e simples questão sintomática, em torno da qual giram
é, rigorosamente
todas as interpretações e críticas de O Capital; qual
Esse ob-
falando, a natureza do objeto cuja teoria O Capital nos dá?
essa questão:
jeto será a Economia ou a História? E, para especificar
nte, esse
se o objeto de O Capital é a Economia, em que, rigorosame
da Economia Clássi-
objeto se distingue, em seu conceito, do objeto
é essa e qual é
ca? Se o objeto de O Capital é a História, que História
uma simples
o lugar da Economia na História?, etc. No caso ainda,
pode nos deixar
leitura literal, ainda que atenta, do texto de Marx,
da questão, eximir-nos
insatisfeitos, ou até nos fazer passar ao lado de
a compreensão
de propor essa questão, conquanto essencial para
ução teórica pro-
Marx - e nos privar da consciência exata da revol
e de suas conse-
vocada pela descoberta de Marx, do seu alcance
O Capital, e sob
quências. Não há dúvida de que Marx nos dá em
os quais identificar e
forma extremamente explícita, meios com
o o enuncia em ter-
enunciar o conceito de seu objeto - e até mesm o con-
sem dúvida,
mos perfeitamente claros. Mas se ele formulou,
a mesma nitidez o con-
ceito de seu objeto, nem sempre definiu com
ença específica que O
ceito de sua distinção, isto é, o conceito da difer
há dúvida de que
separa do objeto da Economia Clássica. Não ção: toda a
dessa distin
Marx teve consciência aguda da existência
Mas as formas nas
sua crítica da Economia Clássica o prova,
específica, são, às ve-
quais ele nos dá essa distinção, essa diferença
nos põem na
zes, como o veremos, desconcertantes. Elas certamente longa
de uma
via do conceito dessa distinção, mas não raro ao cabo
de certas ex-
procura e, no caso ainda, uma vez decifrado o enigma
diferen-
pressões, Ora, como fixar com certa nitidez a especificadade
epistemológica
cial do objeto de O Capital sem uma leitura crítica e
de seus
que assinale o lugar em que Marx se separa teoricamente
nder
predecessores € determine o sentido dessa ruptura? Como prete

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10 LER “O CAPITAL"

esse resultado sem recorrer precisamente a uma teoria da história da


produção dos conhecimentos, aplicada às relações de Marx com a sua
pré-história e, portanto, sem recorrer aos princípios da filoso-
fia marxista? A essa primeira questão junta-se outra, como o vere-
mos: a dificuldade que Marx parece ter sentido em pensar num con-
ceito rigoroso a diferença que distingue seu objeto do objeto da Eco-
nomia Clássica, acaso não terá a ver com a natureza da descoberta
de Marx, sobretudo em vista de sua prodigiosa originalidade? Não
terá a ver com o fato de que essa descoberta se achava teoricamente
muito adiantada em relação aos conceitos filosóficos disponíveis na
época? E, nesse caso, a descoberta científica de Marx não exigirá en-
tão imperiosamente a colocação de problemas filosóficos novos exi-
gidos pela natureza perturbadora de seu novo objeto? Por esta última
razão, a filosofia ver-se-ia convocada a uma leitura completa e apro-
fundada de O Capital, para responder às questões surpreendentes
que seu texto lhe propõe: questões inéditas, e decisivas para o futuro
da própria filosofia.
Esse é, pois, o duplo objeto deste estudo, que só é possível por
'uma constante e dupla recorrência; a identificação e o conhecimento
do objeto da filosofia marxista, em ação em O Capital, pressupõe:
identificação e conhecimento da diferença específica do objeto do
próprio O Capital - o que implica por sua parte o recurso à filosofia
marxista e exige seu desenvolvimento. Não é possível ler verdadeira-
mente O Capital sem o auxílio da filosofia marxista, que temos de
ler, por sua vez, e ao mesmo tempo, no próprio O Capital. Se essa
dupla leitura, e a constante recorrência da leitura cientifica à leitura
filosófica, e da leitura filosófica à leitura científica são necessários e
fecundos, poderemos sem dúvida reconhecer nela o caráter dessa re-
volução filosófica que traz em si a descoberta científica de Marx:
revolução que inaugura um modo de pensamento filosófico autenti-
camente novo,

Podemos também nos convencer de que essa dupla leitura seja


indispensável pelas dificuldades e pelos contra-sensos provocados
no passado por leituras simples e imediatas de O Capital: dificulda-
des e contra-sensos que dizem respeito a um mal-entendido mais ou
menos grave sobre a diferença específica do objeto de O Capital, So-
mos obrigados a ter em consideração este fato de vulto: até época re-
lativamente recente, O Capital quase não foi lido, entre os “especia-
listas”, a não ser por economistas e historiadores, que não raro pen-
saram, os primeiros, que O Capital era um tratado de Economia no
sentido imediato de sua própria prática, e os segundos que O Capital
era, em certas partes, obra de história, no sentido imediato de sua
própria prática, Esse livro, que milhares e milhares de militantes

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 1

operários estudaram - foi lido por economistas e historiadores, mas


muito raramente por filósofos, ! isto é, por especialistas capazes de
propor a O Capital a questão prévia da natureza diferencial de seu
objeto. Com raras exceções, por isso mesmo notáveis, economistas e
historiadores não estavam em condições de lhe formularem essa
questão, pelo menos sob forma rigorosa e, pois, a ponto de identifi-
car conceptualmente o que distingue especificamente o objeto de
“Marx de outros objetos, aparentemente semelhantes ou aparenta-
dos, quer lhe sejam anteriores ou contemporâneos. Empreendimen-'
to desse tipo só era em geral acessível a filósofos, ou a especialistas
possuidores de formação filosófica suficiente - dado que ela corres-
ponde ao próprio objeto da filosofia.
Ora, quais são os filósofos que, podendo propor a O Capital a
questão de seu objeto, da diferença específica que distingue o objeto
dé Marx do objeto da Economia Política, clássica ou moderna - te-.
rão lido O Capital propondo-lhe essa questão? Sabendo-se que essa
obra foi alvo, durante 80 anos, de um interdito ideológico-político
radical pelos economistas e pelos historiadores burgueses, imagina-
se o destino que lhe podia reservar a filosofia universitária! Os úni-
cos filósofos dispostos a tomar O Capital por objeto digno dos cui-
dados da filosofia só puderam ser por muito tempo militantes mar- -
xistas: só a partir dos últimos dois ou três decênios alguns filósofos:
não-marxistas puderam transpor a fronteira dos interditos. Porém,
marxistas ou não, esses filósofos só puderam propor a O Capital
questões produzidas por sua filosofia, que não estava em condições,
em geral, de conceber um verdadeiro tratamento epistemológico de
seu objeto, quando a isso não se recusava obstinadamente. Entre os
marxistas, além de Lênin, cujo caso é tão notável, podemos citar
Labriola e Plekhanov, os “austromarxistas”, Gramsci, e mais recen-
temente Rosenthal e Iljenkov na URSS; na Itália a Escola de Della
Volpe (Della Volpe, Colletti, Pietranera, Rossi e outros) e numero-
sos pesquisadores nos países socialistas. Os “austromarxistas” são
apenas neokantianos: nada nos deram que tenha sobrevivido a seu
projeto ideológico. A obra importante de Plekhanov e sobretudo a

vezes, militantes
1 Por diversas razões muito profundas, foram de fato, no mais das
ler e compreender
e dirigentes políticos que, sem serem filósofos de ofício, souberam
disso: sua com-
O Capital como filósofos. Lênin é o mais extraordinário exemplo
uma pro-
preensão filosófica de O Capital dá às suas análises econômicas e políticas
que temos de Lênin,
fundidade, um rigor e uma acuidade incomparáveis. Na imagem
o grande dirigente político oculta não raro o homem que se dedicou ao estudo pacien-
que deve-
te, minucioso e aprofundado das grandes obras de Marx. Não é por acaso"
que preced eram a Re-
mos aos primeiros anos de atividade pública de Lênin (os anos
sas da teo-
volução de 1905) tantos textos agudos dedicados às questões mais espinho
ria de O Capital. Dez anos de estudo € meditação de O Capital deram-lhe essa forma-

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12 LER “O CAPITAL"

de Labriola mereceriam um estudo especial = ussim como, de resto, e


fi-
em nível totalmente diverso, as grandes teses de Gramsci sobre a
significa
losofia marxista. Falaremos delas mais adiante, Isso não
O Ca-
menosprezar a obra de Rosenthal (Problemas da Dlalética em
que ele apenas
pital), mas julgá-la em parte marginal à questão, visto
designa seu objeto
parafraseia a linguagem imediata pela qual Marx
própria-linguagem de
e suas operações teóricas, sem suspeitar que a
o. Quanto aos estu-
Marx possa ser quase sempre tomada na questã
nera e outros, trata-se
dos de Iljenkov, Della Volpe, Colletti, Pietra
e lhe propõem diretamen-
de obras de filósofos que leram O Capital
rigorsas e profundas, cons-
te a questão essencial - obras eruditas,
relaciona a filosofia marxista
cientes da relação fundamental que
Mas veremos que essas obras nos
com a compreensão de O Capital.
pção da filosofia marxista
apresentam frequentemente uma co nce mar-
nas reflexões dos teóricos ma
que merece discussão. Seja como for,
tem por âne os exp rim e-s e em toda a parte a mesma exigén-
xistas con consegiiências teóricas de O
co mp re en sã o apr ofu nda da das
cia: a -
l car ece de uma def ini ção mais rigorosa € mais rica da filoso
Capita gia
mar xis ta. Em out ras pal avr as, e para empregar à terminolo
fia e do
ssi ca: o fut uro teó ric o do mat erialismo histórico depende hoj
clá depen-
ro fu nd am en to do mat eri ali smo dialético, que por sua vez
ap Capital. A história nos apre-
estudo crítico rigoroso de O
de de um
ime nsa . Gos tar íam os, na medida dos nossos meios,
senta essa tarefa ass umi r nossa parcela nessa tarefa.
est os que sej am, de
por mais mod
€ ilustrar. Ter-se-á compreen-à
Retorno à tese que tentarei-expor stemológica, que interesse so
ess a tes e não é som ent e epi
dido que separa Marx dos
filósofos, propondo-se a questão da diferença que ã0S eco-
ist as clá ssi cos : é ta mb ém uma tese que pode interessar
eco nom
nomistas e até aos histor iadores - €, naturalmente, por conse
ita nte s pol íti cos - em sum a, à todos os leitores de 0
guinte, aos mil l, essa tese rele
Capital, Ao colocar a questão do objeto de O Capita históri-
se dir eta men te ao fu nd am en to das análises econômicas€
re- portanto poder solucionar Cer-
cas contid as em seu texto: ela deveria
sido tradicionalmente opostas à
tas dificuldades de leitura, que têm ias, por seus adversários. A
tór
Marx, como tantas objeções peremp
questão do objeto de O Capital não é, pois,ficape nas filosófica. Se O
tiver fundamento, à
do da relação da leitura cientí a
que foi afirma
política do diri-
iu a pro digiosa compreensão
ável, que pr od uz essas razões que
pastoteódoricamoviment
cão o operário russo € internacional, É; também por
incompar
mas também à
Lênin (não apenas as obras escritas,
alsra his coonômnisas e políticas de pode-se estudar nelas a filosofia
aa rica) possuem tal valor teórico e filosófico: marxista que se tornou polia
“prático”,a filosofia
. ução ao Ra DO nado políticas, i
Lênin: uma ma incompar k
ável formaçã'do teóricae / fitosd»
a
fica transform ada isões
em política

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 13

elucidação da diferença específica do objeto de O Capital pode for-


necer os meios de uma compreensão melhor de O Capital em seu
conteúdo econômico e até histórico,
Termino aqui esta advertência e concluo:.se substituí o projeto
inicial dessa dissertação, que devia referir-se à relação de Marx com
sua obra, por um segundo projeto referente ao objeto próprio de O
Capital, tal se deu por uma razão necessária. Com efeito, para com-
preender em toda a sua profundidade as observações em que Marx
exprime a relação com a sua obra, seria preciso ir, além do sentido
literal, até o ponto essencial, presente em todas essas observações,
em todos os conceitos que implicam essa relação — até o ponto es-
sencial da diferença específica do objeto de O Capital, ponto ao mes-
mo tempo visível e oculto, presente e ausente, ponto ausente por
motivos que têm a ver com à própria natureza de sua presença, têm
a ver com a originalidade perturbadora da descoberta revolucioná-
ria de Marx. Que em certos casos essas razões possam ser, à primei-
ra vista, como que invisíveis, deve-se sem dúvida, em última análise,
a que são, como toda criação original radical, razões que ofuscam.

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14 LER “O CAPITAL”

II. Marx e suas Descobertas

fim cedo a pala-


Procedo por uma leitura imediata, e para esse
vra a Marx.
ele:
Em carta a Engels, de 24 de agosto de 1867, escreve
O que há de melhor no meu livro é:
fatos) a ênfase desde) O
1) (e é nisso que repousa toda à compreensão do s segun do ele se exprima
lho,
primeiro capítulo, no duplo aspecto do traba
a análise da mais-valia, indepen-
em valor de uso ou em valor de troca; 2)
como lucro, imposto, renda
dentemente de suas formas particulares, tais que isso aparecerá. É uma
e
fundiária, etc,É sobretudo no segundo volum
cular es na economia clássica, que
“miscelânea” a análise das formas parti
as confunde constantemente com a forma geral.

fim de sua vi-


Nas Notas sobre Wagner, que datam de 1883, no
da, Marx escreve, falando de Wagner (O Capital, II, 248):
O vir obscurus [Wagner] não percebeu:
atenho às duas formas sob
que, já na análise da mercadoria, não me nto dizendo: que
as quais cla se apresenta, mas que continuo jmediateme
o, do
nessa dualidade da mercadoria reflete-se o duplo caráter do trabalh
concretos de
qual ela é produto, a saber; o trabalho útil, isto é, os modos
trabalho que criam valores de uso, e 0 trabalho abstrato, trabalho como
pelo qual ela
dispêndio da força de trabalho, seja qual for o modo “útil”
é despendida (é sobre o que repousa mais tarde a exposição sobre 0 pro
cesso de produção);

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 15

e depois que no desenvolvimento da forma valor da mercadoria, e em


última análise, de sua forma-dinheiro, portanto do dinheiro, o valor de
uma mercadoria se exprime no valor de uso, isto é, na forma riatural da
outra mercadoria; '
finalmente, que a mais-valia por sua vez se deduz de um valor de uso
especifico da força de trabalho, pertencente exclusivamente a esta etc.
e que, por conseguinte, para mim o valor de uso desempenha um pa-
pel muito mais importante do que na antiga economia, mas ele é sempre
tomado em consideração (N.B.!) só quando essa consideração decorre da
análise de dada formação econômica, e não de uma lucubração sobre os
termos ou noções “valor de uso” e “valor”,

Cito os textos como protocolos em que são expressamente


apontados por Marx os conceitos fundamentais que regem toda a
sua análise. Nesses textos, Marx indica portanto as diferenças que o
separam de seus predecessores. Ele nos oferece também a diferença
específica de seu objeto - mas, notemo-lo bem, menos sob a forma
do conceito de seu objeto do que sob a forma de conceitos que sir-
vam à análise desse objeto.
Essas passagens longe estão de ser as únicas em que Marx
ánuncia as suas descobertas. Prosseguindo, a leitura de O Capital
aponta-nos descobertas de grande alcance: por exemplo, a gênese da
moeda, que toda a Economia clássica foi incapaz de pensar; a com-
posição orgânica do capital (c + v ) ausente em Smith e Ricardo; a
da taxa
lei geral da acumulação capitalista; a lei tendencial da baixa
desco-
de lucro; a teoria da renda fundiária etc. Não enumero essas
eis fatos
bertas, as quais, sempre cada vez mais tornam compreensív
deixaram
econômicos e práticas que os economistas clássicos ou
serem incom-
passar em silêncio ou evitaram artificiosamente por
pormenor de
patíveis com as suas premissas. Essas descobertas de
dos novos
fato não passam de conseqiiência, próxima ou distante, obra como
sua
conceitos fundamentais que Marx identificou em
descobertas mestras. Examinemo-las.
renda e juro à mais-
A redução das diferentes formas de lucro,
As descober-
valia é em si uma descoberta secundária à mais-valia.
tas básicas referem-se pois a:
desse a outro par:
1) o par valor/valpr de uso; a recorrência
ortância particularissi-
trabalho abstrato/trabalho concreto; à imp
clássica, dá ao valor de
ma que Marx, contrariamente à economia aos pontos
referência
uso € ao seu correlato, o trabalho concreto; à desempenham
estratégicos onde valor de uso € trabalho concreto tal variável
e e capi
papel decisivo; as distinções de capital constant
ão (Setor I, pro-
por um lado, e por outro dos dois setores da produç
s de con-
dução dos meios de produção; Setor II, produção dos meio
sumo),

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16 LER “O CAPITAL!

2) a mais-valia

Em resumo: os conceitos que trazem as descobertas fundamen-


tais de Marx são: valor e valor de uso; trabalho abstrato e trabalho
concreto; mais-valia,
Isso é que Marx nos diz, E não temos aparentemente razão al-
guma para duvidar do que ele diz. Realmente, ao ler O Capital, po-
demos demonstrar que suas análises econômicas repousam de fato,
em última instância, nesses conceitos fundamentais. Podemo-lo,
mas sob condição de uma leitura atenta. Contudo, essa demonstra-
ção não é fácil: exige grande esforço de rigor. Sobretudo, para que
seja feita e se veja claro na própria clareza que ela produz, ela impli-
ca, e desde o princípio, algo que está presente nas descobertas decla-
radas de Marx - mas presente nelas na forma de uma estranha au-
sência,
A título de indicação, para fazer pressentir em negativo essa au-
sência, contentemo-nos com uma simples observação: os conceitos
aos quais Marx relaciona expressamente sua descoberta, e que sus-
tentam todas as suas análises econômicas, os conceitos de valor e
mais-valia, são justamente os conceitos sobre os quais mais se encar-
niçou toda a crítica feita a Marx pelos economistas modernos. Vale
ter em conta os termos em que esses conceitos foram atacados pelos
economistas não-marxistas. Censurou-se a Marx o fato de que esses
conceitos, na medida em que aludindo à realidade econômica, no
fundo permaneciam conceitos não-econômicos, mas “filosóficos” e
“metafísicos", Até mesmo um economista tão esclarecido como €.
Schmidt, que teve o mérito, logo depois de publicado o livro II de O
Capital, de deduzir dele a lei da baixa tendencial da taxa de lucro,
que só viria a ser exposta no contexto do livro III - até mesmo C.
Schmidt censura à lei do valor de Marx ser ela uma “ficção teórica
necessária sem dúvida, mas ainda assim pura ficção. Não cito essas
críticas por prazer, mas porque recaem sobre a própria base das
análises econômicas de Marx, sobre os conceitos de valor e mais-
valia, recusados como conceitos “não-operatórios", designando
realidades não-econômicas porque não-mensuráveis, não-
quantificáveis, Certo é que essa censura denuncia à sua maneira a
concepção que os economistas em questão fazem de seu próprio ob-
Jeto e dos conceitos que ele autoriza: se a crítica indica o ponto onde
a oposição deles a Marx atinge a mais alta sensibilidade, nem por
isso eles nos dão o próprio objeto de Marx em sua censura, dado
que 0 tratam como objeto ''metafísico”, Indico no entanto esse pon-
to como a própria questão do mal-entendido, em que os economistas
cometem um contra-senso quanto às análises de Marx. Ora, esse
mal-entendido de leitura só é possível por um equívoco sobre o obje-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 17

to próprio de Marx, que consiste nos economistas em ler o seu pró-


prio objeto projetado em Marx, em vez de ler em Marx um outro
objeto que não o deles, mas totalmente diferente. Esse ponto do
mal-entendido que os economistas declaram ser o da fragilidade e
da falha teórica de Marx é,.pelo contrário, o ponto de sua maior for-
ça! É precisamente o que o distingue radicalmente de seus críticos e
também, ao que parece, de alguns de seus partidários mais próxi-
mos,
Como prova da extensão do mal-entendido, cito a carta de En-
gels a C. Schmidt, datada de 12 de março de 1895, onde pudemos
colher, há pouco, um eco da objeção de Schmidt. Engels lhe respon-
de assim: * '
Sua carta me dá uma noção, creio, sobre a maneira pela qual V.S'se
lança por um atalho a propósito da taxa de lucro. Verifico nela a mesma
eclético de
forma de perder-se em pormenores, o que atribuo ao método
que per-
filosofar que se introduziu desde 1848 nas universidades alemãs,
esté-
de toda a perspectiva geral e que não raro acaba em argumentaçõesque, de
parece-me
reis e sem objetivo sobre questões de pormenor. Ora,
dedicou; e Kant, devido
todos os clássicos, foi a Kant que V. S* mais se
oposição ao leibnizia-
ao estado da filosofia alemã em seu tempo, € à sua es
a fazer concessõ
nismo pedante de Wolf, foi mais ou menos obrigado
a essa argumentação à maneira de Wolf. Assim en-
aparentes e formais
na digressão sobre a
tendo a tendência de V. St que se manifesta também
à ponto de não atentar, ao
lei do valor, mergulhando nos pormenores,
conjunto, rebaixando a lei do
que me parece, para as interconexões de faz de Deus um
assim como Kant
valor a uma ficção, ficção necessária,
postulado da razão prática. atingem todos os con-
As objeções que V. S! faz contra à lei do valor da realidade. A iden-
os consideramos do ponto de vista
ceitos quando
empregar a terminologia hegelia-
tidade do pensamento com o Ser, para .
na, coincide totalmentecom O Seu exemplo do circulo s do poligono
e, são paralelos como duas
Ambos, o conceito de uma coisa e sua realidad
sem jamais encontrar-se,
assíntotas, aproximando-se constantemente
que impede que o concei-
Essa diferença que as separa é a mesma diferença
realidade não seja
to do ser seja realidade direta e imediatamente, e que aquando
mesmo um concei-
imediatamente o seu próprio conceito. Porém, possa coincidir
por isso não
to possua a natureza essencial dos conceitos, e ser primeiro abs-
prima facle diretamente com à realidade, da qual deve que V. S* con-
, algo mais que uma ficção, a menos
traído, é, não obstante
a realida-
sidere como ficção todos os resultados do pensamento umporque
longo rodeio e
de não corresponde a esses resultados a não ser por
assintótica.
mesmo assim só se aproxima deles de maneira

Essa resposta estarrecedora (sob a banalidade de duas evidên-


cias) constitui de algum modo o comentário de boa vontade do mal-

* Acrescento o período inicial da carta e O imediatamente anterior à alusão a Wolf,


(N. do T.)

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18 LER “O CAPITAL”

entendido, que dará força aos adversários de Marx para comentar


de má vontade. Engels sai-se bem da objeção “operatória” de C,
Schmidt mediante uma teoria do conhecimento sob medida - que
ele vai procurar e fundamentar nas aproximações da abstração, ina-
dequação do conceito, enquanto conceito, a seu objeto! Trata-se de
uma resposta marginal à questão: em Marx de fato o conceito da lei
do valor é cabalmente adequado a seu objeto, dado que é o conceito
dos limites e suas variações, e portanto o conceito adequado de seu
campo de inadequação - e de modo nenhum conceito inadequado
em virtude de um pecado original que atingisse todos os conceitos
postos no mundo pela abstração humana. Portanto, Engels mencio-
na como debilidade nativa do conceito, com base numa teoria empi-
rista do conhecimento, o que constitui justamente a força teórica do
conceito adequado de Marx! Essa menção só é possível na cumplici-
dade dessa teoria ideológica do conhecimento, ideológica não ape-
nas em seu conteúdo (o empirismo), mas também em seu emprego,
dado que feita para responder, entre outros, a esse mal-entendido
teórico preciso. Não apenas a teoria de O Capital corre o risco de ser
prejudicada (a tese de Engels, no Prefácio do livro III: a lei do valor
é economicamente válida “do início do escambo até o século XV de
do
nossa era” - é um exemplo perturbador que afirmo). E ainda
mais: a teoria filosófica marxista fica tisnada, e com que tisnadura!
A mesma da ideologia empirista do conhecimento, que serve de nor-
ma teórica silenciosa tanto à objeção de Schmidt como à resposta de
Engels. Se me detive nesta última resposta é para deixar bem claro
que o mal-entendido presente pode denunciar não apenas aversão
Política ou ideológica, mas também os efeitos de uma cegueira teóri-
ca, na qual corremos o risco de cair se não nos dermos ao trabalho
de propor a Marx a questão do seu obj
eto.

mid
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 19

HI. Os Méritos da Economia Clássica

Tomemos, pois, as coisas exatamente como são declaradas, e


indaguemos depois que idéia Marx faz de si mesmo, não só direta-
mente, quando examina em sua obra aquilo que o distingue dos eco-
nomistas clássicos, como também indiretamente, quando se compa-
ra, isto é, baliza neles, a presença ou'o pressentimento de sua desco-
vis-
berta na não-descoberta deles, e pensa, pois, o seu próprio
lumbre na cegueira de sua pré-história mais próxima.
Não posso entrar aqui em todos os pormenores, que no entanto
merecem um estudo rigoroso e completo. Tenho em vista apenas al.
guns elementos que serão como Índices pertinentes do problema que
nos ocupa. '
Marx avalia a sua dívida para com os predecessores e aprecia O
saldo positivo de seu pensamento (em relação à sua própria desco-
berta) sob duas formas distintas que aparecem muito nitidamente
em Teorias sobre a Mais-Valla ( Histoire des Doctrines Economiques):
Por um lado, presta homenagem e atribui mérito a este ou aque-
le predecessor por ter isolado e analisado certo conceito importante,
mesmo quando a expressão que enuncia esse conceito permaneça
ainda presa na armadilha de uma confusão ou de uma ambigilidade
de linguagem, Ele baliza desse modo o conceito de valor em Petty; o
conceito de mais-valia em Steuart, nos fisiocratas, etc. Obtém então

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20 LER “O CAPITAL”

o saldo das aquisições conceptuais isoladas, extraindo-as no mais


das vezes da confusão de uma terminologia ainda inadequada,
Por outro lado, dá ênfase a outro mérito, que não mais consíde-
ra esta ou aquela aquisição de pormenor (certo conceito), mas o
modo de tratamento “científico” da economia política, Sob esse as-
pecto, duas características lhe parecem discriminantes. A primeira,
num espírito muito clássico, que se pode dizer galileano, refere-se à
atitude científica em si: o método da colocação entre parênteses dos
aspectos sensíveis, isto é, no domínio da Economia política, de to-
dos os fenômenos visíveis e dos conceitos empírico-práticos produ-
zidos pelo mundo econômico (renda, juro, lucro, etc.); em suma, to-
das essas categorias econômicas da “'vida quotidiana”, sobre a qual
Marx declara, no fim de O Capital, que é o equivalente de uma “reli-
gião”. Essa colocação entre parênteses tem por efeito o desvelamen-
to da essência oculta dos fenômenos, de sua interioridade essencial.
Para Marx, a ciência da economia depende, como qualquer outra.
ciência, dessa redução do fenômeno à essência ou, como ele mesmo
o declara - numa comparação explícita com a astronomia -, redu-
ção do '“'movimento aparente ao movimento real”. Todos os econo-
mistas que fizeram uma descoberta científica, mesmo de pormenor,
passaram por essa redução. No entanto, essa redução parcial não
basta para constituir a ciência. É então que ocorre a segunda carac-
terística. É ciência uma teoria sistemática, que abranja a totalidade
de seu objeto, e apreenda o “vínculo interior” que põe em conexão
as essências (reduzidas) de todos os fenômenos econômicos. Esse é o
grande mérito dos fisiocratas, e destacadamente acima de todos
'Quesnay, de ter, mesmo sob forma parcial (dado que ele se limitava
à produção agrícola) relacionado fenômenos tão diversos como sa-
lário, lucro, renda, lucro comercial, etc. a uma essência originária u-
nica, a mais-valia produzida no setor da agricultura. E mérito de
Adam Smith o ter esboçado essa sistemática libertando-a do pressu-
posto agrícola dos fisiocratas - mas o seu demérito está em só o ter
feito pela metade, A fragilidade imperdoável de Smith é de fato o ter
pretendido pensar sob uma origem única objetos de natureza dife-
rente: ao mesmo tempo verdadeiras “essências” (reduzidas), mas
também fenômenos brutos não-reduzidos à essência: a sua teoria en-
tão é apenas a reunião sem necessidade de duas doutrinas: a exotéri-
ca (em que são unidos fenômenos brutos não reduzidos) e à esotéri-
ca, a única científica (em que estão unidas as essências). Essa singela
observação de Marx é prenhe de sentido: ela implica não ser só a
forma de sistematicidade o que constitui a ciência, mas a forma de
sistematicidade só das “essências” (conceitos teóricos), e não a giste-
maticidade dos fenômenos brutos (elementos do real) relacionados
entre si, ou então a sistematicidade mista das “essências” e dos fenô-

e =

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 21

menos brutos. Seja como for, é mérito de Ricardo'o ter pensado e


superado essa contradição entre as duas “doutrinas” de Smith, e o
ter concebido verdadeiramente a Economia Política sob a forma da
cientificidade, isto é, como o sistema unificado dos conceitos que
'enuncia a essência interna de seu objeto:
Chega enfim Ricardo... O fundamento, o ponto de partida da fisio-
logia do sistema burguês, da compreensão de seu organismo íntimo e de
seu processo vital, é a determinação do valor pelo tempo de trabalho. Ri-
cardo parte daí, e obriga a ciência a abandonar a velha rotina, a tomar
consciência de até que ponto as demais categorias que ela desenvolveu ou
representou - as relações de produção e circulação - correspondem a esse
fundamento, a esse ponto de partida, ou até que ponto a contradizem;
até que ponto a ciência, que nada mais faz do que reproduzir os fenôme-
nos do processo e esses próprios fenômenos, corresponde ao fundamento
sobre o qual repousa a conexão íntima, a verdadeira fisiologia da socie-
dade burguesa, ou o que constitui seu ponto de partida; numa palavra, o
que vem a ser essa contradição entre o movimento aparente e o movi-
mento real do sistema. Essa é para a ciência a grande significação históri-
ca de Ricardo.
(Histoire des Doctrines Economiques, LI, 8-9.)

Redução do fenômeno à essência (do dado a seu conceito), uni-


dade interna da essência (sistematicidade dos conceitos unificados
sob seu conceito), eis, pois, as duas determinações positivas que
constituem, ao ver de Marx, as condições do caráter científico de um
resultado isolado, ou de uma teoria geral. Notaremos no entanto
aqui que essas determinações exprimem, a propósito da Economia
Política, as condições gerais da racionalidade cientifica existente (do
Teórico existente): Marx apenas as vai buscar no estado das ciências
existentes para introduzi-las na Economia Política como normas
formais da racionalidade científica em geral. Quando julga os fisio-
cratas, Smith ou Ricardo, ele os submete a essas normas formais
que decidem se eles-as respeitaram ou omitiram, sem prejulgar
quanto ao conteúdo de seu objeto,
No entanto, não nos limitamos a puros julgamentos de forma,
O conteúdo de que essas formas fazem abstração, acaso não foi an-
tes designado por Marx nos próprios economistas? Os conceitos que
Marx coloca na base de sua própria teoria, o valor e a mais-valia,
acaso não figuram já em pessoa nos títulos teóricos dos economistas
clássicos, assim como a redução fenômeno-essência e a sistematici-
dade teórica? Eis-nos, porém, diante de uma situação bem estranha,
Tudo se apresenta como se, quanto ao essencial - e é precisamente
assim que os críticos modernos de Marx julgaram o seu empreendi-
mento - Marx fosse apenas o herdeiro da Economia clássica, e her-
deiro muito bem aquinhoado, pois recebe dos antepassados os con-
ceitos-chave (o conteúdo de seu objeto) e o método de redução,

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22 LER “O CAPITAL”

bem como o modelo da sistematicidade interna (a forma científica


de seu objeto). Qual pode ser então a originalidade de Marx, o seu
mérito histórico? Simplesmente o ter continuado e concluído um
trabalho já quase acabado: preenchido as lacunas, solucionado os
problemas em suspenso, aumentado, em suma, o patrimônio dos
clássicos, mas na base de seus próprios princípios, e portanto de sua
problemática, aceitando não apenas o método e a teoria deles, mas
também, com método e teoria, a própria definição de seu objeto. A
resposta à questão: “qual é o objeto de Marx, qual o objeto de O
Capital?” estaria já inscrita, com alguns matizes e pouco mais, po-
rém em seu próprio princípio, em Smith e sobretudo em Ricardo. O
grande tecido teórico da Economia Política já estava pronto, com
apenas alguns fios corridos e-algumas falhas aqui e ali. Marx teria
consertado os fios, melhorado a trama, dado acabamento em alguns
pontos, em suma, teria concluído o trabalho para o tornar irre-
preensível. Sendo assim, a possibilidade de um mal-entendido de lei-
tura sobre O Capital desaparece: o objeto de Marx era o mesmo de
Ricardo. A história da Economia Política, de Ricardo a Marx, tor-
na-se então uma bela continuidade sem ruptura, que não mais cons-
titui problema. Se mal-entendido houver, estará em outra parte, em
Ricardo e Marx - não mais entre Ricardo e Marx, porém entre toda
a Economia clássica do valor do trabalho de que Marx é apenas O
brilhante “concluidor”, e a economia política moderna marginalista,
€ neomarginalista que repousa, por sua vez, numa problemática in-
teiramente distinta.
Na realidade, quando lemos certos comentários de Gramsci (a
filosofia marxista é Ricardo generalizado), as análises de Rosenthal,
ou mesmo as observações embora críticas de Della Volpe e seus
do eiPulos, ficamos impressionados ao verificar que não aimos a
ea mu ade de objeto. Com exceção da censura que pista Ses
Ad Rr ter, ao desprezar a complexidade das “me da rh
mio Ent em relação suas abstrações com ir Da
ção”, na f a não ser a censura de abstração especulativa ( Ip ár
aue
d na linguagem de Della Volpe, Colletti e Pietranera) a
f MES o Deh isto é, em suma, com exceção de alguns o
NÃO fe be ç NI inversão” no emprego normal sea à de Ri-
cardo
trada pa feto
RIPI diferença
de Marx,essencial entre o objeto de Ro foi regis-
Essa indiferenciação de a a dife-
rença é só d r pretação marxista vulgar sob a forma Err icos apli
vt e método, O método que os economistas clássi MAPA
m à seu objetó seria ape
era, pelo contrári
ico, ao passo queda O dialética,
APENAS metafis co, RO P
de Mi
que se Sónia ro, dialético. Tudo vai depender então da el, e apli-
Cad Ba € como um método em si, importado de Hege! do Gê-
m objeto em si, já presente em Ricardo. Pelo milagre o

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 23

nio Marx teria apenas celebrado essa união feliz que, como toda fe-
licidade, não tem história, Para nossa infelicidade, sabemos porém
que permanece uma “pequenina” dificuldade: a história da “recon-
versão” dessa dialética, que se impõe “recolocar sobre os pés" para
que ela ande afinal na terra firme do: materialismo.
No caso ainda, não evoco as facilidades de uma interpretação
esquemática, que sem dúvida tem títulos: políticos e históricos, pelo
prazer de tomar distâncias. Essa hipótese da continuidade de objeto
entre a economia clássica e Marx não pertence só aos adversários de
Marx, nem mesmo a alguns de seus partidários: ela surge silenciosa-
mente, em muitas ocasiões, do próprio discurso explícito de Marx,
ou antes, nasce de certo silêncio de Marx que duplica, despercebido,
o seu próprio discurso explícito. Em certos momentos, em certos lu-
gares sintomáticos, esse silêncio surge em pessoa no discurso e o
obriga a produzir malgrado seu, em curtos lampejos claros, invisí-
veis na luz da demonstração, verdadeiros lapsos teóricos: certa pala-
vra que fica no ar, embora pareça inserida na necessidade do pensa-
mento, certo juízo que fecha irremediavelmente, com uma falsa evi-
dência, o próprio espaço que ele parece abrir diante da razão. Uma
simples leitura literal não vê nos argumentos a não ser a continuida-
de do texto. É preciso uma leitura “sintoma para tornar essas lacu-
nas perceptíveis, e para identificar, sob as palavras enunciadas, o
discurso do silêncio que, emergindo no discurso verbal, provoca
nele esses brancos, que são as folhas do rigor, ou os limites extremos
de seu esforço; sua ausência, uma vez atingidos esses limites, no es-
Paço que, não obstante, ele abre.
Darei dois exemplos disso: a concepção de Marx das abstrações
que sustentam o processo da prática teórica, e o tipo de censura que
ele dirige aos economistas clássicos,

O capítulo II da Introdução de 1857 pode ser corretamente to-


mado como o Discurso sobre o Método da nova filosofia fundada
por Marx, É de fato o único texto sistemático de Marx que contém,
sob o título de análise das categorias e do método da economia poli-
tica, algo com que fundar uma teoria da prática científica, e portan-
to uma teoria das condições do processo do conhecimento, que
constitui o objeto da filosofia marxista.
- À problemática teórica que sustenta esse texto permite distin-
Buir corretamente a filosofia marxista de toda ideologia especulativa
ou empirista, O ponto decisivo da tese de Marx diz respeito ao
princípio de distinção do real e do pensamento. Uma coisa é o real e
Seus diferentes aspectos: o concreto-real, o processo do real, a totali-
dade real, etc.; outra coisa é o pensamento do real e seus qliferentes as-

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24 LER “O CAPITAL"

pectos: o processo de pensamento, a totalidade do pensamento, o


concreto do pensamento, etc.

Este princípio de distinção implica duas teses essenciais: I) a


tese materialista do primado do real sobre o pensamento, dado que
o pensamento do real pressupõe a existência do real independente de
seu pensamento (o real “depois como antes subsiste em sua indepen-
dência fora do espírito”, p. 165); e 2) a tese materialista da especifici-
dade do pensamento e do processo de pensamento em relação ao
real e ao processo real. Essa segunda tese constitui muito particular-
mente objeto da reflexão de Marx no capítulo III da Introdução. O
pensamento do real, a concepção do real, e todas as operações de
pensamento pelas quais o real é pensado e concebido, pertencem à
ordem do pensar, ao elemento do pensamento, que não se pode con-
fundir com a ordem do real, com o elemento do real. “O todo, tal
como aparece no espírito como totalidade pensada, é um produto do
cérebro pensante...” (p. 166); do mesmo modo o concreto-de-
pensamento pertence ao pensar e não ao real. O processo do conhe-
cimento, o trabalho de elaboração (Verarbeitung) pelo qual o pensa-
mento transforma as intuições e as representações do início em co-
nhecimentos ou concreto-de-pensamento, dão-se inteiramente no
pensamento.
Não há dúvida alguma de que existe entre o pensamento-do-real
e esse real uma relação, mas se trata de uma relação de conhecimen-
to, ' uma relação de inadequação ou de adequação de conhecimento,
e não uma relação real (entendamos por isso uma relação inscrita
nesse real de que o pensamento é o conhecimento adequado ou ina-
dequado). Essa relação de conhecimento entre o conhecimento do
real e o real não é uma relação do real conhecido nessa relação. Essa
distinção entre relação do conhecimento e relação do real é funda-
mental: se não a respeitarmos, caímos infalivelmente ou no idealis-
mo especulativo ou no idealismo empirista. No idealismo especula-
tivo se, como Hegel, confundirmos o pensamento com o real, redu-
zindo o real ao pensamento, *'concebendo o real como o resultado do
pensamento” (p. 165); no idealismo empirista, se confundirmosO
pensamento com o real, reduzindo o pensamento do real ao próprio
real, Nos dois casos essa dupla redução consiste em projetar e em
realizar um elemento no outro: em pensar a diferença entre O real e
seu pensamento como diferença ou interior ao próprio pensamento
Re Tomo especulativo), ou interior ao próprio real (idealismo em-
pirista),

" Tomo I, cap. I, parágrafos 16 e IS.

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O OBJETO DE “O CAPITAL: 25

Essas teses colocam naturalmente problemas, * mas estão impli-


cadas sem equivoco no texto de Murx. Ora, isso é o que nos interes-
sa. Examinando os métodos da Economia Política, Marx distingue
dois deles: o primeiro, que parte “de uma totalidade viva” (“*popula-
ção, nação, Estado, vários Estados"), e o segundo “que parte de no-
ções simples, tais como o trabalho, a divisão do trabalho, o dinheiro. o
valor, etc.”. Dois métodos, portanto: um, que parte do real mesmo, o
outro que parte de abstrações. Qual é o bom desses dois métodos”
“Parece ser bom método o começar pelo real e pelo concreto... entre-
tanto, olhando mais de perto, percebemos que isso é um erro”. O se-
gundo método, que parte de abstrações simples, para produzir, num
“concreto-de-pensamento” o conhecimento do real, “é manifesta-
mente o método científico correto”, e é o adotado pela Economia
Política clássica, de Smith e Ricardo. Formalmente, nada há a cen-
surar quanto à nitidez desse enunciado.
Entretanto, esse próprio enunciado, em sua evidência, contém e
dissimula um silêncio sintomático de Marx. Esse silêncio é inaudível
em todo o desenvolvimento do discurso, que se empenha em mos-
trar que o processo de conhecimento é processo de trabalho e de ela-
boração teórica, e que o concreto-de-pensamento, ou conhecimento
do real, é o produto dessa prática teórica. Só se percebe esse silêncio
num ponto preciso, exatamente onde passa despercebido: quando
Marx fala das abstrações iniciais sobre as quais se efetua esse trabalho
de transformação. Que vêm a ser essas abstrações iniciais? Com que
direito Marx aceita nessas abstrações iniciais, e sem as criticar, as ca-
tegorias de que partem Smith e Ricardo, dando assim a entender que
ele pensa na continuidade de seu objeto e, pois, que entre eles e ele não
se dá nenhuma ruptura de objeto? Essas duas questões vêm a ser uma
só e mesma questão, precisamente aquela a que Marx não responde,
simplesmente porque não a formula. Eis o lugar do seu silêncio, e esse
lugar, vazio, corre o perigo de ser ocupado pelo discurso “natural”
da ideologia, sob a capa do empirismo: “Os economistas do século
XVIII começam sempre por uma totalidade viva: população, nação,
Estado, vários Estados; mas acabam sempre por extrair, mediante
análise, algumas relações gerais abstratas determinantes, tais como di-
visão do trabalho, dinheiro, valor, etc. Uma vez
que esses fatores te-
nham sido mais ou menos determinados e abstraídos, começam os sis-
temas econômicos que partem das noções simples, tais como traba-
lho...” (165), Silêncio sobre a natureza dessa “análise”, dessa “abs-

Cf, tomo 1, cap. I, parágrafos 16, 17 e I8.

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LER “O CAPITAL”
26

tração” e dessa “determinação * - silêncio,ou antes relaci


onam
dessas “abstrações com O real de que são abstraídas, com “a ento
ção e a representação” do real, que parece m então, em su intuí.
a Pureza, a
matéria bruta dessas abstrações sem que o es tatuto dessa ma
téria
(bruta ou prima?) seja enunciado. No bojo desse silêncio po
de- SE co-
lher naturalmente a ideologia de uma rel ação de corres
real entre o real e sua intuição e represent ação, e a pr pon dência
esença de uma
“abstração” que opera sobre o real para extrair dele
gerais abstratas”, isto é, uma ideologi a-empi es sas ** relações
rista da abstração.
Pode-se formular a questão de outra ma neira,
e verifica-se sempre a
mesma ausência: em que essas “relações gera
is abstratas” podem se
consideradas “determinantes "2 Toda ab r
stração como essa será o
conceito científico de seu obj eto? Não haverá abstrações ide
e abstrações científicas, boas e más ológicas
abstrações? Silêncio. * Podemos
formular a mesma questão também de outro mod
o: essas famosas

+ de um processo de abstração
prévia, sob re o qual ele silencia:
as categorias abstratas poderã o então * “refletir” categorias reais, o
abstrato real que habita Os fen
ômenos empíricos do mundo econó-
mico como a abstração
da sua individualidade. Ainda é possivel ou-
tra formulação da ques tão:
economistas) lá estão a final, as categorias abstratas do início (as dos
e produziram conhecimentos “concre-
tos”, mas não se vê em
que sejam transformadas; parece mesmo que
não tinham de se trans
formar, porque existiam já, desde o início,
numa forma adequad
a a seu objeto, tal como o “'concreto-de-
Pensamento” — que o trabalho científi
co irá produzir - possa apare-
cer como sua concretizaçã o pura e simples, pura e simples autocom-
Plicação, pura e simples autocomposição tida implicitamen
Sua autoconcretização, É desse modo que um silê te por
der-se num discurso explícito ou implícit ncio pode esten-
que Marx nos dá contin
o. Tod a a descrição teórica
ua formal, dado que não questiona à pature
za dessas abstrações iniciais, nem o
problema da adequação a
objeto, em suma, o objeto a que elas
mente, ele não questiona a transformse referem; dado que, correit
ação dessas categorias abstr a

O preço desse silêncio: leia-se o capítulo emas


da Dialética em O Capital, e sobretudo VII do livro de Rosenthal, a dblebl
ma
as páginas dedicadas a evitar O rte a
Herença entre a “boa” ea á” ração no à so rt e
na filosofia marxista de um“mtermoabst (pp, 304-305; 325-327). rp pelo qual
tã o eq uí voco mo “generalizar
pensada (isto é, de fato, não-pensada) a natureza dacoab st ra çã o científicaE. O preço des:
S€ silêncio desp er ce bi do
é a tentação empirista.

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 27

tas no decorrer da prática teórica, c portanto a natureza do objeto


implicado nessas transformações. Não se trata de censurar Marx
por isso; ele não era obrigado a tudo dizer, num texto, de resto, iné-
dito, e, seja em que situação for, não se pode exigir de ninguém que
diga tudo de uma só vez. Pode-se, entretanto, censurar a seus leito-
res muito apressados o não terem percebido esse silêncio * e o terem
caído no empirismo. É situando com precisão o lugar do silêncio de
Marx que podemos colocar a questão que esse silêncio contém e en-
cobre: precisamente a questão da natureza diferencial das abstrações
sobre as quais trabalha o pensamento científico para produzir, ao
cabo do seu processo de trabalho, abstrações novas, diferentes das
primeiras, e radicalmente novas, no caso de um corte epistemológi-
co como o que separa Marx dos economistas clássicos.
Se, anteriormente, tentei pôr em evidência a necessidade de
pensar essa diferença, dando nomes diferentes às diferentes abstra-
- Ções que ocorrem no processo da prática teórica, e distinguindo cui-
dadosamente as Generalidades | (abstrações iniciais) das Generali-
dades III (produtos do processo de conhecimento), sem dúvida
acrescentei algo ao discurso de Marx: no entanto, sob outro aspecto,
nada mais fiz do que restabelecer, e portanto manter o seu próprio
discurso, sem. consentir na tentação do seu silêncio. Percebi esse
si-
lêncio como a falha possível de um discurso sob a pressão e a ação

Que não haja equivoco sobre o sentido desse silêncio. Ele faz parte de um discurso
4

determinado, que não tinha por objeto expor os princípios da filosofia marxista, da
teoria da história da produção de conhecimentos, mas determinar as regras de méto-
do, indispensáveis para o tratamento da Economia Política, Marx situava-se, pois, no
seio de um saber já constituído, sem se propor o problema da sua produção. Essa a ra-
zão pela qual ele pode, nos limites desse texto, tratar as “boas abstrações” de Smith e
Ricardo como correspondendo a certo real, e silenciar sobre as condições extraordi-
nariamente complexas que provocaram o nascimento da Economia Política clássica:
pod € deixar em suspenso a questão de saber por que processo pôde ser produzido o
campo da problemática clássica em que o objeto da Economia Política clássica se pô-
de constituir como objeto que dava, em seu conhecimento, certo domínio sobre o
real, embora ainda dominado pela ideologia, É uma exigência para nós que esse texto
metodológico nos leve ao próprio limiar dessa exigência de constituir essa teoria da
Produção dos conhecimentos que coincide com a filosofia marxista; mas é também
uma exigência que devemos a Marx desde que estejumos atentos ao mesmo tempo ao
incabamento teórico desse texto (seu silêncio nesse ponto preciso)
e ao alcance filosó-
fico de sua nova teoria da história (em particular ao que ela nos obriga a pensar: à ar-
ticulação da prática ideológica e da prática científica com as demais práticas, ea his-
tória orgânica e diferencial dessas práticas). Em suma, podemos tratar esse silêncio
nesse texto de dois modos: ou tomando-o como um silêncio evidente por si, porque
tem por conteúdo a teoria da abstração impirista dominante; ou tratando-o como um
limite e problema, Como limite: o ponto extremo a que Marx conduz seu pensamen-
to; mas então, esse limite, longe de nos lançar de novo no campo da filosofia empiris-

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28 LER “O CAPITAL”

recalcantes de um outro discurso que, graças a esse recalque, assume


o lugar do primeiro, e fala em seu silêncio: o discurso empirista,
Nada mais fiz do que obrigar esse silêncio a falar no primeiro discur-
so, dissipando o segundo. Simples pormenor, dir-se-á, Certamente,
mas é desse gênero de pormenores que dependem, quando o rigor
falha neles, os discursos tagarelas e de grandes consequências, que
arrastam Marx inteiro para a própria ideologia que ele combate e
recusa. Veremos a seguir exemplos pelos quais o não-pensamento de
um minúsculo silêncio torna-se título de discursos não-pensados,
isto é, de discursos ideológicos.

ta, abre-nos um campo novo. Como problema: qual é precisamente a natureza desse
campo novo? Temos a nosso dispor agora suficientes estudos de história do saber,
para suspeitar que temos de procurar em vias diferentes dos itinerários do empiris-
mo. Mas nessa procura decisiva, o próprio Marx nos dá princípios fundamentais (a
estruturação e a articulação das diferentes práticas). É através disso que se percebe a
diferença existente entre o tratamento ideológico de um silêncio e de um vazio teóri-
co, € seu tratamento científico; o primeiro tratamento coloca-nos diante de uma clau-
sura ideológica; o segundo diante de uma abertura científica. Com isso podemos ver
imediatamente um exemplo rigoroso da ameaça ideológica que pesa sobre todo tra-
balho científico: a ideologia não apenas espreita a ciência a cada ponto onde falha o
seu rigor como também no ponto extremo em que uma pesquisa atual atinge seus li-
mítes, Nisso, precisamente, é que pode intervir, no próprio nível da vida da ciência, à
atividade filosófica: como a vigilância teórica que protege a abertura da ciência con-
tra a clausura da ideologia, sob a condição, é claro, de não se contentar com o falar
de abertura e fechamento em geral, mas das estruturas típicas, historicamente determi-
nadas, dessa abertura e desse fechamento. Em Materialismo e Empirocriticismo, Lênin
não cessa de lembrar essa existência absolutamente funda
mental, que constitui a fun-
ção específica da filosofia marxista,

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 29

IV. Os Defeitos da Economia Clássica.


Esboço do Conceito de Tempo Histórico

Passo ao meu segundo exemplo, pelo qual podemos avaliar o


problema, mas de outro modo: examinando o gênero de censura que
Marx dirigie aos economistas clássicos. Ele lhes faz muitos reparos
de pormenor, e uma censura de fundo.

Dos reparos de pormenor, mencionarei um apenas, que tange a


uma questão de terminologia. Ele questiona esse fato, aparentemen-
te insignificante, de que Smith e Ricardo analisam sempre a mais-
valia” sob a forma do lucro, da renda e do juro, e de que ela jamais é
chamada por seu nome, mas sempre disfarçada sob outros; que a
mais-valia não é concebida em sua “generalidade”, distinta de suas
“formas de existência": lucro, renda e juro. O aspecto dessa censura
é interessante: Marx dá a impressão de considerar a confusão da
mais-valia com suas formas de existência como simples insuficiência
de linguagem, fácil de retificar. E, de fato, quando lê Smith e Ricar-
do, restabelece a expressão ausente sob as palavras que a disfarçam;
ele as traduz, corrigindo a omissão deles, dizendo justamente o que
silenciam, lendo-lhes as análises da renda e do lucro como análises
da mais-valia geral, que no entanto jamais é designada comoa es-
sência interna da renda e do lucro. Ora, sabemos que o conceito de
mais-valia é, conforme o próprio Marx o confessa, um dos dois con-

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" LER “O “O CAPITAL”
+

ceitos-chave da sua teoria, um dos conceitos indicativos da diferen-


ça específica que o separa de Smith e Ricardo, sob O aspecto da
problemática e do objeto. De fato, Marx trata a ausência de um con-
ceito como se estivesse em causa a ausência de uma palavra, € concei-
to que não é um qualquer, mas que, como veremos, é impossível tra.
tar como conceito em todo o rigor do termo sem suscitar a questão
da problemática que pode sustentá-lo, isto é, a diferença de proble-
mática, o corte que separa Marx da Economia clássica. No caso aín-
da, quando articula essa censura, Marx não pensa literalmente o que
ele faz - visto que reduz à omissão de uma palavra a ausência de um
conceito orgânico que “precipita” (no sentido químico do termo) a
revolução da problemática. Essa omissão de Marx, caso não seja re-
dimida, o reduz ao nível de seus predecessores, e eis-nos de novo na
continuidade do objeto. Voltaremos ao assunto.

A censura de fundo que Marx, desde Miséria da Filosofia até O


Capital, dirige a toda a Economia clássica é ter ela uma concepção
a-histórica, eternitária, fixista e abstrata, das categorias econômicas
do capitalismo. Marx declara em termos nítidos que é preciso histo-
ricizar essas categorias, para pôr em evidência e compreender sua
natureza, sua relatividade, e sua transitividade. Os economistas clás-
sicos fizeram, diz ele, das condições da produção capitalista as con-
dições eternas de toda produção, sem perceber que essas categorias
eram historicamente determinadas, portanto históricas e transitó-
rias.

Os economistas exprimem as relações da produção burguesa, a divi-


são do trabalho, o crédito e a moeda, como categorias fixas, eternas, imu-
táveis... Os economistas nos explicam como se produz nessas relações da-
das, mas 0 que não explicam é como essas relações se produzem, isto é, 0
movimento histórico que as faz surgir... essas categorias são tão pouco
eternas quanto as relações que elas exprimem. São produtos históricos €
transitórios,
(Misêre de la Philosophie, Ed. Sociales, pp. 115-116; 119.)

réail deito veremos, essa crítica não é a última palavra da critica


tica é or Ela continua superficial e ambígua, ao passo que Ea
acato infinitamente mais profunda. Mas não é sem dúvida po
suá td Marx tantas vezes fica a meio caminho da crítica real € ;
Eni Felaca declarada, quando determina assim toda a sua diferenç
epédo ç : ãos economistas clássicos na não-historicidade aa: E
Rc fez es. Esse julgamento pesou grandemente na interpre ia
política Z não apenas de O Capital e da teoria marxista da cond! qui
dos por + também da filosofia marxista. No caso, estamos a
Pontos estratégicos do pensamento de Marx, e diria mesmo q

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 31

no ponto estratégico nº | do pensamento de Marx, em que o inaca-


bamento teórico do juízo de Marx sobre si mesmo produziu os mais
sérios mal-entendidos, e ainda uma vez não apenas entre os seus ad-
versários, interessados em conhecê-lo mal para o condenar, mas
também e antes de tudo entre os seus partidários.
Podemos grupar todos esses mal-entendidos em torno de um
equivoco central sobre a relação teórica do marxismo com a histó-
ria, sobre o pretenso historicismo radical do marxismo. Examine-
mos o fundamento das diferentes formas assumidas por esse mal-
entendido decisivo.
A nosso ver ele atinge diretamente a relação de Marx com He-
gel, e a concepção da dialética e da história. Se toda a diferença que
separa Marx dos economistas clássicos se resume no caráter históri-
co das categorias econômicas, basta a Marx historicizar essas cate-
gorias, recusar admiti-las como fixas, absolutas, eternas, e as consi-
derar, pelo contrário, como categorias relativas, provisórias e transi-
tórias, portanto sujeitas em última instância ao momento de sua
existência histórica. Nesse caso, a relação de Marx com Smith e Ri-
cardo pode ser representada como idêntica à relação de Hegel para
com a filosofia clássica. Marx seria então Ricardo posto em movi-
mento, como se disse que Hegel era Spinoza posto em movimento;
posto em movimento, isto é, historicizado. Nesse caso, ainda uma
vez todo o mérito de Marx teria sido o de hegelianizar, o de dialeti-
zar Ricardo, isto é, pensar segundo o método dialético hegeliano um
conteúdo já constituído, que só estivesse separado da verdade pelo
delgado tabique da relatividade histórica. Nesse caso, uma vez mais,
recaímos nos esquemas consagrados por uma tradição inteira, es-
quemas que repousam numa concepção da dialética como método
em si, indiferente ao próprio conteúdo de que ela é a lei, sem relação
com a especificidade do objeto de que ela deve fornecer ao mesmo
tempo os princípios de conhecimento e as leis objetivas. Não insisto
nessa questão, que já foi elucidada, pelo menos em princípio.
o Mas gostaria de pôr em evidência uma outra confusão que nem
foi denunciada nem elucidada, e que domina ainda, e sem dúvida
por muito tempo dominará, a interpretação do marxismo. Refiro-
me expressumente à confusão que se refere ao conceito de história.
Quando se afirma que a Economia clássica não tinha uma con-
cepção histórica, mas eternitária, das categorias econômicas, quan-
do se declara que é preciso, para tornar essas categorias adequadas a
seu objeto, pensá-las como históricas - introduz-se o conceito de his-
tória, ou antes, certo conceito de história existente na representação
vulgar, mas sem tomar a cautela de propor as questões u seu respei-
to, Faz-se intervir em realidade como solução um conceito que colo-.

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?2= PER SO CAPHALO

ca por sua vez um problema teórico, porque tal como é tomado e re-
cebido, é um conceito não-criticado, e que, como todos os conceitos
“evidentes”, corre o risco de não ter por qualquer conteúdo teórico
senão a função que lhe atribui a ideologia existente ou dominante. É
fazer intervir como solução teórica um conceito cujos títulos não se
examinaram, e que, em vez de ser uma solução, constitui na verdade
um problema. É considerar que se pode tomar a Hegel ou à prátic-.
empirista dos historiadores esse conceito de história e introduzi-lo
em Marx sem qualquer dificuldade de princípio, isto é, sem se pro-
por a questão critica prévia de saber qual é o conteúdo efetivo de um
conceito que se “junte” assim, ingenuamente, como se fosse eviden-
te, ao passo que se impunha, pelo contrário, e antes de tudo, indagar
qual deve ser o conteúdo do conceito de história que a problemática
de Marx exige e impõe.
Sem me antecipar ao que se segue, gostaria de esclarecer algu-
mas questões de principio. Tomarei como contra-exemplo pertinen-
te (logo veremos por que essa pertinência), a concepção hegeliana de
história, o conceito hegelianq do tempo histórico, em que se reflete
para Hegel a essência do histórico como tal.

Hegel, como se sabe, definia o tempo: “der daseiende Begriff”.


isto é, o conceito na sua existência imediata, empírica. Como o tem-
po nos remete por sua vez ao conceito como sua essência, isto €,
como Hegel proclama conscientemente que o tempo histórico não é
senão a reflexão, na continuidade do tempo, da essência interior da
totalidade histórica encarnando um momento do desenvolvimento
do conceito (no caso a Idéia), podemos, com autorização de Hegel,
considerar que o tempo histórico apenas reflete a essência da totali-
dade social da qual é a existência. Equivale a dizer que as caracteris-
ticas essenciais do tempo histórico nos remeterão, como indices, à
estrutura própria dessa totalidade social. co.
Podem isolar-se duas características essencias do tempo histórt-
co hegeliano: a continuidade homogênea e a contemporaneidade do
tempo.

Iº A continuidade homogênea do tempo. A continuidade homo-


gênea do tempo é a reflexão na existência da continuidade do desen-
volvimento dialético da Idéia. O tempo pode assim ser tratado como
um continuo no qual se manifesta a continuidade dialética do pro-
cesso de desenvolvimento da Idéia. Todo o problema da ciência da
história resume-se então, nesse nível, no recorte desse continuo se-
gundo uma periodização correspondente à sucessão de uma totalida-
de dialética à outra. Os momentos da Idéia existem em outros tantos
períodos históricos, os quais incumbe recortar exatamente no conti-

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O OBHIO DE “O CAPITAL! 33

nuo do tempo, Hegel nada mais fez quanto a isso do que pensar em
sua problemática teórica própria o problema fundamental da práti-
ca dos historiadores, aquele que Voltaire exprimia ao distinguir, por
exemplo, o século de Luís XV do século de Luís XIV; € ainda o
problema principal da historiografia moderna,

2º A contemporaneidade do tempo ou categoria do presente histó-


rico. Esta segunda categoria é a condição de possibilidade da prímei- '
ra e ela é que nos revelará o pensamento mais profundo de Hegel, Se:
o tempo histórico é a existência da totalidade social, impõe-se escla-
recer qual é a estrutura dessa existência, Que a relação da totalidade
social com a sua existência histórica seja a relação com uma existên-
cia imediata implica que essa relação seja por sua vez imediata. Em
outras palavras, a estrutura da existência histórica é tal que todos os
elementos do todo coexistem sempre no mesmo tempo, no mesmo
presente, e são, pois, contemporâneos uns dos outros no mesmo pre-
sente. Isso significa que a estrutura da existência histórica da totali-
dade social hegeliana permite o que proponho chamar de “'corte de
essência”, isto é, essa operação intelectual pela qual se opera em
qualquer momento do tempo histórico um corte vertical, um corte
do presente de tal modo que todos os elementos do todo revelados
por esse corte estejam entre si numa relação imediata, que exprime
imediatamente a sua essência interna. Quando falarmos de “corte de
essência”, estaremos aludindo, pois, à estrutura específica da totali-
dade social que permite esse corte, em que todos os elementos do
todo são dados numa co-presença, que é por sua vez a presença ime-
diata de sua essência, que se tornou assim imediatamente legível ne-
les. Compreende-se, com efeito, seja a estrutura específica da totali-
dade social o que permite esse corte de essência: porque esse corte só
é possível pela natureza peculiar da unidade dessa totalidade, uma
unidade “espiritual”, se quisermos definir com isso o tipo de unida-
de de uma totalidade expressiva, isto é, totalidade cujas partes todas
sejam cada qual “partes totais”, expressivas umas das outras, e ex-
pressivas cada uma da totalidade social que as contêm, porque con-
tendo cada uma em si, sob a forma imediata de sua expressão, a pró-
pria essência da totalidade, Faço aqui alusão à estrutura do todo he-
geliano de que já falei: o todo hegeliano possui um tipo de unidade
tal que cada elemento do todo, quer se trate desta ou daquela deter-
minação material ou econômica, desta ou daquela instituição políti-
ca, desta ou daquela forma religiosa, artística ou filosófica,é sempre
a presença do conceito em si mesmo num momento histórico deter-
minado, É nesse sentido que a co-presença dos elementos uns nos
outros, e a presença de cada elemento no todo são fundadas numa
presença prévia de direito: a presença total do conceito em todas as

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34 LER “O CAPITAL”

determinações de sua existência, Com isso é que se torna possível


continuidade do tempo: como o fenômeno da continuídade de pre.
sença do conceito em suas determinações positivas, Quando falamos
de momento do desenvolvimento da Idéia em Hegel, devemos estar
prevenidos de que esse termo remete à unidade de doís sentidos: 40
momento como momento de um desenvolvimento (o que exige a
continuidade do tempo e-suscita o problema teórico da periodiza-
ção); ao momento como momento do tempo, como presente, gue é
sempre o fenômeno da presença do conceito em sí mesmo em todas.
as suas determinações concretas.

Essa presença absoluta e homogênea de todas as determinaç


ões
do todo na essência atual do conceito é que permite o “cort
e de es-
sência” de que acabamos de falar. Ela é que explica em seu
a
princípio
célebre fórmula hegeliana, que vale para todas
as determinações
do todo, até e inclusive para a consciência de si desse
todo no saber
desse todo que é a filosofia historicamente presente - a
famosa fór-
mula segundo a qual ninguém pode saltar por cima de seu tempo
. O
presente constitui de fato o horizonte absoluto de todo
saber, dado
que todo saber jamais é senão a existência no saber do princ
ípio in-
terior do todo. A filosofia, por mais longe que vá, jamais
ultrapassa
Os limites desse horizonte absoluto: mesmo que faça o seu vôo de
noite, ela pertence ainda ao dia, ao hoje, e não passa do presente re-
fletindo sobre si, refletindo sobre a presença do conceito para si- o
amanhã lhe é por essência interdito.

| Essa a razão pela qual a categoria ontológica do presente inter-


dita qualquer previsão do tempo histórico, toda previs
ão consciente
do desenvolvimento futuro do conceito, todo
o saber quanto ao fu-
turo. Isso esclarece a dificuldade teórica de Hegel para expl
“existência desses “grandes icar a
homens”, que desempenham então na
sua reflexão o papel de testemunhos paradoxais
de uma impossível
previsão histórica consciente, Os grandes homens não percebem
nem conhecem o futuro: eles o adivinham no pres
sentimento. Os
grandes homens nada mais são do que adivinho
s, que pressentem
Sem Ser capazes de conhecer, a iminência da
essência do amanhã, “a
amêndoa dentro da casca”, o futuro em
gestação invisível no pre-
“onte, à essência por chegar, em vias
cia atual, O fato de que não haja de nascer na alienação da essên-
conhecimento do futuro impede
que haja uma ciência da política, um saber referente aos efeit
ros dos fenômenos presentes, Eis porque, os futu-
no sentido estrito, não há
política hegeltana possível, e, de fato. | ' Ético
hegeliano. + &, de fato, jamais se conheceu um poli

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 35

Se insisto a essa altura sobre a natureza do tempo histórico he-


geliano e suas condições teóricas é porque essa concepção da histó-
ria, e de sua relação com o tempo, está ainda viva entre nós, como o
podemos ver na distinção, múito difundida hoje, entre sincronia e
diacronia. Na base dessa distinção está a concepção de um tempo
histórico continuo-homogêneo, contemporâneo a si. O sincrônico é
a própria contemporaneidade, a co-presença da essência em suas de-
terminações, o presente podendo ser lido como estrutura num “cor-
te de essência” porque o presente é a própria existência da estrutura
um
essencial. O sincrônico supõe, pois, essa concepção ideológica de
tempo continuo-homogêneo. O diacrônico é então apenas o trans-
formar-se desse presente na sequência de uma continuidade tempo- .
no sen-
ral, em que os “acontecimentos” a que se reduz a “história”
tido estrito (cf. Lévi-Strauss) não passam de contingências sucessi-
co,
vas no contínuo do tempo. Tanto o diacrônico como o sincrôni
as próprias
que é o conceito primeiro, pressupõem ambos, portanto,
do tempo:
características que revelamos na concepção hegeliana
uma concepção ideológica do tempo histórico.
o do tempo
Ideológica, porque está nítido que essa concepçã
epção que Hegel tem
histórico nada mais é do que a reflexão da conc
e todos os elementos,
do tipo de unidade que constitui o vínculo entr
óficos, etc., do todo
econômicos, políticos, religiosos, estéticos, filos um “todo espiri-
seja
social. É pelo fato de que O todo hegeliano
qual todas as partes
tual”, no sentido leibniziano de um todo do s, que é possivel
é pars totali
“conspiram” entre si, de que cada parte
to do tempo histórico (conti-
e necessária a unidade desse duplo aspec
de).
nuidade-homogênea/contemporaneida
emplo hegeliano é perti-
E é essa a razão pela qual o contra-ex
ção que acabamos de fixar en-
nente. O que, para nós, camufla a rela
reza do tempo histórico he-
tre a estrutura do todo hegeliano e a natu empirismo
é tomada ao
geliano é que a idéia hegeliana do tempo
as da “prática” quoti-
mais vulgar, ao empirismo das falsas evidênci na maior parte dos
ingênua
diana * que verificamos em sua forma
os historiadores conhe-
próprios historiadores, pelo menos em todos
na época qualquer questão
cidos de Hegel, que não propunham
o. Hoje, certos histo-
sobre a estrutura específica do tempo históric vel
riadores começam a indagar, e não raro sob forma muito notá
não indagam em
(cf. L. Febvre, Labrousse, Braudel e outros); mas

lativo” (Feuerbach).
Já se disse que a filosofia hegeliana era um “empirismo especu

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36 LER “O CAPITAL”

função da estrutura do todo que estudam, não indagam sob uma for-
ma verdadeiramente conceptual: constatam simplesmente que há di-
ferentes tempos na história, variedades de tempo, tempos curtos,
durações médias e longas durações, e se contentam com o notar suas
interferências como produtos do seu encontro: não relacionam,
“pois, essas variedades, como variações na estrutura do todo que, no
entanto, rege diretamente a produção dessas variações; são antes
tentados a relacionar essas variedades - como variantes mensuráveis
pela duração - ao tempo comum, ao tempo ideológico contínuo
de
que falamos. O contra-exemplo de Hegel é, pois, pertinente, porque
representativo das ilusões ideológicas toscas da prática corrente e da
prática dos historiadores, não apenas daqueles que não propõem
questões, mas inclusive daqueles que propõem questões, dado que
essas questões estão em geral relacionadas não com a questão funda-
mental do conceito de história, mas com a concepção ideológica do
tempo.

No entanto, o que podemos reter de Hegel é precisamente o que


nos mascara esse empirismo, que Hegel apenas sublinhou em sua
concepção sistemática da história. Podemos reter esse resultado,
produzido por nossa curta análise crítica: é preciso interrogar com ri-
gor a estrutura do todo social para nele descobrir o segredo da con-
cepção da história na qual o “devir”” desse todo social é pensado;
uma vez conhecida a estrutura do todo social, compreende-se a rela-
ção aparentemente 'sem problema” que com ela mantém a concep-
ção do tempo histórico na qual essa concepção se reflete. O que aca-
bamos de fazer quanto a Hegel vale também quanto a Marx: o es-
forço que nos permitiu pôr em evidência os pressupostos teóricos la-
tentes de uma concepção da história que parecia “evidente”, mas
que está de fato organicamente ligada a uma concepção
precisa do
todo social, podemos aplicá-lo a Marx, propondo-nos por objeto O
elaborar o conceito marxista de tempo histórico a partir da concepção
marxista da totalidade social.

Sabemos que o todo marxista se distingue sem confusão possi-


vel do todo hegeliano: trata-se de um todo cuja unidade,
longe de ser
a unidade expressiva ou “espiritual” do todo de Leibniz
e Hegel, é
constituído por certo tipo de complexidade, a unidade de um todo es-
truturado, comportando o que podemos chamar de níveis ou instân-
cias distintas e “relativamente autônomas”, que coexistem nessa
unidade estrutural complexa, articulando-se uns com os outros se-

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O OBJETO DE "O CAPITAL" 37

gundo os modos de determinações específicas, determinadas em úl-


tima instância pelo nível ou instância da economia.*

Temos, evidentemente, de esclarecer a natureza estrutural desse


todo, mas podemos nos contentar com essa definição provisória,
para prever que o tipo de coexistência hegeliana da presença (que
permite um “corte de essência") não pode convir à existência desse
novo tipo de totalidade.
já nitidamente a cer-
Essa coexistência peculiar, Marx a designa
das
ta altura de Miséria da Filosofia, ao falar simplesmente, no caso,
relações de produção:
As relações de produção de qualquer sociedade constituem um todo.
outras tantas fa-
O Sr. Proudhon considera as relações econômicas como
outra, como a
ses sociais, engendrando uma à outra, resultando uma da
razão impessoal da
antítese da tese, e realizando na sua sucessão lógica a
ao encetar o
humanidade, O único inconveniente desse método é que,
a possa explicar sem
exame de uma só dessas fases, o Sr. Proudhon não
s, todavia, que
auxílio de todas as demais relações da sociedade, relaçõe
o. Quando, em
ele ainda não fez engendrar pelo seu movimento dialétic
da razão pura, passa ao parto das de-
seguida, o Sr. Proudhon. por meio
s recém- nascid as, esquecendo-
mais fases, age como se tratasse de criança
Quando se constró i com as
se de que são da mesma idade que a primeira... os
um sistema ideológico,
categorias dã economia política o edifício de
diferentes membros da so-
membros do sistema social são deslocados. Os che-
à parte, que
ciedade são transformados em outras tantas sociedadeslógica do movimen-
gam umas depois das outras. Como poderia a fórmula
corpo da sociedade. no qual
to, da sucessão, do tempo, explicar sozinha o sustentam
todas as relações econ ômicas coexistem simultaneamente e se
. L. A.)
umas às outras? (Os grifos são meus
pp. 119-120.)
(Misêre de la philosophie, Ed. Sociales.

dos membros
Tudo está aí; essa coexistência, essa articulação
entre si, não po-
do “ sistema social”, o apoio mútuo das relações
sucessão, do tem-
dem ser pensados na “lógica do movimento, da
, como demons-
po”, Se tivermos presente no espírito que a “lógica”
abstração do “movi-
trou Marx em Miséria da Filosofia, é tão-só a
em pessoa, como a
mento'* e do “tempo”, que são aqui invocados
preciso
origem da mistificação proudhoniana, concebe-se que seja utura
lugar a estr
inverter a ordem da reflexão, e pensar em primeiro s-
específica da totalidade para compreender tanto a forma da coexi

Pensée, nº 106), “Sur la dialectique


« CI. “"Contradiction et surdétermination” (La
matérialiste” (La Pensée, nº 119), Reunidos em Pour Marx, Maspero,orespp.). 85 ss. e 161
ss. (Edição brasileira 4 Favor de Marx, publicado por Zahar Edit

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38 LER “O CAPITAL”

tência de seus membros como as relações constitutivas e a estrutura


da própria história.
Na Introdução de 1857, no que se refere à sociedade capitalista,
Marx esclarece de novo que a estrutura do todo deve ser concebida
antes de qualquer afirmação referente à sucessão temporal:
-
Não se trata da relação que se estabelece entre as relações econômi
socieda de. Menos ainda da or-
cas na sucessão das diferentes formas de
de sua hierarquia-
dem de sucessão delas “'na idéia” (Proudhon), trata-se 171).
uesa (p.
articulada (Gliederung) na sociedade burg

rtante: a €s-
Com isso fica esclarecida uma nova questão impo
um todo orgânico
trutura do todo é articulada como à estrutura.de
bros e relações no todo está
hierarquizado. A coexistência dos mem
nte, que introduz certa or-
sujeita à ordem de uma estrutura domina
ng) dos membros e das rela-
dem específica na articulação (Gliederu
ções:
e as
é uma produção determinada,
Em todas as formas d e sociedade, ões
ibuem a todas as demais produç
relações engendradas por ela, que atr e a sua importância (In-
e às relaçõesengendradas por es tas a sua posição
trodução, p. 170.)

erv amo s aqu i uma que stã o fun damental: essa dominância
Obs minação de
de certa estrutura de que Marx nos oferece ilustração (do
a produção industrial sobre a
uma forma de produção, por exemplo,
e reduzir-se ao primado de
produção mercantil simples, etc.) não podelementos com à estrutura
um centro, tanto quanto a relação dos a da essência interior a seus
não pode reduzir-se à unidade expressiv eficá-
s, Ess a hie rar qui a rep res enta apenas à hierarquia da o so-
fenôme no
entre os diferente
cia existente cada s “níveis” ou instâncias do tod
a hie-
cial, Como um dos níveis é por sua vez estruturado, ess
quia, o grau € índice de eficácia
rarquia representa portanto a hierar presentes No todo: €
existentes entre os diferentes níveis estruturados
sobre estrutu-
a hierarquia da eficácia de uma estrutura dominante
ras subordinadas e seus elementos, Em outro trabalho mostrei que,
de uma estrutura sobre as
RA er, sOncadiaa, essa “dominância”remetia ao princípio da deter-
minação “er nes ge bm conjuntura
rein q La hs ncia das estruturas não-econômicas pela
cia" era a condição ao 168 determinação em última instân-
dos
8 Necenticdaço e da inteligibilidade
deslocamentos das nTn Horatauia da eficácia, ou do deslo-
camento da “dominância” na
últi e os níveis estruturados do todo; que
só essa “determinação em última instância” permitia escapar ao re-

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O OBJETO DI “O CAPITAL 39

lativismo arbitrário dos deslocamentos observáveis, dando a esses


deslocamentos a inevitabilidade de uma função.

Se esse for de fato o tipo de unidade peculiar da totalidade mar-


xista, resultam daí importantes consequências teóricas.

Em primeiro lugar, é impossível pensar a existência dessa totali-


A
dade na categoria hegeliana da contemporaneidade do presente.
coexistência dos diferentes níveis estruturados: O econômico, o polí-
da su-
tico, o ideológico, etc., portanto da infra-estrutura econômica,
teóricas
perestrutura jurídica e política, das ideologias e formações
(filosofia, ciências) não pode ser pensada na coexistência do presente
a presença
hegeliano, desse presente ideológico em que coincidem
E, por
temporal e a presença da essência com os seus fenômenos.
que é O
conseguinte, o modelo de um tempo contínuo e homogêneo,
já não pode
lugar da existência imediata dessa presença continuada,
ser tomado como o tempo da história.
rá mais tangi-
Comecemos por esta última questão, que torna
num primeiro en-
veis as consequências desses princípios. Podemos,
sta, que já não
foque, concluir da estrutura específica do todo marxi do desenvol-
esso
é possível pensar no mesmo tempo histórico o proc histórica
existência
vimento dos diferentes níveis do todo. O tipo de
nível devemos,
desses diferentes “níveis” não é o mesmo. A cada
mente autônomo,
pelo contrário, atribuir um tempo próprio, relativa
própria dependência,
portanto relativamente independente, em sua
e podemos dizer: há,
«dos “tempos” dos demais níveis. Devemos
história peculiares,
para cada modo de produção, um tempo e uma
vimento das forças pro-
escandidos de modo específico, do desenvol
de produção, escan-
dutivas; tempo e história peculiares às relações
superestrutura poli-
didos de maneira específica; história peculiar da
o e história pecu-
tica: tempo e história peculiares à filosofia...; temp
peculiares às elabo-
liares às produções estéticas...; tempo € história
iares é escan-
rações científicas, etc. Cada uma dessas histórias pecul
a sob a condi-
dida segundo ritmos peculiares e só pode ser conhecid
sua tempora-
ção de ter determinado o conceito da especificidade de , re-
lidade histórica,e de suas escansões (desenvolvimento contínuo
e cada uma dessas
volução, cortes, etc.). Que cada um desses tempos
que consti-
histórias sejam relativamente autônomos não significa ificidade
a espec
tuam outros tantos domínios independentes do todo:
histórias, em outras
de cada um desses tempos, de cada uma dessas
palavras, sua autonomia e independência relativas, fundam-se em
certo tipo de articulação no todo, e, portanto, em certo tipo de de-
pendência em relação ao todo. A história da filosofia, por exemplo,

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40 LER “O CAPITAL”

não é uma história independente por direito divino: o direito dessa


história a existir como história específica é determinado pelas rela-
ções de articulação, e, pois, de eficácia, relativas, existentes no inte-
rior do todo. A especificidade desses tempos e dessas histórias é por-
tanto diferencial, dado que fundada nas relações diferenciais existen-
tes no todo entre os diferentes níveis: o modo e o grau de indepen-
dência de cada tempo e de cada história são, pois, determinados com
inevitabilidade pelo modo e grau de dependência de cada nível no
conjunto das articulações do todo. Conceber a independência “rela-
tiva” de uma história e de um nível jamais pode, pois, reduzir-se
mesmo à
à afirmação positiva de uma independência no vazio, nem
simples negação de uma dependência em si: conceber essa “indepen-
tipo de
dência relativa” significa definir sua “relatividade”, isto é, o
inevitável
dependência que produz e determina como seu resultado
determinar, no
esse modo de independência “relativa”; significa de
no todo, esse tipo
nível das articulações das estruturas parciais
dependência produtora da independência relativa cujos efeitos ob-
servamos na história dos diferentes “níveis”.

dade e à inevitabili-
Esse princípio é que fund amenta a possibili pectivamente à
dem res
dade de histórias diferentes q ue correspon
nos autoriza à falar de
cada um desses “níveis”. Esse princípio é que que das ideologias, de uma
história
uma história das religiões, de uma
ória da arte, de uma história das
história da filosofia, de uma hist
mas, pelo contrário, nos Impon-
ciências, sem jamais nos dispensar,
ncia relativa de cada uma des-
do-a obrigação de pensar a independê
hist ória s na dep end ênc ia esp ecí fica que articula os diferentes
sas se
al. Esta a razão pela qual,
níveis uns com os outros no todo soci
s histórias diferentes, que são ape
temos o direito de constituir essa
poderíamos contentar com O
nas histórias diferenciais, não nos toriadores de nos-
constatar - como o fazem não raro os melhores his
rela-
sa época - a existência do tempo e de ritmos diferentes, sem os
cionar com o conceito de sua diferença, isto é, com à dependência
-
típica que os fundamenta na articulação dos níveis do todo. Portan
o fazem alguns historiadores mod,ern€ os,
to, não basta dizer, comoerente que
que há periodizações dif s segundo os diferentes termos
os, outros longos, impõe-se
cada tempo possui seus ritmos, uns lent nças de ritmos e de escan-
pensar esses diferentes ritmos, essas difere
de deslocamento €
do, em seus fundamentos, no tipo de articulação, s
ess es dif ere nte s tempos entre si. Digamo tar
db a Dad ni s além, que não nos devemos con ten
com o refletir Rj A mai áveis,h
exi : veis € mensur
stência de tempos visí
io, absolutamente necessário, propor a questão
qu : ,
mas
da E do , por
ência de tempos invisíveis, ritmos e escansões invist-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 41

veis a discernir sob as aparências de cada tempo visível. A simples


leitura de O Capital mostra-nos que Marx foi profundamente sensí-
vel a essa exigência, Mostra, por exemplo, que o tempo da produção
econômica, se é um tempo específico (diferente segundo os diferen-
tes modos de produção), é, como tempo específico, um tempo com-
plexo não-linear - mas um tempo de tempo, tempo complexo que se
pode ler na continuidade do tempo da vida ou dos relógios, mas que
O
é preciso construir a partir das estruturas próprias da produção.
deve ser
tempo da produção econômica capitalista que Marx analisa
ser cons-
construído em seu conceito. O conceito desse tempo deve
assinalam as
truído a partir da realidade dos ritmos diferentes que a
e da distribuição:
diferentes operações da produção, da circulação
s, por exemplo, a di-
partir dos conceitos dessas diferentes operaçõe
de trabalho, a diferen-
ferença entre o tempo da produção e o tempo tal fixo, do ca-
ça dos diferentes ciclos da produção (rotação do capi
ção monetária, rotação do
pital circulante, do capital variável, rota
etc.). O tempo da produção
capital comercial e do capital financeiro,
sta nada tem a ver absolu-
econômica no modo de produção capitali
ideológico da prática quotidiana:
tamente com a evidência do tempo
certos lugares determinados, no
está, sem dúvida, enraizado em
alternância entre O trabalho e o
tempo biológico (certos limites de
humana€ animal; certos ritmos
repouso para a força de trabalho em nada, em sua es-
não se identifica
para a produção agricola), mas
e não é de modo algum um tempo
sência, com esse tempo biológico, pro-
no transcurso deste ou daquele
que possa [er-se imediatemente ilegível por essência, tão
Trat a-se de um temp o invis ível,
cesso dado. da
l e tão opac o quan to à próp ria realidade do processo total
invisíve sível, como “entrecruza-
não é aces
produção capitalista. Esse tempo
tempos, dos diferentes ritmos, TO-
mento” complexo dos diferentes não ser em seu conceito, que
falar, a
tações, etc. de que acabamos de el
todo conc eito jama is é “dad o” imediatamente, jamais legív
como conceito, deve ser pro-
como todo
na realidade visível: esse conceito,
duzido, construído. político e do tempo ideológi-
mo pode dize r-se do temp o
O mes
e do tempo científico, sem falar
co, do tempo teórico (filosófico)
um exemplo. O tempo da histó-
também do tempo da arte. Vejamos vé-
iatamente legível: sem dúvida,
ria da filosofia também não é imed
filosófos, e podemos tomar
se, na cronologia histórica, sucederem-se
No caso ainda, impõe-se rejei-
essa sequência pela própria história. e cuidar de cons-
do visível,
tar os conceitos ideológicos da sucessão
filosofia. E para construir esse
fruir o conceito do tempo da história da rença específica
a dife
conceito, é absolutamente imperioso definir
es (ideológicas e
do filosófico entre as formações culturais existent do Teórico
ao nível
científicas); definir o filosófico como pertencente

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42 LER “O CAPITAL”

ções diferenciais do Teórico como tal


como tal: e determina r as rela
com, de um lado, as di ferentes
práticas existentes, € de outro, a ideo-
nir essas relações diferenciais é defi-
logia e, enfim o científico. Defi
nir o tipo de articulação pe culiar ao Teórico (filosófico) com essas ou-
rea lid ade s; por tan to, defi nir a articulação peculiar da história
tras
ias das práticas diferentes, com a his-
da filosofia com as histór
das ciências. Mas isso não basta:
das ideologias e com à história filosofia,
filosofia, é preciso definir, na
para construir O conceito de formações filosóficas propria-
espe cífi ca que cons titu i as
a realidade refer ir para pensar à própria pos-
, e à qual nos dev emo s
mente ditas fas
de de acon teci ment os filo sófi cos. Trata-se de uma das tare
sibilida de his-
de tod o tra bal ho teó ric o de produção d o conceito
essenc iai s
ini ção rig oro sa do fa to histórico como tal.
tória: dar uma def tópico, menciono aqui ape
nas
adi ant ar- me à ess e
Sem pretender tór ico , em sua generalidade, entre
ini r co mo fat o his
que se pode def histórica , Os fa-
se produzem na existência
todos os fenômenos que as relações estruturais
existentes.
am co m um a mu ta çã o
tos que afet a
da fil oso fia ser á pre cis o tam bém, para po der falar del
Na história filosófi-
uma his tór ia, adm iti r que nela se produzem fatos
como de
de alcance histórico, isto é, muito pre-
“cos, acontecimentos filosóficos relações
nte fat os fil osó fic os que produzem mutação real nas
cis ame o, à problemática teórica exis-
fic as exi ste nte s, no cas
estruturais filosó visíveis e que, pelo
tente. Claro está que nem sempre esses fatos são
ce est are m no mai s das vezes ocultos, sendo objeto
“contrário, aco nte
uma verdad eira negação histórica mais
“de um verdadeiro recalque,
dur áve l. Por exe mpl o, a mu ta ção da problemática dogmá-
ou menos cimento filosófico
tica clássica pelo empirismo de Locke é um aconte
alc anc e his tór ico , que do mi na ainda hoje a filosofia crítica idea-
de XVIII bem como Kant Fichte e
lista, como dominou todo o século , sobret udo em seu longo alcance
inclusive Hegel. Esse fato histórico
tic ula r sua imp ort ânc ia em pri meiro plano para à com-
(e em par Hegel) é
preensão do pensam ento do idealismo alemão, de Kant à
é avaliado em sua verdadeira pro-
não raro conjecturado; raramente solutamente decisivo na
fundidade. Ele desempenhou um papel ab te
xista, e somos ainda em grande paruz
interpretação da filosofia marmpl fia de Spinoza introd
prisioneiros dele. Outro exe o: a filoso
osofia, e sem
dóvi jo pr sem precedente na história da fil, a ponto de
dorán as Anos rovolução Alosófica de todos os tempos
único antepassado diretoaddea M arxo. pap iáentvêantnh a rev
o, a essAlg do,çãoqa
sálolu radi-
um No
foi objeto de ocorreu
gal
com a filosofia sninozis mento histórico prodigioso, e
a spi noz ist a qua se ofi mesmo h que está acontecendo ain-
da em certos paí ses com , a filoso ia marxista: serviu de pecha infa-
nÁiiasaça ão
indi parndaa acu l s
de "atelsmo”, A insistência com« jug os ; séc
sécuulo

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 43

XVII e XVIII oficiais combateram animosamente a memória de


Spinoza, a distância que todo autor devia infalivelmente tomar em
relação a Spinoza para ter o direito de escrever (cf. Montesquieu),
atestam não apenas a repulsa, mas também o extraordinário atrati-
vo do seu pensamento. A história do spinozismo recalcado da filo-
sofia transcorre então como uma história subterrânea que atua em
outros lugares, na ideologia política e religiosa (o deísmo) e nas ciên-
cias, mas não no palco iluminado da filosofia visível. E quando o
spinozismo aparece em cena, na “querela do ateísmo” do idealismo
menos
alemão, e depojs nas interpretações acadêmicas, é mais ou
sugerir
sob o signo do mal-entendido. Já disse O bastante, creio, para
, a cons-
em que caminho deve seguir, em seus diferentes domínios
construção desse
trução do conceito de história; para mostrar que a
tem a ver com
conceito produz sem dúvida uma realidade que nada
pela crônica.
a sequência visível dos acontecimentos registrados
que o tempo do
Do mesmo modo que sabemos, desde Freud,
da biografia, que se im-
inconsciente não se confunde com o tempo
do tempo do inconsciente
põe, pelo contrário, construir o conceito
s da biografia, do mesmo
para chegar à compreensão de certos traço tempos históri-
diversos
modo é preciso elaborar Os conceitos dos
lógica da continuidade
cos, que jamais são dados na evidência ideo
ntemente por uma boa pe-
do tempo (que bastaria recortar convenie
da história), mas que de-
riodização para transformá-lo em tempo encial e da articulação
vem ser elaborados a partir da natureza difer
do todo. Haverá necessidade
diferencial de seu objeto na estrutura
encermos disso? Leiam-se os notá-
de outros exemplos para nos conv
e a “história da loucura” e
veis estudos de Michel Foucault sobr
uma idéia da distância que
sobre o “nascimento da clínica” e se terá
nica oficial, em que uma dis-
pode separar as belas sequências da crô refletir, sua boa
s fazem do que
ciplina ou uma sociedade nada mai
sua mã consciência - da tem-
consciência, quer dizer, a máscara de
rada que constitui a essência do
poralidade absolutamente inespe formações
olvimento dessas
processo de constituição e de desenv que permita lê-la no conti-
a história nada tem
culturais: a verdadeir
que baste escandir e recortar; ela
nuo ideológico de um tempo linear extremamente
trário, uma temporalidade própria,
possui, pelo con
ante a simplicidade de-
complexa, e, é claro, totalmente paradoxal
er a história de for-
sarmante do preconceito ideológico. Compreenddo advento do “olho
mações culturais tais com o a da “lou
cura” a
balho, não de abstração,
clínico” em medicina, supõe um imenso tra identifi-
rio objeto,
mas trabalho na abstração, para construir o próp
à conceito de sua história.
cando-o, € construir, por conseguinte,
Nesse caso, estamos em posição rigorosamente oposta à história

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44 LER “O CAPITAL"

empírica visível, em que o tempo de todas as histórias é o tempo


simples da continuidade, e o “conteúdo” o vazio de acontecimentos
que nele se produzem, e que se tenta depois determinar segundo mé-
todos de recortagem para “periodizar” essa continuidade. Em vez
o mis-
“dessas categorias do contínuo e do descontínuo que resumem
mente
tério vulgar de toda história, lidamos com categorias infinita
em que ocor-
mais complexas, especificas segundo o tipo de história,
hegelianos -
rem novas lógicas, em que, evidentemente, os esquemas
da “lógica do movi-
que não passam de sublimação das categorias
e aproximativo, e
mento e do tempo” - têm apenas valor altament cativo)
aproximativo (indi
ainda, sob condição de fazer delas um uso
oximação - porque Se devêssemos tomar es-
correspondente à sua apr
uadas, o emprego delas
sas categorias hegelianas por categorias adeq baldado ou
e praticamente
se tornaria então teoricamente absurdo,
catastrófico.
histórico complexo dos
Essa realidade específica do tempo
ser submetida à experiência
níveis do todo, paradoxalmente, pode
específico e complexo, da pro-
tentando-se a aplicação, a esse tempo
da estrutura da contempo-
va do “corte de essência”, prova decisiva
mesmo que efetuado no re-
raneidade. Corte histórico desse gênero,
para fenômenos de mutação
corte de uma periodização consagrada
seja na ordem política — jamais
superior - seja na ordem econômica,
à estrutura da chamada
extrai qualquer “presente” que possua
correspondente ao tipo de unidade
“contemporaneidade”, presença
coexistência que se verifica no
expressiva ou espiritual do todo. A
essência onipresente, que
“corte de essência” não revela qualquer
“níveis”. O corte que “vale
seja o próprio presente de cada um dos econômico - que portanto
ou
para determinado nível, seja político
a um “corte de essência” para O político, por exemplo -
corresponda para outros níveis: economi-
não corresponde a nada de semelhante
- que vivem em outros
co, ideológico, estético, filosófico, científico ritmos
outros e outras pontua-
“tempos, e passam por outros cortes,
dizer, à ausência de outro,
ções. A presença de um nível é, por assimde ausências é apenas efeito
e essa coexistência de uma *'presença” e O que se capta
da estrutura do todo em sua descentração articulada. à
assim como ausências numa presença localizada é precisamente
exatamente, O tipo de
não-localização da estrutura do todo ou, mais
eficácia própria da estrutura do todo sobre os seus “níveis” (por Sus
desses níveis. O que esse
vez estruturados) e sobre os “elementos” ausências que ele
impossível corte de essência revela é, nas próprias
mostra em negativo, a forma de existência histórica peculiar à uma
social decorrente de determinado modo de produção, O
formação
po pequi VAGO a que Marx chama processo de desenvolvi-
» de produção determinado, Esse processo é ainda

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 45

aquele que Marx, ao falar em O Capital do modo de produção capi-


talista, chama de tipo de entrelaçamento dos diferentes tempos (e ele
se contenta então com o falar só do nível econômico), isto é, o tipo.
de “defasagem” (décalage) e de torção das diferentes temporalida-
des produzidas pelos diferentes níveis da estrutura, cuja combinação
complexa constitui o tempo peculiar do desenvolvimento do processo.

Para evitar qualquer mal-entendido sobre o que acabo de dizer,


creio necessário acrescentar as observações a seguir.
A teoria do tempo histórico que acabo de esboçar permite fun-
damentar a possibilidade de uma história dos diferentes níveis, con-
siderados em sua autonomia “relativa”. Mas não se deveria deduzir
disso que a história é constituída pela justaposição das diferentes
“histórias “relativamente” autônomas, das diferentes temporalidades
históricas, de curta duração umas e de longa duração outras, no
transcurso de um mesmo tempo histórico. Em outras palavras, uma
vez recusado o modelo ideológico de um tempo contínuo, suscetível
de cortes de essências do presente, é preciso evitar a substituição.
dessa representação por outra de aspecto diferente mas que restaure
por baixo a mesma ideologia do tempo. Não pode, pois, ser o caso,
de relacionar a um mesmo tempo ideológico de base a diversidade
das diferentes temporalidades, e avaliar, na mesma linha de um tem-
po contínuo de referência, a sua defasagem, e que'nos contentaria-
mos então em pensar como atraso ou avanço no tempo, portanto
nesse tempo ideológico de referência. Se em nossa nova concepção
ele é
tentarmos efetuar o “'corte de essência”, iremos constatar que
diante
impossível. Mas isso não quer dizer que nos achemos então
em que
de um corte desigual, corte em degraus ou dentes múltiplos,
de um
figurem, no espaço temporal, o adiantamento ou o atraso
Ferroviária em
tempo em relação a outro, como nas tabelas da Rede
um
que o adiantamento ou atraso dos trens são representados por
avanço ou atraso espaciais. Se fizéssemos isso, cairiamos, como
na arma-
acontece com fregliência entre os melhores historiadores,
pas-
dilha da ideologia da história, em que o avanço e o atraso não
sam de variantes da continuidade de referência, e não efeitos da es-
trutura do todo, Com todas as formas dessa ideologia é que se im-
põe romper para relacionar corretamente ao seu conceito os fenô-
menos constatados pelos próprios historiadores, ao conceito de his-
tória do modo de produção considerado - e não à um tempo ideoló-
gico homogêneo e contínuo.
Essa conclusão é da maior importância para a determinação
que desempe-
correta do estatuto de uma série completa de noções,
nham grande papel estratégico na linguagem do pensamento econô-

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46 LER “O CAPITAL”

mico e político de nosso século, por exemplo, as noções de desigual-


dade do desenvolvimento, de sobrevivência, de atraso (atraso da cons-
ciência) no próprio marxismo, ou a noção de “subdesenvolvimento”
na prática econômica e política atual, É-nos necessário, pois, no que
tange a essas noções, que têm na prática consegiências de grande al-
cance, esclarecer devidamente o sentido que convém dar ao conceito
de temporalidade diferencial.

| Para atender a essa exigência, temos uma vez mais que purificar
nosso conceito de teoria da história, de modo radical, de toda conta-
minação pelas evidências da história empírica, pois sabemos que
essa “história empírica” nada mais é que o aspecto desnudo da ideo-
logia empirista da história. Devemos, contra essa tentação empirista
dos.
cujo peso é imenso - e que no entanto não é sentido pelo comum
pe-
homens, e inclusive por certos historiadores, como não é sentido
los homens deste planeta o peso da enorme camada atmosférica que
“os esmaga -, ver e compreender claramente, sem qualquer equi-
pode ser empírico, Isto
voco, quê o conceito de história não mais
é, histórico no sentido vulgar, que, como já dizia Spinoza, 0 conceito
à
de cão não pode ladrar. Devemos conceber do modo mais rigoroso
en-
necessidade absoluta de libertar a teoria da história de qualquer
volvimento com a temporalidade “empírica”, com à concepção
ideológica do tempo que a sustenta e encobre, com essa noção ideo-
suD-
lógica de que a teoria da história possa, enquanto teoria, estar
metida às determinações “'concretas” do “tempo histórico”, sob O
pretexto de que esse “tempo histórico” constituiria seu objeto.
Não devemos alimentar ilusão sobre a força incrível desse pre-
constitui O estofo do
conceito, que a todos nós domina ainda, e quea confundir o objeto do
historicismo contemporâneo, e que nos levaria
en-
conhecimento com o objeto real, afetando o objeto de conhecim
de que ele € conheci-
“to das “qualidades” próprias do objeto real
mento, O conhecimento da história não é histórico, tanto quanto
esse
não é açucarado o conhecimento do açúcar. Mas antesseráqueneces
sem dúvida
princípio singelo “penetre” nas consciências,
Sária uma “história” inteira, Contentemo-nos por ora com O escla-
recimento de alguns pontos. Cairíamo s, com efeito, na ideologia do
sse-
tempo contínuo-homogênco-contemporâneo a si, caso relacioná
mos a esse único e mesmo tempo as diferentes temporalidades há
onio PprANonadas, como outras tantas descontinuidades = no
sobrevivências ana pensássemos então como atrasos € ade
nesse tempo deu esigualdades de desenvolvimento parçor, ins-
tituindo, de nen ima, a despeito de nossas recusas, sta ram pr
mediríamos essas o tempo de referência, na continuida e do 1
esigualdades. Muito pelo contrário, temos de

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 47

€ unica-
considerar essas diferenças de estruturas temporais como,
dos diferentes
mente como, índices objetivos do modo de articulação
conjunto do todo.
elementos ou diferentes estruturas na estrutura de
r na história esse
Isso equivale a dizer que, se não podemos efetua
“corte de essência”, há de ser na unidade específica da estrutura
ito desses pretensos
complexa do todo que devemos pensar O conce
de desenvolvimento
atrasos, avanços, sobrevivências, desigualdades nte da
nte histórico real: o prese
que co-existem na estrutura do prese tem,
nciais não
difere
conjuntura. Falar de tipos de historicidade em que pu-
pois, sentido algum em referência a um tempo de base
os.
dessem ser medidos esses atrasos e avanç
r que O sentido último da
Por outro lado, isso equivale a dize
do avanço, etc. deve ser procurado
linguagem metafórica do atraso,
rut ura do todo , no luga r pró pri o deste ou daquele elemento,
na est plexidade do todo.
al na com
peculiar a determinado nível estrutur rencial é, pois, ter absoluta
dife
Falar de temporalidade histórica em sua articulação própria, a
de situ ar o luga r, e pens ar,
obrigação
de cert o ele men to ou de cert o nível na configuração atual do
função
articulação desse elemento em fun-
todo; é determinar a relação de a em função das demais es-
utur
ção dos demais elementos, dessa estr o que veio a ser chamado de
sua
; é ser obr iga do a defi nir
truturas
ou sub det erm ina ção , em função da estrutura de
sobredetermi naç ão outra
ção do todo ; é ter a obrigação de definir o que em
determ ina ce de
de índice de determinação, índi
linguagem poderíamos chamar men to ou à estrutura em que o,
stã
estã o dot ado s o ele
eficácia de. que do todo. Por índice de eficácia
na est rut ura de con jun to
atualmente os domi-
s ent end er o cará ter de determinação mais OU men
podemo os “parado-
tanto, sempre mais OU men
nante ou subordinado, por dados no mecanismo atual
do to-
ele men to ou estr utur a
xal”, de um ia da conjuntura, indispensáve
l à
nad a mai s é do que a teor
do. E isso
teoria da história
a int enç ão ap ro fu nd ar essa análise, que está quase
Não é mi nh r duas conclusões
toda por ser elabor ada. Vou limitar-me à extrai cro-
pri ncí pio s: uma , ref ere nte aos conceitos de sincronia e dia
desses to de história,
ao concei
nia e, a outra, referente é claro que o par
dissemos tem um sentido objetivo,
1º Se o que
-di acr oni a é O lug ar de um desconhecimento, pois a tomá-
sincronia já que
por con hec ime nto fic a-s e no vazio epistemológico, isto é, -
Jo
no pleno ideológico, precisamente
a ideologia tem medo do vazio - tempo seria
de uma história cujo
no cerne da concepção ideológicaâneo
contínuo-homogêneo-contempor a si, Se essa concepção ideo-
aparece o par. En-
lógica da história e de seu objeto cai, também des

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48 LER “O CAPITAL”

ção
tretanto, uma coisa dele permanece: o que é visado pela opera
, precisa-
epistemológica de que esse par é a reflexão inconsciente
despojada de
mente essa operação epistemológica em si, uma vez
nada tem a
sua referência ideológica. O que é visado pela sincronia
mas, pelo
ver com a presença temporal do objeto como objeto real, ou-
e a presença de
contrário, tem a ver com outro tipo de presença,
to, não o tempo
tro objeto: não a presença temporal do objeto concre
mas a presença
histórico da presença histórica do objeto histórico,
a análise teórica,
(ou o “tempo”) do objeto de conhecimento da própri
rônico é tão-só a
a presença do conhecimento. Por conseguinte, o sinc
os diferentes ele-
concepção das relações específicas existentes entre
do todo; é o conheci-
mentos € as diferentes estruturas da estrutura mam
que a transfor
mento das relações de dependência e articulação no sen-
num todo orgâ nico, num sistema. O sincrônico é a eternidade
de sua complexidade.
tido spinozista, ou conhecimento adequado rica con-
sucessão histó
precisamente isso o que Marx distingue da
creto-real, ao perguntar:

a apenas do movimento, da
Com efeito, como é que a fórmula lógic
corpo da sociedade, no qual todas
sucessão, do tempo, poderia explicar o
ltaneamente .e se sustentam mu-
as relações econômicas coexistem simu
tuamente? (Misêre de la Philosophie, p. 120.)

a ver com à simples pre-


Ora, se a sincronia é isso, ela nada tem
conhecimento da articula-
sença temporal concreta, mas refere-se ao nça
não é essa co-prese
ção complexa que faz do todo um todo. Ela
ade do objeto de conheci-
concreta - é o conhecimento da complexid
mento, o que dá o conhecimento do objeto real,
tirar con-
Se assim é no que diz respeito à sincronia, devemos é a con-
que
clusões semelhantes no que se refere à diacronia, dado
da essência à
cepção ideológica da sincronia (da contemporaneidade mostrar
si) que funda a concepção ideológica da diacronia. Basta
a fazem desempenhar o papel da história,
como, nos pensadores que desnud
a diacronia confessa o seu amento, A diacronia é reduzida ao
co: o his-
factual, e aos efeitos do factual sobre a estrutura do sincrôni
tórico é então o imprevisto, o acaso, o peculiar do fato, que surge Ou
o por motivos contingentes no contínuo vazio do tempo. O projeto
neste contexto,
rolos Aimar ia estrutural” estabelece então,
sas que L Soltas cuja reflexão laboriosa encontramos nas passa-
sdiánio Que rata lhe dedica na Antropologia estrutural, De fato,
provocadr dOMOtULITAaçõesSese tempo vazio 6 [atos pontuais poderiam
andina reestruturações do sincrônico? Uma vez
Dlocada em seu lugar sincronimaia, , o sentido “concreto” da diacro-
ainda anada
nia cai, e no caso a mais resta dela a não ser O seu uso epis-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 49

temológico possível, sob condição de que se faça passar por uma


conversão teórica e a considerar em seu verdadeiro sentído, como
uma categoria, não do concreto, mas do conhecer. A diacronia pas-
sa então a ser nada mais que o falso nome do processo, ou o que
Marx chama de desenvolvimento das formas." Mas, no caso aínda,
estamos no conhecimento, no processo do conhecimento, e não no
desenvolvimento do concreto-real. *

2º Passo ao conceito de tempo histórico. Para o definir com ri-


gor, temos de admitir a condição seguinte: dado que esse conceito só
pode fundar-se na estrutura complexa com dominante e articulações
diferenciais da totalidade social, que uma formação social decorren-
te de certo modo de produção constitui, seu conteúdo só pode ser
percebido em função da estrutura dessa totalidade - seja considera-
“níveis”.
da em seu conjunto, seja considerada em seus diferentes
o de tempo
Em particular, não é possível dar conteúdo ao conceit fcrma es-
como a
histórico, a não ser definindo o tempo histórico,
da totalidade social considerada, existência
pecífica da existência interfe-
em que diferentes níveis estruturais de temporalidade
não-
rem em função das relações peculiares de correspondência,
e torção que mantêm mu-
correspondência, articulação, defasagem
unto do todo, os diferentes
tuamente, em função da estrutura de conj
m como não há produção
“níveis” do todo. Devemos dizer que, assi
mas estruturas específicas da his-
em geral, não há história em geral,
a em estruturas específicas
toricidade, fundadas em última instânci ori-
estruturas específicas da hist
dos diferentes modos de produção, formações sociais determi-
cidade que, sendo apenas à existência de
ão específicos), articuladas
nadas (pertencentes a modos de produç
ão da essência dessas totalida-
como todos, só têm sentido em funç
ade própria.
des, isto é, da essência de sua complexid

=
1 Cf.t, |, cap. 1, parágrafo 13, críti ca do empi rism o la-
mal-entendido, que essa
* Acrescento, para evitar qualquer ardo de “dia crôn ico” ,
corrente do conceito bast
tente que frequenta hoje o emprego ricas . Por exem plo, a
das transformações histó
não atinge evidentemente a realidade essa real idad e (o
a outro. Se quisermos designar
passagem de um modo de produção remos
as) como sendo a “diacronia”, não esta
fato da transformação real das estrutur estát ico) ou,
histórico (que jamais é puramente
com isso designando senão o próprio el. Mas
o que se transforma de modo visív
por uma distinção interior ao histórico, (“o
transformações, não mais se está no real
quando se quer pensar O conceito dessas aca-
que atua à dialética epistemológica que
diacrônico”), mas no conhecimento, em conc eito , € O “des envo lvi-
real em si: o
bamos de expor, a propósito do “diacrônico” se mais adiante o texto de Balibar.
to a isso, veja-
mento das suas formas”, Quan

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50 LER “O CAPITAL”

Essa definição do tempo histórico por seu conceito teórico inte-


ressa diretamente aos historiadores e à sua prática, Porque ela atrai
a atenção deles para a ideologia empirista que domina poderosa-
mente, com poucas exceções, todas as variedades de história (seja a
história no sentido amplo, ou a história especializada: econômica,
social, política, da arte, da literatura, da filosofia, das ciências, etc.).
Falando de modo brutal, a história vive na ilusão de que pode dis-
pensar a teoria, no sentido estrito a teoria do seu objeto, e, portan-
to, dispensar uma definição do seu objeto teórico. O que lhe serve de
teoria, o que, a seu ver, assume o lugar dela, é a metodologia, isto é,
as normas que lhe regem as práticas efetivas, práticas centradas na
nela assu-
crítica dos documentos e na restauração dos fatos. O que
A his-
me o lugar de objeto teórico é, a seu ver, O objeto “concreto”. toma
que lhe falta, e
tória toma, pois, a sua metodologia pela teoria
ideológico pelo ob-
o “concreto” das evidências concretas do tempo
ideologia empiris-
jeto teórico. Essa dupla confusão é típica de uma e corajoso de
consciente
ta. O que falta à história é o enfrentamento
o problema da natureza€
um problema essencial a qualquer ciência: a teoria interior à
por isso
da constituição de sua teoria. Entendo
teóricos que fundamenta
própria ciência, o sistema dos conceitos
experimental, e que ao
qualquer método e toda prática, inclusive Ora, salvo Exceções, os
mesmo tempo define o seu objeto teórico. e urgente para Sina
vital
historiadores não enfrentam o problema
É como acontece inevitavel-
ria: o problema da teoria da história.
científica é ocupado por
mente, o lugar deixado vazio pela teoria exibir-se, até no
podem
uma teoria ideológica, cujos efeitos nefastos dos historiadores.
pormenor, no próprio plano da metodologia de
a possui, poiis, O mesmo ipoje
ênci |, po
O objeto da hiissttóórriia como cijênci e
ic a, e se es ta be le ce no me smo nível teórico que
ór
existência teomia rença quesatá
to da econ política segundo Marx, A única dife
— de que O Capit a E
pode apurar entre a teoria da economia política decorre de Que”
um exemplo - e a teoria da história como ciência,
apenas uma parte relativa
teoria da economia política considera
mente autônoma da total idade social, ao passo que a teorta da histo-
como tal por objeto.
ria toma em princípio a totalidade complexa di-
do ponto de vista teórico, qual quer
Aforaça essa diferença, nãoda há,
economia política e a ciência da história.
feren entre a ciência
, entre O curáter “abstra-
o A oposição, frequentemente invocada
eto” da história como
to” de O Capital e o pretenso caráter “concr dizer algu-
ciência, é puro e simples mal-entendido, sobre o qual vale preconcel-
iado no reino dos
ma coisa, pois ele ocupa lugar privileg nomia politica se
tos em que viv emo que a teoria da eco
s.olvOe fato de est
elab ora e se des env na inv igação de certa matéria-prima for-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 51

necida em última instância por práticas da história concreta, real -


que possa e deva realizar-se em análises econômicas consideradas
concretas” e referentes a esta ou aquela conjuntura, a esta ou aque-
la formação social, a este ou aquele período - encontra o equivalen-
te exato no fato de que a teoria da história se elabora e se desenvolve
também numa investigação de certa matéria-prima produzida pela
história concreta real e que encontre também sua realização na “a-
nálise concreta” das “situações concretas”. Todo o mal-entendido
advém de que a história não mais existe a não ser sob essa segunda
forma, como “aplicação” de uma teoria... que a rigor não existe e
que, por isso, as “aplicações” da teoria da história se fazem de certo
modo no dorso dessa teoria ausente, e se tomam naturalmente por
ela... a menos que não se apóiem (porque lhes é necessário um mini-
mo de teoria para existir) em esboços de teoria mais ou menos ideo-
lógicos. Devemos encarar a sério o fato de que a teoria da história, no
sentido rigoroso, não existe, ou que só existe para Os historiadores,
que os conceitos de história existentes são, pois, no mais das vezes
conceitos “empíricos” mais ou menos à procura do fundamento teó-
ideologia
rico - “empíricos”, isto é, fortemente mestiçados com uma
es
que se dissimula sob as suas “evidências”. É o caso dos melhor
por sua
historiadores que se distinguem precisamente dos demais
em que:
preocupação teórica, mas que procuram à teoria num nível
histórica, que
ela não se pode encontrar, no nível da metodologia
não pode definir-se fora da teoria que a fundamenta.
no sentido
No dia em que existir história também como teoria,
ciência teórica e
que acabamos de definir, sua dupla existência como
mas, a exemplo da
como ciência empírica não mais suscitará proble
política como ciên-
dupla existência da teoria marxista da economia teórico do
O desequilíbrio
cia teórica e ciência empírica, Neste dia,
política /ciência preten-
par cambado: ciência abstrata da economia
recido, e com ele todos
samente “'concreta” da história, terá desapa
dos mortos e da comu-
os sonhos e ritos religiosos da ressurreição historiadores
Michelet os
nhão dos santos, que cem anos depois de
, não nas catacumbas, mas
passam ainda o seu tempo a comemorar
nas praças públicas do nosso século.
presente con-
Acrescentarei uma palavra ainda a esse assunto. A n-
como prete
fusão entre história como teoria da história e história
do seu
sa “ciência do concreto”, a história tomada no empirismo
à teo-
objeto e o confronto dessa história empírica “concreta” com
número
ria “abstrata” da economia política, são a raiz de um sem-
de confusões conceptuais e falsos problemas. Pode mesmo dizer-se
que esse mal-entendido produz por si mesmo conceitos ideológicos
cuja função consiste em preencher a distância, isto é, o vazio existen-

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52 LER “O CAPITAL”

te entre a parte teórica da história existente e a história empírica


(que é não raro a história existente). Não pretendo passar em revista
esses conceitos; para tanto seria necessário um estudo completo.
Destacarei apenas três como exemplo: os pares clássicos essência /fe-.
nômenos, necessidade /contingência e o “problema” da ação do in-
dividuo na história.

O par essência /fenômenos encarrega-se, na hipótese economi-


cista ou mecanicista, de explicar o não-cconômico como fenômeno
do econômico, que é sua essência, Sub-repticiamente, nessa opera-
ção, o teórico (e o “abstrato”) estão do lado do econômico (visto
que temos a teoria dele em O Capital), e o empírico, o “concreto”,
do lado do não-econômico, isto é, do lado do político, da ideologia,
etc. O par essência /fenômeno desempenha bem esse papel, se consi-
derarmos o fenômeno como o concreto, o empírico, e a essência
como o não-empírico, como o abstrato, como a verdade do fenôme-
(eco-
no. Com isso se estabelece essa relação absurda entre o teórico
nômico) e o empírico (não-econômico) num passo de dança que
- O
compara o conhecimento de um objeto com a existência de outro
que nos leva a um paralogismo.

O par necessidade/contingência, ou necessidade /acaso é da


mesma espécie, e destina-se à mesma função: preencher a distância
entre o teórico de um objeto (por exemplo, a economia) € o não-
teórico, o empírico de outro (o não-econômico no qual o econômico
“abre o seu caminho”: as “circunstâncias”, a “individualidade”,
etc.). Quando se diz, por exemplo, que a necessidade “abre o seu cà-
minho” através dos dados contingentes, através de circunstâncias
diversas, etc. coloca-se uma espantosa mecânica em que são con-
frontadas duas realidades sem relação direta. À “necessidade de-
em
ão
signa, no caso, um conhecimento (p. ex., a lei de determinaç
última instância pela economia), e as “circunstâncias”, o que não é
conhecido. Mas em vez de comparar um conhecimento com outro,
coloca-se o não-conhecimento entre parênteses, e põe-se em Seu lu-
gar a existência empírica do objeto não-conhecido (a que se dá o
nome de “circunstâncias”, os dados contingentes, etc.) - o que per-
mite cruzar os termos, e realizar o paralogismo de um curto-circuito
em que se compara então o conhecimento de um objeto determinado
(a necessidade do econômico) com a existência empírica de outro
objeto (as “circunstâncias” políticas ou outras, através das quais se
diz que essa “necessidade” “abre o seu caminho”).
A mais célebre forma desse paralogismo nos é dada pelo
problema” do “papel do indivíduo na história”... trágico debate
em que se trata de confrontar o teórico ou conhecimento de um ob-

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 53

jeto determinado (por exemplo, a economia) - que representa a es-


sência da qual os demais objetos (o político, o ideológico, etc.) são
pensados como os fenômenos - com essa realidade empírica excessi-
vamente importante (politicamente!) que é a ação individual. No
caso ainda, temos diante de nós um curto-circuito de termos cruza-
«dos, cuja comparação é ilegítima: pois no caso confrontamos o co-
nhecimento de um objeto determinado com a existência empírica de
outro! Eu não gostaria de insistir nas dificuldades que esses concei-
tos apresentam para seus autores, que não podiam desembaraçar-se
de outro modo, a menos que empreendessem o questionamento
crítico dos conceitos filosóficos hegelianos (e de modo mais geral,
clássicos) que estão nesse paralogismo como veneno na água. Obser-
vo, todavia, que esse falso problema do “papel do indivíduo na his-
tória” é, no entanto, indicador de um verdadeiro problema, que de-
corre de pleno direito da teoria da história: o problema do conceito
das formas de existência históricas da individualidade. O Capital nos
dá os princípios necessários para a colocação desse problema, ao de-
finir para o modo de produção capitalista as diferentes formas da in-
dividualidade exigidas e produzidas por esse modo de produção, se-
gundo as funções de que os indivíduos são “portadores” ( Tráger) na
divisão do trabalho, nos diferentes “níveis” da estrutura. É claro, no
caso ainda, o modo de existência histórico da individualidade num
modo de produção dado não é visível a olho nu na “história”, seu
conceito deve, pois, ser construído, e como todo conceito ele reserva
surpresas, a mais crua das quais é que ele não se assemelha às falsas
evidências do “dado” - que não passa de máscara da ideologia cor-
rente. É a partir do conceito das variações do modo de existência
histórico da individualidade que pode ser enfocado o que subsiste
orindasramento do promaia, do “papel do indivíduo na história”,
que, propr
io
saia forma elzbro, 4 amPera also porque
á é
ae
é

teoria de um objeto com a existência empírica de outro. Na medida


a fi
que se confronta nele a
em que não se tenha proposto o problema teórico real (o das formas
de existência históricas da individualidade) continuaremos a : istir
ao debate na confusão - como Plekhanov, que vasculha o leito de
Luís XV para verificar que os segredos da queda do Antigo Regime
não estão lá enfurnados, ' Via de regra, , os os con E
ceitos não se escondem
4 a o

em camas.
o
*

+ Vs .
Althusser adverte, no início deste livro, sobre O caráter de in
Esta referência
do a Plekhanov exemplifica |
plifica isso. acaban
idamento da obra,
sobrea História (Editorial Presença, Lisboa 1970 pio poderá verificar em Reflexões
Mme Pompadour dentro de um contexto boi 1355.) que Plekhanov alude a
ter minado de condições
e a
. -

sociais único

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54 LER “O CAPITAL"

Uma vez elucidada, pelo menos em princípio, a especificidade


do conceito marxista de tempo histórico - uma vez criticadas como
ideológicas todas as noções comuns que sobrecarregam a palavra
história, podemos compreender melhor os diferentes efeitos que esse
mal-entendido sobre a história originou na interpretação de Marx.
A compreensão do princípio das confusões revela-nos ipso facto a
pertinência de certas distinções essenciais que, figurando em termos
adequados em O Capital, apesar disso foram não raro mal com-
preendidas.

Compreendemos em primeiro lugar que o simples projeto de


“historicizar”” a economia política clássica nos lança no impasse teó-
rico de um paralogismo em que as categorias econômicas clássicas,
em vez de serem pensadas no conceito teórico de história, são sim-
plesmente projetadas no conceito ideológico de história. Esse projeto
nos dá o esquema clássico, novamente ligado ao desconhecimen-
to da especificidade de Marx: no final, Marx teria concluído a união
da economia política clássica com o método dialético hegeliano
(concentrado teórico da concepção hegeliana da história). Eis-nos,
porém, de novo diante da colagem de um método exotérico preexis-
tente sobre um objeto predeterminado, isto é, diante desta união
teoricamente duvidosa de um método definido independentemente
de seu objeto, e cujo acordo de adequação com o seu objeto só pode
ser celebrado sob o fundo comum ideológico de um mal-entendido.
que marca tanto o historicismo hegeliano como o eternitarismo dos
economistás. E com isso os dois termos do par eternidade /história
vão proceder de uma problemática comum, vindo o “historicismo”
hegeliano a ser apenas a contraconotação historicizada do “eternita-
rismo” econômico,

Mas compreendemos também, em segundo lugar, o sentido dos


debates, que não estão ainda encerrados, sobre a relação da teoria
econômica com a história, no próprio O Capital. Se os debates se
prolongaram até nós, isto se deve em grande parte ao efeito de uma
confusão sobre o estatuto da própria teoria econômica e da história,
Quando Engels, no Anti-Dilhring (Ed. Soc., p. 179), escreve que à
Economia Política é essencialmente uma ciência histórica”, porque
“trata de matéria histórica, isto é, constantemente cambiante”, esta-
mos no ponto exato do equívoco; onde a palavra histórica tanto pode
pender para o conceito marxista como para o conceito ideológico de

ga que é possívela influência de indivíduos. Critica, isto sim, Sainte-Beuve, por bus-
explicações históricas em fatos de alcova, (N. do T.)

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 55

história, conforme designe o objeto de conhecimento de uma teoria


da história ou, pelo contrário, o objeto real de que essa teoria dá o
conhecimento. Podemos de pleno direito afirmar que a teoria da
economia política marxista remete como uma de suas regiões à teo-
ria marxista da história; mas podemos também crer que a teoria da
economia política é atingida até em seus conceitos teóricos pela qua-
lidade própria da história real (sua “matéria” que é “cambiante””. Ê
no sentido dessa segunda interpretação que Engels nos joga, em cer-
tos textos surpreendentes, que introduzem a história (no sentido em-
pirista-ideológico) até nas categorias teóricas de Marx. Cito por
exemplo a obstinação dele em reiterar que Marx não podia produ-
zir em sua teoria verdadeiras definições científicas devido a razões
atinentes às propriedades de seu objeto real, à natureza móvel e cam-
biante de uma realidade histórica refratária por excelência a qualquer
tratamento por definição, cuja forma fixa e eterna só poderia falsear a
perpétua mobilidade do vir-a-ser histórico.

No Prefácio ao livro III de O Capital (VI, 17), Engels, citando


as críticas de Fireman, escreve:
Todas elas se baseiam nesse mal-entendido: Marx gostaria de definir
de
onde na realidade desenvolve; de modo geral estaríamos no direito
procurar nos escritos dele definições já prontas, válidas de uma vez por
todas. Evidentemente, a partir do momento em que as coisas e suas rela-
s, Os
ções recíprocas são concebidas como não-fixas, mas como variávei
sujeitos à variação e
seus reflexos mentais € os seus conceitos também estão
ão
à mudança; nessas condições, eles não estarão encerrados numa definiç
de sua
rígida, mas desenvolvidos segundo o processo histórico ou lógico
no inf-
formação. Por conseguinte, vê-se claramente por que Marx parte,
é à condição
cio do Livro 1, da simples produção mercantil, que para ele
histórica prévia, para chegar depois... ao capital.

tema é retomado nas notas de trabalho do Anti-


O mesmo
Diihring (Ed, Soc,, p. 395):
e insufi-
As definições não têm valor para a ciência, porque são sempr mas
a coisa,
cientes. A única definição real é o desenvolvimento da própri
Para saber e mostr ar o que
esse desenvolvimento não é mais uma definição.
s da vida e a repres en-
é a vida, somos obrigados a estudar todas as forma
uso corren te, uma
tá-las em seu encadeamento. Por outro lado, para o
mais Upi-
breve exposição dos caracteres mais gerais e ao mesmo tempo
isso
cos no que se chama uma definição pode ser útil, e até necessária, e
não pode prejudicar, caso não se peça à essa exposição mais do que ela
pode enunciar, (Os grifos são meus. L, À.)

Os dois trechos não deixam, infelizmente, lugar a qualquer


equívoco, pois vão ao ponto de designar muito precisamente o lugar

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56 LER “O CAPITAL”

do “mal-entendido” e a lhe formular os termos. Todas as persona-


gens do mal-entendido entram em cena no caso, cada qual desempe-
nhando o papel prescrito pelo efeito que se espera desse teatro, Bas-
ta-nos mudá-los de lugar para que exibam o papel que se lhes atri-
bui, o abandonem e se ponham a declamar um texto completamente
diferente. Todo o mal-entendido desse raciocínio decorre de fato do
paralogismo que confunde o desenvolvimento teórico dos conceitos
com a gênese da história real. No entanto, Marx havia distinguido
cuidadosamente essas duas ordens, ao mostrar, na Introdução de
1857, que não se podia estabelecer qualquer correlação biunívoca
entre os termos que figuram, por um lado na ordem de sucessão dos
conceitos no discurso da demonstração científica, e por outro na or-
dem genética da história real. No caso, Engels postula essa impossí-
vel correlação, identificando sem hesitar o desenvolvimento “lógi-
co” com o desenvolvimento “'histórico”. E com grande honestidade
ele nos indica a condição de possibilidade teórica exigida por essa
identificação: a afirmação da identidade da ordem dos dois desen-
volvimentos deve-se a que os conceitos necessários a toda teoria da
história são afetados, na sua substância de conceitos, pelas proprie-
dades do objeto real. “A partir do momento em que as coisas... são
concebidas como... variáveis, os seus reflexos mentais, os conceitos,
estão também submetidos à variação e à mudança”. Para identificar o
desenvolvimento dos conceitos com o desenvolvimento da história
real, é preciso, pois, ter identificado o objeto do conhecimento com
o objeto real, ter submetido os conceitos às determinações reais da
história real. Engels afeta assim os conceitos da teoria da história
com um coeficiente de mobilidade, diretamente tomado à sucessão
empírica (à ideologia da história) concreta, transpondo assim o
“concreto-real” no “concreto-de-pensamento”, e o histórico como
mudança real no próprio conceito. Sob premissas tais, o raciocínio é
cabalmente obrigado a concluir pelo caráter não-científico de qual-
quer definição: “as definições não têm valor para a ciência”, dado
que “a única definição real é o desenvolvimento da própria coisa, mas
esse desenvolvimento não é mais uma definição”. No caso ainda, a col-
sa real entra no lugar do conceito, e o desenvolvimento da coisa real
“(isto é, a história real da gênese concreta) entra no lugar do “desen-
volvimento das formas” que, tanto na Introdução como em O Capital,
“é explicitamente declarado como transcorrendo exclusivamente no
conhecimento, referindo-se exclusivamente à ordem necessária de
aparecimento e desaparecimento dos conceitos no discurso da de-
monstração científica, Será preciso mostrar como, na interpretação
de Engels, deparamos com um tema que já encontramos na resposta
aC, Schmidt: o tema da fragilidade originária do conceito? Se as de-
finições não têm valor para a ciência é porque são “sempre insufi-

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O OBJETO DE “O CAPITAL 57

cientes”, quer dizer, o conceito é por naturezh fulho e truz essa falha
inscrita na sua própria natureza de conceito: € q consciência desse
pecado original que lhe faz ubdicar de qualquer pretensão de defintr
o real, que se “define” a si mesmo na produção histórica das formas
de sua gênese, Partindo disso, se propusermos u questão do estatuto
da definição, isto é, do conceito, seremos obrigados a conferir-lhe
um papel bem diverso da sua pretensão teórica: um papel “prático”,
bem próprio para “o uso corrente”, um papel de designação geral,
sem qualquer função teórica, Paradoxalmente, vale notar que En-
gels, que começou por cruzar os termos implicados na sua questão,
chega, como conclusão, a uma definição cujo sentido lhe é também
cruzado, isto é, deslocado em relação ao objeto que ele visa, dado
que nessa definição puramente prática (corrente) do papel de con-
ceito científico, ele nos dá de fato com que nutrir uma teoria de uma
das funções do conceito ideológico: a função de alusão e de indica-
dor práticos.
Eis a que ponto leva o desconhecimento da distinção funda-
i-
mental que Marx nitidamente assinalara entre o objeto do conhec
das formas” do
mento e o objeto real, entre o “desenvolvimento
rias reais
conceito no conhecimento e o desenvolvimento das catego e à
conhecimento
na história concreta: a uma ideologia empirista do
O Capital. Não sur-
identificação do lógico e do histórico no próprio depen-
questão
preende que tantos intérpretes girem em círculos na probl emas refe-
s dessa identificação, se é verdade que todos os
dente
Capital pressupõem,
rentes à relação do lógico com o histórico em O
relação como correspon-
uma relação que não existe. Imagine-se essa
constantes nes-
dência biunívoca direta dos termos das duas ordens
história real), imagi-
ses dois desenvolvimentos (o do conceito, o de dos termos
inversa
ne-se essa mesma relação como correspondência
o fundo da tese de Della
das duas ordens de desenvolvimento (este é hipóte-
saímos da
Volpe e de Pietranera que Ranciêre analisa), e não erro po-
se de uma relaçã o onde não existe relação alguma. Desse
ramente prática: as
dem-se tirar duas conclusões, A primeira é intei
ema são graves, na
dificuldades encontradas na solução desse probl
resolver um
verdade insuperáveis; se já nem sempre é possível
se há
roblema existente, pode-se estar certo de que de modo algum
de resolver um problema que não existe." A segunda conclusão é

" Devemos a Kant poder suspeitar que problemas que não existem possam ensejar
prodigiosos esforços teóricos e a produção mais ou menos rigorosa de soluções tão
fantasmagóricas quanto seu objeto, pois a filosofia de Kunt pode em grande parte ser
concebida como a teoria da possibilidade da existência de “ciências” sem objeto (me-
tafísica, cosmologia, psicologia racional). Se não se tiver ânimo de ler Kant, pode-se

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58 LER “O CAPITAL"

teórica: é que se impõe uma solução imaginária a um problema


imaginário, e não qualquer solução imaginária, mas a solução ima-
ginária exigida pela colocação (imuginária) desse problema imaginá-
rio. Toda colocação imaginária (ideológica) de um problema (que
pode também ser imaginário) traz em si uma problemática determi-
nada, que define tanto a possibilidade como a forma de colocação
desse problema. Essa problemática reencontra-se, como sua imagem
refletida, na própria solução dada ao problema, em virtude do jogo
especular peculiar ao'imaginário ideológico (cf. tomo 1, cap. 1), se
não se encontra diretamente em pessoa na questão mencionada, ela
aparece em outro lugar, de face descoberta, quando se trata explici-
tamente dela, na “teoria do conhecimento” latente que sustenta a
identificação do histórico com o lógico: uma ideologia empirista do
conhecimento. Não é, pois, por acaso que vemos Engels literalmente
sob
jogado por sua questão na tentação desse empirismo, nem que,
iden-
outra forma, Della Volpe e seus discípulos sustentem a tese da
ar-
tificação inversa das ordens histórica e lógica em O Capital, pelo
uma forma
gumento de uma teoria da “abstração histórica”, que é
superior de empirismo historicista. a
Volto a O Capital. O erro que acabamos de assinalar sobre
efeito
tem por
“existência imaginária de uma relação não-existente
€ fundada
tornar invisível outra relação - legítima porque existente
Se a pri-
de direito - entre teoria da economia e teoria da história. imagina”
meira relação (teoria da economia e história concreta) era
da história) é
ria, a segunda relação (teoria da economia e teoria
uma verdadeira relação teórica. Por que ficou a tal ponto se ndo if
visível pelo menos opaca? É que a primeira relação tinha a seu favor
histo-
a precipitação da “evidência”, isto é, tentações empiristas dos
riadores que, lendo em O Capital páginas de história “concreta” (a
luta pela diminuição da duração da jornada de trabalho, a passagem
da manufatura à grande indústria, acumulação primitiva, etc.) Vi-
ram-se de algum modo “à vontade”, e colocavam então o problema
da teoria econômica em função da existência dessa história “'concre-
ta”, sem sentir a necessidade de propor a questão dos seus títulos.
Interpretavam à maneira empirista as análises de Marx, que, longe
de serem análises históricas no sentido rigoroso, isto é, sustentadas

add eh pp os produtores de “ciências” sem objeto: por exemplo, 05 teó-


OM aaa ou certos “psicólogos”, ete. Acrescento, de
7 ais los pricossociólogos
jJuntura teórica e rr essas “ciências sem objeto” podem, devido à con-
tenso “objeto”. as for bica, conter ou produzir, na elaboração da teoria do seu pre
- 48 formas teóricas da racionalidade existente; por exemplo, na Idade
Média, 4 a Le ologiai detinha
i s “ul é e
tente. b 1a sem dúvida nenhuma q claborava as formas do teórico exts-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 59

pelo desenvolvimento do conceito de história, são antes produtos


semi-acabados para uma história (cf. o texto de Balibar, p. 153)
que verdadeiro tratamento histórico desses materiais, Faziam da
presença desses materiais elaborados pela metade o argumento de
uma concepção ideológica da história, e propunham então a ques-
tão dessa ideologia da história “concreta” à teoria “abstrata” da
economia política: donde ao mesmo tempo o seu fascínio diante de
O Capital e o seu embaraço diante desse discurso que lhes aparecia,
em numerosas partes, como “especulativo”. Os economistas tinham
quase o mesmo reflexo, jogados entre a história econômica (concre-
ta) e a teoria econômica (abstrata). Uns e outros pensavam encon-
trar em O Capital o que procuravam, mas encontravam nele tam-
bém outra coisa a mais, que não procuravam, e que tentavam então
reduzir, propondo o problema imaginário das relações biunívocas,
ou outras, entre a ordem abstrata dos conceitos e a ordem concreta
da história. Não viam que aquilo que encontravam não respondia à'
sua questão, mas à questão inteiramente diversa que, é claro, des-
mentia a ilusão ideológica do conceito de história que traziam neles,
e projetavam em sua leitura de O Capital. O que eles não viam é que
a teoria “abstrata” da economia política é a teoria de uma região
que pertence organicamente como região (nível ou instância) ao
próprio objeto da teoria da história. O que eles não viam é que a his-
tória aparece em O Capital como objeto de teoria, e não como obje-
“to real, como objeto “abstrato” (conceptual), e não como objeto
concreto-real: e que os capítulos em que o primeiro grau de um tra-.
tamento histórico é aplicado por Marx ou para as lutas pela redução
da jornada de trabalho ou para a acumulação primitiva capitalista,
remetem, como a seu princípio, à teoria da história, à elaboração do
conceito de história, e de suas “formas desenvolvidas”, da qual a
teoria econômica do modo de produção capitalista constitui uma
“região” determinada. |
Uma palavra a mais sobre um dos efeitos atuais desse mal-
entendido. Verificamos nele uma das origens da interpretação de O
Capital como modelo teórico”, fórmula cuja intervenção pode ser a
priori sempre recuperada no sentido clínico rigoroso da palavra,
como sintoma do mal-entendido empirista sobre o objeto de um co-
nhecimento dado. De fato, essa concepção da teoria como “mode-
lo” só é possível sob a primeira condição, propriamente ideológica,
de incluir, na própria teoria, a distância que a separa do concreto
empírico; e sob a segunda condição, também ideológica, de pensar
essa distância como distância por sua vez empírica e, depois, como
pertencente ao próprio concreto, que se pode então ter o privilégio
(isto é, a banalidade) de definir como o que é “'sempre-mais-rico-e-
mais-vivo-que-a-teoria”, Ninguém duvida de que haja nessa procla-

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60 LER “O CAPITAL"

mação de títulos exaltantes da superabundância da “'vida” e do


“concreto”, da superioridade da imaginação do mundo, e do vigor
da ação sobre a pobreza e a velhice da teoria, uma séria lição de mo-
déstia intelectual - a bom entendedor (presunçoso e dogmático)
meia palavra basta, Mas também estamos prevenidos de que o con-
creto e a vida possam ser pretexto para as facilidades de uma tagare-
lice - que pode servir para mascarar intenções apologéticas (um
deus, seja qual for a chancela, está sempre em vias de fazer o seu ni-
nho nas plumas da superabundância, isto é, da “transcendência” do
“concreto” e da “vida””) - ou pura e simples preguiça intelectual. O
que nos importa é precisamente o uso que se faz desse gênero de lu-
gares-comuns repetidos fastigiosamente sobre o tema dos excessos
da transcendência do concreto. Ora, na concepção do conhecimento
permitir
como “modelo”, vemos o real ou o concreto intervir para
teoria, ao mes-
pensar a relação, isto é, a distância do “'concreto” à
real exte-
mo tempo na própria teoria, e no próprio real, e não num
O conheci-
rior a esse objeto real do qual a teoria dá precisamente
da parte
mento, mas nesse objeto real mesmo, como um a relação
ante
com o todo, de uma parte “parcial” com um todo superabund
tem por efeito ine-
(cf. tomo 1, cap. I, parágrafo 10). Essa operação
entre
vitável fazer pensar a teoria como um instrumento empírico,
conhecimento
outros, em suma, reduzir diretamente toda teoria do
o.
como modelo ao que ela é: uma forma de pragmatismo teóric
do seu erro,
Sustentamos, pois, com isso, até no último efeito
en-
um princípio de compreensão e de crítica preciso: é o relacionam
to de correspondência biunívoca, no real do objeto, de um conju nto
com o conju nto empír iço real
teórico (teoria da economia política)
(a história concreta) cujo primeiro conjunto é o conhecimento, que €
a raiz dos contra-sensos sobre a questão das “relações” da “Lógica
com a “história” em O Capital. O mais grave desses contra-sensos €
o seu efeito de cegar: que tenha por vezes impedido de perceber que
O Capital continha cabalmente uma teoria da história, indispensável
para a compreensão da teoria da economia,

AI A mm

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 61

V. O Marxismo não é um Historicismo

Eis-nos, porém, diante de um último mal-entendido que


é da
mesma estirpe, mas talvez ainda mais sério, porque recai não
apenas
sobre a leitura de O Capital, não apenas sobre a filosofia marxista,
mas sobre a relação que existe entre O Capital e a filosofia marxista,
e pois entre o materialismo histórico e o materialismo dialético, isto
é, sobre o sentido da obra de Marx considerada-como um todo
e, fi-
nalmente, sobre a relação existente entre a história real e a teoria
marxista. Esse mal-entendido decorre do equívoco que vê no marxis-
mo um historicismo, e o mais radical de todos, um “Aistoricismo ab-
soluto”. Essa afirmação põe em cena, sob as roupagens da relação
existente entre a ciência da história e a filosofia marxista, a rela-
ção que a teoria marxista mantém com a história real.

Afirmo que o marxismo, do ponto de vista teórico, nem é um


historicismo nem um humanismo (cf. Pour Marx, pp. 225 ss.); que,
em muitas circunstâncias, humanismo e historicismo repousam am-
bos na mesma problemática ideológica; e que, teoricamente falando,
o marxismo é, por um mesmo movimento e em virtude da ruptura
epistemológica única que o funda, um anti-humanismo e um anti-
historicismo, A rigor, devia eu dizer a-humanismo e a-historicismo.
Emprego, pois, conscientemente, para lhe dar todo o peso de uma

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ER “O CAPITAL”
62 M
contrário é
declaração de ruptura, que longe está de evidente e, pelo
manismo, anti-
dificil de captar, essa dupla fórmula negativa (anti-hu
historicismo) em vez de uma simples forma privativa, porque esta
não é bastante forte para repelir o assalto humanista e historicista
o mar-
que, em certos meios há quarenta anos, não cessa de ameaçar
xismo.

Sabemos perfeitamente em que circunstâncias essa interpreta-


ção humanista e historicista de Marx nasceu, e que circunstâncias
recentes lhe deram renovado vigor. Ela nasceu de uma reação vital
contra o mecanismo e o economicismo da II Internacional, no
periodo que precedeu, e sobretudo nos anos que se seguiram à revo-
lução de 1917. Possui, por essa razão, reais méritos históricos, como
possui certos títulos históricos, embora sob forma bastante diferen-
te, O renascimento recente dessa interpretação, depois da denúncia,
pelo XX Congresso, dos crimes e erros dogmáticos do “culto da perso-
nalidade”. Se esse recente vigor não é mais do que repetição, e o mais
das vezes o desvio generoso ou hábil mas “direitista” de uma reação.
histórica que tinha então a força de um protesto de espirito re-
volucionário, embora “esquerdista” - não poderia nos servir de nor-
ma para julgar do sentido histórico do seu primeiro estado. Os te-
mas de um historicismo e humanismo revolucionários surgiram em
torno da esquerda alemã, de Rosa Luxemburg e Mehring primeira-
mente, e depois, após a revolução de 17, em torno de numerosos teó-
ricos, alguns dos quais se perderam como Korsch, mas outros de-
sempenharam papel importante, como Lukács, e até muito impor-
tante, como Gramsci, Sabemos em que termos Lênin julgou esse
movimento de reação “esquerdizante” contra a vulgaridade mecant-
eia da 11 Internacional; condenando-lh e as fábulas teóricas, a tátl-
ca política (cf, O Esquerdismo ou a Doença Infantil do € omunismo),
Rs SaDENSO reconhecer o que ele continha então de autenticamen é
Iucionário, por exemplo, em Rosa Luxemburg e Gramsci. Seri
ra am pi esclarecer todo esse passado. Esse estudo histórico à
presente, a indispensável para bem distinguir, inclusive pda em
dabasebatalha em ,os resultados de uma crítica feita então o tumulto
indiscutlvo) ao Bens rena as iantgamas,Op
O da
Internacion al eae reação contra o mecanicismo e fata aii e!
vontade dos home o RT “ forma de um apelo à a ue a his
tória lhes ormilia do para que fizessem afinal a rovolua dm pou-
co
a Revoluçã à fazer,de Nesse
melhor o paradoxo um título se compreenderá
dia célebre tales exaltava
em que Gramsci OU
do ani à Comira o Capital, afirmando francamente que à dei
E pe alista de 1917 teve de fazer-se “contra O Capitd cs
Pela ação voluntária e consciente dos homens, das mas

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O OBJETO DE “O CAPITAL"
63

dos bolcheviques e não pela virtude de um livro em que a II Interna-


cional lia, como numa Bíblia, o advento fatal do socialismo,” "º

Até que seja feito o estudo científico das condições que produ-
ziram a primeira forma “esquerdista” desse humanismo e desse his-
toricismo, estamos aptos a identificar o que, em Marx, podia autori-
zar então essa interpretação e o que não deixa, evidentemente, de
Justificar sua forma recente aos olhos dos leitores atuais de Marx.
“Não nos espantaremos ao descobrir que as mesmas ambigiidades
de formulação que nutriram uma leitura mecanicista e evolucionista,
autorizaram igualmente uma leitura historicista: Lênin nos deu mui-
tos exemplos do fundamento teórico comum do oportunismo e do
esquerdismo, para que esse encontro paradoxal não nos embarace.
Menciono ambigiiidades de formulações. No caso ainda, esco-
ramo-nos numa realidade cujos efeitos já avaliamos: Marx, que ca-
balmente produziu em sua obra a distinção que o separa de seus pre-
decessores, não pensou - e este é o destino comum de todos os cria-
dores - com toda a nitidez desejável o conceito dessa distinção; Marx
não pensou teoricamente, sob forma adequada e desenvolvida, o
conceito e as implicações teóricas do seu esforço teoricamente revo-
lucionário. Ora, ele o pensou, na melhor das hipóteses, nos concei-
tos em parte tomados a outros, e sobretudo nos conceitos hegelianos
- O que introduz um efeito de deslocamento entre o campo semânti-
co original em que são colhidos esses conceitos, e o campo dos obje-
tos conceptuais aos quais são aplicados; ora, ele pensou essa diferen-
ça por si mesma, mas parcialmente, ou no esboço de uma indicação,
na procura obstinada de equivalentes, '' mas sem chegar de todo a
enunciar na adequação de um conceito o sentido original rigoroso
do que produzia. Esse deslocamento, que só pode ser revelado e re-
duzido mediante uma leitura crítica, faz objetivamente parte do pró-
prio texto do discurso de Marx. *

“Gramsci; “Não, as forças mecânicas nunca levam a melhor na história: são os ho-
mens, são a consciência e o espírito que modelam o aspecto exterior é acabam sempre
por triunfar... contra a lei natural, contra o curso fatal das coisas impôs-se a vontade
tenaz do homem”, (Texto publicado em Rinacitá, 1957, pp. 149-158. Citado por Ma-
rio Tronti no Siudi Gramsciant, Editori Riuniti, 1959, p. 306.)
Sob esse aspecto, seria necessário dedicar um estudo completo às suas metáforas
típicas, à sua proliferação em torno de um centro que elas têm por missão cercar, não
podendo chamá-lo pelo seu nome próprio, o de seu conceito,
* Esse deslocamento e sua necessidade não são peculiares de Marx, mas de todo es-
forço de fundação cientifica e de toda produção científica em geral: seu estudo exige
uma teoria da história da produção dos conhecimentos é uma história do teórico,
cuja necessidade sentimos ainda aqui.

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64 LER “O CAPITAL”

Nisso consiste, fora de qualquer tendenciosidade, a razão pela


qual tantos herdeiros e partidários de Marx puderam desenvolver
inexatidões sobre o seu pensamento, embora pretendendo permane-
cer fiéis à letra dos textos que tinham nas mãos.
Gostaria de entrar aqui em algum pormenor para mostrar sob
que
taçãoaspecto alguns textos de Marx permitem dar-lhe uma interpre.
historicista. Não falarei dos textos
da juventude ou do “corte”
(Pour Marx, p. 26) porque a demonstração no caso é fácil. Não é
preciso torcer textos como as Teses sobre Feuerbach € 4 Ideologia
Alemã, e que contém ainda profundas ressonâncias humanistas e
historicistas, para lhes fazer pronunciar as palavras que deles se es-
peram: esses textos falam por si. Falarei apenas de O Capital e da In.
trodução de 57.
Os textos de Marx que autorizam uma leitura
historicista de
Marx podem ser grupados sob duas rubricas. Os
Primeiros referem.
se à definição das condições nas quais nos é dado o obje
to de toda
ciência histórica.
Na Introdução de 57, escreve Marx:
«. em toda ciência histórica ou social em geral não se deve jamais es-
quecer, a propósito da marcha das categorias econômi
cas, Que o tema, no
caso a sociedade burguesa moderna, é dado, tanto na realidade como
no cê
rebro, e que as categorias exprimem, pois, formas de
existência, condi.
ções de existência determinadas, não raro si mples aspectos
determinados
desse tema, dessa sociedade determinada, etc. (170).

Podemos comparar esse texto com uma passagem de O Capital


(1,87):

A reflexão sobre as formas da vida social, e, por conseguinte, sua


análise cientifica, segue um caminho completamente oposto ao movi-
mento real. Ela começa depois, com dados já inteiramente estabelecidos,
com os resultados do desenvolvimento...

Esses textos indicam não apenas que o objeto de qualquer ciên-


cia s ocial e histórica é objeto que se tornou resultado, mas
que
também
a ativi
! dade de conhe cimento que se aplica a esse objeto é também
determinada pelo presente desse dado, pelo momento atual do dado.
É o que certos intérpretes marxistas italianos, retomando uma ex-
pressão de C roce, chamam de categoria da “contemporaneidade
do
presente histórico” , Categoria essa que define historicamente, e de-
fine como históricas, as condições de qualquer conhecimento sobre
um objeto histórico, Esse termo “contemporaneidade” pode con
ter um equívoco, conforme sabemos.
O próprio
g e
Marx parece reconhecer essa condição absoluta N q
Introdução, poucas linhas antes do texto citado:

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O OBMIETO DE “O CAPITAL 65

O que se chama desenvolvimento histórico repousa em suma no fato


de que a última forma considera as formas passadas como fases condu-
centes do seu próprio grau de desenvolvimento, e como essa forma rara-
mente é capazçe isso apenas em condições hem determinadas, de fazer sua
própria crítica... ela as concebe sempre sob um aspecto unilateral, A reli-
gião cristã não Foi capaz de ajudar a compreender objetivamente as mito-
logias anteriores, sendo upós ter concluído até certo grau, por assim dizer
drnamei, à suu própria crítica, Do mesmo modo, a economia política
burguesa só veio | compreender us sociedades feudais, antigas, orientais,
no dia em que começou à autocrítica da sociedade burguesa...
(Introdução, 170.)

Em resumo: toda ciência de um objeto histórico ( em particular


da economia política) recai sobre um objeto histórico dado, presen-
te, objeto que se tornou resultado da história passada. Toda opera-
ção de conhecimento, partindo do presente e referente a um objeto-
transformado, nada mais é, portanto, que a projeção do presente no
passado desse objeto. Marx descreve, pois, aqui a retrospecção que
Hegel criticara na história “refletidora” (Introdução à Filosofia da
História). Essa retrospecção inevitável só é científica se o presente
chega à ciência de si, à crítica de si, à sua autocrítica, isto é, se o pre-
sente for um “corte essencial” que torne a essência visível.
Mas aqui é que intervém o segundo grupo de textos, ponto de-
cisivo onde se poderia falar de um historicismo de Marx. O ponto
refere-se precisamente ao que Marx chama no texto acima de “as
condições bem determinadas da autocrítica” de um presente. Com-
-preendamos: para que deixe de ser subjetiva a retrospecção da cons-
ciência de si de um presente, impõe-se que esse presente seja capaz
de autocriticar-se a fim de atingir a ciência de si. Ora, que vemos se
considerarmos a história da economia política? Vemos pensadores
que nada mais fizeram do que pensar, encerrados nos limites do seu
presente, e não podendo saltar por cima do seu tempo. Por exemplo,
Aristóteles, Todo o seu gênio não lhe permitiu escrever além da
igualdade x objetos 4 = y objetos B, como igualdade, e declarar que
a substância comum dessa igualdade era impensável porque absur-'
da. Assim fazendo, chegou aos limites de seu tempo. Quem o impe-
dia de ir além?
O que impediu Aristóteles de LER (herauslesen) na forma valor das
mercadorias que todos os trabalhos são expressos aqui como trabalho
humano indistinto, e, por conseguinte, iguais, foi que a sociedade grega
repousuva no trabalho dos escravos, € tinha por base natural a desigual-
dade dos homens e de suas forças de trabalho,
(O Capital, 1, 73,)

O presente que permitia a Aristóteles ter essa genial intuição de


leitura o impedia ao mesmo tempo de responder ao problema que

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66 LER “O CAPITAL”

ele formulara. " O mesmo vale para todos os demais grandes criado-
res da economia politica clássica. Os mercantilistas nada mais fize-
ram do que refletir o seu próprio presente, fazendo a teoria monetá-
ria da política monetária do seu tempo. Os fisiocratas apenas refleti-
ram o seu próprio presente, esboçando uma teoria genial da mais-
valia, mas da mais-valia natural, a do trabalho agrícola, em que se
podia ver o trigo crescer e o excedente não-consumido de um traba-
lhador agrícola produtor de trigo passar aos celeiros do fazendeiro:
assim fazendo, eles nada mais enunciavam do que a própria essência
do seu presente, o desenvolvimento do capitalismo agrário nas planí-
cies férteis da Bacia Parisiense, que Marx enumera: * a Normandia,
a Picardia, a lle-de-France (Anti-Diiring, Ed Soc., cap. X, p. 283).
Também os fisiocratas não puderam passar além da sua época; só
chegaram a conhecimentos na medida em que a época lhes oferecia
numa forma visível e os produzira para a sua consciência: descre-
viam, em suma, o que viam. Terão Smith e Ricardo ido além, e terão
descrito o que não viam? Passaram além de sua época? Não. Se che-
garam a uma ciência que foi coisa diferente da simples consciência
do seu presente é que a consciência deles continha a verdadeira au-
tocrítica daquele presente. Como foi possível então aquela autocriti-
ca? Na lógica dessa interpretação, hegeliana em seu princípio, so-
mos tentados a dizer: atingiram na consciência de sua época presen-
te a própria ciência, porque essa consciência era, como consciência,
o
a sua própria autocrítica, e portanto ciência de si.
Em outras palavras: a característica de seu presente vivo € ViVI-
do, que o distingue de todos os demais presentes (do passado)é que,
de
pela primeira vez, esse presente produzia em si sua própria crítica
a clén-
sí, que ele possuía, pois, esse privilégio histórico de produzir
cia de si na própria forma da consciência de si. Mas ele traz um NO
me: é o presente do saber absoluto, em que consciência e ciência S€
identificam, e onde a verdade pode ser lida em livro aberto nos fenô-
menos, se não diretamente, pelo menos com pouco esforço, dado
que nos fenômenos estão realmente presentes, na existência empiri-
ca real, as abstrações em que repousa toda a ciência histórico-social
considerada, |
haver falado
O segredo da expressão do valor - diz Marx logo após
ia de todos os trabalhos devi-
de Aristóteles -, a igualdade e a equivalêncho
do a serem, e na medida em que são trabal humano, só podem ser deci-

E]
Não é falso, sem dúvida; mas quando relacionamos essa limitação diretamente
'
à
“história” no caso ainda, de invocar à
simplesmente o t
conceitoo (deo-
ideo
ó stória”, corremos o risco,
ógico de história,
Engels, juntamente com “outras províncias francesas”, No CO
*

iraro meração é de
que faz do Quadro de Quesnay. (N. do T.)

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 67

frados quando a noção de igualdade humana houver já adquirido a tena-


cidade de um preconceito popular... Mas isso só acontece numa sociedade
em que a forma mercadoria se tiver transformado na forma geral dos produ-
tos do trabalho, em que, por conseguinte, a relação dos homens entre sí,
enquanto produtores e trocadores de mercadorias, for a relação social
dominante...
(O Capital, 1, 75.)

Ou ainda:

de-
... é preciso que o mundo da mercadoria se tenha completamente e
esta verdad
senvolvido antes que, da própria experiência se extraia
temente uns
científica: que os trabalhos privados, executados independen
do sistema social
dos outros, embora se entrelacem como ramificações
reduzidos à sua
espontâneo da divisão do trabalho, são constantemente
medida social proporcional...
(O Capital, 1, 87.)
enquanto
A descoberta científica... de que os produtos do trabalho,
s do trabal ho human o gasto na sua
valores, são a expressão pura e simple ...
mento da human idade
produção assinala uma época no desenvolvi
(O Capital, 1, 86.)

Essa época histórica da fundação da ciênc


ia da Economia Poli-
relações com a própria expe-
tica parece realmente pos ta aqui em
o da essência no fenô-
riência ( Erfahrung), Isto é, a leitura a céu abert
na quadra
meno, ou, se preferirmos, a leitura em corte da essência
história
do presente, com a essência de uma época determinada da
humana, em que a generalização da produção mercantil, portanto,
à condi-
da categoria mercadoria, apareça ao mesmo tempo como
a direta
ção de possibilidade absoluta e o dado imediato dessa leitur
O Capi-
da experiência, Efetivamente, tanto na Introdução como em
do trabalho
tal afirma-se que essa realidade do trabalho em geral,
pela produ-
abstrato, é produzida como uma realidade fenomênica
esse ponto,
ção capitalista, A história teria de algum modo atingido
ações
produzido essa presença específica excepcional onde as abstr
em que a ciên-
científicas existem em estado de realidades empíricas,
ên-
cia, os conceitos científicos existem na forma do visível da experi
cia como outras tantas verdades a céu aberto.
Eis os termos da Introdução:

. Essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado no


pensamento (Gelstige) de uma totalidade concreta de trabalho, A indife-
rença quanto a tal trabalho determinado corresponde a uma forma de so-
ciedade na qual os indivíduos determinados passam com facilidade de
um trabalho a outro, € na qual o gênero de trabalho preciso é para eles

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68 LER “O CAPITAL”

fortuito, e pois indiferente. No caso, o trabalho transformou-se não ape-,


nas na categoria, mas na realidade (in der Wirklichkelt) por sua vez um -
meio de criar a riqueza em geral, e deixou, enquanto determinação, de
identificar-se com os indivíduos, sob algum aspecto particular. Esse estado
de coisas atingiu o mais alto grau de desenvolvimento na forma de exis-,
tência mais moderna das sociedades burguesas, nos Estados Unidos. Lá
apenas é que a abstração da categoria “trabalho”, “trabalho em geral”,
trabalho "sem adjetivação”, ponto de partida da economia moderna, trans-
forma-se em verdade prática (wird praktisch wahr). Desse modo, a mais.
simples abstração, que a economia moderna coloca em primeiro lugar e que
exprime uma relação muito antiga e válida para todas as formas de socieda-
de, só aparece no entanto sob essa forma abstrata como verdade prática
(praktish wahr) enquanto categoria da sociedade mais moderna.
(Introdução, pp. 168-169.) (Grifos meus. L. A.)

Se o presente da produção capitalista produziu na sua realidade


visível (Wirklichkeit, Erscheinung, Erfahrung), na sua consciência de
si, a própria verdade científica, se, pois, sua consciência de si, seu
próprio fenômeno é em ato sua própria autocrítica - compreende-se
perfeitamente que a retrospecção do presente sobre o passado não
seja mais ideologia, porém verdadeiro conhecimento, e apreende-se
o primado epistemológico legítimo do presente sobre o passado:

A sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais


desenvolvida e mais variada possível. Com isso, as categorias que expri-
mem as relações dessa sociedade e que permitem compreender-lhe a es-
trutura permitem ao mesmo tempo explicar a estrutura e as relações de
produção de todas as formas de sociedades extintas com cujos restos e ele-
mentos ela se edificou, das quais certos vestígios, parcialmente ou não ainda
superados, continuam a sobreviver nela, e das quais certos indícios simples,
ao se desenvolverem, assumiram toda a sua significação, etc. A anatomia do
homem é a chave da anatomia do macaco. Nas espécies animais inferiores
não se podem compreender os indícios anunciadores da forma superior à
menos que a forma superior seja por sua vez ja conhecida. Assim a eco-
nomia burguesa nos dá a chave da economia antiga, eic.
Untrodução, p. 169,)

Basta dar um passo a mais na lógica do saber absoluto, pensar


'o desenvolvimento da história que culmina e se realiza no presente
de uma ciência idêntica à consciência, e refletir esse resultado numa
retrospecção fundada, para conceber toda a história econômica (ou
outra) como o desenvolvimento, no sentido hegeliano, de uma for-
mma simples primitiva, originária (por exemplo, o valor, imediata-
mente presente na mercadoria) e para ler O Capital como uma dedu-
ção lógico-histórica de todas as categorias econômicas a partir de
uma categoria originária, a categoria de valor ou a de trabalho. Sob
essa condição, o método de exposição de O Capital confunde-se com
a gênese especulativa do conceito. Mais ainda, essa gênese especula-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 69

tiva do conceito é idêntica à gênese do próprio concreto real, isto é,


ao processo da história empírica. Desse modo nos encontraríamos
diante de uma obra de essência hegeliana. Eis por que a questão do
ponto de partida assume tal valor crítico, tudo podendo ocorrer
numa leitura mal compreendida do primeiro capítulo do primeiro
Livro. É também por essa razão que toda leitura crítica, como o
mostraram as exposições precedentes, deve elucidar o estatuto dos
conceitos e do modo de análise do primeiro capítulo do Livro I,
para não cair nesse mal-entendido.
Essa forma de historicismo pode ser considerada como forma-
limite, na medida mesma em que ela culmina e se anula na negaçã
o
do saber-absoluto. Nessa condição, podemos tomá-la como
matriz
comum das demais formas, menos peremptórias e não raro menos
visíveis, algumas vezes mais “radicais”, do historicismo, porque
ela
nos introduz à sua compreensão.
A prova disso são algumas formas contemporâneas
de histori-
cismo que impregnam a obra de certos intérpretes do marxismo, às
vezes consciente e outras vezes inconscientemente, sobretudo na Itá-
lia e na França. É na tradição marxista italiana que a inter
pretação
do marxismo como “historicismo absoluto” apresenta os traços
mais acentuados e as formas mais rigorosas. Devo insistir nisso um
pouco mais. |
É em Gramsci que se origina essa tradição que ele herdou em
grande parte de Labriola e Croce. Devo, pois, falar de Gramsci.
Faço-o com grande escrúpulo, temendo não só desfigurar com ob-
servações forçosamente esquemáticas O espírito de uma obra genial,
prodigiosamente variada e sutil - como também levar o leitor, mal-
grado meu, a estender as reservas teóricas que quero formular ape-
nas a propósito da interpretação gramsciana do materialismo dialéti-
co às descobertas fecundas de Gramsci no domínio do materialismo
histórico. Peço, pois, que se tenha bem em mente essa distinção, sem
a qual essa tentativa de reflexão crítica ultrapassaria seus limites.
Devo primeiramente advertir sobre um cuidado elementar: re-
cuso-me a tomar imediatamente, em qualquer ocasião e sob o pri.
meiro pretexto ou texto à mão, o que Gramsci diz com as suas pró-
prias palavras; só tomarei suas palavras quando desempenhem a
função confirmada de conceitos “orgânicos”, pertencentes verdadei-
ramente à sua problemática filosófica mais profunda, e não quando
desempenhem apenas O papel de uma linguagem, encarregada de as-
sumir ou papel polêmico ou função designativa “prática”
(designa-
ção ou de um problema ou objeto existentes, ou ainda de uma dire.
io à tomar para bem colocar e resolver um problema). Por exem-
e seria a rigor condenar Gramsci declará-lo “humanista” e “his.

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70 LER “O CAPITAL”

toricista absoluto”, com base na primeira leitura de um texto polê-


mico como esta obsservação célebre sobre Croce (1l Materialismo
Storico e la Filosofia di B. Croce. Einaudi, p. 159):
É certo que o hegelianismo é a mais importante das razões (relativa-
mente) de filosofar do nosso autor, também e especialmente porque o he-
gelianismo tentou ultrapassar as concepções tradicionais do idealismo e.
do materialismo numa nova síntese que teve sem dúvida importância ex-
cepcional e que representa um momento histórico-mundial da reflexão fi-
Croce)
losófica. Assim é que acontece que, quando se diz no Ensaio [ de
em sentido
que o termo “imanência” na filosofia da práxis é empregado
imanência ad-
metafórico, nada se diz absolutamente, de fato, o termo
tas”, € nada tem da
quiriu significação especial, que não é a dos “panteís
e deve ser fixada. Esque-
significação metafísica tradicional, mas é nova
histórico) que era preci-
ceu-se na expressão muito comum (materialismo
- e não o primeiro, que é de
so acentuar o segundo termo - “histórico” a
“o historicismo” absoluto,
origem metafísica. 4 filosofia da práxis e um humanis-
mundanização e a “terrestridade” absolutas do pensamento,
que devemos cavar o filão da
mo absoluto da história. É nessa direção
nova concepção do mundo.

ções como estas. “huma-


Não há dúvida alguma de que afirma udo sentido crítico €
têm sobret
nista”, “historicista”, “absolutas”
s, por função: 1) rejeitar qualquer
polêmico; têm, antes de tudo o mai car, como con-
marxista; 2) indi
interpretação metafísica da filosofia ção
ceitos “práticos”, o lugar e a direção do lugar em que à concep
todos os laços com as me-
do marxismo deve fixar-se para romper ncia” e do “neste mundo” que
y é 2

tafísicas anteriores: o lugar da “imanê


Marx contrapunha já como o “ Diesseits”” (o nosso mundo) à trans
a, ao além (Jens eits) das filos ofias clássicas. Essa distinção
cend ênci n
Teses sobre Feuerbach (Tese id
aparece em termos nítidos numa das reza
natu “indicativo-prática
2). Entretanto, podemos já, pela numa única € mesm
conc eito s, acas alad os por Gram sci
ses dois
função (humanismo, historicismo), tirar uma primeira conclusão:
icamente importante: Sé esse
por sua vez restritiva, é certo, mas teor à direção na qua
conceitos são polêmico-indicativos, indicam bem nio em que deve
tipo de domí
uma reflexão deve encaminhar-se, o
ser colocado o problema da interpretação do marxismo, mas não
dão o conce ito interpretação. Para poder julgar à tN-
ivo dessa mos
positsci,
terpretação de Gram deve primeiramente esclarecer os con
ceitos positivos que a exprimem. Que entende Gramsci por "isto ri
4 .

cismo absoluto”?

No sentido definido em Pour


Marx, pp. 254 ss.

ad
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O OBJETO DE “O CAPITAL" N

Se ultrapassarmos a intenção crítica de suas formulações, veri-


ficaremos de início um primeiro sentido positivo. Ao apresentar o
marxismo como historicismo, Gramsci dá ênfase a uma determina-
ção essencial à teoria marxista: o seu papel prático na história real.
Uma das preocupações constantes de Gramsci é quanto ao papel
prático-histórico daquilo a que ele chama - retomando a concepção
crociana da religião - as grandes “concepções do mundo” ou “ideo-
logias”: trata-se de formações teóricas capazes de penetrar na vida
prática dos homens, e portanto de inspirar e animar toda uma épõca
histórica, fornecendo aos homens, não apenas aos “intelectuais”
mas também e sobretudo aos “simples”, uma visão geral do curso
do mundo e ao mesmo tempo uma norma de conduta prática. " Sob
esse aspecto, o historicismo do marxismo nada mais é que a cons-
ciência dessa tarefa e dessa necessidade: o. marxismo não pode ter a
pretensão de ser a teoria da história, a menos que pense, na sua pró-
pria teoria, as condições dessa penetração na história, em todas as
camadas da sociedade, e até na conduta quotidiana dos homens.
Nessa perspectiva é que se pode compreender certo número de fór-
mulas de Gramsci ao dizer por exemplo que a filosofia deve ser con-
creta, real, deve ser história, que a filosofia real nada mais é que a
política, que a filosofia, a política e a história são em definitivo uma
só e mesma coisa. Dessa perspectiva é que se pode compreender a
sua teoria dos intelectuais e da ideologia, a distinção que ele faz en-
tre intelectuais individuais que podem produzir ideologias mais ou
menos subjetivas e arbitrárias, e os intelectuais “orgânicos”, ou O

15 “Se nos ativermos à definição que B. Croce oferece da religião, caso de uma con-
vida, e se essa norma de vida não
cepção do mundo que se transforme em norma de
ada na vida prática, os homens em
for tomada no sentido livresco, mas norma realiz
camente e em que em suas ações
maioria são filósofos, na medida em que agem prati
práticas... está implicitamente contida A concepção do mundo, uma filosofia.
1 Materialismo Storico, p. 21.
pção do mun-
ora porém, coloca-se o problema fundamental de toda conce
o” e “fé”, caso que
do, de toda filosofia que se tornou movimento cultural, “religiãcontida nesta última
produziu uma atividade prática e uma vontad e, e que se acha
íamos dizer, se ao termo
como premissa teórica implícita (uma “ideologia + poder
o de uma conce pção do mundo, que
ideologia se der justamente o sentido mais elevad
econômica, em todas as
se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade
manifestações da vida individual e coleti va),
de ideoló-
“Em outros termos, o problema que se coloca é o de conservar a unida
essa ideolo gia...”
gica no bloco social, que é cimentado e unificado precisamente por | a
(Ibidem, p. 7.)
Ter-se-á observado que a concepção de uma ideologia que se manifesta “implici-
tamente” na arte, no direito, na atividade econômica, “todas as manifestações da
vida individual e coletiva” está muito próxima da concepção hegeliana,

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72 LER “O CAPITAL"

ntem a “hegemonia”
“intelectual coletivo” !* (o Partido), que gara
cepção do mundo”
de uma classe dominante impondo a sua “con
todos os homens: €
(ou ideologia orgânica) na vida quotidiana de
iavélico cuja herança
entender sua interpretação de O Príncipe maqu
o em condições novas,
é retomada pelo partido comunista modern
exprime essa necessidade,
etc. Em todos esses casos, Gramsci apenas
teoricamente inerente ao
não apenas prática, mas conscientemente,
então apenas um dos as-
marxismo. O historicismo do marxismo é
concebida, é apenas a sua
pectos e efeitos de sua própria teoria bem
a da história real deve
própria teoria coerente consigo: uma teori
o outrora O fizeram outras
também entrar na história real, com
ade quanto às grandes reli-
“concepções do mundo”. O que é verd próprio marxismo,
giões deve ser com mais forte razão quanto ao
da diferença que existe entre
não apenas a despeito mas por causa , dado
em razão da sua originalidade filosófica
ele e essas ideologias,
incluir o sentido prático de sua
que a sua originalidade consiste em
própria teoria. "

este último sentido de “histo-


Entretanto, como se terá notado, xista, é ain-
erior à teoria mar
ricismo”, que nos remete a um tema int
gra nde par te, uma ind ica ção crít ica, destinada a condenar to-
. da, em
pretendem fazer o marxismo
dos os marxistas “livrescos”, os que lidade
cair no tipo das “filosofias individuais" sem contato com à rea
como Croce, retomam a tra-
- ou ainda todos os ideólogos, que, tal
dição desastrada dos intelectuais do Renasc imento, pretendendo fa-
“por cima”, sem entrar na ativi»
zer a educação do gênero humano
rmado por Grams-
dade política e na história real, O historicismo afiesse
contra aristocratismo
ci tem o sentido de um vigoroso protesto

e
te
“Todos os homens são filósofos” (p, 3),
Dado que agiré sempre agir politicamente, não se poderá dizer que à filosofia real Ce
cada um está inteiramente contida em sua política?... não see pode,
a críticapois,de destaca” ds
uma concep-
Josofia da política, e pode-se mesmo mostrar que a escolha
ção do mundo são também um fato político” (p. 6).
deveria aglf
Se é verdade que toda filosofia é a expressão de uma sociec tade, ela qual
sobre a sociedade, determinar certos efeitos, positivos e negativos; à medida na
vi-
ela ape é a medida de seu alcance histórico, dado que ela não é “elucubraç do” indi
dual, mas “fato histórico” (pp. 23-24),
dia 4 Manaiidada 4 MMA com a filosofia é imanente no materialismo... A propo-
erp atirei mr as o alemão é herdeiro da filosofia clássica alemã contém pre-
car popa a do de história com filosofia"... (p. 217). Cf, as pp. 232-234.
ada aos 1 GeMASHA de “historicismo”, tomado nesse sentido, traz um nome
presiso no marniama: o problema da união da teoria com a prática, mais especlal-
p ema da união da teoria marxista com o movimento operário.

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 73

da teoria e de seus “pensadores”. !* O velho protesto contra o fari-


saísmo livresco da 11 Internacional (“A Revolução contra O Capi-
tal”) aí repercute ainda: trata-se de um apelo direto à “prática”, à
atividade política, à “transformação do mundo”, sem o que 0 mar-
xismo seria apenas presa de ratos de biblioteca ou de burocratas
políticos passivos. '
Trará esse protesto necessariamente em si uma interpretação
teórica nova da teoria marxista? Não necessariamente: porque pode-
rá simplesmente sob a forma prática de um chamado absoluto, um
instaura-
tema essencial da teoria de Marx: o tema da nova relação,
a “prática”.
da por Marx, em sua própria teoria, entre a “teoria” e
por um
Encontramos esse tema meditado por Marx em dois lugares:
das ideologias, e
lado, no materialismo histórico (na teoria do papel
das ideologias '
do papel de uma teoria científica na transformação
a propósito da
existentes) e, por outro, no materialismo dialético, que se tem o
relação, no
teoria marxista da teoria e da prática, e sua
do conhecimento”. Nesses
costume de chamar “a teoria materialista
por Marx é o que está em
dois casos, o que é afirmado com vigor A ênfase dada
marxista.
causa no nosso problema: é o materialismo no sentido muito ri-
por Gramsci a0 “historicismo” do marxismo, realidade ao caráter
pois, em
goroso que acabamos de definir, alude,
de Marx (ao mesmo tem-
decididamente materialista da concepção
mo dialético). Ora, essa
po no materialismo histórico e no materialis
desconcertante, e que com-
realidade obriga-nos a uma observação, entre si: 1) Embora
porta três aspectos tão perturbadores
seja o materialismo, Gramsci de-
o que esteja diretamente em causa
histórico” “a ênfase deve ser
clara que na expressão “materialismo
e não ao primeiro , que €, segun-
dada ao segundo termo: “histórico”, se re-
2) Embora a ênfase materialista
do ele, “de origem metafísica";
histórico, mas também ao materia-
fira não apenas ao materialismo
dialético, Gramsci só fala do materialismo histórico - € mais
lismo a
“materialismo” leva inevitavelmente
ainda, sugere que à expressão 3)
talvez mais que ressonâncias;
ressonâncias “metafísicas”, ou “materialismo histórico —
claro, então, que Gramsci dá à expressão
científica da história - um duplo
que designa peculiarmente a teoria tempo, tanto materialismo his-
sentido: significa para ele, ao mesmo no
Gramsci tende, pois, a confundir
tórico como filosofia marxista. à
categoria Unica, ao mesmo tempo
materialismo histórico, como
dialético, que no entanto são dis-
teoria da história e O materialismo esta última
s e tirar
ciplinas distintas. Para fazer essas observaçõe

» Gramsci, Materialismo Storico, pp. 8-9.

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74 LER “O CAPITAL"

conclusão, não me bascio evidentemente apenas na frase que anali-


so, mas em numerosos outros desenvolvimentos de Gramsci, que as
confirmam sem qualquer dúvida, e que lhe dão, pois, um sentido
conceptual. !* Creio que nesse ponto é que podemos descobrir um
novo sentido do “historicismo” gramsciano, que não se pode mais
reduzir, desta feita, ao emprego legítimo de um conceito indicativo,
polêmico ou crítico - mas que se deve considerar como interpretação
e
teórica referente ao próprio conteúdo do pensamento de Marx,
«que pode cair então sob nossas reservas ou críticas,
Há, finalmente, em Gramsci, além do sentido polêmico e práti-
“historicista” de
co desse conceito, uma verdadeira concepção
relação da teoria de
Marx: concepção “historicista” da teoria da ci
acaso que Grams
Marx com a história real. Não se trata de purocroci ana da religião,
esteja constantemente perseguido pela teoria
religiões efetivas à nova
"pois que aceita seus termos e a estende das sob esse aspecto,
não faz,
“concepção do mundo” que é o marxismo;
e o marxismo, classifica reli-
diferença alguma entre essas religiões
“concepções do mundo
giões e marxismo sob o mesmo conceito de religião, ideologia, fi-
mente
ou “ideologias”; identifica também facil o que distingue o marxis-
que
losofia e teoria marxista, sem ressalvar
do” é menos essa E
mo dessas “'concepções ideológicas do mun
rença formal (importante) de pôr fim a todo “além” (suasupraterrestre,
luta bn ri-
“terrest
do que a forma distintiva dessa imanência abso entre as antigas ro
tura
-

dade”): a forma da cientificidade. Essa “rup


9
. .

eu
ligiões ou ideologias inclusive “orgânicas” e o marxismo, que

jmanen-
" rf Por exemplo: “A filosofia da práxis decorre certamento da concordo aroma es-
tista da reali nlti
calidade, mas na medida em que esta última foi | p purificadao humanismo... não
peculativo, e reduzida à pura história ou historicidade, ou ao pur concepção
apenas a filosofia da práxis está ligada ao imanentismo, mas também sun, -à como
subjetiva da realidade, na medida mesma em que explicando
ela a inverte, como que
fato acal, dh
como “subjetividade histórica de um grupo social,
"fato histórico,
se apresenta como fenômeno de “especulação” filosófica e é simplesmente UN o con-
dade prática, a forma de um conteúdo concreto social e o modo de conduzir ico, P
moral...” (Materialismo Stortem +
oo da sociedade para se constituir uma unidade acontecimentos, tura
* Ouainda: “Be é necessário, no eterno transcurso dos
PS
eee quais a realidade não poderia ser compreendida, será preciso
Ra Maio indispensável, determinar e lembrar que à realidade em je dE
balho a rpm caglidade, se é que podem ser distinguidos logicamente, eve
e abro pea pa como unidade inseparável” (ibidem, p. 216). texto,
no segundo
' ' spread
Í hmpesdem ep ogsasai ho tão pyaantas
sta-especulativá is Ao
icismo: à gem, tidade
do conceito com q objeto real (histórico), ir a

ag
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 75

da história huma-
ciência, e que deve tornar-se ideologia “orgânica”
ogia (uma ideo-
na, produzindo nas massas uma nova forma de ideol
s se viu) - essa
logia que repousa agora numa ciência - o que jamai
sci, e, absorvido
ruptura não é verdadeiramente refletida por Gram
cas da penetração da
que está pela exigência e pelas condições práti plano a
relega a segundo
“filosofia da práxis” na história real, ele
conseqiiências teóricas €
significação teórica dessa ruptura € suas
vezes a reunir sob um mesmo
práticas. Ele tende também frequentes
erialismo histórico) e a filo-
termo a teoria científica da história (mat
, e a pensar essa unidade
sofia marxista (materialismo dialético)
ou como “ideologia” afinal
como uma “concepção do mundo”
e inclusive a pensar à relação
comparável às antigas religiões. Tend
com o modelo da relação de
da ciência marxista com a história real
oricamente dominante e atuante)
“uma ideologia “orgânica” (hist
a pensar essa relação da teoria
com a história real; e em definitivo de
marxi sta com a histó ria real com o modelo da relação
científica
diret a que expli ca muito bem a relação de uma ideologia
o
expressã
é que reside, ao que me parece, O
orgânica com o seu tempo. Nisso de Gramsci. Nisso é que ele
stáve l do hista ricis mo
princípio conte ca problemática teórica in-
à linguagem
encontra espontaneamente
ismo”.
dispensáveis a todo “historic
dar-se um sentido teoricamente
A partir dessas premissas, pode aradas
já citei no início - porque, amp
historicista às fórmulas que elas assumem também
por todo o con texto que acabei de assinalar, o mais
em Gra msc i - e se vou agora tentar desenvolver,
esse sentido não
sam ent e pos sív el em tão bre ve espaço, suas implicações, é
rigoro dade histórica
to par a cen sur ar Gra msc i (que tem muita sensibili mas
tan essário, suas distâncias),
não tom ar, qua ndo nec
e teórica para cujo conhecimento pode tor-
para tornar vISisível uma
lógica latente g-
re en sí ve is alg uns de seu s efeitos teóricos que ficariam ent
nar comp ele inspira
no con tex to do pró pri o Gramsci ou daqueles que
mático s
ém neste caso, proponho-me a expor,
ou podem a ele aderir. Tamb sto ric ista” de certos textos de O
pós ito da lei tur a “hi
como o fiz a pro ini r menos esta ou aquela inter-
sit uaç ão- lim ite , e def
Capital, uma Colletti, Sartre e outros) do
que O
(Gr ams ci, Del la Vol pe,
pretação e que,
da pro ble mát ica teó ric a que paira sobre suas reflexões
camp o
seus conceitos, problemas ou solu-
vez por outra, surge em alguns de |
ções, to-
a esse fim , e com ess as res salvas, que não são de estilo,
Par
ago ra a fór mul a: O mar xis mo deve ser concebido como-um
marei
sto ric ism o abs olu to” com o tese sintomática, que permitirá pôr em
“hi
latente. Como entender, em nossa
evidência toda uma problemática mo é
Gramsci? Se o marxis
presente perspectiva, essa afirmação de

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76 LER “O CAPITAL”

um historicismo absoluto, isto se deve a que ele historiciza aquilo


que no historicismo hegelianoé propriamente negação teórica e prá-
tica da história: o seu fim, o presente inultrapassável do saber abso-
portan-
luto, No historicismo absoluto não há mais saber absoluto,
to de fim da história.
se torne
Não há mais presente privilegiado em que a totalidade
que consciência e ciên-
visível e legível num “corte de essência”, em o
uto - o que torna
cia coincidam. Que não haja mais saber absol
absoluto está por sua
historicismo absoluto - significa que O saber
privilegiado, todos os
vez historicizado. Se não há mais presente
Segue-se que o tempo
presentes tornam-se também privilegiados.
presentes, uma estrutura tal
histórico possui, em cada um de seus
e de essência” da contempora-
que permite a cada presente O “cort
Toda via, como a total idade marxista não tem a mesma €s-
neidade.
que a total idade hegel iana, como em especial ela comporta
trutura
ou instâ ncias difer entes não diretamente expressivos uns dos
níveis
- é preci so, para torná -la susce tível ao “corte de essência”, li-
outros de
si esses nívei s disti ntos de um modo tal que o presente
gar entre
os presentes dos demais; que eles se-
cada um coincida com todos relacionamento assim refeito
ex-
“contemporâneos”. Seu
jam, pois, m,
efeit os de disto rção e de defasagem que contradize
cluirá esses contempo-
marxi sta autên tica, essa leitura ideológica da
na concepçã o
r O marxismo como historicismo (ab-
raneidade. O projeto de pensa a de
dese ncad eia, pois, auto mati camente os efeitos em cadei
soluto) à totalidade
uma lógica necessária, que tende a rebaixar e aplastar o
sobre uma varia nte da totalidade hegeliana, é que,pormesm
marxista mais ou menos retóricas,
acaba esf u-
in çõ es
separam OS níveis.
com a cau tel a de di st
as di fe re nç as re ai s qu e
mar, reduzir ou omitir pre cis ão O po nt o si nt om át
a i ico em que.
Podemos mostrar com à Nu - isto é, se dissimula sob â
is se mos tra
essa redução dos níve da palavra):
capa de uma “evidência” que a trai (nos dois sentidos
esta tuto do con hec ime nto cien tífico e filosófico. Vimos que
no
dade prática da concepção do
Gramsci insistia a tal ponto na uni
ervar o que distingue à teo-
mundo com a história que deixava decaobsanterior: O seu caráter de co-
ria marxista de toda ideologia orgâni
ista, que ele não distingue Ni-
nhecimento científico. A filosofia marx
e o mesmo destino; Gramsci à
tidamente da teoria da história, sofr
ória presente: à filoso-
põe em relação de expressão direta com a hist
com o que ria Hege l (co nce pção retomada por Croce),
a é auião, . Sendo toda filosofia,
coda RA agonia º em definitivo história
DOS SUS VM em sou undo real, hist ória real, a história real pode
À ez ser considerada a cia.
filosofi e ciên
dical, DAR Te da Peruano fa aorta marxista, essa dupla afirmação ra-
$ cas que permitem formulá-la? Por um

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DE “O CAPITAL" ja
O OBJETO

sem-número de deslizamentos conceptuais, que têm por efeito justa-


mente reduzir a distância entre os níveis que Marx havia distinguido.
Cada um desses deslizamentos é tanto menos perceptível quanto
não se fixe a atenção às distinções teóricas expressas no rigor dos
conceitos de Marx.
Assim é que Gramsci declara constantemente que uma teoria
cientifica, ou esta ou aquela categoria decorrente de uma ciência, é
uma “superestrutura” ** ou uma “categoria histórica” que ele assimi-
la a uma “relação humana”.?' É, de fato, atribuir ao conceito de

“superestrutura” uma extensão que Marx lhe recusa, dado que
e 2)
classifica sob esse conceito: 1) a superestrutura jurídico-política
a superestrutura ideológica (as “formas de consciência social” cor-
respondentes): Marx jamais inclui nelas, salvo nas “obras da juven-
cientí-
tude” (e em particular nos Manuscritos de 44), o conhecimento
de ''superes-
fico. A ciência não pode ser classificada sob a categoria
nela não se en-
trutura”, assim como a língua, que Stalin mostrou
julgá-la como uma
quadrar. Fazer da ciência uma superestrutura é
bem à estrutura que
dessas ideologias “orgânicas”, que aderem tãa
na teoria mar-
acabam tendo a mesma “história” dela! Ora, mesmo
à estrutura que lhes
xista, lemos que as ideologias podem sobreviver a
por exemplo, a religião,
deu nascimento (é o caso da maioria delas:
da superestrutura
moral, a filosofia ideológica), e certos elementos
Quanto à ciência,
jurídico-política também (o direito romano!). seu campo
pode também nascer de uma ideologia, destacar-se de
esse afastamento,
para constituir-se como ciência, mas justamente
nova forma de existência e de tem-
essa “ruptura”, inauguram uma
a escapar (pelo menos em
poralidade históricas, que levam a ciência real de sua
à continuidade
certas condições históricas que asseguram de uma
própria história - não foi sempre este O caso) à sorte comum
da unidade da estrutura
história peculiar: a do “bloco histórico” camente a tempo-
ideologi
com a superestrutura. O idealismo reflete vimento, seu tipo
ralidade própria da ciência, seu ritmo de desenvol
parecem fazê-la escapar às vi-
de continuidade e de mensuração, que
econômica, sob a forma de a-
cissitudes da história política e
ia assim um fenômeno
historicidade € intemporalidade: ele hipostas para Ser pensado,
real, que precisa de todas as demais categorias relativamente au-
mas que deve ser pensado, distinguindo a história

|
en de nt ntes
es . de Gram sci sobre a ciênci a. Materialismo Storico,
r inas su
rpre
“Cf. Cf. asas papág € iência é também uma superestrutura, uma ideologia”
re al id ad e u
54-57. "Em
li mbém
4 p. Il62,
S6) cf. ta
.
ico, p. 160.
: Materialismo Stor

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78 LER “O CAPITAL”

tônoma e própria do conhecimento científico das demais modalida-


- des da existência histórica (a das superestruturas ideológicas, jurídi-
co-políticas e a da estrutura econômica),
Reduzir e identificar a história própria da ciência à da ideologia
orgânica e à história econômico-política significa, afinal, reduzir a
his-
ciência à história como à sua “essência”. A queda da ciência na
que joga a
tória é aqui apenas índice de uma queda teórica: aquela
a
teoria da história na história real: reduz o objeto (teórico) da ciênci
cimento
da história à história real; confunde, pois, o objeto de conhe
a queda na ideologia
com o objeto real. E isso nada mais é do que
empirista, posta em cena sob os pappéis aqui representados pela fi-
seu prodigioso gênio his-
losofia e pela história reais. Seja qual for o
a essa tentação empirista
tórico e político, Gramsci não escapou
ia e sobretudo (porque ele se
quando quis pensar o estatuto da ciênc
pouco da ciênc ia) da filoso fia. Ele é constantemente tentado a
ocupa
a relaç ão entre a histó ria real e a filosofia como relação de
pensa r
expre ssiva , sejam quais forem as mediações encarregadas
unida de
para ele O filósofo é, em última
de garantir essa relação. * Vimos que
a filosofia é O produto direto (sob
instância, um “político”; para ele,
todas as “med iaçõ es neces sária s”) da atividade e da ex-
a ressalva de a essa filosofia
econômico-política:
periência das massas, da práxis práxis
do “bom senso” já intei ramente feita fora deles, e que fala na
filós ofos de ofício simp lesm ente servem de porta-voz €
histórica, os poder modificar-lhe a subs-
- sem
lhe dão as formas do seu discurso coincide, como uma oposição
tância. Espo ntan eame nte, Gram sci
indispensável à expressão do seu pens amento, com as próprias E q
num texto célebre de 1839, à
mulas de Feuerbach, contrastando,
fia produzida aee
losofia produzida pela história real com à filoso
ção ão
filósofos - as fórmulas contrastando a práxis com àespecula
rsão” feuerbachi especu a a
ana da histo
nos próprios termos da “inve ele entende conse rtar O ricism
em filosofia “concreta” que especulativo de Crotm
crociano: “inve rter” o histo ricis mo
dele o historicismo gor
recolocá-lo sobre os pés, para fazer é ver aeê
xista - e encontrar a história real, a filoso fia *'concreta Se natu-
conserva à própria
de que a “inversão” de uma problemática
probl emáti ca, não será de admirar que a relação de ex
reza dessa das por
pressão direta (com todas as “mediações” necessárias) pensa
ago ou Croce entre a história real e a filosofia, S€ ache na pt
que
precisamente na relação de expressão diretaà filoso
dar fia.
u estabelecer entre a política (história real) é

24
Sobre O conceito
ei E
de mediação, cf. tomo 1, cap. |, parágrafo 18.

aid
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 79

Mas não basta reduzir ao mínimo a distância que separa na es-


trutura social o lugar específico das formações teóricas, filosóficas e
científicas da prática política, portanto o lugar da prática teórica do
lugar da prática política - é preciso ainda adquirir uma concepção
da prática teórica que ilustre e consagre à identidade proclamada en-
tre a filosofia e a política. Essa exigência latente explica novos desli-
ão
zamentos conceptuais, tendo de novo por efeito reduzir a distinç
entre os níveis.

Nessa interpretação, a prática teórica tende a perder toda espe-


ria
cificidade, para ser reduzida à prática histórica em geral, catego
as como
sob a qual são pensadas formas de produção das mais divers
assimila-
a prática econômica, política, ideológica e científica. Essa
ci reco-
ção, todavia, apresenta problemas sutis: o próprio Grams
na teoria das
nhecia que o historicismo absoluto arriscava tropeçar
as Teses
ideologias. No entanto, ele mesmo forneceu, comparando
“indústria e ex-
sobre Feuerbach com uma frase de Engels (a história
ndo o modelo
perimentação”), o argumento de uma solução, propo
essas práti-
de uma prática capaz de unificar sob seu conceito todas
to exigia que
cas diferentes. A problemática do historicismo absolu ema
que a esse probl
esse problema fosse resolvido: não é por acaso
to empirista. Esse
empirista ela tenda a propor uma solução de espíri
imental tomada não
modelo pode ser por exemplo o da prática exper
a certa ideologia da ciên-
tanto à realidade da ciência, moderna, mas e susten-
de Gramsci,
cia moderna. Colletti retomou essa indicação uma “estrutura
realidade,
tou que a história possui, como a própria
ia, estruturada como
experimental”, e que ela é, pois, em sua essênc vez, decla-
por sua
uma experimentação. Sendo a história real assim, cientifica
rada “indústriae experimentação” - e sendo toda prática
a histórica e a prática
definida como prática experimental, a prátic leva a
teórica passam então a ter uma só emesma estrutura. Colletti
história inclui em seu
comparação ao extremo, assegurando que a
se, indispensável à
ser, assim como a ciência, o momento da hipóte
ação, segundo os es-
colocação em cena da estrutura da experiment
do, na ação politi-
quemas de Claude Bernard. A história, não cessan
o futuro, indispensá-
ca viva, de adiantar-se (pelas projeções sobre
em ato,
veis a qualquer ação) seria assim hipótese e comprovação identi-
, Com essa
exatamente como a prática da ciência experimental
ser assimilada di-
dade de estrutura essencial, a prática teórica pode
ica - e a redução do
reta, imediata e adequadamente à prática histór
pode
lugar da prática teórica ao lugar da prática política ou social,
então ser fundamentada na redução das práticas a uma estrutura
única,

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80 DER “O CAPITAL

Apresentei o exemplo de Gramsci e o de Colletti, mas isso não


significa que sejum os únicos exemplos possíveis de variações teóri-
cas de um mesmo invariante teórico: q problemática do historicis-
mo. Uma problemática não impõe de modo algum variações abso-
lutamente idênticas aos pensamentos que atravessam o seu campo:
podemos atravessar um campo por vias muito diferentes, dado que
o podemos abordar sob ângulos diversos. Mas o fato de depararmos
com ele implica que nos submetamos à sua lei, que produz efeitos
tão diferentes quanto sejam diferentes os pensamentos que a enfren-
tem: no entanto, todos esses efeitos têm em comum certos traços
idênticos, no que são efeitos de uma mesma estrutura: a da proble-
mática encontrada. Para dar um exemplo paradoxal disso, todos sa-
bem que o pensamento de Sartre não provém de modo algum da in-
terpretação do marxismo por Gramsci; tem origens muito diferen-
tes. No entanto, quando Sartre se aproximou do marxismo, deu-lhe
imediatamente, por motivos que lhe são peculiares, uma interpreta-
ção historicista (embora ele recuse esse batismo), ao declarar que as
grandes filosofias (cita a de Marx depois das de Locke e de Kant-
Hegel) são “insuperáveis na medida em que não foi superado o mo-
mento histórico de que elas são a expressão” (Critique de la Raison
Dialectique, Gallimard, p. 17). Verificamos aí, numa forma peculiar
a Sartre, as estruturas da contemporaneidade, da expressão e do in-
superável (o “ninguém pode saltar além do seu tempo” de Hegel),
que, para ele, representam especificações do seu principal conceito:
a totalização - mas que, todavia, sob as aparências da especificação
desse conceito que lhe é próprio, realizam os efeitos conceptuais ne-
cessários do encontro dele com a estrutura da problemática histori-
cista. Esses efeitos não são os únicos: não admira ver Sartre des-
cobrir por seus próprios meios uma teoria dos “ideólogos” (ibidem,
17-18) (que amoedam e comentam uma grande filosofia, e a introdu-
zem na vida prática dos homens) bem próxima sob certos aspectos
da teoria gramsciana dos intelectuais orgânicos ”; menos surpreen-
dente é encontrar em ação em Sartre a mesma redução necessária das
diferentes práticas (diferentes níveis distinguidos por Marx), à uma
prática única; para ele, em razão de suas próprias origens filosóficas,
não é o conceito de prática, mas o de práxis, sem mais, que está en-
carregado de assumir, ao preço de inumeráveis “mediações (Sartre
é o filósofo das mediações por excelência: elas têm justamente por
função assegurar a unidade na negação das diferenças), a unidade de

“Verificamos em Gramsci (Materialismo Storico, p. 197) em termos claros a distin-


ção sartriana entre filosofia e ideologia,

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O OBJETO DE “O CAPITAL! 8]

pn ea tão diversas como q prática clentífica c 4 econômica ou


política,

Não posso desenvolver essus observações muito esquemáticas,


Contudo, elas podem dar uma noção das implicações necessaria-
mente contidas em toda interpretação historicista do marxismo, e
dos conceitos particulares que essa interpretação deve produzir para
responder uos problemas que cla a si mesma propõe - pelo menos
quando pretende ser, como no caso de Gramsci, Colletti e Sartre,
teoricamente exigente e rigorosa, Essa interpretação não pode pen-
sar a si mesma a não ser sob a condição de toda uma série de redu-
ções que são o efeito, na ordem da produção dos conceitos, do cará-
ter empirista de seu projeto, f: por exemplo sob u condição de redu-
e de-
zir toda prática à prática experimental, ou à “práxis” em geral,
práti-
pois assimilar essa prática-mãe à prática política, que todas as
cas podem ser pensadas como originárias da prática histórica
o mar-
“real”, e que a filosofia, e até a ciência, c portanto também real.
xismo, podem ser pensados como a “expressão” da história
ou a filosofia,
Chega-se com isso a rebater o conhecimento científico
a unidade da prática
mas de qualquer modo a teoria marxista sobre
na história
econômico-política, no cerne da prática “histórica”,
interpretação
“peal", Chega-se assim ao resultado exigido por toda
condição teórica: a
historicista do marxismo como sua própria da totalidade
transformação da totalidade marxista numa variante
hegeliana,

A interpretação h istoricista do marxismo


pode chegar a este úl-
timo efeito: a negaçã o pr ática da distinção entre a ciência da história
(materialismo dialéti-
(materialismo histórico) € a filosofia marxista
perde praticamente a
co), Nesta última redução, a filosofia marxista
o materialismo dialé-
razão de ser, em proveito da teoria da história:
Vê-se isso claramente
tico desaparece no materialismo histórico. *
em: não apenas a ex-
em Gramsci, e na maior parte dos que o segu mar-
uma filosofia
pressão materialismo dialético, mas o conceito de as mais vivas res»
nida por um objeto próprio, lhes inspira
xista defi
filosofia teorica-
salvas, Consideram eles que a simples idéia de uma
método), e portanto dis-
mente autônoma (por seu objeto, teoria e res-
na metafísica, na
tinta da ciência da história, lança O marxismo

es
esmi s razõeses estrutu rais, O efeito inverso: em Sartre
“ Pode observar-se, pelas mesma
sta transforma-se em filosofia.
pode também dizer-se qu ea ciência da história marxi

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82 LER “O CAPÍTALS

tauração de uma Filosofia da Natureza, da qual Engels seria o arte-


são. ** Dado que toda filosofia é história, a “filosofia da práxis” só
pode ser, como filosotia da identidade filosofia-história,
“ou ciência-história. Não mais tendo objeto próprio, a filosofia mar-
xista perde então o estatuto de disciplina autônoma, e se reduz, se-
gundo a expressão de Gramsci, retomada a Croce, a uma simples
“metodologia histórica”, isto é, à simples consciência de si da histori-
cidade da história, à reflexão sobre a presença da história real em to-
das as suas manifestações:

Separada da teoria da história e da política, a filosofia só pode ser


nto
metafísica - ao passo que a grande conquista da história do pensame
Aistorici-
moderno, representada pela filosofia da práxis, é justamente a
zação concreta da filosofia, e sua identificação com à história.
(Materialismo Storico, p. 133.)

ao estatuto de
Essa historicização da filosofia a reduz então
uma metodologia histórica: '
deira num período de-
Pensar uma afirmação filosófica como verda vel
ria, isto é, como expressão necessária e indissociá
terminado da histó
s determinada, mas ul-
de uma ação histórica determinada, de uma práxi do posterior, sem cair
perio
trapassada e “esvaziada” do seu sentido num
, o que significa conceber
no ceticismo e no relativismo moral e ideológico mental difícil... O autor
a filosofia como historicidade, é uma operação filosofia da práxis como
de
[ Bukharin ] não consegue elaborar o conceito f-
como filosofia, como a unica
“metodologia histórica”, nem esta última
consegue propor nem resolver, do ponto de
losofla concreta, isto é, não
propôs e tentou resolver do
vista da' dialética real, o problema que Croce se
ponto de vista especulativo.

Com estas últimas palavras, eis-nos deCrocvolt a às origens: do his-


toricismo hegeliano, “'radicalizado” por e, e que bastaria “in-
a especulativa à filosofia “concreta ,
verter” para passar da filosofiétic empreendimento ted»
da dialética especulativa à dial a real, etc. O
oricismo não sai dos li-
rico de interpretação do marxismo como hist
mites absolutos nos quais se efetua desde Feuerbach essa “inversão
o”: esses limites
da especulação na práxis, da abstração no “concretada
são definidos pela problemática empirista, sublim na especula-
nos livrar.”
ção hegeliana e da qual nenhuma “inversão” pode

, CI. Gramsci, em suu crítica do manual de Bukharin; Colletti (passim). o


Falei há pouco das origens próprius da filosofia de Sartre. Sartre pensa em Des-
curtes, Kant, Husserl e Hegel: mus 0 seu pensamento mais profundo vem sem dúvida
de Politrer e (por mais paradoxal que essa aproximação possa parecer) seçundaria-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 83

Vê-se, pois, manifestar-se claramente, nas diferentes reduções


teóricas indispensáveis à interpretação historicista de Marx, e em
seus efeitos, à estrutura fundamental de todo historicismo: a con-
temporaneidade que permite uma leitura em corte de essência. Vê-se
também, dado que é sua condição teórica, essa estrutura impor-se,
queira-se ou não, à estrutura da totalidade marxista, transformá-la,
e reduzir a distância real que separa seus diferentes níveis. A história
da pre-
marxista “cai” no conceito ideológico de história, categoria
sença e da continuidade temporais; na prática econômico-política
da filosofia e das
da história real, pelo nivelamento das ciências,
o e das forças de
ideologias sobre a unidade das relações de produçã
Por mais paradoxal
produção, isto é, de fato sobre a infra-estrutura.
censurarão por tirar €
que seja esta conclusão, que sem dúvida me
de vista da problemá-
enunciar, somos obrigados a tirá-la: do ponto
político, esse materialismo
tica teórica, e não das intenções e acento de base da
princípios teóricos
humanista e historicista reencontra OS Se
interpretação economic ista e mecanicista da Il Internacional.
pode sustentar políticas de inspira-
essa mesma problemática teórica
voluntarista, uma passiva € ou-
ção diferente, uma fatalista e outra do “jogo” teóri-
dá pelos recursos
tra consciente e dinâmica - isso se
ideológica contém, como toda
co que essa problemática teórica
por uma contradança compen-
ideologia. A propósito, é ao conferir, s ativos da superestrutura
tos mai
satória, à infra-estrutura OS atribu
toricismo pode contrapor-se poli-
política e ideológica que um tal his Essa operação de transferên-
ernacional.
ticamente às teses da II Int
sob diferentes formas: afetando,
cia de atributos pode conceber-se ria
dos atributos da filosofia e da teo
por exemplo, à prática política a “práxis” econômica de todas as
o
(o espontaneísmo); carregand arco-
ati vas , até me sm o explosivas da política (an
virtudes ção politi-
ali smo ), Ou atr ibu ind o à consciência e à determina
sindic vol unt arismo). Em resumo, se

mo ec on ôm ic o (o
cas o determinis a superestrutura com à inf
ra-
dis tin tos de ide nti fic ar
dois modos a economia - um que vê na
cons-
ura , OU à con sci ênc ia com
estrut he a eco-
nci a e na. pol íti ca só a eco nomia, quando o outro preenc
ciê

sua Crítica dos


é o Feu erbach dos tempos modernos:
mente de Bergson. Ora, Politzer em nome de uma Psi-
a crítica da Psicologia especulativa
Fundamentos da Psicologia é “fil osofemas”:
zer foram tratados por Satre como
cologia concreta. Os temas de Polit inverte
eiro; quando o historicismo de Sartre
ele não abandonou à inspiração do prim etiv idade
xismo dogmático numa teoria da subj
a “totalidade”, as abstrações do mar obje tos,
os lugares, € à propósito de outros
concreta, ele “repete” também em outr
m Marx e a Politizer, apenas conserva, sob
uma “inversão” que, de Feuerbach ao jove tica.
problemá
a aparência de sua crítica, uma mesma

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84 LER “O CAPITAL"

nomia de política e de consciência, não há em operação nunca mais


-do que uma única estrutura de identificação: a da problemática que
identifica teoricamente os níveis em confronto, reduzindo um ao ou-
tro. Essa estrutura comum da problemática teórica é que se torna
visível quando analisamos não as intenções teóricas ou políticas do
mecanicismo-economicismo por um lado, e por outro o humanis-
mo-historicismo, e sim a lógica interna de seu mecanismo concep-
tual.

Uma palavra a mais sobre a relação entre humanismo e histori-


cismo. É bastante claro que se possa conceber um humanismo não-
historicista assim como um historicismo não-humanista. Evidente-
mente, só falo aqui de um humanimoe de um historicismo teóricos,
considerados na sua função de fundação teórica da ciência e da filo-
sofia marxista. Basta viver na moral ou na religião, ou nessa ideolo-
gia político-moral que se chama socialdemocracia, para mobilizar
uma interpretação humanista mas não-historicista de Marx: é só ler
Marx à “luz” de uma teoria da natureza humana, seja ela religiosa,
ética ou antropológica (cf. as RRPP, Calvez e Bigo, € Rubel, e de-
pois os sociais-democratas Landshut e Mayer, primeiros editores
das Obras da Juventude de Marx). Reduzir O Capital a uma inspira-
ção ética é brinquedo de criança, caso nos apoiemos na antropolo-
gia radical dos Manuscritos de 44. Mas pode-se também conceber ao
inverso a possibilidade de uma leitura historicista não-humanista de
Marx: se o entendo bem, nesse sentido é que tendem os melhores es-
forços de Colletti, Para autorizar essa leitura historicista não-
humanista, basta, como o faz precisamente Colletti, recusar à redu-
que
ção da unidade. “forças de produção relações de produção” -
constitui a essência da história - ao simples fenômeno de uma natu-.
reza humana, mesmo historicizada. Mas deixemos de lado essas
duas possibilidades,
É a união do humanismo com o historicismo que representa,
impõe-se que o digamos, a mais séria tentação, porque proporciona
as maiores vantagens teóricas, pelo menos em aparência. Na redu-
ção de todo conhecimento às relações sociais históricas, pode-se in-
troduzir por baixo uma segunda redução, que trata as relações de,
produção como simples relações humanas. '' Essa segunda redução
repousa numa “evidência”; acaso a história não é sempre um fenô-
meno “humano”? E Marx, citando Vico, acaso não declara que OS

13

Essa sub-repção
sub- ; é comum em todas as interpretações humanistas do marxismo,

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 85

homens podem conhecê-la, pois que a “fizeram” inteiramente? Essa


“evidência” repousa, entretanto, num singular pressuposto: que os
“atores” da história são os autores do seu texto, os sujeitos da sua
produção. Mas esse pressuposto tem também toda a força de uma
“evidência”, dado que, contrariamente ao que nos sugere o teatro,
os homens concretos são, na história, os atores dos papéis de sua au-
toria. Basta escamotear o diretor para que o ator-autor se as-
semelhe como um irmão ao velho sonho de Aristóteles: o médico-
são
que-se-trata-a-si-mesmo; e para que as relações de produção, que
a
no entanto adequadamente os direitores da história, se reduzam
simples relações humanas. Acaso 4 Ideologia Alemã não está cheia
de fórmulas sobre esses “homens reais”, esses “indivíduos concre-
su-
tos” que “'com os pés bem fincados na terra” são os verdadeiros
que
jeitos da história? Acaso as Teses sobre Feuerbach não declaram
a própria objetividade é resultado, inteiramente humano, da ativida-
tar a essa na-
de “prático-sensível” desses indivíduos? Basta acrescen
para esca-
tureza humana os atributos da historicidade “concreta”
ou morais,
par à abstração e ao fixismo das antropologias teológicas
.
e para ir encontrar Marx no próprio cerne do seu reduto: o materia-
concebida como
lismo histórico. Essa natureza humana será, pois,
cambiante,
produzida pela história, cambiante com ela, o homem
de sua his-
ções
como o queria a Filosofia Iluminista, com as revolu enten-
(o ver, o
tória, e afetado até em suas faculdades mais íntimas
, e também
der. a memória, a razão, etc. - Helvetius já o afirmava assunto
o
Rousseau, contra Diderot * Feuerbach estende-se sobre
de antropólogos
em sua filosofia - e atualmente um sem-número de sua his-
culturalistas detém-se na questão) pelos produtos sociais de
em transformação
tória objetiva. A história converte-se então
ro sujeito da histó-
uma natureza humana, que permanece O verdadei
introduzido a história na na-
ria que a transforma. Ter-se-á com isso dos efeitos
tureza humana, para tornar 08 homens contemporâneos é que está a ques-
históricos de que são os sujeitos, porém - e nisso as relações sociais,
tão - se terão reduzido as relações de produção,
historicizadas, isto é,a
políticas € ideológicas a “relações humanas
Esse é o terreno predileto de
relações inter-humanas, intersubjetivas. : recolocar
grande vantagem
um humanismo historicista, Esta a sua a ele, nascida no
Marx na corrente de uma ideologia bem anterior de uma ruptura
originalidade
século XVIII, tirar-lhe o mérito da
teórica revolucionária não raro, inclusive , torná-lo aceitável às for-
Quem, hoje em
mas modernas da antropologia “cultural” e outras.

Marx. (N. do T.)


* Um dos autores prediletos de

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86 LER “O CAPITAL”

dia, não invoca esse humanismo historicista, acreditando verdadei-


ramente abonar-se em Marx, quando uma ideologia desse tipo de
fato nos afasta de Marx?
Todavia, nem sempre foi assim, pelo menos do ponto de vista
político. Declarei por que e como a interpretação historicista-hu-
manista do marxismo nasceu nos pressentimentos e no sulco da
Revolução de 17. Tinha ela então o sentido de um protesto violento
contra o mecanicismo e o oportunismo da II Internacional, Ela con-
clamava diretamente a consciência e a vontade dos homens para re-
cusar a guerra, derrubar o capitalismo e fazer a revolução. Recusava
intransigentemente tudo o que pudesse, na própria teoria, adiar ou
empanar esse apelo urgente à responsabilidade histórica dos homens
reais lançados na revolução. Exigia, num mesmo movimento, a teo-
ria da sua vontade. Essa a razão pela qual ela proclamava um retorno
a Hegel (0 jovem Lukács, Korsch), e elaborava uma teoria que pu-
nha a doutrina de Marx em relação de expressão direta com a classe
trabalhadora. É dessa época que data a famosa oposição entre
“ciência burguesa” e “ciência proletária”, na qual triunfava uma in-
terpretação idealista e voluntarista do marxismo como expressão €
produto exclusivo da prática proletária. Esse humanismo “esquer-
dista” designava o proletiariado como o lugar e o missionário da es-
sência humana. Se ele estava destinado ao papel histórico de libertar
o homem de sua “alienação”, tal o era pela negação da essência hu-
mana de que ele era a vítima absoluta. A aliança da filosofia com o
proletariado, anunciada pelos textos do jovem Marx, deixava de ser
uma aliança entre duas partes exteriores uma à outra. O proletaria-
do, essência humana em revolta contra a sua negação radical, con-
vertia-se na afirmação revolucionária da essência humana: O prole-
tariado era assim filosofia em ato, e sua prática política a própria fi-
losofia. O papel de Marx reduzia-se então a conferir a essa filosofia
atuada e vivida em seu lugar de nascimento, a simples forma da
consciência de si, Daí por que se proclamava o marxismo “ciência
ou “filosofia” “proletárias”, expressão direta, produção direta da
essência humana por seu peculiar autor histórico: o proletariado. A
tese kautskista e leninista da produção da teoria marxista por uma
prática teórica específica, fora do proletariado, e da “importação” da
teoria marxista para o movimento operário, via-se recusada sem
consideração - e todos os temas do espontaneísmo se precipitavam
no marxismo por essa brecha aberta: o universalismo humanista do
proletariado, Do ponto de vista teórico, esse “humanismo” e esse
“historicismo” revolucionários iam abeberar-se conjuntamente em
Hegel e nos textos da juventude, então acessíveis, de Marx. Passo à
seus efeitos políticos: certas teses de Rosa Luxemburg sobre o IMpe-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 87

rialismo, e o desaparecimento das leis da “economia política” no re-


gime socialista; o proletkult; as concepções da “oposição operária”,
etc; e de um modo geral o “voluntarismo” que marcou profunda-
mente, até nas formas paradoxais do dogmatismo stalinista, o perío-
do da ditadura do proletariado na URSS. Ainda hoje esse “huma-
nismo” e esse “historicismo” despertam ecos verdadeiramente revo-
lucionários, nos combates políticos empreendidos pelos povos do
Terceiro Mundo para conquistar e defender sua independência polí-
tica, e enveredar pelo caminho socialista. Mas essas vantagens ídeo-
lógicas e políticas em si são obtidas, como o discerniu admiravel-
mente Lênin, em detrimento da lógica que põem em jogo, e que pro-
duzem, inevitavelmente, quando se oferece a oportunidade, tenta-
ções idealistas e voluntaristas na concepção e na prática econômica
e política - quando não provocam graças a uma conjuntura favorá-
vel - por uma inversão paradoxal, mas também necessária - concep-
ções matizadas de reformismo e de oportunismo, ou simplesmente
revisionistas.

É de fato peculiar a toda concepção ideológica, sobretudo se ela


submeter a si uma concepção científica desviando-a de seu sentido, o
ser governada por “interesses” estranhos à necessidade exclusiva do
conhecimento. Nesse sentido, isto é, sob a condição de lhe dar o cb-
jeto de que ela fala sem o saber, o historicismo não deixa de ter valor
teórico: pois descreve bastante bem um aspecto essencial de toda
ideologia que adquire sentido a partir dos interesses atuais a serviço
dos quais ela está submetida. Se a ideologia não exprime a essência
objetiva total do seu tempo (a essência do presente histórico), pode,
pelo menos, exprimir muito bem, pelo efeito de leves deslocamentos
internos de ênfase, as transformações atuais da situação histórica:
diferentemente de uma ciência, uma ideologia é ao mesmo tempo
teoricamente fechada e politicamente maleável e adaptável. Ela se
curva às necessidades da época, mas sem movimento aparente, con-
tentando-se com o refletir por alguma modificação imperceptivel de
suas próprias relações internas, as transformações históricas que ela
tem por missão assimilar e dominar. O exemplo ambiguo do ag-
giornamento do Vaticano II bastaria para nos dar uma prova elo-
quente disso; efeito e sinal de uma evolução incontestável, mas ao
mesmo tempo hábil recuperação do controle da história, graças a
uma conjuntura inteligentemente aproveitada. A ideologia muda,
pois, mas imperceptivelmente, conservando a forma de ideologia;
ela se move, mas com um movimento imóvel, que a mantém no mes-
mo lugar, em seu lugar e função de ideologia. Ela é movimento imó-
vel, que reflete e exprime, como dizia Hegel, a propósito da própria
filosofia, o que se passa na história, sem jamais passar além de seu

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88 LER “O CAPITAL"

o na
tempo, dado que ela nada mais é que esse mesmo tempo tomad
os homens a
captura de um reflexo especular, precisamente para que
ucionário
aceitem. É por essa razão essencial que o humanismo revol
o ideológico
dos ecos da Revolução de 17 pode servir hoje de reflex
com preocupações políticas ou teóricas variadas, umas ainda apa-
suas origens.
rentadas, € outras mais ou menos estranhas às
plo, de cau-
Esse humanismo historicista pode servir, por exem
ou pequeno-burguesa,
ção teórica a intelectuais de origem burguesa dramáticos, a
nticamente
que propõem, e às vezes em termos aute
membros ativos de uma his-
questão de saber se são de pleno direito
temem, fora deles. Eis talvez
tória que se faz, como eles O sabem ou contida na
inteiramente
a questão mais profunda de Sartre. Ela está
sofia insuperável da nossa
sua dupla tese de que o marxismo é “a filo
fi losófica vale uma hora de
época” e que nenhuma obra literária ou
gente reduzido pela exploração
dor diante do sofrimento de um indi
nessa dupla declaração de
imperialista à fome e à agonia. Tomado
por um lado, e por outro à cau-
fidelidade a uma idéia do marxismo, verdadei-
convence de que pode
sa de todos os explorados, Sartre se
das “Palavras” que ele pro-
ramente desempenhar um papel, além
a história da nossa época, por
duz é toma por derrisórias, na inuman
atribui a toda racionalidade
uma teoria da “razão dialética” que
rica ), com o a toda dial étic a (revolucionária) a peculiar origem
(teó
. O humanismo historicista àS-
transcendental do “ projeto” humano da liberdade
forma de uma exaltação
sume desse modo em Sartre a
livremente em seu combate, ele
humana em que, comprometendo-se os oprimidos, que, desde a longa
s
comunga com a liberdade de todo
avos, lutam para sempre por um
noite esquecida das revoltas de escr
pouco de luz humana, de
O mesmo humanismo, com peq uena
mudança de ênfase, po
por,
a conjuntura € as necessidades:
servir a outras causas, segundo
o prot esto cont ra os erro s € OS crimes do periodo do “culto
exemplo,
punidos, a esperança de
à personalidade”, a impaciência deta,os etc.ver Quando esses sentimentos
uma verdadeira democracia socialis
tico s que rem obte r um fun dam ento teórico, procuram-no Sem-
polí
mos conceitos: neste ou naquele
pre nos mesmos textos e nos mes
17 (e daí essas edições do
teórico surgido do grande período de pós-
ão por certas fórmulas equi-
jovem Lukács e de Korsch, e essa paix
anistas de Marx; suas obras
vocas de Gramsci), ou nos textos hum
no “hu man ism o real ”, na “alienação”, no “conere
da juventud e;
to”, na história, filosofia ou psicologia “concretas”,
1 2x
1

"Cf, La Nouvelle Critique, nºs 164 ss.

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À
O OBJETO DE “O CAPITAL” 89

Só a leitura crítica das “obras da juventude” de Marx e um es-


tudo aprofundado de O Capital podem nos esclarecer sobre O senti-
do e os riscos de um humanismo e de um historicismo teóricos estra-
nhos à problemática de Marx. |

que nos le-


O leitor há de lembrar-se talvez do ponto de partida
sobre a história.
vou a empreender essa análise do mal-entendido
va podia decorrer
Observei que o modo como Marx a si mesmo julga
€ faltas dos seus prede-
dos juízos com Os quais ele pesa os méritos
amos submeter O tex-
cessores. Ao mesmo tempo mencionei que deví
mas a uma leitura “sinto-
to de Marx não a uma leitura imediata,
continuidade do discurso, as
mal”, para discernir nele, na aparente o
lacunas, os espaços em branc o € as falhas do rigor, os lugares onde
seu silêncio, surgindo no .
discurso de Marxé apenas o não-dito do sintomas teóricos
desses
seu próprio discurso. Pus em destaque um de um conceito em
no julgamento que Marx fizera sobre a ausência
ito de mais-valia, que “genero-
seus predecessores, ausência do conce se estivesse em
tratava como
samente” (como o diz Engels) Marx
Acabamos de ver o que ocorre
causa a ausência de uma palavra.
ia, quando surge no discurso
com outra palavra, a palavra histór que pa-
cessores. Essa palavra,
crítico que Marx dirige aos seus prede
teoricamente vazia, na imediatez
rece plena, é de fato uma palavra a que surge nessa
-de-ideologia,
de sua evidência - ou antes, é plena do
lacuna do rigor. Quem leia O Capital sem indagar criticamente
"seu objeto, não vê malícia alguma nessa palavra que lhe “fala”:
pri-
do qual essa palavra pode ser a
prossegue de boa fé o discurso
história, € depois o discurso histori-
meira, O discurso ideológico da como o vimos é
cas não têm,
cista. As conseglências teóricas e prátiPelo contrário, numa leitura
compreendemos, aquela inocência,
deixar de ouvir sob essa pala-
enistemológica e crítica, não podemos
profe rida O silên cio que ela encobre, nem deixar de ver o espaço
“vra
co do.ri gor inter rompi do, pelo tempo apenas de um relâm-
em bran mos dei-
pago, no espaço negro da página, correlatamente, não pode
esse discu rso apar ente ment e continuado, mas de
xar de perceber sob
€ subj ugad o pela irrup ção ameaçadora de um dis-
fato interrompido do verdadeiro discurso, nem
dei-
curso que recal ca, à VOZ silen ciosa
de resta urar O Lexlo, para lhe restabelecer a continuidade pro-
xar

lapso é do sonho
caso com o do sintoma, do
Pode-se, por analogia, comparar €5S€
“plenitude do desejo”.
»w
- que para Freud é a

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90 LER “O CAPITAL”

funda. Nisso é que-a identificação dos pontos precisos da falha do


rigor de Marx coincide com o reconhecimento desse rigor: esse rigor
é que nos índica as suas falhas; e no instante pontual de seu silêncio
provisório, nada mais fazemos do que lhe dar a palavra que é a sua,

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 91

VI. Proposições Epistemológicas de O Capital


(Marx, Engels)

Após essa longa digressão, tracemos as coordenadas da nossa


análise. Estamos à procura do objeto próprio de Marx.
Num primeiro momento interrogamos os textos de Marx onde
ele nos indica a sua própria descoberta, e isolamos os conceitos de
valor e mais-valia como portadores dessa descoberta. Todavia, tive-
mos de observar que esses conceitos eram precisamente o lugar do
mal-entendido, não apenas dos economistas, mas também de um
sem-número de marxistas sobre o objeto próprio da teoria marxista
da economia política.
Em seguida, num segundo momento, interrogamos Marx através
do julgamento que ele mesmo fez de seus predecessores, Os fundado-
res da Economia Política clássica, na esperança de apreendê-lo por
sua vez no juízo que ele pronuncia sobre a sua pré-história científica.
Também nesse caso deparamos com definições desconcertantes ou
insuficientes. Vimos que Marx não chegava a pensar verdadeira-
mente o conceito da diferença que o distingue da Economia clássica
e que, com o pensá-la em termos de continuidade de conteúdo, ele
nos lançava ou numa simples distinção de forma - a dialética - ou
no fundamento dessa dialética hegeliana - certa concepção ideológi-
ca da história, Avaliamos as conseglências teóricas e práticas dessas
ambigúidades; vimos que o equívoco dos textos atingia não apenas a

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92 LER “O CAPITAL”

definição do objeto específico de O Capital, mas também, e ao mes-


mo tempo, a definição da prática teórica de Marx, a relação da sua
teoria com as teorias anteriores - em suma, a teoria da ciência e a
teoria da história da ciência. Nesse caso, não mais tratávamos ape-
nas da teoria da economia política e da história, ou materialismo
histórico, mas da teoria da ciência, e da história da ciência, ou mate-
rialismo dialético. E víamos, ainda que em negativo, que existe uma
relação essencial entre o que Marx produz na teoria da história e o
que ele produz na filosofia. Vimo-lo pelo menos por este indício:
basta um simples vazio nos conceitos do materialismo histórico para
que ali se instale imediatamente o pleno de uma ideologia filosófica,
a ideologia empirista. Só podemos reconhecer esse vazio esvazian-
do-o das evidências da filosofia ideológica que o ocupa. Só podemos
determinar com rigor certos conceitos científicos ainda insuficientes
de Marx sob a condição absoluta de reconhecer a natureza ideológi-
ca dos conceitos filosóficos que lhe usurparam o lugar: em suma,
sob a condição absoluta de começar por determinar ao mesmo tem-
po os conceitos da filosofia marxista aptos a conhecer e reconhecer
como ideológicos os conceitos filosóficos que nos escamoteiam as
falhas dos conceitos científicos. Eis-nos cabalmente votados a esse
destino teórico: o de não poder fer o discurso científico de Marx sem
escrever ao mesmo tempo, por seu próprio ditado, o texto de um
ou-
tro discurso, inseparável do primeiro, mas distinto dele: o discur
so
da filosfia de Marx.

Passemos agora ao terceiro momento


dessa interrogação. O Ca-
pital, os prefácios de Engels, certas cart
as, e as Notas sobre Wagner
contêm de fato algo que nos possa levar
por uma via fecunda. O que
ate agora tivemos de reconhecer em
negativo em Marx, vamos daqui
por diante revelar em positivo
,

- Tenhamos em mente, primeiro, simples observações sobre a ter-


minologia. Sabemos que Marx censura q Smith e Ricardo o terem
const
tencia:antem confundido a mais-valia com as formas de sua exis-
enterenda,
lucro, juro, Falta, pois, uma palavra nas análises dos
grandes economistas, Quando Marx Os lê, restabelece no texto deles
a palavra que falta: a mais-valia. Esse ato apare
cante de restabelecer uma palavra ausente traz nteme nte insignifi-
em si, no entanto,
consequências teóricas de vulto: essa palavra, com efeito
, não é só
uma palavra, mas um conceito, € conceito teórico, que é, no caso, O
representante de um novo sistema conceptual
, correlato do upareci-
mento de um novo objeto. Toda palavra é um conceito, mas nem
todo conceito é teórico, e nem todo conceito teórico
é representante

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O OBJETO DE “O CAPITAL 93

de um novo objeto. Se u palavra mais-valia é importante a esse pon-


to, isso se deve à que atinge diretamente à estrutura do objeto cujo
destino está em jogo, então, nessa simples denominação. Pouco im-
porta que toda essa consequência não esteja absolutamente presente
ao espírito e sob a pena de Marx quando ele censura a Smith e Ri-
cardo o terem saltado por cima de uma palavra. Marx não pode ser
obrigado, mais que qualquer outro, à dizer tudo ao mesmo tempo: o
que importa é que ele diga, em outra parte, o que não diz ao dizé-lo
aqui. Ora, não se pode duvidar de que Marx tenha sentido como exi-
gência teórica de primeirissima ordem a necessidade de elaborar
uma terminologia científica adequada, isto é, um sistema coerente de
termos definidos, no qual não apenas as palavras empregadas sejam
conceitos, mas no qual as novas palavras sejam outros tantos con-
“ceitos definidores de um novo objeto. Contra Wagner, que confunde
valor de uso e valor, escreve Marx (III, 249-250):

A única coisa clara que se encontra nessa algaravia alemã consiste


nisto: se nos ativermos ao sentido verbal, a palavra valor ( Wert, Wiirde)
foi primeiramente aplicada às coisas úteis, que existiam há muito tempo,
mesmo que sendo “'produtos do trabalho”, antes de se converterem em
mercadorias. Mas isso tem tanto a ver com a definição científica do “va-
lor-mercadoria”, quanto o fato de que a palavra sal entre os antigos fosse
primeiro aplicada ao sal comestível, e que, por conseguinte, o açúcar, etc.
figurem desde Plínio como variedades de sal, etc. (250).

e um pouco antes:
Isso faz pensar nos antigos químicos antes do advento da ciência da
química: pelo fato de que a manteiga comestível, que na vida quotidiana
se chama manteiga simplesmente (segundo o costume nórdico), tem uma
consistência frouxa, eles chamaram os extratos butirosos,os cloretos,
de
manteiga de zinco, manteiga de antimônio, etc. (249).

Essa passagem é sobremodo nítida, porque distingue o “sentida


verbal" de uma palavra e o seu sentido científico, conceptual, no
fundo de uma revolução teórica do objeto de uma ciência (a quimi-
ca). Se Marx tem em vista um novo objeto, deve necessariamente ad-
quirir uma terminologia conceptual nova correspondente. “
Engels percebeu isso muito bem num trecho de seu prefácio à
edição inglesa de O Capital (1886) (1, 35-36):

Persiste, contudo, uma dificuldade, e dela não podemos poupar o


leitor; o emprego de certas expressões em sentido diferente do usual na

v CIO) Capital, |, prefácio, p. 17. Marx fala da “nova terminologia criada” por ele,

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94 LER “O CAPITAL*

vida quotidiana e do consagrado na economia política em voga. Mas Isso

mM a QUÃO nova de uma clência enseja uma revolução nos


ter.
mos especializados (Pachausdrilehen) dessa ciência, [as se evidencia me.
hor na quimica: toda n sua terminologia, em cada período
de mais ou
menos vinte anos muda radicalmente (Terminologte), e & dificil
trar um composto orgânico que não tenha tido uma série encon.
de
rentes, À economia política, de modo geral, tem se contentado nomes dife.
em respei-
tar, tais como se encontram, us expressões da vida comercial
e em trabalhar com elas, sem se dar conta de que com Isso se é industrial,
encerrava no
círculo estreito das tdélas que elas exprimem,
Assim é que os representantes du econo mia clássica,
emb
consctência plena de serem o lucro e q renda apenas subdiv ora tivessem
da parte não-paga, saída do produto que o trabalhad isões, parcelas
or tem de fornecer
ao patrão (o primeiro que dela se apropria
, ainda que não seja seu último
e exclusivo dono) - upesar disso, nunca
chegaram a ultrapassar as idéias
usuais (úbliche Begriffe) de lucro e renda,
não-paga do produto (chumada por Marx nunca examinaram essa parte
de produto líquido "), em seu
conjunto, como um todo, e, por isso, nunc
a
clara, nem da sua origem nem da sua natu atingiram uma compreensão
reza, nem das leis que regem a
distribuição posterior do seu valor, Do
mesmo modo, o conceito de in-
dústria, desde que não inclua agricultura
e artesanato, está compreendi-
do no termo manufatura, e, com isso,
se upaga a diferença entre dois
períodos da história econômica, importan
tes e essencialmente diversos: o
período du manufatura propriamente dita,
baseada no trabalho manual,
co da indústria moderna, baseada na maqu
inaria, Uma teoria que consi-
dere a moderna produção capitalista mero
estágio transitório da história
econômica da humanidade tem, naturalm
ente, de utilizar expressões dife-
“rentes daquelas empregadas por auto
res que encaram esse modo de prod
cão como eterno e definitivo. u-

Destaquemos dessa passagem as seguintes afirmações funda-


mentais:
1) toda revolução (aspecto novo de uma ciência) em seu
acarreta uma revolução objeto
inevitável em sua
terminologia;
2) toda terminologia está relaciona
da com um círculo determi-
nado de idéias, o que podemos traduzir dizendo: toda ter
gia é função do sistema teórico que lhe ser minolo-
encerr a em si um ve de base, toda terminologia
sistema teórico determinado e limitado:

vi EXPreSsão “produto líquido" não consta da tradução em português da Editora


Civilização Brasileira de O Capital, no
=88€ trecho é notabilíssimo, famoso prefácio de Engels. (N. do
e quas e exem plar; dá-nos da excepcional do,
é epistemológica de Engels nm amos
uma idéia inteiramente dive
em outras circunstâncias, rsa daquela que uai de
Teremos outros ensejos de En-
gels, que longe está de ser assinalar o gênio ds
trapor a Marx, 0 com ent ari sta de segunda ordem que alguns con-
quisera

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 95

3) a economia política clássica estava encerrada num círculo de-


terminado pela identidade de seu sistema de idéias com a sua termi-
nologia;
4) ao revolucionar a teoria econômica clássica, Marx deve ne-
.cessariamente revolucionar-lhe a terminologia;
5) o ponto sensível dessa Revolução recai precisamente na mais-
valia. Por não terem pensado numa expressão que fosse o conceito
de seu objeto, os economistas clássicos ficaram na noite, prisionei- .
ros das palavras que não passavam de conceitos ideológicos ou
empíricos da prática econômica;
6) Engels relaciona, em última instância, a diferença de termi-
nologia existente entre a economia política clássica e Marx com uma
diferença na concepção do objeto: os clássicos tomando-o por eter-
no,e Marx por transitório. Sabemos o que pensar desse tema.

Não obstante esta última fragilidade, essa passagem é notabilís-


sima, dado que põe em evidência uma relação íntima entre o objeto
de uma disciplina científica determinada e o sistema de sua termino-
logia com o sistema de suas idéias. Portanto, ressalta uma relação
íntima entre o objeto, a terminologia e o sistema conceptual que lhe
corresponde - relação que, uma vez modificado o objeto (uma vez
captados os seus “aspectos novos”), deve necessariamente acarretar
uma modificação correlata no sistema das idéias e na terminologia
conceptual.
exis-
Digamos, em linguagem equivalente, que Engels afirma a
tência de uma relação funcional necessária entre a natureza do obje-
to, a natureza da problemática teórica e a natureza da terminologia
conceptual.

Essa relação ressalta ainda mais nitidamente de outra passagem


Capital,
surpreendente de Engels, a saber, O prefácio ao livro II de O
que Marx faz da
que pode ser posta em relação direta com a análise
do salá-
cegueira dos economistas clássicos no tocante ao problema
rio (II, 206 ss.).
a ques-
No trecho mencionado, Engels estabelece claramente
tão;
capitalista
Eis que transcorreram séculos desde que a humanidade
a se preocu-
produziu a mais-valia, e no entanto só recentemente ela veio dela de-
noção que se teve
par com a origem dessa mais-valia, A primeira valia
que a mais-
correu da prática imediata do comércio: dizia-se então
dos mer-
resulta da majoração do valor do produto. Essa era já a opinião
um perde
cantilistas: mas James Stewart deu-se conta de que, nesse caso,
a persistência des-
o que o outro forçosamente ganha. O que não impediu
se modo de ver por muito tempo ainda, sobre tudo entre os socialistas; A.
(IV, 15).
Smith livra dele a ciência clássica...

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96 LER “O CAPITAL”

Engels mostra então que Smith e Ricardo conheciam a origem


da mais-valia capitalista. Se eles “não estabeleceram a distinção entre
a mais-valia como tal, enquanto categoria especial, eas formas espe-
ciais que ela assume no lucro e na renda fundiária (citado, Iv, 16),
contudo “produziram” o princípio fundamental da teoria marxista
de O Capital: a mais-valia. |
Donde a questão, pertinente do ponto de vista epistemológico:
Mas, nesse caso, que foi que Marx disse de original sobre
a mais-valia?
Como se explica que a teoria marxista da mais-valia tenha ribom
ba-
do como o trovão num céu sereno, e isso em todos os
países civilizados,
ao passo que as teorias de todos os seus predecesso
res socialistas, inclusi-
ve Rodbertus, perduravam?

O reconhecimento de Engels do efeito prodigioso


do surgimen-
to de uma teoria nova: o “ribombar de trovão num
céu sereno” inte-
ressa-nos como sinal marcante da originalidade
de Marx. Não mais
se trataaqui dessas diferenças equívocas (eternitaris
mo fixista, his-
tória em movimento) nas quais Marx procurav
a exprimir sua rela-
ção com os economistas. Engels não hesita:
estabelece imediatamen-
te o verdadeiro problema da ruptura epistemo
lógica de Marx com a
economia clássica; a situa no ponto mais pertinen
o mais paradoxal: a propósito da mais-valia. te, que é também
Precisamente a mais-
valia não é original, pois que já cabalmente
“produzida” pela econo-
mia clássica! Engels coloca então a questão
Marx a propósito de uma realidade que,
da originalidade de
para ele, não é original! E
nessa extraordinária compreensão da
questão que o gênio de Engels
resplandece: ele enfrenta a questão no
seu derradeiro reduto, sem
sombra de um recuo; enfrenta-a no
próprio local onde a questão se
apresentava sob a forma esmagadora de sua resp
onde a resposta impedia, pelas qualidades esma osta; ou antes, lá
dência, suscitar a mínima questão! gadoras de sua evi-
Ele
questão da originalidade e da não-original tem a ousadia de propor a
idade de uma realidade
que figura em dois discursos diferentes, isto é,
de teórica dessa “realidade” inscrita em
a questão da modalida-
dois discursos teóricos. Bas-
ta ler Sua resposta para compreender
que ele não propôs a questão
por malícia, ou ao acaso, mas no domínio
de uma teoria da ciência
que se funda sobre uma teoria
ta-se de uma comparação com ada hishistória das ciências. De fato, tra-
formular tória da química que lhe permite
a questão e definir sua
resposta,

Que foi que Marx disse de original sobre


A história da química pode no-lo mostrar a mediante
mais-valia”...
um exemp a
Como todos sabem, em fins do século passado reinava ainda
a teori

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 97

do Nogístico, que explicava a natureza de toda combustão, afirmando


que, do corpo em combustão, destacava-se outro corpo, corpo hipotéti-
co, um combustível absoluto, a que se dava o nome de flogístico. Essa
teoria bastava para explicar a maioria dos fenômenos químicos então co-
nhecidos, não sem todavia, em certos casos, violentar os fatos.
-.,

Ora, eis que em 1774 Priestley produziu uma espécie de ar, que “'a-
chou tão puro ou tão isento de flogístico que, comparativamente, o ar co-
mum cera já viciado”. Chamou-o de ar desflogistizado. Pouco tempo de-
pois, Scheele produziu na Suécia a mesma espécie de ar, e demonstrou a
sua presença na atmosfera. Ademais, verificou que esse gás desaparecia
quando nele se queimava um corpo, ou queimando-se um corpo no ar
“comum; chamou-o de “ar de fogo”...
”.

Priestley e Scheele haviam ambos produzido o oxigênio, mas sem sa-


ber o que tinham diante de si, “Foram incapazes de se desligar das catego-
rias” flogísticas “tais como as encontraram estabelecidas”. O elemento
que iria subverter a concepção flogística inteiramente (die ganze phlogistis-
che Anschauung umstossen) e revolucionar a química, continuava, nas
mãos deles, atacado de esterilidade.
Mas Priestley imediatamente comunicara a sua descoberta a Lavoi-
sier em Paris, e este, partindo dessa realidade nova ( Tatsache) passou em
revista toda a química flogística. Descobriu primeiramente que o novo
tipo de ar era um elemento químico novo, e que, na combustão, não é o
misterioro flogístico que escapa, mas esse novo elemento que se combina
com o corpo; € foi ele assim o primeiro a colocar de pé toda a química, a
qual, sob a sua forma flogística, andava de cabeça para baixo (stellte so die
ganze Chemie, die in ihrer phlogistischen Form auf dem Kopf gestanden,
erst auf die Fiisse). E se não é exato, contrariamente ao que ele pretendeu
depois, que tenha produzido o oxigênio ao mesmo tempo que Priestley e
Scheele e independentemente deles, sem dúvida foi ele quem na verdade
descobriu (der eigentliche Entdecker) o oxigênio primeiro que os outros
dois, que apenas o produziram (dargestellt) sem terem a mínima noção
do que haviam produzido.

Marx está para os seus predecessores, quanto à teoria da mais-valia,


como Lavoisier está para Priestley e Scheele. Muito tempo antes de
Marx, já estava estabelecida a existência (die Existenz) dessa parte do va-
lor do produto que agora chamamos (nehnen) de mais-valia; havia-se
também enunciado mais ou menos claramente a sua procedência: isto é, .
o produto do trabalho de que o capitalista se apropria sem pagar o equi-
valente. Mas não se foi mais além ( Weiter aber kam man nicht). Uns - os
economistas burgueses clássicos - estudaram no máximo a relação se-
gundo a qual o produto do trabalho é distribuído entre o trabalhador e o
possuidor dos meios de produção. Os outros - os socialistas - acharam
essa distribuição injusta e procuravam por meios utópicos acabar com
essa injustiça, Uns e outros continuavam presos (befangen) nas categorias
econômicas tais quais as haviam estabelecido (wie sie ste vorgefunden hat-
ten).

Veio então Marx, Ao avesso de todos os seus predecessores (in direk-


tem Gegensatz zu allen seinen Vorgánger), onde eles viram uma solução
(Lósung), ele só viu um problema ( Problem). Percebeu que não havia no.
caso nem ar desflogistizado nem ar de fogo, mas oxigênio; que não se tra-
tava no caso nem da simples verificação de uma realidade ( Tatsache) eço-
nômica, nem do conflito dessa realidade com a justiça eterna e a reta mo-

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98 LER “O CAPITAL”

ral, mas de uma realidade ( Tatsache) destinada a subverter (umwálzen) a


economia toda, e que, para a compreensão do conjunto
produção capitalista, oferecia a chave - a quem soubesse (gesamten) da
dela se servir.
Partindo dessa realidade, ele submete a exame (untersuchte)
O conjunto
das categorias que ele encontrou estabelecidas, Precisamente como La-
voisier, partindo do oxigênio, submetera a exame
as categorias da quimi-
ca flogística. Para saber o que é a mais-valia, era-lhe necessári
o saber o
que é o valor, Antes de tudo o mais, era, pois, necessário
submeter à críti-
ca a teoria do valor do próprio Ricardo. Portanto, Marx
estudou o tra-
balho em relação à sua propriedade de constituir o
valor, e determinou
pela primeira vez que
trabalho constitui o valor, por que e como o consti-
tui; determinou, ademais, que o valor nada
mais é em suma senão traba-
lho coagulado daquela espécie - questão que Rodbertus jamais
compreender, Marx estudqu em seguida a relação entre
chegou a
a mercadoria e o
dinheiro, e mostrou como
e por que a mercadoria, em virtude de sua qua-
lidade inerente de ser valor, e a troca de mercador
ias produzem necessa-
riamente a oposição entre a mercadoria e o dinheiro; a teoria
que ele fundou é a primeira que foi completa do dinheiro
(ershópfende) e que hoje é
aceita em toda a parte tacitamente. Estudou
a transformação do dinheiro
em capital, e provou que ela tem por base
a compra e a venda da força
de trabalho. Ao substituir (en die Stelle...
setzen ) o trabalho pela força de
trabalho, isto é, a propriedade de criar
o valor, ele solucionava de uma só
vez (lôste er mit einem Schlag) uma das
dificuldades nas quais a Escola de
Ricardo naufragou: a impossibilidade
de harmonizar a troca recíproca
de capital e trabalho com a lei ricardiana da determin
trabalho. Foi ao verificar a diferenciação ação do valor pelo
entre capital constante e capital
variável que ele chegou a representar
(darzustellen) e assim a explicar
(erklãren), em sua marcha real e justa
nos mínimos pormenores, o pro-
cesso de formação do valor, o
que foi impo ssível a todos os seus prede-
cessores; ele, pois, verificou, no interior
do próprio capital, uma distin-
ção de que Rodbertus e os economistas
burgueses foram incapazes de de-
duzir o que quer que fosse, mas
que forneceu a chave para a solução dos
“problemas econômicos mai s complicados,
“modo mais impressionante, como o provam de novo, do
O livro II, e mais ainda, como se verá
HI. Marx foi muito mais , o livro
além do exame da própria mais-val
duas formas dela: a mais-val ia; descobriu
ia absoluta e a relativa,
"pel diferente, mas decisiv e demonstrou o pa-
o nos dois casos, que elas têm desempenhado na
evolução histórica da pro
dução capitalista. Partindo da
esenvolveu a primei ra teoria racional que mais-valia, ele
Primneireiro a dar os traç possuímos do salário, e foi
o s fundamentais de uma histór
capitalista e um
ia da acumulaçãoo
quadro de sua tendência histórica.
E Rodbertus? Após haver lido tud
o
ma coisa, de modo mais sucinto e claro, issosobr
... acha que disserjáa a mer
e a origem da mais-valia;
acha afinal que tudo isso se aplica sem dúv
ida à “forma atual do cap+
tal”, isto é, ao capital tal como existe historicamente, mas não ao
ceito de capital” con
,/C0mo o velho Pri» isto é, à idéia utópica que Rodbertus faz do capital.
estley, que, até a morte, jur
QUIS saber do oxi gênio, Com a difere ou pelo Nogutina, º au E
Primeiro a prod uzir nça de que Priestley foi rea e adês
oxigênio, ao passo que Rodber
alia, ou antes com a sua “renda”, simplesme tus, com à Dá
nte redescobriu um lugaair-
comum, e que Marx, contrariamente à atitude de Lav
, Vá oisier tsache)
oà de pretender que fora o primeiro a descobrir a realid ade (1a
Existênci a da mais-valia (IV,
20-22).

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 99

Resumamos as teses desse trecho notável.


1) Priestley e Schecle, em pleno período de dominação da teoria
do flogístico, “produzem” (stellen dar) um gás estranho, que foi cha-
mado pelo primeiro de ar desflogistizado - e pelo segundo: ar de fo-
go. Na verdade era o gás que mais tarde viria chamar-se oxigênio.
Todavia, observa Engels, “eles apenas o produziram, sem ter a míni-
ma noção do que haviam produziilo”, isto é, sem possuir o seu concei-
to. Esta a razão pela qual “'o elemento que iria subverter totalmente a
“concepção flogística e revolucionar a química continuava estéril nas
mãos deles”. Por que essa esterilidade e essa cegueira? Porque eles
“foram incapazes de se desligar das categorias 'flogísticas” tais como
as encontraram estabelecidas”. Porque em vez de ver no oxigênio um
problema, viram nele “uma solução”.

2) Lavoisier agiu inteiramente ao contrário: “partindo dessa


realidade nova, submeteu a exame toda a química flogística”, ““colo-
“cou desse modo sobre os pés a química que sob a forma flogística anda-
va de cabeça para baixo”. Onde os outros viam uma solução ele viu
'um problema. Por essa razão pode dizer-se que, se os dois primeiro
“produziram” o oxigênio, só Lavoisier o descobriu, dando-lhe o con-
ceito.
O mesmo se deu com Marx, com relação a Smith e Ricardo: ele
verdadeiramente descobriu a mais-valia que os seus predecessores
haviam apenas produzido.

Essa simples comparação, e os termos que a exprimem, abrem-


nos profundas perspectivas sobre a obra de Marx, e sobre o discerni-
mento epistemológico de Engels. Para compreender Marx, devemos
tratá-lo como um cientista entre outros, e aplicar à sua obra científi-
ca os mesmos conceitos epistemológicos e históricos que aplicamos
a outros; no caso, Lavoisier, Marx aparece assim como um funda-
dor de ciência, comparável a Galileu e Lavoisier. E mais, para com-
preender a relação que a obra de Marx mantém com a de seus prede-
cessores, para compreender a natureza do corte ou da mutação que o
distingue deles, devemos interrogar a obra de outros fundadores,
que tiveram por sua vez de romper também com seus predecessores.
A compreensão de Marx, do mecanismo de sua descoberta, da natu-
reza do corte epistemológico que inaugura a sua fundação científica,
remete-nos, pois, aos conceitos de uma teoria geral da história das
ciências, capaz de pensar a essência desses acontecimentos teóricos. .
Uma coisa é que a teoria geral só exista por enquanto em projeto, ou
que tenha já parcialmente se concretizado; outra é que essa teoria
seja absolutamente indispensável para o estudo de Marx. O caminho
que Engels nos aponta pelo que ele faz é de molde a que o tomemos

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100 LER “O CAPITAL"

o nocusto:
todo é nadaato menos
próprio que o caminho
de fundação da filosofia
fundada por
da ciência da história.

O texto de Engels vai mais longe. Ele nos dá em termos claros o


primeiro esboço teórico do conceito de corte: essa mutação pela
qual uma ciência nova se estabelece sobre nova problemática, à dis-
tância da antiga problemática ideológica. Ora, eis a questão mais
surpreendente: Engels pensa essa teoria da mutação da problemáti-
ca, e, pois, do corte, nos termos da “inversão”, que coloca sobre os
pés” uma disciplina “que andava de cabeça para baixo - Estamos
diante de um velho conhecimento! diante dos próprios termos pelos
quais Marx, no posfácio da 2º edição alemã de O
Capital, definiuo
tratamento imposto à dialética hegeliana, para fazê-la passar
do
do idealista ao estado materialista. Estamos diante dos próprios esta-
mos
ter-
pelos quais Marx definiu, numa fórmula que exerce ainda
peso ennorme sobre o marxismo, sua relação para com um
Hegel. Mas
que diferença! Em vez da fórmula enigmática de Marx,
temos uma
luminosa fórmula de Engels - e na fórmula de Engels achamos
final-'
mente de modo claro, e pela primeira vez - talvez
pela única vez em
todos os textos clássicos -, a explicação da fórmula
locar sobre os
de Marx. “Reco-
pés a química que andava dé cabeça para baixo"
ca, sem qualquer ambiguidade possível no texto signifi-
de Engels: transfor-
mar a base teórica, transformar a problemática teórica
substituir a antiga problemática por nova da quimica,
problemática. Eis o senti-
do da famosa “inversão”: nessa imagem
que é apenas imagem, e que
não tem, pois, nem o sentido nem o rigor
de
curava simplesmente indicar por sua conta um conceito, Marx pro-
a existência dessa muta-
ção da problemática, que inaugura toda
fundação cientifica.
3) Engels descreve de fato uma das con
acontecimento da história teórica: dições formais de um
a rigor, uma revolução teórica. Vi-
mos que é preciso construir os conceitos de fato ou de aco ntecimento
teóricos, de revolução teórica que intervém na história do conh
mento, para poder constituir a his
eci-
mo modo que é prec tória do conhecimento - do mes-
iso cons truir e articular os conceitos
aconteciment ento o | histórico S, de revolução, etc. para se de fato e de
Pensar a história Política ou a história ter con dição de
econômica. Com Marx esta-
não 71ºnasPontona hisdetórumia cort
n o ape da eciênhis
ciatórico de ória
imp, ort ância fundamental,
ria da filosofia, mais Precisamente, danahist história do
mas também na hist ó-
Teó
rico: esse corte
que 208 permite assim soluciona
r um
vol de do saber) coincide com esse acoproblema de periodização da
“ção da problemática instaurada pornteMar
cimento teórico que e à A.
s, na À ciência da hist
ri
é é na filosofia, Importa pouco que esse acontecime nto tenha pas
E

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 101

sado despercebido, no todo ou em parte, e que seja preciso tempo


para que essa revolução teórica faça sentir todos ós seus efeitos, e
que tenha sofrido inacreditável recalcamento na história visível das
déias: o fato aconteceu; o corte se deu, e a história daí surgida cava
seu curso por vias subterrâneas nos interstícios da história oficial;
“bem cavado, velha toupeira!” Dia haverá em que a história oficial
das idéias estará em atraso quanto a ela, e quando se der conta dis-
so, será demasiado tarde, a menos que assuma o reconhecimento
teórico desse fato, e que tire as conseqiiências dele.
Engels mostra-nos precisamente o outro lado dessa revolução:
a obstinação daqueles que a vivem em negá-la: “O velho Priestley ju-
rou até a morte pelo flogístico, e nada quis saber do oxigênio”: é que
ele se atinha, como Smith e Ricardo, ao sistema das idéias existentes,
recusando-se a questionar a problemática teórica com a qual a recen-
te descoberta vinha romper. ” Se adianto esse termo problemática
teórica, é dando um nome (que é um conceito) ao que Engels nos
diz: Engels resume de fato o questionamento crítico da antiga teoria,
e a constituição da nova, no ato de estabelecer como problema o que
antes era tido como solução. É exatamente o que se dá com a con-
cepção de Marx, no famoso capítulo sobre o salário (II, 206 ss.). Ao
examinar o que permitiu à economia política clássica definir o salá-
rio pelo valor dos meios de subsistência necessários, e portanto, en-
contrar e produzir um resultado justo, escreve Marx: “À sua revelia,
ela mudava assim de terreno, substituindo o valor do trabalho, até
então objeto aparente de suas pesquisas, pelo valor da força de tra-
balho... O resultado a que chegava a análise era, pois, não o de resol-
ver o problema tal como se apresentou no início, mas o de lhe mudar os
termos”. No caso ainda, vemos qual é o conteúdo da “inversão”:
“essa mudança de terreno”, que coincide com a “mudança de ter-
mos”, portanto da base teórica, a partir da qual são enunciadas as
questões e propostos os problemas. No caso ainda, vemos que é a
mesma coisa “inverter”, “'colocar sobre os pés o que andava de ca-
beça para baixo”, “mudar de terreno” e “mudar os termos do
problema”: trata-se de uma única e mesma transformação, que atin-
ge a estrutura própria da teoria fundamental, a partir da qual todo
problema é colocado nos termos e no campo da nova teoria, Mudar
de base teórica é, pois, mudar de problemática teórica, se é certo que

2 O mesmo acontece tanto na história do saber como na história social: nela encon-
tramos gente que “nada aprendeu nem nada esqueceu”, sobretudo se ussistiram uo
espetáculo instalados nos camarotes de primeira fila,

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LER “O CAPITAL”
102

a teoria de uma ciência em dado momento de sua história é tão-só a


matriz teórica do tipo de questões que a ciência propõe a seu objeto -
se é certo que com uma nova teoria fundamental aparece no mundo
do saber uma nova maneira orgânica de propor questões ao objeto,
propor problemas e, por conseguinte, produzir respostas novas, Ao
falar da questão que Smith e Ricardo formularama respeito do salá-
rio, escreve Engels: “colocada sob essa forma, a questão (die Frage) é
insolúvel (unlôslich). Marx a colocou em termos certos (richtig) e por
isso lhe deu a resposta” (ib., p. 23). Essa colocação certa do problema
não é obra do acaso: pelo contrário, é efeito de uma teoria nova, que
é o sistema de colocação dos problemas numa forma justa - o efeito
de uma nova problemática. Toda teoria é, pois, em sua essência,
uma problemática, isto é, a matriz teórico-sistemática da colocação
de todo problema referente ao objeto da teoria.

4) Mas o texto de Engels contém algo mais. Contém a idéia de


que a realidade, o fato novo (Tatsache), no caso a existência da
mais-valia, não se reduz à “simples constatação de um fato econômi-
co”: pelo contrário, é um fato destinado a subverter toda a econo-
mia, e a fazer compreender “o conjunto da produção capitalista”.A
descoberta de Marx não é, pois, uma problemática subjetiva (sim-
ples maneira de interrogar uma realidade dada, mudança de “ponto
de vista” puramente subjetivas): correlatamente à transformação da
matriz teórica da colocação de qualquer problema referente ao obje-
to, ela diz respeito à realidade do objeto: sua definição objetiva. Ques-
tionar a definição do objeto é propor a questão da definição diferen-
cial da originalidade do objeto visado pela nova problemática teóri-.
ca. Na história das revoluções de uma ciência, toda subversão da
problemática teórica corresponde a uma transformação da defini-
ção do objeto, e portanto de uma diferença localizável no próprio
objeto da teoria, ne
- Ao tirar esta última-Conclusão, terei ido mais longe que Engels?
Sim e não, Não, porque Engels conta não apenas com um sistema de
idéias flogísticas que, antes de Lavoisier, determinava a colocação
de todo o problema e, pois, o sentido de todas as soluções corres-
pondentes; conta também
com um sistema de idéias em
quando evoca a necessidade última, a que Marx Ricard
foi obrigad o, o, o
“submeter à crítica a própria teoria do valor de Ricardo”
(ib., 21).
Sim, talvez, se é certo que Engels, tão arguto na análise desse fato
teórico que é uma revolução cientifica, não tem a mesma as
ra pensar sobre os efeitos dessa revolução no objeto da teoria. Pu e a
notar, quanto a este ponto que lhe é tão sensível,
Os quam
vua Concepção: todos eles podem reduzir-se à confusão empiris iióliê
tre 0 objeto de conhecimento e o objeto real. Engels teme claramé!

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 103

te, ao aventurar-se fora dessas seguranças (imaginárias) da tese em-


pirista, perder as garantias que lhe fornece a identidade real procla-
mada entre o objeto de conhecimento e o objeto real, Ele dificilmen-
te pode conceber o que no entanto diz de fato, e que a história das
ciências lhe mostra a cada passo: que o processo de produção de um
conhecimento passa necessariamente pela transformação incessante
do seu objeto (conceptual); que essa transformação, que coincide
com a história do conhecimento, tem por efeito precisamente produ-
zir um novo conhecimento (um novo objeto de conhecimento) que
diz respeito sempre ao objeto real, do qual o conhecimento se apro-
funda precisamente pelo remanejamento do objeto de conhecimen-
to. Como o diz profundamente Marx, o objeto real, do qual se trata
de adquirir ou de aprofundar o conhecimento, permanece o que é,
antes e depois do processo de conhecimento que lhe diz respeito (cf.
Introdução de 57); se ele é, pois, o ponto de referência absoluto do
processo de conhecimento que lhe diz respeito - o aprofundamento
do conhecimento desse objeto real efetua-se por um trabalho de
transformação teórica que atinge necessariamente o objeto de conhe-
“cimento, dado que só se refere a ele. Lênin compreendeu perfeita-
mente essa condição essencial da prática científica - e esse é um dos
grandes temas de Materialismo e Empirocriticismo: o tema do apro-
fundamento incessante do conhecimento do objeto real pelo remanejo
incessante do objeto de conhecimento. Essa transformação do objeto
de conhecimento pode apresentar formas diversas: pode ser contí-
nua, insensível - ou, pelo contrário, descontínua e espetacular.
Quando uma ciência bem estabelecida se desenvolve sem movimen-
tos bruscos, a transformação do objeto (de conhecimento) adquire
uma forma contínua e progressiva: a transformação do objeto torna
visíveis, no objeto, “novos aspectos” que antes não eram absoluta-
mente visíveis; acontece então ao objeto o que ocorre com cartas
geográficas de regiões ainda mal conhecidas, mas que estão sendo
exploradas: os espaços em branco interiores enchem-se de pormeno-
res e esclarecimentos novos, mas sem modificar o contorno geral, já
reconhecido e conhecido, da região. É assim, por exemplo, que po-
demos prosseguir depois de Marx a investigação sistemática do ob-
jeto definido por Marx: ganharemos com isso novos pormenores, ão
“ver” o que antes não podíamos ver - mas no interior de um objeto
cuja estrutura será confirmada por nossos resultados, mais do que
subvertida por eles. Coisa diferente se dá nos períodos críticos de de-
senvolvimento de uma ciência, quando ocorrem verdadeiras muta-
ções da problemática teórica: então o objeto da teoria sofre uma mu-
tação correspondente, que, desta feita, não recai apenas sobre “as-
, pectos” do objeto, sobre minúcias de sua estrutura, mas sobre a pró-
pria estrutura. O que agora se torna visível é uma nova estrutura do

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104 LER “O CAPITAL”

objeto, não raro a tal ponto diferente da antiga que se pode legitima-
mente falar de um objeto novo; = a história da matemática desde ini-
cios do século XIX até hoje, ou a história da física moderna são ricas
de mutações desse gênero. O mesmo acontece, com mais razão ainda,
quando uma ciência nova nasce - quando cla se destaca do campo da
ideologia com a qual rompe para nascer: esse “desprender-se"' teórico
provoca sempre, inevitavelmente, uma transformação revolucionária
da problemática teórica, c uma modificação igualmente radical do oh-
jeto da teoria, Neste caso, pode falar-se propriamente de revolução,
de salto qualitativo, de modificação referente à estrutura mesma do
objeto. “ O novo objeto pode:conservar ainda algum vínculo com o
antigo objeto ideológico, e podemos encontrar nele elementos que
pertenciam também ao objeto antigo: mas o sentido desses elemen-:
tos muda com a nova estrutura que precisamente lhes confere senti-
do. Essas semelhanças aparentes, referentes a elementos isolados,
podem enganar um olhar superficial que ignore a função da estrutu-
ra na constituição do sentido dos elementosde um objeto, precisa-
mente como certas semelhanças técnicas referentes a elementos iso-
lados podem iludir os intérpretes que classificam sob a mesma cate-
goria (“sociedades industriais”) estruturas diferentes como o capita-
lismo e o socialismo contemporâneos. Na verdade, essa revolução
teórica, visível na ruptura que separa uma ciência nova da ideologia
de que nasce, repercute profundamente no objeto da teoria que, por
sua vez, no mesmo momento, é o lugar de uma revolução - e torna-
se adequadamente um objeto novo. Essa mutação no objeto
pode
constituir, exatamente como a mutação na problemática correspon-
dente, objeto de um estudo epistemológico: rigoroso. E como é por
um mesmo e único movimento que se constituem tanto a nova
problemática como o objeto novo, o estudo dessa dupla mutação
nada mais é que um mesmo estudo que decorre da disciplina que re-
flete sobre a história das formas do saber e sobre o mecanismo de
sua produção: a filosofia,
cria Do, eis-nos no limiar de nossa questão: qualé É aja
Eres "a econômica fundada por Marx em O Capitai; Q de
jeto de O Capital? Que diferença específica distingue o objeto
Marx do objeto de seus predecessores?
» .
i Exemplo disso; o “objeto” de Freud é radicalmente novo em relação ao RN rr "
à ideologia psicológica
consciente, que nada tem oua ver
filosófica de seus predecessores. O objeto de Freud 60 m,
com os objetos, por mais numerosos que 5€ qua
de todas as variedades da psicologia moderna. Pode mesmo conceber-se Que à
Principal de toda disciplina nova consiste em pensar a diferença específica
do
ri
er uir
e que ela descobre, em distingui-lo rigorosamente do objeto antigo e em AA
o nCeitos
ta 1 | que iênciia necessários para pensá-lo. É nesse trabalho teórico fun
uma próprios
ciênc
nova adquire
à o direi
frei to efeti| vo à autonomia.

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 105

VII. O Objeto da Economia Política

Para responder à questão quenos propomos, tomamos literal-


mente o subtítulo de O Capital “Critica da Economia Politica”. Se
nossa perspectiva estiver correta, “criticar” a Economia Política não
pode significar a censura ou retificação desta ou daquela inexatidão
ou questão de pormenor de uma disciplina existente - nem mesmo o
preenchimento de lacunas, de espaços em branco, dando prossegui-
mento a um trabalho de exploração já amplamente feito. “Criticar a
Economia Política” significa contrapor-lhe uma nova problemática
e um objeto novo: portanto, questionar o objeto mesmo da Economia
Política. Mas como a Economia Política se define, como Econo-
mia Política, por seu objeto, a crítica que vai atingi-la a partir de um
novo objeto que se lhe contraponha, pode atingir a Economia Politi-
ca em sua própria existência. Este é precisamente o caso: a critica da
Economia Política por Marx não pode questionar o seu objeto sem
questionar também a própria Economia Política, em suas preten-
sões teóricas de autonomia, no “recorte” que ela instaura na reali-
dade social para dele constituir a teoria, A crítica da Economia Poli-
tica por Marx é, pois, bem radical: ela questiona não apenas o obje-
to da Economia Política, mas a própria Economia Política como ob-
jeto. Para dar a essa tese a vantagem da sua radicalidade, digamos
que a Economia Política, tal qual se define em sua pretensão, para

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106 LER “O CAPITAL"

Marx não tem qualquer direito à existência: e se não pode existir


Economia Política assim concebida, isto se deve a razões de direito, e
não de fato.

Sendo assim, compreende-se O mal-entendido que separa Marx


não apenas de seus predecessores ou de seus críticos ou partidários,
mas inclusive dos “economistas” que o sucederam. Esse mal-
entendido é simples, embora ao mesmo tempo paradoxal. Simples,
dado que os economistas vivem da pretensão à existência da Econo-
mia Politica, enquanto essa pretensão lhe subtrai todo o direito à
existência. Paradoxal, pois a consequência que Marx extraiu da não:
existência de direito da Economia Política é esse Livro imenso que
se chama O Capital e que parece falar, do princípio ao fim, tão-
somente de economia política.

Impõe-se, pois, entrar no pormenor de esclarecimentos indis-.


pensáveis, e revelá-los pouco a pouco na relação rigorosa que os
une. Adiantando-nos a eles e mostrando o que é necessário para a
sua compreensão, damos um primeiro balizamento. A pretensão de
existência da Economia Política é função da natureza e, pois, da de-
finição de seu objeto. A Economia Política toma por objeto o domi-
nio dos “fatos econômicos” que têm para ela a evidência de fatos:
dados absolutos que ela toma tais quais se dão, sem lhes pedir expli-
cações. A revogação da pretensão da Economia Política por Marx
coincide com a revogação da evidência desse “dado” que ela toma
arbitrariamente por objeto ao pretender que esse objeto lhe é dado.
Toda a contestação de Marx recai sobre esse objeto, sob a sua mo-
dalidade pretendida de objeto “dado”: a pretensão da Economia
Política não é mais que o reflexo especular da pretensão de seu obje-
to a lhe ser dado. Ao propor a questão do “dado” do objeto, Marx
propõe a própria questão do objeto, sua natureza e seus limites, €
portanto do seu domínio de existência, dado que a modalidade de
err com a qual uma teoria pensa o seu objeto altera não
natureza desse objeto, mas também a situaçãoe a extensão apenso
do seu
eeplnio de existência. Tomemos, a título de exemplo,
uma tese ei
e E de Spinoza: podemos, em primeiro enfoque,
afirmar que tas
não po € haver Economia Política como não existe ciência =
dado quo (como tal: a ciência das "conclusões não à
Comedia ca ignorância em ato de suas “premissas “E das
co lu € O imaginário em ato (o “primeiro gênero”). À clênciê nas
admiti
a ne
Indo existente efeito, produto da ciência das premissas na,
é upenas essa ciência das premissas, a pretensa bar rio€
Dao (o “primeiro gênero”) é conhecida como a
Binário em ato: cônhecida, ela desaparece então no desap


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O OBJETO DE “O CAPITAL” 107

mento da sua pretensão e de seu objeto, O mesmo acontece grosso


modo com Marx. Se a Economia Política não pode existir por si
mesma, é que o seu objeto não existe por si mesmo, não é o objeto
de seu conceito ou porque o seu conceito o é de um objeto inadequa-
do. A Economia Política só pode existir sob a condição de que exista
primeiro a ciência de suas premissas, ou, em outras palavras, a teo-
ria do seu conceito - mas, uma vez que exista essa teoria, então a
pretensão da Economia Política desaparece no que ela é: pretensão
imaginária. Dessas indicações muito esquemáticas podemos tirar
duas conclusões provisórias. Se a “crítica da Economia Política”
possui realmente o sentido que afirmamos, deve ser ao mesmo tem-
po construção do conceito verdadeiro do objeto, que a Economia
Política clássica visa no imaginário de sua pretensão - construção
que produzirá o conceito do objeto novo que Marx contrapõe à
Economia Política. Se toda a compreensão de O Capital estiver de-
pendente da construção do conceito desse novo objeto, quem puder
ler O Capital sem procurar nele o conceito, e sem tudo relacionar a
esse conceito, correrá o risco de enganar-se muito com esses mal-.
entendidos ou enigmas: vivendo só nos “efeitos” de causas invisi-
veis, no imaginário de uma economia tão perto deles quanto o sol a
duzentos passos do “primeiro gênero de conhecimento” - tão perto,
precisamente por estar distante deles uma infinidade de léguas.

Essa baliza basta como introdução à nossa análise. Eis como


iremos empreendê-la: para chegar a uma definição diferencial do
análise
objeto de Marx, faremos o trajeto por um atalho prévio: o da
traços
do objeto da Economia Política, que nos mostrará, em seus
O seu
estruturais, o tipo de objeto que Marx recusa, para constituir
na prática
(A). A crítica das categorias desse objeto nos mostrará,
do objeto de
teórica de Marx, os conceitos positivos constitutivos
e da definição tirar
Marx (B). Poderemos então definir esse objeto
algumas conclusões importantes,

A. Estrutura do Objeto da Economia Política


das teorias
Não poderíamos tratar aqui do exame em pormenor ica,
da economia polít
clássicas, muito menos das teorias modernas acionaemm
se rel
para delas extrair uma definição do objeto a que sobre este objeto
sua prática teórica, mesmo que elas não reflitam conceitos mais ge-
em si mesm o, “ Proponho-me apenas destacar os

proveito o notável artigo de Godelier,


» Sobre as teorias modernas, ler-se-á com
omique”, L'homme, outubro de 1965.
“Objet e méthodes de L'anthropologie écon

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108 LER “O CAPITAL"

rais que constituem a estrutura teórica do objeto da Economia Polf-


tica: no essencial, essa análise diz respeito ao objeto da Economia
Política clássica (Smith, Ricardo), mas não se limita às formas clás-
sicas da Economia Política, dado que as mesmas categorias teóricas
fundamentais sustentam hoje ainda os trabalhos de numerosos eco-
nomistas, É nesse espírito que acredito poder tomar por guia teórico
elementar as definições propostas pelo Dicionário Filosófico de A.
Lalande, Suas variações, aproximações, até mesmo sua “superficia-
lidade” têm vantagens: podem ser tomadas por outros
tantos indí-
cios, não apenas de um fundo teórico comum, mas também
possibilidades de ressonâncias e inflexões de sentido, de suas
Lalandedefine assim a Economia Política: “ciência que tem
objeto o conhecimento dos fenômenos e (se a natureza por
desses fenôme-
nos o comporta) a determinação das leis que se referem
à distribuição
das riquezas, bem como sua produção e consumo,
enquanto fenômenos
relacionados com a distribuição. Chama-se riqueza,
no sentido técnico
da expressão, o que é suscetível de utilização”
(1, 187). As definições
sucessivas propostas por Lalande, citando
Gide, Simiand, Karmin e
outros, ressaltam o conceito de distribuição,
da economia política aos três campos - A definição da extensão
da produção, distribuição e
consumo - é tomada dos clássicos, sobretudo
Say. Ao falar da produ-
ção e do consumo, Lalande observa que “só
são econômicas por um
aspecto. Tomadas em conjunto, implicam
grande número de noções es-
tranhas 4 economia política, noções
tomadas à tecnologia, à etnografia
é à ciência dos costumes, no que tange à produção.
clássica trata da produção e do consumo; A economia política
mas, na medida em que rela-
cionados com a distribuição, como causa
Tomemos essa definição esquemática ou efeito”.
da Economia Política, e como o fundo mais geral
teórico, quanto à estrut ve ja mos o que ela implica,
ura de seu objeto, do ponto de vista

eco) imPlica, em Primeiro lugar, a existência de fatos e fenômenos


econômicos”, distribuídos no interior de um campo determinado,
du Possui essa propriedade de ser um campo homogêneo. O campo
"os fenômenos que o constituem, preenchendo-o, são dados, isto é,
dcessíveis ao olhar e observação diretos: sua captação não depen-
é, pois, da elaboração teórica prévia do seu conceito. Esse campo
fer pao determinado, cujas diferentes datquto
neidadefatos ou
ções,
do cu) n menos econômicos são, em virtude da ormoge
mente mens HOpO de sua existência, comparáveis, muito pa na
é, pois pt teia, e Portanto quantificáveis, Todo fato econ
nomia A e
ur vel por essência, Brajá o grande princípio a aj
qual Fecai reca; aa crítica
é Justamente,
de Marx, Oo grande
primeiro ponto importante sobr
erro de Smith e Ricardo é, ao

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O OBJETO DE "O CAPITAL" 109

ver de Marx, o de terem sacrificado a análise da forma-valor para a


consideração exclusiva da quantidade de valor; “o valor como quanti-
dade absorve a atenção deles" (1, 83, nota |), Os economistas moder-
nos estão do lado dos clássicos, a despeito de suas diferenças de con- .
cepção, quando censuram Marx por produzir, em sua teoria, concei-
tos não-operatórios, isto é, excluindo a medida de seu objeto: por
exemplo, a mais-valia, Mas essa censura volta-se contra os seus au-
tores, pois Marx admite e emprega a medida: para as “formas de-
senvolvidas” da mais-valia (o lucro, a renda, o juro). Se a mais-valia
não é mensurável, isso se deve justamente a que ela é o conceito das
suas formas, por sua vez mensuráveis. Evidentemente essa simples
definição altera tudo: o espaço hômogêneo e plano dos fenômenos
da economia política passa a ser então simples dado, uma vez que
exige o posicionamento de seu conceito, isto é, a definição das condi-
ções e dos limites que permitem tomar esses fenômenos por homo-
gêncos, e portanto mensuráveis, Observemos tão-só essa diferença -
mas sem esquecer que a economia política moderna permanece fiel à
tradição “quantitativa” empirista dos clássicos, posto que ela só co-
nhece fatos ''mensuráveis”, para utilizar uma expressão de A. Mars-
chal, | |

os
b) Essa concepção empirista-positivista dos fatos econômic
aqui da “bana-
não é, porém, tão “banal” como pode parecer. Falo
espaço homogê-
lidade” do espaço plano de seus fenômenos, Se esse
to, à
neo não remete à profundeza de seu conceito, remete, no entan
teórico
certo mundo exterior a seu próprio plano e que assegura O papel
de o sustentar na existência, e de o fundar. O espaço homo gêneo dos
minad a com o:
fenômenos econômicos implica uma relação deter -
mundo dos homens que produzem, distribuem, recebem e conso
Poli:
mem, É a segunda implicação teórica do objeto du Economia e
0 é em Smith
tica, Essa implicação nem sempre étão visível quanto
pela Eco-
Ricardo; pode ficar latente e não ser diretamente tematizada À Econo-
nomia: ela nem mesmo é essencial à estrutura do objeto.
à “u-
mia Política relaciona os fatos econômicos às nec ssidades (ou
ten-
tilidade"") dos sujeitos humanos como à sua origem, Tem, pois,
dência a reduzir os valores de troca aos valores de uso e estes últi-
i-
mos (as “riquezas”, para usarmos a expressão da Economia cláss
ca) às necessidades dos homens. É: ainda a afirmação de |, Simiand
(citado por Lalande); “Em que um fenômeno é econômico? Em vez de
ico
defintr esse fenômeno pela consideração das riquezas (termo cláss
na tradição francesa, mas que não é o melhor), parece-me prefe rível
acompanhar os economistas recentes, que tomam como noção central
nd
a satisfação das necessidades materiais” (Lulande, |, 188), Simia

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LO LER “O CAPITAL”

equivoca-se ao apresentar sua exigência como novidade: sua defini-


ção simplesmente repete a definição clássica, pondo em cena, por
trás dos homens e suas necessidades, a sua função teórica de sujeitos
dos fenômenos econômicos. o
Equivale a dizer que a Economia clássica só pode pensar os fa-
tos econômicos como pertencentes ao espaço homogêneo de sua po-
sitividade e mensurabilidade, sob a condição de uma antropologia
“ingênua” que funde, nos sujeitos econômicos e suas necessidades,
todos os atos pelos quais são produzidos, distribuídos, recebidos e
consumidos os objetos econômicos. Hegel deu o conceito filosófico
da unidade dessa antropologia “ingênua” com os fenômenos econó-
micos na expressão célebre da “esfera das necessidades" ou da “so-
ciedade civil”, * distinta da sociedade política. No conceito da esfe-
ra das necessidades, os fatos econômicos são pensados em sua essén-
cia econômica como fundados em sujeitos humanos submetidos
à
“necessidade” (besoin): no homo oeconomicus, que é, também,
um
dado (visível, observável). O campo positivista homogêneo
dos fatos
econômicos mensuráveis repousa, pois, num mundo
de sujeitos,
cuja atividade de sujeitos produtores na divisão do trabalho
tem por
objetivo e efeito a produção de objetos de consumo destinados a
sa-
tisfazer esses mesmos sujeitos de necessidades. Os sujeitos,
como su-
Jeitos de necessidades, sustentam, pois, as atividades dos
sujeitos
como produtores de valores de uso, trocadores de mercadorias
e
consumidores de valores de uso. O campo dos fenômenos econômi-
cos € assim fundado, em sua origem como em seu fim, no
conjunto
dos Sujeitos humanos, que suas necessidades determinam como su-
Jeitos econômicos. 4 estrutura teórica própria da Economia
Política
tem a ver, pois, com relacionamento imediato e direto de um'espaço
homogêneo de fenômenos dados, e uma antropologia
Jundamenta no homem sujeito ideológica que
das necessidades (o dado do homo 0e-
Sonomicus) o caráter econômico dos fenômenos
do seu espaço.
Examinemos isso mais de perto, Falávamos
de um espaço ho-
aa fo fais ou fenômenos econômicos, dados, Eis que e
dispensáveis né rimos um mundo de sujeitos humanos A , ed
Canto faro para mantê-los na existência,
“iso: ou é cabalmente um dado, dadoO por
primeiro dado é po
essa antropologia,

O conceito de Henci
"sociedade civil”,
Maria presente nos textos de maturação de Mark arx, &
con o
ca, é; “nteme nte e retoma
ambíguo Por Gramsci, para designar a esfera da existência econdmjmi-
d eve serdo retira
E
tomado não para contrapor: do do v ocabulário teórico marxi ista - à menos queAblico, e seja
3
isto é, um efei ico, masmas oo “privado
se o econômico ao político, ” ao pu
mico. “priva
feito combinado do direito e da ideologia jurídico-política sobre O € conô-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 11

por sua vez dada. Ela, e só ela, permite de fato declarar económicos
os fenômenos grupados no espaço da Economia Política: são econô-
micos na medida em que efeitos (mais ou menos imediatos ou “me-
diatizados”) das necessidades dos sujeitos humanos, em suma, do
que faz do homem, ao lado de sua natureza racional (animal racio-
nal), loquaz (animal loquax), que ri (ridens), político (politicum), mo-
ral e religioso, um sujeito de necessidades (homo oeconomicus). É a
necessidade (do sujeito humano) que define o econômico da Econo-
mia. O dado do campo homogêneo dos fenômenos econômicos nos é
dado, pois, como econômico por essa antropologia silenciosa. Mas
então, olhando-se mais de perto, essa antropologia “que dá” é que
vem a ser, a rigor, o dado absoluto! A menos que nos remetamos à
Deus para fundamentá-la, isto é, ao Dado que se dá a si mesmo,
causa sui, o Deus-Dado. Deixemos essa questão, em que vemos bas-
tante bem que não existe nunca um dado no primeiro plano da cena
a não ser por uma ideologia doadora que se coloca por trás, à qual
não temos de pedir contas, e que nos dá o que bem entende. Se não
formos vê-la nos bastidores, não vemos o ato de seu “dom”: ela de-
saparece no dado, como todo trabalho em sua obra. Somos seus es-
pectadores, isto é, seus mendigos.

Não é tudo: a mesma antropologia que mantém assim o espaço


dos fenômenos econômicos permitindo falar deles como econômi-
cos ressurge neles sob outras formas ulteriores, algumas das quais
-se
são conhecidas: se a economia política clássica pôde apresentar
como uma ordem providencial feliz, como harmonia econômica,
direta
(dos fisiocratas a Say, passando por Smith), é pela projeção
no €s-.
dos atributos morais ou religiosos de sua antropologia latente
o
paço dos fenômenos econômicos. É o mesmo tipo de intervençã
protesto moral
que está em ação no otimismo liberal burguês, ou no
não cessa
“dos comentaristas socialistas de Ricardo, com quem Marx
pologia
de esgrimir; o conteúdo da antropologia muda, mas a antro
Ê
permanece, assim como a sua função e o lugar de sua intervenção.
ainda essa antropologia latente que ressurge em certos mitos dos
economistas políticos modernos, por exemplo sob conceitos tão
ambíguos como “racionalidade” econômica, “otimum”, “pleno em-
prego”, ou economia das necessidades, economia humana, etc. A
mesma antropologia que serve de fundamento originário aos fenô-
menos econômicos está presente desde que se trate de definir seu
sentido, isto é, seu fim. O espaço homogêneo dado dos fenômenos
econômicos é assim duplamente dado pela antropologia que o en-
cerra no torniquete das origens e dos fins.
E se essa antropologia parece ausente da realidade imediata dos
fenômenos em si, está no entremeio das origens e dos fins, € também

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112 LER “O CAPITAL"

em virtude de sua universalidade, que não é mails do que repetição,


Sendo todos os sujeitos identicamente sujeitos de necessidades, po-
dem-se tratar os seus efeitos pondo entre parênteses o conjunto des-
ses sujeitos: sua universalidade reflete-se então na universalidade
das leis dos efeitos de suas necessidades = o que inclina naturalmente
a Economia Política no sentido da pretensão de tratar no absoluto
os fenômenos econômicos, para todas as formas de sociedade, pas-
sadas presentes e futuras, Esse gosto de falsa eternidade que Marx
encontrava nos clássicos pode advir politicamente do seu desejo de
perenizar o modo de produção burguês, e é muito evidente quanto a
alguns: Smith, Say e outros, Mas pode advir de outra razão, mais
velha que a burguesia, vivendo no tempo de outra história, de uma
razão não política, mas teórica: efeitos teóricos induzidos por essa
antropologia silenciosa que legitima a estrutura do objeto da Econo-
mia Política, É sem dúvida o caso de Ricardo, que sabia muito bem
que a burguesia tinha os dins contados, que lia já esse destino no me-
canismo de sua economia, e que no entanto mantinha em voz alta o
discurso da eternidade,
Será necessário, na análise da estrutura do objeto da Economia
Política, ir mais longe que essa unidade funcional entre o campo ho-
mogênco de fenômenos econômicos dados - e de uma antropologia
Intente, e pôr em evidência os pressupostos, os conceitos teóricos (fi-
losóficos) que em suas relações específicas mantêm essa unidade?
Ver-nos-famos então diante de conceitos filosóficos tão fundamen-
mm como: dado, sujeito, origem, fim, ordem - e diante de relações
comou de causalidade linear e teleológica, em suma, outros tantos
o babel e merecorlam uma análise pormenorizada para mostrar
mia Pol tica M, obrigados a desempenhar na encenação da Econo-
muls, nós os ve us 1880 nos levaria demasiado longe, E, além do
do-se deles, ei EMOS nO avesso, quando virmos Marx ou desfazen-
ces ou lhes atribuindo funções Intelramente divérsas.

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 113

VIII. A Crítica de Marx

Marx recusa ao mesmo tempo a concepção positiva de um cam-


po homogêneo de fenômenos econômicos dados - e a antropologia
ideológica do homo oeconomicus (e qualquer outra) que a sustenta.
Recusa, pois, com essa unidade, a própria estrutura do objeto da
Economia Política.
Vejamos em primeiro lugar o que acontece com a antropologia
clássica na obra de Marx, Para isso, percorreremos ligeiramente às
grandes regiões do “espaço” econômico: consumo, distribuição e
produção - para ver que lugar teórico os conceitos antropológicos
podem ocupar nele,

A, O Consumo
Podemos começar pelo consumo, que parece diretamente impli-
cado pela antropologia, dado que põe em causa o conceito de “ne-
cessidades”" humanas. Ora, Marx mostra, na Introdução de 57, que
TE

não se podem definir univocamente as necessidades econômicas Te»


lacionando-as à “natureza humana” dos sujeitos econômicos. O
consumo é, de fato, duplo. Compreende o consumo individual dos ho-
mens de uma sociedade dada, mas também o consumo prociuiino O
to de
qual seria necessário, para consagrar o uso universal do concei

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114 LER “O CAPITAL"

necessidade, definir como o consumo que satisfaz as necessidades da


produção. Este último consumo compreende: os “objetos” da pro-
dução (matérias brutas ou matérias-primas, esta última resultado da
transformação de matérias brutas), e os instrumentos da produção
(ferramentas, máquinas, etc.) necessários para a produção. Uma par-
cela do consumo refere-se pois, direta e exclusivamente, à própria
produção. Toda uma parte da produção é dedicada portanto não a
satisfazer as necessidades dos indivíduos, mas a permitir a reprodu-
ção, simples ou ampliada, das condições da produção. Dessa cons-
tatação, Marx extrai duas distinções absolutamente essenciais, que
estão ausentes na Economia Política clássica: a distinção entre o ca-
pital constante e o capital variável, e a distinção entre os dois Setores
da produção: o Setor |, destinado a reproduzir as condições da produ-
ção numa base simples ou ampliada, e o Setor Il, destinado à pro-
dução dos objetos do consumo individual. A proporção existente
entre esses dois Setores é governada pela estrutura da produção, que
intervém diretamente para determinar a natureza e o volume de uma
parte inteira dos valores de uso, que jamais entram no consumo das
necessidades, mas apenas na própria produção. Essa descoberta de-
sempenha um papel essencial na teoria da realização do valor, no :
processo de acumulação capitalista, e em todas as leis que dela de-
correm. Sobre essa questão é que se dá uma interminável polêmica
HI,
de Marx contra Smith, retomada diversas vezes nos livros Il e
cujos ecos encontramos nas críticas dirigidas por Lênin aos populis-
tas e a seu mestre, o economista “'romântico” Sismondi. *

Entretanto, essa distinção não resolve todas as questões. Se é


determini”
certo que as “necessidades” da produção escapam a toda
é menos verdade que uma parte dos produ-
ção antropológica, não indivíduos, que satisfazem com ela us suas
tos é consumida pelos
necessidades”. Mas, no caso ainda, vemos a antropologia abalada

tongue tia
- mas não cab e faz ê-l o aqui - 0 estudo dessas
ni fasclaanto M du a
oe ele ox o Ne, nesas questão capital, se distingue do S
coemond
nça essencial - ver como ele explica 0 “« du
“cegueira”. o Açao? Eq q sua difereento” incríveis de Smith, que são a Pula ta sente à
absurdo" A ge 0» 0 “esquecim
necessidade de ma toda a economia moderna, e ver entim por qu Iv € Ro
gado ao extremo Eça quatro ou cinço vezes essa crísõe tica, como se nt y lo ponto dode
ópi ca esc obr irí amo s, ent re out ras con clu s pertinentes « a fejona
vista epistemol mente re ue
COM a consi à ao, que
Bic ds o “equívoco enorme” de Smith está diretu code peQnÔMI-
Cos consider;deração exclusiva do capitalista individual,
udos fora do| odo, como os sujeitos a plobal. “00!EMim O daOU
é portanto de co sujeitos
ú
sujeitos últimos do p
ys do processo global.
determinante
tras palavras, verÍ;
(Referências
Cobtca|, 197.218
21 0-228; Doutrinas, essenciais: ç; 75-210, V, 12
o) caplivlo, IV. |

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 115

em suas pretensões teóricas pela análise de Marx. Não apenas essas


“necessidades” são definidas especificamente por Marx como “his-
tóricas” e não como dados absolutos (Misêre de la Philosophie, E.S.,
pp. 52-53, O Capital, |, pp. 174,228; VIII, p. 235, etc.) como também
e sobretudo são reconhecidas em sua função econômica de necessi-
dades, sob a condição de serem “solventes” (VI, 196, 207). As únicas
necessidades que desempenham um papel econômico são as que po-
dem ser economicamente satisfeitas: essas necessidades não são de-
terminadas pela natureza humana em geral, mas pela solvabilidade,
isto é, pelo nível das rendas de que dispõem os indivíduos - e pela
natureza dos produtos disponíveis, que são, num momento dado, o
resultado das capacidades técnicas da produção. A determinação
das necessidades dos indivíduos pelas formas da produção vai ainda
co-
mais além, dado que a produção não produz somente meios de
numo (valores de uso) determinados, mas também o seu modo de
157).
consumo, e até o desejo desses produtos (Introdução de 57, p.
Em outras palavras, o consumo individual por sua vez, que põe em
relação aparentemente imediata valores de uso e necessidades (e pa-
rece, pois, implicar de direito uma antropologia, embora historiciza-
da), nos remete de uma parte às capacidades técnicas da produção
(ao nível das forças de produção) e de outra às relações sociais de pro-
dução que fixam a distribuição das rendas (formas da distribuição
da mais-valia e do salário). Por esta última questão, somos le-
vados à distribuição dos homens em classes sociais, que se tornam
então os “'verdadeiros” “sujeitos” (desde que possamos empregar
esse termo) do processo de produção. A relação direta das “necessi-
dades” assim definidas com um fundamento antropológico torna-se
inverter a ordem das
então puramente mítica: ou antes, impõe-se
coisas, e dizer que a idéia de uma antropologia, se possível, passa
(nome antro-
pela tomada em consideração da definição econômica
estão submeti-
pológico) dessas “necessidades”. Essas necessidades
das a uma dupla determinação estrutural, e não mais antropológica:
a que distribui os produtos entre o Setor 1 e o Setor II, e a que atri-
bui às necessidades o seu conteúdo e sentido (a estrutura da relação
das forças produtivas e das relações de produção). Essa concepç ão
fundant e do econo-
ai pois, à antropologia clássica o seu papel
ico,

B, A Distribuição
Tendo em vista que a distribuição apareceu como um fator es-
sencial de determinação das necessidades - ao lado da produção, ve-
Jamos o que acontece com essa nova categoria, À distribuição apre-
senta-se também sob um duplo aspecto. Ela é não só distribuição

O SS

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116 LER “O CAPITAL”

das rendas (o que remete às relações de produção), mas distribuição


dos valores de uso produzidos pelo processo de produção. Ora, sa-
bemos que, nesses valores de uso, figuram os produtos do Setor I,
ou meios de produção - e os produtos do Setor II, ou meios de con-
sumo. Os produtos do Setor Il são trocados contra as rendas dos in-
dividuos, portanto em função de suas rendas e portanto de sua dis-
tribuição, e, por conseguinte, da primeira distribuição. Quanto aos
produtos do Setor |, os meios de produção, destinados a reproduzir
as condições da produção, não são trocados contra rendas, mas di-
retamente entre os proprietários dos meios de produção (é o resulta-
do dos esquemas de realização do livro 11): entre os membros da
classe capitalista que detêm o monopólio dos meios de produção.
Por trás da distribuição dos valores de uso, perfila-se assim outra
distribuição: a distribuição dos homens em classes sociais exercendo
uma função no processo de produção.
Em sua concepção mais banal, a distribuição aparece como distri--
buição dos produtos, e assim como mais distanciada da produção e por
assim dizer independente desta. Mas, antes de ser distribuição dos produ-
tos, ela é: 1?) distribuição dos instrumentos de produção e 2º), o que é ou-
tra determinação da mesma relação, distribuição dos membros da socie-
dade entre os diferentes gêneros de produção (subordinação dos-indiví-
duos a relações de produção determinadas). A distribuição dos produtos
não é manifestamente senão o resultado dessa distribuição, que está in-
cluída no próprio processo e determina a estrutura da produção.
(Marx, Introdução de 57, E. S., 161).

Nos dois casos, pela distribuição das rendas, e pela distribuição


dos meios de consumo e dos meios de produção, índice da distri-
buição dos membros da sociedade em classes distintas, somos, pois,
levados às relações de produção, e à produção em si, | =
O exame das categorias que pareciam à primeira vista exigir à
intervenção teórica de uma antropologia do homo oeconomicus, €
que, por essa razão, lhe podiam dar uma aparência de fundamento,
produz portanto este duplo resultado: 1) o desaparecimento da an-
tropologia, que cessa de desempenhar o seu papel fundador (deter-
minação do econômico como tal, determinação dos “sujeitos do
econômico). “O espaço plano" dos fenômenos econômicos não
mais é duplicado pelo espaço antropológico da existência dos sujos
tos humanos: 2) a recorrência necessária, implicada na análise ia
consumo e da distribuição ao lugar de determinação verdadeiro do
econômico: a produção. Correlatamente, este aprofundamento teóri-
co nos aparece como uma transformação do campo dos fenômenos
econômicos: a seu antigo “espaço plano” homogêneo vem suceder
uma nova figura, em que os “fenômenos” econômicos são pensados
soba dominação das “relações de produção”, que os determinam.

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 117

Ter-se-á reconhecido, no segundo desses resultados, uma tese


fundamental de Marx: é a produção que rege o consumo e a distri-
buição, e não o inverso, É frequente ver reduzir-se toda a descoberta
de Marx a essa tese fundamental, c às suas consegliências.
Essa “redução” choca-se no entanto com uma pequena dificul-
dade; essa descoberta já fora feita pelos fisiocratas, e Ricardo, o eco-
nomista “da produção por excelência” (Marx), lhe deu uma forma
sistemática, Ricardo, com efeito, proclamou o primado da produ-
ção sobre a distribuição e o consumo, Impõe-se mesmo ir maís além
“e reconhecer, como o fez Marx na Introdução de 57, que, se Ricardo
afirmou que a distribuição constituía o objeto próprio da Economia
Política, é que ele aludia ao que, da distribuição, concerne à distri-
buição dos agentes da produção em classes sociais (Introdução de 57, -
E. S., pp. 160-161). Todavia, devemos aplicar aqui a Ricardo o que
Marx dele diz, a propósito da mais-valia, Ricardo dava todos os si-
nais externos do reconhecimento da realidade da mais-valia - mas
não cessava de falar dela sob os aspectos do lucro, da renda e do ju-
ro, isto é, sob outros conceitos que não o seu, Do mesmo modo, Ri-
cardo dá todos os sinais exteriores do reconhecimento da existência
das relações de produção - mas deixa no entanto de falar delas sob
os aspectos só da distribuição das rendas e dos produtos - portanto,
sem lhes elaborar o conceito. Quando se trata apenas de identificar a
existência de uma realidade sob o seu disfarce, pouco importa que o
termo ou os termos que a designam sejam conceitos inadequados. É
o que permite a Marx traduzir, numa leitura substitutiva imediata, a
linguagem de seu predecessor, e pronunciar a expressão mais-valia
onde Ricardo pronuncia a expressão lucro - ou a expressão relações
de produção onde Ricardo diz distribuição das rendas. Tudo vai bem
na medida em que se trata de designar uma existência: basta corrigir
uma expressão para denominar a coisa pelo seu nome, Mas quando
se trata das conseqliências teóricas que surgem desse disfarce, a
questão fica mais séria: dado que a expressão desempenha agora a
função de conceito, cuja inadequação ou ausência provocam efeitos
teóricos graves, reconheça-os ou não o autor (como no caso de Ri-
cardo, nas contradições em que ele tropeça). Ficamos sabendo então
que aquilo que tomamos pelo disfarce de uma realidade sob sua ex-
pressão inexata é o disfarce de um segundo disfarce: o disfarce sob
uma expressão da função teórica de um conceito, Sob essa condição,
us variações da terminologia podem ser o Índice real de uma varia-
ção na problemática e no objeto, No entanto, tudo ocorre como se
Marx houvesse dividido o seu próprio trabalho, De um lado, ele se
contenta com efetuar uma leitura substitutiva de seus predecessores:
é o que Engels considera sinal de “generosidade”, que o faz sempre
calcular com muita largueza suas dívidas, e tratar praticamente os

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LER “O CAPITAL”
118
embora
“produtores” como “descobridores”. Mas, por outro lado,
severo quanto às consegiiên-
em lugares diferentes, Marx mostra-se
s de sua cegueira sobre o
cias teóricas tiradas por seus predecessore
produziram. Quando Marx
sentido conceptual das realidades que ou Ricardo por não terem
e, Smith
critica, com extrema severidad de existência, censu-
ido distinguir a m ais-valia das suas formas | que pode-
sabido disting por não' o haverem dado o conceito à realidade
ra-os de fato a claramente que a simples “o-
ro du zi do ”. Ve mo s ag or
riam ter “p
um conceito,
missão” de uma expressão é em realidade a ausência de
dado que a ausência ou presença de um conceito decide quanto a
uma cadeia de consequências teóricas. Eis o que nos esclarece em
reciproca sobre os efeitos da ausência da expressão na teoria que
“contém” essa ausência: a ausência de uma “expressão” nela é a
presença de outro conceito. Em outras palavras, aquele que pensa só
ter de restabelecer uma “expressão” ausente no discurso de Ricardo,
arrisca a enganar-se sobre o conteúdo conceptual dessa ausência, e re-
duz a simples “palavras” os próprios conceitos de Ricardo. E nessa
contradança de falsas identificações (crer que só se está restabele-
cendo uma palavra quando se está elaborando um conceito; crer que
os conceitos de Ricardo não passam de expressões) que devemos
procurar a razão pela qual Marx pode ao mesmo tempo exaltar as
decobertas de seus predecessores, onde eles no mais das vezes ape-
nas “produziram” sem “descobrir” — e criticá-los tão rudemente pe-
las consegiências que eles no entanto simplesmente delas tiraram.
Tive de entrar nesse-pormenor para bem situar o sentido desse juízo
“de Marx:

Ricardo, a quem importava conceber a produção moderna na sua


estrutura social determinada, e que é o economista da produção por €x-
celência, afirma por esse motivo que não é a produção, mas a distribuição
o que constitui o verdadeiro tema da economia política moderna.
(Introdução de 57, E. S., p.161.)

“Por esse motivo” significa:


- instintivamente, ele via nas formas de distribuição a expressão mais
nítida das relações determinadas dos agentes de produção numa sociedade
dada (ibidem, p.160).

» Essas “relaçõe s determinadas dos agentes numa sociedade da-


da” são Justamente as relações de produção, cuja consideração por
Mark, n ão sob a forma de um pressentimento “instintivo”, isto é,
não à “revelia” - mas sob a forma do conceito e de suas consequên-
«cias, subverteo objeto da Economia clássica, e, com o seu objeto, à
própria ciência da Economia Política como tal,

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O OBJETO DE “O CAPITAL” | 119

O peculiar de Marx não é, de fato, haver afirmado nem mesmo


mostrado o primado da produção (Ricardo a seu modo já o havia
feito), mas haver transformado o conceito de produção, ao lhe atri-
buir um objeto radicalmente diferente do objeto designado pelo an-
tigo conceito.

C. A Produção
Toda produção é, segundo Marx, caracterizada por dois ele-
transfor-
mentos indissociáveis: o processo de trabalho, que explica a
delas va-
mação que o homem inflige às matérias naturais para fazer
minação das
lores de uso, é as relações sociais de produção sob a deter
quais esse processo de trabalho é executado. Examinaremos um
rela-
após outro esses dois tópicos: o processo de trabalho (a) e as
ções de produção (b).
a) O processo de trabalho
de trabalho refere-se às condições mate-
A análise do processo
riais e técnicas da produção.
dade a pro»,
O processo de trabalho... a atividade que tem por finali
s naturais às necessida-
dução de valores de uso, a apropriação dos objeto
inter câmbi o material entre o ho-
des humanas é a condição necessária do
da vida humana, inde-
“mem e a natureza, uma condição natural eterna
antes co-
pendente por isso mesmo de todas as suas formas sociais, sendo
“mum a todas as formas sociais (1, 186).
s simples que
Esse processo reduz-se à combinação de elemento
do homem, ou tra-
são em número de três: “...1) a atividade pessoal
o trabalho atua; 3)
balho propriamente dito; 2) O objeto sobre o qual
de trabalho inter-
o meio pelo. qual ele atua” (I, 181). No processo que, utili-
vém, pois, um dispêndio da força de trabalho dos homens,
rumentos de traba-
zando segundo regras (técnicas) adequadas inst ria.
(seja maté
lho determinados, transforma o objeto de trabalho
a) em produto
bruta, seja matéria já trabalhada, ou matéria-prim
útil,
inare-
Essa análise ressalta dois caracteres essenciais que exam
do proces-
mos sucessivamente: a natureza material das condições
no pro-
so de trabalho; o papel dominante dos meios de produção
cesso de trabalho,
Primeiro aspecto. Todo dispêndio produtivo da força de traba-
lho supõe para seu exercício condições materiais que se reduzem to-
das à existência da natureza, seja bruta, seja modificada pela ativi-
dade humana, Quando Marx escreve que “o trabalho é antes de
tudo um processo que se passa entre O homem e a natureza, proces-.
so no qual o homem assegura, regula e controla, por sua própria ati-

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120 LER “O CAPITAL”

vidade, a troca de matérias com a natureza... desempenha para com


a natureza o papel de uma força da natureza”, ele afirma que a
transformação da natureza material em produtos, e portanto o pro-
cesso de trabalho como mecanismo material é dominado pelas leis
físicas da natureza e da tecnologia. A força de trabalho insere-se
também nesse mecanismo. Essa determinação do processo de traba-
lho por suas condições materiais impede em seu nível qualquer con-
cepção “humanista” do trabalho humano como pura criação. Sabe-
se que esse idealismo não permaneceu no estado de mito, mas reinou
na economia política e, com isso, nas utopias econômicas do socia-
lismo vulgar: por exemplo, em Proudhon (projeto de banco popu-
lar), em Gray (os “bônus de trabalho”), e finalmente no Programa de
Gotha, que proclamava em sua primeira linha:
O trabalho é a fonte de toda riqueza e de toda cultura.

a que Marx respondeu:

O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é igualmente a


fonte dos valores de uso (que são, até mesmo, a riqueza real!), como o
trabalho, que em si não passa de expressão de uma força natural, a força
de trabalho do homem. Essa expressão já gasta acha-se em todas as carti-
lhas, e só é verdadeira sob condição de subentender que o trabalho é an-
terior, com todos os objetos e processos que o acompanham. Mas um,
programa socialista não poderia permitir a essa fraseologia burguesa
O
passar em silêncio as condições que, só elas, lhe podem dar um sentido...
Os burgueses têm excelentes razões para atribuir ao trabalho essa força
sobrenatural de criação...
(Critique de Gotha, E. S., pp. 17-18)

Esse mesmo utopismo é que levava Smit


que O acompanharam nessa questão, a omitir,h, nos
e todos os utopistas
conceitos econô-
PICOS, à
dições materepr esentação formal da necessidade da reprodução das con-
riais do proc esso de trabalho, como essencial à existência
desse processo - é portanto a fazer abstração da mate
rialidade atual
traba SAS produtivas (objeto de trabalho, instrumentos materiais de
ME prplicados em qualquer processo de produção (sob
de (A arconomia Política de Smit esse
h carece de uma teoria da repro-
idealiimo a Pensável a qualquer teoria
declaro da produção). Ê o mesmo
0 trabalho que,nos Manuscritos de 44,
or Gabido mo O “Lutero da Economia Política modpermern
ite a Marx
a” por ha-
ra E Uzir toda riqueza (todo valo
r de uso) apen as ao traba- |
mero por E e mor AmOntar a união teórica de
trmbelioa F Teduzido toda a economia políticaSmith e Hegel: o prt-
à subjetiv
º Segundo por haver concebido “o trabalho como idad e do
essência

cal
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 121

do homem”. Em O Capital, Marx rompe com esse idealismo do tra-


balho, pensando o conceito das condições materiais de qualquer
processo de trabalho, e produzindo o conceito das formas de existên-
cia econômicas dessas condições materiais: para o modo de produ-
ção capitalista, as distinções decisivas do capital constante e do capi-
tal variável por um lado, do Setor I e do Setor II da produção, por
outro.

Podemos avaliar, por esse simples exemplo, os efeitos teóricos e


práticos provocados no próprio campo da análise econômica, tão-só
pelo pensamento do conceito de seu objeto. Basta que Marx pense,
como pertencente ao conceito de produção, a realidade das condi-
ções materiais da produção, para fazer nascer, no próprio campo da
análise econômica, conceitos economicamente “operatórios” (capi-
tal constante, capital variável, Setor I, Setor II) que lhe subvertem a
ordem e a natureza. O conceito de seu objeto não é paraeconômico;
é o conceito da elaboração de conceitos econômicos necessários
para a compreensão da natureza do próprio objeto econômico: os
conceitos econômicos de capital constante e capital variável, de Se-
tor I e Setor II são apenas a determinação econômica, no campo
mesmo da análise econômica, do conceito das condições materiais do
processo de trabalho. O conceito do objeto existe então imediata-
mente sob a forma de conceitos econômicos diretamente “operató-
rios”. Mas, sem esse conceito do objeto, esses conceitos não teriam
sido produzidos, e teríamos ficado no idealismo econômico de
Smith, exposto a todas as tentações da ideologia.

Essa questão é fundamental, porque nos mostra que não basta,


para se considerar marxista, considerar que o econômico, e, na €co-
da existência
nomia, a produção, comandam todas as demais esferas
social, Pode-se proclamar essa tese e, no entanto, ao mesmo tempo,
desenvolver uma concepção idealista da economia e da produção,
ao declarar que o trabalho constitui ao mesmo tempo “a essência do
homem” e a essência da economia política, em suma, ão desenvolver
uma ideologia antropológica do trabalho, da “civilização do traba-
lho”, etc, O materialismo de Marx supõe pelo contrário uma concep-
ção materialista da produção econômica, isto é, entre outras condi-
ções, a exposição das condições materiais irredutíveis do processo
de trabalho. Esse é um dos pontos de aplicação diretos da fórmula
de Marx, contida na carta a Engels que citei, em que Marx esclarece
que “atribuiu importância inteiramente diversa” da de seus prede-.
cessores “à categoria de valor de uso", Nessa concepção é que trope-
cam todas as interpretações do marxismo como “filosofia do traba-:
lho”, sejam elas éticas, personalistas ou existencialistas: a teoria sar-

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122 LER “O CAPITAL”

triana do prático-inerte em particular, porque lhe falta o conceito da


modalidade das condições materiais do processo de trabalho. Smith
relacionava já as condições materiais atuais do processo de trabalho:
ao trabalho passado: ele dissolvia assim numa regressão ao infinito
a atualidade das condições materiais exigidas em dado momento:
pela existência do processo de trabalho, na inatualidade dos traba-
lhos anteriores, em sua lembrança (Hegel iria ratificar essa concep-
ção em sua teoria do Erinnerung). Sartre dissolve também na
lembrança filosófica de uma práxis anterior, por sua vez subordina-
da em relação a uma outra ou outras práxis anteriores e assim por
diante até a práxis do sujeito originário, as condições materiais
atuais cuja combinação estrutural comanda todo trabalho efetivo,
toda transformação atual de uma matéria-prima em produto útil.
Em Smith, como economista, essa dissipação ideal provoca impor-
tantes consequências teóricas no domínio da própria economia. Em
Sartre, ela se sublima imediatamente na sua '“'verdade” filosófica
explícita: a antropologia do sujeito, latente em Smith, assume em
Sartre a forma aberta de uma filosofia da liberdade.

Segundo aspecto. A mesma análise do processo de trabalho põe


em evidência o papel dominante dos “meios de trabalho”.

O uso e a fabricação dos meios de trabalho... caracterizam o proces-


so de trabalho especificamente humano, e é por essa razão que Franklin
define o homem como animal que fabrica ferramentas (toolmaking ani-
mal). Restos de antigos meios de trabalho têm, para o estudo das for-
mas econômicas das sociedades desaparecidas, a mesma importância que
a estrutura dos fósseis para o conhecimento da organização das espécies
extintas. O que distingue as épocas econômicas entre si não é o que se
produziu (macht), mas a maneira como (wie) se produziu, com que meios
de trabalho se produziu, Os meios de trabalho servem para medir 0 de-
senvolvimento da força de trabalho e, além disso, indicam as condições
sociais (Anzeiger) em que se realiza o trabalho.
(O Capital, 1, pp. 182-83)

Monge três elementos constitutivos do processo de trabalho


os ad
meios EARmo draé força
alho. deEstetr abalho), existe, pois,
último elemento é queumapermite,
dominância É
no pro.
mara ni O comum a todas as épocas econômicas, identifica ie
São 08 “meio específica que irá distinguir suas formas essencia"
cesso de trabalho trabalho que determinam a forma típica do pro”
à Natureza ext o considerado; ao determinar o “modo de ataque
mica, eles dee, nº Submetida à transformação na produção ecoa
“minam o modo de produção, categoria fundamenta

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 123

da análise marxista (tanto em economia como em história); determi-


nam ao mesmo tempo o grau de produtividade do trabalho produti-
vo. O conceito das diferenças pertinentes observáveis nas variedades
de processos de trabalho, o conceito que permite não somente a “pe-
riodização” da história, mas, antes de tudo, a elaboração do concei-
to de história: o conceito de modo de produção fundamenta-se assim,
sob o aspecto que consideramos aqui, nas diferenças qualitativas
dos meios de trabalho, isto é, em sua produtividade. Será necessário
do pa-
ainda ressaltar que existe uma-relação direta entre o conceito
pel dominante dos meios de trabalho e o conceito economicamente a
que
“operatório” de produtividade? Será preciso observar ainda
Marx, isolar e
Economia clássica jamais soube, pelo que a censura
i-
identificar esse conceito de produtividade - e que seu desconhecpro-
de
mento da história está ligado à ausência do conceito de modo
dução? *

o conceito-chave de modo de produção, Marx


Ao elaborar
da natu-
pode de fato exprimir o grau diferencial de ataque material
ente entre o
reza pela produção, o modo diferencial de unidade exist
unidade. Mas,
“homem e a natureza”, e os graus de variação dessa
em con-
ao mesmo tempo que nos revela o alcance teórico do tomar
ito de modo
sideração as condições materiais da produção, O conce
minante, cor-
de produção revela-nos também outra realidade deter
eza”: as rela-
relata do grau de variação da unidade “homem-natur
ções de produção:

do desenvolvimen-
Os meios de trabalho são não apenas as medidas
indicadores (Anzeiger)
to da força de trabalho humano, mas também os
das relações sociais nas quais se produz...

s-
Com isso descobrimos que a unidade homem-natureza, expre
tempo € imedia-
sa pelo grau de variação dessa unidade, é ao mesmo relações sociais
tamente a unidade da relação homem-natureza e das
modo de produção con-
em que a produção se efetua, O conceito de
de.
tém, pois, o conceito da unidade dessa dupla unida
b) As relações de produção
Encontramo-nos assim diante de uma nova condição do proces-,
de produ-
so de produção, Após as condições materiais do processo

é de
a
o texto
Sobre todas essas questões, apenas esboçadas neste capítulo, veja-se
Ex)

alibar - em particular o importante conceito de forças produtivas por € le analisado.


Bali

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124 LER “O CAPITAL”

que o ho-
cão, em que se exprime a natureza específica da relação
com a natureza, temos agora de estudar as condições
mem mantém
de produção. Es-
sociais do processo de produção: as relações sociais
ões exis-
sas novas condições referem-se ao tipo específico de relaç
tentes entre os agentes da produção em função das relações existentes
entre esses agentes de uma parte e de outra os meios materiais da
produção. Esse esclarecimento é fundamental: porque as relações
sociais de produção não são de modo algum redutíveis a simples rela-
ções entre os homens, a relações que ponham em causa apenas os ho-
mens, e portanto às variações de uma matriz universal, a intersubjetivi-
dade (reconhecimento, prestígio, luta, dominação e servidão, etc.).
As relações sociais de produção em Marx não põem em cena os ho-
mens sós, mas põem em cena, nas combinações específicas, os agen-
tes do processo de produção, e as condições materiais do processo de
produção. Insisto neste ponto, por uma razão que se une à análise que
Ranciêre fez de certas expressões de Marx, em que, numa terminolo-
gia ainda inspirada em sua filosofia antropológica de juventude, se
podia ser tentado a contrapor, literalmente, as relações dos homens
entre si às relações das coisas entre si. Ora, nas relações de produção
estão implicadas necessariamente relações entre os homens e as coi-
sas, tais que as relações dos homens entre si são definidas ali por re-
lações rigorosas existentes entre os homens e os elementos materiais
do processo de produção.
De que modo pensa Marx essas relações? Ele as pensa como
uma “distribuição” ou uma “combinação” (Verbindung). Ao falar
da distribuição, na Introdução (p. 161), escreve Marx:

Em sua concepção mais banal, a distribuição aparece como distri-


buição de produtos, e como que distanciada da produção, por
assim di-
zer independente desta. Mas, antes de ser distribuição de produtos, ela é:
1) distribuição dos instrumentos de produção e 2) - o que é outra deter-
minação da mesma relação - distribuição dos membros da sociedade en-
tre os diferentes gêneros de produção (subordinação dos individuos a re-
lações de produção determinadas). A distribuição dos produtos é mani-
festamente apenas o resultado dessa distribuição, que está incluída
no
próprio processo de produção, e determina a estrutura da produção (Glie-
derung). Considerar à produção sem levar em conta essa distribuição que
nela está incluídaé manifestamente abstração vazia
trário, a distribuição dos produtos está implicada uand | g
Sã Dies
que constitui Originariamente um momento da produção MR di ri di E
produção tem necessariamente seu ponto de arti pisa
dos instrumentos de produção... Partida numa distribuição

Essa distribuição consiste, pois, em certa atribuiçã


cão
de produção aos agentes da produção, em certa relação
Me SA
belecida entre os meios de produção, de um lado, e de outro os a il
asdá produção. Formalmente essa distribuição-atribuiç
ão bode der

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 125

concebida como uma combinação ( Verbindung) de um certo número


de elementos pertencentes aos meios de produção ou aos agentes da
produção, combinação essa que se efetua segundo modalidades de-
terminadas.
É o que diz o próprio Marx:
Sejam quais forem as formas sociais da produção, os trabalhadores
e os meios de produção permanecem sempre os fatores delas. Mas uns e
outros estão apenas em estado virtual na medida que se acham separa-
dos. Para uma produção qualquer, impõe-se sua combinação. É a manei-
ra especial (die besondere Art und Weise) de operar essa combinação que
distingue as diferentes épocas econômicas pelas quais passou a estrutura
social (Gesellschafisstruktur).
(O Capital, IV, 38.)

Em outra passagem, sem dúvida a mais importante (O Capital,


VIII, 170-173), ao falar do modo de produção feudal, escreve Marx:
a forma econômica específica na qual sobretrabalho não-pago é ex-
e
torquido aos produtores imediatos, determina a relação de dominação
de servidão tal como decorre imediatamente da própria produção, e rea-
ge por sua vez sobre ela de modo determinante. É sobre ela que se funda
sur-
inteiramente a estruturação (Gestaltung) da comunidade econômica,
a
gida das próprias relações de produção, e com isso ao mesmo tempo
sua estrutura (Gestalt)* política específica. É cada vez na relação imedia-
ta dos proprietários das condições de produção com os produtores ime-
com
diatos - relação da qual cada forma corresponde sempre, de acordo
a sua natureza, a certo grau de desenvolvimento determinado do modo
(Art und Weise) de trabalho, e portanto a certo grau de desenvolvimento
de sua força produtiva social - que encontramos O segredo mais íntimo
(imnerste Geheimnis), o fundamento (Grundlage) oculto da construção so-
cial (Konstruktion) inteira, e por conseguinte também da forma política
de
da soberania, e da relação de dependência, em suma, de cada forma
Estado específica.

Os desenvolvimentos desse texto fazem aparecer distinções da


maior importância sob os dois elementos até aqui confrontados (a-
gentes da produção e meios de produção), Quanto aos meios de pro-
dução, vemos aparecer a distinção já conhecida entre o objeto da
produção, por exemplo a terra (que desempenhou diretamente um
papel determinante em todos os modos de produção anteriores ao
capitalismo), e Os instrumentos de produção, Quanto aos agentes da
produção, vemos surgir, além da distinção essencial entre os agentes

* Verifica-se que o tradutor francês e Althusser preferem “estruturação” e “estrutu-


ra” para os vocábulos Gestaltung € Gestalt de Marx, que poderiam ser corretamente
traduzidos por “formução” e “forma”, respectivamente, (N. do T.)

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126 LER “O CAPITAL”

imediatos da produção (expressão de Marx), cuja força de trabalho é


posta em ação na produção, e outros homens que dusampenham
um papel no processo geral da produção como proprietários dos
meios de produção, mas sem nela figurar como trabalhadores ou
agentes imediatos, dado que a sua força de trabalho não é emprega-
da no processo produtivo. É ao combinar, ao relacionar esses dife-
rentes elementos: força de trabalho, trabalhadores imediatos, Se-
nhores não-trabalhadores imediatos, objeto de produção, instru-
mentos de produção, etc., que chegamos à determinar os diferentes
modos de produção que existiram e que podem existir na história hu-
mana. Essa operação de relacionamento de elementos preexistentes
determinados poderia dar a pensar numa combinatória, se a nature-
za especifica muito especial das relações postas em jogo nessas dife-
rentes combinações não lhes definisse e limitasse estreitamente o
campo. Para obter os diferentes modos de produção, impõe-se com-
binar esses diferentes elementos, porém tendo em vista os modos de
combinação (Verbindurgen) específicos, que só têm sentido na natu-
reza própria do resultado da combinatória (sendo, esse resultado, a
produção real) - e que são: a propriedade, a posse, a disposição, O
desfrute, a comunidade, etc. A aplicação de relações especificas às di-
ferentes distribuições dos elementos disponíveis produz um número
limitado de formações, que constituem as relações de produção dos
modos de produção determinados, Essas relações
determinam o re-
lacionamento que os diferentes grupos de agentes
de produção man-
têm com os objetos e os instrumentos da produção, e com

vo ooo
a oo ienes da produção em grupos funcio
isso distri-

f
lações dos agentes da produção entre O no processo produtivo. As re-
si resultam então das relações
típicas que mantém com os meios
de produção (objeto, instrumen-
tos), e de sua distribuição em grupo
S determinados
funcionalmente em suas relações com os meios de pro eCRE
locali
ea
trutura da produção. pela es-
Não posso estender-me aqui na aná
li
de “combi nação”, e de suas diferentes
este ponto, à exposição de Balibar. É formas; Temeto o leitor , para
teórica do conceito de “combinação” pode dará oo à natureza
anteriormente sob forma crítica, de que o marxism alirmação, feita
ricismo: visto que O conceito marxista de história
pio da variação das formas dessa “combinação” QEapo s UM histo-
OUSa no pinci-
tir apenas sobre a natureza particular dessas rela
Soo catia de insis-
que são notáveis sob duplo aspecto, ses de Produção,
Vimos, no texto que acabo de citar, Ma
nada forma de combinação dos elementos dispor ttar que determi-
cessariamente certa forma de dominação e de sujeição inicava ne-
ISpensável

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 127

para assegurar essa combinação, isto é, certa configuração (Gestal-


tung) política da sociedade. Vê-se precisamente em que lugar se acha
fundada a necessidade e a forma da “formação” política: no nível
das Verbindungen que constituem os modos de ligação entre os agen-
tes da produção e os meios da produção, no nível das relações de
propriedade, de posse, de disposição etc. "* Esses tipos de relação, se-
gundo a diversificação ou a não-diversificação dos agentes da pro-
dução em trabalhadores imediatos e donos, tornam necessária ou
supérflua (sociedades de classes ou sociedades sem classes), a exis-
tência de uma organização política destinada a impor e manter esses
tipos de relação determinados por intermedio da força material (a
do Estado) e da força moral (a das ideologias). Vê-se com isso que '
certas relações de produção supõem, como condição de sua própria
existência, a existência de uma superestrutura jurídico-política e
ideológica, e por que essa superestrutura é necessariamente específi-
ca (dado que função das relações de produção específicas). Vê-se
também que outras relações de produção não exigem superestrutura
política, mas apenas ideológica (as sociedades sem classes). Vê-se fi-
nalmente que a natureza das relações de produção consideradas não
apenas exige ou não exige esta ou aquela forma de superestrutura,
mas determina também o grau de eficácia delegado a este ou aquele
nível da totalidade social. Sejam quais forem as outras conseqiiên-
cias, pelo menos uma conclusão podemos tirar, referente às relações
-de produção: elas remetem às formas superrestruturais que exigem,
como a outras tantas condições de sua própria existência. Não se
' pode, pois, pensar as relações de produção em seu conceito, fazendo
abstração de suas condições de existência superestruturais especifi-
cas. Como único exemplo, podemos verificar que a análise da venda
e compra da força de trabalho, em que existem as relações de produ-
ção capitalista (a separação entre os proprietários dos meios de pro-
dução, por um lado, e, por outro, os trabalhadores assalariados) su-
põe diretamente, para a compreensão de seu objeto, a consideração
de relações jurídicas formais, que constituem como sujeitos de direi-
to o comprador (o capitalista) assim como o vendedor (o assalaria-
do) da força de trabalho - assim como toda uma superestrutura
política e ideológica que mantém e contém os agentes econômicos

“Esclarecimento importante: o termo “propriedade”, utilizado por Marx, pode


dar a impressão de que as relações de produção são idênticas às relações jurídicas.
Não é assim. O direito não são as relações de produção. Estas últimas pertencem à in-
fra-estrutura, ao passo que o direito pertence à superestrutura,

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128 LERá “O

CAPITAL
' 171º "”

na distribuição dos papéis, que faz de uma minoria de exploradores


os proprietários dos meios de produção, e da muioria da população
os produtores da mais-valia. Toda a estrutura da sociedade conside-
rada acha-se assim implicada e presente, de um modo específico, nas
relações de produção, isto é, na estrutura determinada da distribui-
ção dos meios da produção e das funções econômicas entre catego-
rias determinadas de agentes da produção. Equivale a dizer que, se a
estrutura das relações de produção determina o econômico como
tal, a definição do conceito das relações de produção de um modo
de produção determinado passa necessariamente pela definição do
conceito da totalidade dos níveis distintos da sociedade, e de seu
tipo de articulação (isto é, de eficácia) própria.
Não se trata, no caso, de modo algum, de exigência formal, mas
«da condição teórica absoluta que rege a própria definição do econó-
mico. Basta lembrar os inúmeros problemas suscitados por essa defi-
nição quando se trata de modos de produção diferentes do modo de
produção capitalista, para nos darmos conta da importância decisi-
va deste recurso: se, como costuma dizer Marx, o que está oculto na
sociedade capitalista é claramente visível na sociedade feudal ou na
comunidade primitiva, é nestas últimas sociedades que vemos clara-
mente que o económico não é claramente visível! — do mesmo modo
que, nessas mesmas sociedades, vemos também claramente que O
“grau de eficácia dos diferentes níveis da estrutura social não é clara-
mente visível! Os antropólogos e etnólogos que, procurando O ecnô-
mico, caem nas relações de parentesco ou nas instituições religiosas
e outras, os especialistas em história medieval que, procurando no
“econômico” a determinação dominante da história, a encontram...
na política ou na religião, estes “sabem” para que se ater a esta defi-
nição. ” Em todos esses casos, não se trata de apreensão imediata do
econômico, não se trata do “dado” econômico bruto, como também
não se trata da eficácia imediatamente “'dada” neste ou naquele
nível. Em todos esses casos, a identificação do econômico passa pela
construção de seu conceito, queçãosupõe, para ser construído, à defini-
ção da existência e da articula específicas dos diferentes niveis da
er ea 2 » boia, ais tomo estão necessariamente implicados pod
do asonhata OM 8 produção considerado. ElaborarO € E
* ““9NÔmico é defini-lo rigorosamente como nível, instância ou
i
Eão da estruturade um modo de produção: é, pois, defino sent
ão e os seus limites próprios nessa estrutura, *

* Cf. Godelier, “Objet et méthodes de I'anthropologie economique » L'Hommé


outubro de 1965,

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 129

quisermos tomar a velha imagem platônica, “recortar” a região do


econômico na estrutura do todo, segundo a sua “articulação” pró-
pria, sem se enganar com a articulação. O “recorte” do “dado”, ou
recorte empirista, engana-se sempre com a articulação, precisamen-
te porque sobre o “real” as articulações e o recorte arbitrários da
ideologia que a sustenta, Não há recorte e, pois, articulação justas, a
não ser sob condição de possuir ou de construir seu conceito deles.
Em outras palavras, não é possível, nas sociedades primitivas, consi-
derar este ou aquele:fato, esta ou aquela prática, aparentemente sem
relação com a “economia” (como as práticas a que dão lugar os ri-
tos do parentesco ou da religião, ou relações entre grupos na con-
corrência do “potlatch”), como rigorosamente econômicas, sem se ter
antes elaborado o conceito da diferenciação da estrutura do todo so-
cial nessas diferentes práticas ou níveis, sem ter descoberto o seu sen-
tido próprio na estrutura do todo, sem ter identificado, na diversida-
de desconcertante dessas práticas, a região da pfatica econômica,
sua configuração e suas modalidades. É provável que grande parte
das dificuldades da etnologia e da antropologia contemporâneas de-
corra de que elas enfoquem os “fatos”, os “dados” da etnografia
(descritiva) sem tomar a precaução teórica de elaborar o conceito de
seu objeto: essa omissão leva-os a projetar na realidade etnográfica
as categorias que definem praticamente para elas o econômico, isto
é, as categorias que, além do mais, são não raro por sua vez empiri-.
“cas, da economia das sociedades contemporâneas. Basta isso para
multiplicar as aporias. Se no caso ainda acompanharmos Marx, só te-,
remos feito esse desvio pelas sociedades primitivas e outras para ver
nelas em claro o que a nossa própria sociedade nos oculta: isto é,
para ver nela nitidamente que O econômico, assim como qualquer
outra realidade (política, ideológica etc.), jamais se vê nitidamente,
não coincide com o “'dado”, Isso é tanto mais evidente para O modo
de produ-
-de produção capitalista quanto sabemos que ele é o modo
ção em que o fetichismo atinge sobretudo a região do econômico.
mundo
Malgrado as “evidências” maciças do “dado” econômico no
aspecto
de produção capitalista, e precisamente por causa desse
“maciço” dessas “evidências” fetichizadas, só existe acesso à essên-
cia do econômico pela elaboração do seu conceito, isto é, pela colo-
re-
cação em evidência do lugar ocupado na estrutura do todo pela
gião do econômico, e portanto pela colocação em evidência da arti-
culação existente entre essa região e as demais regiões (superestrutu-
ra jurídico-política e ideológica), € pelo grau de presença (ou de efi-
cácia) das demais regiões na própria região econômica, No caso ain-.
da, essa exigência pode ser encontrada diretamente como exigência
teórica positiva: pode também ser omitida, e manifesta-se então por
efeitos próprios, sejam teóricos (contradições, limiares na explica-

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RS
HO EURO CAPITAL!

ção), sejam práticos (por exemplo, dificuldades na téenion co planifl.


cação, socialista ou mesmo capltaliat), Ela, multo enquemuticamen,
te a primeira conclusão que podemos tlrar da determinação por
Marx do econômico pelas relações de produção,
A segunda conclusão é também Importanto, Se na relações de
produção nos aparecem agora como uma estruura regional por
Nua
ver inscrita na estrutura da totalidade social, ela nos interessa tam.
bém por sua natureza de estr a; No caso, vemos dissipar-ge mi.
ragem de uma antropologia utur
teórica, o mesmo tempo que se dasipa
a miragem de um espaço homogêneo de fenômenos econômicos da.
dos, Não somente o econômico é uma região estruturada que ocupa
um lugar próprio na estrutura global do todo social, como em seu
próprio lugar, em sua autonomia (relativa) regional, ela funciona
como uma estrutura regional determinando como tal os seus ele.
mentos, Verificamos aqui os resultados dos demais estudos deste li-
vro: a saber, que a estrutura das relações de produção determina lu.
gares e funções que são ocupados e assumidos por agentes da produ-
ção, que nunca são mais do que ocupantes desses lugares, na medida
em que são “portadores” (Trdger) dessas funções, Os verdadeiros
“sujeitos” (no sentido de sujeitos constituintes do processo) não são,
pois, esses ocupantes nem esses funcionários; não são, pois, contra-
riamente a todas as aparências, as “evidências” do “dado” da antro-
Pologia ingênua, os “individuos concretos”, os “homens reais” -
mas a definição e a distribuição desses lugares e dessas funções. Os
verdadeiros “sujeitos” são, pois, esses definidores e esses distribuido-
res: as relações de produção (e as relações socinis políticas e ideológi-
cas). Mas, como se trata de “relações”, não podertamos pensá-las
sob a categoria de sujeito, E se, por ucuso, quiséssemos reduzir essas
relações de produção a relações entre os homens, isto é, a “rel
ações
humanas”, estartamos violando o pensamento de Marx, que most ra
com a maior profundidade, sob condição de aplicar a algumas de
suas raras fórmulas ambíguas uma leitura verdadeiramente crítica,
que as relações de produção (ussim como us relações sociais políticas
e ideclógicas) são irredutíveis n qualquer intersubjetividade antro-
pológica dado que só combinam agentes e objetos numa estrutura
específica de distribuição de relações, lugares e Punções, ocupados é
portados” por objetos e ngentes du produção,
Pode-se compreender então, uma vez mais, em que o conceito
do seu objeto distingue radicalmente Marx de seus predecessores €
Por que seus críticos falharam, Pensar o conceito da produção é
pensar o conceito da unidade de suas condições: o modo de produ-
são, Pensar o modo de produção é pensar não somente as condições

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 131

materiais, mas também as condições sociais da produção. Em cada


caso é produzir o conceito que rege a definição dos conceitos econo-
micamente “operatórios” (emprego de propósito esse termo, que é
de uso corrente entre os economistas) a partir do conceito de seu ob-
jeto. Sabemos qual é, no modo de produção capitalista, o conceito
que exprime, na realidade econômica em si, o fato das relações de
produção capitalista: é o conceito de mais-valia, A unidade das con-
dições materiais com as condições sociais da produção capitalista é
expressa na relação direta existente entre o capital variável e a pro-
dução da mais-valia. Decorre de que não seja uma coisa, que a mais-
de uma re-
valia não seja uma realidade mensurável, mas o conceito
de
lação, o conceito de uma estrutura social de produção, existente, no
”,
uma existência visível e mensurável apenas em seus “efeitos em
apenas
sentido que em pouco definiremos. O fato de que exista
captada neste ou
seus efeitos não significa que possa ser inteiramente
para isso que ela '
naquele de seus efeitos determinados: seria preciso
ela só está presen-
estivesse inteiramente presente nele, ao passo que está presente,
te, como estrutu ra, na sua ausência determinada. Ela só
efeitos, no que Marx cha-
na totalidade, no movimento total de seus
formas de existência”, por
ma de “totalidade desenvolvida de suas
natureza: o ser uma relação
uma razão que decorre de sua própria de produção e os
processo
de produção existente entre Os agentes do
que domina o proces-
meios de produção, isto é, a própria estrutura O objeto
so na totalidade de seudesenvolvimento é de sua existência.
carvão, o algodão, os instrumen-
da produção, a terra, O minério, o são “coisas” ou
máquina etc.
tos de produção, uma ferramenta, à não são estruturas. As
realidades visíveis, perceptíveis, mensuráveis: mais que o economista
— € por
relações de produção são estruturas
os preços, as trocas, O salá-
comum examine os “fatos” econômicos, não “ve-
esses fatos “mensuráveis”,
rio, O lucro, a renda etc,, todos
tanto quanto o “físico” pré-
rá”, em seu nível, estrutura nenhuma, na queda dos corpos
atração
newtoniano não podia “ver” a lei de ver O oxigênio no ar “des-
podia
ou O químico pré-lavoisieriano não como, antes de New-
modo
flogistizado”. Certamente, do mesmo
” antes de Marx a massa de
ton, “viam-se” cair Os Corpos, “via-se “for-
homens “explorados” por uma minoria. Mas o conceito das
O conceito da existência econô-
mas” econômicas dessa exploração, e da determinação de
s de produção, da dominação
mica das relaçõe
por essa estrutura, não tinham
toda a esfera da economia políticca
que Smith e Ricardo tenham
então existência teórica. Admitido mais-valia,
“produzido”, no “fato” da renda e do lucro, o “fato” da
haviam “produzido”,
continuaram no escuro, não sabendo o que nem tirar disso as
dado que não sabiam pensá-lo em seu conceito, poderem pensá-lo,
conseqliências teóricas. Estavam a mil léguas de

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LER “O CAPITAL”
132

de sua épo-
não tendo jamais concebido, assim como toda a cultura
“combi-
ca, que um “fato” pode ser à existência de uma relação de
nação”, de uma relação de complexidade, consubstancial ao modo
de produção como um todo, dominando o seu presente, suas crises,
eco-
seu futuro, determinando como lei de sua estrutura a realidade
nômica inteira, até no pormenor visível dos fenômenos empíricos -
ao mesmo tempo que permanecendo invisível em sua própria evidên-
cia ofuscante.

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 133

IX. A Imensa Revolução Teórica de Marx

Podemos agora voltar ao passado, para tomar a medida da dis-


tância que separa Marx de seus predecessores - é distinguir o objeto
de Marx do deles.

Podemos, a partir de agora, deixar de lado o tema da antropo-


logia, que, na Economia Política, tinha por função fundamentar ao
(pela
mesmo tempo a natureza econômica dos fenômenos econômicos
ê-
teoria do homo oeconomicus), e a existência deles no espaço homog
neo de um dado. Retirado o “dado” da antropologia, fica esse espa-
esse ob-
ço, precisamente o espaço que nos interessa. Que acontece a
jeto, em seu ser, não mais podendo fundar-se numa antropologia?
Que efeitos o atingem em decorrência da falta dessa base?

A Economia Política pensava os fenômenos econômicos como


pertencentes a um espaço plano em que reinava uma causalidade
mecânica transitiva, de tal modo que determinado efeito pudesse
relacionar-se a uma causa-objeto, um outro fenômeno; de tal modo
que a necessidade de sua imanência pudesse ali ser captada comple-
tamente na sequência de um dado. A homogeneidade desse espaço,
seu caráter plano, sua propriedade de dado; seu tipo de causalidade
linear: outras tantas determinações teóricas que constituem em seu
sistema a estrutura de uma problemática teórica, isto é, de certa ma-
neira de conceber seu objeto, e ao mesmo tempo lhe propor questões

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JJ
134 LER “O CAPITAL”

determinadas (por essa problemática mesma) sobre o seu ser, ao


mesmo tempo antecipando a forma de suas respostas (o esquema da
medida): em suma, uma problemática empirista, À teoria de Marx
opõe-se radicalmente a essa concepção. Isso não quer dizer que ela
lhe seja uma “inversão; trata-se de uma teoria original, teorica.
mente sem relação com a anterior, portanto, uma ruptura com ela,
Uma vez que Marx define o econômico por seu conceito, ele nos
apresenta, se quisermos ilustrar provisoriamente o seu pensamento
mediante uma metáfora espacial, os fenômenos econômicos não na
infinitude de um espaço plano homogêneo, mas numa região deter-
minada por certa estrutura regional e inscrita por sua vez num lugar
determinado de uma estrutura global: portanto, como um espaço
complexo e profundo, inscrito por sua vez em outro espaço comple-
xo e profundo. Mas deixemos de lado essa metáfora espacial, dado
que suas virtudes se esgotam nessa primeira oposição: com efeito,
tudo tem a ver com essa profundeza, ou, para falar mais rigorosa-
mente, com a natureza dessa complexidade. Definir os fenômenos
econômicos pelo seu conceito é defini-los pelo conceito dessa com-
plexidade, isto é, pelo conceito da estrutura (globah do modo de
produção, na medida em que ela determina a estrutura (regional)
que constitui como objetos econômicos, e determina os fenômenos
dessa região definida, situada num lugar definido da estrutura do to-
do. No nível econômico propriamente dito, a estrutura que constitui
e determina os objetos econômicos é a estrutura seguinte: unidade
das forças produtivas/relações de produção. O conceito desta
últi-
ma estrutura não pode ser determinado fora do conceito da
ra globa estrutu-
l do modo de produção,

Mar sas simples colocação dos conceitos teóricos fundamentais de


» O simples Posicionamento deles na unidade de um discurso
teórico, So, acarreta
« :
de pronto certo numero AO
de consegiiências de vulto.
. . .

possuir a qualidade de um
Pri Ê

ads dd
dado 9 econôm
ta jatamen te visível, não pode
ico observá vel, etc.), dado que sua identifi-
ap cade O conceito da estrutura econômica, que
Glvéis é AA por sua vez exi-
estrutura do modo de produção (seus diferent
ta culações específicas) - visto que sua identificação su es
Ra
deve ser cova StUÇãO do seu conceito. O conceito d O Econômico
como o Pe Astruído para cada modo de produção, do
modo q neeito de cada um dos demais “níveis” pertence
9
nômic: de produção: o Político,
político o ideológi
o: co, etc. Toda da a ciênc:.
sa NES ag
ica depende,
do conceit , pois » COMO qualquer outraà ciência,
Al al da CONstru
Ncia na
eco.
to de
gUMA entre a teor seu objeto,
O. Sob e s : “*Tução
30b essa condição, não há contradiçã
eoria
da Economia e a teoria da História; pel do al.
* Pelo contra.

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 135

ada da teoria da his-


rio, a teoria da economia é uma região subordin , nem no empirista
oricista
tória; evidentemente, não no sentido hist
essa teoria da história. ” E
mas no sentido em que pudemos esboçar que não elabore o conceito do
do mes mo mod o que toda “his tóri a”
-
imediatamente no visível do “cam
seu objeto, mas pretenda “lê-lo”
queira ou não, maculada de em-
po” dos fenômenos históricos, fica, “economia política” que vá “às
quer
pirismo, exatamente como qual creto”, ao “dado”, sem construir o
próprias coisas”, isto é, ao “con madi-
ei to de seu ob je to , fic a, qu eira ou não, enrodilhada na ar
e sob ameaça constante do ressugir-
co nc
lha de uma ideologia empirista, (seja
os”, isto é, dos seus objetivos
mento de seus verdadeiros “objet ou mesmo de um “humanismo”
co,
ele o ideal do liberalismo clássi a).
ialist
do trabalho, e até mesmo soc
und a: Se O “c am po ” dos fen ômenos econômicos não mais
* Seg já não
a hom oge nei dad e de um plano infinito, os seus objetos
tem lugares homogêneos entre si,
€,
os os
são de pleno direito, em tod . A pos-
is de comparações é de medida
pois, uniformemente suscetíve instrumento matemático,
intervenção do
sibilidade da medida, e da
ali dad es pró pri as, etc. nem por isso está excluída do eco-
de suas mod requisitos da definição
nômico, mas está a partir de então sujeita aos limi-
dos lug are s € lim ite s do mensurável, como lugares €
conceptual da ciência.matemáti-
outros recursos
tes aos quais podem aplicar-se outros
r exe mpl o, ins tru men tos da econometria, ou processos
ca (po ar subor-
mal iza ção ). A for mal iza ção matemática só pode est
de for
o à for mal iza ção con cep tua l. No caso ainda, o li-
dinada com relaçã ma-
mite que separa a economia política do empirismo, inclusive forco)
a, pas sa pel a fro nte ira que sep ara O conceito do objeto (teóri
list ticos, de
protocolos, inclusive matemá
do objeto “concreto”, e dos
sua manipulação, por
seg iiê nci as prá tic as des se princípio são evidentes:
As con “técnicos” da planificação: em
exemplo, na solução dos problemas dadeiramente
nte por problemas ver
que se tomam deliberadame puramente da ausência do con-
“pr obl ema s” que sur gem
técnic os”
o econômico . À “tecnocracia”
Dado ObIPIO, isto é, do empiridesm confusões, e vê nisso em que se
rea se desse gênero
nutre- l-
tem po int egr al: nad a há de mai s demorado para reso
em
ulado.
ver
gue um problema existente ou mal form
in
não mais é
dos fenômenos eco nômicos
se O campo
uque
Terceira;
esp
,
aço pla no, mas um esp aço pro fun do e complexo; se OS fe-
que le

“um
CF. capítulo 3,

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136 LER “O CAPITAL"

nômenos econômicos são determinados por sua complexidade (istc


é, sua estrutura), não mais se lhes pode aplicar, como antigamente, c
conceito de causalidade linear, Impõe-se outro conceito para expli.
car a nova forma de causalidade exigida pela nova definição do ob.
jeto da Economia Política, por sua “complexidade”, isto é, por sua
determinação própria: a determinação por uma estrutura,
Essa terceira consequência merece atenção especial, porque nos
introduz num domínio teórico rigorosamente novo, Tese que soa em
nossos ouvidos como algo já conhecido é que um objeto não possa
ser definido por sua aparência imediatemente visível ou perceptível,
mas que tenha de passar pelo atalho do seu conceito para o apreen-
der (begreifen: apreender; Begriff: conceito), Essa é, pelo menos, a
lição de toda a história da ciência moderna, mais ou menos refletida
na filosofia clássica, mpsmo que essa reflexão se tenha operado no
elemento de um empirismo transcendente (como em Descartes), ou
transcendental (Kant e Husserl), ou idealista-“objetivo” (Hegel).
Certo é que se impõe grande esforço teórico para acabar com todas
as formas desse empirismo sublimado na “teoria do conhecimento”
que domina a filosofia ocidental, para romper com a sua problemá-
tica do sujeito (o cogito) e do objeto - e todas as suas variantes. Con-
tudo, pelo menos todas essas ideologias filosóficas “aludem” a uma
necessidade real, imposta, contra esse empirismo persistente, pela
prática teórica das ciências reais: saber que o conhecimento de um
objeto real passa, não pelo contato imediato com o “concreto” mas
pela produção de conceito desse objeto (no sentido de objeto de co-
nhecimento), como por sua condição de possibilidade teórica abso-
luta. Do ponto de vista formal, a tarefa que Marx nos impõe, quando
nos força a produzir o conceito do econômico para termos condi-
ções de constituir uma teoria da economia política, quando nos
obriga a definir por seu conceito o domínio, os limites e as condições
de validade de uma matematização desse objeto, não se trata de ma-
neira alguma de uma ruptura com a prática científica efetiva, mes-
- Mo rompendo de fato com toda a tradição idealista-empirista da fi-
losofia crítica ocidental, Pelo contrário, as exigências de Marx reto-
mam em novo domínio requisitos que são, de há muito, impostos à
prática das ciências que atingiram autonomia. Se essas exigências
não raro se chocam contra as práticas profundamente impregnadas
de ideologia empirista que reinavam e reinam ainda na ciência eco-
nômica, isso se deve, sem dúvida, à juventude dessa “ciência”, é
também a que a “ciência econômica” está sobremodo exposta às
pressões da ideologia: as ciências da sociedade não têm a serenidade
dus ciências mutemáticas, Hobbes já o dizia: à geometria ung os
ho-
mens; a ciência social os divide, A “ciência econômica” é o campo
de butalha e o alvo dos grandes combates políticos da história.

À
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 137

Coisa inteiramente diversa ocorre com a nossa terceira conclu-


são, e com a exigência que ela nos impõe de pensar os fenômenos
econômicos determinados por uma estrutura (regional), por sua vez
determinada pela estrutura (global) do modo de produção. Essa exi-
gência apresenta a Marx um problema que não é apenas científico,
“isto é, decorrente da prática teórica de uma ciência determinada (a
Economia Política ou a História), mas um problema teórico, ou filo-
sófico, dado que diz respeito muito precisamente à produção de um
conceito ou de um conjunto de conceitos que atingem necessaria-
mente as próprias formas da cientificidade ou da racionalidade (teó-
rica) existente, as formas que definem, num momento dado, o Teóri-
co em si, isto é, o objeto da filosofia. *' Esse problema refere-se ca-
balmente de fato à produção de um conceito teórico (filosófico), ab-
solutamente indispensável para constituir o discurso rigoroso da
teoria da história e da teoria da economia política: a produção de
um conceito filosófico indispensável, que não existe na forma do con-
ceito.
Talvez seja demasiado prematuro afirmar que o surgimento de
qualquer ciência nova estabelece inevitavelmente problemas teóri-
“cos (filosóficos) dessa ordem: Engels pensava assim — e temos um
sem-número de razões para acreditar que assim seja, se examinar-
mos o que se passou ao ensejo do nascimento das matemáticas na
Grécia, da constituição da física de Galileu, do cálculo infinitesimal,
“da fundação da química, da biologia, etc. Em não poucas dessas con-
junturas assistimos a este fenômeno notável: a “retomada” de um
descobrimento científico fundamental pela reflexão filosófica e a
produção, pela filosofia, de certa forma de racionalidade nova (Pla-
tão após os descobrimentos dos matemáticos dos séculos IV e V;
Descartes depois de Galileu, Leibniz com o cálculo infinitesimal,
etc.). Essa “retomada” filosófica, essa produção pela filosofia de no-
vos conceitos teóricos que solucionam os problemas teóricos, se não
estabelecidos explicitamente, pelo menos contidos “em estado práti-
co” nos grandes descobrimentos científicos em questão, assinalam
as grandes rupturas da história do Teórico, isto é, da história da filo-
sofia. Parece, entretanto, que certas disciplinas científicas puderam
fundar-se ou mesmo crer-se fundadas, por simples extensão de certa
forma de racionalidade existente (a psicofisiologia, a psicologia,
etc.), o que tenderia a insinuar que não é qualquer fundação científi-
ca que provoca ípso facto uma revolução no Teórico, mas, pelo me-
nos, podemos presumir, uma fundação científica tal que esteja na

“ Cf Ler “O Capital”, vol. 1, p. 51.

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138 LER “O CAPITAL”

Teg.
obrigação de remanejar na prática a problemática existente no
rico para poder pensar O seu objeto: a filosofia em condições de re.
fletir no Teórico, pelo esclarecimento de uma nova forma de racio-
nalidade (cientificação, apoditicidade, etc), essu subversão ocasiona.
da pelo surgimento de uma ciência como essa, assinalaria então por
sua existência uma escansão decisiva, uma revolução na história do
Teórico.
Parece que Marx nos oferece precisamente um exemplo dessa
importância, se tivermos em mente o que já. dissemos em outra
oportunidade sobre o retardo necessário à produção filosófica dessa
nova racionalidade, e até mesmo de certos recalcamentos históricos
que algumas revoluções teóricas podem sofrer. O problema episte-
mológico colocado pela modificação radical do objeto da Economia
Politica por Marx pode ser formulado desta maneira: mediante que
conceito pode pensar-se o novo tipo de determinação, que acaba de ser
identificado como a determinação dos fenômenos de uma região dada
pela estrutura dessa região? De modo mais geral, por meio de que
conceito, ou de que conjunto de conceitos, pode pensar-se a determina-
ção dos elementos de uma estrutura, e as relações estruturais existen-
tes entre esses elementos, e todos os efeitos dessas relações, pela eficá-
ou de que
cia dessa estrutura? E, a fortiori, por meio de que conceito,
uma estru-
conjunto de conceitos pode pensar-se a determinação se
tura subordinada por uma estrutura dominante? Em outras palavras,
como definir o conceito de uma causalidade estrutural?
Essa simples questão teórica resume em si mesma à prodigiosa
descoberta cientifica de Marx: a da teoria da história e da economia
ão
política, a de O Capital. Resume-a como uma prodigiosa quest
fico de
teórica contida “'em estado prático” no descobrimento cientí
Marx, a questão que Marx “praticou” em sua obra, à qual deu por
sem lhe produzir o conceito
resposta a sua própria obra científica,
numa obra filosófica do mesmo rigor.
Essa simples questão era a tal ponto nova € imprevista que en-
-
cerrava aquilo com que estourar todas as teorias clássicas da causa
lidade - ou algo que a tornasse desconhecida, a fizesse passar des-
percebida, e ser sepultada antes mesmo de nascer. ”
De modo esquemático, pode dizer -se que a filoso fia clássi ca (O
Teórico existente) dispunha em tudo e por tudo de dois sistemas de
conceitos para pensar a eficácia: o sistema mecanicista de origem
cartesiana, que reduzia a causalidade a uma eficácia transitiva €
analítica. [Essa causalidade não era adequada para pensar à eficácia
de um todo sobre os seus elementos, à não ser ao preço de distor-
ções fora do comum (como se vê na “psicologia” ou na “biologia”
de Descartes). Dispunha-se, entretanto, de um segundo sistema,
concebido precisamente para explicar a eficácia de um todo sobre 0º


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O OMPTO DECO CAPITAL! 139

o 6
seus elementos; o concelto lelbniziano de expressão, Vase model
que domina todo o pensamento de Hegel, Mas supõe em seu princl-
pio que o todo, de que se trata, seja redutível a um princípio de inte-
rioridade peculinr, Isto é, redutivel a uma essôncia Interior, da qual
os elementos do todo não passam então de formas de expressão fe-
nomênicas, estando o princípio Interno da essência presente em cada
ponto do todo, de modo que n enda Instante se possa escrever a
equação, imediatamente adequada; certo elemento (econômico, poll-
tico, jurídico, literário, religioso, etc, em Hegel) = essência Interna do
do
rodo. Vinha-se de fato um modelo que permitia pensar a eficácia ia-
essênc
todo sobre cada um de seus elementos, mas essa cntegoria
interna/fenômeno exterior, para ser em todos os lugares e em todos

da tota-
os instantes aplicável a cada um dos fenômenos decorrentes
te
lidade em questão, pressupunha certa natureza do todo, preelsamen
expres-
essa natureza de um todo “espiritual”, em que cada elemento é
ti-
vivo de toda a totalidade, como “pars totalts”, Em outras palavras,
todo
nha-se de fato em Leibniz e Hegel uma categoria da eficácia do de
sobre os seus elementos ou partes, mas sob condição absoluta
que o todo não fosse uma estrutura, |
como pos
Se o todo for estabelecido como estruturado, isto é,
unidade
suindo um tipo de unidade inteiramente diversa do tipo de não so-
do todo espiritual, o mesmo acontece; torna-se impossível
tura sob a ca
mente pensar a determinação dos elementos pela estru
e analítica e transitiva, é ainda mais, torna-se
tegoria de causalidad
global de
impossível pensá-la sob a categoria de causalidade expressiva Propo
enos, r-se
uma essência interior unívoca imanente a seus fenômpela estrutura do
pensar a determinação dos elementos de um todo no maior
todo era estubelecer um problema absolutamente novo ito filo-
de nenhum conce
embaraço teórico, porque não se dispunha teóric
sófico tlaborado para resolvê-lo, O único o que teve a ousadia
inaudita de estabelecer esse problema o de lhe esboçar uma primeira
solução foi Spinoza, Mas a história, como sabem os, sepultou-o nas
é que
trevas du noite, Só com Marx, que todavin o conhecia pouco,
desse rosto macerado,
começamos escussumente u adivinhar os traços
genéri-
Nada mais faço aqui do que ret mar, sob a forma mais
eu, um problema teórico fundamenta Le drumútico, do qual us expo
que se truta
sições precedentes nos deram uma Idéia pree isa, Afirmo as VIAS, dl
de um problema fundamental, pois é eluro « jue, por outr
lingllística o
teoria contemporânea, tanto em psle unúliso como em o em fisteu,
nas demais disciplinas como u biologln, o talvez mesm dela, 0 “Pros
es
velo a enfrentá-lo, sem perceber que Mura, muito ant
se de um problema teóri»
duzira", no sentido próprio, Afirmo tratar ndo O
co «dramático, dado que Marx, que ” produziu” esse problema,

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140 LER “O CAPITAL”

colocou como problema, porém aplicou-se a solucioná-lo na


prática,
sem dispor de seu conceito, com extraordinária habilidade, mas sem
de todo evitar racair nos esquemas anteriores, necessariamente
ina-
dequados para a formulação e solução desse problema. Esse proble.
ma é que Marx tenta discernir nestas expressões, à procura delas
mesmas, que lemos na Introdução:
Em qualquer forma de sociedade, é uma produção deter
relações engendradas por
minada, g as
ela, que atribuem a todas as demais produções
é às relações geradas por estas o seu lugar e a sua importância. É um
de luz (Beleuchtung) geral raio
em que estão mergulhadas todas as cores, e
lhe modificam os matizes que
particulares. É um éter especial que determina,
O peso específico de todas as formas de exist
ência que nele se abrigam
(170-71).

A passagem citada trata da determinação


de produção subordinada Por uma estr de certas estruturas
utura de produção domiran-
te, e portanto de uma estrutura por outra estrutur
certa estrutura subordinada pela a, e elementos de
estrutura dominante, e portanto
determinante. Anteriormente tent
ei explicar esse fenômeno pelo
conceito de sobredeterminação, tom
ado à psicanálise, e pode admi-
tir-se que essa transferência de
um conceito analítico à teoria
ã a, porém necessária, dado que, em amb mar-
os os ca-

rmas de raciocínio, a presença cons-


K árx, € que se pode resu
tora damarx“Darstellung”, o conceito epistemomirlógi
inteiramente no concei-
co-c have de toda a teo-
ista do valor, e que tem prec
isamente por objeto designar
esse modo de pres ença da estrutura nos se use
causalidé ade estrutural, feitos, ú e pois: a próp
rópria
Se identificamos O concei
to da “Darstellung", iss
que ele seja o único de o não significa
que se se rve Marx
estrutura: basta ler as primeiras tri para
para ensar cia da
p a eficá

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 141

fórico e ao mesmo tempo o mais próximo do conceito que Marx ti-


nha em vista quando queria designar simultaneamente a presença e
a ausência, isto é, a existência da estrutura em seus efeitos.
Essa questão é extremamente importante, para evitar uma re-
caída, ainda que mínima de certo modo por inadvertência, no desvio
da concepção clássica do objeto econômico, para evitar o dizer-se que
a concepção marxista do objeto econômico seria, em Marx, determi-
nada de fora por uma estrutura não-econômica. A estrutura não é
uma essência externa aos fenômenos econômicos cujos aspectos,
formas e relações ela viria modificar, e que seria eficaz sobre eles
como causa ausente, — ausente porque externa a eles. A ausência da
causa na “causalidade metonímica” “ da estrutura sobre seus efeitos
não é resultado da exterioridade da estrutura em relação aos fenôme-
nos econômicos; é, pelo contrário, a própria forma da interioridade da
estrutura, como estrutura, em seus efeitos. Isso implica então que os
efeitos não sejam externos à estrutura, não sejam um objeto ou um
elemento, um espaço preexistente, nos quais a estrutura víria impri-
mir a sua marca: muito pelo contrário, implica que a estrutura seja
imanente a seus efeitos, causa imanente de seus efeitos no sentido
spinoziano do termo, e que toda a existência da estrutura consista em
seus efeitos, em suma, que a estrutura, tão-somente combinação es-
pecífica de seus próprios elementos, nada seja fora de seus efeitos.
Esse esclarecimento é importantíssimo para explicar a forma às
vezes estranha que a descoberta e procura de expressão dessa reali-
dade assumem também em Marx. Para compreender essa forma es-
a
tranha, impõe-se notar que a exterioridade da estrutura em relação
seus efeitos pode ser concebida ou como pura exterioridade ou
como uma interioridade, sob condição apenas que essa exterioridade
Essa
ou interioridade sejam pensadas como distintas de seus efeitos.
distinção
distinção assume não raro em Marx a forma clássica da
e à sua
entre o dentro e o fora, entre a “essência íntima” das coisas
O “vínculo
“superfície” fenomênica, entre as relações “íntimas”, cot-
das próprias
íntimo” das coisas'e as relações e vínculos externos à distin-
sas. E sabe-se que essa oposição, que equivale em princípio
ção clássica da essência e do fenômeno, isto é, a umade distinção que
seu conceito,
situa no ser em si, na realidade em si, O lugar interior
concretas; que,
conpraposto então à “superfície” das aparências
no próprio objeto
pois, transpõe como diferença de nível ou de partes dado que se
real uma distinção que não pertence a esse objeto real,

de causalidade estrutural
* Expressão de J, A. Miller para caracterizar uma forma
descoberta em Freud.

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LER “O CAPITAL"
142

ara O conceito,subou conhecimentno desse


trata da distinção que objsepeto exi ste nte ; - e-s e que essa
real, desse real como
e lev ar, em Ma rx , à est a ob vi edade: se a essência não fosse a de
pod encial não fosse diferente nci do e
rença dos fenômenos, se O interior ess ta necessidade da clê a, E
co, não se ter
terior inessencial ou fenomêni todos
ula singular pode nutrir-se de
Sabe-se também que essa fórm resentam o desenvolvimento do
ap
os argumentos de Marx que nos trato ao concreto, passagem enten-
abs
conceito como a passagem do e essencial - abstrata em princípio -
dad
dida então como da interiori ext ern as, vis íve is € perceptíveis, passagem
às determinações concretas trânsito do livro I ao livro III. Toda argu-
que resumiria em suma O a ainda uma vez na confusão entre o con-
mentação equívoca repous anto perfeitamente isolado por Marx na
ret
creto-de-pensamento, ent esse mesmo concreto
real - ao pas-
real, com
Introdução do concreto rea l do livro III, isto é, o
conhecimen-
o co nc re to i-
so que em realidade é, como qualquer conhec
, do lucro e do juro,
to da renda fundiária €
re to em pí ri co , ma s O co ncei to, portanto, aindae-
mento, não o conc chamar € de fato cham
ei de “G
sempre uma abstração: o que pude pro-
um
ra be m as si na la r qu e se tratava ainda de
neralidade Il", pa
ec im en to de um a ex is tência empírica e não
nh
duto do pensamento, co ar a conclusão
pírica. Impõe-se então tir
essa própria existência emem do livro Tao livro III de O Capital nada
disso e dizer que a passag strato-de-pensamento
ao concreto-
em do ab
tem a ver com a passag strações do pensamento necessári
real,com a passagem das ab ro 1 ao livro III, não saímos Jà-
re to em pí ri co . Do liv
conhecer, ao conc tos do pen-
mais da abstração, isto é, do conhecimento, dos “produ
enas, no
”: ja ma is sa ím os do conceito. Passamos ap
conceito da estrutura €
sar e do co nc eb er
ear da ab stração do conhecimento, do co ti-
nceitos dos efeitos par
ger ais da es tr ut ur a, aos
pe her ro sequer,
amena iraitira - nã o transpomos jamais, um momento
in st ra np on ív el qu e separa O “desenvolvi:
mento” OU és era o do conceito, do desenvolvimento e da par,
e pr a Aipaçã razão sólida: essa fronteira
é
de direito intrans fi 7 e isso por uma e
nte ed ida po rq ue é fr on teira de nada, porque não pod ito
ser uma fro es pa ço homogêneo comum (es
pír
i não há
ou real) entre o i
ER con cei to de um a coi sa e o concreto emplrts
co dessa coisa que possa utorizar o emprego do conceito de fronteira.
insisto à seis Mlivra sobre esse ; quívoco é para deixar bem cla-
ai ooSe (nulo
a qual Marx se achava quando lhe foi neces-

Ê
Do
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 143

“sário pensar, num conceito verdadeiramente refletido, o problema


epistemológico que ele no entanto havia produzido: como explicar
teoricamente a eficácia de uma estrutura sobre os seus elementos?
Essa dificuldade não deixou de ter conseqliências, Assinalei que a
reflexão teórica anterior a Marx havia fornecido apenas dois mode-
los de uma eficácia pensada: o modelo de uma causalidade transitiva
de origem galileana e cartesiana, e o modelo de uma causalidade ex-
pressiva de origem leibniziana, retomada por Hegel, Esses dois mo-
delos podiam entretanto revelar um fundo comum na oposição clás-
sica do par essência-fenômeno, jogando com o equívoco dos dois
conceitos. O equívoco desses dois conceitos é, de fato,
evidente: a es-
sência remete ao fenômeno, mas ao mesmo tempo,
em surdina, ao
inessencial. De fato o fenômeno remete à essência, de que
ele pode
ser a manifestação ou a expressão, mas remete ao mesmo
tempo, e
em surdina, àquilo que aparece ao sujeito empírico, à percepção
e,
pois, à afecção empírica de um sujeito empírico possível. É
simplíssi-
mo então acumular na própria realidade .essas determinações
equí-
vocas, € localizar no próprio real uma distinção que no entanto
é des-
“tituída de sentido a menos que em função de uma distinção
exterior
ao real, dado que põe em jogo uma distinção entre o real e o
seu co-
nhecimento. Marx, à procura de um conceito para pensar a singular
realidade da eficácia de uma estrutura sobre os seus elementos,
não
raro recorreu, e na verdade de modo quase inevitável, ao par clássico
essência e fenômeno, encampando, por força e não por virtude, as.
suas ambigiiidades, e extrapolando para a realidade, sob a forma de
“interior e exterior” do real, do “movimento real e do movimento apa-
rente”, da “essência íntima” e das determinações concretas, fenomê-
nicas, percebidas e manipuladas por indivíduos, a diferença episte-
mológica entre o conhecimento de uma realidade e essa própria reali-
dade. Não tenhamos dúvida de que isso teve conseqiiências no con-
ceito que ele tinha de ciência, como o podemos perceber quando
Marx cuidou de dar o conceito daquilo que seus predecessores ha-
viam achado, ou falhado - ou o conceito da diferença que o distin-
guia deles,

Mas esse equívoco teve também consequências sobre a e


pretação do fenômeno que Marx batizou com o nome de dae is-
mo”, Ficou claro que o fetichismo não era um fenômeno su ativo,
pertinente às ilusões ou à percepção dos agentes do processo econô-
mico, de modo que não se pode reduzi-lo aos efeitos subjetivos pro-
duzidos nos sujeitos econômicos pelo lugar deles no processo, na es-
trutura. No entanto, quantas passagens de Marx nos apresentam o
fetichismo como uma “aparência”, uma ilusão pertinente unica-
mente à “'consciência”, mostrando-nos o movimento real, interno,

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144 LER:R “O CAPITAL”

do processo, “aparecendo” sob forma fetichizada à “consciência”


dos mesmos sujeitos, sob a forma do movimento aparente! E, no en.
tanto, quantas outras passagens de Marx nos asseguram que essa
aparência nada tem de subjetiva, mas é, pelo contrário, sempre ob-
jetiva, a “ilusão” das “consciências” e das percepções sendo por sua.
vez secundária, e deslocada pela estrutura dessa primeira “ilusão”
puramente objetiva! Nesse caso, sem dúvida, é que vemos mais cla-
ramente Marx debater-se com conceitos de referência inadequados a
seu objeto, ora aceitando-os, ora recusando-os, num movimento ne-
cessariamente contraditório.
Entretanto, e em virtude mesmo dessas hesitações contraditó-
rias, Marx toma não raro o partido daquilo que afirma efetivamen-
te: e produz então conceitos adequados ao seu objeto. Mas tudo se
passa como se, ao produzi-los num lampejo, não tivesse posto em
ordem e enfrentado teoricamente essa produção, não a tivesse refle-
tido para impô-la ao campo total de suas análises. Por exemplo, ao
tratar da taxa de lucro, escreve Marx:

Essa relação mv/c+v // taxa de lucro // concebida de maneira ade-


quada em sua dependência conceptual, interior (seinem begrifflichen. in-
nem Zusammenhang entsprechend gefasst) & à natureza da mais-valia, ex-
prime o grau de valorização de todo o capital adiantado (O Capital, VI,
64). -

Nesse trecho como em muitos outros, Marx “pratica” sem


qualquer equívoco essa verdade de que a interioridade nada mais é
que o “conceito”, que ela não é “o interior” real do fenômeno,
mas
seu conhecimento. Sendo assim, a realidade que Marx estuda já não
pode apresentar-se como uma realidade em dois níveis,
o interior e O
exterior, o interior sendo identificado com a essência
pura e o exte-
rior como um fenômeno, ora puramente subjetivo, estado
de uma
consciência”, ora impuro, porque estranho
à essência ou inessen-
cial. Se “ointerior” é o conceito, o exterior
ção do conceito, exatamente como os efeitos sóda pode ser a especifica-
estrutura do todo só
podem ser a própria existência da estrutura. Eis, por exempl
diz Marx sobre a renda fundiária: PRO O Que
É importante para a análise científica da ren bio à
forma econômica, específica e autônoma, que Ra ea Isto é, da
terra no modo capitalista de produção, examiná-la
em sua RE sdado da
despojada de qualquer complemento que a
falsifique e lhe oa E
natureza; mas é importantíssimo também conhecer os
a raiz dessas confusões, a fim de compreender bem elementoç US á
propriedade da terra, e inclusive chegar ao conhec os efeitos ra (ve São
imento teórie últicos da
número de fatos que, embora em contradição
com o conceito o de certo
da renda da terra, . aparecem no entanto como modos d, € SmÀ naturez
ai a
(O Capital, VH, 16). * Existência desta

4
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 145

Vemos aqui em flagrante o duplo estatuto que Marx atribui à


sua análise. Ele analisa uma forma pura, que nada mais é que o con-
ceito da renda capitalista da terra, Essa pureza, ele a pensa ao mes-
mo tempo como a modalidade e a própria definição do conceito, e
ao mesmo tempo a pensa como o que ele distingue da impureza
empírica. Essa mesma impureza empírica, ele « pensa no entanto
imediatamente, num segundo movimento de retificação, como “os
modos de existência , isto €, como determinações teóricas do concei-
to de renda da terra em si. Nesta última concepção, saímos da dis-
tinção empirista.da essência pura € dos fenômenos impuros; aban-
donamos a idéia empirista de uma pureza que é então apenas o re-
sultado de uma depuração empírica (visto que depuração do empíri-
co) - pensamos realmente na pureza como pureza do conceito, pure-
za do conhecimento adequado a seu objeto, e nas determinações
desse conceito como o conhecimento efetivo dos modos de existên-
cia da renda da terra. Claro está que essa linguagem por si mesma
revoga a distinção de interior e exterior, para pôr em seu lugar a dis-
tinção do conceito e do real, ou do objeto (de conhecimento) e do
objeto real. Mas se levamos a sério essa indispensável substituição,
ela nos orienta no sentido de uma concepção da prática científica e
de seu objeto que nada mais tem em comum com o empirismo.
Marx nos dá os princípios dessa concepção inteiramente modi-
ficada da prática científica, e sem qualquer equivoco, na Introdução
de 57. Mas uma coisa é desenvolver essa concepção, e outra é pô-la
em prática a propósito do problema teórico inaudito da produção -
do conceito da eficácia de uma estrutura sobre os seus elementos.
Dars-
Esse conceito que vimos Marx praticar no emprego que faz da
de captar nas imagens da modificação do raio
tellung, e na tentativa
de luz ou do peso específico dos objetos pelo éter no, qual estão
nas passa-
imersos, aflora por vezes em pessoa, na análise de Marx,
extrema-
gens em que ele se exprime numa linguagem inédita, mas
entretanto Já
mente rigorosa: a linguagem das metáforas que são
o terem sido
conceitos quase perfeitos, aos quais só falta talvez
e, pois, tomados e desenvolvidos como, conceitos. O
apreendidos
O sistema capita-
mesmo se aplica toda vez que Marx nos apresenta
lista como um mecanismo, uma mecânica, uma maquinaria, máquina
ou montagem (Triebwerk, Mechanismus, Getriebe... cf. VIH, 25
como a complexidade
II, 887; VIII, 256; IV, 200; V,73; V, 154); ou
for, as distin-
de um “metabolismo social” (VIII, 191). Seja como
como a ligação
ções correntes de fora e dentro desaparecem, assim
visível: esta-
“íntima” dos fenômenos contrapostos à sua desordem
novo, definitiva-
mos diante de outra imagem, de um semiconceito
fenomêni-
mente libertos das antinomias empiristas da subjetividade
objetivo regula-
ca e da interioridade essencial, diante de um sistema

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LER “O CAPITAL"
146

mentado, nas suas determinações mais COMUNA, pelas leis de sua


montagem e de sua maquinaria, pelas ape cações do seu conceito,
podemos ter em mente o termo Darstellung, compa.
rá-lo à essaé que
Nese caso “maquinaria” e tomá-lo literalmente, como a própria
existência dessa maquinaria em seus efeitos: o modo de existência
cena,
dessa encenação, desse teutro que € dO mesmo tempo a própria
o texto, Os atores, esse teutro cujos espectadores só podem ser efeti-
seus atores for-
vamente espectadores porque são primeiramente os não
çados, tomados nas constrições de um texto e papéis dos quais
teatro
podem ser os autores, dado que se trata, em essência, de um]
] ]
sem autor.
rados
Devemos fazer um comentário a mais? Os esforços reite
existente, para
de Marx para romper os limites objetivos d o Teóricoc
que à sua des-
modelar O instrumento com o qual pensar a questão
ssos, e mes-
coberta científica colocava para a filosofia, os seus fraca ,
mo as suas recaídas, fazem parte do drama teórico que ele viveu
s
numa solidão absoluta, muito antes de nós, que apenas começamo
a suspeitar, pelos signos de nosso céu, de que a sua questao é à o
por muito tempo, € que ela governa todo o nosso futuro. Sozinho,
Marx procurou à sua volta aliados e sustentáculos: quem poderá
censurá-lo por ter-se apoiado em Hegel? Quanto a nós, devemos à
Marx O não estarmos sós: nossa solidão só se susteve por nossa 18º
norância do que ele dissera. É esta que devemos acusar, em nós eem
todos os que pensam tê-lo ultrapassado - e só falo dos melhores -
quando estão apenas no limiar da terra que ele nos descobriu €
abriu. Devemos a elé até mesmo enxergar-lhe as falhas, as lacunas,
as omissões: elas contribuem para a sua grandeza, pois que, &o con-
siderá-las, nada mais fazemos do que retormar nos inícios um dis-
curso interrompido pela morte. Sabemos como termina o terceiro li-
vro de O Capital, Um título: as classes sociais. Vinte linhas, e depois
o silêncio,

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 147

Apêndice: Sobre a “Média Ideal”


e as Formas de Transição

é sobre dois problemas teó-


O pequeno comentário que se segue a de
acionados diretamente com à descobert
ricos importantes, rel O
o: o da definição do objeto de
Marx e as suas formas de expressã mas
Capital como “a média ideal” do capitalismo real - e O das for
a outro.
de transição de um modo de produção
, que as relações econômicas
Suporemos sempre, neste exame geral
, ou o que é a mesma coisa, às rela-
reais correspondem bem a seu conceito
medida em que traduzem o seu prô-
ções reais só serão expostas aqui na
. (VI, 160).
prio tipo geral (allgemeinen Typus)..

define em várias oportunidades esse tipo geral como


Marx
modo de produção capitalis-
“média ideal” (idealer Durchschnitt) do
a idealidade estão combi-
ta, Essa denominação, em que a média e
po que se referem a certo |
nadas do lado do conceito, ao mesmo tem ica filosófi-
problemát
real existente, estabelece de novo a questão da
regnada de empi-
ca que sustenta essa terminologia: não estará imp
vista uma passa-
rismo? A isso seríamos levados a pensar tendo em
gem do Prefácio da primeira edição alemã de O Capital,

O físico observa os processos da natureza, quando se manifestam na


forma mais característica e estão mais livres de influências perturbado-
ras, ou, quando possível, faz experimentos que asseguram a ocorrência

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148 LER “O CAPITAL”

d o processo, em sua pureza. Nesta obra, o que tenho d de mior, é o



+“

a e as corre spondentes relações


modo de produç ão capitalista Inglaterra é o campo clássico dosis
1 +
[4

ução
e de circulação. Até agora, a tomei como principal ilustração Apre
qual
ção. Este O motivo pe lo a
18).
explicação teórica (1,

No entanto, submete
Marx escolheu, pois, O exemplo inglês. ele
esse mesmo exempl o a notável “purificação”, visto que, segundo
ara, a anál ise é feita sob con diç ão de supor que o seu ob-
mesmo decl o duas classes em confronto (situa-
jeto não com pre end e jam ais senã por
lqu er exe mpl o no mun do) e que o mercado mundial
ção sem qua ão capitalista, o que
inteiro está submetido ao mundo da produç
, o que Marx estuda não é
também está fora da realidade. Portanto um
O exe mpl o ingl ês, não obstante clássico e puro, mas
nte
propriame
inex iste nte, pre cis ame nte o que ele chama de “média ideal”
exempl o dificuldade
o de pro duç ão capi tali sta. Lênin ressaltou essa
sur la théorie de la réalisation de
do mod
man ife sta nas Nou vel les rem arq ues
o IV, pp. 87-88):
1899 (Oeuvres, ed. francesa, tom
ocupa
-no s por um mom ent o no proble ma que há muito
Detenhamo o da realização?
o valor científico ver dadeir
a atenção de Strouvé: qual é abstrata de
as as demais teses da teoria
Exatamente o mesmo de tod oluta é
Se Str ouv é per tur bad o com O fato de que “a realização abs
Marx. lidade”,
de modo nenhum a sua rea
o ideal da produção capitalista, mas is leis do capitalismo descobertas
dema
fá-lo-emos lembrar que todas as capita-
exat amen te do mesmo modo que o ideal do
por Marx se traduzem “Nosso objetivo”, escrevia
lismo e de modo nenhum a realidade dele.
rna do modo de produção capl
Marx, “é representar a organização intemédia ideal”. A teoria do capital
talista apenas, por assim dizer, em sua força de tra-
receba o valor integral de sua
pressupõe que o trabalhador o nenhum à realidad. A
balho. Tal é o ideal do capitalismo, mas de mod inteira se ac he dividi-
ola
besvia da renda pressupõe que a população agríc assala-
capitalistas e em trabalhadores
E e proprietários da terra, em à reali dade.
jados. Tal é o ideal do capit alismo, mas de modo nenhum
teoria da realização pressupõe uma distribuição proporcional da produ-
nenhum a sua re alidade.
ção, Tal é o ideal do capitalismo, mas de modo
o,
Lêni de Marx,
E ar do que retomar a linguagem
Sora al” na expressão “média ideal”,
a idealidade do objeto dy mo “ide realidade histórica efetiva.
Não seria preciso limos mui arx com a
madilhas do empirismo uito longe neslesa oposição para cair nas ar-
os que Lênin desig-
na a teoria de Marx Dos Mo orsiudo se mbrarm
Hapcida naturalmente ao hiisthoóriparece astim : Suit
a reto-h
as forma vá E
e o Lhd Ho capitalisAA noncR
mo, Mas, co eb
R
en do e a fepod sao
tuga
aiero
ação A x,
de (idéalité) como ma ide
ceptualidade de seu objeto, e a smádia! cs prio dr SOMA simples con-
eúdo do concei-

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 149

to desse objeto - e não como resultado de uma abstração empírica.


jo se trata em Marx de um objeto Ideal (tdéal) contraposto a um
objeto real, e, por isso mesmo, distinto dele, como o dever ser do ser,
a norma do fato - O objeto da teoria de Marx é ideal (Idéel), isto
é,
definido em Jermos de conhecimento, na abstração do conceito. O
próprio Marx O diz, quando escreve que a “diferença específica do
sistema capitalista-se manifesta (sich darstellt )na estrutura de seu nú-
cleo integral (in ihrer panzen Kerngestalt (VI, 257). Essa “Kernges-
talt”* e suas determinações é que constituem o objeto da análise de
Marx, na medida em que essa diferença especificã define o modo
de produção capitalista como modo de produção capitalista. O que,
para economistas vulgares, como Strouvé, parece em contradição
com a realidade, constitui para Marx a própria realidade, a realidade
de seu objeto teórico. Basta, para bem compreender isso, ter em men-
te o que dissemos do objeto da teoria da história e, pois, da teoria da
economia política: ela estuda as formas de unidade fundamentais da
existência histórica, isto é, os modos de produção. É, de resto, o que
Marx nos diz, se tomarmos suas expressões literalmente, no prefácio
da primeira edição alemã quando fala da Inglaterra:

Nesta obra, o que tenho de pesquisar é o modo de produção capita-


lista e as correspondentes relações de produção e circulação (1, 18).

Quanto à Inglaterra, a ler de perto o texto de Marx, ela inter-


vém simplesmente como fonte de ilustração e de exemplos, e de modo
nenhum como objeto de estudo teórico:

Até agora, a Inglaterra é o campo clássico dessa produção. Este o


motivo pelo qual a tomei como principal ilustração de minha explicação
teórica (ibid.).

Essa declaração inequívoca recoloca na justa perspectiva a ex-


pressão inicial, em que se invoca o exemplo da física, em termos que
podiam dar a entender que Marx estava à procura de um objeto
“puro”, “livre de influências perturbadoras”. A Inglaterra, pois, é
também um objeto impuro e perturbado, mas essas “impurezas e
“perturbações” não causam mal teórico algum, dado que nãoé a In-
glaterra o objeto teórico de Marx, mas o modo de produção capitalista
na sua “Kerngestalt” e as determinações dessa “Kerngestalt”. Quan-
do Marx nos declara estudar uma “média ideal”, impõe-se com-
preender que essa idealidade é a conotução não do não-real, ou da
forma ideal, mas do conceito do real; e compreender que essa “mé-
dia” não é empirista, e pois a conotação do não-singular, mas, pelo
contrário, conotação do conceito da diferença especifica do modo
de produção considerado,

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150 LER “O CAPITAL"

Sigamos mais além. Pois, se voltarmos ao exempe lo inglê


aparentemente purificado simpli fie, q seo
compararmos ao objeto a de duas classes, só E o de
modo de prod ução capit alist
Marx, esse
mos fazer se estivermos diante de um resíduo real; precisamer e
para nos limitarmos a essa questão pertinente à existência real das
demais classes (proprietários de terra, artesãos, pequenos proprietá-
rios agricolas). Não podemos honestamente suprimir essesó resídu o
pura e simplesmente O fato de que Marx se pro-
real, invocando de pro-
põe como objeto O conceito da diferença específica do modo conhe-
reale o seu
dução capitalista, € invocando a diferença entre o
cimento!
No entanto,é nessa diferença aparentemente peremptória, e
da interpretação empirista da
que constitui o argumento princi pal
significação o que dissemos do
teoria de O Capital, que assume to da
x só pode estudar a dife-
estatuto da teoria da história. Porque Mar
talista sob a condição de
rença especifica do modo de produção capi
de produção, e não apenas
estudar ao mesmo tempo os demais modos
s de unidade específica de
os demais modos de produção, como tipo
mas também as relações de
Verbindung entre os fatores da produção,
processo de constituição
diferentes modos de produção entre si, no
capitalismo inglês é um ob-
dos modos de produção. A impureza do
propôs estudar em O Capi-
jeto real e determinado que Marx não se
: essa impureza é, sob a
tal, mas que é relevante na teoria marxista
visoriamente chamar de
sua forma imediata, o que podemos pro domi-
ão capitalista,
“cobrevivências”, no seio do modo de produç
nante na Grã-Bretanha, de formas de modos de pro dução subordi-
produção capitalista.
nados e não ainda eliminados pelo modo de
tencente à teoria
Essa alegada impureza constitui, pois, objeto per
dos modos de produção: muito em especial a teoria da transição de
um modo de produção a outro, o que se con funde com a teoria do pro-
do, dado que
cesso de constituição de um modo de produção determina
partir de formas existentes de
todo modo de produção se constitui a obje
um modo de produção anterior. Esse to pertence de pleno direi-
desse oie DÃO ES se soubermos conhecer esses títulos de direito
ter daço é
teoria dele pio pos rentos, onturar a Mars o não nos
do capital ÃA,cons tituem pelo menos a matéria, rulaçã
éri , jáaeenão o O esboçO o
seja
dotes LADI DO QUO CONGO
- i e ao processo de constituição do modo
de produção capitalista
Fesaual Pça0; o iod
feud - isto
dea pro
pitaolist é, a transição do modo de produção
tução capitalista, Devemos, pois, reco-
ivamente nos deu, € o que isso nos ite
encontrar do que ele não chegou a nos dar, Assiassim COMO pod Peep
+
dizer que possuímos apenas o esbo ço de uma emos
teor ia
mod os de produção anteriores ao modo de produção SEIA marx ist

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O OBJETO DE “O CAPITAL”
[51

podemos dizer, e inclusive, dado que a existência desse prob


sobretudo a necessidade de colocá-lo na form lema e
cão reconhecidos
a teórica própria não
de modo unânime - devemos dizer
que Marx não
nos deu a teoria da transição de um modo
da constituição de um modo de produção. deSabe
produção a outro, isto é,
mos que essa teoria é
indispensável, simplesmente para podermos concluir
a construção do socialismo,
o que se charia
em que está em causa a transição do
modo de produção capitalista ao modo de produção
socialista, ou
ainda para solucionar os problemas apresentados
“subdesenvolvimento" pelo chamado
dos países do terceiro mundo. Não posso
me estender sobre os problema
m s teóricos ap resentados aqui
to novo, mas podemos admitir como certo por esse obje-
to que a formulação e solu-
ção desse problemas de contun dente atuali idade estão em prim
plano no estudo do marxismo. Nã eiro
o apenas o problema do culto da
personalidade, mas também todos os
problemas atuais enunciados
sob a forma das “vias nacionais pa
ra o socialismo”, das “vias pacifi-
cas” ou não, etc. dependem dire
tamente dessas pesquisas teóricas.
Nesse caso também — € mesmo que
certas formulações nos le-
vem à beira de um equiv oco, Mar
x não nos deixou sem indicações
ou recursos. Se podemos colocar
como problema teórico a questão
da transição de um modo de pro
dução a outro, e portanto não ape-
nas explicar transições pa ssadas,
mas ainda prever o futuro, e “sal-
tar por cima do nosso te mpo” (o que não
podia fazer o historicismo
hegeliano), é, não em fu nção de uma
pretensa “estrutura experimen-
tal” da histór
ia, mas em função da teoria marxista como teor
ia dos mo-
dos de produção, da definição dos elementos constitu
tivos dos
diferentes modos de produção, e pelo fato que os proble
mas teóricos
suscitados pelo processo de constituição de um modo de
produção
(em outras palavras, os problemas da transformação de um modo
de produção em outro) são função direta da teoria dos modos de
produção considerados, “ Eis a razão pela qual podemos dizer que
Marx deu elementos para pensar esse problema, decisivo dos pontas
de vista teórico e prático: é a partir do conhecimento dos anda =
produção em pauta que
podem ser formulados e
problemas da transição, Por esse motivo o o fu
é que po ge praça e
turo, e constituir a teoria não apenas desse Eytu RO, 0 realidade.
sobretudo das vias e meios que nos paragiinão EE TOR de de.
A teoria marxista da hisiAnia, anien o amos definirá Ulto
finir, assegura-nos esse direito, des! tes. MasMas, ao mesmo tempo, ela
exa tamente as suas condições e limi

“ Cf, o estudo de Balibar, p. 153.

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152 LER “O CAPITAL"

nos dá com o que avaliar o que nos resta a fazer - e que é imenso,
para definir com todo o rigor desejável essas vias e esses meios, Se é
certo que a humanidade só se propõe tarefas que está em condições
de realizar (sob condição de não dar a essa fórmula uma conotação
historicista), ainda assim é preciso que a humanidade adquira exata
consciência da relação existente entre essas tarefas e suas capacida-
des, e que ela aceite passar pelo conhecimento desses termos e sua
relação, e portanto pelo questionamento dessas tarefas e capacida-
des, para definir os meios próprios para produzir e dominar
seu fu-
turo. Na falta disso, e até na “transparência" de suas novas relações
econômicas, ela correria o risco, como já teve a experiênci
a nos si-
lêncios do terror - e como pode ter uma vez mais nos anseios
do hu-
manismo, correria o perigo de entrar, com a consciência
pura, num
futuro ainda carregado de perigos e de sombras,

Observações

O Capital é citado na tradução das Editions Sociales (8 volu-


mes), O número em algarismos romanos indica o número do tomo; em
alagarismos arábicos, a página. Por exemplo, O Capital, !V, 105 deve
ler-se: O Capital, Editions Sociales, tomo
IV, p. 105.
As Teorias sobre a Mais-Valia (Theorien iiber den Mehr-
wert)
foram traduzidas em francês por Molitor (Ed. Costes) sob o título:
Histoire des Doctrines Economiques, em 8
tomos. Empregamos a
mesm a fórmula de referência que para O Capital
Áconteceu-nos fregiiente (tomo, página).
mente retificar as traduções francesas de
referência, inclusive a tradu
acudir mais de perto ao textoçãoalemã
do livro | de O Capital por Roy, para
o, em certas passagens demasiado
densas ou carregadas de sentido teórico, Em nossa leitura de modo mui-
to geral recorremos ao texto alemão da edição
Dietz ( Berlim), em que
O Capital e as Teorias sobre a Mais-Valia comportam cada qual três
tomos.

L. Althusser

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Etienne Balibar:

"Sobre os Conceitos
Fundamentais do
Materialismo Histórico

As dissertações precedentes formularam já a idéia de que en-


ia. Mostra-
contramos em Marx uma teoria científica geral da histór
por
ram, sobretudo, que, na formação dessa teoria, a construção fun-
uma
Marx do conceito central de “'modo de produção” possui
ção da filo-
ção de ruptura epistemológica em relação a toda a tradi
de, sendo in-
sofia da história. Isso se deve a que, em sua generalida
dog-
teiramente incompatível com os princípios do idealismo tanto
a problemáti-
mático como empírico, subverte paulatinamente toda
ca da sociedade e da história,
rico”
É desse modo, como sabemos, que o “materialismo histó
histórico
de Marx nos dá não apenas elementos de conhecimento
ue-
científico (por exemplo, limitados à história da sociedade “burg -
princi
sa”, nos seus aspectos econômicos e políticos), mas, no seu
a abstra-
pio, uma verdadeira ciência teórica, e portanto uma ciênci
ata-
ta, O conceito de ''modo de produção” e os que lhe estão imedi
mente relacionados aparecem assim como os primeiros conceitos
do ou
abstratos cuja validade não é, como tal, limitada u esse perío
aquele tipo de sociedade, mas dos quais depende, inversamente, o
r, no
conhecimento concreto deles. Dal a importância de os defini
nível de generalidade que comportam, isto é, de fato, estabelecer al-
guns problemas dos quais, desde Marx, está dependente a ciência da
história.

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154 LER “O CAPITAL”

Entretanto, em sua exposição, Althusser nos mostrou que a for-


mulação explícita (e, pois, o reconhecimento) de uma teoria abstrata
da história está envolvida em dificuldades e ambigúidades, Mostrou
as razões históricas e filosóficas disso. A teoria de Marx pode reali-
zar esse paradoxo: ter por constante objeto a própria história da
qual ele inaugura o conhecimento científico, e não oferecer em parte
alguma o conceito adequado dessa história, refletido por ele mesmo.
Gostaria primeiramente de acrescentar alguns esclarecimentos sobre
essa questão, os quais nos introduzirão no problema que me cabe,
Não é inteiramente exato afirmar que essa formulação teórica
esteja ausente: vários trechos a esboçam de modo notável, como,
por exemplo, a primeira parte de 4 Ideologia Alemã (que contém já
uma nova definição completa da “produção”), diversos rascunhos
preparatórios de O Capital, reunidos nos Grundrisse der Kritik der
politischen Oekonomie, ' mas sobretudo no prefácio à Contribuição à
Crítica da Economia Política, cujos termos são constantemente co-
mentados pela tradição marxista. Trata-se de textos muito gerais,
prospectivos ou resumidos; textos em que a clãreza das divisões, o
peremptório das afirmações não se equilibram com a brevidade das
justificações e a elipse das definições. Por um acaso infeliz, que é na
realidade verdadeira necessidade histórica, as únicas exposições
dos princípios da teoria da história, como as principais exposições de
método (a Introdução, de 1857), são desse tipo, de resto, em maioria,
“deixados deliberadamente em estado de manuscritos inacabados,
inéditos. Há, pois, certa justeza na indagação dos leitores de Marx
quanto a “onde ao certo Marx expôs sua concepção da história”,
não obstante as dissimuladas intenções críticas que os animam.
É conhecida a resposta do jovem Lênin em O que são os amigos
do povo: * essa teoria está em toda a parte, mas sob duas formas; o
Prefácio da Contribuição apresenta a “hipótese do materialismo his-
tórico”; O Capital é a elaboração da hipótese e sua comprovação
com base no exemplo da formação social capitalista. São esses os
conceitos que permitem a Lênin formular um comentário a nosso
ver decisivo: na expressão “materialismo histórico”, “'materialis-
mo” nada mais significa senão ciência, e a expressão é rigorosamen-
te sinônima de “ciência da história”, Mas esses conceitos pertencem

" Grundrisse der Kritik der politischen Oekonamie (Rohentwurf 1857-1858), Dietz
- Verlag Berlin, 1963, Entre esses manuscritos, veja-se sobretudo: Formen, die der kapi-
talistischen Produktion vorgergehen, citado aqui sob o título abreviado: Formas ante-
riores, na paginação alemã, pp. 375-413). ,
* Lênin, Ce que sont les amis du peuple et comment ils luttent contre les social.
démocrates, in OEuvres Complêtes, trad. francesa, Paris, Moscou, 1958, tomo 1,

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MATERIALISMO HISTÓRICO [55

ao mesmo tempo organicamente à teoria empirista, até mesmo prag-


matista, da ciência da qual esse texto de Lênin é aplicação completa
(Hipótese/comprovação). Esforcemo-nos entretanto para retomar
seu movimento em outros termos.
Em realidade, esse Prefácio à Contribuição, se o lermos atenta-
mente, não nos apresenta a forma de uma hipótese, porém explicita-
mente a de uma resposta cuja questão cumpre tentar reconstituir,
Tomemos por exemplo um trecho bem conhecido, um desses
textos-programas cujo interesse já se mostrou aqui, em que Marx
enuncia O que ele demonstrou de novo, a carta de 5 de março de 1852
a Weydemeyer:

Não cabe a mim o mérito de ter descoberto a existência das classes


na sociedade moderna, assim como a luta que empreendem mutuamente.
Historiadores burgueses expuseram muito antes de mim a evolução his-
tórica dessa luta de classes e economistas burgueses lhe descreveram a
anatomia econômica. A minha contribuição original foi primeiramente
demonstrar que a existência das classes está relacionada tão-só com fases
históricas determinadas do desenvolvimento da produção...

Verificamos aqui -um movimento característico de Marx quan-


do ele quer pensar a sua “originalidade”, isto é, sua ruptura, sua
cientificidade: a delimitação de um classicismo. Assim como há um
classicismo econômico (inglês), há um classicismo histórico cujos re-
presentantes são os historiadores franceses (Thierry, Guizot) e ale-
mães (Niebuhr) de inícios do século XIX. Eis portanto o ponto de
partida de Marx: o ponto de chegada deles. O conhecimento históri-
co, na forma mais acabada, mostra a sucessão das “civilizações”,
“Tegimes políticos”, “acontecimentos”, “culturas”, organizado, ra-
cionalizado por uma série de lutas de classes, sua forma geral cujas
figuras se podem enumerar; escravos e cidadãos livres, patrícios e
Plebeus, servos e proprietários feudais, mestres e companheiros, lati-
fundiários e burgueses, burgueses e proletários, etc. A essa herança, a
esse fato, proposto pela história, corresponde a famosa abertura do
Manifesto, mas que é já em si resultado de um trabalho de conheci-
"mento: “A história de toda a sociedade até hoje tem sido a história
da luta de classes”, Essa frase não é a primeira palavra da teoria de
Marx, mas a precede, e resume a matéria-prima do seu trabalho de
“transformação. | '
Esse ponto é importantíssimo, porque nos permite formular
mais rigorosamente a questão de Marx, contida no Prefácio da Con-
tribuição: em que condições a afirmação de que a história é a história
das lutas de classes pode ser um enunciado científico? Em outras pala
vras: quais são essas classes? Oque são classes? O que é a sua luta?

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156 LER “O CAPITAL!

Ao lero próprio texto do Prefácio, verificamos, de fato, q expo»


sição de uma relação entre a “formação social" (Gesellschafisforma.
fion) e sua “base econômica", ou sua “estrutura” (Struktur) “econt.
mica”, da qual o estudo do modo de produção constitui a anatomia,
A formação social é o lugar de uma primelra “contradição” entre ag
classes, que Marx designa pelos termos luta, guerra, oposição, que
podem ser tanto “abertas como veladas”, cujos termos são, “numa
palavra, opressores e oprimidos” (fórmulas do Manifesto), Ela ge
acha aqui relacionada como em sua essência à uma segunda forma
de “contradição”, que Marx sempre toma o cuidado de não confun-
dir com a primeira, até na terminologia: chama-a de “antagonismo”
“não no sentido individual” (nicht im Individuellen Sinn), isto é, não.
uma luta entre os homens, mas estrutura antagônicas; é Inerente à
base econômica, típica de um modo de produção determinado, e
seus termos são denominados “nível das forças produtivas”, “rela-
ções de produção”. É o efeito de ruptura revolucionária do antago-
nismo entre as forças produtivas e as relações de produção que de-
termina a passagem de um modo de produção a outro (“épocas pro-
gressivas da formação social econômica”), e com isso a transforma-
ção do conjunto da formação social, Marx vai, por sua parte, res-
tringir o estudo ao nível da esfera, ou da cena, relativamente autô-
noma desse “antagonismo” no seio da estrutura econômica.
Ora, é-nos rigorosamente impossível localizar essa esfera, dado
que não têm sentido ainda os termos que a definem. Seria inteira-
mente falso, sob pretexto do aspecto descritivo de alguns destes ter-
mos ou da simplicidade direta com a qual Marx no-los apresenta,
acreditá-los dados numa experiência imediata e de significação evi-
dente, Pelo contrário, eles são produzidos por Marx (que tem o cul-
dado de nos prevenir - sobretudo pelo emprego do termo “socieda-
de civil” - de que toda uma parte da matéria-prima dessa produção
é constituída pela tradição filosófica e econômica), e tão pouco €vi-
dentes u ponto de que seu emprego nas análises sociológicas efeti-
vas, sem a posse das definições que Marx lhes dá, apresenta as maio
res dificuldades, Essa u razão pela qual são designados deliberada-
"mente, do ponto de vista da sociologia empírica burguesa, como pá
radoxais, heteróclitos, incoerentes, ou então assimilados sem mas
am menos u outros: técnica, economia, instituições, relações huma:
. c C.

- Prosseguindo na leitura do texto, podemos extrair dele os dois


princípios que fundamentam a transformação da história em ciên-
cia: o da periodização e o da articulação das práticas diferentes na es-
trutura social, Diacrônico um, ao que parece, c sincrônico O outro.
emma O princípio

de art
a
iculação
emma das práticas opera na construção ( Bau)

e.
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MATERIALISMO HISTÓRICO 157

ou no mecanismo de “correspondência” em que a formação social


se apresenta como constituída de diferentes níveis (diremos ainda
instâncias, práticas). Marx enumera três deles: base econômica, su-
perestruturas jurídicas e políticas, formas da consciência social.
Quanto à periodização, distribui a história segundo as épocas
de sua
estrutura econômica, Esses dois princípios introduzem uma dupla
redução da continuidade temporal, Se deixarmos de lado o proble-.
ma das sociedades primitivas (isto é, do modo como Marx
pensa a
origem da sociedade: como no Manifesto, ele aqui não faz nenh
uma
alusão a esta origem), verifica-se em primeiro lugar uma
redução ao
absolutamente invariante dos elementos pertencentes a qualq
uer es-
trutura social (uma base econômica, formas jurídicas e políti
cas, for-
mas ideológicas); há, em seguida, um corte em períodos que
substi-
tui a continuidade histórica por certa descontinuidade,
uma suces-
são de estados da estrutura momentaneamente invariante
s e que se
modificam por mutação brusca (“revolução”): o antag
onismo que
provoca a mutação só pode ser determinado por essa
invariância
mesma, isto é, pela permanência dos termos por ele contrapost
os.
Esses estados da estrutura são os modos de produção, e a histó-
ria da sociedade é redutível a uma sucessão descontinua
de modos
de produção.
Torna-se necessário estabelecermos agora a questão do estatutc
teórico desses conceitos. Serão todos eles conceitos positivos? Terá
todo o texto um conteúdo homogêneo de conhecimento teórico, ao
nível da abstração científica de que falei há pouco, como o pensa
Por exemplo Gramsci, para quem se trata da exposição mais rigoro-
sa da “filosofia da práxis"?
Penso, pelo contrário, que esse texto possui, no seio da própria
Prática teórica, o estatuto do que veio a se chamar um conjunto de
conceitos práticos. ' Em outras palavras, esse texto nos apresenta
conceitos que dependem ainda, em sua formulação, de uma proble-
mática que se trata precisamente de substituir; ao mesmo tempo in-
dicam, sem poder pensá-lo em seu conceito, o lugar aonde é preciso ir
para formular de outro modo, e simultaneamente resolver, um
problema novo surgido no seio da problemática antiga,
Para pôr em evidência essa característica, tomarei como exem-
plo principal o conceito de periodização. Esse conceito pertence in-

|
sobre “o humanismo real” em Pour Marx,
“ -ouis Althusser, ; Nota complementar
Louis
Muspero, 1965, pp. 253-258.
EA

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158 - LER “O CAPITAL”

da história, cuja questão Marx


teiramente à concepção tradicional
formula aqui. É o conceito da descontinuidade na continuidade, o
que fragmenta a linha do tempo e revela ao mesmo tempo a possibi-
lidade de compreender os fenômenos históricos no quadro de uma
totalidade autônoma (sob essa forma geral, o problema fica inalte-
rado se procurarmos “civilizações , OU ainda estruturas contra-
postas a “conjunturas”). O conceito de periodização dá assim forma
teórica ao problema a que não podem fugir os historiadores na prá-
tica, sem que no entanto lhes proporcione uma solução teórica, uma
metodologia teórica rigorosa, por diversas razões de fundo que a se-
quência desta exposição revelará. Problema que manifestamente va-
gueia também pelos textos de Marx: O problema do “corte correto”.
Se encontramos o corte correto ou os cortes corretos, a história, sem
deixar de transcorrer no fluxo linear do tempo, torna-se compreensi-
vel como a relação de uma permanência essencial a um movimento
subordinado. As questões que esse problemática encerra necessaria-
mente não são em essência diferentes segundo procuremos distin-
guir estruturas econômicas ou séculos (o “século de Luís XIV ).
Esta última formulação tem inclusive a vantagem de lembrar sem
- cessar que esses problemas são forçados a respeitar as condições que
lhes impõe a linearidade do tempo: em outras palavras, a transpor
todas as descontinuidades para o plano das descontinuidades tem-
porais. Assim é que na história econômica moderna surgiu como
instrumento principal da conceptualização histórica uma distinção
da longa duração e da curta duração, * isto é, distinção inteiramente
“estendida” sobre a linearidade do tempo. Procurar-se-á distinguir
os fenômenos de longa duração dos fenômenos de curta dura ção,
para como estes
mostrarrmin últimos se inserem no curso dos primeiros€
em seu dete ismo . Ao mesmo tempo perpetuar-se-á assim dois
tipos de dificuldades: as que se referem à noção de eventos histórt-
cos, relacionada com o critério único da brevidade (da subitaneida-
de), e pois quase necessariamente cantonada na esfera dos eventos
a id e as que têm a ver com a impossibilidade de efetuar cortes
ítidos.

Marx dá a impressão de tomar as coisas exatamente do mesmo


modo; propondo simplesmente um novo critério de periodização,
meio de efetuar o corte correto, que destaca os melhores períodos,
aqueles dos quais não se pode dizer que sejam artificiais sem ser ar
bitrários, mas que correspondem à natureza mesma da realidade so-

* Na E.
scola dos Anais €, em particular, na obra de Braudel.
(N. do T.)
4

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MATERIALISMO HISTÓRICO 159

cial histórica, * De fato, a levarmos a sério a idéia de uma ruptura


epistemológica, deveríamos dizer que a natureza mesma do critério
escolhido (as épocas da estrutura econômica) implica uma transfor-
mação completa do modo de colocar o problema, Marx nos díria:
para periodizar a história da humanidade, em vez de ír para o lado
da arte, da política, da ciência ou do direito, deve ir na direção da
ciência econômica, Vê-se claramente então que o essencial teórico
desse conceito, o que ele traz de original, o que o define diferencial-
mente, não pode residir na forma geral que tem, comum a todas as
demais periodizações, mas na resposta particular à questão,
Ora, impõe-se-nos pensar em toda a sua singularidade episte-
mológica essa forma na qual Marx nos propõe aqui a sua teoria: a
especificidade teórica do conceito de periodização própria de Marx
reside unicamente no fato de que se trata de uma resposta particular
a uma questão que, por sua vez, pertence a uma problemática anti-
ga, questão que não é decisiva na constituição da ciência. Tal situa-
ção implica, envolve necessariamente, o fato de que Marx não possa
justificar nesse nível a sua resposta particular - ela é de fato, nele,
injustificável - e isso pela razão talvez de que o texto de que fala-
mos tem essa brevidade dogmática; e que Marx não possa também
formular o verdadeiro conceito teórico dessa periodização, dado
que seria o conceito da única maneira de periodizar que faça desapa-
recer a problemática anterior da periodização fundada na concep-
ção linear do tempo e em dificuldades com ela,
O que dissemos do conceito de periodização vale também ne-
cessarjamente para os conceitos que designam no Prefácio as dife-
rentes instâncias da estrutura social que não sejam a base econômica
(a qual, como vimos, é designada por conceitos novos, específicos,
conquanto ainda não-definidos: forças produtivas, relações de pro-
dução, modo de produção), Esses conceitos, bem como todos os ter-

de Auguste
“ “artificiais sem ser arbitrários. " Retomo aqui os próprios termos
a propósito da
Comte no Cours de philosophle positive (primeira lição, tomo |, Pp. 24)
tes estados
divisão da ciência em vários ramos. O problema do corte entre os diferen
determ inar a origem precisa des-
de uma ciência é de mesma natureza: “Ff; impossível
entreta nto... convém fi-
sa revolução... ela se fez permanentemente € cada vez mais...
Bacon, Descartes,
xar uma época para impedir a divagação das idéias” (ld., p. 10).
« ao mesmo
Galileu, determinam desse modo a passagem da físicaà positividade,
articulação da
tempo o início da preponderância geral do estado positivo, Na dupla
é até agora o pensador
classificação das ciências e da Lei dos Três Estados, Comte
mais rigoroso desse problema teórico geral; como prática s distint as constituindo uma
essa articulação varia
“divisão do trabalho” se articulam umas nas outras € como pm
com as mutações dessas práticas (''cor tes").

|
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160 LER “O CAPITALS

mos que designam a articulação pa dos seus objetos ( RP


ponder”, “elevar-se sobre”), notáveis pela vugueza,€ que no entanto
nutriram toda a reflexão marxista sobre o problema das ideologias e
-superestruturas, têm a função apenas de indicar aonde Marx, desta
feita, não irá provisoriamente; não constituem, pois, um conheci-
mento desses níveis e de sua relação reciproca, mas simples haliza-
mento prático (no sentido da prática teórica, evidentemente) que dis-
tingue o nível da estrutura econômica, cujo estudo Marx vai em-
preender, em sua autonomia relativa. Entretanto, para que seja
possivel esse balizamento, é preciso admitir certas condições teóri-
cas, que lhe constituem, pois, o verdadeiro sentido: que a estrutura
econômica, sob condição de uma nova definição do seu conceito,
possua de fato essa autonomia relativa, que permite defini-la como
campo independente de pesquisa; que a pluralidade das instâncias
seja essencialmente propriedade de qualquer estrutura social (consi-
derando-se, porém, como sujeitos a revisão o número, nome e ter-
mos que designam a articulação delas); que o problema da ciência
da sociedade seja precisamente o das formas da variução da sua arti-
culação.
As mesmas observações aplicam-se enfim ao conceito de ho-
mens: esses “homens” que são o suporte de todo o processo. Diga-
mo-lo sem rodeios: tudo o que se segue nesta exposição é comanda-
do por um princípio de leitura crítica, o qual talvez me seja permiti-
do: evitaremos prejulgar o sentido de um termo (como “'homens”)
antes de haver elucidado a sua função conceptual na estrutura teóri-
eira sa fo quer seu sentido teórico depende inteira-
aparênns”
“home (carregadasã a qui 0 d de tou
cia anódina Atana
toda é a 6º consis tência ia carne)
pálndda du ,paira
€ sua
a a são as armadilhas mais perigosas às quais tenta-
s escapar, Não ficaremos satisfeitos comot ituado e fun-
dado na necessidade do siste ao à er ou situa bags!
ma teóric à qual ela pertence, ou elimi-

* Observemos aqui uma di : :


tribuiç ão, mas
Marx, Code sor étambé m a gos ade grave de leitura , que se refere não apenas à Con-
:
Pal: O termo “formação social ”, empregado por
u conceito empírico, desi
: i
isto, é, uma existêErncia: a Inglaterra de 1860, à E vs e de uma análise concreta,
| ; 14 França
trato, que substitui a noção ideoló gica de “soci edade” ede Eli
|8
a ie pira i bs-
a
da história enquanto totalidade de instâncias articuladas sob
Dna DES d
produção determiando, Essa ambiglidade recobre primeir Pip
e bendita ,
não explicitamente solucionados de uma teoria da ciência de à Frontais J pe dor
empirista a pensaro objeto teórico de uma ciência abstrata MOMO E ais delo”
das realidades existentes (veja-se sobre essa questão a expos
ição n ata de
Althusser). Mas em segundo lugar também uma falta objetiva do itetinilár ia histó-
rico, que só pode ser atribuível ao caráter inevitave Imente progressiv
: : : s esen .
volvimento: em O Capital, onde é exposta a teoria abstrata do Mada as ça-
(E = una Cem Coreana mer e — aE E RO
o
rm SEARA,

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MATERIALISMO HISTÓRICO 161

nado como um corpo estranho e, neste caso, substituído por outro.


Impõe-se aproximar as fórmulas desse prefácio (“Na produção so-
cial de sua existência, os homens entram em relações determinadas...
suas forças produtivas materiais... Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser... as formas ideológicas nas quais os homens
adquirem consciência...) de numerosas outras em 4 Ideologia Ale-
mã, em Miséria da Filosofia, na correspondência (sobretudo da carta
de Engels a Bloch: “Nós (= os homens) fazemos por nós mesmos a
nossa história, mas ao mesmo tempo com as premissas e condições
bem determinadas...”). Todas essas fórmulas são as matrizes da
idéia de que são os homens que fazem a história na base das condições
anteriores. Ora, quem são esses “homens”? Pareçe, à primeira leitu-
pri-
ra desse Prefácio, à leitura “ingênua”, que esses homens são em
da
meiro lugar os agentes do processo de transformação histórica
estrutura social pela mediação da atividade de produção econômica.
Deve-se entender que os homens produzem os seus meios materiais
de subsistência e, ao mesmo tempo, as relações sociais em que pro- -
a, em
duzem, que são mantidas ou transformadas. São eles em seguid
práticas
segundo lugar, os suportes reais (concretos) das diferentes
é dada precisa-
que se articulam na estrutura social: essa articulação
tempo do processo
mente só por homens que participam ao mesmo
ciências. A importân-
de produção, que são sujeitos jurídicos e cons
função de coesão estru-
cia desse conceito pode assim medir-se pela
sua ambiguidade revela-se
tural que ele desempenha na teoria. Mas a
de conceitos incompati-
na pertinência simultânea a vários sistemas
ideológicos. O conceito de
veis: teóricos e não-teóricos, científicos é
ponto de fuga do enuncia-
“homens” constitui assim um verdadeiro
filosófica ou vulgar. A tarefa
do em direção às regiões da ideologia
enunciado fixando o sentido
da epistemologia é aqui deter a fuga do
do conceito,
a desses conceitos, con-
Se essa é realmente a situação ambígu
de uma problemática ainda
ceitos práticos, conceitos-signos no selo

sociais concretas que comportam em


pitalista, não é€ en focada a análise de formações
leis de coexistência e hierarquia se
geral vários modos de produ ção diferentes, cujas
in nplicita e parcialmente contido na
. devem então estudar, O problema está apenas
na prá tica nas obras históricas e políticas
análise da renda da terra (livro 11) presente a
, em Desenvo Ivimento do Capitalismo na Rússi
de Marx (O 18 Brumário etc.) só Lênin trata mento
lismo começa a fuzer o seu
e nas obras do período de transição ao socia
teórico,
, nesse primeiro esboço, dos concei-
Notemos ainda que a elaboração insuficiente
cias € da formação social é por si mesma a
tos que designam à articulação das instân
ão constante na literatura marxista entre a formação
causa (negativa) de uma contus
(a qual é por sua vez referida não raro a um
social e sua infra-estrutura econ ômica
muitas discussões atuais sobre os modos de
modo de produção). Dão provas disso
listas.
produção não-capitalistas Ou pré-capita

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162 LER “O CAPITAL"

desequilibrada (perlodização, correspondência = articulação das


práticas, homens), torna-se então necessária uma tarefa, Proponho»
me empreender aqui o trabalho, trabalho explícito de transformação
desses conceitos “práticos” em conceltos teóricos da teoria marxista
da história, trabalho que os despoje de sua forma teórica atual para
os tornar adequados no conteúdo prático que contêm, Ao mesmo
tempo desaparecerão completamente 08 conceitos que não são mais
que a expressão das exigências da antiga problemática ideológica,
Imediatamente aparecerão também os pontos de falha e abertura
que exigem, na própria região explorada por Marx, a produção de
novos conceitos teóricos, e a tornam possível, Pois o inacabamento
fecundo da obra de Marx, no nível mais abstrato, € o efeito necessá-
rio de seu caráter de ciência,
Como os conceitos teóricos do Prefácio à Contribuição têm esse
caráter misto de antecipações e resumos (ou “resultados”) de uma
análise, o texto de O Capital não constitui, pois, a sua simples “com-
provação” ou aplicação, O texto de O Capital, segundo sua necessá-
e
ria ordem de exposição, é o processo de produção, de construção
deles.
definição desses conceitos teóricos, ou pelo menos de alguns análi-
Se tomamos o “'modo de produção” como principal objeto de
mesma o
se, é, pois, porque o próprio Marx designa nessa exposição
de produção ca-
do modo
objeto teórico de O Capital como o conceito
«pitalísta,

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MATERIALISMO HISTÓRICO [63

I. Da Periodização aos Modos de Produção

Para reconstituir o conceito de modo de produção, partirei das


determinações mais externas em aparência, das mais formais, e me
esforçarei por enriquecê-las paulatinamente. Volto, pois, à questão
principal da teoria da história, a dos cortes, do corte correto. Ao
longo dos textos, Marx nos oferece uma série de observações que têm
uma forma comum: começam todas assim: “O que determina uma
época histórica da produção é...”, ou então: “O que determina
um modo histórico de produção é o modo específico de...”; seguem-
se então várias fórmulas cujo confronto parece de imediato instruti-
vo, dado que são todas elas de direito equivalentes, sem que essa
equivalência seja por isso tautológica, Em outras palavras, podemos
tentar extrair dessas respostas equivalentes a uma mesma questão,
que em princípio depende de um método de comparação, u determi
nação de critérios de identificação de um “modo de produção” (por
enquanto esse termo é para nós apenas um nome, o de unidade de
periodização própria de Marx), a determinação das diferenças perti-
nentes que permitem a definição do conceito de cada modo de pro-
dução. Se pusermos em evidência tais diferenças pertinentes, depa-
raremos com outra tarefa, que consistirá em caracterizar os conjun-
tos no seio dos quais operam essas diferenças, '
A periodização, pensada como à dos modos de produção, em sua pureza, em pri.
meiro lugar dá forma à teoria da história, Em muioria são tumbém comparativas as

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164 LER "O CAPITAL”

|, Modo de Produção; Maneira de Produzir


No termo alemão (Produktlonswelse), mais ainda do que no seu
equivalente francês, não se perdeu toda a lembrança do sentido sim:
ples e primeiro do termo Welse, modo, isto é, maneira, feítio de fazer
(o par alemão, que constitui uma frase-feita, €: Art und Welse), Essa
observação nos adverte de saída sobre o tipo de análise de que trata-
mos: análise descritiva, que isola formas ou qualidades, Assim é que
o modo “da produção” existe primeiramente no mesmo plano que
muitos outros modos que encontramos durante a análise de O Capí-
tal, Por exemplo:
modos de troca; “Nas categorias economia monetária e economia de cré-
dito, não é a economia, isto é, o modo de produção em si o que se subli-
nha, o que se destaca como traço distintivo; é o modo de troca estabeleci-
do entre os diversos agentes da produção, os diversos produtores” (Ver-
kehrswelse) (O Capital, IV, 107),
modos de circulação; “A determinação que dá o caráter de capital fixo a
certa parte do valor-capital, adiantada sob forma de meios de produção,
reside exclusivamente no modo original de circulação desse valor. Esse
modo de circúlação particular (dlese elgene Welse der Ztrkularton resulta
do modo purticular segundo o qual o meio de trabalho cede o seu valor
no produto e se comporta como fator de valor durante o processo de pro-
dução (s/ch,.. verhált), E esta última particularidade resulta por sua vez
do modo especial pelo, qual os meios de trabalho funcionam no processo
de trabalho (aus der besondren Art der Funktlon der Arbeltsmittel)" (O Ca-
pltal, IV, 147),
modos de consumo: “O próprio número das chamadas necessidades natu-
rais ussim como o modo de satisfazê-las (die Art lhrer Befrledigung)é um
produto histórico” (O Capital, 1, 174),

Poderíamos dar outros exemplos ainda, tomados à esfera “eco


nômica” ou não,
Deseu caráter descritivo e comparativo resulta que a expressão
modo de produção" não encerra primeiramente referência à exten-
são de suu uplicação de outra maneira à não ser sob forma de ten-
dência à generalidade: veremos o modo de produção capitalista, Lo-
mudo no sentido restrito de modo de produção industrial, de utiliza-

Ps ep (o Aun Marx reúne os elementos de sua definição, Mas por trás dessa
produção históricos ai (os homens não produzem da mesma forma em modos '
luções econômicas) há vi edi Lo Iulismo não encerra q natureza univoreul dus à
das estruturas, u Des a n Poa uquilo que torna as comparações possíveis noh EA
“nrodução em J pt su dus determinações Invartantes ("curucteres comuns”)
peru, que não existe historicamente, mus do qual todos os modos de
produção históricos represent vartações (e do, , de de 1857, À Contribulçadod
Crítica da Economia ho lh lead. us variações (cf, Introdução

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MATERIALISMO HISTÓRICO 165

ção das máquinas, ganhar pouco a pouco os diversos ramos indus-


triais:
Uma vez que se trata de obter a mais-valia pela transformação do
trabalho necessário em sobretrabalho, não basta que o capital, deixando
intactos os processos tradicionais do trabalho, se contente com o prolon-
gar-lhe simplesmente a duração. No caso lhe é necessário transformar as
condições técnicas e sociais, isto é, o modo da produção. Só então ele po-
derá aumentar a produtividade do trabalho e com isso reduzir o tempo
exigido para reproduzi-lo (O Capital, 1, 9).
Esse texto é precedido da definição seguinte: “uma revolução nas
condições da produção”, isto é, “uma mudança em seus instrumentos ou
nos métodos de trabalho, ou em ambos ao mesmo tempo.

Descrição de processos, maneiras, métodos, formas, outras tan-


tas expressões que só têm sentido pelo que excluem. Primeiro, medi-
das de quantidades. Desse modo, a produtividade do trabalho, que
determina relativamente a magnitude necessária à satisfação das ne-
cessidades do produtor € a do sobretrabalho, só intervém no caso na
do
medida em que depende em cada época histórica de certa forma
rocesso de trabalho, isto é, da relação que certos instrumentos
o do traba-
(meios de trabalho) mantêm com formas de organizaçã
quando o
lho (que pode ser uma não-organização, como é o caso
que permti-
produtor individual põe apenas em ação Os instrumentos
em a consi-
tem obter um produto de uso efetivo). Em seguida, exclu
uzem uma trans-
deração da natureza material dos objetos que prod
e aos caracteres par-
formação ou a sofrem, na medida em que remet
produzem va-
ticulares dos ramos da divisão social da produção, que
ias.
lores de uso particulares, com características tecnológicas própr
que “a econo-
Nesse sentido, Marx escrevia já na Introdução de 1857
termo adquiri-
mia política não é a tecnologia”, no sentido que esse
mostra no
ra em inícios do século XIX, e cuja origem histórica ele
mina-
capítulo do livro I sobre a indústria moderna. Essas duas deter
sobre o processo
ções negativas estão contidas no texto do capítulo
de trabalho. *
ção de
Restos de antigos instrumentos de trabalho têm, para avalia
formações sócio-econômicas extintas, a mesma importância que a estru-
re-
tura dos ossos fósseis para o conhecimento de espécies animais desapa faz,
econômicas não é o que se
cidas. O que distingue as diferentes épocas
wie...),
mas como, com que meios de trabalho se faz (Nicht was... sondernforça
mento da hu-
Os meios de trabalho servem para medir o desenvolvi
mana de trabalho e além disso indicam as condições sociais em que se

* Na edição brasileira da Ed. Civilização Brasileira, livro |, cap. 5, p. 204. (N, do T.)

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LER “O CAPITAL”
166

realiza o trabalho (Nicht nur Gradmesser der Emwicklung der Vermens h


der geselischafilic hen hã hj li.
chen Arbeitskraft, sondern auch Anzeiger
I, 182). nis.
se, worin gearbeitet wird) (O Capital,

Para que os meios de trabalho possam ser os “indicadores” de


relações sociais, impõe-se evidentemente que sejam suscetíveis
de um tipo de análise diferente da mensuração de sua eficácia ou da
descrição tecnológica dos seus elementos. Do contrário cai-se no
erro de Proudhon, que tomava as máquinas por relações sociais (ve.
ja-se Misêre de la Philosophie, Ed. Sociales, p. 140).
Podemos definir essa análise como a determinação diferencial de
formas, € definir um “'modo” como o sistema de formas que repre-
senta um estado da variação do conjunto dos elementos que entram
necessariamente no processo considerado. Essa definição, que sub-
meterei a prova, vale para todos os modos, e exige em cada caso
duas coisas: a enumeração dos lugares (ou funções) apresentados
pelo processo considerado, e a determinação dos critérios pertinen-
tes que permitem distinguir as formas que ocupam esses lugares. As-
sim, se tomarmos o exemplo citado há pouco do modo de circulação
(O Capital, IV, 147), veremos que esse critério consiste no fato de
transmitir seu valor ao produto no todo ou apenas por partes distri-
buídas em vários períodos de produção. Destacamos no caso ao
mesmo tempo os conceitos pelos quais Marx designa a existência
“como elemento do processo: função, fator. Mas somos levados, pela
enumeração desses lugares, a outro ''modo”, o ''modo de produ-
ção” em si, e não estamos diante de um processo relativamente au-
tônomo, que possua consistência própria. A propósito do modo der
produção em si, dá-se outra coisa, e encontramos essa consistência.

2. Os Elementos do Sistema das Formas


Resta, pois, identificar, no caso do modo de produção (entendi-
do no sentido estrito), esses elementos, A esta altura nos será neces-
sário comparar vários textos de Marx que se completam, até mesmo
propor interpretações cuja fundamentação se revelará, segundo es-
peramos, em seguida,
j rr um primeiro texto extremamente claro em O Capi-
tal, livro I:

Quaisquer que sejam as formas sociais da produção, os trabalhado-


res e os meios de produção permanecem sempre os fatores dela (Fakto-
ren). Mas uns e outros só o são em estado virtual (der Móôglichkeit nach)
na medida que estejam separados. Para uma produção qualquer, é prect-
so u combinação ( Verbindung) desses fatores. É a maneira especial de ope-
rar essa combinação que distingue as diferentes épocas econômicas pelas
quais passou a estrutura social (O Capital, IV, 38-39).

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MATERIALISMO HISTÓRICO 167

Dos elementos que procuramos, dois estão aqui indicados:


Do trabalhador (a força de trabalho);
2) os meios de produção,
O trecho prossegue assim:

* No caso que nos ocupa, o ponto de partida é dado pela separação do


trabalhador livre em relação a seus meios de produção, Vimos como, e
em que condições, esses elementos se reúnem nas mãos do capitalista: na
qualidade de modo de existência produtivo de seu capital.

Encontramos aqui primeiro um terceiro elemento que, como os


dois outros, pode merecer o nome de “fator”;
3. não-trabalhador, apropriando-se do sobretrabalho. Marx o de-
'signa, de resto, como representante da “classe proprietária” (Gross-
besizerklasse) (O Capital, 1, 185), Trata-se aqui do capitalista. Veri-
ficamos ademais um elemento de natureza diferente que poderíamos
chamar de relação entre os elementos precedentes; ela pode assumir
dois valores exclusivos: separação (Trennung)/propriedade.

Confrontando os resultados da análise desse texto com uma sé-


rie de outras passagens, as principais destas estando contidas no ras-
cunho inédito de Marx (já citado), Formas Anteriores à Produção
Capitalista, e no capítulo de O Capital, livro III, Gênese da Renda
Fundiária Capitalista, deparamos os mesmos elementos, e uma des-
crição completa de suas combinações, Fica ali esclarecido que o tra-
balhador é o produtor direto; a relação de propriedade especifica-se
por sua vez segundo várias formas complexas, sobretudo a dualida-
de de uma “posse” (usufruto), e de uma “propriedade” (pro-
priedade eminente),

Mas o interesse essencial desses textos é o de nos obrigar a in-


troduzir na estrutura uma segunda relação distinta da primeira, uma
segunda relação entre os “fatores” da combinação, Essa questão é
importantíssima porque rege toda a compreensão da estrutura. In-
cumbe-nos portanto tentar definir muito claramente, a partir dos
próprios textos de Marx, a natureza dessa segunda relação. Ela cor-
responde ao que Marx designa por meio de termos variados como
apropriação real, material, dos meios de produção pelo produtor no
processo de trabalho (Aneignung, Appropriation, wirkliche Aneig-
nung) ou então simplesmente como apropriação da natureza pelo
homem. Dois pontos devem ser claramente estabelecidos:
1) essa relação é distinta da precedente;
2) trata-se, também, de uma relação, de um vínculo entre os ele-
mentos antes enumerados.

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168 LER “O CAPITAL"

A demonstração do primeiro ponto é prejudicada pela relativa


flutuação do vocabulário de Marx sobre essa questão nos textos que
mencionei (sobretudo as Formas Anteriores...), em que Marx empre-
ga um sem-número de termos praticamente equivalentes (Aneigung,
Appropriation; Besitz, Benutzung etc.) para designar todas as rela-
ções do produtor com os seus meios de produção, Essa flutuação re-
pousa, em realidade, na dificuldade que Marx sente de pensar níti-
damente a distinção das duas relações, dificuldade que explicarei.
Tomemos, todavia, o texto de O Capital, livro |, sobre a mais-valia
absoluta e a mais-valia relativa (11, 183 ss,): verificamos ali, com uma
página de intervalo, dois empregos do mesmo termo Aneignung (a-
propriação) que não têm manifestamente o mesmo sentido, e que
correspondem a cada uma das relações de que falo:
in der individuellen Aneignung von Naturgegenstánden kontrolliert er
sich selbst. Spáter wird er kontrolliert” (na apropriação individual dos ob-
jetos da natureza, o trabalhador primeiro controla a si mesmo; mais tar-
de, seu trabalho é controlado por outro):
“die Aneignung dieser Mehrarbeit durch das Kapital” (a apropriação
desse sobretrabalho pelo capital).

Na segunda vez que ele emprega “' Aneigung”, a palavra designa


uma relação de propriedade, aquela que primeiramente deparamos.
Designa esse pressuposto do modo de produção capitalista: o capit-
tal é proprietário de todos os modos de produção e do trabalho,
portanto é proprietário de todo o produto.
Mas, da primeira vez, Aneigung não designa uma relação de
propriedade: pertence à análise do que Marx chama de “processo de
trabalho”, ou antes, ele situa a análise desse processo de trabalho
como parte da análise do modo de produção. Não ocorre absoluta-
mente a intervenção do capitalista enquanto proprietário, mas ape-
nas o trabalhador, o meio de trabalho, o objeto de trabalho.

À luz dessa distinção, podemos agora reler, por exemplo, a pas-


sagem do capítulo sobre o processo de trabalho (1, 186-187): ali Marx
escreve:
O processo de trabalho, enquanto consumo da força de trabalho
pelo capitalista, mostra apenas dois fenômenos particulares.
O trabalhador age sob o controle do capitalista...
Em segundo lugar, o produto é propriedade do capitalista, é não do
produtor imediato, do trabalhador... (0 Capital, À, 187).

Nesses *'dois fenômenos” particulares do modo de produção


capitalista, verificamos precisamente essas duas relações, sob a for-
ma específica que assumem no modo de produção capitalista.

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MATERIALISMO HISTÓRICO 169

Do ponto de vista da propriedade, o processo de trabalho é uma


operação entre coisas que o capitalista comprou, “O produto dessa
operação lhe pertence, pois, pela mesma razão que o produto
da fermentação em seu celeiro,"
O processo de trabalho é tal, no modo de produção capitalista,
que o trabalho individual não põe em funcionamento os meios de
produção da sociedade, que são os únicos meios de produção em
condições de operar como tais, Sem o “'controle” do capitalista, que
é um momento tecnicamente indispensável do processo de trabalho,
o trabalho não possui adequação (Zweckmáassigkeit) indispensável
para que seja trabalho social, isto €, trabalho utilizado pela socieda-
de e reconhecido por ela. A adequação própria ao modo de produ-
ção capitalista implica a cooperação e a divisão das funções de con-
e
trole e de execução. É uma forma da segunda relação de que falo,
que pode agora ser definida como a capacidade para o produtor dire-
to de pôr em funcionamento os meios de produção sociais. Nos textos
de O Capital, Marx define várias formas dessa relação: a autonomia
mú-
do produtor direto (Selhstândigkeit), e as formas de dependência
tua dos produtores (cooperação, etc.). em sua
Vimos já que o reconhecimento dessa segunda relação 4 de
com à relação
independência conceptual, em sua diferença de O Ca-
“propriedade”, é a chave de várias teses muito importantes
como explorador da
pital. Sobretudo a dupla função do capitalista
organizador da produção
força de trabalho (“propriedade”) e como
é exposta por Marx nos
(“apropriação real”), dupla função que
€ grande indústria (livro
capítulos sobre a cooperação, manufatura
se chamará de dupla nature-
1). Essa duple função é o índice do que
(divisão “técnica” do traba-
za da divisão do trabalho na produção
ao mesmo tempo O indice da in-
lho, divisão “'social” do trabalho); é
dessas duas divisões que por
rerdependência ou do entrecruzamento
relações que distingui numa só
sua vez reflete à pertinência das duas
isto é, na estrutura de um só -
“ Verblndung”, numa só combinação, ,
modo de produção. permite-nos finalmen-
Por isso a distinção dessas duas relações
complexidade da combinação,
te compreender em que consiste a marxista em oposição à
complexidade que caractesza à totalidade de complexidade estru-
conceito
totalidade hegeliana, Quando esse
complexidade da estrutura so-
tural foi introduzido,* tratava-se da relativamente autôno-
cial inteira, na medida em que vários níveis que d produção por sua vez
mos nela se articulam, Verificamos agora

rialiste”, Pour Mara.


L. Althusset, “Sur la dialectique maté

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170 LER “O CAPITAL”

é uma totalidade complexa, isto é, não há em parte alguma uma to-


talidade simples, e podemos dar um sentido preciso a essa complexi-
dade: ela consiste em que os elementos da totalidade não estão liga-
dos uma vez, mas duas, por duas relações distintas. O que Marx
chamou de combinação não é, pois, simples relação entre si de “fato-
res” de qualquer produção, mas a relação dessas duas ligações e sua
interdependência.
Podemos, pois, finalmente traçar o quadro dos elementos de
qualquer modo de produção, invariantes da análise das formas:
|. trabalhador;
2. meios de produção:
- |. objeto de trabalho;
- 2. meio de trabalho;
3. não-trabalhador;
A. - relação de propriedade;
B. - relação de apropriação real ou material.

A dificuldade que Marx teve em pensar a distinção das duas re-


lações em certos textos de retrospectiva histórica se esclarece pela
forma particular que elas assumem no modo de produção capitalis-
ta. Uma e outra podgm de fato caracterizar-se nele por uma “sepa-
ração”: o trabalhador está “separado” de todos os meios de produ-
ção, está despojado de qualquer propriedade (exceto a de sua força
de trabalho); mas ao mesmo tempo, como individuo humano, o tra-
balhador está “separado” de qualquer capacidade de pôr em ação
Os instrumentos do trabalho social por si só; ele perdeu sua habilida-
de de ofício, que não mais corresponde à natureza dos meios de tra-
balho: o trabalho já não é, como diz Marx, “'sua propriedade .
No
modo de produção capitalista propriamente dito, essas duas “sepa-
rações”, esses dois despojamentos, superpõem-se e coincidem, na ll-
gura da oposição do trabalhador “livre” aos meios de produção ins-
tituídos como capital, até que o próprio trabalhador se transforme
em elemento do capital: essa a razão pela qual Marx Os confunde
constantemente num só conceito, o da separação do trabalhador €
das condições do trabalho, Ora, em todos os estudos históricos que
É ja dao Pra dos modos de produção anteriores, através da ator
Mark dr uição dos elementos do modo de produção capita di É
ei pi conceito como fio condutor. É o que explica à PM
65 Formas Mom tem, manifesta nas hesitações do vocabulário Ro
niploala do! prin + para isolar
as duas relações; porque = E
racteriza à ati ações, o recobrimento das suas formas, jo o
dução anteri ra capitalista, não caracteriza esses modos de P ,
ores. Marx só a verifica na hipotética “comunidade na

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MATERIALISMO HISTÓRICO 171

tural” que inaugura a história: no caso, cada uma das duas relações
tem pelo contrário a forma da união, da pertença recíproca do traba-
lhador com o meio de produção: de um lado a propriedade coletiva,
quase biológica, da terra; do outro a naturalidade biológica do tra-
balho (a terra, “laboratório do homem”, indistintamente objeto e
meio de trabalho).
Mas toda dificuldade cessa, e por conseguinte toda flutuação
na terminologia de Marx, quando estamos diante das análises dos
efeitos dessa dupla articulação do modo de produção, isto é, da du-
pla natureza do “processo de produção imediato” como processo de
trabalho e (sob a forma capitalista) como processo de valorização
(Verwertung) do valor (sua distinção constitui objeto do capítulo
VII do livro 1). .
Mediante combinação variada desses elementos entre si segun-
do as duas relações que pertencem à estrutura de todo modo de pro-
dução, podemos, pois, reconstituir os diversos modos de produção.
Isto é, podemos enunciar os “pressupostos” do conhecimento teóri-
co deles, que são simplesmente os conceitos das suas condições de
existência histórica. Podemos inclusive, até certo ponto, gerar dessa
maneira modos de produção que jamais existiram sob forma inde-
pendente, que não pertencem pois, rigorosamente falando, à “perio-
dização” - como o que Marx chama de ''modo de produção mer-
cantil” (reunião de pequenos produtores individuais proprietários
en-.
dos seus meios de produção e utilizando-os sem cooperação); ou
pre-
tão modos de produção cujas condições gerais podemos apenas
a
ver, como o modo de produção socialista. Chegaremos finalmente
produ-
um quadro comparativo das formas dos diferentes modos de
ção que combinam todos os mesmos “fatores”. |
Mas nem por isso estamos diante de uma combinatória no senti-
o
do estrito, isto é, de uma forma de combinação na qual só mudam
Antes de de-
lugar dos fatores e suas relações, mas não sua natureza.
algu-
monstrar isso numa segunda parte, é no entanto possível tirar
mas conclusões do que já foi dito sobre a natureza da “determina-
ção em última instância” da estrutura social pela forma do processo
de produção, O que equivale a justificar o que eu anunciava, ao citar
o Prefácio da Contribuição: que o novo princípio de periodização
proposto por Marx encerrava uma transformação completa da
problemática dos historiadores,

3, A Determinação em Última Instância


.

Por uma dupla necessidade, o modo de produção capitalista é


ao mesmo tempo aquele no qual a economia é reconhecida mais fa-
cilmente como o “motor” da história, e aquele no qual a essência

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172 LER “O CAPITAL”

dessa “economia” é por princípio desconhecida (no que Marx cha-


ma de “fetichismo"). Eis por que as primeiras explicações que en-
contramos em Marx sobre o problema da “determinação em última
instância pela economia” estão simultaneamente ligadas ao proble-
ma do fetichismo. Elas aparecem nos textos de O Capital sobre o
“fetichismo da mercadoria” (I, 88, 90), sobre a **Gênese da renda da
terra capitalista” (VIII, 164-192) e sobre a “fórmula trinitária”
(VII, 193-209), onde Marx substitui a falsa concepção dessa “eco-
nomia” como relação entre as coisas por sua verdadeira definição
como sistema de relações sociais. Apresenta ao mesmo tempo a
idéia de que o modo de produção capitalista é o único no qual a ex-
ploração (a extorsão do sobretrabalho), isto é, a forma específica da
relação social que liga as classes na produção, é ''mistificada”, “feti-
“chizada” sob a forma de uma relação entre as próprias coisas. Essa,
tese é a consequência direta da demonstração que se refere à merca-
doria: a relação social que lhe constitui a realidade, cujo conheci-
mento permite avaliar o fetichismo, é de modo muito rigoroso a re-
lação mercantil que se converteu em relação de produção, isto é,
relação mercantil tal como o modo de produção capitalista a generali-
za. Não é, pois, sob uma ''coisa” qualquer que descobrimos uma re-
lação social (“humana”), mas sob a coisa dessa relação capitalista. '
Nesse momento situa-se a refutação de uma objeção levantada
contra a tese geral do Prefácio da Contribuição, que introduz em ge-
ral a idéia da determinação em última instância. Essa refutação só
nos é compreensível se pensarmos constantemente “economia”
como essa estrutura de relações que foi definida. *

Segundo ele - minha idéia de ser cada determinado modo de produ-


ção e as correspondentes relações de produção, em suma, “a estrutura
econômica da sociedade a base real sobre que se ergue uma superestrutu-
ra jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas de
consciência social"; de ''o modo de produção da vida material condicio-
nar o processo da vida social, política e intelectual em geral” - tudo isso
seria verdadeiro no mundo hodierno, onde dominam os interesses, mas
não na Idade Média, sob o reinado do catolicismo, nem em Roma ou
Atenas, sob o reinado da política, De início, é estranho que alguém se
compraza em pressupor o desconhecimento por outrem desses lugares-

,
Não pretendo elaborar aqui : uma teoria, do “fetichismo”,
, .
isto
.
é, dos efeitos ideolô- |
, + .

Bicos implicados na estrutura econômica diretamente, nem mesmo examinar em por-


menor o que Marx nos revela sobre essa teoria, mas apenas reter e utilizar o indicador
que ele nos apresenta ao ligar explicitamente o problema do fetichismo ao do lugar da
economia na estrutura das diversas formações
sociais.
” Completo o período deliberadamente saltado por Balibar dessa resposta
de Marx
a Bastiat. (N, do T.)
|

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MATERIALISMO HISTÓRICO 173

comuns sobre a Idade Média e a Antiguldade, O que está claro é que nem
a Idade Média podia viver do catolicismo, nem o mundo antigo, da polf-
por
tica, Pelo contrário, a maneira como ganhavam a vida é que explica
e na outra, q
que, numa época, a política desempenhava o papel principal,
história da
catolicismo. De resto, basta um mínimo de conhecimento da
para saber que sua história secreta é a história da pro-
República romana
que a ca-
priedade territorial. Já D. Quixote pagou pelo erro de presumir ca da so-
econômi
valaria andante era compatível com qualquer estrutura
ciedade (O Capital, 1, 93, em nota).
que irá juntar-se
Podemos, de início, fazer um esclarecimento
a tese de Marx não signi-
aos precedentes a propósito do fetichismo:
rentes do capitalismo, a es-
fica que nesses modos de produção, dife
ura das rela ções soci ais seja tran sparente aos agentes. O “feti-
trut
mas deslocado (no catolicismo, na
chismo” não está ausente delas,
formulações de Marx não deixam
politicas,etc.).Na realidade, certas texto sobre as For-
no início do
dúvida quanto a-isso. Por exemplo, o da comunidade dita
. Marx escreve, à propósit
mas Anteriores..
“primitiva”:
meios
o arsenal que fornece tanto os
A terra é o grande laboratório, da coletivi-
lho como à matér ia do trabalho, como à sede, a base
de traba ingenuamente
de relacionam-se à terra
dade. Os membros da comunida que se prod uz e repro-
de, coletividade
como à propriedade da coletividamembro dessa comunidade - literal e fi-
duz no trabalho vivo. Só como idor. A apro-
age como proprietário ou possu base nesses
guradamente - o indivíduo com
sso de trabalho tem-lugar
priação real mediante o proce do trabalho, mas apare-
não são produto
pressupostos, que por sua vez naturais ou divinos.
cem como seus pressupostos
, nos
te rm os , à co nt ra pa rt ida da transparência que
Em outros caracteriza à relação do
produ-
o-mercantis,
modos de produção nã específica de “ingenuida-
o seu produto, é esta forma
tor direto com isto é, certas relações de
a de um a co mu ni da de ,
de” em que a existênci or ga ni za çã o política, podem aparecer
tas fo rm as de
parentesco e cer e nã o implicadasna estrutura
de um
ai s OU div ina s”,
como “natur ==
pr od uç ão pa rt icular. ta de
modo de
, so br e O qu al Ma rx passa ligeiramente (à fal
Ora, esse te ma
ncípio, muito claramente ligado
material documentário), está, em pri ece
em última instância, De fato, par
ao problema da determinação à economia (o
istificação” refere-se precisamente, não
ve a “mi tal, mas às instâncias da es-
ado de produção material) enquanto o de produção, está
trutura social que, segundor daa natu reza do mod
destinada a ocupar O luga determinação, O lugar da última ins-
tância.
Compreendemos, pois, que causas análog as possam produzir
aqui efeitos análogos: No caso, é possível dar a essa fórmula um sen-

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174 LER “O CAPITAL”

tido rigoroso: equivale a dizer que sempre que o lugar da determina-


ção for ocupado por uma mesma instância, veremos produzir-se na
relação dos agentes fenômenos análogos de “fetichismo”. É o que se
depreende desta passagem do ensaio sobre as Formas Anteriores...
que se refere ao modo de produção “asiático”:
Na maior parte das formas fundamentais asiáticas, a unidade ( Ei.
nheit) que as reúne pairando sobre todas essas pequenas comunidades,
aparece como o proprietário supremo, ou como o único proprietário, e
as comunidades reais apenas como possuidores hereditários. Como a uni-
dade é a proprietária reale a pressuposição real da propriedade coletiva,
pode aparecer por sua vez como um ser particular acima das numerosas
comunidades particulares reais, e por conseguinte o indivíduo separado
de fato não tem propriedade, ou a propriedade... lhe aparece mediada
pela cessão da unidade de conjunto (que se realiza no déspota, pai das di-
ferentes coletividades) aos indivíduos por intermédio das comunidades
- particulares. O sobreproduto - que de resto é legalmente determinado em
consequência da apropriação real pelo trabalho - pertence assim por si
mesmo (von sich selbst) 'a essa unidade superior...

Impõe-se tomar a expressão “por si mesmo” no sentido rigoro-


so, e observar que em outros modos de produção, por exemplo, o
“modo feudal, o sobreproduto não pertence “'por si mesmo” aos re-
presentantes da classe dominante. Veremos que é preciso explicita-
mente algo mais: uma relação política, seja sob a forma da violência:
“pura”, seja sob às formas amenizadas e requintadas do direito.
Nesses dois modos de produção, pelo contrário, o modo de produ-
ção “asiático” e o capitalista, que estão amplamente distanciados
cronológica, geograficamente, etc. e embora os agentes que entram
na relação sejam muito diferentes (aqui o capitalista e os trabalha-
dores assalariados e lá o Estado e as comunidades) uma mesma de-
terminação direta pelas funções do processo de produção produz os
mesmos efeitos de fetichismo: o produto pertence “por si mesmo” à
unidade” superior porque aparece como obra dessa unidade. Eis O
que Marx escreve mais adiante no mesmo texto:

| As condições coletivas da apropriação real pelo trabalh


o, a ir rigação
,
importantíssima para os povos asiáticos, as
vias de comunicação, ete.
aparecem então como obra da unidade
superi
que paira sobre as pequenas comunidades. or - do govern o despót ico

Essa explicação é retomada no capítulo de O Capital sobre à


dosr ração, Onde Marx compara sistematicamente as formas do
; Pon amo asiático com as formas do “despotismo” capitalista, Isto
diana | nas mesmas mãos da função de controle e direção, in-
ei para a consecução do processo de trabalho
(para a apro-

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MATERIALISMO HISTÓRICO 175

priação real do objeto de trabalho), e a função de propriedade dos


meios de produção.
Porque a força social do trabalho nada custa ao capital, e porque,
por outro lado, o assalariado só a desenvolve quando o sewtrabalho per-
tence ao capital, ela parece ser uma força de que o capital é dotado por
natureza, uma força produtiva que lhe é imanente, O efeito da coopera-
ção simples exibe-se de modo maravilhoso nas obras gigantescas dos
asiáticos antigos, dos egípcios, dos etruscos, etc, Essa potência dos reis da
Ásia e do Egito, dos teocratas etruscos, etc, e, na sociedade moderna, atri-
buída ao capitalista isolado ou associado... (O Capital, 1, 26).

Poderíamos, pois, legitimamente procurar, a propósito do des-


potismo asiático, o análogo das formas de aparecimento que fazem
com que no modo de produção capitalista “todas as faculdades do
trabalho se projetem como faculdades do capital, assim como todas
as formas de valor da mercadoria se projetem como formas do di-
nheiro” (O Capital, 1, 47). Estaríamos baseados de fato na analo-
gia da relação entre as duas ligações internas da “combinação” nes-
ses dois modos de produção, isto é, na analogia da articulação da du-
pla divisão do trabalho (veja-se o que dissemos antes).
Sobretudo, porém, esses textos implicam que todos os níveis da
estrutura social possuem a estrutura de um “modo”, no sentido em
que analisei o modo de produção estrito. Em outras palavras, eles:
apresentam-se por sua vez como a forma de combinações (Verbin-
dungen) complexas específicas. Implicam, pois, relações sociais es-
pecíficas que, tanto quanto as relações sociais de produção, não são
as figuras da intersubjetividade dos agentes, mas dependem das fun-.
sa-
ções do processo considerado; nesse sentido, falaremos rigoro
mente de relações sociais políticas ou de relações sociais ideológicas.
Na análise de cada um desses modos de combinação, apelaremos
para critérios de pertinência sempre específicos.

O problema que queremos enfocar é portanto o seguinte: como


c determinada na estrutura social a instância determinante de dada
dos elemen-
época, isto é; como um modo específico de combinação
tos que constituem a estrutura do modo de produção determina na
estrutura social o lugar da determinação em última instância, Isto é:
como um modo específico de produção determina as relações que
mantêm entre si as diversas instâncias da estrutura ou, finalmente, à
articulação dessa estrutura? (Foi o que Althusser chamou de papel
de matriz do modo de produção.)
ão,
Para dar pelo menos um princípio de resposta à essa quest
considerarei um caso, não ideal, mas reduzido: o de uma estrutura

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176 LER “O CAPITAL"

socinl reduzida à articulação de duas instâncias diferentes; uma, eco-


nômica, é outra política, o que me permitirá acompanhar de perto
certos textos de Marx que comparam o modo de produção feudal
com o modo de produção apita sia com respeito à renda territorlal
Marx escreve, a propósito da mais simples das formas de renda
territorial feudal, a renda em trabalho (a corvéia);
Em todas as formas em que o trabalhador imediato continua “pos.
suidor" dos meios de produção e dos meios de trabalho necessários para da-
produzir os seus próprios meios de subsistência, a relação de proprie
de deve fatalmente manifestar-se ao mesmo tempo como uma relação de
senhor a servo (als unmittelbares Herrschafis- und Knechi schafi sver-
(Un-
haltnis); o produtor imediato não é, pois, livre; mas essa servidão o
corvéia até
freiheit) pode diminuir desde a servidão com a obrigação de pos-
direto
pagamento de um simples foro, Suponhamos que o produtor necessá-
de produç ão, os meios materia is
sua aqui os seus próprios meios
de subsistência.
rios para realizar o seu trabalho e produzir os seus.meios a indústria rural
da sua terra e
Ele pratica de modo autônomo a cultura
doméstica que lhe corresponde...
de
Nessas condições, é preciso haver razões extra-económicas, sejaetá-
do propri
que natureza for, para os obrigar ao trabalho em benefício
es pessoais de
rio titular da terra... É preciso, pois, necessariamente relaçõ
seja qual for o grau des-
dependência, uma privação de liberdade pessoal, lhe seja
que
sa dependência; é preciso que o homem esteja ligado à gleba, acepçã o
ão na
simples acessório (Zubehôr), em suma, é preciso a servid
completa da palavra...
não-pago é
A forma econômica específica na qual o sobretrabalho
a relação de dependência,
extorquido aos produtores diretos determina
produção, e reage por sua vez
tal como decorre diretamente da própria forma de comu-
de modo determinante sobre esta. É a base de qualquer
de produção e ao
nidade econômica, oriunda diretamente das relações na relação
É sempre
mesmo tempo a base de sua forma política específica.
dos meios de produ ção e o produtor direto que
Imediata entre o proprietário
edifício
se deve procurar o segredo mais profundo, o fundamento oculto do sobera:
assume a relação de
social, e por conseguinte da forma política que
nia e de dependência ( Souverânitdts- und Abhángig keltsverhalinis), em Ee
dada época...
sumo, a base da forma específica que o Estado assume em
No que se refere à mais simples e mais primitiva forma de renda, à
primit iva forma da mais-
renda em trabalho, é claro que ela é aqui a mais
com
valia e coincidente com ela, Além disso, a coincidência da mais-valia
o trabalho não-pago de outrem não exige qualquer análiso, dado que é
ainda concretamente visível, o trabalho que o produtor direto efetua para
si mesmo estando alnda separado, no espaço e no tempo, do que ele fornece
diretamente sob a
ao proprietário territortal; esto último trabalho aparecetercei
forma brutal de trabal ho forçad o em benefí cio de um ro (O Capital,
VIH, 1471-172).

contém quatro pontos principais (os quais tomo em


Esse t
outra de

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MATERIALISMO HISTÓRICO 177

- nova formulação do princípio da periodização: “O que distingue


uma época histórica de outra...” No caso, é o modo de dependência
da estrutura social em relação ao modo de produção, isto é, o modo
de articulação da estrutura social, o que nos é dado por Marx como
equivalente, do ponto de vista do seu conceito, às precedentes deter-
minações.
- a diferença específica na relação do trabalho com o sobretrabalho,
o que implica a diferença das relações sociais no modo de produção
feudal e no modo de produção capitalista (propriedade /posse dos
meios de produção): num caso há coincidência ''no espaço e no tem-
po”, simultaneidade de trabalho e sobretrabalho; no outro, não.
- a não-coincidência dos dois processos de trabalho e sobretrabalho
impõe a intervenção de “razões extra-econômicas” para que o tra-
balho seja efetivamente realizado.
— essas razões extra-econômicas assumem a forma da relação feudal
senhorio /servidão. |
Parece-me que podemos tirar várias conclusões disso.
Em primeiro lugar, Marx nos diz que, nesse modo de produção,
a mais-valia é concretamente visível (in sichtbarer, handgreiflicher
Form existiert), e no entanto a mais-valia só pode ser reconhecida
em sua essência no modo de produção capitalista onde ela está ocul-
ta, onde se impõe portanto uma “análise”. A mais-valia é por exce-
lência uma categoria do modo de produção capitalista que assume
sentido na análise do “processo de valorização” (Verwertungspro-
zess), isto é, de um processo de produção que tem por fim o acrésci-
mo do valor de troca (sendo, este, ao mesmo tempo, generalizado
como forma do valor),
O fundamento dessa declaração é que a mais-valia não é uma
“forma”, no mesmo plano que o lucro, a renda, o juro; a mais-valia
é nada mais nada menos que o sobretrabalho. O modo específico de
exploração desse sobretrabalho na produção capitalista, isto é, fi-
nalmente o modo de constituição das rendas (o modo de distribui-
ção), e portanto das classes, é a constituição do lucro, do juro e da
renda capitalista, isto é, do que Marx chama de “formas transfor-
madas” da mais-valia, No modo de produção capitalista, as formas
da luta de classes estão primeiramente inscritas nas formas do pro-
cesso de produção em geral, e apresentam-se como um confronto de
forças no interior de certos limites que são diretamente determina-
dos no processo de produção e analisáveis nele (limites da jornada
de trabalho, do salário, do lucro e suas subdivisões).
. Em outras palavras, se interrogamos sobre a estrutura da rela-
ção das classes numa sociedade dada, da qual declaramos antes que
se distinguia por certo modo de extração do sobretrabalho, indaga:

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178 LER “O CAPITAL”

ep ]
Ê
formas transformadas” próprias dessa so-
t “
'mos primeiro sobre as
. é é

ciedade. *
no texto ci-
Ora, não é por acaso que o ponto sobre o qual recai
tado a di ferença característica entre o modo de produção feuda
l eo
do trabalho
modo de produção capitalista - a coincidência ou não cial de toda
essen
necessário e do sobretrabalho — é também o ponto
modo de produção
a análise de Marx em O Capital, a propósito do
exprimir a coinci-
capitalista só: essa coincidência é outro modo de de valo-
com o processo
dência termo a termo do processo de trabalho
rização. A distinção do capital constante e do capital variável, que
ser posta em corres-
define o processo de valorização, pode sempre trabalho, da for-
pondência com à distinção, própria do processo de
os meios de produção. Poderíamos mostrar,
ça de trabalho com
O Capital, de que modo a
com base em numerosos exemplos em
(sobretudo em toda
análise exige a referência a essa correspondência rio que transforma
do operá
a análise da circulação). É o trabalho
produto, pondo em funciona-
materialmente as matérias-primas em
o trabalho que transfere ao
mento os meios de produção; é o mesm
ução e das matérias consumidas,
produto o valor dos meios de prod - mas uma parte
e que produz um novo valor, uma parte do qual
ho. O aspecto duplo do pro-
apenas - equivale à da força de trabal
incidência, remete, pois, em
cesso de produção, que exprime essa col
alho “vivo”.
última análise ao duplo aspecto do trab
por Marx, o de uma forma
É fácil ver que, no caso descrito aqui lquer das
te sob qua
de produção feudal, essa coincidência não exis s
duas formas: não apenas o trabalho e o sobretrabalho são distinto
jetando retrospectivamen-
“no tempo e no espaço”, mas, mesmo pro
e ser considerado, rigo-
te a categoria de valor, nenhum dos dois pod
rosamente falando, processo de valorização.
Em outras palavras;
o tempo e no
- no modo de produção capitalista há coi ncidência “'n
intrínseco do modo de
espaço” dos dois processos, o que é um aspecto
cia é por sua vez
produção (da instância econômica); essa coincidên pro-
ma de combinação entre os fatores do processo de
efeito da for
dução próprio do modo de produção capitalista, isto é, da forma,
e apropriação real, Então as “for-
das duas relações de propriedade tes
mas transformadas” corresponden nessa estrutura social, isto ê,

: pelo que é deter-


* Primeiro, sempre, na-ordem teórica, começar
minante dotado que selrop õe aqui a razão: o próprio nome dos problema
s
lhe é dependente. stância”, Vê-se

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MATERIALISMO HISTÓRICO 179

as formas da relação entre as classes, são formas diretamente econó-


micas (lucro, renda, salário, juro), o que implica sobretudo que, nes-
- se nível, o Estado não intervém.
- no modo de produção feudal, há disjunção *'no tempo e no espa-
ço”, dos dois processos, o que é ainda um aspecto intrínseco do
modo de produção (da instância econômica) e um efeito da forma
de combinação que lhe é própria (a relação de propriedade aparece
nele sob a dupla forma de “posse” - “propriedade”). No caso, o
sobretrabalho não seria extorquido sem razões “extra-econômicas”,
isto é, sem “Herschafts- und Knechtschaftsverháltnis””. Podemos con-
cluir das “formas transformadas”, antes mesmo de as analisar em si
mesmas, que no modo de produção feudal elas serão não formas
transformadas da base econômica só, mas do “Herschafts- und
Knechtschafisverháiltnis”. Não diretamente econômicas, mas direta-
mente políticas e econômicas, indissoluvelmente. * O que significa fi-
nalmente que os modos de produção diferentes não combinam ele-
mentos homogêneos, e não autorizam cortes e definições diferenciais
semelhantes do “econômico”, do “jurídico”, do “político”. É a des-
coberta, não raro teoricamente cega, desse efeito que historiadores e
etnólogos hoje frequentemente atestam.
essa poli-
Talvez possamos compreender também por que razão
a relativa, no
tica não é consciente como tal, não pensa sua autonomi
minação, ou sob a.
momento mesmo em que ocupa o lugar da deter
direito, dado que
forma da violência “pura” ou sob as formas de um ção.
aparece como um dos pressupostos do próprio modo de produ
autonomia relativa da
Sabe-se, com efeito, que o pensamento dessa
amento propriamente
política veio mais tarde: trata-se de um pens
“burguês”.
dos mais por-
Penso que se pode assim extrair desse texto, um uma
menorizados, o prin cípio, explicitamente presente em Marx, de
a pela economia. Em
definição da determinação em última instânci em que
na medida
estruturas diferentes, a economia é determinante
ocupa o lugar deter-
determina qual das instâncias da estrutura social causali-
de relações; não
minante. Não relação simples, mas relação

feudal: “No conjunto, o cresci-


* P, Vilar escreve, a propósito do modo de produção to
mento parece repousar numa reocupação de terras incultas, por um investimen
parcial da produção pelas classes
mais em trabalho do que em capital, e a apropriação
rência Internacional de His-
possidentes é no caso jurídica e não econômica" (1* Confe
assoc iar a esse ponto a observação
tória Econômica, Estocolmo, 1960, p. 36). Deve-se
mente econômicas fora do ca-
em geral feita de que é difícil encontrar crises especifica
pitalismo.

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180 LER “O CAPITAL”

dade transitiva, mas causalidade estrutural, No modo de produção


capitalista, verifica-se que esse lugar é ocupado pela própria econo-
mia: mas em cada modo de produção, impõe-se analisar a “transfor-
mação”, Sugiro aqui simplesmente que se leia de novo sob essa ópti-
ca as primeiras páginas de 4 Origem da Família... em que Engels
exprime essa idéia, que ele apresenta como simples “correção” das
fórmulas gerais de Marx:
Segundo a concepção materialista, o fator determinante, em última
análise, na história, é a produção e a reprodução da vida imediata. Mas,
por sua vez, êssa produção tem uma dupla natureza. De uma parte, a pro-
dução dos meios de existência, objetos próprios à alimentação, vestuário,
dos
“habitação, e dos instrumentos necessários; por outro lado, a produção
próprios homens, a propagação da espécie. As instituições sociais sob as
de-
quais vivem os homens de certa época histórica e de certa região são
desen-
terminadas por essas duas espécies de produção: pelo estágio de
“volvimento em que se encontram o trabalho e, por outro lado, a família.
a in-
Quanto menos desenvolvido o trabalho... mais predominante será
(Engels, 4 Origem da
fluência dos vínculos de sangue na ordem social
Família..., p. 16).

Trecho surpreendente, que não apenas joga impudentemente


tes-
com o termo produção, como obriga a aplicar às formas do paren
o tec-
co, apresentadas como relações sociais de procriação, o model
ivel,
nológico do progresso das forças produtivas! Talvez fosse prefer
mostrar
e diversos antropólogos marxistas se empenharam nisso,
s” ou
como o modo de produção em certas sociedades “primitiva
estrutura SO-
“de auto-subsistência” determina certa articulação da
de
cial em que as relações de parentesco determinam até as formas
transformação da base econômica. *

Sobre o assunto, consultem-se sobretudo os trabalhos de Cl. Meillassoux:


- Essai d'interpretarion des phénomênes économiques dans les sociétés d'auto-
subsistance, em Cahiers d'Etudes Africaines, 1960, nº 4,
- Anthropologie économique des Gouro de Cóte d'Ivoire, Mouton, 1964,

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MATERIALISMO HISTÓRICO 181

II. Os Elementos da Estrutura e sua História

dução como combinação


A definição de qualquer modo de pro
apenas virtuais fora de seu rela-
de elementos (sempre os mesmos) do, a possibilidade
determina
cionamento de acordo com um modo
dos modos de produção se-
de operar sobre essa base à periodização
binações, merecem por Si
gundo um princípio de variação das com
fato o caráter radicalmente an-
sós nossa atenção. Elas traduzem de
oluc ioni sta da teor ia mar xis ta da história da produção (e, por
tiev
está menos de acordo com a ideo-
conseguinte, da sociedade). Nada
o século da história e da evolução,
Jogia dominante do século XIX,
nos basearmos na cronologia. Ê
ao qual Marx também pertence, se
com o ver emo s mel hor em segu ida, os conceitos de Marx não se
que,
tin am a refl etir »rép rodu zir e imitar à história, mas a produzir-lhe
des estruturas de que depen-
das
o conhecimento: trata-se de conceitos
dem os efeitos históricos.
movimento de diferencia-
No caso, por conseguinte, não hámonemlinha de progresso cuja “ló-
nem mes
ção progressiva das formas,
Marx nos diz claramente que to-
gica” se aparentaria a um destino.
entos históricos; ele não nos diz
dos os modos de produção são mom : 0 modo de defini-
que esses momentos Se engendram uns aos outros contrário essa solu-
ção de seus conceitos fun damentais exclui pelo
cão de facilidade. "Certa determinações, escreve ele na Introdução
s

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182 LER “O CAPITAL”

de 57 já citada, aparecerão como comuns à época mais moderna e à


mais antiga” (por exemplo, a cooperação e certas formas de direção
de contabilidade, que são comuns aos modos de produção “asiáti-
cos” e capitalista acima de todos os demais). Acha-se assim rompida
a identidade da cronologia com uma lei de desenvolvimento interno
das formas, que é a origem tanto do evolucionismo como de todo
historicismo da “superação”. Para Marx, tratava-se de mostrar que
a distinção dos diferentes modos funda-se de modo necessário e sufi-
ciente na variação das relações entre uma pequena quantidade de
elementos sempre idênticos. Ora, O enunciado dessas relações, e dos
termos sobre os quais elas recaem, constitui a exposição dos primei-
conceitos
ros conceitos teóricos do materialismo histórico, de alguns
ca-
gerais que, constituindo o começo de direito de sua exposição,
à sua teoria
racterizam o método científico de O Capital e conferem
forma determi-
a forma demonstrativa; isto é, o enunciado de certa
dos conceitos de for-
nada dessa variação, sob a dependência direta
ade, etc. é um pressu-
ça de trabalho, meios de produção, propried
nstrações “econômicas”
posto constantemente necessário das demo
de O Capital.
“estruturalismo”,
Será que se trata, por isso mesmo, de 'um
como, sob o risco de levar a u ma confusão
com ideologias atuais
a sugerir para corrigir
pouquíssimo científicas, se poderá se r tentado € ao historl-
a leitura,tradicionalmente tendente ao evolucionismo
por Marx é clara-
cismo? Certamente, a “'combinação” analisada
mente um sistema de relações “'sincrônicas” obtido por variação.
é uma combinatória,
Entretanto, essa ciência das combinações não
mas não sua
' na qual apenas muda o lugar dos fatores e sua relação,
ao sistema de con-
natureza, que está assim não apenas subordinadapois, fazer abstração
junto, mas também lhe é indiferente: pode-se,
dos sistemas. Sugere-se
dela, e proceder diretamente à formalização modos de produ-
então a possibilidade de.uma ciência a priori dos
de produção possíveis, realizados
ção, de uma ciência dos modos de dados ou
ou não na história real-concreta, pelo efeito de um lançe
se o materialismo
pela eficácia de um princípio do mais apto. Ora,
histórico autoriza a previsão, até mesmo a reconstituição de modos
O “modo de
de produção “virtuais” (como se poderia denominar na
tendo sido dominantes
produção mercantil simples") que jamais
história, jamais existiram senão deformados, é de outro modo,
nas modificações de um
como explicaremos mais adiante com basea crer
modo de produção existente, Isso levaria que 05 “fatores” da
combinação são e conceitos que enumerei, e que esses
LOM AS UEM 4 iretamente os elementos de uma construção, 08
PR pol mA Malária, Em realidade, como o disse de modo muito
esignam apenas mediatamente os elementos

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MATERIALISMO HISTÓRICO 183

da construção: é preciso passar pelo que chamei de “análise diferen-


cial das formas” para determinar as formas históricas que assumem
a força de trabalho, a propriedade, a “apropriação real”, etc, Esses
conceitos designam apenas o que se poderia chamar de pertinências
da análise histórica. É esse aspecto da ''combinatória”, e portanto,
pseudocombinatória, que explica a razão pela qual há conceitos ge-
rais da ciência histórica sem que possa jamais haver história em geral.

Para mostrar como opera essa pertinência, passo agora a um


pouco mais de minúcia sobre alguns problemas de definição a pro-
pósito das duas “relações” distinguidas, as duas articulações da
“combinação” sendo tomadas separadamente para que apareçam
os próprios efeitos delas sobre a definição dos elementos (“fatores”).
Esses esclarecimentos são necessários para que se evidencie como
“Marx tinha razão ao falar de estrutura do processo de produção, e
para que a combinação dos fatores não seja simples justaposição
descritiva, mas explique efetivamente uma unidade de funcionamento.

1. Que Vem a Ser “Propriedade”?


A primeira relação que registramos na “combinação” de um
modo de produção foi denominada relação de “propriedade” ou de
apropriação do sobretrabalho; vemos de fato Marx constantemente
“definir as “relações de produção” características de um modo de
produção histórico (e sobretudo do capitalismo) pelo tipo de pro-
priedade dos meios de produção, e, por conseguinte, pelo modo de
apropriação do produto social dele dependente. Em princípio, essa
tor-
definição é bem conhecida, Contudo, alguns esclarecimentos se
nam necessários para lhe revelar a exata função estrutural.
No capítulo precedente, ocupei-me sobretudo em mostrar a di-
quais re-
ferença entre dois conceitos de apropriação, cada um dos
todo modo
mete a um aspecto do duplo processo de produção que
das duas rela-
de produção comporta, e por conseguinte define uma
ão. Mas
ções que constituem a combinação dos "fatores" da produç
distin-
importa também, retomando numerosas indicações de Marx,
trata-
guir as relações de produção em si mesmas, que são as únicas
à estrutura
das aqui, de sua “expressão jurídica”, que não pertence
Trata-se de
da produção, considerada em sua autonomia relativa.
fato de distinguir claramente a relação que designamos como “pro-
ncia
priedade” do direito de propriedade. Essa análise tem importâ es-
relativa da
fundamental para caracterizar o grau de autonomia
trutura econômica em relação à estrutura, igualmente “regional”,
a
das “formas jurídicas e políticas”, e portanto para empreender

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184 LER “O CAPITAL"

análise da articulação das estruturas reglonals, ou Instâncias, no seio


da formação social,
Do ponto de vista da história dos conceltos teóricos, tangencia-
mos aqui também um ponto de Importância decisiva: Althusser já
lembrou em que a concepção marxista das “relações sociais", na
medida em que não representam formas de Intersubjetividade, mas
relações que atribuem uma função necessária tanto aos homens
quanto às coisas, assinala uma ruptura em relação a toda filosofia
clássica e sobretudo uma ruptura com Hegel, Acrescentemos que o
conceito hegeliano de “sociedade civil”, tomado nos economistas
clássicos, é designado por Marx como o primeiro lugar de suas des-
cobertas, isto é, de suas transformações teóricas, encerra ao mesmo
tempo o sistema econômico da divisão do trabalhoe das trocas, e a
esfera do direito privado, Há, pois, identidade imediata da apropria-
cão, no sentido “econômico”, com a propriedade jurídica, e, por
conseguinte, se a segunda pode ser designada como “expressão” da
primeira, trata-se de uma expressão necesssariamente adequada, ou
de uma reduplicação,
É sobremodo interessante observar que certos textos, os mais
claros, dedicados por Marx a distinguir as relações sociais de produ-
ção da sua expressão jurídica, referem-se precisamente à possibilida-
de de um deslocamento (décalage) entre a base e a superestrutura,
que, a não ser essa distinção, ficaria evidentemente incompreensível.
Por exemplo, 'na análise da Génese da renda territorial capitalista,
onde ele escreve:
Alguns historiadores exprimiram espanto diante da seguinte ques-
tão: sendo dado que (no modo de produção feudal) o produtor direto
não é proprietário, mas apenas possuidor e que de fato todo o seu sobre-
trabalho pertence «de jure vo proprietário da terra, poderá acontecer que
se produza para o camponês limitado à corvéia, ou para o servo, nessas
condições, um desenvolvimento dos seus próprios bens e uma criação de
riqueza a seu favor, no sentido relativo da palavra? É, contudo, evidente
que nas condições primitivas e pouco desenvolvidas que estão na base
dessa relação social de produção e do modo de produção corresponden-
te, a tradição desempenha um papel preponderante, É não menos eviden-
te que aqui como em toda a parte o segmento dirigente da sociedade tem
todo o interesse em dar um cunho de lei ao estado de coisas existente €
em determinar legalmente as barreiras que o uso e a tradição traçaram. Ex-
ceto essa consideração, Isso se produz, de resto, espontaneamente, desde
que a base do estado existente e as relações que estão na sua origem se re
produzam sem cessar, assumindo assim com o tempo uma forma normal
e bem ordenada; essa norma e essa ordenação são em si um fator indis-
pensável de cada modo de produção que deve assumir a forma de uma
sociedade sólida, independente do simples acaso ou do arbítrio (essa nor-
ma é precisamente a forma da consolidação social do modo de produção,
sua emancipação relativa do simples acaso e do simples arbítrio). Ele
atinge essa forma por sua própria reprodução sempre recoineçada...
(O Capital, VII, 173-174).

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MATERIALISMO HISTÓRICO [85

Esse afastamento ou discordância entre o direito e uma “tradi-


ção” que apareceu como um subdireito ou um direito degradado,
exprime, pois, em realidade um afastamento ou discordância entre o
pelo pro-
direito e uma relação econômica (a disposição necessária
dutor individual da parcela que lhe cabe), característica dos perío-
dos de formação de um modo de produção, isto é, de transição de
um modo de produção a outro, Ilustração notável do mesmo efeito
consta também da análise da legislação fabril, que data da primeira
fase da história do capitalismo industrial, que codifica as condições
da exploração “normal” da força de trabalho assalariada (Veja-se O
Capital, 1, 159 ss).
Tendo em vista que esses afastamentos são possíveis, ou mais
precisamente contradições induzidas, no interior do próprio direito,
por sua não-correspondência com as relações de produção, é que o
direito é distinto, e na ordem da análise, secundário, em relação às
relações de produção. Verificaremos aindaa confirmação disso ao
cotejar os textos de Marx em que ele põe em evidência a especifici-
dade da propriedade “burguesa”, por exemplo:
Em cada fase histórica a propriedade desenvolveu-se de maneira di-
ferente e numa série de relações sociais inteiramente diversas. Assim, de-
finir a propriedade burguesa nada mais é do que fazer a exposição de to-
das as relações sociais da produção burguesa, Pretender dar uma defini-
ção da propriedade, como de uma relação independente, de uma catego-
ria à parte, de uma idéia abstrata e eterna, só pode ser uma ilusão da me-
tafísica ou da jusrisprudência (Misêre de la .Philosophie, p. 160).

e os que lembram a precedência cronológica, a precessão das formas


jurídicas do direito de propriedade (“romano”) sobre o modo de
produção capitalista, que é o único a generalizar a propriedade pri-
vada dos meios de produção. Sobre essa questão, vale recorrer ao
texto das Formas Anteriores, já citado (que é um texto muito jurídi-
co, no objeto e na terminologia), ou então a uma carta de Engels a
Kautsky:
O direito romano, direito acabado da produção mercantil simples,
maioria
"portanto da produção pré-capitalista, mas que inclui também, na
capital ista. Precis amente o que
das vezes, as relações jurídicas do período
que eles
necessitavam os burgueses de nossas cidades para o seu vôo e 1884).
não encontravam no direito consuetudinário local (26 de junho de

Esse cotejo esclarece retrospectivamente a passagem da Gênese


da renda que há pouco citei, Mostra qué esse problema da diferença
entre uma “tradição” e um “direito” não deve ser interpretado
como teoria da gênese do direito a partir das relações econômicas:
um direi-
por que há de fato na história passagem de um costume à

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LER “O CAPITAL”
186

to, mas não se detrata


sformação de uma continuldade; € antes uma ruptura
direito, ou melhor: uma transformação na nature.
o dede um direito antigo dO
bp
a O)do direito, que set pe ra pela
já uma vez ultrapassado,reativação
À Pepe do que parece EmA (“ro.
vel essencial na articulação do direito sobre a reli.
empre ais é, pois, também elemento dessa gênese, que dr
cão con a duração, explicaria a formação de uma superestr rutu-
virtude da sua duração,
sodificada: sua função é necessariamente outra, e nos remete à
a ália teórica
análise a dadas funções
Ç da reprodução que pertencem a qual
jualquer
modo de produção, € de que falaremos mais adiante, O que a repro-
dução das relações econômicas pode nos mostrar é q função neces.
cária do direito em relação ao sistema das relações econômicas em
si. e as condições estruturais às quais, por isso mesmo, ele se acha
subordinado, e não uma criação da própria instância do direito na
formação social,
Dificuldade de distinguir primeiro nitidamente as relações de
produção de sua “expressão jurídica”, dificuldade desse próprio
conceito de expressão, uma vez que ele não mais significa simples re-
duplicação, mas articulação de duas instâncias heterogêncas, difi-
culdade, enfim, decorrente do deslocamento possível entre as rela-
ções econômicas e as formas jurídicas: todas essas preliminares não
são casuais, mas explicam o método de investigação que deve neces-
sariamente ser posto em prática aqui (e de que o próprio Marx mos-
tra o caminho, sobretudo nos textos referentes aos modos de produ-
ção pré-capitalistas, que estão mais perto da investigação do que da
exposição sistemática). Esse método consiste em procurar as rela-
ções de produção por trás das formas do direito, ou melhor: por trás
da unidade derivada da produção e do direito, que deve ser destrin-
chada, Só esse método permite de fato fazer a separação teórica, ao
mesmo tempo explicando a função ambivalente que Marx atribui às
formas jurídicas: necessárias e no entanto “irracionais”, exprimindo
e codificando no mesmo movimento em que mascaram a realidade
“econômica” que é definida a seu modo por todo modo de produ-
ção. Estaremos, pois, empenhados num procedimento regressivo,
procurando determinar aqui também, mas agora no seio de um sis-
tema inteiramente contemporâneo a si (um modo de produção bem
determinado; no caso, o modo de produção capitalista), afastamen-
tos ou diferenças, que se exprimirão negativamente a partir das for-
mas do direito, Daí, de resto, um difícil problema de terminologia,
rr a pe conceitos pelos quais se exprimem as relações de produ-
relação e o RR mPGio os conceitos da indistinção do econômico em
propriedade Ná Meia pnteçar
co medida em que polo
ra relativar amente
da p ropsistema
constitui rledade.no Que
seio vem à Se *
da estrutu-
autônoma da produção, e precede logiçamente O

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MATERIALISMO HISTÓRICO 187

Temos aí o
direito de propriedade peculiar à sociedade considerada? alismo.
problema que nos incumbe enfocar também a propósitdoo capit
A análise das relações entre a estrutura econômica do modo de
rodução capitalista e o direito que lhe corresponde exigiria por si
só um estudo completo: por isso me contentarei aqui com algumas
. Podemos re-
indicações destinadas a servir de pontos de referência
ação:
sumir assim à marcha de uma demonstr ução
1º) 0 conjunto da estrutura econômica do modo de prod
a circulação e
capitalista, desde O processo de produção imediato até
ência de um sistema
distribuição do produto social pressupõe a exist to de propriedade e
urídico cujos elementos fundamentais são o direi
estrutura econô-
o direito de contrato. Cada um desses elementos da
mica adquire no quadro desse sistema uma qualificação jurídica,
ução imediata:
sobretudo os diversos elementos do processo de prod (“capital”),
de produção
proprietário dos meios de produção, meios
caracterizado juridica-
trabalhador “livre”, e O próprio processo,
mente como um contrato. não,
2º) o peculiar do sistema jurídico de que tratamos aqui (e
evidentemente, de qualquer sistema jurídico histórico) é o seu cará-
ter universalista abstrato: entende-se com isso que esse sistema distri-
bui simplesmente os seres concretos que podem lhe sustentar as fun-
ções em duas categorias no seio das quais, do ponto de vista jurídi-
as humanas e a das
co, não há diferenciação pertinente: a das pesso te das
ão de propriedade se estabelece exclusivamen
coisas. A relaç
pessoa com o que se con-
pessoas às coisas (ou do que é considerado en-
exclusivamente
sidera coisa); a relação de contrato se estabelece
nenhuma diversidade
tre pessoas. Assim como não há, em direito,
ietárias e partes con-
de pessoas, que são ou podem ser, todas, propr
de coisas, que são ou
tratantes, do mesmo modo não há diversidade
meios de trabalho ou de
podem ser, todas, propriedades, sejam elas
consumo, e seja qual for o uso de que se revista essa propriedade.
reflete nele, no senti-
3º) essa universalidade do sistema jurídico econômica: é a uni-
à estrutura
do estrito, uma outra, que pertence
se acha realizada ape-
versalidade da troca mercantil, a qual sabemos
a (ao passo que à exis-
nas na base do modo de produção capitalist
implica lhe é bem ante-
tência da troca mercantil € das formas que
alista é que O conjunto
rior); só na base do modo de produção capit
distribui integralmente em
dos elementos da estrutura econômica se
e em trocadores (inclusi-
mercadorias (inclusive a força de trabalho)
categorias estão, pois, em corres-
ve o produtor direto), Essas duas que O sistema jurídico define (pes-
pondência adequada com aquelas entre o modo
soas e coisas), Também o problema geral da relação funcionamen-
que o seu
de produção capitalista e o sistema jurídico
de outro problema: O da
to supõe depende, histórica e teoricamente,

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LER “O CAPITAL” )
188

nônm stca do processo de produção íme


relação entre a estrutura eco
circulação das mercadorias. É a
diata, e a estrutura económica da
as mercantis” na análise do pro-
presença necessária das “categori
necessária das categorias
cesso de produção que explica a presença
jurídicas correspondentes.
cem à estrutura do
4º) as relações sociais de produção que perten zadas a partir ds
$ car| acteri
modo de produção ca pitalista podem ser
nindo-se entre elas
sua expressão jurídica, por comparação, discer
uma sequência de deslocamentos.
ca-
Em primeiro lugar, enquanto o “direito de propriedade” se
alguma en-
racteriza como universalista, não introduzindo diferença
tre as coisas possuídas e seus usos, a única propriedade significativa
do ponto de vista da estrutura do processo de produção é a dos
meios de produção, na medida em que, como o repete constantemen-
te Marx, eles funcionam como tais, isto é, são consumídos produti-
vamente, combinados com o trabalho “vivo”, e não entesourados
ou consumidos improdutivamente. Ao passo que a propriedade jurí-
dica é um direito de consumo qualquer (em geral: o direito “de usar €
abusar”, isto é, consumir individualmente, produtivamente, ou alie-
nar (trocar), ou “dilapidar"”) (O Capital, VII, 203), a propriedade
econômica dos meios de produção não é tanto o “direito” sobre eles
quanto o poder de os consumir de modo produtivo, dependendo de
sua natureza material, sua adequação às condições do processo
de trabalho, enquanto meio de se apropriar do sobretrabalho. Esse
poder não remete a um direito, mas, como já o indicou Althusser, a
uma distribuição dos meios de produção (sobretudo uma concentra-
ção conveniente em quantidade e qualidade). A relação econômica
não se fundamenta na indiferenciação das “coisas” (e na correlata
das mercadorias), mas na diferenciação delas, que se pode analisar
de acordo com duas linhas de oposição:
elementos do consumo individual
elementos do consumo produtivo
e:
força de trabalho / meios de produção

(sabe-se que esse sistema de diferenças verifica-se na análise dos se-


tores da reprodução social em seu conjunto). Podemos desse modo
a relação social de
CATABLOTIZAS: 4 diferença (deslocamento) entre
um movimento de exten-
são ao e o direito de propriedade como que são
ld epelaprolongamento,
exixigidas como uma daabolição das divisões
“propriedade dos meios dá
estrutura da produção;
produção” à propriedade “em geral”,

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MATERIALISMO HISTÓRICO 189

Em segundo lugar, a relação que se estabelece entre o proprie-


tário dos meios de produção (capitalista) e o trabalhador assalaria-
do é, juridicamente, um contrato de forma particular: um contrato
de trabalho. Ele se estabelece sob condição de que o trabalho seja ju-
ridicamente considerado uma troca, e portanto que a força de traba-
lho seja juridicamente considerada como “mercadoria” ou coisa.
Notemos que, em seu conceito, essa transformação da força de tra-
balho em mercadoria, e o estabelecimento do contrato de trabalho,
são totalmente independentes da natureza do trabalho no qual a for-
ça de trabalho é consumida, Essa a razão pela qual a forma jurídica
do regime de salário é, assim como há pouco, uma forma universal
que recobre tanto o trabalho produtivo, o trabalho de transformação
produtor de mais-valia, como todos os demais trabalhos que podem
ser em geral designados sob o termo “'serviços””. Ora, só o trabalho
“produtivo” determina uma relação de produção, e o trabalho pro-
dutivo não pode ser definido em geral pela relação do empregador
com o assalariado, relação entre “pessoas”: ele pressupõe que seja
tomada em consideração a esfera econômica em que ele se situa (es-
fera da produção imediata, na qual a mais-valia tem a sua origem),
portanto a natureza material do trabalho e de seus objetos, e pois a
natureza dos meios de trabalho com os quais ele se combina. Assim
como há pouco a propriedade dos meios de produção nos apareceu,
na forma de uma relação jurídica de pessoa a coisa, como um poder
sobre o trabalho “vivo” pela disponibilidade dos meios de produção
(únicos a conferir esse poder), assim o trabalho assalariado, enquan-
to relação interna à estrutura de produção, aparece-nos, na forma
jurídica de um contrato de serviço assalariado, como um poder
sobre os meios de produção pela disponibilidade do trabalho produ-
tivo (o único a conferir esse poder, isto é, determinar um consumo
adequado, e não um qualquer). Pode-se assim caracterizar a diferen-
ça entre o trabalho assalariado como relação social de produção e o
direito do trabalho como um movimento de extensão ou prolonga-
mento formalmente semelhante ao precedente.

Donde duas conclusões da maior importância:

- Ão passo que, do ponto de vista do direito (do direito implica-


do no modo de produção capitalista, evidentemente), a relação de
propriedade, relação de ''pessoa” com a “coisa”, e a relação:de con-
trato, relação de “pessoa com pessoa”, são duas formas distintas
(mesmo que se fundem num mesmo sistema de categorias), o mesmo
não acontece do ponto de vista da estrutura econômica: a proprie-
dade dos meios de produção e o trabalho assalariado produtivo de-

[TE

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100 | PERCO CAPHAI

ineuto, uma única relação de produção, como ressalta


fine um dd
imediatamente dos
duas anúlises esbogudas há pouco,
ão sochal de mutureza juríd ica, vinda que,
“Não sendo essase relaç
referem à própria natureza do modo de produ
-
por motivos que ) à co-
ção capitalista, SOMOS obrigados (e Marx o primeiro de todos
expressas em
locá-la em evidência a partir das entegorlus jurídicas os se-
ua terminologia própria, não pode ter como suporte os mesm
res concretos, As relações Jurídicas são universuli stas c ubstratas;
é a estrutu-
elas se estabelecem entre “pessoas” “coisas” em geral;
tes como indivi-
ra sistemática do direito que define OS seus supor por sua
duos (pess oas) contrapostos à coisus, Do mesmo modo, é
de produção são os
função no processo de produção que os meios
c essa relação
suportes de uma relação da estrutura econômica,
pode ser defini-
(contrariamente À propriedade ou ao contrato) não representan-
is ou
da pelos indivíduos, mas apenas por classes socia
tes de classes sociais. Não é, pois, a definição da classe capitalista ou
da classe dos proletários que precede a da relação social de produ-
ção, mas inversamente, é à definição da relação social de produção
que implica uma função de “suporte” definida como uma classe.
Ora, uma classe não pode ser sujeito da propriedade no sentido
em que = juridicamente - o indivíduo é sujeito de sua propriedade,
nem sócio, “outra parte”, de um contrato. Estamos aqui não diante
da inerência do objeto a seu sujeito, ou do reconhecimento mútuo
dos sujeitos, mas do mecanismo de constante distribuição dos meios
de produção, portanto de todo o capital, e por conseguinte do pro-
duto social inteiro (como mostra Marx no penúltimo capítulo de
O Capital, no livro II: “relações de produção e relações de distribui-
ção”). As classes não são o sujeito deste mecanismo, mas o seu su-
porte, e as características concretas dessas classes (seus tipos de ren-.
da, fracionamentos internos, suas relações com os diferentes níveis
du estrutura social) são seus efeitos, A relação econômica de produ-
ção aparece, pois, como relação entre três termos determinados fun-
cionalmente: classe proprietária/meios de produção /classe dos pro-
dutores explorados, Veremos a comprovação disso em particular
nas análises do livro |, 7º seção (A acumulação do capital), em que
Marx mostra como o mecanismo da produção capitalista, ao consu-
É produtivamente os meios de produção e a força de trabalho ope-
detond Ea parinênoio do trabalhador ao capital, e faz do cupi-
indo neda Loo ' o do PNI, o funcionário do capital, Essa li-
mas “fio invisiei in as e não é por conseguinte um contrato,
pitalista à classe E, E o trabalhador à classe capitalista e o ca-
social deárminaa alhadora (O Capital, HI, p. 16, p. 20). A relação
nada pela'repartição dos méios de produção acha-se,

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MATERIALISMO HISTÓRICO 191

pois, instituída como relação necessária entre cada indivíduo de


uma classe c o conjunto da classe oposta,

2. Forças Produtivas (Ofício e Maquinaria)


Entre os conceitos gerais cuja articulação sistemática em Marx
aventei ao analisar o texto do Prefácio da Contribuição... nenhum
em sua simplicidade aparente apresenta mais dificuldade do que o
de forças produtivas ou, mais exatamente, de nível das forças produ-
tivas (ou seu grau de desenvolvimento), De fato, o próprio enunciado
do conceito sugere imediatamente duas consegliências, que são a orí-
gem de contra-sensos fundamentais sobre a teoria de Marx, mas que
forçado é reconhecer não serem fáceis de evitar; em primeiro lugar,
falando de “forças produtivas”, de “forças” de produção, sugere-se
logo a possibilidade de uma enumeração: “as forças produtivas são a
população, as máquinas, a ciência, etc.”: ao mesmo tempo, sugere-se
que o “progresso” das forças produtivas pode assumir o aspecto de
um progresso cumulativo, de um acréscimo de novas forças produti-
vas, ou de substituição de algumas delas por outras mais *'podero-
sas” (a ferramenta do artesão pela máquina), Somos então levados a
uma interpretação do “nível” ou do “'grau de desenvolvimento”
tanto mais tentadora quanto parece implicada nas próprias expres-
sões: trata-se claramente de um desenvolvimento linear e cumulativo,
de uma continuídade quase biológica. Como então explicar descon-
tinuidades históricas contidas expressamente na teoria geral, a não
ser por uma teoria da “transformação qualitativa”, da “passagem
da quantidade à qualidade”, isto é, uma teoria descritiva do aspecto
do movimento que não suprime a sua estrutura geral? Como escapar
a uma teoria mecanicista do movimento histórico em que a “*dialéti-
ca” é apenas outro nome para uma defasagem (décalage), um retar-
do periódico, e periodicamente preenchido, reajustado, das demais '
instâncias em relação a esse desenvolvimento que é a medida dele?
Uma enumeração como essa choca-se no entanto rapidamente
com dificuldades notáveis: todas elas têm a ver com a heterogenei-
dade dos “elementos” que é preciso acrescentar, se quisermos fazer
coincidir diretamente o conceito de Marx com uma descrição de
“fatos”, Os críticos burgueses de Marx não deixam de observar que
as “forças produtivas” incluem, afinal, não apenas instrumentos
técnicos, mas também a aplicação dos conhecimentos científicos ao
aperfeiçoamento e substituição desses instrumentos, e por fim à pro-
pria ciência; não apenas uma população de forças operárias, mas os
hábitos técnicos e culturais dessa população, cuja história (para os
modos de produção antigos) e cuja psicossociologia industrial mos-
tram cada vez mais sua “espessura” e sua complexidade histórica e

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192 | LER CO CAPITALO

: .
| ca; não apenas técnicas, mas certa a anizaçã
a fa o fica
do traba.
dardo
socio até
lho, Cuica:
nas nomarcuma organização social e política (a “planificação” é
ante), etc. Essas dificuldades não
e flotem(en ! impossibilidade
, eito, q Arias
de fazer coin
uai
cidir o conceito
v 4t j

com atos do a o
de Mary

a Dor
re 1 ia que procede, ela sim, por en.

a A O paloológico o político, etc. e que funda sobre essas


sd ta 5 sul próprias classificações históricas (as Sociedades
iradiotonnh € as sociedades industriais, as soc ades libe
sociedades centralizadas-totalitárias, etc.). Mais ied rais cas
ainda, essas dificul.
dades são, para nós, indicadoras de uma diferença essencial de for.
ma entre o conceito de Marx e categorias desse gênero: Indicadoras
de que o conceito das forças produtivas nada tem a ver
com uma
enumeração desse tipo. Impõe-se-nos portan
to ir em busca de sua
verdadeira figura.
Atentamos primeiro à própria .
formulação de Marx: esse
“nivel” ou “grau”, que exprimem, é cert
o, a possibilidade de uma
medida pelo menos virtual, e medida
de um crescimento, são sus-
cetiveis de caracterizar a essência das forç
as produtivas, e por conse-
guinte defini-las na esp
ecificidade de um modo histórico
ção. Ora, é lugar-comum observ de produ-
ar que à produtividade do trab
isto é, a “medida” desse desenvolv alho,
imento, aumentou mais em algu-
mas décadas de capitalismo indu
strial do que em séculos nos
de produção anteriores, modos
embora as “relações de produção”
mas jurídicas e políticas conservem , as for-
um ritmo de transformação
equivalente; o mesmo acontece com
a transformação dos meios de
trabalho (do instrumental); que Mar
x chama de Gradmesser der Ent-
wicklung der menschichen Arbeitskraft
. Marx diz, de resto, muito
melhor, e todas as vezes que esse níve
l desempenha um papel direto
na análise econômica: qa força produt
iva do trabalho, a produtivida-
de da força de trabalho (Produktivkra/fi).
É que em realidade as “forças produt
ivas”
não são coisas,
como o veremos, Se fossem coisas, o
problema do seu transporte,
sua imp ortação, seria paradoxalmente mais fácil
de resolver pela S0-
ciologia burguesa (com exceção de alg
uns problemas “psicológicos
de adaptação ) do que por Marx - dado que a sua teoria toma como
relação necessária a correlação entre certas
forças
tipo de sociedade (determinada por suas relações prod utivas e certo
sociais). Superan-
do a ilusão verbal criada pelo termo, dir-se-á já
que o aspe mais
interessante das forças produtivas não mais é a sua enumercto ação ou
composição, mas o ritmo 'ou andamento do seu desenvolvimento,
porque o ritmo está diretamente ligado à natureza das od de
produção e à estrutura do modo de produção. O que Mar dat ue
trou, sobretudo, em O Capital, e à que fazem alusão certas tras

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MATERIALISMO HISTÓRICO coabd3

lebres do Manifesto, é não que o capitalismo tenha libertado o de-


senvolvimento das forças produtivas pela primeira vez e para sem-
pre, mas que o capitalismo impôs às forças produtivas um tipo de de-
senvolvimento. determinado cujo ritmo e andamento [he são peculia-
res, ditados pela forma do processo de acumulação capitalista. Esse
andamento é que caracteriza melhor, descritivamente, um modo de
produção, mais que o nível atingido num momento qualquer. (“Pa-
ra o capital, a lei do aumento da força produtiva do trabalho não se
aplica de modo absoluto. Para o capital, essa produtividade é aumen-
tada não quando se pode realizar uma poupança do trabalho vivo
geral, mas apenas quando se pode realizar sobre a fração paga do
trabalho vivo uma poupança mais importante do que é acrescentado
de trabalho passado...) (O Capital, VI, 274).
Mas, do ponto de vista teórico, as “forças produtivas” são tam-
bém uma relação de certo tipo no interior do modo de produção, em
outros termos, são também uma relação de produção: precisamente o
que tentei indicar ao introduzir entre as relações constitutivas da es-
truturá da “combinação” uma outra relação além da “proprieda-
de”, uma relação B de “aproximação real”, entre os mesmos ele-
mentos: meios de produção, produtores diretos, até mesmo “não-
trabalhadores”, isto é, no quadro do modo de produção capitalista,
não-assalariados. Gostaria de mostrar agora que se trata realmente
de uma relação, digamos mais rigorosamente, uma relação de pro-
dução, acompanhando a análise presente nos capítulos de O Capital
dedicados aos métodos de formação da mais-valia relativa; ao mes-
mo tempo veremos melhor em que consiste a análise diferencial das
formas. '

A análise de Marx estende-se por três capítulos de O Capital


(livro I, caps. 13-14-15 da tradução francesa *) dedicados às formas
de cooperação na manufatura e na indústria moderna, e à transição
de uma à outra que constitui a “Revolução Industrial”. Mas esse de-
senvolvimento é ininteligível se não o referimos, por um lado, à defi-
nição do processo de trabalho (livro I, cap. 7) e, por outro, ao capi-
.tulo 16 do livro 1 ** (“a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa”)
que constituem sua conclusão,
A transição da manufatura à indústria moderna inaugura o que
Marx chama de ''modo de produção especifico” do capitalismo, ou
ainda “'subsunção real” do trabalho sob o capital, Em outras pala-

* Livro |, volume |, quarta purte, cups, XI, XIl e XII da edição brasileira (Ed. Ci-
vilização Brasileira). (N, do T,)
** Livro |, volume |, terceira parte, caps. V, Vl e VII, idem.

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194 LER “O CAPITAL”

vras. a indústria moderna constitui a forma de nossa relação que


pertence organicamente ao modo de produção capitalista.
O capital se apodera primeiro do trabalho nas condições técnicas
dadas pelo desenvolvimento histórico. Não modifica de imediato O modo
de produção. A produção da mais-valia, sob a forma considerada prece.
dentemente, por simples prolongamento da jornada, apresentou-se, pois.
independentemente de qualquer mudança no modo de produzir (O Capi.
tal, 1, 203).
A produção da mais-valia relativa revoluciona totalmente os proces.
sos técnicos do trabalho e as formas de grupamento social (die gesells.
chafilichen Gruppierungen). Ela pressupõe, pois, um modo de produção es.
pecificamente capitalista, com os seus métodos, meios e condições pecu.
liares. Esse modo de produção só se constitui e se aperfeiçoa naturalmen.
te com base na subsunção formal do trabalho sob o capital. A subsunção
real do trabalho sob o capital substitui então a subsunção formal (Retra-
duzido da ed, alemã, tomo |, p. 535).

As considerações seguintes poderiam limitar-se a comentar es-


ses textos.

Mediante essa diferença entre a subsunção formal e a subsun-


ção “real”, verificamos primeiramente a existência de uma defasa-
gem cronológica (décalage) na formação dos diferentes elementos da
estrutura: o capital como ““relação social”, isto é, a propriedade ca-
pitalista dos meios de produção, existe antes e independentementé
da subsunção “real”, isto é, da forma específica da nossa relação (de
apropriação real) correspondente ao modo de produção capitalista.
A explicação dessa defasagem e a possibilidade de tais defasagens
em geral nos remete a uma teoria das formas de transição de um
modo de produção a outro, que deixo provisoriamente de lado. Li-
mito-me por ora a isto: a defasagem simples, puramente cronológi-
ca, é indiferente à teoria que estudamos; a “*sincronia” na qual é
dado o conceito de um modo de produção suprime pura e simples-
mente esse aspecto da temporalidade, e exclui, pois, da teoria da his-
tória qualquer forma de pensamento mecânico do tempo
(segundo
qual pertence ao mesmo tempo o que figura na mesma categoriaa
num quadro cronológico de concordância). Não somente há uma
defasagem entre o aparecimento da propriedade capitalista dos
meios de produção e a “revolução industrial”, como a revolução in-
dustrial é ela mesma defasada de um ramo a outro da produção.
Essa segunda defasagem é também suprimida pela teoria. Finalmen-
te, no interior de um mesmo ramo, ela prossegue por substituições
sucessivas do trabalho manual pelo trabalho “mecânico”, cujo rit-
mo obedece a necessidades econômicas estruturais e conjunturais;
de tal modo que a “transição” que tomamos aqui por objeto apare-

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MATERIALISMO HISTORICO 195

ce como tendência, no sentido estrito dado por Marx a esse termo.


isto é, como aspecto estrutural do modo de produção capitalista: a
essência das “forças produtivas” no modo de produção capitalista é
o estar permanentemente em vias de passar do trabalho manual so
trabalho mecânico.

Lembremos em que consiste essa passagem da manufatura à in-


dústria moderna.
Manufatura e indústria mecanizada aparecem como formas da
cooperação entre os trabalhadores (produtores diretos), e essa coo-
peração só é possível pela submissão deles ao capital que os emprega
todos ao mesmo tempo. Uma e outra constituem. pois. o que po-
deriamos chamar de organismos de produção; instituem um “traba-
lhador coletivo”: o processo de trabalho que se define pela entrega
de um produto útil acabado (seja esse uso consumo produtivo ou in-
dividual) exige a intervenção de vários trabalhadores segundo uma
forma de organização específica. A manufatura e a indústria moder-
na opõem-se assim igualmente ao ofício individual. No entanto, a
verdadeira ruptura não está aí.

As formas de qualquer cooperação podem ser ou simples ou


complexas: na cooperação simples, tem-se uma justaposição de tra-
balhadores e de operações. “Os trabalhadores, completando-se mu-
tuamente, executam a mesma tarefa ou tarefas semelhantes.” Essa
forma de cooperação verifica-se sobretudo na agricultura. Na ofici-
na do mestre de corporação, o trabalho dos companheiros apresen-
ta-se como uma cooperação simples, no mais das vezes. O mesmo
acontece com as formas primitivas de manufatura que são simples-
mente a reunião dos artesãos num único local de trabalho. A coope-
ração complexa é, pelo contrário, uma imbricação, um entrelaça-
mento do trabalho. As operações efetuadas pelo trabalhador indivi-
dualmente, sucessivas ou simultâneas, são complementares, e só a
reunião delas faz surgir o produto acabado. Essa forma de coopera-
-ção (que em certos ramos, por exemplo, a metalurgia, é bem antiga),
“constitui a essência da divisão manufatureira do trabalho: um mesmo
trabalho é dividido entre os trabalhadores (o que, até o século
XVIII. chamava-se uma mesma “obra”, uma mesma empreitada).
Essa divisão pode ter, naturalmente, diferentes origens. Pode
comple-
provir de uma verdadeira “divisão”, quando as operações
di-
xas de um mesmo ofício foram distribuídas entre trabalhadores
pro-
versos que são especializados em certo trabalho parcelar: pode
vir da reunião de vários ofícios diferentes, subordinados à produção
esses ofi-
de um único produto útil para a qual todos concorrem, e
parcela-
cios são depois transformados, com o tempo, em trabalhos

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| LER “O CARTAL”
196 +

dos. Os dois exemplos são analisados por Marx al id alfi


netes. manufatura de carroças), e dependem das rar ades física
do produto, mas esse processo de formação da resulta
do, que é uma divisão do trabalho da mesma forma, princípic
fundamental, cuja importância logo veremos, é que as operações par
celadas possam ser executadas como trabalho manual. ' Todas as van
tagens da divisão manufatureira do trabalho decorrem da racional;
zação que permite, para cada operação parcial, 0 isolamento dela e ;
especialização do trabalhador: o uperfeiçoamento dos movimentos«
das ferramentas, o aumento da velocidade, etc.; é preciso, pois, que
essa especialização seja efetivamente possível, que cada operação,
por mais simples que seja, se torne individualizada. Em vez de uma
ruptura, verificamos portanto uma continuidade entre o ofício e a
manufatura: a divisão manufatureira do trabalho aparece como o
prolongamento de um movimento analítico de especialização pró-
prio do oficio, que recai simultaneamente sobre o aperfeiçoamento
das operações técnicas e sobre os aspectos psicofísicos da força de
trabalho operária. Trata-se de dois aspectos, duas faces de um mes-
mo desenvolvimento.

A rigor, a manufatura apenas radicaliza ao extremo o aspec-


to distintivo do ofício artesanal que é a unidade da força de trabalho
com o meio de trabalho. Por um lado, o meio de trabalho (ferramen-
ta) deve ser adaptado ao organismo humano; por outro, uma ferra-
menta deixa de ser instrumento técnico nas mãos de quem não sabe
utilizá-la: o seu uso eficaz exige do trabalhador um conjunto de qua-
lidades físicas e intelectuais, um acervo de hábitos culturais
(o co-
nhecimento empírico dos materiais, destreza que pode ir até ao se-
gredo do ofício, etc.) Essa a razão pela qual o ofício está indissol
u-
velmente relacionado com o aprendizado. “Uma técnica”,
antes da
revolução industrial, é 0 conjunto indissociável de um
meio de traba-
lho, ou de uma ferramenta, com o trabalhador, preparado
para a sua
utilização pelo aprendizado e pelo hábito. A técnica é em essência
individual, mesmo que a organização do trabalho
seja coletiva. A
manufatura conserva essas propriedades e as leva ao extremo
: os in-
convenientes apontados desde a origem do trabalho parcela
correm precisamente de que a manufatura mantém do de-
rigoros amente a

ri presente deve-se, evidentemente, tomar o conceito geral de “trabalho ma-


+ ei h tendo
membro em contadevemos
dominante; que não se trata apenas de utilização da mão, embora seja ela o
entender o trabalho de todo o organismo psicofisioló-

ie vs VEMO modo, não se deve 'empregar “máquina” no sentido restrito de me-
ê os.

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MATERIALISMO HISTÓRICO 197

coincidência do processo técnico, que dá ensejo a operações cada vez


mais diferenciadas, adaptadas a materiais e produtos cada vez mais
numerosos e distintos, e portanto a instrumentos de trabalho paula-
tinamente mais individualizados (cada vez menos polivalentes), com
o processo antropológico, que torna as capacidades individuais cada
vez mais especializadas. À ferramenta e o trabalhador refletem um
único e mesmo movimento.

A principal consegiiência dessa unidade imediata é o que Marx


chama de ''a mão-de-obra como princípio regulador da produção
social”, O que significa que a cooperação na manufatura põe em re-
lação trabalhadores, e apenas por intermédio deles os meios de pro-
dução. Esse fato aparece claramente se considerarmos por exemplo
a imposições a que está sujeita a constituição dos “organismos de
produção” quanto à proporção dos operários empregados nas dife-
rentes funções: essas imposições são ditadas pelas características da
força de trabalho. Deve ser estabelecido empiricamente o número de
operações manuais entre as quais é mais vantajoso dividir o traba-
lho, e a quantidade de operários empregados em cada tarefa parce-
lada, de modo que todos tenham sempre “trabalho” continuamente.
Determina-se assim a composição de um grupo-unidade que fica pa-
ralisado desde que lhe falte um só dos seus membros, exatamente
como um artesão ficaria paralisado na continuidade do seu processo
de trabalho se por uma razão qualquer não pudesse efetuar uma das
operações exigidas para a fabricação do seu produto (veja-se O Ca-
pital, 1, 37 *).
de
Ao substituir a força humana em sua função de manejadora
o objeto de
ferramentas, isto é, ao suprimir o seu contato direto com
da rela-
trabalho, a maquinaria enseja uma transformação completa
ção do trabalhador com os meios de produção. Daí por diante a in-
formação do objeto de trabalho não mais depende das caracteristi-
pre-
cas culturalmente adquiridas da força de trabalhó, mas acha-se
mecanis-
determinada na forma dos instrumentos de produção, e no
mo de seu funcionamento, O princípio fundamental da organização
do trabalho torna-se a necessidade de substituir o mais completamen-
te possível as operações manuais por operações mecanizadas. A má-
quina-ferramenta torna a organização da produção completamente
independente das características da força humana de trabalho: ao |
mesmo tempo, os meios de trabalho e o trabalhador, completamen-
te separados, adquirem formas de evolução diferentes. A relação

* Livro |, volume |, 4º parte, cap. XII da edição brasileira já citada. (N. do T.)

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198 LER “O CAPITAL”

precedente inverte-se: em vez de os instrumentos terem de adaptar-


se necessariamente ao organismo humano, o organismo humano é
que deve adaptar-se aos instrumentos.

Essa separação torna possível a constituição de uma unidade de


com o
tipo completamente diferente, a unidade do meio de trabalho
objeto de trabalho. A máquina-ferramenta, diz Marx, permite a
dos próprios
constituição de um “esqueleto material independente
produção agora
trabalhadores” (O Capital, II, 56). O.organismo de
mas um conjun-
não é mais a reunião de certo número de operários,
operários. “Uma
to de máquinas fixas, prontas a receber quaisquer
materiais e instrumen-
técnica” é daí por diante o conjunto de certos
to das suas proprie-
tos de trabalho, ligados entre si pelo conhecimen
sistema. O processo de pro-
dades físicas e das propriedades de seu
como processo natural de traba-
dução é considerado isoladamente
do processo de trabalho um
lho; constitui no interior dos elementos
Essa unidade exprime-se no
subconjunto relativamente autônomo.
da tecnol ogia, isto é, da aplicação das ciências da na-
aparecimento
às técnic as da produ ção. Mas essa aplicação só é possível
tureza
a base existe nte da unida de objetiva dos meios de produção
sobre
processo de trabalho.
(meio e objeto de trabalho) no
então a determinação do que
O trabalhador coletivo adquire
. É impossível explicar a totã-
Marx chama de "trabalho socializado”so de trabalho particular (con-
proces
lidade das condições que um exige efetivamente, sem o E
det erm ina do pro dut o útil )
ducente a da produçio a
l, elemento
derar como processo de trabalho parcia é
cial em seuconjunto. E sobretudo é preciso que intervenha nã 1]
nica) o trabalho
se dele (na análise da sua divisão técess de Co ba E Eami.E
tra
is e pro ces so
produz os conhecimentos dos qua peração A balho
cular é aplicação. Há trabalhadores na coo produto do di lo
balho. Que esse
acham presentes no local dodotrapon o
a, seja, to de vista do capitalista, u
intelectual, a ciênci a
mento gratuito (o que não é inteiramente O caso) e apare
o dad
“uma dádiva da sociedade, é outro problema que não unto in-
análise do processo de trabalseho, Do mesmo modo,mesomaconjtéc nic a, | Í
acha apl ica da uma
oficinas ou fábricas em que a tornar
dependentemente das distribuiçõeexp s de propriedade, tende que Mar
e de eri ênc ia, € con sti tui O . é
X

ção
,
ica
“A

se o seu camp o de apl . =»

a de “e xp er iê nc ia prá tica em grande escala”:


cham
como
revela e mostra...
Só a experiência do trabalhador coletivo icu lda des
as, as dif
aplicar do modo mais simples as descobertas j 4 feit sua utilização no
ria, em
práticas que é preciso superar na execução da teo
processo de produção etc. (O Capital, VI, 121).

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MATERIALISMO HISTÓRICO o “TJ ———

Percebemos então que a transformação da relação entre os ele-


mentos da combinação tem por conseqtiência uma transformação
da natureza desses elementos. Esse “trabalhador coletivo” que está
em relação com a unidade dos meios de produção é agora um indiví-
duo completamente diferente daquele que constitua com outros
meios de trabalho a unidade característica do trabalho artesanal-
manufatureiro; também mudou de suporte a determinação do “tra-
balhador coletivo”:
A partir do momento... em que o produto individual é transformado
em produto social, em produto de um trabalhador coletivo cujos diferen-
tes membros participam no manejo da matéria em graus muito diversos.
de perto ou de longe, ou mesmo ausentes, as determinações de trabalho
produtivo, trabalhador produtivo, ampliam-se necessariamente. Para ser
produtivo, não mais é necessário pôr-se individualmente mãos à obra;
basta ser um órgão do trabalhador coletivo ou lhe preencher uma função
qualquer. A determinação primitiva do trabalho produtivo, surgida da
própria natureza da produção material, continua sempre verdadeira em
relação ao trabalhador coletivo considerado como uma só pessoa, porém
não mais se aplica a cada um de seus membros tomado à parte? (O Ca-
pital, 11, 183-184).

Na nossa pseudocombinatória, na realidade não são, pois, os


mesmos elementos “concretos” que reencontramos de uma variação
a outra. À sua particularidade
já não é definida por um simples lu-
gar, mas como um efeito, cada vez diferente, da estrutura, isto é, da
combinação que constitui o modo de produção. Tomei como exem-
plo essa relação porque a análise de O Capital desenrola inteiramen-
te o seu fio, mas é claro que uma análise do mesmo tipo poderia ser
feita sobre as formas da propriedade, não no sentido jurídico do ter-

* Essa determinação é seguida, no texto deO Capital, de uma outra, que assinala
que a qualificação do “trabalhador coletivo” é simultaneamente restrita, no modo de
produção capitalista, ao trabalhador assalariado, aquele que corresponde para o capi-
talista a um adiantamento de capital variável, Esses dois movimentos inversos (exten-
são-limitação) não se excluem nem se contradizem. Correspondem ambos a uma das
duas relações internas do modo de produção, mais exatamente à determinação de um
elemento - o trabalhador direto - em relação a cada uma das duas relações segundo a
forma específica que ela assume no modo de produção capitalista. Naquela que to-
mamos como objeto de estudo, o elemento (o trabalhador) que possui a capacidade
de pôr efetivamente em funcionamento os meios de produção sociais é, pois, consti-
tuído não apenas de trabalhadores, assalariados e não-assalariados (trabalhadores in-
telectuais), mas dos próprios capitalistas na medida em que assumem a função técni-
ca do controle e da organização, Verificaremos esse duplo movimento (extensão-
limitação) na sequência deste ensaio, no momento em que analisarmos o tipo especi-
fico de desenvolvimento das forças produtivas no modo de produção capitalista e a
tendência histórica do modo de produção.

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200 LER “O CAPITAL” .

mo, mas no sentido das relações de produção que as formas jurídicas


pressupõem e formalizam. Marx esboça a indicação disso nos textos
retrospectivos da Gênese da Renda Territorial Capitalista (O Capital,
livro III*) e das Formas Anteriores ** (Grundrisse), valendo-se
sobretudo de uma distinção de forma entre a “propriedade”e a
“posse”. Suas indicações bastam para mostrar que:encontraríamos
formas tão complexas quanto as que ele põe em evidência a propósi-
to da apropriação real. ' '

3. Desenvolvimento e Deslocamento
Antes de enunciar as consegiiências ulteriores que podemos ti-
rar dessa análise, é necessário mostrar como ela depende inteira-
mente dos critérios de diferenciação das formas que estão contidas
na definição do processo de trabalho.
Eis os elementos simples (die einfachen Momente) nos quais o pro-
cesso de trabalho se decompõe: 1º) atividade pessoal do homem, ou tra-
balho propriamente dito (zweckmássige Tátigkeit); 2º) objeto sobre o
qual o trabalho atua (Gengestand); 3º) meio pelo qual ele atua (Mittel)
(0 Capital, 1, 181).

Retém-se em geral da análise de Marx sobre a revolução indus-


trial o que a distingue das demais explicações do mesmo “fenôme-
no”: o ter atribuído a origem das subversões técnicas e sociais à In-
trodução da máquina-ferramenta, à substituição do homem como
manejador de ferramentas, em vez de atribuir a revolução industrial
à utilização de novas fontes de energia (à máquina a vapor), à substi-
à discus-
tuição do homem como motor. No mais das vezes, porém,
são não se detém sobre a expressão teórica dessa originalidade, que
está contida na definição do processo de trabalho. À revolução in-
ada) pode de-
dustrial (transição da manufatura à indústria mecaniz rmação
finir-se inteiramente mediante esses conceitos, cojno a transfo
“ de sua relação em consegiiência da substituição do meio de trabalho.
Retomando o que há pouco dissemos sobre essa transformação, €

(N. do T).
Também no livro 1, volume 1, cap. XXIV, 4, na edição brasileira citada.
“x
de ns língua portuguesa, Formações Econômicas Pré-Capitalistas, com introdução
Fic Hobsbawn, Ed, Paz e Terra, 1975, (N, do T,)
- ne” .
A a
res apição de propriedade dos meios de produção pode ser exercida por particul
sentar-se Pen, representantes reais ou imaginários da coletividade, ete.; pode apre-
orma única ou desdobrar-se - “propriedade” e “posse”, etc.

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MATERIALISMO HISTÓRICO 201

resumindo Marx, poderíamos representá-la assim, como sucessão


de duas “formas de existência material” do processo de trabalho.
- unidade do meio de trabalho com a força de trabalho,
- unidade do meio de trabalho com o objeto de trabalho;
em cada caso a figura da relação entre os três elementos fica comple-
tamente caracterizada pela designação do subconjunto que possui
uma unidade e uma autonomia relativa.

k unidade da maquinaria,
- objeto de trabalho tecnologia
- meio de trabalho “unidade do ofício
- força de trabalho (da manufatura),
(“atividade”) artesanato

Aparece ao mesmo tempo que os três conceitos da definição do


processo de trabalho nada têm a ver com a abstração de uma descri-
ção empírica (sujeito, objeto, mediação”) que se poderia sempre
fazer de outro modo ao distinguir outros elementos. Em relação à
análise das duas formas sucessivas da relação, eles não são deriva-
dos, mas a tornam possível.
de
Pode-se dessa maneira analisar completamente o movimento
estrutu ra
uma forma à outra: não como simples dissolução de uma
como a trans-
(separação do trabalhador do meio de trabalho), mas
a consti-
formação de uma estrutura em outra. Não, também, como
de do ob-
tuição ex nihilo de uma estrutura ainda que original (unida
ões físicas)
jeto com o meio de trabalho num único sistema de interaç
rgência des-
(ou como a formação casual dessa estrutura pela conve
formas do
sas duas abstrações, “a ciência”, “a técnica”): porque as
pro-
processo de trabalho é que mudaram. O novo sistema das forças
lista,
dutivas, cujo primeiro exemplo é a indústria mecanizada capita
ção
nem é um fim nem uma origem absolutos, mas uma reorganiza
eza, das
de todo o sistema, da relação de apropriação real da natur
“forças produtivas”,
Mas apareceu claramente ao mesmo tempo o fato de que essa
mudança de forma não podia de modo algum ser analisada como o

+ “O meio de trabalho adquire na maquinaria uma forma de existência material (ma-


terialle Existenzweise) de que depende a substituição da força do homem pelas forças
naturais e da rotina empírica pela aplicação consciente da ciência” (O Capital 11,71 -
tradução refeita),

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202 LER “O CAPITAL"

movimento linear de um desenvolvimento, como uma filiação. Filia-


ção como essa existe entre o ofício e a manufatura, dado que, como
vimos, a manufatura pode ser considerada, do ponto de vista que
nos ocupa, como a continuação de um movimento próprio do ofí-
cio, e que conserva todas as suas características. Mas a máquina que
substitui o conjunto constituído pela ferramenta e pela força de tra-
balho educada, especializada, em nada é produto da evolução desse
conjunto. Ela ocupa simplesmente o mesmo lugar. Substitui o siste-
ma precedente por outro sistema: não há continuidade entre elemen-
tos ou indivíduos, mas entre funções. Poderíamos designar esse tipo
de transformação pelo termo geral deslocamento (déplacement).

Gostaria a esta altura de fazer uma digressão que não é fortui-


ta, comparando esse tipo de raciocínio com o método muito interes-
sante e surpreendente adotado por Freud nos ensaios sobre a histó-
ria da libido (sobretudo os Três Ensaios sobre a teoria da sexualida-
de). A analogia é suficientemente rigorosa para nos induzir a fazê-la,
e esse confronto parecerá talvez ainda mais legítimo se tivermos em
mente o parentesco das situações ideológicas nas quais e contra as
quais, Marx e Freud tiveram de constituir as suas teorias, por vezes
valendo-se dos conceitos dessas. mesmas ideologias. O reinado do
evolucionismo é tão poderoso na ciência da história quanto o é na
“psicologia”. Os termos que Freud emprega nos Três Ensaios reme-
tem a um evolucionismo psicológico, exatamente como os termos de
Marx: “nível”, “grau de desenvolvimento” das forças produtivas,
remetem a um evolucionismo histórico (no Prefácio de Contribuição
à Crítica da Economia Política, Marx fala da substituição das rela-
ções sociais existentes por relações “novas e superiores”). Não me
ocupo aqui (não haja qualquer dúvida quanto a isso) da articulação
dos objetos da psicanálise e do materialismo histórico, mas da possi-
bilidade de discernir analogias epistemológicas entre a obra teórica
de Marx e a de Freud,
Por um lado encontramos, com efeito, nesses ensaios de Freud
toda uma teoria biológica ou meio biológica dos estágios de desen-
volvimento da libido (pulsão sexual), uma problemática da constitui.
ção congênita e dos caracteres adquiridos, dos “germes” cujo desen-
volvimento constituirá os estágios sucessivos. Encontramos uma
teoria do desenvolvimento e seus graus intermediários, o que autori-
za ao mesmo tempo uma teoria do patológico como fixação em de-
terminado estágio do desenvolvimento ou regressão a esse estágio
(mais uma regressão é sempre a revelação de uma fixação), etc.
Mas com respeito ao que seria uma verdadeira teoria evolucio-
nista, e nos seus próprios termos, deparamos por outro lado coisa
completamente diversa,

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MATERIALISMO HISTÓRICO 203

Por exemplo, numa passagem como esta:


Questão difícil e inelutável, a saber: qual o critério pelo qual se po-
en-
dem reconhecer as manifestações sexuais na criança, Parece-me que o
cadeamento dos fenômenos, que a psicanálise esclarece, nos permite afir-
s da
mar que a sucção é um ato sexual, € estudar nele os traços essenciai
sexualidade infantil (Três Ensaios, p. 73).º

Deparamos aqui uma das expressões. de um raciocínio que


Freud generaliza nesse estudo, e que consiste em fazer de uma série
de uma
de organizações da procura do prazer as formas sucessivas
sexual
mesma pulsão sexual. “Esse desenvolvimento culmina na vida
(no en-
que estamos acostumados a chamar de normal no adulto”
que
saio da Introdução à Psicanálise, a cadeia é mais complexa, visto
in-
Freud utiliza simultaneamente, em sua definição, a sexualidade
a assim,
fantil e a do adulto “'anormal”: o desenvolvimento culmin
que ocu-
ou na sexualidade “'normal” ou na perversão e na neurose,
s do.
pam no “anormal” o mesmo lugar). Paradoxalmente, as origen
evidên-
desenvolvimento são os estágios que possuem, com menos
pelo fato
cia, a característica “sexual”. Na realidade, só a adquirem
to-
de que a análise descobre nelas uma mesma função. Em vez de ser
mada como uma continuidade, a sucessão pode ser analisada como
isto é,
uma série de deslocamentos: deslocamento de zonas erógenas,
partes do corpo que são investidas de ''valor” sexual em dada orga-
do corpo
nização libidinal (Freud afirma que quase não há parte
que não adquira esse valor); deslocamento das funções biológicas
nas quais a pulsão sexual está inicialmente “apoiada”; deslocamen-
to dos objetos da pulsão, a partir do que Freud chama de ausência
de objeto, mas que lhe é uma modalidade particular, até o objeto do
amor genital. Cada um desses deslocamentos corresponde a uma va-
riação das relações entre o que Freud chama de “pulsões parciais”,
isto é, componentes da pulsão sexual complexa.
Observamos depois que certo número de perversões estudadas até
aqui só podem ser comparadas pressupondo-se
de natutezaa complexa. vári se
ação conexaIssode nos
fatores. Se admitem análise é que são
varia a pensar que a pulsão sexual em si mesma não é um dado simplples,q
se dissoci
mas que se constitui de diversos componentes, as quais conh tam nos
dá a
casos de perversão. A observação clínica também fusões
ecer
novas... (Três Ensaios, p. 49).

Cada uma dessas variações


mn; é um sistema de org anizaçã da pul.
j
são sexual complexa, impli cando uma relação 4 zação
dominância ou

* Ed. francesa. Gallimard, 1962.

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204 LER “O CAPITAL”

enitais ou
hierarquia entre as “pulsões parciais” (organizações pré-g
genitais — primado da zona erógena genital). (Veja-se Três Ensaios,
pp. 94 ss.)
ação uma sé-
Os raciocínios de Freud nessas páginas põem em
mente com uma teoria
rie de conceitos que nada têm a ver profunda a-se de
modelo biológico. Trat
da evolução do indivíduo, nem com O quesiões:
nte à duas
raciocínios que devem responder simultaneame sujeito? Que é que
vimento e qual é o seu
qual é a forma do desenvol
inseparáveis de uma nova defi-
se desenvolve? * Eles aparecem como
to da análise (Freud vê-se a
nição déssa “sexualidade” que é o obje
essa “extensão” da noção de se-
braços com objeções referentes a da atividade se-.
O prolongamento
xualidade e que a confundem com
Por fim aparece que a sexuali-
xual “genital” aquém da puberdade). das formas entre as quais
simp lesm ente pela suce ssão
dade se define é o elemento de
mentos”. Sexual
podem analisar-se esses “desloca ação culmina afinal na orga-
das puls ões cuja vari
uma organização
nização genital.
ita a análi s e do s de sl oc amentos é um conjun-
Ora, o que possibil análogo ao dos con-
icos que dese mpen ha pa pe l
to de conceitos teór na análise das formas da
do proc esso de trab al ho
ceitos da definição ti va s” ): atividade /obje-
relação de apro pria ção real (for ças P ro du
alho . Esse s conc eito s, em Freu d, sã o utilizados siste-
to/meio de trab sistematicamente apresentados
no
nos Três Ensa ios e
maticamente -se dos
etapsicologia): trata
artigo sobre as pulsões e seu destino (M ng),
conceitos de fonte (Quelle), impulso (Dra objeto (Objekt) € obje-
se trata, evidentemente, de uma corres-
tivo (Ziel) da pulsão, Não de Marx; mas de um
pondência entre os conceitos de Freud e Os de função des-
mesmo tipo s de noanáli e portanto de uma identidade
se,
ses conceito método. |

recíproca os problemas
Poderíamos talvez então esclarecer em a dificuldade que ele en
x, Sobretudo
colocados pelo texto de Mar

do
alquer teoria
Em realid
es seu ap re se ntamde ne m ente a quico (quer história
cessariaque se tra te
desenvolvialidade, essas questõem se domínio origem, é et ológ
bi
dá individ ento: sobretudo
numa his a
revolução darwiniana pode situar-se que introco
das teorias do 3 a espécie). A delas,
como nova forma de colocação in
nova resposta( esenvolvimentoreservada às espécies, e distinta do desenvolvimento
“evolução”,
dividual), Já Se aescreveu sobre esse tópico: Primeiro esse desenvolvimentó entende- E
Sé como od e um indi 21
único e qualificado, Sem dúvida, discerne-Se mal, em a
cos do século IX) + O Osujeito do desenvolvimento (o que sé desenvolve).,
Bi rd
lante das tran , à superfície €
embriológicas não pode assimilar-se
form :
me (como num dean (como num crescimento).
'volvimento), nem à estrutura adulta

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MATERIALISMO HISTÓRICO 205

"contra para isolar a relação de que falei, ou, o que dá na mesma,


para pensar o “nivel das forças produtivas” como uma relação no
interior da combinação, isto é, como uma relação de produção do
mesmo modo que as formas da propriedade dos meios de produ»
ção. '
Essa dificuldade acompanha a tentação de enumerar as forças
produtivas, e, por exemplo, distribuí-las entre a natureza e o ho-
mem. Encontramos também nesses textos de Freud formulações que
tentam situar a pulsão sexual, tal como a análise as descreve, em re-
lação aos domínios da biologia e da psicologia; Freud acaba por de-.
finir a pulsão como um limite entre o biológico e o psicológico, e
chega a localizar essa ambiguidade no nível da “origem” da pulsão
(veja-se na Metapsicologia, tradução francesa, p. 35: “Entende-se
por origem da pulsão o processo somático que se dá num órgão ou
numa parte do corpo cuja excitação é representada, na vida psíqui-
ca, pela pulsão. Ignoramos se esse processo é sempre de natureza,
ao
química... o estudo das fontes pulsionais não mais pertence
da pul-
domínio da psicologia; embora a origem-e a fonte somática
só nos é
são sejam para esta um elemento verdadeiramente decisivo,
das for-
conhecida por seus objetivos, na vida psíquica”). Na análise
O
mas, o biológico está, pois, sempre ausente, enquanto biológico.
Deve-se, po-
“limite” procurado é, por isso, a rigor inencontrável.
sentido,
rém, acrescentar que o psicológico está também, em outro
por sua
ausente: em sua concepção tradicional, ele se define também
tal, O
oposição em relação ao biológico. Desaparecendo este como o
psicológico vê-se transformado em coisa diferente: precisamente
de uma série
que Freud chama de “psíquico”, Estamos, pois, diante
o próprio
de remanejos, de deslocamentos de domínios cujo vínculo
à Psicanálise, escre-
Freud pensou muito claramente, Na Introdução
ve Freud:

etc.), não subsiste para o


Fora (de uma) pseudo-unidade no instantâneo (ecológico,
ao mínimo: a de
universo de Darwin senão uma unidade no sucessivo reduzida quase
(todas as espécies de-
“uma filiação contínua, ao mesmo tempo no sentido genealógico
nas variações ele-
rivam da mesma estirpe) e num sentido quase matemático (peque
de organi-
mentares). Graças a ela explica-se a relativa persistência dos tipos e planos
a; não passa de conseq iiênci a”.(G.
zação: ela não é o substrato ou fundamento da históri
tion
Canguilhem, G. Lapassade, J. Piquemal, J. Ulmann: Du développement d Vevolu
au XIX* siêcle, Thales, tomo “11, 1962). No pseudodesenvolv iment o freudi ano (e
marxista), nem mesmo encontramos esse mínimo, Estamos diante da ausência radical
da unidade preexistente, istoé, do germe ou origem, .
7 Althusser propõe o termo “relações técnicas de produção”, que assinala bem a
distinção. Tenha-se em mente apenas que “relações” implica por si mesmo o caráter
social.

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206 LER “O CAPITAL”

Dado que muitos confundem o “consciente” com o “psíquico”


vimo-nos obrigados a ampliar a noção de “psíquico” e reconhecer a exi
tência de um psíquico que não é consciente. O mesmo se dá com a Identi
dade que alguns estabelecem entre o “sexual” e “o que se relaciona Rá
ódémos fá
procriação”, ou, para resumir, o “genital”, ao passo qué não
que não é “ge-
zer outra coisa senão admitir a existência de um “sexual”
procriação. A identidade de que se fala
nital”, que nada tem a ver com a
(ed. francesa, Payot, 1962,
é apenas formal e carece de razões profundas
p. 301).

que essa “ampliação” é de fato


Acrescentemos tão-somente
to pelo conteúdo como pela na-
uma definição totalmente nova, tan
oriza.
tureza do discurso teórico que à aut
ivas.
na análise das forças produt
Identicamente, a “natureza” , um ato que
De fato, Marx escreve que “o tra balho é primeiramente
e à natureza; assi m, o homem desempenha
se passa entre o homem miti-
o à nat ure za O pap el de uma força natural”, o que per
em relaçã
tez a que à na tu re za de sempenha o papel de
ria talvez dizer com jus se sentido, a “natureza”
como tal
mbém nes
um elemento social: Ta
que
está ausente.
da s “f or ça s pr od utivas”, na medida em
A análise marxista
ta na de fi ni çã o de um modo de produção,
é sistematicamente ins
cri rição de
qu e n ão é si mp le s enumeração ou desc
isto é, na medida em s definição
ou recursos * dela, ma
9

técnicos” da produção
A té

cnicas” de prodduu-
e

aspectos
6.4

re la çõ es soc iai s “té


ação das
de uma forma de vari di vi sã o tr ad ic io nal do trabalho teo
rl-
relação à mos em
ção, opera, pois, em e de ruptura que verifica
co o mesmo efeito de deslocamento o de
cterístico da inauguraçã
Freud. Esse efeito de ruptura é cara domti-
objeto € lhe outorga um
uma ciência nova que constitui o seu
as, e que por conseguinte O
nio ocupado antes por disciplinas variad ma terialismo histórico,
nt e. No do mí ni o do
ignoravam completame científica, a análise das forças produtivas
a
como disciplina teóric ráfica, expondo às E
não aparece como preliminar técnica ou geog
uma estrutura social
dições ou bases sobre as quai is edificar
-se
s, como uma limiétaçã o essencial, mas
instituições e práticas humanapelo cont rári o, ela inte rior à definição
exterior, imposta à hist ória :
pode serconside-
da estrutura social de um modo de produção do(nãode produção que
nição de “mo
rada satisfatória qualquer defi lhe são típicas):
não encerre a definição das forças produtivas que “social”,
e O sentido do
ela transforma, pois, completamentvai mais além: ela se estende tam-
— Mas, como vimos, à analogia e Freud definem. AssIM
aa o ds clijeto e de história que Marx do desenvolvi-
é o sujeito
de que fala Freud não
rito e das pulsões demarcam, assim
como us
faanizAcO o A Eai Ea
priamente fulando,
ções das pulsões não se engendram, pro

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MATERIALISMO HISTÓRICO 207

umas às outras, na análise de Marx trata-se tão-só da própria combi-


nação e suas formas. Desse modo, também no caso de Marx, pode-
mos afirmar que o sujeito do desenvolvimento nada mais é do que aqui-
lo que se determina pela sucessão das formas de organização do traba-
lho e pelos deslocamentos que ela opera. O que reflete exatamente o
caráter teórico, e não empírico, da constituição do seu objeto.

4. A História e as Histórias
Formas da Individualidade Histórica
para à teoria
Essa análise tem consequências muito importantes
no curso dessa
da história. Indaguemos o que foi feito exatamente
pode ser chamado
análise de duas formas sucessivas: vejamos se isso
sentido se pu-
“uma história”. Evidentemente, essa definição só teria
ria. Concei-
déssemos simultaneamente designar o objeto dessa histó
designação,
to ou simples denominação, seja qual for o modo dessa
ria de alguma
não teremos jamais história em geral, mas sempre histó
coisa.

até época bem recen-


Ora, deve-se observar que, de modo geral,
de achar uma res-
te os historiadores escamotearam à necessidade
tomarmos por exem-
posta teórica para esse problema do objeto. Se
a “ciência da história”,
plo as considerações de Marc Bloch sobre ição
apenas à constitu
verificaremos que todo o seu esforço dirige-se
de uma metodologia. A tentativa de definir o objet o dos trabalhos
partir do momento
dos historiadores revela-se de fato aporético, a
ser ''o passado”,
em que se demonstrou que esse objeto não pode “a
do tempo:
nem finalmente nenhuma determinação pura e simples
possa ser objeto
própria idéia de que O passado, enquanto passado,
essa con-
de ciência, é absurda (Apologie pour [histoire, p. 21). Após
conclusões
clusão negativa, e perfeitamente convincente (embora as
essa
nem sempre sejam tiradas pelos filósofos), as tentativas como
o proble-
de Bloch limitam-se a uma definição incompleta, que lança
ma do objeto no indeterminado de uma totalidade: “o homem, ou
melhor, os homens”, e caracteriza o conhecimento unicamente
o empiris-
como certo conjunto de métodos, Não cabe aqui analisar
mo que decorre finalmente dessa definição incompleta, mas deve-se
observar que o problema escamoteado de forma teórica é necessa-
riamente resolvido de modo prático a cada instante, Assim é que te-
mos histórias políticas, histórias das instituições, das idéias, da
ama
ciências. histórias econômicas, etc,

Nessa perspectiva, poderíamos sem dúvida definir o objeto a


que se referiu a análise precedente como *o trabalho”, e afirmar que

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208 LER “O CAPITAL”

se tratava de uma história do trabalho, ou de um momento dessa his-


tória.

Mas verificamos ao mesmo tempo que, quanto ao que se diz co-


mumente “história do trabalho” ou “história das técnicas”, a análi-
se de Marx apresenta-se numa situação polêmica essencial, Tais his-
tórias existem, e recebem, sem os constituir, objetos que, através de
suas transformações, são capazes de manter-se em certa identidade
de natureza. É necessário a essas histórias um “sujeito” que as unifi-
que, e elas o encontram na técnica considerada como um “fato” (até
mesmo “fato de uma civilização”), ou no trabalho considerado
como “conduta” cultural. Afirmar que elas recebem esses objetos
equivale a dizer simplesmente que o momento de sua constituição é
a ou-
exterior à prática teórica dos historiadores em si, mas pertence
teórica, a
tras práticas, teóricas ou não. Do ponto de vista da prática
designação,
constituição do objeto se apresenta, pois, como uma
portanto do
como uma referência a outra prática; ela só é possível
estão implica-
ponto de vista da identidade pessoal dos homens que
prática de histo-
dos ao mesmo tempo em todas essas práticas, numa
práticas políticas, econômicas, ideológicas.A referén-
riador, e nas
complexa,
cia só é possível portanto como efeito da unidade histórica se
mas tal qual
e da articulação histórica dessas diferentes práticas,local
em dado privilegiado
dá, tal qual se reflete de modo não-crítico
tempo, pelo fato de
que é a ideologia de um tempo. Mas, ao mesmo se pretende crítico
(que
que elas são esse paradoxo de um discurso
não-criítica, na consti-
por excelência) dependente de uma operação
sua concep-
tuição de seu objeto, esses historiadores deparam, O emproblema inso-
tualização e na natureza de suas explicações, com €, finalmente,
lúvel dos limites recíprocos desses objetos adquiridos, his-
com uma
da relação dessa história parcial com outras histórias,
tória da totalidade, Elas são remetidas, como diz Vilar à propósito
do movi-
da história econômica, da descrição dessa transformação, uma
mento do seu objeto próprio, à inserção desse movimento em
Sua pu
realidade mais ampla que o objeto consideradoetc.),por queelaséaemtotalidade
reza” (a economia “pura”, a técnica “pura”
(veja-se Contrt-
das relações humanas e explica essa transformação
d'Histoire Economi-
butions à la premiêre Conférence Internationale muda, queO
que, Estocolmo, 1960, p. 38). Verificam que o seu objeto
muda. Dá-
seu objeto tem uma história porque o que não é ele também
é o da re-
a area que o problema constitutivo de qualquer história
com 08 demais
HEM objeto com à história em geral, isto é,
obinioo
ARO ua EO e estas historias o resolvem, quando querem A
Davos cid pirismo, ora pelo enunciado de uma relação global e indi-
a, O que culmina finalmente numa teoria do “espírito do

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MATERIALISMO HISTÓRICO 209

tempo”, numa “psicologia histórica (vejam-se, por exemplo, os tra-


balhos de Francastel sobre a história das artes plásticas e as teorias
de 1. Meyerson), ora pela redução completa de uma estrutura a ou-
tra, que aparece assim como a referência absoluta, o texto original
de várias traduções (vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Lukács
e de seu discípulo Goldmann sobre a história literária).

Quando afirmo que a análise de Marx se apresenta, com respei-


to a essa prática histórica, numa situação polêmica, isso não quer di-
zer que ela suprime esse problema da relação entre a história parcial
e a história geral, que deve ser necessariamente resolvido para que se
possa falar rigorosamente de “uma história”. Pelo contrário, ela
mostra que esse problema só pode ser solucionado se a história cons-
senti-
titui verdadeiramente o seu objeto, em vez de o receber. Nesse
do, o termo análise empregado por Marx tem exatamente a mesma
uma his-
significação que em Freud, quando este fala de “análise de
nova
tória individual”: assim como a análise de Freud produz uma
o constitui
definição do seu objeto (a sexualidade, a libido), isto é,
verdadeiramente ao mostrar a variação de suas formações que é a
de Marx cons-
realidade de uma história, do mesmo modo a análise
a história das
titui o seu objeto (as “forças produtivas”), ao fazer
um lugar de-
suas formas sucessivas, isto é, das formas que ocupam
terminado na estrutura do modo de produção.
parcial, o método
Na determinação do objeto de uma história
e O problema da “refe-
de Marx faz desaparecer assim completament ento teó-
conhecim
rência”, da designação empírica do objeto de um
de um conhecimento
rico, ou da designação ideológica do objeto ente depen-
fica inteiram
científico. Com efeito, essa determinação
itirão analisar de modo.
dente agora dos conceitos teóricos que perm
relação, e a estrutura do
diferencial as formas sucessivas de uma
ence. O “trabalho” apre-
'modo de produção a que essa relação pert
s do modo de produção
senta-se como uma ligação entre os elemento
objeto de história, depen-
e, por conseguinte, sua constituição, como produ-
a do modo de
de inteiramente do reconhecimento da estrutur um
ção. Podemos generali zar essa observação, e afirmar que cada
possui sem dúvida um
dos elementos da combinação ( Verbindung)
modo de “história”, mas uma história cujo sujeito não se pode encon-
trar: o verdadeiro sujeito de qualquer histórias parci al é a combinação
de sua relação, isto é,
'sob a dependência da qual estão os elemento
dizer-se que o
alguma coisa que não é um sujeito. Nesse sentido pode ria
primeiro problema de uma história como ciência, de uma históele-
os
teórica, é a determinação da combinação de que dependem
uma
mentos que se quer analisar, isto é, determinar a estrutura de

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210 LER “O CAPITAL”

esfera de autonomia relativa, como aquilo que Marx chama de pro-


cesso de produção e seus modos.

Com efeito, essa determinação preliminar fornece com um mes-


mo movimento a determinação do objeto parcial e a de sua articula-
ção com outros. O que equivale a dizer, ademais, que o conhecimen-
to de uma instância da formação social pela sua estrutura inclui a
possibilidade teórica de conhecer a articulação dela com outras ins-
tâncias. Esse problema apresenta-se então como o do modo de inter-
venção das demais instâncias na história daquela que se analisa. Ain-
da sobre isso, a análise precedente nos oferece excelente exemplo: o
da aplicação da ciência à produção, isto é, da articulação da produ-
ção (econômica) com outra prática: a prática teórica das ciências da
natureza. Escreve Marx, estudando os meios de poupar O capital
constante para elevar a taxa de lucro:
de
O desenvolvimento da força produtiva do trabalho em um ramo
ução etc., por
produção, o do ferro, do carvão, das máquinas, da constr
sso no
exemplo, que por uma parte pode por sua vez depender do progre
ciências da na-
plano da produção intelectual, em particular do plano das
“tureza e de suas aplicações, etc.

Um texto desse gênero não implica absolutamente q ue a “pro-


dução intelectual” seja um-ramo de produção no sentido € conômico
do termo. Mas significa que a produção intelectual intervém m nan his-
tos;
tória do modo de produção (no sentido estrito) por seus produ
é a
que são suscetíveis de uma importação (os conhecimentos). E
análise que reproduzi mais acima do deslocamento dos elementos
no interior do modo de produção a única que pode explicar por que
e sob que forma essa intervenção se dá. Essa análise torna obsoletas
todas as questões propostas sobre a “rotina” tecnológica da Anti-
a à produ-
guidade e da Idade Média, dado que a aplicação da ciênci
ção não é determinada pelas “possibilidades” dessa ciência, mas
pela transformação do processo de trabalho que pertence organica-
mente à combinação de um modo de produção determinado. É de-
terminada pela constituição desse sistema que chamei de unidade do
meio de trabalho com o objeto de trabalho, Deve-se, pois, proourar
na análise do próprio modo de produção não só as condições que
explicam sua relação com outras práticas, mas a definição dessa re-
lação depende dos mesmos conceitos teóricos que designam a estru-
tura do modo de produção em si, em que a forma específica das de-
área práticas está como tal ausente, Elas intervêm aí por seus pro-
Ee Reco em condições, ou mais precisamente como O diz
cho voromiá A o Rar imem a essência atual do modo de produ-
aneira mais minuciosa a propósito da articu-

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HISTÓRICO 211
MATERIALISMO

ses na estrutura econômica).


lação da prática política da luta de clas que Marx
de “métodos”
Tal é também um dos sentidos do conceito
da mais-valia relativa (veja-se O
emprega a propósito da produção
ã, I, p. 535) como a propósi-
texto já citado, Das Kapital, edição alem se pu-
mulação primitiva; talvez
to dos “métodos” (políticos) da acu
eito designa sempre a intervenção
desse dizer que em Marx esse conc
rminadas por uma outra, à articu-
de uma prática nas condições dete
lação de duas práticas.
formular a exigência de ou-
Gom base nesse modelo, podemos
que não os dos mo do s de produção, histórias cujos ob-
tras histórias tuí dos. Nem todas as histór
ias são
est ão por ser con sti
jetos ainda re a his-
: à pes qui sa his tór ica , através das controvérsias sob
possíveis
ia das idé ias , das men tal idades, etc., começa à
tória econômica, histór ter col oca do explicitamente O proble-
no ent ant o
pressentir isto sem ção dos objetos dessas histórias
tui ção . A det erm ina
ma dessa consti tân cias relativamente autônoma
s
e da his tór ia das ins
está dependent dos conceitos que, a cada
vez, OS
ial , € da pro duç ão
da formação soc
uma combinação, do mesmo modo que O
definem pela estrutura de que ess a definição será sempre polé-
É de pre ver
modo de produção. objeto senão destruindo
não poderá constituir o seu
mica, isto é, que do
OU rec ort es ide oló gic os, que privilegiam a evidência
classificações cau lt nos dão o exemplo dis
so.
tat iva s co mo à de Fou
“fato”. Ten aqui no domínio das conjec
turas -—
ri r- mas en tr am os
Pode-se su ge
sobretudo a história da filosofia não
que a história das ideologias, e as; po ré m um a história dos con-
tór ia dos sis tem
seja talvez uma his lemáticas, cuja combinaç
ão sincrônica
ob
ceitos organizados como pr re meto O leitor aos trabalhos de
ons tit uir . A est a alt ura
é possível rec
pr ob le má ti ca an tr op ol óg ica à qual pertencem
Althusser sobre a re a his tór ia da filosofia em geral.
Feuerbach e o jo ve m Ma rx , € sob
do a his tór ia da lit era tur a não é talvez a das “obras”,
Do mesmo mo é certa relação com 0 ideológico
ou tr o obj eto , esp ecí fic o, que
mas de
ial). Também nesse cas o, como o
(por sua vez já uma relação soc Tolstoi, em La Pensée, nº
propôs Pierre Macherey (Lênin, crítico de
de um objeto determinado
121, junho de 1965), estaríamos diante lisar, Evi-
por uma co mbinação complexa cujas formas se impõe ana cas.
en te , mi nh as in di ca çõ es aqui são apenas programáti
dentem

Se assim é de fato a teoria da história que o método de Marx


implica, podemos produzir um novo conceito que pertence a essa

(PUF),
» Sobretudo em sua Naissance de la Clinique

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212 LER “O CAPITAL"

teoria: chamarei esse conceito de formas diferenciais da individualida-


de histórica. No exemplo analisado por Marx, vemos que as duas
formas sucessivas da relação “forças produtivas” implicam duas
formas diferentes de individualidade do “trabalhador”, que é um dos
elementos da relação (como, de resto, duas formas diferentes de
meios de produção): no primeiro caso, a capacidade de pôr em fun-
cionamento os meios de produção pertence ao indivíduo (no sentido
de produ-
habitual): trata-se de um domínio individual desses meios
ção; no segundo caso, a mesma capacidade só pertence a um “traba-
dos
lhador coletivo”, e é o que Marx chama de domínio “social”
pelo capita-
meios de produção. As forças produtivas desenvolvidas
o al-
lismo instituem assim uma norma que não vale para indivídu
ente relativa
gum. Por outro lado, essa diferença histórica é estritam
à prática de produ-
à combinação considerada, isto é, ela só se refere en-
autônoma
ção. Podemos afirmar que cada prática relativamente
gendra assim formas de individualidade histórica que lhe são pecu-
liares. Essa verificação tem por resultado transformar completa-
que no Prefácio
mente o sentido do termo “'homens”, o qual vimos Podemos
da Contribuição era o suporte de toda a sua construção.
teórico, não são
declarar agora que esses “homens”, no seu estatuto
nos dizem, sem
homens concretos, dos quais as célebres fórmulas
e para
mais, que “fazem a história”. Trata-se, para cada prática,
cada transformação dessa prática, das formas diferentes de indivi-
de com-
dualidade, que podem ser definidas a partir de sua estrutura
estrutura SO-
binação. Assim como há, conforme dizia Althusser, na
cial, tempos diferentes, nenhum dos quais é reflexo de um tempo
cha-
fundamental comum, e, pela mesma razão, isto é, pelo que se
mou de complexidade da totalidade marxista, há também, na estru-
tura social, formas diferentes de individualidade política, econômi-
ca, ideológica, que não têm como suporte os mesmos indivíduos, €
que têm sua história própria relativamente autônoma,

ceito da dependência das


ie EN aliás formulou o próprio oconà estrutura do processo ou
“modo” Mal old a do com relaçã
própria terminologia, esse
fato siistom bis lução. Ele acentuou, na tratamos
ise da combinação - não
de homens con gico, que na anál de homens na medida em que de-
sempenham arte nas
mas ape
unções determinadas na estrutura: - portadores
de força de trabalh IO do processo de trabalho, no enun-
ciad o dos con cei tos tê prO pÓN
o vimo s, “ho cór ico s que definem a análise, Marx não diz,
com g-
keit' ati i
» atividade mem” ou “sujeito”, mas “zweckmiissige3 Táti
Presentantes do a às normas do modo de produção); - re-

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MATERIALISMO HISTÓRICO 213

Ele empregou sistematicamente para designar esses indivíduos,


o termo Tráger, que se traduziu no mais das vezes em francês por su-
porte (support). Os homens só aparecem na teoria sob a forma de su-
portes das relações implicadas na estrutura, e as formas de sua indi-
vidualidade como efeitos determinados da estrutura.
Poderíamos talvez importar o termo pertinência para designar
esse aspecto da teoria marxista, e afirmar que cada prática relativa-
mente autônoma da estrutura social deve analisar-se segundo uma
pertinência própria, de que depende a identificação dos elementos
os
que ela combina. Ora, não há razão alguma pela qual os element
in-
determinados assim de modo diferente coincidam na unidade de
lo-
divíduos concretos, que apareceriam então como a reprodução
io, a su-
cal, em miniatura, de toda a articulação social. Pelo contrár
psicologista,
posição desse suporte comum é produto da ideologia
produto da ideo-
exatamente do mesmo modo que o tempo linear é
a problemática das
logia histórica. Essa ideologia é que apoia toda
indivíduos concretos,
mediações, isto é, a tentativa de encontrar os e-
ou as “inters
os sujeitos da ideologia psicológica, como os centros
cada vez mais externos,
ções” de vários sistemas de determinação
s que constituem
até a estrutura das relações econômicas, sistema
aí, sob uma forma
uma série de níveis hierarquizados. Verificamos que cada
ao dizer
moderna, o que Leibniz já exprimiu perfeitamente os espíritos, expri-
udo
substância singular em algum grau, € sobret
mem todo o universo de um modo específico:
de algum modo o todo em si
Os espíritos... exprimem e concentram
dizer que eles são partes totais (De
mesmos, de tal modo que se poderia 1962, p. 91).
francesa, Vrin,
rerum originatione radicali, trad.

ortes comuns das


Do mesmo modo os homens, se fossem os sup
cada prática social, “exprimi-
funções determinadas na estrutura de estrutura social em si
o” toda a
riam e concentrariam de algum mod
dos quais será possível co-
mesmos, isto é, seriam os centros à partir
estrutura do todo, Ao mesmo
nhecer a articulação das práticas na
amente centrada sobre os
tempo cada uma dessas práticas seria efetiv bém as
e consciências. Tam
homens-sujeitos da ideologia, isto é, sobr
rutura dessas práticas, de
“relações sociais”, em vez de exprimir a est radas a partir
seriam engend
que os indivíduos são apenas os efeitos,
suiriam a estrutura -de
da multiplicidade desses centros, isto é, pos
uma intersubjetividade prática.

Toda a análise de Marx, como vimos, exclui que as coisas sejam


dos cen-
desse modo. Ela nos obriga a pensar, não a multiplicidade
íficas que se
tros, mas à ausência radical de centro. As práticas espec

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214 LER “O CAPITAL”

articulam, na estrutura social são determinadas pelas relaç


ões de sua
sua vez as formas da indivi-
combinação, ante s de determinar por
dualidade histórica, que lhe são estritamente relativas.

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MATERIALISMO HISTORICO 215

NI. Da Reprodução

Em tudo o que precede nada mais fiz do que definir um único


conceito: “modo de produção”, a partir do emprego que Marx faz
dele na análise do modo de produção capitalista. Esbocei o que po-
deríamos chamar de primeiros efeitos teóricos peculiares a esse con-
ceito: todos os termos cuja função tentei discernir no texto de Marx
só adquiriram sentido por referência a essa primeira definição; a in-
tervenção deles numa demonstração aparece assim como a eficácia
estendida dos “pressupostos” que a definição de um modo de pro-
dução implica; as transformações que esses térmos trazem em si no
modo de pensar a história, transformações que têm ao mesmo tem-
po o sentido de uma transição da ideologia à ciência, são simples-
mente os efeitos desse único evento teórico: a introdução do conceito
de modo de produção na problemática tradicional da periodização.
Mas se nos atemos somente a isso, encontramos uma dificulda-
de a que já aludi antes, quando falei das “histórias parciais” na prá-
tica corrente dos historiadores; assinalei como o obstáculo dessas
histórias que não constituem o seu objeto a partir de uma definição
teórica, mas o recebem já constituído, o problema da localização
desse objeto numa totalidade de objetos históricos. Essa localização
já está sempre adquirida pelo discurso teórico (no
discurso de
pretende teórico), adquirida por uma operação
não-teórica quê e

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216 LER “O CAPITAL”

referea sua
põe à evidê ncianciamais ou menos imediata na qual esse Objeto pro-
existê e consistência; ela se apresenta
análise como um recurso ao gesto, ao assim em última
um mundo, de que se propõ gesto que
e depois tratar os mostr a os objetos de
seus representantes
conceptuais no seio de um discurso teóric
que esse gesto é só aparentemente o. Mas sabemos também
inocente, e que na realidade está
impregnado por uma ideologia que comanda num mesm
mento o recorte do mundo em objetos e sua o movi-
“percepção”, o quejá se
designou em outro lugar a natureza alusiva
da ideologia, Sabemo-lo
a partir do momento em que uma ciência recor
ta e constitui outros
objetos, em ruptura polêmica com os precedentes,

Trataremos agora de uma dificuldade semelhan


te, e não faltam
exemplos para nos persuadir de que ela não está
inteiramente com-
posta. Possuímos o. conceito teórico de mod
o de produção, e mais
precisamente o possuímos sob a forma do conhecime
modo de pro
nto de um
dução particular, visto que, como já estudamo
s, o con-
ceito só existe especificado. Parece todavia que
temos agora necessi-
dade de saber outra coisa: saber quando e onde o conc
eito "'se aplica”:
que sociedades, em que momento da história dela
s, possuem um
modo de produção capitalista. Na verdade, todo
o problema da pe-
riodização parece concentrar-se nesse ponto: não nos
basta, com
efeito, dispor da análise teórica dos efeitos que dependem
da estru-
tura de cada modo de produção, a partir do momento em que lhe
formulamos os “pressupostos” - mas ainda temos de cons
truir com
eles uma história efetiva, simplesmente a história real, a nossa histó-
ria, que apresenta sucessivamente, aqui ou ali, esses
diferentes mo-
dos de produção. Sabemos por um verdadeiro conhecimento, isto €,
teoricamente, o que é o modo de produção capitalista, mas quere-
mos também saber se esse conhecimento é de fato o da Inglaterra de
1840, o da França de 1965, etc, Trata-se de um prob
lema de did
cação OU de julgamento; parece que precisamos de
regras
minar, na experiência, os objetos que caem sob o conceito odepr E doà
de produção capitalista, É dessa aparente necessidade que iu as
interpretação empirista da prática teórica como prática e O:
ra de “modelos”: toda a teoria de O Capital seria O estudo, ml
Priedades de um modelo, propriedades que valeriam para A danth
produção que seja “exemplo” ou “exemplar” da estrutura. RODO:
licação dos exemplares, a subsunção efetiva, é de qualquer mº e
nessa ideologia do modelo, um processo
pragmático, pa roceda
Jam quais forem as formas complicadas pelas quais E a pas-
(quero dizer, mesmo que essa identificação não
SE Por uma série
seja pi os
de identificações parciais
, em que UE assim,
elementos da estrutura e seus efeitos particul é na
ares). Sendo ass

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MATERIALISMO HISTÓRICO 217

essência um processo não-teórico, que depende não de conceitos,


mas de própriedades daquele que identifica, a que bem se pode cha-
mar psicológicas, mesmo que se trate de uma consciência sábia. Já
dizia Kant que saber julgar bem é um dom que não pode ser apren-
dido, e o fundamento do juízo um profundo mistério (para a teoria).

Essa via que subordina em seu exercício mesmo a prática teóri-


ca a uma faculdade não-teórica parece no entanto implicada, pelo
menos de modo negativo, como no .vazio, em certos termos pelos
quais Marx designa o seu próprio objeto em O Capital. Só lembrarei
aqui alguns desses trechos que já foram muitas vezes comentados.
Marx nos declara só estudar o modo de produção capitalista “na
sua média ideal” (III, 3, 208). Isso não significa apenas que se faz
abstração dos efeitos “particulares”, das circunstâncias ““aciden-
tais” ou dos traços “superficiais”, para estudar a própria estrutura
geral, mas também que se estuda uma estrutura que não é particu-
larmente deste ou daquele momento, deste ou daquele lugar. Esse é
também o sentido da famosa referência à Inglaterra:
Neste livro estudo o modo de produção capitalista e as relações de
produção e de circulação que lhe correspondem. Até agora, a Inglaterra é
o campo clássico dessa produção. Foi por esse motivo que a tomei como
principal exemplo de minha explanação teórica. Se o leitor alemão, fari-
saicamente, encolher os ombros diante dos trabalhadores ingleses, na in-
dústria e na agricultura, ou se, com otimismo, tranquilizar-se com a idéia
de não serem tão ruins as coisas na Alemanha - sinto-me forçado a ad-
verti-lo: de te fabula narratur! (O Capital, Prefácio da 1º edição).*

'* Impõe-se tomar essa passagem no sentido estrito, e dizer que O


objeto da teoria é por sua vez objeto teórico de determinado nível de
abstração, O modo de produção, as relações de produção e de circu-
lação, eis o que é conhecido em O Capital, e não a Inglaterra ou a
Alemanha, (Há, de resto, uma história inteira a escrever-se do desti-
no teórico do exemplo inglês no marxismo, desde essa função de pa-
radigma até aquela de exceção que Lênin lhe conferiu, com base em
certos textos políticos do próprio Marx - veja-se sobre o assunto Sur
Vinfantilisme de gauche, em Lênin, O Euvres choisies, t. 1, pp. 835-
837, Moscou, 1962, Certos textos de Marx nos permitem ir mais
além e afirmar que a análise não é apenas em princípio independente
dos exemplos históricos nacionais que ela abrange, mais indepen-
dente da extensão das relações que analisa; é a pesquisa das proprie-

+ , “ia .
Completei o período que Balibar deliberadamente interrompeu com reticências.
A expressão latina traduz-se: “A história é a teu respeito”, (N. do T.)

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LER “O CAPITA| L”
218

econômico possível, que constitua um


dades dede q qualquer si stema
ma estrut ura de produçãoã capita; lista:
mercado submetido a U
Faz-se abstração aqui do comércio exterior por meio do qual uma
nação: pode converter artigos de luxo em meios de produção ou gêneros
de primeira necessidade, e vice-versa, Para desembaraçar a análise geral
de incidentes inúteis, deve-se considerar o mundo das mercadorias como
uma só nação, e supor que a produção capitalista se estabeleceu por toda
a parte e se apoderou de todos os ramos da indústria (O Capital, II, 22
nota).

Isso vale para qualquer modo de produção.

No capítulo sobre a Gênese da renda territorial (livro III), onde


analisa as formas sucessivas da propriedade territorial nos diferentes
modos de produção, Marx pode, pois, generalizar essas indicações
epistemológicas, e escrever:
Uma mesma base econômica (a mesma, quanto a suas condições
fundamentais), sob a influência de inumeráveis condições empíricas dife-
rentes, de condições naturais, relações raciais, influências históricas ex-
ternas, etc. pode apresentar variações e matizes infinitos que só uma aná-
lise dessas condições empíricas poderá elucidar (O Capital, VIH, 172).

Essa passagem, como numerosas outras, exprime perfeitamente


o pragmatismo teórico de que falei. A tomá-la rigorosamente, es-
taríamos no direito de reservar para o estudo das “condições funda-
mentais”, que coincidem com a estrutura do modo de produção, o
estatuto do estudo teórico, e de dizer que a análise das condições
empíricas é por sua vez uma análise empírica.
Ora, o que Marx reflete aqui é simplesmente a operação de que
pretendi dar a explicação no começo, quando afirmei que 0 primeiro
movimento de uma ciência da história era reduzir a continuidade da
história, na qual se funda a impossibilidade de “cortes” nítidos, €
constituir a história como ciência dos modos de produção desconti-
nuos, como ciência de uma variação. Ele reflete esse movimento res-
tabelecendo a continuidade como uma referência real, uma referên-
cia à realidade da história, e fazendo da descontinuidade uma pro-
priedade do conceito geral. Desse modo, o problema da localização
do objeto do qual a ciência do modo de produção é ciência não se
coloca no interior da própria teoria: ela é apenas produção de mode-
los; não se coloca na fronteira da teoria ou, mais exatamente, obriga
a supor que a teoria tem uma fronteira, na qual se mantém um sujei-
to do conhecimento, “Hic Rhodus, hic salta": é-lhe necessário aban-
pia a análise teórica e completá-la pela análise “empírica”, Isto &,
pers enanação dos objetos reais que obedeçam efetivamente às leis
ciadas. Trata-se então de um único e mesmo problema de reu-

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MATERIALISMO HISTÓRICO 219

nir os exemplos que realizam o modelo com “infinitos matizes", e


designar as passagens de um modo de produção a outro: dizer onde
se aplica o conceito de um mesmo modo de produção e onde se deve
aplicar sucessivamente os conceitos de dois modos de produção.
Num caso como no outro subsiste um resíduo que se dá como empí-
rico irredutível (em última análise, a evidência de uma constatação:
o modo de produção capitalista é, por um lado, quanto à definição
teórica, certo sistema de relações entre trabalhador, meios de produ-
ção, etc. e, por outro, quanto à sua localização, “o nosso"), Mas se
nos esforçarmos por ficar no discurso teórico, por não ir adiante,
então esse resíduo se apresenta em realidade como lacuna, como al-
guma coisa que deve ser pensada, e que é todavia estritamente impen-
sável mediante o conceito teórico único de ''modo de produção”.

Cheguei deliberadamente a essa conclusão extrema e aos textos


que podem apoiá-la, deixando de lado tudo o que, mesmo em O Ca-
pital, pode parecer-nos como uma análise da passagem de um modo
de produção a outro, isto é, como uma solução ao problema da lo-
calização, a saber, uma análise da formação do modo de produção
capitalista e de sua dissolução. Fi-lo para sublinhar de antemão que
temos efetivamente necessidade de um segundo conceito de mesmo
nível teórico que o de modo de produção, também “abstrato” se o
quiserem, para constituir uma teoria da história como sucessão de
modos de produção. Tivemos necessidade disso porque o conceito,
tal como foi até agora desenvolvido, colocou precisamente entre pa-
rênteses a sucessão. Pudemos definir o que é um modo de produção
evidenciando a singularidade de suas formas, a combinação especifi-
ca que liga esses elementos de qualquer combinação: trabalhador,
meios de produção, não-trabalhadores, etc. Digamos, para não pre-
julgar o que se segue, que o materialismo histórico, se se reduzisse a
esse único conceito, ver-se-ia na impossibilidade de pensar ao mes-
mo nível teórico a passagem de uma combinação a outra.

Devemos por conseguinte ler todas as análises de Marx referen-


tes à formação e dissolução de um modo de produção, procurando
nela esse segundo conceito, quer ele se encontre nelas explicitamente,
quer delas o possamos extrair. Mas não podemos tomar essas análi-
ses por puras e simples descrições. Entretanto, pelo fato de que
Marx tenha deixado subsistir as ambiglidades que permitem ler em
alguns dos seus termos uma teoria dos “modelos”, sabemos que ire-
mos encontrar mais dificuldades,
Se retomarmos O Capital para tentar ler nele uma teoria da
passagem de um modo de produção a outro, iremos yerificar primei-

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220 PERCO CAPITAIS

ro um conceito que aparece como o próprio conceito da Continui


de histórica: o da reprodução. A teoria da reprodução parece d Re
assegurar uma tripla ligação, uma tripla continuidade: “ talo
- a ligação dos diferentes sujeitos econômicos, NO caso dos «
um único eira
pitais individuais, que constituem em realidade
camento” ou um unico movimento. O estudo da reprodução do caa-
desse entrelaçamento:
pital é, pois, a pesquisa desse entrosamento,
Entretanto, os ciclos dos capitais individuais se entrela Cam, Se Pres-
supõem e se condicionam uns aos outros e é precisamente esse entrosa-
mento (Verschlingung) que constitui o movimento do conju nto do Capital
social (O Capital, V, 9).

Só por abstração, pois, é que se pôde conceber o movimento de


um capital individual, uma abstração deformante, dado que o movi-
mento de conjunto é mais complexo que uma simples soma.
- a ligação dos diferentes níveis da estrutura social, dado que a
reprodução implica a permanência das condições não-econômicas
do processo de produção, sobretudo as condições jurídicas: no capí-
tulo de O Capital sobre a Gênese da renda da terra, Marx mostra, na
instituição de um direito correspondente às relações de produção
reais, um simples efeito da repetição do processo de produção, da re-
produção: veja-se o texto seguinte de O Capital, VII, 174:

A fração dirigente da sociedade tem todo o interesse em dar o cunho


de lei ao estado de coisas existente e em fixar legalmente as barreiras que
o uso e a tradição traçaram. Excluindo quaisquer outros motivos, isso se
produz aliás espontaneamente, desde que a base do estado existente e as
relações que são seu fundamento se reproduzem sem cessar, adquirindo
assim com o tempo uma forma normal e bem ordenada; essa norma € essa
ordenação são em si um fator indispensável de cada modo de produção
que deve assumir a forma de uma sociedade sólida, independente do sim-
ples acaso ou do arbitrário (essa norma é precisamente a forma da conso-
lidação social do modo de produção, sua emancipação relativa do sim-
ples acaso e do simples arbitrário). Ele atinge essa forma por sua propria
reprodução sempre recomeçada, se todavia o processo de produção € às
relações sociais correspondentes gozem de certa estabilidade. Quando
essa reprodução tenha durado algum tempo, consolida-se, torna-se cos-
tume e tradição para ser afinal santificada expressamente como lei.

- por fim a reprodução assegura a continuidade sucessiva da


produção, que fundamenta todo o restante. A produção não pode
parar, e a sua continuidade necessária está inscrita na identidade dos
elementos, tais quais saem de um processo de produção para entrar
bala di meios de produção que foram por sua vez produtos
pia rese não-trabalhadores entre os quais estão distribui Não
maneira os produtos e os meios de produção. É a materia!

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MA TERITALISMO HISTÓRICO
221

de dos elementos que sustenta q continuidade,


mas é o conceito da
reprodução que exprime a sua forma específica,
porque encerra as
determinações diferentes (diferenciais) da matéria, Através de
um dos aspectos que estou lembrando, o conceito
cada
expr
ca e mesma pregnância da estrutura que apresenta ime uma
uma úni-
“bem ligada”, história.
No início de seu livro sobre a Acumulação do Capit
escreve Rosa Luxemburg: al,

Em primeiro lugar, a repetição regular da produ


ção é a basee a con-
dição geral do consumo regular e, portanto, da exist
ência cultural da so-
ciedade humana em todas as suas formas históricas.
Nesse sentido, o
conceito da reprodução encerra um elemento histórico
cultural
tur-geschichiliches Moment) (Acumulação do Capital, trad. franc.;(einp. kul-
4). *

Desse modo, a análise da reprodução parece adequadamente


pôr em movimento o que até o presente se achava numa forma está-
tica e articular uns nos outros os níveis que haviam sido isolados;
dado que a reprodução aparece como a forma geral da permanência
das condições gerais da produção, que englobam em última análise
o todo da estrutura social, impõe-se que ela seja também a forma da
sua transformação e da sua estruturação nova. É por essa razão que
me deterei aqui neste conceito no que ele envolve a mais do que os
precedentes.

1. Função da Reprodução ““Simples””


Nas explanações sucessivas que trazem o título “reprodução”,
Marx sempre precedeu o relato da reprodução própria ao modo de
produção capitalista, que é a acumulação capitalista (a capitalização
da mais-valia), e de suas condições próprias, de um preâmbulo sobre
a “reprodução simples”. Marx chama essa reprodução simples de
“abstração”, ou melhor, ''uma hipótese estranha” (O Capital, V,
48). Podemos tentar várias explicações dela.
Pode-se pensar que se trata de um procedimento de exposição, e
que a reprodução “simples” seja apenas uma simplificação. Ao nível
do livro II (esquemas de reprodução), isto é, das condições da repro-
dução referentes às trocas entre os diferentes setores da produção, o
interesse dessa simplificação parece bastante evidente. Ela permite
apresentar a forma geral das relações sob forma de equações, antes
“de apresentá-la sob forma de inequações. O desequilíbrio oua des-
proporção que constitui o motor da acumulação do capital social

* Trad. brasileira: Rio, Zahar, 1978, 5º ed., p. 12. (N. do T.)

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LER “O CAPITAL"
222

resenta.
em comparação com uma rep
total torna-se compreensível
o.
ção simples de equilíbri
Pode-se ainda pensar que O estudo da reprodução simples é q
de um caso particular, o que equivale em parte à mesma coisa, na
medida em que esse caso particular é mais simples que o caso geral
. Mas não se teria com isso apenas um método de exposição: teríamos
o conhecimento de um movimento de reprodução de certos capitais
que se contentam em manter à produção durante certos períodos, É
em que a acumulação é momentaneamente detida.

Pode-se finalmente pensar que o estudo da reprodução simples


é o de uma parte, em qualquer estado de causa necessária, da repro-
dução ampliada. Seja qual forma parte da mais-valia capitalizada,
ela vem acrescentar-se a uma capitalização automática, que é sim-
plesmente a conservação do capital existente. A magnitude da mais-
valia capitalizada é variável, e depende da iniciativa dos-capitalistas,
pelo menos em aparência; a reprodução simples não pode ser modi-
ficada, a partir do momento em que se considere um capital de mag-
nitude dada, sem que na exata medida da diminuição o capitalista
deixe de o ser. Eis por que há interesse em estudar por si mesma a re-
produção simples (escreve Marx: “Desde que haja acumulação, a re-
produção simples constitui-lhe sempre uma parte, pode, pois, ser es-
tudada em si mesma e constitui um fator real da acumulação”, O
Capital, V, 48), e a acumulação ou reprodução ampliada só depois,
como um suplemento que se acrescenta à reprodução simples. Escla-
reçamos que esse suplemento não pode ser juntado à vontade: deve
obedecer a condições de magnitude que dependem da composição
técnica do capital: pode, pois, ser intermitente em sua atuação efeti-
va. À reprodução simples é, pelo contrário, autônoma, continua €
automática.

Essas explicações não são falsas, nem, de resto, incompatíveis.


Dão lugar entretanto a uma explicação diferente, de maior interesse
para nós. É certo que Marx em O Capital nos apresenta de imediato
o conceito da reprodução através das formas da acumulação do ca-
pital ou, mais exatamente, dado que queremos abranger ao mesmo
tempo o “simples” e o “ampliado”, as formas da capitalização do
produto, e nos instala de pronto numa problemática quantitativa.
Trata-se de analisar as condições de realização desse objetivo prál-
co para o capitalista ou o conjunto de capitalistas: aumentar à escala
da produção, isto é, a escala da exploração, isto é, à quantidade de
mais-valia apropriada, o que pressupõe, pelo menos em princípio, à

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MATERIALISMO HISTÓRICO 223

possibilidade de uma opção prática entre a simples reprodução e um


acréscimo, Mas em realidade, como sabemos, iremos descobrir que
essa escolha é ilusória, falscada, que se torna uma opção fictícia se
considerarmos o conjunto do capital, Não há alternativa, só existem
as condições reais da reprodução ampliada. A hipótese da reprodução
simples, diz Marx, é incompatível com a produção capitalista, “o que
de resto não exclui que, num ciclo industrial de dez a onze anos, este ou
aquele ano possa comportar uma produção total menor que preceden-
te, que não haja inclusive simples reprodução, em relação ao ano ante-
rior” (O Capital, V, 165). O que equivale a dizer muito claramente
isto: a distinção conceptual entre a reprodução simples e a acumula-
ção não recobre as variações quantitativas da acumulação, que de-
pendem de circunstâncias diversas (Marx as analisa) e são os efeitos
da lei geral da acumulação capitalista.

A reprodução simples, na mesma escala, aparece assim como uma


abstração, no sentido de que, de uma parte, no sistema capitalista, a au-
sência de reprodução ou de acumulação em escala ampliada é uma hipó-
tese estranha, e de outra parte as condições nas quais se efetua a produ-
ção não permanecem absolutamente idênticas (e é no entanto o que se ad-
mitiu) de um ano a outro... o valor do produto anual pode diminuir e a
soma dos valores de uso permanecer a mesma; o valor pode continuar o
mesmo, e a soma dos valores de uso diminuir; a soma dos valores e a
soma dos valores de uso reproduzidos podem diminuir simultaneamente.
Tudo isso equivale a dizer que a reprodução ocorre seja em condições
mais favoráveis que antes, seja em condições mais difíceis que podem ter
por resultado uma reprodução imperfeita, defeituosa. Todas essas cir-
cunstâncias só interessam ao aspecto quantitativo dos diferentes elementos
da reprodução, mas não ao papel que desempenham no processo de conjunto
como capital reprodutor ou renda reproduzida (O Capital, V, 48)..

Quando, no curso da acumulação, se encontra uma reprodução


“simples” tal que 1 (v +pl) = Hc (o que de resto não é a expressão de
um estado de equilíbrio, do ponto de vista econômico, mas de uma
crise), esse encontro só tem precisamente o sentido de um encontro,
de uma coincidência, isto é, não tem qualquer significação teórica em
especial, O mesmo não acontece.se considerarmos a reprodução de
um capital individual, que pode ser ampliada, simples ou menos que
simples, que pode possuir um ritmo de acumulação superior, igual
ou inferior ao do capital social em seu conjunto, etc. Essas variações
não introduzem qualquer diferença conceptual, exatamente do mes-
mo modo, e pela mesma razão que as variações do preço das merca-
dorias jamais passam de preços: poderia acontecer que certa merca-
doria seja vendida “'por seu valor” sem que haja mais que coincidên-
cia. Coincidência aliás impossível de balizar, via de regra, isto é, de

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, LER “O CAPITAL
224

sã o av al ia do s na tr oc a da s mercadorias, e não os
medir; só os preços o no ou tro, Marx nos apresenta sob a forma.
Nu m ca so co m
valores. ia ” destinada a ser retirada (
'os pre
de “s up os iç ão pr ov is ór
benigna s”, “as condições
idas adorias coincidem com os seus valore
in ua m id ên ti ca s” dilh
)a, umoua me inçã
stor o conceptual urim.
ig
COTA Nt O du çã o
e co nt
s
entr doi nív eis da es tr ut ur , entre a estrut a

é DOU efeitos. A hipótese das “condi ções invariantes” não é a análise


ões.
dos efeitos, mas das próprias condiç
explicação para esse des-
Somos assim levados a procurar outra
os numa série
dobramento da análise da reprodução, e a encontram
de indicações de Marx, tais como esta:
O exemplo do capital fixo, que acaba de ser estudado numa repro-
dução em escala constante, é contundente. Um dos argumentos predile-
tos dos economistas para explicar as crises é o desequilíbrio na produção
do capital fixo e do capital circulante. Eles não compreendem que esse
desequilíbrio pode e deve produzir-se pela simples manutenção do capital
fixo: que ele pode e deve produzir-se na hipótese de uma produção normal
ideal, quando há reprodução simples do capital social já em função” (bei
Voraussetzung einer idealen Normalproduktion) (O Capital, V, 117).

Essa produção ''normal” ideal, é, evidentemente, a produção


em seu conceito, a produção tal como Marx a estuda em O Capital e
da qual ele diz tomar “'a norma” ou a “'média ideal”. Antes de ser
uma simplificação da.explanação, ou o estudo de um caso particular
o qual acabamos de ver que não tem significação teórica, antes mes-
mo de permitir a análise quantitativa do valor capitalizado e da ori-
gem das suas diferentes partes, a “reprodução simples” é, pois, a
análise das condições gerais de forma de qualquer reprodução. E antes
mesmo de ser a explanação da forma geral das relações entre os dife-
rentes setores da produção, no sentido matemático do termo, é a da k

o de reprodução no sentido ent que já analisa-


99

mosorma do process
a “ “forma capitalista” de um modo de produção.
- Talé com efeito o sentido da prime
ção simples” (livro 1, cap. XXI]
ira explanação da “reprodu-
de O Capital) Marx parte da deli-
nição da reprodução como simpl
repetição do processo de produ-
ção imediato tal qual acaba de se r esanali
sado, Escreve ele:
O processo de produção
» Periodicamente recomeçado, passará sem-
pre pelas mesmas fases num
m tempo dado, mas se repetirá
y sempre
p na mes-
Mapostos ARMAR
cor O seios
essa repetição ou continuidade lhe imprime certos
ou, em termos mais exatos (oder vielmehr), faz desapare-
charaktere seielnesparentes que ele apresentava como ato isolado (die Schein-
nur vereinzelten Vorgangs) (O Capital, 1, 10).

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MATERIALISMO HISTÓRICO 225

O essencial da reprodução simples não é, pois, que toda a mais-


valia seja consumida improdutivamente em vez de ser capitalizada
em parte, mas essa revelação da essência pelo dissipar das ilusões,
essa virtude da repetição que esclarece retrospectivamente a nature-
za do “primeiro” processo de produção (Marx escreve ainda, no seu
Formações Econômicas Pré-Capitalistas: “a verdadeira natureza do
capital só se apresenta no final do segundo ciclo").
No entanto, o ponto de vista da repetição implica por sua vez a
possibilidade de uma ilusão, que pode levar a não apreender a orien-
tação da reflexão de Marx sobre esse ponto. É o querer acompanhar
em seus “atos” sucessivos o capital, querer compreender o que se
passa quando, após um “primeiro” ciclo de produção, o capital co-
meça a percorrer um “segundo” ciclo. Assim, em vez de aparecer
como o conhecimento das determinações do processo de produção
em si, a reprodução aparece como uma segiiência da produção, su-
plemento à análise da produção. A análise do capital parece assim
acompanhar as pegadas do destino de um objeto que seria o capital:
no momento da reprodução, esse capital encontra outros no merca-
do, sua liberdade de movimentos é suprimida (ele não pode crescer
em proporções arbitrárias, porque entra em concorrência com ou-
tros capitais), e aparece o fato de que o movimento do capital social
não é o somatório dos movimentos dos capitais individuais, mas um
movimento peguliar complexo que se chamou de “entrelaçamento”.
Tal é por exemplo o caminho que nos incita a acompanharo início
de Acumulação do Capital de Rosa Luxemburg, partindo da leitura
de Marx (“literalmente, reprodução significa simplesmente repeti-
ção...”), e procurando que novas condiçõesa reprodução implica
com relação à produção. A passagem de Marx por mim citada mos-
tra-nos que se trata pelo contrário das mesmas condições, primeiro
implícitas (transpostas e deformadas aos olhos dos agentes da pro-
dução em “aspectos aparentes”; e presentes na explanação de Marx
sobre o processo de produção “imediato” sob forma de “hipóteses”
ou de “pressupostos” aceitos).
Em realidade, trata-se de uma operação mais complexa do que
uma simples repetição, No texto de Marx, a reprodução simples é de
início identificada com a consideração do conjunto da produção so-
cial, O movimento que faz cair a aparência surgida do estudo do
processo de produção imediato, aparência que é também o que o ca-
pitalista e o trabalhador “imaginam” (O Capital, 11, 13: “die Vors-
tellung des Kapitalisten), é ao mesmo tempo uma “repetição” e a
passagem ao capital como totalidade:
Entretanto, os fatos mudam de aspecto se encararmos não o capitalis-
ta eo trabalhador individuais, mas a classe capitalista e a classe trabalha-

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LER “O CAPITAL”
226
|
o capital |
p roduçã o isolado s, mas a produ ção ista no con-
dora, não atos de
extensão social (O Capital,
junto de sua renovação continuada e em sua
HH, 14-15).

rará evidentemente, de modo minu-


A análise do livro Il most
da repetição (da sucessão dos ciclos de produ-
cioso, como a análise uma
, dependem
ção), e a do capital, como forma total da produção
“O ato de produ-
da outra. Mas essa unidade está já presente aqui. que
como o
ção isolado” é caracterizado duas vezes negativamente:
Em'outras
não se repete, e como o que é característico do indivíduo.
a mesma coi-
alavras: “ato isolado” é um modo de dizer duas vezes
to já não li-
sa. A partir do momento em que sé suprima o isolamen
to com uma
damos com um ato, isto é, não se trata mais de um sujei
na
estrutura intencional de meios e fins, se é certo, como o diz Marx
ú-
Introdução de 1857 que “considerar a sociedade como um sujeito
nico, é... considerá-la de um falso ponto de vista — especulativo” (p.
159). Não se trata, pois, nesta análise de acompanhar o processo de
reprodução, de tentar efetivamente - € ficticiamente - de “renovar”
o processo de produção.
Essa operação de análise é em princípio aquela que a Introdu-
ção de 1857 à Crítica da Economia Política inaugurou paralelamente
com a análise comparada dos modos de produção. Não mais se tra-
ta então de identificar, a partir de um material histórico, as varia-
ções da “combinação” das “relações de produção” e das “forças
produtivas”, mas de examinar, como o diz Marx, “'as determinações
gerais da produção num estágio social dado”, isto é, a relação entre
a totalidade da produção social e-suas formas (ramos) particulares
numa sincronia dada. Para que esse termo se esclareça desde já para
Ea e que a análise da “repetição” da produção, da continuida-
a du o no série de ciclos, será necessária a análise da
Ora ndo'b E dotalirna da produção como totalidade (Totalital).
lia social ação a não ser na atualidade da divisão do traba-
al em dado momento, e não na aventura individual dos capl-
análie se dada repr
l ao afirmar que a anális a
rep odu-
É o que
boção visa à prod uçãoquersociadizer
Marx
considerarmos no seu r em seu resultado ("Se
: exclusivamente
- O Capital, V, 46) ii tado a função anual do capital social... |
ibuiçé, ãopois,em u difer
distrnão
sua ncia
éevidê entes
crent setoredes:sua
es copi a oper és a
do ação que O põe em
es ramos
de produção, de diferent corte no movimento dos difeorentesco
em referência a um Ro es capitais, em dado momentlhidos
desse movimento em se Po exterior comum e portanto dependente
se de uma operação a Princípio e na suao realizaç ão efetiva; trata-
Movimento da produ : qual o moviment peculiar aos capitais, O
ção em cada uma de suas divisões é completa-

emana cus spo co

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MAM PREM ISMO HS FORICO 227

mente posto de lado, suprimido sem ser de maneira alguma conser-


vado. Marx funda toda a análise da reprodução, desde a primeira
explanação muito geral da reprodução simples (livro 1) até o sistema
dos esquemas de reprodução (livro 11) nessa transformação da su-
cessão em sincronia, em “simultaneidade” (de acordo com a própria
expressão que ele emprega: Gleichzeitigkeit). Paradoxalmente, a
continuidade do movimento da produção acha o seu conceito na
análise de um sistema de dependências sincrônicas: a sucessão dos
ciclos dos capitais individuais e seu entrelaçamento dependem delas.
Nesse “resultado”, o movimento que o produziu é necessariamente es-
quecido, a origem é “apagada” (die Herkunft ist aufgelóschr) (O Capi-
tal, 1V, 102).
Passar do ato isolado, do processo imediato de produção à re-
petição, ao conjunto do capital social, ao resultado do processo de
produção, é pois vir instalar-se numa contemporaneidade fictícia de
todos os movimentos, e seria ainda mais exato dizer, para tomar
uma metáfora teórica de Marx, num espaço plano fictício onde todos
os movimentos são suprimidos, onde todos os momentos do proces-
so de produção aparecem projetados lado a lado com as suas rela-
ções de dependência. É o movimento dessa passagem que Marx des-
creve, pela primeira vez no capítulo do livro I sobre a “'reprodução
simples”.

2. A Reprodução das Relações Sociais


Podemos enumerar do modo seguinte as “aparências” (Schein-
charaktere) que se dissipam nessa operação:
Primeiramente, a aparência de separação e independência rela-
tiva dos diferentes *''momentos” da produção em geral: separação
entre a produção propriamente dita e a circulação; entre a produção
e o consumo individual, entre produção e distribuição dos meios de
produção e dos meios de corisumo, Se considerarmos um “ato isola-
do” de produção, ou mesmo uma pluralidade desses “atos”, todos
esses momentos parecem pertencer a outra esfera que não seja a da
produção (esse o termo que Marx emprega com freqiiência). A cir-
culação pertence ao mercado no qual se apresentam as mercadorias
ao “sair” da produção, sem certeza alguma de serem efetivamente
vendidas; o consumo individual é um ato privado que se situa além
da esfera da própria circulação:
São, pois, inteiramente distintos o consumo produtivo e o consumo
individual, No primeiro, ele atua como força motriz do capital e pertence
ao capitalista; no segundo, pertence a si mesmo e executa funções vitais
fora do processo de produção, O resultado de um é a vida do capital; o
resultado do outro é a vida do próprio trabalhador (O Capital, 11, 14).

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LER “O CAPITAL"
228

A distribuição dos meios de produção e dos meio 8 de


aparec cou como origem contingente
da produção ou co mo COnsum
renda (e
passa então à esfera do consumo),
da ci
A operação introdutória (der einleitende Ak£), ato
ação; com.
pra e venda da força de trabalho, funda-se por ds ver nereul petibuição
dos
dos elementos de produção que precede a distribuição de (rabeta! s0-
ciais e que ela pressupõe: a saber, a separa ção da força
ão, propriedade = «mer.
cadoria do trabalhador, e dos meios de produç 0 3 não.
trabalhadores (O Capital, V, 39).

A análise da reprodução mostra que esses momentos não pos


suem autonomia relativa, não possuem leis próprias, mas que são
determinados pelas leis da produção. Se considerarmos o todo do
capital social no seu resultado, a esfera da circulação desaparece en-
quanto “esfera”, dado que todas as trocas são predeterminadas na
divisão dos setores da produção e na natureza material de sua pro-
dução. O consumo individual do trabalhador e do capitalista está
também predeterminado na quantidade e natureza dos meios de
consumo produzidos pelo capital social total: ao passo que uma par-
te do produto anual é “destinada ao consumo produtivo desde a ori-
gem” (III, 9), uma outra é desde a sua origem (von Haus aus) desti-
nada ao consumo individual. Os limites entre os quais pode oscilar o
consumo individual dependem do consumo interno do capital e são
determinados a cada momento.
O consumo individual do trabalhador, tenha ele lugar dentro ou
fora da oficina, constitui, pois, um elemento (Moment) da reprodução do
capital, assim'como a limpeza e a conservação das máquinas, sejam estas
feitas durante o processo de trabalho ou nos intervalos de pausa (O Capi-
tal, LI, 15).

Finalmente, a distribuição dos meios de produção e de consu-


mo, ou distribuição dos diferentes elementos, deixa de aparecer
como um estado de fato contingente: uma vez consumido o equiva-
lente do seu salário, o trabalhador sai do processo de produção
como nele entrou, destituído de propriedade, e o capitalista como
entrou; proprietário dos produtos do'trabalho que abrangem novos
dis-
meios de produção, A produção determina sem cessar a mesmã
tribuição,

Donde se vê que o modo de produção capitalista determina Ê


modo de circulação, de consumo e de distribuição. De modo ne É
amplo, a análise da reprodução mostra que qualquer modo de produ ú
ção determina modos de circulação, de distribuição e de consumo com
outros tantos momentos de sua unidade.

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MATERIALISMO HISTÓRICO 229

A seguir, a análise da reprodução faz desuparecer a aparência


que tem no “início” do processo de produção; a aparência do con-
trato “livre” renovado cada vez entre o trabalhador € O capita
lista, a
aparência que faz do capital variável um “adiantamento”
do capita-
lista ao trabalhador (a ser pago pelo produto, isto é, ao término
do
processo de produção). Em suma, todas as aparências que parec
em
promover ào acaso o encontro do trabalhador e do capita
lista, um
diante do outro, no mercado, como vendedore comprador de força
de trabalho. A reprodução faz aparecer os “fios invisíveis” que
en-
cadeiam o assalariado à classe capitalista.

O processo de produção capitalista reproduz... as condições que


obrigam o trabalhador a vender-se para viver, pondo o capitalista em
condições de o comprar para enriquecer. Não mais é o acaso que os colo-
ca um diante do outro no mercado como vendedor e comprador. É o du-
plo molinete (die Zwickmiihle) do próprio processo, que lança sempre o
primeiro no mercado como vendedor de sua força de trabalho e transfor-
ma o seu produto sempre em meio de compra para o segundo. O traba-
lhador pertence de fato à classe capitalista, antes de vender-se a um capi-
talista individual (O Capital, LI, 19-20).

Simultaneamente a reprodução faz desaparecer a aparência se-


gundo a qual a produção capitalista simplesmente aplica as leis da
produção mercantil, isto é, a troca de equivalentes. Cada compra e
venda de força de trabalho é uma transação dessa forma, porém o
movimento total da produção capitalista aparece como o movimen-
to pelo qual a classe capitalista se apropria continuamente de uma
parte do produto criado pela classe operária, sem um equivalente na
troca. Para esse movimento não há mais começo nem termo (corte
que a estrutura jurídica do contrato vinha recobrir e designar, preci-
samente um contrato “a prazo”), isto é, não há mais estrutura isola-
da do encontro dos elementos da produção. Estes não mais preci-
sam de encontrar-se, porque já estão sempre juntos, no conceito que
a análise da reprodução nos dá,
Assim é que a reprodução simples faz desaparecer a própria
aparência de ato isolado que o processo de produção possuía: ato cu-
Jos agentes seriam indivíduos, transformando as coisas em condi-
ções determinadas que os obrigam em seguida a fazer dessas coisas
mercadorias e mais-valia para o capitalista, Nessa aparência, os in-
divíduos conservavam a sua identidade, assim como o capital pare-
cia uma soma de valor que se conserva através de todos os atos de
produção sucessivos. '

" “O capitalista imagina sem dúvida que consumiu a mais-valia e conservou o valor-
capital, mas seu modo de ver em nada muda o fato de que, upós certo tempo, o

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230 LER “O CAPITAL”

E, reciprocamente, esses elementos materiais, na “SPecificidade


de sua natureza material, e na distribuição diferenci
priedades naturais através de todos os ramos de produalçãodessa s Pro.
e todos Os
capitais que os compõem, exprimem agora as condições do proc
de reprodução social, Desse modo a reprodução revela que asc Esso
que dns
nas mãos dos agentes da produção transmutam-se sem
o
eles se dêem conta, sem que seja possível perceber se tomamos
processo de produção como ato de indivíduos. Do mesmo modo. es-0
representante
ses indivíduos mudam e na realidade são apenas os
de indi E
classes. Ora, essas classes não são evidentemente somas
adicionan do. ,
classe
duos, o que nada teria mudado: não haverá
contas
indivíduos por mais longe que se vá. São funções do processo
to da produção. Elas não constituem o seu sujeito, mas pelo contr A
rio são determinadas pela sua forma.

Precisamente nos capítulos do livro I sobre a reprodução é que


encontramos todas as imagens pelas quais Marx pretende fazer-nos
captar o modo de existência dos suportes ( Tráger) da estrutura, dos
agentes do processo de produção. Nesse cenário da reprodução, em
que as coisas se revelam “ao claro” (III, 26), mudam radicalmente
de aspecto (ganz anders aussehen), os individuos precisamente se
adiantam mascarados (“O caráter econômico de capitalista - die 6-
konomische Charaktermaske des Kapitalisten - só se liga a um ho-
mem na medida em que o seu dinheiro funcione permanentemente
como capital” (III, 9): são apenas máscaras.

Essas análises são, pois, aquelas nas quais Marx nos mostra o
movimento de transição (mas essa transição é uma ruptura, uma ino-
vação radical) de um conceito da produção como ato, objetivação
de um ou vários sujeitos, a um conceito da produção sem sujeito,
que determina em recíproca certas classes como suas funções pró-
prias. Esse movimento, que Marx estudou antes em Quesnay (em
quem “os inúmeros atos individuais da circulação são imediatamen-
te considerados em bloco em seu movimento de massa socialmente
cdracterístico: circulação entre grandes classes sociais com funções

valor-capital que lhe pertencia iguala a soma de mais-valia que ele adquiriu gratuita
a que
mente durante o mesmo tempo, e que a soma de valor por ele consumido iguala
recursos, não resta
ele adiantou. Do antigo capital, que ele adiantou dos seus próprios
um só átomo de valor. E certo que ele mantém sempre em mãos um capital cuja
ma
e
nitude não mudou e uma parte do qual, instalações, maquinaria, etc. já lá estes
quando aparelhou a sua empresa. Mas, no caso, trata-se do valor do capit al, e não
dos seus elementos materiais” (O Capital, 1, 12-13).

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MATERIALISMO HISTÓRICO 231

econômicas determinadas” - O Capital, V, 15), esse movimento é


realizado de modo exemplar a propósito do modo de produção ca-
pitalista, mas vale em princípio para qualquer modo de produção.
Inversamente ao movimento de redução e depois de constituição
que caracteriza a tradição transcendental da filosofia clássica, ele
realiza de uma só vez uma extensão que exclui qualquer possibilida-
“de de que a produção seja ato de sujeitos, o seu cogito prático. Ele
encerra a possibilidade, que aqui apenas posso mencionar, de for-
mular um novo conceito filosófico da produção em geral.

Podemos resumir tudo o que precede afirmando que, num mes-


mo movimento, a reprodução substitui e transforma as coisas, mas
conserva indefinidamente as relações. Essas relações são evidente-
mente aquelas que Marx denomina “'relações sociais”; as que são es-
boçadas, “projetadas” no espaço fictício de que falei ?. O termo é do
próprio Marx:

Essa faculdade natural do trabalho (conservar os antigos valores


criando-lhe novos) surge como a faculdade, para o capital a que ela se in-
corporou, de manter-se a si mesmo, exatamente como as forças produti-
vas sociais surgem como algo próprio do capital, e como a apropriação
contínua da mais-valia pelo capitalista aparece como contínua autovalo-
rização do capital. Todas as faculdades do trabalho se projetam (projek-
tieren sich) como faculdades do capital, assim como todas as formas de
valor da mercadoria se projetam como formas do dinheiro (O Capital,
HI, 47).

* Estas relações são definidas por Marx, no livro I, no seu conceito (mas não em to-
dos os seus efeitos) pela análise desse objeto abstrato que Marx chama de uma ““fra-
ção do capital social promovido à autonomia” (O Capital, V, 9), pelo que se deve en-
tender, evidentemente, como observa Establet, não uma firma ou empresa real de for-
ma capitalista, mas um capital imaginário, necessariamente produtivo, e realizando no
entanto o conjunto das funções que são historicamente assumidas por tipos de “capi-
tais” diferentes (mercantis, de empréstimo, etc.). A divisão do capital social é uma
propriedade de essência: pode-se, pois, representar o capital por um capital.
Por seu turno, as análises de reprodução do livro II, 3º seção (reprodução e cir-
" culação do conjunto do capital social), que ensejam o estabelecimento de esquemas de
reprodução, e permitem assim a formalização matemática da análise econômica, por
si sós explicam mediante que mecanismo a reprodução das relações sociaisé assegu-
rada, submetendo a composição qualitativa e quantitativa do produto social total a
condições invariantes, Mas essas condições estruturais não são específicas do modo
de produção capitalista: em sua forma teórica elas não implicam referência alguma à
forma social do processo de produção, à forma do produto (''valor”), assim como ao
tipo de circulação do produto social que ele implica (“troca”) nem ao espaço concre-
to que suporta essa circulação (''mercado"), Sobre esta questão remeto sobretudo aos
diferentes trabalhos recentes de Ch, Bettelheim, e às suas observações críticas publi-
cadas em Problémes de planification, nº 9 (Escola Prática de Altos Estudos). Nota de
1967.

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LER “O CAPITAL”
232

As relações assim descobertas implicam-se todas recipro


reais ,
te: sobretudo as relações de propriedade e de apropriação
complexa, Elas abrangem os for.
ças produtivas)
mentos”, anteriormen te unidade
em sua desconexos (produção, circulação”
buição, consumo) numa unidade necessária e completa, E do' distri.
mo modo abrangem tudo o que surgiu no curso da análise dee
cesso de produção imediato como seus “pressupostos”, suas Mr
ções” necessárias para que esse processo Possa realizar-se na Ag
que descrevemos: por exemplo, na produção capitalista, a autono
mia da instância econômica ou das formas Jurídicas Corresponde.
tes às formas da circulação mercantil, isto é, certa forma Éde 0 Asas
is
pondência entre as diversas instâncias da estrutura social.
poderia chamar de “consistência” da estrutura tal como surge n
análise da reprodução. Poder-se-ia dizer que o par conceptual pro
dução-reprodução contém em Marx a definição da estrutura de que
se trata na análise de um modo de produção.
No plano que a análise da reprodução institui, a produção não
é de coisas, mas produção e conservação de relações sociais. No fi-
nal do capítulo sobre a reprodução simples, escreve Marx:

O processo de produção capitalista considerado na sua conexão


(Zusammenhang), ou como reprodução, não produz, pois, apenas a mer-
cadoria, nem apenas a mais-valia; ele produz e eterniza a relação social en-
tre capitalista e assalariado (O Capital, II, 20).

Essa formulação é retomada ao final do livro, no momento em


que Marx relaciona as classes às diferentes formas de rendas:

De resto, o modo capitalista de produção, se pressupõe a existên cia


prévia dessa estrutura social determinada das condições de reprodu
ção, re-
produz-la sem cessar. Ele não produz apenas os produt
os materiais, mãs
reproduz constantemente as relações de produção nos quais esta se dá;
reproduz, pois, também as relações de distribuição correspondentes (0
Capital, VIII, 253,).

A mesma coisa ocorre com qualquer modo de produção. e


modo de produção reproduz sem cessar as relações sociais de pro +
ção que o seu funcionamento pressupõe. No texto de Formação!
Econômicas Pré-Capitalistas, Marx já havia declarado isso, dO ma
buir como único resultado, agora (em vez de um “não
- apenas.»
Hrodução, a produção e reprodução das relações sociais Corrs p
e Sal a S on-

entes:

A propriedade significa portanto, desde a origem,


Ormas asiáticas, eslavas, antigas, germânicas, a relação
lhador - produzindo e se reproduzindo - com as condições

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HISTÓRICO 233
MATERIALISMO

pois, por conse-


ção ou reprodução na medida em que são suas. Haverá,
guinte diferentes formas segundo as condições dessa produção. A produ-
ção por sua vez tem por fim a reprodução do produtor nas e com as suas
próprias condições objetivas de existência (Introdução, p. 395).*.

Que vem a ser essa dupla “produção”?

Observemos primeiramente que ela nos fornece a chave de al-


gumas fórmulas de Marx que foram tomadas, não sem precipitação,
como teses fundamentais do materialismo histórico. À falta de uma
definição completa dos termos que nelas figuram, autorizaram in-
terpretações bastante divergentes. Por exemplo, as fórmulas do Pre-
fácio da Contribuição que começam assim: “Na produção social da
sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessá-
rias, independentes da vontade deles... razão pela qual a humanidade
só se propõe tarefas que tem condições de realizar”; ou então as fór-
mulas da carta de Engels a Bloch: “nós mesmos fazemos a nossa his-
tória, com premissas e condições muito determinadas...”. Toda inter-
pretação filosófica do materialismo histórico vai depender disso: se
tomamos essa dupla “produção” ao pé da letra, isto é, se pensamos
que os objetos e as relações sociais que eles sustentam são, pela mes-
ma razão, modificados ou conservados pelo processo de produção,
se os reunimos por exemplo sob um único conceito de “prática” da-
mos um fundamento rigoroso à idéia de que “os homens fazem a-
história”. S6 a partir desse conceito único, unificado, da prática-
produção, é que essa fórmula pode ter um sentido teórico, que ela
pode ser uma tese imediatamente teórica. (E não simplesmente um
momento da luta ideológica contra um determinismo materialista
mecanicista.) Mas esse conceito pertence em realidade a uma con-
cepção antropológica da produção e da prática, centrada precisa-
mente nesses “homens”, que são os “indivíduos concretos” (sobre-
tudo sob a forma das massas) produzindo, reproduzindo ou trans-
formando as condições de sua produção anterior. Com respeito a
essa atividade, a necessidade constringente das relações de produção
só aparece então como uma forma que possuiria já o objeto de sua
atividade, e que limita as possibilidades de criar uma forma nova, À
necessidade das relações sociais é simplesmente obra da atividade da
produção anterior, que lega necessariamente à seguinte as condições
de produção determinadas,

Mas a análise precedente da reprodução mostra-nos que essa


dupla “produção” deve ser tomada em dois sentidos diferentes: to-

* Balibar cita a edição alemã Dietz. (N. do T.)

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LER “O CAPITAL"
24

mar a expressão no rigor de sua unidade : dp spAmenia reproduzir a


meia que converte o processo de produção em ato isolado, en-
at determinações do precedente e do seguinte, Ato isolado
a m ue suas únicas relações com os demais atos de pro-
du bg curtentadãs pela estrutura da continuidade temporal li.
Na A QUA não pode haver interrupção RO na análise con.
ceptual da reprodução, vimos que essas Felaç r são sustentadas
pela estrutura de um espaço). Somente a “produção das coisas”
pode ser pensada como uma atividade desse gênero, e cla Já quase
contém o seu conceito na determinação da matéria- prima "e do
produto “acabado”; mas a “produção das relações sociais” é antes
uma produção das coisas e dos indivíduos pelas relações sociais, pro-
dução na qual os indivíduos são determinados a produzir e as coisas
a serem produzidas numa forma específica pelas relações sociais,
Isto é, trata-se de uma determinação das funções do processo social
de produção, processo sem sujeito. Essas funções não mais são ho-
mens, no plano da reprodução, tanto quanto os produtos não são
coisas. A (re)produção, isto é, a produção social no seu conceito,
não produz pois, no sentido estrito, as relações sociais, dado que

é possivel sob a condição dessas relações sociais; mas, por outro la-
do, ela também não produz mercadorias no sentido em que produzi-
ria coisas que, depois, adquirem certa qualificação social do sistema
das relações econômicas que as investe, objetos que depois “entram
em relações” com outras coisas € homens; a produção só
produz coi-
sas (sempre já) qualificadas, índices de relações.

A fórmula de Marx (“o processo de produção não prod


nas objetos materiais mas também relações sociais” uz ape-
) não é, pois, uma
conjunção, mas uma disjunção: ou se trata da produção das
ou da (re) produção das relações sociais de prod coisas,
ução. Trat a-se de
dois conceitos: o de “aparência” e o de eficá
cia da estrutura do
modo de produção. Contrariamente à produção
ção das relações sociais não est
das coisas, a produ-
á sujeita à determinação do pre
dente- e do seguinte, do “pr ce-
imeiro” e do “segundo”, Marx escreve
que “todo processo de produção social
é ao mesmo tempo processo
de reprodução, As condições da produção são também as
dução”: e são ão mesmo tempo as que a reprodução reproduda repro-
sentido, o “primeiro” processo de produção (numa z: nesse
forma determi-
náda) é sempre já processo de reprodução. Tomada no seu conceito,
smp

não há para a produção “Primeiro” processo de produção.


me po

SO, pois, transformar todas as determinaçõ É preci-


produção- das coisas: na minaçõques es q que dizem resppeito
ito à
ci

cia como as condições produção das relações sociais, o


YR d a primeira produç
ão
que apa
re-
de identi camente todas as à determinaa em realida-
ii

demais rações er ;

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MATERIALISMO HISTÓRICO 235

Essa transação - venda e compra da força de trabalho - que faz par-


te da circulação inaugura não apenas o processo de produção, mas deter-
mina implicitamente o seu caráter específico (O Capital, V, 39).

O conceito da reprodução é desse modo não apenas o da “'con-


sistência” da estrutura, mas o da determinação necessária do movi-
mento da produção pela permanência dessa estrutura; é o conceito
da permanência dos elementos iniciais no próprio funcionamento
do sistema, e portanto o conceito das condições necessárias da pro-
dução, que precisamente não são criadas por ela. É o que Matx cha-
ma de “eternidade” do modo de produção:
Essa continua reprodução ou eternização ( Verewigung) do trabalha-
dor é a condição sine qua non do modo de produção capitalista. (O Capi-
tal, LI, 13, retraduzido do texto alemão).

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LER “O CAPITAL"
236

IV. Elementos para uma Teoria.


da Transição

Retomemos a questão anteriormente apresentada: a da transi-


ção de um modo de produção a outro. A análise da reprodução pa-
rece só ter anteposto obstáculos à sua solução teórica. Mas em reali-
dade ela permite situar o problema nos seus verdadeiros termos,
porque submete a teoria da transição a duas condições.

Em primeiro lugar, qualquer produção social é reprodução,


isto é, uma produção de relações sociais no sentido já indicado.
Toda'produção social está sujeita a relações sociais estruturais. A
compreensão da passagem ou “transição” de um modo de produção
=;

a outro jamais pode, portanto, aparecer como um hiato irracional


cernis

entre dois “períodos” que estão sujeitos ao funcionamento de uma


a

estrutura, isto é, que têm seu conceito especificado. A transição não


pode ser um momento, por mais curto que seja,
de rutdesuraestrut
Ela é por sua vez um movimento sujeito a uma est queuraseçãoim-.
põe descobrir, Podemos, pois, dar
(ae

um sentido rigoroso a essas ob-


servações de Marx (a reprodução exp rime a continuidade da produ-
Cio porque ela nunca pode parar), observações essas que são hão
ET

Taro apresentadas por Marx como


“evidências”, como “o que à
uma criança sabe” (que o trabalhador não 'pode viver “de vento”, €
que qualquer país ''morreria de fome se cessas
se o trabalho, já não
digo um ano, mas por algumas semanas” - carta a Kugelmann, |

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MATERIALISMO HISTÓRICO 237

de julho de 1868). Significam elas que não pode jamais desaparecer a


estrutura invariante da reprodução, que assume uma forma particu-
lar em cada modo de produção (a existência de um fundo de manu-
tenção do trabaho, isto é, u distinção entre trabalho necessário e
sobretrabalho; a distribuição do produto em meios de produção e
meios de consumo, distinção que Marx chama de originária, ou aín-
da expressão de uma lei natural, etc.). Significam, pois, que as for-
mas de passagem são por sua vez “formas (particulares) de manifes-
tação” (Erscheinungsformen) dessa estrutura geral: são portanto elas
mesmas modos de produção. Implicam por conseguinte as mesmas
condições que qualquer modo de produção, e sobretudo certa forma
da complexidade das relações de produção, da correspondência en-
tre os diferentes níveis da prática social (tentarei indicar que forma).
A análise da reprodução mostra que, se pudermos formular o con-
ceito dos:modos de produção que pertencem aos períodos de transi-
ção entre dois modos de produção, os modos de produção ao mes-
mo tempo deixarão de depender de um tempo (e de um lugar) inde-
terminado: o problema da localização deles estará resolvido se pu-
dermos explicar teoricamente como eles se sucedem, isto é, se puder-
mos conhecer em seu conceito os momentos da sua sucessão.
/
Mas por outro lado (segunda consequência) a passagem de um
modo de produção a outro, por exemplo, do capitalismo ao socialis-
na transformação da estrutura pelo seu pró-
mo, não pode consistir
prio funcionamento, isto é, em nenhuma passagem da quantidade à
qualidade. Essa conclusão resulta do que já dissemos sobre o duplo
re-
sentido em que se deve tomar o termo “produção”, na análise da
. produção (produção de coisas € “produção” de relações sociais).
funcio-
Afirmar que a estrutura pode transformar-se em seu próprio
em re-
namento é identificar dois movimentos que, manifestamente,
lação a ela, não podem analisar-se do mesmo modo: de um lado, o
funcionamento mesmo da estrutura, que no modo de produção ca-
pitalista assume à forma especial da lei de acumulação; esse damovi-
per-
mento está sujeito à estrutura, e só é possível sob a condição
a
manência dela; no modo de produção capitalista, ele coincide com
Pelo contrá-
reprodução “eterna” das relações sociais capitalistas. aos
rio, o movimento de dissolução não está sujeito no seu conceito
gênero
mesmos “pressupostos”, e é aparentemente movimento de
totalmente diferente, dado que toma a estrutura como objeto de
af onde uma
transformação, Essa diferença conceptual mostra-nos,
se agarra
“lógica dialética” resolveria bem O problema, que Marx
obstinadamente a princípios lógicos não-dialéticos (não-dialéticos
hegelianos, evidentemente): o que reconhecemos como distinto por

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238 LER “O CAPITAL”

essência não poderá tornar-se um mesmo processo, E digamos de


modo mais genérico: o conceito da passa
gem (de um modo de produ.
ção a outro) jamais poderá ser a passagem
do conceito (a um seu ou-
tro por diferenciação interna).
Temos, no entanto, um texto em que Marx apresenta
a trans-
formação das relações de produção como um processo dialético
negação da negação. Trata-se do texto sobre de
u Tendência Histórica
da Acumulação Capitalista” (livro 1. cap. 32)*. Ele reúne num só es-
quema as análises de Marx sobre a origem do modo capitalista de
produção (“acumulação primitiva”), o seu movimento próprio de
acumulação, e o seu fim que Marx chama de “tendência”, no mes-
mo sentido do livro Ill. Serei obrigado a retomar separadamente
cada um desses momentos, de acordo com o conjunto das análise
s
que Marx lhes dedica em O Capital. Mas gostaria primeiro de mos-
trar a forma notável desse texto, que determina já certas conclusões.
Em principio, o raciocinio de Marx implica que as duas
passa-
gens são de mesma natureza. Primeira passagem: da propriedade
pri-
vada individual dos meios de produção fundada no trabal
ho pessoal
(Ca propriedade minúscula de muitos”) à propriedade
privada capi-
talista dos meios de produção, fundada na exploração
do trabalho
alheio (“a propriedade gigante de alguns”). Primeira passagem,
pri-
meira expropriação. Segunda passagem: da propriedade
capitalista
à propriedade individual, fundada nas aquisições da era
capitalista,
na cooperação e posse de todos os meios de produção,
inclusive do
solo. Segunda passagem, segunda expropriação.
Essas duas negações sucessivas são de mesma forma,
o que im-
Plica que todas as análises de Marx dedicadas à acumulação
primiti-
va (origem), à tendência do modo de produção capital
ista, isto é, a
seu futuro histórico, são em princípio semelhantes. Ora,
como vere-
mos, elas apresentam de fato, em O Capital, uma notável
disparida-
de: a análise da acumulação primitiva surge relativamente
dente da análise propriamente dita do modo de produção, indepen-
mo como
até mes-
interregno de história “descritiva” numa obra de
econômica (sobre essa oposição, remeto à dissertação teoria
de Althusser
nesta obra); pelo contrário, a análise da tendência históri
ca do
modo de produção surge como um momento da análise
do modo
de produção capitalista, como o desenvolvimento dos
efeitos intrin-
- SECOS da estrutura, Esta última análise é que sugere
que o modo de
produção (capitalista) se transforma “por si
mesmo”, pelo jogo de
sua “contradição ” própria, isto é, de sua estrutura.

“ Capítulos XXII,
leira. (N, do T.) XXIlle € XXIVX IV da edição
i em português da Ed. . Civilizaç
Civilização Brasi-

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MATERIALISMO HISTÓRICO 239

No texto sobre a “Tendência Histórica do Modo de Produção


Capitalista" cas duas transformações são reunidas nesse segundo ti-
po, o que é tanto mais surpreendente quanto o texto constitui a con-
clusão da análise das formas da acumulação primitiva. O modo de
produção capitalista aparece também através dessas fórmulas como
resultado da evolução espontânea da estrutura,

Esse regime industrial de pequenos produtores independentes “...en-


gendra por si mesmo os agentes materiais de sua dissolução”, que estão
contidos em sua própria contradição (ele exclui o progresso da produ-
ção) (O Capital, HI, 203-204).
O segundo movimento, essa expropriação se realiza pela atuação
das leis imanentes à produção capitalista, as quais chegam à concentra-
ção dos capitais... a socialização do trabalho e a concentração dos meios
de produção chegam a um ponto em que não mais podem manter-se no
invólucro (Húlle) capitalista... a própria produção capitalista engendra a
sua negação com a fatalidade que preside às metamorfoses da natureza

-
(ibid., pp. 204-205).

Resumindo as análises de Marx dedicadas à formação e disso-


lução do modo capitalista de produção, essas fórmulas pretendem
dar assim o próprio conceito da passagem que procuramos. Impõe-
se, pois, confrontá-las com essas mesmas análises. Mas a disparida-
de aparente dessas análises não deve prevalecer sobre a unidade que
o texto da “Tendência Histórica” postula através das formas da ne-
gação da negação”: deve, pelo contrário, ser reduzida para que pos-
sa ser formulado o conceito da transição. (Não se trata, evidente-
mente, de sustentar que todas as transições de um modo de produ-
ção a outro têm o mesmo conceito: o conceito é a cada passo especi-
ficado, como o do próprio modo de produção. Mas assim como to-
dos os modos de produção históricos apareceram como formas de
combinação de natureza idêntica, as transições históricas devem ter
conceitos da mesma natureza teórica. É o que o texto precedente im-
plica rigorosamente, mesmo que sugira ainda que essa natureza é à
de uma superação dialética interna). Tomemos, pois, as “passa-
gens” uma a uma,
|. Acumulação Primitiva: uma Pré-História
Os capítulos dedicados por Marx “ao que se chama acumula-
ção primitiva” (die sogenannte urspringliche Akkumulation) apresen-
tam-se como 4 solução de um problema que surge do estudo da re-
produção (acumulação capitalista) e que provisoriamente se deixou
de lado, O movimento de acumulação do capital só é possível por-
que existe uma mais-valia suscetível de ser capitalizada. Essa mais-
valia por sua vez só pode ser o resultado de um processo de produ-
ção anterior, e ussim por diante, ao que parece, indefinidamente.

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240 LER “O CAPITAL"

a "ondições técnicas, a magnitude mínima da


Sntistanto: a MUNCIONar como capital e sua divisão em
somaal de ed E capital constante são Igualmente dadas, e condi.
capit aro Ver obtenção de mais-valia, À produção
desse capital
To constitui, pois, um limiar, cujo ultrapassamento
ser explicado pelo puro € simples jogo da lei de acumulaçãonão pode
capita-

as em realidade não se trata apenas da medida de um soma-


tório de valores. O movimento de reprodução não é apenas a origem
contínua de uma mais-valia capitalizável, mas implica a permanên-
cia das relações sociais capitalistas, e só é possível sob a condição
delas. A questão da acumulação primitiva envolve, pois, ao mesmo
tempo a formação das relações sociais capitalistas. |
O que caracteriza o mito da acumulação primitiva na economia
clássica é a projeção retrospectiva das formas da produção capitalista
e das formas da circulação e do direito que lhe correspondem: pre-
tendendo que o capital mínimo originário tenha sido poupado do
produto do trabalho pelo futuro capitalista antes de ser adiantado
sob forma de salário e de meios de produção, a economia clássica dá
uma validade retroativa às leis da troca de equivalentes, e da pro-
priedade do produto fundada na disposição legítima do conjunto
dos fatores de produção. A projeção retrospectiva não se atém à dis-
tinção de um trabalho necessário e de um sobretrabalho, depois de
um salário e um lucro, a propósito de determinada produção indivi-
dual suposta (porque essas distinções podem convencionalmente
servir para distinguir várias partes do produto mesmo nos modos de
produção não-capitalistas, mesmo nos modos de produção sem
ex-
ploração em que estas partes não constituem rendas de classes
dife-
rentes: Marx também utiliza essa convenção, por exemplo, no capí-
tulo do livro III sobre a génese da renda territorial); a projeção
trospectiva atém-se precisamente à idéia dé que a formação re-
tal e seu desenvolvimento pertencem a um só movimento do capi-
to
leis gerais comuns, O fundo do mito burguês da acumulação sujei a
primiti-
va está, pois, numa reversibilidade absoluta de leitura, a form ação
do capital pelo movimento próprio de uma produção privada
já ca-
Pitalista em potência, e o auto-engendramento do capital. Mas seria
ainda mais exato dizer que o movimento inteiro do capital (o movi-
mento de acumulação) surge assim como uma lembranç a: lembrança
deO capit períaodo inicial em que, por seu trabalho pessoal e poupança,
um alist
adquiriu a possibilidade de se apropriar indefinidamen-
te do prod utodo sobretrabalho de outrem, Essa a
ranç está ins-
crita na forma do direito de propriedade burguês lemb
que funda indefini-
damente a apropr iação do produto do trabalho na
terior dos meios de prod
ução,
propriedade an-

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MATERIALISMO HISTÓRICO 24|

Na origem o direito de propriedade nos parecia fundado no traba-


lho pessoal, Pelo menos era preciso admitir isso, visto que só os proprie-
tários das mercadorias, iguais em direitos, se defrontam, que o único
meio de apropriar-se de uma mercadoria estranha é alienar a própria
mercadoria, e que esta só pode ser produto de um trabalho, A proprieda-
de aparece agora, do ponto de vista do capitalista, como o direito de
apropriar-se do trabalho de outrem não-pago ou de seu produto, e, do
ponto de vista do trabalhador como a impossibilidade de apropriar-se do
seu próprio produto. A separação entre propriedade e trabalho torna-se
a consequência necessária de uma lei que, aparentemente, decorria da
ie de uma e outra (O Capital, livro |, retraduzido do alemão, |.
612).

Se adotarmos o ponto de vista da economia clássica, deveremos


conservar ao mesmo tempo as duas faces dessa “lei de apropria-
ção”, o direito mercantil igual para todos (e o hipotético trabalho
pessoal que ele pressupõe, que ele induz por sua própria coerência),
e a troca sem equivalência, que exprime a essência do processo de
acumulação capitalista. É no espaço constantemente presente dessas
duas formas que se inscreve a lembrança do modo de produção, a
presença contínua de uma origem homogênea até o processo atual.

Sabemos tratar-se de um mito: Marx empenha-se em demons-


trar que as coisas não se passaram historicamente assim. Simulta-
neamente surge o que ele chama de função “apologética” do mito,
que se exprime na perenidade das categorias econômicas do capita-
lismo. Admitirei que se tenha esse estudo presente ao espírito para
chamar a atenção para a sua forma muito notável.

No estudo da ''acumulação primitiva” (conservou-se o nome, .


mas ele designa agora um processo inteiramente distinto), trata-se
ao mesmo tempo de uma história e de uma pré-história. História: des-
cobriu-se que a teoria burguesa do capital primitivo não passava de
um mito, uma construção retrospectiva, e muito precisamenteà pro-
jeção de uma estrutura atual.que se exprime na “lei de apropriação
pois,
e que repousa na estrutura capitalista da produção. Apareceu,
era pu-
o fato de que a “lembrança” inscrita nessa lei de apropriação
um passado
ramente imaginária: que ela exprimia sob a forma de
ção possuía ou-
certa situação atual, e que O passado real dessa situa
análise. O estudo
tra forma, completamente diversa, exigindo uma
memória pela histó-
da acumulação primitiva é essa substituição da
na origem do capital, um
ria. Pré-história: esse estudo revela-nos,
nvolvimento do capi-
outro mundo. O conhecimento das leis de dese de um pro-
trata
tal não nos é aqui de utilidade alguma, porque se as condições.
cesso completamente diverso, não sujeito às mesm a, en-
Aparece assim como completa ruptura, que se reflete na teori

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242 VER SO CAPMO

tre a história da formação do capital (das relações sociare capitalic-


tas) e a história do próprio capital, Desse modo, a história real das
origens do capitalismo não é apenas diferente do mito das Ongens
mas também diferente por suas condições e principios de elucidação
do que nos apareceu como a história do capital; é uma pré-história
isto é, história de outra era. o
Ora, por sua vez essas determinações não são de modo algum
vagas ou misteriosas para nós, visto sabermos que outra era sienifi-
ca precisamente outro modo de produção. Chamemo-lo modo de pro-
dução feudal, para acompanhar a análise histórica de Marx, sem
com isso afirmar qualquer lei de sucessão necessária e peculiar dos
modos de produção, que nada no conceito de “modo de produção”
nos permite afirmar imediatamente, se sua natureza é precisamente
a de uma combinação variada. Vemos que reconhecer na história
das origens do capital uma pré-história real é ao mesmo tempo pro-
por o problema da relação entre essa pré-história e a história de
modo de produção feudal, que pode, assim como a do modo de pro-
dução capitalista, ser conhecida pelo conceito da sua estrutura. Em
outras palavras, devemos indagar se essa pré-história é idêntica à
história do modo de produção feudal, ou simplesmente dependente.
e até mesmo distinta. O conjunto das condições desse problema é as-
sim resumido por Marx:

No fundo do sistema capitalista há, pois, a separação radical do


produtor com os meios de produção. Essa separação se reproduz numa
escala progressiva a partir do momento em que se estabeleceu o sistema
capitalista; mas como aquela constitui a base deste, este não poderia esta-
belecer-se sem ela. Para que ele venha ao mundo, é preciso portanto que,
pelo menos parcialmente, os meios de produção tenham sido arrancados
sem rodeios aos produtores, que os empregavam para fazer seu próprio
trabalho, e que eles já se achem em mãos dos produtores mercantis, os
quais os empregam para especular com o trabalho alheio, O movimento
histórico que fomenta o divórcio do trabalho com as suas condições e1-
ternas; eis, pois, a culminação do processo de acumulação chamada “pre
mitiva”, porque pertence ao periodo pré-histórico do mundo bunguss.
A ordem econômica capitalista saiu das contradições da ordem d00-
nômica feudal, A dissolução de um redundou nos elementos consutut-
vos do outro (O Capital, WI, 154-155).

Esse problema foi enfocado várias vezes por Marx, em textos


de método idêntico, que se impõe reunir para analisar-lhes o conteu-
do: em O Capital, além da seção VIII do livro | (“Acumulação Pn-
mitiva”), os capítulos do livro 111 dedicados a um Sumário histórico
sobre o capital mercantil, às Notas sobre o periodo pré-capitalista, à
Gênese da renda territorial capitalista. Veremos que essa dispersão
não é fortuita. A seção VIII dedicada à acumulação primitiva é con-

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MATERIALISMO HISTÓRICO 243

siderada pelo próprio Marx como um “esboço” (TI, 156), mas po-
demos recorrer a diversos ensaios preparatórios sobre o mesmo te-
ma, e sobretudo ao texto já citado das Formações Econômicas Pré-
Capitalistas.

Todos esses estudos possuem uma forma comum de retrospec-


ção, mas num sentido que é preciso esclarecer, já que acabamos de
criticar a forma de projeção retrospectiva do mito burguês da acu-
mulação primitiva, Está bem claro no texto precedente que o estudo
da acumulação primitiva toma por fio condutor os próprios elemen-
tos que foram distinguidos pela análise da estrutura capitalista: esses
elementos são aqui reunidos sob a rubrica “separação radical entre
o trabalhador e os meios de produção”. A análise é, pois, retrospec-
tiva, mas não na medida em que projeta para trás a própria estrutu-
ra capitalista, na medida em que pressupõe precisamente o que é
preciso explicar, mas enquanto depende do conhecimento do resul-
tado do movimento. É, pois, sob essa condição que ela escapa ao
empirismo, à enumeração dos acontecimentos que, simplesmente,
precedem o desenvolvimento do capitalismo: essa análise escapa à
descrição vulgar ao partir das relações essenciais a certa estrutura,
mas essa estrutura é “atual” (quero dizer, a do sistema capitalista na
plenitude da sua atualidade). A análise da acumulação primitiva
não é pois, no sentido estrito, mais que a genealogia dos elementos:
que constituem a estrutura do modo de produção capitalista. Esse mo-
vimento é sobremodo nitido na construção do texto das Formações
Econômicas..., já que depende da atuação de dois conceitos: o dos
pressupostos (Voraussetzungen) do modo de produção capitalista,
pensados a partir da sua estrutura, e o das condições históricas (his-
torische Bedingungen) nas quais esses pressupostos são satisfeitos. A
história esboçada dos diferentes modos de produção é, nesse texto,
mais que uma verdadeira história de sua sucessão e transformação,
uma sondagem histórica das vias pelas quais se realizou a separação
entre o trabalhador e os seus meios de produção, e a constituição do
capital como somatório de valor disponível.
A unálise da acumulação primitiva é por isso fragmentada: a
genealogia não se faz a partir de um resultado global, mas distributi-
vamente, elemento por elemento, E sobretudo ela considera separa-
damente a formação dos dois elementos principais que entram na es-
trutura capitalista; o trabalhador “livre” (história da separação do
produtor e dos meios de produção) e o capital (história da usura, do
capital mercantil, etc.). Nessas condições, a análise da acumulação
primitiva não coincide, e jamais pode coincidir com a história do
modo ou dos modos de produção anteriores conhecidos pela sua es-

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244 LER “O CAPITAL

trutura. À unidade indissociável que os dois elementos Possuem ny


estrutura capitalista é suprimida na análise, e não é substituída por
uma unidade semelhante pertencente ao modo de Produção ante.
rior. Essa a razão pela qual Marx escreve: “A ordem econômica ca.
pitalista saiu das entranhas da ordem econômica feudal. À dissolu-
ção de um redundou nos elementos constitutivos do outro". À dissolu.
ção de um, isto é, a evolução necessária de sua estrutura, não é idên.-
tica à constituição da outra em seu conceito: em vez de ser pensada
no nível das estruturas, à passagem é pensada no nível dos elemen-
tos. Essa forma explica a razão pela qual não estamos tratando de
uma verdadeira história no sentido teórico (pois sabemos que uma
história como essa só pode ser feita pensando-se a dependência dos
elementos com respeito a uma estrutura), mas é também a condição
que nos permite descobrir um fato importantíssimo: a independên-
cia relativa da formação dos diferentes elementos da estrutura capi-
talista, e a diversidade das vias históricas dessa formação.
Os dois elementos necessários à constituição da estrutura de
produção capitalista têm cada qual a sua história relativamente
in-.
dependente. No texto das Formações Econômica..., s após haver per-
corrido a história da separação do trabalhador e dos meios
de pro-
dução, Marx escreve:
Por um lado, tudo isto constitui condições históricas preliminares
para que o trabalhador se veja livre, força de trabalho sem objetiv
idade,
puramente subjetiva, diante das condições objetivas da produção que
as-
sumem para ele as formas da sua não-propriedade, de uma proprie
dade
de outrem, de um valor existente para si, de um capital. Mas, por
outro
lado, coloca-se a questão de saber que condições são necessárias para
que
ele depare com um capital (Grundrisse, p. 397).

Deve-se dizer ainda com mais rigor: para que ele encontre um
capital sob a forma de capital-dinheiro. Marx passa então à história
da constituição do segundo elemento: o capital sob a forma de
capital-dinheiro,e essa segunda genealogia será retomada em O Capi-
tal depois dos capítulos dedicados respectivamente ao capital mer-
cantil e ao capital de empréstimo, isto é, depois de analisados no in-
terior da estrutura capitalista os elementos necessários à sua consti-
tuição. À história da separação do trabalhador e dos meios de pro-
dução não nos dá o capital-dinheiro (Não sabemos ainda de onde
vem, Originariamente, os capitalistas. Pois é claro que a expropria-
ção da população dos campos não engendra diretamente senão
grandes latifundiários” (O Capital, 1, 184); por seu turno a históri
a
do capital-dinheiro não nos dá o trabalhador “livre” (Marx observa
'8so duas vezes em O Capital, a propósito do capital mercan
til (VI,
334-336) a do capital financeiro (VII, 256), e nas Formações Econô-
micas.,., escreve:

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MATERIALISMO HISTÓRICO 245

A simples existência da fortuna em dinheiro e sua ascensão a uma


espécie de supremacy não bastam de modo algum para que aconteça essa
dissolução em capital, Do contrário, à Roma antiga e Bizâncio teriam
culminado a sua história com o trabalho livre e o capital, ou antes, com
eles começado uma história nova, Lá também a dissolução das antigas
relações de propriedade estava ligada «o desenvolvimento da fortuna em
dinheiro, do comércio, ete, Mas, em vez de levar à indústria, essa dissolu-
ção levou “de fato” À dominação do campo sobre a cidade... A formação
originária (do capital) acontece simplesmente graças ao fato de que o va-
lor existente como fortuna em dinheiro é, pelo processo histórico da dis-
solução dos antigos modos de produção, posto em condições, por-um la-
do, de comprar as condições objetivas do trabalho, e por outro, de obter
em troca, por parte dos trabalhadores que se tornaram livres, por dinhei-
ro, o trabalho vivo em si, Todos esses momentos são dados; a sua própria
separação é um processo histórico, processo de dissolução, e isso é que per-
mite ao dinheiro metamorfosear-se em capital" (Grundrisse, pp. 405-406).

Em outras palavras, os elementos que a estrutura capitalista


combina têm uma origem diferente e independente. Não é um único
e mesmo movimento que faz trabalhadores livres e fortunas mobi-
liárias. Pelo contrário, nos expemplos analisados por Marx, a for-
mação de trabalhadores livres surge principalmente sob a forma de
transformações de estruturas agrárias, ao passo que a constituição
das fortunas deve-se ao capital mercantil e ao capital financeiro,
cujo movimento ocorre fora dessas estruturas, “marginalmente” ou
“nos poros da sociedade”.
Desse modo,a unidade que a estrutura capitalista possui uma
vez constituída, não pode ser reencontrada anteriormente. Mesmo
quando o estudo da pré-história do modo de produção assume a
forma de uma genealogia, isto é, pretende-se explícita e rigorosa-
mente dependente, na questão que ele coloca, dos elementos da estru-
tura constituída, e de sua identificação que exige que a estrutura seja
conhecida como tal em sua unidade complexa, mesmo então a pré-
história jamais pode ser a pura e simples projeção retrospectiva da
estrutura, Basta para isso que se produza, e tenha sido rigorosamen-
te penisado, o encontro entre esses elementos, que são identificados a
partir do resultado de sua conjunção, e o campo histórico no seio do
qual se impõe pensar a sua história própria que nada tem a ver em
“seu concelto com esse resultado, pois é definido pela estrutura de ou-
tro modo de produção. Nesse campo histórico (constituído pelo
modo de produção anterior), os elementos de que se fez a genealogia
só têm precisamente uma situação “marginal”, isto é, não-
determinante. Dizer que os modos de produção se constituem como
variações de combinações equivale a dizer também que eles modifi-
cam a ordem de dependência, que fazem passar na estrutura (que é O
objeto da teoria) certos elementos de um lugar de dominação para

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LER “O CAPITAL
“e T 1

246

que sob essa forma a


um lugar de sujeição histórica. Não afirmo
problemática esteja completa, e que nos leve até o limiar de uma so-
lução: pelo menos é assim que podemos extraí-la do modo pelo qual
Marx faz a análise da acumulação primitiva, fechando explicitamen-
a.
te a passagem a todos Os caminhos da ideologi
Mas já a esta altura podemos introduzir uma outra consegiien-
cia: é que a análise da acumulação primitiva, sob a forma genea-
lógica, é adequada a uma característica fundamental do processo de
formação da estrutura: a diversidade das vias históricas pelas quais se
constituem os elementos da estrutura, pelos quais são levados ao
ponto em que podem juntar-se para constituir essa estrutura (de um
modo de produção) entrando sob sua dependência, tornando-se seus
efeitos (assim as formas do capital mercantil e do capital financeiro
só se tornam formas do capital no sentido estrito sobre a “nova ba-
se” do modo de produção capitalista — veja-se O Capital, VI, 335-
336; VII, 256). Ou ainda, para retomar os termos antes menciona-
dos: um mesmo conjunto de pressupostos corresponde a várias séries
de condições históricas. Tangenciamos aqui um ponto tanto mais im-
portante quanto as análises de Marx no livro I de O Capital lhe de-
ram pouco realce, não obstante todas as cautelas tomadas: essas
análises são explicitamente as de certas formas, certos ''métodos”
entre outros de acumulação primitiva, verificados na história da Eu-
Topa ocidental e principalmente na Inglaterra. Marx explicou-se
muito claramente quanto a isso na sua carta a Vera Zassoulitch de 8
de março de 1881 (cujos diversos. rascunhos devem ser lidos). Há,
pois, numerosos processos de constituição da estrutura que conver-
gem todos para um mesmo resultado: a particularidade deles depende
em cada caso da estrutura do campo histórico.no qual estão situa-
dos, isto é, da estrutura do modo de produção existente. Deve-se re-
lacionar os “'métodos” de acumulação primitiva descritos por Marx
baseado no exemplo inglês com as características específicas do
modo de produção dominante nó caso (o modo de produção feu-
«dal), e sobretudo a utilização sistemática de um poder extraecono-
mico (jurídico, político, militar) cuja base na natureza do modo de
produção feudal lembramos há pouco de maneira sucinta. De mod o
e da.
e processo de transformação depend
mais geral, a resultantdo
natureza do meio histórico, de modo de produção existente: Marx O
mostra a propósito do capital mercantil (O Capital, VI, 339-340).
Num texto como as Formas Anteriores..., Marx descreve três formas
distintas de constituição do trabalhador livre (de separação entre O
produtor e os seus meios de produção), que constituem processos
históricos diferentes, correspondendo a formas de propriedade ante-
rior específicas, e são designadas como outras tantas “negações” de
forma diferente (Grundrisse, pp. 398-99). Mais adiante, c essa ent

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MATERIALISMO HISTÓRICO 247

meração é retomada em O Capital, ele descreve também três formas


distintas de constituição do capital-dinheiro (que não têm, evidente-
mente, qualquer correspondência biunívoca com as precedentes):

Há, pois, uma tríplice transição: primeiramente, o comerciante tor-


na-se diretamente industrial; isto se produz nos ofícios fundados no co-
mércio, sobretudo as indústrias de luxo, que os comerciantes introduzem
do estrangeiro, inclusive com as matérias-primas e os operários, como se
fez no século XV na Itália a partir de Constantinopla: em segundo lugar,
o comerciante constitui como seus intermediários os pequenos patrões
(middlemen) ou então compra diretamente ao produtor autônomo; deixa-
va-o nominalmente independente e não interfere no seu método de pro-
dução; em terceiro lugar, o industrial se torna comerciante e produz dire-
tamente em grande escala com vistas a comerciar (O Capital, VI, 343-
344).

(Devem-se acrescentar ainda as formas da usura que constituem


a pré-história do capital de empréstimo e um dos processos de cons-
tituição do capital..)

A independência relativa e a variedade histórica dos processos


de constituição do capital são reunidas por Marx numa palavra: a
constituição da estrutura é um “achado”; o modo de produção capi-
talista constitui-se “achando” (vorfinden) inteiramente formados os
elementos que a sua estrutura combina (Formas Anteriores). Esse
achado não implica evidentemente acaso nenhum: significa que a
formação do modo de produção capitalista é totalmente indiferente
à origem e gênese dos elementos de que ela necessita, que “acha” e
“combina”, Assim, o raciocínio cujo movimento retratei está im-
possibilitado de fechar-se como um circulo: a genealogia não é aves-
so de uma gênese. Em vez de reunir a estrutura e a história da sua
formação, a genealogia separa o resultado da sua pré-história. Não é
a estrutura antiga que a si mesmo e por si mesma se transformou;
pelo contrário, é como se se tivesse ““dissipado” (*'Em suma, O siste-.
ma corporativo, o mestre e o Companheiro, dissipam-se onde se ins-
talam o capitalista e o trabalhador” - Grundrisse, p. 405). A análise
da acumulação primitiva coloca-nos assim diante da falta de memó-
ria radical que caracteriza a história (não sendo, a memória, mais
que o reflexo da história em certos lugares predeterminados — a
ideologia, até mesmo o direito - e como tal, nada menos que fiel)

2. Tendência e Contradição do Modo de Produção


à Deixo aqui em suspenso essa análise da acumulação primitiva,
a qual nem todas as consegiiências foram tiradas, para passar do

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248 L ER “O CAPITAL”

estudo do segundo momento, O da dissolução do modo de produção


capitalista (que nos serve aqui de paradigma), Esta segunda análise
abrange tudo o que Marx nos dá referente à tendência histórica do
modo de produção capitalista, o movimento próprio de Sua contra.
dição, O desenvolvimento dos antagonismos que estão implicados na
necessidade de sua estrutura, € o que pode revelar-se nela da exigên.
cia de uma nova organização da produção social, Se é certo, como
declarei, que essas duas análises têm de direito um objeto de mesma
natureza (a passagem de um modo de produção a outro) - identida-
de de objeto que o texto da “Tendência histórica do modo de produ-
ção capitalista” (O Capital, II, 203-5) põe perfeitamente em evidên-
cia - não menos evidente é que sejam tratadas diferentemente por
Marx. A diferença está não apenas na realização literária (de um
lado - para a acumulação primitiva - um estudo histórico bastante
extenso e pormenorizado, mas desconectada do contexto da exposi-
ção e aparentemente menos sistemático; de outro - dissolução do
capitalismo — simples resumos porém formulados em termos gerais e
organicamente ligados à análise do modo de produção capitalista),
ela exprime duas situações teóricas complementares: de um lado
identificamqs os elementos cuja genealogia é preciso historiar, mas
não possuímos no seu conceito o conhecimento do campo histórico
que lhe é o palco (a estrutura do modo de produção anterior); de ou-
tro, temos o conhecimento desse campo histórico (que é o modo de
produção capitalista em si) e só isso. Antes de formular uma proble-
mática completa, cumpre-nos, pois, efetuar uma segunda leitura
preliminar.

- Podemos, em primeiro lugar, estabelecer uma equivalência teó-


rica estrita entre vários “movimentos” analisados por Marx ao nível
do conjunto do capital social: a concentração do capital (da proprie-
dade dos meios de produção), a socialização das forças produtivas
(pela aplicação da ciência e pelo desenvolvimento da cooperação), à
. extensão das relações sociais capitalistas ao conjunto dos ramos de
produção e a formação do mercado mundial, a constituição de um
exército industrial de reserva (a superpopulação relativa), a baixa
Progressiva da taxa de lucro média, A “tendência histórica” da acu-
mulação capitalista é em seu princípio idêntica à “lei tendencial
analisada no livro III, a qual Marx chama de “tendência real da pro-
dução capitalista”, e a propósito da qual escreve.
À tendência progressiva à baixa da taxa de lucro geral é simpl
esmen-
é uma maneira, peculiar ao modo de produção capitalista, de na
Progresso da produtividade social do trabalho... o progresso da produção
capitalista implica necessariamente que a taxa média geral da mais-valia
Se traduza por uma baixa da taxa geral de lucro; trata-se de uma necesst-

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MATERIALISMO HISTÓRICO 249

dade evidente, que decorre da essência do modo de produção capitalista (O


Capital, VI, 227).

a lucro média é tão-só o


De fato, a baixa tendencial da taxde
feito imediato do aumento da composição orgânica média do capi-
: ú do capital constante despendido em meios de produção em rela-
o ao capital variável despendido em força de trabalho, que expri-
mo-
PA o movimento próprio da acumulação. Dizer que todos esses
que são di-
vimentos possuem uma equivalência teórica é, pois, dizer
ferentes expressões de uma mesma tendência, disjuntas e expostas
separadamente apenas por necessidades da ordem de exposição (de
demonstração) de O Capital. Sua separação, porém, não exprime
itos, trata-
qualquer sucessão: do ponto de vista do sistema de conce
se de um mesmo momento da análise da estrutura.
Esse movimento nada mais é que o desenvolvimento da contradi-
ção peculiar do modo de produção capitalista, na expressão de

Marx. Definida primeiro de modo muito geral como “contradição
-
entre a socialização das forças produtivas (que define o desenvolvi
mento delas no modo de produção capitalista) e o caráter das rela-
ções de produção (propriedade privada dos meios de produção), ela
se vê especificada nas formas próprias do modo de produção capitalis-
ta como contradição entre o aumento do volume de valores produzi-
dos, portanto do lucro, e a diminuição da taxa de lucro. Ora, a bus-
ca do lucro é, no modo de produção capitalista, o único motor do
desenvolvimento da produção.
Mas de que movimento se trata? Parece-nos ser possível definir
esse movimento como uma dinâmica do sistema, ao passo que à aná-
lise da combinação complexa que constitui a estrutura do modo de
produção desempenhava a função de uma estática. Esse par de con-
ceitos permite com efeito explicar o movimento na medida em que
depende unicamente das relações internas da estrutura, enquanto
efeito dessa estrutura, isto é, sua existência no tempo. O conhecimen-
o desse movimento não implica qualquer-outro conceito senão o da
de pro-
Produção e da reprodução na forma própria do modo histórico
vo considerado, Desse modo, q “contradição nada mais é
como O diz com juste-
A asa LIeR Da estrutura; é-lhe “imanente”, encerra
ma indo Pan: porém, a contradição porsi mesma
feitor fo dt se dá como contradição, isto é, não produz
pois, roi itórios senão na existência temporal da estrutura. E,
tradição é tamente exato dizer, como o faz ainda Marx, que a con-
O é “desenvolvida” no movimento histórico do capitalismo.
ser formulada da
seguinte mano que devemos examinar pode então
ao mesmo tempo -
num mesmo hem sera a dinâmica da estrutura
po” - a sua história? Em outras palavras, será esse

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LER “O CAPITAL”
250

movimento ao o mesmo tempo movimen


? (e de modo mais to em direção ão futuro histó.
geral: em direção ao futuro do
rico do capitalismo
modo de produção considerado, dado nd cada um possui a sua
“contradição” específica, isto €, O seu irabal próprio... de exprimir
o progresso da produtividade social dc bra alho ). E uma vez que a
relação da estática com à dinâmica nos autoriza a fazer do desenvol.
vimento da contradição o próprio movimento de produção dos efei-
tos da estrutura, poderemos dizer também que constitui o “motor”
de sua superação? A identidade- ou a diferença - que procuramos
entre essa dinâmica e essa históriaé evidentemente a dos conceitos, e
não pode satisfazer-se com a coincidência que fornece ipso facto
uma simples temporalidade empírica: se O desenvolvimento da con-
tradição se inscreve na cronologia de uma sucessão, ele é simples-
mente essa história. Dado que, pelo contrário, queremos construir a
relação dos dois conceitos, o texto de Marx nos impõe aqui partir do
conceito mais explícito (a dinâmica do desenvolvimento da estrutu-
ra), para ir, ou para tentar seguir em direção ao outro (o seu futuro
histórico).

Se procurarmos determinar mais rigorosamente o que Marx en-


tende por natureza “contraditória” e por “tendência” do modo de
produção, estaremos situados por suas formulações reiteradas dian-
te do problema da relação da estrutura com os seus efeitos. A ““ten-
dência” é definida por uma restrição, uma diminuição, um adiamen-
to ou disfarce de eficácia. A tendência é uma lei “cuja realização in-
tegral é detida, enfraquecida, retardada, devido a causas que a con-
trariam” (entgegenwirkende Ursachen) (VI, 247), ou mesmo cujos
efeitos (Wirkung, Verwirklichung, Durchfiihrung) são suprimidos
(aufheben) (VI, 245) por essas causas adversas. O caráter de tendên-
cia aparece assim primeiro como uma falta da lei, mas falta extrínse-
ca, causada pelo obstáculo de circunstâncias externas que não de-
pendem dela, e cuja origem é (por enquanto) inexplicada. A exterio-
ridade das causas adversas basta para justificar que sua eficácia pró-
Pria Seja puramente negativa: o resultado da intervenção delas
não
é Pois, modificar o da própria lei, a natureza dos seus efeitos. mas
alimples me DS o da sua produção; somos assim levados à definir
Ei dor EN ORÓia como o que só se realiza a longo pa
gls SAMORA um conjunto de circunstâncias mo
mento. “É assir" vsream a essência do processo de desenvo ba
tendência cujo efeito e Marx, quea lei só atua sob forma
de maneira contundente em circuns
tânciCias adas 0 e aparece
: determininad: em longos períodos de tempo” (V,
251).
á tanto, essa definição não é satisfatória, visto que, por seu
Entre K 4 , ” ;

mecanicista, equivale justamente no que Marx

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MATERIALISMO HISTÓRICO 251

critica nos economistas, e sobretudo em Ricardo: o estudo dos “fa-


tores” pretensamente independentes, por incapacidade de se achar a
origem comum deles na unidade de uma estrutura, estudo que per-
tence ao lado “exotérico” ou “vulgar” da economia política, Desco-
nhece também o emprego sistemático em Marx do termo tendência
para designar as próprias leis da produção, ou ainda as leis do movi-
mento da produção na medida em que ele depende da sua estrutura.
No Prefácio da primeira edição de O Capital, escrevia Marx:
Intrinsecamente, a questão que se debate aqui não é o maior ou me-
nor grau de desenvolvimento dos antagonismos sociais oriundos das leis
naturais da produção capitalista, mas essas próprias leis naturais, essas
tendências que operam e se impõem com férrea necessidade (O Capital, |,
18).

E do mesmo modo no livro 1, para formular a lei de produção


da mais-mais-valia relativa:
Trataremos aqui esse resultado geral como se ele fosse resultado
imediato e objetivo direto. Quando um capitalista, aumentando a força
produtiva do trabalho, força a baixa do preço das camisas, não tem ne-
cessariamente a intenção de com isso diminuir o valor da força de traba-
lho e encurtar assim a parte da jornada na qual o operário trabalha para
si mesmo; mas afinal é contribuindo para esse resultado que ele contribui
para a elevação da taxa geral da mais-valia. As tendências (Tendenzen) ge-
rais e necessárias do capital devem ser distinguidas das formas sob as
quais elas aparecem (Erscheinungsformen). :
Não nos cabe examinar aqui como as leis imanentes da produção ca-
pitalista (immanente Gesetze) aparecem no movimento exterior dos capi-
tais, prevalecem como leis coercitivas da concorrência e, por isso mesmo,
se impõem aos capitalistas como móveis das suas operações (O Capital,
H, 10).

Vemos no caso que Marx designa como “tendência” não uma


restrição da lei devida a circunstâncias externas, que pertencem ne-
cessariamente à esfera das “aparências”, dos fenômenos de “'su-
perfície”, mas a lei em si, independentemente de qualquer circuns-
tância extrínseca, Se o vocabulário de Marx é rigoroso nesse passo
pode-se pensar que seja apenas à primeira vista que a lei de desen-
volvimento da produção (que se traduz na baixa da taxa de lucro
etc.) seja limitada de fora. |
Mas se examinarmos uma a uma essas “causas” que criam obs-
táculo à realização da tendência, veremos que todas elas são, ou efei-
tos imediatos da estrutura ou determinadas pela estrutura que fixa os
limites (Grenzen) de variação dos seus efeitos. Classificaremos no
primeiro caso o aumento de intensidade da exploração, a deprecia-
ção do capital existente, a superpopulação relativa e sua fixação em

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*8>
LER “O CAPITAL”

te produção menos desenvolvidos, 0 ampliamento da escala


no segundo caso
da proc d e ão salário
ramos abaixo do
(ca criação seu valor, externo);
do mercado Ora, o peculiar de todas as
redução de ào efeitos imediatos da estrutura é a ambivalência delas,
“qusas que sã À
euio
$ f mis
ato que todas as causas que contrariam a lei são ao mesmo
'

tem
e * sas Na que
po «aoas cau produzem os seus efeitos:
Dado que as mesmas causas que elevam a taxa da mais-valia (a pró.
pria extensão do tempo de trabalho é resultado da indústria Mecaniza-
da) tendem a reduzir a força de trabalho empregada por dado capital
tendem ao mesmo tempo a diminuir a taxa do lucro ea retardar o movi-
mento dessa baixa (O Capital, VI, 247).

Igualmente, a depreciação do capital existente relaciona-se com


o aumento da produtividade do trabalho, que faz baixar o preço dos
elementos do capital constante, e impede assim que o valor do capi-
tal constante aumente na mesma proporção que seu volume mate-
rial, etc. De maneira geral, se considerarmos o conjunto do capital
social, “as mesmas causas que provocam a baixa da taxa de lucro
suscitam efeitos contrários” (VI, 251). Esse ponto é fundamental,
porque nos permite estabelecer que a redução da lei de desenvolvi-
mento ao-estado de tendência não é uma determinação externa a
essa lei, influindo apenas na cronologia dos seus efeitos, mas uma
determinação intrínseca da produção dos seus efeitos. O efeito das
causas adversas, isto é, da própria lei, não é o retardamento dos e-
feitos históricos da produção capitalista, mas a determinação de um
ritmo especifico de produção desses efeitos, que só surge negativa-
mente (como “restrição”, etc.) por referência ao absoluto não-
histórico de um aumento “livre”, “ilimitado” da força produtiva do
trabalho (acarretando o aumento da composição orgânica do capi-
tal e a baixa da taxa de lucro). Uma vez mais, de resto, a definição
do modo de atuação peculiar da estrutura, que inclui a redução da
exterioridade aparente das causas adversas, está ligada à considera-
ção do capital social enquanto simples parcela da totalidade do capi-
tal (VI, 233), queé o suporte teórico do livro 1 e da primeira metade
do livro II, isto é, à consideração do capital na “sincronia” teórica
de que falei a propósito da reprodução. Todo o raciocínio de Marx
que permite estabelecer a existência e o nível de uma taxa de lucro
a Do po PU nessa sincronia (Marx emprega O a :
possível por Aa o somatório dos capitais parcela Ea em QUO
Pope, E se fôssemos obrigados a Intorrogar Cm ÃO
impede que o ais O preço dos meios de produção um p ko do do
canital iria or do capital constante aumente em E o lei
estatuto teóri correspondente, seria impossível formular baixa da
co impuro das causas” que “contrariam a bã

al
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MATERIALISMO HISTÓRICO 253

geral de jucro apenas revela, em certas fórmulas (que já citei)


uma dificuldade
pa de Marx em pensar de modo explícito essa “'sincro-
na medida em que se trata de uma lei de desenvolvimento da es-
Pt Mas nem por isso O círculo deixa de ser fechado por ele, de
ja d ado que é a baixa tendencial da taxa de lucro que suscita a con.
A mrência dos capitais, isto é, o mecanismo pelo qual se realiza efetiva-
mente a distribuição uniforme dos lucros e a formação da taxa geral de
Jucro (O Capital VI, 269). (Vê-se ao mesmo tempo esclarecido e deli-
mitado O local da concorrência, da qual Marx exclui a análise do
mecanismo da análise do capital em geral, dado que ela apenas asse-
gura à distribuição uniforme dos lucros sem determinar o nível no
qual estes se estabelecem, assim como o preço de mercado de certa
mercadoria.) O desenvolvimento da estrutura segundo uma tendên-
a produ-
cia, isto é, uma lei que não inclui apenas (mecanicamente)
ção de efeitos, mas a produção de efeitos segundo um ritmo específi-
co, significa, pois, que a definição da temporalidade específica interna
da estrutura pertence à análise da própria estrutura,
Podemos então compreender em que a tendência é “contraditó-
ria”, e esclarecer o verdadeiro estatuto da contradição em Marx. Os
termos entre os quais há contradição são definidos por Marx como
efeitos contraditórios de uma mesma causa:
À medida que progride o modo de produção capitalista, um mesmo
desenvolvimento da produtividade social do trabalho se exprime, por um
lado na tendência à baixa progressiva da taxa de lucro e, de outro, num
aumento constante da massa absoluta da mais-valia ou do lucro de que
os capitalistas se apropriam; de sorte que, em suma, à baixa relativa do
capital variável e do lucro corresponde uma alta absoluta de um e de ou-
tro. Esse duplo efeito (doppelseitige Wirkung), como vimos, só se pode ex-
plicar por um aumento do capital total cuja progressão é mais rápida que
a da baixa da taxa de lucro... Dizer que a massa do lucro é determinada
por dois fatores, primeiro a taxa de lucro e segundo a massa do capital
empregado nessa taxa de lucro, é pura tautologia. Por conseguinte, pre-
tender que a massa do lucro possa aumentar, embora a taxa de lucro bai-
xe simultaneamente, é apenas outra forma dessa tautologia, que em nada
nos adianta... Mas se as mesmas causas que fazem baixar a taxa de lucro
favorecem a acumulação, isto é, a constituição de capital adicional € todo
nata à
capital adicional aciona trabalho suplementar e produz do
mais, se de resto a simples queda da taxa de lucro implica o aumento pro-
capital constante e com isso de todo o antigo capital, então todo esse
cesso deixa de ser misterioso... (O Capital, VI, 236-38).

(É evidentemente a mesma coisa afirmar que a baixa da taxa de


lucro é retardada pela extensão da escala da produção, OU afirmar
que o volume da acumulação é diminuído relativamente pela baixa
à taxa de lucro.) Essa definição importantíssima encerra simulta-
adição
Neamente a refutação de um pensamento empirista da contr

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254 LER “O CAPITAL”

(que Marx liga ao nome de Ricardo - O Capital, VI, 261) ca limit e


empirismo da economia clássica não revela
ção do seu papel. O
pacífica” isto é os
termos contraditórios senão numa “coexistência efa NA
por exemplo
autonomia relativa de fenômenos distintos, dominada s por neo
sucessivas de desenvolvimento inversamente
outra das tendências contraditórias. Marx, ao contrário, produ ou
conceito teórico da unidade dos dois termos contraditórios (que ele
chama ainda uma vez de “combinação”: “a queda tendencial da ta :
de lucro está combinada - ist verbunden mit - com uma alta tenden.
cial da taxa de mais-valia, e portanto do grau de exploração do tra.
balho”), isto é, produz o conhecimento da base da contradição na
natureza da estrutura (da produção capitalista). A economia clássi-
ca raciocina a partir de “fatores” independentes cuja interação “po-
de” provocar este ou aquele resultado: todo o problema é, pois, ava-
liar essas variações e relacioná-las empiricamente a outras variações
(o mesmo acontece a propósito dos preços e do valor das mercado-
rias, supostamente dependentes da variação de certos fatores: salá-
rios, lucro médio, etc.). Em Marx a-lei (ou a tendência) não é lei da
variação de magnitude dos efeitos, mas lei da produção dos próprios
efeitos: ela determina esses efeitos a partir dos limites entre os quais
eles podem variar, e que não dependem dessa variação (o mesmo se
aplicando ao salário, à jornada de trabalho, aos preços, e às diferen-
tes frações da repartição da mais-valia); só esses limites é que são de-
terminados como efeitos da estrutura, e por conseguinte precedem a
variação em vez de serem a sua resultante média. A contradição nos é
dada aqui pela lei de sua produção a partir de uma mesma causa, €
não na variação do seu resultado (nível da acumulação).

Mas essa definição encerra também a limitação do papel da


contradição, isto é, sua situação de dependência em relação à causa
(à estrutura): a contradição é apenas entre os efeitos, mas a causa
não é em si dividida; não pode analisar-se em termos antagônicos. Or-A
contradição não é, pois, originária, mas derivada. Os efeitos são
ganizados numa série de contradições particulares, mas o processo
de produção desses efeitos não é de modo algum contraditório: O
aumento da massa de lucro (e portanto a magnitude da acu mulação)
e a diminuição da sua taxa (portanto a velocidade própria da acu-
mulação) constituem expressão de um único movimento de uumen-
to da quantidade dos meios de produção postos em ação pelo capt-
tal, Eis por que, no conhecimento da causa, só descobrimos uma
essa CO
aparência de contradição: “esta lei - diz Marx - quero dizer,
contradizem em
nexão interna e necessária entre duas coisas que só se
aparência"; a conexão interna e necessária que define a lei de produ-
ção dos efeitos da estrutura exclui q contradição lógica. Desse ponto

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MA TERIA LISMO HISTÓRICO 255

de vista, o “duplo efeito” é upenus “face dupla” (zwelschldchtlg)


(VI, 233) da lei, É sobremodo notável ver Marx retomar aqui, para
exprimir o caráter derivado e dependente da contradição de certos
efeitos da estrutura, o próprio termo que designava, no início de O
Capital, a falsa contradição in adjecto du mercadoria (veja-se sobre
esse ponto a dissertação de P, Mucherey). Por seu lado, os efeitos
apresentam uma contradição simples (termo a termo); superpopula-
ção relativa e superprodução relativa, etc.) e distribuída em vários as-
pectos contraditórios ou contradições parciais que nem por isso
constituem uma sobredeterminação, mas têm simplesmente efeitos
inversos sobre a magnitude da acumulação.
Assim como a causa produtora da contradição não é em si con-
traditória, o resultado da contradição é sempre certo equilíbrio, mes-
mo no caso em que esse equilíbrio é atingido através de uma crise.
Parece assim que a contradição possui um estatuto análogo à con-
corrência no movimento da estrutura: ela não determina nem a sua
tendência nem os seus limites, mas é um fenômeno local, e derivado,
cujos efeitos estão predeterminados na própria estrutura:
Essas diversas influências prevalecem ora simultaneamente no espa-
ço, ora sucessivamente no tempo; periodicamente o conflito dos fatores
antagônicos surge em crises. As crises são sempre soluções violentas e
momentâneas das contradições existentes, violentas erupções que resta-
belecem por um momento o equilíbrio rompido... a depreciação periódi-
ca do capital existente, que é um meio imanente ao modo capitalista de
produção conter a baixa da taxa de lucro e acelerar a cumulação de valor-
capital pela formação de capital novo, perturba as condições dadas, nas
quais se realizam os processos de circulação e de reprodução do capital,
e, por conseguinte, é acompanhada de bruscas interrupções e de crises do
processo de produção...
A parada da produção assim ocorrida teria preparado uma amplia-
ção ulterior da produção nos limites capitalistas, E assim se fecharia de
novo o círculo (O Capital, VI, 262-267).

Desse modo, o único resultado intrínseco da contradição, intei-


ramente imanente à estrutura econômica, não tende à superação da
contradição, mas à perpetuação das suas condições. O resultado ú-
nico é o ciclo do modo de produção capitalista. (A crise é cíclica por-
“que a reprodução do conjunto do capital depende da rotação do ca-
pital fixo - cf, O Capital, 1V, 171 -, mas pode dizer-se metaforica-
mente que a crise manifesta o círculo em que se move todo o modo
de produção num movimento imóvel.)
Marx diz ainda que a crise torna patentes os limites (Schranken)
do modo de produção; '!

| Esses limites não devem ser confundidos com os limites de variação (Grenzen) de
que falamos há pouco,

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LER “O CAPITAL”
256

A produção capitalista tende incessantemente a ultrapas


mites que são imanentes a ela (immanenten Schranken), mas é esses fi.
O conse.
gue empregando meios que, de novo, e em escala mais poderos à, erguem
diante dela os mesmos obstáculos.
A verdadeira barreira (die wahre Schranke) da produci va
263). ção Capitalista é
o próprio capital... (O Capital, VI,

Os “limites” a que tende o movimento do modo de produção


(sua dinâmica) não são, pois, uma questão de escala, de limiar à
atingir. Se a tendência não pode transpor esses limites, é que eles lhe
são interiores, e como tais jamais encontrados: no seu movimento ela
os traz consigo, eles coincidem com as causas que fazem dela “sim.
les” tendência, isto é, são ao mesmo tempo as suas condições de
possibilidade efetivas. Afirmar que o modo de produção capitalista
tem limites internos equivale simplesmente a declarar que o modo
de produção não é “modo de produção em geral”, mas modo de
produção delimitado, determinado: '
-.. no desenvolvimento das forças produtivas, o modo de produção
capitalista depara um limite que nada tem a ver com a produção da ri-
queza em si; e essa limitação muito particular atesta (bezeugt) o aspecto
limitado (Beschrânktheit) e puramente histórico, transitório, do sistem”
“de produção capitalista. Atesta.que não se trata de um modo absoluto de
produção da riqueza, mas que pelo contrário ele entra em conflito com o
a desta em certo nível (auf gewisser Stufe) (O Capital, VI,

(O termo riqueza deve ser tomado sempre e em toda a parte


coma. dBorosamente sinônimo de valor de uso.)
feios e quites são, pois, aqueles mesmos cujos efeitos já encon-
a riqueza am E BÇÃO da tendência: não existê modo de ra
senvolvimento Isto €, não existe senão um tipo determinado de e
modo de produ E forças produtivas dependente da natureza à
limitado pela nau O aumento da produtividade do trabalho gd
fazem dela um
meio de forma ao das relações de produção que
a mais-vali: “vão da mais-valia relativa, Por seu turno, à extorsa
limitada
dos limi ites deE” variação
. produtividade
pelajornada do trabalho (no interior
da de trabalho, a relação trabalho
Nécessário-sob :
vidade), R "trabalho é a cada momento dada por essa produti
Plexidade do mon amos, pois, aqui, não a contradição, mas a come
Posição como qu 4º Produção que foi definido no início desta Sx-
dutivas”,
tes rela pla articulação do modo de produção (“forças PIO”
internos do es de propriedade dos meios de produção): 08 limi-
de cada uma do PODO de produção nada mais são do que a limitação
SSas relações pela outra, isto é, a forma de “corres-

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MATERIALISMO HISTÓRICO 257

pondência
A 2...
delas ou da “a
“subsunção

real” ss
das forças produtivas
i
sob
as relações de produção.

Mas se os limites do modo de produção lhe são internos, só de-


terminam o que afirmam, e não o que negam (isto é, através da idéia
de um “modo de produção absoluto”, de um modo de produção
“da riqueza em si”, a possibilidade de todos os demais modos de
produção, que têm a sua própria limitação interna). Somente nesse
sentido é que implicam a transição de um modo de produção (o ca-
ráter histórico, transitório do modo de produção existente): desig-
nam a necessidade de uma saída e de outro modo de produção do
qual eles não contêm absolutamente a delimitação; e dado que os li-
mites consistem na “correspondência” que articula as duas relações
no interior da estrutura complexa do modo de produção, o movi-
o de supressão desses limites implica a supressão da correspon-
ência,

Mas aparece também o fato de que a transformação dos limites


não pertence simplesmente ao tempo da dinâmica. De fato, se os
efeitos internos da estrutura de produção não constituem por si mes-
mos nenhuma colocação em questão dos limites (por exemplo, a cri-
se, que é “o mecanismo [ pelo qual] a produção capitalista afasta es-
pontaneamente os obstáculos que lhe acontece por vezes criar”, O
”) de
Capital, II, 6), podem ser uma das condições (a “base material
outro resultado, externo à estrutura da produção: trata-se deste ou-
'tro resultado que Marx indica à margem da sua exposição ao mos-
trar que o movimento da produção produz, pela concentração da
aumento do proletariado, uma das condições da
produção e pelo
capitalis-
forma particular que a luta de classes assume na sociedade
que ela
ta. Mas a análise dessa luta e das relações sociais políticas
A análise
implica não faz parte do estudo da estrutura de produção. di-
dos tempos
da transformação dos limites exige, pois, uma teoria
bem como à ar-
ferentes da estrutura econômica e da luta de classes
como eles po-
ticulação de ambas na estrutura social. Compreender
exemplo, como à
dem ligar-se na unidade de uma conjuntura (por
de uma transfor-
crise pode ser, dadas as demais condições, ensejo
depende disto,
mação - revolucionária - da estrutura de produção)
dic-
como o demonstrou Althusser em um trabalho anterior (“Contra
tion et Surdétermination”, em Pour Marx).

3. Dinâmica e História
descone-
As análises precedentes constituem momentos, uinda
icamente
xos, da problemática no seio da qual é possível pensar teor

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LER “O CAPITAL"
258

vel ar.
a transição de um modo de produção a outro, Não Será possí
ricular efetivamente essa db a unidadesitua
isto é, produzir cons dasr
er, à meno s que se iga
questões às quais é preciso respon
que foram adiantados até
uns em relação aos outros os conceitos ica, tendên.
ugora (história, genealogia, sincronia - discronia, dinâm
cia), e definir diferencialmente os seus objetos próprios,
Todos esses conceitos, que são ainda amplamente descritivos
enquanto precisamente não estejam articulados, Ssurgem-nas como
outras tantas conceptualizações do tempo histórico. Durante a dis.
sertação anterior, Althusser mostrou que, em qualquer teoria da his-
tória (seja ela científica ou ideológica) existia uma correlação rigoro-
sa e necessária entre a estrutura do conceito de história peculiar à
essa teoria (estrutura em si dependente da estrutura do conceito da
totalidade social peculiar a essa teoria) e O conceito da temporalidade
na qual essa teoria da história pensa as “transformações”, os “movi-
mentos”, os “acontecimentos” ou, de modo mais geral, os fenôme-
nos que pertencem ao seu objeto. Não contradiz a nossa demonstra-
ção o fato de que essa teoria esteja no mais das vezes ausente, e que
se reflita sob a forma da não-teoria, isto é, do empirismo. A estrutu-
ra da temporalidade é então simplesmente aquela oferecida pela
ideologia dominante, e jamais refletida na sua função de pressupos-
to. Viu-se mesmo que, em Hegel, a estrutura da temporalidade his-
tórica, dependente, do ponto de vista da articulação do sistema, da
estrutura da totalidade hegeliana simples — expressiva, apenas reto-
ma por sua conta a forma mesma da concepção empirista ideológica
do tempo, dando-lhe o seu conceito e o seu fundamento teórico.
Viu-se também que a forma desse tempo era não apenas a linea-
ridade contínua, mas, por via de consequência, a unicidade do tempo.
É pelo fato de que o tempo é único que o seu presente possui a estru-
tura da contemporaneidade, que todos os momentos de que se possa
constatar a simultaneidade cronológica devem também necessaria
mente ser determinados como os momentos de um mesmo todo
atual e pertencer a uma mesma história. Impõe-se observar aqui
que, nessa concepção ideológica, vai-se da forma própria do tempo
à determinação dos objetos históricos em relação a ele: a ordem é à
duração desse tempo precedem sempre qualquer determinação de |
um fenômeno como “transcorrendo no tempo”, e do mesmo meo
ema fenômeno histórico, A estimativa efetiva da ordem ou pç

de de rs ojos, masa forma de sua possibilidade en,


ra O supõe sempre, é certo, uma relação ou referência à tempo Cá

pa a a movemo-nos assim num circulo, to. mi


Re ou UM
de uma percepção
cial conceepçã
LempO-qu
de uma nada
o ideol é do danastotal
maiaógica idacde pol
alida so-
'al. Mas esse movimento de dependência real, anterior à loca ii

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MATERIALISMO HISTÓRICO 259

ção dos fenômenos “históricos” no tempo é não pensado como tal


na representação do tempo que lhe serve de premissa, e pode-se ter O
requinte de encontrar (em realidade, reencontrar) nas determinações
da história a estrutura pressuposta desse tempo, Esse movimento é
que precede a determinação do objeto histórico como acontecimen-
to, presente até no questionamento, na idéia de que não há apenas
acontecimentos, isto é, não apenas fenômenos de “curta” duração,
mas também não-acontecimentos, isto é, acontecimentos longos, per-
manências de longa duração (que erroneamente se batizam com O
nome de “estruturas”),

Se tivermos em mente então a problemática no seio da qual, na


origem, Marx pensa o seu empreendimento teórico, mas que não lhe
pertence de direito, a problemática da periodização, podemos tirar
dela diversas conseqiiências. Se propusermos o problema da transi-
ção de um modo de produção a outro unicamente no quadro dessa
problemática, ser-nos-á impossível escapar à forma do tempo linear
ra de
único: devemos pensar em pé de igualdade os efeitos da estrutu
cada modo de produção e os fenômenos de transição, situando-os
er
no tempo único que serve de quadro ou de suporte comum a qualqu
ecer
determinação histórica possível. Não temos o direito de estabel
efeitos
diferenças de princípios ou de método entre as análises dos
outro,
de um modo de produção, e as da transição de um modo a
pode-
que se sucedem ou coincidem no quadro desse tempo, e não
s da “es-
mos distinguir os movimentos a não ser por determinaçõe
uidade,
trutura”” desse tempo: longa duração, curta duração, contin
sem
intermitência etc. O tempo da periodização é, pois, um tempo
s
diversidade verdadeira possível: as determinações. suplementare
que são inseridas no curso de uma sequência a histórica, por exem-
a outro,
plo, no intervalo das transições de um modo de produção
pertencem ao mesmo tempo que eles, e o movimento da produção de-
las é comun.

Uma leitura superficial de Marx enseja o perigo, aliás, de não


dissipar as formas dessa ilusão, caso se contente com tomar os dife-
rentes “tempos” implicados na análise de O Capital por outros tan-
tos aspectos descritivos ou determinações subordinadas do tempo em
geral. Poder-se-á então tentar a operação fundamental cuja possibi-
lidade está implicada na teoria ideológica do tempo: a inserção dos
diferentes tempos uns nos outros, Poder-se-á inscrever os tempos seg-
mentados (tempo de trabalho, tempo de produção, tempo de circu-
lação) em ciclos (processo cíclico do'capital); esses ciclos por sua vez
serão necessariamente ciclos complexos, ciclos de ciclos, em virtude

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260 LERR “O CAPITAL”

da velocidade desigual de rotação dos diferentes elementos do capi-


tal, mas no seu todo poderão por sua vez ser inseridos no movimen-
to geral da reprodução (acumulação) capitalista, que Marx descreve
após Sismondi como uma espiral, e enfim essa “espiral” manifestar4
uma tendência geral, uma orientação que é a mesma da transição de
um modo de produção a outro, da sucessão dos modos de produção
e da periodização. Numa leitura como essa, a harmonização dos di-
ferentes “tempos” e a imbricação das suas formas não constituirão
evidentemente dificuldade alguma de princípio, estando
já a sua pos-
sibilidade inscrita na unicidade do tempo em geral que serve de su-
porte a todos esses movimentos. As únicas dificuldades são de apli-
cação, na identificação das fases e na previsão das transições.

O mais notável de uma leitura como essa - que não é de minha


parte puro artifício polêmico de exposição, como veremos - é que
ela implica necessariamente que cada “momento” do tempo seja si-
multaneamente pensado como uma determinação de todos os tem-
pos intermediários que foram assim inseridos uns nos outros - que
essa determinação seja imediata ou pelo contrário simplesmente me-
diata. E para ir diretamente ao extremo dessa conseqiiência, é com
todo rigor que, nessa concepção, se determinará um tempo dado du-
rante o qual o trabalhador aplica a sua força de trabalho como certa
quantidade de trabalho social, um momento do ciclo do processo de
produção (em que o capital existe sob a forma de capital produtivo),
um momento da reprodução do capital social (da acumulação capita-
lista), e finalmente um momento da história do modo de produção
capitalista (que tende à sua transformação, por mais distante que es-
teja).

Com base em tal leitura ideológica é que se torna possível ca-


racterizar toda a teoria marxista da estrutura econômica como uma
dinâmica. Para tentar contrapor Marx à economia política clássica e
moderna, situando-os ao mesmo tempo num só terreno, atribuindo-
lhes um objeto “econômico”, teve-se assim que retomar esse concet-
to, e fazer de Marx um dos introdutores, e o principal talvez, da teo-
ria “dinâmica” em economia política (veja-se, por exemplo, Gran-
ger, Méthodologie Economique). Assim fazendo, pôde-se mostrar na
economia clássica e neoclássica um pensamento do equilíbrio econo-
mico, isto é, da estática das relações da estrutura econômica; pelo
contrário, em Marx, o estudo do equilíbrio jumais passaria de um
momento provisório, de alcance operatório, uma simplificação para
fins de exposição; o objeto essencial da análise de Marx seria o tem-
po da evolução da estrutura econômica, analisado em componentes
sucessivos que são os diferentes “tempos” de O Capital:

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MATERIALISMO HISTÓRICO 261

Quanto ao objeto particular do estudo marxista = à produção capi-


talista =, apresenta-se necessariamente como um processo dinâmico. O
objeto do primeiro livro de O Capital é u acumulação capitalista. A noção
de um equilíbrio estático é evidentemente inadequada, à priori, para des-
crever o fenômeno. A “reprodução simples" do capital é já um processo
temporal; mas apenas uma primeira abstração. O sistema caracteriza-se
precisamente pela “reprodução numa escala progressiva”, o aumento e a
metamorfose qualitativa continua do capital, mediante acumulação da
mais-valia. As crises, sob as suas formas diversas, aparecem como uma
doença crônica do sistema, e não como acasos. O quadro total du realida-
de econômica acha-se pois totalmente dinamizado (Gilles Gaston Granger.
Meéthodologie Economique, p. 98).

Em uma interpretação como essa, aparecendo por sua vez a di-


nâmica do sistema capitalista como um momento, aspecto local da
“afirmação do caráter relativo e evolutivo das leis da economia”,
verificamos a estrutura de inserção dos tempos que esbocei anterior-
mente. Os conceitos de Aistória e dinâmica tornam-se então termos
de uma palavra composta, um popular (o de histórica) e o outro eru-
dito (o de dinâmica), dado que o segundo exprimiria muito exata-
mente a determinação do movimento histórico a partir de uma es-
trutura. Seria então possível juntar a esses dois termos o de diacro-
nia, que não proporcionaria aqui nenhum conhecimento novo, ex-
primindo apenas a forma da temporalidade linear peculiar que está
implicada na identificação dos dois termos precedentes.
Mas, em realidade, tal leitura de Marx ignora completamente o
modo de constituição dos conceitos da temporalidade e da história
na teoria de O Capital. Esses conceitos foram retomados (ou suben-
tendidos) no sentido usual, isto é, no emprego ideológico que deles
se faz, num texto como o Prefácio da Contribuição, a partir do qual
iniciamos o nosso estudo; eles têm apenas a função de balizar e de-
terminar um campo teórico ainda não pensado em sua estrutura. Mas
nas análises de O Capital, como no-lo mostrou o estudo da acumula-
ção primitiva e da tendência do modo de produção, eles são produzi-
dos separada e diferencialmente; a unidade deles, em vez de ser pres-
suposta numa concepção sempre já dada do tempo em geral, deve
ser elaborada a partir de uma diversidade inicial que reflete a com-
plexidade do todo analisado, Pode-se sobre essa questão generalizar
a maneira como Marx coloca o problema da unidade dos diferentes
ciclos dos capitais individuais num ciclo complexo do capital social:
essa unidade deve ser elaborada como um “entrelaçamento” cuja
natureza é a princípio problemática, Sobre a questão, escreve Marx:

Vê-se assim que a questão de saber como os diversos elementos do


capital social total, em relação ao qual os capitais individuais são apenas
componentes de função autônoma, se substituem mutuamente no pro-

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LER “O CAPITALS
262

cesso de circulação - tanto do ponto de vista do capital quanto do da


mais-valia - não se resolve pelo estudo dos simples entrelaçamentos
de me
tamorfoses na circulação das mercadorias que são comuns ás gestões da
circulação do capital e a qualquer circulação de mercadorias: impõe-se
aqui outro método de exame. Até aqui, contentou-se sobre o assunto com
frases que, analisadas de perto, só contêm idéias vagas tomadas de
boa fé
aos entrelaçamentos de metamorfoses que são próprias de qualquer cir-
culação de mercadorias (O Capital, IV, 106).

Sabe-se que esse “outro método de exame”, que constitui pro-


priamente a análise da reprodução do capital social total, chega ao
resultado paradoxal de uma estrutura sincrônica da relação entre os
diferentes setores da produção social, em que a forma própria do ci-
clo desapareceu completamente. No entanto, só ela permite pensar o
entrelaçamento dos diferentes ciclos de produção individuais. Igual-
mente, a unidade complexa dos diferentes “tempos” da análise his-
tórica, os que dependem da permanência das relações sociais e aque-
les em que se inscreve a transformação das relações sociais, é a
princípio problemática: deve ser construída por “outro método de
exame”..
A relação de dependência teórica entre os conceitos do tempo e
da história acha-se assim invertida em comparação com a forma pre-
cedente, que pertence à história empirista, ou hegeliana, ou a uma
leitura de O Capital que reintroduz implicitamente o empirismo ou
o hegelianismo. Em vez de as estruturas da história dependerem das
estruturas do tempo, são as estruturas da temporalidade que depen-
dem das estruturas da história. As estruturas da temporalidade, e
suas diferenças específicas, são produzidas no processo de constitui-
ção do conceito de história, como outras tantas determinações neces-
sárias do seu objeto. Assim, a definição da temporalidade e de suas
formas variadas torna-se explicitamente necessária; igualmente, à
necessidade de pensar a relação (o acordo) dos diferentes movimen-
tos e dos diferentes tempos torna-se uma necessidade fundamental
para a teoria,
ser Na teoria de Marx, um conceito sintético do tempo jamais pode
um pré-dado, mas apenas um resultado. As análises que pre
dem, nesta dissertação, nos permitem antecipar, em certa medida,

o o porá O en nat
quanto a esse resultado, e propor uma definição diferencial dos con-

constituem à A Enc a certo modo de produção ea tuição de


uma insro minto COINA deve ser pensada como à sopa nósito
mÉdo de miolos eórica: € o que Marx reflete, a , io À ESSA
sincronia err capitalista, no conceito de repro O pró-
bros do dn necessariamente a análise de todos os € ois, O
e ra do modo de produção. Reservaremos, Poi%

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MATERIALISMO HISTÓRICO 263

conceito de diacronia ao tempo da transição de um modo de produ-


ção a outro, isto é, tempo determinado pela substituição e transfor-
mação das relações de produção que constituem a dupla articulação
da estrutura, Aparece assim o fato de que as “gencalogias” contidas
na análise da acumulação primitiva são elementos de análise diacró-
nica: e assim acha-se fundada, independentemente do seu grau de
acabamento teórico, a diferença de problemática e métodos entre os
capítulos de O Capjtal dedicados à acumulação primitiva, e todos os
demais, para além de uma simples diferença de aspecto ou de forma
literária. Essa diferença é consegliência da distinção rigorosa entre a
“sincronia” e a “diacronia”, e no que precede vimos outro exemplo
dela, sobre o qual voltarei a falar: no momento em que analisei a
forma das duas relações (propriedade, “apropriação real”) próprias
do modo de produção capitalista e sua relação, verificou-se uma
“defasagem cronológica” na constituição dessas duas formas, a for-
ma capitalista da propriedade (“relações capitalistas de produção”)
precedendo cronologicamente a forma capitalista da apropriação
real (“forças produtivas do capitalismo”); essa defasagem foi refleti-
da por Marx na distinção da ''subsunção formal” do trabalho sob o
capital e sua “subsunção real”. Observei então que essa defasagem
cronológica era como tal suprimida na análise sincrônica da estrutu-
ra do modo de produção, que ela era então indiferente à teoria. De
fato, essa defasagem, que desaparecia então pura e simplesmente, só
pode ser pensada numa teoria da diacronia; constitui um problema
pertinente para a análise diacrônica (deve-se notar aqui que as ex-
pressões “análise diacrônica”, “teoria diacrônica” não são perfeita-
mente rigorosas; seria preferível dizer “análise (ou teoria) da diacro-
nia”, Porque, se tomarmos os dois termos sincronia e diacronia no
sentido que proponho aqui, a expressão “teoria diacrônica” não te-
rá sentido algum, propriamente falando: qualquer téoria é sincrôni-
ca na medida em que expõe um conjunto sistemático de determina-
ções conceptuais, Na dissertação precedente, Althusser criticou a
distinção sincronia-diacronia na medida em que implica uma corre-
lação de objetos ou aspectos de um mesmo objeto, mostrando como
essa distinção retomada de fato à estrutura empirista (e hegeliana)
do tempo, em que o diacrônico é tão-só o transformar-se do presen-
te (“sincrônico”). Aparece imediatemente o fato de que, no emprego
aqui proposto, não pode ser assim, dado que a sincronia não é um
presente real contemporâneo a si, mas O presente da análise teórica
em que todas as suas determinações são dadas. Essa definição ex-
cluí, pois, toda correlação dos dois conceitos, um dos quais designa a
estrutura do processo de pensamento, ao passo que o outro designa
um objeto particular, relativamentz autônomo, da análise, e só por
extensão o seu conhecimento.

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ER “O CAPITAL”
264 LER

Por seu turno, a análise sincrônica do modo de produção impli-


ca a colocação em evidência de vários conceitos de “tempo” que di-
isso direta
ferem funcionalmente. Nem todos esses tempos serão por
e imediatamente históricos: com efeito, não é a partir do movimento
histórico de conjunto que eles são construídos, mas inteiramente in-
dependentes dele, € independentemente uns dos outros. Desse mo-
do, o tempo de trabalho social (que mede o valor produzido) é cons-
truído a partir da distinção do trabalho socialmente necessário e do
trabalho socialmente não-necessário, que depende a cada momento
da produtividade do trabalho e da proporção na qual o trabalho so-
cial é distribuído entre os diversos ramos da produção (veja-se O
Capital, 1, 59 ss., e Histoire des doctrines économiques, 1, 292-294).
Não coincide assim de modo algum com o tempo empiricamente ve-
rificável durante o qual um operário trabalha. Do mesmo modo o
tempo cíclico da rotação do capital, com os seus diferentes momen-
tos (tempo de produção, tempo de circulação) e seus efeitos próprios
(extração regular de capital-dinheiro, modificação da taxa de lucro),
é construído a partir das metamorfoses do capital e da distinção en-
tre capital fixo e capital circulante.

Finalmente, do mesmo modo a análise da tendência do modo


de produção capitalista produz o conceito da dependência do pro-
gresso das forças produtivas em relação à acumulação do capital, e
portanto o conceito da temporalidade própria do desenvolvimento
das forças produtivas no modo de produção capitalista. Só esse mo-
vimento pode ser chamado, como o propus, de dinâmica, isto é, mo-
vimento de desenvolvimento interior à estrutura e suficientemente
determinado por ela (o movimento de acumulação), efetuando-se
segundo um ritmo e velocidade próprios determinados pela estrutu-
ra, possuindo uma grientação necessária irreversível, e conservando
(reproduzindo) indefinidamente em outra escala as propriedades da
estrutura, O ritmo próprio da acumulação capitalista inscreve-se no
ciclo das crises, ao passo que a sua velocidade própria exprime a “ li-
mitação” do desenvolvimento das forças produtivas, simultanea-
mente, como o diz Marx, acelerado e retardado, isto é, a limitação
recíproca das duas relações articuladas na estrutura (“forças produ-
tivas , relações de produção capitalistas), A orientação necessária
do movimento consiste no aumento do capital constante proporcio-
nalmente ao capital variável (da produção dos meios de produção
proporcionalmente à produção dos meios de consumo). A conserva-
ção das propriedades da estrutura fica sobremodo posta em evidên-
dd ne ada de extensão do mercado: um dos meios emprega-
pelo capitalista ou um conjunto de capitalistas para contrariar à

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MATERIALISMO HISTÓRICO 265

baixa da taxa de lucro consiste em ampliar a área do mercado (pelo


comércio “externo”):
Essa contradição interna (da produção com o consumo) procura
uma solução na ampliação do campo externo da produção. Porém, quan-
to mais a força produtiva se desenvolve, tanto mais entra em conflito
com a base estreita sobre a qual se fundam as relações de consumo... (O
Capital, VI, 257-258).

Nessa aventura “externa”, a produção capitalista depara sem-


pre a sua própria limitação interna, isto é, não deixa de ser determi-
nada pela sua estrutura própria.
Só no tempo dessa dinâmica pode ser determinada a “idade”
da produção capitalista, de um de seus ramos ou do conjunto de ra-
mos da produção: essa idade se avalia precisamente pelo nível da re-
lação entre o capital constante e o capital variável, isto é, na compo-
sição orgânica interna do capital:

É evidente que, quanto mais avançada a idade da produção capitalis-


ta, maior será a massa de numerário acumulado de todas as partes € mais
fraca a proporção que a produção nova de ouro acrescenta todos os anos
a esse volume, etc. (O Capital, V, 120).

Esse ponto é importantíssimo, porque mostra que só no “tem-


po” da dinâmica - que não é, como eu já disse, imediatamente o
tempo da história ? - que é possível determinar e avaliar adiantamen-
tos ou atrasos de desenvolvimento; de fato, só nesse tempo interno

se entendermos por
2: Nem mesmo, evidentemente, o tempo da história econômica, E
do modo de produção.
isso a história relativamente autônoma da base econômica
a, que trata das formações
isso por duas razões principais: primeiramente, tal históri adas por vários
domin
sociais reais-concretas, estuda sempre estruturas econômicas pela análise teó-
de produção. Não trata, pois, das "tendê ncias" ! determ inadas
modos
composição das várias ten-
rica dos modos de produção isolados, mas dos efeitos de
da presente análise, e só
dências. Esse problema considerável não pertence ao escopo
transição") de modo parcial.
é enfocado no próximo parágrafo (sobre as "fases de
s aqui não é, como se vê,
Em segundo lugar, a “idade” da produção de que falamo
da produção capitalista:
uma característica de cronologia, não indica uma antigilidade “mercados”) eco-
dado que se trata de uma idade comparada entre várias áreas (ou vem dos efeitos
s ao modo de produção capital ista, cuja import ância
nômicas sujeita
acarreta de uma região a
que uma desigualdade de composição orgânica do capital
a da análise , vai tratar-se de uma
outra, ou de um setor a outro. Segundo a sutilez orgânica
sição
composição orgânica média, ou de uma análise diferenciada da compo efeitos de do-
por ramos de produção: enfocamos aqui então o estudo dos
do capital
sição orgânica
minação e de desenvolvimento desigual que a desigualdade de compo
Indico-lhe
implica entre capitais em concorrência, Tal não é nosso propósito aqui.
apenas a possibilidade.

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LER “O CAPITAL”
266

orientado é que podem ser pensadas desigualdades históricas de de-


senvolvimento como simples defasagens temporais:

O que se aplica a diversos estágios de desenvolvimento sucessivos num


país pode aplicar-se também a estágios de desenvolvimento diferentes exis-
tentes simultânea e paralelamente nesses diferentes países. No país não-
desenvolvido (unentwickelt) em que a primeira composição do capital re-
presenta a média, a taxa de lucro geral seria de 66 2/3%, ao passo que se-
ria de 20%, no país em que a produção estiver no estágio bem mais eleva-
do, o segundo... poderia haver supressão e mesmo inversão da diferença
que separa as duas taxas de lucro nacionais, se, no país menos desenvolvido,
o trabalho fosse menos produtivo; o trabalhador deveria dedicar parte
maior do seu tempo à reprodução dos seus próprios meios de subsistência
ou de seu valor; ele forneceria menos sobretrabalho (O Capital, VI, 228).

As consequências dessa determinação diferencial do tempo, e


da distinção entre o tempo da dinâmica e o tempo da história em ge-
ral, sobre a problemática atual do *'subdesenvolvimento” (que é um
lugar privilegiado de todas as confusões teóricas) não podem ser ex-
postas aqui; pelo menos, o que precede permite dar a sentir a sua im-
portância' crítica.
Assim como os precedentes, esse “tempo” da dinâmica (da ten-
dência) é determinado na análise sincrônica do modo de produção.
A distinção entre dinâmica e diacronia é, pois, rigorosa, e a primeira
não pode aparecer como determinação no campo da segunda, onde
não é pertinente sob a forma em que Marx a analisa. Pode-se facil-
mente esclarecer essa distinção mediante um paradoxo tomado à
análise das sociedades “sem história” (esta expressão, quêrrigorosa-
mente falando, não tem sentido. algum, designando estruturas so-
ciais nas quais a dinâmica aparece sob a figura especial de não-
desenvolvimento, comq as comunidades indígenas de que fala Marx
em O Capital, 11, 46-48): o acontecimento constituído pelo encontro
dessas sociedades com as sociedades “ocidentais” em vias de passar
a capitalismo (na conquista, colonização ou diversas formas de re-
de aaa pertence evidentemente à diacronia dessas forietA”
for nácão HE etermina - brutal ou mais lentamente - uma rd
mente Perante fhodo de produção: mas não pertence Ave Ro
clans DES essas sociedades. Esse acontecimento da istó á
do Sua dinéies e tempo da sua diacronia sem se produzir no temp É
4. Caso-limite que põe em evidência a diferença con
ceptual dos dois tempos, e a necessidade de pensar a sua articulação.
Impõe-se pois, finalmente, situar o conceito de história em rela-
id Esses diferentes conceitos: devemos, por exemplo, assimilar
ceito de história ao da diacronia como lembrança da proble-

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MATERIALISMO HISTÓRICO 267

mática antiga da periodização? Poderemos dizer que “a história” é


essa diacronia cujo problema teórico fundamental é a análise dos
modos de transição de uma estrutura de produção a outra? Não, sem
dúvida, visto que essa problemática antiga foi agora transformada.
Ela não mais se define pela necessidade de “recortar” o tempo li-
near, O que supõe a priori esse tempo de referência. A questão é ago-
ra pensar teoricamente a essência dos períodos de transição nas suas
formas específicas e a variação dessas formas. O problema da “pe-
riodização” no sentido estrito foi portanto suprimido, ou antes, dei-
xou de pertencer ao momento da demonstração científica, ao que
Marx chama de ordem de exposição (somente a exposição é a ciên-
cia): a periodização enquanto periodização é no máximo um mo-
mento da investigação, isto é, um momento da crítica preliminar dos
materiais teóricos e suas interpretações. O conceito de história não
é, pois, idêntico a qualquer dos momentos particulares que são pro-
duzidos na teoria, para pensar as formas diferenciais do tempo. O
conceito de história em geral, não-especificado, é simplesmente a de-
signação de um problema constitutivo da “teoria da história” (do
materialismo histórico): designa essa teoria no seu todo como o lu-
gar do problema da articulação dos tempos históricos diferentes e
variações dessa articulação. Essa articulação nada mais tem a ver
com o modelo simples da inserção dos tempos uns nos outros, ela
verifica as coincidências não como evidências, mas como problemas:
assim, a transição de um modo de produção a outro pode aparecer
da
como o momento de uma colisão, ou de uma trama, dos tempos
etc.
estrutura econômica, da luta política de classes, da ideologia,
o
Trata-se de descobrir como cada um desses tempos, por exemplo,
tempo da “tendência” do modo de produção, converte-se em tempo
histórico.

ão própria de-
Mas se o conceito geral de história tem por funç
o ele não
signar um problema constitutivo da teoria da história, entã
da história.
pertence, contrariamente aos precedentes,a essa teoria
da teoria da histó-
E, de fato, o conceito de história não é um conceito
ito da biologia.
ria tanto quanto o conceito de "vida"! não é um conce
dessas duas ciên-
Esses conceitos pertencem apenas à epistemologia
dos cientistas para
cias, e, enquanto conceitos “práticos”, à prática
designar e balizar o campo dessa prática.
nsição
4. Característica das Fases de Tra
encem
Eu só poderei esboçar aqui alguns dos conceitos que pert
dos perío-
à teoria da *'diacronia” e que permitem pensar a natureza
dos de transição de um modo de produção a outro. Com efeito,

et ris cx sestões ENTE RT AV TE TIPS e ECA 2 0 CR mn na

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LER “O CAPITAL
268

Marx longe está, como vimos, de haver dedicado a esse segundo mo-
mento da teoria da história o mesmo esforço teórico que dedicou ao
primeiro. A esta altura, o meu único objetivo é dar conta do que já
foi feito. ay
A análise da Acumulação primitiva pertence bem ao campo do
estudo diacrônico, mas não, em si mesma, à definição dos períodos
de transição (ao capitalismo). De fato, a análise da acumulação pri-
mitiva, da origem do modo de produção capitalista, efetua uma ge-
nealogia elemento por elemento que prossegue no período de transi-
ção, mas que remonta num mesmo movimento ao seio do modo de
produção anterior. Os esboços de definição que se lhe podem tomar
devem, pois, referir-se a outra análise, que não seja a das origens,
mas a dos começos do modo de produção capitalista, e que por con-
seguinte não se faz elemento por elemento, mas do ponto de vista da
estrutura inteira. Sobretudo no estudo da manufatura possuímos um
exemplo dessa análise dos começos. As formas de passagem são de
fato por sua vez necessariamente modos de produção.
Na primeira parte deste ensaio, ao estudar a manufatura como
certa forma da relação de apropriação real, como certa forma das
“forças produtivas”, deixei de lado o problema colocado pela defa-
sagem (décalage) cronológica na constituição da estrutura de produ-
ção capitalista entre a formação das suas relações de propriedade e a
das suas “forças produtivas” específicas. Como mostrei, este proble-
ma não pertence ao estudo da estrutura do modo de produção. Por
outro lado, essa defasagem constitui a essência da manufatura como
forma de passagem. Os conceitos que Marx emprega para designar
essa defasagem são os de ''subsunção real” e ''subsunção formal”
(do trabalho sob o capital). A “'forma”, que começa com a forma do
trabalho domiciliar por conta de um capitalista mercantil, e culmina
com à revolução industrial, abrange toda a história do que Marx
chama de “manufatura”,
Na “subsunção real” da indústria mecanizada, a pertinência
do trabalhador ao capital é duplamente determinada: por um lado ele
não possui 08 meios materiais de trabalhar por sua conta (a proprie-
dade dos meios de produção); por outro, a forma das “forças produ-
livas” lhe retira a capacidade de pôr em funcionamento sozinho,
fora de um processo de trabalho cooperativo organizado e controla-
dba e pre uoso sociais, A dupla determinação põe em ui
cairia Ro og, na forma das duas relações que constituen 2
kerizadas emp exa do modo de produção; podem ambas ser araça
ção. O que e ATE AO “do trabalhador e dos meios de pro A
dos dei re a a dizer que elas recortam do meámo mora
e portes; determinam para o trabalhador, os metos é”
são, é para o não-trabalhador, formas de individualidade que

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MATERIALISMO HISTÓRICO 269

se superpõem. Os trabalhadores que estão, no processo de produ-


ção, numa relação de não-propriedade absoluta com os meios de
produção, constituem um coletivo que recobre o “trabalhador cole-
tivo” capaz de pôr em ação os meios de produção “socializados” da
indústria moderna e com isso apropriar-se realmente da natureza
(os objetos de trabalho). Reencontramos, pois, aqui, sob o nome de
subsunção real”, o que Marx introduzira no Prefácio da Contribul-
ção como “correspondência” entre as relações de produção e o nível
das forças produtivas. Podemos portanto elucidar em que sentido se
deve entender o termo “correspondência”. Dado que as duas rela-
ções entre as quais há homologia pertencem ambas ao mesmo nível,
constituindo a complexidade da estrutura de produção, essa “cor-
respondência”” não pode ser uma relação de tradução ou de reprodu-
ção de uma pela outra (da forma das forças produtivas pela das rela-
ções de produção): não é uma das duas que é “'subsumida”, é o tra-
balho que é “subsumido” sob o capital, e essa subsunção é “real”
quando assim duplamente determinada. A correspondência atém-
se, pois, inteiramente ao recorte peculiar dos “suportes” da estrutu-
ra de produção, e ao que chamei antes de limitação recíproca de uma
relação por outra. Ao mesmo tempo aparece o fato de que essa cor-
respondência é em sua essência completamente diversa de qualquer
“correspondência” entre diferentes níveis da estrutura social: ela se
estabelece na estrutura de um nível particular (a produção) e depen-
de completamente dela.

Na “subsunção formal”, pelo contrário, a pertinência do traba-


lhador ao capital só é determinada pela sua não-propriedade abso-
luta dos meios de produção, mas de modo nenhum pela forma das
forças produtivas que são ainda organizadas segundo os princípios
do ofício. O retorno ao ofício, para cada trabalhador, parece não es-
do
tar excluído. É por essa razão que. Marx afirma que a pertinência
trabalhador ao capital é aqui ainda “casual”:
tem uma ca-
Nos inícios do capital, o seu comando sobre o trabalho
. O trabal hador então só tra-
racterística puramente formal e quase casual trabal ha
u a sua força; só
balha sob as ordens do capital porque vende pró-
trabal har por conta
para ele porque não tem os meios materiais para
pria (O Capital, H, 23).

de produção
Entretanto, essa falta de propriedade dos meios
al”: é resul-
para o trabalhador direto não é de modo algum “acident
Nessas condi-
tado do processo histórico da acumulação primitiva,
as formas das
ções, não há, propriamente falando, homologia entre
continuam a
duas relações: na manufatura, OS meios de produção que os
mesmo
ser manejados pelos indivíduos no sentido estrito,

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270 LER “O CAPITAL”

seus produtos parciais devam ser raunigos para constituir um objeto


de uso no mercado. Dir-se-á, pois, que a forma da “complexidade”
do modo de produção pode ser, ou a correspondência ou a não.
correspondência das duas relações, das
forças produtivas e das
relações de produção. Na forma da ndo-correspondência,
que é q
das fases de transição como a manufatura, a relação das duas rela.
ções não mais assume a forma da limitação reciproca, mas torna-se
a transformação de uma pelo efeito da outra: € O que mostra toda a
análise da manufatura e da revolução industrial, na qual a natureza
capitalista das relações de produção (a necessidade de criar a mais-
valia sob forma de mais-valia relativa) determina e regula
a transi-
ção das forças produtivas à sua forma especificamente capitalista
(a
revolução industrial aparece como método de formação de mais-
valia relativa para além de qualquer limite quantitativo determinado
de antemão). A “reprodução” dessa complexidade específica
é a re-
produção desse efeito de uma relação sobre a outra.

Aparece assim o fato de que, no caso da correspondência


ou no
da não-correspondência, a relação das duas relações jamai
s pode ser
analisada em termos de transposição, de tradução
(mesmo deforma-
. da) de uma na outra, mas em termos de eficácia e
de modo de eficácia.
Num caso estamos diante da limitação recíproca da eficá
cia das
duas relações, e no outro diante da transformação
de uma pela efi-
cacia da outra:

Uma magnitude mínima de capital nas mãos de particulares apre-


senta-se agora a nós sob aspecto inteiramente diverso; ela é a
concentra-
ção de riqueza necessitada para a transformação; ela torna-se a base ma-
terial das transformações que o modo de produção vai sofrer, deve-se en-
tender aqui “modo de produção” no sentido restrito de “forma das for-
sas produtivas” (O Capital, 11, 23).

O que se chamou algumas vezes de “lei de correspondência”


entre as forças produtivas e as relações de produção seria, pois, de-
«p inado mais apropriadamente, como O propõe Ch. Bettelheim,
lei de correspondência ou de não-correspondência necessária entre
às relações de produção
cadres Socio-économiques e eto Vorganisat
caráter das forças produtivas” (em Les
ion de la planification sociale,
Eroblêmes de Planification”, V. Ecole des Huntes Etudes, 1965).
--Se-la assim
que a “lei de correspondência” tem por objeto pró-
Ee a determinação de efeitos no interior da estrutura de produção.
são cooº Variado dessa determinação, e não uma
relação de exp
do que constitui tão-só o inverso de uma causalidad e mecânica.
di * da forma dessa correspondência interna
da estrutura de ta
são que depende por sua vez o modo de “correspondência” ent

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MATERIALISMO HISTÓRICO 271

os diferentes níveis da estrutura social, que mais propriamente se cha-


mou de modo de articulação desses níveis. No que precede, já verifi-
camos essa articulação sob duas formas: de uma parte, na determi-
nação da “última instância” determinante da estrutura social, que
depende da combinação própria ao modo de produção considerado;
de outra parte, a propósito da forma das forças produtivas próprias
ao capital e do modo de intervenção da ciência em sua história,
como a determinação dos limites nos quais o efeito de uma prática
pode modificar os efeitos de uma outra de que é relativamente autô-
noma. Assim, o modo de intervenção da ciência na prática da pro-
dução econômica é determinado pela nova forma própria das “for-
ças produtivas” (unidade dos meios com o objeto de trabalho). A
forma particular da correspondência depende da estrutura das duas
práticas (prática de produção, prática teórica): ela assume aqui a
forma da aplicação da ciência, nas condições determinadas pela es-
trutura econômica.
Podemos generalizar esse tipo de relação entre duas instâncias
relativamente autônomas, que se verifica por exemplo na relação da
prática econômica com a prática política, sob as formas da luta de
classes, do direito e do Estado. As indicações de Marx são aqui mui-
to mais precisas, embora O Capital não contenha, por si mesmo,
uma teoria da luta de classes, do direito ou do Estado. No caso tam-
bém, a correspondência é analisada como o modo de intervenção de
uma prática nos limites determinados por uma outra. O mesmo
acontece com a intervenção da luta de classes nos limites determina-
dos pela estrutura econômica: nos capítulos sobre a jornada de tra-
balho e sobre o salário, Marx mostra que essas magnitudes estão su-
jeitas a uma variação que não é determinada na estrutura, € depende
de uma pura e simples relação de forças. Mas a variação só ocorre
em certos limites (Grenzen) que são fixados na estrutura: ela possui
assim uma autonomia apenas relativa. O mesmo ocorre com a inter-
venção do direito e do Estado na prática econômica, que Marx ana-
lisa com base no exemplo da legislação fabril: a intervenção do Esta-
do é duplamente determinada, por sua forma de generalidade, que
depende da estrutura particular do direito, e por seus efeitos que são
ditados pelas necessidades da própria prática econômica (as leis
sobre a família e a educação regem o trabalho de crianças, etc).
Neste caso também não encontramos uma relação de transposi-
ção, de tradução ou expressão simples entre as diversas instâncias da
estrutura social, A correspondência delas só pode ser pensada com
base em sua autonomia relativa, sua estrutura própria, como o síste-
ma das intervenções desse tipo de uma prática numa outra (nada
mais faço aqui do que designar o lugar de um problema teórico, e

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272 LER “O CAPITAL”

não produzir um conhecimento). Essas intervenções são do tipo das


que acabam de ser lembradas, e por conseguinte em princípio não.
reversíveis: as formas da intervenção do direito na prática econômica
não são idênticas às formas da intervenção da prática econômica na
prática jurídica, isto é, aos efeítos que pode ter, no sistema do direi.
to, e em virtude da sua própria sistematicidade (que constitui tam-
bém um sistema de “limites” internos) uma transformação ditada
pela prática econômica. E do mesmo modo, é claro que a luta de
classes não se reduz à luta pelo salário e pela jornada de trabalho,
que são apenas um momento dela (a autonomização e a consídera-
ção exclusiva desse momento, no seio da prática política da classe
trabalhadora, são próprias do *''economicismo””, que precisamente
pretende reduzir todas as instâncias não-econômicas da estrutura
social a puros e simples reflexos, transposições ou fenômenos da
base econômica). A “correspondência” dos níveis é assim não uma
relação simples, mas um conjunto complexo de intervenções.

Podemos então voltar aos problemas da transição de um modo


de produção a outro, com base na análise diferencial da intervenção
do Estado, do direito e da forças política no modo de produção
constituído e na fase de transição. Essa análise diferencial está im-
plicitamente contida nas análises da legislação fabril (O Capital, II,
159-178) e da “legislação sanguinária” que pertence à acumulação
primitiva (O Capital, II, 175-183). Em vez de uma intervenção regi-
da pelos limites do modo de produção, a acumulação primitiva mos-
tra-nos uma intervenção da prática política, sob as suas diferentes
formas, que tem por resultado transformar e fixar os limites do
modo de produção:

A burguesia nascente não poderia dispensar a intervenção constante


do Estado; ela serve-se dele para “regular” o salário, isto é, para o conter
no nível conveniente, para prolongar a jornada de trabalho e manter O
próprio trabalhador no grau de dependência desejado. Trata-se de um
momento essencial da acumulação primitiva (LI, 179).
Alguns (dos diferentes métodos de acumulação primitiva suscita-
dos pela era capitalista) repousam no emprego da força bruta, mas to-
Os sem exceção exploram o poder do Estado, a força concentrada e or-
ganizada da sociedade a fim de acelerar violentamente a transição da or-
dem econômica feudal à ordem econômica capitalista e abreviar as fases
de transição. E, com efeito, a força é a parteira de toda sociedade velha
em trabalho, A força é um agente econômico (III,
193).
E No período de transição, as formas do direito, da política do
stado, não estão, como antes, adaptadas (articuladas nos limites
E óprios da estrutura de produção), mas defasadas em relação à es-
rutura econômica: as análises da acumulação primitiva mostram,

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MATERIALISMO HISTÓRICO 273

ao mesmo tempo que a força como agente eco


nômico,a precessão
| do direito e das formas do Estado sobre as formas
da estrutura eco-
nômica capitalista. Traduzir-se-á esssa defasage
m dizendo-se que
de novo, a correspondência apresenta-se aqui
sob a forma da não-
correspondência entre os diferentes níveis. Em período
há “não-correspondência” porque o modo de interven de transição,
ção da práti-
ca política, em vez de conservar os limites e produzir
os seus efeitos
sob a determinação deles, os. desloca e transforma, Não há, pois
uma forma geral da correspondência dos níveis,
mas uma variação
de formas, que dependem do grau de autonomia de
uma instância
em relação a outra (e à instância econômica) e do modo
de sua inter-
venção recíproca.
Terminarei essas indicações muito esquemáticas observando
que a teoria das desfasagens (na estrutura econômica, entre as ins-
tâncias) e das formas da não-correspondência jamais é possível a
não ser por uma dupla referência à estrutura dos dois modos de pro-
dução, no sentido que foi definido no início deste ensaio. No caso da
manufatura, por exemplo, a definição da não-correspondência de-
pende da definição das formas de individualidade que são determi-
nadas no artesanato, de uma parte, e na propriedade capitalista dos
meios de produção, de outra. Do mesmo modo a compreensão da
precessão do direito exige o conhecimento das estruturas da prática
política no modo de produção anterior assim como dos elementos
da estrutura capitalista. O emprego da violência e de suas formas
suavizadas (pela intervenção do Estado e do direito) depende da for-
ma e da função da instância política na sociedade feudal.
Os períodos de transição são, pois, caracterizados, ao mesmo
tempo que pelas formas da não-correspondência, pela coexistência
de vários modos de produção. Assim, a manufatura não está apenas
em-continuidade, do ponto de vista da natureza de suas forças pro-
dutivas, com o ofício, mas pressupõe a sua permanência em certos
ramos de produção (II, 56) e inclusive ela o desenvolve ao seu lado
(II, 43; II, 57). A manufatura nunca é, pois, um modo de produção,
mas sua unidade é a coexistência e a hierarquia de dois modos de
produção, A indústria mecanizadã moderna, ao contrário, propaga-
se rapidamente de um ramo de produção a todos os demais (1, 69).
Fica claro assim que a defasagem das relações e das instâncias nos
períodos de transição apenas reflete a coexistência de dois modos de
produção (ou mais) numa única “simultaneidade”, e a dominância de
um sobre o outro, Confirma-se assim que os problemas da diacronia
devem também ser pensados na problemática de uma “sincronia”
teórica; os problemas da transição e das formas de transição de um
modo de produção a outro são os problemas de uma sincronia mais

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IR “O CAPITALS

geral que a do próprio modo de produção, englobando vários siste-


mas e as suas relações (segundo Lênin, havia na Rússia no início do
periodo de transição ao socialismo até cinco modos de produção
ados numa hie-
coexistentes, desigualmente desenvolvidos e organizde
rel açõ domina
es ção é
rarquia com dominante). A análise dessas
apenas esboçada por Marx, e constitui um dos principais campos
abertos à investigação dos seus sucessores.
8
Como se vê, o nosso ensaio desemboca em problemas abertos, e
não pode ter outra pretensão do que indicar ou formular problemas
abertos, para os quais não é possível, sem novas pesquisas aprofun-
dadas, propor solução. Nem poderia ser de outro modo, se tivermos
em mente que O Capital, sobre o qual refletimos, inaugura uma dis-
ciplina cientifica nova: isto é, abre um campo novo à pesquisa cientifi-
ca. Contrariamente ao fechamento (clóture) que constitui a estrutu-
ra de um dominio ideológico, esta abertura é típica de um campo
científico. Se o nosso ensaio tem um sentido, só poderia ser o de de-
finir, na medida do possível, a problemática teórica que instaura e
abre esse campo, o de reconhecer, identificar e formular os proble-
mas já colocados e resolvidos por Marx e, afinal, descobrir nesse
acervo, nos conceitos e formas de análises de Marx, tudo o que nos
pode permitir a identificação e a colocação de problemas novos que
se delineiam por si mesmos nas análises dos problemas
já resolvidos,
ou ganham forma no horizonte do campo já explorado por Marx. A
abertura desse campo identifica-se com a existência desses proble-
mas pendentes de resolução.

Devo acrescentar que não é por acaso se alguns desses proble-


mas, que colocamos a partir da simples leitura de O Capital, portan-
to de uma obra centenária, podem envolver diretamente, ainda hoje,
certas questões da prática econômica e política contemporâneas.
Nos problemas da prática teórica, jamais estão em causa, sob a for-
ma própria de problemas teóricos, isto é, sob a forma da produção
co conceitos que podem dar o conhecimento deles, senão os pro-
emas c us tarefas das demais práticas,

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Roger Establet:

Apresentação do Plano
ts de O Capital

Por que razão refletir sobre o plano de O Capital? Acaso não se


trata de uma obra que impõe imediatamente as suas articulações?
Ao que parece, basta ler o índice dos assuntos. Mas O Capital é obra
difícil de ler, porque nova pelos conceitos que contém e também
pela sua organização. É, pois, de prever que as dificuldades inicial-
mente encontradas pelo leitor decorrerão dessa novidade de O Capi-
tal:
- seja que o leitor reconduza a estrutura de O Capital a estrutu-
ras já arroladas e por ele conhecidas, de antemão, isto é, sob a forma
do preconceito, quanto a suas relações com o pensamento de Marx.
Assim é que lerá no cabeçalho dos volumes: livro 1, “Desenvolvi-
mento da Produção Capitalista”, livro III, “Processo de Conjunto
da Produção Capitalista”. Poderá então concluir por uma ordem
hegeliana. Mostraremos que nisso consiste a principal fonte de
contrasenso;

- seja que, “impaciente por chegar às conclusões, ansioso por


conhecer a relação dos princípios gerais com as questões imediatas
que o apaixonam” (Marx, carta a La Châtre, 18 de março de 1872,
O Capital, Ed. Sociales, t, 1, pp. 43-44), o leitor vá procurar o que
Marx tem a dizer sobre as afirmações contidas nas disciplinas “mo-
dernas” (sociologia, economia política) cuja proximidade com O

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276 LER “O CAPITAL”

Capital ele conhece de antemão, isto é, sob a forma do preconceito,


Impondo à ordem da sua leitura a ordem das suas preocupações, irá
de “modelo em modelo”, e no caso ainda, não obstante as aparên-
cias, é a novidade da obra de Marx que ele perderá de vista, não sen-
do novas as ciências que determinam a ordem das suas preocupa-
ções senão por não terem nascido mais cedo.
Por isso, é a dois textos do próprio Marx que recorreremos
para preparar uma leitura de O Capital que seja ordenada de acordo
com os seus verdadeiros encadeamentos e cortes. O primeiro texto é
extraído de O Capital, livro III (VI, 47). Na medida em que esse tex-
to deu ensejo a leituras dificeis de relacionar com a própria obra,
nós o confrontaremos com outro texto, extraído da Introdução de
1857: Contribution à la critique de I'économie politique (Ed. Sociales,
pp. 163-64).
- O texto de O Capital (livro III) e suas dificuldades
Eis o texto:
No livro I, estudamos os diversos aspectos que o processo de produ-
ção capitalista apresenta, em si, enquanto processo de produção imedia-"
to, e, nesse estudo, fizemos abstração de todos os efeitos secundários re- |
sultantes de fatores estranhos a esse processo. Mas a vida do capital '
transborda esse processo de produção imediato. No mundo real, o pro-
cesso de circulação, que foi objeto do livro II, vem completá-lo. Na tercei-
ra seção do livro II sobretudo, ao estudar o processo de circulação en-
quanto intermediário do processo social de reprodução, vimos que o pro-
cesso de produção capitalista, tomado em bloco, é a unidade do processo
de produção e do processo de circulação. Neste livro III, não se trata de.
nos derramarmos em generalidades sobre essa unidade. Trata-se, pelo
contrário, de descobrir e descrever as formas concretas às quais dá nasci-
mento o movimento do capital considerado como um todo. É sob essas for-
-mas concretas que se defrontam os capitais no seu movimento real, e as
formas que o capital assume no processo de produção imediato como no
processo de circulação são apenas suas fases particulares. As formas do
capital que vamos expor neste livro aproximam-no paulatinamente da
forma sob a qual ele se manifesta na sociedade, na sua superfície, como
se poderia dizer, na ação recíproca dos diversos capitais, na concorrência
e na consciência comum dos próprios agentes da produção.
" Esse texto, não obstante a sua aparente clareza, devida essen-
cialmente ao fato de que segue à divisão em três de O Capital, longe
está de suprimir toda dificuldade, A expressão “'na sua superfície,
poder-se-ia dizer” (poder-se-ia portanto dizer de outro modo, o que
significa que se deveria fazê-lo, se não houvesse uma grande dificul-
dade em passar de uma metáfora cômoda ao conceito rigoroso) assi-
nala bem os obstáculos objetivos encontrados pelo próprio Marx
para expor de modo científico o seu próprio trabalho científico.
Realmente, esse texto presta-se pelo menos a duas leituras que não
podem seriamente explicar a ordem de fato seguida por Marx.

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 277

a) Primeira leitura inadequada: seguindo-se do livro 1 ao livro III,


vai-se do abstrato ao real, Essa interpretação foi pela primeira vez
“formulada por Sombart e Schmidt (de acordo com o sumário crítico
da teoria deles por Engels no suplemento ao livro III de O Capital,
VI, 30) para quem a lei do valor, objeto do livro 1, é um “fato lógi-
co” ou uma “ficção necessária”. ! Nesse caso, o livro III apareceria
como o estudo, por meio do fato lógico, ou da “ficção necessária”,
“dos processos econômicos concretos, entendamos reais. Essa inter-
pretação do plano de O Capital pode prevalecer-se do texto do livro
II que citamos, sob condição de sublinhar ali os termos seguintes:

No livro |, estudamos os diversos aspectos que o processo de produ-


ção capitalista apresenta, em si, enquanto processo de produção imedia-
rios re-
to, e nesse estudo, fizemos abstração de todos os efeitos secundá
capital
sultantes de fatores estranhos a esse processo. Mas a vida do
mundo real, o proces-
transborda esse processo de produção imediato. No
terceira
so de circulação, que foi objeto do livro II, vem completá-lo. Na
ção enquan-
seção do livro II sobretudo, ao estudar o processo de circula
processo
to intermediário do processo social de reprodução, vimos que o
é a unidade do process o de re-
de produção capitalista, tomado em bloco,
se trata de der-
produção e do processo de circulação. Neste livro III, não
pelo con-
ramarmo-nos em generalidades sobre essa unidade. Trata-se,
quais dá nascimen-
trário, de descobrir e descrever as formas concretas às
formas
to o movimento de capital tomado como um todo. E sob essas
e as formas
concretas que se defrontam os capitais no seu movimento real,
como no proces-
que o capital assume no processo de produção imediato
do capital
so de circulação são apenas suas fases particulares. As formas da forma
que vamos expor neste livro aproximam-no paulatinamente se pode-
como
sob a qual ele se manifesta na sociedade, na sua superficie,
divers os capita is, na conco rrência e na
ria dizer, na ação recíproca dos
consciência comum dos próprios agentes da produção.

Assim sendo, o primeiro livro e o segundo (o s egundo menos


mais que O
queo primeiro, entretanto) seriam € não seriam na da
sobre o real;
conjunto das abstrações necessárias para a pesquisa

ud Pt perfeitamente cônscio de que a oposição ficção necessária (lei do valor) es-


neo o real (teoria do lucro) introduz em O Capital uma quebra metodológica injus-
as efe empreende nesse texto 0 restabelecimento da unidade de O Capital, Mas, em
neo demonstrar que a lei do valor e a teoria do lucro são produções teóricas do
so é E ris limita-se, com base numa argumentação histórica,a estabelecer que elas
valo almente reais, Afora o fato de que todos os argumentos invocados são contes-
oe e de que sobretudo a aplicação da lei do valor a modos de produção que são
Engels marginalmento mercantis suscita mais problemas do que resolve, o texto de
Ed Ê egaria a explicar que as categorias econômicas são expostas em O Capital
dem à a ordem em que foram historicamente determinantes, isto é, segundo a or-
ci e que Marx mais claramente expôs a inadequação (Introdução de 1857, Ed. So-
ales, p, 171).

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LER “O CAPITAL”
278

com OS soci ólogos norte-americanos, conceitos operaté.


dir-se-à: com Max Weber, tipos
rios: com OS econometristas, modelos;
ideais. ? Essas abstrações, entendamos esquematizações provisórias
permitem :
do real, só adquirem a sua validação na medida em que
esclarecer o concreto, isto é, o real que elas esquematizam, É eviden-
te que um tipo ideal, modelo, conceito operatório, Jamais se mani-
festa diretamente como tal no real, e que o movimento de validação
consiste em avaliar exatamente Os afastamentos do real em relação
ao esquema (o que permite construir um segundo , ou tornar mais
. |
preciso O primeiro).
Aplicada a O Capital, essa interpretação confirma-se por certo
número de fatos: . a CAs
A lei do valor não se aplica diretamente: há uma distância entre
uma
o valor (esquema, abstrato) e o preço (concreto, realidade); há
distância entre a taxa de mais-valia (abstrato, esquema) e a taxa de
lucro (concreto, realidade). Ora, o lugar dos esquemas é precisamen-
te, em O Capital, o livro 1; o lugar dos afastamentos, o livro III. Por-
tanto, o livro I é precisamente o lugar do abstrato, o livro III é o do
real, sendo todo O Capital o movimento de “aproximação paulati-
na” do abstrato ao real.
| Tal concepção supõe uma teoria empirista inaceitável da ciên-
cia e que, no caso presente, equivaleria a introduzir em O Capital
uma ruptura incompreensível: de fato, relacionar no modo real uma
produção teórica com uma realidade é pura fantasmagoria. Não
basta verificar afastamentos entre a realidade da qual se faz a teoria

nica ia Weber, a produção de conceitos nas ciências do homem consiste em


lação à sério = > afastamentos diferenciais que um fenômeno dado apresenta
em Fe.
AÇÃO dosios ne enômenos do mesmo tipo (a unidade do campo que permite à ae ;
dos seus pró 'astamentos é fundada na perspectiva tomada pelo autor em função
próprios valores), a unidade individual dos diferenciais sendo 4passível da
" Cc .
re PRoRs É É desse modo que procede Max Weber para elaborar O tipo ideal da

poderia Pitalista, no prefácio à Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Não se


o na
todo ao mesmo tempo utilizar: mais conscientemente a problemática
construto
implícita Ce
à
realidade, distinguir-se mais À nitida º
mente de Marx, DR delo e, diante da mesma
:
preciso : to, se à
fenômeno real é construir-lhe
Ato, se pensar um o esq uema,
prestam a Um corr princípio de esquematização (porque os fenômenos reais N O "
pio, € se é que ph Se prestam a qualquer corte): a ciência não fornece esse pra
rior, Esse exteriorEve recortar e esquematizar, é preciso que ela o adquira do ex do
'
Próprio do termo Pp econometristas, é constituído em geral pelo valor no senti
tituído de valores... Necessidade de produzir mais lucro; é, em Max Weber, con
caso como o
sentido mais nobre e também mais vago. Num
Outro, conceber E nr
iencia como esquematização do real equivale a lhe subtrair to
Problemática autô noma, O imenso mérito de Max Weber e de seus sucessores, como

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL 279

e os primeiros resultados teóricos ' para fazer a teoria desses afasta-


mentos. À teoria segue uma ordem integralmente “lógica”, que é a
ordem da construção das leis do seu objeto. Por isso os conceitos de
taxa de mais-valia e taxa de lucro são fundamentalmente do mesmo
tipo: são produções teóricas. E só podem distinguir-se no interior
dessa produção na base de relações teóricas: é necessário elaborar
primeiro à categoria da mais-valia para elaborar a categoria de lu-
cro, mas esta possui um conteúdo mais rico, porque pressupõe uma
relação com outros conceitos diferentes do de mais-valia.
Podemos tirar dessa crítica uma lição inteiramente negativa,
porém importante: a distinção empirista abstrato/real nada nos
pode ensinar sobre a ordem de O Capital. E se é aproximadamente
exato dizer que se pode reconhecer no livro III mais fenômenos fa-
cilmente balizáveis na realidade capitalista do que no livro I, esse
enunciado recai sobre os resultados, e não sobre a estrutura do mé-
todo. Ademais, esse enunciado é apenas aproximadamente exato:
tomado por conhecimento, leva a negligenciar a teoria das lutas dos
trabalhadores pelas jornadas de trabalho, fenômeno facilmente per-
ceptível na realidade histórica, que é feita desde o início do livro I;
leva finalmente à edição arbitrária de O Capital por Maximilien Ru-
bel (coleção Pléiade) que joga esses textos para o final do livro I, re-
duzindo-os assim ao papel teórico secundário de ilustração concreta
(pela realidade) dos esquemas abstratos.
b) Segunda leitura inadequada: indo do livro I ao livro III, vai-se
do microeconômico ao macroeconômico, isto é, dos modelos abstra-
tos do realmente simples aos modelos abstratos do realmente comple-
xo (essa é a teoria defendida por Maurice Godelier, num artigo im-

Raymond Aron, consiste na consciência perfeita que têm desse pressuposto. Nada
poderia contrastar melhor uma ciência dos esquemas com o marxismo. Quando, no
prefácio da Ética Protestante, Max Weber acumula todas as distâncias diferenciais da .
fo tea capitalista dando-nos a pensar, como unidade de todas essas diferenças, cer-
MERO HR racionalidade que devemos perfeitamente compreender, dado que é nossa,
duda arnia certamente a realidade de que Marx trata em O Capital, e podemos in-
io REeretad cada um dos enunciados weberianos (dado que são todos tomados,
as relações
teóricas did 8 id arx); não podemos reconhecer entre esses enunciados
diotingus Mare! por Marx e que deles fazem as leis de um mesmo objeto. O que
significa que rx de Max Weber é o caráter científico do método marxista. Isso não
significa 4 E um método weberiano não possa produzir algum conceito científico;
ser um
Método pra que um método científico, em especial o de Marx, não pode
O riano,
Prada nb a matizar” o que se acaba de dizer sob uma forma esquemática.
res”, as gala Did da Razão, zomba com razão ''dos matizes caros aos professo-
empreendime se aria só tem significação se recusarmos ao mesmo tempo qualquer
essencialmente O de esquematização como não-científico, ou melhor, se a voltarmos
e contra o seu autor.

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280 LER “O CAPITAL”

es de la méthode du Capital de Kar]


portantíssimo: “Les structur , junho de 1960).º
et Poli tique
Marx”, Economie de O Capital, a oposição prece-
Nessa inte rpre taçã o do plan o
cativa; porque está presente em
dente abstrato/real deixa de ser expliema
esqu seguinte:
cada um dos livros segundo o

Livro Livro II, 2º seção


Livro Il
Livro Il, I*e
2º seções

A firma O conjunto das firmas


Realidade cit i
G
Modelo da firma Modelo do conjunto
Teoria

noção de modelo com


“Na medida em que essa leitura utiliza a a seu objeto.
quada
mais rigor que a precedente, é ainda menos ade
dades de ser t anto menos
(Toda leitura de O Capital tem probabili íri co, tota Jmente ina-
util ize mel hor o con cei to emp
adequada quanto ho resultad o; a teoriã
seu estran
dequado, de modelo). De fato, eisimeonto
ne nh um pro ced autonômo, mas apresenta-Se
não mais possui pria
ão de es qu em as cuja ordem é imposta pela pró
sli um a suc ess
realidade. Felizmente, a realidade presta-se à teoria,
dado que S
pode discernir nela um real simples (a firma) pelo qual) sepelopod qual
meçar, e um real complexo (o conjunto real das firmas a
ver-se-á terminar,
Na pior das hi póteses, basta, para ei
rejeitar essa concepç
ão do
i
tal: a) conf ront á-la com o text o da Intro ução Geral
plano de O Capi
o Abadá
reco
' Aoem de God eli er, não deixamos de
o
seus ru e ref utução da interpretaçã icações
caçõe
ea um: os se preocupavum mai s com as upli
que os mur xis tus pri
(cientificas SP ta, Godelier teve o mérito de em eu
sozinho, a reposição ea) da teoria marxis ficação CO entre.
meiro trabalho foi eita problema do mét odo de O Capital. À retire as relações a
num tra bal ho orig inal sob
mesmo
9 valor € os preços (e u por ele s dua
essaômi s categoria,
em queconoômi
ido), mic e con
entrroe
vínculo/ mac co, mas em e
não é pensudplio cidnaadbasse m dahadisPen
tinção roe co

mos de sim
nhas , per; Isis € e de com ple xid ade lógica relativas. Essa posição coincide
com qu
c o à
ncenção que desen vol
ol ven 1 os ug
ui

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 281

à Crítica da Economia Política na qual Marx distingue completa-


mente, para definir o seu método, o processo real e o processo de
pensamento (Ed. Sociales, pp. 165-166); b) evidenciar o seu pressu-
posto fundamental, a saber, a existência de fato, de uma harmonia
preestabelecida entre a realidadt e a teoria, a qual não se poderia ex-
plicar. Entretanto, é certo que o texto de O Capital, livro III, pode
justificar essa leitura, sob condição de se sublinhar ali os elementos se-
guintes:
No livro I, estudamos os diversos aspectos que o processo de produ-
ção capitalista apresenta, em si, enquanto processo de produção imediato,
e, nesse estudo, fizemos abstração de todos os efeitos secundários resul-
tantes de fatores estranhos a esse processo. Mas a vida do capital trans-
borda esse processo de produção imediato. No mundo real, o processo de
circulação, que foi objeto do livro II, vem completá-lo. Na terceira seção .
do livro II, sobretudo, ao estudar o processo de circulação enquanto in-
termediário do processo social de reprodução, vimos que o processo de
produção capitalista, tomado em bloco, é a unidade do processo de pro-
dução e do processo de circulação. Neste livro III, não se trata de derra-
marmo-nos em generalidades sobre essa unidade. Trata-se, pelo contrá-
rio, de descobrir e descrever as formas concretas às quais dá nascimento
o movimento do capital considerado como um todo [este sublinhado do lei-
“ tor coincide aqui com o próprio Marx]. É sob essas formas concretas
que se defrontam os capitais no seu movimento real, e as formas que o ca-
pital assume no processo de produção imediato como no processo de circu-
lação são apenas suas fases particulares. As formas do capital que vamos
expor neste livro o aproximam paulatinamente da forma sob a qual ele se
manifesta na sociedade, na sua superfície, como se poderia dizer, na
ação recíproca dos diversos capitais, na concorrência e na consciência co-
mum dos próprios agentes da produção.

A leitura de Godelier é portanto possível. Acrescentemos que


se nos ativermos aos elementos do processo real sucessivamente uti-
lizados em O Capital, pelo processo de pensamento, ele adquire uma
confirmação aproximada. De fato, o livro I só toma seus exemplos
(exceto, e isso é muito importante, a teoria do salário, a teoria do
exército industrial de reserva) na empresa isolada, ao passo que O li-
vro III recorre a todos os capitalistas, à Bolsa, aos bancos, etc. Con-
servemos provisoriamente o conceito de exemplo: é claro que uma
teoria escolhe os seus exemplos em função das suas próprias necessi-
dades teóricas, que os elementos do processo real, desempenhando o
ed de exemplos, não podem determinar. E suponhamos que se
fed ao ulo de exemplo do livro 1, da firma isolada. O que Gode-
explica é;
á a se fue razões teóricas assim é, a menos que se suponha que
à Die ada não seja ao mesmo tempo - mas devido a que acaso?
*almente simples-teoricamente simples; o que nos leva a 2).

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282 L ER “O CAPITAL”
AL

2) Que Marx só utiliza da firma isolada o que basta, no nível do


livro I, ao processo de pensamento. Porque se fosse preciso pensar 0
movimento real de uma firma concreta durante determinado perío-
do, seria preciso não apenas convocar todo O Capital, mas além dis.
so elaborar novos conceitos com base naqueles que são fornecidos
por O Capital.
E se essa explicação não pode ser dada, isto se deve a razões que
vamos brevemente elucidar: em primeiro lugar, o livro 1 não tem por
objeto a firma; em seguida, se quisermos conservar a qualquer preço
a noção de modelo para falar da relação pensamento /realidade em
O Capital, será numa acepção próxima daquela que é determinada
pelos matemáticos, e não da que é utilizada pelos econometristas: é
como inverter o seu sentido.
O livro I não trata absolutamente da firma, mas de um objeto
teoricamente determinado, a saber, “uma parcela do capital social
levado à autonomia” (O Capital, livro II, t. V, p:9, e livro IH, t. VI,
p. 54). Se, pois, é preciso promover à autonomia essa parcela, é que
ela não equivale à firma real que todos sabem ser suficientemente
autônoma para não esperar de Marx uma promoção. Trata-se, pois,
de uma promoção teórica, ou resultado da divisão teórica de um ob-
jeto teórico promovido desse modo a uma autonomia teórica. Ten-
taremos elucidar teoricamente essa operação.
Resta o “modelo”: falar de modelo a propósito da firma nãoé
explicar a estrutura de O Capital, é fazer a pedagogia (isto é, uma
das pedagogias possíveis) do livro I. Eis por quê: suponhamos queà
teoria tenha podido explicar o fato de que o objeto que ela toma sejá
de fato “uma parcela do capital social promovido à autonomia »
ae lhe tenha estabelecido a definição e as leis. Seria ato
siena Dl pedagogo da teoria voltar-se para O processo ra E
x. On ou menos esta linguagem: “Os senhores con dias
políticas, Os ha abstração de seus gostos pessoais, de suas 1 Ena
tração do seu e es sabem que ele ficou riquíssimo. Figura é da
ausência de ento de especulador, e formulemos a hip ati»
àd &8 demo coral altas de preços, em suma, suponhamos que de
Ciar sobre a forma ns (com exceção daquela que AgAVO 0? : mos
- NO Momento é córica que elas têm) são iguais. cade a
converte em apo que, dono de certo montante de din EA o
exemplo de Y ou de Z produção, Eu teria podido tomar tam 6.
que a teoria
e Z. Ora pois, nessas condições, ac
a de defini
idéia dont o Só nessas condições, os senhores podem fazer UM"
em via d e Prod realidade, ao objeto do qual estamos
“responde, na
pr uzirj o conceito
: , Deixemos,
SEUS Negócios pois, X.., entregue o
E ev é .
ta, € não de, X oltemos ao nosso objeto, dado que é dele que S€ ra

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL 283

Que é, pois, um modelo? Ou se trata de um esquema do real, e


então só tem validade numa pseudociência, cuja única preocupação
é fazer uma representação aproximada do real, a fim de submetê-lo
a algumas manipulações práticas. Pois quem diz esquema diz corte,
quem diz corte diz princípio de corte, e quem diz princípio de corte
ou lhe faz a teoria ou dispensa essencialmente os esquemas, ou então
não faz a teoria e se contenta com esquemas, estando as suas verda-
deiras preocupações em outra parte. Tal é a função inteiramente
prática do “modelo” na econometria comum. Ou então o modelo é
a imagem do objeto teórico que se pode esboçar na realidade subme-
tendo-o às condições da teoria: esse é mais ou menos* o conceito
dos matemáticos. E se quisermos a todo custo nos servir dele para
falar de O Capital, deveremos ler: a firma individual é um dos mode-
los possíveis do objeto do qual livro I faz a teoria. Mas sobretudo
não se deverá dizer: o objeto do livro | é o modelo da firma. Cremos
ter estabelecido assim:
1) O que são exatamente os exemplos em cada uma das fases de
O Capital. (São modelos. Têm uma finalidade pedagógica.)
2) Que não se pode compreender a ordem das etapas a partir
das características dos exemplos. (O Capital não é uma sucessão de
modelos.)
Fa

Conclusão

O texto problemático revelou-se-nos sobretudo pelos contra-


sensos que pode permitir sobre a estrutura de O Capital. Examinare-
mos mais adiante a medida exata na qual esse texto é responsável
pelos contra-sensos dos seus leitores. Mas podemos já saber, não
obstante ele, e graças a ele:
- que a ordem de O Capital é integralmente teórica: não se vai
doa bstrato ao real, nem do real simples ao real complexo;
— que a relação esquema /realidade não explica nem a ordem de
O Capital nem cada uma de suas etapas;
— que, se a ordem é integralmente teórica, só pode depender do
conceito formal do seu objeto;

Dado que se trata apenas de ex plicar uma pedagogia


que ela ensina uma rela que só mantém com a teoria
ção necessariamente aproximada, e com isso esclarecer como
uma pedagogia pode
e nganar-se ao enunciar como leis do objeto que ela
Suas próprias leis - ensina as
contentamo-nos com definir o *'modelo" segundo uma
obra de
PU), p, vul
38;garDad
izaçã is de M, Blanché, L'Axi excelente
omatique (L"Initiation Philosophique,
satisido e casi o empre; se encontrarmos diversos sistemas
ções
de valores que
oncicaL D O das relações enunciadas pelos postulados, dar-lhe
s interpreta-
SAS Tenlioo ersas, ou, em outras palavras, escolher entre várias concre
tizações.
Zações concretas de uma axiomática são chamadas
seus modelos."

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284 LER “O CAPITAL”

- que, sendo o objeto de O Capital um modo de Produção de.


terminado, a ordem de O Capital deve depender esse ncialmente do
conceito formal de modo de produção.
Essa a razão pela qual, abandonando provisoriamente o text
difícil que acabamos de comentar em sentido contrário, voltaremos
a um parágrafo da Introdução de 1857 (Ed. Sociales, pp. 163-164)
cujo propósito é precisamente definir o conceito formal de modo de
produção.

dual

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 285

I. Apresentação de O Capital pelo Próprio Marx

2. Consideremos agora o Texto da Introdução de 1857


(E.S., pp. 163-4)
Como se sabe, a Introdução de 1857 é o texto em que Marx an-
tecipa os resultados de O Capital, e que preferiu não publicar, sem
dúvida receoso de que se tomassem as antecipações por resultados e
que fossem tomados como completamente elaborados e demonstra-
dos. Daí que se deva ler esse texto com precauções e que, na medida
em que antecipa o objeto de O Capital, ele permita também anteci-
par a estrutura desse livro, o que é a própria finalidade de uma apre-
sentação do plano,
Eiso trecho que nos interessa:
a
O resultado a que chegamos não é que a produção, a distribuição,
troca, o consumo, sejam idênticos, mas que são todos eleme ntos de uma
ão
totalidade, são todos diferenciações no seio de uma unidade. A produç
ultrapassa tanto o próprio âmbito em sua determinação antitética de si.
0 proces-
mesma como os demais momentos. É a partir dela que começa
a sobrep uja. O
so, Evidentemente, troca e consumo não podem ser o que
Mas,
mesmo se aplica à distribuição enquanto distribuição de produtos.
sua vez um mo-
enquanto distribuição dos agentes de produção, ela é por pois, um
ina,
mento da produção. Uma produção determinada determ e
determ inados ; ela rege tampo
consumo, uma distribuição, uma troca
tes momentos. Na verdade,
relações recíprocas determinadas desses diferen

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LER “O CAPITAL”
286

também a produção, sob sua forma exclusiva, é por seu turno determina.
da pelos demais momentos. Por exemplo, quando o mercado, isto é,aes-
fera da troca, se estende, o volume da produção aumenta e Opera-se nela
uma divisão muito profunda... Há ação recíproca dos diferentes momen-
tos, seja qual for a totalidade orgânica,

tes
Para os fins que temos em vista, esse trecho impõe as seguin
.
observações:
1) Estabelece que qualquer modo de produção (“abstração racio-
cinada” ou conceito formal do objeto da economia política) é uma
estrutura complexa de elementos distintos, possuindo uma dominan-
te (sobre o conceito de estrutura complexa com dominante, veja-se
L. Althusser, “Sobre a dialética materialista”, Pour Marx):
essa dominante é a produção.
Essa dominante, segundo o nosso texto, tem duas modalidades:
“por um lado, o modo de produção é a própria unidade de todos os
elementos distintos, o modo de produção é aqui definido num senti-
do amplo como o conjunto da prática econômica; por outro, o pro-
cesso de produção, no sentido restrito, a saber, como processo de
transformação de um dado natural ou já elaborado em produto aca-
bado, correspondendo a uma necessidade social determinada, é, no
interior dessa unidade, o elemento determinante em última instân-
cia.
2) Se tal é de fato o conceito formal de qualquer modo de pro-
dução, o estudo de um modo de produção determinado deverá co-
meçar pelo estudo do sistema determinante (o modo de produção
como processo de produção no sentido restrito, ou processo imedia-
to a que refere o texto de O Capital, livro III, anteriormente comen-
tado), e só poderá se completar pela teoria da unidade do determi-
nante e dos determinados, isto é, pela teoria do modo de produção
no sentido amplo ou, para ser bem exato, no seu sentido completo.
3) O começo e o fim são assim determinados segundo o esque-
aa TOS
NA DO

ma seguinte:
si

Troca
Distribuição Consumo
Produção Produção
COMEÇO FIM

Também as etapas o são: será preciso escapar à teoria dos ele-


mentos determinados da estrutura, no que têm de específico em rela-
o àO processo de produção imediato, e na medida em que exercem
re ele uma determinação recíproca.

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 287

E forçoso verificar que esse esquema metódico aplica-se (quase)


perfeitamente a O Capital.

Começo: teoria do modo de produção capitalista no sentido restrito,


ou do processo imediato de produção capitalista, livro 1.
Fim: teoria da unidade dos diferentes elementos da estrutura ou teo-
ria do modo de produção capitalista no sentido completo, livro III.

As etapas intermediárias são aqui reduzidas a uma unidade: o


estudo da circulação na sua especificidade e depois em sua unidade
com o processo de produção no sentido restrito. É o objeto do livro
H. Essa inadequação evidentemente constitui problema. Voltaremos
a isso.
4) Mas se esse problema é importante, oculta-nos um outro: se
é possível uma correspondência entre a ordem de O Capital e o con-
ceito de modo de produção tal qual definido na Introdução de 1857,
isso se deve unicamente ao fato de que o conceito formal é uma an-
tecipação dos resultados do estudo científico de um modo de produ-
ção determinado, em O Capital. O texto da Introdução de 1857 tem.
pois, apenas prioridade pedagógica em relação à estrutura de O Ca-
pital. Se permite tomar uma visão de conjunto dessa estrutura, que
não deve ser completamente equivocada, por outro lado não chega a
dar o seu fundamento nem a expô-la completamente.
5) O texto da Introdução de 1857 não permite fundamentar a or-
ganização de O Capital.
O texto por nós comentado começa com as palavras “O resulta-
do a que chegamos...”: é, pois, apresentado como resultado de um
trabalho teórico. Esse trabalho teórico é de um tipo completamente
especial, e cujos limites de validade são extremamente estreitos: tra-
'ta-se de uma /onga argumentação. Marx partiu, com efeito, de um
resultado da economia política clássica que submeteu a uma critica
severa (produção = natureza; distribuição = sociedade; troca, con-
sumo = individualidade). Contrariamente a essa tese, Marx estabe-
lece que as distinções entre as categorias estão todas situadas no in-
terior de um mesmo conjunto (o social, o que é um conceito bastan-
te vago). Demonstra ao mesmo tempo que a diferenciação delas só é
possível no interior de um mesmo campo, Finalmente, estabelece a
dominante dessa unidade sobre as duas categorias precedentemente
definidas, O raciocínio é, pois, o exame crítico de uma tese, cuja reti-
ficação se efetua exigindo do leitor um conhecimento extenso dos
problemas econômicos, O esforço teórico do qual o texto em ques-
tão é resultado está construído portanto não segundo uma ordem
científica, mas segundo as leis da retórica tradicional, O “evidente-
mente” (''Evidentemente, troca e consumo não podem ser o que

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a |

288 LER “O CAPITAL”

sobrepuja. O mesmo se aplica à distribuição enquanto distribuição


de produtos") demonstra bem que as verdadeiras razões de Marx, e
portanto O verdadeiro esforço teórico, estão noutro lugar: precisa-
mente em O Capital. Assim, um dos aspectos muito importantes de
O Capital deve consistir na validação científica da sua própria orga-
nização, que aqui só se justifica no modo da discussão retórica eru-
dita.
6) O texto da Introdução de 1857 não permite expor completa-
mente a organização de O Capital.
Se a forma de exposição não é inteiramente rigorosa, ou só
tem um rigor limitado, resulta disso necessariamente que o seu re-
sultado - a definição do conceito formal de modo de produção - só
pode ser aproximado. Donde o recurso à metáfora: “seja qual for a
totalidade orgânica”, que indica bem o resultado a que deve tender
O Capital, mas que não permite conhecê-lo.

Conclusão
Assim, com os limites que uma introdução pedagógica necessa-
riamente tem, e que consistem em que a pedagogia é mais apropria-
da para dissipar erros maiores do que para estabelecer verdades, 0
texto nos dá as advertências seguintes:
1) A organização de O Capital não é a de um trabalho que vá
do particular ao global, ou do abstrato ao real, mas de um trabalho
que vai do determinante ao determinado, até o sistema-completo de
determinação.
2) A organização de O Capital não pode ser inteiramente linear:
a metáfora do círculo e os exemplos que a validam bastam para
mostrar que, para fazer a teoria do determinante num sistema de de-
terminações recíprocas, é preciso fazer esse mínimo de teoria dos
elementos determinados que permite ou compreendê-los provisortã-
mente ou anular-lhes a eficácia.
ti-
3) Que as duas advertências precedentes só podem obter Sen
do rigoroso no próprio O Capital.

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 289

II. As Articulações de O Capital

É, pois, a O Capital mesmo que precisamos recorrer: não se tra-


fosse
ta, evidentemente, de fazer um resumo dele, quando mais não
para mostrar que esse resumo pode estar em harmonia com a ordem
definida pelo texto da Introdução de 185 7. Equivale também a dizer
que
que pressupomos conhecido o conteúdo teórico de O Capital, e
de todas
somos totalmente tributários, no que se refere ao conteúdo,
as explicações que foram elaboradas na presente obra. Nosso objeti-
de O
vo é simplesmente assinalar nitidamente os cortes principais
em su-
Capital, explicar o encadeamento lógico que eles implicam,
O Capi-
ma, determinar a função teórica das partes na estrutura de
clara de
tal. Preferimos não nos deixar cegar pela articulação muito
que nosso
O Capital em livros, e destes em seções, dado também
propósito não é repeti-la, mas explicá-la.
Definamos, sem lhes dar as justificações, as três articulações
principais que numeramos por comodidade de exposição e por or-
“Ar-
dem de importância lógica: “Articulação 1”, “Articulação Il, e
ticulação III”. *

de dois elementos teóricos


* Entendemos por articulação o conjunto estruturado
que estão situados de um lado e de outro de um corte.

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LER “O CAPITAL"
290
justificar a nossa
Declaremos de imediato, com O objetivo de -
citam maio
ordem de exposição, que, se à articulação 1 € HI não sus -
blemas, se, em outras palavras, é fácil elucidar a função teóri
res pro
mesmo não ocorre com a
ca dos elementos que elas distribuem, o
sua significação teórica é pouco
articulação II. De fato, não só a ite
“clara como também a situação exata do lugar do corte que perm
estabelecê-la não é indiscutível.
e 2!
A articulação 1 é o conjunto dos dois elementos teóricos (|*
seções do livro |, por um lado; o conjunto de O Capital, por outro)
determinado por um corte que passa entre a 2º e 3º seções do livro 1.
A arsiculação Il é o conjunto dos dois elementos teóricos (livros
| e II por um lado, livro III por outro), determinado por um corte
que passa entre os livros II e III (modificaremos mais adiante o lugar
desse corte).
cos (livro
A articulação II é o conjunto dos dois elementos teóri
corte situado
I por um lado, livro II por outro) determinado por um
entre o livro le o livro IL.
Começaremos pelo estudo das articulações 1 e II, e pelas su-
barticulações que podemos definir no interior dos elementos teóri-
cos que são determinados pelas articulações | e IH. Como, porém, à
articulação III não pode ser pensada sem a articulação Il, definire-
mos provisoriamente a sua função a partir da Introdução de 1857 (a
articulação II é aquela que distribui o estudo do modo de produção
em estudo dos elementos da estrutura a partir do elemento determi-
nante por um lado, e estudo do sistema completo de determinação
Por outro) e suporemos que o corte passe exatamente onde parece
passar (entre o livro Il e o livro LI).
A) Estudo da Articulação
I
” con ipines em efeito, iso
lar comple mente as seções
nr e ida em que desempenhata Lo ae
m, para o processo de Dia
dis bi Pupa toda a obra, uma função det
ipa avo se dá
erminante: é nes os
a transformação teórica
que Mara a A
sociedade A pd o capitalismo (ou a soc
dos discursos d Fial, nossa sociedade, como se ied ade am mo
queira) ben. curso
ide
bileológico em pro
OS economistas comuns, transformando esse o
blema científico. O que pressu
eo Eu Althusser (Pour Marx): põe, tal goma E
ia dor aSÃO do problema,
e à det nO do lugar de sua posição,
Ceitos exigidos ção da estrutura da sua “posição”, isto é, dons
on
para a sua formulação.

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 291

Não pretendemos afirmar que o processo de pensamento de


todo O Capital esteja completamente formulado nele, situado e es-
truturado no modo da sua virtualidade, mas que a transformação de
Generalidades | sobre “nossa sociedade” pelas Generalidades II,
que se opera nas duas primeiras seções, determina de modo irre-
versível o processo de produção das Generalidades III. '
Demonstremo-lo em poucas palavras. Nas duas primeiras se-
ções, Marx segue um procedimento lógico de mesma estrutura e que
abrange as fases seguintes: '
- Primeira fase: Marx parte de uma definição nominal (da so-
ciedade capitalista como “imensa acumulação de mercadorias”, O
Capital, t. 1, p. 52), da mais-valiacomo A'=A + 4 A(O Capital, t.
I, p. 155), que possui um estatuto de evidência e cujos elementos
constitutivos são somados à esfera da circulação.
- Segunda fase: a essa definição nominal Marx impõe a prova
da análise e da formulação, * no nível mesmo em que são enunciadas,
isto é, na esfera da circulação. O resultado dessa prova é a verifica-
ção da contradição, não absolutamente no sentido em que se fala de
contradições principais e secundárias, como propriedades do objeto
cuja teoria se faz, mas no sentido de que à formulação no nível em
que se define não pode enunciar sobre o seu objeto senão relações
ininteligíveis e impossíveis de coordenar; as evidências são transfor-
madas em problemas. |
- Terceira fase: vamos defini-la dentro em pouco.
- Quarta fase: para tornar inteligíveis e coordenar as relações
contraditórias precedentemente formuladas, Marx estabelece a ne-
cessidade de deslocar o lugar do problema: os dois conceitos de tra-
balho social médio e força de trabalho, como mercadoria que produz
o valor pelo seu consumo, só téma função teórica de demonstrar a
necessidade desse deslocamento, Com efeito, se indicam o lugar da
solução, não podem nesse nível ser a solução, dado que, sob a forma
teórica em que são introduzidos, só podem ser muito problemáticos.
Esse deslocamento pode enunciar-se assim: para colocar cientifica-
mente o problema formulado no nível da esfera da circulação é pre-
ciso colocá-lo no interior da esfera em que o conceito de trabalho .
social médio e o de força de trabalho podem ser completamente ela-
borados, a saber, a esfera da produção, Para solucionar o problema,
é preciso portanto, em primeiro lugar, elaborar o conceito completo
dessa esfera,

Louis Althusser, Pour Marx. (Edição brasileira 4 Favor de Marx, publicado por .
Zahar Editores)
* Sobre esses conceitos, veja-se, neste trabalho, “O Processo de Exposição de O Ca-
pital*, de Pierre Mucherey.

a a reto
mt 2 A E REAIS NES NS TEA RO E e pi e ires am

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292 LER “O CAPITAL"

Para poder, de modo estritamente rigoroso, passar da segunda


à quarta fase, era necessário fazer a teoria das condições de possibi.
lidade da formulação como tal, isto é, da moeda - de tal modo que
não se possa tomá-la como responsável pelas contradições que ela
permite formular, e pois pelo lugar da solução delas; e de modo que
ela por sua vez esteja sujeita às contradições que permite enunciar.
Assim, a teoria da moeda surge como a fase decisiva nesse desloca-
mento teórico do problema (operação teórica fundamental das duas
primeiras seções), posto que demonstra que não somente os objetos
submetidos à circulação, mas ainda à condição formal da esfera da
circulação, e pois o conjunto das leis que regem essa esfera, estão su-
jeitos a condições de possibilidade, as quais a teoria não pode pro-
duzir no próprio nível da circulação.
É agora possível explicar o fundamento teórico da articulação
I, isto é, definir a medida exata - extensão e limites - na qual as duas
primeiras seções de O Capital possuem, relativamente ao processo
de pensamento em seu conjunto, uma função determinante. O pro-
cesso de pensamento em seu conjunto é determinado pelas duas pri-
meiras seções porque estas dão ao seu objeto a primeira forma ci-
entífica - ou ainda dão o seu objeto, sob a sua primeira forma
científica - pela transformação que operam de dados empíricos em
um problema que possui formulação rigorosa e lugar definido.
Além do mais, esse processo de transformação opera-se em condi-
ções tais que ele determina uma primeira estrutura do procedimento
de solução, Ele estabelece, de fato, entre duas esferas, a necessidade
de uma conexão ao mesmo tempo que uma relação de determinação.
Devido a isso, o processo de pensamento adquire um primeiro obje-
tivo teórico (pensar a conexão) bem como uma indicação geral refe-
rente ao seu procedimento (elaborar primeiro a teoria do determi-
nante, e depois a teoria do determinado). Funda-se assim a estrutura
geral da articulação III,

Mas resulta desse estudo que a função determinante das seções


| € II, relativamente a todo o processo de pensamento, é rigorosa
mente limitada, De fato, a articulação III, da qual as duas primeiras
seções definem a estrutura geral, é uma articulação teoricamente me
nor, À articulação que Marx reconhece como fundamental em todos
08 textos que já comentamos é a articulação II. Ora, essa articulação
não é de modo algum definida pelas seções | e II; procuram-Se em
d 0, DO duas seções, as problemáticas do simples e do complexo,
ve dg e do global, do abstrato e do real, pelas quais Mara)
ra ontaFistas tentaram fundamentar a articulação IL. ih
ma as duas primeiras seções determinam o processo dt p a
nto de todo O € apital, essa determinação é problemática, da

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL" 293

que não determina diretamente nem todo o conteúdo do processo,


nem mesmo a estrutura de conjunto do processo. Em outros termos,
se as duas primeiras seções desempenham um papel decisivo em re-
lação a todo O Capital, não é porque contenham em germe toda a
sua problemática, no modo da virtualidade. Só durante a resolução
do problema, que adquire nas duas primeiras seções a sua estrutura
geral (articulação 111) é que a problemática da articulação II poderá
ser produzida. Pode-se, pois, definir os limites exatos nos quais as
duas primeiras seções decidem sobre todo O Capital: esse papel deci-
sivo é indiretamente decisivo, ou só é decisivo em última instância: se
a problemática da articulação Il depende do problema estabelecido
nas seções 1 e Il, na medida em que a formulação, seu lugar e estru-
tura, são determinados pela (têm por condição de possibilidade teó-
rica) solução do problema, que recebe nas seções I e Il a sua formu-
lação, lugar e estrutura, essa problemática não é de modo algum o seu
desenvolvimento. Nada pode mais claramente distinguir a organiza-
ção de O Capital da ordem hegeliana, de que a Fenomenologia do
Espírito dá, na sua Introdução, a melhor definição: “Ao saber, o fim
é determinado tão necessariamente quanto a série da progressão.
Ele está lá onde o saber não precisa ir além de si mesmo, onde se en-
contra a si mesmo, e onde o conceito corresponde ao objeto” (Tra-
dução francesa de Hyppolite, Aubier, Paris, p. 71). Essa definição
implica por sua vez que nenhum conhecimento seria possível se o
termo já não estivesse contido no primeiro não-conhecimento, e des-
de o primeiro reconhecimento desse não-conhecimento, ''se não es-
tivesse e não quisesse estar em si e para si perto de nós desde o ini-
cio” (íbid., p. 66). Do mesmo modo, ao passo que a certeza sensível
determina não apenas toda a Fenomenologia do Espírito, mas sobre-
tudo a configuração dessa totalidade, isto é, a ordem das figuras
dessa configuração, as seções 1 e II de O Capital determinam preci-
samente todo o processo de pensamento, mas não a totalidade ou a
estrutura completa do processo. É que a determinação não tem o
mesmo sentido em Hegel e em Marx; o que é primeiro em Hegel é a
origem, e o que é primeiro em Marx é o começo. E enquanto a ori-
gem determina prefigurando, um começo decisivo só pode determi-
nar uma primeira figuração, de que todas as demais dependem, na
medida em que estão unidas à' primeira por um vínculo teórico, de
que esta parcialmente decidiu, mas sem que jamais a dependência
possa significar repetição, * sem, pois, que se tenha o direito de es-

* Origem, começo, repetição: tomamos esses conceitos


i a G. Canguilhem,
: i
Sobre a sig-
,
nificação exata desses conceitos na obra de Canguilhem e sua importância para a his-

Do
pe re A E e DA a ALE ei o ia a Ai

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294 LER “O CAPITAL”

uma figuração " no-


quecer que toda nova figuração é precisamente
va,

B) Estudo da Articulação III


A função teórica relativa das duas partes distribuídas pelo corte
i-
da articulação III pode enunciar-se como relação de complementar
do livro III, 1º seção,
dade. " Assim é que Marx a apresenta no texto
que comentamos no início deste trabalho: “No livro I, estudamos os
ta,
diversos aspectos que o processo de produção capitalista apresen
que
em si, enquanto processo imediato... O processo de circulação,
uma
foi objeto do livro II, vem completá-lo”. Para que seja possível
relação de complementaridade, é necessário que Os dois elementos
teóricos complementares tenham por objetivo a solução de um mes-
mo problema referente ao mesmo objeto teórico. Esse é precisamen-
te o caso. O problema único, cuja solução só está completa ao final
dos dois primeiros livros, é aquele que está formulado nas seções 1 e
II no do livro |, isto é, as questões correlatas do valor e da mais-
valia. O objeto teórico de que os livros 1 e II elaboram as leis, para
resolver completamente esse problema, é uma ““fração do capital so-
cial promovido à autonomia” (O Capital, t. V, p. 9), isto é, todo ob-
jeto do qual se possa dar a formulação nominal formulada à página
155 do livro I: é fração do capital social promovida à autonomia
todo objeto cujo movimento se inscreve na esfera da circulação, de-
finida pela lei de equivalência geral das trocas, como A'= A + À À.
uência
Do ponto de vista formal, o conceito de fração é uma conseq
lugar é à
da definição: segundo as leis lógicas da formulação, cujoa soma das
esfera da circulação, o capital social nada mais é do que
PCR LO COPIA social considerado como um todo” e
us de Pp o
inócão À Sto nor quan! sentido especial). O conceito
tre O obieto los nia” só assinala, nesse nível teórico, a diferença ii
frio Da RS da f todo modelo concreto que dele do possa |
Gsi dra de minima observação sobre um capital da.
va A condi que a autonomia real deste é inteiramente retãt.
omplementaridade entre os dois elementos teóricos distri-

vári
tória das
das ciêciên ncias, vejaj -se Pier
i re Macherey "La Philosophie de la
Eu Sabe Penato, fevereiro de 1964, science de O. Can-
nº 113,
avaliar a CIO oro conceito hegeliano de figuração na obra de Marx ar
servirÀ ri a
parar outra oa alho de P ERA
| dessa avaliaçãode, pensamento, sem pretender que postt”
suo
m
T' ah conjunto dos elementos teó
ricos (livro |, por um lado, é Por
? Não se trata, pois Ri q por um corte situado entre o livro | e o livro H.
al
em relação ao coniun qui da autonomia real da firma, nem de sua dependência Es
Junto dos processos econômico
s reais. à

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL" 295

buídos pela articulação III é, pois, teoricamente fundada, dado que


os livros 1 e II produzem, como solução do problema das seções 1 e
1 do livro |, o conjunto das leis de um mesmo objeto. O único
problema que esse conceito de complementaridade não soluciona é o
do estatuto teórico da seção III do livro II: o objeto teórico cujas leis
essa seção produz, introduzindo novos conceitos e uma nova
problemática, é um novo objeto. Dado que o conceito de complemen-
taridade se revelou suficientemente rigoroso para definir a unidade
do que divide a circulação III, faremos provisoriamente abstração
da seção III do livro II, que comprometeria essa unidade e o concei-
to dessa unidade. |
Se a unidade do que divide a articulação III deve ser pensada
como relação de complementaridade, isso não significa que os dois
elementos teóricos estejam nela no mesmo plano. A ordem de expo-
sição, como a passagem do livro 1 ao livro II, implica uma hierar-
quia teórica entre os dois elementos. Pode enunciar-se desse modo:
nenhuma das leis teóricas estabelecidas no livro II poderia ser esta-
belecida e demonstrada sem o conjunto das leis elaboradas no livro
1. A recíproca não é verdadeira, não obstante algumas aparências
dessa
sobre as quais voltaremos a falar. À demonstração completa
leis
questão só poderá ser feita mediante o estudo da produção das
se-
do objeto do livro 1. Desde já podemos dar-lhe a dupla prova
guinte: por um lado, ficou estabelecido nas duas primeiras seções
lei par-
que só a produção podia elucidar a lei geral da circulação e a
o con-
ticular da circulação do capital, por outro, se considerarmos
que podem
junto das leis novas do objeto produzidas pelo livro II, e
à própria
todas ser reduzidas aos três ciclos impostos pela circulação que
os conceitos
produção, iremos verificar facilmente que todos
sem exceção algu-
servem para formular essas leis foram definidos,
do livro I. O que
ma, inclusive a própria noção de ciclo, no interior da
as leis
equivale a declarar que as leis da produção determinam capítulos
nos
circulação. E não é tudo. Tal como Marx o demonstra entre as
IV e V da primeira seção do livro II, a complementaridade
pelas leis da
leis da produção e as leis da circulação é determinada resolver
produção. "” Desse ponto de vista poder-se-ia comodamente de
que o processo
o problema da seção II do livro 1: estabelecendo a
reprodução do capital social, tomado em seu conjunto, determina

como
» Marx demonstra de fato que a coexistência entre três ciclos só é possívelque a teoria*
coexistência no espaço da produç ão de três movime ntos desloca dos, e
ia determinada
dessa coexistência só é possível através da abstração do valor, categor
pela produção.

RETO
AR As sarato ro pis vd proce eaismart
mam mam

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LER “O CAPITAL”
296

unidade do processo de produção com o de circulação, Marx não


generalizaria a demonstração estabelecida nos capitulos IV e V da
primeira seção do livro 11? Contudo, essa solução nãoé adequada:
de fato, na seção III do livro II, já não se trata de três ciclos e da uni-
dade dos três ciclos; Marx considera portanto como resolvido esse
problema, e o está de fato pelas leis do processo de produção. A teo-
ria da complementaridade das leis produzidas pelos livros I e II já
está inteiramente formulada. Além do mais, na seção III, o objeto e
os problemas mudam. Seja em que sentido for que se tome esse ter-
mo, a relação entre a seção Ill e o restante do livro II não é de repeti-
ção.
A articulação III define, pois, entre dois elementos teóricos
complementares, uma ordem de determinação unívoca. No entanto,
as leis novas produzidas pelo livro II não se juntam simplesmente às
precedentes: modificam-nas. A modalidade geral dessa modificação,
de que a 2º seção do livro II (“A circulação do capital") tira as con-
seqiiências mais importantes, pode ser pensada como a substituição
de um tempo estrutural de periodicidade simples por um tempo es-
trutural de periodicidade complexa. Ora, seria contraditório admitir
ao mesmo tempo, entre dois conjuntos de leis, uma relação de deter-
minação univoca, e uma série, mesmo localizada, de modificação
reciproca. É certo que a boa consciência dialética (hegeliana) das
nossas ciências humanas se sairia bem desse falso impasse, imputan-
do a contradição lógica às contradições do objeto, transformando
uma confusão lógica em método dialético, em que a dialética recebe
a definição do discurso confuso sobre a confusão, como enunciado
da determinação reciproca de tudo por tudo. ''! Do mesmo modo, as
modificações das leis determinantes pelas leis determinadas têm, em
o ineo NA ouiro rigor. Se as leis determinantes podem ser =
tabélecom E eis que elas determinam, é que as relações que, fi
e imites de validade definidos, e que essas Iolanda A
modificações E; interior dos quais podem ser determina gala
portanto (o eis determinantes pelas leis determinadas, por elo
concreto A Possam ser quando se lhes constrói um mo d
» Sa0-se todas no interior desses limites, A necessidade de

a ali sida circularidade, que


14
no nível da parece para quem à evidenci
,
aplica a
00 requinte suprem
fundamento
Tigoroso O da dialética, não sabe bem o que aplica, tem no entanto e
Põe a identidade del n - concepção hegeliana da unidade dos contrários que press
OMO se vê, nem dio como divisão originária de uma mesma unidade originário.
relação entre as lei Oria hegeliana nem a sua aplicação cega convém para pensa
is da
"a dever convir Pr e as leis: da circulação, à qual no entanto ela par ece-

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 297

conservar permanentemente capital-dinheiro, em vez de o converter


todo em meios de produção, impõe à lei da reprodução ampliada,
no interior de limites que ela determinou, uma nova determinação:
“ela não transforma de modo algum a própria lei. Desse modo, o tex-
to da Introdução de 1857: “Determinada produção determina, pois.
um consumo, uma distribuição, uma troca determinados, e rege
igualmente as relações recíprocas determinadas dos seus diferentes
momentos. Na verdade, também a produção, sob a sua forma exclu-
siva, é por seu turno determinada pelos demais fatores” (Ed. Socia-
les, p. 164), recebe O Capital a sua demonstração e formulação rigo-
rosas.
Estando definido o fundamento teórico da articulação III, e es-
tando determinada a função relativa dos elementos teóricos que essa
articulação distribui, convém estudar as articulações do elemento
teórico determinante: o livro 1.

C) Estudo das Articulações do Livro I


O livro I elabora as leis determinantes da “fração de capital so-
cial promovido à autonomia”, situando-a numa “esfera”, a da produ-
ção. Não obstante a significação concreta imediata desse conceito, e
malgrado a significação concreta imediata do contraste circulação/
produção, Marx lhes produz o conceito científico, adequado não
apenas para o estudo teórico aqui empreendido de um modo parti-
cular de produção, mas de qualquer modo de produção. O conceito
fundamental necessário para definir cientificamente o campo teóri-
co do estudo é o conceito de “processo de trabalho”, cujos elementos
essenciais são definidos desde o início do estudo (livro I, 3º seção,
capítulo VIII), mas muitos outros elementos só são introduzidos
quando necessários para estabelecer as leis do objeto especifico do
livro I, o que não os impede de ser logicamente do mesmo tipo: são
as generalidades II do livro |, Como, na presente obra, E. Balibar
dedicou um ensaio importante à definição dos conceitos desse ti-
po, '* tomarei por conhecido o sentido deles, Se deixarmos de lado a
seção VIII do livro 1, intitulada “*Acumulação Primitiva”, que le-
vanta problemas especiais, podemos distinguir no livro | duas su-
barticulações, que chamaremos de subarticulação a e subarticulação
b, e que dividem o texto do modo seguinte:
- A subarticulação a distingue, pelo corte, o conjunto constitui-
do pelas seções Ill a VI, por um lado, e por outro o conjunto consti-
tuído pela seção VII;

8 Cf, p, 153 deste volume.

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298 LER “O CAPITAL”

do con-
- A subarticulação b distingue, pelo corte, a seção III
junto constituído pelas seções IV, V e VI, esses elementos trazem já
um título em O Capital, de modo que se poderia escrever:
subarticulação a: produção da mais-valia /acumulação do capi-
tal;
subarticulação b: produção da mais-valia absoluta /produção
da mais-valia relativa.
Como se vê, os títulos de Marx são escolhidos em função dos
resultados teóricos elaborados, dado que os conceitos que servem de
títulos só têm sentido como categorias do modo de produção capita-
lista. Não podem também elucidar o modo de elaboração desses re-
sultados. Como é dessa elaboração que vamos tratar, intitularemos
os elementos teóricos distribuídos pelas duas subarticulações a par-
tir do conceito que define o campo teórico do livro I inteiro, a saber,
o processo do trabalho em geral. Obtemos, pois, os títulos seguintes:
subarticulação a: estudo do processo de trabalho capitalista/es-
tudo da reprodução das condições desse processo,
subarticulação b: estudo das relações de produção capitalis-
tas/estudo da organização capitalista das forças produtivas.
Essas simples denominações, que vamos explicar, bastam para
mostrar o que Engels escreve no prefácio de 1885 do livro II, a sa-
ber, que a originalidade de O Capital, isto é, o seu caráter científico,
não consiste em algumas proposições novas sobre a sociedade capi-
talista, mas essencialmente no processo científico de sua produção.
A subarticulação a distribui o estudo do processo de produção
capitalista, isto é, a produção das leis fundamentais de “qualquer
segundo uma ne-
fração do capital social promovido à autonomia”,
cessidade teórica que vale para qualquer modo de produção: todo
processo de produção deve reproduzir as suas próprias condições.
não ape-
Isso significa que o processo de produção deve reproduzir
nas os seus elementos (objeto, meio, trabalhado r), mas ainda a dupla
específica
combinação dos seus elementos que o define como relaçãotivas
de produção e como siste ma espec ífico de forças produ . Por
conseguinte, a subarticulação a define entre os seus dois elementos
teóricos uma relação de determinação unívoa ca, tal que a elaboração
completa das leis da reprodução suponha elaboração completa das
big do processo de produção, sem que a recíproca seja verda-
eira; e uma relação de complementaridade, tal que a teoria do proces
so de trabalho capitalista só po ss
possa ser o conjunto das leis reg a
que ue regem
produção e a reprodução.

pom ple nie nto teó ric o das leis da reprodução em relação às leis
da o
ropdo Ê DR na elaboração do tempo estrutural específico do
rabalho capitalista. De fato, na elaboração das leis da

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE“O CAPITAL" 299

produção, 0 tempo, como tempo quantitativo da jornada de trabalho


-
e como medida quantitativa do trabalho, só € pensado como clemen
uma das leis
to da estrutura, Nas leis da reprodução, ele aparece como
pelas ca-
da própria estrutura, O conceito desse tempo é determinado
s perlo-
racterísticas seguintes; é simultaneamente um tempo de simple
suas fases
dicidade, tal que a ordem de repetição e de sucessão das
tal que a or-
obedeça à um único princípio, e um tempo irreversível,
igível,
dem das suas fases não possa ser invertida sem se tornar inintel
estão sub-
Tanto a acumulação simples como a acumulação ampliada
da, característi-
metidas à primeira condição, e só a acumulação amplia
às duas condt-
ca do processo de trabalho capitalista, está submetida
“parâme-
ções. Esse tempo não é acrescentado por Marx como novo
“dimensão”,
tro", para falar a linguagem dos modelos, ou uma nova
zido a partir
para falar a linguagem da moda; o seu conceito é produ
da relação entre a
das leis da estrutura, muito precisamente a partir
partir da organiza-
mais-valia e o capital, por um lado, e, por outro, à
conceito, ele mo-
ção das forças produtivas. Uma vez produzido esse
sujcitando-as a con-
difica as relações precedentemente estabelecidas,
tendencial funda-
dições novas, e permite sobretudo elaborar uma lei (lei
orgânica do capital
mental: a lei de transformação da composição
no capital constante).
de diminuição do capital variável em relação
os fundamentos teó-
Desse modo são completamente explicados -
ricos da subarticulação a, Será conveniente, poré
m, dissipar um equi
voco que corre O risco de surgir por cau
sa da proximidade entre nos-
sa formulação:

princípio produção reprodução

; É

leis estruturais
a b 1 é

euburiculação q resultudo leis estruturais


perul não-temporais temporais

Althusser
e uma formulação à moda “sincronia /diacronia”concdaeitoqual
s de Marx, !*
mostrou à não-pertinência geral para expor Os caso preci-
Pode-se facilmente comprovar essa não-pertinência neste ica, em
impl
so: por um lado, enquanto 0 par sincronia/diacronia
sua utilização comum, uma distinção entre estrutur a € temporalida-
só sendo responsá-
utura,
de, bastando a sincronia para definir a estr

e Bulibar.
v Cl nu presente obra, os artigos de Althusser

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300 LER “O CAPITALS

do é mergu-
vel a diacronia pelo que acontece com à estrutura quan
ar, que
lhada no tempo, é claro, segundo o que acabamos de mostr
são
as leis estruturais não-temporais e as leis cestruturais temporais
igualmente e pela mesma razão as leis da estrutura, que é objeto do Ii-
vro 1, e que, por conseguinte, enquanto elementos da teoria da com-
plexidade de um todo complexo, são pela mesma razão sincrôni-
cas." Por outro lado, e correlatamente, a oposição “sincronia /dia-
cronia” supõe um tempo simples e vazio que se oferece a quem quei-
ra nele mergulhar as suas estruturas para ver o que acontece com
elas, sem exigir outra elaboração além do traçado de uma linha
numa folha de papel. Tal não é absolutamente o caso no livro 1, e
com razão: a partir do momento em que uma lei tem poral é concebi-
da como lei estrutural, é preciso produzir o conceito desse tempo, e
em consegiiência, definir a sua estrutura.
Estudo da subarticulação b
Essa subarticulação é uma das mais evidentes de O Capital,
dado que depende de dois conceitos bem conhecidos do 'marxismo:
relações de produção /forças produtivas. É de fato a essa distinção
que ela submete o objeto teórico do livro I, colocando o seguinte
problema: que combinações é preciso operar entre os elementos de um
processo de trabalho qualquer, para que ele seja ao mesmo tempo pro-
dução de um objeto acabado correspondente a uma necessidade huma
na determinada, e processo de valorização do capital? Nas duas partes
determinadas pela subarticulação b, os elementos da combinação
são os mesmos, a saber, objeto de trabalho, meio de trabalho, traba-
lhador direto e não-trabalhador. De uma parte a outra, são às rela-
pri-
ções por meio das quais se opera a combinação que mudam: na
na segunda, à
meira parte, a relação fundamental é a de propriedade,
de posse. Não é difícil prever que existe entre a primeira ca segunda
idade.
partes da subarticulação h uma relação de complementar
Sabe-se também que essa conexão, embora recíproca, entre às forças
produtivas e'as relações de produção, admite uma determinação
principal: as forças produtivas, Ora, essa relação, no presente caso,
só baralharia as cartas; é pelas relações de produção que Marx pr

o feu ensaio, Poder-se-á dizes, é certo, que, se a causaquãoplené as ar


corar a Dale dt convém primeiro balizar O efeito inteiro, Pregien-
o 5
já = OPG p bi gti cognoscendi, seguindo - O
dardoção a a ratio essendi, Mas essa relação em a DOM
à iubarticula RP omen tornada das leis distribuídas de A O ui
ipa ção b, porque o objeto do livro 1 e o sobjet o de dC a.
extos célebres sobre as relaç ões entre força produ tivas €

Cf, Os ensaios
à de L. Althusser contidos nesta obra.

ad
aniiê
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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 301

lações de produção não são os mesmos: os textos célebres, quando


são vagos, gerais ou pedagógicos, enunciam as leis da evolução da
história econômica que se revelam ser, quando esses textos célebres
são mais precisos, nada mais que uma contribuição para o estudo
científico das leis de coexistências de dois modos de produção dife-
rentes, e da transição de um modo de produção a outro. '' A relação
existente entre forças produtivas e relações de produção quando se
trata de enunciar as leis de transição de um modo de produção a ou-
tro, é umacoisa; um domínio teórico autônomo da teoria marxista.
Outra coisa é a relação existente entre relações de produção e forças
produtivas quando se trata de estabelecer as leis de um modo de pro-
dução específico como processo de trabalho particular, isto é, essen-
cialmente a definição desse modo de produção, o que é objeto do li-
vro 1: é um outro domínio autônomo da teoria, e teoricamente ante-
rior. À conexão entre forças produtivas e relações de produção no
interior do domínio teórico dos textos célebres e a que os une no in-
terior do domínio teórico do livro I podem muito bem não ter rela-
ção alguma entre si. É preciso, pois, ter em conta essa possibilidade
(isto é, esquecer esses textos célebres) para pensar o vinculo entre os
dois elementos teóricos determinados pela subarticulação 4. Para
definir rigorosamente a complementaridade entre as leis enunciadas
sobre o processo de trabalho capitalista como relação de produção
particular por um lado, e por outro como sistema particular de orga-
nização das forças produtivas, vamos estudar o encadeamento das
duas partes.
A primeira parte enuncia simplesmente a definição cientifica do
processo de produção capitalista, e as leis resultantes dessa defini-
ção. Para que seja definido como capitalista, isto é, produzindo
mais-valia, um processo de trabalho absolutamente qualquer sob to-
das as demais relações (sobretudo a organização das forças produt-
vas), é preciso e é suficiente:
1) que a síntese dos elementos seja operada nele por compra €
venda: portanto, a relação de propriedade é determinante;
2) que o operador dessa síntese seja O não-trabalhador;
3) que o não-trabalhador compre, pelo seu valor, ao trabalha-
dor direto, não o seu trabalho, mas a sua força de trabalho.

" Do primeiro tipo são manifestamente o texto de Miséria da Filosofia sobreO moi-
nho hidráulico e a máquina a vapor, e o texto do Prefácio à Critica da Economia Poli-
tica sobre a correspondência entre grau de desenvolvimento das forças produtivas € à
estrutura social real, Do segundo tipo seria a parte do texto do Prefácio Contribui»
cão em que Marx tenta pensar a partir do desenvolvimento das forças produtivas
uma teoria das revoluções econômicas. Sobre esses problemas, veja-se E. Balibar nes»
te trabalho,

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302 LER “O CAPITAL”

O conjunto dessas condições define as o de produção ca-


pitalistas, como relação entre O capital e o pg e O, € permite pen-
sar a mais-valia a partir dos seus elementos formadores, diferenciar,
no interior do capital, dois elementos funcionais e estabelecer os li-
mites da relação que une a mais-valia com a jornada de trabalho.
Estabelecido isso, qual é o problema (não solucionado nesse nível)
que exige o exame de uma nova combinação entre os mesmos ele-
mentos? Esse problema não é de ordem histórica: não se trata, mes-
mo sumariamente, de procurar a origem dos elementos aqui combi-
nados: não se trata, pois, de estabelecer uma sequência causal em
que as máquinas teriam o papel de causas. O problema não-
solucionado é do mesmo tipo do que acaba de ser resolvido: trata-se
de definir o processo de produção capitalista a partir das estruturas
que o tornam concebível. O problema é o seguinte: como será possí-
vel definir, entre o não-trabalhador e o trabalhador direto, uma re-
lação que seja ao mesmo tempo de exploração (o sobretrabalho
como mais-valia) e de liberdade (compra e venda da força de traba-
lho)? O objeto da segunda parte da subarticulação b é resolver esse
problema, mostrando como outra combinação dos mesmos elemen-
tos é necessária para definir o processo de produção capitalista. Essa
nova combinação refere-se à divisão técnica do trabalho, ou a certa
organização das forças produtivas: a categoria fundamental é a de
posse, que conota separação. * Ela permite elaborar a solução se-
guinte: as relações de produção capitalistas supõem uma organiza-
ção técnica tal que o trabalhador direto não mais seja possuidor, isto
é, esteja separado, dos meios de produção. Trata-se de um processo
de trabalho tal que o sujeito da produção não é o produtor isolado,
mas o trabalhador coletivo, e tal que o elemento tecnicamente regu-
lador não mais seja o trabalhador direto, mas o conjunto dos meios
de trabalho. Por conseguinte, o problema liberdade /exploração
acha-se solucionado: a partir do momento em que
as forças produti-
vas da sociedade estejam organizadas de acordo com certa estrutu-
dos o trabalhador não pode despender utilmente a

condição
de eua snaa a do que la 16 pode er tl xba dl
sua força de tra-
aviondicÃos des lada a outras forças, e de se exercer segunde
Ç elerminantes do processo (os meios de trabalho). Só o
capitalista, proprietário das condições de tra
trabalho), balho (objeto + meio de
pode operar ess a síntese,

Posse, separ ação: s


19

; : os, veja-se
4
trabalho, obre esses conceit o ensaio; de Balibar
4 no presente
» Poderá Parecer es
tranho
d

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- APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 303

Estamos agora em condições de determinar a função relativa


dos dois elementos teóricos distribuídos pela subarticulação b. O
objeto deles é o mesmo: definir como capitalista um processo de tra-
balho imediato. O resultado é o seguinte: é a unidade das leis referen-
tes às relações de produção e às forças produtivas que permite defi-
nir um processo de trabalho imediato como modo de produção capi-
talista. É a partir da função teórica de definição e a partir dessa fun-
ção somente, que podem ser pensadas ao mesmo tempo a unidade
dos dois conjuntos de leis e a anterioridade de um conjunto em rela-
ção ao outro. A unidade dos dois conjuntos é tal que o prímeiro
conjunto não seria completamente inteligível sem o segundo, con-
forme o demonstramos. Essa complementaridade pode enunciar-se
assim: o modo de produção capitalista, enquanto processo de traba-
lho imediato, é a unidade estrutural complexa resultante da unidade
de dois conjuntos de leis estruturais. É a importância relativa, na
elaboração teórica da unidade dos dois conjuntos, que determina a
anterioridade de um conjunto em relação a outro. Em outras pala-
vras, o modo de produção capitalista não é definível senão como a
unidade das leis referentes às relações de produção e às forças pro-
dutivas, unidade que só pode ser definida, na sua forma específica, a
partir das leis referentes às relações de produção.
O que se pode resumir no esquema seguinte:

Leis referentes às « > Leis referentes


relações de t às forças
produção produtivas
Leis referentes às
relações de produção

Estabelece-se assim, ao mesmo tempo, sem contradição, entre as


iduas partes da subarticulação b, uma relação de complementaridade e
uma ordem de determinação unívoca, E isso se pode facilmente de-

mento de demonstração; os conceitos necessários para explicar o caráter transitório da


manufatura são os mesmos que servem para pensar a solução do problema liberda-
de/sobretrabalho. Estaríamos muito enganados se quiséssemos ler, nos textos da se-
ção IV, o enunciado de uma lei da evolução do sistema capitalista, Mantoux acredita
poder refutar Marx nesse ponto, dado que a manufatura, mesmo na Inglaterra, nem
sempre nem mesmo freqlientemente precedeu u indústria mecanizada. Mas tudo o
que Marx supõe historicamente atestado na sua demonstração é que a manufatura,
sempre que existiu, foi apenas um estágio transitório, A razão desse fato está na ina-
dequação parcial entre relações de produção e sistema de forças produtivas. Para as
razões disso, é preciso produzir um conceito não-empírico do sistema de forças pro-
dutivas: é o objeto essencial da seção IV do livro 1,

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LER “O CAPITAL”
304

monstrar mediante todos Os textos da 4º seção, em que Marx explica


que as formas de divisão técnica característica do processo de traba-
lho examinado são determinadas pela situação delas numa estrutrua
determinada pelas relações de produção, e cuja significação teórica
geral está perfeitamente definida no texto do livro III, capítulo XXIII
(t. VII, pp.51-52):
Se o trabalho do capitalista não decorre da natureza exclusivamente
capittalista do processo de produção, isto é, se não cessa com o próprio ca-
pital: se não se limita à função de explorar trabalho de outrem; se resulta
da forma social do trabalho, da combinação e da cooperação de grande
número de individuos com vistas a um resultado comum, esse trabalho é
tão independente do capital quanto essa própria forma, desde que ela fez
explodir o seu invólucro capitalista. Afirmar a necessidade desse trabalho,
como trabalho dos capitalistas e função dos capitalistas, nada mais signifi-
ca do que a incapacidade do vulgo (a grande massa dos economistas políti-
cos) de imaginar as formas desenvolvidas no seio da produção capitalista
destacadas e liberadas do seu caráter contraditório.

O que significa que, para escapar a essa incapacidade, impõe-se


definir as formas desenvolvidas no seio da produção capitalista,
como unidade das relações de produção e de uma organização so-
cializada das forças produtivas, a partir daquilo que lhes dá no siste-
ma capitalista o “seu caráter... contraditório”, a saber, as relações
de produção. Não se poderia definir melhor a função teórica da su-
barticulação b.
O problema da seção VIII: “A cumulação Primitiva”
Poderia surpreender que, neste estudo das articulações do livro
|, não tenhamos levado em consideração um dos textos mais cé-
lebres: a seção VIII, “A cumulação Primitiva”. Não porque tenhamos
menosprezado a sua importância, mas porque a importância desse
texto pertence a um nível teórico diferente. De fato, sem esse texto, à
definição do (isto é, o conjunto das leis que regem o) modo de pro-
dução capitalista, enquanto processo de produção imediato, estaria
Perfeitamente concluída, É, de resto, o que pressupõe a seção VII,
na medida em que a sua função (autônoma) consiste em transformar
Os resultados da teoria do livro | em problema científico para
QUILO
setor da teoria: estabelecendo, de fato, com base nos resultados do
livro I, não a história, mas a genealogia dos elementos principais A
estrutura, ela propõe um problema bem formulado à teoria da tran-
sição de um modo de produção a outro, muito exatamente do mo à
de produção feudal ao modo de produção capitalista, Deve-Se sub E
nhar bem que esse problema bem formulado não substitui essa le
ia: com efeito, tomar a “Acumulação Primitiva” pela teor te:
transição ao capitalismo equivaleria a concebê-lo do modo segui”

=
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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 305

um desenvolvimento autônomo dos elementos acompanhado da


reunião deles em outra estrutura, Para tomar a P, Vilar ?' uma das
suas distinções metodológicas: “A Acumulação Primitiva” limita-se
a apresentar os sinais principais do fenômeno cujas leis, e portanto
cujo determinismo, a teoria da transição de um modo de produção a
outro deve elaborar. Como O Capital não tem por objeto elaborar
essa teoria, embora tenha como resultado lançar certas bases dela,
compreende-se a razão pela qual a '“'Acumulação Primitiva” pode
ser posta entre parênteses quando se trata de estabelecer e explicar
as articulações lógicas de O Capital.

D) Estudo da Articulação II
O estudo que nos resta empreender, o da articulação II, ” é sem
dúvida o mais sutil, como no-lo mostrou o texto do livro III que a
ela se refere de modo essencial. Tentaremos dar uma solução aos
problemas que ela suscita, sem outra pretensão que a de propor ele-
mentos de discussão sobre uma questão difícil. |
1) Novo exame das dificuldades suscitadas pela articulação II
À luz dos resultados precedentes, podemos mais claramente
formular os problemas suscitados pela articulação II, isto é, colocá-
los não através de um texto que lhes concerne, como o fizemos ao
explicar o texto do livro III (t. VI, p. 47), mas a partir do que já sabe-
mos da organização de O Capital.

A primeira ordem de dificuldades tem a ver com o caráter ina-


cabado do livro III, elemento teórico essencial da articulação II. Es-
sas dificuldades nos parecem secundárias: só seriam importantes,
até mesmo insolúveis, se o inacabamento do livro III prejudicasse a
sua coerência, Não é esse o caso: com as suas duas partes distintas
nitidamente, a primeira das quais elabora as leis da taxa de lucro (se-
ções I a III) e a segunda as leis da repartição do lucro (seções IV a
VID, o livro III está fortemente estruturado. Ora, não há estrutura
sem princípio, implícito ou explícito, de organização: resulta disso
que, se quisermos saber em que e por que O livro III está inacabado

» P, Vilar, “Histoire sociale e philosophique de l'histoire”, La Pensée, nº 118,.p. 76:


sucessi-
“Esse meio consiste em considerar todo fenômeno histórico... de três modos
vos: considerá-lo primeiro como sinal, para proceder às verificações e análises; consi-
como
derá-lo em seguida como resultado, olhando para trás; considerá-lo finalmente
causa, olhando para a frent e.”
|I refere-se ao conjunto dos dois elementos teóricos
2 Lembremos que a articulação
ou tro, livro 111) determinado por um corte que passa
(livros 1 e Il, por um lado, por
entreo livro Il e o livro HJ,

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306 APRESENTAÇÃO DO PLANO DE-“O CAPITAL"

(o que não é nosso propósito), de nada servirá imaginar a sua se-


tiência, enquanto o princípio de organização do livro II não tenha
sido definido (o que é nosso propósito). Dado, pois, que se possa
pôr em evidência esse princípio; teremos definido o que faz do livro
| um texto acabado no seu inacabamento, e poderemos determinar
a sua função teórica na articulação Il.

É sem dúvida esse princípio que suscita os, principais proble-


mas. Ora, esse princípio não está explícito nos textos em que Marx
tenta expô-lo, ou porque, no livro Ill, o seu texto se preste a equivo-
cos, ou porque, na Introdução de 1857, ele não possa ser teoricamen-
te explicitado. Entretanto, uma coisa é certa: é que, por um lado,
esse princípio existe, e, por outro, só pode ser enunciado em termos
especificamente marxistas. Antes de tentar esse enunciado, vamos
reconsiderar, à luz dos resultados obtidos ao estudar os livros prece-
dentes, as dificuldades levantadas por esses dois textos.
O texto do livro III já examinado pode prestar-se a uma leitura
que ainda não consideramos, porque não mereceu atenção dos co-
mentaristas, ainda que de fato tenha orientado a leitura deles: a arti-
culação II nos faz passar do estudo da estrutura real ao estudo das
aparências da estrutura, à maneira hegeliana: em si/para si. Essa lei-
tura poderia se agarrar nos termos seguintes: :

No livro |, estudamos os diversos aspectos que O processo de produ-


que vamos exami-
ção capitalista apresenta, em si... As formas do capital
nar neste livro [livro III] o aproximam paulatinamente da forma sob à
qual ele se manifesta na sociedade...

Mostramos, com efeito, como os livros 1 e 11 constituíam um


“concreto-de-pensamento” suficiente por si, e definindo as estrutm
ras fundamentais do modo de produção capitalista. Ora, O livro HI
apresenta grande número de textos fundamentais, tendendo a exp -
car as “ilusões” que os agentes da produção mantêm, em função do
lugar que ocupam na estrutura, dentro dessa própria estrutura.
função a não
conjunto das leis objetivas do livro III não tem outra
ser a de estabelecer os lugares na estrutura dos iludidos-ilusionistas
para determinar a verdade das suas ilusões. *' Se, entretanto, essa lei-
tura é inadequada, porque não elucida o fato de que as leis da baixa
tender.cial da taxa de lucro ou da repartição do lucro são manifesta

do obre
no sol
todas essas questões, remeto à última parte do ensaio de J. Ranciêre conti
úume | desta obra
tm
Bibi
h É

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LER “O CAPITAL" 307

mente leis da estrutura e leis novas, será preciso explicitar a sua pos-
sibilidade, isto é, determinar como a problemática da articulação II es-
tá relacionada às ilusões “dos próprios agentes comuns da produção”
O segundo problema consiste em determinar exatamente o ca-
ráter novo das leis do livro III, o objeto de que elas são as leis,
problema que se impõe resolver para pôr em evidência o princípio
de organização do livro III. Certamente, a Introdução de 1857 pode
nos dar uma idéia desse objeto novo: ao passar dos livros Ie Il ao li-
vro III, passamos do estudo dos elementos de uma estrutura comple-
xa, na medida em que eles se determinam mutuamente, às leis da
própria estrutura, como sistema completo das determinações. Por
conseguinte, ao passo que a teoria nos livros Ie II podia limitar-se a
enunciar as leis de uma “fração de capital social promovida à autono-
mia”, ela deve agora estabelecer as leis do capital social considerado
como um todo. O livro III estabelecerá leis novas, dado que todos
sabem que o todo é outra coisa e mais que a soma das suas partes:
esse conhecimento tornou-se, desde Durkheim, a Gestalt-teoria. O
modo segundo o qual toda ciência do homem prejulga quanto ao
seu objeto. Isso não significa que a antecipação da Introdução de
1857 seja necessariamente um prejulgamento; significa apenas que,
para definir o objeto novo do livro III e sua relação com o objeto do
livro I, os termos dele são demasiado vagos. Trata-se do Todo, evi-
dentemente, mas que espécie de Todo? Correriamos grande risco.
não elucidando a questão da especificidade desse Todo, de cair no
erro do microeconômico e do macroeconômico que tornaria incom-
preensível uma das leis fundamentais estabelecidas pelo livro LI. a
lei da baixa tendencial da taxa do lucro, que implica primeiramente
uma relação do todo com a parte que é da ordem'do somatório. Se-
ja, com efeito, CS o capital social de que V/C é a composição orgã-
nica: sejam Fc,, Fc,, Fc;, ...Fc, as suas frações promovidas à uuto-
nomia de que v;/c;, V2/Cy, V3/C3, ..Vn/Cn SÃO às respectivas com-
posições orgânicas. É claro, dado que

Cs = Fe, + Fes + Fe, + «Feu

V Vit Vito Ya
C Cj + C) + +. Cn

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LER “O CAPITAL”
308

uma das fra-


Por conseguinte, se pudermos enunciar para cada
ções do capital social uma lei tendencial concernente às relações
vi/a ...vn /n ela será verdadeira imediatamente, por simples adição,
para O capital social no seu conjunto. Ora, esse é um dos elementos
os
da elaboração da lei da taxa de lucro. Como se vê, o vínculo entre
livros 1 e Il e o livro II não se funda nem na homologia da parte
com o todo (as leis do livro III são novas), nem o salto qualitativo
”.
sem outra determinação dos componentes à “totalidade orgânica
Elucidar a articulação II é, pois, empenhar-se por dar uma ex-
plicação marxista de uma relação que pode enunciar-se, em primeira
análise, de um modo certamente inadequado, como a relação do em-
si com o para si, e como a relação dos elementos com a totalidade.
Desde já, essas considerações, juntamente com os problemas encon-
trados a propósito do livro II, bastam para autorizar um desloca-
mento do corte da articulação, em relação à organização de O Capi-
tal em livros. O vínculo exato em que, sem que saibamos ainda por
que, o estudo muda de objeto, passando das leis das “frações pro-
movidas à autonomia” ao que se pode enunciar provisoriamente
como estudo das leis do “entrelaçamento” dos capitais ou do capital
social considerado como um todo, não é o início do livro HI, mas a 3º.
seção do livro II:

Na primeira como na segunda seção [do livro Il: acrescentemos


como no livro 1), não se tratava sempre senão de um capital individual,
do movimento de uma fração do capital promovida à autonomia.
Entretanto, os ciclos dos capitais individuais se entrelaçam, se pres-
supõem e se condicionam uns aos outros, e é precisamente esse entrosa-
mento que constitui o movimento do conjunto do capital social (Introdu-
ção à 3º seção do livro II, t. V, p. 9).

iniio se no texto do livro HI (t. VI, p. 47), o lugar especial atri-


e o cuidado de Marx
em expor á ip (“na 3º seção sobretudo”)
“unidade” estabelecida nes-
Sa seção: M elação que une o livro Il à 11I não é “derramar
9: Marx declara que o objetivo do livro
se generalidades sobre essa unidade”. Que outro objetivo poderia
ter,
, a Não ser c
ç I
ontinuar a lhe ro 1 i 1 - | s? Te-
p Ir o conceito, ,
remos portanto c
ósi a Il, dando «lhe
estudar a arti: culação
O corte seguinte: ropósito
livro|, , livr o Il, |º a À Es
seção,
à
livro II.
pa e 2º seções/livro II, 3º
2) Método de ução
Se exi (
Iste u Ra
iná vel entr e os dois ele men tos re é
partidos pel a m arti vínculo det erm
icu laç ãoentII, e ser
devria
elea teo ilm,entedo per
facdo” ceptível.
arx não faz , art tem e, do “to “entrelaça-
mento”, do “can:
evi den

dli considerado como um todo”o”


acrescen| tar PlS Seus , pelo prazer ?
estudos anteriores a “dimensã da totalidade.

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 309

A necessidade de novas leis só pode ter fundamento na insuficiência


das antigas, não em esgotar o processo real, mas em ser leis de modo
completo. Deve, pois, existir nos livros | e || um campo teórico não-
elaborado, mas exatamente medido, que o processo de pensamento
precisa, nesse nível, neutralizar, para construir as leis do seu objeto.
Deve, por conseguinte, existir nos livros 1 e Il esse minimo de teoria,
sob uma forma problemática e ainda ideológica, do objeto científico
do livro III. Por um lado, esse mínimo de teoria deve tomar proviso-
riamente o seu lugar, e por outro, provar a necessidade teórica des-
sas leis. É o campo teórico não elaborado, mas exatamente medido
que vamos procurar nos livros 1 e Il.

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310 LER “O CAPITAL”

II. O Campo Teórico Não-Elaborado, mas Exatamente


Delimitado, dos Livros I e II e o seu Nome:
““A Concorrência”

| O campo não-elaborado dos livros I e II, que determina, no in-


terior desses livros, a necessidade.
da 3º seção do livro II e do livro
HI, traz um nome que dá não o seu conhecimento, mas circunscreve
O seu reconhecimento; um nome que designa ali em negativo o lugar
vazio de um novo campo teórico: o da concorrência. Vamos mos-
trar, com dois textos, o que o conceito permite não pensar e o que
ele designa como o que se deve pensar, no nível dos livros I
e II.
Os textos são os seguintes:

Livro |, 3º seção, capítulo X:


É certo: que, a tomar as coisas em seu conj unto, isso
nem mais nem menos da boa ou má vontade não depende
do
livre concorrência impõe aos capitalistas as leis capi talista individual.A
imanentes da produção
capitalista como leis coercitivas externas
(Ed. Sociales, t. |, p. 265).
Livro 1, 7º seção, capítulo XXI
V:
O desenvolvimento da produç
, nuo do capital empregado numa ãoemp capitalista exige um aumento
pra Arda imanentes da produção cupitalires a, e a livre concorrên
sta como leis coercitivasciaexteim-
nos r-
à capitalista individual, A concorrência não lhe permit
e conser-
O seu capital sem o aumentar, e ele não pod
e continuar uumentando
esse capital a não bens laés 1
HI, p. 32), ser por uma acumulação progressiva (Ed. Sociales

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 311

Situemos rapidamente esses textos: o primeiro termina o exa-


me, sob forma de linguagem atribuída ao capitalista,das relações
entre a jornada de trabalho e o lucro; o segundo está situado entre a
exposição geral dos princípios da reprodução (transformação da
mais-valia em capital) e o estudo das suas formas.
Esses dois textos enunciam primeiro uma ilusão, que se refere
ao próprio objeto de que Marx, no nível dos livrosI e II, faz a teo-
ria. O objeto de Marx é aqui a construção das “leis” da “produção
capitalista”; a forma científica dessa construção permite a Marx es-
crever “leis imanentes da produção capitalista”, onde ** imanentes”
significa “'que têm precisamente o objeto que elas dão a si mesmas”
ou ainda “que são as leis estruturais do próprio objeto”, e não “leis
empíricas desse mesmo objeto nem leis trazidas artificialmente de
outro objeto para aquele”. Se considerarmos particularmente, na es-
trutura, a posição do capitalista individual, “as leis imanentes” defi-
nem a essência da sua prática: são “as leis imanentes” que permitem
definir, no seio de um processo de trabalho, uma prática individual
como prática capitalista. Ora, do ponto de vista do capitalista indi-
vidual, as leis imanentes aparecem como leis coercitivas externas, sob
a forma de leis da concorrência. O capitalista, ao invocar a concor-
rência pelo vínculo das mesmas leis de Marx, mas lhes dando a for-
ma da necessidade externa, não pode reconhecer a verdadeira signi-
ficação dela. A concorrência é, pois, em primeiro lugar o enunciado
de uma ilusão, isto é, a forma enganosa que a estrutura assume para
quem nela ocupe uma posição determinada. Todo discurso sobre a
concorrência é, pois, perfeitamente ideológico. o
Dito isso, é impossível - do ponto de vista lógico — restringir o
alcance dos dois textos citados e da sua função teórica para só ver
neles a diferença entre a forma científica e a forma ideológica das
mesmas leis. Em certo sentido, a relação entre o discurso científico
de Marx nos livros 1 e II e os discursos ideológicos sobre a concor-
rência é precisamente uma relação de refutação: a teoria das “leis
imanentes” é o verum index sui et falsi do discurso ideológico sobre
as mesmas leis tomadas como “'leis coercitivas externas”. Quando o
capitalista apresenta os limites da jornada de trabalho como inteira-
mente determinados pela concorrência, ele está fora da questão, e a
fixação científica desses limites, a partir das relações entre o tempo
de trabalho produtor de valor e o tempo de trabalho produtor da
força de trabalho, é a demonstração desse deslocamento. Quando o
capitalista apresenta a modificação tendencial da composição orgá-
nica do capital como resultado da abstinência que a concorrência
lhe impõe, está inteiramente fora da questão, e a produção científica
da reprodução das condições do processo de trabalho capitalista é a
demonstração desse deslocamento, Mas, em outro sentido, o discur-

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312 LER “O CAPITAL”

so teórico de Marx utiliza o discurso ideológico sobre a concorrên.


cia como uma das condições de possibilidade teóricas provisórias do
estabelecimento das leis imanentes em si. Com efeito, “as leis coerci-
tivas externas” não são unicamente o outro nome, o nome ideológi-
co, das “leis imanentes"”” produzidas nos livros 1 e II; são também o .
nome provisório de certo conjunto de leis necessárias à elaboração
das leis imanentes dos livros 1 e II, e que não podem todavia adqui-
rir nos livros 1 e Il outra qualificação, salvo a que têm no discurso
ideológico, De fato, se, no texto referente à jornada de trabalho, “a
concorrência” não explica a relação entre força de trabalho e traba-
lho, explica no entanto (ou ocupa o lugar provisório de uma explica-
ção) variantes dessa relação no interior dos limites estabelecidos pe-
las “leis imanentes”, Mais importante ainda é o lugar teórico preen-
chido pelo conceito ideológico de concorrência na elaboração das
leis imanentes da reprodução (segundo texto citado). Com efeito, se
a construção das leis referentes à acumulação capitalista, pelo que é
da estrutura dessas leis é do lugar delas na estrutura produzida pelos li-
vros [e II, nada tem a ver com a concorrência, resta que a explicação
do fato de que a reprodução ampliada e não a reprodução simples seja
a forma específica da reprodução capitalista não recebe no nível do li-
vro I outro estatuto teórico além do que é determin
ado pelo texto
sobre a concorrência.

O desenvolvimento da produção capitalista exige um aumento


contínuo do capital investido numa empresa, e a livre concorrência im-
põe leis imanentes da produção capitalista como leis coercitivas externas
a cada capitalista individual. Ela não lhe permite conservar o seu capital
sem o aumentar, e ele só pode continuar aumentando
-o mediante uma
acumulação progressiva.

; É claro que esse texto avalia, sob o nome de livre concorrência,


É o apenas o outro nome das leis de reprodução de uma '“'fração do
apital social promovido à autonomia”, mas ao mesmo tempo um
conjunto de determinaçõe s efetivas que se têm de levar em conta antes
de elaborá-lo, precisamente para reunir as condições do estudo de uma
Sração de capital s
feito E provisori
Ovisoriamente ocialnospromovi do inadequ
termos à autonom ia”. E isso só p nosso
ados da ideologia.
des TA agora em condições de
a definir
a pelo conceito de concorrência a nos função teórica a
livros 1 e HH ja
NR! gorosamente idêntica àquela
ML que pertence ao
Sociedade burguesa, acumulação, ia
cida pr imelras seções de O Capital. Assim riqueza, mercadoria
ee Wrguesa, como o conjunto $ o
acumulação, riqueza, mercado
e enunciados que é necessário ria”constitui à
a O Capital o seu objeto sob transfo rmar em problem
a primeira forma científica,
O

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 313

conceito ideológico de “'concorrência" é o enunciado ideológico de


um conjunto de determinações efetivas que se impõe transformar
em problema para dar a O Capital o seu objeto teórico sob uma for-
ma completa. E isso não é tudo. A crítica que o conceito de concor-
rência sofre durante os livros 1 e II, pelo confronto das “leis imanen-
tes” com as “leis coercitivas externas” é exatamente do mesmo tipo
I pelo con-
que a crítica sofrida nas duas primeiras seções do livro
ceito ideológico de mercadoria. Essa crítica é uma análise: Marx se
so-
põe em condições, ao elaborar as leis de ''uma fração de capital
deter-
cial promovido à autonomia”, de distinguir, no conjunto das
por um la-
minações efetivas designadas pelo nome de concorrência,
concei-
do, as que não precisam absolutamente de ser situadas sob esse
e por outro,
to e que constituem o conjunto das leis dos livros 1 e II,
delimitadas
as que têm necessidade ainda desse conceito para serem
o sincrético
sem serem conhecidas graças a ele. Assim é que O conceit
de concorrência recebe nos livros 1 e II uma redução decisiva, compa-
rável àquela que Marx impõe à noção de mercadoria nas seções I e
II. Mais exatamente, o campo teórico vazio, cuja teoria o conceito
de concorrência poupa provisoriamente, recebe ali as suas limitações
rigorosas.
imanentes
Examinemos, pois, os limites que a produção das leis
impõe a esse campo
da estrutura do processo de trabalho capitalista
teórico vazio:
dos conceitos neces-
1) A concorrência não designa o conjunto
sários para construir essa estrutura, entre circulação e
2) A concorrência não designa nem a relação
a dominância
produção, nem, no interior dessa relação, a pretens
nem mesmo, inver-
das leis da circulação, como “ leis do mercado”,
das leis da circu-
tendo essa relação de dominação, eficácia relativa
lação sobre as leis da produção.
se o quisermos man-
Desse modo, o conceito de concorrência,
de um campo teórico efetivo,
ter como indicador ainda ideológico em relação àquele que ser-
deve receber um novo lugar de formulação as leis do mercado), e,
ve comumente para construí-lo (a circulação,
de explicação global que, no
por conseguinte, abandonar a função
ideológico comum. Devido a
seio desse lugar, adquire no discurso
vazio um novo lugar, a partir
isso, pode-se dar a esse campo teórico
cuja eficácia ele permite ava-
do conjunto de determinações efetivas que permitirá transfor-
liar provisoriamente. É eis esse novo lugar
num objeto teórico novo:
mar o conceito ideológico de concorrência precisamente o conjun-
o que a palavra concorrência designa é muito
os de produção capita-
to das leis que regem a coexistência dos process
a definição dos dois ele-
listas. Estamos, pois, em condições de dar do
por um lado, teoria
mentos teóricos que a articulação Il reparte:

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314 LER “O CAPITAL”

modo de produção capitalista como processo de trabalho específico;


por outro, teoria do modo de produção capitalista como leis de coe-
xistência dos processos de trabalho imediatos. Essas formulações
apresentam problemas que iremos resolver dentro em pouco.
Podemos, desde já, solucionar alguns problemas que ficaram
até aqui pendentes de solução.
1) Marx, no texto do livro Ill em que se esforça por justificar
essa articulação, dava a pensar que a passagem dos livros Ie II ao li-
vro III estava ligada a uma passagem às teorias da “ilusão” dos
agentes de produção. Na medida em que o livro III é a elaboração
científica de um campo que só pode primeiro ser delimitado pelo
conceito ideológico de concorrência, o livro II não terá por objetivo
fazer a teoria da ilusão em geral, isto é, fazer-nos passar do em-
si ao para-si da estrutura; mas é claro que um desses objetivos será
dissipar definitivamente uma ilusão bem definida, “a ilusão da con-
corrência”, isto é, explicar completamente a diferença entre o con-
ceito ideológico do campo cuja teoria é feita nos livros II, 3º seção, e
no livro III, e o conceito científico do objeto ao qual esse campo cor-
responde.
2) Se não estamos ainda em condições de explicar a comple-
mentaridade dos dois elementos teóricos repartidos pela articulação
II, demonstramos a necessidade da sua existência, O que não po-
der iamos fazer com base nas distinções entre microeconômico e ma-
eúWeconômico, entre abstrato e concreto ou entre parcial e global.

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 315

IV. Definição do Objeto da 2º Parte da Articulação 11.


Relação desse Objeto com as suas Antecipações

Marx, o 1857, deixara entrever que a teoria de


na Introduçãde
do do sistema com-
um modo de produção deve culminar pelo estu
car a articulação Il,
pleto de determinação. Ao introduzir, para expli
capitalista e teoria das
a distinção entre teoria do modo de produção
trabalho imediato, pode
relações de coexistência dos processos de das
O Capital a realização
parecer que renunciamos a encontrar em
disso: se essas ambições não
ambições da Introdução de 1857. Nada
é porque se especificaram e
são lidas diretamente na sua realização
priamente marxista.
porque adquiriram uma forma pro
cujo estudo é empreendido
Definamos melhor esse novo objeto
Para Marx, qualquer formação
na 3º seção do livro Il e no livro III.
dução, isto é, pela estrutura
social é definida pelo seu modo de pro
(no caso do modo de produção
do processo de trabalho dominante
e pela estrutura das relações
capitalista é o objeto dos livros 1 e II),
de trabalho (no caso do modo de
características entre os processos
o do livro Il e do livro 11).
produção capitalista é O objeto da 3º seçã
das relações caracteristi-
Para designar de marteira geral a estrutura
iza o conceito de ““divi-
cas entre os processos de trabalho, Mark util
produção). Para evi-
são social do trabalho” (em setores e ramos de
“divisão do trabalho
tar qualquer ambiguidade, preferimos o termo
trabalho” para a fun-
social”, reservando o conceito “divisão social do

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316 LER “O CAPITAL

ção de sinônimo de “relações sociais de produção” e o conceito de “'di-


visão técnica do trabalho” para organização das forças produtivas em
qualquer processo de trabalho cooperativo. A primeira originalidade
de Marx consiste em produzir os conceitos de “divisão do trabalho
social” ou “divisão da produção social” a partir do conceito de
“processo de trabalho”. Ele não aceita, por conseguinte, o termo
como um fato empírico, suscetível de uma explicação antropológica
fundada na necessidade da troca, ou organicista fundada na diferen-
ciação crescente das sociedades.
Com isso, podemos voltar à Introdução de 1857. O que determi-
na a estrutura completa da prática econômica é o conjunto das leis
que regem o modo de produção, isto é, não apenas as leis estruturais
do processo de trabalho específico, mas ainda as leis estruturais das
relações específicas entre os processos de trabalho. É, pois, um úni-
co e mesmo objeto o estudo da estrutura da prática econômica no
seu todo, e o estudo das leis que regem o modo de produção no seu
sentido completo. Mas essa ligação entre o objeto do livro Ill e a sua
antecipação na Introdução de 1857 só pode aparecer distintamente
num exame das subarticulações dos livros II, 3º seção, e livro III.

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 317

V. Estudo das Subarticulações da 2º Parte


da Articulação II

Pode-se discernir, na segunda parte da articulação II, duas su-


barticulações essenciais do modo seguinte:
Livro 1, livro II, 1 e 2/livro II, 3
Articulação II
Subarticulação 1 livro II, 3 livro HI, 1, 2, 3/livro III, 4,5, 6, 7.
Subarticulação 2 livro II, 3/livro HI, 1, 2, 3.

1,
A subarticulação 1, isolando a seção III. do livro Ile as seções
Il e III do livto III, das seções IV, V, Vle VII do livro HI, tem por
com-
função estabelecer leis complementares. Esse conjunto de leis
plementares define a lei fundamenta! do modo de produção capitalista
ho social entre
no seu conjunto, como lei específica da divisão do trabal
processos de trabalho de estrutura específica, e. por conseguinte, à lei
articula-
fundamental de qualquer prática econômica capitalista como
ção com dominante de elementos distintos (circulação, distri buição,
consumo). pela pri-
Essa lei enunciada, nas seções que estudamos,
meira vez sob a sua forma científica, e que constitui O não-pensado
dos livros | e Il, é a LEI DO VALOR.
A complementaridade dos dois elementos teóricos da subarticu-
de ser obscurecida
lação 2 é portanto clara. Ela corre o risco apenas
pelo fato de que a partir do enunciado das leis referentes à taxa de
lucro, Marx é capaz de estabelecer a diferença entre o preço de pro-

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318 LER “O CAPITAL”

dução e o valor de uma mercadoria. Esse fato poderia cegar ao pon-


to de situar a terceira seção do livro Il e as três primeiras seções do
livro Il num mesmo conjunto: o primeiro conjunto, constituído pe-
los livros 1 e II, seria o domínio em que reinam mais-valia e valor, o
segundo conjunto, o livro III, seria aquele em que reinam lucro e
preço. Esqueceriamos com isso que, nas três primeiras seções do li-
vro III, trata-se exclusivamente da lei do valor, ao passo que nos li-
vros 1 e II, com abstração da 3º seção do livro II, essa lei é simples-
mente suposta, sem ser teoricamente produzida. A noção de preço de
produção é apenas resultado teórico da própria lei do valor. Po-
deríamos, de fato, para dissipar qualquer confusão, enunciar provi-
soriamente a lei do valor como a que rege a relação entre trabalho
socialmente necessário e os preços de produção, e atermo-nos ao
que Marx escreve (t. VI, p. 176): “Quando se considera o conjunto
de todos os ramos de produção, a soma dos preços de produção das
mercadorias produzidas é igual à soma dos seus valores.” A comple-
mentaridade entre os dois elementos da subarticulação 2 é, pois, de-
terminada, pois que se trata precisamente da elaboração, em dois
momentos, da mesma lei (a lei do valor) de um mesmo objeto (a divi-
são do trabalho social específica do modo de produção capitalista).
Resta a pensar o princípio teórico da distinção dos dois mo-
mentos dessa determinação. A considerar os resultados da seção 3º
do livro II por um lado, pode-se estabelecer a distinção seguinte: a
lei do valor é primeiro enunciada como [lei de equilíbrio, depois como
lei dinâmica da divisão do trabalho social capitalista. Na 3º seção do
livro II, com efeito, a lei do valor é a forma especificamente capita-
lista da distribuição proporcional do trabalho entre os diferentes ra-
mos da produção, que constitui, em qualquer modo de produção, a
condição de existência da produção e da reprodução sociais. À con-
tribuição teórica da 3º seção do livro Il pode, com efeito, resumir-se
na relação proporcional que se instaura pela troca das mercadorias
entre os setores | e II, no qual se divide essencialmente o trabalho
social, Mas o enunciado dessa lei estática não é a lei do valor sob a
sua forma completa, De fato, Marx a explica assim (t. VI, p. 269):

No quadro da produção capitalista, a proporcionalidade de setores de


produção particulares aparece como nascendo da sua desproporcionalidade
por um processo constante; a interdependência do conjunto da produção
se impõe aos agentes da produção como uma lei cega em vez de ser uma
lei que a razão associada dos produtores teria compreendido, e por con-
seguinte dominado, o que lhes teria permitido submeter o processo de
produção ao controle coletivo deles.

: e) outras palavras, se'a 3º seção do livro II fixa bem o nível no


qua! se estabelece a proporcionalidade (estática da divisão do traba-

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL" 319

lho social), não determina o mecanismo de ajuste constante (dinámi-


ca da divisão do trabalho social). É o conjunto da estática e da diná-
mica da divisão do trabalho social capitalista - estática e dinâmica
sendo, é claro, sincrônicas - que constitui a (ei do valor. Essa a razão
pela qual o termo “lei do valor” não é introduzido por Marx, desde
a 3º seção do livro II, dado que a estática da divisão do trabalho social
é apenas um momento teórico da elaboração da lei. Assim, no nível
dos resultados teóricos, a função teórica relativa dos dois elementos
da subarticulação 2 (livro II, 3º seção/livro III, seções, 1. II. III) está
determinada.

Entretanto, trata-se apenas de uma primeira determinação da


função relativa dos dois elementos, dado que o que procuramos €s-
clarecer não é a complementaridade dos resultados, mas o princípio
2. A
que, presidindo a sua elaboração, determina a subarticulação
con-
problemática dessa subarticulação deve ser pensada a partir do
Il e
ceito formal do objeto cuja teoria é feita pela seção 11 do livro
o
pelas seções 1, Il e III do livro |: a saber, uma divisão do trabalh
não é
social específica. * O conceito de divisão do trabalho social
sobre a
empiricamente determinado como O seria um discurso geral
do conceito
macroeconomia. É cientificamente determinado a partir
ico. Eis de
de modo de produção como processo de trabalho específ
em ramos indepen-
que modo: se a produção social está distribuída
independentes uma
dentes da produção, deve existir entre os ramos
processo independente de
relação de proporcionalidade tal que cada dos demais . as
trabalho possa encontrar, no resultado da produção
os termos entre os
condições da sua reprodução. Resulta disso que de são deter-
proporcionalida
quais deve estabelecer-se a relação de rutura especifica do
minados, para cada modo de produção, pela est sli é
capitalista
seu processo de trabalho, Ora, o processo de tra balho
valor de uso possuindo condições
dúplice: processo de produção de ção do capital. Nessa dis-
materiais específicas e processo de valoriza
o fund amen tal é que resid e o princípio da subarticulação 2, se-
tinçã
gundo o quadro da página seguinte.
esso de
Para demonstrar que é precisa mente a estrutura do proc
con-
trabalho que determina o estudo da divisão do trabalho social,
esse est udo com base na
seção 3 do
em estabelecer -
estudada nessa seção é a que distri
tentar-nos-emos
livro II, Como se sabe, a divisão
de produção dos
bui toda a produção social em dois setore s = setor

, modificando a fórmula de Marx


“ No sentido em que definimos há pouco esse termo
“divisão social do trabalho”.

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LER “O CAPITAL”
320

Subarticulação 2

Livro II, seção HI Livro ll


seções
1, II, [II

Objeto Lei que'rege a proporcionalidade da divisão


do trabalho social capitalista

Princípio [entre processos de produção entre processo de


de valor de uso valorização do capital
Resultado Estática Dinâmica
da proporcionalidade da proporcionalidade

Resultado LEI DO VALOR


Geral

meios de produção, por um lado, e por outro, setor de produção dos


meios de consumo. O conceito da divisão é, pois, fundado na distin-
ção, específica do processo de trabalho capitalista em condições do
processo (objeto + meio) e força de trabalho. Para estender essa de-:
monstração à segunda parte da subarticulação 2, vamos nos limitar
a citar esse trecho de Marx (t. VI, p. 191):

Toda a dificuldade... provém de que as mercadorias não são troca-


das simplesmente enquanto tais, mas enquanto produtos de capitais que
pretendem participar na massa total de mais-valia proporcionalmenteà
sua magnitude e, para magnitude igual, reclamando uma participação
igual, O preço global das mercadorias produzidas em dado lapso de tem
po é destinado a satisfazer essa pretensão.

, Quer dizer, a estática como a dinâmica da divisão do trabalho


Re específica são determinadas a partir dos conceitos que permi
pensar o processo de trabalho.
de dis problemática ri
que permite repartir em dois momentos
fe E lnios a produção da lei determinante les”
da prática oo
a estando definida como produção
O social das leis de divisão,
na base das leis do processo de
d trabalho - convém
eterminar agora os princípios da
subarticulação 1.
Estudo da Subarticul
ação l
ode Lorem que a subarticulação | é a que divide a segunda a Ropar-
-“ Aftieulação II em dois elementos teóricos distintos: o conjun

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 321

da 3º seção do livro Ile as três primeiras seções do livro III, por um


lado, e por outro, O conjunto das últimas seções do livro III.
Lembremos em seguida que a problemática dessa articulação, sob a
sua forma geral, é clara: estabelecimento das leis determinantes, de-
pois estabelecimento das leis determinadas do mesmo objeto: a prá-
tica econômica capitalista, como sistema articulado em que a domi-
nante é ocupada pela lei de divisão do trabalho social.
Entretanto, quando se deixa o terreno da generalidade, para
tentar definir com rigor, como pretendemos fazê-lo ao longo deste
elementos teó-
trabalho, que tipo de complementaridade une os dois
ldades.
ricos da subarticulação 1, defrontamo-nos com sérias dificu
entre
Cadã vez, com efeito, que definimos uma complementaridade
cada um dos
dois elementos teóricos, esforçamo-nos em mostrar que
dois elementos constituía um momento na produção das leis DO
da seção III
MESMO OBJETO. Ora, se demonstramos que o objeto o
amente a divisã
do livro Il e das seções |, ll e II do livro III é precis
a VIII do livro
do trabalho social capitalista, parece que as seções IV
que as leis de
LI não mais tém o mesmo objeto. É, decerto, evidente
das leis da divi-
distribuição do lucro e a teoria das rendas dependem
domínio, cuja
são do trabalho social. Mas parecem referir-se a outro
III ficou ina-
unidade é tanto mais difícil de perceber quanto o livro leis
das
cabado. Sem dúvida, se quisermos dar um modelo concretoção a um
aplica
estabelecidas nas últimas seções, ele constituirá uma
seções do livro
domínio real, que é o mesmo das leis das primeiras
ir sobre a
III: à contabilidade nacional. Mas nada podemos conclu
de aplicação.
natureza de um objeto teórico a partir do seu domínio
problema, isso pre-
Ora, se não chegarmos a dar uma solução a esse
judicará toda a interpretação do plano de O Capital que acabamos
de propor. Porque, de duas uma:
pela terceira seção do livro
- ou o conjunto teórico constituído
articulado, repartindo, em de-
Il e pelo livro III é um campo teórico
terminantes e determinadas, as leis do mesmo objeto que ele produz;
Ill,
- ou se impõe determinar, depois da terceira seção do livroO Ca-
que defina uma nova articulação principal de
um novo corte começaria
pital. Mas não podemos definir o novo objeto cuja teoria
for, o inacabamento do livro Ill torna-
com a seção IV e, seja comoa tenta
ria arriscada em extremo tiva de definição desse segundo ob-
jeto.
primei ro termo
Ê portanto necessário demonstrar à validade.do
dessa alternativa, Adotaremos o seguinte procedimento:
em que medida a
- em primeiro lugar, tentaremos determinarIle nas seções I, Ile
al fundamental enunciada na seção III do livro
do livro | é uma lei incompleta;

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322 LER “O CAPITAL”

- em segundo lugar, procuraremos como as leis estabelecidas


objetivo teórico completá-la;
nas seções seguintes tem por definir rigorosamente o objeto cujas
- finalmente, tentaremos .
leis são a lei do valor e as
leis que a complementam
dos mecanismos de coexistência
a) É muito fácil perceber o que, pela
pro ces sos de pro duç ão, não é univocamente determinado
dos estática do sistema de divisão do
lei fun dam ent al do val or. Co mo dos
bal ho soc ial , a lei do val or permite estabelecer que a troca
tra
int erm édi o do mer cad o, é O processo especifica-
equivalentes, por pr op or ci on al do trabalho social.
da dis tri bui ção
mente capitalista rmina univocamente à
sistema, ela dete
Como dinâmica do mesmo ela bor ar a teoria do mercado, a
en ta l que per mit e
categoria fundam o de um a série de relações Inter-
pr od uç ão , no te rm
saber, o preço de is, estabelecimento de uma tax
a
co rr ên ci a dos cap ita
mediárias (con que O somatório dos preços de
que per mit e en unc iar
de lucro média) ro médio) é igual à soma dos valo
-
sto de pro duç ão + luc
produção (cu o não se reduzem a essã determ
ina-
ant o, as leis do mer cad
res. Entret nos limites determinados
por
a pel a lei do val or. Por que ,
ção unívoc cado)
l ao qua l em mé edia se efe tua a troc a (valor de mer
essa lei, o níve eço de mercado)
e os afastamentos da troca de uma mercadoria (pr a econo-
açã o a esse níve l est ão sub met idos às flutuações q ue
em rel
tica clá ssi ca def ine com o relação da oferta € da procura.
mia polí um
rrê nci a no sen tid o estr ito) . Ora, dado que existe sempre
(conco
bri o ent re a ofe rta e a pro cur a, explicar as flutuações dos pre-
equ ilí
or dos lim ites estabelecidos pela
cos e valores de mercado, no interi
a det erm ina r as leis que definem O nível desse
lei do valo r, equivale te claro (t. VI, P. 209):
equilíbrio. Marx exprime isso de modo bastan
rta e a pro cur a sup õem a tra nsformação do valor em valor de
A ofe à$
cad o, e na med ida em que atu am na base capitalista, a saber, queca-
mer supõem processos de produção
mercadorias são produtos do capital, a de
s compra € vendvalor
pitalistas diferentemente complexos e não dasimple
conversão formal do
ii Nesse processo, não se trata de forma:
sn ias em preço, isto é, de simples transformação
poa itativas dos preços de merca
doa . E o sim, de certas diferenças quant
e tamb ém aos preços de produ-
m relação aos valores de merca do,
pro dutores de merca-
Rer É compra e venda simples, basta confrontar além, verifica-se que
É
« ã E

nquanto tais. Quando se leva a análise mais e subdivisões


a das diferentes class es
as e duto Aupoem a existênci consomem
total da sociedade e à De resto»
uem ent re si a ren da
como tal, e que istribdr da autoriza.
é pe ng en am , poi s, a procura que à ren toda à estrutura do
essa oferta ensão de
ura exigem & compre s compreender como nas-
processo de od proc lis taoreses. quis mo
er
no próp
pri ri o ução o capita dut
cem pró sei dos pro
Para os fiin
dado que enuNcia sob aruna em ummente, esse texto é fundame ental,
problema colocado à partir da
orma de

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 323

lei do valor, e graças a ela, o plano das últimas seções do livro HI (as
que estão escritas e as que não foram).
b) O termo é a produção do conceito de classes sociais enquanto
sujeitos do consumo social. A produção desse conceito está inter-
rompida pelo inacabamento do livro III, e é claro que, se o estudo
começado na seção IV do livro III estivesse acabado como teoria
das leis do consumo social específico, o livro III o seria também.
Para que o conceito de classe seja produzido, é preciso que o conceito
das subdivisões de classe seja produzido ao mesmo tempo. Por conse-
guinte, a determinação a partir das relações de produção é insuficien-
te; impõe-se determinar o conceito a partir das relações de distribui-
ção na medida em que elas se articulam nas relações de produção.
Tal é o objetivo teórico das seções IV a VI. Podemos nos admirar de
que a produção indireta (por intermédio das relações de distribui-
ção) do conceito de classe capitalista a partir das relações de produ-
ção não valha para a classe-trabalhadora, e que, por conseguinte, se
possa produzir o conceito de classe trabalhadora enquanto sujeito
do consumo diretamente a partir das relações de produção. Trata-se
de questão problemática, porque se O salário, como categoria da
produção, determina o salário como categoria da distribuição, as
duas categorias não se superpõem: para preencher o objetivo teórico
determinado pelo texto citado (t. VI, p. 209), Marx teria de explicar
a diferença entre classe trabalhadora tal qual definida pela partici-
pação na renda social sob a categoria do salário, e que, como tal,
neces-
engloba todos os trabalhadores produtivos € não-produtivos
tal
sários a qualquer processo de trabalho, € a classe trabalhadora
rela-
como determinada pelo salário como categoria da produção na
/capita-
ção bipolar “salário /mais-valia” ou “trabalho assalariado produti-
como tal, não engloba senão os trabalhadores
lista”, e que, O con-
vos, Ora, é evidente que uma teoria do consumo social supõe de
ceito completo da classe trabalhadora, definida pelas relações
distribuição, que são por sua vez determinadas pelas relações de
de O Capital nos põe
produção, Sobre essa questão, o inacabamento
diante de uma lacuna. Ra is
teórico da
c) Estamos agora em condições de definir o princípio livro
seção HH do
subarticulação |, esclarecendo o objeto comum da
em dois ele-
Il e do livro III, e definindo o princípio de repartição
mentos da produção das leis desse objeto. .
o livro III é
O objeto comum da seção Il do livro Il e de todo
“o processo de con-
precisamente, como o título do livro II o indica,
junto da produção capitalista”. Essa formulação pode ser especifica-
da: fazer a teoria completa do “processo de conjunto da produção
capitalista é fazer a teoria da distribuição do trabalho social entre os
diferentes setores e ramos da produção. Essa distribuição possui

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324 LER “O CAPITAL"

uma estrutura complexa com dominante. Mas é muito importante


dominante, cujo conceito
ressaltar que essa estrutura complexa com
a se-
é produzido por Marx em O Capital, não mais pode ser pensad
efeito, não é segundo
gundo foi prevista na Introdução de 1857. Com
os momentos da total idade apresentada na Introdução de 1857 que a
é
produção das leis do processo de conjunto da produção capita(alista
pro-
articulada. Não se passa do estudo do momento dominante
tos subordi-
dução cuja lei será a lei do valor) ao estudo dos momens,
mesmo depois em
nados, que seriam primeiro considerados por si
ribuição e o con-
sua unidade com o momento determinante. A dist
justamente passar
sumo não são estudados aqui porque seja preciso
omia política. 4
pelo estudo dessas categorias tra dicionais da econ
na medida em que
distribuição e o consumo não são estudados senão
lho social entre os
permitem determinar a lei de distribuição do traba
fundamental
diferentes setores e ramos da produção. Com efeito, a leipela estrutura
dessa distribuição, que é essencialmente determinada
os quais
específica do processo de trabalho dos setores e ramos entre
a - a lei do valor - só lhe determina a estrutura no inte-
ela se efetu desses limi-
rior de certos limites; o estudo das flutuações no interior
tes, que exige o estudo da distribuição e do consumo é, pois, apenas
distribui-
uma determinação complementar e subordinada da lei de
ção. A subarticulação 1 não se funda no conceito de modo de produ-
a menos que sé pudesse en-
ção em geral, com os seus “'momentos”, so ex-
e que fosse preci
contrar em toda a parte sob o mesmo nome,
o na mesma ordem qualquer que seja o modo de produção estuda-
Dalho id fundada na estrutura específica da distribuição do
p ri
Gba ÃO | ee de produção capitalista: a primeira o e
758 Segunda é dedicadaà dominante da estrutura, o!
é dedicada a um conjunto subor a mas
Marx situa da PATR
a ração
roduçãosua te elabo
ão qual seria a penta NO IUBAE,. PISPALAdadoAp que
dar um nome , a
teóricaestá Pa mpleta,

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 325

VI. Definição da Articulação II

A articulação II reparte, pois, o estudo do modo de € produça o


Dê po :
capitalista na teoria do processo de trabalho específico
da distribuição específica do trabalho social. Os done do irão
justamente complementares na medida em que à dir E balhd so-
balho social só pode ser definida a partir do processo ce tita a
cial específico, e na medida em que, para fazer a teoria d ia ico (a
de trabalho específico é preciso ater-se à um cana RO Olds
concorrência) no lugar da teoria da distrib uição ainda n RO
da. Evidentemente, complementaridade não significa e uctos. Se
que é a mesma coisa, reciprocidade completa das determ ia E
a baixa tendencial da taxa de lucro explica to dução
to, primeiro explicado pela “*concorrência , e iná de modo
ampliada seja a lei estrutural temporal, não lhe dete E catática 6 dir
algum o conceito. Por outro lado, a lei do Vo O balHO social,
nâmica da proporcionalidade da distribuição do turais do pro-
não seria absolutamente formulável, sem as leis a teóricos da
cesso de produção. Existe, pois, entre os dois semen fundamen-
articulação Il uma relação de determinação untuaça E produção, O
to é precisamente este; na teoria de qualquer m ” strutura do pro-
elemento teoricamente determinante é 0 conceito j ra do pro-
cesso de produção, não absolutamente porque na

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326 LER “O CAPITAL"

cesso de conjunto, como o deixa entender a Introdução de 1857


domínio da produção é sempre o determinante, mas porque o concei-
to de estrutura do processo não pode ser produzido a não ser a parti
do conceito da estrutura do processo de produção. É por isso também
que o deslocamento do problema que, nas seções 1 e II, dá a O Capi-
tal o seu primeiro objeto sob a sua primeira forma científica, deter-
mina em última instância a articulação Il, que acabamos de explicar,
embora não formule nem explícita nem implicitamente o seu princií-
io. Se esse começo é decisivo, sem ser uma predeterminação origi-
nária, é devido à posição teoricamente determinante, na elaboração
da teoria de qualquer modo de produção, do conceito da estrutura
do processo de produção específico.

Pta e
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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 327

VII. Conclusão

ula-
Esse trabalho tinha por fim tão-somente esclarecer as artic
O prolongamento
ções de O Capital e determinar os seus princípios. O
natural desse trabalho de apresentação consistiria em produzir
a
conceito do método que permitiu dar ao processo de pensamento
estrutura que definimos. Contentamo-nos em ter proposto, para
ção de em-
essa tarefa teórica principal, -que não tivemos a inten
lema mais bem coloca-
preender nestas linhas de conclusão, um prob
os textos de Marx dedicados à
do. Ora, verificamos, ao comentar
que à dificuldade para bem for-
apresentação do plano da sua obra, em parte do que
mular esse problema, embora elementar, provinha
o próprio Marx disse do seu método.

Partimos de fato de um texto (t. VI, p. 47) eml. que o próprio


seja qual
Marx produz o conceito da organização de O Capita Ora,
ito da organização
for a significação atribuída a esse texto, O conce o seu
em harmonia com
de O Capital que dele decorre jamais está l). Indagare-
objeto (o conjuntodas articulações efetivas de O Capita
dequação do concei-
mos apenas, para concluir, em que medida a ina o, € não apenas à
to e do objeto é inerente à problemática do text
istas precon-
problemática forjada com base no texto por comentar
ceituosos.

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É
LER “O CAPITAL”
328

Para isso, basta mostrar que todas as interpretações do texto


(passagem do individual ao global, da essência ao fenômeno, do mi.
croeconômico ao macroeconômico) que se mostram contraditórias
com o seu objeto, e em contradição entre si, só manifestam essas con-
tradições uma vez confrontadas efetivamente com o conceito verda-
deiro do seu objeto. À não ser sob essa condição, essas interpreta.
ções possuem uma coerência verdadeira, que é da ordem da ideolo-
gia, e mais precisamente da ordem da ideologia hegeliana, Ora,
essa
coerência ideológica é também o princípio unificador do texto de
Marx.
A articulação principal que lemos - implicitamente - com todos
os comentaristas funda-se na oposição “profundidade /superficie”
.
Com efeito, podem-se facilmente fundar todas as interpretações di-
vergentes do plano de O Capital a partir dessa oposição.

Profundidade | Superfície
Abstrato /concreto essência fenômeno
microeconômico | macroeconômico] átomo molécula
conseqiiências lógicas simples complexo
) Para reencontrar a problemática hegeliana por trás da metáfora
superficie”, basta ler a identidade entre a superfície e a “consc
iência
comum dos agentes da produção”, e restabelecer, por
conseguinte, O
que a metáfora ausente da profundidade designa: só pode ser
o ser-
dao Consciente da estrutura, a estrutura “em si”: “No livro 1, estu-
Ee ic Os Ceras aspectos que o processo de
produção Ap
Menteo 7 Passagem hegeliana do em-si para-si explica pues.
sm “O Tato de o ser-não-consciente da estrutura, a estrutura em
si”:
. Pa
essênciassag em do ab rato ao concreto do
ao fenômenst
o , in divividual ao global, da
indi
-
boa Ro Ro livro HI (t, VI, p. 47)é, pois, fundamentalmente Hr
não-hege liano a em que é a formulação ainda hegeliana de um € ah E
referência vo La Organização de O Capital); na medida em que só à
ncia implícita a Hegel pode elucidar a coerência de formulações
Superficial, a medida em que nada permite aproximar, medo.
que rege te, Os princípios da ordem de exposição hegelian:
Bem efetivamente a ordem de exposição de Marx.

Coptral pramos em especial que nenhum dos encadeamentos «dede O


egel, a fun à concebido segundo o método dialético que te a
gens: nenhun 9 teórica de permitir as transições teóricas OU/ a
ma das articulações ou subarticulações de O Ca?

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APRESENTAÇÃO DO PLANO DE “O CAPITAL” 329

pode ser compreendida nos termos de Aufhebung, de unidade dos


contrários, de determinação reciproca.
Para concluir, podemos formular um problema: qual é, pois, a
novidade do método de exposição seguido por Marx para que ele seja
obrigado a expô-lo numa linguagem antiga que o trai? E por que,
para avaliar a diferença específica desse método, Marx o chama
sempre de dialético, ao passo que nenhuma das conotações que fa-
zem desse conceito, em Hegel, um conceito rigoroso pode explicar
verdadeiramente a ordem de exposição marxista?

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