Você está na página 1de 247

Ruy Fausto

MARX:
LOGICA E POLÍTICA
Investigações para uma reconstituição
do sentido da dialética
Tomo I
1? edição 1983
2? edição

<< V ^X
\ i n
editora brasüiense
DIVIDINDO OPINIÕES MULTIPLICANDO CULTURA

\o ^ 19 8 7
ParaBeti
índice

Nota Introdutória............................................................................. 9
Introdução.......................................................................................... 11

1. Dialética Marxista, Humanismo, A nti-hum anism o................ 27


2. Althusserismo e Antropologismo................................ ............... 66

II

3. Abstração Real e Contradição: sobre o Trabalho Abstrato e o


V alor........................................................................................... 89

III

4. Circulação de Mercadorias, Produção Capitalista .................. 141


* * *

Apêndices

Apêndice 1: Sobre o Destino da Antropologia na Obra de M atu­


ridade de M a rx ............................................................ 227
Apêndice 2: Notas sobre o Jovem Marx ........................................ 236
Nota introdutória

A maioria dos textos deste volume, o primeiro de uma série,


como indica a introdução, fo i escrita em francês e traduzida pelo autor:
Embora marcados pela nossa experiência na Europa, os textos ultra­
passam, entretanto, esse quadro; e eles não foram escritos só tendo em
vista o público francês. Alguns textos retomam direta ou indiretamente
discussões ou seminários que fizemos no Brasil e no Chile. Outros,
embora redigidos em francês, na origem para que pudessem ser inse­
ridos em trabalhos universitários, foram escritos também já com vistas
a uma publicação no Brasil. Finalmente, a discussão do que se fez e faz
no Brasil tem um lugar, embora não muito amplo neste primeiro vo­
lume. A segunda secção da introdução é um caso especial, porque
analisa em parte uma situação histórica. Se o que dizemos sobre o
após-68 tomando uma faixa de tempo mais ampla tem um alcance mais
ou menos geral, parte das considerações se refere, como é explícito,
à Europa, em particular à França, e mesmo a uma conjuntura na
França (o texto foi escrito em abril de 81; entretanto, para os proble­
mas tratados, a situação se modificou menos do que se poderia pensar).
Apesar disso, decidimos conservar tal qual a introdução, e isto pelas
seguintes razões. O que nela se procura mostrar (de um modo preli­
minar) é a exigência e a dificuldade de, ao mesmo tempo, retomar os
problemas da dialética clássica (Hegel e Marx) e fazer a crítica da
dialética clássica. Pareceu-nos que universalizaríamos melhor esse pro­
blema — nos limites das considerações parcialmente históricas de uma
introdução — mostrando a sua particularização numa situação dada
que pudemos explorar um pouco (que de resto é ainda a de um centro
maior), do que desenvolvendo-o de uma form a geral, ou tentando mos­
trar como ele se apresenta no Brasil. A França representa, um pouco,
um caso limite das dificuldades, ou de Um tipo delas. Conhecer esse
caso é instrutivo, mesmo se os problemas, que num nível são análogos
(ou se pretende conservar sem crítica a dialética clássica, ou se quer
simplesmente abandoná-la), tomam uma outra figura no Brasil (entre
outras coisas, o dogmatismo da tradição é, no Brasil, provavelmente
10 RUY FAUSTO

mais forte — mesmo se em regressão — do que o dogmatismo da


ruptura).

São Paulo, outubro de 1982


Paris, novembro de 1982
Introdução
1. O conjunto de textos que começamos a publicar sob o título
geral Marx: Lógica e Política contém uma análise e uma crítica do
marxismo. O conjunto se organizará em torno de três eixos: um sobre o
problema da relação entre marxismo e humanismo; um sobre a lógica
de O Capital e, em geral, sobre a lógica da crítica da economia política;
e um sobre o problema da relação entre marxismo e historicismo. É em
tomo desses problemas, cada um dos quais tem um lugar na história da
constituição do marxismo, e na história do seu desenvolvimento, que se
fez, nos últimos anos, a discussão em torno da significação filosófica do
marxismo. Pretendemos retomá-los.
O plano provisório do nosso projeto geral contém çinco partes,
das quais só a primeira é apresentada aqui.
Este primeiro tomo está constituído essencialmente por trabalhos
sobre a relação entre marxismo e humanismo ou marxismo e antropo­
logia (“Dialética marxista, Humanismo, Anti-humanismo” , “Althus-
serismo e Antropologismo”) e por ensaios sobre O Capital e em geral
a crítica da economia política (“Abstração real e contradição: sobre
o trabalho abstrato e o valor” , “Circulação de mercadorias, produ­
ção capitalista”); mas os ensaios sobre o antropologismo também
tocam neste último problema.
Se o conjunto do projeto visa a análise e a crítica do marxismo —
a conexão interna entre os dois momentos será melhor explicada mais
adiante — este primeiro tomo fica, em geral, no primeiro momento.
Esses textos são polêmicos. Eles têm como objeto leituras de Marx que
julgamos errôneas, mas que consideramos como grandes leituras ou,
pelo menos, como leituras muito interessantes. Trata-se da leitura de
um filósofo (e de seus discípulos), de dois economistas, e de um autor
que é ao mesmo tempo filósofo, economista, teórico da política etc.
Trata-se de reencontrar a dialética a partir dessas leituras, as quais,
apesar das suas diferenças — e elas são muito grandes — aparecem
como leituras do entendimento. Cremos que a maneira polêmica per­
mite, num primeiro momento, precisar certos pontos aos quais volta­
remos em forma sistemática. Dado o seu caráter, esses textos contêm,
certamente, repetições. Modificamos os originais, mas pouco: o inte­
resse que oferecem é talvez o de levantar os mesmos problemas, a
14 RUY FAUSTO

propósito de autores diversos. E se os textos são polêmicos, eles se


pretendem ao mesmo tempo alternativos. Observemos por outro lado
que foi necessário entrar em muitos detalhes e analisar os problemas de
uma maneira bastante técnica. Não acreditamos que se possa chegar a
discutir grandes temas sem passar por micrologias. A idéia de que a
dialética possa prescindir de uma certa tecnicidade é um mito.
Aos quatro textos principais acrescentamos dois outros: o pri­
meiro é de certo modo um texto germinal sobre o conjunto da proble­
mática do humanismo e do historicismo. Nós o incluímos em razão
mesmo das suas insuficiências: o seu interesse é o de representar uma
tentativa de pensar os problemas da dialética por meios que não vão
além do seu limiar, e que de qualquer modo ficam aquém dela.1
O segundo texto contém algumas das idéias sobre o jovem Marx, que
desenvolvemos em várias ocasiões em forma oral,2 e antecipa em es­
boço a parte histórica deste trabalho.
Os outros tomos se organizarão do seguinte modo: o segundo
conterá um ensaio sobre a relação entre marxismo e historicismo, e
alguns trabalhos sobre a história e a pré-história da dialética (inclusive
sobre a obra do jovem Marx), no plano da filosofia, da política e da
economia. O terceiro conterá um texto que deveria servir de intro­
dução, mas que se tornou longo demais, e que representa um balanço
crítico do marxismo. O quarto analisará de um modo sistemático a
lógica da crítica da economia política de Marx (e sua relação com
Hegel). O quinto tentará tirar conclusões mais gerais, sobre o conteúdo
das quais nos explicaremos em outro lugar.
O título Marx: Lógica e Política remete àquilo que representa,
em certo sentido, os dois extremos do domínio dessa investigação. Mas
esse título (que anunciamos desde pelo menos 1975) abrevia: os extre­
mos são, na realidade, por um lado os “fundamentos"3 lógicos da crí­
tica da economia política, e por outro a prática política.*

(*) Agradecemos ao prof. Jean Desanti sob a direção do qual apresentamos este
primeiro tomo como tese de terceiro ciclo à Universidade de Paris I. Agradecemos
igualmente aos professores Hélène Vedrine e François Châtelet, que participaram tam­
bém da banca. Agradecemos a François Bon, Alain Grosrichard e Franck Lahmy, que
não s6 nos ajudaram a fazer a revisão do texto francês, mas que discutiram conosco,
certas partes ou a totalidade, deste primeiro tomo. Paulo Eduardo Arantes também leu
o texto, e agradecemos as suas observações. Agradecemos ainda a Beth Lobo, que nos
ajudou no trabalho de datilografia e a quem dedicamos este primeiro tomo.
“Sobre a dialética e o marxismo” (inédito) — segunda parte da introdução
— é de 1981. “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo” (publicado pela
revista Discurso, São Paulo, n? 8, 1978, sob o título “Dialética Marxista, Antropo-
logismo, Anti-antropologismo”) é de 1974-75; fizemos algumas modificações no texto.
“Althusserismo e Antropologismo” (publicado em francês na revista L ’Homme et la So­
ciété, número duplo 41-42, Paris, 1976, e em português na revista Almanaque, São
Paulo, n? 4, 1977) é de 1975; acrescentamos ou modificamos algumas notas. “Abs­
MARX: LOGICA E POLITICA 15

2. Sobre a dialética e o marxismo — Sem desenvolvê-las com


todo rigor, julgamos útil incluir nesta introdução, de uma forma abre­
viada, algumas das considerações sobre a dialética e o marxismo, que
retomaremos no terceiro tomo deste trabalho.
Se se quiser resumir o projeto do qual esses ensaios representam o
ponto de partida, diríamos, decalcando uma expressão que não é
nossa, que se trata — ou gostaríamos de que se tratasse — de apre­
sentar os “materiais para uma reconstrução da dialética” . 4
“Materiais para uma reconstrução da dialética” — supõe pelo
menos duas coisas: 1) que a idéia da dialética como teoria rigorosa
esteja, de certo modo, destruída; 2) que seja preciso e, em princípio,
que seja possível reconstruí-la.
Primeiramente, algumas precisões sobre o objeto das considera­
ções bem sumárias que vêm em seguida, bem como sobre a perspectiva
que elas supõem. Nos limitaremos, propriamente, à situação e à histó­
ria da dialética, sem considerar o conjunto (do pensamento francês ou
europeu) em que ela se situa, mesmo se, num certo momento, for
necessário fazer algumas incursões num domínio mais geral. Isto não
significa que trataremos somente daqueles que reivindicam o pensa­
mento dialético, mas que nos referimos somente àqueles que têm, ou
que acreditaram ter, uma relação essencial, positiva ou negativa com
ela. Por outro lado, como em certa medida independentemente da
questão do campo do objeto é necessário saber de onde se fala, onde
nos situamos para falar da dialética, precisamos — sem o que dema­
siadas coisas ficariam incompletas e incompreensíveis — que as consi­
derações seguintes devem ser lidas, supondo que elas provêm do
“meio” do pensamento dialético, da sua interioridade.
A dialética — entendamos por isso —, a idéia da dialética
enquanto discurso rigoroso, caiu sob os golpes do que paralelamente
ao “marxismo vulgar” deveríamos chamar de “dialética vulgar” ou de
“dialéticas vulgares” . Pensamos em todos aqueles discursos que empre­
gam o termo “ dialética” sem fazê-lo corresponder a um objeto consti­
tuído de uma maneira rigorosa. A dialética, sem dúvida, não se sabe

tração real e contradição: sobre o trabalho abstrato e o valor” (inédito em portu­


guês) foi publicado em francês numa versão um pouco diferente e abreviada em Cri­
tiques de VÉconomie Politique, Paris, Maspero, nova série, números 2 e 3 (janeiro-
março e abril-junho de 1978). "Circulação de mercadorias, produção capitalista” (iné­
dito, com exceção de um fragmento publicado em francês no número 18, janeiro-
março de 1982, nova série de Critiques de VÉconomie Politique, sob o título “Sur la
forme de la valeur et le fétichisme) é de 1981. Também o segundo apêndice. —
Como indicamos, só o primeiro apêndice (que é de 1968) deve ser considerado como
pertencente a um universo teórico diferente do conjunto dos textos. Os demais, uma vez
situados no interior do projeto global, que, entretanto, é “contraditório”, podem ser
considerados como se remetessem a um corpus teórico único.
16 RUY FAUSTO

mais o que ela é, mesmo e sobretudo se se emprega o conceito — ou se o


empregava — como se se soubesse muito bem.
Mas se há crise da dialética, é preciso por um lado datá-la, e por
outro definir suas relações com o que se chama de crise do marxismo. A
crise da dialética — ou a idéia de uma crise da dialética (referimo-nos
sempre só aos que se situam no seu “meio”) — é anterior ao que se
chama de crise do marxismo. Sem dúvida, no período anterior a 1968
(é no após-68 que se situa a eclosão da chamada crise do marxismo)
alguns fizeram pelo contrário a crítica do marxismo, sem questionar a
dialética (embora questionando a dialética clássica). Ê o caso de Mer-
leau-Ponty nas Aventuras da Dialética, é sobretudo o caso dos pensa­
dores de Frankfurt. Entretanto, os pensadores de Frankfurt (como o
Merleau-Ponty de As Aventuras da Dialética) j5e qualquer que seja o
ano da publicação de suas obras, são nossos contemporâneos no sen­
tido mais preciso. Eles pertencem ao presente mais imediato. É de
Sartre — do Sartre da Crítica da Razão Dialética — que é necessário
falar, a propósito da crise da dialética sem verdadeira crise do mar­
xismo. Sem dúvida, em Sartre há, como ponto de partida, tanto crise
da dialética como crise do marxismo. E uma vez realizado o trabalho
crítico, nem o marxismo — mesmo se se lhe enxerta a “ideologia”
existencial — nem a dialética serão mais questionados. Mas o mar­
xismo estaria em crise não porque “o conteúdo dos seus enunciados
seja falso” mas porque “ele não dispõe da significação: Verdade".*'
“O materialismo histórico” permanece como “a única verdade da His­
tória” , ainda que ele seja ao mesmo tempo “uma total indeterminação
da verdade” . (Ibidem) O problema é, assim, não o da verdade do
marxismo, mas o da verdade de sua verdade. O marxismo é a “filosofia
do nosso tempo” e filosofia “insuperável” . (Idem, p. 29) Somente “não
se sabe o que é para um historiador marxista dizer a verdade". (Idem,
p. 118) Por isso — e somente por isso — é preciso perguntar “ que é a
racionalidade dialética, quais são os seus limites e o seu fundamento?” .
{Idem, p. 135)7
Com a eclosão da crise do marxismo, o problema se complica.
É preciso dizer alguma coisa sobre o sentido dessa crise. Na realidade,
ela eclode a partir de vários problemas, cujos efeitos sobre o corpus do
marxismo são diversos e de profundidade diferente. Há por um lado —
no Ocidente — as mudanças do capitalismo — as novas clivagens,
as novas lutas. Apesar de tudo, é provavelmente esse o aspecto em que
o marxismo — que é essencialmente uma teoria crítica do capitalismo
— se acha em melhor situação. As leis do capitalismo clássico são mais
“negadas” do que anuladas. Há aí provavelmente Aufhebung do mar­
xismo e não mais. O segundo ponto é o da nova dimensão que ganha a
história com os novos meios de destruição. Analisaremos em detalhe o
sentido desse fenômeno em relação à tradição clássica: aqui, observamos
apenas que não basta dizer, a esse respeito, que em lugar de passar da
MARX: LÔOICA K 1’OLlTIC'A 17

pré-história à história, história que representaria a posição do homem,"


ficamos na pré-história. A história do século XX remete, na realidade,
à posição do homem — mas à posição negativa do homem. Isto quer
dizer que, em certo sentido, se passou à história, mas como advento
não da vida genérica, mas da morte genérica, da destruição genérica.
Passamos a alguma coisa que é ao mesmo tempo história e pré-
história. História na pré-história. Talvez pudéssemos chamá-la de anti-
história. Esse fenômeno não foi pensado, prospectivamente, pelo m ar­
xismo clássico. Mais do que isto, o que ocorreu desvia, relativamente ao
curso “previsto” da pré-história, o da posição da vida genérica, o da
passagem à história. Há aí uma negação do marxismo que é mais forte
do que uma Aufhebung. E entretanto, em suas grandes linhas, a visão
clássica (ou muitas coisas na visão clássica) permanece válida enquanto
teoria da pré-história (na sua forma primeira). É assim que o marxismo
se mantém como teoria de uma história — de uma pré-história —
numa escala limitada. Para além de um certo limite, as leis que ele
enunciou não são mais válidas. Há aqui uma mudança de escala, a ul­
trapassagem de um limite, ultrapassagem não “prevista” num processo
(de destruição crescente) que era entretanto conhecido. Mas, em ter­
ceiro lugar, há o destino das sociedades ditas socialistas, no Leste.
O drama das transições que não conduzem a nenhum lugar, isto é: que
conduzem a elas mesmas. Ora, é a propósito desse fenômeno — e em­
bora, por um lado, ele represente, em relação à ultrapassagem de
limite analisada anteriormente, uma mudança menos radical, e em­
bora, por outro lado, se refira a formações que nlo poderiam ter sido
estudadas por Marx porque lhe são posteriores — é por esse fenômeno
que o marxismo é mais duramente atingido. Aqui estamos, propria­
mente, diante de um bloqueio da pré-história. E este bloqueio da
pré-história é mais grave para o marxismo do que a emergência da
anti-história. Sobretudo se se pensar que esse bloqueio é o de regimes,
o de um regime pelo menos, que provém de uma revolução que não era
uma simples revolução burguesa ou camponesa. A esse respeito, e
mesmo se nos seus textos sobre a Comuna, sobretudo,9 Marx soube
falar dos perigos do Estado, ele nunca pensou na possibilidade de uma
outra saída de “progresso” (e mesmo se o comunismo é para ele
empresa de liberdade) se não a passagem ao comunismo. A emergência
das sociedades burocráticas representa para o marxismo uma negação
que é não só mais forte do que uma Aufhebung, mas mais forte
também do que uma mudança de escala. Representa um corte ou uma
ruptura em relação a ele.10
Mas uma tal análise dos níveis da crise só pode ser feita através
de uma retomada do problema da dialética. Só a retomada do projeto
da dialética enquanto discurso rigoroso permitiria mostrar até onde
pode ir o marxismo, em que sentido e em que medida ele se rompe. A
análise dos limites do marxismo é assim, ao mesmo tempo, investi­
18 RUY FAUSTO

gação dos seus “fundamentos” . O que significa: o marxismo enve­


lheceu mas, ao mesmo tempo, ele é desconhecido. E ele é desconhecido
— voltamos ao ponto de partida — porque a dialética é desconhecida:
ela se perdeu nas dialéticas vulgares — antes de sofrer o contrachoque
da “crise do marxismo” . É necessário assim realizar um duplo traba­
lho, cujos momentos se apresentam como opostos: analisar os limites
do marxismo, o que supõe uma relação crítica com ele, e analisar os
seus “fundamentos” (a noção de “crítica” , mas em sentidos diferentes,
convém, em certa medida, aos dois casos). Que o marxismo tenha
envelhecido e que ele seja ao mesmo tempo desconhecido, isto quer
dizer que se foi além dele, mas que ao mesmo tempo estamos aquém
dele. Dir-se-ia que o caminho do fundamento (Grund) é ao mesmo
tempo o caminho do abismo (zu Grunde gehen). Mas a fórmula hege-
liana não convém, inteiramente, aqui. Os dois caminhos não se encon­
tram numa “negação” . Suas relações são mais complexas e diversi­
ficadas.
Do conjunto dessas considerações não resulta que a dialética não
possa ser questionada, pelo menos regionalmente, também no ponto
de chegada do projeto. Por outras palavras: sabemos que a dialética vai
mais longe do que o marxismo, que nãò haverá novos marxismos, mas
que pode haver novas dialéticas. Mas não haveria também objetos
sociais diante dos quais toda dialética seria teoricamente impotente?
Não o excluímos. Acreditamos mesmo que é possível mostrar que tipo
de objeto social resiste a ela. Mas — pelo menos num primeiro mo­
mento — só investigações na e sobre a dialética poderiam mostrar
por que eventualmente ele não dominaria esses territórios novos.
Mas só falamos da crise do marxismo tal como ela aparece para
nós (o que deveria significar em si). É preciso ver como ela aparece
para si. E esse para si da crise faz parte, evidentemente, da própria
crise: num certo sentido, lá reside o essencial. A crise aparece como a
morte — tanto do marxismo como da dialética. Marx é considerado
hoje como “Espinosa no tempo de Lessing” , como Hegel no tempo de
Marx — “como um cachorro morto” . Poderíamos dizer que isto vale
também para Hegel, pelo menos na medida em que a dialética de Marx
aparece como ligada à dialética de Hegel. Como dissemos, esta per­
cepção ilusória da crise é constitutiva da crise, mesmo se ela não a
esgota. Vejamos os caracteres gerais do momento, no qual “circula
muita verdade” mas que revela ao mesmo tempo tudo o que nele há de
falsa consciência.11Nós nos referimos aqui — ultrapassando os limites
anteriormente indicados — tanto àqueles que se ocupam diretamente
do problema do marxismo e da dialética, como àqueles, com freqüên­
cia figuras mais importantes, que se mantêm mais ou menos à distância
dele. Digamos em primeiro lugar, pensando sobretudo nestes últimos
(que entretanto polemizam freqüentemente com a dialética): eles nos
apresentam a dialética como uma filosofia envelhecida das essências e
MARX: LÓGICA E POLITICA 19

da contradição. Eles nos convidam a passar a outra coisa. Poderíamos


passar a outra coisa, mas gostaríamos de estar seguros de que as velhas
filosofias das essências e da contradição estão esgotadas. Ora, o que
nos impressiona são as insuficiências visíveis desses mesmos, quando
eles falam da dialética. Se em alguns já não se encontram os velhos
clichês — a dialética como simples continuísmo, a confusão entre
dialética e historicismo (ou pelo contrário: as rupturas e o anti-histo-
ricismo) — eles ficam de qualquer modo aquém do manejo rigoroso da
negação enquanto Aufhebung. O ponto essencial no nível lógico é que
eles não se dão conta de que não pode haver oompreensão da dialética,
sem o movimento do que é exprimido (posto) e do que não é exprimido
(pressuposto). O manejo rigoroso da distinção entre pressuposição
(discurso implícito) e posição (discurso explícito) lhes escapa. E sem
isso não há dialética. São essas insuficiências que nos fazem duvidar de
um certo pós-hegelianismo e pós-marxismo, qualquer que seja, de
resto, a originalidade de alguns dos seus representantes. Mas ftossemos
propriamente à análise de alguns dos traços gerais do momento. Há de
um certo modo ruptura do marxismo (um pouco como ocorreu com
Hegel no século XIX). Se o marxismo12 n&o pretendia ser nem um
moralismo nem um amoralismo, temos agora de um lado uma filosofia
moralizante (a moral está mais do que nunca em moda), por outro lado
se nada nas águas de uma filosofia da irresponsabilidade.13 (Podería­
mos acrescentar, talvez, que as duas tendências se revertem: como
disse alguém a propósito dos teóricos da morte do homem,14 poder-
se-ia dizer que os defensores de uma filosofia da irresponsabilidade lu­
tam muitas vezes pelos direitos do homem e, inversamente, que é incerto
que os neomoralistas, bem inseridos no sistema, considerem sempre
o outro (homem) “não só como um meio mas também como um fim” .)
Por outro lado, a época se caracteriza ao mesmo tempo, pelo
menos em certos meios, por uma formidável pressão positivista e tecno-
crática. Ex-“ dialéticos” só juram pelo formalismo e pela empiría.
Nesse sentido, os pensadores de Frankfurt, aos quais voltaremos logo
mais adiante, são mais atuais do que nunca. Aliás, hoje aparece algo
como uma caricatura do pensamento de Frankfurt: seria necessário
comparar, por exemplo, o que dizem os pensadores de Frankfurt e o
que dizem certos filósofos em moda sobre o pensamento clássico como
pensamento do poder.15 No que se refere à relação com o marxismo,
insistamos sobre o baixo nível da crítica: se lê ou se retém sobretudo os
prefácios de Marx, esquecendo que, se é sempre desaconselhável fixar-
se nos prefácios, no interior da dialética clássica os prefácios são
impossíveis. Hoje ocorre com os prefácios de Marx o que antigamente
acontecia com os exemplos de Hegel.
Mas dizer que a dialética foi destruída ou que ela é hoje desco­
nhecida pode parecer excessivo. Tentemos introduzir algumas preci-
sões. Sem fazer história, seria preciso distinguir a situação na França
20 RUY FAUSTO

da situação na Alemanha. Na Alemanha, houve o pensamento de


Frankfurt. E os pensadores de Frankfurt, Adorno sobretudo, “mane­
jaram ” a dialética como não se fizera desde Hegel e Marx. Digamos
somente, por um lado, que os pensadores de Frankfurt se ocuparam
pouco de problemas propriamente lógicos (senão indiretamente, em­
bora a Dialética Negativa trate finalmente da lógica e o termo lá se
encontre). E por outro lado que, como outros o mostram,16 o pós-
Frankfurt é incerto. Na França, a situação é bem diferente. Por um
lado, poderíamos dizer que ou se leu e conheceu Hegel, ou se conheceu
Marx (em particular O Capital), mas não as duas coisas ao mesmo
tempo. Sartre, que deve certamente alguma coisa à Fenomenología do
Espírito, escreve uma Crítica da Razão Dialética da qual a lógica de
O Capital está ausente. Althusser e os althusserianos, que trabalharam
muito O Capital, não conhecem Hegel (o Hegel deles é realmente irre­
conhecível). 17 Mas no fundo, o problema é mais simples. Se nos fixar­
mos não na Fenomenología do Espírito mas na Lógica de Hegel (e
parece que não se pode conhecer realmente a primeira sem conhecer
esta última) diríamos que tanto Hegel como Marx lhes escapam. É
finalmente a dialética que eles não apreendem. Hoje a situação se
modifica, é verdade, com o aparecimento de muito bons especialistas
na filosofia hegeliana. Mas por enquanto esse trabalho muito impor­
tante permanece adstrito ao “gueto” da história da filosofia, ele conti­
nua sendo um trabalho de especialista. Entretanto, graças a ele, outras
coisas se tornam possíveis.
E se pelo menos num primeiro nível a dificuldade aparece sob a
forma da alternativa ou se conhece Hegel ou se conhece Marx, a mesma
dificuldade — porque se trata de O Capital — aparece na alternativa:
ou se trata (alguém trata) de filosofia ou se trata de economia, mas não
das duas coisas ao mesmo tempo. Mais precisamente: o fato de o
grande texto da dialética clássica depois de Hegel ter sido uma crítica
da economia política, crítica bastante técnica porque ela é ao mesmo
tempo “ a apresentação do sistema (da economia burguesa) e pela
apresentação a sua crítica” , 18 influiu muito, abstração feita de outros
fatores, sobre o destino da dialética clássica. Esta alternativa não vale
só para a França. Mas ao que parece, na França ela está particular­
mente presente. A organização administrativa do saber excluiu por si
mesma a possibilidade da “produção” de um leitor capaz de ler um
discurso que se constitui na intersecção das suas divisões. E tanto mais
que esse discurso “intersecta” de um modo que não é o das inter­
secções reconhecidas, digamos, aquelas que autoriza a epistemología,
teoria subjetiva do saber, na qual precisamente (nas versões vulgares,
é verdade) se encontra o modelo (ou a cópia?) das divisões instituídas.
Nesse sentido, a leitura de O Capital pelos althusserianos, leitura que
deve à tradição da epistemología — e que leva as suas marcas para o
melhor como para o pior — faz papel de pioneira.
MARX: LÓGICA E POLITICA 21

E como falamos do althusserismo, é necessário acrescentar as


considerações seguintes. Hoje o althusserismo é considerado supe­
rado. Mas de certo modo, ele nunca foi refutado. E aqueles que não
“historicizam” (e da maneira mais selvagem), “althusserizam” , fre­
qüentemente sem querer. O althusserismo foi importante e teve rigor
(pensamos na sua forma clássica, não na autocrítica barateada que a
sucede). Trata-se de uma grande tentativa (pelo menos no interior da
lógica, porque se tratava de lógica e não mais) de pensar o marxismo a
partir das categorias do entendimento. Acrescentemos que em termos
muito gerais a ênfase que os althusserianos deram a um Marx não-
hegeliano não é sem justificação. Mas nas condições atuais é preciso
mostrar primeiro o parentesco entre as duas dialéticas, para pensar
depois a diferença. Ê preciso tratar ainda do althusserismo.
Resumimos os nossos resultados. Ao contrário de muita gente,19
cremos que é preciso retomar a fundo os problemas do chamado
período anterior: “Como nos relacionamos afinal com a dialética...?” 20
“O que (fazer) da Lógica?” 21 O que nos remete à pergunta “Que é a
dialética?” Este é o problema geral desses “Materiais..

Paris, abril de 1981

NOTAS

(1) O ponto de partida de nossas invejstigações foi o problema — que estava na


ordem do dia no início dos anos 60 — das relações entre o marxismo e a moral,
o problema dos fundamentos da política marxista. Esta problemática da relação entre
marxismo e humanismo — desenvolvida no quadro de uma análise do pensamento do
jovem Marx — se prolongou na problemática da relação entre marxismo e histori­
cismo (embora, contrariamente à primeira, só com a emergência do althusserismo
a tenhamos chamado assim). Essas duas problemáticas foram completadas — depois
nos demos conta de que tudo isso confluía — por investigações sobre a lógica de O Ca­
pital e investigações históricas. — O ponto de partida dos nossos resultados foi a
observação de que, embora se recusando a fundar a prática (porque a fundação repre­
sentaria uma “queda” na ética) o marxismo não era entretanto estranho à idéia de
homem. Mais precisamente, o ponto de partida era a idéia de que, se o homem
permanecia implícito no marxismo, havia entretanto uma grande diferença entre o
(homem) implícito e o (homem) explícito. Portanto, de que o marxismo nem se funda­
mentava no homem nem recusava o homem (o homem ficava no horizonte). Entre­
tanto, exprimíamos ainda esse movimento por conceitos pré-dialéticos como horizonte,
tematização etc.
(2) Inclusive em dois cursos: um no departamento de Filosofia da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da USP em 1968, e outro, no quadro do tema “Mar-
22 RUY FAUSTO

xismo, Humanismo, Anti-humanismo”, no departamento de Filosofia da Universidade


de Paris VIII (Vincennes) em 1979. Várias outras partes deste trabalho, neste tomo
ou nos tomos seguintes, foram igualmente objeto de cursos universitários.
(3) As aspas serão justificadas no texto.
(4) Cf. Hans-Georg Backhaus, “Materialien zur Rekonstruktion der Marx-
schen Werttheorie” in Gesellschaft, Beiträge zur Marxschentheorie, 1, 3 e 11, Suhr-
kamp, Frankfurt, 1974, 1975, 1978. O n? 11 de Gesellschaft... (em que se encontra a
terceira parte do texto de Backhaus) publica um artigo assinado por Wolfdietrich
Schmied-Kowarzik, cujo título é “Zur Rekonstruktion der materialistischen Dialek­
tik”. A expressão deve assim a muita gente.
(5) “A conclusão dessas aventuras é assim a de que a dialética era um mito?
(...) (...) O que está (...) caduco não é a dialética, é a pretensão a terminá-la num fim
da história ou numa revolução permanente, num regime que, sendo a contestação de
si mesmo, não precisa mais ser contestado de fora, e em resumo não tem mais ‘de
fora’ ", (Merleau-Ponty, Les Aventures de la Dialectique, Paris, Gallimard, 1977,
(1955), p. 301, a tradução é nossa.) E quanto ao marxismo: “E não é de estranhar que
Trotski retome sem hesitação o naturalismo marxista e que ele fundamente, com Marx, o
valor no ser (...) (...). Sim, a prática bolchevique e o trotskismo estão na mesma linha, e
são conseqüências legítimas de Marx". (Idem, p. 130) Ver o conjunto da polémica contra
Lefort no capítulo IV das Aventuras...
(6) Sartre, Critique de la Raison Dialectique, Gallimard, 1960, p. 118.
(7) Pode-se opor um Sartre que repense a dialética para fundar o marxismo a um
Merleau-Ponty que questiona o marxismo mas conserva a dialética. E preciso observar,
entretanto, que Sartre vai até a crítica da noção de ditadura do proletariado. (Ver
Critique..., p. 630, como observava H. Vedrine en Les Philosophies de l'Histoire, Payot,
p. 118) E que, inversamente, ñas páginas finais das Aventuras da Dialética, fazendo do
“a priori e da moralidade” a verdade do “atentismo marxista” que ele professava em
Humanismo e Terror, Merleau-Ponty deixa uma porta aberta (mas bem ambigua, se se
pensar no que ele escreve no capítulo IV) para um marxismo que não seja “de vida
interior”. (Les Aventures de la Dialectique, op. cit., p. 339)
(8) Sobre esse ponto, mas nos limites do universo clássico, ver o primeiro ensaio.
(9) Mas não na discussão com Bakunine. Analisaremos em detalhe, num outro
tomo, tanto a discussão com Bakunine como os textos sobre a Comuna. Ver a esse
respeito Michel Bakounine, Oeuvres Complètes, editadas por Arthur Lehning, 4, Paris,
Champ Libre, 1976, p. 347; Marx-Engels, Werke, 18, Berlim, Dietz, 1962, p. 635,
e Werke, 17, op. cit., 1971, sobretudo pp. 541-544. E R. Bahro, L'Alternative, Paris,
Stock, 1979.
(10) Haveria áinda um quarto ponto a ser considerado, na realidade essencial:
o do Terceiro Mundo. A configuração do problema é aí diferente das três outras, e bem
complexa. Para não nos aventurarmos em hipóteses, deixaremos provisoriamente de lado
este ponto.
(11) Discutiremos neste trabalho o uso do conceito de consciência.
(12) A frase seguinte não deve ser entendida como se significasse que a solução
marxista continua sendo válida; ela quer dizer apenas que a polarização descrita não
representa um avanço.
(13) Pensamos, respectivamente, nos “novos filósofos” e em certos désirants.
(14) Por um novo filósofo: “Elas(as questões sobre o indivíduo...) são mais atuais
do que nunca, na hora de uma esquizofrenia sapiente que pretende defender pratica­
mente os direitos de um homem cuja morte teórica, de há muito ela não pára de
anunciar”. (Bernard Henri Levy, Le Testament de Dieu, Grasset, 1979, p. 75) Como na
dialética Ao Aufklärung e da superstição na Fenomenología do Espírito, assim como na
dialética do romantismo econômico e da economia clássica nos Manuscritos de 1844,
“esta oposição é a mais amarga e faz com que se escute reciprocamente a verdade”.
(Werke,Ergänzungsband, I, Ökonomisch-philosophische Manuscripte, (1844), op. cit.,
1968, p. 526) O que cada um diz do outro é verdade, mas não o que cada um diz de si
MARX: LÓGICA E POLÍTICA 23

mesmo. Esta configuração é de resto essencial — ela é mesmo a chave — para pensar a
situação contemporânea.
(15) É necessário insistir sobre o dogmatismo de certos campeões do antidogma­
tismo. Na medida em que eles não distinguem o que é “posto” do que é “não-posto”, se
se quiser o ato e a potência, toda tendência se torna realidade efetiva. Aí jaz o segredo
dos livros que põem numa mesma categoria — maldita — os pensadores ou os escritores
mais diferentes. A dialética, pelo contrário, que distingue a possibilidade e a efetividade,
o pressuposto e o posto, sabe registrar a presença de tal ou qual motivo inquietante nos
clássicos, mas sabe também mostrar os limites dessas tendências. (Ver Adorno e também
Horkheimer, passim, a esse respeito)
(16) Ver Hans-Günther Holl “Emigration dans l’immanence”, le mouvement
intellectuel de la dialectique négative”, posfácio a Theodor Adorno, Dialectique Nega­
tive, trad. franc., Paris, Payot, 1978, pp. 325 e segs.
(17) A ausência quase total de referências aos textos de Hegel numa obra (Lire le
Capital) que pretende mostrar o não-hegelianismo de Marx é em si mesmo um sintoma.
(18) Werke, 29, op. cit., 1963, carta de Marx a Lassale, de 22 de fevereiro de
1858, p. 550; Lettres sur le Capital, tradução, apresentação e notas por G. Badia, Paris,
Ed. Sociales, 1964.
(19) Por exemplo, vamos na direção contrária à de Perry Anderson em Conside-
rations on Western Marxism, New Left Books, 1976, cuja tônica é o esgotamento da
problemática filosófica do marxismo.
(20) “Como nos relacionamos afinal com a dialética de Hegel?” (“Wie halten wir
es nun mit der Hegelschen Dialektik?"). (Werke, Ergänzungsband, I, Ökonomisch­
philosophische Manuskripte, (1844), op. cit.., p. 568, grifado por Marx) A analogia entre
as duas situações históricas, que a citação induz, quer dizer somente: hoje como então
corremos o risco de abandonar um grande pensamento, sem verdadeira crítica.
(21) “Was nun mit der Logik”. (Werke, Ergänzungsband, I, Ökonomisch-philo­
sophische Manuskripte, (1844), op. cit., p. 569)
1

Dialética marxista,
humanismo, anti-humanismo

PRIMEIRA PARTE

a) A história em Marx e a “Fenomenología do Espírito” de Hegel

Para pensar o que representa em termos lógicos a idéia de um


devir do homem (do homem-sujeito) em Marx — de um hotnem-
sujeito que vem à existência mas que ainda não existe — é necessário se
referir a Hegel e particularmente à Fenomenología do Espírito. Com
efeito, a situação do “homem” no esquema marxista da história (no
dos Grundrisse, pelo menos) é análoga à situação do espírito na Feno­
menología do Espírito de Hegel. Trata-se de uma comparação antiga,
mas que é raramente interpretada de um modo rigoroso, e o caráter
superficial das interpretações correntes é uma das razões da recusa
recente de toda leitura de Marx a partir de Hegel. Vejamos em que
sentido preciso se poderia dizer que o “homem” em Marx ocupa uma
posição análoga à do espírito na Fenomenología do Espírito de Hegel.
Do mesmo modo que no esquema marxista da história, o homem só
vem no final do que Marx denomina (ver prefácio à Contribuição à
Crítica da Economia Política)' “pré-história da sociedade humana” , —
o espírito só se apresenta enquanto espírito no final da Fenomenología.
E isto mesmo do ponto de vista da consciência filosófica} Com efeito,
no início e ao longo da Fenomenología, o espírito não é em sentido
forte, e isto tanto para a consciência comum (único aspecto que ordi­
nariamente se reconhece) como para a consciência filosófica, embora
as duas ausências não tenham a mesma significação. No que se refere à
consciência comum, não há nenhum problema — o espírito é pura e
simplesmente ausente. A consciência comum só conhece as diferentes
figuras do espírito, ela não sabe — ela só saberá no fim, quando não
será mais consciência comum — que a sucessão delas constitui a (pré-)
história do espírito. Mas também para a consciência filosófica, o espí­
rito está, em certo sentido, ausente. Trata-se entretanto de uma ausên­
cia que é ao mesmo tempo presença, ou de uma presença-ausente. Com
efeito, para a consciência filosófica, o espírito está “lá” (e isto distingue
a perspectiva da consciência filosófica da perspectiva da consciência
comum), mas o espírito só está “lá” enquanto opinião (“ afirmação
seca” , diz a introdução da obra)3 ou, se se quiser, enquanto pressuposi­
ção. Ê que a Fenomenología não é uma história (filosófica) do espírito,
28 RUYFAUSTO

mas uma historia (filosófica) da constituição do espirito — urnapré-his-


tória do espírito, e devido a isso, o espirito só será posto no final do pro­
cesso. Isto significa — primeiro ponto — que o espirito não é exprimível
até que se chege ao final do processo. Isto significa — segundo ponto —
que até lá só são exprimíveis os predicados do espirito.
Vejamos isto mais de perto. No nivel da pré-história ou do devir4
do espírito — e isto é válido em geral para todas as noções cujo objeto é
tomado no nivel da sua pré-história — só se pode exprimir o espirito
exprimindo os seus predicados. A pré-história de um ser é, com efeito,
a historia de seus predicados. Para dizer a pré-história de um ser só se
deve dizer os seus predicados. Ou, dizendo a coisa negativamente: toda
expressão de um ser enquanto sujeito — no caso, do espirito enquanto
espirito — no nivel da sua pré-história, dado que ela implica a posição
de algo que ainda não é real, compromete o rigor do discurso, perverte
a sua cientificidade. Mas no nivel da pré-história de um ser (este é o
ponto central do problema) os predicados desse ser não são suas deter­
minações (pelo menos no sentido corrente) — sobretudo não são suas
determinações — porque nesse nível ele ainda está ausente enquanto
sujeito. Dizendo o espírito através dos predicados do espírito, não digo
o espírito (através das suas determinações), ou antes eu o digp mas
dizendo o seu outro. Ou, em outros termos, no nível da sua pré-his-
tória, as determinações do espírito como de qualquer objeto são ne­
gações.
Exemplifiquemos, voltando à Fenomenología. Se, nos situando
no início da Fenomenología, nos perguntarem: que é o espírito?, será
preciso responder (e respondendo começaremos a dizer a Fenomeno­
logía que é o desenvolvimento do conceito do espírito): o espírito é...
a consciência sensível, o espírito é... o entendimento, o espírito é...
o senhor e o escravo, o espírito é... o estoicismo5 etc. Mas em todos
esses juízos, só o predicado estkposto. O “é” desses juízos não exprime
uma relação de inerência entre sujeito e predicado (o que ocorreria se
se tratasse de uma história) ele exprime, pelo contrário, a “passagem”
do sujeito “no” predicado, a negação do sujeito pelo predicado. Ou, se
se quiser, o “é” exprime num certo sentido uma inerência, porque se
trata dos predicados do espírito (caso contrário, não os chamaríamos
assim), mas essa relação de inerência, no nível de uma pré-história se
transforma numa negação — “Aufhebung", não negação vulgar, por­
que o espírito está “lá” — do sujeito pelo predicado. O espírito é...
a consciência sensível, o espírito é... o entendimento, o espírito é... o
senhor e o escravo, o espírito é... o estoicismo etc. Em todos esses
juízos, digo em certo sentido o espírito, porque digo o que é o espírito
mas no momento em que o digo, o espírito não está mais lá, só estão os
seus predicados. É a consciência sensível, o entendimento, o senhor e o
escravo, o estoicismo etc., que são postos, não o espírito enquanto
espírito. Somente esta leitura (que corresponde bem, numerosos textos
MARX: LÓGICA E POLITICA 29

o mostram, às exigências do discurso hegeliano) permite estabelecer


uma relação rigorosa entre o esquema marxista da história e o hege­
lianismo. A leitura do devir do espírito em termos de uma mudança no
interior do ser falseia toda comparação entre Marx e Hegel (porque
compreende mal o próprio Hegel), fazendo dela uma ilustração sem
interesse.
Porque, com efeito, o que ocorre com o espírito na Fenomeno­
logía de Hegel — desde que ela seja lida rigorosamente — é análogo ao
que se passa com o “homem” no esquema marxista de totalização da
história. Que a história possa ser pensada como um processo de consti­
tuição do homem-sujeito6 significa que enquanto não se chegou ao
comunismo, o homem não é, ou antes, ele é, mas como significação
muda, não posta. Como o espírito na Fenomenología, o homem não
pode ser dito no nível da sua pré-história. Com efeito, se para Marx o
homem só se constituirá com o socialismo, que é o homem antes do
socialismo? (A pergunta “ que é o homem?” é assim num certo sentido
— diferente daquele que lhe conferem os humanistas — uma pergunta
válida para o marxismo). Seria preciso responder: o homem é... o ope­
rário, o homem é... o capitalista, ou ainda, pensando em outros
momentos da história, o homem é... o cidadão grego ou romano, o
homem é... o servo, o homem é... o senhor feudal etc.7 Como se vê,
num certo sentido se pode dizer o que é o homem, antes do fim da
“pré-história” , mas toda “definição” do homem só é possível, então, se
se disser outra coisa do que o homem.8 “O homem é o operário” ,
“o homem é o capitalista” , “o homem é o cidadão romano” , “o homem
é o senhor feudal” — em todos esses juízos o “homem” passa “ no” seu
predicado. Só os predicados do homem — “operário", "capitalista” ,
“cidadão romano” , “ senhor feudal” etc. são efetivamente. O homem
está “lá” , mas só existe nos seus predicados; e estes predicados, em vez
de serem determinações do sujeito “homem” (ou espécies do gênero
“homem”) são de fato negações do homem enquanto homem. O ope­
rário, o capitalista, o senhor feudal, o cidadão romano etc. existem
enquanto (e porque) o homem não existe: eles não existirão mais
quando o sujeito “ deles” vier à existência.

b) O homem e o capital

A afirmação segundo a qual, da perspectiva do discurso totali­


zante, se poderia dizer (enquanto se estiver no nível da “pré-história”)
que o objeto é não o homem mas os predicados “ do” homem, exige
certas precisões. Essas precisões nos obrigam a desenvolver mais
amplamente o problema da reflexão (e também, como se verá, da não
reflexão) do sujeito no predicado, no discurso marxista. Dizer que para
30 RUY FAUSTO

a pré-história do homem o objeto do discurso marxista é não o homem


mas os predicados “do” homem (para o caso do capitalismo — o ope­
rário e o capitalista) é uma afirmação aproximadamente válida, mas
que, para um discurso sobre estruturas — ou mais precisamente sobre
as estruturas do capitalismo — como o discurso de O Capital — exige
algumas explicações. Na realidade, o discurso de O Capital tem como
objeto central não o operário e o capitalista (o que poderia ser dito, de
um modo bastante geral, do discurso sobre a luta de classes) — mas o
próprio capital. Ora, que é o capital, e que representam em relação a
ele o operário e o capitalista? A resposta a esta questão nos conduz à
problemática do sujeito e do predicado. O capital, diz, com efeito,
o Capítulo 4 (original) do Tomo I de O Capital, é sujeito. (O capital é
“sujeito que domina” (übergreifendes Subjekt), “ sujeito automático”
(automatisches Subjekt), “sujeito de um processo” (Subjekt eines Pro-
zesses), ver Werke, 23, Das Kapital, op. cit., p. 169.) O operário e o
capitalista são “suportes” desse sujeito, e num sentido (mais ontológico
do que propriamente lógico) seus predicados. (A rigor, os predicados
do sujeito “capital” — seus “momentos” — são o dinheiro e a merca-
doria. O operário e o capitalista são suportes do capital, por serem
suportes do dinheiro e das mercadorias — inclusive a força de trabalho
— enquanto momentos do capital.) Vejamos tudo isto mais de perto.
Observemos inicialmente que se se diz que o capital é sujeito — e a
expressão “sujeito” que desaparece ou quase nas traduções deve ser
tomada com todo o rigor — é porque ele é um movimento autônomo,
um objeto-movimento.9 O capital só aparece como sujeito se o visarmos
em movimento (mas só em movimento ele é o que é). Se o movimento se
detém, só teremos os predicados (ou os momentos) do capital: o di­
nheiro e a mercadoria. Ora, é necessário que esta condição de sujeito
do capital seja posta no nível da expressão, seja expressa no juízo. E
para exprimir o capital enquanto sujeito no juízo — eis o que nos
interessa aqui — é necessário obedecer a exigências inversas àquelas que
vimos se impor ao “homem” (o qual, precisamente, antes do socia­
lismo, não é um verdadeiro sujeito). Isto é: se, dado que o homem, no
capitalismo, não é um verdadeiro sujeito, em todos os juízos em que o
sujeito gramatical é o homem ele deve se refletir no seu predicado —
dado que no capitalismo o capital é um sujeito no sentido ontológico
(pleno), é necessário, ao contrário, que a reflexão não se efetue, que o
sujeito capital não passe "nos” seus predicados. Citemos o texto de
Marx: “(...) Na circulação D-M-D’ (...) a mercadoria e o dinheiro só
funcionam como diferentes formas de existência do próprio valor,
o dinheiro como sua forma geral, a mercadoria como sua forma parti­
cular, por assim dizer, dissimulada. O valor passa constantemente de
urna forma a outra, sem se perder nesse movimento, e se transforma
assim num sujeito automático (automatisches Subjekt). Se nos detiver­
mos nas formas fenomenais particulares, que tomam alternativamente
MARX: LOGICA E POLÍTICA 31

o valor que se valoriza no seu curso circular (im Kreislauf seines


Lebens), se chega às explicações (Erklärungen): o capital ê dinheiro, o
capital é mercadoria-, mas na realidade o valor se torna aqui sujeito de
um processo (Subjekt eines Prozesses), que, sob a mudança constante
das formas dinheiro e mercadoria, muda (a si mesmo) de grandeza,
enquanto mais-valia se separa de si mesmo como valor primitivo, se
valoriza (a si mesmo)...” . (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., pp. 168-
169. O grifo é meu) Vê-se que nos juízos “o capital é dinheiro” , “o ca­
pital é mercadoria” , o “é” não deve exprimir uma reflexão: em se
tratando de um sujeito no sentido ontológico pleno, o sujeito “capital”
não deve passar nos predicados “mercadoria” e “dinheiro” . O capital
deve ser posto como igual ao capital (isto é, como sujeito), ao contrário
do que ocorre com o homém antes do socialismo (isto é, quando ele não
é sujeito), e — acrescentemos — a exemplo do que ocorre com o
homem se supusermos o socialismo (isto é, a situação em que ele se
torna sujeito). (Com efeito, se, pensando no socialismo, digo “o homem
é pintor” , “o homem é escritor” , “o homem é músico” etc. — “pin­
tor” , “escritor” , “músico” etc. seriam verdadeiras determinações do
sujeito homem, o qual, sendo então um verdadeiro sujeito (como o
capital no capitalismo), não se refletiria mais nos seus predicados. De
resto, mas se trata na realidade da mesma coisa, supondo o fim da
divisão do trabalho, todas essas determinações do homem deveriam, no
limite, ser atribuíveis a cada homem, assim como todas as determina­
ções do capital — o dinheiro e a mercadoria — convêm a cada capital:
o homem substituiria o capital enquanto “universal concreto” .)
Podemos voltar agora ao nosso ponto de partida. Dizíamos: o
discurso teórico marxista em sentido estrito — o que se refere às
estruturas do capitalismo — não tem como objetivo central o operário e
o capitalista, mas o capital. Lembrando que o operário e o capitalista
são suportes do capital (e enquanto tais, num sentido — indicado —
seus predicados), poder-se-ia dizer agora, sempre inserindo o discurso
teórico no esquema totalizador — o discurso teórico marxista em sentido
estrito tem como objeto central não os predicados do sujeito pressu­
posto “homem” , mas o sujeito real “capital” , cujos predicados — su­
portes — reais são os predicados (negações) “ do” sujeito pressuposto
“homem” .

c) Marxismo, humanismo, anti-humanismo

Poderíamos resumir essas considerações, dizendo que no nível da


sua “pré-história” o homem ê e não é. Ele é, mas é somente através de
“seus” predicados, que são negações. Formulação que se distancia
tanto do antropologismo (posição do homem) como do antiantropolo-
gismo (negação pura e simples do homem).
32 RUY FAUSTO

Por outro lado, desenvolvendo a idéia de não posição (o que nos


leva a pôr em evidencia a sua razão profunda) seria possível mostrar
que toda posição do homem implica uma interversão no seu contrário;
isto é, o humanismo — o humanismo se caracterizando pela posição do
homem —- é na realidade um anti-humanismo (o humanismo se inter-
verte em anti-humanismo), e que só a “supressão” (Aufhebung) do
humanismo permite escapar ao “juízo” (inclusive em sentido “jurí­
dico”) “o humanismo é um anti-humanismo” e permite assim “supri­
mir” tanto o humanismo como o anti-humanismo. É o que faremos
agora, desenvolvendo um movimento crítico, que pretende ser uma
espécie de “ dedução” dos “principios” (o análogo dialético da “dedu­
ção” e dos principios) da política marxista. Voltaremos depois ao es­
quema totalizante.
O humanismo — entendendo por humanismo a filosofia ou a
política que põe o homem, o que significa, para que a definição seja
rigorosa, aquela que não só visa fins “humanos” mas que, igual­
mente, só aceita os meios “humanos” (isto é, a que recusa a violência)
— o humanismo é na realidade um anti-humanismo (o humanismo se
interverte em anti-humanismo), Porque “pôr” (setzen, poser) o ho­
mem, isto é, postular uma prática “humana” (não violência etc.) num
universo inumano (o do capitalismo e em geral o de todo o “pré-socia-
lismo” , implica aceitar — se tomar cúmplice d’ — este universo
inumano. O humanismo deve pois ser rejeitado. Mas se a recusa do
humanismo significa a necessidade de aceitar a violência, e em geral
algo como um princípio “não humano” como ponto de partida (todo o
problema está na explicitação desse não humano) — ele não implica,
como se poderia pensar, conforme a representação corrente, a acei­
tação do anti-humanismo. Há uma saída para esta falsa alternativa.
Mas vejamos primeiro porque o aníi-humanismo é igualmente inacei­
tável. È que se o humanismo, efetuando a posição do homem, se
inverte em anti-humanismo, o anti-humanismo — que seria preciso
definir como a filosofia ou a política que pretende dispensar toda
referência ao homem (tanto no nível dos meios como no nível dos fins)10
— o anti-humanismo não nos pode levar além da violência e do inu­
mano. Ele não pode nos conduzir a nada diferente disto. Assim, se
conforme os princípios da lógica do entendimento, fôssemos obrigados
a escolher entre o humanismo e o anti-humanismo,11 ficaríamos,
respectivamente, entre a interversão (isto é, a contradição: a não
violência é violência, o humano é o inumano), e uma espécie de
“tautologia” (o inumano (não) é (mais do que) o inumano, a vio­
lência (não) é (mais do que) violência). A resposta que nos permi­
tiria pensar e formular rigorosamente a relação entre meios (neces­
sariamente) inumanos e fins humanos — e efetuar assim a passa­
gem dos primeiros aos últimos — não pode ser, portanto, nem a
resposta humanista nem a resposta anti-humanista. Mas a resposta
MARX: LÓGICA E POLITICA 33

que recorre à idéia âe supressão (Aufhebung) 12 do humanismo. A polí­


tica marxista não deve ser definida nem como um humanismo, nem
como um anti-humanismo: ela deve ser definida e pensada em termos
de supressão (Aufhebung), de negação (no sentido dialético) do huma­
nismo. Negar dialeticamente o humanismo não quer dizer expulsar o
homem (o “humano” , a não violência) em sentido absoluto, como o faz
a negação vulgar aníi-humanista, mas negar a posição do homem (isto
é, negá-lo conservando-o: expulsá-lo da expressão)-, operação que se
torna necessária — e isto explica o carátpr da negação — pelo fato de
que, se efetuarmos a posição do homem ou do princípio “humano” ,
o “humano” se interverte em “inumano” . Assim, negamos o homem
(a não violência etc.) para que ele não se negue a si próprio. (Se não
fosse esse o caso, não o negaríamos.) Assumimos a negação (dialética),
para não sofrer a negação (vulgar). E na medida em que a negação
dialética contém a contradição — com efeito, se negamos o homem o
conservamos ao mesmo tempo (ou se se quiser, a violência de que
partimos aqui não é a violência do anti-hümanismo que “expulsa” a
não violência, mas é a violência-que-suprime-a-não-violência: que é
portanto afetada de não violência13 — poderíamos dizer que assumi­
mos a contradição para não nos contradizer. (Com efeito, se não
assumimos a contradição, contida na negação dialética, caímos, sem o
querer,14 na interversão: nos contradiremos em sentido vulgar.) Assim,
é só recusando as teses “consistentes” (aparentemente pelo menos) —
do “humano” e do “in(anti)humano” , e enunciando a tese (dialeti­
camente) contraditória da “supressão” (Aufhebung) do humanismo —
que se consegue escapar da contradição (vulgar) sem se refugiar na
“tautologia” . E é só assim que se consegue exprimir de um modo
rigoroso no plano filosófico a relação contraditória entre meios não
humanos e fins humanos, tal como se acha resolvida — em princípio
pelo menos — no nível da ciência e da prática política marxistas.

d) A dialética e os discursos do entendimento


A crítica das duas falsas leituras pode também ser feita num outro
nível (menos interessante). Assim, pode-se mostrar através da análise do
capítulo V, original, do livro primeiro de O Capital, que o “homem” não
está ausente do discurso teórico marxista, ainda que ele não tenha lá um
papel fundante ou que não seja posto. Isto significa que a pressupo­
sição do homem se encontra tanto no nível do discurso teórico (isto é,
para o “homem” tal como ele poderia aparecer no contexto da antro­
pologia em sentido estrito) como no nível da(s) (finalidades da) polí­
tica (para o “homem” tal como ele poderia aparecer no contexto do
humanismo.15 As análises iniciais sobre o discurso totalizante, cujo
núcleo era o paralelo com a Fenomenología do Espírito, englobam de
34 RUY FAUSTO

certa maneira o conjunto desses resultados, embora elas estejam liga­


das mais de perto à crítica do humanismo. Dizer — no quadro de uma
comparação com a.Fenomenología — que o “homem” , considerado no
nível da sua pré-história, se reflete nos seus predicados é retomar a
idéia de não fundação (como de não posição) acentuando a conexão
entre a exigência de não fundar e o movimento da história. (Em parti­
cular a conexão entre a não fundação e a diferença pré-história/his­
tória, pensada assim na sua matriz hegeliana e com suas implicações
para a teoria do juízo.) Por outro lado, no quadro da comparação com
a Fenomenología já havia aparecido um movimento que tem algo em
comum com o desenvolvimento sobre a “interversão” como resultado
necessário da posição — espécie de “mostração” negativa da neces­
sidade da não posição (e sua forma era de certo modo mais geral, e
aplicável ao conjunto da antropologia), a idéia de que a posição “per­
verte” o discurso. A comparação com &Fenomenología sintetiza assim
e põe num plano mais geral os diferentes aspectos da crítica do antro-
pologismo e do humanismo, e do antiantropologismo e do anti-huma-
nismo. E na medida em que antropologismo (inclusive humanismo) e
antiantropologismo (inclusive anti-humanismo) representam, no qua­
dro da nossa problemática, as alternativas do entendimento à dialética,
poderíamos agora discutir num nível mais geral o que opõe a dialética
aos discursos do entendimento.

e) Dialética e fundação, a dialética e o tempo

Do conjunto das análises anteriores, a dialética aparece, em pri­


meiro lugar, como o discurso que “suprime” o ato de fundar (enten­
dendo por “fundar” o movimento de uma fundação primeira). De fato,
a partir dessas análises, a fundação (primeira) — esta máquina de
guerra da filosofia clássica — esta operação que, segundo o ideal
cartesiano, deveria assegurar ao discurso um máximo de rigor e de
clareza, se revela como conduzindo, na realidade, ao resultado contrá­
rio, longe de ser uma garantia do rigor do discurso, a fundação o
“ dissolve” enquanto discurso rigoroso. Com efeito, lá onde não há
sujeito fundante (no universo de uma pré-história) a fundação (pri­
meira) não é uma operação inocente — se fundarmos, o discurso se
interverte no seu contrário, ou, de um modo mais geral, é conduzido a
se afastar do seu objeto. A fundação primeira do discurso é assim, se
interverte assim — nessas condições — na sua dissolução. A fundação é
a sua perda.16 E se fundar é clarificar, na medida em que fundar é
clarificar, isto significa, ao mesmo tempo — se quisermos conservar a
oposição clareza-obscuridade, mas infletindo-a no sentido da dialética
—, que o máximo de clareza é na realidade obscurecimento. Com
efeito, de tudo o que dissemos resulta que um discurso só é claro, do
MARX: LÓGICA E POLÍTICA 35

ponto de vista da dialética, se ele for coberto por certas “zonas de


sombra” . Só os discursos cujos fundamentos primeiros são de algum
modo obscuros (isto ê, afetados de ‘‘negação’') são discursos efetiva­
mente claros, em sentido dialético.
Por outro lado, se a dialética apareceu como o discurso que
suprime a fundação (primeira), esta supressão (Aufhebung), inserida
no quadro do esquema totalizante, se apresenta como uma espécie de
"suspensão ” do ato de fundar à espera do transcurso do tempo (do
tempo da “pré-história”). É necessário que esse tempo transcorra para
que se possa proceder à fundação. Assim, o ato de fundar é de certo
modo “posto entre parênteses” , “posto fora dç circuito” , em benefício
(do transcorrer) do tempo. Ora, esse relacionamento da Aufhebung —
rebatizada Ausschaltung a bem da comparação17 — com o tempo,
permite enriquecer a comparação entre a dialética e os discursos do
entendimento. Com efeito, se pensarmos que essa relação com o tempo
é igualmente a relação com o “mundo” , poderemos dizer: se os dis­
cursos do entendimento (a filosofia transcendental em particular),
põem entre parênteses o mundo (o tempo) para proceder ao ato de
fundar, a dialética põe entre parênteses o ato de fundar para se apro­
priar teórica e praticamente do m undo.16 Formulação que exige duas
precisões. Primeiramente, como já dissemos, entendemos por fundação
a fundação primeira, não toda espécie de fundação: a dialética não é de
modo algum estranha a toda fundação. Por outro lado, a referência à
“apropriação teórica e prática do mundo” não implica considerar a
dialética como um pensamento que, enquanto pensamento teórico, tem
como “elemento” a temporalidade vivida da história: a dialética não se
distingue dos discursos do entendimento por ser (pretensamente) uma
filosofia “mundana” . Seria recusar o antropologismo para cair no
historicismo. As duas observações se encontram: para a dialética, só há
verdadeira apropriação teórica do mundo se “ suprimimos” o tempo
vivido por meio de uma fundação teórica (por um discurso do conceito
que é “ anterior” , em sentido a precisar, ao discurso da consciência
histórica): mas uma tal fundação — a única que é compatível com o
tempo de uma “pré-história” — sendo interior ao universo dos “predi­
cados” , nada tem a ver, nem quanto à forma nem quanto ao conteúdo,
com uma fundação transcendental.

f) A dialética e as alternativas do entendimento

Mas se a dialética se caracteriza pela “ supressão” do ato de


fundamentação primeira — observemos em conclusão — tal supressão
é rigorosamente uma Aufhebung, não uma negação vulgar. O discurso
que recusa pura e simplesmente a fundação primeira é tão estranho à
dialética quanto o discurso que funda. Ele representa de certo modo a
36 RUY FAUSTO

alternativa cientificista do entendimento à dialética, assim como o dis­


curso com fundamento primeiro representa sua alternativa propria­
mente filosófica. A primeira recusa toda espécie de totalização, en­
quanto a última totaliza dogmaticamente (por meio de noções postas).
Mas não sendo mais do que a efetivação do outro pólo de possibilidades
da lógica do entendimento, o discurso sem fundamento primeiro é
governado pelas mesmas leis (reflexivas, remetendo à lógica da iden­
tidade) que o discurso com fundamento primeiro.
Encontramos o discurso sem fundamentação primeira, no nível
da política, na figura do anti-humanismo. No plano teórico, ele repre­
senta propriamente, nos limites da nossa problemática, o antiantropo-
logismo em sentido estrito. Ora, se fizemos a crítica dos discursos com
fundamento primeiro mostrando como eles sofrem uma “interversão”
(ou, de um modo mais geral, como a fundação os dissolve enquanto
discursos rigorosos) — do discurso sem fundamento, na única forma
em que foi considerado até a q u i—, a do anti-humanismo, dissemos
que ele se encerra numa espécie de tautologia. Ora, se considerarmos o
antiantropologismo, ou antes, um exemplo célebre de antiantropolo-
gismo, poder-se-ia estabelecer uma simetria mais perfeita com a crítica
da forma positiva (a crítica dos discursos com fundamentação pri­
meira): poder-se-ia mostrar —- sem dúvida, empregando o termo
“interversão” em sentido mais amplo — como ocorre aqui, simetri­
camente, uma espécie de “interversão" do antiantropologismo em
antropologismo.19 Por paradoxal que isto possa parecer — e o para­
doxo é real — me refiro ao antiantropologismo althusseriano (ou ao
althusserismo considerado como antiantropologismo).20 Com efeito,
nada caracteriza melhor o althusserismo — pelo menos aparentemente
— do que a sua orientação antiantropologista (insistência no papel de
suporte dos agentes, recusa de todo agente sujeito). Por isso na dis­
cussão sobre o althusserismo, se opuseram antropologistas e antiantro-
pologistas. E entretanto, o paradoxo passou despercebido: por razões
que — poderíamos mostrar — derivam do caráter nitidamente anti-
dialético do althusserismo (recusa da Aufhebung, impossibilidade de
conceituar objetos-movimentos etc.), caráter que tem algo que ver com
a natureza abstrata (“anti”) de sua oposição ao antropologismo, o
antiantropologismo althusseriano se interverte em antropologismo. O
antropologismo é a sua verdade. Que se reflita sobre o papel privile­
giado atribuído pelos althusserianos (ver, por exemplo, Balibar) ao
capítulo V (original) do primeiro tomo de O Capital, onde se trata
da produção em geral, e onde se introduzem as pressuposições antro­
pológicas. Uma análise do tratamento que dão os althusserianos a esse
ponto mostra: 1. que no althusserismo, os pressupostos antropológicos
se tomam — ou, para certos textos, estão muito próximos de se trans­
formar em — verdadeiros fundamentos antropológicos; de tal modo
que o fundamento antropológico, recusado em princípio, acaba se
MARX: LÓGICA E POLÍTICA 37

introduzindo no discurso (mesmo quando a posteriori eles pretendem


nos advertir do contrário); 2. que esta “revanche” da antropologia
resulta do caráter essencialmente não dialético do pensamento althus-
seriano, que é incapaz de apreender as relações de produção num nível
que não seja o nível “não móvel” das pressuposições, do que resulta —
as pressuposições passam a ocupar o lugar da verdadeira relação de
produção — que é o próprio capital.21

SEGUNDA PARTE

a) História e posição

Retomemos a análise do discurso totalizante. Fixando-nos na


noção de “homem” , mostramos na primeira parte a significação geral
desse discurso. Procederemos agora a um duplo trabalho. Por um lado,
trata-se de pôr em evidência o conjunto das noções que, particular­
mente no discurso.dos Grundrisse, desempenham uma função análoga:
como a noção de “homem” não é a única a ter a função descrita, será
preciso identificar as diversas noções que, sempre como pressuposi­
ções, permitem abranger o conjunto do movimento histórico. Por outro
lado, tratar-se-á de analisar a significação particular que poderiam
tomar essas pressuposições, conforme se considere este ou aquele modo
de produção. Explicamos. Não se trata de passar do esquema global,
que utiliza pressuposições, a análises relativas a cada modo de pro­
dução que mobilizam noções postas. Um movimento como este, que na
realidade estabeleceria uma anterioridade lógica do esquema global em
relação às análises particulares, dando assim às pressuposições o esta­
tuto de fundamentos, seria contraditório com tudo o que foi dito. Pelo
contrário: particularizaremos as pressuposições enquanto pressuposi­
ções, isto é, tentaremos mostrar, a partir do que Marx diz sobre cada
modo de produção, que sentido diferencial tomam essas pressuposições,
conforme se as considere como visando este ou aquele modo. Por exem­
plo, que diferença poderia haver entre um juízo do tipo “o homem é o
grego” e um juízo como “o homem é o operário” . 22 Os resultados desse
duplo trabalho, e em particular os que concernem ao sentido das
pressuposições para o caso do capitalismo, nos permitirão retomar as
considerações gerais sobre a dialética.

b) Quadro das pressuposições23

No esquema da história que se encontra nos Grundrisse, a pas­


sagem da “pré-história” à “história” não representa somente o surgi-
38 RUY FAUSTO

mento do homem (sujeito), não concerne somente ao conceito de


“homem” . Tal movimento representa também o surgimento da riqueza
(da verdadeira riqueza), da liberdade (da verdadeira liberdade) e, por
estranho que pareça, da verdadeira “propriedade” (ou da “proprie­
dade individual”) no sentido em que a noção é empregada em O Ca­
pital, quando Marx escreve: “Ela (a negação da propriedade capita­
lista, isto é, o socialismo) restabelece não a propriedade privada, mas
sem dúvida a propriedade individual (das individuelle Eigentum), fun­
dada (auf Grundlage) nas aquisições da era capitalista (...)” .24(A “pro­
priedade” entendida, conforme o uso dos Grundrisse, como conotando
uma relação “viva” , fonte de gozo, entre os homens e as coisas.)25 As
noções de “homem” , de “riqueza” , de “liberdade” e de “propriedade”
(no sentido indicado) representam assim o conjunto das pressuposi­
ções, ou pelo menos as mais importantes delas,26 por meio das quais se
organiza o quadro geral da história que oferecem os Grundrisse. Isto
significa, como indicamos, que o conjunto da história pode ser pensado
como constituindo a “pré-história” do homem, mas igualmente a
“pré-história” da riqueza (da verdadeira riqueza), a “pré-história” da
liberdade (da verdadeira liberdade), a “pré-história” da “propriedade”
(da verdadeira propriedade, ou da “propriedade individual” , no sen­
tido indicado). E, no plano lógico, isto significa que todos os juízos
sobre a “pré-história” cujo sujeito, em sentido gramatical, é o homem,
a riqueza, a liberdade e a “propriedade” (o homem é..., a riqueza é...,
a liberdade é..., a “propriedade” é...) são juízos de reflexão, nos quais
o sujeito passa “no” predicado.
Tentemos exemplificar esses juízos, tomando na medida do possí­
vel os próprios textos de Marx.
Para a noção de “homem” , poderíamos lembrar um exemplo
célebre, ainda que este exemplo não convenha de modo perfeitamente
exato ao nosso caso. Refiro-me à tese VI sobre Feuerbach: “Feuerbach
resolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência hu­
mana não é um abstrato (ein Abstraktum) inerente ao indivíduo iso­
lado (dem einzelnen Individuum). Na sua realidade efetiva, ela é o
conjunto (das Ensemble) das relações sociais” . 27 Ou, resumindo: “A
essência humana — (nas traduções se encontra às vezes “o homem” em
lugar de “a essência humana”) — é (...) o conjunto das relações
sociais” . Com efeito, a tese VI só pode ter um sentido rigoroso, que
escape ao humanismo, se ela for lida como um juízo de reflexão em que
só o predicado é posto. Em “a essência humana é o conjunto das
relações sociais” , só o predicado “relações sociais” — não o sujeito
“essência humana” (ou então “homem”) — é posto. “Essência hu­
mana” — ou então “homem” — se reflete em “relações sociais” .
Para que a tese VI corresponda plenamente ao nosso caso, é
necessário liberá-la do universo da “transição” e reinterpretá-la da
perspectiva dos textos de maturidade. Com efeito, no universo discur-
MARX: LÓGICA E POLÍTICA 39

sivo da transição — ver A Ideologia Alemã que, para o problema da


antropologia, é a contrapartida exata das obras de juventude (o que
não se poderia dizer das obras de maturidade) — as pressuposições
antropológicas funcionam só como simples pressupostos do discurso
substantivo. Elas não remetem ao mesmo tempo, como é o caso, na
obra de maturidade, à possibilidade de um preenchimento progressivo,
que poderia conduzi-las à posição final enquanto sujeitos. (Digamos,
no universo discursivo da transição, as pressuposições só remetem ao
quadro não-móvel da antropologia em sentido estrito.) Lido no con­
texto da transição, “o homem é o conjunto das relações sociais” só
contém assim a reflexão do sujeito “homem” no predicado “relações
sociais” , no qual o primeiro “se” preenche; mas não o outro lado da
coisa: o movimento que deveria preencher o sujeito “homem” e fazer
dele um verdadeiro Sujeito, no sentido ontológico. A possibilidade
desse movimento só aparece se reinterpretarmos a tese da perspectiva
da maturidade. Observemos entretanto — ponto que será retomado de
um modo mais detalhado na observação abaixo — que, qualquer que
seja a perspectiva de leitura (mesmo se, nos colocando do ponto de vista
do universo da transição, fizermos economia do enriquecimento pro­
gressivo do sujeito), o movimento sujeito/predicado não exprime de
forma alguma uma negação vulgar, um desaparecimento do sujeito no
predicado, mas uma Aufhebung, uma negação que é também conser­
vação do sujeito enquanto sujeito pressuposto.

Observação
No quadro da sua crítica do humanismo e em particular da
crítica da noção de “humanismo real” , em PourM arx, Althusser toca
no problema da tese VI, e faz as seguintes considerações a esse res­
peito: “Qual é, com efeito, esta ‘realidade’ que deve transformar o
antigo humanismo em humanismo-real? É a sociedade. A tese VI sobre
Feuerbach diz mesmo que o ‘homem’ não abstrato é ‘o conjunto das
relações sociais’. Ora, se tomarmos esta expressão, literalmente, como
uma definição adequada, ela não quer dizer nada. Que se tente sim­
plesmente dar uma explicação literal disto, e se verá que não a encon­
traremos, a menos que recorramos a uma perífrase deste tipo: ‘se se
quiser saber qual é a realidade, não a que corresponde adequadamente
ao conceito de homem ou de humanismo, mas que está indiretamente
em causa nesses conceitos, não é uma essência abstrata, mas o con­
junto das relações sociais’. Esta perífrase faz aparecer imediatamente
uma inadequação entre o conceito homem e a sua definição: conjunto
das relações sociais. Entre esses dois termos (homem/conjunto das
relações sociais) há sem dúvida uma relação, mas ela não é legível na
definição, não é uma relação de definição, não é uma relação de
conhecimento” (grifado sempre por Althusser). E Althusser continua:
40 RUY FAUSTO

“Entretanto esta inadequação tem um sentido, esta relação tem um


sentido: um sentido prático. Esta inadequação manifesta designa uma
ação a realizar, um deslocamento a efetuar. Ela significa que, para
encontrar e achar a realidade à qual se alude buscando não mais o
homem abstrato mas o homem real, é necessário passar à sociedade, e
pôr-se a analisar o conjunto das relações sociais. Na expressão huma-
nismo-real, eu diria que o conceito “real” é um conceito prático, o
equivalente de um sinal, de um painel indicador, que “indica” que
movimento é preciso efetuar, e em que direção, até que lugar é preciso
se deslocar para sè encontrar não mais no céu da abstração mas na
terra real. “Por aqui, o real!” Seguimos o guia, e desembocámos na
sociedade, nas relações sociais, e suas condições de possibilidade real.
Mas é então que eclode o escandaloso paradoxo: uma vez efetuado
realmente esse deslocamento, uma vez feita a análise científica desse
objeto real, descobrimos que o conhecimento dos homens concretos
(reais), isto é, o conhecimento do conjunto das relações sociais, só é
possível se dispensarmos completamente os serviços teóricos do con­
ceito de homem (no sentido em que ele existia, na sua pretensão teórica
mesmo antes desse deslocamento). Este conceito, com efeito, nos apa­
rece (como) inutilizável do ponto de vista científico, não porque ele é
abstrato! — mas porque ele não é científico. Para pensar a realidade da
sociedade, do conjunto das relações sociais, devemos efetuar um deslo­
camento radical, não só um deslocamento de lugar (do abstrato ao
concreto) mas também um deslocamento conceptual (mudamos os
conceitos de base!). Os conceitos nos quais Marx pensa a realidade,
para a qual indicava o humanismo-real, não fazem mais intervir uma
única vez como conceitos teóricos os conceitos de homem ou de huma­
nismo; mas outros conceitos inteiramente novos, os conceitos de modo
de produção, de forças de produção, de relações de produção, de
superestrutura, de ideologia etc. Eis o paradoxo: o conceito prático que
nos indicava o lugar do deslocamento foi consumido no próprio deslo­
camento, o conceito que nos indicava o lugar da investigação está daqui
por diante ausente da própria investigação” . (Althusser, “Marxismo e
Humanismo” , “ nota complementar sobre o humanismo real” , in Pour
Marx, Paris, Maspero, 1965, pp. 254-255) O comentário desse texto
oferece certas dificuldades porque Althusser trata ao mesmo tempo da
questão do “humanismo real” e do problema levantado pela tese VI, os
quais não são perfeitamente idênticos. Esse relacionamento já é, de
resto, sintomático. Aqui nos interessa somente a tese VI. Observemos
inicialmente — o que não deixa de ser saboroso: o anti-hegeliano
Althusser topa aqui com uma forma que foi estudada pela lógica de
Hegel. Porque aquilo que é visado pelo texto — sem que Althusser
consiga formulá-lo de Um modo satisfatório — é o juízo de reflexão,
o movimento de reflexão do sujeito “no” predicado. Althusser apreen­
de este movimento não sem acentuar, com uma certa perplexidade,
MARX: LÓGICA E POLITICA 41

(udo o que o separa do seu próprio universo lógico: “não é uma relação
de definição” (o que é verdade em certo sentido), “não é uma relação
de conhecimento” (o que já vai longe demais), e ele se refere ao mesmo
na continuação, em termos de “escandaloso paradoxo” . Mas se, de
qualquer modo, devemos reconhecer os méritos de Althusser em haver
registrado, contra as leituras ingênuas dos humanistas, o movimento
sujeito/predicado que contém a tese VI — méritos que em certo sentido
são tanto maiores dado o fato de que ele não parte, muito pelo con­
trário, dos resultados da lógica de Hegel —, não se deve perder de vista
que, na interpretação que dá, ele paga um preço pelo seu anti-hege-
lianismo. Com efeito, a interpretação que dá Althusser à tese VI só põe
em evidência o lado negativo da passagem, a negação do sujeito pelo
predicado, não a sua conservação enquanto sujeito-negado. Mesmo se
ele diz que o “homem” só desaparece enquanto conceito teórico (ou por
isto mesmo: é compreender mal as pressuposições dizer que a função
delas é “prática”), é evidente que ele toma a negação do “homem” na
tese VI como uma negação vulgar; o “homem” só indicaria o “lugar de
um deslocamento” . Tal leitura é evidentemente insuficiente. Mesmo se
tivermos em vista o universo da transição, A Ideologia Alemã, que
atribui às pressuposições o estatuto mais pobre, veremos que — pelo
menos considerando o seu uso efetivo por Marx — elas têm, de qualquer
modo, funções mais ricas do que as que lhes atribui Althusser. Tomá-
las como “conceitos práticos” , como signos (ou sinais?) indicativos de
uma ação, implica enveredar pela interpretação mais nominalista das
pressuposições. (Esta interpretação não impediu de resto que Althusser
encetasse ao mesmo tempo o movimento contrário no que se refere às
pressuposições do capítulo V (original) do livro I de O Capital (ver a
esse respeito o final da primeira parte do nosso texto).) Assim, a análise
da tese VI, que deveria conduzir à dupla crítica do antropoíogismo e do
anti-antropologismo, só desembocou na crítica justificada mas unila­
teral — e portanto falsa — do antropoíogismo, com o seu corolário
antinômico: a emergência do próprio antropoíogismo. Esse texto de
Pour Marx é exemplar na medida em que ele mostra como, levado pela
sua própria problemática, a “ quietude” do entendimento althusse-
riano foi conduzida às vezes até os limites da “inquietude” da razão
dialética, sem evidentemente perceber o abismo de que se aproxi­
mou.

Para a noção de “riqueza” , pode-se encontrar um juízo de refle-'


xão, em que “riqueza” será portanto sujeito pressuposto, num outro
texto célebre, o primeiro parágrafo do capítulo primeiro do livro I de O
Capital: “A riqueza das sociedades em que reina o modo de produção
capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, a
mercadoria singular como a sua forma elementar” . 28 Esta frase pode­
42 RUY FAUSTO

ria ser simplificada no juízo: “(No capitalismo), a riqueza é... merca-


doria” , juízo no qual só o predicado “mercadoria” , não o sujeito “ri­
queza” , é posto.

Observação
Como para o conceito de “homem” , encontramos nos althusse-
rianos urna crítica do conceito de “riqueza” , exatamente a propósito do
parágrafo primeiro do livro I de O Capital. Em “A propósito do pro­
cesso de exposição do Capital”, Macherey escreve, comentando esse
parágrafo: “(...) Com efeito, o ponto de partida da exposição de Marx
é absolutamente surpreendente, o primeiro conceito, o conceito de que
todos os outros irão ‘sair’, é o conceito de RIQUEZA. Não se trata
evidentemente de uma abstração científica, mas de um conceito empí­
rico, falsamente concreto, próximo daqueles que a Introdução nos
ensinou a denunciar (ver por exemplo a crítica da idéia de ‘população’).
A riqueza é uma abstração empírica: é uma idéia: falsamente concreta
(empírica), incompleta nela mesma (ela não tem sentido autônomo,
mas só em relação a um conjunto de conceitos que ela recusa). A
riqueza é um conceito ideológico, do qual à primeira vista não se pode
tirar nada. Do ponto de vista do processo de investigação (do trabalho
da investigação científica), ela constitui o pior ponto de partida. Apa­
rentemente não é a mesma coisa para o processo de exposição, pois é a
partir déla que Marx apresenta os conceitos fundamentais da sua
teoria. Que se deve pensar desse início? — Várias observações permi­
tem responder a essa questão: 1) Marx não pede a essa idéia mais do
que ela pode efetivamente produzir. Ao conceito empírico ele aplica
uma análise empírica: ele decompõe a riqueza em seus elementos, no
sentido mecânico do termo (a mercadoria é a ‘forma elementar’, ce­
lular, da riqueza); a riqueza não é mais do que uma acumulação
de mercadorias. A idéia é ‘explorada’ nos seus próprios limites: não se
pretende fazê-la dizer o que não pode dizer; 2) Esta idéia, na medida
em que nos contentamos assim em descrevê-la sem lhe acrescentar
nada, sem dotá-la de um segredo que, pelo contrário, ela eliminou
piedosamente, não tem necessidade de justificação: ela não diz nada
além do que comporta a sua insuficiência. Ela é portanto um ponto de
partida, se não legítimo, pelo menos cômodo: ela é o objeto empírico,
imediatamente dado, da ‘ciência econômica’. É bem nessa qualidade
que ela fornecia um quadro, por exemplo, à pesquisa de Adam Smith.
Tudo se passa como se ela desempenhasse aqui o papel de uma revo-
cação: entende-se habitualmente por economia política o estudo da ri­
queza; se partimos da idéia de riqueza, vemos que esta idéia se decom­
põe... Mas evidentemente este conceito não tem valor por si mesmo: ele
é profundamente transitivo, ele serve para passar a outra coisa, e em
particular para recordar a ligação com o passado da investigação
MARX: LÓGICA E POLITICA 43

científica. Essa função evocatória montra bem que o conceito não deve
o seu primeiro lugar ao seu rigor, mas pelo contrário ao seu caráter
arbitrário. Ele manifesta pela sua evidente fragilidade a necessidade de
falar de outra coisa, de entrar nesse difícil caminho que só avança a
partir do esquecimento de tudo o que o precedeu (...)” . (Macherey, P.,
“À propos du processus d’exposition du Capital” in Lire le Capital, IV,
Paris, Maspero, 1973, pp. 17-18, grifado pelo autor) A exemplo do que
vimos para a noção de “homem” , o althusserismo dá bem conta do
caráter externo da noção de riqueza, isto é, do “lado” da sua ausência
ou da sua negação. Mas o lado positivo, o da sua presença enquanto
sujeito-“negado” , só é expresso por termos totalmente imprecisos
(“função evocatória” , “comodidade” etc.). O que confirma as obser­
vações anteriores (ver observação acima).

Para as noções de “liberdade” e de “propriedade” , daremos por


enquanto só exemplos “artificiais” : (no capitalismo) “ a liberdade é...
a liberdade burguesa” , “a propriedade é... a propriedade privada
capitalista” , nos quais, só os predicados “liberdade burguesa” e “pro­
priedade privada capitalista” são postos.

ç) Pré capitalismo, capitalismo, socialismo

Vejamos agora de que forma se poderia particularizar estas


noções; isto é, examinemos que significações diferenciais se poderia
atribuir aos juízos de reflexão do tipo “o homem é ...” , “a liberdade
é...” etc., conforme se considere este ou aquele modo de produção.
Tal análise poderia ser reduzida a dois casos: o do pré-capita-
lismo (considerado em conjunto) e o do capitalismo. Com efeito, ainda
que Marx analise nos Grundrisse (sobretudo no início das Formas...)
as particularidades das diversas formações pré-capitalistas — no es­
quema do conjunto da história que ele dá na continuação do mesmo
texto, a história aparece dividida em três grandes momentos: o pré­
capitalismo (considerado em bloco ou “representado” pela Antigui­
dade clássica), o capitalismo e o socialismo. Como para o socialismo
não haveria mais reflexão do sujeito no predicado — porque nesse caso
o homem é um verdadeiro sujeito — o nosso problema se reduz a dis­
tinguir os juízos de reflexão que têm como objeto o pré-capitalismo dos
juízos de reflexão que têm como objeto o capitalismo. Se se quiser,
trata-se de mostrar a diferença — se há diferença — entre um juízo
como “o homem é o grego” ou “o homem é o cidadão romano” , e um
juízo como “o homem é o operário” ou “o homem é o capitalista” .
Trata-se na realidade de projetar sobre o plano do juízo — isto é, de
44 RUY FAUSTO

pensar como expresso no movimento do juízo — a diferença real, esta­


belecida no plano geral do conteúdo, entre o pré-capitalismo e o capi­
talismo.29 Mas o conteúdo dessa distinção, tal como a encontramos em
Marx, parece à primeira vista contradizer o que dissemos sobre a
não-posição do homem-sujeito no nível da “pré-história” . Com efeito,
os Grundrisse, como o conjunto dos textos de Marx, distinguem o
pré-capitalismo do capitalismo a partir do fato de que no primeiro a
finalidade da produção é o valor de uso ou a satisfação dos indivíduos,
enquanto no segundo a finalidade é a valorização do valor. Ora, proje­
tada sobre o problema da função dos agentes, o qual por sua vez nos
remete à problemática do juízo, a distinção equivale aparentemente a
afirmar que no pré-capitalismo (onde a finalidade é o valor de uso e
portanto a satisfação dos agentes) os agentes são sujeitos; enquanto no
capitalismo, onde, pelo contrário, a valorização do valor é a finalidade,
os agentes são apenas suportes. Mas como conciliar essa distinção, e
em particular a idéia dos agentes-sujeitos no pré-capitalismo, com o
esquema anterior nos termos do qual coincidiam o surgimento do
sujeito e o fim da “pré-história” ? Seria preciso restringir a não-posição
do sujeito ao caso exclusivo do capitalismo? Ora, examinando bem, se
vê que tanto para o pré-capitalismo como para o capitalismo o
“homem” é, sem dúvida, uma pressuposição, embora não o seja do
mesmo “modo” . Com efeito, se considerarmos um juízo como “o
homem é o cidadão romano” ou um juízo como “o homem é o ope­
rário” , é preciso sempre reconhecer a passagem do sujeito “no” predi­
cado, pois o “homem” não é nem em um caso nem em outro um
verdadeiro sujeito ontológico como no socialismo. Mas as duas refle­
xões não têm a mesma significação particular. Poder-se-ia exprimir de
um modo muito geral essa diferença, dizendo inicialmente que, se nos
dois casos, o “homem” passa “no” “seu” predicado, o predicado no
qual ele se reflete é, no primeiro caso, algo assim como um sujeito no
interior do universo dos predicados, ao passo que, no segundo, o predi­
cado é sem dúvida um predicado, mesmo em relação ao universo dos
predicados. Se eu disser: “o homem é o grego” (pensando sempre na
Antiguidade), “homem” passa, sem dúvida, “no” predicado “grego” e
é negado por ele, assim como ele passa “no” predicado “operário” e é
negado por “operário” em “o homem é o operário” : com efeito, a Anti­
guidade, como a época capitalista, só pertence à “pré-história” do
“homem” . Mas diferentemente do predicado “operário” , que exprime
rigorosamente um suporte, o predicado “grego” exprime de certa
forma o “homem” enquanto sujeito, pois, tanto para a Antiguidade
como para o conjunto do pré-capitalismo, os “homens” são a finali­
dade da produção.30 Seria necessário, entretanto, exprimir essa dife­
rença de um modo mais preciso. Para isto examinemos os textos dos
Grundrisse. Depois de ter mostrado que na Antiguidade (pré-capita­
lismo), “ a riqueza — entendida como riqueza abstrata e objetiva —
MARX: LOGICA E POLITICA 45

nunca é a finalidade da produção” , Marx escreve nas “Formas que


precedem a produção capitalista” , pondo em paralelo a Antiguidade
(o pré-capitalismo), o capitalismo e o socialismo: “(...) Assim, a visão
antiga, em que o homem aparece sempre como a finalidade da pro­
dução — qualquer que seja a sua determinação limitada, nacional,
religiosa, política — parece muito elevada diante do mundo moderno
em que a produção aparece como a finalidade do homem e a riqueza
como a finalidade da produção. Mas, de fato, quando a forma bur­
guesa limitada é retirada, que é a riquéza senão a universalidade —
produzida no intercâmbio universal — das necessidades, capacidades,
gozos, forças produtivas etc. dos indivíduos? O pleno desenvolvimento
da dominação humana sobre as forças naturais tanto as da assim
chamada natureza como a da sua própria natureza? (...) Na economia
burguesa — e na época de produção que lhe corresponde — esta plena
elaboração (diese völlige Herausarbeitung) da interioridade humana
aparece como um completo esvaziamento (völlige Entleerung), esta
objetivação universal (universelle Vergegenständlichung) como aliena­
ção total (totale Entfremdung), a derrubada de todas as finalidades
determinadas unilaterais, como sacrifício da finalidade-de-si (Selbs­
tzweck) em benefício de uma finalidade totalmente externa. Por isso,
de um lado, o infantil mundo antigo aparece como superior. Por outro
lado, ele o é sempre que se buscar (uma) configuração, (uma) forma
fechada, e (uma) delimitação estabelecida. Ele é satisfação de um
ponto de vista limitado; enquanto o (mundo) moderno (das Moderne)
deixa insatisfeito, ou quando aparece satisfeito de si, ele é vulgar
(gem ein)".31 Vê-se de que forma o texto distingue o mundo antigo
(que, até certo ponto, representa aqui o pré-capitalismo em geral) do
mundo moderno (isto é, do capitalismo): como a finalidade da pro­
dução nas economias pré-capitalistas é a reprodução dos indivíduos e
não a riqueza (objetiva, abstrata) pela riqueza, nelas os indivíduos são
satisfeitos, o que permite estabelecer uma relação entre o pré-capi-
talismo e o socialismo; mas se trata de uma satisfação no interior de um
círculo limitado. Ao passo que no capitalismo temos a situação inversa:
como a finalidade da produção capitalista não é a satisfação dos indi­
víduos mas a riqueza (objetiva, abstrata) pela riqueza, no capitalismo o
indivíduo permanece insatisfeito. E, entretanto, o princípio do capi­
talismo é o do desenvolvimento infinito, da derrubada de todas as
barreiras e de toda limitação; o que, por sua vez, permite aproximar o
capitalismo do socialismo. Assim, pré-capitalismo e capitalismo res­
pondem cada um deles a uma das exigências do socialismo — a satis­
fação do indivíduo ou o desenvolvimento infinito, mas sacrificando a
outra.
Se lermos agora esses resultados, fixando-nos nos juízos de refle­
xão que têm como objeto o pré-capitalismo e o capitalismo, obteremos
os seguintes resultados: se digo “o homem é o grego” (ou “a riqueza é a
46 RUYFAUSTO

riqueza no sentido antigo” , ou “a liberdade é a liberdade antiga” etc.),


o sujeito passa “no” predicado, o predicado nega o sujeito, mas isto
apenas porque o predicado só satisfaz ao sujeito de um modo limitado.
O predicado “grego” (“romano” etc.) nega o sujeito “homem” não
porque “grego” (ou “romano”) é um não-sujeito no sentido em que
“operário” e “capitalista” são não-sujeitos, mas porque este predicado,
como os outros predicados análogos, encerra o sujeito “homem” numa
determinação limitada. A negação só está, aqui, na limitação. Mas não
é assim nos juízos “o homem é o operário” , “o homem é o capitalista”
(ou “ a liberdade é a liberdade burguesa” , “ a riqueza é a riqueza
capitalista” , “a propriedade é a propriedade privada capitalista”).
Nesse caso, a negação do sujeito pelo predicado não provém de forma
alguma da limitação dos predicados. O operário, o capitalista, a liber­
dade burguesa, a riqueza no sentido capitalista, a propriedade privada
capitalista não são a rigor expressões limitadas dos “seus” sujeitos.
O princípio infinito está lá, em todas essas expressões.32 O predicado
satisfaz sem dúvida à infinidade do sujeito — ou não a afeta — e desse
ponto de vista não haveria mais negação. Mas ele só a satisfaz de forma
negativa. O sujeito não encontra uma forma limitada (mas de certo
modo positiva, ou negativa só enquanto limitada), mas encontra um
infinito negativo. A negação não é limitação do infinito, mas realização
negativa do infinito enquanto infinito. O que significa: para o capita­
lismo, os predicados dos sujeitos (pressupostos) “homem” , “riqueza” ,
“liberdade” , “propriedade” , conservando o princípio infinito, expri­
mem propriamente uma interversão (renversement) na negação deles,
uma interversão em seus contrários. Aqui, rigorosamente, o homem é
não-homem, a liberdade é não-liberdade, a riqueza é nâo-riqueza,
a propriedade é não-propriedade. O predicado exprime a negação do
sujeito: a relação entre sujeito e predicado é uma relação contraditória.
Tentemos agora exemplificar essas interversões (enquanto inter-
versões) e analisar mais de perto a sua significação. É a partir de lá —
este ponto representa, de fato, o núcleo do que tínhamos a dizer nesta
segunda parte — que tentaremos tirar novas conclusões relativas à
dialética.

d) Á interversão

Que no capitalismo o homem se interverte em não-homem, a


liberdade em não-liberdade, a riqueza em não-riqueza, a propriedade
em não-propriedade se poderia ver, primeiro, mostrando simplesmente
como os predicados dessas determinações, para o caso do capitalismo,
estão em contradição com os seus sujeitos: com efeito, a liberdade
burguesa é liberdade do capital,33 a propriedade privada burguesa é
menos propriedade do indivíduo sobre o capital do que propriedade do
MARX: LÓGICA E POLITICA 47

capital sobre ele mesmo,34 a riqueza burguesa é de fato pobreza


(subjetiva),35 o homem (o operário, o capitalista) é na realidade um
“não-homem” . Ou, em outros termos, no capitalismo a liberdade ¥=■
liberdade, o homem ^ homem, a propriedade ^ propriedade, a
riqueza ^ riqueza. As identidades liberdade = liberdade, homem =
homem, propriedade = propriedade, riqueza = riqueza só se produ­
ziriam no socialismo. Entretanto, nos interessa mostrar o lugar dessa
interversão na própria construção de O Capital (pois ela tem um lugar
lá), mostrar o lugar preciso em que ela se encontra e a significação que
toma no conjunto da apresentação do modo de produção capitalista.
Para isto, será preciso examinar o que ocorre com as noções de proprie­
dade e de liberdade (também, de certa forma, para a noção de homem
e para a noção de riqueza) quando se passa das seis primeiras secções
de O Capital à secção sétima. Com efeito, é lá que se opera a inter-
versão.

e) A interversão em O Capital36

A interversão no livro primeiro de O Capital decorre da mudança


que se opera, quando se passa à teoria da reprodução, no que se refere
à maneira de pensar o movimento do capital. Razão pela qual será
preciso demorar-se nesse ponto. Até a secção sexta, o movimento do
capital aparece de uma forma descontínua, pois cada volta do capital é
considerada independentemente da que a precede e da que a sucede,
como se estivéssemos sempre na primeira volta. De tal modo que o
movimento do capital estaria ainda suspenso ao seu ponto de partida
representado por um contrato entre dois agentes livres. Esses agentes se
encontrariam “fortuitamente” no mercado, e obedecendo à lei da troca
de equivalentes, trocariam a mercadoria força de trabalho, da qual um
deles é proprietário, por um equivalente em dinheiro de que dispõe o
outro, que é também proprietário dos meios de produção.37
Temos uma situação totalmente diferente no momento em que
passamos à teoria da reprodução e da acumulação. As voltas do capital
não serão mais consideradas como independentes umas das outras.
O movimento do capital será considerado agora como um fluxo contí­
nuo, como um processo sem interrupção; cada volta está ligada à que a
precede e à que a sucede. Este relacionamento das voltas sucessivas
altera o sentido de todo o processo. Primeiramente, o caráter preten­
samente contingente do encontro entre o operário e o capitalista, e
portanto a pretensa liberdade do contrato entre eles são reduzidos a
simples aparências. A idéia de que o operário “encontra” no mercado o
capitalista e lhe vende livremente a sua força de trabalho como qual­
quer vendedor vende a sua mercadoria aparece agora como uma ilusão
da circulação. Na realidade, o operário e o capitalista são constante-
48 RUY FAUSTO

mente (re-)criados, e “reunidos” pelo próprio movimento do capital, e


é assim o movimento do capital que, reproduzindo o operário enquanto
operário, o obriga a vender cada vez a sua força de trabalho. E mais do
que isto. A “redução a uma aparência” provocada pela continuidade
do processo não atinge apenas a liberdade do contrato: ela concerne à
própria idéia de que há uma troca de equivalentes. É através da conti­
nuidade propriamente que o capital interioriza os seus pressupostos e
elimina a sua dependência em relação ao seu ponto de partida. Com
efeito, no momento em que se considera o capital num fluxo conti­
nuo, o valor que em forma de dinheiro é transferido para o operário
enquanto salário aparece como valor extorquido sem equivalente38 no
movimento anterior — extorquido talvez de um outro operário, mas
todas as diferenças individuais desaparecem na perspectiva da acumu­
lação que só considera a relação entre classe e classe — e por isso a
compra da força de trabalho deixa de ser uma verdadeira compra: o
que o capitalista dá ao operário (à classe operária) em forma de salário
é na realidade uma parte da riqueza criada pela própria classe ope­
rária. Riqueza que, ademais, é substituída por um novo produto — um
novo sobreproduto — criado sempre pela classe operária. Assim, não
há mais equivalentes nem a rigor troca, mas apropriação sem equiva­
lente do trabalho alheio. E isto num duplo sentido: o que a classe
operária recebe é riqueza produzida pela própria classe operária. O re­
torno dessa riqueza, que ela mesma criou, só se faz alienando um novo
(sobre-) produto. A riqueza produzida por uma classe é sugada conti­
nuamente pelos representantes de uma outra classe — esta é a maneira
pela qual se apresenta agora o processo. Essa mudança de perspectiva
que representa na realidade uma mudança de sentido, objetiva, do
processo, constitui o que Marx chama de interversão da lei da apro­
priação ou da propriedade, interversão cujos dois momentos poderiam
ser resumidos da seguinte maneira: uma volta do capital ou cada volta
do capital obedece à lei de apropriação ou de propriedade das econo­
mias mercantis, lei segundo a qual a apropriação dos produtos se faz
pela troca de equivalentes e depende, em última instância, do trabalho
próprio. Mas a repetição das voltas do capital — e portanto o cumpri­
mento reiterado da lei de apropriação pelo trabalho e pela troca de
equivalentes — interverte esta lei na lei de apropriação capitalista,
apropriação sem equivalente do trabalho alheio.

Observação
Vê-se por aí que, embora em sentido diferente do das obras de
juventude, a idéia de que, se não o operário, pelo menos a classe
operária “ aliena o seu produto” tem, sem dúvida, um sentido rigoroso
em Marx. Se os althusserianos a recusam é, entre outras razões, porque
eles são incapazes de apreender plenamente o sentido da passagem da
MARX: LÖGICA E POLITICA 49

secção sexta à secção sétima do livro primeiro. Tomemos por exemplo o


texto de Balibar em Lire le Capital. Ë verdade que no capítulo do seu
texto, consagrado à reprodução (ver E. Balibar, “ Sur les concepts
fondamentaux du matérialisme historique”, em Lire le Capital II,
Paris, Maspero, 1968, pp. 152 e segs.), se fala da “redução à aparên­
cia” que se opera na secção sétima, redução que é apresentada, com
razão, como atingindo a liberdade dos contratantes, a troca de equi­
valentes, e em geral o conjunto da perspectiva subjetiva da produção.
(“(...) a análise da reprodução faz desaparecer a aparência que repousa
sobre o ‘começo’ do processo de produção; a aparência do contrato
‘livre’ cada vez renovado entre o operário e o capitalista. (...) A repro­
dução faz aparecer os ‘fios invisíveis’ que encadeiam o assalariado à
classe capitalista” . (Idem, p. 169) “(...) A reprodução faz desaparecer
a aparência de que a produção capitalista não faz mais do que aplicar
as leis da produção mercantil, isto é, a troca de equivalentes. Cada
compra e venda da força de trabalho é uma transação dessa forma, mas
o movimento de conjunto da produção capitalista aparece como o
movimento pelo qual a classe capitalista se apropria continuamente,
sem equivalente, de urna parte do produto criado pela classe operária
(...). (Idem, pp. 169-170, grifo do autor)) E, entretanto, falta nesse
texto algo que é absolutamente essencial. Com efeito, Balibar não
apresenta a relação entre os dois momentos (o momento de uma volta
isolada eo da reprodução) como uma relação de contradição, ou, se se
quiser, ele não apresenta a passagem em termos de uma interversão.
Buscar-se-á inutilmente no seu texto — o que sc explica — a apre­
sentação da interversão das leis de apropriação em termos de contra­
dição. O conceito que pressupõem as análises de Balibar não é o de
contradição mas o de ruptura ou corte. (“Essas análises são aquelas em
que Marx nos mostra o movimento de passagem (mas essa passagem é
uma ruptura, uma inovação radical) de um conceito de produção como
ato, objetivação de um ou de vários sujeitos a um conceito da produção
sem sujeito, que determina por sua vez certas classes como suas funções
próprias” . (Idem, p. 171, grifo do autor)) Tal apresentação da passa­
gem é inteiramente insuficiente. Quem diz contradição (dialética) diz
“tensão” , separação, mas também união entre os dois termos. Quem
diz ruptura, corte, diz “separação” : cada termo “fora” do outro. Com
efeito, se a relação entre os dois momentos é uma ruptura, não pode
haver posição da passagem — um corte, uma ruptura é um vazio — e
que não haja posição da passagem significa que o primeiro momento
está fora do segundo, o segundo só pode aparecer como resultado (em
sentido abstrato), que substitui o primeiro. Ê assim que no conjunto
dos textos citados, e mesmo se o autor o evoca numa passagem, o pri­
meiro momento desaparece; é só o segundo que está presente.39 Ora,
é somente se o segundo momento, ainda que contradizendo o primeiro,
o conserva como momento negado (ou, se se quiser, é somente se a
50 RUY FAUSTO

contradição for pensada em termos de Aufhebung) que se poderá dizer


que a classe operária perde o seu produto. Se for rompida toda conti­
nuidade entre os dois momentos, mesmo a continuidade na desconti-
nuidade que caracteriza a Aufhebung, só se apreenderá a apropriação
intervertida, não a interversão da apropriação. É finalmente o único
resultado a que chega Balibar. Erro inverso àquele em que incorre a
leitura antropologista da interversão, que faz do primeiro momento o
fundamento do segundo — o que absolutamente não se supõe aqui — e
da interversão não uma negação (também no sentido lógico), mas uma
simples inversão real (em sentido fraco, sem implicar uma negação
lógica) do movimento fundador.

Assim, sem que se faça violência à lei de apropriação das eco­


nomias mercantis em geral, pelo contrário, uma vez estabelecidas as
condições que permitem a sua manifestação mais completa — “a conti­
nuidade da ação de uma lei é certamente o contrário da sua infração” 40
— esta lei (a lei da apropriação pelo trabalho e pela troca de equi­
valentes) fazendo, âe certo modo, violência a si mesma, se interverte no
seu contrário.41 E assim se poderia afirmar — a conclusão que nos
interessa — que, estabelecida a continuidade das voltas do capital que
supõe a teoria da acumulação, a liberdade (dos contratantes, do ope­
rário em particular) se interverte em não-liberdade (a liberdade se
torna uma aparência), e a propriedade, ou antes, o princípio de pro­
priedade se interverte em princípio de não-propriedade. O trabalho,
fonte de propriedade, se torna, por uma interversão interna, fonte de
não-propriedade, de desapropriação contínua: “(...) a lei de apropria­
ção ou lei da propriedade privada que repousa sobre a produção de
mercadorias e a circulação de mercadorias se interverte (umschlagen)
pela sua própria dialética interna, inevitável, no seu contrário direto.
A troca de equivalentes, que aparecia como a operação primitiva, ‘girou’
de tal maneira que só se troca na aparência, porque, primeiramente,
mesmo a parte do capital trocada pela força de trabalho é somente
uma parte do produto do trabalho alheio apropriado sem equivalente,
e, em segundo lugar, ela não só é substituída pelo seu produtor, o ope­
rário, mas deve ser substituída com um novo excedente. A relação de
troca entre o capitalista e o operário torna-se assim apenas uma apa­
rência que pertence ao processo de circulação, pura forma, que é estra­
nha ao conteúdo, ele próprio, e não faz mais do que mistificá-lo. A
compra e venda constante da força de trabalho é a forma. O conteúdo é
que o capitalista investe, cada vez, uma parte do trabalho alheio já
cristalizado de que ele se apropria continuamente, contra um quantum
maior de trabalho alheio vivo. Originariamente, o direito de proprie­
dade nos aparecia como fundado no trabalho próprio. Pelo menos, era
preciso admitir essa suposição, pois só se afrontam possuidores de
MARX: LÓGICA E POLITICA 51

mercadorias com os mesmos direitos, o meio de apropriação da merca­


doria alheia é a alienação da própria mercadoria, e esta última só pode
scr produzida pelo trabalho. A propriedade aparece agora do lad"» do
capitalista como o direito de se apropriar do trabalho alheio não pago
ou de seu produto, e do lado do trabalhador como a impossibilidade de
se apropriar de seu próprio produto. A separação entre a propriedade e
o trabalho se torna conseqüência necessária de uma lei que, aparen­
temente, parte da sua identidade” . 42
Assim, encontramos a interversão da propriedade — ou antes, da
lei da propriedade fundada no trabalho — e da liberdade nos seus
contrários, expressa na própria construção de O Capital. A interversão
se opera na passagem da perspectiva descontinuísta das primeiras
secções à perspectiva continuísta da acumulação. A teoria de Marx
acolhe a interversão na sua própria construção; o discurso de Marx se
deixa “arrastar” pela interversão, é atravessado por e la .43

Observação

A interversão da noção de “liberdade” poderia ser observada


igualmente em “escala reduzida” , nas passagens em que se fala do
duplo sentido da liberdade burguesa (textos de O Capital e dos Grun-
drisse sobre a acumulação primitiva, e também capítulo quatro, ori­
ginal, do livro I de O Capital): “Quando, por exemplo, os grandes
proprietários rurais ingleses despediam ós seus retainers, que consu­
miam com eles o produto excedente da terra; quando os seus arrenda­
tários expulsavam os pequenos trabalhadores agrícolas etc., com isto
foi em primeiro lugar lançada no mercado de trabalho uma massa de
força de trabalho viva, uma massa que era livre em duplo sentido, livre
das antigas relações de clientela ou dependência e das relações de
serviço, e em segundo lugar, livre de qualquer bem, livre de toda forma
de existência objetiva material, livre de toda propriedade, dependendo,
da venda da sua força de trabalho, ou da mendicância, da vagabun­
dagem e do roubo, como única fonte de rendimento” . (Grundrisse, op.
cit., p. 406, grifado por Marx. Trad. ingl. de M. Nicolaus, op. cit., p.
507) “Para que o dinheiro se transforme em capital o possuidor de
dinheiro deve assim já encontrar no mercado de trabalhe o trabalhador
livre, livre no duplo sentido, de que enquanto pessoa livre ele dispõe de
sua força de trabalho como mercadoria; de que, por outro lado, ele não
tem outras mercadorias para vender; de que ele está desligado (los und
ledig), livre de todas as coisas necessárias à realização efetiva da sua
força de trabalho” . ( Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 183. Trad.
franc. de Roy, Le Capital, livre premier, tome premier, op. cit., p. 172)
Lendo tais textòs, se poderia ter a impressão de que Marx “joga” de
um modo um pouco gratuito com a noção de “liberdade” , de que a sua
52 RUY FAUSTO

linguagem é ambígua ou contraditória. Com efeito, se o emprego do


termo “liberdade” ou “liberação” a propósito da eliminação dos entra­
ves feudais parece bem justificado, tal não seria o caso, aparentemente,
do seu emprego, tendo em vista a separação, funesta para os trabalha­
dores, entre o trabalhador e os meios de produção. Mas se de certa
forma Marx “joga” efetivamente com a noção de “liberdade” , esse
“jogo” nada tem de gratuito, e tem, pelo contrário, uma significação
teórica profunda. Trata-se exatamente da interversão. Empregando o
termo “liberdade” não só para designar o lado positivo mas também
para designar o lado negativo — a separação entre o trabalhador e os
modos de produção, Marx “cai” efetivamente numa contradição: o su­
jeito “ l i b e r d a d e ” é contradito pelo predicado “ a separação entre o
trabalhador e os meios de produção” , que nada tem a ver com a verda­
deira l i b e r d a d e . Mas, exprimindo-se desse modo, mantendo a idéia de
l i b e r d a d e e lhe dando um conteúdo (um predicado) que contradiz a
idéia de liberdade, ele não faz senão reproduzir no nível da expressão a
contradição real da liberdade burguesa, ele não faz mais do que pôr
enquanto contradição — única maneira de se exprimir, plenamente
satisfatória do ponto de vista da dialética — a contradição real que
contém a liberdade burguesa.

E para mostrar a importância atribuída por Marx à interversão


na sua crítica da economia política, seria preciso lembrar que, quando
ele mostra os limites da economia clássica, limites que são ao mesmo
tempo ideológicos e teóricos, ele chama a atenção exatamente para o
fato de que, se a economia clássica foi bem longe na análise da produ­
ção capitalista, se ela chega, embora de uma forma inadequada, até a
própria idéia da mais-valia, a economia clássica — na figura do seu
representante mais ousado, Ricardo — não pensou, não poderia ter
chegado a pensar essa interversão: “O lucro é somente uma forma
secundária, derivada, e transformada da mais-valia, a forma burguesa,
em que desapareceram os traços de sua origem. O próprio Ricardo
nunca compreendeu isto, porque ele 1) fala sempre só da partilha de
um quantum acabado, não da posição originária dessa diferença; 2)
porque a compreensão (disto) o obrigaria a ver que entre o capital e o
trabalho se estabelece uma relação totalmente diferente da da troca; e
ele não podia ver que o sistema burguês dos equivalentes se interverte
em apropriação sem equivalente e se baseia nela” . 44 “Estas incom-
preensões de Ricardo provêm evidentemente de que ele mesmo não
tinha clareza sobre o processo (nicht klar über den Prozess war), nem
podia ter enquanto burguês (noch sein kônnte ais Burgeois). Com­
preender esse processo equivale a afirmar que o capital é não só, como
pensa Smith, disposição (Kommando) sobre o trabalho alheio, no sen­
tido em que todo valor de troca o é, porque ele dá ao seu possuidor
MARX: LÓGICA E POLITICA 53

poder de compra, mas também que ele é o poder de se apropriar do


trabalho alheio sem troca, sem equivalente, mas sob a aparência da
Iroca” .45 Assim, a economia clássica, que pensou a mais-valia como
diferença entre o “valor do trabalho” e o valor do produto do tra­
balho, só a concebia entretanto como resultado de um livre contrato
entre possuidores de mercadorias, e nunca como uma expropriação
contínua, sem troca, de uma classe por outra. Fixemos esse resultado
para a discussão final.
Mostramos assim a diferença que separa os juízos que envolvem
us noções de “homem” , de “liberdade” , de “riqueza” e de “proprie­
dade” , conforme eles se refiram ao pré-capitalismo ou ao capitalismo.
Nos dois casos essas noções são pressuposições, mas a sua relação com
o predicado não é especificamente a mesma. Para o socialismo, já
dissemos, estas noções são, pelo contrário, noções postas: supondo o
socialismo, o “homem” , a “riqueza” , a “liberdade” e a “propriedade”
(no sentido indicado) não passam mais “nos” seus predicados, mas se
mantêm iguais a elas mesmas, e os predicados as determinam efeti­
vamente como sujeitos. Seria útil talvez citar algumas passagens de
Marx e de Engels a propósito do socialismo, para que o leitor pense no
emprego não-reflexivo dos termos como “homem” , “liberdade” etc.,
em oposição ao emprego reflexivo que vimos até aqui: “A riqueza real
(der wirkíiche Reichtum) da sociedade e a possibilidade de uma am­
pliação constante do seu processo de reprodução depende assim não da
grandeza do sobretrabalho, mas de sua produtividade e da maior ou
menor abundância das condições de produção em que ele se realiza. Na
realidade, o reino da liberdade só começa quando cessa o trabalho
determinado pela carência e pela finalidade externa; esse (reino) re­
side, pois, pela (própria) natureza da coisa para além da esfera da
produção propriamente material (...). A liberdade nessa esfera só pode
consistir em que o homem socializado (der vergesellschaftete Mensch),
os produtores associados regem racionalmente este seu intercâmbio
material com a natureza, o submetem ao seu controle social, em vez de
ser dominados por ele como por um poder cego; realizam-no com o
menor gasto de força e nas condições mais adequadas e mais dignas de
sua natureza humana (ihrer menschlichen Natur). Mas isto continua
sendo um reino da necessidade (Notwendigkeit). Para além dele co­
meça o desenvolvimento humano de forças, que se toma por seu
próprio fim (Selbstzweck), o verdadeiro reino da liberdade, que entre­
tanto só pode florescer com base naquele reino da necessidade. A redu­
ção da jornada dê trábalho é sua condição fundamental” . (Werke, 25,
Das Kapital, I, op. cit., p. 828. Ver Le Capital, livre troisième, tome
troisième, (VIII) trad. franc. de Mme. C. Cohen-Solal e G. Badia, pp.
198-199) “Apropriando-se do conjunto dos meios de produção sociais,
para utilizá-los socialmente conforme um plano, a sociedade elimina a
escravização dos homens aos seus próprios meios de produção, (que
54 RUY FAUSTO

existiu) até aqui. Ê evidente que a sociedade não pode se liberar, sem
que cada indivíduo seja liberado. O velho modo de produção deve pois
ser revolucionado a fundo, e sobretudo a velha divisão do trabalho deve
desaparecer (...)” . ( Werke, 20, Engels, Anti-Dühring, op. cit., 1962,
p. 273. Ver Anti-Dühring, trad. franc. de E. Bottigelli, Êd. Sociales,
1973, p. 331)46 Observemos, para responder a eventuais críticas, que
quando se afirma que no socialismo o “homem” , a “liberdade” etc. se
tornam verdadeiros sujeitos, não se quer dizer com isto que, na hipó­
tese do socialismo, todos os problemas se reduzem ao problema do
“homem” . É um pouco o argumento que utiliza Althusser em “Mar­
xismo e Humanismo” (ver Althusser, Pour Marx, Paris, Maspero,
1965, p. 246) para desacreditar toda idéia de homem sujeito. Dizer que
o homem será — ou seria — sujeito não significa afirmar que todos os
problemas teóricos específicos se deslocarão em direção à questão geral
do “homem” ou que toda questão prática será absorvida pela proble­
mática dos fins. Para todo pensamento realista, é bem evidente que o
“particular” , no que se refere à teoria, e os meios, no que concerne à
prática, não perderão o seu peso específico. Mas, ao contrário do que
se passa antes do socialismo, na hipótese do socialismo todo problema
teórico que tenha como objeto tais ou tais homens fará aparecer a sua
condição de sujeitos, e não mais de suportes;47 todo problema prático a
propósito dos meios fará aparecer — ao contrário do que ocorre, antes
do socialismo, para o problema revolucionário — a não-contradição
dos meios em relação aos fins. Nem negação do homem pelos seus
predicados, nem contradição entre meios e fins, é tudo o que quer dizer
a idéia do surgimento do homem-sujeito.

TERCEIRA PARTE

a) Retorno à dialética: “supressão” e “interversSo”

Tentemos agora, à luz das análises anteriores, retomar os resul­


tados obtidos no final da primeira parte, no que se refere à natureza
do discurso dialético e à sua diferença em relação aos discursos do
entendimento.
Das análises do final da primeira parte resultava, sobretudo, a
idéia da supressão (Àufhebung), como exigência do discurso dialético,
tanto no nível teórico em sentido estrito como no nível da política. Em
oposição aos discursos do entendimento, que oscilam entre a afirmação
— a posição plena — dos princípios primeiros e sua negação abstrata, e
que por isso mesmo não escapam à má dialética da interversão (quando
MARX: LÓGICA E POLÍTICA 55

cies não se refugiam na “tautologia”),48 o pensamento dialético su­


prime esses princípios — os nega e os afirma ao mesmo tempo —, o que
lho permite evitar a interversão sem se refugiar na “tautologia” . Assim,
o pensamento dialético aparecia nessas análises, como se caracteri­
zando sobretudo pela operação de “supressão” dos princípios pri­
meiros, operação que lhe permitia dominar a contradição.
Ora, nesta segunda parte encontramos algo que parece ser o
inverso de uma supressão. Com efeito, o que acabamos de ver é como a
dialética opera a interversão de certas noções como “liberdade” , “pro­
priedade” , ..., na análise do capitalismo, isto é, como o pensamento
dialético se deixa interverter, quando ele introduz essas noções. E isto
em oposição ao pensamento não-dialético que, pelo contrário, bloqueia
a interversão. (Lembremos o exemplo de Ricardo e da economia clás­
sica em geral, incapaz de ultrapassar o limiar dialético da interversão
da lei de apropriação.) Assim, a dialética que aparecia inicialmente
como o pensamento da supressão — supressão cuja função era exata­
mente a de impedir a interversão — se apresenta agora como o discurso
“da” interversão.
Como dar conta desta diferença?
Ora, se a examinarmos de perto, veremos que a oposição é apa­
rente. Trata-se com efeito de dois movimentos complementares, cuja
diferença se deve à diversidade do nível em que se situa o discurso.
Essa diversidade consiste grosso modo no seguinte: num caso, havía­
mos considerado, tanto para a Teoria em sentido estrito como para a
política, a relação do discurso dialético com os “princípios antropoló­
gicos” . Nesse caso, quer se trate do discurso de O Capital ou da polí­
tica, é preciso suprimir os princípios (antropológicos) para não cair na
interversão. (Se ponho o humanismo, em política, caio no anti-huma-
nismo, se ponho o discurso antropológico na Teoria, perco os predi­
cados “do” homem, ou antes, o sujeito real desses predicados.)
Ocorre outra coisa quando se trata não de definir a relação com
os “princípios” antropológicos, mas de estudar a maneira pela qual a
dialética dá conta do seu objeto ou o desenvolve.49 Quando se trata da
apresentação da estrutura (econômica) do capitalismo — estrutura que
contém momentos ou estratos contraditórios — o pensamento dialético
não aparece mais suprimindo para não cair na interversão, mas ao
contrário, como o pensamento que dá livre curso à interversão, que se
deixa levar por ela. Assim, nesse nível, o único trabalho que merece ser
chamado de dialético, e portanto pode ser considerado científico, é
aquele que é capaz de mostrar como noções do tipo “homem” , “liber­
dade” , “propriedade” , “riqueza” , consideradas como determinações
do capitalismo, são afetadas de negação, e por isso se intervertem em
seus contrários. Tais são as condições da racionalidade dialética em um
e outro caso. Se o pensamento dialético é assim, por um lado, o pensa­
mento que suprime para não cair na interversão, ele é igualmente o
56 RUY FAUSTO

que, em outro nível, aceita a interversão, para não cristalizar como


positivo o que contém o negativo. O discurso do entendimento é, pelo
contrário, o que cai sem o querer na interversão, e o que cristaliza
noções cuja única racionalidade — enquanto determinações, conside­
radas no nível do desenvolvimento do objeto — é a de ser “interver-
síveis” .

b) Dialética e ideologia

Mas se observará que o conteúdo dos princípios que, na primeira


parte, havíamos mostrado como princípios que deviam ser “supri­
midos” , coincide com o das noções que, nas análises finais, apare­
ceram como noções a interverter. Num caso como no outro, se trata da
noção de “homem” e das noções de mesmo nível — “liberdade” ,
“riqueza” , “propriedade” . 50 Os princípios que a dialética suprime e
que o entendimento põe, e as determinações que a dialética interverte e
que' o entendimento cristaliza têm assim um mesmo conteúdo: “ho­
mem” , “riqueza” etc. São as mesmas noções que, num nível, a dialé­
tica suprime para não cair na interversão e, no outro, “deixa inter­
verter” , apresentando o seu conteúdo contraditório. E chegando a esse
ponto se poderá dar mais um passo na análise. Observar-se-á que as
noções em questão são as noções (básicas) constitutivas da ideologia do
capitalismo. Com efeito, a ideologia do capitalismo se constrói com
noções como “homem” , “liberdade” , “riqueza” (pensemos na econo­
mia clássica), “propriedade” . O que significa que a partição que
fizemos até aqui entre a dialética e os discursos do entendimento é
também uma partição entre um pensamento não ideológico e um
pensamento ideológico.Si Pondo os princípios ou bloqueando a inter­
versão das determinações contraditórias, o discurso do entendimento se
configura como um discurso ideológico; suprimindo os princípios, ou
intervertendo as determinações contraditórias do objeto, a dialética
“suprime” a ideologia. O que nos conduz às definições: o discurso
não-ideológico (dialético) é o que só põe 0 ser-negado {“suprimido")
das noções “ideológicas", no nível dos princípios; ou que libera o con­
teúdo negativo delas no nível da apresentação do objeto. O discurso
ideológico é, pelo contrário, o que põe essas noções no nível dos
princípios, ou o que bloqueia a interversão delas no nível da apresen­
tação do objeto. Observemos, nessas definições, que é pela supressão
(.Aufhebung) das noções em questão, não pela sua negação abstrata,
que a dialética se distingue da ideologia. Não é a simples utilização
dessas noções que configura um discurso como ideológico. Essa utili­
zação é legítima, e mais do que isto — ao contrário do que pretendem
os althusserianos — ela é necessária para que haja supressão da ideo­
logia. Assim como dissemos que a negação abstrata dos discursos do
MARX: LÓGICA E POLITICA 57

entendimento só eonduz a uma variante dos discursos do entendi­


mento, é preciso dizer que a negação abstrata do discurso ou das
determinações ideológicas só conduz a uma outra forma de ideologia.52
A razão dialética, que suprime as duas alternativas do entendimento,
julga tanto a primeira como esta última forma de ideologia.

Nota sobre a significação histórico-política das ideologias


humanista e anti-humanista53
O humanismo é em política — e também em Teoria — o refor­
mismo, em particular o reformismo na sua forma clássica. Poder-se-ia
mostrar que as diversas variedades de “humanismo revolucionário”
não são a rigor “humanismos” . O anti-humanismo — sempre en­
quanto paramarxismo — não é uma figura política perfeitamente defi­
nida. Mas o stalinismo, em particular nas suas fases esquerdistas,
poderia em certa medida representá-lo.
O reformismo põe o homem (a não-violência etc.), mas o fazendo
no interior de um universo não-humano (de violência etc.: o universo
do capitalismo), o homem passa “no” seu contrário: a não-violência do
reformismo é violência, cumplicidade com a violência do capitalismo.
No stalinismo, particularmente em algumas das suas fases, se tem pelo
contrário a violência abstrata, o não-humano no sentido do anít-huma-
nismo. A violência abstrata do stalinismo — pensemos na coletivização
forçada dos anos 30 por exemplo — afasta ou compromete a realização
do que deveria ser a finalidade da violência revolucionária: o nasci­
mento do universo da não-violência. A violência do stalinismo se crista­
liza em violência, é violência que só implica violência (tautologia). Mas
se poderia mostrar que, como para o caso do humanismo (reformismo),
no anti-humanismo (stalinismo), há igualmente interversão. Com
efeito, além do fato de que este anti-humanismo se apresenta como um
humanismo — lembremos o célebre “o homem é o capital mais pre­
cioso” , de Stalin — é preciso observar: a recusa abstrata do homem
que opera o stalinismo vai de par com uma ideologização — no sentido
técnico dado ao termo: interversão “em si” — que atinge, na versão
stalinista, os próprios conceitos do discurso marxista.54 Na ideologia
stalinista, a negação abstrata da liberdade, a negação abstrata da não-
violência — que justamente caracterizam essa ideologia — vêm de par
com uma perda de identidade dos conceitos do discurso político mar­
xista, como “revolução” , “proletariado” etc. Assim como na ideologia
burguesa e reformista “o homem” não é igual ao homem — o “ho­
mem” se interverte em não-homem —, a “ liberdade” não é igual à

(*) Aqui, mais do que era qualquer outro lugar, é preciso insistir que a pers­
pectiva do texto é marxista clássica. Sobre seus limites, ver a Introdução.
58 RUY FAUSTO

liberdade — a “liberdade” se interverte em não-liberdade — etc., na


ideologia e na prática stalinistas, “proletário” não quer dizer proletário
— “proletário” se interverte em não-proletário —, “revolução” não
quer dizer revolução — “revolução” se interverte em não-revolução —
etc. etc. São os conceitos do discurso político marxista que se inter-
vertem, isto é, é o próprio discurso marxista que se torna aqui ideo­
logia.

NOTAS

(1) “As relações de produção burguesas são a última forma antagônica (anta­
gonistisch)I do processo de produção social (...). Com esta formação social termina a
pré-história da sociedade humana”. (Marx, Werke, 13, Zur Kritik der Politischen Öko­
nomie, Berlim, Dietz, 1972, p. 9) Como as noções de pré-história da sociedade humana,
de homem etc., se encontram também — e mesmo com maior freqüência — nas obras de
juventude, precisemos que o nosso texto se refere não ao jovem Marx, mas ao Marx da
maturidade, particularmente o dos Gundrisse. (Ainda que a questão histórica da relação
entre o jovem Marx e o Marx da maturidade não seja aqui o nosso problema, o leitor
perceberá que a nossa perspectiva é a da descontinuidade — de forma alguma a do
contínuo tradicional — entre os “dois” Marx, mas que essa descontinuidade deve ser
distinguida da coupure althusseriana.) Observemos por outro lado que nas obras de
Marx do período de transição, sobretudo em A Ideologia Alemã, encontram-se textos
que se afastam da perspectiva dos Grundrisse aqui exposta — perspectiva que, no essen­
cial, não é diferente da de O Capital — numa direção inversa à das obras de juventude.
Nos limites deste texto — como uma exceção — também não levaremos em conta esses
textos de transição, deixando para outros textos a discussão dos problemas que eles
levantam, assim como, em geral, a do conjunto das questões que propõe o desenvolvi­
mento do pensamento de Marx.
(2) Com vistas ao leitor não especialista, lembremos que na Fenomenología do
Espírito — onde se descreve o itinerário da consciência no seu ascenso até o espírito —
há, se se pode dizer assim, duas perspectivas de leitura: a perspectiva ingênua da
consciência comum e a perspectiva da consciência científica ou filosófica. A solução dos
problemas que propomos nesse texto passa pela formulação rigorosa dessa diferença, em
particular pela definição exata do estatuto da consciência filosófica.
(3) Hegel fala não de “opinião”, mas de ‘afirmação seca” (ou nua) (ein trockenes
Versichern), mas ele diz que a "ciência não verdadeira”, a consciência natural, também
remete a isto, e que “uma afirmação seca vale entretanto exatamente tanto quanto a
outra”. — Se se objetar ao nosso argumento que a consciencia filosófica necessita da
Fenomenología para se legitimar diante da consciência natural e não em termos abso­
lutos, deve-se responder que a ciência necessita de qualquer modo de um caminho, ela é
processo e processo constitutivo, o que basta para o argumento.
(4) Lembremos que o devir é a passagem do não-ser ao ser ou vice-versa, não a
mudança no interior do ser, como o representam as leituras paradialéticas.
(5) Figuras da Fenomenología.
(6) “Assim como desenvolvemos pouco a pouco o sistema da economia burguesa,
desenvolvemos do mesmo modo a sua negação que é o seu resultado final (...). Se se
considerar a sociedade burguesa em grandes linhas, aparece sempre como resultado final
MARX: LOGICA E POLÍTICA 59

do processo de produção social a própria sociedade, isto é, o próprio homem nas suas
relações sociais”. (Marx, Grundrisse der Kritik der Politischen Okonomie, Berlim,
Dietz, 1953, p. 600. Ver tradução inglesa de M. Nicolaus, Penguin-New Left Review,
1973, p. 712)
(7) Poder-se-ia dizer, em certo sentido, que a matriz de todos esses juízos é a tese
VI sobre Feuerbach (tese cuja interpretação foi sempre controvertida; ver, por exemplo,
Althusser): “(...) a essência humana ( = o homem) é o conjunto das relações sociais”.
Com efeito, para que a tese VI ganhe uma significação rigorosa, é necessário que ela seja
lida como um juízo em que o sujeito passa "no” predicado. Em “o homem é o conjunto
das relações sociais”, o sujeito “homem” passa, se reflete, no predicado “relações
sociais”. Só o predicado “relações sociais”, não o sujeito “hompm”, está posto. Mas o
"homem” está lá, como sujeito pressuposto. Entretanto, como o mostraremos na se­
gunda parte, retomando em detalhe a análise da tese VI, é somente se a interpretarmos
da perspectiva da obra de maturidade (destacando-a do universo da “transição”) que a
tese VI será estritamente conforme aos nossos exemplos.
(8) Poder-se-ia pensar que não fizemos aqui mais do que substituir a pergunta
“que é homem?” peia pergunta “quem é homem?” (a qual, de qualquer modo, teria
como resposta um juízo em que o predicado nega o sujeito). Mas isto não é inteiramente
verdade, ou só é verdade se considerarmos uma resposta isolada, ou algumas respostas
isoladas, “o homem é o operário”, por exemplo, ou “o homem é o cidadão romano” etc.
Mas se tomarmos o conjunto das respostas que se poderia dar à pergunta, se considerar­
mos o conjunto da história, as respostas, com seus desenvolvimentos, constituem a apre­
sentação do conceito de homem, que é a única definição possível do homem no nível da
sua “pré-história"-, assim como a apresentação do espírito pelos seus predicados na
Fenomenología é a única definição possível do espírito.
(9) Sobre o capital-movimento ver J. A. Giannotti, As Origens da Dialética do
Trabalho, particularmente o prefácio da versão francesa, Paris, Aubier, 1971. Nessa
obra se encontra também a distinção pressuposição/posição, mas em geral em forma
diferente da que utilizo aqui. (Lá se considera o “homem” (pressuposto) como ontolo-
gicamente vazio, aqui como susceptível (em si) de um preenchimento progressivo, que
torna possível a posição final.)
(10) Tal recusa — para certos anti-humanismos paramarxistas pelo menos — se
explica pelo pressentimento dos problemas que levanta uma formulação rigorosa da
relação contraditória entre meios "inumanos” e fins humanos. Eles recusam toda refe­
rência ao homem para fugir das dificuldades — na realidade para fugir da dialética —
dessa formulação.
<11) Algo como um “a-humanismo” — a única terceira resposta que o entendi­
mento poderia admitir — não seria tampouco uma solução. Com efeito, se tanto o
humanismo como o anti-humanismo são insustentáveis pelas razões indicadas, não se
trata entretanto, como já vimos, de se manter fora do problema do homem.
(12) Para a justificação da tradução de Aufhebung por “supressão”, ver neste
tomo “Circulação de Mercadorias, Produção Capitalista”, nota 24.
(13) Do ponto de vista prático, isto implica recusar toda forma de violência que
poderia “expulsar” os fins não violentos, isto é, que poderia bloquear, pelo seu caráter
abstrato, o surgimento do universo da não violência.
(14) Precisão que, como se verá, não é supérflua.
(15) A diferença entre a antropologia em sentido estrito e o humanismo está,
a rigor, no fato de que, na primeira, embora o “homem” seja visado como sujeito, ele não
é tomado, entretanto, como sujeito em sentido forte, como “homem humanizado”,
o que ocorre no segundo. Por isso, toda universalização no primeiro caso só desemboca
na generalidade abstrata, ao passo que, no segundo, o homem é universalidade concreta.
E na medida em que discutir se o homem é ou não sujeito, mas sem introduzir a idéia do
“homem humanizado”, implica visar (ilusoriamente ou não) o “homem” atual, não o
homem do futuro, a problemática do antropologismo e do antiantropologismo concerne
ao discurso teórico (em parte também a política) mas não ao problema dos fins da política.
60 RUY FAUSTO

Ocorre o inverso com a problemática do humanismo e do anti-humanismo. — O pará­


grafo “o homem e o capital” articula a problemática do humanismo com o discurso posto
dos textos teóricos (portanto com os textos em que se põe o capital, não com aqueles em
que se pressupõe o homem; é a estes últimos que nos referimos agora).
(16) Isto significa, particularizando, para os dois níveis em que se coloca o pro­
blema da relação entre marxismo e a fundação antropológica: a) para o nivel do huma­
nismo: a política que se funda no homem ê na realidade a política do não (do anti)
homem. S6 a política que “suprime” o homem pode alcançar, de certo modo, o homem;
b) para o nível da antropologia em sentido estrito (o paralelismo com o caso anterior não
é perfeito pelas razões indicadas anteriormente, ver “o homem e o capital”): todo
discurso teórico fundado no homem perde o “homem”, isto é, os predicados do homem
ou o sujeito real que substitui o homem. Só os discursos teóricos que “suprimem” o
homem podem alcançá-lo.
(17) Ausschaltung = desligamento (mise hors circuit). Para comparar a dialética
com os discursos do entendimento designamos assim a Aufhebung por meio dos termos-
chave das filosofias transcendentais.
(18) Cf. as considerações sobre a relação entre Hegel e Husserl em i. Desanti,
Phénomenologie et Praxis, París, Éd. Sociales, 1963, pp. 23-37.
(19) O que mostra ainda uma vez — este é o objetivo deste parágrafo — o
parentesco que existe entre as duas respostas, abstratas, do entendimento.
(20) Mais do que como anti-humanismo.
(21) Ver a esse respeito, neste tomo, “Althusserismo e Antropologismo”.
(22) Será talvez o caso de insistir que nos situamos na perspectiva hegeliana da
interpretação da lógica. Por isso, nossas análises, sobre o juízo, por exemplo, têm como
objeto tanto a forma como o conteúdo, ou antes, o conteúdo tal como ele se reflete na
forma. Que a lógica dialética, diga-se de passagem, é não só “coisa interessante”, como
todos concordam em afirmar de um modo indulgente, mas também coisa rigorosa, é algo
que a desmonetização de noções como "dialética”, “supressão” etc. pelòs marxismos
vulgares obriga a demonstrar.
(23) Referimo-nos às pressuposições que representam — ou podem representar
— “sujeitos” (pressupostos) no nível da pré-história, e que são postos no fim da
“pré-história” como universais concretos; e não às pressuposições do capítulo V do livro I
de O Capital, simples universais abstratos. Ou antes, como certas pressuposições, como
por exemplo “homem”, podem servir tanto para um caso como para o outro, não nos
referimos às pressuposições no sentido dos universais abstratos do capítulo V. Ver sobre
tudo isto a primeira parte do nosso texto.
(24) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 791. Trad. franc. de Roy, Le Capital,
livre premier, tome troisième, Paris, Éd. Sociales, 1950, p. 205.
(25) Para este emprego da noção de “propriedade", ou antes, para um emprego
que, como se verá, é, sob um aspecto, idêntico, ver sobretudo as passagens dos Grun-
drisse (“Formas que precedem a produção capitalista”) consagradas à propriedade pré-
capitalista: Grundrisse, op. cit., pp. 391-396. Trad. ingl. de Martin Nicolaus, Grun-
drisse, op. cit., pp. 491-496.
(26) Entre essas pressuposições, poder-se-ia mencionar também, por exemplo,
a noção de “igualdade”.
(27) Werke, Thesen iiber Feuerbach, 3, op. cit., p. 534, grifado por Marx.
Marx-Engels, Études Philosophiques, Paris, Êd. Sociales, 1951, p. 63.
(28) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 49. Trad. franc. de Roy, Le Capital,
livre premier, tome premier, op. cit., 1969, p. 51.
(29) Seria preciso justificar melhor o sentido desse procedimento, que poderia
parecer gratuito ou tautológico. A leitura dessas diferenças no nível (formal) do juízo fará
aparecer determinações que não se apresentavam no plano da análise do conteúdo?
Isto é, o fato de refletir essas diferenças no plano do juízo acrescenta alguma coisa à
análise? E, se a resposta for negativa, qual o interesse e a justificação dessa projeção? Na
realidade, enquanto no caso geral a diferença formal (em sentido dialético), ligada
MARX: LÓGICA E POLITICA 61

embora ao conteúdo, é visível enquanto diferença formal — a passagem ou ausência de


passagem do sujeito “no” predicado —, aqui a diferença mal é perceptível enquanto
diferença de forma. A forma não se apresenta, aqui, enquanto forma, a reflexão do
conteúdo na forma depende aqui do ato de refletir. E entretanto, se o estrato formal não
tem nesse caso real autonomia, o procedimento não é ilegítimo. Se a reflexão “objetiva”
não é arbitrária, a “nossa” reflexão também não o é. Do mesmo modo que a reflexão
“objetiva” da forma, ela não faz mais do que seguir o conteúdo, do que obedecer aos
conteúdos dados na linguagem. E por isso mesmo, o procedimento que a sustenta conduz
a um resultado análogo ao do procedimento do caso geral. Quer se trate de “registrar” a
reflexão “objetiva" do conteúdo na forma, ou de refletir (fazer refletir) o conteúdo na
forma, o que se faz — num caso como no outro — o que nos dois tem interesse — é pôr
em evidência o conteúdo como movimento da forma. Razão pela qual, se nas páginas
seguintes o movimento — ou o impulso do movimento — é a rigor subjetivo, nem por isso
o procedimento perderá sua justificação.
(30) Bem entendido, nas economias pré-capitaiistas, ao lado do proprietário (do
cidadão, do senhor feudal etc.) se encontra o escravo, o servo etc. Mas para pensar o
papel dos agentes no pré-capitalismo é preciso partir dos primeiros, já que os últimos
fazem parte das condições objetivas da produção. Se, pelo contrário, se quiser fazer do
“escravo”, do “servo” etc. predicados da pressuposição “homem”, será preciso dizer
que, nas sociedades pré-capitalistas, a pressuposição “homem” ou passa “num” predi­
cado que em certo sentido é um sujeito (cidadão grego ou romano, senhor feudal etc.) ou
se perde pura e simplesmente num predicado que exprime uma coisa (“escravo”, “servo”
etc.). O capitalismo se situa entre esses dois extremos: a função de suporte que carac­
teriza os agentes no capitalismo não exprime nem um sujeito nem uma coisa, no sentido
em que o escravo é coisa, mas um sujeito “negado” em coisa.
(31) Grundrisse, op. cit., pp. 387-388, grifo nosso. Trad. ingl. de M. Nicolaus,
op. cit., pp. 487-488.
(32) Do ponto de vista moderno — tanto para a ideologia como para a crítica
modernas, ainda que em sentidos diferentes — o operário, o capitalista são só expressões
parciais do homem. Se eu disser, “o homem é o operário” ou “o homem é o capitalista"
não encerro o homem no seu predicado. “Capitalista”, “operário” exprimem o princípio
da sua superação. O que não se poderia dizer, pensando nas ideologias antigas, de
“grego”, de "romano” etc.
(33) Grundrisse, op. cit., p. 545. Trad. ingl. de M. Nicolaus, op. cit., pp. 651-
652.
(34) “O trabalho como trabalho assalariado e as condições de trabalho como
capital — portanto (como) propriedade do capitalista: elas são proprietárias-de-si, no
capitalista, no qual elas se personificam, e representam a propriedade dele sobre elas, a
própria propriedade delas sobre elas mesmas diante do trabalho — (...)” . (Werke, 26, 3,
Theorien iiberdenMehrwert, dritterTeil, op. cit., p. 482; ThéoriessurlaPlus-value, III,
publicadas sob a responsabilidade de G. Badia, Paris, Êd. Sociales, 1976, p. 578-579)
(35) Ver o texto citado das “Formas...” (Grundrisse, op. cit., pp. 387-388, trad.
ingl. de M. Nicolaus, op. cit., pp. 487-488), onde se fala da verdadeira riqueza.
(36) Dada a importância dessa passagem de O Capital, à qual não se concede
geralmente atenção suficiente, daremos à questão um desenvolvimento um pouco mais
detalhado do que exigiria o contexto. Voltaremos a ela em “Circulação de Mercadorias,
Produção Capitalista”.
(37) Observemos que é somente no capítulo sobre a acumulação primitiva — que
vem no final da secção sétima e na tradução francesa constitui uma secção à parte — que
se conhecerá a verdadeira gênese desse ponto de partida: o fato de que a “assim chamada
acumulação primitiva” (a “sogennante ursprüngliche Akkumulation”) é na realidade
um processo de separação, em que a violência desempenha um papel determinante. Até
aí, e portanto ao longo dos capítulos consagrados à acumulação propriamente dita,
o ato inicial de compra da força de trabalho aparece como se pudesse ter tido como
preliminar algo como um “trabalho primitivo” — Marx emprega mesmo a expressão
62 RUY FAUSTO

“trabalho primitivo", decalcando intencionalmente a economia clássica —, trabalho que


seria a fonte inicial do capital em dinheiro e em meios de produção. Ê assim pondo entre
parênteses toda consideração de ordem histórica que Marx irá demonstrar o que se trata
de demonstrar aqui, a saber, que a apropriação capitalista não se fundamenta no tra­
balho (próprio) nem pode ser legitimada por ele.
(38) Com efeito, no momento em que a libedade dos contratantes se torna uma
aparência — o que resulta da repetição do processo — a mais-valia aparece como o valor
extorquido, e não pago, e não mais como o produto do uso de uma mercadoria obtida
pela troca. Assim a perspectiva de leitura do processo se desloca do ato inicial que per­
tence à circulação para o momento da produção; deslocamento cujas conseqüências se
revelam, propriamente, no início da terceira volta do capital, quando a mais-valia (II)
obtida tem como pressuposição um encontro entre o operário e o capitalista que não pode
ter mais o caráter de um livre contrato.
(39) Tal privilégio abstrato do segundo momento — que representaria o lado
“anfi-antropologista” — não impede que Balibar caia no antropologismo, nesse mesmo
capítulo consagrado à reprodução. (Na realidade, ele cai na generalidade abstrata, mas
toda generalidade abstrata é antropologizante.) Assim, ele considera a análise da repro­
dução simples “como análise das condições gerais de forma de toda reprodução", (Idem,
p. 163, grifo do autor) Assim, ele afirma que a análise da reprodução simples permite
“formular um novo conceito filosófico da produção em geral”. (Idem, p. 171) Assim,
depois de ter mostrado a reprodução das relações sociais pelo movimento do capital, ele
diz que um processo análogo ocorre, em qualquer modo de produção; "Cada modo de
produção reproduz incessantemente as relações sociais de produção que o seu funcio­
namento pressupõe”. (Idem, p. 174) Isto de forma alguma é verdade. Com efeito, a
reprodução capitalista é coisa diferente da reprodução em geral, não a sua especificação.
O escravo, por exemplo, não é reposto formalmente (enquanto escravo) por cada circuito
da produção, como é o caso do operário. Diferentemente do trabalho assalariado, a re­
lação de escravidão — para tomar esse exemplo — é instaurada previamente, e não
constituída pelo próprio movimento da re-produção. O escravo é reproduzido fisicamente
na (dentro da) condição de escravo.
Chegamos assim, de novo, à conclusão a que havíamos sido conduzidos anterior­
mente. Se o examinarmos de perto, o antiantropologismo althusseriano se revela algo
como a antinomia — que diríamos transcendental — do antropologismo e do anti­
antropologismo, a qual condena o sujeito a um movimento infinito de um termo ao outro.
Antinomia que a razão dialética resolve pelo método que consiste em pôr em movimento
— mas finalmente os reunindo, o que suprime a má infinidade — os dois termos contra­
ditórios.
(40) Le Capital, livre premier, tome troisième (III), trad. franc. de Roy, Éd.
Sociales, p. 25. O texto é uma variante do original alemão. Ver Werke, 23, Das Kapital,
I, op. cit., p. 611.
(41) Observemos que para que a interversão se opere não é necessário supor a
reprodução em escala ampliada. Basta supor a reprodução simples. Ou, em outros
termos: a interversão não concerne somente à mais-valia acumulada — diretamente
acumulada, como veremos — e portanto somente a relação entre os capitalistas e os
operários contratados com o capital adicional. Após um certo número de voltas, ela
atinge também o capital primitivo. Que a reprodução simples baste para operar a
interversão, se explica pelas razões seguintes: na representação corrente da reprodução
simples, se supõe que o capitalista consome a totalidade da mais-valia e guarda sempre o
seu capital primitivo. Mas não é isso o que ocorre efetivamente. Se não se quiser supor
que o capitalista vive imediatamente às custas (do trabalho não pago) do operário — poís
a partir da segunda ou mais exatamente da terceira volta, pelas razões indicadas, que
remetem a condições que não se alteram se se tratar da reprodução simples, a mais-valia
é valor extorquido sem equivalente — é preciso admitir que, o que o capitalista consome
como rendimento, não é a (totalidade da) mais-valia, mas um valor equivalente à totali­
dade da mais-valia, que é na realidade descontado do seu capital primitivo. Ele não
MARX: LÓGICA E POLITICA 63

guarda o seu capital e consome a mais-valia, como se pretende habitualmente. Na


realidade — enquanto ele não retirou o equivalente do seu capital (depois o problema não
se coloca mais) — o que ele consome representa débitos sucessivos sobre o seu capital
primitivo, e o que ele investe, a mais-valia apropriada. De tal modo que, no momento em
que o capital faz um número de voltas suficientemente grande para que a totalidade da
mais-valia obtida seja igual ao valor-capital primitivamente investido, a totalidade do
capital primitivo (o capital que poderia ter vindo do trabalho) é inteiramente consumida:
“A representação do capitalista — escreve Marx supondo aqui que a metade da mais-
valia é acumulada — segundo a qual ele consome o produto do trabalho alheio não pago,
a mais-valia, e conserva o valor-capital primitivo, não altera absolutamente em nada o
fato. Decorrido um certo número de anos (“um certo período”, diz o texto francês, RF),
o valor-capital que lhe pertencia iguala a soma da mais-valia apropriada sem equivalente
no mesmo número de anos (“no mesmo período”, idern, RF) e a soma de valor que ele
consumiu iguala o valor-capital primitivo. Sem dúvida, ele conserva sempre em seu poder
um capital cujo volume não se alterou, (e) do qual uma parte — edifícios, máquinas etc.
— já existia quando ele pôs a sua empresa em movimento. Mas aqui se trata do valor do
capital, e não de seus elementos materiais. Se alguém consome todos os seus bens con­
traindo dívidas, que equivalem ao valor de seus bens, o conjunto de seus bens só repre­
senta a totalidade das suas dividas. Do mesmo modo, se o capitalista consumiu o equi­
valente do capital que investiu, o valor desse capital s6 representa a soma total da
mais-valia apropriada gratuitamente. Nenhum átomo de valor do seu antigo capital
continua a existir". (Werke, 23, Das Kapítal, I, op. cit., pp. 594-595. Trad. franc. de
Roy, livre premier, tome troisième (III), op. cit,, pp. 12-13. Grifo nosso) Observemos que
(no que se refere ao capital primitivo) no caso da reprodução ampliada, essa explicação
— válida, supondo que uma parte do valor equivalente à mais-valia é gasta como rendi­
mento — se torna supérflua. Com efeito, na reprodução ampliada “todo capital investido
primitivamente se torna uma grandeza evanescente (magnitudo evanescens em sentido
matemático) comparada com o capital diretamente acumulado, isto é, à mais-valia ou ao
sobreproduto retransformado em capital (...)”. (Werke, 23, Das Kapítal, I, op. cit., p.
614. O texto francês é muito diferente: ver trad. Roy, livre premier, tome troisième (III),
op. cit., pp. 27-28)
(42) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., pp. 609-610. Texto francês muito dife­
rente: ver trad. Roy, livre premier, tome troisième (III), op. cit., pp. 24-25.
(43) O que mostramos para a liberdade e para a propriedade pode também ser
dito da noção de homem. Enquanto o livre contrato não é reduzido a uma aparência,
a perspectiva do homem sujeito não é inteiramente “suprimida”. Quanto à noção de
riqueza, além do fato de que a análise da interversão da propriedade é também a análise
da interversão da riqueza (a (produção da) riqueza é... empobrecimento), seria preciso
observar, mas no fundo se trata da mesma coisa, que é sô no nível da anáiise da acumu­
lação que a conexão entre enriquecimento e empobrecimento aparece sob a forma de
uma lei geral.
(44) Grundrísse, op. cit., pp. 489-490, grifo nosso. Trad. ingl. de M. Nicolaus,
op. cit., pp. 595-596.
(45) Grundrísse, op. cit., p. 449, grifo nosso (“sem troca, sem equivalente",
grifado já no texto). Trad. ingl. de M. Nicolaus, op. cit., p. 551.
(46) Para o emprego não reflexivo da noção de “propriedade”, ver Werke, 23,
Das Kapital, I, op. cit., p. 791, trad. franc. Roy, livre premier, tome troisième (III),
op. cit., p. 205, texto citado acima, na nota 3. Ver também, para a propriedade
pré-capitalista, Grundrísse, op. cit., pp. 391-396, trad. ingl. de M. Nicolaus, op. cit.,
pp. 491-496, texto já referido.
(47) O operário e o capitalista, diga-se de passagem, são suportes do capital
somente na medida em que são considerados como “portadores” da estrutura. Consi­
derados no nível da atividade prática em sentido forte (a luta sindical ou política do
operário, por exemplo), eles têm funções de outra natureza, as quais devem ser definidas
por outros conceitos. Explicar-me-ei em detalhe sobre esse ponto em outro lugar.
64 RUY FAUSTO

(48) Lembro as análises anteriores: em conformidade com os princípios da lógica


“reflexiva” , o entendimento oscila entre o humanismo (o aníropologismo) e anti-huma-
nismo (o antiantropoiogismo). Mas o humanismo se interverte em aníi-humanismo;
o anti-humanismo, quando não sofre a interversão inversa, fica encerrado na tautología
vazia do anti-humanismo.
(49) Esta localização das esferas respectivas da "supressão” e da “interversão” no
discurso dialético é imprecisa. Ela segue — ela não faz maís do que seguir — o movi­
mento do nosso texto. Com efeito, a primeira parte, onde se tratou da supressão, tinha
sido construída em torno do eixo das “duas” antropologías; a segunda, em que se
introduziu a interversão, está centrada na passagem à teoria da reprodução. As conclu­
sões relativas âs duas operações do discurso dialético se atêm a este esquema: a supressão
se situaria no nível da conexão com os discursos antropológicos (tanto no plano da Teoria
como no plano da política), a interversão se situaria no nível da apresentação (do desen­
volvimento) das leis contraditórias do objeto. Entretanto, há uma dificuldade relativa ao
primeiro ponto, que se reflete no conjunto do plano. Como havíamos observado e discutido
no início (ver primeira parte, “o homem e o capital”), o paralelo entre as duas antro­
pologías não deixa de apresentar certas dificuldades. É só na política — onde elà
representa algo assim como o princípio da violência revolucionária — que a supressão do
homem é constitutiva. (Ver primeira parte, c) No nível da Teoria, se encontramos
sem dúvida um discurso antropológico não fundante, e nesse sentido “suprimido”,
não se poderia dizer que (mesmo) a negação desse discurso tenha uma função cons­
titutiva. O “princípio” cuja negação é constitutiva na Teoria são exatamente as leis
da circulação simples. (Por outro lado, a negação é, como vimos, de outro tipo;
trata-se da interversão. Há também outras diferenças não analisadas aqui.) Seriamos
assim tentados a pôr entre parênteses, na primeira parte, tudo o que se refere à antro­
pologia teórica; e a ler a segunda de um modo um pouco mais amplo do que o texto
sugere. Do que resultaria, para a compreensão do conjunto: a primeira parte, onde se
trata da supressão, teria por objeto a lógica da política marxista (os textos dos Grun-
drisse, obra de síntese, interviriam aí “envolvendo” a política): a segunda parte, em que
se trata da interversão, apresentaria, pelo contrário, a lógica da Teoria (as referências aos
Grundrisse iluminariam então a obra teórica). E isto nos levaria a concluir, no que se
refere ao problema em discussão: a interversão caracterizaria, essencialmente, o movi­
mento da apresentação da Teoria; a supressão caracterizaria, essencialmente, a articu­
lação da política. É provavelmente a essa forma de apresentação e a esse resultado que
seremos afinal conduzidos. Entretanto, nos limites deste texto, concluiremos conforme o
esquema seguido, sem reinterpretá-lo. Isto, por um lado, devido ao fato de que, se o
relacionamento das duas antropologías nos obriga a fazer certas ‘‘torções” na exposição,
ele tem, não obstante, certo poder explicativo. (Ele torna mais clara, a seu modo,
a diferença entre a dialética e os discursos do entendimento.) Por outro lado, porque, se
nos quisermos liberar de toda dependência em relação à questão da antropologia,
apresentando a dialética tomando diretamente como referência a relação entre a Teoria e
a política, será preciso apresentar uma e outra de um modo muito mais detalhado e mais
completo do que fizemos aqui.
(50) Mesmo se nas análises da primeira parte só introduzimos a noção de
“homem” , é evidente que as outras noções fazem parte também do universo do antro­
pologismo e do humanismo, que se trata de "suprimir” ,
(51) Só com o intuito de evitar confusões, observemos que se emprega aqui o
termo "ideologia” no sentido que lhe dá Marx, não no que ele toma em Althusser. De um
modo muito esquemático: em Marx, um discurso ideológico denota um discurso que
remete a certas formas de consciência histórica e que é antes de mais nada, e neces­
sariamente, mistificante. Em Althusser, um discurso ideológico denota um discurso que
remete a um sistema de representações que se encontra em qualquer formação — uma
sociedade sem classes, por exemplo, teria também de direito a sua ideologia — discurso
que é necessariamente (não “mistificante”, mus) a-científico. — Se o movimento do texto
não é suficientemente claro, eis aqui esquematicamente os seus momentos. Trabalhamos
MARX: LÖGICA E POLITICA 65

até aqui com a distinção entre, de um lado, o discurso dialético, e, de outro, os discursos
do entendimento, nas suas duas formas opostas-complementares. Ora, examinando as
noções constitutivas do discurso do entendimento (em uma de suas formas), percebemos
que elas compõem o universo da ideologia burguesa (clássica). O que foi dito da dife­
rença entre o discurso dialético e os discursos do entendimento (suas operações lógicas
características etc.) deve ser aplicável à diferença entre um discurso ideológico e um
discurso não-ideológico. Somos assim conduzidos a definir a ideologia — coisa que talvez
nSo seja sem interesse — em termos das suas operações lógicas constitutivas.
(52) Para a justificação desta última afirmação ou, antes, para uma justificação
que não seja uma simples retomada das análises anteriores, ver a nota final.
(53) Cf. a crítica do humanismo e do anti-humanismo, na primeira parte deste
texto. Evidentemente, não fazemos aqui mais do que esboçar, sob a forma de uma nota
final, o tema da significação histórico-política do humanismo e do anti-humanismo
(enquanto paramarxismos), tema que desenvolveremos em outro lugar.
(54) Aqui são os conceitos do discurso marxista, isto é, é o próprio discurso
"substantivo” que se interverte, não as noções pressupostas. De resto, esta interversão,
que é uma interversão “em si”, isto é, que não passa pela consciência do sujeito do
discurso, se produz numa esfera do discurso marxista, indicada em seguida, em que a
interversão só pode ser ideologizante.
2

Althusserismo e antropologismo

A tese de um antropologismo althusseriano é suficientemente


paradoxal para que se imponha uma justificação. Se falamos de um
“deslizamento” do althusserismo no antropologismo (“deslizamento”
cuja necessidade deveria ser buscada no caráter não dialético do pensa­
mento althusseriano), é preciso explicar em detalhe o seu mecanismo.
Para fazê-lo, analisaremos inicialmente o texto de Balibar Sobre
os conceitos fundamentais do materialismo histórico. (Em Ler o Capi­
tal) 1Examinaremos em seguida, de um modo mais conciso, os célebres
textos sobre a prática no artigo de Althusser Sobre a dialética mate­
rialista. (Em Pour Marx)2

A) BALIBAR

O quadro de invariantes

Retomemos inicialmente o texto de Balibar.


Partindo da idéia de que existe em Marx “uma teoria geral da
história” 3 e de que no centro desta teoria está o conceito de modo de
produção, Balibar se propõe, antes de mais nada, “reconstituir” esta
noção.4 Como, para ele, todo modo de produção pode ser pensado
como “um sistema de formas que representa um estado da variação” 5
de um conjunto de elementos, para reconstituir a noção de modo de
produção seria necessário, antes de mais nada, identificar os elementos
comuns a todos os modos. Ele faz, assim, o inventário dos elementos
que se encontram em todos estes sistemas de formas. Estes elementos
são, em primeira instância, três: “ 1) o trabalhador (a força de tra­
balho); 2) os meios de produção (...); 3) o não-trabalhador que se
apropria do sobretrabalho” .6 Mas é a combinação desses elementos
que torna possível ou que constitui os diferentes modos, e esta combi­
nação se faz sempre segundo duas relações (relations) que também
podem ser consideradas como “elementos” : a relação de propriedade7
e a chamada relação de apropriação real (a “ apropriação real material
dos meios de produção pelo produtor no processo de trabalho”).8 De
MARX: LÖGICA E POLITICA 67

acordo com a iorma particular que assumem estas duas relações, ou


como diz também Balibar, conforme “os valores exclusivos” 9— uniâo
ou separação — que podem tomar estas relações, obteremos diferentes
configurações. Assim, para o modo de produção (especificamente)
capitalista — se tomarmos como termos o produtor e os meios de
produção — obteremos uma dupla separação: por um lado, o traba­
lhador não é proprietário dos meios de produção; por outro lado —
devido ao caráter do processo material de trabalho: nesse modo os
meios de trabalho são máquinas e não instrumentos manuais — o tra­
balhador está separado, também do ponto de vista material, dos meios
de produção.

Significado antropológico do quadro de invariantes.


Primeiro motivo do “deslizamento”: o ideal da teoria geral

O quadro de invariantes e a sua particularização, a “dupla sepa­


ração” entre o trabalhador e os meios de produção — configuração,
que, como acabamos de ver, toma, para o capitalismo, o esquema das
duas relações —, é uma referência constante no texto de Balibar. Ele o
retoma várias vezes na continuação, praticamente a propósito da dis­
cussão de cada problema (sobretrabalho, fetichismo, passagem de um
modo de produção a outro etc.).10 Para saber que função tem o quadro
de invariantes, leiamos o texto seguinte: “A periodização, pensada
como periodização dos próprios modos de produção, como modos
puros (dans leur pureté), dá forma, inicialmente, à teoria da história.
Assim, a maioria das indicações em que Marx reúne os elementos da
sua definição são indicações comparativas. Mas por trás dessa termi­
nologia 4®scritiva (os homens não produzem do mesmo modo nos
diversos modos de produção históricos, o capitalismo não contém em si
a natureza universal das relações econômicas) se indica o que toma
possível as comparações no nível das estruturas, a procura das deter­
minações invariantes (dos ‘caracteres comuns’) da ‘produção em geral’,
que não existe historicamente, mas da qual todos os modos de produ­
ção representam variações” . (Cf. Introdução de 1857 à Contribuição à
Crítica da Economia Política) n A destacar nesse texto: “a procura das
determinações invariantes” ( = o quadro dos invariantes) (é) “o que
toma possível as comparações no nível das estruturas” . Leiamos ainda
um outro texto, que se segue à exposição da passagem da manufatura à
grande indústria: “Antes de enunciar as conseqüências ulteriores que
podemos tirar desta análise (da passagem da manufatura à grande
indústria) é necessário mostrar como ela depende inteiramente dos
critérios de diferenciação das formas que estão contidos na definição do
processo de trabalho”. 12 (A definição do processo de trabalho contém
os elementos do quadro.) A destacar aqui “ela depende inteiramente” .
68 RUY FAUSTO

Por outro lado, como se para acentuar a importância do seu


esquema, Balibar se refere à “ dificuldade (que teria encontrado) (...)
Marx em pensar a distinção entre as duas relações” , 13 “a sua dificul­
dade, patente nas hesitações do vocabulário das Formas anteriores...,
em isolar as duas relações (...)” . 14 Dificuldade que o seu texto (o de
Balibar) teria sido capaz de superar.
Mas analisemos mais de perto o sentido do esquema geral. Que
significam logicamente o quadro dos invariantes e o esquema da dupla
separação, ou mais exatamente, qual é o caráter do discurso — e por­
tanto das noções — que os exprimem? Se os examinamos um pouco,
veremos que se trata de um discurso — e de noções — cuja natureza é
essencialmente antropológica. De fato, os termos que as duas relações
unem — em primeiro lugar “trabalhador” e “meios de produção”
(“objeto de trabalho” , “meio de trabalho”),15 são noções de caráter
antropológico. (Que elas sejam antropológicas — se é necessário provar
— se revela não só na sua generalidade, mas também no fato de que
elas exprimem o processo de produção de um modo subjetivo. A gene­
ralidade — aqui, pelo menos — é subjetivizante. “Trabalhador” ,
“produtor” não só exprimem os agentes da produção (como a própria
produção) em forma geral, mas os exprimem também como sujeitos.)16
Tais noções se encontram, bem entendido, em O Capital, mas em
Marx, elas funcionam somente como pressuposições.17 O lugar delas é
o capítulo V (original) do livro I de O Capital.18 Se algumas delas são
utilizadas no capítulo primeiro,19 é somente a posteriori, no capítulo V,
depois de ter introduzido as noções de capital, de força de trabalho,
de mais-valia (além das noções essenciais à apresentação da circulação
simples) que Marx apresentará e definirá estas noções. Mas ele o fará
num discurso mais fraco, que deve ser lido como instaurando duas
vezes uma descontinuidade — no início e no fim — com o discurso
substantivo.20
Assim, sob a forma do quadro dos invariantes, as noções antro­
pológicas parecem assumir em Balibar uma dignidade teórica que elas
não têm em Marx. E se se perguntar quais as razões que explicam um
tal “deslizamento” no antropologismo, a resposta é bem evidente. Elas
residem na necessidade de fundamentar o marxismo numa teoria geral,
necessidade conforme à tradição clássica pré-hegeliana. É a concepção
clássica do rigor em termos de uma fundação em noções primeiras,
concepção inseparável da idéia clássica de uma universalidade do"
domínio das leis da ciência, que serve de base a esse procedimento.
É a dependência em relação a este ideal de ciência (dependência que se
manifesta aqui pelo papel atribuído ao discurso geral),21 que conduz
esse projeto de reconstituição do discurso de O Capital — o qual, entre
outros resultados, deveria proteger o marxismo de toda leitura antropo-
logista — a abrir a porta (é o menos que se poderia dizer) ao antro­
pologismo.
MARX: LÓGICA E POLITICA 69

As precisoes de Balibar: “visar” (“meinen”) e “pôr” (“setzen”)

Essa apresentação do caráter antropológico do quadro de inva­


riantes seria suficiente para a critica do texto, se o autor, pressentindo
algumas das dificuldades do quadro, não voltasse, páginas adiante,
a discutir seu sentido. Na realidade, ele volta à questão do quadro dos
invariantes, e é no nível dessa retomada que o problema do sentido
geral do texto se coloca de forma mais aguda. É necessário assim exa­
miná-la em detalhe.
Logo depois da apresentação do quadro, Balibar observa já, em
forma de explicação, “ que não se trata de uma combinatória em sen­
tido estrito” ,22 e isto porque os fatores mudam de natureza ao se com­
binar. Mas é só mais adiante que ele retoma efetivamente o problema.
O texto é longo, mas é preciso citá-lo pelo menos em parte: “A defi­
nição de todo modo de produção como uma combinação de elementos
(sempre os mesmos) que são apenas virtuais fora do seu relacionamento
num modo determinado, a possibilidade de proceder nessa base à
periodização dos modos de produção, segundo um princípio de varia­
ção das combinações, merece, em si mesmo, atenção. (...) (...)” .
A “combinação” analisada por Marx é sem dúvida um sistema de
relações “sincrónicas” obtido por variação. Entretanto, esta ciência
das combinações não é uma combinatória, na qual só mudam o lugar
dos fatores e a sua relação, mas não a sua natureza, que é não só
subordinada ao sistema global, mas também indiferente. Pode-se assim
fazer abstração dele, e proceder diretamente à formalização dos siste­
mas. Sugere-se então a possibilidade de uma ciência a priori dos modos
de produção, de uma ciência dos modos de produção possíveis, reali­
zados ou não na história real-concreta, por força do acaso ou pela
eficácia de um princípio do melhor. Ora, se o materialismo histórico
’autoriza a previsão, e mesmo a reconstituição dos modos de produção
“virtuais” (como se poderia chamar o “modo de produção mercantil
simples”), os quais, não tendo sido nunca dominantes na história, só
existiram deformados, é de um outro modo que daremos conta disto,
mais adiante, com base nas modificações de um modo de produção
existente. Isto suporia que os “fatores” da combinação são os próprios
conceitos que enumerei, que esses conceitos designam diretamente os
elementos de uma construção, os átomos de uma história. Na reali­
dade, como já disse de um modo muito geral, esses conceitos designam
só mediatamente os elementos da construção: é preciso passar por
aquilo que denominei “análise diferencial das formas” para determi­
nar as formas históricas que tomam a força de trabalho, a propriedade,
a “apropriação real” etc. Estes conceitos designam somente o que
poderíamos chamar de pertinência da análise histórica. Ê esse caráter
da combinação, portanto, uma pseudo-combinatória, que explica por-
70 RUYFAUSTO

que há conceitos gerais da ciência da história sem que jamais possa


haver história em geral” . 23
Assim, depois da apresentação do quadro dos elementos e de
suas implicações, eis que a posição do problema se desloca. Desen­
volvendo uma linha de argumentação já esboçada na idéia de que não
se trata de uma combinatória mas de uma combinação,24 Balibar dirá
que os “elementos” não são mais do que pertinências, o que significa
aparentemente recusar ao quadro toda função fundante. Com base
nessas precisões, costuma-se recusar as críticas do tipo das que fizemos
aqui: por meio dessas precisões, Balibar teria conjurado a ameaça do
antropologismo. E como essas precisões têm um peso maior na segunda
edição de Ler o Capital do que na primeira, e como os althusserianos
parecem dar-lhes uma importância cada vez maior, conforme o seu
curioso método de autocrítica “ a prestação” , dir-se-á que refutamos a
primeira mas não a segunda edição, que os althusserianos teriam assim
superado aquele ponto de vista etc. etc. O que vai depressa demais.
Porque, observemos — e este é o ponto mais importante: se é verdade
que Balibar nos diz que os elementos não são mais do que pertinências,
poderia ocorrer que os dizendo simples pertinências, eles os pusessem
(“setzen”) de fato, como algo mais do que isto. Poderia ocorrer — coisa
menos rara do que se pensa — que o seu dizer (no sentido fraco: o seu
“meinen” , o seu “visar”) contrariasse o seu fazer (o seu fazer teórico:
o seu "setzen")-, que ele dissesse o contrário do que ele faz (teorica­
mente): que o seu dizer não representasse mais do que um esforço inútil
para evitar as conseqüências objetivas do seu fazer. Ora, é fácil mostrar
que em Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico, os
elementos (o quadro dos invariantes) são mais do que simples perti­
nências. Com efeito, não só — contrariamente ao que faz Marx —
os “elementos” se situam no início do texto;25 mas, coisa mais impor­
tante, é mesmo dos “elementos” ao caso particular do capitalismo (ou,
se se prefere, é do capitalismo mas sempre subsumido ao esquema
geral) que — como se pode mostrar — vai o movimento efetivo do
texto.26 Mas para mostrá-lo de um modo rigoroso, será preciso inter­
romper esse desenvolvimento em tomo da questão da generalidade,
que depende de certos elementos ainda não introduzidos, para analisar
o que constitui propriamente o núcleo da “ anfibolia” , a noção de
“relação de produção” . A análise dessa noção nos levará inicialmente a
destacar um segundo motivo do “ deslizamento” , mas este nos recon­
duzirá, no final, à questão da generalidade.
MARX: LÓGICA E POLITICA 71

O núcleo da “anflbolia”: a noção de relação de produção.


Segundo motivo do deslizamento: o “horror” do movimento

No fundo, o núcleo da “anfibolia” se situa na noção de “relação


de produção” (rapport de production). Mais precisamente, na idéia
que faz Balibar do que seja uma “relação” , na expressão “relação de
produção” . Examinemos esse ponto em detalhe, comparando Balibar e
Marx.
Como vimos, a construção teórica de Balibar tem como centro a
idéia de que a estrutura de todos os modos de produção remete a duas
relações (relations) que “unem” (positiva ou negativamente) o traba­
lhador e os meios de produção (ou antes, o trabalhador, os meios de
produção e o não-trabalhador). A noção de “rapport” (rapport de
production, relação de produção)27 — quando ela não é empregada
como equivalente a “relation” — remete à articulação das duas rela­
ções: “ a relação (rapport) dessas duas relações (relations) e sua inter­
dependência” .28 Como, deste modo, a relação de produção é consti­
tuída a partir das duas relações (quando ela não lhes é simplesmente
identificada), para saber a que remete o termo relação (“rapport”) em
Balibar, é preciso examinar primeiramente o que significam as relações
(“relations”). (Ê verdade que mais adiante Balibar tenta fazer uma
apresentação “sintética” da “relação” (“rapport”)-, mas, a exemplo do
que fizemos anteriormente, antes de chegar a isso, é preciso considerar
a relação (“rapport”) tal como aparece no início, tal como devemos
pensá-la nos termos da apresentação inicial.)29
Em que sentido estas relações são chamadas de “relações” (“re­
lations”)? Somos obrigados a responder: no sentido usual da palavra,
no sentido de que elas unem, de que elas estabelecem um “vínculo”
entre certos elementos. A “relação” (“rapport”) (de produção), que
exprime uma operação análoga em segundo grau, seria algo assim
como um vínculo entre vínculos.
Ora, que é para Marx uma “relação de produção” (“Produk-
tionsverhàltnis”)? Ou antes, fazendo a pergunta de um modo ao mesmo
tempo mais correto e mais fecundo, que é para Marx uma relação
capitalista de produção? Para responder a esta questão, poderíamos
começar perguntando quais são no capitalismo as “relações de produ­
ção” ; quais são, pois — o que não é sem importância — elas se
exprimem por conceitos. Ora, como dizem numerosos textos, as rela­
ções capitalistas de produção são o capital e o trabalho assalariado,20
os quais são considerados, às vezes, como expressões diferentes de uma
mesma relação.31 Por outro lado, ele diz que o capital é “ a categoria
dominante, a relação de produção determinante” . 32 Razão pela qual,
dizer o que é, para Marx, uma relação capitalista de produção significa
explicitar a natureza do capital enquanto objeto. Para isto, tomemos
inicialmente o texto dos Grundrisse já citado em nota: “(O capital) é
72 RUYFAUSTO

evidentemente uma “relação” ( Verhältnis) e só pode ser uma relação


de produção (Produktionsverhältnis)”.33 Que quer dizer no texto “re­
lação” , de que natureza é este objeto que Marx designa freqüente­
mente pela expressão “relação-(de)-capital” (Kapitalverhältnis)?34 Já
havíamos dado a resposta no texto, mas uma passagem dos Grundrisse
o diz de uma maneira muito elara, relacionando a noção de “relação”
com a noção de “processo”: “(...) se dissermos que o capital é valor de
troca que produz um lucro, ou pelo menos, que é utilizado com vistas à
produção de lucro, o capital já é pressuposto à sua própria explici­
tação, pois o lucro é relação determinada do capital a si mesmo. O
capital não é nenhuma relação ( Verhältnis) simples, mas um processo,
em cujos diferentes momentos ele é sempre capital”. 35 A noção de
“relação” remete, assim, à noção de “processo” . E é nesse sentido e
não no sentido vulgar que, para Marx, o capital não é uma relação
simples, mas uma relação complexa. Mas é o caráter de processo, ou
mais exatamente, de processo-sujeito, que assegura a anterioridade da
relação sobre os termos. Ê somente se ela for posta como processo-
sujeito que será posta como anterior aos termos. Ora, no texto de
Balibar, a “relação de produção” (na qual ele não reconhece o próprio
capital) é, como vimos, uma coisa bem diferente de um movimento.36 E
se no capítulo do seu texto consagrado à reprodução, o movimento
“entrará em cena” , tratar-se-á não do movimento-sujeito, de uma
coisa-movimento, mas de uma coisa (um sistema de relações no sentido
usual) que-se-põe-em-movimento.37 Nessas condições, inútil explicar a
posteriori que a relação é anterior aos termos.38 Tais explicações nos
dizem, sem dúvida, que a coisa deve ser assim, mas isto não quer dizer
que ela tenha sido efetivamente posta assim. No nível da posição a
“relação de produção” aparece como segunda, não como primeira, em
relação aos termos.
Assim, o “ deslizamento” em direção às pressuposições ( = “desli­
zamento” no antropologismo) o qual havíamos apresentado como re­
sultado de um ideal linear de ciência, aparece aqui como fruto da
recusa do movimento. O entendimento tem horror do movimento — do
movimento-sujeito, este “irracional” (não do movimento em geral39) —
como a natureza teria horror do vazio.

Síntese dos dois motivos. Retomada do problema da generalidade

Vê-se, assim, que o distanciamento em relação à dialética que


tentamos reconstituir aqui poderia ser compreendido tanto como resul­
tado da fidelidade do teórico a um ideal clássico de “ dedução” (visível,
ao que parece, no nível da posição), ideal que faz do ponto de vista
geral o fundamento do seu discurso; como da impossibilidade em que
ele se encontra (também inscrita no seu ideal teórico, mas se manifes­
MARX: LOGICA E POLITICA 73

tando em outra face) de apreender o movimento enquaftto movimento.


Dois motivos que apresentamos (até certo ponto, pois falta ainda
alguma coisa) o primeiro em forma “positiva” , o segundo em forma
“negativa” , mas que poderíamos ter apresentado também de uma
outra m aneira.40 Mas uma vez esclarecida a natureza do capital, pode­
ríamos — e deveríamos — retomar a questão da generalidade — o
primeiro motivo, abandonado a meio caminho. À resposta ao problema
deixado em suspenso está, de certo modo, contida na análise anterior.
Com efeito, que no texto de Balibar, o esquema geral é posto como algo
mais do que como um conjunto de “pertinências” — o que faltava
provar — se revela primeiramente (além do fato, já assinalado no
início, de que é à estrutura capitalista pensada em termos da dupla
combinação41 que ele sempre volta) — no que acaba de ser demons­
trado, a saber, que dada a não-posição do capital como movimento-
sujeito, o capital também é reduzido a uma relação no sentido usual
(uma “combinação”).
Mas para mostrar que tal privilégio da “combinação” equivale
propriamente a uma posição da generalidade, é preciso acrescentar
ainda alguns elementos à análise, e sobretudo mostrar quais são as
implicações desse privilégio no que se refere ao discurso sobre o con­
junto dos modos de produção.
Examinemos, para concluir, esse ponto essencial, comparando
uma última vez o procedimento de Balibar com o procedimento de
Marx.
O ponto fundamental é aqui o seguinte: porque ele representa a
diversidade dos modos por “variações” expressas por noções tais como
“combinação” , “ separação” , “reunião” (vimos que, afinal, tudo se
reduz a isto) etc., a caracterização de um modo se faz em Balibar
aquém do nível do capital,42 isto é, aquém do nível em que se poderia
levantar a questão da presença ou da ausência do capital num deter­
minado modo de produção. Mas precisamente porque o capital não é
senão um movimento “orientado” , esta questão é idêntica à questão da
finalidade ou do motivo de uma forma de produção (em primeiro lugar,
o de saber se a sua finalidade é o valor de uso ou (a valorização d)o
valor). Ora — pode-se mostrar —, é propriamente a posição da finali­
dade que, em Marx, quebra a generalidade fundante; a elipse da fina­
lidade deve ser portanto o elemento-chave para compreender porque,
em Balibar, a generalidade fundante fica afinal sempre posta.
Vejamos tudo isto mais de perto.
Se distinguirmos os modos como os distingue Balibar, nos situa­
mos efetivamente num terreno em que a generalização é possível. Se
examinarmos as pressuposições, encontraremos sempre uma “reu­
nião” , uma “separação” etc. dos mesmos elementos, e a necessidade
de generalizar é, assim, satisfeita. Mas a que preço? Pelo preço da
posição do “motivo propulsor” (da finalidade) de cada modo (se ele se
74 RUY FAUSTO

funda no valor de uso ou no valor de troca). Na realidade, se para dis­


tinguir os modos alguém disser que num modo tais elementos estão
separados, tais estão unidos etc., ele não dirá nada sobre a finalidade
desse modo, ou mais exatamente, ele não efetuará a posição da fina­
lidade desse modo. (Sem dúvida, a disposição dos elementos pode ser
indicativa da finalidade, mas, com isto, Balibar não faz outra coisa
senão pressupor o que é da ordem da posição (a finalidade), assim
como — nós vimos — num movimento inverso, complementar, ele
“põe” o que deve ser pressuposto.)
Em Marx se dá o contrário. Tomemos as Formas que precedem a
produção capitalista. Ainda que nas Formas... se fale muito das pres­
suposições — mas justamente elas aparecem como pressuposições43 —
a linha divisória é a questão do motivo determinante, da finalidade
interna dos diferentes modos. Ê assim que Marx volta constantemente
— “do mesmo modo” que Balibar retoma sempre a “ dupla separação”
— ao fato de que, no capitalismo, o motivo determinante é a valori­
zação (a produção de (sobre)-valor), enquanto que nos outros modos,
o motivo determinante, a finalidade é, pelo contrário, a produção do
valor de uso.44 Ora, eis o essencial: o valor de uso e o valor (ou a sua
forma fenomenal, o valor de troca) não são espécies de um gênero,
eles são contrários .4S E isto significa: não há nenhum gênero que possa
subsumi-los. 46 “Quando Wagner diz que não há lá nenhuma teoria
geral do valor, do seu ponto de vista (‘Sinn’) ele tem perfeitamente
razão, pois ele entende por teoria geral do valor, raciocinações (‘Spin­
tisieren’) sobre a palavra ‘valor’, o que lhe permite perseverar na
confusão, tradicional dos professores alemães entre ‘valor de uso’ e
‘valor’, porque os dois (termos) têm em comum a palavra valor” . 47
Assim, é fazendo do motivo determinante, da finalidade, o eixo divi­
sório, que a generalidade fundante é quebrada. É pela posição da fina­
lidade interna dos modos que o discurso sobre o conjunto dos modos de
produção se torna coisa totalmente diferente de um discurso geral: um
discurso de dispersão, em que só as diferenças são postas, ficando
pressuposto o sistema das identidades .48

B) ALTHUSSER

InterversSo análoga em “Sobre a dialética materialista de Althusser”

Para completar e confirmar esta análise dos caminhos que con­


duzem os althusserianos ao antropologismo, examinaremos, mais rapi­
damente, os famosos textos de Althusser consagrados à prática em
Sobre a dialética materialista (em Pour Marx).*9 Encontraremos lá um
MARX: LOGICA E POLITICA 75

movimento (uma interversão) que é mais ou menos análogo ao que


acabamos de examinar. E ainda mais nítido.
Como se sabe, trata-se aí de esboçar o projeto de uma fundamen­
tação do materialismo histórico numa teoria geral das práticas, teoria
que os althusserianos identificam ao materialismo dialético.50 Para
isto, Althusser é levado a apresentar diversas definições gerais —■ini­
cialmente a definição geral (no duplo sentido: compreendendo os dife­
rentes tipos e as diferentes formas históricas) — de prática, e em
seguida as definições gerais (no segundo sentido somente) das diversas
práticas específicas, as práticas política, teórica, ideológica.51 Ora,
como para o quadro dos invariantes de Balibar, se examinarmos bem
essas definições reconheceremos sem dificuldade, e de um modo ainda
mais claro, a matriz antropológica. Por outro lado, e aqui de uma
forma um pouco diversa, encontraremos também os traços de um
esforço igualmente inútil para escapar do antropologismo.

O antropologismo do texto

Como o fizemos a propósito de Balibar, e ainda que isto nos


obrigue a certas repetições, separemos os dois níveis. Leiamos inicial­
mente esse texto destacando simplesmente a sua matriz antropológica,
e deixando de lado, por enquanto, a análise de um certo número de
determinações que deveriam evitar o perigo de uma queda no antropo­
logismo. Nós sublinhamos os termos antropológicos:
“Por prática em geral entenderemos todo processo de transfor­
mação de uma matéria-prima dada determinada, em um produto
determinado, transformação efetuada por um trabalho humano deter­
minado, utilizando meios (de ‘produção’) determinados. Em toda prá­
tica concebida desse modo, o momento (ou o elemento) determinante
do processo não é nem a matéria-prima, nem o produto, mas a prática
em sentido estrito: o momento do próprio trabalho de transformação,
que emprega, numa estrutura específica, homens, meios e um método
técnico de utilização dos meios. Esta definição geral da prática inclui
em si a possibilidade da particularidade: existem práticas diferentes,
realmente distintas, embora pertencendo a uma mesma totalidade
complexa. A ‘prática social’, unidade complexa das práticas, que exis­
te numa sociedade determinada, comporta assim um número elevado
de práticas distintas. Esta unidade complexa da ‘prática social’ é
estruturada, veremos como, de modo que a prática determinante em
última análise é a prática de transformação da natureza (matéria-
prima) dada, em produtos de uso pela atividade dos homens existentes,
trabalhando com o emprego metodicamente regulado de meios de
produção determinados, no quadro de relações de produção determi­
nadas. Além da produção, a prática social comporta outros níveis
76 RUY FAUSTO

essenciais: a prática política — que nos partidos marxistas não é mais


espontânea mas organizada com base na teoria científica do materia­
lismo histórico e que transforma a sua matéria-prima: as relações
sociais, em um produto determinado (novas relações sociais); a prática
ideológica (a ideologia, seja ela religiosa, política, moral, jurídica ou
artística, transforma também o seu objeto: a ‘consciência’ dos ho­
mens); e enfim a prática teórica” . 52 Observemos, nesse texto — que
para muitos foi uma das referências fundamentais na luta contra o
antropologismo — a presença constante e nada acidental de termos
como homens, natureza, produto, matéria-prima,53 todos os quais são
de extração antropológica. Esses termos, que reaparecem na conti­
nuação do texto,54 exprimem os agentes como sujeitos (“homens” , por
exemplo), e os objetos como natureza (enquanto objetos antropológico-
naturais: “natureza” , “matéria-prima” , “produto”). Ainda uma vez,
se reconhece sem dificuldade em tudo isto a descrição do processo de
trabalho no capítulo V (original) do livro í de O Capital. Na realidade,
o que Àlthusser faz aqui é “importar” as noções antropológicas do
capítulo V a outros domínios da “produção” (política, ideologia, teo­
ria), e generalizá-las na Produção (no sentido duplamente geral). Dessa
operação, da qual no máximo se poderia esperar como resultado novos
discursos pressupostos (cujo interesse seria duvidoso), ele quer obter
nada menos do que a Teoria geral das práticas, que ele identifica
ao materialismo dialético, e que se destinaria assim a fundamentar o
“materialismo histórico” .55 E tudo isto em nome de uma leitura que se
pretende acima de tudo antiantropologista! (O paradoxo não é, entre­
tanto, já vimos, um “engano” (subjetivo) de Àlthusser.)

A “correção” do antropologismo

E, entretanto, como Balibar, Althusser sente ou antes pressente a


dificuldade, e como Balibar (ainda que de outro modo e em um outro
lugar) — mas de uma forma igualmente inoperante — ele tenta evitá-
la. Balibar introduz na seqüência um certo número de considerações
que visam limitar o alcance do esquema inicial. Althusser faz a mesma
coisa, mas no nível das próprias definições.56 Porém os resultados são
análogos. Só que o paradoxo se apresenta aqui de um modo a tal ponto
imediato que é ainda mais difícil percebê-lo. No texto de Althusser a
“precisão” é representada simplesmente pelo atributo “ determinado”
(uma vez, “específico”) —■atributo aparentemente inocente — que ele
vincula à maioria das noções contidas nas definições. Releiamos o texto
acentuando as “precisões” , pondo assim em destaque esse segundo
extrato lógico: “Por prática em geral, entenderemos todo processo de
transformação de uma matéria-prima dada determinada em um pro­
duto determinado, transformação efetuada por um trabalho humano
MARX: LOGICA E POLITICA 77

determinado, utilizando meios (‘de produção’) determinados. Em toda


prática concebida desse modo, o momento (ou o elemento) determi­
nante do processo não é nem a matéria-prima, nem o produto, mas a
prática em sentido estrito: o momento do próprio trabalho de transfor­
mação que emprega, numa estrutura específica, homens, meios e um
método técnico de utilização dos meios. Esta definição geral da prática
inclui em si a possibilidade da particularidade; existem práticas dife­
rentes, realmente distintas, embora pertencendo a uma mesma totali­
dade complexa. A ‘prática social’, unidade complexa das práticas que
existe numa sociedade determinada, comporta assim um número ele­
vado de práticas distintas. Esta unidade complexa da ‘prática social’ é
estruturada, veremos como, de modo que a prática determinante em
última análise é a prática de transformação da natureza (matéria-
prima) dada, em produtos de uso pela atividade dos homens existentes,
trabalhando com o emprego metodicamente regulado de meios de
produção determinados, no quadro de relações de produção deter­
minadas (...)” .57 Superpondo esta leitura à primeira se vê bem o para­
doxo. Althusser nos apresenta um discurso geral58 sobre as práticas,
onde se fala dos homens, do produto, do trabalho, da matéria-prima,
da sociedade também (sempre em geral); mas nesse discurso geral ele
diz que os objetos — os homens, o produto, o trabalho, a matéria-
prima, a sociedade, devem ser tomados de um modo determinado...
Pode-se perguntar: qual o estatuto do termo “ determinado” num dis­
curso geral? Esse atributo muda a modalidade do discurso? Não, evi­
dentemente. Poder-se-á dizer cem vezes que o objeto é determinado: se
o fizermos no quadro de um discurso geral, o objeto continuará sempre
geral. Não é a presença de um atributo —• no caso, o termo “deter­
minado” — que muda a modalidade do discurso, mesmo se esse atri­
buto “ diz” o contrário do que diz o discurso. (Observar-se-á que é o
próprio Althusser quem o ensina, quando ele faz a crítica do atributo
“real” na expressão “humanismo real” . O problema é mais ou menos
análogo.) Na realidade, o atributo “determinado" tem aqui a mesma
função que as precisões de Balibar: como em Balibar, se trata de
escapar do perigo antropologista que se pressente. Mas como em
Balibar, com isto não se escapa do antropologismo (e nele se afunda
ainda mais). Com efeito, o atributo “ determinado” só nos conduz a
visar(“meinen", dizerem sentido fraco) o objeto de um modo particu­
lar, objeto que o discurso em que se encontra esse atributo, se consi­
derado na sua articulação essencial, “põe” pelo contrário (“setzen”)
em forma geral. (E na medida em que esse discurso se desenvolve
dizendo que o objeto deve ser visado de um modo determinado, quanto
mais ele é dito “ determinado” , mais ele é posto como “indetermi­
nado” .) Aqui, como no exemplo anterior, o “meinen” contraria o
“setzen”, sem poder anulá-lo. E a repetição compulsiva do atributo
“determinado” — matéria-prima determinada, sociedade determi­
78 RUY FAUSTO

nada, produto determinado — o que não tem pouca importância para


dar a ilusão de um “setzen" — não faz mais do que exprimir a exas­
peração do teórico diante da cilada que lhe arma a linguagem (a sua
linguagem, a sua apresentação), cilada que, por razões que remontam
à essência mesma do seu ideal de ciência, ele é incapaz de evitar.59
Vê-se assim — retomando o primeiro motivo do “ deslizamento”
de Balibar — como o projeto de fundamentar o materialismo histórico
numa teoria geral é o caminho mais seguro, apesar, ou antes, por causa
das boas intenções antiantropológicas — na direção do antropolo-
gismo, seu contrário.
* # #

Concluamos esta análise da relação entre o althusserismo e o


antropologismo.
Inicialmente, observando o que há de ilusório em toda crítica do
althusserismo feita em nome do antropologismo. Tais críticas são
insustentáveis não só porque o marxismo não é um antropologismo,
mas porque o althusserismo não é estranho ao antropologismo.
Mas, sobretudo, observemos: esta análise não deve ser entendida
como levando ao resultado de que o althusserismo é um antropolo­
gismo. Ou antes, ela não leva só a isto. Com efeito, a análise não nega o
caráter antiantropologista do pensamento althusseriano, pelo contrá­
rio, ela deveria confirmá-lo. O althusserismo contém os dois momen­
tos, e a relação entre eles não é contingente: o althusserismo é um
antropologismo, porque ele é um antiantropologismo. O caráter não
dialético da sua oposição ao antropologismo (e que se reflete na ex­
pressão “anti” (-antropologismo), torna necessária a interversão do
antiantropologismo em seu contrário.
Observemos, por outro lado, que esse movimento de oposto
abstrato a oposto abstrato tem provavelmente uma significação mais
geral. Além do fato de que ele se manifesta em outros aspectos do
problema do althusserismo (nós o mostraremos a propósito da crítica
do historicismo), ele deve se encontrar também em outras filosofias do
sujeito e do anti-sujeito. E por aí ele nos põe talvez no caminho de uma
apresentação rigorosa do pensamento dialético, como o pensamento
que “suprime” esses extremos, para escapar da interversão (“renver-
sement”). Mas se tal generalização (que faria aparecer “en creux” —
sobre uma base suficientemente ampla — a dialética) é a finalidade
última deste trabalho, ela ultrapassa os limites do presente texto. Fi­
quemos por aqui.
MARX: LÓGICA E POLITICA 79

NOTAS

(1) E. Balibar, “Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”,


in L. Althusser e E. Balibar, Lire Le Capital, París, Maspero, 2? ed., 1968, tomo II,
pp. 79-226. Principalmente no que se refere ao texto de Balibar, esta 2? edição apresenta
certas diferenças em relação à primeira. S6 nos serviremos aqui da 2? edição.
(2) L. Althusser, “Sur la dialectique matérialiste (De l’inegalité des origines)” , in
PourMarx, Paris, Maspero, 1968, pp. 163-224.
(3) E. Balibar, "Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”, in
op. cit., tomo II, p. 79.
(4) Ver ídem, II, p. 90.
(5) Idem, II, p. 93.
(6) Idem, II, pp. 94-95.
(7) Idem, II, p. 95.
(8) Idem, II, p. 95. Por enquanto, digamos simplesmente que a relação de apro­
priação — seguimos por ora a apresentação de Balibar — se refere ao nível material: à rela­
ção material que se estabelece no processo de trabalho, entre o trabalhador e os meios de
produção, em particular os meios de trabalho, enquanto que a relação de propriedade se
situa no nível formal.
(9) Idem, II, p. 95.
(10) Ver Ídem II, pp. 105, 109-110, 132, 142, 146, 157, 166, 204, 219, ...
(11) Idem, II, p. 90, ri. 1, grifado por Balibar.
(12) Idem, II, p. 135, grifado sucessivamente por nós e por Balibar.
(13) Idem, II, p. 98.
(14) Idem, II, p. 99. “Marx confunde constantemente (as duas separações) num
único conceito, o da separação entre o trabalho e as condições de trabalho.” (Ibidem)
(15) Estas duas últimas noções, que especificam a noção de “meios de produção”
aparecem na segunda apresentação do quadro (idem, II, p. 98), que é a seguinte:
“1. Trabalhador
2. Meios de produção
— 1. objeto de trabalho
— 2. meio de trabalho
. 3. Não-trabalhador
A. Relação de propriedade
B. Relação de apropriação real ou material”.
Nessa segunda apresentação, desaparece a referência à “força de trabalho” —
“o trabalhador (a força de trabalho)” — que havíamos encontrado na primeira. A noção
de “força de trabalho”, se tomada no nível geral e antropológico, é uma noção do mesmo
tipo que as de “trabalhador” e “meios de produção”. Se, pelo contrário, a considerarmos
no interior do capitalismo, ela é de uma outra ordem, e “quebra” por isso mesmo o
quadro geral dos invariantes. Esta talvez a razão pela qual ela teve de desaparecer.
(16) No sentido da antropologia stricto sensu, não no sentido do humanismo
(o “homem humanizado”). Conviria precisar essa distinção: se se pode falar de antro­
pologia, em sentido geral, a propósito de todo discurso fundado em noções que exprimem
os agentes como sujeitos (e — poderíamos acrescentar — que exprimem os objetos como
natureza), seria necessário distinguir o discurso humanista (em que o sujeito fundante é
uma universalidade concreta: o homem humanizado, o homem plenamente constituído)
do discurso antropologista em sentido estrito (em que o sujeito é uma universalidade
abstrata: o homem ou os homens — mas também o trabalhador em geral etc. — sem
outro redobramento). Nos limites deste texto, só nos referiremos à antropologia (e ao
antropologismo) em sentido estrito. Sobre a distinção, ver também o texto anterior, n. 15.
(17) Sobre a noção de “pressuposição”, ver as análises dé J. A. Giannotti em As
origens da dialética do trabalho, sobretudo a edição francesa, Paris, Aubier, 1971.
(No que se refere ao seu ponto de partida — e qualquer que seja o entrecruzamento.
80 RUY FAUSTO

já antigo, das duas linhas de pesquisa — o nosso texto deve certamente alguma coisa ao
livro de Giannotti. Observe-se, entretanto, que utilizaremos aqui duas distinções envol­
vendo a noção de posição. Trata-se inicialmente da distinção — análoga à que se
encontra em As origens da dialética do trabalho, a qual foi preciso retomar, de início —
entre noções pressupostas e noções postas (distinção que separa as noções- gerais de
caráter não conceituai e sem papel fundante, dos conceitos que exprimem cada modo de
produção). Porém, mais adiante, se trata da distinção — que è de uma outra ordem —
entre “visar” (meinen) e “pôr” (setzen), pela qual se separa algo como as intenções não
preenchidas de um discurso, e o discurso efetivo.)
(18) Como toda exposição antropológica, a exposição do capítulo V é subjetivi-
zante. Esta é a razão pela qual, ao retomar a análise do capitalismo, Marx poderá se
referir — em textos que lêem o capitalismo sobre o fundo (ou o horizonte) do discurso
antropológico — a uma inversão (característica do capitalismo) da relação entre o traba­
lhador e os meios de produção: “Não é mais o trabalhador que utiliza os meios de
produção, são os meios de produção que utilizam o trabalhador” . (Werke, 23, Das
Kapital,\, Berlim, Dietz, 1972, p. 329; Marx, Oeuvres, Économie I, Paris, Bibliothèque
de ia Plêiade, Gallimard, 1965, p. 846). “(...) esta interversão ( Verkehrung), mesmo
deslocamento ( Verrückung) da relação entre o trabalho morto e o trabalho vivo, que é
própria da produção capitalista e que a caracteriza (...)”. ( Werke, 23, Das Kapital,
op. cit., p. 329; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 847. Grifo nosso)
(19) Ver, por exemplo, Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 54; Oeuvres, op.
cit., p. 567: “A força produtiva do trabalho é determinada por diversas circunstâncias,
entre outras (...) pela extensão e a eficácia dos meios de produção (...)”. (Grifo nosso)
(20) Quanto à noção de “não-trabalhador” é, sobretudo, às noções que expri­
mem as duas relações — “propriedade", “apropriação” (ainda não analisadas), elas são
sem dúvida de um nível diferente das que examinamos. Nenhuma delas se encontra na
parte antropológica do capítulo V, e pelo menos as duas últimas não são em si mesmas
propriamente antropológicas. Mas se elas não são, propriamente, antropológicas, elas
dependem das noções antropológicas e são marcadas por estas. Na realidade, essas
relações, que Balibar considera também como "elementos”, são construídas a partir das
noções de “trabalhador” e de “meios de produção”. A “propriedade" (e a "não-proprie-
dade”) são “laços” que unem (ou separam) “trabalhador” e “meios de produção”.
Não há assim descontinuidade entre, de um lado, a noçâo de “propriedade”, e de outro,
as de “trabalhador” e de "meios de produção”, como será o caso, como veremos, para o
conceito de “capital” em relação a estas últimas. (No que se refere à noção de “não-
trabalhador”, forma negativa de “trabalhador”, a dependência é imediatamente visível.)
(21) Sem dúvida, os clássicos fizeram a crítica do conhecimento fundado na
“generalidade”. Mas diante da “revolução hegeliana" isto é secundário. Criticando o
ideal de fundação na “generalidade”, eles permaneceram fiéis à idéia, que ele contém, de
uma ciência de domínio universal fundada em noções primeiras. Esta é a razão pela qual
se pode dizer, apesar de tudo, que o ideal da generalidade reconduz ao universo dos
clássicos.
(22) E. Balibar, “Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”,
in op. cit., tomo II, p. 100, grifo do autor.
(23) Idem, II, pp. 112-114, grifo do autor. Mais adiante, ele escreve, no mesmo
sentido: “Possuímos o conceito teórico do modo de produção, e mais precisamente o
possuímos sob a forma do conhecimento de um modo de produção particular, pois, como
vimos, o conceito só existe especificado”. (Idem, II, p. 153)
(24) As precisões de Balibar visam antes de mais nada se distanciar da apresen­
tação estruturalista, isto é, responder à imputação de “estruturalismo” habitualmente
lançada contra o althusserismo. Mas por um movimento que, no nível negativo das
justificações, é análogo àquele que estamos reconstituindo, estas garantias (ilusórias) em
relação ao estruturalismo tomam também o valor de garantias (ilusórias) em relação ao
antropologismo.
MARX: LÓGICA E POLITICA 81

(25) Ainda que seja um sintoma importante, o “lugar” não é em si mesmo o


essencial.
(26) Observemos, por outro lado, que não é em todos os casos que o meinen
(visar) contraria o setzen (pôr). Às vezes ele o confirma, como nos textos citados ante­
riormente. (Idem, II, pp. 90 e 135)
(27) Vendem, II, pp. 123 e 126-127.
(28) Idem, II, p. 98.
(29) Observemos, desde já, para evitar toda confusão, que o método de Balibar
que consiste em introduzir precisões na determinação inicial coincide somente na apa­
rência com o método de apresentação de Marx, que consiste — mostraremos em detalhe
em outro lugar — em enriquecer progressivamente as noções por meio de negações
sucessivas. Digamos, de um modo geral, que, como para a dialética a negação não é um
defeito, mas uma condição de inteligibilidade, Marx assume as negações sucessivas da
apresentação (que, no essencial, reproduzem as negações, as contradições do real). Nos
althusserianos, pelo contrário, as negações aparecem como um defeito do método, como
um mal menor, e devem ser apresentadas meio ocultas ou sob a forma de precisões (de
correções). Também para evitar confusões, observemos que essas diferenças de método
não se devem evidentemente ao fato de que Marx faz ciência e os althusserianos, filosofia
(epistemología). A ruptura entre o marxismo e o althusserismo atravessa tanto a ciência
como a filosofia.
(30) “Após o desenvolvimento anterior, é supérfluo provar de novo como a rela­
ção do capital e do trabalhador assalariado determina o caráter total do modo de pro­
dução. Os agentes principais desse modo de produção mesmo, o capitalista e o traba­
lhador assalariado, são, enquanto tais, apenas corporificações ( Verkörperungen), perso­
nificações do capital e do trabalho assalariado; caracteres sociais determinados que o
processo social de produção imprime aos indivíduos; produtos dessas relações de produ­
ção sociais, determinadas (bestimmten gesellschaftlichen Produktionsverhältnisse).''
(Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., pp. 886-887; Oeuvres, Économie II, op. cit.,
1968, p. 1478, grifo nosso) Sobre o capital, relação de produção: “Aqui o capital é
compreendido ¿corretamente como relação de produção (Produktionsverhältnis)". (Wer­
ke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 232; Théories sur la Plus-valie,
publicado sob a responsabilidade de G. Badia, tome III, Paris, Éd, Sociales, Í976,
p. 278, grifo nosso) E finalmente: “(O capital) é evidentemente uma relação (Verhältnis)
e sí5 pode ser uma relação de produção” (Produktionsverhältnis). (Grundrisse, Dietz,
1953, p. 413; Manuscrits de 1857-1858, (Grundrisse) publicado sob a responsabilidade
de J.-P. Lefebvre, I, Paris, Êd. Sociales, p. 452, grifado por Marx)
(31) “O trabalho enquanto trabalho assalariado e as condições de trabalho en­
quanto capital — portanto propriedade do capitalista; elas são proprietárias delas
mesmas no capitalista, no qual elas se personificam, e cuja propriedade sobre elas é a
propriedade delas sobre elas mesmas diante do trabalho — são expressões de uma
mesma relação, a partir de seus pólos distintos” . (Werke, 26, 3, Theorien über den
Mehrwert, op. cit., p. 482; Théories sur la plus-valie, op. cit., III, p. 578-579)
(32) “Mas no modo de produção capitalista, e no capital que constitui a sua
categoria dominante, a sua relação de produção determinante (“ihr herrschende Kate­
gorie, ihr bestimmendes Produktionsverhältnis”), esse mundo encantado e invertido se
desenvolve ainda mais”. (Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 835; Oeuvres,
Économie II, op. cit., p. 1435, grifo nosso)
(33) Grundrisse, op. cit., p. 413; Manuscrits de 1857-1858, op. cit., I, p. 452,
grifado por Marx.
(34) Por exemplo: “Assim D ’ aparece como uma soma de valor que exprime a
relação-(de)-capital (Kapitalverhältnis) diferenciada em si, se distinguindo em si funcio­
nalmente (conceitualmente)”. (Werke, 24, Das Kapital, II, op. cit., p. 50, grifo nosso)
“M’ enquanto relação-(de)-capital (Kapitalverhältnis) é aqui o ponto de partida, e
enquanto tal, age de um modo determinante sobre a totalidade do circuito (...)” .
(Idem, p. 97, grifo nosso) A tradução francesa do livro II de O Capital das Éditions
82 RUY FAUSTO

Sociales traduz sempre “Kapitalverhältnis” por “relation capitaliste" (ver, para os


nossos exemplos, Marx, Le Capital, Paris, Êd. Sociales, 1960, tomo IV, respectivamente
pp. 46 e 87), o que é evidentemente incorreto. Coisa semelhante na edição das obras de
Marx da Bibliothéque de la Pléiade (dirigida por M. Rubel), a propósito de uma outra
ocorrência era Marx, do termo “Kapitalverhältnis” (tomo outro exemplo, porque os
textos das duas edições não coincidem). O texto alemão diz: “Es tritt die dem Kapital-
Verhältnis immanente Mystifikation ein”. (Marx, Resultate des unmittelbaren Pro­
duktionsprozesses, Frankfurt, Verlag Neue Kritik, 1969-70, p. 47, grifado por Marx)
E a tradução: “Intervient également la mystification inhérente au capitalisme". (Marx,
Oeuvres, Économie II, p. 366, Subordination formelle et réelle du travail au capital, grifo
nosso) Uma nota de Rubel indica o conceito original, e tenta justificar assim a tradução:
“2. (Capitalisme) terme que nous mettons pour Kapitalverhältnis. Marx ne semble pas
avoir empiOyé le mot Kapitalismus avant 1870”. (Marx, Oeuvres, II, op. cit., p. 1661,
n. 2 à p. 366) Mas o problema não remete evidentemente à cronologia do vocabulário
nem os dois termos são equivalentes. As traduções defeituosas da expressão “Kapital­
verhältnis” denotam a dificuldade dos tradutores em compreender que o capital é ele
mesmo a Relação, resultado a que só se pode chegar, evidentemente, se se compreender o
que é uma relação para Marx.
(35) Grundrisse, op. cit., p. 170; Manuscrits de 1857-1858 (Grundrisse), I, op.
cit., p. 198, grifo nosso. Citemos ainda um texto muito claro do livro II de O Capital: “O
capital enquanto valor que se valoriza não contém somente relações de classe (Klassen -
Verhältnisse), um caráter social determinado (einen bestimmten gesellschaftlichen Cha­
rakter) que repousa sobre a existência do trabalho enquanto trabalho assalariado. Ele é
um movimento (Es ist eine Bewegung), um processo circular (Kreislaufsprozess) que por
sua vez contém três formas diferentes do processo circular. Por isso, só se pode apreendê-
lo como movimento e não como uma coisa em repouso (Es kann daher nur als Bewegung
und nicht als ruhendes Ding begriffen werden). Aqueles que consideram a autonomi­
zação do valor como urna pura abstração esquecem que o movimento do capital indus­
trial é esta abstração em ato (“diese Abstraktion in actu ist”). O valor percorre aqui
formas diversas, movimentos diversos, nos quais ele se conserva e ao mesmo tempo se
valoriza, aumenta”. (Werke, 24, Das Kapital, II, op. cit., p. 109; Le Capital, livre II,
tomo I (IV), trad. franc. de E. Cogniot, Paris, Éd. Sociales, 1960, p. 97, grifo nosso)
Observemos que nos textos do livro II, citados anteriormente, onde se encontra a
expressão “relação-(de)-capital” (“Àapiía/verAa/íms), a noção de “relação” remete sem­
pre à idéia de "processo”. Trata-se sempre de mostrar que cada momento do capital (da
relação-capital), para ser pensado, enquanto tal (enquanto momento do capital) deve
remeter a uma “história”, no sentido da temporalidade econômica. Cada momento
refere um momento passado — é memória retrospectiva de um momento anterior do
processo, ou remete a um momento futuro — é memória prospectiva. A dissociação entre
a noção de relação (rapport ou relation) e a noção, ou a idéia, de processo é característica
das leituras do entendimento.
(36) Na parte do seu texto consagrada à acumulação primitiva, o capital (junto
com o trabalho livre) é apresentado como sendo ele mesmo um dos elementos que
“entram na estrutura capitalista”. (Idem, II, p. 187) Mas dado o contexto, isto não
permite avançar na solução do problema. Com efeito não é propriamente na análise da
acumulação primitiva — onde só se trata da formação das pressuposições do capitalismo
— que o capital poderia aparecer sob a forma do movimento. Poder-se-ia, assim,
observar: se lá onde se deveria tratar do capital, Balibar põe as pressuposições do capital,
lá onde se trata das pressuposições — embora pensando sempre (e aqui com razão nas
pressuposições — ele fala do “capital”. Ele diz por outro lado (idem, II, p. 165) que o
capital é a “forma de conjunto da produção”, fórmula que também não faz avançar
muito a solução do problema.
(37) Ele escreve, por exemplo: “Assim, a análise da reprodução parece pôr em
movimento, propriamente, o que até aqui só fora visto em forma estática (...)”.
(Idem, II, p. 159, grifo nosso) Isto significaria que a diferença entre as seis primeiras
MARX: LÓGICA E POLITICA 83

secções do livro I de O Capital (ou, mais exatamente, as secções de dois a seis) e a secção
sétima, que trata da reprodução e da acumulação, representariam uma passagem do
ponto de vista estático ao ponto de vista dinâmico. Ora, não se trata disto. Na obra de
Marx, o capital é considerado sempre em movimento, porque ele é movimento. A dife­
rença entre as primeiras secções e a secção sétima reside no fato de que, nas primeiras, o
movimento depende ainda de certas pressuposições, enquanto que na análise da repro­
dução estas são apresentadas como sendo postas pelo próprio capital. Trata-se assim de
uma passagem que é interior ao movimento. Observemos que esta queda na distinção
não dialética entre o “estático” e o “dinâmico” é tanto mais surpreendente em Balibar,
porque ela é criticada num outro ponto do seu texto.
(38) Ele dirá, por exemplo: “Não é (...) a definição da classe capitalista ou da
classe dos proletários que precede a da relação social de produção, mas, inversamente,
é a definição da relação social de produção que implica uma função de ‘suporte’ definida
como uma classe”. (Idem, II, p. 123) Aqui se trata mais exatamente da relação social de
produção (da relação entre as classes) do que da relação de produção: mas a ante­
rioridade da primeira em relação aos termos só é pensável se apreendermos a anterio­
ridade da relação de produção propriamente dita.
(39) Diga-se de passagem, é substituindo o problema do movimento-sujeito pelo
problema do movimento em geral que as leituras vulgares falseiam o sentido profundo da
dialética.
(40) Se apresentarmos os dois motivos em forma negativa, diremos que o distan­
ciamento é fruto, por um lado, da incapacidade do entendimento de apreender o “espe­
cífico” como sendo anterior ao geral na ordem da posição; por outro lado, da sua
incapacidade de apreender o movimento como sujeito. Se apresentarmos os dois motivos
em forma positiva, diremos que o distanciamento deriva, por um lado, de uma (pretensa)
exigência de fundar o particular no geral, e por outro, de uma (pretensa) exigência de
apreender o movimento como predicado de um sujeito.
(41) Ver a esse respeito a nota 10.
(42) A “dupla separação", a forma pela qual ele apresenta a estrutura capita­
lista, não é mais do que a expressão formal e generalizante da dupla subordinação do
trabalho ao capital. (Aliás, Balibar o reconhece, mas como sempre somente a posteriori.
Ver idem II, p. 219: “(...) não é uma das duas (relações) que é ‘subsumida’ à outra,
é o trabalho que é subsumido ao capital (...)” — observação que se apresenta como um
resultado mas que, se for levada a sério, contradiz, apesar das aparências, tudo qüe ele
tinha dito (feito) anteriormente.) Observemos que, se a noção de “separação” carac­
teriza bem o que se passa no nível das pressuposições — (o célebre texto do livro II de
O Capital, onde se fala das “combinações”, texto sobre o qual os althusserianos fizeram
um barulho excessivo, sem tê-lo lido bem, diz: “No caso de que nos ocupamos, o ponto de
partida é dado pela separação entre o trabalhador livre e os seus meios de produção”.
(Werke, 24, Das Kapital, II, op. cit., p. 42; Le Capital, livre II, tome I (IV), op. cit.,
grifo nosso)) — ela é segunda, e em certo sentido diz o contrário do que se passa
no interior da relação, tanto no que se refere ao nível formal quanto no que concerne
ao nível material. Com efeito, no que se refere ao nível formal: no interior da relação,
o operário continua evidentemente “separado” dos meios de produção (ele é não-proprie-
tário destes últimos), mas o que é propriamente substantivo é a subordinação (formal)
do trabalho ao capital — os termos não são mais os mesmos, mas a sua relação afeta a dos
suportes —, o fato de que o trabalho é submetido ao capital, e isto implica (também para
os suportes) mais exatamente algo como uma “reunião”. Do mesmo, no que se refere ao
lado material: sob um aspecto não há mais separação mas reunião (material) entre o
operário e os meios de produção (o operário está ligado a esses meios como um apêndice
(Anhängsel)', sob um outro aspecto, há emergência de uma separação, a que se dá entre o
operário e o seu trabalho (separação que constitui o tema importante da alienação no
livro I de O Capital)', mas, a menos que se queira atribuir um papel fundante a isto
(“deslizando” ainda vez no antropologismo), é necessário tomar essa separação como
alguma coisa que é segunda em relação à subordinação do trabalho ao capital. Obser-
84 RUY FAUSTO

vemos, para terminar com o “deslizamento” subordinação/separação, que a análise de


Balibar não faz totalmente abstração da interioridade do processo (a relação material tal
como ele a descreve só existe no interior do processo), mas ele confunde os dois níveis, ele
projeta a exterioridade (as pressuposições) na interioridade, ou lê a interioridade sob a
forma da exterioridade (a subordinação se torna, assim, separação). Daí a opacidade do
seu texto (para todo leitor de Marx, pelo menos), opacidade que, na realidade, está
ausente do texto de Marx. As "dificuldades” que Balibar encontra no texto de Marx são
o resultado necessário de uma tentativa de leitura “analítica” (no sentido em que se fala
de “razão analítica”) de um texto dialético. E é essa tentativa de reduzir a “não-
clareza” (dialética) à clareza cartesiana (ou em todo caso clássica) que explica a “não-
clareza” (no sentido corrente, pejorativo: a opacidade) do texto de Balibar.
(43) O termo “pressuposição” ("Voraussetzung”) que, diga-se de passagem,
existe nos althusserianos, mas do qual eles não tiram todas as implicações, é mencionado
quase em cada parágrafo das Formas... Ver, Grundrisse, op. c/f., p. 375, linhas 7,
11, 18, 41; p. 376, linhas 8, 16, 31; p. 378, linha 5; p. 379, linhas 11, 19, 29 etc. etc.
(44) “Nas duas formas (pequena propriedade e comuna oriental) os indiví­
duos não se relacionam como trabalhadores, mas como proprietários — e membros de
uma comunidade, que ao mesmo tempo trabalham. A finalidade (Zweck) desse trabalho
não é a criação de valor — ainda que eles possam fazer trabalho excedente (Surplus-
arbeit, não Mehrarbeit) para trocar por produtos alheios (fremde), isto é, por produtos
excedentes (Surplusprodukte); mas a sua finalidade (Zweck) é a manutenção do indiví­
duo (...).” (Grundrisse, op. cit., p. 375, Manuscrits de 1857-1858..., 1, op. cit., p. 411,
grifo nosso) “Aqui se trata propriamente do seguinte: em todas essas formas em que a
propriedade da terra e a agricultura constituem a base da ordem econômica, e onde
portanto a produção de valores de uso é afinalidade econômica (ökonomischer Zweck), a
reprodução do indivíduo no interior de relações determinadas com a sua comuna é dada
(...).” (Grundrisse, op. cit., p. 384; Manuscrits de 1857-1858..., op. cit., I, p. 421, grifo
nosso) “Assim, a concepção antiga — em que o homem, qualquer que seja a limitação
nacional, religiosa, política da sua determinação, aparece sempre como a finalidade
(Zweck) da produção — aparece sempre como muito elevada diante do mundo moderno,
em que a produção aparece como a finalidade (Zweck) do homem, e a riqueza como a
finalidade (Zweck) da produção." (Grundrisse, op. cit., p. 387; Manuscrits de 1857-
1858..., op. cit., I, p. 424, grifo nosso) “A finalidade (Zweck) de todas essas comunidades
é a manutenção, isto é, a reprodução dos indivíduos (...).” (Grundrisse, op. cit., p. 393;
Manuscrits de 1857-1858..., op. cit., I, p. 431, grifo nosso) etc.
(45) Por exemplo: “A primeira peculiaridade que salta aos olhos quando consi­
deramos a forma equivalente é a seguinte: o valor de uso se torna a forma fenomenal do
seu contrário (Gegenteil), o valor.” (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 70; Oeuvres,
Économie I, op. cit., p. 586, grifo nosso)
(46) Na introdução à edição francesa da Garnier-Flammarion do Livro I de
O Capital, Althusser ataca o emprego por Marx da expressão “valor de uso”. Marx
deveria ter dito “utilidade social” (ver Le Capital, livro I, Paris, Garnier-Flammarion,
1969, p. 22, “Avertissement...”). Ora, é de propósito e muito provavelmente por uma
razão profunda que Marx conservou a expressão “valor de uso” para designar algo que é
um contrário do “valor”. Se Marx denomina “valor de..." (valor de uso) o contrário do
valor, é porque, contra toda lógica da identidade, ele quer “pôr” no próprio nível da
expressão a contradição real entre os dois termos. Um procedimento que não faz outra
coisa senão satisfazer a certas exigências de rigor do discurso dialético, aparece assim aos
defensores do entendimento como uma imperfeição de linguagem.
(47) Werke, 19, “Randglossen zu Adolphe Wagners ‘Lehrbuch der Politischen
Ökonomie”, op. cit., p. 358, grifo nosso. Mas se a expressão “esses dois termos” tem “em
comum a palavra valor”, permite esclarecer a idéia de um “valor” geral subsumente, ela
nos parece insuficiente, porque corre o risco de ir longe demais no sentido inverso. Com
efeito, na medida em que, embora sendo universalidade negada (e não particularizada
pelos valores de uso), o valor é por isso mesmo universalidade negada, a relação entre os
MARX: LÓGICA E POLÍTICA 85

dois conceitos (que não é de subsunção mas de contrariedade) ultrapassa a de uma


simples homonímia. Ver a esse respeito o ensaio seguinte, II, 1.
(48) Observemos que se só nos referimos aqui à descontinuidade entre o modo de
produção capitalista e todos os outros é porque é ela que representa um problema no
texto de Balibar. Mas há outras descontinuidades. Na realidade, o discurso sobre o
conjunto dos modos (a “teoria” dos modos de produção) é constituída por uma série de
descontinuidades, que remetem finalmente a diferenças de “sentido” entre os modos (ou
séries de modos). E essas diferenças se manifestam pela alternativa entre a presença e a
ausência de um conceito (não por variações em combinações que uniriam os mesmos
elementos). Assim, a descontinuidade entre o socialismo (tal como o concebia Marx) e o
conjunto dos outros modos (com exceção das comunidades primitivas) se institui pela
diferença entre modos em que reina a exploração e um modo em que toda exploração
está excluída. Esta diferença de sentido (onde já entra uma alternativa do tipo indicado)
se exprime, entre outras coisas, pela presença ou a ausência do sobretrabalho (Mehr-
arbeit). Com efeito, Marx não dirá no livro I de O Capital que no socialismo o sobre­
trabalho (Mehrarbeit) é utilizado socialmente etc.; ele dirá que não há sobretrabalho
(Mehrarbeit). ( Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 552; Oeuvres, Économie I,
op. cit., p. 1023) Os althusserianos dirão talvez que eles conhecem essa descontinuidade.
Não são eles os campeões da descontinuidade? E entretanto: se no que se refere ao
socialismo é impossível comentar o texto de Balibar (que não diz nada ou quase nada
sobre isso) pode-se mostrar que, em outros textos, dos althusserianos, a descontinuidade
entre o socialismo e os outros modos de produção é claramente anulada. Assim, no texto
de Althusser, Théorie, pratique théorique et formation théorique. Idéologie et lutte
idéologique, texto criticado por Rancière em Sur la Théorie de l'idéologie (1969, republi­
cado em La leçon d ’A lthusser, Paris, Gallimard, 1974), as “representações coletivas”
de uma sociedade socialista são subsumidas de direito, ao lado das dos outros modos de
produção — contrariamente ao que se encontra em Marx — à noção geral de “ideo­
logia”. Em Althusser, elas seriam assim de direito, algo como “um estado de variação”
da Ideologia, assim como em Balibar cada modo de produção é um estado de variação
(da dupla relação) do Sistema de Elementos. Ver sobre esse texto de Althusser a crítica
de Rancière (op. cit., pp. 227 e segs.), crítica que a esse respeito é paralela à que
fazemos aqui.
(49) L. Althusser, “Sur la dialectique matérialiste (De l’inégalité des origines)”, in
Pour Marx, Paris, Maspero, 1965, pp. 163 e segs.
(50) “Chamaremos de Teoria (maiúscula) a teoria geral, isto é, a Teoria da prá­
tica em geral, ela mesma elaborada a partir da teoria das práticas existentes (das ciên­
cias), que transformam em ‘conhecimentos’ (verdades científicas) o produto ideológico
das práticas ‘empíricas’ (a atividade concreta dos homens) existentes. Esta Teoria é a
dialética materialista que se confunde com o materialismo dialético.” (Idem, p. 169,
grifado pelo autor) “(...) Mas enunciando essa tese, Lenin faz mais do que ele diz:
lembrando a prática marxista a necessidade da teoria que a fundamente, ele enuncia um
fato, uma tese, que interessa à Teoria, isto é, à teoria da prática em geral: a dialética
materialista.” (Ibidem)
(51) Ver idem, p. 167; examinaremos em seguida esses textos.
(52) Idem, pp. 167-168, grifo nosso.
(53) Porque o althusserismo — no qual só se vê, usualmente, um antiantropo-
logismo — deu uma grande importância à noção de "matéria-prima” (sobre isto, há
textos saborosos nos epígonos) fica difícil lembrar que a noção de matéria-prima é de
essência antropológica. E, entretanto, já que a noção serve como as outras, à descrição
geral e material do processo de trabalho, não há nenhuma razão para pô-lo em dúvida.
(54) Ver, por exemplo, o emprego da expressão “atividade concreta dos homens”
em idem, p. 169, texto citado anteriormente em nota. Outro exemplo na p. 188. — Sem
dúvida, do simples fato de que Althusser emprega termos como “homens” etc., não se
pode concluir que ele “deslize” no antropologismo. Dir-se-ia que “polemizamos” . Mas o
problema não reside simplesmente no fato de que ele empregue tais termos, mas sim que
86 RUY FAUSTO

ele o faça — ou antes, que ele seja obrigado a fazê-lo — num texto que, mesmo como
primeiro esboço, deveria servir à fundamentação do materialismo histórico. Ê esse pro­
jeto de fundamentação — que náo é de modo algum inocente, e cuja necessidade não é de
modo algum evidente —• que torna necessário o recurso a algo que se configura como
urna queda no universo discursivo do antropologismo.
(55) Sem dúvida, Althusser apresenta essas definições só como “aproximações
prévias” (aproximations préalables). (Idem, p. 167) Mas o que ele considera como
aproximativo e prévio é evidentemente a forma (em sentido fraco, o desenvolvimento etc.)
destas definições, não o próprio procedimento teórico (o projeto de uma fundamentação
do materialismo histórico numa Teoria geral das práticas).
(56) Havíamos observado a propósito de Balibar que o lugar das “advertências”
não é em si mesmo o essencial.
(57) Idem, pp. 167-168.
(58) Geral, pelo menos em um dos sentidos indicados, suficiente para a nossa
argumentação.
(59) Poder-se-ia objetar que em certas passagens da Introdução de 57 encontra-se
também a repetição do termo “determinado” (ver, por exemplo, Grundrisse, op. cit. ,
p. 20; Manuscrits de 1857-1858..., op. cit., I, p. 34): “Uma produção determinada
determina pois um consumo, uma distribuição, uma troca determinadas, e relações
determinadas que esses diferentes momentos têm entre si”). Na realidade, se se com­
preender bem o caráter da Introdução de 57, e também o significado do destino que
Marx finalmente lhe deu, o texto não faz senão reforçar a nossa argumentação. Escre­
vendo a Introdução de 57, Marx estava às voltas com um problema — cuja matriz é a
problemática hegeliana em tomo da impossibilidade de escrever introduções — que po­
deria formular-se da seguinte maneira: como escrever uma introdução geral à crítica da
economia sem cair numa fundação antropológica? E mais radicalmente: em que me­
dida é possível um discurso geral sobre a economia? Problema que é análogo àquele
que os althusserianospressentem. A Introdução de 57 era na origem uma tentativa de
resolver essa dificuldade, de responder a essas questões. Mas precisamente, diferente­
mente do que se supõe em geral, mais do que uma introdução, a Introdução de 57
é na realidade uma antiintrodução: mais do que introduzir determinações positivas, ela
visa mostrar tudo o que não se pode dizer aquém da apresentação (seria possível mostrar
isto em detalhe). Mas finalmente, no próprio espírito do conteúdo dessa Introdução,
mesmo uma antiintrodução pareceu a Marx um projeto ambíguo. Com efeito, ela corria
o risco de ser (mal) compreendida como sendo simplesmente uma introdução positiva.
(E é assim que ela foi compreendida e que ela continua a sê-lo, com a publicação
póstuma do texto.) Ê bem provavelmente a razão pela qual Marx decidiu finalmente
eliminá-la: a antiintrodução acabou assim por se devorar a si mesma. Sua eliminação
realiza sua tese: não há apresentação fora da apresentação. Eis o sentido profundo da
desaparição da Introdução de 57 do texto da Crítica... A maneira pela qual Marx
encaminhou o problema, já inscrita na solução de que ele parte que é uma solução
negativa, diverge assim do caminho escolhido (em parte malgré eux) pelos althusse­
rianos: o de um bloqueio numa quase-antropología cujos conceitos gerais têm a nostalgia
da determinação.
3
Abstração real e contradição:
sobre o trabalho abstrato e o valor

Introdução

Este íexto se propõe estudar o teor lógico dos conceitos de tra­


balho abstrato e de valor, isto é, analisar os seus “fundamentos” e as
suas “implicações” lógicas, e em particular mostrar como o tipo de
abstração que se constitui nesses conceitos assim como a ‘‘posição ”
histórica deles estão ligados a uma lógica da contradição. Esse trabalho
se fará em conexão com a crítica de certos textos, em particular de um
artigo de Cornelius Castoriadis, “Valeur, Êgalité, Justice, Politique: de
Marx à Aristote et d’Aristote à nous” , publicado na revista Textures (e
mais recentemente em Les Carrefours du Labyrinthe) .1
De alguns anos para cá, é cada vez mais freqüente, sobretudo
entre os sociólogos e economistas marxistas, uma concepção da abstra­
ção que constitui o trabalho abstrato e o valor, que rompe com a
interpretação dada por certas leituras tradicionais. Ao contrário dessas
leituras vulgares, que identificavam ingenuamente trabalho abstrato e
trabalho em geral, o que ou nos remete ao nível fisiológico (o trabalho
abstrato como gasto fisiológico de músculos, nervos etc.) ou nos con­
dena a uma subjetivação do conceito (o trabalho abstrato como a repre­
sentação abstrata do trabalho em geral), esses autores consideram com
razão o trabalho abstrato, e o valor, como uma abstração (social) real.
Essas leituras críticas, que de resto recusam tanto o subjetivismo
psicologista das leituras vulgares como o subjetivismo logicista dos
althusserianos,2 não vão entretanto, na maioria dos casos, até o fim do
caminho. Elas não explicitam bem a idéia de abstração real, em parti­
cular a do trabalho abstrato, elas não conseguem situar satisfatoria­
mente o lugar “estrutural” ou histórico dela,3 nem precisar o seu teor,
distinguindo-a bem de outras abstrações. Sem que façamos referências
expressas a elas — trata-se de resto de uma corrente bem difusa — essa
tendência, naquilo que ela traz como naquilo que ela deixa em aberto,
nos fornecerá de certo modo um ponto de referência histórico. Desen­
volveremos os problemas a partir de lá. Como, entretanto, por um lado
tudo isto é mal conhecido e como, por outro lado, alguma coisa das
leituras tradicionais reaparece nos textos que são nosso ponto de par­
tida como naqueles que criticamos, consagraremos a nota seguinte
àquelas leituras.4
90 RUYFAUSTO

Antecipando-nos a propósito da ordem de exposição, é difícil


separar o problema da abstração objetiva do problema do espaço histó­
rico ocupado pelo trabalho abstrato e o valor — as duas questões que
nos propomos desenvolver. Tentamos de qualquer modo desenvolvê-las
em duas partes distintas, ambas se referindo, mas desigualmente, ao
trabalho abstrato e ao valor, ambas por outro lado ao mesmo tempo
expositivas e críticas — mas uma centrada na questão da abstração e a
outra na do espaço histórico. Essas duas partes constituirão as secções
II e III; julgamos necessário, por outro lado, precedê-las de uma expli­
cação crítica (secção I) sobre os principais problemas relativos à noção
de trabalho abstrato, tanto os que têm uma incidência lógica direta
(nesse caso, trata-se de fornecer os materiais para o desenvolvimento
posterior) como aqueles cujo interesse lógico não é imediato (nesse caso
percorremos as diferentes questões tentando apenas contribuir com
alguns elementos para o debate). Essas indicações revelam os limites
desse texto, limites que o próprio desenvolvimento e as considerações
finais devem justificar. Observemos ainda que os temas aqui tratados
são mais ou menos inseparáveis do problema do sentido da apresen­
tação de O Capital e de outras questões, como a da forma do valor,
do fetichismo etc. Para não estender demais esse texto, e coirio volta­
remos a tratar pelo menos de alguns desses pontos, reduziremos ao
mínimo as intromissões inevitáveis nesses temas.

I. A ABSTRAÇÃO REAL (TRABALHO ABSTRATO, VALOR):


SOBRE O CONCEITO DE TRABALHO ABSTRATO

A abstração do trabalho é para Marx uma abstração real; isto


está escrito literalmente no seguinte texto do capítulo I da Contribuição
à Crítica da Economia Política: “Para medir os valores de uso das
mercadorias pelo tempo de trabalho que elas contêm, é preciso que os
diferentes trabalhos, eles próprios, sejam reduzidos a um trabalho não
diferenciado, uniforme, simples, em resumo a um trabalho que seja
qualitativamente o mesmo e só se diferencie quantitativamente. Esta
redução aparece como uma abstração, mas é uma abstração que se
realiza todos os dias no processo de produção social. A resolução de
todas as mercadorias em tempo de trabalho não é uma abstração maior
nem ao mesmo tempo menos real (keine grõssere Abstraktion aber (...)
keine minder reellé) do que a resolução em ar de todos os corpos orgâni­
cos” .5 Mas a partir daí se propõem vários problemas, alguns dos quais
reabrem de certo modo o dossiê das leituras vulgares. Qual é a relação
que existe entre a idéia de abstração real e a idéia de generalidade (pois,
embora sabendo que a primeira não se confunde com a simples gene­
ralidade, não é menos verdade que a idéia de generalidade não está
ausente)? E a partir daí se propõe de novo a questão: como pensar a
MARX: LÖGICA E POLÍTICA 91

relação entre a objetividade da abstração — já a continuação desse


mesmo texto da Contribuição à Crítica... coloca o problema — e o tipo
de objeto ao qual parecem remeter os textos em que se trata da reali­
dade fisiológica do trabalho em geral (gasto de músculos» nervos etc.)?
E por outro lado, se pergunta: em que nível se situa a abstração do
trabalho (pois certos textos poderiam levar a pensar que ela só existe no
nível da troca)? Que relação existe — se há relação — entre a abstração
objetiva do trabalho e a abstração do trabalho enquanto experiência
vivida, abstração que é sem dúvida tematizada por O Capital, os Grun-
drisse etc.? A isto é preciso acrescentar questões de interesse menos
imediatamente lógico, como por exemplo as que se referem à noção de
trabalho socialmente necessário, à redução do trabalho complexo ao
trabalho simples etc.

2. Dizer que a abstração do trabalho não se confunde com a


simples generalidade “trabalho” não quer dizer que a primeira exclua
toda generalidade. Na realidade, as abstrações reais “trabalho” e
“valor” põem a generalidade. Ou antes, elas põem a universalidade,6
mas esta universalidade é generalidade posta. O “geral” se torna uni­
versal singular, universal concreto. Por enquanto, limitamo-nos a citar
a esse respeito um texto do capítulo 1 de O Capital, na versão da
primeira edição da obra.7 Trata-se de um texto sobre a forma do valor,
mas o que ele diz vale também, como veremos, para o trabalho abs­
trato: “Na forma III, que é a segunda forma invertida e que está
portanto contida nela, a tela aparece pelo contrário como a forma
genérica (Gattungsform) do equivalente para todas as outras merca­
dorias. É como se ao lado e além dos leões, tigres, lebres e todos os
animais efetivamente reais, que agrupados constituem as diferentes
raças, espécies, subespécies, famílias etc. do reino animal, existisse
também o ANIM AL, encarnação individual de todo o reino animal.
Tal indivíduo (ein solches Einzeln) que compreende em si mesmo todas
as espécies efetivamente existentes da mesma coisa é um UNIVERSAL
(ein Allgemeines), como por exemplo ANIM AL, DEUS etc .".8 Esta­
mos pois diante de uma universalidade (Allgemeinheit) que é ao mesmo
tempo singularidade. Mas qual a relação existente entre uma univer­
salidade como esta e a representação da realidade fisiológica da abs­
tração do trabalho? Conservando o lado da “universalidade” (e por­
tanto em certo sentido a “generalidade” , mesmo se se trata da gene­
ralidade “negada”), não seríamos reconduzidos de novo ao nível fisio­
lógico? 9A resposta já está dada na noção de posição. Não é a realidade
biológica da universalidade do trabalho que constitui o trabalho abs­
trato, mas a posição dessa realidade, e a posição não é mais biológica.
A generalidade em sentido fisiológico (não mais do que a generalidade
abstrata e subjetiva) — retomamos o problema num nível mais elevado
— não constitui o trabalho abstrato: ela é apenas a realidade natural
92 RUY FAUSTO

pressuposta à (posição) deste. A realidade social fa z com que valha o


que era apenas uma realidade natural. E que a abstração do trabalho
em sentido fisiológico não pode constituir o trabalho abstrato, é visível
pelo fato de que lhe falta o momento da singularidade. A identidade do
trabalho no nível fisiológico é a unidade dos trabalhos (fisiológica­
mente) idênticos. Cada trabalho considerado no nível fisiológico é
idêntico ao outro, mas cada um é um trabalho (e além disso trabalho de
alguém). Com efeito, seria impossível dizer que só existe, lá, um tra­
balho, a menos que se os tome no nível da representação. Ora, essa
unidade pode (e deve) ser atribuída ao trabalho abstrato. Ele é uma
unidade (mesmo se, como diz Marx, esta unidade está “constituída por
inúmeras forças de trabalho individuais” . Aqui a pluralidade é se­
gunda). E é precisamente esta unidade que retira aos seus agentes a
condição de sujeitos: “O trabalho que é assim medido pelo tempo não
aparece, de fato, como trabalho de sujeitos diferentes (Arbeit verschie-
dener Subjekte) mas os diferentes indivíduos que trabalham (die vers-
chiedenen arbeitenden Individúen) aparecem antes como órgãos do
trabalho” . ( Werke, 13, Zur K ritik..., op. cit. , p. 18, Contribution à la
Critique..., op. cit. , p. 10, grifado por Marx)10 É de resto esta inversão
do papel dos agentes que permite compreender em que sentido (rigo­
roso) se diz que o trabalho abstrato é “ social” e o trabalho concreto
“individual” , distinção que poderia parecer insustentável, pois o tra­
balho considerado como trabalho concreto está também imerso no
social. Mas ele é trabalho dos indivíduos, no sentido de que nesse nível
os agentes não são órgãos do trabalho (trata-se do trabalho concreto
nos limites da circulação simples).

2. O trabalho abstrato como o valor comporta determinidades


(Bestimmtheiten) que interessam a qualidade, e uma determinidade
que interessa a quantidade.11 Mas os dois tipos de determinidades não
se justapõem simplesmente no sentido de que as duas são constitutivas
do objeto. Como veremos mais adiante, só haverá trabalho abstrato se
se operar uma redução ao mesmo tempo qualitativa e quantitativa.
Quaisquer que sejam as diferenças entre os textos, de um modo geral
Marx põe primeiro as determinidades da qualidade do trabalho abs­
trato (trabalho igual, social, simples),12 e em seguida somente a deter­
minidade da quantidade (trabalho socialmente necessário); mas isso
deve ser entendido como se a determinidade que interessa a quantidade
já estivesse lá, no objeto, embora não estivesse posta. Por outro lado, é
preciso distinguir a quantidade (como quantidade não determinada) do
quantum de valor. Ê nessa direção que se deve ler o texto do capítulo 1
da primeira edição de O Capital, que diz: “A grandeza de valor
(Wertgròsse) é as duas (coisas) valor em geral (Wert überhaupt) e valor
medido quantitativamente (quantitativ gessessener Wert)” 13 — o que
significa: o valor “em geral” contém tanto a qualidade como a quanti-
MARX: LÓGICA E POLITICA 93

(lade, mas não o quantum medido. O erro dos clássicos vai no sentido
inverso ao daquele que criticamos: eles sacrificam a qualidade à quan­
tidade, mas os dois erros têm um fundo comum. — À noção de
trabalho socialmente necessário como a noção de trabalho simples são
criticadas por Castoriadis (depois de outros autores). A propósito do
conceito de trabalho socialmente necessário, ele ataca sobretudo a
noção de “trabalho médio” (depois de ter mostrado que esta seria a
única alternativa para a interpretação do conceito). O trabalho social­
mente necessário não é, entretanto, necessariamente o trabalho médio,
mas o trabalho que se impõe socialmente. É no interior dessa forma,
que se impõe, que se estabelecem as médias.14 For outro lado, o
“privilégio” atribuído ao trabalho simples assim como a redução do
trabalho complexo ao trabalho simples podem parecer insustentá­
veis.15 O privilégio'do trabalho simples parece se fundar num dado
estatístico: o peso numérico desse tipo de trabalho no capitalismo (do
século XIX). Se Marx se reporta efetivamente a dados estatísticos, não
são estes, como simples dados, que legitimam o papel do trabalho
simples na teoria. O privilégio do trabalho simples está ligado a uma
determinação essencial ao sistema (ao sistema plenamente desenvol­
vido). Na realidade, o trabalho simples é posto ou criado pela grande
indústria (com a qual se passa ao capitalismo em sentido específico).16
É o capitalismo em sentido específico que constitui o trabalho simples
(o capitalismo manufatureiro já havia “simplificado” o trabalho). Nas
outras formações, ou o trabalho simples era secundário — a produção
medieval urbana, por exemplo, é a do virtuose — ou ela não era posta
pelo sistema, o que significa que o trabalho simples fora do capitalismo
é coisa diversa do trabalho simples como categoria do capitalismo;
conforme o que Marx diz sobre a cooperação no capitalismo e nas civi­
lizações antigas. Quanto à questão da redução, problema que é sem
dúvida complexo, eis aqui o que nos parece representar a melhor dire­
ção: é necessário cortar a hierarquia das forças de trabalho (cada uma
das quais produz mais ou menos valor) do processo de constituição
dessas forças. Isto é, é preciso renunciar a pensar que há uma espécie
de transferência do valor gasto na criação dessas forças qualificadas
para os produtos do uso dessas forças — não por causa das dificuldades
da mensuração, mas por razões teóricas: com isto se poria em cheque a
teoria do valor, e isto, mesmo se há correspondência (ou uma certa
correspondência) entre o tempo que se gasta para produzir uma força
qualificada e a potência aumentada de produzir valor que ela adquire
através dele. Mas que se siga este caminho ou um outro, a redução não
implica um círculo vicioso. Segundo os críticos, é finalmente pelo mer­
cado 17 que se opera a redução. Fundar-se-ia a teoria do valor através
daquilo que ela deveria fundar. Na realidade, quaisquer que sejam os
problemas da redução do trabalho complexo ao trabalho simples —
e o que representa um problema correntemente não é nem esta redução
94 RUYFAUSTO

em sentido qualitativo nem mesmo esta redução em sentido quanti­


tativo (mesmo se a partir de lá ela vem a ser questionada),18 mas ein
primeiro lugar a possibilidade de efetuar uma medida exata da redução
independentemente dos valores (os críticos diriam dós preços) cristali­
zados nas mercadorias —, quaisquer que sejam os problemas, não
parece que é disto que depende a legitimação da teoria do valor. A
teoria se justifica pela necessidade de fundar o valor (ver a continua­
ção), fundação que só se pode fazer pelo trabalho. Ora, se se deve
pensar o valor em termos de trabalho — e isto não depende de redução
dos trabalhos, mas na realidade o exige —, toda redução dos valores
dos produtos do trabalho deve aparecer como fundada numa redução
do trabalho complexo ao trabalho simples. Mesmo se se quisesse
pensar a coisa como um círculo, não se trataria de um círculo vicioso.
Em resumo: seria preciso formular a “multiplicação” do trabalho de
um modo mais rigoroso (introduzindo cortes,19 o que não nos aproxima
nem nos afasta de uma mensuração exata, mas o problema mais
importante não está lá) e seria preciso, por outro lado, rever a questão
do que está em jogo nos problemas, o que não parece ser o que supõem
os críticos.

3. Ã abstração do trabalho corresponde a abstração valor: as


mercadorias enquanto valores são trabalho objetivado (vergegenständ­
liche Arbeit), trabalho cristalizado. E se no valor a abstração se obje­
tiva,20 no dinheiro ela o exterioriza: o dinheiro é o “ser-aí” (Dasein),
a forma de existência imediata do valor.21 Mas evidentemente não é só
no dinheiro que a abstração é real, assim como, de um modo mais
geral, não é somente na troca que a abstração trabalho é real. Mas se
deveria dizer que a troca pressupõe (no sentido corrente de “é primeira
em relação a”) o trabalho abstrato, ou se deveria dizer o contrário?
Questão que propõe Castoriadis: “Marx diz, mais ou menos por toda
parte, que as diferentes determinações do valor pressupõem a troca,
mas ele diz também o contrário: ‘O produto do trabalho adquire a
forma mercadoria desde que o seu Valor adquire a forma do valor de
troca, oposta à sua forma natural (...)’ ” . (Oeuvres, Économie I, p. 593,
Castoriadis, art. cit. , p. 17, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit. , p.
264, grifado por Castoriadis) A dificuldade nesse ponto pode ser resol-
vida por uma leitura rigorosa do capítulo 2 de O Capital: Marx escreve
que, no início mesmo da troca — digamos, por ocasião da primeira
troca — os produtos (trata-se ainda de produtos, não de mercadorias)
não se tomam mercadorias (isto é, não adquirem a determinação for­
mal do valor de troca) senão a partir do momento em que se opera a
troca. (E, na medida em que, uma vez alienados, eles não serão mais
mercadorias, seu ser mercadoria tem nesse caso uma existência pon­
tual, um pouco como o cogito cartesiano antes das provas da existência
de Deus.) Os produtos somente são mercadorias antes da troca, quando
MARX: LOGICA E POLÍTICA 95

a produção já se faz tendo em vista a troca: “A troca imediata dos


produtos tem por um lado a forma da expressão simples do valor, e por
outro lado ainda não a tem. Aquela forma era x mercadoria A = y
mercadoria B. A forma da troca imediata de produtos: x objetos de uso
A = y objetos de uso B. As coisas (Dinge) A e B não são aqui merca­
dorias antes da troca, mas sô se tornam mercadorias através dela” .
('Werke, 23, Das Kapital, I, p. 102; Oeuvres, Êconomie I, p. 623)
Se temos pois sucessivamente o trabalho abstrato, o valor como
trabalho objetivado (portanto como objetivaçáo — em sentido estrito
— da abstração do trabalho), o dinheiro como o ser-aí da mercadoria
enquanto valor e portanto como o ser-aí da abstração do trabalho —
mas é preciso introduzir descontinuidades nesse movimento trabalho
abstrato/valor/dinheiro —, tem-se com o capital (e há aqui uma
descontinuidáde de uma outra ordem, uma interversão) a abstração-
sujeito. A abstração reaparece assim em diferentes momentos da arti­
culação real e da apresentação desta articulação. Mas se se deve
mostrar assim o desenvolvimento que vai da abstração do trabalho ao
capital — movimento que é escandido por descontinuidades — é pre­
ciso por outro lado explorar um outro movimento — o que vai, ou iria,
da abstração do trabalho ao vivido dos agentes. Este é o problema que
levantam textos como aquele, bem conhecido, da introdução de 1857. 22
Nesse texto, Marx distingue o trabalho abstrato no nível da “categoria”
do trabalho abstrato na realidade efetiva (Wirklichkeit), trabalho abs­
trato que é “praticamente verdadeiro” (praktisch wahr). Este último
corresponde a uma situação em que os indivíduos passam com facili­
dade de um trabalho a outro, e em que a forma “particular do tra­
balho” não coincide mais (o termo é verwachsen: aderir, soldar) com
eles. Dessa “verdade prática” do trabalho abstrato, Marx diz inicial­
mente que “se a encontra na sua forma mais desenvolvida” , mas em
seguida simplesmente que só se encontra na forma de existência mais
moderna da sociedade burguesa — os Estados Unidos. Esse texto,
citado freqüentemente, levanta mais de um problema e parece contra­
dizer tudo o que dissemos. Com efeito, se se interpretar a diferença
entre existir na categoria e existir na Wirklichkeit em termos da opo­
sição pensamento/realidade como se faz habitualmente (traduzindo
Wirklichkeit por “realidade”), chegar-se-á a estes resultados: o traba­
lho abstrato só existiria na realidade nos Estados Unidos, e por outro
lado ele seria constituído como objeto real, pela mobilidade do traba­
lhador e pelo vivido que lhe corresponde (a indiferença do trabalhador
em relação ao trabalho determinado). Ora, fora a limitação inadmis­
sível do campo do trabalho abstrato no capitalismo (só os Estados Uni­
dos) que haveria aí, é preciso observar o seguinte (para dizer a coisa em
termos lógicos): a mobilidade do trabalhador não realiza o universal que
é ao mesmo tempo singular, o universal só é aqui uma sucessão de singu­
laridades ou de particularidades. Quanto à experiência da indiferença
96 RUY FAUSTO

em relação ao trabalho determinado, se através dela se realiza efetiva­


mente uma síntese, trata-se entretanto de uma síntese na ordem do vivi­
do; ora, qualquer que seja o papel do vivido em O Capital, papel que sem
dúvida não se poderia subestimar, o vivido, entretanto, nunca é consti­
tutivo. Mas todas essas dificuldades são reduzidas se lembrarmos que a
Wirklichkeit não é simplesmente o real ou a realidade, mas a realidade
efetiva. Ora, a realidade efetiva (Wirklichkeit) não é coextensiva à
ordem do real, ela designa o momento da aparição da essência; é assim
que Marx dirá freqüentemente a propósito dos conceitos desenvolvidos
no livro III (lucro etc.), conceitos que correspondem haparição da essên­
cia, que eles pertencem à Wirklichkeit. Para dar apenas um exemplo:
“Mas na realidade efetiva (Wirklichkeit), isto é, no mundo fenomenal
(Erscheinungswelt), a coisa se inverte” . (Werke, 25, Das Kapital, III,
p. 57; cf. Oeuvres, Êconomie II, p. 895, em que Wirklichkeit é tradu­
zida por “realidade”) A diferença entre a categoria e a realidade
efetiva remete assim não à oposição pensamento/realidade, mas à
diferença entre a realidade só no nível da essência e a realidade que se
manifesta também no fenômeno (“(...) unidade que se tornou imediata
da essência e a existência ou do interior e o exterior” , é assim que Hegel
define a Wirklichkeit ria Pequena Lógica).23 A mobilidade do traba­
lhador e a experiência vivida que lhe corresponde são pois a reflexão da
categoria no plano da realidade fenomenal e do vivido. Essa reflexão
não é, sem dúvida, exterior ao objeto, mas uma realização imperfeita
da reflexão não exclui a realidade do objeto no nível da essência.24
E, a propósito da experiência vivida que corresponde à abstração do
trabalho, observemos que não se deve confundir essa experiência da
abstração do trabalho (esse nível do vivido: a indiferença em relação ao
trabalho) com a experiência da alienação descrita nos textos sobre a
grande indústria. Na realidade, se o trabalho abstrato só existe no
capitalismo (voltaremos a isto na secção III), ele é entretanto categoria
da circulação simples (e, no nível da circulação simples, se trata sem
dúvida do capitalismo, mas do capitalismo enquanto objeto “negado”).
E se não se pode confundir as duas ordens de categorias (mesmo se
ambas, mas com “posições” — negação, posição — diferentes corres­
pondem ao capitalismo),25 também não se pode confundir o sentido
dessas duas determinações do vivido. “Embora a forma do trabalho
assalariado seja decisiva para a configuração (Gestalt) do conjunto do
processo e para o próprio modo específico da produção, não é o tra­
balho assalariado (que é) determinante do valor. Na determinação do
valor se trata do tempo de trabalho social em geral (...). A forma
determinada em que o tempo de trabalho social se impõe como deter­
minante no valor das mercadorias está ligada, é verdade, com a forma
do trabalho como trabalho assalariado com a forma correspondente
dos meios de produção enquanto capital, na medida em que só sobre
esta base (Basis) a produção de mercadorias se tom a forma geral da
MARX: LOGICA E POLITICA 97

produção” . ( Werke, 25, Das Kapital, III, p. 889; Oeuvres, Économie


II, p. 1480) “Na medida em que o trabalho é criador de valor e se
apresente no valor das mercadorias, ele não tem nada a ver com a
divisão desse valor entre as diferentes categorias. Na medida em que ele
tem o caráter social específico do trabalho assalariado, ele não é cria­
dor de valor” . (Werke, 25, Das Kapital, III, p. 831; Oeuvres, Éco­
nomie II, p. 1431)26 Se o trabalho abstrato não pode ser confundido
com o trabalho assalariado, embora só haja trabalho abstrato quando
há trabalho assalariado, o vivido que corresponde à primeira determi­
nação deve ser distinguido do vivido que corresponde à segunda.

II. A ABSTRAÇÃO REAL (TRABALHO ABSTRATO, VALOR):


PROBLEMAS LÓGICOS FUNDAMENTAIS

1. Contrariedade, substância

Seria necessário, agora, explorar mais a fundo essas análises. Nós


nos fixaremos inicialmente em dois problemas: o do emprego da noção
de substância a propósito do trabalho abstrato (ver textos) e tudo que
isto implica, e o uso da noção de contrariedade para designar a re­
lação entre o trabalho abstrato e o trabalho concreto, assim como a
relação entre o valor de uso e o valor. Começaremos pela questão da
contrariedade.
Marx diz do trabalho que ele é o contrário (Gegenteil) ou o
contrário imediato (ummittelbares Gegenteil) ou o oposto (Gegensatz)
do trabalho concreto;27 e do valor ele diz que este é o contrário do valor
de uso.28 Os críticos põem em dúvida o rigor dessa determinação.29 Ela
seria efetivamente rigorosa? Percebe-se imediatamente que dizer que o
trabalho abstrato é o contrário (ou o contrário imediato) do trabalho
concreto (e que o valor é o contrário do valor de uso) não tem muito
sentido se não se pensar o trabalho e o valor como universais concretos.
Se não se introduzir a universalidade concreta, como legitimar a idéia
de oposição? Em primeiro lugar, no que se refere às leituras vulgares,
se o trabalho abstrato só é o gênero dos trabalhos concretos, não se
poderia falar de oposição nem de contrariedade. O gênero não é o
contrário da espécie: ele apenas subsume a espécie, e não se poderia
afirmar que esta subsunção constitui um a relação de contrariedade.
Mas deixemos de lado essas leituras. Se não se supuser que o trabalho
abstrato é o gênero dos trabalhos concretos, se suporá talvez que eles
são simplesmente dois objetos diferentes, talvez mesmo dois objetos
diferentes no conceito (entendido em sentido subjetivo), a noção de
diferença excluindo de qualquer modo toda idéia de oposição: “A con­
tradição entre os termos que não é mesmo uma contradição entre
98 RUY FAUSTO

conceitos, mas uma diferença, uma ruptura no tratamento dos con­


ceitos, pertence propriamente (en propre) ao processo de exposição e
não remete em nada a um processo real (P. Macherey, Lire le
Capital, IV, Maspero, 1973, p. 27, grifo nosso) E mesmo que se
suponha que a diferença é real, enquanto o objeto não for pensado
como universal singular (universal concreto) mas como um singular ou
um particular, ele comporta diferença mas não contrariedade: “Uma
outra característica das substâncias é que elas não têm nenhum con­
trário. Com efeito, se se considerar a substância primeira, qual poderia
ser o seu contrário, por exemplo, para o homem individual ou para o
animal individual? Com efeito, eles não têm nenhum contrário; tam­
bém não há contrário nem para o homem nem para o animal” . (Aris­
tóteles, Organon, Categories, I, cap. 5, 3b, 24, trad. Tricot, Paris,
Vrin, pp. 15-16)30 Tudo muda, se se pensar o trabalho abstrato (e tam­
bém o valor) como universal concreto, isto é, como um objeto que
contém ao mesmo tempo a universalidade e a singularidade. Nesse
caso, e nesse caso somente, se poderá falar rigorosamente de contra­
riedade. Vejamos isto mais de perto. Para simplificar, tomemos a
relação entre dinheiro e mercadoria (em que se reflete, como vimos, a
mesma oposição). Poder-se-ia dizer que o dinheiro e a mercadoria são
simplesmente coisas diferentesl Não. Diferentes, simplesmente, são
por exemplo mercadorias quaisquer, umas em relação às outras: a tela
em relação ao casaco, para retomar o exemplo clássico (e isto somente
enquanto uma não funcionar como expressão de valor da outra). Mas na
relação entre o dinheiro e a mercadoria há mais do que isto: há entre os
dois uma espécie de tensão. Eles se atraem mutuamente, cada um deles
repele a si próprio, mas por isso mesmo eles podem entrar em conflito31
(nas crises). E como justificar logicamente a afirmação de que se trata
de contrários? Eles são contrários porque por um lado um é o gênero do
outro: o dinheiro é a mercadoria geral ou universal;32 mas porque ao
mesmo tempo esse gênero existe ao lado das espécies e dos indivíduos
que o compõem: o dinheiro é também uma mercadoria. Ê essa dupla
condição de gênero e de indivíduo, de indivíduo-gênero, que faz da
coisa social dinheiro o contrário de cada mercadoria. É pois essa dupla
condição que constitui objetivamente a tensão entre os dois objetos e
permite falar legitimamente de contrariedade ou de oposição entre eles.
(Observemos de passagem que, se Marx utiliza uma terminologia que
não elimina a expressão do gênero: trabalho abstrato, valor — oposto a
valor de uso — etc., o que mereceu a censura de Althusser,33 que não
compreendeu o porquê dessa terminologia, — é porque ele quer expri­
mir que o gênero está “lá” , embora como universal singular.) Esta
coincidência entre o universal e o individual, Marx a assinala clara­
mente nos textos citados (“o animal ao lado do leão” etc.): é como se o
universal invadisse o particular, de onde a tensão, que estaria ausente
se se tratasse só do gênero ou só do indivíduo. Mas o entendimento (que
MARX: LÓGICA E POLITICA 99

não apreende esta coincidência) não vê na relação (mercadoria/di­


nheiro, por exemplo) mais do que uma diferença. Como escrevia Hegel:
“Na oposição, o diferente, de um modo geral, não tem somente diante
dele um outro mas o seu outro. A consciência comum considera os
(termos) diferentes como indiferentes um em relação ao outro. Diz-se
assim: ‘Eu sou um homem e em volta de mim há ar, água, animais e o
Outro em geral’. Todas as coisas caem umas fora das outras. A finali­
dade da filosofia é, pelo contrário, banir a indiferença e reconhecer a
necessidade das coisas de tal maneira que o Outro aparece como diante
do seu Outro” .34
Porém, mais grave do que o emprego da noção de contradição
parece ser o fato de que Marx faz do trabalho uma substância. Casto-
riadis observa: “O que esses objetos possuem em comum, além da sua
utilidade ou valor de uso — que não poderia, segundo Marx, fundar
relações de troca quantitativamente determinadas — é (o fato de)
serem ‘produtos do trabalho humano’. Ê pois o trabalho que eles
‘contêm’ que é esta substância/essência comum (...)” . E em nota: “A
atribuição universal se torna assim substância. Passa-se de: a única
propriedade comum a todos esses objetos (fora o seu valor de uso), é
(o fato de) serem produtos do trabalho humano, a: existe uma subs­
tância da qual esses produtos são ‘cristais’. A generalidade deve ter um
fundamento substancial” , (Castoriadis, art. cit. , p. 6, nota 4, Les Carre-
fours du Labyrinthe, p. 252, grifado por Castoriadis) Esta substan-
cialização distingue Marx dos clássicos, mas para Castoriadis não repre­
senta, muito pelo contrário, um progresso: “A questão proposta pela
economia clássica: porque os objetos trocados o são em tal proporção e
não em outra, Marx a reformula à sua maneira, numa formulação que já
contém ou predetermina, a resposta: ‘Qual é o igual/idêntico (das
Gleiche), isto é, a substância comum (die gemeinschaftliche Substanz),
que representa a casa para o leito na expressão de valor do leito?’ Ele a
reformula à sua maneira própria: o valor trabalho dos clássicos, de
Smith e de Ricardo, não invoca a categoria da ‘substância’ e, se se
descobrisse lá a palavra, seria sem dúvida num uso inocente. Que as
mercadorias são trocadas na proporção do trabalho que custa a sua
produção, isto quer dizer para os clássicos: se alguém me propusesse
trocar um produto que me custou dez horas de trabalho contra um dos
seus produtos cuja fabricação só me custaria nove horas de trabalho, eu
recusaria sua proposta; e, mediante a concorrência, a relação entre
tempos ‘médios’ de trabalho respectivos regulará a relação das quanti­
dades trocadas. O ‘valor-trabalho’ é assim, antes das imensas (e insu­
peráveis) complicações que criam as diferenças entre os trabalhos indi­
viduais, o ‘capital’, a ‘terra’, o ‘tempo’ etc., uma questão de bom senso
e mesmo uma tautologia simples: quem daria dez para obter nove?”
(Castoriadis, art. cit., p. 7, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p.
253, grifado por Castoriadis) Assim, Marx retoma o problema para lhe
I N S T I T U T O C U L T U R A L BRASIL ALFMANHA
J N S T I T U 10 G O E TH E - RIO OE JA N E IR O
Av. Graça Aranha, 4<6 - 9 Õ Andar - 224 1862
100 RUY FAUSTO

dar um sentido metafísico: “Marx reformula a questão à sua própria


maneira — que a situa de imediato no terreno da tautologia metafí­
sica". (Ibidem, grifado por Castoriadis) “O primeiro capítulo de O
Capital é metafísico” . (Ibidem) Assim, substancializando o trabalho
abstrato, Marx se perde numa metafísica da economia política. O que
muitos outros já disseram. Por exemplo, Joan Robinson (e Eatwell):
“A afirmação segundo a qual somente o trabalho produz valor é
metafísica. Seu único conteúdo lógico é uma definição: o trabalho
produz valor, e o valor é o que o trabalho produz (...)” . (Joan Robinson
e John Eatwell, As Introduction to M odem Economics, Londres,
McGraw-Hill, 1973, 1. I, cap. 2, §5a) Assim como faz Castoriadis, se
imputa a Marx um pensamento metafísico e tautológico: a teoria do
valor se reduz a uma tautologia metafísica.35
Examinemos agora mais de perto o uso que faz Marx do conceito
de substância e as acusações de “metafísico” lançadas contra ele.
Reconstituamos em primeiro lugar a crítica que Marx faz aos clássicos
a esse respeito. Marx critica os clássicos — Ricardo em particular —
por só ter visto o lado quantitativo do trabalho abstrato, ou por ter visto
o lado quantitativo só de uma maneira fraca.36 Isto é, de não tê-lo
pensado como “coisa social” .37 Por trás do quantum de tempo de tra­
balho, é necessário evidentemente pensar uma qualidade, e essa quali­
dade é preciso tomá-la em sentido forte. O que permite pensar os
agentes como suportes da relação valor e do trabalho abstrato, que são
logicamente os verdadeiros pontos de partida. A incapacidade de pen­
sar o trabalho abstrato como “coisa social” (como substância) impede
que os clássicos se liberem de todo antropologismo na sua visada dos
agentes. E mais do que isto, como já vimos, há uma relação entre a
concepção do trabalho abstrato enquanto substância e a do capital
enquanto sujeito (valor que se valoriza, movimento-sujeito).38 Inca­
pazes de pensar o trabalho abstrato enquanto substância, os clássicos
também não chegam a pensar o capital como movimento-sujeito (a
substância que se tornou sujeito) e caem numa representação naturali­
zante e portanto mistificante do capital. É necessário fazer do trabalho
abstrato uma coisa-social substância — porque o valor não é um quan­
tum que os agentes estabelecem subjetivamente (esta perspectiva subje­
tiva está também, de resto, na descrição de Castoriadis), mas algo que
se impõe socialmente, e que é ao mesmo tempo qualidade e quanti­
dade, para chegar a uma definição do capital em termos de movi­
mento-sujeito.39 Observemos que a noção de substância remete a duas
ou, se se quiser, a três determinações. Em primeiro lugar, Marx quer
dizer com isso que o trabalho é coisa social, ele tem a espessura, o peso
da coisa. A idéia de substância remete à ousia aristotélica. Mas coisas
sociais são também o valor, o capital etc. Aqui intervém o segundo
sentido ou a segunda determinação: a substância é coisa em forma de
trabalho, em forma fluida, pois se trata de uma substância que ainda
MARX: LÖGICA E POLITICA 101

não se cristalizou; se no primeiro caso se pensa em Aristóteles e numa


certa tradição filosófica, aqui se é conduzido ao universo das ciências
naturais.40 Por outro lado, substância se opõe a sujeito (a substância
trabalho abstrato ao sujeito capital, a substância que se tomou sujeito);
aqui a referência é Hegel, que passou por sua vez por Aristóteles.41
Sobre a primeira determinação, é necessário observar ainda, em cone­
xão com o que havíamos dito anteriormente: Marx reúne num mesmo
objeto como determinações do mesmo nível os dois sentidos (principais)
da ousia aristotélica; daí resulta a possibilidade — não aristotélica —
de que a substância comporte contrários. Mas Marx não cairia com isto
na “metafísica” ? Falar de substância não é voltar a uma tradição
metafísica, retomar noções aristotélicas, reintroduzir um universo em
que há forças? Eis aqui o essencial sobre esse ponto: que Marx concebe
a realidade (social) como um universo habitado por “coisas” e “for­
ças” 42 é um fato. Mas por que supor que isto representa um elemento
negativo, um pecado mortal do seu discurso?43 Os que afirmam qüe
Marx é metafísico crêem em geral que a resposta de Marx a uma crítica
como essa seria defensiva: ele diria que o seu discurso não tem nada de
metafísico, que ele é científico no sentido corrente etc. Na realidade, a
idéia de que é um defeito para um discurso ter alguma coisa de “meta­
físico” está subjacente a toda esta argumentação. É assim que mar­
xistas como Sweezy tentam responder da seguinte maneira: a idéia de
trabalho abstrato nada tem de misterioso, ela corresponde ao sentido
que todos lhe dão etc. Isto é, tenta-se justificar o discurso de Marx pelo
senso comum. Ora, a resposta que Marx daria — a resposta que ele dá,
pois o argumento já se encontra, por exemplo, em Bailey44 — é total­
mente diversa. Por um lado, ele reconhece que o seu discurso tem algo
de metafísico. Mas a metafísica do seu discurso é a reprodução da
metafísica do real. Ê o real, o capitalismo que é em certo sentido
metafísico, e o discurso quase metafísico é por isso o verdadeiro dis­
curso científico, assim como o discurso claro da “ciência” se torna
nesse caso inadequado.45 Marx sempre insistiu no fato de que por
exemplo a mercadoria tem algo de misterioso, que ela é um objeto sen­
sível supra-sensível etc. Para apreender esse tipo muito particular de
objeto, é necessário um discurso que se ajuste a ele, isto é, um discurso
que ponha essas abstrações objetivas como elas são efetivamente: como
coisas sociais que reduzem os agentes a suportes. Nesse sentido há uma
certa ingenuidade em toda essa argumentação. Poder-se-ia dizer pelo
menos que ela se situa aquém de uma compreensão profunda daquilo
que representa o discurso de Marx (“objetivamente” e nas intenções de
Marx). E para que não se tenha dúvidas sobre isto, citemos dois textos
(um deles se refere também aos universais concretos, as duas questões
estão ligadas), textos em que Marx se explica sobre o caráter “metafí­
sico” do seu discurso, a propósito do mesmo argumento, empregado
contra os clássicos por Bailey: “No interior da relação de valor e da
102 RUY FAUSTO

expressão de valor que está incluída nela o abstrato universal (das


Abstrakt Allgemeine) não vale como propriedade do concreto, do sen­
sível efetivo (Sinnlich-Wirklichen), mas pelo contrário o sensível-con-
creto (só vale) como pura (blosse) forma fenomenal ou forma de reali­
zação efetiva (Verwirklichungsform) determinada do abstrato universal
(des Abstrakt-Allgemeinen). Por exemplo, o trabalho do alfaiate que
está contido no equivalente casaco não possui, no interior da expressão
de valor da tela, a propriedade geral de ser também trabalho humano.
Pelo contrário. Ser trabalho humano vale como sua essência, ser tra­
balho do alfaiate (só vale) como forma fenomenal ou forma de reali­
zação efetiva determinada desta sua essência (...) (...). Esta interversão
pela qual o sensível-concreto (das Sinnlich-Konkrete) só vale como
forma fenomenal do abstrato-universal (des Abstrakt'Allgemeinen),
em vez de o abstrato universal valer, pelo contrário, como propriedade
do concreto, (tal interversão) caracteriza a expressão de valor, ela torna
ao mesmo tempo difícil a sua compreensão. Se eu disser: o direito
romano e o direito alemão são ambos direitos, isto é evidente. Mas se,
pelo contrário, eu disser: o direito, este abstrato (Abstraktum), se
realiza efetivamente no direito romano e no direito alemão, o contexto
(Zusammenhang) torna-se então místico” . I6 Como se vê — contra a
posição que tinha na juventude — ver a Santa Família — Marx aceita
assumir esse discurso “místico” (pois o seu tratamento da forma do
valor diz o objeto na forma indicada, que ele considera como mística).
E se ele assume assim o “misticismo” , ele o justifica da seguinte
maneira num texto que infelizmente é pouco conhecido: “Isto mostra
portanto que o verbal observer47compreendeu tão pouco quanto Bailey
alguma coisa do valor ou da essência do dinheiro quando trata a
autonomização do valor como uma invenção escolástica (eine scholas-
tische Erfindung) dos economistas. Essa autonomização aparece ainda
mais no capital que, por um lado pode ser chamado valor em processo
(prozessiender Wert) — e portanto como o valor só existe (de um modo)
autônomo no dinheiro —, pode ser chamado dinheiro em processo
(prozessierendes Geld) — (ele, o capital) que percorre uma série de
processos nos quais ele se conserva, sai de si e volta a si aumentado
(in vergrõssertem Umfang). Que o paradoxo da realidade efetiva (Para-
doxon der Wirklichkeit) se exprime assim em paradoxos da linguagem
(Sprachparadoxen), que contradizem o senso comum, o que os vul­
gares ( Vulgarians) pensam e acreditam dizer (mean and believe to talk
of), isto é evidente. As contradições que nascem do fato de que, sobre a
base da produção de mercadorias, o trabalho privado se apresente
como social, geral, que as relações pessoais se apresentam como rela­
ções entre coisas (von Dingen) e como coisas (Dinge) — essas contra­
dições ( Widersprüche) residem na coisa (Sache) não na expressão
verbal (in dem Sprachlichen Ausdruck) da coisa (Sache)” . 48
MARX: LOGICA E POLITICA 103

2. Posição e determinação

Mas nada mostra melhor que os “fundamentos” do tipo de


objeto que temos no trabalho abstrato (e no valor) e a incompreensão
do seu caráter por parte dos críticos do que o desenvolvimento do
problema do trabalho abstrato e do valor que se encontra no último
parágrafo do capítulo 1 de Ó Capital (“O caráter de fetiche da merca­
doria e seu segredo) assim como as leituras de que ele foi objeto.49
Comecemos recapitulando o texto. Depois de ter observado que en­
quanto valor a mercadoria se apresenta como um objeto misterioso,
Marx se pergunta de onde vem esse caráter misterioso da mercadoria,
que será precisamente a origem do fetichismo. Esse mistério, responde
Marx, não pode provir do conteúdo das determinações do valor, a
saber, nem da abstração do trabalho, pois em todas as sociedades o
trabalho considerado abstratamente oferece interesse, nem do tempo
de trabalho, por razões mais ou menos idênticas, nem da forma social
(geral) do trabalho. Esse caráter misterioso só pode vir da própria
forma mercadoria. (Aqui, “forma” , diga-se de passagem, não é a
forma fenomenal, como por exemplo na forma do valor, mas forma no
sentido de forma social específica oposta ao conteúdo antropológico
geral.) E para mostrar que o caráter misterioso vem da forma merca­
doria, Marx compara a produção de mercadorias com outras formas de
produção. Assim, ele se referirá sucessivamente a Robinson isolado na
sua ilha, ao feudalismo, à “indústria patriarcal de uma família campo­
nesa” e ao socialismo. Em cada um desses casos, ele mostrará o papel
do trabalho em geral, e o do tempo de trabalho, seja na planificação da
produção, seja na distribuição, seja nos dois ao mesmo tempo. Por
exemplo, Robinson faz o planejamento do seu tempo, no comunismo a
sociedade o faz (e como se trata da primeira fase do comunismo, o
tempo desempenha também üm papel na distribuição), em todos os
casos, o trabalho considerado, fazendo-se abstração da sua particula­
ridade, desempenha um papel etc. Toda essa variação tem evidente­
mente por objeto mostrar a diferença, sobre ofundo de uma identidade
— mas é a diferença que é primeira, não a identidade —, entre todas
essas formas e a produção mercantil-capitalista.50 Trata-se de mostrar
que nessas formas, apesar de tudo, não há nem trabalho abstrato nem
valor, e que ao contrário do que se passa na produção mercantil,
a forma social é a forma imediata do produto.51 Vejamos agora o que
os críticos escrevem sobre isto. Depois de ter feito as observações que
comentamos sobre o caráter metafísico do pensamento de Marx, e
depois de ter analisado a dificuldade em situar o valor na história (o
que será objeto da secção III deste texto), Castoriadis escreve: “O valor
já estava lá, a partir do momento (dès) em que houve troca. Mas há
sempre troca, onde há sociedade — inclusive no ‘comunismo primi­
tivo’: o feiticeiro fornece suas encantações e recebe uma parte da caça.
104 RUY FAUSTO

Se se ousa dizer, há troca mesmo ‘antes’ da sociedade —, em todo caso,


segundo Marx, há valor para Robinson, só que para ele ela é ‘transpa­
rente’: ‘como bom ingles’ (o que significa: como homo oeconomicus
‘racional’), ele faz o ‘inventário detalhado’ do tempo de trabalho que
lhe custam em média quantidades determinadas dos seus diversos pro­
dutos. .. Aí estão contidas todas as determinações essenciais do valor. E
a mesma coisa valerá para a sociedade comunista futura, esta “reunião
de homens livres trabalhando com meios de produção comuns... se­
gundo um plano deliberado. Tudo que dissemos do trabalho de Ro­
binson se reproduz aqui, mas socialmente e não individualmente' ” .
(Oeuvres, Économie I, p. 611-613 — Castoriadis, art. cit., p. 18, Les
Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 264, 265, grifado por Castoria­
dis) Esse comentário do texto de Marx (que contém evidentemente um
contra-senso: Castoriadis supõe que, para Marx, o valor existe no caso
de Robinson, numa sociedade comunista etc.; mais do que um contra-
senso: Castoriadis se engana inteiramente sobre o sentido do texto que
visa estabelecer uma diferença sobre o fundo das identidades, e não
diferenças fundadas numa identidade, o que é outra coisa), esse comen­
tário deve ser comparado com as observações de Balibar sobre o mesmo
texto, em Cinq Êtudes du Matérialisme Historique. Balibar lê o texto
da mesma maneira errônea que Castoriadis, com a única diferença de
que ele quer “salvar” Marx eliminando ou corrigindo esse texto (e o
conjunto da teoria do fetichismo): “(...) Toda esta variação (a compa­
ração entre a produção de mercadorias e os outros modos, RF) pres­
supõe com efeito (bem longe de explicar a sua constituição) a repre­
sentação do trabalho abstrato como existência natural, evidente de um
‘trabalho geral’, do qual os diferentes ramos da divisão do trabalho só
realizam formas particulares; exatamente o que, algumas linhas mais
adiante, a propósito de Franklin e de Ricardo, o próprio Marx assinala
uma vez mais como o limite ideológico intransponível da economia
política” . (E. Balibar, Cinq Êtudes du Matérialisme Historique, Mas-
pero, 1974, p. 215, grifado por Balibar) “Estamos aqui bem aquém da
análise — Marx insiste sempre nisto — que permite fundar cientifi­
camente o desenvolvimento da forma mercadoria, e que é aberta pelo
conceito de duplo caráter do trabalho. (...) A ‘dialética’ que opera aqui
é essencialmente crítica e preparatória (propedêutica)” . (Ibidem, gri­
fado por Balibar) Não. Se essa dialética — mas é preciso compreendê-
la e tomá-la a sério — é, sem dúvida, crítica, ela não tem nada de
propedêutica. Balibar como Castoriadis, ou Castoriadis como Balibar,
quaisquer que sejam as diferenças enormes que os separam (e é exa­
tamente isto que é impressionante) não se saem bem diante desse texto.
E a explicação do fracasso não é difícil. Digamos que a pedra na qual
eles tropeçam é a frase de Marx citada por Castoriadis (ver nossa
citação da p. 18 do artigo de Castoriadis, Les Carrefours..., pp. 264-
265) e também por Balibar (op. cit., p. 212): “E entretanto aí estão
MARX: LÓGICA E POLÍ¡XjCA
105

contidas todas as determinações essenciais do valor». (Werke> 23> Das


K a p i t a l l o p ca.,, p. 91; ver Dognin, Les “Sentiers escarpés... ”, op.
cit., p. 222 1 Nessa frase se resume toda a yificuidade. Ê que é iso
compreende-la da segumte maneira: aí es^ão contidas todas as deter.
mmaçoes essenciais do valor, menos a p hsição_ Este é 0 sentido do
conjunto do texto: mostrar que em todos c)S outros modos as determi.
naçoes do valor, isto e, as determinações do seu conteúdo (tempo de
ra . _ ° ’ , a s raÇao 0 ra a^ ° ) estão Presentes, mas que falta a
posição objetiva dessas determinações: e quando f aita a posição, não
ha valor nem trabalho abstrato. O valor nã(, existe nem no C0munism0(
nem no caso de Robmson, nem na família patriarcal, nem na Idade
Media nem em nenhum dos casos em que não há t r o c a .5 2 A análise é
assim diferencial, em sentido forte: primeiro as diferenças (as identi.
dades são pressupostas). E por que o etro dos críticoSj esses dois
críticos que vem de horizontes tão diferentes? Isto também é {ácU de
explicar E que a logica do texto de Marx vai contra a tradi âo filo.
sofica, digamos kantiana, da qual _ a desbeito> em rte lo men
das suas respectivas intenções - eles são tributários> cada um à sua
maneira. Com efeito, no texto de Marx, há al de escandaloso: Marx
su p o e que a posição da coisa - e a posição da coisa é a existência
(social) da coisa - e essencial para que ela seja 0 é_ Para 0
valor (tempo de trabalho, trabalho coino ge„eralidade abstrata),
seja valor (ou o trabalho abstrato” seja o lrabalho abstrato), é essen­
cial que, alem dessas determinações, hajaW á o > ou essas deter.
mmaçoes sejam determinações postas, socialmente existentes. No
socialismo, no caso de Robmson etc., as determin ões essenciais do
valor estão dadas, mas falta a posição objetiva dessas determinações,
porque em todos esses casos elas só existem como repreSentação - na
cabeça de Robmson dos planificadores (ou como resultado dessa
representação, mas não como coisas sociais) F , ta é a ra7an miai
em nenhum dos dois casos, se trata de valo! nem de trabalho abstí ato;
Isto e evidentemente escandaloso e vai coiltra toda uma tradi ão de
pensamento cujo melhor representante é sSm dúvida Kant. Eis 0 que
escreve Kant sobre a relação determinação/existência num texto bem
celebre da Critica da Razao Pura-. “ Ser não é evidentemente um
predicado real (kein reales Pradikat), isto é, um conceito de al
coisa (von irgend etwas) que se possa a c r e s ^ ^ ao conceito de uma
coisa (emes Dmges). E simplesmente a posi ão (Es ist bloss die Poú.
tion) de uma coisa ou de certas determinações nelas mesmas {an sich
selbst). Em seu uso logico, ele não é senão a có la de um juízo Se
eu tomar o sujeito (Deus) com todos os seus predicados (entre os quais
esta mcluida a onipotência) e se eu disser: I)eus é> ou há um Deus> eu
nao pon o (setzen) nen um predicado ao ;0nceito de Deus, mas eu
ponho (setzen) o sujeito em si mesmo (an sia, sdbst)> com todos os seus
predicados, e ao mesmo tempo, com efeito 0 objeto que corresponde
106 RUYFAUSTO

a.o meu conceito. Os dois devem conter exatamente a mesma coisa; e


pelo fato de que (pela expressão: ele é) eu concebo o seu objeto como
absolutamente dado, nada mais se pode acrescentar ao conceito que
exprime simplesmente a sua possibilidade. E assim o real não contém
nada mais do que o simples possível. Cem talers reais não contêm nada
mais do que cem talers possíveis. Pois como os talers possíveis expri­
mem o conceito e os talers reais o objeto e a sua posição (Position) em si
mesmo, se este contivesse mais do que aquele, meu conceito não
exprimiria o objeto inteiro, e em conseqüência, não seria tampouco o
conceito adequado dele. Mas, no que se refere ao estado da minha
fortuna, há mais com cem talers reais do que só com o seu conceito (isto
é, só com a sua possibilidade). Com efeito, o objeto na realidade não
está simplesmente contido de uma maneira analítica no meu conceito,
mas se acrescenta sinteticamente ao meu conceito (que é uma deter­
minação do meu estado), sem que os cem talers concebidos sejam de
modo algum aumentados por esse ser situado fora do meu conceito.
Quando eu concebo uma coisa, quaisquer que sejam e por numerosos
que sejam os predicados por meio dos quais eu a concebo (mesmo na
determinação completa), o fato de que eu acrescento que esta coisa é não
acrescenta nada à coisa” . (Kant, Kritik der Reinen Vernunft, “Die
tranzendentale Dialektik. Von der Unmöglichkeit eines ontologischen
Beweises vom Dasein Gottes” , Hamburgo, Felix Meiner, 1956, pp.
572-573; Critique de la Raison Pure, trad. Barni revista por P. Archam-
bault, Garnier-Flamarion, 1976, pp. 478-479) Vê-se que em Kant é
preciso separar as determinações de um conceito e a sua existência ou a
sua posição, sendo a posição exterior às suas determinações. Para
Hegel e Marx, pelo contrário, o conjunto das determinações não esgota
o conceito. Mesmo plenamente determinado, o conceito não é ele
próprio se não for posto. Ora, essa relação é impensável tanto para
Balibar como para Castoriadis.

Digressão: dialética marxista e argumento ontológico

Vê-se aí em que sentido a dialética reabilita o argumento onto­


lógico, e em particular em que sentido a dialética materialista a reabi­
lita. Sabe-se que Hegel fez a crítica da crítica kantiana do argumento
ontológico. Esta crítica hegeliana que precisamente se referia ao pro­
blema da relação determinação/posição se fazia entretanto no interior
de um universo que se poderia chamar de idealista.53 Isto é, se Hegel
pensa a posição como fazendo parte da essência do conceito, se poderia
dizer que ele faz com que se esvaia por esse movimento mesmo a dife­
rença entre sujeito e objeto. De um ponto de vista materialista, o argu­
mento ontológico (ou antes, o movimento que lhe serve de base, a inclu­
são da posição no conceito) toma um outro sentido. A passagem da es­
MARX: LÓGICA E POLITICA 107

sência à existência não faz desaparecer a diferença entre sujeito e objeto.


O valor ou o trabalho abstrato como categorias objetivas não se confun­
dem com os seus análogos no pensamento desses objetos. Fica-se no inte­
rior do materialismo; e entretanto, esse materialismo não é o materialis­
mo vulgar, porque nele se concede a parte do idealismo, porque nele se
guarda o momento do idealismo. E isto num duplo sentido, ou para os
dois idealismos, istoé, se guarda tanto o momento do idealismo objetivo
como o do ideaüsmo subjetivo. O idealismo objetivo, pois se reconhece
que, de certo modo, o real “pensa” , isto é, o real põe, efetua o ato de
abstrair. O idealismo subjetivo, pois se reconhece que o sujeito pode
passar pelo pensamento à existência (à posição), que ele pode pôr os
universais como universais objetivos. Mas esta “existência” só é eviden­
temente o análogo da existência no real — ela é o real refletido no
pensamento. (Para o nominalismo, entretanto, mesmo esta “existên­
cia” , isto é, a posição, deve ser recusada.) Vê-se assim que o problema
da distinção rigorosa entre os dois materialismos, o vulgar e o dialético
(ver o que dizem sobre isto os manuais...), tem aqui uma saída.54

III. O ESPAÇO HISTÓRICO DAS CATEGORIAS


(VALOR, TRABALHO ABSTRATO)

O conjunto das análises anteriores nos mostrou qual a natureza


da abstração que constitui o trabalho abstrato e o valor. Elas nos
permitiram ao mesmo tempo esclarecer uma parte dos problemas que
propõe sua existência como abstrações reais. Mas há um ponto que
permanece obscuro, e o seu esclarecimento é essencial para que o con­
junto das implicações do nosso objeto se torne inteligível, o do espaço
histórico do valor e do trabalho abstrato. Em qual ou quais épocas,
se pode dizer que há trabalho abstrato e valor? O trabalho abstrato e o
valor são categorias que só valem para o capitalismo? Problema que,
na realidade, é um pouco menos simples do que se poderia pensar à
primeira vista. Se nas secções anteriores se tocou nessa questão, foi só
para o caso mais fácil, o das sociedades ou formações em que não há
troca. Lá evidentemente se deve excluir de imediato o trabalho abstrato
e o valor. Mas, se há troca, a coisa é mais complexa.
O problema do espaço histórico do valor, com todas as suas
implicações para o problema da abstração, já aparece claramente na
crítica que Engels faz ao economista Conrad Schmidt, assim como nas
reservas que suscitou a crítica de Engels. Essa discussão pode nos servir
como ponto de partida. Embora reconhecendo o interesse teórico do
conceito de valor, Schmidt tinha escrito num artigo sobre o livro III
de O Capital, e depois numa carta a Engels, que o valor não é mais do
que uma hipótese ou uma ficção teórica.55 E isto porque, no interior do
capitalismo, as trocas, inclusive as que interessam os meios de produ-
108 RUY FAUSTO

ção e a força de trabalho, se fazem não conforme o valor mas conforme


os preços de produção.56 A essas observações de Schmidt, Engels res­
ponde 57que o valor é na realidade muito mais do que isto: “A meu ver,
esta concepção (a de Schmidt, RF) não é, absolutamente, pertinente.
Para a produção capitalista, a lei do valor tem uma significação que é,
de longe, maior e mais determinada do que a de uma simples hipótese,
sem falar da de uma ficção mesmo necessária” . 58 Para sustentar a sua
resposta, Engels começa citando um texto do livro III de O Capital, em
que Marx escreve que a anterioridade do valor sobre os preços de
produção é válida não só teoricamente (theoretisch) mas também histo­
ricamente (historisch).59 Ele traça em seguida um quadro da evolução
das trocas nas épocas pré-capitalistas e termina afirmando que a lei do
valor é válida de forma geral antes do capitalismo, e por outro lado,
que ela tem uma validade econômica geral só até a emergência do
capitalismo: “Em resumo, a lei do valor de Marx é válida de forma
geral (gilt allgemein), na medida em que as leis econômicas podem
sê-lo, para todo o período da produção simples de mercadorias, por­
tanto até o momento (bis zur Zeit) em que esta última sofreu uma
modificação (Modification) pela emergência (Eintritt) da forma de
produção capitalista. Até lá, os preços gravitam em tomo dos valores
determinados pela lei de Marx e oscilam em torno desses valores, de
modo que quanto mais plenamente se desenvolve (je voller... zur E nt­
faltung kom m t) a produção simples de mercadorias, mais os preços
médios (que se estabelecem) no interior de períodos mais longos não
interrompidos por nenhuma perturbação exterior violenta coincidem,
dentro de margens aproximáveis, com os seus valores. A lei do valor de
Marx tem pois uma validade econômica geral (ökonomisch-allgemeine
Gültigkeit) por um período que vai do início da troca, que transforma
produtos em mercadorias, até o século XV da nossa era. Mas a troca de
mercadorias data de uma época anterior a toda história escrita, a qual
nos conduz no Egito pelo menos a três mil e quinhentos e talvez a cinco
mil anos, na Babilônia a quatro mil e talvez a seis mil anos antes de
nossa era; a lei do valor reinou (geherrscht) durante um período de
cinco a sete mil anos. Admire-se agora a profundidade do sr. Loria,
que diz (nennt) do valor que teve uma validade geral e direta (allgemein
und direkt) durante esse tempo, (que é) um valor pelo qual as merca­
dorias não são nem nunca serão vendidas, (e um valor) com o qual
nenhum economista que tenha uma centelha de bom senso (einen Fun­
ken gesunden Verstand) se ocupará jamais!” 60 Esta resposta de Engels
é hoje criticada quase unanimemente61 e questionada pelas duas razões
seguintes: primeiro, parece bem evidente que, para Marx, a lei do valor
é válida para o capitalismo;62 segundo, não se pode aceitar sem mais —
é o mínimo que se pode dizer — que a lei do valor, segundo Marx,
é válida antes do capitalismo. Há, pois, dois problemas no texto de
Engels. Por um lado, devemos nos perguntar: em que medida se
MARX: LOGICA E POLÍTICA 109

poderia falar de valor antes do capitalismo? E, por outro lado: em que


sentido rigoroso a lei do valor é válida no interior do capitalismo (o que
nos leva a retomar a questão do significado da relação valor/preço de
produção)? 63

1. Valor e pré-capitalismo. Contradição

Castoriadis64 questiona o estatuto do valor antes do capitalismo,


ao discutir o texto bem conhecido de Marx sobre Aristóteles no livro I,
cap. I, de O Capital. Como se sabe, comentando textos da Ética a
Nicômaco, Marx tenta mostrar que Aristóteles chegou até o limiar da
idéia de abstração do trabalho (pois ele viu que a equivalência quanti­
tativa que estabelece a relação de valor pressupõe uma igualdade
qualitativa), mas que ele não pôde ultrapassar esse limitar: “Primeira­
mente Aristóteles exprime claramente que a forma dinheiro da merca­
doria não é senão a configuração (Gestalt) mais desenvolvida da forma
simples do valor, isto é, da expressão de valor de uma mercadoria em
uma outra mercadoria qualquer, pois ele diz: ‘5 leitos = 1 casa (klinai
pente anti oikias)' não se distingue de ‘5 leitos = tanto e tanto de
dinheiro {klinaipente anti... hosou hai pente klinai)'. Além disso, ele
vê que a relação de valor, na qual se encontra essa expressão de valor,
exige por sua vez que a casa seja posta como qualitativamente igual ao
leito e que essas coisas (Dinge) diferentes (em termos) sensíveis (sinn-
lich) não poderiam ser postas em relação umas com as outras como
grandezas comensuráveis sem essa igualdade de essência. ‘A troca’, diz
ele, ‘não pode ser sem igualdade, mas a igualdade não (pode ser) sem a
comensurabilidade (out’isotes me ouses sümetrias).' Mas aqui ele he­
sita e renuncia a continuar a análise da forma do valor. ‘Mas na rea­
lidade é impossível {te men oun aletheia adünaton) que coisas tão dife­
rentes sejam comensuráveis’, isto é, sejam qualitativamente iguais.
Esta posição da igualdade (Gleichsetzung, equiparação) não pode ser
senão algo estranho à verdadeira natureza das coisas (Dinge), e portanto
‘um expediente (Notbehelf) para a necessidade prática’./ Assim, o
próprio Aristóteles nos diz em que fracassa a continuação de sua aná­
lise (woran seine weitere Analyse scheitert), a saber, na imperfeição
(Mangel) do seu conceito de valor. Qual é o igual, isto é, a substância
comum que a casa representa para o leito na expressão de valor do
leito?’ Algo assim (so etwas) ‘na verdade não’ pode ‘existir’, diz Aris­
tóteles. Por quê? A casa representa um igual em face do leito, na
medida em que ela representa o que é efetivamente igual nos dois, no
leito e na casa. E isto é trabalho hum ano./ Mas que na forma dos
valores das mercadorias (Form der Warenwerte) todos os trabalhos
sejam expressos como trabalho humano igual e em conseqüência como
equivalentes (gleichgeltend), Aristóteles não poderia extrair (heraus-
110 RUY FAUSTO

lesen) da própria forma do valor, porque a sociedade grega repousava


sobre o trabalho escravo, e em conseqüência tinha como base natural a
desigualdade dos homens e de suas forças de trabalho. O segredo da
expressão de valor, a igualdade e a equi-valência (die Gleichheit und
gleiche Gültigkeit) de todos os trabalhos, porque e enquanto são traba­
lho humano em geral, só podem ser decifradas quando o conceito de
igualdade humana já possua a solidez de um preconceito popular. Mas
isto só é possível (erst mòglich) numa sociedade em que a forma das
mercadorias ( Warenform) é a forma geral dos produtos do trabalho, e
assim a relação dos homens entre si enquanto possuidores de merca­
dorias é a relação social dominante. O gênio de Aristóteles brilha
precisamente nisto, que na expressão de valor das mercadorias ele
tenha descoberto uma relação de igualdade. Só a limitação (Schranke,
barreira) histórica da sociedade em que ele vivia impediu que ele
descobrisse em que consiste ‘na realidade’ essa relação de igualdade” .65
Esse texto levanta sem dúvida um problema. Qual o sentido exato desta
crítica? Em que medida se poderia dizer que a limitação histórica da
sociedade em que ele vivia impediu que ele visse alguma coisa? Se
Aristóteles não alcançou os conceitos de valor e de trabalho abstrato,
não seria porque ele não existiam? Nesse caso, nada a criticar; não se
poderia falar, aparentemente, de barreiras impostas à sua consciência.
Ou então é necessário supor que o objeto estivesse lá. Mas poder-se-ia
dizer que o valor existe efetivamente antes do capitalismo? Uma leitura
rigorosa do texto parece, pois, nos conduzir a um impasse. Ê a esse
impasse que se prende Castoriadis: “Aristóteles não via a ‘identidade/
igualdade’ dos trabalhos humanos porque era impedida pelos precon­
ceitos da sua época (ou pela ausência do ‘preconceito popular’ da
igualdade); ou então ele não via o que estava lá mas não aparecia
ainda; ou então ele não via porque não havia nada para ver, porque a
igualdade dos trabalhos humanos, na medida em que ela ‘existe’, foi
criada no e pelo capitalismo? A antinomia que divide perpetuamente o
pensamento de Marx entre a idéia de uma produção histórica das cate­
gorias sociais (e do pensamento) e a idéia de uma ‘racionalidade’
última do processo histórico (portanto da ‘productibilidade’ racional
dessas categorias umas a partir das outras, (e) portanto finalmente da
sua ‘a-temporalidade’) se revela de novo aqui. Se a Antiguidade ‘tinha
como base natural a desigualdade dos homens e de sua força de tra­
balho’, se portanto o trabalho não era homogêneo, Aristóteles tinha
razão em dizer o que ele era e em dizer o que ele não era; ele erraria (il
aurait eu tort) se, por um milagre da adivinhação histórica, tivesse dito
que o trabalho era o que ele só viria a ser dois mil anos mais tarde. Que
pode significar a idéia de que Aristóteles era limitado pelo ‘estado
particular da sociedade em que vivia’, senão que havia algo para ver e
que Aristóteles, esse ‘gigante do pensamento’, não podia ver, por causa
desse ‘estado particular’? Mas, na realidade, que haveria, pois, para
MARX: LÓGICA E POLITICA 111

ver? Nada. Esta fantasmagoria real, esse constructum histórico de uma


pseudo-homogeneidade efetiva dos indivíduos e dos trabalhos é uma
instituição e criação do capitalismo, um ‘produto’ do capitalismo me­
diante o qual o capitalismo se produz — e que Marx, preso ao ‘estado
particular’ da sociedade em que vive, transforma uma vez em duas em
determinação universal, trans-histórica, em Substância Trabalho” . 66
Pouco antes, Castoriadis escreve de uma maneira mais geral: “Na
economia e por ela, a abstração da quantidade, a pura repetição/
cumulação do absolutamente homogêneo se toma efetiva, realidade
mais real do que o real./ Mas que ‘economia’? Constantemente, Marx
oscila entre estas posições: a economia capitalista — toda economia, do
início ao fim da história. De um extremo ao outro da sua obra, Marx
diz ao mesmo tempo e sucessivamente:/ — ‘a economia capitalista
transforma efetivamente, e pela primeira vez na história, os homens e
seus trabalhos heterogêneos no Mesmo homogêneo e mensurável e faz
com que seja, pela primeira vez, esta coisa: o Trabalho Simples Abs­
trato, que não tem nenhuma outra determinação pertinente senão o
‘tempo’ (de relógio)’;/ — ‘a economia capitalista dá a aparência do
Mesmo ao que é essencialmente heterogêneo: os indivíduos e os seus
trabalhos, mediante a produção de mercadorias e a transformação da
própria força de trabalho em mercadoria, portanto (da) sua reificação
(Verdinglichung)”, 67 A crítica do texto de Marx sobre Aristóteles nos
remete pois ao primeiro problema, o da existência do valor (e do tra­
balho abstrato) nas sociedades pré-capitalistas. Veremos que Castoria­
dis levanta também o segundo problema, o do valor e do trabalho abs­
trato no capitalismo.
Inicialmente, tentemos responder na base dos textos. Para Marx,
0 valor e o trabalho abstrato existem antes do capitalismo? A resposta
de Marx, para o trabalho abstrato, se encontra na Contribuição à
Crítica da Economia Política: “Steuart (trata-se de James Steuart,
economista do século XVII — RF) sabia naturalmente muito bem que
também nas épocas pré-burguesas o produto se reveste da forma mer­
cadoria e a mercadoria da forma dinheiro, mas ele prova em detalhe
que a mercadoria enquanto forma fundamental elementar da riqueza,
e a alienação enquanto forma dominante da apropriação, só pertencem
ao período da produção burguesa e que, portanto, o caráter do tra­
balho que põe o valor de troca é especificamente burguês (der Cha-
rakter der Tauschwert setzenden Arbeit spezifisch bürgerlich ist)".6li O
texto se refere ao trabalho abstrato. Pode-se dizer a mesma coisa do
valor? Sim. Com efeito, Marx escreve no capítulo 5 do livro III de O
Capital: “Se o valor das mercadorias é determinado pelo tempo de
trabalho necessário que elas contêm, e não pelo tempo de trabalho em
geral (überhaupt) que elas contêm, é o capital (so ist es das Kapital)
que realiza pela primeira vez (erst realisiert) esta determinação, e que ao
mesmo tempo reduz constantemente o tempo de trabalho socialmente
112 RUY FAUSTO

necessário à produção de uma mercadoria” . 69 E no capítulo 7 do livro


III ele escreve ainda: “É o capital comercial, que pela primeira vez
(zuersí) determina os preços das mercadorias mais ou menos pelos seus
valores (...)” . 70 E entretanto, há aí um problema. É que Marx fala
bastante freqüentemente de valor (ou pelo menos de valores), tendo em
vista sociedades pré-capitalistas em que há troca.11 Assim, por exem­
plo, quando, nos capítulo 1 e 2 do livro I e também no capítulo 10
(original) do livro III, ele introduz referências “históricas” (onde se
trata de trocas entre comunidades primitivas),72 ele fala de valor, sem
que se trate evidentemente do capitalismo.73 Como explicar essas
ocorrências? Segundo Castoriadis, haveria em Marx uma oscilação
entre diversas respostas: o valor existia antes do capitalismo, o valor
não existia, o valor existia mas não aparecia. Marx teria sido incapaz
de dar uma resposta unívoca ao problema, sendo a prova disto a pre­
sença das três respostas em lugares diferentes da sua obra. O que
Castoriadis diz não é sem verdade, enquanto ele afirma simplesmente
que se pode encontrar em Marx passagens em que ele emprega o termo
valor a propósito do pré-capitalismo e passagens em que ele diz que só
há valor no capitalismo. O problema é o de saber se há aí uma osci­
lação, se não se trataria antes (radicalizando) de uma contradição-,
e de saber se uma resposta contraditória é necessariamente uma má
resposta. Ora, por radical que ele seja de outros pontos de vista, Casto­
riadis pressupõe como todo mundo (ele não chega mesmo a propor o
problema) que um discurso, para ter pretensão à verdade e à validade
universais, deve ser ou se apresentar como não contraditório. Ê pelo
menos o que se extrai de sua crítica. E entretanto a solução do pro­
blema se acha na própria resposta contraditória: se o objeto é ele
próprio contraditório — e veremos que é disto que se trata — é a res­
posta contraditória que é a resposta racional. O que significa: a aber­
tura que se busca, a porta de saída, está no próprio obstáculo que se
erige diante de nós. Basta pôr a contradição — em lugar de fugir dela
— para que se a domine (e portanto se resolva o problema). No que se
refere ao nosso problema, isso significa que antes do capitalismo o
valor não é, mas que ao mesmo tempo ele ê. Antes do capitalismo, o
valor não é, porque não há tempo de trabalho socialmente necessário.
Isto significa que o tempo de trabalho constitutivo do valor não é posto
na própria produção (não há um tempo social que tenha uma força
coercitiva no nível da produção) e que o quantum de valor (ou antes, de
“valor”) pelo qual as mercadorias são trocadas se constitui no nível das
trocas (esse quantum não corresponde a cada tempo individual, mas
ele não é senão uma resultante desses tempos individuais). E entre­
tanto, do que acabamos de dizer resulta que antes do capitalismo as
mercadorias já se trocavam segundo proporções que correspondiam ao
tempo (ou aos tempos) gasto(s) na sua produção. Portanto, em certo
sentido, o valor ou os valores já existiam. Ou, se se quiser, se se deveria
MARX: LÓGICA E POLITICA 113

dizer, pelas razões expostas, que o valor não existia, deve-se dizer
também que “alguma coisa” como o valor já existia.74 Mas não se
cairia com isso numa resposta antinómica, como quer Castoriadis?
Não, essa contradição é objetiva e ela é pois pensável na e pela contra­
dição.
O valor antes do capitalismo tem um estatuto análogo ao de um
ser qualquer no nível da sua pré-história. No nível da sua pré-história,
um ser não existe enquanto sujeito; uma pré-história é exatamente a
história do seu surgimento enquanto sujeito. Existem entretanto, no
nível da pré-história, certas determinações que exprimem mas que ao
mesmo tempo não exprimem esse ser, isto é, existem certas deter­
minações que exprimem este ser (ausente enquanto sujeito) em forma
negativa, em forma contraditória. No decorrer de sua pré-história,
deve-se dizer de um ser que ele é... tal ou qual coisa, mas tal ou qual
coisa não exprime esse ser enquanto tal, exprime antes a sua negação.
É assim que, no que se refere ao valor, se deveria dizer que antes do
capitalismo o valor é... a cristalização do tempo de trabalho em geral,
portanto que em certo sentido o valor “é” . Mas como a determinação
“cristalização do tempo de trabalho em geral” não convém ao valor,
não é a determinação “do” valor, não é a “sua” determinação senão
sendo a sua negação, o valor enquanto tal não existe. É pois bem
evidente que temos aí uma contradição que pertence ao próprio objeto,
a qual só se pode dominar pondo o objeto de forma contraditória.
E, com efeito, quando Marx se ocupa de um objeto no nível da sua
pré-história, encontra-se a contradição (ou uma expressão quase-con-
traditória). Por exemplo, quando Marx examina o momento do nasci­
mento da mercadoria, quando ele examina esse momento que, histori­
camente, é o do encontro entre duas comunidades, ele escreve: “ O
intercâmbio imediato de produtos tem, por um lado, a forma da
expressão simples do valor e, por outro lado, ainda não a tem” .75 Que o
pensamento de um objeto na sua pré-história só pode se exprimir pela
contradição é o que já se encontra precisamente em Aristóteles. É
assim que ele escreve em Da Geração e da Corrupção: “Para resumir
nosso pensamento, diremos agora que num sentido há geração a partir
de alguma coisa que não é, mas que em outro sentido a geração ocorre
a partir de alguma coisa que é. Com efeito, do que existe em potência
mas não existe em ato deve em primeiro lugar se poder dizer que existe
das duas maneiras que acabamos de indicar” . 76 De resto, é evidente­
mente à teoria aristotélica da mudança que remonta a distinção cujo
esquecimento fez correr muita tinta, distinção que conduz aos proble­
mas da dialética. Poder-se-ia mesmo dizer, embora isto corra o perigo
de contrariar as exigências do senso comum, que pelo menos uma parte
dos problemas propostos pelos althusserianos (a propósito do “ho­
mem” , por exemplo) já tem uma resposta em Aristóteles.77 E isto
permite também sair da aporia imputada a Marx por Castoriadis a
114 RUY FAUSTO

propósito do texto de Marx sobre Aristóteles: ou Marx teria tentado


explicar por que Aristóteles não vê algo que ainda não existia, demar­
che que parece dificilmente se justificar, ou Marx teria suposto que o
valor existia antes do capitalismo, o que também não parece justifi­
cável. 78 A análise que acabamos de fazer dá a resposta ao problema.
Os limites da consciência de Aristóteles são os limites do seu objeto. Ele
não chega a exprimir a substância do valor, pois esta substância,
embora estando “lá” (e é por isso que, segundo Marx, Aristóteles
chega até a exprimir a exigência de “ algo comum”), não estava ainda
constituído enquanto tal. O valor está somente pressuposto (e não
posto) — ele é e não é — tanto na realidade da cidade grega como no
pensamento de Aristóteles.79

2. Valor e capitalismo. Contradição

Mas se Castoriadis denuncia uma pretensa oscilação de Marx no


que se refere ao problema da existência do valor antes do capitalismo,
oscilação que se manifestaria por uma aporia no texto do capítulo 1 a
propósito de Aristóteles, a sua argumentação se desenvolve pela impu­
tação de uma antinomia mais geral, que recobre tanto a possibilidade
do valor na Antiguidade como a do valor no capitalismo. O valor,
impossível no pré-eapitalismo, onde faltam certas condições necessá­
rias à sua existência (condições que entretanto se encontram no capi­
talismo) é igualmente impossível no capitalismo, onde inversamente
faltam condições igualmente necessárias (que se encontram, entre­
tanto, no pré-capitalismo): “Para que a lei do valor se aplique, é
necessário que não haja capital, pois a existência do capital acarreta
(nas condições postas) uma taxa de lucro igual entre ramos — e por­
tanto o desvio entre ‘valores’ e ‘preços’ (...). Então a ‘lei do valor-
trabalho’ valeria lá onde há troca mas ainda não capital — isto é,
sob ‘a simples produção de mercadorias’? Mas a simples produção de
mercadorias não permite, sociológica e economicamente, definir um
tempo de trabalho socialmente necessário, ‘para a produção de um pro­
duto’ — nem dizer que os ‘valores de troca’ (as proporções segundo as
quais os produtos são trocados) são regidos por esses tempos. Não há, no
interior de cada ramo, o grau de concorrência entre produtores que igua­
lizaria efetivamente os tempos de trabalho exigidos para tal produto;
nem, menos ainda, tal concorrência existe entre ramos. Para que a lei
do valor-trabalho se aplique a uma economia de simples produção de
mercadorias (grosso modo, uma economia artesanal de intercâmbio),
seria preciso, por exemplo, que os sapateiros do sábado se tornassem
alfaiates segunda-feira, se eles constataram no mercado do domingo
que a ‘taxa de câmbio’ calçados/roupas é favorável aos alfaiates e
desfavorável a eles. Em resumo, quando uma parte das condições de
MARX: LOGICA E POLITICA 115

validade da ‘lei do valor’ estão dadas na forma da concorrência etc., se


está em plena produção capitalista desenvolvida que implica ipsofacto
o intercâmbio não segundo os ‘valores’, mas segundo os ‘preços de
produção’. E quando o intercâmbio ainda não está submetido às leis do
capital e da perequação da taxa de lucro, na simples produção de
mercadorias, não é possível definir um ‘tempo de trabalho socialmente
necessário’ médio, pois a mediação essencial para a dominação efetiva
de um tempo médio como esse, a ‘concorrência’ de tipo capitalista, não
está lá. Quando é que vale então a ‘lei do valor-trabalho’? Num
sentido, nunca, sob nenhum grupo de condições sociais e históricas
efetivas ou que possam ser construídas de maneira coerente. Num
outro sentido, sempre, desde sempre e no sempre (dans le toujours).
Pois ela resulta da posição dessa Substância, o Trabalho, que está lá do
início ao fim da história humana e se ‘cristaliza’ em produtos — que
podem ou não ser ‘trocados’, e trocados segundo tal ou qual modo;
esses modos concernem à Forma do valor que não se poderia confundir
com o Valor — como não se poderia confundir o corpo H 20 com o gelo,
a água ou o vapor de água’’. 80
Vê-se em que situação se encontra a teoria do valor segundo
Castoriadis. Para o pré-capitalismo, a lei do valor não pode ter validade
— Castoriadis o diz com razão — porque lhe falta o trabalho social­
mente necessário. Mas, quando se poderá falar de trabalho social­
mente necessário, isto é, nas condições do capitalismo, as trocas se
farão nãp segundo o valor, mas segundo os preços de produção. Tudo
se passa pois como se a lei do valor escapasse sempre às condições que a
tomariam “passível de ser construída (constructible) (...) de uma ma­
neira coerente” . 81 Já vimos o que se refere à primeira parte do argu­
mento. Deve-se dizer que não há valor antes do capitalismo, mas que
ao mesmo tempo o valor está “lá” , pressuposto (porque na sua pré-
história). Falta a segunda parte. O problema se coloca aqui da seguinte
maneira: com que direito se poderia falar de valor e de lei do valor no
capitalismo, se as trocas se fazem aqui não segundo o valor mas
segundo os preços de produção?
Não podemos entrar aqui evidentemente nos detalhes das dis­
cussões sobre o problema da transformação dos valores em preços de
produção. O que nos interessa é somente precisar o sentido lógico geral
da transformação, sentido, de resto, pelo qual se passa em geral muito
rapidamente (para não dizer mais).
Ao longo dos dois primeiros livros de O Capital, Marx supõe que,
se fizermos abstração das oscilações do mercado, as mercadorias se
trocam segundo os seus valores, isto é, os preços pelos quais elas são
trocadas correspondem aos seus valores. Isto deveria valer também (e a
rigor somente) para os produtos do capital. Para realizar o valor das
mercadorias produzidas e portanto para realizar a mais-valia que elas
116 RUY FAUSTO

contêm, os capitalistas devem vendê-las, e esta venda deveria ser feita,


à primeira vista, conforme à relação de sua grandeza de valor. Mas aí
se coloca o problema que aparece no início do livro III: se as merca­
dorias são vendidas segundo os seus valores, capitais idênticos não
produziriam o mesmo lucro. Ê que das duas partes de que se compõe o
capital, a parte investida em matérias-primas e auxiliares, instru­
mentos de trabalho etc., isto é, em meios de produção, e a parte inves­
tida em força de trabalho, só a última cria valor e portanto mais-
valia, já que a primeira só transmite o valor dos elementos em que é
investida. Ora, conforme a parte variável (a que é empregada na
compra da força de trabalho) de um mesmo capital global seja maior
ou menor, portanto conforme a sua composição orgânica82 (capital
constante/capital variável) seja maior ou menor, este capital produzirá
mais ou menos mais-valia, isto é, lucro. Ora, é bem razoável pensar, e é
sem dúvida o que se passa na realidade efetiva, que capitais iguais
devem produzir o mesmo lucro. Com efeito, para o capitalista indi­
vidual, pouco importa que a porção variável do seu capital seja maior
ou menor. Tudo se passa como se todas as partes do capital produzis­
sem (e igualmente) lucro.. Ora, como conciliar este dado, que é ao
mesmo tempo uma espécie de exigência da racionalidade do sistema,
com a lei do valor, a qual estabelece a necessidade da equivalência dos
tempos de trabalho no intercâmbio de mercadorias? Se as mercadorias
são trocadas segundo os seus valores, os capitais de composição mais
baixa, isto é, aqueles em que v é mais elevado, obterão um lucro propor­
cionalmente superior (para uma mesma taxa de mais-valia) porque é
somente esta parte que produz valor e portanto mais-valia, e porque se,
pela troca, se obtém o equivalente do valor das mercadorias produ­
zidas, a uma quantidade superior (quanto ao valor) de força de traba­
lho (para uma mesma taxa de mais-valia) deve corresponder uma
massa de mais-valia (portanto de lucro) mais elevada. Tudo se passa
pois — e é dessa forma que Marx coloca o problema — como se esti­
véssemos diante de um impasse. Ou se conserva a lei do valor, caso em
que a exigência de que os mesmos capitais produzam o mesmo lucro
(.supondo as mesmas condições menos a composição) não pode ser
satisfeita, ou então se conserva o princípio da igualdade do lucro, mas é
preciso então abandonar a lei do valor. E é bem nesses termos que
Marx se exprime a esse respeito: “ Se um capital que se compõe em
porcentagem de 90c + 10v, para um mesmo grau de exploração do
trabalho, produzisse tanta mais-valia ou lucro como um capital que se
compõe de 10c + 90v, seria evidente (sonnenklar) que a mais-valia e
portanto o valor em geral deveriam ter uma outra fonte totalmente
(idiferente) do trabalho, e que com isto cairia toda base racional da
economia política (Jede rationelle Grundlage der politischen Okonomie
wegfiele)”. 83 Se capitais de composição diferente, supondo em tudo
o mais as mesmas condições, produzem a mesma massa de mais-valia,
MARX: LÓGICA E POLITICA 117

“o valor e a mais-valia deveriam ser coisa diferente (etwas andres) do


trabalho cristalizado” . 84
Ora, ocorre que a suposição — no que se refere ao lucro, mas até
aqui o lucro é considerado como quantitativamente igual à mais-valia
— que acarretaria conseqüências tão importunas para a teoria deve ser
assumida: “(•••) não há dúvida alguma de que na realidade efetiva,
se se fizer abstração de diferenças inessenciais, acidentais e que se
compensam umas às outras, a diversidade das taxas médias de lucro
para os diferentes ramos da indústria não existe nem poderia existir
sem suprimir todo o sistema da produção capitalista” . 85 De onde se
deveria concluir: “Parece pois que a teoria do valor é aqui incompatível
com o movimento real-efetivo, incompatível com os fenômenos fatuais
da produção, e que se deve em conseqüência renunciar de uma maneira
geral (überhaupt) à compreensão (begreifen) desses últimos” .86
Assim fica-se diante do que se apresenta como uma aporia.
Deve-se manter a lei da igualdade dos lucros, com o que se aban­
donaria a lei do valor e com ela “toda base racional da economia
política” , ou, pelo contrário, se deve conservar a lei do valor, caso em
que, aparentemente, não se teria outra alternativa se não a de recusar a
igualdade dos lucros para capitais de mesma grandeza? Deve-se aban­
donar a teoria do valor — é, sem dúvida, o que se pergunta Marx — e
“renunciar à compreensão dos fenômenos” ? Ou se deve recusar os
fenômenos (se as coisas são assim, tanto pior para as coisas...) para
guardar a teoria do valor? Marx não poderia acentuar mais a gravidade
da parada.
Ora, esse dilema a economia política já havia encontrado. E
diante dele, poderíamos dizer (mesmo se uma dessas respostas consiste
a rigor em suprimi-lo) que ela havia seguido ou o primeiro, ou o
segundo caminho.
O primeiro caminho, que poderíamos também caracterizar como
o que guarda o fundamento para sacrificar o fenômeno, como aquele
que tenta guardar as duas teses opostas sem tomar consciência do seu
caráter contraditório, é representado pelos clássicos Smith e Ricardo.87
A propósito de Smith: “A observação da concorrência — dos fenô­
menos da produção — mostra que capitais de mesma grandeza pro­
duzem em média (on average) o mesmo lucro, ou que, dada a taxa
média de lucro (average rate o f profit) (e taxa média de lucro não
significa mais do que isto), a massa do lucro depende da grandeza do
capital investido./ A. Smith registra esse fato (fact). Este não lhe criava
nenhum escrúpulo de consciência no que se refere à sua conexão com a
teoria do valor que ele estabelecera, e tanto menos porque ao lado da
sua teoria por assim dizer esotérica ele havia proposto outras (teorias)
diferentes e poderia se lembrar, à vontade, ora de uma ora de outra” .88
A propósito de Ricardo: “(...) Ricardo foi o primeiro a chamar a
atenção (sobre o fato de) que capitais de mesma grandeza não são
118 RUY FAUSTO

absolutamente capitais com a mesma composição orgânica. Ele tomou


essa diferença de composição tal como a encontrou transmitida por
A. Smith — capital circulante e capital fixo (circulated and fixed capi­
tal) —, portanto só as diferenças que resultam do processo de circu­
lação./ Ele não exprime de forma alguma de um modo direto que, se
capitais de composição orgânica desigual, que portanto põem em movi­
mento massas desiguais de trabalho imediato (o/ imediate labour)
produzem mercadorias de mesmo valor e a mesma mais-valia (sur-
plus-labour) (que ele identifica com o lucro) (isto) contradiz prima facie
a lei do valor. Pelo contrário, ele se põe a pesquisar o valor com a
pressuposição do capital e de uma taxa de lucro geral. Identifica desde
o início preços de custo (Kostenpreise) e valores e não vê que desde o
início esta suposição contradiz prima facie a lei do valor” .89 E ainda:
“(...) na realidade, a maneira pela qual Ricardo conduz a sua pesquisa
é a seguinte: ele supõe uma taxa geral de lucro ou um lucro médio da
mesma grandeza para diferentes investimentos de capital da mesma
grandeza ou para diferentes esferas da produção em que são empre­
gados capitais da mesma grandeza — ou o que vem a ser o mesmo (ele
supõe um) lucro em relação com a grandeza dos capitais empregados
nas diferentes esferas da produção. Em lugar de pressupor essa taxa
geral de lucro, Ricardo deveria, antes, examinar em que medida a
própria existência (Existenz) dela corresponde à determinação do valor
pelo tempo de trabalho, e teria constatado que, longe de corresponder
a esta última, ela a contradiz prima facie, e que a sua existência deve
pois ser desenvolvida somente por meio de uma série de elos inter­
mediários, desenvolvimento (que é) bem diferente de uma simples
subsunção à lei do valor. Ao fazer isto, ele teria obtido, tudo somado,
uma compreensão bem diversa da natureza do valor e não o teria
identificado diretamente com a mais-valia” .90
A direção oposta, pela qual enveredou também a economia polí­
tica, é a daqueles que indicam a contradição mas querem expulsá-la —■
e isto admitindo o fenômeno e negando o fundamento. (Pode-se opor
estes últimos aos clássicos, ou dizendo que eles negam, abstratamente,
a contradição, enquanto que os clássicos a admitem, abstratamente
também, isto é, eles a sofrem sem tomar consciência dela; seja dizendo
que eles guardam o fenômeno e sacrificam a essência, enquanto que os
clássicos, num sentido pelo menos, guardam a essência sacrificando o
fenômeno.) Ê a direção de Malthus e Torrens. Para expulsar a contra­
dição entre o fenômeno (a igualdade dos lucros para capitais da mesma
grandeza) quaisquer que sejam a composição e a essência (valor) que
deveriam fundá-lo, eles renunciam à teoria do valor e a toda fundação:
“Por um lado a origem da mais-valia, (e por outro) a maneira pela qual
Ricardo concebe a igualização dos preços de custo91 nas diferentes
esferas da utilização do capital enquanto modificação da própria lei do
valor (bem como) a confusão (que ele faz) freqüente(mente) entre o
MARX: LÓGICA E POLITICA 119

lucro e a mais-valia são (os pontos) da oposição (Gegensatz) de Mal-


thus. Malthus não desenreda essas contradições e quiproquós mas os
aceita de Ricardo, para, apoiado nessa confusão, derrubar a lei funda­
mental do valor de Ricardo, e extrair conseqüências agradáveis aos
seus protetores (protectors).92 (...). ” Ricardo pressente a diferença entre
valores e preços de custo (Kostpreisen) 93 e exprime a contradição para
determinados casos, ainda que como exceções à lei segundo a qual
capitais de composição orgânica desigual (...) produzem a mais-valia
(surplus values) (...) (...)./ Ora, como vimos, utiliza isto para negar a
lei do valor de Ricardo./ Torrens parte, logo no início do seu escrito,
desse achado de Ricardo; de nenhum modo para resolver o problema,
mas para expressar (ausprechen) o “ fenômeno” como a lei do fenô­
meno. “(...) Capitais iguais ou, em outros termos, quantidades iguais
de trabalho acumulado porão em movimento freqüentemente quanti­
dades diferentes de trabalho imediato', mas isso não altera em nada a
coisa” . 94 “O mérito nessa frase não consiste em que Torrens registre
de novo simplesmente o fenômeno (Erscheinung), sem explicá-lo, mas
que ele (...) determine a diferença como sendo a de que capitais iguais
põem em movimento massas diferentes de trabalho vivo. (...) (...) O
mérito de Torrens é assim o de ter se exprimido desse modo (dass er
dieser Ausdruck hat). O que é que ele conclui disto? Que aqui, na
produção capitalista, tem lugar uma interversão (Umschlag) da lei do
valor. Isto é, que a lei do valor que é abstraída da produção capitalista
contradiz os seus fenômenos.95 E o que ele põe no lugar (dela)?
Absolutamente nada, além da expressão verbal grosseira, não pensada
do fenômeno (rohen gedankenlosen sprachlichen Ausdruck des Phä­
nomens), que se trata de explicar” . 96
Citamos extensamente os textos das Teorias... para mostrar como
encontramos a antinomia, exposta na história da economia política. As
duas teses opostas estão representadas, uma pela economia clássica e a
outra pelos seus críticos que não são ainda, ou não são inteiramente
ainda, críticos vulgares. A maneira pela qual Marx vai resolver esta
antinomia corresponde, no plano da crítica da economia política, à so­
lução dada por Hegel às antinomias da tradição filosófica.
A resposta de Marx pode ser expressa, por um lado, como sendo
aquela que conserva tanto a essência como o fenômeno, em oposição
àqueles que conservam ou a essência (Smith, Ricardo), ou o fenômeno
(Malthus, Torrens); por outro lado, e mais profundamente, como
aquela que consiste em pôr a contradição, em oposição àqueles que ou
a sofrem sem tomar consciência dela (Smith, Ricardo), ou então a
recusam (Malthus, Torrens). Marx se instala na contradição. A contra­
dição em sentido vulgar é aqui “suprimida” e não negada. Porque é a
contradição, que se tomou contradição posta, que “abre” o caminho
que vai da essência ao fenômeno. Mas por isto mesmo, seria insu­
ficiente dizer simplesmente que a resposta franqueia o caminho que
120 RUY FAUSTO

conduz da essência ao fenômeno; correríamos o risco de interpretar


essa resposta de uma maneira clássica. Sendo o caminho da essência à
aparência, do simples ao complexo, ainda aqui um caminho contra­
ditório, ele se abre fechando-se. O que significa: se a solução do
problema reside, como se sabe, no conceito de preço de produção — as
mercadorias são vendidas não segundo os seus valores (c + v + pl),
mas segundo os seus preços de produção (c + v) ( = preço de custo) +
lucro médio, estabelecendo uma partilha do conjunto da mais-valia
segundo a grandeza dos capitais, é preciso acentuar o que existe de
escandaloso nesta resposta, exatamente aquilo de que Engels procu­
rava fugir. Com efeito, se o fenômeno é um nível97 do real, e é neces­
sário consjderá-lo assim, a lei do valor só é conservada ao preço da
negação. O valor é negado no nível do fenômeno. E, na medida em
que, como vimos, não se pode dizer que a lei do valor tenha chegado a
existir antes do capitalismo, se deverá concluir que é só quando o valor
não é mais que o valor é, ou que o valor só é quando ele não é. E acres­
centando esse resultado ao do primeiro parágrafo (“valor” e pré-capi-
talismo) diremos: se enquanto o valor não é (pré-capitalismo), ele de
certo modo é, ele não será plenamente (capitalismo) se não quando de
certo modo ele não será (existirá) mais. E, se se duvidar ainda do fato
de que Marx tem consciência do caráter contraditório da sua resposta
e, mais do que isto, de que ele tem consciência de que a posição da
contradição constitui a originalidade de sua resposta diante da econo­
mia política, citemos um último texto. No parágrafo 1 do capítulo 21
do livro I, parágrafo cujo título “Interversão das leis de apropriação da
produção de mercadorias em leis da apropriação capitalista” , já diz
muito sobre o método de M arx,98 ele escreve a propósito do problema
da passagem da circulação simples de mercadorias à produção capita­
lista: “Dizer que a interposição do trabalho assalariado falseia (fãlscht)
a produção de mercadorias quer dizer que, se a produção de merca­
dorias quiser se manter não falseada (unfálscht), ela não pode se
desenvolver” . 99 Texto que é preciso ler, de acordo com o conjunto do
capítulo que descreve uma interversão (Umschlag), sem atenuar o seu
sentido: é só quando as leis da produção das mercadorias são “falsea­
das” (isto é, são negadas) que elas são plenamente. Que pensar, nessas
condições, de uma crítica que consiste em descobrir uma contradição
nesse movimento?

Conclusão
Vemos assim que, para os dois níveis em que se coloca o pro­
blema do espaço histórico do valor, não é recuando diante dos argu­
mentos críticos da lógica da identidade mas, pelo contrário, radicali­
zando (objetivando) esses argumentos até que eles se voltem contra a
lógica da identidade que se encontra uma saída. Do mesmo modo, para
MARX: LÓGICA E POLÍTICA 121

a questão da “ metafísica” de Marx tratada nas primeiras partes, vimos


que não é submetendo o discurso de O Capital às exigências do sentido
comum mas, pelo contrário, radicalizando (objetivando) o caráter
“metafísico” desse discurso até que ele questione o sentido comum que
se obtém a resposta.
O mérito de Castoriadis — além do fato, mas é uma conseqüên­
cia, de ter compreendido o peso objetivo de que estão investidos os
conceitos de Marx — é o de ter desdobrado, e para os dois níveis em
que o problema se propõe, e ainda que na forma subjetiva da antino­
mia, as contradições que contém o discurso de O Capital — coisa de
que, se deve dizer, a maioria dos marxistas é incapaz. Dir-se-ia que a
sua crítica realiza o trabalho importante de reconstituir os fios de que
se tece a contradição em Marx, o que significa — resultado importante,
a despeito dele — mostrar a irredutibilidade do discurso de Marx a
toda lógica da identidade. Até ai, Castoriadis vai muito mais longe do
que os marxistas que através de soluções de emergencia (ou pelo silên­
cio, o esquecimento meio consciente meio inconsciente etc.) procu­
ram ocultar a sua perplexidade diante das dificuldades que levantam
tanto o livro I como o livro III de O Capital. Mas ele se detém na
antinomia.100 Ele não vê onde o movimento de oposto a oposto, o mau
movimento infinito de oposto a oposto poderia encontrar um ponto de
parada. Ou, o que vem a dar no mesmo, como esse ponto é a contra­
dição: diante da alternativa entre conservar a identidade como “cri­
tério” fazendo com que as contradições apareçam como uma má
“antinómica” , e objetivar a “antinómica em dialética” pondo em
cheque o ponto de vista fixo da identidade, ele prefere seguir o primeiro
caminho. Se em lugar de questionar a “ antinómica” de Marx, ba-
seando-se na lógica tradicional, que ele utiliza ingenuamente como leis
da razão imediatamente evidentes, ele tivesse duvidado um momento
da validade dessa lógica e tivesse suposto que um pensamento que
aparecia então como dialético pode ser rigoroso não ainda que contra­
ditório mas porque contraditório, Castoriadis teria atingido o objetivo e
“ acabado” a sua crítica. Mas ele não foi até aí. E os seus limites são em
última instância os dos althusserianos: os althusserianos — que querem
“ salvar” Marx — subjetivizam os conceitos de O Capital, para poder
assim expulsar a contradição', Castoriadis, que quer “ derrubar” Marx,
objetiviza (com razão) os conceitos, para descobrir lá a contradição.
O horror da contradição lhes é, pois, comum; assim como — vimos —
eles se encontram na (falsa) leitura do parágrafo 4 do capítulo 1 sobre o
fetichismo,101 separando determinação e posição. E se detendo diante
do problema que é ao mesmo tempo o mais fácil (porque a resposta já
está “lá”) e o mais difícil (porque ela não parece, absolutamente, uma
resposta), Castoriadis faz com que as antinomias se lhe sobrevenham.
É ele o pensador “das” antinomias. É a sua leitura que oscila (diante
do objeto), não o próprio objeto. Ele segue assim em sentido inverso —
122 RUY FAUSTO

volta clássica que se conhece bem desde História e Consciência de


Classe — o caminho que conduz de Kant a Hegel. A crítica da dialética
desemboca na dialética transcendental.
E para que não haja. engano sobre o sentido da nossa crítica,
precisemos que não se trata absolutamente de dizer que a dialética é a
última palavra ou que ela está acima de toda crítica. O que queremos
dizer é simplesmente que toda crítica de O Capital que não toma a sério
a dialética como discurso da contradição só pode conduzir a urna
regressão. É esta regressão, esta volta aquém de Marx que está em
questão, não o projeto de ir além, o qual, pelo contrário, é a tarefa de
todos nós. (Caso contrário, essa “defesa” de Marx, como seria o caso a
propósito de qualquer outro pensador, só poderia ser urna demarche
reacionária.) Para satisfazer as condições que poderiam validar a sua
crítica, Castoriadis deveria ter dito: Marx propõe a contradição como
solução; entretanto, esta solução não é boa por tais ou tais razões.
Nesse caso, poder-se-ia dizer pelo menos que a sua crítica partia de
onde se deveria partir, que ela visava bem o seu objeto. Ora, não é isto
o que ele fez. Ele denunciou “ingenuamente” as oscilações de Marx (o
que —■insistimos — revela tanto o nível de compreensão da lógica de
O Capital, que ele alcançou, como os limites dessa compreensão). E é
só se ele tivesse feito isto que a sua postura crítica, a de uma espécie de
vencedor (por exemplo, quando ele se refere a “esta phronesis que
faltará a Hegel e ao seu principal herdeiro”) 102 poderia ter um início de
justificação.103
E, para concluir, digamos que as insuficiências que se encontram
em Castoriadis — provavelmente o melhor crítico de Marx — as reen­
contramos em última análise, mas com muito menos talento, em todos
os críticos atuais do marxismo na França. Eles não têm uma compreen­
são suficientemente profunda da dialética. Ou, se se quiser, eles não
levam a sério a idéia de dialética. Sua leitura de Marx se faz geralmente
seja com uma “grille” althusseriana, seja com uma “grille” vulgar ou
eclética qualquer, mas é sempre ou um Marx continuísta, finalista, ou
então sistemático no pior sentido da palavra que aparece — um Marx,
insistimos, que não é reconhecível por todos aqueles que têm uma rela­
ção que não seja escolar com a dialética. Conduzidas nesses termos,
essas leituras só podem conduzir a críticas que focalizam mal o seu
objeto — é o mínimo que se poderia dizer — e que, em conseqüência,
conduzem a superações bem derrisórias.
MARX: LÓGICA E POLITICA 123

NOTAS

(1) Textures, n? 12-13, 1975, 7? ano, nova série, Braine-l’Alleud (Bélgica) (repu­
blicado em Les Carrefours du Labyrinthe, París, Seuil, 1978). Cremos nílo ser necessário
insistir sobre o interesse dos trabalhos de Castoriadis. Entre os críticos de Marx, Casto­
riadis e seus amigos são a nosso ver os mais interessantes. No que se refere a O Capital,
&crítica de Castoriadis tem, entre outros, o interesse de resumir de uma forma bastante
rigorosa a maioria dos argumentos utilizados em geral contra O Capital, desde há muito.
Só trataremos aqui de um texto de Castoriadis (e mesmo de menos do que isto: de uma
parte de um texto), mas trata-se de um texto que oferece um interesse particular.
Além do texto de Castoriadis e de algumas referências a um texto antigo de
Claude Lefort (que apareceu nos Cahiers Internationaux de Sociologie nos anos cin­
qüenta (republicado em Les Formes de VHistoire)), nós nos ocuparemos um pouco, mas
só um pouco, dos althusserianos. Veremos no final em que medida a crítica do althus-
sçrismo pode ser útil para a crítica de Castoriadis.
(2) Os althusserianos escapam (aqui) da “generalização”, mas recusam ao mesmo
tempo a abstração real: para eles, o trabalho abstrato é sem dúvida algo bem diverso da
generalidade trabalho, ele tem a unidade do conceito; mas esta unidade« a redução que
ela pressupõe s6 ocorreriam no nível do pensamento (o conceito é entendido à maneira
subjetiva da tradição reflexiva). Razão pela qual pode-se dizer que os althusserianos
substituem um subjetivismo psicologizante (ou um naturalismo) por um subjetivismo
logicista do conceito, no sentido reflexivo do termo.
(3) Poderíamos, com efeito, fazer mais ou menos a mesma crítica a propósito do
que encontramos aí no que se refere à questão do espaço histórico ocupado pelo trabalho
abstrato e o valor, problema que será tratado na terceira secção deste texto.
(4) Nota sobre as leituras vulgares do trabalho abstrato. As leituras vulgares
interpretavam a abstração que constitui o trabalho abstrato e o valor como se se tratasse
de uma simples generalização: nos trabalhos (concretos) do carpinteiro, do construtor,
do fiandeiro etc. far-se-ia abstração do que é próprio a cada um deles, da particularidade
de cada trabalho, e se obteria assim, generalizando os resíduos, a noção de trabalho
abstrato. Esta interpretação nos condena à alternativa: ou o trabalho abstrato não é
senão uma construção subjetiva (só haveria no real diferentes trabalhos específicos:
constrói-se pelo pensamento, através do procedimento clássico da generalização, a noção
de trabalho abstrato, de trabalho em geral); ou esta generalidade é real, mas nesse caso
— se o trabalho abstrato não é senão uma simples generalidade, obtida ignorando as
particularidades dos trabalhos — esta realidade só poderia ser constituída pelas carac­
terísticas fisiológicas comuns a todos os trabalhos. Os textos de Marx (voltaremos a eles)
em que se trata da questão do gasto de músculos, de nervos etc. não nos reconduzem a
isto, apesar das aparências. Na realidade, o trabalho abstrato não é nem uma construção
do espírito, embora o espírito a reproduza, nem uma generalidade fisiológica: é o movi­
mento da abstração que se opera no próprio real. A produção de mercadorias opera, ela
própria, a abstração: ela — e não nós, que nos limitamos a reproduzi-la — opera a
redução (e o termo “redução” ao qual Marx volta já é sintomático) do concreto ao
abstrato. A esse respeito, verem geral os marxistas (ou dialéticos) de língua alemã, come­
çando pelos clássicos: Lukács, Adorno, E entre os textos recentes em que se trata da abs­
tração real, além de Colletti, citado freqüentemente, mas que só dá uma visão muito geral
do problema, ver J. A. Giannotti, sobretudo a introdução das Origens da Dialética do
Trabalho (Origines de la Dialectique du Travail, Paris, Aubier, 1971). Vão também no
sentido do que chamamos de leituras vulgares — esse ponto merece talvez uma atenção
especial, pois se continua a tropeçar nisto —, os que, na linha de Bòhm-Bawerk,
duvidam da legitimidade do movimento do § 1 do capítulo 1 do livro I de O Capital, pelo
qual se passa do valor de troca ao valor. ( Werke, 23, Das Kapital I, op. cit., pp. 51-52;
ver trad. franc. do cap. 1 do livro I de O Capital em Paul-Dominique Dognin, Les "Sen-
tiers Escarpes" de Karl Marx, Paris, Êd. du Cerf, 1977, tomo I, pp. 175-176) Bohm-
124 RUY FAUSTO

Bawerk, e, depois dele, vários outros criticam Marx por ter confundido “a abstração do
gênero e a abstração das formas específicas nas quais o gênero se manifesta" (E. von
Böhm-Bawerk, Karl Marx and the Close ofhis System, Ed. P. Sweezy — com a resposta
de Hilferding e um artigo de Bortkiewics —, A. Kelly, Clifton, N. J., reed. 1975 (1949),
p. 74), isto é, não ter visto que se poderia igualmente passar ao valor de uso em geral
(o que significaria fundar o valor de troca no valor de uso). “As formas particulares sob
as quais os valores de uso das mercadorias podem aparecer — que elas sirvam como
alimento, como abrigo, como roupa, isto sem dúvida é posto de lado, mas o valor de uso
enquanto tal da mercadoria nunca é posto de lado.” (Ibidem) Tal argumento só pode ser
empregado por aqueles que lêem o movimento de que se trata no quadro (“grille")
da passagem de uma espécie a um gênero, isto é, por aqueles que não compreen­
deram que mais do que uma generalização (voltaremos a isto) trata-se aí de uma
redução, de uma mudança de registro. A passagem do valor de uso específico ao
valor de uso em geral generaliza simplesmente, mas não reduz o universo dos valores de
uso, o que se trata de fazer aqui. (A resposta de Hilferding a Böhm-Bawerk — diga-se de
passagem — é bem insuficiente. Por não ter uma concepção bem rigorosa da natureza da
abstração que constitui o trabalho abstrato, Hilferding desliza freqüentemente na idéia
de simples generalização (ver Böhm-Bawerk’s Criticism o f Marx, no volume citado,
editado por Sweezy, por exemplo, p. 131) — e como conceber o valor como a simples
generalidade dos valores de uso é algo imediatamente e grosseiramente falso — Hilfer­
ding tenta separar o tipo de abstração do valor da que se encontra no trabalho abstrato.
(Ver ibidem) Na realidade, quando, pelo contrário, Böhm-Bawerk tenta aproximar de
direito (pois ele supõe que Marx comete o erro de não o haver feito) a abstração do
trabalho abstrato e a do valor, ele paradoxalmente tem razão: as duas abstrações são
análogas, mas por uma razão oposta à que ele dá: tanto num caso como no outro,
trata-se de algo mais que de uma simples generalização. A última versão do argumento
de Böhm-Bawerk, que remonta de resto a uma obra anterior do mesmo Böhm-Bawerk,
encontramo-la no volume II, “Notes explicatives et critiques”, de Les "Sentiers Escarpes ”
de Karl Marx de P.-D. Dognin, op. cit., II, p. 21. Em apoio à sua tese, Dognin cita um
texto de 1903 de G. B. Shaw.) Como afirma Hegel, “é da maior importância, tanto para
o conhecimento como também para o nosso comportamento prático, que aquilo que é
simplesmente comum (das bloss Gemeinschaftliche) não seja confundido com o que é
verdadeiramente geral, universal (mit dem wahrhaft Allgemeinen, dem Universellen)”.
(Hegel, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften in Grundrisse (1830), Erster
Teil, Die Wissenschaft der Logik..., § 163, Zusatz I, in Werke, 8, Berlim, Suhrkamp,
p. 312; Encyclopédie des Sciences Philosophiques, I, La Science de la Logique, ed.
Bernard Bourgeois, Paris, Vrin, 1970, § 163, adition I, p. 592)
(5) Werke, 13, Zur Kritik der politischen Ökonomie, op. cit., p. 18; Contribution
à la Critique de l'Économie Politique, trad. franc, de M. Husson e G. Badia, Paris,
Éd. Sociales, 1957, p. 10. Esse texto é citado por J. A. Giannotti, op. cit., p. 16,
e também por Helmut Reichelt, Zur logischen Struktur des Kapitalbegriffs bei Karl
Marx, Frankfurt am Main, Europäischen Verlagsanstalt, 1973 (1? ed., 1970), p. 153.
(6) Os termos alemães allgemein, Allgemeinheit são traduzidos geralmente, em
seu uso filosófico, hegeliano em particular, por “universal”, “universalidade”. Mas
eles significam também “geral” , “generalidade”. Como vimos acima, Hegel emprega
também Universell, para designar o “verdadeiro universal”, em oposição a gemeinschaft­
lich , o que é simplesmente comum. A expressão “as abstrações objetivas põem a universa­
lidade” de certo modo faz um curto-circuito, pois quer dizer “nas abstrações objetivas a
generalidade é posta e enquanto tal se torna universalidade”. Voltaremos a isto.
(7) Marx deixou três versões diferentes do capítulo 1 (ou pelo menos de partes do
capítulo 1 de O Capital): a da primeira edição (1867), o apêndice da primeira edição
sobre a forma do valor (que Marx acrescentou após uma troca de cartas com Engels,
quando o livro I estava no prelo), e o texto definitivo, o que dá Engels na quarta
edição (1890) e que, para o capítulo 1, segundo os prefácios de Engels à terceira e à
quarta edições, corresponde, com poucas diferenças, à segunda e à terceira edições.
MARX: LÖGICA E POLITICA 125

Se se acrescentar a versão francesa feita por J. Roy e revista por Marx, mas que, como
se sabe, difere bastante do original, tem-se quatro versões. Se se acrescentar ainda o
capítulo 1 da Contribuição ó Crítica da Economia Política, que é um texto paralelo,
e também o fragmento sobre o valor que se encontra nos Grundrisse (op. cit., p. 763;
Manuscrits de 1857-1858 ("Grundrisse") II, op. cit., p. 375), teríamos seis versões dife­
rentes. Essas diferentes versões são essencialmente complementares: se se trabalhar
sobre o conjunto desses textos, é possível resolver a maioria dos problemas que eles
levantam. O texto da primeira edição e o do apêndice, assim como o texto definitivo
(do capítulo 1) foram traduzidos e apresentados numa edição bilíngüe (salvo para o
último) por Paul-Dominique Dognin, Les "Senders Escarpés" de Karl Marx, op. cit.,
tomo I. O tomo II contém “notas explicativas e críticas” às quais, a despeito da erudição
do autor, faríamos reservas. (Ver nota 4).
(8) Marx, “Ware und Geld” (Das Kapital, I, Erste Aufgabe, 1867, 1. Buch,
Kapitel 1) in Marx-Engels, Studienausgabe, II, "Politische Ökonomie”, Frankfurt am
Main, Fischer, 1966, p. 234; Paul-Dominique Dognin, Les "Sentiers Escarpés" de Karl
Marx, I, op. cit., p. 73. Grifo nosso.
(9) Castoriadis: “(...) a duas páginas de distância, o trabalho (abstrato) é, alter­
nadamente, ‘gasto produtivo do cérebro, dos músculos...’ etc., ou ‘gasto, em sentido
fisiológico, de força humana, e, nessa condição (à ce titre) de trabalho humano igual,
forma o Valor das mercadorias’ e ‘unidade social... (que) só se pode manifestar nas
transações sociais'. Esta abstração é pois ‘fisiológica’ ou ‘social’ — ou essa distinção não
cabe? Os nervos e. os músculos são ‘forma de aparição’ do social — ou o social é
‘expressão’ e ‘apresentação’ dos nervos e dos músculos?”. (Castoriadis, art. cit., pp.
16-19; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 263, grifado por Castoriadis) Encontra-
se o mesmo motivo critico no artigo sobre a alienação como conceito sociológico publi­
cado por Claude Lefort, nos anos cinqüenta, nos Cahiers Intemationaux de Sociologie
(e retomado em Les Formes de l'Histoire)\ “É que Marx cede, nesse caso, a uma inter­
pretação naturalista do trabalho, que vicia a sua descrição do trabalho social. Essa
interpretação se dá a perceber em duas ocasiões, pelo menos; por um lado quando ele
fundamenta a determinação do valor sobre o gasto do cérebro humano, por outro lado
quando ele confunde a forma particular do trabalho e a sua forma natural: nessa
perspectiva, o modo de trabalho capitalista só pode com efeito ocultar o real ou aparecer
como ‘sobrenatural’.” (Claude Lefort, “L’Aliénation comme Concept Sociologique”,
C. I. S., vol. XVIII, cahier double, nouvelle série, 2ème. année, Paris, P. U. F.,
1955, p. 48, grifo nosso, republicado em Les formes de I'Histoire, essais d ’anthropologie
politique, Paris, Gallimard, 1978; voltaremos ao texto também sobre a última parte do
argumento.)
(10) Ver tradução francesa de M. Husson e G. Badia, op. cit., p. 10. Tanto essa
tradução como a de Maximilien Rubel e L. Evrard (Critique de 1’Économie Politique, in
Marx, Oeuvres, Economie, I, op. cit., p. 281) traduzem tanto Subjekte como Individuen
por “indivíduo”, o que é incorreto: enfraquece-se o texto, se a condição de sujeito não for
posta — a posição está no texto de Marx — no nível da expressão.
(11) Aqui não fizemos mais do que esboçar a análise da relação entre qualidade
e quantidade do valor, a qual remete sobretudo a capítulos sobre a quantidade e a me­
dida da lógica do ser de Hegel.
(12) A determinidade da simplicidade do trabalho, segundo um texto das Teo­
rias... é uma determinidade da qualidade. Ela permite entretanto pensar o trabalho
complexo como potência do trabalho simples, e teoricamente, estabelecer uma relação
quantitativa entre os dois. Mas diferentemente da relação entre um trabalho que se
efetua segundo o tempo de trabalho socialmente necessário e um trabalho cuja efeti­
vação vai além ou fica aquém dele, essa relação, embora permita, ou deva permitir,
como o último, o estabelecimento de uma relação quantitativa entre os dois termos
(o trabalho complexo potência n do simples) se estabelece entre dois termos qualita­
tivamente diferentes (“simples”', “complexo”), o que não é o caso (se nos ativermos ao
conceito) para dois trabalhos (ambos simples) de igual rendimento. Sobre essa relação
126 RUY FAUSTO

entre quantidade e qualidade, ver Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit.,
p. 133; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 160.
(13) “Ware und Geld” (Das Kapital, Erste Auflage, 1867, 1. Buch, Kapitei 1), in
Studienausgabe, II, op. cit. , p. 226; Dognin, Les "Sentiers Escarpés" de Karl Marx, I,
op. cit., p. 51.
(14) Castoriadis escreve a esse respeito: “Faiar de tempo de trabalho socialmente
necessário implica que se sabe o que significa ‘socialmente necessário’. Ora, entre
as múltiplas significações dessa expressão nenhuma se sustenta, tratando-se da economia
capitalista. Pode ser considerado como ‘socialmente necessário’ o tempo exigido pelo
(trabalho efetuado na) empresa mais eficaz (...) Pode ser considerado, pelo con­
trário, como ‘socialmente necessário’ o tempo exigido pela empresa menos eficaz
(...). Finalmente, pode ser considerado como ‘socialmente necessário’ o tempo médio
consagrado à produção do produto levando em conta todas as empresas do ramo consi­
derado. A primeira interpretação pode ser eliminada, pois ela cónduz a resultados
irreais e incoerentes. (...) a segunda interpretação (...) faz com que não subsista nada
da ‘lei do valor’ e conduz em linha reta à concepção neoclássica do lucro como “quase-
renda’ diferencial(...). Portanto, para ter uma ‘teoria do valor-trabalho’, sobra somente
a terceira interpretação: o tempo ‘socialmente necessário' é o tempo médio. Mas esse
tempo médio é uma abstração vazia, simples resultado de uma operação aritmética
fictícia que não tem nenhuma efetividade e nenhuma eficácia no funcionamento real da
economia: não existe nenhuma razão real ou lógica para que o valor de um produto seja
determinado pelo resultado de uma divisão que ninguém fez nem poderia fazer. Para
que esse fantasma adquira um pouco de carne, é necessário supor que as empresas que
trabalham nas condições ‘médias’ constituem a maioria esmagadora das empresas do
ramo considerado. Isto não é e nunca foi o que ocorreu na realidade do capitalismo”.
(Castoriadis, art. cit., pp. 10-11; Les Carrefours du Labyrinthe, pp. 256-257) Sem
pretender entrar no conteúdo econômico do problema, observemos que para Marx, se o
trabalho socialmente necessário não corresponde nem ao tempo máximo (o da empresa
menos eficaz) nem ao tempo mínimo (o da empresa mais eficaz), ele também não
corresponde, necessariamente, ao tempo médio exigido para a produção da mercadoria
(considerando o conjunto das empresas do ramo em questão, pondere-se ou não se­
gundo a quantidade das unidades produzidas). O trabalho socialmente necessário cor­
responde ao tempo que se impõe socialmente determinando o valor — isto é, em
primeira instância, os preços. (Isto parece uma tautologia, mas na realidade não é;
isto quer dizer: há um certo tempo social que aparece de forma mais ou menos modi­
ficada nos preços das mercadorias.) O tempo de produção de certas empresas ou
grupos de empresas se situam em geral num nível intermediário de produtividade,
eles não produzem necessariamente conforme o nível médio. Na realidade, as empresas
que não produzem segundo o tempo de trabalho socialmente necessário — que elas
produzam consumindo mais tempo ou menos tempo — são excluídas dessa determi­
nação (objetiva) do valor (o que só no caso de uma distribuição perfeitamente regular
nos conduziria a médias), e é no interior das empresas dominantes que se estabelecem
as médias que são portanto uma determinação segunda. (A fortiori, esta é a função das
médias para o caso do trabalho simples.) Quanto à idéia de que as empresas que pro­
duzem segundo o tempo de trabalho socialmente necessário devem constituir “a maio­
ria esmagadora”, ela decorre da interpretação em termos de simples médias. A corre­
ção não é secundária porque ela questiona o pretenso papel das médias em Marx.
Através das análises da última parte, veremos que o simples jogo das médias convém
mal à análise do capitalismo (e que em certo sentido, para mercados limitados, sem
dúvida, poderia mesmo convir melhor ao pré-capitalismo). Ora, se pensarmos a consti­
tuição do valor não como uma questão de médias mas como constituição de uma coisa
social objetivada por um tempo que se impõe como o tempo social, a crítica em termos
de “abstração vazia, simples resultado de uma operação aritmética fictícia (...)” ,
“resultado de uma divisão que ninguém fez nem poderia fazer”, perde, ao que parece,
muito de sua força. Sobre a questão das empresas que trabalham com uma produti-
MARX: LOGICA E POLITICA 127

vidade superior e em particular da questão da diferença entre “valor individual” e valor


(Castoriadis, art. cit., p. 10, nota 8; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 256)
observemos que Castoriadis sugere que se trata de uma espécie de deslizamento (glisse-
ment): “Certas fórmulas do livro III de O Capital ‘traem’ Marx a esse respeito (...)”.
(Ibidem) Ora, seria preciso observar sobre isto: 1) que o problema é bastante desen­
volvido no capítulo 10, original (trad, francesa capítulo 12, “A produção da mais-valia
relativa”, “a mais-valia relativa”) da quarta secção do livro I, capítulo que não se
aborda, como seria de se esperar, nas observações de Castoriadis sobre esse assunto;
2) que a diferença entre valor individual e valor (sobre essa terminologia contraditória
ver mais adiante) longe de ser um deslizamento é plenamente assumido por Marx
(ver capítulo 10, original) e desempenha um papel essencial para a sua apresentação
do movimento geral da concorrência (qualquer que seja a opinião que se possa ter sobre
esta apresentação).
(15) Castoriadis: “No mundo dos fenômenos, quase todos os trabalhos efetivos
são complexos ou qualificados (pouco importa o grau desta ‘qualificação’ ou a sua
extensão; basta, para que haja problema, que alguns trabalhos que pertençam à ‘base’
da economia o sejam). Ora, diz Marx, o trabalho complexo (ou qualificado) ‘não é
senão uma potência (potenziert) do trabalho simples (...)'. Como sabemos disto? Por
postulado metafísico e ao mesmo tempo fisiológico”. (Castoriadis, art. cit., pp. 13-14;
Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 260, grifado por Castoriadis) “Como pode­
mos operar a ‘redução’ do trabalho complexo a trabalho simples?” “A experiência
mostra, diz Marx, que essa redução se faz constantemente.” “Mas o que se faz na
experiência nunca é mais do que uma redução de fato: e ela não pode ser considerada
sem círculo vicioso, como se traduzisse uma comensurabilidade de direito, substancial/
essencial, das diversas variedades de trabalho. A redução que se faz na experiência não
é redução de todos os trabalhos a trabalho simples; ela é ‘redução’ de todos os traba­
lhos a dinheiro (ou a um outro ‘equivalente geral’ ou numerário socialmente instituído),
o que não é absolutamente a mesma coisa, o que já sabíamos sem ‘teoria do valor’,
o que ‘a teoria do valor’ deveria explicar — em vez de se basear nisso para existir como
teoria.” (Castoriadis, art. cit., pp. 14-15; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p.
261, grifado por Castoriadis)
(16) O capitalismo em sentido específico representa o momento mais elevado de
um processo que já é uma história (não uma pré-história) do capital. Mas as análises do
início de O Capital supõem precisamente um capitalismo plenamente desenvolvido,
supõem o valor, o trabalho abstrato nas condições de um capitalismo plenamente
desenvolvido, mas pondo entre parênteses a categoria do capital. Assim não há contra­
dição entre assumir aqui o capitalismo no sentido mais pleno (pregnant) e afastar do
trabalho abstrato as determinações do trabalho assalariado, como faremos mais
adiante. Ou antes, há contradição, mas é a contradição assumida pelo método de
apresentação de O Capital. Ver a esse respeito o ensaio seguinte. Historicamente, a
constituição do valor como do trabalho abstrato se faz de quantidade à qualidade:
as determinidades da qualidade só se consumam (achèvent) com o capitalismo da
grande indústria, quando se passa de um trabalho já simplificado (e já equalizado pelo
tempo) ao trabalho simples.
(17) O argumento já se encontra em Bõhm-Bawerk. Ver Bõhm-Bawerk, Karl
Marx and the Close of his System, op. cit., pp. 81-86.
(18) Para evitar confusões, lembremos que, como vimos, o problema da redução
do trabalho complexo ao trabalho simples deve ser distinguido do problema do trabalho
socialmente necessário.
(19) Voltaremos eventualmente ao problema. Os tradutores da resposta de
Hilferding a Bõhm-Bawerk dão uma indicação interessante sobre uma divergência, a
esse respeito, entre o texto que Engels dá na quarta edição de O Capital e o texto
original de Marx. Ver Hilferding, Bõhm-Bawerk Criticism of Marx, trad, de E. e C.
Paul no volume editado por Sweezy, op. cit., pp. 143-144, nota dos tradutores. A nota é
128 RUY FAUSTO

introduzida no nível da resposta de Hilferding a Böhm-Bawerk a respeito do problema


da redução.
(20) Por exemplo: “Os valores de uso são imediatamente meios de vida. Mas,
inversamente, esses meios de vida são eles próprios produtos de vida social, resultado
de um gasto de força vital humana, (são) trabalho objetivado (vergegenständlichte
Arbeit). Enquanto materialização (Materiatur) do trabalho social todas as mercadorias
são cristalização da mesma unidade”. (Werke, 13, Zur K ritik..., op. cit., p. 16, Con­
tribution à la Critique de l ’Économie Politique, op. cit., p. 8, grifado por Marx)
(21) “Portanto, no ser-aí (Dasein) da mercadoria enquanto dinheiro não se deve
somente ressaltar que no dinheiro as mercadorias se dão uma medida determinada da
sua grandeza de valor — exprimindo todas o seu valor no valor de uso da mesma mercado­
ria — mas que elas se apresentam todas como ser-aí do trabalho social, abstratamente geral
(der gesellschaftlichen, abstrakt allgemeinen Arbeit), forma na qual elas possuem todas
a mesma configuração; elas aparecem todas como a encarnação imediata do trabalho
social; e enquanto tais, elas têm todas a eficácia (alie (...) die Wirkung (...) haben)
do ser-aí (Dasein) do trabalho social, elas são imediatamente trocáveis — na propor­
ção da sua grandeza de valor contra todas as outras mercadorias (...).” (Werke, 26, 3,
Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., pp. 133-134; Théories sur la plus-value, III,
op. cit., p. 161, grifo nosso) “Na apresentação da mercadoria enquanto dinheiro não
está contido somente (o fato de) que as diferentes grandezas de valor das merca­
dorias são medidas pela apresentação do valor delas no valor de uso de uma mercadoria
exclusiva; mas ao mesmo tempo que elas se apresentam todas sob uma forma na qual
elas existem enquanto encarnação (Verkörperung) do trabalho social, e em conse­
qüência são trocáveis contra cada uma das outras mercadorias (que lhes são) tradu-
zíveis à vontade em qualquer outro valor de uso.” (Werke, 26, 3, Theorien über den
Mehrwert, 3, op. cit., p. 128; Théories sur la plus-value, III, op. cit., p. 154, grifo
nosso) “Esta transformação dos trabalhos dos indivíduos privados contidos nas merca­
dorias em trabalho social igual e, em conseqüência, em trabalho apresentável em todos
os valores de uso, trocável em todos, esse lado qualitativo da coisa, que está contido na
apresentação do valor de troca enquanto dinheiro, não é desenvolvido por Ricardo.
Esta circunstância — a necessidade de apresentar o trabalho contido nelas como traba­
lho social igual, isto é, como dinheiro — não é vista por Ricardo.” (Werke, 26, 3,
Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 128; Théories sur la plus-value, III, op.
cit., p. 155, grifo nosso) Ver também sobre esse ponto Werke, 26, 2, Theorien über den
Mehrwert, 2, op. cit., 1967, p. 505; Théories sur la plus-value, II, Paris, Éd. Sociales,
1975, p. 601. No “Materialen zur Rekonstruktion der Marxschen Werttheorie”, 2, in
Gesellschaft, Beiträge zur Marxschen Theorie, 3, H. G. Backhaus acentua com razão a
ligação entre a teoria do valor e a teoria do dinheiro, ligação que freqüentemente se
perde de vista. Ele se baseia, entre outros, em textos como este: “O valor da merca­
doria enquanto base (Grundlage) permanece importante, porque o dinheiro só pode ser
desenvolvido conceitualmente a partir desse fundamento (Fundament) e o preço se­
gundo o seu conceito geral só é em primeiro lugar o valor em forma-dinheiro (Geld­
form)". (Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 203; Oeuvres, Économie II, op. cit.,
p. 984)
(22) “A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma
forma social na qual os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro e na
qual a espécie determinada de trabalho é para eles acidental e portanto indiferente.
Aqui o trabalho se tornou não só categoria (Kategorie) mas na realidade efetiva
(Wirklichket) um meio de criar a riqueza em geral, e enquanto determinação cessou de
coincidir (verwachsen zu sein) com os indivíduos numa particularidade (in einer Beson­
derheit). Tal situação se dá (da maneira) mas desenvolvida (ist am entwickelsteh)
na forma de existência mais moderna da sociedade burguesa — os Estados Unidos.
Assim, só (erst) aqui a abstração da categoria ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho
sans phrase, o ponto de partida da economia moderna, se torna verdadeira pratica­
mente (praktisch wahr). Assim, a abstração mais simples, a que a economia moderna
MARX: LOGICA E POLITICA 129

dá (um lugar de) ponta (an die Spitze stellt) e que exprime uma relação (Beziehung)
muito antiga (uralte) e válida para todas as formas sociais, sò aparece entretanto nessa
abstração (como) praticamente verdadeira, como categoria da sociedade mais mo­
derna.” (Grundrisse, op. cit., p. 25, Einleitung) Ver “Introduction à la Critique de
l’Économie Politique” in Contribution à la Critique de l'Économie Politique, trad.
franc, de M. Husson e G. Badia, p. 168. Husson e Badia traduzem Wirklichkeit por
"réalité” simplesmente e não por "realidade efetiva". O problema que contém a frase
final, a da validade eventual das categorias em questão fora do capitalismo, será discu­
tido a partir de outros textos na secção III deste ensaio.
(23) Hegel, Encyclopédie de sciences philosophiques, t. I, La Science de la Lo­
gique, trad. Bourgeois, op. cit., § 142, p. 393.
( 24) Esses dois momentos são pois interiores a uma história e não definem a ruptu­
ra de uma pré-história a uma história. Sobre esta diferença ver a secção III deste ensaio.
(25) Não há contradição — ou antes é uma contradição assumida e justificada
— em explicitar a simplicidade do trabalho fazendo intervir o capitalismo da grande
indústria, e dizer ao mesmo tempo que o trabalho abstrato corresponde ao nível dos con­
ceitos da circulação simples. Ver a esse respeito a nota 16, e o ensaio seguinte.
(26) E ainda “(...) Quando nos fixamos no trabalho como criador de valor, não
o consideramos na sua configuração concreta enquanto condição da produção, mas
numa determinidade social que é distinta do trabalho assalariado”. ( Werke, 25, Das
¡Capital, III, op. cit., p. 831; Oeuvres, Économie II, op. cit., p. 1431).
(27) “O trabalho privado (Privatarbeit) deve assim se apresentar imediatamente
como o seu contrário (Gegenteil) como trabalho social; esse trabalho transformado
(verwandelte Arbeit) é enquanto seu contrário imediato (ihr unmittelbares Gegenteil)
trabalho abstrato geral, que portanto se apresenta também num equivalente geral.”
(Werke, 26, 3, Tkeorien über den Mejirwert, 3, op. cit., p. 133; Théories sur la Plus-
value, III, op. cit., pp. 160-161, grifado por Marx) Num outro texto Marx fala de
contrariedade e de contradição: "A autonomização do valor de troca das mercadorias
em dinheiro é ela mesma o produto do processo de troca, do desenvolvimento das
contradições ( Widerspruche) entre o valor de uso e o valor de troca contido na merca­
doria e a contradição (Widerspruch) não menos contida nela, a saber que o trabalho
determinado, particular do indivíduo privado deve se apresentar no seu contrário
(Gegenteil), trabalho igual, necessário, geral, e, nessa forma, social". (Werke, 26, 3,
Theorien über den Mehrwert, 3, p. 128; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 154,
grifo nosso) Num outro texto, Marx distingue a oposição da “contradição absoluta”
(absoluter Widerspruch) que designa a “ruptura” da oposição: “Na crise, a oposição
(Gegensatz) entre a mercadoria e a sua configuração-valor, o dinheiro, se eleva até a
contradição absoluta (bis zum absoluten Widerspruch)”. (Werke, 23, Das Kapital, I,
op. cit., p. 152, grifo nosso; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 681, mas nessa versão
que é a de Roy tem-se simplesmente "esta contradição rompe (éclate) no momento das
crises...”) Pensamos a oposição valor/valor de uso e trabalho abstrato/trabalho con­
creto em termos de contrariedade; sendo a “contradição” aqui a ruptura dessa opo­
sição.
(28) "A oposição interna (innere Gegensatz) entre valor de uso e valor envolvida
na mercadoria é, assim, apresentada através de uma oposição externa, isto é, pela rela­
ção entre duas mercadorias, na qual uma mercadoria, aquela cujo valor deve ser
expresso, só vale imediatamente como valor de uso, e a outra, pelo contrário, aquela em
que o valor é expresso, só vale imediatamente como valor de troca. A forma simples do
valor é assim a forma fenomenal simples da oposição, que ela contém, entre valor de
uso e valor.” (Werke, 23, Das Kapital, I, pp. 75-76; Dognin, Les "Sentiers Escar­
p és”..., I, op. cit., p. 75, grifado por Marx, salvo “oposição”) “A ampliação e o
aprofundamento históricos da troca desenvolvem a oposição entre valor de uso e valor
que dormita (den schlummemden Gegensatz) na natureza da mercadoria.” (Werke,
23, Das Kapital, I, op. cit., p. 102; Oeuvres, Économie I, op. cit., pp. 622-623, grifo
nosso)
130 RUY FAUSTO

(29) Os althusserianos criticaram a idéia de que há uma oposição entre valor e


valor de uso, no quadro de urna critica da idéia de contradição. Ver texto citado mais
adiante. Na primeira edição de Lire Le Capital, Macherey terminava mesmo o seu texto
se perguntando se, apesar das dificuldades de uma generalização a partir “destas
poucas páginas”, não conviria perguntar-se em que medida existe em O Capital uma
lógica da contradição. (Pierre Macherey, “A propos du processus d’exposition du Capi­
tal” , in L. Althusser, J. Rancière, P. Macherey, Lire Le Capital, I, Maspero, 1967
(1965), p. 256)
(30) Em Aristóteles a substância primeira é o indivíduo. As substâncias segun­
das, o gênero e as espécies. Como aqui e anteriormente eu cito Aristóteles, e como no
texto de Castoriadis se trata da leitura que Marx faz de Aristóteles, preciso que as
citações terão sempre como único objeto ajudar a compreender as categorias de O
Capital (inclusive no nível do discurso de Marx sobre Aristóteles), mas que não se
discutirá aqui o problema de saber se a leitura que Marx faz de Aristóteles (particu­
larmente de certo texto da Ética a Nicômaco, referidos no artigo de Castoriadis) é
rigorosa.
(31) Falamos aqui de conflito. Poderíamos empregar também otermocontradiçâo,
embora (aqui) em sentido secundário. Sobre a contradição, ver a secção III deste ensaio.
(32) Ver a citação de Verri por Marx: “O dinheiro é a mercadoria universal”.
(Verri, Meditazioni sulla economia política; Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 104,
nota 44; ver trad. Roy, 1, I, t. I, op. cit. p. 100, n. 23)
(33) Ver Althusser, “Avertissement aux lecteurs du livre I du Capital", inLe Capi­
tal, 1. I, Paris, Garnier-Flammarion, 1969, p. 22. Ver a nota 46 do ensaio anterior.
(34) Hegel, Enzyclopàdie der philosophischen Wissenschàften im Grundrisse
(1830), Erster Teil, Die Wissenschaft der Logik..., § 119, Zusatz 1, in Hegel, Werke,
op. cit., p. 246. Encyclopédie des Sciences Philosophiques, I, La Science de la Logique,
§ 119, addendum 1, trad. B. Bourgeois, op. cit., p. 554, grifado no texto.
(35) Ver também a esse respeito, entre outros, o texto freqüentemente citado de
Schumpeter sobre a relação entre Marx e Ricardo. Evidentemente esta reiteração da
critica não prova nada: nem contra nem a favor.
(36) “O erro de Ricardo é que ele só se ocupa da grandeza de valor. Em conse­
qüência, ele só tem em vista o quantum relativo de trabalho que apresentam as dife­
rentes mercadorias, que elas contêm encarnado nelas enquanto valores. Mas o trabalho
contido nelas deve ser apresentado como trabalho social, como trabalho iñdividual
alienado (entausserte).” (Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p.
128; Théories sur la Plus-value, III, op. cit., pp. 154-155, grifado por Marx) “Encon­
tram-se, entretanto, passagens isoladas, em Ricardo, em que ele salienta diretamente
que a quantidade do trabalho contido numa mercadoria só (é) a medida de sua gran­
deza de valor, das diferenças de grandeza do seu valor, porque o trabalho é aquilo em
que as diferentes mercadorias são iguais, sua unidade, sua substância, o fundamento
interno de seu valor. O que ele deixou de pesquisar é somente em que forma determi­
nada o trabalho é isto.” (Werke, 23, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 135;
Théories sur la Plus-value, III, op. cit., p. 163, grifado por Marx)
(37) “Todas as mercadorias podem ser resolvidas em trabalho (labour) como
sua unidade. O que Ricardo não investiga, é a forma específica em que o trabalho
(labour) se apresenta como unidade das mercadorias. Por isso, ele não compreende o
dinheiro. Por isso, a transformação da mercadoria em dinheiro aparece nele como algo
puramente formal, e não (como algo) que penetre o âmago da produção capitalista.
Mas ele diz somente isto: só porque o trabalho é a únidade das mercadorias, só porque
elas são somente apresentações da mesma unidade, o trabalho (labour) é a sua medida
(mesure). Ele é medida delas somente porque é sua substância enquanto valores.”
(Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 136; Théories sur la Plus-
value, III, op. cit., p. 163, grifado por Marx)
(38) Ver a esse respeito “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo” e
“Circulação de Mercadorias, Produção Capitalista”, neste tomo.
MARX: LÓGICA E POLITICA 131

(39) Entre outras dificuldades. Ver a crítica que Marx faz a Smith na terceira
secção do livro II de O Capital.
(40) Esta filiação é de resto indicada, num contexto crítico, por Castoriadis,
art. cit., pp. 8-9; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., pp. 254-255.
(41) Esta referência tem limites. Primeiramente, o movimento que vai da subs­
tância ao sujeito não pode ser assimilado sem mais à Fenomenología do Espírito: não se
trata de passagem de consciência à ciência etc. (O movimento descrito pela Fenome­
nología do Espírito incide entretanto em outros níveis do pensamento de Marx.) Em
geral, deve-se pensar, antes, na Lógica de Hegel. Mas mesmo para a Lógica, a relação
não é absolutamente imediata. Salvo na sua significação mais geral (ver digressão), não
desenvolvemos aqui o lado não hegeliano de Marx. O problema da diferença Marx-
Hegel — que nunca foi tratada de maneira rigorosa — só poderá ser resolvida quando o
problema do hegelianismo de Marx for bem estudado. Ora, apesar das aparências, o
estudo deste último problema está ainda no começo.
(42) E, nesse sentido, ele se situa numa linha que vai de Aristóteles a Hegel,
passando por Leibniz.
(43) Em termos simples, eis o sentido da démarche de Marx: o valor — que
aparece nos preços — é, sem dúvida, uma coisa social, ele não £ uma relação que os
agentes estabelecem subjetivamente. O que há “atrás” do valor, e portanto "atrás” dos
preços? Essa pergunta parece se impor. Existe alguma coisa, a saber, o trabalho como
abstração. E como exprimir esse “algo" de que é constituído o valor? Nada parece
exprimi-lo melhor do que a noção de substância nas suas três referências: ele é coisa,
ele é coisa fluida, ele é coisa que só é, ainda, num primeiro nivel da sua autonomização
(se se comparar com a coisa social capital: a substância que se tornou sujeito).
(44) O argumento é utilizado contra os clássicos: se os clássicos não "substan-
cializam” o valor, eles fazem dele, de qualquer forma, o fundamento racional dos pre­
ços, o que já era demais para gente como Bailey. Sobre Bailey e outros, ver Werke,
26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., pp. 105 e segs.; Théories sur la Plus-
valué, III, op. cit., pp. 126 e segs.
(45) Observemos que o próprio Marx precisou de muitos anos para se convencer
disso, já que ele nas suas obras de juventude fez uma crítica dos clássicos que (no que
se refere a um dos seus lados) tinha um caráter pré-hegeliano. Ver os textos das obras
de juveñtude — sobretudo as notas sobre os Elementos de Economía Política de James
Mili (notas que são anteriores aos Manuscritos de 44) — em que Marx critica os
economistas clássicos porque consideram médias abstratas como coisas reais. Aliás,
Castoriadis se refere a isto. (Art. cit., p. 52, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit.,
p. 300)
(46) “Die Wertform” (apêndice à primeira edição de O Capital) in Marx-
Engels, Kleine Ökonomische Schriften, Berlim, Dietz Verlag, 1955, p. 271. Ver Do-
gnin, Les "Sentiers Escarpés”..., I, op. cit., pp. 130 e 132. O texto já foi citado
parcialmente por J. Rancière, Lire Le Capital, III, Maspero, 1973, p. 50.
(47) Trata-se do autor anônimo de Observations on Certain Verbal Disputs in
Political Economy, particularly relating to Value and to Demand and Supply, Londres,
1821. Texto de crítica “nominalista” da economia política, cuja linha será continuada
por Bailey. Ver a esse respeito o capítulo 20, § 3 do volume III das Teorias sobre a
mais-valia.
(48) Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 134; Théories
sur la Plus-value, III, op. cit., p. 162, grifo nosso. Esse texto foi citado parcialmente
por Backhaus, “zur Dialektik der Wertform”, in Beiträge zur marxistischen Erkennt­
nistheorie, publicado por Alfred Schmidt, Frankfurt, Suhrkamp, 1969, p. 138; “Dia-
lectique de la forme valeur” (sic), in Critiques de VÊconomie Politique, Maspero, n?
18, out.-dez., 1974, p. 17. As contradições que estão ausentes da “expressão verbal da
coisa”, é necessário entendê-las aqui no sentido corrente, pejorativo, do termo “contra­
dição”.
132 RUY FAUSTO

(49) Como dissemos, não desenvolveremos aqui uma discussão sobre o problema
do fetichismo. Trata-se antes de analisar o estatuto do trabalho abstrato e do valor (ou
antes, trata-se de mostrar como o seu caráter se revela) no quadro do texto célebre de
Marx sobre o fetichismo.
(50) A rigor, a produção capitalista enquanto produção de mercadorias.
(51) Como já vimos, em “L’aliénation comme concept sociologique”. (Cahiers
internationaux de Sociologie, art. cit.) Lefort critica Marx, a propósito desse ponto, por
confundir “a forma particular do trabalho e sua forma natural”, (p. 48) “Entretanto,
não tem nenhum sentido definir um trabalho natural em si, ou considerar que a parti­
cularidade é mais natural do que a generalidade.” (Ibidem) O alcance dessa crítica é
duvidoso. Marx quer dizer que a forma social — isto é, a forma que devem tomar os
produtos do trabalho para servir socialmente, para serem consumidos por outrem —
é, nas sociedades não capitalistas-mercantis, a forma imediata, a forma natural. Seria
uma ilusão ou uma confusão dizer que a forma imediata — isto é, a forma sensível, o
objeto com todas as suas propriedades sensíveis — é a forma natural, em oposição
à forma “reduzida”, em que suas propriedades desaparecem? A crítica é compreensível
(mas não justificável) se se supuser que o trabalho abstrato é não a forma reduzida,
mas simplesmente a forma geral; nesse caso, com efeito, por que supor que a utilidade
particular é mais concreta do que a utilidade em geral? Mas, como vimos, não se trata
(só) disto em Marx.
(52) Quando há troca, a coisa é mais complicada; nós a discutiremos na secção
III. Digamos desde já que a troca só é, entretanto, condição necessária, não condição
suficiente para a existência do valor e do trabalho abstrato.
(53) Hegel retoma várias vezes na sua obra a questão do argumento ontológico.
Como se sabe, ele critica Kant por ter — entre outras coisas — tomado como exemplo
algo, os cem talers, que é não um conceito mas uma representação.
(54) No que se refere à possibilidade de conciliar abstração real e materialismo,
as idéias desse desenvolvimento final não são essencialmente diferentes das de J. A.
Giannotti na introdução das Origens da Dialética do Trabalho: "Ê nessa perspectiva
que tentaremos mostrar que o texto fundamental sobre o qual se baseia a interpretação
de Althusser permite uma outra leitura, para indicar em seguida como se pode admitir
que o universal concreto faz parte da realidade, sem cair por isso no idealismo ou no
empirismo (...). Contra Althusser, afirmamos que uma tal reflexão é possível unica­
mente porque tem lugar, na própria realidade, um processo de constituição categorial,
oposto ao devir do fenômeno, processo que configura a essência de um modo de
produção determinado, e em conseqüência de uma forma de sociabilidade. A essência
faz parte de cada momento do concreto, sem entretanto esgotar todas essas dimensões;
de tal modo que o discurso se torna científico só quando reproduz a ordem dessa
constituição ontológica (...). A mesma coisa pode ocorrer com a categoria marxista
quando se descobre um processo de abstração real que opera para além da investigação
científica. É a única maneira de conservar o materialismo da doutrina. Entendida
assim, a abstração não seria semelhante à operação que retira o ouro da ganga, e o seu
produto, o conceito, não resultando de um processo exterior ao objeto, será o próprio
objeto na medida em que se situa o objeto primitivo no nível da realidade social”.
(Giannotti, op. cit., pp. 11, 14 e 15, grifado pelo autor, trad. nossa) A idéia de
abstração real é de algum modo uma constante do pensamento marxista (ou em geral
dialético) de língua alemã: Luckács sem dúvida (em História e Consciência de Classe
sobretudo, mas a idéia de reificação não deixa de levantar algumas dificuldades que
examinaremos em outro lugar), e sobretudo Adorno, para citar só os maiores (no que
concerne a Adorno, ver, por exemplo, as citações que faz dele Backhaus: “O princípio
da equivalência do trabalho social faz da sociedade um abstrato e o mais real (efetivo)
precisamente como Hegel o ensina do conceito enfático do conceito”, Drei Studien zu
Hegel, Frankfurt, 1963, p. 32; citado por Backhaus, “Materialíen zur Rekonstruktion
der Marxschen Werttheorie”, 1, in Gesellschaft..., 1, op. cit. , p. 64). “O valor de troca
diante do valor de uso, (algo) puramente pensado (ein bloss Gedachtes) reina sobre
MARX: LOGICA E POLÍTICA 133

a necessidade humana (Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie, Neu­


wied, 1969, p. 94; citado por Backhaus, “Materialien...”, I, op. cit., p. 64)
Observemos que, num apêndice à sua tese de doutoramento, Marx faz uma
referência explícita ao argumento ontológico e tenta reabilitá-lo, mas num contexto
que, se ultrapassa sem dúvida o universo feuerbachiano, tem ainda alguma coisa de
subjetivo. É de qualquer modo interessante citar esse texto de juventude: "O antigo
Molloch não reinou? O Apoio de Delfos não era uma força efetivamente real na vida
dos gregos? Aqui, também a crítica de Kant não procede (heisst... nicht). Se alguém
supõe (sich vorstellt) possuir cem talers, se essa representação não for para ele uma
representação qualquer, subjetiva, se ele acredita nela, os cem talers imaginados têm
para ele o mesmo valor que cem talers efetivamente reais. Por exemplo, ele contrairá
dívidas com base (auf) da sua imaginação, ela terá eficácia (wirken) do mesmo modo
(wie) que o conjunto da humanidade contraiu dívidas com base nos seus deuses. Pelo
contrário, o exemplo de Kant poderia fortalecer o argumento ontológico. Talers efeti­
vamente reais têm a mesma existência que deuses imaginados. Um taler real tem
existência em algum lugar que não seja a representação, ainda que uma representação
universal ou antes social dos homens? Introduza papel-moeda num país em que não se
conhece esse uso do papel, e todos rirão da sua representação subjetiva. Venha com os
seus deuses a um país em que estão em curso (gelten) outros deuses, e lhe provarão que
você sofre de imaginações e de abstrações (...)”. (Werke, Ergänzungsband, “Anmer­
kungen zur Doktordissertation”, “Anhang”, op. cit., p. 370, grifado por Marx, ver
“Dissertation, Appendice”, in Marx, Différence de la Philosophie de la Nature chez
Démocrite et Epicure, trad. franc., introdução e notas por Jacques Ponnier, Ducros,
Bordeaux, 1970, p. 285, 6)
(55) A referência ao valor enquanto hipótese se encontra, segundo Engels, num
artigo de Schmidt sobre o livro III de O Capital, publicado na Sozialpolitisches Cen­
tralblatt (Berlim) de 25 de fevereiro de 1895 (n? 22). A referência à ficção, sempre
segundo Engels, está numa carta de Schmidt a Engels. As respostas de Engels a
Schmidt se encontram em Werke, 39, op. cit., 1973, pp. 430-434 (carta de Engels a
Schmidt de 12 de março de 1895) e p. 46 (carta de Engels a Schmidt de 6 de abril de
1895). Engels retoma o problema e desenvolve a sua posição em “Ergänzung und
Nachtrag zum III, Buche des ‘Kapital’, I. Wertgesetz und Profitrate", Werke, 25,
op. cit., pp. 904 e segs.; trad. franc. “Supplément (complément e supplément au livre
III du Capital)'', 1895, in Le Capital, 1. III, t. I (VI), trad. de Mme. C. Cohen-Solal
e Gilbert Badia, Ed. Sociales, 1957, pp. 30 e segs.
(56) O valor do conjunto das mercadorias produzidas por um setor de produção,
supondo uma rotação do capital circulante, é igual a c + v + pl, em que c é o capital
constante consumido, v o capital variável e pl a mais-valia. O preço de produção do
conjunto das mercadorias é igual a c + v (soma que aparece como preço de custo)
+ p, o lucro médio (sendo este último igual ao produto da totalidade do capital
investido — e não somente a parte consumida — pela taxa média de lucro). Voltaremos
a isso.
(57) Engels dá uma primeira resposta, que se vale da distância entre o conceito
e a realidade, na carta de 12 de março de 1895. (Werke, 39, op. cit., pp. 430-434) Na
carta de 6 de abril de 1895 (idem, p. 461) ele anuncia uma retomada do problema.
(58) Werke, 25, op. cit. “Ergänzung und Nachtrag...” , p. 904; ver Le Capital,
1. III, t. I (VI), “Supplément”, op. cit., pp. 30-31.
(59) Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 186; Le Capital, 1. HI, t. I (VI), p.
193; Oeuvres, Économie II, op. cit., pp. 969-970. Texto citado adiante, na nota 73.
(60) Werke, 25, op. cit., “Ergänzung und Nachtrag...”, p. 909; Le Capital,
1. III, t. I (VI), “Supplément”, op. cit., p. 35.
(61) Ver por exemplo: L. Althusser, “L’objet du Capital", in L. Althusser e E.
Balibar, Lire Le Capital, I, Maspero, 1968, pp. 97-100; Carlo Benetti, Claude Bertho-
mieu e Jean Cartelier, Économie Classique/Économie vulgaire, Presses Universitaires
de Grenoble-Maspero, 1975, p. 98 (resenha do texto de Hilferding sobre Böhm-Ba-
134 RUY FAUSTO

werk); Pierre Salama, “À nouveau sur la transformation des valeurs en prix de produc­
tion”, in Cahiers d ’Économie Politique, 3, Actes du Colloque Sraffa, Amiens, P.U.F.,
1976, p. 86.
(62) Ê verdade que, antes do capitalismo, a lei do valor téria, segundo Engels,
uma validade geral e direta, o que deixaria em aberto a possibilidade de uma validade
indireta... Mas primeiro, o inicio do texto diz simplesmente que a lei é válida em geral
até a emergência do capitalismo, o que parece, sem dúvida, excluí-la deste, e por outro
lado, toda a argumentação de Engels se constrói e se funda no pré-capitalismo, como se
o espaço deste último fosse por excelência o da lei do valor.
(63) E, caso a análise confirme que há efetivamente erro por parte de Engels, se
proporia também a questão: por que finalmente o velho Engels se engana, ele que,
afinal de contas, conhecia bem o problema?
(64) Castoriadis, art. cit., pp. 20 e segs. ; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit.,
p. 267.
(65) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., pp. 73-74. Ver Dognin, Les "Sentiers
Escarpés"..., I, op. cit., pp. 201-202.
(66) Castoriadis, art. cit., pp. 20-21; Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit.,
p. 267, grifado por Castoriadis.
(67) Castoriadis, art. cit., pp. 18-19, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit.,
pp. 265-266, grifado por Castoriadis.
(68) Werke, 13, Zur Kritik derpolitischen Okonomie, op. cit., p. 44; Contribu­
tion à la Critique de l ’Économie Politique, trad. de Maurice Husson et Gilbert Badia,
Ed. Sociales, 1957, p. 35.
(69) Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 97; Le Capital, 1. III, t. I (VI), op.
cit., p. 105. O texto diz que só o capital realiza (realisiert) a determinação do valor.
Mas ele diz ao mesmo tempo que a determinação do valor é não o tempo de trabalho
em gérai, mas o tempo de trabalho socialmente necessário. E o valor nâo é se essa
determinação não for realizada.
(70) Werke, 25, Das Kapital, III, op. cit., p. 298; Oeuvres, Économie II, op.
cit., pp. 1061-1062.
(71) Para as sociedades em que não há troca, ver a secção II deste trabalho, em
que comentamos o parágrafo 4 sobre o fetichismo do capítulo 1 de O Capital, em
particular a comparação que Marx estabelece entre por um lado o capitalismo, e por
outro, diferentes formas não capitalistas. Como vimos, é por erro que Castoriadis pode
falar de valor a propósito desse caso.
(72) A análise dos capítulos 1 e 2 do livro I é de ordem lógica, mas ela está
entrecortada por desenvolvimentos históricos.
(73) “A troca de mercadorias começa lá onde terminam as comunidades, nos
seus pontos de contato com comunidades estrangeiras ou com membros de comuni­
dades estrangeiras (...). Sua relação de troca quantitativa é de inicio totalmente aci­
dental. Elas são trocáveis através de ato de vontade daqueles que as possuem (Besitzer),
(ato de vontade que consiste em) aliená-las reciprocamente. Entretanto, a necessidade
de objetos de uso estrangeiros se fixa progressivamente. A repetição constante da troca
faz dela um processo social regular. Com o correr do tempo, pelo menos uma parte dos
produtos do trabalho deve ser produzida intencionalmente com vistas à troca. A partir
desse momento se consolida, por um lado, a separação entre a utilidade das coisas para
a necessidade (Bedarf) imediata e sua utilidade para a troca. Seu valor de uso se separa
do seu valor de troca. Por outro lado, a relação quantitativa em que elas se trocam se
torna dependente da sua própria produção. O hábito as fixa como grandezas de valor
( Wertgròssen). (...)(...) Uma circulação em que os possuidores de mercadorias trocam
e comparam os seus próprios artigos com diversos outros artigos nunca se encontra,
sem que diversas mercadorias de diversos possuidores de mercadorias, no interior da
sua circulação ( Verkehr) sejam comparadas como valores com uma e mesma terceira
espécie de mercadorias.” (Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., pp. 102-103; Oeuvres,
Économie, I, op. cit., pp. 623-624, grifo nosso) “Independentemente (abgesehen), pois,
MARX: LÖGICA E POLÍTICA 135

da dominação dos preços e do movimento dos preços pela lei do valor, é, pois, intei­
ramente apropriado considerar os valores das mercadorias não só teoricamente mas
também historicamente como anteriores (das prius) aos preços de produção. Isto vale
para as situações em que os meios de produção pertencem ao trabalhador, e esta
situação se encontra tanto no mundo antigo quanto no mundo moderno, para o (caso
do) camponês que possui a terra e a trabalha por si mesmo, como para o (caso do)
artesão. Isto concorda também com a nossa opinião, emitida anteriormente, de que o
desenvolvimento dos produtos em mercadorias surge através da troca entre diferentes
comunidades, e não entre os membros de uma e mesma comuna. Como para essa
situação originária, isto vale para situações posteriores, fundadas na escravidão e na
servidão, e para a organização corporativa do trabalho artesanal, enquanto os meios de
produção imobilizados em cada ramo de produção só podem ser transferidos com
dificuldade de uma esfera a outra e que, no interior de certos limites, as diferentes
esferas da produção se relacionam umas às outras como países estrangeiros ou comu­
nidades comunistas. / Para que os preços pelos quais se trocam entre si as mercadorias
correspondam aproximadamente aos seus valores, é necessário somente 1) que a troca
entre diferentes mercadorias deixe de ser puramente acidental ou ocasional; 2) que, na
medida em que consideramos a troca direta de mercadorias, estas mercadorias sejam
produzidas de um lado e do outro em quantidades relativas que correspondam apro­
ximadamente às necessidades recíprocas, (coisa) a que leva a experiência da venda, e o
que brota assim como resultado do próprio intercâmbio contínuo; e 3) na medida em
que falamos de venda, nenhum monopólio natural ou artificial possibilite a uma das
partes contratantes vender acima do valor ou a force a vender abaixo dele.” (Werke,
25, Das Kapital, III, op. cit., pp. 186-187, Le Capital, 1. III, t. I (VI), op. cit., pp.
193-194; Oeuvres, Economie, II, op. cit., pp. 969-970, grifo nosso) E o início desse
texto que Engels cita.
(74) A resposta que consiste em dizer que antes do capitalismo há forma do
valor, expressão do valor (valor de troca), mas não valor, não é incorreta, mas ela não
permite responder, a nosso ver, a todos os problemas que levantam os textos.
(75) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 102; Oeuvres, Economie, I, op. cit.,
texto citado anteriormente.
(76) Aristóteles, De la Génération et de la Corruption, I, 317 b, 15, trad. franc.
de Charles Mugler, Les Belles Lettres, Paris, 1966, p. 11, grifo nosso.
(77) Descrevendo em Le Temps retrouvé o que ele chama de maturação (matu-
ration), a do ser-escritor do narrador, Proust se exprime igualmente por uma contra­
dição: “E compreendi que todos aqueles materiais da obra literária eram a minha vida
passada; compreendi que eles não tinham vindo a mim, nos prazeres frívolos, na pre­
guiça, na ternura, na dor, armazenados por mim, sem que eu adivinhasse mais o seu
destino, a sua própria sobrevivência, do que a semente ao pôr de reserva todos os
alimentos que alimentarão a planta. Como a semente, eu poderia morrer quando a
planta se tivesse desenvolvido, e eu me encontrava tendo vivido para ela sem o saber,
sem que a minha vida parecesse jamais ter de entrar em contato com aqueles livros que
eu gostaria de escrever e para os quais, quando outrora me sentava à minha mesa, não
encontrava assunto. Assim, toda a minha vida até o dia de hoje poderia e não poderia
ser resumida sob esse título: uma'vocação. Ela não poderia ser no sentido de que a
literatura não havia desempenhado nenhum papel na minha vida. Ela poderia ser
porque esta vida, as lembranças de suas tristezas, de suas alegrias, formavam uma
reserva semelhante a esse albúmen que está contido no óvulo das plantas e do qual este
obtém seu alimento para se transformar em semente, nesse tempo em que se ignora
ainda que o embrião de uma planta se desenvolve, o qual é entretanto o lugar de
fenômenos químicos e respiratórios secretos mas muito ativos. Assim a minha vida se
relacionava com aquilo que levaria à sua maturação”. (Proust, Â la Recherche du
Temps perdu, Le Temps retrouvé, Paris, Gallimard, 1964, p. 262, trad. nossa, grifo
nosso)
136 RUYFAUSTO

(78) É verdade que, como vimos, Castoriadis considera a possibilidade de urna


terceira resposta: “A economia capitalista faz enfim com que apareça aquilo que, desde
sempre, estava lá oculto, a igualdade/identidade substancial/essencial dos homens e
dos seus trabalhos, até então encoberta por representações "fantásticas”. (Art. cit.,
p. 19, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 266, grifado por Castoriadis) Esta
resposta corresponde ademais, no texto de Castoriadis, à idéia de que antes do capitalismo
o valor existiria “em potência” (e a existência no nível de uma pré-história é justa­
mente, em Aristóteles, como acabamos de ver, uma existência em potência). “(...) do
mesmo modo o ‘valor de troca’ da economia capitalista é a Epifania do Valor, a apre­
sentação/manifestação/expressão/figuração daquilo que estava lá sempre, desde sem­
pre e no sempre (datis le toujours) mas somente em potência, dünamei: o trabalho.”
(Art. cit., p. 17, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 264, grifado por Casto­
riadis) “(...) Marx pode pensar que o capitalismo poderia fazer ser (faire étre) alguma
coisa que já não estivesse lá, pelo menos em potência?” (Art. cit., p. 19, Les Carrefours
du Labyrinthe, op. cit., p. 266) Por outro lado, pelo menos uma vez Castoriadis vai até
exprimir a contradição: “O capitalismo não pode pois senão fazer aparecer, ele ‘revela’
a humanidade a ela mesma — a humanidade — a humanidade que até então se
acreditava mágica, política, jurídica, teológica, filosófica, e que aprende através do
capitalismo a sua verdadeira verdade: que ela é econômica, que a verdade da sua vida
sempre foi produção, a qual é cristalização em valores de uso desta Substância/Essên­
cia, o Trabalho. Mas se se ficasse lá, a verdade revelada pelo capitalismo seria verdade
pura e simplesmente (tout court): o que implicaria, politicamente a inanidade de toda
revolução e, filosoficamente, um novo (e sinistro) ‘fim da história’ já realizado. Por­
tanto, esta verdade é e não é verdade', o capitalismo dá aparência do Mesmo àquilo que
não o é (redução, fetichismo) — e o estágio superior do comunismo poderia enfim levar
em conta a verdadeira e plena verdade, a incomparabilidade e a alteridade irredutível
dos indivíduos humanos”. (Art. cit., pp. 19-20, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit.,
p. 266, grifo nosso) Ê o que diz Castoriadis. Entretanto, se essas referências mostram
ainda uma vez que ele estava próximo da solução — “próximo” quer dizer aqui sepa­
rado por um salto — elas não mostram mais do que isto. Primeiramente, observemos
que, se a existência numa pré-história é uma existência “em potência”, é bem pouco
falar desta última, se não se mostram as implicações lógicas da idéia de pré-história, as
quais, somente, dão à resposta um estatuto rigoroso. Dever-se-ia dizer que ele chegou à
solução, porque em seguida ele se exprime por uma contradição? Não o cremos, pelas
seguintes razões. Nos textos em que Castoriadis está de certo modo no limite extremo
do seu pensamento (ou antes, em que o seu dizer vai além do seu pensamento) ele vai de
fato até dizer a contradição ou uma contradição em Marx. Mas, fazendo-se abstração
de saber se ele a situa corretamente, é preciso observar que: 1) ele não vai até “susten­
tar” a contradição, isto é, até conservá-la como o lado racional, e isto é o essencial;
2) ele não chega mesmo a se deter nela, a refletir sobre as condições de possibilidade ou
sobre as possibilidades de verdade de uma resposta contraditória. Eis porque — e é
ainda o essencial — que ele a exprima ou não, ele chamará a contradição (ver mais
acima e mais adiante) “antinomia”, “oscilação”, "paradoxo”, e a tratará enquanto
tal.
(79) Esta correspondência entre o desenvolvimento da realidade e o da consciên­
cia, nós a reencontramos com uma diferença, num texto do livro III de O Capital sobre
a relação entre o desenvolvimento do juro enquanto parte do lucro, e das teorias sobre o
juro. A diferença (em relação ao texto sobre Aristóteles) é que se trata aqui dos
começos (de uma história) e não das origens (isto é, de uma pré-história): “A melhor
prova da autonomia, em que, nos primeiros períodos do capitalismo, o juro aparece em
relação ao lucro, e o capital que produz juro em relação ao capital industrial, é que é só
na metade do século XVIII que foi descoberto o fato (por Massie e depois dele por
Hume) de que o juro é uma simples parte do lucro bruto, e que em geral se precisou
fazer tal descoberta”. (Werke, 25, Das Kapital III, op. cit., pp. 389-390; Le Capital,
1. III, t. II (VI), op. cit., p. 42; Oeuvres, Économie II, p. 1137) As traduções francesas
MARX: LOGICA E POLITICA 137

substituem aparece (erscheint) por é (est); a primeira expressão não só se encontra no


texto, como convém melhor em se tratando de uma história.
(80) Castoriadis, art. cit., pp. 12-13, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit.,
pp. 259-260.
(81) Ibidem.
(82) A rigor, a sua composição de valor.
(83) Werke, 25, Das Kapital III, op. cit., p. 158, Le Capital, 1. III, t. I (VI),
op. cit., p. 166, grifo nosso.
(84) Ibidem.
(85) Werke, 25, Das Kapital III, op. cit., p. 162, Le Capital, 1. III, t. I (VI), op.
cit., p. 170; Oeuvres, Économie II, op. cit., p. 945, grifo nosso.
(86) Ibidem.
(87) Se eles conservam lado a lado a essência e o fenômeno, a essência, pelo fato
mesmo de ser essência, prevalece sobrei o fenômeno. De resto, cotno veremos mais
adiante, Ricardo encara às vezes os desvios deste último em relação à primeira como
exceções a ela.
(88) Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 64; Théories sur la
Plus-value III, op. cit., p. 77, grifado por Marx.
(89) Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 65; Théories sur la
Plus-value, III, op. cit., p. 78, grifado por Marx. Como explicam os editores, diferen­
temente do que ele faz em O Capital, Marx emprega às vezes, nas Teorias sobre a
Mais-valia, o termo Kostpreis ou Kostenpreis (preço de custo) no sentido de preço de
produção. (Ver Werke, 26, 3, Theorien... III, op. cit., pp. 593-594, n. 6 dos editores)
Este parece ser o caso no texto.
(90) Werke, 26, 2, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 171; Théories sur
la Plus-value, II, op. cit., p. 194, grifado por Marx.
(91) “No caso, esse termo deve ser entendido (...) no sentido de preço de produ­
ção.” (Nota 6 dos editores, Werke, 26, 3, Theorien..., III, op. cit., p. 593, "Anmer-
kungen”)
(92) Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 8; Théories sur la
Plus-value, III, op. cit., p. 9.
(93) Também aqui Kostpreis parece querer dizer preço de produção.
(94) Torrens, grifado por Marx. A continuação é de Marx.
(95) Poderíamos dizer que, até aqui, Marx está de acordo com Torrens. Ver
mais adiante.
(96) Werke, 26, 3, Theorien über den Mehrwert, III, op. cit., pp. 66-68; Théo­
ries sur la Plus-value, III, op. cit., p. 81.
(97) Isto não contradiz o que foi dito sobre o fenômeno (a propósito do trabalho
abstrato) na primeira parte deste texto. Trata-se aqui de um fenômeno que é categorial
(o lucro) e não simplesmente da ordem do vivido como a experiência da indiferença do
trabalho. De um modo mais geral, observemos que temos aqui uma aparição negada da
essência, enquanto que na primeira parte, onde se tratava da circulação simples, a
essência ainda não aparecia.
(98) Aqui analisamos o problema da relação (lógica) entre formas históricas,
a saber, a produção de mercadorias ou os “bolsôes mercantis” no pré-capitalismo,
e o capitalismo. No texto de Marx, se trata da passagem da produção simples como
aparência do sistema, ao capitalismo enquanto capitalismo (à sua essência), problema
de que tratamos no primeiro e sobretudo no quarto ensaio. Mas o texto de Marx, que
citamos, serve também para o problema da relação (lógica) entre formas históricas.
(99) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 613; Oeuvres, Économie, I, op. cit.,
p. 1090.
(100) “Veremos, resumidamente, que essas operações são ‘na verdade’ impossí­
veis, que o Valor e a Substância (como de resto a sua grandeza), longe de ser “deter­
minados”, são antes nebulosas de enigmas, e que esta situação está profundamente
firmada no caráter antinómico do pensamento de Marx.” (Castoriadis, art. cit., pp.
138 RUYFAUSTO

9-10, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 256, grifo nosso) “Um Valor e qualquer
outra coisa Só poderia ‘adquirir’ tal forma particular se ele já estivesse lá. O paradoxo,
a antinomia do pensamento de Marx é que esse Trabalho que modifica tudo e se
modifica constantemente, ele próprio, é ao mesmo tempo pensado sob a categoría da
S u b s t â n c i a / e s s ê n c i a (Castoriadis, art. cit., p. 17, Les Carrefours du Labyrinthe,
op. cit., p. 264, grifo nosso). “A antinomia que perpetuamente divide o pensamento de
Marx entre a idéia de uma ‘produção histórica’ das categorias sociais (e do pensamento)
e a idéia de uma ‘racionalidade’ última do processo histórico (...) se descobre
aqui.” (Castoriadis, art. cit., p. 20, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p. 267,
grifo nosso)
(101) Ver a esse respeito a segunda parte deste texto.
(102) Castoriadis, art. cit., p. 21, Les Carrefours du Labyrinthe, op. cit., p.
268.
(103) Dir-se-á talvez que seria preciso analisar igualmente os outros textos de
Castoriadis, em particular aqueles em que ele faz a crítica da idéia clássica de teoría.
Chegaremos lá. Mas observemos desde já que o que ele diz sobre a relação entre teoría
e política em Marx é sumário, e tem o defeito de projetar o pensamento de Marx na
tradição clássica.
4
Circulação de mercadorias,
produção capitalista

Marchands, Salariat et Capitalistes, de C. Benetti e J. Cartelier,1


se apresenta como “um esboço dos princípios gerais da teoria da mer­
cadoria, da relação salarial e do capital” (p. 7), esboço que pretende
ser uma démarche original em relação à economia clássica, à economia
neoclássica e à crítica da economia política de Marx. Nosso texto não
terá por objeto — ou por objeto imediato — nem as teses positivas do
livro, nem o conjunto dos desenvolvimentos críticos que visam essas
alternativas, mas somente os que se referem à obra de Marx. Entre­
tanto, nossos resultados devem ter conseqüências para a apreciação do
conjunto da obra. Por outro lado, precisamos que, embora o ponto de
partida e o final sejam a crítica do livro de Benetti e Cartelier, julgamos
oportuno dar um desenvolvimento maior a vários pontos relativos à
obra de Marx. Apresentamos, assim, os nossos próprios resultados, aos
quais voltaremos em outro lugar, em forma mais sistemática.
Se a crítica da leitura de Marx a que procedem Benetti e Cartelier
pode incidir sobre a apreciação do conjunto do livro, é por um lado
devido à relação que eles reconhecem existir entre as suas análises posi­
tivas e os seus movimentos críticos, e por outro lado em razão do lugar
que ocupa no livro a crítica de Marx. Com efeito, para Benetti e Car­
telier, há um elo entre as suas teses críticas e as suas teses positivas.
Pelo menos no que se refere ao ponto de partida, são as primeiras que
justificam essas últimas. Com efeito, eles afirmam a sua “atual incapa­
cidade de fundamentar senão negativamente” o seu “ponto de partida”
(p. 15); a escolha das hipóteses de que partem não se explicaria “tanto
pela sua evidência, pelo menos aparente, do que por uma tomada de
posição crítica em relação à teoria econômica (...)” . (Ibidem) Nessas
condições, uma crítica de suas críticas poderia ter, ao que parece, um
alcance considerável. E tanto mais em se tratando da crítica de Marx,
já que Marx ocupa certamente, no livro, um lugar privilegiado. Marx é
“o autor que mais contribuiu para esclarecer as diversas questões li­
gadas à abordagem econômica da sociedade” , (p. 139) E se “as res­
postas que ele dá aos problemas são inaceitáveis” (ibidem) (mas eles
supõem uma não univocidade do seu pensamento: haveria também um
“bom” lado de Marx) a sua obra tem, de qualquer modo, para os dois
autores, “um papel primordial” , (p. 8)
142 RUYFAUSTO

Os problemas que serão tratados aqui são, em geral, de natureza


lógica, o que, diga-se de passagem, deveria justificar que um não eco­
nomista ouse comentar um livro de economia de uma tecnicidade con­
siderável. Mas é preciso se entender sobre o termo “lógica” . Num passo
na terceira parte (pp. 142-143) Benetti e Cartelier se recusam a sus­
pender a análise do seu objeto, a forma do valor em beneficio de uma
discussão prévia sobre o método. Concordamos com eles nessa recusa
em admitir uma questão prévia de método, só que a desenvolveríamos
diferentemente. Em certo sentido, seria preciso ir ainda mais longe. O
método é ele próprio interior ao objeto, ele é um momento deste. Por
isso mesmo, não se tratará aqui de epistemología, como se costuma
dizer, entendendo a expressão, como se deve entender, como uma ex­
pressão que designa uma teoria subjetiva da ciência. Tratar-se-á, na
realidade, de lógica, entendendo-a como uma teoria da ciência que é ao
mesmo tempo uma teoría do objeto. Por outro lado, pensando num
outro passo do livro, gostaríamos de dizer alguma coisa sobre o que
está em jogo atualmente, inclusive para uma tomada de posição em
relação a ele, quando, na análise da obra de Marx, se discutem pro­
blemas lógicos. A propósito do trabalho abstrato, os dois autores
escrevem (p. 165) “ que a questão não é discutir uma enésima vez os
diversos aspectos dessa abstração” , o que leva a pensar que, para eles,
a discussão pelo menos de certos problemas que têm implicações
lógicas se esgota ou perde o interesse. A esse respeito diríamos que esta­
ríamos de novo de acordo com eles, Se se tratasse de escrever o que já
foi escrito a propósito desse tipo de problema. Mas não estamos de
acordo se, da abundância dos textos sobre certos problemas, eles con­
cluem que os problemas já estão resolvidos ou que se trata de falsos
problemas. Na realidade, é somente num desses dois casos que se
deveria abandonar a questão. Ora, se aparentemente essa alternativa é
verdadeira, só se trata de uma aparência. Pelo contrário, estamos
convencidos de que, por um lado, esses problemas não são falsos pro­
blemas (e a esse respeito, em geral, todos estaríamos provavelmente de
acordo); mais do que isto, de que a discussão dessas questões, apesar
de tudo o que se escreveu a respeito, começa apenas a ser feita de
um modo, digamos, pertinente. Insistimos nisso, porque, do fracasso
das duas tendências clássicas de leitura de Marx, as únicas pelo
menos que foram reconhecidas na França, o humanismo e o histo­
ricismo, por um lado, o anti-humanismo e o anti-historicismo, por
outro — tendências que são na realidade complementares, como
o mostramos em outro lugar2 —, chegou-se à crença bem ilusória
e bem perigosa (para a compreensão científica, bem entendido!)
de que é preciso abandonar esse tipo de questão. Chegou-se a uma
situação em que aquele que tenta dizer coisas novas sobre esses
problemas é raramente lido, porque... por que já se ouviu tanto falar
disso!
MARX: LÓGICA E POLITICA 143

Mas se, de um modo geral, não faremos aqui mais do que uma
espécie de reconstrução da apresentação de O Capital, de maneira a
mostrar as dificuldades da leitura de Benetti e Cartelier, tentaremos
também mostrar, no fim do texto, embora limitadamente, em que dire­
ções uma crítica de O Capital ou um desenvolvimento crítico das teses
de O Capital poderia, a nosso ver, ter bom resultado. Na realidade,
as indicações que daremos a esse respeito parecem convergir pelo
menos em termos gerais com as idéias expressas em certos passos do
texto de Benetti e Cartelier, passos que indicam o que parece ser o
objetivo final de suas investigações críticas. Mas esses passos ficam
mais ou menos marginais, no livro, porque eles estão muito menos
ligados aos desenvolvimentos críticos principais do que pensam os dois
autores. Qualquer que seja a importância da reconstrução da crítica
marxista clássica da economia política, cremos que a articulação com
esse segundo registro cujo horizonte é a superação do discurso clássico
é indispensável, tanto no quadro da crítica do livro de Benetti e Car­
telier, quanto como perspectiva geral.
Nossas considerações se desenvolverão em torno de dois centros
de problemas que em parte se cruzam: primeiramente, em tomo da
teoria da circulação de mercadorias, isto é, em torno de questões que se
situam no interior da secção I, sobre a mercadoria e o dinheiro, do livro
I de O Capital-, em segundo lugar, em tomo de problemas que con­
cernem, em primeiro lugar, à relação entre a secção I e a secção II, mas
que de fato se relacionam com o conjunto da construção do livro I e, em
certa medida, com o conjunto da apresentação de O Capital. Serão
esses os objetos das duas partes deste texto.
Os resultados aos quais chegaremos, assim como, de um modo
geral, os problemas que serão discutidos aqui, têm algo em comum
com o texto anterior. Retomaremos alguns pontos desse texto, que têm
uma relação direta com as questões que propõe a obra aqui examinada
— para desenvolvê-los ou completá-los.

I. MERCADORIA E DINHEIRO

a) O ponto de partida
Para Benetti e Cartelier é ilusório fazer da mercadoria o ponto de
partida da apresentação, como o faz Marx depois de ter fixado o seu
objeto geral, “ as sociedades em que domina o modo de produção
capitalista” . No livro deles, a apresentação, que para eles é uma dedu­
ção, começa por uma “primeira hipótese” pela qual são introduzidas
por um lado a separação como vínculo entre os elementos da sociedade,
no caso, o que eles chamarão mais adiante de “sociedade mercantil” ,
por outro lado a moeda, “primeiro objeto social” (p. 17), “expressão da
144 RUYFAUSTO

separação” (p. 12); “(...) a sociedade é dada e o vínculo entre os seus


elementos é a separação, cuja expressão é a unidade de conta comum” .
(p. 12) Um começo como esse questiona na realidade não só o procedi­
mento que consiste em fazer da mercadoria o primeiro objeto da apre­
sentação, mas também o conjunto do trajeto que vai da mercadoria ao
dinheiro, inclusive e principalmente a análise da forma do valor. Para
analisar a legitimidade dessa crítica, explicitada na terceira parte do
livro, consagrada a Marx, é preciso retomar e explicitar o procedi­
mento de Marx.
Em primeiro lugar, precisamos resumidamente (e por enquanto
superficialmente, porque essa questão será tratada na segunda parte
deste texto) qual é o objeto da secção I de O Capital, ponto que é
raramente bem compreendido. O objeto da secção I é a teoria da
circulação simples enquanto aparência do modo de produção capita­
lista. Assim, a secção I trata da circulação de mercadorias e, entre­
tanto, a teoria da circulação de mercadorias põe os fundamentos que
nos remetem à produção. Por sua parte, Benetti e Cartelier querem, na
primeira parte do seu texto, fazer a teoria da “sociedade mercantil” .3
Isto levanta problemas importantes aos quais voltaremos. Observemos
somente, por enquanto, já que a teoria deles se apresenta como uma
alternativa à primeira secção (pelo menos, a crítica da primeira secção
deveria nos conduzir à maneira deles de “deduzir”) — e qualquer que
seja a diferença entre os objetos respectivos das duas teorias — que é
legítimo criticar o seu procedimento, como já o justificamos para o caso
geral, a partir do que eles escrevem sobre a primeira secção de O Ca­
pital. De resto, se deve considerar essa diferença que, precisamente,
não é percebida pelos dois autores, como uma das fontes das dificul­
dades do texto.
O objeto da secção I de O Capital é, pois, a teoria da circulação
simples, enquanto aparência do modo de produção capitalista. No
nível dessa aparência, é preciso começar pelo objeto mais simples.
Reduzida à maior simplicidade, esta aparência revelaria, digamos, dois
tipos de objetos — as mercadorias e o dinheiro4 —, os quais poderiam
servir como ponto de partida. Marx escolheu as mercadorias e não o
dinheiro como ponto de partida, e aquém das mercadorias, ele esco­
lheu a mercadoria individual. Por que ele não começa pelo dinheiro?
No que se refere à forma do valor, Benetti e Cartelier supõem que a
apresentação de Marx se explica pela “evidência de que a moeda
(monnaie) é mercadoria” , (p. 143) Essa deve ser também a opinião
deles quanto às razões que levaram Marx a começar o conjunto da
apresentação pela mercadoria. Voltaremos ainda sobre essa maneira
de exprimir a relação que existe em Marx entre mercadoria e dinheiro.
Por enquanto, observemos somente que o que pressupõe o início de O
Capital no que se refere ao dinheiro (na medida em que é possível pre­
cisar tal pressuposição) é menos do que isto. A pressuposição é antes a
MARX: LÓGICA E POLITICA 145

de que o dinheiro aparece como algo mais complexo do que a merca­


doria. Com efeito, no plano da experiência imediata, o dinheiro —
o dinheiro metálico5 — se apresenta como um objeto que tem algo
semelhante à mercadoria, mas ao mesmo tempo como diferente dela,
pois precisamente ela se apresenta como moeda e não como merca­
doria. Sendo dinheiro, uma moeda de ouro é, ao mesmo tempo, um
objeto de ouro, como um objeto útil qualquer. Menos do que isso:
mesmo se ela não se confunde com uma mercadoria, uma moeda de
ouro se revela com um “fundo” de mercadoria. Essa aparência de ser
não simplesmente uma mercadoria, mas algo mais do que uma merca­
doria, é suficiente para que o dinheiro seja excluído como ponto de
partida. E isto porque não podemos dizer que a mercadoria — a mer­
cadoria individual, veremos depois a relação entre duas mercadorias —
leva consigo “vestígios” do dinheiro. Sendo o objeto mais simples, a
mercadoria será, pois, o ponto de partida; e por razões idênticas
àquelas que acabamos de desenvolver, é de se crer que se encontrará
uma passagem que conduza da mercadoria ao dinheiro. As pressupo­
sições implícitas e o ponto de partida são sem dúvida algo “dado” (un
donné),6 como é de resto o caso em qualquer apresentação dialética,
a qual não deve começar nem por princípios ou fundamentos dedu­
tivos, nem por verdades empíricas. Mas tais dados serão desenvolvidos,
mais do que isto, serão “negados” ,7 o que não quer dizer que eles
sejam pontos de partida provisórios.8 A apresentação dialética é pas­
sagem da aparência à essência, mas a aparência permanece como apa­
rência,

b) Valor de uso, trabalho concreto, divisão do trabalho

Entre o início de O Capital e a análise da forma do valor, isto é, a


dialética que conduz da mercadoria — ou das mercadorias — ao di­
nheiro, se situa o lugar em que são introduzidas as noções de valor de
uso, valor de troca, valor, trabalho abstrato, trabalho concreto, divisão
social do trabalho. Ê preciso primeiro se deter nesses conceitos. Come­
çaremos por valor de uso, trabalho concreto, divisão social do trabalho
e o que até aqui não foi em geral suficientemente desenvolvido, a re­
lação entre matéria e forma em O Capital.9
Benetti e Cartelier questionam a relação estabelecida por Marx
entre o trabalho concreto e o trabalho abstrato, e em particular o
estatuto que ele atribui ao trabalho concreto. Suas observações se
situam no contexto da crítica da forma do valor (nota 1 da terceira
parte do livro), e será necessário voltar a elas quando tratarmos da
forma do valor. Mas devem introduzir desde já essa discussão, na
medida em que ela diz respeito a conceitos anteriores à análise da
forma do valor.
146 RUYFAUSTO

O problema de Benetti e Cartelier é o do caráter “social” do tra­


balho concreto em relação ao caráter “social” do trabalho abstrato.
Eles citam a esse respeito um passo do capítulo primeiro na versão que
lhe dá a primeira edição de O Capital: “(...) Todos os valores de uso são
mercadorias só porque eles são produtos de trabalhos privados inde­
pendentes uns dos outros, trabalhos privados que, entretanto, depen­
dem materialmente (stofflich) uns dos outros enquanto membros parti­
culares, embora autônomos, do sistema natural e espontâneo (natur­
wüchsig, que cresce naturalmente) da divisão do trabalho. Eles estão
pois socialmente ligados precisamente por sua distinção, por sua utili­
dade particular. É justamente por isto que eles produzem valores de
uso qualitativamente diferentes” .10 Benetti ,e Cartelier continuam:
“Mas Marx acrescenta que ‘a forma social é uma forma distinta das
formas naturais dos trabalhos úteis reais, forma que lhes é estranha e
forma abstrata (...)’ (Dognin, op. cit.) p. 85 (grifado por Marx)” .
(Benetti e Cartelier, p. 149) E eles concluem: “Não se vê realmente
como tudo isso pode ser admitido. De duas coisas uma: ou os trabalhos
privados estão socialmente unidos, e são portanto reconhecidos, por
causa da sua diversidade e portanto do seu caráter concreto; ou então
eles o são por sua abstração. Como se pode conceber que as coisas sejam
enquanto tais socialmente úteis, portanto já sociais, antes que elas
tenham a sua forma social?” . (Ibidem, grifado por Benetti e Car­
telier)11
Na medida em que a questão levantada a propósito do trabalho
concreto interessa, para aquém do trabalho concreto, à do estatuto do
valor de uso e a distinção entre matéria e forma, começaremos reto­
mando a apresentação das noções de valor de uso e de valor de troca
(assim como de forma e de matéria) nos primeiros parágrafos de O Ca­
pital. Esse desenvolvimento é menos bem compreendido do que se
pensa e, no fundo, a solução do problema já está lá.
A mercadoria tem duas determinações, o valor de uso e o valor de
troca; o valor de uso remete ao conjunto das qualidades que fazem dela
um objeto útil. Assim, o valor de uso é introduzido enquanto determi­
nação da mercadoria e portanto no interior do modo de produção capi­
talista.12 Marx desenvolve em seguida a noção de valor de uso e isto nos
conduz fora ou aquém do modo de produção capitalista, no nível do
universo das determinações antropológicas gerais. “Os valores de uso
constituem o conteúdo material (der stofflichen Inhalt) da riqueza,
qualquer que seja a sua forma social” .13 Esse desenvolvimento deve ser
lido num registro diferente do registro do início, no registro de um dis­
curso pressuposto. Em seguida, o valor de uso é posto de novo no
interior do sistema, quando o texto diz que “na forma social que deve­
mos considerar, eles (os valores de uso) são ao mesmo tempo os
suportes materiais (die stofflichen Träger) do valor de uso” . (W.23,
K.I, p. 50; Dognin, op. cit., pp. 174-175, grifo nosso, tradução modi­
MARX: LOGICA E POLITICA 147

ficada) E entretanto, se voltamos ao sistema de formas, o valor de uso


só aparece como suporte material, o que significa que ele representará,
no interior do sistema de formas, o lado da materialidade. Em outros
termos, há um movimento que, do capitalismo,14 nos conduz a um
universo antropológico pressuposto — primeira “negação” —; e desse
universo antropológico — segunda “negação” — nos reconduz ao
capitalismo. Esse movimento é passagem da forma (não ainda expli­
citada enquanto forma) à matéria, depois volta à forma: mas no inte­
rior dessa forma, que ela própria se separa como forma e matéria, o
valor de uso ocupa o lado da matéria. Se se quiser completar esta
análise da relação matéria e forma (nos limites dos dois primeiros
parágrafos do capítulo primeiro) seria preciso acrescentar dois pontos.
Por um lado, em direção regressiva, seria preciso observar que, se a
formá social se desdobra em matéria e forma, do lado da matéria ou do
conteúdo15 — isto é, do lado das determinações antropológicas gerais
(que são postas como a matéria da forma no interior do modo de
produção considerado) — haverá também desdobramento. Assim, a
propósito do trabalho concreto, Marx escreverá que “na sua produção
‘o homem’ só pode ‘proceder como a própria natureza, isto é, só
modificar as formas da matéria (die Formen der Stoffe)' ” . (W.23, K.I,
p. 57; Dognin, op. cit., pp. 182-183, trad. nossa) E portanto, mesmo se
a produção do homem é análoga à da natureza, “se se retirar os (...)
trabalhos úteis (...), resta sempre um substrato material (eira M ate­
rielles Substrat) que é dado por natureza (von Natur vorhanden ist)
sem intervenção do homem” . (W.23, K.I, p. 57; Dognin, op. cit.,
pp. 182-183)16 Por outro lado, em direção progressiva, mas aqui a
diferença é antes entre forma e conteúdo17 (Gehalt ou Inhalt), seria
preciso dizer ainda que a forma, em sentido estrito, isto é, a forma
no interior da forma, se desdobra ela própria em forma (forma feno­
menal, aparência) e conteúdo, isto é, essência ou fundamento. Assim,
após as distinções já efetuadas, será preciso distinguir o valor de troca,
forma fenomenal (Erscheinungsform) do valor, do valor seu conteúdo
{Gehalt).
Os pontos mais importantes para a nossa discussão são, entre­
tanto, as duas primeiras divisões, forma e matéria enquanto diferença
que separa o capitalismo do universo antropológico geral, e forma e
matéria como diferença interior ao capitalismo. O que foi dito acima a
propósito do valor de uso (na sua relação com o valor) pode ser dito,
mudando pouca coisa, a propósito do trabalho concreto como da
divisão social do trabalho (relativamente ao trabalho abstrato). Com
efeito, a que remete finalmente a crítica de Benetti e Cartelier? O pro­
blema deles é que lhes parece difícil que o trabalho concreto seja
reconhecido como “social” — o universo do “social” , isto é, daquilo
que é socialmente reconhecido, correspondendo evidentemente ao uni­
verso das formas em oposição ao conteúdo antropológico — se a
148 RUY FAUSTO

“socialidade” se acha, para o capitalismo, no nível do trabalho abs­


trato.18 Essa dificuldade é tanto maior porque o reconhecimento do
caráter “social” do trabalho concreto parece representar uma queda
numa determinação puramente antropológica.19
Examinemos isso tudo mais de perto, começando pelo segundo
ponto. Como o valor de uso, o trabalho concreto e a divisão social do
trabalho são por um lado pressuposições antropológicas gerais.20 Mas
por outro lado, como o valor de uso, o trabalho concreto e a divisão
social do trabalho são postos no interior de cada modo de produção. No
que se refere ao capitalismo ou à produção de mercadorias, vemos que
o valor de uso aparece como suporte material do valor de troca. De
maneira análoga, “ a divisão social do trabalho (...) constitui a base
geral (die Allgemeine Grundlage)21 de toda produção de mercado­
rias” .22 Uma determinação como essa não é uma simples particulari­
zação. Assim como as determinações gerais não são fundamentos mas
pressuposições, ela representa na realidade uma “negação” . Isto vale
também para a determinação no interior dos modos de produção que
não sejam o capitalismo e a produção de mercadorias, embora em tais
casos a “negação” não tenha exatamente o mesmo caráter.23 Nessas
condições, a idéia de que no capitalismo, enquanto produção mer­
cantil, o trabalho concreto e a divisão do trabalho são determinações
“sociais” (em oposição às determinações simplesmente antropológicas)
não representa mais um problema: o antropológico não está lá en­
quanto tal, e ele não é também simplesmente particularizado. Ele só
está lá enquanto “ser-posto” , isto é, como “suprimido” .24
Mas aqui começa a dificuldade principal, que interessa o próprio
caráter da determinação posta no interior do capitalismo enquanto
produção de mercadorias. Aqui o problema não remete à questão da
relação entre as determinações postas e a determinação geral, mas à
questão da relação entre a determinação posta no interior do capita­
lismo ou da produção de mercadorias e a determinação posta no inte­
rior de outros modos de produção.
Para o caso do capitalismo enquanto produção de mercadorias, a
posição do trabalho concreto e da divisão do trabalho no interior do
sistema os integra no sistema de formas (em sentido geral) que constitui
esse modo, mas, como para o valor de uso, eles constituem apenas o
lado da materialidade no interior do sistema de formas.25 Isto já foi
indicado indiretamente no parágrafo anterior, quando escrevemos, ci­
tando Marx, que a divisão social do trabalho não é mais do que “a base
geral da produção de mercadorias” . Mas é necessário precisar. O tra­
balho concreto e a divisão social do trabalho são determinações inte­
riores ao modo de produção capitalista enquanto produção de merca­
dorias, primeiramente no sentido de que os seus produtos satisfazem ao
conjunto das necessidades no interior desse modo, inclusive as neces­
sidades do consumo produtivo. Mas ao mesmo tempo — e é própria-
MARX: LÓGICA E POLITICA 149

mente por isso que essa determinação “material” é um momento da


forma —, no sentido de que o trabalho considerado enquanto trabalho
concreto, se apresenta como conjunto de trabalhos privados e indepen­
dentes uns dos outros. Ê o que escreve Marx no texto da primeira
edição de O Capital, citado por Benetti e Cartelier: “(...) os valores de
uso (...) só são mercadorias porque eles são produtos de trabalhos
privados independentes uns dos outros, trabalhos privados que, entre­
tanto, dependem materialmente (stofflich) uns dos outros enquanto
membros particulares, ainda que autônomos, do sistema natural e
espontâneo (naturwüchsig) da divisão do trabalho. Eles estão, pois,
socialmente ligados precisamente pela sua distinção, pela sua utilidade
particular”. (Dognin, op. cit., p. 83, grifado por Marx, salvo “mate­
rialmente” e “socialmente ligados” , que nós grifamos) Que os traba­
lhos sejam aqui “trabalhos privados independentes” e ao mesmo tempo
“socialmente ligados” pode parecer estranho (e finalmente todo o pro­
blema está lá). Mas isto quer dizer que embora ligados — material­
mente ligados — eles não perdem entretanto as condições de trabalho-
dos-indivíduos, de trabalho de sujeitos.
Mas que os trabalhos satisfaçam a “uma necessidade social
determinada” (W.23, K.I, p. 87; Dognin, op. cit., p. 218), que eles
façam parte do sistema da divisão do trabalho — e eles fazem parte na
qualidade de trabalhos concretos — não é suficiente para que os seus
produtos se tornem efetivamente produtos-para-outrem, para que eles
mesmos sejam efetivamente trabalhos-para-outrem. Para isto é neces­
sário que à determinação social material se acrescente a determinação
formal — que entretanto a inverte. Com efeito, é somente sob a forma
da abstração (nova determinação social que se opõe à anterior)26 que o
produto do trabalho pode efetivamente passar para as mãos de outrem.
Mas no interior dessa nova determinação, o trabalho não aparecerá
mais como trabalhos-privados-dos indivíduos (os indivíduos serão “ne­
gados” , transformando-se em suportes), e os trabalhos (concretos)
tornar-se-ão trabalho (abstrato). Da “socialidade” 27 externa e material
se passará à “socialidade” intema, formal, que &contradiz.
Outra coisa ocorre com os modos não capitalistas ou não mer­
cantis. Nesse caso, igualmente, a posição da determinação geral é
“negação” , que nos introduz no interior de um sistema de formas
sociais.28 Mas, no interior do sistema de formas, não há mais desdo­
bramento entre matéria e forma, ou esse desdobramento toma um sen­
tido completamente diferente. Nos modos de produção não mercantis,
a determinação material não se abre a nenhuma determinação social
distinta de — e oposta a — uma determinação formal em sentido
estrito.29 Não haverá mais a dualidade trabalhos privados indepen­
dentes, ligados de um modo externo (e com significação subjetiva/
trabalho abstrato), isto é, a dualidade entre o fato de pertencer ao
sistema da divisão do trabalho e a condição-de-trabalho-efetivamente-
150 RUYFAUSTO

para-outrem: “a forma natural do trabalho,30 sua particularidade (...)


é aqui a sua forma imediatamente social” . (W .23, K.I, p. 91; Dognin,
op. cit., p. 223)
Ora, é essa oposição entre as duas determinações sociais do
trabalho no interior do capitalismo e da produção de mercadorias que
Benetti e Cartelier apreendem — é o mérito deles — como contra­
ditória. Só que eles apreendem essa contradição como contradição
subjetiva do pensamento de Marx. No fundo, o sentido da sua crítica é
mostrar que Marx afirma que o social não é o social. E com efeito, se é
assim, não seria melhor dar um nome diferente a cada urna das duas
determinações (denominando-as pelos seus predicados) de modo a
evitar a contradição? Mas se Marx diz duas vezes “social” (expri­
mindo, com isto, aquilo que é ao mesmo tempo sujeito da matéria e da
forma) é porque “socialidade material” e “socialidade formal” não são
aqui determinações simplesmente complementares, mas determinações
opostas. Se, por exemplo, por ocasião de uma crise, objetos que servem
para satisfazer necessidades sociais (portanto objetos já sociais) não se
tomam objetos efetivamente sociais (não podem efetivar-se como obje-
tos-para-outrem) é porque no capitalismo (ou na produção de merca­
dorias) o social pode excluir o social, ou o social contradiz o social.
Tudo o que Marx faz é apresentar essa realidade contraditória como
contraditória. Benetti e Cartelier acharam isto — e com razão —
contraditório e obscuro. Mas a contradição e a obscuridade só são
defeitos lógicos quando a realidade é clara e não-contraditória. Caso
contrário, são elas — e não a identidade e a clareza — que representam
a boa causa da racionalidade lógica.

c) Valor de troca, valor, trabalho abstrato


Completemos a análise com algumas considerações sobre o valor,
o valor de troca e o trabalho abstrato. Não faremos mais, aqui, do que
completar as idéias desenvolvidas no texto anterior. Se a mercadoria é
valor de uso, ela é igualmente valor de troca. E o valor de troca é uma
determinação que supõe que uma relação se estabeleça entre pelo
menos duas mercadorias. Para que a expressão de valor de uma mer­
cadoria em outras mercadorias seja possível, é necessário que sua
forma sensível seja reduzida a algo comum. Esse movimento que
conduz ao valor como fundamento do valor de troca e ao trabalho como
substância do valor não é uma generalização, mas uma redução. Razão
pela qual o valor de uso em geral não poderia servir como denominador
comum. Só se teria com isto uma generalização que de resto nos
conduziria a uma teoria subjetiva do valor. O movimento de redução é
ilustrado por Marx, tanto em O Capital como nas Teorias sobre a
mais-valia, através de exemplos tirados da matemática. Nos textos das
Teorias sobre a mais-valia, textos em que ele faz a crítica de Bailey,
MARX: LÖGICA E POLITICA 151

a analogia, introduzida por Bailey, para questionar a necessidade e a


possibilidade de uma redução dos valores de troca ao valor é o da
distância entre dois objetos. Contra Bailey, para o qual a distância não
é mais do que uma relação — “uma coisa (não) pode estar distante
em si sem referência a uma outra” 31 — Marx mostra que se “a dis­
tância é (...) uma relação” entre duas coisas, ela é “ ao mesmo tempo”
“algo diferente dessa relação entre essas duas coisas” . E mais: que a
distância entre duas coisas supõe “ algo de ‘intrínseco’, alguma ‘pro­
priedade’ das próprias coisas que as toma capazes de estar distantes
umas das outras” . “Qual a distância entre a sílaba A e a mesa?”
Pertencer ao espaço será a unidade de duas coisas mensuráveis e a sua
igualização sub specie spatii será a condição para medir a sua distância
para distingui-las “como pontos diferentes do espaço” .32 A analogia
tem o interesse de mostrar a necessidade da passagem da relação
(constituída pelo valor de troca) ao fundamento da relação, à sua
condição de possibilidade objetiva, passagem que nada tem a ver com
uma simples generalização; ela tem também o interesse de mostrar que
se passa aí de um universo qualitativamente diverso a um universo sem
qualidade ou de qualidade homogênea. A segunda analogia, que se
encontra em O Capital33 (encontramo-lo também nas Teorias..., ainda
no quadro da discussão com Bailey34 em forma um pouco diferente) se
refere (ao que toma possível) a determinação da superfície dos polí­
gonos. “Para determinar e comparar a superfície de todas as figuras
retilíneas se as resolve em triângulos. O próprio triângulo é reduzido a
uma expressão completamente diferente da sua figura (Figur) visível —
o semiproduto da sua base pela sua altura” .35 O interesse dessa
ilustração, na qual se passa da figura geométrica à expressão algébrica,
é o fato de que toda referência a um espaço — mesmo um espaço
inteligível — desaparece no ponto de chegada. Entretanto, tanto
quanto o espaço geométrico, uma expressão algébrica é evidentemente
uma coisa bem diferente de uma determinação social objetiva como o
valor. O resultado essencial que se deve extrair desses dois exemplos é
de que a passagem do valor de troca ao valor é uma redução de uma
forma de manifestação36 ao seu fundamento, redução que é ao mesmo
tempo a de um universo de objetos qualitativamente diversos a um
universo de objetos sem diversidade qualitativa.37
Mas a redução dos valores de troca ao valor é ao mesmo tempo
constituição do conceito de trabalho abstrato, como substância do
valor. A importância que Marx dava a esse conceito cuja apresentação
ele considerava como uma de suas contribuições fundamentais é bem
conhecida. “O melhor no meu livro é: 1. (sobre este repousa toda a
compreensão dos facts (fatos) o duplo caráter do trabalho posto em
evidência (hervorgehobene) desde o primeiro capítulo, conforme ele se
exprime em valor de uso ou em valor de troca (...)” .38 “(...) os três
elementos fundamentalmente novos do livro: (...) 2. (...) uma coisa
152 RUY FAUSTO

simples (das Einfache) escapou a (todos) os economistas sem exceção,


é que se a mercadoria tem o duplo (caráter) de valor de uso e de valor
de troca, o trabalho representado na mercadoria deve também ter
duplo caráter, enquanto que a simples análise do trabalho sem frase
(sansphrase) como em Smith, Ricardo etc. se choca sempre com coisas
inexplicáveis (auf Unerklärliches). Este é na realidade todo o segredo
da concepção crítica” .39 Mas nessas condições, interessa precisar qual
a natureza do descobrimento de Marx, qual o caráter da sua contri­
buição em relação ao discurso da economia clássica. O descobrimento
de Marx representa na realidade uma posição (isto é, passagem à
ordem do discurso explícito) daquilo que estava pressuposto (o que
existia somente em forma implícita: o que estava e não estava) nos
economistas clássicos: “No que se refere ao valor em geral, a economia
política clássica em nenhum lugar distingue de um modo expresso
(iausdrücklich) e com uma consciência clara (mit klaren Bewustsein) o
trabalho tal como ele se apresenta no valor, do mesmo trabalho, tal
como ele se apresenta no valor de uso do seu produto. Naturalmente,
ela estabelece de fato a diferença (sie macht (...) den Unterschied
tatsächlich) já que ela considera o trabalho ora quantitativamente, ora
qualitativamente. Mas não lhe ocorre (aber es fällt ihr nicht ein) que
uma diferença puramente quantitativa dos trabalhos pressupõe (vo-
raussetzt) uma unidade qualitativa, (ou sua) igualdade, ou sua redução
ao trabalho humano (como) abstrato (abstrakt menschliche Arbeit)".
(W.23, K.I, p. 94, n. 31; Dognin, op. cit., p. 226, n. 31, grifo nosso)
A diferença existia pois, mas não “de modo expresso”, mas somente
“de fa to ”: a diferença quantitativa expressa pelos clássicos a "pres­
supõe”. Mas se aquilo que é dito não vai tão longe quanto aquilo que é
visado ou, o que dá no mesmo, se há conteúdos visados (pressupostos)
que não são expressos (postos), a pressuposição é às vezes posta a
despeito do teórico — exprimindo em parte pelo menos, o que o
próprio sujeito não quer dizer (e que entretanto ele visa). Esta espécie
de autoposição do próprio discurso em face ao discurso do sujeito (com
a sua partição entre o que é visado e o que é posto), Marx a encontra
em Benjamin Franklin: “Um dos primeiros economistas que após Wil­
liam Petty penetrou a natureza do valor, o célebre Franklin escreve:
‘Dado que o comércio não é absolutamente nada senão a troca de um
trabalho contra um outro trabalho, é em trabalho que se avaliará da
maneira mais justa o valor de todas as coisas’ ” . (The Works o f B.
Franklin etc., editedby Sparks, Boston, 1836, vol. II, p. 267) Franklin
não se dá conta (ist sich nicht bewusst) que avaliando “em trabalho” o
valor de todas as coisas, ele faz abstração da diferença (Verschie­
denheit) dos trabalhos — e os reduz assim a trabalho humano igual.
O que ele não sabe, ele entretanto o diz. Ele fala primeiro “ de um
‘trabalho’ sem mais (ohne weitere Bezeichnung) como sendo a subs­
tância do valor de todas as coisas” . (W.23, K.I, p. 65, n. 17, grifo
MARX: LOGICA E POLITICA 153

nosso) O discurso põe aqui o que é simplesmente visado pelo sujeito:


mas como para o sujeito o conceito é simplesmente visado mas não
posto, poderíamos dizer que essa posição do discurso, ela própria é
para o sujeito uma posição não visada. O que ele (o sujeito) pressupõe
ele não põe, e o que ele põe, a saber, a própria posição, ele não
pressupõe.
Que o descobrimento de Marx seja “somente” a posição de um
conceito anteriormente pressuposto não é sem importância, pois isto
mostra tudo o que significa a explicitação de um conceito implícito —
esta operação aparentemente banal — na realidade a posição do que
era pressuposto, no interior da lógica dialética.**

d) A forma do valor

Podemos passar agora à análise da forma do valor, questão que é


objeto de um longo desenvolvimento crítico no livro de Benetti e Carte-
lier. Será necessário examiná-la em detalhe, tanto no que concerne ao
texto de Marx como no que se refere ao dos seus críticos.
Inicialmente, é necessário se perguntar de que se trata. Já indi­
camos como se chega à análise da forma do valor: depois de ter passado
do valor de troca ao valor (redução da forma fenomenal ao funda­
mento), volta-se ao valor de troca, forma (fenomenal) do valor. A
análise da forma do valor nos permite passar do valor de troca tal como
ele aparece na relação entre duas mercadorias, à forma dinheiro.
Trata-se, pois, de fato, como o assinalam de resto os dois autores
(p. 151) — mas eles supõem, sem razão, que uma outra interpretação
também seria possível —, de uma gênese do dinheiro. Esta gênese é
lógica41 e não histórica em seu sentido e sua finalidade gerais; e
entretanto alguns de seus momentos são mais ou menos susceptíveis
de um rebatimento “histórico” , de uma representação no tempo. Mas
as referências “históricas” (isto é, temporais) que se poderia encon­
trar aí aparecem sobre o fundo de uma análise lógica, como um dis­
curso paralelo e de certo modo pressuposto.
Já explicamos, a propósito do ponto de partida, por que é
necessário começar pela mercadoria e não pelo dinheiro. Formule­
mos, entretanto, ainda uma objeção (que poderia situar-se tanto no
início da apresentação como no nível da forma do valor). Mesmo se
há razões para começar pela mercadoria e não pelo dinheiro, o fato
de se situar aquém do dinheiro, no nível de uma realidade que parece
contradizer mesmo a aparência de produção de mercadorias não
levantaria um problema? Quaisquer que sejam as razões, qual é a
legitimidade desse recuo em relação à própria aparência de produção
de mercadorias? Não cairíamos com isso na “fábula da troca” ?42
154 RUY FAUSTO

Deixaremos de lado, por enquanto, esse problema, porque a sua res­


posta, embora se situando num plano que lhe é próprio, é análoga
àquela que se deve dar ao problema geral do estatuto lógico da teoria
da circulação simples, ao qual voltaremos na segunda parte deste
texto.
Voltemos à questão da gênese. Dizer que se trata da gênese do
dinheiro exige que se explique o que é uma gênese, questão sobre a
qual a confusão é freqüente. Gênese se distingue do que podemos
chamar de desenvolvimento43 Gênese é pré-história, no caso pré-his-
tória lógica; desenvolvimento é história, no nosso caso história lógica.
A primeira designa um processo anterior ao nascimento do ser, no
caso o dinheiro, a última um processo posterior ao seu nascimento.
Para o caso da teoria do dinheiro em O Capital, é importante fixar
essa diferença, porque em O Capital temos primeiro uma gênese do
dinheiro, uma análise das formas que se situam aquém do dinheiro, e
depois um desenvolvimento, uma análise das formas que se situam
além da posição (isto é, do “nascimento lógico” do dinheiro), e que
são as únicas que são propriamente formas do dinheiro. Voltaremos
ainda sobre a significação lógica de uma gênese.
O ponto de partida é a forma simples do valor, x mercadoria A
= y mercadoria B (ou x mercadoria A vale y mercadoria B). Por que
começar por aí?44 Poderíamos responder pelas seguintes considera­
ções: o dinheiro, que é o ponto de chegada, é ao mesmo tempo
unidade e pluralidade (pois, como o veremos, e nos exprimindo por
enquanto de um modo aproximado, ele é ao mesmo tempo merca­
doria e a generalidade ou a universalidade das mercadorias). Para
constituí-lo é preciso, pois, o momento da unidade como o da plura­
lidade. E — parece — é preferível começar pela unidade que por ora
é somente unidade simples, unidade que não contém a pluralidade,
e desenvolver em seguida o momento da pluralidade.
Mas — novo problema — o que é que se analisa, na realidade,
quando se analisa a forma simples do valor? Trata-se da análise de
uma troca — de uma troca efetiva? Na realidade, o que se analisa não
é a troca efetiva — que é propriamente objeto do capítulo 2, “O pro­
cesso de troca” . Quanto à troca possível (ou à possibilidade de uma
troca) ela está lá, bem entendido, mas essa formulação ainda é dema­
siado vaga. O que se analisa quando se analisa a forma (simples)
do valor é propriamente a expressão do valor. Mas onde se encontra
essa expressão? E o que complica ainda o problema: é preciso per­
guntar ainda onde ela aparece. Isto é, onde se exprime a expressão do
valor, onde aparece essa aparição. Estamos aqui diante do problema
difícil da expressão de uma expressão, isto é, da distinção entre essên­
cia e aparência no interior de uma aparência. A expressão do valor ela
própria está na relação entre as duas mercadorias. A relação que ela
MARX: LOGICA E POLITICA 155

constitui, embora dependendo da ação dos agentes ou de pelo menos


um agente — do “estabelecimento de uma relação” dos produtos
como mercadorias — é uma relação objetiva.45 Com o encontro de dois
produtores com vistas a uma troca, se desencadeia um processo que
independe dos agentes. Mas onde aparece a expressão que constitui
a relação? Como por enquanto ainda não temos o dinheiro (como di­
nheiro), a expressão de valor só poderia aparecer nas mercadorias.
Ora, nas mercadorias ela não aparece, isto é, a aparência do valor
não aparece como aparência sensível. Mas onde aparece então essa
aparência? Ela só aparece no julgamento — expressão de uma expres­
são — “x mercadorias A valem y mercadorias B” . Isto não quer dizer,
como já indicamos, que a expressão de valor como tal seja subjetiva.
Mas mesmo a expressão46 da expressão não é subjetiva. Se eu disser
“x mercadorias A valem y mercadorias B” , direi uma relação obje­
tiva; e a expressão de uma relação objetiva, mesmo, e sobretudo, se se
tratar da expressão de uma expressão, não é subjetiva. Ela é o corre­
lato do objeto. Esse estatuto objetivo da linguagem vale de uma ma­
neira geral para o estatuto da linguagem em Marx.
Mas continuemos. Depois de se interrogar sobre a legitimidade
do ponto de partida da análise do valor, Benetti e Cartelier criticam a
maneira de representar a relação e o próprio conteúdo dela: “Em se­
gundo lugar, o sinal de igualdade aparece como incorreto: não é tanto
como fração de uma mesma espécie de grandeza (o trabalho social)
que a mercadoria A e a mercadoria B entram em relação, mas como
mercadorias individualizadas” (na falta disto, é o próprio problema
tratado por Marx que desaparece). A “forma polar” descrita por
Marx o atesta bem:
(1) 20 m de tela £ 1 casaco
em que => designa “é expresso como valor relativo”
e que ->• designa “é equivalente a” .
“Que o relacionamento da tela e do casaco pressupõe o valor
como espaço de comensurabilidade — continuam Benetti e Cartelier
— não impede de forma alguma que não estejamos aqui numa rela­
ção de equivalência: a relação (1) não é reflexiva” , (p. 143)
Vejamos melhor isso tudo. Certamente a relação não é uma
relação de equivalência no sentido da lógica comum. Ela não é refle­
xiva (uma mercadoria não exprime nela própria o seu valor). Entre­
tanto, se a questão da reflexividade nos interessará mais adiante, por
enquanto é mais importante saber se a relação é simétrica (se se pode
inverter os seus termos). Na realidade, a relação não é (analitica­
mente) simétrica. O signo “ = ” , pelo qual Marx representa a relação,
não designa a igualdade lógico-matemática, caso particular entre as
relações de equivalência47 e que é portanto simétrica, se a = b,
b = a.
156 RUY FAUSTO

A afirmação de que a relação que constitui a forma simples do valor não é


simétrica não deixa de levantar problemas. Aparentemente ela vai contra os
textos em que Marx escreve que a expressão da forma simples inclui a expres­
são inversa: “A equação: 20 varas de tela = 1 casaco, ou 20 varas de tela valem
1 casaco, inclui (schliesst... ein) a equação idêntica: 1 casaco = 20 varas de
tela, ou 1 casaco vale 20 varas de tela” . (Dognin, op. cit., p. 63, texto da
primeira edição de O Capital, grifado por Marx) “A bem dizer, a expressão 20
varas de tela = 1 casaco ou 20 varas de tela valem 1 casaco inclui (schliesst...
ein) também a relação inversa: 1 casaco = 20 varas de tela ou: 1 casaco vale
20 varas de tela”. (W.23, K.I, p. 63; Dognin, op. cit., p. 119, apêndice à
primeira edição de O Capital) E entretanto, Marx acrescenta no texto do
apêndice: “É porém necessário inverter a equação para exprimir relativamente
o valor do casaco, e urna vez feito isto, é a tela que se torna equivalente, em
lugar do casaco. A mesma mercadoria, na mesma expressão de valor, não pode
pois se apresentar (auftreten) simultaneamente nas duas formas. Estas antes se
excluem(schliessen... aus) comodois polos”. (Dognin, op. cit., p. 117, grifado
por Marx) “Pensemos (Denken) urna troca (Tauschhandel) entre o produtor
da tela A e o produtor do casaco B. Antes de se chegar a um acordo sobre a
transação (sie Handels einig werden) A declara: 20 varas de tela valem 2
casacos (20 varas de tela = 2 casacos), enquanto B declara: 1 casaco vale 22
varas de tela (1 casaco — 22 varas de tela). Após regatear muito tempo, eles
chegam afinal a um acordo. A declara: 20 varas de tela valem um casaco, e B:
um casaco vale 20 varas de tela. Nesse caso, as duas mercadorias, a tela e o
casaco, se acham simultaneamente na forma relativa e na forma equivalente.
Mas, note-se bem, isto só vale para duas pessoas diferentes e em duas expres­
sões de valor que apenas surgem simultaneamente. Para A — e porque,
segundo ele, a iniciativa parte da sua mercadoria — a sua tela se encontra na
forma relativa do valor, enquanto que a mercadoria do outro, o casaco, se acha
na forma equivalente. E inversamente, do ponto de vista de B. Na mesma
expressão de valor, a mesma mercadoria nunca possui portanto, simultanea-
mente, as duas formas, nem mesmo nesse caso” . (Dognin, op. cit., p. 117,
grifado por Marx) Na quarta edição de O Capital, encontramos igualmente:
“Mas me é entretanto necessário inverter a equação para exprimir relativa­
mente o valor do casaco, e urna vez que eu o tenha feito, é a tela que se toma
equivalente em lugar do casaco. A mesma mercadoria, na mesma expressão de
valor, não pode, pois, se apresentar (austreten) simultaneamente nas duas
formas. Estas últimas antes se excluem (schliessen... aus) como dois pólos".
(W.23, K.I, p. 63; Dognin, op. cit., pp. 189-190, grifo nosso)48 Vemos que
“incluir” (einschliessen) se torna “excluir” (ausschliessen), se consideramos a
mesma expressão de valor. O que é que isto quer dizer? Isto quer dizer duas
coisas que se excluem do ponto de vista da lógica formal: 1) que as duas
expressões são contraditórias; 2) que se pode (entretanto)49 passar de urna a
outra sem tornar falsa a primeira. É que a operação que permite passar da
primeira expressão à segunda — operação que como o seu análogo em lógica
formal (a implicação) é em geral passagem de uma determinação implícita a
uma determinação explícita — não é uma implicação, mas a posição de urna
determinação pressuposta. O que significa, por um lado, que a operação não é
de ordem simplesmente analítica (como se poderia dizer em geral da impli­
cação e das operações formais), mas, como escreve na Grande Lógica (a
MARX: LÓGICA E POLITICA 157

propósito de passagens grosso modo análogas),50 ela é ao mesmo tempo analí­


tica e sintética. Ou, o que vem a dar no mesmo: a determinação explicitada não
é aqui igual à — mesma — determinação implícita. A explicitação, que na
apresentação dialética é posição do que só estava pressuposto — passagem de
um em-si a um para-si51 —, muda o valor de verdade do que estava implícito.
Isto explica a possibilidade de conservar, mas como determinação “negada”,
a primeira expressão: se a expressão inversa já estivesse posta (ou se ela esti­
vesse tal como é como posta) na primeira expressão, a contradição — que oporia
então, na primeira expressão, termos postos (como termos postos) — anularia
a primeira expressão. Mas isto quer dizer que em termos estritamente analí­
ticos não há inversão possível. Poder-se-ia pensar, então, que seria preciso
redefinir a noção de simetria (como se fez para outras noções, por exemplo
para a contradição) no interior da relação pressuposição/posição ou da dialé­
tica em geral. O que nos levaria a dizer que a relação é e não é simétrica.
Esta não é, entretanto, a melhor resposta. O que aqui interessa a Marx é
mostrar a ausência, no nível da aparência (isto é, da expressão do valor) de uma
propriedade formal que está presente, se se comparar simplesmente, dizendo-
as equivalentes, mas sem exprimir o valor, duas grandezas de valor.52 A deter­
minação dialética está aqui no fato de que uma equivalência formal no nível
das “essências, mudas” se exprime por uma “equivalência” que não tem mais
as suas propriedades formais. Ou, se se quiser, a dialética aparece aqui como a
contradição entre o formal e o dialético. Deve-se, pois, conservar a definição
formal de simetria que põe em evidência essa diferença, em nome mesmo do
rigor dialético. A conclusão será, pois, que a primeira expressão não é (anali­
ticamente) simétrica, como queríamos mostrar.53

E com isto já respondemos à questão de saber por que Marx


representa a relação pelo signo da igualdade. Trata-se provavelmente
de dar lugar, com isso, tanto à igualdade lógica abstrata que se situa
no nível das essências, como a “equivalência” (de natureza totalmente
diversa) que ocorre no nível da expressão. De resto, numa das versões da
análise da forma do valor, Marx distingue explicitamente os dois
sentidos da noção de “equivalência” . “Em terceiro lugar. A fórmula:
20 varas de tela = 1 casaco ou 20 varas de tela valem um casaco,
podemos também exprimi-la da seguinte maneira: 20 varas de tela e
1 casaco são equivalentes, ou ainda, são ambos valores de uma mesma
grandeza. Com isto não exprimimos o valor de nenhuma das duas
mercadorias no valor de uso da outra. Nenhuma das duas se acha,
pois, na forma equivalente. Equivalente só significa aqui algo de gran­
deza idêntica, tendo as duas coisas sido primeiro reduzidas implici­
tamente (stillschweigend, tacitamente) na nossa cabeça à abstração
valor”.M (Dognin, op. cit., p. 127, apêndice à primeira edição de O
Capital, grifado por Marx) Se Marx representou a relação desse modo
é porque, ao lê-la, não se elimina abstratamente a relação de igual­
dade de equivalência no sentido correto, a qual existe na base da
relação. Se a expressão “x mercadorias A = y mercadorias B” é lide
(como se deve ler) “x mercadorias A valem y mercadorias B” a eaui
158 RUYFAUSTO

valência em sentido corrente que se acha no nível do fundamento se per­


de na leitura — ela só é conservada pela escrita. A significação contra­
ditória da representação permite conservar ao mesmo tempo o funda­
mento (há tanto valor em A como em B, ou A = B “módulo” valor, re­
lação simétrica) e a sua expressão não-simétrica “x A vale y B” .55
Retomemos agora o problema da gênese. A análise da forma do
valor representa, dissemos, uma gênese do dinheiro. Mas no ponto de
partida, na forma simples, não teríamos mais do que mercadorias?
Ou, em outros termos, nesse ponto de partida, o dinheiro está sim­
plesmente ausente? A resposta a esta questão, que a lógica do enten­
dimento só pode recusar, só pode ser uma resposta contraditória. Na
realidade, poder-se-ia dizer que o dinheiro não é o ponto de partida
da sua gênese, mas essa resposta seria parcial — e portanto falsa.
A resposta verdadeira é esta: o dinheiro está e não está no ponto de
partida. Porque no ponto de partida não temos nem o dinheiro nem a
ausência pura e simples do dinheiro — mas o germe do dinheiro.56
O germe é a forma equivalente simples que toma a mercadoria B, ou
antes, ele é a mercadoria que toma essa forma. A forma equivalente
em que se encontra a mercadoria B não é, sem dúvida, a forma di­
nheiro, mas também não é verdade que esta forma esteja absoluta­
mente ausente. Na realidade ela está “lá” — mas como “forma equi­
valente” (que entretanto não é a forma dinheiro). Aliás, é assim no
ponto de partida de qualquer gênese. Esse ponto de partida pode ser
expresso por um juízo do tipo A é B , mas um juízo em que o “é” não
indica nem uma relação de inerência (ou de pertinência) nem uma
relação de inclusão.57 Ele exprime uma relação “reflexiva” em sentido
dialético: A “é” B quer dizer que A “passa” “em” B, significa que A
se “nega” (mas não se anuía) em B, ou ainda que A é simplesmente
pressuposto, sendo posto somente B. Assim, no nosso caso, a propo­
sição que exprime o ponto de partida seria: “o dinheiro é o equiva­
lente simples” 58 — mas proposição que se deve entender como um
juízo de reflexão.59 Isto é, como uma proposição em que o sujeito
“dinheiro” é somente uma pressuposição (um ponto de partida que
não é um fundamento ou um sujeito), e que como tal “passa” “no”
seu predicado, que é o único termo posto. Observar-se-á que esse
predicado convém sem dúvida ao sujeito pressuposto — mas por isso
mesmo, porque o sujeito só é pressuposto — ele contradiz o sujeito.
Com efeito, se se pode dizer, como dissemos, que o dinheiro “é” a forma
equivalente simples, pode-se dizer também que “a forma equivalente
simples” (seu predicado) não diz o sujeito. De fato, a forma equivalente
simples não é o dinheiro, ela não convém como predicado ao sujeito
(posto) dinheiro. É preciso dizer, pois, que o dinheiro está e não está
nesse ponto de partida.
Passemos agora a um outro problema, relativo à forma simples
(e à forma do valor em geral), problema que retoma as questões
MARX: LOGICA E POLITICA 159

discutidas no parágrafo anterior (c). Trata-se da questão do papel que


tem o valor de uso na análise da forma do valor. No desenvolvimento
anterior sobre o valor de uso, nos detivemos no momento em que o
valor de uso era só o suporte material do valor. Esta era a função
específica do valor de uso na qualidade de determinação material no
interior da forma social. Com a análise da forma do valor — a gênese
do dinheiro — o valor de uso passa da sua função de suporte à função
de material em que se expressa o valor (sempre enquanto determi­
nação material no interior da forma). Com efeito, se há uma não-
simetria na expressão do valor, isto se deve ao fato de que os valores
de uso das duas mercadorias não têm a mesma função.
Se o valor de uso da mercadoria A continua sendo simplesmente
o suporte do valor de A, o valor de uso da mercadoria B, embora
continuando a ser o suporte do valor da mercadoria B, se toma, na
relação entre A e B, o material no qual se exprime o valor de A. Ela
se tom a a encarnação sensível do valor de A. Com efeito, a não-
simetria não diz senão que, na expressão do valor, o valor não aparece
do mesmo modo para cada uma das duas mercadorias. O valor de A
aparece no valor de uso de B, qualitativamente e quantitativamente.
O valor de B é também expresso, porque só uma mercadoria pode
servir de espelho de valor (para uma outra). Mas ela só aparece quali­
tativamente, e pelo fato de servir como espelho, como forma equi­
valente, para uma outra mercadoria.
Esta re-posição do valor de uso — tanto aqui, no nível da aná­
lise da forma do valor, como na continuação do texto de O Capital —
é um dos alvos principais de crítica de Benetti e Cartelier: “(...) a
forma simples que Marx toma como ponto de partida implica (...)
que o equivalente não pode ser senão uma expressão material do valor
da outra mercadoria”. Marx apresenta o problema assim: “Para fixar
a tela como pura expressão coisificada do trabalho humano, é preciso
fazer abstração de tudo aquilo que fa z dela realmente (wirklich, efeti­
vamente) uma coisa (Ding). A objetividade do trabalho humano, que
é ele próprio abstrato (...) é necessariamente uma objetividade abs­
trata, uma coisa do pensamento (Gedankending). É assim que o tecido
do linho se tom a uma fantasmagoria (Himgespint). Mas as mercado­
rias são coisas (Sachen). O que elas são, elas devem ser à maneira das
coisas (sachlich), ou mostrá-las nas suas próprias relações de coisas
((Dognin) p. 53 (texto da primeira edição de O Capital))’’. (Benetti e
Cartelier, p. 144) “Nesse texto — continuam Benetti e Cartelier — já
se vê, em forma sintética, o deslizamento necessário que impõe a
Marx o seu mau ponto de partida, a saber, a forma I. Marx dirá que
não há um átomo de matéria (natural, Naturstoff — RF) que penetre
no seu (...) (da mercadoria)'(...) valor (...) que (...) os valores das
mercadorias só têm uma realidade puramente social. (Xe Capital
(Plêiade I), p. 576)” . (Benetti e Cartelier, p. 144) “Ora, escrevem
160 RUY FAUSTO

ainda Benetti e Cartelier, as relações materiais, isto é, objetivas,


sociais, são anunciadas aqui como sendo relações entre coisas e ao
mesmo tempo entre valores” . (Ibidem ) “O deslizamento se sitúa evi­
dentemente sobre o termo ‘material’, que significa ao mesmo tempo
social, objetivo e materialidade física da coisa. De onde o desliza­
mento: a objetividade é atribuída a essa materialidade física. Em
outros termos: a objetividade do valor é puramente abstrata, ela nada
tem a ver com a materialidade física. Por que então, para se exprimir,
ela teria necessidade de uma materialidade física? Por que o ‘corpo’
do equivalente seria necessário e suficiente para objetivar o valor?
Nesse nível, a resposta pode ser encontrada na identificação entre a
materialidade e a objetividade: 3 m de tecido, porque tecido e 3 m
têm uma objetividade socialmente reconhecida” , (pp. 144-145, gri­
fado por Benetti e Cartelier) E a partir daí os dois autores tentam
mostrar que, se Marx faz a crítica da “aparência falsa” que consiste
em pensar que a forma equivalente provém do valor enquanto tal
(isto é, nós observamos, do valor de uso considerado independente­
mente da produção de mercadorias), a maneira pela qual Marx
apresenta a expressão do valor (fazendo do valor o material em
que ele se exprime) reforçaria na realidade uma falsa aparência:
“Fica visível imediatamente que esse tipo de falsa aparência é a con­
seqüência lógica necessária da objetividade atribuída por Marx ao cor­
po do casaco” , (p. 145, grifado por Benetti e Cartelier) Em ou­
tros termos, Marx pretende fazer a crítica do fetichismo, mas na
realidade ele próprio fetichiza. Esse tema do fetichismo de Marx —
que não é particular à crítica de Benetti e Cartelier60 — reaparecerá
mais adiante.
Reencontramos aqui num nivel ulterior da apresentação o pro­
blema que foi discutido a propósito do valor de uso e do trabalho
concreto. Para não voltar ao que já foi explicado tentaremos aqui, por
um lado, apreender a forma específica que o problema toma nesse
ponto, e, por outro lado, generalizá-lo em certa medida, aproveitando
o enriquecimento que lhe advém dessa nova forma.
Aqui como anteriormente, Benetti e Cartelier parecem surpreen­
didos com o papel que tem o valor de uso, e em geral a “matéria” , na
crítica da economia política, de Marx. Tudo se passa como se, para
eles, esse papel não fosse legítimo. Em outros termos, tudo se passa
como se para eles o procedimento de Marx, do ponto de vista do
próprio Marx (segundo a interpretação deles) só pudesse ser válido se
tivesse como objeto apenas as form as, isto é, se pusesse sempre entre
parênteses a camada “material” . Ora, a esse respeito, seria preciso
dizer em primeiro lugar, começando a análise pelo nivel que não é
sem dúvida o mais profundo, o da atitude consciente de Marx, que
Marx se explicou bem sobre o papel que tem na sua crítica o valor de
uso. Ele escreve, efetivamente, nas notas sobre o manual de A. Wag-
MARX: LÖGICA E POLITICA 161

ner: “Por outro lado, o vir obscurus não viu que já na análise da
mercadoria o meu texto não se limita ao duplo modo (Doppelweise)
em que ela se apresenta, mas se vai adiante imediatamente até que,
nesse ser duplo (Doppelsein) da mercadoria se apresenta o duplo
(Zweifacher) caráter do trabalho, de que ela é o produto: o trabalho
útil, os modos concretos (den konkreten Modi) dos trabalhos que
criam valores de uso, e o trabalho abstrato, o trabalho enquanto gasto
de força de trabalho, qualquer que seja a forma ‘útil* pela qual ela é
gasta (sobre o que mais adiante se baseia a apresentação do processo
de produção); que no desenvolvimento da forma do valor da merca­
doria, e em última instância, da sua forma dinheiro, portanto do di­
nheiro, o valor de uma mercadoria se apresenta no valor de uso, isto
é, na forma natural da outra mercadoria, que a própria mais-valia é
deduzida de um valor de uso ‘específico’ da força de trabalho, o qual
pertence exclusivamente a esta última etc. etc.; que, em conseqüên­
cia, o valor de uso tem no meu texto um papel muito mais importante
do que (aquele que ele desempenhou) até aqui na economia". (W.19,
1969, pp. 370-371, grifado por Marx, trad. nossa; Oeuvres, Economie
II, op. cit., p. 1545) Essas considerações poderiam ser complemen­
tadas pelos textos das Teorias... em que se trata da importância do
valor de uso no interior da crítica da economia política.61 Nada pare­
ceria mais estranho a Marx do que a idéia de uma crítica da economia
política puramente “formal” , purificada de toda referência à camada
material. Na realidade, ele acredita que o papel que nela tem a maté­
ria é uma das originalidades do seu procedimento
Tomado em forma objetiva, o problema aparece como idêntico
àquele que foi discutido anteriormente, mas se apresentando agora
em nível “superior” : aqui não só aparece o desdobramento do social
nos opostos matéria e forma, mas também — contradição desenvol­
vida — a matéria se torna fenômeno (forma fenomenal) da forma, seu
contrário. O valor de uso que era suporte do valor toma-se agora
material em que este se exprime. É afinal este cruzamento de contrá­
rios que Benetti e Cartelier, com razão, põem em evidência. ,E, ainda
uma vez, isto lhes parece — com razão — escandaloso. Marx separou
de maneira mais estrita a matéria da forma, o concreto do abstrato, e
eis que ele afirma que um dos opostos se tomou a forma fenomenal
do outro! Anteriormente um “social” que parecia antes “antropoló­
gico” devia coexistir com um “social” que lhe era oposto. Agora é
preciso ainda que um dos opostos sirva para exprimir o outro! Apa­
rentemente, tentando unir termos opostos, não fazemos mais do
que nos entranhar na contradição. E se trata disso mesmo. O des­
lizamento da objetividade na materialidade nada mais é do que a
re-posição (aqui uma segunda posição) da matéria — oposta à forma
— enquanto material para a expressão da forma.62 E esse movimento
é “contraditório” no sentido de que ele reúne pela relação essência/
162 RUYFAUSTO

aparência termos definidos anteriormente como sendo rigorosamente


contrarios. Mas que esse movimento é “contraditório” é o próprio
Marx que o diz: “A primeira particularidade que chama a atenção
(auffàllt) quando se considera a forma equivalente é a seguinte: o
valor de uso se toma forma fenomenal do seu contrário (Gegenteil),
o valor” . (W. 23, K.I, p. 70; Dognin, p. 198, grifo nosso) “(...) Urna
segunda particularidade da forma equivalente: o trabalho concreto se
torna forma fenomenal do seu contrário (Gegenteil), do trabalho hu­
mano em abstrato (abstrakt menschlicher A rbeit)". (W.23, K.I, p.
73; Dognin, p. 201, grifos nossos) E Marx chega a descrever esse
movimento como um “ quiproquó” : “A forma natural da mercadoria
se torna forma do valor. Mas note-se bem, esse quiproquó só se pro­
duz para uma mercadoria B (...) no interior da relação de valor (...)” .
(W.23, K.I, p. 71; Dognin, p. 198) Ainda uma vez o “ quiproquó” do
sujeito não é mais do que a reprodução de um “ quiproquó” das
coisas. São as coisas que se entranham em determinações “contradi­
tórias” . O discurso dialético as segue, apenas.
Quanto à imputação de uma queda na falsa aparência, isto é,
no fetichismo, digamos por enquanto que é confundir a expressão da
forma na matéria com a idéia de que a forma está dada na matéria
enquanto matéria. Mas seria melhor desenvolver as considerações de
Benetti e Cartelier sobre esse ponto, quando chegarmos à forma di­
nheiro.
Passemos agora às formas II e III. Forma II: z mercadorias A
= v mercadorias B ou v mercadorias C ou w mercadorias D ou x
mercadorias E ou = etc. É aqui que Benetti e Cartelier introduzirão a
tese segundo a qual a expressão do valor (na forma II, mas a obser­
vação valeria também para a forma I) é puramente subjetiva. Daí,
eles passam à afirmação segundo a qual, a propósito dessas formas,
não se poderia nem mesmo falar de valor. Analisemos em detalhe os
seus argumentos. A crítica desses argumentos será útil também para
pensar a passagem de II a III.
Eles escrevem: “O valor de A só está representado, na forma II,
tio sentido preciso seguinte: o do poder de compra de A em termos de
uma série de mercadorias diferentes. Mas nesse caso o ‘valor’ de A
assim exposto só pode ser interpretado como valor ‘individual’, isto é,
não social, que só tem significação para o proprietário de A. Este
fato, o de que a forma II, em vez de expor o valor de A, exprime uma
das primeiras noções smithianas de riqueza (o valor subjetivo de troca,
isto é, para ‘aquele que possui’), é reconhecido explicitamente, em­
bora em forma atenuada, por Marx, no ‘Apêndice’ (Dognin) p. 163,
quando ele opõe a exclusão da forma II à exclusão da forma III” .
(Benetti e Cartelier, p. 147) Seguem-se duas citações, das quais a
segunda é truncada: Citemos o texto de Marx de um modo mais com-
MARX: LÓGICA E POLÍTICA 163

pleto: “(...) Na forma desenvolvida do valor (forma II) uma merca­


doria exclui todas as outras para nelas exprimir o seu próprio valor.
Esta exclusão pode ser um processo puramente subjetivo, obra, por
exemplo, do possuidor da tela, quando ele avalia em muitas outras
mercadorias o valor da sua. Pelo contrário, uma mercadoria só se
encontra na forma equivalente geral (forma III) porque e na medida
em que, enquanto equivalente, ela própria é excluída por todas as
outras mercadorias, k exclusão é aqui um processo subjetivo que não
depende da mercadoria excluída” . (Dognin, op. cit. , p. 163, grifado
por Marx) Esse texto deve ser interpretado a partir de certas passa­
gens do capítulo 2 do livro I de O Capital, “ O processo de troca” .
Com efeito, no capítulo 2, Marx escreve que, “na troca imediata dos
produtos, cada mercadoria é meio de troca imediato para o seu pos­
suidor, mas (ela não é) equivalente para o seu possuidor senão en­
quanto ela é valor de uso para ele” . (W.23, K.I, p. 103; Oeuvres,
Economie I, op. cit., p. 634, grifo nosso) “Para ele (para o possuidor
da mercadoria) ela tem imediatamente somente o valor de uso de ser
suporte do valor de troca e portanto de ser meio de troca". (W.23,
K.I, p. 100; Oeuvres, Economie I, op. cit., p. 621, grifo nosso) Vê-se
o que isto significa: para o possuidor de uma mercadoria que quer
trocá-la, ela funciona subjetivamente como equivalente geral, ela tem
subjetivamente a forma de permutabilidade imediata (no sentido de
que ele quer que ela seja aceita por qualquer possuidor de merca­
dorias cuja mercadoria lhe seja um valor de uso). Assim, se a merca­
doria A se acha na forma relativa em relação à mercadoria B (relação
x mercadorias A valem y mercadorias B, que é a relação assumida pelo
agente A), essa mesma mercadoria A, em relação ao agente A , está
subjetivamente na forma equivalente, ou recebe a determinação do
equivalente.63 O equivalente subjetivo é assim inverso em relação à
forma objetiva: ele se acha do lado em que, objetivamente, se encon­
tra a forma relativa .M O texto do apêndice à primeira edição de O
Capital, citado por Benetti e Cartelier, vai no sentido dos textos do
capítulo 2; só que o seu objeto é a forma II. Mas a idéia de uma
função equivalente subjetiva vale para qualquer forma anterior ao di­
nheiro. Na forma II ela ganha toda a sua importância, pelo fato de
que, como veremos, é a partir daí que a passagem à forma III se
tom a plenamente inteligível. Por outro lado, o texto do apêndice
acentua a noção de exclusão. A exclusão, isto é, a partição do campo
das mercadorias entre, por um lado, as mercadorias particulares e,
por outro, a mercadoria geral, partição que é condição para a consti­
tuição do equivalente geral objetivo, está lá, mas como ato subjetivo
do echangista A (e por isso é a mercadoria A, não a mercadoria B,
que funciona como equivalente — subjetivo).65 E é a essa subjetivi­
dade da exclusão que remete em última instância a frase final do
texto, a qual se refere à exclusão objetiva (que depende das outras
164 RUYFAUSTO

mercadorias) distinguindo-a implicitamente da exclusão subjetiva que


só depende da mercadoria excluída (o que quer dizer, aqui, dessa
mercadoria na sua relação com o seu possuidor). Nada há, portanto,
de mais estranho ao texto do apêndice do que a idéia de que a forma
II, como igualmente a forma I, represente uma expressão subjetiva do
valor. Esta tese, Benetti e Cartelier tentam aliás justificar ou confir­
mar (pois eles pensam havê-la mostrado através de sua leitura da
forma II), servindo-se de outros textos de Marx. Somos obrigados a
retomar esses textos. “Mudanças essenciais — escrevem Benetti e
Cartelier, p. 148, — citando Marx (ou pelo menos supondo fazê-lo:
por ora é, pois, do Marx na versão que dão os dois autores de que se
trata) — mudanças essenciais ocorrem na passagem da forma II à
forma III, e não tanto na passagem da forma I à forma II” (nota dos
autores:) “tradução modificada” . (Benetti e Cartelier, p. 148, o texto
remete a Dognin, op. cit., p. 165) E eles continuam: “A razão disto é
que ( (nova citação de M arx)) ‘esta forma é a primeira que relaciona
entre si as mercadorias enquanto valores. (O Capital (Plêiade I), p.
598) e que () citação de M arx)) ‘o valor delas obtém em conseqüência
a sua forma fenomenal adequada enquanto valor de troca’ (Dognin,
p. 73)” . “Esta forma — continuam Benetti e Carteüer — é pois a
‘forma social’ ((Dognin) p. 77) das mercadorias. /O que confirma as
dúvidas que emitimos no que se refere à utilização da noção de valor a
propósito das formas I e II” . (Benetti e Cartelier, p. 148) Inicial­
mente, mesmo se não se trata do ponto mais importante, corrijamos a
tradução da passagem de Marx citada no início do texto. Os dois
autores modificaram — e modificaram mal — a tradução de Dognin.
Ela é correta: “Na passagem da.forma I à forma II, e da forma II à
forma III, ocorrem mudanças essenciais” . (Dognin, op. cit., p. 165)66
Mas o ponto mais importante vem em seguida. Em primeiro lugar,
a segunda citação de Marx (“esta forma é a prim eira...”) é feita a
partir da tradução de Roy. Ora, Roy omite um termo que é, na reali­
dade, essencial. O texto alemão diz: “Erst diese Form bezieht daher
wirklich die Waren aufeinander als Werte (...)” . (W.23, K.I, p. 80,
grifo nosso) O que se traduz por: “ Somente esta forma põe efetiva­
mente (ou: esta forma é a primeira a pôr efetivamente) em relação
as mercadorias enquanto valores” . (A versão de Dognin — por que
eles deixaram de lado, aqui, esta versão? — traduz “wirklich” por
“realmente” (réellement) (ver Dognin, p. 210), o que não é a melhor
tradução, mas é de qualquer modo melhor do que a omissão.) A
Wirklichkeit designa na lógica de Hegel — vimos em outro lugar a
propósito de um outro problema — não a realidade (Realität) mas a
realidade efetiva, “unidade da essência e da existência” .67 O texto
não quer dizer que antes da forma II os objetos postos em relação não
são valores (por isso mesmo ele os chama “mercadorias”), nem mesmo
que não haja lá uma relação entre valores, mas somente que essa
MARX: LOGICA E POLITICA 165

relação não tem por enquanto uma realidade efetiva. Mas deixemos
de lado por ora a questão de realidade da relação, isto é, a questão de
saber se há e em que sentido há na expressão não só valor mas
também valor de troca, embora seja este no fundo o único ponto que
mereceria alguma explicação. Mostremos simplesmente, por ora, que
a idéia de que não haveria valor deve ser absolutamente rejeitada.
Isto aparece claramente se passarmos à terceira passagem de Marx
(“o valor deles obtém em conseqüência...”) citada de um modo trun­
cado por Benetti e Cartelier. Citemos a frase inteira: “É somente
nessa expressão unitária do valor relativo que elas aparecem todas
umas às outras como valores, e que o valor delas obtém em conse­
qüência a sua forma fenomenal adequada (ou correspondente, ents-
prechende — RF), enquanto valor de troca”. (Dognin, p. 73, grifado
por Marx) Vemos, pois, que o que é novo é a aparição adequada do
valor, não o próprio valor, que é dado evidentemente desde o início.
Portanto, se há dúvida ela só pode incidir sobre a questão da presença
do valor de troca, o que remete ao problema da interpretação da
expressão “forma fenomenal adequada” . Na realidade, o próprio
valor de troca também está presente, desde o início. A dialética da
forma do valor não é gênese do valor de troca, mas gênese do di­
nheiro. Ela é desenvolvimento (no sentido definido anteriormente) do
valor de troca. Ao contrário do que ocorre para o dinheiro, o valor de
troca está presente enquanto valor de troca desde o início, embora
não de uma forma adequada. O problema é aqui, como vemos, o da
aparição de uma aparição. Que o valor não tenha a sua forma feno­
menal adequada quer dizer que a forma fenomenal está, sem dúvida,
lá, mas sem se manifestar de uma maneira apropriada. Tal é o sen­
tido da “realidade efetiva” da expressão do valor, ou de sua presença
“verdadeira” , como dirá um outro texto.68
Examinemos agora a passagem da forma II à forma III. Ao
passar da forma I à forma II, o valor de uma mercadoria não se
exprimiria mais simplesmente numa mercadoria B, mas em várias
mercadorias B, C, D etc. Através disso, iremos, pois, da unidade (e
da simplicidade) à pluralidade. Para chegar à forma geral (forma III)
a partir da forma II, é preciso voltar à simplicidade, mas se tratará de
uma simplicidade que contém nela própria a pluralidade. Deveríamos
obter:
u mercadorias B =
v mercadorias C =
z mercadorias A
w mercadorias D =
x mercadorias E =
Mas os valores de uso concretos (que até aqui — na versão da
quarta edição — figuram a posteriori entre parênteses) são agora
postos, substituindo as expressões “ algébricas” :
166 RUY FAUSTO

“ 1 roupa =
10libras de chá =
40 libras de café =
1 quarta de trigo — 20 varas de tela
2 onças de ouro =
1/2 tonelada de ferro =
x mercadorias A =
etc. mercadorias.
(W.23, K.I, p. 79; Dognin, p. 208) .
Essa passagem é um dos pontos mais difíceis da análise da
forma do valor. Como se sabe, já a partir da primeira edição de
O Capital (na qual ele inseriu um apêndice no último momento) Marx
forneceu versões sucessivas e diferentes da análise da forma do valor.
Comecemos pela versão da quarta edição de O Capital. A passagem
da II à III é apresentada aí a partir dos “defeitos” da forma desen­
volvida (forma II). E esses defeitos são de três ordens: por um lado,
a cadeia das expressões relativas pode ser sempre prolongada (podem-
se supor sempre novas espécies de mercadorias); em segundo lugar,
na forma II, a variedade qualitativa não foi eliminada, pois a expres­
são de valor se faz através de diferentes valores de uso; em terceiro
lugar, é possível e é necessário (“como isto deve ocorrer”)69 que se
tenha várias seqüências em lugar de uma só exprimindo o valor rela­
tivo de cada uma das mercadorias. Os dois primeiros defeitos repre­
sentam “insuficiências” da forma II: ela não é simples, e ela não é
fechada. O terceiro defeito é, se se pode dizer, mais grave: com a série
de seqüências, não só teríamos uma série sempre aberta, mas cada
membro da série — cada seqüência — excluiria o outro.70 Nenhuma
universalização (que ultrapassasse os limites de cada encadeamento)
poderia ocorrer, a menos que a inversão viesse negar tanto a diver­
sidade dos membros da seqüência como a da série das seqüências.71
Para passar à forma geral, seria necessário, pois, que não houvesse mais
do que um equivalente; a forma do valor das mercadorias será então
“simples e comum, portanto geral” (W.23, K.I, p. 79; Dognin, p.
209), o que ao mesmo tempo simplificará a expressão relativa (no equi­
valente) na seqüência considerada e evitará a multiplicação de seqüên­
cias. Uma mercadoria se tornará pois equivalente geral: “(...) ao lado
(...) dos leões, dos tigres, das lebres e de todos os outros animais (efe­
tivamente) reais (...) existirá, ademais, o animal, a encarnação indivi­
dual de todo o reino animal” . (Dognin, p. 73, texto da primeira edi­
ção, grifo nosso) Em outros termos, a forma geral será ao mesmo
tempo universal e individual, isto é, ela será um universal concreto.
Mas como efetuar — e como legitimar — essa passagem? A maneira
mais imediata de efetuá-la seria fixar simplesmente uma das formas
equivalente particular como equivalente geral. Mas não seria uma
maneira satisfatória de efetuar a passagem, porque desse modo nada
MARX: LÓGICA E POLITICA 167

mostra por que tal equivalente particular se torna equivalente geral.


Na realidade, o movimento se faz pela inversão dos termos. A merca­
doria que se encontrava na forma relativa (em II), se tomará equiva­
lente geral. É a maneira mais satisfatória. Sua justificativa se acha
nos textos que examinamos antes e que introduzem a idéia de um
equivalente subjetivo. Exprimindo o valor de sua mercadoria A nas
mercadorias B, C, D etc. (forma II), o possuidor da mercadoria A
faz, subjetivamente ou de um modo puramente subjetivo, com que a
sua mercadoria A valha enquanto equivalente geral. Ela aparece para
o agente A como sendo permutável com todas as outras mercadorias.
Com a forma relativa desenvolvida, temos pois, ao mesmo tempo,
subjetivamente, a forma equivalente geral. A inversão é assim justifi­
cada de um modo mais estrito, porque aparece aí o que liga a forma
II à forma III. Se a forma II contém de maneira subjetiva a forma III,
basta pôr objetivamente a primeira — pela inversão da expressão —
para obter a segunda.72
Mas o problema é saber quais são a significação e o valor da
crítica de Benetti e Cartelier a propósito desse ponto. Na realidade,
é como se para eles o único desenvolvimento pensável fosse a genera­
lização das seqüências. Com efeito, na medida em que eles não co­
nhecem ou não reconhecem o processo de constituição do universal
concreto, só restaria esse caminho. Ora, se supondo uma sucessão de
seqüências esta via nos conduz, como vimos — tomando-a como uma
alternativa à universalização concreta e não como uma forma de
“transição” —, a perder a universalização; supondo a simultaneidade,
ela conduz à eliminação de toda expressão do valor (mas não do
próprio valor, como eles supõem). Ê esta possibilidade de uma elimi­
nação de toda expressão do valor que Marx considera nos textos ci­
tados — e isto para mostrar a necessidade de um outro caminho. Mas
tentemos representar de um modo mais preciso a significação lógica
da generalização das seqüências, nos dois casos em que ela poderia se
apresentar.
“Cada possuidor de mercadorias — escreve Marx no texto do
capítulo II citado em parte por Benetti e Cartelier — só quer alienar a
sua mercadoria contra uma outra cujo valor de uso satisfaça a sua
necessidade. Nessa medida (sofern), a troca só é para ele um processo
individual. Por outro lado, ele quer realizar a sua mercadoria como
valor em qualquer outra mercadoria do mesmo valor que lhe agrade
(ihm beliebigen) quer a sua mercadoria tenha ou não tenha valor para
o possuidor da outra mercadoria. Nessa medida (sofem) a troca é
para ele um processo social geral. Mas o mesmo processo não pode
ser simultaneamente (gleichzeitig) para todos os possuidores de mer­
cadorias somente individual e ao mesmo tempo somente social geral” .
(W.23, K.I, p. 101, Oeuvres, Économie I, op. cit., pp. 621-622, grifo
nosso) Para cada agente o processo de troca é, pois, ao mesmo tempo so-
168 RUY FAUSTO

ciai e individual, isto é, ele é “venda” , realização do valor da sua merca­


doria (processo social) e “compra” , aquisição de uma mercadoria de
outrem cujo valor de uso deve satisfazer a sua necessidade (processo
individual). Esses dois pólos poderiam distribuir-se entre os dois agen­
tes — esta é a pergunta a que responde o texto — isto é, a operação
poderia ser apenas uma compra (processo individual) para um dos
agentes e não ser senão uma venda (processo social) para o outro
agente? Sim, com a aparição do dinheiro (ou de um equivalente geral
objetivo consolidado). O agente que dispõe de dinheiro compra (pro­
cesso individual), o que dispõe de mercadoria vende (processo social).
Mas “antes” da constituição do dinheiro ou de um equivalente objetive
geral consolidado — no nível da forma II desenvolvida (série de se­
qüências) ou ainda no nível da inversão desta, não poderiam os pólos
distribuir-se entre os agentes? Evidentemente, é preciso distinguir
aqui os dois casos, a multiplicação das seqüências em forma suces­
siva, e a multiplicação das seqüências com simultaneidade. Se várias
mercadorias se tomam sucessivamente equivalente geral subjetivo (o
que com a inversão se tomará o equivalente geral objetivo), temos de
certo modo uma polarização, antes da emergência do dinheiro ou de
um equivalente geral objetivo consolidado: em cada momento do pro­
cesso (isto é, enquanto a sua mercadoria funciona como equivalente
geral) cada agente só realiza um processo individual (e os outros só
um processo social); embora para o conjunto dos momentos, dado o
“rodízio” do equivalente geral, o processo seja para todos social e
individual. Razão pela qual, no texto anterior, desenvolvendo a im­
possibilidade de que o processo para cada agente seja somente indi­
vidual ou somente social (antes de haver equivalente geral objetivo
consolidado), Marx emprega o termo “simultaneamente” . Se se supu­
ser que o conjunto das seqüências é simultâneo, toda expressão do
valor se torna impossível. “Consideremos mais de perto a questão —
escreve Marx na continuação do texto — para cada possuidor de
mercadorias, toda mercadoria extema vale assim como equivalente
particular da sua mercadoria,73 e portanto a sua mercadoria vale
como equivalente geral de todas as outras. Mas como todos os agentes
fazem a mesma coisa, nenhuma mercadoria é equivalente geral e as
mercadorias também não possuem nenhuma forma relativa geral do
valor, na qual elas se põem como iguais (gleichsetzen) e se comparam
enquanto grandezas de valor. Em conseqüência elas não se situam
(stehen) mais em geral umas em relação às outras enquanto merca­
dorias, mas somente enquanto produtos ou valores de uso” . (W.23,
K.I, p. 101; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 622, grifo nosso) Não
haveria mais expressão do valor, por falta de mercadoria que se en­
contrasse na forma equivalente. E como a expressão do valor não é
uma relação reflexiva, a mercadoria também não pode se exprimir ela
mesma.74
MARX: LÓGICA E POLITICA 169

Resta-nos apenas a passagem da forma geral à forma dinheiro.


Benetti e Cartelier falarão, à propósito dessa passagem, de “golpe
(.coup de forcé) final” (p. 151) e denunciam de novo a “falsa apa­
rência” (p. 145), isto é, imputam a Marx uma queda no fetichismo.
De que se trata, na realidade nessa última passagem? A passagem à
forma IV tem um caráter particular. Poderíamos dizer que, até aqui,
as mudanças eram de ordem sintática, elas interessavam a relação
entre os termos; agora a mudança é de natureza semântica, ela inte­
ressa à própria natureza do objeto. Aqui se retoma de novo a mate­
rialidade. Sem dúvida, desde o início da análise da forma do valor,
a matéria (o valor de uso) já era, como vimos, material para a expres­
são do valor. Mas se tratava de um material qualquer (ou, na forma
II, de vários materiais quaisquer). Com a forma III, passar-se-á a um
material determinado. Mas com a forma IV ter-se-á um material con­
gruente às exigências da forma. Pois os diversos materiais não são
igualmente úteis para esta nova determinação do valor de uso — esse
valor de uso formal75 que deve adquirir uma mercadoria para se
tornar dinheiro. Graças às suas características (homogeneidade, dura­
bilidade), certos valores de uso servem melhor do que outros para esta
função. A forma dinheiro em constituição, que se tornou equivalente
geral, “busca” uma matéria ou as matérias que melhor convêm às
suas necessidades enquanto forma. Esta matéria adequada é o ouro
(ou o ouro e a prata). Com efeito, há uma congruência (Kongruenz)76
entre as qualidades naturais do ouro e a função formal da moeda. A
distância entre, por um lado, esse resultado, que nada mais faz do
que mostrar a apropriação, pela forma, de uma materialidade que lhe
é adequada, e por outro lado um discurse 'etichista, que supõe que
esta materialidade tem naturalmente tal forma é indicada pelo duplo
enunciado da Contribuição à Crítica da Economia Política, retomado
por O Capital: “Embora o ouro e a prata77 não sejam naturalmente
(von Natur) dinheiro, o dinheiro é naturalmente (yon Natur) ouro e
prata” .78 Que significa esse resultado, que Benetti e Cartelier citam
(p. 145), para denunciar uma queda na aparência falsa? Para com­
preendê-lo, é preciso retomar as observações anteriores sobre o “juízo
de reflexão” e o que o distingue dos juízos de inerência ou de inclu­
são. No texto que examinamos, comparam-se dois enunciados (para
simplificar, supomos que o ouro é o único valor de uso que deve
tomar a forma dinheiro):
O ouro é dinheiro.
O dinheiro é ouro.
Esses dois enunciados não são ambos verdadeiros, se se supuser
que eles têm um mesmo caráter lógico; ambos só serão verdadeiros se
forem de natureza lógica diversa. Para que o primeiro enunciado seja
verdadeiro, ele deve ser lido como um juízo de reflexão, no sentido
anteriormente definido: o sujeito “ouro” não é posto, mas somente
170 RUYFAUSTO

pressuposto. Este sujeito, simples sujeito gramatical, “passa no” pre


dicado posto “dinheiro” . Ou, o que dá no mesmo, há “negação”
tanto no plano do discurso como no plano do real, entre o sujeito e <
“ seu” predicado. Passando do sujeito “ouro” ao predicado “ dinheiro” ,
passa-se com efeito do universo antropológico geral ao universo que é
só das sociedades em que existe dinheiro. Uma falsa leitura desse
juízo de reflexão, como se se tratasse de um juízo de inerência, nos
conduziria a supor uma continuidade entre os dois termos: cairíamos
no fetichismo. Com efeito, a leitura fetichista consiste precisamente
em interpretar esse juízo como um enunciado de inerência, em que o
sujeito “ouro” seria um verdadeiro sujeito em que, em conseqüência,
o predicado exprimiria uma determinação desse sujeito. Considerando
o sujeito pressuposto “ouro” como um sujeito posto, se fetichiza a
relação, porque se faz assim do predicado “ dinheiro” a qualidade,
que só pode ser natural, do sujeito “ouro” . O segundo enunciado é,
pelo contrário, um juízo de inerência. Ele significa: uma vez dada a
moeda, esta tem como matéria (como forma material) adequada o
ouro — e não um boi, papel etc. Embora todos esses valores de uso
possam servir como equivalente geral — o enunciado não exclui essa
possibilidade — ele afirma que é o ouro a matéria congruente ao
equivalente geral e que por isso se torna dinheiro. O predicado “ouro”
é assim um verdadeiro predicado do sujeito “ dinheiro” . Se do ouro ao
dinheiro só se passa através de uma descontinuidade, de uma “nega­
ção” , do dinheiro se passa sem “negação” . Dizendo: “o dinheiro é
ouro” , não faço mais do que exprimir o movimento pelo qual uma
forma social “ atrai” para si a materialidade que lhe é adequada. E
aqui também há possibilidade de uma falsa leitura do enunciado —
mas falsa leitura inversa à anterior — a que consistiria em transfor­
mar o juízo de inerência em juízo de reflexão: a moeda seria uma
simples pressuposição e enquanto tal “passaria no” ouro. Essa falsa
leitura nos conduziria, como a falsa leitura anterior, a uma forma
ilusória de pensar a relação. Mas essa forma ilusória não seria mais o
fetichismo. Se a transformação do juízo de reflexão em juízo de ine­
rência instaura, no primeiro caso, uma leitura fetichista, a transfor­
mação do segundo enunciado — que é um juízo de inerência — em
juízo de reflexão ( “o dinheiro é... ouro”) nos levaria a cair no erro
inverso que poderíamos chamar de "antifetichismo” ou de "conven­
cionalismo”. No primeiro caso, o ouro se torna naturalmente dinheiro,
no segundo o dinheiro só se tom a convencionalmente (por convenção)
ouro. Dois erros diferentes. Com efeito, contrariamente à sua versão
vulgar que como sempre só considera um lado, a crítica do fetichismo
em Marx é apenas um dos lados de uma dupla crítica. Ã crítica do
fetichismo (naturalização — não posição material das relações sociais
coisificadas) corresponde o outro lado a crítica do convencionalismo
ou do “antifetichismo” (abstrato) (redução da objetividade social ao
MARX: LOGICA E POLITICA 171

estatuto de signo arbitrário, recusa teórica de toda coisificação do


social).79 Somos conduzidos assim a exprimir pela forma do juízo — e
portanto em termos de um a teoria d a proposição — o conceito de
fetichismo, ou antes, o da dupla ilusão ideológica fetichismo/conven­
cionalismo, tal como ela aparece em O Capital.

e) Â forma do valor (cont.)

Benetti e Cartelier propõem ainda uma “segunda interpretação” da


análise da forma do valor, “demonstração recíproca” que seguirá urna vía
“regressiva” e que deveria mostrar “com precisão” “o ponto em que se tro­
peça” e “fomecer preciosas indicações para a solução do problema, (pp.
151-152)
“Tomemos como ponto de partida x mercadorias A = y mercadorias B,
chamada forma I. A construção dessa forma se baseia em duas hipóteses que
convém explicitar desde já: a forma representa urna troca (efetiva), o que,
utilizados os símbolos precedentes, se exprime por:
x(A) 5 y(B) (p. 152)
O sentido desses dois signos (que os autoreshaviam introduzidona p.
143) já foi indicado ( =s> significa “é expresso como valor relativo” e -*
“é equivalente a”). Essa forma de que se parte na “segunda interpretação” não
é, evidentemente, de Marx. A forma de Marx, Benetti e Cartelier a haviam
representado por
x(A) Z y (B) (p. 143)
Esta última forma (a de Marx) se lê: xmercadorias A valemy merca-
dorias B, o que quer dizer: a mercadoria A é expressa como valor relativo, ou se
acha na forma relativa, a mercadoria B se acha na forma equivalente. A forma
pela qual Benetti e Cartelier começam a “segunda interpretação” (Hl) quer
dizer, pelo contrário, “o valor da mercadoria A é expresso como valor relativo”
(ou a mercadoria A se acha na forma relativa) e a mercadoria A se acha (aínda)
na forma equivalente (observar a posição das flechas nas duas fórmulas).
Que é que autoriza os dois autores a começar por aí — a escrever A é o
equivalente de B e não o inverso? Se nos lembrarmos dos argumentos que eles
introduziram anteriormente, a resposta só pode ser esta: o que os autoriza a
começar por aí é o fato de que em Marx a mercadoria A é um equivalente
subjetivo (mas puramente subjetivo, só para o agente A e não objetivamente)
da mercadoria B. Esse equivalente subjetivo se torna aqui o equivalente pura e
simplesmente. Mas o que é que autoriza esse deslizamento? O deslizamento é
autorizado pelo fato de que eles não partem evidentemente da expressão — da
expressão objetiva — do valor, mas simplesmente, como eles mesmo dizem, de
urna troca efetiva. Se se partir da troca efetiva (e não da expressão objetiva que
a precede) não há mais expressão do valor, ou toda expressão do valor só pode
ser subjetiva. Com efeito, a troca em potência é o lugar da expressão objetiva,
enquanto a troca efetiva (isolada do momento anterior) só comporta expressões
subjetivas. A troca efetiva, considerada em si mesma, só introduz uma equi­
valência "rasa” entre as duas mercadorias. Liquida-se assim o conjunto do
problema no ponto de partida. Mas continuemos. A hipótese 1 dos dois
172 RUY FAUSTO

autores, se se supuser que se trata de uma troca entre duas mercadorias,


implica, evidentemente, na medida em que se pôs entre parênteses a expressão
objetiva do valor — e diferentemente do que ocorre com a forma I de Marx —
que a relação é simétrica. Se a mercadoria A é “equivalente” (na realidade
subjetiva) de B (o que significa: o agente A quer realizar o valor de sua
mercadoria) e “forma relativa” em relação a B (o que significa aqui: o agente A
exprime em B o valor da sua mercadoria, mas que é preciso apresentar aqui
como a expressão do sujeito na troca), é preciso dizer também e ao mesmo
tempo que a mercadoria B é ao mesmo tempo forma equivalente e forma
relativa em relação à mercadoria A. (O agente B quer realizar o valor da sua
mercadoria B e, por outro lado, exprime em A o valor da sua mercadoria.) Mas
tudo isso, se se trata de um intercâmbio entre duas mercadorias. Se for outro
caso, isto é, se se introduzir o dinheiro, essa simetria desaparece. Ã parte as
pressuposições anteriores, é pois supondo que se trata de duas mercadorias
(hipótese que suprimirão mais adiante) que eles se permitem passar à segunda
hipótese: “H2: a relação construída com base na hipótese 1 é reflexiva, o que se
exprime por:
x(A) | y(B)” (p. 152)
Na realidade, o que eles exprimem aí não é a reflexividade da primeira
relação (a qual se escreveria x (A) % x (A)), mas a sua simetria. Mas eles
acrescentam: “ou como habitualmente
x(A) = y(B)” (Ibidem)
Antes de continuar, analisemos mais de perto a forma a que eles chega­
ram (H2) comparando-a com Hl e com a forma I de Marx. Isto é importante
para a compreensão e a crítica do que vem depois.
Comecemos pela forma I de Marx. Na forma I de Marx x (A) = y (B)
(em que “ = ” quer dizer “exprime o seu valor em”), se tem uma relação a Rb,
que é na realidade uma relação dupla, e que iríamos decompor da seguinte
maneira, utilizando os signos anteriores:
RI => , A está na forma relativa em relação a B
R2 «- , B está na forma equivalente em relação a A.
No ponto de partida deles (Hl), tinha-se, pelo contrário:
RI => , A está na forma relativa em relação a B
R3 -> , A está na forma equivalente (trata-se na realidade do equi­
valente subjetivo) em relação a B.
Agora, em H2, que se escreve
x(A) £ y (B) ou x(A) = y (B)
temos as relações seguintes:
RI => , A está na forma relativa em relação a B.
R2 +- , B está na forma equivalente em relação a A.
R3 -*■ , A está na forma equivalente em relação a B.
R4 <= , B está na forma relativa em relação a A.
Temos aí, pois, as quatro relações, a saber, as duas relações contidas na
forma I de Marx (RI e R2) mais uma que foi introduzida em Hl, a sãber,
R3 (a outra relação introduzida em Hl já estava na forma I de Marx), mais
uma nova relação R4.
MARX: LÓGICA E POLITICA 173

Eles escrevem em seguida: “A sucessão das formas se apresenta então d»


seguinte maneira: como desenvolvimento da forma I. Reescrevamo-la:
x(A) «5* (B) em que x: ^ ey: ” (p. 152)80
O que é que se tem aí? Na realidade, temos, como anteriormente, as
quatro relações distinguidas acima, só que elas estão agrupadas de um modo
diferente, a saber, distinguindo a relação dupla que eles chamam x, e a relação
dupla que eles chamam y. Ora, o que representam essas duas relações duplas?
x, «í , é a relação dupla que se encontra na forma I de Marx, a que
contém RI e R2.
y, $ , é uma outra relação dupla, que contém precisamente o que não
se encontra na forma de Marx, isto é, o que eles acrescentaram à forma de
Marx, a saber, R3 (dado já em Hl) e R4 (dado em H2).
A última expressão, em que figuram a relação x (RI e R2) e a relação
y (R4 e R3), permite pois separar o que está na análise de Marx e o que eles
acrescentaram a ela, que é o que permite estabelecer a simetria da relação.
Mas por que efetuar tal separação? Ela foi efetuada para que eles pu­
dessem, em seguida, examinar as duas vias: a de Marx, para mostrar (com
argumentos erróneos que já criticamos) que eles chegam a um impasse; e a da
sua hipótese provisória (Hl e H2), para mostrar que ela conduz também a um
impasse. Nesse momento, eles reinterpretarão a hipótese que serve como ponto
de partida (Hl), introduzindo o dinheiro, o que eliminará H2 (que estabelece a
simetria). E eles acreditam ter chegado com isso à solução — “solução” que,
não menos do que a hipótese provisória (Hl e H2), representa na realidade a
liquidação do problema. Assim se explica a razão do conjunto do trajeto.
Trata-se de introduzir a simetria na forma I de Marx, para mostrar que com a
introdução da simetria (hipótese provisória, Hl e H2) como sem ela (caminho
de Marx, lido à maneira deles), a análise da forma do valor é impossível.
Chegamos à parte final da sua critica:
“A forma II é obtida generalizando a reláção X, abstração feita do
momento (o momento da forma II) de Y.81 Obtém-se:
x(A) ^ y (B)
^ z (Q ” (p. 152)
Como ler essa forma?82 Ela indica que A se toma equivalente geral de B e
de C. Como justificar essa forma? Trata-se ainda uma vez da confusão entre
equivalente objetivo e equivalente subjetivo. Aqui ela remete diretamente à
interpretação que eles dão da forma II (p. 147), interpretação que já critica­
mos: os únicos equivalentes objetivos que aí temos são os equivalentes parti­
culares B, C etc. A é um equivalente geral subjetivo que só existe para o agente
A. O equivalente geral — o equivalente geral objetivo — só aparecerá na figura
seguinte. O que não os impede de escrever em seguida: “Segundo Marx, a
forma II tem como resultado a supressão da troca realizada na forma I
(Não há necessariamente troca realizada na forma I e esta forma não é abso­
lutamente suprimida na forma II, segundo Marx — RF): passa-se do valor ao
‘valor subjetivo’ (vimos que Marx de forma alguma diz isso — RF) pois todas
as mercadorias são ‘equivalentes’ para A (sim, mas por que isso nos faz
passar ao ‘valor subjetivo’? — RF)”.
“Marx estabelece então a condição central: pode-se restabelecer o valor,
perdido na forma II (...).” (Ibidem) (Em II não se perdeu nem o valor nem a
174 RUYFAUSTO

form a do valor, nem portanto a forma equivalente do valor, não se perdeu


nada, salvo em certo sentido (pois se “suprimiu”, não se perdeu) a forma
simples que se tomou forma desenvolvida e que reaparecerá em III mas como
universal concreto — RF.) “Só se pode restabelecer o valor perdido na forma II
pela reinversão desta última. E ele (Marx) mostra que essa reinversão é impos­
sível.” (Ibidem) [Marx não mostra, em lugar algum uma tal impossibilidade,
nem mesmo na primeira versão da análise da forma do valor, como já expli­
camos — RF.]
O resto já conhecemos e já criticamos: a forma III só poderia ser obtida
por “ generalização”, da generalização resultaria a redução das mercadorias
“ a simples produtos”, “o equivalente geral” só poderia, pois, "se encontrar no
conjunto definido pelos processos”, haveria em todo esse desenvolvimento uma
“ contradição (lógica)”, istoé, uma contradição vulgar. Todas essas afirmações
são falsas.83 O que não os impede de concluir: “Tal é a demonstração de
Marx”. (p. 153) O mínimo que se pode dizer, evidentemente, é que esta não é a
demonstração de Marx, mas a “demonstração” de Benetti e Cartelier.
Assim, eliminados tanto (a versão deles d’) a apresentação de Marx como
a hipótese da simetria introduzida por H2, mas preparada pela leitura ao
mesmo tempo abstrata e subjetiva (precisamente porque se parte de uma troca
efetiva) de Hl, abre-se a via que permite retomar o ponto de partida: “Qual é o
efeito de H2? A resposta é simples: através de H2 se atribui ao equivalente geral
a qualidade de ser uma mercadoria, um dos n processos de trabalho. A contra­
dição aparece claramente: a teoria das formas demonstra que o equivalente
geral não pode ser uma mercadoria; H2 deve pois ser suprimido. A forma I
é então perfeitamente clara (seu mistério desaparece), x (A) é uma mercadoria
e y (B) é a moeda que não deve ser um processo de trabalho. A generalização
d’[a] F[orma| I mostra que a moeda deve ser exterior aos n processos”,
(p. 154) Em lugar de reler Hl como expressão objetiva e não subjetiva da forma
do valor na relação entre duas mercadorias, eles substituem a relação merca­
doria/mercadoria pela relação mercadoria/dinheiro. Isto não é evidentemente
a solução do problema, mas como eles próprios dizem, “a supressão da questão
ela mesma”, (p. 155)84 Seguem-se tentativas de criticar a análise da forma do
valor, a gênese lógica do dinheiro, recorrendo a outros textos de Maçx, textos em
que “é introduzida a moeda” (p. 158) através de outras operações; a saber,
a introdução de “bônus de horas” que seriam trocados pelas mercadorias em
lugar do dinheiro, e a operação pela qual o produtor de ouro lança na circulação
a sua mercadoria que já é aceita socialmente como dinheiro. Dois casos em que
não pode haver gênese: o primeiro porque não há nem haverá dinheiro; o
segundo porque o dinheiro já está lá.

Para terminar esse ponto, tentemos extrair conclusões gerais


sobre o conjunto dessa crítica da análise da forma do valor. O que
eles chamam de “ segunda interpretação” contém as três hipóteses que
eles consideram: de fato, esta retoma o núcleo da primeira interpre­
tação (pondo H2 entre parênteses, e interpretando H l como relação
assimétrica) o qual, supondo a interpretação subjetiva, conduz à dis­
solução da expressão; a isto se acrescentam duas outras hipóteses: por
um lado, a de uma simetria (e em geral do caráter da equivalência em
MARX: LOGICA E POLITICA 175

sentido corrente) da relação inicial, concebida como relação entre


duas mercadorias, hipótese que eles mostram sem dificuldade que
também conduz a um impasse; por outro lado, a resposta que é final­
mente a deles — a de que a relação inicial é uma relação entre merca­
doria e dinheiro — portanto a introdução de imediato do dinheiro —
resposta que constitui na opinião deles mesmos a supressão do pro­
blema.
Ê preciso mostrar a significação profunda do conjunto desse
procedimento — mostrar a diferença entre o que eles fazem e o que
faz Marx. Para isso, consideraremos somente as duas últimas res­
postas: a hipótese de um ponto de partida numa relação simétrica
entre mercadorias e a hipótese de um ponto de partida no dinheiro,
isto é, na relação mercadoria/dinheiro. (A primeira hipótese — assi­
metria e subjetivização da relação — é finalmente menos interessante
porque ela é ambígua e repousa de fato em erros de leitura.) Como
vimos, esses dois pontos de partida eliminam ambos a possibilidade
de uma gênese do dinheiro mas por razões inversas. No primeiro,
porque não se pode sair do ponto de partida, o desenvolvimento é
propriamente bloqueado. No segundo, porque esse ponto de partida é
na realidade um ponto de chegada, o desenvolvimento é imediata­
mente acabado. Esses dois pontos que são na realidade, no primeiro
caso, um ponto de partida, e no segundo um ponto de partida que é
ao mesmo tempo um ponto de chegada, iremos compará-los com o
ponto de partida e o ponto de chegada da gênese do dinheiro em
Marx. Mais exatamente: iremos comparar o primeiro e o segundo
pontos (na medida em que esse último pode ser pensado como um
ponto de partida) com o ponto de partida de Marx. E iremos compa­
rar o segundo ponto (na medida em que ele pode ser pensado como
um ponto de chegada) com o ponto de chegada de Marx. Essas com­
parações mostrarão a significação profunda do que está em jogo.
Os dois pontos de partida propostos pelos autores nos põem
diante da seguinte alternativa: ou se começa por uma relação que é
pura e simplesmente uma relação entre duas mercadorias (e portanto
em que o dinheiro está absolutamente ausente), ou se começa por
uma relação que põe um diante do outro, mercadoria e dinheiro (e
portanto em que o dinheiro está absolutamente presente); ou o di­
nheiro está pura e simplesmente presente, ou o dinheiro está pura e
simplesmente ausente. Ora, como vimos, o ponto de partida de Marx,
que é o único que possibilita a gênese do dinheiro, não coincide nem
com a primeira nem com a segunda dessas alternativas. Com efeito,
esse ponto de partida não consiste nem em afirmar a ausência pura e
simples do dinheiro (caso em que a gênese é impossível porque se fica
sempre no ponto de partida), nem em afirmar a sua presença pura e
simples (caso em que a gênese também é impossível porque, inversa­
mente, já se chegou ao ponto de chegada). Na hipótese de Marx,
176 RUY FAUSTO

tem-se as duas coisas ao mesmo tempo: o dinheiro está e não está lá.
Com efeito, na forma I de Marx temos algo como a presença da au­
sência do dinheiro. Ou mais simplesmente: temos aí não o dinheiro,
nem a sua ausência, mas, como vimos, o germe do dinheiro.85 Como
vimos também, poderíamos exprimir esse ponto de partida de Marx
pelo juízo de reflexão: “ O dinheiro é... mercadoria” , isto é, “o di­
nheiro é... a mercadoria que se encontra na forma equivalente” , juízo
em que o sujeito “dinheiro” passa no “seu” predicado “mercadoria”
que é o único termo posto. Isto quer dizer também que, nesse ponto
de partida, um dos termos (a mercadoria que se acha na forma rela­
tiva) é pura e simplesmente uma mercadoria, e o outro termo (a
mercadoria que se acha na forma equivalente) é uma mercadoria
afetada pelo “ dinheiro” (entre aspas — isto é, pela pressuposição
(prospectiva) do dinheiro, a qual representa a forma equivalente).
A crítica do ponto de partida de Marx e, em geral, da sua aná­
lise da forma do valor pelos dois autores, consiste pois em reduzir essa
contradição inicial, contradição dialética (pois nela ocorre uma Auf-
hebung), único ponto de partida capaz de pôr em marcha esta gênese
e, em forma geral qualquer gênese. O devir — vir a ser a partir do
não ser — só é possível se esse não-ser não for nem ser nem ausência
pura e simples do ser. O procedimento dos dois autores significa,
pois, por um lado se situar aquém da contradição, na tautologia:
a mercadoria é a mercadoria. Nesse caso, a identidade não passa e
não pode passar a nenhuma outra determinação. (Poder-se-ia pensar
esse bloqueio como um juízo de reflexão, mas cujo predicado é o
próprio sujeito, à maneira pela qual Hegel pensa a identidade: a
mercadoria é... mercadoria.) Por outro lado, o procedimento dos dois
autores significa situar-se além da contradição, na não-contradição:
a mercadoria não é o dinheiro ou o dinheiro não é a mercadoria. Se
no primeiro caso é propriamente a identidade que substitui a contra­
dição, no segundo é a não-contradição que substitui a contradição.
No primeiro caso, A = A, no segundo A # B. O procedimento dos
dois autores representa, pois, uma afirmação da lógica da identidade
e da não-contradição em face da dialética. Ê no fundo, no plano do
discurso econômico, uma tentativa que se inscreve numa longa tradi­
ção de crítica da contradição e de justificação do princípio de identidade:
ou o ser ou não-ser. Mas no ponto de partida da sua gênese, o di­
nheiro “participa” tanto do ser como do não-ser.
Mas a segunda alternativa considerada é também úm ponto de
chegada. Comparemo-la desse ponto de vista com o ponto de chegada
de Marx. As diferenças se revelam análogas às que encontramos para
o ponto de partida. O ponto de chegada (que não é tal coisa por falta
de ponto de partida) dos dois autores é, pois, que a mercadoria não é
o dinheiro e que o dinheiro não é a mercadoria. No que se refere ao
ponto de chega, devemos nos fixar antes sobre o segundo juízo:
MARX: LÓGICA E POLITICA 177

o dinheiro não é mercadoria. Precisamente, eles denunciarão em Marx


a tese segundo a qual “o dinheiro é mercadoria” , tese que seria a
origem das dificuldades.86 Entretanto, não é verdade que para Marx
o dinheiro é mercadoria, pelo menos se ficarmos lá. Para Marx o
dinheiro é e não é mercadoria. Gom efeito, se no ponto de partida o
dinheiro era e não era ao mesmo tempo a mercadoria que tomava a
forma equivalente, no ponto de chegada, inversamente, a mercadoria
está e não está no dinheiro. Ou, em outros termos, se o ponto de
partida poderia ser expresso pelo juízo de reflexão: “o dinheiro é...
mercadoria” , ou o dinheiro passava “no” seu predicado, único termo
posto, aqui é preciso dizer “ a mercadoria é ... dinheiro” , a merca­
doria, apenas pressuposta (se a considerarmos, bem entendido, en­
quanto momento do dinheiro, pois a mercadoria se mantém de resto
como mercadoria) passa no dinheiro, o único termo que é posto nesse
juízo. O dinheiro é aqui “negado” como a mercadoria o é no início, só
que no primeiro caso o dinheiro era uma pressuposição prospectiva,
a mercadoria é aqui uma pressuposição retrospectiva. Ou, se se qui­
ser, lá o dinheiro era germe, ser na sua pré-história (lógica) que exis­
tia na mercadoria, aqui a mercadoria — tal como ela existe no di­
nheiro — é material, ser na sua pós-história (lógica), sobre o qual é
posto o dinheiro.
Vê-se que, como para o ponto de partida, a resposta dos dois
autores no que se refere ao ponto de chegada ou enquanto ponto de
chegada, significa um esvaziamento da contradição em benefício da
lógica da identidade. Observar-se-á, entretanto, que como acontece às
vezes coni os críticos sérios da dialética, Benetti e Cartelier são le­
vados, sem o querer, a uma resposta contraditória, mas sob forma
subjetiva de um paradoxo. “O ouro só é mercadoria enquanto ex-
mercadoria!” exclamam os dois autores na página 156. Se se inter­
pretar o “ex” (“ex-mercadoria”) não como se ele remetesse a um pas­
sado terminado mas a um passado presente enquanto passado termi­
nado, teríamos aí uma boa formulação da relação contraditória mer­
cadoria/dinheiro. Mas essa leitura significaria que passamos da anti­
nomia à contradição, o que só poderia ser feito pela posição da anti­
nomia.

Conclusão
Podemos, agora, concluir essa primeira parte. Conforme o que
vimos, a crítica dos dois autores se apresenta em geral como uma
tentativa de “ reduzir" a dialética pelas formas da lógica do entendi­
mento. Digamos que há vários momentos no seu procedimento: eles
descobrem contradições em Marx (isto é o mais importante); eles as
recusam (como contradições vulgares) em nome da identidade; eles
descobrem, ou crêem descobrir, leituras ou textos de Marx que permi-
178 RUYFAUSTO

tiriam evitar a contradição; propõem a sua própria alternativa, não


dialética, que pretende basear-se mais ou menos em certos textos de
Marx; finalmente, sem querer, e em forma de paradoxo, são levados
pelo menos uma vez a dizer a contradição.
Mas precisemos de que forma essa redução se apresenta até
aqui. Nesta primeira parte vimos a lógica da identidade abordar os
problemas interiores à teoria da circulação simples. O obstáculo contra
o qual eles se chocaram foi o movimento de constituição, a gênese
(no caso, a gênese do dinheiro), movimento contraditório que se con­
clui pela constituição de um universal concreto. Como veremos, esta
não é a única maneira pela qual se manifesta a contradição.
Por outro lado, a crítica dos dois autores aparece como uma
tentativa de questionar a materialidade na apresentação de O Capital.
Esse questionamento da relação forma/matéria em Marx — questio­
namento que, como vimos, supõe uma concepção puramente “formal”
da apresentação de O Capital — incidiu, na primeira parte, sobre a
passagem do valor de uso enquanto suporte do valor ao valor de uso
enquanto material em que o valor se encarna (valor de uso formal).
Mas, como veremos, o problema da matéria pode se apresentar tam­
bém sob outra forma. Observemos, para concluir, que esses'dois pro­
blemas: contradição, relação matéria e forma estão ligados: a relação
entre forma e matéria na apresentação de O Capital é uma relação de
“negação” e de contradição. Voltaremos a isso tudo, de forma mais
geral, nas conclusões finais.

II. CIRCULAÇÃO SIMPLES, PRODUÇÃO CAPITALISTA

Na primeira parte, tentamos analisar os problemas que se situam


no interior da circulação simples, e interessam o trabalho concreto e o
trabalho abstrato, o valor de uso e o valor, a forma do valor, o dinheiro
etc. O objeto dessa segunda parte será, primeiramente, a questão do
sentido geral da circulação simples, a qual contém a da relação entre a
circulação simples e a teoria do capital. Em segundo lugar, o objeto
será a teoria do capital, e num duplo sentido: por um lado, anali­
saremos o sentido geral da apresentação da teoria do capital (sobretudo
mas não exclusivamente no livro I de O Capital) — discutiremos aí,
inversamente, a relação produção capitalista, circulação simples — e
por outro lado nos deteremos sobre um certo número de pontos pre­
cisos (capital constante, no que se refere ao livro I; ciclo do capital,
esquemas de reprodução, no que concerne aos livros II e III). Como na
primeira parte, o desenvolvimento será ao mesmo tempo crítico e alter­
nativo. Alguns pontos nos remetem direta ou indiretamente a problemas
interiores à circulação simples; será preciso às vezes, para completar a
análise, retomar o objeto da primeira parte.
MARX: LÓGICA E POLITICA 179

PRIMEIRA SECÇÃO

a) Introdução

A relação entre a circulação simples e a produção capitalista


é um tema central do livro de Benetti e CarteÚer. Como a propó­
sito de outros pontos, eles propõem uma solução que tem como contra­
partida a critica das respostas anteriores, entre as quais a resposta
de Marx.
“(...) a passagem da mercadoria ao capital (é) um problema não
resolvido.” 87 Acreditamos pelo contrário que, bem compreendida, a
resposta de Marx é efetivamente uma solução, senão a solução. Nesse
sentido não estaríamos de acordo com essa formulação. Entretanto,
estamos totalmente de acordo com ela, no sentido de que seria difícil
dizer que a resposta de Marx foi, até aqui, bem compreendida. Dir-
se-ia antes, que, a esse respeito, ainda não se resolveu de uma forma
rigorosa o problema do sentido da resposta de Marx. O que vem
em seguida representa uma tentativa de resolver este último pro­
blema.
Já assinalamos o que constitui uma dificuldade preliminar. A
formulação que Benetti e Cartelier dão ao problema é em certa medida
diferente da que se extrai da leitura de O Capital. Eles falam, por
exemplo, de “sociedade mercantil” . O que poderia dar a impressão de
que o problema deles é outro, o que implicaria: não se poderia com­
parar a resposta deles com a de O Capital. Mas são eles próprios que
comparam as duas soluções. A diversidade aparente dos problemas
decorre na realidade da diversidade das soluções a um mesmo pro­
blema, ou mais exatamente, das dificuldades da solução que eles
propõem (para a leitura de O Capital e para o problema mesmo), como
este parágrafo o mostrará.
“Esse capítulo se propõe contribuir para o debate ininterrom-
pido desde a origem da economia política sobre as relações entre
os conceitos de mercadoria e de capital. O problema não foi sem­
pre exposto de um modo explícito; ele foi geralmente obscurecido
pela evidência com que o capitalismo se apresentava como sociedade
mercantil de um tipo particular." (p. 132, grifo nosso) Eis aí o que
constituiria, para os nossos autores, tanto a característica como o pe­
cado da interpretação tradicional: o capitalismo seria uma espécie do
gênero “sociedade mercantil”. À relação entre a sociedade mercantil e
o capitalismo seria uma relação de gênero a espécie. No interior dessa
orientação geral, eles distinguem a tendência neoclássica88 da tendên­
cia clássica, e no interior desta última duas abordagens diferentes: de
um lado a de Ricardo-Torrens-Sraffa, mas “a análise crítica” permi-
180 RUY FAUSTO

tiria mostrar que é só no que se refere ao seu projeto89 que os três


autores iriam nessa direção; a outra abordagem clássica seria a de
Marx e Smith. “O ponto de partida é aqui a teoria da mercadoria,
e se passa à noção de capital pela adjunção de uma mercadoria suple­
mentar: o trabalho assalariado em Smith e a força de trabalho em
M arx.” (p. 133)90 “(...) mas aconcepção do capitalismo como sociedade
mercantil de tipo particular é incorreta.” (p. 136) Ã relação de gênero a
espécie que supõe que a relação “entre proprietários de meios de pro­
dução e assalariados” (p. 135) é uma relação mercantil — é um inter­
câmbio de mercadorias — eles opõem a tese de que a “sociedade
mercantil” e o capitalismo são duas espécies de um mesmo gênero —
“a sociedade monetária” (p. 136): “A proposição de que a força de
trabalho é uma mercadoria ‘não tem significação’ (p. 112) Em Mar-
chands, Salariats et Capitalistes, se propõem três hipóteses: H l, que
estabelece a relação monetária; H2, que estabelece a relação “mercan­
til” (isto é, entre agentes de circulação simples); e H’2, que estabelece a
relação de tipo capitalista. “(...) a teoria da mercadoria e a.teoria do
capital têm uma hipótese comum, H l: as formas sociais, objeto das
duas teorias, são monetárias, isto é, correspondem a um tipo particular
de vínculo social, que definimos como separação.91 A partir dessa base
comum, mostramos que duas formas sociais alternativas podem ser
descritas segundo as modalidades da separação igualitária, isto é, em
que o modo da separação consiste numa relação entre elementos sepa­
rados: tal é o conteúdo da nossa hipótese H2;92 não igualitária, isto é,
em que o modo da separação consiste numa relação entre elementos
separados e não separados, portanto declarados: é o conteúdo da nossa
hipótese H’2.93 Compreende-se então que é possível elaborar a teoria
do capital como uma extensão da teoria da mercadoria, pois H2 e H’2
se excluem.” (p. 135) Em lugar de uma relação de gênero a espécie cujo
vínculo seria a relação mercantil, a troca de mercadorias, haveria uma
relação de espécie a espécie, sendo o elemento comum a presença do
dinheiro. Haveria, pois, um elemento comum entre a “sociedade mer­
cantil” e o capitalismo (o que quer dizer que não seria correto separá-
los completamente) mas este elemento — que é o dinheiro e não a
mercadoria — os situaria num mesmo plano de generalidade, como
espécies do gênero “sociedade monetária” .
Mas seria verdade que a tradição concebe a relação entre à
“sociedade mercantil” e o capitalismo como uma relação de particula­
rização? Mais precisamente, a passagem da mercadoria ao capital, em
Marx, que se efetuaria pela adjunção de uma mercadoria particular,
a força de trabalho, estabelece uma relação de gênero a espécie? Este é
o problema que examinaremos, começando pela questão do sentido da
circulação simples em O Capital.
MARX: LOGICA E POLITICA 181

b) Sentido da teoria da circulação simples em O Capital


Dissemos, anteriormente, que a secção I do livro I de O Capital
tem por objeto a aparência do mòdo de produção capitalista. Mas esta
afirmação deixava vários problemas em aberto. Em que sentido preciso
a teoria da circulação simples é a teoria da aparência? Qual a relação
entre essa teoria da aparência e a teoria da essência? Ê necessário, pois,
retomar o conjunto do problema do sentido da teoria da circulação
simples e da sua relação com a teoria do capital.
Poderíamos formular a questão também do seguinte modo: a
teoria da circulação simples se refere efetivamente ao capitalismo, ou
não se refere? Afirmando que ela trata da aparência do capitalismo,
afirmamos à primeira vista que o seu objeto é o capitalismo (conside­
rado em certo nível). E entretanto, não é estranho e mesmo absurdo,
dizer que uma teoria em que o capital não está presente, e mais do
que isto, uma teoria cujo objeto é um sistema de relações cujo movi­
mento se orienta pelo valor de uso (ou que tem como finalidade o valor
de uso e a satisfação das necessidades e não a valorização do valor)
é uma teoria do capitalismo? Uma teoria do capitalismo que tem como
objeto relações cuja finalidade é oposta à que caracteriza o capital é
uma teoria admissível? Como isto seria possível? Aqueles que até aqui
recusaram-se a ver no objeto da secção I de O Capital um objeto que
poderia se assemelhar ao capitalismo tinham certamente razões sóli­
das para fundamentar essa recusa.94 Assumamos essa recusa. Sería­
mos levados então à hipótese oposta: o objeto da secção I não é o capi­
talismo. E entretanto, essa tese não deixa de oferecer dificuldades.
Com efeito, é na secção I que Marx introduz tanto o valor como o
trabalho abstrato. Ê pensável uma teoria cujo objeto não é o capita­
lismo e que refere entretanto ao trabalho abstrato e ao valor? Dir-
se-á que o trabalho abstrato e o valor existem fora do capitalismo?
Já seria estranho introduzir essas determinações lá onde — mesmo
para aqueles que crêem na presença do valor e do trabalho abstrato
fora do capitalismo — elas só poderiam existir com um desenvolvi­
mento limitado. Mas há mais do que isto. Como vimos em outro lugar,
Marx nega expressamente a presença do trabalho abstrato e do valor
enquanto tais, fora da esfera do capitalismo: “Naturalmente, Steuart
sabia muito bem que também nas épocas pré-burguesas o produto
toma a forma mercadoria, e a mercadoria a forma dinheiro, mas ele
prova detalhadamente que a mercadoria enquanto forma fundamental
elementar da riqueza, e a alienação enquanto forma dominante da
apropriação, só pertencem ao período da produção burguesa e que,
portanto, o caráter do trabalho que põe o valor de troca é especifi­
camente burguês"?5 “ Se o valor das mercadorias é determinado pelo
tempo de trabalho necessário que elas contêm e não pelo tempo de
trabalho simplesmente que elas contêm, é o çapital que realiza pela
182 RUYFAUSTO

primeira vez essa determinação (,..).” 96 Esses textos mostram que não
é verdade que, para Marx, o trabalho abstrato e o valor existem
enquanto tais antes do capitalismo, mesmo se não desenvolvidos (isto é,
sem desenvolvimento mas já no interior de uma história). Para Marx,
fora do capitalismo trabalho abstrato e valor não existem enquanto tais
(isto é, eles só poderiam existir como existem as coisas no interior de
uma pré-história: elas existem e não existem). Como pensar então uma
teoria que tem por objeto outra coisa do que o capitalismo e que
introduz determinações que enquanto tais (isto é, não só como deter­
minações desenvolvidas mas enquanto determinações simplesmente
constituídas) só podem existir no capitalismo? Os que recusam a tese
de que o objeto da secção I não é o capitalismo têm portanto razões
sólidas para fazê-lo. Assumamos essas razões: a secção I de O Capital
teria, pois, como objeto o capitalismo. Ora, já vimos que é preciso
rejeitar essa tese, por razões que são igualmente sólidas. Se conside­
rarmos o movimento de "redução ao absurdo” de cada tese, somos
assim conduzidos de um oposto ao outro num movimento infinito —
um mau infinito — incessante. Esse movimento antinómico que apa­
rece se se fizer a crítica das duas teses opostas, surge na experiência
vivida de todos aqueles que tentam pensar rigorosamente a questão do
objeto da secção I: chega-se a uma resposta, se a expõe, e as razões que
a fundamentam parecem satisfatórias. Mas num outro momento, des-
cobre-se de repente que se está expondo a tese oposta. E é esta última
que aparece agora como bem fundada. Ê só num terceiro momento que
se dá conta de que se está expondo a tese oposta à que se defendera
antes, e que apresentara títulos de igual validade. Aqui, a dúvida
(Zweifeln) — como dizia Hegel — se tom a desespero ( Verzweiflung).
Poderíamos nos refugiar num terceiro termo? Seria o caso, sem pro­
blema, se se tratasse de uma oposição, digamos, entre contrários. Mas
aqui opomos capitalismo a não-capitalismo, a oposição é entre contra­
ditórios. Dever-se-ià pôr entre parênteses o princípio do terceiro ex­
cluído, como fazem certos lógicos, e supor que além da posição de um
dos dois contraditórios, e a da contradição que só poderia nos conduzir
aparentemente à dissolução do discurso enquanto discurso rigoroso,
haveria ainda uma outra possibilidade? Sem discutir a validade das
lógicas sem terceiro excluído, pode-se dizer que aqui, um terceiro (que
não seja a contradição) não é, de modo algum, pensável. Qual seria
esse objeto social que não se situa nem no capitalismo nem fora dele? £
afinal a descoberta dessa antinomia que constitui ou deve constituir o
núcleo do procedimento de Benetti e Cartelier. Por vias que não são
exatamente as que seguimos aqui, eles adivinharam o caráter contradi­
tório da relação. E este é certamente um bom resultado, quaisquer que
sejam as conclusões que eles tiram disso e o procedimento que elas ins­
tauram. Outros, marxistas demais ou antimarxistas demais para levar
a sério a apresentação de O Capital e se deter nela, não perceberam
MARX: LÖGICA E POLITICA 183

coisa alguma. Mas entre as vias fechadas que constituem o impasse


lógico, há uma que não exploramos suficientemente. E que nós não
exploramos porque se trata daquela que aparentemente não merecia
nem mesmo exame, aquela que menos do que uma via fechada, se
apresentava como o próprio fecham ento. Por isso mesmo é como um
dado imediatamente evidente que afirmamos que a contradição nos
conduziria à dissolução do discurso (pelo menos na sua pretensão à
verdade). E entretanto, é esse enunciado, imediatamente evidente, que
se releva como o menos sólido. Como para o problema que vimos no
texto anterior, a saída está no próprio fechamento.97 Para sair do
círculo antinômico do mau infinito, é preciso, não buscar outras terras
porque não há outras terras,98 mas se instalar nesse círculo. Operação
que é assim a mais difícil, porque ela é a mais fácil. Em vez de fugir da
antinomia, é preciso assumi-la, isto é, pô-la. A antinomia posta é a con­
tradição. Deve-se dizer, portanto, que o objeto da secção I é e não é o ca­
pitalismo, ela se refere e não se refere ao capitalismo, eis a resposta.
Mas uma tal resposta deve ser precisada. A resposta aos proble­
mas que levanta O Capital não está sempre na contradição, embora a
contradição represente a determinação fundamental. A articulação do
todo é contraditória. Mas por um lado a contradição não exclui a
identidade.99 Por outro lado, e sobretudo quando se diz que a solução
está na contradição, é preciso explicar o conteúdo particular da rela­
ção, mais do que isso, é preciso descobrir de dentro e na sua parti­
cularidade o conteúdo da relação, que de certo modo, se revela depois
como contraditório. (Senão correríamos o risco de cair no formalismo da
contradição, ou pelo menos, de parecer ter caído nela.)
Deve-se retomar agora a tese de que partimos, tese que diz que o
objeto da secção primeira é a circulação simples, e que a circulação
simples é a aparência do modo de produção capitalista. A circulação
simples é a aparência do modo de produção capitalista: isto significa
que, considerado num nível puramente fenomenal, o sistema nos revela
um conjunto de intercâmbios que tomados em si mesmos se apresen­
tam como simples intercâmbios de mercadorias.100 Mas o problema
é difícil porque a circulação simples não trata só da aparência, enten­
dida como circulação simples. A análise da secção I tem como objeto
não só o intercâmbio de mercadorias, ela se interroga, e sobretudo,
sobre os fundamentos desse intercâmbio. Temos assim a aparência e o
fundamento dessa aparência. Entretanto os fundamentos são introdu­
zidos aqui só como fundamentos dessa aparência. Não que eles desa­
parecerão quando se passar à teoria do capital, mas eles sofrerão uma
operação fundamental. No momento, eles são portanto só os funda­
mentos da aparência. Por outro lado, mas isso é uma conseqüência,
esses fundamentos são congruentes à aparência. Sem dúvida, o valor de
troca aparecia como algo que é a tal ponto mutável que deveria se
subtrair a toda determinação, e os fundamentos estabelecem uma
184 RUYFAUSTO

determinação. Mas de qualquer modo, fundamento e aparência se


apresentam aqui como termos que têm uma relação de homogenei­
dade. Esse todo homogêneo constituído pelo fundamento e a aparência
constitui a produção simples de mercadorias, momento da produção
capitalista.101 Com efeito, essa totalidade homogênea fundam ento-
aparência que constitui a produção simples de mercadorias é ela pró­
pria a aparência do modo de produção capitalista. O sistema aparece
como um sistema que obedece às leis gerais da produção simples, isto
é, ele aparece como se a sua finalidade fosse não a valorização do valor,
mas a satisfação das necessidades. Por outro lado, e em conseqüência,
a apropriação das mercadorias aparece não como resultado da explo­
ração do trabalho de outrem, mas direta ou indiretamente, como
resultado e conseqüência do trabalho próprio.
Tudo isto significa que a produção simples de mercadorias, que é
um mom ento da produção capitalista, está na realidade em contra­
dição com as leis essenciais do sistema. Esta aparência do sistema,
momento dele, remete a leis que são opostas às leis do capitalismo. E
entretanto trata-se, sem dúvida, de leis do capitalismo. As leis da
essência “negam” , na realidade, esta aparência, quando a aparência se
interverte no seu contrário, quando se passa, quando ela passa, à
essência. A aparência só existe no sistema (no conjunto do sistema, no
sistema enquanto totalidade) enquanto aparência “negada (A mesma
coisa vale para a essência no nível da aparência — lá, ela é essência
“negada” — mas é a essência e não a aparência que determina o
capitalismo enquanto capitalismo.)
Ora, a teoria que apresenta a secção I é precisamente a teoria
dessa aparência, que é “negada” . Mas na secção I, porque se está no
ponto de partida, põe-se entre parênteses essa “negação”. A aparência
“negada ” pelo sistema é, aqui, posta. O que é negativo ou, antes,
“negado” no sistema aparece aqui em forma positiva. Com isto, já se
tem a resposta ao problema de saber se a secção I tem por objeto o
capitalismo. Ela tem por objeto o capitalismo no sentido de que ela
trata da aparência do capitalismo, aparência que, como vimos, é ela
própria unidade de uma essência e de uma aparência. Mas a secção I não
tem por objeto o capitalismo, no sentido de que ela põe o que o capi­
talismo nega, de que ela apresenta como positivo o que no capitalismo é
“negativo ”. Se se quiser, a teoria da produção simples em O Capital é a
“negação de uma negação” . Este ser-“negado” do capitalismo que é a
sua aparência aparece aqui como um ser positivo: a “negação” que o
afeta é, aqui, “negada” . O objeto da secção I de O Capital é pois de
certo modo o capitalismo com os sinais invertidos, mas “sinais inver­
tidos” remete aqui menos à operação de “negar” o que é positivo102 do
que a de p ô r o que na realidade está “negado ”.
Ê pois em razão da dificuldade que oferece a idéia de que a
contradição é pensável e o próprio pensar da contradição (mais preci-
MARX: LOGICA E POLITICA 185

samente: desta contradição), que o caráter da secção I é tão mal


compreendido. A partir desses resultados já poderíamos criticar a
leitura de Marx que fazem os dois autores, e a partir de lá, a solução
que propõem ao problema da relação entre a circulação simples e a
produção capitalista. Mas examinaremos antes (no próximo item) a
relação também a partir do outro lado, o que faltava fazer, isto é, a
passagem ou as passagens da produção simples à produção capitalista
enquanto essência. E para terminar este parágrafo faremos duas obser­
vações.
A solução que propusemos para a definição do estatuto da circu­
lação simples tem certa analogia com a solução que comporta um
problema interior à circulação simples que deixamos em suspenso na
primeira parte desse texto.103 Perguntáramos qual era exatamente o
estatuto dos momentos da pré-história lógica do dinheiro, postos no
decorrer da análise da forma do valor. Mais precisamente, o problema
era o de saber se esses momentos estão dados no objeto, que é aqui a
circulação simples (enquanto momento do capitalismo) ou se eles eram
outra coisa: ou momentos de uma construção puramente teórica, ou
objetos dados numa situação historicamente anterior ao aparecimento
do dinheiro. Na realidade, nenhuma das duas respostas é satisfatória
(nem a primeira, nem a segunda nas suas duas alternativas). Poder-
se-ia dizer que aí ocorre a mesma coisa que para o estatuto da circu­
lação simples. Por um lado, a existência enquanto tal dos momentos do
dinheiro (por exemplo da forma simples ou da forma desenvolvida) não
pode ser admitida, pois uma vez constituído o dinheiro — e na circu­
lação simples como momento da produção capitalista e mesmo bem
antes, o dinheiro já está constituído — esses momentos não existem
mais enquanto tais, enquanto expressões imediatas do valor das merca­
dorias . Se há dinheiro, não há forma simples nem forma desenvolvida do
valor no que se refere à expressão imediata do valor das mercado­
rias,104 pois então o dinheiro é o único a exprimir imediatamente o
valor das mercadorias, assumindo a expressão, desse modo, a forma
preço. Mas a outra solução também não é satisfatória. Se essas formas
não existem, como justificar essa distância em relação ao objeto, isto é,
à circulação simples (distância análoga ao recuo em relação à produção
capitalista no problema discutido anteriormente)? Com efeito, como
dissemos, se esses momentos não existem, ou se trata de uma cons­
trução que só existe no pensamento, ou se trata da visada de um objeto
histórico anterior à circulação simples tal como ela se dá no capitalismo
e mesmo antes. Nesse último caso, voltaríamos à troca; no outro, a um
discurso do conceito em sentido subjetivo (mesmo se logicista e não
psicologista). Ora, a despeito do que dizem os althusserianos, se o
discurso dialético é um discurso do conceito, ele o é no sentido em que o
“conceito” designa um objeto que existe no pensamento como na
realidade.105 E quanto à regressão à troca, a queda na “fábula da
186 RUY FAUSTO

troca” ,106 é difícil ver como a teoria da circulação simples enquanto


momento do capitalismo poderia começar pela descrição de um objeto
anterior à aparição do dinheiro. Ora, a solução é até certo ponto
análoga, sem ser idêntica, à do problema anterior: os momentos do
dinheiro existem e não existem no dinheiro, e portanto na circulação
simples. Na realidade, esses momentos existem exatamente enquanto
momentos do dinheiro, porque o dinheiro é universal concreto, como
vimos, síntese do momento da simplicidade (forma I) com o momento
da pluralidade (forma II): eles só existem na forma dinheiro como
determinações “negadas” , e não como determinações postas. Eles não
existem em forma positiva. Ora, a teoria (no caso a da gênese lógica do
dinheiro) os põe enquanto determinações positivas. Assim, a posição
dessas determinações corresponde e não corresponde, ao mesmo tempo,
a objetos reais: corresponde, porque esses objetos (fazendo abstração
do “sinal” de que eles estão afetados) existem no real; não corresponde,
no sentido de que as determinações só existem como determinações
“negadas” , sendo que a posição (entendamos: a posição positiva)
dessas determinações só é dada na teoria.107
A segunda observação é de ordem mais geral: o problema da
relação entre circulação simples e produção capitalista enquanto capi­
talista, não deve ser confundido com o da análise das relações entre as
formações mercantis que poderiam existir antes do capitalismo e o
capitalismo. Aqui se trata da relação entre a análise da secção I e a
teoria do capital, ou se se quiser, no que se refere ao objeto, da relação
entre a circulação simples enquanto momento do capitalismo e a
produção capitalista na sua essência. O outro problema o discutimos
no texto anterior.108

c) Da circulação simples ao capital


Examinemos, agora, &passagem da circulação simples ao capital
tal como ela se opera quando se passa da secção I à secção II do livro I.
Como veremos, só se tem aí uma primeira passagem. Ou, se se quiser,
a passagem da circulação simples à produção capitalista enquanto
produção capitalista não é ai plenamente realizada. Devemos estudar,
pois, o alcance e os limites dessa passagem.
De um modo geral, deve-se dizer que o que se modifica, ao passar
da circulação simples à produção capitalista enquanto produção capi­
talista, é a finalidade do processo que se encontra no objeto. Nos
limites da circulação simples — ou da produção simples de merca­
dorias (fundamento da circulação simples em sentido estrito) enquanto
momento da produção capitalista — a finalidade da produção e da
circulação é o valor de uso, isto é, a satisfação das necessidades. Na
produção capitalista enquanto prod. ção capitalista — que é a essência
da qual a produção simples é a aparência — a produção que visa o
MARX: LOGICA E POLÍTICA 187

valor de uso se revela na realidade como produção que visa a valori­


zação do valor. O valor de uso enquanto finalidade é a aparência
“ negada” pela (valorização do) valor, que representa a finalidade na
ordem da essência. A segunda finalidade “nega” a primeira. A se­
qüência M—D—M que caracteriza a aparência se inverte na seqüência
D —M—D, ou mais precisamente, D—M—D’; não se visa mais obter
um a mercadoria através do dinheiro, visa-se o aumento do dinheiro
através da mercadoria. Mas é preciso analisar mais de perto o sentido
dessa inversão.
Eis o essencial. Na circulação simples, o sujeito (e se deve en­
tender aqui “sujeito” de uma forma limitada, pois nesse nível não há
Sujeito, como processo autônomo) — o sujeito é inicialmente a merca­
doria. É na mercadoria que descobrimos a determinação valor de uso,
e em seguida a determinação valor e a sua expressão na aparência,
o valor de troca. Valor de uso e valor (com sua forma fenomenal)
existem, pois, na circulação simples, inicialmente como determinações
da mercadoria. Isto não contradiz nem a idéia de que o valor é um
fundamento (Grund) — o fundamento do valor de troca — nem que a
substância do valor é o trabalho. Esse fundamento é fundamento que
existe na mercadoria; e que ele tenha sua substância (mas não sua
existência, ela mesma) no trabalho, não elimina o fato de que a
mercadoria permanece como o sujeito, do qual o valor é uma determi­
nação. Podemos dizer, portanto, em primeiro lugar, que na circulação
simples “a mercadoria é Valor” (entendendo esse juízo como um juízo
de inerência). A mercadoria tem a determinação valor. Podemos dizer,
por outro lado, que a “mercadoria é (também) valor de uso” , ela tem
como determinação o valor de uso. Da mercadoria, passa-se em se­
guida ao dinheiro, pelo movimento analisado anteriormente. Mas se o
dinheiro “nega” a mercadoria, a mercadoria — como vimos — perma­
nece de resto mercadoria. Temos assim, no final da gênese do dinheiro,
e também no final do desenvolvimento das formas do dinheiro, tanto o
dinheiro (que é mercadoria “negada”) como a mercadoria enquanto
mercadoria. Ora, não menos do que a mercadoria, o dinheiro tem
como determinação o valor (é o preço que não convém ao dinheiro).
Pode-se dizer: “o dinheiro é valor” , enunciado que deve ser compreen­
dido igualmente como um juízo de inerência. Por outro lado, o dinheiro
tem valor de uso: mas, como vimos também, o valor de uso do dinheiro
é um valor de uso formal, o de ser útil para as funções de dinheiro.109
De qualquer modo, pode-se dizer: “o dinheiro tem valor de uso” .
Mas se a mercadoria e o dinheiro permanecem sendo os sujeitos
da circulação simples, a mercadoria é primeira em relação ao dinheiro,
o que quer dizer que o valor de uso material é primeiro em relação ao
valor de uso formal. O valor de uso formal é simplesmente interme­
diário, a mediação que permite a realização do valor de uso material.
Ou, em outros termos, o dinheiro é apenas o mediador que, através da
188 RUY FAUSTO

realização do valor, permite a realização do valor de uso que é a


finalidade de todo o processo. (Ê só nas últimas formas do dinheiro que
ele vai aparecer como fim, mas trata-se aí de uma espécie de negação
da circulação simples no interior da circulação simples.)
Essa anterioridade da mercadoria em relação ao dinheiro aparece
no fato de que, no movimento das trocas mercadoria/dinheiro, a rela­
ção entre a mercadoria e o dinheiro continua sendo uma relação ex-
tema. Não há nenhum Sujeito autonomizado que estabeleça relações
internas entre os termos. Enquanto só se tem relações externas, o di­
nheiro, encarnação material do valor, é apenas o mediador para a
realização do valor de uso das mercadorias (pela mediação da reali­
zação dos seus valores).
Quando passamos da circulação simples à produção capitalista
enquanto produção capitalista, os juízos anteriores que têm por objeto
o valor se inverterão. Não diremos mais que “ a mercadoria é valor” e
que “o dinheiro é valor” . Diremos agora “o valor é mercadoria” ,
“o valor é dinheiro” . O valor, que era predicado, torna-se aqui sujeito.
Poder-se-ia acrescentar ainda que, agora, o dinheiro será primeiro em
relação à mercadoria. Mas isso não diz tudo o que se modifica na
passagem da circulação simples à produção capitalista enquanto pro­
dução capitalista. Isto não diz nem mesmo o essencial. É que se o valor
se torna sujeito, ele não se toma sujeito na forma em que a mercadoria
e o dinheiro o eram, na forma do sujeito inerte ou do sujeito subs­
tancial. No nível da circulação simples todas essas determinações só
existem em forma substancial. O próprio valor é somente trabalho
abstrato cristalizado (e se, enquanto trabalho ele não é inerte, ele
também não tem valor, pois o valor é trabalho cristalizado).
A passagem da circulação simples à produção capitalista en­
quanto produção capitalista representa, pois, em primeiro lugar a pas­
sagem do valor do nível da substância (do nível de relativa inércia) ao de
Sujeito, entendendo por “ Sujeito” não somente a determinação pri­
meira de que as outras são predicados, mas um processo autônomo,
um movimento que se autonomizou e se transformou numa força social.
Isto quer dizer que a relação entre a mercadoria e o dinheiro na
troca não é mais exterior, cada troca faz parte de uma cadeia interna de
trocas, que se autonomizou tomando-se assim capital. É a partir disto
que se deve pensar a inversão valor/mercadoria e valor/dinheiro. Não
se trata simplesmente de fazer do valor o sujeito inerte da determinação
mercadoria ou da determinação dinheiro. Enquanto objeto inerte, o
valor só pode ser um predicado. Ele só vem a ser sujeito, vindo a ser
Sujeito. É como movimento autonomizado que ele vem a ser o sujeito
das determinações dinheiro e mercadoria. Assim, dir-se-á agora mais
exatamente: “o capital é mercadoria” , “o capital é dinheiro” . E se na
circulação simples a mercadoria era uma determinação primeira em
relação ao dinheiro, agora é o dinheiro enquanto determinação do
MARX: LÖGICA E POLITICA 189

capital que é anterior à mercadoria enquanto determinação do capital.


O dinheiro, encarnação material do valor é a “forma de existência
geral” do valor no movimento D—M—D’, a “mercadoria (é) a sua
forma particular e, por assim dizer disfarçada (verkleidet)”. (W.23,
K.I, p. 168; Oeuvres, Économie, I, op. cit., p. 700) Os juízos “o capital
é mercadoria” , “o capital é dinheiro” não são juízos de reflexão,
enquanto o capital se mantém enquanto capital. Eles só o serão se o
movimento se interromper, com o que o capital se tomará mercadoria
ou dinheiro. Teremos então os juízos de reflexão “o capital é ... merca­
doria” , “o capital é ... dinheiro” .110 Mas os juízos “o capital é merca­
doria” e “o capital é dinheiro” (supondo a identidade capital = ca­
pital, isto é, a continuação do movimento) também não são, por outro
lado, rigorosamente, juízos de inerência. Eles têm em comum com os
juízos de inerência o fato de não haver aí reflexão no predicado. Mas se
trata na realidade de um juízo de um terceiro tipo, que poderíamos
chamar de juízo do Sujeito. Não faremos aqui, de uma maneira deta­
lhada, a teoria desses diferentes tipos de juízos. Digamos simplesmente
que a diferença em relação aos juízos de inerência (do tipo “o dinheiro
é ouro” ou “ a mercadoria é valor” ou “o dinheiro é meio de circu­
lação”) reside no fato de que, aqui, o próprio Sujeito é constituído por
uma relação de negação entre os predicados. O capital só é capital pelo
movimento pelo qual a mercadoria “nega” o dinheiro e o dinheiro
“nega” a mercadoria. Enquanto que para o julgamento de inerência,
cujo sujeito é inerte (embora constituído) a negação de um predicado
pelo outro, quando ela ocorre (por exemplo: certas funções do dinheiro
excluem outras), embora dada, não é, ela própria, constitutiva do
sujeito. O sujeito recebe diversas determinações que se “negam” . Ao
passo que no capital o sujeito só é sujeito — ou antes Sujeito — pela
negação (contínua) das determinações.
Entretanto, com a passagem da secção I à secção II do livro I, só
chegamos à primeira negação da circulação simples. Alguma coisa da
circulação simples se mantém aí. Isto será mais bem explicado quando
tratarmos da segunda negação. Mas já podemos fazer as seguintes
observações: 1) até chegar à teoria da reprodução, o movimento do
capital tem pressuposições que são pressuposições externas, a saber, o
fato de que há por um lado alguém que dispõe de meios de produção e
de dinheiro, e, por outro, alguém que só dispõe da sua força de tra­
balho; 2) no mesmo sentido, até a secção VII, sobre a reprodução — e
embora no momento em que é introduzida a noção de capital, ele seja
apresentado como um movimento incessante — os movimentos circu­
lares do capital são isolados uns dos outros. Eles são apresentados, nos
textos teóricos, como voltas independentes umas das outras, e mediati-
zadas por um (novo) contrato entre capitalista e operário.
Ora, esses dois elementos, o fato de que as pressuposições se
mantêm externas e o fato de que os sucessivos movimentos circulares111
190 RUYFAUSTO

do capital sejam considerados ainda como sendo interrompidos por um


contrato de trabalho» têm como conseqüência que algumas das leis da
circulação simples, a saber, o princípio do intercâmbio de equivalentes,
e (princípio que é a base desse último) o princípio da apropriação dos
produtos pelo próprio trabalho, não são “negados” , mesmo se já se
inverteu a finalidade geral do processo.
Cem efeito, se se considerar cada volta isoladamente — a coisa
muda se considerarmos as voltas ligadas por um movimento contí­
nuo112 — o intercâmbio entre o proprietário dos meios de produção e o
proprietário de força de trabalho — intercâmbio que se revelará entre­
tanto momento do movimento de O Capital — é uma troca de equiva­
lentes. O operário fornece uma mercadoria — a força de trabalho —
que nas condições normais supostas é alienada por uma soma que
representa o seu valor. Temos aí uma troca de equivalentes, quaisquer
que sejam as conseqüências desse intercâmbio. Sem dúvida, partimos
de uma situação que parece diferente da de uma troca comum. Com
efeito, para que essa troca seja possível, é preciso que haja uma espécie
de dissimetria entre os dois agentes: um deles deve possuir meios de
produção e dinheiro, e o outro não. Mas essa dissimetria não põe em
cheque o caráter de troca de equivalentes da operação (considerada no
nível em que se a considera). Com efeito, os meios de produção (ou a
ausência deles) não entram na operação, ela mesma, que consiste em
trocar força de trabalho contra dinheiro. Por outro lado, se se quiser
introduzir a dissimetria, nada nos impede pensar que ela resulta da
circunstância de que um dos agentes trabalhou mais do que o outro.
Como não sabemos nada das origens da situação, é possível que um dos
agentes disponha de meios de produção porque ele trabalhou um
número maior de horas do que o outro. Em outros termos, fora o fato
de que os meios de produção são afinal exteriores à operação, a sua
presença de um lado e a sua ausência de outro poderiam, de qualquer
modo, ser explicadas pelo princípio da apropriação pelo trabalho pró­
prio. Assim, a troca de equivalentes e as leis de apropriação pelo
trabalho próprio não são postas em cheque pela simples inversão da
finalidade do processo (e pela constituição do capital como Sujeito),
enquanto as pressuposições permanecerem externas, e enquanto o
movimento não for pensado na forma de um movimento descontínuo,
interrompido no final de cada volta pelo contrato entre os dois agentes.

d) A reprodução
Mas tudo o que vimos até aqui representa apenas a primeira
negação. Há uma segunda negação, bastante mal conhecida, que se
situa no nível da passagem da secção VI à secção VII de O Capital.113
Poderíamos apresentar essa segunda negação em momentos sucessivos.
Em primeiro lugar, se em lugar de considerar as voltas do capital como
MARX: LOGICA E POLITICA 191

voltas isoladas, interrompidas por contratos, se as considerar em conti­


nuidade — e é justamente isto o que caracteriza a passagem da noção
de produção à de reprodução — a relação entre capitalista e operário
não aparecerá mais como um ato livre que decorre da vontade dos
agentes, como os atos da circulação simples. Se se supuser a continui­
dade do movimento — e basta supô-la nos limites da reprodução
simples — a segunda venda da força de trabalho aparece como um ato
forçado, pois o operário, como o capitalista, em condições normais é
recriado pelo próprio movimento da reprodução. E a mais-valia obtida
(a que o capitalitsta obtém no final da segunda volta do capital) apa­
recerá como o resultado desse ato forçado. Assim, se se supuser a
continuidade do movimento, mais precisamente, o fato de que o movi­
mento recria constantemente o capitalista e o operário, o contrato livre
que permite a troca de equivalentes aparece como coisa bem diferente
de um contrato livre. O contrato é agora a aparência de um ato que não
é mais de liberdade. Entretanto, esse ato forçado tem ainda alguma
coisa de uma troca de equivalentes. Sem dúvida, se o ato não é mais
livre, não se pode mais considerá-lo como resultado de um contrato, e
nesse sentido não há mais, a rigor, intercâmbio de mercadorias. Em
lugar da troca, deve-se dizer que há apropriação. E por isso mesmo,
não se deve mais comparar salário e força de trabalho, isto é, uma
mercadoria e uma soma de dinheiro que corresponde ao valor dessa
mercadoria, deve-se comparar o valor em dinheiro que é transferido ao
operário com o valor que ele produz. Ora, uma parte do valor que ele
produz e que é apropriado é de qualquer modo compensado pelo fato
de que há uma transferência de uma soma de dinheiro, que representa
o mesmo valor, das mãos do capitalista às mãos do operário. É a
mais-valia que aparece rigorosamente como trabalho extorquido, isto
é, apropriado como todo valor criado, mas não compensado por um
desembolso correspondente por parte do capitalista. Ora, para evitar
que toda legitimidade da operação (em termos das leis da circulação
simples) desapareça imediatamente (com a circunstância de que a
mais-valia é agora, rigorosamente, trabalho extorquido), é preciso
supor que tudo se passa como se o capitalista contraísse dívidas em
relação ao operário. E para que se possa “registrar” essas dívidas, é
preciso supor que o capitalista não tem direito à totalidade do capital
variável que é constantemente recriado. O capitalista terá direito sem­
pre a esse capital reconstituído menos a mais-valia que, em cada volta,
ele se atribuiu.114 O que significa: para que o processo não perca
imediatamente todo tipo de legitimidade (legitimidade que, sem dú­
vida, só pode ser estabelecida a partir da circulação simples), é preciso
supor que cada vez que o capitalista desembolsa o capital variável ele
está desembolsando de fato o seu capital primitivo115 e não um capital
que foi (re)criado pelo operário (pois todo o valor criado pelo operário
resulta do trabalho forçado)-, e que no capital variável primitivo se
192 RUY FAUSTO

fizeram descontos sucessivos correspondentes â mais-valia. obtida.


Nessas condições, embora sendo uma apropriação e não uma troca, a
alienação da força de trabalho ainda é, entretanto, uma apropriação
compensada por um. valor equivalente. A mais-valia apropriada é
deduzida do capital variável primitivo.116 Mas essa compensação chega
ao limite — este é o movimento seguinte, na realidade o mais impor­
tante — quando a totalidade da mais-valia apropriada vem a ser equi­
valente ao capitai variável primitivo.117 Eníão, não há mais capital
primitivo que possa substituir a mais-valia, e a totalidade do valor
produzido pelo operário aparece como trabalho simplesmente apro­
priado sem compensação. Restaria entretanto o capital constante.
Enquanto a mais-valia apropriada não corresponde ainda à totalidade
do capital investido mas somente ao capital variável, essa apropriação
forçada e sem compensação tem sempre por base uma soma inicial,
que o capitalista adquiriu, talvez através do próprio trabalho. A apro­
priação pelo trabalho próprio e pelo intercâmbio de equivalentes pode­
ria, pois, ser ainda a base inicial dessa situação em que não há mais
equivalência e em que há uma outra lei de apropriação. Esta última
possibilidade desaparece, ela mesma, no momento em que a totalidade
da mais-valia apropriada equivale ao conjunto do capital. A partir
desse momento, “nenhum átomo de valor do seu capital primitivo con­
tinua a existir” . (W.23, K.í, p. 595; Oeuvres, Êconomie I, op. cit.,
p. 1071) Consuma-se então a negação da lei de apropriação da circu­
lação simples, e do seu fundamento, a troca de equivalentes. A lei da
apropriação pelo trabalho próprio e o intercâmbio de equivalentes se
transforma na lei de apropriação sem troca do trabalho de outrem.118
Ê o que Marx denomina “interversão das leis da propriedade da
produção de mercadorias em leis da apropriação capitalista” . (W.23,
K.I, p. 605; Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 1081) E o que há de
importante nessa interversão — e é por isso que há rigorosamente
interversão — e que a inversão se faz pela própria aplicação das leis da
circulação simples. “Por muito que o modo de apropriação capitalista
pareça assim ferir as leis originais da produção de mercadorias, ele não
decorre de forma alguma da violação dessas leis, mas, pelo contrário,
da aplicação delas.” (W.23, K.I, p, 610; Oeuvres, Êconomie I, op. cit.,
p. 1081) “ Somente lá onde o trabalho assalariado é a sua base (Basis),
a produção de mercadorias se impõe ao conjunto da sociedade; mas é só
lá também que ela desenvolve todas as suas potencialidades ocultas. Di­
zer que a interposição do trabalho assalariado falseia a produção de mer­
cadorias significa que se a produção de mercadorias não quiser ser fal­
seada, ela não pode se desenvolver. Na medida mesmo em que segundo
as suas próprias leis imanentes ela se ‘aperfeiçoa’ (fortbildet) em produ­
ção capitalista, nessa mesma medida as leis de propriedade da produção
de mercadorias se intervertem (umschlagen) em leis da apropriação ca­
pitalista.” (W.23, K.I, p. 613; Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 1090)
MARX: LOGICA E POLITICA 193

e) Retomo á crítica

Voltemos agora ao texto de Benetti e Cartelier. Vimos que eles su­


põem que, para Marx, a relação entre a produção simples de mercado­
rias e a produção capitalista enquanto produção capitalista é uma rela­
ção de particularização, representando a produção capitalista um tipo
particular de produção de mercadorias. Insatisfeitos com essa (pretensa)
resposta de Marx, eles propõem um outro esquema em que, para usar a
sua linguagem, a “sociedade mercantil” e “sociedade capitalista” (p.
70) (ou “o modo de produção salarial” , p. 190), representam “duas
formas sociais alternativas” (p. 135) que têm em comum a caracte­
rística de serem ambas “sociedade(s) monetária(s)” . (p. 136) Ê a alter­
nativa deles à tese em que os “(sujeitos) capitalistas são concebidos
como uma especificação” (p. 53) dos sujeitos mercantis.
Mas por que essas duas respostas (essa falsa leitura de Marx e
essa alternativa a essa falsa leitura)?119 Se para eles a relação que Marx
estabelece entre a circulação simples e a produção capitalista aparece
como uma relação de particularização, isto se deve ao fato de que eles
percebem que, em Marx, a produção capitalista tem suas leis e deter­
minações primeiras — podemos dizer leis e determinações gerais — na
circulação simples. Ê o fato de que as leis da produção simples funcio­
nam como princípios para o capitalismo (deixamos de lado por en­
quanto o “ sinal” desses princípios) que faz com que a relação seja
pensada como uma relação de particularização.
Se, em segundo lugar, eles não estão contentes com essa resposta,
é porque eles se dão conta de que em Marx (e de fato) há uma relação
de oposição, podemos dizer de contradição, entre “produção simples
de mercadorias” e “produção capitalista” . Mesmo se os dois termos
têm algo em comum, ao mesmo tempo um é a negação do outro. Ora,
parece irracional supor que a relação entre esses dois termos possa ser
ao mesmo tempo uma relação de princípios e conseqüências (introdu­
zindo um novo tipo de mercadoria) e uma relação de oposto a oposto e
mesmo de contraditório a contraditório. Se os termos são contradi­
tórios, exclui-se que um possa fornecer princípios ao outro. Eis aí a
essência da sua crítica.
Como se vê, as bases do argumento são pertinentes: há efetiva­
mente uma relação de princípios e conseqüências, e é totalmente certo
(embora os marxistas, em geral, não o digam) que a relação é de
contraditório a contraditório. A dificuldade da resposta deles não está,
pois, nessas bases, que são válidas, mesmo se eles as exprimem de um
modo incorreto (“particularização”), mas no fato de que, para eles, se
deve evidentemente excluir a possibilidade de uma relação que seja ao
mesmo tempo de princípios e conseqüências e de contraditório a con­
traditório: uma relação de fundação (na realidade de “fundação”) que
seja ao mesmo tempo uma relação de contradição.
194 RUY FAUSTO

Mas é esta resposta contraditória que é, como vimos, a resposta


de Marx. E dizer que a relação entre “produção de mercadorias” e
“produção capitalista” é ao mesmo tempo de princípio a conseqüência
e de contraditório a contraditório exclui tanto a idéia de particulari­
zação como a de que os dois termos se relacionam como uma espécie a
uma outra espécie. Na realidade, a relação é de “negação” . E “nega­
ção” significa aqui não só que no segundo termo o primeiro é ao mesmo
tempo negado e consérvado, mas que no segundo termo ele é ao mesmo
tempo plenamente realizado e negado. De fato, a produção capitalista
enquanto produção capitalista é a realização plena das leis da “produ­
ção simples de mercadorias” ; é só quando ela passa às leis do capital
que a produção de mercadorias ganha toda a sua extensão e intensi­
dade. E entretanto as leis da produção capitalista enquanto produção
capitalista contradizem as leis da produção simples de mercadorias. A
produção simples de mercadorias, ela própria, como vimos, unidade de
uma essência e de uma aparência, se torna, por um lado, a aparência
cuja essência é constituída pelas leis do capitalismo enquanto capita­
lismo. Por outro lado, ela continua fornecendo os princípios para o
capitalismo (a lei do valor em primeiro lugar) mas esses princípios são
agora princípios “negados” , princípios que só são válidos supondo que
eles, ou suas conseqüências, se intervertem no seu contrário. Para
apresentar o capital, será assim necessário partir das leis da circulação
simples e depois contradizê-las, porque essas leis se contradizem a si
mesmas.
Vemos com isto em que limites poder-se-ia falar de generalidade
a propósito da circulação simples: ela é mais geral se se quiser dizer
com isto que ela é mais simples. Mas o desenvolvimento da generali­
dade, nesse sentido, não é a particularidade. É a complexidade. Mas a
complexidade não somente como desenvolvimento da simplicidade. Se
fosse esse o caso, passaríamos do esquema das classes ao esquema
clássico da passagem do simples ao complexo. A novidade da dialética
é que o complexo vem a ser o contraditório do simples.
(Se passarmos da relação lógica tal como ela aparecem em O Ca­
pital ao problema da relação entre formações históricas, a resposta
também não será encontrada nos pares gênero/espécie ou espécie/
espécie. As formas mercantis anteriores ao capitalismo não estão para
o capitalismo como o geral ao particular. Eles se contradizem e eles
também não estão entre si como a espécie à espécie porque o que os liga
não é um caráter geral, um é o desenvolvimento do outro. A relação é
ainda de “negação” ou de pressuposição. Mas se em O Capital o pri­
meiro termo é a pressuposição lógica do segundo, aqui ele será a
pressuposição histórica: isto implica diferenças que indicamos ante­
riormente (ver nota 108). Se a consideramos nesse nível, vemos clara­
mente que a produção de mercadorias só se realiza negativamente. Ela
só é idêntica a si própria se ela não for desenvolvida, e ela só pode se
MARX: LÓGICA E POLITICA 195

desenvolver negando-se a si própria. E vemos por aí em que sentido o


capitalismo pode ser considerado por sua vez como a forma geral da
produção de mercadorias: ele é o universal concreto da produção de
mercadorias, o particular — o único particular — que realiza plena­
mente, mas por isso mesmo contraditoriamente, as leis da produção de
mercadorias. Nesse sentido, poder-se-ia dizer também que a relação
entre produção de mercadorias e produção capitalista é ao mesmo
tempo de espécie a espécie e de espécie a gênero. O capitalismo é a
espécie que se toma gênero e que por isso “nega” as outras — no caso a
outra espécie: a produção simples.)
O que se deve assinalar ainda é que as determinações contraditó­
rias em relação à “produção simples de mercadorias” que os dois autores
encontram na produção capitalista são de uma maneira bastante precisa
aquelas que o próprio Marx apresenta no nível da segunda nega­
ção, da teoria da reprodução. É assim que eles insistirão sobre o fato
de que a relação salarial não representa um intercâmbio de merca­
dorias, que a força de trabalho não é uma mercadoria, que a circu­
lação do capital contradiz o princípio de equivalência: “Define-se
com isto a modalidade da repartição do valor em salário e mais-valia.
Essa repartição não pode ser interpretada como relação de inter­
câmbio entre assalariado e capitalista (...). Não há aí nenhuma equi­
valência, portanto nenhum intercâmbio de mercadoria” , (p. 173, gri­
fado pelos autores) “As condições que produzem o trabalho assala­
riado, postas em evidência por Marx, bem longe de serem compa­
tíveis com a sociedade mercantil, a contradizem e tomam auto-
contraditória a identificação do modo de produção capitalista com
uma sociedade mercantil em que a força de trabalho seria merca­
doria.” (p. 190) “Marx, na secção II do livro I de O Capital levanta o
problema da mais-valia como sendo o do incremento de valor de um
capital cuja circulação é regulada, entretanto, pelo princípio da equi­
valência. Essa contradição não pode ser superada, como o mostram as
soluções que Marx apresenta (...).” (p. 168, grifado pelos autores)
E entretanto, buscar-se-á em vão em Marchands, Salariat et Capita-
listes uma análise da reprodução enquanto ela interverte as relações
de apropriação.120

SEGUNDA SECÇÃO

Examinaremos agora certos problemas ligados à teoria do capi­


tal, problemas que se relacionam aliás freqüentemente com a questão
do vínculo com a circulação simples. Trata-se em geral de questões
bastante técnicas, e que se situam, muito mais do que os pontos
anteriores, no interior do âmbito da economia. Aqui, mais ainda do
196 RUYFAUSTO

que em outros lugares, tratar-se-á não de teorizar sobre o conteúdo


mesmo das noções, no caso o capital constante, os ciclos etc., mas de
mostrar que a crítica que fazem os dois autores ao desenvolvimento que
Marx dá a esses conceitos fica aquém do seu objeto. Estas considera­
ções deveriam ser retomadas num nível propriamente econômico.

a) Sobre o capitel constante; sobre a constituição do valor


dos meios de produção
O primeiro problema é o da determinação do valor dos elementos
do capital constante.121 Ele remete a uma crítica à economia clássica
que aparece em vários momentos de O Capital.122 Neles Marx ques­
tiona um ponto, relativo ao capital constante, da teoria da reprodução
de Adam Smith.
Se o valor é trabalho cristalizado,123 a determinação do valor de
uma mercadoria exige aparentemente que se possa “alcançar” o traba­
lho que o produziu (ou um trabalho que possa representá-lo). Ora, se
considerarmos o produto anual, digamos de um ramo, que é consti­
tuído por c + v + pl, no que se refere a uma parte do valor do produto
(o que constitui o produto valor) —- (v + pl) — pode-se facilmente
remontar ao trabalho, porque se trata do trabalho que foi realizado no
ano em que, propriamente, foi feito esse produto. O mesmo não se dá
no que se refere a c , e é lá que aparece o problema. Para que o valor
que corresponde a c possa ser determinado, seria necessário, pelo
menos aparentemente, que se pudesse remontar até o trabalho que o
produziu ou até um trabalho que possa representá-lo. Esse trabalho
não o encontramos no ano considerado, pelo menos no ramo conside­
rado, porque o valor que corresponde a c, como é sempre o caso para a
parte do valor total de uma mercadoria que corresponde ao valor dos
meios de produção consumidos na sua produção, é um valor que não
foi criado no momento da produção dessa mercadoria, mas que foi
simplesmente transferido. Ora, como “alcançar” o trabalho de que se
originam esses meios de produção (ou um trabalho correspondente)?
Aparentemente só haveria duas possibilidades. Em primeiro lugar,
poder-se-ia supor que o valor de c foi criado simultaneamente mas não
no ramo considerado (ou então que se encontraria um trabalho análogo
num outro ramo): tratar-se-ia pois de trabalho produzido no decorrer
do ano num outro ramo. Ê a esta solução (pensável se se tratar de um
trabalho análogo) que deveria remeter a idéia de Adam Smith segundo
a qual a decomposição do produto anual (na linguagem de Marx em
c + v + pl) só seria válida para o capital individual; no nível do capital
social, o produto c + v + pl se reduziria a v + pl. E isto porque c se
decompõe igualmente em c + v + pl, até que não se tenha mais do que
v + pl. Ora, Marx rejeita formalmente tal redução: “(...) todo o peso
desse argumento está na expressão ‘e assim por diante’ (usw) que nos
MARX: LÖGICA E POLITICA 197

remete de Pôncio a Pilatos [sem nos deixar entrever o capitalista nas


mãos do qual o capital constante, isto é, o valor dos meios de produção
desapareceria finalmente].124 Na realidade, Adam Smith interrompe a
sua pesquisa lá precisamente onde começa a dificuldade” . (W.23, K.I,
p. 616; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 1094) A outra possibilidade
seria uma solução histórica: seria preciso determinar o trabalho pas­
sado qúe criou os meios de produção que entram, no ano que se consi­
dera, como parte do valor do produto (mas não do produto-valor). Ora,
essa solução também não seria satisfatória. Por um lado, Marx insiste
no fato de que a determinação do valor se faz considerando as condi­
ções atuais da produção e não as condições passadas (mas vimos que,
se nos limitarmos à atualidade, só poderemos determinar a parte
criada durante o ano); por outro lado, o recurso ao passado nos
conduziria a uma regressão infinita, análoga à que se constitui, como
vimos, para o presente, no argumento de Smith (ou então ela nos
levaria a nos deter, sem completar a regressão, no início do capita­
lismo, que começa com meios de produção legados por modos de
produção anteriores). Como determinar então o valor de c no produto
c + v + pl?
É a esta dificuldade que nos remete aparentemente a crítica dos
dois autores. “ O primeiro procedimento (para a determinação do valor
de c; um primeiro procedimento é eliminado imediatamente como
tautológico — RF) (...) deve ser examinado segundo as duas modali­
dades alternativas: temporal e simultânea. / Seja a primeira eventua­
lidade. Ela implica que o valor transmitido é histórico e que ele não
depende, pois, do valor dos mesmos meios de produção produzidos no
período. Mas este valor histórico só pode ser determinado se conhe­
cermos o valor transmitido pelos meios de produção do penúltimo
período etc. (a observação segundo a qual o valor histórico é conhecido
no mercado leva a concluir que hoje ocorre o mesmo e que em conse­
qüência o problema discutido é sem interesse...). Assim, se é condu­
zido progressivamente a uma regressão infinita (o mercado de maçãs
no tempo de Adão e Eva, retomando a expressão de Schumpeter).”
(pp. 175-176, grifo dos autores) E ainda: ‘’Marx rejeita aliás essa
interpretação, revelando bem através disso que o que conta é o argu­
mento da produção em valor (...). / Seja pois a segunda eventualidade.
Aqui o argumento para um ramo particular não vai longe (tourne
court): o valor atual do algodão que entra nos fios depende das condi­
ções da produção do algodão. Assim, para cada ramo tomado isola­
damente o problema é insolúvel. (...) (...) / Uma vez afastados os
períodos anteriores, aparece a seguinte proposição inaceitável: embora
o valor seja tempo de trabalho e embora o sistema de produção cons­
titua um todo fechado, o valor produzido é superior à quantidade de
trabalho consumido no sistema. (...) a imagem que Marx nos dá da
formação do valor” é “contraditória (...)” . (p. 176, grifo dos autores)
198 RUY FAUSTO

Em resumo, se se supuser que o conhecimento do preço dos


meios de produção utilizados não nos dá o conhecimento do seu valor,
este só pode ser determinado se se remontar até o seu fundamento. Esse
fundamento se acha ou no passado, ou no presente, isto é, nos outros
ramos. Ora, se mostra que nem através de uma regressão histórica,
nem recorrendo aos outros ramos, se pode chegar a esse fundamento.
O resultado seria o seguinte: “(...) ou (...) se deve reconhecer que os
meios de produção não têm valor enquanto tais (...) ou (...) (...) se deve
abandonar a teoria do valor” , (p. 177)
Vejamos isto tudo mais de perto. Ê preciso distinguir dois níveis
do problema. Por um lado o do quantum de valor contido no capital
constante. Esse quantum de valor é dado pelo trabalho contemporâneo
executado nos outros ramos, pois são as condições atuais que decidem
quanto valor contêm os meios de produção. Sem dúvida, esse deslo­
camento de um ramo a outro nos envolve numa regressão: os outros
ramos utilizam capital constante, o valor desse capital constante é
determinado num outro ramo e assim por diante. Como mostra Marx
contra Smith, a regressão é infinita: nunca se reduz inteiramente o
capital constante ao trabalho. Mas se não se o reduz inteiramente, a
parte não reduzida diminui cada vez mais. Podemos, nesse sentido,
efetuar uma “passagem ao limite” , operação que é tanto mais fácil de
justificar em se tratanto simplesmente do quantum e trabalho, e não do
próprio trabalho (se se tratasse do próprio trabalho, como veremos,
uma passagem ao limite seria pensável, mas somente sob outras con­
dições). Tudo isto se refere ao quantum de trabalho que está contido
nos meios de produção, não ao próprio trabalho (concreto e abstrato)
de que se originam esses meios. Ora, esse trabalho é efetivamente
trabalho anterior, trabalho que foi realizado nos períodos anteriores
(ver a esse respeito o livro II de O Capital, passim). No que se refere a
esse lado qualitativo do trabalho efetivo a que remetem os meios de
produção, como se propõe o problema?
Como vimos anteriormente, o trabalho não é pura e simples­
mente o fundamento do capital. O trabalho é o fundamento “negado” .
Em outros termos, todo o raciocínio dos dois autores supõe, como
sempre, uma apresentação linear, um movimento sem descontinuidade
que nos conduz do trabalho (ou, se se quiser, do trabalho e do valor) ao
capital. Nesse caso, o trabalho seria necessário, em princípio, ainda
que a regressão fosse possível. Mas se o trabalho não é o fundamento
do capital, mas o fundamento “negado” do capital, isto é, se há
“negação” no movimento que nos conduz de um ao outro, o problema
se propõe de um outro modo. Que haja “negação” , isto significa que o
capital depende e não depende ao mesmo tempo do trabalho (a “ne­
gação” é ao mesmo tempo posição e negação, continuidade e descon­
tinuidade). Isto quer dizer que o capital pressupõe o trabalho:125
o capital não é pensável sem o trabalho, mas ao mesmo tempo o capital
MARX: LÖGICA E POLITICA 199

é um novo ponto de partida, o capital não é trabalho acumulado. O


poiito de partida posto não é mais o trabalho mas o próprio capital.
Acreditamos que é exatamente isto que fornece a solução teórica à
aporia do capital constante. Por um lado, o valor do capital constante
deve ser pensado em termos de trabalho. Por outro lado, é impossível
remontar ao trabalho de que ele é a cristalização. O trabalho que
origina o valor do capital constante é simplesmente pressuposto. E
é impossível passar da pressuposição à posição. Mas isso não repre­
senta uma dificuldade da teoria. Seria uma dificuldade (talvez solúvel
mas que exigiria uma outra resposta) se a teoria fosse concebida de
uma maneira linear. Mas se se supuser uma relação de “negação”
entre os princípios e as conseqüências, a resposta é perfeitamente pen-
sável e “coerente” . E esta é, a nosso ver, a tese subjacente à crítica de
Smith (e de Ricardo) por Marx, crítica que ele retoma muitas vezes.
Em resumo, cremos que as dificuldades sobre as quais se constrói
a aporia são as seguintes: por um lado os dois autores não distinguem o
lado do quantum de trabalho (que não deve ser confundido com a
quantidade indeterminada que fica do outro lado) do lado do próprio
trabalho que é o das condições reais da produção dos meios de pro­
dução. Em segundo lugar, eles concebem a relação entre o capital e o
trabalho como uma relação de continuidade (ou então de desconti-
nuidade: é a solução deles), sem pensar que a relação é contraditória:
deve-se e não se deve voltar aos princípios.
Mas do problema do capital constante passamos a um problema
análogo, que eles também levantam, mas que se situa no nível da cir­
culação simples.126 E o da determinação do valor do trabalho morto,
do valor dos meios de produção no nível da circulação simples. A
dificuldade é formulada em termos análogos: “De duas coisas uma: i
— ou se admite que Mv representa um valor formado simultaneamente
a 1, isso contradiz o princípio que estabelecer que o valor novo resulta
do trabalho novo 1; Mv é ao mesmo tempo um valor novo (contempo­
râneo de 1) e é distinto de 1 portanto inexplicável; / ou então se admite
que Mv provém de um período anterior (transmissão do valor pelo
desgaste dos meios de produção), mas isso contradiz o princípio da
avaliação dos objetos (...). / Disto se deve concluir que o valor não
preexiste à sua formação (...)” . (p. 108, grifo dos autores)
Se a dificuldade é análoga, a solução do problema não pode sê-lo,
pois estamos aqui no nível da circulação simples. A resposta deve ser a
seguinte. Em primeiro lugar — e até aqui a solução coincide com a
solução anterior — deve-se distinguir o problema do quantum de
trabalho do problema do próprio trabalho, que é também o da origem
do valor contido nos meios de produção. O quantum de valor, e por­
tanto o quantum de trabalho, é dado pelos ramos contemporâneos que
produzem esse meio de produção. Também nesse caso há regressão
infinita mas com redução progressiva da parte não reduzida. E neces­
200 RUY FAUSTO

sário efetuar, como no caso anterior, uma passagem ao limite. Mas no


que se refere ao lado da qualidade (que é também o da quantidade
indeterminada, mas não do quantum) e da origem efetiva do valor
contido nos meios de produção, a resposta dada ao problema anterior
não convém mais. De fato, a impossibilidade de efetuar a redução no
que se refere ao passado — a regressão ao trabalho efetivo — não
representava uma dificuldade porque o capital não é trabalho acumu­
lado. Isto é, porque há descontinuidade (ou antes, “negação” —
continuidade e descontinuidade) entre trabalho e capital. Ora, aqui o
argumento não vale mais. A contradição não é mais uma resposta. É
efetivamente de trabalho acumulado que se trata agora. A regressão
deveria se impor. E para que ela pudesse chegar ao fim, seria neces­
sário efetuar aqui uma passagem ao limite no nível qualitativo, como
fizemos para os ramos contemporâneos no nível quantitativo, no que
se refere ao capital. Seria a maneira de remontar do trabalho acumu­
lado ao trabalho vivo que lhe deu origem.
Ora, justamente porque a regressão (com a passagem ao limite)
é, aqui, necessária, o problema não se coloca mais. Com efeito, no nível
do capital era preciso distinguir claramente o trabalho vivo, o único
que produz mais-valia, do trabalho morto que não a produz: essa
diferença se cristaliza nos conceitos de capital constante e de capital
variável, que é preciso, sobretudo, distinguir. Quando o problema se
torna simplesmente o da diferença entre trabalho acumulado e traba­
lho vivo, a diferença é simplesmente a do momento em que o trabalho
foi realizado. Eis a razão pela qual Marx elimina pura e simplesmente
a questão da determinação do valor dos meios de produção no nível da
circulação simples. O cálculo — se fosse preciso fazê-lo, mas não
esqueçamos de que a circulação simples é um momento do modo de
produção capitalista e não um outro modo de produção — deveria ser
feito com passagem ao limite, a partir dos ramos contemporâneos.
Quanto à origem — a que se deveria chegar através de uma regressão
histórica e uma passagem ao limite — ela perde todo o interesse. Para
fundar o valor, pode-se simplesmente supor que os meios de produção
são iguais a zero, como é o caso na secção I. Se é verdade que a
contradição não é mais, aqui, a solução, o problema não se coloca
mais, aparentemente, ou não se coloca mais do mesmo modo.

b) Sobre o» ciclos do capital e os esquemas de reproduçio

Para terminar, e antes de passar às conclusões, examinaremos a crítica


que os dois autores fazem (na nota 5 da terceira parte) à maneira pela qual
Marx trata dos ciclos do capital e da reprodução no livro II de O Capital.
De certo modo, essa crítica resume todo o resto. Para respondê-la, retoma­
remos a apresentação de O Capital, que havíamos interrompido. Mas exami­
nemos antes, de um modo geral, o teor da crítica.
MARX: LÓGICA E POLITICA 201

O núcleo dela é o papel que tem em Marx o ciclo do capital-mercadoria.


Como se sabe, Marx considera esta forma como a que permite a passagem do
ciclo individual à reprodução social, cujo objeto ê o capital social. As obser­
vações criticas vão no seguinte sentido: Marx construiria a noção de capital
social (ver p. 196) apoiando-se no ciclo do capital-mercadoria. Tal socialização
representaria na realidade uma “socialização pelo capital constante” tal como
“a do ciclo III (ciclo do capital-mercadoria)” . (p. 199) Isto nos remeteria aos
problemas anteriores relativos ao capital constante. Mas ao mesmo tempo ò
privilégio do ciclo do capital-mercadoria nos remete à circulação simples.
“Ora, a socialização pelo capital constante, que, repitamos, é a do ciclo III,
é inteiramente independente da relação salarial, como Marx o mostrou, aliás,
nas Teorias sobre a mais-valia, t. I. Poder-se-ia tratar, no máximo, de uma
socialização de produtores separados. Mas esta representação também não é
aceitável na medida em que a noção de capital constante contradiz a noção de
valor de uso socialmente constituído, que é precisamente uma das bases da
teoria das mercadorias, e portanto da socialização de produtores separados.”
(p. 199, grifo dos autores) Isto nos remeteria, assim, de uma forma ambígua,
em parte ao capital constante, em parte à circulação simples, de qualquer
forma à mercadoria. E essa redução à mercadoria, na medida em que “a noção
de valor de uso não é elaborada” (p. 196) — retomada das criticas iniciais sobre
o valor de uso em Marx — nos remeteria, na realidade, “às coisas”. (Ibidem)
Em outros termos, cairíamos ainda uma vez no fetichismo.
Os pontos que devemos discutir são portanto: 1) se há — e em que
sentido há — passagem ao capital, isto é, totalização pela introdução do ciclo
do capital-mercadoria; 2) se essa socialização se faz pelo capital constante e
que dificuldades poderiam resultar disso; 3) se o ciclo do capital-mercadoria
nos reconduz à circulação simples (se se quiser, a relação entre, por um lado,
a análise dos ciclos e da reprodução social e, por outro, a da circulação
simples); 4) se o privilégio do ciclo do capital-mercadoria nos conduz, através
da mercadoria, à coisa, isto é, se ele nos leva a cair no fetichismo.
Para analisar esses diferentes pontos, procederemos da seguinte maneira.
Começaremos retomando a apresentação de O Capital, que havíamos inter­
rompido. Ela permitirá mostrar qual é o momento ou quais são os momentos e
as formas de socialização do capital, nos livres I e II (com uma indicação sobre
o livro III), assim como o sentido geral, o lugar, da teoria dos ciclos. Isto
permitirá responder ao primeiro ponto. Em seguida examinaremos mais de
perto os ciclos, em particular o ciclo do capital-mercadoria, tanto no texto de
O Capital como no dos seus críticos. Com isso, trataremos dos pontos 2 a 4.

Interrompemos a apresentação de O Capital na teoria da repro­


dução, secção VII do livro primeiro. Não retomaremos a análise da
reprodução no livro I, a qual nas suas implicações sobre o sentido geral
do processo representa o ponto cego do livro que examinamos. Inte­
ressa-nos insistir somente num ponto, sobre o qual passamos, aliás,
bem depressa. A teoria da reprodução na secção sétima não representa
somente o momento em que as pressuposições são postas pelo próprio
sistema e em que se estabelece a continuidade do movimento. Trata-se
também do momento na teoria da produção, em que os capitais indi-
202 RUYFAUSTO

viduais são totalizados e se tomam capital social. Há aí, portanto, uma


primeira socialização do capital que não é analisada pelos dois críticos.
Ao passar do livro I ao livro II, somos conduzidos da teoria da pro­
dução à teoria da circulação. Como Marx explica no início do livro
II,127 ele só tratou da circulação no livro I na medida em que isso era
necessário para apresentar a produção (assim, por exemplo, ele trata
no livro I da compra e venda da força de trabalho). Podemos dizer que
no livro II se dá o contrário: ele só trata da produção na medida em que
isso é indispensável para expor a circulação. Na realidade, a teoria da
produção é pressuposta no livro II, assim como a teoria da cir.culação é
pressuposta (mas em sentido prospectivo e não retrospectivo) no livro I.
Isto é importante para mostrar o domínio e os limites — os limites nos
interessam particularmente — das análises do livro II. São análises que
se situam no plano da circulação: não menos mas também não mais do
que isto. Ao passar ao livro II — segundo ponto a assinalar, que tem
relação direta com a discussão — Marx começa analisando o ciclo dos
capitais individuais. O que quer dizer que ao passar do üvro I ao livro
II se volta da totalidade (que havia sido constituída na secção VII no
nível da produção) à (re)consideração do capital individual (mas .agora
no plano da circulação). Isto é, no final da análise dos ciclos, preci­
samente através da introdução do ciclo do capital-mercadoria — por
razões que analisaremos em seguida — somos reconduzidos à totali-
zação. O ciclo do capital-mercadoria representa na realidade algo
como um momento de transição entre a análise do capital individual e a
análise do capital social. Importante aqui é que estamos diante de uma
nova “socialização” . Em outros termos, há em O Capital várias “socia­
lizações” do capital, em diferentes níveis da análise. E a essas duas
“socializações” , devemos acrescentar ainda aquela que se dá no livro
III. Sem dúvida, no livro III, a totalização é de um outro nível: passa-
se não do capital individual ao capital social, mas de uma socialização
parcial (há portanto destotalização dos dois grandes setores da produ­
ção aos ramos). Tal é a socialização que se faz pela constituição da taxa
geral de lucro e dos preços de produção. Temos aí uma terceira totali­
zação que, de qualquer modo, se segue a um retorno (não ao capital
individual mas aos ramos da produção).
Podemos, agora, analisar mais de perto o objeto em tomo do
qual se organiza a crítica, o ciclo do capital-mercadoria. Marx dis­
tingue três ciclos do capital, o ciclo do capital-dinheiro, o ciclo do
capital produtivo e o ciclo do capital-mercadoria. O primeiro começa
com o dinheiro (D), o segundo com o capital produtivo (P) no processo
de produção, e o terceiro com a mercadoria (M’ e não M). Marx explica
por que o ciclo do capital-mercadoria não começa com M: “M’ en­
quanto M aparece no ciclo de um capital industrial isolado não como
forma desse capital, mas como forma de um outro capital industrial,
na medida em que os meios de produção são produto deste último. O
MARX: LOGICA E POLITICA 203

ato D — M (isto é, D — Mp) do primeiro capital é, para este segundo


capital, M’ — D’ (W.24, K.II, p. 92; Le Capital, 1. II, t. I (IV), op.
cit., p. 82) Isto significa afinal que M pertence ao outro capital. Ou
que, para o primeiro capital —■ se todos os momentos do capital são
momentos de um processo —, o momento M do capital considerado é
menos do que um momento evanescente: quando ele se torna momento
do capital considerado, ele representa, na realidade, os componentes
materiais ou objetivos do capital produtivo. Se se quiser começar pela
mercadoria, deve-se pois começar por M \ Temos assim esses três
pontos de partida que, segundo Marx, remetem respectivamente aos
mercantilistas, aos clássicos e a Quesnay. (Ver W.24, K.II, p. 103;
Le Capital, 1. II, 1.1 (IV), op. cit., p. 92)
Mas o ciclo do capitai-mercadoria deve ser considerado “não só
como uma forma de movimento comum a todos os capitais industriais
individuais mas ao mesmo tempo como a forma de movimento da soma
dos capitais individuais e portanto a forma de movimento do capital
total da classe capitalista, um movimento de tal ordem, que o movi­
mento de cada capital industrial individual aparece no interior dele
somente como movimento parcial, que está entrelaçado com outro, e é
condicionado por ele” . (W.24, K.II, p. 101; Le Capital, 1. II, t. I (IV),
op. cit., p. 90) Mas por que essa fornia — que pode ser também
considerada como forma individual128 aparece como representativa do
conjunto do movimento do capital? Na realidade, poder-se-ia supor
que o ciclo do capital-dinheiro seria mais representativo (pois ele indica
melhor a finalidade do movimento) ou que o ciclo do capital produtivo
é mais representativo (porque ele enfatiza o lugar em que se dá a
valorização). Mas não é assim. A forma que poderia aparecer como
sendo a menos representativa é que permite passar ao capital social.

Vejamos por que razões. Há de fato três razões que é preciso distinguir.
Primeiramente, M’ é o único ponto de partida que pressupõe um capital ante­
rior.129 O capitai-mercadoria é na realidade o único que pressupõe um movi­
mento anterior do capital. Como vimos, o ciclo do capitai-mercadoria não
começa com M mas com MV O signo indica que se trata de uma
mercadoria que contém um valor primitivo mais um sobrevalor. M \ no qual o
capital se apresenta em forma inerte e na forma de uma mercadoria, portanto
também e em primeiro lugar (se comparado com o dinheiro) na forma de um
valor de uso, é entretanto forma que indica uma história (no sentido lógico-
econômico), um passado (no interior da temporalidade lógico-econômica) que
é um passado capitalista. M’ indica de certo modo a memória de um capital.
Não é o caso em D nem em P, os quais não pressupõem necessariamente um
capital. M’ pressupõe, portanto, uma produção capitalista anterior e é assim a
figura mais indicada para servir como ponto de partida para o processo atual
de reprodução. Com M’ se corta esse processo (o que é necessário fazer para
pensar a reprodução de um ano) sem cortá-lo verdadeiramente (porque se
pressupõe o passado). Em “M” se tem o corte, no signo “ a continuidade,
204 RUY FAUSTO

que pela própria forma pela qual é indicada é continuidade “negada”. M’ nos
permite interromper sem irromper a cadeia dos processos de reprodução
anuais. Assegura-se o caráter capitalista do passado, o futuro (sempre no
sentido lógico-econômico) serk construído como processo capitalista.
Mas há mais do que isto. O ciclo do capital-mercadoria é o único que
desde o inicio do ciclo faz com que apareça nas mãos de um outro (que se deve
supor como sendo um outro capitalista) a figura que define o ciclo, o capital-
mercadoria. O que significa — o que para os ciclos I e II só ocorre no final do
ciclo — que ele pressupõe outros ciclos do capital-mercadoria: “D’, enquanto
ponto final (Schlusspunkt) em I, enquanto forma transformada de M’ (M’ —
D’), pressupõe D nas mãos do comprador, como algo que existe fora do ciclo
D... D’ e que é atraído para o interior desse ciclo e que se torna sua forma final
pela venda de M’. Do mesmo modo, em II o P final pressupõe T e Mp (M)
como algo que existe fora dele e que lhe é incorporado enquanto forma final
pelo ato D — M.130 Mas abstração feita do último termo, nem o ciclo do
capital-dinheiro individual pressupõe a existência (Dasein) do capital-dinheiro
em geral, nem o ciclo do capital produtivo individual pressupõe, no seu ciclo,
a existência do ciclo do capital produtivo. Em I, D pode ser o primeiro
capital-dinheiro e, em II, P pode ser ó primeiro capital produtivo que se
apresenta na cena da história. Mas em III (...) M é duas vezes pressuposto fora
do ciclo. Uma vez no ciclo M’ — D’ — M [T* , esse M, na medida em que
Mp
se compõe de Mp, é mercadoria nas mãos do vendedor; ele próprio é capital-
mercadoria, na medida em que é produto de um processo de produção capi­
talista; e mesmo se ele não for, aparece como capital-mercadoria nas mãos do
comerciante.131 Uma outra vez, no segundo m em m — d —- m, onde, do
mesmo modo, ele deve (muss) estar presente como mercadoria para poder
ser comprado”. (W. 24, K. II, p. 99; Le Capital, 1. II, t. II (IV), op. cit., pp.
88-89) O texto já nos introduz ao terceiro ponto, que determina o privilégio do
capital-mercadoria: o fato de que a circulação da mais-valia está incluída nele.
Examinaremos esse ponto em seguida. Por enquanto, vejamos aqui o que se
refere, em geral, à conexão dos ciclos estabelecida pelo capital-mercadoria.
Esta conexão se faz através do capital constante, como afirmam os dois auto­
res? Observemos, para evitar confusões, que a noção de capital constante como
a de capital variável só vale para o capital produtivo. A noção de capital-
mercadoria só inclui a distinção entre capital constante e capital variável
enquanto componentes do produto-mercadoria. Mas é verdade que em parte a
conexão se faz pelo capital constante, pois o primeiro M que é encontrado no
percurso é, como diz o texto, constituído por elementos do capital constante.
Tudo o que se pode dizer a esse respeito, pelo menos por enquanto, é, em
primeiro lugar, que essa conexão só levanta um problema, se supusermos que a
própria noção de capital constante é problemática, o que tentamos anterior­
mente questionar. Em segundo lugar, a conexão não se faz somente através do
capital constante, porque ela se efetua também através de m, que n|o é
componente do capital produtivo e representa a mais-valia consumida como
rendimento (a totalidade da mais-valia, se se supuser a reprodução simples, e
em qualquer caso uma parte dela).132 Isto nos conduz ao terceiro ponto. Se o
ciclo do capital-mercadoria é um ciclo privilegiado é também porque ele inclui
não só o ciclo M mas também o ciclo m.133 Com efeito, se se partir de M’ será
MARX: LOGICA E POLITICA 205

necessário desenvolver tanto o ciclo de M como o ciclo de m, decomposição que


não fazemos em I (pois ele termina com D’) e pela qual se passa, no ciclo II,
sem que entretanto seja necessário aí seguir os dois processos, pois se partiu de
P, e se trata de voltar a esse ponto de partida.. Os dois autores comentam esse
ponto nos seguintes termos: “A conseqüência imediata dessa concepção é,
como vimos, (”) que M \ enquanto capital-mercadoria, entra na circulação
juntamente com a mais-valia(”) de onde se segue que (”) o capital-mercadoria
é a única forma na qual a circulação da mais-valia é inseparável da circulação
do capital primitivo” . (Plêiade, II, pp. 540-541) “Daí resulta que a noção de
capital social será elaborada tomando como ponto de partida precisamente o
que representa um obstáculo para esta elaboração, o ciclo III, que é ‘o único’
que exclui a concepção de uma qualquer autonomização da circulação da
mais-valia relativamente à circulação das mercadorias” , (p. 196, gçifo dos
autores)134 E eles concluem: “A primeira série de operações tem, pois, como
condição de possibilidade uma dupla redução: — do capital social à merca­
doria (pois nada se autonomiza em relação a esta última, que continua sendo a
noção exclusiva que comanda o movimento; í3S / — da mercadoria às coisas
(pois não é elaborada a noção de valor de uso)” , (p. 196, grifo dos autores)
Vemos — analisando a cadeia de argumentos em sentido inverso — qual
é o ponto de chegada da crítica que fazem os dois autores: a afirmação de que,
em virtude do privilégio do capital-mercadoria, há redução do capital à merca-
doria(“(...) o ciclo III s6 representa um sistema de produção de “mercadorias
por meio de mercadorias’ ” . (p. 197) Isto deveria significar uma “recaída” na
circulação simples (“só se poderia (...) tratar, no máximo, de uma socialização
de produtores separados” (p. 199); “(...) a socialização pelo capital constante
que (...) é a do ciclo III é totalmente independente da relação salarial”.
(p. 199, grifo dos autores)). Mas dada a presença da “noção de capital cons­
tante” que “contradiz a noção de valor de uso socialmente constituí do (...) uma
das bases da teoria da mercadoria (...)” (p. 199), ter-se-ia na realidade “uma
volta ao sistema de Ricardo-Sraffa" (p. 199, sempre grifado pelos autores),
com algumas diferenças. Por outro lado, essa redução à mercadoria representa
ainda uma vez cair nas “coisas”, isto é, uma espécie de fetichização do capital.
E tudo isto por causa da noção de capital-mercadoria: “A noção de capital-
mercadoria se revela assim uma contradição nos termos”, (p. 199, grifo dos
autores)
O ciclo III representaria um obstáculo para a elaboração do capital
social, porque nele a circulação da mais-valia não pode ser autonomizada em
relação à circulação das mercadorias. O que é que eles querem dizer com isto?
Se eles querem dizer que no ciclo III a mais-valia não se separa do capital,
há simplesmente mal-entendido: “inseparável” quer dizer aqui não que não
haja bifurcação entre os dois circuitos, mas sim que é necessário “seguir” os
dois. Ê a reprodução total — que se introduz aqui — que os torna inseparáveis,
no sentido de que os dois são interiores ao processo total (que só é posto em
III). Ou então eles querem dizer que a mais-valia se separa mas que ela se
confunde (totalmente, se se supuser a reprodução simples) com a circulação
simples de mercadorias? Efetivamente ela se confunde, mas é justamente isto
que permite a passagem do capital individual ao capital total. Em outros
termos, o que permite a totalização — não é evidente que os dois autores tenham
entendido isto — é, fora a conexão direta dos capitais que se estabelece através
206 RUY FAUSTO

de M que corresponde aos elementos objetivos do capital produtivo, a reposição


da circulação simples. Na realidade, se se parte de M’, devemos seguir tanto o
movimento M’—D—M’ (em que D poderia ser aumentado por uma parte da
mais-valia) e o movimento m—d—m. Ora, esse movimento considerado em si
mesmo, isolado do processo total, pertence à circulação simples e não à
circulação do capital. Trata-se da venda de mercadorias visando a compra de
mercadorias para o seu consumo.136
Portanto, passa-se do capital individual ao capital social — passagem
que, como vimos; representa uma das “socializações” ou “totalizações” da
apresentação de O Capital — pela re-posição da circulação simples na circu­
lação do capital. E aqui ela é mais do que aparência (são os intercâmbios
interiores ao movimento do capital que, isolados do todo, são propriamente
aparências), embora ela o seja na medida em que ela se revela parte de um
processo total dominante que não é da ordem da circulação simples. Se a
segunda interpretação que damos ao texto é a correta (e a primeira nos
remeteria a uma incompreensão pura e simples), vemos que Benetti e Cartelier
confundem re-posição da circulação simples com “queda” na circulação
simples.
Mas o argumento deles vai ainda mais longe: de um modo mais geral,
eles criticam Marx por não ter introduzido no ciclo III e portanto nos esquemas
da reprodução que o ciclo III introduz o que é próprio à produção capitalista
em relação à produção simples; e mais ainda — com a “socialização” com base
no valor de uso —- ter caído numa espécie de “fetichismo” 137 (ter ido, “da
mercadoria às coisas”). Ora, no que se refere ao ciclo III e aos esquemas de
reprodução, não se deve esquecer o que eles representam: eles representam a
reprodução total no interior da análise da circulação. Nela o momento da
produção está presente, mas somente em sua forma mais geral. Nela, o meca­
nismo da produção, ele próprio, está simplesmente pressuposto, como está
pressuposta a circulação no livro I. De resto “mais-valia” , “capital” etc. são
mais do que simples nomes. A acrescentar que não é verdade que com o ciclo
III tudo se reduz à mercadoria.138
Quanto à imputação de uma queda na coisa, ela é paralela à imputação
de uma queda na aparência falsa no nível da teoria do dinheiro. A aparição em
forma material ou a encarnação material — que é um fato objetivo do capi­
talismo (há capital em forma de mercadoria, como há valor encarnado num
valor de uso) — é interpretado como queda subjetiva na materialidade natural.
A diferença entre essa posição material e a do dinheiro é que, aqui, estamos
diante do problema da aparição enquanto valor de uso material — ele próprio
sustentado pelo valor, pois se trata de (forma de existência) mercadoria — de
forma que se tornou sujeito. Não se trata mais de encarnação material de uma
forma no nível da inércia. Mas essa diferença desaparece se se supuser, como
fazem os dois autores, que Marx desliza do capital à mercadoria. Além do que
será dito na conclusão, remetemos, a esse respeito, às considerações anteriores
sobre a diferença entre naturalização e posição material.139

Pelo contrário, há algo de positivo nas críticas que visam o


conjunto da teoria de Marx sobre o desenvolvimento do capitalismo. É
assim que eles escrevem a propósito do papel da noção de mais-valia
relativa em Marx: “Em primeiro lugar, a teoria da mais-valia relativa
MARX: LÓGICA E POLITICA 207

— stricto sensu — oferece uma representação extremamente pobre do


desenvolvimento do capitalismo, não por causa de uma abstração
excessiva, mas antes por causa da sua incapacidade ‘congênita’ em
ligar a revolução (bouleversement ) contínua das técnicas, que é o seu
objeto, à modificação perpétua dos valores de uso produzidos. O
‘desenvolvimento das forças produtivas’ remete à ‘técnica’, a modifi­
cação dos bens-salários à ‘história das necessidades’, necessariamente
constituído independentemente da teoria da mais-valia relativa que
implica que já foram identificados os bens que entram direta ou
indiretamente na reprodução da força de trabalho. / As afirmações,
constantemente repetidas, sobre a existência de uma ligação entre esses
elementos estão condenadas a permanecer estéreis enquanto o conceito
que permite pensar a unidade da produção da mais-valia e da modi­
ficação incessante dos valores de uso não for obtido. Nessa direção a
teoria da mais-valia relativa faz figura de obstáculo (pierre d'achop­
pement)-, sua crítica é pois necessária” , (p. 189)
Essa crítica, embora introduzida a propósito do papel da noção
de mais-valia relativa, tem evidentemente uma significação mais geral.
E há nela algo importante. A idéia de que falta à teoria de Marx uma
teoria das necessidâdes. E igualmente uma teoria das técnicas, preci­
sando uma teoria da produção da ciência com vistas a suas aplicações
técnicas. Impossível desenvolver esses pontos nos limites deste texto.
Nós nos limitaremos aqui às observações seguintes: no quadro da teoria
de Marx, há certamente textos importantes (sobretudo nos Grundrisse)
sobre as necessidades. Mas, aparentemente, essencialmente por causa
das próprias características do capitalismo no século XIX, não há uma
teoria da produção das necessidades. Ë que no capitalismo clássico os
valores de uso têm ainda muita coisa em comum com os valores de uso
tais como eles apareciam nos períodos pré-capitalistas. Ê só no capita­
lismo do século XX e especialmente no capitalismo dos últimos trinta
anos que se entra numa fase em que há produção de necessidades, em
sentido próprio, e em que há um setor da produção (?) que não produz
nem meios de produção (setor I) nem meios de consumo (setor II) mas
que produz consumidores (setor III?). E com isto, o valor de uso se
toma um movim ento infinito, como o capital no capitalismo clássico.
Por outro lado, não mais “para além” mas “aquém” da produção, há
setores de produção da ciência, com vistas às suas aplicações técnicas.
Ora, isso é igualmente novo em relação ao esquema clássico (apesar de
certos textos dos Grundrisse) pois em O Capital a ciência aparece como
algo gratuito, nas mãos do capitalista. Ela aparece no mesmo plano das
forças naturais de que se pode dispor livremente.140 Sem dúvida, nos
dois casos, não é certo que vamos na direção das observações de Benetti
e Cartelier, senão de um modo muito geral. Pode ser mesmo que a
direção que indicamos reforce “o economismo no pensamento mar­
xista” .141 De qualquer modo, é necessário pôr em evidência as obser­
208 RUY FAUSTO

vações do texto sobre as técnicas e as necessidades, porque elas reme­


tem às grandes transformações que ocorreram na passagem do capita­
lismo do século XIX aos capitalismos do século XX, e portanto a
questões que são fundamentais. Mas como dissemos no início, tais
observações não têm uma relação rigorosa, a despeito do que pensam
os autores, com a crítica geral a que submetem a apresentação da
crítica da economia política. Não é recusando a dialética mas a
desenvolvendo e aprofundando (uma dialética talvez modificada) —
pensemos no valor de uso como movimento infinito: um exemplo
de um novo objeto com estrutura dialética, entretanto — que se che­
gará a pensar rigorosamente os problemas novos que colocam as socie­
dades capitalistas contemporâneas.

Conclusão

No final da primeira parte resumimos os pontos para os quais


convergem as dificuldades de Marchands, Salariat et Capitalistes . Dis­
semos que elas apontam por um lado para o problema da contradição,
por outro lado para o da relação matéria/forma (os dois pontos estão
ligados, porque a relação entre matéria e forma é contraditória).
Na primeira parte, os dois problemas se apresentavam da se­
guinte maneira. Para o primeiro: o processo contraditório não apreen­
dido era o da gênese, o da pré-história — no caso, da gênese do di­
nheiro; ao mesmo tempo, como esta gênese (lógica) se concluía pela
constituição de um universal concreto, era também o universal con­
creto o que se perdia. No que se refere ao segundo ponto (forma e
matéria) o problema se situava também no nível do dinheiro. Ele apa­
recia como dificuldade na apreensão da encarnação material da form a
(no dinheiro e já nas formas do valor anteriores ao dinheiro).
Na segunda parte, os dois pontos se apresentam diferentemente.
O processo contraditório que lhes escapa não é o da gênese nem o da
constituição do universal concreto (como último termo da gênese), mas
o processo de constituição de um sujeito. Não a passagem de um
“pré-ser” a um ser, mas de um ser-substância a um ser-sujeito. Por
outro lado, escapa a maneira pela qual esse Sujeito, esse ser autono­
mizado, nega progressivamente toda relação com a sua realidade subs­
tancial — as “negações” sucessivas nas apresentação de O Capital.
Acrescente-se, ainda quanto ao primeiro ponto, que na segunda parte o
problema se situa no nível da relação geral essência/aparência, já que a
circulação simples é a aparência da produção capitalista enquanto
produção capitalista; enquanto que na primeira ele se situa no nível da
aparência — que se desdobrava por sua vez em essência e aparência.
Quanto ao segundo problema (matéria/forma), vimos que é a aparição
da forma que se tomou Sujeito na matéria (não a simples encarnação
MARX: LOGICA E POLITICA 209

material da forma), que representava um problema. O deslocamento é


paralelo.
Se se quiser agora definir de um modo mais geral os dois pontos,
deve-se dizer o seguinte:
1) Problema da contradição. Digamos que o procedimento de
Benetti e Cartelier significa substituir a Aufhebung pela negação vul­
gar. Essa substituição se faz aproximadamente pelo seguinte movi­
mento: como se pensa a apresentação de Marx como apresentação
linear, a descoberta da contradição é solidária da imputação da contra­
dição vulgar e portanto de um deslizamento dos próprios críticos na
contradição vulgar. Para evitá-la, se corta: estabelece-se uma negação
que não é “negação” dialética. Isto é verdade para a gênese do dinheiro
e em geral para a relação mercadoria/dinheiro: supõe-se que, para
Marx, o dinheiro é uma mercadoria (continuidade); descobrem-se as
determinações do dinheiro que contradizem as da mercadoria (contra­
dição dialética pensada como contradição vulgar); formula-se uma
teoria em que o dinheiro e mercadoria se excluem (descontinuidade),
a negação dialética se torna negação vulgar. Isto é verdade também
para a relação entre circulação simples e produção capitalista enquanto
produção capitalista: supõe-se que a circulação simples é para Marx o
princípio — no sentido do entendimento — da produção capitalista
(continuidade); descobrem-se determinações desta última que contra­
dizem as da circulação simples (contradição); formula-se uma teoria
em que circulação simples e produção capitalista estão cortadas uma
da outra, ou ligadas somente pelo vínculo “abstrato” do dinheiro
(descontinuidade). Por outro lado, como vimos, se roça a contradição.
2) Matéria e Forma. O problema gira em torno do fetichismo ou
dos opostos fetichismo/antifetichismo abstrato (formalismo). O movi­
mento é o seguinte. Concepção puramente formal do que deveria ser a
apresentação de Marx: para a primeira parte, não há (não deve haver)
dinheiro-mercadoria. Para a segunda não há capital-mercadoria (for­
malismo); descoberta do papel do valor de uso, o qual é denunciado
como se representasse uma queda no fetichismo (primeira parte: falsa
aparência da teoru do dinheiro em Marx; segunda parte: deslizamento
do capital à mercadoria e da mercadoria à coisa (fetichismo)). O resul­
tado, no nível do discurso dos dois autores, é mais difícil de precisar.
Ele passa mais diretamçnte pelas suas teses positivas. A resposta deles
parece ter alguma coisa dos dois extremos: às vezes eles esvaziam as
formas da matéria (ver a sua teoria do dinheiro), eles vão com isso no
sentido de um antifetichismo (abstrato);142 por outro lado, talvez por
isso mesmo, se não há fetichismo neles, coisa de que não estamos
certos, há de qualquer modo coisificação, pois o capital-processo se
toma coisa inerte, seja ele pensado ou não como uma relação.
Como já insistimos sobre o que o livro tem de positivo, no que se
refere à crítica de Marx, a saber, o fato de ter “posto o dedo” na
210 RUY FAUSTO

contradição, além do iato de ter indicado alguns problemas importan­


tes a desenvolver, terminamos com algumas considerações gerais, sobre
a relação entre a crítica de Benetti e Cartelier e outras leituras de Marx.
No fundo, o procedimento dos dois autores no nível da economia
tem parentesco com a leitura althusseriana no nível da filosofia. A
mesma recusa da contradição (tudo é construído para evitá-la) a qual
conduz a um esquema descontinuísta. Um resultado é comum às duas
démarches: a recusa do capítulo primeiro do livro I de O Capital, assim
como a impossibilidade de ler (de ler corretamente, no caso dos althus-
serianos, de ler simplesmente, para Benetti e Cartelier) a passagem à
reprodução — por acaso os dois lugares privilegiados da dialética no
livro I de O Capital. Mas em relação aos althusserianos, eles têm
provavelmente diferenças que não desenvolvemos (além do fato, final­
mente secundário, de que eles se apresentam como críticos de Marx, e
os outros não). A crítica de Benetti e Cartelier tem também alguma
coisa em comum com a de Castoriadis, examinada no texto anterior.
Relativamente à de Castoriadis, a leitura deles é menos rigorosa e vai
menos longe na apresentação (na sua relação imediata a Marx). Mas
ela é mais geral, o domínio das contradições é mais vasto.143 Mas,
quaisquer que sejam de resto os méritos do texto, ele se situa, logi­
camente, aquém da dialética clássica. Seria preciso ir além dela.

NOTAS

(1) Paris, Maspero, 1980.


(2) Ver neste tomo, para o problema do humanismo e da antropologia, “Dialé­
tica Marxista, Humanismo, Anti-humanismo” e "Althusserismo e Antropologismo”.
(3) Ver Marchands, Salariat et Capitalistes, pp. 131, 132, 136, 190.
(4) Para discutir melhor a critica de Benetti e Cartelier, nos distanciamos em
alguma medida, provisoriamente, da dêmarche de Marx, supondo que tanto a merca­
doria como o dinheiro poderiam servir como ponto de partida. Com o mesmo espírito, a
continuação vai no sentido de uma fenomenologia do dinheiro: ela não visa ainda a
teoria do dinheiro em O Capital.
(5) Para Benetti e Cartelier é da moeda metálica e não das formas mais comple­
xas de moeda que é preciso fazer a teoria, (ver p. 52)
(6) Ver p. 146 do livro de Benetti e Cartelier.
(7) Como veremos, esse “negar” corresponde à “negação” hegeliana.
(8) Com uma exceção, que veremos mais adiante.
(9) Depois de ter tentado esclarecer a noção de “criação” em Marx, A. Ber-
thoud escreve em nota em Travail productif e Productivité du Travail chez Marx
(Maspero, 1974): “(...) para dar uma resposta, seria necessário fazer o inventário, no
texto alemão da primeira secção de O Capital, do emprego e das relações dos termos
forma, matéria, substância e representação... Ignoramos se esse trabalho já foi feito”,
(pp. 78-79, n. 12)
MARX: LÓGICA E POLITICA 211
(10) Texto de Marx em Paul-Dominique Dognin, Les "Sentiers Escarpes" de
Karl Marx, París, Ed. da Cerf, 1977, t. I, p. 82, grifado por Marx. Citado por Benetti
e Cartelier, p. 149, que grifam “independentes” e “materialmente”.
(11) Cortamos aqui a citação: o resto se refere mais particularmente à análise da
forma do valor.
(12) Trata-se sempre do modo de produção capitalista no nivel da teoría de sua
aparência.
(13) Werke, 23, Das Kapital, I, op. cit., p. 50. (Abreviaremos Werke por W e
Kapital por K)
(14) Ver nota 12.
(15) Como veremos, essas duas noções não são idênticas. Mas nesse nível pre­
ciso, parece correto dizer uma coisa e outra.
(16) Aqui se reencontra a distinção aristotélica entre a matéria enquanto subs­
trato e a forma que nela se imprime.
(17) VerW.23, K.I, p. 51.
(18) “Não se vê realmente como tudo isto pode ser admitido. De duas coisas
uma — ou os trabalhos privados estão socialmente unidos, e portanto são reconhecidos,
por causa da sua diversidade, e portanto do seu caráter concreto; ou então eles o são
por sua abstração.” (B. e C., p. 149, grifado pelos autores, texto já citado)
(19) “Como se pode conceber que as coisas sejam enquanto tais socialmente
úteis, portanto já sociais, antes que elas tenham sua forma social?” (Ibidem, texto já
citado)
(20) “Enquanto formador de valores de uso, enquanto trabalho útil, o trabalho
é uma condição de existência do homem independente de todas as formas sociais,
uma necessidade natural eterna, para mediar, proporcionar (vermitteln) o metabolismo
entre o homem e a natureza, e assim a vida humana.” (W.23, K.I, p. 57) “No conjunto
dos valores de uso ou corpos de mercadorias de espécies diferentes aparece um conjunto
de trabalhos úteis igualmente múltiplos e diferentes conforme o gênero, a espécie, a
subespécie, a variedade — uma divisão social do trabalho. Esta é a condição de exis­
tência da produção de mercadorias, ainda que uma produção de mercadorias não seja,
inversamente, condição de existência de uma divisão social do trabalho.” (W.23, K.I,
p. 56)
(21) Grundlage (que traduzimos, como Labarrière e Jarczyk, por “base”) se
distingue de Grund, “fundamento". “O fundamento é primeiro fundamento absoluto,
no qual a essência é primeiro como base (Grundlage) em geral para a relação-funda­
mental (...).” Hegel, Wissenschaft der Logik, publicado por Georg Lasson, zweiter
Teil, Hamburgo, Felix Meiner, 1963, Erster Band, Zweites Buch: “Die Lehre vom
Wesen”, pp. 64-65; Science de la Logique, premier tome, deuxième livre, “La doctrine
de l’essence” , tradução, apresentação, notas de J.-P. Labarrière e Gwendoline Jarczyk,
Aubier Montaigne, 1976, p. 91, grifado por Hegel. Labarrière e Jarczyk comentam do
seguinte modo esta distinção: “o Grund deve ser distinguido da Grundlage, ‘base’
inerte da realidade, fundamento sem poder de diferenciação”. (Idem, p. 88, final da
nota 1) A tradução Roy do livro I de O Capital também verte Grundlage por “base”.
(22) W.23, K.I, p. 371; Oeuvres, Êconomie I, edição estabelecida e anotada por
Maximilian Rubel, Bibliothéque de la Pléiade, Gallimard, 1965, p. 892.
(23) Esta questão remete a um ponto que será discutido mais adiante. Ver
também a esse respeito “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo”, neste
tomo.
(24) “Suprimir” traduz a Aufhebung hegeliana. Preferimos esse termo ao neolo­
gismo “sursumer” (“sobressumir”) utilizado por Labarrière e Jarczyk em sua tradução
da Ciencia da Lógica. “Sursumer" nos parece “clarificar” de um modo importuno o
movimento contraditório contido na Aufhebung-, e tem também o inconveniente de ter
parentesco com “subsumir”, termo que pertence mais à tradição da filosofia transcen-
tal. O inconveniente que oferece a tradução por “suprimir” está no fato de que ela não
exprime o lado afirmativo (assim como “ultrapassar” (dépasser) — e em certo sentido
212 RUY FAUSTO

“sobressumir” (“sursumer”) — não exprime o lado negativo). Mas justamente somos


obrigados a pensar ao mesmo tempo, contraditoriamente, esse lado positivo. O erro na
leitura dominante não é o de acentuar a descontinuidade, mas pelo contrário, o de
acentuar a continuidade (o lado positivo e não o lado negativo); a tradução por “su­
primir” nos parece pois preferível e menos perigosa do que aquelas que vio em sentido
oposto e que oferecem o perigo de nos fazer esquecer a contradição. Tornar “claro” o
discurso hegeliano é sempre uma operação perigosa, na medida em que a “clareza” não
é uma determinação desse discurso.
(25) Se a idéia de que uma determinação material possa fazer parte da forma em
geral ainda parece estranha, lembremos a expressão “forma mercadoria”. A forma merca­
doria tem duas determinações, uma das quais é material.
(26) “A partir desse instante, os trabalhos privados dos produtores obtêm de
fato um duplo caráter social.” (W.23, K.I, p. 87; Dognin, p. 218) Mas com a segunda
determinação eles serão “negados” enquanto trabalhos privados. O segundo texto de
Marx citado por Benetti e Cartelier: “(...) a forma social é (...) uma forma distinta das
formas naturais dos trabalhos úteis reais, forma que lhes é estranha e forma abstrata
(...)” (Dognin, pp. 84-85, grifado por Marx) se refere evidentemente à situação exis­
tente na produção de mercadorias; “(...) como vimos, a mercadoria exclui por natureza
a forma imediata da trocabilidade geral (...)” . (Ibidem) Ele não se refere a toda forma
social, como a citação truncada do texto poderia sugerir.
(27) O termo é de Marx: “A medida da ‘socialidade’ (Gesellschaftlichkeit) deve
ser obtida da natureza das relações próprias a cada modo de produção e não das
representações que lhe são estranhas”. (Dognin, pp. 84-85, primeira edição de O Ca­
pital)
(28) “Finalmente, desde que os homens trabalham uns para os outros, de um
modo qualquer, seu trabalho adquire também uma forma social.” (W.23, K.I, p. 86;
Dognin, p. 216)
(29) Bem entendido, pode-se distinguir nesses modos uma certa divisão do tra­
balho concebida em termos puramente técnicos e um conjunto de necessidades, e opor
tudo isto às formas sociais em sentido estrito. Teríamos assim uma camada material
distinta do sistema de formas propriamente dito, isto é, do conjunto das relações sociais
que se urdem sobre a base técnica. Mas precisamente, para o caso do capitalismo e da
produção de mercadorias, o momento material aparece como distinto não só enquanto
configuração técnica e conjunto de necessidades — e é por isto que o momento material
é aqui, rigorosamente, um momento distinto na forma — ele se abre para um sistema
de relações que entretanto só constituía a “socialidade" externa do sistema. (Se se
quiser obter um puro sistema de necessidades ou a simples base técnica do modo de
produção capitalista ou simplesmente da produção de mercadoria, é necessário fazer
abstração de um duplo sistema de relações.) Aqui aparece de um modo majs profundo
o que mostramos anteriormente. Tampouco quanto os “elementos” da produção (com
os quais os álthusserianos quiseram‘construir sua teoria dos modos), as noções de
matéria e de forma, que têm entretanto uma pertinência dialética bem superior, não
nos permitem construir nenhuma teoria geral em sentido próprio. Conforme o modo
considerado, matéria e forma querem dizer essencialmente outra coisa. A particulari­
dade quebra a generalidade e mostra que ela é de fato “negação”, assim como seu
outro não é mais do que “pressuposição”.
(30) Não se trata entretanto de generalidade antropológica, mas de forma natu­
ral tal como ela é “posta” em um modo (diferente do modo capitalista-mercantil).
(31) W.26, 3, Theorien über den Mehrwert, op. cit., p. 140; Théories sur Ia
Plus-value, III, op. cit., p. 169. Esses textos foram objeto de análise recente. Nós os
comentamos desde meados dos anos 70 nos nossos seminários na Universidade de
Paris VIII.
(32) W. 26, 3, Theorien über den Mehrwert,.3, op. cit., p. 141; Théories sur la
Plus-value, III, op. cit., p. 170.
(33) Ver W.23, K.I, p. 51; Dognin, p. 176.
MARX: LÓGICA E POLITICA 213

(34) Ver W.26, 3, Theorien über den Mehrwert, 3, op. cit., p. 141; Théories sur
laPlus-value, III, op. cit., p. 170.
(35) W.23, K.I, p. 51; Dognin, p. 176.
(36) A expressão "(redução a) algo comum (ein Gemeines)” que se encontra em
0 Capital reforçou algumas vezes a inflexão ilusória da redução à generalização.
(37) Poder-se-ia dizer nesse sentido que a passagem da forma fenomenal ao
fundamento pode se exprimir não só em termos de conteúdo e forma como o indica­
mos, mas tem também implicações para a relação matéria e forma. Com efeito, através
desta redução se passa da forma (no sentido duplamente específico), o valor de troca (e
entretanto forma expressa pela matéria) à forma pura (o valor). A continuação desse
desenvolvimento nos reconduzirá à forma expressa pela matéria (o valor de troca).
A passagem do fenômeno ao fundamento é pois "purificação” da forma. Mas purifi­
cação à qual sucede a reposição do ponto de partida: esta forma “impura” que é o
valor de troca reaparece para ser analisada.
(38) W.31, Briefe..., Berlim, Dietz, 1965, p. 326, carta de Marx a Engels de 24
de agosto de 1867; Lettres sur le Capital apresentadas e anotadas por Gilbert Badia,
trad. G. Badia, J. Chabbert e P. Meier, Paris, Êd. Sociales, 1964, p. 174, grifado por
Marx.
(39) W.32, Briefe..., Berlim, Dietz, 1965, p. 11, carta de Marx a Engels de 8 de
janeiro de 1868; Lettres sur le Capital, op. cit., p. 195, grifo nosso.
(40) É essa não posição do trabalho abstrato nos clássicos que visam Benetti e
Cartelier quando eles escrevem que havia aí um "lugar (...) vazio” (p. 166). Mas para
Benetti e Cartelier o lugar “está vazio porque ele foi esvaziado” e é necessário preenchê-
lo não pelo trabalho abstrato mas pelo dinheiro.
(41) “Lógica” não quer dizer existente somente como objeto do pensamento.
Com isso, queremos dizer somente que a realidade que corresponde ao objeto não é
“histórica”, entendendo por “histórica” uma existência que se apresenta como sucessão
de formas no tempo. Voltaremos ao caso particular do problema da existência real do
momento do dinheiro.
(42) Ver a esse respeito o texto da contracapa do livro de Benetti e Cartelier.
(43) Ver a esse respeito, neste tomo, “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-
humanismo”.
(44) O problema é posto por Benetti e Cartelier, pp. 142-143.
(45) Embora ele não esteja ainda inteiramente objetivado, ou ainda que esta
objetividade passe ainda pelos sujeitos. Há também um lado puramente subjetivo da
expressão que desempenha um papel na dialética da forma do valor, mas que não se
confunde de forma alguma com o lado objetivo. Ver mais adiante.
(46) A expressão, não o ato de exprimir.
(47) Ver a esse respeito, R. Blanché, Introduction à la Logique contemporaine,
A. Colin, 1960, p. 190.
(48) No texto da primeira edição de O Capital, Marx é muito menos explicito:
“Esta distinção (entre as duas formas: relativa e equivalente — RF) é obscurecida por
uma propriedade característica da expressão do valor relativo em sua forma simples ou
primeira. A equação: 20 varas de tela = 1 casaco ou 20 varas de tela valem 1 casaco
inclui de um modo manifesto esta equação idêntica: 1 casaco = 20 varas de tela ou
1 casaco vale 20 varas de tela. A expressão de valor relativo da tela, em que figura o
casaco como equivalente, contém assim inversamente (rückbezüglich) a expressão de
valor relativo do casaco, na qual a tela figura como equivalente”. (Dognin, pp. 62-63,
grifado por Marx) As versões posteriores desenvolvem pois consideravelmente esse
ponto, que no texto da primeira edição pode levar muito mais facilmente a interpre­
tações errôneas.
(49) Este “pode” (“pode-se passar”) é também um “deve”. O problema não se
resolve pela distinção entre a assimetria (a implicação da negação da inversa) e a
simples não-simetria (o fato de que a primeira expressão não implica a inversa). Não se
214 RUYFAUSTO

trata aqui de uma assimetria "fíraca”, mas de algo bem mais difícil: uma assimetria
estrita que “coexiste” aparentemente com a sua negação.
(50) Sobre a relação entrre a análise e a síntese, ver Hegel, Wissenschaft der
Logik, op. cit., II, p. 491 (lógica. do conceito): “O método do conhecer absoluto é nessa
medida analítico. Que ele encontnra exclusivamente neste a determinação ulterior do seu
universal inicial é a objetividade; absoluta do conceito, de que o método é a certeza.
Mas o método é entretanto iguí.ahnente sintético, porque o seu objeto, determinado
imediatamente como universal sim ples, pela determinidade que ele tem na sua própria
imediatidade e universalidade, see mostra como um outro. Essa relação de um diverso
que ele (o objeto) é também em sti, não é o que se visa (gemeint) por síntese no conhecer
finito; já pela sua determinação ¡igualmente analítica em geral, (pelo fato de) que ele é
relação no conceito, ele se diferencia plenamente desse sintético (do conhecer finito)”.
(Ver Hegel, Science de la Logiquie , deuxième tome, “La logique subjective ou doctrine
du concept”, trad. franc. de P.-J.. Labarrière e G. Jarczyk, Paris, Aubier, 1981, p. 376)
Ver também (a propósito do carráter ao mesmo tempo analítico e sintético da propo­
sição (Satz) da identidade e da contradição), Wissenschaft der Logik, zweiter Teil, ed.
Lasson, Hamburgo, Felix Meineir, 1963, p. 32, Science de la Logique, trad. Labarrière
et Jarczyk, op. cit., premier tonvie, deuxième livre, “La doctrine de l’essence”, p. 46.
E a nota 40 da p. 43 (idem) que reanete ao texto citado da lógica do conceito.
(51) A propósito da passaigem da forma II à forma III, que examinamos acima,
Marx escreve: “Invertamos pois ia série: 20 varas de tela = casaco ou 10 libras de chá
ou - etc.; em outros termos, excprimamos a inversão que, em si, implícita (implicite)
já está na série, obtemos então: ffl. Forma geral do valor”. (Dognin, pp. 152-153 e
155-156, apêndice à primeira etdiçâo de O Capital, grifado por Marx) Aqui Marx
escreve pois explicitamente que ¡a forma inversa existia em si na forma inicial. Entre­
tanto, tratando-se da passagem (da forma II à forma III, o movimento não tem exata­
mente o mesmo caráter daquela que consideramos agora. A inversão introduz uma
nova configuração, uma nova for:-ma, o que não é o caso na passagem de uma expressão
da forma I a uma outra expressão da forma I. Dever-se-ia dizer que é só no caso em
que a configuração muda que se; pode afirmar que há passagem do em si ao para si?
Não o cremos. Tentemos precisa* a diferença (porque de qualquer modo há uma dife­
rença). Como veremos, na passaigem da forma II à forma III o em si só existe inicial­
mente no objeto (portanto enquanto para si) em forma puramente subjetiva (a passa­
gem do em si ao para si será obje;tivação do que, de início só é subjetivamente). No caso
que examinamos, o das duas expressões inversas da forma I, o em si existe em forma
objetiva (portanto como para si objetivo) no interior da forma considerada (forma I)
e isto na segunda expressão (que é igualmente de forma I). Mas precisamente ele existe
só na segunda expressão. Elé exis te como para si objetivo só se se supuser que o objeto (o
para si) está constituído pelo universo das expressões de forma I. Em relação à primeira
expressão, ele não existe, ou ele só existe como a forma III no interior da forma II. Se
se considerar só a primeira expressão, a segunda existe apenas de um modo subjetivo,
subjetivamente (a esse respeito víer mais adiante). Por outras palavras, tudo se passa
como se tivéssemos aqui uma relação entre diferentes expressões da mesma forma, que
é análoga logicamente à que se estabelece entre duas configurações (II e III) da forma
do valor. Sem dúvida, os efeitos das duas passagens não são os mesmos: mas a passa­
gem do em si ao para si pode, ¡segundo o nível considerado, afetar diferentemente o
objeto.
(52) Sobre esse ponto, ver a continuação do texto.
(53) Também não podemc« dizer que a exprèssão simples do valor é transitiva. Na
realidade, na medida em que as expressões simples são expressões “atômicas” não pode­
mos construir a transitividade, já por não poder construir uma conjunção de duas expres­
sões diferentes no primeiro mefribro da implicação que exprimiria a transitividade.
(54) O texto diz que “as duas coisas” foram “primeiro (...) reduzidas na nossa
cabeça à abstração valor”. Isto não quer dizer, apesar das aparências, que a redução é
MARX: LOGICA E POLITICA 215

subjetiva. A redução ao valor “na nossa cabeça” se segue à redução real (mas a
expressão do valor está nesse caso ausente).
(55) Na lógica de Hegel, a identidade enquanto proposição de identidade é
representada por A = A, expressão em que figura o signo da igualdade. Hegel mos­
trará, entretanto, o movimento da reflexão do sujeito no predicado que aí se encontra:
“Na forma da proposição na qual a identidade é expressa se encontra, pois, mais do
que a identidade simples, abstrata; o que aí se encontra é esse movimento puro da
reflexão no qual o outro só entra em cena como aparência, como desaparecer imediato
(...)” . (Wissenschaft der Logik, Zweiter Teil, op. cit., p. 31, Science de la Logique,
op. cit., pp. 35 e 41)
(56) “A expressão de valor relativa simples era o germe do quai se desenvolveu a
forma equivalente geral da tela.” (Dognin, pp. 86-87, texto da primeira edição de
O Capital, grifo nosso)
(57) A relação de inerência é aquela que se encontra na forma clássica da
proposição entendida em compreensão, mas mais rigorosamente numa proposição sin­
gular do tipo “Sócrates é mortal”. (Ver R. Blanché, Introduction à la Logique contem­
poraine, op. cit., pp. 127-128) Por outro lado, os lógicos distinguem a relação de perti­
nência da relação da inclusão: a inclusão “é reflexiva, não simétrica, transitiva, en­
quanto que” a pertinência “é irreflexiva, assimétrica, intransitiva (...)”. (Blanché, op.
cit., p. 177) Blanché (idem, pp. 178 e 181) faz corresponder a inerência (em com­
preensão) à pertinência (em extensão). No que se refere a Marx, chamaremos de “juízo
de inerência” (ver mais adiante) um juízo do tipo “o dinheiro é ouro", no qual, como
veremos, se tem uma relação assimétrica, sem que haja entretanto reflexão do sujeito
no predicado.
(58) A proposição seria, na realidade, “o dinheiro é a mercadoria que se acha
na forma equivalente simples”. Nós simplificamos.
(59) Esta denominação, que já havíamos utilizado (ver neste tomo “Dialética
Marxista, Humanismo, Anti-humanismo), se inspira evidentemente em Hegel, mas não
corresponde exatamente ao Urteil der Reflexion (juízo da reflexão) do capítulo sobre o
juízo da lógica do conceito. (Ver Wissenschaft der Logik, op. cit., II, p. 286)
(60) Reencontramo-lo em Castoriadis. Com efeito, mesmo se Castoriadis aceita
a idéia de que há “fantasmagorias” objetivas no capitalismo — ele é levado a fazer a
mesma crítica porque supõe que Marx projeta as categorias do capitalismo no passado:
“Aristóteles não ‘fetichiza’ (n’est pas dans le ‘fetichisme’) — e é Marx que nesse ponto
paradoxalmente fetichiza (l’est)”. (C. Castoriadis, “Valeur, égalité, justice, politique:
de Marx à Aristote et d’Aristote à nous”, art. cit., p. 47, Les Carrefours du Labyrinthe,
op. cit., p. 295, grifado por Castoriadis)
(61) Para dar apenas um exemplo, Marx escreve a propósito da produção dos
meios de produção, cujo resultado é um valor de uso que pode constituir um elemento
do capital. "Trata-se aqui unicamente do gênero de valor de uso no qual o trabalho se
apresenta, (trata-se de saber) se ele pode entrar de novo como condição da produção na
esfera da produção capitalista à qual pertence o sobreproduto (surplus produce). Temos
aqui de novo um exemplo da importância da determinação do valor de uso para as
determinações econômicas formais’’. (W.26, 2, Theorien iiber den Mehrwert, 2, op.
cit. , p. 489; Théories sur la Plus-value, II, op. cit., p. 583, grifado por Marx)
(62) A diferença entre a objetividade social puramente abstrata e a objetividade
social posta na matéria aparece no texto citado por Benetti e Cartelier na p. 144
(Dognin, pp. 52-53), na diferença entre Ding e wirklich(es) Ding (coisa e coisa efetiva)
mas também na diferença entre Ding e Sache. O valor é uma coisa (Ding), no sentido
de uma objetividade essencial, forma pura do fundamento. Para “fixá-la” nessa forma
“é preciso fazer abstração de tudo o que faz dela efetivamente uma coisa (wirklich zum
Ding macht)”. (Dognin, pp. 52-53) Marx escreve mesmo que o valor é um Gedanken-
ding (uma coisa do pensamento), e um Himgespint (uma fantasmagoria). Isto não quer
dizer que o valor só existe no pensamento, mas que o valor é algo abstrato, e puramente
abstrato, no nível do fundamento. Ou se se quiser: o valor é uma coisa do pensamento e
216 RUY FAUSTO

uma fantasmagoría. Mas o real “pensa” (ou fantasma): “(A) objetividade do trabalho
humano que é ele mesmo abstrato (...) é (...) objetividade abstrata”. (Ibidem) Na
expressão do valor, a objetividade abstrata se exprime como coisa (sachlich). Se o texto
diz: “As mercadorias são coisas (Sachen). O que elas são, elas devem sê-lo à maneira
das coisas (Sachlich)", — isto quer dizer: as mercadorias se apresentam como valores
de uso. Sem dúvida, elas não são somente valores de uso, mas esta é a sua única forma
imediatamente efetiva. A efetivação ulterior (que se faz para além da mercadoria indi­
vidual) de tudo aquilo que elas são, e portanto também da sua determinação formal só
se pode fazer por aí: o valor deve aparecer no valor de uso.
(63) Sem dúvida, Marx não escreve que o valor de uso da mercadoria A se torna
material para a expressão do valor. Mas a determinação do valor de uso enquanto valor
de uso (que é também posto no interior do modo) é aqui, “suprimida”. Tem-se apenas
a determinação de suporte do valor. Se essa forma da trocabilidade imediata não
corresponde perfeitamente à forma objetiva (a que se efetua para A pela mercadoria B),
em que o valor de uso se torna material, é que, precisamente, se trata de uma forma
subjetiva da trocabilidade imediata.
(64) Isto vale igualmente para a forma relativa. Na medida em que o valor de
uso (enquanto valor de uso) da mercadoria B que interessa ao agente A, ela é para ele
portanto subjetivamente, na forma relativa (a forma que corresponde à mercadoria no
interior da expressão do valor, em oposição à forma equivalente que prefigura o di­
nheiro). Essa determinação subjetiva da forma relativa se acha, pois, do lado em que
objetivamente se acha a forma equivalente.
(65) Se Marx escreve que a exclusão é puramente subjetiva é porque, como já
indicamos antes do dinheiro, a própria exclusão objetiva passa ainda pelos sujeitos, ou
ainda não está inteiramente objetivada.
(66) “Es finden wesentliche Veränderungen statt beim Uebergang von Form I zu
Form II, von Form II zu Form III.” (Dognin, p. 164, grifado por Marx)
(67) Ver Hegel, Wissenschaft der Logik, Zweiter Teil, op. cit., p. 156, Science
de la Logique, trad. Labarrière e Jarczyk, op. cit., premier tome, deuxième livre, “La
doctrine de l’essence”, p. 227.
(68) O problema aqui é o da presença do valor e do valor de troca, no inicio da
análise da forma do valor. Poder-se-ia propor também o problema da presença do valor
e do valor de troca no inicio de O Capital. Lá se trata da mercadoria isolada. A merca-
doria isolada tem valor, sem dúvida, mas se não a pusermos em relação com uma outra
mercadoria, não pode haver aí valor de troca. A coisa se complica, pelo fato de que
Marx se exprime, precisamente, da maneira contrária: ele fala, no início, de valor de
troca e não de valor. Mais adiante isto é corrigido (é o único ponto em que, aparen­
temente, a apresentação de O Capital corrige, isto é, aceita — mas só para este ponto,
insistimos — algo como uma apresentação provisória, forma em princípio estranha à
apresentação dialética). Com efeito, para a mercadoria isolada (einzeln, individual) o
valor de troca está ausente, ele não está presente mesmo enquanto forma fenomenal
(o valor de troca depende precisamente da relação entre pelo menos duas mercadorias).
Marx foi obrigado a seguir esse caminho que não é inteiramente satisfatório para poder
começar ao mesmo tempo pela forma elementar que é a mercadoria individual e pela
aparência que é o valor de troca e não o valor. Para evitar toda instância provisória
seria preciso aceitar, no início, ou a presença do fundamento, isto é, do valor, ou o da
multiplicidade das mercadorias, mas as duas alternativas levantam, por sua vez, pro­
blemas; elas não são satisfatórias, na medida em que em cada um dos casos, um “mais
complexo” seria dado de imediato. A solução foi pois a de começar pela mercadoria
isolada mas com o valor de troca, e corrigir em seguida o uso desta última expressão:
“Se no inicio desse capitulo dissemos, da maneira usual: a mercadoria é valor de uso e
valor de troca, isto, falando rigorosamente, era falso” . (W.23, K.I, p. 75; Dognin, p.
203) Para o conjunto do problema do valor na teoria da circulação simples, ver a
segunda parte deste texto.
(69) Ver W.23, K.I, p. 78; Dognin, p. 207.
MARX: LÖGICA E POLITICA 217

(70) Ibidem.
(71) Portanto, nao haverá universalização, se se tomar a multiplicação das se­
qüências como alternativa para o caminho que seguirá Marx: o da inversão da forma
II. Fora a inversão que interrompe de vez a multiplicação das seqüências, pode-se
supor também, como faz o texto da primeira edição (ver mais adiante) tanto a multi­
plicação das seqüências como (depois) uma inversão de cada uma delas. Com isto se
teria equivalentes gerais ou um equivalente geral não consolidado (em cada momento).
Adiante, examinaremos em detalhe as conseqüências dà hipótese geral aqui excluída: a
de uma consideração simultânea e não sucessiva das seqüências.
(72) Observemos que nessa inversão, não só cada um dos termos da “equiva­
lência” muda de posição (e de função), mas um dos termos muda também as suas
relações internas: o "ou” que liga os membros do primeiro termo na primeira expressão
foi omitido na segunda, o que significa que ele se torna um “e”. Isto quer dizer que
todas as mercadorias exprimem agora simultaneamente o seu valor. O que significa
logicamente esta passagem? Se quisermos pensar essa diferença na sua relação com a
lógica formal, seria preciso dizer: o “ou” da primeira forma é uma relação que não se
confunde nem com o “ou” alternativo ou disjuntivo, nem perfeitamente com a conjun­
ção, mesmo se Marx se refere à forma II como a uma “soma de expressões”. (Dognin,
p. 153) Digamos que esse “ou” é uma espécie de conjunção que, pelo fato de que a
expressão, embora não seja subjetiva, não está inteiramente objetivada, é afetada pela
alternativa. Por outro lado, como já vimos, o conjunto da expressão está agora posta
em objetos determinados. Com essa posição, se entra num novo “registro”, cujas
conseqüências aparecerão na passagem de III a IV.
(73) Até aí a representação subjetiva do agente corresponde à expressão objetiva
do valor da sua mercadoria.
(74) Essa diferença entre o conjunto das seqüências considerado como uma su­
cessão, na qual cada mercadoria representa por sua vez o equivalente geral — confi­
guração que representa uma forma de transição (ao equivalente geral segundo a quarta
edição, e a forma dinheiro segundo a primeira) — e o conjunto das seqüências consi­
derado em simultaneidade, poderia ser representado logicamente pela diferença respec­
tivamente entre uma relação de alternativa entre as seqüências e uma relação de con­
junção (para a justificação da representação da relação entre os termos da forma II por
um signo duplo de alternativa e de conjunção, ver a nota 72):
Forma II: (xA = yZ)*(xA = bm)* (xA = cL) etc.
Forma lia (forma II desenvolvida, multiplicação das seqüências em sucessão)
[(xA = yZ) * (xA = bM) ? (xA = cL) etc.] w [(yZ = xA) * (yZ = bM) *
(yZ = cL)] w [(cL = xA )» (cL = yZ) * (cL = bM) etc.] W*etc.
Forma Ilb (forma desenvolvida, multiplicação das seqüências em simultanei­
dade):
[(xA = yZ) * (xA = bM) * (xA = cL) etc.] . [(yZ = xA) * (yZ = bM)1?
(yZ = cL) etc.] . [(cL = xA)» (cL = yZ) » (cL = bM) etc.] . etc.
O processo só conduziria à dissolução de toda expressão do valor se se passasse
de uma relação de alternativa entre as seqüências (forma lia) a uma relação de con­
junção (forma Ilb). Mas enquanto se ficar na alternativa (forma Ha) a forma geral não
está solidificada. Com a passagem à forma III (a qual, se se considerar lia, se opera a
partir do primeiro membro de Ha) todos os membros ligados pela alternativa, em lia)
salvo o primeiro que precisamente é invertido, são pois eliminados.
(75) Ver W.23, K.l, p. 104; Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 326.
(76) Ver. W.23, K.l, p. 104; cf. Oeuvres, Êconomie I, op. cit., p. 625: Kon-
gruenz é traduzido aí por “1’accord et 1’analogie”.
(77) Marx supõe aqui duas formas monetárias.
(78) W.23, K.l, p. 104; Oeuvres, Êconomie, I, op. cit., p. 625. O enunciado “os
metais (...) são por natureza ouro” é de Galiani. Ver a nota ao texto.
(79) Ver a esse respeito as últimas páginas do capítulo II do livro I de O
Capital. Pode se consultar a esse respeito o artigo de N. Geras, “Essence and Appea-
218 RUY FAUSTO

rence: aspects of fetischism in Marx’s Capital”, New Left Rewiew, Londres, n? 65,
jan.-fev. 1971. (Les Temps Modernes, n? 304, nov. 1971)
(80) A flecha sobre x e a flecha sobre y, na primeira expressão, representam,
aparentemente, as duas relações duplas e inversas x (RI e R2) e y (R4 e R3), tais como
elas são definidas nas duas últimas expressões. Elas não designam, aparentemente,
relações de equivalência como no início.
(81) X e Y aparecem em maiúsculas: trata-se entretanto das relações x e y.
(82) As flechas indicam aparentemente não simplesmente a relação de equiva­
lência mas a relaçãp duplà x, isto é, a que contém RI e R2. Mas é a relação R2 que nos
interessa aqui, pois é R2 que representa um problema.
(83) Mesmo a segunda. Vimos que se se generalizar em lugar de passar ao
universal concreto, é a forma do valor não o próprio valor que se perde.
(84) É sempre possível descobrir que uma questão é uma falsa questão. Mas
para isso é necessário compreender bem o sentido e o sentido das operações que
poderiam conduzir à sua solução.
(85) Ver a nota 56 deste texto.
(86) Ver Benetti e Cartelier, p. 143.
(87) “I. A passagem da mercadoria ao capital: um problema não resolvido.”
(p. 132)
(88) “Na teoria neoclássica, a passagem (da mercadoria ao capital) é efetuada
pela generalização da teoria da troca de mercadorias como troca dos fatores de produ­
ção e como capitalização para troca dos fatores de produção duráveis.” (p. 133)
(89) Benetti e Cartelier escrevem que particularmente Ricardo e Sraffa estão
persuadidos de que elaboram uma teoria dos preços, (p. 84) A abordagem Ricardo-
Torrens-Sraffa implicaria excluir “todo ponto de intersecção entre as noções de merca­
doria e de capital”, (p. 134)
(90) “Tradicionalmente, a extensão da teoria da mercadoria consiste na adição
de uma hipótese suplementar (existência do trabalho assalariado) a fim de produzir a
noção de capital. Supõe-se então resolvido, sem o haver proposto, o problema da
relação entre os sujeitos mercantis e capitalistas, sendo estes últimos concebidos como
uma especificação dos primeiros.” (p. 53) “Na teoria marxista tradicional, o modo de
produção capitalista só difere da sociedade mercantil pela extensão das relações mer­
cantis a uma mercadoria suplementar.” (p. 190)
(91) H l é enunciado da seguinte maneira: “Hl: a sociedade é dada e a ligação
entre os seus elementos é a separação, cuja expressão é a unidade de conta comum”.
(P. 12)
(92) H2 se enuncia da seguinte maneira: “O modo de existência da separação é
a ruptura entre o privado e o social”, (p. 14)
(93) H’2 se enuncia do seguinte modo: “(...): o modo de separação é a relação
salarial”.
(94) Não fazemos aqui a história da leitura da secção I. Não seria sem interesse
fazê-la.
(95) W.13, Zur K ritik..., op. cit., p. 44; Contribution à la critique de 1'Écono-
mie Politique, trad. franc. de Maurice Husson e Gilbert Badia, op. cit., p. 35, grifo
nosso.
(96) W.25, K.III, op. cit., p. 97; Le Capital, livro III, tomo I (VI), op. cit.,
p. 105, grifo nosso.
(97) Observemos que os dois problemas não se confundem: no texto anterior
trata-se (em termos filosóficos) do problema da relação entre essência e fenômeno-, aqui
se trata do problema da relação essência e aparência.
(98) Não há outras terras, para pensar o discurso de O Capital. Há evidente­
mente outras saídas — estamos vendo uma — se se tratar de abandonar o universo de
O Capital. Mas o mínimo que se pode dizer é que ela só aparece como necessária se no
fechamento só se viu fechamento. Ou, por outras palavras, se não se ousou discutir o
princípio segundo o qual a contradição é irracionalidade.
MARX: LÖGICA E POLITICA 219

(99) Não podemos desenvolver esse problema aqui. Seria necessário pensar pri­
meiro o papel da identidade na dialética hegeliana, e em seguida, o que já é outra
coisa, o papel da identidade na dialética de Marx. A questão do lugar da identidade
parece essencial para pensar a relação entre as duas dialéticas. Voltaremos a isso em
outro lugar.
(100) Como veremos, esta aparência comporta de resto instâncias diferentes que
podem não ser simples aparência.
(101) Essas considerações visam mostrar a insuficiência da tese que se encontra em
certos autores, segundo a qual na secção primeira se tem a teoria da circulação simples
e não a teoria da produção simples. Esta tese resulta da dificuldade que oferece pensar
como momento do capitalismo a noção de produção simples, o que tentamos fazer.
(102) Que ela seja a “negação” de algo positivo é também verdade, só que o
capital é posto entre parênteses na circulação simples. Mas é antes pelo outro lado que
a circulação simples deve ser caracterizada, porque o outro lado — a posição de um
ente “negado” — diz não o que é pressuposto, mas o que é posto na circulação simples.
(103) Ver primeira parte, I, “d) A forma do valor”.
(104) Dizemos expressão imediata do valor das mercadorias, porque por um
lado o dinheiro tem sua forma relativa desenvolvida (forma que não é forma-preço) no
conjunto das outras mercadorias. E que, por outro lado, através do dinheiro toda
mercadoria exprime indiretamente o seu valor em todas as outras mercadorias.
(105) O que não quer dizer que objeto e sujeito se confundem. Ver a esse res­
peito “Abstração real e contradição: ...” (segunda parte, excurso).
(106) Ver a nota 42 deste texto.
(107) As soluções dos dois problemas não são idênticas porque no problema
geral (circulação simples/produção capitalista), a forma “negada” é a aparência da
forma que nega, o que não é o caso, rigorosamente, para a relação entre os momentos
do dinheiro e o dinheiro.
(108) Ver “Abstração real e contradição: ...” (terceira parte). Uma comparação
entre esses dois problemas tem interesse. Observar-se-á, como mostramos no texto
anterior, que a resposta ao problema da existência do valor nos “bolsões” mercantis
anteriores ao capitalismo é contraditória: lá o valor não existe, mas em certo sentido
existe; quanto à produção capitalista, deve-se dizer que lá ele está absolutamente au­
sente. Para o problema da relação circulação simples/produção capitalista enquanto
produção capitalista, temos, pelo contrário: o valor está lá absolutamente (na circula­
ção simples), enquanto que a produção capitalista, como acabamos de ver, está e não
está.
(109) O dinheiro conserva o valor de uso material mas como valor de uso (mate­
rial) “negado”. Marx parece escrever que no dinheiro ao valor de uso material se
acrescenta o valor de uso formal (ver W.23, K.I, p. 104; Oeuvres, Économie I, p. 626),
o que poderia levar à suposição de que os dois valores de uso subsistem, no dinheiro,
enquanto determinações positivas. Mas na realidade ele se refere não ao dinheiro mas à
mercadoria-dinheiro (Geldware), isto é, ao dinheiro considerado em continuidade com
a forma que ele “nega”, a mercadoria. Se se pensar o dinheiro como “mercadoria-
dinheiro”, a determinação própria à mercadoria — o valor de uso material — não está
“negado” (o que seria o caso se se visasse simplesmente o dinheiro) mas aparece ao
lado da determinação própria do dinheiro, o valor de uso formal. “O valor de uso da
mercadoria-dinheiro (Geldware) se desdobra. Ao lado do seu valor de uso particular
enquanto mercadoria — o ouro, por exemplo, serve para preencher dentes ocos, como
matéria-prima para artigos de luxo etc. — ela recebe um valor de uso formal que nasce
de sua função social específica.” (W.23, K.I, p. 104; Oeuvres, Économie I, op. cit.,
p. 626)
(110) “Se se fixar as formas particulares de manifestação (...) obter-se-á as
explicações (erhält man die Erklärungen): o capital é dinheiro, o capital é mercadoria.”
(W.23, K.I, p. 169; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 700)
220 RUYFAUSTO

(111) Trata-se das relações entre diferentes movimentos circulares e não da re­
lação entre os momentos de um desses movimentos. Já sabemos que só pode haver
capital se esses momentos se ligarem internamente, constituindo com isto um Sujeito
autônomo. Mas a exterioridade do vinculo entre os diferentes movimentos nos mostra
que nesse nível o capital tem ainda alguma coisa de mercadoria.
(112) Retomaremos em seguida, de um modo mais analítico, a passagem anali­
sada em “Dialética Marxista, Humanismo, Anti-humanismo”, segunda parte.
(113) Retomada do problema da segunda parte do primeiro ensaio. Se anterior­
mente (neste texto) vimos a dialética da essência e da aparência, se no final do ensaio
anterior vimos a dialética da essência e do fenômeno, trata-se aqui — como no final do
primeiro ensaio — de alguma coisa como a dialética entre a essência, e a essência da
essência do sistema.
(114) Ver W.23, K.I, pp. 594-595; Oeuvres, Économie I, op. cit., p. 1071.
(115) "A representação do capitalista segundo a qual ele consome o produto do
trabalho não pago de outrem, a mais-valia, e conserva o seu valor-capital primitivo,
não pode mudar absolutamente nada desse fato.” (W.23, K.I, pp. 594-595; Oeuvres,
Économie I, p. 1071)
(116) Observemos que no interior da teoria da reprodução — e se trata da outra
diferença em relação à teoria da produção (secções 2 a 6), toda diferença individual
entre operário e capitalista desaparece. Pouco importa se inicialmente o capitalista
trata com o operário A, substituido mais tarde pelo operário B. Aqui se totaliza, só se
considera o conjunto da classe dos capitalistas.
(117) “Quando alguém consome todos os seus bens (sein ganzes Besitzum) con­
traindo dívidas, que equivalem ao valor desses bens, a totalidade dos bens não repre­
senta mais do que a soma total das suas dívidas.” (W.23, K.I, p. 595; Oeuvres, Éco­
nomie I, p. 1071)
(118) “Originariamente, o direito de propriedade nos aparecia como fundado no
próprio trabalho. Pelo menos, .esta suposição devia ser válida, pois só temos face a face
proprietários de mercadorias com o mesmo direito, (pois) o meio para apropriação da
mercadoria de outrem era só a alienação da própria mercadoria, e esta só pode ser
produzida pelo trabalho. A propriedade aparece agora do lado do capitalista como o
direito de se apropriar do trabalho não pago de outrem ou de seu produto, (e) do
lado do operário como impossibilidade de se apropriar do seu próprio produto. A sepa­
ração entre a propriedade e o trabalho se torna uma conseqüência necessária da lei
que partia, aparentemente, da sua identidade.” (W.23, K.I, pp. 609-610; versão fran­
cesa bem diferente, ver Oeuvres, Économie I, op. cit., pp. 1085 e segs.).
(119) Como assinalamos anteriormente, há uma certa dificuldade em interpre­
tar e criticar a leitura de Benetti e Cartelier exatamente porque as suas respostas e os
seus conceitos tornam ambíguo o próprio problema que eles discutem. Mas como
vimos, há razões para justapor a resposta deles à de O Capital. São eles mesmos que as
justapõem. De resto, a resposta deles também não é satisfatória se supusermos que se
trata do problema da distinção entre formações históricas diferentes.
(120) Sem dúvida, como rimos, Benetti e Cartelier procuram freqüentemente
apoiar-se em certos textos de Marx. Mas não se trata de textos que apresentam as
contradições, mas de textos que parecem constituir um bloqueio diante delas. Há entre­
tanto um texto (p. 118) — em que os autores insinuam a possibilidade de um paren­
tesco entre as suas respostas e as de Marx — que poderia remeter à segunda negação:
“Reencontra-se aqui uma conclusão estabelecida mais acima: a especificidade da pro­
priedade capitalista em relação à propriedade mercantil (do mesmo modo que uma
intuição profunda de Marx, para quem o capitalismo era a negação da propriedade
privada)”, (p. 118) Mas tudo isto permanece bem vago.
(121) Ver a nota 3 da terceira parte de Marchands, salariat et capitalistes.
(122) Primeiro no § 2 do capítulo 22 da secção VII (W.23, K. I, p. 614; Oeu­
vres, Économie I, p. 1091, § II do capitulo XXIV da secção sétima na versão francesa)
— “interpretação errônea da reprodução em escala ampliada pela economia política” .
MARX: LÖGICA E POLITICA 221

Em seguida na secção III do livro II (principalmente no capítulo XIX, W.24, K.II,


p. 362; Éd. Sociales, 1. II, t. II (V), p. 18; Oeuvres, Economie II, p. 730, troisième
section, introduction). Finalmente no capítulo 49 do livro III. (W.25, K.III, p. 840, Ëd.
Sociales, 1. III, t. III (VIII), p. 210; Oeuvres, Économie II, p. 1441, cap. 26 do livro
III) — “Complemento à análise do processo de produção” . Também no livro I das
Teorias..., capítulo III. (W.26, 3, Theorien..., 3, op. cit., p. 40, Théories..., III, op.
cit., p. 63)
(123) Apresentaremos aqui o problema proposto por Benetti e Cartelier de um
modo que não é muito teórico e em termos bastante livres, mas esta apresentação nos
parece corresponder ao que está efetivamente em jogo.
(124) A parte entre colchetes só existe na tradução francesa.
(125) Sempre no sentido técnico que toma o termo “pressupor” no discurso
dialético.
(126) Anteriormente, voltamos à circulação simples, a partir de uma questão
que comportava uma solução análoga à solução de um problema da circulação simples.
Como se verá, aqui a analogia não está nas soluções, mas nos problemas.
(127) Ver W.24, K.II, pp. 352-353; Oeuvres, Économie II, pp. 506-507.
(128) Ver W.24, K.II, p. 102; Le Capital, 1. II, t. I (IV), op. cit., p. 92.
(129) “(...) M... M’ (...) já no seu extremo inicial se anuncia como configuração
da produção capitalista de mercadorias.” (W. 24, K. II, p. 102; Le Capital, 1. II, t. I
(IV), op. cit., p. 91) “O que distingue a terceira figura das duas primeiras é que só
nesse ciclo o valor-capital valorizado e não o capital primitivo ainda por valorizar apa­
rece como ponto de partida de sua valorização. M’ como relação-capital (Kapital-
verhàltnis). M’ como relação-capital é aqui o ponto de partida e, como tal, age de um
modo determinante sobre o ciclo inteiro (...).” W.24, K.II, p. 97; Le Capital-, 1. II,
t. I (IV), p. 87).
(130) O que se pressupõe no caso (ciclo II) não é o processo de valorização (isto
é, o capital produtivo no processo de produção, que é o verdadeiro ponto de partida do
ciclo II), mas o capital produtivo (ou antes, uma parte dele, a que é objetiva) enquanto
mercadoria. Portanto, aqui não só a pressuposição vem no final, mas ela não corres­
ponde' perfeitamente à figura do ponto de partida. Observemos que Marx se refere
sempre nesse texto a pressuposições imediatas, isto é, à forma que se encontra nas
mãos dos outros agentes que aparecem no ciclo, não às pressuposições dessas pressu­
posições.
(131) "Sobre a base do modo de produção capitalista como modo dominante
toda mercadoria deve ser, por outro lado, capital-mercadoria para o vendedor. Ela
continua a ser nas mãos do comerciante ou se toma tal se ainda não o era. Ou entâo ela
deve ser mercadoria — por exemplo um artigo importado — que substitui um capital-
mercadoria primitivo, e que só lhe deu, portanto, uma outra forma de existência.”
(W.24, K.II, p. 100; Le Capital, 1. II, t. I (IV), p. 89)
(132) Acrescentemos que M’ pode "existir numa forma de uso que não pode
(...) entrar num processo de produção, qualquer que seja ele” . (W.24, K.II, p. 102;
Le Capital, 1. II, t. I (IV), p. 91)
(133) M’ é composto de M + m. “M’... M’ é o único ciclo no qual o valor
primitivamente adiantado só constitui uma parte do extremo que abre o movimento
com o que o movimento se anuncia desde o principio como movimento total do capital
industrial; tanto da parte do produto que substitui o capital produtivo como da que
constitui o sobreproduto e que, etfl média, é em parte gasta como rendimento, em parte
deve servir como elemento da acumulação.” (W.24, K.II, p. 101; Le Capital, 1. II,
t. I (IV), p. 91)
(134) Deslocamos as'aspas que introduzem as citações de Marx. Aparentemente
há, aí, erro de impressão.
(135) No texto de Benetti e Cartelier, há aqui uma nota que examinaremos mais
adiante.
222 RUY FAUSTO

(136) “Examinemos a circulação dessas 30 £ , que se separa do circuito do


capital, embora ela tenha nela o seu ponto de partida: 400 libras de fios (M' = parte de
sobreproduto) ... 30 £ (D) ... 3 0 £ (M = meios de subsistência). Trata-se pois de um
caso de circulação simples de mercadorias, em que o dinheiro funciona só como moeda.
Sua finalidade é o consumo individual e é revelador da estupidez dos economistas
vulgares o fato de que eles apresentam esta circulação da parte do sobreproduto consu­
mido como rendimento como circulação caracteristica do próprio capital, quando na
realidade o seu motivo determinante é a valorização do valor, o valor de troca e não o
valor de uso.” (Oeuvres, Êconomie II, p. 534, grifo nosso) E mais acima: “As 30 £
consumidas como rendimento se incorporam à circulação geral tanto quanto as outras
30£; mas em vez de entrar no circuito do capital, elas, pelo contrário, escapam dele”.
(Oeuvres, Êconomie II, p. 533) Ainda: “A circulação da mais-valia constitui aqui ela
própria um momento na circulação do capital. E só depois do ato M’ — D’ que os dois
elementos se separam: daqui por diante dividido em D + A D, D' pode percorrer dois
circuitos diferentes, um dos quais entra na circulação geral das mercadorias saindo do
circuito próprio ao capital, enquanto que o outro constitui uma fase deste último".
(Oeuvres, Êconomie II, p. 540, grifo nosso. Esse texto, como os dois anteriores, não
existe nas Werke, e foi portanto traduzido do francês) Ver também W.24, K.II, p. 97;
Le Capital, 1. II, t. I (IV), p. 87; e W.24, K.II, pp. 74-75; Le Capital, 1. II, t. I (IV),
pp. 65-66.
(137) “(...) a análise que Marx apresenta na quinta secção, se despojada do
‘fetichismo do capital real’ é amplamente compatível com a que foi apresentada na
primeira parte dessa obra.” (p. 204) Trata-se de um texto da nota 6 de Benetti e
Cartelier, sobre o crédito, a qual não comentamos aqui. Citamo-la por causa da pre­
sença — a propósito de Marx — do termo “fetichismo”.
(138) Numa nota da p. 196, Benetti e Cartelier escrevem: “Marx parece cons­
ciente dessa redução, mas não a supera (Citação de Marx, damos a versão das £d.
Sociales utilizada por Benetti e Cartelier)”. “Concentrando a atenção sobre esta figura
(fixiert man (...) dieseFigur) (o ciclo III), tem-se a impressão de que todos os elementos
do processo de produção provêm da circulação das mercadorias e só consistem em
mercadorias. Esta concepção estreita (einseitige) não leva em conta (überzieht, néglige)
os elementos do processo de produção que são independentes dos elementos de merca-
doria ( Warenelementen)” . ((Le Capital), 1. II, t. I, p. 92 (ver W. 24, K. II, p. 103))
“De que elementos se trata?" — perguntam Benetti e Cartelier. "Sem dúvida não da
própria ‘força de trabalho’ (que), segundo Marx (é) mercadoria (...).” (Benetti e Carte­
lier, p. 196, n. 2) A resposta a esta questão se encontra, entretanto, em Marx: "Urna
vez consumado o ato e-Mp, as mercadorias (Mp) deixam de ser mercadorias e se
tornam um dos modos de existência do capital industrial, na sua forma funcional de P,
capital produtivo”. (W.24, K.II, pp. 113-114; Le Capital, 1. II, t. I (IV), p. 102, grifo
nosso) E ainda: “(...) a força de trabalho só é mercadoria nas mãos do seu vendedor,
o trabalhador assalariado (...)” . (W.24, K.II, p. 42; Le Capital, 1. II, t. I (IV), op. cit.,
p. 38) Os meios de produção podem ser mercadorias nas mãos do comprador, mas eles
não o são no interior do processo de produção. No processo produtivo, eles são capital
— numa de suas formas, o capital produtivo, e capital produtivo em processo — sem
ser mercadorias nem dinheiro, sem ter a forma mercadoria nem a forma dinheiro.
Benetti e Cartelier esqueceram simplesmente o capital produtivo, que no processo de
produção é uma terceira forma., diferente da mercadoria e do dinheiro. Mas a idéia —
que é justamente a de Marx — de um momento do capital em que este não é nem
mercadoria nem dinheiro se justifica logicamente? Acreditamos que aqui também a
solução tem algo a ver com a relação contraditória entre o capital e os seus “antece­
dentes” lógicos. Se o dinheiro e a mercadoria fbssem antecedentes fundantes do capital,
seria difícil pensar que este último poderia se desfazer deles, ainda que num momento
apenas do seu processo circulai. E outro o caso, se esses antecedentes (que se tornaram
formas de existência) são na realidade pressuposições, isto é, princípios "negados".
A possibilidade de que eles sejam efetivamente “negados” parece pensável. O capital
MARX: LÓGICA E POLITICA 223

como capital produtivo não é nem mercadoria nem dinheiro. Ele se apresenta só como
valor de uso e é sempre valor, pois o capital é valor que se tornou Sujeito. Tem-se
capital (valor-capital e forma de existência valor de uso) sem ser nem mercadoria nem
dinheiro.
(139) Sobre a importância do valor de uso para a reprodução, ver a nota 61.
(140) “(...) Com a ciência se passa o mesmo que com as forças naturais. Uma
vez descoberta, a lei do desvio da agulha imantada nü circulo de ação de uma corrente
elétrica, ou da produção do magnetismo no ferro em torno do qual circula uma cor­
rente elétrica n&o custa um vintém." (W.23, K.I, p. 407; Oeuvres, Economie I, op. cit.,
p. 931)
(141) O que não será um pecado se o “economismo" está nas coisas. Lembre­
mos a esse respeito um texto de Horkheimer, que é pouco suspeito de economismo,
a propósito do conceito (em sentido objetivo e subjetivo) de “dependência do cultural
em relação ao econômico” nas condições do capitalismo contemporâneo: “Com a ani­
quilação do individuo tipico, ele (esse conceito) deve ser compreendido como se (de uma
maneira) mais vulgarmente materialista do que antes. As explicações dos fenômenos
sociais se tornam mais simples e ao mesmo tempo mais complicadas” . (Max Horkhei­
mer, Traditionelle und kritische Theorie, artigo com o mesmo título, Frankfurt, Fis­
cher, 1968, p. 52. Théorie traditionelle et Théorie critique, Gallimard, 1974, p. 73,
grifo nosso)
(142) Ver a esse respeito o final da primeira parte. Seria preciso insistir sobre a
importância da critica do convencionalismo, isto é, da critica do “antifetichismo”
abstrato para a análise do capitalismo contemporâneo. Com efeito, tudo se passa como
se a aderência das relações formais de produção às relações materiais se tivesse tornado
mais estreita do que pensavam os clássicos. Tal é a significação da discussão atual
sobre as implicações que têm imediatamente os meios de produção sobre a exploração e
a opressão. Nesse sentido, toda exigência de “esvaziamento” da matéria a propósito da
teoria de Marx corre o risco de ir no sentido oposto ao das exigências criticas atuais.
(143) Talvez fosse interessante comparar Benetti-Cartelier, Castoriadis e Althus­
ser, no ponto em que cada um à sua maneira “roça” a dialética (exprimindo malgré lui
e de maneira subjetiva a contradição): Althusser nas suas considerações, em Pour
Marx, sobre a Tese VI sobre Feuerbach “A essência humana é (...) o conjunto das
relações sociais” (ver “Marxismo, Humanismo, Anti-humanismo”, segunda parte).
Castoriadis insistindo sobre as antinomias de Marx. (Ver “Abstração real e contradi­
ção...”, terceira parte), Benetti e Cartelier, quando escrevem: “O ouro só é mercadoria
enquanto ex-mercadoria", (texto citado)
Apêndices
1

Sobre o destino da antropologia


na obra de maturidade de Marx (1968)*

1. Este texto não pretende fazer uma crítica geral do althusse-


rismo, mas desenvolver em forma esquemática, e como um programa
de discussão, dois problemas que a leitura da obra de Althusser pro­
põe: 1) Qual o destino da antropologia na obra de maturidade?;
2) Qual a relação entre a obra histórica e política de Marx, e a teoria de
O Capital ? A discussão do primeiro problema pressupõe uma concor­
dância de princípio com a crítica althusseriana do humanismo. Não se
trata de uma volta às leituras continuístas tradicionais, mas de uma
tentativa de pensar em continuidade a descontinuidade lógica indis­
cutível que existe entre o “jovem” e o “velho” Marx. (Essa continui­
dade na descontinuidade1 será pensada também lógica e não historica­
mente.) Na discussão do segundo problema, por sua vez, se admitirá a
validade regional de algumas das teses da crítica de Althusser ao histo­
ricismo. Assim, nos dois casos, questionaremos os limites de um tra­
balho crítico, cuja validade em princípio (ou para uma certa região do
objeto, pelo menos) não será contestada. — Por outro lado ver-se-á — o
que não é imediatamente evidente — que cada uma daquelas questões
desemboca nos dois problemas correlatos do humanismo e do histori­
cismo. Através destes, as duas interrogações imbricam-se e iluminam-
se reciprocamente: a questão dos “ dois” Marx esclarece a da organi­
zação geral do saber marxista e vice-versa. Embora não linearmente,
iremos da primeira à segunda interrogação; sob um aspecto, entre­
tanto, articulamos desde o início as duas perspectivas, pois começa­
remos por uma reconstituição da estrutura geral do espaço do saber na
obra de juventude.

2. Além de funcionar como fundamento teórico da crítica da


economia (a rigor fundamento de um fundamento, a noção de “traba­
lho alienado”), o discurso antropológico, ou, mais especificamente, as
noções de “homem” e de “essência humana” representam na obra de
juventude uma espécie de “fundamento prático” da política.2 (Ver, a
esse respeito, L. Althusser, Pour M arx (“Marxisme et Humanisme” ,
pp. 229-230) Poderíamos distinguir, na obra do jovem Marx, pelo
menos dois modelos de utilização de noções como “homem” ou “essên­
cia humana” como fundamentos da prática: o da Introdução à Crítica
da Filosofia do Direito, de Hegel, e o dos Manuscritos de 44, ao qual
228 RUYFAUSTO

nos limitamos. Há nos Manuscritos dois fundamentos práticos, ou um


fundamento prático que se manifesta em dois níveis de consciência,
o do Sujeito (o filósofo crítico) e o do objeto (isto é, o dos sujeitos
“históricos”).3 Tanto o filósofo como o homem alienado, em quem
“irrompe” a essência humana, pensam a idéia da humanidade. Mas ao
primeiro corresponde a idéia verdadeira do homem humano (politica­
mente, ao que Marx chama, então, de “ socialismo”), ao segundo urna
idéia imperfeita (politicamente, a de uma comunidade humana ainda
infectada pelo princípio da propriedade privada, o que Marx deno­
mina, então, o “comunismo”). Para reconstituir o espaço que se cons­
trói em torno desses fundamentos é necessário precisar a natureza de
duas conexões: a) Como se efetua no objeto a passagem da prática
humana (Historia) à consciência?; b) Qual a relação entre a consciên­
cia, no objeto, e a consciência filosófica (ou qual a posição relativa das
duas consciências) e, questão conexa, em que nível se dá a intervenção
no processo histórico? a) Como já foi assinalado, a Historia, nos
Manuscritos, como no jovem Marx em geral, dispersa e atomiza os
indivíduos. Ê a explosão da natureza humana, provocada por urna
alienação extrema, que lhes permite romper a dispersão da “sociedade
civil” , e se alçar, num plano transcendental, a uma experiencia comu­
nitária. A irrupção da transcendentalidade na História marca, assim,
uma passagem brusca de uma dispersão a uma associação, b) Numa
forma muito mais radical do que aquela que encontraremos mais tarde,
há, nos Manuscritos, uma espécie de “defasagem” entre as duas cons­
ciências, já que um enorme intervalo histórico separa as suas respec­
tivas visadas.4 O filósofo pensa e tematiza um homem humano que,
conforme o terceiro manuscrito, só seria produzido num futuro longín­
quo. A consciência do filósofo está “inclinada” para este futuro e,
dessa perspectiva — que é a do socialismo (humanismo) —, ele critica a
prática do futuro imediato, cujo principio motor é o comunismo.5 Pelo
seu caráter intencionalmente “utópico” , entretanto, essa crítica não se
propõe aparentemente alterar o curso do processo histórico objetivo,
mas apenas mostrar os seus limites.6 No extremo oposto do que ocorre
na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, na qual o
proletariado tem um papel passivo.7 No esquema dos Manuscritos, o
processo revolucionário, o do futuro próximo, pelo menos, poderia
dar-se, aparentemente, sem intervenção do Sujeito. Em resumo: des-
continuidade e ruptura entre a Historia e o sujeito no objeto (o sujeito
“histórico” ); defasagem radical entre o sujeito no objeto e o Sujeito
filosófico; intervenção a partir do primeiro.

3. À dupla transcendentalidade prática na obra de juventude


corresponde, na obra madura, uma dualidade não mais transcen­
dental, a que distingue a consciência real do proletariado da cons­
ciência revolucionária do Sujeito (teórico-dirigente revolucionário, ou
MARX: LÖGICA E POLITICA 229

partido).8 A consciência real aparecerá, antes de mais nada, sob a


forma, não definida na obra de juventude, da consciência econômica,
a) Entre a História e a consciência econômica (que é interior à história)
não há passagem brusca da dispersão à associação. Nos textos de
transição sobretudo (ver o final de Miséria da Filosofia), Marx assinala
que as organizações operárias são produto necessário do processo his­
tórico, que reúne, tanto quanto separa, os indivíduos. A consciência
(econômica) nasce como tomada de consciência, do solo de uma aglu­
tinação de fato; a dispersão histórica se conserva, mas como um dos
níveis constitutivos de um processo, pensado agora como “contradi­
tório” .9 Diferentemente dos Manuscritos, não haverá ação revolucio­
nária sem intervenção do Sujeito. (Mas contrariamente à Introdução à
Crítica da Filosofia do Direito..., essa intervenção não põe em movi­
mento um sujeito passivo.) A nova posição do Sujeito, que torna pos­
sível sua intervenção, exprime-se numa distribuição do espaço do seu
discurso: a idéia de uma sociedade humanizada, a qual se abria para
um discurso plenamente tematizável10 embora descrevesse uma situa­
ção pós-histórica (essa dupla característica correspondia à sua função
de fundamento) passa a ser um horizonte. É a antevisão necessaria­
mente marginal da “humanidade humana” que encontramos, por
exemplo, nos últimos capítulos do livro III de O Capital ou na Crítica
do Programa de Gotha. A essa transformação do fundamento subjetivo
em horizonte — lugar por excelência da “ antropologia” na obra ma­
dura — corresponde a emergência de dois discursos,11 ausentes até
aqui, o discurso histórico e o discurso tático-estratégico. A presença
desses dois discursos, cuja natureza passamos a examinar, redefine as
relações da consciência no objeto e do objeto em geral com o Sujeito.

4. A natureza do discurso histórico e do discurso tático-estraté­


gico é um problema maior, para o qual Althusser não dá uma solução
satisfatória. Althusser preocupou-se em definir as condições de uma
teoria da história e deu algumas indicações sobre a teoria da prática
(ver Lire Le Capital II); mas a solução que ele esboça para esses
problemas, de certa forma implícita na formulação que lhes dá,12 o leva
a deixar na sombra os textos propriamente históricos e político-práti-
cos, essenciais à arquitetura global do marxismo.13 No quadro das
noções althusserianas, haveria aparentemente duas alternativas para
conceituar os discursos histórico-políticos (supondo a existência de
uma conexão interna entre o discurso histórico e o político vamos
considerá-los conjuntamente): ou seriam aplicações da teoria (ver Lire
Le Capital, I, p. 38), ou se trataria de discursos ideológicos (sobre a
noção de ideologia ver principalmente “Marxisme et Humanisme” em
Pour Marx).14 Começando pela segunda hipótese. Apesar das diferen­
ciações introduzidas, a dualidade entre ciência e ideologia, tal como a
estabelece Althusser, não parece pertinente para definir o discurso
230 RUY FAUSTO

histórico-político. Por um lado esse discurso tem uma função prática


que não é menor do que a teórica (neste sentido é que, do ponto de vista
althusseriano poderia ser chamado de ideológico); mas por outro lado
ele é, à sua maneira — o que segue tentará justificá-lo —, um discurso
rigoroso. Quanto a interpretá-lo como aplicação, seria aparentemente
transpor para o marxismo uma forma de hierarquização do saber que
lhe é estranha. O marxismo propõe dois modos de leitura do objeto,
o lógico e o histórico, e embora o histórico pressuponha o lógico (há
também uma reciprocidade mais “fraca” a ser definida), o tipo de hie­
rarquia que se estabelece entre eles não é redutível à relação teoria-
aplicação. Isto não só porque a cada um deles correspondem exigências
diversas de cientificidade — por exemplo, se nos dois se pode aplicar a
distinção essência-aparência, é fácil ver que em cada caso ela ganha um
sentido diferente — como também porque a sua significação epistemo­
lógica geral não é a mesma. A partir da leitura da História que faz de O
Capital, Balibar escreveu que “uma ausência de memória radical (...)
caracteriza a história (Lire Le Capital, II, p. 192). Essa definição vale
como princípio do discurso lógico. De fato, de um duplo ponto de vista,
o princípio da teoria de O Capital não é a memória mas a antimçmória:
objetivamente, pois para compreender as leis do sistema capitalista é
necessário separar a sua articulação lógica da sua gênese; subjetiva­
m ente, porque não há continuidade, nesse nível, entre a prática polí­
tica e a prática teórica. Mas o mesmo não acontece com o discurso
histórico e com o discurso tático-estratégico; eles pressupõem uma
memória que, não obstante o hegelianismo da fórmula, é uma memória
de si. A História — a história contemporânea em particular — aparece
sobre o fundo de uma prática possível (ver por exemplo os textos sobre
o proletariado em O Dezoito Brum ário...), que “critica” 15 a prática
real, quando esta história não é, ela mesma, em maior ou menor grau,
o resultado de um conjunto de ações planejadas pelo Sujeito. Num e
noutro caso há circularidade entre a História e os dois discursos prá­
ticos (e entre estes últimos): o sujeito é um centro em constante movi­
mento que articula dois momentos de uma prática em que real ou
idealmente ele se insere. Ao contrário do que constatamos na obra de
juventude, a História (como processo objetivo) e a consciência real, que
representa um de seus níveis, passa a ser assim o solo dos discursos
práticos (não da Teoria, como quer o historicismo), rompendo a des-
continuidade que, no jovem Marx, se estabelecia entre os dois sujeitos,
entre o Sujeito e a História. (Essa continuidade prolonga uma outra
continuidade16 que, como vimos, se estabelece, após a coupure entre a
história real e a consciência objetiva.)
Mas se a História é o solo dos discursos práticos, a dependência
destes para com ela — dependência que não é só para com um passado
imediato — deve ser entendida como uma interiorização de experiên­
cias ,17 e não à maneira positivista, como incorporação à teoria de uma
MARX: LÓGICA E POLÍTICA 231

série de experimentos . (Certamente se pode introduzir descontinuidade


nessa interiorização — a introdução dessa descontinuidade marca aliás
a originalidade epistemológica da obra de Debray —; mas assim como
toda continuidade, no plano da teoria (lógica), é derivada de uma
descontinuidade que a torna possível, aqui toda descontinuidade só
poderá nascer na continuidade de uma memória.) O discurso histórico
e tático-estratégico não depende apenas da teoria de O Capital, que lhe
fornece os princípios; depende também de um passado, que é um
passado prático.
Se os discursos histórico-práticos não são simples aplicações da
teoria nem ideologias, conviria analisar mais de perto a sua natureza.
Aqui me limito a fazer duas observações: esses discursos não satisfazem
certamente à exigência althusseriana de que “o conhecimento da his­
tória não seja mais histórico do que é açucarado o conhecimento do
açúcar” . (Lire Le Capital, I, p. 132) O horizonte temático que eles
propõem é, pelo contrário, comandado pelo ritmo do tempo histórico.
Citando Lenin: “Não foi a dedução lógica, mas o desenvolvimento real
dos acontecimentos, a experiência viva dos anos 1848 e 1851, que o
conduziu (a Marx) a esta maneira de colocar o problem a. Até que
ponto Marx se atém rigorosamente à base efetiva da experiência histó­
rica, vê-se levando em conta que, em 1852, Marx não coloca ainda o
problema concreto de saber por que coisa se vai substituir esta má­
quina do Estado que deve ser destruída. A experiência não fornecia
ainda os materiais para este problem a, que a História pôs na ordem do
dia mais tarde, em 1871...” . (Lenin, Obras escolhidas, ed. em espa­
nhol, III, p. 224, “O Estado e a Revolução” , grifos nossos) — Em
segundo lugar, os discursos histórico-políticos recolocam o problema
das relações entre Marx e Hegel. Para dar mais um exemplo (que se
relaciona com o texto de Lenin): tradicionalmente se estabelece uma
homología entre o lugar que ocupa o socialismo ou o comunismo em
Marx e a posição do saber absoluto na Fenomenología do Espírito de
Hegel. A homología é, talvez, menos superficial do que hoje se costuma
supor. E ela estabeleceria uma convergência, entre Hegel e Marx, na
definição das condições de possibilidade do conhecimento do futuro;
no caso, do futuro “distante” . Na Fenomenología (e para as duas cons­
ciências, o que muitas vezes se perde de vista), a tematização plena dp
saber absoluto — correlato do que seria a sua transformação em funda­
mento — é impossível enquanto não se chegar ao final do itinerário
fenomenológico, A meio caminho da Fenomenología, ela perverteria a
cientificidade (ou quase cientificidade) do discurso, e o transformaria
em opinião.16 Impensável como discurso pleno, o saber absoluto está
dado, entretanto, como horizonte. A essencialidade desse horizonte é
variável com o estágio do itinerário fenomenológico em que a cons­
ciência se encontra; sua capacidade de iluminar o presente (assim como
a possibilidade, correspondente, de que ele mesmo seja tematizado)
232 RUYFAUSTO

aumenta, em geral, à medida que nos aproximamos do objetivo último.


Mas dentro desses limites, a visada do absoluto é uma dimensão neces­
sária. E esses limites são homólogos aos que condicionam a validade e
justificação do discurso sobre o socialismo: com o mesmo “ gradiente”
temporal, o discurso que tematiza plenamente o socialismo não pode
ser científico (nem portanto revolucionário), o que não o incorpora
como perfil do objetivo final não pode ser revolucionário (nem portanto
científico). Sob esse aspecto, ainda que se admitam as observações de
Althusser, segundo as quais as categorias hegelianas tomam impossível
“toda antecipação consciente do desenvolvimento do conceito, todo
saber que visa ao futuro” (Lire Le Capital, I, p. 118) é indiscutível que
foi possível extrair de Hegel uma teoria desta antecipação.19

5. Restaria colocar o problema das relações entre os discursos


histórico e político, e a teoria de O Capital. Aqui é certamente válida a
crítica ao historicismo: não há entre o tempo histórico e a teoria lógica a
continuidade que ele supõe; mas os dois articulam-se através de certos
laços que é preciso definir, a partir de uma análise do espaço objetivo
da teoria. Para o discurso histórico-político definimos dois pontos que
são as suas referências extremas:20 um solo histórico que tem como um
de seus níveis a consciência atual do proletariado; um horizonte repre­
sentado pelo objetivo último, o socialismo. Esses dois pontos que, na
obra política, se dispõem — diríamos — horizontalmente, vão-se refle­
tir verticalmente em O Capital. O primeiro desses pontos se reflete,
fora do espaço propriamente lógico, nos textos em que Marx descreve a
experiência do proletariado. Nesses textos, os que tratam da luta pela
limitação da jornada de trabalho, principalmente a experiência vivida
do proletariado que, entendida como um transcendental, tinha um
papel fundante na antropologia da juventude, reaparece na superfície
do discurso, como “reflexo” histórico (verticalmente, um horizonte) de
uma realidade estrutural. A luta pela limitação da jornada de trabalho
é, de resto, lida e criticada como uma experiência (ver, por exemplo,
os textos em que Marx critica determinadas ações ou atitudes dos pro­
letários ingleses). Mas se o primeiro limite do discurso político se reflete
fora do espaço lógico, o segundo, o horizonte do socialismo, se reflete
no interior desse espaço, como horizonte de significação (verticalmente
como o solo primeiro, mas não fundante, das significações). De fato, a
leitura que Marx faz do capitalismo é uma reconstituição de suas leis
sobre o fundo de um universo de referência que o transcende. Para
além dos níveis da aparência e da essência (distinção que, para O
Capital, deve ser explicitada mas não abandonada) há um decifra-
mento mais profundo, em que a essência mesma da estrutura capita­
lista aparece como um objeto opaco. Esta justaposição das estruturas
objetivas e de um horizonte (não um fundamento) significativo que as
ilumina, parece ser o segredo dos chamados textos antropológicos
MARX: LÓGICA E POLÍTICA 233

de O Capital, nos quais o althusserismo enxerga apenas sobrevivências


de uma fase anterior. Eles representam, na verdade, a cifra da histo­
ricidade de O Capital, no interior do seu espaço lógico, e estabelecem a
articulação desse espaço com o tempo histórico: Enquanto, na obra da
juventude, o lógico e o histórico (o espaço de uma filosofia da história)
se articulavam pelo centro do espaço lógico, já que o fundamento
teórico era, ao mesmo tempo, um fundamento prático, aqui a arti­
culação faz-se pela periferia, se dá nos limites do espaço lógico, onde se
situa a “antropologia” . Do jovem ao velho Marx temos, assim, não o
desaparecimento de um discurso mas a sua descentração (que de
qualquer modo é essencial). Não ter definido com rigor esse desloca­
mento — o que tornou possível interpretá-lo, do ponto de vista lógico
—, não obstante as referências às “ sobrevivências históricas” , ou por
isso mesmo, como um desaparecimento puro e simples, é talvez a insu­
ficiência maior do althusserismo.

NOTAS

(*) Sobre o sentido e o lugar desse texto, ver a introdução. O texto tinha sido
ligeiramente modificado em 1972, por ocasião de sua primeira publicação na América
Latina, em Cuadernos de la Realidad Nacional, Universidade Católica de Chile, San­
tiago, n? 14, outubro de 1972. Reproduzimos aqui essa versão de 1972, com bem raras
adições, assinaladas por parênteses.
(1) A expressão, usada num contexto um pouco diferente, é, se não me engano,
de J. Rancière, L ’idée critique chez le jeune Marx (inédito).
(2) Elas representam um princípio prático, porque são o ponto de partida logi­
camente necessário da crítica de toda ação e da ação ela mesma. Parecem merecer o
nome de “fundamento”, fundamento prático, porque, ao contrário do que ocorrerá
com os "princípios da ação” na obra da maturidade, são princípios primeiros. Como se
verá, elas não pressupõem nenhuma real interiorização histórica. A história não fornece
mais do que as condições para a sua eclosão e exteriorização. — Esta posição em face
da história justificaria também (numa linha terminológica aproximadamente hegeliana)
a denominação "transcendental”, que mais adiante se lhes dará.
(3) Nos Manuscritos, os fundamentos práticos se apresentam, assim, em distin­
tos níveis de consciência. Mas pelas razões expostas, essa distinção de níveis (cujo
hegelianismo é mais aparente do que real) nao compromete a natureza a-histórica ou
trans-histórica dos princípios.
(4) Enquanto visadas “práticas”, na critica (teórica) da economia política, o
objeto é essencialmente a natureza humana na sua forma atual.
(5) “O comunismo põe o positivo como negação da negação, ele é, pois, o mo­
mento real (wirkliche) da emancipação e da retomada de si do homem, momento
necessário para o desenvolvimento próximo da História. O comunismo é a forma neces­
sária e o princípio energético do futuro próximo, mas o comunismo não é, enquanto
tal, o objetivo do desenvolvimento humano — a forma da sociedade humana” (Manus-
234 RUY FAUSTO

critos de 44, trad. franc. de Bottigelli, p. 99; original, Ed. Rororo, Texte zu Methode
undPraxisII, p. 86) grifos nossos.
(6) “Para abolir a idéia da propriedade privada, o comunismo pensado basta intei­
ramente. Para abolir a propriedade privada real, é necessária uma ação comunista real.
A história a trará e este, num movimento que, em pensamento, já sabemos que se
suprime a si mesmo, passará na realidade por um processo muito rude e muito extenso.
Mas devemos considerar como um progresso real que, desde o inicio, tenhamos adqui­
rido urna consciencia tanto da limitação como do objetivo do movimento histórico, e
urna consciencia que o ultrapassa” (idem, Bottigeili, p. 107; Rororo, p. 93), grifos
nossos. .
(7) E em que o Sujeito (filosófico) é, portanto, o principio motor.
(8) Essa caractejfeação do Sujeito é parcial. Como se verá indiretamente, a
fusão na obra de maturidade entre o teórico e o dirigente só é essencial (como o papel
de Sujeito que se atribui ao partido só é válido) para certo tipo de discurso. — A
teoria do partido está fora dos limites deste texto.
(9) A mí:sr¡!." coisa ocorrerá no que se refere aos capitalistas. Nos Manuscritos,
a associação dos capitalistas, por nascer de um universo de dispersão, tem alguma coisa
de um pacto. Em O Capital, ela nasce do soló aglutinador do processo de equalização
da taxa de lucro.
(10) Plenamente tematizável enquanto discurso filosófico. Não há utopia polí­
tica na obra de juventude de Marx. A “plenitude” da tematização deve ser entendida
relativamente ao discurso sobre o futuro imediato. (Ver nota 11)
(11) A visada do Sujeito nao tem mais como centro de referência o futuro lon­
gínquo (antropologia) mas o futuro “próximo” (tática e estratégia). Esta visada do
futuro próximo prolonga por sua vez uma retrospecção histórica.
(12) Sobretodo porque ele privilegia a questão(da teoría marxista da história e da
política, em detrimento da questão) mais geral do conhecimento histórico-político e de
seus níveis, no interior do marxismo.
(13) As indicações dos althusserianos sobre a teoria da prática inspiram-se em
Que Fazer?. (Ver a esse respeito o artigo de Jean-Paul Dollé “Du gauchisme à l’huma-
nisme socialiste” in Les Temps Modemesv abril de 66). Ã medida que aquele texto
serviu a urna crítica do hegelianismo, deixamos para o final desse tópico, onde se
tratará de Hegel, as referências a respeito. — A simples possibilidade de uma teoria da
história e de uma teoria da prática — convém observar — não é em si mesma um
argumento em fávor do althusserismo; é aliás na região dessas teorias que se situa este
texto. O que importa é o tipo de relação que elas estabelecem entre o discurso teórico (e
portanto tambény entre elas mesmas e a História). Conviria precisar: a teoria da his­
tória a que me ifefiro só pode ser uma teoria filosófica do conhecimento histórico da
História, do mesmo nivel da teoria filosófica da (sobre a) teoria “pura" da história que
oferece O Capital, e a distinguir das teorias científicas correspondentes (“puras” ou
históricas) e dos discursos histórico-(políticos) concretos. Algo a respeito, em forma
muito sucinta, na continuação do texto. Em geral, trato só de dois níveis: o da teoria
“pura” de O Capital e o dos discursos concretos.
(14) A rigor haveria uma terceira hipótese: a de que eles seriam “ materiais”
semi-elabórados para uma “história” (Lire Le Capital, I, p. 147, cito sempre a pri­
meira edição). Essa caracterização, mesmo se verdadeira, não poderia, entretanto,
eludir o problema da natureza do discurso histórico marxista.
(15) Essa crítica não se confunde com a crítica de essência reflexiva (não hege-
liana) que faz o Sujeito nos Manuscritos.
(16) Continuidade que não exclui a descontinuidade.
(17) Ver sobretudo em O Estado e a Revolução o uso que se faz da noção de
experiência. — Ã noção de experiência corresponde a noção complementar de tarefa,
que conviria analisar mais de perto.
(18) Ver Prefácio (ou antes, a Introdução) à Fenomenología.
MARX: LÖGICA E POLITICA 235

(19) A propósito, caberia uma referência às famosas teses de Que Fazer? sobre
a introdução, de fora do proletariado, da consciência revolucionária, à medida que
os althusserianos as utilizam para mostrar o caráter radicalmente anti-hegeliano da
teoria marxista da prática. Uma discussão mais profunda dependeria de uma análise
prévia do tipo de conhecimento — bem diverso do de O Estado e a Revolução — que
nos oferece esse livro. — Resumidamente: a questão das relações entre a consciência
“econômica” e a consciência política (revolucionária) deveria ser distinguida mais rigo­
rosamente do problema das relações entre teoria e prática revolucionária. Os dois pro­
blemas não são evidentemente idênticos nem mesmo convergentes. Uma observação
sobre cada um deles: 1) Se de fato a recusa em admitir a possibilidade de uma
passagem espontânea da consciência econômica à consciência política implica o aban­
dono de qualquer esquema finalista, a relação entre os dois níveis — já que a luta
econômica se integra numa prática política que a incorpora e a modifica (a “supera”?)
— é mais hegeliana do que espinosista. 2) Conforme o que se diz no texto, o problema
da relação teoria-prática não parece solúvel, se não se distinguirem no marxismo dife­
rentes formas de conhecimento, e também de teoricidade. A relação com a prática de
uma teoria como a da revolução permanente de Trotski, por exemplo, sua “histori­
cidade”, não se confunde com a da teoria de 0 Capital. Só a primeira é epistemoló­
gicamente inseparável de certas éxperiências do proletariado. Sobre as duas questões
subsiste o problema histórico de saber até que ponto as teses de Que Fazer?, ou a
interpretação que usualmente se lhes dá, correspondem ao que se poderia considerar
como a posição leninista. Lenin cerca de certas reservas o emprego de algumas de suas
fórmulas. (Ver Lenin, Obras Escolhidas, esp. I, 215, Que Faire?, ed. franc. Seuil,
p. 135) Segundo Trotski — em sua biografia de Stalin, Cap. III — Lenin teria aban­
donado mais tarde as teses de Que Fazer?, que Trotski reputa “unilaterais e portanto
falsas”.
(20) À medida que os discursos histórico-políticos pressupõem uma intèrioriza-
ção em profundidade, a história atual não é certamente o seu limite extremo. Mas ela o
é, não obstante, no sentido de que, enquanto campo da prática, só ela representa, a
rigor, o solo dç cada discurso prático.
2

Notas sobre o jovem Marx1

A obra do jovem Marx ficou um pouco esquecida depois da crí­


tica althusseriana e também da crise do althusserismo. Ela oferece,
entretanto, um interesse considerável. Por um lado, ela se sitúa certa-
mente aquém do marxismo, mas ao mesmo tempo — pelo menos no
que se refere a alguns dos textos do jovem Marx, e de uma forma que
não é simples —, ela nos conduz além do marxismo. Nós nos limita­
remos aqui a alguns pontos sobretudo históricos.

a) Sobte os Manuscritos de 1844


O que é preciso ressaltar, a propósito dos Manuscritos de 1844,
é que, se por um lado eles representam um discurso diferente de O Ca­
pital, nem por isso eles se situam no interior de um universo simples­
mente antropológico ou humanista. Na realidade, passou-se muito
rapidamente do continuismo entre o jovem Marx e o velho Marx à idéia
de um jovem Marx essencialmente feuerbachiano.2
Õ discurso dos Manuscritos não se confunde com o de O Capital.
Mas daí não se deve concluir que só se trata de um discurso morali­
zante e antropológico.
Em pHmeiro lugar, é preciso dizer que os Manuscritos... repre­
sentam mais uma antropologia negativa do que uma antropologia
positiva — o que já é diferente. O fundamento antropológico nos
Manuscritos é menos o homem do que o homem alienado. Isto não nos
remete ao velho Marx, mas representa uma diferença importante em
relação à antropologia feuerbachiana. Diríamos que para passar dos
Manuscritos ao universo do velho Marx, é necessário pôr {setzen)
a “negação” do homem enquanto "negação”, ou, se se quiser, é pre­
ciso “negar” o próprio homem “negado” : isto representa sem dúvida
uma mudança fundamental. Mas o que se perde de vista, freqüente­
mente, é a idéia de que o homem “negado” está nos Manuscritos com o
que isto significa: nos Manuscritos temos sem dúvida o homem: antro­
pologia, mas “negado” , antropologia negativa.
Essa negação da antropologia no interior da antropologia — uma
outra maneira de dizer a mesma coisa — se efetiva na crítica da
antropologia (ou do antropologismo) de Feuerbach a partir de Hegel,
à qual corresponde uma espécie de reabilitação da racionalidade da
MARX: LÓGICA E POLITICA 237

economia política a partir de Hegel igualmente. Os que nos apresentam


um jovem Marx só feuerbachiano no essencial3esquecem vários textos
para justificar as suas teses, como se o universo dos Manuscritos de 44
fosse idêntico ao das notas sobre James Mill, escritas entretanto, prova­
velmente, muito pouco tempo antes dos Manuscritos .4
Assim, se de Feuerbach ao jovem Marx se passa da antropologia
positiva à antropologia negativa, essa operação é solidária de uma
crítica da antropologia de Feuerbach a partir de Hegel, de uma espécie
de reabilitação da economia política a partir de Hegel. Vejamos mais
de perto esses dois pontos, que estão ligados um ao outro.
A crítica da antropologia feuerbachiana se faz pela introdução da
idéia de que a história do homem não é uma verdadeira história, mas
uma história natural do homem, uma história da gênese do homem.
Se se ler esta operação de um modo vulgar, como em geral é o caso,
ela aparece como uma banal “historicização” do homem. Na reali­
dade, uma operação como esta põe em cheque — num primeiro mo­
mento — a antropologia. Com efeito, se se afirma que a história não é
mais do que pré-história do homem, o homem não está lá: perde-se
então o direito de falar do homem. Tal é a contradição dos Manus­
critos. Mas eles não vão mais longe, e supõem que a antropologia
negativa é uma resposta a esta dificuldade. Deve-se observar, no plano
histórico, que a idéia da história enquanto história natural deve muito
a Moses Hess (ver, entre outras coisas, “Über das Geldwesen” in Hess,
Philosophische und Sozialistische Schriften, Berlim, Akademie Verlag,
1961, pp. 39 e segs. E um texto em que ele discute precisamente essa
diferença: “Fortschritt und Entwicklung” , p. 281 da mesma coletâ­
nea).
Eis aqui os principais textos dos Manuscritos sobre o problema.
Esses textos são bem conhecidos, mas se reflete pouco sobre as suas
implicações (implicações que, sé não estão postas nos Manuscritos,
estão “lá” como implicações pressupostas): “Mas considerando a nega­
ção da negação — segundo a relação positiva que existe nela, como o
verdadeiro e único positivo, segundo a relação negativa que se encontra
nela, como o único ato verdadeiro e ato de manifestação de si (Selbst­
betätigung)i de todo ser, Hegel só encontrou a expressão abstrata,
lógica, especulativa para o movimento da história, a qual ainda não é
história efetivamente real do homem enquanto sujeito pressuposto,
mas somente ato de engendramento (Erzeugungsakt), história do nas­
cimento (Entstehungsgeschichte) do homem” .5 “E como tudo o que é
natural deve nascer, o homem tem também o seu ato de nascimento,
a história, que entretanto é para ele uma história conhecida (gewusste)
e por isso enquanto ato de nascimento, ato de nascimento que se
suprime conscientemente (mit Bewusstsein). A história é a verdadeira
história natural do homem” .6 “ Mas como para o homem socialista
toda a assim chamada história universal nada màis é do que o engen-
238 RUYFAUSTO

dramento do homem pelo trabalho humano, do que o devir da natureza


para o homem, ele tem assim a prova intuitiva, irrefutável, da sua
nascença através de si mesmo, do seu processo de nascimento.''1 Esses
textos representam uma espécie de ruptura com a antropologia, mas
que finalmente vai se resolver em antropologia negativa. Se a história
só é historia do nascimento do homem, com que direito se pode tomar o
homem como fundamento — mesmo se ele é o homem “negado” ?
Adorno já observava que o espirito hegeliano tal como o retomam
os Manuscritos8 representava o trabalho social, o que significa: o
espirito hegeliano aparece nos Manuscritos como uma determinação
qye põe em cheque a idéia de urna historia que seria historia do
homem.9
Mas o hegelianismo dos Manuscritos aparece ao mesmo tempo
(trata-se de uma outra face da mesma coisa) como uma espécie de
reabilitação da racionalidade da economia política. Nos últimos tem­
pos, insistiu-se a tal ponto sobre o moralismo dos Manuscritos que a
leitura de certos textos se tornou impossível. E entretanto se lê nos
Manuscritos-. “Assim, o senhor Michel Chevalier acusa Ricardo de
fazer abstração da moral. Mas Ricardo deixa a economia política falar
a sua própria língua. Se ela não fala moralmente isto não é culpa de
Ricardo. M. Chevalier faz abstração da economia política, na medida
em que ele moraliza, mas ele abstrai necessária e efetivamente da
moral, na medida em que faz economia política. A relação da econo­
mia política com a moral, se por outro lado ela não for arbitrária,
acidental e em conseqüência não fundada e não científica, se ela não
for exibida pela aparência, mas (ao contrário) se for visada como
essencial, só pode ser, sem dúvida, a relação das leis da economia
política com a moral; se ela não se verifica — ou antes, se o contrário se
verifica — que pode (fazer) Ricardo? De resto a oposição entre a
economia política e a moral é também só uma aparência, fi assim como
ela é uma oposição, de novo ela não é nenhuma. A economia política
exprime à sua maneara as leis morais” .10 “Grande progresso de Ri­
cardo, Mili etc. diante de Smith e Say, que eles declarem a existência
(Dasein) do homem — a maior ou menor produtividade humana da
mercadoria — como indiferente e mesmo prejudicial. (Que) a verda­
deira finalidade da produção seja não quantos operários um capital
mantém, mas quanto juro ele produz, a soma das economias anuais.
Foi igualmente um grande e conseqüente progresso da economia polí­
tica inglesa moderna, que ela — que eleva o trabalho (fazendo dele)
o princípio único da economia política — tenha explicado ao mesmo
tempo com plena clareza a relação inversa (que existe) entre o salá­
rio (do trabalho) e o juro do capital, e que o capitalista em regra
(geral) só possa ganhar pela redução do salário e vice-versa. Que não a
exploração (übervorteilen) do consumidor, mas a exploração recíproca
do capitalista e do operário seja a relação normal.”11 Eis aí um texto
MARX: LÖGICA E POLITICA 239

um pouco difícil de ser lido se se supuser que os Manuscritos repre­


sentam pura e simplesmente um discurso humanista. E ainda: “Não só
o cinismo da economia política cresce relativamente de Smith — pas­
sando por Say — até Ricardo, Mili etc., na medida em que as conse­
qüências da indústria (Industrie) aparecem (vor die Augen treten) aos
últimos (como) mais desenvolvidas e mais cheias de contradição, mas
também positivamente eles vão sempre e conscientemente mais longe
do que os seus predecessores na alienação em relação ao homem, mas
somente porque sua ciência se desenvolve de um modo mais conse­
qüente e mais verdadeiro. Fazendo da propriedade privada, na sua
configuração ativa, o sujeito, e fazendo ao mesmo tempo do homem a
essência e do homem como não-essência ( Unwesen) a essência, a con­
tradição da realidade efetiva corresponde assim plenamente à essência
cheia de contradição que eles reconheceram como princípio. Longe de
refutá-lo, a realidade dilacerada {Die zerrissene Wirklichkeit) da in­
dústria confirma o princípio em si dilacerado da ciência deles. Com
efeito, o princípio deles é o princípio desse dilaceramento” .12 No movi­
mento desse último texto, estamos realmente no limite extremo da
antropologia (negativa). A contradição do sujeito aparece como ver­
dade porque o real é contraditório. Se a não-essência se tornou essência
no objeto, o discurso da não-essência é o discurso da essência. A pressu­
posição do homem já está “lá” , mas como pressuposição pressuposta,
porque na realidade o homem é posto mesmo se sob uma forma
negativa. Só falta pôr como pressuposição esta pressuposição pressu­
posta do homem.
É bem evidente que se um discurso como esse não se confunde
com o de O Capital, ele é coisa bem diferente do discurso feuerba-
chiano. E ele dá lugar, negativamente — embora negando estas condi­
ções pois ele se cristaliza, por um lado pelo menos, em antropologia ne­
gativa —, para um discurso como o de O Capital, em que o homem é
efetivamente “negado” . O reconhecimento da irracionalidade da eco­
nomia como discurso irracional de uma realidade irracional (portanto
como discurso racional pois adequado ao real) é evidentemente a
contrapartida dos movimentos que descrevemos anteriormente. O dis­
curso do não-homem — mas que finalmente, ou por um lado, aparece
como discurso do homem-negado (da antropologia negativa) — ganha
legitimidade, e aparece como um discurso quase-crítico.
Essas mutações na relação com a antropologia e com o discurso
econômico aparecem finalmente, num plano mais geral, nos textos
sobre a passagem do pensamento ao ser, sobre o argumento ontológico.
Sabemos que Feuerbach aceitava a posição de Kant a propósito desse
problema.13 No jovem Marx, o dinheiro aparece como aquilo que
permite a passagem do pensamento ao ser. Por exemplo: “A demanda
(demande) existe também para aquele que não tem dinheiro, mas a sua
demanda é uma pura essência (Wesen) da representação, que não tem
240 RUY FAUSTO

nenhum efeito, nenhuma existência (Existenz) sobre mim, sobre um


terceiro, sobre os outros, (e) assim para mim mesmo permanece irreal
(unwirklich) e sem objeto. A diferença entre a demanda efetiva (effek-
tiven) baseada no dinheiro e a demanda sem efeito, baseada na minha
necessidade, na minha paixão, no meu desejo etc., é a diferença entre
ser e pensar, entre a representação que existe (existierenden) simples­
mente em mim e a representação tal como ela é para mim como objeto
efetivamente real (wirklicher Gegenstand) fora de mim” .14 Ver tam­
bém o texto sobre o argumento ontológico nos materiais para a tese de
doutoramento de Marx, que citamos no final da segunda parte (di­
gressão) do texto “Abstração real e Contradição: sobre o Trabalho
abstrato e o valor” , neste tomo.
A importância desses textos está no fato de que Marx tenta se
distanciar de Feuerbach a partir da análise do objeto econômico. Esse
objeto não é sem dúvida o capital — a análise do capital como Sujeito
está, na realidade, ausente dos Manuscritos —- mas é o dinheiro. A re­
lação Deus/dinheiro já havia sido analisada, mas Marx tira de lá
conseqüências lógicas novas. E é importante assinalar que, embora
Hegel tenha feito uma análise crítica da economia política, ele recusa o
exemplo de Kant (os cem talers) como um mau exemplo: cem talers
não são um conceito. Marx mostra nos textos dos materiais para a tese
de doutoramento, que por aí se poderia, entretanto, passar do pensa­
mento ao ser. Entretanto, a passagem se faz no texto antes acentuando
a subjetividade do dinheiro do que a relação posição-determinação, isto
é, a objetivação do conceito de dinheiro. Ver a esse respeito as nossas
observações, no texto referido.

b) Sobre os textos dos Anais Franco-Alemães


Limitamo-nos aqui a apresentar algumas idéias sobre “A Propó­
sito da Questão Judaica” (Zur Judenfrage) e sobre a “Contribuição à
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Introdução” (Zur Kritik der
Hegelschen Rechtsphilqsophie, Einleitung).
O que é importante nesses textos é o desenvolvimento de deter­
minações contraditórias. Assim, a tese central de “A Propósito da
Questão Judaica” é que o Estado religioso é o Estado que não tem
religião. A religião só existe como universal concreto. E o universal
concreto elimina aqui radicalmente toda forma de particularização. Só
há Estado religioso se toda religião (particular) desaparecer da repre­
sentação do Estado. Isto faz pensar no Dezoito Brumário de Luís
Bonaparte (a burguesia domina lá onde ela não domina, lá onde o seu
poder é “negado”), mas o universo das duas obras é na realidade dife­
rente. O interesse dessas determinações está, como dissemos, na con­
tradição que elas contêm, no fato não só de que há universalidade
concreta (isto se encontra também em Feuerbach), mas também que
MARX: LÖGICA E POLITICA 241

esta universalidade é posta, aqui, pela contradição ou pela negação:


“(...) o Estado cristão consumado (vollendete) não é assim o chamado
Estado cristão, o que reconhece o cristianismo como sua base, como
religião de Estado e se comporta de maneira exclusiva em relação às
outras religiões; é antes o Estado ateu, o Estado democrático (...)” .
“A forma acabada ( Vollendung) do Estado cristão é o Estado que se
reconhece como Estado e faz abstração da religião de seus membros.” 15
Na “Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,
Introdução” , há um movimento que não deixa de ter analogia com o
que acabamos de descrever. Poderíamos enunciá-lo da seguinte forma:
o Estado mais atrasado é (em certo sentido) o Estado mais avançado
(porque, como se sabe, o texto anuncia a possibilidade da revolução na
Alemanha por causa do atraso da Alemanha). “Que se considere em
primeiro lugar os governos alemães, e se constatará que eles são impul­
sionados pelas circunstâncias, pela situação da Alemanha, pelo lugar
em que se situa (Standpunkt) a cultura alemã, e finalmente pelo ins­
tinto feliz que lhes é próprio de combinar os defeitos civilizados do
mundo político (Staatswelt) moderno, cujas vantagens não possuímos,
com os defeitos bárbaros do antigo regime, de que gozamos em plena
medida (in vollem Masse), e assim a Alemanha deve participar cada
vez mais se não na razão (Verstand) pelo menos na desrazão ( Unver-
stand) também das formações políticas (Staatsbildungen) que se si­
tuam além do seu statu quo. (...) (...) Assim como no Panteón romano
se encontravam os deuses de todas as nações, no Santo Império Ro­
mano Germânico se encontram os pecados de todas as formas de
Estado. (...) (...) A Alemanha enquanto defeito do presente político
constituído num mundo próprio não poderá derrubar as barreiras
especificamente alemãs sem derrubar as barreiras do presente político.
/ Não é a revolução radical que constitui um sonho utópico para a
Alemanha, não é a emancipação (em forma) geral humana (allgemein
menschliche Emanzipation), mas antes a revolução parcial, somente
política, a revolução que deixa subsistir os pilares da casa.” 16
Aqui a contradição se situa no nível do tempo: o recuo histórico
aparece coincidindo com um salto no futuro. Tem-se uma represen­
tação do tempo que rompe com a representação “aufklãrer” de Feuer-
bach. Mas não desenvolveremos aqui o movimento geral do texto nem a
sua relação com a “Questão Judaica” .

c) Sobre a Crítica do Direito do Estado de Hegel


O sentido geral da crítica que Marx faz de Hegel nesse texto é
bem conhecido. Trata-se de questionar o que, parafraseando uma
expressão célebre, poderíamos chamar de “lógica do objeto qualquer” .
Trata-se, em resumo — sempre num primeiro plano — de umk crítica
do formalismo dialético. Uma crítica que, observemos, em termos
242 RUYFAUSTO

gerais, vai na mesma direção daquela que fazia Hegel à dialética de


Schelling (por exemplo, no prefácio da Fenomenología do Espírito).
No fundo trata-se de questionar uma relação entre a lógica e as ciências
filosóficas particulares, que em vez de ser uma relação de pressupo­
sição — como deveria ser do próprio ponto de vista de Hegel — passa a
ser uma relação de fundação (ou a relação de um “sistema teórico abs­
trato” a um “modelo”). Citemos os textos: “As proposições: Este orga­
nismo é (citações de Hegel) ‘o desenvolvimento da idéia até as suas
diferenças e até a realidade objetiva (objektiven Wirklichkeit) delas’ ou
até as diferenças pelas quais ‘o universal’ (o universal é aqui a mesma
coisa que a idéia) ‘se conserva continuadamente e, na realidade, sendo
elas determinadas pela natureza do conceito, se produz de um modo
necessário, e sendo pressuposto do mesmo modo à sua produção, se
conserva (essas proposições) são idênticas. A última é simplesmente
uma explicação mais precisa sobre ‘o desenvolvimento da idéia até as
suas diferenças’. Com isso, Hegel não deu nenhum passo além do con­
ceito universal ‘da idéia’ e no máximo do ‘organismo’ em geral (pois
propriamente só se trata dessa idéia determinada). Assim, o que lhe dá
o direito de (escrever como) proposição final: ‘Esse organismo é a cons­
tituição política?’ Por que não: ‘Esse organismo é o sistema solar’?” 17
E o texto bem conhecido, que teoriza sobre as análises de detalhe:
“O conteúdo concreto, a determinação efetivamente real aparece como
formal; a determinação totalmente abstrata da forma aparece como
conteúdo concreto. A essência das determinações do Estado não está
em que elas (sejam) determinações do Estado mas em que elas possam
ser consideradas na sua figura abstrata como determinações lógico-
metafísicas. Não é a filosofia do direito mas a lógica o verdadeiro
interesse. O trabalho filosófico não é que o pensar se corporifica em
determinações políticas, mas que as determinações políticas existentes
se volatilizem em pensamentos abstratos. Não é a lógica da coisa
(Logik der Sache) mas a causa da lógica (Sache der Logik) que é o
momento filosófico. A lógica não serve como prova do Estado, mas (é)
o Estado (que) serve como prova da lógica” .18
E entretanto, é bem evidente que a crítica que Marx faz aqui a
Hegel fica aquém senão da posição da abstração real em geral, pelo
menos da abstração que se tomou Sujeito. Tomemos como exemplo os
textos sobre a soberania (textos que Rancière havia analisado, à sua
maneira, em LireLe Capital:19 “A existência (Existenz) do predicado é
o sujeito: assim o sujeito (é) a existência da subjetividade etc. Hegel
autonomiza os predicados dos objetos, mas ele os autonomiza separa­
dos da sua autonomia efetivamente real, do seu sujeito. Depois do que,
o sujeito efetivamente real aparece então como resultado, em vez de
partir do sujeito efetivamente real e considerar a sua objetivação. Por
isso a substância mística se toma sujeito efetivamente real, e o sujeito
real (reelle) aparece como um outro, como um momento da substância
MARX: LÓGICA E POLITICA 243

mística” . Marx continua: “Precisamente porque Hegel parte dos predi­


cados da determinação geral em vez de partir do Ens real (reellen Ens)
(hypokeimenon, Sujeito) e que sem dúvida é preciso que haja um
suporte desta determinação, a idéia mística se torna esse suporte.
Ê este o dualismo: que Hegel não considere o universal como a essência
real do real-finito, isto é, do existente (Existierenden), ou que ele não
considere o ens real efetivamente (wirkliche) como o verdadeiro sujeito
do infinito” . Do que decorre para a “soberania” : “É assim que a
soberania, a essência do Estado, considerada de inicio como uma essên­
cia autônoma, se objetiviza. Então, se compreende, este algo objetivo
(dies Objektive) deve se tom ar de novo sujeito. Mas esse sujeito aparece
então como uma autopersonificação da soberania, ao passo que a
soberania nada mais é o do que o espirito objetivado dos sujeitos do
Estado” .20
Vemos que Marx critica Hegel porque este supõe a existência de
um sujeito autônomo de que os indivíduos são portadores. O que,
guardadas outras diferenças, ele mesmo suporia mais tarde, ao escre­
ver O Capital. Analisada mais de perto, a Crítica do Direito do Estado
de Hegel aparece assim não (ou não só) como a crítica do formalismo
dialético, mas como a crítica da própria dialética. Crítica do pensa­
mento que estabelece a posição de abstrações reais que se tomam autô­
nomas. Vimos que mesmo os Manuscritos, pelo menos em geral, não
chegam a pensar o Sujeito, o capital; eles ficam no nível da abstração
dinheiro.
A Crítica do Direito do Estado de Hegel aparece assim de uma
forma bem diferente daquela que ela revela quando não se aprofunda a
análise da crítica do formalismo dialético.
Entretanto, também no velho Marx se encontra uma crítica do
formalismo dialético. Apesar da diferença fundamental que separa a
dialética de O Capital do discurso da Crítica do Direito do Estado de
Hegel (diferença para a qual aponta o aspecto que foi desenvolvido nos
parágrafos anteriores) não se poderia relacionar as duas críticas do
formalismo? Ê um problema a ser estudado. Problema que não é sem
importância para analisar a relação Marx-Hegel. O que não significa
que se deva pensar essa relação a partir da obra de juventude: a obra de
juventude nos ajuda a pensá-la por caminhos indiretos. De qualquer
modo, poderíamos lembrar aqui os textos em que o “velho” Marx faz a
crítica do formalismo dialético. Nós nos limitamos aqui a alguns desses
textos. Por um lado, no posfácio à Contribuição à Crítica da Economia
Política (Introdução de 57), fazendo a crítica de todo discurso geral
sobre a produção, a circulação e a distribuição (na realidade, é esse o
sentido desse texto, em geral mal compreendido), Marx escreve: “Nada
mais simples então, para um hegeliano, do que pôr (setzen) a produção
e o consumo como idênticos” .21 A crítica pode parecer injusta porque a
dialética hegeliana (contra Schelling) visa assimilar efetivamente o
244 RUYFAUSTO

conteúdo particular da coisa. E entretanto, é possível que, apesar dela


mesma, ele tenha caído num formalismo como este. Nesse sentido, o
texto poderia se justificar. A crítica não vale contra a dialética hege-
liana considerada para si, mas ela é talvez válida para a dialética
hegeliana considerada em si. Num texto de O Capital (livro III), depois
de ter feito a crítica do desenvolvimento da propriedade privada na
Filosofia do Direito de Hegel, Marx escreve: “E uma confissão extraor­
dinariamente ingénua ‘do conceito’ e prova que o conceito que desde o
início comete o erro (Schnitzer) de considerar como absoluta uma
representação jurídica totalmente determinada, e pertencente à socie­
dade civil burguesa, da propriedade privada, não compreende ‘nada’
das figuras efetivamente reais dessa propriedade (...)” .22 Nesse texto
há sem dúvida uma crítica do conteúdo da concepção hegeliana da
propriedade fundiária (conteúdo que não discutimos aqui). Mas ao
mesmo tempo, a referência irônica ao “conceito” insinua uma crítica
de forma: o “conceito” não compreende nada do que é efetivamente
real. O “conceito” deixa escapar o real. A crítica do formalismo
dialético desponta aqui. É possível encontrar outros textos na obra de
Marx que vão no mesmo sentido. Determinar que forma toma a crítica
do formalismo dialético em Marx, crítica do formalismo dialético feita
em nome da dialética — porque formalismo e dialética se excluem em
si, mas não para si23 — é o caminho para mostrar rigorosamente a
diferença entre as duas dialéticas. O que sem dúvida não foi feito até
aqui.
A relação entre os diferentes aspectos da obra do jovem Marx,
a análise das diferenças entre essas obras, a faremos no tomo II desse
trabalho. Tentaremos também analisar de uma maneira mais profunda
esse grande laboratório de pensamento que é a obra do jovem Marx
(a expressão é, parece, de Althusser), laboratório que opera na mas
também sobre a antropologia, e do qual sai não o universo de O Capi­
tal, mas o da “negação” da antropologia: “negação” que entretanto
está posta não como “negação” , mas como o seu contrário (pelo menos
em geral) como homem-“negado” . A obra do jovem Marx é primeira­
mente antropologia, em segundo lugar antropologia negativa, o seu
limite é a “negação” antropologia.

NOTAS

(1) Sobre esse texto, ver a introdução. Como indicamos na introdução, o dese
volvimento dessas idéias sobre o jovem Marx, já feito oralmente em várias ocasiões, virá
no tomo II deste trabalho. Esse desenvolvimento fará parte de uma análise da pré-
MARX: LÖGICA E POLITICA 245

história da dialética (de Marx), no nível da política, da filosofia e da economia. Nessa


análise terão um lugar importante os críticos pré-marxistas da economia política:
Hodgskin, Ravenstone etc. Ver a esse respeito nosso texto “Sobre o Jovem Marx”,
publicado no número 13 de Discurso, São Paulo, Polis, 1983.
(2) É a dificuldade principal, do ponto de vista histórico, das Origens da Dia­
lética do Trabalho, de Giannotti. Nesse ponto, Althusser tinha uma opinião, no fundo,
mais correta, quando se referia aos Manuscritos como a um texto em que se encontra ao
mesmo tempo Feuerbach e Hegel. Mas como para ele o velho Marx não tem, de fato,
ou pelo menos de direito, nada de hegeliano, o juízo sobre a obra do jovem Marx é, por
um outro caminho, igualmente falseado.
(3) Ê, como dissemos, o caso das Origens da Dialética do Trabalho. Como nos
referimos freqüentemente a Giannotti (em particular às Origens da Dialética do Tra­
balho) no curso deste tomo, é talvez o caso de dizer o que pensamos desse livro.
O livro de Giannotti tem o mérito de tomar como noção central a diferença entre
pressuposição e posição. Mas na diferença entre pressuposição e posição há ao mesmo
tempo a idéia da diferença entre o implícito e o explícito, e a da diferença entre um
discurso anterior e externo e um discurso substantivo: o conceito de pressuposição/
posição indicando a diferença entre o implícito e o explícito está certamente presente
nas teorizações de Giannotti, mas freqüentemente, no desenvolvimento e sobretudo na
discussão do antropologismo, ele acentua mais o outro lado (discurso externo/discurso
interno), o quelimita às vezes o alcance da sua análise.
Cremos nos separar do livro de Giannotti em três pontos, na realidade relacio­
nados. O primeiro remete aos problemas históricos relativos à leitura do jovem Marx,
desenvolvidos (em parte) neste apêndice. Os dois outros — na realidade mais impor­
tantes — poderiam ser resumidos da seguinte maneira:
1) Por um lado, a leitura de O Capital que faz Giannotti está centrada nas
secções anteriores à reprodução. Isto nSo deve explicar-se só pelo fato de que o livro
representa o inicio de um trabalho, mas corresponde a algo mais profundo, mesmo se
textos posteriores de Giannotti tocam no problema da reprodução. A leitura de Marx
que faz Giannotti acentua, pois, uma parte de O Capital em que o intercâmbio entre o
capitalista e o operário é ainda uma troca (apesar de o capitalista obter a mais-valia).
Ora, se acentuarmos esse ponto, esquecendo mais ou menos a teoria da reprodução,
limita-se muito o alcance da crítica de Marx à economia política, e, do ponto de vista
lógico, fica-se finalmente aquém da contradição. Com efeito — no que se refere ao
primeiro ponto —, corre-se o risco de cair numa posição que pode ser interpretada
como uma espécie de apologia do sistema (sabe-se que o marxismo serviu às vezes para
fazer a apologia do sistema capitalista). De resto, se não se desenvolver a interversão,
e é o que ocorre em Giannotti, não há um pcráto em que se possa introduzir a política.
Pelo menos, não há ponto satisfatório. Do ponto de vista lógico, isto se reflete num tipo
de apresentação em que está sem dúvida presente a noção de pressuposição — é o seu
grande mérito — mas onde a contradição, se não está ausente, não é realmente apre­
sentada de uma forma rigorosa.
2) Esse ponto ultrapassa a discussão da leitura de Marx. A crítica que Giannotti
dirige ao jovem Marx, fora a questão da sua verdade histórica (discutida neste apên­
dice) tem certas implicações no que se refere à crítica do capitalismo contemporâneo.
Giannotti critica o caráter subjetivo da teoria das necessidades do jovem Marx. Esta­
mos de acordo com ele no que se refere à fundação subjetiva das necessidades. Mas
seria preciso insistir sobre o fato de que é a fundação subjetiva da crítica das neces­
sidades que é criticável, não, digamos, o nível subjetivo do seu objeto. Explicamo-nos.
Se, por um lado, o capitalismo'contemporâneo nos afasta mais do jovem Marx, no
sentido de que a própria subjetividade, naquilo que ela tem de mais profundo, é, agora,
interiormente determinada (as necessidades são produzidas), por outro lado, os textos
do jovem Marx têm o mérito de haver tematizado mais do que as obras de maturidade
(salvo alguns textos dos Grundrissé), a determinação infinita das necessidades. Vemos
que o defeito dos Manuscritos não é o de ter acentuado a subjetividade: no capitalismo
246 RUY FAUSTO

contemporâneo, as relações de produção, se se pode dizer assim, passam pelo interior


da subjetividade (de uma maneira que não é a da determinação simples da subjetivi­
dade dos agentes enquanto suportes). Â insuficiência dos Manuscritos é a de fundar
pela subjetividade. Ora, se é verdade que Giannotti critica somente a antropologia
fundante e não toda antropologia (mas aqui não se trata desse problema, mas de um
outro que é mais atual), ele não acentua o interesse e a modernidade de uma temati-
zação — mesmo se com uma fundação subjetiva — (mais desenvolvida do que nos
textos de maturidade) da subjetividade. O resultado é uma critica um pouco clássica
demais, que (desse ponto de vista) corre o risco de levar a crer — o que é absolutamente
falso atualmente — que a determinação do sistema se faz somente por uma subjeti­
vidade externa (ou externa relativamente à nova forma), a que é definida pela função
de suporte, e não interiormente, pelas necessidades etc. (Pensar-se-ia, por exemplo,
dessa perspectiva, que os grandes improdutivos estão ligados ao sistema simplesmente
porque eles recebem uma parte da inais-valia, o que não é verdade. Eles estão ligados a
ele por suas necessidades, por seus desejos etc.) Isto, que é fundamental para a crítica
contemporânea, é em certo sentido mais visível — porque os Manuscritos tematizam
mais o nível subjetivo — partindo dos Manuscritos do que de O Capital. Embora, num
outro sentido, isto seja mais visível a partir de O Capital: O Capital dá os fundamentos
objetivos dessa subjetividade que, entretanto, se tornou ela própria objetiva.
As três observações críticas que fazemos ao livro e em geral aos textos de
Giannotti estão ligadas. N6s nos explicaremos em outro lugar sobre o seu encadeamento.
Não acreditamos que seja necessário, para terminar, insistir sobre os méritos do livro de
Giannotti, assinalados no início. Ver também o artigo referido, em Discurso, n? 13,
1983.
(4) Ver Werke, Ergänzungsband, Erster Teil, Dietz, 1968, pp. 445 e segs.
(5) W., Ergänzungsband, Erster Teil, op. eit., p. 570; Manuscrits de 1844,
trad. franc., apresentação e notas de E. Bottigelli, p. 128, grifado por Marx.
(6) W ., Ergänzungsband, op. cit., p. 579; Manuscrits de 1844, op. cit., p. 138.
(7) W ., Ergänzungsband, Erster Teil, op. cit., p. 546; Manuscrits de 1844, op.
cit., p. 99.
(8) Ver Theodor W. Adorno, Trois Êtudes sur Hegel, trad. franc. pelo semi­
nário de tradução do Collège de Philosophie, Paris, Payot, 1979, pp. 25-26.
(9) Nos seus cursos na Ecole des Hautes Êtudes de Paris nos anos 60, Marcuse
atacava a crítica de Hegel pelo jovem Marx, no que se refere a esta frase — “Q único
trabalho que Hegel conhece e reconhece é o trabalho abstrato espiritual". (W., Ergän­
zungsband, op. cit., Erster Teil, p. 574; Manuscrits de 1844, op. cit., p. 133, grifado
por Marx) E entretanto: “O trabalho teórico, cada dia me convenço um pouco mais,
realiza (bringt... zustande) mais coisas no mundo do que o trabalho prático; uma vez
revolucionado o reino da representação, a realidade efetiva não se sustém mais (hält
nicht an)". (Hegel, carta a Niethamer de 28.10,08, Briefe..., I, Leipzig, ed. K. Hegel,
1887, p. 194, citado por Karl Löwith, De Hegel à Nietzsche, trad. franc. de R. Lau-
reillard, Paris, Gallimard, 1969, p. 62, n. 3)
(10) W., Ergänzungsband, Erster Teil, op. cit., p. 551; Manuscrits de 1844, op.
cit., pp. 104-105, grifado por Marx.
(11) W., Ergänzungsband, Erster Teil, op. cit., p. 524; Manuscrits de 1844,
op. cit., p. 73 A tradução de Bottigelli atenua a distância do texto em relação a toda a
antropologia positiva.
(12) W. Ergänzungsband, Erster Teil, op. cit., p. 531; Manuscrits de 1844, op.
cit., p. 81, grifado por Marx.
(13) Por exemplo: “Como se sabe, Kant afirmou, na sua crítica da existência
(Dasein) de Deus, que não se pode provar racionalmente a existência (Dasein) de Deus.
Kant não mereceria, por isso, o reproche que lhe faz Hegel. Pelo contrário, Kant tinha
plenamente razão: de um conceito não posso deduzir a existência (Existenz)". (L.
Feuerbach, Das Wesen des Christentums, Stuttgart, Reclam, 1971, p. 306, trad. franc.
de J.-P. Osier com a colaboração de J.-P. Grossein, Paris, 1968, p. 349)
MARX: LÓGICA E POLÍTICA 247

(14) W., Ergânzungsband, ErsterTeil, op. cit., pp. 565-566; Manuscrits..., op.
cit., p. 122, grifado por Marx. Lembremos também do texto “a lógica (é) o dinheiro do
espírito (...)”. (W., Ergânzungsband, op. cit., p. 571, Manuscrits de 1844, op. cit.,
p. 130) Todo o problema do equilíbrio “instável” dos Manuscritos está nesta frase. A
crítica do dinheiro é paralela à da lógica: as duas abstrações se correspondem etc. Eis
aí uma primeira direção, a mais imediata, para a interpretação. Mas, ao mesmo
tempo, essa lógica paralela ao dinheiro não seria a mais apta para pensar o dinheiro
(não seria a lógica do dinheiro)? Reflexões como esta não estão sem dúvida no texto dos
Manuscritos-, mas elas não estão absolutamente ausentes. Na realidade, elas estão
pressupostas.
(15) W.I, op. cit., p. 357-361, “Ã propos de la Question Juive”, ed. bilíngüe
(alemão-francês), trad. de M. Simon, com uma introdução de François Châtelet, Paris,
Aubier-Montaigne, 1971, pp. 83 e 95, grifado por Marx.
(16) W.I, pp. 387-388, op. cit., Critique de la Philosophie du Droit de Hegel,
introduction, ed. bilíngüe, trad. franc. de M. Simon, prefácio de F. Châtelet, Paris,
Aubier-Montaigne, 1971, pp. 87, 89 e 91.
(17) W.I, op. cit., p. 212; Critique du droit politique hégêlien, trad. franc. e
introdução de A. Baraquin, Êd. Sociales, 1975, p. 46, grifado por Marx.
(18) W.I, op. cit., p. 216; Critique du droit politique hégélien, op. cit., p. 51.
(19) O texto de Rancière em Lire Le Capital (III, Paris, Maspero, 1973) a
despeito do seu envoltório althusseriano é um texto importante.
(20) W.I, op. cit., pp. 224-225; Critique du droit politique hégélien, op. cit.,
p. 60, grifado por Marx.
(21) Grundrisse, op. cit., p. 15; Manuscrits de 1857-1858 (“Grundrisse”) I, op.
cit., p. 28.
(22) W.25, K. III, op. cit., pp. 628-629, n. 26; Oeuvres, Économie, II, op. cit.
p. 1287.
(23) O formalismo é de certo modo a “maldição” da dialética. A questão ia
dialética poderia ainda uma vez ser posta da seguinte forma: como dialetizar o ob'eto
sem com isso cair numa “dialética” formal. Tal é (depois do próprio Hegel) no p mto
de partida, o problema de Marx.

Você também pode gostar