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Nelson Carvalho Marcellino | org.

estudos do

A
\ /

A coleção Estudos do Lazer destina-se a publicar x


pesquisas, relatos de experiência e propostas de
atividades embasadas teoricamente que envolvam a
manifestação humana lazer, seus diversos conteúdos
culturais, nas suas relações com a sociedade,
incluindo políticas de intervenção, com ênfase na
realidade brasileira.

LAZER 4
E SOCIEDADE
MÚLTIPLAS RELAÇÕES

www.atomoealinea.com.br
V I S I T E N O S S O W E B S I T F,
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ISBN 978-85-751.6 3
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i e s t u d o s do
O conteúdo desta obra vem sendo aplicado
nas disciplinas de Sociologia do Lazer e Lazer e
Sociedade, em cursos de Ciências Humanas,
Administração, Turismo, Educação Física,
específicos da área, dentre outros.
Tem como objetivo fornecer elementos para
a compreensão das relações possíveis entre a
manifestação humana Lazer e aquelas

Lazer
ocorridas nas áreas das obrigações como o
trabalho, a família, a educação e a religião, bem
como suas vinculações com aspectos sociais
importantes como saúde, inserção social, e
relações interpessoais, abordando questões
como fases da vida, gênero e qualidade de vida.
O lazer, cada vez mais, ganha, na e sociedade
sociedade contemporânea, status de direito
social e importante elemento de inserção social.
múltiplas relações
É uma manifestação ligada ao prazer, à saúde, à
qualidade de vida e é fundamental na organizador

construção da cidadania. Nelson Carvalho Marcellino


Pela amplitude e complexidade da temática,
tal empreendimento não poderia ficar sob a
responsabilidade de um único autor. E, por isso,
estendemos o convite a um grupo de pesqui-
sadores, de diferentes áreas, para darem, cada
um a partir do seu campo de atuação, suas
contribuições. As matrizes teóricas dos
trabalhos também são diferenciadas, o que
poderá fornecer aos leitores uma gama variada
de tendências na abordagem das questões
referentes ao lazer em relação à sociedade.
Alínea
E D I T O R A
A
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Alínea

DIRETOR GERAL
Wilon Mazalla Jr.
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Willian F. Mighíon
COORDENAÇÃO DE REVISÃO
Helena Moysés
REVISÃO DE TEXTOS
Vera Luciana Morandim R. da Silva
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Fábio Cyrino Mortari
Fábio Diego da Silva
Tatiane de Lima
Warsten Mazalla
CAPA
Ivan Grilo Conselho Editorial
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Prof. ür. Edmur Antônio Stoppa - USP
Lazer e sociedade: múltiplas relações / Prof. ür. Helder Ferreira Isayama - UF1V1G
organizador Nelson Carvalho Marcellino. - -
Campinas, SP: Editora Alínea, 2008. - - Prof. ura. Maria Cristina Rosa - UFOP
(Coleção estudos do lazer)
Prof. ür. Nelson Carvalho IVlarcellino - UN1MEP
Bibliografia
Prof. ür. Ricardo Ricci Uvinha - USP
1. Lazer 2. Turismo 3. Turismo - Aspectos Prof. ür. Victor Andrade de Melo - UFRJ
sociais 1. Marcellino, Nelson Carvalho.
II. Título. III. Série.

08-07681 CDD -306.3

índices para Catálogo Sistemático


1. Sociologia do turismo 306.3

ISBN 978-85-7516-283-5

Todos os direitos reservados à

Editora Alínea
Rua Tiradentes, 1053 - Guanabara - Campinas-SP
CEP 13023-191 - PABX: (19) 3232.9340 e 3232.2319
www.atomoealinea.com.br

Impresso no Brasil
SUMARIO

Apresentação 7

Capítulo l
Lazer e Sociedade: algumas aproximações / 11
Nelson Carvalho Marcellino

Capítulo 2 v
Trabalho e Gestão de Pessoas:
o que lazer tem a ver com isso? 27
Valquíría Padilha

Capítulo 3
Lazer e Educação: desafios da atualidade 45
Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto

Capítulo 4
Lazer e Religião: algumas aproximações 63
Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel

Capítulo 5
O Lugar da Família nas Políticas de Lazer 83
Patrícia Zingoni

Capítulo 6
Lazer e Saúde: a sociedade e o social 105
Yara M. Carvalho
Capítulo 7
Estrutura Política Excludente,
Práticas Culturais Normalizadoras,
Políticas de Alívio à Pobreza: o lazer em questão. .121
Flávia Faissal de Souza
APRESEMTAÇÃO
Capitulo 8
Gênero e Lazer: um binômio instigante. .139
Tânia Mara Vieira Sampaio

Capítulo 9 O entendimento do lazer de modo isolado, sem considerar as


O Lazer e as Fases da Vida. .155 mútuas influências que podem ocorrer, e certamente ocorrem, com
Hélder Ferreira Isayama as várias esferas da vida social, tem provocado uma série de
Christianne Luce Gomes equívocos quando se estuda a questão. Quanto mais complexa se
toma a sociedade, maiores são as necessidades de inter-relações
Capítulo 10 entre os vários componentes da vida social para o seu
Lazer e Qualidade de Vida: a corporeidade autônoma. .175 entendimento. Não é diferente no caso do lazer, que guarda estreitas
Wagner Wey Moreira ligações com o terreno das ações sociais ligadas ao campo das
Regina Simões obrigações por exemplo, e, na nossa sociedade, historicamente
situada, podemos dizer que o trabalho é a principal delas.
Sobre os Autores 193 Embora não exista um consenso entre os vários autores que
estudam o assunto, a maioria concorda que o período de
consolidação dos processos de industrialização/urbanização é o
que marca com contornos mais nítidos os campos das obrigações,
sobretudo do trabalho e do lazer. É nesse cenário que devemos
entender o lazer, tal como se apresenta aos nossos olhos na vida
social contemporânea.
A observação da prática do lazer na sociedade contemporânea é
marcada por fortes componentes de produtividade. Valoriza-se a
performance, o produto e não o processo de vivência que lhe dá
origem; estimula-se a prática compulsória de atividades denotadoras
de moda ou status. Além disso, o caráter social requerido pela
produtividade confina e adia o prazer para depois do expediente, fins
de semana, períodos de férias ou, mais drasticamente, para a
aposentadoria.
No entanto, isso tudo não nos permite ignorar a ocorrência
historie? do lazer, inclusive como conquista da classe trabalhadora.
O lazer é uma problemática tipicamente urbana, característica vinculações com aspectos sociais importantes como a saúde, a
das grandes cidades, porém ultrapassa suas "fronteiras", uma vez que inserção social e as relações interpessoais, abordando questões
os grandes centros urbanos levam essa problemática com as mesmas como fases da vida, gênero e qualidade de vida.
características, por meio da mídia, para outras regiões do país, nem tão Pela amplitude e complexidade da temática, tal empreendimento
grandes, nem tão urbanizadas. não poderia ficar sob a responsabilidade de um único autor. E, para isso,
Entender o lazer como um campo específico de atividade, em estendemos o convite a um grupo de pesquisadores, de diferentes áreas,
estreita relação com as demais áreas de atuação humana, não para darem, cada um a partir do seu campo de atuação, suas
significa deixar de considerar os processos de alienação que contribuições. As matrizes teóricas dos trabalhos também são
ocorrem em quaisquer dessas áreas. Entender o lazer como espaço diferenciadas, o que poderá fornecer aos leitores uma gama variada de
privilegiado para manifestação do lúdico, na nossa sociedade, não tendências na abordagem das questões referentes ao Lazer em relação à
significa absolutizá-lo ou, menos ainda, considerá-lo como único. Sociedade.
A meu ver, esse entendimento parece ser uma postura que contribui O conteúdo da obra vem sendo trabalhado nas disciplinas
para abrir possibilidades de alteração do quadro atual da vida Sociologia do Lazer e Lazer e Sociedade, em cursos de Ciências
social, tendo em vista a realização humana, a partir de mudanças no Humanas, Administração, Turismo, Educação Física e específicos
plano cultural. da área, entre outros.
Entretanto as transformações sociais não afetaram somente as Esperamos que este livro possa contribuir com o debate.
relações trabalho x lazer, mas também as outras esferas de atuação
humana como a família, a religião, a educação, que sofreram e sofrem
transformações profundas e rápidas com a vida moderna.
Por outro lado, é preciso ter presente que a prática das O organizador
atividades de lazer não é fruída da mesma forma pelos diferentes
segmentos da sociedade. Sempre tendo como pano de fundo as
condições socioeconômicas, podemos verificar a existência de um
todo inibidor para o seu desenvolvimento, constituído de barreiras
interclasses sociais (econômicas, sociais, de instrução), e intraclasses
sociais (faixa etária, gênero, violência, acesso a equipamentos,
estereótipos e outras).
Longe de constituir uma manifestação supérflua, o lazer cada
vez mais ganha seu status de direito social, e seu papel privilegiado,
porque ligado ao prazer, de elemento importante de qualidade de
vida, e de construção de cidadania, de saúde, em sentido amplo e de
inserção social.
O objetivo deste livro é fornecer elementos para a
compreensão das relações possíveis entre a manifestação humana
Lazer e aquelas ocorridas nas áreas das obrigações como o
Trabalho, a Família, a Educação e a Religião, bem como suas
Capítulo 1

LAZER E SOCIEDADE
Algumas aproximações

Nelson Carvalho Marcellino

Quando se trabalha, dentro de uma mesma área, por mais de


três décadas, é praticamente impossível estabelecer novas relações
dentro dela, sem recorrer a trabalhos anteriores, sob pena, de não o
explicitando, faltar à verdade com aqueles quem nos lêem ou ouvem.
Dessa forma, correndo sempre riscos, e o que aqui se apresenta é o de
ser repetitivo, vou retomar, nesta fala, as conclusões de minha
dissertação de mestrado (Marcellino, 2004) e da tese de doutorado
(Marcellino, 2005) e, a partir delas, estabelecer algumas relações,
entre lazer e sociedade.
Ainda julgo ser necessário, nos meus escritos e falas,
explicitar o conceito de lazer, com o qual trabalho, para evitar mal
entendidos na sua discussão. Cada vez que o faço, acrescento novas
explicações, em decorrência de questionamentos que recebo, por
ocasião de suas colocações.
Muitas vezes o que constato é que se busca uma definição.
No entanto, trabalho com um conceito operacional do lazer
historicamente situado.
Deve-se salientar que, se originalmente lazer e recreação
apresentavam-se de forma distinta - o primeiro visto como o
tempo quando a segunda ocorria -, hoje, a recreação é um
componente do lazer - criar de novo, dar vida nova, com novo
vigor, como pode ser, também, de outras esferas de manifestação
humana (Dumazedier, s/d.).
12 Nelson Carvalho Marcellino La/er e Sociedade 13

Dessa perspectiva, a consideração da recreação/lazer, cada vez 4) Portador de um duplo aspecto educativo - veículo e objeto de
mais em nossa sociedade, deve levar em conta os seguintes pontos: ducação, considerando-se, assim, não apenas suas possibilidades de
1) Cultura vivenciada (praticada, fruída ou conhecida), no descanso e divertimento, mas também de desenvolvimento pessoal e
tempo disponível das obrigações profissionais, escolares, familiares, social.
E aqui não se está negando o descanso e o divertimento, mas
sociais, combinando os aspectos tempo e atitude.
simplesmente enfatizando a dimensão menos considerada do lazer,
Digo, do concreto da sociedade contemporânea - como é, e
a de desenvolvimento que o seu vivenciar pode ensejar.
não do devir - como deveria ser, inclusive numa sociedade que eu
Volto a repetir, como em outros escritos, que o lazer é
próprio considere mais justa.
entendido, portanto, como a cultura, compreendida em seu sentido
Quando me refiro à cultura, não estou reduzindo lazer a um mais amplo, vivenciada no tempo disponível. É fundamental como
único conteúdo, vendo-o a partir de uma visão parcial, como traço definidor o caráter "desinteressado" dessa vivência. Ou seja, não
geralmente ocorre quando se utiliza a palavra 'cultura', quase sempre se busca, pelo menos basicamente, outra recompensa além da
restringindo-a aos conteúdos artísticos, mas aqui abordando os satisfação provocada pela própria situação. A disponibilidade de
diversos conteúdos culturais. tempo significa possibilidade de opção pela atividade ou pelo ócio
E, finalmente, quando digo vivenciada, não estou restringindo o (Marcellino, 2004).
lazer à prática de uma atividade, mas também ao conhecimento e à É importante ressaltar, também, que o entendimento do lazer
assistência que essas atividades podem ensejar, e até mesmo à não pode ser efetuado "em si mesmo", mas como uma das esferas de
possibilidade do ócio, desde que visto como opção, e nem confundido a Ison Carvalho Marcellinos ituada. Outras opções implicariam a
com ociosidade, sem contraponto com a esfera das obrigações, no colocação apenas parcial e abstrata das questões relativas ao lazer.
nosso caso, fundamentalmente, a obrigação profissional; É impossível, por exemplo, abordar as questões do lazer isoladas
2) O lazer gerado historicamente e dele podendo emergir, de das questões do trabalho, da educação etc.
modo dialético, valores questionadores da sociedade como um A polêmica verificada quanto ao conceito permanece quando
todo, e sobre ele também sendo exercidas influências da estrutura se examina a questão da ocorrência do lazer na vida social, do ponto
social vigente. de vista histórico. Alguns autores consideram que, se os homens
A relação que se estabelece entre lazer e sociedade é dialética, sempre trabalharam, também paravam de trabalhar, existindo assim
ou seja, a mesma sociedade que o gerou, e exerce influências sobre o um tempo de não-trabalho, e que esse tempo seria ocupado por
seu desenvolvimento também pode ser por ele questionada, na atividades de lazer, mesmo nas sociedades tradicionais. Para outros,
vivência de seus valores; o lazer é fruto da sociedade moderna urbano-industrial.
Não há, a rigor, um caráter de rejeição entre as duas correntes,
3) Um tempo que pode ser privilegiado para vivência de
mas sim enfoques diferentes. A primeira aborda a necessidade de
valores que contribuam para mudanças de ordem moral e cultural,
lazer, sempre presente, e a segunda se detém nas características que
necessárias para solapar a estrutura social vigente.
essa necessidade assume na sociedade moderna. Assim, o lazer
A vivência desses valores pode se dar numa perspectiva de
sempre existiu, variando apenas os conceitos sobre o que era e quais
reprodução da estrutura vigente, ou da sua denúncia e anúncio -
os seus significados.
pela vivência de valores diferentes dos dominantes - imaginar e Em outros tipos de organização social, o que se verifica é o não
querer vivenciar uma sociedade diferenciada; isolamento das atividades obrigatórias, das lúdicas, o que de modo
14 Nelson Carvalho Marcellino Lazer e Sociedade 15

algum significa a não existência do lúdico. E mais ainda, o que não nos atacados por uma política que objetive a democratização do lazer
permite prever se essa divisão, verificada atualmente na sociedade (Marcellino, 2006).
moderna, urbano-industrial, permanecerá efetivamente ou não. Democratizar o lazer implica democratizar o espaço. Muito
Entender o lazer como um campo específico de atividade, em embora as pesquisas realizadas na área das atividades desenvolvidas
estreita relação com as demais áreas de atuação do homem, não no tempo disponível enfatizem a atração exercida pelo tipo de
significa deixar de considerar os processos de alienação que ocorrem equipamento construído, deve-se considerar que, para a efetivação
em quaisquer dessas áreas. Entender o lazer como espaço privilegiado das características do lazer, é necessário, antes de tudo, que ao tempo
para manifestação do lúdico na nossa sociedade não significa disponível corresponda um espaço disponível. E se a questão for
absolutizá-lo ou, menos ainda, considerá-lo como único. A meu ver, colocada em termos da vida diária da maioria da população, não há
esse entendimento parece ser uma postura que contribui para abrir como fugir do fato: o espaço para o lazer é o espaço urbano.
possibilidades de alteração do quadro atual da vida social, tendo em Se procedermos à relação lazer/espaço urbano, verificaremos
vista a realização humana, a partir de mudanças no plano cultural. uma série de descompasses, derivados da natureza do crescimento das
O fator econômico é determinante desde a distribuição do tempo nossas cidades, relativamente recente, e caracterizado pela aceleração
disponível entre as classes sociais, até as oportunidades de acesso à e imediatismo. O aumento da população urbana não foi acompanhado
escola, e contribui para uma apropriação desigual do lazer. São as pelo desenvolvimento de infra-estrutura adequada, gerando desníveis
chamadas barreiras interclasses sociais. Sempre tendo como pano de na ocupação do solo e diferenciando marcadamente, de um lado, as
fundo esse fator econômico, podemos distinguir uma série de aspectos áreas centrais, ou os chamados pólos nobres, concentradores de
que inibem e dificultam a prática do lazer, fazendo com que se constitua benefícios, e de outro a periferia, com seus bolsões de pobreza,
em privilégio. São chamadas de barreiras intra-classes sociais. verdadeiros depósitos de habitações. Mesmo quando nesses espaços
Uma delas é o gênero e, nesse aspecto, as mulheres são desfa- estão localizados equipamentos tais como shopping centers, a
vorecidas comparativamente aos homens, ou pela rotina do traba- população local, geralmente, não tem acesso privilegiado a eles.
lho doméstico, ou pela dupla jornada de trabalho e, principalmente, Constata-se, principalmente, a centralização de equipamentos
pelas obrigações familiares decorrentes do casamento, numa socie- específicos (teatros, cinemas, bibliotecas etc.),1 ou a sua localização
dade que, apesar dos avanços nesse sentido, continua machista. em espaços para públicos segmentados, o ar de "santuário" de que
Outra delas é a faixa etária. Aqui as crianças e os idosos são ainda se revestem um bom número deles e as dificuldades para
os esquecidos. A criança, por não ter ainda entrado no "mercado utilização de equipamentos não-específicos - o próprio lar, bares,
produtivo", não é considerada como a faixa etária que deve ser escolas etc.
vivenciada, mas apenas como uma etapa de preparação para o
futuro. O idoso, por já ter saído do mesmo "mercado", também tem Requixa (1980) enfatiza a necessidade de integração, dentro de uma política de
dificuldades de participação nas atividades de lazer. lazer, de equipamentos privados e públicos, de um lado, e de outro, de
Além disso, no plano cultural, uma série de preconceitos equipamentos específicos e não-específicos. Como equipamento não-específico
entende os que, em sua origem, não foram construídos para a prática das
restringe a prática do lazer aos mais habilitados, aos mais jovens e atividades de lazer, mas que depois tiveram sua destinação específica alterada,
aos que se enquadram nos padrões estabelecidos de "normalidade". de forma parcial ou total, criando-se espaços para aquelas atividades. O autor
Dessa forma, a classe social, o nível de instrução, a faixa coloca que hoje os espaços das cidades precisam ser aproveitados de modo a se
tornarem polivalentes Entre esses equipamentos não específicos estão: o lar, a
etária, o gênero, entre outros fatores, limitam as oportunidades de rua, o bar, a escola etc. Já os equipamentos específicos são construídos com essa
prática do lazer. São indicadores indesejáveis e necessitam ser finalidade, podendo ser classificados pelo tamanho, atendimento aos conteúdos
culturais ou outros critérios.
16 Nelson Carvalho Marcellino Lazer e Sociedade 17

Essa situação é agravada sobretudo se considerarmos que, cada estética. Em nome da economia e da funcionalidade, muito se tem
vez mais, as camadas mais pobres da população vêm sendo expulsas feito "enfeiando" a paisagem urbana.
para a periferia e, portanto, afastadas dos serviços e dos equipamentos Mas, não somente a urbanização é regida pelos interesses
específicos; justamente as pessoas que não podem contar com as imediatistas do lucro. A visão utilitarista do espaço é determinante
mínimas condições para a prática do lazer em suas residências e para também nos processos de renovação urbana, ou seja, nas modificações
quem o transporte adicional, além de economicamente inviável, é do espaço já urbanizado, ditadas pelas transformações verificadas nas
muito desgastante. Nesse processo, cada vez menos encontramos relações sociais. Além da alteração da paisagem, fato mais facilmente
locais para os folguedos infantis, para o futebol de várzea, ou que observado e que, pela ausência de critérios, geralmente contribui para
sirvam como pontos de encontro de comunidades locais. a descaracterização do patrimônio ambiental urbano e a conseqüente
Assim, aos espaços destinados ao lazer pouco restou. O lazer perda das ligações afetivas entre o morador e o hábitat, há diminuição
também passou a ser visto pelos grandes investidores como uma dos equipamentos coletivos e o aumento do percurso casa/trabalho,
mercadoria. enfim, o favorecimento de pequenos grupos sociais em detrimento dos
antigos moradores.
Há muito a cidade deixou de ser basicamente um espaço
É relativamente recente a preocupação com os efeitos nocivos
público, neutro, sem querer chamar a atenção. A própria
causados pelo processo de urbanização crescente para a estrutura de
cidade é um produto a ser vendido para o desenvolvimento
nossas cidades. A ação predatória, motivada pelos interesses
de atividades lucrativas (Sassen, 2000, p. 120).
imediatistas, ocasiona problemas muito sérios, que afetam a qualidade
É preciso que o poder municipal entenda a importância dos de vida e o lazer das populações, contribuindo com a violência e a falta
espaços urbanos de lazer nas cidades, antes que empresas os transfor- de segurança, inclusive.
mem em produtos acessíveis somente a classes sociais mais altas. Todas as pesquisas dão conta de que a grande maioria da
Se o lazer é colocado pela sociedade capitalista enquanto um população desenvolve suas atividades de lazer, prioritariamente, no
momento de consumo, o espaço para o lazer também é visto como um ambiente doméstico. O lar é o principal equipamento não específico
espaço para o consumo. A constituição dos núcleos é primordialmente de lazer, ou seja, um espaço não construído de modo particular para
assentada em interesses econômicos. Foram e são concebidos como locais essa função, mas que eventualmente pode cumpri-la. Nessa mesma
de produção, ou de consumo (Marcellino, 2006, p. 25). Dessa forma, categoria figuram os bares, as ruas, as escolas etc.
também os equipamentos de lazer, os espaços de convívio, seguem Quanto ao lar, ainda que possa oferecer condições satisfatórias
uma tendência à privatização, incluindo aí as áreas verdes que, como o para uma minoria de privilegiados, constitui um dos poucos
próprio lazer, passam a ser "mercadorias". equipamentos, disponíveis para grandes parcelas da população,
Somos partidários da opinião de que a bela cidade constitui o "empurradas" para dentro de suas casas, no tempo disponível para o
equipamento mais apropriado para que o lazer possa se desenvolver. lazer. Exatamente essas pessoas são as que menos têm condições para
É aí onde se localizam os grandes contingentes da população, que a o desenvolvimento de lazer nas suas habitações. O espaço é exíguo,
produção cultural pode ser devidamente estimulada e veiculada, quer se considerem as áreas construídas, ou os quintais e áreas abertas
atingindo um público significativo. coletivas, quando existem. Na maioria de nossas cidades há favelados
O crescimento desordenado, a especulação imobiliária, enfim, em barracos e também nas favelas de alvenaria, formadas pelas
uma série de fatores vem contribuindo para que o quadro das nossas autoconstruções de fins de semana, ou pelos cubículos dos programas
cidades não seja dos mais promissores, quer na defesa de espaços, de habitação popular.
quer em termos da paisagem urbana, quando se fala da contemplação
18 Nelson Carvalho Marcellino
Lazer e Sociedade 19

No que diz respeito aos bares, muito preconceito ainda existe,


nosso, com alto déficit habitacional, e que deve estimular
ligado ao consumo de bebidas alcoólicas. Por via de regra, o bar vem alternativas criativas em termos de áreas coletivas;
perdendo a sua característica de ponto de encontro, muito embora
2. A consideração da necessidade da utilização dos equipa-
algumas iniciativas ocorram, no sentido de sua transformação em mentos para o lazer, por meio de uma política de animação;
espaço alternativo para outras atividades, como exposições,
3. A preservação de espaços urbanizados "vazios".
lançamentos de livros, músicas ao vivo etc. A maioria dessas iniciativas
fica restrita aos chamados "barzinhos" e cafés freqüentados por jovens, Se o espaço para o lazer é privilégio de poucos, todo o esforço
quase que na totalidade estudantes. Os tradicionais "botequins", onde se para a sua democratização não pode depender unicamente da
"jogava conversa fora", são substituídos, nas áreas "nobres", pelas construção de equipamentos específicos. Eles são importantes e sua
lanchonetes, onde o consumo rápido desestimula a convivência. proliferação é uma necessidade que deve ser atendida. Mas a ação
As escolas contam com grandes possibilidades para o lazer, democratizadora precisa abranger a conservação dos equipamentos já
em termos de espaço, nos vários campos de interesse: quadras, existentes, sua divulgação, "dessacralização", e incentivo à utilização,
pátios, auditórios, salas etc. Deve-se considerar, ainda, seus períodos com políticas específicas, e preservação do patrimônio ambiental
de ociosidade, em férias e fins de semana, e a existência de vínculos urbano (Marcellino, 2006).
com a comunidade próxima. No entanto, a tão propalada "abertura Mesmo quando superados todos os entraves para a participação
comunitária" desses equipamentos não vem se verificando, talvez da população em atividades realizadas nos equipamentos específicos e,
pelo temor dos riscos de depredação. Já tive oportunidade de particularmente, naqueles dirigidos às áreas de interesses intelectuais e
desenvolver atividades de lazer em escolas, em trabalhos artísticos, caso de bibliotecas, museus, galerias de arte, teatros etc.,
comunitários e, ao contrário do que se possa imaginar à primeira freqüentemente essa participação é dificultada e inibida pelo ar de
vista, uma ação bem realizada nesse sentido, só contribui para santuário de que se revestem as construções e sua sistemática de
aumentar o respeito das pessoas pelo equipamento, uma vez que, à utilização, principalmente, quando são mantidos pelo poder público.
medida que o utilizam, vão desenvolvendo sentimentos positivos, Talvez por nossa falta de tradição, fruto de uma história ainda
passando a colaborar na sua conservação. No entanto, o que se recente, e marcada por longo período de colonialismo, e ultimamente
verifica, na maioria das vezes, é a "abertura" desses equipamentos do consumismo das obras da indústria cultural que, em última análise,
apenas para "festas", cujo objetivo principal é a arrecadação de também representa uma forma de colonialismo, a necessidade de
fundos para a sua manutenção. preservação de bens culturais, até bem pouco tempo atrás, atingia um
Com relação às ruas, e mesmo que se considerem as praças, pequeno número de especialistas e cultores, os quais, não raro,
quase sempre são concebidas como locais de acesso, de passagem. adotavam atitudes que, aos olhos da maioria, assumiam características
Transitá-las é uma aventura. Algumas iniciativas são tomadas por de esnobismo.
grupos de moradores "fechando" espaços para festas juninas ou Outro fator deu uma parcela bastante significativa, nesse sentido:
"ruas de lazer". Mas são atitudes raras e efêmeras. a crença na impossibilidade de conciliar tradição e progresso, e a própria
A precariedade na utilização dos equipamentos não idéia do que seriam essa tradição e esse progresso.
específicos coloca-nos três questões igualmente importantes: Até bem pouco tempo era difundida uma falsa noção de
l. A necessidade de desenvolvimento de uma política habi- memória cultural, de sentido muito restrito e embebida na ideologia
tacional, que considere, entre outros aspectos, também o dominante. Essa noção estava ligada ao conceito clássico de
espaço para o lazer - o que não é fácil num país como o patrimônio histórico e artístico, tal como definido no decreto de
criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
18 Nelson Carvalho Marcellino
Lazer e Sociedade 19

No que diz respeito aos bares, muito preconceito ainda existe,


nosso, com alto déficit habitacional, e que deve estimular
ligado ao consumo de bebidas alcoólicas. Por via de regra, o bar vem
alternativas criativas em termos de áreas coletivas;
perdendo a sua característica de ponto de encontro, muito embora
2. A consideração da necessidade da utilização dos equipa-
algumas iniciativas ocorram, no sentido de sua transformação em
mentos para o lazer, por meio de uma política de animação;
espaço alternativo para outras atividades, como exposições,
3. A preservação de espaços urbanizados "vazios".
lançamentos de liwos, músicas ao vivo etc. A maioria dessas iniciativas
fica restrita aos chamados "barzinhos" e cafés freqüentados por jovens, Se o espaço para o lazer é privilégio de poucos, todo o esforço
quase que na totalidade estudantes. Os tradicionais "botequins", onde se para a sua democratização não pode depender unicamente da
"jogava conversa fora", são substituídos, nas áreas "nobres", pelas construção de equipamentos específicos. Eles são importantes e sua
lanchonetes, onde o consumo rápido desestimula a convivência. proliferação é uma necessidade que deve ser atendida. Mas a ação
As escolas contam com grandes possibilidades para o lazer, democratizadora precisa abranger a conservação dos equipamentos já
em termos de espaço, nos vários campos de interesse: quadras, existentes, sua divulgação, "dessacralização", e incentivo à utilização,
pátios, auditórios, salas etc. Deve-se considerar, ainda, seus períodos com políticas específicas, e preservação do patrimônio ambiental
de ociosidade, em férias e fins de semana, e a existência de vínculos urbano (Marcellino, 2006).
com a comunidade próxima. No entanto, a tão propalada "abertura Mesmo quando superados todos os entraves para a participação
comunitária" desses equipamentos não vem se verificando, talvez da população em atividades realizadas nos equipamentos específicos e,
pelo temor dos riscos de depredação. Já tive oportunidade de particularmente, naqueles dirigidos às áreas de interesses intelectuais e
desenvolver atividades de lazer em escolas, em trabalhos artísticos, caso de bibliotecas, museus, galerias de arte, teatros etc.,
comunitários e, ao contrário do que se possa imaginar à primeira freqüentemente essa participação é dificultada e inibida pelo ar de
vista, uma ação bem realizada nesse sentido, só contribui para santuário de que se revestem as construções e sua sistemática de
aumentar o respeito das pessoas pelo equipamento, uma vez que, à utilização, principalmente, quando são mantidos pelo poder público.
medida que o utilizam, vão desenvolvendo sentimentos positivos, Talvez por nossa falta de tradição, fruto de uma história ainda
passando a colaborar na sua conservação. No entanto, o que se recente, e marcada por longo período de colonialismo, e ultimamente
verifica, na maioria das vezes, é a "abertura" desses equipamentos do consumismo das obras da indústria cultural que, em última análise,
apenas para "festas", cujo objetivo principal é a arrecadação de também representa uma forma de colonialismo, a necessidade de
fundos para a sua manutenção. preservação de bens culturais, até bem pouco tempo atrás, atingia um
Com relação às ruas, e mesmo que se considerem as praças, pequeno número de especialistas e cultores, os quais, não raro,
quase sempre são concebidas como locais de acesso, de passagem. adotavam atitudes que, aos olhos da maioria, assumiam características
Transitá-las é uma aventura. Algumas iniciativas são tomadas por de esnobismo.
grupos de moradores "fechando" espaços para festas juninas ou Outro fator deu uma parcela bastante significativa, nesse sentido:
"ruas de lazer". Mas são atitudes raras e efêmeras. a crença na impossibilidade de conciliar tradição e progresso, e a própria
A precariedade na utilização dos equipamentos não idéia do que seriam essa tradição e esse progresso.
específicos coloca-nos três questões igualmente importantes: Até bem pouco tempo era difundida uma falsa noção de
l. A necessidade de desenvolvimento de uma política habi- memória cultural, de sentido muito restrito e embebida na ideologia
tacional, que considere, entre outros aspectos, também o dominante. Essa noção estava ligada ao conceito clássico de
espaço para o lazer - o que não é fácil num país como o patrimônio histórico e artístico, tal como definido no decreto de
criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
20 Nelson Carvalho Marcellino Lazer c Sociedade 21

Assim, o decreto-lei n. 25, no seu artigo l, definia como patrimônio Toda essa questão do acesso aos equipamentos e espaços de
artístico nacional o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no País lazer deve ser vista não somente no âmbito municipal, com a formação
e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a das chamadas Regiões Metropolitanas, em muitas áreas do país.
fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor O termo "megalópole" é usado principalmente para
arqueológico ou etnográfico ou artístico. designar um fenômeno preponderante contemporâneo.
Historicamente, entre estudiosos e instituições voltadas para Baseia-se na superposição e interpenetração de áreas
a preservação, nota-se uma ampliação gradativa da abrangência do metropolitanas anteriormente distintas, formando um setor
conceito, com a idéia de excepcionalidade dando lugar à noção de urbanizado contínuo. Onde havia cidades menores,
representatividade dos elementos a serem preservados. Dessa for- forma-se uma área urbanizada maior, na qual os centros
ma, evoluiu-se para o conceito de Patrimônio Ambiental Urbano, metropolitanos são as unidades básicas (Santini, 1993, p. 41).
constituído por espaços, que inclusive transcendem a obra isolada e Diante do novo quadro urbano que se desenha no país, com a
que caracterizam as cidades, pelo seu valor histórico, social, cultu- concentração das populações em regiões metropolitanas, e tendo em
ral, formal, técnico ou afetivo. vista que o lazer se configurou, historicamente, como uma
Congressos e seminários mais recentes vêm ampliando ainda problemática essencialmente urbana, é imperioso que se trabalhe em
mais a abrangência do conceito, incluindo usos e costumes. Para nós, políticas públicas na perspectiva dessas regiões-consórcios. É
importa destacar que, enquanto a primeira noção era baseada em impossível ficar restrito aos âmbitos municipais, inclusive com a série
atributos como a singularidade e a monumentalidade, o conceito mais de impactos que políticas de lazer podem trazer para regiões inteiras.
recente reconhece, inclusive, os elementos afetivos como critérios para A Pesquisa de Informações Básicas Municipais (IBGE, 2001)
a preservação. Dessa perspectiva, a participação comunitária é aponta que em quase metade da Região Metropolitana de Campinas.
fundamental para o conhecimento do valor do ambiente e da cultura, e (RMC) não há espaços culturais e de lazer construídos, embora o
para o incentivo a um comportamento destinado à preservação, à perfil apresentado para a região esteja acima da média brasileira em
valorização e à revitalização urbanas. oferta de serviços de lazer e cultura. Ainda assim, as cidades
O lazer pode contribuir, de forma prazerosa, no processo de periféricas da região conseguem ter algum serviço de qualidade em
valorização e preservação do patrimônio, desde que entendido da lazer, quando eles são da natureza, como lagos e cachoeiras. Mas,
perspectiva colocada anteriormente, e não como mero item da indústria mesmo aqueles mais democráticos, como parques, também são
cultural. Cumpre importante papel, também, na revitalização dos
muito pobres nas periferias. Dos municípios que integram a RMC
espaços e equipamentos. Assim, é muito importante a consideração dos
apenas um não tem clube ou associação recreativa e somente dois não
patrimônios artísticos, arquitetônicos e urbanísticos, que fazem parte da
têm estádio ou ginásio poliesportivo, mas a pesquisa constata a alta
memória das cidades como elementos de enriquecimento da paisagem
concentração dos serviços na cidade sede.
urbana. Esse Patrimônio Ambiental Urbano, desde que preservado e
Segundo Rinaldo Bárcia Fonseca, coordenador do Núcleo de
revitalizado, pode e deve se constituir em novos equipamentos
Economia Social, Urbana e Regional (Nesur), do Instituto de
específicos de lazer. Além disso, contribui de maneira significativa para
Economia, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
uma vivência mais rica da cidade, quebrando a monotonia dos
esses dados refletem o perfil tradicional das regiões metropolitanas,
conjuntos, estabelecendo pontos de referência e mesmo vínculos
que são caracterizadas por centro e periferia, onde a oferta de
afetivos. Outro aspecto, não menos importante, é que preservando-se a
serviços de qualidade está no centro (Costa, 2002).
identidade dos locais, pode-se manter e, até mesmo, aumentar o
potencial turístico de nossas cidades.
22 Nelson Carvalho Marcellino

Partimos do pressuposto de que o que ocorria antes com a


r Lazer e Sociedade

o entende como gerado historicamente e do qual emergem


23

concentração dos equipamentos de lazer, no centro das cidades, e valores questionadores da sociedade como um todo, e sobre
que, com o decorrer do processo de urbanização e especulação o qual são exercidas influências da estrutura social vigente.
imobiliária, deslocou-se para outras áreas urbanizadas, hoje se dá Assim, a admissão da importância do lazer, na vida moderna,
com relação ao centro de regiões metropolitanas, em relação às significa considerá-lo como um tempo privilegiado para a
cidades periféricas, dificultando o acesso da população. vivência de valores que contribuam para mudanças de ordem
Mesmo para os municípios sede das regiões metropolitanas, moral e cultural. Mudanças necessárias para a implantação de
onde há mais facilidade de acesso aos equipamentos, é preciso uma nova ordem social (Marcellino, 2004, p. 41).
verificar o grau de :'sacralização" de que muitas vezes eles são Mas é preciso que se fale de uma visão crítica "míope",
revestidos, como fatores inibidores, do seu efetivo uso democrático também, que contribui para a manutenção do status quo que tenta
por parte da população. criticar, uma vez que leva ao imobilismo. Trata-se de uma visão
Por outro lado, ao examinar as relações Lazer e sociedade, é crítica fechada e cínica, como alguns estudiosos pregam: "Lazer e
preciso verificar quais as ideologias que sustentam as diferentes capitalismo são incompatíveis", "A felicidade não está nem no
abordagens da questão. Comecei a estudar o assunto, por ocasião do trabalho, nem no lazer, no nosso modo de produção" etc. E daí?
meu trabalho de mestrado. Naquela ocasião, distingui várias Vivemos o aqui e agora. O que fazer? Esperar a situação ideal para
nuanças de uma visão que poderia ser caracterizada como agir? E enquanto isso não ocorre?
"funcionalista" do lazer, e destacava que
A psicanalista Maria Rita Kekl (2000), analisando o filme
em todas essas abordagens - romântica, moralista, Cronicamente inviável, de Sérgio Bianchi, faz uma interessante
compensatória, ou utilitarista - pode-se depreender uma visão reflexão sobre o pacto do cinismo da sociedade brasileira
"funcionalista" do lazer, altamente conservadora, que busca a contemporânea. O raciocínio caminha pela geração da cumplicidade,
"paz social", a manutenção da "ordem", instrumentalizando o devido ao "excesso de compreensão". Maria Rita conclui que há uma
lazer como fator que ajuda [...] a suportar a disciplina e as
passagem quase imediata da "realidade" ao "cinismo". Em seguida, e
imposições obrigatórias da vida social, pela ocupação do tempo
completando seu belo raciocínio, contrapõe o filme de Bianchi, à
livre em atividades equilibradas socialmente aceitas e
montagem de Marco Antônio Braz, de Bonitinha mas, Ordinária, e
moralmente corretas (Marcellino, 2005, p. 38).
especificamente à
Não é preciso muita perspicácia para perceber que é esta a
demonstração genial de Nelson Rodrigues de que o efeito
concepção de lazer, muitas vezes oculta, que é hegemônica na
de um discurso crítico fechado sobre si mesmo pode ser a
orientação e formulação de políticas na área, ou a não formulação socialização do que ele pretende demolir... desautoriza
explícita, que, ao final, acaba dando o mesmo resultado. E tomem qualquer aposta em outra dimensão que não seja a
política de eventos: dia disso, dia daquilo, do desafio, de ações canalhice (Kekl, 2000, p. 31).
globais, de lazer, de recreação etc. Muito embora as experiências de
administrações populares e democráticas tenham feito a diferença, Que a análise da realidade e a tomada de conhecimento de
com uma concepção crítico-criativa de lazer, orientando um sua mísera crueza não nos sirvam de álibis para cinismo e canalhice.
modelo participativo de gestão. Não que a crítica não deva existir, muito pelo contrário. É por
Na mesma ocasião, em Lazer e educação, chamava a atenção ela que as construções do novo começam. Ou deveriam começar. E
para a contraposição daquela visão de lazer que o concebe como não dá para querer que se tenham as soluções prontas, acabadas,
instrumento de dominação, diferentemente da que principalmente em questões macro. Trabalhamos com a cultura,
Nelson Carvalho Marcellino Lazer e Sociedade 25
24

laborados, para níveis mais elaborados, complexos, com o


com a super-estrutura, e seria um absurdo irmos "para luta" com
rjqUecimento do espírito crítico, na prática ou na observação.
modelos no plano cultural, estabelecidos apriori. Isso deve ser uma
Verifica-se, assim, um duplo processo educativo - o lazer como
construção coletiva.
O sonho precisa virar utopia. Mas, parece-me que criticidade veículo e como objeto de educação.
Tratando-se do lazer como veículo de educação, é necessário
não deva ser desespero. E, muitas vezes, as críticas estão levando ao
considerar suas potencialidades para o desenvolvimento pessoal e
imobilismo, ao invés de mobilizarem.
Há ainda no campo do lazer uma outra visão, ecológica social dos indivíduos. Tanto cumprindo objetivos consumatórios,
como o relaxamento e o prazer propiciados pela prática ou pela con-
ingênua, que crê que o simples vivenciar dos valores, principalmente
templação, quanto objetivos instrumentais, no sentido de contribuir
os ecológicos, será suficiente para a mudança de situação não
havendo, assim, necessidade de intervenção do Estado, com o para a compreensão da realidade, as atividades de lazer favorecem, a
par do desenvolvimento pessoal, também o desenvolvimento social,
estabelecimento de políticas públicas.
O lazer abre múltiplas possibilidades. É preciso ações que se pelo reconhecimento das responsabilidades sociais, a partir do agu-
çamento da sensibilidade ao nível pessoal, pelo incentivo ao
contraponham às da indústria cultural, na maioria das vezes,
auto-aperfeiçoamento, pelas oportunidades de contatos primários e
exploradora do lazer mercadoria, do entretenimento na sua pior
conotação. Uma política setorial de lazer deve levar em conta as de desenvolvimento de sentimentos de solidariedade.
Por outro lado, para o desenvolvimento de atividades no
limitações estruturais, mas também deve crer na especificidade da
"tempo disponível", de atividades de lazer, quer no plano da
ação no plano cultural como um dos instrumentos de mudança.
Somos partidários de uma corrente, que pode ser denominada produção, quer no plano do consumo não conformista e crítico, é
de crítico-criativa, que entende o lazer da perspectiva acima colocada. necessário aprendizado. Entretanto, quando a análise é dirigida ao
Lazer sim, mas não qualquer lazer. Não o mero entretenimento, lazer como objeto de educação - o que implica a consideração da
não o "lazer-mercadoria". Cada vez mais, precisamos do lazer que leve necessidade de difundir seu significado, esclarecer a importância,
à convivencialidade, mesmo, por paradoxal que isso possa parecer, incentivar a participação e transmitir informações que tornem possível
sendo fruído individualmente. Convites à convivência significam, do seu desenvolvimento ou contribuam para aperfeiçoá-lo, entra-se numa
meu ponto de vista, minimizar os riscos da exacerbação dos próprios área polêmica e marcada por muitas interrogações.
componentes do jogo, tão bem colocados por Callois (1990), e aqui A principal delas talvez seja: como educar para o lazer
por mim retomados, em interpretação livre: a competição que não leve conciliando a transmissão do que é desejável em termos de valores,
à violência, a vertigem que não leve ao risco não calculado de vida, a funções, conteúdos etc., com suas características de livre escolha e
imitação que não promova o fazer de conta imobilizante da pior expressão? Creio que a escolha será tão mais autêntica quanto
fantasia, sorte/azar que não provoque alheamento. E não se trata de maior for o grau de conhecimento que permita o exercício da opção
censura, ou coisa que o valha, sobre o que fazer, mas posições, ou entre alternativas variadas.
Além disso, as barreiras impostas pelos preconceitos e pelas
proposições, do como fazer.
Praticamente todos os autores, ligados ao estudo do lazer, várias correntes ideológicas, verificadas no plano cultural, poderão
reconhecem seu duplo aspecto educativo. Trata-se de um ser relativizadas com mais facilidade, à medida que o lazer vá sendo
posicionamento baseado em duas constatações: a primeira, que o convenientemente entendido em termos dos seus valores e funções.
lazer é um veículo privilegiado de educação; a segunda, que para a E tal fato contribuiria para que a expressão por meio das atividades de
prática das atividades de lazer são necessários o aprendizado, o lazer adquirisse uma extensão muito maior. A própria passagem de
estímulo, a iniciação, que possibilitem a passagem de níveis menos níveis elementares para superiores teria condições de se concretizar
26 Nelson Carvalho Marcellino

mais rapidamente, pela ação educativa para o lazer somada à sua Capítulo 2
vivência, do que se dependesse unicamente da participação nas
atividades, ou seja, se se restringisse à educação pelo lazer.
A educação para o lazer pode ser entendida também como um
instrumento de defesa contra a homogeneização e internacionalização
TRABALHO E GESTÃO
dos conteúdos veiculados pelos meios de comunicação de massa,
atenuando seus efeitos, com o desenvolvimento do espírito crítico.
DE PESSOAS
Além do mais, a ação conscientizadora da prática educativa,
inculcando a idéia e fornecendo meios para que as pessoas vivenciem
O que lazer tem a ver com isso?
um lazer criativo e gratificante, torna possível o desenvolvimento de
atividades até com um mínimo de recursos, ou contribui para que os
Valquíria Padilha
recursos necessários sejam reivindicados, pelos grupos interessados,
junto ao poder público (Marcellino, 2006).
Neste capítulo tratamos especialmente das relações existentes
entre duas categorias sociológicas importantes que delimitam tempos
e espaços distintos, nas sociedades contemporâneas industriais e
Referências capitalistas: o trabalho e a o lazer. Aparentemente antagônicas e
CALLOIS, R. Os jogos e o homens. Liboa: Cotovia, 1990. independentes, são categorias profundamente interligadas, como
COSTA, M. T. Quase metade da RMC é carente de espaços culturais, 2002. pretendemos demonstrar neste texto (cf. Padilha, 2003, p. 243-6).
Disponível em: <http://www.cosmo.com.br/diversaoarte/2002/12/21/
Entendemos que o trabalho tem caráter plural e polissêmico que
materia_div_4/131.shtm>. Acesso em: 21 dez. 2002.
exige um conhecimento multidisciplinar. Além disso, a atividade
DUMAZEDIER, J. Questionamento teórico do lazer. Porto Alegre, GELAR, s/d. laborai é fonte de experiência psicossocial, sobretudo dada a sua
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Pesquisa de Informações centralidade na vida das pessoas: é indubitável que o trabalho ocupa
Básicas Municipais, 2001. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 10
uma parte importante do espaço e do tempo em que se desenvolve a
dez. 2005.
vida humana contemporânea. Assim, ele não é apenas valor
KEKL, M.R. O pacto do cinismo. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 04 jun.
econômico; é também meio de auto-estima, de desenvolvimento das
2000,30-1.
potencialidades humanas, de alcançar sentimento de participação nos
MARCELLINO, N. C. Lazer e educação. 11. ed. Campinas: Papirus, 2004.
objetivos da sociedade. Como exemplo, basta lembrar que a população
. Pedagogia da animação. 1. ed. Campinas: Papirus, 2005. de um lugar é objeto de classificação em função de sua situação
. Estudos do lazer: uma introdução, 4. ed. Campinas: Autores Associados, laborai. Profissão (ainda) é senha de identidade.
2006. Compreendemos que as pessoas, apesar das transformações
REQUIXA, R. Sugestões de diretrizes para uma política nacional de lazer, São profundas que testemunhamos hoje no mundo do trabalho,
Paulo: SESC, 1980. continuam ancorando sua existência na atividade laborai, mesmo
S ANTINI, R. de C.G. Dimensões do lazer e da recreação, São Paulo: Angelotti, 1993. aquelas que se encontram em situação de desemprego. Na verdade,
SASSEN, S. A cidade e a indústria global do entretenimento. In: Lazer numa sociedade essas transformações (reestruturação produtiva, produção enxuta,
globalizada: Leisure in a globalized society, São Paulo: SESC/WLRA, 2000. terceirização, flexibilização da produção, inovação tecnológica,
trabalho em domicílio, desemprego, dentre outras) (cf. Heloani,
28 Valquíria Padilha r Trabalho e Gestão de Pessoas 29

2002; Antunes; Silva, 2004; Sennet, 1999) estão provocando a trabalho e muitos são os que precisam vendê-lo para poder sobreviver.
necessidade de uma re-organização do tempo na vida das pessoas. A história do capitalismo é basicamente a história da venda e compra
A centralidade do trabalho dá-se não só na esfera econômica do trabalho e da complexa rede de fenômenos que se tece a partir daí
(o trabalho é a fonte de renda da maioria da população mundial) (cf. Albomoz, 1988; Sandroni, 1985; Catani, 1984).
como também na esfera psíquica - o que, certamente, representa um Com o capitalismo, o trabalho passa a ser alienado e
paradoxo, uma vez que o trabalho ainda parece ser a principal fonte alienante, pois os trabalhadores não mais produzem apenas por
de saúde psíquica (tanto que sua ausência, seja pelo desemprego, prazer ou por necessidade de usar o produto do seu trabalho. Os
seja pela aposentadoria é causa de abalos psíquicos) ao mesmo trabalhadores produzem objetos (e até mesmo idéias, como no caso
tempo em que se registram cada vez mais pesquisas que evidenciam de publicitários, professores e outras profissões) sob encomenda
o trabalho como causa de doenças física, mental e até de mortes dos capitalistas e muito raramente vêem na sua atividade laborai
(cf. Seligmann-Silva, 1994). Mas, é preciso perguntar: que tipo de oportunidade de ser criativo e autônomo. Assim, o trabalhador não
trabalho adoece corpo e mente e até mata? Certamente, não é o tipo se reconhece mais no produto do seu trabalho, pois ele não lhe
de trabalho que deveria ser central na vida das pessoas, para se pertence. Ele não mais se sente em casa no trabalho...
Foi o desenvolvimento do trabalho industrial capitalista que
manterem criativas, produtivas e mentalmente saudáveis.
separou o tempo e o espaço para trabalho e para lazer. Os trabalhadores
Quando afirmamos ser o trabalho central na vida das pessoas,
da indústria perderam não só a autonomia da criação mas também o
estamos partindo primeiramente da compreensão de trabalho como
controle sobre seu tempo. Talvez o símbolo da Revolução Industrial
atividade de transformação da natureza pelo homem para criar coisas
tenha sido menos a máquina à vapor e mais o relógio e a imposição do
úteis para a sociedade; trata-se do trabalho como ponte de
tempo da máquina.
relacionamento entre natureza e ser humano. Essa atividade não pode
Nesse sistema, o mundo é regido pela lógica financeira do
deixar de existir na vida das pessoas porque o humano do homem se
lucro privado, ou seja, a racionalidade econômica é a razão que rege a
realiza apenas quando ele é criativo e produtivo de coisas e idéias úteis
existência humana social. Pensando com Latouche (2001), que
socialmente.1 O trabalho não apenas coloca em relação homem com afirmou ser o "homo oeconomicus um idiota racional", podemos
natureza mas também homem com outros homens. Historicamente, perguntar: em busca desse comportamento racional que leva ao lucro
essa atividade laborai vai ganhando contornos diferentes, atrelados ao máximo, o homem moderno, manipulando a natureza sem limites,
modo de organização da sociedade e da economia. está encontrando a felicidade para todos? Quando os princípios
Com o desenvolvimento do capitalismo nos últimos duzentos e econômicos e financeiros passam a ser medida de todas as coisas em
cinqüenta anos, o trabalho deixou de realizar-se apenas visando suprir detrimento do social e do humano, como o é na sociedade industrial
as necessidades pessoais e familiares e passou a ser propriedade capitalista, que tipo de pessoas está sendo formado e que tipo de
privada dos donos dos meios de produção: os capitalistas. Assim, organização social elas estão ajudando a formar?
quem possui a capacidade de trabalhar, a mão-de-obra, passa a Conforme declarou Maar (apud Padilha, 2005), vivemos
vendê-la em troca de salário. Poucos são os que podem comprar uma situação paradoxal, pois até quem é desempregado vive num
mundo que é medido em termos de tempo de trabalho. Nem o
l. Marx (1989, p. 208) afirmou: "O processo de trabalho, [...], é atividade dirigida desempregado consegue fugir do peso da economia e do tempo
com o fim de criar valores-de-uso, de apropriar os elementos naturais às fiscal. Maar cita uma expressão de Roberto Schwartz (1999) que
necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o
homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem disse que a maior parte da população brasileira é sujeito monetário
depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas desprovido de dinheiro.
as suas formas sociais".
Valquíria Padilha Trabalho e Gestão de Pessoas 31
30

Mesmo sem dinheiro para gastar, nós temos sujeitos podem dispor de trabalhos autônomos e criativos). Assim, o
monetários, ou seja, são pessoas completamente imersas capitalismo cria uma rede de dependência do dinheiro: o trabalho
num mundo de consumo, de produção, de interesses vendido é insuportável mas é esse trabalho que possibilita ao
econômicos, de padrões fiscais e contábeis (Maar apud homem ter dinheiro e é o dinheiro que faz do homem alguém visível
Padilha, 2005, p. 142). aos olhos da nossa sociedade. Quanto mais dinheiro se tem, mais
No capitalismo, grande parte dos trabalhadores pergunta se coisas pode-se comprar, mais visível se é socialmente.
vive para trabalhar ou se trabalha para viver. Por que dedicamos tanto Marx, analisando a anatomia do dinheiro (a forma universal
tempo e esforço para esse trabalho que não possuímos, cujo fruto não das mercadorias) no capitalismo, cita uma passagem de Sófocles,
é nosso e que geralmente não nos dá prazer? Nesse sentido, vale em Antígona:
perguntar: se nossa fonte principal e lícita de dinheiro não fosse o Nada suscitou nos homens tantas ignomínias como o
trabalho, estaríamos sujeitos a ele da mesma forma? Acreditamos ouro. É capaz de arruinar cidades, de expulsar os homens de
que não... Na verdade, o trabalho aliado ao dinheiro é uma das seus lares; seduz e deturpa o espírito nobre dos justos,
principais razões para fazer dos trabalhadores pessoas alienadas, levando-os a ações abomináveis; ensina ao mortal os caminhos
escravizadas, Sísifos da modernidade2. O trabalho deveria ser fonte da astúcia e da perfídia, e o induz a realizar obras amaldiçoadas
de realização, prazer e criatividade, independentemente de ser fonte pelos deuses (Sófocles apud Marx, 1989, p. 147).
de dinheiro. Mas o capitalismo monetariza tudo e todos, condiciona É também por isso que Marx desejava ver o fim do capitalismo
todas as pessoas a quererem viver para e pelo dinheiro. Alguém (e da propriedade privada) e a construção de uma sociedade em que
consegue imaginar hoje como seria a vida sem o dinheiro permeando as pessoas pudessem dispor livremente de seu tempo para viver. São
todas as nossas relações? Que outro(s) valor(es) poderia(m) estar em suas as impactantes palavras:
seu lugar?
Temos como hipótese que é a necessidade de dinheiro criada Fica desde logo claro que o trabalhador durante toda a
sua existência nada mais é que força de trabalho, que todo
pela lógica do capital que prende as pessoas à obrigação desse
seu tempo disponível é por natureza e por lei tempo de
"trabalho dominado". É a grande indústria e sua racionalidade que
trabalho, a ser empregado no próprio aumento do capital.
torna o trabalho insuportável ao trabalhador (pelo menos a maior
Não tem qualquer sentido o tempo para a educação, para o
parte dos trabalhadores, uma vez que são exceções as pessoas que desenvolvimento intelectual, para preencher funções
sociais, para o convívio social, para o livre exercício das
2. "Sísifo. Filho de Éolo e rei de Corinto, na mitologia grega. Era arguto e suas forças físicas e espirituais, para o descanso dominical
artimanhas intrigavam até os próprios deuses. Certa vez venceu em argúcia o
próprio Hades, deus dos mortos. O deus Zeus havia ordenado a Hades que mesmo no país dos santificadores de domingo. Mas em seu
punisse Sísifo por intromissão. Sísifo ludibriou Hades e amarrou-o com impulso cego, desmedido, em sua voracidade por trabalho
correntes. Ninguém morreria enquanto Hades estivesse acorrentado. O deus excedente, viola o capital os limites extremos, físicos e
Ares libertou Hades e lhe deu o poder de atuar sobre Sísifo. Sísifo secretamente
pediu a sua mulher que o enterrasse sem os ritos funerários usuais. Depois que morais, da jornada de trabalho. Usurpa o tempo que deve
morreu e se encaminhou para os infernos, queixou-se a Hades de que não havia pertencer ao crescimento, ao desenvolvimento e à saúde
sido sepultado corretamente. Pediu para voltar a fim de punir sua esposa. do corpo. Rouba o tempo necessário para se respirar ar
Depois que Hades lhe deu permissão para retornar à Terra, Sísifo se recusou a
voltar para os infernos. O deus Hermes finalmente capturou Sísifo. Como puro e absorver a luz do sol. Comprime o tempo destinado
castigo eterno, Hades ordenou a Sísifo que rolasse uma grande pedra ao topo de às refeições para incorporá-lo sempre que possível ao
uma colina. Mas, cada vez que Sísifo atingia o topo da colina, a pedra caía de próprio processo de produção, fazendo o trabalhador
novo, e assim era obrigado a rolá-la outra vez para cima" (Enciclopédia
Koogan-Houaiss Digital, 2002).
32 Valquíria Padilha Trabalho e Gestão de Pessoas 33

ingerir os alimentos, como a caldeira consome carvão, a impressionam no papel, cifras do orçamento nacional ou de
maquinaria, graxa e óleo, enfim, como se fosse mero meio balanços industriais. Todos nós sofremos um pouco do
de produção (Marx, 1989, p. 300-1). contágio dessa idéia fixa, deixamo-nos igualmente
hipnotizar por números (Bosi, 1996, p. 137).
Perceber o quanto trabalho, tempo e dinheiro estão relacionados
sob a lógica do capital é fundamental pára a compreensão das idéias Será que o fato de as empresas introduzirem práticas e espaços
expostas neste capítulo. O controle do tempo no trabalho é muito mais de lazer como política de Recursos Humanos (ou de gestão de
que um mero detalhe e não pode passar despercebido nas reflexões que pessoas) reflete uma tentativa de amenizar esse esforço e esse tempo
desenvolvemos nesse texto. Os relatos de Simone Weil, francesa, perdidos pelos trabalhadores? Quando as empresas percebem que
professora de filosofia que corajosamente optou trabalhar como operária seus funcionários perdem a vida no trabalho tentando ganhar a vida
na fábrica para sentir (literalmente) na pele o sofrimento do trabalhador3, procuram transformar o local de trabalho de modo a torná-lo, ao
descrevem sensações interessantes e muitas delas estão ligadas ao menos aparentemente, mais agradável? O que isso significa?
controle do tempo. Ela afirmou que Passamos a analisar as relações crescentes entre lazer na
empresa e gestão de qualidade de vida no trabalho. Interessa-nos
o primeiro detalhe que, cada dia, torna a servidão sensível é
partir das condições de trabalho - que são: contrato, ambiente
o relógio de ponto. O caminho da casa à fábrica está
dominado pelo fato de que é preciso chegar antes de um
físico, ambiente social, segurança e higiene, tarefa, papel, processo,
segundo mecanicamente determinado (Bosi, 1996, p. 157). tempo, clima organizacional4 - para entender como mudanças nas
condições de trabalho repercutem na vida cotidiana das pessoas e
Em outro momento disse que quem obedece assim se ressente suas famílias conferindo novos significados à experiência laborai.
então brutalmente por ver que seu tempo está incessantemente à Então, as condições de trabalho incidem sobre a qualidade de vida,
disposição de outrem (Bosi, 1996, p. 159). saúde, bem-estar, motivação, satisfação, rendimento, disfunções
A respeito do controle que o dinheiro exerce sobre nós na organizacionais (acidentes de trabalho, absenteísmo, rotatividade).
sociedade capitalista, Weil afirmou: As políticas de gestão de pessoas afetam diretamente as condições
todos nós sofremos uma certa deformação decorrente de de trabalho e o clima organizacional das empresas. Partimos da
nossa vida na atmosfera da sociedade burguesa, e até nossas compreensão da empresa como uma organização que proporciona
aspirações em prol de uma sociedade melhor trazem a sua elementos de inteligibilidade do funcionamento do mundo do
marca. A sociedade burguesa está atacada de uma mania trabalho e da vida dos trabalhadores e vice-versa.
única: a monomania da contabilidade. Para ela nada tem Partimos também do princípio de que o tempo livre e o trabalho
valor se não pode ser registrado em francos e centavos.
são, cada vez mais, estruturados-estruturantes (no sentido de Bourdieu,
Nunca hesita em sacrificar vidas humanas a cifras que

3. Respondendo a uma amiga porque ela se sujeitou ao árduo trabalho fabril, Weil
afirmou que não poderia dizer nem metade do que dizia dos trabalhadores e da 4. 'Clima organizacional' é um termo da área da administração de empresas e é a
fábrica enquanto professora universitária se não tivesse vivido a experiência de ser percepção coletiva que as pessoas têm da empresa, através da experimentação
operária. E ela explica o que a vida na fábrica fez com ela: "[...] E não creio que de práticas, políticas, estrutura, processos e sistemas e a conseqüente reação a
tenham nascido em mim sentimentos de revolta. Não, muito ao contrário. Veio o que essa percepção. Para conhecer o clima organizacional de uma empresa faz-se
era a última coisa do mundo que eu esperava de mim: a docilidade. Uma docilidade uma pesquisa de clima, que é um instrumento voltado para análise do ambiente
de besta de carga resignada. Parecia que eu tinha nascido para esperar, para receber, interno a partir do levantamento de suas necessidades. Objetiva mapear ou
para executar ordens - que nunca tinha feito senão isso -, que nunca mais faria outra retratar os aspectos críticos que configuram o momento motivacional dos
coisa. Não tenho orgulho em confessar isso. É a espécie de sofrimento de que funcionários da empresa através da apuração de seus pontos fortes,
nenhum operário fala; dói demais, só de pensar" (Bosi, 1996, p. 79). deficiências, expectativas e aspirações.
34 Valquíria Padilha Trabalho e Gestão de Pessoas 35

1996) das experiências da vida humana nas sociedades atuais e de que, Assim, quando se usa a palavra lazer, pensa-se em ocupação do
por isso, a busca de suas relações pode ser fundamental para a temp° livre com atividades culturais (no sentido restrito do termo),
compreensão, conhecimento e desenvolvimento de nossa sociedade e esportivas, recreativas e turísticas (cf. Padilha, 2004).
suas organizações em vários aspectos. Há uma tendência aparentemente recente de as empresas
Vale lembrar da experiência de pesquisa realizada por Jahoda, investirem em espaços e atividades de lazer, esporte, cultura e saúde
Lazarsfeld e Zeisel, em 1933 (apud Ribas, 2003). Quando se deu o para os seus funcionários, objetivando aumentar a qualidade de vida
fechamento de uma fábrica têxtil numa cidade da Áustria, esses no trabalho (QVT). Assim, cada vez mais, os trabalhadores acabam
pesquisadores estudaram o fenômeno do desemprego em massa permanecendo no ambiente da empresa ou com colegas do trabalho
causado na comunidade. Estudaram vários indicadores, desde taxas (em seus espaços de lazer, em clubes, campeonatos, festas etc.).
de matrimônios até cartas infantis ao Papai Noel. Observaram que o No contexto atual de globalização da economia e aumento de
tempo livre desligado do trabalho não era utilizado pelos competitividade do mercado, a qualidade de vida no trabalho (QVT)
desempregados; eles nem mesmo conseguiam relatar o que faziam é um tema que vem ganhando espaço para o bem-estar
organizacional. Segundo Limongi-França e Arellaho (2002, p. 296),
no seu tempo livre. Os resultados dessa pesquisa inédita nos anos 30
qualidade de vida no trabalho é o conjunto das ações de uma empresa no
mostraram ainda que o desemprego no grupo investigado provocou
sentido de implantar melhorias e inovações gerenciais, tecnológicas e
queda no nível e qualidade de vida, empobrecimento da dieta
estruturais no ambiente de trabalho. Ainda segundo as autoras, os
alimentar, deterioração da saúde física, aumento de tensões
conhecimentos e segmentos que estariam diretamente ligados à
intrafamiliares, aumento de taxa de transtornos psíquicos, QVT, fora e dentro do ambiente de trabalho, são:
diminuição dos interesses quanto a atividades sociais e culturais,
• Saúde - integridadefísica,psicológica e social do ser humano;
desafiliação a partidos políticos e organizações sindicais e
• Ecologia - o homem é ator do desenvolvimento sustentável;
desestruturação do tempo cotidiano individual e familiar. Essa
• Ergonomia - estuda as condições de trabalho ligadas à
pesquisa nos mostra não só as profundas relações entre trabalho e
pessoa;
lazer mas também a centralidade do trabalho na vida das pessoas.
• Psicologia - importância da satisfação de necessidades
O termo "tempo livre" é entendido como o tempo em que as
individuais para o envolvimento com o trabalho;
pessoas estão liberadas das atividades obrigatórias que não são
• Sociologia - dimensão simbólica e múltiplas influências da
exercidas por opção mas por necessidade, como o tempo de trabalho
sociedade e empresa;
(remunerado ou não) ou de busca por trabalho, por exemplo. Nesse
tempo liberado as pessoas encontram-se relativamente "livres" para • Economia - os bens são fmitos e a sua eqüitativa
escolherem o que fazer: atividades de lazer, de cultura, esporte ou distribuição é direito social;
descanso, turismo, ócio ou contemplação. Nesse sentido, tempo livre • Administração - aumenta capacidade de mobilizar recursos;
é um conceito genérico que é compreendido pela cultura (numa
concepção ampla do termo)5, mas que compreende o lazer e o ócio.
que alguém pode ter ou não ter cultura, uma vez que a cultura não é um objeto que
se possua mas sim um processo do qual todos participamos quotidianamente. O
5. A palavra "cultura" possui inúmeros significados e discuti-los aqui seria inviável. sentido restrito de cultura é o que a considera como sendo um conjunto de
Então, fazemos a opção de considerar o sentido amplo do termo "cultura" como o atividades culturais e artísticas, ou seja, formas de manifestar a cultura no seu
que corresponde ao sentido antropológico, ou seja, ao entendimento de cultura sentido amplo. Então, cinema, teatro, museu, revista, livro, pintura, música, dança,
como um conjunto de valores, crenças, hábitos, gestos, linguagens e normas que por exemplo, são "cultura" no seu sentido restrito, pois são algumas das formas de
caracterizam a forma de existência de um grupo. Assim, não seria lógico afirmar materialização e expressão da cultura maior (cf. Bosi, 1997).
36 Valquíria Padilha •T f rabalho e Gestão de Pessoas
Trai 37

• Engenharia - organização do trabalho, controle de processos As informações selecionadas são as seguintes:


e uso da tecnologia. /. Guia Exame As 100 melhores empresas para você trabalhar -
2002.
Segundo Walton (apud Limongi-França; Arellano, 2002, Io lugar: Siemens Metering - No meio da fábrica está instalada
p. 297), existem oito categorias para avaliar QVT nas organizações, uma praça de eventos com direito a banca de revistas, máquinas
quais sejam: de café, caixas eletrônicos e mesas de jogos. Há também um palco
1. Remuneração justa e adequada; no qual acontecem apresentações de funcionários-calouros e de
2. Segurança e salubridade do trabalho; artistas convidados.
3. Oportunidade de utilizar e desenvolver habilidades; 2° lugar: McDonald'* - Há Sala de Break, um espaço com com-
4. Oportunidade de progresso e segurança no emprego; putadores e recursos audiovisuais para treinamento e descanso
5. Integração social na organização; dos funcionários. Sabático de 60 dias para funcionários de média
6. Leis e normas sociais; gerência que completam dez anos de casa.
7. Trabalho e vida privada (as condições de crescimento na 3° lugar: Magazine Luiza - Possui grêmio com piscina, campo
carreira não devem interferir no descanso nem na vida de futebol e playgmund.
familiar do empregado); II. Guia Exame As 100 melhores empresas para você trabalhar
8. Significado social da atividade do empregado. Para a ela- - 2003.
boração deste capítulo, preocupou-nos enfocar as rela- l ° lugar: Magazine Luiza - Há clube com quadra, piscina e
ções entre trabalho e vida privada, uma vez que aí estão lazer. As equipes têm verba para comemorar conquistas.
também as relações específicas entre trabalho e lazer. 2° lugar: Redecard - Estimula o pessoal a desenvolver ativida-
Para escrever este capítulo, fizemos uma pesquisa a fim de des voltadas para a saúde física e mental. A Redecard não per-
perceber se as melhores empresas brasileiras escolhidas pela revista mite que as pessoas fiquem na empresa após as 19 horas.
Exame nos últimos anos desenvolvem ou estimulam atividades de lazer, 3° lugar: Todeschini -A empresa disponibiliza ginásio de espor-
esporte ou cuidados com a saúde nas suas práticas de gestão de pessoas. tes, clube campestre, consultório médico e odontológico em sua
Foram examinadas as edições de 2002,2003 e 2004 do Guia Exame - sede e aulas de ioga com custo subsidiado.
As melhores empresas para você trabalhar6. Das 100 melhores ///. Cuia Exame As 150 melhores empresas para você trabalhar
empresas selecionadas pela revista, em 2002 e 2003, e das 150 - 2004.
selecionadas em 2004, apresentamos as 3 primeiras melhores empresas l ° lugar: Todeschini - Sua fazenda de reflorestamento pode ser
em cada ano e destacamos as informações que aparecem no item usada para o lazer do colaborador e sua família. Para ir lá, a
"equilíbrio entre trabalho e vida pessoal" (apontados pelos funcionários empresa oferece transporte e motorista gratuitos e ainda os
que responderam aos questionários enviados pela Exame). Do total de recebe com jantar ou almoço campeiro, feitos com a especiali-
350 empresas selecionadas, nos anos de 2002,2003 e 2004, observamos dade da casa: ovelha.
que a grande maioria das empresas consideradas atraentes enquanto 2° lugar: Tigre - A empresa promove três festas anuais: a de fim
locais para se trabalhar inclui, dentre outros itens, lazer, esporte e saúde de ano, a junina e a do Dia das Crianças. A sede social é supere-
como preocupação das políticas de gestão de pessoas e de qualidade de quipada. A academia de ginástica acabou de passar por uma
vida no trabalho. reforma e está maior e mais equipada.
3° lugar: Landis+Gyr - A sede da empresa é arborizada e tem
6. O Guia Exame é publicado pela editora Abril (cf. também http:// www.exame.com.br).
38 Valquíria Padilha Gestão de Pessoas 39

espaço para caminhadas em meio à natureza. Na praça de leitura . t écnica, da racionalidade e da produtividade no trabalho
instalada na fábrica, sem divisórias, há jornais, revistas, livros, centrando aliados na estética (embelezamento das fábricas) e no
jogos e computador com acesso à internet. lazer. As melhorias (indubitavelmente necessárias) que foram
Parece que as empresas de hoje procuram transformar-se em alcançadas com as políticas desse Departamento da Beleza do
grandes "centros de bem-estar", como se fossem "shopping centers Trabalho na indústria alemã - como melhor ventilação e iluminação, a
híbridos" (cf. Padilha, 2006), ou seja, querem criar espaços especiais, construção de refeitórios, lavabos, sanitários, a reforma e pintura de
bonitos, artificiais e atraentes que diluem o lazer e o esporte no meio dos paredes, a criação de parques e jardins floridos em volta das fábricas -
sacrifícios do trabalho. Algumas descrições das melhores empresas tinham como maior objetivo compensar o aumento da exploração e da
apresentadas pelo Guia da revista Exame (muitas acompanhadas de intensificação do trabalho fabril sob os rígidos princípios tayloristas.
fotografias) mostram academias de ginástica, galerias com lojas, De Grazia (1978) conta a história das estratégias docilizadoras
massagens durante o expediente, espaços de "convivialidade" que se adotadas pelo casamento do taylorismo com o fascismo/nazismo. Na
assemelham às praças internas dos shopping centers. Itália, entre 1925 e 1927, foram criados os chamados dopolavoro, ou
As matérias que acompanham os referidos guias da Exame seja, "depois do trabalho", que nada mais eram do que uma forma de o
destacam o quanto esses espaços anexados às empresas modernas governo fascista aliado aos empresários organizarem o tempo de lazer
tornam-se o "plus", o diferencial, a "qualidade de vida levada a dos operários. Foi Mario Giani (que morreu em 1930) quem implantou
sério". No guia Exame de 2000, De Mari (2000, p. 18) afirma: Quer o dopolavoro na Itália, trazendo experiências dos Estados Unidos, país
saber qual o segredo das "dez mais"? Elas cuidam, cuidam e cuidam do seu onde ele havia realizado seus estudos. Visava criar nos operários uma
pessoal. Como retorno, têm funcionários que confiam, confiam e confiam disciplina adequada ao trabalho ao mesmo tempo em que eles se
em seus líderes. Em artigo de Levering (1998, p. 28), aparece em tomariam leais e fiéis aos seus patrões. Organizado em maio de 1925
destaque a seguinte afirmação: Todos ganham quando se investe no num órgão governamental chamado Opera Nazionale Dopolavoro
ambiente de trabalho. Os funcionários ficam motivados, produzem mais e (OND), criava clubes operários e grupos recreativos. Nas palavras de
as empresas aumentam os lucros. De Grazia (1978, p. 213), o dopolavoro deveria ser aos lazeres o que era a
Mas, o que hoje recebe rótulos modernos já existiu no administração científica ao trabalho: ambos tendiam a maximizar a produtividade,
começo do século passado, como passamos a rever agora. Quando um fora do trabalho, outro no espaço do trabalho.
hoje se prega que "trabalhadores felizes produzem mais", não há O dopolavoro correspondia plenamente à ideologia fascista
nada de novo nisso. Está-se, na verdade, resgatando um dos de Mussolini que afirmava:
principais lemas do Departamento da Beleza do Trabalho, Os capitalistas inteligentes [...] não tiram nenhum lucro
organização implantada nas fábricas pelo governo nazista em 193 3. da miséria: é por isso que eles se preocupam não somente
Os slogans desse departamento eram: "Boa iluminação - Bom com os salários, mas também com a habitação, as escolas,
trabalho"; "Homens limpos em uma fábrica limpa" e "A felicidade os hospitais e os espaços de esporte para seus operários
na fábrica aumenta a produtividade". O que se pretendia era (apud Dê Grazia, 1978, p. 214-5).
convencer os trabalhadores de que a racionalização do trabalho -
Esse discurso vai ao encontro do que hoje se chama de
leia-se taylorismo ou organização científica do trabalho (Rago;
"responsabilidade social" das empresas e das políticas modernas de
Moreira, 1986) - era necessária e boa para todos.
gestão de pessoas. O que se prega atualmente - como se fosse
Os regimes fascista (na Itália de Mussolini) e nazista (na
novidade - é que as pessoas devem estar no centro da administração
Alemanha de Hitler) levaram às últimas conseqüências a glorificação
de empresas. Por isso, é comum ver a expressão "capital humano"
40 Valquíria Padilha Gestão de Pessoas 41

como referência aos empregados (ou "colaboradores") hoje em dia. potencial educativo na medida em que levaria os trabalhadores
Mas, na verdade, a essência dessa idéia que hoje ganha nova restaurarem sua dignidade, aumentarem sua auto-estima e a terem
roupagem nasce na Itália fascista dos anos 1920-30. vontade de colaborar com as outras classes (De Grazia, 1978, p. 220)8.
A idéia de que investir em bem-estar ou qualidade de vida Mas, diante disso, resta-nos perguntar: que tipo de trabalho faz com
dos trabalhadores é investir no próprio lucro dos empresários já ue Q trabalhador perca sua integridade e sua auto-estima? Por que
vinha sendo defendida naquela época, como nos mostra a citação uma política de gestão de pessoas baseada na oferta de lazer,
seguinte: esporte e embelezamento da fábrica devolveria integridade (física e
moral) e auto-estima aos trabalhadores?
a indústria deveria estar convencida que o bem-estar
crescente do seu pessoal traria repercussões favoráveis no A questão que se coloca, inevitavelmente, é saber se é
rendimento, da mesma maneira que os cuidados da fábrica e possível permanecer alienado durante oito horas e recuperar
das máquinas tenderiam a aumentar a eficácia da produção. sua identidade em seguida, num outro local. Numerosas
[...] Se a fábrica precisava de cuidados, para a força de observações clínicas sugerem que isto não é factível e que
trabalho valia o mesmo. [...] O relaxamento e os programas esta fragmentação entra em contradição radical com os
recreativos "amarrariam" o trabalhador "a seus superiores processos psíquicos inconscientes. Certas pessoas,
hierárquicos pelos laços de solidariedade": ele teria orgulho entretanto, se esforçam para recuperar sua identidade fora
de se descobrir como "parte viva, atuante, do grande do trabalho, recorrendo a uma atividade privada. Porém,
mecanismo industrial no qual ele trabalha, intelectualmente muitos fracassam nesta tentativa por causa da fadiga que
ou manualmente", e seria mais inclinado a "dar provas resulta da luta travada contra seu próprio funcionamento
tangíveis de seu savoir-faire (De Grazia, 1978, p. 215). psíquico e do apelo deste para manter a alienação que
evitaria a experiência dolorosa da ruptura (Dejours apud
Observamos então que a preocupação com o fator humano -
Selligmann-Silva, 1994, p. 125).
ainda que disfarce de uma estratégia de docilização - entra na indústria
pelo lazer ou, como chamou De Grazia, pela "taylorização dos lazeres Além dessa explicação psicanalítica para a tentativa de
operários". Foi o início de um processo de gestão das pessoas pela encontrar no lazer recuperação para o que se perde no trabalho, há
persuasão que se estende até hoje. O desafio da direção de pessoas na ainda uma reflexão filosófica possível de ser feita. Recorremos a
empresa é, e era nos anos 30, envolver os funcionários nas atividades passagens de Adorno (1995, p. 70-1 e 79):
da empresa não apenas dando ordens, mas persuadindo e "o tempo livre é acorrentado ao seu oposto"; "nem em seu
conquistando. Henry Ford, na mesma época, nos Estados Unidos, trabalho, nem em sua consciência dispõem de si mesmas
conseguiu fazer isso principalmente com política de aumento de com real liberdade"; "o tempo livre tende em direção
salário. Na Itália fascista, como as condições do capitalismo e do contrária à de seu próprio conceito, tornando-se paródia
desenvolvimento econômico não eram as mesmas que nos Estados deste. Nele se prolonga a não-liberdade [...]"; [nos
Unidos, a oferta de lazer parecia ser uma estratégia mais interessante e esportes] as pessoas adestram-se sem sabê-lo para as
inovadora. formas de comportamento mais ou menos sublimadas que
Destacava-se claramente que o dopolavoro teria uma delas se espera no processo do trabalho".
importante contribuição na elevação do rendimento das indústrias e

7. As citações contidas nessa passagem são de M. Giani, Quaderni dei Obviamente não se falava que o trabalhador já colaborava com as outras classes
Dopolavoro H, Roma, 1925. quando lhes era diariamente expropriada a mais-valia... (cf. Marx, 1989).
42 Valquíria Padilha Trabalho e Gestão de Pessoas 43

Quando o trabalho oprime, desgasta, cansa, esgota física e a tarefa de três colegas demitidos), redução real de salário e de
mentalmente, expropria o "saber tácito" (Heloani, 2002) e amais valia, poder aquisitivo (os salários não acompanham os lucros das
por que alguns momentos de lazer, esporte, massagem ou ioga teriam o empresas; a rotatividade de funcionários tem o objetivo de trocar
poder de apagar tudo isso? Weil (apud Bosi, 1996, p. 138) responde: mão-de-obra cara por mais barata)9, não será possível acreditar que
A classe operária sofre por estar sujeita à vontade introduzir lazer na política de recursos humanos para umas poucas
arbitrária dos quadros dirigentes da sociedade, que lhe pessoas que ainda possuem emprego seja a fórmula mágica para
impõem, fora da fábrica, seu padrão de existência e, dentro uma melhoria real na qualidade de vida no trabalho e fora dele.
da fábrica, suas condições de trabalho. [...] Portanto, há
duas questões a distinguir: a exploração da classe operária
que se define pelo lucro do capitalista, e a opressão da classe
operária no local de trabalho, que se traduz em sofrimentos Referências
prolongados, conforme o caso, quarenta e oito horas ou ADORNO, T. W. Tempo livre. In: Palavras e sinais. Modelos críticos. 2. ed.
quarenta horas por semana, mas que podem ir ainda além Petrópolis: Vozes, 1995.
da fábrica ocupando as vinte e quatro horas do dia. ALBORNOZ, S. O que é trabalho, São Paulo: Brasiliense, 1988. (Coleção
Primeiros Passos, 171).
E Weil (apud Bosi, 1996, p. 161) ainda desabafa:
BOSI, A. Cultura como tradição. In: BORNHEIN, G. et ai. Cultura brasileira:
Que bom seria poder depositar a alma, à entrada, no tradição/contradição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Funarte, 1997.
cartão de ponto e retomá-la intacta à saída! Mas é o
BOSI, E. Simone Weil. A condição operária e outros estudos sobre a opressão.
contrário que se dá. Ela vai com agente para a fábrica, onde Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
sofre; de noite este esgotamento como que a anulou, e as
BOURDIEU, P. La Distinction. Critique sociale dujugement, Paris: Lês Editions
horas de lazer são inúteis. deMinuit, 1996.
Quando as empresas criam espaços de lazer, de convivialidade e CATANI, A. M. O que é capitalismo, São Paulo: Brasiliense, 1984. (Coleção
de atenção à saúde de seus funcionários, podem estar desenvolvendo Primeiros Passos, 5).
uma política de gestão de pessoas que ganhe pontos em classificações DE GRAZIA, V. La taylorisation dês loisirs ouvriers: lês instituitions sociales de
dos melhores locais para se trabalhar, a exemplo do Guia Exame 1'industrie dans 1'Italie fasciste. Recherches, Lê soldai du frava(7,Paris, n. 33-4,
analisado anteriormente. Certamente, nos limites de uma humanização Set. 1978.
do capitalismo, academias de ginástica, massagens, tai chi chuan, salas DE MARI, J. As dez mais são demais! Guia Exame. As 100 melhores empresas
de televisão e de relaxamento no meio do expediente de trabalho podem para você trabalhar, n. 721, 2000.
trazer alívios imediatos a alguma dor no corpo, cansaço físico ou mental. HELOANI, R. Organização do Trabalho e Administração. Uma visão
Seus benefícios a curto prazo não estão sendo questionados. Mas o que multidisciplinar, São Paulo: Cortez, 2002.
não podemos perder de vista é que essas medidas são paliativas e estão 9. Não estamos nos referindo apenas ao trabalho do operário na fábrica, mas de
muito longe de tocar no âmago do problema. todas as categorias de trabalhadores existentes hoje: os professores,
Enquanto houver expropriação de mais-valia (ou seja, o educadores físicos, profissionais do turismo, dentistas e médicos (que se vêem
obrigados a cair na teia dos convênios privados), dentre outros, estão também
trabalhador trabalha algumas horas de sua jornada sem receber por imersos no mesmo mundo do trabalho que se reestrutura visando cada vez mais
isso), intensificação do ritmo de trabalho causado não só pelo o aumento do lucro privado em detrimento da real satisfação humana e social.
desenvolvimento tecnológico mas também pelo desemprego Quem ainda consegue emprego hoje sujeita-se a jornadas exaustivas de
trabalho, salários aviltantes e à perda de direitos conquistados historicamente.
(eliminam-se postos de trabalho para que um trabalhador concentre Existem exceções, claro, mas o que nos interessa analisar é a regra.
44 Valquíria Padilha

LATOUCHE, S. La déraison de Ia raison économique. Du delire d'efficacité au Capítulo 3


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SENNET, R. A corrosão do caráter, Rio de Janeiro: Record, 1999. Nesse cenário, permeado por conflitos e tensões diversas,
marcado pelas diferenças, a construção de "novas" sociedades
depende de vários fatores, destacando-se a superação da crescente
desigualdade social. Segundo Kliksberg (2000), as desigualdades
sociais não se referem somente às carências materiais, como pobreza
econômica, mas também à pobreza política, educativa e outras que
geram dificuldades para o acesso aos bens e serviços sociais de
direito de toda população.
O acesso ao lazer, como um dos direitos sociais promulgados
pela Constituição Brasileira de 1988, implica, pois, a educação de
cidadãos capazes de identificar e viver as oportunidades diversificadas
46 Leila Mines Santos de Magalhães Pinto
Lazer e Educação 47

e disponíveis nos tempos e espaços cotidianos, com condições de que corporeifica as palavras pelo exemplo e busca entender a realidade
compreendê-las e ressignificá-las consciente da sua importância em com convicção de que mudanças são possíveis. Curiosa, a Educação
suas vidas e das contradições que limitam sua vivência plena. para a autonomia é forma de intervenção no mundo com liberdade,
Conscientização que, segundo Paulo Freire (1977), só se faz pelo consciência nas decisões, diálogo, querer bem aos educandos e alegria.
corpo que age coerentemente com o que pensa, sente e diz, exercitando Esses fundamentos estão na base do que também defendo para
a liberdade de sonhar, escolher e participar da realização das ações as ações educativas pelo e para o lazer. Argumentos que implicam um
necessárias ao alcance do que é desejado. conjunto de fatores e processos que nos ensinam sobre como o lazer
Todavia, em geral, as práticas educativas pelo e para o lazer no participa da construção e difusão de experiências que contribuem para
Brasil - dominantes até a década de 1980 e com grande influência ainda mudanças de mentalidades e de condições de vida.
hoje - têm sido marcadas por perspectivas instrumentais e utilitaristas, Mobilizada por esses desafios, no presente capítulo de livro,
que dão prioridade aos aspectos técnicos das atividades culturais no proponho analisar a relação entre lazer e educação, repensando
lazer, em detrimento à compreensão das relações e mediações humanas fatores e processos educativos que possam intervir na conquista do
nelas vividos. A reversão desse quadro passou a ser uma demanda lazer como direto de todos.
crescente desde os anos 90, com o avanço da consciência sobre a
importância do lazer como um dos fatores de qualidade de vida, por
parte da população e do poder público e privado.
Analisando as mudanças dos últimos anos, tanto Juan Carlos Alguns fatores intervenientes
Tedesco (2002) como Edgar Morin (2001) são enfáticos em dizer na educação pelo e para o lazer
que o século XXI tem exigido um esforço educativo no sentido da
preparação das pessoas para enfrentar incertezas, imprevistos, o Dentre vários fatores fundamentais às novas formas de lidar
inesperado. Tem também mobilizado os sujeitos para rever suas com os atuais desafios da educação pelo e para o lazer, começo por
ações, considerando informações e conhecimentos produzidos e destacar o "conhecimento" como variável importante não só para
socializados ao longo do tempo. Educação que precisa ter como explicar as novas formas de lidar com os desafios educativos que
base a consciência de que todo desenvolvimento verdadeiramente enfrentamos hoje, como para favorecer ações políticas,
humano deve valorizar o conjunto das autonomias individuais, as seja porque, em torno dele, são desencadeados conflitos
participações coletivas e a vida humana. importantes (apropriação e controle de formas de
Nesse sentido, vários autores, destacando-se Paulo Freire conhecimento, informações, instrumentos, produção e
(1996), vêm discutindo a necessidade de a educação contribuir para o circulação de saber) seja porque o conhecimento é condição
conhecimento das limitações dos sujeitos, na perspectiva de para revelar a natureza real das relações sociais ao elevado
conteúdo simbólico, próprio das sociedades complexas, por
superá-las, e de suas potencialidades, no sentido de desenvolvê-las de
trás da aparência que os aparatos dominantes tendem impor
modo autônomo e responsável, ampliando a capacidade de as pessoas
ávida coletiva (Melucci, 2001, p. 142).
gerenciarem suas próprias vidas e suas interações. Focalizando a ação
educativa para a autonomia, Freire analisa a importância de esta ser Essa, para Tedesco (2002), é uma opinião crescente entre
baseada em experiências estéticas, éticas, críticas e criativas; educadores de todo mundo, principalmente quando é discutida a nossa
desenvolvida de modo a respeitar os saberes dos educandos, capacidade de apropriar, produzir e manejar conhecimentos sobre
reconhecer suas identidades e superar seus condicionamentos. Ação pessoas, práticas sociais e culturais. O autor destaca que a produção e a
apropriação de conhecimentos significativos estão no centro dos
Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto Lazer e Educação 49
48

conflitos sociais do futuro, desafiando estudiosos a contribuir na busca Como processo educativo, o lazer atua sobre os meios de
de alternativas para seu desenvolvimento. Para isso, enfatiza que os reprodução da vida, sua dimensão sociocultural mais visível e prática.
"conteúdos da educação" precisam ser tratados de modo Como produto de ação socioeducativa, de um lado, pode contribuir para
contextualizado. E completa seu argumento reafirmando que as qualificar o ser humano a olhar, perceber e compreender o vivido, se
inúmeras e rápidas mudanças sociopolíticas e culturais desafiam a reconhecendo na percepção do outro, distinguindo semelhanças e
construção de conhecimentos necessários à formação de cidadãos, diferenças entre si, o mundo em que vive e outros sujeitos - construindo
considerando diferentes tempos, espaços e atividades cotidianas. sua própria identidade e história. De outro lado, pode contribuir para
No meu entender, esse é o principal desafio para a educação favorecer novas relações socioculturais alicerçadas nos preceitos
pelo e para o lazer hoje. Educação que precisa ser questionada sobre lúdicos e democráticos, que têm como ponto de partida o
vários aspectos. Por exemplo, como lidar com as questões relativas à reconhecimento dos direitos e deveres como cidadãos. Pode influenciar
identidade e às diferenças dos sujeitos e grupos, reconhecendo que sobre fatores que agem contra exclusão, preconceitos e marginalização.
todos têm direito ao lazer? Uma pergunta como essa requer discussão Compromissada com a busca da eqüidade no acesso ao lazer,
sobre quem são as pessoas e os grupos que envolvemos em nossas como parte dos benefícios sociais relativos à promoção da qualidade
ações educativas no lazer? Quais são suas demandas, necessidades e de vida dos sujeitos, a educação aqui proposta se expressa também no
interesses? Como se expressam e comunicam? Como constróem combate a todas as formas de preconceito e discriminação (Freire,
suas práticas de lazer? Nessas práticas alguém é marginalizado? Que 1996). No contexto das decisões educacionais, ela deve ter como
condições os sujeitos têm de acesso ao lazer? Que conhecimentos são premissa básica a garantia de igualdade de oportunidades, bem como
fundamentais ao enfrentamento dessas questões? de diversidade de práticas culturais para todos os cidadãos.
Nesse sentido, o lazer apresenta-se como um espaço de Portanto, a função política da educação pelo e para o lazer se
(re)construção das relações sociais e de conhecimentos, oportunidade efetiva na medida em que se vincula à realidade social, às possibilidades
de (re)significação das dimensões objetivas e subjetivas que os de compreensão dessa realidade e de acesso a outros modos de
constituem. conhecê-la e de nela agir com liberdade de expressão e de trocas de
Esse não é um processo neutro, podendo provocar exclusões, experiências entre diferentes sujeitos e grupos nesse processo.
negação do outro, preconceitos. Daí a importância de clareza quanto A função ética desse processo educativo é constituída pela
à intencionalidade do ato de educar. É ela que irá orientar as reflexões autonomia dos sujeitos e grupos no lazer, com liberdade e
e mediações em torno das atividades, fornecendo os indicadores para responsabilidade. Nesse sentido, o processo educativo estimula o
a ação, a aprendizagem, a avaliação e os planejamentos futuros. A desenvolvimento de atitudes e valores como tolerância, justiça,
intenção do processo educativo constitui-se em um parâmetro para o cooperação, solidariedade, respeito mútuo, confiança e outros. Ele é
desenvolvimento de práticas educativas vividas e reflexões sobre compreendido como um tempo de inserção no processo civilizatório,
elas, aprendizagens adquiridas e (re)significações atribuídas aos como diz Miguel Arroyo (2000), no qual ocorrem aprendizagens de
conhecimentos sobre o lazer e suas práticas. diferentes naturezas, formas de socialização, vivências e produções
Com isso, assumo a relação lazer e educação como processo/ culturais, construção de identidades e subjetividades.
produto de formação humana, que requer não só domínio de Por sua vez, a função estética da educação pelo e para o lazer
conhecimentos específicos sobre lazer como também de competências alicerça-se no desenvolvimento da sensibilidade, autoconhecimento,
e habilidades adequadas a formação/atuação política, ética e estética reconhecimento e valorização da diversidade cultural. Nesta
concretizada nas vivências realizadas. perspectiva, há a valorização da qualidade das produções humanas
Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto Lazer e Educação 51
50

sejam elas apresentadas sob forma de criações, serviços, conhecimentos Esta discussão conceituai, tal como a reflexão construída
e bens produzidos. Ações que não são concebidas de modo isolado da sobre educação para e pelo lazer, tem como foco principal os sujeitos.
realidade social, cultural e histórica, mas abertas à multiplicidade de E é, por isso, que inicio a discussão sobre o processo educativo pelo e
para o lazer a partir das pessoas.
sentido e significado que cada situação educativa pode gerar.
Essa concepção de educação está comprometida com a A formação humana para o lazer perpassa todos os tempos da
construção de tempo e espaço de vivência sociocultural, favorecendo o vida. A cultura lúdica, que acontece ao longo da vida, é fundante das
aprendizado de conhecimentos e desenvolvimento de cidadãos, experiências da infância e adolescência. A partir da juventude a vida
considerando a pluralidade das potencialidades humanas e a ganha contornos diferentes com o lazer passando a integrar o cotidiano
valorização das artes, identidades, sentimentos e múltiplas linguagens. dos sujeitos, especialmente, como contraponto das suas obrigações
O processo educativo é, pois, intencional. Requer que sociais como os estudos, trabalho, vida familiar, dentre outras. Contexto
ampliemos nossa compreensão sobre as diferentes naturezas dos que muda de sentidos e significados, especialmente, quando vivemos
conteúdos. E dentre as importantes contribuições que nos ajudam mudanças da fase adulta para a velhice. Portanto, a educação para e pelo
nesse sentido, destaco os estudos de Zabala (1998), segundo o qual, lazer é um processo de construção continuada que não deve ser tratado
quando ensinamos ou aprendemos um conteúdo, estamos ao mesmo da mesma maneira ao longo da vida.
tempo nos apropriando de conteúdos conceituais (fundamentos e Em decorrência desse argumento, outro precisa ser
idéias-chave que explicam o que fazemos), procedimentais considerado. Trata-se das especificidades do que consideramos como
(estratégias didáticas e atividades que fazemos) e atitudinais (atitudes "educação pelo lazer" e "educação para o lazer". Afinal, o lazer é um
e normas definidas segundo valores de certo grupo social). tempo-espaço oportunidade de reunir pessoas de todas as idades em
A clareza sobre nossas intenções educativas e os conteúdos suas vivências. Entretanto, o próprio tempo de lazer, como também
necessários para concretizá-las nos dá suporte para a construção de outros tempos e espaços educativos - por exemplo, o escolar-, podem
práticas educativas mais significativas. Por isso, a educação pelo e para tratar a "educação para o lazer" de modos diferentes.
o lazer implica o desenvolvimento de competência que, segundo Mas, considerando as discussões que estamos realizando neste
Perrenoud (1999), significa a capacidade de agir com eficácia em um texto, o que é indispensável ser garantido em todos os processos de
determinado tipo de situação prática da vida cotidiana, solucionando educação pelo e para o lazer?
problemas, potencializando condições concretas para alcance dos A educação pelo lazer, sobretudo, é uma modalidade de
objetivos propostos. formação humana que não se caracteriza por situações sistematizadas,
sem, contudo, deixar de ter e garantir sua intencionalidade educativa.
Ela acontece desde o momento em que ás pessoas se educam para o
Estratégias de educação uso do seu tempo cotidiano, aprendendo, desde criança, a priorizar o
que é essencial para sua qualidade de vida. Esse processo inclui
pelo e para o lazer iniciação aos diversificados conteúdos culturais, o aprimoramento de
Concordo com Marcellino (1996) que o lazer, na sociedade "gostos culturais" e motivação para práticas que podem ser vividas
urbano-industrial, é concebido como cultura vivenciada no tempo como lazer. Processo coroado com a autonomia dos sujeitos quanto à
disponível das obrigações sociais dos sujeitos, combinando os identificação e ao usufruto cultural de tempo-espaço de lazer,
aspectos tempo e atitude. Tempo-espaço-oportunidade privilegiado conscientes dos significados e limites nele vividos.
para a vivência lúdica embora não seja o lazer o único onde o lúdico
possa se manifestar (Pinto, 2004).
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Nesse sentido, a educação pelo lazer acontece no contexto das começar com diálogos com os participantes das ações educativas,
nossas relações familiares, com amigos, colegas de escola e de buscando conhecer seus anseios individuais e coletivos, potencial
trabalho, mas, com certeza, sendo enriquecida se aliada à educação de conscientização para o lazer, relações internas do grupo, atitudes
para o lazer. Ou seja, se for fundamentada por formação específica de liderança etc. (Pinto; Zingoni, 1997).
para a democratização do lazer, considerando a compreensão de sua Diálogo que se inicia com um diagnóstico exploratório a ser
importância para a vida humana, dos limites vividos e conhecimentos realizado desde os primeiros contatos com o grupo. Esse é
enriquecido na medida em que a situação do lazer em que vivem os
e valores implicados nas suas vivências.
Lembrando, a democratização (direitos sociais ao alcance de educandos é identificada e analisada por meio de outros diálogos
todos) implica "inclusão" com "eqüidade", que, por sua vez, requerem com membros do grupo, entidade e/ou comunidade. Se a proposta
"acessibilidade" (vivência concreta das diversificadas oportunidades de educativa for construída tendo em vista atender um município, é
práticas culturais disponíveis) dos sujeitos e grupos às oportunidades de fundamental considerar os resultados de conferências, congressos,
lazer. Princípios que partem do reconhecimento de que as pessoas e os plenárias e reuniões realizadas entre governo e população para
grupos sociais são diferentes entre si em vários aspectos (culturais, tomadas de decisões sobre prioridades no lazer (Bonalume, 2004).
sociais, econômicos e outros). Que, também, têm condições diferentes Pelo diálogo iniciamos a familiarização com as pessoas e os
de acesso ao que está disponível em sua realidade, dadas suas diferenças grupos com os quais desenvolvemos ações educativas para o lazer.
socioculturais e limites vividos (Pinto, 2005). Momento de imersão e conhecimento inicial sobre as culturas vividas,
Na trilha desses argumentos, as estratégias educativas para o suas principais necessidades e problemas relacionados ao lazer.
lazer precisam agir no sentido de ampliar e diversificar oportunidades Começa-se a identificação de valores, conceitos, significados, hábitos e
culturais, superando barreiras que possam dificultar, ou impedir, o memórias vividos no lazer. Oportunidade importante para o
acesso dos usuários às mesmas. conhecimento das potencialidades e dificuldades do grupo, que interfere
Por esse motivo, proponho, a partir daqui, analisar algumas nas mudanças culturais, na cultura familiar, nas condições de habitar,
estratégias, que podem orientar processos educativos para o lazer organizar e animar espaços, bem como mobilizar conhecimentos
desenvolvidos em qualquer tempo e espaço educativo (escolas, clubes, prévios para a realização de atividades de lazer (Pinto; Zingoni, 1997b).
comunidades, projetos sociais, dentre outros). Proposta que sintetizo O interculturalismo é revelado pelo diálogo entre os grupos
considerando o acesso ao lazer pelo diálogo; pela interatividade e culturais, gerando seu mútuo enriquecimento. Este não considera
participação; e pelas ações educativas sensibilizadoras. nenhuma cultura como superior a outra e com direito a dominá-la sem,
tampouco compartilhar a consideração de que todas têm igual valor.
Considera a diversidade cultural como expressão da riqueza humana,
sem exacerbar as diferenças. Busca elementos que facilitem o
Acesso pelo diálogo entendimento intercultural e potencializem as culturas dos diferentes
Em qualquer circunstância educativa, se desejamos educar grupos (Oliveira, 2002).
pelo ou para o lazer é importante que as ações sejam ajustadas aos Os conhecimentos prévios levantados, compreendidos como o
interesses, necessidades e referências culturais dos participantes. arcabouço de experiências consolidadas pelos diferentes grupos,
Lida, pois, com demandas específicas de crianças, jovens, adultos e constituem a base inicial para novas construções e aquisições dos
idosos, homens e mulheres com diferentes idades, manifestações educandos. Para César Coll (2003), eles abrangem tanto conhecimentos
culturais e necessidades especiais. Daí a necessidade de tudo e informações sobre o conteúdo tratado - no caso o lazer -, como
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conhecimentos que, direta ou indiretamente, estão relacionados ou fundamental para consolidar todos os pressupostos da prática
podem relacionar-se com ele. E quanto mais esses conhecimentos forem educativa significativa.
trazidos à tona pelas intervenções educativas, mais os sujeitos terão E, do ponto de vista de quem propõe a ação educativa
dialogada, é fator preponderante ter escuta e acolhida atenciosas e
condições de avançarem na proposta desenvolvida.
Assim, uma forma de favorecer o acesso aos conhecimentos sensíveis ao outro, favorecendo a educação e interatividade do grupo.
prévios dos sujeitos está na prática do diálogo ao longo de todo processo
educativo, desde os primeiros encontros. Eles contribuem para ampliar
as chances de atendimento das demandas dos educandos valorizados Acesso pela interatividade e participação
como co-autores das ações realizadas, bem como para contextualizar as
A partir dos primeiros diálogos com os educandos, podemos
atividades a serem desenvolvidas (SESI Bahia, 2003).
não só problematizar suas vivências de lazer como também identificar
Outra forma de favorecer o acesso aos conhecimentos prévios
e analisar demandas, recursos disponíveis e possibilidades para
dos educandos é envolvendo-os na problematização das atividades
ampliação e otimização de suas práticas de lazer. Com isso, inicia-se o
propostas. Isso significa organizá-las sob forma de diálogos
planejamento participativo com os sujeitos envolvidos, definindo-se
questionadores do vivido. Para que isso aconteça, é imprescindível que
objetivos a alcançar e a programação de atividades a serem realizadas
tanto a problematização proposta, como o conteúdo tda atividade tenha
(Pinto; Zingoni, 1997).
significado para os educandos, ou seja, que contemplem sua
Há nessa participação descobertas importantes para a educação
subjetividade. para o lazer. A começar pelo maior conhecimento das diferenças entre as
A problematização e a fundamentação teórico-prática
pessoas e suas práticas culturais. Isso é fundamental para a inclusão e o
interdisciplinar dos conteúdos vividos ampliam condições de leitura e
acesso de todos na realização de múltiplas ações, pois cria oportunidade
compreensão dos limites e desafios postos pelos conhecimentos prévios.
de ampliar e diversificar o número de práticas culturais vividas no lazer,
Segundo Charlot (2000), o que é aprendido só pode ser
a partir de vivências significativas para os sujeitos.
apropriado pelo sujeito se fizer sentido para ele. E o valor do que é
A promoção da diversidade cultural no lazer é indispensável
aprendido está indissociavelmente ligado ao "sentido" e ao 'Valor" que
não só para ampliarmos o acesso ao patrimônio cultural disponível,
o sujeito atribui a ele mesmo, enquanto participa da ação educativa.
como também para atendermos aos interesses dos sujeitos, que
Podemos afirmar, com isso, que as relações entre o conheci-
incluem muitos desejos, linguagens e formas de ação. Por isso, o
mento prévio, a problematização e a atribuição de sentido às ações
planejamento com a participação de todos é uma estratégia
educativas pelo sujeito, no próprio processo educativo - mediados fundamental para a negociação e definição das prioridades das ações a
pelo diálogo - ampliam as possibilidades de acesso nas atividades serem desenvolvidas de modo que tornem realidade o acesso desejado.
educativas realizadas. Para garantia do acesso da população à maior gama possível de
Coll (2003) argumenta que uma ação educativa é tanto mais vivências de lazer, é imprescindível aliar a construção, a manutenção e
significativa quanto mais relações com sentido o educando for capaz o uso viabilizado de espaços e equipamentos a oportunidades de
de estabelecer entre o que já conhece e o novo conteúdo que lhe é vivências de diversificados conteúdos culturais no lazer: físicos,
apresentado como objeto de aprendizagem. esportivos, artísticos, sociais, intelectuais, tecnológicos, turísticos,
Assim, segundo a estratégia do diálogo, educar é estabelecer diante da natureza, dentre outros. Precisam também garantir
relações entre o vivido e o proposto, desejos e necessidades, o real e o polivalência de animação lúdica, mobilizada pelos usuários, grupos,
subjetivo, bem como entre os sujeitos conviventes nas ações. Ele é comunidades e profissionais qualificados.
Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto Lazer e Educação 57
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disponível, mas não dá para abraçar tudo, negar a influência dos meios
O processo educativo participativo implica formas de construção
de comunicação e nem dispensar seus recursos (Oliveira, 2002).
de idéias, estabelecimento de vínculos e trocas de conhecimentos,
Esse é um exemplo da importância das ações conscientizadoras
negociações das regras de convivência e dos conteúdos. Constitui
para o lazer.
dimensões de naturezas diferenciadas como afetiva, cognitiva, ética,
social, cultural, simbólica, estética, dentre outras. Como criação estética,
os processos educativos para o lazer e pelo lazer acabam tendo
conseqüência significativa de transitoriedade das manifestações vividas, Acesso pelas
que mudam a cada nova participação e criação.
Como diz Vygotsky (1998), envolve aprendizagens e
ações educativas sensibilizadoras
desenvolvimentos indissociáveis, pois a aprendizagem acontece na A realização de ações sensibilizadoras educativas para o lazer,
relação sujeito/mundo. A ação compartilhada gera conhecimentos planejadas e organizadas a partir das necessidades e possibilidades
uma vez que é com o outro que as relações entre sujeito e objeto são de intervenção se constituem noutra estratégia fundamental para a
estabelecidas. Nas interações estabelecidas pelas ações participativas, educação para o lazer (Marcellino, 1996).
o sujeito se apropria dos sistemas simbólicos, práticas sociais e Passo decisivo para a educação conscientizadora que propomos.
culturais de seu grupo. Mas, para isso, ações sensibilizadoras educativas para o lazer precisam
Convivência que se enriquece quando envolve pessoas com partir de situações significativas para os sujeitos envolvidos,
diferentes experiências, modos de ser e preferências culturais e mobilizando curiosidades e desejos dos educandos. Intervenção
oportunidades diversificadas de acesso, ampliada pela participação. A enriquecida pela vivência lúdica, cujo ambiente é favorável para ações
acessibilidade a diversas práticas de lazer valoriza-se quando envolve criticas e criativas, alegres e com autonomia (Pinto, 2004).
interlocutores. Nesse sentido, o lazer, mesmo como fruição, é sempre Ações que podem ser traduzidas sob diversas formas de
uma forma de interatividade e de participação. intervenção, tais como: realização de atividade impacto ou de apoio a
A educação envolve um instrumental de formas de percepção entidades diversas da comunidade; capacitação de lideranças por meio
do mundo, de comunicação e intercomunicação, de autoconhecimento de treinamento teórico-prático; organização de eventos de lazer;
e conhecimento das necessidades humanas. E propõe prover as formas realização de dinâmicas de grupo, palestras e debates; campanhas
de superação das necessidades identificadas. educativas; orientação sobre adaptação, otimização, criação e
As ações educativas sensibilizadoras para o lazer ampliam seu integração de equipamentos e de recursos materiais para a prática de
poder de expressão e difusão com a utilização das múltiplas linguagens lazer (Pinto; Zingoni, 1997). \
e formas de comunicação verbal (oral e escrita), analógica (recursos Mas, para que o processo sensibilizador possa garantir a
expressivos como tom de voz, deslocamentos no espaço, mímicas, intencionalidade educativa aqui discutida, a partir de discussões
risos, posturas etc.), audiovisual (rádio, gravador, fotos, vídeo, realizadas por Antony Zabala (1999), proponho o desenvolvimento
filmes etc.) e digital (softwares, internet etc.). de três etapas diferentes e inter-relacionadas, ou seja, fazer, refletir
Porém, o educador deve estar atento aos significados das sobre o fazer e refazer.
diferentes manifestações veiculadas pelos meios de comunicação e, Fazer- falo de um "fazer" que sabe de sua finalidade, realiza-se
obviamente, valorizar as expressões que estiverem a serviço da de diferentes formas culturais, o maior número de vezes possível,
sensibilidade e não da sua manipulação e efeitos massificantes. Afinal buscando o domínio da ação. Fazer que promove a aquisição de
não podemos desprezar a riqueza do patrimônio cultural que temos habilidades diversas (observação, identificação, compreensão,
Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto Lazer e Educação 59
58

comparação, avaliação). Que permite conhecer diferentes ação em relação ao uso dos recursos de infra-estruturas física, material
manifestações culturais (leitura, conto, jogo, esporte, desenho, dança, e financeira, disponíveis em diferentes tempos e espaços educativos da
teatro, artes plásticas, turismo, atividades sociais, intelectuais etc.). entidade, com maior condições de atendimento das necessidades
Que permite experimentar várias formas, ritmos e expressividades. diagnosticadas e ações realizadas (Pinto, 1996).
Que amplie possibilidades de ressignificação dos tempos, espaços e do A flexibilização e agilização de procedimentos na execução das
uso dos materiais utilizados. ações ampliam condições para replanejamento de ações, considerando
Refletir sobre afazer - a reflexão sobre a própria atividade valorização das ações criativas, adequação dos processos aos resultados
gera a importância dos conhecimentos teóricos, não entendendo a pretendidos e avaliação dos objetivos, resultados, fatores de risco e
teoria como algo isolado, mas tratada a partir da própria ação, atividades para qualificação dos programas e projetos (Pinto, 2005).
visando melhorá-la. Estratégia que nos lembra que para aprender um As avaliações sistemáticas, quantitativas, qualitativas e focadas
conteúdo não basta repetir um exercício. É necessário, por exemplo, em análises comparativas dos diagnósticos realizados são baseadas em
compreender as finalidades e princípios educativos; os fundamentos, indicadores de resultados, que consideram mudanças de hábitos,
possibilidades e limites do lazer; condições de uso dos tempos, comportamentos e efetividade dos resultados dos programas/projetos
espaços e equipamentos disponíveis. Por isso, precisamos refletir nas vidas das pessoas. Avaliam também a eficácia e eficiência do
não só sobre o modo como estamos exercitando as ações educativas processo desenvolvido e monitorado.
que desenvolvemos, mas também sobre seus fundamentos, A gestão de sistema de informação produzido nos processos
significados de sua prática em nossas vidas. de monitoramento e avaliação, sistematizado, analisado e difundido
Refazer - é importante aplicarmos os conhecimentos e para os envolvidos em todos os níveis do processo, é outro
experiências que construímos em nossas ações educativas para o instrumento estratégico de participação dos sujeitos, de fomento a
lazer em contextos diferentes, recriado e aplicado em outros tempos e estudos e revisões de programas/projetos, ampliando condições de
lugares cotidianos. Em síntese, a ação socioeducativa somente terá avaliação, acesso, divulgação e marketing, com vistas a socialização
sentido se mobilizar a formação de hábitos e agir com autonomia no e visibilidade dos resultados.
lazer. Esse é um momento de sedimentação em que se buscam O assessoramento técnico-científico contínuo dos programas e
condições de desenvolvimento de atividades permanentes no projetos de lazer buscam a construção de estratégias que viabilizem a
cotidiano, com organização direta e continuada de pessoas, grupos e qualidade da gestão dos mesmos, a qualificação dos seus planos de ação.
comunidades. A formação continuada dos educadores do lazer, por eles responsáveis
Para a Qualificação Continuada das ações educativas para o são ponto de partida para buscas de novos conhecimentos e formação
lazer, aqui propostas, faz-se necessário um trabalho em equipe, continuada dos educadores do lazer. Estudos que requerem o repensar
interdisciplinar, que reúna todos que atuam no contexto onde se das bases conceituai, procedimental e atitudinal integradas na
realiza a intervenção pretendida (Pinto, 1996). Plano que será mais teoria-prática interdisciplinar, a ser garantida nas ações socioeducativas
qualificado, respondendo melhor às múltiplas expectativas que promovidas (SESI Bahia, 2003).
nele são depositadas se realizado com integração intersetorial no Enfim, a discussão aqui realizada parte, sobretudo, do
planejamento/ação, ultrapassando o número de intervenções da pressuposto de que vivemos em uma sociedade onde alguns sujeitos
oferta já existente (Bonalume, 2004). e grupos têm maiores privilégios para usufruir dos bens produzidos.
A articulação entre parcerias internas - entre programas de lazer Nesse contexto, um desses bens essenciais é a educação para o lazer,
e os demais campos de atuação da entidade - e externas otimizam a da qual são excluídos aqueles que não têm chances de serem
Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto Lazer e Educação 61
60

PINTO, L. M. S. M. A construção da interdisciplinaridade no lazer; experiência


educados para práticas diversificadas, conscientes e interativas no
política da prefeitura de Belo Horizonte. In: MARCELLINO, N. C. (Org.) Lazer e
lazer. E, como diz Paulo Freire, para a transformação dessa realidade políticas públicas setoriais: o papel das prefeituras. São Paulo: Autores
é preciso que os sujeitos conheçam suas realidades, relacionem todas Associados, 1996. p. 61-70.
as dimensões da vida com suas condições concretas, atuem e reflitam PINTO, L. M. S. M.; ZINGONI, P. Centros de referência regionalizados de
sobre tudo que foi e não foi possível. esporte e lazer: um passo a mais para a sua concretização. In: ENAREL, 9., 1997a,
Esse é o fundamento principal da proposta de educação para Belo Horizonte. Anais ... Belo Horizonte: PBH/UFMG/SESI - DN, 1997. p.
e pelo lazer que coloco para sua reflexão! 746-54.
PINTO, L. M. S. M.; ZINGONI, P. Centros de referência regionalizados de
esporte e lazer: proposta política da SMES/PBH. In: CONBRACE, 10, 1997b,
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BONALUME, C. R. Políticas públicas de esporte e lazer nos programas de PINTO, L. M. S. M. Políticas participativas de lazer. Brasília: SESI - DN, 2005.
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PERRENOUD, P. Construir as competências desde a escola. Tradução: Bruno
Charles Magne. Porto Alegre: Artes Médicas Editora, 1999.
Capitulo 4

LAZER E RELIGIÃO
Algumas aproximações1
Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel

A aproximação de duas temáticas tão polêmicas como são o


lazer e a religião pode se dar por vários caminhos. A análise das
relações estabelecidas entre as temáticas lazer e religião pode ocorrer
através de religiões específicas, sob a ótica das ciências sociais. Enfim,
abre-se um leque profícuo de investigação no campo acadêmico.
A proposta deste artigo não é a de esgotar as discussões e as
possibilidades de análise das relações entre essas duas temáticas,
mas destacar elementos que considero essenciais para qualquer
estudo que procure aprofundar-se em aspectos específicos de suas
relações. Busco destacar algumas relações apresentadas por autores
que procuraram discutir o lazer, verificando as abordagens que
estes realizaram sobre os possíveis vínculos com a religião. Esta
tarefa não é tão simples, haja vista que ambos os temas são
permeados de preconceitos, interesses adversos e mal entendidos.
Uma das tentativas de analisar as relações entre as temáticas
lazer e religião parte do pastor protestante Harvey Cox. No livro A
festa dos foliões busca redescobrir a festa perdida. Nesse livro,
publicado em 1968, que é continuação de suas análises teológicas
iniciadas em uma obra anterior denominada A Cidade do Homem2,

' • Este texto tem como base o primeiro capítulo de minha dissertação de mestrado
intitulada Do santíssimo trabalho à sagrada preguiça: lazer e religião na obra
de Paul Lafargue, defendida junto ao programa de pós-graduação em
Educação Física da Unimep-Universidade Metodista de Piracicaba em
novembro de 2004.
2- Título original em inglês: The secular city.
Lazer e Religião 65
Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel
64
permitiria à raça humana manter seu caráter de festividade e fantasia,
Cox destaca o significado simbólico da celebração e da liturgia, sem deformar-se com sua inexistência.
como resgate da importância que a religião cristã teve na perda da O período descrito por Cox, em suas teses, traz à discussão o
festividade da Idade Média em diante. processo de relação entre o lazer (caracterizado pelo lúdico) e a
A chamada "Festa dos Loucos" confrontava as autoridades religião na perspectiva da perda da festividade e fantasia e a
religiosas eclesiásticas. Nessas festas, as regras sociais (permeadas possibilidade de recuperação na estrutura social vigente, caracterizada
de um moralismo excessivo) davam lugar à permissividade pela departamentalização de aspectos da vida, tido não mais como
exacerbada, na qual os padrões sociais eram contestados através de inter-relacionados, mas estanques. A modernidade, de fato, é
grande zombaria. Como afirma Dumazedier (1975, p. 34) poderia caracterizada por uma redução da capacidade festiva, pela privação de
ter sido chamada como algumas imitações do Carnaval, no germe do que certos hábitos coletivos de celebração e a progressiva individualização
se faz agora em grande escala. de alguns aspectos da vida em detrimento do coletivo. Cox fomenta as
Segundo Cox (1974), a supressão dessa festa gerou discussões de um retorno às festividades por meio do repensar da sua
mudanças significativas em todo o Ocidente, com mais destaque relação com a religião, como manifestação histórica, recuperando sua
para a Europa, e depois por todo o mundo. Sua repressão significou proximidade como possibilidade de manifestação do sagrado por meio
a possibilidade de manifestações da alegria através das fantasias, da da alegria da festa.
festividade. A razão maior apresentada pelo autor para sua A percepção dos problemas do trabalho no mundo moderno,
supressão foram as novas práticas sociais e econômicas que deram ligados ao processo de industrialização, e suas implicações para as
origem ao capitalismo, atreladas às transformações sociais ligadas manifestações do cotidiano tiveram suas discussões iniciais advindas
ao desenvolvimento industrial, com todos seus efeitos. do próprio discurso religioso. A religião tendeu a, progressivamente,
Para ocorrer um resgate dessa manifestação popular, de acordo reduzir seu poder de influência nas sociedades urbano-industriais, se
com Cox (1974), foi necessário o reencontro com a festividade comparado à influência e controle desempenhados no meio rural. O
perdida, bem como com a fantasia e a crítica social, que descreve ser desrespeito aos feriados litúrgicos foi o gerador dos primeiros embates
bem expressa entre os norte-americanos pelo Halloween (Dia das entre o poder eclesiástico e os representantes do capital.
Bruxas). Para ele essa festividade é a capacidade de uma folia genuína Neste contexto, o processo de secularização das cidades,
e de alegres celebrações, na qual a fantasia quebra o cotidiano. Estas manifestado na mudança paulatina dos valores e costumes familiares,
manifestações haviam sido perdidas pelo homem pelo caráter sóbrio, laborais e religiosos despertou o interesse de investigação dos teólogos,
sem ludicidade e imaginação, resultados da industrialização. que perceberam que quanto maior o processo de saída do campo para as
Até mesmo a restrita possibilidade de vivências da festa perdida
cidades, menor o poder de ação das autoridades tradicionais, tais como
nos feriados religiosos (Natal e Páscoa, principalmente) passou a
pai de família, líderes políticos e religiosos.
assumir muito mais um caráter comercial do que propriamente festivo.
Percebe-se, apesar de a intenção não ser a de vivenciar os
Cox (1974) fala de um homo festivus que não vive apenas para o
valores do lazer, a igreja funcionando como uma espécie de
trabalho, mas para refletir, dançar, rezar, compartilhar a vida
resistência ao poder avassalador do capital que sujeitava famílias
coletivamente, celebrar festas. Escreve ainda sobre um homo inteiras ao trabalho desumano privando-as de tempo disponível
phantasia que cultiva o sonho e cria mitos. Esses homens são para valores diferentes do mundo do trabalho. Essa resistência não
caracterizados pela extrema capacidade inventiva, de imaginação e durou muito em virtude dos próprios interesses eclesiásticos nos
modificação, sendo essas capacidades representantes de elementos de
frutos do desenvolvimento, advindo do trabalho da sociedade
sobrevivência para a espécie humana. A capacidade de celebrar é que
capitalista moderna.
Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel Lazer e Religião 67
66

A liderança religiosa, principalmente da zona rural, A preocupação com este tempo, portanto, no que diz respeito ao
desempenhava uma autoridade significativa para as comunidades, seu controle e administração está relacionada às conseqüências que os
Essa liderança, segundo Camargo (1998, p. 33), era exercida não valores dele advindos podem trazer para a estrutura social. Entendendo
somente para organizar os cultos de domingo, mas as festas, os jogos pelas que não era possível negar a existência do lazer, as instituições
organizações, conselhos de família etc. Essas práticas, com menos tradicionais da sociedade, com base numa visão funcionalista, passam a
intensidade, ainda existem, na sociedade contemporânea. argumentar que o lazer deve agir como compensação e preparação para
Entretanto, o que é de fundamental importância a ser percebido o trabalho alienado. Marcellino (2003, p. 27) destaca, que a visão
relaciona-se ao aspecto da relação religião, festa e controle social. funcionalista, representada pelos autores da Teoria do Capital Humano,
Nessas festas promovidas pela igreja o senso de coletividade bem como os "adeptos da velha moral cristã do trabalho", no que diz
ficava mais evidente, pois por mais que as pessoas quisessem se respeito ao mundo do lazer e do trabalho, fortalece a alienação no
isolar, a festividade possuía a capacidade de congregar e fortalecer a trabalho, pois ao considerar o homem como simples máquina, vê no
comunidade. Além do lucro gerado pelas festas à igreja, a liderança lazer o tempo necessário de "manutenção e reparo".
eclesiástica local poderia exercer influência mais facilmente em uma A moral da civilização cristã, surgida no período após a
coletividade que manifestava sua capacidade festiva e de fantasia sob civilização greco-romana, a partir do século IV, possui duas formas
os auspícios da instituição. Esse tipo de controle diminui com o principais de encarar a relação entre o trabalho e o lúdico. A primeira,
passar do tempo, mas dá lugar a outras esferas de influência. Neste presente principalmente no catolicismo, é a de condenação do
sentido Dumazedier (1975, p. 33) afirma que: nada-fazer e do divertimento de forma geral, origem de máximas que
até hoje se repetem - "a ociosidade é a mãe de todos os vícios", "para
cada vez mais a autoridade religiosa recua para dar
cabeça vazia, o diabo arruma serviço" (Camargo, 1998, p. 28). Além disso,
importância às autoridades leigas. Diante desta situação e
há a valorização do trabalho em detrimento do valor monetário real
no controle das atividades dos fiéis, a tendência é o recuo
das autoridades religiosas, em benefício dos responsáveis deste. E neste sentido:
leigos, de maneira que os próprios fiéis organizem seu o trabalho seria uma obrigação a que o homem está condenado
tempo, como assim desejarem e particularmente o tempo ("comerás o pão com suor do teu rosto!", diz a Bíblia). Mas ser
de lazer. Aí, também, a tendência à auto-gestão do tempo mal-sucedido no trabalho não é problema. Na verdade, o pobre
de lazer pelos próprios interessados é muito grande. seria um eleito de Deus. Poder-se-ia mesmo dizer que o ideal
de vida no início do cristianismo é o do homem que trabalha
Este recuo das autoridades eclesiásticas traz consigo a
bastante, aproveitando o tempo livre para a prece, para não cair
problemática da não educação para o lazer. Se antes o poder da igreja
em tentações, e sem muita abastança material, para o espírito
controlava o tempo da festa, agora surge a necessidade de entender
não enfraquecer. Nada, pois, de acumular dinheiro ou bens
como utilizar esse tempo, a educação para o lazer. Entretanto, materiais (Camargo, 1998, p. 28).
lideranças, não apenas religiosas, perceberam as possíveis
conseqüências que a autogestão do tempo disponível poderia trazer Essa vertente católica vê no trabalho, portanto, uma maldição
para a estrutura social. O lazer poderia atuar como resistência, como que independentemente de lucro ou não deve continuar a ser
meio de mudar a ordem social vigente. Os indivíduos que vivenciam realizada. O controle social deste homem é facilitado, pois seu tempo
valores diferentes ao mundo do trabalho, no tempo de lazer, percebem, disponível é limitado, e nele deve haver dedicação à solitude da vida
assimilam e criticam a forma como a sociedade tende a reprimir certas piedosa, devocional e à meditação, objetivando uma maior
atitudes e privá-las de certas vivências.
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68

Para piorar a situação, o conceito de predestinação reforçava


santificação, numa concepção dicotômica de militância da carne
que se esta era a sina ao qual o homem havia sido destinado, deveria
contra o espírito.
A vertente religiosa protestante, marcadamente a partir do encará-la como justiça de Deus, fruto do pecado original.
início do século XVI, com suas novas doutrinas, buscou conciliar Ao ócio feliz do Paraíso segue-se o sofrimento do
ideais capitalistas às práticas religiosas. O trabalho, e juntamente trabalho como pena imposta pela justiça divina e por isso os
com ele o lazer, passaram a ser vistos de forma diferente. Uma das filhos de Adão e Eva, isto é, a humanidade inteira, pecarão
novamente se não se submeterem à obrigação de trabalhar.
personalidades importantes para o movimento da Reforma
Porque a pena foi imposta diretamente pela vontade de
Protestante, ao lado de Martinho Lutero, foi João Calvino que,
Deus, não cumpri-la é crime de lesa-divindade e por essa
segundo Camargo (1998, p. 28-9), tinha como lampejo de ludicidade
razão a preguiça é pecado capital, um gozo cujo direito os
em sua vida o ocupar-se com um jogo de bochas, semelhante àqueles que humanos perderam para sempre (Chaui, 1999, p. 9-10).
se pratica nos parques europeus. Talvez ele até sorrisse nessas ocasiões [...]
Ao referir-se a Max Weber, em A ética protestante e o
De resto, condenava tudo que não fosse trabalho e prece.
A riqueza, como fruto do trabalho, passou a ser encarada pelo espírito do capitalismo, Chaui (1999) destaca a valorização que o
puritanismo deu à vida secular. Benjamin Franklin é utilizado por
protestantismo como favor divino, sendo a pobreza uma conseqüência
Weber como representante do novo ethos. Neste sentido, a virtude
do não trabalho, considerada como sinal da comunhão quebrada com
do cristão se encontra no fato de seguir à risca normas sociais,
Deus. O trabalho e os bens materiais passam a possuir valor
dentre as quais estaria o trabalho, não apenas como necessidade de
considerável para o status social. Valorizando a riqueza e a busca por
base moral, mas como instrumento de racionalização da atividade
bens materiais, o protestantismo fornece a base ética às teorias
fonte de lucro.
capitalistas de Adam Smith (1723-90).
Aquele que faz seu trabalho render dinheiro e, em lugar
A "saúde" do capitalismo estaria, portanto, na criação
de gastá-lo, o investe em mais trabalho para gerar mais
de homens que acumulassem riqueza, investissem,
dinheiro e mais lucro, vivendo frugalmente e honestamente
gerassem empregos etc., enfim, tudo o que os empresários (isto é, pagando em dia suas dívidas para assim obter mais
repetem até hoje [...] (Camargo, 1998, p. 29). crédito), é um homem virtuoso. Trabalhar é ganhar para

A ética protestante, ao supervalorizar o trabalho, com vistas a poupar e investir para que se possa trabalhar mais e investir
mais (Chaui, 1999, p. 14).
criar condições ao processo adaptativo do homem à sociedade
industrial criou uma concepção que retornou ao trabalho como É interessante perceber que a maldição do trabalho é valorizada
maldição, descrita no livro de Gênesis. Segundo Chaui (1999, p. 13), num discurso teológico que conhece o redimensionamento de valores
advindos do contexto teológico da graça, fruto do cristianismo. Esse
no calvinismo (particularmente em sua versão inglesa
conceito, numa concepção religiosa, dogmática, não deixa outra
puritana), tornou-se regra moral o dito "mãos desocupadas,
alternativa ao ser humano, a não ser submeter-se às pesadas cargas do
oficina do diabo". Nesse aforismo está sintetizada a
trabalho. Portanto, na tradição judaico-cristã, é evidente o caráter ruim
metamorfose do trabalho num ethos. De castigo divino que
fora, tornou-se virtude e chamamento (ou vocação) divino.
do trabalho, pois se assim não fosse não seria descrito como maldição.
Mas apesar desse fato, deve ser realizado voluntariamente. Entretanto,
Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel Lazer e Religião 71
70

Chaui (1999, p. 11) afirma que não é apenas no judaísmo ou no Entretanto, há outras perspectivas que, dentro da teoria do lazer
cristianismo que esta visão é evidenciada: analisam suas possíveis relações com a religião. Destaco a obra
Sociologia do lazer de Stanley Parker, ao procurar estabelecer
Essa idéia aparece em quase todos os mitos que narram a
afinidades entre o lazer e a religião. Dentre elas o autor refere-se àquilo
origem das sociedades humanas como efeito de um crime cuja
que de comum percebe em ambos os temas: desejo, anseio de bem-estar
punição será a necessidade de trabalhar para viver. Ela também
pessoal, a possibilidade de livre escolha, o potencial que ambos
aparece nas sociedades escravistas antigas, como a grega e a
romana, cujos poetas e filósofos não se cansam de proclamar o possuem de integrar e de valorizarem a recreação. O tipo de crença
ócio um valor indispensável para a vida livre e feliz, para o religiosa que predomina em uma comunidade influencia as oportunidades de
exercício da nobre atividade da política, para o cultivo do lazer tanto dos fiéis quanto do público em geral (Parker, 1978, p. 124).
espírito (das letras, artes e ciências)3 e para o cuidado com o Noto uma abordagem funcionalista nessas análises, pois em
vigor e a beleza do corpo (pela ginástica, dança e arte militar), última instância prevalece a necessidade de manutenção da ordem
vendo o trabalho como pena que cabe aos escravos e desonra estabelecida, por meio de busca pela felicidade tanto em uma quanto
que cai sobre homens livres e pobres. São estes últimos que, na em outra esfera. Entretanto, esta busca deve estar permeada por um
sociedade romana, eram chamados de humi/íores, os humildes conceito de mudança, sem a qual fica insustentável conceber uma
ou inferiores, em contraposição aos honest/ores, os homens outra forma de sociedade. Mesmo assim, entendo que em ambas as
bons porque livres, senhores da terra, da guerra e da política. perspectivas há aberturas para a mudança, ou seja, tanto o lazer quanto
A sociedade grega e a romana deixam muito evidente sua a religião, entendidos de forma compensatória, carregam consigo o
consideração ao ato de trabalhar por possuírem vocábulos germe da mudança, por meio da possibilidade de enxergar uma outra
referentes ao produto do trabalho e não ao ato de gerá-los: ergon sociedade, mais justa e humana do que a que se vive.
(em grego) e opus (em latim). Trabalho tem origem na palavra Uma outra relação destacada por Parker é o estabelecimento
do feriado público no domingo, por parte do Imperador Constantino,
latina tripalium,
no ano 321 da era cristã, e afirma que sem referência a quaisquer ideais
instrumento de tortura para empalar escravos rebeldes e
cristãos, decretou o feriado público do domingo (Parker, 1978, p. 124). Na
deriva de palus, estaca, poste onde se empatam os
tradição cristã, o domingo tornou-se o dia em que há, de certa forma,
condenados. E labor (em latim) significa esforço penoso,
uma quebra da rotina do cotidiano, em oposição aos outros dias da
dobrar-se sobre o peso de uma carga, dor, sofrimento,
semana em que o ritmo da vida é acelerado. As práticas sociais
pena e fadiga (Chaui, 1999, p. 1 1 -2).
contemplativas se diferem das práticas da denominada vida ativa e
Percebe-se, neste sentido, o grau elevado que o dogma religioso poderíamos dizer que no domingo, na tradição judaica, formaram um
possui ao determinar um tipo de atividade humana como ruim, mas determinado padrão que passou a ter grande influência nas culturas
necessária, dando-lhe um caráter de redenção, de humilhação, por um posteriores (Kamper, 1998, p. 34).
crime que muitos nem têm consciência de terem cometido. O pecado É evidente que a possibilidade de contemplação, como
original, de Adão e Eva, é a justificativa que dá suporte para uma vida destaca Kamper (1998), não é privilégio de todos, mas de uma
de submissão, da qual o trabalho torna-se um meio de purificação. minoria da população que não precisa utilizar os finais de semana
como meio de colocar a casa em ordem, dedicar a reparos e serviços
domésticos, ou trabalhar como forma de complementar o orçamento
3. Em grego, ócio se diz scholé, de onde vem a palavra escola. Para os antigos, só
familiar. O ritmo frenético do cotidiano para a maior parte da
era possível dedicar-se à atividade do conhecimento se não se estivesse
escravizado pela obrigação de trabalhar (Nota da autora). População, nos dias denominados popularmente de "dias de semana"
Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel Lazer e Religião
72 73

em oposição aos dias de final de semana, são caracterizados pela que o fim de semana está diretamente ligado à relação entre trabalho
aceleração e falta de tempo para si mesmo, reforçando processos de Q lazer. Explora a evolução do dia-tabu em dia-santo, na evolução
alienação não só no trabalho, mas em outras esferas da vida social. do sábado judaico, como dia para ser temido, dedicado, portanto,
Vale destacar que a passagem do sábado4 como dia santificado, exclusivamente ao descanso. A resposta do autor ao retorno das
dia ligado ao descanso, para o domingo, com tais funções, é justificada atividades de trabalho aos sábados e domingos é encontrada na sua
pela doutrina da ressurreição de Cristo. O que é relevante para os estudos relação com o comércio, na medida em que, na Idade Média, nasce
do lazer, nestes aspectos, é que tanto o sábado, na tradição judaica, quanto o o dia do comércio, inserido nos antigos dias-santos.
domingo, na tradição cristã, seguem um ritmo, um andamento distinto do Com relação ao movimento da Reforma Protestante, Parker
ritmo da criação do trabalho (Kamper, 1998, p. 34-5). (1978) afirma que houve uma mudança significativa na dinâmica
O ritmo do mundo contemporâneo imprime uma dinâmica veloz dos feriados devido ao abandono dos dias santos e feriados, pois o
à vida e com isso nasce uma falsa concepção de vida ativa. Apesar de protestantismo abandona a devoção aos santos da Igreja Católica.
muita atividade externa, não há, por vezes, a atividade crítica necessária Além desse abandono, surge um grau elevado de hostilidade para
à loucura do mundo (pós) moderno. Tanto o sábado judaico quanto o com as práticas recreativas.
domingo cristão são a maior representação hodiema de que ainda se Muito desse desagrado quanto aos divertimentos
pensam e vivenciam ritmos diferentes daqueles do mundo do trabalho tradicionais foi gerado pelo movimento do puritanismo
estruturado e caracterizado no modo de produção capitalista que, como dissidente... as tradições do lazer popular foram mal vistas por
descreve Kamper (1998, p. 35), ainda resiste contra essa tentativa do numerosos motivos: eram consideradas profanas e licenciosas-
trabalho em ultrapassar suas fronteiras e tornar-se incomensurável. eram ocasiões de práticas mundanas, o que afastava os homens
de uma vida devota; tendo suas raízes em práticas pagas e
A discussão sobre o processo de evolução do fim de semana é
papistas, tinham cerimônias e rituais magnificentes, o que não
feita por Rybczynski (2000), o qual, dentre outros aspectos, analisa a
condizia com a consciência protestante; freqüentemente
evolução da prática do descanso dominical para a instituição do fim
desrespeitavam o dia do descanso, interferindo com o culto dos
de semana. Essa evolução, segundo o autor, fez com que o tempo de verdadeiros crentes; subvertiam a ordem pacata da sociedade,
descanso, com característica de desaceleração, desse forma a um afastando os homens de seus deveres sociais básicos - trabalho
tempo cheio de atividades, nas quais as agendas deveriam sempre árduo, economia, contenção pessoal, devoção à família, aspecto
estar preenchidas. sóbrio (Parker, 1978, p. 125).
Em busca das origens da divisão do tempo da semana, da
Fica evidente o início de uma acirrada competição pelo tempo
forma como se estrutura hoje, com sete dias, Rybczynski (2000)
livre das pessoas, e mais ainda pela possibilidade de educação nesse
encontra na religião uma das respostas possíveis. Recorrendo a
tempo. A possibilidade de vivências diferentes das do mundo do
Veblen, no que se refere aos dias-tabu e aos dias-santos, ele afirma
trabalho, ou dos valores pregados pela religião, fizeram da recreação
uma atitude que cada vez mais tomava uma dimensão profana. Isso é
4. Sábado tem sua raiz no conceito hebraico de "shabath", fundado na passagem evidenciado pelas sanções que eram imputadas às pessoas que no
do livro de Êxodo 20:9-11: "Trabalharás durante seis dias e farás a tua obra. O lazer dedicavam-se ao jogo e à bebedice. Uma tentativa, destacada
sétimo dia, porém, é o sábado de lahweh teu Deus. Não farás nenhum trabalho,
nem tu,<nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu
Por Parker, de reaproximação entre a recreação e a religião é a
animal, nem o estrangeiro que está em tuas portas. Porque em seis dias lahweh realizada pelos mórmons, em contraposição à moral puritana:
fez o céu, a terra, o mar e tudo que eles contêm, mas repousou no sétimo dia;
os mórmons, que advogam com vigor a prática do exercício
por isso lahweh abençoou o dia de sábado e o santificou" (Versão: Bíblia de
Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1987). físico e da recreação sadia e que "desde o início deram grande
valor às brincadeiras e à alegria, repudiando ao mesmo tempo
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Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel Lazer e Religião 75

o pessimismo religioso e a orientação de leis muito severas da trabalho que vão de encontro às características mais fundamentais
tradição puritana... Em resumo, os mórmons espiritualizaram da vida humana.
a recreação" (Parker, 1978, p. 126). A visão de Pieper é compartilhada por Parker (1978), o qual
Parker destaca ainda a tentativa de aproximação entre as reafirma o caráter compensatório e terapêutico do lazer, como
temáticas lazer (lúdico) e religião realizada no clássico Homo forma de reparar o organismo dos males advindos do trabalho. O
Ludens, do historiador Johan Huizinga, afirmando que, nessa obra, seu conceito de recreação passa pela possibilidade de o organismo
o jogo e a religião têm qualidades muito próximas. Huizinga (1971) se "recriar" após, arrisco dizer, ter sido "descriado" pelas tensões e
afirma que, em ambos, há a possibilidade de seriedade e busca pela dinâmicas da laboriosidade. O conceito de recreação de Parker, na
perfeição. Outra característica destacada é que tanto no jogo quanto sua relação com a religião, é estruturado da seguinte forma:
na religião há uma dimensão concomitante de finitude e infmitude. Literalmente a recreação refere-se ao propósito evidente
As dimensões reais e imaginárias são características de ambos. E, da atividade do lazer, um processo terapêutico de reparar o
por fim, afirma que considera a dimensão simbólica como organismo (recriar) dos desgastes resultantes do trabalho e
característica comum entre o jogo e a religião, nas manifestações, suas tensões. Com "recreação", queremos dizer restaurar,
principalmente, das vestimentas, rituais e vocabulários próprios. restabelecer, retornar a um estado original ou ideal: recriar. E
Outra obra de suma importância, dentre as que buscaram a qual é esse estado ideal? Segundo Ralph Glasser, a religião
aproximação entre o lazer e a religião, é a de Josef Pieper, Felicidade e ofereceu uma resposta com a idéia da Graça, uma unidade
contemplação: lazer e culto. Para ele o lazer é uma atitude semelhante espiritual com a Vontade Divina, inseparável de um certo tipo
à religião, pois exige um esforço e envolvimento mental e espiritual. A de conduta. Separada desta concepção espiritual, a idéia de
recreação tem a circularidade sem objetivo de nos devolver
atitude daquele que vivência o lazer e suas possibilidades quebra o
simplesmente a um estado no qual podemos continuar
modelo cotidiano de vida no trabalho. De forma semelhante a Harvey
melhor o trabalho (1978, p. 130).
Cox, Pieper (1969) acredita que as celebrações e festividades têm um
poder de tratamento da vida humana, vivida sob uma perspectiva O parâmetro estabelecido por Parker para a realização do lazer
espiritual. Vale destacar, como bem expressa Parker (1978, p. 127), e suas possibilidades está atrelado, primeiramente, ao que estas
que o conceito de "lazer e festividade" de Pieper está restrito "à música vivências trazem de benefício ao mundo do trabalho. Entretanto,
e à contemplação". A festividade seria a fonte do lazer, sendo que se acredito que o parâmetro deve ser primeiramente o da busca pela
este deixar de existir o trabalho se torna desumano. dignidade da vida humana e, no caso na sociedade contemporânea, a
Essa relação parece um tanto restrita ao afirmar que o caráter busca pela mudança social urgente. O lazer não deve atuar
desumano do trabalho esteja relacionado à impossibilidade de (parafraseando Marx) como ópio, mas como momento de vivência
vivências festivas, característica primordial para a existência do de valores que, na sociedade atual, contribuam para a percepção,
lazer. O lazer pode ser festivo e permeado de valores humanos e reflexão, crítica e mudança da estrutura social vigente, bem como
mesmo assim o trabalho estar permeado de características espaço/tempo privilegiado para o descanso e o divertimento.
alienantes e desumanas. O que entendo é que se nos dois corre o Um outro tópico de discussão que Parker (l 978, p. 130) estabe-
mesmo sangue social há uma relação de dependência entre ambos. lece é o das prescrições religiosas para o lazer. As religiões estabelecidas
Um trabalho desumano e alienado caracteriza um lazer alienado. também podem exercer uma influência restritiva nas formas pelas quais o
Isso não exclui a possibilidade de relação dialética entre ambos, o Público em geral usa o seu lazer, embora esta influência seja hoje menor do
lazer pode agir como resistência e confronto aos valores de um que no passado. Entretanto destaca que, se existirem, as prescrições reli-
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Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel T Lazer e Religião 77

giosas não ficam, por vezes, restritas aos fiéis de determinada insti- tornar-se extremamente complicada, na medida em que se
tuição, mas são estendidas à sociedade de forma geral, dependendo estabelece a competição entre ambos.
do grau de influência que a instituição precursora do valor e costu- Na busca do que denomina de Uma Teologia do Esporte e
me tenha sobre determinada comunidade. Lazer, Gondim (1998, p. 137) destaca que a relação conflitiva entre
Apesar de considerar que as restrições advindas da religião com lazer e religião tem sua origem numa base doutrinária que, em
relação ao lazer sejam menores do que em outras épocas, vale destacar determinadas denominações eclesiásticas, considera o lazer e os
que em muitos círculos religiosos, na sociedade atual, há punições esportes como práticas mundanas. Os jovens são proibidos de se
severas aos que quebram a norma religiosa. Mariano (1995 apud envolverem em qualquer atividade lúdica. Algumas igrejas proíbem os seus
Gondim, 1998, p. 14-5) ao investigar o neopentecostalismo brasileiro membros de jogar bola, soltar pipa, brincar com bolas de gude ou bonecas.
inquiriu a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à As atividades de lazer são consideradas como carnais e desperdício de
Infância e Adolescência - ABRAPIA com relação aos usos e costumes tempo. Destaca que é necessário combater determinadas distorções
de determinadas religiões e sua relação com a vida infantil. A resposta bíblico-teológicas, caracterizadas muito mais pela tradição humana,
obtida evidencia o que o fanatismo pode gerar à vida infantil: do que propriamente pela essência bíblica.
A vivência de uma espiritualidade, dentro da igreja, que leve em
O tema em questão - "violência contra criança por
conta a integralidade humana, sem dicotomizar ou tricotomizar a vida,
motivos e justificativas bíblico-religiosas"- é sumamente
deve manter evidente que os conceitos de ludicidade e lazer, ligados ao
complexo... Na maioria das vezes, a violência começa com a
prazer, podendo ser desfrutados em um tempo específico, com uma
privação da criança e sobretudo do adolescente ávida social. A
privação de participar em festinhas, ir ao cinema, ver TV, sair
atitude favorável, necessitam libertar-se de tradições religiosas que
com os amigos, acaba numa relação pais-filhos/filhas muito legitimam um processo de dominação e até de violência dentro das
conflitiva. A justificativa dos pais, nestes casos, é proteger a igrejas. O padrão do mundo do trabalho na sociedade capitalista, que
criança das perversidades do mundo e preservá-las para Deus. prega o sucesso como a busca maior do ser humano, por vezes
Para isso, vale até surrá-las, trancá-las, tirá-las da escola etc. legitimados em determinadas abordagens teológicas, requer
Quando.se trata de uma criança normal, todas essas regras constantes reflexões, dando lugar a novas atitudes no tempo
rígidas são desobedecidas, o que provoca a ira santa dos pais disponível. Como bem lembra Gondim (1998, p. 140):
ou responsáveis. A partir daí, para tirar o demônio do corpo da
Salomão nos ensinou em Eclesiastes 3:1-8 que há
criança vale tudo. [...] As explicações religiosas são repetidas
tempo para tudo. É no ordenamento de nossas prioridades
como argumento para tais atitudes. O mais grave ao nosso
que descobriremos a beleza da vida. Muitas vezes
entender é que a religião tem reforçado o poder dos pais invertemos as prioridades e acabamos nos violentando. [...]
sobre os filhos, construindo uma relação desigual, de
dominação do mais forte sobre o mais fraco. 5. Eclesiastes 3: l -8: "Há um momento para tudo e um tempo para todo propósito
debaixo do céu. Tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e
Destaco esse resultado de pesquisa como relevante nas tempo de arrancar a planta. Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de
análises sobre a relação entre o lazer e a religião para evidenciar que destruir, e tempo de construir. Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de
gemer, e tempo de bailar. Tempo de atirar pedras, e tempo de recolher pedras;
a religião, com seus valores e costumes, possui na atualidade uma tempo de abraçar, e tempo de se separar. Tempo de buscar, e tempo de perder;
relação direta com o lazer. Essa relação está ligada na maioria das tempo de guardar, e tempo de jogar fora. Tempo de rasgar, e tempo de costurar;
tempo de calar, e tempo de falar. Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de
vezes na tentativa de moralização das práticas de lazer, tidas como guerra, e tempo de paz. (Versão: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas,
mundanas, em contraposição às práticas tidas como santas, as quais 1987). Destaco ainda o versículo 9, muito significativo ao se pensar no lazer:
não quebram a relação com o sagrado. A relação, portanto, pode "Que proveito o trabalhador tira de sua fadiga?".
7g Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel Lazer e Religião 79

Há, sim, momentos de não fazer nada. Nessas horas é pensamento tradicional também na relação trabalho e lazer,
mais espiritual brincar com o filho, rolando na grama ou na sala incorporando e analisando os comportamentos gerados no
da casa do que "bravejar" palavras religiosas [...]. A verdadeira lazer. A Igreja, como parte da sociedade, troca relações e reage
espiritualidade consiste em saber discernir esses momentos. às pressões verificadas em outros setores, e talvez por isso
venha ocorrendo no catolicismo uma tendência geral de
A dinâmica do sucesso a qualquer preço ligada ao mundo do
assumir os valores do lazer, o que não significa, contudo,
capital tem suas sustentações teológicas muito bem elaboradas.
ausência de reservas e até mesmo oposição a eles, sobretudo
Conjecturas que atribuem ao sucesso a manifestação da bênção do céu. nos setores mais tradicionais.
A superação do trabalho alienado, caracterizado pela dominação, é um
desafio que, ao que parece, só pode ser superado por meio da instituição Esse usufruto dos valores presentes no lazer pela igreja é
de um novo modelo social, no qual a religião deverá participar como destacado também por Camargo (1998, p. 29), o qual afirma que a
forma de favorecer este reencontro do homem com uma dinâmica que é Igreja Católica buscou trazer para o seio da comunidade eclesiástica
inerente à sua natureza, a capacidade de produzir e expressar-se por manifestações da cultura popular, até mesmo nas celebrações. Houve
meio das obras de suas mãos. um movimento por uma moda cristã, que procurava conciliar a beleza da
moda leiga com o pudor necessário ao fiel, principalmente à mulher.
Nessa acepção, o trabalho é uma atividade que procura
Entretanto, segundo ele, o Concilio Vaticano II, na década de 1960,
potencializar o ser humano: o trabalho vendo o homem como
recomendou que houvesse uma inserção maior dos fiéis nas
uma obra que deve ser trabalhada e que é aperfeiçoada em
organizações leigas, e lá se desse o exemplo de vida cristã.
meio a esse trabalho. O trabalho é responsável pela criação do
novo homem e esse novo homem é um dos sonhos mais Para Parker (1978, p. 132), a igreja tem adotado características
antigos da tradição européia, seria a pedra filosofal, o ouro de centro social, como um dos meios possíveis de conformar-se à
buscado pelos alquimistas, e seria, também, a quintessência realidade de sua época. Destaca as iniciativas tanto católicas quanto
buscada pelos alquimistas que sempre foi compreendida como protestantes de fazer o ambiente eclesiástico um locus que promova
um movimento ascendente na matéria, no qual os quatro encontros entre jovens através da Igreja, desde que a sociabilidade do grupo
elementos acabam se aperfeiçoando, acabam ficando mais seja "sadia", um tanto planejada, e o conteúdo das reuniões consoantes com
nobres, e o resultado seria um processo de espiritualização que os ensinamentos cristãos. A concepção de moralização social ainda é
teria de pôr termo nesta já mencionada ascensão ao céu, esta presente. Ao que tudo indica as atividades de lazer, ou alguns
despedida da Terra (Kamper, 1998, p. 52). elementos dela, são utilizados como instrumentos de atração e
No contexto brasileiro, preponderantemente católico, essa educação pelo lazer, com vistas aos valores religiosos.
concepção dogmática desempenhou, e ainda desempenha, um papel Sob algumas perspectivas da relação lazer e religião, fica
fundamental na formação de valores e costumes. Marcellino (2003, evidente a complexa tarefa de conciliar o prazer possível, presente
p. 23) descreve a relação entre a igreja católica brasileira, em sua potencialmente no lazer, com a religião. Para algumas concepções
vertente mais tradicional, e o lazer da seguinte forma: religiosas, a convivência entre as duas temáticas é possível com
certas restrições, para outras há uma oposição entre ambas, pois
o pensamento católico tradicional, de certa forma, reduz o lazer
uma ameaça o tempo dedicado à outra, e ainda a possibilidade da
a mero complemento ou compensação do trabalho estafante.
relação plena, harmônica e necessária entre ambas. O lazer
Entretanto, as várias correntes surgidas entre pensadores
organizado é um modo de preencher o tempo sem trabalho das massas
católicos, já há algumas décadas, e a própria atuação da Igreja
Populares e, nas sociedades industriais modernas, as atividades religiosas
como Instituição, quebraram a unidade e matizaram o
que competir por esse tempo (Parker, 1978, p. 134).

L
80 Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel Lazer e Religião 81

Portanto, a análise da relação entre lazer e religião fica Referências


evidente sob vários aspectos. Destaco que as discussões entre a teoria
CAMARGO, L. O. L. Educação para o lazer. São Paulo: Moderna, 1998.
do lazer e a teologia, principalmente no que diz respeito ao
cristianismo, são preponderantes para superar ranços de CHAUI, M. Introdução. In.: LAFARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo:
Hucitec; Unesp, 1999.
dogmatismos tradicionais que acabam por impedir uma relação
possível entre essas temáticas. Vale destacar a importância que a COX, H. A festa dos foliões. Petrópolis: Vozes, 1974.
teoria do lazer e a teologia possuem no afã de encontrar uma nova fjUMAZEDIER, J. Questionamento teórico do lazer. Porto Alegre: Centro de
síntese comprometida com a vida e a serviço da dignidade humana. estudos do Lazer e Recreação/PUC - RGS, 1975.
A religião, entendida tanto em suas práticas formais, quanto em FRESTON, P. Neemias: um profissional a serviço do reino. São Paulo: ABU,
práticas e dinâmicas que venham a caracterizar um movimento religioso 1990.
(sem necessariamente estarem formalizadas ou institucionalizadas), age GONDIM, R. É proibido: o que a Bíblia permite e a igreja proíbe. 2.ed. São Paulo:
de maneira determinante na forma como o lazer se concretiza. Um Mundo Cristão, 1998.
arcabouço ético de determinada religião demonstra a capacidade de agir HUIZINGA, J. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 1971.
sobre várias esferas da vida humana. KAMPER, D. O trabalho como vida. São Paulo: Annablume, 1998.
Entretanto, o inverso também é verdadeiro. Se o lazer é MARCELLINO, N. C. Lazer e humanização. 1. ed. Campinas: Papirus, 2003.
influenciado pela religião, uma educação para o lazer, por exemplo,
MARIANO, R. Neopentecostalismo: os pentecostais estão mudando. 1995.
que busque superar a dimensão alienada na qual se encontra na Dissertação (Mestrado em Sociologia) - USP, São Paulo, 1995.
sociedade capitalista, de forma crítica e criativa, pode exercer um PARKER, S. A sociologia do lazer. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
papel de questionamentos dos dogmatismos religiosos incoerentes
P1EPER, J. Felicidade e contemplação: lazer e culto. São Paulo: Herder, 1969.
com um padrão de justiça e dignidade. O lazer pode ser, portanto,
brecha para uma resistência às teologias que possivelmente tenham RYBCZIYNSKI, W. Esperando ofim de semana. Rio de Janeiro: Record, 2000.
como base a manutenção do panorama desolador que caracteriza o SMITH, A. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas.
São Paulo: Abril Cultural, 1983.
modo de produção capitalista.
Almejo que o fomentar destas discussões entre lazer e religião
contribua para o entendimento do lazer em toda a sua complexidade e
produza, através de um diálogo vivo e sem preconceitos com outras
áreas de conhecimento, uma teologia com as características
expressas por Freston (1990, p. 97):
Que teologia tremenda! Deus tem prazer quando me vê
correndo velozmente, desenvolvendo a capacidade que ele
me deu. Não é um Deus desmancha-prazeres, mas um
Deus que concebeu uma criação de quase infinita variedade
e complexidade, e que se deleita na exploração desse
mundo maravilhoso pela sua criatura, o ser humano.
Capítulo 5

O LUGAR DA FAMÍLIA
NAS POLÍTICAS ÜE LAZER

Patrícia Zingoni

A família, em meio a discussões sobre a sua desagregação ou


enfraquecimento, se constitui em lugar privilegiado de socialização,
de prática de tolerância, de divisão de responsabilidades, de busca
coletiva de estratégias de sobrevivência e do exercício da cidadania
sob os parâmetros da igualdade, do respeito e dos direitos humanos. É
indispensável para a garantia da sobrevivência, do desenvolvimento e
da proteção dos filhos e demais membros, independentemente do
arranjo familiar ou da forma como vem se estruturando. É na família
que se buscam os aportes afetivos e materiais necessários ao
desenvolvimento e ao bem-estar dos seus componentes. Sobretudo, a
família é decisiva na educação dos seus membros, pois nela são
absorvidos os valores éticos, humanitários e culturais, sendo
aprofundados os laços de afetividade e solidariedade.
A família, enquanto forma específica de agregação, tem uma
dinâmica de vida própria, afetada pelo processo de desenvolvimento
socioeconômico e pelo impacto da ação do Estado por meio de suas
políticas econômicas e sociais. Por essa razão, ela demanda políticas
e programas próprios, que considerem suas especificidades e seus
espaços peculiares - o comunitário e o doméstico.
Os poucos trabalhos que buscam discutir o lugar da família
nas políticas sociais brasileiras têm sido unânimes em sua
constatação de que, pelo menos até a década de 1980, as diretrizes e
os programas da intervenção social do Estado brasileiro não haviam
priorizado a família ou valorizado suas potencialidades enquanto
84 Patrícia Zingoni Q Lugar da Família nas Políticas de Lazer 85

provedora de bem-estar material, afetivo e emocional. A maior parte je ruralizar a vida e a mestiçagem acabaram com aqueles pruridos de
das ações não se dirigia às famílias, mas aos indivíduos. ostentação e galas. Indo para as fazendas, os senhores lançaram os
Porém, diferentes fatores contribuíram para que a família alicerces da sociedade brasileira numa vida monótona e sem prazeres.
passasse a ocupar um lugar de maior destaque na agenda das políticas Durante todo esse tempo do Brasil Colonial, só a igreja era
sociais brasileiras nos anos de 1990, que foram decisivos para a centro social e de diversões, pois nela havia festas profanas com
incorporação de uma nova definição legal de família. Nesse sentido, danças e representações. Fora daí só algum festejo oficial ou as
foi fundamental a garantia da igualdade de direitos e deveres entre raras reuniões de família (chamadas assembléias), além de visitas
homens e mulheres na relação conjugai pela Constituição de 1988, que aos domingos e algumas caçadas. Quanto aos escravos, suas poucas
reiterou o direito ao divórcio e declarou o planejamento familiar como oportunidades de diversão eram, vez por outra, prestigiadas pelos
opção a ser adotada livremente pelo casal. A partir daí, foi prevista, amos. Do início do séc. XIX nos viria uma carta do último vice-rei,
também, a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e o Conde dos Arcos, recomendando aos senhores que, em lugar de
lançaria as bases para que os direitos das crianças e dos adolescentes combater, estimulassem música e dança aos sábados na senzala.
pudessem ser garantidos entre eles, o direito à convivência familiar e à A igreja do Brasil Colonial teve um papel importante na vida
participação na vida comunitária (Faria, 2002).
cultural daquela época e, também, na definição de tempo de lazer,
A atenção à família, por meio de políticas públicas adequadas,
como compreendido naquele momento histórico. Considerada como
constitui-se, sem dúvida, em um dos fatores condicionantes das
uma espécie de empresária das alegrias do povo, como diz Luís
transformações às quais a sociedade brasileira aspira e um dos eixos
fundamentais da política de lazer entendida como um direito social. Edmundo (apud Pinto, 2000), sempre promoveu, animou e protegeu
Retomar a família como unidade de atenção das políticas públicas é, folguedos de rua. Em conseqüência, as festas religiosas passaram a se
também, assumir o desafio na busca de opções mais coletivas e constituir marcas do tempo de lazer das famílias: Natal, quaresma,
eficazes no direito dos indivíduos ao lazer. páscoa, pentecostes, festas juninas e de santos padroeiros até hoje
Para abordar o tema família e lazer, escolhi um caminho marcam o calendário oficial de tempo de lazer no país.
reflexivo que primeiramente retoma um breve histórico do lazer e as Paralelamente à sociedade rural desenvolveram-se duas
famílias no Brasil, seguido das características que formatam a política experiências de vida urbana: uma no nordeste, em Pernambuco, na
social de lazer no Brasil. Em seguida, aponto algumas questões que primeira metade do séc. XVII e outra no centro-sul, Minas Gerais,
afetam diretamente o lazer, sobretudo daquelas famílias caracterizadas no século seguinte. Nessas duas experiências observamos a
pela situação de pobreza. Por fim, apresento algumas considerações diversificação das ocupações típicas da vida urbana e o desabrochar
básicas que uma política social de lazer voltada à família na atualidade de costumes burgueses. As famílias abastadas promoviam reuniões
deve considerar. e saraus líbero-musicais, que incluíam recitais de cravo e rabeca,
declamação de poesias, jogos de carta, danças, brincadeiras de
prenda, gamão e xadrez (Medeiros, 1990).
O lazer e as famílias no Brasil: A Proclamação da República, em 1889, introduziu no país um
conjunto de modernizações que envolveram o fim do trabalho
um breve histórico escravo e o início da urbanização e industrialização, deslocando para
Comentando sobre nossa sociedade colonial, Renato de os eixos centro-sul os pólos de desenvolvimento econômico, político
Almeida (apud Pinto, 2000) diz que, se houve no séc. XVI luxo e cultural aos moldes das sociedades modernas capitalistas. O projeto
extremo nas casas dos nobres - "casa grande", em pouco a necessidade republicano dos militares, inspirado no positivismo de Augusto

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86 Patrícia Zingoni O Lugar da Família nas Políticas de Lazer 87

Comte, penetrou no Brasil do final do século XIX, deixando raízes ligada à Igreja, ocupando lacunas deixadas pela nova ordem
no imaginário social e também novos sentidos de família - família republicana (Neder, 2000).
moderna, ou nova família, ou família nuclear moderna, inspirada nos Como parte integrante do tempo diário da vida cotidiana das
modismos da belle-époque francesa e no conservacionismo pessoas, o lazer constitui um momento agradável e descontraído
moralista inglês daquela época (Neder, 2000). dessa rotina. Procurando entender as formas como a periferia dos
Ao contrário da família tradicional, na família moderna, a centros urbanos preenche o tempo de lazer, Magnani (1998) em
mulher passa a ter um papel de destaque na moral familiar e social. estudos realizados no final dos anos de 1970 e início dos anos de
Educada para ser dona de casa, mãe e educadora dos filhos, cumpre 1980, ajuda-me a ler como essas famílias davam sentido a esses
também com o papel de suporte do homem para que este possa tempos. Seu trabalho de campo destacou que o tempo de lazer tem
enfrentar a labuta do trabalho fora de casa. Por isso, precisa ser sentidos diferentes considerando sexo, idades, estado civil. E, a partir
prendada, e ir à escola. No projeto republicano positivista, voltado à dessas categorias, mapeou o tempo livre das comunidades estudadas,
modernização da família branca, a educação ocupa lugar de destaque revelando como o tempo livre dos homens casados, quando vividos
no projeto social de "ordem e progresso" (Neder, 2000). em casa era oportunidade de estar com a família, dedicar-se a algum
Neste contexto, é no tempo vivido no lar que educadores e "bico", assistir à TV, ouvir rádio ou dormir. Fora de casa, os
recreacionistas do início do século XX entendem que os indivíduos encontros com vizinhos e colegas nos bares eram os programas
aprendem a brincar. Enfatizando a importância das atividades preferidos. Com os rapazes não aparece a oposição em casa e fora de
recreativas orientadas e "bem escolhidas" como meio de solucionar casa e suas preferências envolviam o esporte e encontros sociais
problemas da vida moderna, Ruth Gouvêa (apud Leila, 2000), com base (sinuca, bares, bailes...). As mulheres casadas, mais em casa
em suas experiências com a Recreação desde 1934, ressalta o papel da dedicavam seu tempo a trabalhar, dormir, assistir à TV e ouvir o
família na educação para o aproveitamento adequado das horas de lazer rádio. Saíam apenas em ocasiões especiais: aniversários,
por meio de várias atividades recreativas e "passatempos". casamentos, circos. Também em casa, as moças preenchiam seu
Em periódico publicado no ano de 1928, o jornal católico O tempo livre assistindo TV e rádio, e fora de casa indo a lanchonetes,
Horizonte, são tecidas críticas ao uso de jogos na escola pelo receio de bailes e festas em casa de colegas.
eles abalarem a severa vigilância dos pais e o recato necessário às Não sendo suficiente organizar um quadro de modalidades
crianças, alertando para os perigos que surgem quando as crianças são preferidas de entretenimentos, para entender o sentido do tempo de
postas em contato com outras crianças de péssimos costumes e sem lazer para essas famílias, Magnani (1998) buscou entrevistas em
menor vigilância, o que leva à devassidão e à indisciplina social.1 profundidade, o que não considerou também suficiente pelo caráter
Mas foi no período do Estado Novo que foram esboçadas as monossilábico das falas sobre o lazer e a distância do discurso
primeiras incursões do Estado em políticas públicas na área da família, obtido com a prática observada. Exemplo disso foi o alto índice do
tendo como aliadas a Igreja e a Escola. Foram políticas com forte item cinema em todas as falas, sendo que a única sala de projeção da
inspiração no autoritarismo e na eugenia, enfatizando os sentidos de vila estava desativada. Mas foi ao se introduzir nos grupos de sinuca
"família regular" e "família saudável". A Igreja separada do Estado no do bairro que esse pesquisador pôde observar mais de perto o
início da República, utilizou estratégias que definiram uma política sentido do tempo de lazer para essas famílias e a entrada no
educacional católica de amplo alcance com a implantação de escolas "pedaço" evidentemente quebrou o clima de desconfiança com o
confessionais em todo país, bem como criando a assistência social grupo. A observação direta do tempo e do espaço vividos muito
ligados à casa, vizinhança, vila reafirma o sentido de tempo de lazer
Jornal O Horizonte, a. 6, 25 abr. 1928.
gg Patrícia Zingoni O Lugar da Família nas Políticas de Lazer 89

como tempo de vivências culturais variadas, sendo que o bar é Em outras palavras, as escolhas que os indivíduos fazem dizem
privativo dos homens e os demais participam de tudo. A lanchonete respeito à sua identidade. Nas sociedades tradicionais, os indivíduos
é o correspondente feminino dos bares. A relação entre casa e fora não tinham escolhas e nem precisava se revelar em cada uma das suas
de casa é muito significativa - define o ritmo do tempo de lazer. Os ações e hábitos. Ele não podia escolher o que fazer e como ocupar seu
fins de semana também. As sextas-feiras também são especiais: tempo, mas não vivia uma das angústias da vida moderna: ter que
dança-se samba. Os momentos de lazer considerados familiares, escolher. Esta exposição da individualidade abriu espaço para o
não havendo diferenças entre festas de crianças e de adultos, comportamento compulsivo, que representa a perda do "eu" da
ocorrem por ocasião das festas tradicionais como Dias das Mães, capacidade de escolher e de dizer não (Sarti, 1998).
aniversários, casamentos e festas religiosas como Natal, Páscoa etc. Estudos sobre o lazer e a vida familiar realizado em 1996 pelo
Por influência da Igreja Católica, os valores associados à SESC São Paulo volta a enfatizar o lazer como tempo de diversão
família - e também o aparelho jurídico - sempre estiveram dentro e fora de casa. Uma vez mais destacando o que as pesquisas em
atrelados à relação sexualidade, reprodução e casamento e, geral revelam, são listadas atividades de entretenimento, que me
especialmente, no modelo de família conjugai, com casamento permitem perceber alguns dados que mostram sentidos do tempo de
indissolúvel e monogâmico. Embora o fato de que nas práticas lazer no final do século XX. Inicialmente é evidenciado o aumento da
culturais apenas alguns segmentos da população se ajustavam a vivência do tempo de lazer em casa com o predomínio dos meios de
esse modelo. No entanto, nas últimas décadas do séc. XX mudanças comunicação (TV, rádio, revistas, internet, vídeos, ouvir música). O
no plano das práticas culturais influenciaram mudanças nas tempo de lazer é enfatizado como tempo de consumo, ampliando
representações de família que, segundo Fukui (apud Pinto, 2000), negócios no campo do lazer. Em segundo lugar, o tempo de lazer em
ocorreram em três momentos especiais: quando o número de filhos casa é tempo de estreitamento de relações sociais (especialmente com
começa a ser previsto e planejado; quando passou-se a não mais amigos) e de práticas de atividades manuais ditas "semi-utilitárias",
existirem filhos ilegítimos; e quando foram reconhecidos os ampliando o hobby pela jardinagem, cuidados com carros, animais,
direitos de uniões consensuais. Com a institucionalização do consertos caseiros (bricolage) etc. Neste sentido, também cresce o
divórcio no Brasil em 1977, e o ingresso maciço das mulheres no negócio do "faça você mesmo". Fora de casa o tempo de lazer é menor,
mercado de trabalho a partir dos anos de 1980, mudanças mas vivido intensamente em lugares específicos - públicos e privados
significativas operaram-se na história da família brasileira, - como shopping centers, parques, cinemas, teatros, casas de shows,
principalmente no nível dos valores, influenciando nossa prática reuniões de grupos formais e associações, clubes etc. Além disso
social como um todo. destacam-se as viagens durante períodos de férias e feriados
Neste contexto, duas mudanças profundas em relação ao prolongados. Novamente, a pesquisa revela que os homens saem mais
sentido tradicional de família são significativas quanto às relações que as mulheres. Revela também que com as conquistas das mulheres
entre homens e mulheres, entre pais, mães e filhos: a primeira em ao mercado de trabalho, o seu tempo disponível mudou devido à dupla
relação à autoridade patriarcal e, a segunda, quanto à divisão de papéis jornada de trabalho, uma vez que a maioria continua com a
familiares. Papéis sexuais e obrigações não estão mais claramente responsabilidade com as tarefas domésticas (Camargo, 1998).
estabelecidos, não são mais compostos por padrões e hábitos Analisando esses dados, Camargo (1998) entende o lar como
preexistentes e o indivíduo é continuamente obrigado a negociar opções de refugio e aconchego, além de um "pequeno centro cultural" no qual
estilo de vida (Anthony Giddens, 1993, p. 87). podemos ter a disponibilidade das várias opções de atividades de

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Patrícia Zingoni O Lugar da Família nas Políticas de Lazer 91
90

lazer. Para esse autor, o tempo de lazer vivido fora de casa responde a fazer valioso para a adaptação dos sujeitos à construção sociopolííica
uma necessidade de mudança de ritmo, de paisagem e estilo de vida. pretendida em nosso país. Para tanto, o Estado desde os anos de 1930,
Como observamos nas últimas décadas mudanças profundas têm no campo das ações públicas de lazer, os programas de lazer e de
acontecido na família brasileira. Essas mudanças podem ser percebidas "esporte de massa" foram baseados em princípios funcionalistas,
tanto nas "unidade domésticas"(diminuição do tamanho das famílias, segundo os quais as ações tinham como objetivo a recomposição da
multiplicidade de arranjos, crescimento nas unidades compostas por um força de trabalho e o controle da corporeidade da classe trabalhadora
só membro, cresce a importância da mulher como provedora etc.) durante o seu "tempo livre".
quanto na família enquanto "instituição"(democratização da sociedade Nos anos 80, o lazer conquista espaço em toda sociedade e
conjugai, respaldadas tanto em termos jurídicos quanto pela prática) e no ganha força econômica com o avanço da indústria cultural e as
"conjunto de valores" predominantes (enfraquecimento dos vínculos exigências do estilo de vida capitalista. A diversificação do consumo
conjugais formais, presença crescente das famílias monoparentais, no lazer exige a intervenção de vários profissionais em vários setores
ruptura cada vez mais marcante dos vínculos mecânicos entre sociais, abrindo novas frentes de trabalho. Ao mesmo tempo, no final
casamento, sexualidade e reprodução etc.) (Faria, 2002). dos anos de 1980 e, principalmente nos anos 90 do século XX, cresce o
A grosso modo, é possível dizer que essas mudanças podem ser número de estudos críticos e criativos sobre o lazer, ampliando os
entendidas como derivadas de fenômenos diversos quanto: a liberação níveis de construção e de difusão de conhecimentos sobre essas
dos hábitos e costumes, a secularização da sociedade, a reapreciação questões.
do papel da mulher na sociedade e na família, o aprimoramento e Neste ínterim, novas definições legais são determinantes na
popularização dos métodos contraceptivos, a influência dos meios de conquista do direito do lazer, superando as condições de clientelismo
comunicação de massa, o caráter excludente do modelo de definidas pelas implementações legais. Com a Constituição Brasileira
desenvolvimento adotado pelo país, dentre outros (Faria, 2002). de 1988, o lazer passa a integrar o conjunto dos direitos básicos do
Pelo exposto, as políticas de lazer para família devem levar em cidadão. Subentende-se, por isso, que os governantes e a sociedade
conta a valorização das famílias enquanto locus de construção da têm a obrigação de reconhecer e proteger tal direito.
identidade. Desprender-se portanto de uma conotação moralista, Nossa Carta Magna (Brasil, 1988) destaca o lazer como uma
fundada em preocupações meramente com atitudes e comportamentos. das garantias fundamentais dos Direitos Sociais - título II, capítulo II.
Devem levar em conta o apoio a ser dado às mulheres nas famílias dos E diz, no Art. 6: são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o
setores populares, enquanto animo econômico. Foram esses os motivos lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a
que me fizeram, neste texto, eleger como assunto inicial o estudo sobre a infância, a assistência aos desamparados, na forma desta constituição.
formação histórica e identidade social das famílias no Brasil. O termo lazer aparece também no título VIII - da Ordem
Social, onde diz: o poder público incentivará o lazer como forma de
promoção social (Art. 217, seção III, Do Desporto, & 3a).
Na esteira da Constituição Brasileira, outras leis passam a
As características das contemplar o lazer. Entre estas a Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, que
políticas de lazer no Brasil dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Em seus art. 4 e 59,
o lazer é explicitado como direito assegurado pela família, pela sociedade
Analisando a história da relação Estado/lazer no Brasil, Pinto
em geral e pelo poder público, onde os municípios, estimularão e
(1996) relata que, como prática social integrada a projetos de
facilitarão [...] programações culturais e de lazer voltadas para a infância e a
governo, o lazer vem cumprindo papéis que o destacam como um
juventude.
92 Patrícia Zingoni O Lugar da Família nas Políticas de Lazer 93

Os exemplos citados revelam que as sociedades e culturas A nossa política de lazer pode ser expressa em síntese por
reconhecem, cada vez mais, o direito das pessoas a certos períodos de estas características das políticas sociais brasileiras sintetizadas por
tempo nos quais possam optar livremente por experiências que Carvalho (2000):
proporcionem satisfação pessoal e melhoria da sua qualidade de vida e • É, de um lado, marcadamente elitista, priorizando prefe-
que as condições para o lazer não podem ser garantidas somente pelo rencialmente os segmentos já privilegiados da população.
indivíduo. O desenvolvimento do lazer exige ação coordenada por Muitos setores do esporte e do lazer e seus dirigentes ainda
parte de governos, organizações não-governamentais e comunidades, possuem fortes componentes corporativistas e de endoge-
indústrias, sindicatos, instituições de ensino e família. nia e não percebem o lazer como direito de cidadania, algo
As análises implementadas revelam também que o conflito que não diz respeito só à mídia, aos atletas ou aos artistas
contemporâneo em torno da cidadania e do lazer envolve ainda consagrados, mas a toda população. De outro lado, é assis-
problemas de prerrogativas (afirmação e garantia de direitos), além tencialista e tutelar quando direcionada aos segmentos
dos óbvios problemas de provimento (quantidade e diversidade de empobrecidos da população. Por esse ângulo, essa política
reflete uma cultura enraizada historicamente no Estado e
meios para o pleno exercício dos direitos). Ficam evidentes aqui o
na sociedade, que legitima o autoritarismo e a tutela dos
hiato temporal e a natureza conflitiva dos processos de reivindicação
dominantes e a subalternidade dos dominados;
de direitos iguais no lazer, sua transformação em norma jurídica e sua
• Ao mesmo tempo a política de lazer absorveu os ventos da
generalização na práxis histórico-social. O debate sobre o direito ao
política do Welfare State e dos direitos sociais cunhados no
lazer envolve precisamente uma disputa de prerrogativas e também
mundo ocidental capitalista que resultou uma política social
uma questão de provimentos (Zingoni, 2001).
extremamente setorizada, centralista e institucionalizada,
Na atualidade observamos que as políticas de lazer ainda são elegendo o indivíduo como portador de direitos e elemento
traduzidas na práxis como políticas de atividades, de doação de central e não mais os coletivos do tipo família ou
material ou de cessão de equipamentos específicos sem a preocupação comunidade. No caso específico do lazer e do esporte estes
com a participação humana, que é a vida desses equipamentos. últimos foram substituídos por serviços institucionalizados,
Paralelamente a isso encontramos, nas Secretarias, a "cultura" dos tais como: ginásio de esportes, ruas de lazer etc.
eventos e da prática, a oferta de eventos passageiros, elitistas,
O reconhecimento e a garantia do lazer enquanto um direito
discriminatórios e onerosos, sem reflexos sociais contínuos. Aliada a
social, embora fruto de indiscutível avanço civilizatório, acabaram
isso, a gestão das políticas públicas de lazer tende a fragmentar os
enviezando-se para o contexto capitalista que o transforma em
indivíduos. Daí os programas de atendimento a indivíduos, crianças,
mercadoria. É inegável que, através da indústria cultural do lazer, o
idosos, mulher, negro, jovens, deficientes etc. transformados em
capitalismo encontrou uma forma de fazer-se presente também no
direitos ao lazer como um setor, na maioria das Prefeituras, vinculado lazer das famílias, fazendo com que as mesmas transformem-se em
ao esporte. Assim, o trabalho com famílias foi considerado até pouco potenciais consumidores de mercadorias lúdico-culturais. Destaca-se,
tempo como uma prática inexistente e quando existente não é ela o com isso, a indústria/comércio do entretenimento, gerenciada
alvo, mas sim a mulher, o trabalhador, a criança. principalmente pela iniciativa privada, privilegiando as camadas com
melhor poder aquisitivo.
As políticas sociais no Brasil, em especial a de lazer,
apresentam-se ainda como centralizadoras. Embora ancorada no

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94 Patrícia Zingoni O Lugar da Família nas Políticas de Lazer 95

princípio da descentralização e da territorialidade proposta nas reformas tornando-se motivo de desestruturação do espaço doméstico; o
administrativas do Estado e das Prefeituras, esta não vem ocorrendo em domicílio está sujeito a ameaças freqüentes causadas pela degradação do
ritmo satisfatório. As estruturas administrativas do esporte e do lazer meio ambiente; o acesso aos serviços básicos, aos recursos produtivos e
existentes no Estado mostram-se resistentes a adotar o novo aos diferentes métodos de planejamento familiar.
reordenamento político institucional que contempla uma partilha efetiva Em uma sociedade como a nossa predominantemente urbana,
entre as três esferas de governo (municipal, estadual e federal) e entre os na qual se convive com diferenciadas condições econômicas, cada
órgãos centrais da administração municipal e instâncias regionalizadas. vez mais as pessoas são discriminadas e hierarquizadas também no
A estrutura fragmentada e centralizadora do Estado Burocrático lazer. Para isso devemos antes de tudo compreender os contextos
que ainda persiste em nosso meio impede ações articuladas com as socioeconômico, político e cultural que condicionam o lazer das
famílias, para as comunidades e para as causas dos sintomas. A buro- famílias brasileiras.
cracia acredita que a realidade é passível de reduções, que operam a No sistema de economia capitalista com que convivemos,
partir da criação de categorias ou setores estanques, os quais, justa- grande parcela da população do município se encontra na faixa da
postos, formam o desenho social. Essa premissa, entretanto, desconsi- pobreza; outra significativa parcela se encontra em situação de
dera os múltiplos vínculos estabelecidos entre as necessidades miséria absoluta, portanto uma população de excluídos,
humanas, bem como o alto grau de complexidade das relações sociais. distribuição desigual de bens e desemprego e numa sociedade
Comprometido com uma ordem social mais justa e centrada no mundo do trabalho alienado.
democrática, o lazer nas políticas públicas deve ganhar, cada vez mais, Se o trabalho na nossa sociedade se configura como lócus de
o reconhecimento do campo dos direitos sociais ligados à qualidade de dominação, exploração e alienação, dificulta consideravelmente
vida, como questão de cidadania e um dos meios de superação dos outra função do lazer a não ser aquela voltada para a compensação do
problemas sociais. Dessa forma o lazer passa necessariamente a ser trabalho. Isso reduz, sobremaneira, os significados do lazer,
algo mais que um produto de consumo, meio de conformismo e limitando-os à recuperação da força de trabalho agindo, muitas
instrumento de diversão alienada, passa a ser entendido como cultura vezes, como válvula de escape para extravasar sentimentos não
inserido no cotidiano das pessoas e das suas famílias. vividos no trabalho e repor energias indispensáveis a ele.
Convivemos, atualmente, em um mundo marcado pela globali-
zação. Esta reproduz a cultura dos países desenvolvidos de maneira
acrílica ao mesmo tempo em que avança no desenvolvimento tecnoló-
O lazer das famílias brasileiras gico e da informação, avança nos processos de exclusão social, vulne-
que vivem sob o signo da pobreza rabilidade e precariedade nas relações de trabalho.
É consenso (Takashima, 2000) que a situação de vulnerabilidade Ainda prevalece nos dias atuais o tradicional conceito de que
das famílias encontra-se diretamente associada à sua situação de tempo livre é coisa de rico. Uma das grandes vantagens de ser rico é ter
pobreza e ao perfil de distribuição de renda no país. No Brasil, os tempo, é dispor do tempo para si, é possuir meios para consumir uma
programas de transição econômica e de ajustes macroeconômicos têm gama de alternativas e produtos vendidos pela indústria do lazer. Para
funcionado como um fator desagregador daquelas. Tem se verificado, o pobre, o tempo livre é sinônimo de tempo liberado do emprego,
por exemplo, o aumento das famílias monoparentais, em especial e não do trabalho; não quer dizer tempo disponível para o lazer.
aquelas em que a mulher assume a chefia do domicílio; a questão Para o desempregado, tempo livre é sinônimo de desmoralização:
migratória, por motivo de sobrevivência, atinge alguns membros,

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96 Patrícia Zingoni O Lugar da Família nas Políticas de Lazer 97

a sociedade lhe diz que ele não vale nada, que não precisa dele, que até grande aliado e fortalecedor deste grupo, proporcionando apoio ao
lhe pagará algo para que não trabalhe. desempenho de suas responsabilidades e missão.
Esse preconceito pode, ainda, tradu/ir um certo pudor em falar Comentando sobre a delimitação do conceito ,de "política
de banquete na casa de quem passa fome. Como falar de alegria para a família", Carlos Aurélio de Faria (2002) diz que alguns
quando há tanta gente sem casa, sem alimentação, sem saúde, diz analistas têm optado pela distinção entre políticas para a família
Camargo (1998, p. 16). Parece mesmo que o direito ao lazer só é diretas e indiretas. As políticas diretas seriam aquelas que têm a
admissível quando se tem as necessidades básicas atendidas. Outras família como público alvo definido por um determinado objetivo
vezes, trata-se apenas de um preconceito sobre a pobreza, segue precisamente estabelecido, cuja consecução se dá através de
dizendo Camargo, como se o fato de ser pobre significasse, além da políticas articuladas com outros setores e com a comunidade. E
falta de recursos, a falta de desejo humano pelo prazer, uma política indireta seriam aquelas que têm um certo impacto sobre a
incapacidade de interagir com as pessoas, inclusive ludicamente família, embora este não seja o seu alvo principal.
(Camargo, 1998, p. 16). Nesta direção buscarei apontar algumas possibilidades de
O lazer é, pois, um termo carregado de preconceitos, pensar a política pública de lazer para as famílias, tendo esta
motivados por um pretenso caráter supérfluo dessas atividades e por distinção como referência e as famílias empobrecidas como alvo
sua histórica utilização como instrumento ideológico, contribuindo dessas políticas.
para o mascaramento das condições de dominação nas relações de É precisamente este núcleo de políticas diretas a usualmente
classe, mantendo viva a expressão "pão e circo". Discutindo este privilegiada pelos gerentes públicos de lazer e que buscam no
enfoque de um ponto de vista mais amplo e seguindo a perspectiva campo das "atividades" respostas a essa demandas. A política para
gramsciana, Marcellino (1995) afirma que ao mesmo tempo que o a família definida como um campo de atividades de lazer implica a
lazer sofre inúmeras dominações, é, também, oportunidade de atuar apresentação clara e precisa de certos objetivos relativos ao lazer
como alavanca de transformação social, pois é um fenômeno gerado das famílias. Esses objetivos podem ser, por exemplo, garantir um
historicamente, do qual podem emergir valores questionadores da maior ou menor acesso das famílias aos serviços de lazer oferecidos
própria sociedade que o gere. pelo poder público, promover ações que buscam a diminuição dos
custos de acesso às políticas privadas, atividades que possibilitam
uma maior igualdade de acesso entre homens e mulheres, ricos e
Considerações para uma política social pobres, negros e brancos, crianças, adolescentes, adultos e pessoas
portadoras de deficiência.
de lazer voltada à família brasileira Em síntese, são programas de lazer que incluem uma gama de
A crise do Welfare State, o déficit público, o individualismo atividades e processos socializantes e lúdicos voltados para o
crescente, a institucionalização das necessidades humanas e o desenvolvimento de relações, descanso, divertimento e habilidades
desemprego estrutural introduzem a família e a comunidade como para a vida coletiva, familiar e comunitária. As famílias necessitam de
novos desafios à política social brasileira. Esse ressurgimento reflete programas que dêm significado à sua existência cotidiana e não apenas atuem
ainda uma certa consciência do esgotamento da opção pelo indivíduo no nível das suas condições materiais de vida (Carvalho, 2000, p. 106).
nas políticas públicas. Portanto, um eixo básico que não deixa Compreendemos que os projetos de esporte e lazer, que
dúvida, nem às instituições e tampouco aos que pretendem abordar as fundam suas ações no lúdico, no comunitário, no educativo e na
famílias, de que o papel do Estado deveria ser não substituto, mas um qualidade de vida para a população menos favorecida, cumprem um
Patrícia Zingoni O Lugar da Família nas Políticas de Lazer 99
98

papel fundamental na ampliação dos direitos sociais como política seja, a família e não alguns de seus membros devem se beneficiar
pública cultural de extensão desses direitos à população de setores com as políticas de lazer. Para tanto, um pacto inter-políticas setori-
sociais alijados dessa conquista na nossa sociedade. ais é necessário para garantir a totalização das atenções hoje setori-
Por outro lado, caso se pretenda definir política de lazer para a zadas e fragmentadas, otimizando as relações e recursos existentes.
família como qualquer intervenção pública que afeta o lazer das Porém, nas políticas sociais, há necessidade de entender o esporte e
famílias, de forma propositada ou não, ou seja, como uma política o lazer como direitos integrados às demais políticas, sem, contudo,
indireta de lazer, seria necessário pensá-la articulada com as políticas serem subordinados a elas e ancorados nelas para receber atenção
de garantia de renda mínima, a provisão de serviços para a família de do Poder Público.
saúde e educação, políticas urbanas, de transporte, de trabalho etc. O trabalho democrático que incentiva uma relação horizontal,
Políticas que indiretamente condicionam o lazer de uma comunitária de abertura ao outro, a partir de uma leitura da realidade
determinada sociedade. Leis trabalhistas e condições de transporte familiar abrangente, envolvendo todas as áreas das suas necessidades,
são exemplos dessas políticas que interferem na questão da não é um aspecto muito priorizado pelos governantes do lazer e
disponibilização de tempo das famílias para o lazer. tampouco considerado pela própria família que considera ela mesma o
A atenção à família, por políticas públicas de lazer lazer como uma política isolada e de menor importância diante das
adequadas, pressupõe uma série de condicionantes diretamente outras. Sem dúvida não se pode generalizar, pois se sabe de esforços
relacionados com outros setores da política. Por isso, as ações de desafiadores implementados em diferentes cantos do Brasil. Embora
lazer devem coexistir de forma intersetorial com outros programas muito recente a retomada da centralidade da família nas políticas
de natureza econômica e social de caráter menos compensatório e públicas de lazer, observa-se que há uma variedade de posturas nos
mais redistributivo como, por exemplo: os "programas de renda diferentes enfoques de atendimento às famílias que transitam da forma
mínima" e "bolsa-escola"; programas voltados à geração de convencional à formas denominadas inovadoras.
trabalho, renda e empregabilidade. Segundo Takashima (2000) a forma mais tradicional
Uma rede de serviços é extremamente necessária. Há décadas, encontrada em nosso meio privilegia o atendimento individualizado
os centros comunitários mantinham os chamados clubes de mães, das pessoas, atomizando o universo familiar. Ela ressalta o
clubes de jovens que desenvolvem cursos de atividades manuais e individualismo, reflexo da própria visão econômica da sociedade,
artesanatos, ruas de lazer, torneios esportivos, festivais etc. Tais regulado mais pela competição do que pela convergência. Neste
serviços hoje são escassos e trabalham sem diretrizes, processos e sentido a política inovadora de atendimento é baseada em uma outra
recursos necessários à garantia de efetividade e eficácia nos resultados. racionalidade a partir de uma organização solidária entre os indivíduos
Esses serviços embora descentralizados e facilmente acessados pelas em sua família e entre famílias vizinhas. Neste caso, pesquisas
famílias oferecem um trabalho descontínuo, desenvolvido em geral (Takashima, 2000) têm identificado formas de ação grupai de apoio à
por voluntários sem o devido preparo. Organizá-los numa rede e sobrevivência, em que famílias pobres passam pelo processo gradativo
dotá-los de infra-estrutura mais adequada, além de melhor capacitar de transição entre o plano doméstico de satisfação das necessidades
seus agentes, é um esforço necessário ainda a ser implementado pelas para o plano coletivo: redes de solidariedade entre vizinhos em caso de
políticas de lazer de base microterritorial. morte, incêndio, doença etc. e práticas organizadas, com agente
Como princípio normativo é preciso introduzir serviços público motivador. Exemplos: sacolão, fabriquetas de produtos para
intersetoriais de atenção a família com objetivos e processos mais consumo na própria comunidade, projetos de geração de renda,
ambiciosos de melhoria da qualidade de vida do grupo familiar. Ou movimentos de denúncia pelas condições de moradia etc.
Patrícia Zingoni O Lugar da Família nas Políticas de Lazer 101
100

Essas práticas que se podem denominar de ação coletiva podem Entendendo-se o lúdico como as vivências culturais prazerosas,
significativas para os sujeitos, fundadas no exercício da liberdade e,
e devem ser estimuladas pelo gestor de lazer e direcionadas ao
por isso, mobilizadoras de desejos e estratégias sociais
atendimento de alguns interesses comuns; são práticas socioculturais
transformadoras da realidade. Conforme aponta Pedro Demo (1996),
que envolvam o lazer para jovens, adolescentes, adultos e idosos e que
os anos de ruptura e crise identitária caracterizam o processo de
envolvam os diversos movimentos sociais e de interesses temáticos
exclusão social. A precariedade das condições de vida não se explica
existentes no entorno da comunidade como: músicos, esportistas,
apenas pelas formas de segregação espacial e desigualdades em face
blocos de carnaval, grupos de quadrilhas, times de futebol etc.
da distribuição de habitação, mas também, por um processo de
Dado o enfoque imediatista visto nas políticas de lazer, o
degradação das relações sociais e afrouxamento da coesão social. As
atendimento à família se reveste de cunho assistencial, desarticulado e
dificuldades da população se agravam em face do sentimento de
dependente. Seus membros são tratados como pessoas receptoras de
solidão, enfado e vazio da existência.
benesses do poder público e não como pessoas com direito. O mais
Os conteúdos culturais do lazer, na atualidade, ocupam um
grave nesse casos é que os profissionais que delas se ocupam acabam,
papel central nas discussões e reflexões sobre alternativas e a
com certa ingenuidade, invadindo como um trator a sua privacidade ao
degradação social, e vêm sendo entendidos como uns dos mais
invés de fortificar sua autonomia e liberdade de escolha.
eficazes recursos de incorporação social.
Por outro lado, a forma denominada inovadora rompe com o
Programas de lazer que apoiam iniciativas familiares; de
assistencialismo, trabalha com a postura socioeducativa por meio de
associativismo, de incentivo à formação de grupos de convivência;
atendimento ao lazer como direito do cidadão e sua família articulada
de apoio a grupos produtivos; de fortalecimento da participação nas
com a organização comunitária, âmbito de inserção dos grupos
decisões governamentais etc., alimentam o processo de socialização
familiares. O fundamento dessa postura alternativa é que a população
dos membros da família, fortalecendo sua auto-estima e daqueles que
pobre e desorganizada não reúne as melhores condições de lutar pelos
lhe estão próximos, condições básicas para a construção do
seus direitos e menos ainda dos relativos ao lazer. A estratégia,
sentimento de identidade coletiva.
portanto, no meu entendimento, é a mobilização, a participação e a
Mesmo reconhecendo que a definição de um padrão social
organização popular quanto ao esclarecimento da importância do lazer
mínimo passa, inevitavelmente, por uma interferência no problema
para a qualidade de vida e o bem-estar das famílias.
da desigualdade social por meio de políticas redistributivas, que
Em comunidades ainda não organizadas de forma satisfatória,
busquem o equilíbrio entre o econômico e o social, esse padrão
as relações não se encontram suficientemente consolidadas, nem por
mínimo implica, também, a disponibilidade da sociedade civil em
identidade, parentesco ou procedência, e nelas emerge o oposto da
estabelecer relações sociais baseadas em um certo sentimento de
solidariedade. A proximidade das casas e barracos; a privacidade
identidade e obrigações comuns para com sua família, sua
exposta aos vizinhos, o som em alto volume, as brigas de casais, o
comunidade e seu Estado (Zingoni, 2001).
lixo próximo, a água suja que corre no terreno vizinho, os roubos, o
Outro papel central, que cumpre o lazer considerar, no
alcoolismo e as drogas são fatores da convivência diária que acabam
trabalho com as famílias, é a importância da adoção da efetividade
dificultando as relações mais solidárias.
como estratégia de emancipação, na direção de uma ontologia e de
Neste caso, o lazer pode contribuir com a socialização dessas
uma epistemologia que não separam a razão da emoção (Sawaia,
famílias buscando estimular, induzir ou promover o direito ao
2003). Sawaia remete à idéia de que é preciso trabalhar a
convívio, por meio de programas e projetos que enfatizam as relações
sensibilidade, corpo, emoção, na dimensão íntima (sexualidade,
de convivência e vizinhança com a promoção de atividades lúdicas.
102 Patrícia Zingoni O Lugar da Família nas Políticas de Lazer 103

relações afetivas, subjetividade, desejo), e no plano coletivo CARVALHO, M. C. B. A priorização da família na agenda da política social. In:
(consumo, mídia, relações de produção presentes no lazer) para tirar KALOUSTIAN, S. (Org.). A família brasileira: a base de tudo, São Paulo: Cortez,
INICEF, 2000. p. 93-108.
as famílias da alienação pela participação consciente e crítica nas
ações do lazer. DEMO, P. Política social, educação e cidadania, 2.ed. Campinas: Papirus, 1996.
Nessa perspectiva, a ação e a reflexão na política de lazer FARIA, A. P. C. Fundamentos para a formulação e análise da políticas e
eqüivalem às práticas voltadas também para as emoções e os desejos, programas de atenção à família, 2002. Mimeo.

o que significa eleger como meta da ação revolucionária a construção GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas
sociedades modernas, São Paulo: Editora da UNESP, 1993.
da liberdade e da alegria de estar em conjunto. Juntamente com a
mobilização social adotar a afetividade e a compaixão. MAGNAN1, J. G. C. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade, 2. ed. São
Paulo: HUCITEC/Editora da UNESP, 1998.
Em vez de rejeitar a família como lugar do intimismo
MARCELLINO, Nelson Carvalho. Lazer e educação. 3. ed. Campinas: Papirus,
alienador, explorar sua função emancipatória no atual 1995.
momento histórico, por ser espaço privilegiado e fruição da
MEDEIROS, M. A importância de se conhecer melhor as famílias para a
paixão pelo comum (Sawaia, 2003 p. 39).
elaboração de políticas sociais na América latina, São Paulo: IPEA, 1990.
Por isso, o planejamento das ações no lazer com famílias NEDER, G. Ajustando o foco das lentes: um olhar sobre a organização das
deve atuar nas emoções para se contrapor à pobreza e à dominação. famílias no Brasil. In: KALOUSTIAN, S. (Org.). A família brasileira: a base de
Como nos fala Espinosa, a política nasce do desejo humano de tudo, São Paulo: Cortez, INICEF 2000. p. 26-45.
libertar-se do medo, da solidão: Só as pessoas livres e felizes são gratas PINTO, L. M. S. M. A construção da interdisciplinaridade no lazer; experiência
umas às outras e estão ligadas por fortes laços de amizade (1957, livro IV política da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. In: MARCELLINO, Nelson
apud Sawaia, 2003, p.49). Carvalho (Org.). Políticas públicas setoriais de lazer: o papel das prefeituras,
Campinas: Autores Associados, 1996. p. 61-70.
Mais do que analisar a estrutura familiar, devemos perguntar
pela afetividade que une a família. O desafio é criar uma política de A escolarização da recreação na Educação Física brasileira. In:
CONGRESSO DE EDUCAÇÃO FÍSICA E CIÊNCIAS DO ESPORTE DOS
lazer em que a ludicidade é fator de arregimentação da afetividade e
PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, 8., 2000, Lisboa/Portugal. Anais ...
de outras necessidades das famílias, com legitimidade para levar, às
SARTI, C. A. Família e individualidade: um problema moderno. In:
esferas de negociação pública, as angustias sinceras dos diferentes CARVALHO, M. C. B. (Org.). A família contemporânea em debate, São Paulo:
domínios sociais, e para enfrentar a feudalização do planeta causada Cortez, 1998. p. 39-50.
pelo princípio racional do mercado. SAWAIA, B. B. Família e afetividade: a configuração de uma práxis
Termino aqui deixando aos leitores esta reflexão. ético-política, perigos e oportunidades. In COSTA, A. R.; VITALE, M. A. (Orgs.).
Família: Redes, laços e políticas públicas, São Paulo: IEE/PUCSP, 2003. p. 39-50.
TAKASHIMA, M. K. G. O desafio de atendimento à família: dar vida às leis - uma
questão de postura. In: KALOUSTIAN, S. (Org.). A família brasileira: a base de
Referências tudo, São Paulo: Cortez, INICEF 2000. p. 77-92.
BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte. Constituição da República ZINGONI, P. Lazer como ação socioeducativa para a cidadania: um estudo em
Federativa do Brasil, São Paulo: Tecnoprint, 1988. Belo Horizonte. Belo Horizonte: Universidade de São Marcos, 2001. 166p.
CAMARGO, L. O. Educação para o lazer. São Paulo: Moderna, 1998. (Mestrado em Educação, Administração e Comunicação)

L
Capítulo 6

LAZER E SAÚDE
A sociedade e o social

Yara M. Carvalho

Para tratar deste tema, é imprescindível, primeiramente,


esclarecer os conceitos sociedade e social compreendidos, hoje, de
modo equivocado haja vista a confusão terminológica provocada
especialmente pelos discursos de governos, políticos e imprensa, de
modo geral. Num segundo momento, propomos caminhos para se
pensar e agir no campo do lazer e, em especial, na sua relação com a
saúde.

Sociedade e social
Se a gramática agrega na mesma família o substantivo
'sociedade' e o adjetivo 'social', no senso comum eles são utilizados de
forma quase antagônica: 'sociedade' refere-se a um interlocutor
privilegiado do poderpolítico e 'social' remete ao pobre, ao miserável. É
freqüente ouvirmos: 'Vamos cuidar do social", no sentido de diminuir
ou amenizar à pobreza, ou as condições de vida difíceis da maioria. Esse
tipo de afirmação denota passividade, assistencialismo, paternalismo.
Fica no âmbito do paliativo e fundamenta-se na carência e na caridade.
Se o pobre é cuidado, quem é o agente da ação? Quem é que tem o poder
de cuidar? Quem é o ativo? Quem "cuida do social"?
A sociedade!
No entanto, ao se estabelecer essa dissensão, o social, o
cotidiano, ou ainda as relações que se constróem no dia-a-dia acabam
Yara M. Carvalho Lazer e Saúde 107
106

sendo excluídas da sociedade. Substantivo de um lado e adjetivo de flores que recebe; para a mulher que não ama, o presente pode
outro, essencial e dispensável. Social e sociedade não compõem os significar mais do que o sentimento que justifica a ação); e a terceira
mesmos meios sociais, as mesmas pessoas, não integram o mesmo característica refere-se à ética de princípios, situação na qual prevalece
processo produtivo no acesso aos bens e serviços, ao mercado, ao a seguinte regra: "o fracasso não é fracasso" (abdica-se do sucesso em
função de algum valor, por exemplo).
mundo dos direitos (Ribeiro, 2000).
E qual a relação entre essa discussão e o tema lazer e saúde? Entretanto, o mundo da ação é obscuro, à medida que entre
Lazer e saúde e também educação, alimentação e habitação atitude e resultado há desencontros que, no dizer de Ribeiro, são o que
são áreas de intervenção que se localizam no espaço do social e, nos faz pensar, são o que nos desafia a encontrar um rumo que seja nosso
porque dizem respeito ao social são questões, são problemas (Ribeiro, 2000, p. 210). E a ética da responsabilidade, pautada por
menores. Menores se comparados à economia e ao mercado que resultados, terá dificuldade em tratar com a derrota (Ribeiro, 2000, p. 211).
ditam as regras e prioridades. Considerando, portanto, essa lógica Ela representa e se pauta na ação e assim rompe com o universo das
podemos concluir que o social é o que "resta", é tudo que não intenções. Isso significa que não é levada em conta a intimidade, mas a
aparência externa dos atos; a história importa à medida que a intenção
interessa para o mercado e a economia.
Outro aspecto que não se pode esquecer diz respeito ao realiza-se no imediato, mas a ação só manifesta os resultados a médio,
público, à dificuldade em tratar da coisa pública. Foge-se dessa ou longo prazo; não há justificativa para o fracasso, não se perdoa o
questão deslocando-se o tema dos debates para a dimensão da vida fracasso recorrendo à intenção (Ribeiro, 2000).
privada, do lar, da intimidade do indivíduo. Quando se analisa a Não se pode invocar duas lógicas opostas, vida pública e privada,
atuação do homem público, por exemplo, as discussões se centram relação íntima e com estranho. Essa mistura de éticas traduz o "pouco
nas qualidades do homem e o problema é que não se sabe traduzir as caso" que se faz do que entre nós é público ou privado. Há que se
virtudes e os vícios do indivíduo em virtudes ou vícios públicos, recuperar a dignidade e a exigência também na ação. Hoje, porém, não
cívicos. Não temos, assim, a ponte que faz o social emergir como existem mais normas pre-definidas a respeito de como agir na profissão,
no amor, nos tratos e contratos que assegurariam o êxito, ou a certeza
produto das relações inter-individuais.
Articular pessoal com social, público e privado pode ser uma moral de agir para o bem. Decorre dessa realidade que precisamos, cada
saída para uma sociedade que fica entre o bem e o mal. Éfato: do bem vez mais, inventar modos de ação. O fracasso, a dificuldade e o
não necessariamente decorre o bem. Uma atitude no plano individual imprevisível estão permanentemente presentes e compondo o cotidiano.
pode merecer elogios e, ao mesmo tempo, resultar em tragédia no É, portanto, considerando que no dicionário não se esgotam
coletivo; e aqui nos deparamos com uma questão de natureza ética. significados e sentidos de palavras, uma vez que elas estão impregnadas
E qual a ética que praticamos em nossa vida cotidiana? De de história, que trataremos do lazer e da saúde, sob a perspectiva da
acordo com Ribeiro, é possível identificar três características dessa sociedade e do social.
ética: a primeira, diz respeito a valores firmes, se não fixos, que
simulam fixidez (os mandamentos da Igreja e a moral da Família
podem ser exemplos); a segunda prioriza a intenção, mais do que o Lazer e saúde
resultado da ação e quanto mais próximo de mim o outro, mais
Considerando que o mundo da ação é frágil, duvidoso, efêmero
importará a intenção do ato, e menos o resultado da ação (um exemplo
(Ribeiro, 2000, p. 11), não se pode seguir modelos, ainda que se tenha
pode ser o marido que presenteia a mulher com flores: se a mulher o
obtido bons resultados com eles. Pelo contrário, precisamos conhecê-los
ama, contará mais por que ele lhe dá flores do que a qualidade das
108 Yara M. Carvalho
ir Lazer e Saúde 109

mas, ao mesmo tempo, nos livrar das verdades, do universal e do no Brasil. O modelo de atenção à saúde do Brasil é o maior
neutro. Trata-se, sobretudo, de construir outra percepção a respeito do mundo e detém resultados positivos, não só nas regiões
das coisas, da natureza, das instituições e das pessoas à medida que, mais próximas da riqueza, dos centros urbanos mas, sobre-
a cada dia, nos deparamos com desafios que, em outros tempos, tudo, na periferia e em Estados e municípios menores e
eram de responsabilidade "de outros", por exemplo, dos estadistas. menos privilegiados economicamente. Cabe destacar aqui
Essa é uma diferença fundamental que nos desafia a vida hoje: de que o conceito de saúde valorizado nas discussões situa-se
cada um de nós depende as condições de vida - nossa e de todos. na dimensão clínica, física e biológica. A Grande Área
De outro modo, cresceu o alcance da ética da responsabilidade. denominada Ciências da Saúde, onde se localiza a Educação
Ela não se confina mais no político em sentido estrito, o das instituições [...] Física, do ponto de vista acadêmico-científico, agrega várias
Precisamos ser condottieri de nossas vidas, estadistas de nosso destino subáreas: Fisioterapia, Fonoaudiologia, Veterinária,
(Ribeiro, 2000, p. 220). E como seria pensar essa responsabilidade no Odontologia, Terapia Ocupacional e Medicina, entre outras,
campo do lazer voltado para a saúde? ou seja, a área clínica é uma das 14 subáreas que conformam
Sem querer "prescrever" condutas e procedimentos, há as Ciências da Saúde e, no entanto, ainda prevalece a
alguns aspectos que merecem ser lembrados com o intuito de trazer referência a essa determinada saúde;
elementos que podem orientar concepções e práticas no campo do 3. O campo denominado Saúde Coletiva, que contempla a
lazer/saúde: Saúde Pública, a Medicina Preventina e a Epidemiologia,
1. Do ponto de vista das experiências, dos programas está ausente nos debates do lazer. Campo, compreendido
(Programa Saúde da Família) e das instituições (o Sistema como espaço de produção de conhecimento, de ensino e
Único de Saúde) que são referências na área da saúde, o de intervenção e também espaço de disputa, de poder e de
Brasil agrega pesquisadores e resultados representativos, luta epistemológica e política. Ainda que a mídia constan-
no âmbito nacional e internacional, e, no entanto, temente desqualifique e distorça nossa história e expe-
freqüentemente recorre ao Norte da América ou à Europa riência, as políticas de saúde diversificam-se e agregam
buscando soluções muitas vezes inoperantes diante da governo, instituição e sociedade civil de modo a garantir
nossa realidade, podem ser exemplo as iniciativas voltadas condições para a construção de co-responsabilidade e, ao
para a promoção da saúde, hoje já se fala na promoção da mesmo tempo, autonomia, ou seja, há resultados
saúde brasileira porque a nossa realidade remete a construtivos que merecem atenção na área do lazer;
problemas e soluções que na maioria das vezes são mais 4. As mudanças nos conceitos sociedade e social provoca-
inventivas e relevantes quando comparadas com as do ram novas relações entre saúde e sociedade, no plano
Canadá ou dos EUA. É fundamental conhecer e incorporar geral, e nas práticas das ciências da saúde, em particular.
o que é bom do outro mas jamais de modo acrílico e Por sua vez, à medida que a ciência avançou, também do
descontextualizado; ponto de vista terapêutico e não só da tecnologia, alguns
2. As referências bibliográficas que fundamentam os trabalhos "doutores" descobriram a necessidade de serem "parcei-
de lazer dirigidos para o enfoque da saúde são excludentes, ros" dos pacientes. Essa construção de vínculo com o
preconceituosas, discriminatórias e pobres: referem-se à paciente resulta de outra tendência gestada durante as
carência de autores brasileiros, como se a saúde não fosse últimas décadas: a valorização de uma ética pautada em
tema, preocupação, objeto de pesquisa, ensino e intervenção valores mais humanos. Novos questionamentos na rela-

L
110 Yara M. Carvalho Lazer e Saúde 111

cão médico-paciente, por exemplo, podem ser vistos no 6. As políticas públicas sociais têm sido pensadas, formuladas
filme Patch Adams, o amor é contagioso1: o autor do e implementadas considerando descentralização como sinô-
drama apresenta o estudante Adams (Robin Williams) nimo de democratização; participação social e participação
lutando contra o sistema que considera o paciente apenas da comunidade como participação popular; e controle social
como um número de leito hospitalar ou ainda como nome como controle público. Isso denota que a questão institucio-
de doença: "para sermos médicos, precisamos tratar a nal ainda é central diante da relação sociedade e Estado.
doença e o paciente", reafirma em várias cenas. E, numa Entretanto, ao se inverter o enfoque da análise, priorizando a
seqüência didática, diante das oposições das quais é relação sociedade e Estado, há que se investigar o cotidiano
vítima, comunica a "nova" proposta com base no seguinte da relação da comunidade com os serviços de lazer, neces-
lema: "melhorar a saúde não é só adiar a morte". Temos sidades e demandas e refletir a respeito das políticas de lazer
enfatizado a dimensão da doença quando nos remetemos sem direcioná-las para as contraposições do tipo
à saúde, mas é preciso cuidar da pessoa adoecida, público-privado, ou centralização-descentralização, mas
considerando que para ficar doente e recuperar-se dela é considerando as articulações que as caracterizam;
preciso de saúde e às vezes de muita saúde; 7. O deslocamento do enfoque e delimitação do objeto de
5. Convivemos com os "deuses da medicina" mas também investigação, do nível macro para o micro, é perceptível
com os profissionais de saúde e de lazer que no cotidiano no setor lazer mas também no da saúde, economia e polí-
do serviço reavaliam e reestruturam suas concepções e tica. A tendência na análise aponta novos contornos e sig-
práticas de modo a se apropriar do inestimável saber nificados às experiências nesses diversos e integrados
acumulado pela medicina, ao longo dos séculos, visando setores, podendo ampliar capacidade e limites explicati-
recompor a dignidade e o corpo humano. E as experiên- vos. Compreender a realidade considerando os distintos
cias, nesse sentido, não dizem respeito somente ao trata- modos de interpretação e suas articulações pode contri-
mento de ocorrências já instaladas e conhecidas. A preven- buir para o debate a respeito do espaço público local, por
ção, a promoção e a terapêutica como estratégias de exemplo, como espaço privilegiado para a constituição
manutenção da existência têm sido recomendadas. As ini- de identidade do sujeito social coletivo.
ciativas do poder público comprovam essa tendência ao
chamar profissionais de diferentes áreas de origem para
agir em saúde. Nesse sentido o profissional que atua no Sociedade e lazer
campo do lazer também pode conquistar um espaço de arti-
culação e composição no campo da saúde. Até porque um A maioria das pessoas vive em condições muito difíceis. Não
dos princípios que orientam o SUS é a intersetorialidade - vive. Sobrevive. Os números a seguir não são novidade para ninguém,
distintos setores construindo parceria - e as secretarias de mas nunca é demais repeti-los. No Brasil, os 10% mais ricos da
saúde e de esporte e lazer, no nível municipal, têm recebido população são donos de 46% do total da renda nacional, enquanto os
incentivo por parte do Ministério da Saúde; 50% mais pobres - ou seja, 87 milhões de pessoas - ficam com apenas
13,3%. Somos 14,6 milhões de analfabetos, e pelo menos 30 milhões
de analfabetos funcionais. Da população de 7 a 14 anos que freqüenta a
1. Patch Adams, o amor é contagioso é um filme baseado numa história
verdadeira, do diretor Tom Shadyac, EUA, Columbia TrisStar Home
escola, menos de 70% concluem o ensino fundamental. Na faixa de 18
Entertainment, 1998.
112 Yara M. Carvalho Lazer e Saúde 113

a 25 anos, apenas 22% terminam o ensino médio. Os negros são 47,3% seja, um cenário de pleno desenvolvimento humano, pressupõe um
da população brasileira, mas correspondem a 66% do total de pobres. aumento de oportunidades para as pessoas, com capacidade e poder de
O rendimento das mulheres é 60% do rendimento dos homens no escolha, e com os resultados desse crescimento sendo apropriados
mesmo posto de trabalho. No Brasil, segundo dados do IBGE, equitativamente pela população, que passa a ter capacidade de
enquanto o Distrito Federal apresentou um PIB per capita de R$ influenciar nas decisões que afetam a sua vida. Um dos grandes
16.920 em 2003, o Estado do Maranhão ficou com apenas R$ 2.354 impedimentos para a mudança desse quadro é a forma como se tem
anuais por pessoa. Também não é novidade para ninguém que a enfrentado a pobreza, a partir de programas focalizados. Entretanto, as
pobreza no Brasil é causada pela desigualdade social, fruto de um condições de vida de uma pessoa têm que estar sintonizadas com a
processo de concentração de poder, de negação de direitos à população condição de vida agregada da sociedade. No Brasil, o padrão de
e de péssima distribuição de recursos. Países com renda per capita políticas públicas é política setorial e como não há políticas universais,
similar à brasileira têm 10% de pobres em sua população. Nós temos cada setor define os "seus pobres".
30%. É essa desigualdade que faz com que 55 milhões de brasileiros e Com os dados acima a respeito de alguns dos problemas que
brasileiras vivam na pobreza - 22 milhões deles na indigência. atingem a população, pode ficar mais fácil e compreensível entender
Quebrar essa espiral de empobrecimento e exclusão passa por ações o motivo pelo qual os estudos relativos às questões que envolvem o
que enfrentem e mudem as atuais relações de poder que, lazer muitas vezes encontram barreiras e criam constrangimentos.
historicamente, produziram e perpetuaram a desigualdade social no Há preconceitos devido ao pretenso caráter "supérfluo" dessa
Brasil. Algo que, na opinião de especialistas, o Brasil continua longe temática diante da miséria que vive a humanidade e particularmente a
de fazer. Reunidos recentemente num seminário promovido no Rio de população brasileira.
Janeiro pela ActionAid2, uma das principais organizações não Entretanto, pobreza e lazer convivem. Hoje, à proporção que
governamentais no debate sobre pobreza e desigualdade, eles
aumenta a pobreza aumenta a atenção sobre o tempo disponível das
reafirmaram que o país ainda não encontrou o caminho para solucionar
pessoas. Trata-se de um paradoxo: de um lado, falta acesso aos
o problema da exclusão social.
serviços e espaços de lazer e também de espaços urbanos ociosos; de
Um dos primeiros passos para se combater de forma efetiva as
outro, há o apelo ao consumo de serviço e equipamento voltado para
causas que geram a pobreza no Brasil é mudar o próprio entendimento
o lazer. No âmbito institucional, não podemos esquecer da
do que é pobreza e compreender seu caráter multidimensional.
proliferação, nos últimos tempos, do número de cursos de graduação
Enquanto a pobreza for encarada apenas como falta de recursos e
que agregam o lazer, a área do turismo pode ser exemplo.
deficiência de renda, bastará o argumento de que o desenvolvimento
O fato é que a carência de serviços e políticas públicas
econômico, com aumento progressivo da riqueza social, é suficiente
integradas reforçam a visão do lazer como prática de atividades
para combatê-la. No entanto, na perspectiva do paradigma do
prazerosas, destituídas da sua dimensão contestadora, crítica,
desenvolvimento humano - portanto, não apenas o econômico - a
propositiva e inventiva que compreende as pessoas e os coletivos
pobreza é um estado de "desempoderamento", de privação de
como produtores de cultura e intervém de modo a garantir o
capacidades de acesso e de oportunidades, um estado de restrição às
entendimento do que significa ser protagonista e não mero
disponibilidades de recursos e à cidadania. O inverso dessa moeda, ou
espectador da vida.
2. A ActionAid é uma organização inglesa. No Brasil iniciou suas atividades em
1999, definindo como áreas prioritárias de trabalho o nordeste rural e as
grandes regiões metropolitanas do sudeste, nas áreas de maior pobreza e
desigualdade social.
114 Yara M. Carvalho Lazer e Saúde
115

construam relações de vínculo, de co-responsabilidade, autônomas,


Projetos sociais na saúde inovadoras e socialmente inclusivas de modo a valorizar e otimizar ò
Com o intuito de chamar a atenção dos estudiosos e profissionais uso dos espaços públicos de convivência e de produção de saúde que
do lazer para o campo da saúde, aqui apresenta-se uma proposta podem ser os parques, as praças e as ruas.
construtiva, em andamento, que agrega profissionais da saúde, de A nossa experiência mostra que faltam informação e
diversas origens de formação, viabilizando, portanto, estratégias conhecimento aos profissionais da saúde e aos usuários dos serviços,
multidisciplinares, de repercussão nacional, especialmente voltadas no que se refere ao lazer (Martins et ai., 2006). Indicam as práticas
para a melhoria das condições de vida da população: o Programa Saúde físicas mas quase sempre aquelas atividades chatas, impositivas,
da Família. autoritárias, medidas, cronometradas, mais afinadas com o "tempo
da obrigação". As práticas que nos remetem à descoberta e à
O Programa Saúde da Família (PSF) consciência do corpo - do nosso e do do outro -, ao significado do
cuidar e da importância em estar atento aos desconfortes e às diversas
Trata-se de uma iniciativa "de mudança", no sentido de maneiras de perceber e exercitar a sua potência ainda são tímidas.
concretizar o que já está na forma de lei: a saúde é direito de todos e Quando o ser humano se movimenta, quando ele está atento para a
dever do Estado (art.196). Resulta da junção de dois programas sua gestualidade ele pode desenvolver um diálogo diferenciado com
incentivados pelo Ministério da Saúde, o que lhe deu nome e o de os profissionais e o serviço de saúde.
agentes comunitários de saúde. O PSF foi primeiro implementado em Para muitas pessoas, o SUS ainda reproduz uma imagem muito
cidades pequenas, em municípios do Ceará, Pernambuco e Minas ruim da saúde e, sobretudo, da vida: a perspectiva hospitalocêntrica,
Gerais onde era baixa a densidade populacional e havia escassez de centrada na figura do médico e na doença, deixou de lado a pessoa
serviços e profissionais de saúde e os resultados foram bons3. doente, a terapêutica e os outros profissionais de saúde (enfermeiro,
Ele é considerado a principal estratégia de organização da fisioterapeuta, profissional de educação física, terapeuta ocupacional,
Atenção Básica à medida que seu principal desafio é promover a entre outros). A instituição de saúde se fixou na doença no correr dos
reorientação das ações de saúde levando-as para mais perto da família, anos, ainda que para ficar doente e se recuperar seja preciso muita saúde.
com base nos princípios do SUS. O atendimento é prestado por Há saídas para esses impasses que implicam a ressignificação do
médicos, enfermeiros, agentes de saúde, entre outros profissionais, na trabalho e da formação em saúde: equipe multiprofissional e educação
unidade de saúde ou nos domicílios. E não raras vezes é possível voltada para a alta complexidade da intervenção em Atenção Básica já
encontrar ações relacionando promoção da saúde e lazer. que na maioria das vezes é o primeiro momento de contato do usuário
De fato, o lazer pode ter na Atenção Básica e no Programa com o SUS, e portanto a grande possibilidade de apresentá-lo às novas
Saúde da Família um espaço interessante para compor com o cuidado formas de organização e atendimento do serviço - que não o considera
e a atenção em saúde. O espaço e o tempo do lazer podem ampliar as um corpo-objeto mas uma pessoa marcada por sua história de vida, suas
possibilidades de encontrar, escutar, observar e mobilizar as pessoas experiências, por seus limentes e, portanto, com dificuldade de manter e
adoecidas para que no processo de cuidar do corpo elas efetivamente conquistar condições de saúde e de vida melhores.
Cabe ressaltar, entretanto, que o que importa apresentar para
3. Há vários textos que avaliam a implementação do Programa Saúde da Família, ver este texto é menos a proposta em si do PSF mas os pressupostos que
A estratégia de saúde da família (Andrade; Barreto; Fonseca, 2006); Da saúde e dão sentido à ela e, nesse sentido, chamamos a atenção para os
das cidades (Capistrano Fo, 1995); Avaliação da implementação do PSF em dez
grandes centros urbanos: síntese dos principais resultados (Ministério da Saúde, seguintes pontos:
2002); entre outros.

L
116 Yara M. Carvalho Lazer e Saúde 117

1. Mobilização da comunidade: de um lado, cada um dos Obviamente que os resultados não são possíveis de serem
bairros, conjuntos habitacionais e favelas têm a possibili- congelados, mas as mudanças - no dia-a-dia das relações entre
dade de reunir moradores, conhecer a proposta e debater pessoas, pessoas e instituição - podem persistir. O fato é que
com os profissionais responsáveis; de outro, cada profissio- mesmo os que ganham pouco ajudam o vizinho, o parente, o amigo,
nal pode conhecer a história da comunidade, seus modos de e essa atitude nos remete a valores muito distintos dos incentivados
se organizar e conviver, as prioridades estabelecidas por pela sociedade capitalista (competição, individualismo) onde até a
quem as sofre e os sonhos de pessoas que almejam condi- afetividade é vendida.
ções de vida melhor. Participação, cultura solidária e conhe-
cer o que há de útil e eficaz no saber das comunidades são os
pilares, digamos assim, que dão sustentação ao programa;
2. Qualidade e integralidade, sempre juntas: a integralidade
Algumas considerações
requer o suporte de serviços elementares. No que diz respeito O que preocupa a humanidade neste final de século? Questões
à qualidade, para fazer jus a ela, é necessário capacitar e atua- afetas à natureza, escassez de água, alimentos, recursos minerais; a
lizar os profissionais de modo a enfatizar os temas do trabalho paz, entre nações, particularmente; tolerância com as diferenças, com
em equipe, do aprendizado mútuo, do relacionamento com a o outro, o problema das imigrações, dos estrangeiros; qualidade de
comunidade e de como melhorar as condições de vida, de vida/saúde5 e acesso aos serviços culturais, com ênfase no lazer, que
saúde e de lazer de grupos extremamente carentes; determinam melhoria das condições de vida.
3. São três os conceitos essenciais para entender o programa: Segundo o referencial teórico das ciências humanas e sociais,
grupo, território e responsabilização. O programa propõe o os elementos da cultura corporal são manifestações e expressões
fortalecimento de associações, entidades e grupos que já humanas, portanto, possuem historicidade e exprimem um conjunto
existem na comunidade, não recortados, por exemplo, de de significados. Nesse âmbito, compreender tais manifestações às
acordo com as patologias (diabéticos, hipertensos, idosos quais inclui-se o lazer, por exemplo, é também uma maneira de
etc.). O objetivo é trabalhar com grupos num determinado identificar o contexto histórico-cultural em questão, o sentido que os
território4, de modo a promover relações com base na idéia sujeitos envolvidos atribuem àquilo que fazem, às contradições e
da co-responsabilidade, da construção de vínculos. desigualdades existentes, enfim, dar oportunidade ao profissional
4. O trabalho é assistencial mas, ao mesmo tempo, motiva a específico de pensar o lazer como uma dimensão da vida.
organização popular, a construção de uma nova sociabili- As administrações municipais, diante da crise e dos seus
dade, de relações solidárias, priorizando o coletivo e a orga- compromissos, estão ampliando parcerias com instituições da
nização e manutenção de práticas autogestionárias, de modo sociedade civil, empenhadas em gerar trabalho e renda, de um lado
que as relações, especialmente entre profissional e comuni- e, de outro, atender as demandas mais gritantes por comida e saúde,
dade, sejam "dependentes", - seja do saber, seja da expe- por exemplo.
riência, seja ainda do acesso a produtos e serviços -, mas de
modo que o outro transite com autonomia por entre essas
dimensões no dia-a-dia.
5. Qualidade de vida e saúde são conceitos distintos que têm sido utilizados como
sinônimos. Tratei dessa questão no texto Atividade física e saúde: onde está e
4. O conceito de 'território' utilizado aqui vai além do espaço, incorpora uma quem é o "sujeito " da relação?, publicado na Revista do Colégio Brasileiro de
população com sua estrutura, história, cultura e forma de organizar. Ciências do Esporte, v. 22, n. 2, janeiro/2001.

L
118 Yara M. Carvalho Lazer e Saúde 119

Já se sabe que o assistencialismo em si é imprescindível, Superar dicotomias e estimular a política participativa e


mas que tem de ser acompanhado por ações sistemáticas de cooperativa que coloca o cidadão no centro e na razão das atividades;
formação, de capacitação, de financiamento e de "incubação", aumentar o grau de consciência da população sobre seu papel na
para que os socialmente excluídos possam, por si mesmos, construção de políticas públicas; estimular e orientar a comunidade
construir o caminho de sua reintegração (Singer, 2000, p. 3). para que reconheça o quanto a capacidade criativa e o acesso à
O setor saúde é reconhecidamente muito importante do ponto informação e ao conhecimento pode instigar nossa capacidade
de vista social e econômico, mas é pouco contemplado por estudos que inventiva são ações que podem alterar as condições de vida e de saúde,
dimensionam a real estrutura. Reconstruir, passa, obrigatoriamente, também por meio da produção de lazer.
por definir novas formas de intervir. Democracia, cidadania e direitos
são conceitos tão presentes no nosso dia-a-dia hoje porque houve um
desinteresse pela política e um desaparecimento das categorias sociais Referências
e políticas gerando, por sua vez, pessoas dessocializadas, indiferentes
CARVALHO, Y. M. Lazer, cultura e sociedade: a festa, um caminho que pode nos
ao outro, à comunidade, à sociedade, interesses esses substituídos pelo levar à vida do outro. Impulso, v. 16, n. 39, p. 15-22, 2005.
prazer e pela utilidade.
MARTINS, C.L. et ai. Avaliando as práticas corporais no Distrito Butantã - SP.
Profissionais do lazer e da saúde precisam se encontrar para Anais do Congresso Mundial de Saúde Pública-Congresso da ABRASCO. Rio de
juntos pensarem e intervirem no cotidiano de uma sociedade em que Janeiro, agosto, 2006.
o social diga respeito aos mesmos meios sociais, às mesmas pessoas e RIBEIRO, RJ. A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil.
também ao acesso aos bens, na forma de produtos ou serviços, e, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
sobretudo, aos direitos, ao lazer e à saúde. SINGER, P. 2001- um ano de transição. Folha de São Paulo, 31 dez. 2000,
Produzir e dar visibilidade aos projetos sociais exitosos no nível caderno A, p. 3.
micro, local, regional podem incentivar uma atuação profissional
diferenciada questionadora e crítica no sentido da renovação, da
requalificação e da ressignificação das relações. Nessa direção, acesso à
informação e ao conhecimento são fundamentais porque permitem a
construção de redes de conversa e de escuta e de produção de saúde para
além da relação entre pares. Políticas de atividades, doação de materiais,
construção de quadras, desenvolvimento de habilidades técnicas não
possibilitam a produção de cultura; a organização de eventos e de
práticas recreativas, muitas vezes sem continuidade, reforçam as
desigualdades, a redução do lazer e da saúde a visões limitadas ao
padrão de corpo e saúde que a indústria cultural define.
Lazer e saúde compõem, podem estar articulados porque se
inscrevem no modo de viver das pessoas e conformam uma cultura
corporal que traduz interesses, necessidades, valores e desejos que,
por sua vez, são fundamentais e precisam ser reconhecidos para
aprendermos a "fazer a vida melhor" (Carvalho, 2005).
Capítulo 7

ESTRUTURA POLÍTICA EXCLUÜE1NTE,


PRÁTICAS CULTURAIS
NORMAL1ZAÜORAS, POLÍTICAS ÜE
ALÍVIO À POBREZA
O lazer em questão

Flávia Faissal de Souza

Aproximação com os estudos do lazer


Minha relação com os estudos do lazer foi, até então, de
observadora próxima, e não propriamente de estudiosa, apesar de
admirar as possibilidades que se abrem a partir de suas discussões
teórico-metodológicas. É essa proximidade que permite me lançar
íiesse desafio: o de buscar estabelecer pontes com os processos de
exclusão e as políticas públicas que venho estudando com mais ênfase.
Feita essa consideração, coloco-me no lugar de quem há algum
tempo vem atuando junto a pessoas deficientes, pensando sobre os
significados e o papel do corpo deficiente em nossa sociedade,
considerando os aspectos político-educacionais e os histórico-culturais,
bem como os mecanismos de apartação desses sujeitos dos seus direitos
básicos, como: saúde, educação, trabalho e também o lazer. É então,
dessa posição, que aceito o desafio de escrever este texto.
De início, empresto o conceito operacional formulado por
Marcellino (l 995b), que trata o lazer como a cultura - compreendida
em seu sentido mais amplo - vivenciada (praticada ou fruída) no tempo
disponível das obrigações sociais, que possui como principais traços
definidores o "caráter desinteressado" e a busca pela "satisfação"
pessoal e social.
122 Flávia Faissal de Souza Estrutura Política Excludente, Práticas Culturais Normalizadoras... 123

Afasto-me, portanto, de enfoques abstratos da questão, relação a sua própria estrutura política e as condições histórico-
reafirmando a compreensão de que o lazer é um elemento historica- culturais de organização social.
mente situado em nossa sociedade, fruto de sua moderna estrutura e A sociedade pós-moderna é marcada por profundas contradi-
agente de sua consolidação e/ou transformação. ções no que diz respeito ao acesso e a garantia de qualidade às neces-
Como não é objetivo deste texto o aprofundamento da questão sidades humanas, sobretudo, em relação a educação, saúde, trabalho,
conceituai do lazer, ou mesmo a superação de problemas que vêm lazer e demais direitos sociais dos diversos extratos sociais. Também,
sendo tão amplamente debatidos, permito-rne seguir adiante, essa mesma sociedade é marcada por dispositivos cada vez mais sofis-
destacando outro ponto que me será útil no desenvolvimento do tema ticados de processos excludentes e de controle da conduta corporal dos
aqui proposto: as barreiras para o acesso ao lazer (Marcellino, indivíduos, reiterando a manutenção dessa ordem social.
1995a), ou seja, os vários elementos socioeconômicos e culturais que Segundo Gomes et ai. (2006), o debate em torno das questões
compõem o "todo inibidor", restringindo o acesso de amplas que se referem à exclusão dos direitos sociais, entrou no debate
camadas de nossa população, de maneira crítica e criativa ao lazer. acadêmico, representado por um pequeno número de estudos, já na
Entendo esses elementos como processos de excludentes, década de setenta, tendo na maioria da vezes como foco a questão
que cada vez se tornam mais complexos, e geraram toda sorte de econômica. Foi, porém, nos anos oitenta do século passado,
políticas ditas inclusivas, que há algum tempo entraram tanto na incentivados pela queda do regime militar e pela redemocratização
pauta acadêmica, quanto na política, gerando mais e mais questões, política nacional, que diversos coletivos, tidos como marginalizados,
confusões e até aberrações. conseguiram que suas vozes ecoassem na sociedade civil.
Isso posto, minha intenção aqui é partilhar com você, leitor, Já no final da década de 1980, devido ao eco das vozes de
algumas reflexões, angústias, dúvidas e esperanças que vagam em pessoas que historicamente vinham vivendo uma apartação dos
meus pensamentos, buscando, na medida do possível, discutir a direitos sociais, que um olhar mais atento em relação aos processos
estrutura política excludente, sua relação com as práticas culturais de exclusão de direitos entra em cena nas leituras acadêmicas,
normalizadoras e as políticas de alívio à pobreza, tendo como pano ampliando o debate pela entrada em cena dos "outros"2. Tais estudos
de fundo para essas reflexões, o papel do lazer. trouxeram grandes contribuições, principalmente por terem como
princípio a exclusão, enquanto uma característica estrutural da
sociedade capitalista, neoliberal (em especial o dos países chamados
em desenvolvimento) e pós-moderna, sendo essencial à vitalidade da
Cenário das reflexões: nossa sociedade.
sociedade pós-moderna, Desde então, esse debate vem gerando diferentes entendimentos
de consumo e excludente e explicações para o fenômeno que alguns denominam exclusão social.
Martins (2003a), por sua vez, afirma que o termo exclusão social em si
Para pensarmos a questão do acesso mais igualitário aos não cabe ser usado, pois o considera um rótulo abstrato não
direitos sociais, e aqui destaco a questão do lazer (entendido como correspondente de fato a qualquer sujeito social. Trata-se de uma
necessidade básica humana1), faz-se fundamental problematizar, na impressão superficial daquele que se encontra em condição
sociedade ern que vivemos, as questões que podem ser postas em desfavorável, dando suporte ao discurso dos que se consideram aderidos

l. Essa idéia do lazer enquanto necessidade básica é bastante trabalhada na obra 2. Esses conceitos de os "mesmos" e "os outros" foram bastante explorados nas
de Melo (2003), influenciado pelos estudos de E. Thompson. obras de Michael Foucault.
124 Flávia Faissal de Souza Estrutura Política Excludente, Práticas Culturais Normalizadoras... 125

ao sistema. Ou seja, a exclusão é uma categoria de análise sociológica neoliberais. Este panorama de desajuste social, atualmente chegou a
que ignora a dinamicidade do mundo, assim como a relevância das lutas tal ponto, que é possível uma leitura polarizada da sociedade, devido
contemporâneas para alteração inclusive dos processos excludentes ou às desigualdades estruturais e históricas, com rupturas sociais agudas
das formas degradadas de inclusão. e violentas (Sader; Jinkings, 2006).
Outro ponto que destaco das obras de Martins (2003a, 2003b) é Essas rupturas sociais, que vêm caracterizando o desajuste
sua colocação em relação às análises que versam sobre os processos de social do Brasil, se tornam mais evidentes quando nos percebemos na
exclusão, quando o autor afirma que estas não devem apenas se situar 13a posição, no que diz respeito ao índice de desenvolvimento
no âmbito das questões econômicas, mas também das privações de humano na América Latina e na 63a posição em relação ao mundo.
ordem simbólica e social, e suas contradições. Isso posto, desloca-se o Ressalto que ainda neste século XXI, apresentamos casos de malária
problema para dentro da estrutura social, política, econômica e (desprezo no setor da saúde pública), que 6% de nossas de crianças
cultural, tornando então pertinente discutir processos sociais, são subnutridas, 17,4% da população vivem abaixo da linha da
econômicos e políticos excludentes, suas expressões concretas, suas pobreza e 22,4% da população sobrevivem com aproximadamente
possibilidades de desumanização ou, mais ainda, suas manobras de quatro reais por dia (UNDP3,2006, apud Sader; Jinkings, 2006).
inclusão precária, instável e marginal. Sobre esses fatos, Gentili e Alencar (2001) comentam, ao
Assim, podemos considerar que os processos de exclusão considerarem os dados do CEPAL4, que mais de 50 milhões de
são construções históricas complexas e multi-setoriais, só podendo pessoas não consomem o mínimo de calorias diárias, recomendadas
ser compreendidos se olharmos para as diversas esferas que pela Organização Mundial de Saúde (OMS), configurando um mapa
conferem a vida humana e as suas necessidades ao menos básicas. de distribuição de riquezas na América Latina, em que se mostra uma
A complexidade dos processos excludentes e sua heteroge- brutal diferenciação em sua concentração. Ainda afirmam que quase
neidade me fazem pensar nos tipos de exclusão possíveis anuncia- 60% dos meninos e meninas da América Latina são pobres. Concluem
das por Robert Gasteis (1997 apud Gentili; Alencar, 2001, p.32). com esses números, que não ser pobre na América Latina é uma
São elas: questão de sorte.
a. Supressão completa de uma comunidade por extermínio; Por conseqüência, é possível afirmar que pensar sobre os
b. Os mecanismos de confinamento, asilos, instituições espe- processos de exclusão é, em grande parte, pensar sobre a pobreza.
ciais, lares, prisões...; Mas o que pode ser entendido como pobreza em nossa sociedade?
c. Segregar incluindo: Para Martins (2003a, p. 10), atualmente não podemos
Esta forma de exclusão significa que determinados entender a pobreza somente como algo explicável pela escassez de
indivíduos estão dotados de condições necessárias para recursos econômicos, já que outras formas de sobrevivência
conviver com os incluídos, só que em uma condição econômica se abrem em nossa sociedade, sobretudo nos centros
inferiorizada, subalterna. São os subcidadãos, os que participam urbanos, (desde o subemprego aos trabalhos ilícitos), porém não
da vida social sem os direitos daqueles que possuem as legitimados socialmente ou mesmo moralmente. Assim, a pobreza
qualidades necessárias para uma vivência ativa e plena.

A questão da desigualdade é o traço mais marcante da questão 3. UNPD é a sigla na língua inglesa de PNUD - Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento. Esse programa, entre outros trabalhos, se ocupa em
social que envolve toda a América Latina, e em especial a situação tratar das questões relativas ao índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no
brasileira, desde o advento de todo processo de construção política, a mundo.
colonização, chegando ao seu maior agravamento com as políticas 4. CEP AL é a sigla da Comissão Econômica para América Latina e Caribe,
também um órgão da Organização das Nações Unidas (ONU).
126 Flávia Faissal de Souza Estrutura Política Excludente, Práticas Culturais Normalizadoras... 127

deve ser entendida também pela não distribuição eqüitativa dos De tal forma, Galeano (1999) destaca as (im)possibilidades
benefícios sociais, culturais e políticos que a sociedade contemporânea de vida das crianças latino-americanas da classe média:
tem sido capaz de produzir, mas não tem sido capaz de repartir. Os meninos ricos viajam [...] em carros blindados [...]
Nessa perspectiva, a pobreza é redimensionada a partir das Descobrem o metrô em Paris ou Nova Iorque, mas jamais o
necessidades básicas humanas, constituindo um divisor de águas tomam em São Paulo [...]
aos que têm acesso aos bens produzidos pela própria humanidade, e Eles não vivem na cidade onde vivem. Para eles é
aos que esse direito é roubado. Assim, a desigualdade social, vedado vasto inferno que lhes ameaça o minúsculo céu
pautada pela pobreza se caracteriza basicamente por criar uma privado [...] Em plena era da globalização os meninos já não
sociedade dupla, como se fossem dois mundos que se excluem pertencem a lugar algum [...] Sua pátria está nas marcas de
reciprocamente, embora parecido nas formas ... Mas, embora essa prestígio universal, que lhes destacam as roupas [...] sua
desigualdade nos separe materialmente, ela mesma os unifica linguagem é a dos códigos eletrônicos internacionais. Nas
ideologicamente (Martins, 2003b, p. 21). mais diversas cidades, nos mais distantes lugares do mundo,
Assim, cria-se a idéia da falsificação, da necessidade de os filhos do privilégio se parecem entre si, nos costumes e
consumir o mesmo, o sonho de ser quem não se é, ou mais, de poder tendências, entre si se parecem os shopping centers [...]
ser quem não se é por meio do consumo, mesmo que falsificado, Educados na realidade virtual, deseducam-se na realidade
igual na forma, diferente no conteúdo. Tal apartação de direitos real, que ignoram ou que tão só existe para ser temida ou
acaba gerando uma célula dos excluídos que, para se legitimarem, ou comprada.
tentarem significar o sentido de serem incluídos, imitam os incluídos Apanhados nas armadilhas do pânico, os meninos de
em suas mais superficiais formas de estarem em sociedade (caso de classe média estão cada vez mais condenados à humilhação
falsificação de marcas de roupas e acessórios, objetos de consumo). da reclusão perpétua. Na cidade do futuro, que já está sendo
A idéia da sociedade cindida é também trabalhada por do presente, os telemeninos [...] contemplarão a rua de
Galeano (1999) ao falar da infância e da adolescência na América alguma janela de suas telecasas: a rua proibida pela violência,
Latina, ressaltando, a partir de uma leitura das políticas sociais, a a rua onde ocorre o sempre perigoso e às vezes prodigioso
infância roubada daqueles que a família trabalha pouco ou não espetáculo da vida.
trabalha. Essas crianças e essas famílias têm seus direitos excluídos Ambos marcados e ameaçados pelas suas impossibilidades
de suas possibilidades de vida e a eles é negado o direto de viver. Sem de vida. Por um lado, os mais castigados pelas políticas neoliberais,
perspectiva futura, estes estão presos ao subemprego, à dificuldade
os tidos como excluídos, que dificilmente têm acesso aos seus
de ter acesso a uma educação com qualidade, muitos morrem de
direitos de suprir suas necessidades básicas. E, embora, soltos na
fome sem atingir a idade adulta, sem direito ao serviço de saúde,
rua estão presos à impossibilidade de vir a ser, estão presos a não
enfim, estão presos às ruas, ao vasto mundo da desigualdade.
poderem escolher. E por outro, os incluídos têm acesso e direito a
Por outro lado, outras crianças e adolescentes estão presos
suprir suas necessidades básicas, mas um acesso relacionado ao
em suas ilhas de privilégio, moradia dos incluídos, como luxuosos
campos de concentração, fechados pelo medo da violência urbana poder de compra, ao que pode e deve ser consumido.
que os assola, causada pelas diferenças sociais, pela fome, pela Podemos entender que essas marcas sociais, culturais, políticas
miséria, pela falta de possibilidade de trabalho, que a um olhar e econômicas tomam a exclusão um modo de vida, muitas vezes
descuidado parece ser só do "outro". marcada não por divisões econômicas, mas sociais (embora tenha boa
sobrevivência econômica, o lugar social que ocupa não muda) e
128 Flávia Faissal de Souza
Estrutura Política Exc.udeme, Práticas Culturais Normalizadoras...
129

morais (pensando em uma moral clássica). Por exemplo, a favela pela improdutividade, pela incapacidade, pela certeza de não poder
atualmente, não necessariamente é um lugar de poucos recursos jamais significar os padrões estéticos aceitos, nos quais o feio se
econômicos, ou seja, includente do ponto de vista econômico, mas confunde com o mal; das crianças em situação de risco; entre tantos
excludente do ponto de vista moral, social e político. outros.
Vivemos apartados socialmente não por marcações Tais questionamentos rrie remetem a um estudo realizado por
necessariamente vistas, mas por ocupações distintas de territórios, de Elias e Scotson (2000) quando, ao analisar as relações de poder e as
espaços sociais, de espaços culturais. Pobres e ricos, exceto à formas de exclusão de uma dada comunidade, se surpreendeu com os
produção cultural artística de massa, escutam diferentes músicas, critérios da mesma. Os valores de hierarquia social e os dispositivos de
assistem a diferentes filmes, freqüentam diferentes espaços culturais, exclusão e de estigmatização eram pautados em valores constituídos
diferentes equipamentos de lazer e diferentes pedaços de praias. por aquele grupo social, pelo que importava a eles: neste caso o dos
Uns andam de carro, outros de ônibus, kombi e trens. Uns mais antigos.
freqüentam escolas privadas (compram a sua educação), outros O referido estudo me faz refletir sobre os parâmetros
freqüentam as escolas públicas (pagam pelo desleixo do estado). Uns estabelecidos para a definição dos grupos tidos como excluídos no
brincam com jogos eletrônicos, outros, com sucatas. Diferentes mundo globalizado, parâmetros estes que não são universais ou
formações, distintos acessos ao conhecimento produzido. Diferentes mesmo pré-estabelecidos, mas dependem das práticas culturais e
locais de apreensão do conhecimento, distintos conhecimentos dos valores morais constituídos no interior de cada sociedade.
apreendidos. Diferentes constituições do olhar, do local que olha e que Contudo, independentemente de classificações, não podemos
lê a sociedade. Diferentes perspectivas de um mesmo espaço. perder de vista o exército de miseráveis espalhados pelo mundo,
Diferentes sujeitos com diferentes possibilidades de vida apartados de seus direitos pela iniqüidade econômica.
(des)partilhando uma mesma cidade, uma mesma plural sociedade. Gentili (2001), ao discutir os processos de exclusão social traz
Mas, como fomos ou somos educados a lidar com essa diversidade? como parâmetro a questão da normalidade5. Os excluídos são em
O que parece, é que cada vez mais aprendemos a não ver o maior número, que os incluídos, e sendo em maior número se tornam
que não-nos interessa, a não ler a não ser pelos valores que cotidianos, se tornam normais. O que se toma normal e trivial, se torna
constituem as possibilidades de consumo e o ideal do homem invisível. Deixa de nos incomodar ou mesmo de causar perplexidade, a
moderno (ou como escreve Martins do moderno colonizado) e da não ser pelo medo. Não vemos a pobreza, mas sim o medo que a vio-
lência gerada pela pobreza nos causa. A anormalidade torna os aconte-
sociedade pós-liberal (e aí falo de ambos os lados da sociedade).
cimentos mais visíveis. Em outras palavras, os sujeitos que sofrem os
Sob a luz da diversidade dos papéis assumidos por sujeitos
processos de exclusão por serem maioria, se tornam invisíveis.
ou grupos sociais, que não necessariamente comungam dos valores
Mas, como aprendemos a olhar o outro? Como somos
hegemônicos, bem corno dos valores morais que marcam as
educados para lidar com a diversidade? Como nossas escolas nos
relações sociais, ressalto outras formas de estigmatização, outros
ensinam a ler o mundo? Mesmo que a escola, seja o próprio
sujeitos visíveis, marcados pelo olhar normalizador e excludente.
mundo...
Como pensar na exclusão de direitos básicos, se também não
coloco em questão o papel social: das múltiplas etnias (vista nossa 5. O entendimento de normal como a maioria estatística, o fenômeno que mais
sociedade multi-étnica); dos diferentes gêneros existentes em nossa ocorre e anormalidade como o que escapa foi largamente tratado por
Canguilhem (1990) que fez seus estudos discutindo a questão do normal e do
sociedade marcados por uma moral sexista; dos deficientes marcados patológico.
130

O olhar normalizador, corpos apartados:


a educação como prática excludente
Flávia Faissal de Souza

T Estrutura Política Excludente, Práticas Culturais Normalizadoras...

Foucault afirma, na mesma obra, que as formas mais usuais


para o controle das atividades, a partir de meados do século XVII,
131

foram: o controle de horário; o controle de formas de marchar; o


Entender os processos de exclusão de direitos em nossa soci- controle temporal do ato, do corpo e dos gestos postos em relação e por
edade, na pós-modernidade, implica tanto pensar nos dispositivos fim a utilização exaustiva do corpo. Dessa forma fabrica-se um corpo
político-sociais que delineiam nossas vidas, como também na edu- disciplinado que é a base de um gesto eficiente.
cação por nós vivenciada, que marca os nossos olhares e a nossa Todos esses dispositivos de controle de conduta e de olhares
conduta corporal. foram assumidos em todos os espaços institucionais, abrindo
Segundo os estudos de Foucault (1998b, 1993) a partir da caminho para
sociedade disciplinar, século XIX, as práticas disciplinares corporais a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e
foram dando lugar a formas de repressão e apreensão do corpo cada controla todos os instantes das instituições disciplinares,
vez mais sutis e incorpóreas, mesmo que atingindo cada vez mais e compara, diferencia, hierarquiza, homogeneiza, exclui. Em
diretamente o corpo. O indivíduo passou a ser normatizado e uma palavra, ela normaliza (Foucault, 1993, p. 163).
individualizado, devendo obedecer às regras (do início do capitalismo) A necessidade de ortopetizar, normalizar, controlar, criar o
e às normas de condutas da estrutura social, que começava a se pudor, as regras de conduta e polidez, e a assiduidade do corpo imposta
constituir. pelas instituições disciplinares foram constituindo a conduta do corpo
As manobras que antes eram explícitas deixando marcas no processo de civilização, marcando de maneira incisiva e definitiva
estampadas no corpo e expostas como espetáculos, como as descritas as condutas cotidianas do homem, uma outra moral. Essas medidas
e analisadas por Foucault (1993, p.16), em relação aos corpos dos inauguraram uma necessidade hegemônica de o homem ser e estar na
tidos como excluídos: os condenados, os loucos, os deficientes, os sociedade. Assim, é possível afirmar que a disciplinarização da
miseráveis, entre outros, desapareceram. O mal não foi mais conduta e dos movimentos do corpo extrapolou os muros
estampado no corpo, este deu vez a outras formas de repressão mais institucionais, e tornou-se realidade no convívio social.
sutis e requintadas, e sobre elas um dispositivo de seleção entre Um olhar sobre o próprio homem e suas possibilidades de ser
normais e anormais, levando às últimas conseqüências as formas de e estar em sociedade, um olhar normalizador que exclui o que não é
controle do corpo e das condutas de cada sujeito. importante conviver, o que não é necessário para compor a cidade
À justiça da realidade incorpórea foram sendo instituídos perfeita (ideal platônico).
novos meios mais sutis para tornar o corpo dócil, normatizado e O indivíduo moderno pressupõe um corpo disciplinado, um
disciplinado, aceito ou não pelo poder social. A ortopedia do corpo e corpo dócil e útil, que sob todas as formas seja contido no tempo, no
a ortopedia moral se fundiram em outras possibilidades de controle, espaço e nas práticas sociais, desde a obediência e o uso de espaços
como o enclausuramento do corpo nas instituições disciplinares: a institucionais arquitetonicamente construídos para disciplinar, até
escola, a prisão, os hospitais... Passam a não mais existir os carrascos o atendimento a quaisquer regras sociais, bases essas para a
e estes dão lugar ao exército de técnicos, como: guardas, educadores, constituição de um corpo controlado.
médicos, psicólogos que, além de serem os técnicos que guardam a Cito mais uma vez, Foucault (1993, p. 18), ao tratar do poder
vida, são os responsáveis pela privação dos direitos sem o sofrimento da guilhotina, deixa margem para uma possível analogia dos
da dor (o castigo). dispositivos sociais para com os tidos excluídos:
132 Flávia Faissal de Souza
Estrutura Política Excludente, Práticas Culturais Normalizadoras... 133

Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a


significados sobre si, expressos pelos sujeitos, são constituídos nas e
liberdade, ou uma multa tira os bens. Ela aplica a lei não tanto
pelas suas funções sociais (Elias, 1994b).
a um corpo real e susceptível de dor quanto a um sujeito
Segundo Elias (1994c, p. 17):
jurídico, detentor, entre outros direitos, do de existir.
Há uma clara ligação entre os abismos que se abrem
O corpo submetido às normas é o corpo que significa o que é
entre indivíduo e sociedade, ora aqui, ora ali, em nossas
aceito pela sociedade. O corpo inútil, incapaz, feio, sujo, mal estruturas de pensamento, e os contradições entre
vestido, sem compostura tem um significado de improdutividade, exigências sociais e necessidades individuais que são um traço
um formato que foge aos padrões estéticos aceitos e, por isso, deve permanente de nossa vida (grifos do autor).
ser retificado, normatizado, ou em outras palavras re-incluído,
mesmo que deixando de ser quem se é. É com nossos olhares, com esses valores que ecoam na cons-
Elias (1994a, 1994b) aponta que o processo de civilização da ciência, que o corpo dos excluídos vai sendo constituído, nas suas
sociedade ocidental caminhou para o controle dos instintos, das relações com o outro na sociedade da qual ele faz parte. Por meio da
emoções e das necessidades básicas humanas. Esses, assim como ideologia, corpos marcados pelos processos de exclusão e corpos
outras manifestações do "corpo", foram, no decorrer do tempo, incluídos vão se conhecendo através de suas diferenças, do que
sendo moldados segundo manuais de higiene e manuais de moral, falta e do que se assemelha de um no outro. Porém, nesse mesmo
para que o sujeito pudesse compor o corpo social necessário a seguir momento em que diferentes corpos se negam, eles se significam, se
as regras constituídas e significadas enquanto condutas civilizadas, constituem, na relação com o outro.
Ora, como então pensar em políticas públicas que levem
necessárias à formação dos Estados.
O autocontrole cada vez mais se faz necessário: corpos conti- essas pessoas a terem dignidade?
dos e condutas regulamentadas. O sentimento de vergonha e o de
medo passaram a regular a vida instintiva e afetiva dos sujeitos. A
razão aos poucos foi moldando e controlando o corpo individual. Políticas de ameriização da pobreza:
Entretanto, essa aparente ordem individual já era na verdade uma
ordem social (Elias, 1994a, 1994b).
algumas considerações acerca do Lazer
As mudanças da estrutura do comportamento, ditadas ao Nossa educação, nossos olhares além de marcarem o cidadão de
comportamento individual, foram se dando pelas modificações direito, também, acabam por constituir o valor desses sujeitos no jogo
ocorridas na própria estrutura da sociedade, pelas novas relações político de nosso país. Não é incomum, especialmente em ano de
com o trabalho e com o sujeito necessário para compor o mercado eleição, nos depararmos com plataformas políticas nas quais o lazer é
de trabalho com regras mais rígidas e disciplinadas. Essas novas proclamado como instrumento de inclusão social, seja de pessoas
relações de vida levaram também a mudanças na estrutura psíquica deficientes, ou de crianças que vivem em situação de risco. Tais
dos sujeitos (Elias, 1994a, 1994b, 1994c). promessas, traduzidas em políticas públicas, pretendem garantir às
O processo de civilização deu-se sempre na interdependência crianças e aos adolescentes uma vida mais digna, tirando-os da rua.
da divisão de funções (sociais e psíquicas) e na estrutura interna dessas Mas, como garantir a vida plena de direitos a sujeitos que
próprias funções. As questões estruturais, como a estratificação social, vivem sob a égide de um sistema no qual a aparente plenitude é
as pressões e as tensões de uma determinada sociedade penetram na privilégio de poucos? Como garantir que desigualdades de direitos
estrutura da personalidade do indivíduo. Assim, os sentimentos e os constituídas historicamente possam ser resolvidas apenas a partir
de políticas que quase sempre não prevêem mudanças estruturais,
134 Flávia Faissal de Souza
T Estrutura Política Excludente, Práticas Culturais Normalizadoras... 135

mas sim um trabalho assistencialista? Como garantir a redimensiona a condição efetiva de desigualdade social entre os
transformação de processos de exclusão em direitos de fato? cidadãos.
O capitalismo desenraíza, brutaliza a todos, desde sua gêne- Assim, a discriminação passa a ter uma legitimação social, ou
se. Exclui a todos, mas para incluir em suas regras, em seus modos. seja, o Estado já oferece os serviços e cabe ao sujeito dar conta de sua
Dentre essas regras, destacamos as políticas públicas assistencialis- vida, se ele fracassar, a culpa é dele. Essa aparente democratização,
tas, ou políticas de alívio à pobreza, que colocam em discussão a cruelmente, faz a perpetuação da exclusão dos direitos, do acesso ao
universalização do acesso aos bens produzidos. já produzido pela humanidade.
Mesmo colocando em cheque as políticas de alívio à pobreza, Esse processo denominado por Martins como inclusão precária
por considerá-las apenas paliativas, entendendo que esta é uma e instável, marginal ou por Bourdieu como excluídos do interior ou por
questão complexa, e que é preciso que examinemos, mesmo que Gasteis de exclusão includente nos ajuda a entender as políticas
brevemente, dois fatores que a constituem em sua base. públicas desenvolvidas no âmbito do lazer no Brasil (salvo algumas
A primeira questão que se faz importante destacar é que o exceções municipais e estaduais).
grupamento de sujeitos tidos como excluídos não é homogêneo, embora Em outras palavras, as políticas públicas acabam por dar
componham um mesmo sistema sóciopolítico. Por isso, quando falamos continuidade às instituições de pobres e de ricos, e às barreiras
sobre exclusão, é importante definirmos sobre quem estamos falando, discriminatórias. Somente se desloca o problema para dentro das
já que são inúmeras as marcas histórico-culturais que constituem os instituições, e se retira do Estado, reforçando as dinâmicas excludentes
processos excludentes. Ora, os sujeitos tidos como excluídos, enquanto (Sader; Jinkings, 2006; Bourdieu, 1997; Martins, 2003a, 2003b).
categoria abstrata, podem ser tratados em suas semelhanças, mas Comentando sobre a atualidade e o modismo do discurso
enquanto sujeitos concretos ou grupos concretos são historicamente inclusivista, Demo (1998, p. 16) afirma que:
diferentes entre si. O debate da "exclusão social" tem, como uma de suas
Posto tal apontamento, posso considerar que a preocupação que maiores precariedades, a expectativa assistencialista frente
jaz nas plataformas políticas citadas, seja as propostas eleitoreiras ou à pobreza, o que leva a uma fé excessiva no Estado e à
as propostas efetivas, parecem tratar dos tidos excluídos como uma desobrigação do sistema produtivo, deturpando pela raiz os
categoria genérica, um agrupamento social que preserva as mesmas horizontes de emancipação.
características e processos de exclusão.
Pensar então o lazer, como um dos setores da política pública
A segunda questão que levanto é em relação à qualidade das
nacional, que urgentemente precisa ser reestruturado para que
propostas políticas, bem como de sua implantação. Há algumas
papéis sociais possam ser redimensionados, é uma tarefa que se
décadas, Bourdieu (1997) anunciava, ao estudar o sistema
coloca tanto aos profissionais da área do lazer, como aos gestores
educacional francês, a crueldade das políticas que se dizem inclusivas
públicos desse setor.
no mundo liberal, que normalmente são paliativas e não transformam a O lazer é uma questão de direito básico garantido a todos os
realidade.
cidadãos brasileiros através de seu regimento máximo, a Constituição.
A não transformação da realidade associada à instituição da
Contudo, a legislação não efetiva o conteúdo de seu texto, ou mesmo
universalização do acesso aos direitos, ratificada pela não qualificação viabiliza que, em uma sociedade excludente, seja possível constituir
do serviço dispensado a esta população, leva a um aparente
dispositivos que garantam o exercício da cidadania às pessoas. E ainda,
cumprimento legal por parte do Estado de seu dever. No entanto, não quando existentes, frágeis têm sido os dispositivos para lidar com uma
questão tão complexa e contraditória.
136 Flávia Faissal de Souza Estrutura Política Excludente, Práticas Culturais Normalizadoras... 137

Assim, destaco que amenizar a pobreza não significa simples- _. Processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994b., v. 2,307 p.
mente criar dispositivos para que serviços governamentais, aqui no caso _. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994c,
do Lazer, absorvam a demanda existente dos tidos como excluídos. 201p.
A questão do acesso é primordial, mas se este for entendido .; SCOTSON, J. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações
somente pela absorção da demanda ou pela acessibilidade, deixamos de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
de considerar questões fundamentais que versam sobre a apreensão 2000, 224p.
das produções histórico-culturais. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir, nascimento da prisão. 10. ed. Petrópolis: Editora
Os dispositivos criados para redimensionar a atuação social Vozes, 1993. 280 p.
dos excluídos do interior devem também assegurar a permanência e . O nascimento da clínica. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
a participação desses sujeitos na estruturação dos serviços e em sua 1998b, 241 p.
gestão, garantindo desta forma a qualidade social e dos serviços GALEANO, E. De pernas pró ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre:
públicos prestados a esses cidadãos. L&PM, 1999. 370 p.
Um processo que pretende redimensionar papéis sociais, deve GENTILI, P. A exclusão e a escola: o apartheid educacional como política de
garantir a multiplicidade do sujeito, já que em nome de um discurso ocultação. In: GENTILI, P.; ALENCAR, C. Educar na esperança em tempo de
desencanto. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 142 p.
inclusive, muitas vezes, as práticas tendem a homogeneizar os
sujeitos, tentando negar ou mesmo mascarar quem é este sujeito, GENTILI, P.; ALENCAR, C. Educar na esperança em tempo de desencanto.
Petrópolis: Editora Vozes, 2001. 142 p.
constituindo-se então, mais uma vez, em práticas excludentes.
Para de fato possibilitarmos, enquanto sociedade, que os GOMES, M. F.; PELEGRINO, A.I., FERNANDES, L.L., REGINENSI, C.
Desigualdade e exclusão nas metrópolis brasileiras: alternativas para seu
excluídos do interior possam ter direito aos bens produzidos pela enfrentamento nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora da Arco-íris,
humanidade, é necessário que as suas atuações sociais não se dêem Editora HP comunicação, 2006. 144p.
pelas regras de um projeto político baseado nas leis do mercado, do MARCELLINO, N. C. Lazerehumanização. 2. ed. Campinas: Papirus, 1995a. 83 p.
consumo, e em uma moral da aparência, da representação da velha
. Lazer e Educação. 3. ed. Campinas: Papirus, 1995b. 164 p.
boa educação e dos bons costumes.
Enfim, se entendemos o lazer enquanto cultura, o entendemos MARTINS, J. S. Exclusão social e a nova desigualdade. 2. ed. São Paulo: Editora
Paulus, 2003a.
como produção humana, podendo se tornar um instrumento não para
. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e
tirar as crianças e adolescentes da rua, mas sim para tornar este espaço,
classes sociais. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2003b. 228 p.
a rua, como uma opção, não de vida, mas de luta e de transformação.
MELO, V. A. Lazer e minorias sociais. São Paulo: IBRASA, 2003. 224 p.
SADER, E.; JINKINGS, I. (coord.) Latinoamérica: enciclopédia contemporânea
da América Latina e Caribe. São Paulo: Editora Boitempo, 2006. 1342 p.
Referências
BOURDIEU, P. A miséria do mundo. 5. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1997,747p.
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1990. 307 p.
DEMO, P. O charme da exclusão social. São Paulo: Autores Associados, 1998.125 p.
ELIAS, N. Processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994a., v. l, 277 p.
Capítulo 8

GÊNERO E LAZER
Um binômio instigante

Tânia Mara Vieira Sampaio

Os estudos do Lazer estão em plena expansão seja na forma de


disciplinas específicas nos cursos de graduação e pós-graduação não
apenas em Educação Física, mas na área do Turismo e Hotelaria, bem
como nos primeiros cursos específicos de graduação e pós-graduação
strictu e latu senso.
Entre as novas questões que desafiam os Estudos do Lazer está
sua interrogação a partir das teorias de gênero. As concepções de
lazer no cenário brasileiro, em especial a partir da década de 1970 do
século passado, não representam uma visão única, mas contradições
e, ou perspectivas significativas no que tange à dignidade da vida das
pessoas. Tratar de Lazer implica perguntar pelo lugar sócio-histórico
do qual se pronuncia a palavra enquanto organizadora da cultura.
Desse modo, identificar as relações sociais de poder que
revelam assimetrias de gênero, somadas a esta as desigualdades de
etnia, idade ou classe social são fundamentais para o enfrentamento
das principais barreiras existentes para a vivência do Lazer.
O eixo de análise da realidade, e nesta o Lazer, advindo da
categoria epistemológica Gênero possibilita identificar os processos
normativos de construção do saber na área, visando a des-naturalização
do que foi socialmente construído e que não raras vezes confere poder a
determinados grupos sociais em detrimento de outros.
A experiência humana, por sua diversidade, resulta numa
pluralidade de movimentos que se articulam em meio à provisoriedade
e à transitoriedade inerentes ao aspecto relacionai da corporeidade no
140 Tânia Mara Vieira Sampaio Gênero e Lazer 141

mundo, por isso, as análises de gênero são fundamentais para pelo processo de desenvolvimento pessoal e social de novos valores
descortinar o acesso diferenciado que homens e mulheres cujo potencial pode transformar a realidade (Marcellino, 2002).
experimentam na prática do Lazer. O diálogo sobre esta relação Esta perspectiva pode ser confirmada através da prazerosidade
desigual exige que a concepção de Lazer não se desvincule de seu experimentada e do conhecimento cidadão que resulta de sua vivência.
status de direito cidadão inalienável. Portanto, uma possibilidade de A ênfase em uma concepção de Lazer que coopere para os processos
todas as pessoas independentemente de seu gênero, etnia, idade ou de uma saúde integral, de afirmação da dignidade e direitos
classe social. Segundo Johanne Madsen (1999, p. 96): fundamentais da pessoa independente de sexo, gênero, classe, etnia ou
O lazer é um dos direitos sociais assegurados no artigo geração é fundamental. Principalmente por seu potencial de vivência
6° da Constituição da República Federativa do Brasil, ao de autonomia crítica e criativa diante dos impasses da realidade.
lado de saúde, educação e outros, mas, mesmo sendo um O Lazer, como parte integrante da construção cultural, pode
direito legalmente garantido, sua consecução encontra-se propiciar às pessoas tanto o descanso, quanto o divertimento e o
distante da realidade, principalmente por três fatores desenvolvimento individual e social, empoderando-as para tecer
determinantes. O primeiro refere-se à falta de acesso da contra-símbolos culturais. Por isso, postula-se que o Lazer não pode
maior parte da população ao lazer, o segundo, à pequena ser visto apenas como um conjunto de atividades, mesmo que se
oferta de ações de educação para e pelo lazer, e o terceiro, considere um amplo espectro destas. É importante ressaltar que no
à escassez de profissionais capacitados para o próprio modo de envolvimento das pessoas, sua adesão, segundo
gerenciamento e a execução das atividades. Joffre Dumazedier (1980), pode se dar de modo diferenciado, isto é,
em três perspectivas, a da prática, a do conhecimento ou a da fruição
Contudo, para que seja possível uma democratização (assistência) e esses modos podem ser caracterizados como elementar
cultural, isto é um amplo acesso ao Lazer, é preciso que vários (conformismo), médio (criticidade) e superior (criatividade).
fatores contribuam para a superação das práticas conformistas, Nesse sentido, Nelson Marcellino (2002) propõe que uma
alienadas e manipuladas por um conjunto social no qual as relações atividade de lazer não é ativa ou passiva em si, mas depende do nível
de poder inferiorizam as pessoas, impedindo-as de vivenciarem de envolvimento em que ela se desenvolve. Por exemplo, pode-se
seus direitos fundamentais para sua constituição de ser no mundo. participar da assistência de um dos conteúdos culturais do lazer de
Uma experiência de Lazer em níveis críticos e criativos pode modo crítico e criativo, por conseguinte gerando um estado de
oportunizar a homens e mulheres caminhos de transformação e fortalecimento das pessoas para vivenciarem e re-inventarem seus
re-signifícação cultural das representações sociais esperadas para processos culturais de dignidade, de cidadania, de auto-estima etc.
ambos os sexos. No estudo denominado Festa no Pedaço, José Guilherme
Não se pode depositar toda a expectativa de mudanças Magnani (2003) observa que as comunidades de periferia envolvidas
cristalizadas ao longo da história em uma única esfera da vida, mas em uma rotina de trabalho muito pesada criam seus espaços e tempos
é fundamental que o Lazer faça parte dessas oportunidades de "para respirar" e para afirmar que estão vivos. Nestes, experimentando
reverter o jogo, propiciando uma reorganização simbólica por meio festas e formas diferenciadas de Lazer, muito embora não as nomeiam
de um processo de educação para e pelo Lazer. Ao que se pode como tal, em vista de uma grande distância do que a mídia veicula
acrescentar a perspectiva de que este campo de experiência humana como sendo lazer - pacotes prontos de atividades e bem separados do
está marcado por um duplo aspecto educativo conferindo sentido à cotidiano do trabalho. Para esse autor
vida das pessoas pela fruição que o momento possibilita, bem como o momento do lazer - instante de esquecimento das
dificuldades do dia-a-dia - é também aquele momento e
oportunidade do encontro, do estabelecimento de laços, do
142 Tânia Mara Vieira Sampaio Gênero e Lazer 143

reforço dos vínculos de lealdade e reciprocidade, da injustiças sociais, entre outros aspectos (Marcellino, 2001). Isso se
construção das diferenciações (Magnani, 1988, p. 39) torna uma exigência para o lazer deixar de ser instrumentalizado
e não necessariamente a realização de uma atividade específica, por como um acessório acionado toda vez que a pressão chega ao seu
exemplo. ponto-limite. Nesse caso, ele se transforma em mera atividade de
Segundo Nelson Marcellino (2002, p. 96), há no lazer a compensação pelas tarefas cumpridas, uma permissão para que não
possibilidade de denúncia da realidade e de subversão da ordem se ultrapasse a fronteira de suportabilidade do corpo, um item
vigente, considerando que embora não de modo exclusivo, é supérfluo adquirido pelos que podem se dar ao luxo de ter- tempo,
particularmente no tempo de lazer que são vivenciadas situações dinheiro e status para desfrutar de desejos - ou uma alienação, no
geradoras de valores que poderiam ser chamados de "revolucionários". mais histórico sentido de pão e circo, amenizadora de tensões e
A predominância nos Estudos do Lazer de um senso comum conflitos socioeconômicos-políticos.
que o reduz a atividades recreativas, de caráter físico-esportivo, ou a Um primeiro aspecto a ser debatido é que o lazer enquanto
um conjunto de entretenimentos propostos pela indústria cultural e a tempo e espaço fundamentais à construção da experiência humana de
mídia, nos coloca frente a questões extremamente importantes. O ser e de estar no mundo precisa ser identificado nas corporeidades
acesso a uma maior amplitude dos processos possíveis de Lazer concretas marcadas por sua condição de gênero, classe e etnia.
precisa ganhar espaço a fim de enfrentar as barreiras inter e Maria do Carmo Saraiva (1999, p. 27) diz ser urgente uma
intraclasses, isto é, barreiras de classe social, de gênero, de etnia, entre reflexão sobre as diferenças bio-psico-sociais usadas como
outras. Nesse sentido, ampliar o espectro do Lazer, afirmando seus seis justificativa para discriminações e preconceitos entre homens e
conteúdos culturais e não apenas o físico-esportivo, é um propósito mulheres na prática de atividades físicas ou esportivas, por exemplo.
fundamental para este acesso cidadão que supere as assimetrias entre Segundo a autora, isso deve ser feito na família, na escola, nas aulas
os grupos sociais. de Educação Física, procurando identificar se essas diferenças são
Nos estudos de sociologia do lazer, pode-se identificar que o teoricamente válidas particularmente quando se pretende a construção de
princípio do interesse buscado pelas pessoas em cada uma das uma nova concepção de educação e mesmo de uma nova ordem social.
atividades vivenciadas em seu tempo de livre abre a possibilidade de
estabelecer uma classificação dos conteúdos (Dumazedier, 1980).
Desse modo, as atividades físico-esportivas ou recreativas deixam de Lazer e Gênero:
ser a única possibilidade vislumbrada como Lazer, embora
predominem no imaginário social. Nesse debate, alguns autores eixos de um novo momento dialógico
contribuem e sem exceção todos mencionam o sociólogo Jofre No caso específico dessa reflexão, importa que se esclareça
Dumazedier como o precursor dessa classificação, na qual aponta 5 que não se está tomando gênero como o único, nem como melhor
conteúdos: os físicos, os manuais, os intelectuais, os artísticas, os dos paradigmas para a análise dos estudos do lazer e seus diversos
sociais, com os quais concordam Nelson Marcellino e Luiz Otávio conteúdos culturais, mas ressaltando sua forte contribuição, hoje
Camargo. Este último propõe um sexto conteúdo que é o turístico avalizada em produções científico-acadêmicas em várias áreas de
(Marcellino, 2002; Camargo, 1992). conhecimento.
Muitos são os estudos do lazer a nos desafiar a concebê-lo As teorias de gênero têm sua contribuição e importância para a
não como uma válvula de escape das pressões do trabalho, das análise das relações humanas e sociais, da construção do
precariedades econômicas, das insatisfações existenciais ou das conhecimento em seus processos de transmissão e construção coletiva
144 Tânia Mara Vieira Sampaio Gênero e Lazer 145

no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão universitária e para o Esse complexo mecanismo de construção de um saber com
diálogo transdisciplinar e inter-disciplinar, bem como para debater os características de algo "natural" e aparência de imutabilidade precisa
processos de participação nas distintas esferas de poder do cotidiano ser desvelado por uma atitude científica de suspeita e superação
das pessoas. epistemológica (Romero, 1995; Sousa, 1999).
O intuito, portanto, é contribuir na discussão de paradigmas que Referenciadas pelo debate epistemológico que se apresenta
permitam desvelar os mecanismos por meio dos quais se produz e se nas teorias de Gênero, algumas questões começam a se organizar
reproduz a dominação das mulheres ou de outros grupos sociais, como instrumentos analíticos importantes. Por exemplo, não apenas
trazendo à tona processos históricos de resistência à opressão. o que está explícito interessa ser identificado para a análise, mas os
Considerar os embates, atuais em um mundo marcado por processos silêncios e vazios devem ser ressaltados com igual importância. Isso
de exclusão e inferiorização, significa não paralisar-se diante da porque há muitos processos sutis de subordinação e marginalização
perspectiva de que o poder reside exclusivamente nos setores dos saberes produzidos pelas mulheres que não são percebidos
dominantes e, consequentemente, afirmar que esse poder encontra-se porque sua ausência é naturalizada ou em outros momentos, há
também disperso em uma relação social de forças continuamente em saberes de caráter androcêntrico que obscurecem saberes que não
mutação (Saffíoti, 1992; Scott, 1991). correspondem aos seus marcos teóricos.
Pode-se afirmar que não apenas o saber em sua construção e A mediação de gênero tem possibilidades de contribuir em
transmissão teórica, mas igualmente a realidade está construída com muitos processos, entre os quais, destacam-se: desvelar os
base em relações sociais de poder. Nestas, as relações de gênero mecanismos por meio dos quais se produz e se reproduz a dominação
apresentam-se marcadas por interesses e relações assimétricas que, das mulheres ou de outros grupos sociais; trazer à tona processos
muitas vezes, subordinam as mulheres, bem como outros grupos históricos de resistência à opressão; considerar os embates atuais sobre
sociais. Segundo Jo Ann Scott, à medida que gênero constitui-se em processos de exclusão e inferiorização; enfrentar a paralisação diante
uma categoria de análise é possível estabelecer analogias com a da perspectiva de que o poder reside exclusivamente nos setores
classe e a raça, levando-se em consideração que as desigualdades de dominantes; afirmar que esse poder se encontra também disperso em
poder estão organizadas segundo, no mínimo, esses três eixos. Muito uma relação social de forças continuamente em mutação; identificar
embora não se possa afirmar uma paridade entre esses três termos e que não apenas o saber em sua construção e transmissão teórica, mas
sua aplicabilidade analítica aos processos estruturais. Na visão da igualmente a realidade está estruturada por relações sociais de gênero,
autora, a articulação das categorias de classe, de etnia/raça e de isto é, marcada por interesses e relações assimétricas que subordinam
gênero assinala um duplo compromisso, o da inclusão dos discursos as mulheres; discutir tais assimetrias como oriundas de construções
das pessoas que experimentam a opressão e o da realização de uma sociais que podem ser desconstruídas ou reconstruídas sobre outras
análise do sentido e da natureza dessas opressões (Scott, 1991). bases e critérios; interrogar os processos normativos de construção do
O caráter histórico-cultural da categoria gênero ajuda no saber, as linguagens acadêmicas, a seleção de conteúdos, as restrições
processo de explicitação dos silêncios que a área do Lazer precisa bibliográficas visando à desnaturalização de processos que são
romper quando alude a uma corporeidade genérica que transcende socialmente construídos e à análise das relações sociais de poder.
gênero, classe ou raça nas suas condições concretas de ser pessoa e ser O debate acerca do caráter fundamentalmente social das
objeto da cidadania anunciada. Essa reflexão apóia-se na compreensão distinções baseadas no sexo adverte para a compreensão de que a
de que não há sociedade que não elabore imagens vinculadas ao dimensão de sexo não se restringe ao aspecto puramente biológico,
masculino e ao feminino e essas construções são datadas e mas transita nas construções sociais. Pierre Bourdieu (1995) nos faz
contextualizadas.
146 Tânia Mara Vieira Sampaio Gênero e Lazer 147

lembrar que as diferenças de gêneros estão inscritas há milênios na reflexões a esse respeito está na compreensão de Joan Scott (l 991) ao
objetividade das estruturas sociais e na subjetividade das estruturas dizer que o sexo é o que percebemos do sexo anatômico. A partir de tal
mentais. Esse dado nos permite não naturalizar processos de caráter "percepção" as diferentes esferas socioculturais iniciam o processo de
histórico, interpondo-se aqui a categoria Gênero como algo distinto de socialização/culturalização desses corpos com base nas imagens do
sexo. Maria Lygia Quartim de Moraes (1998, p. 103) afirma que: masculino e do feminino disponíveis na cultura. O corpo masculino é
A expressão relações de gênero, tal como tem sido vestido de azul e o feminino de cor-de-rosa nos primeiros dias de vida
utilizada no campo das ciências sociais, designa, sinalizando a "esperada" construção da identidade de gênero em base
primordialmente, a perspectiva culturalista em que as dos padrões normativos. Nas palavras de Daniela Auad (2003, p. 57):
categorias diferenciais de sexo não implicam no
Gênero também é o conjunto de expressões daquilo
reconhecimento de uma essência masculina ou feminina, de
que se pensa sobre o masculino e o feminino. Ou seja, a
caráter abstrato e universal, mas, diferentemente, apontam
sociedade constrói longamente, durante os séculos de sua
para a ordem cultural como modeladora de mulheres e
história, significados, símbolos e características para
homens. Em outras palavras, o que chamamos de homem e
interpretar cada um dos sexos. A essa construção social
mulher não é o produto da sexualidade biológica, mas sim de
dá-se o nome de "relações de gênero". Por causa do modo
relações sociais baseadas em distintas estruturas de poder.
como as pessoas percebem os gêneros masculino e
Percebe-se, dessa maneira, que gênero e suas diferenças não feminino na sociedade é que se espera uma série de coisas
se expressam apenas no aspecto biológico, mas são culturalmente tanto dos homens quanto das mulheres.
construídas a despeito de sua aparente naturalidade. Ivone Gebara A perspectiva de que a cada anatomia sexual corresponde uma
(2000, p. 107) afirma que identidade de gênero torna-se cada vez mais necessário ser discutida.
o biológico humano é um biológico cultural, um biológico Considerando a existência de dois sexos, teremos que considerar não
que não existe independentemente de nossa realidade social, apenas uma dupla possibilidade de matrizes de gênero, mas admitir
comunitária e da alteridade vivida por cada pessoa. Não há que a realidade apresenta-nos hoje uma pluralidade de feminilidades
meio de isolar o biológico humano e de exprimi-lo como um e masculinidades que desafiam esse diálogo acadêmico.
fato independente do conjunto da realidade humana. Adriana Piscitelli (1998, p. 150-1) questiona possíveis retro-
A essa concepção corrobora o pensamento de Guacira Louro cessos nas discussões que ajudaram a ampliar o espectro plural e
(1997) ao afirmar que as separações de sexos ou dos corpos são não simplesmente dualista das reflexões de gênero reivindicando a
produzidas na cultura, impostas e ensinadas por meio de muitas continuidade da abertura nesse debate instalado,
instituições e práticas, que foram aprendidas e interiorizadas, nesse sentido, numa leitura de gênero, o importante é
tornando-se aparentemente naturais. Ou segundo Edgard Morin procurar explorar as complexidades tanto das construções
(2001, p. 40), o ser humano nos é revelado em sua complexidade: ser, ao de masculinidade quanto as de feminilidade, percebendo
mesmo tempo, totalmente biológico e totalmente cultural. como essas construções são utilizadas como operadores
A percepção do sexo anatômico de uma criança, logo após o seu metafóricos para o poder e a diferenciação em diversos
nascimento, não necessariamente corresponderá ao seu gênero. As aspectos do social.
matrizes de gênero desenhadas nas culturas e processos históricos têm A identificação das questões de poder que estão em jogo nos
força de imprimir aos corpos algo que transcende sua anatomia processos de construção do saber ou na estruturação da realidade
(Sampaio, 2002). Um dos marcos significativos no avanço das permite avaliar a relevância de uma análise de gênero acerca do
148 Tânia Mara Vieira Sampaio Gênero e Lazer 149

processo experimentado no campo do Lazer. Não se trata de um acompanhada de movimentos de resistência e apropriação desses
aspecto de fácil compreensão e possibilidade de detecção na realidade, espaços. Exaltar a participação da mulher, do negro, do empobrecido
uma vez que o poder encontra-se como que pulverizado. Perceber o (em qualquer coisa) como justificativa de que não há discriminação é
poder como algo molecularmente presente nas várias esferas sociais e obscurecer o conflito. Ao contrário, é preciso assumir a conflitividade
em sua característica de dispersão dificulta a localização dos da relação entre os grupos sociais para reconhecer que tais
mecanismos de controle e conseqüentemente sua (des)-instalação. protagonismos são mecanismos de resistência e, por conseguinte,
Esse dado é de fundamental importância quando desejamos cooperaram para a superação de uma visão de vitimação dos grupos
superar o debate com a sociedade como se suas estruturas sociais minoritários politicamente.
retirassem total ou absolutamente o poder das mulheres, ou das É importante reconhecer os grupos e poderes dominantes, mas
minorias étnicas etc. Homem e mulher jogam, cada um com seus não concebê-los como absolutos e únicos, a par deles os demais grupos
poderes, o primeiro para preservar sua supremacia, a segunda para tornar sociais lutam com suas parcelas de poder e no jogo de forças vão
menos incompleta sua cidadania (Saffioti, 1992, p. 184). Com certeza o estabelecendo "brechas" e/ou caminhos de mudanças. O protagonismo
acesso ao poder é desigual imprimindo esta marca nas relações social/real - que é limitado - das mulheres, dos negros, dos indígenas,
sociais, sejam estas de gênero, de classe, de etnia ou de geração. dos empobrecidos precisa ser olhado dentro das relações sociais de
Claudia de Lima Costa (1998, p. 130-1) afirma que: dominação vividas por esses grupos, para que a exaltação de sua ação
resistente não falseie a realidade e principalmente que não encubra o fato
Um dos principais ganhos que o conceito de gênero
de que entre os próprios grupos sociais não há homogeneidade. Na luta
trouxe [...] foi a negação epistemológica de qualquer tipo de
maior das mulheres, as diferenças entre os grupos sociais de mulheres
essência à mulher. Claro que no contexto das práticas e lutas
marcadas pela condição de classe, de etnia, de geração, de acesso à
dos movimentos feministas e de mulheres já assistíamos a essa
passagem analítica da mulher para mulheres. A heteroglossia
educação etc. fazem significativas diferenças em seus processos e ações
incipiente nesses movimentos, refratando suas diferenças
de maior ou menor "empoderamento".
internas - nos dias de hoje já completamente radicalizada - há As teorias de Gênero apontam para a perspectiva das relações
muito havia contribuído para o questionamento de qualquer sociais assimétricas entre homens e mulheres em virtude de ser o
posição essencialista, principalmente no que tange a noções gênero uma construção social e histórica baseada na percepção do
sobre naturezas feminina e masculina. Mais que tudo, o gênero sexo anatômico e é o campo primordial por meio do qual as relações de
nos permitiu teorizar com mais destreza as complexas e poder são articuladas. Além de assumir que não existe uma
fluidas relações e tecnologias de poder. homogeneidade nos grupos sociais de homens e mulheres, é
importante perceber que outras dimensões se articulam à de gênero,
Esse procedimento analítico, o qual considera as relações de
como é o caso das dimensões étnicas e de classes sociais, ao que nos
poder na própria construção do saber implica reconhecer tal poder
parece ser fundamental incluir a dimensão geracional, as quais
não como uma instância absoluta e estática, mas como um conjunto
complexificam os processos de relações hierárquicas de poder.
de forças que se move entre/contra/sobre/com os diversos sujeitos
sociais. Portanto, trata-se da análise das distintas parcelas de poder É de extrema importância compreender como a
vividas pelos grupos sociais em uma determinada estrutura social e naturalização dos processos socioculturais de discriminação
contra a mulher e outras categorias sociais, constitui o
seus reflexos na produção epistêmica (Sampaio, 2002).
caminho mais fácil e curto para legitimar a "superioridade" dos
O desafio que se instala é o de olhar a questão de modo mais
homens, assim como as dos brancos, a dos heterossexuais, a
dialético, dinâmico, pois a própria condição de subordinação está
dos ricos (Saffioti, 1987, p. II).
Gênero e Lazer
150 Tânia Mara Vieira Sampaio 151

A contribuição dos estudos de Gênero na produção feminista Reconhecendo o caráter processual e de constante construção dIas
significa superar a concepção que isola a mulher como categoria identidades, o ser humano inconcluso, nunca pronto e acabado é
específica e exige que a relação mesma entre homens e mulheres seja desafiado pelas normatividades de gênero, dentre outras condições
o foco da análise. O eixo fundamental é o de identificar as estruturas sociorelacionais, a partir de diversas esferas entre as quais a familiar, a
de poder e controle imbricado nas relações e seu respectivo reflexo das instituições formais e informais de ensino, a cultura, a brincadeira o
na produção e reprodução do saber. Maria Luiza Heilborn (1992, lazer, o trabalho etc. No foco dessa reflexão considera-se fundamental
não minimizar o papel do lazer na construção do ser humano e no
p. l O l) chama a atenção para equívocos e reducionismos ao dizer que:
possível reforço de processos culturais dominantes.
Passou-se a estudar mulher em tudo quanto é lugar e sob Os estudos do Lazer não podem prescindir do debate de
os mais diferentes ângulos. Depois de examinar a presença Gênero, em virtude especialmente de seu potencial revolucionário
feminina, passou-se agora a falar em gênero. Do sexo diante das amarras que o sistema capitalista e a indústria cultural
passou-se ao gênero, mas a categoria tem sido usada sem a
promovem tentando aprisioná-lo (Sampaio, 2006).
percepção do alcance que deve ter como imbricada a um
No que concerne a uma perspectiva de Lazer que leve em
sistema relacionai, ou de que, se mantém algum vínculo com
consideração seriamente as interpelações de gênero será fundamental
base anatômica, sua principal utilidade está em apontar e
explorar a dimensão social que, em última instância, é o que contribuir na formação das pessoas que irão atuar como profissionais
importa quando se faz antropologia. da área, bem como inserir esse debate no âmbito das discussões das
políticas públicas de lazer. Isso porque não queremos animadores e
A eficácia histórica da mobilização em torno das questões de animadoras socioculturais que reafirmem sintomas estereotipados
gênero precisa estar ancorada em diretrizes políticas e, ousando um detectados no saber sedimentado culturalmente.
pouco mais, inserindo-se no pedagógico e traduzida em conhecimento, A ênfase recai também sobre a necessidade de evitar e corrigir
a fim de fomentar questionamentos sobre as inter-relações dos na construção dos conhecimentos: a negação da pluralidade de
indivíduos para a prática de uma ação libertadora. Dessa forma, dentro masculinidades e feminilidades, com base na construção de uma
da grade complexa ou rede de desajustes, faz-se necessário sempre concepção de heterossexualidade como única e normativa; a
entender que assimetrias nas relações de gênero são constituídas produção de relações assimétricas baseadas em diferenças biológicas
simbolicamente, pois não existem essências imutáveis degenero, sexo, raça, sem a devida crítica aos processos culturais que conferem poder ou
natureza: sua significação é construída pelos grupos humanos. Tudo é não aos diferentes grupos sociais; o processo de formação indiferente
misturado à cultura, realidade constitutiva e evolutiva (Gebara, 1997, p. 13). aos avanços que a reflexão de gênero trouxe para a área da educação,
Desse modo, entendemos que para indicar qualquer tipo de (re)produzindo, com esses profissionais, na forma de um saber
mudança que altere as condições de produção das relações de erudito, irresponsabilidades, indiferenças, privilégios e preconceitos
dominação, é necessário todo um processo coletivo de educação. É entre gêneros, classes, etnias e geração.
preciso mudar a ordem simbólica e, conseqüentemente, mudar as relações Pode-se constatar que a área de estudos de Gênero associadas
na prática, no cotidiano da cultura (Gebara, 2000, p. 112). E assim que ao Lazer conta com uma bibliografia específica ainda escassa, quando
aventamos um primeiro sinal de que o peso do habitus cultural comece não nos deparamos com a mistura entre o referencial teórico de Gênero
a ser ameaçado pela análise de gênero, e esta dará a sua contribuição e estudos sobre a mulher como se fossem sinônimos.
ético/epistemológica ao campo de estudos do lazer, entre outros Por outro lado, constatamos uma profunda invisibilização da
campos da Educação Física e demais áreas de conhecimento. produção acadêmica das mulheres em vista dos padrões certificados de
152 Tânia Mara Vieira Sampaio

citação e referências bibliográficas que, ao exigirem apenas a indica-


l Gênero e Lazer

Referências
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ção do sobrenome por extenso, muitas vezes, impedem que as iniciais


dos primeiros nomes apontem o crescimento de mulheres assinando e AUAD, D. Feminismo: que história é essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
patenteando suas descobertas e percepções acadêmico-científicas. BOURDIEU, P. A dominação masculina. In: Educação e Realidade, v. 20, n. 2.
Outra evidência tem sido a de que o referencial teórico econô- Porto Alegre, jul.7dez.1995. p. 133-84.
mico, ao analisar, por exemplo, trabalho e lazer permanece como CAMARGO, L. O. L. O que é lazer, 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992.
elemento subordinador de outras formas de assimetria nas relações COSTA, C. L. O tráfico do gênero. In: Cadernos Pagu (11), Campinas,
sociais. O enfrentamento do sistema econômico não é suficiente para UNICAMP, 1998. p. 127-40.
superar as "desigualdades sociais" resultantes das subordinações e DUMAZEDIER, J. Valores e Conteúdos Culturais do lazer. São Paulo: SESC,
inferiorizações geradas na cultura provenientes das matrizes de gêne- 1980.
ro ou mesmo étnicas. GEBARA, I. Rompendo o Silêncio: uma fenomenologia feminista do mal.
A elucidação de que o conhecimento se estrutura a partir de uma Tradução: Lúcia Mathilde Endlich Orth. 2. ed., RJ, Petrópolis: Vozes, 2000.
determinada percepção do mundo implica considerar o debate GEBARA, I. Teologia ecofeminista: ensaio para repensar o conhecimento e a
epistemológico não apenas como um debate científico, mas religião. São Paulo: Olho d'água, 1997.
intrinsecamente marcado pelas relações sociais de poder do cotidiano. HEILBORN, M. L. Fazendo gênero? A antropologia da Mulher no Brasil.
Se o caráter relacionai dos seres humanos é o ponto fundamental, não se COSTA, A. O.; BRUSCHINI, C. (org). In: Uma questão de gênero. Rio de
trata, portanto, de isolar a mulher como categoria específica, mas exige Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992.
que a relação mesma entre homens e mulheres seja o foco da análise. HELLER, Á. Historia y Futuro: Sobrevivirá Ia Modernidad? Barcelona:
Península, 1991.
Compreender o conceito de relações de gênero como
instrumento capaz de captar a trama das relações sociais, bem como as LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós
estruturalista, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
transformações historicamente sofridas através dos mais distintos
processos sociais implica superar uma visão de vitimação das mulheres. MADSEN, J. E. H. Lazer na empresa e lazer pela empresa: a associação da marca
da empresa ao lazer e à qualidade de vida. In: MARCELLINO, N. C. (org.). Lazer
Com certeza o acesso ao poder é desigual, imprimindo esta marca nas
e empresa. Campinas, SP: Papirus, 1999. p. 95-111.
relações sociais, sejam estas de gênero, de classe, ou de etnia/raça.
MAGNANI, J. G. C. Lazer dos trabalhadores. São Paulo em Perspectiva, São
Não se pode omitir que o cotidiano é político e se organiza a partir
Paulo, v. 2, n.3, p. 37-9, jul./set. 1988.
dos conhecimentos científicos que são tornados naturais, vistos como
MAGNANI, J. G. C. Festa no Pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São
óbvios e sobre os quais não se reflete, apenas se vive. Nesse sentido, é
Paulo: HUCITEC, 2003.
mister considerá-lo como elemento estruturador do acontecer histórico e
MARCELLINO, N. C. Estudos do lazer, uma introdução. 3. ed. Campinas, SP:
relacionado com a vida do ser humano inteiro em seus múltiplos
Autores Associados, 2002.
sentidos (Heller, 1991).
MARCELLINO, N. C. Lazer e humanização, Campinas - SP: Papirus, 2001.
O processo acadêmico é um espaço importante, embora não
o único, para desencadear novas percepções da vida e dar vazão aos MORAES, M. L. Q. Usos e limites da categoria gênero. In: Cadernos Pagu (11),
Campinas: UNICAMP, 1998. p. 99-105.
desejos capazes de construir outros mundos possíveis, por isso,
advoga-se que o lazer expresso por meio de seus diferentes MORIN, E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, 5. ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
conteúdos culturais possibilite às pessoas re-inventar suas relações
cotidianas nos níveis micro e macro sociais. PISCITELLI, A. Gênero em perspectiva. In: Cadernos Pagu (11), Campinas:
UNICAMP, 1998. p. 141-55.
154 Tânia Mara Vieira Sampaio

ROMERO, E. Corpo, mulher e sociedade, Campinas: Papirus, 1995.


Capitulo 9
SAFFIOTI, H. I. B., "Rearticulando gênero e classe social". In: COSTA, A. O.;
BRUSCHINI, C. Uma questão de gênero, Rio de Janeiro: Editora Rosa dos
Tempos, 1992.
SAFFIOTI, H. I.B. O Poder do macho, 12a. Impressão. São Paulo: Moderna, 1987. O LAZER E AS FASES DA VIDA
SAMPAIO, T. M. V. Avançar sobre possibilidades: horizontes de uma reflexão
ecoepistêmica para redimensionar o debate sobre os esportes. In: MOREIRA,
W. W.; SIMÕES, R. (orgs). Esporte como Fator de Qualidade de Vida, Piracicaba: Hélder Ferreira Isayama
Unimep, 2002. p. 85-99. Christianne Luce Gomes
SAMPAIO, T. M. V. Corpo ativo e religião. In: MOREIRA, W. W. (org.). Século
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SARAIVA, M. C. Co-educaçãofísica e esportes: quando a diferença é mito, Ijuí -
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SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Recife: SOS - Corpo, O lazer tem despertado grande interesse em diferentes segmentos
1991. de nossa sociedade atual e, geralmente, é associado ao descanso, ao
SOUSA, E. S. de; ALTMANN, H. Meninos e meninas: expectativas corporais e entretenimento e ao consumo de conteúdos culturais. Esses aspectos são
implicações na educação física escolar. In: Cadernos Cedes, ano XIX, n" 48, importantes para a caracterização do lazer na contemporaneidade, mas,
Agosto, 1999, p. 52-68 lamentavelmente, observa-se que a vivência passiva desse fenômeno
acaba atingindo todas as fases da vida, da tenra infância aos estágios
mais avançados da velhice.1
Além disso, como o termo "lazer" pode ser utilizado de diversas
formas, na maioria das vezes o seu entendimento é marcado por
preferências e juízos de valor, os quais são influenciados e limitados
por questões sociais, culturais, políticas, pedagógicas, geracionais e
econômicas, entre outras. Essas barreiras são decorrentes dos
interesses hegemônicos que, articulados aos princípios excludentes
verificados em nossa sociedade, acabam comprometendo a vivência
crítica e criativa do lazer, como observa Marcellino (1983),
dificultando assim a sua compreensão por parte de pessoas de
diferentes faixas etárias e grupos sociais.
Neste texto, o lazer é compreendido como uma dimensão da
cultura, tempo e espaço para a vivência lúdica de conteúdos culturais

Marcellino (1983), apoiado em Dumazedier, fala-nos que atividade e


passividade no lazer dependem dos níveis de desenvolvimento da experiência.
Assim, se o lazer for realizado no nível conformista estará relacionado à
passividade e, caso seja desenvolvido nos níveis crítico e criativo, poderá ser
caracterizado com uma vivência ativa.
156 Hélder Ferreira Isayama e Christianne Luce Gomes O Lazer e as Fases da Vida 157

em patamares críticos e criativos, o que o caracteriza como uma reconstrução de subjetividades, no qual diversas identidades estão
esfera abrangente, que tem profundas relações com o trabalho, com a em confronto, tensão e diálogo, conforme afirma Melo (2003).
educação e com a família, dentre outras dimensões da vida. É por isso A infância, a juventude, a idade adulta e a velhice, para Groppo
que o consideramos um dos elementos fundamentais para a melhoria (2000), são faixas etárias construídas modernamente, a partir de
da qualidade de vida dos sujeitos. situações comuns vividas em comum por certos indivíduos.Tratam-se
No entanto, cabe lembrar que o lazer não pode ser desvinculado não somente de limites etários pretensamente naturais e objetivos, mas
de toda a problemática social e que, sozinho, não é capaz de também de representações simbólicas e situações sociais com suas
transformar a nossa vida e de torná-la qualitativamente melhor. Assim, próprias formas e conteúdos que têm importante influência nas
pensar o lazer numa perspectiva abrangente não significa sociedades modernas.
desconsiderar a possibilidade de que ele também possa constituir-se Como possibilidade relativamente aberta de vivência social e
em estratégia de manipulação e controle social, sentido que muitas como "símbolo", as faixas etárias devem ser pensadas como uma
vezes é a ele atribuído. Por isso, é necessário repensar essas visões, por diversidade de grupos. Pluralidade constituída nas diferentes histórias,
meio da sistematização de conhecimentos e da realização de pesquisas experiências, limites e projetos vindos da condição de classe, gênero,
que tratem o lazer de maneira ampla e contextualizada, situando-o nos etnia, nacionalidade, "desenvolvimento" econômico, condição
diferentes estágios que marcam a nossa existência cotidiana. urbana/rural, religião, incluindo a própria vivência de lazer em cada
É importante pontuar, ainda, que o lazer pode reforçar uma série fase da vida, como será abordado a seguir.
de preconceitos direcionados à grande parte da população, tais como
mulheres, crianças, idosos, portadores de deficiência, negros,
homossexuais, minorias étnicas e religiosas etc. Embora essa relevante
O Lazer na Infância:
questão perpasse as considerações sobre o lazer ao longo da vida- que
pode ser periodicizada a partir de diversas maneiras -, neste texto não um direito de cidadania
trataremos dela diretamente. Propomos, pois, uma reflexão sobre o Em geral, a infância é compreendida como uma fase da vida que
lazer nas diferentes fases da vida considerando alguns limites e vai do nascimento até que a criança complete doze anos de idade.
possibilidades observadas no decorrer da existência humana, e os Apesar de essa limitação etária ser freqüentemente adotada em nosso
momentos por nós escolhidos foram a infância, a juventude, a idade meio, deve ser vista apenas como uma referência inicial para que
adulta e a velhice. possamos compreender a infância, que se trata de um período de
Ao tecer considerações sobre o lazer de crianças, jovens, descobertas, aprendizados e inserção material e simbólica na realidade.
adultos e idosos, entendemos que tratamos de grupos que são Muitos estudiosos consideram inadequado tratar do tema
complexos e heterogêneos. Ao mesmo tempo em que há uma lazer tendo-se, como referência, o período da infância, especialmente
identidade constitutiva das singularidades e dos elos internos de se considerarmos os anos que antecedem o ingresso das crianças no
coesão entre os membros de cada um desses grupos, há também uma processo de escolarização formal (Marcellino, 1990). A justificativa
pluralidade reveladora das diferenças entre os sujeitos, que podem para essa interpretação é o fato de que, nessa etapa da vida, o tempo
integrar, ou não, um mesmo grupo etário e social. Verificamos, dessa da criança ainda não apresenta uma divisão entre as atividades
maneira, um contínuo e diversificado trânsito de interesses, uma vez obrigatórias (relacionadas ao trabalho produtivo ou escolar) e não
que os indivíduos fazem parte de vários agrupamentos durante a obrigatórias (relacionadas ao lazer).
vida. Além disso, evidenciamos um rico processo de construção e
158 Hélder Ferreira Isayama e Christianne Luce Gomes O Lazer e as Fases da Vida
159

De fato, se focalizarmos a questão do uso do tempo, em nossa Em face dessas observações e questionamentos iniciais
sociedade ocidental capitalista, a vida social pode ser dividida entre esclarecemos que partimos do pressuposto de que a criança é, antes
tempo de trabalho e tempo de não-trabalho (ou, como preferem de tudo, um cidadão. Por isso a criança - que é simultaneamente um
alguns, tempo livre). Contudo, essa não é a única referência de sujeito singular e plural, cuja heterogeneidade varia em função dos
análise válida para refletirmos sobre o contexto e, nele, sobre distintos elementos culturais, simbólicos, materiais, políticos,
determinados sujeitos e grupos sociais - independentemente da fase sociais etc., que constituem a história de vida de cada indivíduo -
da vida que estiverem usufruindo, do nascimento aos anos avançados tem direito ao acesso e ao usufruto de todo o patrimônio que a
que a velhice, hoje, já é capaz proporcionar, graças ao aumento da sociedade vem produzindo social e historicamente. Obviamente,
expectativa de vida ao nascer. entre outros direitos sociais, políticos e civis de todo cidadão,
Assim, para tratar da temática lazer e infância podemos lançar inclui-se o direito da criança ao lazer.
mão de outros referenciais de reflexão e análise, os quais partem do Seguindo essa linha de raciocínio, a criança enquanto cidadã
pressuposto de que a dinâmica social que nos constitui é muito mais pode e deve usufruir o lazer, pois este é uma dimensão da cultura e
complexa e desafiadora do que se pode supor. Caminhando nessa parte inerente da nossa vida em sociedade. A criança brinca e joga,
direção, retomemos algumas cruciais indagações: faz sentido falar mas ela também tem (ou, pelo menos, deveria ter) acesso a todas as
em lazer na infância? Não seria mais acertado associar às crianças prerrogativas inerentes ao lazer (como, por exemplo, os períodos
apenas as atividades lúdicas, traduzidas por termos como institucionalizados para a vivência deste fenômeno, como o final de
brincadeira, brinquedo e jogo? semana, as férias e os feriados) e também à riqueza cultural que o
Em nossas buscas, constatamos que a maioria dos estudos integra, a partir da vivência de múltiplas manifestações culturais:
dedicados ao universo infantil opta por este último encaminhamento, jogos, festas, dramatizações, esportes, músicas, literatura, passeios
evitando atrelar o lazer à infância, uma vez que se trata de uma e viagens de férias etc.
polêmica e controversa questão. Concebida dessa maneira a infância, Mesmo cientes de que há uma distância entre a lei e a realidade
concreta, nossos documentos legais já reconhecem o direito dos
mesmo detendo particularidades que a distinguem das outras fases da
infantes ao lazer, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente,
vida, deveria ser vista como um período que considera acima de tudo
conforme enunciado em seu Artigo 4°: É dever da família, da
o tempo presente, não devendo sacrificar o aqui e o agora em nome de
comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com
um futuro em potencial. A criança "é", e não simplesmente "será".
absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à
Marcellino (1990), criticando o furto do lúdico na infância,
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
afirma que nessa fase da vida há uma impossibilidade de viver o
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
presente, em nome de uma preparação para um futuro que não pertence
Na prática, isso significa que o governo e a sociedade, em geral,
à própria criança. E nesse caso, encontramos crianças que vivem desde
têm o dever de propiciar oportunidades e experiências de lazer para
cedo a rotina do trabalho, ou melhor, da necessidade de trabalhar, em
todas as crianças (e adolescentes), e que nós também temos o direito e
função das dificuldades pelas crianças e por suas famílias. E por outro
o dever de reivindicar do poder público, da iniciativa privada e da
lado temos outro panorama que também dificulta a vivência do lúdico
sociedade civil os meios, os espaços, os materiais e os recursos para
por esses sujeitos, e nesse caso, são crianças que possuem melhores
efetivá-los em nossa dinâmica social, incluindo pessoas de todas as
condições de vida, mas que são obrigadas a participar de diversas
faixas etárias, credos, etnias e condição socioeconômica. Trata-se de
atividades (esportes, computação, línguas etc.), que nem sempre são
lutar pela universalização dos direitos, tendo em vista o exercício da
prazerosas e de escolha da criança.
cidadania plena.
160 Hélder Ferreira Isayama e Christianne Luce Gomes O Lazer e as Fases da Vida 161

O direito ao lazer é mencionado em outros artigos do Estatuto Em suma, o brincar é contextualizado material e simbolicamente
da Criança e do Adolescente, mas, neste texto consideramos citar e, por essa razão, carrega as marcas da nossa vida cotidiana: sentidos e
mais uma passagem deste documento, contida no Artigo 71: A criança significados, tradições, inovações, papéis sociais, desejos, necessidades,
e o adolescente têm direito à informação, cultura, lazer, esportes, sonhos, prazeres, descobertas, anseios, receios, limites, contradições.
diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição Em geral, as crianças sabem lidar - isto é, brincar - de uma forma muito
peculiar de pessoa em desenvolvimento. especial com todos esses elementos, desvelando múltiplas
Estando em processo de constituição e desenvolvimento, possibilidades para a vivência do lúdico (Gomes, 2004).
certamente as crianças precisam ampliar as suas oportunidades de Partindo do pressuposto de que o lúdico é a própria "linguagem
conviver, interagir, refletir, duvidar, questionar, criar, descobrir, do brincar", não deveria ser encarado como algo próprio e restrito
e... brincar, desenvolvendo assim todo seu potencial. Desse modo, apenas à infância, mas como uma essência que deveria contagiar o
assinalamos o brincar como fundamental para a infância (mas não lazer em todas as etapas da vida.
apenas para essa fase da vida), e não como uma estratégia para
evitar a controvérsia lazer/criança.
Afinal, o brincar se manifesta como dimensão que é simbóli-
ca, constitui inserção cultural, se expressa como linguagem e como Lazer, juventude e cultura jovem
processo de elaboração de significados e sentidos coletivos, De acordo com Sposito (1996), a definição do que é juventude
contextualizados e enraizados no universo social que o legitima. precisa ser historicizada e tratada sob a ótica relacionai. A
Baseado em Vygotsky, Debortoli (2004) sublinha que o brincar não consideração sobre o que é ser jovem depende de circunstâncias
é espontâneo, não é natural e nem próprio das crianças, mesmo que históricas determinadas, isso porque essa designação pode ultrapassar
nelas, e por elas, se expresse em suas formas mais genuínas. O a faixa etária habitual. Alguns fatores influenciam essa realidade, tais
brincar é uma construção cultural, e deve ser compreendido como como: o prolongamento da escolaridade em diferentes sociedades,
processo de inserção em um tempo-espaço de aprendizados bem como o aumento do período de convivência com o grupo familiar
demarcadamente sociais. de origem. Assim sendo, certos marcos que constituem a vida adulta -
Brougére (citado por Debortoli, 2004) observa que o brincar como a inserção definitiva no mercado de trabalho após um período de
expressa uma necessidade humana de explorar objetos culturais de formação no sistema de ensino ou a estruturação de família e a geração
forma a ampliar o universo simbólico que potencializa as mais dife- de filhos - tendem a ser adiados. Dessa forma, entender a juventude em
rentes representações do real. Por isso, constitui-se como imaginação termos relacionais permite flexibilizar os limites etários inferiores ou
e narrativa, como processo de problematização e reconstrução da superiores, já que se é jovem sempre em função de uma peculiar
realidade, aspectos fundamentais para o desenvolvimento da criança. relação com o mundo adulto e com o universo infantil, do qual existe
Uma brincadeira entrecruza histórias, tempos e
tentativa de distanciamento.
espaços. Não se brinca apenas com um objeto. Brinca-se O tema identidade aparece, assim, como importante já que esta
com uma memória coletiva que muitas vezes transcende fase é caracterizada como de "transição", pois nela se gesta um
quem brinca e o próprio momento da brincadeira: objetos, vir-a-ser e, ao mesmo tempo, uma construção do presente, tendo em
tempos, substâncias, regiões, épocas, cidades, países, vista a superação da infância. Nesse sentido, é importante frisar que a
estações do ano, rituais, os mais amplos e ricos contextos dimensão da cultura, e conseqüentemente do lazer, surge como espaço
humanos (Debortoli, 2004, p. 20). privilegiado de práticas, representações, símbolos e rituais no qual os
162 Hélder Ferreira Isayama e Christianne Luce Gomes O Lazer e as Fases da Vida 163

jovens buscam demarcar uma identidade juvenil. Através da dança, da certa "juventude idealizada" que é tida como modelo padrão
música, da festa e de diferentes manifestações culturais, o jovem se socialmente saudável. Esse fenômeno já vem sendo discutido em
expressa e se insere no mundo, (re)elaborando-o e (re)construindo-o. alguns países europeus, denominado "adoscentilização da cultura".
Se a questão da identidade é fundamental para o entendimento A valorização de uma cultura jovem favoreceu essa exploração
dessa fase da vida, tendemos, no entanto, a considerá-la quando nos comercial, no entanto fez surgir também o estímulo a movimentos de
referimos ao jovem, a partir de estereótipos, quase sempre originados protesto, que estão intimamente ligados à dimensão do lazer. Dayrell
pela influência da mídia. Portanto, ao nos referirmos ao universo (2001) nos lembra que a centralidade do consumo e da produção
juvenil, sem um olhar sobre a classe social, tendemos a considerar os cultural para os jovens também são sinais de novos espaços, de novos
jovens consumistas ou alienados. No entanto, se recuperarmos a tempos e de novas formas de sua produção e formação como atores
noção de classe acrescentamos ainda o atributo de violentos ou sociais. Nesse processo, surgem diferentes formas de socialização, nas
marginais (Sposito, 1996). quais os grupos culturais e a sociabilidade que eles produzem vêm
No campo do lazer existem poucos estudos que se dedicam à ocupando um lugar central na vida desses sujeitos.
juventude e, em sua maioria, analisam os sujeitos tendo como Com relação ao tempo para o envolvimento com as vivências
referência as manifestações culturais com as quais os jovens se de lazer, independentemente da classe social, os jovens tem uma
envolvem. Ou então, o enfoque acontece por meio de visões possibilidade limitada. Para alguns, a progressão no sistema formal de
funcionalistas, principalmente no que se refere a sua abordagem ensino - principalmente com o ingresso na Universidade - pode
moralista, buscando justificar o lazer como um elemento eficaz envolver sucessivas melhorias na posição social, o que deve resultar
para retirar os jovens de condições ditas "marginais", contribuindo em maior liberdade e escolha com relação às práticas de lazer. No
para uma vida mais saudável e "regrada" do ponto de vista do que é entanto, as pressões constantes para obter uma vida profissional de
moral e socialmente aceito. sucesso impõem a esses jovens uma limitação no tempo
Com relação às opções de lazer para a juventude, devemos estar disponibilizado para o lazer.
atentos às diferentes expressões culturais gestadas e vividas pelos Por outro lado, quando o sujeito se dedica ao trabalho em tempo
grupos, pois tornam visíveis as tensões e contradições da sociedade em integral, provavelmente terá ainda menos tempo para o lazer, pois, na
que vivem. Portanto, é importante compreender os significados das maioria das vezes, o trabalho acaba assumindo, precocemente, uma
vivências de lazer dos jovens, tendo em vista identificar se são apenas posição de centralidade na vida desses jovens. Além disso, é
moda passageira ligada à indústria cultural, ou constituem novas fundamental destacar que o envolvimento dos jovens com o campo de
formas de socialização vivenciadas pela juventude.2 trabalho se dá principalmente por intermédio de bicos, biscates,
Neste sentido, Melo (2003) afirma existir uma carência de freelance ou de outras maneiras ocupacionais caracterizadas pela
informalidade.
opções de lazer para a juventude que, por certo, se encontra ainda
O lazer na juventude se constitui não apenas como um tempo
mais fortemente cercada pelas mais diversas iniciativas de
liberado das atividades tradicionais ligadas ao contexto da família,
manipulação cultural, até porque são visualizados como um dos
comunidade ou religião, mas envolve também novas obrigações
principais "nichos de mercado", bem como devemos considerar uma
instituídas em prol da colonização da juventude, como as escolas e os
2. A socialização dos jovens pode ser compreendida como os processos por meio grupos juvenis organizados pelos adultos (Groppo, 2002). No
dos quais os sujeitos se apropriam do social, de seus valores, de suas normas e entanto, não podemos esquecer que esses sujeitos organizam no seu
de seus papéis, a partir de determinada posição e de uma representação das cotidiano formas culturais de resistência a essa opressão e dominação
próprias necessidades e interesses, mediando continuamente entre diversas
fontes, agencias e mensagens que lhes são disponibilizadas (Dayrell, 2001).
aparentemente relacionadas à juventude.
164 Hélder Ferreira Isayama e Christianne Luce Gomes O Lazer e as Fases da Vida 165

Por isso, um aspecto importante a ser considerado pelo valorizado, o que remete a dimensão do lazer a um plano secundário,
animador cultural é a necessidade de trabalhar com base nas próprias até mesmo considerando que esses indivíduos ainda devem cumprir
especifícidades as linguagens em uso e ou geradas pelos jovens. demais obrigações presentes em seu cotidiano (religiosas, familiares,
Linguagem clip, internet, publicidade, cultura Hip Hop, clubber são políticas etc.).
elementos com os quais devemos aprender a lidar para nos Neste contexto, Elias e Dunning (1992) afirmam que o trabalho é
aproximarmos da juventude, mas o olhar deve ser crítico, evitando os compreendido em um nível superior, como dever moral e fim em si
riscos dos "culturalismos" e a desconsideração para com as mesmo, enquanto que o lazer classifica-se em um nível inferior como
diferenças de classes sociais (Melo, 2003). Dessa forma estaremos forma de preguiça e indulgência. Essa visão hierarquiza as vivências
organizando a atuação profissional no campo do lazer para além do com os quais os adultos se envolvem, apontando o lazer como um
formato tradicional e, portanto, considerar que o âmbito da cultura elemento de recuperação para o trabalho e dificulta, de maneira geral, o
pode suscitar novas formas de conscientização e resistência dos acesso a essa dimensão da cultura, que já são prejudicadas por uma série
grupos de jovens com os quais atuamos. de barreiras socioculturais, conforme descreveu Marcellino (1983).
Para a grande maioria das pessoas, a idéia que ainda permanece
é a de redução do trabalho ao simples labor se constituindo como fonte
de sobrevivência dos trabalhadores e o lazer passa a ser um privilégio
O lazer dos adultos e a centralidade de uma pequena parcela da população, que acontece em um tempo que
do trabalho e do consumo é residual do trabalho.
Apesar de não ser possível estabelecer generalizações, a idade Quando deixa de produzir, o adulto passa a não exercer seu papel
adulta pode ser compreendida entre a fase da juventude, que nem no contexto social, uma vez que ele é valorizado, principalmente,
sempre compreende o mundo do trabalho e o período da velhice, que enquanto o sistema puder absorver sua força para o trabalho. Isso está
muitas vezes estabelece relações com aposentadoria. Esse período tão intrínseco nas pessoas, que os adultos só se valorizam quando
substancial do ciclo vital engloba a maior parte dos sujeitos que estão trabalham, acabam acreditando que essa é a única forma de serem úteis e
trabalhando para se manter ou sustentar um núcleo familiar. se esquecem muitas vezes de disponibilizar condições concretas para a
Com relação aos estudos sobre o lazer, é importante destacar vivência do lazer. De qualquer maneira, é comum a supervalorização da
que essa fase da vida vem sendo negligenciada nos estudos referentes esfera laborai, mesmo nesses momentos, para não comprometer a
ao tema, principalmente porque em geral associa-se esse período ao profissão e o futuro. E como afirmam Stoppa e Isayama (l 999), adiando
mundo da produção. Por isso, é um desafio e ao mesmo tempo uma e confinando o lazer e suas possibilidades de prazer sempre para depois,
necessidade para o lazer, enquanto campo de estudos e intervenções, um depois que nem sempre acontece.
a ampliação da discussão desse tema em nosso meio. É nessa fase da vida, também, que os sujeitos e conseqüente-
De acordo com Alves e Isayama (2006), pensar sobre o lazer do mente as suas possibilidades de vivências de lazer são valorizados pela
adulto nos aponta a necessidade de contextualizá-lo frente as sua capacidade de consumo. Pela imposição da concepção neoliberal
diferentes esferas de obrigação humana, significa pensá-lo não de de globalização, para qual os direitos são desiguais, as novidades mo-
modo isolado, mas sim em sua integração com as dimensões da dernas aparecem para a maioria apenas como objetos de consumo, e
família, da religião, da política, e principalmente do trabalho, já que é para outros apenas como espetáculo. Canclini (1995) assinala que o di-
uma das obrigações mais presentes na vida dos adultos. Na maioria das reito de ser cidadão, ou seja, de decidir como são produzidos, distribuí-
vezes, o trabalho para o adulto passa a ser fundamental e extremamente dos e utilizados esses bens, acaba se restringindo às elites.
166 Hélder Ferreira Isayama e Christianne Luce Gomes T O Lazer e as Fases da Vida 167

Em face dessa realidade, nem todos os adultos podem ser útil, não no sentido de humanidade, cumprindo com valores de
consumidores. Afinal, desejar não basta; para tornar o desejo cidadania, mas como um utensílio no campo do trabalho, priorizando
realmente desejável e assim extrair prazer do desejo, deve-se ter uma essa atividade, em cooperação e conformismo com a lógica de
esperança racional de chega mais perto do objeto desejado (Bauman, produção e consumo, adotando, vivendo e transmitindo esses valores.
1999, p. 94). Essa esperança, embora seja alimentada racionalmente No entanto, o lazer pode colaborar com a construção de uma
por alguns, para outros é considerada futil. Todos estão sujeitos a nova realidade, desde que não seja considerado como fenômeno
inúmeras opções, mas nem todos detêm os meios de ser optantes, isolado, mas como um dos elementos que integram essa complexa trama
concretizando assim os seus desejos. de interações de naturezas diversas. Assim, o lazer passa a ser promissor
No entanto, quando se reconhece que ao consumir também se não pela lógica da produtividade e ou do consumo, mas originado de
pensa, se escolhe e se reelabora o sentido social, é preciso analisar uma experiência cidadã, ampliando chances de que as práticas de lazer
constituam canais de resistência, mobilização e engajamento político.
como esta área de apropriação de bens e signos intervém em formas
Neste âmbito, os adultos, bem como os demais sujeitos, passam a ter
mais ativas de participação do que aquelas que, habitualmente,
responsabilidade de pensar em novas fórmulas mais solidárias e
recebem o rótulo de consumo. Em outras palavras, devemos nos
includentes para todas as dimensões de nossa vida social e cultural, e não
perguntar se, ao consumir, não estamos fazendo algo que sustenta,
apenas para o lazer, como uma de suas estanques frações.
nutre e, constitui uma nova maneira de ser cidadão.
A vivência do lazer para esse grupo tem o tempo como um dos
Se é certo que o consumo exacerbado e alienado de práticas
fatores limitantes, já que o sistema valoriza principalmente a sua força
culturais de lazer dificulta o pensar crítico, também é certo que ele
de trabalho. Nesse contexto, observamos também uma restrição do
pode não aniquilar completamente a percepção crítica da realidade.
lazer a alguns campos específicos de interesse, mas não por opção e
Aqui buscamos novamente apoio em Canclini (1995) para
sim por não terem contato com outros conteúdos, o que demonstra a
redimensionar o permitido e o possível, alargando as possibilidades de
necessidade de um trabalho educativo no sentido de ampliar o
resistência. Entretanto, para articular o consumo com um exercício
envolvimento dos adultos em diferentes vivências de lazer. E nesse
refletido da cidadania, é necessário pensar ações políticas pelas quais sentido, Marcellino (2002) ressalta que o ideal seria que o sujeito
os consumidores ascendem à condição de cidadãos. Isso implica uma pudesse se envolver com os vários grupos de interesse, procurando,
concepção de mercado não apenas como um simples local de troca de exercitar, no lazer, o corpo, a imaginação, o raciocínio, a habilidade
mercadorias, mas como rede de interações culturais mais complexas. manual, o relacionamento social, o intercâmbio cultural e a quebra da
Da mesma maneira, o consumo é visto não como mera possessão rotina, quando, onde, com quem e da maneira que quisesse.
individual de objetos isolados, mas como uma apropriação coletiva de
bens e serviços que proporcionam satisfações, sejam elas biológicas
ou simbólicas.
Por isso concordamos com Alves e Isayama (2006) quando Limites e possibilidades do lazer na velhice
esclarecem que o consumismo e produtividade são valorizados em Nos dias atuais, verifica-se a ocorrência de um fenômeno sem
detrimento de outras possibilidades e o adulto é o elemento chave de precedentes na história da humanidade: o acelerado envelhecimento
contribuição para o desenvolvimento dessa lógica, pois é, em da população. Este fenômeno comum a todos os países do mundo
potencial, consumidor e produtor ativo, e a maior parte do seu tempo é pode ser explicado pela combinação de dois fatores demográficos: o
dedicado a essas atividades. O entendimento de ser adulto se dá, então, progressivo aumento da expectativa de vida ao nascer, e a queda da
como ser humano dirigido pela lógica da sociedade capitalista, sendo taxa de fecundidade da população.
168 Hélder Ferreira Isayama e Christianne Luce Gomes O Lazer e as Fases da Vida 169

As pessoas idosas constituem, assim, o segmento social que e mudança. Ao contrário do que se pensa, a velhice não representa uma
mais cresce no mundo. A previsão é que nas próximas décadas % da fase marcada somente por perdas e ocorrência de inúmeros problemas
população idosa esteja concentrada nos países em desenvolvimento, de saúde. Ela pode ser uma fase positiva e enriquecedora, constituída
dentre os quais o Brasil, salientando a necessidade de dedicarmos principalmente de ganhos - decorrentes da maturidade e do
especial atenção a esta questão, preparando-nos para satisfazer as conhecimento adquiridos ao longo da vida. Mas, para que a velhice
necessidades desses cidadãos e de seus núcleos familiares. seja encarada dessa maneira, é necessário promover uma mudança de
Em nações como o Brasil, lamentavelmente a expansão mentalidade, o que pode ser alcançado a partir da busca de
quantitativa da população idosa não vem sendo acompanhada das conhecimentos que nos possibilitem compreender melhor o processo
necessárias condições que poderiam proporcionar uma vida com de envelhecimento.
mais qualidade na velhice. Assim, esta parcela da população se Essa preocupação ainda é muito recente em nossa sociedade.
encontra vulnerável a exclusões e discriminações de toda ordem - Afinal, há poucas décadas a esperança de vida ao nascer, em várias
não por falta de legislação mas de ações efetivas e de uma mudança nações do mundo, não passava de 50 anos. Ultrapassar esse limite
de mentalidade da população em geral, que normalmente classifica o de idade era uma exceção. Hoje, os estudos produzidos no campo
idoso como um fardo para a sociedade e tem uma imagem deturpada da gerontologia vêm colaborando sobremaneira com a constituição
da velhice. de um novo olhar sobre o processo de envelhecimento, mas, esses
É necessário rever essas duas questões. Conceber o idoso conhecimentos ainda não atingiram a população como um todo.
corno um fardo, sobretudo econômico, é uma idéia falaciosa, pois, os Néri e Cachioni (1999) explicam que velhice e envelhecimento
indicadores estatísticos revelam que os idosos são os responsáveis são realidades heterogêneas, variando conforme o tempo histórico,
pela manutenção de 25% dos lares nacionais (Gomes; Pinto, 2005). cultura, classe social, história de vida, condições educacionais, estilo
Quando se fala em envelhecer, geralmente a imagem que prevalece é de vida, gênero, etnia e profissão, entre outros elementos que
a de um período caracterizado pela doença, fraqueza, dependência, conformam as trajetórias de vida de grupos e indivíduos. O modo de
derrota, pobreza, solidão e isolamento. Essa imagem acaba envelhecer depende de como o curso de vida (de cada pessoa, grupo
influenciando negativamente a opinião pública, as atitudes, as etário e geração) é estruturado pela influência constante e interativa de
convicções e o comportamento da população em geral - até mesmo suas circunstâncias histórico-culturais, da incidência de diferentes
das próprias pessoas idosas, que muitas vezes acabam abrindo mão patologias durante o processo de desenvolvimento e envelhecimento,
de descobrir as novas possibilidades proporcionadas pela velhice em de fatores genéticos e do ambiente ecológico.
nome da ilusória busca pela fonte da juventude, fase da vida que, Dessa forma, não é a velhice que produz um estado de saúde
como visto, constitui o principal padrão de referência em nossa debilitado: isso decorre de uma sociedade que não oferece a todos os
sociedade (Gomes; Faria, 2005). seus membros condições dignas para viver e envelhecer. Doença e
De fato, a realidade vem mostrando que assumir a velhice não é fraqueza não são simples questões biológicas, mas socioeconômicas.
fácil para a maioria das pessoas, que se sentem fragilizadas e temerosas É muito difícil obter uma velhice sadia quando se lidou ao longo da
com o avançar da idade. Para Barreto (1997), é fundamental apontar o
3. Os dois termos associados ao envelhecimento - geriatria e gerontologia -
preconceito e o medo da velhice, duas faces da mesma moeda cunhada começaram a ser utilizados no Brasil em meados do século XX, mas, ainda hoj e, são
pela sociedade do lucro, da produtividade, do descartável e do efêmero. poucos aqueles que conhecem os significados dessas palavras. Enquanto a geriatria
Assim, é fundamental esclarecer que o envelhecimento é um é um ramo que se dedica aos problemas médicos dos idosos, a gerontologia significa
um campo de estudos multidisciplinar sobre o processo de envelhecimento, levando
processo dinâmico que caracteriza toda a vida e envolve continuidade em consideração a influência de vários aspectos: biológicos, psicológicos,
educacionais, políticos, geográficos e sociológicos, entre inúmeros outros.
170 Hélder Ferreira Isayama e Christianne Luce Gomes O Lazer e as Fases da Vida 171

vida com as piores condições de educação, saneamento básico, entender de que experiências estamos falando, em que contexto elas são
alimentação e moradia, por exemplo (Barreto, 2002). produzidas, que significados possuem para os sujeitos que as vivenciam,
Quando a saúde é entendida como a conservação da qualidade que conhecimentos as fundamentam e são produzidos a partir de sua
de vida e da possibilidade de conviver e se adaptar a novas condições, vivência. Além disso, o lazer vivenciado em um ambiente alegre,
pode-se considerar saudáveis um grande número de pessoas idosas democrático e enriquecedor, que valoriza o potencial dos idosos pode,
que apresentam as limitações próprias da idade (dificuldades para por meio de discussões, levá-los a refletir sobre suas relações, sonhos e
enxergar, ouvir e andar, entre outras) ou que são portadoras de doença objetivos, aumentando sua disposição para o dia-a-dia.
crônico-degenerativas sob controle (tais como hipertensão arterial, Podem-se destacar novos conteúdos, ampliar as habilidades a
diabetes, doenças cardiovasculares, reumatismo, osteoporose). Com serem estimuladas e acentuar a satisfação e o prazer de aprender, criar e
arriscar. Obviamente, agindo com cautela e atentando para todos os
os devidos cuidados, nem as doenças, nem o uso de medicamentos
detalhes, evitando a ocorrência de acidentes e de riscos desnecessários.
impedem as pessoas idosas de participar de grupos de convivência,
Ao vivenciar o lazer, as pessoas idosas podem exercitar a capacidade
"universidades da maturidade" ou programas de lazer.
de decisão, pensamento e imaginação, ampliar as oportunidades de
No Estatuto do Idoso, em particular, o lazer é tratado como um
integração e convívio social, além de (re)construir e (re)organizar a
direito a ser assegurado pela família, pela comunidade, pela sociedade e
experiência cultural de seu tempo. Desenvolvendo oportunidades e
pelo poder público. Conceber o lazer como um direito social significa
experiências de lazer que tenham significado para o grupo, é possível
assumir a responsabilidade de ampliar o acesso das pessoas às
estimular a iniciativa, a independência, a troca de idéias e a superação
manifestações lúdicas da nossa cultura: festas, passeios, espetáculos,
de desafios por parte dos envolvidos, respeitando os limites pessoais
viagens, esportes, jogos, brincadeiras, oficinas, artesanato, trabalhos
manuais e diversas formas de artes (pintura, escultura, literatura, dança, de cada um e resgatando sonhos e projetos.
É um equívoco pensar que desenvolver propostas de lazer para
teatro, música, cinema), entre inúmeras outras possibilidades que
pessoas idosas não difere (ou difere pouco) das atividades preparadas,
podem proporcionar valiosos benefícios, especialmente na velhice.
Entretanto, o valor do lazer na velhice não reside nas atividades em geral, com outros grupos. Válidas são as palavras de Barreto (1997),
propostas, tampouco na quantidade de experiências vivenciadas, mas, ao sublinhar que não estão preparados para cuidar do lazer dos velhos
no que elas significam para cada idoso, para as instituições, para as aqueles que são especialistas, por exemplo, em desenvolver propostas
famílias. Por isso, os membros do grupo devem ser convidados a de lazer para adultos. Pessoas idosas não são apenas diferentes de outros
participar do processo de construção da proposta a ser desenvolvida grupos, elas também diferem muito entre si, e pouco se conhece sobre
em um determinado período, atuando como sujeitos, e não como este heterogêneo grupo social. São sujeitos singulares que desafiam
simples espectadores, colocando em evidência o desafio de partilhar o nossa percepção sobre o tempo, relações humanas, valores e princípios
conhecer, o vivenciar, compreender e avaliar os conteúdos do lazer éticos, prioridades, limites, desafios, sensibilidades, angústias,
com a qualidade que se deseja. O importante é considerar o lazer exclusões, enfim, sobre toda a complexidade e beleza da vida.
baseado no desejo de auto-realização, nas relações sociais, na melhoria Apesar de parecer simples, atuar com competência no campo
da qualidade de vida, no desenvolvimento das potencialidades, na do lazer apresenta complexidades e trabalhar com pessoas mais
aprendizagem continuada. velhas exige empenho adicional por parte dos profissionais.
Sem desconsiderar os conteúdos mais apreciados pelos idosos, é É necessário enfatizar que para trabalhar com idosos é preciso
interessante procurar diversificar o leque de opções, ou seja, eleger gostar de pessoas mais velhas. Saber lidar com o público não é
experiências que têm significado para o grupo, que despertem seu suficiente, é preciso gostar de interagir com esse público específico.
interesse. No caso das vivências corporais, por exemplo, é necessário
172 Hélder Ferreira Isayama e Christianne Luce Gomes O Lazer e as Fases da Vida 173

Pessoas idosas exigem sensibilidade, atenção, transparência, cuidado e isso as fases da vida aqui discutidas - infância, juventude, fase adulta
paciência. São perspicazes e mostram insatisfação quando são tratadas e velhice - são compreendidas como períodos articulados que, no
com descaso e percebem quando um profissional não tem interesse por entanto, apresentam peculiaridades, limites e possibilidades em
elas, não considera suas necessidades e não as reconhece como pessoas relação à apropriação do lazer. Nesse sentido, é preciso considerar
importantes. As pessoas mais velhas gostam de ser ouvidas, de vários fatores que influenciam nossos conceitos e experiências de
expressar suas opiniões e serem respeitadas por elas, de se sentirem lazer em cada etapa da vida, tais como: classe social, gênero, estado
úteis, valorizadas e independentes, de serem identificadas pelo nome. civil e nível educacional, entre vários outros.
Porém, é mister observar e escutar atentamente o idoso como um Mesmo que tenhamos tratado distintamente essas quatro
profissional da área do lazer, sem a pretensão de assumir o papel de fases da vida, muitas questões próprias a cada uma delas pode estar
psicólogo ou "conselheiro". Nada de conselhos ou de se envolver presente, em maior ou menor grau, em outras etapas, tais como a
emocionalmente com as narrativas: é só ouvir e registrar o que ouviu para discussão do direito, da identidade, do consumo, da produtividade,
conhecer melhor o grupo e cada um dentro dele, atitude de respeito pela do alargamento de possibilidades de vivências de lazer.
opinião do idoso (Barreto, 2002, p.72). Afinal, sua cultura é diferente, Finalizando, destacamos que quando abordamos o lazer em
seus referenciais são outros, seu comportamento e até seu vocabulário diferentes fases da vida, pretendemos incentivar a ampliação de
expressam a realidade em que foi criado, há muitas décadas. possibilidades de vivências críticas e criativas, de convivência com
Finalmente, na perspectiva aqui adotada, o lazer na velhice as diferentes faixas etárias, gerações e grupos sociais. Nesse sentido,
pode favorecer a ampliação do círculo de amizades, a descoberta de acreditamos ser possível caminhar para um encontro que desenha
novas potencialidades, a superação de limites, a melhoria do humor, projetos comuns ao longo da vida humana, capazes de oferecer novos
da ansiedade e da depressão; a diminuição da vulnerabilidade a e múltiplos caminhos para a nossa organização cultural.
doenças e ao estresse psicológico, a recuperação da auto-estima, a
redescoberta de seu valor e papel na sociedade e a integração social.
Essas são algumas das razões que salientam a importância de ampliar
o acesso das pessoas idosas ao lazer.
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das vivências de lazer. A faixa etária, por si só, não é suficiente para
explicar as diferenças na apropriação das possibilidades de lazer, por
174 Hélder Ferreira Isayama e Christianne Luce Gomes
Capítulo 10
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em Belo Horizonte. Tese (doutorado em Educação) - Faculdade de Educação da
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Claro está que estamos delimitando o sentido de lazer,
NERI, A. L.; CACHIONI, M. Velhice bem-sucedida e educação. In: NERI, A. L.;
DEBERT, G. G. (org.). Velhice e sociedade, Campinas: Papirus, 1999. p. 113-40. colocando-o debaixo dos sentidos da corporeidade e do esporte. Fa-
zemos isso por dois motivos básicos: por identificar que o lazer só é
SPOSITO, M. P. Juventude: crise, identidade e escola. In: DAYRELL, J. (org.).
Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, possível ser vivenciado pelo ser humano através de seu corpo, sem
1996. p. 96-104. o qual lazer não se justifica e porque consideramos o fenômeno
esportivo como um dos mais importantes e abrangentes aconteci-
mentos sociais presentes na história da humanidade nos últimos
cento e cinqüenta anos.
Corporeidade na presença do esporte, como fator de
humanização e autonomia, através do lazer na vivência de uma vida
com qualidade, a razão de ser desta reflexão.
176 Wagner Wey Moreira e Regina Simões Lazer e Qualidade de Vida 177

Do lazer para o corpo à das preocupações educativas. Aristóteles indicava a importância da


atividade corporal, razão de recomendar a sua educação desde a
corporeidade no lazer infância. Platão sugeria o aprendizado da música para a aquisição
O ponto de partida a ser indagado quando estamos analisando da harmonia e da ginástica para fortalecer o corpo e garantir que
a relação lazer- qualidade de vida vivenciada pelo corpo, lembrando este pudesse estar mais apto para o conhecimento.
a preocupação apontada por Gallo (2006), é: Como vivenciar o lazer Ao darmos um salto para pensadores bem mais próximos de
sem estarmos debaixo apenas do consumo do lazer ou ainda estarmos nossa era, vemos também Nietzsche destacando que o pensamento é
transformando a nossa vida em um jogo acelerado da "mais valia do algo encarnado, é uma atividade corporal, criando a metáfora do
corpo"? Mais ainda: é possível e pertinente usufruir lazer apenas filósofo bailarino: pensar é dançar. Pensar é uma ação física concreta,
como um consumo, sem renunciar a nada? É possível vivenciar o corporal, que provoca dor e prazer. Desta forma, o cuidado com o
lazer de forma adequada se não refletirmos sobre que corpo é esse corpo é fundamental para todos os indivíduos, inclusive para os que
que vivência o lazer? se dedicam às tarefas do pensar (Gallo, 2006).
As perguntas geradoras mencionadas anteriormente podem Se a educação corporal foi preocupação educativa de vários
ser respondidas quando nos damos conta de que nossa sociedade momentos da história ocidental, podemos perguntar: Por que não
industrializada transformou o corpo em uma mercadoria e, como tal, usufruímos, hoje, de uma vivência corporal que rios propicie a qualidade
passível de ser apropriada pelos modismos das dietas constantes, das de vida? Podemos responder a isso quando constatamos que nosso
ginásticas utilitaristas, das cirurgias modeladoras segundo um padrão modo de vida, no ocidente, pautou-se por valores que desprivilegiaram
estético vigente. Todas essas ações são justificadas por uma cultura um corpo, sendo entendido este não como uma corporeidade
hedonista que incita à satisfação imediata das necessidades, estimulando existencial, mas como algo oposto ao espírito, à alma e ao pensamento.
urgência de prazeres e de bem estar através do consumo sem espera: O dualismo psicofísico que para Platão não significava desprezo ao
viajar, divertir-se, não renunciar a nada em nome desses prazeres corpo acaba por consagrar essa separação, dando ao corpo o lugar do
visando um consumo eufórico do dia-a-dia. Nesta visão, não há lugar pecado e da prisão da alma. No cristianismo medieval, o corpo, lugar do
para outras formas de lazer, como a contemplação, a ociosidade, o pecado e da perdição do ser humano, deveria ser o menos ativo possível.
relaxamento. O lazer deve ser hiper-ativo, provavelmente, para formatar Qualidade de vida, aqui, era sinônimo de renúncia aos desejos do corpo
um corpo hipo-ativo. Lipovetsky mencionado por Gallo (2006, p. 10) ou, em última análise, à vida. O importante era preparar uma vida com
nos revela: qualidade no futuro, vida essa desprovida de corpo.
No universo da pressa, dizem, o vínculo humano é
Soma-se a essa perspectiva a instituição da educação formal e
substituído pela rapidez; a qualidade de vida, pela eficiência; da ciência moderna, a partir de Descartes, quando fica determinado
a fruição livre de normas e de cobranças, pelo frenesi. que o pensar prevalece sobre a existência. Para tanto, o corpo não
Foram-se a ociosidade, a contemplação, o relaxamento seria capaz de mover-se, de sentir, de pensar, mas, ao contrário, o
voluptuoso: o que importa é a auto-superação, a vida em corpo é impelido por alguma outra coisa, alheia a ele. Essa outra
fluxo nervoso, os prazeres abstratos da onipotência coisa que o move é a alma. Ao corpo não resta outra missão a que não
proporcionados pelas intensidades aceleradas. seja de ser apenas e tão-somente a extensão da alma (Gallo, 2006).
Os valores postos, expostos anteriormente, vão propiciar uma
Como contradição aparente a essa • constatação, do corpo
educação corporal de esquecimento do corpo. Corpo é algo para ser
como mercadoria e de gestos úteis, lembramos que se olharmos
disciplinado e adestrado. Corpo é para ser submisso, é para estar
para a sociedade ocidental, na época clássica grega, o corpo foi alvo
Lazer e Qualidade de Vida
178 Wagner Wey Moreira e Regina Simões 179

permanentemente sob controle. Daí a razão de vermos uma educação impede esse objetivo. Não nos acostumamos que o corpo humano só
corporal, nas escolas ao longo do tempo, desprovida de problemas, é corpo na medida em que traz em si mesmo o conceito de inacabado,
destituída da necessidade de pensar, calcada apenas no cumprimento sendo promessa permanente de auto-criação. Ao esquecermo-nos
da ordem, com movimentos padronizados e executados a um ritmo disso, abordamos o corpo, através da biotecnologia, no sentido de
uniforme. consertar essa máquina que não funciona bem. Melhor nos
Moreira (1988, p. 15) já alertava para os perigos de uma expressando, nas palavras de Novaes (2003, p. 10)
educação em que o corpo não pode se manifestar, uma educação de Se a perfeição é o esquecimento de certos fenômenos,
disciplinamento do corpo, alicerçada no silêncio. o corpo contemporâneo é absolutamente imperfeito, uma
É tão visível esse valor da disciplina corporal que o protótipo de vez que ele se tornou não apenas objeto de controvérsias
aluno bem comportado, sinônimo de bom aluno, é aquele que não se mas também campo de todas as experiências possíveis. O
manifesta corporalmente, é aquele aluno dócil e quieto. Esta é a corpo transformou-se em máquina ruidosa a ser reparada a
cada movimento. Máquina defeituosa, "rascunho" apenas,
educação premiada, a da não criatividade, a da passividade, a do
como escreve David Lê Breton, sobre o qual a ciência
silêncio. Afinal de contas, a ordem diz que educação é uma coisa séria,
trabalha para aperfeiçoá-lo. Por que esse interesse em
motivo pelo qual deve ser vivenciada com respeito e sem brincadeiras,
mudar o corpo a ponto de projetar para que ele se
quase numa atitude de veneração. transforme em uma terceira coisa, nem natural nem
Como essa "educação" do corpo pode levar a uma autonomia, a inteiramente artificial?
uma escolha das possíveis formas de se buscar e ter qualidade de vida?
Como podemos ter uma educação de qualidade, na qual os corpos O ser humano não pode ser considerado como algo que
alunos devem permanecer inativos, apáticos, meros receptivos de funcione, característica das máquinas. O ser humano vive e nessa
informações muitas vezes não necessárias para a vida concreta? vivência estrutura seus mundos, seus valores, sua corporeidade.
Para se chegar a uma qualidade de vida, via escola formal, é Qualidade de vida não pode ser restrita à qualidade de funcionamento
possível que devêssemos levar em consideração as recomendações das estruturas de um conjunto de operações. O lazer, para esse
de Freire (2001, p. 116), quando relata a Escola de Dona Clotilde, humano, não pode apresentar apenas elementos que "azeitem" essa
na qual o importante é a educação dos sentidos, a educação corporal máquina corporal.
para a assunção da corporeidade. Insiste o autor: Claro está que o ato de pensar depende muito dos movimentos
mecânicos do corpo. Também não se pode negar que a vontade tem o
Apesar de ensinar pouco, uma escola poderia ensinar
poder de comandar esse mesmo corpo, porque ela pode fazê-lo andar
muita coisa. Por exemplo, quanto aos sentidos, poderíamos
e parar. O ser humano é todo paixão, pois lida permanentemente com
abrir um capítulo para cada um deles: educação da audição,
o medo, a esperança, a alegria, a amizade e o amor (Novaes, 2003).
educação da visão, educação do tato, educação do olfato e
educação do paladar.
Necessitamos, ao lado de aprender a lidar com o motor, saber lidar
com as paixões, com a sensibilidade, aprendizado possível através da
Qual escola hoje, buscando educar seus alunos, preocupa-se motricidade.
com a educação dos sentidos? Sentir é um dos atributos da Se até aqui viemos colocando pontos preocupantes em relação
corporeidade. Incorporar qualidade de vida não depende de saber às possibilidades de os corpos usufruírem qualidade de vida,
sentir, de saber ser? necessitamos dar pistas para reverter esse quadro, apontando
O esquecimento do corpo, na educação, deveu-se, alternativas que caminhem no sentido da solução do problema.
provavelmente, por querermos buscar sempre a perfeição e o corpo
180 Wagner Wey Moreira e Regina Simões Lazer e Qualidade de Vida ]g]

Uma primeira pista pode ser a de considerarmos o corpo numa é impressionante é que o mundo hiperespecializado impunha
relação educação/saúde, lembrando que o lazer para ser aprendido e a idéia segundo a qual se deve evitar ter idéias gerais, porque
incorporado depende de um corpo saudável e de relações saudáveis. elas são ocas, ao passo que ele se alimenta de idéias gerais e
No entanto, a história mostra uma concepção de saúde separada de ocas sobre o mundo, a vida, a humanidade, a sociedade, e
uma concepção de educação. Enquanto a primeira centrava suas alimentava a mais oca das idéias gerais: que não se deve ter
preocupações de cura calcadas nas ciências biológicas, a segunda idéias gerais.
sempre ofertou soluções criadas a partir das ciências humanas, Agindo no mundo como uma unidade, o ser humano é corpo,
lembrando que ambas não dialogavam na perspectiva de um corpo suas ações são únicas e rodeadas pelas intencionalidades inseridas
unitário. Saúde e educação andavam, e ainda hoje hegemonicamente nas relações histórico-culturais. Além disso, o ser humano é conco-
andam, em caminhos separados, e em alguns períodos históricos, em mitantemente sujeito e objeto, corpo e espírito, natureza e cultura,
caminhos opostos. interioridade e exterioridade, em uma movimentação própria do
Necessitamos rever essa postura e esse caminhar quando vidente, na construção natural da rede de significações da história
consideramos que um corpo saudável, mas que pode portar doenças, humana.
deve ser um corpo que existe, que está no mundo, não como uma A idéia geral e necessária para a construção, na vivência do lazer,
soma de potencialidades já estruturadas, mas um constante vir a ser e da ponte entre educação e saúde, pode ser realizada pelo entendimento
vir a se relacionar consigo mesmo, com os outros e com o mundo da substituição do conceito de corpo pelo conceito de corporeidade,
numa constante busca de superações (Carbinatto; Moreira, 2006). entendido este na ação de cultuar e cultivar o corpo. Melhor dizendo nas
A educação, na interligação com a saúde, deve advogar um palavras de Santin (2005, p. 67):
conceito de corpo e saúde debaixo do pensamento complexo,
entendido este não como formulador de respostas acabadas, mas como Assim, pode-se dizer que a corporeidade é culto e cultivo
do corpo. Não pode ser só cultivo porque pode dar a
desencadeador de problemas a serem vencidos. A complexidade deve
impressão do plantio de árvores, flores ou cereais, uma ação
substituir a estreiteza da visão especializada, que ainda é majoritária no
muito manual, mecânica, que acontece de forma externa.
trato da saúde. Daí a razão de a educação trabalhar e ensinar os seres
Não pode ser só culto, porque pode significar que a
humanos no redimensionamento dos princípios que nortearam e ainda corporeidade seja algo pronto, acabado e completo que
norteiam os conceitos de saúde. precisa ser venerado e contemplado. A corporeidade precisa
Qualidade de vida, na prática do lazer, efetivando a unificação ter a dignidade da ação sagrada e festiva e, ao mesmo tempo,
dos conceitos de corpo e saúde, na vivência da corporeidade, exige o a cotidianidade do esforço e do trabalho criativo.
domínio de idéias gerais e concretas, as quais garantem a vida,
princípios estes abandonados pelo pensamento clássico, corno nos Vivenciar o lazer, na busca de qualidade de vida, através da
revela Morin (2001, p. 566) corporeidade existencial, pode significar incorporar valores já um
tanto perdidos por todos nós, valores esses lembrados por Moreira
É evidente que o modo de pensamento clássico tornava (2003) quando associa o tema ao poema Instantes de Borges ou
impossível, com suas compartimentações, a contextualização
outro. Diz o autor que corporeidade é voltar a viver novamente a vida
dos conhecimentos. Ele transformava especialistas em idiotas
na perspectiva de um ser unitário e não dual, num mundo de valores
culturais ignaros em relação a tudo o que dizia respeito aos
existenciais e não apenas racionais, ou quando muito, simbólicos.
problemas globais e gerais, que aliás são muito concretos,
como a guerra na Iugoslávia ou as eleições israelenses. E o que
Corporeidade é buscar transcendência, em todas as formas e
possibilidades, quer individual, quer coletivamente. Ser mais, é
182 Wagner Wey Moreira e Regina Simões Lazer e Qualidade de Vida 183

sempre viver a corporeidade, é sempre ir ao encontro do outro, do humano. As discussões sobre lazer e qualidade de vida, dentre outras,
mundo e de si mesmo. devem ter a primazia do cultural, sobrepujando esta à prioridade da
Corporeidade é andar mais descalço para o retorno ao respeito biológica. Daí a conseqüência imediata de tornar a relação
à natureza; nadar mais rios, procurando batalhar por águas límpidas e corpo/lazer mediada pela responsabilidade uma das grandes
cristalinas; apreciar mais entardeceres, onde o horizonte não seja um questões das ciências humanas. São elas que lidam com as
buraco de ozônio ou esteja camuflado por nuvens de poluição; viajar possibilidades das trocas de posições de sujeitos e objetos, de quem
mais leve, sem levar, sempre, um guarda-chuvas, uma bolsa de água pratica e de quem sofre uma ação produzida para essa prática. Parece,
quente, uma galocha e um pára-quedas; viver o dia-a-dia com menos pelo hedonismo mencionado no início do texto, ser mais cômodo nos
medos imaginários. colocarmos no papel de quem é simples objeto, assim não nos é
Corporeidade é incorporar signos, símbolos, prazeres, cobrada a responsabilidade.
necessidades, através de atos ousados ou através de recuos necessários O lazer, quando usufruído pelo humano na busca de qualidade
sem achar que um nega o outro. Corporeidade sou eu. Corporeidade é de vida, deve ser um produto construído pela educação e pela cultura,
você. Corporeidade somos nós, seres humanos carentes, por isso e não advindo do entendimento de que os seres humanos são apenas
mesmo dotados de movimento para sobrepujar nossas carências. determinados geneticamente e ser utilizado apenas como uma
Corporeidade somos nós na íntima relação com o mundo, pois, um medicação para os males da sociedade atual. Sua função não pode
sem o outro é inconcebível. ser, prioritariamente, a compensatória.
Lazer, vivenciado na busca de uma vida com qualidade, A nossa opção política, quanto a este embate, deve ser a que
deve exigir a assunção do conceito de corporeidade, substituindo a configura a saúde humana nos sentidos complexo e plural, por isso viver
concepção de corpo, lembrando que corporeidade não é um simples com qualidade, com a seguinte inquietação: Qual o tipo de humanidade
conceito, mas sim, um estilo de vida na busca da superação. queremos, inclusive na vivência do lazer como um existir de uma vida
Uma segunda "aposta" é analisarmos os desdobramentos com qualidade? Qual mundo queremos construir, no qual a felicidade
políticos das ciências modernas, uma vez que o lazer é hoje, também, seja mais que um determinado grau mínimo de carência?
um dos elementos das reflexões e das produções científicas. Esse perigo é também apontado por Rouanet (2003) quando
Isso nos impõe, desde já, uma opção que é saber de que lado nos lembra que ao longo da história tivemos duas linguagens
devem ficar os estudos do lazer no meio acadêmico: o conhecimento diferentes e opostas para explicar a relação homem e meio. A primeira
produzido por essa área de saber deve estar atrelado às ciências nos dá conta de que o homem é determinado pelo meio e a mudança
humanas, pois o sujeito que vivência o lazer não pode estar dissociado das relações sociais pode modificar suas condições de existência. A
do conhecimento (objeto) do lazer. Justificamos isso nas palavras de segunda acredita que o organismo determina o essencial da vida do
Ribeiro (2003, p. 18): homem, e assim, a felicidade pode ser buscada no bom funcionamento
Assim, no cerne da epistemologia das ciências humanas
do corpo e não na transformação social. Diz mais o autor que após dois
teríamos um princípio de comunhão. Para sermos bem séculos em que a primeira linguagem dominou, parece que a segunda
explícitos, a recusa da separação entre o sujeito e objeto é o ganha um grande impulso, uma vez que o homem novo continua sendo
que constitui as ciências humanas. um ideal, mas agora ele deve ser fabricado no laboratório, em vez de ser um
produto social (Rouanet, 2003, p. 40).
As ciências naturais, caracterizadas pela exterioridade entre o Como já nos posicionamos anteriormente, acreditamos que é na
sujeito e o objeto e pela fabricação de efeitos sobre as coisas, não
prevalência da cultura que devemos discutir, produzir conhecimento,
podem dar o padrão do conhecimento de um lazer ao dispor do
184 Wagner Wey Moreira e Regina Simões Lazer e Qualidade de Vida 185

aplicar conhecimento relacionado com o lazer na busca da qualidade


de vida, porque acreditamos que a incorporação do lazer pode
Corporeidade usufruindo o esporte:
contribuir a favor da autonomia humana. Acreditamos nessa uma possibilidade de lazer
prevalência por identificar que por mais que a ciência demonstre o Tempos atrás escrevemos um artigo (Moreira, 2001), no qual
gene do câncer, ela não conseguiu ainda demonstrar o gene do afirmamos que a maioria das propostas atuais, visando à busca da
capitalismo que toma possível a indústria do cigarro e dos transgênicos qualidade de vida, partia do princípio de que, alterando-se as estratégias
que transformam em realidade a propensão genética do câncer. daquilo que é feito, poder-se-ia reverter o quadro de desqualificação da
Para superar essa barreira que parece intransponível, lembramos vida atual. Mostramos que isso pode ser um equívoco, pois o que
a possibilidade de se associar essas duas autonomias, a do indivíduo e a devemos fazer é trabalhar no sentido da mudança de valores, através do
da espécie, prevalecendo sempre o gesto político, como nos apresenta ato educativo.
Rouanet (2003, p. 62): Claro está que se a nossa pretensão é abordar o lazer, na busca
No entanto, as duas autonomias podem coincidir. Nada da qualidade de vida através da vivência do esporte, devemos nos
impede que uma humanidade que se tornou científica e preocupar em incentivar a mudança de valores atrelados ao fenômeno
tecnologicamente autônoma se organize socialmente de modo esportivo. Também no esporte, o pensamento auto-afirmativo, que é
a assegurar a autonomia para todos os indivíduos: homens livres racional, analítico, reducionista e linear, leva à vivência de valores
numa humanidade prometéica. Seria a reconciliação das duas auto-afirmativos como a expansão, a competição, a quantidade e a
linhagens, sobre o pano de fundo de um saber integrado, capaz
dominação. Estar analisando e praticando esportes numa perspectiva
de aceitar a herança biológica do homem, mas que a visse como
diferente pode desembocar, por exemplo, no pensamento integrativo,
um dado e não como um destino.
que é intuitivo, sintético, holístico e não linear, o que propiciará valores
E mais, ainda do mesmo autor e obra: como os da conservação, da cooperação, da qualidade e da parceria
Depende de nós, agindo politicamente, ou que não haja
(Capra, 1999).
nenhum homem-máquina, ou que ele seja tão amável Quanta diferença assistir a um espetáculo esportivo, ou
quanto o homem de lata do Mágico de Oz, que acaba mesmo participar de atividades esportivas nas quais esteja presente a
ganhando um coração no final da jornada. É o homem como sensibilidade para olhar ou realizar os lances dotados de plasticidade
autor do seu destino, suficientemente corajoso para rejeitar do movimento. Quanta diferença em refletir sobre o fenômeno
apelo de um pai transcendente, suficientemente humanista esportivo ou mesmo praticá-lo tendo como base os atributos da
para não transformar a pedagogia em arte de amestrar, e cooperação entre pessoas e atletas, a efetivação de parcerias entre
suficientemente democrático para não substituir a política indivíduos e conjuntos, a melhoria da qualidade de vida coletiva.
pela biologia. Para chegar aos valores mencionados, necessitamos das
Falar em lazer e qualidade de vida, como atividades e direitos palavras de Santin (2002, p. 227)
a serem incorporados pelos humanos, pressupõe uma postura na Não hesito, nem um segundo, em afirmar que corporei-
busca da liberdade, da autonomia, de autores de destinos, através da dade, qualidade de vida e esporte constituem, hoje em dia,
produção de propostas em lazer que não sirvam para amestrar, mas um núcleo de temos cada vez mais atraente, seja para o
sejam produzidas no enfoque de políticas públicas. mundo dos intelectuais seja para a população em geral.
Basta observar a freqüência com que eles aparecem em
congressos e seminários providos pelo mundo acadêmico
186 Wagner Wey Moreira e Regina Simões Lazer e Qualidade de Vida 187

ou em programas televisivos e em outros meios de comuni- O lazer, a busca da qualidade de vida, quando atrelados ao esporte
cação. As editoras oferecem também, quase diariamente, propicia a busca da vivência de momentos felizes. Novamente
novas publicações com os mais diferentes enfoques, e, recorrendo a Bento (1999, p. 70):
diga-se de passagem, às vezes com objetivo apenas O desporto quer ser parte da vida boa, da vida correta;
comercial. quer e pode contribuir para a felicidade do homem, para a
Devemos mudar o sentido comum de esporte, esporte esse realização vivências da felicidade são encenadas de uma

redescoberto como um importante fenômeno social especialmente a forma exemplar e harmoniosa e racional das funções da
natureza humana, quer das biológico-naturais, quer das
partir do século XX. Podemos levantar algumas das mesmas
socioculturais. No desporto as vivências da felicidade são
indagações iniciais parafraseando Lebre e Bento (2004): Por que
encenadas de uma forma exemplar e única. Nele acontecem
tantos seres humanos dirigem-se cada vez mais para os cenários
movimentos bem conseguidos numa combinação perfeita de
formais e informais das práticas esportivas? Por que essas pessoas ética e estética, de técnica e tática, em que impulsos e
entregam-se, de forma intensa e árdua, à prática dos exercícios? Por sensações, o orgânico e o espiritual, o irracional e o racional,
que ginásios, piscinas, academias de ginásticas, assim como locais o corpo, a intimidade e a pessoa se fundem, oferecendo-nos
mais aprazíveis e menos poluídos de nossas cidades contam, hoje, com não apenas um pressentimento mas até um índice substancial
um número significativo de pessoas corporalmente se exercitando? de concretude da felicidade. Eis uma característica essencial
O esporte deve ser colocado a serviço da arte de viver e deve ser que reveste o desporto com um caráter de utopia. Quando
vivenciado com arte. Só essa frase já justifica o redimensionamento do essa característica se perde, o desporto assemelha-se a uma
caráter esportivo. O esporte, quer em sua prática, quer na ação de arte abandonada pela beleza e pela harmonia. Deixa de ser
assisti-lo, quer no empenho de estudá-lo, necessita ser compreendido um momento essencial de afirmação da vida criativa e de
como fator de humanização do ser humano. procura da felicidade genuína.
Diz Bento (l999, p. 66): Como seres humanos somos dotados de estímulos para vivenciar
O desporto é um palco onde entra em cena a o jogo, a competição, o rendimento, o risco, ao mesmo tempo em que
representação do corpo, das suas possibilidades e limites, do necessitamos de cooperação, de cumplicidade, de proteção, todas
diálogo e relação com a nossa natureza interior e exterior, sensações essas possíveis de serem encontradas nas pessoas que se
com a vida e o mundo. Quer se diga de crianças e jovens, de dedicam ao esporte, em especial, para nosso interesse de agora, nos
adultos e idosos, de carentes e deficientes, de rendimento ou momentos de lazer. Experimentar o esporte nesta perspectiva, como
recreação, o desporto é em todos os casos instrumento de forma de buscar qualidade de vida, parece-nos possível. A gratificação
concretização de uma filosofia do corpo e da vida. Constitui que podemos ter quando da incorporação do esporte em nosso dia-a-dia
uma esperança para a necessidade de viver.
pode nos levar ao entendimento da alegria e do prazer de viver,
Mostrada a importância do esporte, resta esquadrinhar seus sentimentos esses não lineares e que permanentemente são colocados
possíveis valores, na proposta de alteração, para justificá-lo como em oposição com tristezas e desprazeres.
uma possibilidade de lazer na busca da qualidade de vida. Qualidade de vida significa usufruir de uma vida boa. O lazer
A vivência esportiva deve nos propiciar o reencontro com o amor através do esporte para uma vida boa não está ligado apenas a passar o
ao corpo, nosso e dos parceiros de disputa, com o amor à terra, sem a tempo disponível. Está ligado a viver bem, a ser feliz, a conseguir
qual o corpo não existe e nem pode ser concebido, com o amor a vida em realizar o algo mais, a ir à frente, a transcender.
última análise.7 sufruir o esporte é preciso, viver também é preciso.
188 Wagner Wey Moreira e Regina Simões Lazer e Qualidade de Vida 189

Demo (1994, p. 20) comentando sobre qualidade diz que ela de experimentação, cabem objetos, pessoas, mares,
não é somente acontecer, mas especificamente fazer acontecer. montanhas, medos, alegrias, decepções, o sol, a lua e as
Designa a capacidade humana de inovação, no sentido primordial de fazer estrelas. Todas as coisas jogadas podem vir a fazer parte de
história própria comum. Diz mais, qualidade de vida deve ser nosso mais íntimo universo interior. O jogo é uma fábrica de
compreendida, sobretudo, como uma humanização da realidade e símbolos. Quando jogamos com alguma coisa, o que nos fica
da vida, tendo como aporte simultâneo o ter e o ser. dela é a sua alma. É jogando que criamos laços de identidade

Praticar esporte, por exemplo, pode contribuir para mudarmos com os outros, formando comunidades.

a rota da nossa era global, direcionada hoje para o empobrecimento Provavelmente nós sofremos hoje de um mundo de indiferença
da experiência do contato humano. Hoje vivemos mais de aparência, porque, ao longo do tempo, em nome da produtividade e do valor
de imagens, de virtualidades; em contrapartida, vivemos menos de maior do trabalho, abandonamos a ação de jogar e de usufruir do
identidade, de corporeidade, de presentidade, fatores fundamentais tempo livre. Nossa civilização ocidental, centrada na importância do
para o experimentar e o saborear a vida. trabalho, relegou o não trabalho como algo demoníaco. Interessante
Vemos que o esporte, vivenciado no lazer em função do bem notar que nas publicações que oferecem as regras de conduta para se
viver, encerra em seu contexto a competência de bem jogar, viver coletivamente na sociedade ocidental, elas não destinam
condição essencial para a vida humana. Jogamos a vida toda, desde capítulos à arte de viver bem no lazer. Lembramo-nos novamente de
crianças até a mais avançada idade. Jogar é inerente ao humano, é um texto escrito no qual mostrávamos não haver referências
condição sem a qual a vida não se realiza. Jogar é cumprir o destino interessantes de lazer no livro sagrado. Ousamos até em imaginar que
humano. O jogo esportivo é uma oportunidade para o homem se David, por exemplo, nos momentos em que pastoreava ovelhas,
reencontrar com sua humanização. Por ser tão importante, brincava de atirar pedras em frutos de árvores ou algo assim, razão de
sua bela pontaria com a funda, com a qual derrotou Golias. Mas isso
recorremos mais uma vez a Bento (l 999, p. 76-7), quando se refere
não foi preocupação dos autores dos livros bíblicos.
a uma mensagem de Jac Remise e Jean Fondin:
A corporeidade que vivência o lazer em busca de viver bem
Jogar [...] palavra mágica. [...] Que seria do mundo sem necessita rever valores, inclusive valores que estamos acostumados a
jogos e sem brinquedos? A providência permitiu, felizmente, utilizar em nosso dia-a-dia fora dos momentos de lazer. Bento (1999)
que o homem fizesse esta descoberta essencial [...] As suas relata o depoimento de atletas dos mais variados esportes, mostrando
primeiras necessidades, as suas primeiras descobertas valores adquiridos com a prática esportiva, como: colocar paixão e
guiaram o homem para o jogo, no qual encontrou um emoção naquilo que fazem; exercitar a disciplina e a autodisciplina
remédio soberano contra o aborrecimento e contra o medo, para gerir bem o temo do dia-a-dia; interagir com os outros,
uma ocasião para desenvolver os músculos e a perspicácia, companheiros ou adversários; agir segundo as regras do jogo que são
um pretexto para medir forças com outros homens. as da correção e da ética; desenvolver e testar competências do tipo
Explicando um pouco mais, o jogo oportuniza as relações motor, técnico, afetivo e cognitivo, dentre outras; incorporar o gosto e
humanas, a conquista, a interdependência com o outro, o risco, ou o risco de tomar decisões; cultivar a imaginação, a criatividade, a
melhor dizendo com Freire (1998, p. 107) alegria e o otimismo.
Quantas possibilidades de existir indicadas pela prática do
Qualquer que seja a manifestação de jogo, praticá-lo é
esporte. Quanto a nossa corporeidade pode experimentar desses
usufruir da oportunidade de conviver intimamente com as
sabores nos momentos de lazer, visando à vida com qualidade.
coisas do mundo, de modo a torná-las próximas de nós, mais
Quantas possibilidades de aprendizagem de convivência, fator tão
conhecidas, menos amedrontadoras. No jogo, como objetos
ou mais importante que a vivência.
190 Wagner Wey Moreira e Regina Simões Lazer e Qualidade de Vida 191

FREIRE J. B.(1998) Esporte educacional. In: I CONGRESSO LATINO


Considerações finais AMERICANO DE EDUCAÇÃO MOTORA, 1999, Foz do Igu^ Anais ...
Campinas: Unicamp, p. 106-8.
A partir da argumentação levantada anteriormente neste texto,
poderíamos indicar que experimentar o lazer, na busca da qualidade GALLO, S. Corpo ativo e filosofia, In: MOREIRA, W. W. (org.). SéQlli0xxi: a era
do corpo ativo, Campinas: Papirus, 2006.
de vida, via corporeidade autônoma, no aqui e no agora, é concordar
com as palavras de Sérgio Britto em Epitáfio dizendo: LEBRE, E.; BENTO, J. Professor de Educação física: ofícios da Profissão Porto'
Saúde e Sá Artes Gráficas, 2004.
Devia ter amado mais
MOREIRA, W. W. Educação e desordem: um binômio a ser alcançado, Revista
Ter chorado mais Impulso. Piracicaba, ano 2, n. 3, p. 13-9, set. 1988.
Ter visto o sol nascer
MOREIRA, W. W. (org.) Qualidade de vida: como enfrentar esse desafio? In:
Devia ter arriscado mais e até errado mais MOREIRA, W. W. (org.). Qualidade de vida: complexidade e educação,
Campinas: Papirus, 2001.
Ter feito o que eu queria fazer
Queria ter aceitado as pessoas como elas são MOREIRA, W. W. Croniquetas: um retrato em 3 x 4, Piracicaba: Editora da
Unimep, 2003.
Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração
MORIN, E. A religação dos saberes: o desafio do século XXI, Rio de Janeiro:
O acaso vai me proteger, enquanto eu andar distraído Bertrand Brasil, 2001.
Devia ter complicado menos NOVAES, A. A ciência no corpo. In: NOVAES, A. (org.) O homem-máquina: a
Trabalhado menos ciência manipula o corpo, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Ter visto o sol se pôr RIBEIRO, R. J. Novas fronteiras entre natureza e cultura, In: NOVAES, A. (org.)
Devia ter me importado menos com problemas pequenos O homem-máquina: a ciência manipula o corpo, São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
Ter morrido de amor
ROUANET, S. P. O homem-máquina hoje. In: NOVAES, A. (org.) O
Queria ter aceitado a vida como ela é homem-máquina: a ciência manipula o corpo, São Paulo: Companhia das Letras,
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier. 2003.
SANTIN, S. Qualidade de vida e esporte nos caminhos da filosofia da
corporeidade. In: MOREIRA, W. W.; SIMÕES, R. (orgs). Esporte como fator de
qualidade de vida, Piracicaba: Unimep, 2002.
Referências SANTIN, S. Perspectivas na visão da corporeidade. In: MOREIRA, W. W. (org.)
BENTO, J. Desporto e humanismo. Ed. UERJ, 1999. Educação física e esportes: perspectivas para o século XXI, Campinas: Papirus,
CAPRA, F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos, 2005.
São Paulo: Cultrix, 1999.
CARBINATTO, M. V.; MOREIRA, W. W. Corpo e saúde: a religação de saberes.
Revista brasileira de ciências do esporte. Campinas, v. 27, n. 3, p. 185-200, maio,
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DEMO, P. Educação e qualidade, 6. ed. Campinas: Papirus, 1994.
FREIRE, J. B. A educação dos sentidos e a qualidade de vida: a escola de dona
Clotilde. In: MOREIRA, W. W. (org.). Qualidade de vida: complexidade e
educação, Campinas: Papirus, 2001.
Sobre os Autores

Christianne Luce Gomes


Especialista em Lazer e Doutora em Educação pela UFMG, onde atua
como coordenadora da especialização e do mestrado em Lazer, além de ser
docente dos cursos de graduação em Educação Física e em Turismo.
Publicou vários artigos e livros sobre o lazer. É líder do Grupo de Pesquisa
Lazer e Sociedade e coordenadora pedagógica do CELAR/UFMG.

Flávia Faissal de Souza


Licenciada plena em Educação Física pela UERJ, especialista em
Educação Física pela UFU, mestre e doutoranda pela Faculdade de
Educação da Unicamp/SP. Professora da disciplina Teorias do Lazer do
Curso de Educação Física da UNIPLI/RJ e da Pós-graduação Lato Sensu
Educação em Ação da UCAM/RJ.

Hélder Ferreira Isayama


Doutor em Educação Física (Estudos do Lazer) pela UNICAMP. Docente da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador
administrativo do Centro de Estudos de Lazer e Recreação (CELAR/UFMG).
Editor da Revista LICERE, é, também, líder do Grupo de Pesquisa em Lazer -
GPL - UNIMEP - CNPq.

Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto


Licenciada em Educação Física pela UFMG, Mestre em Educação Física -
área de concentração: Recreação/Lazer, pela UNICAMP, Doutora em
Educação, pela UFMG. Docente no curso de Educação Física da PUC
Minas - Belo Horizonte.
Nelson Carvalho Marcellino Valquíria Padilha
Sociólogo, Doutor em Educação, Livre-docente em Educação Física -
Especialista em Lazer pela UNICAMP, Mestre em Sociologia, Doutora
Estudos do Lazer. Docente do mestrado em Educação Física na Faculdade
em Ciências Sociais pela UNICAMP. Professora do Departamento de
de Ciências da Saúde da Universidade Metodista de Piracicaba -
Administração da Faculdade de Economia, Administração e
UNIMEP, Coordenador do Núcleo do Centro de Desenvolvimento do
Contabilidade da USP, em Ribeirão Preto - SP. Autora e organizadora de
Esporte Recreativo e do Lazer- REDE CEDES do Ministério do Esporte,
diversos livros, dentre eles: Dialética do Lazer, São Paulo: Cortez, 2006.
Lider do GPL, Grupo de Pesquisas do Lazer, e Pesquisador do CNPq.
Yara Maria Carvalho
Oldrey Patrick Bittencourt Gabriel
Docente da Universidade de São Paulo e Líder do Grupo de Pesquisa
Licenciado em Educação Física pela UEM - Universidade Estadual de
Educação Física e Saúde Coletiva, cadastrado no CNPq.
Maringá, especialista em Lazer e Qualidade de Vida pela mesma instituição e
Mestre em Educação Física pela Unimep-Universidade Metodista de
Wagner Wey Moreira
Piracicaba, na área de concentração Corporeidade, Pedagogia do Movimento
e Lazer. Atualmente, é professor do Cesumar - Centro Universitário de Livre docente, participou da implantação dos cursos de graduação,
Maringá e desenvolve projetos ligados às temáticas lazer e religião. mestrado e doutorado em Educação Física na Unicamp e na Unimep.
Publicou e organizou vários livros, entre os quais: Qualidade de vida:
Patrícia Zingoni complexidade e educação, Século XXI: a Era do Corpo A tivo, e Educação
física & esportes: Perspectivas para o século XXI(todos pela
Mestre em Educação pela Universidade São Marcos/SP. Atua na
Papirus). Docente da Universidade Federal do Pará.
Prefeitura de Belo Horizonte e na PUC/MINAS. Membro do Centro de
Estudos do Lazer - CELAR/UFMG.

Regina Simões
Doutora em Educação Física, professora da Universidade Federal do Pará.
Organizadora de vários livros, entre os quais: O fenômeno esportivo no
início de novo milênio', Esporte como fator de qualidade de vida, e
Corporeidade e terceira idade.

Tânia Mara Vieira Sampaio


Graduada em Pedagogia e doutora em Ciências da Religião pela
UMESP. Docente no Mestrado de Educação da UNIMEP na Linha de
Pesquisa Corporeidade e Lazer. Pesquisadora do GPL — Grupo de
Pesquisa em Lazer.

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