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PUC-SP
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2013
BANCA EXAMINADORA
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A Carol,
minha esposa
AGRADECIMENTOS
Ao meu primeiro orientador Prof. Oliveiros da Silva Ferreira, que não pôde
continuar orientando-me, mas foi quem incentivou a realização desse trabalho, por suas
ideias e provocações. Ao professor Luiz Eduardo Wanderley, que me orientou na parte
final do trabalho, por sua paciência e dedicação.
Aos meus pais, Sandra e Roberto, a minhas irmãs, Camila e Karina, a Odete,
Joaquim, Fátima, seu Wilson, e a todos os demais familiares pelo amor e dedicação.
RESUMO
O objetivo do trabalho é investigar as ligações existentes entre os princípios
permanentes da Doutrina Social da Igreja e como eles podem se manifestar
concretamente nos dias de hoje, pelo exemplo de uma obra brasileira: Associação dos
Trabalhadores Sem Terra de São Paulo. Pouco se estuda, em nível acadêmico, o
discurso social católico, mas é inegável a profunda influência que a Igreja Católica tem
sobre a cultura ocidental e suas instituições. Partimos da hipótese de que os princípios
do ensino social católico, quando presentes em uma ação social, oferecem respostas
importantes em nível pessoal e comunitário para o desenvolvimento das pessoas
atendidas. É feita uma ampla pesquisa bibliográfica em que se busca descrever e
entender as bases filosóficas e sociais desses princípios. É feito um estudo de caso na
Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo, movimento de habitação
popular que atua na região noroeste da cidade de São Paulo e atende 20 mil famílias que
não tinham casa própria e viviam em condições subumanas. Essa pesquisa tem uma
abordagem qualitativa, com análises do que pudemos observar de sua dinâmica e das
visitas às áreas da associação, além da análise das respostas dos fundadores e associados
do movimento a entrevistas semiestruturadas sobre suas histórias de vida e do
movimento. Foram aplicados também questionários com outros associados para
corroborar ou não elementos que apareciam nas entrevistas. Percebemos que os
Princípios de Dignidade Humana, de Solidariedade e de Subsidiariedade estão presentes
na origem de atuação desse movimento e na atenção dos fundadores com seus
associados, levando em conta todos os aspectos que constituem a pessoa, e
consequentemente, sua família, desde a liberdade de construir a casa do modo desejado,
até o fortalecimento de aspectos comunitários e o estabelecimento de parcerias com o
poder público e com outros grupos da sociedade. As ações tomadas pela associação são
respostas dadas tendo como critério os desejos fundamentais que constituem a pessoa
humana e os princípios fundamentais da Doutrina Social da Igreja.
ABSTRACT
The purpose of this thesis is to investigate the underlying principles of the Church’s Social
Doctrine and how they manifest themselves in concrete form in this day and age, through the
example of a Brazilian creation: the Landless Workers’ Association of São Paulo. Very little of
the catholic social discourse has been studied at the academic level, but the deep influence of
the Catholic Church on western culture and its institutions is undeniable. The basis of this
research is the hypothesis that the principles of catholic social teaching, when part of a social
initiative, offer important input at a personal and community level, with regards to the
development of the individuals they impact. This thesis also includes wide-ranging
bibliographical research in order to attempt to describe and understand the philosophical and
social bases of these principles. A case study is presented involving the Landless Workers’
Association of São Paulo, a popular housing movement that operates in the northwestern region
of the city of São Paulo, which has aided 20,000 families who did not own their own homes and
who previously lived in precarious conditions. This research takes a qualitative approach, with
on-the-ground analyses of the dynamics of this association undertaken during visits to the areas
where it operates, as well as analysis of the responses to semi-structured interviews with the
founders and members of the movement about their own life stories and those of the movement
itself. Questionnaires were also applied to other members in order to corroborate the elements
that emerged from the interviews. It can be observed that the principle of the dignity of the
human person, solidarity and subsidiarity are present in the bases of this movement, reflected in
the concern the founders have for their members, taking into account all the aspects that
constitute individual people and, consequently, their families, from the freedom to build their
own homes in the way they desire, to the strengthening of communitarian aspects and the
establishment of partnerships with local authorities and with other groups in society. The
initiatives taken by the association are solutions whose criteria are the fundamental desires that
constitute the human person and the fundamental principles of the Church’s Social Doctrine.
Keywords: Social Doctrine of the Church; human dignity, solidarity; subsidiarity; social
movement
LISTA DE ABREVIATURAS
Introdução ............................................................................................................................................. 01
Capítulo 1: A Doutrina Social da Igreja: uma apresentação ........................................................... 10
1. O que é Doutrina Social da Igreja................................................................................................ 10
2. DSI: ensinamento constante, caráter dinâmico ............................................................................ 14
3. A natureza da Doutrina Social da Igreja ...................................................................................... 17
4. Periodização da Doutrina Social da Igreja.................................................................................. 21
5. O desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja ....................................................................... 24
5.1. Rerum novarum (1891) ................................................................................................ 25
5.2. Quadragesimo anno (1931) .......................................................................................... 27
5.3. A doutrina social de Pio XII e La Solennità (1941) ..................................................... 29
5.4. Mater et magistra (1961) .............................................................................................. 31
5.5. Pacem in terris (1963) .................................................................................................. 33
5.6. Gaudium et spes (1965) ................................................................................................ 34
5.7. Populorum progressio (1967) ....................................................................................... 35
5.8. Octogesima adveniens (1971) ....................................................................................... 37
5.9. Laborem exercens (1981) ............................................................................................. 39
5.10. Sollicitudo rei socialis (1987) ..................................................................................... 40
5.11. Centesimus annus (1991) ............................................................................................ 42
5.12. Caritas in veritate (2009) ........................................................................................... 43
6. Conferências episcopais............................................................................................................... 45
6.1. Medellín (1968) ........................................................................................................... 45
6.2. Puebla (1979) ................................................................................................................ 47
6.3. Aparecida (2007) .......................................................................................................... 50
7. Princípios permanentes da Doutrina Social da Igreja .................................................................. 51
Capítulo 2: O Princípio da Dignidade Humana: a concepção de pessoa e algumas reflexões
contemporâneas .................................................................................................................................... 53
1. A concepção de pessoa ................................................................................................................ 58
1.1. As duas dimensões da pessoa: corpo e espírito ............................................................ 58
1.2. As características estruturais da pessoa ........................................................................ 63
1. 2.1. Pessoa e sociabilidade ................................................................................... 67
1.2.2. Razão, Liberdade e a Lei Natural .................................................................. 69
2. A dignidade humana ................................................................................................................... .77
2.1. A dignidade humana na Doutrina Social da Igreja ....................................................... 83
Capítulo 3: O Princípio de Solidariedade: sociabilidade humana, virtude moral e princípio
orientador da sociedade ....................................................................................................................... 97
1. Da intrínseca sociabilidade... ....................................................................................................... 99
2. ... à solidariedade como virtude moral ....................................................................................... 106
3. A solidariedade como princípio ................................................................................................. 114
4. O princípio de solidariedade na Doutrina Social da Igreja ........................................................ 118
5. A relação do Princípio de Solidariedade com o bem comum .................................................... 126
Capítulo 4: A participação popular e o Princípio de Subsidiariedade .......................................... 130
1. Participação popular .................................................................................................................. 130
1.1. Participação por meio de Movimentos Sociais ........................................................... 137
2. Aspectos gerais do Princípio de Subsidiariedade ...................................................................... 144
3. A ideia antiga de subsidiariedade .............................................................................................. 148
3.1. A subsidiariedade na Doutrina Social da Igreja.......................................................... 150
4. Fundamentação do Princípio de Subsidiariedade ...................................................................... 154
4.1. Valores: Liberdade e Justiça ....................................................................................... 154
4.2. Princípios Fundantes ................................................................................................... 155
5. O Estado subsidiário .................................................................................................................. 159
Capítulo 5: A história da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo ..................... 165
1. A influência da Igreja Católica .................................................................................................. 167
2. A história da ATST .................................................................................................................... 174
2.1. Os fundadores: Cleuza Ramos e Marcos Zerbini ....................................................... 175
2.2. O início (1986-1988): da ocupação à compra ............................................................. 177
2.3. Dificuldades nos anos 1989-1990: dos mutirões às construções ................................ 178
2.4. Os anos noventa: da regulamentação depois da ocupação à autorização antes da
ocupação ............................................................................................................................ 180
2.5 Os últimos anos: o início do Movimento Sem Faculdade ........................................... 181
3. A organização atual ................................................................................................................... 184
3.1. A organização interna ................................................................................................. 184
3.2. As atividades: o movimento de habitação .................................................................. 185
3.3 As atividades: o movimento Sem Faculdade ............................................................... 192
Capítulo 6: A experiência da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo .............. 197
1. Propósito e metodologia de pesquisa ......................................................................................... 198
1. 2. Análise descritiva dos questionários .......................................................................... 200
2. Uma análise da experiência dos associados............................................................................... 202
2.1. As mudanças nas condições de vida dos associados .................................................. 202
2.2. As mudanças na situação pessoal dos associados ....................................................... 218
2.3. Os fatores de base da mudança ................................................................................... 222
3. Aspectos metodológicos relevantes da ATST ........................................................................... 238
Considerações Finais .......................................................................................................................... 241
1. Os princípios da DSI e a ATST ................................................................................................. 241
2. Últimas considerações ............................................................................................................... 255
Referências Bibliográficas .................................................................................................................. 260
Anexo A................................................................................................................................................ 271
Anexo B ................................................................................................................................................ 275
INTRODUÇÃO
DSI tem um lugar central, nossa opção por esta Associação, bem como os critérios
escolhidos para as leituras, entrevistas e análise - como se verá na sequência da pesquisa
que contribuiu para a tese -, estão ancoradas no âmbito das Ciências Sociais, e na
Sociologia em particular. Os pontos assinalados em cada princípio mostram, com um
enfoque próprio, mesmo que fundado basicamente na esfera da DSI e não raro na
sociologia da religião, o enfoque das Ciências Sociais como abordagem teórico-prática.
Os princípios analisados, sua seleção e aproveitamento prático na realização da
pesquisa, direta e indiretamente mantêm vínculos com as Ciências Sociais - o que
procuramos demonstrar no texto em geral e nas considerações finais.
Pesquisar esses três princípios buscando um maior entendimento de suas bases
filosóficas e sociais, suas inter-relações, e entendendo suas manifestações nos dias
atuais, pelo exemplo de uma obra social presente no Brasil, torna-se uma oportunidade
de conhecer e explicitar como tem sido vivenciado e apreendido esses três princípios de
propostos pela Doutrina Social da Igreja.
Para a discussão dos princípios, fizemos em primeiro lugar uma pesquisa
bibliográfica: leituras de bibliografia sobre os princípios de Dignidade Humana, de
Solidariedade e de Subsidiariedade, além do levantamento de referências que foram
surgindo ao longo da pesquisa e que se constituíram relevantes para a demarcação
teórica desse projeto.
Para o estudo de caso, realizamos uma pesquisa documental, por meio de
levantamento de documentos particulares e oficiais relativos à história, descrição e
regulamento da ATST, e levantamento de estatísticas que permitiram caracterizar
quantitativamente o universo estudado, através de pesquisas.
O trabalho é baseado em nossa observação direta sobre o comportamento dos
associados no movimento e sobre a dinâmica da Associação. Estivemos presentes em
reuniões das comunidades nos centros comunitários. Fizemos uma pesquisa de campo:
entrevistas abertas e aprofundadas com os responsáveis e principais colaboradores da
ATST para esclarecer alguns aspectos históricos e técnico-organizacionais, a postura
cultural-educativa e as principais mudanças ocorridas na condução da ATST.
Aplicamos 153 questionários em associados para verificar a importância de
certas questões (satisfação em relação aos bairros, qualidade das relações sociais,
mudanças nas atividades empregatícias etc.), e para corroborar ou não as entrevistas
individuais realizadas. O questionário abordava a qualidade de vida percebida pelos
moradores dos bairros - moradia, saúde, serviços, segurança, relações sociais - e uma
8
comparação com os bairros onde eles moravam anteriormente; o grau de confiança nos
vizinhos e, de modo geral, nas instituições; a relação com a ATST - razões da escolha
inicial para aderir à Associação, auxílios recebidos e decisão hipotética de se transferir
para outros bairros. Foram coletadas informações sócio-demográficas relativas ao
entrevistado por questionário e sobre os respectivos pais (educação, situação
empregatícia, saúde, composição do núcleo familiar, rendimento).
Também realizamos entrevistas individuais semiestruturadas com os associados,
abordando a mudança da própria situação habitacional, a mudança da situação
empregatícia e a mudança em relação à instrução dos filhos. Optou-se por entrevistar
diretamente algumas pessoas para saber da marca que a experiência da Associação
deixou em suas vidas. Para roteiro das perguntas, utilizamos os próprios questionários
aplicados.
Visitamos quatro comunidades da ATST, as mesmas em que foram realizadas as
entrevistas e aplicados os questionários. Em dois bairros - Jardim Canaã e Sol Nascente
-, como veremos, a aprovação da propriedade por parte das autoridades foi conseguida
por meio de uma regularização posterior à ocupação - depois que as casas já estavam
construídas -, e os moradores tiveram que participar de manifestações para obtenção da
infraestrutura básica e dos serviços públicos. Nos outros dois bairros - Turística 1 e 2 -,
as obras de construção das casas foram iniciadas depois da obtenção das autorizações
necessárias das áreas e o Turística 1 não dispõe ainda dos serviços e da infraestrutura
básica. Os dados coletados foram analisados por uma análise descritiva.
Nossa tese estrutura-se da seguinte maneira: o Capítulo 1 – A Doutrina Social
da Igreja: uma apresentação – trata de uma apresentação do que é o discurso social
católico, suas principais características e seu desenvolvimento, além dos principais
temas levantados por cada encíclica e pelos documentos latino-americanos da CELAM,
em especial Medellín, Puebla, e Aparecida – esta, por sua contemporaneidade.
O Capítulo 2 - O Princípio da Dignidade Humana: a concepção de pessoa e
algumas reflexões contemporâneas – trata da concepção católica de pessoa. Depois,
trata da dignidade humana em si, dos direitos e deveres humanos universais, invioláveis
e inalienáveis, e como eles são discutidos no ensino social cristão.
O Capítulo 3 - O Princípio de Solidariedade: sociabilidade humana, virtude
moral e princípio orientador da sociedade – fala da solidariedade que nasce de uma
característica intrínseca ao ser humano, mas que necessita passar a valor moral e mesmo
a princípio regulador da sociedade, para que não se reduza a um sentimento vago de
9
sentido e das suas urgentes exigências” (JM, nº 35). Ou seja, retornar ao núcleo da
mensagem cristã é resgatar sua dimensão social. Sem esta dimensão o próprio
Evangelho perde seu fermento mais fecundo, mais vital e mais eficaz.
Temas da Doutrina Social da Igreja ilustra bem isso a partir também de dois
textos do Evangelho. O primeiro é do evangelista Lucas: Jesus encontra-se recolhido
num lugar à parte e, sob a insistência dos discípulos, ensina o Pai-nosso (Lc 11,1-4). No
segundo texto, o evangelista Mateus (9, 35-38) faz um breve resumo das atividades de
Jesus, em que “percorre as cidades e aldeias”, compadecendo-se das multidões
“cansadas e abatidas”. No primeiro caso, Jesus está na montanha em oração; no
segundo, Jesus está na rua. De acordo com o livro da CNBB, na prática de Jesus
montanha e rua não se excluem, mas se complementam, se interpelam e se enriquecem
mutuamente. Quanto mais Jesus aprofunda sua intimidade com o Pai, na montanha,
mais se desdobra no compromisso com os pobres, pelas ruas. A montanha exige a rua e
a rua exige a montanha. Oração e ação social constituem duas dimensões indissociáveis
de uma mesma prática. Se, por um lado, a mensagem do Evangelho tem como
centralidade inquestionável a preocupação com o Reino de Deus, por outro, no coração
do Reino encontram-se os pobres como prediletos de Deus.
A ideia da ação social como parte intrínseca das escrituras é encontrada em outro
texto: na constituição pastoral Gaudium et spes (GS), de 1965, que reflete e sintetiza o
espírito de todo o Concílio Vaticano II, em especial na sua frase de abertura: “As
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos
pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e
as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade verdadeiramente humana que
não encontre eco no seu coração” (GS, nº 1).
Desse modo, o magistério social da Igreja Católica, solicitada pela premência
das grandes questões sociais, deseja oferecer uma resposta que se aproxime da justiça
social. Isso comporta uma função de anúncio e de denúncia.
De anúncio, pois a Igreja Católica acredita possuir em si própria “uma visão
global do homem e da humanidade” (Populorum progressio [PP], 1967, nº 13). Isso se
evidencia no fato de seu ensinamento social ser estruturado não somente em princípios
permanentes de reflexão e em critérios de juízo, mas também em normas e diretrizes de
ação que daí decorrem. A Igreja não persegue fins de estruturação e organização da
sociedade, mas de cobrança, orientação e formação das consciências. A Igreja se sente
solidária com o gênero humano e com a sua história.
13
E de denúncia, porque à doutrina social cabe também apontar tudo o que se opõe
à dignidade da pessoa humana, “especialmente dos direitos dos pobres, dos pequenos e
dos fracos” (COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA [CDSI], 2004, nº
81) – geralmente ignorados ou violados – e ao desenvolvimento integral dos povos.
Por essa razão a Igreja não renuncia a pronunciar-se sobre os problemas e ideias
próprias da época. A DSI procura atualizar a dimensão social do Evangelho para os
distintos contextos da vida cotidiana, levando sempre em conta que “o gênero humano
encontra-se em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas
estendem-se progressivamente ao universo inteiro” (GS, nº 4). Por sua vez, a encíclica
Solicitudo rei socialis (SRS), publicada em 1987 por João Paulo II, a define como uma:
“formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas
realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, a luz da fé
e da tradição eclesial” (SRS, nº 47).
A doutrina social é, então, uma forma da Igreja dar-se ao mundo (CNBB, 2004).
O magistério da Igreja procura interpretar e confrontar a mensagem evangélica diante
das situações mais diversas. É a atualização dos evangelhos para os dias de hoje,
traduzida na sensibilidade e na solicitude da Igreja para com aquelas situações onde a
vida encontra-se mais ameaçada. Assim nasce uma reflexão e uma doutrina de caráter
social - isto é, escrita para iluminar os problemas relacionados à condição social do
gênero humano e conduzir as pessoas à busca de soluções. Por isso Bigo (1969)
considera, também, que todo o discurso religioso tem uma reverberação social e,
portanto, influencia toda a dinâmica social. Quer dizer, é o Evangelho tornado vivo e
atual nos diferentes desafios da realidade social, política, econômica e cultural.
Entrementes, essa doutrina é também a expressão de uma consciência que se
forma e se desenvolve coletivamente no seio da Igreja na presença das realidades
sociais. Nesse sentido, podemos destacar o papel fundamental que as conferências
episcopais – nacionais ou regionais –, especialmente as da América Latina, tiveram na
contribuição de um diálogo fecundo com a DSI, enriquecendo-a, mesmo que muitas
vezes esse diálogo tenha sido tenso e conflituoso.
Também os leigos têm uma parte preponderante, pois são eles, frequentemente,
os mais atingidos pelas situações. E também porque a ação do cristão leigo no mundo
tem por objeto ajudar a ordenar a vida social, pública e privada. Assim, o magistério
retém os dados adquiridos da realidade e fazem deles o objeto de seu ensino. Mas um
ensino que desemboca e convida a todos necessariamente à ação social.
14
aprisiona num esquema fechado à realidade sociopolítica, como a imagem utilizada pelo
Compêndio da Doutrina Social da Igreja (cf. nº 86).
Entretanto, apesar desse caráter dinâmico, as próprias encíclicas se preocupam
em destacar a continuidade da DSI. Cada encíclica encontra-se no meio do caminho
entre uma tradição doutrinal que chega a ela por meio de documentos anteriores e uma
realidade que se manifesta com problemas específicos. Quando se estudam os
documentos, percebe-se que existe um fio condutor que dá unidade ao conjunto. Por
esse motivo, a DSI não depende das diversas culturas, das diferentes ideologias, das
várias opiniões: ela é um “ensinamento constante” que atravessa a história (CDSI, nº
85).
Desse modo, nos documentos da DSI há uma tríplice dimensão: uma vinculação
com os documentos que o precedem, um caráter não definitivo e uma abertura para
reflexão.
A DSI, como se assinalou, portanto, não foi estruturada como um corpus
orgânico desde o princípio, mas, pouco a pouco, com os diversos pronunciamentos do
magistério católico sobre temas sociais, um sistema orgânico foi se formando. Por conta
desse processo de formação, a DSI apresenta algumas oscilações quanto à natureza, o
método e a estrutura epistemológica (CDSI, nº 72).
Camacho (1995) nos apresenta o conceito de círculo hermenêutico para explicar
essa natureza dinâmica e flexível da DSI: o contato vivo com a realidade leva-nos a
descobrir, a cada curva do caminho, um sentido mais profundo da Palavra de Deus. Por
outro lado, esta redescoberta constante de novos enfoques da mensagem evangélica joga
luz nova sobre as realidades concretas e orienta os passos dos caminhantes. Numa
palavra, o evangelho ilumina a vida e a vida ilumina o evangelho. Na expressão de
Camacho, o processo “vai da fé à práxis histórica, e da práxis histórica à fé” (p. 18).
Assim, a doutrina social não propõe uma maquete da sociedade ou uma imagem
fechada da sociedade. Pelo contrário, permite uma pluralidade de decisões técnicas e
também de opções culturais. “Mas, não creiam [os leigos] que seus pastores sejam
sempre tão competentes que, em qualquer problema, mesmo grave, possam dispor de
solução concreta, nem creiam que estejam enviados para solucioná-lo” (GS, nº 43).
Porém propõe um “modelo” social, um conjunto coerente de normas, segundo as quais
devem ordenar-se as relações públicas e privadas.
Chegado a este ponto, gostaríamos de destacar que já houve debates anteriores
em que muito se discutiu se o objeto do qual estamos tratando é uma doutrina ou um
16
pela sabedoria e pela experiência de séculos; por outro lado, permanece aberta aos
valores novos que os desafios históricos vão engendrando. É nessa dialética entre um
corpo de doutrinas sólidas e um constante aprendizado diante dos fatos que o magistério
procura navegar (CNBB, 2004). Trata-se, como se vê, de uma perspectiva ao mesmo
tempo doutrinal e pastoral, preocupada, simultaneamente, com o rigor dos fundamentos
bíblico-teológicos e com as exigências éticas da ação social.
Assim sendo, o uso dos termos doutrina ou ensinamento social da Igreja terá
significados idênticos e poderá ser usado de forma alternada em nosso estudo.
Cristo propõe. Eles tendem unicamente a lembrar de todos os aspectos do bem comum
que decorrem desses critérios (BIGO, 1969).
De acordo com Santa Barbara Jr (2009), o magistério da Igreja Católica somente
considera os aspectos técnicos dos problemas com o intuito de avaliá-los sob o ponto de
vista moral. Portanto, sua missão é de ordem religiosa e moral.
A convivência social, com efeito, não raro determina a qualidade de vida e, por
conseguinte, as condições em cada homem e cada mulher se compreendem a si
próprios e decidem de si mesmos e da própria vocação. Por essa razão, a Igreja
não é indiferente a tudo o que na sociedade se decide, se produz e se vive, numa
palavra, à qualidade moral, autenticamente humana e humanizadora, da vida
social. A sociedade e, com ela, a política, a economia, o trabalho, o direito, a
cultura não constituem um âmbito meramente secular e mundano e portanto
marginal e alheio à mensagem e à economia da salvação (CDSI, nº 62).
A missão própria que Cristo confiou à sua Igreja por certo não é de ordem
política, econômica e social. Pois a finalidade que Cristo lhe prefixou é de ordem
religiosa. Mas, na verdade, desta mesma missão religiosa decorrem benefícios,
luzes e forças que podem auxiliar a organização e o fortalecimento da sociedade
humana segundo a lei de Deus. Isto quer dizer que a Igreja, com sua doutrina
social, não entra em questões técnicas e não instituiu nem propõe sistemas ou
modelos de organização social: isso não faz parte da missão que Cristo lhe
confiou (...) contanto que a dignidade do homem seja devidamente respeitada e
promovida e a ela própria seja deixado o espaço necessário para desempenhar o
seu ministério no mundo. (CDSI, nº 68)
questão de foro íntimo. “De um lado não se deve atuar uma redução errônea do fato
religioso à esfera exclusivamente privada, de outro lado não se pode orientar a
mensagem cristã a uma salvação puramente ultraterrena, incapaz de iluminar a presença
sobre a terra” (CDSI, nº 71). E ainda: “Compete à Igreja anunciar sempre e por toda a
parte os princípios morais, mesmo referentes à ordem social, e pronunciar-se a respeito
de qualquer questão humana, enquanto o exigirem os direitos fundamentais da pessoa
humana ou a salvação das almas” (CDSI, nº 71).
Além do mais, a DSI não é, segundo a Igreja Católica, um modelo alternativo
aos modelos econômicos, políticos ou sociais existentes (capitalismo liberal ou
coletivismo marxista), no sentido de um projeto ou um programa de partido político,
mas se constitui numa categoria de avaliação que permite apreciar se os sistemas
existentes estão ou não estão em conformidade com as exigências da dignidade humana.
Como afirma João Paulo II:
A doutrina social da Igreja não é uma ‘terceira via’ entre capitalismo liberal e
coletivismo marxista, nem sequer uma possível opção entre outras soluções
menos radicalmente contrapostas: ela constitui por si mesma uma categoria. Não
é tampouco uma ideologia, mas a formulação acurada dos resultados de uma
reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem na
sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial. A sua
finalidade principal é interpretar essa realidades, examinando a sua
conformidade ou desconformidade com as linhas do ensinamento do Evangelho
sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e, ao mesmo tempo, transcendente
(SRS, nº41).
Santa Barbara Jr (2009) afirma que o discurso social católico constitui-se num
conhecer iluminado pela fé. O fato de centrar-se sobre as Sagradas Escrituras e a
Tradição não inviabiliza a mediação racional, ou seja, o mistério de Cristo, não arrefece
ou torna prescindível o papel da razão. Além disso, apresenta uma importante dimensão
interdisciplinar. Ela se vale de todas as contribuições de significado da filosofia, como
também de todas as contribuições descritivas das ciências humanas.
Das contribuições recolhidas da filosofia, continua Santa Bárbara Jr, a DSI pode
evocar a natureza humana como fonte e a razão como instrumento para a inteligência da
própria fé. Ao partir da natureza humana como fonte, a filosofia proporciona ao
magistério social católico uma plausibilidade racional e, portanto, uma destinação
universal, que torna o seu ensinamento aberto a toda inteligência e consciência,
qualquer que seja sua crença pessoal, que deseje conhecer a verdade acerca do homem e
a sua dignidade inalienável.
É por causa das ciências humanas e sociais que a Igreja pode compreender o
homem na sociedade de modo mais preciso, falar de modo mais convincente com ele e
de encarnar a palavra de Deus e a fé, da qual a doutrina social parte (CDSI, cf. nº 78).
A doutrina social é, assim, um ensinamento expressamente dirigido aos homens
de boa vontade, como afirma a introdução da encíclica Mater et magistra, e pode ser
escutada e válida para os membros de outras tradições religiosas e por pessoas que não
pertencem a nenhum grupo religioso.
1
Direito natural diz respeito aos direitos e deveres que decorrem da lei natural: fazer o bem e evitar o
mal, de maneira necessária e pelo simples fato de que o ser humano é ser humano.
23
válido mostrar como esses assuntos aparecem e são avaliados pela DSI para evidenciar
sua riqueza de pensamento e mostrar suas ideias constantes e fundamentais que formam
seu fio condutor nas mais diferentes situações. Evidentemente não temos a pretensão,
com essa descrição, de substituir a leitura individual de cada documento por parte do
leitor.
Mais uma vez a Rerum novarum tem uma postura de distanciar-se abertamente
da concepção liberal. A encíclica pressupõe que poucos Estados de seu tempo estariam
em condições de sentir-se respaldados pela doutrina da Igreja. O texto enumera uma
série de tarefas nas quais o Estado não se limita a vigiar o cumprimento de
determinados princípios formais (modelo liberal), mas que deve intervir de maneira
positiva para a prosperidade tanto da sociedade como dos indivíduos (cf. nº 23).
regular uma distribuição adequada (cf. nº 57-58), quando o papa denuncia que os
processos de industrialização provocaram grandes alterações na distribuição. A justiça
social pretende o estabelecimento de uma ordem jurídica e social, diante do projeto do
social do liberalismo, que garanta uma equitativa distribuição de renda produzida. Esta
forma de justiça é diferente da comutativa, já que esta se limita a regular as relações
individuais, sem contemplar os fenômenos globais da vida socioeconômica.
Talvez o ponto mais significativo da doutrina de Pio XI seja a busca por um
equilíbrio entre a dimensão individual e social da propriedade – melhor do que o
encontrado na Rerum novarum. As atenções se dirigem para a evolução do capitalismo e
a acumulação de riqueza e poder que ela produz. Para Pio XI, o duplo caráter da
propriedade consiste na necessidade de ela servir ao mesmo tempo aos indivíduos e ao
bem comum. Assim, a encíclica insiste que se verifique uma distribuição equitativa dos
bens. O que interessa é a tomada de uma posição intermediária, que evite os dois
excessos: o individualismo, que negaria a dimensão social da propriedade, e o
coletivismo, que eliminaria o seu aspecto individual.
No número 49, se diz que corresponde ao Estado determinar “aos possuidores o
que é licito e o que não é no uso de seus bens”. É sua responsabilidade “harmonizar a
propriedade privada com as exigências do bem comum”; quando a cumprem de maneira
adequada, não prejudica os proprietários nem enfraquece o domínio particular, mas o
robustece; também adverte dos perigos de atuação do Estado e para que “o direito
natural a possuir de modo privado e a transmitir os bens por herança permaneça sempre
intacto e inviolável”.
Segundo o papa, o sistema de salariado não é imoral por si mesmo, mas conviria
melhorá-lo. Fica claramente postulado o salário familiar. Além disso, Pio XI pede para
que o trabalhador participe de fato na gestão e nos benefícios da empresa. Porém o papa
fala também da situação da empresa: as exigências salariais não devem ser tão elevadas
a ponto de colocar em perigo sua sobrevivência, mas as eventuais dificuldades não
podem servir sempre de desculpa para manter os salários em níveis excepcionalmente
baixos.
A Quadragesimo anno tem uma preocupação especial em relação ao capitalismo
liberal deixando o socialismo muito mais em segundo plano. Na análise do capitalismo
de seu tempo, Pio XI deseja deixar duas coisas bem claras: que esse sistema, em si
mesmo, não é imoral, embora tenha chegado a sê-lo por causa dos abusos e evoluiu até
anular o modelo de livre concorrência, porque a acumulação cada vez maior de capital e
29
de poder econômico acaba impondo sua lei sobre o mercado. E que a insaciável busca
pelo lucro, “sem reparar em meios”, não foi, desde o começo, uma postura unânime de
todos os grupos sociais: foram os dirigentes da economia os primeiros a praticá-la, mas
terminaram contagiando também as classes operárias (nº 135).
Mas Pio XI afirma que o socialismo tem uma concepção da realidade “oposta à
verdade cristã” (nº 117), pois ignora o fim transcendente do homem e da sociedade, e
“pretende que a sociedade humana teria sido instituída exclusivamente para o bem
terreno” (nº 118); além do mais, e em segundo lugar, subordina a pessoa à sociedade e
às necessidades de produzir. O problema, segundo o papa, é que o socialismo está bem
além de um sistema econômico, mas vai se transformando em uma forma de entender a
vida. É nesse sentido que o socialismo pretende impregnar os espíritos e os costumes
(cf. nº 121-122).
É necessário, então, fazer “os homens voltarem, aberta e sinceramente, à
doutrina evangélica” (nº 136), que se concretiza em duas virtudes: a moderação cristã e
a caridade cristã, ou seja, em estabelecer um justo equilíbrio entre meios e fins,
subordinando os bens materiais e econômicos ao único fim supremo, que é Deus, ao
mesmo tempo em que só a união de ânimos permitirá que todos se sintam membros de
uma mesma família.
O que se procura é uma série de atitudes humanas diferentes, que inspirem a
ordem social e econômica e dê a ela determinados limites. Por outro lado, subjacente
aos diferentes aspectos dessa proposta está o desejo de eliminar uma ordem social
apoiada no enfrentamento entre as classes sociais.
O papa Pio XII não publicou encíclicas sociais, mas manifestou constantemente
a sua preocupação com a ordem internacional, por meio de radiomensagens natalinas e
outros pronunciamentos. Durante seu pontificado, Pio XII atravessou os anos da II
Guerra Mundial e a reconstrução da Europa.
Sua mensagem radiofônica La Solennità (1941), em razão do 50º aniversário da
Rerum novarum, é considerada a mais importante pronunciada por ele sobre temas
sociais.
É a doutrina sobre o uso dos bens materiais que ocupa o lugar central de toda a
mensagem. Pio XII reconhece que a propriedade privada também pertence à ordem
30
Uma vez terminado o conflito, o tom muda e o estilo se torna mais concreto,
procurando respostas para os problemas levantados pela reconstrução. Ao final do seu
magistério, Pio XII teria como centro a Guerra Fria - e, de forma subordinada, o
progresso econômico.
O modelo econômico ideal para o papa é uma economia de livre empresa, não
centralizada, que permitisse uma ágil cooperação entre os diferentes setores
econômicos, em que o Estado desempenha um papel decisivo como garantia do bem
comum; trata-se de um caminho intermediário, às vezes chamado de “democratização
da economia”, que foge da socialização como fim em si e dos abusos derivados da
posição dominante do capital privado. Outro aspecto importante está na atenção dada às
categorias profissionais e empresariais, chamadas a praticar concorrência em
consciência para o bem comum.
Além disso, seus pronunciamentos em matéria social aprofundam a reflexão
sobre uma nova ordem social, governada pela moral e pelo direito conectados e fundada
na justiça e na paz. Para Pio XII a convivência entre os povos tem de assentar-se sobre
uma ordem moral objetiva, que dê margem a um ordenamento jurídico alheio às
veleidades do poder político ou econômico. O papa parece pensar em uma instituição
internacional cuja tarefa seja evitar a guerra mediante a resolução dos conflitos
inevitáveis entre os povos, graças a uma autoridade universal reconhecida por todos. Na
realidade, esse organismo é proposto por Pio XII como a única forma de evitar a guerra,
e concretamente, a guerra de agressão.
social; a quarta e última parte tem um marcado acento pastoral e centraliza-se no papel
que a Igreja pode desempenhar diante desses problemas.
A primeira coisa que chama a atenção na Mater et magistra é quando João
XXIII vai sintetizar os princípios básicos colocados por Leão XIII na Rerum novarum.
João XXIII coloca a questão do trabalho como princípio prioritário, o que não havia
sido atribuído por Leão XIII em sua encíclica. A questão da propriedade – que era o
princípio prioritário, por sua vez - é deslocada para o final do documento. Ainda sobre a
propriedade, outra mudança: se dá destaque à função social da propriedade – situando-a
no mesmo nível que o direito à propriedade privada -, destaque ausente do texto de Leão
XIII. Em contrapartida, omite-se algo que era mais central na Rerum novarum: a
garantia de todos à propriedade. Enquanto a Rerum novarum confiava mais em que
todos fossem proprietários, a leitura que João XXIII faz enfatiza a função social da
propriedade. Essas mudanças de ênfases e inclusões de novos temas ilustram o caráter
dinâmico da Doutrina Social da Igreja.
Mater et magistra chama a Igreja a colaborar com todos os homens para
construir uma autêntica comunhão na verdade, na justiça e no amor. Assim, o
crescimento econômico não se limitará a satisfazer as necessidades dos homens, mas
poderá promover também a sua dignidade. Também fica estabelecido que o verdadeiro
desenvolvimento não pode ser identificado com o mero crescimento econômico.
Aparece com mais clareza que a proposta da Igreja se opõe tanto ao liberalismo
como ao socialismo, quando diz que “tanto a concorrência de tipo liberal, como a luta
de classes no sentido marxista, são contrárias à natureza e à concepção cristã da vida”
(nº 23).
O pensamento dessa encíclica gira em torno da comunidade e da socialização.
Ou seja, passou-se a reconhecer uma verdadeira comunidade de nações, em que há um
bem comum universal que deve ser buscado com a colaboração de todos os povos. A
Mater et magistra destaca que essa comunidade só poderá ser construída a partir do
reconhecimento de uma ordem moral objetiva (cf. nº 205), à qual podem ser submetidas
as ideologias que dividem os povos e os levam a enfrentar-se. Esta ordem moral é
anterior à existência de uma ordem jurídica de alcance universal. Mas é impensável que
esta ordem moral chegue a existir enquanto não se reconhecer que Deus é o fundamento
último de todos os preceitos morais (cf. nº 208). Quando falta essa referência absoluta
de uma ordem moral aceita por todos, já se sabe que o único meio para defender os
próprios direitos e interesses é o recurso à violência.
33
Com a encíclica Pacem in terris, João XXIII põe em relevo o tema da paz, em
uma época marcada pela proliferação nuclear. Assim, defende a paz entre os povos, que
deve ser construída desde as relações de convivência entre as pessoas do âmbito mais
particular até o mais universal. É a primeira vez que um documento da Igreja é dirigido
a “todas as pessoas de boa vontade”, chamadas a tarefa de “recompor as relações da
convivência na verdade, na justiça, no amor, na liberdade”.
Três características distinguem o estilo da encíclica. A primeira delas é a clareza
e a simplicidade da exposição, fugindo dos parágrafos muito longos e procurando
sempre um tom conciso e concreto. Uma segunda característica é o otimismo de João
XXIII, que o leva a apresentar todos os temas de modo positivo e a descobrir o aspecto
favorável de qualquer problema. O papa foge da polêmica e da crítica. A terceira
característica é que o papa concentra-se em algumas questões concretas da atualidade,
como a desigualdade entre os povos, as minorias étnicas, os exilados políticos e a
questão do desarmamento.
Além da paz, a Pacem in terris contem uma profunda discussão da Igreja sobre
os direitos humanos. Ela completa o discurso da Mater et magistra e realça a
importância da colaboração entre todos. A Pacem in terris se detém também sobre os
poderes públicos da comunidade mundial, chamados a “enfrentar e resolver os
problemas de conteúdo econômico, social, político ou cultural (...) da alçada do bem
comum universal” (nº 139).
Por isso defende ser necessário insistir na reciprocidade de direitos e deveres
entre os povos, levando em conta quatro critérios: a) a verdade nas relações
internacionais exige o reconhecimento da igualdade entre os povos; b) a justiça nas
relações internacionais exige o reconhecimento mútuo de direitos e deveres - o direito à
própria existência, ao próprio desenvolvimento e aos meios necessários para levá-lo a
cabo (cf. nº 91-92); c) a solidariedade nas relações internacionais abre caminho para
diferentes modalidades de colaboração, intercâmbios e associação (cf. nº 98-102); e d) a
liberdade nas relações internacionais consiste no reconhecimento efetivo da autonomia
dos povos e da possibilidade de organizarem seu próprio desenvolvimento sem
ingerências nem imposições (cf. nº 120-124).
34
A encíclica ainda afirma que é preciso haver uma autoridade mundial3 que se
ocupe de realizar o bem comum universal. Em síntese, os direitos humanos são o
objetivo último. O Estado, por meio de seu serviço ao bem comum nacional, oferece as
condições básicas para que esses direitos fiquem garantidos. Na medida em que nem os
Estados nacionais são suficientes, impõe-se a necessidade de estruturar essa
comunidade supra-estatal, de uma forma paralela à de cada Estado. Essa suprema
instância política deve ser estabelecida unanimemente entre todas as nações (cf. nº 138).
Exige-se que essa autoridade esteja a serviço do bem comum universal.
Assim, apesar de Pio XII já ter postulado antes a necessidade dessa autoridade
mundial, João XXIII amplia sua competência: Pio XII a havia reduzido ao âmbito da
segurança - prevenção da guerra. João XIII, por sua vez, a estende a todo o conteúdo do
bem comum.
3
A encíclica não oferece uma configuração mais definida dessa autoridade. Conforma-se em mencionar a
ONU como a que mais pode se aproximar do modelo ideal.
35
realidade, mais preocupado com a ação. Paulo VI coloca-se decididamente ao lado dos
povos oprimidos. Renuncia, assim, à postura tradicional de seus predecessores de situar-
se como árbitro neutro nos conflitos da sociedade industrial nos documentos sociais.
Outro ponto interessante, por tratar-se de uma novidade nos documentos
pontifícios desse tipo, as citações de autores contemporâneos, sociólogos, filósofos e
teólogos, como Lebret, Maritain, Clark, Chenu, Lubac, Zundel e Nell-Breuning. Muitos
desses pensadores são citados como construtores desse novo humanismo que a Igreja
acolhe: a menção expressa que se faz deles – abandonando o costume dos documentos
desse tipo, que só citavam a Bíblia, os padres e os papas – expressa bastante bem o
desejo de entrar em um diálogo com a sociedade contemporânea, na certeza de que a
Igreja necessita disso para avançar em sua própria reflexão.
Até esta encíclica, a Rerum novarum havia sido a encíclica que servira como
objeto de todas as comemorações. Com a Encíclica Sollicitudo rei socialis, João Paulo
II comemora o vigésimo aniversário da Populorum progressio e aborda novamente o
tema do desenvolvimento para sublinhar dois dados: o subdesenvolvimento do Terceiro
Mundo e as condições e exigências de um desenvolvimento digno do homem. A
encíclica introduz a diferença entre progresso e desenvolvimento e afirma que “o
verdadeiro desenvolvimento não pode limitar-se à multiplicação dos bens e dos
serviços, isto é, daquilo que se possui, mas deve contribuir para a plenitude do ‘ser’ do
homem” (nº29).
O ponto de partida é a crítica de uma dupla concepção insuficiente do
desenvolvimento: aquela que o entende como “um processo retilíneo, quase automático,
41
e por si só ilimitado” (nº 27), ao qual a encíclica dedica umas poucas linhas apenas; e
outra, que encara o desenvolvimento como mera acumulação de bens e serviços, como
se nisso pudesse consistir a verdadeira felicidade humana (cf. nº 28).
João Paulo II mostra que a visão é parcial e não atende à totalidade do ser
humano. Primeiro, desenvolve a argumentação conforme a contraposição entre “ser” e
“ter”; depois, desenvolve-a recorrendo ao que ele chama de “parâmetro interior” do
homem. Para poder “ser”, para estar em condições de alcançar certa plenitude pessoal, é
preciso dispor de um nível mínimo de meios materiais: a tragédia dos povos
subdesenvolvidos está no fato de não disporem desse mínimo indispensável. Mas a
abundância de “ter” e a ânsia insuperável de acumular acabam por se transformar
também em um obstáculo insuperável para o “ser”: esta é, por outro lado, a tragédia dos
povos superdesenvolvidos: “O mal não consiste no ‘ter’ enquanto tal, mas no fato de se
possuir sem respeitar a qualidade e a ordenada hierarquia dos bens que se possuem” (nº
28).
As iniciativas de caráter econômico buscam estruturas de organização
econômica que impeçam a exploração dos países pobres por parte dos ricos. Referem-se
à reforma do comércio internacional (e à divisão internacional do trabalho subjacente), à
do sistema monetário e financeiro mundial (para evitar situações tão graves como o
problema da dívida externa que, nos anos 80, atormentou muitos países
subdesenvolvidos) e ao intercâmbio de tecnologias (cf. nº 43). Já as iniciativas no
terreno político-jurídico são de uma reorientação das organizações internacionais e um
avanço na direção de um grau superior de ordenamento jurídico-internacional. Tudo
para enfrentar o que a encíclica chama de “estruturas de pecado” (nº 17, 35 e 40),
mecanismos da ordem econômica e política que perpetuam a pobreza de grandes povos,
ocasionando situações de grave injustiça macrossocial.
A proposta da Sollicitudo rei socialis é outro sistema de valores, cujo centro seja
a solidariedade, diante de um atual baseado na competitividade. Interdependência e
solidariedade são duas palavras-chave para a compreensão de toda a encíclica. A
mensagem central de João Paulo II é o chamado à solidariedade, o sentido de
responsabilidade de todos por todos. Mas não a solidariedade apenas como uma atitude
moral e social, e sim uma tarefa.
42
haviam sido tocados rapidamente. A polarização Norte-Sul deve ser superada, diz Bento
XVI, a responsabilidade do subdesenvolvimento não é só de alguns, mas de muitos,
inclusive dos países emergentes e das elites dos países pobres. Algumas vezes, até
mesmo as organizações humanitárias e os organismos internacionais parecem mais
interessados com o próprio bem estar e com a própria burocracia que com o
desenvolvimento dos países pobres.
Bento XVI diz que o amor na verdade é o desafio da Igreja num mundo de
globalização, pois o risco é que a união econômica dos países não corresponda a uma
real integração ética das consciências, condição para um desenvolvimento
verdadeiramente humano. A partilha dos bens e recursos só é possível quando supera o
progresso técnico ou as relações de conveniência e nos abre a relações humanas livres e
conscientes na reciprocidade.
Nessa linha, a encíclica Populorum progressio é retomada em duas ideias-força:
a de que a Igreja tende a promover o desenvolvimento do homem de maneira integral e
que ela também possui o direito e o dever de sua manifestação pública diante dos
Estados e da sociedade internacional. Por isso, o papa retoma que o desenvolvimento
integral supõe a liberdade responsável da pessoa e dos povos. Apenas na liberdade o
desenvolvimento pode ocorrer de forma plena. O desenvolvimento tampouco se resume
ao crescimento econômico. O desenvolvimento engloba também, portanto, as
dimensões culturais, morais e tecnológicas, visando à cooperação internacional e a
solidariedade entre os povos, instituições e grupos.
Ao retomar a encíclica Centesimus annus, Bento XVI destaca a necessidade de
um sistema com três sujeitos: o mercado, o Estado e a sociedade civil. Apesar de ser na
sociedade civil que podemos encontrar uma economia de gratuidade, também nos dois
outros sujeitos isso pode e deve ser estimulado. As iniciativas de responsabilidade
social, investimento social e sustentabilidade são formas de fomentar a gratuidade nas
empresas.
Por fim, o papa defende a necessidade de reforma da Organização das Nações
Unidas, numa perspectiva de arquitetura econômica e financeira mundial, para a real
concretização do conceito de família de nações. O desenvolvimento mundial exige uma
autoridade global que possa ser gerida pela solidariedade e bem comum, comprometida
com o desenvolvimento integral da humanidade.
45
6. Conferências episcopais
O documento tem um capítulo sobre a justiça e outro sobre a paz que merecem
atenção. Em ambos os casos têm-se como ponto de partida uma constatação da
frustração universal das legítimas aspirações que sofre o povo latino-americano. Essa
frustração deriva em uma espécie de “angústia coletiva” (Med Justiça nº 1) e gera fortes
tensões e a tentação da violência (Med Paz nº 2-13, nº 19). O capítulo que trata da
justiça dá uma ênfase maior à conversão do coração, já que “a origem (...) de toda
injustiça deve ser buscada no desequilíbrio interior da liberdade humana” (Med Justiça
nº 3), enquanto que o capítulo sobre a paz situa, em primeiro lugar, a necessidade de
“transformações globais audazes, urgentes e profundamente inovadoras” (Med Paz nº
16).
Transcendendo essas constatações está o chamado a articular a sociedade por
meio das mais variadas instituições intermediárias e a necessidade de fomentar uma
verdadeira participação, para fazer da pessoa o verdadeiro agente da vida social. Entre
as orientações concretas, se destacam o convite a uma reforma da empresa, concebida
como “comunidade de pessoas e unidade de trabalho” (Med Justiça nº 10), a rejeição
dos sistemas capitalista liberal e marxista – porque nenhum deles respeita a dignidade
da pessoa – e o convite a “orientar as empresas segundo as diretrizes do magistério
social da Igreja” (idem). Além disso, se defende a incorporação dos trabalhadores, com
a participação ativa na gestão da empresa e valoriza a organização sindical, rural e
operária, e seus direitos de estarem representados nos níveis políticos, sociais e
econômicos. Também se fala da urgência de uma reforma agrária para a promoção
humana dos camponeses e indígenas, não limitados a uma distribuição de terras, e a
necessidade de controlar os processos de industrialização, tão irreversíveis como
decisivos, para elevar o nível de vida da população.
São demarcadas tensões: as diversas formas de marginalização –
socioeconômicas, políticas, culturais, raciais, religiosas, rurais e urbanas; as
desigualdades excessivas entre as classes sociais; as formas de opressão de grupos e
setores dominantes; a crescente tomada de consciência dos setores oprimidos
(WANDERLEY, 2009).
Em termos gerais, defende-se um desenvolvimento integral, em que se respeite
“a legítima autonomia de nossas nações, as justas reivindicações dos países mais fracos
e a desejada integração econômica do continente” (CERIS, 1968, p. 53). Com relação
ao tema dos pobres afirma:
47
A Igreja aproxima-se cada vez mais das classes populares, torna seus os anseios
da libertação, as exigências de justiça social e os postulados dos direitos
humanos, em especial dos mais pobres. Não se entende apenas a partir do mundo
moderno (visão do Vaticano II), mas principalmente a partir do submundo dos
oprimidos (a tradução do Vaticano II às condições da realidade latino-
americana). A grande opção que se delineia com clareza em Medellín e que
ganha uma força catalisadora, formula-se em termos de opção preferencial pelos
pobres (os que sofrem injustiças pela pobreza produzida por mecanismos de
exploração, pobreza como praga social e manifestação do pecado). Desta
encarnação da Igreja nas classes populares subalternas nascem as comunidades
eclesiais de base e a pastoral popular libertadora. Inaugura-se um novo modelo
de relações da Igreja com a sociedade civil: relação direta, sem passar pela
mediação do Estado e das classes dirigentes. A Igreja insere-se diretamente nas
classes populares; deseja ser mais do que uma Igreja para o povo; quer ser uma
Igreja com o povo, do povo; uma Igreja que nasce da fé do povo oprimido
(BOFF, 1981, p. 55).
Frei Betto (1979) relata a proibição da presença dos teólogos assessores dos
bispos, no que interpreta como um mecanismo de marginalização dos teólogos da
libertação da confecção do texto final. Esses teólogos haviam desenvolvido grande
quantidade de pesquisas e reflexões que compunham o quadro das manifestações
teológicas das conferências episcopais, dioceses, entre outros, constituindo um
verdadeiro braço teológico desses bispos. Ao invés de assumirem igual posição na
Conferência, foram nomeados outros teólogos como peritos, todos na linha
“conservadora” do Vaticano. Muitos teólogos “progressistas” foram secretamente a
Puebla e se hospedaram em uma casa e realizaram discussões e redigiram contribuições
que eram entregues aos bispos à noite ou de modo sorrateiro durante o evento. Betto
também relata um fato: em 10 de fevereiro, Trujillo flagrou o cardeal Arns sendo
orientado por Leonardo Boff e Jon Sobrino, pediu a saída dos teólogos e mandou
reforçar a segurança do evento, proibindo inclusive que qualquer documento fosse
passado para dentro do evento por qualquer pessoa.
Além disso, o primeiro documento de consulta foi mal recebido por alguns
bispos por falar na secularização como principal desafio latino-americano – quando se
entendia que esse era um desafio importado europeu – e por se preocupar
exclusivamente com questões de doutrina4. O texto foi modificado, mas muitos ainda
criticavam o que consideravam a fraqueza da parte doutrinal, que ainda era muito
extensa e que não representava a especificidade do homem latino-americano.
De acordo com Camacho (1995), o documento final foi elaborado depois de 21
comissões diferentes, trabalhando ao mesmo tempo, o que ocasionou inúmeras
repetições e divergências de enfoque e orientações.
De toda forma, essa diversidade de interpretações e a própria variedade de
enfoques encerra o pluralismo existente entre os bispos reunidos. Ao mesmo tempo, se
houve manifestações públicas divergentes entre os bispos em Puebla, há linhas de força
consensuais. No documento de Puebla, há uma comprovação da situação de pobreza de
4
Vide uma crítica de Gutiérrez (1978, p. 24): “Se o grande desafio à fé na América Latina é a ideologia
secularista e não o fato brutal da exploração dos pobres no continente, o Deus proveniente ocupará o
lugar do Deus que liberta, que o Deus dos pobres tinha em Medellín; a religiosidade popular (conforme a
entende o documento) cumprirá o papel que tinha a pobreza; a cultura terá o lugar da libertação; o povo
(formado por todos aqueles que gestam uma mesma cultura) encontrar-se-á no lugar que ocupavam as
classes populares exploradas; o povo, considerado em sua pobreza material, será substituído pelo povo
espiritualmente rico. Nessas condições, a tarefa evangelizadora será discernir os valores do mundo
moderno para forjar uma nova civilização, e não denunciar a escandalosa situação de injustiça social que
se vive na América Latina e anunciar o amor do Pai que levanta sua mão contra o opressor e liberta o
oprimido”.
49
Em 1968, Alexandre Dubcek dizia que “se o socialismo não adquirir um rosto
humano desaparecerá como sistema”. Teve que esperar somente duas décadas de
indiferença diante desse chamado por parte dos partidos comunistas no poder da
Europa Oriental para que seu lamentável vaticínio se cumprisse. Na autopsia
atual aparecem múltiplas causas de ordens distintas, porém entre elas desponta
uma tão fundamental quanto simples: os homens encarregados de desenvolver o
projeto revolucionário e socialista naqueles países não quiseram continuá-lo
porque não se sentiam identificados com ele. Não viam refletidas, em suas
realizações, as aspirações humanistas que animavam originalmente o projeto
socialista (p. 378).
Porém, essa escolha tem um elemento contraditório, pois também é o outro que
se interpõe entre o eu e o seu projeto de autorrealização. Daí a conhecida expressão “o
inferno são os outros”, tirada da sua peça Entre quatro paredes. De toda forma, o
humanismo de Sartre é um processo de autoconstrução, em que o ser humano necessita
do outro para se autoconstruir mas, ao mesmo tempo, encontra no outro uma ameaça.
No final do século passado,
Doutrina Social da Igreja proclama, portanto, que a dignidade dos homens é a raiz de
todos os direitos humanos e fundamento de outros princípios.
Cabe ressaltar que algumas vezes utilizaremos - como o próprio ensinamento
social católico faz – homem como sinônimo de ser humano. Nesse caso, deve-se
considerar subentendido também as mulheres.
A questão do papel da mulher na Igreja pode ser lida à luz da atuação do próprio
Jesus Cristo. Em uma sociedade em que as estruturas patriarcais relegavam a mulher
para segundo plano, lemos na Bíblia que Jesus se aproximou delas, lhes delegou tarefas
e as tratou com igualdade.
Não obstante, é sabido que à mulher não são permitidos determinados tipos de
participação eclesiástica. Não é nosso intuito entrar no mérito da questão nem nos
aprofundarmos nesse tema. A ele seria necessária outra pesquisa. De toda forma, é
importante ressaltar que no século XIX ocorreu um grande crescimento no número das
congregações femininas, que se dedicavam à prestação de cuidados de saúde, à
educação e à caridade. Houve mulheres, como Joana D’Arc ou Catarina de Sena, que
tiveram a ousadia de interpelar os homens e pôr em causa o rumo que eles tomavam na
direção da própria Igreja.
Certo é que a Igreja não seria o que é se não se constatasse a presença de
inúmeras mulheres em áreas como a assistência social e a transmissão da fé. Há quem
defenda – inclusive dentro da hierarquia católica - o direito de acesso das mulheres aos
ministérios. Por enquanto, contudo, mantém-se a exclusividade no que diz respeito à
ordenação sacerdotal de homens. De toda forma, acreditamos que não existem papeis
maiores ou menores no cenário da missão evangelizadora; o que há são protagonismos
diferentes com a mesma dignidade.
Neste segundo capítulo pretendemos nos deter no Princípio da Dignidade
Humana defendido pela Igreja Católica. Perguntamo-nos: em que se apoia a dignidade
humana? Por que uma pessoa tem dignidade? Porém, para uma correta concepção da
dignidade humana na Doutrina Social da Igreja, precisamos entender antes qual é a
concepção católica de pessoa. Partimos da pergunta: o que faz de um ser pessoa?
Assim, este capítulo, a partir de agora, tratará da concepção católica de pessoa.
Depois, trata da dignidade humana em si e como ela é discutida no ensino social cristão.
Deixamos claro que não temos pretensão de esgotar a definição sobre a pessoa,
nos mais amplos espectros do pensamento filosófico. Esse capítulo parte de um conceito
cristão e de como este conceito se define e se amolda à Doutrina Social da Igreja.
58
1. A concepção de pessoa
1.1 As duas dimensões da pessoa: corpo e espírito
Como já foi dito, para a Doutrina Social da Igreja é o primado da pessoa que
fundamenta todo o seu pensamento. Ou seja, o ser humano é “o protagonista, o centro e
o fim de toda a vida econômico-social” (GS, nº 63). A dignidade da pessoa humana
deve ser o objetivo último da produção de bens, da organização política e das
expressões culturais. Nada a atinge ou fere mais profundamente do que o fato de se
tornar instrumento da economia de mercado ou de qualquer coletivismo. Sublinha o
Concílio Vaticano II: "Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do
homem, como seu centro e seu termo: nesse ponto existe um acordo quase geral entre
crentes e não-crentes" (GS, nº12).
Romano Guardini (1963) se pergunta: o que é a minha pessoa? “A pessoa é um
fato que incessantemente desperta um espanto existencial” (p. 163), ele mesmo
responde. A pessoa é também um dos fatos mais misteriosos pelo qual se interroga a
mente humana. “É para mim absolutamente ‘transparente’ que eu seja eu; que não
possa, absolutamente, ser expulso de mim próprio, ainda pelo inimigo mais poderoso,
mas exclusivamente por mim, e nem, de resto, completamente por mim; que não seja
substituível, ainda pelo homem mais nobre; que eu seja o centro da existência, pois é
bem o que eu sou, e também o que tu és, e ainda tu, aí...” (GUARDINI, 1963, p. 162).
Mounier (2004) diz que a pessoa é possuidora de um valor indefinido e
transcendental. Logo ela não pode ser um objeto de definição ou conhecimento acabado,
terminado. Definir a pessoa é esvaziá-la de sua grandeza real. Ela é o que se pode
chamar de indefinível. “A pessoa não é uma coisa que se pode encontrar no fundo das
análises, ou uma combinação definível de aspectos. Se fosse uma súmula, poderia ser
inventariada: mas é, exatamente, o não inventariável. Inventariável, poderia ser
determinada; mas é, exatamente, o centro da liberdade” (MOUNIER, 2004, p. 84).
Mauss (1974), por sua vez, afirma que “a noção de pessoa, longe de ser uma
ideia primordial, inata e claramente inscrita (...) no mais profundo de nosso ser, (...) é
ainda hoje imprecisa, necessitando de maior elaboração, ela se constrói lentamente, se
59
Desse modo, cada indivíduo da espécie humana não vale por aquilo que tem, não
deriva da raça, da religião ou do sexo, mas pelo que é. É digno da maior estima e do
mais profundo respeito, em cada momento da sua vida: quando sadio ou quando doente,
quando fraco ou quando forte, quando sábio ou quando ignorante, quando pequeno e
impotente no seio da mãe, ou se velho esclerosado fechado em um asilo.
Mas o que significa que o ser humano é pessoa? E mais: por que a pessoa é valor
absoluto, digno, sempre e em toda a parte, da máxima estima e do mais profundo
respeito?
Nas Ciências Sociais, alguns autores tentaram responder a essas perguntas. O
antropólogo inglês Radcliffe-Brown (1973), por exemplo, faz uma oposição entre
indivíduo e pessoa: todo ser humano vivendo em sociedade tem dois aspectos - ele é
indivíduo, mas também pessoa. Como indivíduo, ele é um organismo biológico, um
conjunto muito vasto de moléculas organizadas em uma estrutura complexa em que se
manifestam, enquanto ele persiste, ações e reações fisiológicas e psicológicas, processos
e mudanças. Já o ser humano como pessoa é um complexo de relações sociais.
Assim, o indivíduo se apresenta apenas em sua condição de instância
“infrassocial” (DUARTE, 1986), como mero substrato concreto para a imposição do
estatuto social. Já fica porém absolutamente claro que pessoa designa – como no texto
de Mauss (1974) – uma unidade socialmente investida de significação. Essa fórmula
ecoa, na verdade, a teoria do Homo duplex de Durkheim, ao mesmo tempo amarrado a
60
sua corporeidade imediata e fechada, por um lado, e dedicado à busca da efetivação dos
ideais morais que lhe atribui sua cultura, por outro (DUARTE, 1986).
Para Da Matta (1979), a categoria indivíduo é uma maneira de definir um
“cidadão de segunda classe”, pessoas inteiramente à mercê das regras impessoais e
universais que governam a nação. Finalmente, a categoria que designa seres humanos de
uma maneira enfaticamente positiva não é o indivíduo como unidade exclusiva e
fundamental do Estado moderno, mas o indivíduo como membro de uma rede de
relações - isto é, o indivíduo enquanto pessoa ou gente.
O pensamento católico trata o tema de maneira diversa. Podemos dizer que, nele,
pessoa é um ser confluente de dupla perspectiva: a material e a espiritual. O ser
humano é “um ser de fronteira entre o mundo puramente espiritual (Deus, Espírito
Puríssimo, e os espíritos puros, que chamamos anjos) e o mundo puramente material (os
seres não viventes, as plantas, os animais)” (MONDIN, 1998; destaque no original). Ou
ainda, nas palavras de Santo Agostinho (1990), o homem é um meio-termo entre os
brutos e os anjos. Assim, na fronteira, entre um lado e outro, “numas muitas vezes se
exalta como norma absoluta. Noutras deprime-se até ao desespero” (GS, nº 12).
O conceito de pessoa é definido pela natureza intelectual que possui. O ser
humano possui uma dimensão que supera em tudo as propriedades e possibilidades da
matéria, que não conhece limites nem de espaço e nem de tempo; possui um elemento
incorruptível, um princípio, uma semente de eternidade. Para Welty (1960), o ser
humano é único em seu ser racional, pois, além do corpo como qualquer outro animal,
possui uma alma espiritual sendo que esta formação é o que lhe garante independência e
dignidade próprias da pessoa. Charbonneau (1965), na mesma linha de pensamento,
defende que o corpo humano nos coloca apenas na categoria de indivíduos, como
qualquer animal, vegetal ou mineral, mas que a propriedade do homem de ser racional
eleva-o a dignidade de pessoa. Para Fernando Bastos de Ávila (1993), esta pessoa
desenvolve, durante sua vida, potencialidades que são inerentes à natureza humana que
é constituída “pela união de um princípio espiritual a um corpo animal que é por ele
vivificado” (p. 353).
Assim, o ser humano é, antes de tudo, um ser espiritual, mas um espírito
encarnado, tanto corpo quanto alma intelectiva. Como diz o Catecismo da Igreja:
corpore et anima unus5. “A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao
5
“A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como ‘forma’ do corpo; ou
seja, é graças à alma espiritual que o corpo constituído de matéria é um corpo humano e vivo; o espírito e
61
mesmo tempo corporal e espiritual” (CEC, nº 362). Para usar uma terminologia lógica, é
um ser em conjunção. É por isso que, como está escrito no Compêndio da Doutrina
Social da Igreja, “nem o espiritualismo, que despreza a realidade do corpo, nem o
materialismo, que considera o espírito mera manifestação da matéria, dão conta da
natureza complexa, da totalidade e da unidade do ser humano” (CDSI, nº 129). Segundo
Mounier (2004, p.29) “a pessoa está mergulhada na natureza. O homem é corpo
exatamente como é espírito, é integralmente ‘corpo’ e é integralmente ‘espírito’”.
Pelo que - ideia fundamental para o desenvolvimento da Doutrina Social da
Igreja - assim como devemos estar atentos às exigências do nosso espírito, também não
é lícito ao ser humano, como está dito na Constituição Pastoral Gaudium et Spes,
“desprezar o seu corpo, mas, ao contrário, deve estimar e honrar o seu corpo” (nº 14).
Não como fim último, mas como premência imediata.
Na concepção de Santo Tomás de Aquino (1980) o ser humano não é
contemplado só pela metade, mas sim na sua integridade e totalidade, isto é, dotado de
alma e corpo, de inteligência e vontade, soberano de si próprio. São Tomás considera o
ser humano como um espírito encarnado. Ele é o menor na hierarquia dos espíritos,
porque tem capacidade de desenvolver as atividades do espírito - entender e querer -
somente em virtude do corpo. Por isso, São Tomás tem um conceito altamente positivo
da corporeidade: é a carne a qual a alma comunica a vida. Graças ao corpo, o ser
humano ocupa um lugar no espaço e no tempo, desenvolve todas as atividades artísticas,
confecciona as próprias vestimentas, constrói casas etc.
S. Tomás considera o corpo tão necessário para a alma, a ponto de ela sozinha
não ser pessoa, apesar de poder subsistir por conta própria. A alma e o corpo não são
duas substâncias completas, unidas de forma acidental. Elas são duas substâncias
incompletas, unidas entre si tão profundamente a ponto de formar uma única substância.
A união substancial é devida à unicidade do ato de ser (actus essendi), que é em
primeiro lugar um ato da alma, e é comunicado ao corpo pela própria alma.
E por que a pessoa é valor absoluto?
O valor absoluto da pessoa está justamente no espírito. Se não está no espírito,
argumenta Mondin (2005), esse valor é totalmente gratuito e seria arbitrário considerá-
lo como absoluto. Se o homem é só corpo, apenas matéria, ele se torna necessariamente
a matéria no homem não são duas naturezas unidas, mas a união deles forma uma única natureza” (CEC,
nº 365).
62
uma realidade manipulável, instrumentalizável e, portanto, não pode ter valor absoluto,
mas valor instrumental; não mais simplesmente um fim, mas somente um meio.
Todos os humanismos que surgiram nos últimos séculos concordaram em dar à
pessoa valor absoluto, não instrumental. Porém o ser humano não é absoluto, o ser
supremo, o onipotente, o infinito, imortal. Ele é absoluto na ordem axiológica, não na
ordem ontológica. Como um ser mortal pode ser dotado de valor absoluto? Se sua
inteligência eleva o olhar e reconhece que seu próprio ser deriva de Deus. Descobre,
então, o fundamento do próprio valor. Sendo um valor absoluto com destino eterno, o
homem – cada indivíduo – é digno do máximo respeito, da maior solicitude, do mais
profundo amor. Cada um de nós deve ter grande estima por si próprio e pela pessoa dos
demais, porque somos todos, sem distinção alguma, tesouros preciosos (MONDIN,
2005). O homem é filho de Deus. Sendo Deus um valor absoluto, fundamento de todos
os valores, consequentemente também quem se torna participante de sua natureza divina
goza de sua mesma dignidade, de seu absoluto valor.
Segundo S. Tomás de Aquino, “persona designa aquilo que há de mais perfeito
no universo: Persona significat id quod est perfectissimum in tota natura” (apud
MONDIN, 1995). Somente do ser humano podemos afirmar que “é pessoa, não dizemos
do cão, do cavalo, do gato e nem mesmo das plantas e das pedras” (MONDIN, 1995,
p.25). Um pé de abóbora, por exemplo, é mais valioso que uma pedra, porque tem vida.
Um cachorro é mais valioso que o pé de abóbora, porque tem sensibilidade. Um homem
é infinitamente mais valioso que um cachorro, porque tem espírito. Para o conceito
cristão, o ser humano é uma pessoa e disto vem sua dignidade, de este ser imagem
daquele que é Divino.
Por ser imagem de Deus, o indivíduo tem a dignidade de pessoa: ele não é
apenas alguma coisa, mas alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de
doar-se livremente e entrar em comunhão com outras pessoas, e é chamado, por
graça, a uma aliança com o Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor
que ninguém mais pode dar em seu lugar (CEC, nº 357).
São Tomas de Aquino sustenta que “o termo pessoa indica o que de mais nobre
há no universo ou, mais especificadamente, um ser subsistente de natureza racional”
(1980, vol.1, q.29, a.3). Podemos dizer que o humanismo de S. Tomás é personalista, e
não socializante. De fato, toda a grandeza do homem provém do fato de ser pessoa, não
da sua pertença a esta ou àquela sociedade. A pessoa é o que há de mais perfeito no
universo. A razão e a natureza formam um ser que subsiste realmente por um próprio
actus essendi, constituindo a dignidade irredutível da pessoa humana, que possui “estas
carnes, estes ossos e esta alma, que são os princípios que individualizam o ser humano”
(TOMÁS DE AQUINO, 1980, vol.1, q.29, a.4). Desse modo, continua S. Tomás, pode-
se afirmar que a “forma de existir que constitui a pessoa é a mais digna de todas as
formas, sendo o que existe por si próprio” (idem).
À definição de S. Tomás podemos aproximar a de Boécio, na qual a pessoa é
uma “substância individual de natureza racional” (Naturae rationalis individua
substantia). Indivíduo, natureza e substância: estas são as três noções que emergem de
ambas as definições. Individual é aquilo que faz parte como característica ou qualidade
de um sujeito. Natureza é aquilo que é comum a todos os indivíduos. Já substância: “O
modo fundamental do ser é aquela da substância, ou seja, daquilo que existe em si e por
si” (VANNI, 1995, p.37; destaque no original).
6
“O homem não é como as plantas e os animais, um puro produto das leis da natureza, e não é nem o
resultado de uma prodigiosa autotese, isto é, fez-se sozinho; mas é fruto de uma sapiente colaboração
entre natureza e cultura. Grande parte daquilo que nós possuímos e que fazemos desde criança não é fruto
da natureza, mas sim da cultura. Esta é a característica mais destacável, aquela que mais distingue o
homem dos animais e das plantas. Diversamente dos outros seres vivos, cujo ser é inteiramente
produzido, pré-fabricado pela natureza, o homem é em grande medida o artífice de si mesmo. Enquanto
as plantas e os animais sofrem, no ambiente natural em que se encontram, o homem é capaz de cultivá-lo
e de transformá-lo profundamente, adequando-o às próprias necessidades” (MONDIN, 1995, p.15).
65
conceder uma completa transparência para mim mesmo, lanço-me continuamente para
fora de mim, na problemática do mundo e na luta do homem” (p. 39; destaque no
original).
2) Depois, a transcendência da pessoa com relação à natureza: “O homem caracteriza-se
por uma dupla capacidade de destacar-se da natureza: é o único que conhece este
universo e o engole e o único que o transforma, ainda que seja o menos aguerrido e o
menos potente de todos os grandes seres animados” (pp. 32-33).
3) Em seguida, há a abertura em direção aos outros e em direção ao mundo através da
comunicação: “O primeiro movimento que revela um ser humano na primeira infância é
um movimento em direção aos outros: a criança dos seis aos doze meses, saindo da vida
vegetativa, descobre-se a si mesma nos outros. É somente mais tarde, perto dos três
anos, que haverá a primeira onda de egocentrismo consciente (...). A pessoa, por sua
vez, através do movimento que a faz existir, expõe-se, porque é por natureza
comunicável e é antes a única a sê-lo” (pp. 48-49). A pessoa é capaz de descentrar-se
para tornar-se disponível ao outro, esvazia-se de todo egocentrismo, narcisismo, e torna-
se disponível ao outro.
4) A pessoa também se caracteriza pelo dinamismo: “A vida da pessoa é a busca até a
morte de uma unidade pressentida, cobiçada e que não se realiza nunca” (p. 72).
5) Todas as pessoas têm uma vocação própria: “Cada pessoa tem um significado tal que
não pode ser substituída no lugar que ocupa no universo das pessoas” (p. 73).
6) E cada pessoa possui a liberdade: Porém, “não é ligada indissoluvelmente ao ser
pessoal como uma condenação (Sartre), mas lhe é proposta como um dom: ele pode
aceitá-la ou rejeitá-la” (p. 13).
Por causa dessas características, Mounier frequentemente afirma que “a pessoa
não é um objeto (...). A pessoa não é o mais maravilhoso objeto do mundo, objeto que
conhecemos de fora como todos os outros. É realidade que conhecemos e que,
simultaneamente construímos de dentro” (MOUNIER, 2004, pp. 18-19). A pessoa é o
indivíduo consciente de si próprio, senhor de seus atos, capaz de se doar a outrem,
manifestando experiência de vida e sem se esvaziar, mas pelo contrário recebendo
contribuição do outro se construindo. “Outros querem fazer das pessoas objetos
manejáveis e utilizáveis, quer sejam para o filantropo, os pobres, quer para o político, os
eleitores; para este, os filhos, para aquele, os operários” (MOUNIER, 2004, p. 60).
As concepções de pessoas-objetos são combatidas: “o primeiro ato da pessoa
deve ser, pois, a criação com outros duma sociedade de pessoas, cujas estruturas,
67
costumes, sentimentos e até instituições estejam marcadas pela sua natureza de pessoa”
(MOUNIER, 2004, p. 65).
Pela capacidade de abertura ao outro, Mounier opõe o ser humano como
indivíduo e o ser humano como pessoa. O indivíduo é o ser humano físico, parte do
universo, fechado em si mesmo, opondo-se a qualquer outro indivíduo. Já a pessoa é o
ser humano espiritual, transcendente ao universo por sua liberdade, aberto a todo ser
capaz de entrar em comunhão com outras pessoas, para tanto. Mounier (2004) escreve:
Pela experiência interior, a pessoa surge-nos como uma presença voltada para o
mundo e para outras pessoas, sem limites, misturada com elas numa perspectiva
de universalidade. As outras pessoas não limitam, fazem-na ser e crescer. Não
existem senão para os outros, não se encontra senão nos outros. A experiência
primitiva da pessoa é a experiência da segunda pessoa. O tu e, dentro dele, o nós,
precede o eu, pelo menos o acompanha (MOUNIER, 2004, p.64).
toda a energia de busca da razão, ou seja, que exigem uma resposta total que abranja
todo o horizonte da razão, esgotando toda a categoria da possibilidade. A razão tem a
capacidade de exprimir a própria natureza profunda na interrogação última, é o lócus da
consciência que o homem tem da existência. Essas perguntas inevitáveis estão em cada
pessoa e dentro do seu olhar para todas as coisas. O ser humano é aquele nível da
natureza em que se pergunta: “Por que existo?” A pessoa, diz Giussani, é aquela
minúscula partícula que exige um significado, uma razão, a razão.
E pelo simples fato de viver a pessoa coloca essa pergunta, porque é a raiz da
sua consciência do real. E não apenas coloca a pergunta, como também a responde,
orientando inclusive nossas ações, e afirmando um “último”.
Porque pelo simples fato de viver cinco minutos, um homem afirma a existência
de um quid pelo qual vale a pena, no fundo, no fundo, viver aqueles cinco
minutos. É o mecanismo estrutural da razão, é uma implicação inevitável. Como
o olho, ao se arregalar, descobre formas e cores, do mesmo modo a razão, pelo
simples fato de pôr-se em movimento, afirma um “último” uma realidade última
na qual tudo consiste; um destino último, sentido de tudo. Por isso, àquelas
perguntas constitutivas nós damos uma resposta: ou consciente e explicitamente
ou prática e inconscientemente (GIUSSANI, 2009, p.91).
Essa resposta só pode ser insondável. Giussani (2009) diz que somente a
existência do mistério é adequada à estrutura de mendicância que o ser humano é. Ele é
insaciável mendicância e aquilo que lhe corresponde é algo que não é ele mesmo, que
não pode dar a si mesmo, que não consegue medir, que não sabe possuir. Somente a
hipótese de Deus, somente a afirmação do mistério como realidade existente além da
nossa capacidade de reconhecimento corresponde à estrutura original do homem.
Além disso, a capacidade intelectual de cada ser humano lhe confere a
possibilidade de descobrir e de desvendar o núcleo mais secreto de que dispõe: a lei da
consciência, inserida no seu próprio ser. Ou a voz da razão. Trata-se do fato de que há
na pessoa algo como uma voz que diz “bem” e diz “mal”. Essa consciência traz a
percepção do bem e do mal. É o que São Paulo define como “a lei escrita em nossos
corações” (cf. Rm 2, 15). Para identificar o que é verdadeiro, certo e bom, somente a
razão tem condições de conhecer, de ter noções corretas, de estudar, de entender, de
ponderar, de refletir e de avaliar. A atração natural que a pessoa sente pelo bem e pela
verdade, se corretamente conduzida, permite-lhe chegar à plenitude da felicidade.
Por exemplo: atos de coragem, paciência nas provas e dificuldades da vida,
compaixão pelos fracos, moderação no uso dos bens materiais, atitude responsável em
relação ao meio ambiente, dedicação ao bem comum etc. são alguns tipos de
71
Giussani (2009), por sua vez, propõe um caminho que nasce do desejo que está
no coração de toda pessoa. Considera que todos os seres humanos têm em seu coração,
isto é, no íntimo de sua personalidade, entendida em toda a sua complexidade, um
conjunto de exigências constitutivas, cuja percepção denomina de experiência
elementar, tais como os desejos de realização, de felicidade, de beleza, de justiça, de
satisfação etc.
Essas exigências de beleza, de bem, de verdade, de justiça, de felicidade, de
amor, dentre outras, fundamentam e norteiam – cada qual com sua especificidade – a
atuação do homem no mundo, inserindo-o na concretude da vida e nessa abertura à
totalidade. A experiência elementar pode ser expressa de diversas formas, conforme os
temperamentos e as culturas influenciam-na, mas é mais do que o produto de uma
determinada cultura, pois suas expressões são documentadas e encontradas desde a
filosofia antiga e também na literatura universal (PETRINI, 2012). É por essa razão, diz
ainda Petrini, que a leitura de obras filosóficas ou obras de arte de tempos passados
despertam nosso interesse ainda hoje, são capazes de nos comover, “pois algo presente
nelas tem a capacidade de falar ao coração do homem e da mulher de hoje, assim como
falou aos de seu tempo” (p. 17).
A experiência elementar sempre aponta para a incompletude estrutural do ser
humano e para a sua necessidade de se completar, de se realizar, porque o desejo
humano tende ao infinito.
As exigências elementares fazem parte da subjetividade da pessoa, que pode
procurar livremente as respostas que pareçam mais de acordo, inclusive as
contraditórias ou absurdas. Seja como for, são como uma centelha que põe em ação o
motor humano; antes delas não ocorre nenhum movimento, nenhuma dinâmica humana.
Qualquer afirmação de uma pessoa só pode ser feita tendo por base esse núcleo de
evidências e exigências originais (GIUSSANI, 2009). E então a pessoa começa
2012). O bem moral corresponde ao desejo profundo da pessoa que tende naturalmente
e espontaneamente para o que a realiza plenamente, para o que a permite atingir a
felicidade.
Mas o ser humano sempre pode escolher ou agir de maneira contrária ao bem
que ele reconhece. A natureza humana é um elemento contraditório, pois indica
caminhos que nem sempre são os da sua vontade, ainda que sempre sejam os mais
sábios. O ser humano pode ser o construtor e o destruidor do mundo que lhe pertence,
ora dando exemplos de grandeza de espírito e obras, ora dando demonstrações de
mesquinharia e de cruéis atentados terroristas. Ele pode negar se superar. Isso graças ao
pecado original, ponto-chave também para a Doutrina Social da Igreja: “A admirável
visão da criação do homem por parte de Deus é inseparável do quadro dramático do
pecado das origens (...). Na raiz das lacerações pessoais e sociais, que ofendem em
vária medida o valor e a dignidade da pessoa humana, encontra-se uma ferida no
íntimo do homem” (CDSI, nº 115-116; destaques no original). Ferida que faz parte da
constituição estrutural originária de cada pessoa e é transmitida.
O pecado cometido não é apenas para com Deus, mas também para “consigo
mesmo, com os demais homens e com o mundo circundante” (CDSI, nº 116). O pecado
é, portanto, na definição do CEC, uma falta contra a racionalidade, contra a verdade e
contra a consciência (Cf. nº 1849). Ato profundamente individual, mas que tem reflexos
na sociedade.
Por causa dele, ao mesmo tempo em que preza a solidariedade e as relações
sociais, a pessoa pode fazer uso negativo do poder, pode dominar o outro. Daí a
existência de roubos, assassinatos, mentiras. Ou de miséria, fome, guerras. De
7
“A doutrina da Igreja sobre a transmissão do pecado original adquiriu precisão sobretudo no século V,
em especial sob o impulso da reflexão de Santo Agostinho contra o pelagianismo, e no século XVI, em
oposição à Reforma protestante. Pelágio sustentava que o homem podia pela força natural da sua vontade
livre, sem a ajuda necessária da graça de Deus, levar uma vida moralmente boa: limitava assim a
influência da falta de Adão à de um mau exemplo. Os primeiros Reformadores protestantes, ao contrário,
ensinavam que o homem estava radicalmente pervertido e sua liberdade anulada pelo pecado original:
identificavam o pecado herdado por cada homem com a tendência ao mal (concupiscentia), que seria
insuperável. A Igreja pronunciou-se especialmente sobre o sentido do dado revelado no tocante ao pecado
original, no segundo Concílio de Oranges, em 529, e no Concílio de Trento, em 1546” (CEC, nº 406).
74
desigualdade social e muitas vezes de indiferença nas relações. Há, sim, uma realidade
dura, e que não é esquecida pelo pensamento católico.
No Catecismo da Igreja Católica também podemos ler: “A Sagrada Escritura, na
narrativa da morte de Abel por seu irmão Caim revela, desde os primórdios da história
humana, a presença no homem da cólera e da inveja, consequências do pecado original.
O homem tornou-se inimigo do seu semelhante” (nº 2259). Em Evangelium vitae (EV),
João Paulo II afirma que o ser humano não está predestinado para o mal, embora possa
escolher fazê-lo (cf. nº 8). S. Tomás de Aquino (1980), por sua vez, diz que escolher o
mal é o preço de uma liberdade enfraquecida pelo pecado e que pode estar obscurecida
pelos condicionamentos culturais e históricos que podem influenciar negativamente a
vida moral pessoal8.
Quanto, porém, aos outros preceitos secundários, a lei natural pode ser destruída
do coração humano, seja por persuasões más, como se insinuam erros a respeito
das conclusões necessárias nas ciências especulativas, seja por maus costumes e
hábitos corruptos, assim como se deu a alguns que não consideravam pecado os
roubos ou os vícios contra a natureza (TOMÁS DE AQUINO, 1980, vol. 1, q.
94, a. 6).
O ser humano é tentado pelo pecado que, “como uma animal feroz, se agacha à
porta do seu coração, à espera de lançar-se sobre a presa” (EV, nº 8). A questão,
portanto, volta-se sempre para uma luta permanente entre o Bem e o Mal, na obediência
ou desobediência das leis naturais.
De toda forma, não se pode isolar a universalidade do pecado da universalidade
da salvação:
Pois como podemos ler na Gaudium et spes: “(...) imagem de Deus invisível, Ele
é o homem perfeito, que restituiu aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada
desde o primeiro pecado” (nº 22).
Além disso, se é verdade que a lei natural está escrita no coração humano, é
igualmente verdade que a lei natural não é um código pronto, “impresso num rolo de
papel depositado na consciência de todos” (MARITAIN, 1967, p. 60). As pessoas a
8
Não é outra coisa o que Bento XVI chamou a atenção durante todo o seu pontificado quando falava do
relativismo generalizado, utilizando até a expressão “ditadura do relativismo”.
75
conhecem em graus variados, errando muitas vezes. Afinal, como diz São Paulo:
“Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço” (Rm 7, 19). É
um conhecimento que vai amadurecendo, que vai se educando. De toda forma, “mesmo
que alguém negue até os seus princípios, não é possível destruí-la nem arrancá-la do
coração do homem. Sempre torna a ressurgir na vida dos indivíduos e das sociedades”
(CEC, nº 1958).
Além do mais, há algo no ser humano que se vincula à necessidade de buscar
sua plenitude e que experimenta como imperativo de consciência, de tal maneira que,
quando age contra ela, ressente-se dessa violação. Mesmo quando a pessoa está
anestesiada ou abafa essa consciência, essa necessidade de plenitude subsiste,
independentemente dos aspectos positivos ou negativos que o vão afetar.
A consciência da pessoa, sua liberdade e sua responsabilidade são valores que a
ajudam a atingir esse seu fim último. A pessoa é a única entre todos os seres que goza
da liberdade, isto é, de ser o artífice das próprias ações e, em grande parte, de sua
própria personalidade, do próprio projeto de humanidade. A liberdade é a faculdade de
decidir, soberamente, assim ou assim, diante de várias possibilidades, sem ser coagido a
ir numa certa direção por qualquer determinismo, psíquico ou social, ou quando já
subsistem todas as condições requeridas para agir. É o controle soberano sobre a
situação, de forma que a vontade tenha em suas mãos o poder de fazer pender a agulha
da balança de um lado ou de outro (MONDIN, 2005).
Podemos entender que o homem será aquilo que ele quiser ser, pois por sua
própria natureza pode desenvolver-se cada vez mais buscando uma perfeição naquilo
que desenvolve. Os animais, por exemplo, agem sempre da mesma forma em qualquer
lugar do planeta. Eles estão programados para ser assim, pois os animais “não se
governam a si mesmos; são dirigidos e governados pela natureza, mediante um duplo
instinto, que, por um lado, conserva a sua atividade sempre viva e lhes desenvolve as
forças; por outro, provoca e circunscreve ao mesmo tempo cada um de seus
movimentos” (RN, nº 5). São regidos por instintos de preservação, defesa e propagação
da espécie, “e são incapazes de transpor esses limites, porque apenas são movidos pelos
sentidos e cada objeto particular que os sentidos percebem” (RN, nº 5).
A natureza humana, por sua vez, é bem diferente. O ser humano é criativo,
introspectivo e prospectivo, sujeito de suas vontades e desejos, capaz de transformar o
meio a sua volta, o que o faz ser único. Claro que a pessoa não pode impedir a ação da
lei da natureza, mas pode interferir e adaptar-se a ela, pode até usar esta mesma força a
76
seu favor. Na pessoa “reside em sua perfeição, toda a virtude da natureza sensitiva”
(RN, nº 5) que o torna capaz de sentir prazer em gozar dos objetos físicos e corpóreos,
não apenas por instinto. Se por um lado nos animais o instinto os torna iguais, porque
sua natureza os faz repetir sempre as mesmas ações, a natureza humana “estabeleceu
entre os homens diferenças tão multíplices como profundas, diferenças de inteligência,
de talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde nasce
espontaneamente a desigualdade de condições” (RN, nº 11).
No ato livre confluem as duas máximas faculdades do espírito humano: o
intelecto e a vontade. Trata-se de um ato volitivo (que procede da vontade) e consciente
(que procede da inteligência); o que se realiza mediante o ato livre recebe o ser não da
natureza e nem diretamente de Deus, mas do homem. Graças à liberdade, o ser humano
torna-se absolutamente soberano de si mesmo e até certo ponto do mundo, e é
justamente onde se manifesta mais claramente sua soberania e dignidade. O ser humano
se eleva incessantemente além dos limites de espaço e tempo que o circundam; avalia e
julga o presente e o passado e pode também programar o seu futuro (MONDIN, 1995).
No fim, afirma Mondin (2005, p. 93), “cada um de nós será aquilo que escolheu ser”.
Em última instância, o ser humano pode ser livre diante do pecado. Pode e deve
dominá-lo.
Porém liberdade jamais significa licença. Ser livre, agir como ser racional,
significa seguir a razão. É usando a liberdade que o homem pratica atos moralmente
bons, construtivos para si próprio e para os outros. O bem e o mal são reconhecidos,
prática e concretamente, pela consciência - à luz da razão -, que leva a assumir a
responsabilidade do bem realizado e do mal cometido. A pessoa é capaz de conhecer e
interiorizar as finalidades que pretende atingir e avaliar, em função delas, o que é bom
ou mau para si.
O filósofo laico Luc Ferry (2008, p. 99 apud Petrini) diz: “Eu não invento a
verdade, a justiça, a beleza ou o amor, eu os descubro em mim mesmo, mas como algo
que me ultrapassa e que, por assim dizer, me é dado a partir de fora – sem que eu possa
identificar o fundamento último dessa doação. Subsiste um mistério da transcendência
que não há como assimilar” (destaque no original).
A liberdade renega-se a si mesma, se autodestrói, quando deixa de reconhecer e
respeitar a sua ligação com o bem. Para o pensamento católico, todas as vezes que a
razão se fecha às evidências de um bem objetivo, suas referências para as decisões não
são mais o bem e o mal, mas apenas a opinião ou, pior, seu interesse egoísta.
77
2. A dignidade humana
Se não conseguimos encontrar este valor absoluto no homem, então não vemos
sua dignidade e assim ele torna-se passível de humilhações e da própria escravidão,
conforme afirma o papa João Paulo II: “o ser humano, quando não é visto e amado na
sua dignidade de imagem viva de Deus (cf. Gn 1, 26), fica exposto às mais humilhantes
e aberrantes formas de instrumentalização, que o tornam miseravelmente escravo do
mais forte” (Christifideles laici, [CL] nº 5). Por isso “o homem vale não por aquilo que
‘tem’ – mesmo que ele possuísse o mundo inteiro –, mas por aquilo que ‘é’. Não são
tanto os bens do mundo que contam, mas o bem da pessoa, o bem é a própria pessoa”
(CL, nº 37). Portanto, ajudar as pessoas a descobrirem seu eu pessoal e sua dignidade,
que deve ser inviolável, é tarefa essencial de cada um.
O ser humano possui uma dignidade fixa e constitutiva mesmo de seu ser, “que
lhe corresponde a nível ontológico de uma singular espécie, superior às demais por sua
condição original ou inata (todos os homens e mulheres nascemos pessoas, igualmente
pessoas, ainda que não pessoas iguais), independentemente de sua cooperação, de seus
méritos e deméritos” (RODRIGUEZ, 1982, p.10). É a dignidade intrínseca.
Esta asserção é metafísica, porque
a dignidade da pessoa não é fundada diretamente sobre como ela age, mas sobre
aquilo que ela é enquanto tal (...) independentemente de manifestar-se menos que
sua potencialidade. Desta afirmação deriva que o valor da vida humana ou da
pessoa humana é incomensurável: o seu valor intrínseco não depende e não é
acrescido por outra qualidade, nem é àquele comparável (LOMBO e RUSSO,
2005, p. 159).
Isso significa dizer que o valor de cada um de nós não depende de fazer as
escolhas certas, ou ainda, que nós não podemos ser definidos ou determinados pelo
“sucesso” ou pelo “acerto” no trabalho, nas relações, como muitas vezes pensamos e
mesmo agimos. Ou ainda: nem mesmo o mais odioso homicida, criminoso, perde a sua
dignidade pessoal.
Assim, a dignidade da pessoa não é uma criação constitucional, pois ela é um
desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal
79
os povos da antiguidade foram descobrindo com suas próprias luzes e razão a lei
que o ser humano tem gravada em sua natureza, organizando-a de diversas
maneiras em códigos ou referências, nos quais descobrimos os primeiros
esforços em favor do homem, desde a racionalidade natural. Assim, por
exemplo, temos o Código de Hamurabi, da Babilônia e da Assíria. (...) E temos
também o Código de Manu, da Índia, que consiste em uma coleção de preceitos
religiosos, morais, jurídicos e políticos. Trata-se de formas jurídicas elementares,
que nem sempre produzem os efeitos que a consciência jurídica atual exige, mas
que são, embora incipientes e insuficientes, as primeiras expressões de defesa da
dignidade e dos direitos do ser humano.
a filosofia kantiana mostra que o homem, como ser racional, existe como fim em
si, e não simplesmente como meio, enquanto os seres desprovidos de razão têm
um valor relativo e condicionado, o de meios, eis porque se lhes chamam coisas;
ao contrário, os seres racionais são chamados pessoas, porque sua natureza já os
designa como fim em si, ou seja, como algo que não pode ser empregado
simplesmente como meio e que, por conseguinte, limita na mesma proporção o
nosso arbítrio, por ser um objeto de respeito’. E assim se revela como um valor
absoluto, porque a natureza racional existe como um fim em si mesma (p. 90).
Assim, o outro deve ser compreendido não como mero objeto, mas reconhecido
como sujeito, tratado como um fim em si mesmo, e jamais como meio. Está aí enfatizada
não apenas a dimensão individual da personalidade humana, mas também a sua
dimensão comunitária e social: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua
pessoa como na de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio” (idem, p. 90).
80
João Paulo II chega a afirmar, no documento Christifideles laici (nº 37), que a
dignidade pessoal é o bem mais precioso que o homem tem, graças ao qual ele
transcende em valor e todo o mundo material. Nessa linha, em virtude da sua dignidade
pessoal, o ser humano é sempre um valor em si e por si, e exige ser tratado como tal, e
nunca ser considerado e tratado como um objeto que se usa, um instrumento, uma coisa.
Atualmente, no entanto, a cultura reduziu o conceito de pessoa. Assim, para ela,
o homem não é mais pessoa por força de seu próprio ser, mas se torna pessoa graças ao
reconhecimento arbitrário da sociedade, do governo, do direito. Como diz Mondin
(1998, p. 14), “a filosofia moderna realizou uma mudança radical, pois, não o vê mais
como uma criação da natureza, mas como um produto de si mesmo”. Vemos as
múltiplas violações a que hoje é submetida à pessoa9. O ser humano, quando não é visto
na sua dignidade de imagem viva de Deus, fica exposto a formas de instrumentalização,
que o tornam escravo do mais forte. E o mais forte pode revestir-se dos mais variados
nomes: ideologia, poder econômico, sistemas políticos, tecnocracia científica ou Estado.
“Encontramo-nos diante de multidões de pessoas cujos direitos fundamentais são
violados, também em nome de uma excessiva tolerância e até da clara injustiça de certas
leis civis” (CL, nº 5).
Há a despersonalização em massa de todos os cidadãos que, em incontáveis
ocasiões, são reduzidos a simples números. É um individualismo exacerbado. Isso é
notório principalmente quando se observa, hoje, as relações de trabalho, em que a
pessoa é tratada apenas como meio para se chegar a fins principalmente lucrativos.
Esta visão do ser humano tem suas raízes principalmente no modo como
atualmente se dirige o desenvolvimento da economia de mercado, pois se sustenta a
ideia de que todos são livres na medida em que possuem bens. E isso os leva a um nível
de exploração do trabalho pelo capital e mudança de valores, indo de encontro à
construção da pessoa. O homem torna-se fragmento de uma sociedade onde o ter é mais
bem visto do que o ser de cada um. Dessa forma, entra-se na cultura do utilitarismo, do
hedonismo, falando de uma cultura dominada pela falsa ideia de posse como sendo o
centro e fim último da vida humana.
No fundo, há uma cultura de coisificação de pessoas. Entende-se por
coisificação um processo no qual cada um dos elementos da vida social perde seu valor
9
Embora esse argumento possa levar à discussão, aqui não pretendemos entrar no mérito de questões de
bioética – aborto, eutanásia, pesquisa com células-tronco embrionárias, clonagem etc. Acreditamos que
fugiria do nosso enfoque.
81
essencial e passa a ser avaliado apenas como coisa, ou seja, quanto à sua utilidade,
quanto à sua capacidade de satisfazer certos interesses. O ser humano vira um objeto e
um instrumento de uso. Na perspectiva materialista até aqui descrita, as relações
interpessoais experimentam um empobrecimento. O critério próprio da dignidade
pessoal – do respeito, do altruísmo, do serviço – é substituído pelo critério da eficiência,
do funcional, da utilidade: o outro é julgado exclusivamente pelo que tem, pelo que faz,
pelo que rende.
Os problemas citados aqui podem ocorrer também nos movimentos sociais, que
não estão imunes aos problemas contemporâneos. Qualquer movimento social corre o
risco de usar seus associados apenas como massa de manobra, ou de não dar voz ativa e
permitir uma participação verdadeira dos associados nas decisões a serem tomadas.
Mas Mondin (1998) diz: a tarefa primeira do homem não é construir casas,
carros, computadores, mas sim, “construir o homem, um projeto de humanidade que
seja adequado à dignidade e à exigência da pessoa humana” (p. 14). O objetivo primário
da cultura é, portanto, promover a realização da pessoa.
A perspectiva de que todos os homens são livres e iguais em dignidade e direitos
foi a linguagem capaz de mobilizar a imaginação, os sentimentos e as expectativas de
um conjunto significativamente diversificado de pessoas pelo mundo, logo após o
término da II Guerra Mundial. Ou seja, apesar da distância entre a teoria e a prática, o
século XX caracterizou-se pela universalização dos ideais da dignidade da pessoa e dos
direitos humanos.
Entretanto, existe uma dificuldade epistemológica na definição do que são
“direitos humanos”, que torna as tentativas de definição vagas ou tautológicas
(BOBBIO, 1992). Esses problemas nascem da tentativa de criar uma conceituação de
direitos humanos totalmente baseada no direito positivo e que não se assenta sobre o
direito natural (TOSI, 2009). Não é possível determinar com precisão o que são os
direitos humanos se não se tem uma definição precisa do que seja o humano. Se o ser
humano é um ser que faz a si mesmo, um nada que se torna algo por si mesmo, como
queria Sartre, a determinação de seus atributos e de seus direitos se torna muito difícil.
Apesar de os objetivos da Declaração Universal dos Direitos Humanos ainda
estarem distantes de corresponder à prática plenamente – afinal, a sua existência não
garante automaticamente sociedades justas -, seu valor simbólico e real é inegável.
Nesse sentido, cumpre destacar a vontade concentrada e incessante, principalmente da
sociedade civil, para que ela não seja esquecida. Afinal, foi a partir desse texto que se
82
A busca pela defesa da dignidade de todo ser humano passa também pela
valorização da cultura dos indígenas e suas especificidades. E cada povo deve construir
seu próprio caminho e ser o real protagonista da sua própria história. Significa
simplesmente aplicar o que a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos
defende: a autodeterminação dos povos. O Pacto de Direitos Civis e Políticos da ONU,
em seu artigo 27, afirma que: “Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou
linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do
direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida
cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”.
Assim, a universalidade de direitos e a particularidade cultural são valorizadas,
embora se reconheça uma relação hierárquica entre direitos universais e aqueles
reconhecidos apenas pela população local. Eles devem ser vistos como complementares.
83
Ao mesmo tempo, a ética nos chama a atenção sobre essas questões que envolvem não
só o respeito à diferença e ao diferente, mas a necessidade de estabelecer uma ponte em
que o contato se dá pelo encontro e pelo diálogo – uma proposta intercultural
(DONATI, 2008).
Outro tema importante para as Ciências Sociais com relação à Declaração
Universal dos Direitos Humanos diz respeito à violência contra as mulheres. O campo
dos direitos humanos, especialmente o do direito das mulheres, não é um campo
pacífico. Antes, tem se apresentado como um espaço constante de luta, em que a ação
dos movimentos de mulheres tem sido fundamental para o seu questionamento e análise
crítica (VICENTE, 2000).
Inegavelmente houve avanços nessa questão. Graças a movimentos feministas,
desde meados da década de 1980 o Brasil passou a instalar Delegacias da Mulher,
órgãos especializados da Polícia Civil que procuram dar um atendimento mais adequado
às vítimas de violência conjugal e sexual. Em 2003, o novo Código Civil eliminou todas
as discriminações legais contra as mulheres que ainda vigoravam e, em 2005, a lei penal
eliminou a possibilidade de impunidade do agressor sexual que se casasse com sua
vítima. Mais recentemente, houve a promulgação, em 2006, da Lei Maria da Penha.
Destinada especificamente à violência doméstica e familiar e reconhecendo-a como uma
violação dos direitos humanos, essa lei define uma política pública articulada destinada
à segurança das mulheres (BARSTED, 2006).
10
O Período Patrístico é compreendido desde o século I até o século VIII, iniciando-se com a Didaqué (a
doutrina dos doze apóstolos) escrita entre os anos 70-90, que é considerado um dos documentos mais
antigos da Igreja Primitiva. Compõem ainda a Patrística os ensinamentos e homilias que foram
conservados através da história, pela Igreja, onde os chamados Padres Gregos e depois os Padres Latinos
procuraram sistematizar a doutrina cristã tal como a receberam nas fontes da Sagrada Escritura,
compatibilizando os avanços culturais da civilização greco-romana que se fundamentavam na filosofia e
na razão natural, com os postulados da fé apresentados pela Revelação judaico-cristã.
84
No entanto o que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como que vis
instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus
braços (RN, nº 12).
O advento do cristianismo renovou as sociedades, afirma Leão XIII, que tem por
causa, meio e fim a elevação do gênero humano: “Tomando como exemplo as
sociedades da antiguidade, a sociedade civil foi essencialmente renovada pelas
instituições cristãs, que esta renovação teve por efeito elevar o nível do gênero humano,
ou, para melhor dizer, chamá-lo da morte à vida” (RN, nº 17).
A Rerum novarum coloca em igualdade de condições todos os homens, pois
todos têm a mesma semelhança divina e compartilham da mesma dignidade e que não
pode ser violada impunemente:
Da mesma forma que não podemos violar nossos deveres para com Deus,
também não podemos violar a dignidade humana, pois esta deve ser preservada, por ter
direitos inalienáveis impressos na natureza espiritual humana. Por isso, Leão XIII diz
também que “quanto aos ricos e patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas
respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pelo cristão” (RN, nº23).
Assim, o dever de cuidar desta dignidade não se faz facultativo, mas é, antes,
imperativo, é de ordem primeira, é essencial, apresenta-se como dever de honra para
com Deus, e a Rerum novarum o defende como sendo as diversas condições que dão ao
ser humano uma melhor condição de vida: direito a um trabalho sem exploração,
degradação ou humilhação, e com salário justo que garanta condições de vida digna
para o trabalhador e sua família.
Para que esta dignidade seja completa, Leão XIII defende a propriedade privada,
pois o homem é digno de ter o seu pedaço de chão, “porque a propriedade particular e
pessoal é para o homem de direito natural” (RN, nº 5), uma vez que colocando à
disposição de outro sua força de trabalho não espera somente por isto receber por direito
86
seu salário, para suprir suas necessidades, mas também poder usar dele como melhor
entender, e tudo aquilo que conquistar com o bom uso de seu salário nada mais é que
seu salário transformado em propriedade particular, assim, deve ter seu direito
assegurado (cf. RN, nº 4).
A encíclica Quadragesimo anno afirma que “o trabalho constante para embeber
de espírito cristão as almas dos operários contribuiu também muitíssimo para lhes dar a
verdadeira consciência da própria dignidade” (QA, nº 23). Nessa Encíclica, Pio XI
defendeu “com ardor os sagrados direitos dos operários, provenientes de sua dignidade
de homem e de cristão” (QA, nº 28), condenando a má distribuição das riquezas e o
acúmulo de capital que gera a injustiça social e escraviza o operário. O papa denuncia o
acúmulo de riqueza na mão de poucos ricos e a grande quantidade de pobres (cf. QA, nº
48), e afirma que tal situação “escraviza a classe proletária (...) desprezando a dignidade
humana dos operários, a função social da economia e a própria justiça social e o bem
comum” (QA, nº 101).
A Radiomensagem denominada La Solennità, de Pio XII, expressa sua defesa
dos bens materiais e da terra como forma de garantir a dignidade humana:
O direito natural ao uso dos bens materiais, por estar intimamente conexo com a
dignidade e com os outros direitos da pessoa humana, oferece a ela (...) uma base
material segura, de suma importância para se elevar ao cumprimento dos seus
deveres morais (...). A dignidade da pessoa humana exige normalmente, como
fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual
corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada, na
medida do possível a todos (LS, nº 14-15).
14), assim como “escolher o estado de vida (...) de constituir família, na base da
paridade de direitos e deveres entre homem e mulher; ou então de seguir a vocação ao
sacerdócio ou a vida religiosa” (PT, nº 15), sendo que “aos pais compete a prioridade de
direito em questão de sustento e educação dos próprios filhos” (PT, nº17).
Relativamente ao campo econômico, “cabe à pessoa não só a liberdade de
iniciativa, senão o direito ao trabalho” (PT, nº 18), sendo que tais direitos comportam a
exigência de “poder a pessoa trabalhar em condições tais que não se lhe minem as
forças físicas nem se lese a sua integridade moral (...) e, quanto às mulheres, seja-lhes
facultado trabalhar em condições adequadas às suas necessidades e deveres de esposas e
mães” (PT, nº 19). Ressalta, ainda, o “direito a uma remuneração do trabalho conforme
aos preceitos da justiça; remuneração que, em proporção dos recursos disponíveis,
permita ao trabalhador e à sua família um teor de vida condizente com a dignidade
humana” (PT, nº 20). Enfim, reafirma “o direito à propriedade privada, mesmo sobre os
bens de produção” por considerar que “esse direito constitui um meio apropriado para a
afirmação da dignidade da pessoa humana e para o exercício da responsabilidade em
todos os campos; e é fator de serena estabilidade para a família, como de paz e
prosperidade social” (PT, nº 21), recordando que “a função social é inerente ao direito
de propriedade privada” (PT, nº 22).
Finalmente recorda o “direito de reunião e de associação” (PT, nº 23), o “pleno
direito de estabelecer ou mudar de domicílio dentro da comunidade política (...) e
mesmo de transferir-se a outras comunidades políticas e nelas domiciliar-se” (PT, n
º25). Considera, por último, que há “o direito de participar ativamente da vida pública, e
de trazer assim a sua contribuição ao bem comum dos concidadãos” (PT, nº 26) e mais,
“o direito inalienável do homem à segurança jurídica e a uma esfera jurisdicional bem
determinada, ao abrigo de toda e qualquer impugnação arbitrária” (PT, nº 27).
O tratamento que João XXIII dá ao tema dos direitos do homem não se reduz a
um simples reassumir da Declaração Universal dos Direitos do Homem – que
havia sido aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948. O Papa
insiste nos mesmos direitos, mas a perspectiva é diferente. Em primeiro lugar,
ele associa os direitos aos deveres, como outras tantas garantias reais daqueles
direitos (BIGO e ÁVILA, 1986, p. 195).
determinados deveres. E mais: uma correta valorização dos direitos evidencia que cada
um deles subentende, como contrapartida, certas exigências, certos deveres para o
homem11. Assim, por exemplo, o direito à vida compreende o dever de respeitá-la.
Depois de enunciar os direitos do homem, João XXIII, em Pacem in terris, dá
destaque à necessidade de respeito aos deveres, cuja “origem, manutenção e vigor
indestrutível” também está na lei natural (nº 29). Nas palavras do papa, “os que
reivindicam os próprios direitos, mas se esquecem por completo de seus deveres ou lhes
dão menor atenção, assemelham-se a quem constrói um edifício com uma das mãos e,
com a outra, o destrói” (PT, nº 30).
Ele não chega a enunciar todos os deveres, mas afirma que cada um dos direitos
tem um dever como contrapartida. Todavia, três deveres são colocados em destaque por
ele: o respeito aos direitos alheios, a colaboração com o próximo e o dever de atuação
dentro de um sentido de responsabilidade.
Por isso, “o direito à existência liga-se ao dever de conservar-se em vida; o
direito a um condigno teor da vida, à obrigação de viver dignamente; o direito de
investigar livremente a verdade, ao dever de buscar um conhecimento da verdade cada
vez mais vasto e profundo” (PT, nº 29). Assim, o direito de um deve ser respeitado por
todos, em busca da promoção do bem mútuo; dever de um agir humano livre, mas
responsável, fundado na verdade, no amor e na justiça que busca a comunhão humana
(cf. PT, nº 28-36).
Insistir apenas nos direitos pode levar a certo unilateralismo redutivo, um
egoísmo que afeta as relações interpessoais, ao concentrar-se na exigência do respeito
aos próprios direitos, postergando o respeito aos deveres para com os outros (DOIG,
1994). O equilíbrio entre direitos e deveres é uma garantia para que não se manipulem
os direitos e se possa construir uma convivência social na qual seja de fato respeitada a
dignidade humana.
11
Cabe notar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovado pela ONU em 1948 também
fala de deveres, em especial no Artigo 29, em que destaca que “todo ser humano tem deveres para com a
comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível”. É evidenciada,
assim, uma responsabilidade individual pela aplicação dos direitos humanos – também como membro de
instituições intermediárias, como se verá pouco abaixo. Além disso, essa visão encontra correspondência
em outras tradições religiosas e culturais, como na resposta de Gandhi à pesquisa da Unesco em 1947
para comentar o esboço da Declaração Universal: “Todos os direitos que devem ser merecidos e
preservados provêm de deveres bem exercidos. Assim, somente obtemos o autêntico direito de viver
quando cumprimos o dever de cidadania do mundo. A partir dessa afirmação fundamental, talvez seja
bastante fácil definir os deveres dos homem e da mulher e relacionar cada direito com alguns deveres
correspondentes, que devem ser cumpridos em primeiro lugar. Qualquer outro direito pode ser visto como
uma usurpação, pela qual dificilmente podemos lutar” (apud AQUINI, 2008, p. 135).
91
Depois, o Papa não considera apenas os direitos dos indivíduos isolados, na linha
do liberalismo clássico, mas defende também os direitos das pessoas humanas
associadas em comunidades, desde as menores até à grande comunidade
internacional, passando pelas comunidades nacionais. (...) Enfim, e
principalmente, o Papa não baseia os direitos da pessoa humana em um
positivismo jurídico de inspiração liberal, mas na própria dignidade inalienável
do homem, fundada no Direito Natural (BIGO e ÁVILA, 1986, p. 195).
12
João XXIII assinala que o documento não era suficiente e que existiam algumas objeções fundadas,
embora não as tenha explicado (cf. PT, nº 144). Mais tarde, Paulo VI também afirma que o documento
deveria ser aprofundado. Entretanto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos sempre foi valorizada
pela DSI – inclusive por esses dois papas - pelo seu espírito e esforço de defender a dignidade das
pessoas. Em linhas gerais, a Declaração deve ser entendida e valorizada como um esforço positivo de
devolver ao homem seu centralismo sobre a política e a economia, ou seja, que tudo está colocado para
que se desenvolva em plenitude. João Paulo II chama a atenção, no entanto, que ela não deve ser tomada
apenas com o objetivo de se precaver contra as injustiças, mas a partir dela assumir a “criação de uma
base para uma contínua revisão dos programas, dos sistemas, dos regimes, e precisamente a partir deste
único ponto de vista fundamental que é o bem do homem – e devemos dizer, da pessoa na comunidade –
e que, como fator fundamental do bem comum, deve constituir o critério essencial de todos os programas,
sistemas e regimes” (RH, nº 7). Bento XVI afirma que o mérito da Declaração é de permitir que
diferentes culturas, expressões jurídicas e modelos constitucionais “convirjam em volta de um núcleo
fundamental de valores e, portanto, de direitos” (Discurso de Bento XVI na ONU, em 18 de abril de
2008, disponível em
http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/april/documents/hf_ben-
xvi_spe_20080418_un-visit_po.html Acesso em 20/12/2012).
92
Organização [ONU] possa garantir com eficácia os direitos do homem; direitos que, por
brotar imediatamente da dignidade da pessoa humana, são universais, invioláveis e
imutáveis” (PT, nº 145).
A perspectiva crítica diz respeito principalmente à falta de uma fundamentação
sólida para esse documento. Com efeito, prescindiu ele de uma indicação expressa da lei
natural. E mais, esquivou-se de fornecer, mesmo que em linhas gerais, uma definição do
que considera como sendo a “dignidade da pessoa humana”, sobre a qual fundamenta os
direitos proclamados.
Como adverte Doig (1994, p. 149), a Igreja sempre entendeu que esses direitos
da pessoa “são anteriores ao Estado e, portanto, anteriores a todo acordo entre os
Estados. Nem o seu valor jurídico nem a sua universalidade dependem de um poder,
mas sim da própria natureza”.
João XXIII afirma em outro trecho da encíclica: “Não se pode aceitar a doutrina
dos que consideram a vontade humana, quer dos indivíduos quer dos grupos, primeira e
única fonte dos direitos e deveres dos cidadãos, da obrigatoriedade da constituição e da
autoridade dos poderes públicos” (PT, nº 78). Ou seja, não se pode conferir uma
dimensão absoluta à vontade humana no que se refere à fixação e delimitação dos
direitos fundamentais da pessoa humana.
Na Gaudium et spes a afirmação da dignidade da pessoa recebe destaque
especial. O primeiro capítulo tem por objeto esse tema.
(...) são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda
espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o
que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos
corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo
quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-
humana, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o
comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho,
em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como
pessoas livres e responsáveis. Todas essas coisas e outras semelhantes desonram
93
Já segundo Paulo VI, o respeito pela dignidade da pessoa deve estar na base de
qualquer programa de desenvolvimento econômico. “Economia e técnica não tem
sentido senão em função do homem, ao qual devem servir. E o homem só é
verdadeiramente homem na medida que, senhor das suas ações e juiz do valor destas, é
autor de seu progresso, em conformidade com a natureza que lhe deu o Criador, cujas
possibilidades e exigências ele aceita livremente” (PP, nº 34). O progresso do homem
deve ser integral, e para isso “é necessário promover um humanismo total”, processo
este que não pode estar limitado puramente às questões materiais mantendo-se fechado
aos “valores do espírito e a Deus, fonte do verdadeiro humanismo” (PP, nº 42).
Paulo VI diz também, agora na Octogesima adveniens, que cada país deve
analisar as situações de injustiças que comprometem a dignidade humana. O papa
afirma que “o egoísmo e a dominação são tentações permanentes entre os homens (...)
torna-se necessário captar, na sua origem, as situações nascentes de injustiça e de
instaurar progressivamente uma justiça menos imperfeita” (OA, nº 15), numa sociedade
em que se geram cada vez mais excluídos e marginalizados “a atenção da Igreja volta-se
para estes novos pobres (...) para aceitá-los, para ajudá-los e para defender o seu lugar e
a sua dignidade numa sociedade endurecida pela competição e pela fascinação do êxito”
(OA, nº15).
Na Laborem excercens, João Paulo II afirma o trabalho como “bem fundamental
para a pessoa (...) e chave de toda a questão social” (CDSI, nº 101). Também “delineia
uma ética do trabalho no contexto de uma reflexão teológica e filosófica” onde “o
trabalho tem toda a dignidade de um âmbito no qual deve encontrar realização à
vocação natural e sobrenatural da pessoa” (CDSI, nº 101).
O trabalho como um bem digno realiza o homem e dignifica sua condição de ser
humano:
João Paulo II, como alguns de seus predecessores, também não deixa escapar a
oprotunidade de apresentar um rol de direitos humanos, em Centesimus annus, cujo
94
movimento, se seus associados são respeitados realmente como pessoas (e não objetos)
e se são protagonistas.
O problema atual do desenvolvimento está ligado a concepção da alma do
homem, uma vez que nosso eu é reduzido ao psíquico e a saúde da alma com o bem-
estar emotivo. Não há desenvolvimento pleno nem bem comum universal sem o bem
espiritual e moral das pessoas, consideradas na sua totalidade de alma e de corpo (cf.
CV, nº 76). O desenvolvimento “requer olhos novos e um coração novo, capaz de
superar a visão materialista dos acontecimentos humanos e entrever no desenvolvimento
um ‘mais além’ que a técnica não pode dar” (CV, nº 77).
Sorge (1998) afirma que do Princípio da Dignidade Humana deriva um ponto
importante: tanto o Estado como a sociedade deverão buscar o bem comum,
subordinando-o sempre à plena realização da pessoa. Portanto, a sociedade e o Estado
podem dispor da atividade da pessoa para a consecução das metas comuns, mas jamais
podem dispor da própria pessoa, nem da vida delas, pois esta é o fundamento de todos
os outros direitos. De fato, a pessoa humana tem em si valor de fim e jamais poderá, em
qualquer caso e por qualquer razão, ser considerada e tratada como um empecilho ou
meio da política. Afinal, a pessoa é senhora de si mesmo e inalienável. Possui
interioridade e autodeterminação. O ato de vontade em cada ser humano é insubstituível
por qualquer outro ato que não seja o dele. Cada ser humano é único e irrepetível. Por
isso, não pode se tornar nunca um mero instrumento.
Na mesma linha, Mounier (1967, p. 83) propõe “uma civilização personalista,
sendo uma civilização cujas estruturas e espíritos estão orientados para a realização da
pessoa que é cada um dos indivíduos que a compõe”. Esta civilização, acima dos
interesses materiais, “tem, todavia, por fim último, pôr cada pessoa em estado de poder
viver como pessoa, quer dizer, em estado de poder atingir um máximo de iniciativa, de
responsabilidade, de vida espiritual”.
Por fim, para encerrarmos, um ponto crucial se refere ao direito à vida.
Entretanto, ainda segundo a ótica da DSI, não basta assegurar o direito à vida. É preciso
que essa vida seja digna. Por isso, deve ser assegurado à pessoa um mínimo de direitos
fundamentais que lhe permita atingir seus ideais de vida e a própria realização pessoal.
Terminamos este capítulo com a citação de Mounier, que de alguma forma
sintetiza a ideia principal do Princípio da Dignidade Humana:
Todo aparelho legal, político, social ou econômico não tem outra missão última
senão assegurar primeiro às pessoas em formação a zona de isolamento, de
96
13
Estamos pensando nos projetos mais conhecidos como Alfabetização Solidária, Comunidade Solidária,
Ação Solidária, Economia Popular Solidária, Empresa Solidária etc.
98
fraternidade denota que os cristãos são filhos do mesmo Pai, e isso os anima e os
compromete ao amor ao próximo, sempre expresso em atitudes. Segundo a autora,
mesmo com a origem no direito romano, o sentido cristão tem forte influência. Aliás, é
nele que os sentimentos de unidade entre as pessoas, independentemente de origem,
nacionalidade, religião etc. são alentados.
De toda forma, o conceito de solidariedade está em permanente constituição para
a sociologia e para a política e pode ter diferentes abordagens e concepções.
Por exemplo, a solidariedade pode ser discuta sob diversos pontos de vista.
Como um fato social, do qual não podemos nos desprender por ser parte intrínseca do
nosso ser no mundo; como virtude ética de um reconhecer-se no outro – que identifica
no outro um “outro eu”, ou ainda auxiliar o outro numa perspectiva mais ampla do que a
justa conduta exigiria – e dar ao outro o que é seu; como resultado de uma consciência
moral e de boa-fé ou, ao contrário, de uma associação para delinquir; e como
comportamento pragmático para evitar perdas pessoais e/ou institucionais (MORAES,
2009).
Mesmo assim, nas mais diversas exposições teóricas, um aspecto comum pode
ser retomado: a ideia de relação de reciprocidade, de interdependência entre os
membros de um grupo.
Com uma perspectiva mais próxima da nossa, Avelino (2005) conceitua
solidariedade como o “atuar humano, de origem no sentimento de semelhança, cuja
finalidade objetiva é possibilitar a vida em sociedade, mediante respeito aos terceiros,
tratando-os como se familiares o fossem; e cuja finalidade subjetiva é se autorrealizar,
por meio da ajuda ao próximo” (p. 250).
Para nós, a solidariedade implica uma atitude de interesse pela situação alheia,
um tipo de relação em que a pessoa só se realiza na medida em que se empenha na
realização do outro, uma postura que parte da consciência de que do empenho de cada
um depende o bem estar de todos. Assim, está ligada, sim, à ideia de compaixão, de
altruísmo, de comunhão com o próximo; mas é entendida também como princípio
orientador da sociedade.
Agora, qual a natureza do Princípio de Solidariedade e como ele aparece no
discurso da Doutrina Social da Igreja? Qual é a sua relação com o bem comum?
99
1. Da intrínseca sociabilidade...
realização. A pluralidade dos indivíduos produz, através de sãs relações mútuas, o que
se denomina unidade do todo, isto é, a sociedade, mas aquela pluralidade não seria
imaginável sem esta unidade” (apud WAIZBORT, 1999, p. 104). Isto é, o indivíduo
existe enquanto em relação com os outros e com o mundo externo a ele. Não é fechado
ao mundo exterior, isolado, solitário em seu mundo interior, como uma ilha. Ao
contrário, Elias (2001) concebe o indivíduo como fundamentalmente em relação com
um mundo que não é ele mesmo, com outros objetos e em particular com outros
homens.
Ou seja, o indivíduo coexiste juntamente com outros indivíduos. Somente se
pode pensar o indivíduo como parte de um tecido social mais ou menos coeso em que a
interdependência e a abertura em direção ao outro é uma necessidade (LÉVINAS,
1993).
Já para o pensamento católico, o primeiro círculo da sociabilidade do ser
humano é a família. Nenhum ser vivo é tão dependente dos outros, nos primeiros meses
e anos da infância, como o ser humano que – ao contrário do animal – é desprovido da
segurança do instinto. O animal é condicionado pelas disposições naturais e pelo meio
ambiente, ao qual se acomoda com a segurança que lhe dá o instinto. A mesma situação
repete-se a cada geração animal. O ser humano, porém, por vontade livre, transmite suas
experiências e os seus conhecimentos de geração em geração, por meio da tradição, da
educação e do aprendizado.
A partir daí, as pessoas se organizam na sociedade em grupos e movimentos
dentro de um contexto de comunhão e afinidades, para responder às necessidades
profundas e às exigências originárias de cada pessoa. Este é o fenômeno que se costuma
chamar de comunidades intermediárias.
Dá-se, então, o segundo círculo - o da sociedade -, que se enraíza na pessoa, não
menos do que a família. A sociedade não é externa à pessoa, nem lhe é superior; por sua
vez, nem a pessoa pode existir fora ou acima da sociedade. De fato, a sociedade é
“pessoal” e a pessoa é “social”. Por isso, o Concílio Vaticano II conclui:
Neste trecho fala-se da primazia absoluta da pessoa, mas que não contrapõe o
indivíduo à sociedade; ao contrário, vislumbra no indivíduo o próprio fundamento da
sociabilidade.
Mas esta é somente uma face da moeda. Se olharmos a outra face, parece claro
que a sociedade não constitui uma realidade superior em relação aos indivíduos,
que seriam subordinados como partes de um todo. A sociedade é, pelo contrário,
um organismo essencialmente ao serviço dos indivíduos, por permitir a cada um
deles de realizar plenamente a si mesmos (MONDIN, 1980, p. 196).
compõem: quem existe e quem opera é sempre e somente o indivíduo (...). O que
é a sociedade? É uma unidade de relação; é um complexo de relações entre os
indivíduos que a compõe (...). Ora, a relação em virtude da qual o indivíduo
humano faz parte da sociedade é uma relação real, pois o ser em sociedade põe
no indivíduo qualquer coisa a mais, algo de novo em relação ao que seria se
vivesse isolado. O individuo que vive em sociedade é enriquecido de muitas
qualidades, de muitos bens que o indivíduo isolado não tem; então a relação
entre os indivíduos que constituem a sociedade são relações reais (pp. 237-238;
destaque no original).
Desse modo, diz Höffner (1986), no pensamento católico são rejeitados como
princípios de ordem social, tanto o individualismo que nega a natureza social do homem
e vê na sociedade um mero conglomerado utilitarista, pretendendo um nivelamento
mecânico dos interesses individuais, como também o coletivismo que despoja o ser
humano de sua dignidade pessoal, rebaixando-o a mero objeto de processos sociais,
principalmente econômicos.
Há um passo a mais. A vida social remete à ideia de outro que não sou eu nem
meu grupo social, mas o diferente diante do qual tenho deveres e responsabilidades, e
não somente direitos a opor. Ocorre aqui o que Tosi (2009) identifica como a superação
de uma lógica meramente identitária, em direção a um reconhecimento efetivo da
alteridade, da diversidade e da reciprocidade. É nossa condição humana, enquanto seres
não totalmente predeterminados pela natureza, que se constrói necessariamente em um
confronto intersubjetivo entre um eu e outro, e entre nós e os outros.
De acordo com Tosi (2009), a identidade é construída na relação dialética entre
subjetividade e alteridade. Essa relação pode ser meramente negativa: o outro é visto
como um não-eu, o diferente de mim. Se a alteridade permanecer nesse nível, o outro se
tornará o inimigo, o adversário, aquele que é hostil e do qual se deve desconfiar. A
dialética entre subjetividade e alteridade não pode ser suprimida, porque é parte
constitutiva da construção da nossa identidade; mas tal dialética não significa que o
outro deva ser visto necessariamente como inimigo, desconhecendo a condição humana
comum em que todos estamos. Essa dialética, para Tosi, é parte integrante do processo
de reconhecimento social e valem tanto nas nossas relações individuais no cotidiano,
quanto nas relações entre grupos, classes, povos, Estados e civilizações.
A violência nasce com a desqualificação do outro, a retirada do outro de suas
características humanas, para colocar em evidência os aspectos negativos e, assim,
desumanizá-lo. Esse procedimento pode levar até ao aniquilamento do outro, quando
este é visto como inimigo absoluto, como no caso extremo do nazismo e da solução
105
final para o povo judeu e outros indivíduos e grupos sociais considerados inferiores
(TOSI, 2009).
Como superar essa dialética negativa da alteridade? Promovendo uma dialética
da intersubjetividade, na qual o outro não seja reconhecido como um inimigo, ou seja,
simplesmente como um não-eu, mas como outro eu: “eu mesmo como outro”.
Reconhecer o outro como a mim mesmo significa superar uma dialética puramente
negativa da alteridade, para alcançar o reconhecimento comum de pertença, que é parte
da nossa condição humana. Por isso precisamos reconhecer no outro o que há em
comum com a nossa condição humana: todos sofremos as mesmas dores, todos temos o
mesmo corpo, todos sentimos os mesmos sentimentos, todos precisamos de
reconhecimento social e afetivo, ser reconhecidos em nossa identidade e diversidade.
É por meio do reconhecimento do outro que nos identificamos, é por meio da
solidariedade que nos responsabilizamos. “Ninguém deve permanecer em si: a
humanidade do homem, a subjetividade, é uma responsabilidade pelos outros, uma
vulnerabilidade extrema” (LÉVINAS, 1993, p. 124).
Por isso, o outro interessa porque a pessoa não pode se realizar sem ele. Por seu
caráter relacional, o ser humano precisa manter-se em relação, precisa encontrar o outro.
A pessoa é sempre busca por outro que a complete: é a consciência do eu que,
intencionalmente, pede o tu, para viver como nós.
Além disso, o ensinamento social católico igualmente acentua a subjetividade do
caráter relacional da pessoa e, em consequência, a necessidade de entender que a
sociedade, longe de ser resultante automática ou mecânica do ser humano, animal
social, deve ser construída pelo caminho da consciência, da liberdade e da virtude das
pessoas que a compõe. Isso explica o fato de que as sociedades são tão diferentes quanto
as próprias pessoas, o que requer a aceitação e até a valorização de um pluralismo sadio
(cf. CDSI, nº 151).
De toda forma, a vida social é o lugar no qual a pessoa pode obter
aperfeiçoamento, seja pela comunicação que estabelece entre as pessoas, seja pela
natural interdependência que se institui quase como que impondo a todos o diálogo e a
ajuda.
Assim, identificamos a primeira manifestação da solidariedade: não podemos
nos desprender dela, pois é parte intrínseca do nosso ser no mundo, o que nos faz nos
relacionar com os outros. Porém a solidariedade deve ser entendida além.
106
Se conseguimos olhar o outro como outro eu, diz Giussani (2001), toda pessoa
de boa vontade, diante da dor e da necessidade, começa imediatamente a agir, mostra-se
capaz de generosidade. Essa generosidade é estar junto do outro em suas necessidades,
oferecendo companhia, afeto, compartilhando os bens, renunciando ao que
legitimamente temos alcançado ou ao que possuímos, a fim de que o outro possa ter um
mínimo necessário; é estar junto ao outro também para compartilhar com ele suas
alegrias, seus triunfos, suas realizações. De fato, exemplifica o autor, quando há algo de
grande e belo em nós, nos sentimos impulsionados a comunicá-lo aos outros. Ou
quando vemos outras pessoas que estão em uma situação pior do que a nossa, sentimo-
nos impelidos a ajudá-las, compartilhando algo que é nosso. Nos capítulos finais,
veremos como esse fator foi importante para o início da ATST, principalmente na
experiência de seus fundadores.
A meta é o mútuo compartilhar e participar dos valores pessoais. A pessoa é
essencialmente abertura e comunicação.
A pessoa é constitutivamente um ser social (GS, nº12) porque assim quis Deus
que a criou. A natureza do homem se patenteia, destarte, como natureza de um
ser que responde às próprias necessidades com base numa subjetividade
relacional, ou seja, à maneira de um ser livre e responsável, o qual reconhece a
necessidade de integrar-se e de colaborar com os próprios semelhantes e é capaz
de comunhão com eles na ordem do conhecimento e do amor (...). A vida social,
portanto, não é algo de exterior ao homem: este não pode crescer e realizar a sua
vocação senão em relação com os outros (CDSI, nº 149; destaques no original).
proexistência que ajuda a realização dos outros faz bem para o próprio proexistente:
consolida, enriquece, torna maior, mais nobre, mais feliz a sua vida; constitui também o
caminho principal da própria autorrealização. Por isso, continua Mondin (1995), quanto
mais a pessoa se empenha em dar espaço à humanidade do outro, tanto mais cresce na
própria humanidade.
Assim, por exemplo, mediante essas relações a pessoa se conhece e conhece o
outro. As relações entre pessoas podem se reduzir a um simples encontro ocasional e
passageiro, ou então criar elos duradouros que se convertem e fundamento da vida em
sociedade. E Modin (1995) cita exemplos, mostrando que um pai, uma mãe, uma
esposa, um marido, um professor, um amigo, um soldado etc. são muito mais satisfeitos
e felizes e, portanto, se consideram tanto mais realizados quanto maior são os sacrifícios
e as renúncias que souberem enfrentar e suportar por amor dos filhos, do cônjuge, dos
amigos, dos pobres, da pátria.
É o reconhecimento do outro como respeito que se deve a cada um, somente
pelo fato de ser pessoa. O homem, livre, escolhe entre ser solidário ou não ser solidário.
Por isso é possível falar de solidariedade como virtude moral, valor, que vem da
consciência racional dos interesses em comum, que implica a cada um, antes de tudo, a
obrigação moral não apenas de não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja
feito, mas também de afirmar o verdadeiro valor da solidariedade: fazer aos outros o
que deseja que lhe faça.
Hume (apud Avelino, 2005) fala da satisfação em ajudar ao outro.
temos uma ideia viva de tudo que tem relação conosco. Todas as criaturas
humanas estão relacionadas conosco pela semelhança. Portanto, suas existências,
seus interesses, suas paixões, suas dores e prazeres devem nos tocar vivamente,
produzindo em nós uma emoção similar à original – pois uma ideia vivida se
converte facilmente em uma impressão. Se isso é verdade em geral, quanto mais
no que diz respeito à aflição e à tristeza, que exercem uma influência mais forte e
duradoura que qualquer prazer ou satisfação (p. 250).
Hume vai dizer também que esta identificação do indivíduo com o outro e de um
natural impulso de benevolência nasce no sentimento de simpatia, entendida como “a
inclinação natural de agradarmo-nos com a felicidade dos outros e sentirmos
desconforto com seu sofrimento” (apud AVELINO, 2005, p. 42).
Entretanto, do que falamos até aqui, corre-se o risco de entender a solidariedade
somente ligada ao campo das emoções. É comum reduzirmos a solidariedade a uma
sensibilidade para com os menos favorecidos, o que nos parece um equívoco.
108
Porém, para além da generosidade, embora esta seja louvável, suas tentativas de
resposta às necessidades do momento correm o risco de ter um derradeiro véu de
autocomplacência ou, então, uma derradeira sombra de tristeza. A contribuição
da pessoa de boa vontade talvez resolva o problema naquele momento; “mas, e
se depois?...” Depois, nada impede que possa aparecer outra dor ou uma nova
necessidade (p. 123).
Essa tristeza pode ser superada pela consciência de pertencer. Assim, para o
filósofo italiano, a solidariedade, embora seja uma característica instintiva da natureza
humana, não faz história, não cria obras por continuar a ser uma emoção ou uma
resposta reativa a uma emoção. A emoção não constrói. O que constrói é um pertencer a
uma realidade religiosa ou a uma ideologia que o eduque e que estrutura o ímpeto da
generosidade e torna seus efeitos mais permanentes. Porque diante da dor, qualquer
pessoa instintivamente tem um sentimento de piedade, de compaixão e é levada à
solidariedade. Mas isso não cria um sujeito. Só a consciência de pertencer faz de uma
pessoa um sujeito. É significativo que na experiência da ATST seus fundadores citam a
educação constante e a experiência de pertencer à Igreja, por meio inicialmente da
Pastoral da Moradia, como fundamentais para suas ações hoje. E aí o homem se torna
criador, isto é, idealizador e realizador de obras.
14
Bruni (2005) define assim a gratuidade: “atitude interior que me conduz a me aproximar de cada
pessoa, de cada ser, de mim mesmo, sabendo que aquela pessoa, aquele ser vivo, aquela atividade, eu
110
mesmo, não somos coisas para usar, mas que se deve estabelecer com elas uma relação, respeitando-as e
amando-as” (p. 47).
111
Associação dos Trabalhadores Sem Terra, como veremos mais adiante, tem como maior
dificuldade justamente este ponto. Bauman (2001) propõe o termo “comunidade
cabide”, que capta bem alguns dos traços mais característicos das comunidades em
tempos de modernidade líquida, em que as relações humanas não são mais tangíveis e a
vida em conjunto - familiar, de casais, de grupos de amigos, de afinidades políticas etc.-
, perde consistência e estabilidade, pois tudo é volátil.
exemplo; ou uma criança que nasce em um lugar cuja casta é privada de certos direitos.
Em ambos os casos haverá uma liberdade de escolha muito limitada sobre a própria
vida. Quer dizer, nascendo em determinados contextos culturais, mesmo as associações
involuntárias correm o risco de ser opressivas.
Claro que citamos dois exemplos extremos, mas é fácil perceber como também
em uma família ou comunidade consideradas “normais”, religiosas, instruídas podem
ser verificadas opressões, injustiças. Assim, do mesmo modo, eventos similares podem
ser verificados no interior de quaisquer outras formas de associação.
O indivíduo está, sim, em relação e o desenvolvimento da sua individualidade
depende das suas relações sociais. Somos animais sociais, portanto o indivíduo deve
estar em condições de desenvolver a própria potencialidade e a própria personalidade
por meio das comunidades que nasce, vive, cresce e escolheu aderir. Entretanto, ele
deve ser educado e dotado de recursos que o permitam sair das associações quando elas
não respondem mais ao seu “programa de vida”. Isto é, o “programa de vida” de um
indivíduo, a perseguição daquilo que ele identifica como bem para ele mesmo, é uma
escolha individual.
A verdadeira natureza da solidariedade é a que nasce de um trabalho
compartilhado de uma obra comum, onde todos se sentem protagonistas de suas
respectivas sociedades e de suas próprias vidas, com autonomia e liberdade. Este é outro
desafio para uma sociedade solidária. Nos últimos capítulos indicaremos como a ATST
enfrenta essa questão.
amizade. A amizade é uma das três dimensões do amor – eros, ágape, philia –
compondo a unidade da pessoa. Para Aristóteles, a amizade – philia – é uma forma de
amor e o maior dos bens para as cidades, pois resulta na unidade. A philia, deste modo,
está relacionada a uma atitude na polis que garante o bem comum excedendo o âmbito
privado para o público e suas relações. A essa amizade cívica Aristóteles denominou
homonia, termo que foi traduzido posteriormente por concórdia (AVELINO, 2005).
O Princípio de Solidariedade se classifica em dois tipos: a solidariedade
horizontal15, que constitui na ajuda recíproca entre sujeitos diferentes e surge do socorro
mútuo prestado entre as pessoas, seja pertencente ao âmbito social, seja do mesmo nível
institucional, limitando-se o Estado a oferecer-se como fiador externo16; e a
solidariedade vertical, que se expressa nas formas tradicionais de intervenção e ação do
Estado social, ou seja, alude à ação direta dos poderes públicos com a intenção de
reduzir as desigualdades sociais e permitir o pleno desenvolvimento da pessoa humana
(GALEOTI, 2006; PIZZOLATO, 2008).
A acolhida do outro na esfera da comunidade é, sem dúvida, uma das funções do
Princípio de Solidariedade, pois a abertura de tal esfera nos leva a um compromisso
com o universal, que transcende as referências de nossa identidade comunitária básica.
Daí o porquê de o Princípio de Solidariedade, conforme enfatiza Rosales (1992), ter o
sentido de promover a defesa das necessidades sociais primárias individuais e coletivas,
bem como também o de dar “capacidade operativa nas plataformas institucionais de
negociação e decisão política” (p. 92). Significa dizer, por exemplo, que o Princípio de
Solidariedade se realiza totalmente quando os trabalhadores não são apenas solidários
em suas organizações sindicais, mas também à medida que colocam exigências à
política para todos.
O Princípio de Solidariedade também está intimamente ligado aos direitos
humanos, sendo denominado por alguns autores como “direitos de solidariedade”.
15
Alguns autores preferem o termo fraternidade, como Baggio (2008). Há estudos que diferenciam
solidariedade e fraternidade. Preferimos seguir Pizzolato (2008) que relaciona e identifica a fraternidade
como solidariedade horizontal.
16
Algumas formas de solidariedade horizontal se desenvolveram por meio de movimentos históricos
concretos, no âmbito das organizações sociais, de defesa dos direitos humanos e, em particular, dos
direitos dos trabalhadores, e também como iniciativas econômicas.
116
global, não apenas econômico, a que se deve propor tanto um Estado quanto a
comunidade de um pequeno povoado, tanto um núcleo de educação quanto uma
cooperativa de pesca (AQUINI, 2008).
O conceito de cidadania ativa é fundamental para o reestabelecimento do
Princípio de Solidariedade. Javier de Lucas (1994) afirma:
Amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado
do bem individual existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem
comum. É o bem daquele “nós-todos” formado por indivíduos, famílias e grupos
intermédios que se unem em comunidade social. (...) Ama-se tanto mais
eficazmente o próximo quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que
dê resposta também às suas necessidades reais (CV, nº 7).
E diz ainda:
A caridade acontece “uma vez que todos nós somos movidos pela mesma
motivação fundamental e temos diante dos olhos idêntico objetivo: um verdadeiro
humanismo, que reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudá-lo a levar uma
vida conforme esta dignidade” (DCE, nº 30). E faz um convite: “só se contribui para
um mundo melhor fazendo o bem agora e pessoalmente, com paixão e em toda parte
onde for possível (...). Vê onde há necessidade de amor e atua em consequência” (nº
31).
É o amor que busca o bem do outro e até renuncia o seu próprio bem pelo do
outro, e que é o fundamento da solidariedade.
120
Além disso, Paulo VI propõe uma dupla iniciativa. A primeira, “um grande fundo
mundial, alimentado com uma parte dos gastos militares, a fim de ajudar os mais
desamparados” (PP, nº 51). A segunda iniciativa incide diretamente sobre o nível de
bem-estar e conforto dos cidadãos dos países ricos.
Compete a cada um examinar a própria consciência, que agora fala com voz
nova para a nossa época. Estará o rico pronto a dar do seu dinheiro, para
sustentar as obras e missões organizadas em favor dos mais pobres? Estará
disposto a pagar mais impostos, para que os poderes públicos intensifiquem os
esforços pelo desenvolvimento? A comprar mais caro os produtos importados,
para remunerar com maior justiça o produtor? E, se é jovem, a deixar a pátria,
sendo necessário, para ir levar ajuda ao crescimento das nações novas? (PP, nº
47)
Antes, Pio XII já tinha dito que “deve haver uma colaboração fraterna entre os
povos” (LS, nº 15). E João XXIII, retomando o mesmo pensamento, convida os povos
ricos não esquecerem a situação dos membros de outros países que lutam contra a
indigência, a miséria e a fome, afinal, são todos “membros de uma só família” (cf. MM,
nº 154). Ou quando o mesmo papa fala na Pacem in terris que as diferenças entre as
nações - um dado da realidade que não poderia ser escondido -, não pode ser uma fonte
de dominação: “essa superioridade implica uma obrigação social mais grave para ajudar
os demais a conseguirem, com o esforço comum, a perfeição própria” (PT, nº 87). Além
de sublinhar o dever de todos os povos de colaborar para o bem dos demais e de
contribuir positivamente para o desenvolvimento, que “permita aos seus cidadãos levar
uma vida mais de acordo com a dignidade humana” (PT, nº 122). Estas ações, no
entanto, devem respeitar a dignidade, a cultura e a idiossincrasia dos diferentes povos,
para que eles não sejam meros receptores ou executores mecânicos, mas protagonistas,
autores de um processo de desenvolvimento humano integral. Assim, a solidariedade é
entendida como caminho para a paz e para o desenvolvimento (cf. SRS, nº 39).
O Princípio de Solidariedade encontra a sua defesa na consciência religiosa,
transformando-a de filantropia em caridade. Observa João Paulo II a importância de
despertar a consciência religiosa dos homens e dos povos, a fim de realizar uma
sociedade à medida do homem (cf. SRS, nº 39).
E, de fato,
à luz da fé, a solidariedade tende a superar-se a si mesma, a revestir-se das
dimensões especificamente cristãs da gratuidade total, do perdão e da
reconciliação. O próximo, então, não é só um ser humano com os seus direitos e
a sua igualdade fundamental em relação a todos os demais, mas tornando-se a
imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objeto
da ação permanente do Espírito Santo. Por isso, ele deve ser amado, ainda que se
122
inimigo, com o mesmo amor com que o ama o Senhor e é preciso estarmos
dispostos ao sacrifício por ele, mesmo ao sacrifício supremo: “dar a vida pelos
próprios irmãos” (idem).
Quer dizer, a condição econômica inferior também não pode ser utilizada como
um esconderijo ou uma desculpa para a pessoa não agir de maneira solidária, ou para o
mais forte não deixar o mais fraco agir. Afinal, a solidariedade é uma “exigência direta
da fraternidade humana: solidariedade dos pobres entre si; solidariedade com os pobres,
para a qual os ricos são convocados; solidariedade dos trabalhadores e com os
trabalhadores” (Libertatis conscientia, nº 89).
Para ser eficaz a nível social e internacional, a solidariedade deve se organizar
de forma metódica e racional e sua prática deve enquadrar-se dentro de uma normativa
legal. A prática desta solidariedade é possível, como mostra a crescente consciência de
solidariedade entre os pobres que, conforme indica João Paulo II, constitui uma grande
força para destruir os “mecanismos perversos” e “acabar com as estruturas de pecado”
(SRS, nº 40).
Viver a solidariedade significa entrar num sério processo de conversão pessoal e
comunitária, superando as duas formas de pecado mais graves: a avidez do lucro e a
123
de modo que o bem comum possa ser conseguido com a contribuição de todos. Tanto o
Estado como a sociedade “têm seu fundamento, seu fim e seu princípio em promover a
conservação, desenvolvimento e perfeição da pessoa humana em cada um dos seres
humanos” (SANCHEZ AGESTA, 1992, p. 161). O bem comum, portanto, é um bem de
que todos participam.
Além disso, o bem comum indica fins e metas ideais a serem alcançados por
uma determinada sociedade: “(...) meta ideal, como uma ideia normativa que descreve a
ordem de uma cidade perfeita, em que todas as instituições jurídicas e sociais, assim
como a moral e os usos públicos, permitam e favoreçam esse desenvolvimento integral
da pessoa” (SANCHEZ AGESTA, 1992, p. 89).
Maritain (1962) afirma:
É preciso ainda o conhecimento das técnicas úteis ao serviço do bem comum;
mas é preciso também e sobretudo o conhecimento dos valores humanos e
morais comprometidos nesse bem comum, o conhecimento do campo de
realização social e política, e, se posso dizer, da fisionomia política da justiça, da
amizade fraternal, do respeito da pessoa humana e das outras exigências da vida
moral (p. 85).
Finalmente, cabe notar que para a DSI, para se atingir o bem comum, há que se
respeitarem os seguintes critérios: a destinação universal dos bens e a opção preferencial
pelos pobres. Nesse sentido é interessante ressaltar o trabalho desenvolvido pela ATST
para o acesso a terra e à moradia e como eles encaram a pobreza, aspectos que
estudaremos mais para frente em nosso trabalho.
Sobre a destinação universal dos bens, os bens criados pelos seres humanos, ou
os bens dados por natureza, se destinam a todos os homens. Como nenhum de nós vive
isolado, os bens de que dispomos são antes de tudo de todos e não devem ser
considerados pessoais, senão secundariamente. Ou seja, todo homem deve ter a
possibilidade de usufruir o bem estar necessário para o seu pleno desenvolvimento. Não
significa, no entanto, que tudo esteja à disposição de cada um ou de todos, ou que a
mesma coisa sirva ou pertença a todos. Para assegurar o exercício ordenado e equitativo
é necessária uma ordem jurídica que determine este exercício (cf. CDSI, nº 173). Além
disso, os cristãos são incentivados a pensar políticas públicas que sejam expressão desse
valor eminente de humanidade que é a promoção de uma sociedade solidária, tanto na
produção como na distribuição dos bens sociais. Na sua ação política e social, os
cristãos são convidados a se “inspirar no Evangelho das bem-aventuranças, na pobreza
de Jesus e na sua atenção aos pobres, tendo em vista não apenas a pobreza material, mas
as numerosas formas de pobreza cultural e religiosa” (CDSI, nº184).
Sobre a opção preferencial pelos pobres, significa que eles têm a preferência da
solicitude social da Igreja Católica, não porque possuem uma dignidade maior que os
outros homens, mas porque são mais necessitados de ajuda devido à miséria imerecida
e/ou à dignidade lesada. Portanto, não se trata de uma opção exclusiva, mas apenas
preferencial. Esse critério não é um obstáculo, mas um incentivo para melhor e mais
rapidamente alcançar o bem comum universal.
No capítulo 14 do documento de Medellín podemos ler:
Em suma, a opção pelos pobres significa tomar partido por alguns para
conseguir maior justiça para todos. Assim, entendendo-se o bem comum como a
qualidade ética da vida na prática das relações interpessoais, compreende-se que se deva
materializar na justa partilha dos bens sociais, quaisquer que sejam eles, pois essa justa
partilha dos bens sociais é expressão concreta da destinação universal dos bens,
especialmente para os mais necessitados.
Nos últimos capítulos dessa tese, quando tratarmos especificadamente da
experiência da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo, veremos como
esse movimento trabalha os pontos levantados neste capítulo: tanto se favorece laços de
confiança entre os associados e destes com os coordenadores, qual o relacionamento
social estabelecido e se existe um acompanhamento pessoal com os associados por parte
da liderança, favorecendo uma experiência real de solidariedade.
CAPÍTULO 4
1. Participação popular
Segundo Rommen (1967), o indivíduo tem competências que lhe são próprias
naturalmente, devendo ele mesmo, por sua iniciativa e com suas forças, cumpri-las, sob
pena de esvaziar-se a própria natureza humana. É a filosofia da ação, que enfatiza a
responsabilidade pessoal e consagra a substância autônoma do indivíduo ao considerá-
lo responsável por seu próprio destino. Ela incentiva a pessoa a realizar certas
atividades, a agir, pois apenas com ação é que o homem participa integralmente dos
bens humanos. De modo que a sociedade política não deve privar a pessoa da atividade
que lhe cumpre realizar por si mesma, sob pena de anular sua existência.
Significa ver em cada homem um ser consciente, capaz de agir de forma racional
e responsável, e não um simples objeto a receber passivamente benefícios e atenções
concedidos pelo Estado.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, três artigos tratam do tema da
participação. No artigo 21 podemos ler: “Todo homem tem direito de tomar parte no
governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente
escolhidos. A vontade do povo será a base da autoridade do governo”. No artigo 23:
“Todo homem tem direito de organizar sindicatos e neles ingressar, para a proteção de
seus interesses”. E, por fim, no artigo 27: “Todo homem tem direito de participar da
vida cultural da comunidade”.
Ou seja, a participação é um dever a ser conscientemente exercitado por todos,
de modo responsável e em vista do bem comum (cf. CEC, nº 1913-1917).
Para a participação se efetivar é necessária uma sociedade livre, que garanta a
liberdade e autonomia individuais. Mas uma sociedade livre não fundamentada no
individualismo atomizante, e sim na natureza social do homem. Natureza social que o
leva a associar-se espontaneamente para realizar seus objetivos que não conseguiria
resolver sozinho.
isto é, pessoas que não fazem parte de uma organização social encontram mais
dificuldade para se expressar, seja pela falta de prática, seja pela falta de confiança.
Os indivíduos, ao participarem de grupos de base, associações, movimentos
sociais, cooperativas, sindicatos, fóruns, conselhos, entram na discussão dos problemas
comuns e de suas propostas de solução, se envolvem com tarefas cotidianas da
organização coletiva, passam a ter informações, percebem as diferenças, disputas e
conflitos internos, tendo que se posicionar sobre as mais diferentes questões. Começam
a agir coletivamente, movidos pelos interesses individuais, que aos poucos, passam a
estar subordinados aos interesses coletivos. Passam então a interagir com outros
sujeitos, tanto da sociedade civil como do Estado, aprendendo a identificar posições, a
defender ideias e proposições, a pressionar e negociar (ANTONELLI e NOSVELLI,
2003).
Em todas as modalidades de participação é representado um processo de
intervenção de setores interessados da população que passam da posição de
espectadores passivos à de participantes ativos do respectivo processo social. Eles
podem influir na marcha dos acontecimentos e no processo e rumos do
desenvolvimento, tomando em suas mãos a própria história.
De acordo com Montoro (1991), reunidos em movimentos sociais ou
associações locais, esses grupos atuam: (i) como representante geral da comunidade; (ii)
como grupo de reivindicação de benefícios e serviços coletivos; (iii) como grupos de
execução direta, coordenação ou fiscalização de alguns desses serviços; (iv) como
formador de uma consciência comunitária; e (v) como espaço de integração da
população no processo de desenvolvimento.
A participação surge da necessidade, da luta e conquista do ser humano em fazer
parte da sua história, de poder conduzir o seu destino de maneira digna, construindo,
usufruindo, fiscalizando e gerenciando os bens comuns, e auxiliando a administração
pública a cuidar do interesse coletivo.
O sentimento de participação é um dos mais poderosos elementos propulsores da
atividade humana. “É ele que entusiasma e anima a ação dos construtores de uma obra
coletiva, seja uma casa, uma represa, uma catedral ou uma cidade” (MONTORO, 1991,
p.12).
Montoro (1991) indica cinco razões para a importância da participação popular:
a) as decisões e os programas são enriquecidos pelo conhecimento e experiência de
muitas pessoas; b) por isso, há maior probabilidade de corresponder às necessidades
135
decisões a serem tomadas, assim como conselhos, associações etc., que permitam um
controle mais efetivo. Bresser Pereira (1999, p. 19) afirma que “a democracia tem que
ser aperfeiçoada para tornar-se mais participativa e mais direta”. Adquirem respaldo,
então, medidas como referendo, iniciativa popular, recall etc.
Boaventura de Sousa Santos (2005), defensor da democracia participativa como
instrumento de participação popular na tomada de decisões políticas, afirma:
pelo fenômeno segundo o qual “os indivíduos mais diversos tornam-se iguais na medida
em que sofrem a mesma carência e, agindo em conjunto, (...) vivem a experiência da
comunidade” (MOISES, 1981, p. 28). A segunda é relevante “para a constituição efetiva
de um ator coletivo, capaz de ação concertada” (SOMMARIBA, 1992, p.8),
dependendo, em boa medida, dos graus de eficácia que puderam ser alcançados.
Ao tornarem-se “sujeitos de sua própria história”, os movimentos sociais
urbanos encontram-se na mesma sociedade, com as mesmas carências, e lutam para
supri-las; mas o modo como os movimentos sociais fazem ou a importância relativa
atribuída aos diferentes bens reivindicados dependem de algumas características: da
identidade do grupo - se são membros do sindicato, da Igreja, militantes de um partido;
do modo como articulam objetivos “práticos” a valores (SADER, 1988) que dão sentido
ao grupo - não quer conflitar politicamente, ou quer etc.; e, sobretudo, das experiências
vividas. Pois são das experiências que derivam as formas do grupo se identificar,
reconhecer seus objetivos e inimigos, e o mundo que o envolve.
Em suma, os movimentos sociais urbanos são os que buscam traduzir uma luta
pela melhoria das condições de vida, apresentam-se como resposta à omissão da atuação
estatal e têm um efeito de conscientização de todos quanto a um horizonte político de
reivindicações de melhoria das condições de vida. A Associação dos Trabalhadores Sem
Terra de São Paulo nasce dessas condições.
Essas considerações mostram que a responsabilidade vai além da esfera da
sociedade política, vivida na relação entre Estado e sociedade. Ao ampliar o espectro da
política - incorporando novos temas na agenda política e atuando no plano institucional
e extra-institicional - é necessário destacar também, segundo Scherer-Warren (2008),
que os movimentos sociais urbanos têm a sua frente alguns desafios a serem
trabalhados: 1) Superação do discurso apenas denunciativo em troca de um
posicionamento mais propositivo. Não se coloca mais o “outro” como vilão, inimigo,
enquanto os movimentos são as eternas vítimas do sistema. Parte-se para uma relação
muito mais de composição do que de oposição; 2) Superação do sectarismo. A
articulação e a troca de experiências e valores comuns entre os grupos enriquecem suas
ações e deixa-os mais aptos para enfrentarem as diferentes dificuldades, que são comuns
a vários grupos; 3) Superação do corporativismo e do separatismo. O que de certa forma
relaciona-se com o ponto anterior, no sentido de uma crescente abertura dos grupos em
direção a outros grupos. Formando um sujeito cada vez mais plural e aberto e, portanto,
140
17
“A tradução é o procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do
mundo, tanto as disponíveis como as possíveis, reveladas pela sociologia das ausências e a sociologia das
emergências” (SANTOS, 2008, pp. 30-31).
143
trabalho, ecologia, direitos humanos etc. -, ora uma plataforma de luta política mais
ampla - a altermundialização, a soberania nacional, um projeto de nação, ou a luta
contra o neoliberalismo, contra a hegemonia mundial do capitalismo, às guerras
imperialistas, contra o monopólio dos meios de comunicação, dentre outras -, indicando
uma relativa volatilidade das redes, mas também sugerindo indícios de sua capacidade
de abertura ao pluralismo democrático (SCHERER-WARREN, 2008).
Um exemplo dessa rede é a Via Campesina, rede de movimentos sociais rurais
em vários continentes na luta antissistêmica ao modelo do agronegócio, que se expandiu
no contexto das realizações do Fórum Social Mundial, criou seu espaço próprio de
articulação política global e na América Latina.
Porém, ainda de acordo com a autora, o encontro e, frequentemente, o
desencontro dos códigos culturais, dos interesses particulares e das concepções político-
ideológicas de diferentes organizações na rede, são produtores de tensões e conflitos
internos nem sempre superáveis, pelo menos, de imediato. Esse é o desafio atual.
Assim, esta condição, por um lado, gera tensões e ambiguidades no interior das redes,
mas, por outro, cria um espaço propício para a alteridade inter-sujeitos. O pluralismo
das tradições organizativas, oriundas de métodos de trabalho diferenciado, gera
necessidade de negociações e de reconhecimento mútuo de suas diferenças no interior
da rede.
Portanto, é neste embate, entre respeito à diversidade - dentro de determinados
limites ideológicos, naturalmente - e a busca da unidade possível na ação - não
necessariamente homogênea, mas complementar -, que as redes de movimentos sociais
vêm construindo suas trajetórias. Desta forma, o ideário de horizontalidade
organizacional é permeado pela existência de elos internos que atuam a partir de
representações políticas formalmente mais hierarquizadas.
A partir dos vínculos sociais, inter-individuais e inter-organizativos, as redes de
movimentos desenvolvem seus processos mobilizatórios em espaços locais, mas de
forma articulada, buscando visibilidade e impacto midiático para além do local, para os
espaços nacionais e internacionais. É a partir deste encontro de uma pluralidade de
demandas, de lutas por reconhecimentos específicos, de definição de conflitos e de
adversários particulares e sistêmicos e à luz de um projeto popular mais amplo de
integração latino-americana, que contemple a participação política e autônoma dos
sujeitos coletivos, que os movimentos populares, por meio de suas redes, vêm se
144
sociedade como um todo. O Estado encontra-se a serviço do bem comum, que é ajuda
para que os membros da comunidade se desenvolvam sob sua própria responsabilidade
e autodeterminação.
Para Vittadini (2011), o princípio vem equilibrar a liberdade, detendo o indevido
intervencionismo estatal em áreas próprias da sociedade e convocando o Estado a
ajudar, promover, coordenar, controlar e suprir a atividade do pluralismo social.
Em suma, a função subsidiária deve se manifestar primeiro como ajuda,
mediante a criação de condições necessárias que possibilitem a ação das comunidades
intermediárias e, depois, excepcionalmente, como suplência, suprindo a insuficiência
dos grupos sociais, quando estes não puderem satisfazer adequadamente suas funções.
Em linhas gerais, Gutierrez (1995) afirma:
Foi com a Doutrina Social da Igreja Católica que nasceu a concepção moderna
do Princípio de Subsidiariedade, objetivando-se alcançar o equilíbrio entre um Estado
totalitário e um Estado mínimo. É a partir daí, então, que a ideia de subsidiariedade tem
sua formulação mais precisa.
O Estado na concepção cristã, segundo Rommem (1967), é posterior à pessoa,
tem como direção o bem comum e implica em proteger a dignidade da pessoa humana e
facilitar a cada homem o cumprimento de seus próprios deveres. A sociedade e a ordem
política e econômica têm seu fundamento, seu fim e seu princípio em promover a
conservação, desenvolvimento e perfeição da pessoa humana em cada um dos seres
humanos.
Na Encíclica Rerum novarum, a ideia de subsidiariedade apareceu pela primeira
vez, embora não explicitamente. Leão XIII demonstra que o homem é senhor de suas
ações e por isso tem direito de escolher as coisas que julgar mais aptas, para prover o
seu sustento presente e futuro. Afirma que não se pode apelar para a providência do
Estado, porque este é posterior ao homem, e antes que ele pudesse se formar já o
homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência.
O fim da sociedade civil abrange universalmente todos os cidadãos, pois este fim
está no bem comum, isto é, num bem no qual todos e cada um têm o direito de
participar em medida proporcional (...). Os poderes públicos não podem, pois,
legitimamente, arrogar-se nenhum direito sobre elas [comunidades
151
Quarenta anos depois, o papa Pio XI, na encíclica Quadragesimo anno, alega:
uma estrutura social de ordem superior não deve interferir na vida interna de um
grupo social de ordem inferior, privando-a de suas competências, senão que deve
apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar sua ação com os demais
componentes sociais, com vistas para o bem comum (...). As funções de
suplência são reconhecidas em geral ao Estado em situações excepcionais, por
razões urgentes de bem comum, quando os chamados naturalmente a cumprir as
competências de que se trate não estejam em condições de fazê-lo. Por isso,
devem ser limitadas no tempo, para não privar indefinidamente as competências
de ditos setores sociais (CA, nº 48).
João Paulo II ainda afirma: “As relações dos poderes públicos com os cidadãos, as
famílias e os corpos intermediários devem ser regidas e equilibradas pelo Princípio de
Subsidiariedade” (CA, nº 48).
Já Bento XVI diz:
É verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a prossecução da justiça
e que a finalidade de uma justa ordem social é garantir a cada um, no respeito do
Princípio da Subsidiariedade, a própria parte nos bens comuns (...). Não
precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que
generosamente reconheça e apoie, segundo o Princípio de Subsidiariedade, as
iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e
proximidade aos homens carecidos de ajuda (DCE, nº 26-28).
Por fim, em Caritas in veritate Bento XVI sintetiza bem os principais pilares da
subsidiariedade:
153
Católica, sociedade fechada – e cuja aceitação da sua finalidade específica é aceita por
quem se associa e participa dela.
Quer dizer, cada pessoa pode escolher se associar com aqueles que mais se
identifica ou escolher o serviço oferecido por um grupo que mais lhe agrada, que tem
mais a ver com suas características e/ou seus ideais.
Já o segundo valor a que a subsidiariedade se vincula é a justiça, na medida em
que reclama a competência originária das pessoas, da família e dos grupos sociais
menores, declarando ser injusto requerer que eles sacrifiquem a própria iniciativa para
tornarem parte da iniciativa pública. Aliás, como vimos, a DSI também proclama como
injustiça subtrair aos membros da sociedade o que eles podem fazer por iniciativa e
capacidade próprias.
155
Como vimos no segundo capítulo, este princípio afirma que o homem é um ser
racional, essencialmente social e político, e moralmente livre. É necessariamente
fundamento, causa e fim de todas as instituições sociais. Nesse sentido, sendo a pessoa
limite e fundamento da organização política, é esta que serve o homem e não o homem
que serve os aparelhos políticos organizatórios, de modo que o homem não pode ser
mero objeto da ação estatal, e a ordem jurídica deve girar em torno dele.
O Princípio de Subsidiariedade parte do ser humano como valor supremo e
encontra seu fundamento na natureza humana, tendo como referência o valor ético e o
direito de autodeterminação da pessoa que, por causa de sua dignidade, se sobrepõe ao
poder estatal impedindo-o de invadir sua esfera. Por isso, deve o homem desenvolver-se
segundo sua própria natureza e realizar seus encargos vitais.
A origem do Princípio da Dignidade Humana está na responsabilidade pessoal,
porque as demandas sociais requerem que a pessoa aja, realize certas atividades. Essa
pessoa é dotada de liberdade, autonomia e criatividade. E é anterior ao Estado.
b) Bem Comum
c) Pluralismo Social
Estado e ele não pode negar-lhes legitimidade – apenas quando vão contra o bem
comum.
À comunidade política, mediante normas com que os regula, confere certa
unidade a este complexo e mantêm as tensões que podem surgir entre os grupos em
níveis toleráveis.
d) O Princípio de Solidariedade
5. O Estado subsidiário
O valor público de um homem, aquele que lhe é atribuído pelo Estado, é o que os
homens vulgarmente chamam dignidade. E esta sua avaliação pelo Estado se
exprime por meio de cargos de direção, funções judiciais e empregos públicos,
160
Quer dizer, Hobbes reduz a dignidade humana como algo que é reconhecido
pelo Estado, depende dele. O reconhecimento e a prevalência do direito jusnatural
levariam ao individualismo e a vida em sociedade seria inviável. Cabe lembrar que
Hobbes concebe o homem como incapaz de se organizar e de construir o futuro da sua
comunidade em mútua cooperação – afinal, é o “homem lobo do homem”. Assim, para
assegurar a ordem e o pacto social entre eles é necessária a figura externa, forte e
impositiva do Leviatã.
Sorge (1998) mostra como a relação entre Estado e pessoa deve respeitar a
condição ontológica da pessoa, para assim experimentar o bem comum.
161
(...) afirmar que “o Estado é posterior ao homem” significa realmente aceitar que
no centro do sistema está a pessoa humana com os seus direitos e seus deveres, a
começar pelo direito à vida, que é o fundamento de todas as liberdades
fundamentais do homem: a liberdade de pensamento e de consciência, de
educação e de associação, inclusive o direito ao trabalho e todos os outros
direitos civis. (...) tanto o Estado como a sociedade deverão buscar o bem
comum, subordinando-o sempre à plena realização da pessoa. Portanto, a
sociedade e o Estado podem sim dispor da atividade da pessoa para a consecução
das metas comuns, mas jamais podem dispor da própria pessoa, nem da vida do
homem, pois esta é o fundamento de todos os outros direitos. Por isso, os limites
morais e jurídicos que daí derivam não prejudicam nem os poderes públicos,
nem o desenvolvimento, nem o progresso da pesquisa científica, mas são
simplesmente garantia de civilização. De fato, a pessoa humana tem em si valor
de fim e jamais poderá, em qualquer caso e por qualquer razão, ser considerada e
tratada como um empecilho. (...) Com maior razão, o Estado e a sociedade não
poderão nunca violar esses limites éticos, aos quais está sujeita a própria pessoa
(p. 113).
Assim, o Estado seria responsável pela supervisão e pela regulação das políticas
públicas, mas seria menos realizador, pois a realização estaria a cargo dos sujeitos
coletivos. É sob este prisma que devemos analisar o papel do Estado subsidiário: as
responsabilidades devem sempre que possível ser assumidas pelas organizações
menores, o Estado só atuando quando aquelas não puderem realizar algo com eficiência.
Em suma, para finalizarmos, o Princípio de Subsidiariedade legitima a relação
entre uma sociedade organizada, autônoma, forte e participante e de um Estado
transparente, desregulado e desburocratizado. A subsidiariedade conduz ao
fortalecimento das comunidades intermediárias, entre elas os movimentos sociais, à
participação dos sólidos corpos sociais no processo decisório estatal, à recuperação da
família como sociedade natural mais próxima aos indivíduos e, finalmente, à
conscientização da sociedade dos interesses metaindividuais que lhe tocam.
Ao longo do capítulo, procuramos demonstrar o que o Princípio de
Subsidiariedade, junto à participação, propõe como mudança e como função do Estado
moderno, de modo a concorrer para a consecução de valores como a dignidade humana,
liberdade, igualdade e justiça social. Ambos buscam a valorização das pessoas e dos
grupos intermediários e o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.
Para a DSI, o ator principal é justamente a sociedade civil, e a subsidiariedade se
aplica quando tudo o que pode ser resolvido a nível local, comunitário, municipal, não
precisa do Estado federal ou regional. Nos próximos capítulos, veremos como a
Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo trabalha essa questão e qual o
seu relacionamento com o Estado. E mais: veremos como se dá sua participação na
sociedade e internamente, além de verificar se sua experiência favorece a liberdade e a
autonomia de seus associados.
Capítulo 5
***
166
Na década de 1970, o Brasil foi caracterizado por uma retomada econômica que
desencadeou um clima de esperança, um desejo de democracia e de participação da
população na sociedade e na política. Nesse contexto, nasceram muitos movimentos
populares que, dotados de certa organização, fizeram-se porta-voz das novas questões
sociais, dentre elas o direito a moradia, alimentação, serviços públicos e direitos básicos
(GOHN, 1995). Diversos partidos políticos, como o Partido dos Trabalhadores (PT) e o
então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), se interessaram por essa nova
realidade social permitindo que os vários movimentos conseguissem voz dentro da
política.
As relações entre os movimentos sociais de habitação e as instituições políticas
foram caracterizadas por três fases distintas: reivindicativa e anti-institucional, nos anos
70; pró-ativa e colaborativa, no início dos anos 80; e, novamente, reivindicativa, até
final dos anos 80. Essa última mudança de atitude aconteceu em função, principalmente,
do insucesso no diálogo com as instituições públicas. Por sua vez, esse insucesso fez
com que os líderes dos movimentos sociais criassem a União dos Movimentos de
Moradias de São Paulo (UMM)18 e, a partir de então, levou a um grande número de
ações, com ocupação de terras de propriedade pública e privada, principalmente entre os
anos 1987 e 1988.
A Igreja Católica, por meio de sua ação pastoral, acompanhou de diversos
modos o caminho de muitas associações e movimentos. Em torno dela e dos partidos
políticos nasce, por exemplo, em 1978, o Movimento de Defesa dos Favelados
(MDF)19. A ocasião que levou ao surgimento da Associação dos Trabalhadores Sem
Terra de São Paulo, objeto deste capítulo, foi inclusive uma iniciativa lançada pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB): a Campanha da Fraternidade de
18
A União dos Movimentos de Moradia (UMM) começou a ser articulada em 1987 por um grupo de
líderes e apoios institucionais (pastorais da Igreja) e políticos (principalmente do PT). A partir da região
leste, com o apoio da estrutura descentralizada da Pastoral da Moradia, este grande movimento social se
estendeu para outras regiões da capital paulista e interior, chegando a reunir mais de 60 grupos e
associações de moradores, num universo estimado pela UMM em mais de 20 mil famílias. Grupos
populares de cidades como Diadema, Santo André, São Bernardo do Campo, Mogi-Guaçu, Osasco,
Franco da Rocha, Francisco Morato, Hortolândia, Paulínia, Jundiaí, Carapicuíba, além de São Paulo,
passaram a fazer parte da UMM.
19
O MDF nasceu em 1978 a partir de lutas por melhorias de uma favela no município de Santo André.
Sua expansão pela cidade de São Paulo e região metropolitana foi rápida e, por meio de sua ação de
mobilização, conseguiu evitar, por diversas vezes, despejos de favelas. Muitas mobilizações, também,
referiam-se a demandas específicas, em particular à instalação de água e luz. Esse movimento recebeu
apoio das Pastorais da Moradia.
167
Por meio delas, há uma nova consciência da realidade, que impulsiona para uma
participação mais ativa.
A CEB estimula a compreensão racional dos fatos, de modo que seus membros
adquirem a consciência dos interesses que estão em jogo na sociedade e da
influência que esses interesses exercem nas decisões do governo e de seus
funcionários, ou dos empresários, como classe, ou como pessoas individuais. A
partir da compreensão da convergência ou divergência de interesses, desenvolve-
se uma sensibilidade nova em função da qual se reestruturam as solidariedades,
168
pelo pobre, a inclusão social, o papel social da igreja. E a partir daí o grupo de
jovens da paróquia se dividiu em três grupos: um grupo começou a trabalhar com
educação; outro grupo com o mundo do trabalho e outro com habitação, mais
especificadamente nas favelas. Fiquei no grupo da habitação e acabei indo para
as favelas. Comecei a trabalhar na Pastoral da Moradia (Marcos Zerbini,
fundador da ATST).
Dessa reflexão, passava-se para a síntese: agir. Qual é a forma ou formas para
enfrentar o problema analisado? Qual será o planejamento? Era a conclusão sobre o que
as pessoas poderiam retirar diante do problema. Por fim, os representantes das
comunidades participavam dos conselhos pastorais que coordenavam a execução do
plano pastoral no âmbito da paróquia.
Esse processo de ver-julgar-agir poderia levar muito tempo para se transformar
em ação efetiva. Durante todo o processo eram realizadas reuniões, visando a avaliar a
execução dos trabalhos realizados, as dificuldades encontradas e as possibilidades
abertas para o futuro.
Em linhas gerais, as melhoras conseguidas no processo fortaleciam os laços de
solidariedade local e apontavam para a possibilidade da ampliação do horizonte de
consciência dos participantes e a capacidade de organização das camadas populares
marginalizadas, a partir da percepção da identidade de seus interesses e de seus direitos
em relação às necessidades essenciais básicas.
As pastorais, portanto, faziam a experiência de intervir coletivamente sobre a
realidade dada, ao buscar ações que visavam mudar a realidade tratada, e motivava cada
um dos participantes a engajar nesse processo ao produzir neles uma dimensão crítica e
uma capacitação transformadora.
As pastorais, por fim, com seu trabalho pretendiam ser: presença junto aos
setores mais marginalizados da população; alerta à Igreja e à sociedade sobre a
existência de tal realidade; ação social, que multiplica atividades de conscientização,
organização e transformação; e parceria com outros grupos sociais que querem
transformar a sociedade (CNBB, 2001).
A partir disso, as pastorais sociais desenvolviam atividades de apoio e
solidariedade aos movimentos sociais e à luta por melhores condições de vida e
trabalho. É importante ressaltar que com todo o trabalho das pastorais e das CEBs está
ligado o aparecimento da Teologia da Libertação, um movimento forte principalmente
em toda a América Latina, que valorizou a inserção de padres, freiras e outros agentes
pastorais no meio do povo. Estes agentes pastorais se dedicavam acompanhar e apoiar o
dia-a-dia dos mais necessitados, motivando e dinamizando processos organizativos de
defesa e conquista de direitos, na tentativa de diminuir as injustiças sociais. Esses gestos
também educavam os participantes das próprias pastorais:
171
Essas coisas foram pouco a pouco entrando na minha cabeça e passei a enxergar
o mundo sob essa ótica. Tudo o que fiz até hoje de alguma maneira tem relação
com esse trabalho que fazia [na Pastoral da Moradia], pelo menos foi motivado
por ele (Marcos Zerbini).
implantação em bairros já bem dotados, seja por meio de legislação que favorecia a
especulação imobiliária.
A esse conjunto de fatores relacionados no plano de causa e efeito o documento
reportava-se à existência de uma “economia de mercado” responsável dessa situação. A
economia privilegiaria certos setores produtivos, o que gerava desconfiança e fazia com
que os investimentos dirigiam-se à especulação imobiliária. O modelo econômico
vinculado à economia internacional teria um duplo problema: incentivaria o privilégio
externo e priorizaria a industrialização capitalista em detrimento de setores mais
carentes. Em determinados momentos, grupos sociais vinculados ao capital imobiliário
seriam os responsáveis pelos problemas da cidade, em outros, seria o modelo
econômico tomado em seu conjunto e responsabilizado como causador de prejuízos
generalizados a todos os cidadãos. Seria um processo econômico que funcionaria como
um jogo em que todos perdem. “Todos perdem com a redução da riqueza social
produzida, embora os pobres sejam os mais sacrificados” (p. 14).
De maneira geral, o raciocínio que se traduz no “ver” ligava esses fatores da
seguinte maneira: situação no campo – urbanização – especulação imobiliária –
problema habitacional.
Outro ponto relevante do documento é a percepção da cidade como possível
espaço de convivência solidária. Esta percepção remete à família, trabalho, propriedade
e moradia. O trabalho é visto como um serviço para quantos habitam a cidade. “Todos
os habitantes da cidade devem contribuir por seu trabalho para a prosperidade da
mesma. Portanto, têm direito aos bens e serviços por ela proporcionados” (p.26).
A cidade, como centro organizador de atividades, supõe um lar com moradia
adequada. Daí o uso do solo urbano surgir como condição e requisito indispensável à
sobrevivência da família. “O acesso à moradia, por sua vez, está vinculado ao direito e
ao dever do trabalho. Ensina João Paulo II, resumindo os ensinamentos da Igreja através
dos séculos, que ‘o trabalho constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida
familiar que é um direito fundamental e uma vocação do homem’” (p.27). Na medida
em que Deus destinou a terra para todos, todos têm o direito de possuir a propriedade
individual, sempre guardando o uso comum dela. “Ninguém tem direito de reservar para
seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário” (p.25).
Por fim, a concepção da Igreja sobre justiça e bem comum e as saídas jurídicas
para resolver os problemas da cidade são outros pontos importantes que foram
discutidos: “Não basta denunciar a realidade. É mister transformá-la à luz dos princípios
173
e normas do Evangelho” (p. 35). A proposta transformada pode ser percebida em dois
níveis: a partir do processo de conscientização da população e a partir de recursos
jurídicos. O documento enfatizava a necessidade de uma reforma urbana que permitia
resolver as formas de destinação do solo urbano e propunha um Estatuto do solo urbano
nos mesmos moldes do Estatuto do solo agrícola.
Ao final, citava cinco propostas para solucionar os problemas da urbanização:
justa distribuição social do solo urbano; regularização das áreas de ocupação sem
obrigação de pagamento do morador nas áreas ocupadas; urbanização de acordo com os
recursos financeiros disponíveis em cada área; incentivos a soluções que adotam o
mutirão ou autoconstrução; e, por fim, apoio às associações comunitárias urbanas que
executam projetos de urbanização. Como pano de fundo, sempre está a defesa do direito
de moradia e justa distribuição do solo urbano para que haja uma política humana de
urbanização.
Outro exemplo de apoio da Igreja aos movimentos de moradia, além deste
documento, foi o calendário pastoral, que tinha em sua programação temas relativos à
moradia e às condições de vida. Ou ainda, o apoio estrutural da Igreja, com disposição
das paróquias e reuniões, para divulgação do trabalho deles, assim como o auxílio em
campanhas de coletas de assinatura.
Além da estrutura das pastorais sociais, a Igreja ajuda através das Campanhas da
Fraternidade, em que cada ano, durante a quaresma, é contemplado um tema sócio-
econômico-político do país. Em 1986, especificamente, a Igreja Católica organizou a
Campanha da Fraternidade com o tema “Fraternidade e Terra”, cujo lema era “Terra de
Deus, terra de irmãos”, que colocava à tona a crise habitacional. Com a discussão
colocada pela Igreja, vários movimentos sociais de habitação passaram a se articular
entre si, o que ocasionou o surgimento da União dos Movimentos de Moradia de São
Paulo, e várias ações coordenadas por toda a região metropolitana de São Paulo, a fim
de chamar a atenção para o problema.
Além da discussão dos problemas para organizar a população, a Igreja atuava em
situações de conflitos que demandavam caráter defensivo por parte dos movimentos.
Ela se tornou muitas vezes mediadora junto aos órgãos públicos.
Assim, por parte da Igreja, houve sempre um apoio e animação aos movimentos,
expressos nas formas de conscientização, mobilização e organização do povo. A Igreja
contribuiu com a formação de centenas de agentes, lideranças críticas e responsáveis, e
permitiu um conhecimento maior da realidade social.
174
2. A história da ATST
1. Algumas informações estão contidas em um livro de caráter documentário (Dantas, 2007), em nossa
dissertação de mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(Marcoccia, 2007) e em algumas entrevistas e depoimentos dados pelos líderes do movimentos.
175
Cleuza Ramos nasceu em 1954 em Espírito Santo do Pinhal - entre São Paulo e
Minas Gerais. Quando tinha oito anos, se mudou com a sua família para um bairro
pobre da cidade de São Paulo. Aos dez anos, depois da quarta série do ensino
fundamental, em razão das dificuldades de trabalho do pai analfabeto, Cleuza começou
a trabalhar como empregada doméstica.
Um pouco mais tarde, ela começa a participar frequentemente nas reuniões dos
moradores do bairro, nas quais se discutiam as modalidades para a obtenção das
infraestruturas necessárias - transportes, escola, água e luz. O desejo de resolver os
problemas concretos das pessoas a levou a um envolvimento pessoal em algumas das
atividades sociais de sua paróquia: ela começa a ajudar a registrar as crianças na favela
de Monte Alegre, a distribuir alimentos e a levar remédios tanto para a favela quanto
para os sem teto.
Dois fatos fizeram com que Cleuza amadurecesse a decisão definitiva de
dedicar-se à ação social. Certa vez, ela hospedou na sua casa uma mulher, moradora da
favela, que precisava de cuidados, e cujas condições foram melhorando, de modo que
Cleuza a levou de volta para a favela com provisões suficientes para a sua manutenção.
Mas a mulher preferiu deixar-se morrer pela dor da separação: “Morreu! Os vizinhos
lhe haviam trazido café, água, mas ela não quis nada”. Naquele dia, Cleuza disse: “Não!
Não posso deixar morrer uma pessoa deste jeito. Entendi que na minha vida eu devia
dedicar-me a ajudar pessoas como S., não podia mais voltar atrás”.
O segundo fato foi o encontro com um sacerdote português que, muito
impressionado pela forte personalidade da Cleuza, lhe disse: “Minha filha, não deixe
que alguém te corte as asas. Você tem uma missão. Você irá voar nas alturas”. Por
ocasião da Campanha da Fraternidade de 1986, o pároco pediu à Cleuza que o ajudasse
a dar início a uma ação pastoral em razão dos problemas de moradia, como já se fazia
em outras áreas de São Paulo. Cleuza juntou as pessoas que não possuíam casa -
176
Fomos onde ele se encontrava para ver se podia hospedá-la e ele concordou. Eu
lhe perguntei: “Padre, mas como é que uma filha pode deixar a mãe no olho da
rua? O que Deus quer com isto? Quero entender”. Ele disse uma coisa que me
marcou muito: “Marcos, Deus sempre diz algo para as pessoas, hoje ele está
falando contigo para que você possa ouvir o que ele quer te transmitir”. Depois
de ter saído de lá, entendi que o meu desejo era colocar a minha vida a serviço
das pessoas para que elas pudessem ter uma casa onde morar, e para que não se
repetissem mais situações como aquela que eu havia acabado de ver. Eu tinha a
intenção de continuar meus estudos e formar-me em engenharia eletrônica, mas
o que aconteceu mudou a história da minha vida (Marcos Zerbini).
Junto com os outros jovens da paróquia, Marcos Zerbini começou então a fazer
um trabalho na favela de Vila Prudente e em outra menor, de Saquarema, envolvendo-se
com as pessoas e construindo relações de amizade. Esse trabalho na habitação começou
depois de ter estudado os documentos de Medellín e de Puebla.
Por meio deste trabalho, Marcos Zerbini conheceu um sacerdote irlandês que o
convidou a trabalhar como agente pastoral no Movimento de Defesa dos Favelados.
Marcos Zerbini aceitou e contribuiu para a organização do MDF em aproximadamente
quarenta favelas da região. O trabalho consistia na alfabetização de adultos, em ajudar a
levar infraestrutura básica e em obter as concessões reais de direito de uso, que
impediam que os favelados fossem expulsos dos lugares onde moravam. Para este tipo
de trabalho, o MDF precisava de advogados que pudessem ajudar nas negociações com
o poder público e em defesa dos habitantes.
Por esta razão, Marcos Zerbini decidiu estudar direito: “Na pastoral, a gente
sempre discutia que tínhamos um papel a cumprir, que Deus nos pediu resposta às
177
coisas que aconteciam na nossa vida e que a gente não podia simplesmente dar as costas
e dizer não a isso, a essa realidade”.
Graças às experiências anteriores e aos seus estudos de advogado, Marcos foi
convidado, em 1986, a realizar um estágio na Associação em Defesa da Moradia em
Pirituba, na zona oeste, a fim de ajudar na formação de um movimento habitacional. Foi
quando ele encontrou Cleuza.
A gente falou: “bom, mas se vocês queriam comprar, por que não fazer o
inverso? Vai lá, negocia, compra e depois ocupa uma área comprada por vocês”.
Vamos tentar organizar esse grupo que tem algum recurso, que tem alguma
coisa, e vamos procurar área pra comprar, vamos procurar alguém que queira
vender (Marcos Zerbini).
Assim foi feito e um primeiro terreno foi comprado por dezoito famílias que
tinham dinheiro suficiente. A partir dessa experiência, Cleuza e Marcos começaram a
organizar outros grupos para comprar terrenos que iam aparecendo aos poucos.
Consolidou-se assim a ideia de um novo método para a compra de áreas que permanece
até hoje.
O caminho da ocupação à compra é a primeira grande mudança do método de
ação que Cleuza e Marcos introduzem no seu movimento em relação ao processo
tradicional de ocupação de terra que a UMM e outros movimentos sociais urbanos
utilizavam. É interessante notar que, a priori, tal mudança surge não por uma persuasão,
mas a partir da tentativa de solução de uma situação concreta, procurando a
oportunidade presente no contexto que se encontravam.
A distância de certa posição ideológica e a atenção à situação de vida real das
famílias são testemunhadas tanto pela consideração dos riscos ligados as ocupações, que
tinha levado seu movimento a não aderir a proposta da UMM, quanto pela decisão de
começar a ajudar algumas famílias, sem a pretensão de ter de encontrar imediatamente
uma resposta a necessidade de todos.
21
O FUNAPS foi criado em 1979 pelo prefeito Reynaldo de Barros para os habitantes das favelas.
Durante a gestão de Mário Covas (1983-1985), o programa foi ampliado às áreas privadas compradas e às
novas unidades habitacionais construídas. Na gestão de Jânio Quadros (1986-1989), o programa foi
suspenso e recomeçado na gestão seguinte, a de Erundina, com o novo nome FUNAPS – Comunitário.
179
ATST. Também nesse caso tal mudança não foi planejada, mas foi introduzida como
resposta ao que havia ocorrido. Se de um lado a decisão de não recorrer a
financiamentos públicos permitiu a ATST de implantar um caminho livre das condutas
políticas, de outro, não foi um processo tranquilo e exigiu um empenho muito maior das
famílias envolvidas. No decorrer do tempo, contudo, este procedimento revelou-se
particularmente eficaz, seja pelo tempo utilizado nas construções, seja pela satisfação
das famílias.
Após a compra do terreno e da construção das casas, a ATST teve que enfrentar
o problema de obter a infraestrutura urbana necessária ao bairro - água, luz, saneamento,
asfalto etc. Para isso, foi necessário recorrer a várias manifestações e formas de pressão:
em 1993, os associados enviaram quarenta mil cartas ao governador e outras quarenta
mil ao prefeito de São Paulo; em 1996, a ATST organizou uma manifestação com
cinquenta ônibus em frente ao Palácio do Governo; no mesmo ano, centenas de
manifestantes bloquearam a via expressa da Marginal Tietê; em 1997, três mil pessoas
foram com oitenta e seis ônibus sujos de lama em frente à Prefeitura Municipal para
solicitar a pavimentação das ruas - a ausência de asfalto impedia a circulação de ônibus,
e impedia que as pessoas saíssem de casa para trabalhar em dias de chuva forte, e as
crianças de frequentar a escola (DANTAS, 2007). Após esta manifestação, foram
assinados diversos protocolos de colaboração entre o governo e a prefeitura, mas a
realização das obras foi um processo muito lento. Numa situação difícil como essa, foi
muito importante para a ATST as ações do governador Mário Covas (1995-2001); foi
durante a sua gestão que foram concluídas muitas obras nas suas áreas e que foi
regularizada pelo Estado a primeira área da Associação. Tudo isso foi possível devido
uma relação de grande estima entre os fundadores da ATST e o governador
(MARCOCCIA, 2007).
Em vista das dificuldades para obter a regularização dos terrenos e a
infraestrutura básica, em conjunto com as condições precárias em que as famílias eram
obrigadas a viver, a partir da compra da 14ª área, em outubro de 1997, houve uma nova
mudança de procedimento; em vez de iniciarem imediatamente as construções nos
terrenos comprados e pedir depois a regularização e a infraestrutura, a ATST decidiu
181
A partir de 2000, a vida da ATST se caracteriza por dois fatores que delinearam
sua atual fisionomia. O primeiro diz respeito às relações com as instituições, o que
facilitou a entrada de Marcos Zerbini no mundo da política como vereador (2002-2006)
e como deputado estadual (de outubro de 2006 até os dias atuais). A possibilidade de
poder contar com um representante político capaz de promover dentro das instituições
públicas a atividade da Associação revelou-se muito importante, tanto em nível
22
A compra dessa área, contudo, causou aos líderes os primeiros problemas do ponto de vista jurídico,
pela intervenção de um grupo de empresários locais que temiam a desvalorização da região após a
compra pela Associação. Cleuza e Marcos responderam a quatro processos que duraram quatro anos, dos
quais foram absolvidos. O loteamento foi finalmente aprovado, beneficiando 160 famílias.
23
O quadro legislativo do Estado se esclareceu com o decreto nº48340 de 2003 em que vem instituído o
programa estatal para a regularização dos núcleos habitacionais de interesse social (programa PRO-LAR
Regularização).
182
24
Comunhão e Libertação é um movimento eclesial fundado em 1954 na Itália. Tem como objetivo a
educação cristã dos seus membros no sentido da colaboração com a missão da Igreja em todos os âmbitos
da sociedade. Atualmente, Comunhão e Libertação está presente em cerca de 80 países em todos os
continentes. Não existe nenhum tipo de inscrição. O instrumento fundamental de formação dos membros
do Movimento é a catequese semanal denominada “Escola de Comunidade”. Informações extraídas do
site http://br.clonline.org. Acesso em 23/12/2012.
25
Cabe ressaltar que a ATST continua com seu perfil laico e social, mas os fundadores e alguns
coordenadores fazem questão de explicitar a importância da experiência religiosa para sua vida pessoal e
seu engajamento social. “Esse encontro me fez olhar para minha vida e entender os motivos adequados de
cada coisa (...). A gente fez uma reflexão outro dia que dizia que o verdadeiro protagonista da história é o
mendicante. Todos os dias, como um mendicante, peço a Cristo que continue a usar-me para construir a
história de seu povo, porque percebo a desproporção entre aquilo que recebo e aquilo que sou capaz de
dar” (Marcos Zerbini); “Eu acho que foi a coisa mais importante que aconteceu na minha vida. Mudou
tudo. Com o Comunhão e Libertação aprendi que o meu trabalho é uma missão. E quando o meu trabalho
é uma missão, o resultado não me pertence, eu não preciso buscar resultado (...). Quando ouvi [em uma
reflexão sobre Mt, 10, 30] que todos os cabelos de minha cabeça estavam contados, disse para Marcos
que havia ouvido tudo de que precisávamos. Agora, todos os dias eu acordo feliz, porque me lembro
disso, e as coisas não me pesam mais” (Cleuza Ramos).
26
A Companhia das Obras é uma ONG que se propõe a formar uma rede de contato e recursos entre
empresários e obras sociais, de todas as áreas, para que eles possam se conhecer e trabalhar juntos quando
surgir uma necessidade comum. Foi fundada no Brasil em 1999, tendo nascido na Itália, em 1986, a partir
da experiência do movimento Comunhão e Libertação. Sua missão é promover e defender a dignidade do
indivíduo na sociedade e no ambiente de trabalho; tutelar a criação de obras assistenciais e empresas,
183
dessa participação nasceu a ideia inicial de construir uma universidade27. Porém esse
caminho se mostrou muito difícil. Foi estipulado, então, um convênio com as
universidades particulares para oferecer aos estudantes que concluem o ensino médio a
possibilidade de seguirem com cursos universitários noturnos a um preço mais baixo. A
vantagem para as universidades é representada pelo grande número de estudantes que se
matriculam por meio do convênio em vagas que seriam ociosas. A ação permitiu a
adesão de muitos acordos entre a ATST e diversas instituições de nível superior de São
Paulo.
O Movimento dos Sem Faculdade envolve hoje cerca de oitenta mil pessoas de
diferentes idades e origens. Este crescimento exponencial ocorreu simplesmente por
meio do contato entre os primeiros a aderir e seus amigos e conhecidos, sem qualquer
publicidade por parte da Associação.
Embora uma ação deste porte pudesse gerar grandes ganhos para quem a
administra, Cleuza e Marcos nunca se aproveitaram da situação – assim como nunca se
aproveitaram do movimento de habitação28.
O desejo deles desde o começo era o de permitir que estes jovens obtivessem um
diploma e melhorassem a própria condição e de seu próprio país.
Assim, depois de ilustrar a história da ATST, será descrito no próximo tópico a
organização atual com especial atenção à estrutura do percurso educacional e
participativo proposto aos membros e a disposição dos bairros; por último será
apresentada a atividade do movimento dos Sem Faculdade.
privilegiando uma concepção de mercado e de suas regras, capaz de compreender e respeitar a pessoa em
todos os seus aspectos, dimensões e momentos da vida. Para mais informações ver www.cdo.org.br.
Acesso em 23/12/2012.
27
Alguns participantes desse encontro tinham contado sua experiência de terem criado uma universidade
“popular”, num bairro pobre e periférico de Lima, no Peru. Daí veio a inspiração para a ideia.
28
Existem as tentativas de copiar a experiência da Associação. Por exemplo: foram vendidos terrenos
próximos ao Parque Esperança para cerca de oitocentas famílias que ficaram depois sem nenhuma
infraestrutura. Hoje as ruas são cobertas de terra, as casas não estão terminadas e não dispõem nem de
energia elétrica nem de água (Dantas, 2007). Ou ainda: “No Morro Doce e na região da Anhanguera
existiam muitas associações que queriam imitar o nosso trabalho, mas, na realidade, eram associações
criadas para roubar o dinheiro das pessoas. Às vezes vendiam terrenos usando nosso nome, dizendo que
era da associação de Marcos Zerbini. Pegavam o dinheiro das pessoas e fugiam, e essas pessoas ficavam
numa situação dramática porque tinham comprado um terreno sem água, sem luz e sem nenhum
responsável que acompanhasse o processo de aprovação ou de regulamentação” (A., advogado da ATST);
“Por exemplo: o meu terreno, que eu comprei, se ela quisesse pedir mais 20 reais a qualquer um de nós...
Quanto são R$20,00? Muito pouco. Se ela e Marcos tivessem decidido pedir mais R$20,00 a cada um,
não andariam por aí naquele carro velho que tinham quando os conhecemos. Era exatamente isso que me
fascinava neles. E eu via isso: que podiam ganhar muito em cima da venda dos terrenos. Mas isso não
interessava pra eles” (R., coordenadora da ATST).
184
3. A organização atual
29
A administração da ATST, de acordo com seu estatuto, é eleita a cada dois anos pela diretoria de cada
uma das áreas. Não há limites para reeleição. De toda forma, Cleuza Ramos nunca teve uma chapa
concorrente.
185
O processo pré-compra
30
Geralmente acontecem duas assembleias iniciais por semana, com um número de participantes que
varia muito. Há reuniões iniciais com 10 pessoas, até reuniões iniciais com 3 mil.
186
As pessoas devem entender que não estão comprando uma casa, um terreno, mas
estão comprando uma comunidade: construíram um bairro, precisam dos
conceitos de cidadania, de comunidade, de convivência, de saber que terão de
fazer muitos sacrifícios para conseguirem a habitação, porque o caminho é muito
longo. Falamos muito sobre isso com as pessoas, como acontecerá tudo isso,
para que não se arrependam. Se querem ter uma casa rapidamente, devem
procurar um local onde possam fazer uma negociação comercial, assim compram
e se mudam. Aqui não: comprar é, na verdade, uma luta (F. advogado da ATST).
31
O baixo valor das áreas escolhidas se deve por sua localização em Zona Rural, classificada, de acordo
com o art. 20 da Lei de Zoneamento nº. 7.805/72 do município de São Paulo, como zona de uso especial
(Z8-100), que permite a expansão urbana, inclusive a implantação de empreendimento de interesse social.
187
32
Na verdade, se trata de loteamentos localizados nas periferias, edificáveis, mas ainda virgens, que
deverão ser em parte desmatados, nivelados e ligados através de novas vias de acesso aos outros bairros,
além de apresentar todos os serviços urbanos.
188
Uma vez atribuídos os terrenos, cada família constrói com os próprios meios a
sua casa, assinando uma declaração que estabelece o respeito das normas de construção
previstas nas leis municipais e estaduais e que definem os detalhes da modalidade de
construção da casa. Este documento representa também uma garantia para a ATST, pois
atribui a responsabilidade da construção aos associados e não à Associação. O tempo
das construções é determinado pelos recursos econômicos das famílias, mas a ATST
coloca a disposição os arquitetos e mestres de obras para o acompanhamento dos
trabalhos de projetação e construção.
Diz Marcos Zerbini sobre a construção das casas:
Não queremos que todas as casas sejam iguais, cada casa deve ter a cara de quem
mora nela, porque é o bem maior que alguém possui. Nós temos a filosofia de
que a casa é a roupa da família. E que cada um tem direito à roupa que quer
vestir. Somos contra o projeto já pronto. A casa é pessoal, é algo de especial. Por
isso, por mais trabalho que isso dê, a gente gosta de sentar um por um e discutir
o projeto da sua casa (Marcos Zerbini).
Uma vez que muitas famílias não possuem meios necessários para a
autoconstrução, foram firmados convênios, desde 2010, entre a ATST e a Companhia
de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Para favorecer, contudo, a
participação dos associados e a personalização da casa, os convênios com a CDHU
preveem que esta forneça somente as paredes externas e que as pessoas colaborem nas
realizações da parte interna do próprio apartamento.
33
Quando existe o consentimento da prefeitura, o projeto de loteamento das áreas é apresentado ao Grupo
de Análise e Aprovação de Projetos Habitacionais do Estado de São Paulo (GRAPROHAB, Decreto
estatal nº 52.053, de 13 de agosto de 2007) que tem como objetivo centralizar e acelerar os procedimentos
administrativos de aprovação pelo Estado em relação às subdivisões dos loteamentos para fins
residenciais, e a construção de condomínios habitáveis públicos e privados. Somente depois que o
GRAPROHAB concede a aprovação do projeto, a prefeitura pode dar a licença para iniciar a construção.
189
34
Dados da própria ATST, sem estatísticas oficiais, recolhido por entrevistas.
190
As pessoas vêm muito com a ideia, que existe no mundo, de meu Deus, da minha
casa, minha coisa, e quando ela chega ao movimento nós temos que fazer um
trabalho com ela de mudar a mentalidade, que ela não consegue viver mais sem
um outro. Então, aí, ela tem que perceber que ela está dentro de um grupo e que
não existe mais a casa dela, mas existe a nossa casa, o nosso bairro (Cleuza
Ramos).
191
35
Veja o site na internet www.educarparavida.com.br . Acesso em 23/12/2012.
193
a ATST não for renovado. Atualmente, cerca de 80 mil pessoas estão desfrutando desta
possibilidade e outras 15 mil usufruíram no passado. Não existe nenhum tipo de
publicidade promovida pela Associação. No geral, o conhecimento dos convênios aos
interessados parte da informação dada pelos amigos, conhecidos ou outros estudantes
que já tenham usufruído ou estão usufruindo do desconto. Isto faz com que os iniciantes
tenham menos dúvidas a respeito da seriedade da iniciativa.
É interessante que quem vem aqui não faz nenhum tipo de pergunta, não fala a
respeito de possíveis riscos. Fazem a carteirinha e contribuem com a Associação,
o amigo já sabe... Não perguntam “o desconto continua?”, já sabem, já possuem
confiança (A., coordenadora e advogada da ATST).
A ATST nunca quis reduzir sua atividade à mera oferta de serviços, mas sempre
procurou unir estes serviços a um caminho educacional. Por esta razão, também no caso
da universidade foi decidido subordinar a possibilidade de usufruir do desconto a uma
fórmula participativa similar àquela adotada no movimento de habitação: os
universitários também devem participar de uma assembleia inicial, de assembleias
mensais com os fundadores e de reuniões semanais ou quinzenais com os
coordenadores; e os estudantes que não se apresentarem em quatro assembleias mensais
consecutivas perdem o direito ao desconto.
Dado o número elevadíssimo de pessoas envolvidas, não é possível realizar uma
única assembleia mensal para todos os Sem Faculdade. Eles são subdivididos em grupos
de cerca de 3 mil pessoas e as assembleias se desenvolvem consecutivamente durante
um final de semana.
Os coordenadores ministram reuniões semanais distintas para quem deve ainda
passar pelo vestibular e para quem já frequenta a universidade. Nas reuniões semanais,
frequentemente são convidados os representantes das universidades para apresentar os
cursos, e os professores para ajudar os estudantes na preparação para o vestibular e
confrontar os problemas que eles podem encontrar depois de entrarem. Contudo, é
dedicada muita atenção ao conjunto de experiências pessoais e ao diálogo a respeito de
fatos da atualidade para ajudar os jovens a amadurecer sua opinião sobre o que ocorre.
Estes jovens trabalham todos os dias e vão para universidade à noite e ficam até
tarde. Dormem poucas horas e, por isso, até mesmo um pequeno problema pode
parecer enorme. Não podem se sentir sozinhos, mas acompanhados, porque só
isso dá a eles a força para seguir adiante com os estudos. Você não tem ideia da
tristeza que sinto às vezes, quando penso nesses jovens, o cansaço e os
sacrifícios que fazem (Cleuza Ramos).
Para mim uma reunião por mês me dá força. Entendo que os problemas dos
outros são muito maiores do que os meus e eu entendo que posso continuar, que
posso conseguir (C., estudante universitária da ATST).
públicos. Nos outros dois bairros - Turística 1 e 2 – (T1) e (T2) -, as obras de construção
foram iniciadas depois da obtenção das autorizações necessárias e o Turística 1 não
dispõe ainda dos serviços e da infraestrutura básica.
Entrevistamos 12 moradores do Jardim Canaã, 13 do Sol Nascente, 8 do bairro
Turística 1 e 6 do Turística 2.
Para este propósito, não se utilizou uma amostra representativa enquanto não
era possível dispor de informações necessárias para a formação da mesma; portanto,
confiou-se à causalidade dos questionários às escolhas do entrevistador. Foram
aplicados 35 questionários na Turística, 38 no Sol Nascente e 40, respectivamente, no
Jardim Canaã e em Voith, resultando em um total de 153 questionários.
O questionário foi igualmente dividido em três partes: a primeira diz respeito à
qualidade de vida percebida pelos moradores dos bairros - moradia, saúde, serviços,
segurança, relações sociais - e uma comparação com os bairros onde eles moravam
anteriormente; a segunda detecta o grau de confiança nos vizinhos e, de modo geral, nas
instituições; a terceira se refere à relação com a ATST - razões da escolha inicial para
aderir à Associação, auxílios recebidos e decisão hipotética de se transferir para outros
bairros. Além disso, foram coletadas informações sócio-demográficas relativas ao
entrevistado por questionário e, em alguns casos, sobre os respectivos pais (educação,
situação empregatícia, saúde, composição do núcleo familiar, rendimento).
Os dados coletados foram analisados por uma análise descritiva.
Oitenta e seis por cento participam da Associação há mais de cinco anos e quase
a metade deles há pelo menos doze; estas porcentagens sobem para 93% e 62%
respectivamente no bairro de Jardim Canaã, enquanto que elas descem para 85% e 32%
no Voith. Convém notar que Sol Nascente é o bairro que apresenta a mais elevada
incidência de entrevistados por questionários que participam na ATST há menos de
cinco anos (32%).
Em geral, apenas um de três dos sujeitos entrevistados por questionários
participa atualmente na ATST, mesmo se com pouca frequência. O bairro com a
porcentagem mais elevada de participação é o de Voith, provavelmente porque é o mais
recente. A modalidade de envolvimento principal é a participação nas reuniões (21% da
amostra); são bem menos frequentes os indivíduos que declaram participar ativamente
na ATST como voluntários ou coordenadores (7%), ou na associação do bairro (6%).
As pessoas entrevistadas pertencem predominantemente a núcleos familiares
com, em média, 3,6 componentes (somente 6% moram sozinhos). O número médio de
menores por núcleo é de 1,11. As diferenças principais entre os bairros se referem a
uma maior dimensão média dos núcleos na área Turística (3,91 componentes dos quais
2,82 são pessoas com mais de 18 anos de idade) e uma maior porcentagem de núcleos
com um único adulto no Jardim Canaã (16%, com um número médio de componentes
equivalente a 3,08). Os bairros com o número médio mais elevado de menores são os de
Sol Nascente e Voith e estes menores estão concentrados numa faixa que se situa entre
zero e 10 anos.
Os sujeitos entrevistados provêm de modo predominante da região Nordeste
(60%); um de quatro provém do estado de São Paulo, enquanto os 15% restantes
provêm quase que na sua totalidade do Sul / Sudeste.
Uma porcentagem de 70% das mulheres entrevistadas e de 85% dos homens
participa do mercado de trabalho. No que se refere à situação de emprego, dentre os
homens que participam no mercado de trabalho, um sobre dois é empresário ou
autônomo (ver tabela 2).
202
a) Condição econômica
O dinheiro que nós tínhamos para construir, para comprar o terreno, não eram
suficientes para comprar um lote numa outra área residencial comum (S., T1).
Na época, eu pagava o aluguel, o que eu ganhava era mais ou menos para isto,
somente para pagar o aluguel (J.S., T2).
O rendimento era tão baixo que o custo do aluguel constituía um problema para
muitos, porque ele representava uma boa parte da renda (muitas vezes, mais de 50%).
É que para o aluguel aqui em São Paulo, não sei no que se refere aos outros
estados, mas aqui se gasta mais de 50% do salário. O nosso salário, para que
possa ser adequado hoje, para um pai de família com dois filhos pequenos,
deveria ser de pelo menos mil reais, enquanto que ele é de trezentos e pouco
mais... É por isto que o aluguel se tornou o principal “ladrão” da casa (M.S., T2).
Além disso, o fato de ter que arcar com esse aluguel todos os meses, ou mesmo
com acontecimentos imprevistos, tais como perda de emprego ou a necessidade de lidar
com despesas extras, contribui para aumentar a dificuldade.
Um vizinho meu, por exemplo, vendeu sua casa porque havia pago um terreno
por 6 mil reias, do mesmo modo que eu, que havia pago na época por dois
terrenos 6 mil cada um. Ele gastou mais 10 mil para construir e, com 80 mil,
pensou que estava fazendo um bom negócio e vendeu (J.S., T2).
Em segundo lugar, o fato de não ter que arcar com o custo fixo do aluguel
permite um nível mais elevado de consumo corriqueiro. Além disso, em alguns casos, é
notável uma melhora na situação empregatícia e, de modo geral, na renda por trabalho.
Ele [o meu chefe] iniciou o seu pequeno negócio aqui dez anos atrás, ele iniciou
bem pequeno. Ele era taxista, começou do zero. Hoje ele emprega cinco pessoas,
são praticamente cinco famílias que podem sustentar-se (L., T2).
Tabela 4. Distribuição dos entrevistados por questionários por rendimento familiar (R$)
Menos de 500 – 1.000 – 2.000 – 3.000 –
500 1.000 2.000 3.000 4.000
Total 3% 36% 48% 11% 1%
Empresários 0% 9% 27% 45% 18%
Autônomos 0% 51% 41% 8% 0%
Empregados 0% 34% 55% 11% 0%
De qualquer modo, deve-se ressaltar que a maioria dos moradores dos bairros da
ATST tem um emprego de baixa qualificação. Por exemplo, os entrevistados por
questionários no Jardim Canaã são principalmente operários, mecânicos e assistentes.
Usando os dados sobre estratos de renda familiar sobre o número de trabalhadores
presentes na família (uma média de dois trabalhadores por família), é possível calcular
uma renda média “por trabalhador” de R$770,00 por mês36. Esse valor é inferior ao piso
dos trabalhadores, cerca de R$1.200,00, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE)/2009 em seis regiões metropolitanas e, próximo ao valor médio,
deixando presumir que os trabalhadores das áreas da ATST pertencem à metade inferior
da distribuição das rendas de trabalho individual.
É interessante notar que quase 90% dos entrevistados nos questionários
acreditam no melhoramento da própria situação econômica para os próximos anos.
Destes, 40% preveem “com certeza”. O dado que mais impressiona é no bairro Jardim
Canaã, onde 92% dos indivíduos declaram estar seguros de que a própria situação deve
melhorar. Esse número parece evidenciar mais uma posição positiva em relação à vida
do que uma efetiva previsão econômica, dada a idade média dos entrevistados no
questionário e a menor renda familiar.
36
Considera-se também o fato de que na renda familiar estão incluídas as rendas vindas não de trabalho e,
portanto, a renda média individual poderia ser inferior.
206
b) Situação habitacional
Eu morava com seis pessoas, seis tias que pagavam o aluguel de dois locais,
morei lá de 1982 até 1990 (F., coordenador da ATST).
Nestes 15 anos, então, fui muito humilhada... Eu era solteira, estava sozinha,
vinha da uma cidadezinha do interior. O meu irmão morava aqui e eu vim para
morar com ele. Mas, infelizmente morei com ele, porque antes de vir não sabia
onde ele morava e ele morava na favela. A primeira chuva, quando veio, eu
estava trabalhando e não havia ninguém em casa e perdemos tudo, tudo, tudo...
Eu fiquei apenas com as roupas que estava vestindo (L., T2).
Eu também pagava o aluguel. Era uma tristeza, vivíamos apenas para o aluguel,
mas hoje estamos contentes, graças a Deus, temos uma casa para nós, nos
libertamos do aluguel e estamos tranquilos (T., T2).
Quando eu saí do aluguel, eu estava pagando R$300 por mês, morei pagando
aluguel por seis anos e meio. Sei o valor do que dei, eu dei R$21.800... Quando
saí, não precisava mais pagar estes R$300 e a situação, portanto, mudou muito
(A., JC).
Você sabe que esse dinheiro que você está utilizando para o aluguel, você agora
o coloca dentro da tua casa, e que o prego que você está colocando na parede é
teu, e que você não está dando motivo ao dono de casa dizer-lhe: “este prego,
você não pode colocá-lo porque esta é a minha casa”. Ou se a parede está
207
Eu penso assim: meu cunhado não me tira daqui. Mas um dia, os meus filhos
quererão, sabe... Se acontecer algo, desejarão morar em algo que é deles. Poder
dizer “isto é meu” (J.P., SN).
A gente percebe quando você chega a ter uma casa tua porque isto está impresso
na tua expressão. Já é outra situação. Eu acho que cada um começou assim: você
percorre uma etapa da casa, você saiu do aluguel, é tudo rústico e tudo aquilo
com que você sonhou se realizou, isto é muito bom (I., JC).
Sabe, hoje vejo tantas famílias, gente casada, de bem, que moram de aluguel e eu
os vejo e penso: o maior sonho da minha vida era o de ter uma casa em São
Paulo. Mas uma casa que é uma casa, não um barraco na favela. Uma casa, uma
“senhora casa” (V., coordenadora da ATST).
A casa é a mesma coisa das roupas, revelam quem você é. Quando alguém paga
aluguel e se muda, e aparece alguém que pergunta: “A. mora aqui?” “Não”. “E
onde ele mora?” “Não sei”. É uma pessoa [a que mora de aluguel] sem uma
residência fixa, não tem um endereço certo (A., JC).
A nossa casa é uma benção de Deus, é um ambiente. A casa é um lar, onde nos
sentimos bem. É uma qualidade de vida melhor para a família (M.D.S., SN).
Não tem nada [na minha casa]. Você chega e encontra a sujeira, as crianças
sujam muito, e a bagunça, tenho dois cachorros, mas ao chegar se encontra a paz.
A paz (V., coordenadora da ATST).
O meu sonho foi realizado, a minha casa é muito bonita. Muito bonitinha, graças
à Associação, senão estaria pagando o aluguel hoje ainda (L., SN).
O modo em que está agora a casa, tenho que passar o aspirador dez vezes ao dia,
mas é bonita a minha casa (J.P., SN).
A minha está mofando, está molhando toda, as paredes estão mofas. Quando a
chuva chega... Mas é bom, porque saímos do aluguel (I., SN).
Está ainda sem acabamento, mas tem tudo aí. Falta rebocar tudo (R., T1).
A satisfação pode vir mesmo quando o tamanho delas ainda não está de acordo.
Por mim, eu teria preferido comprar um lote maior, mas para mim está ótimo.
Acho que é aceitável, não é feio, porque nós moramos antes em espaços tão
pequenos... (P., T1).
Se o meu tivesse um metro a mais na frente, seria ótimo. Se tivesse seis metros
seria maior, mas do modo em que está agora, também está ótimo (J., T1).
A minha casa é enorme, não acabei a parte de cima. Para que serve uma casa tão
grande? Antes eu não tinha nada e, agora, tenho tudo. Porque eu morava num
quarto e cozinha, de aluguel (A.N.T., SN).
A nossa casa é maior. Os locais são menores, mas a quantidade é maior (R., T1).
Quando eu precisei o governo não me ajudou e, mesmo agora, não quero (J.S.,
T2).
Quem vai embora se arrepende de ter feito isso... é sempre assim (F., JC).
Outro foi pelo motivo que falei, os pais foram mortos (M.S., T2).
Neste caso era um vizinho meu, estou dizendo sobre este caso, ele vendeu por
ambição de dinheiro, ele desejava comprar uma fazenda e foi pra Bahia (J.S.,
T2).
É por causa dos problemas de saúde, ele vai muito ao médico. No entanto, se
fosse um local mais fácil para ir ao médico, por conta dos seus problemas, ela
poderia aceitar (J., T1).
Porque aqui devemos pegar dois ônibus para poder chegar. Lá, apenas um (R.,
T1).
Se tivesse um pronto-socorro seria muito bom. Temos que pegar ônibus para ir
até Perus, Pirituba. É um pouco difícil para nós que temos filhos, às vezes estão
bem, outras não. Às vezes, para chegar ao pronto-socorro temos de pegar dois
ônibus (C.L., SN).
O posto de saúde é muito longe. Dizem que farão um aqui em cima (S.,T1).
Sobre a falta de transportes ouvimos que: “É preciso que todos se unam para
pedir mais ônibus, existem muito poucos” (I., SN). Ou: “Precisamos de mais ônibus”
(C.L., SN).
Sobre a falta de outros serviços, os moradores relatam principalmente a falta de
escolas profissionalizantes, bancos e espaços de lazer para os adolescentes.
Hoje os jovens não gostam do bairro porque não tem nada. Chega o fim de
semana e ficam em casa porque não tem nenhum lazer (N.A.,SN).
Não tem água... Se acontecer um problema aqui não entra carro (R., T1).
Não tem luz, a luz é clandestina (...). Porque, por exemplo, ontem nosso filho
estava doente, que horas eram? Às oito da noite. Como não estava chovendo,
telefonamos e veio um automóvel buscá-lo, mas, por exemplo, se fosse um rapaz
do tamanho do J., ninguém poderia sair com ele nas costas e levá-lo até o asfalto
(S., T1).
Então, não tem o endereço. Você deseja colocar o carro no seguro, por exemplo,
não aceitam porque não há endereço (J., T1).
Jovens com
acesso a escola 5% 25% 23% 37% 10%
Infraestrutura
urbana 5% 10% 35% 40% 10%
Relação
sociedade-qualidade 1% 7% 42% 40% 11%
O dia que estiver cheio aqui, quem colocará respeito e moral serão os próprios
moradores (J., T1).
Aqui, tem pouca [violência]. Tem o menor índice da região. Existem pessoas que
se organizam (F., JC).
Quando tem gente de fora que vem aqui para fazer bagunça na rua, ficamos
juntos (I., JC).
Estavam roubando muito aqui, nos entendemos, somos poucos que moram aqui,
agora tem um jovem com uma moto para a segurança, das 22h às 6h da manhã,
cada um paga o seu, e melhorou muito, e então, fica tranquilo (P., T1).
Mas sabemos que isso não tem nada há ver com as pessoas daqui (R., T1).
São as pessoas de fora que vem aqui e depois se vão (P., T1).
Não chega a ser um problema, é mais uma questão de furtos. Mas não é ninguém
daqui. Estamos perto de algumas favelas, são pessoas de fora que vêm (I., T2).
Se qualquer coisa acontece é porque vem de fora. Não é daqui, não (M.S., T2).
213
Em sete anos e meio que mudamos pra lá nunca aconteceu nada. Já aqui faz um
ano que estamos morando e a nossa casa foi invadida duas vezes (...). As casas
dos moradores são ainda bem distantes, mas quando tiver mais gente diminuirá
[o roubo] (J., T1).
Tivemos no passado, mas agora não, há um tempo era um problema (L., T2).
As relações aqui são bem melhores porque todos se conhecem. No bairro onde
eu morava, onde morei por dez anos, eu não conhecia os meus vizinhos, morei lá
dez anos e não sabia quem eram os meus vizinhos. Aqui conheço mais ou menos
214
todos, saio na rua e todos me dizem “ei cabeça branca!”, aqui conheço todos
(J.S., T2).
O primeiro da rua conhece o último da rua, então, dizer o que?, é uma cidade no
interior de São Paulo (M.S., T2).
Eu tinha menos conhecidos do que aqui. Aqui hoje, tenho mais conhecidos entre
os vizinhos, mas depende de cada vizinho (M.D.S., SN).
Todos são amigos aqui; não é que as coisas não acontecem, mas praticamente, se
se compara com outros bairros, aqui não há brigas, porque criamos a nossa
família no bairro e você não vê isso assim num outro bairro. Os outros bairros
são diferentes deste (A., JC).
No fundo de tudo isto, havia esta amizade, e eu não conhecia ninguém aqui. E se
você chegar hoje: “você me empresta um martelo, me empresta um prego?”,
todos são amigos (P., T1).
Sempre tivemos um carro, antes antigo, depois mais novo. Era uma prioridade
porque morávamos longe, levávamos as pessoas para o hospital, muitas crianças
nasceram praticamente no nosso carro (I., coordenadora da ATST).
Na maioria dos casos, isso representa uma notável diferença em relação aos
bairros onde as pessoas viviam anteriormente. Dada a importância atribuída pelos
entrevistados às relações sociais presentes nas áreas, pode-se compreender que,
enquanto a quantidade nas relações pode ter valores pelo prisma informativo, é
sobretudo a qualidade delas – compreendida como grau de confiança e valores
compartilhados - a representar um ponto importante para os indivíduos.
Segundo Maffesoli (1984), a comunidade carrega algumas características
importantes como os laços de confiança, de compromisso, de vínculos de reciprocidade,
cooperação e solidariedade, que são capazes de estimular normas, contatos sociais e
iniciativas de pessoas para a potencialização do desenvolvimento humano. Além disso,
encontramos nas comunidades um maior instinto ou sentimento de vizinhança,
associação e cooperação íntimas, além da comunicação face a face e do controle social
espontâneo.
criativo do tempo: são lugares para que as pessoas aprendam, ensinem, troquem
experiências, se ajudem e possam ser ajudadas. São lugares, enfim, onde se pratica a
reciprocidade, se utiliza a criatividade e se aprende a confiar nos outros. A existência
desses laços sociais sinaliza a possibilidade de se organizar ações coletivas que visem à
promoção do desenvolvimento social de dada localidade.
Em suma, a dedicação à comunidade e o uso construtivo do tempo favorecem a
integração social na medida em que todos os sujeitos sociais fazem acordos em relação
aos objetivos e formas de trabalho, de maneira a consolidar redes sociais, incrementar a
associatividade e gerar a confiança, como diz o Princípio de Solidariedade. A
associação entre as pessoas cinge necessidades, interesses e vontades, é o lugar dos
debates, das iniciativas, dos acordos. Com o tempo, sua organização auxilia os homens
a serem sujeitos de seu próprio destino tornando-os mais próximos da busca de
autonomia na promoção do desenvolvimento local.
Também nos questionários a satisfação em relação ao bairro parece mais ligada
à qualidade das relações sociais do que a uma avaliação total dos serviços existentes.
Nota-se que mais da metade deles afirma ter melhorado a qualidade das relações sociais
em relação aos bairros anteriores e que três de cada quatro pessoas confiam no próprio
vizinho (o resto dos 25% se divide entre aqueles que declaram poder confiar pouco e
não poder confiar). Entretanto, mais da metade revela um aumento da confiança em
relação ao bairro anterior. É interessante notar que no bairro Voith 50% dos moradores
afirmam que a confiança nos vizinhos do assentamento melhorou - assim como no JC e
SN -, enquanto apenas 3% declaram uma degradação.
Essas relações sociais são importantes também para a procura de emprego.
Nesses bairros o desemprego representa um problema, sobretudo, entre os jovens por
causa da falta de qualificação e da péssima qualidade do ensino nas escolas públicas.
Sendo assim, a ajuda na procura de emprego é importante para muitas pessoas, até
mesmo porque as empresas preferem contratar funcionários indicados pelos próprios
empregados.
É interessante notar que a qualidade das relações sociais é também a razão
principal pela qual quase todos os entrevistados não aceitariam se mudar para outro
bairro37.
Já conhecemos todos aqui. Se você se muda para outra casa você não sabe quem
terá ao seu lado, o teu vizinho (R., JC).
37
Ver a pergunta hipotética mencionada na página 209.
217
Se eu fosse para o Ceará, ninguém sabe quem sou, e eu nasci lá. Se eu morresse
aqui, todos viriam ao meu funeral (A.N.T., SN).
Eu não iria, porque não vi do início. A minha casa eu garanto. Sei o que tem
embaixo, é bem feita (P.,T1).
Eu garanto a minha casa, porque vi fazer a estrutura. Vi tudo e sei que é uma
casa garantida. Eu posso morar nela cinquenta, sessenta anos, e sei que não terei
nenhum problema (J., T1).
Se fosse uma casa melhor, aceitaria. Não pensando somente em mim, mas
pensando nos meus filhos, um lugar que fosse melhor para eles (M.D.S., SN).
Eu, se tivesse os documentos, uma boa casa, e se fosse em Osasco, onde morei
por muitos anos - mais de trinta - eu aceitaria, mas somente se fosse lá, lá onde
morei, mas se fosse onde não conheço, então, é melhor aqui (R., T1).
Nos questionários somente uma pessoa entre quatro aceitaria uma eventual
oferta por parte do governo de uma casa melhor num outro bairro e 60% certamente não
aceitariam (este percentual varia de 72% a 78% no Turística e Jardim Canaã). Como se
pode esperar das discussões dos problemas dos bairros, Voith é a região em que existe
maior proporção de pessoas que gostariam de se mudar (27%), mesmo se de cada três
entrevistados, dois demonstram uma preferência por permanecer no bairro.
Igualmente ao manifestado nas entrevistas, a recusa de uma eventual mudança é
motivada, na maioria dos casos, das afirmações “gosto do bairro e/ou da casa” (60%). O
restante dos 40% se divide entre quem aponta os sacrifícios feitos, quem não acredita
numa possível proposta do governo ou quem condiciona sua própria decisão quanto ao
bairro destinado (“depende onde”). A aceitação da hipotética oferta é explicada pelas
difíceis condições dos serviços, especialmente de saúde, e pela distância (26%), dos
218
Quer dizer, corre-se o risco de virar uma “comunidade de gueto”, como Bauman
(2001) afirma, ou seja, ou seja, a construção de uma homogeneidade dos “de dentro” e
de uma heterogeneidade dos “de fora”. Entretanto, o fato de que todos os entrevistados
– como veremos no próximo tópico 2.3 – tenham conhecido a ATST por meio do
depoimento de parentes, amigos e colegas, sugere que muitos associados tenham desejo
de trazer outras pessoas para a mesma experiência. O crescimento numérico da
Associação é um sinal evidente.
Consegui construir a minha casa, uma casa bem grande hoje. De vez em quando,
coloco as mãos na cabeça e me pergunto: “Meu Deus, mas tudo isto é meu?”. E
até hoje ainda não me dou conta que aquela casa é minha. Porque sou uma
219
vencedora! Posso dizê-lo, posso bater no meu peito e dizer: “sou uma
vencedora” (V., coordenadora da ATST).
Toda dificuldade, por exemplo, você consegue ter um terreno... Agora acabo de
construir a casa e deixarei o meu chefe com a cara lá embaixo, vou deixar ele e
começar outro trabalho. Gera-se esta esperança, assim (R.O.N., JC).
Pegamos o terreno, a minha vida melhorou de um modo tal que nunca teria
concebido: ter uma casa e, no mesmo espaço de tempo, fiz três: a minha, a da
minha mãe e da minha ex-mulher. E tudo isto em dois anos e meio. Se você
pedir, se você acredita nisso, você vê exemplos e traça um destino para você.
Aquilo acontece (l., JC).
Quero acabar de construir, desejo mais espaço e mais conforto, porque nós
moramos em dois quartos e está muito apertado. Eu só vivo me queixando, me
queixando. O que eu desejo de diferente é ter uma casa grande, com espaço, para
os meus filhos, para mim. É neste ponto que vou batendo sempre na mesma tecla,
chega uma hora em que você não suporta mais, quer mais espaço (...). Deus
promete muito e nós não conseguimos nos acostumar a coisas pequenas. Eu
particularmente não aceito, porque Deus tem muitas promessas e eu não aceito
pouca coisa (M.D.S., SN).
Eu acho que nunca somos felizes com qualquer coisa que seja. Ouço pessoas se
queixando que a casa é pequena e eu digo que a minha casa é tão grande que me
dá medo. Eu estou na sala de jantar e aí vejo um fantasma e fujo (A.N.G., SN).
Nós desejamos mais, mais, mas na Bíblia se diz assim: “não pare, segue adiante”.
Acomodar-se? Não pode acomodar. Deve progredir (A.N.T., SN).
Quando era muito jovem o meu sonho era estudar Direito, mas não tinha
dinheiro. Depois da ATST, fiz um convênio com a universidade. Pensei agora na
minha idade, o tempo de estudo, tinha já a família, filhos, e então queria algo
mais rápido, e comecei a fazer pedagogia (R.O.S., JC).
Eu quero voltar a estudar... Quero ter mais informação para atuar no meu
comércio(...). Meu modo de pensar mudou. Quando uma porta se fecha, se abre
uma janela. Eu aprendi isso, eu mudei, as pessoas daqui mudaram. Nós somos
frágeis, mas não somos incapazes. Estamos conseguindo obter as coisas (A.N.T.,
SN).
Ou seja, dentro da experiência da ATST nasce nas pessoas uma afeição por si
próprias. Elas são capazes de retomar seu valor e sua dignidade e o desejo de
desenvolver suas capacidades e habilidades.
Também é significativo o fato de descobrirem um interesse pela educação dos
próprios filhos.
Aqui sempre sabemos o que acontece na escola. Como meu filho é jovem,
reclamava muito da escola e então fui até lá para conversar diretamente com a
direção (A.N.T., SN).
Além disso, as mães se conscientizam de que a escola educa, mas que não
substitui o papel determinante dos pais. Assim, elas assumem a responsabilidade por
aquilo que lhe cabe.
É difícil educar, a mãe deve também educar em casa (C., SN).
Instrução é explicar sobre o que se diz, enquanto a educação, se seu filho não
tem educação, “desvia”, ou se seus pais não ensinam nada ou ninguém o educou,
o que ele vai ser? (A.N.T., SN).
Quando cheguei aqui, fui a primeira que começou um pequeno negócio. Levava
pão e leite para toda esta gente e sofri muito. Nem lembro quantas vezes eu tive
que fazer manobras com o carro para levar o pão e o leite para todos (A.N.T.,
SN).
Ele [o meu chefe] começou o seu pequeno negócio aqui dez anos atrás, começou
com uma pequena estante. Vendeu o táxi e montou o seu negócio. Havia então
pessoas que chegavam e perguntavam: “ah, vocês têm isto para vender?”, e a sua
mulher anotava tudo. “Não, não tenho isto, mas amanhã terei”. Hoje temos a
nossa loja aqui, e mais duas ou três lá em baixo (L., T2).
Faz seis meses que eu abri uma pequena loja de doces, porque a empresa não
precisava mais de mim. Entrei num processo com a empresa. Com este dinheiro
montei uma pequena loja de doces e hoje sou um trabalhador independente,
tenho um rapaz de quinze anos que me ajuda (M.S.,T2).
A primeira padaria do bairro fomos nós que abrimos. A Cleuza e o Marcos nos
ajudaram a começar, a comprar as máquinas que custavam muito caro, estavam
muito além das nossas possibilidades... S. não tinha experiência como padeiro,
era técnico de ar condicionado. Ele me disse: “Vou aprender!”. Compramos uma
sirene e a instalamos no teto da casa e no momento em que o pão quente saía do
forno, nós a fazíamos tocar, assim vinham todos para pegá-lo! Sabe, hoje nós
não estamos mais no negócio de panificadora, a padaria é alugada a uma pessoa
que aprendeu o serviço de S. Hoje o bairro é grande. Não conseguimos mais
atender as necessidades, existem outras padarias (R., coordenador da ATST).
Eu não pensava em fazer as coisas pra ela ou pra ele, mas quando participei da
Associação, percebi que as pessoas em grupo podem realizar um sonho enorme.
Dessa experiência entendi que as pessoas precisam umas das outras, deixei o
meu egoísmo de lado. Nesse sentido, eu mudei com certeza (I., JC).
Foi através do meu filho, porque o meu filho entrou em primeiro. Ele morava em
Mangaló e eu morava aqui no Jaraguá. E ele chegou um dia: “mãe, eu vou para a
reunião dos Trabalhadores Sem Terra”. Eu trabalhava e chegava em casa
somente à noite. E eu disse: “o que é isso?”. E ele me explicava, me explicava...
“Entra mãe!” (M.L., T2).
223
Através de uma amiga que me indicou, que comprou no Morro Doce e me disse
“vai lá” (L., SN).
Um colega me disse: “existe uma reunião assim, assim... faz muito tempo que
tem, tem muita gente que possui a casa graças a esta reunião”. Ele me explicou e
eu estava me convencendo e aconteceu (P.,T1).
Apesar das reuniões com a ATST serem realizadas por meio da relação de
confiança, em todas as entrevistas foi colocada uma perplexidade inicial a respeito da
proposta e a modalidade organizacional da ATST.
Não acreditava muito no início, tinha dúvidas. As coisas não são assim tão fáceis
(A.N.T., SN).
Fui a três reuniões, e na igreja eu disse: “Ah, esta coisa não funciona” (P., T1).
Eu disse: “irei um dia nesta reunião”. Levei junto a minha mulher. Eu disse:
“vamos ver... Sem Terra dentro de uma igreja não vai funcionar, não funciona,
mas vamos ver, porque não acredito só em palavras” (M.S,. T2).
A gente não acreditava nisto, quando se dizia “Movimento Sem Terra”, na época
havia aqueles mortos, a reforma agrária, Eu briguei muito onde trabalhava (L.,
T2).
Ou também havia o medo que no final os bairros se tornassem favelas, como nos
afirmou L. do SN.
O conhecimento de experiências parecidas que são posteriormente descobertos
como golpes e a notável diferença de preço dos terrenos da ATST em relação ao
mercado eram outros dois obstáculos.
Sim, tem gente que pensa que aquela pessoa que é líder pegará todo o dinheiro e
desaparecerá com ele, não dará explicações, não fará aquele loteamento que
comprou, não dará nenhum benefício (P., T1).
Comecei a frequentar naquele tempo, mas sem ainda uma total confiança que
aquilo realmente aconteceria. Participei por 90 dias e depois disse: “bem, acho
impossível que uma coisa assim barata possa funcionar”. E hoje aqui na
Associação, no máximo, uma área nova, custa de R$5 mil a R$6 mil. Comparado
a R$30 mil ou R$35 mil é uma diferença muito grande. No início, a pessoa tem
medo, desconfiança, porque pensa que é impossível que uma pessoa com tão
pouco dinheiro possa comprar uma área desse tamanho e dividi-la, como aqui
que será dividida por 280 famílias (S., T1).
No início achamos estranho [a ATST], sem contrato por escrito, sem nada, só
com “a cara e a coragem” (J.P., SN).
Eu entrei por uma porta no escuro, sem saber onde era esse lugar, não existia
esse lugar aqui onde moramos hoje (M.S., T2).
Acredito que a esperança e a fé, tudo faz parte. Se você tem fé e crê, então
realiza (I., JC).
Fiquei, lutei, foi uma grande luta, muito cansativo, mas nós devemos ter força, a
garra, a fé e o sonho... Vale a pena (M.L., T2).
Não tinha dinheiro na época, tinha custos e estudava. Como eu disse, a divisão
da comida foi difícil, o filho às vezes pedia alguma coisa e eu não tinha e
pensava “meu Deus do céu”, mas depois dizia “mas vai dar certo” (M.S., T2).
Arriscamos sabendo que seria uma coisa que teria futuro (J.P., SN).
Existem dois tipos de pobres: aqueles que são pobres e querem continuar pobres,
porque recebem tudo de graça, de certo modo, e não é um percentual baixo.
Existem outros que são pobres porque não tiveram oportunidade. A Associação
funciona para esse segundo grupo, não para primeiro (A., voluntário da ATST).
Quer dizer, mais uma vez, então, emerge a questão da valorização, por parte da
ATST, do protagonismo de seus associados, para que eles possam, com sua criatividade
e autonomia, agir para a resolução de seus problemas.
226
Antes de tudo, para adquirir o terreno, tivemos que comprar a área todos juntos.
O que posso dizer? Ali já foi uma baita dificuldade, porque tínhamos que tirar
um pouco do aluguel, um pouco do arroz e do feijão, um pouco da bisteca, da
carne do fim de semana para poder comprar. E depois, quando pagamos tudo
isto, continuamos tirando um pouco de cada coisa a fim de construir. Agora,
hoje, graças a Deus, a panela está cheia. Não precisamos mais pagar o aluguel,
não é? (M.S., T2).
Isto faz com que haja uma redução nos consumos do dia a dia, às vezes até bem
graves. Em alguns casos, as pessoas recorrem a empréstimos ou procuram aumentar a
renda trabalhando mais.
Tínhamos que ter o dinheiro para pagar o terreno, tínhamos que ter o dinheiro
para comprar todo o material da construção... Como naquela época o meu marido
era vivo ainda, fui então trabalhar a fim de ajudá-lo (D., T2).
38
Através dos questionários, observa-se que 70% dos que responderam participaram do projeto e da
construção da própria casa, e mais de 14% participaram em pelo menos uma das fases.
227
Na época, a minha mulher insistiu, porque levou quatro anos para regularizar
esta área. Eu passava por aqui com o carro porque era um comerciante, passava
na frente e pensava que o meu dinheiro estava aqui e não sabia se o recuperaria
(M.S., T2).
Quando eu dizia: “vai ter a reunião do meu movimento e eu devo ir”, os colegas
diziam: “ah, não, estão invadindo de novo, é prá lá que você vai?” Nestes quinze
anos, então, fui muito humilhada, mas eu me dizia: “conseguirei” (L., T2).
Outras pessoas diziam que nós não tínhamos um projeto, que nós éramos
favelados (M.S., T2).
“Mãe, você comprou um terreno num lugar tão feio, e agora é uma vila...”
Ninguém pensa a como era antes! (I., SN).
Esta casa era toda rústica, não tinha aquela parte, não tinha a parte de cima, o
nosso quarto era ali... Aqui do lado havia a cozinha, não havia cimento, não
havia nada. Mudei por causa da minha mulher, porque eu não queria mudar deste
jeito (I., JC).
Eu tive que morar durante três anos num pequeno cantinho que era a sala e a
cozinha, e quem vinha me encontrar, vinha aqui (F., JC).
Faz um ano que saímos da casa, ficamos num salão como esse, e agora faz
sessenta dias que subimos o andar de cima, onde é a casa (S., T1).
Na época em que começamos ali, eu estava pagando R$530 de aluguel, isto sem
contar a água, a luz e o IPTU no início de cada ano, porque nós moramos lá sete
anos e meio, e comprando o material e pagando a mão de obra (J., T1).
Enfim, é importante lembrar que nas fases iniciais de construção das casas, os
bairros não estão ainda dotados de infraestrutura urbana necessária e isso traz
desconfortos consideráveis para as famílias, como o de caminhar pela lama, a falta de
luz, saneamento e transporte.
Quando nos mudamos, enfrentamos muitas dificuldades, sem água, sem luz,
muita poeira, muita lama, era deserto. Foi preciso muito tempo. Estava sozinha
com meu filho, sentia falta da voz das pessoas. Não escutava e não via ninguém,
só aquele deserto no meio do mato. Nada me assustou a ponto de desistir (I.,
SN).
Quando chovia, os ônibus não entravam. Uma vez um ônibus atolou na lama e
nós tínhamos que empurrá-lo (C., SN).
39
Apesar da soma necessária para esse propósito ser bastante alta em relação à despesa do aluguel, é
possível dividi-la ao longo do tempo ou utilizá-lo em caso de despesas extras ou imprevistas. “Porque a
casa você faz um pedaço e se muda” (I., coordenador da ATST).
229
Para você ter uma ideia: quando fazemos compras no supermercado, pegamos
uma sacola a mais quando está chovendo, pegamos duas para não sujar os
sapatos de lama (P., T1).
Tem uma família que se mudou para a casa deles sem ter nenhuma porta,
nenhuma janela. É tão importante e gratificante construir para você. Você não
tem dinheiro para comprar sequer uma janela, mas você entra com aquela
confiança que ninguém pode demover (J., T1).
Às vezes olho para ela e acho que a minha casa é diferente das outras, não é
igual a qualquer outra, a minha casa é diferente... Até o teto da minha casa é
diferente. É esplêndida, esplêndida, esplêndida a minha casa (V., coordenadora
da ATST).
E foi a luta toda, todos nós participamos desta luta, todos participaram nela,
todos juntos. Em tudo quanto se apresentava eu estava sempre aí na frente, junto
com eles, na luta (T., T2).
Foi difícil, a nossa luta foi muito grande, passamos por uma série de
dificuldades, mas hoje o meu filho também tem a sua casa (D., T2).
É difícil! Muito difícil. Conseguimos chegar até este ponto. E ficamos muito
contentes (J., T1).
Vocês precisam vir para ver o que nós construímos, quase tudo com o meu
dinheiro ganho como doméstica. (I., coordenadora da ATST).
Hoje eu não sei, não concordo com as pessoas que escrevem “Terreno à venda”.
Você vai ali, paga o que pedem, mas você não sabe de onde é que veio, a origem.
De repente, você se vê com um vizinho ignorante, um vizinho que nem consegue
te dizer pelo menos um “bom dia”. Por quê? Porque ele não andou na lama, não
sabe a origem de tudo isto (L., T2).
c) Acompanhamento/educação
Sempre foi útil, eles sempre nos explicaram de modo geral todas as coisas
(M.D.S., SN).
Se não tivessem sido as reuniões, teria sido uma confusão total como numa
favela, onde cada um faz aquilo que bem entende. Se você vai às reuniões
quando compra o terreno, você já sabe aquilo que tem que fazer (J.P., SN).
Ajuda a dissolver as dúvidas sobre tudo aquilo que a gente precisa em relação à
energia, em relação ao asfalto, aos serviços sanitários básicos, quanto tempo será
necessário para fazer isso... Entende o quão importantes são estas reuniões?
Porque elas acabam com as dúvidas de todos (S., T1).
Para a autorização de elevar, construir, como é que isso deve ser feito, o
acompanhamento (P., T1).
Então, dizer o que, não deu dinheiro, mas orientou e acompanhou a todos
para que dessem os seus próprios passos. Isto foi o mais importante. O que
posso dizer, ele te orientou e acompanhou no processo da compra do terreno,
ele te orientou e acompanhou no tocante às reuniões, para conseguir uma
ajuda (L., T2).
economia: “Na Associação, eles te explicam que você não está apenas participando,
mas que você está juntando o dinheiro para fazer uma casa” (S., T1).
A s reuniões também se preocupam com a educação dos participantes.
Você aprende a viver em comunidade. Você sabe que aquilo não é apenas
teu, você não tinha nenhuma possibilidade de comprar sozinho num lugar
como este (S., T1).
No início, Marcos, Cleuza, F. nos diziam: “temos que nos ajudar... Juntos
temos que realizar isto”. Começa a existir dentro de nós “tenho que ajudar a
todos”. No meu caso, comecei a mudar neste sentido. Você vê que um
trabalho coletivo é muito melhor (I., JC).
Um dia fui na reunião, uma reunião com a senhora G., que participava também
na Igreja Católica lá e eu percebi firmeza, sabe? Eu senti que era uma coisa
segura (J.O., T2).
arquitetos e mestres de obras que jamais poderiam pagar, como também pela atenção e a
disponibilidade de tempo que esses profissionais dedicam a eles.
Se você chega na Associação a qualquer horário, para construir, para fazer uma
planta, tem aí uma pessoa que te recebe, muito bem (...). Você acaba com a tua
casa, todos que te ajudam, qualquer dúvida que você tem, você vai na
Associação e há J., o chefe dos mestres de obra, é uma pessoa de bem, você pode
chamá-lo (P., T1).
Para quem o usa, tem a universidade, é menos caro. Tem a farmácia aí, quando
temos levamos, quando temos necessidade, pegamos (R., T1).
Outra coisa ótima, muito vantajosa, é esta parte de advocacia (J., T1).
A mais velha [filha] me deu muito trabalho com relação à escola, mas agora com
os cursos de teatro, de dança [oferecidos pelo centro comunitário], ela está se
desenvolvendo e tudo isto ocupa a sua mente (L., SN).
São pessoas humildes [Marcos e Cleuza], bem educadas, que sabem responder às
coisas que a gente pergunta (J., T1).
A Associação me ajudou muito porque eu fui trabalhar como guarda numa área
(D., T2).
Lá dentro na área, há pessoas que nem sabiam segurar uma ferramenta e hoje são
os melhores pedreiros da área. Há uma pessoa aqui na área que hoje, Deus do
céu, está cheia de trabalho, está carregada com muito trabalho (J.O., T2).
Tudo aquilo que chegou para dentro do bairro foi graças à Associação em
colaboração com os habitantes. Nós tratamos de tudo quanto chegou para nós.
Conseguimos trazer a luz, a água, o esgoto, os ônibus... Com a contribuição da
prefeitura, ao falar com o governador, tudo aquilo que tem aqui não foi fácil
(M.D.S., SN).
Para tudo tivemos que nos manifestar: para ter a água, a luz, o telefone (C., SN).
Comprei o terreno e fui para a reunião; quando eles chamavam, nós íamos, era
de ônibus, com aquela alegria, aquela força, nós todos juntos (M.L., T2).
Fizemos um orçamento com três empresas para fazer o asfalto e ganhou aquela
que tinha o preço mais baixo. Foi dito às pessoas quanto era o valor, foi
dividido entre todos (...). E até este centro comunitário foi feito graças às
doações das pessoas da área (J.O., T2).
Isso fez com que os moradores não se sentissem apenas orientados e amparados
pelos responsáveis da ATST em conseguir o provimento desses serviços, mas também
que eles próprios se tornassem protagonistas da tentativa de respostas às suas
necessidades, o que permitiu também a muitos associados aprender a enfrentar e
conduzir as situações cotidianas.
Hoje, por exemplo, no pronto-socorro, sei qual o caminho que tenho de percorrer
para ser atendida, na prefeitura sei o caminho que tenho percorrer para ser
atendida. Aprendi na Associação. Aprendi na Associação quais são os meus
direitos e meus deveres, como administrar a minha conta no banco, aprendi na
Associação (R., coordenador da ATST).
234
Para construir, tínhamos que comprar a água porque não havia o que beber.
Tínhamos que providenciar caminhões para trazer água aos pedreiros porque não
havia uma rede hídrica. E a gente andava junto com a Cleuza, com o Marcos que
ficavam conosco para que não perdêssemos o ânimo. Eles ficavam sempre
conosco, realizávamos encontros, reuniões, comíamos sempre juntos. Eles nunca
nos deixaram sozinhos, ficaram sempre conosco. E hoje, quando olho para trás,
sei que, se não fosse pela companhia deles, eu não teria conseguido, não chegaria
a poder contar hoje esta história da minha vida (R., coordenador da ATST).
Marcos Zerbini, no início das nossas construções aqui, estava sempre presente
(I., JC).
O Marcos e a Cleuza eram os primeiros a saírem pela porta com nós (M.L., T2).
Junto com Cleuza e Marcos que são pessoas muito guerreiras e fizeram tudo o
que se podia fazer para conseguir nos trazer melhorias. Eles enfrentam,
conversam com quem está lá. É muito bom morar num lugar com pessoas que
estão com você. Coitados de nós se não fossem eles (M.D.S,. SN).
235
Como estaríamos aqui hoje sem eles? Se não fosse por eles eu não teria uma casa
aqui em São Paulo, nem eu nem meu filho, nada (D., T2).
Quando fui morar no Sol Nascente, que não tinha luz, água, e Marcos e Cleuza
iam até lá, era para que eu não desistisse. Na época eu não entendia por que eles
vinham todos os dias para a nossa casa quando fomos morar na área (I.,
coordenadora da ATST).
A história de todos que estão com os moradores, de quem se pode ter confiança
e se pode contar é sustentada também pela companhia e testemunho recíproco dos
próprios associados.
Se não houvesse tanta gente, não teríamos comprado. Conheço outra pessoa que
não mora aqui, mas que mora num outro bairro da Associação e quando viram
que as coisas estavam acontecendo... (I., JC).
Chega-se ali com todos os problemas da vida, as pessoas ao teu lado nas
reuniões, todos chegam lá com os problemas aos quais estão sujeitos e você diz
236
“eu também passarei por isto”. Mas se você começa a enfrentá-los, você começa
também a encontrar respostas. É isto que é, a meu ver, interessante (T., estudante
universitário da ATST).
Quer dizer, na experiência dos associados da ATST não ocorre apenas uma
solidariedade vertical – da Associação para com seus membros -, mas também dos
associados entre si – uma solidariedade horizontal.
Outro ponto que ajuda os associados a não abandonarem o percurso é a
possibilidade de observar os resultados positivos conquistados anteriormente pela
ATST, a qualidade de vida nos bairros já concluídos.
Em 1991, participei numa reunião de uma área nova, que já tinha quase todas as
casas, e me apaixonei (P., T1).
Participei nas reuniões por muitos anos, mas eu nunca tive o dinheiro. Vim aqui
para visitar. Eu estava me apaixonando por tudo aquilo que tinha aqui (L., T2).
Visitei algumas áreas que já tinham sido abertas na época e acabaram agradando-
me. E assim eu permaneci e fiquei ali até os dias de hoje, e estou contente por
isso (J.S., T2).
Também, observa-se que, como o caminho para se comprar uma casa com a
ATST é muito longo, os associados podem verificar pessoalmente a confiabilidade de
quem dá orientação e construir uma relação de confiança com os outros associados.
Todos esses elementos são muito importantes, tanto no momento de adesão inicial,
quanto para manter as pessoas decididas a conseguir o objetivo - por exemplo, ter a casa
ou terminar a universidade -, permitindo atravessar ou superar os momentos de
dificuldade que, se enfrentados sozinhos, poderiam levá-los a desistir.
Eu não desisti porque acreditei nas palavras e no fato de ter visto que
funcionava. Você faz o que deve ser feito, baseando-se nas palavras que eles
estão te dizendo (M.S., T2).
40
Esses 39% se dividem em: 22%, testemunhos de amigos; 11%, “o bairro é melhor”; 3% para “melhores
relações sociais” e 3% para “quando tem um problema pode-se discutir”.
237
Eu acho que cada um começou desta maneira: você realiza uma etapa da casa, e
aí saiu do aluguel, é tudo rústico, e tudo aquilo com o qual você sonhou se
realizou, isto é muito bom (I., JC).
Estes fatos criam pouco a pouco a esperança de poder realizar qualquer coisa
que antes era visto como um sonho impossível.
Ou seja, todos esses fatores vistos acima implicam de fato em um envolvimento
de pessoas que se colocam em relação com os outros, que estão juntos e participam de
um trabalho comum há anos. Só uma presença estável e prolongada no tempo pode
modificar substancialmente as aspirações das pessoas, sustentar a vontade de mudança,
assegurar a criação da confiança necessária, permitir que os associados percebam uma
corresponsabilidade pelas estruturas e iniciativas criadas, e gerarem uma dinâmica
sustentável.
É claro que a parte esses fatores positivos que destacamos acima, em um
universo de milhares de associados há pessoas descontentes com a Associação. Em uma
de nossas visitas ao Sol Nascente, encontramos uma moradora que não quis gravar
entrevista, porém nos disse:
Faz tempo que eu moro aqui, mas não tenho amizade nenhuma. Nós não temos
esse contato direto. As pessoas que passam aqui é “bom dia”, “boa tarde”, “oi”,
“tudo bem. Nada mais. Acho que vizinho a gente precisa, porém, é como a gente
fala: vizinho a gente precisa, mas não aquele que fica no portão toda hora. Eu
sou muito na minha. Se precisar, eu estendo as minhas mãos, mas se a pessoa
estiver bem, é “bom dia e tchau”. Eu acho que não tem que passar disso.
Isso aqui é uma coisa que a gente vai ouvir sempre. Mas eu estou tranquila,
levanto todo dia com uma alegria muito grande no coração e dou graças a Deus
por ter este entendimento que eu não tinha antes, quando ficava enfraquecida
238
com os comentários negativos. Não falaram para Moisés: “Pô, lá nós éramos
escravo, mas nós tínhamos comida; agora a gente é livre, mas não tem comida”.
Isso eu ouvi ontem mesmo de um associado: “Eu antes pagava aluguel, mas na
minha porta tinha asfalto, tinha água, tinha luz. Eu tenho uma casa, mas não
tenho água, não tenho luz, de que me adianta isso?” Se falaram a mesma coisa
para Moisés que salvou aquele povo, imagina o que não vão falar para mim?
(Cleuza Ramos).
Marcos Zerbini também age com naturalidade diante dessa situação e cita S.
Tomás de Aquino: “Eu sempre digo: ‘Prefiro os que me criticam, porque me corrigem,
aos que me adulam, porque me corrompem’”.
Outra objeção que costuma aparecer é que a Associação está muito centrada em
Marcos e Cleuza e seu encaminhamento – em relação ao método, inclusive – dependem
deles. Sobre futuros líderes para a ATST, eles não sabem responder. Na verdade,
Marcos Zerbini não se incomoda muito com a questão, confia naquilo que está
preparado para ele e para o movimento. “A gente não têm como prever isso, vai
acontecer naturalmente. É óbvio que eu e a Cleuza não vamos estar aqui para sempre,
mas isso não me preocupa não. O futuro será positivo.”
cotidiana. Fomos percebendo que quando existe esses princípios, quando eles
são efetivamente aplicados, você consegue fazer as coisas acontecerem com
muito mais eficácia (Marcos Zerbini).
Marcos Zerbini conta inclusive que sua visão sobre o Estado foi mudando com o
tempo.
Quer dizer, esses princípios estão presentes e são manifestados como resposta às
necessidades prementes, na forma, na metodologia de fazer o trabalho, não como
ideologia, um projeto previamente desenhado ou um modelo pronto imposto do alto.
Foram a atenção àquilo que acontecia e a postura de se colocar verdadeiramente a
serviço dos outros que permitiram o aparecimento de fundamentos dos princípios da
DSI. Ou seja, são os princípios da DSI que encontraram eco na realidade da ATST.
Mas ao mesmo tempo, nos perguntamos: de onde vem essa atenção, esse olhar?
O que ajuda a razão e a liberdade de quem cuida dessa obra a agir desse modo? A nosso
ver, precisamos retomar algumas falas de Marcos Zerbini relatadas no capítulo 5, em
que ele fala que a partir dos textos de Medellín e Puebla se discutia as estruturas
opressoras, o egoísmo, as injustiças e como a solidariedade, a paz e a dignidade
deveriam ser defendidas para superar tais obstáculos. Ou ainda, quando Marcos Zerbini
relata as conclusões do Concílio Vaticano II que sempre ficaram como paradigmas, ao
falar da importância da vida comunitária e da luta pela justiça e liberdade.
240
Essas coisas foram pouco a pouco entrando na minha cabeça e passei a enxergar
o mundo sob essa ótica. Tudo o que fiz até hoje de alguma maneira tem relação
com esse trabalho que fazia [na Pastoral da Moradia], pelo menos foi motivado
por ele (Marcos Zerbini).
Em suma, fazer parte da Igreja os educa a olhar para seu trabalho e metodologia
de forma mais completa – e os sustenta continuamente.
Eu faço as coisas por amor e quando você faz uma coisa por amor, cada vez dá
mais prazer. Quando é por obrigação, aquilo vai te enchendo o saco. Eu aprendi
com o movimento Comunhão e Libertação a fazer a mesma coisa que eu fazia
antes, mas não por obrigação, por amor (Cleuza Ramos).
Foi uma virada o encontro com Comunhão e Libertação porque a gente fazia o
movimento [a ATST] achando que a gente tinha obrigação com as pessoas.
Obrigação, pena e dó. Hoje fazemos por amor e isso é totalmente diferente
(Marcos Zerbini).
O movimento tem que ser uma resposta à realidade. Você tem que se deixar ser
provocado pela realidade e responder essa realidade. Sempre pôr o interesse das
pessoas que te procuram, que vêm para o movimento acima dos teus próprios
interesses ou do teu interesse político-ideológico. Porque a preocupação com o
ser humano é fundamental (Marcos Zerbini).
Nota-se que quando o voluntário diz que a ATST “não tem projetos” ou “o
conceito de plano”, ele se refere que a Associação não tem uma postura fechada diante
do que acontece ou algo já pré-estabelecido que não mudaria de jeito algum, quaisquer
que fossem as circunstâncias.
Como testemunhado pelas várias mudanças de métodos na história da ATST, a
Associação não é rigorosamente ligada a certa modalidade operativa, mas tem sempre a
disponibilidade de mudar tal modalidade se as circunstâncias assim pedirem ou se uma
nova hipótese parece ser mais adequada para atingir o objetivo. Ela parte das
necessidades, dos desejos dessas pessoas e dessas famílias.
Essa abertura se vê também na disponibilidade de adaptar as regras ou a
estrutura organizacional conforme a situação de cada associado, caso seja oportuno.
242
Ocorreu, por exemplo, que por um erro de comunicação por parte da Associação, uma
estudante universitária se apresentou a uma reunião em horário errado. Visto que o erro
não era de responsabilidade da estudante, Cleuza decidiu fazer uma reunião naquele
momento somente com ela.
Essa abertura é testemunhada tanto pelos voluntários da ATST, quanto pelos
muitos associados entrevistados.
Acho que o maior segredo do movimento não é nem a casa, nem a faculdade,
nem nada. É que as pessoas que estão a frente do movimento aprenderam que o
mais importante são as pessoas. A partir do momento que você valoriza as
pessoas, as outras coisas vêm. E sempre olho para S. Francisco de Assis. A
grande luta desse santo é que ele lutou durante a vida toda dele para ser igual a
todo mundo. Ele não lutou para ser diferente, para ser santo. Ele quis ser igual a
todo mundo. E quando hoje a gente quer ser igual a todo mundo, não é que quero
ser pobre igual a todo mundo, não quero ser doutor igual a todo mundo. Eu quero
ser igual, ou aproximar muito do desejo das pessoas que estão próximas de mim.
Sempre me aproximar do desejo da pessoa, daquilo que aflige, do que dá alegria.
Isso é ser igual. Não é ser igual naquilo que ela faz, naquilo que ela tem. É ser
igual a ela como pessoa, porque os mesmos desejos que o milionário tem, os
mendigos também têm: o desejo de ser feliz. É o mesmo desejo. Não é que rico
tem um desejo e pobre tem outro desejo. É o mesmo desejo de felicidade. É por
esse desejo que precisamos estar atentos com as pessoas que estão na nossa
frente (Cleuza Ramos).
Estou com você na sua necessidade. Não estou sendo fingida. Se o teu problema
é a orelha de abano, eu estou com você para resolver o problema da orelha.
Porque isto é importante para você. Se for comida, vamos arranjar comida.
Quem somos nós para julgar o que você precisa, não é? Em cada momento você
dá importância ao caso que você tem (Cleuza Ramos).
contribuição a cargo deles no caso de usufruir dos diversos convênios (plano de saúde,
desconto universitário etc.).
Este aspecto de nada ser gratuito ou doado foi enfatizado com uma nota de
orgulho por alguns associados.
Nada do que existe aqui na Associação foi doado, ninguém veio aqui pra dizer
“vocês precisam disso, dou a vocês”. Não, isso não aconteceu. Então, o nosso
suor está aqui dentro (M.S., moradora da área Turística 2).
Cleuza e Marcos falam desta posição como “não paternalista”. A intenção deles
é a de ajudar as pessoas a adquirir consciência da própria responsabilidade em relação
às oportunidades que aparecem, a tomarem iniciativa no que diz respeito às próprias
necessidades, educando a uma seriedade e a um protagonismo, superando uma atitude
meramente reivindicativa e passiva. Isto implica não só em oferecer ajuda a grupos de
pessoas, mas observar o crescimento individual de cada um. Essa visão é fruto de uma
maturidade pessoal dos fundadores que reconhecem ter vivido num passado
“paternalista”.
Eu trabalhei durante dez anos na rua levando comida para os pobres, nem era um
trabalho, só levava o que comer, pois na favela fazíamos um trabalho
paternalista. Não havia nenhuma discussão, não importava se era para você, para
você ou para você. Hoje as pessoas possuem um nome e um rosto, antes não,
eram todos iguais, era “o pobre”, “o pobre”, “o pobre”. Eu desejava ajudar as
pessoas a crescerem, não anulá-las puxando-as para baixo. Se você dá esmola,
está puxando para baixo. Elas, ao contrário, precisam trabalhar no sentido de
resolver a própria vida delas (Cleuza Ramos).
Há muito trabalho, sabemos disto, que não ajuda as pessoas a crescerem. Você
ajuda as pessoas a crescerem somente se a pessoa se torna protagonista da sua
história. Se ela depende de alguém, não cresce. Nunca gostamos de um trabalho
no qual as pessoas dependem, tanto faz se dependem de nós ou de qualquer outro
(Marcos Zerbini).
Essa visão de Marcos e Cleuza é passada para os coordenadores. R. nos diz qual
a principal mensagem que quer passar para os associados – a ATST não vai dar nada
“de mão beijada”, mas se oferece para ajudar que uma iniciativa do associado, quando
quer resolver um problema qualquer, de fato se realize.
Nas reuniões, quero que entendam que não existe um problema insuperável
quando se está junto, que entendam que nós não somos capazes de resolver todos
245
vez, ajuda a estabelecer os laços de confiança, são alguns elementos da própria DSI que
estão presentes no interior da própria experiência da Associação e que, a nosso ver, são
importantes para o desenvolvimento de qualquer experiência social.
Na ATST não há sorteio ou indicação de quem ser beneficiado – como acontece
em programas de moradias estatais. Depende apenas da capacidade de uma família
poupar seu dinheiro e da negociação por terras por parte da Associação. De modo que a
família é chamada a participar desde o início, pela economia de recursos. Nesse caso, a
família obterá sua moradia não por fruto do acaso e da sorte de ter adquirido
determinada moradia em determinada região, mas será parte de um processo desde que
se torna associada.
Outro ponto interessante é que cada família pode decidir com um arquiteto um
projeto particular da casa, de acordo com suas necessidades e desejos, levando-se em
conta, portanto, toda a dignidade daquela família que pode expressar um pouco de si, da
sua particularidade, na sua casa. Afinal, o importante não é só “ter” a casa, mas a
possibilidade de a família expressar nela o ser, escolher “vestir a roupa que quiser”. Sua
casa já não é igual das outras. Nesse sentido, na ATST as pessoas se reconhecem no
início em igualdade de condições (sem a casa própria), mas sem, em momento algum,
excluir a diferença e a diversidade.
Essa experiência permite uma confiança na própria possibilidade. As pessoas
percebem uma oportunidade nova para a própria vida e um olhar diferente que os faz
descobrir o próprio valor – uma afeição a si.
Nota-se que estes elementos de novidade e protagonismo, estando
indiscutivelmente presentes, não são nem automáticos nem gerais.
Quanto ao Princípio de Solidariedade, um dos fatores principais que
caracteriza o modo de trabalhar da ATST é a atenção à esfera educativa, isto é, ao
crescimento da pessoa e da comunidade. Tal atenção é documentada, antes de qualquer
coisa, pela importância atribuída à participação nas reuniões, que são fundamentais não
apenas para gerenciar os aspectos técnicos da compra dos terrenos e as problemáticas
envolvidas, mas, sobretudo, para o trabalho educativo que se desempenha: se chama
atenção sobre a responsabilidade individual, se favorece o crescimento das relações de
confiança e ajuda entre os associados, as pessoas são auxiliadas a refletirem sobre
atitudes pessoais e problemas da atualidade que interferem na vida das famílias, também
através de um depoimento recíproco.
247
A comunidade é mais importante que a casa. Porque a casa, você mora, fica
preocupado, porque você vai sair, não sabe se volta, como fica sua família. Se
você mora em um bairro bom e seguro, você fica tranquilo. O bairro é onde as
pessoas têm que se gostar, ser vizinho, porque o parente mais próximo que a
gente tem é o vizinho. Porque uma hora que você tem uma dificuldade na vida,
um acidente, uma doença, você corre para o vizinho. Se você não tem um bom
relacionamento, é difícil. Primeiro a gente tem que construir a comunidade, para
depois construir o bairro. Eu podia só construir o bairro e pronto. Mas isso não é
humano, não é cristão, não traz a satisfação que me traz hoje. Há realmente
bairros com muita dificuldade, mas que é muito mais digno, muito mais humano
do que qualquer outro bairro (Cleuza Ramos).
Uma vez fui para a Uninove, onde há tantos estudantes da Associação, e falei
com o diretor, porque um destes rapazes tinha um problema. O diretor então me
respondeu: “Mas quem é este rapaz que a deixa tão preocupada? A senhora tem
15 mil estudantes, por que se preocupa justamente com este? É seu filho? Um
parente seu?” Eu respondi: “eu não tenho 15 mil estudantes. Cada um deles é
uma pessoa com um rosto, um nome e uma história. E eu me preocupo com cada
um deles” (Cleuza Ramos).
O processo educativo é que eles estão sempre juntos do povo, eles estão juntos.
Essa é a educação, é dizer: “eu estou com você”, esse é o grande processo
educacional. O que aconteceu em janeiro [de 2011], por exemplo, de a
universidade ter aumentado a mensalidade em 10%. O que fizemos? Fomos em
frente da universidade e levantamos barracas. Marcos e Cleuza com todos os
coordenadores, todos nós fomos lá. Impressionavam os jovens: “Como? Eles que
são os dirigentes, não é preciso... Como é que eles vão dormir ali, passar a noite
protestando na frente da universidade?” Todas aquelas pessoas, sejam das casas
ou estudantes, têm uma certeza em comum e sobre isso sou testemunha em dez
anos que estou com eles: que nós podemos contar 100% com Marcos e Cleuza,
porque eles estarão sempre com a gente (A., voluntário da ATST).
Não existem limites para ir até lá, conversar com eles, organizar da minha parte
os auxílios quanto posso, até o fim, para que possam ter estes benefícios. Dia e
noite, com chuva... eu vou (I., coordenadora da ATST).
Quer dizer, é fazer com, não somente fazer para. O projeto não deve ser
assistencialista, mas avançar junto com as pessoas, partindo do relacionamento com
elas, construindo e amadurecendo os passos com elas. A liberdade da pessoa é, portanto,
ponto de partida de cada ação – e aqui temos um ponto de intersecção, do Princípio de
Solidariedade com o de Subsidiariedade.
Cleuza, por exemplo, dedica duas horas do seu tempo a cada quinze dias para
comparecer na entrada dos estudantes nas universidades nos cursos noturnos.
251
Eu venho aqui duas vezes por semana e fico algumas horas para que os jovens
que entram possam ver um rosto amigo e ter alguém com quem falar sobre seus
problemas (Cleuza).
incentivos, acompanhar e dar assistência técnica – por meio de parcerias (já que a
maioria das pessoas não tem conhecimento técnico) - a esses grupos.
Ao poder público, cabe ver a capacidade de os movimentos gerarem o novo. Os
movimentos são o lume indicativo para a solução de problemas, porque ao vivenciarem
uma situação eles apresentam modos alternativos de solução. E o Estado precisa dessa
capacidade de previsão, de criação. Ele necessita de atores competentes e criativos,
inovadores. E os movimentos sociais são o espaço, por excelência, da inovação, da
criatividade.
Na experiência da ATST cada pessoa, cada comunidade, cada bairro representa
uma riqueza e tem características e necessidades próprias. Particularizar os problemas
tende a valorizar e reforçar aquilo que as pessoas já construíram no local, as suas
histórias, as relações existentes, isto é, o tecido social e o estar juntos na experiência que
constituem suas características específicas. Individualizar as necessidades e os recursos
para responder a cada situação coloca em jogo a consolidação e o reforço da
comunidade. Afinal, o fato de uma comunidade ser pobre, ter dificuldades e necessitar
de ajuda não significa que os outros – administração pública – tenham o direito de
decidir quais são os seus interesses.
Para os fundadores da ATST – e onde a DSI encontra eco – todos são
responsáveis pelo seu destino, todos devem ter liberdade de agir para a resolução de
seus problemas.
Assim, a situação de moradia de muitos associados é melhorada, seja pelo
tamanho, seja pela qualidade da moradia. Um fator particularmente evidente é a
satisfação relativa à aquisição da casa própria e ao fato de ter conseguido comprá-la
graças a um empenho pessoal. Essa satisfação parece estar ligada, sobretudo, a um
elemento de orgulho pessoal, dificilmente encontrado quando a casa é provida sem o
protagonismo da pessoa.
Isto graças também a uma participação ativa por parte dos associados. Todavia,
há de se reconhecer que a ATST enfrenta alguma dificuldade. No que pudemos observar
e colher nas respostas dos questionários, se antes de obter o terreno os associados
participam das reuniões – pois também é pré-condição para poderem comprá-lo – ,
depois de o bairro ter se estruturado com certa infraestrutura, a participação cai
drasticamente. Poucas famílias continuam frequentando as discussões sobre as questões
do bairro. Na verdade, essa participação das famílias só aumenta novamente quando há
um problema pontual reconhecido por todos e que deve ser enfrentado logo. Esse é o
253
Este é o ponto mais difícil das coisas. Muitas pessoas não têm conscientização, a
gente fala que o mais importante é a comunidade, que elas têm que se organizar
com alguém, que elas tem que ter essa visão do coletivo, isso é um trabalho. E
para que depois que ela vai para a casa dela, que ela não caia num comodismo.
Então, às vezes, as pessoas dizem para nós que a gente vive uma utopia, que a
gente vive fora da realidade. Na realidade, é que a nossa tendência é o
comodismo: eu já faço muito de cuidar da minha vida, que está cheia de
problema (...). Mas no fim, meu destino seria estar com o umbigo no fogão
agora, cozinhando para o meu marido, para as minhas duas filhas e vou assistir o
Faustão de noite. Olha que tédio (Cleuza Ramos).
Esta obra não é uma obra da Associação, esta obra é resultado da luta dessa
counidade, não é o governo que está nos dando, fomos nós que conquistamos, é
uma obra que nós lutamos durante toda a vida e finalmente estamos conseguindo
(R., coordenador da ATST).
2. Últimas considerações
pelos limites. A promoção do bem integral do ser humano inclui suas dimensões
emocionais, psíquicas e espirituais.
Depois, vimos que é desse reconhecimento da pessoa que se apoia a dignidade
humana e derivam os direitos e deveres humanos, universais, invioláveis e inalienáveis.
O outro é um outro eu, que não deve ser mero objeto ou mercadoria na mão de outros.
No que diz respeito ao Princípio de Solidariedade, observamos que ele parte da
intrínseca sociabilidade humana – o ser humano precisa dos outros para viver – e pode
se tornar uma virtude moral. A despeito da violência, do individualismo e egoísmo
exacerbados, o ser humano é capaz de ser altruísta e também de não ficar apenas nas
atitudes pontuais ou em um sentimento de compaixão vago, mas ter um compromisso
permanente de ser solidário. Além disso, vimos que a solidariedade, para a DSI, é uma
responsabilidade de todos para com todos, defendendo o protagonismo também dos
mais necessitados, para que eles sejam autossuficientes. Uma atitude verdadeiramente
solidária é, além de fazer por, fazer com aquele que precisa. Decorre, então, que a
solidariedade seja exercida por meio de uma cidadania ativa e responsável e que o
Estado coordene as ações da sociedade para atingir esse fim e ajude a eliminar as
estruturas opressoras. Em sua relação com o bem comum, o Princípio de Solidariedade
defende a destinação universal dos bens e a opção preferencial pelos pobres, dois
assuntos caros para a DSI, especialmente para a igreja latino-americana.
Sobre o Princípio de Subsidiariedade, observamos que a participação popular é
essencial. Ela pode fazer a diferença. É a certeza de que o diferencial está na
participação ativa dos sujeitos nos momentos de decisão, execução e controle das
políticas sociais. Para participar é preciso conhecer, ter informações, saber o montante
de recursos empregados e como serão gastos – em quê e com o quê. Quem participa
passa a ser sujeito ativo e não objeto das ações, exigente e fiscalizador. Cada pessoa ou
grupo deve ter autonomia, criatividade e liberdade para decidir e atuar de acordo com
seus valores e crenças na realidade, construindo o bem comum. Significa, enfim,
reconhecer a capacidade de cada ser humano e sua comunidade de ser sujeito de sua
própria história, como defende a DSI. Ao Estado cabe fiscalizar, aprovar, dar
incentivos, acompanhar, oferecer infraestrutura básica e dar assistência técnica quando
necessário. Para a DSI, deve haver uma mudança efetiva no papel do Estado, que deixa
de ser provedor exclusivo e passa a ser de facilitação para associações populares
também desenvolverem o seu trabalho. Coloca-se um novo papel para a administração
pública como parceiro da sociedade civil organizada em associações.
257
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Ficha Nº:
4- Desde que você se mudou para cá, acha que seu bairro:
5- Vou indicar alguns problemas. Comparando com o bairro em que morava antes, neste bairro esse
problema está:
Posto de Saúde
Segurança
Falta de trabalho
Transporte público
272
No bairro, a noite
Confiança
8- Desde que você se mudou para cá, você acha que o grau de confiança nos vizinhos:
9- Comparando com o bairro em que morava antes, você acha que pode CONFIAR mais
ou menos em seus vizinhos?
Para estudar
Em caso de doença
Moradia
11- Se POSSUI uma moradia, você pôde decidir como fazer sua casa?
12- Se o governo oferecesse uma casa um pouco melhor, em um outro lugar, você estaria
disposto a se mudar?
Com certeza não Mais não que sim Mais sim que não Com certeza sim
Por quê?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
13- Por que você comprou sua casa com a ATST e não em outro lugar?
Instrução
Sim Não
15- Qual é o grau de escolaridade?
Seu De seu PAI De sua MÃE
Nenhum
Ensino Fundamental 1 (Até 5ª série)incompleto
Ensino Fundamental 1 (Até 5ª série) completo
Ensino Fundamental 2 (Até 8ª série) incompleto
Ensino Fundamental 2 (Até 8ª série) completo
Ensino Médio incompleto
Ensino Médio completo
Superior incompleto
Superior completo
Trabalho
Empresário/Empregador
Empregado
Desempregado
Estudante
Aposentado
Menos que 500 500-1000 1000-2000 2000-3000 3000-4000 Mais que 4000
21- Você acha que sua situação econômica vai melhorar nos próximos anos?
Dados Gerais
22- Sexo:
M F
Verificação empírica
41
Contamos com a ajuda de um estatístico para essa análise. Utilizou-se o programa Statisca 5.1.
42
As restrições impostas são: equidade dos coeficientes das variáveis relativas aos problemas de escola e
segurança e a igualdade das variáveis que indicam uma experiência vivida positiva (boas relações sociais,
participação na construção da própria casa e ter tido o auxílio da ATST para escola e saúde). A pesquisa
estatística sobre tais restrições tem um resultado equivalente a 0,1, p-value 0,98.
276
43
Enquanto o primeiro resultado é facilmente previsível, em relação às pessoas mais velhas e menos
dispostas a enfrentar mudanças, no segundo caso o sinal negativo é mais difícil de interpretar.
44
Eliminando todas as variáveis com um nível de significância maior de 20% (valor da pesquisa em todas
as restrições conjuntas 3,56, p-value 0,83), as estimativas não sofrem fortes variações. No geral, aumenta
o nível de significância com exceção da variável relativa à motivação inicial, cujo coeficiente, mantendo-
se paralelo com aquele das experiências vividas, resulta significativos apenas em 15%.
277
Problemas do bairro
Acesso à escola 0,27 0,65
Segurança 0,37 1,22
Escola e Segurançaa 0,33 1,39 0,38 2,28**
Acesso a Postos de Saúde 0,06 0,17 0,05 0,12
Transporte -0,17 -0,45 -0,17 -0,48
Dummy Bairros
Turística 0,92 2,09** 0,88 2,06** 0,58 1,91*
Sol Nascente 0,23 0,5 0,26 0,58
Voith 0,39 0,66 0,38 0,65
Constante 1,21 1,5 1,21 1,50 1,11 1,68**