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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

RAFAEL MAHFOUD MARCOCCIA

OS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA E A ASSOCIAÇÃO DOS


TRABALHADORES SEM TERRA DE SÃO PAULO

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

RAFAEL MAHFOUD MARCOCCIA

OS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA E A ASSOCIAÇÃO DOS


TRABALHADORES SEM TERRA DE SÃO PAULO (2000-2013)

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de DOUTOR em Ciências Sociais,
sob a orientação do Prof. Doutor Luiz
Eduardo Waldemarin Wanderley.

SÃO PAULO
2013
BANCA EXAMINADORA

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A Carol,
minha esposa
AGRADECIMENTOS

Ao meu primeiro orientador Prof. Oliveiros da Silva Ferreira, que não pôde
continuar orientando-me, mas foi quem incentivou a realização desse trabalho, por suas
ideias e provocações. Ao professor Luiz Eduardo Wanderley, que me orientou na parte
final do trabalho, por sua paciência e dedicação.

Aos amigos da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo,


principalmente a Marcos Zerbini e Cleuza Ramos, pelo testemunho vivo e constante.

Aos amigos do Centro Universitário da FEI e do Departamento de Ciências


Sociais e Jurídicas. Faço uma menção especial a Carla, Diego, Kurt, Marli e Raúl que,
me incentivaram na realização desse doutorado.

Aos meus pais, Sandra e Roberto, a minhas irmãs, Camila e Karina, a Odete,
Joaquim, Fátima, seu Wilson, e a todos os demais familiares pelo amor e dedicação.

A Carol, minha querida companheira, pela paciência, atenção, força e carinho


constantes.

Aos amigos e mestres Alexandre Ferrari, Renata, Paulo Pacheco, Marina


Massimi e Miguel pelos conselhos e pela infinita atenção.

A todos os meus amigos da Fraternidade, que me sustentaram durante estes


quatro anos: Alex, Marselha, Carol, Bruno, Leandro, Luiz Guilherme, Fernando,
Maurício, Dani, Camila, Ricardo, Marina.

Aos amigos de Comunhão e Libertação, pela confiança, especialmente a João


Marcos, Fernanda e Luísa; Márcio, Melissa, Ana Beatriz, João Paulo, Luis Gustavo e
Maria Sofia; Felipe e Letícia; Otávio; Camilo e Ana Paula; Guálter, Sílvia e Valentina;
Bira; Pe. Julián; Fábio, Clarice, Pedro, Maria e André; Angélica e Ricardo, Ana Lúcia e
Marcelo, Brenda, Roberta, Felipe Mecchi, Lucas, Rafael Pitoscia,

Por fim, aos colegas e professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em


Ciências Sociais da PUC-SP, que contribuíram com o diálogo em diversas perspectivas.
MARCOCCIA, M. R. Os princípios Doutrina Social da Igreja e a Associação dos
Trabalhadores Sem Terra de São Paulo (2000-2013). Tese (Doutorado em
Sociologia). Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2013, 279 p.

RESUMO
O objetivo do trabalho é investigar as ligações existentes entre os princípios
permanentes da Doutrina Social da Igreja e como eles podem se manifestar
concretamente nos dias de hoje, pelo exemplo de uma obra brasileira: Associação dos
Trabalhadores Sem Terra de São Paulo. Pouco se estuda, em nível acadêmico, o
discurso social católico, mas é inegável a profunda influência que a Igreja Católica tem
sobre a cultura ocidental e suas instituições. Partimos da hipótese de que os princípios
do ensino social católico, quando presentes em uma ação social, oferecem respostas
importantes em nível pessoal e comunitário para o desenvolvimento das pessoas
atendidas. É feita uma ampla pesquisa bibliográfica em que se busca descrever e
entender as bases filosóficas e sociais desses princípios. É feito um estudo de caso na
Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo, movimento de habitação
popular que atua na região noroeste da cidade de São Paulo e atende 20 mil famílias que
não tinham casa própria e viviam em condições subumanas. Essa pesquisa tem uma
abordagem qualitativa, com análises do que pudemos observar de sua dinâmica e das
visitas às áreas da associação, além da análise das respostas dos fundadores e associados
do movimento a entrevistas semiestruturadas sobre suas histórias de vida e do
movimento. Foram aplicados também questionários com outros associados para
corroborar ou não elementos que apareciam nas entrevistas. Percebemos que os
Princípios de Dignidade Humana, de Solidariedade e de Subsidiariedade estão presentes
na origem de atuação desse movimento e na atenção dos fundadores com seus
associados, levando em conta todos os aspectos que constituem a pessoa, e
consequentemente, sua família, desde a liberdade de construir a casa do modo desejado,
até o fortalecimento de aspectos comunitários e o estabelecimento de parcerias com o
poder público e com outros grupos da sociedade. As ações tomadas pela associação são
respostas dadas tendo como critério os desejos fundamentais que constituem a pessoa
humana e os princípios fundamentais da Doutrina Social da Igreja.

Palavras-chave: Doutrina Social da Igreja; dignidade humana; solidariedade;


subsidiariedade; movimento social
MARCOCCIA, M. R. The Principles of the Church’s Social Doctrine and the
Landless Workers’ Association of São Paulo (2000-2013). Thesis (Doctorate in
Sociology) The Social Sciences Graduate Program at the Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo [Pontifical Catholic University of São Paulo]: São Paulo, 2013,
279 p.

ABSTRACT

The purpose of this thesis is to investigate the underlying principles of the Church’s Social
Doctrine and how they manifest themselves in concrete form in this day and age, through the
example of a Brazilian creation: the Landless Workers’ Association of São Paulo. Very little of
the catholic social discourse has been studied at the academic level, but the deep influence of
the Catholic Church on western culture and its institutions is undeniable. The basis of this
research is the hypothesis that the principles of catholic social teaching, when part of a social
initiative, offer important input at a personal and community level, with regards to the
development of the individuals they impact. This thesis also includes wide-ranging
bibliographical research in order to attempt to describe and understand the philosophical and
social bases of these principles. A case study is presented involving the Landless Workers’
Association of São Paulo, a popular housing movement that operates in the northwestern region
of the city of São Paulo, which has aided 20,000 families who did not own their own homes and
who previously lived in precarious conditions. This research takes a qualitative approach, with
on-the-ground analyses of the dynamics of this association undertaken during visits to the areas
where it operates, as well as analysis of the responses to semi-structured interviews with the
founders and members of the movement about their own life stories and those of the movement
itself. Questionnaires were also applied to other members in order to corroborate the elements
that emerged from the interviews. It can be observed that the principle of the dignity of the
human person, solidarity and subsidiarity are present in the bases of this movement, reflected in
the concern the founders have for their members, taking into account all the aspects that
constitute individual people and, consequently, their families, from the freedom to build their
own homes in the way they desire, to the strengthening of communitarian aspects and the
establishment of partnerships with local authorities and with other groups in society. The
initiatives taken by the association are solutions whose criteria are the fundamental desires that
constitute the human person and the fundamental principles of the Church’s Social Doctrine.

Keywords: Social Doctrine of the Church; human dignity, solidarity; subsidiarity; social
movement
LISTA DE ABREVIATURAS

ATST: Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo


CA: Centesimus annus
CDSI: Compêndio de Doutrina Social da Igreja
CEB: Comunidade Eclesial de Base
CEC: Catecismo da Igreja Católica
CELAM: Conferência Episcopal Latino America e do Caribe
CL: Christifideles laici
CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CV: Caritas in veritate
DCE: Deus caritas est
DR: Divini redemptoris
DSI: Doutrina Social da Igreja
EV: Evangelium vitae
GS: Gaudium et spes
LC: Libertatis conscientia
LE: Laborem exercens
LS: La Solenittà
MDF: Movimento em Defesa dos Favelados
MM: Mater et magistra
MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
OA: Octogesima adveniens
PP: Populorum progressio
PT: Pacem in terris
QA: Quadragésimo anno
RH: Redemptor hominis
RN: Rerum novarum
SRS: Sollicitudo rei socialis
UMM: União dos Movimentos de Moradia
SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................................................. 01
Capítulo 1: A Doutrina Social da Igreja: uma apresentação ........................................................... 10
1. O que é Doutrina Social da Igreja................................................................................................ 10
2. DSI: ensinamento constante, caráter dinâmico ............................................................................ 14
3. A natureza da Doutrina Social da Igreja ...................................................................................... 17
4. Periodização da Doutrina Social da Igreja.................................................................................. 21
5. O desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja ....................................................................... 24
5.1. Rerum novarum (1891) ................................................................................................ 25
5.2. Quadragesimo anno (1931) .......................................................................................... 27
5.3. A doutrina social de Pio XII e La Solennità (1941) ..................................................... 29
5.4. Mater et magistra (1961) .............................................................................................. 31
5.5. Pacem in terris (1963) .................................................................................................. 33
5.6. Gaudium et spes (1965) ................................................................................................ 34
5.7. Populorum progressio (1967) ....................................................................................... 35
5.8. Octogesima adveniens (1971) ....................................................................................... 37
5.9. Laborem exercens (1981) ............................................................................................. 39
5.10. Sollicitudo rei socialis (1987) ..................................................................................... 40
5.11. Centesimus annus (1991) ............................................................................................ 42
5.12. Caritas in veritate (2009) ........................................................................................... 43
6. Conferências episcopais............................................................................................................... 45
6.1. Medellín (1968) ........................................................................................................... 45
6.2. Puebla (1979) ................................................................................................................ 47
6.3. Aparecida (2007) .......................................................................................................... 50
7. Princípios permanentes da Doutrina Social da Igreja .................................................................. 51
Capítulo 2: O Princípio da Dignidade Humana: a concepção de pessoa e algumas reflexões
contemporâneas .................................................................................................................................... 53
1. A concepção de pessoa ................................................................................................................ 58
1.1. As duas dimensões da pessoa: corpo e espírito ............................................................ 58
1.2. As características estruturais da pessoa ........................................................................ 63
1. 2.1. Pessoa e sociabilidade ................................................................................... 67
1.2.2. Razão, Liberdade e a Lei Natural .................................................................. 69
2. A dignidade humana ................................................................................................................... .77
2.1. A dignidade humana na Doutrina Social da Igreja ....................................................... 83
Capítulo 3: O Princípio de Solidariedade: sociabilidade humana, virtude moral e princípio
orientador da sociedade ....................................................................................................................... 97
1. Da intrínseca sociabilidade... ....................................................................................................... 99
2. ... à solidariedade como virtude moral ....................................................................................... 106
3. A solidariedade como princípio ................................................................................................. 114
4. O princípio de solidariedade na Doutrina Social da Igreja ........................................................ 118
5. A relação do Princípio de Solidariedade com o bem comum .................................................... 126
Capítulo 4: A participação popular e o Princípio de Subsidiariedade .......................................... 130
1. Participação popular .................................................................................................................. 130
1.1. Participação por meio de Movimentos Sociais ........................................................... 137
2. Aspectos gerais do Princípio de Subsidiariedade ...................................................................... 144
3. A ideia antiga de subsidiariedade .............................................................................................. 148
3.1. A subsidiariedade na Doutrina Social da Igreja.......................................................... 150
4. Fundamentação do Princípio de Subsidiariedade ...................................................................... 154
4.1. Valores: Liberdade e Justiça ....................................................................................... 154
4.2. Princípios Fundantes ................................................................................................... 155
5. O Estado subsidiário .................................................................................................................. 159
Capítulo 5: A história da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo ..................... 165
1. A influência da Igreja Católica .................................................................................................. 167
2. A história da ATST .................................................................................................................... 174
2.1. Os fundadores: Cleuza Ramos e Marcos Zerbini ....................................................... 175
2.2. O início (1986-1988): da ocupação à compra ............................................................. 177
2.3. Dificuldades nos anos 1989-1990: dos mutirões às construções ................................ 178
2.4. Os anos noventa: da regulamentação depois da ocupação à autorização antes da
ocupação ............................................................................................................................ 180
2.5 Os últimos anos: o início do Movimento Sem Faculdade ........................................... 181
3. A organização atual ................................................................................................................... 184
3.1. A organização interna ................................................................................................. 184
3.2. As atividades: o movimento de habitação .................................................................. 185
3.3 As atividades: o movimento Sem Faculdade ............................................................... 192
Capítulo 6: A experiência da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo .............. 197
1. Propósito e metodologia de pesquisa ......................................................................................... 198
1. 2. Análise descritiva dos questionários .......................................................................... 200
2. Uma análise da experiência dos associados............................................................................... 202
2.1. As mudanças nas condições de vida dos associados .................................................. 202
2.2. As mudanças na situação pessoal dos associados ....................................................... 218
2.3. Os fatores de base da mudança ................................................................................... 222
3. Aspectos metodológicos relevantes da ATST ........................................................................... 238
Considerações Finais .......................................................................................................................... 241
1. Os princípios da DSI e a ATST ................................................................................................. 241
2. Últimas considerações ............................................................................................................... 255
Referências Bibliográficas .................................................................................................................. 260
Anexo A................................................................................................................................................ 271
Anexo B ................................................................................................................................................ 275
INTRODUÇÃO

A escolha do tema a ser estudado nessa tese de doutorado é fruto de um percurso


pessoal e profissional. No final de 2003, participamos de um seminário promovido pelo
Núcleo Fé e Cultura na PUC/SP chamado “Experiências de Subsidiariedade:
Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo (ATST) e Obras Kolping”. No
seminário tomamos contato pela primeira vez com a ideia de subsidiariedade, que logo
nos chamou a atenção pelo fato de valorizar a participação popular - tema que despertou
nossa simpatia no decorrer da graduação.
Nas palavras de Wanderley (2013, p. 293), a subsidiariedade “preconiza o
respeito e o auxílio aos membros da comunidade no desempenho de suas funções, além
de defender as pessoas dos abusos das instâncias sociais superiores”. E um efeito desta
perspectiva é o da participação “que se exprime em um conjunto de atividades exercidas
pelo cidadão, individualmente ou em associação, contribuindo para a vida econômica,
política, cultural e social de forma igualitária e solidária” (WANDERLEY, 2013, p.
293).
Além disso, nesse mesmo encontro, também nos deparamos com a experiência
da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo (ATST), cujo método de
construção de moradias era diferente do habitual: cada família podia fazer a casa de
acordo com suas necessidades e vontades, o que fazia com que as casas não fossem
padronizadas, como é o mais comum nos programas de habitação popular,
principalmente os estatais. Isso nos motivou a conhecer a Associação mais de perto.
Essa experiência popular chamou nossa atenção tanto que decidimos fazer a
dissertação de mestrado – realizada no Programa de Estudos Pós-Graduados em
Ciências Sociais da PUC/SP e defendida em 2007 – sobre ela. No mestrado o interesse
foi em fazer um estudo que permitisse conhecer o surgimento de um movimento de
moradia, a ATST, remontar sua história e sua dinâmica interna, e analisar seus métodos
para a resolução parcial do déficit habitacional. O tema articulador da dissertação foi a
participação popular. Paralelamente, começamos a estudar o que era o Princípio de
Subsidiariedade e como ele se manifestava. Depois, como ele se inseria na Doutrina
Social da Igreja (DSI).
Em 2008, quando começamos a lecionar no Centro Universitário da FEI, uma
das disciplinas oferecidas foi Ensino Social Cristão. Seu conteúdo programático
consiste em apresentar, de forma básica, o conteúdo principal da Doutrina Social da
2

Igreja, a partir dos seus princípios fundamentais: os Princípios de Solidariedade, de


Subsidiariedade e da Dignidade Humana, sendo o Bem Comum abordado de maneira
transversal.
A partir daí, nasceu nosso desejo de aprofundarmos mais nossos estudos sobre
esses princípios. Além disso, também em 2008 o papa Bento XVI, em discurso à
Pontifícia Academia de Ciências Sociais, em 03 de maio, indicou esses princípios como
critérios fundamentais e eficazes para os grupos da sociedade resolver os problemas
sociais e prosperar nas áreas econômicas e políticas. Assim, surgiu um questionamento:
esses princípios de fato se manifestam concretamente nos dias de hoje de alguma forma
e são realmente válidos como princípios sociais? Essa pergunta nos motivou o início de
uma investigação.
A expressão Doutrina Social da Igreja designa o conjunto de escritos e
mensagens – cartas, encíclicas, exortações, pronunciamentos, declarações – que
compõem o pensamento do magistério católico a respeito da questão social. Não tem
caráter dogmático nem intraeclesial: são os problemas sociais, políticos e econômicos
os seus objetos.
A DSI se desenvolveu no século XIX, quando a sociedade industrial moderna, as
novas estruturas para produção de bens de consumo, uma nova concepção da sociedade,
do Estado e da autoridade, e novas formas de trabalho e de propriedade surgiram. Seu
documento inaugural é a encíclica Rerum novarum, do papa Leão XIII, publicada em
1891. Isto não quer dizer, no entanto, que os problemas sociais estivessem ausentes das
publicações anteriores na história da Igreja. São inúmeras as referências à situação real e
concreta dos pobres desde os primeiros séculos do cristianismo e da tradição católica. O
próprio Leão XIII, na introdução da Rerum novarum, refere-se à abordagem do tema em
encíclicas precedentes sobre soberania política, liberdade humana e constituição cristã
dos Estados, publicadas nos anos de 1831, 1885 e 1888. Mas, enquanto anteriormente
essas questões apareciam de forma secundária, agora o papa faz da condição social dos
operários o tema central de sua carta.
Hoje os desafios são outros. O mundo apresenta muitos contrastes. Há a
fragmentação do conhecimento, a banalização das relações humanas, a sociedade de
massas, o consumo exacerbado, a atomização dos vínculos sociais - com pessoas
próximas em ambientes virtuais, ao mesmo tempo distantes no mundo real. Na era da
velocidade, a imagem se coloca acima do conteúdo e o efêmero e o volátil parecem se
impor ao permanente e ao essencial. Nossa cultura está impregnada pelo niilismo, que
3

nega a presença de valores absolutos como a verdade e preceitos éticos, a ausência de


valores e de sentido para a vida. Consequentemente, as pessoas se entregam ao presente,
ao hedonismo, ao individualismo (SANTOS, 2004).
A nossa sociedade é igualmente marcada pela violência contra si mesmo e
contra os outros e por uma corrupção social, econômica e política cada vez mais
presente. A violência atualmente pode ser até mais assustadora do que antes, porque
mais sofisticada.
Recorrer à DSI, então, pode ser interessante, porque carrega a perspectiva de
ainda articular a sua compreensão dos mais diversos dinamismos, instâncias e
instituições sociais a partir da radical afirmação da dignidade da pessoa. Em um período
da história onde o mercado, o tecnicismo e/ou a ciência reduzem o ser humano concreto
à categoria abstrata subordinada a sistemas mais abrangentes, a Doutrina Social da
Igreja recorda que, antes dos projetos ideológicos, políticos e científicos, existe
justamente a própria pessoa.
É evidente que a Igreja Católica não está isenta das dificuldades. Em seu interior
há conflitos, tensões, disputas por poder, ambições, pecados de carreirismo. Há
contradições. Afinal, faz parte da condição humana de quem participa dela.
Todavia, embora com todos os seus limites, é inegável que a DSI é um campo de
conhecimento bimilenar muito rico. Ou ainda, que a Igreja Católica tem gerado ao
longo do tempo muitas obras que transformam a realidade de forma marcante e também
um conjunto de reflexões sobre os mais diversos temas que dizem respeito ao ser
humano.
A Doutrina Social da Igreja incentiva a busca pelo sentido da totalidade das
coisas, e nesse aspecto tem uma importante missão de educação. É importante retomar a
perspectiva mais ampla que ela consagra, a partir de uma visão do ser humano de forma
integral, em todas as dimensões, a fim de que possa realizar todas as suas
potencialidades e contribuir o bem comum e o progresso de toda a humanidade.
A proposta social da Igreja gira em torno de alguns valores e princípios
fundamentais e gerais, permanentes e universais, e que constituem a espinha dorsal da
sua proposta. Eles valem para todos indiscriminadamente. Há, assim, um modo de
entender a pessoa, a vida humana e a sociedade, que dá continuidade a todos os
documentos.
Os princípios são: antes de tudo, a centralidade da pessoa com sua dignidade
transcendente (Princípio da Dignidade Humana); em seguida, o Princípio de
4

Solidariedade, entendida como comunhão fraterna para o bem de todos; em terceiro


lugar, o Princípio de Subsidiariedade, que prioriza a participação dos vários grupos da
sociedade para a resolução de seus próprios problemas e sugere que tudo aquilo que
pode ser realizado por eles deve ser incentivado e incrementado pelo Estado, deixando
para a administração pública somente aquilo que a sociedade não é capaz de resolver, e
a fiscalização das atividades sociais. Por fim, o Princípio do Bem Comum, um bem em
que todos devem tomar parte e objetivo último dos três anteriores.
Em nosso trabalho, procuraremos estudar os três primeiros princípios citados da
DSI – dignidade humana, solidariedade e subsidiariedade -, buscando entender suas
bases filosóficas e sociais, seus desenvolvimentos nos diferentes documentos, de que
maneira aparecem nas encíclicas, como se inter-relacionam, e se podem ou não se
manifestar concretamente nos dias de hoje. Para isso, estudaremos o caso da Associação
dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo.
A hipótese de nossa pesquisa é que os princípios da DSI, se e quando presentes
em uma ação social, incentivam o protagonismo e a liberdade, trazendo ganhos
significativos em nível pessoal e comunitário para o desenvolvimento das pessoas
atendidas.
As perguntas gerais que nos moveram para nos ajudar a identificar esses
princípios na experiência foram: sobre o Princípio da Dignidade Humana - a experiência
da ATST ajuda no protagonismo de seus associados? Há um respeito real pelas pessoas?
Como se manifesta esse respeito?; sobre o Princípio da Solidariedade - a experiência da
ATST favorece o estabelecimento de laços de confiança? Favorece a prática de
solidariedade? Qual o relacionamento social estabelecido pelos associados? Existe um
acompanhamento pessoal por parte dos coordenadores, onde os associados
experimentam a gratuidade, o “olhar de amor”, que diz a DSI?; e sobre o Princípio da
Subsidiariedade - favorece a liberdade e a autonomia dos associados? Qual o
relacionamento da ATST com a administração pública? A ATST favorece de fato a
participação?
Assim, buscaremos também analisar a história da ATST, sua relação com grupos
da Igreja Católica, entender e analisar os resultados e as consequências da aplicação dos
três princípios nessa Associação. Destacaremos principalmente o período entre os anos
de 2000-2012 da Associação.
A ATST é movimento de moradia popular criado em 1989, atuando em 26 áreas
da cidade de São Paulo, nas regiões de Pirituba e Jaraguá. Composta atualmente por
5

aproximadamente 20 mil famílias associadas, a Associação tem por objetivo principal a


provisão de residências próprias à população de baixo poder aquisitivo (1 a 5 salários
mínimos), com recursos das próprias famílias tanto para a aquisição do terreno quanto
para a construção da casa. A maioria das famílias que participam da ATST despendiam
pelo menos 30% da renda familiar com aluguel de moradia ou moravam em condições
precárias de infraestrutura urbana. Embora se denomine “sem terra”, a Associação é um
movimento social de moradia urbano. O nome se explica porque, na época em que ela
surgiu, não se fazia distinção entre “sem terra” e “sem teto”.
A ATST permite liberdade de construir casas populares segundo o desejo de
cada família, colocando como centro a dignidade integral de cada ser humano e a
unidade da família, e pretende fortalecer dinâmicas propriamente comunitárias e
estabelecer convênios médicos, educacionais e de estética com outros grupos da
sociedade. Em uma parceria estipulada com o poder público, cabe a ele a instalação de
infraestrutura: energia, água e saneamento básico.
A ATST tem sua origem na experiência da Igreja Católica. Por isso, indicaremos
como se deu a influência da Igreja Católica sobre determinados movimentos sociais
urbanos, em particular sobre ela.
A influência da Igreja Católica, como veremos, deu-se a partir do Concílio
Vaticano II e após as Conferências Episcopais latino-americanas (CELAM) de Medellín
e de Puebla, reuniões em que se enfatizou uma visão de desenvolvimento centrado na
participação do povo como sujeito das conquistas. Esta mudança foi teorizada e
fundamentada pela Teologia da Libertação e redimensionou fortemente a ação pastoral
da Igreja Católica no Brasil, gerando uma cultura que valoriza a inserção de padres,
freiras e outros agentes pastorais no meio do povo. Estas pessoas, inconformadas com
as injustiças e contaminadas pelo fervor da Teologia da Libertação, dedicavam-se a
movimentar o povo, acompanhando e apoiando o dia-a-dia de greves e ocupações,
motivando e dinamizando processos organizativos de defesa e conquista de direitos.
Mesmo a ideia de “povo como sujeito”, ou seja, de ser protagonista da sua própria
história, surgiu de forma intensa em especial no discurso da Igreja Católica (SADER,
1988).
Como é conhecido, a influência e os impactos da DSI variaram no tempo e no
espaço. Uma visão abrangente da influência da DSI na América Latina e, em especial,
no Brasil, ressalta os efeitos ambivalentes na CELAM, cuja atuação como organismo
nas Conferências episcopais evoluiu de uma perspectiva mais ativa e crítica –
6

particularmente em Medellín -, e se desenvolveu de modo conservador nas posteriores


de Puebla, Santo Domingo e Aparecida. Mesmo assim, em seu conjunto, é de se
ressaltar a “opção preferencial pelos pobres”, objetivando a sua libertação.
Historicamente, em função do sentido e das práticas estimuladas pelo método
ver-julgar-agir - com forte ressonância na Ação Católica Especializada, e depois
incorporada em diversas instâncias da Igreja Católica -, bem como da visão de
libertação integral baseada no Evangelho, na Bíblia, nas reflexões de teólogos, filósofos
de renome internacional, a leitura e a aplicação de temas da DSI influenciaram ações
individuais e coletivas transformadoras.
Para exemplificar, na temática aqui selecionada, com um foco nas questões da
terra, do trabalho, da propriedade, da pobreza, da exclusão social, surgiram iniciativas
significativas. Uma experiência de vulto teve origem na Comissão Pastoral da Terra,
vinculada à Igreja institucional, que atua na problemática sobre a terra - invasões,
ocupações, meio ambiente etc.-, por meio de cursos de formação e pressões sobre
proprietários e instâncias governamentais. A partir de suas colocações e atividades,
ganhou notoriedade o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), com inserção no território nacional e impactos conflitivos com empresários
agrícolas e governos de vários níveis. Nos dois exemplos citados, prevalecem
dimensões derivadas dos princípios da dignidade humana, do bem comum, da pessoa,
da participação sociopolítica, da solidariedade, entre outros.
Mesmo em outras iniciativas e reflexões de cunho sócio-religioso e basicamente
incorporando os mesmos princípios de presente tese, tiveram origem e permanecem
atuando as pastorais sociais - que cobrem diversas áreas de engajamento na sociedade
brasileira em geral. No mesmo sentido, atuam também ONGs, movimentos sociais,
entidades de educação popular, setores pertencentes a universidades, com suas
especificidades.
Sem ignorar a importância e as interpretações deste conjunto de atores, que ora
convergem com os objetivos da Associação aqui selecionada, e que ora divergem das
concepções e experiências da mesma, nossa escolha pelo tema da tese se deve às causas
apontadas: continuidade das finalidades desenvolvidas no mestrado, a crença na
relevância e eficácia da ATST e sua opção derivada atualmente de sua participação no
movimento católico Comunhão e Libertação, que será citada mais adiante.
Uma escolha fundamental foi a da inserção da tese na esfera das Ciências
Sociais. Além de ela ter sido focada numa Universidade de natureza católica, onde a
7

DSI tem um lugar central, nossa opção por esta Associação, bem como os critérios
escolhidos para as leituras, entrevistas e análise - como se verá na sequência da pesquisa
que contribuiu para a tese -, estão ancoradas no âmbito das Ciências Sociais, e na
Sociologia em particular. Os pontos assinalados em cada princípio mostram, com um
enfoque próprio, mesmo que fundado basicamente na esfera da DSI e não raro na
sociologia da religião, o enfoque das Ciências Sociais como abordagem teórico-prática.
Os princípios analisados, sua seleção e aproveitamento prático na realização da
pesquisa, direta e indiretamente mantêm vínculos com as Ciências Sociais - o que
procuramos demonstrar no texto em geral e nas considerações finais.
Pesquisar esses três princípios buscando um maior entendimento de suas bases
filosóficas e sociais, suas inter-relações, e entendendo suas manifestações nos dias
atuais, pelo exemplo de uma obra social presente no Brasil, torna-se uma oportunidade
de conhecer e explicitar como tem sido vivenciado e apreendido esses três princípios de
propostos pela Doutrina Social da Igreja.
Para a discussão dos princípios, fizemos em primeiro lugar uma pesquisa
bibliográfica: leituras de bibliografia sobre os princípios de Dignidade Humana, de
Solidariedade e de Subsidiariedade, além do levantamento de referências que foram
surgindo ao longo da pesquisa e que se constituíram relevantes para a demarcação
teórica desse projeto.
Para o estudo de caso, realizamos uma pesquisa documental, por meio de
levantamento de documentos particulares e oficiais relativos à história, descrição e
regulamento da ATST, e levantamento de estatísticas que permitiram caracterizar
quantitativamente o universo estudado, através de pesquisas.
O trabalho é baseado em nossa observação direta sobre o comportamento dos
associados no movimento e sobre a dinâmica da Associação. Estivemos presentes em
reuniões das comunidades nos centros comunitários. Fizemos uma pesquisa de campo:
entrevistas abertas e aprofundadas com os responsáveis e principais colaboradores da
ATST para esclarecer alguns aspectos históricos e técnico-organizacionais, a postura
cultural-educativa e as principais mudanças ocorridas na condução da ATST.
Aplicamos 153 questionários em associados para verificar a importância de
certas questões (satisfação em relação aos bairros, qualidade das relações sociais,
mudanças nas atividades empregatícias etc.), e para corroborar ou não as entrevistas
individuais realizadas. O questionário abordava a qualidade de vida percebida pelos
moradores dos bairros - moradia, saúde, serviços, segurança, relações sociais - e uma
8

comparação com os bairros onde eles moravam anteriormente; o grau de confiança nos
vizinhos e, de modo geral, nas instituições; a relação com a ATST - razões da escolha
inicial para aderir à Associação, auxílios recebidos e decisão hipotética de se transferir
para outros bairros. Foram coletadas informações sócio-demográficas relativas ao
entrevistado por questionário e sobre os respectivos pais (educação, situação
empregatícia, saúde, composição do núcleo familiar, rendimento).
Também realizamos entrevistas individuais semiestruturadas com os associados,
abordando a mudança da própria situação habitacional, a mudança da situação
empregatícia e a mudança em relação à instrução dos filhos. Optou-se por entrevistar
diretamente algumas pessoas para saber da marca que a experiência da Associação
deixou em suas vidas. Para roteiro das perguntas, utilizamos os próprios questionários
aplicados.
Visitamos quatro comunidades da ATST, as mesmas em que foram realizadas as
entrevistas e aplicados os questionários. Em dois bairros - Jardim Canaã e Sol Nascente
-, como veremos, a aprovação da propriedade por parte das autoridades foi conseguida
por meio de uma regularização posterior à ocupação - depois que as casas já estavam
construídas -, e os moradores tiveram que participar de manifestações para obtenção da
infraestrutura básica e dos serviços públicos. Nos outros dois bairros - Turística 1 e 2 -,
as obras de construção das casas foram iniciadas depois da obtenção das autorizações
necessárias das áreas e o Turística 1 não dispõe ainda dos serviços e da infraestrutura
básica. Os dados coletados foram analisados por uma análise descritiva.
Nossa tese estrutura-se da seguinte maneira: o Capítulo 1 – A Doutrina Social
da Igreja: uma apresentação – trata de uma apresentação do que é o discurso social
católico, suas principais características e seu desenvolvimento, além dos principais
temas levantados por cada encíclica e pelos documentos latino-americanos da CELAM,
em especial Medellín, Puebla, e Aparecida – esta, por sua contemporaneidade.
O Capítulo 2 - O Princípio da Dignidade Humana: a concepção de pessoa e
algumas reflexões contemporâneas – trata da concepção católica de pessoa. Depois,
trata da dignidade humana em si, dos direitos e deveres humanos universais, invioláveis
e inalienáveis, e como eles são discutidos no ensino social cristão.
O Capítulo 3 - O Princípio de Solidariedade: sociabilidade humana, virtude
moral e princípio orientador da sociedade – fala da solidariedade que nasce de uma
característica intrínseca ao ser humano, mas que necessita passar a valor moral e mesmo
a princípio regulador da sociedade, para que não se reduza a um sentimento vago de
9

compaixão. Depois, trata de como a questão da solidariedade aparece no discurso da


Doutrina Social da Igreja e encerra falando de sua relação com o bem comum, um bem
em que todos participam e objetivo último da solidariedade.
O Capítulo 4 - A participação popular e o Princípio de Subsidiariedade -
trata da participação popular e dos movimentos sociais. Logo depois, desenvolve o que
é o Princípio de Subsidiariedade, seus fundamentos e como ele aparece na Doutrina
Social da Igreja. Também discute o que significa um Estado subsidiário.
Esses quatro primeiros capítulos apresentam os princípios da DSI ainda de
maneira mais geral e teórica.
O Capítulo 5 - A história da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de
São Paulo - procura descrever a história da ATST, sua trajetória desde sua origem até
os dias atuais, e verificar, passo a passo, como as soluções encontradas ao longo do
caminho foram se tornando métodos de ação para a Associação. Investiga também de
que modo a Igreja Católica está presente em sua experiência e a influência que as
CELAM de Medellín e Puebla exerceram sobre ela.
Já o Capítulo 6 - A experiência da Associação dos Trabalhadores Sem Terra
de São Paulo – mostra os resultados da pesquisa para verificar se e de que modo a
participação da Associação modificou o comportamento dos associados em relação à
própria condição, gerando, por exemplo, novas expectativas ou interesses, aumentando
a confiança neles mesmos, a capacidade de assumirem os riscos e de empreender novas
iniciativas. Depois,
Nas Considerações Finais, a partir dos resultados colhidos, das entrevistas
concedidas e do que observamos, identificamos se e como os princípios da Dignidade
Humana, da Solidariedade e da Subsidiariedade podem se manifestar. Salientamos a
importância dos princípios da DSI e os resultados colhidos. Em seguida, relacionamos a
bibliografia e anexamos alguns materiais.
Esperamos que este estudo contribua com o trabalho de pesquisadores e
professores, buscando lançar um novo olhar e alguma contribuição no que se refere à
importância dos princípios da DSI para a sociedade e à viabilidade de uma proposta
alternativa para a habitação popular na qual a solidariedade e a dignidade humana
emergem do trabalho coletivo.
CAPÍTULO 1

A Doutrina Social da Igreja: uma apresentação

1. O que é Doutrina Social da Igreja

Considera-se a encíclica Rerum novarum, do papa Leão XIII, publicada em


1891, como o primeiro documento e a carta magna da Doutrina Social da Igreja (DSI).
Mas o que é a Doutrina Social da Igreja?
Essa expressão consiste no conjunto de escritos e mensagens de cada papa –
cartas, encíclicas, exortações, pronunciamentos, declarações – que compõem o
pensamento do magistério católico a respeito da questão social, levando sempre em
consideração que a comunidade cristã é o sujeito da DSI (CNBB, 2004).
Para entender quais são os elementos constitutivos e o enfoque da doutrina
social, usaremos como referência o livro Temas da Doutrina Social da Igreja –
Caderno nº 1 (2004), editado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Em seu primeiro capítulo, o livro parte de dois textos.
O primeiro refere-se a um documento publicado em dezembro de 1998 pela
Congregação para a Educação Católica, com o título Orientações para o estudo e o
ensino da Doutrina Social da Igreja na formação dos sacerdotes. Ao discorrer sobre os
elementos constitutivos da DSI, o documento diz:

O ensinamento origina-se do encontro da mensagem evangélica, e de suas


exigências éticas, com os problemas que surgem na vida da sociedade. As
questões que daí emergem passam a ser matéria para a reflexão moral que
amadurece na Igreja por meio da pesquisa científica, e inclusive mediante a
experiência da comunidade cristã. Esta doutrina projeta-se sobre os aspectos
éticos da vida, sem descuidar dos aspectos técnicos do problema, para julgá-los
com critério moral. Baseando-se em ‘princípios sempre válidos’, leva consigo
‘julgamentos contingentes’, já que se desenvolve em função das circunstâncias
dinâmicas da história e se orienta essencialmente para a ‘ação ou práxis cristã’
(nº 3).

Quatro componentes emergem desse trecho: a) as exigências éticas derivadas da


dimensão social do Evangelho; b) os imperativos da realidade socioeconômica e
político-cultural do mundo em que vivemos; c) a reflexão moral que confronta a
mensagem evangélica com a situação histórica; e d) a ação ou práxis sócio-
11

transformadora. Estes quatro elementos agem em constante interação e procuram


adaptarem-se aos mais diferentes contextos históricos (CAMACHO, 1995).
Quer dizer, trata-se de interpretar a realidade social, política e econômica tendo
como critério de juízo o ensinamento do Evangelho sobre o homem e sobre sua
vocação.
Já para identificar o enfoque da DSI, o livro da CNBB destaca outro documento:
A Justiça no Mundo (JM), resultado do Sínodo dos Bispos de 1971. São citados alguns
trechos de sua introdução:

Ao perscrutarmos os ‘sinais dos tempos’ e ao procurarmos descobrir o sentido do


curso da história, e compartilhando ao mesmo tempo as aspirações e as
interrogações de todos os homens desejosos de construírem um mundo mais
humano, queremos escutar a Palavra de Deus, para nos convertermos para a
atuação do plano divino acerca da salvação no mundo (JM, nº 2).

Ao ouvirmos o clamor daqueles que sofrem violência e se veem oprimidos pelos


sistemas e mecanismos injustos, bem como a interpelação de um mundo que,
com a sua perversidade, contradiz os desígnios do Criador, chegamos à
unanimidade de consciência sobre a vocação da Igreja para estar presente no
coração do mundo e pregar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos oprimidos e
a alegria aos aflitos. A esperança e o impulso que animam profundamente o
mundo não são alheios ao dinamismo do Evangelho que, pela virtude do Espírito
Santo, liberta os homens do pecado pessoal e das consequências do mesmo na
vida social (JM, nº 5).

A ação pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos


claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o
mesmo é dizer da missão da Igreja, em prol da redenção e da libertação do
gênero humano de todas as situações opressivas (JM, nº 6).

Por “dimensão constitutiva” – expressão utilizada no número 6 - entende-se que


a ação sócio-transformadora é parte inerente do Evangelho. Não se trata, portanto, de
mero desdobramento da fé cristã e menos ainda de apêndice de uma vida segundo o
Evangelho. A ação social é elemento integrante da mensagem evangélica. Não haverá
verdadeira evangelização sem um correspondente compromisso de ordem social e
política.
“Dimensão constitutiva” é certamente uma das expressões usadas pelo
magistério da Igreja que melhor estabelecem o vínculo indissolúvel entre a justiça social
e a evangelização. O seguimento de Jesus Cristo, para ser genuíno e autêntico, exige
participação ativa no trabalho de transformação da sociedade.
Afirma-se no mesmo documento, nos parágrafos seguintes, que “a situação atual
do mundo, vista à luz da fé, faz-nos um apelo no sentido de um retorno ao núcleo
mesmo da mensagem cristã, que cria em nós a consciência profunda do seu verdadeiro
12

sentido e das suas urgentes exigências” (JM, nº 35). Ou seja, retornar ao núcleo da
mensagem cristã é resgatar sua dimensão social. Sem esta dimensão o próprio
Evangelho perde seu fermento mais fecundo, mais vital e mais eficaz.
Temas da Doutrina Social da Igreja ilustra bem isso a partir também de dois
textos do Evangelho. O primeiro é do evangelista Lucas: Jesus encontra-se recolhido
num lugar à parte e, sob a insistência dos discípulos, ensina o Pai-nosso (Lc 11,1-4). No
segundo texto, o evangelista Mateus (9, 35-38) faz um breve resumo das atividades de
Jesus, em que “percorre as cidades e aldeias”, compadecendo-se das multidões
“cansadas e abatidas”. No primeiro caso, Jesus está na montanha em oração; no
segundo, Jesus está na rua. De acordo com o livro da CNBB, na prática de Jesus
montanha e rua não se excluem, mas se complementam, se interpelam e se enriquecem
mutuamente. Quanto mais Jesus aprofunda sua intimidade com o Pai, na montanha,
mais se desdobra no compromisso com os pobres, pelas ruas. A montanha exige a rua e
a rua exige a montanha. Oração e ação social constituem duas dimensões indissociáveis
de uma mesma prática. Se, por um lado, a mensagem do Evangelho tem como
centralidade inquestionável a preocupação com o Reino de Deus, por outro, no coração
do Reino encontram-se os pobres como prediletos de Deus.
A ideia da ação social como parte intrínseca das escrituras é encontrada em outro
texto: na constituição pastoral Gaudium et spes (GS), de 1965, que reflete e sintetiza o
espírito de todo o Concílio Vaticano II, em especial na sua frase de abertura: “As
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos
pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e
as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade verdadeiramente humana que
não encontre eco no seu coração” (GS, nº 1).
Desse modo, o magistério social da Igreja Católica, solicitada pela premência
das grandes questões sociais, deseja oferecer uma resposta que se aproxime da justiça
social. Isso comporta uma função de anúncio e de denúncia.
De anúncio, pois a Igreja Católica acredita possuir em si própria “uma visão
global do homem e da humanidade” (Populorum progressio [PP], 1967, nº 13). Isso se
evidencia no fato de seu ensinamento social ser estruturado não somente em princípios
permanentes de reflexão e em critérios de juízo, mas também em normas e diretrizes de
ação que daí decorrem. A Igreja não persegue fins de estruturação e organização da
sociedade, mas de cobrança, orientação e formação das consciências. A Igreja se sente
solidária com o gênero humano e com a sua história.
13

E de denúncia, porque à doutrina social cabe também apontar tudo o que se opõe
à dignidade da pessoa humana, “especialmente dos direitos dos pobres, dos pequenos e
dos fracos” (COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA [CDSI], 2004, nº
81) – geralmente ignorados ou violados – e ao desenvolvimento integral dos povos.
Por essa razão a Igreja não renuncia a pronunciar-se sobre os problemas e ideias
próprias da época. A DSI procura atualizar a dimensão social do Evangelho para os
distintos contextos da vida cotidiana, levando sempre em conta que “o gênero humano
encontra-se em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas
estendem-se progressivamente ao universo inteiro” (GS, nº 4). Por sua vez, a encíclica
Solicitudo rei socialis (SRS), publicada em 1987 por João Paulo II, a define como uma:
“formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas
realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, a luz da fé
e da tradição eclesial” (SRS, nº 47).
A doutrina social é, então, uma forma da Igreja dar-se ao mundo (CNBB, 2004).
O magistério da Igreja procura interpretar e confrontar a mensagem evangélica diante
das situações mais diversas. É a atualização dos evangelhos para os dias de hoje,
traduzida na sensibilidade e na solicitude da Igreja para com aquelas situações onde a
vida encontra-se mais ameaçada. Assim nasce uma reflexão e uma doutrina de caráter
social - isto é, escrita para iluminar os problemas relacionados à condição social do
gênero humano e conduzir as pessoas à busca de soluções. Por isso Bigo (1969)
considera, também, que todo o discurso religioso tem uma reverberação social e,
portanto, influencia toda a dinâmica social. Quer dizer, é o Evangelho tornado vivo e
atual nos diferentes desafios da realidade social, política, econômica e cultural.
Entrementes, essa doutrina é também a expressão de uma consciência que se
forma e se desenvolve coletivamente no seio da Igreja na presença das realidades
sociais. Nesse sentido, podemos destacar o papel fundamental que as conferências
episcopais – nacionais ou regionais –, especialmente as da América Latina, tiveram na
contribuição de um diálogo fecundo com a DSI, enriquecendo-a, mesmo que muitas
vezes esse diálogo tenha sido tenso e conflituoso.
Também os leigos têm uma parte preponderante, pois são eles, frequentemente,
os mais atingidos pelas situações. E também porque a ação do cristão leigo no mundo
tem por objeto ajudar a ordenar a vida social, pública e privada. Assim, o magistério
retém os dados adquiridos da realidade e fazem deles o objeto de seu ensino. Mas um
ensino que desemboca e convida a todos necessariamente à ação social.
14

Isso significa que o protagonismo da doutrina social não será apenas


prerrogativa da hierarquia, mas tarefa das próprias comunidades locais. Paulo VI
escreve na Octagesima adveniens [OA](1971):

A essas comunidades cristãs compete discernir, com a ajuda do Espírito Santo,


com comunhão com os bispos responsáveis, em diálogo com os demais irmãos
cristãos e com todos os homens de boa vontade, as opções e os compromissos
que convém assumir para realizar as transformações sociais, políticas e
econômicas que se consideram de urgente necessidade em cada caso (OA, nº 4).

Os membros da hierarquia, assim, incentivam, estimulam, acompanham,


iluminam e ajudam a discernir. Muitas vezes, entretanto, os conflitos, as discussões,
foram intensos. Mas os documentos não são última palavra e sim uma palavra
autorizada, que proporciona o equilíbrio para situar as questões em suas verdadeiras
dimensões. Há o compromisso responsável de cada um nas iniciativas– sacerdotes,
religiosos e leigos –, de modo que cada um atue no nível que lhe corresponde. Toda a
comunidade concorre para constituir a doutrina social, segundo a diversidade de tarefas
e carismas.
Inclusive o Compêndio da Doutrina Social da Igreja afirma que há
responsabilidades políticas, econômicas e administrativas que “competem aos leigos de
modo peculiar, em razão da condição secular do seu estado de vida e da índole secular
da sua vocação” (CDSI, nº 83; destaque no original).

2. DSI: ensinamento constante, caráter dinâmico

A DSI não é um conjunto de “verdades” definitivamente acabadas a serem


transmitidas adiante. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, ela possui uma
natureza dinâmica e flexível. Seu conteúdo e seus métodos evoluem com o tempo. Há
uma contínua remodelação da doutrina sobre uma realidade em permanente mudança,
inclusive com ênfases diferentes sobre mesmo assunto ao longo dos documentos da
DSI. Ao projetar a doutrina sobre determinada circunstâncias históricas particulares,
produz-se uma espécie de reconfiguração da doutrina, uma remodelação. Ou seja,
situações históricas novas exigem uma releitura dos fundamentos doutrinários; e estes,
por sua vez, trazem nova luz aos desafios que a realidade levanta dia a dia.
A doutrina social progrediu, também, sob impulso de grandes cristãos atentos às
coisas de seu tempo e penetrados pelo pensamento da Igreja. Isso mostra uma
capacidade de abrir-se às coisas novas, como um canteiro sempre aberto que não se
15

aprisiona num esquema fechado à realidade sociopolítica, como a imagem utilizada pelo
Compêndio da Doutrina Social da Igreja (cf. nº 86).
Entretanto, apesar desse caráter dinâmico, as próprias encíclicas se preocupam
em destacar a continuidade da DSI. Cada encíclica encontra-se no meio do caminho
entre uma tradição doutrinal que chega a ela por meio de documentos anteriores e uma
realidade que se manifesta com problemas específicos. Quando se estudam os
documentos, percebe-se que existe um fio condutor que dá unidade ao conjunto. Por
esse motivo, a DSI não depende das diversas culturas, das diferentes ideologias, das
várias opiniões: ela é um “ensinamento constante” que atravessa a história (CDSI, nº
85).
Desse modo, nos documentos da DSI há uma tríplice dimensão: uma vinculação
com os documentos que o precedem, um caráter não definitivo e uma abertura para
reflexão.
A DSI, como se assinalou, portanto, não foi estruturada como um corpus
orgânico desde o princípio, mas, pouco a pouco, com os diversos pronunciamentos do
magistério católico sobre temas sociais, um sistema orgânico foi se formando. Por conta
desse processo de formação, a DSI apresenta algumas oscilações quanto à natureza, o
método e a estrutura epistemológica (CDSI, nº 72).
Camacho (1995) nos apresenta o conceito de círculo hermenêutico para explicar
essa natureza dinâmica e flexível da DSI: o contato vivo com a realidade leva-nos a
descobrir, a cada curva do caminho, um sentido mais profundo da Palavra de Deus. Por
outro lado, esta redescoberta constante de novos enfoques da mensagem evangélica joga
luz nova sobre as realidades concretas e orienta os passos dos caminhantes. Numa
palavra, o evangelho ilumina a vida e a vida ilumina o evangelho. Na expressão de
Camacho, o processo “vai da fé à práxis histórica, e da práxis histórica à fé” (p. 18).
Assim, a doutrina social não propõe uma maquete da sociedade ou uma imagem
fechada da sociedade. Pelo contrário, permite uma pluralidade de decisões técnicas e
também de opções culturais. “Mas, não creiam [os leigos] que seus pastores sejam
sempre tão competentes que, em qualquer problema, mesmo grave, possam dispor de
solução concreta, nem creiam que estejam enviados para solucioná-lo” (GS, nº 43).
Porém propõe um “modelo” social, um conjunto coerente de normas, segundo as quais
devem ordenar-se as relações públicas e privadas.
Chegado a este ponto, gostaríamos de destacar que já houve debates anteriores
em que muito se discutiu se o objeto do qual estamos tratando é uma doutrina ou um
16

ensinamento. A palavra “doutrina” denota uma série de princípios fechados, definidos.


Já o termo “ensinamento” respeita um caráter aberto, dinâmico e flexível, disposto
sempre a incorporar ou rever os valores de acordo com o passar do tempo.
Com relação aos papas, Pio XII foi o primeiro a utilizar a expressão “Doutrina
Social da Igreja”, em sua rádio-mensagem de Pentecostes de 15 de maio de 1941. Pio
XI havia falado de “Doutrina Social e Economia” e de “Filosofia Social Cristã”. João
XXIII, em Mater et magistra, empregou a expressão de Pio XII. O Concílio Vaticano II
utilizou a expressão somente duas vezes.
Foi Paulo VI, em 1971, na Octogesima adveniens quem melhor fez a passagem
do conceito de doutrina para o de ensinamento. Assim ele se expressa:

Com todo seu dinamismo, o ensinamento social da Igreja acompanha os homens


nesta busca. Embora não intervenha para confirmar, com sua autoridade, uma
determinada estrutura estabelecida ou pré-fabricada, não se limita a recordar
princípios gerais. Desenvolve-se por meio da reflexão, amadurecida no contato
com situações dinâmicas deste mundo, sob o incentivo do Evangelho, como
fonte de renovação, desde o momento em que sua mensagem é aceita na
plenitude de suas exigências. Desenvolve-se com a sensibilidade própria da
Igreja, marcada pela vontade desinteressada de serviço e atenção aos mais
pobres; finalmente alimenta-se de uma rica experiência multissecular, que lhe
permite assumir, na continuidade de suas preocupações permanentes, as
inovações atrevidas e criativas que a situação presente do mundo exige (OA, nº
42).

Depois, João Paulo II e Bento XVI alternaram “doutrina” e “ensinamento” com


o mesmo contexto, em um sinal de que a discussão estava superada.
A DSI certamente constitui um organismo vivo que é capaz de adaptar-se às
circunstâncias da história e de remodelar-se aos acontecimentos mais imprevisíveis. Um
organismo vivo que respira a atmosfera de um determinado contexto social. Nele nasce,
cresce e se desenvolve. Embora localizado no tempo e no espaço, vai forjando
princípios de validade universal, numa permanente releitura da mensagem evangélica.
Camacho (1995) afirma que o ensinamento social estrutura-se na convergência
de três elementos: o contato com as situações dinâmicas, o incentivo do evangelho e a
experiência multissecular da Igreja. É assim que ele conclui apontando o “modo como
Paulo VI concebe o ensinamento social da Igreja: não prioritariamente como uma
doutrina, mas como um complexo processo de análise, julgamento e discernimento para
a ação; um processo no qual participa toda a comunidade cristã, e em que a hierarquia
atua como animadora e como encarregada da dimensão doutrinal” (p. 345).
A noção de ensinamento busca unir duas dimensões da solicitude da Igreja no
campo social. Por um lado, está atenta à tradição, aos princípios gerais consolidados
17

pela sabedoria e pela experiência de séculos; por outro lado, permanece aberta aos
valores novos que os desafios históricos vão engendrando. É nessa dialética entre um
corpo de doutrinas sólidas e um constante aprendizado diante dos fatos que o magistério
procura navegar (CNBB, 2004). Trata-se, como se vê, de uma perspectiva ao mesmo
tempo doutrinal e pastoral, preocupada, simultaneamente, com o rigor dos fundamentos
bíblico-teológicos e com as exigências éticas da ação social.
Assim sendo, o uso dos termos doutrina ou ensinamento social da Igreja terá
significados idênticos e poderá ser usado de forma alternada em nosso estudo.

3. A natureza da Doutrina Social da Igreja

Para a Igreja Católica, os ensinamentos contidos na DSI não têm valor


dogmático, salvo quando se reportam às verdades de fé. O ensinamento da Igreja está
em constante elaboração, ao propor as respostas da fé e da razão às questões colocadas
pelos eventos. Impõe-se à consciência, mas não obriga em tudo do mesmo modo, e não
dispensa o discernimento que é sempre necessário para os textos doutrinais do
magistério.
Bigo (1969) afirma que a Igreja não força a decisão do leigo, mas o deixa ao
juízo de sua consciência. Ela fala à consciência, ela a aclara por sua doutrina, ela lhe
descobre as normas morais de sua ação, e às vezes, indica a conduta a assumir. Mas a
Igreja não se substitui à consciência, e lhe deixa a decisão final, na qual a consciência
faz a síntese de todos os elementos em jogo: princípios morais e elementos de ciência
ou de experiência. A avaliação desses diversos critérios, sua pesagem e comparação, sua
síntese não pode ser feita senão pelo próprio cidadão ou pelo governante, sob sua
própria responsabilidade e “sob o olhar de Deus”. A obediência à Igreja consistirá em
compreender e avaliar seus ensinamentos doutrinais e suas diretrizes práticas segundo
seu pensamento, para confrontá-los uns com os outros e aos elementos que não são da
competência da Igreja, dando a cada critério seu lugar respectivo na hierarquia de
valores.
Os ensinamentos e a ação da Igreja em matéria social não têm por objetivo, de
nenhum modo, a submissão do Estado à Igreja, ou mesmo simplesmente, a promoção de
uma política visando diretamente à defesa e o crescimento da Igreja. Eles têm a
finalidade de ordenar toda a vida social segundo os critérios de humanidade que Jesus
18

Cristo propõe. Eles tendem unicamente a lembrar de todos os aspectos do bem comum
que decorrem desses critérios (BIGO, 1969).
De acordo com Santa Barbara Jr (2009), o magistério da Igreja Católica somente
considera os aspectos técnicos dos problemas com o intuito de avaliá-los sob o ponto de
vista moral. Portanto, sua missão é de ordem religiosa e moral.

Religiosa porque a missão evangelizadora e salvífica da Igreja abraça o homem


na plena verdade de sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, de seu
ser comunitário e social. Moral porque a Igreja visa a um humanismo total, vale
dizer à libertação de tudo que oprime o homem e ao desenvolvimento integral do
homem todo e de todos os homens (CDSI, nº 82).

Assim, a doutrina social visa, como diz no Compêndio da Doutrina Social da


Igreja, “fecundar e fermentar com o evangelho a própria sociedade” (nº 62). A
preocupação da Igreja com as questões sociais se infere do seguinte fato:

A convivência social, com efeito, não raro determina a qualidade de vida e, por
conseguinte, as condições em cada homem e cada mulher se compreendem a si
próprios e decidem de si mesmos e da própria vocação. Por essa razão, a Igreja
não é indiferente a tudo o que na sociedade se decide, se produz e se vive, numa
palavra, à qualidade moral, autenticamente humana e humanizadora, da vida
social. A sociedade e, com ela, a política, a economia, o trabalho, o direito, a
cultura não constituem um âmbito meramente secular e mundano e portanto
marginal e alheio à mensagem e à economia da salvação (CDSI, nº 62).

Por esse motivo, a DSI “se insere perfeitamente na missão evangelizadora da


Igreja [tendo, por si mesma,] o valor de um instrumento de evangelização” (Centesimus
annus [CA], nº 54). Entretanto, a Igreja Católica salienta, em seus documentos, que
possui uma missão primária e específica: o anúncio de Cristo Redentor. Portanto, ela
não se ocupa da vida social em todos os aspectos.

A missão própria que Cristo confiou à sua Igreja por certo não é de ordem
política, econômica e social. Pois a finalidade que Cristo lhe prefixou é de ordem
religiosa. Mas, na verdade, desta mesma missão religiosa decorrem benefícios,
luzes e forças que podem auxiliar a organização e o fortalecimento da sociedade
humana segundo a lei de Deus. Isto quer dizer que a Igreja, com sua doutrina
social, não entra em questões técnicas e não instituiu nem propõe sistemas ou
modelos de organização social: isso não faz parte da missão que Cristo lhe
confiou (...) contanto que a dignidade do homem seja devidamente respeitada e
promovida e a ela própria seja deixado o espaço necessário para desempenhar o
seu ministério no mundo. (CDSI, nº 68)

Pela relevância pública do Evangelho e da fé e pelos efeitos perversos das


injustiças, a Igreja não pode ficar indiferente aos problemas sociais. Por isso, de acordo
com Santa Barbara Jr. (2009), a Igreja é crítica da concepção atual segundo a qual as
convicções religiosas devem se restringir às consciências individuais, sendo uma
19

questão de foro íntimo. “De um lado não se deve atuar uma redução errônea do fato
religioso à esfera exclusivamente privada, de outro lado não se pode orientar a
mensagem cristã a uma salvação puramente ultraterrena, incapaz de iluminar a presença
sobre a terra” (CDSI, nº 71). E ainda: “Compete à Igreja anunciar sempre e por toda a
parte os princípios morais, mesmo referentes à ordem social, e pronunciar-se a respeito
de qualquer questão humana, enquanto o exigirem os direitos fundamentais da pessoa
humana ou a salvação das almas” (CDSI, nº 71).
Além do mais, a DSI não é, segundo a Igreja Católica, um modelo alternativo
aos modelos econômicos, políticos ou sociais existentes (capitalismo liberal ou
coletivismo marxista), no sentido de um projeto ou um programa de partido político,
mas se constitui numa categoria de avaliação que permite apreciar se os sistemas
existentes estão ou não estão em conformidade com as exigências da dignidade humana.
Como afirma João Paulo II:

A doutrina social da Igreja não é uma ‘terceira via’ entre capitalismo liberal e
coletivismo marxista, nem sequer uma possível opção entre outras soluções
menos radicalmente contrapostas: ela constitui por si mesma uma categoria. Não
é tampouco uma ideologia, mas a formulação acurada dos resultados de uma
reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem na
sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial. A sua
finalidade principal é interpretar essa realidades, examinando a sua
conformidade ou desconformidade com as linhas do ensinamento do Evangelho
sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e, ao mesmo tempo, transcendente
(SRS, nº41).

O discurso social católico destina-se, portanto, a orientar o comportamento das


pessoas: “exprime-se nos esforços que indivíduos, famílias, agentes culturais e sociais,
políticos e homens de Estado realizam para lhe dar forma e aplicação na história” (CA,
nº 59).
A sua finalidade principal é interpretar estas realidades, examinando a sua
conformidade ou desconformidade com as linhas do ensinamento do Evangelho
sobre o homem e sobre a sua vocação terrestre e ao mesmo tempo transcendente;
visa, pois, orientar o comportamento cristão. Ela pertence, por conseguinte, não
ao domínio da ideologia, mas da teologia e especialmente da teologia moral
(SRS, nº41).

Efetivamente, como parte integrante da teologia moral católica, a DSI reflete os


três níveis do ensinamento moral: “o nível fundante das motivações; o diretivo das
normas do viver social; o deliberativo das consciências, chamadas a mediar as normas
objetivas e gerais nas situações sociais concretas e particulares” (nº 73). Estes níveis,
por sua vez, acabam por consubstanciar-se no próprio método e estrutura
epistemológica que lhe é específica (SANTA BARBARA JR., 2009).
20

O magistério social católico está fundado, essencialmente, nas escrituras


sagradas e na Tradição da Igreja. Entretanto, diz Santa Barbara Jr. (2009), não é porque
se funda na Revelação bíblica que a razão humana é menosprezada e alijada. Pelo
contrário, a razão é chamada a interagir eficazmente em todos os níveis de aplicação da
DSI. “A doutrina social, enquanto saber aplicado à contingência e à historicidade da
práxis, conjuga juntas ‘fides et ratio’ e é expressão eloquente de sua fecunda relação”
(CDSI, nº 74).
Portanto, a fé e a razão não se excluem na elaboração e aplicação concreta do
ensinamento social, mas antes se complementam: a razão humana e a revelação são as
duas fontes cognitivas que a fundam e estruturam.

O conhecer da fé compreende e dirige a vida do homem à luz do mistério


histórico-salvífico, do revelar-se e doar-se do mistério de Deus em Cristo por nós
homens. Esta inteligência da fé inclui a razão, mediante a qual esta explica e
compreende a verdade revelada e a integra com a verdade da natureza humana,
hauridas no projeto divino expresso pela criação (CDSI, nº 75).

Santa Barbara Jr (2009) afirma que o discurso social católico constitui-se num
conhecer iluminado pela fé. O fato de centrar-se sobre as Sagradas Escrituras e a
Tradição não inviabiliza a mediação racional, ou seja, o mistério de Cristo, não arrefece
ou torna prescindível o papel da razão. Além disso, apresenta uma importante dimensão
interdisciplinar. Ela se vale de todas as contribuições de significado da filosofia, como
também de todas as contribuições descritivas das ciências humanas.
Das contribuições recolhidas da filosofia, continua Santa Bárbara Jr, a DSI pode
evocar a natureza humana como fonte e a razão como instrumento para a inteligência da
própria fé. Ao partir da natureza humana como fonte, a filosofia proporciona ao
magistério social católico uma plausibilidade racional e, portanto, uma destinação
universal, que torna o seu ensinamento aberto a toda inteligência e consciência,
qualquer que seja sua crença pessoal, que deseje conhecer a verdade acerca do homem e
a sua dignidade inalienável.

A filosofia é, efetivamente, instrumento apto e indispensável para uma correta


compreensão de conceitos basilares da doutrina social – como a pessoa, a
sociedade, a liberdade, a consciência, a ética, o direito, a justiça, o bem comum,
a solidariedade, a subsidiariedade, o Estado –, compreensão tal que inspire uma
convivência social harmoniosa (CDSI, nº77).

Também é imprescindível à DSI a contribuição das ciências humanas e sociais.


A abertura atenta e constante a todo e qualquer saber que leve a uma reta compreensão
21

acerca do homem e que auxilie na resolução dos prementes, mutáveis e complexos


problemas sociais é assumido pela Doutrina Social da Igreja como um meio de adquirir
maior competência, concretude e atualidade (SANTA BARBARA JR, 2009).

As investigações das ciências sociais podem contribuir, de modo eficaz, para o


melhoramento das condições humanas, como demonstram os progressos
realizados nos diversos setores da convivência (…). Por este motivo, a Igreja,
sempre solícita pelo verdadeiro bem do homem, tem se voltado com crescente
interesse para este campo de investigação científica, para dele tirar indicações
concretas no cumprimento de suas tarefas de magistério (Motu próprio
Socialium scientiarum, nº 2)

É por causa das ciências humanas e sociais que a Igreja pode compreender o
homem na sociedade de modo mais preciso, falar de modo mais convincente com ele e
de encarnar a palavra de Deus e a fé, da qual a doutrina social parte (CDSI, cf. nº 78).
A doutrina social é, assim, um ensinamento expressamente dirigido aos homens
de boa vontade, como afirma a introdução da encíclica Mater et magistra, e pode ser
escutada e válida para os membros de outras tradições religiosas e por pessoas que não
pertencem a nenhum grupo religioso.

4. Periodização da Doutrina Social da Igreja

De Leão XIII a Bento XVI, da Rerum novarum à Caritas in veritate, decorreram


120 anos de reflexão sobre a Doutrina Social da Igreja. Durante este período, o Concílio
Vaticano II é um evento importante no que se refere à vida da Igreja Católica em geral
e, evidentemente, a DSI em particular. Do ponto de vista do método e do enfoque, pode-
se falar de antes e depois do Concílio Vaticano II.
O Concílio Vaticano II representou a reconciliação da Igreja Católica com o
mundo moderno, depois de quase dois séculos de difícil entendimento. A Igreja
Católica aceita a situação histórica de uma sociedade secular e pluralista como um
desafio para a sua missão. Isso, por sua vez, produz uma revisão de sua função na
sociedade. O status sociológico da Igreja Católica se reduz a ser uma instituição entre as
demais. No entanto, ela deseja continuar a fazer chegar à humanidade sua mensagem. O
Concílio Vaticano II representou, em síntese, uma interrogação sobre o como se dirigir
ao mundo de hoje, secular e pluralista (CAMACHO, 1995; GUTIERREZ, 2005; CNBB,
2004).
Para Camacho (1995), há cinco aspectos para entender mais o que isso significa.
22

Em primeiro lugar, com relação ao método. No início, a DSI tem um caráter


mais dedutivo, com referências constantes ao direito natural1 como ponto de partida.
Dele é que vão desenvolver critérios morais que podem ser aplicáveis aos problemas
considerados. Há uma atenção maior com os princípios abstratos. Já com o papa João
XXIII – cujo papado representa justamente o momento de transição entre as duas etapas
mencionadas -, há uma procura maior pela realidade como ponto de partida da reflexão
moral, com as aspirações do homem moderno. O método se torna indutivo.
Em segundo lugar, no início também, como consequência do método dedutivo, a
DSI procurava fundamentar-se principalmente no direito natural para o consenso social.
Procurava-se um tipo de discurso não condicionado pelas convicções religiosas, ao
mesmo tempo em que a Igreja era competente para vigiar e interpretar os princípios da
lei natural. A partir do Concílio Vaticano II o que se pretende não é oferecer um modelo
de sociedade aceitável para todos, e sim procurar saber qual poderá ser a contribuição
dos cristãos para uma sociedade secular que, portanto, prescinde dos critérios de
qualquer credo religioso. Por um lado, quer garantir uma presença efetiva dos católicos
na vida pública e na construção de uma sociedade mais justa; por outro, garantir a
identidade da Igreja, inclusive em sua atuação na vida social.
Em terceiro lugar, a partir do Concílio Vaticano II o aspecto estritamente
doutrinal passa a ficar em segundo plano, ou como instrumento para chegar a decisões
concretas. É cada vez mais forte o chamado para a ação, na responsabilidade pessoal em
virtude de sua fé vivida em um contexto preciso. Há um amadurecimento da
comunidade católica de que não basta a doutrina pura nem se pode esperar tudo do
magistrado.
Isso supõe, em quarto lugar, portanto, a diversidade dos sujeitos que intervém,
de modo que cada um atue no nível que lhe corresponde. O diálogo constante entre
hierarquia e os leigos faz com que a Doutrina Social da Igreja avance em suas respostas.
Finalmente, em quinto lugar, a DSI surge historicamente em resposta aos
problemas da sociedade industrial, o conflito entre capital e trabalho. Camacho afirma
que a partir de João XXIII, no entanto, ocorre uma ampliação de horizontes tanto na
questão do tema político, que é acrescido ao tema socioeconômico, quanto à ênfase que
se passa a dar para a dimensão internacional da economia e da questão social.
Já do ponto de vista histórico, Gutierrez (2005) classifica cinco períodos.

1
Direito natural diz respeito aos direitos e deveres que decorrem da lei natural: fazer o bem e evitar o
mal, de maneira necessária e pelo simples fato de que o ser humano é ser humano.
23

O primeiro período, que o autor chama de “A Igreja perante o socialismo e o


liberalismo”, é o contexto do surgimento da DSI, no final do século XIX e início do
século XX. De um lado, os males provocados por uma economia centralizada na
maximização do lucro e na acumulação de capital. Destacam-se nesse quadro, entre
outras coisas, a exploração do trabalho, as precárias condições de habitação, o uso
indiscriminado da mão de obra infantil e feminina, os baixos salários, as longas jornadas
de trabalho. A produção e a produtividade dão um salto nunca visto na história, mas a
grande maioria da população fica à margem desse progresso. É o que leva o papa Leão
XIII a preocupar-se com a “condição dos operários”. Por outro lado, desde o Manifesto
Comunista, em 1848, consolida-se a organização internacional que se desdobra em uma
imensa rede de núcleos espalhados por todo continente europeu e o socialismo ganha
terreno. Assim, havia na Europa um embate entre o liberalismo econômico e a teoria
marxista e Leão XIII se vê impelido de falar algo sobre essas duas forças ideológicas.
O segundo período marca a “Igreja diante dos totalitarismos”, já nas primeiras
décadas do século XX: o fascismo/nazismo e o comunismo. A Primeira Guerra
Mundial, a Revolução Soviética e a crise de 1929 ocasionam instabilidade e insegurança
por todo mundo. Nascem os regimes totalitários, com Hitler na Alemanha, Mussolini na
Itália, Stalin na União Soviética, Franco na Espanha e Salazar em Portugal. A Segunda
Guerra Mundial, com um saldo de milhões de mortos e feridos, constitui o desfecho
trágico dessa experiência de totalitarismos. Durante esse período, Pio XI e Pio XII
alertam para os perigos do poder absoluto do Estado.
O terceiro período da DSI, “João XXIII e o Vaticano II”, vai dos anos que vão
do pós-guerra ao Concílio Vaticano II. É um período que se preocupa em consolidar a
democracia e os direitos humanos, ao mesmo tempo em que se procura estender os
benefícios do progresso às regiões mais pobres do planeta. Como pano de fundo há a
Guerra Fria entre os dois blocos mais poderosos do planeta – Estados Unidos e União
Soviética. Do ponto de vista geopolítico, é um mundo bipolarizado, em que demais
nações figuram como alinhadas a um dos lados. A corrida armamentista constitui um
equilíbrio sempre precário entre as forças militares. A humanidade convive com perigo
constante de uma guerra total de consequências imprevisíveis em termos de destruição e
morte. Teme-se pelo fim da vida em todas as suas formas.
Imediatamente após o Vaticano II, Paulo VI aponta para uma contradição da
vida moderna: a extrema discrepância entre o progresso humano, fruto da revolução
científico-tecnológica, e a profunda desigualdade que divide as nações, os povos e as
24

pessoas. É o período que Gutierrez denomina de “DSI em diálogo com o mundo


contemporâneo”.
Já o período que vai do início dos anos 70 aos dias de hoje é marcado pelo
neoliberalismo e pelos desafios de uma economia cada vez mais globalizada. João Paulo
II abordará e denunciará os males deste novo tempo. Enfoca-se os problemas relativos
ao endividamento externo e interno das nações, o desenvolvimento desigual, o
neocolonialismo, a contaminação e depredação da natureza, a nova corrida
armamentista e a exclusão social. Bento XVI, além dos temas supracitados, traz para a
DSI de modo mais central a questão da bioética. Além disso, é um período em que na
América Latina e Caribe se organizam as Conferências Episcopais Latino-americanas
(CELAM) em Medellín, Colômbia, em Puebla, México, em Santo Domingo, República
Dominicana, e em Aparecida, Brasil. A CELAM teve o mérito de traduzir para o
continente as orientações gerais da DSI, em particular do Concílio Vaticano II. Nas
CELAM, há conflitos evidentes entre o Vaticano e os bispos locais pelo enfoque e
metodologia adotados. O núcleo central das intervenções dos bispos latino-americanos é
a opção pelos pobres, com vistas a fortalecer ações pastorais para a erradicação da
pobreza e da violência institucionalizada no continente. Daí Gutierrez chamar esse
período de “A DSI e as conferências episcopais”.

5. O desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja

O tema central da Doutrina Social da Igreja é o da instauração de uma ordem


social justa. Os princípios afirmados por Leão XIII na primeira encíclica social são
retomados e aprofundados pelas encíclicas sociais sucessivas. Toda a doutrina social
pode ser entendida como uma atualização e um aprofundamento do núcleo original dos
princípios expostos na Rerum novarum.
Ressaltamos que durante a elaboração das diversas encíclicas, as divergências de
enfoques, posições, e as diferentes prioridades de ideias surgiram2, assim como a
repercussão de cada encíclica foi diferente no interior da Igreja Católica, variando de
acordo com a cultura, história e preocupações de cada região do planeta. É natural que
seja assim, pelo número de fieis e abrangência da própria instituição.
Nesse tópico, no entanto, queremos descrever e mapear de maneira seletiva os
principais assuntos levantados, a nosso ver, em cada encíclica social. Acreditamos ser
2
Para saber mais e indicação de bibliografia sobre essas diferenças de enfoques e divergências, ver
Camacho (1995) e Gutierrez (2005).
25

válido mostrar como esses assuntos aparecem e são avaliados pela DSI para evidenciar
sua riqueza de pensamento e mostrar suas ideias constantes e fundamentais que formam
seu fio condutor nas mais diferentes situações. Evidentemente não temos a pretensão,
com essa descrição, de substituir a leitura individual de cada documento por parte do
leitor.

5.1. Rerum novarum (1891)

Em resposta a primeira grande questão social, como já falado, advinda com os


problemas da industrialização e do embate entre as ideologias liberal e marxista, Leão
XIII promulga a primeira encíclica social, a Rerum novarum. Ela examina a condição
dos trabalhadores assalariados, particularmente penosa para os operários das indústrias,
muitos em estado miserável. A questão operária é explorada em todas as suas
articulações sociais e políticas, para ser adequadamente avaliada à luz dos princípios
doutrinais baseados na lei, na moral natural e nas Escrituras.
Realmente o que se contrapõe na Rerum novarum são duas alternativas: uma, a
socialista; outra, a cristã, de acordo com a doutrina da Igreja. O tema central da
polêmica é a doutrina sobre a propriedade privada que os socialistas rejeitavam e para a
doutrina da Igreja se constitui no pilar de toda ordem social. O adversário explícito da
Rerum novarum é o socialismo. No entanto, podemos observar também que desde o
início, na primeira página, há uma critica a situação social vigente e, embora não
expressamente, considera-se a ideologia liberal como responsável pela situação. A causa
fundamental da miséria operária é o desaparecimento das antigas associações gremiais,
já que deixou os operários indefesos diante dos capitalistas. A isso se une a ânsia pelos
lucros (ou a “voraz usura”, conforme a terminologia da encíclica), que permitiu a
exploração de grandes massas de trabalhadores por alguns poucos proprietários. Por
último, a encíclica menciona, como terceiro fator explicativo da miséria operária, o fato
de as instituições públicas e as leis terem se afastado da religião – ou o fato de a religião
ter sido excluída da vida pública. Portanto, o documento propõe um modelo de
sociedade completamente alheio ao liberal também, contra o seu individualismo e
laicismo.
A doutrina da Igreja tem sua interpretação da sociedade em termos de harmonia,
e não de conflito.
(...) porque, assim como no corpo humano os membros, apesar da sua
diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam
26

um todo exatamente proporcionado e que se poderá chamar simétrico, assim


também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a unirem-se
harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas
têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho,
nem trabalho sem capital (nº 11).

A doutrina sobre a propriedade privada domina o conteúdo da primeira parte da


enciclica. Nessas páginas pretende-se mostrar que existe o direito e que ele é inviolável.
Há um tom fortemente individualista na argumentação. O ponto de partida é o
indivíduo, dotado de razão e capaz de trabalhar, que depois se prolonga na família e
mais tarde se insere na sociedade civil. Fica em segundo plano o destino universal dos
bens: a propriedade privada não contradiz o princípio segundo o qual Deus deu a terra à
totalidade do gênero humano, para dele usufruir e desfrutar (cf. nº 6).
Há, sim, uma certa influência da ideologia liberal na posição da doutrina social
sobre a propriedade privada, mas há também um claro afastamento em relação ao
liberalismo, na medida em que a encíclica não se contenta em fundamentar o direito,
mas insiste nos deveres derivados da condição de proprietários e quando se concentra
nas obrigações do Estado.
Quanto ao Estado a Rerum novarum atribui uma dupla tarefa: a) “garantir a
posse privada com o império e a ajuda das leis” (nº 28); e b) difusão da propriedade, de
forma que todos os grupos sociais tenham efetivo acesso a ela. De modo que a
propriedade privada desempenha um papel de importância decisiva e a exigência de que
todas as classes sociais, e em especial os assalariados, cheguem a ser proprietários.
A encíclica afirma que o salário deve ser justo, o que significa cobrir as
necessidades elementares do trabalhador e garantir determinadas condições adequadas
de trabalho e de descanso, ao mesmo tempo em que defende uma consideração especial
quanto ao estabelecimento de condições de trabalho para as crianças e as mulheres.
E o Estado deve se encarregar de velar pelo respeito a essas exigências. Ao
mesmo tempo, pronuncia-se em favor da liberdade das pessoas para constituir
associações e lhes atribui um papel mais atuante.
A função primordial que se atribui a essas associações é dupla: “atender, de
modo mais conveniente, aos necessitados, e aproximar uma classe da outra” (nº 34). A
Rerum novarum pronuncia-se abertamente pelo associacionismo misto – operário e
patrão -, como meio de superar o enfrentamento entre as classes sociais, de acordo com
sua visão harmônica da sociedade - mas não se excluem os sindicatos propriamente
ditos – “associações apenas de operários” (nº 34).
27

Mais uma vez a Rerum novarum tem uma postura de distanciar-se abertamente
da concepção liberal. A encíclica pressupõe que poucos Estados de seu tempo estariam
em condições de sentir-se respaldados pela doutrina da Igreja. O texto enumera uma
série de tarefas nas quais o Estado não se limita a vigiar o cumprimento de
determinados princípios formais (modelo liberal), mas que deve intervir de maneira
positiva para a prosperidade tanto da sociedade como dos indivíduos (cf. nº 23).

5.2. Quadragesimo anno (1931)

A Rerum novarum foi um marco importante na história da Igreja moderna,


orientando toda a ação dos católicos em matéria social desde o final do século XIX e ao
longo de toda a primeira parte do século XX. Com o passar dos anos surgiram
problemas novos ou os antigos foram reequacionados.
Decorridos quarenta anos da encíclica de Leão XIII, o mundo passava por
transformações. O socialismo tinha sido implantado em 1917 na Rússia e tinha-se a
pretensão de expandi-lo no mundo, substituindo o capitalismo em crise com o crash na
Bolsa de Nova Iorque em 1929 e o período entre as duas guerras mundiais. É nesse
contexto que se situa o magistério social de Pio XI, com a publicação da Quadragesimo
anno para comemorar os quarenta anos da Rerum novarum.
A encíclica de Pio XI pronuncia-se “sobre a restauração da ordem social e seu
aperfeiçoamento, de conformidade com a lei evangélica”. O papa contempla a situação
global e propõe soluções que transcendem o problema concreto da classe trabalhadora.
É toda a ordem social que exige uma profunda reforma.
O conteúdo central da mensagem da Quadragesimo anno pode ser formulado da
seguinte maneira: a queda do regime antigo (cf. nº 78 e nº 97) trouxe uma série de
problemas que exigem uma reforma das instituições (o Estado, as associações e
corporações, o modelo de concorrência e de mercado: cf. nº 78-90), que nem o
capitalismo (cf. nº 100-110) nem o socialismo (cf. nº 111-126) tornaram possível. E a
raiz mais profunda desse desmoronamento está na deterioração dos costumes e no
egoísmo (cf. nº 97), aos quais se podem atribuir todos os males (cf. nº 132-135): por
isso é necessária uma reforma dos costumes, baseada nas virtudes cristãs da moderação
e da caridade (cf. nº 136-137).
O que se destaca nesta encíclica é o equilíbrio capital-trabalho. Pela primeira vez
uma encíclica social alude à justiça social, que se apresenta como o princípio que deve
28

regular uma distribuição adequada (cf. nº 57-58), quando o papa denuncia que os
processos de industrialização provocaram grandes alterações na distribuição. A justiça
social pretende o estabelecimento de uma ordem jurídica e social, diante do projeto do
social do liberalismo, que garanta uma equitativa distribuição de renda produzida. Esta
forma de justiça é diferente da comutativa, já que esta se limita a regular as relações
individuais, sem contemplar os fenômenos globais da vida socioeconômica.
Talvez o ponto mais significativo da doutrina de Pio XI seja a busca por um
equilíbrio entre a dimensão individual e social da propriedade – melhor do que o
encontrado na Rerum novarum. As atenções se dirigem para a evolução do capitalismo e
a acumulação de riqueza e poder que ela produz. Para Pio XI, o duplo caráter da
propriedade consiste na necessidade de ela servir ao mesmo tempo aos indivíduos e ao
bem comum. Assim, a encíclica insiste que se verifique uma distribuição equitativa dos
bens. O que interessa é a tomada de uma posição intermediária, que evite os dois
excessos: o individualismo, que negaria a dimensão social da propriedade, e o
coletivismo, que eliminaria o seu aspecto individual.
No número 49, se diz que corresponde ao Estado determinar “aos possuidores o
que é licito e o que não é no uso de seus bens”. É sua responsabilidade “harmonizar a
propriedade privada com as exigências do bem comum”; quando a cumprem de maneira
adequada, não prejudica os proprietários nem enfraquece o domínio particular, mas o
robustece; também adverte dos perigos de atuação do Estado e para que “o direito
natural a possuir de modo privado e a transmitir os bens por herança permaneça sempre
intacto e inviolável”.
Segundo o papa, o sistema de salariado não é imoral por si mesmo, mas conviria
melhorá-lo. Fica claramente postulado o salário familiar. Além disso, Pio XI pede para
que o trabalhador participe de fato na gestão e nos benefícios da empresa. Porém o papa
fala também da situação da empresa: as exigências salariais não devem ser tão elevadas
a ponto de colocar em perigo sua sobrevivência, mas as eventuais dificuldades não
podem servir sempre de desculpa para manter os salários em níveis excepcionalmente
baixos.
A Quadragesimo anno tem uma preocupação especial em relação ao capitalismo
liberal deixando o socialismo muito mais em segundo plano. Na análise do capitalismo
de seu tempo, Pio XI deseja deixar duas coisas bem claras: que esse sistema, em si
mesmo, não é imoral, embora tenha chegado a sê-lo por causa dos abusos e evoluiu até
anular o modelo de livre concorrência, porque a acumulação cada vez maior de capital e
29

de poder econômico acaba impondo sua lei sobre o mercado. E que a insaciável busca
pelo lucro, “sem reparar em meios”, não foi, desde o começo, uma postura unânime de
todos os grupos sociais: foram os dirigentes da economia os primeiros a praticá-la, mas
terminaram contagiando também as classes operárias (nº 135).
Mas Pio XI afirma que o socialismo tem uma concepção da realidade “oposta à
verdade cristã” (nº 117), pois ignora o fim transcendente do homem e da sociedade, e
“pretende que a sociedade humana teria sido instituída exclusivamente para o bem
terreno” (nº 118); além do mais, e em segundo lugar, subordina a pessoa à sociedade e
às necessidades de produzir. O problema, segundo o papa, é que o socialismo está bem
além de um sistema econômico, mas vai se transformando em uma forma de entender a
vida. É nesse sentido que o socialismo pretende impregnar os espíritos e os costumes
(cf. nº 121-122).
É necessário, então, fazer “os homens voltarem, aberta e sinceramente, à
doutrina evangélica” (nº 136), que se concretiza em duas virtudes: a moderação cristã e
a caridade cristã, ou seja, em estabelecer um justo equilíbrio entre meios e fins,
subordinando os bens materiais e econômicos ao único fim supremo, que é Deus, ao
mesmo tempo em que só a união de ânimos permitirá que todos se sintam membros de
uma mesma família.
O que se procura é uma série de atitudes humanas diferentes, que inspirem a
ordem social e econômica e dê a ela determinados limites. Por outro lado, subjacente
aos diferentes aspectos dessa proposta está o desejo de eliminar uma ordem social
apoiada no enfrentamento entre as classes sociais.

5.3. A doutrina social de Pio XII e La Solennità (1941)

O papa Pio XII não publicou encíclicas sociais, mas manifestou constantemente
a sua preocupação com a ordem internacional, por meio de radiomensagens natalinas e
outros pronunciamentos. Durante seu pontificado, Pio XII atravessou os anos da II
Guerra Mundial e a reconstrução da Europa.
Sua mensagem radiofônica La Solennità (1941), em razão do 50º aniversário da
Rerum novarum, é considerada a mais importante pronunciada por ele sobre temas
sociais.
É a doutrina sobre o uso dos bens materiais que ocupa o lugar central de toda a
mensagem. Pio XII reconhece que a propriedade privada também pertence à ordem
30

natural, mas de forma subordinada. Isto consiste em afirmar, de maneira inequívoca, a


prioridade absoluta do destino comum de todos os bens criados. Pio XII destaca
também a superação do individualismo que tantas vezes limitou a doutrina da
propriedade. Veja-se a esse respeito a importância dada à distribuição da riqueza
produzida, de maneira que ela chegue a todos: desse modo se conseguirá fazer com que
a propriedade privada permita a todos o uso dos bens materiais (cf. nº 17). Assim se
procura combater uma visão da economia que põe toda a ênfase no crescimento
quantitativo, e pouca ou nenhuma atenção dá aos aspectos distributivos (cf. nº 18).
Garantir o bem comum supõe manter um equilíbrio que não elimina a iniciativa
de pessoas e de grupos, mas a incentive. Esta recomendação é repetida quando se fala
do trabalho e da liberdade que os patrões e os trabalhadores devem desfrutar para
organizar a sua própria atividade: só quando isso não ocorrer dentro do respeito ao bem
comum corresponderá ao Estado intervir (cf. nº 20).
Pio XII também critica o capitalismo, por suas fortes concentrações de poder
econômico, que agem de modo anônimo e sem atenção alguma em relação ao bem
comum. Como alternativa a esse sistema, propõe-se uma política social e econômica em
que o acesso à propriedade seja um estímulo eficiente para todos os trabalhadores,
estabelecendo as bases de uma ordem duradoura e pacífica.
A mensagem radiofônica natalina de 1944 é outro exemplo. Uma das mensagens
que melhor expressa seu pensamento político, Pio XII começa reivindicando o direito
dos cidadãos de serem ouvidos por aqueles que o governam (cf. nº 14). A democracia
apresenta-se como um anseio generalizado de encontrar uma alternativa para o
totalitarismo. Mas isso exige certas condições de parte dos próprios cidadãos: que eles
sejam verdadeiros sujeitos ativos, dotados de iniciativa e responsabilidade. A
verdadeira democracia política, para Pio XII, exige uma correlativa democracia social:
em outras palavras, uma sociedade rica em estruturas de participação e variada em suas
instituições e grupos.
Na visão de conjunto do magistério social de Pio XII, podemos afirmar que a
preocupação central do papa é a instauração de uma paz estável entre os povos,
principalmente nos cinco primeiros anos de pontificado (1939-1944). Pio XII empenhou
toda a sua influência ao serviço dessa causa, primeiro tentando fazer com que a guerra
não fosse deflagrada e depois procurando, por todos os meios ao seu alcance, obter a
cessação do conflito.
31

Uma vez terminado o conflito, o tom muda e o estilo se torna mais concreto,
procurando respostas para os problemas levantados pela reconstrução. Ao final do seu
magistério, Pio XII teria como centro a Guerra Fria - e, de forma subordinada, o
progresso econômico.
O modelo econômico ideal para o papa é uma economia de livre empresa, não
centralizada, que permitisse uma ágil cooperação entre os diferentes setores
econômicos, em que o Estado desempenha um papel decisivo como garantia do bem
comum; trata-se de um caminho intermediário, às vezes chamado de “democratização
da economia”, que foge da socialização como fim em si e dos abusos derivados da
posição dominante do capital privado. Outro aspecto importante está na atenção dada às
categorias profissionais e empresariais, chamadas a praticar concorrência em
consciência para o bem comum.
Além disso, seus pronunciamentos em matéria social aprofundam a reflexão
sobre uma nova ordem social, governada pela moral e pelo direito conectados e fundada
na justiça e na paz. Para Pio XII a convivência entre os povos tem de assentar-se sobre
uma ordem moral objetiva, que dê margem a um ordenamento jurídico alheio às
veleidades do poder político ou econômico. O papa parece pensar em uma instituição
internacional cuja tarefa seja evitar a guerra mediante a resolução dos conflitos
inevitáveis entre os povos, graças a uma autoridade universal reconhecida por todos. Na
realidade, esse organismo é proposto por Pio XII como a única forma de evitar a guerra,
e concretamente, a guerra de agressão.

5.4. Mater et magistra (1961)

Por ocasião do 70º aniversário da Rerum novarum, João XXIII escreve a


encíclica Mater et magistra.
Pode-se considerar um documento de transição: detecta problemas novos -
sobretudo os relacionados com um mundo em que as desigualdades são cada vez mais
flagrantes - e focaliza problemas de sempre com uma mentalidade diferente. Mas, ao
mesmo tempo, recorre diversas vezes a soluções já conhecidas.
Quatro partes compõe a estrutura geral da encíclica: a primeira recorda o 70º
aniversário da Rerum novarum e faz um pequeno resumo da doutrina social dos
pontífices anteriores; a segunda oferece uma síntese doutrinal que esclarece, adapta e
desenvolve o ensinamento anterior; a terceira aborda os novos aspectos da questão
32

social; a quarta e última parte tem um marcado acento pastoral e centraliza-se no papel
que a Igreja pode desempenhar diante desses problemas.
A primeira coisa que chama a atenção na Mater et magistra é quando João
XXIII vai sintetizar os princípios básicos colocados por Leão XIII na Rerum novarum.
João XXIII coloca a questão do trabalho como princípio prioritário, o que não havia
sido atribuído por Leão XIII em sua encíclica. A questão da propriedade – que era o
princípio prioritário, por sua vez - é deslocada para o final do documento. Ainda sobre a
propriedade, outra mudança: se dá destaque à função social da propriedade – situando-a
no mesmo nível que o direito à propriedade privada -, destaque ausente do texto de Leão
XIII. Em contrapartida, omite-se algo que era mais central na Rerum novarum: a
garantia de todos à propriedade. Enquanto a Rerum novarum confiava mais em que
todos fossem proprietários, a leitura que João XXIII faz enfatiza a função social da
propriedade. Essas mudanças de ênfases e inclusões de novos temas ilustram o caráter
dinâmico da Doutrina Social da Igreja.
Mater et magistra chama a Igreja a colaborar com todos os homens para
construir uma autêntica comunhão na verdade, na justiça e no amor. Assim, o
crescimento econômico não se limitará a satisfazer as necessidades dos homens, mas
poderá promover também a sua dignidade. Também fica estabelecido que o verdadeiro
desenvolvimento não pode ser identificado com o mero crescimento econômico.
Aparece com mais clareza que a proposta da Igreja se opõe tanto ao liberalismo
como ao socialismo, quando diz que “tanto a concorrência de tipo liberal, como a luta
de classes no sentido marxista, são contrárias à natureza e à concepção cristã da vida”
(nº 23).
O pensamento dessa encíclica gira em torno da comunidade e da socialização.
Ou seja, passou-se a reconhecer uma verdadeira comunidade de nações, em que há um
bem comum universal que deve ser buscado com a colaboração de todos os povos. A
Mater et magistra destaca que essa comunidade só poderá ser construída a partir do
reconhecimento de uma ordem moral objetiva (cf. nº 205), à qual podem ser submetidas
as ideologias que dividem os povos e os levam a enfrentar-se. Esta ordem moral é
anterior à existência de uma ordem jurídica de alcance universal. Mas é impensável que
esta ordem moral chegue a existir enquanto não se reconhecer que Deus é o fundamento
último de todos os preceitos morais (cf. nº 208). Quando falta essa referência absoluta
de uma ordem moral aceita por todos, já se sabe que o único meio para defender os
próprios direitos e interesses é o recurso à violência.
33

5.5. Pacem in terris (1963)

Com a encíclica Pacem in terris, João XXIII põe em relevo o tema da paz, em
uma época marcada pela proliferação nuclear. Assim, defende a paz entre os povos, que
deve ser construída desde as relações de convivência entre as pessoas do âmbito mais
particular até o mais universal. É a primeira vez que um documento da Igreja é dirigido
a “todas as pessoas de boa vontade”, chamadas a tarefa de “recompor as relações da
convivência na verdade, na justiça, no amor, na liberdade”.
Três características distinguem o estilo da encíclica. A primeira delas é a clareza
e a simplicidade da exposição, fugindo dos parágrafos muito longos e procurando
sempre um tom conciso e concreto. Uma segunda característica é o otimismo de João
XXIII, que o leva a apresentar todos os temas de modo positivo e a descobrir o aspecto
favorável de qualquer problema. O papa foge da polêmica e da crítica. A terceira
característica é que o papa concentra-se em algumas questões concretas da atualidade,
como a desigualdade entre os povos, as minorias étnicas, os exilados políticos e a
questão do desarmamento.
Além da paz, a Pacem in terris contem uma profunda discussão da Igreja sobre
os direitos humanos. Ela completa o discurso da Mater et magistra e realça a
importância da colaboração entre todos. A Pacem in terris se detém também sobre os
poderes públicos da comunidade mundial, chamados a “enfrentar e resolver os
problemas de conteúdo econômico, social, político ou cultural (...) da alçada do bem
comum universal” (nº 139).
Por isso defende ser necessário insistir na reciprocidade de direitos e deveres
entre os povos, levando em conta quatro critérios: a) a verdade nas relações
internacionais exige o reconhecimento da igualdade entre os povos; b) a justiça nas
relações internacionais exige o reconhecimento mútuo de direitos e deveres - o direito à
própria existência, ao próprio desenvolvimento e aos meios necessários para levá-lo a
cabo (cf. nº 91-92); c) a solidariedade nas relações internacionais abre caminho para
diferentes modalidades de colaboração, intercâmbios e associação (cf. nº 98-102); e d) a
liberdade nas relações internacionais consiste no reconhecimento efetivo da autonomia
dos povos e da possibilidade de organizarem seu próprio desenvolvimento sem
ingerências nem imposições (cf. nº 120-124).
34

A encíclica ainda afirma que é preciso haver uma autoridade mundial3 que se
ocupe de realizar o bem comum universal. Em síntese, os direitos humanos são o
objetivo último. O Estado, por meio de seu serviço ao bem comum nacional, oferece as
condições básicas para que esses direitos fiquem garantidos. Na medida em que nem os
Estados nacionais são suficientes, impõe-se a necessidade de estruturar essa
comunidade supra-estatal, de uma forma paralela à de cada Estado. Essa suprema
instância política deve ser estabelecida unanimemente entre todas as nações (cf. nº 138).
Exige-se que essa autoridade esteja a serviço do bem comum universal.
Assim, apesar de Pio XII já ter postulado antes a necessidade dessa autoridade
mundial, João XXIII amplia sua competência: Pio XII a havia reduzido ao âmbito da
segurança - prevenção da guerra. João XIII, por sua vez, a estende a todo o conteúdo do
bem comum.

5.6. Gaudium et spes (1965)

A Constituição pastoral Gaudium et spes, do Concílio Vaticano II, constitui uma


resposta da Igreja às expectativas do mundo contemporâneo. A Gaudium et spes aborda
os temas da cultura, da vida econômico-social, do matrimônio e da família, da
comunidade política, da paz e da comunidade dos povos, à luz da visão antropológica
cristã e da missão da Igreja. Tudo é considerado a partir da pessoa e em vista da pessoa.
A sociedade, as suas estruturas e o seu desenvolvimento não podem ser queridos por si
mesmos mas para o aperfeiçoamento da pessoa.
Nesse documento, os capítulos que estão ligados diretamente à Doutrina Social
da Igreja são os capítulos 3, 4 e 5 da segunda parte.
No capítulo 3, a categoria central é o desenvolvimento socioeconômico. Um
desenvolvimento que seja integral – atendendo a todas as dimensões da pessoa e não
apenas a satisfação material – e solidário – beneficiando a todos –, em que se pede a
colaboração coordenada de todas as pessoas e organizações da sociedade. Aqueles que
possuem bens devem ajudar os mais necessitados e qualquer tipo de propriedade deve
estar subordinada ao destino universal dos bens. O mais importante não é que a
propriedade seja privada ou de outro tipo, mas que em qualquer forma de propriedade
possa se garantir esse destino comum.

3
A encíclica não oferece uma configuração mais definida dessa autoridade. Conforma-se em mencionar a
ONU como a que mais pode se aproximar do modelo ideal.
35

O capítulo 4, por sua vez, chama a atenção para a finalidade da comunidade


política, o bem comum, e faz a defesa da participação das pessoas na vida pública, ou
seja, que a sociedade seja protagonista. Porém, para tornar possível o bem comum em
uma comunidade pluralista, é necessária uma autoridade. Mas seu exercício deve
respeitar uma ordem moral objetiva que tem a sua raiz e seu fundamento em Deus.
Sobre a participação das pessoas na vida pública acrescenta ser necessária uma divisão
de poderes e a garantia de direitos apoiado em um ordenamento jurídico positivo e
estável. Por fim, no final do capítulo se lê que a honestidade é o melhor remédio contra
qualquer perigo de desvio autoritário ou ditatorial para os que optam por participar da
vida pública. A política não pode ser improvisada: quanto mais perigoso é o poder que
se deposita nas mãos de alguém, mais se exige desse alguém honestidade, pela tentação
sempre presente da corrupção e abuso.
Já o capítulo 5 se concentra na construção de uma comunidade internacional
assentada sobre justiça e a paz. Para isso, deve-se avançar pela via do desarmamento,
trabalhar pela aproximação dos povos, superando os egoísmos nacionais e as limitações
das fronteiras políticas, propiciar uma transformação na mentalidade dos povos, que
elimine “os sentimentos de hostilidade, de menosprezo e de desconfiança, os ódios
raciais e as ideologias obstinadas” (nº 82). Além disso, é necessário uma “autoridade
pública universal, reconhecida por todos, com poder eficaz para garantir a segurança, o
cumprimento da justiça e o respeito dos direitos” (nº 82).

5.7. Populorum progressio (1967)

Um documento que pode ser considerado uma amplificação do capítulo da


Guadium et spes sobre a vida econômico-social é a encíclica Populorum progressio, de
Paulo VI. Paulo VI assume a tarefa de aplicar minuciosamente a doutrina social como
um dos aspectos de pôr o Concílio em prática. O desafio de um mundo dividido quanto
à participação nos frutos do desenvolvimento econômico espera por uma resposta da
Igreja.
A encíclica traça as coordenadas de um desenvolvimento integral do homem e
de um desenvolvimento solidário da humanidade. O papa apresenta o desenvolvimento
como “a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas” (nº 20).
Essa passagem não está circunscrita às dimensões meramente econômicas e técnicas,
mas implica para cada pessoa a aquisição da cultura, o respeito da dignidade dos outros,
36

o reconhecimento dos valores supremos. O desenvolvimento favorável de todos


responde a uma exigência de justiça em escala mundial que garanta uma paz planetária
e torne possível a realização de um “humanismo total”, governado pelos valores
espirituais.
O que a encíclica pretende é transmitir uma visão ética e cristã do
desenvolvimento. O desenvolvimento integral do homem complementa-se com o
desenvolvimento integral da sociedade concreta, em que cada pessoa se insere, e da
humanidade inteira (cf. nº 16-17).
Para determinar o conteúdo concreto desse desenvolvimento integral, a encíclica
procede de acordo com quatro passos: a) “O desenvolvimento não se reduz ao simples
crescimento econômico” (nº 14). Não pode ser medido em termos da renda nacional ou
da renda per capita nem pela utilização de outros indicadores que sejam exclusivamente
econômicos; b) “Para ser autêntico, deve ser integral, isto é, promover todos os homens
e todo o homem” (idem). Integral contrapõe-se a econômico, porquanto compreende
todas as dimensões da pessoa, e não se limita a atender apenas à satisfação das
necessidades materiais - na linha da definição da Gaudium et spes; c) “Tanto para os
povos, como para as pessoas, ter mais não é o fim último” (nº 19). Aparece a
contraposição entre “ter” e “ser”, para fazer ver que “ter” é o meio, e o “ser”, o fim; e d)
“O verdadeiro desenvolvimento (...) é a passagem, para cada um e para todos, de
condições de vida menos humanas a condições mais humanas” (nº 20).
A questão social adquiriu proporções mundiais. É a sociedade inteira que deve
garantir as condições para o desenvolvimento de todos. No entanto, nenhuma sociedade
tem a capacidade para levar adiante um desenvolvimento autônomo. Falar de
desenvolvimento solidário significa pôr em primeiro plano a responsabilidade coletiva
do progresso conjunto da humanidade. Esse é o princípio fundamental.
Paulo VI tem consciência de que esta mensagem pode acabar sendo inoperante,
se não for dotada dos instrumentos adequados. Por isso afirma que a ordem mundial não
pode ficar à mercê dos interesses particulares dos grupos ou das nações. O que falta não
é apenas uma autoridade mundial, mas também uma ordem jurídica internacionalmente
reconhecida, à qual se submetam todos os povos da terra. Essa proposta, já formulada
por Pio XII, foi renovada na Pacem in terris, e recolhida no Concílio. Paulo VI a
relança.
Ação, urgência, solidariedade: eis as três coordenadas que expressam toda a
novidade deste documento, tornando-o cada vez mais direto e incisivo, mais atento à
37

realidade, mais preocupado com a ação. Paulo VI coloca-se decididamente ao lado dos
povos oprimidos. Renuncia, assim, à postura tradicional de seus predecessores de situar-
se como árbitro neutro nos conflitos da sociedade industrial nos documentos sociais.
Outro ponto interessante, por tratar-se de uma novidade nos documentos
pontifícios desse tipo, as citações de autores contemporâneos, sociólogos, filósofos e
teólogos, como Lebret, Maritain, Clark, Chenu, Lubac, Zundel e Nell-Breuning. Muitos
desses pensadores são citados como construtores desse novo humanismo que a Igreja
acolhe: a menção expressa que se faz deles – abandonando o costume dos documentos
desse tipo, que só citavam a Bíblia, os padres e os papas – expressa bastante bem o
desejo de entrar em um diálogo com a sociedade contemporânea, na certeza de que a
Igreja necessita disso para avançar em sua própria reflexão.

5.8. Octogesima adveniens (1971)

Por ocasião do octogésimo aniversário da Rerum novarum, Paulo VI retoma a


mensagem social de Leão XIII e a atualiza com a Carta apostólica Octogesima
adveniens. Esta Carta foi dirigida ao cardeal Maurice Roy, presidente da Comissão
Pontifícia “Justiça e Paz” e do Conselho de Leigos.
Há importantes mudanças no enfoque da DSI. Em primeiro lugar, a posição
prioritária ocupada pela política, em contraste com a tradição da doutrina social, ou seja,
há a passagem do âmbito econômico para o político. Em segundo lugar, o fato de
concentrar atenção no papel que corresponde aos cristãos na vida social e política.
Nesse documento, Paulo VI pretendeu aprofundar-se nas consequências da posição que
o Concílio Vaticano II assume sobre a presença dos cristãos na sociedade moderna. Os
documentos anteriores preocuparam-se em assinalar diretamente as diretrizes que
deveriam presidir o desenvolvimento da vida social; agora, a orientação da sociedade
não é abordada imediatamente, mas por meio da mediação que os cidadãos exercem
nela. O centro de interesse desloca-se do campo doutrinal para o discernimento e a ação.
O discernimento é a etapa final de um processo que passou antes por outros dois
momentos igualmente importantes: “analisar com objetividade a situação própria” de
cada lugar, e “esclarecê-la mediante a luz da palavra inalterável do evangelho, deduzir
princípios de reflexão, normas de julgamento e diretrizes de ação, segundo os
ensinamentos sociais da Igreja” (nº 4). As duas atitudes correspondem também às
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comunidades cristãs. A iniciativa não é da hierarquia. E nisso se rompe a linha da


Doutrina pré-conciliar.
Na Octogesima adveniens a ideologia marxista é rejeitada por três motivos: por
seu caráter ateu, por sua dialética da violência e por sua subordinação da pessoa à
coletividade. Já a ideologia liberal é rejeitada por considerar como valores supremos a
liberdade ilimitada e a busca exclusiva do poder. É rejeitada igualmente a sua
resistência a permitir que as solidariedades sociais sejam assumidas como objetivo
direto da organização da sociedade. Ambas as ideologias, se conclui, “opõem-se
radicalmente ou em partes substanciais à sua fé e à sua concepção do homem” (nº 26).
Paulo VI ainda acrescenta o perigo de toda ideologia: as “possíveis ambiguidades” que
possam haver. No entanto, o perigo principal das ideologias é sua autossuficiência, ou
seja, sua pretensão de ser uma “explicação última e suficiente de tudo” (nº 28).
Sobre a democracia e a participação, que são defendidas fortemente, exige que o
Estado respeite o pluralismo existente na sociedade.
O papa não menospreza a importância da economia. Ao contrário, ele destaca,
em coerência com a Populorum progressio, a necessidade de avançar na direção de uma
melhor distribuição dos bens, tanto em nível nacional como internacional, e volta a
advertir sobre os perigos das ideologias revolucionárias, mais do que havia feito na PP.
Mas também dá ênfase à necessidade de passar da economia para a política, ou de
inserir a economia no quadro mais envolvente da política. E por duas razões. Em
primeiro lugar, porque a economia “corre o risco de absorver, excessivamente, as
energias da liberdade” (nº 46), porquanto uma sociedade bem organizada exige um
quadro que dê bom espaço às liberdades individuais, levando em consideração as
exigências do bem comum. E é aí que reside a essência do poder político: “(...) enfocar
sua responsabilidade para com o bem de todos os homens (...)” (nº 46). Paulo VI
procura combater a tendência dominante da tecnocracia a negar o valor do âmbito
político, deixando toda a vida social em mãos da competência dos técnicos.
Em suma, o papa reflete sobre a sociedade pós-industrial com todos os seus
complexos problemas, salientando a insuficiência das ideologias para responder a tais
desafios, sempre sob a ótica da democracia e da participação das pessoas.
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5.9. Laborem exercens (1981)

Noventa anos depois da Rerum novarum João Paulo II dedica a Encíclica


Laborem exercens ao trabalho, bem fundamental para a pessoa, fator primário da
atividade econômica e chave de toda a questão social.
João Paulo II deseja garantir uma presença efetiva da Igreja na sociedade. Ao
mesmo tempo pretende que a Igreja não se dilua na sociedade, mas que manifeste, de
maneira inequívoca, sua identidade específica. João Paulo II quer fazer uma
reatualização de toda a doutrina social, sob o prisma privilegiado do trabalho. Na
encíclica procura-se um novo enfoque para toda a atividade socioeconômica, a partir do
trabalho humano, de onde se possa julgar, simultaneamente, o capitalismo ocidental e o
coletivismo marxista.
O tema do trabalho ganhou importância ao longo do século XX, até chegar a
ocupar o primeiro lugar na Mater et magistra. Pois bem, a Laborem exercens representa
o ponto culminante desse processo em que a propriedade vai cedendo seu lugar
prioritário em favor do trabalho.
Laborem exercens delineia uma espiritualidade e uma ética do trabalho, no
contexto de uma profunda reflexão teológica e filosófica. O trabalho não deve ser
entendido somente em sentido objetivo e material, mas há que se levar em conta a sua
dimensão subjetiva, enquanto atividade que exprime sempre a pessoa. Ele tem a
dignidade de um âmbito no qual deve encontrar realização a vocação natural da pessoa.
E é uma atividade exclusiva e específica do homem em relação aos animais: ao
trabalhar, portanto, o ser humano realiza-se como tal. De modo que não é apenas a
atividade produtiva, um reducionismo que é típico da sociedade industrial.
Assim, os pontos principais da encíclica são: a) o homem é sujeito e fim do
processo econômico: a produção ordena-se a ele como fim e, nesse processo, ele deve
atuar como sujeito humano e agente; b) a dignidade do trabalho reside mais na sua
dimensão subjetiva; c) o trabalho tem prioridade sobre o capital, porque o homem que
trabalha é superior ao conjunto de objetos que são frutos de seu trabalho; d) existe uma
íntima vinculação entre trabalho e capital: ambos necessitam-se mutuamente; e)
qualquer sistema de propriedade deve servir ao destino universal dos bens.
Para o papa, nem o capitalismo liberal nem o socialismo seguem os postulados
éticos citados acima, porque o sistema de propriedade neles institucionalizado não
garante que o trabalhador atue como pessoa. João Paulo II não tem dúvidas de que o
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capitalismo “rígido” não garante a “primazia do homem”, nem “a subjetividade do


homem na vida social”. Esse capitalismo “rígido” entende a propriedade privada dos
meios de produção como “um dogma intocável da vida econômica” (nº 14). A revisão
que se exige do direito de propriedade deve levar em conta o caráter social do trabalho e
de seus frutos. A exigência central aponta para a participação, isto é, no sentido de o
homem atuar no trabalho como sujeito humano, e não como mero executor das ordens
de outro.
O grande erro histórico do socialismo, por sua vez, consistiu em pensar que “a
eliminação apriorística da propriedade privada dos meios de produção” bastaria para
superar automaticamente a antinomia capital-trabalho, e devolver a este último a sua
primazia sobre o outro. Não foi assim: “Com efeito, é preciso ter em mente que a
simples subtração desses meios de produção (o capital) das mãos dos proprietários
privados não é suficiente para socializa-los de modo satisfatório” (nº 14).
Então, o decisivo não é socializar ou coletivizar, no sentido de abolir a
propriedade privada, mas sim a relação que se gera entre o trabalhador e os bens
socializados.
Por fim, o papa dá ao trabalho um alcance maior: é entendido pelo cristão como
expressão de uma missão que recebeu de Deus - não apenas como fonte de santificação
individual, mas como continuação de sua obra criadora, que prepara toda a criação para
o encontro definitivo com Deus, segundo as primícias que já se realizaram em Cristo.

5.10. Sollicitudo rei socialis (1987)

Até esta encíclica, a Rerum novarum havia sido a encíclica que servira como
objeto de todas as comemorações. Com a Encíclica Sollicitudo rei socialis, João Paulo
II comemora o vigésimo aniversário da Populorum progressio e aborda novamente o
tema do desenvolvimento para sublinhar dois dados: o subdesenvolvimento do Terceiro
Mundo e as condições e exigências de um desenvolvimento digno do homem. A
encíclica introduz a diferença entre progresso e desenvolvimento e afirma que “o
verdadeiro desenvolvimento não pode limitar-se à multiplicação dos bens e dos
serviços, isto é, daquilo que se possui, mas deve contribuir para a plenitude do ‘ser’ do
homem” (nº29).
O ponto de partida é a crítica de uma dupla concepção insuficiente do
desenvolvimento: aquela que o entende como “um processo retilíneo, quase automático,
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e por si só ilimitado” (nº 27), ao qual a encíclica dedica umas poucas linhas apenas; e
outra, que encara o desenvolvimento como mera acumulação de bens e serviços, como
se nisso pudesse consistir a verdadeira felicidade humana (cf. nº 28).
João Paulo II mostra que a visão é parcial e não atende à totalidade do ser
humano. Primeiro, desenvolve a argumentação conforme a contraposição entre “ser” e
“ter”; depois, desenvolve-a recorrendo ao que ele chama de “parâmetro interior” do
homem. Para poder “ser”, para estar em condições de alcançar certa plenitude pessoal, é
preciso dispor de um nível mínimo de meios materiais: a tragédia dos povos
subdesenvolvidos está no fato de não disporem desse mínimo indispensável. Mas a
abundância de “ter” e a ânsia insuperável de acumular acabam por se transformar
também em um obstáculo insuperável para o “ser”: esta é, por outro lado, a tragédia dos
povos superdesenvolvidos: “O mal não consiste no ‘ter’ enquanto tal, mas no fato de se
possuir sem respeitar a qualidade e a ordenada hierarquia dos bens que se possuem” (nº
28).
As iniciativas de caráter econômico buscam estruturas de organização
econômica que impeçam a exploração dos países pobres por parte dos ricos. Referem-se
à reforma do comércio internacional (e à divisão internacional do trabalho subjacente), à
do sistema monetário e financeiro mundial (para evitar situações tão graves como o
problema da dívida externa que, nos anos 80, atormentou muitos países
subdesenvolvidos) e ao intercâmbio de tecnologias (cf. nº 43). Já as iniciativas no
terreno político-jurídico são de uma reorientação das organizações internacionais e um
avanço na direção de um grau superior de ordenamento jurídico-internacional. Tudo
para enfrentar o que a encíclica chama de “estruturas de pecado” (nº 17, 35 e 40),
mecanismos da ordem econômica e política que perpetuam a pobreza de grandes povos,
ocasionando situações de grave injustiça macrossocial.
A proposta da Sollicitudo rei socialis é outro sistema de valores, cujo centro seja
a solidariedade, diante de um atual baseado na competitividade. Interdependência e
solidariedade são duas palavras-chave para a compreensão de toda a encíclica. A
mensagem central de João Paulo II é o chamado à solidariedade, o sentido de
responsabilidade de todos por todos. Mas não a solidariedade apenas como uma atitude
moral e social, e sim uma tarefa.
42

5.11. Centesimus annus (1991)

No centésimo aniversário da Rerum novarum, João Paulo II escreve a sua


terceira encíclica social, a Centesimus annus, da qual emerge a continuidade doutrinal
de cem anos de Magistério social da Igreja. João Paulo II adverte que se propõe a fazer
uma releitura da Rerum novarum: “lançar um olhar retrospectivo”, para uma
redescoberta da riqueza doutrinal e prática da encíclica leonina; convida-nos a “olhar ao
redor” para uma análise das “coisas novas” que nos rodeiam; e nos convida a “olhar
para o futuro”, para as incógnitas e promessas do terceiro milênio cristão (nº 3).
Junto a esse primeiro objetivo, vai ocupar um lugar muito importante na
Centesimus annus a análise dos acontecimentos relacionados com a queda do
socialismo (cf. nº 4). Nesse sentido pode-se dizer que existe um parentesco mais
próximo do que parece à primeira vista entre a Rerum novarum e a Centesimus annus.
Na primeira, era patente o conflito entre liberalismo e socialismo, assim como suas
repercussões sobre a Igreja. Na segunda, o conflito reaparece, embora tenha novas
coordenadas: fracassou o socialismo, enquanto o capitalismo liberal vê-se sem um
concorrente.
O enfoque geral do papa é o de que existe uma clara contraposição entre a
doutrina da Igreja - as grandes intuições de Leão XIII e seu desenvolvimento nos cem
anos que o seguem - e o marxismo - como se viu atuar no mesmo período de tempo.
Diante da concepção da sociedade e do Estado, propugnada pela Igreja, detectam-se no
socialismo certos erros graves que, em seu germe, já haviam sido denunciados pela
Rerum novarum. Os erros poderiam ser reduzidos a três: uma falsa antropologia (cf. nº
13, 17, 25), o ateísmo (cf. nº 13c, 24b) e o recurso à luta de classes (cf.nº 14).
A concepção marxista do homem considera-o como “um simples elemento ou
uma molécula do organismo social, de maneira que o bem do indivíduo está
subordinado ao funcionamento do mecanismo econômico social”, e pode ser alcançado
à margem de sua decisão autônoma e de sua responsabilidade assumida (nº 13). Esta
errônea concepção da pessoa leva a outra falsa concepção da sociedade, que fica
praticamente reduzida ao Estado (cf. nº 13). A raiz última desse erro antropológico é o
ateísmo - o marxismo “concebe a realidade humana e social do homem de maneira
mecânica” (nº 13). Uma consequência dos dois erros anteriores é a escolha da luta de
classes como meio essencial de ação (cf. nº 14). O que o papa rejeita é a lógica que leva
à luta de classes, ou seja, “a ideia de que a luta pela destruição do adversário, a
43

contradição e a própria guerra sejam fatores de progresso e de avanço da história”


(idem). No fundo, portanto, é na antropologia que se situa a máxima contraposição entre
cristianismo e marxismo.
A análise articulada e aprofundada da grande guinada de 1989, com a derrocada
do sistema soviético, contém um apreço pela democracia e pela economia livre, no
quadro de uma indispensável solidariedade.
Entretanto existe um capitalismo que também é rejeitado: aquele no qual “a
liberdade, no âmbito econômico, não se encontra enquadrada em um sólido contexto
jurídico que a ponha a serviço da liberdade humana integral e a considere como uma
particular dimensão dela, cujo centro é ético e religioso” (nº 42). Para o papa, é a
maneira de entender efetivamente a liberdade que se transforma em critério ético de um
sistema econômico: a liberdade humana integral é que deve ficar protegida, e a ela deve
ser submetida a liberdade econômica, mediante uma legislação adequada.
Assim, a Igreja não contribui com um projeto concreto, mas para orientar a
atividade econômica encaminha-se em três direções: no reconhecimento da prioridade
do homem sobre todas as coisas, seu direito à iniciativa e à propriedade individual; na
propriedade dos meios de produção - que só se legitima quando eles são empregados
para um trabalho útil - e em uma sociedade que se organize de forma adequada para
criar oportunidades de trabalho para todos; e no apoio à democracia, na medida em que
este sistema político garante a participação dos cidadãos e o controle do poder –
equilíbrio exato entre liberdade e verdade. Em linhas gerais, propõe “uma sociedade
baseada no trabalho livre, na empresa e na participação” (nº 35).

5.12.Caritas in veritate (2009)

Diante da situação ocorrida em fins de 2008, da crise financeira mundial, Bento


XVI apresenta a encíclica Caritas in veritate. O papa começa afirmando que a caridade
é via mestra da DSI, pois é a síntese de toda a lei e deve mediar a relação do homem
com Deus, com o próximo e a vida social. Na atualidade, porém, vivemos uma redução
do significado da caridade, que tende a ser excluída dos âmbitos sociais, jurídicos,
políticos e econômicos. Assim, devemos conjugar a caridade na verdade e a verdade na
caridade. O mundo de hoje, além de esvaziar a caridade, relativiza a verdade.
Nesta encíclica, pela primeira vez, são tratados de modo sistemático os temas da
globalização, do respeito ao meio ambiente e da bioética, que nas encíclicas precedentes
44

haviam sido tocados rapidamente. A polarização Norte-Sul deve ser superada, diz Bento
XVI, a responsabilidade do subdesenvolvimento não é só de alguns, mas de muitos,
inclusive dos países emergentes e das elites dos países pobres. Algumas vezes, até
mesmo as organizações humanitárias e os organismos internacionais parecem mais
interessados com o próprio bem estar e com a própria burocracia que com o
desenvolvimento dos países pobres.
Bento XVI diz que o amor na verdade é o desafio da Igreja num mundo de
globalização, pois o risco é que a união econômica dos países não corresponda a uma
real integração ética das consciências, condição para um desenvolvimento
verdadeiramente humano. A partilha dos bens e recursos só é possível quando supera o
progresso técnico ou as relações de conveniência e nos abre a relações humanas livres e
conscientes na reciprocidade.
Nessa linha, a encíclica Populorum progressio é retomada em duas ideias-força:
a de que a Igreja tende a promover o desenvolvimento do homem de maneira integral e
que ela também possui o direito e o dever de sua manifestação pública diante dos
Estados e da sociedade internacional. Por isso, o papa retoma que o desenvolvimento
integral supõe a liberdade responsável da pessoa e dos povos. Apenas na liberdade o
desenvolvimento pode ocorrer de forma plena. O desenvolvimento tampouco se resume
ao crescimento econômico. O desenvolvimento engloba também, portanto, as
dimensões culturais, morais e tecnológicas, visando à cooperação internacional e a
solidariedade entre os povos, instituições e grupos.
Ao retomar a encíclica Centesimus annus, Bento XVI destaca a necessidade de
um sistema com três sujeitos: o mercado, o Estado e a sociedade civil. Apesar de ser na
sociedade civil que podemos encontrar uma economia de gratuidade, também nos dois
outros sujeitos isso pode e deve ser estimulado. As iniciativas de responsabilidade
social, investimento social e sustentabilidade são formas de fomentar a gratuidade nas
empresas.
Por fim, o papa defende a necessidade de reforma da Organização das Nações
Unidas, numa perspectiva de arquitetura econômica e financeira mundial, para a real
concretização do conceito de família de nações. O desenvolvimento mundial exige uma
autoridade global que possa ser gerida pela solidariedade e bem comum, comprometida
com o desenvolvimento integral da humanidade.
45

6. Conferências episcopais

Diante da complexidade dos problemas que preocupam a humanidade e do


pluralismo de situações, Paulo VI reconhece que as igrejas locais podem contribuir de
maneira mais próxima, tendo em vista a realidade específica do lugar, com a atualização
e aplicação de certos pontos da DSI. Por isso é que na etapa pós-conciliar, se assiste a
uma crescente produção de documentos por parte das comissões episcopais.
A América Latina talvez tenha sido o continente onde houve mais reflexão sobre
os problemas sociais. Considerando aspectos do pensamento social da Igreja Católica
no continente latino-americano, as elaborações vêm das assembleias da Conferência
Episcopal da América Latina (CELAM). As conferências de Medellín e Puebla têm uma
relevância incomparável. É a partir delas que muitos movimentos sociais ligados de
alguma forma à Igreja Católica começam a surgir na questão da moradia, da saúde, de
educação etc. Inclusive a Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo, estudo
de caso de nosso trabalho, que surge a partir das reflexões dessas CELAM. Por isso,
vamos nos limitar aos dois textos publicados como fruto da II e da III CELAM e
apontar rapidamente os principais pontos da última e V CELAM, realizada em 2007, na
cidade de Aparecida, em razão de sua contemporaneidade.
Antes de verificarmos cada uma, no entanto, cabe notar que essas conferências
foram locais de conflitos entre grupos mais afinados ao Vaticano e grupos mais afinados
à Teologia da Libertação. Daí essas conferências expressarem suas grandes orientações
vigentes nas comunidades eclesiais latino-americanas, seus progressos, suas opções,
suas dúvidas.

6.1. Medellín (1968)

É considerado um marco histórico e inovador na Igreja Católica da América


Latina, com destaque para a influência recebida do Concílio Vaticano II. Se o Concílio
Vaticano II supõe a abertura da Igreja ao homem moderno, como vimos anteriormente,
a CELAM de Medellín dirige essa abertura ao homem latino-americano concreto. Não
se trata mais do homem universal, mas das maiorias oprimidas, diante das minorias
opressoras. Há uma exigência, no entender da II CELAM, de transformar as estruturas.
Ela cita as marcas do pecado na miséria e na marginalização de milhões de latino-
americanos. O que a inquieta é a injustiça e a violência institucionalizada, das quais o
homem latino-americano é a vítima.
46

O documento tem um capítulo sobre a justiça e outro sobre a paz que merecem
atenção. Em ambos os casos têm-se como ponto de partida uma constatação da
frustração universal das legítimas aspirações que sofre o povo latino-americano. Essa
frustração deriva em uma espécie de “angústia coletiva” (Med Justiça nº 1) e gera fortes
tensões e a tentação da violência (Med Paz nº 2-13, nº 19). O capítulo que trata da
justiça dá uma ênfase maior à conversão do coração, já que “a origem (...) de toda
injustiça deve ser buscada no desequilíbrio interior da liberdade humana” (Med Justiça
nº 3), enquanto que o capítulo sobre a paz situa, em primeiro lugar, a necessidade de
“transformações globais audazes, urgentes e profundamente inovadoras” (Med Paz nº
16).
Transcendendo essas constatações está o chamado a articular a sociedade por
meio das mais variadas instituições intermediárias e a necessidade de fomentar uma
verdadeira participação, para fazer da pessoa o verdadeiro agente da vida social. Entre
as orientações concretas, se destacam o convite a uma reforma da empresa, concebida
como “comunidade de pessoas e unidade de trabalho” (Med Justiça nº 10), a rejeição
dos sistemas capitalista liberal e marxista – porque nenhum deles respeita a dignidade
da pessoa – e o convite a “orientar as empresas segundo as diretrizes do magistério
social da Igreja” (idem). Além disso, se defende a incorporação dos trabalhadores, com
a participação ativa na gestão da empresa e valoriza a organização sindical, rural e
operária, e seus direitos de estarem representados nos níveis políticos, sociais e
econômicos. Também se fala da urgência de uma reforma agrária para a promoção
humana dos camponeses e indígenas, não limitados a uma distribuição de terras, e a
necessidade de controlar os processos de industrialização, tão irreversíveis como
decisivos, para elevar o nível de vida da população.
São demarcadas tensões: as diversas formas de marginalização –
socioeconômicas, políticas, culturais, raciais, religiosas, rurais e urbanas; as
desigualdades excessivas entre as classes sociais; as formas de opressão de grupos e
setores dominantes; a crescente tomada de consciência dos setores oprimidos
(WANDERLEY, 2009).
Em termos gerais, defende-se um desenvolvimento integral, em que se respeite
“a legítima autonomia de nossas nações, as justas reivindicações dos países mais fracos
e a desejada integração econômica do continente” (CERIS, 1968, p. 53). Com relação
ao tema dos pobres afirma:
47

Devemos tornar mais aguda a consciência do dever de solidariedade para com os


pobres. Esta solidariedade significará fazer nossos seus problemas e lutas e saber
falar por eles. Isto se concretizará na denúncia da injustiça e opressão, na luta
contra a intolerável situação em que se encontra, frequentes vezes, o pobre e na
disposição de dialogar com os grupos responsáveis por esta situação, a fim de
fazê-los compreender suas obrigações (CERIS, 1968, p. 148).

Boff (1981) resume Medellín:

A Igreja aproxima-se cada vez mais das classes populares, torna seus os anseios
da libertação, as exigências de justiça social e os postulados dos direitos
humanos, em especial dos mais pobres. Não se entende apenas a partir do mundo
moderno (visão do Vaticano II), mas principalmente a partir do submundo dos
oprimidos (a tradução do Vaticano II às condições da realidade latino-
americana). A grande opção que se delineia com clareza em Medellín e que
ganha uma força catalisadora, formula-se em termos de opção preferencial pelos
pobres (os que sofrem injustiças pela pobreza produzida por mecanismos de
exploração, pobreza como praga social e manifestação do pecado). Desta
encarnação da Igreja nas classes populares subalternas nascem as comunidades
eclesiais de base e a pastoral popular libertadora. Inaugura-se um novo modelo
de relações da Igreja com a sociedade civil: relação direta, sem passar pela
mediação do Estado e das classes dirigentes. A Igreja insere-se diretamente nas
classes populares; deseja ser mais do que uma Igreja para o povo; quer ser uma
Igreja com o povo, do povo; uma Igreja que nasce da fé do povo oprimido
(BOFF, 1981, p. 55).

6.2. Puebla (1979)

Se a CELAM de Medellín é considerada marco inovador da Igreja Católica da


América Latina, com influência substantiva recebida do Concílio Vaticano II, na de
Puebla encontram-se mais atritos entre os grupos ligados à Teologia da Libertação e os
grupos ligados ao Vaticano.

Os principais assessores teológicos praticamente correspondiam a uma visão


mais tradicional da teologia, e, sobretudo, eram nada significativos da prática
teológica latino-americana. Antes, eram aqueles que se opunham a ela. Entre os
peritos mais ligados ao campo social, havia uma presença mais significativa
(LIBÂNIO, 1979, p. 61).

Puebla não avança de modo linear. As opiniões e as tendências se diversificam


dentro da Igreja, chegando algumas vezes a radicalizar-se e enfrentar-se abertamente, no
que ficou conhecida como Batalha de Puebla (BEOZZO, 1993).
Por exemplo: a estruturação da Conferência se deu em função da disputa em seu
interior. Para Bernstein e Politi (1996, p. 205) “se desenrolava uma verdadeira luta
política e, dessa vez pelo menos, os rótulos de ‘progressista’ e ‘conservador’ realmente
eram adequados”. Segundo Beozzo (1993), o Vaticano trabalhou intensamente para
garantir que os chamados conservadores saíssem vitoriosos do evento, por exemplo, por
meio da imposição da coordenação e da forma organizativa do evento.
48

Frei Betto (1979) relata a proibição da presença dos teólogos assessores dos
bispos, no que interpreta como um mecanismo de marginalização dos teólogos da
libertação da confecção do texto final. Esses teólogos haviam desenvolvido grande
quantidade de pesquisas e reflexões que compunham o quadro das manifestações
teológicas das conferências episcopais, dioceses, entre outros, constituindo um
verdadeiro braço teológico desses bispos. Ao invés de assumirem igual posição na
Conferência, foram nomeados outros teólogos como peritos, todos na linha
“conservadora” do Vaticano. Muitos teólogos “progressistas” foram secretamente a
Puebla e se hospedaram em uma casa e realizaram discussões e redigiram contribuições
que eram entregues aos bispos à noite ou de modo sorrateiro durante o evento. Betto
também relata um fato: em 10 de fevereiro, Trujillo flagrou o cardeal Arns sendo
orientado por Leonardo Boff e Jon Sobrino, pediu a saída dos teólogos e mandou
reforçar a segurança do evento, proibindo inclusive que qualquer documento fosse
passado para dentro do evento por qualquer pessoa.
Além disso, o primeiro documento de consulta foi mal recebido por alguns
bispos por falar na secularização como principal desafio latino-americano – quando se
entendia que esse era um desafio importado europeu – e por se preocupar
exclusivamente com questões de doutrina4. O texto foi modificado, mas muitos ainda
criticavam o que consideravam a fraqueza da parte doutrinal, que ainda era muito
extensa e que não representava a especificidade do homem latino-americano.
De acordo com Camacho (1995), o documento final foi elaborado depois de 21
comissões diferentes, trabalhando ao mesmo tempo, o que ocasionou inúmeras
repetições e divergências de enfoque e orientações.
De toda forma, essa diversidade de interpretações e a própria variedade de
enfoques encerra o pluralismo existente entre os bispos reunidos. Ao mesmo tempo, se
houve manifestações públicas divergentes entre os bispos em Puebla, há linhas de força
consensuais. No documento de Puebla, há uma comprovação da situação de pobreza de

4
Vide uma crítica de Gutiérrez (1978, p. 24): “Se o grande desafio à fé na América Latina é a ideologia
secularista e não o fato brutal da exploração dos pobres no continente, o Deus proveniente ocupará o
lugar do Deus que liberta, que o Deus dos pobres tinha em Medellín; a religiosidade popular (conforme a
entende o documento) cumprirá o papel que tinha a pobreza; a cultura terá o lugar da libertação; o povo
(formado por todos aqueles que gestam uma mesma cultura) encontrar-se-á no lugar que ocupavam as
classes populares exploradas; o povo, considerado em sua pobreza material, será substituído pelo povo
espiritualmente rico. Nessas condições, a tarefa evangelizadora será discernir os valores do mundo
moderno para forjar uma nova civilização, e não denunciar a escandalosa situação de injustiça social que
se vive na América Latina e anunciar o amor do Pai que levanta sua mão contra o opressor e liberta o
oprimido”.
49

milhões de latino-americanos, que se exprime, por exemplo, “em mortalidade infantil,


em falta de moradia adequada, em problemas de saúde, salários de fome, desemprego e
subemprego, desnutrição, instabilidade no trabalho, migrações maciças, forçadas e sem
proteção” (Puebla, nº 29). Caracterizam como um escândalo e uma contradição a
clivagem crescente entre ricos e pobres.
Em linhas bem gerais, no documento da III CELAM a evangelização é o tema
central. A preocupação é que não se desvirtuem as imagens de Cristo, da Igreja e do
homem. O objetivo da evangelização fica formulado em termos de comunhão e
participação, grandes eixos de um projeto de sociedade que a Igreja deseja propor a um
mundo dividido, em que tudo se distribui mal, graças ao mecanismo de dominação.
Além disso, pretende-se estabelecer uma relação entre salvação, libertação e
promoção humana. A libertação é apresentada em dupla tarefa: “a libertação de todas as
servidões do pecado pessoal e social (...) e a libertação para o crescimento progressivo
no ser, pela comunhão com Deus e com os homens” (Puebla, nº 482). Durante o texto,
insiste-se tantas vezes na libertação integral. Com “integral”, pretende-se incluir a
dimensão cultural, inclusive com prioridade sobre o aspecto socioeconômico e político.
Afinal, é nela que se localizam os valores fundamentais que informam todas as
estruturas e instituições da sociedade (Puebla nº 388), e seu centro encontram-se os
valores religiosos (Puebla, nº 389). Por isso, a evangelização da cultura é o grande
desafio para a Igreja da América Latina. As ideologias do capitalismo liberal e do
marxismo representam a grande ameaça para a cultura latino-americana e são
responsáveis pela situação de injustiça e pobreza do continente (cf. Puebla, nº437).
Deve então o cidadão olhar mais para a antropologia cristã do que para as ideologias (cf.
Puebla, nº 552).
Os bispos em Puebla, no entanto, reconhecem certos valores na ideologia do
marxismo coletivista, como a mobilização da classe trabalhadora, a promessa de maior
justiça social, as lutas contra as injustiças do liberalismo econômico, a crítica ao
fetichismo do comércio e do desconhecimento do valor humano do trabalho. Porém,
criticam a antropologia coletivista, o materialismo ateu, a idolatria à riqueza em sua
forma coletiva e a instrumentalização religiosa, identificando o Reino de Deus com a
construção do socialismo e eliminando o caráter transcendente do Reino e da salvação
cristã (WANDERLEY, 2009).
O tema da opção preferencial pelos pobres é outro ponto de destaque no
documento. O choque com a pobreza é a característica destacada com maior ênfase na
50

descrição da realidade sociocultural da América Latina. Os pobres são os que “carecem


dos mais elementares bens materiais, em contraste com a acumulação de riquezas em
mãos de uma minoria, frequentemente à custa da pobreza de muitos” (Puebla, nº 1135).
E acrescenta que a pobreza material encontra-se unida a outras carências: “Os pobres
não só carecem de bens materiais, mas também no plano da dignidade humana, de uma
plena participação social e política” (idem). Não se trata de outras formas de pobreza,
mas de aspectos diversos da pobreza, que estão todos unidos.
Quanto à riqueza, o destino universal dos bens da terra é considerado direito
primário e fundamental, ao qual devem ficar subordinados todos os demais direitos da
propriedade e do livre comércio. O correto uso dos bens da terra exige um planejamento
da economia a serviço do homem. A denúncia da industrialização descontrolada e do
esgotamento irresponsável dos recursos da terra complementa o quadro (cf. Puebla, nº
492-496). Em relação ao poder, a autoridade é necessária, porém é mais urgente
denunciar os seus abusos, sobretudo quando os centros de poder operam em escala
internacional. A alternativa exige um sistema de participação e de igualdade entre todos
os cidadãos, junto ao reconhecimento do direito de autodeterminação dos povos (cf.
Puebla, nº 499-505). Há também uma rejeição expressa da violência, tanto institucional
quanto terrorista ou guerrilheira e um chamado ao uso de meios não violentos na
promoção da paz.

6.3. Aparecida (2007)

De acordo com Wanderley (2009), na CELAM de Aparecida há um movimento


para garantir que os teólogos afinados com o Vaticano tenham mais força que aqueles
afinados com a Teologia da Libertação.
De toda forma, o documento do V CELAM, em Aparecida, recupera elementos
das posições traçadas em Medellín e Puebla e propõe algumas diretrizes.
De maneira geral, o texto destaca a globalização e aponta para suas
consequências, com ênfase na dimensão econômica comandada pelo mercado, o qual
privilegia o lucro e a concentração de riquezas. Além disso, cita as dívidas externa e
interna, e a iniciativa de sistemas tributários eficientes, equitativos e progressivos por
parte dos governos. No contexto atual, acrescenta-se a exclusão social, além do
fenômeno da exploração e opressão. Os excluídos não são somente “explorados”, mas
“supérfluos” e “descartáveis” (nº 65).
51

No caso das pessoas pobres, fala das comunidades indígenas e afrodescendentes,


das muitas mulheres que são excluídas, em razão de seu sexo, raça ou situação
econômica, dos jovens que recebem uma educação de baixa qualidade, dos muitos
pobres, desempregados, migrantes, deslocados, camponeses sem terra, os quais buscam
sobreviver na economia informal, das crianças submetidas à prostituição infantil, ligada
muitas vezes ao turismo sexual, das vítimas do aborto, das milhões de pessoas e
famílias que vivem na miséria e inclusive passam fome, daqueles que dependem das
drogas, das pessoas incapacitadas, dos portadores de AIDS, malária, tuberculose, dos
que sofrem de solidão, dos sequestrados e dos que são vítimas da violência, do
terrorismo, de conflitos armados e da insegurança cidadã (cf. Aparecida, nº 65).
O documento, então, defende uma globalização contraposta à hegemônica,
marcada pela solidariedade, justiça e respeito aos direitos humanos. Também é
valorizado o protagonismo de novos atores sociais da sociedade civil, no sentido de uma
democracia participativa, na busca de políticas públicas que revertam a situação de
exclusão, de reformas econômicas que criem empregos e de estímulo a organizações
solidárias. Como experiências positivas são indicadas a do microcrédito, da economia
solidária e local, do comércio justo (cf. nº 71).

7. Princípios permanentes da Doutrina Social da Igreja

Diante de toda essa riqueza de pensamento e diálogo, podemos identificar que a


proposta social da Igreja gira em torno de alguns valores e princípios fundamentais e
gerais, permanentes e universais, e que constituem a espinha dorsal da sua proposta.
Eles valem para todos indiscriminadamente. Há, assim, um modo de entender o homem,
a vida humana e a sociedade, que dá continuidade a todos os documentos.
Os princípios de reflexão permanentes são verdadeiros pontos fixos em torno
dos quais gira todo o pensamento social católico e são guias de ação para os católicos.
Eles se apresentam na forma de quatro princípios, bem articulados e interdependentes:
a) o Princípio da Dignidade Humana, no qual todos os demais princípios encontram
seu firme fundamento; b) o Princípio da Solidariedade; c) o Princípio da
Subsidiariedade; d) e, por fim, como objetivo final de todos, o Princípio do Bem
Comum.
Os princípios de reflexão são, de acordo com a Igreja Católica, expressões da
verdade integral do homem conhecida através da revelação cristã e da razão. Por sua
52

universalidade de significado e permanência no tempo, eles servem como parâmetros


para a interpretação e avaliação dos fenômenos sociais. Por se referirem aos
fundamentos últimos da vida social, possuem um significado profundamente moral.
A partir dos princípios permanentes de reflexão, as normas ou critérios de juízo
permitem fazer uma apreciação das situações, das estruturas e dos sistemas sociais.
Esses critérios permitem afirmar se esses sistemas sociais, estruturas e situações estão
ou não em conformidade com a dignidade humana.
Igualmente inspiram-se nos princípios fundamentais as diretrizes de ação. Estas
diretrizes apontam os meios de ação mais conformes à dignidade humana e à educação
da sua liberdade.
A DSI e os princípios que a estruturam têm um caráter primordial e genérico,
uma vez que se reportam ao conjunto da realidade social, ou seja, pretendem nortear a
totalidade das relações humanas: desde as relações interpessoais, mais imediatas e
marcadas pela proximidade, até às mediadas pela economia, pela política e pelo direito,
seja entre indivíduos, grupos intermediários ou nações.
Vamos agora nos deter sobre os três primeiros princípios citados.
CAPÍTULO 2

O Princípio da Dignidade Humana: a concepção de pessoa e algumas


reflexões contemporâneas

A ideia de que a dignidade da pessoa é o ponto de apoio necessário para dar


sustentação e efetividade aos direitos fundamentais consagrados nos vários
ordenamentos jurídicos de diversos países é compartilhada de maneira ampla por
variadas correntes de pensamento e ideologias.
Com várias facetas, o Renascimento pôs o homem no centro, exaltando sua
beleza, sua força e sua inteligência, afirmando que ele poderia realizar-se a partir de
suas capacidades, construindo um mundo de liberdade e de reconhecimento da
dignidade humana. O humanismo vindo do Renascimento partia da crença de que o ser
humano é capaz de conhecer a verdade e de organizar racionalmente a sociedade,
construindo o bem comum. Mas essa crença foi sendo corroída ao longo do tempo. Nos
séculos XIX e XX houve a criação de muitos “humanismos”, muitos diferentes entre si,
mas podendo ser reunidos à medida que resgatam o elemento humano.
Marx e Engels (2007), no século XIX, procuram mostrar que a práxis humana
constrói as ideias – e não o contrário. Na sua concepção de ideologia, as ideias sempre
revelam uma parte da realidade, ocultando outra, servindo como instrumento de
dominação da classe hegemônica.
Enquanto o marxismo considera que os ideais e o conhecimento refletem os
esquemas de dominação da sociedade, o pensamento freudiano procura mostrar como a
psique influi na objetividade e na racionalidade da conduta humana. Para Freud, os
processos inconscientes, o desejo e os impulsos são determinantes na estruturação de
nossa visão de mundo e de nossa relação com a realidade (MENEZES, 2004).
Tanto em Marx quanto em Freud, o ser humano não conhece aquilo que existe,
mas aquilo que lhe é dado conhecer, em função de suas determinações sociais (Marx)
ou psicológicas (Freud). Assim, foi crescendo uma descrença nas possibilidades da
razão e do conhecimento objetivo que levou a um processo de subjetivação, que
Horkheiner (1976) descreve como a passagem de uma razão objetiva para uma razão
subjetiva. Como consequência, também os ideais humanistas vão sendo subjetivados,
54

confundindo-se com interesses e crenças particulares do indivíduo ou de seu grupo


social, perdendo a aura de universalidade que os cercava.
Depois, os próprios acontecimentos históricos do século XX, como os
totalitarismos e as guerras - com seus atentados e genocídios -, o uso crescente dos
recursos técnico-científicos para a construção de armas e a consciência dos mecanismos
de dominação e da violência dentro da sociedade moderna, colaboraram para a
descrença nos ideais humanistas.
Diante dessa corrosão do pensamento humanista, vários autores tentaram
construir um novo humanismo ao longo do século XX. Ribeiro Neto (2010) destaca, na
vertente marxista, que Garaudy lançou Humanisme marxiste. Mas a resistência ao
humanismo no interior do pensamento marxista permaneceu. Althusser (1995) manteve
uma postura contrária ao termo. Inclusive Althusser considerava que Marx, no início,
havia desposado o humanismo para depois superá-lo. Para o marxismo, de acordo com
Ribeiro Neto, o problema do homem só poderia ser resolvido no campo concreto da
história, e não no terreno das ideias – mesmo quando elas eram lidas na perspectiva
materialista de Feuerbach. O problema do humanismo seria sempre o de deslocar a
atenção da questão concreta da revolução para uma discussão idealista sobre a
afirmação do humano ou a denúncia da sua desumanização. O homem seria produto da
história, mas receberia do humanismo uma natureza a-histórica. De toda forma, no
contexto que chamamos de pós-modernidade, González (1997) afirma:

Em 1968, Alexandre Dubcek dizia que “se o socialismo não adquirir um rosto
humano desaparecerá como sistema”. Teve que esperar somente duas décadas de
indiferença diante desse chamado por parte dos partidos comunistas no poder da
Europa Oriental para que seu lamentável vaticínio se cumprisse. Na autopsia
atual aparecem múltiplas causas de ordens distintas, porém entre elas desponta
uma tão fundamental quanto simples: os homens encarregados de desenvolver o
projeto revolucionário e socialista naqueles países não quiseram continuá-lo
porque não se sentiam identificados com ele. Não viam refletidas, em suas
realizações, as aspirações humanistas que animavam originalmente o projeto
socialista (p. 378).

Com outras perspectivas, Heidegger e Sartre também pensaram o humanismo.


Heidegger (1987) considera que o humanismo deve partir do ser humano em sua
essência, de seu “ser-aí” e não a partir de “causas últimas” ou princípios abstratos. Já
Sartre (1978) considera que o ser humano não tem uma essência determinada, mas é
uma existência que se constrói no mundo por meio de suas escolhas pessoais, um
“projeto vivido”.
55

O homem é, O homem é, antes de qualquer coisa, um projeto vivido


subjetivamente (...) e o homem será antes de tudo o que ele houver projetado ser.
Não o que ele quiser ser. Pois o que vulgarmente entendemos por querer é uma
decisão consciente que, para a maior parte de nós, é posterior ao que alguém fez
de si mesmo. Posso querer aderir a um partido, escrever um livro, casar-me; tudo
isso não é mais do que a manifestação duma escolha mais original, mais
espontânea daquilo que se chama vontade. Mas se verdadeiramente a existência
precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro
esforço do existencialismo é o de pôr todo homem da posse do que ele é e
atribuir-lhe a responsabilidade total por sua existência (SARTRE, 1978, p. 9).

Esse processo de autoconstrução não é possível sem o outro. É a partir desse


outro que cada ser humano pode se reconhecer no mundo. Enquanto seres que assumem
a sua existência e se fazem a si mesmos, todos precisam aceitar sua condição humana e
a relação com o outro. Daí nasceria a solidariedade universal.

E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos


dizer que o homem é responsável por sua estrita individualidade, mas que é
responsável por todos os homens (...). Quando dizemos que o homem se escolhe,
queremos dizer que cada um de nós se escolhe; mas, com isso, também
queremos dizer que, ao se escolher, ele escolhe todos os homens (SARTRE,
1978, p. 10).

Porém, essa escolha tem um elemento contraditório, pois também é o outro que
se interpõe entre o eu e o seu projeto de autorrealização. Daí a conhecida expressão “o
inferno são os outros”, tirada da sua peça Entre quatro paredes. De toda forma, o
humanismo de Sartre é um processo de autoconstrução, em que o ser humano necessita
do outro para se autoconstruir mas, ao mesmo tempo, encontra no outro uma ameaça.
No final do século passado,

Detectadas as ilusões do humanismo subjetivista, identificado o humanismo


como ideologia, estremecido o conceito tradicional de natureza humana,
descentrando o homem como objeto de estudo, ficam criadas as condições para a
emergência do tema da morte do homem (cf. Foucault) e, consequentemente,
para o surgimento de grandes dificuldades na antropologia que, historicamente,
apoiada na doutrina humanista, agora enfrenta o risco de se ver privada de seu
campo de reflexão e, inclusive, de sua razão de ser (p. 24).

Assim, nesse contexto, diante da fragmentação e da desumanização do sujeito,


Morin (2011) sugerirá a complexidade (o Homo complexus) e a “hominização do
humanismo”. Em oposição ao humanismo clássico, que afirmava a superioridade do ser
humano e sua capacidade de dominação da Natureza, procura a sua integração
harmônica à natureza, a valorização da solidariedade e da tolerância. Ainda para Morin
(2000), há a construção de uma “nova sabedoria”, que permite a convivência dos seres
humanos entre si, com a Natureza e com o universo técnico-científico criado por eles.
56

Se Sartre aponta para a capacidade do ser humano de se autoconstruir, Morin


aponta para a necessidade de que ele integre em sua diversidade e em sua complexidade
– uma integração que passa pelo humilde reconhecimento da relação e da dependência
de que cada ser humano vive em relação ao cosmo e aos demais.
No fundo de todas essas discussões, pode-se perceber a própria crise da ideia de
uma natureza humana racional capaz de propor critérios de conduta que edificassem um
mundo conforme a ela própria.
Diante de tamanha diversidade, também a Igreja Católica quer apresentar ao
mundo sua visão de pessoa, e pretende compartilhar esse ponto de vista com os
pensadores das mais variadas culturas e convicções religiosas. A Doutrina Social da
Igreja se propõe a fornecer – e efetivamente fornece – uma concepção sólida e precisa
sobre a pessoa e sua dignidade intrínseca, concepção essa que pode se revelar profícua
até mesmo para aqueles que não professam a fé católica ou cristã. Essa contribuição
ocorre, antes de tudo, no plano da razão, sem implicar qualquer imposição de natureza
religiosa. Nesta perspectiva é que devem ser situadas as considerações desenvolvidas a
partir de agora nesta tese de doutorado, em especial neste capítulo.
No entanto é preciso, mais do que nunca, repudiar certas visões contaminadas
por preconceitos, que tentam desacreditar as concepções de mundo fundadas numa
perspectiva religiosa e fideísta pois, como observa Marciano Vidal (1998, p. 205), “a
ânsia para secularizar excessivamente a dignidade da pessoa esquece que a fé em Deus,
em lugar de diminuir e esvaziar a justificação do valor do homem, o que faz é ampliá-lo
e radicalizá-lo. Também esquece muitas vezes que a valorização absoluta do homem
nasceu e cresceu ao amparo da religião”.
Assim, a diretriz perseguida é cada vez mais conscientizar os indivíduos acerca
de sua dignidade humana, que é intangível. O Princípio da Dignidade Humana é o
princípio mais importante e valioso para a Doutrina Social da Igreja. Este princípio, que
defende antes de tudo o primado da pessoa, homem e mulher, com sua dignidade
transcendente, fundamenta a forma como a Igreja vê o ser humano. No Compêndio da
DSI podemos ler: “O homem, tomado na sua concretude histórica, representa o coração
e a alma do ensino social católico. Toda a doutrina social se desenvolve, efetivamente, a
partir do princípio que afirma a intangível dignidade da pessoa humana” (nº 107).
De modo que, sem partir dessa visão da centralidade da pessoa, os outros
princípios fundamentais da Doutrina Social da Igreja - o Princípio de Solidariedade e o
Princípio de Subsidiariedade, que veremos nos capítulos seguintes - não se realizam. A
57

Doutrina Social da Igreja proclama, portanto, que a dignidade dos homens é a raiz de
todos os direitos humanos e fundamento de outros princípios.
Cabe ressaltar que algumas vezes utilizaremos - como o próprio ensinamento
social católico faz – homem como sinônimo de ser humano. Nesse caso, deve-se
considerar subentendido também as mulheres.
A questão do papel da mulher na Igreja pode ser lida à luz da atuação do próprio
Jesus Cristo. Em uma sociedade em que as estruturas patriarcais relegavam a mulher
para segundo plano, lemos na Bíblia que Jesus se aproximou delas, lhes delegou tarefas
e as tratou com igualdade.
Não obstante, é sabido que à mulher não são permitidos determinados tipos de
participação eclesiástica. Não é nosso intuito entrar no mérito da questão nem nos
aprofundarmos nesse tema. A ele seria necessária outra pesquisa. De toda forma, é
importante ressaltar que no século XIX ocorreu um grande crescimento no número das
congregações femininas, que se dedicavam à prestação de cuidados de saúde, à
educação e à caridade. Houve mulheres, como Joana D’Arc ou Catarina de Sena, que
tiveram a ousadia de interpelar os homens e pôr em causa o rumo que eles tomavam na
direção da própria Igreja.
Certo é que a Igreja não seria o que é se não se constatasse a presença de
inúmeras mulheres em áreas como a assistência social e a transmissão da fé. Há quem
defenda – inclusive dentro da hierarquia católica - o direito de acesso das mulheres aos
ministérios. Por enquanto, contudo, mantém-se a exclusividade no que diz respeito à
ordenação sacerdotal de homens. De toda forma, acreditamos que não existem papeis
maiores ou menores no cenário da missão evangelizadora; o que há são protagonismos
diferentes com a mesma dignidade.
Neste segundo capítulo pretendemos nos deter no Princípio da Dignidade
Humana defendido pela Igreja Católica. Perguntamo-nos: em que se apoia a dignidade
humana? Por que uma pessoa tem dignidade? Porém, para uma correta concepção da
dignidade humana na Doutrina Social da Igreja, precisamos entender antes qual é a
concepção católica de pessoa. Partimos da pergunta: o que faz de um ser pessoa?
Assim, este capítulo, a partir de agora, tratará da concepção católica de pessoa.
Depois, trata da dignidade humana em si e como ela é discutida no ensino social cristão.
Deixamos claro que não temos pretensão de esgotar a definição sobre a pessoa,
nos mais amplos espectros do pensamento filosófico. Esse capítulo parte de um conceito
cristão e de como este conceito se define e se amolda à Doutrina Social da Igreja.
58

Finalmente, terminamos o capítulo verificando como o Princípio da Dignidade


Humana pode servir de reflexão para algumas situações contemporâneas.

1. A concepção de pessoa
1.1 As duas dimensões da pessoa: corpo e espírito

Como já foi dito, para a Doutrina Social da Igreja é o primado da pessoa que
fundamenta todo o seu pensamento. Ou seja, o ser humano é “o protagonista, o centro e
o fim de toda a vida econômico-social” (GS, nº 63). A dignidade da pessoa humana
deve ser o objetivo último da produção de bens, da organização política e das
expressões culturais. Nada a atinge ou fere mais profundamente do que o fato de se
tornar instrumento da economia de mercado ou de qualquer coletivismo. Sublinha o
Concílio Vaticano II: "Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do
homem, como seu centro e seu termo: nesse ponto existe um acordo quase geral entre
crentes e não-crentes" (GS, nº12).
Romano Guardini (1963) se pergunta: o que é a minha pessoa? “A pessoa é um
fato que incessantemente desperta um espanto existencial” (p. 163), ele mesmo
responde. A pessoa é também um dos fatos mais misteriosos pelo qual se interroga a
mente humana. “É para mim absolutamente ‘transparente’ que eu seja eu; que não
possa, absolutamente, ser expulso de mim próprio, ainda pelo inimigo mais poderoso,
mas exclusivamente por mim, e nem, de resto, completamente por mim; que não seja
substituível, ainda pelo homem mais nobre; que eu seja o centro da existência, pois é
bem o que eu sou, e também o que tu és, e ainda tu, aí...” (GUARDINI, 1963, p. 162).
Mounier (2004) diz que a pessoa é possuidora de um valor indefinido e
transcendental. Logo ela não pode ser um objeto de definição ou conhecimento acabado,
terminado. Definir a pessoa é esvaziá-la de sua grandeza real. Ela é o que se pode
chamar de indefinível. “A pessoa não é uma coisa que se pode encontrar no fundo das
análises, ou uma combinação definível de aspectos. Se fosse uma súmula, poderia ser
inventariada: mas é, exatamente, o não inventariável. Inventariável, poderia ser
determinada; mas é, exatamente, o centro da liberdade” (MOUNIER, 2004, p. 84).
Mauss (1974), por sua vez, afirma que “a noção de pessoa, longe de ser uma
ideia primordial, inata e claramente inscrita (...) no mais profundo de nosso ser, (...) é
ainda hoje imprecisa, necessitando de maior elaboração, ela se constrói lentamente, se
59

clarificando, se especificando, se identificando com o conhecimento de si, com a


consciência psicológica (...)”.
O problema da definição de pessoa tem sido debatido há tempos. É com o
advento do cristianismo, diz Emmanuel Mounier, que se instaura uma “noção decisiva
de pessoa” (MOUNIER, 1967, p. 23). Antes do cristianismo, o reconhecimento do valor
da pessoa era ligado à raça, ao sexo, à idade, à classe social ou ao destino político. Ser
um valor absoluto e não instrumental não era um direito de todos, e sim privilégio de
poucos. À medida que o cristianismo foi se difundindo, o valor da pessoa começou a ser
defendido. O cristianismo trouxe o valor absoluto da pessoa.
Diogo Leite de Campos (1991) afirma:

Até o cristianismo, pessoas eram só (...) os seres excepcionais que


desempenhavam na sociedade os primeiros papeis; a partir do cristianismo,
qualquer ser humano passou a ser pessoa (homens, mulheres, crianças,
nascituros, escravos, estrangeiros, inimigos...) através das ideias do amor
fraterno e da igualdade perante Deus (p. 134).

Desse modo, cada indivíduo da espécie humana não vale por aquilo que tem, não
deriva da raça, da religião ou do sexo, mas pelo que é. É digno da maior estima e do
mais profundo respeito, em cada momento da sua vida: quando sadio ou quando doente,
quando fraco ou quando forte, quando sábio ou quando ignorante, quando pequeno e
impotente no seio da mãe, ou se velho esclerosado fechado em um asilo.
Mas o que significa que o ser humano é pessoa? E mais: por que a pessoa é valor
absoluto, digno, sempre e em toda a parte, da máxima estima e do mais profundo
respeito?
Nas Ciências Sociais, alguns autores tentaram responder a essas perguntas. O
antropólogo inglês Radcliffe-Brown (1973), por exemplo, faz uma oposição entre
indivíduo e pessoa: todo ser humano vivendo em sociedade tem dois aspectos - ele é
indivíduo, mas também pessoa. Como indivíduo, ele é um organismo biológico, um
conjunto muito vasto de moléculas organizadas em uma estrutura complexa em que se
manifestam, enquanto ele persiste, ações e reações fisiológicas e psicológicas, processos
e mudanças. Já o ser humano como pessoa é um complexo de relações sociais.
Assim, o indivíduo se apresenta apenas em sua condição de instância
“infrassocial” (DUARTE, 1986), como mero substrato concreto para a imposição do
estatuto social. Já fica porém absolutamente claro que pessoa designa – como no texto
de Mauss (1974) – uma unidade socialmente investida de significação. Essa fórmula
ecoa, na verdade, a teoria do Homo duplex de Durkheim, ao mesmo tempo amarrado a
60

sua corporeidade imediata e fechada, por um lado, e dedicado à busca da efetivação dos
ideais morais que lhe atribui sua cultura, por outro (DUARTE, 1986).
Para Da Matta (1979), a categoria indivíduo é uma maneira de definir um
“cidadão de segunda classe”, pessoas inteiramente à mercê das regras impessoais e
universais que governam a nação. Finalmente, a categoria que designa seres humanos de
uma maneira enfaticamente positiva não é o indivíduo como unidade exclusiva e
fundamental do Estado moderno, mas o indivíduo como membro de uma rede de
relações - isto é, o indivíduo enquanto pessoa ou gente.
O pensamento católico trata o tema de maneira diversa. Podemos dizer que, nele,
pessoa é um ser confluente de dupla perspectiva: a material e a espiritual. O ser
humano é “um ser de fronteira entre o mundo puramente espiritual (Deus, Espírito
Puríssimo, e os espíritos puros, que chamamos anjos) e o mundo puramente material (os
seres não viventes, as plantas, os animais)” (MONDIN, 1998; destaque no original). Ou
ainda, nas palavras de Santo Agostinho (1990), o homem é um meio-termo entre os
brutos e os anjos. Assim, na fronteira, entre um lado e outro, “numas muitas vezes se
exalta como norma absoluta. Noutras deprime-se até ao desespero” (GS, nº 12).
O conceito de pessoa é definido pela natureza intelectual que possui. O ser
humano possui uma dimensão que supera em tudo as propriedades e possibilidades da
matéria, que não conhece limites nem de espaço e nem de tempo; possui um elemento
incorruptível, um princípio, uma semente de eternidade. Para Welty (1960), o ser
humano é único em seu ser racional, pois, além do corpo como qualquer outro animal,
possui uma alma espiritual sendo que esta formação é o que lhe garante independência e
dignidade próprias da pessoa. Charbonneau (1965), na mesma linha de pensamento,
defende que o corpo humano nos coloca apenas na categoria de indivíduos, como
qualquer animal, vegetal ou mineral, mas que a propriedade do homem de ser racional
eleva-o a dignidade de pessoa. Para Fernando Bastos de Ávila (1993), esta pessoa
desenvolve, durante sua vida, potencialidades que são inerentes à natureza humana que
é constituída “pela união de um princípio espiritual a um corpo animal que é por ele
vivificado” (p. 353).
Assim, o ser humano é, antes de tudo, um ser espiritual, mas um espírito
encarnado, tanto corpo quanto alma intelectiva. Como diz o Catecismo da Igreja:
corpore et anima unus5. “A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao

5
“A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como ‘forma’ do corpo; ou
seja, é graças à alma espiritual que o corpo constituído de matéria é um corpo humano e vivo; o espírito e
61

mesmo tempo corporal e espiritual” (CEC, nº 362). Para usar uma terminologia lógica, é
um ser em conjunção. É por isso que, como está escrito no Compêndio da Doutrina
Social da Igreja, “nem o espiritualismo, que despreza a realidade do corpo, nem o
materialismo, que considera o espírito mera manifestação da matéria, dão conta da
natureza complexa, da totalidade e da unidade do ser humano” (CDSI, nº 129). Segundo
Mounier (2004, p.29) “a pessoa está mergulhada na natureza. O homem é corpo
exatamente como é espírito, é integralmente ‘corpo’ e é integralmente ‘espírito’”.
Pelo que - ideia fundamental para o desenvolvimento da Doutrina Social da
Igreja - assim como devemos estar atentos às exigências do nosso espírito, também não
é lícito ao ser humano, como está dito na Constituição Pastoral Gaudium et Spes,
“desprezar o seu corpo, mas, ao contrário, deve estimar e honrar o seu corpo” (nº 14).
Não como fim último, mas como premência imediata.
Na concepção de Santo Tomás de Aquino (1980) o ser humano não é
contemplado só pela metade, mas sim na sua integridade e totalidade, isto é, dotado de
alma e corpo, de inteligência e vontade, soberano de si próprio. São Tomás considera o
ser humano como um espírito encarnado. Ele é o menor na hierarquia dos espíritos,
porque tem capacidade de desenvolver as atividades do espírito - entender e querer -
somente em virtude do corpo. Por isso, São Tomás tem um conceito altamente positivo
da corporeidade: é a carne a qual a alma comunica a vida. Graças ao corpo, o ser
humano ocupa um lugar no espaço e no tempo, desenvolve todas as atividades artísticas,
confecciona as próprias vestimentas, constrói casas etc.
S. Tomás considera o corpo tão necessário para a alma, a ponto de ela sozinha
não ser pessoa, apesar de poder subsistir por conta própria. A alma e o corpo não são
duas substâncias completas, unidas de forma acidental. Elas são duas substâncias
incompletas, unidas entre si tão profundamente a ponto de formar uma única substância.
A união substancial é devida à unicidade do ato de ser (actus essendi), que é em
primeiro lugar um ato da alma, e é comunicado ao corpo pela própria alma.
E por que a pessoa é valor absoluto?
O valor absoluto da pessoa está justamente no espírito. Se não está no espírito,
argumenta Mondin (2005), esse valor é totalmente gratuito e seria arbitrário considerá-
lo como absoluto. Se o homem é só corpo, apenas matéria, ele se torna necessariamente

a matéria no homem não são duas naturezas unidas, mas a união deles forma uma única natureza” (CEC,
nº 365).
62

uma realidade manipulável, instrumentalizável e, portanto, não pode ter valor absoluto,
mas valor instrumental; não mais simplesmente um fim, mas somente um meio.
Todos os humanismos que surgiram nos últimos séculos concordaram em dar à
pessoa valor absoluto, não instrumental. Porém o ser humano não é absoluto, o ser
supremo, o onipotente, o infinito, imortal. Ele é absoluto na ordem axiológica, não na
ordem ontológica. Como um ser mortal pode ser dotado de valor absoluto? Se sua
inteligência eleva o olhar e reconhece que seu próprio ser deriva de Deus. Descobre,
então, o fundamento do próprio valor. Sendo um valor absoluto com destino eterno, o
homem – cada indivíduo – é digno do máximo respeito, da maior solicitude, do mais
profundo amor. Cada um de nós deve ter grande estima por si próprio e pela pessoa dos
demais, porque somos todos, sem distinção alguma, tesouros preciosos (MONDIN,
2005). O homem é filho de Deus. Sendo Deus um valor absoluto, fundamento de todos
os valores, consequentemente também quem se torna participante de sua natureza divina
goza de sua mesma dignidade, de seu absoluto valor.
Segundo S. Tomás de Aquino, “persona designa aquilo que há de mais perfeito
no universo: Persona significat id quod est perfectissimum in tota natura” (apud
MONDIN, 1995). Somente do ser humano podemos afirmar que “é pessoa, não dizemos
do cão, do cavalo, do gato e nem mesmo das plantas e das pedras” (MONDIN, 1995,
p.25). Um pé de abóbora, por exemplo, é mais valioso que uma pedra, porque tem vida.
Um cachorro é mais valioso que o pé de abóbora, porque tem sensibilidade. Um homem
é infinitamente mais valioso que um cachorro, porque tem espírito. Para o conceito
cristão, o ser humano é uma pessoa e disto vem sua dignidade, de este ser imagem
daquele que é Divino.

Por ser imagem de Deus, o indivíduo tem a dignidade de pessoa: ele não é
apenas alguma coisa, mas alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de
doar-se livremente e entrar em comunhão com outras pessoas, e é chamado, por
graça, a uma aliança com o Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor
que ninguém mais pode dar em seu lugar (CEC, nº 357).

No Capítulo III do Compêndio da Doutrina Social da Igreja, podemos ler no


primeiro parágrafo:

A Igreja vê no homem, em cada homem, a imagem viva do próprio Deus;


imagem que encontra e é chamada a encontrar, sempre mais profundamente, a
plena explicação de si mesma no mistério de Cristo, imagem perfeita de Deus,
revelador de Deus ao homem e do homem a si mesmo (CDSI, nº 105).
63

1. 2. As características estruturais da pessoa

São Tomas de Aquino sustenta que “o termo pessoa indica o que de mais nobre
há no universo ou, mais especificadamente, um ser subsistente de natureza racional”
(1980, vol.1, q.29, a.3). Podemos dizer que o humanismo de S. Tomás é personalista, e
não socializante. De fato, toda a grandeza do homem provém do fato de ser pessoa, não
da sua pertença a esta ou àquela sociedade. A pessoa é o que há de mais perfeito no
universo. A razão e a natureza formam um ser que subsiste realmente por um próprio
actus essendi, constituindo a dignidade irredutível da pessoa humana, que possui “estas
carnes, estes ossos e esta alma, que são os princípios que individualizam o ser humano”
(TOMÁS DE AQUINO, 1980, vol.1, q.29, a.4). Desse modo, continua S. Tomás, pode-
se afirmar que a “forma de existir que constitui a pessoa é a mais digna de todas as
formas, sendo o que existe por si próprio” (idem).
À definição de S. Tomás podemos aproximar a de Boécio, na qual a pessoa é
uma “substância individual de natureza racional” (Naturae rationalis individua
substantia). Indivíduo, natureza e substância: estas são as três noções que emergem de
ambas as definições. Individual é aquilo que faz parte como característica ou qualidade
de um sujeito. Natureza é aquilo que é comum a todos os indivíduos. Já substância: “O
modo fundamental do ser é aquela da substância, ou seja, daquilo que existe em si e por
si” (VANNI, 1995, p.37; destaque no original).

Reunindo, portanto, as três definições (indivíduo, substância e natureza) com o


termo pessoa, nos referimos a uma substância individualizada de natureza
racional; nos confrontos da natureza humana, a pessoa é singular, única e
irrepetível. Fundamento último da unicidade e da irrepetibilidade é posse de um
ato de ser próprio (...). Tudo aquilo que a pessoa sabe, tudo aquilo que quer, tudo
aquilo que faz, deriva do próprio ato em virtude do qual é aquilo que é (...). O
que se entende com a expressão ato de ser? O princípio metafísico pelo qual uma
coisa é realmente; não a sua existência como homem, mas o seu ser
simplesmente e radicalmente, o ato ou perfeição basilar sobre a qual é fundada.
Certamente, o ser compete em verdade a todas as substâncias individuais
subsistentes, mas entre elas a pessoa mostra uma subsistência superior, porque
age ‘por si mesma’, o princípio das próprias ações; nos confrontos com os outros
indivíduos subsistentes, o seu ato de ser é possuído em um modo mais ‘próprio’
(LOMBO e RUSSO, 2005, p. 150).

De acordo com Vanni (1995), a noção de substância remete àquela da pessoa


como ser subsistente, isto é, como ser em si mesma e por si mesma. Não depende do
outro e não pode ser englobada pelo outro, justamente por esta conotação metafísica que
a torna um indivíduo único entre todos os outros indivíduos. Nem, muito menos, pode
ser englobada em entidades superiores que tendem a absorvê-la.
64

Com relação à subsistência da pessoa, é importante sublinhar as características


que derivam dela própria.
A primeira característica é a inalienabilidade. O ser da pessoa não pode ser
subtraído à pessoa ou assumido por outro. A pessoa, segundo uma definição clássica,
tem uma esfera de intangibilidade pertencendo a si própria e não é alienável em outro,
seja quem ou o que for. A pessoa não pode ser anulada por nada. Da inalienabilidade
da pessoa provém a sua irrepetibilidade. Uma pessoa é única na sua singularidade e,
assim, irrepetível. Não é nunca replicável. Também a dignidade da pessoa não deriva de
algo abstrato, mas da raiz metafísica deste ser subsistente que, enquanto tal, é singular,
concreto, real, individual.
A segunda característica é a completude. A pessoa não é tal em relação a um
todo, mas por si. A sua subsistência lhe confere o fato de não ser uma parte em um todo,
mas um todo em si mesma. Não é uma parte de alguma coisa. Escreve Tomás de
Aquino, inclusive, que o conceito de parte é contrastante com o de pessoa.
A terceira e a quarta características são a intencionalidade e a relacionalidade,
que indicam, respectivamente, a abertura para o mundo e para os outros (na capacidade
de estabelecer relações). Se a pessoa não se auto-possuísse não haveria nem a
possibilidade de abrir-se a fim de se doar aos outros.
Por fim, temos a característica da autonomia. O ser humano não é uma coisa,
uma realidade acabada, definida e realizada de uma vez por todas no momento em que é
colocada no mundo. Mais do que um ser natural (construído pela natureza), o ser
humano é um ser cultural (isto é, produto de seu próprio autocultivo6). Mais que um ser
que se possui, é um ser que espera. Mais que um fato realizado, o homem é uma reserva
de possibilidades. Ele é um projeto aberto, inteiramente a se definir e se realizar. As
pessoas agem por si e não como os outros ou seguindo apenas o instinto, mas utilizando
a racionalidade que lhe garante a autonomia, como substância inteligente, no juízo e na
escolha em liberdade, fazendo frequentemente a experiência de autonomia nas decisões
importantes, onde a pessoa é sozinha consigo mesma.

6
“O homem não é como as plantas e os animais, um puro produto das leis da natureza, e não é nem o
resultado de uma prodigiosa autotese, isto é, fez-se sozinho; mas é fruto de uma sapiente colaboração
entre natureza e cultura. Grande parte daquilo que nós possuímos e que fazemos desde criança não é fruto
da natureza, mas sim da cultura. Esta é a característica mais destacável, aquela que mais distingue o
homem dos animais e das plantas. Diversamente dos outros seres vivos, cujo ser é inteiramente
produzido, pré-fabricado pela natureza, o homem é em grande medida o artífice de si mesmo. Enquanto
as plantas e os animais sofrem, no ambiente natural em que se encontram, o homem é capaz de cultivá-lo
e de transformá-lo profundamente, adequando-o às próprias necessidades” (MONDIN, 1995, p.15).
65

Mondin (1980) ressalta outras características estruturais da pessoa.


Permanecendo ainda dentro da tradição de S. Tomás, Boécio e da escola neotomista, ele
sustenta que podemos

definir a pessoa como um indivíduo dotado de autonomia no ser, de


autoconsciência, de comunicação e de autotranscendência (...). Mais que os
outros elementos, o que ilustra melhor a grandeza da pessoa humana e faz
entendermos mais a fundo as suas características é a última, a
autotranscendência. De fato, é sobretudo na autotranscendência que se reconhece
a pessoa. A autotranscendência é sinal de espiritualidade, e a espiritualidade
pertence apenas ao homem. Em segundo lugar, na autotranscendência se enraíza
também aquela propriedade da personalidade sobre o qual tanto insistem os
filósofos do nosso tempo, a dinamicidade. A dinamicidade nos diz que a pessoa
humana, em si subsistente, não é um todo determinado desde o nascimento, e nos
deixa aberta uma miríade de possibilidades. Tanto é verdade que a pessoa é em
larga medida uma conquista (...). É próprio da autotranscendência incitar o
homem a ir além do que já é e possui, propondo-o sempre novos pontos de
chegada e novas conquistas (MONDIN, 1980, pp. 380-381).

A vontade e a afetividade humana surpreendem-nos pela sua insaciabilidade. A


nossa vontade não está nunca contente com o que realizou ou adquiriu. Há nela um
impulso potente para autotranscender-se que não se aplaca nunca. Continua a escolher e
a descartar, a fazer e a abandonar; dilata-se sobre todas as coisas e sobre todos os
projetos realizados, com uma soberania ilimitada. Em tudo o que faz, diz, pensa, quer e
deseja, a pessoa não está nunca satisfeita com os fins já alcançados. Pelo contrário, a
pessoa supera constantemente a si mesma não para se desfazer da própria realidade, mas
para realizá-la mais plenamente.
Afinal, o espírito tende ao infinito. O único modelo adequado à aspiração de
infinitude do homem encontra-se inscrito na própria espiritualidade. Um modelo
infinito: infinito como espírito, infinito como inteligência, infinito como vontade, como
liberdade, como bondade, como amor. O único modelo adequado que o homem deve
assumir, para levar à plenitude da própria pessoa, é Deus mesmo (MONDIN, 1995).
Emmanuel Mounier (2004) desenvolve suas teses sobre a concepção de pessoa
no ensaio O Personalismo. Em suma, Mounier afirma que:
1) Há antes de tudo a estrutura psicofísica do ser humano, que Mounier chama
“existência incorporada”, “existência encarnada” (p. 38), para evidenciar que entre
sujeito e corpo há uma profunda unidade: eles dão origem a uma mesma e única
experiência. “Não posso pensar sem ser e ser sem o meu corpo: por meio dele eu estou
exposto a mim mesmo, ao mundo, aos outros; por seu meio eu fujo da solidão de um
pensamento que seria apenas o pensamento do meu pensamento. Negando-me a
66

conceder uma completa transparência para mim mesmo, lanço-me continuamente para
fora de mim, na problemática do mundo e na luta do homem” (p. 39; destaque no
original).
2) Depois, a transcendência da pessoa com relação à natureza: “O homem caracteriza-se
por uma dupla capacidade de destacar-se da natureza: é o único que conhece este
universo e o engole e o único que o transforma, ainda que seja o menos aguerrido e o
menos potente de todos os grandes seres animados” (pp. 32-33).
3) Em seguida, há a abertura em direção aos outros e em direção ao mundo através da
comunicação: “O primeiro movimento que revela um ser humano na primeira infância é
um movimento em direção aos outros: a criança dos seis aos doze meses, saindo da vida
vegetativa, descobre-se a si mesma nos outros. É somente mais tarde, perto dos três
anos, que haverá a primeira onda de egocentrismo consciente (...). A pessoa, por sua
vez, através do movimento que a faz existir, expõe-se, porque é por natureza
comunicável e é antes a única a sê-lo” (pp. 48-49). A pessoa é capaz de descentrar-se
para tornar-se disponível ao outro, esvazia-se de todo egocentrismo, narcisismo, e torna-
se disponível ao outro.
4) A pessoa também se caracteriza pelo dinamismo: “A vida da pessoa é a busca até a
morte de uma unidade pressentida, cobiçada e que não se realiza nunca” (p. 72).
5) Todas as pessoas têm uma vocação própria: “Cada pessoa tem um significado tal que
não pode ser substituída no lugar que ocupa no universo das pessoas” (p. 73).
6) E cada pessoa possui a liberdade: Porém, “não é ligada indissoluvelmente ao ser
pessoal como uma condenação (Sartre), mas lhe é proposta como um dom: ele pode
aceitá-la ou rejeitá-la” (p. 13).
Por causa dessas características, Mounier frequentemente afirma que “a pessoa
não é um objeto (...). A pessoa não é o mais maravilhoso objeto do mundo, objeto que
conhecemos de fora como todos os outros. É realidade que conhecemos e que,
simultaneamente construímos de dentro” (MOUNIER, 2004, pp. 18-19). A pessoa é o
indivíduo consciente de si próprio, senhor de seus atos, capaz de se doar a outrem,
manifestando experiência de vida e sem se esvaziar, mas pelo contrário recebendo
contribuição do outro se construindo. “Outros querem fazer das pessoas objetos
manejáveis e utilizáveis, quer sejam para o filantropo, os pobres, quer para o político, os
eleitores; para este, os filhos, para aquele, os operários” (MOUNIER, 2004, p. 60).
As concepções de pessoas-objetos são combatidas: “o primeiro ato da pessoa
deve ser, pois, a criação com outros duma sociedade de pessoas, cujas estruturas,
67

costumes, sentimentos e até instituições estejam marcadas pela sua natureza de pessoa”
(MOUNIER, 2004, p. 65).
Pela capacidade de abertura ao outro, Mounier opõe o ser humano como
indivíduo e o ser humano como pessoa. O indivíduo é o ser humano físico, parte do
universo, fechado em si mesmo, opondo-se a qualquer outro indivíduo. Já a pessoa é o
ser humano espiritual, transcendente ao universo por sua liberdade, aberto a todo ser
capaz de entrar em comunhão com outras pessoas, para tanto. Mounier (2004) escreve:

O individualismo é um sistema de costumes, de sentimentos, de ideias e de


instituições que organiza o indivíduo partindo de atitude de isolamento e de
defesa. Foi o individualismo que constituiu a ideologia e a estrutura dominante
da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX. O homem
abstrato, sem vínculos e nem comunidades naturais, deus supremo no centro de
uma liberdade sem direção e sem medida, sempre pronta a olhar os outros com
desconfianças, calculismo ou reivindicações em relações aos outros, ao lado de
instituições reduzidas a assegurar a convivência mútua dos egoísmos. Ou o seu
melhor rendimento pelas associações viradas para o lucro: eis a forma de
civilização que vemos agonizar, sem dúvida uma das mais pobres que a história
já conheceu. É a própria antítese do personalismo e o seu mais direto adversário
(p. 61).

Mounier continua essa oposição:

Mas enganar-nos-íamos se imaginássemos a individualidade como esse simples


abandono passivo ao fluxo superficial das minhas percepções, das minhas
emoções e das minhas reações. Há na individualidade uma exigência mais
mordente, um instinto de propriedade que é em relação ao domínio de si o que a
avareza é para a verdadeira posse. Este instinto dá como atitude primeira ao
indivíduo que lhe cede invejar, reivindicar, apossar-se e depois firmar em cada
propriedade que assim obteve uma fortaleza de segurança e de egoísmo para
defendê-la contra as surpresas do amor. Dispersão, avareza, eis as duas marcas
da individualidade. A pessoa é domínio e escolha, é generosidade. Ela é, pois, na
sua orientação íntima, polarizada precisamente ao contrário do indivíduo.
(MOUNIER, 1967, p. 87 e 88, destaque nosso).

Mas termina por afirmar que:

Pela experiência interior, a pessoa surge-nos como uma presença voltada para o
mundo e para outras pessoas, sem limites, misturada com elas numa perspectiva
de universalidade. As outras pessoas não limitam, fazem-na ser e crescer. Não
existem senão para os outros, não se encontra senão nos outros. A experiência
primitiva da pessoa é a experiência da segunda pessoa. O tu e, dentro dele, o nós,
precede o eu, pelo menos o acompanha (MOUNIER, 2004, p.64).

1. 2.1. Pessoa e sociabilidade

O ser humano possui outra dimensão natural: a sociabilidade. A sociabilidade é


ligada estritamente à autotranscendência. O ser humano sente uma exigência
68

imprescindível de encontrar-se em relação com outros seres de sua própria espécie e


sente um sentimento particular de satisfação quando consegue realizar essa sua
disposição. A pessoa fundamentalmente só não existe. Ela está, por sua natureza,
destinada a tornar-se o “eu” de um “tu” (GUARDINI, 1963). A sociabilidade é a
consequência imediata das faculdades mais ligadas ao ser do homem, que são o
conhecimento, a corporeidade, a linguagem, a liberdade e o amor. O conhecimento
coloca o ser humano em contato com todo o mundo que o circunda. A linguagem
permite-lhe trocar com os outros as suas ideias próprias, os próprios sentidos, os
próprios projetos. O corpo dá-lhe a possibilidade de trabalhar, se divertir etc., junto com
os outros. O amor e a liberdade colocam-no à disposição para dar-se aos outros e para
fazê-los participantes das próprias coisas e do próprio ser.
A pessoa que se transcende vai em direção ao mundo, aos outros, a Deus. Como
escreveu Gianfranco Morra (1971, p. 253) “a pessoa é uma entidade em tríplice
relacionamento dialógico com a natureza, com o próximo e com Deus”. Portanto, a
estrutura social, longe de ser um estado provisório ou o resultado de um contato, é um
dado original da natureza humana, uma estrutura a priori que funda e constitui toda
sociedade concreta.
O ser humano não nasce uma pessoa pronta, acabada, definitiva. Ela vai se
moldando conforme seus relacionamentos: consigo mesmo, com os outros, com as
coisas, com a natureza, e com transcendente. O ser humano “é também um ser social,
que só na companhia de seus semelhantes encontra as condições necessárias para o
desenvolvimento de sua consciência, racionalidade e liberdade, características que o
distinguem de outros animais” (ÁVILA, 1993, p. 353).
Para Mounier (2004) é necessária a comunicação, gerando comunhão autêntica
com outras pessoas. A comunhão depende muito da disponibilidade do sujeito em dar
um passo na direção do outro, em ir ao encontro aberto. Essa comunicação é o que dá
acesso ou abertura ao outro. A pessoa sempre terá necessidade de comunicar: seja no
olhar, através de gestos, palavras, uma ação conjunta: “quando a comunicação se
enfraquece ou corrompe perco profundamente eu próprio: todas as lacunas são uma
falha nas relações com os outros” (MOUNIER, 2004, p. 64).
69

1.2.2. Razão, Liberdade e a Lei Natural

A pessoa possui razão e liberdade. E são justamente esses dois elementos


incorruptíveis, imortais - manifestos da dimensão espiritual -, que asseguram ao ser
humano uma dignidade axiológica incondicional, um valor absoluto. O ser humano tem
a capacidade do conhecimento e por esta capacidade de razão, inteligência,
entendimento, é superior aos animais, pois “o que em nós se avantaja, o que nos faz
homens e nos distingue do animal é a razão ou a inteligência” (RN, nº 5), e que
justamente por estes fatores de razão, consciência e liberdade, o homem possui não
somente direitos inalienáveis mas deveres morais (ÁVILA, 1993). Na mesma linha,
Maritain (1967) afirma que o homem não é somente uma porção de matéria, um
elemento individual na natureza como um átomo, um galho, uma mosca ou um elefante,
mas é um indivíduo que se conduz e se sustenta pela inteligência e pela vontade.
Diferentemente dos demais seres criados, o ser humano pode conhecer a verdade
sobre as coisas. “A natureza intelectual da pessoa humana se aperfeiçoa e deve ser
aperfeiçoada pela sabedoria. Esta atrai de maneira suave a mente do homem à procura e
ao amor da verdade e do bem” (GS, nº 15). Dizia Santo Agostinho (1990, p. 663): “Que
coisa o homem deseja com mais força do que a verdade? (Quid enim fortius desiderat
anima quam veritatem?)”. A partir deste conhecimento é que o ser humano se faz um
ser único, pessoal. Não há outro animal que tenha consciência de possuir conhecimento,
pois “participando da luz da inteligência divina, com razão pensa o homem que supera
pela inteligência o universo” (GS, nº 15), pois os animais têm sentido, mas sentem
diferente do ser humano, só o ser humano sabe que sente, que ouve, que vê, e pode
apreciar as realidades que o circundam. A característica do existir peculiar do homem é
ser transparente a si mesmo, consciente de si e, em si, de todo o horizonte do real
(GIUSSANI, 2009). A interpretação do sentido dos objetos, das ações, dos gestos, das
atitudes é essencial para o homem. Assim, a razão é a capacidade que a pessoa tem de
conhecer, no âmbito da inteligibilidade.
Entretanto, a razão dá um passo a mais: é igualmente a abertura para penetrar e
abraçar sempre mais a realidade, no sentido teleológico, de finalidade. Giussani (2009)
afirma que a razão do ser humano se exprime em certas perguntas: “qual é o significado
último da minha existência?” “Por que existem a dor e a morte?” “Por que no fundo,
vale a pena viver?”. Essas perguntas se enraízam profundamente na pessoa: são
inextirpáveis. No impacto com a realidade elas aparecem. São perguntas que esgotam
70

toda a energia de busca da razão, ou seja, que exigem uma resposta total que abranja
todo o horizonte da razão, esgotando toda a categoria da possibilidade. A razão tem a
capacidade de exprimir a própria natureza profunda na interrogação última, é o lócus da
consciência que o homem tem da existência. Essas perguntas inevitáveis estão em cada
pessoa e dentro do seu olhar para todas as coisas. O ser humano é aquele nível da
natureza em que se pergunta: “Por que existo?” A pessoa, diz Giussani, é aquela
minúscula partícula que exige um significado, uma razão, a razão.
E pelo simples fato de viver a pessoa coloca essa pergunta, porque é a raiz da
sua consciência do real. E não apenas coloca a pergunta, como também a responde,
orientando inclusive nossas ações, e afirmando um “último”.

Porque pelo simples fato de viver cinco minutos, um homem afirma a existência
de um quid pelo qual vale a pena, no fundo, no fundo, viver aqueles cinco
minutos. É o mecanismo estrutural da razão, é uma implicação inevitável. Como
o olho, ao se arregalar, descobre formas e cores, do mesmo modo a razão, pelo
simples fato de pôr-se em movimento, afirma um “último” uma realidade última
na qual tudo consiste; um destino último, sentido de tudo. Por isso, àquelas
perguntas constitutivas nós damos uma resposta: ou consciente e explicitamente
ou prática e inconscientemente (GIUSSANI, 2009, p.91).

Essa resposta só pode ser insondável. Giussani (2009) diz que somente a
existência do mistério é adequada à estrutura de mendicância que o ser humano é. Ele é
insaciável mendicância e aquilo que lhe corresponde é algo que não é ele mesmo, que
não pode dar a si mesmo, que não consegue medir, que não sabe possuir. Somente a
hipótese de Deus, somente a afirmação do mistério como realidade existente além da
nossa capacidade de reconhecimento corresponde à estrutura original do homem.
Além disso, a capacidade intelectual de cada ser humano lhe confere a
possibilidade de descobrir e de desvendar o núcleo mais secreto de que dispõe: a lei da
consciência, inserida no seu próprio ser. Ou a voz da razão. Trata-se do fato de que há
na pessoa algo como uma voz que diz “bem” e diz “mal”. Essa consciência traz a
percepção do bem e do mal. É o que São Paulo define como “a lei escrita em nossos
corações” (cf. Rm 2, 15). Para identificar o que é verdadeiro, certo e bom, somente a
razão tem condições de conhecer, de ter noções corretas, de estudar, de entender, de
ponderar, de refletir e de avaliar. A atração natural que a pessoa sente pelo bem e pela
verdade, se corretamente conduzida, permite-lhe chegar à plenitude da felicidade.
Por exemplo: atos de coragem, paciência nas provas e dificuldades da vida,
compaixão pelos fracos, moderação no uso dos bens materiais, atitude responsável em
relação ao meio ambiente, dedicação ao bem comum etc. são alguns tipos de
71

comportamentos humanos reconhecidos como expressão de excelência na maneira de o


ser humano viver e realizar a sua humanidade. Já alguns comportamentos são
universalmente percebidos como objetos de reprovação, como assassinatos, furto,
mentira, inveja, cólera, avareza etc. (MONDIN, 1995).
Mondin também afirma que a regra de ouro “não faças a ninguém o que não
queres que te façam” se encontra, de alguma forma, nas diversas tradições culturais. É o
reconhecimento que as grandes regras éticas não somente se impõem a um grupo
determinado, mas valem universalmente para cada indivíduo e para todos os povos.
Enfim, muitas tradições reconhecem que esses comportamentos morais universais são
requeridos pela própria natureza do ser humano – exprimem a maneira pela qual a
pessoa deve se inserir, de modo criativo e harmonioso, em uma ordem que a supere e dê
sentido à sua vida.
Todo ser humano que chega à consciência e à responsabilidade faz a experiência
de um apelo interior de cumprir o bem. Ele descobre que é fundamentalmente um ser
moral, capaz de perceber e de exprimir a interpelação que se encontra no interior de
todas as culturas: é necessário fazer o bem e evitar o mal. É sobre esse preceito que se
fundamentam todos os outros preceitos do que é conhecido como lei natural.
Lei natural: a lei moral inscrita nos corações das pessoas e da qual a humanidade
toma consciência à medida que avança na história, a partir da observação e da reflexão
sobre a condição humana. Na diversidade das culturas, a lei natural liga os homens entre
si, impondo princípios comuns (CDSI, nº 141). Ou seja, apela ao que há de
universalmente humano em cada indivíduo.
Em suma, a lei natural apoia-se nas seguintes pressuposições: 1) Uma constante
e profunda unidade da humanidade, unidade de consciência até no último e menor dos
seres humanos; e 2) A aptidão da inteligência humana para perceber a natureza
essencial das coisas, a realidade objetiva.
A lei natural “não é senão a luz do intelecto infusa por Deus em nós, graças à
qual conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar. Esta luz ou esta lei deu-a
Deus ao homem na criação” (CDSI, nº 140). Esses preceitos fundamentais, objetivos e
universais, têm o chamado de fundamentar e inspirar o conjunto de determinações
morais, jurídicas e políticas que regulem a vida das pessoas e da sociedade. Os
preceitos, enfim, constituem uma instância crítica permanente e garantem a dignidade
das pessoas diante das diversas ideologias.
72

Giussani (2009), por sua vez, propõe um caminho que nasce do desejo que está
no coração de toda pessoa. Considera que todos os seres humanos têm em seu coração,
isto é, no íntimo de sua personalidade, entendida em toda a sua complexidade, um
conjunto de exigências constitutivas, cuja percepção denomina de experiência
elementar, tais como os desejos de realização, de felicidade, de beleza, de justiça, de
satisfação etc.
Essas exigências de beleza, de bem, de verdade, de justiça, de felicidade, de
amor, dentre outras, fundamentam e norteiam – cada qual com sua especificidade – a
atuação do homem no mundo, inserindo-o na concretude da vida e nessa abertura à
totalidade. A experiência elementar pode ser expressa de diversas formas, conforme os
temperamentos e as culturas influenciam-na, mas é mais do que o produto de uma
determinada cultura, pois suas expressões são documentadas e encontradas desde a
filosofia antiga e também na literatura universal (PETRINI, 2012). É por essa razão, diz
ainda Petrini, que a leitura de obras filosóficas ou obras de arte de tempos passados
despertam nosso interesse ainda hoje, são capazes de nos comover, “pois algo presente
nelas tem a capacidade de falar ao coração do homem e da mulher de hoje, assim como
falou aos de seu tempo” (p. 17).
A experiência elementar sempre aponta para a incompletude estrutural do ser
humano e para a sua necessidade de se completar, de se realizar, porque o desejo
humano tende ao infinito.
As exigências elementares fazem parte da subjetividade da pessoa, que pode
procurar livremente as respostas que pareçam mais de acordo, inclusive as
contraditórias ou absurdas. Seja como for, são como uma centelha que põe em ação o
motor humano; antes delas não ocorre nenhum movimento, nenhuma dinâmica humana.
Qualquer afirmação de uma pessoa só pode ser feita tendo por base esse núcleo de
evidências e exigências originais (GIUSSANI, 2009). E então a pessoa começa

a procurar pão e água, e começa a procurar trabalho, busca uma mulher, e


começa a procurar uma cadeira mais adequada ou uma acomodação mais
decente, ele se interessa em como alguns tem e outros não, ele se interessa em
por que alguns são tratados de certa maneira e ele não, exatamente por causa da
expansão, aumento e amadurecimento desses impulsos que ele tem dentro de si
e que a Bíblia engloba no termo “coração” (GIUSSANI, 2001, p. 169).

Como cada um responde à experiência elementar está a dispor do arbítrio


individual. Ela desperta a energia da inteligência e a força da liberdade para avaliar e
para escolher, entre uma pluralidade de opções, a que mais corresponde (PETRINI,
73

2012). O bem moral corresponde ao desejo profundo da pessoa que tende naturalmente
e espontaneamente para o que a realiza plenamente, para o que a permite atingir a
felicidade.
Mas o ser humano sempre pode escolher ou agir de maneira contrária ao bem
que ele reconhece. A natureza humana é um elemento contraditório, pois indica
caminhos que nem sempre são os da sua vontade, ainda que sempre sejam os mais
sábios. O ser humano pode ser o construtor e o destruidor do mundo que lhe pertence,
ora dando exemplos de grandeza de espírito e obras, ora dando demonstrações de
mesquinharia e de cruéis atentados terroristas. Ele pode negar se superar. Isso graças ao
pecado original, ponto-chave também para a Doutrina Social da Igreja: “A admirável
visão da criação do homem por parte de Deus é inseparável do quadro dramático do
pecado das origens (...). Na raiz das lacerações pessoais e sociais, que ofendem em
vária medida o valor e a dignidade da pessoa humana, encontra-se uma ferida no
íntimo do homem” (CDSI, nº 115-116; destaques no original). Ferida que faz parte da
constituição estrutural originária de cada pessoa e é transmitida.

A transmissão do pecado original é um mistério que não somos capazes de


compreender plenamente. Sabemos, porém, pela Revelação, que Adão havia
recebido a santidade e a justiça originais, não exclusivamente para si, mas para
toda a natureza humana: ao cederem ao Tentador, Adão e Eva cometem um
pecado pessoal, mas este pecado afeta a natureza humana, que vão transmitir em
um estado decaído (CEC, nº 404; destaque no original) 7.

O pecado cometido não é apenas para com Deus, mas também para “consigo
mesmo, com os demais homens e com o mundo circundante” (CDSI, nº 116). O pecado
é, portanto, na definição do CEC, uma falta contra a racionalidade, contra a verdade e
contra a consciência (Cf. nº 1849). Ato profundamente individual, mas que tem reflexos
na sociedade.
Por causa dele, ao mesmo tempo em que preza a solidariedade e as relações
sociais, a pessoa pode fazer uso negativo do poder, pode dominar o outro. Daí a
existência de roubos, assassinatos, mentiras. Ou de miséria, fome, guerras. De

7
“A doutrina da Igreja sobre a transmissão do pecado original adquiriu precisão sobretudo no século V,
em especial sob o impulso da reflexão de Santo Agostinho contra o pelagianismo, e no século XVI, em
oposição à Reforma protestante. Pelágio sustentava que o homem podia pela força natural da sua vontade
livre, sem a ajuda necessária da graça de Deus, levar uma vida moralmente boa: limitava assim a
influência da falta de Adão à de um mau exemplo. Os primeiros Reformadores protestantes, ao contrário,
ensinavam que o homem estava radicalmente pervertido e sua liberdade anulada pelo pecado original:
identificavam o pecado herdado por cada homem com a tendência ao mal (concupiscentia), que seria
insuperável. A Igreja pronunciou-se especialmente sobre o sentido do dado revelado no tocante ao pecado
original, no segundo Concílio de Oranges, em 529, e no Concílio de Trento, em 1546” (CEC, nº 406).
74

desigualdade social e muitas vezes de indiferença nas relações. Há, sim, uma realidade
dura, e que não é esquecida pelo pensamento católico.
No Catecismo da Igreja Católica também podemos ler: “A Sagrada Escritura, na
narrativa da morte de Abel por seu irmão Caim revela, desde os primórdios da história
humana, a presença no homem da cólera e da inveja, consequências do pecado original.
O homem tornou-se inimigo do seu semelhante” (nº 2259). Em Evangelium vitae (EV),
João Paulo II afirma que o ser humano não está predestinado para o mal, embora possa
escolher fazê-lo (cf. nº 8). S. Tomás de Aquino (1980), por sua vez, diz que escolher o
mal é o preço de uma liberdade enfraquecida pelo pecado e que pode estar obscurecida
pelos condicionamentos culturais e históricos que podem influenciar negativamente a
vida moral pessoal8.

Quanto, porém, aos outros preceitos secundários, a lei natural pode ser destruída
do coração humano, seja por persuasões más, como se insinuam erros a respeito
das conclusões necessárias nas ciências especulativas, seja por maus costumes e
hábitos corruptos, assim como se deu a alguns que não consideravam pecado os
roubos ou os vícios contra a natureza (TOMÁS DE AQUINO, 1980, vol. 1, q.
94, a. 6).

O ser humano é tentado pelo pecado que, “como uma animal feroz, se agacha à
porta do seu coração, à espera de lançar-se sobre a presa” (EV, nº 8). A questão,
portanto, volta-se sempre para uma luta permanente entre o Bem e o Mal, na obediência
ou desobediência das leis naturais.
De toda forma, não se pode isolar a universalidade do pecado da universalidade
da salvação:

A doutrina da universalidade do pecado, todavia, não deve ser desligada da


consciência da universalidade da salvação em Jesus Cristo. Se dela isolada, gera
uma falsa angústia do pecado e uma consideração pessimista do mundo e da
vida, que induz a desprezar as realizações culturais e civis dos homens (CDSI, nº
120; destaque no original).

Pois como podemos ler na Gaudium et spes: “(...) imagem de Deus invisível, Ele
é o homem perfeito, que restituiu aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada
desde o primeiro pecado” (nº 22).
Além disso, se é verdade que a lei natural está escrita no coração humano, é
igualmente verdade que a lei natural não é um código pronto, “impresso num rolo de
papel depositado na consciência de todos” (MARITAIN, 1967, p. 60). As pessoas a

8
Não é outra coisa o que Bento XVI chamou a atenção durante todo o seu pontificado quando falava do
relativismo generalizado, utilizando até a expressão “ditadura do relativismo”.
75

conhecem em graus variados, errando muitas vezes. Afinal, como diz São Paulo:
“Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço” (Rm 7, 19). É
um conhecimento que vai amadurecendo, que vai se educando. De toda forma, “mesmo
que alguém negue até os seus princípios, não é possível destruí-la nem arrancá-la do
coração do homem. Sempre torna a ressurgir na vida dos indivíduos e das sociedades”
(CEC, nº 1958).
Além do mais, há algo no ser humano que se vincula à necessidade de buscar
sua plenitude e que experimenta como imperativo de consciência, de tal maneira que,
quando age contra ela, ressente-se dessa violação. Mesmo quando a pessoa está
anestesiada ou abafa essa consciência, essa necessidade de plenitude subsiste,
independentemente dos aspectos positivos ou negativos que o vão afetar.
A consciência da pessoa, sua liberdade e sua responsabilidade são valores que a
ajudam a atingir esse seu fim último. A pessoa é a única entre todos os seres que goza
da liberdade, isto é, de ser o artífice das próprias ações e, em grande parte, de sua
própria personalidade, do próprio projeto de humanidade. A liberdade é a faculdade de
decidir, soberamente, assim ou assim, diante de várias possibilidades, sem ser coagido a
ir numa certa direção por qualquer determinismo, psíquico ou social, ou quando já
subsistem todas as condições requeridas para agir. É o controle soberano sobre a
situação, de forma que a vontade tenha em suas mãos o poder de fazer pender a agulha
da balança de um lado ou de outro (MONDIN, 2005).
Podemos entender que o homem será aquilo que ele quiser ser, pois por sua
própria natureza pode desenvolver-se cada vez mais buscando uma perfeição naquilo
que desenvolve. Os animais, por exemplo, agem sempre da mesma forma em qualquer
lugar do planeta. Eles estão programados para ser assim, pois os animais “não se
governam a si mesmos; são dirigidos e governados pela natureza, mediante um duplo
instinto, que, por um lado, conserva a sua atividade sempre viva e lhes desenvolve as
forças; por outro, provoca e circunscreve ao mesmo tempo cada um de seus
movimentos” (RN, nº 5). São regidos por instintos de preservação, defesa e propagação
da espécie, “e são incapazes de transpor esses limites, porque apenas são movidos pelos
sentidos e cada objeto particular que os sentidos percebem” (RN, nº 5).
A natureza humana, por sua vez, é bem diferente. O ser humano é criativo,
introspectivo e prospectivo, sujeito de suas vontades e desejos, capaz de transformar o
meio a sua volta, o que o faz ser único. Claro que a pessoa não pode impedir a ação da
lei da natureza, mas pode interferir e adaptar-se a ela, pode até usar esta mesma força a
76

seu favor. Na pessoa “reside em sua perfeição, toda a virtude da natureza sensitiva”
(RN, nº 5) que o torna capaz de sentir prazer em gozar dos objetos físicos e corpóreos,
não apenas por instinto. Se por um lado nos animais o instinto os torna iguais, porque
sua natureza os faz repetir sempre as mesmas ações, a natureza humana “estabeleceu
entre os homens diferenças tão multíplices como profundas, diferenças de inteligência,
de talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde nasce
espontaneamente a desigualdade de condições” (RN, nº 11).
No ato livre confluem as duas máximas faculdades do espírito humano: o
intelecto e a vontade. Trata-se de um ato volitivo (que procede da vontade) e consciente
(que procede da inteligência); o que se realiza mediante o ato livre recebe o ser não da
natureza e nem diretamente de Deus, mas do homem. Graças à liberdade, o ser humano
torna-se absolutamente soberano de si mesmo e até certo ponto do mundo, e é
justamente onde se manifesta mais claramente sua soberania e dignidade. O ser humano
se eleva incessantemente além dos limites de espaço e tempo que o circundam; avalia e
julga o presente e o passado e pode também programar o seu futuro (MONDIN, 1995).
No fim, afirma Mondin (2005, p. 93), “cada um de nós será aquilo que escolheu ser”.
Em última instância, o ser humano pode ser livre diante do pecado. Pode e deve
dominá-lo.
Porém liberdade jamais significa licença. Ser livre, agir como ser racional,
significa seguir a razão. É usando a liberdade que o homem pratica atos moralmente
bons, construtivos para si próprio e para os outros. O bem e o mal são reconhecidos,
prática e concretamente, pela consciência - à luz da razão -, que leva a assumir a
responsabilidade do bem realizado e do mal cometido. A pessoa é capaz de conhecer e
interiorizar as finalidades que pretende atingir e avaliar, em função delas, o que é bom
ou mau para si.
O filósofo laico Luc Ferry (2008, p. 99 apud Petrini) diz: “Eu não invento a
verdade, a justiça, a beleza ou o amor, eu os descubro em mim mesmo, mas como algo
que me ultrapassa e que, por assim dizer, me é dado a partir de fora – sem que eu possa
identificar o fundamento último dessa doação. Subsiste um mistério da transcendência
que não há como assimilar” (destaque no original).
A liberdade renega-se a si mesma, se autodestrói, quando deixa de reconhecer e
respeitar a sua ligação com o bem. Para o pensamento católico, todas as vezes que a
razão se fecha às evidências de um bem objetivo, suas referências para as decisões não
são mais o bem e o mal, mas apenas a opinião ou, pior, seu interesse egoísta.
77

Ou seja, as pessoas são capazes de discernir as orientações fundamentais de um


agir moral conforme a própria natureza do ser humano e de exprimi-las de modo
normativo sob a forma de preceitos ou mandamentos. A verdadeira liberdade é aquela
que permite a cada pessoa agir como convém ao ser humano, cujo anseio é a felicidade.
A integridade, a honradez, a coerência entre o modo de ser e de agir são o caminho para
alcançar o Bem e a Verdade. Assim, a pessoa será tanto mais livre quanto mais exercitar
e praticar esses valores, até atingir sua plenitude. A liberdade é a realização total de si,
experiência de satisfação. E a pessoa é verdadeiramente livre quando obedece a sua
experiência elementar e segue a lei natural.
Em suma, diz Maritain (1967, p. 59), “há uma ordem ou disposição que a razão
humana pode descobrir, e segundo a qual a vontade humana deve agir a fim de se por de
acordo com os fins necessários do ser humano. A lei não escrita não é outra coisa”.
Como diz o Catecismo da Igreja Católica, “a liberdade é o poder, baseado na
razão e na vontade, (...) de praticar atos deliberados. Pelo livre-arbítrio, cada qual dispõe
sobre si mesmo. A liberdade é no homem uma força de crescimento e amadurecimento
na verdade e na bondade. A liberdade alcança sua perfeição quando está ordenada para
Deus, nossa bem-aventurança” (nº 1731).

2. A dignidade humana

De todo este conjunto de fatores, dons e potencialidades que caracterizam a


pessoa é que resulta sua dignidade: ser animada por um espírito livre, racional,
consciente, social, sujeito de direitos e deveres. E sua dignidade deve ser absoluta, não
pode haver imposição de condições para ser digna, pois a dignidade não pode jamais
depender de qualquer tipo de qualificação, quer seja por raça, credo, condição
socioeconômica, educação ou cultura. Esta dignidade de pessoa humana deve ser
respeitada independente da condição em que viva o ser humano: “Ainda mesmo que o
homem se avilta pelo vício transformando-se em um alcoólatra, corrupto e criminoso,
não perde a sua dignidade essencial, e a ela se deve o respeito, que é apanágio de todas
as criaturas humanas” (ÁVILA, 1993, p. 353).
Esta realização da dignidade humana se dá no espírito. Portanto, somente
quando valorizamos esta dimensão transcendente humana – em nós e no outro – é que
encontramos a plena realização como seres humanos, nos fazendo diferentes de
qualquer outra criatura.
78

O valor absoluto do homem está no Espírito. Se não se situa o valor no Espírito,


é totalmente gratuito e arbitrário considerar o homem um valor absoluto. Se o
homem é só corpo, só matéria, ele se torna necessariamente uma realidade
manipulada (...) e assim, todos os crimes podem ser praticados contra ele, mesmo
os mais monstruosos e brutais, donde podemos matá-lo não somente tirando-lhe
a vida, mas matá-lo em sua dignidade com a fome, a desonra, com a injúria,
negando-lhe a justiça e constrangendo-o ao desemprego (MONDIN, 1995, p. 27
e p. 45).

Se não conseguimos encontrar este valor absoluto no homem, então não vemos
sua dignidade e assim ele torna-se passível de humilhações e da própria escravidão,
conforme afirma o papa João Paulo II: “o ser humano, quando não é visto e amado na
sua dignidade de imagem viva de Deus (cf. Gn 1, 26), fica exposto às mais humilhantes
e aberrantes formas de instrumentalização, que o tornam miseravelmente escravo do
mais forte” (Christifideles laici, [CL] nº 5). Por isso “o homem vale não por aquilo que
‘tem’ – mesmo que ele possuísse o mundo inteiro –, mas por aquilo que ‘é’. Não são
tanto os bens do mundo que contam, mas o bem da pessoa, o bem é a própria pessoa”
(CL, nº 37). Portanto, ajudar as pessoas a descobrirem seu eu pessoal e sua dignidade,
que deve ser inviolável, é tarefa essencial de cada um.
O ser humano possui uma dignidade fixa e constitutiva mesmo de seu ser, “que
lhe corresponde a nível ontológico de uma singular espécie, superior às demais por sua
condição original ou inata (todos os homens e mulheres nascemos pessoas, igualmente
pessoas, ainda que não pessoas iguais), independentemente de sua cooperação, de seus
méritos e deméritos” (RODRIGUEZ, 1982, p.10). É a dignidade intrínseca.
Esta asserção é metafísica, porque

a dignidade da pessoa não é fundada diretamente sobre como ela age, mas sobre
aquilo que ela é enquanto tal (...) independentemente de manifestar-se menos que
sua potencialidade. Desta afirmação deriva que o valor da vida humana ou da
pessoa humana é incomensurável: o seu valor intrínseco não depende e não é
acrescido por outra qualidade, nem é àquele comparável (LOMBO e RUSSO,
2005, p. 159).

Isso significa dizer que o valor de cada um de nós não depende de fazer as
escolhas certas, ou ainda, que nós não podemos ser definidos ou determinados pelo
“sucesso” ou pelo “acerto” no trabalho, nas relações, como muitas vezes pensamos e
mesmo agimos. Ou ainda: nem mesmo o mais odioso homicida, criminoso, perde a sua
dignidade pessoal.
Assim, a dignidade da pessoa não é uma criação constitucional, pois ela é um
desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal
79

como a própria pessoa. Independentemente de possuir fundamento teocêntrico ou


antropocêntrico, a dignidade será inexoravelmente compreendida como uma “qualidade
intrínseca da pessoa humana” (SARLET, 2004, p. 41) e que por isso possui uma série
de direitos.
Como assinala Doig (1994, p. 38),

os povos da antiguidade foram descobrindo com suas próprias luzes e razão a lei
que o ser humano tem gravada em sua natureza, organizando-a de diversas
maneiras em códigos ou referências, nos quais descobrimos os primeiros
esforços em favor do homem, desde a racionalidade natural. Assim, por
exemplo, temos o Código de Hamurabi, da Babilônia e da Assíria. (...) E temos
também o Código de Manu, da Índia, que consiste em uma coleção de preceitos
religiosos, morais, jurídicos e políticos. Trata-se de formas jurídicas elementares,
que nem sempre produzem os efeitos que a consciência jurídica atual exige, mas
que são, embora incipientes e insuficientes, as primeiras expressões de defesa da
dignidade e dos direitos do ser humano.

Há que se lhe reconhecer também uma “dignidade adquirida, adventícia, devida


a seu comportamento individual ou social: sua pessoal dignificação ou promoção,
quando assume comportamento decoroso ou digno de seu ser e de suas possibilidades;
quando cumpre o preceito de Píndaro: ‘chega a ser o que és’ (naquilo que podes e deves
ser!). Como dia o ditado: ‘melhor é fazer-se nobre do que nascer nobre’”
(RODRIGUEZ, 1982, p.10). Esta é chamada de dignidade extrínseca.
O tema da dignidade da pessoa recebe tratamento destacado na filosofia
kantiana, sendo que esse pensamento apresenta influência marcante na abordagem que a
matéria vem recebendo, desde então, em toda a cultura ocidental. Com efeito, como
lembra José Afonso da Silva (1998),

a filosofia kantiana mostra que o homem, como ser racional, existe como fim em
si, e não simplesmente como meio, enquanto os seres desprovidos de razão têm
um valor relativo e condicionado, o de meios, eis porque se lhes chamam coisas;
ao contrário, os seres racionais são chamados pessoas, porque sua natureza já os
designa como fim em si, ou seja, como algo que não pode ser empregado
simplesmente como meio e que, por conseguinte, limita na mesma proporção o
nosso arbítrio, por ser um objeto de respeito’. E assim se revela como um valor
absoluto, porque a natureza racional existe como um fim em si mesma (p. 90).

Assim, o outro deve ser compreendido não como mero objeto, mas reconhecido
como sujeito, tratado como um fim em si mesmo, e jamais como meio. Está aí enfatizada
não apenas a dimensão individual da personalidade humana, mas também a sua
dimensão comunitária e social: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua
pessoa como na de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio” (idem, p. 90).
80

João Paulo II chega a afirmar, no documento Christifideles laici (nº 37), que a
dignidade pessoal é o bem mais precioso que o homem tem, graças ao qual ele
transcende em valor e todo o mundo material. Nessa linha, em virtude da sua dignidade
pessoal, o ser humano é sempre um valor em si e por si, e exige ser tratado como tal, e
nunca ser considerado e tratado como um objeto que se usa, um instrumento, uma coisa.
Atualmente, no entanto, a cultura reduziu o conceito de pessoa. Assim, para ela,
o homem não é mais pessoa por força de seu próprio ser, mas se torna pessoa graças ao
reconhecimento arbitrário da sociedade, do governo, do direito. Como diz Mondin
(1998, p. 14), “a filosofia moderna realizou uma mudança radical, pois, não o vê mais
como uma criação da natureza, mas como um produto de si mesmo”. Vemos as
múltiplas violações a que hoje é submetida à pessoa9. O ser humano, quando não é visto
na sua dignidade de imagem viva de Deus, fica exposto a formas de instrumentalização,
que o tornam escravo do mais forte. E o mais forte pode revestir-se dos mais variados
nomes: ideologia, poder econômico, sistemas políticos, tecnocracia científica ou Estado.
“Encontramo-nos diante de multidões de pessoas cujos direitos fundamentais são
violados, também em nome de uma excessiva tolerância e até da clara injustiça de certas
leis civis” (CL, nº 5).
Há a despersonalização em massa de todos os cidadãos que, em incontáveis
ocasiões, são reduzidos a simples números. É um individualismo exacerbado. Isso é
notório principalmente quando se observa, hoje, as relações de trabalho, em que a
pessoa é tratada apenas como meio para se chegar a fins principalmente lucrativos.
Esta visão do ser humano tem suas raízes principalmente no modo como
atualmente se dirige o desenvolvimento da economia de mercado, pois se sustenta a
ideia de que todos são livres na medida em que possuem bens. E isso os leva a um nível
de exploração do trabalho pelo capital e mudança de valores, indo de encontro à
construção da pessoa. O homem torna-se fragmento de uma sociedade onde o ter é mais
bem visto do que o ser de cada um. Dessa forma, entra-se na cultura do utilitarismo, do
hedonismo, falando de uma cultura dominada pela falsa ideia de posse como sendo o
centro e fim último da vida humana.
No fundo, há uma cultura de coisificação de pessoas. Entende-se por
coisificação um processo no qual cada um dos elementos da vida social perde seu valor

9
Embora esse argumento possa levar à discussão, aqui não pretendemos entrar no mérito de questões de
bioética – aborto, eutanásia, pesquisa com células-tronco embrionárias, clonagem etc. Acreditamos que
fugiria do nosso enfoque.
81

essencial e passa a ser avaliado apenas como coisa, ou seja, quanto à sua utilidade,
quanto à sua capacidade de satisfazer certos interesses. O ser humano vira um objeto e
um instrumento de uso. Na perspectiva materialista até aqui descrita, as relações
interpessoais experimentam um empobrecimento. O critério próprio da dignidade
pessoal – do respeito, do altruísmo, do serviço – é substituído pelo critério da eficiência,
do funcional, da utilidade: o outro é julgado exclusivamente pelo que tem, pelo que faz,
pelo que rende.
Os problemas citados aqui podem ocorrer também nos movimentos sociais, que
não estão imunes aos problemas contemporâneos. Qualquer movimento social corre o
risco de usar seus associados apenas como massa de manobra, ou de não dar voz ativa e
permitir uma participação verdadeira dos associados nas decisões a serem tomadas.
Mas Mondin (1998) diz: a tarefa primeira do homem não é construir casas,
carros, computadores, mas sim, “construir o homem, um projeto de humanidade que
seja adequado à dignidade e à exigência da pessoa humana” (p. 14). O objetivo primário
da cultura é, portanto, promover a realização da pessoa.
A perspectiva de que todos os homens são livres e iguais em dignidade e direitos
foi a linguagem capaz de mobilizar a imaginação, os sentimentos e as expectativas de
um conjunto significativamente diversificado de pessoas pelo mundo, logo após o
término da II Guerra Mundial. Ou seja, apesar da distância entre a teoria e a prática, o
século XX caracterizou-se pela universalização dos ideais da dignidade da pessoa e dos
direitos humanos.
Entretanto, existe uma dificuldade epistemológica na definição do que são
“direitos humanos”, que torna as tentativas de definição vagas ou tautológicas
(BOBBIO, 1992). Esses problemas nascem da tentativa de criar uma conceituação de
direitos humanos totalmente baseada no direito positivo e que não se assenta sobre o
direito natural (TOSI, 2009). Não é possível determinar com precisão o que são os
direitos humanos se não se tem uma definição precisa do que seja o humano. Se o ser
humano é um ser que faz a si mesmo, um nada que se torna algo por si mesmo, como
queria Sartre, a determinação de seus atributos e de seus direitos se torna muito difícil.
Apesar de os objetivos da Declaração Universal dos Direitos Humanos ainda
estarem distantes de corresponder à prática plenamente – afinal, a sua existência não
garante automaticamente sociedades justas -, seu valor simbólico e real é inegável.
Nesse sentido, cumpre destacar a vontade concentrada e incessante, principalmente da
sociedade civil, para que ela não seja esquecida. Afinal, foi a partir desse texto que se
82

desenvolveram movimentos para a descolonização, a favor dos direitos cívicos, da


democracia, do bem-estar das crianças e da igualdade entre mulheres e homens
(VICENTE, 2000).
Essa ideia de uma nova ordem internacional baseada no respeito aos direitos
humanos alimentou o surgimento de movimentos de pressão, de organizações da
sociedade civil, que pressionaram fortemente para que a ONU incorporasse o tema dos
direitos humanos. Foi essa pressão que fez com que a comissão de direitos humanos
fosse criada, e que temas como a discriminação racial entrassem na agenda, ainda que,
em um primeiro momento, essa pressão não tenha sido suficiente para incluir um
compromisso imediato com a descolonização.
É evidente que a Declaração teve impactos e consequências diferentes em cada
país. Sua aplicação (ou falta de) encontra particularidades regionais. No Brasil, um dos
problemas principais enfrentados pelos direitos humanos diz respeito às comunidades
indígenas. Os indígenas brasileiros constituem um dos grupos cujos direitos
fundamentais foram, e ainda continuam sendo, historicamente limitados e, muitas vezes,
até negados.

Analisando a historiografia brasileira, verifica-se que, desde os remotos tempos


de colonização, as comunidades indígenas lutaram pela sua sobrevivência o que
muitas vezes só foi possível em virtude de batalhas sangrentas travadas para
evitar seu completo extermínio. Quanto aos direitos dos índios, observa-se que
suas conquistas não ocorreram de forma crescente, pois houve inúmeros
progressos e retrocessos que se sucederam desordenadamente (LOPES e
MATTOS, 2006, p. 222).

A busca pela defesa da dignidade de todo ser humano passa também pela
valorização da cultura dos indígenas e suas especificidades. E cada povo deve construir
seu próprio caminho e ser o real protagonista da sua própria história. Significa
simplesmente aplicar o que a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos
defende: a autodeterminação dos povos. O Pacto de Direitos Civis e Políticos da ONU,
em seu artigo 27, afirma que: “Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou
linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do
direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida
cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”.
Assim, a universalidade de direitos e a particularidade cultural são valorizadas,
embora se reconheça uma relação hierárquica entre direitos universais e aqueles
reconhecidos apenas pela população local. Eles devem ser vistos como complementares.
83

Ao mesmo tempo, a ética nos chama a atenção sobre essas questões que envolvem não
só o respeito à diferença e ao diferente, mas a necessidade de estabelecer uma ponte em
que o contato se dá pelo encontro e pelo diálogo – uma proposta intercultural
(DONATI, 2008).
Outro tema importante para as Ciências Sociais com relação à Declaração
Universal dos Direitos Humanos diz respeito à violência contra as mulheres. O campo
dos direitos humanos, especialmente o do direito das mulheres, não é um campo
pacífico. Antes, tem se apresentado como um espaço constante de luta, em que a ação
dos movimentos de mulheres tem sido fundamental para o seu questionamento e análise
crítica (VICENTE, 2000).
Inegavelmente houve avanços nessa questão. Graças a movimentos feministas,
desde meados da década de 1980 o Brasil passou a instalar Delegacias da Mulher,
órgãos especializados da Polícia Civil que procuram dar um atendimento mais adequado
às vítimas de violência conjugal e sexual. Em 2003, o novo Código Civil eliminou todas
as discriminações legais contra as mulheres que ainda vigoravam e, em 2005, a lei penal
eliminou a possibilidade de impunidade do agressor sexual que se casasse com sua
vítima. Mais recentemente, houve a promulgação, em 2006, da Lei Maria da Penha.
Destinada especificamente à violência doméstica e familiar e reconhecendo-a como uma
violação dos direitos humanos, essa lei define uma política pública articulada destinada
à segurança das mulheres (BARSTED, 2006).

2.1. A dignidade humana na Doutrina Social da Igreja

As bases doutrinais cristãs relativas à temática da dignidade humana se


encontram tanto nos escritos bíblicos quanto na tradição secular da Igreja, notadamente
aquela deixada pela Patrística10.
O enfoque antropológico é expressivo na obra dos padres da Igreja. Como
lembra Doig (1994, p. 48) “toda a reflexão cristã de então sobre o homem – tanto a
filosófica como a teológica – dá uma importância bastante clara à valorização da
dignidade humana”. Existe aí uma verdadeira “antropologia da dignidade”, de onde

10
O Período Patrístico é compreendido desde o século I até o século VIII, iniciando-se com a Didaqué (a
doutrina dos doze apóstolos) escrita entre os anos 70-90, que é considerado um dos documentos mais
antigos da Igreja Primitiva. Compõem ainda a Patrística os ensinamentos e homilias que foram
conservados através da história, pela Igreja, onde os chamados Padres Gregos e depois os Padres Latinos
procuraram sistematizar a doutrina cristã tal como a receberam nas fontes da Sagrada Escritura,
compatibilizando os avanços culturais da civilização greco-romana que se fundamentavam na filosofia e
na razão natural, com os postulados da fé apresentados pela Revelação judaico-cristã.
84

brota o eloquente brado de S. Leão Magno (falecido em 461): “Reconhece, ó cristão, a


tua dignidade!” (Agnosce, oh christiane dignitatem tuam!). Doig (1994) lembra
inúmeras passagens de S. Gregório Niceno e de seu irmão, S. Basílio, de Santo
Ambrósio de Milão, de Lactâncio, de Santo Isidoro de Sevilha, de S. Pacômio,
passagens em que se proclamam a elevada dignidade da pessoa.
Na DSI a Igreja resgata a preocupação pela dignidade do homem, devendo-se
reconhecer que “essa antropologia substancial constitui o núcleo fundamental de toda a
DSI tal como tem sido exposta e aplicada aos tempos atuais pelos últimos pontífices”
(SORIA, 1967, p.140). A Igreja quer proclamar o que entende sobre a dignidade
humana
perante instituições e práticas sociais que se fundam numa antropologia redutiva
do homem, como mera unidade econômica – homo economicus -, como homo
faber – construtor de ferramentas -, como uma casualidade no percurso da
evolução biológica, como o mecanismo bioquímico superior do planeta, como
mera “vontade de poder”, como animal que reprime e sublima a sua libido, como
a “medida de todas as coisas”, como a “paixão inútil” e “liberdade absurda”,
como “nada”, como “ser-para-a-morte” etc. Visões redutivas ou simplesmente
falsas, que não podem senão originar uma doutrina e uma prática social
destruidoras do próprio homem (LANGLOIS, 1990, p. 81).

A DSI está sustentada numa antropologia cristã em que a noção de dignidade da


pessoa é colocada como verdadeira espinha dorsal, como princípio e fundamento
elementar de todas as instituições da vida social. A pessoa, na dignidade que lhe é
própria, é colocada como pedra angular, como vértice e ponto de referência.
A Rerum novarum fundamenta seus ensinamentos na necessidade de respeito à
dignidade do homem. O homem, dada sua dignidade, não pode ser usado como um
objeto, mas tem todo direito de fazer uso das coisas à sua volta para melhor satisfazer-se
em suas necessidades. O ser humano se encontra em estado de transformação e
evolução constantes, de modo que a ele deve ser garantido o direito de prover suas
necessidades, utilizando o trabalho como meio e não tornar-se dependente do Estado
para sua manutenção:

Suas necessidades repetem-se perpetuamente: satisfeitas hoje, renascem amanhã


com novas exigências (...) e não se apele para a providência do Estado (...) de
maneira que se pode afirmar que o trabalho é o meio universal de prover às
necessidades da vida. (RN, nº 6).

A chave de leitura da Rerum novarum é a dignidade do trabalhador.

Pelo que diz respeito ao trabalho em particular, o homem, mesmo no estado de


inocência, não era destinado a viver na ociosidade mas, ao que a vontade teria
abraçado livremente como exercício agradável, a necessidade lhe acrescentou
(RN, nº 6).
85

No entanto o que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como que vis
instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus
braços (RN, nº 12).

O advento do cristianismo renovou as sociedades, afirma Leão XIII, que tem por
causa, meio e fim a elevação do gênero humano: “Tomando como exemplo as
sociedades da antiguidade, a sociedade civil foi essencialmente renovada pelas
instituições cristãs, que esta renovação teve por efeito elevar o nível do gênero humano,
ou, para melhor dizer, chamá-lo da morte à vida” (RN, nº 17).
A Rerum novarum coloca em igualdade de condições todos os homens, pois
todos têm a mesma semelhança divina e compartilham da mesma dignidade e que não
pode ser violada impunemente:

O espírito é o que tem impresso em si a semelhança divina, e no qual reside


aquela dignidade de poder pela qual foi dado ao homem o direito de dominar as
criaturas inferiores e de fazer servir à sua utilidade toda a terra e todo o mar.
Nisto todos os homens são iguais, e não há diferença alguma entre ricos e
pobres, patrões e criados, reis e súditos e a ninguém é lícito violar impunemente
a dignidade do homem, do qual Deus mesmo dispõe com grande reverência, nem
colocar-lhe impedimentos, para que ela atinja o aperfeiçoamento ordenado a
conquistar a vida eterna; pois, nem ainda por eleição livre, o homem pode
renunciar a ser tratado segundo a sua natureza e aceitar a escravidão do espírito;
porque não se trata de direitos cujo exercício seja livre, mas de deveres para com
Deus que são absolutamente invioláveis (RN, nº 25).

Da mesma forma que não podemos violar nossos deveres para com Deus,
também não podemos violar a dignidade humana, pois esta deve ser preservada, por ter
direitos inalienáveis impressos na natureza espiritual humana. Por isso, Leão XIII diz
também que “quanto aos ricos e patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas
respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pelo cristão” (RN, nº23).
Assim, o dever de cuidar desta dignidade não se faz facultativo, mas é, antes,
imperativo, é de ordem primeira, é essencial, apresenta-se como dever de honra para
com Deus, e a Rerum novarum o defende como sendo as diversas condições que dão ao
ser humano uma melhor condição de vida: direito a um trabalho sem exploração,
degradação ou humilhação, e com salário justo que garanta condições de vida digna
para o trabalhador e sua família.
Para que esta dignidade seja completa, Leão XIII defende a propriedade privada,
pois o homem é digno de ter o seu pedaço de chão, “porque a propriedade particular e
pessoal é para o homem de direito natural” (RN, nº 5), uma vez que colocando à
disposição de outro sua força de trabalho não espera somente por isto receber por direito
86

seu salário, para suprir suas necessidades, mas também poder usar dele como melhor
entender, e tudo aquilo que conquistar com o bom uso de seu salário nada mais é que
seu salário transformado em propriedade particular, assim, deve ter seu direito
assegurado (cf. RN, nº 4).
A encíclica Quadragesimo anno afirma que “o trabalho constante para embeber
de espírito cristão as almas dos operários contribuiu também muitíssimo para lhes dar a
verdadeira consciência da própria dignidade” (QA, nº 23). Nessa Encíclica, Pio XI
defendeu “com ardor os sagrados direitos dos operários, provenientes de sua dignidade
de homem e de cristão” (QA, nº 28), condenando a má distribuição das riquezas e o
acúmulo de capital que gera a injustiça social e escraviza o operário. O papa denuncia o
acúmulo de riqueza na mão de poucos ricos e a grande quantidade de pobres (cf. QA, nº
48), e afirma que tal situação “escraviza a classe proletária (...) desprezando a dignidade
humana dos operários, a função social da economia e a própria justiça social e o bem
comum” (QA, nº 101).
A Radiomensagem denominada La Solennità, de Pio XII, expressa sua defesa
dos bens materiais e da terra como forma de garantir a dignidade humana:

O direito natural ao uso dos bens materiais, por estar intimamente conexo com a
dignidade e com os outros direitos da pessoa humana, oferece a ela (...) uma base
material segura, de suma importância para se elevar ao cumprimento dos seus
deveres morais (...). A dignidade da pessoa humana exige normalmente, como
fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual
corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada, na
medida do possível a todos (LS, nº 14-15).

Todos os seres humanos são chamados a assumirem a condição de verdadeiros


“sujeitos” no processo de liberação pessoal e social, contra todas as formas de
escravidão e servidão a que queiram submetê-los: “O homem (...) longe de ser o objeto
e um elemento passivo da vida social é, ao contrário, e deve ser e permanecê-lo, o seu
sujeito, fundamento e fim” (Pio XII, Radiomensagem de Natal sobre a Democracia, nº
11).
Podemos afirmar que a concepção antropológica de Leão XIII, de Pio XI e Pio
XII considera que a dignidade humana tem sua fonte em Deus. Várias são as passagens
que denotam esse entendimento: “Os homens são absolutamente nascidos de Deus, seu
Pai comum (...) todos eles foram igualmente resgatados por Jesus Cristo e
restabelecidos por ele na sua dignidade de filhos de Deus” (RN, nº 16). O homem foi
“elevado pela graça santificante à dignidade de filho de Deus” (Divini redemptoris
87

[DR], nº 27). Desse fato decorre o reconhecimento da igualdade fundamental de todos


os homens, como base dos direitos humanos.
Podemos identificar ainda, no magistério desses três Sumos Pontífices, a
enunciação de alguns direitos humanos fundamentais. Direitos considerados invioláveis,
anteriores e superiores a qualquer deliberação ou pacto respaldado apenas na vontade
humana,individual ou coletiva. Assim, na Rerum novarum, Leão XIII, apesar de
reconhecer que era “difícil precisar com exatidão os direitos e deveres que devem, ao
mesmo tempo, reger a riqueza e o proletariado, o capital e o trabalho” (RN, nº 12),
chega a proclamar o “direito ao justo salário” (RN, nº 27), o direito ao repouso a
condições de salubridade no trabalho, o direito de associação nos sindicatos e repudia
toda forma de abuso e exploração contra o trabalho da mulher e dos menores (cf. RN, nº
29).
Pio XI, na encíclica Divini redemptoris, enuncia expressamente um rol de
direitos humanos fundamentais: “direito à vida, à integridade do corpo, aos meios
necessários à existência; direito de tender ao seu último fim, pelo caminho traçado por
Deus; direito enfim de associação, de propriedade particular e de usar dessa
propriedade” (DR, nº 27).
Da mesa forma podemos encontrar em Pio XII, na sua Radiomensagem de Natal
de 1942, um elenco mais extenso de direitos humanos fundamentais, decorrentes da
necessidade de “restituir à pessoa humana a dignidade que Deus lhe concedeu desde o
princípio” (nº 43). Tais direitos foram objeto de maior detalhamento e sistematização na
encíclica Pacem in terris, de João XXIII.
João XXIII, na Mater et magistra, retoma a mesma expressão utilizada por Pio
XII, no sentido de que o homem deve assumir o papel de artífice e protagonista de sua
história. Cita expressamente o direito dos trabalhadores de participação na vida das
empresas, que deveriam tornar-se verdadeiras “comunidades de pessoas” (nº 91). O
papa defende o salário justo para que todos tenham um nível de vida digno com a
condição humana, por isso “é necessário que aos trabalhadores se deem um salário que
lhes proporcione um nível de vida verdadeiramente humano e lhes permita enfrentar
com dignidade as responsabilidades familiares” (MM, nº 68); ele condena os sistemas
econômicos que comprometem a dignidade humana, afirmando que “quando as
estruturas, o funcionamento e o condicionalismo de um sistema econômico
comprometem a dignidade humana dos que nele trabalham (...) tal sistema é injusto”
(MM, nº 80) e propõe um sistema que “respeite e fomente os genuínos valores
88

humanos, individuais e sociais, em conformidade com a moral, com a dignidade e o


imenso valor da vida humana” (MM, nº 189); uma vez que, independente do progresso
técnico, o homem necessita sentir-se filho de Deus, pois “o homem, separado de Deus,
torna-se desumano consigo mesmo e com seus semelhantes, porque as relações bem
ordenadas entre homens pressupõem relações bem ordenadas da consciência pessoal
com Deus, fonte de verdade, de justiça e de amor” (MM, nº 212).
João XIII afirma, ainda, que esse princípio da Doutrina Social da Igreja está em
que o ser humano deve ser o centro de todas as instituições: “o princípio fundamental
desta concepção consiste em cada ser humano ser e dever ser o fundamento, o fim e o
sujeito de todas as instituições em que se expressa e realiza a vida social” (MM, nº 216);
sendo este o “princípio básico, que defende a dignidade sagrada da pessoa” (MM, nº
217).
Na Pacem in terris o conceito de pessoa é dado logo na parte inicial da encíclica:
“natureza dotada de inteligência e vontade livre, que possui em si mesma direitos e
deveres que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Esses direitos e
deveres, sendo universais e invioláveis, são também absolutamente inalienáveis” (PT, nº
9). Apresenta também os direitos humanos de maneira sistemática e orgânica. É a
enumeração mais completa e detalhada dos direitos da pessoa num documento
pontifício. São direitos considerados universais, invioláveis e inalienáveis. O papa
menciona expressamente o “direito à existência, à integridade física, aos recursos
correspondentes a um digno padrão de vida: tais são essencialmente o alimento, o
vestuário, a moradia, o repouso, a assistência sanitária, os serviços sociais
indispensáveis”, e mais: “o direito de ser amparado em caso de doença, de invalidez, de
viuvez, de velhice, de desemprego forçado e em qualquer outro caso de privação dos
meios de sustento por circunstâncias independentes de sua vontade” (PT, nº 11). Ainda:
“o direito natural ao respeito de sua dignidade e boa fama; direito à liberdade na
pesquisa da verdade e, dentro dos limites da ordem moral e do bem comum, à liberdade
na manifestação e difusão do pensamento, bem como no cultivo da arte. [A pessoa] tem
direito também à informação verídica sobre os acontecimentos públicos” (PT, nº 12).
Do mesmo modo, tem “direito de participar dos bens da cultura e, portanto, o direito a
uma instrução de base e a uma informação técnica e profissional conforme o grau de
desenvolvimento cultural da respectiva coletividade” (PT, nº 13).
Enumera, igualmente, “a liberdade de prestar culto a Deus, de acordo com os
retos ditames da consciência, e de professar a religião, privada e publicamente” (PT, nº
89

14), assim como “escolher o estado de vida (...) de constituir família, na base da
paridade de direitos e deveres entre homem e mulher; ou então de seguir a vocação ao
sacerdócio ou a vida religiosa” (PT, nº 15), sendo que “aos pais compete a prioridade de
direito em questão de sustento e educação dos próprios filhos” (PT, nº17).
Relativamente ao campo econômico, “cabe à pessoa não só a liberdade de
iniciativa, senão o direito ao trabalho” (PT, nº 18), sendo que tais direitos comportam a
exigência de “poder a pessoa trabalhar em condições tais que não se lhe minem as
forças físicas nem se lese a sua integridade moral (...) e, quanto às mulheres, seja-lhes
facultado trabalhar em condições adequadas às suas necessidades e deveres de esposas e
mães” (PT, nº 19). Ressalta, ainda, o “direito a uma remuneração do trabalho conforme
aos preceitos da justiça; remuneração que, em proporção dos recursos disponíveis,
permita ao trabalhador e à sua família um teor de vida condizente com a dignidade
humana” (PT, nº 20). Enfim, reafirma “o direito à propriedade privada, mesmo sobre os
bens de produção” por considerar que “esse direito constitui um meio apropriado para a
afirmação da dignidade da pessoa humana e para o exercício da responsabilidade em
todos os campos; e é fator de serena estabilidade para a família, como de paz e
prosperidade social” (PT, nº 21), recordando que “a função social é inerente ao direito
de propriedade privada” (PT, nº 22).
Finalmente recorda o “direito de reunião e de associação” (PT, nº 23), o “pleno
direito de estabelecer ou mudar de domicílio dentro da comunidade política (...) e
mesmo de transferir-se a outras comunidades políticas e nelas domiciliar-se” (PT, n
º25). Considera, por último, que há “o direito de participar ativamente da vida pública, e
de trazer assim a sua contribuição ao bem comum dos concidadãos” (PT, nº 26) e mais,
“o direito inalienável do homem à segurança jurídica e a uma esfera jurisdicional bem
determinada, ao abrigo de toda e qualquer impugnação arbitrária” (PT, nº 27).

O tratamento que João XXIII dá ao tema dos direitos do homem não se reduz a
um simples reassumir da Declaração Universal dos Direitos do Homem – que
havia sido aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948. O Papa
insiste nos mesmos direitos, mas a perspectiva é diferente. Em primeiro lugar,
ele associa os direitos aos deveres, como outras tantas garantias reais daqueles
direitos (BIGO e ÁVILA, 1986, p. 195).

Quer dizer, ao se pronunciar sobre a importância dos direitos humanos, a DSI


insiste que eles não são plenamente compreendidos se não se consideram também os
deveres que trazem consigo. A promoção e proteção da dignidade humana leva a
considerar ambos os aspectos. De um lado, estão os direitos, mas, do outro, existem
90

determinados deveres. E mais: uma correta valorização dos direitos evidencia que cada
um deles subentende, como contrapartida, certas exigências, certos deveres para o
homem11. Assim, por exemplo, o direito à vida compreende o dever de respeitá-la.
Depois de enunciar os direitos do homem, João XXIII, em Pacem in terris, dá
destaque à necessidade de respeito aos deveres, cuja “origem, manutenção e vigor
indestrutível” também está na lei natural (nº 29). Nas palavras do papa, “os que
reivindicam os próprios direitos, mas se esquecem por completo de seus deveres ou lhes
dão menor atenção, assemelham-se a quem constrói um edifício com uma das mãos e,
com a outra, o destrói” (PT, nº 30).
Ele não chega a enunciar todos os deveres, mas afirma que cada um dos direitos
tem um dever como contrapartida. Todavia, três deveres são colocados em destaque por
ele: o respeito aos direitos alheios, a colaboração com o próximo e o dever de atuação
dentro de um sentido de responsabilidade.
Por isso, “o direito à existência liga-se ao dever de conservar-se em vida; o
direito a um condigno teor da vida, à obrigação de viver dignamente; o direito de
investigar livremente a verdade, ao dever de buscar um conhecimento da verdade cada
vez mais vasto e profundo” (PT, nº 29). Assim, o direito de um deve ser respeitado por
todos, em busca da promoção do bem mútuo; dever de um agir humano livre, mas
responsável, fundado na verdade, no amor e na justiça que busca a comunhão humana
(cf. PT, nº 28-36).
Insistir apenas nos direitos pode levar a certo unilateralismo redutivo, um
egoísmo que afeta as relações interpessoais, ao concentrar-se na exigência do respeito
aos próprios direitos, postergando o respeito aos deveres para com os outros (DOIG,
1994). O equilíbrio entre direitos e deveres é uma garantia para que não se manipulem
os direitos e se possa construir uma convivência social na qual seja de fato respeitada a
dignidade humana.

11
Cabe notar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovado pela ONU em 1948 também
fala de deveres, em especial no Artigo 29, em que destaca que “todo ser humano tem deveres para com a
comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível”. É evidenciada,
assim, uma responsabilidade individual pela aplicação dos direitos humanos – também como membro de
instituições intermediárias, como se verá pouco abaixo. Além disso, essa visão encontra correspondência
em outras tradições religiosas e culturais, como na resposta de Gandhi à pesquisa da Unesco em 1947
para comentar o esboço da Declaração Universal: “Todos os direitos que devem ser merecidos e
preservados provêm de deveres bem exercidos. Assim, somente obtemos o autêntico direito de viver
quando cumprimos o dever de cidadania do mundo. A partir dessa afirmação fundamental, talvez seja
bastante fácil definir os deveres dos homem e da mulher e relacionar cada direito com alguns deveres
correspondentes, que devem ser cumpridos em primeiro lugar. Qualquer outro direito pode ser visto como
uma usurpação, pela qual dificilmente podemos lutar” (apud AQUINI, 2008, p. 135).
91

Depois, o Papa não considera apenas os direitos dos indivíduos isolados, na linha
do liberalismo clássico, mas defende também os direitos das pessoas humanas
associadas em comunidades, desde as menores até à grande comunidade
internacional, passando pelas comunidades nacionais. (...) Enfim, e
principalmente, o Papa não baseia os direitos da pessoa humana em um
positivismo jurídico de inspiração liberal, mas na própria dignidade inalienável
do homem, fundada no Direito Natural (BIGO e ÁVILA, 1986, p. 195).

Sobre essas características da Pacem in terris, o documento A DSI na Formação


Sacerdotal (nº 33) enfatiza ainda que a encíclica “além de fundar os direitos do homem
sobre a lei natural inerente à Criação e ordenada para a Redenção, corrige certo aspecto
individualista da concepção tradicional da reciprocidade dos direitos-deveres, inserindo-
os num contexto de solidariedade e sublinhando as exigências de ordem comunitária
que ela comporta”.
Ao fundamentar os direitos humanos nos postulados do direito natural, a
intenção de João XXIII está direcionada a atingir todos os homens, inclusive os não
cristãos que obedecem à razão natural e possuem um correto sentido da moral natural.
É relevante ainda destacar que o papa João XXIII manifesta uma visão bastante
positiva – sem abdicar de uma perspectiva crítica12 – sobre a Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
Não há dúvida, porém, que o documento assinala um passo importante no
caminho para a organização jurídico-política da comunidade mundial. De fato,
na forma mais solene, nele se reconhece a dignidade da pessoa a todos os seres
humanos; proclama-se como direito fundamental da pessoa o de mover-se
livremente na procura da verdade, na realização do bem moral e da justiça, o
direito a uma vida digna, e defendem-se outros direitos conexos com estes (PT,
nº 144).

Havia também uma grande preocupação do Pontífice acerca da efetividade dos


direitos proclamados na Declaração: “Oxalá chegue logo o tempo em que essa

12
João XXIII assinala que o documento não era suficiente e que existiam algumas objeções fundadas,
embora não as tenha explicado (cf. PT, nº 144). Mais tarde, Paulo VI também afirma que o documento
deveria ser aprofundado. Entretanto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos sempre foi valorizada
pela DSI – inclusive por esses dois papas - pelo seu espírito e esforço de defender a dignidade das
pessoas. Em linhas gerais, a Declaração deve ser entendida e valorizada como um esforço positivo de
devolver ao homem seu centralismo sobre a política e a economia, ou seja, que tudo está colocado para
que se desenvolva em plenitude. João Paulo II chama a atenção, no entanto, que ela não deve ser tomada
apenas com o objetivo de se precaver contra as injustiças, mas a partir dela assumir a “criação de uma
base para uma contínua revisão dos programas, dos sistemas, dos regimes, e precisamente a partir deste
único ponto de vista fundamental que é o bem do homem – e devemos dizer, da pessoa na comunidade –
e que, como fator fundamental do bem comum, deve constituir o critério essencial de todos os programas,
sistemas e regimes” (RH, nº 7). Bento XVI afirma que o mérito da Declaração é de permitir que
diferentes culturas, expressões jurídicas e modelos constitucionais “convirjam em volta de um núcleo
fundamental de valores e, portanto, de direitos” (Discurso de Bento XVI na ONU, em 18 de abril de
2008, disponível em
http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2008/april/documents/hf_ben-
xvi_spe_20080418_un-visit_po.html Acesso em 20/12/2012).
92

Organização [ONU] possa garantir com eficácia os direitos do homem; direitos que, por
brotar imediatamente da dignidade da pessoa humana, são universais, invioláveis e
imutáveis” (PT, nº 145).
A perspectiva crítica diz respeito principalmente à falta de uma fundamentação
sólida para esse documento. Com efeito, prescindiu ele de uma indicação expressa da lei
natural. E mais, esquivou-se de fornecer, mesmo que em linhas gerais, uma definição do
que considera como sendo a “dignidade da pessoa humana”, sobre a qual fundamenta os
direitos proclamados.
Como adverte Doig (1994, p. 149), a Igreja sempre entendeu que esses direitos
da pessoa “são anteriores ao Estado e, portanto, anteriores a todo acordo entre os
Estados. Nem o seu valor jurídico nem a sua universalidade dependem de um poder,
mas sim da própria natureza”.
João XXIII afirma em outro trecho da encíclica: “Não se pode aceitar a doutrina
dos que consideram a vontade humana, quer dos indivíduos quer dos grupos, primeira e
única fonte dos direitos e deveres dos cidadãos, da obrigatoriedade da constituição e da
autoridade dos poderes públicos” (PT, nº 78). Ou seja, não se pode conferir uma
dimensão absoluta à vontade humana no que se refere à fixação e delimitação dos
direitos fundamentais da pessoa humana.
Na Gaudium et spes a afirmação da dignidade da pessoa recebe destaque
especial. O primeiro capítulo tem por objeto esse tema.

Aumenta a consciência da eminente dignidade da pessoa humana por ser


superior a todas as coisas e os seus direitos e deveres serem universais e
invioláveis. É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas
de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimentos,
vestuários, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir
família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente
informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à
proteção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa (GS, nº 26).

E depois recrimina expressamente os atentados que são opostos à dignidade


humana:

(...) são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda
espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o
que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos
corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo
quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-
humana, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o
comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho,
em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como
pessoas livres e responsáveis. Todas essas coisas e outras semelhantes desonram
93

mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e


ofendem gravemente a honra devida ao Criador (GS, nº 27).

Já segundo Paulo VI, o respeito pela dignidade da pessoa deve estar na base de
qualquer programa de desenvolvimento econômico. “Economia e técnica não tem
sentido senão em função do homem, ao qual devem servir. E o homem só é
verdadeiramente homem na medida que, senhor das suas ações e juiz do valor destas, é
autor de seu progresso, em conformidade com a natureza que lhe deu o Criador, cujas
possibilidades e exigências ele aceita livremente” (PP, nº 34). O progresso do homem
deve ser integral, e para isso “é necessário promover um humanismo total”, processo
este que não pode estar limitado puramente às questões materiais mantendo-se fechado
aos “valores do espírito e a Deus, fonte do verdadeiro humanismo” (PP, nº 42).
Paulo VI diz também, agora na Octogesima adveniens, que cada país deve
analisar as situações de injustiças que comprometem a dignidade humana. O papa
afirma que “o egoísmo e a dominação são tentações permanentes entre os homens (...)
torna-se necessário captar, na sua origem, as situações nascentes de injustiça e de
instaurar progressivamente uma justiça menos imperfeita” (OA, nº 15), numa sociedade
em que se geram cada vez mais excluídos e marginalizados “a atenção da Igreja volta-se
para estes novos pobres (...) para aceitá-los, para ajudá-los e para defender o seu lugar e
a sua dignidade numa sociedade endurecida pela competição e pela fascinação do êxito”
(OA, nº15).
Na Laborem excercens, João Paulo II afirma o trabalho como “bem fundamental
para a pessoa (...) e chave de toda a questão social” (CDSI, nº 101). Também “delineia
uma ética do trabalho no contexto de uma reflexão teológica e filosófica” onde “o
trabalho tem toda a dignidade de um âmbito no qual deve encontrar realização à
vocação natural e sobrenatural da pessoa” (CDSI, nº 101).
O trabalho como um bem digno realiza o homem e dignifica sua condição de ser
humano:

(...) o trabalho é um bem do homem, e mais, é não só um bem “útil” ou de que se


pode usufruir, mas é um bem “digno”, ou seja, que corresponde à dignidade do
homem, um bem que exprime esta dignidade e que a aumenta (...). O trabalho é
um bem do homem – é um bem da sua humanidade – porque, mediante o
trabalho, o homem não somente transforma a natureza, adaptando-a as suas
próprias necessidades, mas também se realiza a si mesmo como homem e até, em
certo sentido, se torna mais homem (LE, nº 9).

João Paulo II, como alguns de seus predecessores, também não deixa escapar a
oprotunidade de apresentar um rol de direitos humanos, em Centesimus annus, cujo
94

respeito considera como “autêntico e sólido fundamento” dos regimes democráticos,


tais direitos, em última análise, terão sempre por embasamento a “dignidade
transcendente da pessoa” (CA, nº 47).
Em suma, é preciso ter sempre presente “que aquilo que serve de trama e, em
certo sentido, de linha condutora (...) a toda a doutrina social da Igreja é a correta
concepção da pessoa humana e do seu valor único, enquanto ‘o homem [é] a única
criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma’. Nele gravou a Sua imagem e
semelhança (cf. Gn 1, 26), conferindo-lhe uma dignidade incomparável (...).” (CA, nº
11).
Por fim, Bento XVI, em Caritas in veritate, ressalta que é preciso que no
mercado se abram espaços para atividades econômicas realizadas por sujeitos que
livremente escolhem agir segundo princípios diversos do puro lucro e do incremento da
produção de bens materiais em uma ótica consumista e individualista, sem deixar de
produzir valor econômico. Assim, é necessário “favorecer uma orientação cultural
personalista e comunitária (...) [pois] a globalização a priori não é boa nem má. Será
aquilo que as pessoas fizerem dela. Não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas,
atuando com razoabilidade, guiados pela caridade e a verdade” (CV, nº 42).
O papa reafirma a mensagem da Populorum progressio de que o
desenvolvimento autêntico deve ser integral, promover todos os homens e o homem
todo. “O desenvolvimento humano integral no plano natural, enquanto resposta a uma
vocação de Deus criador, procura a própria autenticidade num humanismo
transcendente, que leva [o homem] a atingir sua maior plenitude: tal é a finalidade
suprema do desenvolvimento pessoal” (CV, nº 18). Assim, “o primeiro capital a
preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade” (CV, nº 25).
A promoção do bem integral do homem, incluídas suas dimensões emocionais,
psíquicas e espirituais, é defendido continuamente, fazendo-se das empresas
verdadeiras comunidades de pessoas, onde seja assegurado um certo nível de
participação dos trabalhadores na gestão e na partilha dos resultados. Igualmente o
desenvolvimento científico e tecnológico deve estar direcionado ao bem estar do
homem.
Qualquer movimento social corre o risco de reduzir as pessoas apenas às suas
carências, e não considerá-las de maneira integral, em todas as suas dimensões.
Também a Associação dos Trabalhadores Sem Terra enfrenta essas questões, esses
desafios. Mais adiante, veremos como essas questões são trabalhadas por esse
95

movimento, se seus associados são respeitados realmente como pessoas (e não objetos)
e se são protagonistas.
O problema atual do desenvolvimento está ligado a concepção da alma do
homem, uma vez que nosso eu é reduzido ao psíquico e a saúde da alma com o bem-
estar emotivo. Não há desenvolvimento pleno nem bem comum universal sem o bem
espiritual e moral das pessoas, consideradas na sua totalidade de alma e de corpo (cf.
CV, nº 76). O desenvolvimento “requer olhos novos e um coração novo, capaz de
superar a visão materialista dos acontecimentos humanos e entrever no desenvolvimento
um ‘mais além’ que a técnica não pode dar” (CV, nº 77).
Sorge (1998) afirma que do Princípio da Dignidade Humana deriva um ponto
importante: tanto o Estado como a sociedade deverão buscar o bem comum,
subordinando-o sempre à plena realização da pessoa. Portanto, a sociedade e o Estado
podem dispor da atividade da pessoa para a consecução das metas comuns, mas jamais
podem dispor da própria pessoa, nem da vida delas, pois esta é o fundamento de todos
os outros direitos. De fato, a pessoa humana tem em si valor de fim e jamais poderá, em
qualquer caso e por qualquer razão, ser considerada e tratada como um empecilho ou
meio da política. Afinal, a pessoa é senhora de si mesmo e inalienável. Possui
interioridade e autodeterminação. O ato de vontade em cada ser humano é insubstituível
por qualquer outro ato que não seja o dele. Cada ser humano é único e irrepetível. Por
isso, não pode se tornar nunca um mero instrumento.
Na mesma linha, Mounier (1967, p. 83) propõe “uma civilização personalista,
sendo uma civilização cujas estruturas e espíritos estão orientados para a realização da
pessoa que é cada um dos indivíduos que a compõe”. Esta civilização, acima dos
interesses materiais, “tem, todavia, por fim último, pôr cada pessoa em estado de poder
viver como pessoa, quer dizer, em estado de poder atingir um máximo de iniciativa, de
responsabilidade, de vida espiritual”.
Por fim, para encerrarmos, um ponto crucial se refere ao direito à vida.
Entretanto, ainda segundo a ótica da DSI, não basta assegurar o direito à vida. É preciso
que essa vida seja digna. Por isso, deve ser assegurado à pessoa um mínimo de direitos
fundamentais que lhe permita atingir seus ideais de vida e a própria realização pessoal.
Terminamos este capítulo com a citação de Mounier, que de alguma forma
sintetiza a ideia principal do Princípio da Dignidade Humana:

Todo aparelho legal, político, social ou econômico não tem outra missão última
senão assegurar primeiro às pessoas em formação a zona de isolamento, de
96

proteção, de jogo e de lazer que lhes permita reconhecer em plena liberdade


espiritual essa vocação: em seguida, ajudá-las sem constrangimento, a
libertarem-se dos conformismos e dos erros de ajustamento; finalmente,
proporcionar-lhes, pela coordenação do organismo social e econômico, os meios
materiais necessários para dar a esta vocação o seu máximo de fecundidade
(MOUNIER, 1967, p. 94).
CAPÍTULO 3

O Princípio de Solidariedade: sociabilidade humana, virtude moral e


princípio orientador da sociedade.

É fato que vivemos em uma sociedade cheia de contradições, afinal, podemos


notar como estão inseridos em nossa cultura a individualização, o relativismo e o
ceticismo. Castilho (1999), por exemplo, afirma que vivemos em um ambiente de
egoísmos recíprocos e o ser humano, por estar envolvido em uma luta selvagem para
sobreviver, perdeu o sentido do querer bem também recíproco. Assim, parece algumas
vezes que o altruísmo não tem lugar atualmente.
Entretanto, Castilho também afirma que com as evidentes exclusão e
fragmentação social, a sociedade reage e acaba prestando mais atenção ao valor da
solidariedade. Fato é a multiplicação de voluntariados e das organizações beneficentes,
além dos vários projetos sociais que surgem13.
Por isso, aponta Ives Gandra Martins (2010), o grande desafio da atualidade não
está nas grandes conquistas tecnológicas, mas em como vencer a tendência ao egoísmo,
sabendo o ser humano superá-lo para começar a servir. O altruísmo, diz o autor, é o
melhor antídoto contra o egoísmo.
Em sua concepção inicial, a solidariedade é entendida como amor altruísta ao
próximo, tendo sua origem nos termos fraternidade e irmandade. O conceito – fraternitè
– foi adotado na Revolução Francesa e tornou-se lema de luta para a construção de uma
sociedade de cidadãos igualitários. Em consequência, a concepção de luta da fraternitè
passou a ter um significado político. Com o início da revolução dos trabalhadores de
1848, passou-se a adotar o conceito de solidaritè (NOTHELLE-WILDFEUER, 2008).
Segundo Nothelle-Wildfeuer (2008), a origem linguística do termo encontra-se
no direito romano, in solidum, que significa o dever para com o todo, a responsabilidade
geral, a culpa coletiva, a obrigação solidária (obligatio in solidum). O conceito de
solidariedade tem ainda duas outras fontes: a ideia pagão-republicana (do grego
homonoia e do latim concórdia) e amizade civil (do grego philia e do latim amicitia); e
a ideia cristã de fraternidade (fraternitas) e amor ao próximo (caritas). O significado de

13
Estamos pensando nos projetos mais conhecidos como Alfabetização Solidária, Comunidade Solidária,
Ação Solidária, Economia Popular Solidária, Empresa Solidária etc.
98

fraternidade denota que os cristãos são filhos do mesmo Pai, e isso os anima e os
compromete ao amor ao próximo, sempre expresso em atitudes. Segundo a autora,
mesmo com a origem no direito romano, o sentido cristão tem forte influência. Aliás, é
nele que os sentimentos de unidade entre as pessoas, independentemente de origem,
nacionalidade, religião etc. são alentados.
De toda forma, o conceito de solidariedade está em permanente constituição para
a sociologia e para a política e pode ter diferentes abordagens e concepções.
Por exemplo, a solidariedade pode ser discuta sob diversos pontos de vista.
Como um fato social, do qual não podemos nos desprender por ser parte intrínseca do
nosso ser no mundo; como virtude ética de um reconhecer-se no outro – que identifica
no outro um “outro eu”, ou ainda auxiliar o outro numa perspectiva mais ampla do que a
justa conduta exigiria – e dar ao outro o que é seu; como resultado de uma consciência
moral e de boa-fé ou, ao contrário, de uma associação para delinquir; e como
comportamento pragmático para evitar perdas pessoais e/ou institucionais (MORAES,
2009).
Mesmo assim, nas mais diversas exposições teóricas, um aspecto comum pode
ser retomado: a ideia de relação de reciprocidade, de interdependência entre os
membros de um grupo.
Com uma perspectiva mais próxima da nossa, Avelino (2005) conceitua
solidariedade como o “atuar humano, de origem no sentimento de semelhança, cuja
finalidade objetiva é possibilitar a vida em sociedade, mediante respeito aos terceiros,
tratando-os como se familiares o fossem; e cuja finalidade subjetiva é se autorrealizar,
por meio da ajuda ao próximo” (p. 250).
Para nós, a solidariedade implica uma atitude de interesse pela situação alheia,
um tipo de relação em que a pessoa só se realiza na medida em que se empenha na
realização do outro, uma postura que parte da consciência de que do empenho de cada
um depende o bem estar de todos. Assim, está ligada, sim, à ideia de compaixão, de
altruísmo, de comunhão com o próximo; mas é entendida também como princípio
orientador da sociedade.
Agora, qual a natureza do Princípio de Solidariedade e como ele aparece no
discurso da Doutrina Social da Igreja? Qual é a sua relação com o bem comum?
99

1. Da intrínseca sociabilidade...

A pessoa é dependente da sociedade: basta pensar na dimensão afetiva, mas


também na dimensão material da vida - para vir ao mundo, para crescer, para nutrir-se,
para educar-se, para programar-se a si mesma e para realizar seu próprio projeto de
humanidade (MONDIN, 1995). O ser humano recebe a vida da sociedade, desenvolve
os seus conhecimentos e as suas habilidades com a ajuda da sociedade, adquire critérios
estéticos segundo a sociedade a qual pertence. Isto é, ao mesmo tempo em que a
sociedade nasce da pessoa, é uma resultante dela, igualmente é verdade que, de fato, a
pessoa existe e se realiza sempre em sociedade. A pessoa é inseparável da comunidade e
incompreensível sem ela; não existe separadamente dela.
A essência da pessoa é ser relação, abertura ao outro. O ser humano é, a um
tempo, consciência de ser colocado em uma determinada situação espaço-temporal,
histórica, e é, ao mesmo tempo, consciência de que neste lugar não pode realizar em si e
por meio de si tudo o que gostaria.
Segundo Sorge (1998), o ser humano é um ser em relação aos outros. Enquanto
espírito encarnado e finito, o ser humano se encontra associado aos outros espíritos
encarnados e finitos. Por isso, a sua existência e a sua autorrealização são
essencialmente ligadas à existência e à realização dos outros espíritos encarnados que
são o seu próximo. O ser humano é um ser ao mesmo tempo individual e social. “O
homem é, com efeito, por sua natureza íntima, um ser social. Sem relações com os
outros, não pode nem viver nem desenvolver seus dotes” (GS, nº 12).
Avelino (2005) chama a atenção de que já Aristóteles afirmava ser o homem
“um animal cívico, mais social do que as abelhas e outros animais que vivem juntos” (p.
235). Segundo ele, a coesão e permanência da polis assentam na moral social, isto é, na
virtude da amizade entre os cidadãos livres. Afirma Aristóteles:

As sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as partes integrantes da


cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por seus poderes e
funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés
que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a
realidade, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os membros da cidade:
nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens,
ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto. Assim, a
inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade (apud AVELINO,
2005, p. 236).
100

Aristóteles agrega uma finalidade à vida em coletividade ao enxergar na


convivência coletiva uma forma de cada integrante do grupo social poder viver melhor.
A solidariedade ocupou importante espaço no pensamento de Durkheim (1999).
Para ele, há dois tipos de solidariedade: a solidariedade mecânica e a solidariedade
orgânica. A sociedade se encarregaria de produzir crenças e valores comuns a toda a
coletividade. O indivíduo teria apenas um espaço ínfimo para as suas vontades.
Entretanto, a forma como esses sentimentos gerais e particulares se relacionam muda
segundo o tipo de solidariedade social.
O primeiro tipo de solidariedade é característico das sociedades que possuem
maneiras de pensar mais homogêneas. Considerando que cada indivíduo possui duas
consciências - uma individual, que é particular a cada um de nós, e outra coletiva, que
representa os pensamentos compartilhados por um mesmo grupo - Durkheim afirma que
na solidariedade mecânica a consciência coletiva é maior que a consciência individual.
O indivíduo que vive nessas sociedades é mais propício a viver em comunhão com os
outros e a ter os mesmos pensamentos que a coletividade. Sobre esse tipo de
solidariedade, Durkheim (1999, p.107) acrescenta: “A solidariedade que deriva das
semelhanças se encontra em seu apogeu quando a consciência coletiva recobre
exatamente nossa consciência total e coincide em todos os pontos com ela. Mas, nesse
momento, nossa individualidade é nula. Ela só pode nascer se a comunidade ocupar
menos lugar em nós”.
Já na outra forma de solidariedade, a orgânica, ocorre o oposto. A consciência
individual é maior que a consciência coletiva. O indivíduo tende a viver menos em
grupo e a pensar mais a partir de seus próprios pensamentos. A força dos laços que o
prendem à coletividade varia proporcionalmente ao desenvolvimento de suas
potencialidades. Assim, a consciência coletiva, que representa os valores, crenças e
desejos comuns ao grupo, se enfraquece diante do individualismo. Na solidariedade
orgânica, o indivíduo é solidário ao grupo na medida em que se especializa. O todo,
como num organismo, passa a depender cada vez mais da íntima conexão entre as várias
partes que o formam. Cada parte possui uma função definida no seu interior. Na
sociedade, as profissões se tornam interdependentes. Para Durkheim, esse processo
atravessa todo o desenvolvimento do mundo moderno.
Para a sociologia moderna, o indivíduo existe apenas enquanto integrante de
uma espécie que precisa do outro para existir. Para Simmel e Elias, “indivíduo e
sociedade são conceitos complementares não apenas logicamente, mas também em sua
101

realização. A pluralidade dos indivíduos produz, através de sãs relações mútuas, o que
se denomina unidade do todo, isto é, a sociedade, mas aquela pluralidade não seria
imaginável sem esta unidade” (apud WAIZBORT, 1999, p. 104). Isto é, o indivíduo
existe enquanto em relação com os outros e com o mundo externo a ele. Não é fechado
ao mundo exterior, isolado, solitário em seu mundo interior, como uma ilha. Ao
contrário, Elias (2001) concebe o indivíduo como fundamentalmente em relação com
um mundo que não é ele mesmo, com outros objetos e em particular com outros
homens.
Ou seja, o indivíduo coexiste juntamente com outros indivíduos. Somente se
pode pensar o indivíduo como parte de um tecido social mais ou menos coeso em que a
interdependência e a abertura em direção ao outro é uma necessidade (LÉVINAS,
1993).
Já para o pensamento católico, o primeiro círculo da sociabilidade do ser
humano é a família. Nenhum ser vivo é tão dependente dos outros, nos primeiros meses
e anos da infância, como o ser humano que – ao contrário do animal – é desprovido da
segurança do instinto. O animal é condicionado pelas disposições naturais e pelo meio
ambiente, ao qual se acomoda com a segurança que lhe dá o instinto. A mesma situação
repete-se a cada geração animal. O ser humano, porém, por vontade livre, transmite suas
experiências e os seus conhecimentos de geração em geração, por meio da tradição, da
educação e do aprendizado.
A partir daí, as pessoas se organizam na sociedade em grupos e movimentos
dentro de um contexto de comunhão e afinidades, para responder às necessidades
profundas e às exigências originárias de cada pessoa. Este é o fenômeno que se costuma
chamar de comunidades intermediárias.
Dá-se, então, o segundo círculo - o da sociedade -, que se enraíza na pessoa, não
menos do que a família. A sociedade não é externa à pessoa, nem lhe é superior; por sua
vez, nem a pessoa pode existir fora ou acima da sociedade. De fato, a sociedade é
“pessoal” e a pessoa é “social”. Por isso, o Concílio Vaticano II conclui:

A natureza social do homem torna claro que o processo da pessoa humana e o


desenvolvimento da própria sociedade estão em mútua dependência. Com efeito,
a pessoa humana, uma vez que por sua natureza, necessita absolutamente da vida
social, e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais.
Não sendo, portanto, a vida social algo de acrescentado ao homem, este cresce
segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de responder à própria
vocação, graças ao contato com os demais, o mútuo serviço e o diálogo com
seus irmãos (nº 25; destaques nossos).
102

Neste trecho fala-se da primazia absoluta da pessoa, mas que não contrapõe o
indivíduo à sociedade; ao contrário, vislumbra no indivíduo o próprio fundamento da
sociabilidade.

Afirmar o primado da pessoa não significa, portanto, sobrescrever o princípio do


individualismo (...) e considerar o homem sozinho como um absoluto que não
precisa de nenhum outro. Ao contrário, o reconhecimento do primado da pessoa
é intimamente ligado à admissão da transcendência: o homem é sempre mais do
que aquilo que é, e é sempre menos daquilo que deve ser (MONDIN, 1980, p.
198).

Essa característica relacional do ser humano revela a dependência entre o


progresso do ser humano e o desenvolvimento da própria sociedade. Portanto, toda
pessoa tende, por natureza, à doação e à participação, de modo a estar, por sua essência,
orientado para o “tu” e para a sociedade. Diz Bento XVI, em Caritas in veritate: “De
natureza espiritual, a criatura humana realiza-se nas relações interpessoais: quanto mais
as vive de forma autêntica, tanto mais amadurece a própria identidade pessoal. Não é
isolando-se que o homem valoriza a si mesmo, mas relacionando-se com os outros e
com Deus, pelo que estas relações são de importância fundamental” (nº 53).
Para Mounier (2004), as coletividades naturais são reconhecidas na sua realidade
e finalidade própria, diferente da simples soma dos interesses individuais. Elas têm por
fim último, pôr cada pessoa em estado de poder viver como pessoa, quer dizer, em
estado de poder atingir um máximo de iniciativa, de responsabilidade, de vida espiritual.
A sociabilidade é um recurso natural de que o ser humano pode e deve servir-se para
alcançar sua satisfação, sua felicidade; porquanto a sociedade humana existe para ele, e
não o contrário.

Mas esta é somente uma face da moeda. Se olharmos a outra face, parece claro
que a sociedade não constitui uma realidade superior em relação aos indivíduos,
que seriam subordinados como partes de um todo. A sociedade é, pelo contrário,
um organismo essencialmente ao serviço dos indivíduos, por permitir a cada um
deles de realizar plenamente a si mesmos (MONDIN, 1980, p. 196).

Além disso, como explica Mounier (2004), a identidade humana é situada, ou


seja, está constitutivamente inserida no sistema estruturado e solidário das relações
sociais, interagindo com um ethos que precede o indivíduo e socializa-o. Portanto, o
homem, todo homem, é um ser estruturalmente carente e aberto à relação com o
diferente de si.
103

Pertencer a uma comunidade é constitutivo e estrutural da identidade humana,


não um dado acessório ou opção eventual, voluntarista. O fraco, o carente, não
representa um homem menor, mas constitui o ícone do homem em si, por manifestar
plenamente a abertura estrutural que todo homem tem à relação com os outros, dos
quais tem necessidade a fim de formar uma identidade para si e a fim de viver. Nem
mesmo o indivíduo aparentemente mais forte e mais independente pode deixar de
reconhecer uma dívida para com a comunidade (em suas várias articulações, a começar
da família), na qual pôde desenvolver sua personalidade (MOUNIER, 2004).
Podemos assim pensar numa espécie de dívida antropológica (cf. CDSI, nº 195)
do indivíduo para com a comunidade que – e este é o ponto crítico – se reflete nas
formas de reconhecimento e garantia da liberdade individual. Portanto, antes do
indivíduo existe necessariamente uma comunidade, entendida como rede de
relacionamentos, tecido de relações que sustenta o próprio indivíduo e permite seu
desenvolvimento.
Já para Maritain (1963), asseverar que o homem é pessoa quer dizer que no
fundo do seu ser ele é um todo mais do que uma parte, e mais independente que servo:
“a pessoa como tal é um todo. Dizer que a sociedade é um todo composto de pessoas é
portanto dizer que a sociedade é um todo composto de tantos todos” (pp. 34-35;
destaque no original).
É um ser absoluto, indivisível, uma totalidade, não pode ser considerada parte de
um todo, ou seja, a pessoa não é parte da família, do Estado, da comunidade, da nação.
Cada homem é um universo, um “microcosmo”, um vasto centro de qualidades e de
valores.
As pessoas têm a substância. A sociedade não tem a substância. A sociedade não
é fruto das livres autotranscendências das pessoas, de suas livres autorrealizações, de
seus livres autodesenvolvimentos, de suas expansões em direção aos outros, de suas
comunicações, de seus associar-se. “Toda a vida social é expressão do seu
inconfundível protagonista: a pessoa humana” (CDSI, nº106).
Escreve Sofia Vanni Rovighi,

Recordamos a definição habitual de sociedade como união moral e estável de


mais indivíduos que tendem a um mesmo fim. A sociedade civil nasce da
necessidade do homem de conseguir seus fins, ligados com bem essencial da sua
natureza, que não poderia conseguir se vivesse isolado. O fim da sociedade é o
bem comum de seus membros. O fim da sociedade é o bem comum na ordem
temporal (...). A sociedade civil não é um ente físico, ou seja, não é uma
substância existente por conta própria, independentemente dos indivíduos que a
104

compõem: quem existe e quem opera é sempre e somente o indivíduo (...). O que
é a sociedade? É uma unidade de relação; é um complexo de relações entre os
indivíduos que a compõe (...). Ora, a relação em virtude da qual o indivíduo
humano faz parte da sociedade é uma relação real, pois o ser em sociedade põe
no indivíduo qualquer coisa a mais, algo de novo em relação ao que seria se
vivesse isolado. O individuo que vive em sociedade é enriquecido de muitas
qualidades, de muitos bens que o indivíduo isolado não tem; então a relação
entre os indivíduos que constituem a sociedade são relações reais (pp. 237-238;
destaque no original).

Desse modo, diz Höffner (1986), no pensamento católico são rejeitados como
princípios de ordem social, tanto o individualismo que nega a natureza social do homem
e vê na sociedade um mero conglomerado utilitarista, pretendendo um nivelamento
mecânico dos interesses individuais, como também o coletivismo que despoja o ser
humano de sua dignidade pessoal, rebaixando-o a mero objeto de processos sociais,
principalmente econômicos.
Há um passo a mais. A vida social remete à ideia de outro que não sou eu nem
meu grupo social, mas o diferente diante do qual tenho deveres e responsabilidades, e
não somente direitos a opor. Ocorre aqui o que Tosi (2009) identifica como a superação
de uma lógica meramente identitária, em direção a um reconhecimento efetivo da
alteridade, da diversidade e da reciprocidade. É nossa condição humana, enquanto seres
não totalmente predeterminados pela natureza, que se constrói necessariamente em um
confronto intersubjetivo entre um eu e outro, e entre nós e os outros.
De acordo com Tosi (2009), a identidade é construída na relação dialética entre
subjetividade e alteridade. Essa relação pode ser meramente negativa: o outro é visto
como um não-eu, o diferente de mim. Se a alteridade permanecer nesse nível, o outro se
tornará o inimigo, o adversário, aquele que é hostil e do qual se deve desconfiar. A
dialética entre subjetividade e alteridade não pode ser suprimida, porque é parte
constitutiva da construção da nossa identidade; mas tal dialética não significa que o
outro deva ser visto necessariamente como inimigo, desconhecendo a condição humana
comum em que todos estamos. Essa dialética, para Tosi, é parte integrante do processo
de reconhecimento social e valem tanto nas nossas relações individuais no cotidiano,
quanto nas relações entre grupos, classes, povos, Estados e civilizações.
A violência nasce com a desqualificação do outro, a retirada do outro de suas
características humanas, para colocar em evidência os aspectos negativos e, assim,
desumanizá-lo. Esse procedimento pode levar até ao aniquilamento do outro, quando
este é visto como inimigo absoluto, como no caso extremo do nazismo e da solução
105

final para o povo judeu e outros indivíduos e grupos sociais considerados inferiores
(TOSI, 2009).
Como superar essa dialética negativa da alteridade? Promovendo uma dialética
da intersubjetividade, na qual o outro não seja reconhecido como um inimigo, ou seja,
simplesmente como um não-eu, mas como outro eu: “eu mesmo como outro”.
Reconhecer o outro como a mim mesmo significa superar uma dialética puramente
negativa da alteridade, para alcançar o reconhecimento comum de pertença, que é parte
da nossa condição humana. Por isso precisamos reconhecer no outro o que há em
comum com a nossa condição humana: todos sofremos as mesmas dores, todos temos o
mesmo corpo, todos sentimos os mesmos sentimentos, todos precisamos de
reconhecimento social e afetivo, ser reconhecidos em nossa identidade e diversidade.
É por meio do reconhecimento do outro que nos identificamos, é por meio da
solidariedade que nos responsabilizamos. “Ninguém deve permanecer em si: a
humanidade do homem, a subjetividade, é uma responsabilidade pelos outros, uma
vulnerabilidade extrema” (LÉVINAS, 1993, p. 124).
Por isso, o outro interessa porque a pessoa não pode se realizar sem ele. Por seu
caráter relacional, o ser humano precisa manter-se em relação, precisa encontrar o outro.
A pessoa é sempre busca por outro que a complete: é a consciência do eu que,
intencionalmente, pede o tu, para viver como nós.
Além disso, o ensinamento social católico igualmente acentua a subjetividade do
caráter relacional da pessoa e, em consequência, a necessidade de entender que a
sociedade, longe de ser resultante automática ou mecânica do ser humano, animal
social, deve ser construída pelo caminho da consciência, da liberdade e da virtude das
pessoas que a compõe. Isso explica o fato de que as sociedades são tão diferentes quanto
as próprias pessoas, o que requer a aceitação e até a valorização de um pluralismo sadio
(cf. CDSI, nº 151).
De toda forma, a vida social é o lugar no qual a pessoa pode obter
aperfeiçoamento, seja pela comunicação que estabelece entre as pessoas, seja pela
natural interdependência que se institui quase como que impondo a todos o diálogo e a
ajuda.
Assim, identificamos a primeira manifestação da solidariedade: não podemos
nos desprender dela, pois é parte intrínseca do nosso ser no mundo, o que nos faz nos
relacionar com os outros. Porém a solidariedade deve ser entendida além.
106

2. ... à solidariedade como virtude moral

Se conseguimos olhar o outro como outro eu, diz Giussani (2001), toda pessoa
de boa vontade, diante da dor e da necessidade, começa imediatamente a agir, mostra-se
capaz de generosidade. Essa generosidade é estar junto do outro em suas necessidades,
oferecendo companhia, afeto, compartilhando os bens, renunciando ao que
legitimamente temos alcançado ou ao que possuímos, a fim de que o outro possa ter um
mínimo necessário; é estar junto ao outro também para compartilhar com ele suas
alegrias, seus triunfos, suas realizações. De fato, exemplifica o autor, quando há algo de
grande e belo em nós, nos sentimos impulsionados a comunicá-lo aos outros. Ou
quando vemos outras pessoas que estão em uma situação pior do que a nossa, sentimo-
nos impelidos a ajudá-las, compartilhando algo que é nosso. Nos capítulos finais,
veremos como esse fator foi importante para o início da ATST, principalmente na
experiência de seus fundadores.
A meta é o mútuo compartilhar e participar dos valores pessoais. A pessoa é
essencialmente abertura e comunicação.

A pessoa é constitutivamente um ser social (GS, nº12) porque assim quis Deus
que a criou. A natureza do homem se patenteia, destarte, como natureza de um
ser que responde às próprias necessidades com base numa subjetividade
relacional, ou seja, à maneira de um ser livre e responsável, o qual reconhece a
necessidade de integrar-se e de colaborar com os próprios semelhantes e é capaz
de comunhão com eles na ordem do conhecimento e do amor (...). A vida social,
portanto, não é algo de exterior ao homem: este não pode crescer e realizar a sua
vocação senão em relação com os outros (CDSI, nº 149; destaques no original).

Para Mondin (1995), a capacidade de abertura e comunicação confere à pessoa a


possibilidade de viver a própria coexistência na forma de proexistência: de transformar
o viver com os outros em um viver para os outros, em um ser para os outros.

(...) a sociabilidade humana não desemboca automaticamente na comunhão das


pessoas, no dom de si (...). Toda sociedade digna desse nome pode considerar
estar na verdade quando cada membro seu, graças à própria capacidade de
conhecer o bem, persegue-o para si e para os outros. É por amor do bem próprio
e de outrem que se dá a união em grupos estáveis, tendo como fim a conquista do
bem comum. Também as várias sociedades devem entrar em relações de
solidariedade, de comunicação e de colaboração, a serviço do homem e do bem
comum (CDSI, nº 150; destaque no original).

A proexistência é a generosidade e a dedicação. É preocupar-se pelo outro mais


do que por si mesmo. Para que a proexistência possa se tornar um traço dominante da
pessoa é necessário um forte empenho da vontade e o exercício do cotidiano. A
107

proexistência que ajuda a realização dos outros faz bem para o próprio proexistente:
consolida, enriquece, torna maior, mais nobre, mais feliz a sua vida; constitui também o
caminho principal da própria autorrealização. Por isso, continua Mondin (1995), quanto
mais a pessoa se empenha em dar espaço à humanidade do outro, tanto mais cresce na
própria humanidade.
Assim, por exemplo, mediante essas relações a pessoa se conhece e conhece o
outro. As relações entre pessoas podem se reduzir a um simples encontro ocasional e
passageiro, ou então criar elos duradouros que se convertem e fundamento da vida em
sociedade. E Modin (1995) cita exemplos, mostrando que um pai, uma mãe, uma
esposa, um marido, um professor, um amigo, um soldado etc. são muito mais satisfeitos
e felizes e, portanto, se consideram tanto mais realizados quanto maior são os sacrifícios
e as renúncias que souberem enfrentar e suportar por amor dos filhos, do cônjuge, dos
amigos, dos pobres, da pátria.
É o reconhecimento do outro como respeito que se deve a cada um, somente
pelo fato de ser pessoa. O homem, livre, escolhe entre ser solidário ou não ser solidário.
Por isso é possível falar de solidariedade como virtude moral, valor, que vem da
consciência racional dos interesses em comum, que implica a cada um, antes de tudo, a
obrigação moral não apenas de não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja
feito, mas também de afirmar o verdadeiro valor da solidariedade: fazer aos outros o
que deseja que lhe faça.
Hume (apud Avelino, 2005) fala da satisfação em ajudar ao outro.

temos uma ideia viva de tudo que tem relação conosco. Todas as criaturas
humanas estão relacionadas conosco pela semelhança. Portanto, suas existências,
seus interesses, suas paixões, suas dores e prazeres devem nos tocar vivamente,
produzindo em nós uma emoção similar à original – pois uma ideia vivida se
converte facilmente em uma impressão. Se isso é verdade em geral, quanto mais
no que diz respeito à aflição e à tristeza, que exercem uma influência mais forte e
duradoura que qualquer prazer ou satisfação (p. 250).

Hume vai dizer também que esta identificação do indivíduo com o outro e de um
natural impulso de benevolência nasce no sentimento de simpatia, entendida como “a
inclinação natural de agradarmo-nos com a felicidade dos outros e sentirmos
desconforto com seu sofrimento” (apud AVELINO, 2005, p. 42).
Entretanto, do que falamos até aqui, corre-se o risco de entender a solidariedade
somente ligada ao campo das emoções. É comum reduzirmos a solidariedade a uma
sensibilidade para com os menos favorecidos, o que nos parece um equívoco.
108

É claro que a solidariedade exige atitudes de apoio, atenção e de cuidados para


com os outros; exige abertura ao diálogo, aceitação do outro e tolerância. Tais atitudes
podem aparecer quase que espontaneamente nas grandes catástrofes, por exemplo, onde
são mobilizados grandes contingentes de recursos e de pessoas que se sentem
compelidas a proteger e atender aos que ficam desamparados. É louvável que ações
como essas aconteçam. No entanto, tal solidariedade pode esgotar-se em atitudes
pontuais, que no fim não modificam as estruturas e os comportamentos.
A responsabilidade sobre e da sociedade exige mais do que a presença –
necessária – em certos momentos e episódios. Trata-se, com efeito, de compromisso
com os interesses do coletivo. É nesse contexto que se fala hoje na reconstrução do
ideário de solidariedade.
O que se espera é a modificação das atitudes, comportamentos. E que possa se
transformar em cultura.

Não se trata de ser generoso, de fazer beneficência nem de prática filantrópica,


nem de abraçar a causa do assistencialismo. Trata-se, antes, de conhecer e viver
a dimensão do doar-se e do dom aos outros como essenciais à substância e à
existência da pessoa. A “cultura do dar” engloba uma visão de conjunto – o
homem em seu relacionar-se como centro e fim de toda atividade e realidade – e
toda uma série de atitudes e comportamentos que qualificam as relações
humanas e as orientam para a comunhão, nesse caso, sinônimo de unidade. De
modo que tudo seja dom e doar-se contínuos. A verdadeira identidade da criatura
humana exprime-se em ser dom em todas as expressões de seu viver, em estar
sempre na posição de doar, de dar. Essa autêntica arte de dar libera toda uma
gama de valores que qualificam o ato de dar: gratuidade, alegria, generosidade,
desprendimento; e isenta-o de riscos e perigos de ser mal entendido ou
manipulado. Da reciprocidade dessas relações nasce a comunhão, a unidade
(Araújo apud Bruni, 2005, p. 33).

Ou seja, ajudar uma pessoa com o espírito da solidariedade é muito mais


complexo do que dar comida a um mendigo que bate a campainha para pedir um pedaço
de pão. Se quisermos ajudar o mendigo que bate a campainha, na ótica da solidariedade,
não podemos nos contentar em mandá-lo embora após ter-lhe dado um pedaço de pão;
devemos nos ocupar dele, conhecer sua vida, e não nos dar por satisfeito enquanto ele,
se tem condições, não tiver trabalho. Quer dizer, da mesma maneira que a solidariedade
não deve ser entendida apenas como uma emoção ou uma reação imediata a uma
situação, não podemos entendê-la somente como o conceder gratuitamente bens
econômicos frente a situações de emergência, ou dar aquilo que sobra. Ser solidário
com o outro não é apenas fazer por, mas fazer com – dentro, evidentemente, das
possibilidades reais de cada um.
Giussani (2001), falando de outro modo, chama a atenção justamente para isso.
109

Porém, para além da generosidade, embora esta seja louvável, suas tentativas de
resposta às necessidades do momento correm o risco de ter um derradeiro véu de
autocomplacência ou, então, uma derradeira sombra de tristeza. A contribuição
da pessoa de boa vontade talvez resolva o problema naquele momento; “mas, e
se depois?...” Depois, nada impede que possa aparecer outra dor ou uma nova
necessidade (p. 123).

Essa tristeza pode ser superada pela consciência de pertencer. Assim, para o
filósofo italiano, a solidariedade, embora seja uma característica instintiva da natureza
humana, não faz história, não cria obras por continuar a ser uma emoção ou uma
resposta reativa a uma emoção. A emoção não constrói. O que constrói é um pertencer a
uma realidade religiosa ou a uma ideologia que o eduque e que estrutura o ímpeto da
generosidade e torna seus efeitos mais permanentes. Porque diante da dor, qualquer
pessoa instintivamente tem um sentimento de piedade, de compaixão e é levada à
solidariedade. Mas isso não cria um sujeito. Só a consciência de pertencer faz de uma
pessoa um sujeito. É significativo que na experiência da ATST seus fundadores citam a
educação constante e a experiência de pertencer à Igreja, por meio inicialmente da
Pastoral da Moradia, como fundamentais para suas ações hoje. E aí o homem se torna
criador, isto é, idealizador e realizador de obras.

Nesta percepção de si, o indivíduo, solicitado na sua capacidade de compaixão


pelo encontro com uma necessidade humana, adquire uma educação, estabiliza-
se num habitus permanente: começa a compreender que, do mesmo modo como
se comporta diante da necessidade, deve comportar-se diante de sua mãe, de seu
pai, de sua esposa, do marido, dos filhos, de todos. Quando o compromisso com
a necessidade não permanece mera reação de compaixão (...) o homem tornar-se-
á companheiro de caminho para o outro homem (GIUSSANI, 2001, pp. 125-
126).

Pertencendo, a pessoa faz a experiência de uma coesão, de uma coerência das


coisas, na qual sua vida se situa, adquirindo um significado positivo – a percepção de
algo maior e mais forte do que o mal e a angústia do presente.
Quanto mais um sujeito for vivo e consciente, quando solicitado por qualquer
necessidade, mais responderá segundo uma preocupação total (GIUSSANI, 2001). Quer
dizer, quando a pessoa pertence a um lugar que a educa, a caridade não se limita mais
ao particular que o comove, mas tende a se encarregar da totalidade do contexto.
São esses lugares que educam a uma cultura do dar, supracitado. Segundo Bruni
(2005), a cultura do dar é uma cultura do dar-se e da gratuidade14, e significa formar e

14
Bruni (2005) define assim a gratuidade: “atitude interior que me conduz a me aproximar de cada
pessoa, de cada ser, de mim mesmo, sabendo que aquela pessoa, aquele ser vivo, aquela atividade, eu
110

formar-se de modo a permitir a interiorização de comportamentos assumidos, não pelos


benefícios que trazem, mas pelo valor intrínseco que lhes é atribuído, depois de ter
experimentado, na própria vida, sua bondade e veracidade. Também aqui se identificam
elementos presentes na experiência da ATST, principalmente pelos testemunhos de
alguns coordenadores que dizem fazer seu trabalho depois de experimentar um cuidado
dos fundadores com eles, como veremos depois.
Quando se fala de cooperação e comunhão, é presença da cultura do dar que
torna possível a não-condicionalidade, cultura que produz uma recompensa intrínseca e
faz com que sigamos em frente, mesmo quando não somos correspondidos. A
comunhão implica reciprocidade, mas a reciprocidade típica da comunhão será
alcançada quando cada um, pela cultura que o anima, estiver disposto a agir também de
modo não-condicional. Portanto, a comunhão é a experiência social mais intensa e
envolvente que se possa imaginar e, ao mesmo tempo, é a realidade mais necessitada
das escolhas livres de cada pessoa individualmente (BRUNI, 2005). Assim, a
responsabilidade e, consequentemente, liberdade são componentes essenciais.
De toda forma, a comunhão não é, pois, uma realidade de um grupo que cancela
as diferenças pessoais. Ela nasce muito mais das escolhas, dos valores interiorizados e
da responsabilidade de cada um.
Além do mais, há outro ponto importante: o fato de dizer que ser solidário é
natural ou intrínseco ao ser humano não é o mesmo que dizer que ser solidário é um
comportamento automático. Afinal, é verdade que existem seres humanos que matam,
exploram, torturam, poluem ou destroem a natureza, desencadeiam perseguições etc. Ou
seja, é evidente que a sociedade não é um lugar livre do erro e/ou do egoísmo do
homem, assim como não o são o mercado e o Estado.
A existência de conflitos no interior de um grupo e entre eles, por exemplo, é
uma característica perene da vida social, um componente essencial da interação em cada
sociedade conhecida. Assim, na ótica do Princípio de Solidariedade, não se pretende
eliminar os conflitos, mas compreendê-los, em particular quando se tornam prejudiciais
ou disfuncionais ao bem comum.
Além disso, construir ou formar comunidades, aliás, é o grande desafio
atualmente, marcado por um ambiente predominantemente individualista. Inclusive a

mesmo, não somos coisas para usar, mas que se deve estabelecer com elas uma relação, respeitando-as e
amando-as” (p. 47).
111

Associação dos Trabalhadores Sem Terra, como veremos mais adiante, tem como maior
dificuldade justamente este ponto. Bauman (2001) propõe o termo “comunidade
cabide”, que capta bem alguns dos traços mais característicos das comunidades em
tempos de modernidade líquida, em que as relações humanas não são mais tangíveis e a
vida em conjunto - familiar, de casais, de grupos de amigos, de afinidades políticas etc.-
, perde consistência e estabilidade, pois tudo é volátil.

Os frequentadores de um espetáculo se vestem para a ocasião, obedecendo a um


código distinto do que seguem diariamente – o ato que simultaneamente separa a
visita como uma “ocasião especial” e faz com que os frequentadores pareçam
enquanto durar o evento, mais uniformes do que na vida fora do teatro. É a
apresentação noturna que leva todos ao lugar – por diferentes que sejam seus
interesses e passatempos durante o dia. Antes de entrar no auditório, deixam os
sobretudo ou capas que vestiram nas ruas no cloakroom da casa de espetáculos...
Durante a apresentação, todos os olhos estão no palco; e também a atenção de
todos. Alegria e tristeza, risos e silêncios, ondas de aplauso, gritos de aprovação
e exclamações de surpresa são sincronizados – como se cuidadosamente
planejados e dirigidos. Depois que as cortinas se fecham, porém, os espectadores
recolhem seus pertences do cloakroom e, ao vestirem suas roupas de rua outra
vez, retornam a seus papéis mundanos, originários e diferentes, dissolvendo-se
poucos momentos depois na variada multidão que enche as ruas da cidade e da
qual haviam emergido algumas horas antes. Cloakroom communities
[comunidades cabide] precisam de um espetáculo que apele a interesses
semelhantes em indivíduos diferentes e que os reúna durante certo tempo em que
outros interesses – que os separam em vez de uni-los – são temporariamente
postos de lado, deixados em fogo brando ou inteiramente silenciados (Bauman,
2001, p. 228; destaque no original).

Ou seja, perde-se o sentido de engajamento coletivo e duradouro – permanente –


e dá vazão ao indivíduo solitário que precisa despender pouco tempo para dizer-se
comunitário, voltando logo para sua atmosfera individual de escolhas.

Essa característica do gueto torna a política de exclusão incorporada na


segregação espacial e na imobilização de uma escolha duplamente segura e a
prova de riscos numa sociedade que não pode mais manter todos os que podem
jogar ocupados e felizes, e acima de tudo obedientes (BAUMAN, 2003, p.111).

Bauman (2001) enfatiza um desengajamento análogo nos comportamentos,


vendo na mobilidade, no deslocamento incessante, a quintessência do poder nas
sociedades contemporâneas. Descrevendo a atmosfera do funcionário e seu modo de
vida, o trabalho, a cidade, Bauman percebe que “nada permanece parecido, imutável,
durante muito tempo, nada dura o suficiente para se tornar familiar, acolhedor e
tranquilo” (p.46). Em resumo, observa Bauman, esmaece, desaparece “tudo o que é
contínuo, estável e sólido (...) o que sugeria a existência de um quadro social durável,
112

seguro, pacífico e pacificador. Esmaece, ainda, a certeza de poder se rever


regularmente, com frequência e durante muito tempo” (BAUMAN, 2001, p.47).
Todas essas observações constituem, pode-se dizer, “os fundamentos
epistemológicos da experiência da comunidade. Ficamos tentados a dizer de uma
comunidade estreitamente unida” (BAUMAN, 2001, p.47). É tal experiência que agora
faz falta, é sua ausência que explica o declínio da comunidade: a falta de expectativas,
de elãs; os vínculos da comunidade tornaram-se pouco a pouco consumíveis,
“perecíveis” (2001, p.48).
Dick Pountain e David Robins pensam que o descomprometimento, o
desengajamento, o frio, definem no presente o espírito do tempo. “Cool significa a
capacidade de fugir, de escapar dos sentimentos, de viver em um mundo fácil, que
questiona e recusa os vínculos possessivos” (apud BAUMAN, 2001, pp.51-52). Os
engajamentos duráveis, que constroem vínculos, em que a individualidade é valorizada
pela exigência, foram substituídos por encontros breves, banais e intercambiáveis,
encontros em que as relações começam tão rápido quanto terminam.
Os vínculos são mais frágeis e efêmeros. Hoje, o estar junto tende a ser breve, de
curta duração e desprovido de projetos: o desengajamento aparece assim como um novo
modo de poder e dominação. O comportamento das elites aparece imediata e
fundamentalmente como “a capacidade de escapar da comunidade” (BAUMAN, 2001,
p.57).
A solução para enfrentar esses desafios passa, sem ingenuidade, por uma
educação contínua das pessoas. E quem educa deve acreditar firmemente na
solidariedade incorporando a ela uma parte de sua identidade e de sua autoestima, e que
mostre que está de acordo com a cultura do grupo a que pertence, aparecendo como uma
pessoa generosa e sensata (PERRENOUD, 2003), capaz de construir de fato uma
comunidade.
Bauman (2003, p. 134) fala de uma comunidade ética: “Se vier a existir uma
comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e precisa sê-lo) uma comunidade
tecida em conjunto a partir do compartilhamento e do cuidado mútuo; uma comunidade
de interesse e de responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e
igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos”.
A sociedade pode ser um espaço para a redescoberta das necessidades estruturais
humanas, onde se ajuda a todos, de um modo infindável, a crescer, a alcançar uma
percepção de si mesmo e da realidade, para educar o próprio humano, defendendo-o
113

contra as reduções da própria pessoa. A conciliação entre os interesses individuais e o


bem geral não ocorre por meio de coerção e repressão, mas por meio de contínua
educação, a fim de experimentar a correspondência entre suas necessidades estruturais –
desejo de verdade, justiça, beleza e bem, que falávamos no capítulo anterior - e a
realidade.
A questão que se coloca, então, é como convencer uma pessoa a aderir
livremente a uma proposta de diálogo e de encontro. Experiências humanas –
diferentemente de experimentos científicos – não são impostas ou normatizadas nem
podem ser deduzidas logicamente. Elas só podem ser vividas e testemunhadas. Por isso
uma postura realmente dialogante não pode acontecer por meio da imposição de
discursos, mesmo que formalmente corretos. A questão é reconhecer que o caráter
relacional e a realização junto com o outro, ou por meio do outro, são constitutivas de
nós mesmos – correspondem a uma tendência interna do ser humano, e não a uma
pressão do meio externo (RIBEIRO NETO, 2010). Isso pressupõe uma natureza
humana como ser socialmente constituído. A questão de como motivar o outro a se pôr
numa postura de encontro e de diálogo, pode ser agora posta em termos de como
despertar cada um o interesse pela própria natureza humana, reconhecendo a
diversidade inerente a essa mesma natureza.
Por causa dessa educação à solidariedade e à cultura do dar é que João Paulo II
fala da necessidade de criar uma ampla rede de solidariedade, de tal maneira que todas
as necessidades humanas, na medida em que nos é possível atendê-las, posam encontrar
uma resposta (cf. LE, nº 8). Os homens alcançam sua felicidade e seu destino não como
indivíduos separados, mas como membros coordenados, ligados pela responsabilidade
solidária de uns pelos outros, como usufrutuários mútuos.
Até aqui falamos de uma educação para a pessoa agir ou viver de maneira
solidária em relação aos outros. Mas há outra situação que a educação para a
solidariedade deve abarcar: se é verdade que a sociedade é feita de associações que na
maioria dos casos são voluntárias – de fato, se fala de “voluntariado” -, no qual sujeitos
se juntam livremente para desenvolverem ações comuns, é igualmente verdade que
existem também associações involuntárias que não podemos deixar de considerar. Por
exemplo: não se escolhe a família na qual se nasce, não se escolhe a comunidade na
qual se vive, às vezes não se escolhe a própria cultura. Uma mulher que nasce em uma
cultura em cujo contexto familiar mulheres são privadas de diversos direitos básicos e
opções de escolha, nem ao menos de frequentar a escola, de ter uma profissão, por
114

exemplo; ou uma criança que nasce em um lugar cuja casta é privada de certos direitos.
Em ambos os casos haverá uma liberdade de escolha muito limitada sobre a própria
vida. Quer dizer, nascendo em determinados contextos culturais, mesmo as associações
involuntárias correm o risco de ser opressivas.
Claro que citamos dois exemplos extremos, mas é fácil perceber como também
em uma família ou comunidade consideradas “normais”, religiosas, instruídas podem
ser verificadas opressões, injustiças. Assim, do mesmo modo, eventos similares podem
ser verificados no interior de quaisquer outras formas de associação.
O indivíduo está, sim, em relação e o desenvolvimento da sua individualidade
depende das suas relações sociais. Somos animais sociais, portanto o indivíduo deve
estar em condições de desenvolver a própria potencialidade e a própria personalidade
por meio das comunidades que nasce, vive, cresce e escolheu aderir. Entretanto, ele
deve ser educado e dotado de recursos que o permitam sair das associações quando elas
não respondem mais ao seu “programa de vida”. Isto é, o “programa de vida” de um
indivíduo, a perseguição daquilo que ele identifica como bem para ele mesmo, é uma
escolha individual.
A verdadeira natureza da solidariedade é a que nasce de um trabalho
compartilhado de uma obra comum, onde todos se sentem protagonistas de suas
respectivas sociedades e de suas próprias vidas, com autonomia e liberdade. Este é outro
desafio para uma sociedade solidária. Nos últimos capítulos indicaremos como a ATST
enfrenta essa questão.

3. A solidariedade como princípio

A solidariedade, no entanto, ainda pede um passo a mais, sem descartar o fato de


ser intrínseca à pessoa e de ser um valor/virtude moral que necessita de uma educação.
A solidariedade procura institucionalizar-se, para oferecer garantias de continuidade e
estabilidade. A solidariedade deve ser entendida como um instrumento ou princípio
voltado para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se
desenvolva de maneira justa e livre, sem excluídos e marginalizados.
Aristóteles, aliás, foi o autor que sistematizou o conceito de “amizade cívica”.
Para ele, há vários níveis de amizade: uma fundada na utilidade, outra no prazer, outra
ainda na benevolência – que seria a amizade em sentido próprio. Na benevolência
coexistem as demais, mas nas demais, sem a presença da benevolência, não subsiste a
115

amizade. A amizade é uma das três dimensões do amor – eros, ágape, philia –
compondo a unidade da pessoa. Para Aristóteles, a amizade – philia – é uma forma de
amor e o maior dos bens para as cidades, pois resulta na unidade. A philia, deste modo,
está relacionada a uma atitude na polis que garante o bem comum excedendo o âmbito
privado para o público e suas relações. A essa amizade cívica Aristóteles denominou
homonia, termo que foi traduzido posteriormente por concórdia (AVELINO, 2005).
O Princípio de Solidariedade se classifica em dois tipos: a solidariedade
horizontal15, que constitui na ajuda recíproca entre sujeitos diferentes e surge do socorro
mútuo prestado entre as pessoas, seja pertencente ao âmbito social, seja do mesmo nível
institucional, limitando-se o Estado a oferecer-se como fiador externo16; e a
solidariedade vertical, que se expressa nas formas tradicionais de intervenção e ação do
Estado social, ou seja, alude à ação direta dos poderes públicos com a intenção de
reduzir as desigualdades sociais e permitir o pleno desenvolvimento da pessoa humana
(GALEOTI, 2006; PIZZOLATO, 2008).
A acolhida do outro na esfera da comunidade é, sem dúvida, uma das funções do
Princípio de Solidariedade, pois a abertura de tal esfera nos leva a um compromisso
com o universal, que transcende as referências de nossa identidade comunitária básica.
Daí o porquê de o Princípio de Solidariedade, conforme enfatiza Rosales (1992), ter o
sentido de promover a defesa das necessidades sociais primárias individuais e coletivas,
bem como também o de dar “capacidade operativa nas plataformas institucionais de
negociação e decisão política” (p. 92). Significa dizer, por exemplo, que o Princípio de
Solidariedade se realiza totalmente quando os trabalhadores não são apenas solidários
em suas organizações sindicais, mas também à medida que colocam exigências à
política para todos.
O Princípio de Solidariedade também está intimamente ligado aos direitos
humanos, sendo denominado por alguns autores como “direitos de solidariedade”.

A solidariedade requer assumir uma perspectiva especial, que poderíamos


denominar como a lógica da ação coletiva, ou melhor, assumir como próprios
também os interesses do grupo, quer dizer, do público, do que é de todos, e essa
propriedade comum acarreta por si mesma o dever de contribuir, de atuar
positivamente para sua eficaz garantia, na medida em que se trata de uma

15
Alguns autores preferem o termo fraternidade, como Baggio (2008). Há estudos que diferenciam
solidariedade e fraternidade. Preferimos seguir Pizzolato (2008) que relaciona e identifica a fraternidade
como solidariedade horizontal.
16
Algumas formas de solidariedade horizontal se desenvolveram por meio de movimentos históricos
concretos, no âmbito das organizações sociais, de defesa dos direitos humanos e, em particular, dos
direitos dos trabalhadores, e também como iniciativas econômicas.
116

responsabilidade de todos e de cada um: se se pensa, por exemplo, no patrimônio


cultural, no meio ambiente, é quando nos encontramos precisamente com os
“direitos de solidariedade”, os que têm sua origem na concepção da vida em
comunidade e cuja efetividade só é possível mediante uma conjunção de esforços
(JAVIER DE LUCAS, 1994, p. 13).

Segundo Aquini (2008), o Princípio de Solidariedade responsabiliza cada


indivíduo pelo outro e, consequentemente, pelo bem da comunidade, e promove a busca
de soluções para a aplicação dos direitos humanos que não passam necessariamente
todas pela autoridade pública, seja ela local, nacional ou internacional. A consequência
disso é uma valorização das entidades associativas e econômicas voltadas à busca da
ampliação das liberdades civis e políticas e, ao mesmo tempo, à melhoria das condições
econômicas e sociais. Um melhor nível cultural, educacional ou de geração de emprego
pode ser alcançado pelo concurso de diferentes forças, responsavelmente solidárias, no
interior de cada comunidade a que alguém pertence e na comunidade mundial. Para
Aquini, o Princípio de Solidariedade leva ao crescimento, potencialmente muito amplo,
do número de sujeitos sobre os quais recai a responsabilidade pelo desenvolvimento e
pelo dever de cooperação. Esse crescimento conjuga-se com a necessidade – percebida
no atual contexto internacional – de fazer que os atores da sociedade civil sejam
protagonistas dos processos de desenvolvimento, já na definição dos objetivos em nível
nacional e internacional, e não apenas executores de planos decididos na esfera
intergovernamental.
No Manifesto Solidarista, Ávila (1997) defende a força das comunidades.

A reforma solidarista é uma reforma comunitária. O Solidarismo pretende deferir


às comunidades reais, em todos os níveis em que se realizam, a hegemonia do
processo histórico. Esta não pode caber nem ao capital nem ao Estado, órgão de
poder de um partido único (...). Os destinos sociais econômicos, deferidos às
comunidades locais, às comunidades de vizinhos, às comunidades de trabalho, às
comunidades de grupos. A grande ênfase do Solidarismo sobre a comunidade se
explica. A comunidade é aquela realidade social da qual a pessoa humana
participa na especificidade do seu ser, enquanto ser racional e livre. Como ser
racional e livre, o homem pensa e quer. A comunidade é o lugar natural onde os
homens pensam e querem juntos. Projetam e decidem juntos em função do bem
comum. Esse é concebido precisamente como o conjunto de condições
concretas, nas quais e pelas quais cada pessoa humana pode realizar os seus
direitos naturais, obedecendo a seus deveres naturais. Da comunidade o homem
participa não pelo que tem, mas pelo que é. A comunidade é a grande descoberta
e a grande força do Solidarismo.

Assim, o Princípio de Solidariedade propõe-se a compreender quem é o outro


sujeito com o qual se deve cooperar, com todas as suas características, potencialidades e
riquezas, limites e necessidades, dando atenção aos aspectos do desenvolvimento
117

global, não apenas econômico, a que se deve propor tanto um Estado quanto a
comunidade de um pequeno povoado, tanto um núcleo de educação quanto uma
cooperativa de pesca (AQUINI, 2008).
O conceito de cidadania ativa é fundamental para o reestabelecimento do
Princípio de Solidariedade. Javier de Lucas (1994) afirma:

Com efeito, o que quero colocar em relevo é que essa recuperação da


solidariedade como princípio normativo característico do Estado social não é
incompatível – ao contrário – com uma visão ativa da cidadania, com a qual se
pode qualificar como “a hora dos cidadãos”, a hora de sua responsabilidade, da
tomada e consciência de que seu protagonismo ativo na vida pública não se
concretize somente no controle do exercício dos poderes, mas também em
assumir as cargas, as responsabilidades e deveres que derivam da existência de
tal vida pública, e que não podem ser vistas apenas como tarefas da
Administração a partir das contribuições de tipo econômico que os cidadãos
realizam, quer dizer, uma nova concepção da cidadania; cidadania
responsavelmente solidária (p. 13).

Além de uma participação maior dos cidadãos na resolução de seus problemas, o


Estado também tem um papel importante na aplicação do Princípio de Solidariedade. O
Estado como agente de solidariedade está intimamente relacionado às ideias de
cidadania, de integração social e de satisfação dos direitos fundamentais. É a cidadania
que nos faz lançar o olhar para a pauta de direitos fundamentais individuais e sociais, e
para os econômicos. A participação de empresas, movimentos sociais e grupos que
fazem projetos solidários é importante.
Javier de Lucas (1998) parte do raciocínio de que o núcleo do Estado social não
é o modelo público do bem-estar, mas sim a aplicação efetiva da solidariedade social,
que exige uma cidadania ativa e responsável de todos. Além disso, alerta para o risco de
realizarmos a simples redução da solidariedade aos grupos primários como a família, o
bairro, dentre outros, ou seguir os caminhos do voluntariado, pois isso enfraqueceria a
relação entre Estado e sociedade, bem como o próprio fundamento do Estado social. O
que ele defende é a solidariedade exercida por meio de uma cidadania ativa e
responsável.

Seria o caso de lembrar que, para nos defrontarmos adequadamente com a


exclusão social, é mister interferir nos parâmetros da desigualdade social,
ultrapassando marcadamente o mundo da assistência. Como primeira
consequência, neste projeto a figura central só pode ser o excluído, não o Estado.
Se o problema mais central é o da cidadania, forçoso é começar por ela (DEMO,
2002, pp. 105-106).
118

Entretanto, é igualmente válida a preocupação de Santos (2001) quando mostra o


perigo da fragmentação do território decorrente da atuação de diversas empresas, de
uma mesma localidade, com intuitos filantrópicos e com ações raramente coordenadas
entre si ou com o poder público. A ausência de uma política que aborde e cuide de
maneira organizada os problemas locais só fará com que os problemas sociais
permaneçam.
A eliminação da pobreza é um problema estrutural e, para tanto, é necessário que
o Estado coordene e formule políticas públicas, juntamente com a sociedade civil.
Assim, aparece a figura de um Estado fiador que não se limita a assumir um papel
neutro ou indiferente com relação à autonomia social, nem desaparece confiando na
ordem espontaneamente gerada pelo mercado, mas promove as condições para o
reconhecimento mútuo entre as esferas da liberdade e da interdependência entre os
sujeitos autônomos, favorecendo a incorporação da solidariedade à liberdade. Não mais,
portanto, um Estado que opõe solidariedade à liberdade, no fundo desresponsabilizando
esta última por meio da certeza de que “afinal alguém vai pensar nisso”, mas um Estado
que exige das partes que assumam por si mesmas o outro. Nessa nova situação, as
formações sociais, ou seja, as comunidades reais (territoriais ou sociais), são coágulos
estruturais de relacionalidade que se formam a partir de uma ótica solidarista congenial
ao desenvolvimento da pessoa, sobretudo a mais fraca (PIZZOLATO, 2008).
Ainda para Pizzolato, significa que o Princípio de Solidariedade passa pelo
reconhecimento e pela valorização institucional de um tecido social rico e solidário - as
comunidades -, de um sistema de relações estruturado em formações sociais, no qual
seja continuamente recriada a interdependência entre os sujeitos. A promoção desse
tecido social interdependente e solidário permite ao Estado buscar o desenvolvimento
da pessoa sem substituir as formações sociais intermediárias. Pelo contrário,
responsabiliza-as, promovendo sua lógica participativa. Trata-se, portanto, de uma
solidariedade que segue o modelo comunitário, de cunho ético, não baseada em
improváveis convergências espontâneas de interesses individuais e egoístas, nem na
transferência integral ao Estado das tarefas de socorro às fraquezas.

4. O Princípio de Solidariedade na Doutrina Social da Igreja

Diz Giussani (2001) que a ideia de solidariedade nasce do amor (caritas), do


nosso desejo de amar e ser amado. A caridade é a lei do ser.
119

A maior consciência da interdependência entre os seres humanos em seus


aspectos econômico, cultural, político e religioso suscita no ser humano uma resposta
que se revela em uma atitude social e moral. Trata-se da solidariedade, que dá conta de
uma experiência que se baseia no amor gratuito que se dirige aos mais necessitados e é
uma virtude essencial do cristianismo. Para Bento XVI a solidariedade não só é um dos
princípios basilares de toda a Doutrina Social da Igreja, mas “a caridade é [sua] via
mestra (...)” (CV, nº 2).
O amor é uma atenção ao outro, a consideração pelo outro, reconhecer o outro
como outro eu. “Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudá-lo é meu próximo
(...) requer meu empenho aqui e agora” (DCE, nº 15).
Bento XVI ressalta que o amor não é só uma dimensão da vida íntima pessoal,
mas a força necessária para a construção da solidariedade:

Amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado
do bem individual existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem
comum. É o bem daquele “nós-todos” formado por indivíduos, famílias e grupos
intermédios que se unem em comunidade social. (...) Ama-se tanto mais
eficazmente o próximo quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que
dê resposta também às suas necessidades reais (CV, nº 7).

E diz ainda:

O amor – “caritas” – é uma força extraordinária, que impele as pessoas a


comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz
(...). A caridade dá verdadeira substância à relação pessoal com Deus e com o
próximo; é o princípio não só das microrrelações estabelecidas entre amigos, na
família, no pequeno grupo, mas também nas macrorrelações como
relacionamentos sociais, econômicos e políticos (CV, nº 1-2).

A caridade acontece “uma vez que todos nós somos movidos pela mesma
motivação fundamental e temos diante dos olhos idêntico objetivo: um verdadeiro
humanismo, que reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudá-lo a levar uma
vida conforme esta dignidade” (DCE, nº 30). E faz um convite: “só se contribui para
um mundo melhor fazendo o bem agora e pessoalmente, com paixão e em toda parte
onde for possível (...). Vê onde há necessidade de amor e atua em consequência” (nº
31).
É o amor que busca o bem do outro e até renuncia o seu próprio bem pelo do
outro, e que é o fundamento da solidariedade.
120

No contexto da Doutrina Social da Igreja a ideia da solidariedade desempenha


desde o seu surgimento um papel especial. A solidariedade, mesmo que falte a
expressão explícita, é um dos princípios basilares da Rerum novarum.

Deste modo o princípio, que hoje designamos de solidariedade, (...) apresenta-se


como um dos princípios basilares da concepção cristã de organização social e
política. Várias vezes Leão XIII o enuncia, com o nome “amizade”, que
encontramos já na filosofia grega; desde Pio XI é designado pela expressão mais
significativa “caridade social”, enquanto Paulo VI, ampliando o conceito na
linha das múltiplas dimensões atuais da questão social, falava de “civilização do
amor” (CA, nº 10).

A partir de Pio XII, a palavra “solidariedade” é empregada com crescente


frequência e com amplitude de significado cada vez maior: de “lei”, como Pio XII
afirmava em seus pronunciamentos, de “princípio”, como aparece na Mater et magistra,
de “dever”, na Populorum progressio, e de “valor”, na Sollicitudo rei socialis. Aliás, é a
partir desta encíclica, junto com a Caritas in veritate, que o tema da caridade ganha
destaque mais central na doutrina social cristã.
É fundamental compreender que para a DSI nenhum processo educativo poderia
fazer do homem um ser solidário se a sociabilidade não estruturasse o próprio ser.
Portanto, a solidariedade é algo que decorre da própria essência da pessoa humana e
deve-se estender não só às relações entre indivíduos, mas também entre grupos,
instituições e até mesmo entre nações. Todas as pessoas, somente pelo fato de serem
pessoas, estão destinadas a formar uma comunidade moral cuja origem e destino são
comuns. Isso faz os homens responsáveis uns para com os outros a ponto de serem
capazes, em algumas situações, de abdicarem de seus interesses materiais individuais
em favor das necessidades de outros homens.
Portanto, ser solidário significa colaborar com o outro para satisfazer as suas
necessidades, oferecer companhia; é renunciar ao que possuímos por direito, para que os
outros possam ter o necessário; enfim, é compartilhar toda sorte de bens materiais e
espirituais. A solidariedade ajuda a ver o outro como semelhante, um auxílio (cf. SRS,
nº 39). Paulo VI afirma: “A solidariedade universal é para nós não só um fato e um
benefício, mas também um dever” (PP, nº 17).
Paulo VI escreve: “Perante a indigência crescente dos países subdesenvolvidos,
deve considerar-se normal que um país evoluído dedique uma parte da sua produção a
socorrer as suas necessidades; é também normal que forme educadores, engenheiros,
técnicos e sábios, que ponham a ciência e a competência ao seu serviço” (PP, nº 48).
121

Além disso, Paulo VI propõe uma dupla iniciativa. A primeira, “um grande fundo
mundial, alimentado com uma parte dos gastos militares, a fim de ajudar os mais
desamparados” (PP, nº 51). A segunda iniciativa incide diretamente sobre o nível de
bem-estar e conforto dos cidadãos dos países ricos.

Compete a cada um examinar a própria consciência, que agora fala com voz
nova para a nossa época. Estará o rico pronto a dar do seu dinheiro, para
sustentar as obras e missões organizadas em favor dos mais pobres? Estará
disposto a pagar mais impostos, para que os poderes públicos intensifiquem os
esforços pelo desenvolvimento? A comprar mais caro os produtos importados,
para remunerar com maior justiça o produtor? E, se é jovem, a deixar a pátria,
sendo necessário, para ir levar ajuda ao crescimento das nações novas? (PP, nº
47)

Antes, Pio XII já tinha dito que “deve haver uma colaboração fraterna entre os
povos” (LS, nº 15). E João XXIII, retomando o mesmo pensamento, convida os povos
ricos não esquecerem a situação dos membros de outros países que lutam contra a
indigência, a miséria e a fome, afinal, são todos “membros de uma só família” (cf. MM,
nº 154). Ou quando o mesmo papa fala na Pacem in terris que as diferenças entre as
nações - um dado da realidade que não poderia ser escondido -, não pode ser uma fonte
de dominação: “essa superioridade implica uma obrigação social mais grave para ajudar
os demais a conseguirem, com o esforço comum, a perfeição própria” (PT, nº 87). Além
de sublinhar o dever de todos os povos de colaborar para o bem dos demais e de
contribuir positivamente para o desenvolvimento, que “permita aos seus cidadãos levar
uma vida mais de acordo com a dignidade humana” (PT, nº 122). Estas ações, no
entanto, devem respeitar a dignidade, a cultura e a idiossincrasia dos diferentes povos,
para que eles não sejam meros receptores ou executores mecânicos, mas protagonistas,
autores de um processo de desenvolvimento humano integral. Assim, a solidariedade é
entendida como caminho para a paz e para o desenvolvimento (cf. SRS, nº 39).
O Princípio de Solidariedade encontra a sua defesa na consciência religiosa,
transformando-a de filantropia em caridade. Observa João Paulo II a importância de
despertar a consciência religiosa dos homens e dos povos, a fim de realizar uma
sociedade à medida do homem (cf. SRS, nº 39).
E, de fato,
à luz da fé, a solidariedade tende a superar-se a si mesma, a revestir-se das
dimensões especificamente cristãs da gratuidade total, do perdão e da
reconciliação. O próximo, então, não é só um ser humano com os seus direitos e
a sua igualdade fundamental em relação a todos os demais, mas tornando-se a
imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objeto
da ação permanente do Espírito Santo. Por isso, ele deve ser amado, ainda que se
122

inimigo, com o mesmo amor com que o ama o Senhor e é preciso estarmos
dispostos ao sacrifício por ele, mesmo ao sacrifício supremo: “dar a vida pelos
próprios irmãos” (idem).

Em uma palavra, a solidariedade cristã constrói a comunidade e leva à


“comunhão” fraterna (cf. SRS, nº 40).
João Paulo II já havia salientado que após a “crescente consciência da
interdependência entre os homens e as nações”, a solidariedade se transformou em
“realidade interiorizada na consciência, adquirindo assim conotação moral”. Nesse
ponto, a solidariedade não pode mais ser confundida com “um sentimento de compaixão
vago ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas
ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo
bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos
verdadeiramente responsáveis por todos” (SRS, nº 38).

A prática da solidariedade no interior de cada sociedade é válida, quando os


seus membros se reconhecem uns aos outros como pessoas. Aqueles que contam
mais, dispondo de uma parte maior de bens e de serviços comuns, hão de sentir-
se responsáveis pelos mais fracos e estar dispostos a compartilhar com eles o que
possuem. Por seu lado, os mais fracos, na mesma linha de solidariedade, não
devem adotar uma atitude meramente passiva ou destrutiva do tecido social;
mas, embora defendendo os seus direitos legítimos, fazer o que lhes compete
para o bem de todos. Os grupos intermédios, por sua vez, não deveriam insistir
egoisticamente nos seus próprios interesses, mas respeitar os interesses dos
outros (SRS, nº 39; destaque no original).

Quer dizer, a condição econômica inferior também não pode ser utilizada como
um esconderijo ou uma desculpa para a pessoa não agir de maneira solidária, ou para o
mais forte não deixar o mais fraco agir. Afinal, a solidariedade é uma “exigência direta
da fraternidade humana: solidariedade dos pobres entre si; solidariedade com os pobres,
para a qual os ricos são convocados; solidariedade dos trabalhadores e com os
trabalhadores” (Libertatis conscientia, nº 89).
Para ser eficaz a nível social e internacional, a solidariedade deve se organizar
de forma metódica e racional e sua prática deve enquadrar-se dentro de uma normativa
legal. A prática desta solidariedade é possível, como mostra a crescente consciência de
solidariedade entre os pobres que, conforme indica João Paulo II, constitui uma grande
força para destruir os “mecanismos perversos” e “acabar com as estruturas de pecado”
(SRS, nº 40).
Viver a solidariedade significa entrar num sério processo de conversão pessoal e
comunitária, superando as duas formas de pecado mais graves: a avidez do lucro e a
123

sede de poder, que atrapalham o desenvolvimento integral. Só é possível vencê-las com


“uma atitude diametralmente oposta: a aplicação em prol do bem do próximo, com
disponibilidade, em sentido evangélico, para ‘perder-se’ em benefício do próximo em
vez de o expolorar, e ‘para serví-lo’ em vez de oprimi-lo para proveito próprio” (SRS,
nº 38; destaque no original).
Na prática, a solidariedade impulsiona a realizar opções para o bem alheio até a
partilha voluntária da indigência. Essa visão transcendente da solidariedade serve de
base para todas as orientações concretas que o discurso social da Igreja sugere. A Igreja,
assim, está convencida que só a solidariedade pode ser o cimento de uma sociedade
mais justa e mais fraterna. Inclusive nas relações internacionais: “A interdependência
deve transformar-se em solidariedade, fundada sobre o princípio de que os bens da
criação são destinados a todos: aquilo que a indústria humana produz, com a
transformação das matérias-primas e com a contribuição do trabalho, deve servir
igualmente para o bem de todos” (SRS, nº39; destaque no original).
Bento XVI retoma João Paulo II quando afirma que o empenho de pessoas que
trabalham em atividades humanitárias “educa para a solidariedade e a disponibilidade a
darem não simplesmente qualquer coisa, mas darem-se a si próprios” (DCE, nº30). Em
Spe salvi, Bento XVI aborda esse mesmo tema no fato de compartilhar o sofrimento
com o outro: “Aceitar o outro que sofre significa, de fato, assumir de alguma forma o
seu sofrimento, de tal modo que este se torna também meu. Mas precisamente porque
agora se tornou sofrimento compartilhado, no qual há presença do outro, esse
sofrimento é penetrado pela luz do amor” (nº 38).
Por isso o papa chama a atenção também para os exemplos de solidariedade
individual, que ele classifica como “escola de vida que educa para a solidariedade e a
disponibilidade a darem não simplesmente qualquer coisa, mas darem-se a si próprios”.
Essas manifestações de solidariedade, de empenho concreto pelo outro, são assinaladas
pelo papa como “cultura da vida” (DCE, nº 30). No mesmo ponto, o papa diz que a
condição sine qua non para viver a solidariedade é limpar a mente e o coração para
reconhecer em cada pessoa e em cada povo um irmão e um amigo em potencial,
cultivando uma amizade crescente que antecipe a plenitude da comunhão definitiva.
Bento XVI continua: quando somos realmente solidários? Quando nos
consagramos ao serviço dos demais, renovando este compromisso a cada dia; quando
compartilhamos com os demais os dons que temos recebido e bens de toda ordem que
124

possuímos; quando reconhecemos no outro uma pessoa, respeitando sua privacidade e


sua liberdade; quando trabalhamos de forma organizada e responsável.
Para Bento XVI, o desenvolvimento tecnológico, especialmente na
comunicação, tornou o mundo “menor” e estreitou sobremodo as relações entre os
homens. Dessa forma, hoje, apesar das grandes tensões e incompreensões que
provocaram este estreitamento das relações humanas, o conhecimento quase que
imediato das necessidades humanas suscita um aceno para que as situações dolorosas e
as necessidades sejam partilhadas por todos os homens.

Por outro lado — e trata-se de um aspecto provocatório e ao mesmo tempo


encorajador do processo de globalização —, o presente põe à nossa disposição
inumeráveis instrumentos para prestar ajuda humanitária aos irmãos
necessitados, não sendo os menos notáveis entre eles os sistemas modernos para
a distribuição de alimento e vestuário, e também para a oferta de habitação e
acolhimento. Superando as fronteiras das comunidades nacionais, a solicitude
pelo próximo tende, assim, a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro (DCE,
nº 30).

Bento XVI também salienta a importância da colaboração solidária, em âmbito


nacional, entre as estruturas estatais, as associações comunitárias e as estruturas
eclesiais.

Os entes do Estado e as associações humanitárias apadrinham iniciativas com tal


finalidade, fazendo-o na maior parte dos casos através de subsídios ou descontos
fiscais, os primeiros, e pondo à disposição verbas consideráveis, as segundas. E
assim a solidariedade expressa pela sociedade civil supera significativamente a
dos indivíduos (DCE, nº 30).

João Paulo II já havia também chamado a atenção para que as instituições,


organizações sociais e o Estado, em diferentes níveis, deveriam participar de um
movimento geral de solidariedade (cf. LC, nº 89).
Cabe notar que de maneira alguma a justiça é substituída pela caridade. Desse
modo, para o ensinamento social católico, a caridade sem justiça é apenas uma
caricatura de amor. A justiça é inseparável da caridade, é-lhe intrínseca. Mas, se por um
lado, a caridade exige a justiça - o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos
dos indivíduos e dos povos -, por outro, a caridade supera a justiça e completa-a com a
lógica do dom e do perdão. A justiça é um imperativo exigível de toda a sociedade, é o
devido e não está sujeito à gratuidade. A solidariedade é um passo mais adiante que
supõe, e não substitui a justiça, pois a caridade começa onde termina a justiça. “A
cidade do homem não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas
125

antes e, sobretudo, por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão” (CV, nº 6).


Dizendo de outro modo, para dar a cada qual o seu, que é a fórmula principal da
justiça, é preciso conhecer profunda e verdadeiramente esse “seu”, e a burocracia não é
suficiente para isso.
Em sua plena realização, o amor é um dom gratuito de si ao outro. Por isso,
precisamos do dom de Cristo:

Revela-se, assim, como possível o amor ao próximo no sentido enunciado por


Jesus, na Bíblia. Consiste precisamente no fato de que eu amo, em Deus e com
Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível
realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou
comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então aprendo a
ver aquela pessoa já não somente com os meus olhos e sentimentos, mas
segundo a perspectiva de Jesus Cristo. O seu amigo é meu amigo. Para além do
aspecto exterior do outro, dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto
de amor, de atenção, que eu não lhe faço chegar somente através das
organizações que disso se ocupam, aceitando-o talvez por necessidade política.
Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao outro muito mais do que as coisas
externamente necessárias: posso dar-lhe o olhar de amor de que ele precisa
(DCE, nº 18).

Por fim, é interessante ressalvar que a Teologia da Libertação também entende a


solidariedade na perspectiva da Doutrina Social da Igreja. A solidariedade é
compreendida como meio para criar uma ordem social, na qual cada indivíduo pode
participar integralmente das possibilidades colocadas pela vida natural e pelas relações
sociais. A ideia de solidariedade da Teologia da Libertação é marcada pelas ideias do
sentido comum e do bem comum. É possível constatar grande importância sobre dois
valores: a vida comuntária e a reciprocidade – onde efetivam-se as relações interpesoais
-; e a solidariedade, onde ocorre a ajuda e o apoio mútuos. Isso significa que a Teologia
da Libertação compreende a solidariedade numa dupla dimensão: como fraternidade e
como reciprocidade exercida entre os excluídos, os dominados e os pobres. Quer dizer,
trata-se de solidariedade, libertação e justiça pelos e para os explorados e excluídos.
Assim, do Princípio de Solidariedade derivam alguns pontos importantes de
reflexão para a ação social e política, como ressaltam as conclusões da CELAM de
Puebla. Primeiro: que se satisfaçam as exigências da justiça, para que não se dê como
caridade o que já é devido a título de justiça; em segundo lugar, que se eliminem as
causas estruturais dos males, não só os efeitos; finalmente, que seja encaminhada a
ajuda de tal maneira que, os que a recebem, pouco a pouco consigam se libertar da
dependência externa e se tornem autossuficientes. Ressaltamos que a ATST, por meio
de sua liderança, tem como paradigma estes pontos desse documento.
126

5. A relação do Princípio de Solidariedade com o bem comum

O Princípio de Solidariedade tem como objetivos realizar a dignidade da pessoa


e realizar o bem comum para todas as pessoas em particular e para a sociedade em
geral.
Ao comentar Mater et magistra, Alceu Amoroso Lima (1963) destaca:

A alma do Bem Comum é a Solidariedade. E a solidariedade é o próprio


princípio constitutivo de uma sociedade realmente humana, e não apenas
aristocrática, burguesa ou proletária. É um princípio que deriva dessa natureza
naturaliter socialis do ser humano. Há três estados naturais do homem, que
representam a sua condição ao mesmo tempo individual e social: a existência, a
coexistência e a convivência. Isto vale para cada homem, como para cada povo e
cada nacionalidade (p. 6).

O conceito do bem comum (em latim bonum commune; em inglês common


good) e suas variantes (entre outras, bem coletivo, utilidade social, utilidade pública)
vem evoluindo há praticamente dois mil e quinhentos anos.
Para a Doutrina Social da Igreja, o bem comum se revestiu desde seu início no
século XIX de central importância. Define-o a Encíclica Mater et magistra como um
“conjunto de condições sociais que permitam aos cidadãos o desenvolvimento ativo e
pleno de sua própria perfeição” (nº 65). Ou, como afirma Pio XII, um “conjunto de
condições exteriores que são necessárias aos homens para o alcance em comum de seus
fins lícitos e para o desenvolvimento de sua personalidade” (LS, nº 9).
Isso significa que o bem comum é uma exigência histórica variável. Esse
conjunto de condições externas necessárias à satisfação das finalidades vitais dos
indivíduos podem variar no tempo e no espaço.
A DSI sustenta que o bem comum não é uma simples soma dos bens individuais,
porém uma entidade qualitativamente diferente; sustenta que o bem comum é um novo
bem objetivo, essencialmente diferente da soma dos bens dos indivíduos. De toda
forma, o bem comum é mais bem realizado quanto mais perfeitamente podem todos os
cidadãos realizar o seu bem individual. Por isso não há antinomia filosófica entre o bem
comum e o bem individual do cidadão (MARITAIN, 1962).
O bem comum empenha todos os membros da sociedade, cada um de acordo
com suas próprias possibilidades, na sua busca e no seu desenvolvimento (cf. MM, nº
53). Mas a responsabilidade de perseguir o bem comum compete não apenas às pessoas,
mas também ao Estado, pois o bem comum é a razão de ser da autoridade política (cf.
CEC, nº 1910). O Estado deve garantir coesão, unidade e organização à sociedade civil,
127

de modo que o bem comum possa ser conseguido com a contribuição de todos. Tanto o
Estado como a sociedade “têm seu fundamento, seu fim e seu princípio em promover a
conservação, desenvolvimento e perfeição da pessoa humana em cada um dos seres
humanos” (SANCHEZ AGESTA, 1992, p. 161). O bem comum, portanto, é um bem de
que todos participam.

O bem comum é a primeira e a suprema lei (Salus populi, bonum commune,


suprema Lex). Transforma a massa exterior informe, a mera conglomeração de
indivíduos em corpo solidário de mútuo auxílio e interesse; dela faz a nação
organicamente unida. As leis se justificam exclusivamente por sua vantagem
para o bem comum. Por motivo nenhum se pode admitir que a autoridade
pública, cujo fim é servir ao bem comum, seja posta a serviço de interesses
privados; porque a autoridade pública é instituída para o bem comum de todos os
cidadãos; e uma lei que não serve ao bem comum não é “lei” absolutamente
(ROMMEM, 1967, p. 296).

Além disso, o bem comum indica fins e metas ideais a serem alcançados por
uma determinada sociedade: “(...) meta ideal, como uma ideia normativa que descreve a
ordem de uma cidade perfeita, em que todas as instituições jurídicas e sociais, assim
como a moral e os usos públicos, permitam e favoreçam esse desenvolvimento integral
da pessoa” (SANCHEZ AGESTA, 1992, p. 89).
Maritain (1962) afirma:
É preciso ainda o conhecimento das técnicas úteis ao serviço do bem comum;
mas é preciso também e sobretudo o conhecimento dos valores humanos e
morais comprometidos nesse bem comum, o conhecimento do campo de
realização social e política, e, se posso dizer, da fisionomia política da justiça, da
amizade fraternal, do respeito da pessoa humana e das outras exigências da vida
moral (p. 85).

A responsabilidade pelo bem comum inclui o respeito e a preservação do meio


ambiente. Assim, o bem comum abarca dupla compreensão: é todo bem que podemos
usufruir e gozar, sem que nos pertença individualmente; e, mesmo não sendo próprio,
temos um dever, que é a de defender e preservar. O homem é parte da ordem natural,
devendo conviver pacífica e construtivamente com os “não humanos” (LATOUR, 2004,
p. 295) – minerais, vegetais, animais -, para poder usufruir e gozar de seus bens, sem,
contudo, exauri-los, para si ou para as gerações futuras. Messner (2005, p. 174) afirma:
“Neste sentido, o bem comum é a realidade que encerra o rendimento da vida de
gerações passadas e ao mesmo tempo passa a base da vida das gerações futuras, tal
como as terras conservam o suor dos pais e avós, com a promessa dos frutos para os
filhos e netos”.
128

Finalmente, cabe notar que para a DSI, para se atingir o bem comum, há que se
respeitarem os seguintes critérios: a destinação universal dos bens e a opção preferencial
pelos pobres. Nesse sentido é interessante ressaltar o trabalho desenvolvido pela ATST
para o acesso a terra e à moradia e como eles encaram a pobreza, aspectos que
estudaremos mais para frente em nosso trabalho.
Sobre a destinação universal dos bens, os bens criados pelos seres humanos, ou
os bens dados por natureza, se destinam a todos os homens. Como nenhum de nós vive
isolado, os bens de que dispomos são antes de tudo de todos e não devem ser
considerados pessoais, senão secundariamente. Ou seja, todo homem deve ter a
possibilidade de usufruir o bem estar necessário para o seu pleno desenvolvimento. Não
significa, no entanto, que tudo esteja à disposição de cada um ou de todos, ou que a
mesma coisa sirva ou pertença a todos. Para assegurar o exercício ordenado e equitativo
é necessária uma ordem jurídica que determine este exercício (cf. CDSI, nº 173). Além
disso, os cristãos são incentivados a pensar políticas públicas que sejam expressão desse
valor eminente de humanidade que é a promoção de uma sociedade solidária, tanto na
produção como na distribuição dos bens sociais. Na sua ação política e social, os
cristãos são convidados a se “inspirar no Evangelho das bem-aventuranças, na pobreza
de Jesus e na sua atenção aos pobres, tendo em vista não apenas a pobreza material, mas
as numerosas formas de pobreza cultural e religiosa” (CDSI, nº184).
Sobre a opção preferencial pelos pobres, significa que eles têm a preferência da
solicitude social da Igreja Católica, não porque possuem uma dignidade maior que os
outros homens, mas porque são mais necessitados de ajuda devido à miséria imerecida
e/ou à dignidade lesada. Portanto, não se trata de uma opção exclusiva, mas apenas
preferencial. Esse critério não é um obstáculo, mas um incentivo para melhor e mais
rapidamente alcançar o bem comum universal.
No capítulo 14 do documento de Medellín podemos ler:

A ordem específica do Senhor de evangelizar os pobres deve levar-nos a uma


distribuição tal dos esforços e do pessoal apostólico que se dê preferência efetiva
aos setores mais pobres, necessitados e segregados por um motivo ou outro,
estimulando e acelerando as iniciativas e estudos que se vêm realizando nesse
sentido (Med Justiça, nº 9).

Isto se concretizará na denúncia da injustiça e opressão, na luta cristã contra a


intolerável situação em que se encontra frequentes vezes o pobre e na disposição
de dialogar com os grupos responsáveis por essa situação a fim de fazê-los
compreender suas obrigações (...). A promoção humana será a linha de nossa
ação em favor do pobre, respeitando sua dignidade pessoal e ensinando-lhe a
ajudar-se a si mesmo (Med Justiça, nº 10).
129

Em suma, a opção pelos pobres significa tomar partido por alguns para
conseguir maior justiça para todos. Assim, entendendo-se o bem comum como a
qualidade ética da vida na prática das relações interpessoais, compreende-se que se deva
materializar na justa partilha dos bens sociais, quaisquer que sejam eles, pois essa justa
partilha dos bens sociais é expressão concreta da destinação universal dos bens,
especialmente para os mais necessitados.
Nos últimos capítulos dessa tese, quando tratarmos especificadamente da
experiência da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo, veremos como
esse movimento trabalha os pontos levantados neste capítulo: tanto se favorece laços de
confiança entre os associados e destes com os coordenadores, qual o relacionamento
social estabelecido e se existe um acompanhamento pessoal com os associados por parte
da liderança, favorecendo uma experiência real de solidariedade.
CAPÍTULO 4

A participação popular e o Princípio de Subsidiariedade

O Princípio de Subsidiariedade busca a valorização da sociedade e tem como


pressupostos a liberdade, a iniciativa e a responsabilidade dos indivíduos e dos grupos
no exercício de seus direitos e obrigações. Esse princípio tenta estabelecer uma relação
equilibrada entre o Estado e as pessoas, visando ao atendimento das demandas sociais
de modo mais eficiente, observando sempre os valores e vontades da sociedade.
O Princípio de Subsidiariedade parte de uma ideia simples: não se deve
transferir a uma sociedade maior aquilo que pode ser realizado por uma sociedade
menor. Assim, cabe primeiro aos indivíduos, com seus próprios meios, decidirem e
atuarem para satisfazer seus interesses individuais; aos grupos sociais, decidirem e
atuarem para satisfação de seus interesses coletivos; e à sociedade, decidir e atuar para a
realização de interesses gerais. Somente as demandas que não puderem ser atendidas
pela própria sociedade deverão ser cometidas ao Estado (BARACHO, 2000).
Por isso, a subsidiariedade reivindica a participação das pessoas e dos grupos,
para que possam decidir e tomar parte diretamente do processo decisório estatal e
exercer um controle permanente sobre os negócios do Estado — fortalecendo a
democracia —, sobre o mercado e sobre a própria sociedade.
Este capítulo tratará inicialmente da participação popular e dos movimentos
sociais. Logo depois, entenderemos o que é o Princípio de Subsidiariedade, seus
fundamentos e como ele aparece na Doutrina Social da Igreja. Também veremos o que
significa um Estado subsidiário.

1. Participação popular

A participação popular na solução dos problemas sociais nasce da vontade


pessoal de transformar, de resolver problemas e de acompanhar a situação presente.
Nasce do despertar da consciência em relação ao outro e do espaço em que vive. O ser
humano tem a vontade de fazer parte na conquista, de construir uma sociedade em que
realmente possa viver inspirado pelos valores da igualdade de oportunidades, da justiça
e da dignidade humana.
131

Segundo Rommen (1967), o indivíduo tem competências que lhe são próprias
naturalmente, devendo ele mesmo, por sua iniciativa e com suas forças, cumpri-las, sob
pena de esvaziar-se a própria natureza humana. É a filosofia da ação, que enfatiza a
responsabilidade pessoal e consagra a substância autônoma do indivíduo ao considerá-
lo responsável por seu próprio destino. Ela incentiva a pessoa a realizar certas
atividades, a agir, pois apenas com ação é que o homem participa integralmente dos
bens humanos. De modo que a sociedade política não deve privar a pessoa da atividade
que lhe cumpre realizar por si mesma, sob pena de anular sua existência.
Significa ver em cada homem um ser consciente, capaz de agir de forma racional
e responsável, e não um simples objeto a receber passivamente benefícios e atenções
concedidos pelo Estado.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, três artigos tratam do tema da
participação. No artigo 21 podemos ler: “Todo homem tem direito de tomar parte no
governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente
escolhidos. A vontade do povo será a base da autoridade do governo”. No artigo 23:
“Todo homem tem direito de organizar sindicatos e neles ingressar, para a proteção de
seus interesses”. E, por fim, no artigo 27: “Todo homem tem direito de participar da
vida cultural da comunidade”.
Ou seja, a participação é um dever a ser conscientemente exercitado por todos,
de modo responsável e em vista do bem comum (cf. CEC, nº 1913-1917).
Para a participação se efetivar é necessária uma sociedade livre, que garanta a
liberdade e autonomia individuais. Mas uma sociedade livre não fundamentada no
individualismo atomizante, e sim na natureza social do homem. Natureza social que o
leva a associar-se espontaneamente para realizar seus objetivos que não conseguiria
resolver sozinho.

Um homem tem um desejo e busca satisfazê-lo. Outros homens, sentindo o


mesmo desejo, buscam satisfazê-lo e compreendem que se reunindo, satisfazem
cada um o próprio desejo de modo mais fácil e muito melhor. Quanto mais se dá
liberdade à criação das comunidades intermediárias e quanto mais o poder se dá
conta do seu serviço, mais feliz será a humanidade (GIUSSANI, 2001, p.171).

Comunidades intermediárias são grupos que se situam entre o indivíduo isolado


e o Estado e que, de acordo com sua criatividade e espontaneidade, possuem
características próprias de formulação e execução de propostas, o que garante uma
diversidade de ações sobre a mesma realidade.
132

A vida social, segundo Rommen (1967), move-se em círculos concêntricos


indestrutíveis: o círculo da pessoa individual, circundado pelo da família; o círculo das
livres e autônomas atividades sociais das pessoas, em sua vida cultural e econômica; e
então, abraçando-os e proporcionando paz, justiça e ordem entre eles, o Estado.
A sociedade, assim, é a multidão das pessoas e das famílias, das inumeráveis e
variadas associações. Acham-se todos ligados entre si por sua livre iniciativa, são
dirigidos por seus fins e interesses particulares, no esforço cotidiano pelo melhoramento
individual e social, pela cooperação econômica e pelo progresso social; sempre em
solidariedade de ações e objetivos, para atingirem o bem de todos, como uma sociedade
orgânica — que busca uma ordem universal, em meio à diversidade de atores e ações
que se relacionam entre si, com a cooperação efetiva e o auxílio mútuo (ROMMEN,
1967).
De acordo com Bobbio (1997), existem várias sociedades como a familiar, a
civil ou política, as que buscam um fim particular. “A multiplicidade de sociedades
naturais ou não naturais, em que o indivíduo toma parte, é aduzida como uma prova
contra duas falsas doutrinas entre si opostas, a do individualismo, segundo a qual o
indivíduo se basta a si mesmo, e a do coletivismo que, ao invés, deifica o Estado ou a
sociedade” (p. 932).
Há várias modalidades de participação organizada e ativa da população nos
assuntos de seu interesse: por meio de associações de moradores, centros comunitários,
movimentos populares, movimento sindical, conselhos de escola, de educação e de
cultura, associações diversas, cooperativas etc.
Uma sociedade pluralista, organizada em comunidades intermediárias e
movimentos sociais, reconhece a estes um grande raio de ação.

Permitindo-se aos grupos individuais o máximo de autonomia, podem exercer


maneiras eficazes de atuação (...). O Estado confere autoridade e capacidade de
decisão aos grupos existentes na sociedade civil, que agem de maneira
autônoma, livres do aparelho estatal (BARACHO, 2000, p. 67).

Assim, a participação não é entendida apenas como a pressão popular legítima


da população sobre os políticos, que se reservam o poder de decidir sobre as condições
de respondê-las, já que tem mandato político, delegado pelo voto. Sobre esse tipo de
participação reduzida, Fraser (1996) sublinha a marcante tradição de delegação de poder
para políticos, entidades coorporativas, representantes e lideranças populares. O
envolvimento das pessoas em processos participativos não é uma prática assimilada na
133

cultura social. Muitas vezes é pequeno o exercício da participação no cotidiano e na


gestão pública.
Igualmente não se a vê apenas quando ocorre o engajamento da população em
obras públicas, que são decididas e administradas pelas autoridades locais. Ou ainda,
entendendo-se a participação da população limitada a mecanismos e processos de
consulta e/ou informação, sobre as ações e atividades do executivo. Observam-se em
diferentes programas públicos, por exemplo, atividades pseudoparticipativas em que o
principal objetivo é o convencimento, a aceitação da proposta pela população atendida.
Nesse sentido, a participação se limita ao consentimento, apoio, referendo das decisões
previamente definidas. Elas mantêm uma visão de que a população deve ser tutelada nas
suas decisões pelo poder executivo local. Para Fraser (1996), a visão instrumental de
participação leva a estratégias de manobras e manipulação dos grupos sociais
beneficiários das políticas sociais.
Assim, não há participação nas obras, não é desenvolvida a autonomia do grupo.
Pergunta-se à população como fazer, mas já se leva pronto o que fazer. Por isso, Souza
(2006) aponta a necessidade de se distinguir uma experiência meramente consultiva,
quando a população é somente ouvida, de uma prática deliberativa, quando a sociedade
possui realmente o poder de decisão sobre determinada política.
O que se defende aqui é a participação organizada, autônoma e ativa de grupos
da sociedade nos assuntos de seu interesse. Entende-se, desse modo, que a participação
deve dar-se em todos os momentos do processo de formulação e implantação de um
programa ou projeto social, através de informações, reuniões, organização da
comunidade local.
A participação popular é um processo contínuo, permanente, com estratégias
específicas desenvolvidas pelos seus participantes, coletivamente articuladas. A
participação é exercício, vivência, aprendizagem. A vivência da participação em grupos
e movimentos organizados da sociedade, e em espaços públicos institucionais de
participação, desenvolve e consolida, pouco a pouco, uma nova cultura. Pessoas
organizadas socialmente, e que já praticam a participação em um determinado nível,
tendem a estarem mais preparadas para participar em outras instâncias, pois só se
aprende participando.
A participação tende para a organização e a organização facilita e canaliza a
participação (BORDENAVE, 1983). Com efeito, as comunidades organizadas têm mais
facilidade para encontrar os canais de participação. O contrário também é verdadeiro,
134

isto é, pessoas que não fazem parte de uma organização social encontram mais
dificuldade para se expressar, seja pela falta de prática, seja pela falta de confiança.
Os indivíduos, ao participarem de grupos de base, associações, movimentos
sociais, cooperativas, sindicatos, fóruns, conselhos, entram na discussão dos problemas
comuns e de suas propostas de solução, se envolvem com tarefas cotidianas da
organização coletiva, passam a ter informações, percebem as diferenças, disputas e
conflitos internos, tendo que se posicionar sobre as mais diferentes questões. Começam
a agir coletivamente, movidos pelos interesses individuais, que aos poucos, passam a
estar subordinados aos interesses coletivos. Passam então a interagir com outros
sujeitos, tanto da sociedade civil como do Estado, aprendendo a identificar posições, a
defender ideias e proposições, a pressionar e negociar (ANTONELLI e NOSVELLI,
2003).
Em todas as modalidades de participação é representado um processo de
intervenção de setores interessados da população que passam da posição de
espectadores passivos à de participantes ativos do respectivo processo social. Eles
podem influir na marcha dos acontecimentos e no processo e rumos do
desenvolvimento, tomando em suas mãos a própria história.
De acordo com Montoro (1991), reunidos em movimentos sociais ou
associações locais, esses grupos atuam: (i) como representante geral da comunidade; (ii)
como grupo de reivindicação de benefícios e serviços coletivos; (iii) como grupos de
execução direta, coordenação ou fiscalização de alguns desses serviços; (iv) como
formador de uma consciência comunitária; e (v) como espaço de integração da
população no processo de desenvolvimento.
A participação surge da necessidade, da luta e conquista do ser humano em fazer
parte da sua história, de poder conduzir o seu destino de maneira digna, construindo,
usufruindo, fiscalizando e gerenciando os bens comuns, e auxiliando a administração
pública a cuidar do interesse coletivo.
O sentimento de participação é um dos mais poderosos elementos propulsores da
atividade humana. “É ele que entusiasma e anima a ação dos construtores de uma obra
coletiva, seja uma casa, uma represa, uma catedral ou uma cidade” (MONTORO, 1991,
p.12).
Montoro (1991) indica cinco razões para a importância da participação popular:
a) as decisões e os programas são enriquecidos pelo conhecimento e experiência de
muitas pessoas; b) por isso, há maior probabilidade de corresponder às necessidades
135

reais e serem eficientes; c) as pessoas que cooperam na elaboração ou nas decisões


tornam-se mais interessadas e envolvidas na sua execução, e não precisam ser
convencidas; d) dá-se aos interessados a oportunidade de aplicar seus conhecimentos e
aperfeiçoar sua competência; e e) serve melhor ao bem comum e assegura a promoção
humana.
Souza (2006, p. 42) sugere que as “pessoas irão atuar nos problemas que sejam
relevantes para elas. Há uma conexão forte entre emoção e motivação. Por isso, todos os
processos de educação e desenvolvimento devem começar identificando as situações
que a população local comenta com entusiasmo, esperança, medo, ansiedade ou raiva
nas praças, bares, igrejas e centros comunitários”.
Montoro indica também cinco níveis de participação: 1) no direito de ser
informado e do governo informar — transparência na administração e na aplicação de
recursos públicos; 2) na fiscalização ou controle da gestão em organismos
governamentais ou não governamentais; 3) no levantamento de problemas e soluções e
indicações de prioridades orçamentárias; 4) na execução de serviços e obras; e 5) nas
decisões (através de referendos, plebiscitos, etc.).
Estes níveis de participação asseguram à sociedade os meios de se defender e de
atuar no sentido de seu desenvolvimento real, já que a população é a grande interessada
na efetiva solução dos problemas coletivos e quem melhor conhece e sente os
problemas reais. Mas, principalmente, porque o “desenvolvimento propriamente
humano é aquele que é feito com a participação consciente e responsável das pessoas e
grupos que integram a comunidade” (MONTORO, 1991, p. 31).
Quanto mais esses grupos participam das soluções de seus problemas, mais
ocorre o fortalecimento da sociedade civil para a construção de uma nova cultura,
partindo do pluralismo e da valorização de outros grupos e movimentos sociais
autônomos.
Além disso, na perspectiva de transformação social por que passa o Estado
contemporâneo, em que constatamos uma conscientização crescente dos entes sociais
sobre seus interesses, torna-se imprescindível que a população participe diretamente do
processo decisório estatal e exerça um controle permanente sobre os negócios do
Estado, fortalecendo a democracia.
É preciso, no entanto, novos mecanismos de participação que melhorem a
participação representativa hoje em voga, a ela agregando institutos que recolham
manifestações de vontade dos indivíduos, dos grupos e de entidades interessadas nas
136

decisões a serem tomadas, assim como conselhos, associações etc., que permitam um
controle mais efetivo. Bresser Pereira (1999, p. 19) afirma que “a democracia tem que
ser aperfeiçoada para tornar-se mais participativa e mais direta”. Adquirem respaldo,
então, medidas como referendo, iniciativa popular, recall etc.
Boaventura de Sousa Santos (2005), defensor da democracia participativa como
instrumento de participação popular na tomada de decisões políticas, afirma:

Em primeiro lugar, a democracia participativa é importante porque proporciona a


cada cidadão a oportunidade de participar na tomada de decisões políticas. A
importância está no fato de esta forma de democracia permitir a expansão da
cidadania e a inclusão daqueles que, de outra forma, seriam excluídos dos
assuntos da comunidade ou da sociedade como um todo (p. 156).

Santos (2003) também compartilha do entendimento de que “a renovação da


teoria democrática assenta, antes de mais nada, na formulação de critérios democráticos
de participação política que não confinem esta ao ato de votar” (p. 270), uma vez que
não se pode esquecer que a democracia é a garantia de acesso às decisões públicas,
especialmente no processo de tomada de decisão tangente às políticas públicas que
refletem diretamente no povo, legítimo detentor do poder que deve ser levado a sério
como fator determinante da decisão no espaço público.
Já para Moreira Neto (2000) não se substitui a democracia representativa, mas
juntam-se métodos da democracia direta. É o que chama de participação semidireta,
uma terceira modalidade entre a participação direta e a indireta. Trata-se de assegurar
aos múltiplos setores da sociedade a oportunidade de atuar, tomando iniciativas,
fiscalizando, participando na execução de tarefas ou na decisão de assuntos de interesse
coletivos.
Entrementes, o que se busca é que o povo (a sociedade) tenha o poder em suas
mãos.
Supremacia do poder do povo. Quando um governo, ainda que bem intencionado
e eficiente, faz com que sua vontade se coloque acima de qualquer outra, não
existe democracia. Democracia implica autogoverno, e exige que os próprios
governados decidam sobre as diretrizes políticas fundamentais do Estado (...).
Mas o povo é uma unidade heterogênea, sendo necessário atender a certos
requisitos para que se obtenha sua vontade autêntica. Em primeiro lugar essa
vontade deve ser livremente formada, assegurando-se a mais ampla divulgação
de todas as ideias e o debate sem qualquer restrição, para que os membros do
povo escolham entre múltiplas opções. Em segundo lugar, a vontade do povo
deve ser livremente externada, a salvo de coação ou vício de qualquer espécie. É
indispensável que o Estado assegure a livre expressão e que os mecanismos de
aferição da vontade popular não deem margem à influência de fatores criados
artificialmente, fazendo-se esta aferição com a maior frequência possível
(DALLARI, 2006, p. 307-308).
137

A participação política e o controle social são elementos importantes, pois


exercem pressão sobre o Estado e a organização social, exigindo maior eficiência,
eficácia e efetividade nos serviços sociais.

1.1. Participação por meio de Movimentos Sociais

Há uma modalidade específica de participação, por movimentos sociais urbanos,


que é a da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo. De acordo com
Wanderley (1987), os movimentos sociais são práticas coletivas, supraindividuais,
dotados de certa organização e objetivos, e que desenvolvem práticas de ajuda mútua e
autoajuda. Esses movimentos também desenvolvem práticas de resistência, de reação e
procuram fazer propostas alternativas. São influenciados diretamente por pessoas -
lideranças e agentes - e por instituições - entre elas a Igreja Católica - em sua criação e
constituição, em seu funcionamento, recursos e sentido. Além disso, suas práticas
possuem múltiplas formas de protesto, de denúncia, de pressão, de apoio, de
mobilização e de conflito.
Um movimento social pode ser considerado urbano quando coloca em pauta a
questão da urbanização, da habitação ou quando as questões reivindicadas e discutidas
forem decorrentes das urgências e necessidades sociais concretas de uma parcela da
população localizada na cidade.
A participação da população no espaço urbano nasce pela busca por saneamento
básico, por pavimentação, por iluminação pública, por equipamentos sociais etc. Do
mesmo modo, a luta urbana congrega os mais distintos estratos populares e diferentes
instituições, além dos grupos sociais que se encontram na cidade – associações de
bairro, movimentos sociais, grupos religiosos, ONGs etc. O que há em comum entre as
pessoas é a intenção de desenvolver uma ação reivindicativa em torno das necessidades
sociais reais pelos serviços urbanos.
Os movimentos sociais urbanos ressurgiram com vigor no Brasil durante o
regime militar, na década de 1970, quando a participação popular praticamente inexistia
e havia a desconfiança das pessoas e grupos com relação às instituições políticas e com
os sistemas políticos de mediações. A pressão exercida por setores organizados da
sociedade civil, especialmente pelos movimentos sociais, foi um elemento fundamental
no desencadeamento do processo de abertura política. Os movimentos sociais urbanos
reivindicavam direitos - a começar pelo direito de reivindicar direitos (SADER, 1988) -
138

, principalmente o direito de participar ativamente na solução dos problemas


encontrados na realidade. Assim, estes movimentos devem ser vistos no contexto
histórico da redemocratização, das práticas vinculadas à Igreja Católica e de novas
formas de organização nas comunidades, distintas das experiências das décadas de 1950
e 1960.
Um dos objetivos dos movimentos sociais urbanos é, portanto, cristalizar o
significado da cidadania, “não somente em termos das conquistas materiais, mas
também, quando possível, na constituição de uma identidade que gradualmente vai
quebrando a consciência fragmentária que lhe é imposta pelas características do regime
político” (JACOBI, 1989, p. 18).
A percepção das carências e dos direitos excluídos faz emergir nestes
movimentos urbanos uma coletividade de iguais. É nesse meio que é valorizada a
participação de todos e “o reconhecimento de cada um como parte componente de um
coletivo” (SCHERER-WARREN, 1987, p. 263), num processo de construção da
identidade, que possibilita a realização do que Durham (1984, p.43) chama de
“constituição de pessoas na esfera pública”. Reforçando essa ideia, Jacobi (1989, p.29)
afirma que ocorreu “um amplo processo de revisão e redefinição do espaço de
cidadania”.
A conscientização se dá no plano da organização de base, através de assembleias
nos bairros, onde os moradores geram novos padrões de valores. Assim, as demandas
dos grupos são muito concretas e pontuais e objetivam a consecução imediata das
metas. Isso, evidentemente, exige da população um nível de organização social e
política para efetivamente conseguir a implantação de novas políticas (JACOBI, 1989).
Como diz Scherer-Warren (1987, p. 254), “em sua grande maioria os movimentos
sociais urbanos estão relacionados com a deterioração e a precariedade das condições de
vida, em sua dimensão cotidiana”.
A legitimidade das reivindicações é avaliada pela capacidade do movimento
social urbano “de respeitar e promover os direitos que a população está se atribuindo”
(DURHAM, 1984, p. 43) e compõe-se de duas faces: a) uma interna, que diz respeito ao
próprio modo de constituição dos grupos reivindicatórios quanto à definição dos seus
participantes; b) uma externa, que diz respeito ao reconhecimento da associação pela
sociedade mais ampla e, principalmente, pelo Estado.
A primeira é relevante pela heterogeneidade social e econômica dos setores
populares, cuja igualdade interna torna-se possível pela negatividade especifica, isto é,
139

pelo fenômeno segundo o qual “os indivíduos mais diversos tornam-se iguais na medida
em que sofrem a mesma carência e, agindo em conjunto, (...) vivem a experiência da
comunidade” (MOISES, 1981, p. 28). A segunda é relevante “para a constituição efetiva
de um ator coletivo, capaz de ação concertada” (SOMMARIBA, 1992, p.8),
dependendo, em boa medida, dos graus de eficácia que puderam ser alcançados.
Ao tornarem-se “sujeitos de sua própria história”, os movimentos sociais
urbanos encontram-se na mesma sociedade, com as mesmas carências, e lutam para
supri-las; mas o modo como os movimentos sociais fazem ou a importância relativa
atribuída aos diferentes bens reivindicados dependem de algumas características: da
identidade do grupo - se são membros do sindicato, da Igreja, militantes de um partido;
do modo como articulam objetivos “práticos” a valores (SADER, 1988) que dão sentido
ao grupo - não quer conflitar politicamente, ou quer etc.; e, sobretudo, das experiências
vividas. Pois são das experiências que derivam as formas do grupo se identificar,
reconhecer seus objetivos e inimigos, e o mundo que o envolve.
Em suma, os movimentos sociais urbanos são os que buscam traduzir uma luta
pela melhoria das condições de vida, apresentam-se como resposta à omissão da atuação
estatal e têm um efeito de conscientização de todos quanto a um horizonte político de
reivindicações de melhoria das condições de vida. A Associação dos Trabalhadores Sem
Terra de São Paulo nasce dessas condições.
Essas considerações mostram que a responsabilidade vai além da esfera da
sociedade política, vivida na relação entre Estado e sociedade. Ao ampliar o espectro da
política - incorporando novos temas na agenda política e atuando no plano institucional
e extra-institicional - é necessário destacar também, segundo Scherer-Warren (2008),
que os movimentos sociais urbanos têm a sua frente alguns desafios a serem
trabalhados: 1) Superação do discurso apenas denunciativo em troca de um
posicionamento mais propositivo. Não se coloca mais o “outro” como vilão, inimigo,
enquanto os movimentos são as eternas vítimas do sistema. Parte-se para uma relação
muito mais de composição do que de oposição; 2) Superação do sectarismo. A
articulação e a troca de experiências e valores comuns entre os grupos enriquecem suas
ações e deixa-os mais aptos para enfrentarem as diferentes dificuldades, que são comuns
a vários grupos; 3) Superação do corporativismo e do separatismo. O que de certa forma
relaciona-se com o ponto anterior, no sentido de uma crescente abertura dos grupos em
direção a outros grupos. Formando um sujeito cada vez mais plural e aberto e, portanto,
140

mais apto a enfrentar os problemas do cotidiano; e 4) Superação da partidarização dos


movimentos sociais.
Scherer-Warren (2008) identifica no projeto desses movimentos sociais urbanos
um potencial transformador, no sentido de modificar a sociedade não apenas a partir do
aparelho do Estado, mas também no nível das ações concretas da sociedade civil. “Os
novos movimentos sociais, atuando mais diretamente no seio da sociedade civil,
representam a possibilidade de fortalecimento desta em relação ao aparelho do Estado e
perante a forma tradicional do agir político por meio de partidos” (p. 513).
O político passa a ser uma dimensão presente em toda prática social e não um
espaço específico.
Todo esse processo dos movimentos sociais urbanos culminou também com a
positivação na Constituição brasileira de 1988 de diversos novos direitos sociais. A
formação de conselhos e colegiados em áreas de saúde e educação, por exemplo, e
questões como a vida cotidiana, democracia participativa, autonomia da sociedade,
esferas públicas e privadas e cidadania ganham destaque graças a essa nova experiência
política vivenciada pelos movimentos sociais.
Nas palavras de Gohn,

As referências deixaram de ser sujeitos históricos predeterminados, ou com


alguma vocação ou missão a desempenhar - como a categoria dos operários,
por seu lugar na estrutura de produção - ou a categoria das classes populares -
coletivo socialmente heterogêneo em termos da inserção no mercado de
trabalho mas homogêneo em termos de demandas sociais, modo de vida e
consumo restrito. A nova referência são os novos atores sociais - mulheres,
jovens, negros, índios etc. -, e os pobres, os excluídos, apartados socialmente
pela nova estruturação do mercado de trabalho (GOHN, 1997, p. 288).

Os movimentos sociais urbanos caracterizam-se pela defesa da autonomia frente


ao Estado e aos partidos políticos na construção de uma cultura política baseada em três
formas de reação: na reação às formas autoritárias e de repressão política, propondo
democracia direta quando possível e representativa em contextos mais gerais, além de
questionar os próprios critérios de distribuição de poder; na reação às formas
centralizadoras do poder, defendendo autonomias locais e sistemas de autogestão; na
reação ao caráter excludente do modelo econômico adotado no país, encaminhando
novas formas de vida mais comunitária (SCHERER-WARREN, 1987).
A atitude dos movimentos sociais urbanos, predominantemente ativa, antagônica
e contestadora da legitimidade do Estado na gestão da sociedade, deu lugar a uma
postura propositiva, alargando o leque de interlocutores e ampliando sua legitimidade.
141

A participação entendida e realizada como confronto deu lugar à participação entendida


como negociação.
Os movimentos sociais urbanos foram persistentemente construindo seu lugar
como sujeito nesta história, ampliando sua participação na definição de seus rumos.
Participar da gestão das questões que dizem respeito ao seu destino comum era uma
aspiração de todos os grupos sociais, para recuperar sua capacidade de intervir no seu
destino, nas decisões que os afetam.
Já nos anos 2000, as organizações da sociedade civil e os movimentos sociais
passam a valorizar cada vez mais formas de participação institucional (audiências
públicas, assembleias e conferências políticas, fóruns, conselhos setoriais de políticas
públicas, orçamento participativo, agenda 21 etc.). Tais organizações percebem nesses
espaços a oportunidade do exercício do “controle social pela cidadania”, considerado
como um meio político adequado e legítimo para a expansão da democracia.
Simultaneamente, alguns destes movimentos defendem e realizam uma resistência
política mais ativa - ocupações de terra, bloqueio de estradas e ocupação de órgãos
públicos e de empresas, especialmente transnacionais consideradas nocivas ao meio
ambiente e/ou a participação social dos excluídos na produção social da riqueza, e
outras formas de intervenção com impacto político. Esta última tendência percebe
nestas formas de resistência as possibilidades de atuação para “um novo projeto de
nação” (SCHERER-WARREN, 2008).
Para a autora, tanto nos espaços da participação institucional como nos espaços
das assembleias populares e das redes autônomas dos movimentos sociais, as diferentes
organizações e tendências dos movimentos sociais se encontram e negociam ações
políticas. Isto ocorre porque o movimento social atua cada vez mais sob uma forma de
rede que ora se contrai em suas especificidades e ora se amplia na busca de
empoderamento político.
Segundo Santos (2008), as demandas materiais têm como referência objetiva as
exclusões e carências cotidianas dos sujeitos-base das lutas e são, portanto, histórica e
espacialmente referenciadas. Neste sentido, podemos nomear alguns dos movimentos
sociais populares mais expressivos na América Latina atual – sem terra ou campesinos,
sem teto ou de moradores, indígenas, quilombolas, negros, mulheres, piqueteiros,
142

desempregados, dentre outros. Estas demandas se tornam signos e representações


simbólicas através da tradução17 de seus significados em políticas de cidadania.
Para Scherer-Warren (2008), a possibilidade da construção de sujeitos e da
transformação destes sujeitos em atores politicamente ativos não transcorre como uma
necessidade imediata da vivência de carências. A carência por si só não produz
movimentos sociais. O movimento resulta do sentido coletivo atribuído a esta carência e
da possibilidade de identificação subjetiva em torno dela. Resulta também da
subsequente transformação dos sujeitos em atores políticos, da respectiva transformação
das carências em demandas, destas demandas em pautas políticas e das pautas políticas
em ações de protestos. Além disso, deve-se ter a capacidade de definição dos conflitos,
dos adversários centrais a serem enfrentados e da construção de projetos e utopias de
mudança.
De acordo com Santos (2008), o possível potencial antissistêmico ou contra-
hegemônico de qualquer movimento social reside na sua capacidade de articulação com
outros movimentos, com as suas formas de organização e os seus objetivos. Portanto,
para que essa articulação seja possível, é necessário que os movimentos sejam
reciprocamente inteligíveis.
As questões da solidariedade inter-sujeitos coletivos, do reconhecimento a partir
ou apesar de suas diferenças, a abertura ao pluralismo democrático, são fundamentais
para que ocorra a transformação das demandas particulares em pautas políticas que
dizem respeito a um conjunto de exclusões sociais que operam numa mesma ordem ou
lógica sistêmica. É a partir de uma nova lógica associativa que a diversidade dos
movimentos sociais latino-americanos vem se articulando em redes políticas. Segundo
Machado (2007, p. 277), “vivemos em uma era em que os interesses dos indivíduos que
os ligam em redes são cada vez mais cruzados, diversos e frequentemente tênues. Luta-
se cada vez mais em torno de códigos culturais, valores e interesses diversos”.
As redes de movimentos sociais na atualidade se caracterizam por articular a
heterogeneidade de múltiplos atores coletivos em torno de unidades de referências
normativas, relativamente abertas e plurais. Compreendem vários níveis organizacionais
- dos agrupamentos de base, às organizações de mediação, aos fóruns e redes políticas
de articulação. Estas redes, ora têm como nexos uma temática comum - terra, moradia,

17
“A tradução é o procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do
mundo, tanto as disponíveis como as possíveis, reveladas pela sociologia das ausências e a sociologia das
emergências” (SANTOS, 2008, pp. 30-31).
143

trabalho, ecologia, direitos humanos etc. -, ora uma plataforma de luta política mais
ampla - a altermundialização, a soberania nacional, um projeto de nação, ou a luta
contra o neoliberalismo, contra a hegemonia mundial do capitalismo, às guerras
imperialistas, contra o monopólio dos meios de comunicação, dentre outras -, indicando
uma relativa volatilidade das redes, mas também sugerindo indícios de sua capacidade
de abertura ao pluralismo democrático (SCHERER-WARREN, 2008).
Um exemplo dessa rede é a Via Campesina, rede de movimentos sociais rurais
em vários continentes na luta antissistêmica ao modelo do agronegócio, que se expandiu
no contexto das realizações do Fórum Social Mundial, criou seu espaço próprio de
articulação política global e na América Latina.
Porém, ainda de acordo com a autora, o encontro e, frequentemente, o
desencontro dos códigos culturais, dos interesses particulares e das concepções político-
ideológicas de diferentes organizações na rede, são produtores de tensões e conflitos
internos nem sempre superáveis, pelo menos, de imediato. Esse é o desafio atual.
Assim, esta condição, por um lado, gera tensões e ambiguidades no interior das redes,
mas, por outro, cria um espaço propício para a alteridade inter-sujeitos. O pluralismo
das tradições organizativas, oriundas de métodos de trabalho diferenciado, gera
necessidade de negociações e de reconhecimento mútuo de suas diferenças no interior
da rede.
Portanto, é neste embate, entre respeito à diversidade - dentro de determinados
limites ideológicos, naturalmente - e a busca da unidade possível na ação - não
necessariamente homogênea, mas complementar -, que as redes de movimentos sociais
vêm construindo suas trajetórias. Desta forma, o ideário de horizontalidade
organizacional é permeado pela existência de elos internos que atuam a partir de
representações políticas formalmente mais hierarquizadas.
A partir dos vínculos sociais, inter-individuais e inter-organizativos, as redes de
movimentos desenvolvem seus processos mobilizatórios em espaços locais, mas de
forma articulada, buscando visibilidade e impacto midiático para além do local, para os
espaços nacionais e internacionais. É a partir deste encontro de uma pluralidade de
demandas, de lutas por reconhecimentos específicos, de definição de conflitos e de
adversários particulares e sistêmicos e à luz de um projeto popular mais amplo de
integração latino-americana, que contemple a participação política e autônoma dos
sujeitos coletivos, que os movimentos populares, por meio de suas redes, vêm se
144

fortalecendo no continente, sendo uma referência política relevante para vários


governos (SCHERER-WARREN, 2008)..
Enfim, as redes de movimentos sociais na América Latina vêm construindo
caminhos para uma política emancipatória na medida em que se apresentam abertas à
diversidade das organizações sociais da região, vêm colaborando para reescrever a
história de ocupação e dominação em cada país, traduzi-la em simbologias e
significados para as populações mais excluídas, discriminadas e dominadas no presente,
criando utopias de transformação que foram unificadas no lema “outro mundo é
possível” e suas variações de interpretação.

2. Aspectos gerais do Princípio de Subsidiariedade

O Princípio de Subsidiariedade valoriza justamente a participação popular. Tudo


o que puder ser provido pela sociedade, pelos movimentos sociais, por seus próprios
entes e seus respectivos meios, deverá sê-lo. O Estado deverá atuar apenas
subsidiariamente na solução de quaisquer problemas que ultrapassem suas próprias
possibilidades de atuar eficientemente.

É, portanto, no compromisso com esse primado da livre e criativa sociabilidade


diante do poder que se demonstram a força e a duração da responsabilidade
pessoal. É no primado da sociedade diante do Estado que se preserva a cultura
da responsabilidade. Primado da sociedade, portanto: como tecido criado por
relações dinâmicas entre movimentos que, criando obras e agregações,
constituem comunidades intermediárias, e assim exprimem a liberdade das
pessoas potencializada pela forma associativa (GIUSSANI, 2001, pp. 164-165;
destaque nosso).

O objetivo do princípio é o de viabilizar o pleno desenvolvimento da pessoa por


meio de um equilíbrio na relação entre as pessoas, a família, as comunidades
intermediárias e o Estado, atento sempre à diversidade e ao pluralismo de poder que
caracterizam a estrutura social.
Embora a participação popular seja muito importante e deva ser aperfeiçoada,
não significa que o Estado deva ter seu papel diminuído.
A sociedade e a comunidade não têm a autossuficiência que a natureza humana
reclama como ideal. A convivência com a vizinhança e a cooperação no campo
econômico requerem uma nova ordem comunitária a regular atividades dos grupos,
proteger a justiça, a promover os interesses comuns; uma comunidade maior que
estabeleça a ordem social entre as comunidades, administre a Justiça, impondo leis a
seus membros, e fomente o interesse comum. Quer dizer, o Estado surge como
145

comunidade necessária, que se origina na natureza social e racional do homem e começa


a existir como corpo político, como nova ordem pública, que transcende as
comunidades menores das famílias e círculos vizinhos, por meio de uma aliança
voluntária, decisão de seres racionais livres. O Estado deve efetivamente servir o fim
geral de todos os indivíduos como pessoas, isto é, a perfeição da sua natureza
(ROMMEN, 1967).
O Estado não é visto como um fim em si mesmo, mas como uma entidade a
serviço do organismo social, cuja função é auxiliar, sem substituir, os entes sociais
quando incapazes de suprir suas próprias necessidades. A subsidiariedade eleva a
sociedade a primeiro plano na estrutura organizacional do Estado.
Subsidiariedade significa ajuda ou socorro. Provém do termo latim subsidium,
que significa “ajuda da tropa reserva”. De acordo com Höffner (1986), no linguajar
romano contrapunham-se as tropas em ação no front (prima acles) e as tropas reservas
(subsidiarii cohortes).
Segundo Millon-Delsol (1993), o Princípio de Subsidiariedade contribui para o
estabelecimento de uma relação equilibrada entre o Estado, as pessoas e os grupos, mas
apresenta-se sob duplo aspecto:

a) negativo: a autoridade em geral e o Estado em particular não devem impedir


as pessoas ou grupos sociais de conduzir suas próprias ações, isto é, de empregar
tanto quanto possível energia, imaginação e perseverança nas obras, através das
quais realizam as ações de interesse geral e interesse particular; b) positivo: cada
autoridade tem por missão incitar, sustentar os atores insuficientes (MILLON-
DELSOL, 1993, p.5).

Uma leitura atenta nos permite identificar um paradoxo inerente ao Princípio de


Subsidiariedade: ao mesmo tempo em que impõe limites à ação estatal, o princípio torna
indispensável a ajuda e o estímulo do Estado quando é impossível à comunidade menor
realizar as suas próprias necessidades, ou quando tal realização não se mostrar eficaz ou
satisfatória. Por isso, a subsidiariedade precisa de um Estado atuante.
Este princípio dá primazia ao indivíduo sobre os grupos intermediários e, em
segundo, a esses grupos sobre a sociedade e, por fim, à sociedade sobre o Estado,
instituindo-se uma cadeia de subsidiariedade:

Deve-se reconhecer ao indivíduo o direito e a prioridade de atuar com seus


próprios meios para a satisfação de seus interesses, só deferindo às entidades da
sociedade aquilo que ele não possa fazer. Essa regra se repete de grau em grau de
complexidade de organização social: às sociedades privadas deve-se reconhecer
o direito e a privacidade de atuar com seus próprios meios para a satisfação dos
interesses que lhe são próprios, só se transferindo às entidades públicas aquelas
146

atividades que necessitem, de alguma forma, do exercício da coação. É, ainda, a


mesma regra a que deve organizar os sucessivos graus de complexidade das
entidades públicas, de tal forma que os entes públicos menores tenham
prioridade sobre os maiores para atuar na satisfação dos interesses locais, da
mesma forma, a seguir, os entes públicos intermediários, para atuarem na
satisfação dos interesses regionais e, ainda, os entes públicos nacionais, para
atuarem na satisfação de todos os demais interesses que não podem ser
satisfatoriamente atendidos pelos entes regionais. Finalmente, como corolário na
órbita internacional, a atuação dos Estados soberanos deverá preferir sempre a
entidades inter e supranacionais, que só deverão agir quando as entidades
políticas nacionais não tenham condições de satisfazer certos interesses gerais
que transcendam sua capacidade de ação. Articula-se, assim, uma cadeia de
subsidiariedade, na qual o ente maior é sempre subsidiário do menor e, por isso,
o maior só tem razão e dever de intervir quando os menores não tenham
condições de atuar de modo eficiente (MOREIRA NETO, 2000, p. 118; destaque
no original).

Portanto, se uma determinada atividade puder ser cumprida com equivalente


nível de eficácia pelo indivíduo, pelos grupos sociais e pelo Estado, deverá ser
reservado para aquele que está mais próximo da pessoa. Garante-se assim a liberdade
das pessoas e das comunidades intermediarias. A subsidiariedade acontece, desse modo,
desde que seguidas as seguintes condições: confiança na capacidade dos atores sociais e
na origem do interesse geral; intuição de que a autoridade não é detentora de
competência absoluta; na qualificação e realização do interesse geral; na vontade
autônoma e na iniciativa dos atores sociais.
A cadeia, portanto, é a seguinte: pessoa – comunidades intermediárias – Estado
(subsidiariedade horizontal); e dentro do Estado: instância local – regional – nacional –
supranacional (subsidiariedade vertical).
No Brasil, de maneira específica, a estrutura constitucional de 1988 e o modelo
federalista descentralizado são manifestações claras, mesmo que implícitas, do Princípio
de Subsidiariedade em seu aspecto vertical. A Constituição de 1988 em seu artigo 18
prevê que “a organização político administrativa da República federativa do Brasil
compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos entes
autônomos”. Desta forma, garante a soberania nacional da União que exerce o governo
central e garante a autonomia aos Estados e Municípios para organizarem seus governos
e suas administrações. É o princípio da autonomia dos entes federados e da
subsidiariedade implícito na constituição, sendo a autonomia do Município assegurada,
por exemplo, por outros princípios como a elegibilidade dos Prefeitos e Vereadores, a
administração própria, e no tocante ao seu peculiar interesse, a arrecadação dos tributos
de sua competência, a aplicação de suas rendas e a organização dos serviços públicos
locais. A Constituição de 1988 no capítulo “Da Ordem Econômica” também é clara ao
147

determinar a intervenção federal somente em casos excepcionais, reafirmando a


autonomia dos entes federativos, característica fundamental do federalismo
(CAVALCANTI, 2009).
No entanto, para o equilíbrio da boa governança, a subsidiariedade vertical não
pode existir sem a horizontal, que deverá favorecer o relacionamento entre o Estado, a
iniciativa privada e a pessoa. Cavalcanti (2009) destaca, então, a legislação específica
sobre parcerias público privadas, a Lei 11.079/04, conhecida como a Lei das PPPs, que
viabiliza a participação do capital privado na aplicação de recursos e serviços sociais e
obras de infraestrutura, como também estimula a realização de Convênios entre órgãos
públicos e privados. Estas parcerias possuem grande diferença da função das agências
reguladoras ou das concessionárias de serviço público, como também não se confundem
com a tão criticada privatização dos serviços públicos.
Para justificar uma possível intervenção do Estado, devem-se obedecer pelo
menos quatro condições, segundo Rommen (1967): a) quando há prejuízo dos interesses
essenciais e direitos de toda a comunidade ou de um dos seus grupos funcionais, e
quando seu bom funcionamento representa contribuição essencial para o bem comum;
b) deve o dano já ter ocorrido, ou ao menos estar para acontecer em breve, porque o
Estado não deve supor necessária a sua intervenção sem razão forçosa. Não deve
intrometer-se nos grupos, nas famílias e na vida das pessoas, ainda que por interesse
paternal, pois prejudicaria a liberdade e iniciativa da pessoa; c) deve ser último recurso
para dominar a necessidade de uma instituição; e d) limitado no tempo: só pode ser feito
pela intervenção do Estado o que é necessário para enfrentar a emergência. Cessada a
emergência, cessa-se a intervenção.
Trata-se, então, de um princípio flexível, sem fronteiras imutáveis entre o Estado
e os grupos que o integram. Cada caso precisa de verificação empírica, para medir a
eventual insuficiência do grupo que tem a missão a cumprir (SANCHEZ AGESTA,
1992). Desse modo, os limites que o princípio impõe à intervenção do Estado avançam
ou recuam conforme as circunstâncias.
Entre as tarefas essenciais do Estado incluem-se a defesa externa e, em geral,
uma política externa honesta e justa, a defesa de uma ordem jurídica interna e um poder
judiciário justo, bem como o respeito pela liberdade de consciência (HÖFFNER, 1986).
Podemos ver na subsidiariedade, assim, uma definição da natureza do Estado,
cuja missão não é secundária, mas se identifica com os fins individuais da pessoa e dos
grupos, de modo a cooperar para o desenvolvimento quer das pessoas, quer da
148

sociedade como um todo. O Estado encontra-se a serviço do bem comum, que é ajuda
para que os membros da comunidade se desenvolvam sob sua própria responsabilidade
e autodeterminação.
Para Vittadini (2011), o princípio vem equilibrar a liberdade, detendo o indevido
intervencionismo estatal em áreas próprias da sociedade e convocando o Estado a
ajudar, promover, coordenar, controlar e suprir a atividade do pluralismo social.
Em suma, a função subsidiária deve se manifestar primeiro como ajuda,
mediante a criação de condições necessárias que possibilitem a ação das comunidades
intermediárias e, depois, excepcionalmente, como suplência, suprindo a insuficiência
dos grupos sociais, quando estes não puderem satisfazer adequadamente suas funções.
Em linhas gerais, Gutierrez (1995) afirma:

(...) a autoridade política deve: 1. Deixar fazer o que os cidadãos e as sociedades


inferiores podem realizar com eficiência a partir de si mesmos; 2. Ajudar a fazer
o que os cidadãos e as sociedades inferiores podem realizar somente de modo
imperfeito; 3. Fazer por si só aquilo que os cidadãos e as sociedades inferiores
são incapazes de realizar de forma eficiente com relação ao bem comum ou que
constitui um risco para este se tal atividade vier a cair em mãos privadas
(GUTIERREZ, 1995, p. 115).

Por isso Ariño Ortiz (1999) ressalta a flexibilidade intrínseca do Princípio de


Subsidiariedade. Ele depende do contexto histórico, econômico, social e cultural de
cada país.

A liberalização e privatização de prestação de serviços públicos podem ser


adequadas para sociedades organizadas, que contam com as infraestruturas
necessárias para a provisão do serviço com universalidade e qualidade; pelo
contrário, em sociedades menos desenvolvidas pode ser necessário, ao menos
inicialmente, o protagonismo estatal na provisão de ditos serviços e
infraestrutura como única forma viável de sua efetiva prestação. Em tempos de
pós-guerra, em épocas de decadência e em começo de desenvolvimento, podia
ser necessário que o Estado assumisse um maior protagonismo empresarial
porque as organizações sociais não eram capazes. Esse foi o caso de muitos
países da Europa nos anos 40, após a Segunda Guerra Mundial, e também o caso
da Espanha que após uma guerra civil devastadora, isolada e sem divisas,
necessitava de uma liderança do Estado na economia (...) (ARIÑO ORTIZ, 1999,
pp. 111-112).

3. A ideia antiga de subsidiariedade

A ideia de subsidiariedade é antiquíssima. Suas raízes – os elementos filosóficos


do princípio – já podem ser vislumbradas na Antiguidade e na Idade Média, por
exemplo, nos discursos de filósofos como Aristóteles e São Tomás de Aquino.
149

De acordo com Millon-Delsol (1992), as primeiras manifestações da ideia de


subsidiariedade são atribuídas a Aristóteles. O filósofo, ao se referir às atribuições de
poder e competência subsidiária dentro de uma sociedade, afirmava que ao grupo mais
restrito, ou seja, o familiar, caberia se ocupar exclusivamente das necessidades
cotidianas do indivíduo. As aldeias, por sua vez, deveriam se encarregar das
necessidades que não fossem puramente cotidianas. E as cidades, em último grau da
escala, teriam outra finalidade: agora não mais propiciar o viver, o sobreviver, mas o
viver bem.
Nesse cenário, continua a autora, os diferentes grupos sociais não se
intercalariam, mas se sobreporiam, partindo-se do pressuposto que cada grupo age, tão
somente, para responder às necessidades não satisfeitas da esfera imediatamente
inferior.
É importante ressaltar que a sociedade, para Aristóteles, não é uma associação
utilitária, no sentido de que as pessoas se unem conjuntamente para conseguir
solidariamente o que seria impossível de se obter separadamente, como a segurança ou a
riqueza. Entretanto, não lhe preocupa apenas essas incapacidades, mas as ligadas ao
aperfeiçoamento do ser humano. A sociedade não se esmera apenas no momento em
que cada um consegue seus fins particulares, mas emenda-se na ocasião em que cada
comunidade, por menor que seja, e cada indivíduo, isoladamente, possa melhorar sua
vida, adquirindo a felicidade (BARACHO, 2000).
O poder, por sua vez, retiraria a sua legitimidade não apenas do seu papel de
suplência, mas da obrigatoriedade de ser justo e de respeitar a liberdade e a diversidade
dentro de uma determinada sociedade. Além disso, o poder só surgiria para fazer em
face de uma contingência — como, por exemplo, a guerra — e somente nessas bases se
legitimaria. Além do mais, para Aristóteles, o indivíduo era o fulcro do sistema político,
motivo pelo qual o Estado – polis -, devia agir em função do seu próprio bem.
A concepção primitiva de subsidiariedade foi posteriormente desenvolvida por
Tomás de Aquino. Para o filósofo, a sociedade é múltipla e variada, onde somente a
filosofia do poder permite a consagração da diferença. Ele diz que a exagerada
unificação e equiparação ameaçam a existência de “corpos comunitários integrados por
vários elementos”, do mesmo modo que “desaparecem sinfonia e harmonia das vozes,
quando todos cantam a mesma coisa” (TOMÁS DE AQUINO, 1980, vol. 1, qu. 58, a.
5).
150

O respeito a essas diferenças é, justamente, o único modo de cada um realizar as


suas finalidades singulares. Cada pessoa constitui o mundo dela própria, independente e
responsável por seu destino. Contudo, ela será sempre incapaz, por si só, de realizar a
felicidade esperada. Haverá para ela a necessidade de recorrer ao poder público,
instrumento posto em serviço das sociedades, para preencher essa carência.
Posteriormente, nos séculos XVIII e XIX, foi invocada por diversos pensadores
como Locke, Proudhom, Tocqueville, Kant e outros (MILLON-DELSOL, 1992).
Entretanto, a Doutrina Social da Igreja bebe da ideia de subsidiariedade justamente das
inspirações aristotélica e cristã, descritas acima. Por isso acreditamos que, no âmbito do
presente trabalho, não seria necessário tecer um estudo pormenorizado de cada um
desses expoentes, sob risco de nos afastarmos demasiadamente do propósito inicial.
Fica, contudo, o seu registro.

3.1. A subsidiariedade na Doutrina Social da Igreja

Foi com a Doutrina Social da Igreja Católica que nasceu a concepção moderna
do Princípio de Subsidiariedade, objetivando-se alcançar o equilíbrio entre um Estado
totalitário e um Estado mínimo. É a partir daí, então, que a ideia de subsidiariedade tem
sua formulação mais precisa.
O Estado na concepção cristã, segundo Rommem (1967), é posterior à pessoa,
tem como direção o bem comum e implica em proteger a dignidade da pessoa humana e
facilitar a cada homem o cumprimento de seus próprios deveres. A sociedade e a ordem
política e econômica têm seu fundamento, seu fim e seu princípio em promover a
conservação, desenvolvimento e perfeição da pessoa humana em cada um dos seres
humanos.
Na Encíclica Rerum novarum, a ideia de subsidiariedade apareceu pela primeira
vez, embora não explicitamente. Leão XIII demonstra que o homem é senhor de suas
ações e por isso tem direito de escolher as coisas que julgar mais aptas, para prover o
seu sustento presente e futuro. Afirma que não se pode apelar para a providência do
Estado, porque este é posterior ao homem, e antes que ele pudesse se formar já o
homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência.

O fim da sociedade civil abrange universalmente todos os cidadãos, pois este fim
está no bem comum, isto é, num bem no qual todos e cada um têm o direito de
participar em medida proporcional (...). Os poderes públicos não podem, pois,
legitimamente, arrogar-se nenhum direito sobre elas [comunidades
151

intermediárias], atribuir-se a sua administração; a sua obrigação é antes respeitá-


las, protegê-las e, em caso de necessidade, defendê-las (RN, nº 32).

Quarenta anos depois, o papa Pio XI, na encíclica Quadragesimo anno, alega:

Permanece imutável aquele princípio da filosofia social: assim como é injusto


subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e
indústria, para confiá-lo à coletividade, do mesmo modo passar para uma
sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam
conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social.
O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, não
destruí-los nem absorvê-los (nº 79; destaque nosso).

Aqui está inserida a formulação precisa do Princípio de Subsidiariedade.


Compreende tanto a preferência aos grupos menores com respeito ao Estado, como a
primazia ao indivíduo, com respeito aos próprios grupos menores. É a divisão de
competência na ordem social, que privilegia a organização da sociedade a partir de
baixo. Destacamos a parte final da formulação por considerarmos que aí se apreende a
exata noção da ideia de subsidiariedade. Prossegue Pio XI:

Deixe, pois, a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores àqueles


negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado; poderá então
desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete, porque
só ela o pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a
necessidade requeiram. Persuadam-se todos os que governam: quanto mais
perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias agremiações, segundo este
princípio da função “supletiva” dos poderes públicos, tanto maior influência e
autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o Estado da Nação (QA,
nº 80).

Desse modo, as entidades maiores e, sobretudo, o Estado, devem prestar ajuda


aos membros do corpo social, mas não destruí-los ou absorvê-los. Após essa
formulação explícita, o Princípio de Subsidiariedade foi constantemente reafirmado
pelos papas em diversos outros textos pontifícios sendo, sucessivamente, aprimorado.
João XXIII, em Mater et magistra, reafirma o princípio nos mesmos termos que
Pio XI na Quadragésimo anno. Todavia se aplica mais diretamente à relação entre o
poder público e a iniciativa privada no âmbito econômico, priorizando a iniciativa
privada dos indivíduos, seja que atuem isoladamente, seja através de associações de
diversos tipos. Mas quer igualmente garantir o máximo protagonismo em cada um dos
níveis em que a sociedade se encontra estruturada. João XXIII diz: “(...) os cidadãos que
se dedicam a atividades econômicas, sociais e culturais sintam-se os principais atores do
152

progresso alcançado. A dignidade dos cidadãos exige que participem da condução de


seus negócios” (MM, nº 54).
O equilíbrio entre a iniciativa privada e a intervenção do Estado devem ajustar-
se às “transformações que o tempo e os costumes impõem” (MM, nº 56). É preciso fugir
dos dois extremos, porque a falta total da iniciativa leva à tirania política (cf. MM, nº
57), enquanto que a ausência do Estado acaba desembocando em abusos dos mais fortes
contra os fracos (cf. MM, nº 58).
Em Pacem in terris, João XXIII faz alusão ao princípio: “as relações dos
poderes públicos com os cidadãos, as famílias e os corpos intermediários devem ser
regidos e equilibrados pelo Princípio da Subsidiariedade” (nº 140). Se necessário, o
Estado deve intervir para favorecer o exercício da liberdade, mas não supri-la. É nessa
encíclica também que o papa estendeu a subsidiariedade às relações internacionais, por
meio de uma autoridade mundial que deve enfrentar os problemas que os Estados não
podem resolver, mas sem limitar a competência própria das autoridades nacionais (cf.
PT, nº 140-141).
João Paulo II, na Centesimus annus, reitera o conceito de subsidiariedade, ao
dizer que

uma estrutura social de ordem superior não deve interferir na vida interna de um
grupo social de ordem inferior, privando-a de suas competências, senão que deve
apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar sua ação com os demais
componentes sociais, com vistas para o bem comum (...). As funções de
suplência são reconhecidas em geral ao Estado em situações excepcionais, por
razões urgentes de bem comum, quando os chamados naturalmente a cumprir as
competências de que se trate não estejam em condições de fazê-lo. Por isso,
devem ser limitadas no tempo, para não privar indefinidamente as competências
de ditos setores sociais (CA, nº 48).

João Paulo II ainda afirma: “As relações dos poderes públicos com os cidadãos, as
famílias e os corpos intermediários devem ser regidas e equilibradas pelo Princípio de
Subsidiariedade” (CA, nº 48).
Já Bento XVI diz:
É verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a prossecução da justiça
e que a finalidade de uma justa ordem social é garantir a cada um, no respeito do
Princípio da Subsidiariedade, a própria parte nos bens comuns (...). Não
precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que
generosamente reconheça e apoie, segundo o Princípio de Subsidiariedade, as
iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e
proximidade aos homens carecidos de ajuda (DCE, nº 26-28).

Por fim, em Caritas in veritate Bento XVI sintetiza bem os principais pilares da
subsidiariedade:
153

A subsidiariedade é, antes de qualquer coisa, uma ajuda à pessoa, na autonomia


dos corpos intermédios. Tal ajuda é oferecida quando a pessoa e os sujeitos
sociais não conseguem operar por si sós, e implica sempre finalidades
emancipativas, porque favorece a liberdade e a participação enquanto assunção
de responsabilidades. A subsidiariedade respeita a dignidade da pessoa, na qual
vê um sujeito sempre capaz de dar algo aos outros. Ao reconhecer na
reciprocidade a constituição íntima do ser humano, a subsidiariedade é o antídoto
mais eficaz contra toda a forma de assistencialismo paternalista (CV, nº 57;
destaques nossos).

Podemos perceber, em suma - a partir das encíclicas citadas acima -, que o


Princípio de Subsidiariedade parte do homem como valor supremo para buscar uma
correção de posições extremadas, tanto coletivistas — em que se anulam a
personalidade do homem —, quanto individualistas. Entre o poder estatal e os
indivíduos isolados articula-se uma série de grupos sociais com interesses e encargos
próprios, cujas necessidades não devem ser totalmente disciplinadas e tratadas pelo
Estado, que deverá, ao contrário, intervir somente quando se caracterize a incapacidade
dos indivíduos isolados primeiro, e dos grupos sociais depois. Às pessoas e grupos
deve-se garantir a participação e a liberdade, reconhecendo o sujeito como capacitado
para resolver seus problemas, afastando qualquer política paternalista.
Além disso, aparecem dois enfoques distintos. Se Quadragesimo anno interpreta
o princípio em um sentido mais restritivo (que o Estado deixe as organizações sociais
agirem sempre que possível), a Mater et magistra, por sua vez, destaca mais a
necessidade do poder público intervir em um sentido mais amplo, até fixar inclusive o
quadro de atuação da iniciativa privada.
Ao Estado, portanto, atividades exclusivas são atribuídas como “dirigir, vigiar,
urgir e reprimir” (QA, nº 80) e, subsidiariamente, fomentar, estimular, coordenar, suprir
e completar (cf. MM, nº 53), deixando para os indivíduos e para as comunidades o que
podem “realizar com seu próprio esforço e indústria” (QA, nº 80).
Finalmente, Bento XVI afirma que o Princípio de Subsidiariedade é
aperfeiçoado e completado pelo Princípio da Solidariedade, pelo qual o indivíduo e os
grupos intermédios cooperam entre si e com o Estado, visando a realização do interesse
público.
Convém ressaltar que alguns estudiosos reclamam a aplicação do Princípio da
Subsidiariedade à própria Igreja Católica, de modo a permitir uma descentralização das
estruturas eclesiásticas e conferir autonomia às igrejas locais. Mas para Millon-Delsol
(1993) a subsidiariedade se aplica apenas à sociedade civil, aberta, e não à Igreja
154

Católica, sociedade fechada – e cuja aceitação da sua finalidade específica é aceita por
quem se associa e participa dela.

4. Fundamentação do Princípio de Subsidiariedade


4.1. Valores: Liberdade e Justiça

A liberdade e a justiça são os fundamentos precípuos da subsidiariedade. É em


nome da liberdade de iniciativa e da liberdade de escolha que o princípio ganha
expressão. O homem precisa ter sua liberdade garantida para realizar as finalidades
vitais inerentes a sua condição, que são, em última análise, assunto de sua
responsabilidade pessoal. Somente em um ambiente de liberdade o homem pode
desenvolver sua capacidade de ação (TORRES, 2001).
A liberdade e autonomia individuais formam um dos pilares do princípio. Como
Carozza (2011) observa, segundo o Princípio da Subsidiariedade a prosperidade da
pessoa exige liberdade: um indivíduo tem que ser livre para cumprir seu destino por sua
própria iniciativa e sua própria resposta às circunstâncias históricas concretas. O
princípio está fundado na ideia de que cada pessoa ou grupo tem algo de original para
oferecer à sua comunidade.
Outro aspecto importante é a liberdade de escolha. As pessoas não são iguais
entre si.

Diferem em temperamento, interesses, capacidade intelectual, aspirações,


inclinações naturais, anseios espirituais e modo de vida. Divergem nos valores
que aceitam e usam pesos diferentes para aqueles que compartilham. Desejam
viver em climas diferentes – alguns nas montanhas e outros em planícies,
desertos, beira-mar, cidades grandes e pequenas. Não há razão para pensar que
haja uma única comunidade que sirva como ideal para todas as pessoas e há
muitas para pensar que não existem (NOZICK, 1991, p. 335).

Quer dizer, cada pessoa pode escolher se associar com aqueles que mais se
identifica ou escolher o serviço oferecido por um grupo que mais lhe agrada, que tem
mais a ver com suas características e/ou seus ideais.
Já o segundo valor a que a subsidiariedade se vincula é a justiça, na medida em
que reclama a competência originária das pessoas, da família e dos grupos sociais
menores, declarando ser injusto requerer que eles sacrifiquem a própria iniciativa para
tornarem parte da iniciativa pública. Aliás, como vimos, a DSI também proclama como
injustiça subtrair aos membros da sociedade o que eles podem fazer por iniciativa e
capacidade próprias.
155

4.2. Princípios Fundantes

O Princípio de Subsidiariedade se relaciona com outros princípios, que lhe são


intimamente conexos.

a) Dignidade da Pessoa Humana

Como vimos no segundo capítulo, este princípio afirma que o homem é um ser
racional, essencialmente social e político, e moralmente livre. É necessariamente
fundamento, causa e fim de todas as instituições sociais. Nesse sentido, sendo a pessoa
limite e fundamento da organização política, é esta que serve o homem e não o homem
que serve os aparelhos políticos organizatórios, de modo que o homem não pode ser
mero objeto da ação estatal, e a ordem jurídica deve girar em torno dele.
O Princípio de Subsidiariedade parte do ser humano como valor supremo e
encontra seu fundamento na natureza humana, tendo como referência o valor ético e o
direito de autodeterminação da pessoa que, por causa de sua dignidade, se sobrepõe ao
poder estatal impedindo-o de invadir sua esfera. Por isso, deve o homem desenvolver-se
segundo sua própria natureza e realizar seus encargos vitais.
A origem do Princípio da Dignidade Humana está na responsabilidade pessoal,
porque as demandas sociais requerem que a pessoa aja, realize certas atividades. Essa
pessoa é dotada de liberdade, autonomia e criatividade. E é anterior ao Estado.

Transcendendo as instituições, as organizações, os partidos, os meios de


comunicação, há uma instância suprema, muito mais importante, que é a que
decide de modo definitivo: as pessoas, os homens individuais, livres,
responsáveis, que por tantas vezes abandonam esses atributos indeclináveis e se
deixam manipular. Em última análise, são os sujeitos do que acontece, os que
vivem e escolhem como fazê-lo, os que sofrem as consequências de suas
renúncias, os que podem recuperar o que lhes pertence e afirmar sua vontade,
seus desejos, seus apreços e avaliações, seus projetos (MARÍAS, 2003, p. 171).

A subsidiariedade valoriza a substância autônoma da pessoa e dos grupos


sociais. O Estado deve respeitar o que os entes menores fazem por sua conta, desde que
garantido o interesse público. Assim, o Estado reconhece que as pessoas são capazes de
buscar soluções para seus problemas e dificuldades, ajudando-se mutuamente, de
maneira inteligente e criativa. Retirar da pessoa esse direito é esvaziar a própria
natureza humana. Por isso, o Estado e as sociedades maiores estão a serviço do homem,
encorajando e facilitando seu pleno desenvolvimento, para permitir o exercício de todos
os direitos, como a liberdade e autonomia de ação.
156

O segredo do Princípio de Subsidiariedade é a extraordinária capacidade


evocativa da potencialidade da pessoa, que vem a ser concebida em uma
dimensão na qual resultam abolidas e superadas todas as abstrações da natureza
(do “estado de natureza” a “mão invisível”) que tinham constituído os dogmas
pressupostos do individualismo liberal (VITTADINI, 1998, p. 3).

b) Bem Comum

Segundo Sanchez Agesta (1992), o Princípio de Subsidiariedade é também


fundamentado no bem comum, que indica metas ideais a serem alcançados pela
sociedade, e que orienta a ação política no sentido de oferecer em cada momento
“aquele bem ou bens cuja carência ou deficiência impede ou desfavorece esse
desenvolvimento integral da pessoa de cada um dos seres humanos que compõe a
comunidade” (p. 89).
O bem comum tem um caráter de mediação para que os homens ou os grupos
possam realizar adequadamente seus fins. Para ele, tanto a ordem política como a
sociedade têm seu alicerce na realização do bem comum. É a causa final do Estado, seu
íntimo fim.
O bem comum é, portanto, a regra que dirige e a norma suprema dos atos do
poder do soberano, porque o objeto desse poder nada mais é que produzir, com a
colaboração de todos, a realização efetiva do bem comum. Todas as leis se justificam
exclusivamente para a sua vantagem (ROMMEN, 1967).
O Princípio de Subsidiariedade se baseia, assim, na hipótese de que a pessoa,
individualmente ou em associação com outras pessoas, é potencialmente capaz de
confrontar as necessidades coletivas e satisfazê-las. Essa perspectiva não é dominada
pela suspeita em relação à presumível busca do desejo particular e individual ou às
consequências negativas que isso talvez tenha para o bem comum. Pelo contrário, há
confiança em que a tensão construtiva dentro da condição humana tenha um resultado
positivo.

c) Pluralismo Social

O pluralismo social é outro dos pontos fundantes do Princípio de


Subsidiariedade. Há uma pluralidade complexa de grupos que se relacionam
reciprocamente. Essas associações e grupos intermediários intercalam-se entre o
indivíduo isolado e o Estado, constituindo uma garantia da comunidade contra a
redução individualista, e contra o poder estatal. Os grupos também são anteriores ao
157

Estado e ele não pode negar-lhes legitimidade – apenas quando vão contra o bem
comum.
À comunidade política, mediante normas com que os regula, confere certa
unidade a este complexo e mantêm as tensões que podem surgir entre os grupos em
níveis toleráveis.

As democracias de poder aberto não podem aceitar o entendimento schimithiano


de que os interesses da sociedade colidem ou são incompatíveis com os
interesses superiores do Estado. A auto-organização da sociedade não exclui o
princípio da unidade política, desde que a unidade que se procura, por meio do
consenso, é a que se efetiva na pluralidade. A unidade na diversidade não
suprime a estrutura social muitas vezes antagônica. Os conceitos de consenso e
pluralismo são categorias gerais, necessárias ao discurso político e normativo. A
legitimidade do conflito decorre da integração dos corpos intermediários, através
do consenso e da tolerância, propiciando o máximo de convivência comunitária
(BARACHO, 2000, p. 6).

O ensinamento social católico emprega profusamente o pluralismo,


pronunciando-se a favor de uma organização social que harmonize os poderes dos
diversos grupos sociais e o estatal.

No crescente progresso que as relações sociais apresentam em nossos dias, a


ordem do Estado se conseguirá com tanta maior felicidade quanto maior seja o
equilíbrio que se observe entre esses dois elementos: de uma parte o poder de
que estão dotados assim os cidadãos como os grupos privados para regerem-se
com autonomia, salvando a colaboração mútua de todos nas obras, e de outra
parte, a ação do Estado que coordene e fomente a tempo a iniciativa privada
(MM, nº 66).

Sem o pluralismo, o Princípio de Subsidiariedade se esvazia, uma vez que não se


sustenta somente a favor das pessoas isoladas. Destaca Bidart Campos (1988, p. 83) que
seu sentido é a “preservação do obrar dos grupos que se chamam intermediários,
precisamente por intermediar entre o poder público e o homem”.
A cidadania ativa é pressuposto básico para a efetivação do Princípio de
Subsidiariedade. De acordo com Baracho (2000, p. 64), “a iniciativa privada, voltada
para o interesse geral e o desenvolvimento, efetiva-se como forma de exercício da
cidadania que se realiza não apenas da participação política, mas por meio de forma
mais profunda de participação na vida comum”. Quer dizer, a subsidiariedade exige
uma sociedade forte, autônoma e livre, consciente de seu papel social e político e de
seus objetivos próprios, e que queiram atuar solidariamente com outros cidadãos e
grupos. Desse modo, o exercício do poder ganha maior legitimidade ao deixar de ser
uma operação imposta para se tornar um consenso entre os governantes e os entes
sociais.
158

d) O Princípio de Solidariedade

O Princípio de Subsidiariedade se completa e é aperfeiçoado pelo Princípio de


Solidariedade, pelo qual as pessoas e os grupos intermediários cooperam entre si e com
o Estado, visando à realização do interesse público.
Ambos estão estreitamente entrelaçados: atribuem-se às comunidades
intermediárias responsabilidades diretas na busca da finalidade solidária, ao passo que
se reserva progressivamente à ação direta do Estado um papel autenticamente
subsidiário, ou seja, que respeita a missão intermediária de cada nível de agrupamento
social, complementa-a e só em caso de necessidade a substitui.

A subsidiariedade afirma o valor da diversidade dentro da sociedade. A pessoa e


as agregações de amizade e solidariedade que ela cria tornam única e de certa
forma totalmente original a obra como forma de resposta numa determinada
circunstância histórica e ambiental. Nascem, assim, respostas criativas e
originais (...). Estes grupos e movimentos vivem diretamente a experiência da
solidariedade e do bem comum e criam iniciativas e obras para responder a suas
necessidades. Estas iniciativas são fundamentais para manter vivo o dinamismo
social, por que o movimento que as gera está ligado às circunstâncias concretas
da vida e, portanto estará sempre aberto à reformulação, mudando, corrigindo e
renovando a forma de sua resposta (VALENTINI, 2004, s/p).

A solidariedade exige que se torne princípio de regulação do comportamento


individual, pelo qual se orientam – ou devem orientar-se - as próprias escolhas de
liberdade (PIZZOLATO, 2008). Há lugar, portanto, para as relações intersubjetivas,
pelas quais as pessoas se veem compreendidas em um mundo de valores culturais e
interesses plurais, reconhecendo, porém, a realidade e os problemas do outro não como
alheios, mas sim suscetíveis de resolução com intervenção dos demais e do Estado.
Por isso, a solidariedade se torna um pré-requisito da subsidiariedade, pois é a
partir do vínculo solidário formado entre os integrantes da sociedade que se permite a
ação conjunta das pessoas não só para resolverem suas demandas, mas, também, para
influenciar as instituições maiores como o Estado.
Bento XVI afirma que “o Princípio de Subsidiariedade há de ser mantido
estritamente ligado com o princípio de solidariedade e vice-versa, porque, se a
subsidiariedade sem a solidariedade decai no particularismo social, a solidariedade sem
a subsidiariedade decai no assistencialismo que humilha o sujeito necessitado” (CV, nº
58). É a dedicação pessoal amorosa, cerne da caridade, ponto de intersecção entre o
Princípio de Solidariedade e o Princípio de Subsidiariedade:
159

O amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa.


Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço
do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem
enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e
ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de
necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um
amor concreto ao próximo. Um Estado, que queira prover a tudo e tudo
açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode
assegurar o essencial de que o homem sofredor — todo o homem — tem
necessidade: a amorosa dedicação pessoal. (...) Este amor não oferece aos
homens apenas uma ajuda material, mas também refrigério e cuidado para a alma
— ajuda esta muitas vezes mais necessária que o apoio material (DCE, nº30;
destaque nosso).

A subsidiariedade garante que as pessoas mais próximas dos necessitados


possam ser verdadeiramente solidárias e fazer companhia umas as outras. O Estado, por
estar distante e por sua natureza, não consegue cumprir esse papel, mas permite a ação
justamente daqueles que estão mais próximos. Ao mesmo tempo, a solidariedade
confiada apenas à autoridade e não sustentada por um ethos também solidário fica
inevitavelmente esclerosada e burocratizada, pois perde as raízes e o sentido de sua
instituição.

5. O Estado subsidiário

Como vimos, o Princípio de Subsidiariedade foi concebido para proteger a


esfera de autonomia das pessoas e da coletividade contra toda intervenção pública
injustificada. A subsidiariedade na esfera política implica um Estado descentralizado,
que busque políticas públicas que visem o fortalecimento da sociedade civil como
riqueza humana para o desenvolvimento das comunidades e do Estado. Tocqueville
(1963) estabelece um importante juízo sobre a realidade de um Estado centralizador ao
afirmar que
(...) um poder central, por mais que se possa imaginá-lo civil e sábio, não pode
abranger sozinho todos os detalhes da vida de um grande povo, não pode, porque
um trabalho assim supera as forças humanas. Quando quer criar e fazer
funcionar, apenas com as suas forças, tantos elementos diferentes, ou contenta-se
com um resultado muito incompleto, ou esgota-se em esforços inúteis (p. 29).

O que é colocado em questão é o modelo de Estado provedor difundido


principalmente por Hobbes. Na primeira parte do Leviatã, Hobbes descreve a matéria e
o artífice do Estado, justamente o homem.

O valor público de um homem, aquele que lhe é atribuído pelo Estado, é o que os
homens vulgarmente chamam dignidade. E esta sua avaliação pelo Estado se
exprime por meio de cargos de direção, funções judiciais e empregos públicos,
160

ou pelos nomes e títulos introduzidos para a distinção de tal valor (HOBBES,


1999, p. 54).

Quer dizer, Hobbes reduz a dignidade humana como algo que é reconhecido
pelo Estado, depende dele. O reconhecimento e a prevalência do direito jusnatural
levariam ao individualismo e a vida em sociedade seria inviável. Cabe lembrar que
Hobbes concebe o homem como incapaz de se organizar e de construir o futuro da sua
comunidade em mútua cooperação – afinal, é o “homem lobo do homem”. Assim, para
assegurar a ordem e o pacto social entre eles é necessária a figura externa, forte e
impositiva do Leviatã.

O Estado (...) cresceu em importância em todas as sociedades, da industrial


avançada à exportadora de bens primários dos países mais pobres, e em todos os
aspectos da sociedade – não apenas político, como econômico (produção,
finanças, distribuição), ideológico (educação escolar, os meios de comunicação)
e quanto à força legal (polícia, forças armadas). O Estado parece deter a chave
para o desenvolvimento econômico, para a segurança social, para a liberdade
individual e, através da “sofisticação” crescente das armas, para a própria vida e
a morte (CARNOY, 1988, p. 9).

O Estado subsidiário, por outro lado, pressupõe uma antropologia positiva e


afirma seu papel, da autonomia constitucional e da estrutura democrática, juntamente
com a afirmação do valor da sociedade civil, da participação social, da livre associação,
do empreendedorismo, ou seja, da pessoa como sujeito de desenvolvimento. O Princípio
de Subsidiariedade considera a pessoa capaz e livre. O desenvolvimento da
comunidade, do país, nasce na pessoa, chega à sociedade e às instituições e retorna à
pessoa, restituindo-lhe espaços e instrumentos de iniciativa, tornando-as
corresponsáveis pelo bem comum e protagonistas do seu próprio destino e não
submetidas aos ditames do Leviatã.
Maritain (1966) afirma que o Estado existe para a pessoa e não a pessoa para o
Estado, e que por isso ele deve servi-la para que sua liberdade e autonomia se realizem.

O Estado é unicamente a parte do corpo político que se refere especialmente à


manutenção da lei, ao fomento do bem comum e da ordem pública e à
administração dos negócios públicos. O Estado é a parte que se especializa no
interesse do todo. Não é um homem ou um grupo de homens; é um conjunto de
instituições combinadas em uma máquina altamente aperfeiçoada (...). O Estado
é apenas uma instituição autorizada a usar do poder e da coação, e constituída
por técnicos e especialistas em questões de ordem e bem-estar público; em suma,
um instrumento a serviço do homem (p. 20).

Sorge (1998) mostra como a relação entre Estado e pessoa deve respeitar a
condição ontológica da pessoa, para assim experimentar o bem comum.
161

(...) afirmar que “o Estado é posterior ao homem” significa realmente aceitar que
no centro do sistema está a pessoa humana com os seus direitos e seus deveres, a
começar pelo direito à vida, que é o fundamento de todas as liberdades
fundamentais do homem: a liberdade de pensamento e de consciência, de
educação e de associação, inclusive o direito ao trabalho e todos os outros
direitos civis. (...) tanto o Estado como a sociedade deverão buscar o bem
comum, subordinando-o sempre à plena realização da pessoa. Portanto, a
sociedade e o Estado podem sim dispor da atividade da pessoa para a consecução
das metas comuns, mas jamais podem dispor da própria pessoa, nem da vida do
homem, pois esta é o fundamento de todos os outros direitos. Por isso, os limites
morais e jurídicos que daí derivam não prejudicam nem os poderes públicos,
nem o desenvolvimento, nem o progresso da pesquisa científica, mas são
simplesmente garantia de civilização. De fato, a pessoa humana tem em si valor
de fim e jamais poderá, em qualquer caso e por qualquer razão, ser considerada e
tratada como um empecilho. (...) Com maior razão, o Estado e a sociedade não
poderão nunca violar esses limites éticos, aos quais está sujeita a própria pessoa
(p. 113).

Touraine (2002) reitera esse relacionamento entre o Estado democrático, a


pessoa e a coletividade.

A democracia não é o triunfo do Um ou a transformação do povo em Príncipe.


Bem ao contrário, ela é a subordinação das instituições à liberdade pessoal e
coletiva. Ela protege essa liberdade contra o poder político-econômico de um
lado, contra a pressão da tribo e da tradição, do outro. Ela se protege também
contra si mesma, isto é, contra o isolamento de um sistema político que oscila
entra a irresponsabilidade do Estado e as demandas dos indivíduos, num vazio
que ele preenche com seus interesses próprios, suas lutas intestinas e sua
retórica. Hoje, a pressão do Estado sobre a sociedade é necessariamente grande,
tão urgentes são os problemas da modernização e da concorrência econômica e
militar. A tarefa prioritária, portanto, é o fortalecimento do Sujeito. Nossas
sociedades, sejam elas quais forem, tendem a submeter-se à lei do Príncipe ou à
do mercado; a democracia exige que a esses dois princípios de ordem resista o
espírito de liberdade, de independência e de responsabilidade. O que confere um
papel importante ao que denominamos, inadequadamente, de agências de
socialização, a família e a escola, em particular, que, em vez de apenas
socializar, devem ao contrário transformar os indivíduos em sujeitos conscientes
de suas liberdades e de suas responsabilidades com respeito a si mesmos. Sem
esta ação de subjetivação dos indivíduos, a democracia não tem fundamento
sólido (p. 367).

Nesse sentido, a ideia de subsidiariedade procura que a sociedade retome o


espaço decisório e assuma um papel na escolha de seu próprio destino. Isso será
possível através da “redefinição da repartição de competências entre o Estado e os
cidadãos, o privado e o público, que se estabelecerá novo equilíbrio social.”
(BARACHO, 2000, p. 26). A tarefa do Estado será estabelecer o cumprimento do bem
comum e da solidariedade.
O Estado providencialista prejudica as sociedades que domina e reduz-lhes a
capacidade de encontrar seus próprios caminhos e desenvolver suas próprias soluções.
O Estado deve apenas servir nas ações políticas, econômicas e sociais que necessitam
162

continuar a produzir, livre e espontaneamente, em sua evolução cultural, mas apenas em


caráter excepcional e subsidiário. O Estado não é o único ator, posto que a sociedade
deva contribuir para a execução das tarefas de interesse geral, através de suas próprias
ações.
O Princípio de Subsidiariedade implica no reconhecimento da plena capacidade
da sociedade de resolver os problemas coletivos ou tomar iniciativas para tanto,
incluindo o da autocoordenação e seu enriquecimento material e espiritual. É, em suma,
o reconhecimento do primado da sociedade, em que prevalecem valores e objetivos sem
a dependência incondicionada ao Estado.
De modo que sempre que o Estado reconhece a busca pelo bem e a capacidade
de se relacionar como constituintes de cada indivíduo, uma função subsidiária para ele
emerge naturalmente, baseada no respeito pela dignidade de cada pessoa e agindo para
aumentar – em vez de restringir ou diminuir – a capacidade de autonomia da pessoa,
seja enquanto indivíduo ou em associações livres (VITTADINI, 2011). Por essa razão,
o Estado deve agir de maneira subsidiária, sempre que as iniciativas dos órgãos sociais
não responderem adequadamente às diferentes necessidades individuais. Em casos
assim, a intervenção do Estado talvez atue como um incentivo para apoiar as iniciativas
e o trabalho de indivíduos ou de formações sociais, sem necessariamente substituí-los.
Quer dizer, é uma dinâmica coletiva constituída pela parceria entre Estado e
sociedade, onde os interesses públicos são discutidos e negociados, onde haverá maior
participação dos grupos sociais.
Litz Vieira (2001, p. 83) diz que o Estado deve ser “redefinido em função da
dinâmica dos atores da sociedade presentes na esfera pública, a partir de uma
perspectiva societária. O que importa é garantir o interesse público (...)”. Não se trata de
substituir o Estado pela sociedade, mas de conjugar as atribuições. Afinal, por mais que
os grupos da sociedade levantem a bandeira da autonomia, não podem prescindir das
instituições do Estado enquanto sociedade politicamente organizada. Não é possível
viver sem autoridade, pois não há como sustentar o princípio de ordem que a institui.
Por isso o Princípio de Subsidiariedade não defende um reducionismo estatal
como quis o liberalismo individualista e correntes neoliberais. Mas indica um
sentimento favorável ao retorno do protagonismo da sociedade, manifestado em novas
combinações entre o Estado, o mercado e comunidades intermediárias.
163

O Princípio de Subsidiariedade, assim, não defende a supressão do Estado da


ordem social ou econômica; pelo contrário, cabe a ele atender às necessidades daqueles
que não têm meios de provê-las diretamente.

Subsidiariedade significa também “ajuda de cima para baixo”, coisa que, às


vezes, tendenciosamente se tende a ignorar. Essa ajuda do organismo social
maior pode ser oferecida por duas razões: ou porque os indivíduos e grupos
menores fracassaram nas tarefas que lhes cabem, com ou sem culpa; ou por se
tratar de tarefas que só uma organização social maior teria condições de dominar
(HÖFFNER, 1986, p. 36).

A subsidiariedade não deve ser interpretada como um princípio que propõe o


Estado mínimo e débil. Se assim fosse, estaria declinando da promoção do bem-estar e
de toda presença ativa para orientar e articular as atividades humanas.
A subsidiariedade não quer destruir as competências estatais, mas reordená-las.
O que se defende é que a provisão não seja imperativa e obrigatória, garantindo-se a
pessoa e aos grupos sociais a possibilidade de realizá-la por si próprios, devolvendo-lhe
“a prerrogativa de decidir sobre qualquer que seja seu interesse, até mesmo o interesse
público, que deixa de ser monopólio do Estado para ser compartilhado por crescente
número de entidades intermediárias” (MOREIRA NETO, 2000, p. 50; destaque no
original).

O Estado deixaria assim aos múltiplos órgãos do corpo social a iniciativa e a


administração de todas as atividades que por natureza lhes pertencem. Sua única
prerrogativa, a esse respeito, seria a sua autêntica prerrogativa de árbitro e
superintendente máximo, regulando essas atividades espontâneas e autônomas
sob o ponto de vista superior do bem comum. Assim, talvez venha a ser possível,
em um corpo político pluralisticamente organizado, converter o Estado em um
órgão superior, que se preocupe apenas com a supervisão final das realizações
alcançadas por instituições nascidas da liberdade, cuja interdependência de
relações exprima a vitalidade de uma sociedade integralmente justa, desde as
suas estruturas básicas (MARITAIN, 1966, pp. 29-30).

O que se defende também é que o princípio não se converta em anti-


subsidiariedade, isto é, que o homem e as comunidades intermediárias deixem de fazer
tudo o que é capaz de fazer o próprio Estado.

(...) deve-se enfatizar o valor antitotalitário da subsidiariedade, que vem absolver


uma função histórica análoga àquela que, por muitos séculos, desenvolveu o
retorno ao direito natural. Porque o retorno ao direito natural, de fato, consentia
em defender os valores originais da pessoa da prepotência do poder dos tiranos;
assim, a recuperação do Princípio de Subsidiariedade consente afirmar a
superioridade da pessoa contra a pretensão do poder estatal de colocar-se como a
exclusiva fonte do conhecimento das necessidades do indivíduo e,
consequentemente, como a única autoridade em posição de responder a estes de
maneira adequada (VITTADINI, 1998, p. 2).
164

Assim, o Estado seria responsável pela supervisão e pela regulação das políticas
públicas, mas seria menos realizador, pois a realização estaria a cargo dos sujeitos
coletivos. É sob este prisma que devemos analisar o papel do Estado subsidiário: as
responsabilidades devem sempre que possível ser assumidas pelas organizações
menores, o Estado só atuando quando aquelas não puderem realizar algo com eficiência.
Em suma, para finalizarmos, o Princípio de Subsidiariedade legitima a relação
entre uma sociedade organizada, autônoma, forte e participante e de um Estado
transparente, desregulado e desburocratizado. A subsidiariedade conduz ao
fortalecimento das comunidades intermediárias, entre elas os movimentos sociais, à
participação dos sólidos corpos sociais no processo decisório estatal, à recuperação da
família como sociedade natural mais próxima aos indivíduos e, finalmente, à
conscientização da sociedade dos interesses metaindividuais que lhe tocam.
Ao longo do capítulo, procuramos demonstrar o que o Princípio de
Subsidiariedade, junto à participação, propõe como mudança e como função do Estado
moderno, de modo a concorrer para a consecução de valores como a dignidade humana,
liberdade, igualdade e justiça social. Ambos buscam a valorização das pessoas e dos
grupos intermediários e o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.
Para a DSI, o ator principal é justamente a sociedade civil, e a subsidiariedade se
aplica quando tudo o que pode ser resolvido a nível local, comunitário, municipal, não
precisa do Estado federal ou regional. Nos próximos capítulos, veremos como a
Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo trabalha essa questão e qual o
seu relacionamento com o Estado. E mais: veremos como se dá sua participação na
sociedade e internamente, além de verificar se sua experiência favorece a liberdade e a
autonomia de seus associados.
Capítulo 5

A história da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo

Depois de termos analisado e discutido como se desenvolveram os três


princípios permanentes da Doutrina Social da Igreja, cabe-nos agora verificar se e em
que medida esses princípios se manifestam em uma obra da sociedade. Para esse fim,
escolhemos a Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo (ATST).
A ATST é movimento de moradia popular criado em 1989, atuando em 26 áreas
da cidade de São Paulo, nas regiões de Pirituba e Jaraguá. Composta atualmente por
aproximadamente 20 mil famílias associadas, a Associação tem por escopo principal a
provisão de residências próprias à população de baixo poder aquisitivo (1 a 5 salários
mínimos, em que 87% recebem 1 a 3 salários mínimos), com recursos das próprias
famílias tanto para a aquisição do terreno quanto para a construção da casa. A maioria
das famílias que participam da ATST despendiam pelo menos 30% da renda familiar
com aluguel de moradia ou moravam em condições precárias de infraestrutura urbana.
Nossa escolha por esta Associação está ligada à nossa dissertação de mestrado.
Durante a pesquisa do mestrado, nós chegamos a identificar na experiência da ATST
alguns elementos do Principio de Subsidiariedade. No entanto, nosso enfoque na época
estava em remontar sua dinâmica interna e analisar seus métodos para a resolução
parcial do déficit habitacional, por meio da participação popular.
Tendo identificado na dissertação elementos da subsidiariedade, nos surgiu
então o interesse de investigar mais profundamente – já no doutorado - de que maneira
o Princípio de Subsidiariedade se manifesta, se os outros princípios da DSI também
estão presentes e se, de alguma forma, eles orientam as ações desta Associação.
É isso que tentaremos responder nos próximos capítulos. Antes, porém,
procuraremos descrever a história da ATST, sua trajetória desde sua origem até os dias
atuais, e verificar, passo a passo, como as soluções encontradas ao longo do caminho
foram se tornando métodos de ação para a Associação.

***
166

Na década de 1970, o Brasil foi caracterizado por uma retomada econômica que
desencadeou um clima de esperança, um desejo de democracia e de participação da
população na sociedade e na política. Nesse contexto, nasceram muitos movimentos
populares que, dotados de certa organização, fizeram-se porta-voz das novas questões
sociais, dentre elas o direito a moradia, alimentação, serviços públicos e direitos básicos
(GOHN, 1995). Diversos partidos políticos, como o Partido dos Trabalhadores (PT) e o
então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), se interessaram por essa nova
realidade social permitindo que os vários movimentos conseguissem voz dentro da
política.
As relações entre os movimentos sociais de habitação e as instituições políticas
foram caracterizadas por três fases distintas: reivindicativa e anti-institucional, nos anos
70; pró-ativa e colaborativa, no início dos anos 80; e, novamente, reivindicativa, até
final dos anos 80. Essa última mudança de atitude aconteceu em função, principalmente,
do insucesso no diálogo com as instituições públicas. Por sua vez, esse insucesso fez
com que os líderes dos movimentos sociais criassem a União dos Movimentos de
Moradias de São Paulo (UMM)18 e, a partir de então, levou a um grande número de
ações, com ocupação de terras de propriedade pública e privada, principalmente entre os
anos 1987 e 1988.
A Igreja Católica, por meio de sua ação pastoral, acompanhou de diversos
modos o caminho de muitas associações e movimentos. Em torno dela e dos partidos
políticos nasce, por exemplo, em 1978, o Movimento de Defesa dos Favelados
(MDF)19. A ocasião que levou ao surgimento da Associação dos Trabalhadores Sem
Terra de São Paulo, objeto deste capítulo, foi inclusive uma iniciativa lançada pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB): a Campanha da Fraternidade de

18
A União dos Movimentos de Moradia (UMM) começou a ser articulada em 1987 por um grupo de
líderes e apoios institucionais (pastorais da Igreja) e políticos (principalmente do PT). A partir da região
leste, com o apoio da estrutura descentralizada da Pastoral da Moradia, este grande movimento social se
estendeu para outras regiões da capital paulista e interior, chegando a reunir mais de 60 grupos e
associações de moradores, num universo estimado pela UMM em mais de 20 mil famílias. Grupos
populares de cidades como Diadema, Santo André, São Bernardo do Campo, Mogi-Guaçu, Osasco,
Franco da Rocha, Francisco Morato, Hortolândia, Paulínia, Jundiaí, Carapicuíba, além de São Paulo,
passaram a fazer parte da UMM.
19
O MDF nasceu em 1978 a partir de lutas por melhorias de uma favela no município de Santo André.
Sua expansão pela cidade de São Paulo e região metropolitana foi rápida e, por meio de sua ação de
mobilização, conseguiu evitar, por diversas vezes, despejos de favelas. Muitas mobilizações, também,
referiam-se a demandas específicas, em particular à instalação de água e luz. Esse movimento recebeu
apoio das Pastorais da Moradia.
167

1986, na qual se convidavam os fiéis a participarem de ações concretas a favor de quem


não possuía uma casa própria.

1. A influência da Igreja Católica

Para um entendimento mais aprofundado da participação crítica e incisiva da


Igreja junto a ATST, é necessário entender a influência que as CELAM de Medellín e
Puebla exerceram no interior da Igreja Católica também em termos de sua estrutura.
Depois de Medellín, as comunidades eclesiais de base (CEBs) se multiplicaram.
D. Luis Fernandes (1984) afirma que elas surgiram de várias formas: de uma luta
popular, de uma novena, de um mutirão ou de um encontro para refletir sobre o
Evangelho. O número de participantes podia ser de 10, 20, 30, 40 e 50, em média, e
cada um era chamado a participar ativa e conscientemente em todas as atividades.
De acordo com Petrini (1984), as CEBs têm uma prática que transcende os
interesses pessoais, caracterizando uma ética social que instaura o princípio da ação
solidária e comprometida com o outro.

(...) a Comunidade de Base proporciona uma experiência religiosa que não se


esgota no interior da pessoa, mas é internalizada como uma ética social que se
forma e se explicita na rede de solidariedade que, pelo seu dinamismo organizativo
e pedagógico e pela postura de luta para conquistar melhores condições de vida,
contém um grande significado social e engendra um notável potencial de ação
política (PETRINI, 1984, p. 83).

A experiência de vida comunitária nas CEBs é capaz de favorecer uma nova


percepção de si mesmo e do outro.

O que se verificou, no caso da CEB aqui estudada, foi que a ideologia


comunitária tornou-se experiência, isto é, um conjunto de fatos, de
compromissos e de sentimentos registrados na consciência de cada pessoa como
acontecimento vivido, envolvendo a esfera da inteligência, da afetividade e da
vontade. De fato, a experiência pode ser definida como conteúdo de uma
vivência, isto é, como uma percepção, ao nível da consciência, do objeto da
ação, do sujeito dentro dela e das relações que, no seu decorrer, se estabelecem
(PETRINI, 1984, p. 81).

Por meio delas, há uma nova consciência da realidade, que impulsiona para uma
participação mais ativa.

A CEB estimula a compreensão racional dos fatos, de modo que seus membros
adquirem a consciência dos interesses que estão em jogo na sociedade e da
influência que esses interesses exercem nas decisões do governo e de seus
funcionários, ou dos empresários, como classe, ou como pessoas individuais. A
partir da compreensão da convergência ou divergência de interesses, desenvolve-
se uma sensibilidade nova em função da qual se reestruturam as solidariedades,
168

as amizades, o sentimento de colaboração e se identificam os adversários, as


forças hostis ao processo de amadurecimento da consciência popular, da
participação política e da democracia social. (PETRINI, 1984, p. 57).

Embora as comunidades fossem autônomas, já que eram seus membros que


definiam suas ações, elas possuíam uma importante relação com a estrutura eclesiástica.
Os representantes das comunidades participavam dos conselhos pastorais que
coordenavam a execução do plano pastoral no âmbito da paróquia. A Igreja ofereceu
agentes pastorais para auxiliar na capacitação de seus membros e no funcionamento das
comunidades; ofereceu uma estrutura organizativa que permitiu trocas de experiências,
deliberações mais amplas, acesso a meios de comunicação e autoridades
administrativas.
Em cada área administrativa episcopal da cidade, uma comissão de agentes
pastorais coordenava a ação pastoral.
As comissões pastorais são pequenas comunidades que se desenvolvem para
“estabelecer o equilíbrio diante dos grupos minoritários, que são os grupos de poder”
(FERNANDES, p. 20) e que se constituem em plataforma “capaz de ungir os poderes
públicos, muitas vezes impotentes em seus projetos sociais sem o apoio popular” (p.
18). É um chamado a articular a sociedade por meio das mais variadas instituições
intermediárias e a necessidade de fomentar uma verdadeira participação para fazer da
pessoa o verdadeiro agente da vida social.
Por sua vez, depois de Puebla - que se destacaria pela opção preferencial pelos
pobres e pela retomada do processo renovador de Medellín -, a participação das pessoas
para a resolução de seus problemas aumenta e várias iniciativas ganham o apoio das
pastorais: cooperativas comunitárias de costura; de bordado, crochê, alimentos, hortas
comunitárias, padarias comunitárias, artesanato de menores, grupos de engraxates,
catadores de papelão; organização de grupos de desempregados; criação de escolas
profissionalizantes; supletivo; lutas por postos de saúde; luta por moradia
(FERNANDES, 1984). É nesse contexto que surge a Pastoral da Moradia para ajudar os
movimentos sociais de habitação.
Os textos de Medellín e de Puebla passaram a ser referenciais na vida e
formação dos participantes das comunidades e pastorais.

Eu comecei a trabalhar com habitação por causa do grupo de jovens. Eu


participava do grupo de jovens da paróquia de Santo Emílio, na Vila Prudente e,
entre as coisas que a gente discutia na reunião do grupo, a gente discutia muito o
documento de Puebla e o de Medellín. Falávamos muito sobre a opção da Igreja
169

pelo pobre, a inclusão social, o papel social da igreja. E a partir daí o grupo de
jovens da paróquia se dividiu em três grupos: um grupo começou a trabalhar com
educação; outro grupo com o mundo do trabalho e outro com habitação, mais
especificadamente nas favelas. Fiquei no grupo da habitação e acabei indo para
as favelas. Comecei a trabalhar na Pastoral da Moradia (Marcos Zerbini,
fundador da ATST).

O método dos encontros era sempre o mesmo. As reuniões eram periódicas,


geralmente quinzenais, e o tema podia ser de uma reflexão a partir da Bíblia ou de
folhetos litúrgicos, relacionados com problemas vividos no cotidiano de seus membros,
ou ainda, a partir de alguma iniciativa decidida pela comunidade. Eram reuniões
presididas por um coordenador que propunha a pauta, assegurava o direito a todos de se
manifestarem e sistematizava as decisões. Era uma reflexão crítica voltada para a
prática.

Nos textos de Puebla, Medellín, temos as referências às carências materiais, às


estruturas opressoras, à superação do egoísmo e das injustiças. Também tem o
reconhecimento de alguns valores como a paz, a solidariedade e a dignidade. O
que fica mais marcado nesses documentos é a denúncia das estruturas sociais,
que geram as profundas desigualdades, a exploração e a miséria (Marcos
Zerbini).

Justamente os pontos marcantes desses documentos dizem respeito à salvação


que não é conquistada individualmente, mas pelas comunidades. E apontam as duas
linhas básicas de ação que deveriam servir como o novo referencial: a opção pelos
pobres e oprimidos; e a opção pelas comunidades e comissões pastorais.
O método de trabalho podia ser resumido em ver-julgar-agir. A primeira fase, o
“ver”, era a apresentação das dificuldades e dos problemas sentidos pelos participantes
de uma determinada comunidade. O papel do coordenador era perguntar sobre os
problemas sentidos e abrir espaço para a reflexão em conjunto das questões mais
importantes.
Das questões principais levantadas pelo grupo, a reunião continuava. Era a fase
do “julgar”. Para isso, eram usadas como referências passagens da Bíblia e/ou
experiências dos participantes. Buscava-se assim criar relações entre a ação de Jesus
Cristo com a ação coletiva, sugerida pelas experiências relatadas pelos participantes da
reunião. Era o contraste entre a realidade observada e os valores do cristianismo.

Lembro que a gente estudava as conclusões do Concílio Vaticano II e falávamos


da Igreja como “povo de Deus”. Sempre falávamos da importância de os fiéis
atuarem ativamente na vida comunitária, como participantes da luta pela justiça e
liberdade. Assim, a gente ia para a favela, juntava o pessoal e defendia a
participação ativa de grupos comunitários, fazíamos críticas às injustiças
170

existentes e motivávamos as pessoas para que se organizassem para reclamar sua


própria dignidade (Marcos Zerbini).

Dessa reflexão, passava-se para a síntese: agir. Qual é a forma ou formas para
enfrentar o problema analisado? Qual será o planejamento? Era a conclusão sobre o que
as pessoas poderiam retirar diante do problema. Por fim, os representantes das
comunidades participavam dos conselhos pastorais que coordenavam a execução do
plano pastoral no âmbito da paróquia.
Esse processo de ver-julgar-agir poderia levar muito tempo para se transformar
em ação efetiva. Durante todo o processo eram realizadas reuniões, visando a avaliar a
execução dos trabalhos realizados, as dificuldades encontradas e as possibilidades
abertas para o futuro.
Em linhas gerais, as melhoras conseguidas no processo fortaleciam os laços de
solidariedade local e apontavam para a possibilidade da ampliação do horizonte de
consciência dos participantes e a capacidade de organização das camadas populares
marginalizadas, a partir da percepção da identidade de seus interesses e de seus direitos
em relação às necessidades essenciais básicas.
As pastorais, portanto, faziam a experiência de intervir coletivamente sobre a
realidade dada, ao buscar ações que visavam mudar a realidade tratada, e motivava cada
um dos participantes a engajar nesse processo ao produzir neles uma dimensão crítica e
uma capacitação transformadora.
As pastorais, por fim, com seu trabalho pretendiam ser: presença junto aos
setores mais marginalizados da população; alerta à Igreja e à sociedade sobre a
existência de tal realidade; ação social, que multiplica atividades de conscientização,
organização e transformação; e parceria com outros grupos sociais que querem
transformar a sociedade (CNBB, 2001).
A partir disso, as pastorais sociais desenvolviam atividades de apoio e
solidariedade aos movimentos sociais e à luta por melhores condições de vida e
trabalho. É importante ressaltar que com todo o trabalho das pastorais e das CEBs está
ligado o aparecimento da Teologia da Libertação, um movimento forte principalmente
em toda a América Latina, que valorizou a inserção de padres, freiras e outros agentes
pastorais no meio do povo. Estes agentes pastorais se dedicavam acompanhar e apoiar o
dia-a-dia dos mais necessitados, motivando e dinamizando processos organizativos de
defesa e conquista de direitos, na tentativa de diminuir as injustiças sociais. Esses gestos
também educavam os participantes das próprias pastorais:
171

Essas coisas foram pouco a pouco entrando na minha cabeça e passei a enxergar
o mundo sob essa ótica. Tudo o que fiz até hoje de alguma maneira tem relação
com esse trabalho que fazia [na Pastoral da Moradia], pelo menos foi motivado
por ele (Marcos Zerbini).

O apoio da Igreja faz parte da história e trajetória dos movimentos sociais.


Wanderley (1992) ressalta a importância fundamental que a atuação da Igreja
institucional e de seus membros, clérigos e leigos, tiveram para a gênese, organização,
funcionamento e direção de grupos, associações e movimentos populares.
Na área de habitação, o relacionamento da Pastoral da Moradia com os
movimentos sociais de habitação – e que permanece até hoje - sempre foi de apoio às
lutas. A Igreja e os movimentos se complementam em situações concretas e objetivas.
Em 1982, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) aprovou o
documento “Solo Urbano e Ação Pastoral” (1982), que tratava dos problemas da
urbanização. O documento propôs-se a seguir a metodologia empregada na CELAM de
Puebla. Para tanto, dividiu-se em três partes: 1. Situação do solo urbano no Brasil (ver);
2. Elementos para uma reflexão ético-teológica (julgar); 3. Pistas inspiradoras de uma
ação concreta (agir).
Em primeiro lugar, na referência à acelerada urbanização, o documento recorria
à situação do campo como uma das causas de expulsão da população e consequente
inchamento das cidades. A urbanização acelerada era vista como problema que tinha
nas últimas décadas afligido as principais cidades brasileiras, e vinculava-se à acelerada
redução de oferta de trabalho no campo e à expectativa de melhores oportunidades de
vida na cidade.
Além da influência migratória, a rápida valorização do solo urbano, objeto de
intensa especulação imobiliária, agravava a situação habitacional. Essa especulação
aparecia claramente na existência de estocagem de terrenos à espera de valorização.
O solo urbano era classificado em solo de habitação – repartido desigualmente
entre as diversas camadas sociais – e solos de especulação, estocados e ociosos,
destinados a operações imobiliárias. A apropriação desigual do solo reproduzia as
desigualdades de renda e o Brasil.
Eram inúmeros os fatores apontados que contribuíam para valorização do solo
urbano: infraestrutura urbana, rede de água, luz, esgoto, transportes coletivos, escolas,
hospitais, lazer e leis de zoneamento. Esses fatores interagiam, seja por meio de sua
172

implantação em bairros já bem dotados, seja por meio de legislação que favorecia a
especulação imobiliária.
A esse conjunto de fatores relacionados no plano de causa e efeito o documento
reportava-se à existência de uma “economia de mercado” responsável dessa situação. A
economia privilegiaria certos setores produtivos, o que gerava desconfiança e fazia com
que os investimentos dirigiam-se à especulação imobiliária. O modelo econômico
vinculado à economia internacional teria um duplo problema: incentivaria o privilégio
externo e priorizaria a industrialização capitalista em detrimento de setores mais
carentes. Em determinados momentos, grupos sociais vinculados ao capital imobiliário
seriam os responsáveis pelos problemas da cidade, em outros, seria o modelo
econômico tomado em seu conjunto e responsabilizado como causador de prejuízos
generalizados a todos os cidadãos. Seria um processo econômico que funcionaria como
um jogo em que todos perdem. “Todos perdem com a redução da riqueza social
produzida, embora os pobres sejam os mais sacrificados” (p. 14).
De maneira geral, o raciocínio que se traduz no “ver” ligava esses fatores da
seguinte maneira: situação no campo – urbanização – especulação imobiliária –
problema habitacional.
Outro ponto relevante do documento é a percepção da cidade como possível
espaço de convivência solidária. Esta percepção remete à família, trabalho, propriedade
e moradia. O trabalho é visto como um serviço para quantos habitam a cidade. “Todos
os habitantes da cidade devem contribuir por seu trabalho para a prosperidade da
mesma. Portanto, têm direito aos bens e serviços por ela proporcionados” (p.26).
A cidade, como centro organizador de atividades, supõe um lar com moradia
adequada. Daí o uso do solo urbano surgir como condição e requisito indispensável à
sobrevivência da família. “O acesso à moradia, por sua vez, está vinculado ao direito e
ao dever do trabalho. Ensina João Paulo II, resumindo os ensinamentos da Igreja através
dos séculos, que ‘o trabalho constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida
familiar que é um direito fundamental e uma vocação do homem’” (p.27). Na medida
em que Deus destinou a terra para todos, todos têm o direito de possuir a propriedade
individual, sempre guardando o uso comum dela. “Ninguém tem direito de reservar para
seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário” (p.25).
Por fim, a concepção da Igreja sobre justiça e bem comum e as saídas jurídicas
para resolver os problemas da cidade são outros pontos importantes que foram
discutidos: “Não basta denunciar a realidade. É mister transformá-la à luz dos princípios
173

e normas do Evangelho” (p. 35). A proposta transformada pode ser percebida em dois
níveis: a partir do processo de conscientização da população e a partir de recursos
jurídicos. O documento enfatizava a necessidade de uma reforma urbana que permitia
resolver as formas de destinação do solo urbano e propunha um Estatuto do solo urbano
nos mesmos moldes do Estatuto do solo agrícola.
Ao final, citava cinco propostas para solucionar os problemas da urbanização:
justa distribuição social do solo urbano; regularização das áreas de ocupação sem
obrigação de pagamento do morador nas áreas ocupadas; urbanização de acordo com os
recursos financeiros disponíveis em cada área; incentivos a soluções que adotam o
mutirão ou autoconstrução; e, por fim, apoio às associações comunitárias urbanas que
executam projetos de urbanização. Como pano de fundo, sempre está a defesa do direito
de moradia e justa distribuição do solo urbano para que haja uma política humana de
urbanização.
Outro exemplo de apoio da Igreja aos movimentos de moradia, além deste
documento, foi o calendário pastoral, que tinha em sua programação temas relativos à
moradia e às condições de vida. Ou ainda, o apoio estrutural da Igreja, com disposição
das paróquias e reuniões, para divulgação do trabalho deles, assim como o auxílio em
campanhas de coletas de assinatura.
Além da estrutura das pastorais sociais, a Igreja ajuda através das Campanhas da
Fraternidade, em que cada ano, durante a quaresma, é contemplado um tema sócio-
econômico-político do país. Em 1986, especificamente, a Igreja Católica organizou a
Campanha da Fraternidade com o tema “Fraternidade e Terra”, cujo lema era “Terra de
Deus, terra de irmãos”, que colocava à tona a crise habitacional. Com a discussão
colocada pela Igreja, vários movimentos sociais de habitação passaram a se articular
entre si, o que ocasionou o surgimento da União dos Movimentos de Moradia de São
Paulo, e várias ações coordenadas por toda a região metropolitana de São Paulo, a fim
de chamar a atenção para o problema.
Além da discussão dos problemas para organizar a população, a Igreja atuava em
situações de conflitos que demandavam caráter defensivo por parte dos movimentos.
Ela se tornou muitas vezes mediadora junto aos órgãos públicos.
Assim, por parte da Igreja, houve sempre um apoio e animação aos movimentos,
expressos nas formas de conscientização, mobilização e organização do povo. A Igreja
contribuiu com a formação de centenas de agentes, lideranças críticas e responsáveis, e
permitiu um conhecimento maior da realidade social.
174

Entender a articulação entre os movimentos de habitação e Igreja não implica


colocá-los em uma mesma dinâmica. Se os movimentos não podem ser vistos como
algo destituído de influência, eles não são simplesmente a realização de um saber
elaborado de fora. Isto porque as lutas sociais, concretamente, permitem uma
recodificação de discursos e práticas que não constituem mais nem o discurso da Igreja.
Por esse motivo, a Igreja foi considerada não como criadora desse espaço político,
desde que ele já existe a partir de um conjunto de ações e percepções dos sujeitos
envolvidos. A ideia aqui desenvolvida é que a Igreja reforça e amplia dimensões desse
espaço político, notadamente aqueles que se contrapõem ao poder do Estado.
Certamente a Igreja aglutina e dá visibilidade aos movimentos sociais e às
experiências de organização e contestação. As pastorais católicas e as CEBs são lugares
públicos em que se reelaboram as experiências populares e dão subsídios aos discursos
ao pregar os valores da solidariedade, da dignidade humana e se colocar contra a
opressão e as “estruturas de pecado”.
A articulação entre Igreja e movimentos sociais de habitação contrapõe-se à
forma tradicional do exercício da política, revalorizando nos movimentos as táticas e
enfrentamentos nas situações de conflito, e valorização dos direitos e outras formas de
contestação. Assim, é na sedimentação de um lugar efetivo, capaz de dar visibilidade e
reconhecimento ao conjunto de práticas originado pelos movimentos que se pode
compreender o papel das CEBs e das pastorais.

2. A história da ATST

A ATST não dispõe de um arquivo. A documentação é escassa e


desorganizada20. Realizamos também entrevistas aprofundadas com os responsáveis e
principais colaboradores para esclarecer alguns aspectos históricos e técnico-
organizacionais, a postura cultural-educativa e as principais mudanças ocorridas na
condução da ATST. Foram entrevistados os fundadores, Cleuza Ramos e Marcos
Zerbini, quatro coordenadores, duas pessoas que trabalham no departamento jurídico e
duas que trabalham no departamento de assistência a construção das moradias da ATST.
As entrevistas buscaram entender o histórico da Associação e sua dinâmica interna e
com outros grupos da sociedade.

1. Algumas informações estão contidas em um livro de caráter documentário (Dantas, 2007), em nossa
dissertação de mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(Marcoccia, 2007) e em algumas entrevistas e depoimentos dados pelos líderes do movimentos.
175

Foi entrevistado ainda o diretor de um campus da Unibero, universidade


conveniada com a ATST, por coletar avaliações sobre o comportamento da Associação
a partir de assuntos externos que foram discutidos com pessoas ligadas a Associação.
Todas as citações serão relatadas no texto mantendo o estilo da linguagem falada
e informal típica do contexto no qual se desenvolvem as entrevistas.

2.1. Os fundadores: Cleuza Ramos e Marcos Zerbini

Cleuza Ramos nasceu em 1954 em Espírito Santo do Pinhal - entre São Paulo e
Minas Gerais. Quando tinha oito anos, se mudou com a sua família para um bairro
pobre da cidade de São Paulo. Aos dez anos, depois da quarta série do ensino
fundamental, em razão das dificuldades de trabalho do pai analfabeto, Cleuza começou
a trabalhar como empregada doméstica.
Um pouco mais tarde, ela começa a participar frequentemente nas reuniões dos
moradores do bairro, nas quais se discutiam as modalidades para a obtenção das
infraestruturas necessárias - transportes, escola, água e luz. O desejo de resolver os
problemas concretos das pessoas a levou a um envolvimento pessoal em algumas das
atividades sociais de sua paróquia: ela começa a ajudar a registrar as crianças na favela
de Monte Alegre, a distribuir alimentos e a levar remédios tanto para a favela quanto
para os sem teto.
Dois fatos fizeram com que Cleuza amadurecesse a decisão definitiva de
dedicar-se à ação social. Certa vez, ela hospedou na sua casa uma mulher, moradora da
favela, que precisava de cuidados, e cujas condições foram melhorando, de modo que
Cleuza a levou de volta para a favela com provisões suficientes para a sua manutenção.
Mas a mulher preferiu deixar-se morrer pela dor da separação: “Morreu! Os vizinhos
lhe haviam trazido café, água, mas ela não quis nada”. Naquele dia, Cleuza disse: “Não!
Não posso deixar morrer uma pessoa deste jeito. Entendi que na minha vida eu devia
dedicar-me a ajudar pessoas como S., não podia mais voltar atrás”.
O segundo fato foi o encontro com um sacerdote português que, muito
impressionado pela forte personalidade da Cleuza, lhe disse: “Minha filha, não deixe
que alguém te corte as asas. Você tem uma missão. Você irá voar nas alturas”. Por
ocasião da Campanha da Fraternidade de 1986, o pároco pediu à Cleuza que o ajudasse
a dar início a uma ação pastoral em razão dos problemas de moradia, como já se fazia
em outras áreas de São Paulo. Cleuza juntou as pessoas que não possuíam casa -
176

moravam na favela, de aluguel, ou eram hospedadas por outras famílias. Na primeira


reunião, duzentas pessoas participaram; um mês depois, o grupo havia aumentado para
aproximadamente duas mil pessoas. Por causa justamente da inexperiência de Cleuza,
se fez necessária a ajuda de alguém que tivesse mais experiência, e a pessoa escolhida
para este fim foi Marcos Zerbini.
Marcos Zerbini nasceu em 1963 em São Paulo. Aos dezessete anos, ele concluiu
os estudos técnicos no campo da eletrotécnica e começou a trabalhar numa empresa.
Nesta época, ele participava em algumas atividades da Pastoral da Juventude da sua
paróquia. A experiência decisiva na vida de Marcos foi o seu encontro com uma mulher
ferida e sem casa, cuja filha não a queria mais junto de si.
Depois de ter-se assegurado pessoalmente de que não era possível convencer a
filha a cuidar da mãe, ele foi pedir ajuda a um sacerdote que administrava uma casa de
recuperação para viciados nas vizinhanças.

Fomos onde ele se encontrava para ver se podia hospedá-la e ele concordou. Eu
lhe perguntei: “Padre, mas como é que uma filha pode deixar a mãe no olho da
rua? O que Deus quer com isto? Quero entender”. Ele disse uma coisa que me
marcou muito: “Marcos, Deus sempre diz algo para as pessoas, hoje ele está
falando contigo para que você possa ouvir o que ele quer te transmitir”. Depois
de ter saído de lá, entendi que o meu desejo era colocar a minha vida a serviço
das pessoas para que elas pudessem ter uma casa onde morar, e para que não se
repetissem mais situações como aquela que eu havia acabado de ver. Eu tinha a
intenção de continuar meus estudos e formar-me em engenharia eletrônica, mas
o que aconteceu mudou a história da minha vida (Marcos Zerbini).

Junto com os outros jovens da paróquia, Marcos Zerbini começou então a fazer
um trabalho na favela de Vila Prudente e em outra menor, de Saquarema, envolvendo-se
com as pessoas e construindo relações de amizade. Esse trabalho na habitação começou
depois de ter estudado os documentos de Medellín e de Puebla.
Por meio deste trabalho, Marcos Zerbini conheceu um sacerdote irlandês que o
convidou a trabalhar como agente pastoral no Movimento de Defesa dos Favelados.
Marcos Zerbini aceitou e contribuiu para a organização do MDF em aproximadamente
quarenta favelas da região. O trabalho consistia na alfabetização de adultos, em ajudar a
levar infraestrutura básica e em obter as concessões reais de direito de uso, que
impediam que os favelados fossem expulsos dos lugares onde moravam. Para este tipo
de trabalho, o MDF precisava de advogados que pudessem ajudar nas negociações com
o poder público e em defesa dos habitantes.
Por esta razão, Marcos Zerbini decidiu estudar direito: “Na pastoral, a gente
sempre discutia que tínhamos um papel a cumprir, que Deus nos pediu resposta às
177

coisas que aconteciam na nossa vida e que a gente não podia simplesmente dar as costas
e dizer não a isso, a essa realidade”.
Graças às experiências anteriores e aos seus estudos de advogado, Marcos foi
convidado, em 1986, a realizar um estágio na Associação em Defesa da Moradia em
Pirituba, na zona oeste, a fim de ajudar na formação de um movimento habitacional. Foi
quando ele encontrou Cleuza.

2.2. O início (1986-1988): da ocupação à compra

Cleuza Ramos e Marcos Zerbini, que em 1989 fundaram a ATST, tinham


começado a trabalhar ativamente na zona oeste de São Paulo em 1986 por meio da
Pastoral da Moradia: reuniam as pessoas com problemas habitacionais, dialogavam e
organizavam manifestações de reivindicação nos confrontos das instituições públicas.
Não obtendo os resultados esperados, em 1987 o movimento se uniu a União dos
Movimentos de Moradia de São Paulo para obter uma capacidade maior de pressão
sobre o governo.
No ano seguinte, a UMM estabelece uma série de ocupações em terrenos
públicos e privados na cidade de São Paulo, envolvendo cerca de cem mil pessoas.
Cleuza e Marcos optaram por não propô-la ao grupo de quinhentas famílias que eles
ajudavam por conta dos fortes riscos que isso implicava: falta de segurança nas áreas de
ocupação - droga e roubos -, falta de um endereço fixo e consequentes dificuldades no
acesso aos serviços públicos básicos do cidadão, além da estrutura precária das casas.
Havia outros riscos ligados à probabilidade de expulsão, bem como riscos de natureza
pessoal - a separação da família -, que criava mais instabilidade (MARCOCCIA, 2007).
Mas chegaram a ajudar cerca de oitocentas famílias que estavam nas ocupações, embora
nenhuma dessas famílias pertenciam ao grupo deles.
O resultado dessas ocupações foi dramático: as famílias foram obrigadas a
abandonar as terras ocupadas depois de oito meses e somente a metade delas conseguiu
encontrar uma solução habitacional. A outra metade foi hospedada nas igrejas e em
abrigos próximos. Também na paróquia de Cleuza foram hospedadas famílias.
Conversando com essas pessoas, Marcos e Cleuza descobriram que elas aderiram às
ocupações na esperança de obter a terra a um preço reduzido – a ideia das ocupações era
desvalorizar a terra e comprar mais barato.
178

O caminho mais simples, no entanto, era o de encontrar os proprietários


dispostos a vender a preço baixo.

A gente falou: “bom, mas se vocês queriam comprar, por que não fazer o
inverso? Vai lá, negocia, compra e depois ocupa uma área comprada por vocês”.
Vamos tentar organizar esse grupo que tem algum recurso, que tem alguma
coisa, e vamos procurar área pra comprar, vamos procurar alguém que queira
vender (Marcos Zerbini).

Assim foi feito e um primeiro terreno foi comprado por dezoito famílias que
tinham dinheiro suficiente. A partir dessa experiência, Cleuza e Marcos começaram a
organizar outros grupos para comprar terrenos que iam aparecendo aos poucos.
Consolidou-se assim a ideia de um novo método para a compra de áreas que permanece
até hoje.
O caminho da ocupação à compra é a primeira grande mudança do método de
ação que Cleuza e Marcos introduzem no seu movimento em relação ao processo
tradicional de ocupação de terra que a UMM e outros movimentos sociais urbanos
utilizavam. É interessante notar que, a priori, tal mudança surge não por uma persuasão,
mas a partir da tentativa de solução de uma situação concreta, procurando a
oportunidade presente no contexto que se encontravam.
A distância de certa posição ideológica e a atenção à situação de vida real das
famílias são testemunhadas tanto pela consideração dos riscos ligados as ocupações, que
tinha levado seu movimento a não aderir a proposta da UMM, quanto pela decisão de
começar a ajudar algumas famílias, sem a pretensão de ter de encontrar imediatamente
uma resposta a necessidade de todos.

2.3. Dificuldades nos anos 1989-1990: dos mutirões às construções

No município de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992), foi


retomado o programa Fundo de Atendimento a População Moradora em Habitação
Subnormal (FUNAPS)21, que financiava a construção de casas feitas pelas associações
comunitárias nascidas no núcleo dos movimentos sociais. A construção se dava
geralmente por meio de mutirões, isto é, grupos de trabalho autogeridos em que os
futuros habitantes deveriam participar da execução das obras de modo a diminuir os

21
O FUNAPS foi criado em 1979 pelo prefeito Reynaldo de Barros para os habitantes das favelas.
Durante a gestão de Mário Covas (1983-1985), o programa foi ampliado às áreas privadas compradas e às
novas unidades habitacionais construídas. Na gestão de Jânio Quadros (1986-1989), o programa foi
suspenso e recomeçado na gestão seguinte, a de Erundina, com o novo nome FUNAPS – Comunitário.
179

custos da mão-de-obra. O financiamento tinha de ser restituído pelos moradores após o


final dos trabalhos - num período entre 5 e 25 anos -, baseado também na renda familiar
(MARCOCCIA, 2007).
Para conseguir entrar para esse financiamento, em 1989 Cleuza e Marcos
fundaram a Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo, uma associação
com um estatuto escrito e registrada formalmente. Naquele tempo, na verdade, Cleuza e
Marcos, como líderes da UMM, já tinham aprovado a compra de cinco áreas que
abrigavam famílias de vários movimentos. O financiamento da FUNAPS permitiu o
início do trabalho coletivo nas construções das casas.
Ao mesmo tempo, entretanto, a atenção da prefeitura se voltou para as favelas -
especialmente sobre o direito de concessão de uso -, deixando em segundo plano todas
as atividades de construção através dos mutirões que foram levados adiante somente
pela ATST. Após poucos meses, surgiram alguns atritos com os diretores da Companhia
Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB), devido a divergências de opinião
sobre as políticas a favor dos mais pobres.
A partir desse momento, os financiamentos para os mutirões em que Cleuza e
Marcos estavam envolvidos, que sempre foram demorados e aleatórios, segundo relato
de ambos, foram bloqueados. Para não prejudicar as famílias, Cleuza, Marcos e outros
coordenadores da Associação abandonaram as cinco áreas em que já tinham sido
iniciadas as obras de construção, e a ATST se desligou da UMM, começando a agir com
autonomia. Romperam também com a Pastoral da Moradia, ainda que continuaram
usando salões paroquiais por um período. Mas Cleuza e Marcos se encontravam, desde
então, sozinhos e isolados.
Nestes anos isolados, foi determinante o encontro com um sacerdote, o padre
G.F. Klatunde, que ajudou Marcos e Cleuza a não desistirem e a retomarem seus
trabalhos sociais com seis pessoas que não tinham casa. Depois de pouco tempo
apareceu a possibilidade de compra de uma nova área, na região de Novo Horizonte.
Com o dinheiro das famílias, que nesse meio tempo passaram a 170, compraram aquela
considerada como a primeira área da ATST. O processo de compra da terra se manteve
o mesmo, mas a construção das casas seria feita com recursos próprios das famílias
(autoconstrução), o que dava a possibilidade a cada família de construir a casa como
queria e mais rápido.
O caminho da construção através dos mutirões com financiamento público para
a autoconstrução constitui a segunda importante mudança de método utilizado pela
180

ATST. Também nesse caso tal mudança não foi planejada, mas foi introduzida como
resposta ao que havia ocorrido. Se de um lado a decisão de não recorrer a
financiamentos públicos permitiu a ATST de implantar um caminho livre das condutas
políticas, de outro, não foi um processo tranquilo e exigiu um empenho muito maior das
famílias envolvidas. No decorrer do tempo, contudo, este procedimento revelou-se
particularmente eficaz, seja pelo tempo utilizado nas construções, seja pela satisfação
das famílias.

2.4. Os anos noventa: da regulamentação depois da ocupação à autorização antes


da ocupação.

Após a compra do terreno e da construção das casas, a ATST teve que enfrentar
o problema de obter a infraestrutura urbana necessária ao bairro - água, luz, saneamento,
asfalto etc. Para isso, foi necessário recorrer a várias manifestações e formas de pressão:
em 1993, os associados enviaram quarenta mil cartas ao governador e outras quarenta
mil ao prefeito de São Paulo; em 1996, a ATST organizou uma manifestação com
cinquenta ônibus em frente ao Palácio do Governo; no mesmo ano, centenas de
manifestantes bloquearam a via expressa da Marginal Tietê; em 1997, três mil pessoas
foram com oitenta e seis ônibus sujos de lama em frente à Prefeitura Municipal para
solicitar a pavimentação das ruas - a ausência de asfalto impedia a circulação de ônibus,
e impedia que as pessoas saíssem de casa para trabalhar em dias de chuva forte, e as
crianças de frequentar a escola (DANTAS, 2007). Após esta manifestação, foram
assinados diversos protocolos de colaboração entre o governo e a prefeitura, mas a
realização das obras foi um processo muito lento. Numa situação difícil como essa, foi
muito importante para a ATST as ações do governador Mário Covas (1995-2001); foi
durante a sua gestão que foram concluídas muitas obras nas suas áreas e que foi
regularizada pelo Estado a primeira área da Associação. Tudo isso foi possível devido
uma relação de grande estima entre os fundadores da ATST e o governador
(MARCOCCIA, 2007).
Em vista das dificuldades para obter a regularização dos terrenos e a
infraestrutura básica, em conjunto com as condições precárias em que as famílias eram
obrigadas a viver, a partir da compra da 14ª área, em outubro de 1997, houve uma nova
mudança de procedimento; em vez de iniciarem imediatamente as construções nos
terrenos comprados e pedir depois a regularização e a infraestrutura, a ATST decidiu
181

procurar a prefeitura para obter a autorização para edificações antes da ocupação22.


Para os pedidos de autorização para as construções, foi importante a promulgação da lei
estatal 10334 de 1999 em que se estabeleciam as diretrizes para realização de projetos
alternativos de loteamentos urbanizados através de habitação popular23. Quer dizer,
primeiro o terreno é regularizado e parte da infraestrutura instalada; depois é que
começam as construções das casas. Tal lei foi também resultado do interesse por parte
do Ministério Público da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo de São Paulo
nas atividades da Associação. O Ministério Público teve muito sucesso pelo fato de que,
além da compra dos terrenos, construção, manutenção e reforma das casas, a
Associação assumia também a responsabilidade pelas escolas, pelos postos de saúde,
pelos centros comunitários e pelos locais destinados à segurança pública (Dantas, 2007).
A passagem da regulamentação depois da ocupação à autorização antes dela
representa um passo significativo de maturidade na relação com as instituições. Tal
mudança de procedimento compreende, entretanto, novos custos e riscos para as
famílias envolvidas: se de um lado se reduz o tempo em que as famílias são forçadas a
viver sem as infraestruturas urbanas básicas, de outro, se alonga o período entre a
compra do terreno e o início da construção das casas, com os riscos vinculados a perda
do investimento e a necessidade de continuar a pagar aluguel. Por exemplo, para a 14ª
área o processo de aprovação durou quatro anos; atualmente existem glebas compradas
há seis anos que ainda não foram aprovadas. Mais adiante, se discutirá sobre as
reflexões dessas mudanças na escolha das famílias de participarem da Associação.

2.5. Os últimos anos: o início do Movimento Sem Faculdade

A partir de 2000, a vida da ATST se caracteriza por dois fatores que delinearam
sua atual fisionomia. O primeiro diz respeito às relações com as instituições, o que
facilitou a entrada de Marcos Zerbini no mundo da política como vereador (2002-2006)
e como deputado estadual (de outubro de 2006 até os dias atuais). A possibilidade de
poder contar com um representante político capaz de promover dentro das instituições
públicas a atividade da Associação revelou-se muito importante, tanto em nível

22
A compra dessa área, contudo, causou aos líderes os primeiros problemas do ponto de vista jurídico,
pela intervenção de um grupo de empresários locais que temiam a desvalorização da região após a
compra pela Associação. Cleuza e Marcos responderam a quatro processos que duraram quatro anos, dos
quais foram absolvidos. O loteamento foi finalmente aprovado, beneficiando 160 famílias.
23
O quadro legislativo do Estado se esclareceu com o decreto nº48340 de 2003 em que vem instituído o
programa estatal para a regularização dos núcleos habitacionais de interesse social (programa PRO-LAR
Regularização).
182

operacional como informativo: o conhecimento direto do andamento das práticas de


regulamentação e autorização das áreas permite a Marcos fornecer esclarecimentos mais
detalhados sobre os associados a favor deles próprios (MARCOCCIA, 2007).
O segundo fator que definiu a história da ATST na última década foi o
desenvolvimento - paralelo ao movimento de habitação - do movimento dos Sem
Faculdade, ou seja, jovens e adultos que, participando da vida da ATST, têm a
possibilidade de frequentar cursos nas universidades particulares com um desconto de
30% a 60%. A deixa para o início da atividade com os universitários foi o pedido, em
2003, por parte de alguns dos associados, de uma ajuda para permitir aos próprios filhos
o ingresso nos cursos.
A ideia, no entanto, surgiu a partir do reencontro de Marcos e Cleuza com uma
experiência da Igreja Católica. Eles e mais alguns coordenadores conheceram A. F.,
médico pediatra e professor da Universidade Federal de São Paulo que, em 2001, foi
chamado pelo reitor para oferecer assistência como clínico geral em algumas áreas da
Associação mais distantes dos postos de saúde. Nesse encontro nasceu uma amizade
que perdura até hoje. A. F. é militante do movimento eclesial Comunhão e Libertação 24.
A partir daí Marcos e Cleuza começaram uma reaproximação pessoal com a Igreja
Católica25.
Por causa desse encontro com o movimento católico, ambos foram convidados e
participaram do 1º Encontro Latino-Americano da Companhia das Obras26 em 2003. E

24
Comunhão e Libertação é um movimento eclesial fundado em 1954 na Itália. Tem como objetivo a
educação cristã dos seus membros no sentido da colaboração com a missão da Igreja em todos os âmbitos
da sociedade. Atualmente, Comunhão e Libertação está presente em cerca de 80 países em todos os
continentes. Não existe nenhum tipo de inscrição. O instrumento fundamental de formação dos membros
do Movimento é a catequese semanal denominada “Escola de Comunidade”. Informações extraídas do
site http://br.clonline.org. Acesso em 23/12/2012.
25
Cabe ressaltar que a ATST continua com seu perfil laico e social, mas os fundadores e alguns
coordenadores fazem questão de explicitar a importância da experiência religiosa para sua vida pessoal e
seu engajamento social. “Esse encontro me fez olhar para minha vida e entender os motivos adequados de
cada coisa (...). A gente fez uma reflexão outro dia que dizia que o verdadeiro protagonista da história é o
mendicante. Todos os dias, como um mendicante, peço a Cristo que continue a usar-me para construir a
história de seu povo, porque percebo a desproporção entre aquilo que recebo e aquilo que sou capaz de
dar” (Marcos Zerbini); “Eu acho que foi a coisa mais importante que aconteceu na minha vida. Mudou
tudo. Com o Comunhão e Libertação aprendi que o meu trabalho é uma missão. E quando o meu trabalho
é uma missão, o resultado não me pertence, eu não preciso buscar resultado (...). Quando ouvi [em uma
reflexão sobre Mt, 10, 30] que todos os cabelos de minha cabeça estavam contados, disse para Marcos
que havia ouvido tudo de que precisávamos. Agora, todos os dias eu acordo feliz, porque me lembro
disso, e as coisas não me pesam mais” (Cleuza Ramos).
26
A Companhia das Obras é uma ONG que se propõe a formar uma rede de contato e recursos entre
empresários e obras sociais, de todas as áreas, para que eles possam se conhecer e trabalhar juntos quando
surgir uma necessidade comum. Foi fundada no Brasil em 1999, tendo nascido na Itália, em 1986, a partir
da experiência do movimento Comunhão e Libertação. Sua missão é promover e defender a dignidade do
indivíduo na sociedade e no ambiente de trabalho; tutelar a criação de obras assistenciais e empresas,
183

dessa participação nasceu a ideia inicial de construir uma universidade27. Porém esse
caminho se mostrou muito difícil. Foi estipulado, então, um convênio com as
universidades particulares para oferecer aos estudantes que concluem o ensino médio a
possibilidade de seguirem com cursos universitários noturnos a um preço mais baixo. A
vantagem para as universidades é representada pelo grande número de estudantes que se
matriculam por meio do convênio em vagas que seriam ociosas. A ação permitiu a
adesão de muitos acordos entre a ATST e diversas instituições de nível superior de São
Paulo.
O Movimento dos Sem Faculdade envolve hoje cerca de oitenta mil pessoas de
diferentes idades e origens. Este crescimento exponencial ocorreu simplesmente por
meio do contato entre os primeiros a aderir e seus amigos e conhecidos, sem qualquer
publicidade por parte da Associação.
Embora uma ação deste porte pudesse gerar grandes ganhos para quem a
administra, Cleuza e Marcos nunca se aproveitaram da situação – assim como nunca se
aproveitaram do movimento de habitação28.
O desejo deles desde o começo era o de permitir que estes jovens obtivessem um
diploma e melhorassem a própria condição e de seu próprio país.
Assim, depois de ilustrar a história da ATST, será descrito no próximo tópico a
organização atual com especial atenção à estrutura do percurso educacional e
participativo proposto aos membros e a disposição dos bairros; por último será
apresentada a atividade do movimento dos Sem Faculdade.

privilegiando uma concepção de mercado e de suas regras, capaz de compreender e respeitar a pessoa em
todos os seus aspectos, dimensões e momentos da vida. Para mais informações ver www.cdo.org.br.
Acesso em 23/12/2012.
27
Alguns participantes desse encontro tinham contado sua experiência de terem criado uma universidade
“popular”, num bairro pobre e periférico de Lima, no Peru. Daí veio a inspiração para a ideia.
28
Existem as tentativas de copiar a experiência da Associação. Por exemplo: foram vendidos terrenos
próximos ao Parque Esperança para cerca de oitocentas famílias que ficaram depois sem nenhuma
infraestrutura. Hoje as ruas são cobertas de terra, as casas não estão terminadas e não dispõem nem de
energia elétrica nem de água (Dantas, 2007). Ou ainda: “No Morro Doce e na região da Anhanguera
existiam muitas associações que queriam imitar o nosso trabalho, mas, na realidade, eram associações
criadas para roubar o dinheiro das pessoas. Às vezes vendiam terrenos usando nosso nome, dizendo que
era da associação de Marcos Zerbini. Pegavam o dinheiro das pessoas e fugiam, e essas pessoas ficavam
numa situação dramática porque tinham comprado um terreno sem água, sem luz e sem nenhum
responsável que acompanhasse o processo de aprovação ou de regulamentação” (A., advogado da ATST);
“Por exemplo: o meu terreno, que eu comprei, se ela quisesse pedir mais 20 reais a qualquer um de nós...
Quanto são R$20,00? Muito pouco. Se ela e Marcos tivessem decidido pedir mais R$20,00 a cada um,
não andariam por aí naquele carro velho que tinham quando os conhecemos. Era exatamente isso que me
fascinava neles. E eu via isso: que podiam ganhar muito em cima da venda dos terrenos. Mas isso não
interessava pra eles” (R., coordenadora da ATST).
184

3. A organização atual

3.1. A organização interna

A ATST é uma organização jurídica de direito privado, “constituída por tempo


indeterminado e sem fins lucrativos” (art. 1 do Estatuto). O objetivo da Associação é
“promover a mobilização e organização social para a conquista da casa e sua
infraestrutura básica” (art. 2). São permitidos associados de ambos os sexos em número
ilimitado (art. 3). Não existem restrições de nenhum tipo para a entrada na Associação,
que permanece como um sistema aberto, sempre em crescimento. A Associação é
gerenciada por uma assembleia geral, um conselho executivo e um conselho fiscal (art.
10), e Cleuza Ramos é a presidente29. Para o procedimento operacional das atividades
da Associação, Cleuza utiliza da colaboração de Marcos Zerbini e de cerca de trinta
coordenadores, com os quais divide as decisões a respeito do andamento e da linha
educacional da Associação e aos quais é designada a tarefa de acompanhar mais de
perto os associados. Devido à importância de tal tarefa, Cleuza e Marcos realizam com
os coordenadores um trabalho educacional e de aprofundamento constante.
Internamente, a ATST tem um departamento técnico e um jurídico. No primeiro,
trabalham um engenheiro, um arquiteto, um mestre de obras e, às vezes, alguns
estagiários, que desenvolvem atividades de apoio e assistência técnica nas áreas da
Associação no que diz respeito ao andamento da compra do terreno, à construção e
acabamento das casas e às instalações de infraestrutura básica. O departamento jurídico,
por sua vez, é composto por alguns advogados e oferece assistência jurídica gratuita a
todos os membros, seja no que diz respeito a problemas legais vinculados à compra do
título de propriedade da casa, ou no que envolve problemas pessoais ligados ao direito
familiar. A ATST conta também com outras pessoas, como professores de dança,
música e ginástica, que trabalham nos centros comunitários dos bairros. As
remunerações são garantidas principalmente por meio das contribuições de algumas
doações e da organização de eventos sociais, como bingos e sorteios. As atividades da
ATST são também mantidas por inúmeros voluntários que ajudam durante as reuniões e
em vários outros momentos da Associação.

29
A administração da ATST, de acordo com seu estatuto, é eleita a cada dois anos pela diretoria de cada
uma das áreas. Não há limites para reeleição. De toda forma, Cleuza Ramos nunca teve uma chapa
concorrente.
185

Todos os associados pagam uma mensalidade - que em 2012 era de R$10,00 –


para ajudar nas despesas gerais da Associação. A ATST não recebe nenhum
financiamento público. Sua estrutura organizacional é muito simples e barata e não há
um arquivo nem informatizado nem de papel: todo o processo de inscrição de novos
associados e das respectivas participações nas atividades é feito manualmente, assim
como nas questões ligadas a eventos, reuniões, manifestações, iniciativas de várias
espécies. A estrutura é então diretamente ligada às pessoas e as informações são
passadas diretamente a elas.

3.2. As atividades: o movimento de habitação

Atualmente, as atividades da ATST se articulam no movimento de habitação -


pessoas com problemas habitacionais que se reúnem para comprar grandes terrenos a
preço baixo - e no movimento Sem Faculdade - processo de acompanhamento para
estudantes universitários.
Abaixo está colocado o processo que as pessoas devem seguir para comprar um
terreno por meio da ATST.

O processo pré-compra

As pessoas que desejam fazer parte da ATST pertencem a um estrato econômico


médio-baixo, vivem de aluguel ou em situações precárias - em casas de amigos,
parentes ou conhecidos - e querem mudar essa situação de moradia, até porque o
aluguel representa uma despesa bastante relevante na renda familiar - de 30% a 50% - e
os despejos podem ser repentinos. Os associados em potencial devem se apresentar a
sede central para requerer o cartão de inscrição e de participação, que contem o nome e
a foto do associado, e também um espaço para receber carimbos a cada evento que
participam - reuniões, assembleias e eventos especiais - e a cada mensalidade paga.
Todo novo membro é chamado a participar de uma assembleia inicial, em que são
apresentados os objetivos e a história da ATST e são ilustrados os principais critérios
em que se baseiam todo o seu trabalho30. Além disso, é esclarecido todo o processo
necessário para se chegar à construção da casa, as dificuldades que podem aparecer e a
importância de um caminho igual e de uma amizade com as outras pessoas da

30
Geralmente acontecem duas assembleias iniciais por semana, com um número de participantes que
varia muito. Há reuniões iniciais com 10 pessoas, até reuniões iniciais com 3 mil.
186

Associação. Marcos e Cleuza, como são os fundadores e líderes principais, participam


sempre das reuniões iniciais contando suas experiências.
Após a primeira assembleia, a trajetória dos associados se desenvolve em
assembleias mensais com os fundadores e reuniões semanais ou quinzenais com os
coordenadores. Os associados são livres para decidir quais coordenadores seguir. De
maneira geral a escolha é feita com base na proximidade do local das reuniões com a
residência atual. Os associados - um por família, geralmente mais mulheres do que
homens - devem participar pelo menos de quatro assembleias e vinte reuniões. No caso
de ausência de três meses consecutivos, devem participar novamente de uma primeira
assembleia e de mais dez reuniões com os coordenadores. O processo de pré-compra
dura normalmente um mínimo de dois anos.

As pessoas devem entender que não estão comprando uma casa, um terreno, mas
estão comprando uma comunidade: construíram um bairro, precisam dos
conceitos de cidadania, de comunidade, de convivência, de saber que terão de
fazer muitos sacrifícios para conseguirem a habitação, porque o caminho é muito
longo. Falamos muito sobre isso com as pessoas, como acontecerá tudo isso,
para que não se arrependam. Se querem ter uma casa rapidamente, devem
procurar um local onde possam fazer uma negociação comercial, assim compram
e se mudam. Aqui não: comprar é, na verdade, uma luta (F. advogado da ATST).

Nas assembleias mensais com os fundadores são discutidas tanto a parte de


formação cultural e pessoal por meio do diálogo sobre os problemas da atualidade e da
vida cotidiana, quanto a parte mais técnica no que diz respeito ao avanço da compra dos
terrenos e alguns aspectos técnico-jurídicos.
Nas reuniões quinzenais ou semanais realizadas pelos coordenadores são
retomados os conteúdos das assembleias e é enfatizada a importância de se economizar.
De fato, os membros devem economizar o montante necessário para a compra do
terreno, no tempo e no modo decidido pelas famílias. Como o custo do terreno varia
para cada área, o valor da economia necessária é estipulado inicialmente sobre a base de
preço do último terreno comprado. Por exemplo: nos loteamentos existem terrenos de
80, 100 e 160 m²: para o último terreno comprado em 2008, os preços eram
respectivamente de R$4.200,00, R$5.000,00 e R$8.400,00 por terreno31.
Como a grande maioria dessas famílias é de baixa renda, e já devem destinar
parte do salário ao aluguel, a economia necessária se torna frequentemente muito

31
O baixo valor das áreas escolhidas se deve por sua localização em Zona Rural, classificada, de acordo
com o art. 20 da Lei de Zoneamento nº. 7.805/72 do município de São Paulo, como zona de uso especial
(Z8-100), que permite a expansão urbana, inclusive a implantação de empreendimento de interesse social.
187

exaustiva. Por isso, os coordenadores acompanham com muita atenção os associados


nesta fase delicada.

Compra dos terrenos

Uma vez identificado pela Associação um potencial vendedor e feita as devidas


investigações sobre os direitos de propriedade e a destinação de uso do solo, é
estipulado o número de terrenos que cabem no loteamento e escolhido um grupo de
associados que tenham número suficiente de participação às assembleias/reuniões, além
do montante necessário de economia.
Geralmente existem mais pessoas que preenchem os requisitos para comprar
terrenos do que o número de terrenos disponível. Por isso é necessário utilizar critérios
de seleção. Em caso de igualdade da economia, tem a preferência quem tenha um maior
número de participação nas reuniões; em caso de igualdade nas participações, são
elaboradas listas de sorteios e é criada uma lista de espera.
A Associação acompanha então o grupo de compradores em potencial até o
loteamento de modo a mostrar sua posição e adequação, descrevendo também os
eventuais riscos ligados ao processo32. Se existem todas as condições necessárias, é
feito um pré-contrato e recolhida a cota de entrada necessária. A compra do terreno é
feita em nome da ATST, até para facilitar o processo burocrático. A atribuição da
localização dos terrenos nos loteamentos é realizada por sorteio e a escritura do terreno
é transferida somente quando a divisão e o sorteio são concluídos. Os compradores não
participam mais das assembleias gerais, mas das assembleias específicas a respeito
daquela área, em que é motivada especialmente a amizade entre os futuros vizinhos das
casas. Diz Cleuza Ramos: “Através da música, das canções, das reflexões, a gente
mantém esse povo unido e junto. E isso também tem um efeito longo”.
Como descrito anteriormente, até 1997 as pessoas podiam começar as
construções da própria casa logo na compra do terreno e a regularização seria efetuada
em seguida. Atualmente, ao contrário, a Associação apresenta um projeto do loteamento
às autoridades competentes e a construção se inicia somente depois que o projeto é
aprovado. A vantagem deste processo é a garantia aos moradores de viver em uma área
totalmente regularizada e, na teoria, poder abreviar o tempo necessário para obtenção

32
Na verdade, se trata de loteamentos localizados nas periferias, edificáveis, mas ainda virgens, que
deverão ser em parte desmatados, nivelados e ligados através de novas vias de acesso aos outros bairros,
além de apresentar todos os serviços urbanos.
188

dos documentos de propriedade. No entanto, os processos de autorizações são muito


lentos - de cinco a sete anos33.
A divisão dos terrenos dentro dos loteamentos comprados pode variar de área
para área. Como já foi dito, os terrenos habitáveis são de 80m² (5x16m), 100m² e
160m². Estes últimos são para uso comercial e podem representar apenas 10% do total
dos terrenos, já que sua compra é destinada a habitações de interesse social. Cerca de
30% dos loteamentos são destinados aos espaços institucionais: ruas, praças, escolas e
creches, postos de saúde e centros comunitários.

Construção das casas

Uma vez atribuídos os terrenos, cada família constrói com os próprios meios a
sua casa, assinando uma declaração que estabelece o respeito das normas de construção
previstas nas leis municipais e estaduais e que definem os detalhes da modalidade de
construção da casa. Este documento representa também uma garantia para a ATST, pois
atribui a responsabilidade da construção aos associados e não à Associação. O tempo
das construções é determinado pelos recursos econômicos das famílias, mas a ATST
coloca a disposição os arquitetos e mestres de obras para o acompanhamento dos
trabalhos de projetação e construção.
Diz Marcos Zerbini sobre a construção das casas:

Não queremos que todas as casas sejam iguais, cada casa deve ter a cara de quem
mora nela, porque é o bem maior que alguém possui. Nós temos a filosofia de
que a casa é a roupa da família. E que cada um tem direito à roupa que quer
vestir. Somos contra o projeto já pronto. A casa é pessoal, é algo de especial. Por
isso, por mais trabalho que isso dê, a gente gosta de sentar um por um e discutir
o projeto da sua casa (Marcos Zerbini).

Uma vez que muitas famílias não possuem meios necessários para a
autoconstrução, foram firmados convênios, desde 2010, entre a ATST e a Companhia
de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Para favorecer, contudo, a
participação dos associados e a personalização da casa, os convênios com a CDHU
preveem que esta forneça somente as paredes externas e que as pessoas colaborem nas
realizações da parte interna do próprio apartamento.

33
Quando existe o consentimento da prefeitura, o projeto de loteamento das áreas é apresentado ao Grupo
de Análise e Aprovação de Projetos Habitacionais do Estado de São Paulo (GRAPROHAB, Decreto
estatal nº 52.053, de 13 de agosto de 2007) que tem como objetivo centralizar e acelerar os procedimentos
administrativos de aprovação pelo Estado em relação às subdivisões dos loteamentos para fins
residenciais, e a construção de condomínios habitáveis públicos e privados. Somente depois que o
GRAPROHAB concede a aprovação do projeto, a prefeitura pode dar a licença para iniciar a construção.
189

Segundo o regulamento da ATST, não é permito vender o próprio terreno ou a


própria casa sem comunicar a Associação, objetivando que o comprador seja um
associado que tenha participado das reuniões. Mesmo assim, alguns problemas
acontecem:
No entanto, existiram muitos casos de pessoas que venderam sem passar pela
Associação. É claro que casos como estes em nossa Associação são poucos, eu
acredito que seja um problema de pessoas ambiciosas que compraram um terreno
a preço baixo e querem vender dez vezes mais caro. Sabemos somente agora do
peso percentual destes casos, no momento da regularização, porque muitas
destas transações feitas às escondidas teremos conhecimento apenas quando
começarmos a transferência dos documentos. Existem também pessoas que
vendem os terrenos, gastam o dinheiro e depois voltam pedindo para comprar de
novo. Aqui acontece de tudo (A. advogada da ATST).

Na sede da ATST existe de fato uma lista de desistências, isto é, de terrenos à


venda, em que os proprietários decidiram não continuar o processo, e as pessoas
interessadas com economias e participações suficientes podem assumir. Nota-se que as
desistências antes da construção das casas chegam a 20%34, enquanto que o abandono
dos bairros depois dos trabalhos concluídos é muito menor - não existem dados
precisos, mas como será visto a partir da análise qualitativa, parece que são casos muito
esporádicos. Além disso, uma vez construída, não é permitido alugar a própria casa ou
parte dela, mesmo que algumas pessoas não respeitem essa regra.

Organização dos bairros

Atualmente, as áreas compradas pela ATST totalizam vinte e seis, situadas na


periferia noroeste da cidade e quase metade delas não teve ainda permissão para o início
das construções das casas e/ou o fornecimento de infraestrutura urbana, devido ao longo
tempo de aprovação e regulamentação. Como já mencionado, a infraestrutura urbana
para os primeiros treze bairros da Associação foi conquistada somente depois de um
percurso muito longo e difícil. Para as áreas sucessivas, ao contrário, a prefeitura,
aprovando o projeto de loteamento, assume o compromisso de fornecer os terrenos com
a infraestrutura necessária. Também neste caso há um desconforto para as famílias, já
que os trabalhos das obras públicas são iniciados só depois que 30% das casas estiverem
construídas. Alcançar tal número pode se tornar um problema, pois muitas famílias
preferem não se deslocar enquanto os bairros não estiverem dotados de toda a
infraestrutura. Além disso, se torna difícil pressionar o aceleramento do tempo de

34
Dados da própria ATST, sem estatísticas oficiais, recolhido por entrevistas.
190

fornecimento de infraestrutura enquanto as famílias que se mudam utilizam


abusivamente e também gratuitamente alguns serviços (luz, água etc.) e não têm
interesse em solicitar a formalização do processo, pois isto significaria pagar o custo.
No que diz respeito aos outros serviços públicos - segurança, escolas, saúde -,
em alguns casos a Associação, junto com os habitantes do bairro, conseguiu a
implantação de creches e escolas dentro dos bairros, algumas vezes cedendo
gratuitamente a propriedade do terreno e contribuindo na construção dos prédios.
A situação para os serviços de saúde é problemática: como os bairros são na
periferia, estão normalmente distantes dos hospitais, pronto-socorros e postos de saúde.
Atualmente, existem as Unidades Básicas de Saúde (USB) somente na 6ª e 8ª área.
Geralmente os moradores das outras áreas devem pegar muitas conduções para chegar
ao médico mais próximo. O problema da distância de todos os serviços é agravado pelo
fato de que o serviço de transporte público, nas áreas onde esse serviço existe, é pouco
frequente no decorrer do dia.
Em quase todos os bairros da ATST é previsto um centro comunitário em que se
desenvolvem cotidianamente atividades de vários gêneros. Sobretudo são oferecidos
diversos cursos: as crianças têm acesso a aulas de música, teatro e dança; os adultos
podem participar de cursos de ginástica e de alguns cursos semiprofissionalizantes
como os de costura ou pintura. Também há cursos de alfabetização de adultos. Sobre
isso, cabe notar que como muitas mulheres, principalmente mais velhas, tinham
vergonha de participar desses cursos na frente de outras pessoas, Cleuza teve a ideia de
formar um grupo de pessoas que ensinassem em domicílio, porque poderiam aprender
as primeiras lições com mais comodidade e privacidade. Além disso, em alguns centros,
as mulheres têm a possibilidade de desfrutar de serviços de manicure e pedicure. Todos
os cursos e serviços oferecidos nos centros são gratuitos. O objetivo principal dos
centros é possibilitar, por meio de atividades de bem-estar e lazer, os valores educativos
e culturais.

As pessoas vêm muito com a ideia, que existe no mundo, de meu Deus, da minha
casa, minha coisa, e quando ela chega ao movimento nós temos que fazer um
trabalho com ela de mudar a mentalidade, que ela não consegue viver mais sem
um outro. Então, aí, ela tem que perceber que ela está dentro de um grupo e que
não existe mais a casa dela, mas existe a nossa casa, o nosso bairro (Cleuza
Ramos).
191

Com esse propósito, a ATST pode contar com a participação de diversos


profissionais – em regime voluntariado ou remunerado -, e com os quais se instaura um
verdadeiro e próprio vínculo afetivo em relação à Associação.
A remuneração dos educadores e dos professores, o mobiliário e as despesas de
manutenção dos centros são pagos por meio de eventos organizados pela ATST (bingo,
sorteios) e ofertas de doadores.
Construído o bairro, é formada a associação de bairro, que tem a tarefa de
gerenciar o centro comunitário e supervisionar o bom andamento de toda a área. Todos
os moradores são convidados a participar das assembleias formais de tal associação que
acontece uma vez por ano. De toda forma, a participação não é tão frequente.

Somos em 390 famílias no bairro, 90 frequentam as reuniões assiduamente. Eu


acredito que seja pela amizade, porque não precisam mais da associação.
Acredito que aqueles que permaneceram foi por uma amizade, só por isso, não
existe outra razão que mantém unido esse movimento (R., coordenador da
ATST).

Não existe nenhum vínculo formal entre a ATST e a associação de bairro,


apenas um vínculo “moral”, como diz Marcos Zerbini.

Outros serviços oferecidos

Um aspecto diferencial da atividade da ATST é o de não se limitar a enfrentar os


problemas das casas, mas de procurar uma solução para qualquer outro problema
concreto que as famílias associadas podem encontrar. Acima foi destacada a atenção à
formação dos associados por meio da organização dos cursos de teatro, dança, música e
opção dos serviços de estética nos centros comunitários. Recentemente, devida à
importância do aprendizado de outros idiomas, a Associação fez um convênio com uma
escola especializada para permitir aos próprios associados usufruir de cursos de inglês a
preço reduzido.
Outro problema que a Associação teve de enfrentar, visto as péssimas condições
do sistema público de saúde, foi o dos cuidados da saúde de seus associados. A ATST
conseguiu em 2003 um convênio com uma empresa do setor de planos de saúde que
permitiu a vinte mil associados assinar um plano a custo bem reduzido. Também
deliberou uma pequena farmácia que distribuísse remédios gratuitamente. Finalmente, a
Associação recentemente colocou à disposição um serviço odontológico desenvolvido
por voluntários e ainda pouco estruturado. Ainda há um convênio com uma funerária
para conceder aos associados mais pobres um cerimonial fúnebre digno, evitando que
192

fossem sepultados em jazigos comuns utilizados para os indigentes (MARCOCCIA,


2007).
Como já foi dito, a ATST oferece ainda suporte para questões de natureza
jurídica: quatro advogados aconselham e orientam gratuitamente as pessoas com
problemas ligados ao direito familiar e ao entendimento dos contratos - casos de defesa
do consumidor e de falta de compreensão sobre as cláusulas contratuais. O
departamento jurídico se ocupa também de todas as negociações relativas à
transferência dos terrenos nas áreas já adquiridas e da emissão dos documentos
individuais relativos ao Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Para os
associados, a obtenção do IPTU individual equivale ao completo reconhecimento da
propriedade do terreno e da casa, e isso só é possível após a aprovação definitiva dos
loteamentos. É nesta fase que podem aparecer problemas aos associados que venderam
o terreno ou a casa sem respeitar as regras da Associação.
Como já foi mencionado anteriormente, um dos auxílios oferecidos pela ATST
aos associados e que teve maior desenvolvimento nos últimos anos, foi a possibilidade
de ter acesso aos cursos de nível universitário a custo mais baixo. O sucesso desta
iniciativa culminou em uma nova atividade da Associação que será descrita adiante.

3.3 As atividades: o movimento Sem Faculdade

A partir de 2003, para responder aos pedidos de alguns associados que


desejavam frequentar cursos universitários, porém não tinham condições, a ATST
firmou convênios com diversas universidades particulares para obter um desconto sobre
a mensalidade universitária. Para facilitar a assinatura dos convênios e a relação com as
universidades foi fundada uma nova associação, a Associação Educar para a Vida, em
que o objetivo do estatuto é direcionado especialmente à educação. No entanto, o órgão
diretor e a gestão das atividades são iguais ao da ATST35.
O primeiro convênio, hoje não mais válido, foi firmado com a Universidade
Nove de Julho (Uninove), e em seguida foram assinados outros vinte acordos. Os
termos dos convênios são muito similares e os descontos variam de 30% a 60%,
segundo as universidades. Em cada caso, é previsto que os associados podem continuar
a usufruir do desconto até o final do curso, mesmo se o convênio entre a universidade e

35
Veja o site na internet www.educarparavida.com.br . Acesso em 23/12/2012.
193

a ATST não for renovado. Atualmente, cerca de 80 mil pessoas estão desfrutando desta
possibilidade e outras 15 mil usufruíram no passado. Não existe nenhum tipo de
publicidade promovida pela Associação. No geral, o conhecimento dos convênios aos
interessados parte da informação dada pelos amigos, conhecidos ou outros estudantes
que já tenham usufruído ou estão usufruindo do desconto. Isto faz com que os iniciantes
tenham menos dúvidas a respeito da seriedade da iniciativa.

É interessante que quem vem aqui não faz nenhum tipo de pergunta, não fala a
respeito de possíveis riscos. Fazem a carteirinha e contribuem com a Associação,
o amigo já sabe... Não perguntam “o desconto continua?”, já sabem, já possuem
confiança (A., coordenadora e advogada da ATST).

A ATST nunca quis reduzir sua atividade à mera oferta de serviços, mas sempre
procurou unir estes serviços a um caminho educacional. Por esta razão, também no caso
da universidade foi decidido subordinar a possibilidade de usufruir do desconto a uma
fórmula participativa similar àquela adotada no movimento de habitação: os
universitários também devem participar de uma assembleia inicial, de assembleias
mensais com os fundadores e de reuniões semanais ou quinzenais com os
coordenadores; e os estudantes que não se apresentarem em quatro assembleias mensais
consecutivas perdem o direito ao desconto.
Dado o número elevadíssimo de pessoas envolvidas, não é possível realizar uma
única assembleia mensal para todos os Sem Faculdade. Eles são subdivididos em grupos
de cerca de 3 mil pessoas e as assembleias se desenvolvem consecutivamente durante
um final de semana.
Os coordenadores ministram reuniões semanais distintas para quem deve ainda
passar pelo vestibular e para quem já frequenta a universidade. Nas reuniões semanais,
frequentemente são convidados os representantes das universidades para apresentar os
cursos, e os professores para ajudar os estudantes na preparação para o vestibular e
confrontar os problemas que eles podem encontrar depois de entrarem. Contudo, é
dedicada muita atenção ao conjunto de experiências pessoais e ao diálogo a respeito de
fatos da atualidade para ajudar os jovens a amadurecer sua opinião sobre o que ocorre.

Na associação só queremos aquelas pessoas que estejam entendendo a filosofia


do movimento. Aqui a pessoa percorre um caminho: ser um profissional
humanista. Estes profissionais estão em falta no mercado, não existem (A.,
coordenadora e advogada da ATST).
194

A partir de outubro de 2007, para favorecer uma maior liberdade e decisão


pessoal, a ATST deliberou que uma vez por ano qualquer associado pode decidir se
continua participando das reuniões ou não, havendo a garantia também neste último
caso de não perder o direito ao desconto. Quem decide continuar deve, no entanto,
respeitar as regras de participação pelo ano todo. Quando foi feita esta proposta pela
primeira vez, somente oito associados decidiram não continuar com as reuniões. Pouco
tempo depois, cinco destes oito retornaram, pois se deram conta de que esse apoio era
fundamental para não interromperem os estudos. Geralmente os estudantes da ATST
são pessoas que trabalham todos os dias e frequentam os cursos universitários noturnos,
o que requer sacrifícios e lutas, além de sofrerem com o cansaço. Se vividos sozinhos,
poderia levar facilmente ao abandono dos estudos. Por esse motivo, os fundadores da
Associação se esforçam para dar respaldo a esses estudantes de várias maneiras: através
das reuniões, com a presença deles diretamente nas universidades, dialogando ou
colocando-os em contato com os responsáveis administrativos ou diretivos das
universidades para qualquer problema, e com um auxílio específico para o estudo.
Disse-nos uma universitária dos Sem Faculdade:

Se preciso, eles estão ali me ajudando, me apoiando. Tem o auxílio ao estudo


que está me ajudando muito. Tinha também um problema com o pagamento,
sempre me apoiaram (A., estudante universitária da ATST).

Cleuza Ramos justifica essas ações:

Estes jovens trabalham todos os dias e vão para universidade à noite e ficam até
tarde. Dormem poucas horas e, por isso, até mesmo um pequeno problema pode
parecer enorme. Não podem se sentir sozinhos, mas acompanhados, porque só
isso dá a eles a força para seguir adiante com os estudos. Você não tem ideia da
tristeza que sinto às vezes, quando penso nesses jovens, o cansaço e os
sacrifícios que fazem (Cleuza Ramos).

Visto que os estudantes chegam à universidade com uma preparação de base


muito deficitária - quase 30% dos associados, de acordo com a própria Associação, têm
dificuldade em passar nas provas de seus cursos -, a ATST oferece um auxílio gratuito
ao estudo, sobretudo em algumas matérias básicas como português e matemática,
evidenciando novamente a atenção da Associação no confronto dos problemas
concretos dos associados. Além disso, como muitos universitários da ATST para pagar
os estudos devem se submeter a trabalhos precários e temporários – o que faz com que
tenham uma grande probabilidade de ficarem desempregados e impossibilitados de
195

pagar as mensalidades universitárias -, a ATST estipulou um convênio com uma


companhia de seguros que prevê o pagamento das taxas universitárias por um período
de seis meses em caso da perda do emprego por parte do associado. Este período é
frequentemente suficiente para permitir aos estudantes de encontrar um novo trabalho e
retomar o pagamento das mensalidades universitárias sem serem obrigados a suspender
os estudos.
Esta experiência de auxílio e acompanhamento é muito importante para o
sucesso nos estudos.

Pouquíssimos associados abandonam os estudos. Existem aqueles que


abandonam por um período de tempo, porque talvez alguns perdem o emprego
por seis meses, outros acumulam dívidas e ficam de recuperação em
determinados cursos. A realidade do mercado, ao contrário, é que 50% das
pessoas desistem - normalmente um curso inicia com duas salas de 80 estudantes
e termina com 50 estudantes (A., coordenadora e advogada da ATST).

Um diretor do Centro Universitário Ibero-Americano (Uníbero) atesta o que A.


diz:
Na Associação, os jovens sentem certa forma de proteção, sabem que a
Associação vai até eles se estão com dificuldades. A. me telefona... É importante
para evitar o fato que desistam (P.R., da Uníbero).

Obviamente o desconto é o que em princípio os aproxima da Associação, mas


não é o único motivo que os faz permanecer: a amizade que nasce com os outros
associados e a ajuda constante da ATST são pontos igualmente importantes para
conseguir o diploma, como confirmam os depoimentos de dois estudantes
universitários:

Ambos são importantes [o desconto e o acompanhamento]. Não teria conseguido


fazer a universidade sem o desconto, mas a relação de amizade foi mais
importante; a amizade com muitos daqui (A., estudante universitário da ATST).

Para mim uma reunião por mês me dá força. Entendo que os problemas dos
outros são muito maiores do que os meus e eu entendo que posso continuar, que
posso conseguir (C., estudante universitária da ATST).

Em muitos casos, a experiência em participar da vida da Associação gera um


vínculo importante para o próprio caminho pessoal. Existe, contudo, um cartão especial
de participação que é consignado a quem possui um índice de presença particularmente
elevado e que é muito cobiçado pelos estudantes.
Dado o grande desenvolvimento das atividades da ATST no âmbito
universitário, é normal se perguntar sobre quais são as direções futuras em que a
196

Associação olha ou aponta. Certamente o aspecto de acompanhamento será mais


reforçado porque permite unir o grupo dos universitários, debater sobre ideias, criar e
reforçar possíveis propostas e reivindicações direcionadas à universidade. No momento,
a ideia é oferecer mais benefícios aos jovens. Por outro lado, não existe uma estratégia
em longo prazo. A Associação se movimenta respondendo à realidade dia após dia: se
amanhã surgisse uma nova dificuldade, os planos mudariam. Então, é difícil traçar
possíveis direções futuras.
Capítulo 6

A experiência da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São


Paulo

É indiscutível que a atividade da Associação tem um impacto notável sobre a


condição de vida da cidade de São Paulo. São elementos que comprovam a
excepcionalidade desta experiência: a criação de 26 novos bairros, a recolocação de
quase 20 mil famílias, a oportunidade de estudos universitários para mais de 80 mil
indivíduos e a permanência e o contínuo crescimento do número de pessoas envolvidas.
Porém, mesmo uma mudança dessa relevância pode não ser o início de um
processo real de desenvolvimento se as pessoas atendidas ficarem em uma posição
passiva a respeito das próprias condições de vida. É preciso, então, conduzir uma
pesquisa específica para verificar se e de que modo a participação da Associação
modificou o comportamento dos associados em relação à própria condição, gerando, por
exemplo, novas expectativas ou interesses, aumentando a confiança neles mesmos, a
capacidade de assumirem os riscos e de empreender novas iniciativas.
A partir dos resultados colhidos, das entrevistas concedidas e do que observamos
vamos tentar identificar ao mesmo tempo, se e como os princípios da Dignidade
Humana, da Solidariedade e da Subsidiariedade podem se manifestar.
As perguntas gerais que nos moveram para nos ajudar a identificar esses
princípios na experiência foram:
- sobre o Princípio da Dignidade Humana: a experiência da ATST ajuda no
protagonismo de seus associados? Há um respeito real pelas pessoas? Como se
manifesta esse respeito?
- sobre o Princípio da Solidariedade: a experiência da ATST favorece o
estabelecimento de laços de confiança? Favorece a prática de solidariedade? Qual o
relacionamento social estabelecido pelos associados? Existe um acompanhamento
pessoal por parte dos coordenadores, onde os associados experimentam a gratuidade, o
“olhar de amor”, que diz a DSI?
- sobre o Princípio da Subsidiariedade: Favorece a liberdade e a autonomia dos
associados? Qual o relacionamento da ATST com a administração pública? A ATST
favorece de fato a participação?
198

1. Propósito e metodologia de pesquisa

A fim de entendermos o que os associados vivenciaram, os significados que


atribuíram e o modo como interpretaram suas próprias experiências na ATST, adotamos
um método de pesquisa qualitativo, que permite a coleta de elementos e dimensões
imprevistas antecipadamente - dinâmicas latentes ou pouco perceptíveis - e introduzir a
perspectiva do objeto estudado, colhendo suas camadas conceituais, suas interpretações
sobre a realidade, os motivos de suas ações (LAKATOS E MARCONI, 2002).
As ferramentas de pesquisa utilizadas foram entrevistas individuais
semiestruturadas (LAKATOS E MARCONI, 2002) com os associados do movimento
de habitação. Optou-se por entrevistar diretamente algumas pessoas para saber da marca
que a experiência da Associação deixou em suas vidas. Na entrevista procuramos saber,
em primeiro lugar, a respeito da qualidade de vida percebida pelos moradores dos
bairros - moradia, saúde, serviços, segurança, relações sociais - e uma comparação com
os bairros onde eles moravam anteriormente; depois, qual o grau de confiança nos
vizinhos e, de modo geral, nas instituições; por fim, qual a sua relação com a ATST -
razões da escolha inicial para aderir a ela, auxílios recebidos e decisão hipotética de se
transferir para outros bairros. O tema da relação entre as pessoas e a ATST também foi
abordado por meio de três diferentes pontos de vista: a mudança da própria situação
habitacional; a mudança da situação empregatícia; e a mudança em relação à instrução
dos filhos.
Como roteiro das perguntas, utilizamos os próprios questionários aplicados (ver
mais abaixo).
Foram entrevistados também - além dos associados do movimento de habitação -
e por meio de entrevistas abertas, para colher algumas informações adicionais de
elementos que os moradores relataram anteriormente: um professor de ginástica e
música dos centros comunitários, a cozinheira da sede da ATST e alguns estudantes
universitários que estão usufruindo do desconto na mensalidade.
Visitamos quatro comunidades da ATST. Esses bairros se destacam seja pelo
período em que foi iniciado o assentamento, seja pela peculiaridade de suas histórias.
Em dois bairros - Jardim Canaã (JC) e Sol Nascente (SN) -, a aprovação da propriedade
por parte das autoridades foi conseguida por meio de uma regularização posterior à
ocupação - depois que as casas já estavam construídas -, e os moradores tiveram que
participar de manifestações para obtenção da infraestrutura básica e dos serviços
199

públicos. Nos outros dois bairros - Turística 1 e 2 – (T1) e (T2) -, as obras de construção
foram iniciadas depois da obtenção das autorizações necessárias e o Turística 1 não
dispõe ainda dos serviços e da infraestrutura básica.
Entrevistamos 12 moradores do Jardim Canaã, 13 do Sol Nascente, 8 do bairro
Turística 1 e 6 do Turística 2.

Tabela 1. Dados sintéticos sobre as entrevistas


Bairro Ano de aquisição Regularização Composição Número de pessoas
JC 1991 Reg. após Mista 12
ocupação
SN 1992 Reg. após Só mulheres 13
ocupação
T1 1997 Aut. antes Mista 8
ocupação
T2* 2001 Aut. antes Mista 6
ocupação
JC: Jardim Canaã; SN: Sol Nascente ; T1: Turística 1; T2: Turística 2.
* Em fase de construção.

Os entrevistados eram bem homogêneos em relação à idade e situação


socioeconômica. Uma vez feito o contato com eles, nos encontrávamos ou nas casas
(JC, T1) ou nos centros comunitários (SN, T2), sem a presença dos coordenadores e
fundadores da Associação, de modo a permitir a eles uma liberdade maior de expressão.
Foi dada especial atenção à coerência interna das respostas individuais, à
frequência de certos termos e ao número de pessoas que compartilhavam certo ponto de
vista, além da intensidade dos comentários feitos e da diferença entre relatos de
experiências pessoais e reflexões sobre situações hipotéticas.
Junto às entrevistas, também foram aplicados questionários em quatro bairros da
ATST (Turística 2, Sol Nascente, Jardim Canaã e Voith) para verificar a importância de
certas questões (satisfação em relação aos bairros, qualidade das relações sociais,
mudanças nas atividades empregatícias etc. (ver anexo A).
Cabe notar que os bairros onde foram aplicados os questionários são os mesmos
em que foram realizadas as entrevistas, com uma única exceção: por causa das
dificuldades de acesso, Turística 1 foi substituída por Voith, uma área também recente,
porém dotada de infraestrutura e mais acessível. Na apresentação dos resultados dos
questionários, a área “Turística 2”, para simplificar, será indicada apenas por
“Turística”.
200

Para este propósito, não se utilizou uma amostra representativa enquanto não
era possível dispor de informações necessárias para a formação da mesma; portanto,
confiou-se à causalidade dos questionários às escolhas do entrevistador. Foram
aplicados 35 questionários na Turística, 38 no Sol Nascente e 40, respectivamente, no
Jardim Canaã e em Voith, resultando em um total de 153 questionários.
O questionário foi igualmente dividido em três partes: a primeira diz respeito à
qualidade de vida percebida pelos moradores dos bairros - moradia, saúde, serviços,
segurança, relações sociais - e uma comparação com os bairros onde eles moravam
anteriormente; a segunda detecta o grau de confiança nos vizinhos e, de modo geral, nas
instituições; a terceira se refere à relação com a ATST - razões da escolha inicial para
aderir à Associação, auxílios recebidos e decisão hipotética de se transferir para outros
bairros. Além disso, foram coletadas informações sócio-demográficas relativas ao
entrevistado por questionário e, em alguns casos, sobre os respectivos pais (educação,
situação empregatícia, saúde, composição do núcleo familiar, rendimento).
Os dados coletados foram analisados por uma análise descritiva.

1. 2. Análise descritiva dos questionários

O grupo de sujeitos entrevistados pelos questionários, 153 pessoas, fica


equilibrado em termos de sexo (51% da amostra são homens e 49% mulheres), de idade
(35% tem idade entre 22 e 40 anos e 28%, entre 50 e 73) e de bairro (23% na Turística,
25% no Sol Nascente, 26% no Jardim Canaã e no Voith).
Nos bairros, a distribuição entre homens e mulheres é bastante homogênea, com
uma ligeira preponderância de homens no bairro Sol Nascente e de mulheres no bairro
Voith. Mesmo no que se refere à distribuição por idade, não se notam diferenças
relevantes, senão uma maior incidência de pessoas com mais de 50 anos em Jardim
Canaã (48% contra 20-26% nos outros bairros).
Os bairros se diferenciam em relação ao tempo médio de residência dos
entrevistados: no Voith, cerca de 60% reside no bairro há menos de sete anos, em
relação a 46% da área Turística, 21% no Sol Nascente e 10% no Jardim Canaã. Por
outro lado, apenas 5% do Voith residem há pelo menos 10 anos, contra 9% na área
Turística, 60% no Sol Nascente e 80% no Jardim Canaã. Estas diferenças são a
consequência do fato de que estes últimos são bairros constituídos há mais tempo, e se
refletem nos diversos tempos de participação na ATST.
201

Oitenta e seis por cento participam da Associação há mais de cinco anos e quase
a metade deles há pelo menos doze; estas porcentagens sobem para 93% e 62%
respectivamente no bairro de Jardim Canaã, enquanto que elas descem para 85% e 32%
no Voith. Convém notar que Sol Nascente é o bairro que apresenta a mais elevada
incidência de entrevistados por questionários que participam na ATST há menos de
cinco anos (32%).
Em geral, apenas um de três dos sujeitos entrevistados por questionários
participa atualmente na ATST, mesmo se com pouca frequência. O bairro com a
porcentagem mais elevada de participação é o de Voith, provavelmente porque é o mais
recente. A modalidade de envolvimento principal é a participação nas reuniões (21% da
amostra); são bem menos frequentes os indivíduos que declaram participar ativamente
na ATST como voluntários ou coordenadores (7%), ou na associação do bairro (6%).
As pessoas entrevistadas pertencem predominantemente a núcleos familiares
com, em média, 3,6 componentes (somente 6% moram sozinhos). O número médio de
menores por núcleo é de 1,11. As diferenças principais entre os bairros se referem a
uma maior dimensão média dos núcleos na área Turística (3,91 componentes dos quais
2,82 são pessoas com mais de 18 anos de idade) e uma maior porcentagem de núcleos
com um único adulto no Jardim Canaã (16%, com um número médio de componentes
equivalente a 3,08). Os bairros com o número médio mais elevado de menores são os de
Sol Nascente e Voith e estes menores estão concentrados numa faixa que se situa entre
zero e 10 anos.
Os sujeitos entrevistados provêm de modo predominante da região Nordeste
(60%); um de quatro provém do estado de São Paulo, enquanto os 15% restantes
provêm quase que na sua totalidade do Sul / Sudeste.
Uma porcentagem de 70% das mulheres entrevistadas e de 85% dos homens
participa do mercado de trabalho. No que se refere à situação de emprego, dentre os
homens que participam no mercado de trabalho, um sobre dois é empresário ou
autônomo (ver tabela 2).
202

Tabela 2. Distribuição dos empregados por situação de emprego


Total Homens Mulheres
Bairros Bairros Bairros
Empregados 48,5% 46,7% 53,8%
Empresários 11,9% 18,3% 2,4%
Autônomos 38,6% 35,0% 43,9%

Finalmente, ao observar os dados relativos aos estratos de renda familiares


referidos na tabela 4 (p. 205), pode-se notar que quase 90% dos entrevistados por
questionários podem contar com uma renda familiar inferior aos R$ 2.000,00 por mês,
com uma incidência maior do estrato R$ 1.000,00 – 2.000,00 (48%). As famílias dos
empresários desfrutam de rendas familiares mais elevadas: mais de 60% têm rendas
superiores a R$ 2.000,00. Os dados mostram também que os trabalhadores autônomos
tendem a ter rendas inferiores aos empregados (51% dos primeiros têm uma renda
familiar inferior a R$ 1.000,00 contra 34% dos segundos).

2. Uma análise da experiência dos associados

2.1. As mudanças nas condições de vida dos associados

A análise dos materiais coletados se concentrou principalmente em verificar


possíveis alterações nas condições de vida das pessoas pesquisadas, com especial
referência à situação econômica, habitacional e à qualidade de vida nos bairros. Os
resultados serão apresentados em categorias específicas, relatando as mesmas palavras
dos entrevistados a fim de transmitir a ênfase que eles colocam em diferentes aspectos
da experiência vivida. Também já começaremos a identificar ao longo deste tópico, e
quando for o caso, elementos que nos permitam apontar a presença dos princípios da
DSI.
Nas Considerações Finais, no entanto, a relação com os princípios será vista com
mais profundidade, em um tópico específico.

a) Condição econômica

Seja pelos questionários, seja pelas entrevistas, deduz-se que os associados


pertencem a um estrato econômico médio-baixo e que a participação na Associação
203

resultou em uma melhora significativa na situação econômica e patrimonial, mesmo que


a mudança na renda por trabalho tenha sido relevante apenas para alguns.
A partir das entrevistas é claramente levantado que o rendimento dos associados,
até o momento em que se deu o encontro com a ATST, não era suficiente para comprar
uma moradia própria nos preços de mercado.

O dinheiro que nós tínhamos para construir, para comprar o terreno, não eram
suficientes para comprar um lote numa outra área residencial comum (S., T1).

Na época, eu pagava o aluguel, o que eu ganhava era mais ou menos para isto,
somente para pagar o aluguel (J.S., T2).

O rendimento era tão baixo que o custo do aluguel constituía um problema para
muitos, porque ele representava uma boa parte da renda (muitas vezes, mais de 50%).

É que para o aluguel aqui em São Paulo, não sei no que se refere aos outros
estados, mas aqui se gasta mais de 50% do salário. O nosso salário, para que
possa ser adequado hoje, para um pai de família com dois filhos pequenos,
deveria ser de pelo menos mil reais, enquanto que ele é de trezentos e pouco
mais... É por isto que o aluguel se tornou o principal “ladrão” da casa (M.S., T2).

Além disso, o fato de ter que arcar com esse aluguel todos os meses, ou mesmo
com acontecimentos imprevistos, tais como perda de emprego ou a necessidade de lidar
com despesas extras, contribui para aumentar a dificuldade.

Você paga um mês e já deve pagar o outro (L., SN).

Se você vê a gente daqui, é totalmente diferente de quem paga o aluguel que


deve pagar todos os meses. (A., JC).

Esse rendimento baixo também é confirmado pelo nível educacional dos


associados destacados pelos questionários: a cada quatro indivíduos, somente um
completou os estudos do Ensino Fundamental 2 – até o 9º ano - e apenas 3% tem um
diploma universitário. De toda forma, quase 75% dos pais desses entrevistados pelo
questionário não completaram sequer o Ensino Fundamental 1 – até 5º ano (ver tabela
3).
204

Tabela 3. Distribuição dos entrevistados por questionário por nível de instrução


Nenhum Fund. 1 Fund. 1 Fund. 2 Fund. 2 Médio Médio Superior Superior
Inc. Com. Inc. Com. Inc. Com. Inc. Com.
Indiv 7% 12% 15% 18% 18% 8% 18% 3% 3%
Masc 9% 15% 15% 13% 19% 8% 17% 3% 1%
Fem 4% 8% 16% 23% 16% 8% 19% 3% 4%
Pai 45% 25% 14% 7% 3% 1% 3% 0% 1%
Mãe 50% 23% 13% 6% 3% 1% 3% 0% 1%

Entretanto, a melhoria da situação econômica e patrimonial dos associados é


detectável por dois elementos. Primeiramente, o valor atual da moradia construída é
muito maior do que o montante investido para construí-la.

Um vizinho meu, por exemplo, vendeu sua casa porque havia pago um terreno
por 6 mil reias, do mesmo modo que eu, que havia pago na época por dois
terrenos 6 mil cada um. Ele gastou mais 10 mil para construir e, com 80 mil,
pensou que estava fazendo um bom negócio e vendeu (J.S., T2).

Em segundo lugar, o fato de não ter que arcar com o custo fixo do aluguel
permite um nível mais elevado de consumo corriqueiro. Além disso, em alguns casos, é
notável uma melhora na situação empregatícia e, de modo geral, na renda por trabalho.

Ele [o meu chefe] iniciou o seu pequeno negócio aqui dez anos atrás, ele iniciou
bem pequeno. Ele era taxista, começou do zero. Hoje ele emprega cinco pessoas,
são praticamente cinco famílias que podem sustentar-se (L., T2).

Se não fosse a Associação, eu teria voltado para a atividade de agricultor. A


vontade de entrar por conta própria me veio quando me libertei do aluguel, que
era um empecilho que me prendia (F., coordenador da ATST).

Isto é confirmado pelas respostas aos questionários, segundo os quais, ao se


comparar a situação empregatícia atual com a anterior, percebe-se um aumento no
percentual de trabalhadores autônomos/empresários. Quase todos os empresários eram
empregados anteriormente, assim como 68% dos trabalhadores autônomos; por outro
lado, apenas 10% dos empregados desenvolviam um trabalho autônomo anteriormente.
Portanto, parece haver um deslocamento da situação de empregado para a
situação de trabalhador autônomo. Isso pode significar uma deterioração das condições
empregatícias. Neste caso, dada a porcentagem de empresários (12%), parece sinalizar
que as pessoas aproveitaram as oportunidades oferecidas pelo desenvolvimento dos
205

bairros. As famílias dos empresários já se beneficiam de aumento do rendimento


familiar (tabela 4): mais de 60% desses empresários tem rendimentos maiores que R$
2.000,00 em comparação aos 12% do total dos entrevistados por questionário. É
interessante perceber que isto também representa uma melhoria em relação à situação
empregatícia dos pais dos entrevistados: neste último caso, de fato, há uma incidência
muito maior do trabalho autônomo em relação aos filhos (52% contra 38%), e uma
incidência muito menor dos empresários (3% contra 12%).

Tabela 4. Distribuição dos entrevistados por questionários por rendimento familiar (R$)
Menos de 500 – 1.000 – 2.000 – 3.000 –
500 1.000 2.000 3.000 4.000
Total 3% 36% 48% 11% 1%
Empresários 0% 9% 27% 45% 18%
Autônomos 0% 51% 41% 8% 0%
Empregados 0% 34% 55% 11% 0%

De qualquer modo, deve-se ressaltar que a maioria dos moradores dos bairros da
ATST tem um emprego de baixa qualificação. Por exemplo, os entrevistados por
questionários no Jardim Canaã são principalmente operários, mecânicos e assistentes.
Usando os dados sobre estratos de renda familiar sobre o número de trabalhadores
presentes na família (uma média de dois trabalhadores por família), é possível calcular
uma renda média “por trabalhador” de R$770,00 por mês36. Esse valor é inferior ao piso
dos trabalhadores, cerca de R$1.200,00, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE)/2009 em seis regiões metropolitanas e, próximo ao valor médio,
deixando presumir que os trabalhadores das áreas da ATST pertencem à metade inferior
da distribuição das rendas de trabalho individual.
É interessante notar que quase 90% dos entrevistados nos questionários
acreditam no melhoramento da própria situação econômica para os próximos anos.
Destes, 40% preveem “com certeza”. O dado que mais impressiona é no bairro Jardim
Canaã, onde 92% dos indivíduos declaram estar seguros de que a própria situação deve
melhorar. Esse número parece evidenciar mais uma posição positiva em relação à vida
do que uma efetiva previsão econômica, dada a idade média dos entrevistados no
questionário e a menor renda familiar.

36
Considera-se também o fato de que na renda familiar estão incluídas as rendas vindas não de trabalho e,
portanto, a renda média individual poderia ser inferior.
206

b) Situação habitacional

Como mencionado acima, a condição habitacional dos associados no momento


do encontro com a ATST era principalmente a de aluguel, porém, em alguns casos, as
pessoas eram obrigadas a viver em situações mais precárias, como dividir um
apartamento com parentes e/ou amigos.

Eu morava com seis pessoas, seis tias que pagavam o aluguel de dois locais,
morei lá de 1982 até 1990 (F., coordenador da ATST).

Eu morava na base do aluguel e depois fui morar na casa de alguém (A.N.G.,


SN).

Nestes 15 anos, então, fui muito humilhada... Eu era solteira, estava sozinha,
vinha da uma cidadezinha do interior. O meu irmão morava aqui e eu vim para
morar com ele. Mas, infelizmente morei com ele, porque antes de vir não sabia
onde ele morava e ele morava na favela. A primeira chuva, quando veio, eu
estava trabalhando e não havia ninguém em casa e perdemos tudo, tudo, tudo...
Eu fiquei apenas com as roupas que estava vestindo (L., T2).

A condição de inquilino é descrita como sendo bastante difícil também do ponto


de vista psicológico, ou seja, não apenas pelo fato de ter que pagar todo mês, como foi
notado anteriormente, mas também pela percepção que a soma destinada ao aluguel
representa “dinheiro perdido”. Quase todos descrevem a experiência de não pagar mais
aluguel como uma “libertação”.

Eu também pagava o aluguel. Era uma tristeza, vivíamos apenas para o aluguel,
mas hoje estamos contentes, graças a Deus, temos uma casa para nós, nos
libertamos do aluguel e estamos tranquilos (T., T2).

Quando eu saí do aluguel, eu estava pagando R$300 por mês, morei pagando
aluguel por seis anos e meio. Sei o valor do que dei, eu dei R$21.800... Quando
saí, não precisava mais pagar estes R$300 e a situação, portanto, mudou muito
(A., JC).

A avaliação dos entrevistados a respeito da mudança da própria situação


habitacional é especialmente positiva. Todos expressam uma evidente satisfação pelo
fato de terem conseguido uma casa própria. Muitos entrevistados enfatizam sobretudo a
importância de poder dizer “esta é minha”, tanto porque há a possibilidade de mudar a
casa conforme o gosto deles, como também o orgulho de ter conseguido alcançar um
resultado inesperado.

Você sabe que esse dinheiro que você está utilizando para o aluguel, você agora
o coloca dentro da tua casa, e que o prego que você está colocando na parede é
teu, e que você não está dando motivo ao dono de casa dizer-lhe: “este prego,
você não pode colocá-lo porque esta é a minha casa”. Ou se a parede está
207

cedendo, se deve colocá-la no lugar e ele não te dá a autorização... Dentro da tua


casa, pode fazer isto, fazer o melhor que seja (M.S., T2).

Eu penso assim: meu cunhado não me tira daqui. Mas um dia, os meus filhos
quererão, sabe... Se acontecer algo, desejarão morar em algo que é deles. Poder
dizer “isto é meu” (J.P., SN).

Eu não dou a minha casa por nada no mundo (J., T1).

A gente percebe quando você chega a ter uma casa tua porque isto está impresso
na tua expressão. Já é outra situação. Eu acho que cada um começou assim: você
percorre uma etapa da casa, você saiu do aluguel, é tudo rústico e tudo aquilo
com que você sonhou se realizou, isto é muito bom (I., JC).

Sabe, hoje vejo tantas famílias, gente casada, de bem, que moram de aluguel e eu
os vejo e penso: o maior sonho da minha vida era o de ter uma casa em São
Paulo. Mas uma casa que é uma casa, não um barraco na favela. Uma casa, uma
“senhora casa” (V., coordenadora da ATST).

Percebemos nas falas acima a presença de dois valores fundamentais do


Princípio de Subsidiariedade: a autonomia e a liberdade das pessoas de conduzirem as
soluções dos seus problemas, conseguir conquistar o que almeja com as próprias mãos,
construir uma obra – sua casa, no caso – que expresse a sua identidade, marcar a
realidade com algo que seja seu, particular.
Além disso, em algumas entrevistas é declarado explicitamente que a casa é
mais do que uma estrutura para morar. Um entrevistado destaca o valor da posse da casa
como ponto estável da própria identidade.

A casa é a mesma coisa das roupas, revelam quem você é. Quando alguém paga
aluguel e se muda, e aparece alguém que pergunta: “A. mora aqui?” “Não”. “E
onde ele mora?” “Não sei”. É uma pessoa [a que mora de aluguel] sem uma
residência fixa, não tem um endereço certo (A., JC).

Enquanto outros entrevistados declaram que a casa é um lar, ou seja, um


ambiente confortável onde se está bem, onde se encontra a paz.

A nossa casa é uma benção de Deus, é um ambiente. A casa é um lar, onde nos
sentimos bem. É uma qualidade de vida melhor para a família (M.D.S., SN).

Não tem nada [na minha casa]. Você chega e encontra a sujeira, as crianças
sujam muito, e a bagunça, tenho dois cachorros, mas ao chegar se encontra a paz.
A paz (V., coordenadora da ATST).

Quando chegamos dizemos: “Ah! Estou em casa” (A.N.T., SN).

Para muitos, a experiência de satisfação está embasada também no


melhoramento da própria moradia tanto pelo tamanho como pela qualidade.
208

O meu sonho foi realizado, a minha casa é muito bonita. Muito bonitinha, graças
à Associação, senão estaria pagando o aluguel hoje ainda (L., SN).

Entretanto, notamos que muitos entrevistados manifestam


satisfação mesmo quando suas casas não estão ainda terminadas.

O modo em que está agora a casa, tenho que passar o aspirador dez vezes ao dia,
mas é bonita a minha casa (J.P., SN).

A minha está mofando, está molhando toda, as paredes estão mofas. Quando a
chuva chega... Mas é bom, porque saímos do aluguel (I., SN).

Está ainda sem acabamento, mas tem tudo aí. Falta rebocar tudo (R., T1).

A satisfação pode vir mesmo quando o tamanho delas ainda não está de acordo.

Por mim, eu teria preferido comprar um lote maior, mas para mim está ótimo.
Acho que é aceitável, não é feio, porque nós moramos antes em espaços tão
pequenos... (P., T1).

Se o meu tivesse um metro a mais na frente, seria ótimo. Se tivesse seis metros
seria maior, mas do modo em que está agora, também está ótimo (J., T1).

A minha casa é enorme, não acabei a parte de cima. Para que serve uma casa tão
grande? Antes eu não tinha nada e, agora, tenho tudo. Porque eu morava num
quarto e cozinha, de aluguel (A.N.T., SN).

A nossa casa é maior. Os locais são menores, mas a quantidade é maior (R., T1).

A minha é maior, porque morávamos de aluguel, alugávamos uma bem


pequenininha que é menos cara. Deus do céu! É bem, bem maior (A., T1).

c) Situação dos bairros

Na maioria dos casos, a avaliação positiva em relação às casas corresponde a


uma avaliação positiva sobre o bairro: “Eu gosto muito daqui” (L., SN); “A raiz já está
aqui, eu gosto muito daqui” (I., SN); “Aqui é muito bonito para viver” (L., T2); e “Não
tenho nenhum problema, pra mim está tudo em ordem. Uma maravilha” (J.S., T2).
Segundo os dados dos questionários, mais de 90% dos entrevistados estão
satisfeitos no bairro onde moram e um em quatro o avalia como excelente (ver tabela 5).
Tabela 5. Parecer sobre a situação do bairro

Ruim/péssimo Agradável Excelente

Total 6% 71% 23%


Turística 6% 60% 34%
Jardim Canaã 7% 78% 15%
Sol Nascente 5% 71% 24%
Voith 5% 73% 22%
209

Para verificação do apego dos moradores entrevistados sobre seus bairros,


colocamos a seguinte pergunta: “se o governo lhe oferecesse uma casa como a sua ou
um pouco melhor num outro bairro, você aceitaria se mudar?”.
As respostas foram bastante claras: em três bairros (SN, T2 e JC) nenhum
aceitaria se mudar – “Nem mesmo se isso fosse verdade...” (M.S., T2); “Nem mesmo se
fosse um palácio” (M.L., T2); “De maneira alguma” (T., T2); “Aceitaria outra casa, mas
aqui neste bairro” (F., JC); e “Poderia vender minha casa para investir em um negócio...
E em outra casa, mas aqui no bairro” (I., JC). No outro (T1), somente uma pessoa
respondeu afirmativamente.
Devemos levar em consideração que as pessoas se dão conta de que a pergunta é
hipotética. Em alguns casos se revelaram o caráter irreal da situação prospectada na
pergunta.
Eu não darei minha casa em troca de nada nesta terra, entende? Porque não vai
adiante. E você não conseguiu, por que o governo deve lhe dar uma, ora?
Portanto, se eles não fizeram isso, eu não fico sonhando com uma coisa que
nunca aconteceu, que somente aconteceu de verdade agora e aqui. Eu não darei
minha casa por nada (S., T1).

Quando eu precisei o governo não me ajudou e, mesmo agora, não quero (J.S.,
T2).

Contudo, o imediatismo e a espontaneidade das respostas supõe um apego real


das pessoas ao local em que vivem. De fato, se consideradas as escolhas efetivas, o
percentual de pessoas que deixam os bairros é baixo.

Em 18 anos pouquíssimos foram embora e muitos chegaram. Cada dia aumenta o


número de pessoas (A., JC).

Quem vai embora se arrepende de ter feito isso... é sempre assim (F., JC).

Eu conheço poucos [que deixaram os bairros] (M.S., T2).

Eu não conheço ninguém (T., T2).

Na nossa rua, dois (R., IC).

Segundo os entrevistados, os motivos principais de as pessoas decidirem se


mudar se encontram em alguns casos em problemas familiares - separação, divórcio ou
litígio -; em outros, o desejo de liquidar o aumento patrimonial.

Um por motivo de casamento, separação (T., JC).


210

Outro foi pelo motivo que falei, os pais foram mortos (M.S., T2).

Neste caso era um vizinho meu, estou dizendo sobre este caso, ele vendeu por
ambição de dinheiro, ele desejava comprar uma fazenda e foi pra Bahia (J.S.,
T2).

Este apego aos bairros é bastante surpreendente já que, sendo de periferia, se


encontram a certa distância dos postos de saúde, pronto-socorro, hospitais e outros
serviços - banco, correio, supermercados, escolas técnicas e serviços de lazer para os
jovens -, além dos serviços de transporte público não serem frequentes.
Esses problemas aparecem nas entrevistas. A dificuldade de acesso aos hospitais
é, de fato, a razão principal que poderia impulsionar as pessoas a aceitarem se mudar
para outro bairro.

É por causa dos problemas de saúde, ele vai muito ao médico. No entanto, se
fosse um local mais fácil para ir ao médico, por conta dos seus problemas, ela
poderia aceitar (J., T1).

Porque aqui devemos pegar dois ônibus para poder chegar. Lá, apenas um (R.,
T1).

Se tivesse um pronto-socorro seria muito bom. Temos que pegar ônibus para ir
até Perus, Pirituba. É um pouco difícil para nós que temos filhos, às vezes estão
bem, outras não. Às vezes, para chegar ao pronto-socorro temos de pegar dois
ônibus (C.L., SN).

O posto de saúde é muito longe. Dizem que farão um aqui em cima (S.,T1).

Sobre a falta de transportes ouvimos que: “É preciso que todos se unam para
pedir mais ônibus, existem muito poucos” (I., SN). Ou: “Precisamos de mais ônibus”
(C.L., SN).
Sobre a falta de outros serviços, os moradores relatam principalmente a falta de
escolas profissionalizantes, bancos e espaços de lazer para os adolescentes.

Falta uma escola técnica, o SENAI mesmo [Serviço Nacional de Aprendizagem


Indústria], se fizesse uma escola para os jovens de 13 a 18 anos para se obter
uma formação seria muito bom (A., JC).

Um SENAI, uma FATEC [Faculdade de Tecnologia de São Paulo], um banco


(I., JC).

Hoje os jovens não gostam do bairro porque não tem nada. Chega o fim de
semana e ficam em casa porque não tem nenhum lazer (N.A.,SN).

Os moradores do bairro Turística 1 ainda reclamam da falta de


infraestrutura.
211

Não tem água... Se acontecer um problema aqui não entra carro (R., T1).

Não tem luz, a luz é clandestina (...). Porque, por exemplo, ontem nosso filho
estava doente, que horas eram? Às oito da noite. Como não estava chovendo,
telefonamos e veio um automóvel buscá-lo, mas, por exemplo, se fosse um rapaz
do tamanho do J., ninguém poderia sair com ele nas costas e levá-lo até o asfalto
(S., T1).

Esgoto: nós utilizamos a fossa (P, T1).

Então, não tem o endereço. Você deseja colocar o carro no seguro, por exemplo,
não aceitam porque não há endereço (J., T1).

Os questionários confirmam os dados que aparecem nas entrevistas: a metade


dos que responderam o questionário acredita que o acesso a hospitais/postos de saúde e
a situação do transporte público está pior com relação aos bairros onde moravam antes.
Ademais, de 30% a 40% revelam um agravamento na situação também pelo que diz
respeito ao acesso à escola e as oportunidades de trabalho (ver tabela 6).

Tabela 6. Diferenças em relação aos bairros antecedentes dos processos de alguns


serviços/oportunidades

Muito Pior Pior Igual Melhor Muito melhor


Postos de Saúde 8% 42% 20% 24% 6%

Jovens com
acesso a escola 5% 25% 23% 37% 10%

Infraestrutura
urbana 5% 10% 35% 40% 10%

Desemprego 11% 33% 40% 15% 1%

Relação
sociedade-qualidade 1% 7% 42% 40% 11%

Transporte público 20% 29% 12% 22% 16 %

Segurança 17% 29% 29% 22% 3%

A situação parece particularmente crítica nos bairros de construções mais


recentes (Turística 1 e Voith). Nas entrevistas realizadas no Turística 1, foi constatado
que nessa área faltam ainda toda a infraestrutura urbana (água, luz, esgoto e asfalto).
Isso significa também a impossibilidade de ter um endereço, com todas as complicações
que seguem. No Voith, 95% dos entrevistados por questionário declaram piores a
possibilidade de acesso aos postos de saúde em relação aos bairros onde viviam antes;
212

93% declaram que piorou a situação do transporte público e 75% a possibilidade de


acesso à escola.
Nas entrevistas, quase todos revelam uma maior segurança nos bairros da ATST
em relação aos demais bairros da cidade.

Comparando com outros bairros, aqui é calmo (C., SN).

Aqui não é igual aos outros (A.N.T., SN).

É 10% daquilo que existe lá fora (J.S., T2).

O dia que estiver cheio aqui, quem colocará respeito e moral serão os próprios
moradores (J., T1).

Aqui, tem pouca [violência]. Tem o menor índice da região. Existem pessoas que
se organizam (F., JC).

Muitos declararam que, ao mesmo tempo, existem efetivamente problemas de


violência e droga. Em relação aos outros bairros, esses problemas são muito mais
limitados. De um lado, as próprias pessoas se preocupam em vigiar tanto a própria casa
como as dos vizinhos e, em alguns casos, se auto-organizam para garantir um serviço de
segurança privado.
Um vizinho olha a casa do outro (S., T1).

E se acontece, porque pode acontecer, estamos juntos e fazemos uma revolução


(F., JC).

Quando tem gente de fora que vem aqui para fazer bagunça na rua, ficamos
juntos (I., JC).

Estavam roubando muito aqui, nos entendemos, somos poucos que moram aqui,
agora tem um jovem com uma moto para a segurança, das 22h às 6h da manhã,
cada um paga o seu, e melhorou muito, e então, fica tranquilo (P., T1).

Por outro lado, se espalhou a opinião de que os episódios de violência ou de


roubo são atribuídos a pessoas de fora do bairro.

Mas sabemos que isso não tem nada há ver com as pessoas daqui (R., T1).

São as pessoas de fora que vem aqui e depois se vão (P., T1).

Não chega a ser um problema, é mais uma questão de furtos. Mas não é ninguém
daqui. Estamos perto de algumas favelas, são pessoas de fora que vêm (I., T2).

Se qualquer coisa acontece é porque vem de fora. Não é daqui, não (M.S., T2).
213

Das entrevistas se pode deduzir que o problema da segurança é mais acentuado


nas fases iniciais de construção dos bairros, quando muitas casas não estão ainda
habitadas.

Em sete anos e meio que mudamos pra lá nunca aconteceu nada. Já aqui faz um
ano que estamos morando e a nossa casa foi invadida duas vezes (...). As casas
dos moradores são ainda bem distantes, mas quando tiver mais gente diminuirá
[o roubo] (J., T1).

Tivemos no passado, mas agora não, há um tempo era um problema (L., T2).

Em contraste ao que escutamos nas entrevistas, a situação dos bairros em relação


à segurança aparece nos questionários como sendo a mais crítica: quase metade dos
entrevistados por questionário acredita que tal situação deva ter piorado em relação aos
bairros onde viviam antes - em particular o Voith (80%) -, e somente 25% acreditam
que esteja melhor (ver tabela 6).
Contudo, observa-se que 60% se sentem seguros durante o dia nos bairros e 40%
se sentem seguros também à noite (ver tabela 7). Os maiores problemas surgem ainda
no Voith, onde 70% das pessoas se sentem inseguras, enquanto que no Sol Nascente e
Jardim Canaã apenas uma pessoa entre quatro se sente insegura. A incidência diferente
de insegurança no Voith sugere que as discrepâncias de opinião em relação às
entrevistas sejam, em parte, atribuíveis ao fato que não entrevistamos ninguém nesse
bairro.

Tabela 7. Percepções subjetivas em relação à segurança em algumas situações

Muito inseguro Pouco seguro Seguro Muito seguro

Durante o dia 8% 33% 50% 10%


Durante a noite 20% 40% 31% 9%
Sozinho em casa
à noite 19% 30% 41% 10%

O fator determinante na explicação do apego aos bairros parece ser a especial


qualidade das relações sociais no interior deles. Há um conhecimento direto de quase
todos os que moram nas áreas.

As relações aqui são bem melhores porque todos se conhecem. No bairro onde
eu morava, onde morei por dez anos, eu não conhecia os meus vizinhos, morei lá
dez anos e não sabia quem eram os meus vizinhos. Aqui conheço mais ou menos
214

todos, saio na rua e todos me dizem “ei cabeça branca!”, aqui conheço todos
(J.S., T2).

O primeiro da rua conhece o último da rua, então, dizer o que?, é uma cidade no
interior de São Paulo (M.S., T2).

Eu tinha menos conhecidos do que aqui. Aqui hoje, tenho mais conhecidos entre
os vizinhos, mas depende de cada vizinho (M.D.S., SN).

Eu não conhecia ninguém, aqui no entanto, conheço todos... (T., JC).

O bairro tem 35 ruas e eu conheço praticamente todos nas 35 ruas. 1.430


metros... Conheço os nomes de todos (A., JC).

Os entrevistados afirmam também que a natureza da relação é frequentemente


de amizade e de boa vizinhança, chegando a ser comparada a uma família.

Todos são amigos aqui; não é que as coisas não acontecem, mas praticamente, se
se compara com outros bairros, aqui não há brigas, porque criamos a nossa
família no bairro e você não vê isso assim num outro bairro. Os outros bairros
são diferentes deste (A., JC).

No fundo de tudo isto, havia esta amizade, e eu não conhecia ninguém aqui. E se
você chegar hoje: “você me empresta um martelo, me empresta um prego?”,
todos são amigos (P., T1).

Sempre tivemos um carro, antes antigo, depois mais novo. Era uma prioridade
porque morávamos longe, levávamos as pessoas para o hospital, muitas crianças
nasceram praticamente no nosso carro (I., coordenadora da ATST).

Na maioria dos casos, isso representa uma notável diferença em relação aos
bairros onde as pessoas viviam anteriormente. Dada a importância atribuída pelos
entrevistados às relações sociais presentes nas áreas, pode-se compreender que,
enquanto a quantidade nas relações pode ter valores pelo prisma informativo, é
sobretudo a qualidade delas – compreendida como grau de confiança e valores
compartilhados - a representar um ponto importante para os indivíduos.
Segundo Maffesoli (1984), a comunidade carrega algumas características
importantes como os laços de confiança, de compromisso, de vínculos de reciprocidade,
cooperação e solidariedade, que são capazes de estimular normas, contatos sociais e
iniciativas de pessoas para a potencialização do desenvolvimento humano. Além disso,
encontramos nas comunidades um maior instinto ou sentimento de vizinhança,
associação e cooperação íntimas, além da comunicação face a face e do controle social
espontâneo.

A comunidade não é uma simples justaposição de singularidades, situação que


consistiria em uma multiplicação de solidões e pobrezas; a comunidade é uma
entidade orgânica, uma unidade em si, (...) [onde] existe uma solidariedade
215

orgânica com objetivos e sentimentos coletivos mais visíveis (MAFFESOLI,


1984, p.14).

As relações horizontais que constituem uma comunidade contribuem para seu


fortalecimento e, consequentemente, facilitam o desenvolvimento do bem-estar da
coletividade.
Coleman (1990) ressalta a importância do apoio e da confiança da vizinhança
como fatores fundamentais para uma comunidade, fatores que são expressos no diálogo
sobre vários assuntos e nas interações durante as trocas cotidianas nos momentos de
encontro e das atividades de lazer e entretenimento.
Para D`Araújo (2003), em uma sociedade onde há apoio e confiança
interpessoal, fica mais fácil desenvolver o bem comum e a comunidade prosperar, já
que a autoestima das pessoas se eleva, assim como seu sentimento de utilidade. A partir
disso, os problemas existentes no interior de uma comunidade podem ser resolvidos via
o desenvolvimento das redes de cooperação entre os moradores desse grupo social. Essa
rede social pode ser formada porque é baseada em normas e valores informais, podendo
ser de caráter religioso, parentesco ou compadrio, onde não há a presença de um poder
centralizado. Os membros de uma rede fazem parte desse grupo em função da
identidade existente entre os participantes.
Para Putnam (1996), a confiança é um pré-requisito da cooperação horizontal.
Uma pessoa confia em outra porque tem certas expectativas sobre o modo como essa
outra pessoa vai reagir. Nesse sentido, a confiança reforça a ação coletiva e a
cooperação, porque se baseia em expectativas da continuidade de padrões de
comportamento estabelecidos e repetitivos. A confiança interpessoal é uma garantia de
que os indivíduos se comportarão de modo previsível e, em consequência, a cooperação
será incentivada.
Putnam destaca um componente que é essencial para a definição de confiança: a
reciprocidade. A confiança é essencialmente um conceito relacionado com a interação
entre sujeitos. Em comunidades onde os sujeitos acreditam que o comportamento
confiante será recompensado e que a interação contínua em um período de tempo cria
um padrão duradouro de reciprocidade, a cooperação é muito mais viável.
A participação em associações e instituições educacionais, religiosas, esportivas
e culturais também auxilia na formação de comunidade, pois reforça as relações de
solidariedade entre os membros e impõe alguns limites e normas necessários para a vida
em comunidade (PUTNAM, 1996). Além disso, estas instituições facilitam um uso
216

criativo do tempo: são lugares para que as pessoas aprendam, ensinem, troquem
experiências, se ajudem e possam ser ajudadas. São lugares, enfim, onde se pratica a
reciprocidade, se utiliza a criatividade e se aprende a confiar nos outros. A existência
desses laços sociais sinaliza a possibilidade de se organizar ações coletivas que visem à
promoção do desenvolvimento social de dada localidade.
Em suma, a dedicação à comunidade e o uso construtivo do tempo favorecem a
integração social na medida em que todos os sujeitos sociais fazem acordos em relação
aos objetivos e formas de trabalho, de maneira a consolidar redes sociais, incrementar a
associatividade e gerar a confiança, como diz o Princípio de Solidariedade. A
associação entre as pessoas cinge necessidades, interesses e vontades, é o lugar dos
debates, das iniciativas, dos acordos. Com o tempo, sua organização auxilia os homens
a serem sujeitos de seu próprio destino tornando-os mais próximos da busca de
autonomia na promoção do desenvolvimento local.
Também nos questionários a satisfação em relação ao bairro parece mais ligada
à qualidade das relações sociais do que a uma avaliação total dos serviços existentes.
Nota-se que mais da metade deles afirma ter melhorado a qualidade das relações sociais
em relação aos bairros anteriores e que três de cada quatro pessoas confiam no próprio
vizinho (o resto dos 25% se divide entre aqueles que declaram poder confiar pouco e
não poder confiar). Entretanto, mais da metade revela um aumento da confiança em
relação ao bairro anterior. É interessante notar que no bairro Voith 50% dos moradores
afirmam que a confiança nos vizinhos do assentamento melhorou - assim como no JC e
SN -, enquanto apenas 3% declaram uma degradação.
Essas relações sociais são importantes também para a procura de emprego.
Nesses bairros o desemprego representa um problema, sobretudo, entre os jovens por
causa da falta de qualificação e da péssima qualidade do ensino nas escolas públicas.
Sendo assim, a ajuda na procura de emprego é importante para muitas pessoas, até
mesmo porque as empresas preferem contratar funcionários indicados pelos próprios
empregados.
É interessante notar que a qualidade das relações sociais é também a razão
principal pela qual quase todos os entrevistados não aceitariam se mudar para outro
bairro37.
Já conhecemos todos aqui. Se você se muda para outra casa você não sabe quem
terá ao seu lado, o teu vizinho (R., JC).

37
Ver a pergunta hipotética mencionada na página 209.
217

Desde o início acompanhando tudo, conseguimos tudo junto com todos os


amigos. Sabemos que podemos contar com eles. Nos nossos momentos de
dificuldades, se eu precisar, sei que posso contar com este. Se tivesse que mudar,
não sei como seria (A.N.G., SN).

Se eu fosse para o Ceará, ninguém sabe quem sou, e eu nasci lá. Se eu morresse
aqui, todos viriam ao meu funeral (A.N.T., SN).

As outras razões para não aceitar um eventual deslocamento estão ligadas a


participação de todo desenvolvimento do bairro ou de conhecimento da estrutura da
própria moradia.
Cheguei aqui há uns onze anos, era um bairro novo, não tinha asfalto, não tinha
luz, vimos o bairro crescer, por isso eu gosto (N.A., SN).

Eu não iria, porque não vi do início. A minha casa eu garanto. Sei o que tem
embaixo, é bem feita (P.,T1).

Eu garanto a minha casa, porque vi fazer a estrutura. Vi tudo e sei que é uma
casa garantida. Eu posso morar nela cinquenta, sessenta anos, e sei que não terei
nenhum problema (J., T1).

Somente no caso do desejo de uma casa melhor se aceitaria o deslocamento. Ou


na possibilidade de voltar ao bairro onde se viveu por muito tempo.

Se fosse uma casa melhor, aceitaria. Não pensando somente em mim, mas
pensando nos meus filhos, um lugar que fosse melhor para eles (M.D.S., SN).

Eu, se tivesse os documentos, uma boa casa, e se fosse em Osasco, onde morei
por muitos anos - mais de trinta - eu aceitaria, mas somente se fosse lá, lá onde
morei, mas se fosse onde não conheço, então, é melhor aqui (R., T1).

Nos questionários somente uma pessoa entre quatro aceitaria uma eventual
oferta por parte do governo de uma casa melhor num outro bairro e 60% certamente não
aceitariam (este percentual varia de 72% a 78% no Turística e Jardim Canaã). Como se
pode esperar das discussões dos problemas dos bairros, Voith é a região em que existe
maior proporção de pessoas que gostariam de se mudar (27%), mesmo se de cada três
entrevistados, dois demonstram uma preferência por permanecer no bairro.
Igualmente ao manifestado nas entrevistas, a recusa de uma eventual mudança é
motivada, na maioria dos casos, das afirmações “gosto do bairro e/ou da casa” (60%). O
restante dos 40% se divide entre quem aponta os sacrifícios feitos, quem não acredita
numa possível proposta do governo ou quem condiciona sua própria decisão quanto ao
bairro destinado (“depende onde”). A aceitação da hipotética oferta é explicada pelas
difíceis condições dos serviços, especialmente de saúde, e pela distância (26%), dos
218

problemas de segurança (14%) ou de um desejo geral de melhorar a própria condição


(17%). Também neste caso a cota de quem responde “depende onde” é significativa
(23%).
Entretanto, a intensidade das relações entre os associados carrega consigo os
riscos de certa desconfiança ou fechamento em relação ao recém-chegado ao bairro que
não participou da experiência de sua construção. A existência deste risco é colocada nas
entrevistas:

Antes, quando tínhamos as reuniões, nos conhecíamos bastante, agora é mais


difícil (...). Eu morei numa outra região e pagava aluguel. Era assim: tinha uma
vizinha ao lado e uma na frente. A da frente ninguém conhecia. Eu entrava em
minha casa, fechava a porta e saía pela rua, e as pessoas em frente à porta, com o
nariz em pé, chegava, entrava e saía. Nem “bom dia”, nem “boa tarde”, nem
“boa noite”. Era praticamente discriminado... “Paga aluguel, deixa ele pra lá”
(J.P., SN).

Antes podíamos ficar tranquilos (A.N.G., SN).

Quer dizer, corre-se o risco de virar uma “comunidade de gueto”, como Bauman
(2001) afirma, ou seja, ou seja, a construção de uma homogeneidade dos “de dentro” e
de uma heterogeneidade dos “de fora”. Entretanto, o fato de que todos os entrevistados
– como veremos no próximo tópico 2.3 – tenham conhecido a ATST por meio do
depoimento de parentes, amigos e colegas, sugere que muitos associados tenham desejo
de trazer outras pessoas para a mesma experiência. O crescimento numérico da
Associação é um sinal evidente.

2.2. As mudanças na situação pessoal dos associados

Ao lado das mudanças nas condições de vida, foram relevantes os fatos e


experiências que indicaram uma mudança de postura dos associados a respeito da
própria situação, inclusive a empregatícia, da própria instrução e da dos filhos e a
capacidade de iniciativa para solução dos problemas nos bairros.

a) Diferente percepção do valor de si mesmo e a confiança nas próprias possibilidades

Primeiramente, surgem nas entrevistas uma percepção diferente dos valores de si


próprio e uma maior confiança nas próprias possibilidades.

Consegui construir a minha casa, uma casa bem grande hoje. De vez em quando,
coloco as mãos na cabeça e me pergunto: “Meu Deus, mas tudo isto é meu?”. E
até hoje ainda não me dou conta que aquela casa é minha. Porque sou uma
219

vencedora! Posso dizê-lo, posso bater no meu peito e dizer: “sou uma
vencedora” (V., coordenadora da ATST).

A experiência de ter conseguido realizar qualquer coisa que parecia impossível


gera, de fato, uma esperança nas pessoas, um sensação de confiança em si mesmo que
lhes permite enfrentar de modo positivo outras situações ou dificuldades que podem
aparecer no futuro.
Para nós que entramos na Associação e não tínhamos uma casa, foi gerando-se
uma esperança. Éramos pobres e não podíamos ter uma casa acabada. Gerou-se,
portanto, uma esperança. Saímos do aluguel. Não achávamos que fosse possível
e foi, portanto, pode ser assim também em outras coisas. Enfrenta-se as
dificuldades (F., JC).

Toda dificuldade, por exemplo, você consegue ter um terreno... Agora acabo de
construir a casa e deixarei o meu chefe com a cara lá embaixo, vou deixar ele e
começar outro trabalho. Gera-se esta esperança, assim (R.O.N., JC).

Pegamos o terreno, a minha vida melhorou de um modo tal que nunca teria
concebido: ter uma casa e, no mesmo espaço de tempo, fiz três: a minha, a da
minha mãe e da minha ex-mulher. E tudo isto em dois anos e meio. Se você
pedir, se você acredita nisso, você vê exemplos e traça um destino para você.
Aquilo acontece (l., JC).

Também essa experiência faz nascer o desejo de “progredir”, de conseguir ter


alguma coisa maior, mais bonita, diferente. Esse anseio em obter mais, sendo inerente
ao ser humano, se torna mais evidente na experiência de ter conseguido o que se queria.

Quero acabar de construir, desejo mais espaço e mais conforto, porque nós
moramos em dois quartos e está muito apertado. Eu só vivo me queixando, me
queixando. O que eu desejo de diferente é ter uma casa grande, com espaço, para
os meus filhos, para mim. É neste ponto que vou batendo sempre na mesma tecla,
chega uma hora em que você não suporta mais, quer mais espaço (...). Deus
promete muito e nós não conseguimos nos acostumar a coisas pequenas. Eu
particularmente não aceito, porque Deus tem muitas promessas e eu não aceito
pouca coisa (M.D.S., SN).

Eu acho que nunca somos felizes com qualquer coisa que seja. Ouço pessoas se
queixando que a casa é pequena e eu digo que a minha casa é tão grande que me
dá medo. Eu estou na sala de jantar e aí vejo um fantasma e fujo (A.N.G., SN).

Nós desejamos mais, mais, mas na Bíblia se diz assim: “não pare, segue adiante”.
Acomodar-se? Não pode acomodar. Deve progredir (A.N.T., SN).

É a manifestação da experiência elementar que constitui todas as pessoas e que


nos faz ir atrás de novas respostas, novas soluções. Há a necessidade de se completar, de
se realizar, porque o desejo humano tende ao infinito. Como dizíamos no capítulo 2,
esse desejo é a fagulha que acende o motor e faz a pessoa se mover (Cf. Giussani,
2009).
220

b) Recuperação do interesse pela própria formação e a dos filhos

Essas experiências positivas despertam um interesse em melhorar a própria


condição. É especialmente sugestivo o fato de que muitas pessoas entrevistadas ou seus
conhecidos voltaram - ou têm a intenção de voltar - a estudar.

Quando era muito jovem o meu sonho era estudar Direito, mas não tinha
dinheiro. Depois da ATST, fiz um convênio com a universidade. Pensei agora na
minha idade, o tempo de estudo, tinha já a família, filhos, e então queria algo
mais rápido, e comecei a fazer pedagogia (R.O.S., JC).

Quero fazer um curso de informática e depois um profissionalizante. Também


uma universidade: queria fazer veterinária, gosto muito desta área (A.N.G., SN).

Eu quero voltar a estudar... Quero ter mais informação para atuar no meu
comércio(...). Meu modo de pensar mudou. Quando uma porta se fecha, se abre
uma janela. Eu aprendi isso, eu mudei, as pessoas daqui mudaram. Nós somos
frágeis, mas não somos incapazes. Estamos conseguindo obter as coisas (A.N.T.,
SN).

Ou seja, dentro da experiência da ATST nasce nas pessoas uma afeição por si
próprias. Elas são capazes de retomar seu valor e sua dignidade e o desejo de
desenvolver suas capacidades e habilidades.
Também é significativo o fato de descobrirem um interesse pela educação dos
próprios filhos.
Aqui sempre sabemos o que acontece na escola. Como meu filho é jovem,
reclamava muito da escola e então fui até lá para conversar diretamente com a
direção (A.N.T., SN).

Eu sempre fui amiga da escola. Na escola de baixo. Naquela de cima me inscrevi


para participa da APM [Associação de Pais e Mestres] (C., SN).

Além disso, as mães se conscientizam de que a escola educa, mas que não
substitui o papel determinante dos pais. Assim, elas assumem a responsabilidade por
aquilo que lhe cabe.
É difícil educar, a mãe deve também educar em casa (C., SN).

Instrução é explicar sobre o que se diz, enquanto a educação, se seu filho não
tem educação, “desvia”, ou se seus pais não ensinam nada ou ninguém o educou,
o que ele vai ser? (A.N.T., SN).

c) Capacidade de iniciativa em melhorar a própria condição e a do bairro

Como vimos anteriormente, são frequentes os casos de pessoas que deixaram o


emprego para começar uma atividade empresarial nos bairros, criando em muitos casos
oportunidades de emprego também para outros moradores. Seguem alguns relatos que
colhemos:
221

Quando cheguei aqui, fui a primeira que começou um pequeno negócio. Levava
pão e leite para toda esta gente e sofri muito. Nem lembro quantas vezes eu tive
que fazer manobras com o carro para levar o pão e o leite para todos (A.N.T.,
SN).

Ele [o meu chefe] começou o seu pequeno negócio aqui dez anos atrás, começou
com uma pequena estante. Vendeu o táxi e montou o seu negócio. Havia então
pessoas que chegavam e perguntavam: “ah, vocês têm isto para vender?”, e a sua
mulher anotava tudo. “Não, não tenho isto, mas amanhã terei”. Hoje temos a
nossa loja aqui, e mais duas ou três lá em baixo (L., T2).

Faz seis meses que eu abri uma pequena loja de doces, porque a empresa não
precisava mais de mim. Entrei num processo com a empresa. Com este dinheiro
montei uma pequena loja de doces e hoje sou um trabalhador independente,
tenho um rapaz de quinze anos que me ajuda (M.S.,T2).

A maioria saiu da sua empresa, recebeu a indenização e montou um negócio seu.


Tem alguém que trabalhava como motorista e investiu num outro negócio.
Outros, metalúrgicos... (I., JC).

Encontrei a ATST em 1988. Em 1997, comecei montando uma empresa onde


trabalham atualmente onze pessoas e tenho clientes também em Salvador. Se não
fosse pela Associação, eu teria voltado a Minas Gerais, onde vivia antes de vir
para São Paulo, para trabalhar como agricultor (F., coordenador da ATST).

A primeira padaria do bairro fomos nós que abrimos. A Cleuza e o Marcos nos
ajudaram a começar, a comprar as máquinas que custavam muito caro, estavam
muito além das nossas possibilidades... S. não tinha experiência como padeiro,
era técnico de ar condicionado. Ele me disse: “Vou aprender!”. Compramos uma
sirene e a instalamos no teto da casa e no momento em que o pão quente saía do
forno, nós a fazíamos tocar, assim vinham todos para pegá-lo! Sabe, hoje nós
não estamos mais no negócio de panificadora, a padaria é alugada a uma pessoa
que aprendeu o serviço de S. Hoje o bairro é grande. Não conseguimos mais
atender as necessidades, existem outras padarias (R., coordenador da ATST).

Conversando com os moradores, impressiona o fato de que existem diversos


exemplos de pessoas capazes de tomar iniciativas para tentar resolver situações
problemáticas comuns ou pessoais, de serem protagonistas, fundamentos do Princípio
de Subsidariedade.

Eu não pensava em fazer as coisas pra ela ou pra ele, mas quando participei da
Associação, percebi que as pessoas em grupo podem realizar um sonho enorme.
Dessa experiência entendi que as pessoas precisam umas das outras, deixei o
meu egoísmo de lado. Nesse sentido, eu mudei com certeza (I., JC).

Uma indústria de limpeza de escolas públicas ofereceu 250 empregos a Marcos.


Marcos enviou 250 pessoas da Associação. Depois de três meses ela voltou
dizendo: “podem mandar outros 250, porque os seus são diferentes, até mesmo
na dinâmica de grupo que fazemos”. É uma educação participativa, de estar
junto, de ser sério, de se empenhar com a própria vida. Muitos foram
promovidos como responsáveis pela limpeza (A., coordenadora da ATST).

Nas duas colocações acima se percebe o valor de reconhecer o outro como


alguém igual a si, como diz o Princípio de Solidariedade. A partir daí se cria uma rede
222

de solidariedade e um ambiente de cooperação e ajuda mútua. A construção de vínculos


afetivos e de identidades são potencialidades dessa experiência de capacidade
organizativa da comunidade da ATST. É a partir da solidariedade que nasce a
verdadeira coesão para outras lutas e a participação ativa para melhorar de vida – por
exemplo, como citado no capítulo anterior, na luta pela solução de outros problemas que
não a moradia.
Já introduzimos no tópico anterior as iniciativas de alguns grupos de famílias
para garantir certa segurança nos bairros onde vivem. Outros exemplos compreendem a
realização de uma pesquisa, por parte dos moradores da região Turística 1, para solicitar
a instalação da rede elétrica, e a organização de uma manifestação no bairro Sol
Nascente para aumentar a frequência do serviço de transporte público. Esta
sensibilidade a respeito do bem comum é fruto da educação para uma experiência de
comunidade possibilitada pelas reuniões, e se mostra também na maior disponibilidade
de ajuda recíproca.

2.3. Os fatores de base da mudança

Vimos no tópico anterior que a participação da Associação modificou não


apenas as condições de vida de muitos associados, como também em alguns casos a
confiança em si mesmo e as suas posições diante de vários problemas. Procurou-se, no
entanto, identificar nas entrevistas e nos questionários os fatores que permitiram que os
associados alcançassem o próprio objetivo - a compra do terreno e a construção da casa
-, bem como a mudança no seu posicionamento pessoal.

a) Decisão de participação na ATST

O desconforto e a dificuldade dos entrevistados em morar de aluguel os levaram


a ficar atentos às possíveis oportunidades de ter uma casa própria, como é a proposta da
ATST. Tal oportunidade foi encontrada de diversas maneiras, mas em todos os casos se
trata de um conhecimento mediado por parentes, vizinhos, amigos ou colegas de
trabalho que participaram das reuniões ou tinham já realizado o caminho com a ATST
(viviam numa casa própria ou estavam construindo).

Foi através do meu filho, porque o meu filho entrou em primeiro. Ele morava em
Mangaló e eu morava aqui no Jaraguá. E ele chegou um dia: “mãe, eu vou para a
reunião dos Trabalhadores Sem Terra”. Eu trabalhava e chegava em casa
somente à noite. E eu disse: “o que é isso?”. E ele me explicava, me explicava...
“Entra mãe!” (M.L., T2).
223

Havia um vizinho, um amigo meu que já participava nestas reuniões e eu


comecei a frequentar naquele tempo (S., T1).

Através de uma amiga que me indicou, que comprou no Morro Doce e me disse
“vai lá” (L., SN).

Um colega me disse: “existe uma reunião assim, assim... faz muito tempo que
tem, tem muita gente que possui a casa graças a esta reunião”. Ele me explicou e
eu estava me convencendo e aconteceu (P.,T1).

Apesar das reuniões com a ATST serem realizadas por meio da relação de
confiança, em todas as entrevistas foi colocada uma perplexidade inicial a respeito da
proposta e a modalidade organizacional da ATST.

Não acreditava muito no início, tinha dúvidas. As coisas não são assim tão fáceis
(A.N.T., SN).

Fui a três reuniões, e na igreja eu disse: “Ah, esta coisa não funciona” (P., T1).

As minhas amigas diziam que era uma confusão (R., T1).

Eu disse: “irei um dia nesta reunião”. Levei junto a minha mulher. Eu disse:
“vamos ver... Sem Terra dentro de uma igreja não vai funcionar, não funciona,
mas vamos ver, porque não acredito só em palavras” (M.S,. T2).

As razões dessa perplexidade são várias. Em primeiro lugar, a falta de


conhecimento sobre a Associação, sobretudo nos primeiros anos. Depois, a fama
negativa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Eu trabalhava e quando a esposa do meu amigo chegou e me disse que iria


participar a uma reunião para comprar um terreno dizendo o nome “Sem Terra”,
eu lhe disse assim: “você é louca, jogando assim teu dinheiro? Eu não quero
entrar nisto”. Naquela época, a Associação não tinha a reputação que tem hoje,
portanto, quando se falava de “Associação Sem Terra”, se ligava a mesma às
invasões e então... (J.O., T2).

A gente não acreditava nisto, quando se dizia “Movimento Sem Terra”, na época
havia aqueles mortos, a reforma agrária, Eu briguei muito onde trabalhava (L.,
T2).

Ou também havia o medo que no final os bairros se tornassem favelas, como nos
afirmou L. do SN.
O conhecimento de experiências parecidas que são posteriormente descobertos
como golpes e a notável diferença de preço dos terrenos da ATST em relação ao
mercado eram outros dois obstáculos.

Duas moças fizeram muitos sacrifícios, compraram o terreno e não funcionou.


Não era da Associação, era outro movimento, o perderam (I., SN).
224

Sim, tem gente que pensa que aquela pessoa que é líder pegará todo o dinheiro e
desaparecerá com ele, não dará explicações, não fará aquele loteamento que
comprou, não dará nenhum benefício (P., T1).

Comecei a frequentar naquele tempo, mas sem ainda uma total confiança que
aquilo realmente aconteceria. Participei por 90 dias e depois disse: “bem, acho
impossível que uma coisa assim barata possa funcionar”. E hoje aqui na
Associação, no máximo, uma área nova, custa de R$5 mil a R$6 mil. Comparado
a R$30 mil ou R$35 mil é uma diferença muito grande. No início, a pessoa tem
medo, desconfiança, porque pensa que é impossível que uma pessoa com tão
pouco dinheiro possa comprar uma área desse tamanho e dividi-la, como aqui
que será dividida por 280 famílias (S., T1).

Além disso, os potenciais associados devem confrontar os riscos implicados na


falta de um contrato por escrito que garanta a realização do objetivo final - a casa -,
assim como a grande incerteza tanto sobre o local em que poderão construir a casa,
quanto sobre o tempo necessário para consegui-la.

No início achamos estranho [a ATST], sem contrato por escrito, sem nada, só
com “a cara e a coragem” (J.P., SN).

Eu entrei por uma porta no escuro, sem saber onde era esse lugar, não existia
esse lugar aqui onde moramos hoje (M.S., T2).

Conseguimos comprar, estávamos esperando o sorteio para saber onde era o


lugar (M.D.S, SN).

I. entende esse medo.


Se você quer ter uma casa rápido, não funciona, não dá certo. Demora de um a
dez anos! É um caminho longo: aprovação e regularização. Existem áreas que
demoram sete anos (I., coordenadora da ATST).

Mas graças aos resultados obtidos, a reputação da ATST se transformou mais


tarde num ponto de força: “Temos uma história. Quem vem pra Associação hoje não
são pessoas estranhas, mas amigos, parentes que sabem que é um caminho certo” (I.,
coordenadora da ATST).
Dado o elevado grau de incerteza e os riscos envolvidos para aderir à
Associação, é necessário que existam razões que induzam as pessoas a enfrentá-los.
Primeiramente ocorre uma determinação pelo objetivo, que nesse caso se traduz no
desejo de ter uma casa própria.

Alguém me ligou no trabalho e disse “você perdeu tudo”. Eu fiquei só com a


roupa do corpo. Isto me levou a um desespero e meu irmão voltou com os filhos
para a casa dos sogros e eu fui para o aluguel. E lá eu disse: “eu vou conseguir
ter a minha casa” (L., T2).
225

Acredito que a esperança e a fé, tudo faz parte. Se você tem fé e crê, então
realiza (I., JC).

Em seguida, quem aceita se associar deve estar disposto a sustentar todas as


incertezas e os sacrifícios implicados no caminho.

Fiquei, lutei, foi uma grande luta, muito cansativo, mas nós devemos ter força, a
garra, a fé e o sonho... Vale a pena (M.L., T2).

Não tinha dinheiro na época, tinha custos e estudava. Como eu disse, a divisão
da comida foi difícil, o filho às vezes pedia alguma coisa e eu não tinha e
pensava “meu Deus do céu”, mas depois dizia “mas vai dar certo” (M.S., T2).

Em 8 de outubro de 1990, assisti a primeira reunião da Associação dos Sem


Terra. Então o S. me disse: “escuta, espera um pouco! Temos algum dinheiro
guardado, podemos comprar um apartamento, que é mais seguro. Porque vocês
entraram nessa coisa de Sem Terra?”. Mas eu disse: “Não. Construir um bairro!
É uma coisa muito interessante” (R.,coordenador da ATST).

Enfim, é indispensável que as pessoas tenham uma atitude de abertura e


confiança em relação à proposta e aos responsáveis pela Associação.

E se não houvesse confiança não estaríamos morando, porque o dinheiro que


tínhamos para construir, para comprar o terreno, não era suficiente para comprar
em outra área residencial (S., T1).

Arriscamos sabendo que seria uma coisa que teria futuro (J.P., SN).

Nesse sentido, pode-se dizer que o sucesso da ATST e as mudanças descritas


acima foram os resultados tanto de uma auto-seleção inicial dos associados - quem não
é suficientemente determinado ou pouco disponível desiste logo depois -, quanto do
trabalho desenvolvido com eles da própria Associação.

Existem dois tipos de pobres: aqueles que são pobres e querem continuar pobres,
porque recebem tudo de graça, de certo modo, e não é um percentual baixo.
Existem outros que são pobres porque não tiveram oportunidade. A Associação
funciona para esse segundo grupo, não para primeiro (A., voluntário da ATST).

Quer dizer, mais uma vez, então, emerge a questão da valorização, por parte da
ATST, do protagonismo de seus associados, para que eles possam, com sua criatividade
e autonomia, agir para a resolução de seus problemas.
226

b) Compromisso pessoal no percurso

O caminho para alcançar o objetivo da casa própria não é absolutamente


imediato e implica em um empenho pessoal na participação das reuniões, na construção
das casas, no cansaço, luta e sacrifício, também prolongados com o tempo38.
Este é o aspecto mais comentado em todas as entrevistas. Os entrevistados
descrevem com orgulho as dificuldades que tiveram que atravessar e aguentar, ao
mesmo tempo em que esse caminho permitiu que alcançassem o objetivo e fizeram
dessa experiência uma saída. As dificuldades são de várias naturezas: econômica,
pessoal e ligadas a condições habitacionais muito desagradáveis.
Os problemas econômicos que as famílias devem enfrentar desde o início do
caminho até o início dos trabalhos de construção da casa são representados
principalmente, na fase inicial, pela necessidade de juntar o dinheiro necessário para a
compra do terreno - apesar do preço deste último ser muito baixo em relação ao preço
de mercado. Por terem de continuar a pagar o aluguel, as famílias devem designar uma
cota do salário para a economia.

É o dinheiro, você não sabe se consegue obtê-lo, manter as tuas despesas


pessoais, criar o teu filho, fundar uma família, tudo gira em volta deste dinheiro.
Não é apenas participar nas reuniões, você deve economizar para quando sair o
terreno (S., T1).

Antes de tudo, para adquirir o terreno, tivemos que comprar a área todos juntos.
O que posso dizer? Ali já foi uma baita dificuldade, porque tínhamos que tirar
um pouco do aluguel, um pouco do arroz e do feijão, um pouco da bisteca, da
carne do fim de semana para poder comprar. E depois, quando pagamos tudo
isto, continuamos tirando um pouco de cada coisa a fim de construir. Agora,
hoje, graças a Deus, a panela está cheia. Não precisamos mais pagar o aluguel,
não é? (M.S., T2).

Isto faz com que haja uma redução nos consumos do dia a dia, às vezes até bem
graves. Em alguns casos, as pessoas recorrem a empréstimos ou procuram aumentar a
renda trabalhando mais.

Tínhamos que ter o dinheiro para pagar o terreno, tínhamos que ter o dinheiro
para comprar todo o material da construção... Como naquela época o meu marido
era vivo ainda, fui então trabalhar a fim de ajudá-lo (D., T2).

A minha empresa, quando eu trabalhava na Skol, me concedeu um empréstimo


para que eu pudesse construir a minha casa. Portanto, o que eu tenho hoje devo
a eles, e devolvi, com o meu suor, como o Senhor disse (M.S., T2).

38
Através dos questionários, observa-se que 70% dos que responderam participaram do projeto e da
construção da própria casa, e mais de 14% participaram em pelo menos uma das fases.
227

No entanto, as dificuldades permanecem na devolução do empréstimo ou no


sacrifício do tempo livre necessário para as horas extras de trabalho. Surge também um
custo do endividamento em nível psicológico, por isso muitos preferem não fazer
dívidas: “Emprestar dinheiro da Caixa Econômica Federal... Acredito que seja melhor a
pessoa caminhar devagar, conseguir, do que ficar pensando, não dormir preocupado
porque tem que devolver ainda o dinheiro à Caixa” (P., T1).
Nesta fase, acrescenta-se às dificuldades de natureza econômica os sacrifícios de
natureza pessoal ligados à necessidade, para alguns, de esperar com paciência o
momento da localização ou da regularização do terreno.

Tínhamos o dinheiro, tínhamos as presenças, tínhamos a participação, mas não


havia mais espaço para a gente aqui. Tivemos paciência, esperamos, mas
tínhamos o dinheiro naquele tempo (S., T1).

Na época, a minha mulher insistiu, porque levou quatro anos para regularizar
esta área. Eu passava por aqui com o carro porque era um comerciante, passava
na frente e pensava que o meu dinheiro estava aqui e não sabia se o recuperaria
(M.S., T2).

Para outros, a dificuldade de encontrar soluções habitacionais temporárias de


emergência: “Chegamos quase a desistir porque não podíamos construir e então fomos
morar na casa de colegas que nos ajudaram, e assim conseguimos construir” (M.D.S.,
SN).
Não menos importantes são as humilhações sofridas por parte dos colegas ou
conhecidos, em função dos preconceitos existentes em relação ao MST ou às condições
iniciais dos terrenos comprados.

Quando eu dizia: “vai ter a reunião do meu movimento e eu devo ir”, os colegas
diziam: “ah, não, estão invadindo de novo, é prá lá que você vai?” Nestes quinze
anos, então, fui muito humilhada, mas eu me dizia: “conseguirei” (L., T2).

Outras pessoas diziam que nós não tínhamos um projeto, que nós éramos
favelados (M.S., T2).

“Mãe, você comprou um terreno num lugar tão feio, e agora é uma vila...”
Ninguém pensa a como era antes! (I., SN).

As dificuldades continuam ainda depois do início da construção da casa e a


consequente mudança para a mesma. Na fase intermediária, muitas vezes as famílias
devem morar por um longo tempo em espaços restritos ou não acabados, que se
tornarão depois porão ou garagem.
228

Esta casa era toda rústica, não tinha aquela parte, não tinha a parte de cima, o
nosso quarto era ali... Aqui do lado havia a cozinha, não havia cimento, não
havia nada. Mudei por causa da minha mulher, porque eu não queria mudar deste
jeito (I., JC).

Eu tive que morar durante três anos num pequeno cantinho que era a sala e a
cozinha, e quem vinha me encontrar, vinha aqui (F., JC).

Faz um ano que saímos da casa, ficamos num salão como esse, e agora faz
sessenta dias que subimos o andar de cima, onde é a casa (S., T1).

Além disso, embora haja um melhoramento econômico devido à ausência da


despesa com o aluguel, os habitantes devem destinar parte das economias à compra dos
materiais para a construção da casa39. Quando perguntamos: “qual a maior dificuldade
na construção da casa?”, todos responderam que era comprar o material de construção.

O dinheiro para poder comprar o material (R., T1).

O dinheiro para a construção (M.L., T2).

É que nós não tínhamos o financiamento do material. Ninguém aqui [o tinha],


cada um de nós construiu com o dinheiro que tinha (S., T1)

Na época em que começamos ali, eu estava pagando R$530 de aluguel, isto sem
contar a água, a luz e o IPTU no início de cada ano, porque nós moramos lá sete
anos e meio, e comprando o material e pagando a mão de obra (J., T1).

Enfim, é importante lembrar que nas fases iniciais de construção das casas, os
bairros não estão ainda dotados de infraestrutura urbana necessária e isso traz
desconfortos consideráveis para as famílias, como o de caminhar pela lama, a falta de
luz, saneamento e transporte.

Quando nos mudamos, enfrentamos muitas dificuldades, sem água, sem luz,
muita poeira, muita lama, era deserto. Foi preciso muito tempo. Estava sozinha
com meu filho, sentia falta da voz das pessoas. Não escutava e não via ninguém,
só aquele deserto no meio do mato. Nada me assustou a ponto de desistir (I.,
SN).

Sofremos muito, principalmente no início, quando estávamos começando a


primeira casinha naquela lama. Para sair de casa ou colocávamos os sapatos na
bolsa ou colocávamos muitos saquinhos nos sapatos, porque tínhamos vergonha
de pegar o ônibus com os pés cheios de lama. Quando não chovia, descíamos a
pé porque não havia transporte, não se via nada porque os carros passavam e
levantavam poeira, só poeira (M.D.S., SN).

Quando chovia, os ônibus não entravam. Uma vez um ônibus atolou na lama e
nós tínhamos que empurrá-lo (C., SN).

39
Apesar da soma necessária para esse propósito ser bastante alta em relação à despesa do aluguel, é
possível dividi-la ao longo do tempo ou utilizá-lo em caso de despesas extras ou imprevistas. “Porque a
casa você faz um pedaço e se muda” (I., coordenador da ATST).
229

Para você ter uma ideia: quando fazemos compras no supermercado, pegamos
uma sacola a mais quando está chovendo, pegamos duas para não sujar os
sapatos de lama (P., T1).

O resultado mais evidente do empenho pessoal em enfrentar estas dificuldades é


que a casa construída tem um valor especial e que as relações com as outras pessoas que
dividiram a mesma história são absolutamente diferentes do que com aquelas que não
participaram.
Sobre o nexo entre os sacrifícios feitos e o valor da casa tivemos os seguintes
relatos:
Nada do que tem aqui na Associação foi doado (...). Portanto, o nosso suor está
aqui dentro (M.S., T2).

Tem uma família que se mudou para a casa deles sem ter nenhuma porta,
nenhuma janela. É tão importante e gratificante construir para você. Você não
tem dinheiro para comprar sequer uma janela, mas você entra com aquela
confiança que ninguém pode demover (J., T1).

Às vezes olho para ela e acho que a minha casa é diferente das outras, não é
igual a qualquer outra, a minha casa é diferente... Até o teto da minha casa é
diferente. É esplêndida, esplêndida, esplêndida a minha casa (V., coordenadora
da ATST).

Há um orgulho de ter conseguido cumprir os objetivos.

E foi a luta toda, todos nós participamos desta luta, todos participaram nela,
todos juntos. Em tudo quanto se apresentava eu estava sempre aí na frente, junto
com eles, na luta (T., T2).

Foi difícil, a nossa luta foi muito grande, passamos por uma série de
dificuldades, mas hoje o meu filho também tem a sua casa (D., T2).

É difícil! Muito difícil. Conseguimos chegar até este ponto. E ficamos muito
contentes (J., T1).

Vocês precisam vir para ver o que nós construímos, quase tudo com o meu
dinheiro ganho como doméstica. (I., coordenadora da ATST).

Sobre as relações com as pessoas que compartilharam a mesma experiência, os


associados disseram:

Hoje eu não sei, não concordo com as pessoas que escrevem “Terreno à venda”.
Você vai ali, paga o que pedem, mas você não sabe de onde é que veio, a origem.
De repente, você se vê com um vizinho ignorante, um vizinho que nem consegue
te dizer pelo menos um “bom dia”. Por quê? Porque ele não andou na lama, não
sabe a origem de tudo isto (L., T2).

Esta minha aproximação com a Associação me ajudou muito, porque você vê a


experiência de um vizinho seu, que passou a mesma dificuldade e que alcançou
uma situação melhor (J. T1).
230

Essas questões aparecem também nos questionários quando se examina a


disponibilidade de mudança de um bairro: os 65% que participaram da construção da
casa própria seguramente não se mudariam, enquanto este percentual é de apenas 40%
entre aqueles que não estão envolvidos.
Novamente aqui vemos a manifestação de algumas características do Princípio
de Solidariedade. A confiança nas outras pessoas nasce de um compartilhamento das
mesmas dificuldades, reconhecendo sempre o outro como igual, e de uma companhia
que as sustenta – ter experimentado anteriormente um acompanhamento e uma
confiança nas suas capacidades por parte de outras pessoas.

c) Acompanhamento/educação

Suportar os sacrifícios citados anteriormente só foi possível por meio do


acompanhamento proporcionado pela ATST. Esta experiência começa com o caminho
das reuniões. Muitos dos entrevistados reconhecem sua utilidade em vários aspectos: de
informação e esclarecimento - visto a complexidade dos problemas -; de suportar e
manter a economia; de educação; e de uma experiência de comunidade e de criação de
confiança - graças também ao testemunho dos coordenadores. Este último aspecto é
apontado como fundamental para a conquista do objetivo.
Em primeiro lugar, essas reuniões são uteis para informar e esclarecer dados.

Sempre foi útil, eles sempre nos explicaram de modo geral todas as coisas
(M.D.S., SN).

Se não tivessem sido as reuniões, teria sido uma confusão total como numa
favela, onde cada um faz aquilo que bem entende. Se você vai às reuniões
quando compra o terreno, você já sabe aquilo que tem que fazer (J.P., SN).

Ajuda a dissolver as dúvidas sobre tudo aquilo que a gente precisa em relação à
energia, em relação ao asfalto, aos serviços sanitários básicos, quanto tempo será
necessário para fazer isso... Entende o quão importantes são estas reuniões?
Porque elas acabam com as dúvidas de todos (S., T1).

Para a autorização de elevar, construir, como é que isso deve ser feito, o
acompanhamento (P., T1).

Então, dizer o que, não deu dinheiro, mas orientou e acompanhou a todos
para que dessem os seus próprios passos. Isto foi o mais importante. O que
posso dizer, ele te orientou e acompanhou no processo da compra do terreno,
ele te orientou e acompanhou no tocante às reuniões, para conseguir uma
ajuda (L., T2).

Depois, as reuniões são úteis para chamar a atenção para a questão da


231

economia: “Na Associação, eles te explicam que você não está apenas participando,
mas que você está juntando o dinheiro para fazer uma casa” (S., T1).
A s reuniões também se preocupam com a educação dos participantes.

As reuniões que fazemos abrem um discernimento que antes as pessoas não


imaginavam: por que as pessoas sempre têm pressa. A importância da
amizade, da confiança que eles têm em nós, é uma situação interessante.
Você começa a dar atenção a sua vida, o que está fazendo de errado, de
certo, a importância das pessoas que estão ao seu lado, que acreditam em
você, pela luta que eles demonstram. O conceito da realidade mudou (T.,
estudante universitário da ATST).

A preocupação principal dessas reuniões é com a educação para comunidade.

Você aprende a viver em comunidade. Você sabe que aquilo não é apenas
teu, você não tinha nenhuma possibilidade de comprar sozinho num lugar
como este (S., T1).

Eles ensinavam não só a construir as casas, mas a participar em geral de


tudo. Cada habitante tinha que participar no que se referia a sua rua, até na
limpeza; muitas pessoas deixavam o lixo na rua (M.D.S., SN).

No início, Marcos, Cleuza, F. nos diziam: “temos que nos ajudar... Juntos
temos que realizar isto”. Começa a existir dentro de nós “tenho que ajudar a
todos”. No meu caso, comecei a mudar neste sentido. Você vê que um
trabalho coletivo é muito melhor (I., JC).

Para viver em comunidade é necessária a confiança. As reuniões são locais para


fortalecer esses laços. Em especial, enfatiza-se a importância da confiança seja para
quem orienta, seja para os demais associados.

Eu tinha confiança porque ia nas reuniões, sentia os encontros, e confiava nas


pessoas. Demonstravam confiança e eu confiava neles (A.N.G., SN).

Um dia fui na reunião, uma reunião com a senhora G., que participava também
na Igreja Católica lá e eu percebi firmeza, sabe? Eu senti que era uma coisa
segura (J.O., T2).

Porque nós vimos a confiança e a fé naquilo que se fazia no movimento. Porque


os coordenadores na nossa frente que falavam bem de Marcos e Cleuza
transmitiam segurança naquilo que eles diziam (M.S., T2).

E se ninguém depositasse confiança, ninguém teria participado nas reuniões,


porque se eu não tivesse voltado, não teria entendido que aquela aí é uma certeza
de que irá funcionar (S., T1).

Sobre o auxílio dado nas reuniões, a Associação oferece um serviço de


assistência técnica na construção da casa que é particularmente estimado pelos
associados, não só pelo fato de poder contar com uma figura profissional como
232

arquitetos e mestres de obras que jamais poderiam pagar, como também pela atenção e a
disponibilidade de tempo que esses profissionais dedicam a eles.

Se você chega na Associação a qualquer horário, para construir, para fazer uma
planta, tem aí uma pessoa que te recebe, muito bem (...). Você acaba com a tua
casa, todos que te ajudam, qualquer dúvida que você tem, você vai na
Associação e há J., o chefe dos mestres de obra, é uma pessoa de bem, você pode
chamá-lo (P., T1).

Lá na Associação, ele deixou à disposição mestres de obra, deixou à disposição


arquitetos, deixou à disposição tudo aquilo que serve realmente para construir
uma casa, e não barracos. É uma ajuda grandiosa, porque eu não teria
conseguido pagar um arquiteto (L., T2).

Nem todos aqueles que construíram tinham um pedreiro, não tinham as


condições de pagar um pedreiro. O que eles faziam no terreno? Construíam
modelos. Sabe, uma maquete? E nós estávamos lá. Naquela época, cheguei a
ficar um dia inteiro numa obra explicando ao fulano como se faz (J.O., T2).

A experiência de acompanhamento da qual estamos falando é especialmente


forte já que, como vimos anteriormente, a ATST não oferece somente ajuda esporádica
ou segmentada - como a casa e a infraestrutura do bairro -, mas também está atenta a
outras necessidades que as famílias expressam: dificuldade de pagar o plano de saúde
ou a faculdade, necessidade de assistência jurídica, analfabetismo e falta de
oportunidade de treinamento no tempo livre.

Através da Associação, conseguimos ter o convênio médico menos caro. A


Associação está ajudando muito. (...) É disto que eu gosto na Associação, tudo
aquilo que você paga, paga-se pela metade. Metade do convênio para a saúde,
mesmo aquele da universidade se paga pouco. E para muitas coisas é assim.
Tudo ajuda (A.N.T., SN).

Para quem o usa, tem a universidade, é menos caro. Tem a farmácia aí, quando
temos levamos, quando temos necessidade, pegamos (R., T1).

Outra coisa ótima, muito vantajosa, é esta parte de advocacia (J., T1).

A mais velha [filha] me deu muito trabalho com relação à escola, mas agora com
os cursos de teatro, de dança [oferecidos pelo centro comunitário], ela está se
desenvolvendo e tudo isto ocupa a sua mente (L., SN).

São pessoas humildes [Marcos e Cleuza], bem educadas, que sabem responder às
coisas que a gente pergunta (J., T1).

Os questionários evidenciam que os entrevistados puderam usufruir destes


serviços oferecidos pela ATST, ainda que de modo secundário: uma pessoa entre quatro
reconhece o auxílio obtido para o estudo; um entre sete, o serviço de saúde.
A falta de emprego também é enfrentada, por exemplo, empregando diretamente
algumas pessoas ou encaminhando a empresas ou a outras entidades.
233

Estou trabalhando há dois anos, foi através da Associação. Entrei em contato


com uma empresa de limpeza (V., JC).

A Associação me ajudou muito porque eu fui trabalhar como guarda numa área
(D., T2).

Lá dentro na área, há pessoas que nem sabiam segurar uma ferramenta e hoje são
os melhores pedreiros da área. Há uma pessoa aqui na área que hoje, Deus do
céu, está cheia de trabalho, está carregada com muito trabalho (J.O., T2).

Uma peculiaridade da ATST é a manutenção da participação dos moradores não


apenas na construção da casa, mas também durante todo o processo que levou a
conquista dos serviços nos bairros, os levando aos protestos e manifestações públicas.

Tudo aquilo que chegou para dentro do bairro foi graças à Associação em
colaboração com os habitantes. Nós tratamos de tudo quanto chegou para nós.
Conseguimos trazer a luz, a água, o esgoto, os ônibus... Com a contribuição da
prefeitura, ao falar com o governador, tudo aquilo que tem aqui não foi fácil
(M.D.S., SN).

Para tudo tivemos que nos manifestar: para ter a água, a luz, o telefone (C., SN).

Comprei o terreno e fui para a reunião; quando eles chamavam, nós íamos, era
de ônibus, com aquela alegria, aquela força, nós todos juntos (M.L., T2).

Através de uma iniciativa da Cleuza, se coletaram assinaturas para que as


empresas de transporte trouxessem os ônibus aqui dentro (J.O., T2).

Entretanto, algumas conquistas vieram de várias iniciativas de diálogo com as


instituições.

Fizemos um orçamento com três empresas para fazer o asfalto e ganhou aquela
que tinha o preço mais baixo. Foi dito às pessoas quanto era o valor, foi
dividido entre todos (...). E até este centro comunitário foi feito graças às
doações das pessoas da área (J.O., T2).

Isso fez com que os moradores não se sentissem apenas orientados e amparados
pelos responsáveis da ATST em conseguir o provimento desses serviços, mas também
que eles próprios se tornassem protagonistas da tentativa de respostas às suas
necessidades, o que permitiu também a muitos associados aprender a enfrentar e
conduzir as situações cotidianas.

Hoje, por exemplo, no pronto-socorro, sei qual o caminho que tenho de percorrer
para ser atendida, na prefeitura sei o caminho que tenho percorrer para ser
atendida. Aprendi na Associação. Aprendi na Associação quais são os meus
direitos e meus deveres, como administrar a minha conta no banco, aprendi na
Associação (R., coordenador da ATST).
234

O fato mais relevante é que os moradores se sentem acompanhados


pessoalmente pelos fundadores e coordenadores, que não ficam orientando de longe,
mas que estão presentes e se envolvem, seja nas tentativas das soluções das
problemáticas comuns, seja na resposta à necessidade de cada um, como diz o Princípio
da Dignidade Humana e mesmo o da Solidariedade. Responder sua necessidade de
maneira particular e lhe fazer companhia é colocar aquela pessoa, “com nome e
sobrenome”, no centro das ações.

A preocupação que tem com as pessoas, não é uma Associação qualquer. Se


preciso é ali que me ajudam, me apoiam. Tem informação, está me ajudando
muito (A., estudante universitária da ATST).

A amizade, o afeto, todos os coordenadores te tratam superbem, são amigos de


todos nós (C., SN).

Para construir, tínhamos que comprar a água porque não havia o que beber.
Tínhamos que providenciar caminhões para trazer água aos pedreiros porque não
havia uma rede hídrica. E a gente andava junto com a Cleuza, com o Marcos que
ficavam conosco para que não perdêssemos o ânimo. Eles ficavam sempre
conosco, realizávamos encontros, reuniões, comíamos sempre juntos. Eles nunca
nos deixaram sozinhos, ficaram sempre conosco. E hoje, quando olho para trás,
sei que, se não fosse pela companhia deles, eu não teria conseguido, não chegaria
a poder contar hoje esta história da minha vida (R., coordenador da ATST).

Ela [Cleuza] é autêntica, quando as pessoas que são genuínas se encontram... O


meu pai, da última vez que eu estive lá com ele, me disse: “Vai embora de lá!
Volta prá cá! O que você faz lá sozinha?”. Eu lhe respondi: “não estou sozinha”.
Não estou sozinha. Antes de tudo, Deus está comigo, e em segundo, Deus
colocou no meu caminho uma mulher que não sei bem quem é, não a conheço a
fundo, porque ninguém conhece ninguém a fundo, mas o que ela fez por mim...
Ela fez por mim mais do que tem feito a minha mãe. Por isto é que eu digo que
ela é genuína: ela não se desfaz das pessoas, nunca, nunca. Se ela pudesse tirar
suas roupas e dá-las a você, ela o faria. Ela é assim (V., coordenadora da ATST).

O Princípio de Solidariedade está presente, afinal, é a experiência de cada um


que está com eles, de quem se pode ter confiança e de quem se pode contar em caso de
necessidade. Os associados experimentam a gratuidade, o “olhar de amor” (cf. DCE, nº
30) do qual fala a DSI.

Marcos Zerbini, no início das nossas construções aqui, estava sempre presente
(I., JC).

Nós os víamos [o Marcos e a Cleuza] na assembleia todos os meses. Podíamos


pedir qualquer coisa (F., JC).

O Marcos e a Cleuza eram os primeiros a saírem pela porta com nós (M.L., T2).

Junto com Cleuza e Marcos que são pessoas muito guerreiras e fizeram tudo o
que se podia fazer para conseguir nos trazer melhorias. Eles enfrentam,
conversam com quem está lá. É muito bom morar num lugar com pessoas que
estão com você. Coitados de nós se não fossem eles (M.D.S,. SN).
235

Como estaríamos aqui hoje sem eles? Se não fosse por eles eu não teria uma casa
aqui em São Paulo, nem eu nem meu filho, nada (D., T2).

Quando fui morar no Sol Nascente, que não tinha luz, água, e Marcos e Cleuza
iam até lá, era para que eu não desistisse. Na época eu não entendia por que eles
vinham todos os dias para a nossa casa quando fomos morar na área (I.,
coordenadora da ATST).

É a experiência de provar um olhar diverso, de alguém que lhe ajuda a acreditar


em si mesmo e nos outros, que é interessado não apenas na sua vida, mas em um
relacionamento que permanece no tempo e que pode se tornar uma verdadeira amizade.
Esta amizade é construída por meio de uma convivência no tempo e se exprime
em um acompanhamento contínuo, às vezes em uma solicitação insistente, porém
sempre dentro de uma relação percebida como positiva para si.
Uma expressão da positividade percebida é a busca por parte das pessoas de um
diálogo com os fundadores e/ou coordenadores, não só sobre as questões “técnicas” do
bairro, mas também sobre todas as situações cotidianas que devem enfrentar.

Quando eu encontrei Cleuza, a amizade com ela se tornou um fato importante


para minha vida. Ela não era somente a fundadora da Associação, mas ajudava a
todos, perguntava como estávamos, se preocupava com o lado humano das
pessoas, é amizade mesmo (V., coordenadora da ATST).

O trabalho dos coordenadores muitas vezes é esse: escutar as pessoas, as


confusões que há nas casas, as confusões que há nos bairros, as confusões em
que se metem, os problemas dos filhos na escola. Eu vejo que em um trabalho
assim eles se sentem queridos, que nós pensamos neles. Por que eles falam? Não
precisariam. A minha resposta é que eles confiam. Eles entendem que é um lugar
que os acolhe (I., coordenadora da ATST).

d) Depoimento recíproco, tempo e fatos

A história de todos que estão com os moradores, de quem se pode ter confiança
e se pode contar é sustentada também pela companhia e testemunho recíproco dos
próprios associados.

Se não houvesse ninguém [que fosse às reuniões], ninguém poderia entender


qual é a história do movimento, ninguém poderia dizer a um amigo que aquela
coisa aí funciona, que você tem toda a convicção e a confiança naquilo que ela
trará a ti (S., T1).

Se não houvesse tanta gente, não teríamos comprado. Conheço outra pessoa que
não mora aqui, mas que mora num outro bairro da Associação e quando viram
que as coisas estavam acontecendo... (I., JC).

Chega-se ali com todos os problemas da vida, as pessoas ao teu lado nas
reuniões, todos chegam lá com os problemas aos quais estão sujeitos e você diz
236

“eu também passarei por isto”. Mas se você começa a enfrentá-los, você começa
também a encontrar respostas. É isto que é, a meu ver, interessante (T., estudante
universitário da ATST).

Quer dizer, na experiência dos associados da ATST não ocorre apenas uma
solidariedade vertical – da Associação para com seus membros -, mas também dos
associados entre si – uma solidariedade horizontal.
Outro ponto que ajuda os associados a não abandonarem o percurso é a
possibilidade de observar os resultados positivos conquistados anteriormente pela
ATST, a qualidade de vida nos bairros já concluídos.

Em 1991, participei numa reunião de uma área nova, que já tinha quase todas as
casas, e me apaixonei (P., T1).

Participei nas reuniões por muitos anos, mas eu nunca tive o dinheiro. Vim aqui
para visitar. Eu estava me apaixonando por tudo aquilo que tinha aqui (L., T2).

Visitei algumas áreas que já tinham sido abertas na época e acabaram agradando-
me. E assim eu permaneci e fiquei ali até os dias de hoje, e estou contente por
isso (J.S., T2).

Também, observa-se que, como o caminho para se comprar uma casa com a
ATST é muito longo, os associados podem verificar pessoalmente a confiabilidade de
quem dá orientação e construir uma relação de confiança com os outros associados.
Todos esses elementos são muito importantes, tanto no momento de adesão inicial,
quanto para manter as pessoas decididas a conseguir o objetivo - por exemplo, ter a casa
ou terminar a universidade -, permitindo atravessar ou superar os momentos de
dificuldade que, se enfrentados sozinhos, poderiam levá-los a desistir.

Eu não desisti porque acreditei nas palavras e no fato de ter visto que
funcionava. Você faz o que deve ser feito, baseando-se nas palavras que eles
estão te dizendo (M.S., T2).

Eu vinha todos os domingos e olhava, olhava e pensava “eu vou conseguir”,


não desisti, eu persisti (L., T2).

A importância destes fatores aparece também nos questionários: 39%


responderam que decidiram comprar uma casa com a ATST devido a uma experiência
positiva contada por amigos ou através do conhecimento dos bairros construídos
anteriormente e pela qualidade de vida que os caracteriza40. Outros 41% disseram não
ter alternativa devido aos recursos financeiros insuficientes.

40
Esses 39% se dividem em: 22%, testemunhos de amigos; 11%, “o bairro é melhor”; 3% para “melhores
relações sociais” e 3% para “quando tem um problema pode-se discutir”.
237

Contudo, é importante observar que além dos fatores mencionados


anteriormente, a decisão de continuar o caminho empreendido é garantida pelo
acontecimento dos fatos que representam as etapas intermediárias em relação à
conquista do objetivo final - por exemplo, conseguir encontrar um terreno, iniciar a
construção da casa, obter os primeiros serviços do bairro etc.

Eu acho que cada um começou desta maneira: você realiza uma etapa da casa, e
aí saiu do aluguel, é tudo rústico, e tudo aquilo com o qual você sonhou se
realizou, isto é muito bom (I., JC).

Estes fatos criam pouco a pouco a esperança de poder realizar qualquer coisa
que antes era visto como um sonho impossível.
Ou seja, todos esses fatores vistos acima implicam de fato em um envolvimento
de pessoas que se colocam em relação com os outros, que estão juntos e participam de
um trabalho comum há anos. Só uma presença estável e prolongada no tempo pode
modificar substancialmente as aspirações das pessoas, sustentar a vontade de mudança,
assegurar a criação da confiança necessária, permitir que os associados percebam uma
corresponsabilidade pelas estruturas e iniciativas criadas, e gerarem uma dinâmica
sustentável.
É claro que a parte esses fatores positivos que destacamos acima, em um
universo de milhares de associados há pessoas descontentes com a Associação. Em uma
de nossas visitas ao Sol Nascente, encontramos uma moradora que não quis gravar
entrevista, porém nos disse:

Faz tempo que eu moro aqui, mas não tenho amizade nenhuma. Nós não temos
esse contato direto. As pessoas que passam aqui é “bom dia”, “boa tarde”, “oi”,
“tudo bem. Nada mais. Acho que vizinho a gente precisa, porém, é como a gente
fala: vizinho a gente precisa, mas não aquele que fica no portão toda hora. Eu
sou muito na minha. Se precisar, eu estendo as minhas mãos, mas se a pessoa
estiver bem, é “bom dia e tchau”. Eu acho que não tem que passar disso.

Essa moradora tem uma postura desconfiada em relação aos fundadores da


ATST. ‘“Quem vê cara, não vê coração’. E o único que tem poder de saber quais são as
intenções do homem é Deus. Tudo o que você faz aqui, aqui vai pagar”.
Para Cleuza Ramos, esses casos de pessoas descontentes com o trabalho da
ATST, e que não economizam críticas quando se referem à associação, são algo que
enfrentam com tranquilidade.

Isso aqui é uma coisa que a gente vai ouvir sempre. Mas eu estou tranquila,
levanto todo dia com uma alegria muito grande no coração e dou graças a Deus
por ter este entendimento que eu não tinha antes, quando ficava enfraquecida
238

com os comentários negativos. Não falaram para Moisés: “Pô, lá nós éramos
escravo, mas nós tínhamos comida; agora a gente é livre, mas não tem comida”.
Isso eu ouvi ontem mesmo de um associado: “Eu antes pagava aluguel, mas na
minha porta tinha asfalto, tinha água, tinha luz. Eu tenho uma casa, mas não
tenho água, não tenho luz, de que me adianta isso?” Se falaram a mesma coisa
para Moisés que salvou aquele povo, imagina o que não vão falar para mim?
(Cleuza Ramos).

Marcos Zerbini também age com naturalidade diante dessa situação e cita S.
Tomás de Aquino: “Eu sempre digo: ‘Prefiro os que me criticam, porque me corrigem,
aos que me adulam, porque me corrompem’”.
Outra objeção que costuma aparecer é que a Associação está muito centrada em
Marcos e Cleuza e seu encaminhamento – em relação ao método, inclusive – dependem
deles. Sobre futuros líderes para a ATST, eles não sabem responder. Na verdade,
Marcos Zerbini não se incomoda muito com a questão, confia naquilo que está
preparado para ele e para o movimento. “A gente não têm como prever isso, vai
acontecer naturalmente. É óbvio que eu e a Cleuza não vamos estar aqui para sempre,
mas isso não me preocupa não. O futuro será positivo.”

3. Aspectos metodológicos relevantes da ATST

Neste capítulo foi apresentada a experiência da Associação dos Trabalhadores


Sem Terra de São Paulo, cujo objetivo principal é o de ajudar famílias de condições
econômicas médio-baixa a obter uma casa própria e, nos últimos anos, ajudar as pessoas
que desejam frequentar a universidade a conseguir um desconto nas mensalidades.
A experiência dessa associação é particularmente interessante, uma vez que
utiliza uma metodologia incomum e proporciona uma mudança significativa para
muitos associados, tanto na situação econômica, quanto na posição pessoal.
É interessante que embora não os cite explicitamente, notamos, por meio das
entrevistas e de nossas observações diretas, que há a presença de elementos dos
Princípios de Dignidade Humana, de Solidariedade e de Subsidiariedade na experiência
da ATST.
Cabe notar que Marcos Zerbini, fundador e líder da ATST, diz conhecer os
princípios da DSI, mas não os discute ou estuda, e a manifestação deles na obra não é
ideológico – no sentido de que deve-se aplicar rigorosamente esses princípios.

Na verdade a gente nunca discutiu o Princípio da Subsidiariedade nem o de


Solidariedade. A gente, na verdade, aplicava e aplica ainda hoje pela própria
experimentação da realidade, com o trabalho do dia a dia, com a experiência
239

cotidiana. Fomos percebendo que quando existe esses princípios, quando eles
são efetivamente aplicados, você consegue fazer as coisas acontecerem com
muito mais eficácia (Marcos Zerbini).

Marcos Zerbini conta inclusive que sua visão sobre o Estado foi mudando com o
tempo.

A gente acreditava, principalmente lá atrás, que a gente precisava ter um partido


popular no governo, um partido que nascesse do povo, nascesse do trabalhador,
porque esse partido administraria de uma forma diferente, preocupada com o
trabalhador e seus interesses, com a população mais pobre do país. E a gente
achava que o Estado resolveria os problemas. E a gente foi percebendo que não
existe como isso acontecer, que o Estado, na verdade, não pode resolver os
problemas, que o Estado pode participar da solução dos problemas, mas
efetivamente só muda a sociedade, só resolve os problemas da sociedade quando
existir participação da sociedade, participação efetiva de cada pessoa. Não é uma
missão do Estado resolver o problema de cada pessoa, é uma missão de cada
pessoa, de cada cidadão. Cada um deve participar de sua forma. Então hoje eu
vejo o Estado muito mais como um Estado subsidiário do que um Estado que
efetivamente tem que fazer a coisa acontecer. Eu acho que o Estado tem que
incentivar e facilitar as organizações sociais para que as pessoas, os cidadãos
próprios, aprendam a organizar e possam através dessa organização enfrentar os
problemas que a gente tem nessa sociedade. Eu acho que isso é muito mais
efetivo. Primeiro porque resolve estruturalmente o problema: quando cada
pessoa participa efetivamente, você começa a mexer na estrutura. E depois
porque você faz com que cada um seja muito mais cidadão, já que você participa
da solução do problema, dá proposta de respostas às necessidades – você como
cidadão, então, acaba sendo muito mais respeitado, acaba amadurecendo, se
desenvolvendo como pessoa, como ser político, como ser social, como uma
pessoa mais completa (Marcos Zerbini).

Quer dizer, esses princípios estão presentes e são manifestados como resposta às
necessidades prementes, na forma, na metodologia de fazer o trabalho, não como
ideologia, um projeto previamente desenhado ou um modelo pronto imposto do alto.
Foram a atenção àquilo que acontecia e a postura de se colocar verdadeiramente a
serviço dos outros que permitiram o aparecimento de fundamentos dos princípios da
DSI. Ou seja, são os princípios da DSI que encontraram eco na realidade da ATST.
Mas ao mesmo tempo, nos perguntamos: de onde vem essa atenção, esse olhar?
O que ajuda a razão e a liberdade de quem cuida dessa obra a agir desse modo? A nosso
ver, precisamos retomar algumas falas de Marcos Zerbini relatadas no capítulo 5, em
que ele fala que a partir dos textos de Medellín e Puebla se discutia as estruturas
opressoras, o egoísmo, as injustiças e como a solidariedade, a paz e a dignidade
deveriam ser defendidas para superar tais obstáculos. Ou ainda, quando Marcos Zerbini
relata as conclusões do Concílio Vaticano II que sempre ficaram como paradigmas, ao
falar da importância da vida comunitária e da luta pela justiça e liberdade.
240

Ou seja, essa atenção vem da pertença à Igreja Católica, da participação nos


grupos de jovens, nas pastorais, nas CEBs. É a partir disso que se inicia um trabalho
pastoral nas favelas educando as pessoas a participarem da resolução de seus próprios
problemas. Diz Cleuza Ramos: “Eu nasci católica e aprendi que eu tinha que ajudar,
porque eu como cristã tenho obrigação de te dar comida, ajudar a ter casa”.
Como vimos, Marcos chega a afirmar que o trabalho que desenvolve foi
motivado e tem relação com a Pastoral da Moradia.

Essas coisas foram pouco a pouco entrando na minha cabeça e passei a enxergar
o mundo sob essa ótica. Tudo o que fiz até hoje de alguma maneira tem relação
com esse trabalho que fazia [na Pastoral da Moradia], pelo menos foi motivado
por ele (Marcos Zerbini).

Em suma, fazer parte da Igreja os educa a olhar para seu trabalho e metodologia
de forma mais completa – e os sustenta continuamente.

Eu faço as coisas por amor e quando você faz uma coisa por amor, cada vez dá
mais prazer. Quando é por obrigação, aquilo vai te enchendo o saco. Eu aprendi
com o movimento Comunhão e Libertação a fazer a mesma coisa que eu fazia
antes, mas não por obrigação, por amor (Cleuza Ramos).

Foi uma virada o encontro com Comunhão e Libertação porque a gente fazia o
movimento [a ATST] achando que a gente tinha obrigação com as pessoas.
Obrigação, pena e dó. Hoje fazemos por amor e isso é totalmente diferente
(Marcos Zerbini).

Falta ainda desenvolvermos com mais profundidade como os princípios da DSI e


a experiência da ATST se relacionam.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. Os princípios da DSI e a ATST

Vamos verificar agora como os princípios da DSI, a nosso ver, se manifestam na


experiência da ATST.
Em relação ao Princípio da Dignidade Humana, o primeiro aspecto a ressaltar
é uma abertura para realidade, sem esquemas ideológicos pré-definidos, ou seja, uma
atenção e disponibilidade diante daquilo que acontece ou à situação das pessoas.

O movimento tem que ser uma resposta à realidade. Você tem que se deixar ser
provocado pela realidade e responder essa realidade. Sempre pôr o interesse das
pessoas que te procuram, que vêm para o movimento acima dos teus próprios
interesses ou do teu interesse político-ideológico. Porque a preocupação com o
ser humano é fundamental (Marcos Zerbini).

Um voluntário da ATST nos relatou:

Eles, quando acontece o contrário daquilo que esperam, abandonam


imediatamente a ideia original e deixam as coisas acontecerem. Eu vi isto
acontecer diante dos meus próprios olhos tantas vezes... É difícil com eles,
não existe o conceito de plano, não existe. Como não têm projetos em
relação ao futuro, daqui a seis meses, todo o estilo deles poderá ser diverso,
as reuniões serão diversas, o conteúdo das reuniões será diverso, a
frequência será diversa. Comecei a entender que naquilo de não planejar
tanto as coisas há uma virtude. A minha reação face ao imprevisto era às
vezes de raiva ou de queixa, para ela [Cleuza] é imediatamente construtiva.
Isto, a meu ver, é um exemplo de gente que não perde o sentido da realidade,
a realidade fala com eles mais do que o faz comigo. Enquanto eu, quando
acontece algo imprevisto, me queixo ou fico com raiva, eles trabalham já
com outra possibilidade! (A., voluntário da ATST).

Nota-se que quando o voluntário diz que a ATST “não tem projetos” ou “o
conceito de plano”, ele se refere que a Associação não tem uma postura fechada diante
do que acontece ou algo já pré-estabelecido que não mudaria de jeito algum, quaisquer
que fossem as circunstâncias.
Como testemunhado pelas várias mudanças de métodos na história da ATST, a
Associação não é rigorosamente ligada a certa modalidade operativa, mas tem sempre a
disponibilidade de mudar tal modalidade se as circunstâncias assim pedirem ou se uma
nova hipótese parece ser mais adequada para atingir o objetivo. Ela parte das
necessidades, dos desejos dessas pessoas e dessas famílias.
Essa abertura se vê também na disponibilidade de adaptar as regras ou a
estrutura organizacional conforme a situação de cada associado, caso seja oportuno.
242

Ocorreu, por exemplo, que por um erro de comunicação por parte da Associação, uma
estudante universitária se apresentou a uma reunião em horário errado. Visto que o erro
não era de responsabilidade da estudante, Cleuza decidiu fazer uma reunião naquele
momento somente com ela.
Essa abertura é testemunhada tanto pelos voluntários da ATST, quanto pelos
muitos associados entrevistados.

Na época em que compramos o terreno, a nossa carteirinha não havia sido


utilizada havia cinco anos, não tínhamos mais ido às reuniões, mas nós tínhamos
que comprar porque, senão, o dinheiro teria acabado. Falamos com a Cleuza
pessoalmente e ela disse: “volta para a reunião, começa de novo a participar,
marque quatro presenças na sede conosco e quatro presenças no bairro.” Foi o
que fizemos; ela veio, e fez tudo da maneira que havia dito. Ela não nos enganou
(S., moradora da área Turística 1).

Ou seja, há uma contínua abertura a pesquisar soluções flexíveis e criativas no


confronto de situações específicas, que podem modificar o projeto inicial em resposta a
novos elementos, ou mesmo procurar tentativas de soluções para problemáticas novas.
Isto pressupõe um grande espírito de observação sobre os associados e o contexto em
que vivem, uma consciência de dentro da comunidade.
Essa abertura e flexibilidade são a manifestação concreta do Princípio da
Dignidade Humana que afirma ser a pessoa o protagonista, o centro e o fim de toda
atividade social. A pessoa, nas suas relações fundamentais – família e comunidade – se
torna o centro de cada ação, a sua dignidade e seu desenvolvimento humano são a
finalidade última de cada tipo de intervenção.

Acho que o maior segredo do movimento não é nem a casa, nem a faculdade,
nem nada. É que as pessoas que estão a frente do movimento aprenderam que o
mais importante são as pessoas. A partir do momento que você valoriza as
pessoas, as outras coisas vêm. E sempre olho para S. Francisco de Assis. A
grande luta desse santo é que ele lutou durante a vida toda dele para ser igual a
todo mundo. Ele não lutou para ser diferente, para ser santo. Ele quis ser igual a
todo mundo. E quando hoje a gente quer ser igual a todo mundo, não é que quero
ser pobre igual a todo mundo, não quero ser doutor igual a todo mundo. Eu quero
ser igual, ou aproximar muito do desejo das pessoas que estão próximas de mim.
Sempre me aproximar do desejo da pessoa, daquilo que aflige, do que dá alegria.
Isso é ser igual. Não é ser igual naquilo que ela faz, naquilo que ela tem. É ser
igual a ela como pessoa, porque os mesmos desejos que o milionário tem, os
mendigos também têm: o desejo de ser feliz. É o mesmo desejo. Não é que rico
tem um desejo e pobre tem outro desejo. É o mesmo desejo de felicidade. É por
esse desejo que precisamos estar atentos com as pessoas que estão na nossa
frente (Cleuza Ramos).

Uma consequência dessa abertura é a não segmentação das intervenções da


ATST: como se pôde ver, a Associação não centralizou a própria atividade somente
243

sobre a dimensão habitacional, mas tem se ocupado de diversos aspectos que


caracterizaram a vida dos bairros (escola, postos de saúde etc.), bem como de oferecer
ajuda às famílias nos diversos âmbitos, como o desconto para o ingresso na
universidade. Isto gera um relacionamento especialmente forte entre ATST e os
associados.
De modo que cada problema é um desafio para sua superação e resolução, e não
um paralisante; cada escolha feita e cada decisão tomada (comprar terras,
autoconstrução de casas, manifestações, convênios) são em busca de uma solução que
não partiu de pensamentos pré-concebidos, mas de respostas diferentes a cada
momento, moldadas durante as reuniões.

Estou com você na sua necessidade. Não estou sendo fingida. Se o teu problema
é a orelha de abano, eu estou com você para resolver o problema da orelha.
Porque isto é importante para você. Se for comida, vamos arranjar comida.
Quem somos nós para julgar o que você precisa, não é? Em cada momento você
dá importância ao caso que você tem (Cleuza Ramos).

O ser humano é considerado em sua totalidade. É essa totalidade que constitui a


natureza humana e a busca infinita pela verdade, a justiça, a beleza e o amor, o desejo
de ser feliz, como Cleuza Ramos falava. Assim, não basta a moradia. Há outros aspectos
de carência, de necessidade, que quando levados a sério em um relacionamento
verdadeiro, são acompanhados e enfrentados. É impossível agir de maneira completa e
correta em relação aos pobres ou mesmo a qualquer um se não se encara a partir do todo
composto pelas necessidades e fatos fundamentais que constituem “os critérios
objetivos que a natureza segue para inserir o homem no modelo de perfeição universal”
(GIUSSANI, 2009, p. 27). Apenas assim veremos o desejo autêntico de atender a uma
necessidade em vez de reduzi-la a tentativas de resposta. O trabalho educativo da ATST
não se manifesta em discussões abstratas ou reivindicações políticas, mas em gestos
concretos.
Consideramos que é isso o que sempre norteou – e continua a nortear - a ATST,
porque demonstra, em primeiro lugar, uma abertura de seus líderes para futuras
situações e problemas e, em segundo lugar, demonstra uma atenção com as coisas que
acontecem.
Além disso, a ATST escolheu realizar a sua atividade com autonomia financeira
em relação às instituições - Estado, universidades, Igreja. Por isso a escolha de não
oferecer nenhum serviço de modo gratuito: além da cota mensal, os associados devem
pagar as despesas pela compra do terreno e pela construção da casa, bem como a
244

contribuição a cargo deles no caso de usufruir dos diversos convênios (plano de saúde,
desconto universitário etc.).
Este aspecto de nada ser gratuito ou doado foi enfatizado com uma nota de
orgulho por alguns associados.

Nada do que existe aqui na Associação foi doado, ninguém veio aqui pra dizer
“vocês precisam disso, dou a vocês”. Não, isso não aconteceu. Então, o nosso
suor está aqui dentro (M.S., moradora da área Turística 2).

Encontrei os pedreiros, fui seu ajudante. No “dia da laje”, eu estava atrás do


pedreiro que estava bêbado para encher a laje. I. ajudou a fazê-la, para algum dia
poder construir em cima outro andar. Entendeu? E hoje, de fato, o fiz. Tenho
uma garagem, uma sala, uma cozinha, um banheiro, três quartos em cima e uma
área de serviço. Foram precisos oito anos. Tudo eu sozinha, sem ajuda de
ninguém, com meu trabalho (V., coordenadora da ATST).

Cleuza e Marcos falam desta posição como “não paternalista”. A intenção deles
é a de ajudar as pessoas a adquirir consciência da própria responsabilidade em relação
às oportunidades que aparecem, a tomarem iniciativa no que diz respeito às próprias
necessidades, educando a uma seriedade e a um protagonismo, superando uma atitude
meramente reivindicativa e passiva. Isto implica não só em oferecer ajuda a grupos de
pessoas, mas observar o crescimento individual de cada um. Essa visão é fruto de uma
maturidade pessoal dos fundadores que reconhecem ter vivido num passado
“paternalista”.

Eu trabalhei durante dez anos na rua levando comida para os pobres, nem era um
trabalho, só levava o que comer, pois na favela fazíamos um trabalho
paternalista. Não havia nenhuma discussão, não importava se era para você, para
você ou para você. Hoje as pessoas possuem um nome e um rosto, antes não,
eram todos iguais, era “o pobre”, “o pobre”, “o pobre”. Eu desejava ajudar as
pessoas a crescerem, não anulá-las puxando-as para baixo. Se você dá esmola,
está puxando para baixo. Elas, ao contrário, precisam trabalhar no sentido de
resolver a própria vida delas (Cleuza Ramos).

Há muito trabalho, sabemos disto, que não ajuda as pessoas a crescerem. Você
ajuda as pessoas a crescerem somente se a pessoa se torna protagonista da sua
história. Se ela depende de alguém, não cresce. Nunca gostamos de um trabalho
no qual as pessoas dependem, tanto faz se dependem de nós ou de qualquer outro
(Marcos Zerbini).

Essa visão de Marcos e Cleuza é passada para os coordenadores. R. nos diz qual
a principal mensagem que quer passar para os associados – a ATST não vai dar nada
“de mão beijada”, mas se oferece para ajudar que uma iniciativa do associado, quando
quer resolver um problema qualquer, de fato se realize.

Nas reuniões, quero que entendam que não existe um problema insuperável
quando se está junto, que entendam que nós não somos capazes de resolver todos
245

os problemas deles, mas nos oferecemos a ajudá-los a encontrar as soluções


(R.,coordenador da ATST).

O governo constrói casa, dá um salário, uma ajuda em dinheiro para a pessoa, dá


uma casa melhor e não existe desenvolvimento, porque a pessoa depois vende
aquilo e não cresce. Muito dinheiro já foi investido no desenvolvimento e não
funciona. Porque o desenvolvimento social, para mim, passa pela pessoa. Se
você não muda, cai por terra. Se está caído no chão e eu te deixo aqui, eu vou
embora e você cai de novo. Quando te ensino a levantar, você vai permanecer
em pé... Deve-se ensinar a pessoa necessitada um caminho para a vida dela
(Cleuza Ramos).

É como diz Bento XVI: “Nas intervenções em prol do desenvolvimento, há que


salvaguardar o princípio da centralidade da pessoa humana, que é o sujeito que
primariamente deve assumir o dever do desenvolvimento (...). [Além disso] Os
programas de desenvolvimento devem ser flexíveis; e as pessoas beneficiárias deveriam
estar envolvidas diretamente na sua delineação e tornarem-se protagonistas da sua
atuação” (CV, nº 47). É o que efetivamente acontece na ATST.
A escolha de pedir um compromisso por parte das pessoas para obterem bens e
serviços de que tenham necessidade demonstrou-se, no decorrer do tempo, mais eficaz
em relação à oferta gratuita dos mesmos. Um exemplo é o que ocorreu no
gerenciamento dos convênios com as universidades. Dada a quantidade de estudantes
envolvidos, os convênios permitiriam conceder um desconto integral das mensalidades
universitárias aos jovens mais necessitados. A Associação tentou percorrer este
caminho, mas sem sucesso: todos os jovens que puderam usufruir do acesso gratuito à
universidade abandonaram os estudos logo depois. Tal falha, segundo Marcos Zerbini,
foi devido ao fato de que a possibilidade de frequentar os cursos gratuitamente tira a
responsabilidade dos estudantes a respeito do objetivo final.
Há outro ponto importante relacionado ao Princípio da Dignidade Humana: a
decisão de não condicionar o acesso à ATST por qualquer documentação formal
relacionada à renda ou patrimônio, mas de fundamentar todo o percurso sobre uma
decisão livre de cada associado e sobre a disponibilidade de encarar o empenho
necessário. Afinal, nem sempre a adesão a essa experiência é imediata. A proposta da
ATST gera facilmente uma desconfiança inicial devido à fama do MST, ao
conhecimento de experiências aparentemente iguais que se revelam posteriormente uma
fraude, à diferença de preço dos terrenos encontrados na Associação e no mercado, à
falta de um contrato escrito que garanta o objetivo final e à incerteza do lugar onde
poderá construir sua casa ou mesmo quanto tempo vai demorar para tê-la. Ao mesmo
tempo, cabe notar que o que permite superar essa desconfiança inicial e que, por sua
246

vez, ajuda a estabelecer os laços de confiança, são alguns elementos da própria DSI que
estão presentes no interior da própria experiência da Associação e que, a nosso ver, são
importantes para o desenvolvimento de qualquer experiência social.
Na ATST não há sorteio ou indicação de quem ser beneficiado – como acontece
em programas de moradias estatais. Depende apenas da capacidade de uma família
poupar seu dinheiro e da negociação por terras por parte da Associação. De modo que a
família é chamada a participar desde o início, pela economia de recursos. Nesse caso, a
família obterá sua moradia não por fruto do acaso e da sorte de ter adquirido
determinada moradia em determinada região, mas será parte de um processo desde que
se torna associada.
Outro ponto interessante é que cada família pode decidir com um arquiteto um
projeto particular da casa, de acordo com suas necessidades e desejos, levando-se em
conta, portanto, toda a dignidade daquela família que pode expressar um pouco de si, da
sua particularidade, na sua casa. Afinal, o importante não é só “ter” a casa, mas a
possibilidade de a família expressar nela o ser, escolher “vestir a roupa que quiser”. Sua
casa já não é igual das outras. Nesse sentido, na ATST as pessoas se reconhecem no
início em igualdade de condições (sem a casa própria), mas sem, em momento algum,
excluir a diferença e a diversidade.
Essa experiência permite uma confiança na própria possibilidade. As pessoas
percebem uma oportunidade nova para a própria vida e um olhar diferente que os faz
descobrir o próprio valor – uma afeição a si.
Nota-se que estes elementos de novidade e protagonismo, estando
indiscutivelmente presentes, não são nem automáticos nem gerais.
Quanto ao Princípio de Solidariedade, um dos fatores principais que
caracteriza o modo de trabalhar da ATST é a atenção à esfera educativa, isto é, ao
crescimento da pessoa e da comunidade. Tal atenção é documentada, antes de qualquer
coisa, pela importância atribuída à participação nas reuniões, que são fundamentais não
apenas para gerenciar os aspectos técnicos da compra dos terrenos e as problemáticas
envolvidas, mas, sobretudo, para o trabalho educativo que se desempenha: se chama
atenção sobre a responsabilidade individual, se favorece o crescimento das relações de
confiança e ajuda entre os associados, as pessoas são auxiliadas a refletirem sobre
atitudes pessoais e problemas da atualidade que interferem na vida das famílias, também
através de um depoimento recíproco.
247

Eu não quero fazer casa. Eu quero fazer comunidade. A comunidade é mais


importante que a casa. Estamos discutindo aqui a vida. A vida. Sua vida, você
como pessoa, como gente, o que você pensa, é isto que eu quero discutir. Falar
de amor ao próximo, de perseverança, da importância da participação, da
importância de formar uma comunidade, de formar pessoas. Senão, eu abro uma
imobiliária popular. Com a experiência que tenho hoje ficaria milionária.
(Cleuza Ramos).

Não estamos aqui para dar um desconto na universidade ou comprar um terreno


mais barato, estamos aqui para conversar com as pessoas que querem levar a
sério a própria vida (I., coordenadora da ATST).

O diretor da Uníbero confirma:

Com muita alegria encontrei uma Associação preocupada com as questões


sociais, não apenas com as casas, mas educacional. Não conheço o trabalho da
Associação na questão das casas, mas para os jovens é seguramente forte (P.R.,
diretor da Uníbero).

A educação como experiência comunitária foi objeto de especial atenção por


parte dos fundadores, já que as experiências iniciais mostravam que só a participação
nas reuniões e o compartilhar das necessidades “técnicas” não eram suficientes para
gerar boas relações: acabado o problema, retornava a estranheza. Por isso, foi decidido
fazer um trabalho educativo mais aprofundado durante as reuniões.

O meu desejo principal sempre foi o de construir uma comunidade. Na época em


que conheci A., estávamos muito cansados porque não havíamos conseguido
construir a comunidade, havia conflitos. Os muros se erguiam bem alto porque
ninguém queria ver a face do vizinho. Comecei a perceber que era um processo
muito mais difícil do que aquele que havia imaginado. Eu pensava que pelo fato
de construir uma casa vizinha, a mesma dor podia unir as pessoas, mas ao invés
disso desunia. Eu estava errada (Cleuza Ramos).

Bauman (1999), analisando a modernidade e a pós-modernidade, faz uma


distinção entre tolerância e solidariedade.

A tolerância como “mera tolerância” é moribunda; só pode sobreviver sob a


forma de solidariedade. Simplesmente não basta ficar satisfeito com o fato da
diferença de outro não limitar ou ameaçar a nossa – uma vez que algumas
diferenças, de alguns outros, voltam-se evidentemente para constranger e
prejudicar. A sobrevivência no mundo da contingência e diversidade só é
possível se cada diferença reconhece outra diferença como condição necessária
da sua própria preservação. A solidariedade, ao contrário da tolerância, que é sua
versão mais fraca, significa disposição para lutar; e entrar na luta em prol da
diferença alheia, não da própria. A tolerância é egocêntrica e contemplativa; a
solidariedade é socialmente orientada e militante (p. 271).

Um voluntário da ATST é enfático:


248

É um movimento de ascendência educativa. No sentido de que eles “aproveitam”


[o entrevistado faz o gesto de aspas com as mãos] das necessidades para
responder juntos através de um processo educativo do povo. O conceito é de uma
educação voltada a um pertencimento. É muito forte aquilo de educar um povo
para o sentimento de pertencimento. Pertencimento no sentido de relações de
confiança. Eles são assim: “você me disse que aquilo é verdadeiro e por isso eu
morro: por ter a certeza daquilo que você me disse” (A., voluntário da ATST).

O fruto mais evidente dessa experiência comunitária é uma particular qualidade


das relações sociais no interior dos bairros da ATST. Além de um conhecimento direto
de quase todos os moradores, é frequente a ocorrência de amizades verdadeiras, muitas
vezes comparada aos laços familiares. Esse tipo de ligação não é automático, mas sim
gerado tanto na repartição do loteamento e da experiência de ajuda recíproca, quanto no
trabalho educativo proposto pela Associação no percurso das reuniões.

A comunidade é mais importante que a casa. Porque a casa, você mora, fica
preocupado, porque você vai sair, não sabe se volta, como fica sua família. Se
você mora em um bairro bom e seguro, você fica tranquilo. O bairro é onde as
pessoas têm que se gostar, ser vizinho, porque o parente mais próximo que a
gente tem é o vizinho. Porque uma hora que você tem uma dificuldade na vida,
um acidente, uma doença, você corre para o vizinho. Se você não tem um bom
relacionamento, é difícil. Primeiro a gente tem que construir a comunidade, para
depois construir o bairro. Eu podia só construir o bairro e pronto. Mas isso não é
humano, não é cristão, não traz a satisfação que me traz hoje. Há realmente
bairros com muita dificuldade, mas que é muito mais digno, muito mais humano
do que qualquer outro bairro (Cleuza Ramos).

A preocupação em “construir comunidade”, ou os chamados de atenção feitos


constantemente nas reuniões para a “luta que continua”, que não termina na casa,
possibilita nas áreas da ATST que os Centros Comunitários sejam ricos em atividade e
as praças e quadras sejam realmente locais de encontros, como pudemos observar nas
visitas que fizemos. E é a partir desses encontros que nasce a coesão para outras lutas,
como no caso para a instalação das escolas, ou a criatividade para fazer parcerias com
outros grupos da sociedade ou com o poder público.
Esse cuidado com a comunidade não é, porém, em detrimento da atenção
individual: o foco de interesse dos fundadores é sempre o crescimento de cada pessoa.
Ou seja, tenta-se educar para uma vizinhança afetiva, que permite partir do desejo
expresso da pessoa específica, dilatando-o em direção ao crescimento individual e
mesmo social. Aqui há um ponto de intersecção entre o Princípio da Dignidade Humana
e o Princípio da Solidariedade.
Cleuza nos conta uma história interessante que ilustra bem isso e aconteceu no
movimento dos Sem Faculdade:
249

Uma vez fui para a Uninove, onde há tantos estudantes da Associação, e falei
com o diretor, porque um destes rapazes tinha um problema. O diretor então me
respondeu: “Mas quem é este rapaz que a deixa tão preocupada? A senhora tem
15 mil estudantes, por que se preocupa justamente com este? É seu filho? Um
parente seu?” Eu respondi: “eu não tenho 15 mil estudantes. Cada um deles é
uma pessoa com um rosto, um nome e uma história. E eu me preocupo com cada
um deles” (Cleuza Ramos).

Outros aspectos a serem enfatizados são o envolvimento total e pessoal dos


fundadores no caminho de cada associado, e a continuação do empenho deles. Os
fundadores e os coordenadores, na verdade, não ficam distantes e indiferentes, mas
estão presentes e sugerem tanto tentativas da solução das problemáticas gerais, quanto
na resposta à necessidade de cada um.
A Associação oferece uma experiência de acompanhamento por meio da qual
possibilita às pessoas a superação de vários sacrifícios. os fundadores e coordenadores
estão disponíveis a se relacionarem pessoalmente com os associados, acompanhando-os
com discrição e lealdade por meio do diálogo, da escuta e mesmo nos momentos de
convivência nos centros comunitários. Os principais fatores que a caracterizam são: o
percurso das reuniões; a recuperação do terreno e as tratativas com os proprietários e as
instituições públicas; o serviço de assistência técnica na construção da casa; a oferta de
ajuda em outras áreas (estudo, saúde, assistência jurídica, etc.); o acompanhamento
pessoal por parte dos fundadores e dos coordenadores, que não ficam distantes ou
estranhos, mas estão presentes e se dedicam seja nas tentativas de solução dos
problemas comuns, seja na resposta à necessidade de cada um. Todas são etapas
intermediárias importantes, que alimentam pouco a pouco a esperança de alimentar a
própria condição de vida e atingir o objetivo final que parecia um sonho distante.
A progressiva realização de qualquer coisa que parecia impossível gera nos
associados uma percepção diferente das próprias possibilidades, o que faz ser capaz de
procurar oportunidades para melhorar a sua condição e a do bairro no qual vivem. Isso
se expressa, por exemplo, na procura de um novo trabalho – como as várias iniciativas
empreendedoras que observamos nas áreas -, na volta aos estudos, na capacidade de
empreender iniciativas para resolver os problemas dos bairros ou para desenvolver
atividades nos Centros Comunitários.
É a experiência de cada um que está com eles, em quem podem confiar e com
quem podem contar. Não houve pessoas entrevistadas que descreveram sua mudança
sem identificar um encontro com uma pessoa particular.
250

O processo educativo é que eles estão sempre juntos do povo, eles estão juntos.
Essa é a educação, é dizer: “eu estou com você”, esse é o grande processo
educacional. O que aconteceu em janeiro [de 2011], por exemplo, de a
universidade ter aumentado a mensalidade em 10%. O que fizemos? Fomos em
frente da universidade e levantamos barracas. Marcos e Cleuza com todos os
coordenadores, todos nós fomos lá. Impressionavam os jovens: “Como? Eles que
são os dirigentes, não é preciso... Como é que eles vão dormir ali, passar a noite
protestando na frente da universidade?” Todas aquelas pessoas, sejam das casas
ou estudantes, têm uma certeza em comum e sobre isso sou testemunha em dez
anos que estou com eles: que nós podemos contar 100% com Marcos e Cleuza,
porque eles estarão sempre com a gente (A., voluntário da ATST).

Não existem limites para ir até lá, conversar com eles, organizar da minha parte
os auxílios quanto posso, até o fim, para que possam ter estes benefícios. Dia e
noite, com chuva... eu vou (I., coordenadora da ATST).

Ver ou escutar pessoas, amigos ou vizinhos que, a partir de situações


semelhantes a delas próprias conseguiram melhorar sua situação, obtiveram resultados,
representa um estímulo para ser seguido como exemplo. Além do mais, o testemunho
recíproco é importante não apenas para os associados, mas também para quem trabalha
na Associação, afinal, ter uma resposta da mudança que seu trabalho pode significar na
vida dessas pessoas representa inegavelmente um estimulo a continuá-lo.
Isso se liga a uma questão interessante levantada por Bento XVI: “A
competência profissional é a primeira e fundamental necessidade, mas por si só não
basta. É que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correto: tem necessidade de humanidade, precisam da
atenção do coração” (DCE, nº 31).

O desenvolvimento é ensinar a pessoa a olhar para si, a se querer bem, a olhar a


sua beleza. É apenas uma companhia - não é o dinheiro -, é só a companhia que
pode ajudar o outro a transformar-se. Até quando você não se transformar como
pessoa não chegará nem haverá desenvolvimento econômico. Antes de qualquer
coisa, o desenvolvimento é da pessoa. Se você quer ajudar qualquer um, antes
deve ajudá-lo a olhar-se como pessoa. Depois posso ajudá-lo a encontrar uma
casa (Cleuza Ramos).

Quer dizer, é fazer com, não somente fazer para. O projeto não deve ser
assistencialista, mas avançar junto com as pessoas, partindo do relacionamento com
elas, construindo e amadurecendo os passos com elas. A liberdade da pessoa é, portanto,
ponto de partida de cada ação – e aqui temos um ponto de intersecção, do Princípio de
Solidariedade com o de Subsidiariedade.
Cleuza, por exemplo, dedica duas horas do seu tempo a cada quinze dias para
comparecer na entrada dos estudantes nas universidades nos cursos noturnos.
251

Eu venho aqui duas vezes por semana e fico algumas horas para que os jovens
que entram possam ver um rosto amigo e ter alguém com quem falar sobre seus
problemas (Cleuza).

Os associados têm a oportunidade de terem voz, reconhecimento. Esta atitude da


“dedicação pessoal amorosa” (cf. Cap. 3 e DCE, nº 30) sustentou a confiança de uma
grande parte dos associados e permitiu que a experiência da ATST persistisse no tempo.
Já sobre o Princípio de Subsidiariedade pudemos verificar, em primeiro lugar,
que a experiência da Associação é caracterizada por ser bastante propositiva. Na DSI, o
ator principal é justamente a sociedade civil, e a subsidiariedade se aplica quando tudo o
que pode ser resolvido a nível local, comunitário, municipal, não precisa do Estado
federal ou regional. Assim, por exemplo, a Associação organiza as famílias para a
compra do lote e construção das casas – sem depender de recursos públicos – e faz
parcerias em várias áreas com outros grupos da sociedade para realizar seu projeto; o
Estado, através de convênios, instala a infraestrutura e a ajuda para construção de uma
casa bem feita.
Se coubesse à Associação instalar a infraestrutura, demoraria muito tempo para
arrecadar o dinheiro necessário, além de o preço do lote encarecer, tornando-se inviável
para famílias de baixa renda. A colocação de Marcos Zerbini expressa bem: “Nós
queremos ajudar a resolver o problema de habitação em São Paulo. Nós nos
comprometemos em organizar as famílias, comprar terra e dividir entre as famílias pra
que cada uma tenha o seu lote. O governo entra com água, luz, esgoto, aquilo que
depende do Estado”. É a manifestação do Princípio de Subsidiariedade.
Afinal, um movimento social deve arcar com suas responsabilidades tanto no
reivindicar quanto ao fazer parcerias. Não deve somente jogar a culpa no poder público,
ou reivindicar sem quaisquer propostas para determinada situação. De modo que faça
parcerias com a administração pública, primeiro realizando tudo o que for capaz
sozinho, deixando ao Estado a responsabilidade de fazer somente aquilo que o
movimento social não conseguiria com suas próprias ações — por ser muito caro,
demorado ou ineficaz, como diz o Princípio de Subsidiariedade. Isso garante à
administração pública e à sociedade que os movimentos sociais não se transformem em
parasitas, mas sejam atuantes de fato. Se há um grupo ou comunidade organizada, por
exemplo, que quer fazer um mutirão ou uma autoconstrução organizada e reúne
condições para isso, deve fazê-lo. O papel dos órgãos públicos é fiscalizar, aprovar, dar
252

incentivos, acompanhar e dar assistência técnica – por meio de parcerias (já que a
maioria das pessoas não tem conhecimento técnico) - a esses grupos.
Ao poder público, cabe ver a capacidade de os movimentos gerarem o novo. Os
movimentos são o lume indicativo para a solução de problemas, porque ao vivenciarem
uma situação eles apresentam modos alternativos de solução. E o Estado precisa dessa
capacidade de previsão, de criação. Ele necessita de atores competentes e criativos,
inovadores. E os movimentos sociais são o espaço, por excelência, da inovação, da
criatividade.
Na experiência da ATST cada pessoa, cada comunidade, cada bairro representa
uma riqueza e tem características e necessidades próprias. Particularizar os problemas
tende a valorizar e reforçar aquilo que as pessoas já construíram no local, as suas
histórias, as relações existentes, isto é, o tecido social e o estar juntos na experiência que
constituem suas características específicas. Individualizar as necessidades e os recursos
para responder a cada situação coloca em jogo a consolidação e o reforço da
comunidade. Afinal, o fato de uma comunidade ser pobre, ter dificuldades e necessitar
de ajuda não significa que os outros – administração pública – tenham o direito de
decidir quais são os seus interesses.
Para os fundadores da ATST – e onde a DSI encontra eco – todos são
responsáveis pelo seu destino, todos devem ter liberdade de agir para a resolução de
seus problemas.
Assim, a situação de moradia de muitos associados é melhorada, seja pelo
tamanho, seja pela qualidade da moradia. Um fator particularmente evidente é a
satisfação relativa à aquisição da casa própria e ao fato de ter conseguido comprá-la
graças a um empenho pessoal. Essa satisfação parece estar ligada, sobretudo, a um
elemento de orgulho pessoal, dificilmente encontrado quando a casa é provida sem o
protagonismo da pessoa.
Isto graças também a uma participação ativa por parte dos associados. Todavia,
há de se reconhecer que a ATST enfrenta alguma dificuldade. No que pudemos observar
e colher nas respostas dos questionários, se antes de obter o terreno os associados
participam das reuniões – pois também é pré-condição para poderem comprá-lo – ,
depois de o bairro ter se estruturado com certa infraestrutura, a participação cai
drasticamente. Poucas famílias continuam frequentando as discussões sobre as questões
do bairro. Na verdade, essa participação das famílias só aumenta novamente quando há
um problema pontual reconhecido por todos e que deve ser enfrentado logo. Esse é o
253

maior desafio da Associação. São as “comunidades-cabide” de Bauman (2001), que


falávamos no Capítulo 3.

Este é o ponto mais difícil das coisas. Muitas pessoas não têm conscientização, a
gente fala que o mais importante é a comunidade, que elas têm que se organizar
com alguém, que elas tem que ter essa visão do coletivo, isso é um trabalho. E
para que depois que ela vai para a casa dela, que ela não caia num comodismo.
Então, às vezes, as pessoas dizem para nós que a gente vive uma utopia, que a
gente vive fora da realidade. Na realidade, é que a nossa tendência é o
comodismo: eu já faço muito de cuidar da minha vida, que está cheia de
problema (...). Mas no fim, meu destino seria estar com o umbigo no fogão
agora, cozinhando para o meu marido, para as minhas duas filhas e vou assistir o
Faustão de noite. Olha que tédio (Cleuza Ramos).

De toda forma, a ATST enfrenta a batalha: os associados são convidados


constantemente a se empenhar pessoalmente na participação das reuniões e no
enfrentamento das dificuldades econômicas e de outra natureza que o caminho requer.
Os moradores que participam ativamente das iniciativas necessárias para a obtenção dos
serviços nos bairros - diálogo com as instituições também através de manifestações
públicas e protestos, e a construção de serviços comunitários - não só se sentem
orientados e amparados pelos responsáveis da ATST, como também se tornam
protagonistas na tentativa de solução as suas necessidades. As pessoas aprendem a
tomar as iniciativas para tentar resolver situações de problemas comuns ou pessoais.

Esta obra não é uma obra da Associação, esta obra é resultado da luta dessa
counidade, não é o governo que está nos dando, fomos nós que conquistamos, é
uma obra que nós lutamos durante toda a vida e finalmente estamos conseguindo
(R., coordenador da ATST).

Em suma, a ATST ajuda as pessoas de baixa renda a serem os protagonistas de


seus próprios destinos. Em geral, os pobres não são “desocupados” nem “preguiçosos”,
mas pessoas que simplesmente perderam a esperança. Portanto, a luta contra a pobreza
não será vencida de cima: é preciso ajudar cada indivíduo a se tornar livre e
responsável, o protagonista de possíveis mudanças em seu próprio destino. Essa
perspectiva liberta qualquer um, seja ele rico ou pobre. Na concepção da ATST, o
verdadeiro pobre não é aquele que não tem casa: é a pessoa que não consegue alterar
sua condição porque é incapaz de agir. Por meio das atividades e reuniões da ATST,
porém, até as pessoas mais necessitadas são encorajadas a julgar suas próprias
condições e sua realidade como um todo a partir de uma nova perspectiva. Elas
aprendem a não esperar apenas pela assistência social do Estado.
254

De toda forma, vale reforçar que estes elementos supracitados de novidade e


protagonismo, embora estejam presentes, não são automáticos. A ATST sempre procura
unir a ajuda para a obtenção desses bens ou serviços a um trabalho educativo. E isso
eles aprenderam com a Igreja Católica, seja pela participação na Pastoral da Moradia,
nas CEBs – discutindo os documentos de Medellín e Puebla - seja no movimento
Comunhão e Libertação.
Apesar de a análise ter sido concentrada no movimento de moradia, muitos
desses elementos evidenciados podem ser encontrados também na experiência de quem
participa do movimento dos Sem Faculdade. Particularmente, os adeptos desse
movimento também fazem parte de uma faixa econômica médio-baixa e não teriam
possibilidade de frequentar os cursos nem na universidade pública, nem na privada.
Ademais, também nesse caso o conhecimento da possibilidade de usufruir do
desconto chega aos associados por meio do depoimento de parentes e amigos. O fator
principal que diferencia a experiência dos universitários do que foi visto acima é a
ausência de riscos implicados na decisão de adesão. A adesão requer, sobretudo, um
compromisso temporal para participar das reuniões. A verdade é que, como eles devem
pagar parte das mensalidades da universidade e, muito frequentemente, conciliar o
estudo com o trabalho, a decisão de iniciar um curso demanda tanto certa determinação
pelo objetivo, quanto uma disponibilidade de enfrentar a dificuldade e os sacrifícios
necessários. Nesse caso, também está presente o processo de auto-seleção inicial das
pessoas que aderem à proposta da ATST.
No que diz respeito à experiência do percurso, os fatos principais são
representados pela superação dos exames e dos sacrifícios exigidos, que estão ligados
ao fato de ter que frequentar cursos noturnos em locais muito distantes da residência,
com uma redução tanto do tempo livre quanto do tempo para descanso. Esses
empecilhos podem levar ao abandono dos estudos. Para que isso não ocorra, é
fundamental a experiência de acompanhamento oferecida pela Associação através das
reuniões e o relacionamento com os fundadores, bem como o testemunho de outros
associados. Tudo isso fica claro quando, frente à possibilidade de usufruir do desconto
sem participar das reuniões, eles escolhem livremente continuar o percurso,
reconhecendo que sozinhos não teriam conseguido atingir seus objetivos. Também
nesse caso, entretanto, a experiência de acompanhamento, aliado à relação pessoal com
os fundadores, alimenta a confiança e a determinação das pessoas.
255

Fruto imediato é, para os universitários, uma melhoria da própria condição


econômica: a inscrição nos curso permite a obtenção rápida de um trabalho melhor e
também a possibilidade futura de melhoria, uma vez adquirido o diploma universitário.
Similarmente ao que foi visto no movimento de habitação, a realização de alguma coisa
que se era visto como impossível, gera uma percepção diversa da própria capacidade,
colocando os universitários como sujeitos potenciais diferentes no próprio contexto.
Este último aspecto poderá ser visto somente daqui a alguns anos, visto que o
movimento dos Sem Faculdade é uma realidade muito recente.

2. Últimas considerações

No decorrer do trabalho procuramos estudar os princípios fundamentais e


permanentes da DSI: os princípios da Dignidade Humana, da Solidariedade e da
Subsidiariedade. Buscamos compreender como esses princípios se desenvolveram,
entender suas bases filosóficas e sociais, ver como aparecem nas diferentes encíclicas e
documentos oficiais, como se inter-relacionam e como se manifestam socialmente nos
dias de hoje, por meio da obra da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São
Paulo.
Começamos por apresentar a DSI: o que é, suas características, sua natureza, sua
relação com as ciências humanas, além de mapear os principiais assuntos abordados de
cada encíclica. Reconhecemos também a importância que os documentos de Medellín e
Puebla tiveram particularmente para a América Latina e a influência exercida sobre
vários movimentos de habitação, em especial, a ATST. Mesmo não sendo nosso
enfoque principal, reconhecemos os conflitos e discussões existentes dentro da Igreja
Católica na discussão e elaboração dos documentos latino-americanos.
Passamos, então, a estudar os princípios que constituem a espinha dorsal da DSI.
Do Princípio de Dignidade Humana, procuramos entender qual é a concepção de pessoa
da antropologia cristã, em que se apoia a ideia de dignidade humana e por que todas as
pessoas têm dignidade. Vimos que a pessoa, para o catolicismo, é um ser em conjunção
de corpo e espírito e que seu valor está justamente na dimensão espiritual: a pessoa é
única e irrepetível. A pessoa possui razão e liberdade. Quer dizer, a capacidade de
compreender as coisas e de identificar o que é verdadeiro, justo e bom, além da
capacidade de discernir o que é melhor para si, mesmo que muitas vezes se deixe levar
pelo erro e pelo egoísmo. Porém, é capaz ao mesmo tempo de não se deixar determinar
256

pelos limites. A promoção do bem integral do ser humano inclui suas dimensões
emocionais, psíquicas e espirituais.
Depois, vimos que é desse reconhecimento da pessoa que se apoia a dignidade
humana e derivam os direitos e deveres humanos, universais, invioláveis e inalienáveis.
O outro é um outro eu, que não deve ser mero objeto ou mercadoria na mão de outros.
No que diz respeito ao Princípio de Solidariedade, observamos que ele parte da
intrínseca sociabilidade humana – o ser humano precisa dos outros para viver – e pode
se tornar uma virtude moral. A despeito da violência, do individualismo e egoísmo
exacerbados, o ser humano é capaz de ser altruísta e também de não ficar apenas nas
atitudes pontuais ou em um sentimento de compaixão vago, mas ter um compromisso
permanente de ser solidário. Além disso, vimos que a solidariedade, para a DSI, é uma
responsabilidade de todos para com todos, defendendo o protagonismo também dos
mais necessitados, para que eles sejam autossuficientes. Uma atitude verdadeiramente
solidária é, além de fazer por, fazer com aquele que precisa. Decorre, então, que a
solidariedade seja exercida por meio de uma cidadania ativa e responsável e que o
Estado coordene as ações da sociedade para atingir esse fim e ajude a eliminar as
estruturas opressoras. Em sua relação com o bem comum, o Princípio de Solidariedade
defende a destinação universal dos bens e a opção preferencial pelos pobres, dois
assuntos caros para a DSI, especialmente para a igreja latino-americana.
Sobre o Princípio de Subsidiariedade, observamos que a participação popular é
essencial. Ela pode fazer a diferença. É a certeza de que o diferencial está na
participação ativa dos sujeitos nos momentos de decisão, execução e controle das
políticas sociais. Para participar é preciso conhecer, ter informações, saber o montante
de recursos empregados e como serão gastos – em quê e com o quê. Quem participa
passa a ser sujeito ativo e não objeto das ações, exigente e fiscalizador. Cada pessoa ou
grupo deve ter autonomia, criatividade e liberdade para decidir e atuar de acordo com
seus valores e crenças na realidade, construindo o bem comum. Significa, enfim,
reconhecer a capacidade de cada ser humano e sua comunidade de ser sujeito de sua
própria história, como defende a DSI. Ao Estado cabe fiscalizar, aprovar, dar
incentivos, acompanhar, oferecer infraestrutura básica e dar assistência técnica quando
necessário. Para a DSI, deve haver uma mudança efetiva no papel do Estado, que deixa
de ser provedor exclusivo e passa a ser de facilitação para associações populares
também desenvolverem o seu trabalho. Coloca-se um novo papel para a administração
pública como parceiro da sociedade civil organizada em associações.
257

A experiência da Igreja Católica foi imprescindível para reunir as pessoas


necessitadas, reelaborar suas demandas e transformá-las em discursos e ações coletivas,
através das pastorais, CEBs e Campanhas da Fraternidade. Os valores fundamentais da
justiça - apresentados em termos da injustiça da sociedade para com os pobres -,
liberdade de escolha do ser humano, a união do povo e o direito universal da moradia
foram os elementos previamente presentes que constituíram o discurso, ideologia e as
normas de muitos movimentos, inclusive da ATST. Estes valores estão arraigados na
DSI. A forma discursiva da Igreja foi capaz de dar forma à demanda das pessoas
engajadas, dando-lhes voz, argumentos, práticas e novas experiências participativas, em
uma emergente esfera pública que o próprio movimento social construiu. É verdade que
nem todos os associados da ATST são católicos ou todas as suas lideranças se
engajaram nas CEBs. No entanto, a influência da Igreja Católica é percebida na
Associação devido à experiência de Marcos Zerbini e Cleuza Ramos, os fundadores,
que participaram ativamente das atividades sociais da Igreja Católica.
Destacamos também a importância do documento da CNBB “Solo Urbano e
Ação Pastoral”, que explicitou claramente os problemas da falta de moradia na cidade.
O encontro do método proposto pela Igreja com as experiências das pessoas marcadas
pela precariedade material e simbólica, em uma conjuntura extremamente desfavorável,
fez emergir lideranças dispostas a darem uma resposta ao problema de habitação e
explicitar o conflito que as famílias vivenciavam no meio urbano. Afinal, foi nesse
contexto que a ATST nasceu.
A DSI sugere que a liberdade do ser humano é a dimensão mais importante e
mais construtiva do contexto social e institucional. A subsidiariedade sugere que é
preciso ver, ouvir, aumentar o valor daquilo que já existe e desenvolver livremente, de
baixo para cima, de forma a atender às necessidades dos indivíduos e da coletividade
para o bem comum.
Essas condições foram frequentemente ignoradas pela na definição de políticas,
programas ou projetos públicos de auxílio ao desenvolvimento em nosso país. Em
programas de construção de novas moradias em que o público-alvo não está envolvido e
a quem não é pedido nenhum empenho pessoal - seja de natureza financeira ou qualquer
outra -, frequentemente o resultado destes programas é a insatisfação dos beneficiários
em relação à oferta das casas, ou ainda a venda quase imediata das mesmas. Já outros
projetos em que, em vez disso, se condicionam a oferta de ajuda a qualquer forma de
empenho/colaboração por parte dos beneficiários parecem ser mais eficazes
258

(IMPARATO e RUSTER, 2003). Isso sugere que o compromisso pessoal é um fator


importante para que a ajuda ao desenvolvimento seja realmente verdadeira.
Mas agora nos perguntamos: é suficiente pedir às pessoas um empenho
financeiro ou de outra natureza para desencadear neles uma responsabilidade diferente
em relação aos desafios que devem enfrentar? Como foi defendida nesse trabalho, a
experiência de ser acompanhado constantemente pela Associação e a relação de
confiança com os coordenadores são fundamentais para que os associados se
transformem em protagonistas da própria história. A ATST e os coordenadores jamais
substituíram as pessoas em resposta as suas necessidades, mas são presença constante
ao lado deles, sempre estimulando e apoiando o perseguir de seus objetivos.
Uma pergunta que nos surge ao final da nossa tese e que talvez valha a pena
aprofundar futuramente diz respeito à importância da dimensão temporal. A urgência de
melhorar rapidamente as condições de vida de milhares de pessoas privilegia
intervenções em curto prazo - construção de casas e infraestrutura. De outra parte,
observa-se nesta tese que a experiência de mudança das pessoas na ATST vem por meio
de um percurso de anos tanto no empenho do associado, quanto na presença da
Associação. Será possível desencadear uma dinâmica de melhoria real semelhante a
mostrada com projetos/programas de duração limitada, mais curta? Acreditamos que
sim. Uma ação de cooperação para o desenvolvimento deve coincidir com a geração de
sujeitos maduros, na capacidade de educar as pessoas a viverem experiências de bem
comum.
É importante ressaltar que a Associação não é um lugar idílico e “puro”, livre do
erro. Ela é, porém, espaço para a redescoberta das necessidades estruturais humanas,
onde uma educação contínua ajuda todos a crescer, a alcançar uma percepção de si
mesmo e da realidade, para educar o próprio desejo. Assim, a reconciliação entre os
interesses individuais - dos associados e também dos coordenadores - e o bem comum
ocorre por meio de contínua educação, a fim de experimentar a correspondência entre
desejo e realidade.
Dentro dos objetivos propostos para essa pesquisa, pode-se dizer que os
resultados obtidos cumpriram o propósito de subsidiar a discussão acerca da viabilidade
e validade dos princípios da DSI.
Cabe dizer que, embora reconheçamos a riqueza da DSI e como ela pode
contribuir na sociedade por meio da aplicação de seus princípios, ao mesmo tempo
notamos também não haver ainda um documento com uma ênfase maior ou mesmo
259

central sobre a questão da ecologia e da preservação do meio ambiente, um dos


problemas mais prementes da atualidade – e como vários estudiosos da DSI reclamam.
Agora, se é verdade que a DSI não se ocupa muito do tema, temos visto que a CNBB
nos últimos anos tem refletido de maneira interessante sobre essa questão, promovendo
inclusive Campanhas da Fraternidade com a temática.
Enfim, terminamos este trabalho com a certeza de que os princípios da DSI e o
processo desenvolvido pela ATST devem realmente ser uma das alternativas de modelo
para trabalhos sociais. Não há evidentemente apenas um modelo que deva ser aplicado.
Contudo, acreditamos na eficiência de soluções próprias de cada comunidade, que
colocam o interesse dos necessitados no centro e contam com a organização solidária
dos próprios beneficiados. Outras pesquisas sobre esse tema em outras obras
enriqueceriam bastante o conhecimento nessa área.
Temos a consciência de que os dados apresentados não podem e nem devem ser
generalizados indiscriminadamente para comparar com outras experiências sociais ou
mesmo movimentos de habitação.
De toda forma, esperamos que a pesquisa tenha trazido alguma contribuição no
que se refere à importância dos princípios da DSI para a sociedade, por meio do objeto
do presente estudo, da viabilidade de uma proposta alternativa para a habitação popular
na qual a solidariedade e a dignidade emergem do trabalho coletivo.
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ANEXO A
Questionário: Condições de vida das famílias nos bairros da ATST

Ficha Nº:

Qualidade de vida percebida no ambiente do bairro

1- Em que bairro você mora?________________________

2- Há quanto tempo? _______ anos

3- Como é seu bairro para viver?


É um lugar:

Extremamente feio Feio Agradável Excelente


(desagradável)

4- Desde que você se mudou para cá, acha que seu bairro:

Piorou muito Piorou Permaneceu o mesmo Melhorou Melhorou muito

5- Vou indicar alguns problemas. Comparando com o bairro em que morava antes, neste bairro esse
problema está:

Muito Pior Permaneceu Melhor Muito


Pior o mesmo melho
r

Ter uma casa

Posto de Saúde

Acesso a escola para os jovens

Esgoto, luz, ruas, lixo

Segurança

Falta de trabalho

Relações sociais (qualidade)

Transporte público
272

6- Como você se sente nas seguintes situações?

Muito inseguro Um pouco inseguro Seguro Muito seguro

No bairro, durante o dia

No bairro, a noite

Sozinho em casa, a noite

Confiança

7- Geralmente você acha que pode CONFIAR em seus vizinhos?

Não Muito Pouco Sim

8- Desde que você se mudou para cá, você acha que o grau de confiança nos vizinhos:

Diminuiu muito Diminuiu Permaneceu o mesmo Aumentou Aumentou muito

9- Comparando com o bairro em que morava antes, você acha que pode CONFIAR mais
ou menos em seus vizinhos?

Muito menos Menos A mesma coisa Mais Muito mais

10- Na sua experiência e da sua família, a ATST ajudou:

Não Sim, pouco Sim, muito


Para ter a casa

Para estudar

Para encontrar trabalho

Para conseguir dinheiro em caso de necessidade

Em caso de doença

Moradia

11- Se POSSUI uma moradia, você pôde decidir como fazer sua casa?

Não Sim, participei do Sim, participei da Sim, participei do


planejamento construção planejamento e da
construção
273

12- Se o governo oferecesse uma casa um pouco melhor, em um outro lugar, você estaria
disposto a se mudar?

Com certeza não Mais não que sim Mais sim que não Com certeza sim

Por quê?
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________

13- Por que você comprou sua casa com a ATST e não em outro lugar?

Não tinha alternativas


Porque esse bairro é melhor
Porque as relações sociais nesse bairro são melhores
Porque eu soube de alguém que fez esta experiência e foi feliz
Porque as casas aqui são mais bonitas
Porque quando tem um problema aqui pode-se discutir

Instrução

14- Você está frequentando uma escola ou universidade?

Sim Não
15- Qual é o grau de escolaridade?
Seu De seu PAI De sua MÃE
Nenhum
Ensino Fundamental 1 (Até 5ª série)incompleto
Ensino Fundamental 1 (Até 5ª série) completo
Ensino Fundamental 2 (Até 8ª série) incompleto
Ensino Fundamental 2 (Até 8ª série) completo
Ensino Médio incompleto
Ensino Médio completo
Superior incompleto
Superior completo

16- Você quer que seus filhos estudem?

Menos do que eu Como eu Mais do que eu


274

Trabalho

17- Você Quando você tinha 15 anos, qual era a


atualmente ocupação principal de seu PAI
é ou está

Empresário/Empregador

Autônomo/Trabalha por conta


própria

Empregado
Desempregado
Estudante
Aposentado

18- Antes de fazer este trabalho, o que fazia?_______________________________________

19- Quantas pessoas trabalham na família?______________ pessoas

20- Quanto é sua RENDA FAMILIAR mensal? (reais)

Menos que 500 500-1000 1000-2000 2000-3000 3000-4000 Mais que 4000

21- Você acha que sua situação econômica vai melhorar nos próximos anos?

Não Acho que sim Com certeza

Dados Gerais

22- Sexo:

M F

23- Número de filhos com idade entre 0 e 17 anos: ________ filhos.


ANEXO B

Verificação empírica

Para verificar a importância dos diversos aspectos descritos no capítulo 6, é


importante considerar as respostas dadas nos questionários a respeito do vínculo afetivo
aos bairros residenciais. Especialmente se procurou identificar as variáveis que mais
influenciaram a probabilidade de aceitação de uma oferta hipotética do governo de uma
casa melhor num outro bairro, utilizando um modelo Probit41. Por não fazer referências
aos comportamentos reais, a estimativa desse modelo pode fornecer as indicações
relacionadas ao diferente peso que as motivações iniciais, as experiências feitas durante
o percurso e a situação dos serviços têm de participação na avaliação da qualidade de
vida nos bairros.
Nas variáveis explicativas, foram inseridas algumas variáveis demográficas
(idade, instrução, sexo, número de filhos), e algumas variáveis dicotômicas que
representam os seguintes aspectos: avaliação expressa pelo entrevistado em relação aos
problemas e à qualidade das relações sociais nos bairros, os motivos iniciais de adesão à
ATST, a participação na construção da própria casa e a experiência de outros auxílios
oferecidos pela Associação - as variáveis utilizadas são descritas em detalhe na tabela 9
relatada neste anexo. Em particular, temos que estas duas últimas variáveis e as
declarações expressas quanto à qualidade das relações sociais possam ser considerados
os indicadores de importância da experiência vivida no interior da Associação e,
portanto, permitem verificar se a ATST causa efetivamente um comportamento
diferente em relação ao local em que se vive ou se ele é, principalmente, explicado por
outros fatores.
Os resultados das estimativas estão transcritas na tabela 8. No modelo inicial
(primeira coluna), todos os coeficientes avaliados possuem o resultado esperado, ainda
se, em muitos casos, as estimativas não são precisas devido à numerosidade da amostra.
Por essa razão, foram impostas algumas restrições42 (segunda e terceira coluna).

41
Contamos com a ajuda de um estatístico para essa análise. Utilizou-se o programa Statisca 5.1.
42
As restrições impostas são: equidade dos coeficientes das variáveis relativas aos problemas de escola e
segurança e a igualdade das variáveis que indicam uma experiência vivida positiva (boas relações sociais,
participação na construção da própria casa e ter tido o auxílio da ATST para escola e saúde). A pesquisa
estatística sobre tais restrições tem um resultado equivalente a 0,1, p-value 0,98.
276

Em relação às características individuais e familiares, instrução, sexo e baixo


nível de renda per capita, mesmo tendo o resultado esperado, não são significativas. A
idade e o número de filhos menores reduzem a probabilidade de querer se mudar43.
Entre os problemas dos bairros, apenas escola e segurança parecem interferir na
probabilidade de deslocamento, enquanto a saúde e o transporte não têm alguma
implicação. Como esperado, quem declara não poder confiar nos próprios vizinhos
apresenta uma maior probabilidade de querer se mudar. É interessante notar que, no
modelo inicial, as variáveis que descrevem a experiência vivida na Associação
(participação na construção da casa, obtenção de outros auxílios e melhora das relações
sociais) possuem todos um efeito negativo e os coeficientes estimados são muito
parecidos entre eles. A significância aumenta instituindo igualdade desses níveis
(segunda coluna da tabela 8) e o efeito tem um resultado muito semelhante àquele da
variável relativa à motivação inicial44.
Em síntese, a partir da análise, é demonstrado, sobretudo, que a condição
econômica das famílias, expressa seja pelo grau de instrução do entrevistado, seja pela
faixa salarial per capita da qual a família pertence, não afeta no desejo de deixar o
bairro. Isso sugere que os bairros da ATST não são locais em que as famílias pobres são
obrigadas a ficar porque não têm alternativas melhores. Das estimativas se deduz
também que nem mesmo as dificuldades de acesso aos serviços de saúde e de transporte
público chegam a induzir as pessoas a se deslocarem para outro bairro. Ao invés disso,
essa decisão é influenciada de maneira significativa nos eventuais problemas de
segurança e de acesso a escola. Enfim, um resultado particularmente interessante é que
a preferência pelos bairros da ATST depende tanto de características e motivações
iniciais do indivíduo - não ligadas à experiência pessoal vivida dentro da Associação -,
quanto pelos fatos e circunstâncias que caracterizaram o caminho, isto é, o
envolvimento na construção da casa, a obtenção de ajuda por parte da ATST para o
estudo e a criação de redes sociais particularmente fortes. É interessante notar que cada
uma destas últimas tem um peso equivalente ao das motivações iniciais.

43
Enquanto o primeiro resultado é facilmente previsível, em relação às pessoas mais velhas e menos
dispostas a enfrentar mudanças, no segundo caso o sinal negativo é mais difícil de interpretar.
44
Eliminando todas as variáveis com um nível de significância maior de 20% (valor da pesquisa em todas
as restrições conjuntas 3,56, p-value 0,83), as estimativas não sofrem fortes variações. No geral, aumenta
o nível de significância com exceção da variável relativa à motivação inicial, cujo coeficiente, mantendo-
se paralelo com aquele das experiências vividas, resulta significativos apenas em 15%.
277

Tabela 8. Resultado estimativo pelo modelo Probit relativo à probabilidade de aceitação


da oferta de uma casa melhor em um outro bairro.

Coeficiente Z Coeficiente Z Coeficiente Z


Idade -0,03 -2,35** -0,03 -2,36** -0,03 -2,68***
Instrução Superior – Univ. 0,26 0,71 0,30 0,86
Mulher -0,36 -1,27 -0,35 -1,27
Nºfilhos 0-17 -0,32 -1,89* -0,33 -1,92* -0,35 -2,18***
Família pobre -0,28 -0,73 -0,28 -0,74

Problemas do bairro
Acesso à escola 0,27 0,65
Segurança 0,37 1,22
Escola e Segurançaa 0,33 1,39 0,38 2,28**
Acesso a Postos de Saúde 0,06 0,17 0,05 0,12
Transporte -0,17 -0,45 -0,17 -0,48

Relações Sociais e experiência na ATST


Não confia nos vizinhos 0,76 2,39** 0,75 2,47** 0,61 2,15**
Motivações iniciais não econômicas -0,59 -1,8* -0,59 -1,81* -0,43 -1,45
Boas relações sociais -0,57 -1,68*
Participação na construção das casas -0,62 -1,9*
Ajuda recebida da ATST -0,46 -1,37
Relações, casa, ATSTb -0,55 -3,03*** -045 -2,73***

Dummy Bairros
Turística 0,92 2,09** 0,88 2,06** 0,58 1,91*
Sol Nascente 0,23 0,5 0,26 0,58
Voith 0,39 0,66 0,38 0,65
Constante 1,21 1,5 1,21 1,50 1,11 1,68**

Número observações 152 152 152


LR chi2 chi2 32,68 chi2 32,51 chi2 28,81
(17) (14) (7)
Prob > chi2 0,01 0,00 0,00
Pseudo R2 0,20 0,20 0,18
Log likelihood -64,4 -64,5 -66,4
a
Soma das duas variáveis anteriores. b Soma das três variáveis anteriores.
* Significativo em 10%. ** Significativo em 5%. *** Significativo em 1%.
- Programa SPSS

Tabela 9. Variáveis utilizadas na estima do modelo Probit

Variáveis Descrição Pergunta


Utilizada
Var. dependente Indivíduos que aceitariam a 12, “com certeza
oferta de uma casa melhor em sim” ou “mais
outro bairro sim que não”
Instrução superior e universitária Indivíduos que completaram o 15, ensino médio
ensino médio ou a universidade completo
Mulher Mulheres 22, F
Número de filhos 0-17 Número de filhos com idade 23
compreendida entre 0 e 17 anos
Família pobre Indivíduos que pertencem a 20
278

famílias cuja renda pro capita


(valor médio da renda indicada
dividido pelo número de
componentes) se encontra no
degrau mais baixo da
distribuição
Problemas do bairro
Acesso à escola Indivíduos para os quais o 5, “pior” ou
acesso à escola piorou em “muito pior”
relação ao bairro anterior
Segurança Indivíduos para os quais a 5, “pior” ou
situação de segurança piorou em “muito pior”
relação ao bairro anterior
Escola e Segurança Soma das variáveis
D_probl_escola e D_probl_segur
Acesso a Postos de Saúde Indivíduos para os quais o 5, “pior” ou
acesso a postos de saúde piorou “muito pior”
em relação ao bairro anterior
Transporte Indivíduos para os quais a 5, “pior” ou
situação do transporte piorou em “muito pior”
relação ao bairro anterior
Relações Sociais e experiência na ATST

Não confia nos vizinhos Indivíduos que declararam não 7, “não”


poder confiar nos vizinhos
Motivações iniciais não econômicas Indivíduos que aderiram a 13, todas as
ATST por motivações não respostas diferentes
econômicas da primeira
Boas relações sociais Indivíduos para os quais seja as 5, “melhor” ou
relações sociais seja o grau de “muito melhor”;
confiança no vizinho e 9, “mais” ou
melhoraram em relação ao “muito mais”
bairro anterior
Participação na construção das casas Indivíduos que participaram da 11, “sim, participei
construção da própria casa do planejamento”,
“sim, da
construção”, “sim,
ambos”
Ajuda recebida da ATST Indivíduos que receberam ajuda 10, para estudar e,
da parte da ATST para estudo e em caso de doença:
saúde “sim, pouco” ou
“sim, muito”
Relações, casa, ATST Soma das variáveis
D_boas_relaç, D_part_casa e
D_atst_ajuda
Dummy Bairros
Turística Turística 1
Sol Nascente Sol Nascente 1
Voith Voith 1

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