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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO

ANDRÉ OFENHEJM MASCARENHAS

CULTURA ORGANIZACIONAL E MUDANÇA CULTURAL:

A CONTRIBUIÇÃO SAHLINIANA E O CASO CEDEJOR

SÃO PAULO

2006
ANDRÉ OFENHEJM MASCARENHAS

CULTURA ORGANIZACIONAL E MUDANÇA CULTURAL:

A CONTRIBUIÇÃO SAHLINIANA E O CASO CEDEJOR

Tese apresentada à Escola de Administração de


Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas
como requisito para a obtenção do título de Doutor
em Administração de Empresas.

Campo de conhecimento: Administração de


Empresas

Orientador: Prof. Flávio Carvalho de Vasconcelos

SÃO PAULO

2006

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Mascarenhas, André Ofenhejm.
Cultura organizacional e mudança cultural: a contribuição sahliniana e o caso
Cedejor / André Ofenhejm Mascarenhas. - 2006.
394 f.

Orientador: Flávio Carvalho de Vasconcelos.


Tese (doutorado) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo.

1. Cultura organizacional. 2. Mudança social. 3. Desenvolvimento


organizacional. 4. antropologia. 5. Sahlins, Marshall David, 1930- . I.
Vasconcelos, Flávio Carvalho de. II. Tese (doutorado) - Escola de Administração
de Empresas de São Paulo. III. Título.

CDU 65.01::008

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ANDRÉ OFENHEJM MASCARENHAS

CULTURA ORGANIZACIONAL E MUDANÇA CULTURAL:

A CONTRIBUIÇÃO SAHLINIANA E O CASO CEDEJOR

Tese apresentada à Escola de Administração de


Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas
como requisito para a obtenção do título de Doutor em
Administração de Empresas.

Campo de conhecimento: Administração de Empresas

Orientador: Prof. Flávio Carvalho de Vasconcelos

Data de aprovação:
_____/______/_________

Banca examinadora:

Prof. Dr. Flávio Carvalho de Vasconcelos (Orientador)


FGV–EAESP

Prof. Dr. Clóvis L. Machado-da-Silva


FGV–EAESP

Profa. Dra. Isabella F. G. de Vasconcelos


FGV–EAESP

Profa. Dra. Ana Carolina S. Queiroz


UNINOVE

Prof. Dr. João Marcelo Crubellatte


UEM

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AGRADECIMENTOS

Esta tese é o resultado de um longo trabalho que caracterizou a melhor fase da minha vida. No
decorrer deste percurso, tive o prazer de conviver com diversas pessoas que confiaram em
mim e me apoiaram nesta empreitada. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a minha
família pelas oportunidades que me proporcionaram; o meu pai, de quem herdei o gosto pela
ciência e pelo questionamento, sem sua constante inspiração eu não teria chegado onde
cheguei. A minha mãe, pela vontade e entusiasmo com que acompanha minha vida, e pela
amizade e dedicação a mim e a meu irmão. E o meu irmão, pela amizade e pelo respeito que
caracteriza nossa fraternidade. A vocês três dedico todos os meus esforços, sempre. Em minha
vida profissional e acadêmica, foram diversas pessoas que me acompanharam com
entusiasmo. Meus orientadores já de longa data, Flávio Vasconcelos e Isabella Vasconcelos,
por quem tenho uma profunda amizade, admiração e respeito. A confiança que vocês sempre
tiveram em mim me estimula e me motiva a continuar trabalhando. Vocês me indicaram os
caminhos na carreira que se tornou uma de minhas grandes paixões. Agradeço o professor
Gideon Kunda, da Universidade de Tel Aviv, que nos acompanhou em nossos contatos
iniciais no campo e me auxiliou com os field notes, além de ter orientado o trabalho de
pesquisa para o capítulo 2 desta tese. Meu amigo Felipe Zambaldi, cujo auxílio e estímulo
foram muito importantes, principalmente no período inicial desta tese. Os meus colegas no
Mackenzie, que me acolheram tão gentilmente nos últimos 18 meses e viabilizaram a
pesquisa de campo; e a equipe da UniFEI, com quem construirei daqui para frente a fase mais
desafiadora da minha vida profissional. No mundo das organizações também contei com o
apoio de grandes amigos. Na Souza Cruz e no Instituto Souza Cruz, foram fundamentais à
consecução deste trabalho os bate-papos e o auxílio de José Carlos Cegato e Letícia Sampaio.
Sinto-me honrado por ter merecido a confiança destes dois grandes profissionais-amigos. No
CEDEJOR, a equipe toda me apoiou e me auxiliou durante os meus três meses em campo,
fazendo de minha maratona de pesquisa um período feliz e divertido; Adair, Adriana, Isani e
Paulo, que se tornaram grandes amigos. Nas comunidades de Rio Pardo, conheci pessoas
maravilhosas que me acolheram, confiaram em mim e marcaram minha vida, Luis Carlos,
Paulo Miguel, Neiva, Noeli e famílias. Finalmente, este trabalho, caracterizado por
contingências e “prazos” muito especiais, não seria possível se eu não tivesse contado com a
ajuda fundamental de quatro grandes amigos, Ana Lúcia Severo, Luis Roberto Vassallo,
Rodrigo Velasques e Solange Gonçalves. Sua dedicação, paciência e competência
viabilizaram esta tese. A vocês, meus agradecimentos do fundo do coração.

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RESUMO

Esta tese tem como objetivo propor novos caminhos para a discussão sobre a cultura
organizacional. Tradicionalmente, os debates sobre o tema no âmbito da teoria das
organizações assimilam referenciais teóricos e metodológicos oriundos da antropologia; em
especial, as premissas e conceitos que compõem os paradigmas funcionalista e interpretativo.
Nesta interdisciplinaridade, as discussões sobre a mudança cultural nas organizações não
assimilaram referenciais de análise que dessem conta das maneiras como os grupos sociais de
fato mudam e evoluem. Na realidade, a matriz disciplinar da antropologia caracteriza-se pela
oposição entre diacronia e sincronia – que assume a forma dos pares opostos sistema e evento,
história e estrutura, estabilidade e mudança, entre outros. Com base nesta polarização, os
antropólogos construíram tradições de estudos que destacam a continuidade em detrimento da
mudança, ou ainda, a estrutura em detrimento da história. Mais recentemente, entretanto, as
idéias de Sahlins, ou a antropologia histórico-estrutural, sugerem não haver razão para a
polarização excludente entre história e estrutura, considerando-se a complexidade e
especificidade dos fenômenos culturais. Ao sugerir a inseparabilidade entre continuidade e
mudança, Sahlins propõe redefinições importantes nos conceitos clássicos de cultura,
incorporando às discussões antropológicas uma série de questões desprestigiadas pelos
paradigmas clássicos; em especial, a mudança cultural. Neste sentido, propõe-se que a
incorporação das propostas da antropologia histórico-estrutural às discussões sobre a cultura
organizacional tem o potencial de fazer avançar os debates acerca das maneiras como as
organizações evoluem ao permitir a análise das continuidades e descontinuidades que
caracterizam estes sistemas culturais. Ao problematizar os conceitos tradicionais de cultura
organizacional, este movimento contribuiria sobremaneira à temática da mudança cultural nas
organizações, por exemplo, ao viabilizar o desenvolvimento de uma perspectiva cultural à
aprendizagem organizacional. A contribuição da antropologia histórico-estrutural é ilustrada
por meio de um estudo de caso etnográfico realizado no núcleo de Albardão do CEDEJOR –
Centro de Desenvolvimento do Jovem rural –, que reúne 30 jovens da comunidade do sétimo
distrito rural do município de Rio Pardo, no Rio Grande do Sul. O CEDEJOR é uma ONG
que atua na região Sul do Brasil, tendo como objetivos promover o empreendedorismo e o
desenvolvimento do jovem rural através de processos educativos e participativos, buscando a
sustentabilidade e a melhoria da qualidade de vida das comunidades rurais, e tendo o jovem

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como protagonista. Com base nas idéias de Sahlins, a análise do caso sugere ser a cultura
sistema e evento, ambigüidade e consenso, e estrutura e história, simultaneamente.

Palavras-chave: Cultura organizacional, mudança cultural, antropologia histórico-estrutural,


Marshall Sahlins.

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ABSTRACT

This thesis proposes new directions within the discussions of organizational culture.
Traditionally, the debates on the theme in the field of organization theory incorporate
anthropological frameworks, in special, the premises and ideas which compose the
functionalist and interpretative paradigms. Within this interdisciplinary appropriation, the
discussions on cultural change in organizations did not assimilate frameworks which allowed
the analysis of the ways social groups actually change and evolve. In fact, the disciplinary
matrix of anthropology is characterized by the opposition of diachrony and synchrony –
which assumes the format of opposing pairs such as system and event, history and structure,
stability and change. Based on this opposition, anthropologists built theoretical traditions
which highlight continuity in detriment of change, or structure in detriment of history. More
recently, however, the ideas of Sahlins, or the structural, historical anthropology, suggest the
inadequacy of the history-structure polarization as we recognize the complexity and
specificity of the cultural phenomenon. Based on a theoretical proposal that suggests the
inseparability of continuity and change, Sahlins proposes important redefinitions in the
classical concepts of culture. These redefinitions would allow the incorporation of a serious of
issues historically neglected by the classical anthropological paradigms; in special, cultural
change. This thesis suggests that the assimilation of Sahlins’ proposals to the discussions of
organizational culture has the potential of advancing the debates on the ways organizations
evolve as it allows the analysis of the continuities and discontinuities which characterize these
cultural systems. As it questions the traditional concepts of organizational culture, this
movement would contribute to the refinement of the cultural debates within organization
theory, e.g., allowing the development of a cultural perspective to organizational learning.
The potential contribution of Sahlins’ proposals is illustrated by an ethnographic case study
held in CEDEJOR Albardão, an NGO which aggregates 30 teenagers from the seventh rural
district of Rio Pardo, Rio Grande do Sul, Brazil. CEDEJOR’s goals include promoting
entrepreneurship, the personal development of the rural youth and the sustainable
development of their communities through participative educational processes. Based on the
ideas of Sahlins, the analysis of the case study suggests that culture is system and event,
ambiguity and consensus, and structure and history simultaneously.

Key-words: Organizational culture; cultural change; structural, historical anthropology;


Marshall Sahlins.

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1: TRADIÇÕES ANTROPOLÓGICAS E A VARIÁVEL ‘TEMPO’ 26

TABELA 2: TIPOS MAIS FREQUENTES DE RITOS NAS ORGANIZAÇÕES 83

TABELA 3: PERSPECTIVAS DE ESTUDO DA CULTURA ORGANIZACIONAL 90

TABELA 4: MATRIZ DISCIPLINAR DA ANTROPOLOGIA 99

TABELA 5: NÚMERO DE FARDOS VENDIDOS PARA FORA DO ESTADO DO


RIO GRANDE DO SUL (1947) 141

TABELA 6: PRODUÇÃO DE TABACO NO SUL DO BRASIL 147

TABELA 7: EXPORTAÇÃO DE TABACO BRASILEIRO E PREÇO MÉDIO 148

TABELA 8: CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO DO TABACO 175

TABELA 9: COMBINAÇÕES DE CLASSES, SUBCLASSES, TIPOS E SUBTIPOS


DE TABACO 176

TABELA 10: FASES QUE COMPÕEM O PROCESSO DE PRODUÇÃO DO


TABACO 177

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – ANTROPOLOGIA, CULTURA ORGANIZACIONAL E


MUDANÇA CULTURAL 12

PARTE 1 – REFERENCIAL TEÓRICO 18

1 – ANTROPOLOGIA E AS TRADIÇÕES DE ESTUDO DA CULTURA 19

1.1 antropologia 19

1.2 O conceito de cultura 20

1.3 antropologia: controvérsias e paradigmas 22

1.3.1 Diacronia X sincronia 23

1.4 antropologia: as tradições de estudo da cultura 26

1.4.1 Tradições antropológicas sincrônicas: Escola Racionalista Francesa e a Escola


Estruturalista Francesa 27

1.4.2 Tradições antropológicas sincrônicas: a Escola Funcionalista Britânica 38

1.4.3 Tradições antropológicas diacrônicas: a Escola Histórico-cultural Norte-americana


49

1.4.4 Tradições antropológicas diacrônicas: a antropologia interpretativa 59

2 – ANTROPOLOGIA E OS ESTUDOS SOBRE CULTURA ORGANIZACIONAL 70

2.1 antropologia nas organizações: os estudos sobre ‘Cultura Organizacional’ 72

2.1.1 Cultura organizacional: abordagens gerencialistas e a tradição sócio-antropológica


funcionalista 76

2.1.2 Cultura organizacional: abordagens críticas e descritivas e a tradição sócio-


antropológica interpretativa 85

2.1.3 Cultura organizacional: a apropriação da referencial antropológico e a polarização


funcionalismo X interpretativismo 97

3 – INTERSECÇÃO DE PARADIGMAS: MARSHALL SAHLINS E A


ANTROPOLOGIA HISTÓRICO-ESTRUTURAL 109

10
PARTE 2 – RELATÓRIO ETNOGRÁFICO 120

4 - GAÚCHOS DO VALE DO RIO PARDO 121

4.1 Rio Pardo, Santa Cruz e a expansão econômica 122

4.2 Ameaças à economia e a necessidade de substituição 150

4.3 Sobre os colonos 158

4.4 Produzindo tabaco 171

4.5 As comunidades rurais de Rio Pardo 184

4.6 Trabalhando para as fumageiras, ou “escravos brancos” 208

4.7 A necessidade de diversificação 229

4.8 Educando os jovens 249

5 – CEDEJOR, OU ‘CENTRO DE DESENVOLVIMENTO DO JOVEM RURAL’ 267

5.1 Instituto Souza Cruz 267

5.2 O Projeto CEDEJOR – Educação para o empreendedorismo 268

5.3 Bem vindo à comunidade: recrutamento e seleção do primeiro grupo de jovens 273

5.4 O processo pedagógico 275

5.5 O ‘Projeto Fênix’ e a mobilização na comunidade 285

5.6 CEDEJOR, interesses políticos e econômicos 289

5.7 Laços políticos obscuros 292

5.8 O CEDEJOR como uma ‘organização em aprendizado’ 295

6 – O CASO CEDEJOR: JOVENS EGRESSOS, LÍDERES COMUNITÁRIOS E A


MUDANÇA ESTRUTURAL 313

CONCLUSÕES – CULTURA ORGANIZACIONAL E A CONTRIBUIÇÃO


SAHLINIANA 359

REFERÊNCIAS 369

ANEXO METODOLÓGICO 385

11
INTRODUÇÃO – ANTROPOLOGIA, CULTURA ORGANIZACIONAL E
MUDANÇA CULTURAL

Em 1993, em artigo publicado no Journal of Management Inquiry, Cook e Yanow (2001)


revisavam as correntes teóricas que tratavam da aprendizagem organizacional, denunciando a
predominância da abordagem cognitiva à esta temática. Segundo os autores, os teóricos
alinhados à abordagem cognitiva buscam aplicar as teorias de aprendizagem individual às
organizações de duas maneiras. A primeira baseia-se no argumento de que a ‘aprendizagem
organizacional’ é um tipo particular de aprendizagem de indivíduos-chave nas organizações,
relacionado ainda à mudança organizacional subseqüente. Alinhados a esta perspectiva, por
exemplo, Miles e Randolph (1981) sugerem ser a aprendizagem organizacional relacionada a
transformações nos padrões de atividades, na estrutura e nos resultados de uma organização
como conseqüência da ação de indivíduos-chave. A segunda sugere ser a organização capaz
de aprender devido a capacidades de aprendizagem possuídas, da mesma maneira que o
indivíduo. Estes autores constroem teorias da aprendizagem organizacional com base na
apropriação de conceitos oriundos de modelos da aprendizagem individual. Por exemplo,
Hedberg (1981) e Gahmberg (1980) estendem os modelos de aprendizagem individual
baseados em conceitos comportamentalistas ao entendimento da maneira como as
organizações selecionam estímulos e respostas às condições ambientais. Em comum, ambas
estratégias assumem implicitamente a noção segundo a qual a natureza da aprendizagem
organizacional é equivalente à aprendizagem individual. Segundo Cook e Yanow (2001, p.
400), “eles [os autores] baseiam suas explicações a respeito da natureza da aprendizagem
organizacional, explicita ou implicitamente, no entendimento do que significaria um
indivíduo aprender” (ARGYRIS E SCHÖN, 1978; RUSS-EFT, PRESKILL E SLEEZER,
1997; ARGYRIS, 1992; DIXON, 1990).

Entretanto, qual seria a natureza do fenômeno da aprendizagem coletiva? Apesar de sua


evidente utilidade e potencial explicativo, é possível questionar a abordagem cognitiva à
aprendizagem organizacional em suas premissas básicas. A aprendizagem organizacional não
equivale conceitualmente nem empiricamente à aprendizagem individual, nem à
aprendizagem individual ocorrida no âmbito de uma organização. Segundo os autores, é
possível sugerirmos diferenças fundamentais entre o fenômeno da aprendizagem no âmbito do
indivíduo e aquela percebível no âmbito das organizações. Assim, devido a diversas razões,
faz-se problemática a transferência de conceitos da psicologia cognitiva ao estudo da

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aprendizagem organizacional. Entre estes problemas, Cook e Yanow (2001) sugerem as
dificuldades trazidas pela aceitação da premissa ontológica da organização, segundo a qual
estas são entidades capazes de aprender da mesma maneira que indivíduos. De fato, estes
autores deveriam provar esta premissa de difícil aceitação. Ao afirmarem ser o estudo da
aprendizagem individual um campo complexo e sujeito a restrições teóricas, Cook e Yanow
(2001) sugerem a necessidade de explicarmos, em termos organizacionais, os
desenvolvimentos destas teorias, ou pelo menos explicarmos o porquê da falta destas
explicações. Em última análise, as organizações não possuem os recursos cognitivos típicos
de um ser humano; as organizações não possuem os recursos – órgãos perceptivos, cérebro,
etc. – que os indivíduos possuem e utilizam ao aprender e saber. Em resumo, os autores
sugerem a inviabilidade da premissa, freqüentemente implícita, segundo a qual a
aprendizagem individual é similar à aprendizagem organizacional.

De fato, a aprendizagem individual e a aprendizagem organizacional são fenômenos


ontologicamente distintos, e essa distinção está relacionada a uma lacuna importante na atual
literatura sobre aprendizagem organizacional (ANTONELLO, 2005; RUAS, 2005
BITENCOURT, 2004). No sentido de diminuir esta lacuna e responder a questão a respeito
da natureza da aprendizagem coletiva, Cook e Yanow (2001) sugerem a relevância de uma
perspectiva cultural à aprendizagem organizacional. Neste sentido, a aprendizagem coletiva
não seria igualável à aprendizagem individual. Entre as vantagens desta perspectiva, os
autores sugerem, em primeiro lugar, que, intuitivamente, entender uma organização como
uma entidade cultural seria um pulo conceitual muito menor do que considerá-la uma entidade
cognitiva. “Organizações, como grupos humanos, são mais prontamente analisáveis como
sendo similares a tribos do que como sendo similares a indivíduos ou a cérebros” (COOK E
YANOW, 2001, p. 407). Em segundo lugar, numa perspectiva cultural a aprendizagem
organizacional seria pensada em termos de significados compartilhados e transmitidos pelos
indivíduos e grupos no âmbito da organização; desta maneira, a aprendizagem seria pensada
como uma atividade coletiva, e não individual. Em conseqüência, a aprendizagem
organizacional poderia ser pensada como uma atividade conceitual e empiricamente distinta
da aprendizagem individual. Em termos teóricos, ao invés de se basear em pretensas
similaridades entre os conceitos relativos à aprendizagem individual e coletiva, uma
perspectiva cultural permitira o desenvolvimento de nosso entendimento do fenômeno de
aprendizagem coletiva por meio da análise do comportamento cultural real dos grupos
(GROTTO E ANGELONI, 2004; SANTOS E FISCHER, 2003; MASCARENHAS,

13
VASCONCELOS E PROTIL, 2004). Finalmente, a perspectiva cultural nos permite entender
a aprendizagem como um fenômeno que promove a inovação bem como a conservação,
“incorporando à discussão [...] a quantidade considerável de esforços nas organização [...]
para manter os padrões de comportamentos que lhe são únicos” (COOK E YANOW, 2001,
p. 407). De fato, como será discutido em capítulos posteriores, a mudança cultural é um
fenômeno caracterizado por uma dialética complexa de transformação e reprodução das
categorias culturais consolidadas (SAHLINS, 2001; SAHLINS, 1990).

O desenvolvimento de uma perspectiva cultural à aprendizagem organizacional nos desloca a


atenção à farta literatura sobre cultura organizacional, que tem na antropologia e na
sociologia suas fontes principais de inspiração. Entre as muitas propostas conceituais
possíveis, Cook e Yanow (2001) adotam um conceito de cultura organizacional alinhado à
tradição sócio-antropológica interpretativa (MARTIN, 2002). A cultura de uma organização
seria então o conjunto de valores, crenças, e sentimentos, associados aos artefatos por meio
dos quais são expressados e transmitidos, que são criados, compartilhados e reproduzidos no
âmbito dos grupos organizacionais, e que também distinguem uma organização de outra. O
conceito interpretativo adotado pelos autores também aceita a existência de subculturas nas
organizações, o que implica reconhecermos a possibilidade da fragmentação da cultura
organizacional. Associada ao conceito de cultura organizacional, uma perspectiva cultural
sugere ser a aprendizagem organizacional um processo de mudança cultural, que poderia ser
conceituado como o processo de “aquisição, sustentação ou a mudança dos significados
intersubjetivos por meio dos artefatos culturais de sua expressão e transmissão, no âmbito do
comportamento coletivo do(s) grupo(s) na organização” (COOK E YANOW, 2001, p. 408).
Adotar uma perspectiva cultural à aprendizagem organizacional implicaria deslocar nossa
atenção do que ocorreria ‘na mente’ dos indivíduos ao que ocorre efetivamente na prática
cotidiana dos grupos. “Para parafrasear Douglas (1986), ao invés de entender a organização
como o indivíduo em grandes proporções, nós lucraríamos ao entender o indivíduo como a
organização [ou o grupo no qual se está imediatamente inserido] em pequenas proporções, já
que cada indivíduo carrega consigo aqueles elementos do conhecimento coletivo que
viabilizam a ação individual no que diz respeito às preocupações organizacionais” (COOK E
YANOW, 2001, p. 409).

Como esta tese tratará de demonstrar, entretanto, o desenvolvimento de uma perspectiva


cultural à aprendizagem organizacional, como proposta por Cook e Yanow (2001), requer
inovações relacionadas à apropriação do referencial antropológico pelos pesquisadores da

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área de Estudos Organizacionais. Se a antropologia sempre foi uma fonte de idéias à teoria
das organizações, esta influenciação intensificou-se após 1980, quando se consolidaram os
debates sobre a cultura organizacional. Entretanto, uma análise mais aprofundada destes
debates, da maneira como foram inspirados pela antropologia, é capaz de revelar o status
pouco privilegiado do tema mudança cultural, que usualmente assume a forma das
proposições instrumentais genericamente denominadas symbolic management. Esta questão
será discutida em detalhes no segundo capítulo desta tese. Pode-se sugerir ainda que esta
situação também reflete projetos intelectuais e opções temáticas características dos principais
paradigmas antropológicos clássicos, que, da mesma maneira, relegaram a problemática da
mudança cultural a um segundo plano. Entretanto, com a consolidação recente da temática da
aprendizagem organizacional, a relevância do tema mudança cultural assume novas
dimensões na área de Estudos Organizacionais. Por exemplo, como discutem Shafritz e Ott
(2001b), os proponentes do movimento da “reforma da cultura organizacional” sugerem a
transformação de culturas hierárquicas e rígidas em culturas flexíveis e democráticas,
caracterizadas pela difusão da responsabilidade pelos resultados coletivos.

De fato, ao se analisar em profundidade a tradição clássica antropológica, chega-se à


conclusão de que, desde o paradigma evolucionista – considerado pré-clássico – a mudança
cultural não se constitui um tema central no rol de preocupações da disciplina. O advento das
ciências sociais modernas – entre as quais a antropologia – caracterizou-se pelo repúdio às
premissas evolucionistas, que estudavam a cultura em uma perspectiva diacrônica, isto é,
levando-se em consideração a dimensão ‘tempo’ como central às conclusões. Os
evolucionistas investigavam a evolução cultural da humanidade; seus estudos analisavam a
evolução das manifestações culturais, ou a mudança cultural, com base na premissa de uma
escala única de progresso cultural. Como resultado de um movimento abrangente de repúdio
generalizado a esta e outras premissas evolucionistas, a antropologia foi “fundada” com base
em um projeto intelectual que se diferenciava da História. Os primeiros antropólogos
lançaram as bases de formação dos paradigmas clássicos da disciplina – pós-evolucionistas –
recusando-se ao engajamento em especulações filosóficas (como faziam os evolucionistas,
segundo eles) e buscando a objetividade científica.

Se a História trata do desenvolvimento dos povos no decorrer do tempo, a antropologia


deveria se dedicar ao estudo do que a humanidade teria de atemporal, o que também evitaria o
recurso a fontes pouco confiáveis de dados, neste caso, os arquivos históricos dos povos
estudados. Pode-se dizer que, para pesquisadores da primeira metade do século XX, a

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ausência de documentos históricos confiáveis dificultava qualquer tentativa de compreensão
dos povos em todo o seu processo de constituição sócio-cultural. Como conseqüência, os
paradigmas clássicos da antropologia tendem a desvalorizar a temática da mudança cultural
ou, pelo menos, relegá-la a um segundo plano. Por exemplo, a tradição antropológica européia
construiu um referencial teórico sincrônico ao estudo da cultura, isto é, voltado à busca do
que as culturas teriam de atemporal (SCHWARCZ, 2001; OLIVEIRA, 2000). A questão da
mudança foi considerada secundária ao projeto científico de antropólogos como Lévi-Strauss
e Radcliffe-Brown. Da mesma forma, a tradição antropológica norte-americana, apesar de
assumir a relevância da historicidade à compreensão da cultura, não desenvolveu a temática
da mudança cultural como tema central. É este contexto teórico, caracterizado pela
desvalorização da temática da mudança cultural, a origem das idéias que marcam grande parte
da literatura sobre cultura organizacional. Esta análise será expandida no primeiro capítulo
desta tese.

Entretanto, se os paradigmas clássicos da antropologia desvalorizaram a temática da mudança


cultural, a assimilação das mais recentes inovações em termos de teoria antropológica pode
fazer com que, de uma abordagem predominante voltada essencialmente ao controle
normativo – o symbolic management –, a perspectiva cultural possa tornar-se um referencial
teórico mais amplo, capaz de explicar como as organizações de fato mudam e evoluem
(COOK E YANOW, 2001). Mais recentemente, a antropologia Histórico-estrutural, proposta
por Marshall Sahlins (1990; 2001), propõe a fusão entre as perspectivas diacrônica e
sincrônica da cultura, recolocando a questão da mudança cultural como central à investigação
antropológica e à própria definição de cultura. Como esta tese sugere, trata-se de uma
perspectiva teórica útil à compreensão das maneiras como as organizações mudam e evoluem,
contribuindo, por exemplo, ao desenvolvimento de uma perspectiva cultural à aprendizagem
organizacional. Ao se retomar a temporalidade ao estudo da cultura, Sahlins introduz uma
série de questões à antropologia, como indica o autor no fim da introdução de Historical
Metaphors and Mythical Realities: “o grande desafio para uma antropologia histórica não é
apenas saber como os eventos são ordenados pela cultura, mas como, nesse processo, a
cultura é reordenada. Como a reprodução de uma estrutura torna-se sua transformação?”
(SAHLINS, 2001, orig. 1981, p. 139). Para Sahlins, a cultura pode ser definida como uma
ordem estrutural de significados, cujos conteúdos são alterados diante da história. Se a
história de um povo é ordenada culturalmente de acordo com suas categorias culturais
consolidadas, o contrário também é verdadeiro: os esquemas e categorias culturais são

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ordenados historicamente à medida que seus significados são reavaliados na prática
(SAHLINS, 2001, p. 129). Assim, o autor defende a existência da estrutura histórica, em que
as categorias culturais e suas relações, que compõem as cosmologias, são reordenadas
historicamente. A mudança é destacada, não sendo possível a separação entre sincronia e
diacronia. Atualmente, a proposta histórico-estrutural – apresentada no terceiro capítulo – é o
exemplo mais importante de uma articulação competente de elementos teóricos de paradigmas
antropológicos, a princípio, divergentes, para a formulação de um referencial teórico coerente
e inovador.

Esta tese tem como objetivo propor novos caminhos para a discussão sobre a cultura
organizacional. A construção de uma perspectiva cultural à aprendizagem organizacional
requer que nos movamos em direção aos desenvolvimentos teóricos mais recentes no âmbito
da antropologia. Com destaque, a antropologia histórico-estrutural é um referencial
privilegiado para a análise das dinâmicas de mudança cultural e, conseqüentemente, para a
discussão das propostas de Cook e Yanow (2001). Por meio da assimilação e discussão das
idéias de Marshall Sahlins, podemos avançar nossa compreensão da problemática da
aprendizagem organizacional, entre outras, e contribuir aos esforços de entendimento da
atuação humana nas organizações por meio do aporte à antropologia. A contribuição da
antropologia histórico-estrutural é ilustrada por meio de um estudo etnográfico, apresentado e
discutido na segunda parte desta tese. O estudo de caso foi realizado no núcleo Albardão do
CEDEJOR – Centro de Desenvolvimento do Jovem Rural –, que reúne 29 jovens da
comunidade do sétimo distrito rural do município de Rio Pardo, no Rio Grande do Sul. O
CEDEJOR é uma ONG que atua nos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina,
tendo por objetivos promover o empreendedorismo e o desenvolvimento do jovem rural
através de processos educativos e participativos, visando a sustentabilidade e a melhoria da
qualidade de vida das comunidades rurais, e tendo o jovem como protagonista.

17
PARTE 1 – REFERENCIAL TEÓRICO

18
1 – ANTROPOLOGIA E AS TRADIÇÕES DE ESTUDO DA CULTURA

Cultura é um conceito básico em praticamente todas as ciências sociais. Entretanto, pode-se


dizer que o desenvolvimento deste conceito é intimamente associado aos debates no campo da
antropologia. Neste capítulo, uma breve definição da antropologia será apresentada como
base para a apresentação das diferentes abordagens ao conceito de cultura. Se as discussões
em torno desta noção caracterizam historicamente a antropologia como ciência social, uma
análise mais aprofundada do desenvolvimento desta disciplina revela questões de discórdia
entre seus praticantes. Diversas particularidades podem ser apontadas como tópicos de
discussão entre os cientistas, o que os levou a construir referenciais teóricos distintos à análise
das culturas. Este capítulo identifica uma destas controvérsias, relevante a esta tese, para
então apresentar as principais tradições do estudo da cultura. Esta análise histórica será a base
para a compreensão do processo de apropriação do referencial antropológico pelos teóricos
organizacionais, discutido mais adiante.

1.1 Antropologia

Definir a antropologia não é uma tarefa fácil. Pode-se dizer que a forma mais genérica de se
definir este campo de estudo é dizendo ser esta a ciência que estuda o homem como membro
de uma coletividade. Este conceito, muito genérico, abrange dois grandes focos de estudo. Em
primeiro lugar, os antropólogos estudam a origem e o processo de evolução do homem,
nossos mecanismos vitais e nossa natureza como seres humanos. Trata-se do campo
denominado antropologia física. Em segundo lugar, os antropólogos também estudam a obra
humana, isto é, a diversidade de manifestações e expressões de vida encontradas em nosso
planeta. Assim, a vida humana em grupo é estudada no que diz respeito a manifestações
culturais como a religião, a economia, a organização social, os hábitos alimentares, as artes, o
folclore etc. Trata-se da antropologia sociocultural. Em especial, se a antropologia e a
sociologia compartilham diversos temas de investigação, pode-se dizer que o aquela ciência
centra-se em uma problemática bem particular, a questão da diferença entre os grupos
humanos, desenvolvida por meio de um método também específico, a etnografia. Mas
deixemos para discutir o método no anexo metodológico desta tese.

19
De fato, é normal que as pessoas pensem que a antropologia é a ciência que estuda as culturas
ou sociedades “primitivas”, enquanto os sociólogos são responsáveis por estudar a nossa
cultura e sociedade. Os antropólogos, no entanto, não aceitam este tipo de diferenciação. Por
exemplo, quando discutia a depopulação de grupos indígenas, Lévi-Strauss, em um famoso
artigo publicado originalmente no Corrier de L’Unesco em 1961, sustenta a idéia de que em
nenhum caso este processo coloca em risco o futuro da antropologia. Segundo Lévi-Strauss, a
antropologia não pode ser definida em termos de um de seus objetos de estudo, neste caso as
“culturas primitivas”. De maneira diferente, a disciplina deve ser definida em termos de seu
interesse nas questões das diferenças entre grupos humanos. Desta forma, se as sociedades
ditas ‘primitivas’ eram consideradas um objeto de pesquisa privilegiado para a discussão
desta problemática, a diminuição destas populações desloca a análise antropológica para
outros grupos, e para as relações entre estes grupos, nos quais as questões relacionadas às
diferenças entre os grupos humanos continuam absolutamente relevantes. Como coloca Lévi-
Strauss, estas questões serão sempre importantes quando diferentes identidades étnicas
estiverem presentes: “Enquanto a maneira de ser ou de agir de certos homens for considerada
um problema para outros homens, haverá sempre relevância nas reflexões sobre estas
diferenças que, de uma maneira sempre renovada, continuarão sendo o território da
antropologia” (LÉVI-STRAUSS, 1962, p. 26).

1.2 O conceito de cultura

As discussões a respeito do conceito de cultura são o ponto de partida para entendermos o


referencial antropológico. Com base nas diversas perspectivas a partir das quais se pode
entender este conceito, construiu-se o conhecimento antropológico. O termo cultura foi e vem
sendo analisado por diversos ângulos, com base em diferentes premissas, o que resulta em um
quadro diversificado de idéias e concepções. Podemos conceituar a cultura de inúmeras
formas como, por exemplo, (1) a maneira de vida geral de um grupo, (2) uma maneira social
de se pensar, agir e sentir, (3) um conjunto de certos comportamentos adequados à resolução
de problemas específicos ou (4) um conjunto de técnicas ou estruturas de ajustamento do
indivíduo ao ambiente externo e ao convívio com outros. Estes quatro conceitos vagos de
cultura podem ainda ser divididos em duas grandes abordagens, que de uma certa maneira
refletem, genérica e aproximadamente, duas tradições distintas nas ciências sociais e na
antropologia especificamente.

20
As noções de número 3 e 4 refletem uma primeira abordagem, que considera a cultura como
sistemas adaptativos de padrões comportamentais transmitidos socialmente, que permitem ao
homem interagir com seu meio ambiente e com os outros seres humanos. De acordo com
Baert (1998), estas noções de cultura alinham-se a uma tradição sócio-antropológica centrada
em questões macro-sociais, segundo a qual os cientistas buscam ocupar-se de entidades
sociais que estariam por cima das rotinas e contingências da vida cotidiana. Esta tradição,
típica da primeira metade do século XX mas que ainda tem grande importância no nosso
pensamento sobre o mundo social, centra-se na busca das funções de instituições culturais ou
conteúdos de estruturas sociais ocultas que exercem uma influência duradoura sobre os
grupos, entre muitas outras questões. Por exemplo, a tradição antropológica funcionalista
assume um conceito de cultura que se aproxima do conceito de sociedade ao centrar-se nos
padrões de relações sociais e nas funções de instituições culturais como os sistemas
econômicos, as práticas religiosas, entre outros. Malinowski, um dos fundadores da
antropologia funcionalista, recusava-se a desvincular a cultura da sociedade. Para este autor, o
social é necessariamente cultural, no sentido de que as relações sociais não existem sem
conteúdo. Trata-se de conceitos intimamente relacionados que deveriam ser analisados em
associação. Se entendermos a sociedade como um conjunto organizado de indivíduos que
adotam um modo de vida, a cultura é este modo de vida. Da mesma forma, se entendermos a
sociedade como um conjunto de relações sociais, então a cultura é o conteúdo destas relações
(FIRTH, 1952, p. 27). Pode-se ainda relacionar esta tradição, principalmente os estudos de
antropólogos funcionalistas britânicos e estruturalistas franceses, às denominações
antropologia social e antropologia estrutural.

Já as noções de número 1 e 2 refletem uma segunda abordagem que considera a cultura como
sistemas de conhecimentos que permitem o estabelecimento de formas particulares de vida em
grupo. Os antropólogos que compartilham desta abordagem salientam o papel dos sistemas de
significados no compartilhamento e na negociação de modos de vida específicos. Esta
abordagem faz parte de uma tradição sociológica e antropológica que põe em grande destaque
os estudos empíricos das interações reais entre os indivíduos, e desloca o foco de análise de
muitos cientistas sociais, que eram centrados primordialmente nas questões macro-sociais,
para as interações micro-sociais. Esta tradição é resultado do desenvolvimento,
principalmente após 1950, do interacionismo simbólico, na sociologia, e do paradigma
interpretativo, na antropologia, entre outros referenciais de análise (BAERT, 1998). A
antropologia interpretativa, por exemplo, assume um conceito semiótico de cultura, segundo o

21
qual esta seria os significados e os conhecimentos que os grupos sociais constroem e
negociam constantemente, e que lhes permitem viver formas específicas de vida. Assim,
‘cultura’ e ‘sociedade’ são considerados conceitos passíveis de serem analisados
independentemente, de maneira que as formas da sociedade sejam consideradas a substância
da cultura. Podemos associar esta tradição à denominação antropologia cultural,
principalmente à antropologia americana, que tradicionalmente conceitua e estuda a cultura
como padrões de comportamento, normas de conduta, os conjunto de crenças, códigos e
símbolos transmitidos de geração a geração.

Um consenso geral sobre a definição de cultura nunca foi possível de ser alcançado durante o
desenvolvimento da antropologia. Cada tradição antropológica, com suas pressuposições,
foco específico e limitações, destaca somente certos aspectos do vasto universo sócio-cultural.
Na próxima seção são discutidas as várias tradições teóricas que se consolidaram ao longo da
história da antropologia, e que tratam do conceito de cultura de maneiras muito diversas.

1.3 Antropologia: controvérsias e paradigmas

Existe uma importante tradição filosófica que trata da ciência e da produção do conhecimento
científico. As discussões travadas por estes filósofos giram em torno de questões
fundamentais, entre elas como produzimos conhecimento científico e como se desenvolvem as
ciências. Nesta tradição, um conceito importante é o de paradigma. Trata-se de uma noção
que gerou intensas discussões, mas que pode ser utilizada como base para o mapeamento das
tradições antropológicas. Pode-se dizer que, de acordo com Kuhn, um paradigma é um
elemento estrutural de pensamento. Ele é composto por suposições teóricas gerais, valores,
regras, e métodos que são adotadas por uma comunidade de cientistas. Um paradigma articula
as premissas básicas que são compartilhadas por um grupo de cientistas em seus esforços de
desenvolver um corpo coerente de conhecimento (KUHN, 1970). Assim como em outras
ciências, o conhecimento antropológico pode ser dividido em paradigmas distintos, ou
estruturas de pensamento, que agregam um conjunto específico de cientistas. Estes cientistas
compartilham premissas e conceitos comuns, que são a base para o desenvolvimento de suas
pesquisas empíricas e de suas abordagens teóricas.

Nas próximas seções serão apresentadas brevemente as várias tradições de estudo da cultura,
com destaque àquelas que são úteis à argumentação desta tese. É possível associar cada

22
tradição a um paradigma antropológico específico. Assim, no contexto da antropologia, um
grupo de cientistas (alinhados a um paradigma) adota um conjunto de premissas, incluindo-se
um conceito específico de cultura, enquanto outro grupo (alinhados a um outro paradigma)
adota outras premissas e outro conceito de cultura. Nas ciências sociais, a existência de
diversos paradigmas simultâneos diz respeito ao fato da comunidade científica adotar
premissas e desenvolver, ao mesmo tempo, idéias muitas vezes conflitantes ou incompatíveis
entre si, de forma que exijam a tomada de partido dos cientistas. A noção de paradigmas na
antropologia, entretanto, é controversa. Deve-se considerar as limitações das discussão a
seguir, já que a complexidade e diversidade que caracterizam cada uma das tradições
comportar freqüentemente desvios e inspirações ‘outras’, o que dificulta a construção de um
mapa minimamente coerente da matriz disciplinar isto é, do conjunto diversificado de teorias
e paradigmas disponíveis aos antropólogos (OLIVEIRA, 1988). Como sugere Oliveira (1988),
parece-lhe não haver atualmente modalidade do fazer antropológico que não tenha suas
inspirações relacionadas à combinação de paradigmas históricos.

Antes de serem analisados os paradigmas que influenciam historicamente a maneira como


entendemos a cultura, será discutido brevemente um critério para a classificação destas
estruturas de pensamento. Associados ao conceito de cultura adotado no âmbito do
paradigma, este critério é, na realidade, uma grande controvérsia básica entre os antropólogos.
De fato, no contexto da carreira antropológica, tradicionalmente faz-se necessário que o
cientista assuma um dos lados da controvérsia, o que vêm a ser premissas distintas que
balizam os trabalhos de diferentes grupos de antropólogos. A definição desta controvérsia e a
posterior classificação das idéias sobre a cultura devem ainda ser entendidos como uma
interpretação da matriz teórica da antropologia, já que cada teoria apresenta uma
complexidade que muitas vezes torna seu enquadramento uma tarefa difícil e aproximada.
Dito isto, que pressuposições sobre a cultura e sobre a maneira de estudá-la influenciaram a
composição dos diversos paradigmas que caracterizam a antropologia? Será discutida na
próxima seção a controvérsia relevante aos argumentos desta tese.

1.3.1 Diacronia X sincronia

Podemos dizer que a inclusão da variável tempo nos estudos sobre a cultura é uma grande
controvérsia entre os antropólogos. Tradicionalmente, o estudo da evolução das sociedades ao
longo do tempo tem sempre estado sob a responsabilidade da História, enquanto a
antropologia deveria se ocupar do que existiria de fundamental em termos de humanidade, e
23
que fugiria à influência do tempo. No entanto, esta proposta não é, nem de longe, consensual
entre os antropólogos. Uma das discussões mais tradicionais entre os teóricos da antropologia
se refere à necessidade de inclusão da dimensão temporal às explicações antropológicas dos
fenômenos sócio-culturais. É possível conhecermos as culturas (e as sociedades) no que elas
têm de atemporal, ou se trata de uma missão sem sentido por ser o tempo uma dimensão
fundamental à apreensão da natureza dos fenômenos sociais? Há muito por detrás desta
questão.

Como explica Schwarcz (2001), as limitações encontradas por antropólogos pioneiros e


relacionadas aos documentos e arquivos históricos dos grupos humanos estudados eram vistas
como barreiras reais ao desenvolvimento de estudos objetivos e à construção de conclusões
cientificamente válidas; tratava-se de um contexto histórico profundamente influenciado pelo
ideal iluminista da ciência objetiva e racional. Assim, para alguns, em especial àqueles na
Europa continental e insular, o desenvolvimento da disciplina deveria abdicar da história,
como estratégia capaz de manter a objetividade de suas conclusões, mas também como
maneira de marcar um projeto intelectual distinto. Para outros, em especial àqueles do outro
lado do Atlântico, a compreensão da natureza humana não deveria pôr o tempo de lado, já que
a especificidade de nossos comportamentos culturais é função da história dos grupos nos
quais nos inserimos. Como conseqüência desta controvérsia, podemos identificar dois tipos de
análise: as perspectivas sincrônica e diacrônica da cultura.

A perspectiva sincrônica de análise da cultura exclui a variável tempo. Antropólogos que


adotam esta abordagem consideram que a antropologia deva se focar na exploração do que as
culturas têm de permanente, de atemporal. Desta maneira, pode-se estabelecer uma divisão
mais clara entre a antropologia e a história: esta estudaria os fenômenos sócio-culturais ao
longo do tempo, enquanto aquela poderia assimilar discussões históricas, mas sempre com o
objetivo de compreender o que existe de permanente dentro e entre os grupos sociais. Nesta
perspectiva, o tempo é excluído da análise, ou é colocado “entre parêntesis”, como se não
fosse relevante às conclusões finais sobre a cultura. As tradições antropológicas européias
ligadas à Escola Estruturalista Francesa e à Escola (Estrutural-)Funcionalista Britânica
assumem esta premissa. Lévi-Strauss, mestre do estruturalismo francês, é um dos principais
defensores desta abordagem (LÉVI-STRAUSS, 1983).

Por outro lado, antropólogos que assumem uma perspectiva diacrônica não aceitam a
exclusão do tempo da análise cultural. Estes antropólogos consideram que a cultura não pode
ser entendida apropriadamente se não for apreendida em associação a seu contexto temporal

24
(OLIVEIRA, 1988). Assim, a história teria mais a acrescentar aos estudos antropológicos do
que argumentos que nos permitam isolar o que exista de atemporal no universo social. Dentro
da matriz disciplinar da antropologia, as tradições norte-americanas ligadas à Escola
histórico-cultural e à Escola Interpretativa assumem a temporalidade como uma dimensão
social fundamental às conclusões sobre a cultura. Como bem coloca Schwarcz (2001, p. 125),
a tensão entre sincronia e diacronia habita a essência da definição da antropologia:

A antropologia, desde seu nascimento institucional, estabeleceu relações tensas e,


muitas vezes, pouco cordiais, com a História. Sobretudo no campo da antropologia, a
necessária contraposição com a História pareceu vincular-se à própria definição da
disciplina, que precisava, de alguma maneira, diferenciar-se para compor um campo
mais definido de atuação. [...] Foi assim que na tradição antropológica a questão da
diacronia mobilizou escolas e autores, mesmo que para se destacar dela. Nesse último
caso, ‘enfrentar o tempo’ e recorrer a ele fez parte da própria trajetória da disciplina.
Com efeito, se os primeiros antropólogos evolucionistas de alguma maneira
introduziram a temporalidade em sua concepção – apesar de impor uma noção
etapista e serial –, os demais acabaram fazendo da disciplina uma espécie de anti-
história.

É possível analisar o desenvolvimento do pensamento antropológico em termos desta grande


controvérsia, graficamente representada na tabela 1. De fato, os diversos paradigmas
antropológicos assumiram uma ou outra orientação básica em relação à variável “tempo”, o
que culminou com a formação de uma matriz disciplinar diversa. Assim, os antropólogos se
alinham a um ou outro paradigma, dependendo de suas inclinações pessoais, o que implica a
sua identificação com determinada perspectiva do conceito de cultura; em especial, com a
inclusão ou não do tempo como uma variável no estudo da cultura. Por sua vez, a assimilação
desta variável por parte das tradições antropológicas diacrônicas também aconteceu segundo
premissas e propostas distintas, gerando teorias e agendas de pesquisa também bastante
divergentes. Em especial, pode-se argumentar que estas tradições não assumiram a
centralidade do tema mudança cultural, apesar de terem reconhecido a relevância da variável
“tempo”. Por fim, pode-se também notar que o pensamento antropológico se desenvolveu
conforme várias tradições geográficas, que assimilaram diferentes orientações teóricas e
metodológicas relacionadas a esta controvérsia. É possível apontar três regiões bem distintas
para o desenvolvimento da antropologia; a América do Norte, a Grã-Bretanha e a França.

25
Tabela 1

TRADIÇÕES ANTROPOLÓGICAS E A VARIÁVEL ‘TEMPO’

Tradição
antropológica pré- Tradição antropológica pós-evolucionista
clássica

Tradição Francesa; Tradição Britânica:


Sincronia
Escola Racionalista e Escola Funcionalista e
Estruturalista Estrutural-funcionalista

Tradição Americana: Tradição Americana:


Diacronia Escola evolucionista
Escola histórico-cultural Escola Interpretativa

Fonte: Adaptado de OLIVEIRA (1988), p. 139.

1.4 Antropologia: as tradições de estudo da cultura

Não existe um consenso entre os historiadores da antropologia sobre a época específica que
poderia ser considerada sua fundação, ou sobre o teórico que seria o seu fundador. Da mesma
forma, o advento do conceito de cultura também não é definido de maneira unívoca. Na
realidade, a palavra ‘cultura’, e seu termo-irmão ‘sociedade’, aparecem já nos séculos XVIII,
com significados diferentes daqueles que utilizamos atualmente. Podemos estabelecer que a
história do pensamento antropológico começou a vários séculos atrás, com o estudo da cultura
no contexto da Ilustração, como sustenta Harris (1979), em sua obra The rise of
anthropological theory. Segundo o autor, um dos principais temas da efervescência intelectual
que precedeu a Revolução Francesa foi exatamente o que podemos dizer uma versão
incipiente de um conceito e de uma teoria da cultura. Nesta mesma linha, Evans-Pritchard
(1987), em A history of anthropological thought, sustenta ser possível encontrarmos em
pensadores clássicos muitos dos elementos teóricos que formam nossas visões atuais sobre
cultura. Apesar das raízes do pensamento antropológico localizar-se em uma época muito
anterior, pode-se sugerir que a antropologia teve seu desenvolvimento acelerado com o

26
Paradigma Evolucionista (Evans-Pritchard,1987). Pode-se chamar este paradigma
antropológico de pré-clássico, anterior à consolidação da antropologia e da Sociologia como
disciplinas especializadas. Teóricos evolucionistas estudavam a evolução cultural dos grupos
humanos, isto é, a mudança cultural em larga escala, por meio da comparação de diferentes
sociedades, seus costumes, hábitos e fatos culturais. Neste sentido, o paradigma evolucionista
privilegiava um ângulo diacrônico de análise ao interessar-se pela descoberta de leis que
regessem a evolução cultural da humanidade.

Como resultado da consolidação dos paradigmas clássicos, no início do século XX, a


antropologia já aparece como uma ciência social especializada e estruturada, que se diferencia
significativamente de outras pela adoção da etnografia. Esta estruturação aconteceu como o
resultado de um movimento de contestação das premissas consideradas pouco racionalistas
que os evolucionistas assumiam no estudo da cultura. Adotando idéias da Escola Racionalista
Francesa, cujo fundador foi Durkheim e que também influenciava a incipiente sociologia,
formou-se a Escola Funcionalista Britânica, com Malinowski e Radcliffe-Brown como os
seus pesquisadores mais preeminentes. Do outro lado do Atlântico, Boas fundava a Escola
histórico-cultural Americana, estabelecendo premissas também distintas daquelas
empregadas pelos evolucionistas no estudo da cultura. Nas próximas seções serão
apresentadas as principais perspectivas teóricas que compõem o que Oliveira (1988)
denominou matriz disciplinar – ou o “caldeirão” de abordagens teóricas e metodológicas
disponíveis aos antropólogos e cientistas de outras afiliações. Uma premissa importante que
caracteriza esta discussão é que, nas ciências sociais, paradigmas mais antigos não são
necessariamente suprimidos por ocasião do desenvolvimento de novas abordagens. Apesar
dos paradigmas serem discutidos separadamente, eles serão apresentados sem a intenção de
ordená-los historicamente. Na realidade, os paradigmas clássicos foram parcialmente
desenvolvidos de maneira simultânea por cientistas inseridos em seus locais de maior
disseminação, ou contextos acadêmicos: a antropologia francesa, britânica e norte-americana.

1.4.1 Tradições antropológicas sincrônicas: Escola Racionalista Francesa e a Escola


Estruturalista Francesa

A França e a Inglaterra foram os contextos nos quais se desenvolveu a tradição antropológica


sincrônica. Esta tradição pode ser resumida em termos dos paradigmas propostos pela Escola
Racionalista Francesa, fundada por Durkheim, e pela Escola Funcionalista Britânica, que
teve Malinowski como seu fundador. Posteriormente, a tradição antropológica sincrônica
27
desenvolveu-se e atingiu sua expressão máxima com a Escola Estruturalista Francesa, que
teve em Lévi-Strauss seu maior expoente. Serão analisadas nesta seção as escolas racionalista
e estruturalista francesas.

As idéias de Durkheim são consideradas fundamentais ao advento das ciências sociais


modernas. Freqüentemente referido como um dos fundadores da sociologia, Durkheim e seus
colegas, Lévy-Brühl, Henry Hubert e Marcel Mass, também tiveram um grande impacto no
pensamento antropológico. Se considerarmos que os evolucionistas criaram uma escola de
pensamento social cujas fronteiras com a filosofia e com a história eram tênues, podemos
dizer que Durkheim e seus alunos foram os responsáveis por um redirecionamento radical do
pensamento social. Inspiradas nas ciências naturais, a sociologia (e a antropologia, na época
não havia uma divisão clara entre as duas disciplinas) deveria ser uma ciência social
autônoma e racional, dotadas de método e objetos próprios. Como veremos, as idéias de
Durkheim influenciaram também escolas de pensamento fora da França, como o
Funcionalismo Estrutural Britânico de Radcliffe-Brown. Nas seções seguintes, estas escolas
de pensamento serão brevemente discutidas.

A mais básica das preocupações de Durkheim foi o estabelecimento de um método racional


para explorar os fenômenos coletivos. Distanciando-se dos evolucionistas, cujas teorias ele
acusou de serem estritamente filosóficas e sem fundamentação empírica suficiente, Durkheim
se inspirou no racionalismo das ciências naturais para propor uma nova perspectiva de
investigação social. Ele advogava a importância de delimitarmos o objeto de estudos das
ciências sociais e utilizarmos métodos específicos para explorá-lo. O fato social deveria ser o
objeto desta nova ciência, definido como aquele que independe da vontade de uma pessoa e é
caracterizado pelo seu caráter coercitivo, geral e externo em relação a ela. Como exemplos,
Durkheim cita o direito, a moral, as crenças, os usos e até as modas. Este é seu ponto de
partida ao escrever As regras do método sociológico (1972, orig. 1895), a primeira proposta
metodológica completa para a investigação dos fatos sociais. Conforme Durkheim, a
especulação filosófica deveria dar espaço a abordagens empiricamente fundamentadas no
estudo do universo social. Seria necessário entrar em contato com os fatos sociais de uma
forma mais direta, sentir a sua diversidade e especificidade, para que os problemas sociais
pudessem aparecer aos olhos do pesquisador. A aplicação de um método racional apropriado
a estes problemas, e alinhado à natureza dos fatos coletivos, se fazia necessária. Em seus
esforços para delimitar o campo de estudo das ciências sociais, Durkheim diz que:

28
Em lugar de tratar a Sociologia in genere, nós nos fechamos metodicamente numa
ordem de fatos nitidamente delimitados; salvo as excursões necessárias nos domínios
limítrofes daquele que exploramos, ocupamo-nos apenas das regras jurídicas e
morais, estudadas seja no seu devir e sua gênese por meio da História e da Etnografia
comparadas, seja no seu funcionamento por meio da Estatística. Nesse mesmo círculo
circunscrito nos apegamos aos problemas mais e mais restritos. Em uma palavra,
esforcamo-nos em abrir, no que se refere à Sociologia na França, aquilo que Comte
havia chamado a era da especialidade (DURKHEIM, 1970, p.126).

Os esforços de Durkheim para definir um campo de estudos distinto da filosofia, da psicologia


e da história podem ser associados ao projeto racionalista cujas origens remontam ao
Iluminismo. As regras do método seria o marco inicial de um amplo esforço para construir
uma verdadeira “ciência natural dos fatos sociais”: ao delimitar o objeto de estudos da
sociologia e estabelecer as diretrizes para a investigação científica, poderíamos chegar a leis
que descrevessem o funcionamento de fenômenos sociais. Como Oliveira (1988) nos explica,
Durkheim estabeleceu a base para uma nova perspectiva de questionamento focada no
conhecimento aprofundado de outras sociedades e de suas consciências coletivas, através de
um método comparativo. Durkheim inovou ao propor que as sociedades são entidades que
deveriam ser estudadas em seus próprios termos, sendo sistemas integrados e lógicos, nos
quais todas as partes são dependentes umas das outras e operam juntas para manter o todo.
Assim, o universo social deveria ser explicado por meio do próprio universo social, o que
requeria o abandono de recursos à psicologia, por exemplo. Seus trabalhos sobre a integração
social e o ritual tiveram um impacto fundamental no início do desenvolvimento da
antropologia européia, mais tarde assimiladas também pela antropologia americana. Podemos
associar a idéia de ‘cultura’ ao conceito durkheimiano de consciência coletiva, que é
fundamental para entendermos a questão da integração social. Como Durkheim disse;

[...] a consciência coletiva é a forma mais alta da vida psíquica, sendo ela a
consciência da consciência. Estando ela fora e sobre as contingências locais e do
indivíduo, ela vê somente o aspecto permanente e essencial das coisas, que ela
cristaliza em idéias comunicáveis…somente ela pode equipar a mente com os moldes
que são aplicáveis a totalidade das coisas e que faz com que seja possível pensar
nelas (DURKHEIM, 1989, p.444).

Sobre a natureza da consciência coletiva, Durkheim diz:

29
O conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma
sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida própria; pode-se chamá-lo
de consciência coletiva ou comum. [...] é, por definição, difusa em toda a extensão da
sociedade. [...] Com efeito, ela independe das condições particulares nas quais se
encontram os indivíduos; estes passam e ela permanece. É a mesma no Norte e no Sul,
nas grandes e nas pequenas cidades, nas mais diferentes profissões. Da mesma forma,
não muda a cada geração mas, ao contrário, enlaça umas às outras as gerações
sucessivas. Ela é portanto inteiramente diferente das consciências particulares, ainda
que não se realize senão nos indivíduos (DURKHEIM, 1993, p. 74).

Durkheim subscreveu uma divisão dicotômica de tipos de sociedade apresentando os


conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, associados à integração
social, retirando entretanto a variável tempo do centro das análises sobre o universo social.
Em sua tese de doutoramento sobre a divisão social do trabalho, ele justapôs as sociedades
modernas e as tradicionais, que se caracterizariam pela existência da consciência coletiva, um
conjunto de crenças e sentimentos comuns à média da população capaz de integrar a
sociedade e garantir a sua coesão. Estes dois tipos de sociedades caracterizariam-se,
entretanto, por tipos distintos de solidariedade, ou por padrões distintos de integração. As
sociedades primitivas tinham sua integração baseada na solidariedade mecânica. Este tipo de
integração resulta de um certo número de estados de consciência comuns aos membros da
sociedade, que ligam o indivíduo à sociedade. A solidariedade mecânica é maior na medida
em que os estados comuns de consciência, as idéias e as tendências comuns, ultrapassem em
número e intensidade aquelas tendências que pertencem à esfera da individualidade. Esta
solidariedade se intensifica, portanto, na razão inversa da personalidade. Já as sociedades
modernas caracterizam-se por outro tipo de integração, baseada na solidariedade orgânica.
Este tipo de integração surge com a crescente divisão social do trabalho nas sociedades em
industrialização, à medida que as tarefas vão ficando cada vez mais especializadas. Parte-se
do princípio que as pessoas diferem umas das outras (o que diverge do princípio da
solidariedade mecânica). Assim, em sociedades modernas, a consciência coletiva deve deixar
uma parte da consciência individual descoberta, de forma que o indivíduo possa assumir uma
esfera própria de ação. Segundo Durkheim, a coesão que resulta deste tipo de solidariedade é
mais forte: cada um depende muito estreitamente da sociedade na qual o trabalho é dividido.
A idéia durkheimiana de que as sociedades precisam de um ou outro tipo de solidariedade

30
para se manterem foi posteriormente assimilada por funcionalistas, como veremos na próxima
seção (DURKHEIM, 1947; 1993).

Coerente com seu projeto intelectual, Durkheim construiu uma obra clássica, baseada em sua
metodologia para a ciência social emergente. O trabalho de Durkheim pode ser considerado
do tipo intelectualista, ou seja, baseado na busca de verdades fundamentais sobre o universo
social. O método comparativo usado por ele permitia a teorização sobre aspectos mais amplos
da vida social. Entretanto, qualquer tipo de classificação de sua obra só pode ser feita
parcialmente. Apesar da generalização ser um de seus objetivos principais, Durkheim dava às
diferenças entre os povos grande relevância no entendimento do universo social. Como coloca
Baert (1998), para Durkheim, a existência de tais diferenças era central à refutação de
qualquer teoria moral abrangente. Apesar de Durkheim considerar importante o uso de dados
e análises históricas em suas teorias, além dos dados etnográficos, grande parte de suas teorias
era baseada na extração da variável ‘tempo’, ou seja, eram análises sincrônicas que tinham o
propósito de capturar o que o mundo social teria de fundamental, independente do momento
histórico específico.

O enfoque sincrônico de Durkheim é claro em sua última fase intelectual, quando o autor
concentrou-se nos estudos da religião, suas origens e seu papel na sociedade, que o levou a
escrever As formas elementares de vida religiosa. Esta fase marca a introdução de novos
elementos em sua teoria e método, que foram essenciais ao desenvolvimento da antropologia:
a leitura dos textos etnográficos de seus amigos influenciou a maneira com que Durkheim
sustentava os seus argumentos. Apesar de ter sido um advogado da importância da pesquisa
de campo para dar suporte às teorias sociais, Durkheim não coletou os dados empíricos de
suas teorias junto aos povos estudados. As formas elementares de vida religiosa é uma obra
clássica da antropologia que trouxe importantes contribuições para as ciências sociais. O livro
foi crucial para a reflexão do papel da religião na sociedade, porém vai além desta temática.
Durkheim não só discute a origem, a definição e a função das religiões, mas também elabora
uma teoria do conhecimento a partir desta discussão, que explica a formação de nossas
categorias iniciais de pensamento. Durkheim constrói seus argumentos baseado no estudo de
sociedades “primitivas” da Austrália. Sua idéia era que os traços típicos da religião podiam
ser encontrados em todas as sociedades, porém, nas “primitivas” estes traços são mais simples
e podiam ser mais facilmente observados. Durkheim acreditava que as características básicas
da religião podiam ser vistas nestas sociedades, e que estes mesmos traços se mantinham em
sociedades mais desenvolvidas, apesar de assumirem formatos disfarçados. Segundo

31
Durkheim, a religião e outras formas disfarçadas de representação tinham um papel essencial
na coesão social:

Crenças religiosas representam um grupo de especulações metafísicas sobre a


natureza e a ordem das coisas. Porém estas representações são integradas através de
maneiras rituais de comportamento e disciplina moral. Nestas sociedades a religião é
a fonte do comportamento altruístico que restringe o egoísmo, faz com que o homem
esteja disposto a se sacrificar e se desfazer de seus interesses, conectando-o a algo
autônomo, fazendo com que ele seja dependente de forças superiores que representam
um ideal (DURKHEIM, 1989, p. 381).

Em As formas elementares de vida religiosa, Durkheim busca compreender “as causas sempre
presentes das quais dependem as formas mais essenciais de pensamento e da prática religiosa”
(DURKHEIM, 1989, p. 8). A religião, em suas diversas formas, é a base para a formação das
nossas categorias de pensamento. Ao analisar formas primitivas de religião, como o
totemismo, Durkheim percebe que as maneiras como os homens encaram a realidade, suas
concepções de mundo, são construídas coletivamente e refletidas nas crenças religiosas.
Durkheim sugere assim que os conceitos básicos associados à religião e outras idéias
fundamentais, como os conceitos de tempo e de espaço, se originam da experiência social
recorrente do grupo. Aliás, os homens também se organizam como grupo com base em
critérios advindos de sua concepção de mundo, refletidos em suas crenças religiosas.
Durkheim sugere que a noção de categoria, que é de extrema importância na antropologia,
refere-se a unidades conceituais de pensamento que surgem do contexto específico de uma
sociedade e, como todas as unidades e categorias nestes primeiros sistemas de pensamento,
somente reproduziam as unidades da sociedade em interação com a natureza. As noções por
trás das categorias, com as quais ordenamos o mundo ao nosso redor, não derivam da
experiência individual, mas são compartilhadas no grupo e devem ser derivadas, inicialmente,
da vida coletiva. Assim, Durkheim sugere que as categorias básicas com que ordenamos e
classificamos nossa realidade têm um caráter essencialmente social. As idéias durkheimianas
sobre religião e conhecimento serão uma base importante principalmente para os
estruturalistas franceses e para os estrutural-funcionalistas britânicos.

Com a morte de Durkheim, seu sobrinho Mauss se tornou o teórico mais importante da Escola
Racionalista Francesa, coordenando o jornal de Durkheim, Année Sociologique, responsável
por registrar as idéias do grupo. A influência de Mauss na antropologia, em um período de
formação desta nova disciplina, também foi profunda. Sua produção escrita não foi extensa, e

32
se constitui basicamente de alguns artigos sobre vários assuntos. O caráter inovador da
antropologia de Mauss era claro na primeira aula de seu curso “A história da religião dos
povos não civilizados”, quando afirmava que o foco da investigação antropológica era os
costumes e seu caráter inconsciente. Esta idéia seria a base de um referencial metodológico e
teórico a partir do qual a antropologia francesa se desenvolveu. A idéia de maior influência de
Mauss é o fato social total. De acordo com este conceito, o fenômeno cultural é real somente
se integrado a um sistema. Não bastaria estudar suas peças ou fragmentos, mas deveríamos
reconstituir um conjunto para captar a essência e a coerência interna da sociedade. Esta tarefa
torna-se especialmente rica quando podemos apreender o todo da sociedade por meio de um
complexo cultural, compreendido em suas múltiplas dimensões. Este conceito é bem ilustrado
em seu trabalho de maior influência, Ensaio sobre a dádiva (MAUSS, 2003, orig. 1923-
1924), que é uma dissertação comparativa sobre a troca de bens nas sociedades "primitivas".

De acordo com Oliveira (1988), Ensaio sobre a dádiva é uma tentativa notável de se construir
uma teoria parcial sobre a sociedade. Usando como base exemplos empíricos de uma grande
variedade de sociedades, Mauss descreve o significado do ato de dar e receber bens, objetos
de troca. Ao dar, nas sociedades “primitivas”, mostra-se generosidade e, portanto, mostra-se
ser alguém merecedor de respeito; ao receber o bem, o indivíduo mostra respeito àquele que
lhe presenteou, e concomitantemente comprova a sua própria generosidade. Ao dar um bem
em retribuição, a pessoa está demonstrando que a sua honra é pelo menos equivalente à honra
daquele que presenteou anteriormente. Ao mesmo tempo, Mauss enfatiza o aspecto
competitivo e estratégico no ato de trocar: ao dar mais que seu concorrente, pode-se obter
mais respeito que ele. Este fato social total, em sua forma mais pura, é encontrado, por
exemplo, no noroeste americano, manifestações culturais chamadas por Mauss de potlatch.
Em seu trabalho, Mauss estabelece um fundamento para a compreensão teórica da natureza
das relações sociais. Como ele sugere, o que se troca nas ‘sociedades primitivas’ está
carregado com “poder”: as transações sociais nestas sociedades eram baseadas em princípios
morais e econômicos e que, sob a aparência de bens, escondiam-se regras de reciprocidade
obrigatória. A dádiva, conforme Mauss, é mais que um simples bem, ele representa e articula
cada aspecto da sociedade da qual faz parte (OLIVEIRA, 1979). Mauss afirma que,

Todos os tipos de instituições são expressas simultaneamente e de uma vez só:


religião, sistema legal e moral, esta última sendo política e familiar ao mesmo tempo;
economia, supondo-se que existem maneiras particulares de produzir e consumir (…),

33
ou até os fenômenos estéticos conseqüência destes fatos ou os fenômenos
morfológicos que estas instituições expressam (MAUSS, 1974, p.41).

Como diz Mauss, o estudo dos fatos sociais totais é um meio privilegiado de compreendermos
o universo cultural:

Foi considerando o todo no seu conjunto que conseguimos perceber o essencial, o


movimento do todo, o aspecto vivo, o instante fugitivo em que a sociedade toma
consciência, em que os homens tomam consciência fundamental deles próprios e da
sua situação relativamente a outrem. Há nesta observação concreta da vida social o
meio de encontrar fatos novos que nós começamos somente a pressentir. Nada, a
nosso ver, é mais urgente e frutífero que este estudo dos fatos sociais totais (MAUSS,
2003, p. 181).

A partir do conceito de fato social total e utilizando-se de exemplos retirados de sociedades


diversas, Mauss se propõe a reduzir as variedades existentes de práticas relacionadas com a
troca de bens a uma pretensa forma fundamental. Mauss mostra que, na realidade, o ato de
trocar bens é baseado na moralidade e, ao dar, receber e retribuir, laços morais são
estabelecidos entre as pessoas que trocam os presentes. Assim, todos estes fenômenos seriam
formas arcaicas de troca segundo a qual circulam objetos e pessoas, e estabelecem-se relações
sociais. Todos estes fenômenos seriam expressões de um princípio de reciprocidade do qual
dependem em grande medida as relações sociais entre indivíduos e grupos. Também alinhada
à perspectiva sincrônica de análise social, esta idéia de Mauss representa um passo adiante em
relação à abordagem durkheimiana.

Os estudos de Durkheim e Mauss foram pioneiros na antropologia. Ao identificar este


princípio de reciprocidade, Mauss sugere a existência de estruturas internas mais profundas
que permeiam os seres humanos, estruturas estas anteriores às consciências coletivas de
Durkheim na determinação dos fatos sociais. Posteriormente, as idéia dos dois autores foram
seletivamente apropriadas e desenvolvidas por Claude Lévi-Strauss, o mestre da Escola
Estruturalista Francesa – o paradigma no qual a sincronia alcançou seu estado mais puro.
Considerando-se a grande variedade de influências que Durkheim recebeu e a quantidade de
autores que influenciou, é difícil classificar sua obra em uma ou outra escola de pensamento.
Na realidade, a obra de Durkheim nem sempre dá a idéia de uma unidade totalmente coerente.
Se suas proposições sobre a divisão social do trabalho podem ser consideradas uma fonte de
inspiração para os funcionalistas, seus estudos sobre a religião já trazem muitas das premissas
estruturalistas. Como coloca Baert (1998), os escritos de Durkheim já traziam diversas
34
características que prenunciavam o estruturalismo, entre elas: (1) Durkheim chamou a atenção
aos traços da vida social que não podem ser reduzidos a um simples agregado de seus
componentes. Explicações integradoras também são propostas pelos estruturalistas. (2) A
idéia de condicionamento, de coerção, é essencial à explicação do fato social. Durkheim
sugeria que a sociedade penetra no indivíduo e molda seus comportamentos. Da mesma
forma, os estruturalistas destacavam o poder de coerção da estrutura social sobre o indivíduo.
(3) Durkheim utilizou com freqüência uma abordagem segundo a qual se entende o mundo
social em dois níveis, o primeiro é superficial, no qual nossos comportamentos adquirem sua
forma final; o segundo é a consciência coletiva, que, por detrás de nossos comportamentos,
moldam-nos e estruturam-nos. Os estruturalistas vão ainda mais a fundo neste tipo de
explicação. (4) Por fim, Durkheim baniu as explicações de nossos comportamentos que nos
remetem a estados subjetivos individuais, como intenções, motivos e propósitos, o que tem
grande afinidade com o projeto intelectual dos estruturalistas.

Entretanto, os projetos intelectuais de Durkheim e de Lévi-Strauss são muito diferentes. Se


em sua primeira fase de produção Durkheim aborda a transição entre dois tipos de
solidariedade, Lévi-Strauss sempre refutou explicações com algum caráter evolucionista. É
difícil classificar Durkheim em termos da natureza de seu projeto intelectual. Apesar de
utilizar os dados empíricos para teorizações abrangentes da vida social, Durkheim assumia as
diferenças das culturas humanas – ou consciências coletivas – como essência de um conceito
de humanidade, de forma a considerá-las centrais em sua refutação de qualquer teoria moral
generalista. Lévi-Strauss foi em outra direção, partindo das diferenças entre as formas de vida
em grupo para demonstrar o que os homens teriam em comum: as diferenças entre as culturas
são superficiais, na realidade estruturamos nossos comportamentos segundo certas premissas
e mecanismos fundamentais. Assim, haveria um nível de abstração do comportamento
humano ainda mais profundo e inconsciente que as consciências coletivas. Esta idéia
pressupõe um conceito de humanidade que assume uma essência da cultura, parâmetros
fundamentais para a estruturação de nossos comportamentos, independentemente do período
histórico ou da configuração cultural que nosso grupo assumir.

Lévi-Strauss é o exemplo mais típico de antropólogo intelectualista, preocupado com a busca


das verdades fundamentais sobre o universo social. De acordo com Leach (1970), Lévi-
Strauss acredita que a natureza é uma realidade autêntica, governada por leis que podem ser
parcialmente entendidas pelos seres humanos. A nossa capacidade de entender as leis da
natureza é severamente reduzida pelas limitações físicas que temos. Lévi-Strauss acredita, no

35
entanto, que se analisarmos como apreendemos a natureza, se observarmos as qualidades das
classificações que usamos e a maneira com que manipulamos as categorias resultantes,
poderemos inferir fatos importantes sobre os mecanismos do pensamento (LEACH, 1970,
p.27-28). A proposta de Lévi-Strauss é buscar a essência da cultura, os princípios
fundamentais que regem nossos comportamentos. Conforme nos diz, as configurações da
cultura são extremamente variadas e, ao aceitar o desafio de estudá-las e compará-las, um
antropólogo se surpreende de imediato com as diferenças encontradas. No entanto, Lévi-
Strauss argumenta que, considerando-se que o comportamento provém do cérebro humano,
deve haver características fundamentais, uma essência que seria acessível analiticamente.

Lévi-Strauss acreditava, como Durkheim, que a consciência coletiva é um conjunto de idéias


exterior aos indivíduos e dotado de uma força coercitiva sobre o pensamento e o
comportamento individual. No entanto, ele faz uma distinção entre os modelos conscientes e
inconscientes, e diz que os teóricos da Escola Racionalista não discutiam os modelos
inconscientes que governam a cultura, e só permaneciam no nível consciente. Lévi-Strauss
argumenta que é possível pensar em “moldes”, modelos inconscientes que possibilitam
considerar a cultura como algo interno ao ser humano, o que ele chamou de estrutura. O
conceito de estrutura de Lévi-Strauss também foi inspirado nas teorias de lingüística e
semiótica de Saussure (1966, orig. 1915) que, a partir da metade do século XX, passaram a
influenciar também cientistas sociais. Conforme Lévi-Strauss, as estruturas universais da
cultura podem ser encontradas somente no nível inconsciente, e nunca no nível de normas e
fatos manifestos. Em sua forma mais elementar, estes ‘moldes’ poderiam ser encontrados em
todo cérebro humano, como parte de sua neurofisiologia (HARRIS, 1979). Cada cultura
preenche estes moldes com seu conteúdo específico, e com suas próprias idéias que, em
última análise, estão em conformidade com as estruturas universais. O conceito de estrutura
de Lévi-Strauss se refere ao modelo inconsciente de cultura, os elementos fundamentais que
governam a nossa mente no estabelecimento de manifestações culturais. A estrutura é
compreendida como um tipo de lugar ou posição onde as diferenças podem ser reduzidas e,
assim, similaridades e relações entre comportamentos humanos podem ser notadas. De acordo
com Lévi-Strauss, a estrutura é uma posição vazia de tempo e de conteúdo de caráter
procedimental, sendo definida por princípios e relações lógicas. Estes princípios e relações
lógicas podem ser sempre reduzidos a pares de idéias em oposição, a partir dos quais os
significados são construídos. Como na dialética hegeliana, idéias adicionais são alcançadas ao

36
se considerar os pares em oposição como sendo contradições que tendem a produzir terceiras
idéias como mediadoras.

Nesta posição, os antropólogos estruturais estudam conteúdos culturais específicos ao


analisarem povos, instituições e relações sociais historicamente localizados, com o propósito
de encontrar relações fundamentais. Ao procurar os fundamentos da cultura, não
aprenderemos nada se simplesmente compararmos fatos culturais como elementos isolados.
Devemos comparar os padrões de relações que dão sentido a certos tipos de comportamento
humano. Assim, o antropólogo estrutural não compara os sistemas políticos de forma linear,
considerando que um seja mais evoluído que o outro; este antropólogo tampouco se centra na
análise das manifestações culturais conscientes, já que estas são somente formas de cultura
determinadas historicamente. O antropólogo estrutural situa a discussão ao redor do conceito
de política em si, analisa as manifestações conscientes relacionadas a este conceito através de
dados etnográficos e históricos, e tenta entendê-lo de uma maneira mais ampla e profunda por
meio desta análise. Assim, a antropologia de Lévi-Strauss defende a perspectiva sincrônica da
cultura. Para este autor, o estudo diacrônico da cultura, típico da História, é na verdade uma
abordagem necessária à antropologia. Apesar de reconhecer a importância da historicidade
para a compreensão dos povos e das culturas, esta compreensão seria um passo anterior ao
projeto estruturalista. Assim, o objetivo da antropologia seria reduzir as diferenças entre as
manifestações culturais dos povos, diferenças estas notadas tanto no espaço como no tempo,
às suas invariantes fundamentais (LÉVI-STRAUSS, 1970).

Ao analisar a cultura, os antropólogos estruturalistas consideram as suas formas manifestas,


compreendidas em ambos os estudos diacrônicos (História) e sincrônicos (antropologia);
porém, têm que reduzi-las analiticamente a uma estrutura, ou princípios e relações lógicas em
uma posição vazia de tempo e conteúdo de caráter procedimental. Os estruturalistas fizeram
grande parte deste trabalho centrados em temas como os mitos e o parentesco. Por exemplo, a
discussão de Lévi-Strauss em As formas elementares de parentesco (1976; orig. 1949) é um
ponto de partida básico às idéias estruturalistas sobre os modelos inconscientes da cultura. Por
um longo período de tempo, os antropólogos de tradições teóricas prévias consideravam o
casamento de um homem com sua prima ou com sua sobrinha dois tipos diferentes de
casamento. Lévi-Strauss argumenta que estes fenômenos não devem ser considerados
manifestações culturais essencialmente distintas, como se não fossem relacionadas. Ao
contrário, estas manifestações devem ser consideradas variações do mesmo tipo de fenômeno
cultural, as formas elementares de parentesco. Lévi-Strauss afirma que este tipo de casamento

37
é caracterizado pelo fato do matrimônio já ter sido socialmente definido pelo sistema. A regra
universal se refere à troca de mulheres. Estas variações de casamentos são manifestações de
um sistema baseado no princípio da troca de favores. Neste sentido, o casamento de um
homem com sua prima ou com sua sobrinha são configurações históricas de um princípio
sociológico implícito, o casamento como troca (LÉVI-STRAUSS, 1976). Em suas
proposições teóricas sobre as formas elementares do parentesco, Lévi-Strauss assimila idéias
de Mauss, o fato social total e o princípio de troca e reciprocidade que estrutura as relações
humanas. Ao analisar os diversos sistemas de parentesco em termos de variações de um
mesmo princípio, Lévi-Strauss os reduz a uma pretensa forma fundamental. A regra universal
da troca de mulheres diz respeito ao bem mais precioso que um grupo pode dar ao outro
(HARRIS, 1979). Assim, a proibição do incesto seria uma maneira de impulsionar o
intercâmbio de mulheres. Como coloca Lévi-Strauss, no momento em que um homem abdica
de uma mulher, há uma mulher disponível para mim. Da mesma forma, ao abdicar de uma
mulher em meu círculo social mais próximo, deixo-a disponível para outro homem. Assim, a
reciprocidade nas trocas é uma condição de solidariedade que une os grupos sociais maiores
que a família nuclear.

A obra de Claude Lévi-Strauss representou uma tentativa magistral de se construir uma


grande teoria sobre a cultura. Ao propor o método estruturalista de análise, em sua perspectiva
estritamente sincrônica, o autor configurava uma ruptura radical com as maneiras
anteriormente disseminadas de se teorizar o social, especificamente as perspectivas
diacrônicas dos evolucionistas. Em oposição à idéia de progresso, típica do paradigma
evolucionista, o estruturalismo de Lévi-Strauss trazia uma mensagem carregada de
significados políticos importantes. Em seu referencial teórico provocador, Lévi-Strauss
deslocava a atenção dos antropólogos aos princípios mais fundamentais que unem a todos os
seres humanos, e desautorizava qualquer comparação de culturas nos termos que os
evolucionistas faziam. Ao contrário, a análise estruturalista fazia com que culturas distantes e
ditas ‘primitivas’ ficassem incrivelmente parecidas com as culturas ditas ‘mais sofisticadas’.
Entretanto, na Europa, a crítica mais explícita ao paradigma evolucionista foi feita pela Escola
Funcionalista Britânica, como será exposto na próxima seção.

1.4.2 Tradições antropológicas sincrônicas: a Escola Funcionalista Britânica

Desenvolvida simultaneamente à tradição antropológica francesa, a Escola Funcionalista


Britânica compõe, junto às escolas francesas, a tradição antropológica sincrônica. É possível
38
dizer que a escola funcionalista, dominante na antropologia britânica entre 1930 e 1970,
assimilou idéias da Escola Racionalista Francesa e introduziu inovações importantes ao
pensamento antropológico, em um movimento de distanciamento do Paradigma
Evolucionista do século XIX. Pode-se dizer que os teóricos evolucionistas estudaram a
evolução cultural dos grupos humanos por meio da comparação de diferentes sociedades, seus
costumes, hábitos e fatos culturais. Teóricos como Sir James Frazer (1982), Morgan, e Tylor
(1958), entre outros, estavam interessados em descobrir verdades fundamentais sobre o
homem como um ser social. Eles acreditavam ser possível descrever as leis que regiam a
cultura e seu processo de evolução. Anteriores ao advento da etnografia, podemos caracterizar
os seus trabalhos pela centralidade da variável ‘tempo’ – o evolucionismo é um paradigma
diacrônico – e pela adoção do método comparativo. Estes cientistas reuniam um grande
número de fatos culturais de muitos grupos diferentes, e usaram estes fatos para comparar,
ilustrar e teorizar a cultura. Morgan, Frazer e Tylor eram antropólogos que propunham a
reconstrução em detalhes das seqüências da evolução cultural desde os primórdios da
humanidade até a era industrial, de maneira que as sociedades pudessem ser comparadas em
termos de seus costumes e manifestações culturais. Assim, os evolucionistas criaram grandes
catálogos dos hábitos humanos, que eram então comparados com a intenção da teorização.
Cada costume ou manifestação cultural era visto como uma ilustração crítica de um estágio
específico no desenvolvimento da sociedade em foco.

Assim, as manifestações culturais eram analisadas em uma perspectiva diacrônica, como


categorias de referência por meio das quais poderíamos determinar o estágio de evolução das
sociedades comparadas. Considerava-se que cada manifestação cultural tinha uma origem e
um fim, isto é, passava por um processo de desenvolvimento dotado de uma individualidade
própria. Ao compararem as manifestações culturais, os evolucionistas consideravam que
certas sociedades estavam em um estágio mais primitivo de evolução, enquanto outras
estavam em estágios mais civilizados. A comparação feita por estes cientistas era baseada
somente em uma linha temporal, isto é, havia somente um padrão de desenvolvimento cultural
em direção a certos padrões sociais, neste caso, a cultura do observador. Os evolucionistas
estavam convencidos de que as mudanças culturais nas sociedades eram regulares o suficiente
para permitir a sua reconstrução teórica e, portanto, quaisquer informações perdidas sobre os
estágios intermediários deste processo poderiam ser recuperadas por meio de uma análise
lógica. Estes cientistas acreditavam que, se fosse coletado um número grande o suficiente de
casos, eles poderiam identificar as regularidades do processo de evolução cultural. Com base

39
na idéia de que haveria somente ‘uma história’, isto é, todas as sociedades passariam pelas
mesmas etapas históricas num processo linear de evolução, os evolucionistas classificavam as
culturas em estágios mais simples a mais complexos, ou de estágios mais indiferenciados a
etapas mais diferenciadas em termos de manifestações culturais.

Segundo a abordagem dos evolucionistas, o processo de evolução cultural seria caracterizado


por sobrevivências. Este termo se refere às manifestações culturais que tiveram sua origem
em certas condições causais em uma época específica, escaparam do poder transformador do
tempo e podem ser encontradas em uma outra época, quando as suas condições causais
originais não estão mais presentes. Por exemplo, a discussão travada nos anos 50 sobre o
sistema sócio-econômico brasileiro tinha implícita a noção de ‘sobrevivência’. Cientistas
sociais daquela época sugeriam que o sistema sócio-econômico brasileiro, principalmente no
nordeste, tinha um caráter feudal, que seria reflexo de um passado português o qual nos cabia
destruir. As sobrevivências são vistas como ‘apêndices’ do passado no presente, são
manifestações culturais ‘esquecidas no tempo’ sem nenhum papel social específico. A idéia
de sobrevivências tinha um papel central no método comparativo usado pelos evolucionistas,
já que a história das culturas poderia ser reconstruída com base na análise deste fenômeno
(TYLOR, 1958; HARRIS, 1979; DAMATTA, 1987).

O trabalho dos funcionalistas ingleses assimilava uma crítica à idéia evolucionista das
sobrevivências. De acordo com esta crítica, nada na sociedade pode ser considerado como
desprovido de um papel, como se fosse uma característica passada esquecida no tempo.
Funcionalistas propuseram que a sociedade fosse estudada como um todo, um sistema
integrado de relações sociais, no qual as funções de práticas sociais pudessem ser entendidas
em relação à totalidade. Cada manifestação cultural deve ser analisada em termos de sua
função específica neste sistema, e nenhuma delas pode ser interpretada como errada ou
irracional, como se fosse algo indesejado, de uma época passada. Assim, os funcionalistas
mostraram que práticas sociais aparentemente irracionais escondem uma racionalidade, sua
função no sistema. É o papel do antropólogo captar esta racionalidade. No que diz respeito ao
exemplo do sistema sócio-econômico brasileiro, a perspectiva funcionalista nos fez perceber
que, na realidade, os traços feudais de nossas práticas sócio-econômicas deveriam ser
associados aos traços capitalistas que também caracterizavam nossa realidade, para
entendermos efetivamente o nosso sistema sócio-econômico. Tratava-se de reconhecer que
nossa realidade socioeconômica opera de forma peculiar. Para compreendê-la, é necessário
assumirmos os seus traços feudais e identificarmos suas funções.

40
De fato, as idéias da Escola Racionalista Francesa influenciaram muitos estudiosos e
inspiraram abordagens diversas em uma antropologia crescente. Além do Estruturalismo
francês, o pensamento de Durkheim também influenciou o funcionalismo. A obra de
Durkheim já prenunciava diversas das idéias adotadas pelos funcionalistas. Giddens (1978)
afirma que Durkheim é considerado a figura de maior influência no surgimento do
funcionalismo, especialmente no funcionalismo estrutural de Radcliffe-Brown. Fernandes
(1959), por exemplo, nos mostra que a primeira formulação adequada do conceito de função,
básico para a explicação funcionalista, está nas páginas das obras Divisão do trabalho
(DURKHEIM, 1947) e As regras do método sociológico (DURKHEIM, 1972). Em As regras,
Durkheim defendia que qualquer explicação adequada de fenômenos sociais deveria combinar
a análise causal com a análise funcional. A primeira trata de explicar a sucessão de fatos
sociais. A segunda explica porque se mantêm as práticas sociais. Como pressuposto, toda
prática social deveria ser analisada como parte de um contexto, um organismo social, e em
interdependência com outras práticas. Assim, a análise funcional tem como objetivo explicar
porque determinada prática social faz sentido no organismo social no qual se insere.
Durkheim fazia uma distinção importante entre intenções e funções. A função que
determinada prática social assume em uma dada sociedade pode ser diferente das intenções
dos indivíduos que as praticam. Assim, a análise social deveria transcender os propósitos dos
indivíduos e buscar identificar as funções das práticas sociais.

Captar objetivamente a racionalidade da sociedade por meio da identificação das funções de


suas manifestações culturais era um objetivo que requeria novas visões a respeito da
construção do conhecimento antropológico, em um movimento de distanciamento do
referencial evolucionista, tido como excessivamente filosófico e fundamentado por dados
pouco confiáveis. Os funcionalistas sugeriam que antropólogos de gerações anteriores não
iam a fundo no que diz respeito a suas tentativas de compreenderem efetivamente os povos
dos quais falavam. Assim, o trabalho dos funcionalistas britânicos deu à etnografia um novo
papel no processo de construção do pensamento social. Considerando-se que o papel de cada
manifestação cultural deveria ser apreendida no contexto da sociedade sendo analisada, a
etnografia foi considerada fundamental à investigação antropológica. Mesmo considerando
que na América do Norte Franz Boas já havia salientado a importância deste método, esta
metodologia de pesquisa ganhou uma força extraordinária na Europa com Malinowski, que
publicou em 1922 seu mais importante livro baseado na etnografia. A geração de Malinowski
trouxe novas perspectivas à antropologia européia com a introdução do conceito de

41
comparação relativizadora, rompendo de maneira definitiva com as abordagens
evolucionistas que predominavam na época.

A adoção da comparação relativizadora implicou reconhecer que as manifestações culturais


não deveriam ser classificadas em uma única linha temporal de evolução, conforme a
racionalidade do observador. Ao contrário, a atenção dos antropólogos era direcionada às
inúmeras possibilidades de práticas sociais e à racionalidade que poderia ser encontrada em
cada sistema sócio-cultural. Assim, a observação de como outros povos concebiam
alternativas para as questões sociais poderia enriquecer as percepções sobre nossa própria
sociedade. Isso levava a um certo respeito à capacidade de invenção humana, a um tipo de
humildade por meio da relativização das maneiras pelas quais os povos organizam a mesma
dimensão da realidade humana. Com o advento da comparação relativizadora, o método da
“antropologia de gabinete”, como foram apelidados os estudos antropológicos da escola
evolucionista, deveria ser substituído pela observação direta e participativa, para que o
pesquisador pudesse compreender em profundidade a maneira com que as pessoas organizam
suas interações sociais. O funcionalismo também reforçou a noção já introduzida por
antropólogos franceses e americanos de que o conteúdo das categorias de análise deveria ter
uma real correspondência com a realidade dos grupos estudados. Neste sentido, as categorias
de análise, como religião, parentesco etc, deveriam ser construídas à medida que os dados
sobre as interações sociais nos grupos fossem recolhidos. A escola funcionalista e a
popularização da etnografia, ao viabilizarem a aproximação entre o “nativo” e o pesquisador,
permitiram a construção de um conhecimento mais profundo a respeito dos diferentes
sistemas culturais compartilhados dentro dos grupos humanos (DAMATTA, 1987).

A adoção da comparação relativizadora era uma proposta de renovação na disciplina.


Alinhada à tradição empiricista, a antropologia funcionalista deveria transformar a
experiência de seus pesquisadores em sabedoria através de um movimento de ida e de volta: a
transformação do exótico em familiar e do familiar em exótico através da comparação
relativizadora. Deveríamos reconhecer que aquilo que era anteriormente considerado ‘traços
irracionais’ é, na verdade, uma resposta lógica a questões sociais conhecidas em nossos
próprios sistemas culturais (do exótico ao familiar); de maneira análoga, o que era concebido
como um padrão racional de comportamento pode ser interpretado como uma resposta
possível às questões sociais (do familiar ao exótico). A noção de que os diferentes povos
concebem alternativas diferentes para uma mesma questão social poderia enriquecer nossa
visão sobre o universo social. De acordo com esta perspectiva, o papel da teoria seria o de

42
encontrar maneiras de se comparar culturas. Esta comparação, entretanto, não assumia uma
linha temporal como critério para se classificar cada cultura em dado estágio de evolução.
Diferentemente, os funcionalistas abandonaram a variável ‘tempo’ de suas análises. O
relatório de pesquisa de campo poderia ser comparado a uma fotografia instantânea de certa
cultura. A comparação deveria acontecer entre manifestações culturais em termos de suas
funções. Através da comparação e do contraste, nossas respostas culturais poderiam ser mais
bem compreendidas, o que redirecionava a atenção do antropólogo: da busca de verdades
fundamentais sobre a humanidade para a atribuição de sentido à diversidade humana
(DAMATTA, 1987).

DaMatta (1987) exemplifica muito bem esta nova maneira de se pensar as sociedades. Ao
analisar o sistema de trocas das ilhas Trobriand, chamado kula, Malinowski mostra como
práticas sociais de um grupo dito ‘primitivo’ pode ajudar-nos a compreender melhor nossas
próprias manifestações culturais. Neste contexto, as populações trocavam braceletes e colares
por meio de cerimoniais e grandes expedições comerciais ritualizadas entre as ilhas. Estas
jóias, entretanto, eram ou muito pequenas para serem usadas por pessoas adultas, ou eram tão
grandes ou tinham tanto valor que seu uso era banido, exceto em dias de festividades que
reuniam os diversos grupos. Mas então qual era a finalidade deste sistema de trocas
complexo? Malinowski responde esta questão virando-se para sua própria sociedade,
analisando manifestações culturais por ele conhecidas. Em uma excursão ao castelo de
Edimburgo, ele percebeu a analogia entre o sistema do kula e as jóias da coroa britânica. Em
Edimburgo, Malinowski ouviu histórias que associavam cada jóia a seu uso e circunstância
histórica, o que dava a cada peça um significado cultural. A comparação relativizadora, desta
forma, permitiu que pensássemos o significado social destas práticas numa e noutra cultural.
Assim, Malinowski pode pensar estas práticas adotando o conceito de valor como referência:
tanto nas ilhas Trobriand como na Grã-Bretanha, o valor de jóias pesadas ou incômodas
demais para serem efetivamente usadas deveria ser entendido pela posse em si. O valor destas
jóias reside exatamente na glória associada a quem as possui. A associação destas jóias a
determinados momentos e circunstâncias históricas faz com que sejam consideradas grandes
preciosidades, capazes de diferenciar quem as possui. Assim, Malinowski rompe com os
evolucionistas ao indicar o eixo que deveria ser utilizado para a comparação das
manifestações culturais. Estas não deveriam ser comparadas em uma linha temporal de
evolução, o que provavelmente teria feito com que o kula fosse considerado um sistema de
trocas que desconhece o valor real dos objetos trocados e, portanto, atrasado na linha de

43
evolução da humanidade. Ao contrário, a análise antropológica deveria abster-se da
temporalidade e adotar a sincronia, uma perspectiva capaz de dar novos sentidos à diversidade
de práticas sociais.

Assim, podemos resumir a proposta funcionalista em quatro características: (1) os sistemas


sociais não têm sobrevivências, em termos evolucionários, pois cada manifestação cultural
tem uma função. Ao invés de fósseis culturais sem valor prático, práticas sociais se readaptam
a novos contextos, assumindo novas funções. (2) Manifestações culturais têm significados,
definidos em termos de funções, mesmo que muitas vezes estas funções não sejam fáceis de
se compreender. O funcionalismo dá outro sentido à idéia de ‘racionalidade’ ao mostrar que
práticas sociais podem ser inteligíveis e coerentes apesar de sua aparente
incompreensibilidade. Construir a racionalidade dos fenômenos sociais por meio da busca de
suas funções é papel do antropólogo. (3) A função de uma manifestação cultural deve ser
entendida nos termos da sociedade específica que está sendo estudada. A análise de uma
prática social deve assumir o pressuposto de que o seu significado depende da sua relação
com outros elementos do sistema cultural, e deve ser apreendido por meio de análises
etnográficas minuciosas que levem em conta a totalidade do ‘organismo social’. (4) As
sociedades devem preencher certos requisitos funcionais, ou satisfazer certas necessidades
para sobreviverem. Assim, manifestações culturais devem atender a estes requisitos para que
se considere a sociedade ‘saudável’ (DAMATTA, 1987, BAERT, 1998).

O funcionalismo é uma escola de pensamento social com longa tradição. Na realidade,


iniciou-se na Inglaterra, mas posteriormente cientistas de outros centros acadêmicos adotaram
suas premissas. Entre seus primeiros mestres, destacam-se Malinowski, cuja influência foi
máxima na década de 30, e Radcliffe-Brown, na década de 40. A análise dos trabalhos destes
cientistas nos permite identificar algumas idéias que caracterizam o chamado primeiro
funcionalismo. Ambas as abordagens eram baseadas na idéia de que a sociedade é um sistema
integrado de práticas e relações sociais. Suas análises eram sincrônicas, a variável “tempo”
era retirada da análise cultural também como uma forma de garantir a objetividade do
conhecimento e evitar especulações sobre a história (SCHWARCZ, 2001; OLIVEIRA, 1988).
Os primeiros funcionalistas sugeriam que as fontes de informações utilizadas pelos
evolucionistas e por outros cientistas sociais não eram confiáveis. Ao estudar a cultura,
entendida em termos de sociedade, os primeiros funcionalistas concentravam-se na análise de
instituições, por exemplo, sistemas políticos e econômicos ou sistemas de classificação. A
identificação de sistemas de parentesco e linhagens tornou-se crucial ao entendimento das

44
sociedades tribais não-ocidentais. Em termos de diferenças entre as abordagens dos primeiros
funcionalistas, é possível dizer que Malinowski explica a cultura assimilando perspectivas
psicológicas e biológicas. A cultura seria uma ferramenta para satisfazer as necessidades
básicas do ser humano. Diferentemente, as teorias de Radcliffe-Brown assumem uma
perspectiva estritamente sociológica ao enfatizarem a relevância de entendermos a estrutura
social. Seu referencial teórico foi denominado funcionalismo estrutural.

A abordagem de Malinowski pode ser caracterizada por assimilar dimensões biológicas e


psicológicas às suas explicações, em um movimento de distanciamento das idéias de
Durkheim sobre a primazia do social para a explicação do social. Suas idéias sobre a cultura,
reunidas em seu livro póstumo Uma teoria científica da cultura (MALINOWSKI, 1970),
podem ser resumidas à noção de que esta seria uma ferramenta que permite a adaptação dos
homens ao ambiente, isto é, a cultura seria uma extensão da autonomia humana. Neste
sentido, a cultura é vista como um meio construído pelo homem para satisfazer suas
necessidades. Assim, uma prática social cumpre uma função ao permitir a satisfação de uma
necessidade humana. Malinowski formulou a teoria de necessidades universais, que é tida
como a ferramenta para a comparação relativista. Pode-se identificar três níveis de
necessidades humanas. O primeiro nível é formado pelas necessidades básicas, como a
alimentação e a satisfação sexual, essenciais para a sobrevivência humana. O segundo nível é
formado pelas necessidades sociais, como a solidariedade e a cooperação. As necessidades do
segundo nível devem ser satisfeitas para que os homens possam satisfazer mais efetivamente
as necessidades básicas, do primeiro nível. No terceiro nível, encontram-se as necessidades
integradoras, que garantem a transmissão, de uma geração à próxima, dos padrões de
comportamento necessários à satisfação das necessidades sociais. Em contraste com os
animais, os seres humanos não possuem o aparato anatômico para satisfazer suas necessidades
básicas sem o auxílio da cultura. Em compensação, podemos transferir para nossas próximas
gerações as habilidades sociais necessárias para a satisfação de nossas necessidades básicas,
aumentando consideravelmente nossa capacidade de sobrevivência. Se tivéssemos que
reinventar a cultura a cada geração, sobreviver seria bem mais difícil.

Enquanto Malinowski associava a cultura à necessidade de satisfação dos impulsos


biológicos, Radcliffe-Brown assumia as idéias de Durkheim sobre a primazia do social para a
explicação do social ao defender que a sociedade tinha sua própria complexidade e dinâmica,
que não poderiam ser explicadas por meio de referências a mecanismos ou necessidades que
operariam em uma outra dimensão. Assim, ao tratar dos habitantes das ilhas Andaman,

45
Radcliffe-Brown defendia que a manutenção de sua sociedade dependia da existência de
certos sentimentos nas mentes dos andamanenses. Isso seria uma explicação psicológica se
Radcliffe-Brown não tivesse mostrado que estes sentimentos eram reforçados, mantidos e
transmitidos por meio de ritos e mitos, estes sim, fenômenos sociais. Assim, a sociedade não
poderia ser explicada por meio de um agregado de fenômenos psicológicos, como outros
cientistas sociais da época faziam; da mesma forma, as explicações biológicas não eram
apropriadas. A teoria do funcionalismo estrutural foi formulada por Radcliffe-Brown; porém,
entre as análises empíricas clássicas deste gênero destacam-se os trabalhos de Evans-
Pritchard, especialmente sua monografia sobre Os Nuer (EVANS-PRITCHARD, 1978).

Com base na idéia de que não é possível analisar categorias culturais fora de seu contexto, os
primeiros funcionalistas propõem os conceitos de totalidade, função e integração, que são
básicos para esta perspectiva. A totalidade deve ser a meta para o pesquisador funcionalista.
O caos aparente encontrado ao se entrar em contato com o campo de estudos deve ser
organizado, e o pesquisador deve reintegrar os vários elementos nos quais o comportamento
social pode ser dividido (DURHAM, 1978). A idéia de que a cultura ou a sociedade só podem
ser realmente entendidos como um sistema implica a importância dos conceitos de integração
e função. Apesar de sugerirem que a vida social possa ser entendida através de realidades
parciais, os primeiros funcionalistas assumem que a abstração parcial da realidade social leva
à incapacidade de se compreender o todo e, portanto, à uma visão inapropriada da sociedade.
Neste sentido, o antropólogo deve buscar constantemente a interação entre a instituição ou
atividade sendo estudada e os outros aspectos da vida social. É possível estudar diferentes
aspectos da cultura, porém, em uma perspectiva integradora. O conceito de função é
relacionado à integração na medida em que permite conectar as diversas dimensões que
compõem a cultura analisada. Os primeiros funcionalistas, entretanto, não conceituam
‘função’ da mesma maneira. A partir de 1930, Malinowski passa a definir a função de uma
prática social em termos de sua relação com determinada necessidade biológica do ser
humano. Diferentemente, Radcliffe-Brown sempre defendeu um conceito de função que diz
respeito ao papel de cada instituição ou prática no contexto social como um todo. A função
das práticas sociais não seria satisfazer as necessidades biológicas do indivíduo, mas
contribuir para a manutenção do todo social. A relação entre a manifestação cultural e o todo,
na teoria de Radcliffe-Brown, é de um sistema integrado no qual cada elemento foi
funcionalmente conectado. Os significados de elementos culturais eram definidos em termos

46
de função e eram relacionados aos requerimentos correntes do sistema social (MELATTI,
1978; DURHAM, 1978). Nas palavras de Radcliffe-Brown:

A função de qualquer atividade periódica, como o castigo por cometer um crime, ou


um funeral, é influenciar a vida social como um todo e, portanto, contribui para a
manutenção da continuidade estrutural. O conceito de ‘função’, conforme é definido
aqui, é a noção de uma estrutura constituída por uma série de relações entre
entidades, mantendo a continuidade da estrutura através de um processo vital
constituído por atividades (RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 170).

O funcionalismo de Radcliffe-Brown é geralmente chamado de estrutural por ser baseado nos


conceitos da estrutura social e forma estrutural (o conceito de ‘estrutura’ de Radcliffe-Brown
é diferente do conceito dos estruturalistas franceses). A estrutura social seria o ordenamento
de partes inter-relacionadas, a totalidade das relações sociais que conectam os indivíduos de
um grupo. Os componentes últimos de uma estrutura são os seres humanos, cujas relações
sociais são definidas pela institucionalização de direitos e deveres, normas. A estrutura social
também assimila as diferenciações dos indivíduos e das classes por seus papéis sociais. Pode-
se dizer que a estrutura social de Radcliffe-Brown é a própria sociedade vista como uma
totalidade num determinado momento. Assim, Radcliffe-Brown assumia que a estrutura social
poderia mudar, com a movimentação das pessoas, por exemplo, que podem assumir papéis
sociais diferentes. Entretanto, ao pesquisador deve interessar abstrair a forma estrutural deste
grupo, esta mais estável, que seria a rede dos tipos de relações sociais de uma sociedade.
Como coloca Radcliffe-Brown (1973, p. 192):

As relações reais entre Tom, Dick e Harry ou o comportamento de Jack e Jill podem
ser anotados em nossas cadernetas de campo e podem prover ilustrações para uma
descrição geral. Mas o de que precisamos para propósitos científicos é um
levantamento da ‘forma da estrutura’. Por exemplo, se numa tribo australiana
observo num certo número de instâncias o comportamento de determinadas pessoas
entre si que estão na relação de irmão da mãe e filho da irmã, é para que possa
registrar tão precisamente quanto possível a forma geral ou normal dessa relação,
abstraída das variações das instâncias particulares, ainda que tomando em conta
estas variações.

Podemos dizer que Malinowski e Radcliffe-Brown foram os pioneiros de uma longa tradição
funcionalista nas ciências sociais, dividida posteriormente entre a antropologia e a sociologia.
Suas idéias, entretanto, foram criticadas por outros teóricos funcionalistas que assimilaram
47
alguns dos conceitos defendidos por seus precursores mas, posteriormente, desenvolveram
referenciais teóricos significativamente diferentes. Entre os principais problemas das
abordagens de Malinowski e de Radcliffe-Brown estão (1) a questão do funcionalismo
universal, e (2) a premissa da necessidade de coesão social1. Devemos entretanto destacar os
méritos dos primeiros funcionalistas. Os problemas de suas abordagens foram o ponto de
partida para o desenvolvimento do paradigma funcionalista na sociologia, que teve os
americanos Talcott Parsons e Robert Merton como os seus principais mestres2. No domínio da
antropologia, a principal contribuição dos primeiros funcionalistas centra-se na importância
atribuída aos dados empíricos para a construção do conhecimento antropológico. A

1
Inicialmente, faz-se problemática a tendência dos primeiros funcionalistas de qualificar todas as manifestações
culturais como funcionais, premissa esta chamada funcionalismo universal. Há duas versões desta premissa, uma
mais radical e outra mais moderada. Malinowski, por exemplo, defendia um funcionalismo universal mais
radical ao afirmar que a cultura seria um sistema de atividades, objetos e atitudes, no qual todo elemento seria
um meio para um fim. Assim, os elementos que formam a cultura seriam uma melhora instrumental da anatomia
humana que poderia ser associada direta ou indiretamente à satisfação de uma necessidade humana
(MALINOWSKI, 1970). Pesquisas empíricas e discussões teóricas posteriores trataram de demonstrar que o
funcionalismo universal radical não é uma premissa razoável, ao negar a existência de elementos culturais que
não cumprem nenhuma função social identificável. Teóricos afirmaram que um dos erros de Malinowski foi ter
assumido esta premissa de antemão, ao invés de tentar prová-la empiricamente. Já a versão mais moderada do
funcionalismo universal postulava que somente os elementos culturais que efetivamente cumpriam uma função
eram socialmente relevantes. Apesar de mais aceitável, esta premissa ainda tem problemas como, por exemplo, a
falta de clareza em relação aos critérios que devem ser utilizados para determinar se um elemento cultural
assume ou não uma função e, se tiver, que função é esta.
Outro problema da abordagem dos primeiros funcionalistas diz respeito à suposição de que a sociedade precisa
de certo grau de coesão para sua manutenção. Por exemplo, Radcliffe-Brown assumia esta premissa ao afirmar
que a estrutura de uma sociedade é formada por entidades que guardam entre si uma série de relações, o que
mantém a sua continuidade. Esta idéia guarda diversos problemas. Primeiramente, a noção de ‘sobrevivência’ ou
de ‘manutenção’ não é tão clara no campo social quanto o é na biologia. Assim, podemos perguntar se a
sobrevivência de uma sociedade ou de uma cultura significa a continuidade cultural ou simplesmente a
sobrevivência física de seus membros. Se adotarmos a primeira hipótese, ainda não temos claro o quanto de
continuidade cultural constituiria a sobrevivência da sociedade. Desta forma, a questão da necessidade de coesão
para a sobrevivência das sociedades transforma-se na questão de quanta coesão se faz necessária. Os primeiros
funcionalistas nem sequer colocaram esta problemática em discussão.
2
Merton, por exemplo, critica em Social theory and social structure (1970; orig. 1948) algumas das premissas
adotadas pelos primeiros funcionalistas que, segundo ele, se concentravam exclusivamente nos efeitos positivos
dos elementos sociais (as instituições culturais, por exemplo) no contexto do sistema do qual fazem parte. Assim,
uma instituição teria uma função a desempenhar no sistema social mais amplo, e o desempenho desta função
gerava um efeito positivo ao sistema ao contribuir com sua manutenção. Merton, entretanto, assinalava que os
elementos sociais tinham funções e disfunções. As ‘funções’ são definidas como os efeitos de um elemento
cultural que contribuem para a adaptação e ajuste do sistema social em avaliação. Ao contrário, as ‘disfunções’
podem ser definidas como os efeitos observados que reduzem o grau de adaptação ou de ajuste deste sistema
social. Para Merton, é possível ainda identificarmos elementos nem funcionais nem disfuncionais, quando não
têm relevância ao funcionamento geral do sistema social. Ao contrário de Malinowski, Merton afirmava ser
possível diferenciarmos a ‘cultura’ da ‘estrutura social’. Esta era o conjunto de relações sociais organizadas,
enquanto aquela eram as diretrizes normativas que servem de referência às pessoas. Assim, Merton distinguia
entre os valores últimos de um grupo, sua cultura, e o fato de que existiam meios para alcançá-los, meios estes
legitimados pela estrutura social, ou o padrão de relações sociais entre os indivíduos. Por exemplo, apesar do
sucesso profissional ser um valor da sociedade ocidental e, portanto, parte de nossa cultura, poucas pessoas
possuem as oportunidades de tipo estrutural legítimas para alcançá-lo.

48
comparação relativizadora, introduzida por Malinowski, por exemplo, foi uma postura que
transformou a maneira como pensamos nossas realidades culturais. A influência das idéias da
Escola Funcionalista Britânica e da sociologia funcionalista, entretanto, abrangem outros
ciências sociais, como os estudos sobre cultura organizacional, que serão discutidos em
capítulo posterior.

1.4.3 Tradições antropológicas diacrônicas: a Escola Histórico-cultural Norte-americana

O processo de desenvolvimento da antropologia norte americana foi significativamente


diferente da européia, e marcado pela refutação do projeto essencialmente sincrônico levado a
cabo na Europa. Na França, Durkheim e outros teóricos da Escola Racionalista Francesa
estavam engajados nas discussões primárias de uma nova ciência objetiva, inspirada no
racionalismo das ciências naturais, mas que se preocuparia com uma classe bem delimitada de
fenômenos, os fatos sociais. Estes seriam definidos de tal maneira que fosse viabilizado seu
estudo como algo autônomo em relação às outras ciências e à filosofia. Os racionalistas
franceses criticavam o caráter especulativo e a falta de fundamentação empírica apropriada
das teorias evolucionistas, e destacavam a necessidade da sociologia diferenciar-se da história
e da filosofia adotando uma metodologia racional de investigação social. Assim, a nova
ciência de Durkheim formava-se com base na definição de um método específico através do
qual, com o apoio de dados históricos e etnográficos, generalizações sobre o mundo social
poderiam ser feitas.

Em comparação, a antropologia norte americana travou suas primeiras discussões baseada em


um projeto científico significativamente diferente. De maneira similar às abordagens iniciais
da antropologia européia, a antropologia histórico-cultural – o primeiro paradigma
antropológico norte americano, fundado pelo alemão Franz Boas – foi uma reação crítica às
teorias e métodos evolucionistas, que caracterizavam a antropologia pré-clássica como um
todo. Entretanto, se os funcionalistas defendiam a exclusão da dimensão temporal de suas
análises, Boas defendia a idéia de que não poderíamos entender as culturas como elas se
manifestam hoje se não investigássemos o seu processo de formação e desenvolvimento. Se a
abordagem boasiana era similar a dos evolucionistas no que diz respeito à diacronia, isto é, à
inclusão da dimensão temporal ao estudo da cultura, Boas discordava de várias outras

49
premissas da antropologia evolucionista. Seus argumentos neste debate foram consolidados
em Os limites do método comparativo da antropologia (BOAS, 2005ª, orig. 1896).

Também é possível analisar as suas idéias principais, que vieram a influenciar uma geração
inteira de antropólogos, por meio de sua comparação com as idéias dos evolucionistas. As
questões de causalidade nos processos de desenvolvimento cultural e classificação são
centrais a esta comparação, e a abordagem com que Boas as tratou é a base para o surgimento
da tradição antropológica norte americana. A idéia de causalidade de Boas pode ser
considerada a lógica interna de sua antropologia. A antropologia evolucionista é baseada na
noção tradicional de que, entre as culturas humanas assim como na natureza, causas iguais
geram efeitos iguais. De acordo com Boas, no entanto, esta noção pode ser convertida à
seguinte: efeitos iguais não têm necessariamente causas iguais. No que diz respeito à
discussão sobre a cultura, ‘efeitos’ seriam as manifestações culturais, que não teriam causas
similares necessariamente (STOCKING, 1974). Boas era um crítico das abordagens
evolucionistas americanas do final do século XIX, defendidas por teóricos como John Powell,
fundador do American Bureau of Ethnology, em 1879. Powell, em seu discurso inaugural,
resumiu a história da humanidade por meio de uma seqüência evolutiva composta por quatro
fases: o selvagerismo, a barbárie, a monarquia e a democracia. A partir da definição de
critérios de comparação, Powell associou a cada uma destas fases instituições culturais em
certos graus de desenvolvimento. Por exemplo, na música, os graus de desenvolvimento eram
o ritmo, a melodia, a harmonia e a sinfonia. Na tecnologia, os graus eram a caça, a agricultura,
o artesanato e a automatização. Estes critérios de análise baseavam-se na noção de “evolução
paralela”, isto é, as culturas evoluem a partir de condições similares e chegam a condições
novamente similares por meio de etapas igualmente similares (HARRIS, 1979).

As idéias básicas de Boas foram uma crítica à arbitrariedade dos evolucionistas que, para
comparar culturas, adotavam o critério da ‘comparação de efeitos’. Conforme Boas, era um
erro o princípio evolucionista de definir certos ‘conceitos de classificação’ (famílias, gêneros
e espécies de fenômenos culturais) através dos quais as manifestações culturais poderiam ser
contrastadas. Boas sugeria que a adoção destes critérios subentendia a idéia de que causas
iguais geram efeitos iguais, o que permitia aos evolucionistas especularem sobre o estágio de
evolução no qual as diversas culturas se encontravam, de acordo com o conceito de “evolução
paralela”. A arbitrariedade na escolha das categorias de classificação pelos evolucionistas é
relacionada por Boas à primazia da experiência e das idéias intrínsecas ao observador. De
acordo com ele, ao estabelecer critérios e categorias de classificação com base em

50
similaridades aparentes entre as manifestações culturais, os evolucionistas se apoiavam em
sua experiência prévia, o que tornava seus critérios arbitrários e inadequados. A classificação
era problemática devido ao fato das aparências externas de dois fenômenos culturais serem até
idênticas, porém as suas qualidades intrínsecas serem completamente diferentes (BOAS,
2005ª).

O que Boas queria efetivamente dizer é que a história é uma variável fundamental para se
distinguir e comparar fenômenos culturais. Para Boas, isso se deve ao fato do estado da
cultura, em um certo momento, ser uma função de toda a sua história. Seria necessário então
alcançar a qualidade dos fenômenos culturais em toda a sua especificidade, e não basear as
análises e classificações simplesmente em suas aparências externas. Boas afirmava que as
causas históricas que influenciavam a formação das manifestações culturais eram tão
complexas que o desenvolvimento de manifestações culturais similares, porém de causas
diferentes, era muito mais provável do que de causas iguais. Em substituição à idéia de
“evolução paralela”, Boas indicava a relevância de outro conceito, a “evolução convergente”,
segundo a qual as culturas evoluem em direção a estágios similares, porém através de etapas e
processos muito distintos. A inclusão da variável ‘tempo’ nas análises das culturas era,
portanto, fundamental para a antropologia boasiana, numa perspectiva denominada
particularismo histórico. De acordo com Boas, processos históricos não aconteciam de forma
paralela e interdependente, como se todas as culturas passarem pelas mesmas etapas.
Diferentemente, povos diferentes passam por processos históricos diferentes e portanto,
aspectos diversos de suas vidas são afetados de maneiras diferentes.

Ao atacar a arbitrariedade dos critérios evolucionistas para a classificação de manifestações


culturais, Boas denunciava a inadequação dos procedimentos destes cientistas. Comparar
manifestações culturais em termos de categorias como ‘utensílios de cozinha’, ‘armas’ e
‘instrumentos musicais’ ignorava toda a complexidade intrínseca à construção destas
manifestações. Apesar de aparentemente similares, as diversas manifestações deveriam ser
entendidas em toda a sua individualidade, isto é, considerada toda a complexidade histórica da
qual a qualidade destas manifestações era função. Assim, Boas destacava a necessidade de
transcendermos o ponto de vista do observador ao classificarmos as culturas. Na realidade, a
classificação das manifestações culturais não deveria ser o ponto de partida da investigação,
como era no evolucionismo, mas sim uma meta a ser perseguida ardorosamente por meio de
pesquisas empíricas. A classificação seria um problema histórico e não um problema lógico,
considerando-se que a história é uma variável fundamental a influenciar o processo de

51
desenvolvimento de cada cultura. A antropologia de Boas defendia então que a classificação
de uma manifestação cultural fosse uma tarefa posterior à compreensão aprofundada de sua
qualidade e complexidade histórica particular. Para que isso acontecesse, Boas considerava
que a cultura deveria ser estudada a partir da noção de ‘distribuição geográfica das
manifestações empíricas’, isto é, as manifestações culturais deveriam, inicialmente, ser
identificadas no espaço para então serem estudadas em profundidade. Este critério baseia-se
na idéia de que se deve lidar com unidades distinguíveis no mundo externo, porém não
através de abstrações, como os critérios de classificação dos evolucionistas. Segundo Boas o
objeto de estudo antropológico é a unidade, não as abstrações sobre a unidade sendo
observada; estas deveriam surgir após a análise aprofundada da cultura estudada. Conforme
comenta Stocking (1974, p. 4):

[A classificação] somente pode ser feita se olharmos por detrás das aparências,
transcendermos o ponto de vista do observador, e desenrolarmos a complexidade
histórica dos processos que afetam a vida humana para chegar a categorias que não
foram encontradas ‘na mente do aluno’, mas são de alguma maneira derivadas,
consistentes, e de certo modo também internas aos fenômenos em si.

Uma outra questão central à comparação entre as idéias boasianas e as idéias evolucionistas
refere-se à integração dos elementos culturais à cultura como um todo. A abordagem
evolucionista baseava-se na comparação de elementos culturais isolados, que não eram
considerados em relação a cultura como um todo. Elementos culturais eram agrupados e
comparados em termos dos critérios estabelecidos pelos teóricos, como por exemplo o poder
que tinham de satisfazer certas necessidades humanas. De fato, estas abstrações foram
severamente criticadas por Boas, que entendia que elementos culturais tinham que ser
entendidos como parte de um todo. Apesar de ter analisado em profundidade elementos
culturais em grande parte de seus escritos, Boas destacava a importância da análise do ‘todo
cultural’. O todo, para Boas, era a cultura, que deveria ser entendida como uma “totalidade
espiritual” integrada que de alguma maneira condicionava a forma de seus elementos. Os
elementos culturais eram integrados à cultura como o resultado de um processo de
desenvolvimento histórico. Boas salientava a importância de elementos culturais incorporados
por meio dos contatos entre culturas; povos assimilavam manifestações culturais de outros
povos, no contexto de seus migrações, mas integravam estes elementos adaptando-os e
resignificando-os em termos compatíveis com seu próprio desenvolvimento histórico. Neste
sentido, Boas sugere que o “olho que vê é o órgão da tradição”. O significado das

52
manifestações culturais é o conceito por meio do qual se faz possível associar uma
manifestação ao todo cultural. Considerando-se que o estado da cultura, em certo momento,
era uma função de sua história como um todo, o fenômeno cultural, ou os elementos culturais,
deveriam ser interpretados em relação ao todo cultural. Este é o produto da história do povo,
da influência das regiões pelas quais este povo passou em suas migrações, e das pessoas com
as quais entrou em contato. A questão do significado das manifestações culturais era central à
refutação dos critérios evolucionistas de classificação: manifestações culturais aparentemente
similares poderiam ser consideradas ‘efeitos’ distintos, dependendo dos sentidos que
carregassem consigo. Assim, Boas sugeria que a similaridade de elementos culturais poderia
ser, e quase sempre era, somente aparente (BOAS, 1940a).

A antropologia de Boas assumia a idéia de que os elementos culturais eram integrados à


cultura durante a sua história, em um processo de acumulação particular que resultava em
totalidades culturais onde as relações entre os elementos culturais e o todo eram construídas
de maneira específica, mesmo sendo possível que estes elementos culturais fossem
aparentemente similares aos de outras culturas. Boas também discutiu as maneiras como os
elementos de uma cultura eram integrados ao ‘todo’ ao apontar o que seria o primeiro nível de
integração: as ‘explicações secundárias’, ou racionalizações de comportamentos costumeiros,
que explicavam muitos aspectos do comportamento em civilizações primitivas e civilizadas.
Estas explicações conscientes se referiam a tradições consideradas importantes àquele povo, e
que faziam parte de sua história, tendo suas origens perdidas no passado. Apesar da
arbitrariedade de muitas destas explicações, já que muitas vezes estas racionalizações tinham
pouco a ver com a real origem do comportamento, elas não eram arbitrárias se fossem
consideradas em relação a cultura como um todo. Elas dependem do contexto geral da cultura,
e da variação e natureza das idéias associadas umas às outras dentro deste contexto
(STOCKING, 1974).

Para Boas, entretanto, existia um nível ainda mais profundo de integração de elementos ao
todo cultural: a linguagem. Apesar de considerar a abrangência universal da linguagem, no
sentido de que todos os povos adotam uma língua que os permita ordenar e classificar suas
realidades, era possível perceber que havia muita diversidade em termos de princípios de
classificação. Boas defendia a idéia de que cada língua, compartilhada por cada grupo, era
caracterizada por diferentes categorias de classificação estabelecidas para possibilitar a
comunicação. Estas categorias de classificação podem ser definidas como um grande número
de idéias que foram associadas de maneira que formem uma só, sem a necessidade de todas

53
elas estarem explícitas na consciência no momento da comunicação. Para Boas, o
inconsciente da linguagem revelaria muito sobre os processos de classificação e ordenação
viabilizados por esta cultura. Ao se considerar estes dois níveis de integração, pode-se dizer
que as explicações conscientes acontecem sobre um substrato no qual as categorias básicas e
idéias dominantes, sistematizadas através da linguagem, são o resultado de processos
históricos e o conhecimento prévio que molda em grande extensão as maneiras com que
formamos nossas opiniões e agimos em nosso mundo social.

Como Boas caracterizava a integração de elementos ao todo cultural? Apesar de alguns


autores terem associado diversas idéias boasianas ao estruturalismo, esta era uma integração
psicológica e histórica, segundo Stocking (1974). Para Boas, os elementos culturais não eram
integrados com base em condições ou necessidades do sistema, como a manutenção do
sistema cultural, mas com base na internalização inconsciente por meio da construção de
categorias, processos de socialização e explicações secundárias conscientes. Os significados
associados aos elementos culturais não eram construídos por meio de suas relações com
outros elementos, mas sim eram inerentes ao todo cultural e internos aos indivíduos. Assim,
podemos salientar as diferenças entre a antropologia histórico-cultural de Boas e a escola
funcionalista. Enquanto teóricos desta última entendiam que aos elementos culturais podiam
ser relacionadas funções que contribuiriam à manutenção do sistema cultural, Boas procurava
compreender uma cultura como uma ‘totalidade espiritual’, interna aos indivíduos. Assim, a
integração de uma cultura não era vista como uma questão de relações lógicas entre seus
elementos. Também é importante dizer que, para Boas, a integração cultural era histórica, no
sentido de que era o resultado da incorporação progressiva e resignificação de elementos
culturais e da sistematização de explicações secundárias. Ao invés de ser uma realidade
estável, a integração de elementos culturais era um processo dinâmico e instável. Mesmo que
fundado em um substrato de categorias de idéias básicas, este tipo de integração movia-se em
várias direções. Assim, diferentemente de estruturalistas e funcionalistas, a noção de
integração de Boas não era baseada na idéia de ‘estruturas’, mas sim na idéia de padrões
culturais. A noção de integração de Boas foi o ponto de partida para a formulação de outras
idéias importantes à sua tradição antropológica, como veremos mais adiante: ao
considerarmos que os significados eram internos aos atores individuais, deveríamos analisar a
cultura no nível individual, isto é, as relações entre a psique individual e a cultura (BOAS,
1940ª; STOCKING, 1974).

54
O projeto intelectual de Boas reflete algo mais amplo: as suas crenças em relação aos
objetivos e à natureza da antropologia como ciência, e à natureza das ciências sociais em
geral. Neste sentido, Boas parece ter assumido posições que evoluíram, com o passar das
décadas, de uma proposta alternativa que conjugava as ciências naturais às ciências humanas,
para uma posição de ceticismo em relação à possibilidade de se derivar leis científicas gerais
no universo social. Esta transição é descrita por Harris (1979), que sugere três fases distintas
do pensamento boasiano, caracterizadas por pressuposições diferentes a respeito do seu
projeto antropológico. Numa primeira fase, é possível dizer que a tentativa de Boas de
formular teorias antropológicas, mesmo que não sistematizadas, foi uma crítica à convicção
evolucionista de que os métodos e as pressuposições das ciências naturais poderiam ser
diretamente aplicados às ciências dos homens. O método comparativo adotado pelos
evolucionistas assumia a possibilidade de derivarmos as leis que regem o universo social por
meio de uma racionalidade típica das ciências naturais. Entretanto, a formação acadêmica de
Boas se deu na Alemanha, em um período em que os pressupostos das ciências naturais
começaram a ser questionadas em termos de sua capacidade de explorar as questões do
universo social. Com a emergência dos trabalhos de Dilthey, entre outros filósofos e
cientistas, discutia-se, ainda que incipientemente, a oposição entre as ciências naturais,
Naturwissenschaften, e as ciências do homem, Geisteswissenschaften. Os críticos eram contra
a adoção irrestrita dos pressupostos e métodos das ciências naturais no estudo dos
comportamentos humanos e das relações sociais, sugerindo que estes dois tipos de ciência
tratavam de classes de fenômenos essencialmente diferentes. Neste sentido, Boas defendia
que as culturas fossem estudadas em seu contexto histórico específico; suas especificidades
deveriam ser detalhadamente compreendidas para que, então, os métodos clássicos de
dedução de leis pudessem ser produtivamente aplicados a este conhecimento aprofundado.
Harris (1979, p. 238) sintetiza bem o projeto científico de Boas tal como foi proposto em Os
limites do método comparativo da antropologia (BOAS, 2005ª), que marca a primeira fase de
seu amadurecimento intelectual:

Podemos confiadamente dar todo o valor à sóbria insistência com que Boas, por meio
de sua crítica ao método comparativo [dos evolucionistas], afirma que as histórias
das culturas das diversas tribos não são o objetivo final de nossa ciência. Devemos
reconhecer que em suas origens o particularismo foi concebido como o auxiliar de
uma perspectiva histórica nomotética. As culturas específicas teriam que ser
estudadas em seu contexto histórico particular. Havia que fazer isto não porque a

55
busca de uniformidades na história fosse útil, mas porque a única via pela qual se
poderia apreciar o alcance e a natureza destas uniformidades era por meio de um
programa de investigação histórica indutiva. Em outras palavras: a intenção de Boas
não era, como ele mesmo repetiu em diversas ocasiões, abandonar a investigação das
regularidades da história. Não esperava que o particularismo tomasse o lugar do
método comparativo, mas sim que o complementasse e facilitasse o descobrimento de
leis, que seguiriam constituindo o objetivo último da investigação antropológica.

Tratava-se de uma posição que conciliava as propostas científicas nomotética e ideográfica.


De maneira simplificada e no que diz respeito à presente discussão, a proposta ‘nomotética’
assume a viabilidade da formulação de leis que expliquem efetivamente o desenvolvimento
do universo social; ao contrário, a perspectiva ‘ideográfica’ salienta a impossibilidade da
formulação destas leis, devido à complexidade e diversidade inerentes a este universo de
fenômenos. Ao defender sua abordagem histórica, Boas sugeria que, no que diz respeito à
formulação de leis científicas, o processo indutivo de definição de problemas era melhor do
que a definição prévia de uma hipótese, o que dava à etnografia o status de “método básico
das ciências sociais”. A ênfase de Boas na importância do método etnográfico era pioneira, e
seria reforçada pelas tradições antropológicas européia e americana nas décadas seguintes.
Portanto, analisar a história de uma cultura e compreendê-la profundamente em todas as suas
particularidades eram etapas extremamente importantes ao esforço antropológico de obtenção
das leis gerais do desenvolvimento do universo social. Neste sentido, Boas defendia que o
particularismo histórico e o método comparativo não eram alternativas mutuamente
excludentes, mas que o método histórico era anterior ao método comparativo no processo de
busca das leis científicas gerais. As palavras de Boas (BOAS, 2005ª, pp. 279) nos ajudam a
entender melhor sua posição:

Quando tivermos compreendido a história de uma cultura particular, e tivermos


entendido os efeitos do meio e as condições psicológicas [...], teremos dado um passo
adiante, pois então poderemos investigar em que medida terão sido as mesmas causas
ou outras causas as que atuaram no desenvolvimento de outras culturas. Assim,
comparando histórias de desenvolvimento, podem ser encontradas as leis gerais. Este
método é muito mais seguro que o método comparativo tal como aplicado usualmente,
porque nossas deduções se baseiam não em hipóteses sobre o modo de
desenvolvimento, mas na história real.

56
No entanto, a confiança de Boas na possibilidade de se derivar leis científicas gerais da
evolução social decrescia com o passar do tempo, o que mais tarde seria exacerbado pelos
antropólogos interpretativos: “existe uma tendência consistente no pensamento de Boas em
relação à crescente dúvida sobre a possibilidade de se estabelecer categorias válidas para a
comparação entre fenômenos culturais, e uma conseqüente incerteza crescente da
possibilidade de se estabelecer leis significativas no âmbito cultural” (Harris, 1979, p. 24).
Boas percebia que a civilização não era um todo absoluto, e que todo o conhecimento sobre
uma cultura só poderia ser sustentado dentro de seus limites. Conforme Harris (1979), a
segunda fase de amadurecimento intelectual de Boas caracterizou-se pela sua desistência da
busca de grandes uniformidades que afetassem grandes conjuntos de instituições sociais.
Assim, Boas sugeria a ausência de seqüências uniformes de evolução e a ausência de relação
necessária entre o desenvolvimento de diversas partes de uma mesma cultura. Assim, uma
cultura poderia se caracterizar por sistemas tecnológicos pobres, mas por complexos sistemas
de classificação social, por exemplo. Nesta fase, Boas apoiava-se em exemplos etnográficos
para destacar a criatividade do espírito humano ao organizar sua vida em torno de
manifestações culturais tão diversas e díspares. Entretanto, Boas reconhecia a existência de
similaridades entre as culturas e aceitava a idéia segundo a qual leis universais da mente
humana explicariam a existência destas similaridades, apesar dos processos históricos tão
peculiares pelos quais passam as culturas.

Na terceira e última fase de desenvolvimento intelectual de Boas, a partir de 1930, Harris


(1979) salienta sua mudança de posição para uma perspectiva que negava as possibilidades
abertas por ele mesmo, em sua primeira fase. Assim, Boas passou a acreditar que nenhum tipo
complementar de estudos seria o suficiente para viabilizar a busca de leis gerais sobre a
evolução cultural. Boas passou a defender que a busca de leis da evolução cultural não
deveria ser o objetivo da antropologia, alinhando-a à perspectiva ideográfica de ciência. Esta
mudança de posição é discutida em História e ciência em antropologia: uma resposta
(BOAS, 1940b, orig. 1936):

Em minha opinião, um sistema de antropologia social e leis da evolução cultural tão


rígidas como se supõem serem as da física são inalcançáveis no estado atual de nosso
conhecimento e, mais importante ainda: dado conta da unicidade dos fenômenos
culturais e de sua complexidade, não se encontrará nunca nada que mereça o nome
de lei, com exceção daquelas características determinadas biológica ou
psicologicamente que são comuns a todas as culturas e aparecem em uma

57
multiplicidade de formas segundo as distintas culturas particulares nas quais se
manifestam (BOAS, 1940b, p. 311).

Em substituição à busca das leis gerais de evolução cultural, Boas defende a necessidade de se
buscar a compreensão de um conjunto de relações que havia sido negligenciado pela
antropologia: as relações entre a cultura e os indivíduos. A necessidade deste novo foco
teórico era uma conseqüência do descuido da antropologia, que não havia se ocupado até
então da investigação das reações que os indivíduos exibem frente à cultura. Assim, a
tendência ideográfica e particularizadora da antropologia defendida por Boas assume a
importância do estudo das relações entre a psique humana e a cultura. Este novo foco teórico,
que seria desenvolvido após 1930 pelos discípulos de Boas, é discutido em seu artigo Os
objetivos da pesquisa antropológica (BOAS, 2005b, orig. 1932):

Os problemas da relação do indivíduo com sua cultura, no âmbito da sociedade na


qual ele vive, têm recebido muito pouca atenção. Os dados antropológicos normais
que nos informam sobre os comportamentos costumeiros não nos dão as explicações
sobre as reações dos indivíduos frente à cultura nem nos facilitam a compreensão da
influência que esta exerce sobre ele. Entretanto, é aí onde está a chave para uma
verdadeira interpretação da conduta humana. Parece em vão o esforço que se faz na
busca por leis sociológicas que não levem em conta o que deveria se chamar
psicologia social, a saber, a reação dos indivíduos frente à cultura. Tais leis
sociológicas não serão mais do que fórmulas vazias as quais só se pode injetar vida
levando-se em conta a conduta individual em um contexto cultural (BOAS, 2005b, p.
258-259).

As idéias de Boas foram a base para o desenvolvimento de uma geração completa de


antropólogos norte americanos, como Margaret Mead, Ruth Benedict e Kluckhohn, por
exemplo, e brasileiros; em especial, Gilberto Freyre, aluno de Boas e autor de Casa Grande e
Senzala (FREYRE, 1966), um clássico da historiografia nacional. Benedict e Mead são duas
das mais importantes antropólogas de todos os tempos. Os discípulos de Boas desenvolveram
a problemática sobre as relações entre a cultura e a personalidade; Mead conduziu trabalho de
campo em Samoa, na Polinésia, nos anos 20, e a monografia resultante, Coming of age in
samoa (MEAD, 1972; orig. 1928), com sua descrição sobre a prática de sexo "livre" entre os
nativos, teve grande impacto nos Estados Unidos ao sugerir a arbitrariedade do
comportamento social e relativizar algumas das noções mais enraizadas sobre o
comportamento dos adolescentes. As idéias de Mead influenciaram os estudos de gênero e o

58
feminismo. Da mesma forma, Ruth Benedict teve um papel muito importante no
desenvolvimento do paradigma histórico-cultural da antropologia com seus estudos sobre a
cultura e a personalidade, baseados na noção de Boas de integração psicológica e
influenciados posteriormente pela teoria desenvolvida por Sigmund Freud. Seu livro Patterns
of culture (BENEDICT, 1934), um estudo comparativo de configurações culturais, é uma das
mais populares obras antropológicas de todos os tempos. Estas duas autoras têm ainda uma
importância especial na história da disciplina. Pode-se dizer que foram elas as antropólogas
que mais contribuíram para a popularização desta ciência na América do Norte. Para Harris
(1979), devemos relacionar Mead e Benedict à popularização da antropologia nos Estados
Unidos. Patterns of culture foi uma obra com o mérito pouco freqüente de atrair a atenção não
somente dos profissionais da área, mas também do público em geral, despertando muitas
vocações para a antropologia. Ao discutir as diferenças culturais entre os povos, o trabalho
das duas antropólogas foi muito importante para a difusão da idéia de que nossos hábitos e
formas de vida não são absolutos, mas somente uma das infinitas configurações possíveis à
humanidade.

1.4.4 Tradições antropológicas diacrônicas: a antropologia interpretativa

A antropologia interpretativa, o mais recente paradigma antropológico, ganhou grande força


nos anos 70 com a obra de Clifford Geertz. A antropologia de Geertz tem as suas raízes nos
trabalhos de Dilthey e Gadamer, filósofos proeminentes da escola hermenêutica da filosofia, e
propõe mudanças significativas na orientação teórica e empírica da disciplina. A antropologia
de Geertz pode ser considerada a exacerbação de várias idéias de Boas. Suas raízes teóricas
também se baseiam na oposição clássica entre as ciências da natureza, Naturwissenschaften, e
as ciências dos homens, Geisteswissenschaften. Com base nesta oposição, os críticos se
opuseram à adoção irrestrita de idéias e métodos das ciências naturais ao estudo dos
fenômenos comportamentais e sociais, isto é, os fenômenos do espírito humano. Em relação
aos fenômenos da natureza, os fenômenos estudados pelas ciências dos homens são de
natureza significativamente diferente e deveriam ser compreendidos por meio de métodos
também diferentes. A proposta de Geertz para uma antropologia renovada, que assume
integralmente a noção de Geisteswissenschaften, foi compilada no seu livro “A interpretação
das culturas” (GEERTZ, 1989), publicado em 1973, premiado e muito citado atualmente.

Com o desenvolvimento da sociologia e da antropologia, consolida-se uma tensão básica


nestas ciências que diz respeito ao status ontológico da realidade social. Por status ontológico
59
da realidade social entende-se a sua natureza como fenômeno a ser investigado: de um lado
desta tensão encontra-se a tradição objetivista, segundo a qual o mundo externo existe como
uma realidade objetiva no tempo e no espaço, independente dos desejos dos homens; do outro
lado encontra-se a tradição subjetivista, segundo a qual a realidade externa não existe
independentemente de nossas consciências. Cada uma destas posições sociológicas alinha-se a
uma tradição filosófica que lhe fornece seus pressupostos básicos. Dentro da tradição
filosófica subjetivista, a fenomenologia defende que o mundo exterior deva ser considerado
como um produto de nossa consciência. A realidade seria constituída por “rios de
consciência”, de forma que o subjetivo seria a fonte de toda a objetividade. Assim, os
fenômenos cotidianos só ganham existência objetiva, concreta, dentro de nossas consciências,
o que desautoriza qualquer definição absoluta destes fenômenos. Pertencente a esta mesma
tradição filosófica, a escola hermenêutica de Dilthey e Gadamer tem suas raízes nos trabalhos
de idealistas alemães como Kant, Hegel entre outros.

Ao incorporarem a tradição filosófica subjetivista à sociologia e à antropologia, teóricos


desenvolveram a idéia de que a realidade social seria a construção subjetiva de seres
humanos. Segundo esta idéia, os indivíduos, através do desenvolvimento e do uso de uma
linguagem comum e das interações da vida cotidiana, criam e sustentam um mundo social de
significados intersubjetivamente compartilhados (BURREL E MORGAN, 1979, p.260).
Conforme esta visão, podemos dizer que a objetividade do mundo externo, não importa quão
concreta ela possa parecer ao indivíduo, é construída por nossas consciências e não existe
independentemente dela. Os humanos externalizam sua subjetividade por meio de artefatos
como instituições, arte, literatura, religião, linguagem etc. O processo pelo qual os produtos
externos das atividades humanas atingem o caráter de objetividade é a objetivação. O mundo
social não poderia ser considerado um dado da natureza, passível de ser apreendido por meio
de métodos objetivos, mas deveria ser entendido como o resultado da objetivação da
subjetividade humana. Estas idéias problematizavam a tradição sociológica e antropológica
racionalista, cuja origem remonta a Durkheim, ao sugerir a necessidade de empregarmos
métodos adequados à natureza subjetiva dos fenômenos sociais.

Assim, a tensão entre as tradições filosóficas subjetivista e objetivista consolida-se como


resultado da percepção de filósofos e, posteriormente, de cientistas sociais, acerca da
inadequação das nossas maneiras tradicionais de pensar e explorar os fenômenos sócio-
culturais. As ciências sociais, no início de seu desenvolvimento, incorporaram os métodos de
investigação típicos das ciências naturais, o que gerava resultados insatisfatórios para muitos

60
teóricos. Segundo estes autores, os pressupostos e métodos positivistas tradicionais eram
apropriados ao estudo da natureza, fenômenos externos ao homem que poderiam ser
apreendidos objetivamente. Diferentemente, os fenômenos sócio-culturais seriam
caracterizados pela ambigüidade e complexidade subjetiva, que deveriam ser levadas em
consideração em nossas empreitadas científicas. Por exemplo, o estudo químico-físico do
fogo não deve depender da época histórica na qual ele se manifesta; uma chama queimava na
idade média da mesma maneira como queima hoje. As propriedades do fogo não dependem
do contexto histórico ou social em que nos deparamos com este fenômeno, o que o faz algo
passível de ser estudado objetivamente por meio de critérios científicos. Diferentemente, as
leis morais que regem atualmente o comportamento de grupos sociais devem ser estudadas
como função deste contexto específico, o que abrangeria local e época específica. As leis
morais são função das opiniões dos indivíduos entre os quais são disseminadas, e sua
especificidade (e objetividade) não pode ser apreendida fora deste contexto.

Ao propor os princípios da filosofia hermenêutica, Dilthey estava particularmente preocupado


em viabilizar a construção de conhecimento objetivo, a partir de uma visão subjetivista da
realidade social. Tratava-se de uma “ponte” entre estas duas visões conflitantes. Se os
fenômenos estudados pelas ciências do homem são caracterizados pela relevância do
“espírito”, da subjetividade dos indivíduos, então devemos considerar o “espírito” de um
fenômeno sócio-cultural ao apreendê-lo objetivamente. Viabilizar a construção de um
conhecimento objetivo sobre as experiências humanas era essencial pois somente assim ele
poderia ser utilizado no âmbito das especulações das ciências sociais. Principalmente entre
1890 e 1930, esta questão preocupou uma grande quantidade de cientistas sociais, entre eles
Max Weber. A solução proposta por Dilthey, capaz de viabilizar esta ligação entre
perspectivas conflitantes da realidade social, foi a abordagem chamada vertehen, palavra em
alemão que significa “compreensão”. Esta abordagem também caracterizou posteriormente as
idéias de Weber.

Assim, mesmo considerando que os fenômenos da mente humana pudessem ser estudados por
meio dos produtos de sua objetivação, como instituições sociais e outras manifestações
culturais, estes fenômenos só poderiam ser completamente entendidos se nós os
relacionássemos às mentes das quais eles se originaram, ou ao seu contexto humano original.
Os métodos e objetivos históricos das ciências naturais, a abordagem positivista e a busca por
leis e explicações gerais não deveriam ser diretamente apropriados pelos cientistas que
estudam a cultura, por exemplo. Era necessário estabelecer um método através do qual as

61
experiências subjetivas dos seres humanos pudessem ser apreendidos e compreendidos em
toda a sua complexidade, para que então este conhecimento pudesse ser utilizado em
iniciativas de generalização. O vertehen era considerado por Dilthey, e depois por Weber,
uma maneira de se viabilizar a construção deste conhecimento objetivo sobre a vida social
através de uma reencenação (re-enactment) das experiências de outros. Assim, revivendo o
objeto de estudos_ a prática, instituição ou fenômeno cultural, ou ainda o momento histórico_
na vida subjetiva do observador, este poderia ganhar os significados apropriados.

Baseado na idéia de que a “realidade” e os “fatos” são essencialmente criações sociais, a


hermenêutica de Dilthey é uma metodologia que busca a interpretação e o entendimento dos
produtos da mente humana que formam o mundo social e cultural. A hermenêutica seria um
método para se alcançar o vertehen. Dilthey considerava que a análise de fenômenos
concretos da vida cotidiana, como instituições culturais, situações históricas e a linguagem,
era uma maneira de acessarmos a subjetividade de seus criadores. As experiências das pessoas
deveriam ser interpretadas em detalhes, e analisadas como se fossem textos. Os cientistas
sociais não deveriam trabalhar exclusivamente como cientistas naturais, mas deveriam adotar
a postura de analistas literários. Para gerar conhecimento válido às ciências sociais, a análise
textual dos significados das experiências dos indivíduos era uma etapa fundamental. A regra
básica da hermenêutica de Dilthey pode ser ilustrada pela noção do círculo hermenêutico.
Esta noção se refere à idéia segundo a qual o ‘todo cultural’ não pode ser entendido
independentemente de suas partes, e vice-versa. Se considerarmos que um fenômeno pode ter
diferentes significados em contextos diferentes, é fácil perceber que uma manifestação
cultural deve ser interpretada em relação a seu contexto social mais amplo. Em termos da
metáfora literária usada pelo autor, e depois adotada também por Geertz, é possível dizer que
uma palavra pode assumir diferentes significados em diferentes sentenças ou textos, o que
torna necessária a sua interpretação em termos de seu contexto.

As idéias da hermenêutica foram seletivamente assimiladas por Geertz na definição de uma


proposta à antropologia que critica escolas antropológicas prévias, como o estruturalismo
francês e o funcionalismo britânico. Se Dilthey estava interessado em construir uma ponte
entre os conhecimentos subjetivo e objetivo, com vistas ao desenvolvimento das ciências
sociais em “solo firme”, Geertz defende a construção deste “solo firme” de conhecimentos
sobre a subjetividade do ser humano, mas abandona a tentativa de utilizá-lo como base para
“explicar fenômenos sociais através de uma metodologia que os tece em redes gigantescas de
causas e efeitos” (GEERTZ, 1998, p. 13; orig. 1983). A construção de um “solo firme”, para

62
Geertz, relaciona-se à necessidade de tentarmos explicar o conhecimento articulando-o em
estruturas locais de saber (GEERTZ, 1998). Assim, a cultura não deveria ser compreendida
independentemente das mentes nas quais reside e do contexto na qual se faz significativa;
tampouco deveria ser articulada “em redes gigantescas de causas e efeitos” nas quais estes
significados se perderiam.

Ao criticar abordagens prévias, Geertz advoga que o conceito de cultura deva abranger a
dimensão cognitiva da vida humana. Segundo esta proposta, a cultura seria os conhecimentos,
os princípios, as crenças, e os significados que em seu contexto os eventos, ações, objetos,
expressões e situações ganham significados particulares. Os aspectos materiais, como os
instrumentos e a tecnologia, e os aspectos interativos, como os padrões de relações sociais em
um grupo, deveriam ser denominados sociedade. Assim, em relação a outras escolas
antropológicas, Geertz delimita o conceito de cultura diminuindo sua abrangência. Abandona-
se o foco nas instituições culturais e suas funções; estudar a cultura não seria buscar relações
abstratas entre as diversas manifestações culturais, como fazem os antropólogos
funcionalistas. Tampouco seria buscar as estruturas básicas e universais que organizariam
nossos pensamentos e comportamentos, como fazem os estruturalistas. Segundo a proposta
interpretativa, estudar a cultura seria anotar o fluxo do comportamento real, pois é no contexto
dos comportamentos reais que as manifestações culturais efetivamente se articulam.

Ao adotar um conceito semiótico de cultura, Geertz afirma: “acreditando, como Max Weber,
que o homem é um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu, assumo a
cultura como sendo estas teias e sua análise [...]” (GEERTZ, 1989, p. 15). A cultura deveria
ser entendida como um contexto formado por sistemas entrelaçados de símbolos
interpretáveis, que são constantemente produzidos e negociados no contexto da interação
social dentro e entre os grupos. Assim, a cultura são sistemas de classificação utilizados
como referenciais para a interpretação das realidades cotidianas. Estes sistemas criam
condições para o compartilhamento e a negociação de sentimentos e representações em
grupos sociais, e são o substrato sobre o qual a interação humana constrói significados
específicos. Conforme esta visão, a cultura deve ser vista como uma “rede” de significados
que se combina e se recombina, sempre gerando novos padrões que formam o contexto onde a
ação social acontece e se torna significativa.

O conceito de cultura adotado pela antropologia interpretativa reconhece ainda a diversidade e


a ambigüidade encontradas em grupos humanos. Ao discutir esta abordagem, Thompson
(1995) e Fischer (1985) argumentam que os fenômenos culturais são imbricados em processos

63
e contextos socialmente estruturados, e são associados a relações de poder e conflito. Os
indivíduos estão posicionados em diferentes esferas da estrutura social, e possuem formações
e experiências econômicas, culturais e sociais diferentes. Devido ao fato de possuírem
percepções, papéis e interesses variados, os grupos de indivíduos formulam interpretações
diferentes sobre fenômenos simbólicos. Conseqüentemente, os fenômenos culturais devem ser
analisados considerando-se os contextos sociais estruturados nos quais são produzidos e
interpretados. Este conceito de cultura é bem exemplificado por Geertz, no célebre primeiro
capítulo de A interpretação das culturas (GEERTZ, 1989, orig. 1973). Segundo Geertz, é
freqüentemente possível identificarmos sistemas de significados distintos, que podem ser
considerados idiomas culturais distintos, utilizados de maneira conflituosa no contexto de
processos referenciais. Assim, Geertz defende que a cultura possa ser analisada como
referenciais de interpretação da realidade, que freqüentemente entram em conflito.

Para que possamos compreender os idiomas culturais, que freqüentemente entram em


conflito, Geertz populariza a expressão “descrição densa” da cultura. Esta seria uma versão
microscópica da etnografia, preocupada em traduzir ou interpretar a hierarquia estratificada de
sistemas de significados em termos dos quais os fenômenos sociais e culturais ganham
significados particulares. As ‘descrições densas’ (thick descriptions) se diferenciam das
‘descrições pobres’ (thin descriptions) ao incorporarem informações contextuais, que
associam os fatos a significados específicos relacionados àquelas circunstâncias. Assim,
podemos descrever uma experiência visual destacando que “no meio da cidade há um edifício
mais alto que a média, guardado por soldados armados”. Trata-se de uma ‘descrição pobre’,
já que não associa ao objeto observado informações contextuais que possam caracterizar
simbolicamente o edifício. Diferentemente, esta mesma experiência pode ser descrita ao
destacarmos se tratar do “palácio do rei, localizado no meio da capital do reino”
(DESCOMBES, 2002, p. 433). Descrições densas tratam de captar as particularidades dos
contextos culturais nos quais indivíduos estão em interação, em diferentes posições sociais,
compartilhando e negociando constantemente os significados que permeiam suas relações
sociais.

Os objetivos das descrições densas abrangem a interpretação de como os indivíduos e grupos


interagem em seu cotidiano, por meio da construção social e da negociação de significados,
no contexto de processos referenciais por meio dos quais sustentam suas definições
particulares da realidade. Assim, esta versão da etnografia assume a importância da descrição
empírica muito detalhada e contextualizada, cujo objetivo deve ser a busca do “ponto de vista

64
dos nativos”, isto é, a reconstrução das experiências dos outros e a identificação de seus
referenciais de interpretação de sua realidade. Em termos mais diretos, Geertz destaca se tratar
de descobrir “que diabos eles [os nativos] acham que estão fazendo” (GEERTZ, 1998, p. 89).
Ao questionar idéias anteriores que, de maneira vaga, sugeriam a necessidade de “entrarmos
no espírito do nativo” (apesar de reconhecer a necessidade da sensibilidade para a
interpretação cultural), Geertz defende que a tarefa de acessar “o ponto de vista dos nativos”
requer a análise das formas simbólicas – palavras, símbolos, imagens, instituições,
comportamentos –, nos termos das quais as pessoas representam o mundo a si mesmas e em
interação com outras pessoas. Entretanto, a análise das formas simbólicas (as partes) é
somente parte do processo de interpretação, já que devemos associá-las à totalidade cultural.
Assim, a noção da filosofia hermenêutica de que o todo cultural não pode ser entendido
independentemente de suas partes, e vice-versa, é a base para este tipo de etnografia. Se
considerarmos que um fenômeno pode ter diferentes significados em contextos variados, é
fácil notarmos que cada manifestação cultural deve ser interpretada em relação ao seu
contexto mais amplo. Ao adotar freqüentemente a metáfora literária, Geertz diz serem as
descrições densas como análises de um texto ou textos, em que uma palavra, ou elemento
cultural, pode assumir significados diferentes dependendo de seu contexto. Segundo Geertz, a
aplicação dos princípios do círculo hermenêutico à análise etnográfica implica estruturarmos
nosso olhar e pensamento antropológicos segundo uma espiral ascendente de observações, ora
gerais ora específicas sobre a realidade observada, de uma forma análoga aos procedimentos
que um crítico literário adota ao analisar um texto. Nas palavras do próprio Geertz:

Tudo isso é, claramente, a trajetória, já bastante conhecida, do método que Dilthey


chamou de círculo hermenêutico. [...] Para acompanhar um jogo de beisebol, temos
que saber o que é um bastão, uma bastonada, um turno, um jogador de esquerda, um
lance de pressão, uma trajetória curva pendente, e um centro de campo fechado, e
também como funciona o jogo que contém todos estes elementos. Quando, em uma
‘explication de texte’ um crítico como Leo Spintzer tenta interpretar a ‘Ode sobre uma
urna grega’ de Keats, ele se pergunta repetida e alternativamente duas questões:
‘Sobre o que é este poema?’ e ‘O que é, exatamente, que Keats viu (ou decidiu
mostrar-nos) desenhado na urna que ele descreve?’, e chega ao final de uma espiral
ascendente de observações gerais e comentários específicos com uma leitura do
poema que o interpreta como uma afirmação do triunfo da percepção estética sobre a
história. Da mesma forma, quando um etnógrafo de significados e símbolos como eu

65
tenta descobrir o que é uma pessoa na visão de algum grupo de nativos, ele vai e vem
entre duas perguntas que faz a si mesmo: ‘Como é a sua maneira de viver, de um
modo geral?’ e ‘Quais são precisamente os veículos através dos quais esta maneira
de viver se manifesta?’ [...]. Não podemos entender o significado do lek [conceito
cultural ‘nativo’] a não ser que entendamos o que é o dramatismo balinês, da mesma
maneira que não saberemos o que é uma luva de apanhador se não conhecermos o
jogo de beisebol (GEERTZ, 1998, p. 106; orig. 1983).

Oliveira (1988) considera a antropologia interpretativa um paradigma que representou uma


reação a um projeto anterior de antropologia – freqüentemente denominado moderno –, que
tinha suas raízes no culto ao objetivismo e ao racionalismo, típico da Ilustração. Ao
analisarmos os paradigmas anteriores, percebemos que buscam construir um referencial
coerente que permita entendimentos amplos e gerais sobre o funcionamento do universo
social. Enquanto os antropólogos estruturalistas buscavam estruturas inconscientes que
explicassem todos os nossos padrões de comportamento, os funcionalistas construíram um
corpo teórico com o qual poderiam analisar e comparar todas as culturas. Ambas estas
correntes européias de pensamento encontram suas raízes no racionalismo francês, que tem
em As regras do método sociológico, de Durkheim (1972; orig. 1895), o marco inicial de um
amplo esforço para construir uma “verdadeira ciência natural dos fatos sociais” (OLIVEIRA,
1988, p. 73). No contexto americano, por sua vez, Boas sustentou, por algumas décadas, que o
particularismo histórico fosse um método anterior a qualquer tentativa de generalização sobre
o mundo cultural, que seria o objetivo final da antropologia. Diferentemente, a antropologia
interpretativa é freqüentemente associada a uma perspectiva antropológica pós-moderna.
Apesar de ser um paradigma intelectualista, isto é, preocupado com a geração de teorias, são
debatidas questões significativamente diferentes daquelas típicas da escola racionalista
francesa e do estruturalismo, por exemplo. O pós-modernismo pode ser descrito de uma forma
bem simples como uma orientação dentro da filosofia da ciência que nega a possibilidade de
se adquirir conhecimento verdadeiro sobre o mundo. O que “sabemos” sobre a sociedade é a
nossa própria “construção”, que devemos "desmontar". As "grandes narrativas", como o
desenvolvimento cultural, a liberdade e a verdade científica são mitos heróicos que dão
legitimidade e perpetuam a existente ordem social. Na antropologia, estes pensamentos têm
influenciado, principalmente, o debate sobre a construção do conhecimento sobre os povos
“nativos” e a autoridade do antropólogo. Na sociologia, o pós-modernismo emergiu

66
particularmente através do trabalho de autores franceses pós-estruturalistas como de Roland
Barthes, Pierre Bourdieu e Michel Foucault.

Ao incorporar idéias da filosofia hermenêutica, de Dilthey e Gadamer, bem como dos pós-
estruturalistas, a antropologia interpretativa introduziu questões novas ao debate
antropológico que questionavam a objetividade associada a outros paradigmas. Estas foram
iniciativas importantes por meio das quais se problematizou o fazer antropológico, questões
que anteriormente não recebiam a atenção devida. A filosofia hermenêutica influenciada pelas
idéias de Gadamer sugeria a impossibilidade de considerarmos a compreensão, ou o vertehen,
como um processo no qual o observador existe apartado do objeto, que poderia ser
objetivamente apreendido. Considerando a necessidade de obtermos conhecimento válido
sobre a vida social através do círculo da hermenêutica, devemos reconhecer que o processo de
compreensão se dá com base numa interação complexa entre o observador e o observado. A
contribuição de Gadamer à hermenêutica sugere não ser o vertehen baseado na reencenação
das experiências subjetivas dos outros, como se pudéssemos entrar na experiência subjetiva
alheia, mas sim numa interação historicamente determinada entre os referenciais dos
observados e dos observadores, mediados sempre pela linguagem (GIDDENS, 1976). Assim,
a hermenêutica de Gadamer dá à linguagem um papel central no processo de compreensão, à
medida que é através dela que os seres humanos expressam sua existência e seu modo de vida
num dado momento histórico. Assim, “a linguagem não é somente um instrumento com o
qual rotulamos o mundo exterior, mais do que isso, a linguagem se torna a expressão de um
modo de ‘estar no mundo’” (BURRELL E MORGAN, 1979, p. 238).

Na antropologia interpretativa, estas idéias são incorporadas às discussões sobre as relações


entre o sujeito-pesquisador e o objeto-pesquisado. A construção do conhecimento
antropológico não acontece como conseqüência da apreensão objetiva da subjetividade do
“nativo”, como se o pesquisador estivesse em uma posição privilegiada nesta relação.
Diferentemente, o conhecimento antropológico é produto do encontro etnográfico, uma
interação social de mão-dupla caracterizada pela historicidade. Assim, a objetividade do
conhecimento antropológico seria uma ilusão: tanto pesquisador como pesquisado estão
inseridos num certo momento histórico, e interagem de forma a construir um relacionamento
por meio do qual não somente o pesquisador busca compreender o pesquisado, mas este
também é estimulado a compreender os horizontes do pesquisador. Estas idéias indicam ainda
que o objeto da etnografia seria as interpretações dos atores sociais, dos indivíduos
observados em interação com o pesquisador, e não fatos objetivamente detectáveis e

67
interpretáveis. O antropólogo não assimila objetivamente os fenômenos ou os
comportamentos culturais, mas os apreende por meio de sua interação com seus informantes,
cujas interpretações dos fatos relevantes são estruturadas segundo seus próprios interesses e
códigos de significação. Desta forma, as interpretações culturais podem ser consideradas
“construções”, isto é, são baseadas nas maneiras como determinados atores sociais apreendem
e relatam os fenômenos significativos; ou ainda nos testemunhos que certos atores sociais
fazem das maneiras como outros atores apreenderam e relataram os fenômenos significativos
(DESCOMBES, 2002).

Ao discutir a construção do conhecimento antropológico e salientar as questões da


historicidade e da ilusão da objetividade, entre diversas outras, a antropologia interpretativa se
apresenta como uma Geisteswissenschaft, uma ciência dos homens, afastando-se do ideal das
grandes teorias, cuja inspiração vinha das Naturwissenschaften (as ciências da natureza), e
que dariam conta de explicar a humanidade. Trata-se de uma proposta significativamente
diferente daquelas defendidas no âmbito dos outros paradigmas. Por exemplo, os
antropólogos interpretativos não acreditam na noção de que poderiam capturar o essencial
sobre sociedades nacionais ou grandes grupos sociais por meio do estudo em vilarejos ou
pequenos grupos humanos típicos, o que Geertz chama de “Jonesville-is-America writ small”
(Jonesville é a América em menor escala). Diferentemente, no que diz respeito à geração de
teorias, a antropologia interpretativa assume uma perspectiva diacrônica da cultura ao
assimilar tacitamente a idéia de que a posição histórica do pesquisador (e do observado)
nunca é anulada. Ao contrário, a história é resgatada como uma condição do conhecimento,
uma variável fundamental para a compreensão e análise dos conhecimentos, e para a
adequada relativização das conclusões. Ao assimilar esta variável, a antropologia deveria
deixar de ser uma ciência experimental e assumir-se uma ciência interpretativa, cujo objetivo
não é chegar a uma equação simplificada das dinâmicas do universo social, nem responder às
nossas preocupações mais profundas, mas sim disponibilizar e discutir as respostas que outros
grupos deram a estas e outras questões. Estas respostas podem ser usadas ao pensarmos
criativamente sobre nós mesmos. Neste sentido, as “descrições densas” seriam essenciais ao
enriquecimento de qualquer tentativa de pensarmos sobre os nossos próprios dilemas. Geertz
explica;

[…] os motivos por que essas descrições alongadas sobre distantes incursões aos
carneiros têm uma relevância geral [...] está no fato de fornecerem à mente
sociológica material suficiente para alimentar. O que é importante nos achados do

68
antropólogo é a sua especificidade complexa, sua circunstancialidade. É justamente
com esta espécie de material produzido por um trabalho de campo quase que
obsessivo de peneiramento, a longo prazo, principalmente [...] qualitativo, altamente
participante e realizado em contextos confinados, que os megaconceitos com os quais
se aflige a ciência social contemporânea – legitimidade, modernização, integração,
conflito, carisma, estrutura... significado – podem adquirir toda a espécie de
atualidade sensível que possibilita pensar não apenas realista e concretamente sobre
eles, mas, o que é mais importante, criativa e imaginativamente com eles (GEERTZ,
1989, p. 33).

69
2 – ANTROPOLOGIA E OS ESTUDOS SOBRE CULTURA ORGANIZACIONAL

A antropologia é considerada uma fonte de conceitos e teorias à Teoria das Organizações há


várias décadas. Em geral, podemos dizer que a antropologia permitiu o questionamento das
premissas racionalistas que caracterizaram a Teoria das Organizações em dados momentos
históricos, contribuindo para o aprofundamento de nosso conhecimento sobre as dinâmicas
sociais nas organizações. Em especial, o questionamento inspirado na teoria antropológica
assumiu um caráter dominante na Teoria das Organizações em dois momentos: a Escola de
Relações Humanas e os estudos sobre Cultura Organizacional. Podemos analisar este
fenômeno com base nas idéias de controle racional e controle normativo de Barley e Kunda
(1992). Considerando-se que toda teoria tem um componente ideológico, além de ser um
conjunto de proposições, a análise histórica de Barley e Kunda (1992) mostra que a teoria das
organizações e o discurso empresarial americano foram elaborados em ondas, e têm alternado
entre retóricas de controle normativo e racional. Em especial, idéias antropológicas estão na
base daquelas escolas de pensamento que sugerem o controle normativo como meio de se
alcançar a produtividade.

Em geral, a retórica do controle racional sugere o desenvolvimento e o aperfeiçoamento de


processos de produção. Na realidade, os proponentes da Administração Científica e do
conjunto de teorias que os autores chamaram de Systems Rationalism se basearam na idéia de
que a produtividade poderia ser melhorada através de métodos e sistemas cuidadosamente
articulados. As organizações eram vistas como máquinas, formadas por partes que poderiam
ser analisadas, modificadas e remontadas de uma maneira mais efetiva. Segundo os
proponentes da Escola de Administração Científica, por exemplo, as organizações poderiam
obter maiores índices de produtividade se planejassem e implementassem estruturas ótimas de
produção, isto é, as estruturas mais adequadas para a produção. Partia-se da idéia de que
estruturas produtivas perfeitamente racionais e eficientes trariam os resultados planejados.
Estas estruturas poderiam ser implementadas a partir do estudo metódico das atividades nas
quais o processo produtivo poderia ser decomposto. Os estudos dos tempos e movimentos
eram parte deste esforço. Por meio destes estudos as atividades produtivas e os movimentos
humanos necessários eram analisados de modo a simplificá-los e reduzi-los ao mínimo. Após
realizados estes estudos era possível chegar à configuração ótima de seres humanos, máquinas
e insumos para a produção em máxima produtividade. Assim, para os principais autores
clássicos de Administração, os seres humanos são considerados elementos do sistema

70
produtivo, e o comportamento humano não constituía um problema em si, já que era
previsível. Ou melhor, os comportamentos percebidos como inadequados pela direção não
eram vistos como sendo o resultado de uma irracionalidade no comportamento dos indivíduos
no trabalho, mas sim como decorrentes de defeitos na estrutura da organização ou de
problemas na sua implementação (MOTTA E VASCONCELOS, 2002; BARLEY E
KUNDA, 1992; TAYLOR, 2001).

Barley e Kunda (1992) mostram também que os proponentes das escolas de Melhoria
Industrial (Industrial Betterment), Relações Humanas e Cultura Organizacional sugeriam a
relevância do controle normativo. Controle normativo é a idéia de que administradores podem
controlar os trabalhadores de forma efetiva através da manipulação de seus valores,
pensamentos e emoções. Segundo esta visão, organizações são vistas como grupos sociais
caracterizados por valores em comum e pelo envolvimento moral. Entre os primeiros estudos
nas organizações influenciados pelas idéias da antropologia destacam-se os experimentos de
Hawthorne, desenvolvidos na segunda década do século vinte pelos primeiros formuladores
do que veio a se chamar Escola de Relações Humanas. Naquele momento, os princípios da
Escola de Administração Científica eram dominantes, e os experimentos de Hawthorne
verificaram a existência de grupos informais de trabalhadores. Influenciados pela psicologia
social e pela antropologia funcionalista, os pesquisadores mostraram a importância de se
considerar os processos informais dentro destes grupos para que se pudesse compreender as
relações entre os empregados e a organização formal. A principal contribuição da Escola de
Relações Humanas à teoria das organizações foi função da aproximação antropológica ao
objeto de estudos; neste caso, os grupos que compõem a organização. Pode-se questionar as
premissas da Administração Científica, segundo as quais as ações humanas seriam previsíveis
e controláveis, e que sistemas bem ajustados e estruturados levariam aos resultados desejados.
Ao contrário, os estudos de Hawthorne demonstraram uma grande diferença entre a realidade
dos empregados e as suposições dos administradores, o que levou à conclusão de que o papel
dos administradores seria de criar condições para a colaboração espontânea entre
trabalhadores. Proponentes desta escola argumentavam que a coesão e a lealdade eram as
fontes mais importantes da produtividade, e portanto o papel do administrador era o de
motivar os trabalhadores, direcionando seus sentimentos, valores e emoções na direção
apropriada (BARLEY E KUNDA, 1992).

Para Richardson (1955), a antropologia é a ciência que, assim como a psicologia, foi a base
para o desenvolvimento da Escola de Relações Humanas. Os princípios teóricos e

71
metodológicos da antropologia foram essenciais para o desenvolvimento dessa escola de
pensamento. As principais contribuições da antropologia neste contexto foram os princípios
metodológicos da observação e a idéia de que a interação no contexto dos grupos sociais eram
fatores importantes à compreensão do comportamento humano. Mais tarde, como Richardson
(1955) sustenta, a antropologia permaneceu um ponto de referência básico para o
desenvolvimento desta escola de pensamento. Segundo este autor, os estudos que se baseiam
nos princípios antropológicos podem ser divididos em grupos, que buscam entender: (1) a
dinâmica de pequenos grupos de trabalho, (2) o comportamento humano nas organizações, (3)
a comunicação social, (4) as relações entre grupos informais e estruturas técnicas formais, e
(5) o funcionamento geral das organizações. Além dos princípios teóricos, a antropologia
forneceu um referencial metodológico completo para o estudo das organizações: a etnografia.
A investigação etnográfica vem sendo usada por pesquisadores como uma forma de
aprofundar o conhecimento sobre grupos sociais em organizações e questionar as premissas
racionalistas que caracterizam a administração (MASCARENHAS, 2002; BRESLER, 1997).
No Reino Unido, por exemplo, Lupton usou técnicas etnográficas para estudar a influência de
grupos de trabalho na concepção de normas de produtividade em organizações. Nestes
estudos, o pesquisador entendeu que sua participação teria que ser de total envolvimento na
planta, o que iria requerer aprender o trabalho, a linguagem, e os conceitos usados pelos
trabalhadores durante os processos de interação social. Segundo Lupton (1985), a pesquisa
etnográfica permitiu a reconstrução de todos os aspectos que influenciavam a interação social
dentro da organização:

Este é o método que eu utilizei para desenvolver a antropologia social: primeiramente


eu me envolvi como um trabalhador, me apresentei a todos como um pesquisador, e
depois entrei no grupo. Este método consistia essencialmente em sentir eu mesmo a
pressão social, em observar os acontecimentos e relacionamentos entre as pessoas, as
conversas, e o que é mais importante, conversar com os colegas de trabalho sobre as
razões pelas quais justificavam seu comportamento e explicavam o comportamento
dos outros … (LUPTON, 1985, p. 324).

2.1 Antropologia nas organizações: os estudos sobre ‘Cultura Organizacional’

72
Mais recentemente, com a emergência das teorias e da retórica da cultura organizacional,
idéias antropológicas ganharam novamente importância nos discursos empresarial e
acadêmico do mainstream. De acordo com Barley, Meyer e Gash (1988), o conceito de
cultura organizacional começou a atrair a atenção explícita destes públicos no fim dos anos
setenta, no contexto de busca de respostas para o fraco desempenho das corporações
americanas na competição com as empresas japonesas. A emergência das discussões sobre a
cultura organizacional relacionava-se ao reconhecimento das limitações do conjunto de
teorias racionalistas das organizações então predominante (BARLEY E KUNDA, 1992). Os
proponentes dos estudos sobre a cultura organizacional sugeriam a inadequação das premissas
das escolas racionalistas anteriores – genericamente denominadas por Barley e Kunda (1992)
de Systems Rationalism, ou mais especificamente denominadas Modern Structural Theories e
Systems Theories of Organizations por Shafritz e Ott (2001a). Estes últimos autores sugeriam
que, entre estas premissas inadequadas, as escolas racionalistas assumiam a existência de
consensos organizacionais a respeito de objetivos e métodos e a previsibilidade dos problemas
nas organizações. Segundo críticos, estas premissas não poderiam ser sustentadas nas
organizações modernas.

Como Barley e Kunda (1992) afirmam, os teóricos da cultura organizacional sugeriam que, ao
adotarem sistemas racionais de controle, as organizações subestimavam a importância da
autoridade moral, da integração social, da qualidade da liderança e dos valores culturais, entre
muitas outras questões subjetivas que caracterizam as dinâmicas sociais de uma organização.
Existiria um universo de questões e fenômenos sócio-culturais que deveriam ser
compreendidos se quiséssemos intervir adequadamente em nossas organizações e aumentar
sua produtividade. Assim, os estudos sobre cultura organizacional sugeriam a adoção de um
conjunto distinto de premissas e abordagens metodológicas, que permitiriam o
desenvolvimento de maneiras novas de se entender as organizações, estudá-las e representá-
las. De acordo com os proponentes da temática da cultura organizacional, os sistemas de
normas formais e de autoridade racionalmente construídos não restringem as preferências
pessoais dos membros da organização – como assumiam teóricos das perspectivas
racionalistas –; diferentemente, os membros de uma organização direcionam seus
comportamentos com base nas possibilidades dadas pela normas e premissas culturais, valores
e crenças que caracterizam a coletividade. Neste contexto, as estruturas e os sistemas formais
de gestão poderiam fornecer dados importantes para o entendimento das dinâmicas
organizacionais; estas dimensões, entretanto, não explicam as particularidades e diferenças de

73
desempenho das organizações, que tanto intrigavam os teóricos. Assim, para que se pudesse
prever ou entender como uma organização se comportaria em certas circunstâncias,
deveríamos conhecer os seus padrões culturais específicos, ou a cultura organizacional
(SHAFRITZ E OTT, 2001ª).

De fato, o tema cultura organizacional tem suas origens dispersas em textos muito anteriores à
década de 80, quando acadêmicos e praticantes da administração promovem a nova
abordagem à condição de dominante (BARLEY, MEYER E GASH, 1988). Diversas obras
anteriores à 1970 já traziam implicitamente as temáticas que seriam desenvolvidas
posteriormente pelos teóricos da cultura organizacional. Textos como Roethlisberger e
Dickson (1939), Whyte (1948), Selznick (1949), Homans (1950), Gouldner (1954), Blau
(1955) e Dalton (1959) podem ser considerados precursores da temática da cultura
organizacional por terem estudado, mais ou menos superficialmente, as organizações como
culturas ou como coleções de subculturas. Já na década de 70, um pequeno grupo de teóricos
organizacionais começou a discutir com mais intensidade a idéia de que não poderíamos
compreender as dinâmicas organizacionais em sua devida complexidade se não assumíssemos
a importância de estudarmos as organizações como instâncias caracterizadas por estruturas de
significados, e por práticas ritualizadas. Destacam-se textos que discutiam o processo de
socialização de novos membros de uma organização, à medida que eles eram integrados à
cultura organizacional. Entre estes autores estão Schein (1971), Van Maanen
(1976,1977,1979ª, 1979b), Louis (1980), Van Maanen e Schein (1979), Pondy et al. (1983) e
Wilkins (1979). Neste momento, o uso do termo cultura organizacional ainda não havia sido
consolidado, apesar de algumas pesquisas já assumirem uma abordagem fundamentalmente
cultural.

Desde o fim dos anos setenta até 1982 os estudos sobre cultura organizacional cresceram
lentamente, porém com regularidade. De acordo com Barley, Meyer e Gash (1988), neste
período o conceito de cultura organizacional entrava nas discussões sobre o comportamento
organizacional através de dois caminhos. O primeiro caminho foi uma série de obras de
consultores e pesquisadores aplicados, direcionadas à prática empresarial. A audiência
principal destas obras era os praticantes da administração. Estes autores (SILVERZWEIG E
ALLEN, 1976; PETERS, 1978; OUCHI E PRICE, 1978; O’TOOLE, 1979) argumentavam
que estratégias racionalistas para desenvolver e controlar as organizações estavam gerando
retornos marginais em termos de produtividade e desempenho, e sugeriam que, se os
administradores prestassem mais atenção aos aspectos simbólicos da vida organizacional, eles

74
descobririam ferramentas poderosas para melhorar a produtividade. Ao mesmo tempo, o
segundo caminho era mais teórico. Como no primeiro grupo de autores, estes também
estavam interessados em entender as organizações como uma instância caracterizada por
interpretações compartilhadas. No entanto, este grupo não estava diretamente interessado na
efetividade organizacional. Ao assimilarem premissas sociológicas e antropológicas, estes
pesquisadores se voltaram aos métodos fenomenológicos de investigar a organizações, e viam
em suas abordagens à cultura organizacional uma possibilidade de revolução paradigmática.
Segundo eles, estudar a cultura organizacional permitiria que se entendesse as organizações
como sistemas de valores socialmente construídos, o que lhes renderia insights
completamente novos a respeito das dinâmicas organizacionais (BARLEY, MEYER E
GASH, 1988).

A partir de 1982, a produção sobre o tema cultura organizacional começou a crescer


exponencialmente. Como Barley, Meyer e Gash (1988) sugeriram, este crescimento pode ser
relacionado ao sucesso comercial de três best-sellers: Theory Z de Ouchi (1982), In Search of
Excellence de Peters and Waterman (1982), e Corporate Culture, de Deal e Kennedy (1982),
além de artigos de capa em revistas especializadas importantes. Estas obras propunham
abordagens gerencialistas ao conceito de cultura organizacional, isto é, propunham a
derivação de instrumentos práticos capazes de gerar resultados organizacionais superiores.
Estas abordagens foram posteriormente denominadas symbolic management. Ao proporem
técnicas capazes de gerar comprometimento e integração social, estas obras atraíram a atenção
das comunidades acadêmicas e gerenciais e fizeram o tema cultura organizacional dominante
em pouco tempo. Em 1984 surgiram as primeiras obras abrangentes, que propunham a
integração do conceito de cultura organizacional a outras dimensões da vida organizacional.
Entre estas dimensões, destacava-se a liderança, considerada um caminho para as iniciativas
de mudança cultural nas organizações (SCHEIN, 1985; SERGIOVANNI E CORBALLY,
1984).

Entretanto, como sugerem Barley, Meyer e Gash (1988), a polarização entre os dois caminhos
pelos quais o conceito de cultura organizacional entrava nas discussões sobre comportamento
organizacional perdeu grande parte de sua relevância depois de 1982. Os autores sugerem que
houve um movimento no campo acadêmico pelo qual a maior parte dos pesquisadores adotou
gradualmente as preocupações gerenciais, concentrando suas discussões na abordagem do
symbolic management, cujos temas incluíam o valor econômico e o controle racional da
cultura. As abordagens gerencialistas sobre o conceito de cultura organizacional tornaram-se

75
hegemônicas, principalmente em território norte-americano. Nas próximas seções, serão
analisadas as principais tradições de pesquisa sobre a cultura organizacional – com destaque
para as abordagens gerencialistas dominantes – com base na ampla revisão da literatura feita
por Martin (2002). Segundo a autora, as discussões sobre a cultura no campo da teoria das
organizações podem ser divididas em três abordagens: integração, diferenciação e
fragmentação, que também dependem da tradição sócio-antropológica adotada pelos
pesquisadores. Como veremos, também é possível dizer que estas tradições estão associadas a
três tipos de interesse de pesquisa; gerencial, crítico e descritivo, como sugere Martin (2002).

2.1.1 Cultura organizacional: abordagens gerencialistas e a tradição sócio-antropológica


funcionalista

Após 1982, o desenvolvimento das pesquisas sobre a cultura organizacional caracterizou-se


pela consolidação de uma abordagem dominante associada a interesses fundamentalmente
gerencialistas. Esta perspectiva foi denominada por Martin (2002) como uma abordagem de
integração. De fato, dentre a multiplicidade de conceitos de cultura e paradigmas sócio-
antropológicos disponíveis aos pesquisadores, os interesses que caracterizavam a maior parte
dos estudos sobre cultura organizacional requeriam a escolha do referencial conceitual que
tivesse o maior potencial de contribuição à prática e à resolução dos problemas gerenciais. Em
termos de referenciais teóricos, a busca da maior aplicabilidade do conceito de cultura fez
com que pesquisadores e praticantes se inspirassem na tradição sócio-antropológica
funcionalista. Como conseqüência, a abordagem de integração é comumente caracterizada
pela simplificação do fenômeno cultural, por se focar nas manifestações culturais que são
interpretadas de maneira consensual, excluindo a ambigüidade do processo cultural. Assim, a
abordagem de integração diz respeito à natureza do conceito de cultura utilizado pelos
pesquisadores.

Como discutido no capítulo anterior, a tradição sócio-antropológica funcionalista é


caracterizada pelo entendimento sincrônico da operação dos grupos sociais baseado na
premissa de que cada manifestação cultural tem um papel ou uma função, mesmo que muitas
vezes papéis e significados não sejam facilmente identificados. Conseqüentemente,
manifestações culturais devem ser entendidas em seu contexto cultural particular para que
seus significados específicos sejam capturados e analisados em relação àquela totalidade

76
cultural específica. Entre as manifestações culturais estudadas por teóricos funcionalistas,
destacam-se práticas ritualizadas e mitos, que trariam em si determinados significados e aos
quais se poderia associar determinadas funções à manutenção e à coesão do grupo social.
Estudos desta tradição geralmente trazem um retrato consensual do sistema cultural,
mostrando as racionalidades “nativas” relacionadas a cada manifestação cultural, e como cada
manifestação cultural contribui para a manutenção do todo social (DAMATTA, 1987). Na
teoria das organizações, pode-se sugerir ter sido este o paradigma considerado mais
apropriado aos estudos culturais associados às propostas gerencialistas de symbolic
management, apesar de que nem todos os estudos deste tipo podem ser relacionados ao
funcionalismo e vice-versa3 (MARTIN, 2002).

De acordo com Barbosa (1999), o desenvolvimento do conceito de cultura organizacional por


este caminho foi uma conseqüência da lógica pragmática e instrumental intrínseca às
atividades de administração. Ao se defrontaram inicialmente com a questão de incorporar o
conceito de cultura a esta lógica, os administradores tiveram de relacionar os aspectos
simbólicos aos aspectos objetivos de uma organização (BARBOSA, 1999, p.139). Assim,
uma organização seria caracterizada por práticas sociais persistentes – dimensão objetiva da
organização – às quais poderiam ser associados significados – a dimensão simbólica da
organização. Diferentemente de outras tradições sócio-antropológicas, o paradigma
funcionalista assume um conceito de cultura que incorpora as relações e práticas sociais,
sendo, portanto, de especial utilidade aos proponentes do symbolic management. De acordo
com a autora, a pronta assimilação do referencial sócio-antropológico funcionalista aos
estudos sobre a cultura organizacional relaciona-se à preocupação de administradores com o
desenvolvimento de tecnologias efetivas para intervir na realidade cultural, o chamado
symbolic management. Conseqüentemente os gestores tinham que ver os fenômenos culturais
como se fossem uma dimensão manipulável da realidade, um objeto de decisões racionais e
conscientes, cujo destino poderia ser traçado por análises de custo-benefício. A idéia seria
manipular práticas sociais e seus significados intrínsecos nas organizações, com o objetivo de
se promover culturas consideradas mais adequadas à consecução dos fins da administração.
De fato, a abordagem funcionalista ao conceito da cultura era mais apropriada a estes

3
Como discute Martin (2002), a abordagem de integração à cultura organizacional inclui estudos de diversos
tipos, e não somente aqueles de interesses gerenciais, cujas premissas são descritas acima. O que se pode dizer,
entretanto, é que o referencial de integração tem sido amplamente utilizado para a discussão de questões
gerenciais já que esta abordagem tem mais afinidades com a lógica pragmática que permeia a atuação dos
administradores. Este fato faz com que a maioria dos estudos nesta perspectiva tenha interesses gerenciais. Para
exemplo de um estudo da abordagem de integração cujos interesses são críticos, veja Foucault (1977).

77
objetivos ao permitir que administradores pudessem tratar a cultura como uma variável
organizacional, ou uma dimensão da gestão.

A abordagem de integração à cultura organizacional está ligada a uma tradição de pesquisa e


de discurso gerencial que dá ênfase à associação entre o sucesso de uma organização e sua
cultura – a idéia de cultura organizacional como vantagem competitiva, que tem sido muito
popular nos Estados Unidos. Pesquisadores que adotam esta visão afirmam que a cultura
evolui na medida em que as organizações lutam para resolver problemas e se adaptar a seu
ambiente. Neste sentido, elas produzem ícones, lendas, mitos e valores para a ação. Schein
(1985), por exemplo, diz que a cultura é o resultado de um processo seletivo entre
comportamentos favoráveis ao sucesso de uma organização em seu ambiente. Buscando
resolver problemas de adaptação da organização ao ambiente, os indivíduos escolhem suas
experiências positivas e descartam as negativas, e estes padrões de comportamento se tornam
normas que são passadas de geração em geração. A cultura organizacional, de acordo com o
autor, é uma variável sistemática que permeia todos os aspectos da vida cotidiana, é
permanente e compartilhada (1991). Dentro desta mesma abordagem de integração, tratando a
cultura como uma variável, e associando-a às idéias da Teoria dos Recursos da Firma, Barney
(1986) sugere poder a cultura organizacional trazer vantagem competitiva para a empresa.
Seria possível dizermos que muitas vezes a existência de um forte conjunto de valores
gerenciais que define como uma empresa conduz seus negócios é uma explicação à
performance financeira superior desta empresa. Para garantir vantagens competitivas
sustentáveis, uma cultura organizacional precisa (a) ser valiosa, ou seja, permitir que a
empresa aproveite oportunidades do ambiente de negócio de forma a obter maiores vendas,
maiores margens e retornos, etc. (b) ser rara, ou seja, possuir elementos incomuns as outras
empresas com as quais compete, (c) ser de difícil imitação, o que não permite que outras
firmas copiem seus elementos formadores.

Segundo a idéia de cultura organizacional como vantagem competitiva, pode-se defini-la


como “o padrão de crenças e valores compartilhados que fornece significados aos membros
de uma instituição e estabelece regras comportamentais dentro desta organização” (DAVIS,
1984, p.1) Segundo este conceito, a cultura é uma variável que caracteriza a organização, é
permanente no sentido de ser difícil de se mudar, e é compartilhada no sentido de ser aceita e
não haver ambigüidades. Assim, a adoção das premissas da perspectiva de integração implica
identificar as manifestações culturais interpretadas de maneira consistente na organização de
maneira a construir visões consensuais sobre cultura organizacional. Esta abordagem tem seu

78
foco no que é claro e compartilhado por todos ou quase todos os membros de uma
organização, e exclui a ambigüidade (MARTIN, 2002). A tradição de integração é marcada
pela discussão das culturas fortes e fracas, das suas características predominantes, e das
culturas diferenciadas e caracterizadas pela influência de um herói fundador. As culturas
fortes seriam aquelas caracterizadas pela grande consistência interna entre os elementos
culturais, que reforçariam os comportamentos esperados e gerariam a conformidade
voluntária aos valores organizacionais considerados os mais adequados. Declarações de
missão e visão podem ser entendidas como valores organizacionais que devem permear a
maneira como todos os seus membros direcionam seus comportamentos. Neste sentido, uma
placa com a missão e a visão da empresa pode ser considerada um elemento cultural – um
totem – carregado de significados que devem ser compartilhados pelas pessoas. Ritos
organizacionais – como o pronunciamento regular do presidente sobre as estratégias alinhadas
à missão – podem reforçar valores e comportamentos considerados adequados (e
freqüentemente associados às visões da alta direção), contribuindo ao desenvolvimento de
uma cultura forte (DAVIS, 1984; PETTIGREW, 1996; KILMAN ET AL, 1986; BECKERT,
1991, PETERS E WATERMAN, 1982).

De acordo com esta tradição, há características que são mais ou menos apropriadas ao sucesso
organizacional, e as organizações devem promover mudanças culturais que viabilizem
padrões mais próprios a seu desenvolvimento particular. Em especial, estas características
incluem as premissas e valores básicos por detrás dos comportamentos das pessoas. Entre os
problemas típicos discutidos por estudos alinhados a esta tradição, é possível citar o caso da
AT&T:

Os problemas básicos da AT&T depois da desregulamentação [...] não estavam em


sua estrutura, sistemas de informação ou em suas pessoas. Ao invés disso, existia uma
cultura organizacional que não era mais apropriada ao novo mundo
desregulamentado no qual a empresa inseria-se. A tradicional cultura da AT&T
estava centrada em premissas como (1) o valor da superioridade técnica, (2) a posse
da superioridade técnica pela AT&T e (3) o direito ao domínio da empresa nos
mercados de telecomunicações. Assim, aperfeiçoar questões como objetivos,
estrutura, processos não solucionariam os problemas monumentais da empresa. A
solução requeria a mudança na cultura compartilhada na organização – mudar
premissas básicas e inconscientes a respeito do que seria necessário para se alcançar

79
o sucesso num mercado competitivo de telecomunicações (SHAFRITZ E OTT, 2001c,
p. 363).

De fato, apesar de ser inspirada em uma tradição sócio-antropológica essencialmente


sincrônica, a abordagem de integração à cultura organizacional é a base para as propostas de
mudança cultural nas organizações. Como descreve Martin (2002), a abordagem de
integração com interesses gerencialistas freqüentemente aborda a cultura organizacional de
maneira a sugerir, implícita ou explicitamente, estratégias de mudança cultural. Ao discutirem
a existência de culturas fortes nas organizações como uma chave para a rentabilidade e o bom
desempenho, os autores-consultores sugeriam a relevância das empresas pensarem em
estratégias de symbolic management (CARBONE, 2000; DEAL E KENNEDY, 1982;
KILMANN ET AL., 1985; KOTTER E HESKETT, 1992; OTT, 1989; OUCHI E JAEGER,
1978; OUCHI E WILKINS, 1985; PORRAS, 1987; PORRAS E COLLINS, 1994;
KILMANN, 1985). Nos próximos parágrafos serão analisadas as propostas de Trice e Beyer
(1984; 1985; 1993; 2001) para a mudança da cultura organizacional, alinhada à abordagem de
integração. Apesar dos autores reconhecerem que a cultura muda lenta e incrementalmente no
tempo, não é esse o tipo de mudança que discutem. Segundo os autores, podemos conceituar a
mudança cultural da seguinte forma:

Culturas são entidades dinâmicas; elas naturalmente sofrem todos os tipos de


mudanças incrementais. [...] Nenhum destes tipos de mudança, entretanto, é o que a
maioria dos experts e administradores querem dizer quando se referem à mudança
cultural. A maioria quer dizer mudanças mais planejadas, drásticas e profundas que
mudanças incrementais ou ajustamentos. Reservaremos o termo ‘mudança cultural’
para nos referirmos a iniciativas mais significativas de mudança que aquelas que
acontecem espontaneamente nos domínios de uma cultura, ou como parte dos
esforços conscientes para se manter a vitalidade de uma cultura existente. A mudança
cultural requer uma ruptura com o passado; a continuidade cultural é notadamente
interrompida (TRICE E BEYER, 2001, p. 414).

Segundo Trice e Beyer (2001), a mudança cultural é freqüentemente um processo complexo,


que demanda tempo, e que tem na alta direção a liderança mais apropriada. Por ser a cultura
uma variável complexa, cujos conteúdos são persistentes, a mudança cultural demanda
alterações em diversos elementos e em seus conteúdos para que, juntos, eles possam refletir
novos padrões de normas, significados, valores e expectativas de comportamento. Nas
palavras dos autores (TRICE E BEYER, 2001, p. 419):

80
Certamente, mudar uma cultura organizacional requer não somente uma mudança,
mas muitas mudanças em muitos elementos culturais diferentes. Em especial, os
esforços de mudança devem incluir tanto as ideologias [os significados] como as
diversas formas culturais que as expressam. [...] Considerando que as ideologias
estão no centro da cultura, os esforços de mudança precisam objetivar a
transformação “das experiências que as pessoas têm e o que elas aprendem destas
experiências, para que premissas e valores sejam alterados” (WILKINS E
PATTERSON, 1985, p. 289).

Entre as “experiências que as pessoas têm”, é possível destacar aquelas relacionadas aos
elementos que compõem uma cultura organizacional, entre os quais estão os ritos, os mitos, as
estórias, as metáforas, as linguagens, os arranjos físicos, que poderiam ser manipulados com o
objetivo de se alterar significados compartilhados e reforçar aqueles significados considerados
mais adequados. Neste sentido, a cultura é vista como algo concreto, seus elementos possuem
funções à manutenção e à coordenação do sistema sócio-cultural, e poderiam ser utilmente
manipulados pela alta direção. O que de fato os pesquisadores alinhados à abordagem de
integração propõem é a implementação de ferramentas de controle normativo nas
organizações, que poderiam auxiliar os administradores em suas tarefas tradicionais de
coordenação interna e adaptação às contingências externas. Nas palavras dos autores (TRICE
E BEYER, 2001, p. 420):

Metáforas também podem ser meios efetivos de mudança. Ao mudar ou eliminar


metáforas tradicionais que sugerem uma ideologia organizacional antiga, uma
cultura pode se mover em direção à mudança. [...] A criação e a promulgação de
novos mitos também têm sido defendidas como um caminho particularmente efetivo de
mudança cultural. Por meio dos mitos, os administradores podem inventar novas
explicações para a maneira como as coisas são. Eles também podem mudar os mitos
existentes de diversas maneiras.

Entre as “experiências que as pessoas têm”, e que têm o potencial de transformar seus valores
e premissas, destacam-se os ritos. Estes elementos culturais podem ser conceituados como
dramas, numa analogia com uma peça de teatro com papéis e scripts, executada a uma
audiência. Um rito organizacional é uma série de atividades cuidadosamente planejadas e
executadas em contextos sociais (um departamento de marketing, por exemplo), com começos
e fins bem delimitados (uma cerimônia ou evento de integração de novos funcionários) e
caracterizados por papéis bem delimitados atribuídos aos indivíduos (em que o presidente

81
comumente faz um longo discurso de boas-vindas). Um rito é ainda um fenômeno repetitivo,
isto é, acontece regularmente no contexto cultural. Por exemplo, entre os ritos
organizacionais, os processos de integração devem incutir nos indivíduos os valores
adequados aos negócios, o que permitiria a geração de lealdade e comprometimento
espontâneo (MARTIN, 2001, p. 66). Kunda e VanMaanen (1989, p. 49) discutem os ritos e
seus usos como instrumentos de controle normativo:

O ritual é uma atividade [social] de caráter simbólico, governada por regras, que
direciona a atenção de seus participantes para objetos de pensamento e sentimentos
dos quais devem compartilhar significados especiais. Há tanto os rituais positivos
como os negativos; da mesma maneira que há tanto os rituais altamente dramatizados
[...] como os rituais mundanos, corriqueiros e convencionais, por exemplo, o rápido
“como vai?”, que pode acontecer ao encontrarmos um conhecido no supermercado.
Sem distinção de tipo, entretanto, os participantes sofrem algum tipo de pressão
normativa para honrar a ocasião, pelo menos nas aparências, por meio da
‘encenação’ dos papéis esperados.

De acordo com esta perspectiva, os rituais (e a sua ausência ou abuso) podem gerar
uma carga emocional (de, sem dúvida, voltagens diferentes) em seus participantes.
Mais especificamente, como Durkheim sugeriu, não pode existir um grupo merecedor
deste título sem precisar, em intervalos regulares, a reafirmação de seus sentimentos
e idéias coletivas. Os rituais, de qualquer tipo, podem viabilizar um senso de unidade
e caráter. A ordem moral de uma coletividade é exibida por meio de rituais públicos,
e seus membros são mais ou menos pressionados pelos outros ‘em cena’ a revelar sua
aderência ou a se distanciar desta ordem por meio de sua presença e participação.
Assim, reuniões, festas, convenções, refeições compartilhadas, assembléias e outros
fenômenos sociais proporcionam oportunidades para os participantes expressarem
sua lealdade à coletividade.

Deve ser aparente também que os rituais proporcionam, para aqueles que os
controlam, uma oportunidade maravilhosa para definir como oficiais certas maneiras
de se entender o mundo. Os rituais, além de qualquer função revitalizadora que
podem servir em organizações, são aos seus administradores um modo de se exercitar
(ou, pelo menos, buscar exercitar) o poder sobre planos cognitivos e afetivos.
Ocasiões rituais podem ser vistas como mecanismos pelos quais certos membros da
organização influenciam como outros membros devam pensar ou sentir – o que eles

82
querem, o que eles temem, o que eles consideram adequado e possível e, por que não,
quem eles são. Se a cultura pode ser utilmente definida em termos daquelas coisas que
um membro do grupo com alto status social deve pensar, sentir e fazer, os rituais
oferecem exemplos penetrantes do que se constitui estes pensamentos, sentimentos e
ações esperados.

Ritos são fenômenos culturais freqüentes em organizações, como mostra a tabela 2, e a


manipulação de seus conteúdos e significados pode ser útil à coordenação ou à mudança
cultural. De fato, o rito é entendido tradicionalmente como um fenômeno capaz de reforçar
valores e comportamentos, gerando um senso de unidade no contexto cultural em questão e,
portanto, não sendo adequado aos esforços de mudança. Entretanto, como sugerem Trice e
Beyer (2001, p. 420), “nada nos impede de manipularmos estes elementos como maneiras de
incutirmos novos valores e significados”. Assim, ritos que articulem conteúdos e significados
completamente novos certamente terão pouco apelo aos membros de uma cultura; entretanto,
podemos adicionar novas mensagens a outras já aceitas, e então o rito assume funções
relevantes nos processos de mudança cultural.

Tabela 2

TIPOS MAIS FREQUENTES DE RITUAIS NAS ORGANIZAÇÕES

Ritos de iniciação Têm seu foco na doutrinação de funcionários novos ou recém


promovidos. Por exemplo, processos de integração de novos
funcionários.

Rituais de Têm seu foco no reconhecimento daqueles que apresentaram bom


reconhecimento desempenho, contribuindo ao sucesso do grupo. Por exemplo,
premiação de funcionários exemplares.

Rituais de degradação Têm seu foco na difamação ou remoção daqueles que apresentaram
desempenho ruim. Por exemplo, uma avaliação de resultados ruim
que gere desligamentos da equipe.

Rituais de renovação Têm seu foco no reforço de laços sociais ao chamar a atenção da
coletividade a uma questão específica. Por exemplo, uma reunião de

83
um grupo de trabalho desestimulada para a delegação de novos
desafios.

Rituais de integração Têm seu foco na solidificação de laços pessoais entre os


participantes que, muitas vezes, pertencem a níveis de status social
diferentes e são chamados a suspender suas diferenças. Por exemplo,
a confraternização de fim de ano com os diretores do departamento.

Rituais de redução de Têm seu foco na reconstituição de laços sociais por ocasião de
conflitos momentos estressantes que possam ter abalado relacionamentos. Por
exemplo, encontros da uma equipe de trabalho fora do expediente,
depois de uma semana difícil de trabalho.

Fonte: Adaptado de Trice e Beyer, 1984.

De fato, a tradição sócio-antropológica funcionalista é a inspiração principal dos autores


alinhados à abordagem de integração para a análise de rituais – entre outros elementos de uma
cultura – e de suas funções como fenômenos culturais capazes de promover a mudança ou o
reforço de valores, premissas e comportamentos esperados. Pode-se pensar então em funções
– manifestas e latentes – que os rituais e demais elementos culturais exerceriam em um dado
contexto cultural (MERTON, 1970). Utilizando-se do exemplo dado por Martin (2002),
podemos considerar a análise funcional do rito denominado pour time, e executado em uma
empresa que fabrica metal em formatos especiais. Apesar dos contínuos aperfeiçoamentos no
processo de produção, a última etapa ainda é considerada fundamental, e susceptível a sérios
problemas se não for adequadamente acompanhada. Assim, esta etapa foi transformada em
um elaborado ritual, em que as diversas pessoas envolvidas no processo de produção e
membros da administração e da diretoria paralisam seus afazeres imediatos e se dirigem ao
local onde a última etapa do processo acontecerá. Lá, os indivíduos assumem papéis
específicos nos procedimentos relativos à última etapa, até que o processo acabe. Pode-se
analisar as funções do ritual pour time no grupo em questão. O propósito técnico do evento
pour time é, aparentemente, finalizar um processo de produção em sua etapa mais complexa e
arriscada. Esta poderia ser considerada uma função técnica manifesta do ritual. Entretanto, é
possível dizermos que não se faz necessária toda esta mobilização para concluir o processo,
mesmo em se tratando de sua etapa mais arriscada. Assim, em termos de sua função técnica
latente, o ritual salienta as dificuldades relacionadas à última etapa do processo, e chama a
atenção das pessoas aos riscos envolvidos, garantindo que todos estejam atentos ao momento.
84
O ritual também tem significados emocionais. Em termos de sua função manifesta emocional,
o ritual chama a atenção para a importância do trabalho em grupo no processo de produção.
Ao mesmo tempo, à medida que o momento põe em destaque o trabalho cooperativo e
eficiente do grupo, o ritual faz com que os eventuais problemas que possam prejudicar a
cooperação e a aproximação entre os membros do grupo sejam postos de lado, pelo menos
temporariamente. Ao considerarmos que estes problemas surgem de relacionamentos
estressantes entre chefes e subordinados, o ritual diminui conflitos e reforça o atual sistema
social. Esta pode ser a função emocional latente do ritual.

2.1.2 Cultura organizacional: abordagens críticas e descritivas e a tradição sócio-


antropológica interpretativa

Apesar da abordagem de integração com interesses gerencialistas ter sido a mais amplamente
adotada, ela não é a única tradição de estudos sobre a cultura organizacional. Como mostra
Martin (1992, 2002), o conceito da cultura organizacional também tem sido desenvolvido em
abordagens chamadas de diferenciação e de fragmentação. Teóricos destas tradições
geralmente baseiam suas pesquisas em referenciais teóricos e metodológicos alinhados à
tradição sócio-antropológica interpretativa. Baseados nas idéias que caracterizam o
interacionismo simbólico e a antropologia interpretativa, entre outros referenciais, estes
pesquisadores se voltaram aos métodos fenomenológicos de investigação da cultura
organizacional, e viam em suas abordagens à cultura uma possibilidade de revolução
paradigmática.

Como discutido no capítulo anterior, o paradigma interpretativo é baseado na idéia de que a


realidade social não é mais do que a construção subjetiva de seres humanos que, por meio do
desenvolvimento e uso da linguagem comum e de suas interações corriqueiras, criam e
sustentam o mundo social de significados compartilhados (BERGER E LUCKMANN, 2003;
BURREL E MORGAN, 1994, p.260). Este paradigma dá ênfase à análise de micro-contextos
sociais nos quais indivíduos interagentes empregam uma variedade de práticas para criar e
sustentar definições particulares do mundo. Estes estudos são baseados na idéia de que a
realidade e fatos são criações sociais essencialmente. A antropologia interpretativa assume um
conceito semiótico de cultura. Segundo Geertz (1989, p. 15), “acreditando, como Max Weber,
que o homem é um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu, assumo a

85
cultura como sendo essas teias ….” Esta visão implica o entendimento da cultura como
grupos de princípios cognitivos, conhecimentos, crenças e valores, em cujos contextos
eventos, ações, objetos e expressões ganham significados particulares. O conceito
interpretativo de cultura proposto por Geertz (1989) diferencia-se daqueles adotados por
outras tradições – entre as quais a antropologia funcionalista – por abdicar dos aspectos
materiais e relacionais, isto é, as relações sociais que caracterizam um grupo não seriam
considerado sua cultura, nem o mundo material específico no qual se está inserido. A cultura
seria os sistemas de conhecimentos e significados, constantemente produzidos e negociados
no contexto da interação social da coletividade, com base nos quais os indivíduos constroem
os sentidos de suas ações cotidianas.

Na opinião de Barbosa (1999), a cultura se refere a regras de interpretação da realidade,


sistemas de classificação e interpretação que permeiam a interação dos indivíduos e grupos e
criam condições que possibilitam o compartilhamento e a negociação de sentimentos e
representações entre eles. Neste sentido, a cultura deve ser vista como uma “rede” de
significados que “se combinam e recombinam, sempre gerando novos padrões que formam o
contexto no qual a ação social acontece e se torna significativa” (BARBOSA, 1999, p. 142).
Esta rede de significados está por detrás de todas as atividades e interações sociais diárias,
dando sentido a elas. O conceito de cultura usado por antropólogos interpretativos reconhece
a diversidade e a ambigüidade encontradas em grupos humanos. Martin (1992) define a
ambigüidade como a percepção de falta de clareza que faz plausíveis múltiplas explicações de
um fenômeno cultural, em vez de uma só (p. 134). Ao discutirem a abordagem interpretativa,
Thompson (1995) e Fischer (1985) argumentam que fenômenos culturais estão imbricados em
processos e contextos socialmente estruturados, e estão associados a relações de poder e
conflito. Na visão destes autores, os indivíduos estão posicionados em esferas distintas da
estrutura social, e possuem formações econômica, cultural e social distintas. Por terem
percepções, biografias, papéis e interesses distintos, eles constroem interpretações diferentes
dos fenômenos do cotidiano. Conseqüentemente, fenômenos culturais devem ser analisados
levando-se em consideração os contextos sociais estruturados nos quais são produzidos e
interpretados.

Com base no conceito da cultura alinhado à tradição interpretativa, podemos reconceituar a


cultura organizacional e defini-la como as diversas estruturas de significados, negociadas
constantemente pelos indivíduos e grupos, por meio das quais eles interagem socialmente e
interpretam a realidade organizacional. Segundo esta definição, a cultura organizacional não

86
pode ser considerada simplesmente um sistema fechado de premissas, valores e
comportamentos esperados, que serviria como um script para a ação naquele contexto. Ao
incluirmos a ambigüidade como uma dimensão da cultura, percebemos que não
necessariamente compartilhamos os significados com base nos quais outros pessoas – ou
grupos – dão sentido às suas ações. As idéias de Thompson (1995) e Fischer (1985) nos
permitem perceber que os diversos sistemas de significados encontrados em uma organização
– que convivem em harmonia ou em conflito – estão diretamente relacionados aos contextos
sociais nos quais seus membros estão inseridos. Isto acontece porque estas pessoas constroem
seus conceitos de realidade a partir de suas experiências em diversas esferas da vida cotidiana,
e são inseridas na estrutura da sociedade de diversas maneiras. Portanto, indivíduos inseridos
em contextos sociais distintos interpretam a realidade e interagem socialmente de acordo com
regras diferentes.

A abordagem interpretativa à cultura é geralmente usada como base para tradições de


pesquisa que adotam as perspectivas de diferenciação e fragmentação à cultura
organizacional, conforme sugere Martin (2002). A perspectiva de diferenciação se foca nas
manifestações culturais que são interpretadas de maneira inconsistente dentro da organização.
Esta abordagem assume que o contexto organizacional é composto por subculturas, e que o
consenso existe somente no nível destas subculturas. Membros destas subculturas interagem
com base em seus próprios sistemas de valores e sensos de prioridades, e estas subculturas
podem ser vistas como unidades culturais dentro do contexto organizacional mais amplo, que
convivem em harmonia, independentemente ou em conflito. Pesquisadores desta tradição
geralmente classificam subculturas em termos de posição dos indivíduos na estrutura de
poder, categoria profissional, sexo, identidades demográficas etc. Quando se usa uma
abordagem de diferenciação à cultura, as várias vozes encontradas em uma organização não
são silenciadas. Diferentemente daqueles que adotam a perspectiva de integração,
pesquisadores na tradição de diferenciação vêem a cultura organizacional como um complexo
agrupamento de sistemas de significados negociados constantemente entre subculturas
(MARTIN, 1992; 2002).

Como Martin (2002) afirma, a identificação de subculturas faz possível se considerar as


dinâmicas de poder, desigualdade e dominação em organizações. Isto faz a perspectiva de
diferenciação atrativa a acadêmicos críticos, que se concentram em questões como as
diferenças entre subculturas e as relações entre elas. De fato, grande parte das pesquisas sobre
cultura organizacional que se alinham à abordagem de diferenciação adota referenciais

87
sociológicos críticos, que não se encaixam na matriz de paradigmas antropológicos, como
discutida no capítulo anterior. Assim, muitos estudos denunciam os conflitos culturais e as
dinâmicas de dominação e subordinação entre subculturas diferentes nas organizações,
adotando freqüentemente conceitos neo-marxistas ou críticos. Em especial, muitos estudos
abordam as relações muitas vezes conflituosas entre a alta direção e o chão de fábrica
(SMIRCICH E MORGAN, 1982); outros estudos também denunciam o preconceito nas
organizações, como aquele gerado pelas políticas de ação afirmativa nos Estados Unidos
(SIEHL, 1984), e as desigualdades de gênero e de raça e a dominação masculina nas
organizações (BARTUNEK E MOCH, 1991). Apesar dos estudos críticos serem os mais
comuns a adotarem a perspectiva de diferenciação, Martin (2002) também cita estudos
gerencialistas e descritivos baseados nesta abordagem. Por exemplo, adotando uma
abordagem de diferenciação com interesses gerenciais, Cox (1993) e Vasconcelos,
Vasconcelos e Mascarenhas (2004) tratam dos potenciais benefícios da diversidade cultural
nas organizações, enquanto Junquilho e Silva (2004) propõem a rediscussão do conceito de
“Carta de Valores”, como utilizado por muitas organizações. Segundo uma abordagem de
diferenciação com interesses descritivos, Van Maanen e Kunda (1989) descrevem as visões de
mundo e as relações entre dois tipos de engenheiros numa empresa de alta tecnologia, os
engenheiros de hardware e os engenheiros de software. Finalmente, Mascarenhas,
Vasconcelos e Protil (2004) também adotam uma abordagem de diferenciação com interesses
descritivos ao discutir a influência que conflitos entre subculturas podem exercer na evolução
da organização, vista como uma entidade sócio-cultural. Estes últimos dois estudos adotam a
perspectiva sócio-antropológica interpretativa.

Enquanto a perspectiva de diferenciação ainda aceita o consenso no nível das subculturas, a


perspectiva de fragmentação tem seu foco estrito nos componentes de diversidade e
ambigüidade da cultura. Pesquisadores desta tradição entendem as relações entre as
interpretações culturais como nem claramente consistentes nem claramente inconsistentes.
Em vez disso, estes pesquisadores defendem que manifestações culturais não são
interpretadas por meio de padrões compartilhados de significados, mas que, devido à
diversidade de origens e formações culturais entre os indivíduos, a ambigüidade está no
centro da cultura organizacional. Martin (2002) oferece uma descrição metafórica da
perspectiva de fragmentação. É possível imaginarmos cada indivíduo numa organização com
uma lâmpada. Quando uma nova prática organizacional se sobressai e a sua relevância é
interpretada, algumas lâmpadas se acendem, mostrando que estes indivíduos interpretam esta

88
prática como relevante, enquanto outros não. Quando outras práticas se sobressaem, outros
grupos de lâmpadas se acendem, e nunca é repetido o mesmo padrão de lâmpadas acesas.
Como afirma Martin (2002), estudos de fragmentação têm seu foco na multiplicidade de
possíveis interpretações, que não permite a formação do consenso abrangente na coletividade,
típico da perspectiva de integração, nem a formação do consenso subcultural, típico da
abordagem de diferenciação. Em vez disso, a perspectiva de fragmentação sugere que cada
manifestação cultural pode ser interpretada de diversas maneiras.

O uso da abordagem de fragmentação pode ser relacionado a estudos com interesses


descritivos (LEVITT E NASS, 1989; MEYERSON, 1991). Esta tendência pode ser explicada
pelo fato da complexidade da perspectiva de fragmentação ser geralmente incongruente com
as clarezas requeridas por ambos estudos gerenciais e críticos. Apesar dos estudos descritivos
serem os que mais adotam a perspectiva de fragmentação, Martin (2002) também ressalta que
alguns estudos gerenciais e críticos se baseiam nesta abordagem; por exemplo,
respectivamente, Weick (1991) e Alvesson (1993). Grande parte dos recentes estudos sobre
paradoxos organizacionais também assumem perspectivas teóricas de diferenciação ou
fragmentação à cultura organizacional, alinhadas à tradição sócio-antropológica interpretativa
(VASCONCELOS E VASCONCELOS, 2004; KOOT, SABELIS E YBEMA, 1996). A
discussão das três abordagens ao conceito da cultura organizacional é resumida na tabela 34:

4
A análise de Martin (2002), utilizada como base para os argumentos desta tese, não incorpora a pesquisa
brasileira sobre cultura organizacional. De fato, no Brasil, a perspectiva de integração é amplamente utilizada,
apesar de se basear em orientações teóricas diversas. Muitos de nossos pesquisadores se basearam no conceito de
cultura organizacional brasileira, segundo o qual a cultura de nossas organizações é influenciada pelos padrões
da cultura nacional. Também passível de diversas críticas, esta tradição de pesquisa é uma tentativa de se
delinear o relacionamento entre cultura organizacional e a cultura nacional, ou a influência que esta última
exerce sobre a primeira (BARBOSA, 1999; ALCADIPANI E CRUBELLATE, 2003; BARBOSA, 1996;
MOTTA E CALDAS, 1997; BARROS E PRATES, 1996; FREITAS, 1997; BRESLER, 2000; CALDAS, 1997).
Como colocado por Motta e Caldas (1997, p. 18-19), “(…) um dos fatores mais importantes que diferenciam a
cultura de uma empresa da cultura de outra, talvez a mais importante, é a cultura nacional. Os pressupostos
básicos, os costumes, as crenças e os valores, bem como os artefatos que caracterizam a cultura de uma
empresa, trazem sempre, de alguma forma, a marca de seus correspondentes na cultura nacional”. Baseada
nesta premissa, grande parte da pesquisa nesta área tem seu foco nos traços culturais nacionais que podem ser
encontrados de maneira homogênea nas organizações brasileiras, influenciando e particularizando a gestão no
Brasil. Neste contexto, a inspiração em obras clássicas das tradições historiográfica e antropológica brasileira foi
freqüente entre os pesquisadores. Entre estas obras, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1966), com clara
inspiração no paradigma histórico-cultural de Boas. Apesar de mencionarem a existência da diversidade na
cultura nacional, os pesquisadores acabam por utilizar, explicitamente ou implicitamente, o modelo de
integração da cultura nacional para explicar a formação de culturas organizacionais. Nesta tradição de pesquisa,
a maioria dos pesquisadores não adota interesses gerenciais explicitamente, e temas que dizem respeito às
preocupações gerenciais, como o valor econômico e o controle racional da cultura, não são predominantes
nestes trabalhos (MOTTA E CALDAS, 1997). Freitas (1997), por exemplo, diz que:
"Por ser híbrida em sua formação e, mais recentemente, ter assimilado culturas imigrantes diversas [...], A
sociedade brasileira pode dar certa impressão de que vive em um pais de imenso caos cultural. Se ainda
somarmos nossas diferenças regionais, vamos ter a sensação de que o Brasil é composto de vários países de

89
Tabela 3

PERSPECTIVAS DE ESTUDO DA CULTURA ORGANIZACIONAL

Integração Diferenciação Fragmentação

Orientação ao Consenso no nível Consenso no nível Falta de consenso


consenso da organização das subculturas

Relação entre Consistência Inconsistência Não é claramente


manifestações consistente ou
inconsistente

Orientação sobre a Excluí-la Canalizá-la para Apreciá-la


ambigüidade fora das subculturas

Principal Tradição sócio- Tradição sócio- Tradição sócio-


inspiração teórica antropológica antropológica antropológica
funcionalista interpretativa e interpretativa
tradição sociológica
crítica

Interesses de Gerencial Crítico Descritivo


pesquisa mais
comuns

Temas de pesquisa Symbolic Dinâmicas de Ambigüidade

culturas próprias. [...] No entanto, parece haver uma unidade orgânica, um núcleo central, durável ainda que
móvel, que pouco ou muito lentamente se modifica. É nesta unidade que se reconhece o gênio da nação (…). É
nesta unidade, nesta alma, que os traços de brasileiros sumarizados neste artigo irão centrar-se” (FREITAS,
1997, p. 42).
Apesar da importância da abordagem de integração no Brasil, ela não é a única. Um número crescente de
pesquisadores tem adotado outras premissas teóricas, como a abordagem interpretativa, além do método
etnográfico, em seus estudos sobre cultura organizacional. Por exemplo, o grupo de pesquisas chamado
“Culturas Organizacionais Brasileiras”, que trabalha desde 1985 baseado na Universidade de Campinas (além
de pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, da PUC/RS, da Universidade Federal do Paraná, do Espírito
Santo e da Bahia) vem se dedicando ao estudo antropológico de organizações por meio de abordagens que
transcendem a integração. A maior parte destes estudos, apresentados em congressos brasileiros como o
ENANPAD e o ENEO, é uma tentativa de se estudar as interações sociais diárias no mundo dos negócios, e
revelar as formas de representação e classificação que elas refletem (RUBEN E GONÇALVES, 2003; RUBEN,
SERVA, CASTRO, 1996; JAIME JÚNIOR, 1997; 2001; 2002).

90
mais freqüentes management, dominação e característica de
mudança cultural, conflitos culturais culturas
cultura organizacionais;
organizacional paradoxos.
como vantagem
competitiva

Adaptado de Martin (2002, p. 95).

Muitos estudos sobre cultura organizacional, alinhados às abordagens de diferenciação e


fragmentação, buscam criticar e problematizar as premissas e propostas do conjunto de
práticas denominadas symbolic management, ou as tentativas de se construir ou mudar
culturas organizacionais. Alinhados à tradição sócio-antropológica interpretativa ou crítica,
estes estudos tratam de mostrar como, numa organização, nem todos os fenômenos são
interpretados de maneira consensual; ao contrário, muitos fenômenos culturais geram
interpretações divergentes que, conseqüentemente, gerarão conflitos e direcionarão os
comportamentos destes indivíduos a direções também diferentes. Pode-se sugerir haver, na
base destas discussões, um conjunto já clássico de questões – as críticas ao paradigma
funcionalista –, que são utilizadas como argumentos no contexto de um conflito ideológico
entre proponentes dos dois caminhos originais pelos quais o conceito de cultura foi assimilado
pelos Estudos Organizacionais. Discutida no início deste capítulo, a polarização entre estes
dois caminhos nunca deixou de existir, apesar de ter perdido grande parte de sua relevância.
Martin (2002, p. 4) descreve esta polarização ainda existente:

Os críticos das pesquisas culturais funcionalistas reagem com consternação à


intrusão de preocupações do mainstream em “seu” domínio cultural. Por exemplo,
Calas e Smircich (1987) declararam que a pesquisa cultural tinha, ao final da década
de 80, se tornado “dominante, mas morta”. Apesar deste anúncio de morte ter sido
prematuro, muitos pesquisadores culturais continuam a resistir às abordagens
funcionalistas ao estudo da cultura. Estudos culturais que fogem do funcionalismo
geralmente preferem abordagens interpretativas, [...] se focando nos significados
simbólicos associados às formas culturais como os ritos e arranjos físicos [...].
Apesar das abordagens funcionalistas geralmente trataram a cultura como uma
variável, usada para se prever resultados, abordagens interpretativas tendem a ver a
cultura como uma lente para o estudo da vida organizacional [...].

91
Segundo os críticos das propostas de symbolic management, os estudos de cultura
organizacional feitos segundo uma perspectiva de integração ignoram questões importantes
que distorcem a interpretação da realidade cultural. A exclusão da ambigüidade na
perspectiva de integração é de importância central para o entendimento de suas limitações.
Apesar da multiplicidade de conceitos de cultura usados por pesquisadores que adotam esta
abordagem, todos excluem a ambigüidade de suas definições. Schein (1991, p.248) diz: “se
não há consenso, ou há conflito, ou as coisas são ambíguas, portanto, por definição, este
grupo não tem uma cultura naquelas áreas (…) compartilhamento e consenso são centrais
para a definição, não são escolhas empíricas”. De fato, os estudos gerencialistas do symbolic
management discutem as visões da alta direção sobre a cultura organizacional – comumente, a
cultura organizacional ‘mais adequada’ –, e ignoram a real complexidade cultural que
caracteriza a organização. Como afirmou Martin (1992), geralmente é possível questionar os
estudos de integração em termos do que a linguagem dos textos evita, ignora ou esconde, e
como as vozes divergentes de membros da cultura foram distorcidas ou excluídas. Ao mesmo
tempo, proponentes do symbolic management denunciam a falta de utilidade prática de
estudos interpretativos de diferenciação e fragmentação, que não permitem a derivação de
propostas abrangentes aos administradores (MARTIN, 2002).

Sob o ponto de vista da antropologia interpretativa, a exclusão a priori das múltiplas


interpretações simplifica e até distorce a realidade ao excluir das interpretações da cultura as
maneiras como membros ou grupos organizacionais importantes vêem, compreendem e agem
sobre fenômenos culturais. Críticos da exclusão da ambigüidade e do conflito na perspectiva
de integração argumentam que tal distorção de realidades culturais tem, com freqüência,
causas políticas. Como Martin (1992) argumenta, visões de integração sobre a cultura
organizacional geralmente enfatizam a homogeneidade e a harmonia. No entanto, devido ao
fato dos indivíduos e grupos interpretarem fenômenos culturais de múltiplas maneiras, e do
consenso organizacional ser improvável, estas visões sobre a cultura podem ser entendidas
como maneiras de se impor a autoridade de alguém sobre outro indivíduo. Martin (1992) diz
especificamente que “estudos de integração são criticados por legitimar práticas
organizacionais e intelectuais que ignoram, não valorizam ou excluem idéias, opiniões e
interesses daqueles que se afastam individualmente ou coletivamente de uma visão
dominante” (p.68).

No contexto das divergências entre proponentes do symbolic management e seus críticos


interpretativistas, muitos destes autores defendem a necessidade de se ultrapassar a

92
abordagem de integração à cultura organizacional, incorporando as críticas descritas
anteriormente aos estudos de cultura em organizações (MASCARENHAS, KUNDA E
VASCONCELOS, 2004; CHANLAT, 1994; SERVA E JÚNIOR, 1995; JAIME JÚNIOR,
2002; WRIGHT, 1994; MARTIN, 1992). Estes autores sugerem que a assimilação de
premissas e conceitos da antropologia interpretativa às análises organizacionais permitiria o
desenvolvimento da visão das organizações como sistemas de significados socialmente
construídos, viabilizando a real revolução paradigmática originalmente proposta. Por
exemplo, ao criticar a abordagem de integração por meio do ponto de vista da antropologia
interpretativa de Geertz, Jaime Junior (2002) discute a importância de considerarmos a
ambigüidade ao analisarmos a cultura organizacional. Ele afirma que discursos e ações
simbólicas tem mais de um sentido já que são sempre interpretados por vários receptores que
possuem repertórios culturais distintos. Para que tenhamos uma idéia da complexidade desta
questão, o autor sugere que, além de serem membros de organizações, indivíduos e grupos se
identificam, por exemplo, com crenças religiosas, filiações políticas, e origens étnicas, além
de estarem inseridos em diferentes posições da estrutura social. Isto leva à diversidade de
possíveis interpretações de fenômenos culturais em um contexto organizacional, que
divergem freqüentemente das interpretações e pretensões da alta direção.

Alinhadas aos críticos da abordagem de integração, Wright (1994) e Martin (2002) sugerem
ser a cultura um conceito pluralista e dinâmico, que pode ser definido como os grupos de
idéias e significados que são constantemente retrabalhados no contexto das interações diárias
entre grupos e indivíduos, inseridos em estruturas sociais marcadas pela desigualdade no
acesso ao poder e pelos conflitos. Segundo esta visão, a ambigüidade permite que se reescreva
constante e dialeticamente os textos com os quais indivíduos e grupos dão significados a suas
interações diárias. Neste sentido, considerar a ambigüidade, expressada nas múltiplas visões e
interpretações de fenômenos culturais, é essencial à análise cultural, já que viabiliza
entendimentos mais aprofundados das complexas dinâmicas culturais (JAIME JÚNIOR,
2002; MASCARENHAS, 2002; MASCARENHAS, VASCONCELOS E PROTIL, 2004;
JUNQUILHO E SILVA, 2004). Nesta linha de pensamento, Martin (1992; 2002) sugere que
pesquisadores usem simultaneamente as três abordagens à cultura organizacional: integração,
diferenciação e fragmentação. Segundo a autora, quando combinadas, estas três perspectivas
à cultura organizacional oferecem uma variedade de insights que cada abordagem única não
oferece. Os pontos obscuros de cada abordagem são superados: enquanto a perspectiva de
integração ignora os conflitos e as ambigüidades da cultura, as abordagens de diferenciação e

93
fragmentação tendem a ignorar o que a maioria dos indivíduos compartilha. Neste sentido, a
proposta de Martin permite a elaboração de interpretações mais completas da cultura
organizacional.

Alinhado à proposta de Martin (1992; 2002) Kunda (1992) utiliza simultaneamente as três
abordagens à cultura organizacional – integração, diferenciação e fragmentação – para
questionar e problematizar as conclusões e propostas do symbolic management. Segundo o
autor, o surgimento do tema cultura organizacional no discurso gerencial relaciona-se a uma
busca por novas ferramentas de controle social para aumentar a produtividade. A criação de
contextos sociais adequados que favorecessem a produtividade em organizações era a meta
principal para administradores, cuja preocupação era desenvolver tecnologias efetivas de
intervenção na realidade cultural (Mascarenhas, Kunda e Vasconcelos, 2004). Assim, por
meio da retórica da cultura, os administradores são vistos como líderes que tem o papel de
formatar fenômenos culturais e processos sociais, instituir normas e valores e, então, inspirar
e motivar os empregados. Para a gerência, entender e operacionalizar o conceito de cultura
implica considerá-la um aglutinador do comportamento organizacional. Esta idéia se baseia
no conceito de cultura como uma composição de símbolos e valores compartilhados por um
grupo, no qual a palavra compartilhar quer dizer concordar, aceitar e se comprometer.
Segundo as propostas de symbolic management, a cultura organizacional deveria ser
considerada uma variável que pudesse ser gerida pelos administradores. Conseqüentemente,
tecnologias de gerenciamento foram desenvolvidas com a intenção de se promover os valores
que as equipes gerenciais consideram ideais para o sucesso do negócio. Neste sentido, a
cultura de uma organização é vista como resultado da conceituação gerencial e é transmitida
por seminários, workshops, mídia interna, discursos gerenciais, etc. A cultura se torna
autônoma, algo que pode ser formatado pela equipe gerencial para maximizar os resultados de
uma organização. Kunda (1992), no capítulo introdutório de um estudo etnográfico em uma
grande empresa americana produtora de alta tecnologia, ilustra o uso gerencial e prático da
cultura com fins de controle normativo e mudança cultural:

Jogadas de poder não funcionam. Você pode fazer o que quiser com eles. Eles tem que
querer. Então você tem que trabalhar através da cultura. A idéia é educar as pessoas
sem que elas saibam. Ter a religião e não saber como elas a assimilaram (p.5)!

E há maneiras de fazê-lo, o autor continua:

Hoje o Dave vai fazer sua primeira apresentação em Lyndsville… ‘Apresentações são
importantes nessa cultura’, ele diz. ‘Você tem que se entrosar, passar a eles a
94
religião, passar a sua mensagem. É um mecanismo para transmitir a cultura.’… O
Dave é claro sobre o que ele quer alcançar: gerar um pouco de entusiasmo, deixar
eles soltarem suas emoções, celebrar alguns dos sucessos, mostrar a eles que eles não
estão sozinhos, fazer com que sua presença seja sentida. E talvez dar a eles um
exemplo da visão correta dos negócios’ (p.5-6).

Como descreve Kunda, apresentações sobre a cultura organizacional são usadas como
mecanismos para a socialização de novos empregados, uma introdução aos princípios
culturais de uma organização.

Perto do hall de entrada do prédio, uma sala de conferência está sendo preparada
para mais uma rotina de “formação cultural”. Sozinha na sala, Ellen Cohen está se
preparando para apresentar seu “módulo de cultura” para a “Introdução a Tech”
[como a corporação é comumente chamada], um workshop para recém contratados....
Ela é uma engenheira “totalmente ligada à cultura”. Nos últimos anos ela se tornou a
especialista na cultura da companhia. ‘Eu me cansei de programação. Toda pessoa
tem seu limite. Eu conhecia os meus. Então eu aceitei uma posição gerencial e sou
paga para fazer cultura agora’ (p.6).

A administração da cultura organizacional inclui manuais e comunicações internas que tratam


de disseminar o que o corpo diretivo considera ser os padrões apropriados de interação social.

Ela está preparando seu material agora, esperando os participantes chegarem. Em


uma mesa ela está organizando as apostilas. Cada uma inclui cópias de seu trabalho
‘O Manual de Operações da Cultura – versão 2’; uns impressos oficiais da
companhia, uma cópia da última edição do Tech Talk, com uma entrevista com o
presidente e várias frases de seu discurso ‘Nós somos um’ (p.6).

Uma análise do uso da retórica da cultura por administradores de muitas organizações revela
sua natureza como uma forma de racionalidade superior. Em outras palavras, tal discurso
gerencial destaca a perspectiva cultural da alta direção em detrimento de outras perspectivas
existentes na organização, como se estas últimas não fossem válidas, ou fossem menos
desejáveis. A racionalidade superior, em resumo, se refere a subordinação de diferentes
perspectivas culturais na organização a uma só: a dos administradores e tomadores de decisão.
Ela considera as outras perspectivas culturais dignas de atenção somente na medida em que
são objetos dos esforços de mudanças organizacionais. Tentar ordenar processos sociais a
partir da premissa de uma racionalidade superior e promover esta racionalidade por meio de

95
técnicas de controle são ações inspiradas em simplificações consideráveis da realidade
organizacional que ignoram a variedade de repertórios culturais que podem ser encontrados
nestes contextos. Considerando que as organizações são formadas por indivíduos e grupos que
interagem de acordo com diversos sistemas de significados e representações, percebe-se que
ações gerenciais baseadas numa dita racionalidade superior tendem a produzir conseqüências
inesperadas, já que a realidade organizacional é interpretada segundo esta variedade de
repertórios culturais, e estes repertórios não desaparecem por decretos gerenciais. Ao invés
disso, mesmo quando ignorados, estes repertórios podem até levar a comportamentos por
parte dos membros da organização que os administradores vêem como prejudiciais aos
objetivos organizacionais (MASCARENHAS, KUNDA E VASCONCELOS, 2004;
BRABET, 1993; KUNDA, 1992).

Em sua pesquisa, Kunda (1992) ilustra tais conseqüências inesperadas de manipulações


culturais ao explorar as maneiras pelas quais os engenheiros na companhia de alta tecnologia
interpretam os padrões da cultura organizacional promovidos pela administração, e formam
seu comportamento no ambiente organizacional. Kunda constrói uma rica descrição das
normas e valores que guiam o cotidiano organizacional nos grupos de engenheiros, e que
também geram divergências, descontentamento e stress. Seu trabalho revela as ambigüidades
e contradições vividas pelos indivíduos na organização e as maneiras pelas quais eles
desenvolvem respostas à cultura corporativa, encarada como um mecanismo de controle.
Neste sentido, Kunda discute moralidade e comprometimento na organização – misturados
com cinismo e ironia – e mostra os limites das técnicas de manipulação cultural e a
necessidade de gerenciar a contradição. O estudo de Kunda direciona a atenção à maneira
com que vários membros e grupos interpretam sinais corporativos e os transformam em
comportamentos socialmente aceitáveis mas não intencionados pelos administradores. Kunda
revela que a visão da administração sobre a cultura organizacional não é assimilada de uma
maneira sistemática e previsível pelos empregados, mas de maneira criativa, contraditória e,
muitas vezes, contra-produtiva. Ao concluir seu estudo, o autor revela as discrepâncias entre a
cultura oficial, imposta pela administração, e a realidade dos grupos de trabalho (KUNDA,
1992, p. 222):

É uma cultura permeada de contradições entre representações ideológicas e


realidades alternativas: onde a democratização é aclamada, há também formas sutis
de dominação; onde se diz buscar a clareza de significados e propósitos, há a
ambigüidade intencional profundamente enraizada; onde uma moralidade puritana é

96
pregada, há também cinismo oportunista; e onde o comprometimento fervoroso é
demandado, há a ironia disseminada.

2.1.3 Cultura organizacional: a apropriação do referencial antropológico e a polarização


funcionalismo X interpretativismo

Como se discutiu no primeiro capítulo, o pensamento antropológico tem sido desenvolvido


com base em diferentes abordagens teóricas e metodológicas, em diversas escolas de
pensamento ou paradigmas. Como sugere Laplantine (1988), no contexto acadêmico da
antropologia – ou ainda, no contexto da cultura acadêmica antropológica –, estes paradigmas
ainda podem ser associados a algumas tradições geograficamente localizadas e que compõem
a matriz disciplinar da antropologia. Esta se mostra significativamente fragmentada. Assim,
estas tradições são contextos culturais distintos nos quais os antropólogos desenvolveram suas
idéias, ambientes acadêmicos cujos interesses dominantes eram (e são) diferentes. Mas o que
significa toda esta diversidade de idéias e abordagens? Pode-se dizer que o desenvolvimento
concomitante de diferentes escolas de pensamento foi a base para a formação da matriz
disciplinar da antropologia, como discutida por Oliveira (1988).

O conceito de matriz disciplinar (OLIVEIRA, 1988; OLIVEIRA, 2000) surge como uma
crítica às idéias de Kuhn (1970), em A estrutura das revoluções científicas. A tese de Kuhn
gira em torno do conceito de revolução científica, que diz respeito à supressão de um
paradigma prévio por um novo, quando o antigo não mais dá conta da crescente complexidade
dos fenômenos estudados pela ciência. Segundo Kuhn (1970), uma revolução científica não é
um momento de acumulação, ou de aperfeiçoamento de teorias já existentes. Este processo
não é cumulativo, já que as idéias do paradigma antigo são substituídas por novas premissas e
suposições, o que faz incompatíveis os dois referenciais. A partir da revolução científica,
desenvolve-se o novo paradigma em um contexto renovado de ciência normal5. Apesar de ter

5
O conceito de ‘paradigma’ insere-se numa tradição de discussões filosóficas sobre as ciências e seu
desenvolvimento. Diversos são os autores que fizeram contribuições fundamentais à nossa compreensão das
dinâmicas de produção do conhecimento científico, entre os quais destaca-se Thomas Kuhn. Estas discussões
sugerem ainda idéias importantes sobre o que diferenciaria as dinâmicas das ciências naturais das dinâmicas das
ciências sociais. Em seu livro A estrutura das revoluções científicas, Kuhn (1970) afirma que os paradigmas das
ciências naturais se sucedem em uma dinâmica que abrange ainda os conceitos de ‘ciência normal’ e ‘crise’. Para
Kuhn, um paradigma é o referencial compartilhado por uma comunidade científica específica e utilizado como
base consensual dos processos de construção de um corpo de conhecimento. Os paradigmas são desenvolvidos
no contexto da ciência normal. Este é o período em que os elementos que constituem o paradigma são aceitos e

97
sido muito celebrado, A estrutura das revoluções científicas de Kuhn também foi criticado6
(SCHULTZ E HATCH, 1996; BURREL E MORGAN, 1994). É particularmente importante
notarmos as diferenças entre as dinâmicas das ciências naturais, ou hard sciences, e as
dinâmicas das ciências do homem, ou soft sciences. Segundo Oliveira (1988), nas ciências
sociais, em geral, os conceitos de crise e de revolução científica não encontram sustentação
por estas ciências se caracterizarem pelo desenvolvimento simultâneo de escolas de
pensamento distintas, ou paradigmas. Na antropologia, em particular, a existência simultânea
de diversos paradigmas relaciona-se ao fato da comunidade científica adotar premissas e
desenvolver, ao mesmo tempo, idéias conflitantes ou incompatíveis entre si, de forma que
exijam a tomada de partido dos cientistas7.

Assim, pode-se dizer que a revolução científica de Thomas Kuhn não acontece
necessariamente no contexto das ciências sociais, já que o desenvolvimento de novos
paradigmas não requer o abandono de estruturas de pensamento e linhas teóricas anteriores.
Ao contrário, paradigmas antropológicos diferentes são articulados sistematicamente no
contexto da comunidade científica da disciplina, eles coexistem e são ativos, apesar do
destaque que um ou outro paradigma pode ter, dependendo do período histórico ou do centro
científico. Na antropologia, os paradigmas discutidos no capítulo anterior convivem

adotados pela comunidade cientifica, com pouca ou nenhuma contestação. Durante este período, o paradigma
indica aos cientistas o que é interessante investigar e como fazê-lo, limitando os aspectos considerados
relevantes à investigação. Na fase de ciência normal, os cientistas limitam-se a resolver os enigmas e
incongruências que os fenômenos vão lhe revelando, mas sem que isso implique a reavaliação do conjunto de
premissas adotado. Entretanto, Kuhn mostra que os fenômenos investigados apresentam uma complexidade
crescente, o que dificulta a resolução dos enigmas até que os cientistas se deparam com uma crise, quando os
problemas teóricos e empíricos recentes não podem mais ser resolvidos dentro do paradigma original. A crise
pode ser bastante longa, de forma que o paradigma original seja progressivamente desacreditado devido à sua
incapacidade de resolver uma quantidade crescente de desafios. Surge então a necessidade de uma outra
estrutura básica de pensamentos, que dê conta das novas complexidades, e baseado na qual os novos problemas
podem ser adequadamente resolvidos. Esta é a revolução científica: um novo paradigma passa a estruturar o
trabalho dos cientistas, e o período da ciência normal pode ser então restabelecido. Assim, a tese de Kuhn gira
em torno do conceito de revolução científica, o que, nas ciências naturais, diz respeito à supressão de um
paradigma prévio por um novo. Este novo paradigma deve responder adequadamente não somente às questões
antigas, já resolvidas no âmbito do paradigma antigo, como também os desafios insolúveis dentro do referencial
antigo. Por fim, deve-se salientar que, para Kuhn, uma revolução científica não é um momento de acumulação,
de aperfeiçoamento de teorias já existentes. Este processo não é cumulativo, já que as idéias do paradigma antigo
são substituídas por novas premissas e suposições, o que faz incompatíveis os dois referenciais. A partir da
revolução científica, desenvolve-se o novo paradigma em um contexto renovado de ciência normal. A noção de
Oliveira (1988; 2000) de matriz disciplinar da antropologia é uma crítica a esta última característica da
revolução científica, como descrita por Kuhn (1970).
6
Para uma discussão mais completa sobre a co-existência de paradigmas na Teoria das Organizações, vide
Schultz e Hatch (1996) e Burrel e Morgan (1994).
7
Como colocou o autor:“Entendo, portanto, que aquilo que poderíamos chamar de crise, [...] só se observaria
nos termos em que Kuhn a coloca, a saber, quando um paradigma sucede ao outro no processo histórico de
transformação da ciência; ou melhor, das ciências duras, ou hard sciences. [...] Diria apenas [...] que a
antropologia moderna está constituída por um elenco de paradigmas simultâneos, ou para usar a expressão de
George Stocking Jr., trata-se de um equilíbrio poli-paradigmático” (OLIVEIRA, 1988, p. 59).

98
simultaneamente e são encontrados muitas vezes, em harmonia ou em tensão, dentro de uma
mesma instituição científica. Para dar conta desta constante interação e articulação entre os
paradigmas, Oliveira (1988) discute o conceito de matriz disciplinar da antropologia: esta
seria a estrutura teórica ampla da disciplina, formada pela justaposição de seus paradigmas em
constante tensão. Os movimentos dos elementos desta estrutura, como a introdução, a
valorização, a desvalorização e a articulação de paradigmas, estão por detrás da vivacidade da
antropologia8. De fato, a matriz disciplinar da antropologia foi a origem dos diversos
referenciais teóricos – distintos e conflitantes – assimilados por teóricos da cultura
organizacional9. A tabela 4 resume esquematicamente a “matriz disciplinar” da antropologia,
colocando lado a lado as grandes tensões entre os paradigmas:

Tabela 4

MATRIZ DISCIPLINAR DA ANTROPOLOGIA

Tensões
Inspiração teórica
teóricas e Conceito de Cultura Variável ‘tempo’
(principais autores)
metodológicas

Conceito de cultura
aproxima-se do conceito Perspectiva
Reação ao
de sociedade. Cultura é o sincrônica da cultura.
Escola evolucionismo; Escola
conjunto de relações Busca das relações
Funcionalista Racionalista Francesa
sociais e seus conteúdos. presentes entre as
Britânica (Malinowski e
Ênfase nas funções e na manifestações
Radcliffe-Brown)
integração das culturais
manifestações culturais.

Escola Busca de relações Perspectiva Escola Racionalista

8
Por exemplo, sobre a introdução do paradigma interpretativo na matriz disciplinar da antropologia, Oliveira
(1988, p. 64) nos diz: “Com a introdução pelo paradigma hermenêutico de alguma desordem na matriz
disciplinar – constituída, originalmente, pelos paradigmas orientados pelas ciências naturais –, o que se viu foi
uma sorte de rejuvenescimento da disciplina, e isso graças ao aumento da tensão entre os paradigmas
circunscritos na matriz: se já havia esta tensão entre os primeiros paradigmas, com a inclusão do último ela
aumentou em escala, dinamizando extraordinariamente a antropologia de nossos dias. Portanto, nunca é
demais insistir que a hermenêutica não veio erradicar os paradigmas, hoje chamados tradicionais, mas para
conviver junto a eles, tensamente, constituindo uma matriz disciplinar efetivamente viva e produtiva”.
9
Certamente, outras ciências sociais contribuíram aos estudos sobre cultura organizacional. Para efeito dos
argumentos desta tese, delimitou-se a discussão aos paradigmas antropológicos, alguns dos quais têm bases
compartilhadas com a sociologia.

99
Estruturalista estruturais na mente essencialmente Francesa; lingüística
Francesa humana, que sincrônica da cultura saussuriana (Lévi-
governariam o Strauss).
comportamento. Ênfase
na distinção entre os
modelos manifestos de
cultura x modelo
inconsciente

Perspectiva
Filosofia hermenêutica;
Conceito semiótico de diacrônica da cultura.
distinção entre ciências
Antropologia cultura; cultura como Considerar a
da natureza e ciências
Interpretativa sistemas de símbolos e historicidade é uma
do homem; pós-
significados. condição ao
modernismo.
conhecimento.

Reação ao
O particularismo
Ênfase na construção evolucionismo;
histórico propunha o
Antropologia histórica de padrões distinção entre ciências
estudo diacrônico das
Histórico- culturais, e no da natureza e ciências
culturas como
cultural relacionamento entre a do homem (Boas,
condição à derivação
cultura e o indivíduo. Benedict; no Brasil,
de leis gerais.
Freyre)

Visto isso, pode-se sugerir a apropriação seletiva de idéias e teorias oriundas desta matriz por
teóricos organizacionais, que deveriam identificar, entre as idéias que caracteriza cada
paradigma, aquelas cujo potencial de contribuição (ou explicação) às discussões sobre cultura
organizacional – seja com interesses mais gerencialistas, seja com interesses mais críticos –
seria maior. Por exemplo, inspirada no racionalismo iluminista, a tradição antropológica
britânica de cunho funcionalista e sincrônico produziu idéias sobre a cultura que, ao
abordarem macro-questões como as funções das instituições culturais, foram associadas à
antropologia social, ou à abordagem antropológica que se concentra no estudo das sociedades
e dos padrões de interação social. O recurso a esta tradição era capaz de viabilizar a derivação
de um ferramental básico aos estudos sobre cultura organizacional – leia-se symbolic
100
management e intervenções culturais –, baseado nas análises funcionais de manifestações
culturais, como mitos e ritos. Diferentemente, a tradição antropológica diacrônica americana
sempre se ocupou da cultura como sistemas de significados e conhecimento, valores e
símbolos. Trata-se da antropologia cultural, fundada por Boas e posteriormente reformulada
por Geertz (1989), cujas propostas têm o potencial de redefinir o projeto intelectual e
científico da antropologia. Ao viabilizar as perspectivas teórico-metodológicas de
diferenciação e fragmentação (MARTIN, 1992), a antropologia geertziana poderia revelar as
clivagens interpretativas (JAIME JÚNIOR, 2002) que caracterizam os modelos culturais
impostos por meio das práticas do symbolic management.

De fato, a apropriação das idéias antropológicas pelos teóricos organizacionais aconteceu


seletivamente, e limitada em grande extensão aos referenciais funcionalista e interpretativo
(SCHULTZ E HATCH, 1996; MARTIN, 2002). No contexto desta polarização, entretanto, os
teóricos organizacionais assimilaram premissas e referenciais teóricos que não colocavam a
mudança cultural como um tema central, o que implicava a construção de conceitos de
cultura que, se não desconsideravam totalmente sua dimensão dinâmica, assumiam-na apenas
tacitamente. Ao se apropriarem do referencial antropológico, “os proponentes dos
paradigmas funcionalista e interpretativo oferecem representações mais ou menos estáticas
que ignoram o fluxo e as descontinuidades que [...] constituem a vida cotidiana nas
organizações. Apesar de funcionalistas e interpretativistas reconhecerem a relevância das
origens históricas, ambos os paradigmas retratam a cultura organizacional por meio de
representações estáticas, tais como padrões, mapas, programas, metáforas, imagens e temas”
(SCHULTZ E HATCH, 1996, p. 535). Na prática, a seleção destes paradigmas também
condenou a um esquecimento as outras tradições antropológicas, bem como questões mais
amplas que perpassam o debate social; em especial, a tensão entre as perspectivas sincrônicas
e diacrônicas de análise dos fenômenos sócio-culturais. Por exemplo, a tradição estruturalista
francesa – em cujo contexto o debate sincronia versus diacronia assumiu uma importância
teórica fundamental – defende uma perspectiva (ou um projeto) essencialmente sincrônico e
racionalista, porém extremamente abstrato, o que a excluí das discussões sobre a cultura
organizacional. Certamente, a apropriação do referencial antropológico pelos teóricos
organizacionais merece uma discussão mais aprofundada, capaz de sugerir explicações à
desvalorização histórica da temática da mudança cultural no contexto desta
interdisciplinaridade.

101
Na realidade, podemos sugerir ter sido a mudança cultural um tema secundário na matriz
disciplinar da antropologia, desde o movimento de reação às perspectivas diacrônicas dos
evolucionistas, que estudavam a mudança cultural em grande escala. Como foi discutido no
capítulo anterior, uma das questões básicas que entrincheiram os antropólogos, a oposição
entre diacronia e sincronia, foi resolvida (ou não..) de maneira diversa por cada tradição.
Como explica Schwarcz (2001), os fundadores dos paradigmas que compõem a tradição
moderna da antropologia – as Escolas Francesa, Britânica e Histórico-cultural Norte-
americana – abdicaram do estudo histórico e diacrônico das sociedades ao perceberem que os
arquivos dos grupos que estudavam eram extremamente pobres ou inexistentes, o que
impediria o desenvolvimento de análises aprofundadas e confiáveis de sua história. Em
especial, as tradições sincrônicas européias se desenvolveram como uma reação às teorias
evolucionistas. Segundo Durkheim (1972), por exemplo, era necessário o estabelecimento de
um método para explorar os fenômenos coletivos; método este que deveria distanciar-se do
método comparativo empregado pelos evolucionistas, cujas teorias ele acusou de serem
estritamente filosóficas e sem fundamentação empírica suficiente. Inspirados em Durkheim,
os fundadores das tradições antropológicas sincrônicas advogavam a construção de uma
ciência objetiva, inspirada no racionalismo das ciências naturais; ao recusar a especulação
filosófica, a antropologia deveria ser empiricamente fundamentada.

De fato, os paradigmas de tradição européia – Estruturalista e Funcionalista – excluíam a


mudança cultural como conseqüência de escolhas teórico-metodológicas primordiais
consolidadas ao longo de seu desenvolvimento. Por exemplo, a perspectiva antropológica
funcionalista é essencialmente sincrônica, isto é, preocupada com a análise dos grupos
humanos em suas dimensões atemporais. Os antropólogos funcionalistas partiam do
pressuposto de que o que o etnógrafo faz é o estudo de como as sociedades se mantém, e não
de como evoluem, dando à mudança cultura um status pouco privilegiado em suas
pesquisas10. De acordo com os fundadores da tradição funcionalista, a objetividade do

10
Apesar do seu foco na sincronia – isto é, na manutenção do grupo social enquanto tal – a tradição
antropológica funcionalista inclui estudos e teorias a respeito da mudança cultural, que se torna um tema também
relevante no contexto colonial, caracterizado pelos contatos entre os ‘povos nacionais’ e os ‘povos tribais’, o
chamado ‘contato interétnico’. Como diz Oliveira (1964, p. 13), “verificamos, assim, que a constante busca de
refinamento metodológico e conceitual que se nota nos estudos de contato interétnico [...], pode ser considerado
também – e sobretudo – como o resultado da perene frustração dos etnólogos em bem compreender a estrutura
e a dinâmica das relações entre povos de etnia distinta, inseridos numa situação determinada: a situação de
contato”. No que diz respeito ao contato interétnico, os estudos alinhados à tradição britânica dão à noção de
‘instituição social’ um relevância fundamental, articulada originalmente em Methods of Study of Culture Contact
in África, de Malinowski (1938), e mais tarde no clássico The Dynamics of Culture Change, também de
Malinowski (1976b, orig. 1945). De fato, estas obras traziam as idéias básicas que podem ser tomadas como a
expressão da visão da antropologia social britânica sobre mudança cultural. Oliveira (1964, p. 14) analisa esta

102
conhecimento antropológico deveria ser garantida por meio da adoção da etnografia como
método privilegiado por meio do qual se poderia captar a ‘racionalidade’ da sociedade. Fazê-
lo significaria identificar as funções de suas manifestações culturais. Os funcionalistas
reconheceram que antropólogos de gerações anteriores – leia-se, os evolucionistas – não iam a
fundo no que dizia respeito a suas tentativas de compreender efetivamente os povos dos quais
falavam. A objetividade do conhecimento antropológico dependia da apreensão do papel de
cada manifestação cultural no contexto da sociedade sendo analisada; o que contrastava com
os pressupostos metodológicos dos evolucionistas, que recorriam a arquivos históricos
considerados pobres e incompletos e não praticavam a etnografia. Assim, a perspectiva
sincrônica – centrada no presente, isto é, na história presente do grupo estudado – também era
uma maneira de se garantir a objetividade do conhecimento antropológico, além de demarcar
fronteiras com a História. Entretanto, ao isolarem a variável tempo, os funcionalistas
desenvolveram referenciais teóricos pouco úteis à compreensão da mudança cultural. Ao
construir “fotografias” das culturas por meio da busca das racionalidades e funções das
manifestações culturais, a essência do pensamento funcionalista acabava destacando o
equilíbrio entre as instituições culturais e a coesão da cultura como um todo, em detrimento
do conflito e da mudança (GODDARD, 1982).

Alinhada a um projeto antropológico denominado “moderno”, a tradição sincrônica européia,


mais especificamente o funcionalismo, foi a inspiração para grande parte dos estudos sobre a
cultura organizacional; em especial, os estudos de integração com interesses gerencialistas.
Pode-se sugerir algumas explicações para este fenômeno. É possível dizer que a gestão é
tradicionalmente caracterizada pela pressuposição da existência de uma racionalidade
superior nas organizações, a visão dos gerentes. Como Brabet (1993) descreveu, baseada em
amplas pesquisas, as premissas do modelo instrumental tem influenciado historicamente a
gestão nos Estados Unidos e na Europa. Segundo este modelo, a empresa é um instrumento
racional de produção cujas estratégias são definidas pela direção em função das pressões do
mercado e do setor. A função dos gerentes é implementar as estratégias, procurando os

visão: “A preocupação em apreender a realidade resultante do contato interétnico valendo-se da análise de


instituições correspondentes, i.e., pela aceitação tácita do princípio de que as instituições atuam umas sobre as
outras segundo suas respectivas naturezas (as instituições religiosas tribais seriam modificadas pelas ação da
instituição religiosa ocidental, as econômicas por suas recíprocas e assim por diante) leva o pesquisador a
minimizar a influência dos agentes alienígenas naquelas esferas formalmente fora de seus respectivos campos
de ação. Assim, o missionário ou o administrador afetariam a ordem tribal apenas naquelas esferas
relacionadas com o sistema religioso ou com o sistema de chefia. [...] A verdade é que o espírito inglês não
trouxe para os estudos de contato interétnico o melhor de seus esforços teóricos e metodológicos ...”
Posteriormente, os trabalhos de funcionalistas britânicos sobre a “mudança social” centravam-se nos
mecanismos sincrônicos de mudanças inerentes às sociedades tribais, desconsiderando as especificidades
históricas dos contatos interétnicos (FIRTH, 1983).

103
melhores resultados econômicos e a melhor performance de seus empregados. Segundo este
modelo, as organizações devem ser formatadas racionalmente e os empregados devem se
envolver com o projeto coletivo, proposto pela alta direção. Assim, os indivíduos são vistos
como seres motiváveis, ou parcialmente condicionáveis por meio de técnicas derivadas de
conceitos comportamentais de estímulo-resposta.

De acordo com o modelo instrumental, os gerentes acreditam ser possível fazer com que os
indivíduos se adaptem aos padrões desejados de comportamento, medindo as repostas a cada
estímulo e comparando-as às metas e aos investimentos realizados. A administração é baseada
na idéia de que um sistema social harmonioso gera eficiência econômica e vice-versa,
enquanto os conflitos são vistos como disfuncionais ao sistema. Um ambiente harmonioso,
sem questionamentos ou resistências e com um alto grau de conformidade por parte dos
indivíduos aumenta a produtividade da empresa. Os administradores, portanto, devem
estimular os processos sociais considerados mais apropriados aos objetivos organizacionais.
Pressupor a existência de uma racionalidade superior implica a passividade dos indivíduos
diante da gerência, que possui a capacidade e a visão global necessária para guiá-los em
direção do sucesso geral. Segundo Barley e Kunda (1992), a popularidade das teorias da
cultura organizacional representa o reaparecimento do discurso do controle normativo. Na
opinião dos autores, os administradores, operando segundo a lógica da racionalidade superior
e do controle, adotaram a retórica da cultura para que pudessem alcançar suas metas. Por meio
da retórica da cultura, os administradores são vistos como líderes que tem o papel de formatar
fenômenos culturais e processos sociais, instituir normas e valores e, então inspirar e motivar
os empregados. De fato, o interesse teórico e prático na cultura organizacional pode ser visto
como mais uma manifestação da racionalidade superior da administração, em uma versão
normativa. Neste contexto, o surgimento do tema cultura organizacional no discurso gerencial
relaciona-se a uma busca por novas ferramentas de controle social para aumentar a
produtividade. A criação de contextos sociais adequados que favorecessem a produtividade
em organizações era uma meta principal para administradores, cuja preocupação era
desenvolver tecnologias efetivas de intervenção na realidade cultural (BARBOSA, 1999;
MASCARENHAS, KUNDA E VASCONCELOS, 2004).

Devido ao seu foco em interpretações consistentes de manifestações culturais, a abordagem


de integração à cultura era mais adequada aos objetivos de se promover um ambiente
harmonioso, que permitisse melhor desempenho organizacional por meio de padrões de
comportamento considerados adequados pela direção. Ao mesmo tempo, o referencial

104
funcionalista sincrônico era visto como aquele mais adequado às discussões gerencialistas.
Associado às manifestações culturais organizacionais, o conceito de função – visto pelos
funcionalistas como um instrumento para se desvendar sociedades aparentemente caóticas –
era útil aos administradores à medida que lhes dava ferramentas capazes de comparar os
elementos constitutivos da culturas, manipular seus significados e os comportamentos
esperados. Neste sentido, o rito, ao possuir funções de aglutinação social, permitia que
administradores reforçassem aqueles valores e comportamentos que lhes pareciam mais
apropriados. Como resultado deste movimento, e devido à sua convergência com os interesses
gerenciais, a abordagem funcionalista de integração à cultura organizacional rapidamente se
tornou predominante. Os interesses diários e práticos da administração implicavam tornar
concreta a idéia da cultura organizacional, uma variável que pudesse ser manipulada pelos
administradores. Neste sentido, a cultura se torna autônoma, algo que pode ser formatado
pela equipe gerencial para maximizar os resultados de uma organização. De fato, a abordagem
funcionalista de integração é uma manifestação de como os administradores podem adaptar a
temática da cultura às suas necessidades. Neste contexto, a abordagem sincrônica à cultura era
especialmente apropriada aos objetivos dos teóricos, entre os quais, a comparação entre
culturas. Como discutem Schultz e Hatch (1996, p. 535):

A natureza estática da análise funcionalista faz possível se comparar várias culturas e


se mostrar as diferenças e similaridades entre elas. […] Para fazer tais comparações,
o pesquisador precisa “congelar” a cultura ao representar suas características numa
maneira estática. Alguns pesquisadores funcionalistas reconhecem o desenvolvimento
e estágios de aprendizagem nas culturas; entretanto, argumentamos que este
desenvolvimento segue fases previsíveis e determinísticas, como, por exemplo, o ciclo
de vida da cultura em três estágios (nascimento, meia-vida e maturidade), descrito
por Schein (1985). Na realidade, a análise funcionalista resulta em um modelo
estático que conecta os elementos da cultura organizacional, mesmo quando o estudo
centra-se na transformação através dos estágios de desenvolvimento cultural.

Ao mesmo tempo, e como uma reação à apropriação de teorias e conceitos funcionalistas aos
estudos sobre cultura organizacional, teóricos menos alinhados aos interesses gerenciais
buscaram questionar o conjunto de propostas genericamente denominadas symbolic
management por meio do aporte à tradição interpretativa, denunciando um suposto ‘desvio’
do que seria uma tentativa de revolução paradigmática na área de Estudos Organizacionais
(BARLEY, MEYER E GASH, 1988; BARLEY E KUNDA, 1992; MARTIN, 2002). Segundo

105
Oliveira (1988) a antropologia interpretativa é um paradigma que representou uma reação a
um projeto anterior de antropologia – freqüentemente denominado moderno –, que tinha suas
raízes no culto ao objetivismo e ao racionalismo, típico da Ilustração. Ao analisarmos os
paradigmas modernos – entre os quais o funcionalismo –, percebemos que buscam construir
um referencial coerente que permita entendimentos amplos e gerais sobre o funcionamento do
universo social. Enquanto os antropólogos estruturalistas buscavam estruturas inconscientes
que explicassem todos os nossos padrões de comportamento ou culturas, os funcionalistas
construíram um corpo teórico com o qual poderiam analisar e comparar todas as culturas. De
fato, as proposições dos teóricos do symbolic management inserem-se neste contexto. Ambas
estas correntes européias de pensamento encontram suas raízes no racionalismo francês, que
tem em As regras do método sociológico, de Durkheim (1972; orig. 1895), o marco inicial de
um amplo esforço para construir uma “verdadeira ciência natural dos fatos sociais”
(OLIVEIRA, 1988, p. 73). Neste sentido, até a tradição histórico-cultural norte americana não
representava uma ruptura com o projeto racionalista moderno; o particularismo histórico seria
um método complementar à busca de leis gerais sobre as dinâmicas sociais.

Diferentemente, a tradição interpretativa é freqüentemente associada a uma perspectiva


antropológica pós-moderna, em cujo contexto são travadas discussões significativamente
diferentes daquelas típicas da escola racionalista francesa e do estruturalismo, por exemplo
(OLIVEIRA, 1988b; CALDEIRA, 1988). As contribuições da tradição antropológica
interpretativa – da mesma forma que as contribuições dos estudos de fragmentação e
diferenciação da cultura organizacional – freqüentemente acontecem por meio do
questionamento implícito de diversas premissas e das conclusões generalizantes e abrangentes
das outras teorias ou paradigmas. Assim, exacerba-se a desconfiança de Boas na derivação de
teorias abranges sobre a cultura por meio de sua desconstrução. Como propõe Geertz (1989),
a antropologia deveria deixar de ser uma ciência experimental e assumir-se uma ciência
interpretativa, cujo objetivo não é chegar a uma equação simplificada das dinâmicas do
universo social. No esteio destas idéias, teóricos organizacionais armaram-se de etnografias,
entre outros estudos apoiados em outras abordagens metodológicas, para denunciar as
injustiças no contexto organizacional (estudos críticos de diferenciação), a ambigüidade e as
contradições nas organizações (estudos descritivos de fragmentação), as implicações da
diversidade cultural (estudos de fragmentação e diferenciação descritivos), entre muitos
outros temas. Certamente, os tipos de estudos apontados pelos parêntesis não dão conta da

106
complexidade teórico-metodológica e de interesses que caracteriza o pólo interpretativo11 do
campo da cultura organizacional (MARTIN, 2002). Neste contexto, boa parte destes estudos
assume tacitamente o objetivo de denunciar as simplificações conceituais e empíricas
empreendidas por teóricos funcionalistas do symbolic management (KUNDA, 1992; KUNDA
E VAN MAANEN, 1989).

Da mesma forma que a tradição européia, os paradigmas americanos não privilegiaram a


mudança cultural, apesar de terem incluído o tempo como uma das dimensões fundamentais
ao reconhecimento das especificidades dos grupos humanos estudados. De tradição moderna,
a Escola Histórico-cultural Norte-americana de Boas originou-se das críticas deste autor às
abordagens diacrônicas dos evolucionistas, que, segundo Boas, eram etnocêntricas, pois
partiam de pressuposições a respeito da evolução das manifestações culturais que não
deveriam ser tomadas a priori, mas sim como resultado de um estudo minucioso e histórico.
Com a proposta do particularismo histórico, Boas propunha o ‘método básico das ciências
sociais’, que deveria ser indutivo, e não dedutivo, como assumiam os evolucionistas. Assim,
Boas sugere a inadequação da perspectiva linear assumida no âmbito dos estudos
evolucionistas sobre a evolução cultural da humanidade. Não deveríamos considerar a
humanidade como imersa em “uma cultura”, que teria o mesmo destino, mas sim a existência
de “várias culturas”, que deveriam ser estudadas em suas particularidades históricas como
precondição para a dedução de leis gerais. Posteriormente, entretanto, a perspectiva relativista
inovadora de Boas se desenvolveu com base na sua decepção ao ter que renunciar ao estudo
diacrônico das culturas em sua última fase intelectual, ao perceber a pobreza dos arquivos
históricos e a conseqüente impossibilidade de se chegar a conhecer “como a cultura de cada
grupo humano se tornou aquilo que é” (BOAS, 2005b, p. 97)12. Nesta fase, Boas passou a

11
Certamente, o pólo interpretativo do campo da cultura organizacional assimila outras influências teóricas que
não a antropologia Interpretativa. Em as quais, Schultz e Hatch (1996) identificam a influência da
fenomenologia, da hermenêutica, da semiótica e do interacionismo simbólico dentro da antropologia, da
sociologia e da crítica literária.
12
A tradição antropológica culturalista americana também gerou estudos e teorias sobre a mudança cultural,
assumindo premissas e conceitos significativamente diferentes daqueles desenvolvidos na Europa. De fato, a
tradição culturalista, em oposição à tradição social dos antropólogos britânicos, deslocou o centro da análise da
mudança cultural da sociedade – pensada em termos de instituições ou sistemas sócio-culturais – à cultura –
entendida como padrões ou traços culturais. Assim, a tradição culturalista cunha o termo “aculturação”, que pode
ser conceituado como o fenômeno resultado do contato contínuo e direto entre grupos de indivíduos que
possuem culturas diferentes, e que leva a mudanças nos padrões culturais originais de um ou dos dois grupos
(REDFIELD, LINTON E HERSKOVITS, 1936; OLIVEIRA, 1964). Apesar das discussões sobre a aculturação
assimilar aspectos sociológicos no decorrer de seu desenvolvimento, o conceito culturalista põe ênfase nos
complexos de relações entre traços culturais, e não entre entidades socais, como típico na tradição funcionalista.
Como discute Oliveira (1964), o conceito de aculturação foi a base para as definições de ‘fricção interétnica’ e
‘etnodesenvolvimento’, conceitos estes desenvolvidos no contexto da antropologia latino-americana. Por
exemplo, como conceitua Oliveira (2000, p. 46), fricção interétnica é o “contato entre grupos tribais e

107
acreditar que nenhum tipo complementar de estudos seria o suficiente para viabilizar a busca
de leis gerais sobre a evolução cultural e a defender a necessidade de compreendermos melhor
um conjunto de relações que, de acordo com sua experiência, sempre foi negligenciado pela
antropologia: as relações entre a cultura e os indivíduos (BOAS, 2005b). Seus alunos
avançaram os estudos desta problemática.

Mais recentemente, a antropologia de Geertz (1989) exacerbou as idéias de Boas no que diz
respeito à impossibilidade de chegarmos a leis gerais, defendendo a construção de uma
ciência social interpretativa, e não experimental. Segundo sua proposta, a diacronia era
fundamental aos estudos e conclusões antropológicas por ser o tempo uma dimensão
fundamental à apreensão da especificidade do objeto de estudo. Ao questionar a objetividade
associada aos outros paradigmas, Geertz (1998) problematizou o ‘fazer antropológico’.
Segundo o autor, o conhecimento antropológico é produto do encontro etnográfico, uma
interação social de mão-dupla caracterizada pela historicidade. Deveríamos reconhecer que o
processo de ‘compreensão’ – ou vertehen – se dá com base numa interação complexa e
historicamente determinada entre o observador e o observado. Conseqüentemente, e no que
diz respeito à geração de teorias, a proposta interpretativa revela-se diacrônica ao assimilar
tacitamente a idéia de que a posição histórica do pesquisador (e do observado) nunca é
anulada. De fato, o relativismo relativo ao período histórico deveria ser uma dimensão
fundamental a impedir conclusões abrangentes e generalizadoras. Ao desautorizar a
generalização, a proposta diacrônica de Geertz (1989) faz da etnografia e do trabalho do
antropólogo um meio para se discutir teoria, filosofia e epistemologia simultaneamente à
tarefa de interpretar culturas. Entretanto, a variável tempo, ou mais especificamente, a
temática da mudança cultural é pouco privilegiada como dimensão central às análises
antropológicas interpretativas. No contexto da apropriação do referencial antropológico aos
Estudos Organizacionais, “os resultados da maioria das análises interpretativas são estudos de
caso ou etnografias em organizações que são, na melhor das hipóteses, representações
estáticas de processos dinâmicos” (SCHULTZ E HATCH, 1996, p. 535).

segmentos da sociedade brasileira, caracterizado por seus aspectos competitivos e, no mais das vezes,
conflituais, assumindo esse contato proporções ‘totais’, isto é, envolvendo toda a conduta tribal e não tribal que
passa a ser moldada pela situação de fricção interétnica”. A antropologia brasileira herdou da tradição
culturalista americana o conceito de aculturação, que foi desenvolvido por antropólogos e sociólogos segundo
orientações teórico-metodológicas diversas. Em especial, os estudos sociológicos de relações raciais e os estudos
etnológicos das relações entre os grupos tribais e a sociedade nacional (FERNANDES, 1958; RIBEIRO, 1957).
Em Estudos Organizacionais, o conceito de aculturação foi incorporado de forma marginal. Para ver um exemplo
de estudo sobre a mudança cultural com base no conceito de aculturação em Estudos Organizacionais, vide
Barley, Meyer e Gash (1988).

108
3 – INTERSECÇÃO DE PARADIGMAS: MARSHALL SAHLINS E A
ANTROPOLOGIA HISTÓRICO-ESTRUTURAL

De fato, a oposição entre diacronia e sincronia sempre polarizou os antropólogos. Desde o


advento das ciências sociais modernas, a cultura vem sendo pensada com base em categorias
acadêmicas opostas, como passado e presente, estático e dinâmico, infraestrutura e
superestrutura e, no que diz respeito à presente discussão, sistema e evento, história e
estrutura, estabilidade e mudança, ou ainda, diacronia e sincronia. Mais recentemente,
entretanto, os “radicais contrastes binários pelos quais geralmente se pensa a cultura e a
história” (SAHLINS, 1990, p. 18) tornaram-se objetos de questionamentos. “Utilizamos
constantemente, em nosso folclore nativo assim como em nossas ciências sociais acadêmicas,
essas dicotomias reificadas na divisão do objeto antropológico. [...] Concluo que essas
suposições não são apenas fenomenologicamente enganadoras, mas que também são
analiticamente debilitantes” (SAHLINS, 1990, p. 179 e p. 18-19). Não haveria razão crível
para a polarização excludente entre estrutura e história, considerando-se a complexidade e
especificidade dos fenômenos culturais. Poderíamos considerar a fusão destas duas
perspectivas ao assumirmos a existência de estrutura na história, ou ainda história na
estrutura. Assim, seria possível incorporar a temporalidade à estrutura, como se pudéssemos
“dar história à estrutura” (SCHWARCZ, 2001, p. 128). De fato, obras recentes sugerem
funcionar a cultura como uma “síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, ou
de diacronia e sincronia” (SAHLINS, 1990, p. 180). Neste contexto, revela-se uma crise, que
acontece quando questões não podem mais ser respondidas dentro do arcabouço teórico de um
paradigma (KUHN, 1970). Mais especificamente, as premissas assumidas por teóricos
alinhados aos paradigmas modernos da antropologia não dão conta da fusão das perspectivas
sincrônica e diacrônica da cultura (e/ou história).

Na antropologia, a superação da crise se dá muitas vezes pela articulação competente de


elementos teóricos oriundos dos paradigmas tradicionais da matriz disciplinar, ou ainda por
meio da identificação e agregação de novos elementos teóricos ou dimensões dos objetos de
estudos (OLIVEIRA, 2000). Estas articulações viabilizam a construção de novos referenciais
para a compreensão de antigos problemas (sem excluir os referenciais antigos
necessariamente), referenciais estes que, ao se focarem em aspectos diferentes da realidade
social, podem tornar-se novos paradigmas. Pode-se dizer que, atualmente, uma das propostas
teóricas mais populares no contexto da antropologia é resultado da articulação de conceitos

109
oriundos de paradigmas outros da disciplina como base para o estudo de questões
desprestigiadas por aqueles paradigmas originais. Mais especificamente, Marshall Sahlins,
antropólogo americano, reformula a idéia de estrutura – típica dos paradigmas sincrônicos – e
utiliza-a para construir análises que destacam a mudança, ou a diacronia. Trata-se da
antropologia estrutural e histórica – o exemplo atual mais importante de uma articulação
competente de elementos teóricos de paradigmas, a princípio, incompatíveis, para a
formulação de um referencial teórico coerente. A antropologia estrutural e histórica é uma
tentativa de integrar paradigmas com o objetivo de se transpor alguns de seus limites e, numa
abordagem inovadora, dar conta de fenômenos que, anteriormente, não eram apropriadamente
analisados no âmbito de cada um dos paradigmas originais. Ao construir um referencial
teórico que salienta os fenômenos da evolução cultural, ou de mudança cultural, Sahlins
aparece como um mediador competente do debate entre sincronia e diacronia, exercendo um
papel de estruturalista histórico. Trata-se de uma proposta à antropologia capaz de conciliar a
tradição diacrônica americana à sincronia típica da antropologia européia. Sahlins (1990;
2001) parte da crítica ao conceito de ‘sistema’ como proposta originalmente pela lingüística
de Saussure (1966, orig. 1915), e apropriado posteriormente por Lévi-Strauss:

A antropologia estrutural fundou-se numa oposição binária que mais tarde se


tornaria sua marca registrada: a oposição radical em relação à história. De maneira
similar, o estruturalismo, trabalhando a partir do modelo saussuriano da língua como
objeto científico, privilegiou o sistema em detrimento do evento, e a sincronia, em
lugar da diacronia. Seguindo uma via paralela àquela da distinção saussuriana entre
a língua (la langue) e a fala (la parole), a análise estrutural parece excluir também a
ação individual e a prática temporal, exceto quando estas representam a projeção ou
“execução” do sistema em questão (BOURDIEU, 1977). Argumentarei aqui,
sobretudo por meio de demonstrações concretas, que esses escrúpulos todos não são
de fato necessários: é possível determinar estruturas na história – e vice-versa
(SAHLINS, 2001, p. 135).

O conceito de sistema em Saussure (1966) surge como uma reação a teorias anteriores que
assumiam uma concepção exclusivamente histórica da língua. Segundo o autor, a língua
deveria ser analisada como um sistema autônomo, referencialmente arbitrário e como um
fenômeno coletivo. No sistema, o signo – estímulo intencional codificado e composto de
significante e significado – tem seu valor conceitual determinado no contexto de suas relações
com os outros signos coexistentes. Assim, o “verde” teria seu valor conceitual determinado

110
por meio de seu contraste com o “azul”. A inexistência do “azul” faria com que o “verde”
possuísse uma extensão conceitual e referencial maior. A língua, para ser analisada como um
sistema, deve ser compreendida como um todo autônomo, significativo em e para si. Os
valores conceituais dos signos são arbitrários, e determinados somente por suas relações
recíprocas com outros signos, que não se conectam intrinsecamente aos objetos aos quais
possam se referir. Se não fosse assim, isto é, se o signo tivesse seu valor conceitual
intrinsecamente associado ao seu referente, o sistema perderia sua autonomia e a noção de
língua como estrutura autônoma estaria comprometida. A língua seria então analisada como
uma estrutura descomprometida da história, cujas partes se constituem por relações recíprocas
e contrastantes:

A noção saussuriana de “sistema”, com efeito, assemelha-se à categoria kantiana de


“comunidade”. Esta funda-se no juízo temporalmente discreto de um todo dotado de
várias partes compreendidas como mutuamente determinantes, ou seja, “como
coordenadas, não subordinadas umas às outras; e isso não apenas em uma direção –
como numa série –, mas, sim, reciprocamente – como um agregado. Quando se fixa
um membro do todo, todos os outros são excluídos, e assim reciprocamente” (KANT,
1965, p. 117). Qualquer elemento dado dessa comunidade, isto é, qualquer um dos
objetos distinguíveis numa paisagem, define-se como tal pelas relações que nutre com
os outros: é compreendido como valor diferencial ou posicional, condicionado pela
presença dos outros elementos (SAHLINS, 2001, p. 135).

Segundo Saussure (1966), considerar a língua um sistema ou uma estrutura requer ainda que a
tomemos como um fenômeno coletivo, que transcende a sua implementação individual ao
nível dos discursos. Isso porque a fala apresenta o signo como um objeto heterogêneo, sujeito
a deliberações e utilizações outras que não as relações contrastantes entre os signos. “Afinal, a
expressão da língua na fala é notoriamente imperfeita e infinitamente variável, condicionada
que é por todos os tipos de acidente biográfico do falante” (SAHLINS, 2001, p. 137). Assim,
a utilização da língua no discurso transcende bastante as relações entre os termos do sistema
lingüístico, incorporando também questões de natureza sociológica, psicológica e até
fisiológica. Conseqüentemente, ao se analisar a língua como sistema, deve-se considerá-la ao
nível da comunidade de falantes, e não ao nível do discurso individual. Para Sahlins (2001),
entretanto, esta concepção de sistema exclui o que há de significativo na análise, já que a
história se faz ao nível dos discursos ou da fala, isto é, ao nível dos projetos de ação dos
indivíduos. Ao se incorporar a análise estrutural semiótica à antropologia, perde-se então a

111
mudança, a história e a prática humana no mundo. Para Sahlins (2001), pode-se associar este
fato à perda da razão de existir da antropologia, que deveria ter como objeto de estudos a ação
humana.

Sahlins (1990; 2001) sugere serem as limitações da análise estrutural, tal como foram
incorporadas pela antropologia, de fato desnecessárias. A antropologia estrutural manteve
intactas as limitações teóricas da lingüística de Saussure, apesar dos esforços dos lingüistas no
sentido de superar a oposição entre história e sistema (JAKOBSON, 1961). Assim, a história
era mantida à distância como uma estratégia capaz de manter a coerência do sistema. A ação
humana era considerada como operacionalização do sistema, isto é, como a reprodução das
categorias culturais existentes. A antropologia estrutural apoiava-se ainda no argumento
segundo o qual os eventos só teriam existência se inseridos em uma ordem cultural
determinada, já que só poderiam ser interpretados e classificados se apreendidos no interior
desta ordem. “O evento, assim, adentra uma cultura como exemplo de uma categoria recebida,
como símbolo terreno de um tipo de pressuposto” (SAHLINS, 2001, p. 138). Entretanto,
baseada nestes pressupostos, a antropologia estrutural – bem como outras teorias
antropológicas – não poderia dar respostas adequadas às questões sobre a mudança cultural ou
histórica. De fato, a cultura seria uma espécie de lente por meio da qual ordenamos o processo
histórico e os eventos; entretanto, ao mesmo tempo, a cultura é reformulada no contexto dos
projetos de ação dos indivíduos, de maneira que a história se torna a realização social dos
recursos efetivos que os indivíduos põem em jogo. Conseqüentemente, “o grande desafio para
uma antropologia histórica é não apenas saber como os eventos são ordenados pela cultura,
mas como, nesse processo, a cultura é reordenada. Como a reprodução de uma estrutura torna-
se a sua transformação?” (SAHLINS, 2001, p. 139) Estava lançada a proposta de uma
antropologia histórico-estrutural...

As idéias de Sahlins podem ser resumidas à proposição segundo a qual o que os antropólogos
chamam de estrutura é, na realidade, um objeto histórico. De fato, a cultura é uma espécie de
lente capaz de ordenar a história, ou os eventos, no interior das sociedades. Assim, as pessoas
agem de acordo com seus pressupostos culturais, isto é, as categorias socialmente dadas e
utilizadas para a interpretação e classificação dos eventos. Em Cultura e razão prática
(SAHLINS, 2003), o autor já reforçava a tese segundo a qual os objetos só adquirem sentido
quando contextualizados, pois seus significados não são intrínsecos, mas social e
culturalmente definidos. Ao mesmo tempo, a cultura é ordenada historicamente, pois os
significados são reavaliados na prática cotidiana, e os signos podem assumir novos valores

112
conceituais. Desta forma, as contingências da ação humana não estão condenadas a
conformar-se às categorias por meio das quais os indivíduos percebem estas circunstâncias
(SAHLINS, 1990, p. 139). A antropologia histórico-estrutural buscaria então ambivalências
nas leituras culturais e possíveis mudanças estruturais – ou a redefinição das categorias
culturais alterando as relações entre elas – resultantes da ação engajada dos indivíduos. Estas
idéias serão abordadas em mais profundidade nos próximos parágrafos. Nas palavras do autor:

A história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de


acordo com os esquemas de significação das coisas. O contrário também é
verdadeiro: esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou
menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática. A síntese
destes contrários desdobra-se nas ações criativas dos sujeitos históricos, ou seja, das
pessoas, envolvidas. Porque, por um lado, as pessoas organizam seus projetos e dão
sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes da ordem cultural.
Nesses termos, a cultura é historicamente reproduzida na ação. [...] Por outro lado,
entretanto, como as circunstâncias contingentes da ação não se conformam
necessariamente aos significados que lhes são atribuídas por grupos específicos,
sabe-se que os homens criativamente repensam seus esquemas convencionais. É
nesses termos que a cultura é alterada historicamente na ação. Poderíamos até falar
de “transformação estrutural”, pois a alteração de alguns sentidos muda a relação de
posição entre as categorias culturais, havendo assim uma “mudança sistêmica”
(SAHLINS, 1990, p. 7).

Os argumentos de Sahlins (2001; 1990) podem ser discutidos em termos de duas observações
fundamentais. Em primeiro lugar, o autor retoma uma longa tradição antropológica segundo a
qual “o olho que vê é o órgão da tradição”. A ação humana é caracterizada pela apropriação
de eventos em termos de conceitos ou categorias culturais a priori, que são a base para a
classificação das realidades. A classificação é uma característica intrínseca da ação simbólica.
Assim, a ação simbólica consiste na comparação de objetos ou eventos da realidade aos
conceitos culturais tradicionais, que compõem uma estrutura ou um sistema, de maneira a
tornar o objeto ou a realidade inteligível e transmissível a outros indivíduos. Não existe,
portanto, ‘percepções objetivas’, como se fossem fundadas em algum atributo intrínseco ao
objeto ou à realidade, já que a objetivação das realidades é o ponto de chegada do processo de
percepção. Diferentemente, as percepções tornam-se inteligíveis ao serem apreendidas no
interior de um sistema cultural, à medida que um evento ou objeto é comparado e contrastado

113
às categorias existentes. “As categorias pelas quais a experiência é constituída não surgem
diretamente do mundo, mas de suas relações diferenciais no interior de um esquema
simbólico” (SAHLINS, 1990, p. 183). Neste sentido, cada esquema simbólico especifica aos
indivíduos de dado grupo social as possibilidades de classificação e referência das realidades,
enquanto que este sistema é composto pelas distinções e contrastes entre os signos que, em
relação às realidades, nunca são as únicas distinções possíveis. Ao assumirmos a cultura como
um sistema de categorias e conceitos com base nos quais apreendemos e compreendemos as
realidades e os eventos, pode-se dizer que o “presente é reconhecido enquanto passado”
(SAHLINS, 1990, p. 185).

Pode-se de fato dizer que a própria cultura é um objeto histórico, devido ao fato dos signos,
enquanto significados, serem arbitrários. Segundo Sahlins, à arbitrariedade dos signos pode-se
relacionar ainda os riscos relacionados aos seus significados, quando postos em prática. Trata-
se da segunda observação do autor: o ‘risco da ação simbólica’ ou o ‘risco das categorias em
referência’. Ao buscarmos a compreensão significativa da história, devemos, acima de tudo,
reconhecer o papel distintivo dos signos na ação humana, em oposição à sua posição no
esquema cultural. No curso da vida das pessoas, os signos são utilizados por elas em relações
com os objetos de suas ações, adquirindo, assim, valores contextuais particulares. Trata-se de
reconhecermos que os significados são submetidos a riscos à medida que as pessoas
socialmente capazes deixam de ser escravas de seus conceitos para serem seus senhores, em
seus contextos imediatos de ação (SAHLINS, 1990, p. 11). Assim, os signos podem assumir
valores funcionais no discurso das pessoas, e não simplesmente as relações contrastantes de
um esquema sincrônico. Sahlins denomina este fenômeno “reavaliação funcional dos signos”.
O encontro com a palavra já é, em si, uma avaliação e reavaliação potencial de signos
(SAHLINS, 2001, p. 186).

Na prática cultural, os significados dos signos são expostos a um risco duplamente perigoso.
De uma forma objetiva, pode-se dizer que os signos são polissêmicos, isto é, têm muitos
sentidos possíveis. Num contexto específico e real, um signo é valorizado em algum sentido
selecionado, de forma que um de seus possíveis significados seja posto em evidência, em
detrimento dos outros. Neste sentido, a reavaliação funcional dos signos é dependente da
divisão do trabalho lingüístico (PUTNAM, 1975). É possível se observar diferenças entre a
intenção do signo, como empregado pelo(s) indivíduo(s) e a extensão de seu sentido, definido
com base no contraste com outros signos no interior de um esquema simbólico. Ao empregar
um signo em referência em uma dada situação, um indivíduo ou um grupo utiliza, assim,

114
apenas uma pequena parte de seu sentido coletivo, que depende das influências do contexto,
das diferenças de experiências sociais dos indivíduos e de seus interesses. Um automóvel
antigo pouco conservado pode significar, para alguns, uma prova de desleixo com o
patrimônio, para outros, uma decisão racional de abandono, para outros ainda, uma evidência
dos avanços da indústria automobilística. Nas palavras do autor:

Se a cultura for, como querem os antropólogos, uma ordem de significação, mesmo


assim os significados são colocados em risco na ação. São postos em risco, por
exemplo, por referência às coisas (i.e. por extensão). As coisas não só têm sua raison
d’être própria, independente do que as pessoas possam fazer com elas, como são
inevitavelmente desproporcionais aos sentidos dos signos pelos quais são
apreendidas. As coisas são contextualmente mais particulares e potencialmente mais
gerais que os signos e o são por serem, os signos, classes de significados (“livres de
estímulo”), não estando restritos como conceitos a um referente particular. Portanto,
as coisas são relacionadas aos seus signos enquanto emblemas empíricos para os
tipos culturais. Porém, são mais gerais que os signos por apresentarem mais
propriedades (mais “realidade”) do que as distinções e valores servidos por estes
(SAHLINS, 1990, p. 9-10).

De maneira subjetiva, pode-se dizer que os sujeitos históricos revisam os signos de acordo
com seus projetos pessoais. De fato, é possível sustentar que os signos assumem valores
funcionais e implicativos específicos em projetos de ação dos indivíduos, e não simplesmente
os valores conceituais definidos pelo sistema sincrônico. Assim, os signos estão sujeitos a
recombinações e a análises das quais significados imprevistos emergem. Na fala, as pessoas
relacionam os signos aos objetos de seus projetos, que são o contexto para o discurso como
atividade social. Pode-se então dizer que toda operacionalização de um conceito cultural em
uma dada situação submete este conceito a uma avaliação pela situação. Desta forma, Sahlins
incorpora a ação individual à análise cultural, desprestigiada pelos paradigmas clássicos.
Sahlins reforça o termo reavaliação porque, na prática cultural, a reavaliação funcional dos
signos acontece ainda com base na lógica das categorias culturais das pessoas. Certamente, a
‘reavaliação funcional de signos’ depende das possibilidades dadas pelo sistema já
consolidado, já que os indivíduos não podem renomear as coisas ao seu redor sem base nestas
possibilidades; caso contrário, elas seriam ininteligíveis e incomunicáveis. Neste processo, “a
cultura é uma aposta feita com a natureza, durante a qual voluntária ou involuntariamente [...]

115
os nomes antigos, que estão na boca de todos, adquirem novas conotações, muito distantes de
seus sentidos originais” (SAHLINS, 1990, p. 9-10). Sahlins descreve este fenômeno:

No evento, o discurso insere o signo em novos contextos de uso, impondo


contradições que, em contrapartida, têm de ser incorporadas pelo sistema. O valor
constitui-se efetivamente no interior de um sistema de signos, mas as pessoas utilizam
e experimentam os signos tal como fazem com os nomes das coisas.
Conseqüentemente, elas condicional e potencialmente reformulam os valores
conceituais gerais das relações e termos lingüísticos tendo por referência o mundo”
(SAHLINS, 2001, p. 137) [...] A práxis é, portanto, um risco para o significado dos
signos na cultura da maneira como está constituída, do mesmo modo como o sentido é
arbitrário em sua capacidade enquanto referência (SAHLINS, 1990, p. 185).

No que diz respeito ao risco subjetivo das categorias em referência, a reavaliação funcional
dos signos depende do modo como os indivíduos utilizam o signo enquanto interesse.
Segundo Sahlins (2001, p. 141), ‘interesse’ e ‘sentido’ são dois lados da mesma moeda, o
signo. A sentido diz respeito ao valor do signo dentro do sistema simbólico, isto é, em relação
a outros signos. Ao mesmo tempo, o interesse diz respeito ao uso que os indivíduos fazem do
signo, avaliando-os de acordo com seus esquemas de vida. De fato, “o meu interesse em algo
não é o mesmo que o sentido deste algo” (SAHLINS, 2001, p. 141). Para explicar esta idéia, o
autor utiliza um exemplo de Saussure, que sugere uma analogia com o valor econômico. Uma
nota de um real tem um sentido social, definido por meio do seu contraste com outros signos
no sistema simbólico. Assim, para determinar o seu valor, podemos verificar a qualidade e a
quantidade de objetos pelos quais podemos trocá-la, bem como compará-la a outras notas de
real. Entretanto, este sentido social e abstrato não corresponde ao sentido que a nota tem para
um indivíduo, que pode guardá-la, depositá-la, ou ainda comprar pão ou dar de esmola.
Assim, o valor conceitual do signo assume um valor intencional específico, que depende das
circunstâncias e dos objetivos do sujeito histórico. Assim, se os signos têm seu valor
conceitual definido por meio do contraste com outros signos em um esquema simbólico, por
outro lado, os indivíduos utilizam-nos com base em interesses coerentes com seus projetos de
vida. Neste sentido, apesar do valor intencional ser derivado do valor conceitual, o signo
enquanto interesse deve ter um lugar em um esquema ordenado de meios e fins, e não se
apresenta ao indivíduo nos termos em que se constitui como sentido definido por meio do
contraste no sistema simbólico. O que Sahlins quer destacar é que, ao ser utilizado na ação, o
signo estará sujeito aos processos de inteligência e consciência humana:

116
Não mais um sistema semiótico virtual ou desencarnado, o significado agora está em
contato com os poderes humanos originais de sua criação. Não há razão para crer
[...] que esses poderes criativos fiquem suspensos uma vez que as pessoas tenham uma
cultura. Pelo contrário, os signos na ação são incluídos em várias operações lógicas,
como metáforas e analogias, redefinições de intensidade e de extensão,
especializações ou generalizações de sentido, deslocamentos ou substituições, para
não falar de ‘mal-entendidos’ criativos. E porque os signos são engajados em
projetos por interesses e, desta forma, em relações temporais de envolvimento e não
apenas em relações simultâneas de contraste, seus valores são arriscados [...] Essas
utilizações interessadas não são meramente imperfeitas por relação com os ideais
platônico-culturais, mas são potencialmente inventivas (SAHLINS, 1990, p. 188).

Num processo de reavaliação funcional, o destaque do valor conceitual do signo selecionado


pelo(s) agente(s) histórico(s), e que se relaciona a alguma representação especificamente
interessante a este(s) agente(s), pode contribuir para algum tipo de inflexão do seu valor tal
como definido pela estrutura ou pelo sistema simbólico. Assim, reavaliações funcionais dos
signos podem gerar inovações culturais, à medida que indivíduos ou grupos de indivíduos,
agindo com base em perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos, podem
potencialmente impor seus sentidos selecionados, ou objetivar suas interpretações, por meio
da elaboração de novos consensos sociais. Um estado estrutural diferente pode se consolidar
se a redefinição conceitual do signo gerar novas relações posicionais entre as categorias do
esquema simbólico. O “novo” sentido dado ao signo altera o conjunto tradicional de
delimitações e contrastes recíprocos com outros signos, ou a estrutura. Neste momento, pode-
se dizer que, o que começou com reprodução cultural, terminou como transformação
estrutural. A transformação estrutural, entretanto, depende de uma série de fatores, entre os
quais o poder político, como explica Sahlins (2001, p. 143). Neste ponto, o autor faz uma
reavaliação do tema do poder analisando sua relevância aos processos de mudança cultural
(SCHWARCZ, 2001):

A história havaiana mostra que a ocorrência ou extensão de efeitos estruturais,


ligados a uma reavaliação subjetiva de signos, está condicionada por vários fatores,
implícitos à cultura-tal-como-constituída: as improvisações passíveis de serem
motivadas logicamente, por exemplo, por analogia, metáfora ou quaisquer outros
tropos; a liberdade institucional para improvisar; o lugar do ator no interior de uma
hierarquia social que dá peso estrutural à sua ação, acarretando mais ou menos

117
conseqüências para os outros atores. [...] Uma posição privilegiada na cultura-tal-
como-constituída pode ampliar as conseqüências da ação de um indivíduo.

Neste momento, devemos destacar o conceito de estrutura da conjuntura, central às idéias de


Sahlins. Pode-se conceituá-la como “um conjunto de relações históricas que, enquanto
reproduzem as categorias culturais, lhes dão novos valores retirados do contexto pragmático”
(SAHLINS, 1990, pág 160). “O que quero dizer com ‘estrutura da conjuntura’ é a realização
prática das categorias culturais em um contexto histórico específico, assim como se expressa
nas ações motivadas dos agentes históricos, o que inclui a microssociologia de sua interação”
(SAHLINS, 1990, p. 15). Por ser um conceito interposto entre evento e estrutura, a estrutura
da conjuntura pode ser considerada uma noção mediadora entre a sincronia e a diacronia que
destaca a inseparabilidade entre ambas as perspectivas. De fato, o evento não existe sem o
sistema simbólico, já que um acontecimento (um fenômeno) só se torna significativo se
inserido em um esquema cultural; ao mesmo tempo, o evento é a forma empírica do sistema,
já que este, enquanto um conjunto de relações entre as categorias, não passa de uma ordem
virtual e potencial a ser realizada nas ações dos indivíduos. Neste sentido, a ordem cultural
deve ser vista como uma síntese entre passado e presente, da maneira como se manifesta em
uma estrutura da conjuntura específica. Qualquer redução fenomenológica seria então
desautorizada. A noção de estrutura da conjuntura seria útil à compreensão geral da mudança
cultural, e não somente nos casos de contato inter-cultural. “A estrutura da conjuntura,
enquanto conceito, possui um valor estratégico para determinação dos riscos simbólicos (por
exemplo, de referência) e das reificações seletivas (por exemplo, pelos poderes
estabelecidos)” (SAHLINS, 1990, p. 15-16).

Por fim, a assimilação das idéias de Sahlins requer a consideração de um conceito de estrutura
distinto daquele tradicionalmente utilizado pelos estruturalistas. Partindo do conceito de
estrutura de Hocart, e não da estrutura sincrônica de Saussure, posteriormente incorporada por
Lévi-Strauss, Sahlins distancia-se da noção atemporal e absoluta de estrutura. Se a estrutura
de Saussure pode ser conceituada como um conjunto de relações mutuamente contrastantes e
definidoras entre os signos, pode-se dizer que estes são postos em movimento nos processos
históricos de representação que caracterizam a prática cultural. Deve-se, então, associar uma
dimensão diacrônica à noção de estrutura. Em Ilhas de História (SAHLINS, 1990, orig. 1985,
p. 16-17), Sahlins destaca que:

A estrutura possui uma diacronia interna, consistindo das relações mutantes entre as
categorias gerais ou, como eu mesmo diria, uma ‘vida cultural das formas

118
elementares’. Nesse desdobrar generativo, comum aos esquemas polinésios e indo-
europeus, os conceitos básicos são conduzidos através de estágios sucessivos de
combinação e de recombinação, produzindo ao longo do caminho termos novos e
sintéticos. [...] Sugiro que deveríamos incorporar a diacronia interna às nossas
noções de ‘estrutura’, evitando assim certas dificuldades da visão saussuriana ou, ao
menos, da maneira como é comumente adaptada aos estudos antropológicos.

O relatório etnográfico apresentado na próxima parte desta tese é uma tentativa de articulação
destes conceitos em um estudo de caso que traga insights importantes à compreensão dos
processos de mudança cultural numa pequena comunidade rural. Neste caso, a mudança
cultural é promovida por uma instituição externa, que dá suporte a uma ONG local em um
caso também caracterizado pelo contato inter-cultural. Após a descrição do caso, far-se-á uma
análise teórica à luz das idéias de Marshall Sahlins; esta análise será ainda a base para as
considerações finais, nas quais a relevância do referencial teórico e as oportunidades de
compreensão e explicação serão discutidas.

119
PARTE 2 – RELATÓRIO ETNOGRÁFICO

120
4 - GAÚCHOS DO VALE DO RIO PARDO

Era dia 24 de abril de 2005, uma linda tarde de sábado de outono quando cheguei a Santa
Cruz do Sul, rica cidade do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Era a primeira parada de
uma viagem de ônibus que me levaria a Rio Pardo, município vizinho, onde eu passaria os
próximos três meses. Eu havia chegado ao recém renovado aeroporto internacional de Porto
Alegre duas horas antes, e deveria pegar outro ônibus para dirigir-me a Albardão, o maior
distrito rural de Rio Pardo. Deixando Santa Cruz, não levou mais que 10 minutos pela rodovia
principal até cruzar a cidade vizinha de Vera Cruz. Por ser um distrito rural, o caminho mais
curto para se chegar a Albardão, vindo de Porto Alegre, é atravessar de ônibus a cidade
vizinha de Vera Cruz e não Rio Pardo, a sede do município. Saindo do terminal de Santa
Cruz, os velhos ônibus para Albardão saem todos os dias da semana, de manhã cedo e ao
meio-dia, retornando a Santa Cruz depois de atingirem o ponto final; estes são os únicos
meios de transporte públicos para ir ou vir de muitos dos distritos rurais do Rio Pardo. Logo a
estrada asfaltada fica para trás. Assim que o ônibus pegou alguns passageiros em Vera Cruz e
deixou a cidade, uma estrada de terra, esburacada, tornou a viagem bem mais desconfortável
para as mais de 42 pessoas – a capacidade máxima do ônibus –, já que muitos estavam em pé.
O ônibus estava entrando nas comunidades rurais.

A paisagem poderia sugerir a natureza das próximas experiências. O ônibus estava lotado e as
pessoas tinham expressões rudes em seus rostos. Os fazendeiros usavam trajes simples e
velhos, com forte odor de roupas que haviam sido secas próximas a uma lareira. Alguns
carregavam mercadorias que haviam comprado na cidade, tais como alimentos e materiais de
agricultura e de construção. Outros estavam acompanhados da família inteira, como se
tivessem ido visitar algum parente em Vera Cruz. Parecia que as pessoas se conheciam de
viagens anteriores ou de suas comunidades. Eles se cumprimentavam e se reuniam nos
assentos, formando pequenos grupos, e falavam sobre os eventos recentes em suas
vizinhanças. Particularmente, eu era o único estranho no ônibus, carregando uma imensa
mochila, como se estivesse indo para alguma grande aventura longe da cidade. Na realidade,
era assim mesmo que eu me sentia. À medida que as pessoas subiam ou desciam do ônibus,
elas olhavam para mim, algumas com ternas expressões de curiosidade, outras com
expressões menos simpáticas. Após ter completado as primeiras fases da viagem desde São
Paulo em quase 5 horas, de avião e ônibus, ainda enfrentei outra hora inteira, pelos 20
quilômetros finais, por uma estrada muito esburacada que me levaria ao CEDEJOR – a

121
destinação final de minha viagem, já nos limites de Rio Pardo. O pôr-do-sol estava lindo e a
temperatura ainda era agradável em uma das regiões mais frias do Brasil.

4.1 Rio Pardo, Santa Cruz e a expansão econômica

Rio Pardo é um município pobre do Vale do Rio Pardo, localizado na porção centro-oeste do
estado do Rio Grande do Sul. Assim como muitos dos 25 municípios do Vale, a cidade de Rio
Pardo é cortada pelos rios Jacuí e Pardo, cuja confluência forma a praia de Ingazeiros, uma
das principais atrações turísticas da cidade e ponto de encontro social. Rio Pardo foi uma das
primeiras vilas do estado, o que lhe rendeu o título de cidade histórica. Segundo a descrição
de Vogt (2001), o Vale do Rio Pardo é uma das mais antigas áreas de ocupação e dominação
portuguesa na região hoje conhecida como Rio Grande do Sul. Seu desenvolvimento está
associado à apropriação militar do território e a subseqüente expansão fronteiriça do Império
português. Sua fundação está intimamente ligada às primeiras tentativas dos portugueses em
colonizar a região sul do Brasil, após a assinatura do Tratado de Madri, que foi um ensaio
mal-sucedido em definir os limites territoriais portugueses e espanhóis no sul da América do
Sul. Assim como outras cidades históricas, Rio Pardo tem suas origens associadas às
necessidades militares; em especial, a construção de uma fortaleza – cuja função era proteger
as terras portuguesas – que é considerada um marco do desenvolvimento do que é hoje
conhecido como o município de Rio Pardo. O início da história da colonização portuguesa na
região, após a assinatura do Tratado de Madri, é descrita por Vogt (2001 p. 79-82) da seguinte
maneira:

No vale do Rio Pardo, já no ano de 1724, João Garcia Outra, Gomes da Silveira,
Antônio de Souza e Fernando Gonçalo estariam estabelecidos com fazendas de
criação de gado. Possivelmente em 1733, também um núcleo de famílias portuguesas -
entre as quais os Pedroso de Albuquerque - originárias da Colônia do Sacramento aí
teriam se instalado. No entanto, foi somente a partir de 1750 que os súditos da
monarquia lusa começaram a garantir legalmente a posse das terras existentes na
bacia do rio Jacuí. Essa apropriação foi uma decorrência direta da assinatura do
frustrado Tratado de Madri e foi assegurada militarmente a partir da fortificação
estabelecida em Rio Pardo. A longa contenda travada pelas coroas portuguesa e
espanhola pela posse do vasto território situado entre o Prata e Laguna pareceu

122
chegar ao seu final em 1750, quando foi firmado o Tratado de Madri. Estabelecia esse
acordo que Portugal entregaria a Colônia do Santíssimo Sacramento à Espanha,
recebendo em troca os Sete Povos, que assim passariam ao domínio luso. Os
missioneiros, conforme o artigo XVI do tratado, deveriam ser reassentados na
margem direita do rio Uruguai. Por se negarem a abandonar suas casas, igrejas,
lavouras e cemitérios, motivaram a Guerra Guaranítica, ocasião em que os índios
rebelados confrontaram-se com as tropas militares reunidas de Portugal e Espanha.

Para a colocação dos marcos de fronteira entre as terras de Portugal e da Espanha,


conforme o prescrito pelo Tratado de Madri, foi instituída uma comissão
demarcadora. À testa da expedição portuguesa responsável pela colocação dos
marcos dos limites estava Gomes Freire de Andrada, então Capitão-General do Rio
de Janeiro, Minas e São Paulo e de todo o Sul do Brasil. Por sua ordem, foram
criados, em 1751, dois depósitos de armas e munições nas bordas do rio Jacuí: um
situado na margem esquerda da confluência dos rios Pardo e Jacuí, no local hoje
chamado de Alto da Fortaleza; outro, em Santo Amaro. Um ano depois, em virtude da
excelente e estratégica localização para a defesa dos interesses lusos no Sul, Gomes
Freire ordenou a construção de um forte no lugar onde se situava o depósito de Rio
Pardo.

Batizada Jesus-Maria-José, a fortaleza, a partir de 1754, passou a aquartelar um


Regimento de Dragões, comandado inicialmente pelo Tenente-Coronel Tomás Luís
Osório. A partir da instalação do Forte, o local - privilegiado geograficamente por
ser um ponto naturalmente elevado e localizar-se no entroncamento de dois rios, o
que favorecia a segurança e as ações militares defensivas - passou a atrair um grande
número de pessoas para a região. Além dos militares e de suas famílias, nas
redondezas de Jesus-Maria-José formou-se um núcleo populacional composto por
comerciantes, tropeiros de gado, açorianos, índios e escravos negros. Devido à
importância adquirida, já em 1769 o povoado era elevado à condição de freguesia de
Nossa Senhora do Rosário, sendo a quarta freguesia criada no Rio Grande.

O preâmbulo da colonização na região foi caracterizado pela distribuição de sesmarias, entre


outros títulos de propriedade de terra. Durante o século XVIII, como parte dos esforços de
colonização, as sesmarias eram distribuídas pelo governo português para pessoas que haviam
servido ao Império colonial. Tais títulos eram destinados àqueles que se juntaram à iniciativa
militar de proteger a região contra os ataques espanhóis e índios, habitantes originais da área.

123
Como uma tentativa de estruturar um sistema produtivo colonial, as sesmarias foram
importantes instrumentos coloniais de desenvolvimento e podem ser associadas às primeiras
implantações de propriedades privadas na região. Tal como descreve Vogt (2001, p. 78-79):

Em Portugal, a lei de sesmarias data do século XIV, mais precisamente de 1375.


Transplantada para a América Portuguesa, a instituição seria responsável pela
origem do latifúndio e pela concentração da terra nas mãos dos que possuíam
cabedais para explorá-la. Particularmente no que diz respeito ao Sul do Brasil, a
sesmaria constituiu-se em um importante instrumento de expansão colonial dos
domínios portugueses.

Em meados do século XVIII, uma vez alcançada a apropriação prévia da terra com o
estabelecimento de um rancho e lavoura ou criação, havia duas modalidades de
obtenção do título de propriedade. A primeira era a sesmaria, que era concedida
gratuitamente por uma carta fornecida pelo Vice-Rei do Brasil ou pelo governador da
Capitania. Tinha, em regra, aproximadamente, a área correspondente a uma légua de
frente por três de fundo, o que totaliza em torno de 13.068 hectares. Uma segunda
espécie de título de posse de propriedade então existente chamava-se "carta de data".
Elas eram concedidas pelos comandantes militares da Capitania e raramente
excediam a 1.500 braças, ou seja, meia légua, não importando se a localização das
terras fosse no interior ou nas imediações das vilas nascentes. Os casais açorianos,
por exemplo, inicialmente foram contemplados com datas que possuíam cerca de 272
hectares.

As sesmarias foram distribuídas inicialmente aos militares. Estes ocuparam a região e


desenvolveram atividades de criação de gado, tornando-se fazendeiros ou estancieiros. A
fazenda ou estância era o centro econômico-social da vida da Capitania que, mais tarde, com a
independência do Brasil, tornou-se uma Província. As atividades de criação de gado
desenvolvidas pelos estancieiros logo se tornaram a base da economia local, pois o couro e o
charque – uma espécie de carne salgada – eram produtos preciosos nos mercados interno e
externo. A agricultura não era a maior atividade econômica. Na verdade, as dificuldades
relacionadas a ela eram muitas, enquanto a criação de gado era considerada uma atividade
sedutora. As grandes distâncias e a total falta de infra-estrutura eram barreiras para o
transporte dos produtos; e a constante falta de empregados não era um problema para a
criação de gado, pois dez homens poderiam lidar com 10.000 cabeças de gado (SOTO,
VALENTIM, 2002). Segundo Vogt (2001, p. 79):

124
Do quartel de Rio Pardo saíram pelo Rio Grande afora muitos militares que, ao lado
de pessoas naturais da Colônia do Sacramento, Laguna, São Paulo, Minas Gerais, do
Rio de Janeiro e de outros lugares, transformaram-se em criadores de gado. [...] No
RS, para a posse e concessão de sesmarias, prevaleceu a força social dos militares e
das pessoas vinculadas à administração colonial. De armas na mão, os milicianos
conquistaram o território pertencente aos índios e aos espanhóis não somente para o
rei de Portugal, mas para si mesmos, o que explica por que a maioria dos
proprietários da Fronteira era constituída de militares ou de gente oriunda dos
quartéis. [...] Durante o governo do Cel. José Marcelino de Figueiredo (1769 a 1771
e de 1773 a 1780) foram concedidas inúmeras sesmarias na Capitania do Rio Grande
de São Pedro. Neste curto intervalo, José Marcelino distribui cartas de doação aos
que mais haviam prestado serviços à causa portuguesa. Não foram somente os oficiais
dos Dragões, mas também os soldados sem patente que foram beneficiados, de modo
a povoar com estâncias a região Sul e Oeste do Jacuí incorporada pelo novo Tratado
firmado.

Com o processo de colonização, os militares vindos do continente europeu constituíram o


primeiro contingente humano a ocupar a região hoje conhecida como Rio Grande do Sul.
Além deles, podemos identificar três outros grupos étnicos importantes que ocuparam o Vale
do Rio Pardo durante este processo. Os índios, principalmente os do tronco Guarani,
habitaram a área conhecida como Aldeia São Nicolau. Eles foram convertidos à religião dos
colonizadores e, mais tarde, misturaram-se aos outros grupos étnicos que também se fixaram
na região. Particularmente, as funções militares do povoado subentendiam uma
predominância masculina, e as mulheres índias eram, com freqüência, suas parceiras sexuais.
Sobre o estabelecimento dos índios Guarani na região, Vogt (2001, p. 88) diz:

Gomes Freire, ao retornar da sua campanha de conquista das Missões, trouxe


consigo um séqüito de famílias guaranis que, com os seus bens móveis remanescentes,
seguiram as vitoriosas tropas portuguesas. Essas famílias, que eram em tomo de 700 -
o equivalente a duas mil almas -, foram arranchadas no ano de 1757 na proximidade
de Rio Pardo, constituindo o núcleo inicial da Aldeia de São Nicolau. Com o passar
do tempo, novas levas de famílias indígenas foram, voluntariamente, se somando ao
contingente aí existente. [...] De acordo com cálculos elaborados por Aurélio Porto,
em 1780 a aldeia de São Nicolau de Rio Pardo não era habitada por menos de 438
guaranis. Esses e outros indígenas aculturados acabaram, com o passar dos anos, por

125
se miscigenar com pessoas de outras etnias existentes nas proximidades daquela
praça militar e comercial.

Sobre a miscigenação e o processo de assimilação, isto é, a incorporação dos índios através da


eliminação de suas tradições, Correa (2001, p. 143) afirma:

Em termos quantitativos, a miscigenação ocorreu em maior grau no ventre das


"índias da terra". Significa também dizer que o grupo indígena foi aquele que mais
perdeu suas características através da miscigenação. Tape, Minuano, Charrua e,
principalmente, Guarani foram se diluindo na amálgama que resultou em diversos
mestiços. A formação dos novos Estados Nacionais na região platina e a definição de
seus limites tiveram conseqüências drásticas para a população indígena.
Marginalizada econômica e socialmente e sem representação política, essa população
sofreu uma sedentarização que serviu como catalisador do seu processo de
assimilação.

Outro grupo importante foram os açorianos, trazidos pelo governo português das ilhas super
povoadas do Oceano Atlântico. Como descreve Vogt (1997), de acordo com as definições do
Tratado de Madri, as embarcações de açorianos foram as primeiras tentativas de se colonizar a
região, quando o Brasil era colônia de Portugal. Os primeiros registros de ocupação açoriana
nas regiões sul do Brasil datam do início de século XVIII. Em 1716, sessenta casais açorianos
foram trazidos da Colônia do Sacramento. Em 1748, cerca de quatro mil famílias se
estabeleceram em Santa Catarina. Mais tarde, parte das mesmas foi transferida para a
capitania do Rio Grande, e algumas delas se fixaram em Rio Pardo, também através do
sistema de sesmarias (FORTES, 1978; SOTO E VALENTIM, 2002). Na verdade, o impacto
da colonização açoriana na região é considerado profundo. Muitos historiadores enfatizam a
colonização açoriana em Rio Pardo, pois a consideram como a base do desenvolvimento da
estrutura sócio-cultural da região. Particularmente, os açorianos desenvolveram atividades
agrárias na região e o trigo se tornou também um dos produtos de exportação de grande
importância. Como descrevem Soto e Valentim (2002, p. 26), eles contribuíram com o
desenvolvimento da cidade e da economia local à medida que agregaram novas atividades.

Finalmente, a despeito das divergências dos especialistas, pode-se dizer que os escravos
africanos tiveram um papel importante no desenvolvimento da região. É sabido que, devido às
particularidades no processo de desenvolvimento do sul do Brasil, a presença de escravos
africanos não foi tão massiva se comparada às demais regiões do país. No entanto, os escravos
africanos poderiam ser encontrados trabalhando com trigo, nas criações de gado e nos centros
126
urbanos. De acordo com alguns registros, em 1798 a população de escravos africanos era
maior que a população branca em Rio Pardo, crescendo até 1860, antes do declínio da
escravidão no Brasil (BAKOS, 1982; SANTOS, 1984). Segundo Vogt (2001, p. 94):

[...] os escravos eram encontrados tanto nos núcleos urbanos então existentes quanto
no meio rural. Via de regra, eles chegavam ao Rio Grande do Sul por intermédio dos
comerciantes lusitanos e de seus correspondentes. Nos povoados de Rio Pardo, Santo
Amaro e Encruzilhada eram utilizados para a realização de serviços domésticos e
ofícios diversos como carpinteiro, pedreiro, ferreiro, sapateiro e outros. No meio
rural, eram empregados nos serviços domésticos e nos diversos trabalhos existentes
nas fazendas de criação e plantação. Como é possível observar, representam parcela
significativa da população na virada do século XVIII para o XIX.

Na segunda metade do século XVIII, Rio Pardo tornou-se um povoado estratégico na região,
pela prosperidade resultante do fluxo de viajantes e o desenvolvimento de atividades
primárias e do comércio. Particularmente, a criação de gado era a base da economia local
desde a última parte do século XVIII, e o Vale do Rio Pardo era a região mais rica nesta
atividade em toda a Capitania do Rio Grande – divisão administrativa da colônia que
incorporava a terra hoje conhecida como Rio Grande do Sul. Mais de 45% de todas as cabeças
de gado estavam concentradas na região, além disso, mais da metade dos cavalos e outros
animais. A agricultura também era uma atividade importante, desenvolvida especialmente
pela população açoriana, mas não era proporcionalmente tão relevante quanto a criação de
gado. Os produtos derivados de tais atividades eram exportados para os mercados interno e
externo. Soto e Valentim (2002, p. 26-27) nos fornecem alguma informação sobre as
atividades mercantis do povoado naquele tempo:

Os rebanhos eram quase selvagens, pois não se pensava em espécie ou seleção,


apenas em quantidade. O gado era comercializado e transformado em charque (carne
salgada). Eram aproveitados todos os seus derivados, além da carne seca, sebo,
graxa, couro, chifres e unhas. Eram exportados estes bens, assim como alguns
produtos da lavoura, em troca da importação de tecidos franceses, bijuterias,
colchões, móveis, sal, tijolos, arroz, farinhas, vinho, aguardente, açúcar, sendo o ouro
usado como meio de pagamento.

Enquanto as funções militares no Rio Pardo permaneceram relevantes por um longo tempo,
em especial durante o século XIX, a região também se tornou parada estratégica para
viajantes, pois se encontrava entre Porto Alegre – o vilarejo mais importante e porto da
127
Capitania – e os territórios meridionais mais longínquos controlados por portugueses e
espanhóis. Neste sentido, Rio Pardo também cresceu como importante centro de comércio e
serviço pelo fluxo de viajantes, mas também pelos fazendeiros que viviam no Vale, o que
implicou no desenvolvimento da concentração urbana. Os comerciantes viajavam com
mercadorias através do rio Jacuí e chegavam ao povoado, onde parte delas era distribuída aos
locais e a parte restante era redistribuída para as regiões mais distantes da Capitania. Entre as
atividades comerciais e serviços que devem ser citados, tem-se alfaiates, barbeiros, ferreiros,
padeiros, açougueiros, boticários, etc. Na realidade, no começo do século XIX, Rio Pardo foi
uma das comunidades mais importantes da Capitania do Rio Grande.

Em conseqüência ao desenvolvimento econômico do povoado, em 1809 foi-lhe dado o título


de sede da municipalidade, concentrando atores políticos que tinham grande influência em
muitos outros povoados localizados dentro das fronteiras extensas do município. Naquela
época, o imenso território da Capitania do Rio Grande estava dividido em quatro
municipalidades, e Rio Pardo possuía mais da metade de sua extensão. Embora as atividades
comerciais se localizem num contexto de infra-estrutura extremamente precária, elas
renderam lucro aos habitantes locais, e o povoado experimentou um período de opulência. Na
década de 1830, o centro urbano de Rio Pardo registrou entre cinco e seis mil habitantes.
Assim como outros viajantes apontam, Rio Pardo foi a mais relevante área habitada na região
setentrional da Província13, além da capital Porto Alegre (DREYS, 1990). Visitando a
Capitania no ano de 1834, o viajante francês Arsène Isabelle (1983, p. 52) descreveu as
atividades comerciais em Rio Pardo da seguinte forma:

O comércio é próspero, porque este ponto é o armazém de abastecimento das cidades


e vilas do norte e oeste; dali partem continuamente tropas de mulas e carretas para
todas as povoações do interior. As comunicações com Porto Alegre são muito
rápidas; o transporte de mercadorias pesadas é feito por barcos de coberta, com vinte
toneladas; as mercadorias leves e de pequeno volume, e os viajantes são
transportados em grandes pirogas armadas em barcos.

Desde a última metade do século XIX, entretanto, o desenvolvimento do município se


caracterizou por um período de relativa decadência. Como muitos autores discutem, as
conseqüências da sangrenta Revolução Farroupilha (1835-1845) foram profundamente
sentidas no Vale do Rio Pardo. A guerra – também conhecida como Farrapos – durou dez

13
Com a independência do Brasil, em 1822, a área do Rio Grande do Sul foi denominada Província do Rio
Grande.

128
anos e teve como causa questões políticas e econômicas; foi uma reação local à prepotência
imperial e seu objetivo era liberar a província das deliberações do governo central. Os líderes
da revolução fundaram uma república e tiveram de lutar contra as tropas imperiais. Dirigida
pela elite local, a guerra incorporou escravos e trabalhadores livres das fazendas e das
cidades. Trata-se de um fato largamente aceito que a decadência do Rio Pardo começou em
conseqüência à estagnação da economia local aberta pela guerra, quando os transportes e as
atividades comerciais ficaram paralisados. O contexto beligerante está associado ao êxito de
comerciantes e fazendeiros, que tiveram perdas significativas desde o início da revolução.
Como Soto e Valentim (2002) discutem, Rio Pardo perdeu sua importância econômica na
medida em que os povoados vizinhos cresceram e começaram a se emancipar; a economia
regional foi ficando mais diversificada, mas o município de Rio Pardo foi perdendo seu
território e sua influência. O capital acumulado pelos comerciantes do município não era
reinvestido no povoado; ao contrário, eles deixavam o vilarejo e estabeleciam suas atividades
em outros lugares, tais como os municípios da região de Porto Alegre. A decadência de Rio
Pardo, contudo, deve ser associada também a outras razões. Em realidade, a guerra dos
Farrapos levou à desarticulação econômica na província como um todo e, diferente de outras
regiões, Rio Pardo nunca experimentou uma fase de renovada prosperidade econômica após o
término dos conflitos. Como os autores sugerem, o desenvolvimento da navegação fluvial
com a operação inicial de um navio a vapor para Porto Alegre duas vezes a cada semana – e
que mais tarde se tornaria diária –, trouxe imensas perdas para os comerciantes locais. Os
habitantes da região poderiam facilmente descer o rio para fazer compras, mais tarde seguidos
pelos comerciantes que se mudaram com seus negócios para Porto Alegre, contribuindo para
o desenvolvimento da cidade que é hoje a próspera capital do estado (AVÉ-LALLEMANT,
1980; VOGT, SILVA, BERTÓ, 1996; REZENDE, 1933). Outros eventos certamente
contribuíram com este processo. Antes do início da Guerra, em 1834, a transferência para
Bagé das tropas originalmente baseadas em Rio Pardo colaborou com a decadência do
município. A inauguração da ferrovia Porto Alegre – Santa Maria em 1885 também foi um
golpe contra a importância comercial de Rio Pardo; o grande número de mortes da população
Riopardiana durante a Guerra do Paraguai (1864-1870) e a epidemia de cólera, em 1867,
também trouxeram escuridão para a região. Como descreve Vogt (2001, p. 118-119):

Foi somente enquanto as vias de comunicação e os meios de transporte foram


precários, que Rio Pardo pôde se manter como intermediário, ou melhor, como
atravessador, comerciando com os povoados que iam surgindo na fronteira do Rio

129
Grande. O aperfeiçoamento dos transportes diminui as distâncias e acabou com o
comércio da localidade. Os tão venerados heróis do passado da Tranqueira Invicta
condenaram a florescente e promissora Rio Pardo à estagnação econômica. Hoje,
mais do que nunca, sua população pobre sente na pele as conseqüências dessa
condenação.

A intensificação da decadência econômica em Rio Pardo, desde a última metade do século


XIX, aconteceu simultaneamente à chegada dos imigrantes alemães – ou colonos – que
vieram para o Brasil como parte dos esforços imperial e provincial em povoar e colonizar a
região, que tinha sido objeto de conflito com os espanhóis por muitas décadas (MACIEL,
1994). Desde a independência do Brasil, em 1822, o governo imperial havia colocado grande
ênfase em atrair trabalhadores europeus ao sul do novo país. Naquele tempo, o município de
Rio Pardo ocupava grande parte da Província do Rio Grande, e sua economia era dominada
pelos estancieiros, ou fazendeiros, que tinham a criação de gado como atividade.
Diferentemente do que aconteceu em outros períodos e regiões do Brasil, as políticas
governamentais que diziam respeito às imigrações no Rio Grande enfatizavam a fixação dos
imigrantes na região através do estabelecimento de colônias autônomas, que visavam agregar
pequenos produtores rurais e desenvolver práticas de agricultura orientadas para o mercado
interno. Neste sentido, as colônias, instaladas em áreas florestais e montanhosas, iriam
contribuir com a economia local, mas não iriam competir com os poderosos estancieiros.
Especialmente após 1848, o governo imperial transferiu para as províncias a responsabilidade
relacionada ao estabelecimento dos imigrantes, quando o processo de povoamento na região
estava acelerado. A colônia de Santa Cruz foi fundada em 1849, com a chegada dos doze
primeiros imigrantes alemães, a quem foram oferecidos 77 hectares para cada família. Em
1854, novas leis determinavam que os colonos deviam pagar pelas terras, num período
máximo de cinco anos após sua chegada. Os colonos habitavam a região conhecida como
‘depressão central’, próxima às montanhas; assim, eles povoariam a área ao longo da recém
inaugurada estrada que ligava Rio Pardo e Cruz Alta. Décadas mais tarde, esta colônia se
emanciparia de Rio Pardo e se tornaria o município de Santa Cruz do Sul. Vogt (1997, p. 58)
descreve:

Quando os imigrantes chegavam à colônia, então parte integrante do município de


Rio Pardo, cada família recebia um lote colonial. Neste deveria ser edificada a
residência do colono e ser efetuada a derrubada da mata e o cultivo num prazo não
superior a dois anos, sob a pena de a terra reverter ao domínio do poder público.

130
Conforme a Lei 514, de 1848, e 304, de 1854, os contemplados com um prazo colonial
estavam proibidos de se fazer valer da força de trabalho escrava, razão pela qual
empregavam intensivamente a mão-de-obra do grupo familiar. Em decorrência,
praticamente inexistiam atividades artesanais durante os primeiros anos, na colônia,
em virtude de todos, impreterivelmente, se dedicarem à agricultura.

Com a chegada e estabelecimento dos imigrantes alemães na colônia de Santa Cruz, a cultura
do tabaco foi intensificada. Com efeito, há registros de cultura e consumo de tabaco pelos
índios guarani dois mil anos atrás, no início da ocupação do território conhecido hoje em dia
como Rio Grande do Sul (KLAMT, 2001; JACOBUS, 1991). De acordo com Pimentel (s/d,
apud VOGT, 1997), no Rio Grande, a primeira iniciativa de se exportar o tabaco aconteceu
em 1804, quando milhares de folhas da planta foram enviadas à Europa. Naquela época, o
cultivo do tabaco estava sendo vagarosamente desenvolvido na capitania, com sementes
trazidas dos Estados Unidos. Com a instalação das colônias, o tabaco era parte das culturas de
subsistência desenvolvidas pelos imigrantes. Assim que eles se estabeleciam nas novas terras,
cerca de 40 km distantes da cidade de Rio Pardo, o isolamento da colônia e a total ausência de
quaisquer atividades econômicas anteriores forçava-os a plantar a maior parte dos produtos
necessários à sua sobrevivência. Segundo Cunha (1988), entre as culturas de subsistência é
possível citar aquelas que faziam parte dos hábitos diários europeus: batata, aveia, centeio,
cevada, e ervilha, usados como alimento, além de tabaco para uso privado, colza para
iluminação, e linho para a fabricação de roupas rústicas. Os colonos também eram
estimulados a plantar produtos que tivessem boa aceitação nos mercados, em especial após a
redefinição das leis, que instituiu o pagamento pelas terras onde haviam se estabelecido. O
diretor da colônia orientava os colonos a respeito do que plantarem, para que pudessem ter
melhores condições de vida. Realmente, após experimentar fracassos em experiências
anteriores com colônias de imigração, o governo estava interessado em transformar Santa
Cruz em uma vitrine, para que a província atraísse mais imigrantes. Desta maneira, a colônia
de imigrantes era caracterizada pelo desenvolvimento de múltiplas e simultâneas culturas
agrícolas. Neste contexto, os imigrantes usavam sementes trazidas da Europa e também
aquelas doadas pelo governo brasileiro.

As décadas de 1860 e 1870 foram caracterizadas pela expansão da colônia de Santa Cruz, e
pelo rápido desenvolvimento da agricultura dos imigrantes, incluindo o tabaco. Por exemplo,
relatórios governamentais daquela época registram crescimento da população da colônia, de
72 habitantes em 1850, para 891 habitantes em 1854, e para 4.794 habitantes em 1866. A

131
ampliação da colônia se deu de forma vegetativa e por meio da intensificação da imigração e
da migração. Os colonos alemães se dedicavam às culturas de subsistência da mesma maneira
como às destinadas a propósitos comerciais. Culturas de subsistência eram cruciais para a
sobrevivência das famílias, pois o isolamento das propriedades e o baixo rendimento
associado às culturas comerciais impunham aos colonos muitas dificuldades relacionadas com
a provisão diária das famílias. Em relação às culturas comerciais, estes produtos incluíam
tabaco, algodão, cana-de-açúcar, batatas e mandioca, que eram inicialmente mais vendidos na
cidade de Rio Pardo. A respeito do tabaco, desde a década de 1850 ele era considerado como
uma das culturas mais satisfatoriamente desenvolvidas entre os imigrantes e, em geral, no
município. Como menciona Vogt (1997), em janeiro de 1851 o vice-diretor de Santa Cruz
comentou com o presidente da província sobre as boas perspectivas futuras com o cultivo do
tabaco, e a necessidade de haver alguém experiente nesta atividade para ensinar os produtores
locais. Neste mesmo ano, o relatório do diretor da colônia menciona o tabaco como a
plantação mais significativa na colônia, tanto que poderia ser exportada para os mercados
interno e externo. Seguindo o rápido crescimento da população local, a produção de tabaco
cresceu vertiginosamente durante estas décadas: na agricultura dos anos de 1857/1858 ela
totalizou 287 arrobas, em 1860/1861 perfez 5.500 arrobas, e em 1865/1866 atingiu 25.858
arrobas. Possivelmente, ao final da década de 1850, parte do tabaco produzido na colônia já
alcançava Porto Alegre através dos comerciantes instalados em Rio Pardo e depois em Santa
Cruz (VOGT, 1997; KRAUSE, 1991).

Em 1870, era a principal atividade econômica da colônia e era responsável pelo seu
crescimento. Em 1869, os imigrantes de Santa Cruz exportaram 40.000 arrobas de tabaco, e
em 1870, 45.000 arrobas. O tabaco de Santa Cruz era vendido nos mercados interno e
externo; em especial, os territórios do Prata e a Alemanha eram clientes importantes dos
produtores rurais de Santa Cruz. A qualidade também melhorava com o tempo, com a
introdução de novos tipos de tabaco. Com o desenvolvimento desta cultura, a coleta de
impostos pelo governo também aumentou exponencialmente. Em conseqüência à opulência
econômica, Santa Cruz se emancipou em 1872, e o município de Santa Cruz foi criado em
1877. Conforme explica Vogt (1997, p. 79), as razões do desenvolvimento da cultura do
tabaco em Santa Cruz podem ser discutidas em termos históricos e de necessidades
econômicas. Naquela época, Santa Cruz sofria de isolamento, pois a colônia não possuía rios
que a servissem. Em termos de produtos básicos, tais como milho e feijão, os produtores de
Santa Cruz não podiam competir com aqueles que viviam em localidades próximas aos rios

132
ou aos mercados principais, tais como as colônias nos arredores do porto de Porto Alegre.
Santa Cruz estava a 40 km de distância da cidade de Rio Pardo e do rio Jacuí, e os custos
associados aos produtos da colônia incorporavam o trabalho extra com transporte para os
mercados consumidores principais. Com o incremento da cultura do tabaco, os produtores de
Santa Cruz se tornaram especialistas em lidar com um produto que, quando embalado, poderia
ser mais facilmente transportado, e que produzia maior nível de renda monetária se
proporcionalmente comparado, em termos de volume, a outros produtos, tais como milho ou
feijão.

Como propõe Vogt (1997), a história da produção comercial de tabaco em Santa Cruz pode
ser dividida em duas fases. A primeira começa com a inauguração da colônia, em 1849, e
termina em 1916, com a chegada dos grandes comerciantes internacionais. Durante esta
primeira fase, Santa Cruz experimentou um rápido crescimento, tanto em sua população
quanto em sua produção, cuja conseqüência foi a emancipação do município de Rio Pardo em
1872. Em comparação a Santa Cruz, Rio Pardo viveu durante este tempo um período de
decadência política e econômica, à medida que perdia a maior parte de suas funções militar,
política e comercial. Durante esta época, sucessivas emancipações de povoados ocorreram, e
o município de Rio Pardo perdeu muito de seu território, que já havia ocupado a maior parte
da província. Neste mesmo período, a colônia de Santa Cruz promoveu a estruturação do
sistema econômico centralizado na propriedade familiar, onde a produção comercial do
tabaco e as culturas de subsistência eram desenvolvidas por membros da família. Em tal
contexto, os líderes administrativos da colônia promoviam a produção do tabaco através da
distribuição de sementes de qualidade, e os rendimentos com tais atividades tornaram possível
com que as famílias dos colonos tivessem melhores condições de vida. Em 1820, os mercados
de trigo de Rio Pardo se fecharam para a produção dos açorianos. Estes, se sentiram atraídos,
então, pelas atividades de criação de gado, bem como a produção de tabaco. Este período
também é caracterizado pela abertura, em 1905, da estrada de ferro que ligava a colônia à
ferrovia principal, conectando Porto Alegre a Uruguaiana. As novas facilidades de transporte
tornaram o tabaco produzido na região mais competitivo.

Com o rápido desenvolvimento econômico de Santa Cruz, os comerciantes instalados na


colônia, assim como os de Porto Alegre, concentravam informação e articulavam as relações
sociais cruciais para a exportação dos produtos. Em conseqüência, os fazendeiros que
produziam tabaco nas localidades vizinhas, incluindo Rio Pardo, também poderiam vender
sua produção para os comerciantes de Santa Cruz. Durante esta fase, como sugere Vogt

133
(1997), o papel dos comerciantes foi muito importante. Os colonos desenvolveram intensas
relações sociais com os comerciantes, pois eles eram atores importantes que concentravam o
conhecimento e os meios associados à realização dos lucros com a produção de tabaco. Os
estabelecimentos comerciais também eram locais de apreciação do tabaco antes de enviá-lo
aos mercados consumidores. O tipo de tabaco muitas vezes produzido durante este período
era chamado de Galpão, na maior parte das vezes, usado para se fazer charutos devido à sua
folha escura, e caracterizado por um processo simples de beneficiamento, durante o qual a
natureza era responsável por duas etapas fundamentais até que o produto pudesse ser vendido:
o crescimento das plantas e sua secagem. Vogt (1997, p. 90-91) descreve o processo de
produção do tabaco chamado de Galpão da seguinte maneira:

As colheitas eram várias e feitas de maneira intercalada. O caule da planta era


desfolhado, folha por folha, a partir das inferiores, à medida que estivessem no ponto
de ser colhidas. Somente as folhas maduras eram retiradas, permanecendo as verdes
no pé. Isto se dava pelo fato de o amadurecimento das folhas da Nicotiana tabacum
não ocorrer simultaneamente e pela maturação dar-se no sentido de baixo para cima
da planta.

Uma vez colhidas, as folhas eram agrupadas, segundo o tamanho, em maços de 5 a


10. Os montículos eram depositados no chão durante algumas horas, para que as
lâminas delgadas passassem pelo processo de enxugamento. Assim, adquiriram certa
flexibilidade e maciez que favoreciam o seu transporte até os galpões de cura. Lá
chegando, as folhas eram dependuradas, com o talo para cima, em varas retas
suspensas num alpendre ou galpão para que se desse a secagem. O secadouro,
quando não era uma das dependências da própria casa do colono, era um galpão [...]
‘coberto de telhas, taboinhas ou sapé (nunca de zinco que esquenta em demasia ao
sol), tendo paredes de tijolos ou de pau a pique barreado, diversas janelas de ambos
os lados, em cada extremidade uma larga porta. O chão podia ser de terra bem batida
[...] ou então ladrilhado de tijolos’ (CAIRO, 1922, p. 48).

[...] Durante cerca de 40 a 60 dias, o fumo secava naturalmente dentro do galpão.


Após seco, o colono sortia o tabaco de acordo com o tamanho, cor e textura das
folhas e despachava a produção para o mercado.

Neste momento, o colono entregaria a produção ao comerciante com quem mantinha relações
comerciais, e este último controlava os próximos passos no processo de beneficiamento do
tabaco e também os procedimentos de venda e exportação.
134
Normalmente a produção era adquirida por um comerciante cuja venda, armazém ou
casa comercial ficava relativamente próximo à casa do agricultor. Aí ocorria o
segundo processo de cura pelo qual passava o fumo: a fermentação. As folhas de
fumo eram amontoadas em enormes pilhas de formato quadrado onde esquentavam
devido à ocorrência de uma reação química natural, oriunda do interior da pilha.

Esta última etapa, a fermentação, durava aproximadamente 60 dias, quando as folhas eram
novamente escolhidas e arranjadas em manocas. Manocas são feixes de mais ou menos 25
folhas de tabaco de mesma qualidade e tamanho. Uma das folhas é usada para amarrar as
demais, unido-as pela base. Quando as manocas estivessem todas prontas, elas eram
arranjadas em fardos. As manocas eram pressionadas e comprimidas em caixas de madeira.
Assim, se tornavam cargas de aproximadamente 65 quilos. A disposição do tabaco em fardos
apresentava muitas vantagens: além de reduzir seu volume e facilitar seu transporte, as folhas
poderiam continuar seu processo de fermentação e melhorar seu aroma e sabor. “Do
armazém, depois de fermentado, preparado e enfardado, o fumo era despachado, no lombo
de animais de carga ou através de carroças, até Rio Pardo. De lá, seguia em lanchões pelo
Jacuí até Porto Alegre” (VOGT, 1997, p. 92), ou, depois, por ferrovias.

Na primeira fase de desenvolvimento do sistema de produção de tabaco, os comerciantes


assumiam um papel fundamental e poderoso. Eles geralmente traziam o conhecimento
associado às expectativas dos mercados e aos parâmetros técnicos, sugerindo as melhores
variedades de tabaco a serem plantados e discutindo os melhores períodos de colheita, por
exemplo. Os comerciantes monopolizavam a informação sobre preços, impondo-os aos
colonos de maneira a maximizar seus lucros. Os comerciantes tinham também, com
freqüência, o controle sobre os meios de transporte, o que lhes permitia cobrar o frete dos
colonos, contribuindo igualmente com seus ganhos. A relação sócio-econômica entre colonos
e comerciantes era materializada por meio de um mecanismo contábil, a conta corrente, um
livro onde os créditos e débitos dos colonos eram registrados. Tais registros tornaram possível
abolir os meios monetários da maior parte das relações, e os colonos se tornaram diariamente
dependentes dos comerciantes. Além de comprar sua produção anual, estes distribuíam ao
longo do ano as mercadorias necessárias às famílias, registrando-as nas contas correntes, e
cobrando daqueles quando lhes entregassem a produção. Os comerciantes também
desempenhavam funções bancárias em suas relações com os colonos, emprestando dinheiro,
cobrando juros, recebendo depósitos e, com muita freqüência, cobrando taxas para guardar

135
seu dinheiro (MONTALLI, 1979; ROCHE, 1969). Na realidade, como descreve Vogt (1997,
pág 94), o comerciante tinha uma influência muito maior entre os colonos:

Já que a venda [do comerciante] era um misto de residência, posto de troca, local de
beneficiamento da produção, botequim e ponto de reunião, era lá que os colonos
acabavam tendo contato com assuntos os mais variados. Quem intermediava e filtrava
estas informações era o dono da casa comercial. Era ele o elemento de prestígio e
poder político; era quem orientava os agricultores sobre o que e como plantar, sendo
o responsável pela introdução de novas técnicas produtivas em sua área de
influência; era quem tinha contato direto com o caixeiro viajante, por isso sabedor de
notícias de outros lugares, especialmente a Alemanha; era quem vendia remédios,
artigos da moda, etc.

Ao final da primeira fase de produção do tabaco em Santa Cruz, em 1916, como proposto por
Vogt (1997), o município era responsável por mais de 20% da produção total do estado, com
mais de 3.000 toneladas de tabaco. No total, o estado do Rio Grande do Sul produzia 14.700
toneladas, em 30.000 hectares de área. Durante esta fase, a evolução na quantidade de tabaco
produzida foi muito significativa, acompanhando o crescimento demográfico da colônia em
geral. De acordo com relatórios administrativos de 1922, citados por Vogt (1997, p. 87), a
produção em quilos cresceu de 1.575 toneladas em 1881, para 1.650 toneladas em 1896, para
2.200 toneladas em 1901, e alcançou 3.004 toneladas em 1916, depois de crises nos primeiros
anos do século XX.

Em realidade, as bem-sucedidas atividades dos comerciantes podem ser relacionadas ao


desenvolvimento dos estabelecimentos beneficiadores de tabaco, em especial depois de 1916,
ou na segunda fase de produção de tabaco em Santa Cruz, como propõe Vogt (1997). A
despeito das divergências entre historiadores, uma das teses mais importantes sobre a
emergência de beneficiadores de tabaco em Santa Cruz sugere que as relações mercantis entre
comerciantes e produtores de tabaco, os colonos, geraram o acúmulo necessário de capital
para o futuro investimento em iniciativas maiores; em 1916 muitas fábricas estavam operando
as atividades de beneficiar e comercializar o tabaco, ou comercializar o tabaco e fabricar
cigarros, ou, finalmente, exportando tabaco já beneficiado. Entre tais empresas, Vogt (1997)
cita Hennig & Cia., José Etges & Cia., e Kliemann. Na prática, tais fabricantes foram os
precursores das grandes fumageiras na região, concentrando os últimos passos da produção
em cadeia de tabaco e empregando pessoal durante a colheita, quando toda a produção deveria
ser comprada dos colonos para ser beneficiada, até que fosse arranjada em fardos. Os

136
primeiros fabricantes de tabaco em Santa Cruz possuíam um baixo índice de automação e
empregavam algo entre seis e 150 funcionários. A consolidação e o desenvolvimento destas
fábricas no cenário econômico da colônia caracterizam a segunda fase da produção de tabaco
em Santa Cruz, como descreve Vogt (1997, p. 101):

Este período caracteriza-se, num primeiro momento, pela consolidação,


reaglutinação ou fusão dos estabelecimentos de comércio e beneficiamento de tabaco
originadas na etapa anterior, [...] e pela penetração do capital internacional na
região, processo este iniciado em 1917. Posteriormente, nesta mesma fase, assiste-se
à completa internacionalização econômica do setor fumageiro, o que é levado a efeito
a partir do final da década de 60. Ainda mais recentemente, está em curso o processo
de concentração e fusão das agroindústrias tabaqueiras.

O ano de 1917 tem importância na região por ser considerado o início do processo de
racionalização introduzido pela recém criada The Brazilian Tobacco Corporation, um
complexo agro-industrial construído pela BAT, British American Tobacco, um dos maiores
jogadores no mercado mundial de tabaco. A BAT estava dando seus primeiros passos em
Santa Cruz, mas a corporação já havia assumido o controle, em 1903, da Souza Cruz, fábrica
fundada pelo imigrante português Albino Souza Cruz, no Rio de Janeiro. A Brazilian Tobacco
Corporation foi a precursora da Companhia Brasileira de Fumos em Folha (ou CBFF),
fundada em 1920, e que foi mais tarde incorporada à Souza Cruz, quando esta se instalou em
Santa Cruz, em 1955, tornando-se o departamento de tabaco nesta última companhia. Nesta
ocasião, a produção de cigarros no Brasil dependia da importação de grande quantidade de
tabaco, pois a matéria-prima produzida no país não possuía a qualidade adequada aos
cigarros. A entrada da BAT em Santa Cruz foi, por conseguinte, uma tentativa de controlar a
produção de materiais brutos, introduzindo novos tipos de tabaco necessários à fabricação de
cigarros no Brasil, num momento de significativo crescimento do mercado interno. (De fato,
como mostra Panitz [1954], a produção de cigarros no Brasil cresceu de aproximadamente
15.000 maços em 1911, para 360.000 maços em 1926). O tabaco conhecido como Galpão foi,
então, progressivamente substituído pelo chamado Virginia, que tinha de ser secar
artificialmente em fornos, ao invés de seco naturalmente, como era o caso do tabaco Galpão.
O tabaco Virginia e seu processo de produção haviam sido desenvolvidos nos Estados
Unidos. A BAT contratou técnicos americanos para introduzir as novas técnicas em Santa
Cruz, quando alguns colonos optaram por assimilar os novos procedimentos e construir a
infra-estrutura necessária ao beneficiamento do novo tipo de tabaco. O período experimental

137
durou três anos, e, na safra de 1921/22, o tabaco Virginia havia sido definitivamente
introduzido nas propriedades de alguns colonos, que se tornaram instrutores da BAT, ou os
responsáveis por espalhar e ensinar as novas técnicas aos demais produtores da região. O
beneficiamento do tabaco Virginia demandava a construção de estufas, grandes fornos feitos
de tijolo e cimento, onde o tabaco era seco.

Em 1924, quando já havia um número significativo de estufas construídas nas propriedades


dos colonos, e estes haviam assimilado melhor as novas técnicas, a BAT começou a introduzir
fertilizantes químicos nas plantações, bem como técnicas de seleção e melhoramento das
sementes. A associação de técnicas era especialmente relevante. O objetivo da companhia era
melhorar a qualidade das folhas e torna-las adequadas à produção de cigarros, de acordo com
as normas do mercado. Os fertilizantes acelerariam a maturação da planta de tabaco, o que
produziria folhas mais finas, de coloração mais clara, sendo, deste modo, adequadas à
produção de cigarros. A utilização de fertilizantes químicos também teve suas conseqüências.
Como o ciclo de maturação foi encurtado, o tabaco ficou exposto às forças da natureza e ao
clima por menos tempo, e os riscos associados a catástrofes naturais – tais como vento, chuva
e granizo – diminuíram.

Com a introdução e dispersão destas novas técnicas, a BAT começava um processo de


substituição do velho tabaco Galpão por meio do desenvolvimento de um sistema agro-
produtivo, que era necessário ao abastecimento de matérias-primas para suas operações no
Rio de Janeiro. Como as inovações foram rapidamente expandidas (em 1924 havia mais ou
menos 100 estufas construídas nas propriedades familiares), a BAT promoveu intensas e
produtivas relações com os colonos. Na prática, a BAT financiou a infra-estrutura necessária à
produção do tabaco Virginia nas propriedades e se comprometeu em comprar a produção.
Esta nova relação de produção foi chamada por Vogt (1997) de sistema integrado de
produção. De acordo com ele, o colono comprometia-se com a fumageira desde o início da
safra. A reprodução deste sistema tinha como conseqüência o estabelecimento de relações de
longo prazo, dentro das quais os colonos tornavam-se dependentes da fumageira e tinham de
entregar sua produção a fim de pagar dívidas associadas à infra-estrutura e aos fertilizantes
químicos, entre outros materiais, fornecidos pelas empresas. De acordo com o sistema de
produção integrada, as novas relações requeriam lealdade: havia um acordo tácito entre as
fumageiras, segundo o qual elas não deveriam competir pelo fornecedor de tabaco associado à
outra fumageira. Quando um colono estabelecia uma relação com a BAT, por exemplo, ele
não poderia vender sua produção, nem mesmo parte dela, para outro negociante. A

138
reprodução do sistema de produção integrada foi, no entanto, gradual. A despeito da
existência do mercado de tabaco Galpão, os colonos foram progressivamente substituindo-o
pelo Virginia, cuja produção cresceu e os produtores tornaram-se fornecedores da BAT e
outras fumageiras. Como narra Vogt (1997, p. 108-109):

Ao invés de serem fregueses dos comerciantes, os colonos passaram a ser ‘fregueses’


das agroindústrias. [...] A Souza Cruz, por exemplo, passou a fornecer aos colonos,
como forma de adiantamento, as sementes e o adubo cujo valor era descontado por
ocasião da entrega da safra. O mesmo ocorreu com o capital necessário à edificação
das estufas. Este era descontado em parcelas, durante cinco anos, quando da entrega
da produção. A empresa comprometia-se, ainda, com a assistência técnica ‘gratuita’,
realizada pelos instrutores da companhia. O colono, em contrapartida, seguia
fielmente as instruções do seu orientador e tinha o compromisso moral de entregar
todo o fumo colhido à firma.

Se a BAT foi a primeira a introduzir os parâmetros do sistema de produção integrada, outras


companhias seguiram pelo mesmo caminho. Por exemplo, em 1918 foi fundada a Cia. de
Fumos (Tobacco Company), resultado da fusão de seis estabelecimentos anteriormente
dedicados à comercialização de tabaco. Em 1831 esta companhia empregava 120 pessoas e
sua produção alcançava 35.127.000 cigarros, mais de 24 toneladas de tabaco beneficiado e
mais de 23 toneladas beneficiados para outras fábricas. Naquela época, a Cia. de Fumos era a
segunda fábrica mais importante na região, logo atrás da fábrica da Souza Cruz de Porto
Alegre, inaugurada em 1928. Em 1968, o controle acionário da Cia. De Fumos passou para a
companhia Remtsa Zigarrettenfabriken, de Hamburgo, Alemanha. Em 1975, esta o transferiu
à Phillip Morris. Em 1984 a Phillip Morris fechou o departamento de manufatura de cigarros
e transferiu as máquinas para sua unidade em Curitiba, Paraná. Outras fumageiras operaram
nas décadas seguintes, tais como Kliemann & Cia., fundada em 1921, a Fábrica de Fumos
Sul-Brasileira, fundada em 1922, e várias outras. Em 1940, a Cia. Sudan de Tabacos tinha
uma filial instalada em Santa Cruz, cujo objetivo era fornecer matéria-prima para suas
fábricas de cigarros em São Paulo.

Efetivamente, a introdução de inovações técnicas e sociais no contexto do sistema de


produção integrada pode ser associada ao crescimento da produção total de tabaco na região.
Como sugere Vogt (1997, p. 117-118), a introdução de inovações pela BAT (tais como
estufas e fertilizantes químicos), mais tarde seguidas por outras fumageiras, foi responsável
pelo crescimento significativo na produtividade total das plantações de tabaco. Este

139
melhoramento na produtividade pode ser notado através de estatísticas que mostram o
crescimento da produção por hectare de terra usado no estado do Rio Grande do Sul. Se a
produtividade em 1915 era de 0,49 toneladas de tabaco por hectare, ela aumentou para 0,51
em 1922, e para 0,61 em 1960, com alguns altos e baixos durante o período.
Simultaneamente, houve um crescimento contínuo no número de hectares plantados pelos
colonos. Esta expansão também pode estar relacionada aos impactos das inovações técnicas
na produção. Com a introdução do tabaco Virginia e outros melhoramentos no processo
produtivo, os colonos experimentaram altos níveis de rendimento como resultado da alta
produtividade e melhor qualidade dos produtos. Além disso, as inovações sociais que
caracterizavam o sistema de produção integrada trouxeram ainda mais vantagens aparentes,
como as muitas facilidades oferecidas aos colonos (assistência dada pelos instrutores e o
financiamento da infra-estrutura, fertilizantes e outros gastos com a produção, fornecidos pela
fumageira). Em suma, a produção de tabaco era a perspectiva de rendimento a baixo risco
para os colonos, pois estes tinham sua produção comprada pelas fumageiras como resultado
de um relacionamento de compromisso entre eles.

O crescimento da plantação de tabaco no estado do Rio Grande do Sul teve uma importante
conseqüência para as fumageiras instaladas em Santa Cruz. Com a progressiva demanda por
cigarros e a crescente produção de tabaco nas cidades vizinhas, as fumageiras começaram a
comprar matéria-prima também destas cidades. O tabaco produzido por estes colonos era
beneficiado nas instalações de Santa Cruz e depois era enviado aos mercados consumidores,
principalmente às fábricas de cigarros de outros estados do Brasil. Como relata Vogt (1997),
muito do extraordinário crescimento na venda de tabaco pela fumageiras de Santa Cruz estava
associado à produção fora dos limites da cidade. Como relatórios administrativos da época
mencionam, a quantidade de tabaco exportado por Santa Cruz cresceu de 4.414 toneladas em
1920, para 4.485 toneladas em 1925, e para 11.275 toneladas em 1935. O relatório de 1926
mostra que 2.949 toneladas de tabaco exportadas de Santa Cruz eram, originalmente, de
outras regiões do estado, proporções que tenderam a aumentar com o tempo. Entre os colonos
‘estrangeiros’ que vendiam suas produções às fumageiras de Santa Cruz estavam aqueles
instalados na cidade vizinha de Rio Pardo.

Com o aumento de poder da BAT na região, a dinâmica do mercado local de tabaco foi
altamente influenciada pelas decisões desta companhia. Particularmente, os parâmetros de
preço eram definidos pela BAT, sendo que as demais companhias seguiam suas decisões. Na
segunda metade do último século, Santa Cruz já era chamada de “capital do tabaco” no Brasil,

140
quando o centro de comercialização do tabaco foi transferido de Porto Alegre para Santa
Cruz, onde a BAT definia os preços do produto e não mais as companhias de comércio
localizadas na capital do estado (VOGT, 1997). Como resultado, não havia uma intensa
competição entre compradores de tabaco; ao contrário, a BAT promovia a estabilização do
mercado através da definição de preços a serem pagos aos colonos durante o ano. As outras
fumageiras, porque os preços adotados também lhes eram interessantes, adotavam-nos. Como
narra Schuck (1966, pág 3):

Os preços dos fumos foram assentados no fim de cada safra, sem oscilações na entre
safra para os produtores. Os boletins comerciais de Porto Alegre deixaram de
mencionar os preços dos fumos, visto que a firma dominante no ramo assentava o
preço para o ano inteiro.

A tabela 5 traz um retrato da relevância das operações da BAT neste estado. Os números
dizem respeito à quantidade de fardos vendidos para fora do estado do Rio Grande do Sul em
1947.

Tabela 5

NÚMERO DE FARDOS VENDIDOS PARA FORA DO ESTADO DO


RIO GRANDE DO SUL (1947)

EMPRESAS Nº DE FARDOS

Cia. Brasileira de Fumo em Folha (BAT) 161.124

E. Carl Leoni 42.281

Fábrica de Cigarros Sudan 40.740

Exportadora Hennig S.A. 37.386

Enfardadores Fumosul Ltda. 30.421

Fernando C. Tatsch, Filhos S.A 29.943

Manlio Agrifoglio & Cia. 25.041

Seibel & Cia. 16.819

141
União Sul Brasileira de Cooperativas 12.378

Kliemann & Cia. 8.491

Ocire Exp. Agr. Pec. 7.076

Emílio Bercht 6.178

Ding & Cia. 5.489

F. Broenstrup & Cia. Ltda. 5.265

Soldan, Kliemann & Cia. 3.975

A. Knorr S.A. 2.973

Cia. de Fumos Santa Cruz 2.538

C. Torres S.A. 2.263

Wener Katz 2.180

Arthur Huebner 1.900

Ph. Loewenhaupt & Cia. 1.343

Metzdorf & Feix 750

Wilson Sons & Cia. Ltda. 707

Mueller Tanscheidt & Cia. 477

Silva & Cia. 302

Helmuth Heinz & Cia. 250

Irmãos Franceschi 66

TOTAL 448.356

Fonte: Gazeta de Santa Cruz, 12 de março de 1948, p. 3.

142
Durante o século XX, Santa Cruz consolidou seu título de “capital do tabaco” no Brasil, com
o desenvolvimento de um complexo agro-industrial que se tornou, mais tarde, o maior do
mundo. Desde as últimas décadas do século XIX, a produção de tabaco cresceu até que se
tornou o produto comercial mais importante da região. Em 1938, a produção de tabaco no
estado do Rio Grande do Sul era maior que na Bahia, maior produtor de tabaco do país até
então. Particularmente, com o crescimento significativo do mercado interno de cigarros nas
décadas de 20 e 30, o tabaco produzido no Rio Grande do Sul não sofreu muito com o
retrocesso do mercado internacional, diferente do que aconteceu na Bahia. De fato, neste
momento, o tabaco de coloração escura produzido nos estados do nordeste do Brasil (tais
como os do tipo Galpão tradicionalmente produzidos no Rio Grande do Sul e que foram
progressivamente substituídos pelo Virginia, de coloração e aroma mais suaves) foi sendo
substituído no mercado internacional por tabacos mais leves, mais adequados aos cigarros.
Durante muitos anos, os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro compraram mais de 50% do
tabaco do Rio Grande do Sul. Enquanto os compradores estrangeiros compravam pouco, o
mercado doméstico de cigarros cresceu rapidamente. Em meados do século XX, o Rio Grande
do Sul era visto como o ‘especialista’ da nação em produção de tabaco para cigarros, embora
o ainda baixo nível de qualidade não fizesse dele um exportador importante para o mercado
internacional. Com efeito, a maior parte do tabaco produzida no Rio Grande do Sul era
comprada pela Souza Cruz e era usada como matéria-prima para as fábricas espalhadas pelo
país.

Contudo, a grande especialização desenvolvida em Santa Cruz não a tornou invulnerável a


altos e baixos da economia regional. Como explica Vogt (1997), com o término da Segunda
Guerra Mundial em 1945, o consumo mundial de cigarros havia aumentado bastante e os
preços do tabaco no mercado externo sofreram uma alta expressiva. Isto foi o resultado da
baixa produção nos países beligerantes, onde a agricultura desorganizou-se, e da baixa
produção do Rio Grande do Sul na safra de 1944/45. Conseqüentemente, os preços pagos aos
produtores de tabaco aumentaram em 100% em 1945. Com este aumento considerável nos
preços, o estado experimentou um rápido crescimento na área plantada, o que levou, ao fim da
década de 1940, a um quadro de superprodução. Adicionado a este fato, alguns países
europeus começaram a comprar tabaco dos Estados Unidos, dentro do contexto do Plano
Marshall. Nos quinze seguintes anos, considerando o aumento na área de plantio, Santa Cruz
viveu um período de séria crise na produção do tabaco, com a progressiva diminuição no
preço pago aos colonos. Mais do que nunca, a economia local dependia do mercado interno de

143
cigarros. A crise foi superada somente nos anos 60, quando surgiram novas oportunidades nos
mercados externos.

Nos anos 60, diversos fatores de mercado indicavam a oportunidade de internacionalização da


indústria de tabaco em Santa Cruz. Realmente, Santa Cruz nunca havia sido famosa por
produzir tabaco de alta qualidade. Entre outros países, o melhor tabaco vinha das colônias
européias na África, que passavam por sérios conflitos políticos como parte de seus processos
de independência, especialmente os graves embates na Rodésia e no Zimbábue, que
ameaçavam a fonte de matérias-primas das principais indústrias do setor tabagista. Neste
período, tais companhias começaram a procurar por outras regiões onde poderiam garantir a
produção de sua matéria-prima. O sul do Brasil era considerado uma boa opção, pois, desde
os anos 20, a tecnologia do tabaco Virginia havia sido introduzida entre os colonos. Outros
acontecimentos também indicavam o potencial do Brasil como fornecedor de tabaco, tais
como a criação do Mercado Comum Europeu e, mais tarde, o fim do monopólio do tabaco na
Itália e na França (NARDI, 1985). Neste momento, a indústria do tabaco no estado do Rio
Grande do Sul estava discutindo a grande crise de superprodução, que achatou o rendimento
gerado por esta cultura desde a década de 1940. Um dos maiores problemas da região estava
realmente ligado à qualidade do tabaco. Aumentar a qualidade dos produtos era considerado
uma necessidade se a região quisesse conquistar novos mercados no estrangeiro e reduzir os
problemas gerados pelo rápido aumento de área de plantio e pela estrita dependência do
mercado interno. Efetivamente, era um consenso, entre os líderes do setor, que os colonos do
estado deveriam assimilar os novos procedimentos de produção que garantiriam novos
padrões de qualidade. De acordo com o relatório de Associação Brasileira de Produtores de
Tabaco (AFUBRA, 1963) em 1963/64:

A concorrência exige, nos dias de hoje, mercadorias de alta padronagem e se não


quisermos assistir ao fracasso de uma teimosia condenável, com prejuízos pessoais no
futuro, abandonemos definitivamente o plantio dos fumos de tipos baixos, silvestres,
amarguentos, cheios de nicotina, folhas estreitas, talos grossos, etc. [...], e demos
preferência absoluta aos tipos nobres, de superior qualidade, indo assim ao encontro
dos requisitos apresentados pelas exigências do mercado consumidor de nossa época.

Neste momento, os mercados internacionais eram reais oportunidades para o setor do tabaco
no Brasil, especialmente, no Rio Grande do Sul. No entanto, vender tabaco aos países
estrangeiros ainda requeria investimentos em tecnologia, pois os colonos deveriam preparar
suas propriedades para os novos padrões de produção. Os investimentos mais urgentes eram

144
adquirir melhores sementes, novos fertilizantes e pesticidas, e construir novas estufas.
Entretanto, como sugere Vogt (1997), apenas a multinacional BAT possuía condições de
encarar tais investimentos. Como resultado da crise, as fumageiras menores locais não
estavam capitalizadas o suficiente para promover as mudanças necessárias no sistema de
produção. As decisões governamentais para combater a inflação em 1964 – primeiro ano de
ditadura militar – também impuseram barreiras às companhias locais que precisavam de
crédito para a produção. A BAT, ao contrário, possuía acesso ao crédito internacional e era a
única a ter dinheiro para investir nas propriedades dos colonos, como crédito para a produção.
Como parte da estratégia de expansão, a BAT penetrava em outras regiões de tabaco do sul do
Brasil e estruturava suas operações de exportação. Adicionalmente ao tabaco enviado para
suas fábricas de cigarro no Brasil, a BAT tornou-se em pouco tempo a maior exportadora de
tabaco no país. Neste contexto emergente, a predominância da BAT era clara e sua influência
era mais profunda que as definições dos preços. De acordo com Liedke (1977, p. 38), desde
os anos 70 sua influência era sentida em termos de exigências de qualidade, seguidas por
outras fumageiras:

(…) a Companhia Souza Cruz passou a ditar as normas do jogo, aos níveis do
processo de produção agrícola e de compra de matéria-prima (decisão dos preços
para as diferentes classes, a qual era adotada pelas demais empresas compradoras);
e também ao nível do desempenho empresarial (impondo novos padrões de atuação
das empresas junto aos camponeses, especialmente quanto à questão de qualidade e
classificação do fumo e seus preços), uma vez que as demais empresas existentes não
lhe eram competitivas.

Enquanto a BAT expandia suas operações, outras companhias internacionais estavam


interessadas no mercado local, e os comerciantes locais desistiam de seus negócios à medida
que propostas razoáveis lhes eram feitas. Desde os anos 60, a internacionalização do setor
aconteceu gradualmente: primeiro, com companhias multinacionais que assumiam parte do
controle, mas mantinham os antigos proprietários em cargos gerenciais. Mais tarde, as
pequenas fumageiras foram incorporadas às maiores, incluindo multinacionais, que chegavam
ao Brasil em circunstâncias que lhes eram favoráveis. Como denota Vogt (1997, p. 135),
como resultado do processo de internacionalização, em 1994 havia quarto grandes grupos que
detinham o controle no setor tabagista nos três estados do sul do país: BAT, de capital anglo-
americano, e Dibrell Brothers, Monk e Universal Leaf, as três de capital americano.

145
Como as multinacionais introduziam novas técnicas de produção e financiavam a infra-
estrutura e os gastos necessários ao cultivo, os colonos produziam tabaco de alto nível de
qualidade. Desde os anos 60, o fluxo de tabaco para exportação aos mercados estrangeiros
crescia, e nos anos 70, a matéria-prima brasileira era bem conhecida nos Estados Unidos e na
Inglaterra, que se tornou mais tarde um dos maiores clientes da região. Santa Cruz
testemunhou uma evolução multidimensional na cultura de tabaco, com o aumento da
qualidade, quantidade e produtividade em decorrência das inovações. Especialmente após
1967, com a gradual elevação de preços pagos aos colonos, o setor entrou num período de
relativa prosperidade, pois os mercados estrangeiros assimilavam uma crescente proporção do
total da produção, não apenas do Rio Grande do Sul, como dos demais estados do sul do país.
Como menciona Vogt (1997), a quantia total exportada do Brasil cresceu de menos de 60.000
toneladas, em 1965, para quase 100.000 toneladas, em 1975, alcançando aproximadamente
170.000 toneladas, em 1985. Como resultado:

Durante a década de 70, consolidou-se a atual estrutura fumageira existente no Brasil


meridional. Santa Cruz do Sul e os municípios adjacentes, Vera Cruz e Venâncio
Aires, passaram a concentrar o maior parque industrial de beneficiamento de tabaco
do mundo. Ao mesmo tempo, os cultivos dos estados de Santa Catarina e Paraná
foram intensificados pelas corporações que introduziram o tabaco em novas áreas,
para responder à demanda internacional. Boa parte desta Nicotina tabacum
produzida em Santa Catarina [...] e praticamente toda a produção gaúcha, passou
com o tempo a ser esterilizada e enfardada na região. Ao invés de se direcionar para
o mercado interno, o fumo, já melhoradas as suas técnicas de cultivo e padrão de
qualidade, começou a ser, num índice cada vez maior, colocado no mercado externo.
Assim, as exportações do fumo brasileiro alavancadas pela produção sulina alçaram
o país à condição de segundo maior exportador do mundo. Estados Unidos e o Reino
Unido passaram, então, a ser os principais importadores do tabaco cultivado e
beneficiado no Brasil (VOGT, 1997, 137-38).

Nos últimos vinte anos, a economia regional experimentou um acelerado processo de


crescimento. A quantidade total de tabaco produzido observou um aumento impressionante
nos último 15 anos, como sugere a tabela 6. Tal aumento pode ser relacionado aos ganhos na
produtividade, ao crescimento do número de famílias envolvidas com a atividade e à
expansão da área total de cultivo desde 1991. O setor testemunhou um rápido acréscimo no
número de famílias dedicadas à produção de tabaco nos três estados do sul do Brasil e, nos

146
últimos 25 anos, um aumento de 20% da produção total de tabaco por família. De acordo com
a Afubra (Associação dos Fumicultores do Brasil), devido aos melhoramentos tecnológicos, a
produtividade cresceu em 24% nos últimos 25 anos. O número de estufas para secar o tabaco
alcançou 185.810 em 2005. Os últimos anos foram especialmente impressionantes em termos
de aceleração da produção. A área total de cultivo atingiu 305.551 hectares e 636.871
toneladas de matéria-prima em 2002. Nos anos a seguir a área total não diminuiu a menos que
300.000, e o nível de produção, a menos que 600.000, alcançando o extraordinário número de
852.488 toneladas em 2004.

Tabela 6

PRODUÇÃO DE TABACO NO SUL DO BRASIL

Ano Famílias Hectares Toneladas

1991 208.334 361.802

1992 262.455 514.532

1993 285.775 569.512

1994 218.345 396.915

1995 206.392 341.159

1996 229.470 402.159

1997 268.909 543.203

1998 265.812 403.346

1999 268.388 548.760

2000 134.850 251.238 527.750

2001 252.365 504.728

2002 153.130 305.551 636.871

2003 170.830 361.712 600.325

147
2004 190.270 407.169 852.488

2005 198.040 439.220 842.990

Fonte: Gazeta do Sul, Ano 61, nº5, 31/01/05 e AFUBRA

Considerando a relativa estagnação do mercado doméstico de tabaco, o rápido crescimento da


produção e as condições econômicas externas adequadas levaram ao desenvolvimento das
atividades exportadoras das fumageiras. Desde a internacionalização do setor, as fumageiras
têm exportado cada vez mais tabaco, elevando o Brasil à condição de primeiro exportador
desta matéria-prima no mundo, desde 1993. Hoje em dia, o mercado experimenta uma
situação em que 85% do tabaco produzido no sul do país são destinados ao mercado
internacional, gerando uma renda de aproximadamente 1,5 bilhões de dólares em 2004. A
tabela 7 traz números sobre quantidades exportadas e preços médios pagos pela tonelada de
tabaco brasileiro.

Tabela 7

EXPORTAÇÃO DE TABACO
BRASILEIRO E PREÇO MÉDIO

Ano Quilos Renda total US$/kg


(US$)

1980 129.900.000 295.310.000 2,27

1990 188.160.000 565.900.000 3,01

1998 392.870.000 1.558.070.000 3,97

2000 353.020.000 841.470.000 2,38

2001 443.850.000 944.320.000 2,13

2002 474.470.000 1.008.170.000 2,12

2003 477.550.000 1.090.260.000 2,28

148
2004 592.850.000 1.425.770.000 2,40

Fonte: Secex – Secretaria de Comércio Exterior

Durante o processo de desigual crescimento econômico verificado na região do Vale do Rio


Pardo, a cidade de Rio Pardo foi largamente deixada para trás por muitos de seus vizinhos.
Com o crescente número de colonos plantando tabaco na região, as fumageiras foram atraídas
à Santa Cruz e às cidades vizinhas durante o século XX, e investiram muito no complexo
agro-industrial. Hoje em dia, o município de Santa Cruz do Sul possui uma economia
dinâmica, embora primariamente dependente do setor tabagista. O comércio e a indústria são
fortes, em adição às atividades primárias – ou à produção de tabaco – desenvolvidas na zona
rural. Na prática, a economia de Santa Cruz do Sul influi bastante nos demais municípios
vizinhos, posto que as agro-indústrias da cidade concentram as atividades de beneficiamento
do tabaco produzido na região. A indústria em Santa Cruz representa quase 75% do PIB
municipal. Em comparação às outras cidades do Vale do Rio Pardo, a indústria de Santa Cruz
produz 70% das riquezas geradas pelo setor na região. Particularmente, as fumageiras da
cidade são as maiores e mais influentes empresas, pois empregam cerca de 50% do total de
pessoas que possuem empregos em indústrias em toda a região. As fumageiras empregam
muitas pessoas com contratos temporários, durante o período de colheita, atraindo
trabalhadores das cidades e comunidades vizinhas, tais como os moradores dos distritos rurais
de Rio Pardo. Estes empregados temporários são chamados safristas, e trabalham no processo
de beneficiamento do tabaco a ser mandado para os mercados consumidores. Por trabalharem
durante os períodos de colheita, este grande contingente de pessoas aumenta os patamares de
renda familiar em muitos distritos rurais. Santa Cruz também é o centro comercial da região,
atraindo compradores e força de trabalho das cidades vizinhas. Realmente, Santa Cruz e as
cidades pequenas de Venâncio Aires e Vera Cruz experimentaram um intenso
desenvolvimento em três setores econômicos – agricultura, indústria e serviços –, enquanto
Rio Pardo permaneceu uma cidade pobre, com um setor industrial de pequena significância e
estabelecimentos comerciais locais que servem primariamente à cidade (KLARMANN, 2001;
IBGE, 1998).

Enquanto Santa Cruz atraiu contingentes de pessoas em busca de oportunidades de trabalho, a


população e a economia de Rio Pardo permaneceram estagnadas por décadas. Efetivamente, o
total da população de Santa Cruz do Sul cresceu de 37.500 em 1920, quando o processo de

149
produção integrada foi implantado, para 100.433 em 1996. Enquanto isso, Rio Pardo assistiu à
emancipação de alguns de seus distritos rurais, e sua população cresceu de 30.400 para 37.787
em 1996, quando ela já não era mais o centro regional. Diferentemente das ricas cidades
vizinhas, caracterizadas pela dominância de pequenas fazendas, as propriedades de Rio Pardo
são heterogêneas em termos de tamanho: pequenas propriedades de colonos, onde o tabaco é
o produto principal, coexistem junto à fazendas maiores, onde os estancieiros produzem arroz
e soja, bem como criam gado. Em Rio Pardo, uma porcentagem expressiva de habitantes é
dependente do sistema de produção integrada conduzido pelas fumageiras de Santa Cruz.
Conseqüentemente, Rio Pardo é hoje um município que depende de maneira significativa da
renda gerada pela produção de tabaco na área rural, vendida para as fumageiras localizadas
em Santa Cruz. O centro do município, a cidade de Rio Pardo, concentra as unidades
industriais de porte pequeno e médio e os estabelecimentos comerciais – lojas e mercados –
que empregam a maior parte da força de trabalho urbana local. Particularmente, o comércio e
as demais atividades do setor de serviços são altamente dependentes da população rural da
área, que vem comprar na cidade e mantém o dinamismo de sua economia. De acordo com
Klarmann (2001), em comparação a cidades como Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires, a
economia de Rio Pardo é concentrada no setor de serviços, que inclui comércio,
administração pública e outras ocupações como educação, bancos, transportes, imobiliárias,
etc. Tal concentração, no entanto, não significa que a cidade é especialmente rica neste setor,
mas destaca a incapacidade dos demais setores, principalmente o industrial, em gerar renda.

4.2 Ameaças à economia e a necessidade de substituição

Atualmente, no entanto, o dinamismo produzido pelo setor do tabaco na região tem sido
ameaçado pelas discussões da Convenção-Quadro, ou as tentativas de diminuir o consumo de
tabaco no mundo. Liderada pelas Nações Unidas, a Convenção-Quadro é um acordo
internacional em saúde pública, que propõe diversas medidas ligadas ao controle do mercado
tabagista nos países signatários. O documento foi adotado por unanimidade pelos 192
Estados-Membros da Organização Mundial da Saúde (OMS), durante a 56ª Assembléia
Mundial da Saúde, em 2003. Em novembro de 2004, o tratado alcançou a marca de 40
ratificações, o que possibilitou a sua entrada em vigor no dia 27 de fevereiro de 2005. No
início do mês de abril de 2005, um total de 61 países já havia ratificado o tratado. Ele
começou a se tornar polêmico no Brasil em setembro de 2004, através de publicações na
150
imprensa por parte da Afubra (Associação dos Fumicultores do Brasil), com informações
sobre supostas implicações negativas da ratificação da Convenção para a economia nacional.
Particularmente, a maior parte dos colonos recebeu as notícias com grande apreensão e
aparente dose de exagero. Em Santa Cruz do Sul e na região, cujas economias dependem em
larga escala não apenas dos agricultores, mas da inteira cadeia produtiva de tabaco, a
Convenção-Quadro gerou muitas discussões. Entre as propostas do acordo, os países
deveriam programar decisões para reduzirem o consumo de tabaco, tais como taxas especiais
e políticas de preço, leis de proteção aos não-fumantes contra a fumaça em lugares fechados,
regulação sobre os conteúdos e as emissões dos produtos do tabaco, educação e disseminação
de informação sobre o tabaco, proibição de propaganda, etc. O acordo também propõe a
supressão do mercado ilícito de cigarros, o fim de subsídios para sua produção, a discussão de
leis para proteger o meio ambiente contra os fertilizantes usados em seu cultivo, além de
colaborações técnicas e jurídicas entre os países membros.

Durante o ano de 2005, o acordo foi discutido no Brasil, para que o governo tomasse a
decisão, aprovando ou não a sua ratificação. A discussão opôs algumas instituições
organizadas do setor de saúde a associações do setor tabagista e a administração pública dos
estados do sul do país. A grande influência e dependência do tabaco em tais estados
determinaram o largo apoio à não ratificação do acordo entre as forças políticas da região.
Certamente, a possibilidade de ratificação gerou grande ansiedade entre a população, que
teme pelo futuro de seus filhos. Coerentemente, as forças políticas da região reforçaram o
debate popular contra o acordo, postulando futuras perdas de empregos e a possibilidade de
falência da economia regional. Particularmente, as decisões que caracterizam a Convenção-
Quadro implicariam na substituição das plantações atuais de tabaco por outras culturas em
médio prazo. Considerando os prognósticos existentes, a conversão das culturas dentro do
período sugerido de 10 anos não daria tempo para que os colonos consolidassem outro modo
de vida. Este fato pode piorar ao se considerar o argumento que afirma não existirem outras
culturas que se encaixem na estrutura das propriedades da região, isto é, nenhum outro
produto geraria tanta renda aos colonos quanto o tabaco, considerando suas pequenas áreas de
plantio. O governo federal, no entanto, foi persistente acerca da ratificação, coerente com a
liderança mundial que o Brasil tem desenvolvido no campo das restrições ao tabaco. Como
muitos apontaram, o Brasil, por possuir uma avançada legislação sobre as restrições ao
tabaco, não poderia dar para trás não aprovando o acordo.

151
A despeito das possíveis conseqüências econômicas, o acordo foi ratificado em outubro de
2005, com a decisão do Senado Nacional, após meses de discussões tensas que opunham
setores organizados da saúde àqueles da agricultura e indústria potencialmente afetados pela
decisão. O processo foi caracterizado pela intensa oposição e pela falta de voz em favor da
ratificação nas regiões economicamente afetadas pela decisão. Durante a ação, acusações
surgiram de ambos os lados. O governo federal sugeriu que a indústria estivesse distorcendo
os fatos:

O ministro da saúde, Humberto Costa, acusou a indústria do cigarro de usar os


produtores de fumo e senadores contra a aprovação da convenção quadro
internacional para o controle do tabaco. “A indústria do cigarro está confundindo os
pequenos produtores e os senadores. Os representantes da indústria estão dizendo
que, aprovada a convenção, teremos que acabar com a produção. Não é isso. Vai
haver uma substituição gradual da cultura do tabaco e será com ajuda financeira”,
afirmou o ministro. “Alguns senadores estão embarcando nessa confusão e alguns
estão fazendo política”, disse o ministro. [...] Segundo o ministro, a imagem do país
sairá arranhada por causa do atraso na votação da proposta. Ele disse que, por causa
do atraso, o Brasil não entrou na lista dos 40 primeiros países que ratificaram a
convenção (GAZETA DO SUL, ano 60 nº. 266, 02/12/04).

Do outro lado, políticos locais evocaram os ‘interesses econômicos’ escondidos na aprovação


do acordo, predizendo o caos na região:

A Comissão de Representação Externa de Fumicultura da Assembléia Legislativa


promoveu, na manhã de ontem, em Venâncio Aires, a quarta audiência pública para
analisar o futuro do setor no Estado e buscar alternativas à adoção da convenção-
quadro no Brasil. [...] O parlamentar ressaltou que não vai permitir que “um setor
que levou 100 anos para se estruturar caia assim, por interesses alheios”, referindo-
se às alternativas propostas pela convenção-quadro na substituição do plantio de
fumo por outras culturas. “Querem acabar com mais de dois milhões de empregos,
sem nenhuma garantia para a reconversão”, destacou. Para o palestrante [...], a
convenção-quadro é uma “guerra econômica”. Em um discurso forte, ele criticou as
finalidades do projeto, que quer a redução da demanda e da oferta de tabaco, a
proteção do meio ambiente e a criação de responsabilidade civil. Para ele, a
diminuição da demanda e da oferta vai abrir caminho para o contrabando e a

152
informalidade. “Sem contar o caos que os municípios plantadores vão enfrentar”,
reforçou (GAZETA DO SUL, ano 61, nº. 215, 04/10/05).

O fato de que nenhuma outra cultura seja capaz de gerar o mesmo nível de renda em
pequenas áreas de plantio evocou críticas à proposta. Entre as reações à Convenção-Quadro,
um deputado federal propôs um projeto de lei que considerava a cultura do tabaco como
sendo de relevância sócio-econômica, garantindo o livre cultivo do produto no estado do Rio
Grande do Sul:

Um projeto quer garantir, no Rio Grande do Sul, o direito ao livre plantio do fumo.
“O Brasil é o maior exportador de tabaco do mundo. Exporta 85% de sua produção.
Veja que prejuízo o fim desta cultura traria ao país”, afirma o deputado santa-
cruzense. “A convenção-quadro é uma bobagem inexeqüível. Algo irracional e feito
na base da emoção, que querem aplicar contra um setor que funciona”, acrescenta. O
parlamentar entende que é preciso separar o ato de fumar da fumicultura. “Fumar é
uma opção. Se a produção diminuir, o consumo não vai cair. Seremos obrigados a
comprar tabaco de fora. Além disso, o contrabando de cigarros vai aumentar”. Ele
lembra que a renda média obtida por hectare de tabaco é de R$ 9.339,00. A cifra
despenca para R$ 1.234,00 na cultura de feijão, e para R$ 1.220,00 na do milho.
“Quem vai pagar esta conta? A União, o Estado ou as prefeituras?”, questiona
(GAZETA DO SUL, ano 60, nº. 259, 24/11/04).

A ratificação do acordo pelo Senado Nacional, ao final de 2005, não aconteceu antes que
uma proposta de conciliação fosse discutida. Considerando os argumentos sócio-econômicos
contra a assinatura, o governo federal propôs – nos últimos dias antes da ratificação – o
desenvolvimento de um programa de conversão de culturas, com suporte financeiro nacional
e internacional. Como condição prévia para a aprovação do acordo, os políticos dos estados
do sul pediram por garantias de que o cultivo do tabaco não seria proibido ou restringido no
Brasil. Como reação aos argumentos do sul, o governo federal indicou o desenvolvimento de
um programa chamado Apoio à Diversificação Produtiva das Áreas Cultivadas com Fumo,
cujo objetivo seria dar suporte à conversão de culturas, viabilizando aos colonos novas
estratégias de vida. Este programa se basearia em três eixos estratégicos: (1) o acesso a
fontes especiais de recursos para custear a implantação das novas culturas. Uma das
estratégias é melhorar e fortalecer o existente Pronaf, ou Programa Nacional para Agricultura
Familiar, que oferece empréstimos aos colonos com juros subsidiados para a introdução de
melhoramentos e diversificação nas pequenas propriedades; (2) o acesso à tecnologia e

153
pesquisa a serem desenvolvidas na região, através de parcerias com instituições públicas e
privadas que oferecem assistência técnica na área rural. Uma destas instituições seria
provavelmente a Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e
Extensão Rural (EMATER/RS) uma associação privada que, em acordo com o governo
estadual, promove o melhoramento das atividades primárias nas áreas rurais do Rio Grande
do Sul. Finalmente, (3) a agregação de valor aos produtos locais, através do suporte às
cooperativas e associações rurais, de garantias de compra dos produtos, do apoio ao
desenvolvimento das agro-indústrias associadas às cooperativas, etc.

A despeito desta proposta, os líderes locais questionam a disponibilidade do governo em


executar tais mudanças, pois elas demandariam muito dinheiro e recursos; outra
conseqüência chave está relacionada à substituição das culturas, pois elas não podem gerar o
mesmo nível de renda produzido com a atual produção de tabaco. De acordo com a
informação da Afubra, se substituirmos toda a área utilizada com as plantações de tabaco por
outras culturas, o rendimento total gerado não seria superior a 506 milhões de reais, enquanto
o tabaco gerou mais de 3,6 bilhões de reais no ano de 2004/05. De fato, como discutem os
especialistas, por gerar alta renda por hectare plantado e exigir trabalho intensivo, o tabaco é
a cultura que melhor se adapta às pequenas propriedades da região. O mesmo não é
verdadeiro para outras culturas na mesma área, como arroz e soja. Nestes casos, o baixo
rendimento por hectare faz com que tais cultivos sejam viáveis em grandes porções de terra,
quando o produtor pode alcançar ganhos de escalas adequados. Até mesmo nestes casos, as
experiências recentes na região não foram encorajadoras. Em Rio Pardo, os produtores de
grãos experimentaram recentemente uma colheita mal sucedida devido a duas razões: a longa
seca que atingiu a região durante 2005 e que arruinou boa parte da plantação de milho, feijão
e soja; e os baixos preços pagos por seus produtos, que fizeram com que os produtores de
arroz sofressem com rendimentos abaixo dos custos de produção. Em relação aos colonos, é
preciso identificar culturas específicas cujos ganhos possam ser mais similares aos obtidos
com o tabaco; isto tem sido, no entanto, uma tarefa complicada. Entre os receios
recentemente discutidos dentro do setor do tabaco na região encontra-se o possível aumento
nas taxas, o que poderia diminuir a quantia total exportada.

A despeito de ser um acordo, cujas conseqüências serão sentidas em longo prazo, as


perspectivas de diminuição e extinção do cultivo de tabaco levantam muitos medos entre os
colonos e os habitantes da região, que dependem ao menos indiretamente deste setor:

154
“Se o fumo for tirado de nossa região, o pessoal morre de fome”, afirma o produtor
[...] de Barão de Triunfo. O motivo, segundo ele, é que “ninguém tem extensão de
terra, e para as outras culturas é preciso quantidade”. Ele e a esposa [...],
proprietários de sete hectares, plantam, sozinhos, 60 mil pés. Os dois saíram de casa
às 4h30 da madrugada só para estar em Santa Cruz às 9, horário para o qual estava
prevista a audiência pública. O casal entende que, se a Convenção-Quadro for
ratificada e a cultura do fumo precisar ser substituída, os produtores não serão os
mais prejudicados, apesar da perda de sua principal fonte de renda. “O colono ainda
se vira com o que planta para comer, com o leite que tem na propriedade. Os
trabalhadores da cidade é que serão os primeiros a cair”, afirma ele, que planta
tabaco desde os 11 anos de idade (GAZETA DO SUL, ano 60, nº. 270, 07/12/04).

Refere-se com freqüência à cultura do tabaco como sendo a “galinha dos ovos de ouro”:

O fumicultor (…), 29 anos, está gastando mais de 10 mil reais na construção de duas
novas estufas de fumo em sua propriedade, em Linha Arlindo, interior de Venâncio
Aires, e teme até mesmo não conseguir utilizá-las. Preocupado com a polêmica da
ratificação da Convenção-Quadro para o controle do tabaco, [...] ele se preocupa
com o futuro de sua família. “Se a procura pelo fumo diminuir, tudo por aqui vai se
terminar aos poucos. Os municípios da região vão falir”, teme o agricultor, que além
do tabaco planta em seus oito hectares de terra o milho da safrinha, mandioca e
culturas de subsistência. “Não conheço nenhuma outra planta que tenha o mesmo
rendimento em tão pouco espaço”, completou (GAZETA DO SUL, ano 60, nº. 199,
15/09/04)

Entre políticos e líderes intelectuais, refere-se à ratificação da Convenção-Quadro com raiva


e ressentimento:

Como podemos ver, apesar do peso das mobilizações regionais, deve ter havido algo
mais convincente a influenciar os nossos parlamentares. A ratificação tornou-se
irreversível, espalhando apreensão a toda a cadeia envolvida. Mesmo diante desta
amarga realidade, esperamos que não venha a sucumbir a esperança de
reversibilidade de seus efeitos. O Senado, habilmente, “lavou as mãos” diante de
supostas garantias, alinhando-se com a Câmara Federal em seu posicionamento
anterior. Assim, foi assegurado ao governo o respaldo político para ceder às pressões
e manifestar passiva concordância com toda esta armação. Definitivamente a “vaca
está indo pro brejo” e, para o espaço, a “galinha dos ovos de ouro” de uma
155
importantíssima fonte formal e transparente de geração de emprego, renda, serviços e
tributos (GAZETA DO SUL, ano 61, nº. 245, 08/11/2005).

A dependência geral do tabaco na região foi exatamente o que eu iria investigar quando
cheguei a Albardão. Com aproximadamente 4.000 habitantes, Albardão é o maior distrito
rural de Rio Pardo, localizado a cerca de 15 quilômetros da sede do município, 25 quilômetros
de Santa Cruz do Sul, e cerca de 170 quilômetros de Porto Alegre. O distrito é composto
basicamente por propriedades rurais de pequeno e médio portes – muitas das quais com 10-15
hectares – e a maioria das famílias tem o tabaco como ocupação econômica principal.
Diferentemente de Santa Cruz, colonizada por alemães, os primeiros assentamentos de
imigrantes em Albardão, assim como em outros distritos rurais do município, foi feita por
açorianos. Apesar da estrutura da economia municipal ter sido sempre baseada nas estâncias,
cujos donos desenvolveram a criação de gado como atividade e, mais tarde, agriculturas como
arroz e soja, Albardão e os distritos vizinhos viveram um boom econômico causado pela
introdução da cultura do tabaco, especialmente depois de 1970, com a intensa
internacionalização do setor. Ao chegarem as fumageiras, as comunidades pobres da área
foram estimuladas a aderirem ao “sistema de produção integrada”; aprendendo a plantar
tabaco, já que se tratava de uma fonte segura de renda. Esta situação foi especialmente
verdadeira entre as famílias de colonos, que possuem e operam pequenas propriedades na
região. Na prática, eles são partes expressivas da demografia local. A seguinte conversa com
um colono de Albardão ilustra a estagnação de sua cidade, a dependência local à cadeia
produtiva do tabaco e as preocupações freqüentes dos colonos relacionadas às possíveis
ameaças à sua agricultura.

ALBARDÃO – 6 DE JUNHO DE 2005

André: Rio Pardo pelo que eu conheci é uma cidade meio parada, não?

Colono: É… só tem a cooperativa e uma fábrica de salgadinho para se trabalhar que é a


Bistex, e as pessoas que trabalham no comércio. A cidade tá ficando violenta também… Essa
semana eu ia passando na frente da rodoviária de Rio Pardo, tinha dois rapazotes, sentados
no muro, planejando como iriam fazer um assalto, e eu ia passando na rua, viu como aqui é
violento?

André: Rio Pardo gira em torno do fumo na zona rural?

156
Colono: Com certeza, se a zona rural de Rio Pardo vai mal, tudo vai mal, tudo vai mal, se
fosse como Santa Cruz, se tivesse uma grande quantidade de firmas como tem em Santa Cruz,
com certeza Rio Pardo iria para frente. Se não fosse o fumo, o pessoal da cidade tinha que
vim para o interior trabalhar no meio rural, por isso que digo que o interior de Rio Pardo é
quem sustenta o município, e, se o fumo parar, tudo vai acabar, por que as pessoas não vão
ter dinheiro para comprar no comércio da cidade; os próprios lojistas falam que quem
compra mais nas lojas são as pessoas do meio rural.

André: O Governo quer terminar com fumo? O que vocês sabem?

Colono: Isso… o governo quer que acabem com a plantação de fumo, tem lugares que o
governo chega a pagar para as pessoas pararem de plantar fumo; não aqui. Ainda não.

André: E se eles deram uma quantia de dinheiro para o cara parar de plantar fumo e
introduzir outra cultura?

Colono: Daí sim, eles davam uma assistência para a pessoa parar de plantar fumo e ter
condições de plantar outra cultura. Mas qual a outra cultura que daria igual ao fumo?

André: Eu não sei, eu entendo muito pouco de agricultura.

Colono: Tinha de ser um produto que daria bastante produção numa área pequena. Mas daí,
eu penso que se terminarem com o fumo, vai ficar muita gente sem emprego, a cidade de
Santa Cruz do Sul é movida pelo fumo…

André: Como assim Santa Cruz é movida pelo fumo?

Colono: Olha só, o fumo sai do interior e vai para as firmas, para beneficiar esse fumo, para
exportar, precisa de gente para trabalhar; são milhares de pessoas que trabalham lá, e aí, se
acabarem com o fumo, o que vai acontecer com este monte de gente que trabalha nas
fumageiras? Vão ficar desempregados, o comércio de Santa Cruz gira em torno da
fumicultura…

André: Trabalha muita gente nas fumageiras?

Colono: É um monte de gente mesmo que trabalha, eles tem grandes pavilhões, tudo cheio de
fumo, cada firma tem seus pavilhões, e, para mover com todo esse fumo, precisa de gente.

157
4.3 Sobre os colonos

Os distritos rurais de Rio Pardo, incluindo Albardão, ocupam grandes territórios onde estão
localizadas propriedades de pequeno, médio e grande porte. Como discute Stülp (2001),
baseado no censo anual do IBGE entre 1985 e 1995, a região sul do Vale do Rio Pardo – onde
se encontram os municípios de Rio Pardo e outras três cidades vizinhas – possui 11.905
propriedades rurais de todos os tamanhos. Entre as mesmas, 7.507 (63%) são consideradas
pequenas, com até 20 hectares; 3.614 (30%) são tidas como médias, com um tamanho
variando entre 20 e 200 hectares (com grande concentração na categoria de 20-50 hectares,
totalizando 18,7% das propriedades); finalmente, 6% das propriedades são estimadas como
grandes, com mais de 200 hectares. Considerando a área total das propriedades, percebe-se
que as propriedades pequenas ocupam em torno de 8% da área total, ou 55.027 hectares dos
689.000 hectares das propriedades rurais da região. As propriedades médias concentram 29%
da área total, ou 198.051 hectares; por fim, as grandes propriedades absorvem 63,3% da área
total, ou 436.212 hectares. Em termos de força de trabalho, as pequenas propriedades
empregam 22.953 pessoas (incluindo membros da família e empregados), as de médio porte
aproveitam 12.625 pessoas, e as grandes utilizam 4.899. Na região meridional do Vale do Rio
Pardo, 56,7% das pessoas empregadas nas áreas rurais trabalham nas pequenas propriedades
(STÜLP, 2001; SILVEIRA E HERMANN, 2001).

Com o processo de internacionalização do setor do tabaco, houve uma crescente integração


das terras de pequeno porte do município de Rio Pardo ao sistema conduzido pelas
fumageiras. Por um longo período, as pequenas propriedades da região já se dedicavam à
cultura do tabaco Galpão, ou ‘fumo de corda’, o tradicional tabaco escuro produzido na
região. Antes do vertiginoso crescimento do mercado de cigarros, o fumo de corda era
largamente usado como matéria-prima para as cigarrilhas artesanais, com expressivo consumo
no Brasil. Com a introdução do tabaco Virginia pela BAT, em 1920, juntamente com outras
técnicas e inovações sociais, o fumo de corda deixou de ser um produto próspero, em especial
se considerarmos o rápido crescimento do mercado de cigarros e a demanda por tabacos mais
leves criada neste processo. À medida que os colonos adotavam novos procedimentos
propostos pelas fumageiras, a região passava por um processo de racionalização e
melhoramento tecnológico, alinhando-se às demandas do novo mercado. Após algumas
décadas, as culturas de fumo de corda eram pouco significativas, já que a maior parte das
pequenas propriedades de Rio Pardo estava envolvida no cultivo do tabaco Virginia. Hoje em

158
dia, a situação está próxima à total dependência, como sugerem muitos autores. Segundo
Stülp (2001), ao se considerar as pequenas propriedades (com até 20 ha.) na área, conclui-se
que a maior parte das famílias é quase totalmente dedicada ao cultivo do tabaco.

De acordo com a definição técnica e cultural (como entendida pelos mesmos e também pela
literatura), colono é aquele que usa a família como força de trabalho para desenvolver
diversas atividades primárias, normalmente em propriedades próprias, de pequeno porte
(KERSTEN, 1983; VOGT, 1997; MACIEL, 1994). De fato, a noção de colono é originária de
um momento em que os imigrantes eram claramente considerados uma classe social
diferenciada, pessoas recentemente chegadas do estrangeiro para viver de seu próprio trabalho
em um novo país. Os colonos, pessoas que falavam línguas estrangeiras, geralmente isolados
em territórios longínquos, cujo desenvolvimento estava sob sua responsabilidade, tinham de
administrar a produção, quase que diária, para as necessidades de toda a família, tais como
alimento, roupa, óleo, gordura, etc., num contexto de pouco avanço e disseminação
tecnológica. Historicamente, ser colono tem sido um título pejorativo; pois o colono é rude,
um fazendeiro pobre e pequeno, enquanto as pessoas poderosas, os estancieiros, possuíam
escravos e grandes propriedades. No início, o colono era freqüentemente associado às pessoas
rústicas das montanhas, no território do Rio Grande do Sul, aquelas que tinham que trabalhar
duro para sobreviver. Mais tarde, com o rápido desenvolvimento das antigas colônias de
imigrantes, como Santa Cruz do Sul, o termo perdeu algumas de suas conotações pejorativas,
mas ainda transmite significados associados à rusticidade das pessoas. Com o
desenvolvimento gradual de novas relações sócio-econômicas entre estas pessoas, os sentidos
associados ao conceito de colono certamente se modificaram, assumindo novas conotações e
dimensões. No entanto, hoje em dia o conceito de colono na região está intimamente ligado ao
envolvimento das famílias rurais com a produção de tabaco, em suas propriedades de pequeno
porte. Na prática, os colonos abriram mão de muitas das antigas e diversificadas atividades da
economia familiar para se dedicarem ao cultivo do tabaco, o que era visto como um meio
lucrativo de utilizar as terras. Com o desenvolvimento dos transportes e das comunicações no
século XX, o colono já não precisava ser auto-suficiente em sua propriedade; as famílias
poderiam plantar tabaco e vendê-lo, inicialmente aos comerciantes que também vendiam
outros bens necessários a elas, e depois às fumageiras, que ofereciam uma perspectiva de
renda com baixo risco. Desde a chegada dos imigrantes alemães, o tabaco foi considerado
uma das culturas de valor comercial mais atrativo, o que poderia contribuir para aumentar os
padrões de vida entre os recém-chegados. Hoje, na região, os colonos são os produtores de

159
tabaco que desenvolvem suas atividades em pequenas propriedades. Alguns deles
desempenham outras atividades comerciais, tais como leite e frutas. A maior parte deles
cultiva milho e cria animais, como vacas, galinhas e porcos em casa, com propósito de
subsistência.

Os seguintes dados, extraídos do censo do IBGE, podem nos dar uma imagem melhor acerca
das atividades desempenhadas pelos colonos na região do Vale do Rio Pardo. Se
considerarmos os 13.831 hectares de área total dedicada ao plantio de culturas temporárias
nas propriedades de pequeno porte da região (com até 10 ha.), 45% da mesma é utilizado com
o cultivo do tabaco, 32% com o milho (largamente usado como alimento para animais, mas
também para a subsistência familiar), 9% com mandioca (também de subsistência familiar e
para fins comerciais). O restante da área (11%) era ocupado com cultivos menores, tanto para
consumo próprio como para fins comerciais: arroz, melancia, cana-de-açúcar e feijão. Ao se
examinar as propriedades pequenas de área entre 10 e 20 ha., a situação hoje é similar: 31%
da área são usadas com o cultivo do tabaco, 38% com milho, 8% com mandioca, 10% com
arroz. O restante (13%) é ocupado com culturas menores: soja, cana-de-açúcar e feijão. Em
relação ao valor da produção, observa-se que o tabaco é, de longe, a produção mais relevante
em termos econômicos. Nas propriedades muito pequenas, ele totaliza 80% do valor
econômico gerado pelas famílias. Mandioca, melância e milho contribuem com,
respectivamente, 9%, 3% e 5%. Enquanto nas de pequeno porte, ele corresponde a 70%.
Mandioca, arroz e milho colaboram, respectivamente, com 11%, 6% e 7%. A despeito da
pequena significância, é preciso mencionar as culturas permanentes nas pequenas
propriedades. Em comparação às culturas temporárias (área total de plantio de 13.831 ha. em
propriedades muito pequenas), as permanentes – que somam 118 ha. nas mesmas – são bem
menos importantes. Estas culturas incluem banana, chá, laranja, pêssego e tangerina. De fato,
laranja e tangerina são culturas comuns nas fazendas, mas são em sua maioria destinadas à
subsistência ou pequenas transações comerciais.

As atividades de criação de gado, aves e porcos também são expressivas para a subsistência
dos colonos. Em geral, ao se examinar o valor destas produções, percebe-se que são de pouca
expressão em comparação às culturas temporárias, principalmente, o tabaco. Os seguintes
dados descrevem a situação. Ao se pensar os valores totais das produções animal e vegetal nas
propriedades muito pequenas da região meridional do Vale do Rio Pardo, apenas 14% provêm
da produção animal, dividida entre 7% de grandes animais, como vacas (corte e leite), 3%
com animais de médio porte como porcos, e 5% com animais de tamanho pequeno, como

160
aves e outro animais. Em tais propriedades, a produção vegetal representa 86% do valor total
gerado pelas famílias, com 81% concentrado nas culturas temporárias, especialmente o
tabaco. Nas propriedades pequenas, os valores não diferem muito: apenas 17% vêm da
produção animal, divididos em 9% com animais de grande porte, 3% com animais de médio
porte, e 5% com aves e outros animais pequenos. Nestas propriedades, a produção vegetal
representa 83% do valor total gerado pelas famílias, dos quais 76% estão concentrados nas
culturas temporárias, em especial o tabaco. Pode-se sugerir ainda que as atividades
relacionadas à produção animal sejam destinadas em grande medida à subsistência. De fato,
ao se pensar os dados sobre a renda com a produção agrária nas pequenas propriedades, nota-
se que apenas 9% provêm do comércio de produtos de origem animal, enquanto 85% estão
relacionados com produtos de origem vegetal. Por exemplo, a produção de leite em tais
fazendas da região é, em sua maioria, para consumo das famílias, pois apenas 35% dela,
aproximadamente, é vendida. De fato, como sugere a análise de Stülp (2001), a situação não
poderia ser muito diferente. A produtividade de produtos de origem animal nestas
propriedades da região é mais baixa que a média estadual. Apesar do desempenho crescente
na criação de porcos ao longo dos últimos anos, a região do Vale do Rio Pardo não chega a
ser especialista em suínos. O mesmo pode ser dito sobre a criação de gado. Em relação ao
leite, os dados mostram que apenas nas maiores propriedades da região – cujo tamanho varia
entre 100 e 200 hectares – a produtividade é maior que a média no estado; nelas, a proporção
do leite vendido é significativamente maior. Finalmente, vale a pena mencionar a importância
da silvicultura. Na região, o eucalipto é uma importante fonte de energia na produção de
tabaco, pois é usado como lenha nas estufas. Entretanto, tais atividades possuem pouca
importância nas propriedades pequenas. Particularmente, a silvicultura é típica nas
propriedades de maior porte da região, por esse motivo, para muitos colonos a lenha é um
gasto extra e pesado.

Desde seu estabelecimento, os colonos, que inicialmente se dedicaram à agricultura familiar


focada em culturas de subsistência e, com menor intensidade, em pequenas atividades
produtivas destinadas a propósitos comerciais, desenvolveram um corpo de conhecimento
relacionado aos desafios e às atividades diárias da propriedade. Particularmente, os esforços
de subsistência sempre incluíram a criação de animais, como aves e porcos, e culturas como o
arroz e a mandioca, de maneira que o conhecimento ligado a tais atividades vem sendo
essencial para a sobrevivência das famílias. Com a intensificação da produção de tabaco na
região e a chegada dos imigrantes alemães na colônia de Santa Cruz, o fumo de Galpão era a

161
única cultura cujo conhecimento estava relacionado às melhorias nos padrões de vida, por
permitir a obtenção de renda extra, usada no pagamento das dívidas e investimentos das
propriedades. Tal conhecimento foi aperfeiçoado com o tempo, principalmente após a
introdução dos melhoramentos técnicos pela BAT, nos anos 20. Nesta época, o conhecimento
usado para produzir o tabaco de Galpão, acumulado pelos colonos ao longo das décadas
precedentes, teve de ser parcialmente substituído pelas técnicas ligadas ao tabaco Virginia. De
fato, o instrutor era a pessoa a quem cabia a responsabilidade de ensinar aos colonos e ajustar
o conhecimento existente para que este refletisse as novas exigências técnicas; no entanto, os
colonos aprendiam à medida que se envolviam nas atividades diárias ligadas às culturas. Hoje
em dia, o conhecimento técnico desenvolvido pelos colonos inclui procedimentos que
caracterizam o processo de produção de tabaco como um todo; mais do que isso, os colonos
têm de lidar com o clima imprevisível, cujas peculiaridades devem estar associadas a várias
decisões no processo produtivo. Assim, o tempo é um componente chave das decisões
relacionadas à produção de tabaco. Atualmente, podemos afirmar que, implícito ao
conhecimento técnico dominado pelos colonos, existe a necessidade de se garantir a melhor
qualidade possível de tabaco, para que os colonos maximizem a renda disponibilizada à
família.

Em especial, o conhecimento acumulado pelos primeiros colonos, e ainda por muitos dos
colonos atualmente estabelecidos no município de Rio Pardo, foi construído com base nas
experiências postas em prática. A disseminação de escolas primárias, ou da educação formal,
é uma realidade relativamente nova na região. Como afirmam os atuais avós, o progresso
recente tirou as comunidades do relativo isolamento, como havia sido na maior parte de suas
vidas. Durante a maior parte do século XX, ir à escola era considerado um desafio quase
impossível, pois as instituições eram localizadas muito longe das propriedades familiares, e,
portanto, muito difíceis de serem freqüentadas. Simultaneamente, as crianças deveriam ser
apresentadas e integradas, por seus pais, às atividades da economia doméstica. De acordo com
a pesquisa realizada pela universidade local, a maior parte dos atuais colonos (89,9%), que se
dedicam ao plantio de tabaco não completou o ensino fundamental. Esta situação é
freqüentemente associada à falta generalizada de oportunidades que caracterizou outras
épocas, diferentemente da realidade atual. Entre estes colonos, 0,5% são analfabetos, 6%
completaram o ensino fundamental, 1,2% não completou o ensino médio, 2,1% completou o
segundo grau, 0,3% não terminou a faculdade e nenhum deles tem faculdade completa. Se
considerarmos os dados do IBGE relativos ao município de Rio Pardo, a situação parece pior.

162
A porcentagem de analfabetos era de 19,50% entre os maiores de 15, em 1980. Como
resultado de recentes investimentos em educação – parte dos programas governamentais –
esta taxa diminuiu nos últimos anos, alcançando 10,10%, em 2000, entre os acima dos 10
anos de idade (AFUBRA, 2004; BASSAN, 2003). No entanto, deve-se considerar a baixa
qualidade do ensino no Brasil, que pode disfarçar uma situação de baixa autonomia intelectual
entre os colonos. De fato, as estatísticas no Brasil consideram alfabetizados aqueles que não
conseguem fazer muito mais que assinar seus próprios nomes, como bem documentado.
Baseada nas percepções de uma senhora de 70 anos, mãe de um colono, a conversa a seguir
ilustra as dificuldades enfrentadas pelos agricultores décadas atrás, e o recente progresso
disponível para as gerações futuras.

ALBARDÃO – 6 DE JULHO DE 2005

Vilma: A gente tecia, viajava, vendia, naquele tempo, assim... Era bem diferente, a gente nem
tem como explicar. Sobre aquele tempo, né? Nada mais difícil!

André: Mas de lá pra cá, melhorou ou piorou? Ou é difícil falar?

Vilma: É difícil falar, né? Mas eu ainda tenho a impressão que melhorou.

André: Melhorou?

Vilma: Eu acho. Eu acho que a vida, assim, aí no meu modo de pensar, sei lá. A gente não
tinha oportunidade. Por exemplo, os mais velhos têm até terceira ou quarta série, porque,
antigamente, era muito difícil pra chegar até a escola, e as crianças quando nasciam, logo
que ficavam maior, já tinham obrigação de ajudar os pais na lavoura. Outra grande parte
destas pessoas foi aprender a assinar seu nome depois de velho. De primeiro, não existia
muito fumo, só existia lavouras de fumo, milho, arroz e mandioca; era basicamente o que
existia para as pessoas plantarem e sobreviverem.

André: As pessoas conseguiam sobreviver?

Vilma: Conseguiam., Os que não eram donos das plantações trabalhavam de empregados, e,
sendo assim, deste jeito, todos conseguiam sobreviver, e isso era geral aqui no interior.

André: Sei.

Vilma: Hoje, não, hoje a juventude tem oportunidade, quer dizer, embora que a gente tenha
essa vida assim, como nós aqui, né, uma luta pra sobrevivência, mas a gente sempre tem uma

163
maneira que pode aproveitar... Porque eu, na minha época, eu não tinha nem o colégio. Nem
o primeiro ano eu tinha.

Vilma: Então, eu acho que mudou muito, acho que é melhor. As oportunidades são mais, não
vou dizer pra todos... Pra quem quer aproveitar ou, não sei se é pra quem quer, ou se é pra
quem tem um pouco de oportunidade, a gente não pode dizer também, né? Mas, na minha
opinião, eu tenho a impressão que, pra mim, eu acho melhor hoje.

Entre os colonos, as propriedades podem ser consideradas como unidades da economia


básica, onde a vida acontece. Dentro destas unidades, suas famílias – geralmente compostas
pelo marido, a esposa e uma média de três filhos – são caracterizadas por alguns papéis
esperados. Em termos de divisão de trabalho nas propriedades, há tarefas que são em sua
maior parte realizadas pelas mulheres e outras que são exclusivas dos homens; e expressivas
variações neste quadro não são comuns. Em geral, as mulheres cuidam dos trabalhos
domésticos, tais como limpeza, roupas e cozinha. Elas também compram a comida necessária
para a família e pagam as contas mensais. Os homens trabalham nas lavouras e cuidam da
criação de animais, e também organizam e decidem tudo acerca dos plantios, administrando
todos os aspectos das lavouras. O trabalho masculino na agricultura e nas criação de animais é
considerado o mais pesado, o que inclui o trabalho direto com a terra e os animais, mas
também a organização e a tomada de decisões em relação aos cultivos – as quantidades de
aditivos químicos, e a gerência de todas as dimensões das culturas. Em muitas das famílias, os
homens não possuem um papel ativo na administração da casa e a mulher não desempenha
papel ativo na gestão dos negócios familiares. Contudo, é normal que as mulheres ajudem os
homens nas lavouras e nas criações de animais, em tarefas mais leves, possuindo assim uma
dupla responsabilidade. Em relação às crianças, os pais geralmente estimulam sua educação,
mas também são chamados para ajudar nas lavouras assim que completam 10 ou 11 anos. No
princípio, no entanto, a natureza dos trabalhos dos meninos e dos homens é diferente; os
meninos geralmente seguem os homens em praticamente todas as suas tarefas, assumindo o
papel de aprendizes. Todavia, não têm contato com aditivos químicos, pois estes são
considerados muito perigosos. As meninas, em geral, não trabalham diretamente nas lavouras,
mas deveriam ajudar suas mães nos trabalhos da casa, embora algumas delas não ajudem hoje
em dia. Particularmente, parece que tal divisão de trabalho é sistematicamente ignorada nos
períodos de classificação ou escolha do tabaco, dependendo das competências dos membros
da família. Quem souber classificar o tabaco é chamado para executar estas tarefas, pois,

164
apesar de serem relativamente leves, exigem muito trabalho. É normal que os mais velhos se
envolvam, pois acumularam bastante experiência.

A seguinte conversa entre o pesquisador e dois jovens de 18 anos, Alci e Mauro, e um homem
de 60, pai de Mauro, mostra a dinâmica do trabalho dentro das famílias:

PASSO DA AREIA – 11 DE JULHO DE 2005

Pesquisador: ... Os homens não cuidam da casa...

Alci: Não, não.

Mauro: Em princípio a casa é da mulher, né? Fazer comida, lavar roupa, arrumar a casa,
fazer pão, essas coisas tudo... Tudo é a mulher, né? Fazer as refeição, o café, janta, almoço...

Alci: Algumas pessoas, aí, alguns homens ajudam a lavar os pratos, né?

Mauro: É, a lavar a louça... Só servicinho mais simples, né?

Alci: Mais simples.

Mauro: Passar uma vassoura... Até que agora, né, porque antigamente, não. Taí o pai, né,
pai?

Pai do Mauro: É, o “veínho”, eu nunca peguei uma vassoura. Onde já se viu agora?

Mauro: Agora não, agora já é um pouco diferente.

Pesquisador: E, e o homem?

Mauro: O homem trabalha fora, né, o homem trabalha na lavoura. Lógico que a mulher
também ajuda, assim, na área rural, a mulher também ajuda; faz as duas partes.

Alci: Ela ajuda na lavoura... Também ajuda...

Pesquisador: Mas o serviço principal é do homem?

Mauro: É o serviço mais pesado, o serviço principal, é do homem... Na administração, né... A


única coisa...

Pesquisador: Administração, a mulher... a mulher não entra na administração...

Mauro: Da casa. Da casa é com a mulher, daí. A maioria dos casos é com a mulher. Comida,
assim, a compra da, da comida do mês é a mulher que faz, os gastos com conta de luz, água,

165
essas coisas, é com a mulher. O homem faz mais a administração na organização da lavoura,
custo do, dos insumos, do que vai gastar pra fazer uma lavoura.

Pesquisador: Tá. E, acontece de mulher fazer coisa de homem ou homem fazer coisa de
mulher, como... A mulher organizar a lavoura, ou dar palpite na lavoura, e o homem dar
palpite nas coisas da casa, não tem muito isso?

Mauro: Não, não.

Alci: É, a maioria é definido.

Mauro: É, a maioria. Lógico que tem casos a parte, né?

Alci: Mas tem casos, né, que as mulheres dão palpite, né, dão palpite.

Pesquisador: E os jovens? Quando uma criança nasce, assim, ela vai crescendo, vai
crescendo, o que é esperado dela na casa, na vida da família, e com que idade, mais ou
menos?

Mauro: O que é esperado? Digamos que... Não, o principal é estudar, né? Os pais sempre tão
ali, estimulando o estudo, né? O principal é estudar. E depois, assim, ter alguma formação.
Acho que os pais esperam muito de uma formação. Poder dar uma faculdade, se formar em
alguma coisa...

Pesquisador: Sei. E ajudar na lavoura? É esperado que se ajude na lavoura também?

Mauro e Alci: Também, também.

Pesquisador: De uma certa idade, que idade mais ou menos?

Alci: Que idade? Acho que a maioria aqui pra fora. Acho que começa a partir de uns dez,
uns onze anos, acho que já começa a lidar na lavoura.

Pesquisador: É? E que tipo de ajuda é essa? Assim, comparado com o trabalho da mulher, é
um trabalho mais leve, mais pesado ou igual o trabalho que a mulher tem na lavoura?

Mauro: Como assim, o ajudar dos jovens? Normal! ... a mesma coisa que o pai do jovem faz
lá, o jovem também faz. Aprende a lavrar, aprende a capinar...

Pesquisador: É? É o mesmo trabalho, então? Não fica o mais pesado pro pai?

Mauro: Só se for muito pesado mesmo, né, porque, quando ele tá aprendendo, aprende no
geral, assim, tanto o pesado como o leve.

Pesquisador: Entendi. Tá. E as meninas? As meninas começam a ajudar na casa, daí?

166
Mauro: Na casa, isso, na lida doméstica. Olha, atualmente a maioria delas nem trabalha na
lavoura. Só fica só em casa. Faz a lida da casa, né? No geral, assim... Isso quando faz...
Porque as que estudam, e depois já, já tem um estudo superior, sabe, uma faculdade, daí dá
isso... Têm muitas que nem sabem direito trabalhar em casa.

A próxima conversa, com um produtor de tabaco, ilustra o conceito de ‘colono’, em diversas


dimensões, como discutido até agora. Em especial, a família do colono entrevistado
desenvolve várias atividades de subsistência, e também o cultivo do tabaco. Notam-se as
singularidades das atividades produtivas desempenhadas pela família, e as habilidades
necessárias. Pode-se, também, observar a dinâmica social mais ampla na qual a família está
inserida; especialmente, os papéis típicos de seus membros.

ALBARDÃO, 14 DE MAIO DE 2005

Colono: O cara para ser um colono de verdade tem que criar de tudo, pato, marreco. Ovelha,
gado, cabrito, etc... Porque se por uma eventualidade, ele precisar de uma carne para comer,
ele vai ali no campo e mata o animal, e a carne já esta pronta.

André: Os animais servem para um evento especial?

Colono: Servem, quando tem uma festa de aniversário de alguém, chega bastante gente na
casa, as pessoas, para fazer um churrasco para comer, não precisam gastar muito para
comprar carne, ela só precisa ir ali, no campo, pegar um animal que esteja em condições de
ser carneado e matar o animal para comer.

André: Vocês fazem isso sempre?

Colono: Depende, isso aí só é feito quando chega uma visita, ou coisa assim.

André: Com que freqüência vocês abatem uma galinha para comer?

Colono: Depende do que a gente precisa; normalmente de três em três dias, ou quando
precisa; ao contrário da cidade, a pessoa se quer comer uma galinha tem que comprar; aqui
não, terminou a carne? Mata uma galinha...

André: O milho é utilizado para tratar os animais?

Colono: É, a plantação de milho serve para manter os animais, porque só com o pasto do
campo eles não conseguem sobreviver; outra cultura que é utilizada no trato também é a
mandioca, que é usada para ajudar na alimentação.

167
André: Que vocês fazem com esses porcos?

Colono: Eles são usados para o consumo nosso mesmo. Às vezes vendemos pra um vizinho, e
fazemos banha.

André: Como é feita a banha do porco?

Colono: O porco, quando tá gordo, ele é morto; depois é tirado todo o pelo dele; é colocado
água quente na pele dele, daí sai o pelo; depois é tirada toda a parte gordurosa de cima da
carne, logo depois tudo é picado pequenininho, e colocado para cozinhar no fogo; daí toda
aquela gordura vai se derreter e se tornar líquida, e vira banha.

André: Um porco pequeno assim dá pouca banha?

Colono: Dá. Se ele for muito pequeno tu não pode matar ele.

André: Um porco de 100 kg é pequeno ou grande?

Colono: É um porco que está pronto para matar, não é muito grande; para o porco não
fuçar, a gente coloca um arame no nariz dele.

[JUNTO À PLANTAÇÃO DE TABACO]

André: Vocês vêm todos os dias para cá?

Colono: Sim, a gente vem quando precisa, pra cuidar, pra não dar peste. Normalmente a
gente vem uma hora por dia.

André: Quanto tempo dura a repicagem, de um quadradinho para outro?

Colono: Mais ou menos de um dia por canteiro, e depois que ela tá pronta tem que só fazer o
tratamento dela. Esta muda aqui, que foi semeada lá pelo dia vinte de julho pode ser feita a
mudança dela para a terra que será o lugar definitivo dela. Ela precisa pegar sol pra acabar
o limo dela, e pra ela não crescer tanto, se ela estiver aberta ela fica mais resistente. O
tratamento é feito para acabar com as pestes que dão nas mudas. O processo é bem
artesanal...

[SOBRE A COLHEITA DO TABACO]

168
Colono: Às vezes, até, ainda quando tá colhendo, alguns deles tá descarregando aquilo que
já tá seco pra botar o outro que tá vindo da lavoura, né? Então lida mais um dia também, às
vezes até uma semana.

Colono: Duas semanas, três. Então, tu faz as contas, tem dez semanas. Cada coisa, né? Dez
semanas no mínimo. Se nós vende o fumo e não tá com a maturação ideal, se falha alguma
coisa, que não é a gente que escolhe, [...], fica quase três meses ali.

André: Sei.

Colono: Começo de novembro e às vezes até... É às vezes até meio de janeiro. Depende da
época do plantio. Às vezes não consegue plantar cedo porque choveu demais, muita seca, um
monte de fatores. A agricultura é assim, tu não tem uma norma, tu não tem... Não sei se vai
ser, se vai desenvolver, se vai fazer um inverno mais seco ou mais chuvoso, se vai ser mais
frio, mais quente o inverno, se o verão vai ser mais longo [...] tu não tem. O desenvolvimento
pra planta, se às vezes a gente planta numa época seca, e os primeiros dias de agosto, ou fim
de julho planta fumo, mas... Faz um agosto todo de frio, então o fumo fica parado na lavoura,
ele não desenvolve. Aí vai se desenvolver só em setembro. A agricultura depende do clima.

André: Do clima... Como vocês aprenderam isso, tiveram algum curso?

Colono: Não, isso a gente aprende tudo na prática, conforme a gente vai lidando a gente
aprende. É, é muito interessante a formação da gente, o preparo que a gente tem, o
conhecimento que a gente tem sobre a cultura, mas, também é dependente do tempo...

André: Mas como foi no começo?

Colono: No começo o instrutor ajuda o agricultor, ele passa algumas informações para o
plantador, e depois a gente vai se virando por conta própria.

André: Mas como é que vocês, como é que vocês conhecem o tempo? Como é que vocês
conseguem planejar?

Colono: Ah, tem as épocas de plantio... Que é as épocas, aquelas que são determinadas, né,
que nós já conversou.

Colono: Mas é que, às vezes, no começo da primavera, que devia de ser vinte de setembro, às
vezes a gente marca no calendário e começa; mas aí já começou antes, na realidade o tempo
começou antes, começou no inverno, e fez menos tempo de frio. Ou também pode fazer mais
tempo de frio, daí aumenta o inverno e diminui o verão. Assim.

169
Colono: Mas a gente planta, porque o fumo tem, mesmo que tu plante em etapas [...], ele não
vai deixar de dar fumo, só que ele vai desenvolver mais devagarzinho, né? A ação dele, de
crescer, o desenvolvimento dele vai ser menor quando tá frio.

André: Sei.

Colono: E, se atrasa, daí vai por conseqüência, o tempo de colheita vai ser mais tarde, um
pouquinho mais tarde, vai se terminar a colheita um pouquinho mais tarde. E daí, o milho,
que planta tudo junto, também vai ser mais tarde. E daí, pode acontecer também de ser
plantado mais tarde, este ano, por causa da seca, não chovia, não chovia, não dava pra
plantar.

Colono: Agora, plantamos tão tarde que provavelmente quando o milho tiver, ficar bom na
lavoura pra colher, a geada vai vim, e ele vai dar uma colheita péssima. Porque foi plantado
muito tarde, né? Ele vai ter o período de maturação dele lá no inverno já, e daí, vai pegar a
geada antes de ele estar bem maduro, e vai estragar.

André: E o milho, vocês vendem também no mercado?

Colono: Não. Quando sobra, né? A maioria é pro gasto, né? É pro porco, é pra galinha, pra
vaca. É mais pra subsistência...

André: Dá pra guardar?

Colono: Dá. A gente tem secadora, né. De milhos, de grãos. Seca ele, deixa ele numa
umidade ideal. Só tem que controlar as pragas, como o caruncho, o rato, que sai muito.

André: Tá.

Colono: E esse é simples, o controle. Sem maiores problemas. Além do milho, geralmente, a
gente produz ovo, carne, leite, banha, a gente transforma em... Põe o milho dentro da lata e
faz a transformação do milho. E o milho mesmo pode ser vendido, fazer uma farinha de
milho... fica bom.

Esposa do colono: Podemos almoçar?

Colono: Eu posso!

170
4.4 Produzindo tabaco

Certamente, as atividades relacionadas ao cultivo do tabaco são as que ocupam a maior parte
do tempo produtivo dos colonos em suas terras. O processo produtivo dura praticamente o ano
todo, concentrando um trabalho mais pesado ao final, ou nos meses de novembro, dezembro e
janeiro, quando muitas vezes utiliza-se mais do que a força de trabalho da família. A fim de
descrever o processo, a estrutura utilizada será a proposta por Vogt (1997), que sugere a
existência de oito fases durante o processo de produção e beneficiamento do tabaco, antes de
estar pronto para a venda como matéria-prima para as indústrias de cigarro.

A primeira fase da produção é o viveiro de mudas. Assim como acontece com outros vegetais,
as sementes de tabaco não são depositadas diretamente no solo onde irão crescer. É preciso
preparar canteiros onde as sementes possam germinar; mais tarde, elas são transplantadas para
o solo. Similares a piscinas, os canteiros são estruturas feitas de metal e plástico, com água na
parte interna até 15 cm da altura do chão. Eles possuem formas retangulares de
aproximadamente 25m X 2m, finas e compridas para que o colono possa trabalhar e alcançar
a área toda. O solo dos canteiros vegetais deve ser preparado, com antecedência, com
fertilizantes naturais e químicos, como uma etapa prévia e necessária à esterilização, quando o
brometo de metila é então utilizado. Primeiro, a terra é inserida em pequenos compartimentos
em diversas estruturas de isopor, semelhantes a colméias, que devem flutuar na água uma ao
lado da outra. Depois, o perigoso gás brometo irá esterilizar o solo, matando vermes,
microorganismos, fungos, etc. Seu uso requer procedimentos especiais, uma vez que não pode
se misturar ao ar da atmosfera. Entre tais procedimentos, é preciso cobrir toda a área a ser
esterilizada com plástico, para que o produto químico aja nas próximas 48 horas. Depois que a
proteção plástica é removida, a semeadura pode começar. Como as sementes são
extremamente pequenas, esta etapa exige a mistura prévia das sementes com água ou calcário,
para que possam ser espalhadas de maneira homogênea nos canteiros. Depois de espalhadas, é
necessário cobri-las novamente com plástico, para que a germinação seja protegida do mau
tempo. Além disso, a utilização da proteção de plástico preto cria um microclima que acelera
a germinação. Num canteiro de 50m², deve-se espalhar aproximadamente 36.000 sementes, a
fim de que 24.000 germinem, 12.000 sobrevivam e 8.000 sejam adequadas ao transplante.
Variando com as condições do tempo, de 15 a 20 dias após a semeadura, elas irão germinar;
depois de mais 45 dias, as mudas estarão prontas para o transplante. Durante estes 60 dias,
enquanto as sementes estão se desenvolvendo, os canteiros devem ser averiguados

171
diariamente, assim o colono pode tomar medidas corretivas necessárias à homogeneização do
crescimento das sementes: é preciso irrigar todos os dias; inseticidas, fungicidas e pesticidas
também são exigidos a fim de prevenir doenças. Particularmente, esta fase é caracterizada
pelos procedimentos de repicagem: como muitas das sementes não se desenvolvem, é preciso
reordenar sua distribuição nos pequenos compartimentos de isopor, para que os
compartimentos com sementes mal sucedidas recebam sementes que estejam germinando com
mais sucesso. Esta etapa é obrigatória, pois as sementes bem-sucedidas necessitam da maior
quantidade possível de água e nutrientes, e, em pequenos cubículos com muitas sementes
germinando, não se pode garanti-la. A fase de viveiro de mudas dura normalmente 60 dias, de
abril a junho, quando as sementes germinam e estão prontas para serem transplantadas ao
solo, onde devem permanecer até a colheita.

A segunda fase é a preparação do solo. Enquanto as sementes germinam, o colono deve


preparar o solo para onde serão transplantadas. Isto consiste em ará-lo, protegê-lo e fertilizá-
lo. Normalmente, a área cultivada na propriedade depende da quantidade de trabalho
disponível e também de sua infra-estrutura. É comum que uma família reserve dois hectares
ao cultivo de tabaco, pois a colheita pode ser beneficiada em uma estufa. Para áreas maiores,
o colono precisaria de uma estufa maior, ou mais de uma. Ao atingirem 15 ou 20 cm de altura,
as mudas estão prontas para o transplante. Elas são removidas dos compartimentos de isopor
para terem suas raízes lavadas com uma mistura de água e orthene, a fim de livrá-las de
doenças em seus primeiros dias. As plantas são, assim, colocadas definitivamente no solo,
verticalmente, com uma distância de 50 cm entre elas. Normalmente, três pessoas fazem este
árduo trabalho: uma faz os buracos no solo, com as distâncias necessárias, utilizando uma
régua de madeira; outro vem atrás com uma cesta de mudas, colocando-as nos buracos; e um
terceiro, realmente planta as mudas. Procedimentos extras são precisos, dependendo das
condições climáticas; por exemplo, se o solo está muito seco, é necessário regar as mudas a
serem transplantadas. Este é considerado um árduo passo, uma vez que os colonos têm de
permanecer em posições desconfortáveis durante horas a fio, o que pode causar dores.
Sessenta ou setenta dias geralmente separam o transplante da primeira colheita. Durante este
ciclo, muitos procedimentos de plantio são necessários. Uma vez as mudas transplantadas, é
obrigatória a inspeção diária a fim de que as plantas menos sucedidas sejam substituídas por
outras. Primeiro, é preciso arar o solo novamente e utilizar fertilizantes e inseticidas, após 15
ou 20 dias do transplante. Esta conduta, chamada ‘amontoa’, é realizada duas ou três vezes:

172
A finalidade da ‘amontoa’ é fazer a retirada das ervas daninhas e quebrar a crosta
que se forma na superfície do solo após as chuvas, afofando e arejando a terra,
facilitando a penetração do ar, da água e do nitrato de potássio ou Salitre do Chile
colocado em torno das plantas, até as raízes do pé de tabaco. Depois de feita [...], é
preciso fazer a capina, o que se dá com o uso da enxada. A planta de fumo necessita
de muito nitrogênio e potássio para a formação das folhas. O nitrogênio tem ação
importante no ciclo de crescimento (pique) e o potássio atua na armação da estrutura
foliar. O Salitre é composto por 15% de Nitrogênio e 14% de potássio, ou seja, o
adubo fórmula 15-0-14. Por isso existe a necessidade de aplicar salitre em cobertura
quando a planta precisa crescer e formar as folhas (VOGT, 1997, p. 143-44).

Outros processos incluem a utilização de fertilizantes, como o orthene ou o furadan, este


último usado antigamente. Eles também são usados duas ou três vezes, por precaução, contra
pragas. Quando a planta atinge 1,2m de altura, outro procedimento é necessário, chamado
‘capação’, ou a remoção das últimas folhas e da flor, com o intuito de reverter a energia que a
planta gastaria em sua reprodução. Isto é feito manualmente, em dias alternados, por a planta
não se desenvolver de forma homogênea. Depois de feita a ‘capação’, é preciso utilizar outro
produto químico nos caules expostos, com o intuito de inibir o crescimento de outros brotos.
Se este último procedimento melhorou consideravelmente a quantidade e a qualidade do
tabaco, ele também aumentou a insalubridade do processo, e isto porque tais produtos são
extremamente perigosos. As próximas atividades são associadas à colheita – uma etapa
complexa. Efetivamente, as folhas não se desenvolvem de maneira homogênea, é preciso
colhê-las em várias etapas. A folha está madura quando começa a mudar de cor, de verde para
amarelo. Em uma planta, as folhas mais de baixo amadurecem primeiro que as mais de cima,
o que requer vários esforços de colheita. As folhas colhidas tardiamente, ou cedo demais, não
têm valor comercial. Como explica Vogt (1997, p. 144):

A primeira colheita ocorre simultaneamente à capação. É a chamada ‘apanha do


baixeiro’, que são as folhas mais judiadas e de qualidade inferior que se encontram
rente ao chão. Depois as colheitas sucedem-se semanalmente. Ao todo, o número de
colheitas por roça fica entre sete e doze. Em cada apanhada são retiradas de uma a
quatro folhas de cada pé. Normalmente, a colheita se dá pela manhã, ficando o
‘amarrio’ para a parte da tarde.

O ‘amarrio’ faz parte da fase seguinte do processo produtivo, como proposto por Vogt (1997),
ou processo de cura. Depois de colhidas, as folhas são transportadas em carroças para um

173
abrigo próximo à estufa. Neste momento, todas elas devem ser amarradas com cordas a varas
de bambu ou de madeira, que serão colocadas na estufa. Este processo é chamado de
‘amarramento’, ou ‘amarrio’. Alguns colonos usam grampos de metal ou máquinas de
costurar para amarrar as folhas automaticamente. Assim que o ‘amarrio’ é feito, as varas são
colocadas na estufa para que comece o processo de secagem. Este é um dos passos mais
importantes no processo produtivo, e também um dos mais árduos. Para garantir a qualidade
do produto, o nível da temperatura deve ser mantido estável durante o procedimento, o que
exige atenção integral do colono (é o homem que comanda tal processo). Como todo o
processo de secagem em uma estufa cheia é contínuo, e dura cinco dias completos, o colono
não pode dormir mais de duas horas, caso contrário, o risco de problemas com a temperatura e
a ventilação torna-se muito alto. De fato, o colono deve prestar muita atenção à intensidade de
ventilação durante todo o processo, e também às fases de transição entre as diferentes etapas
da secagem dentro da estufa, quando o aumento ou a diminuição na temperatura devem
acontecer num ritmo específico. As estufas trabalham com o eucalipto como combustível, e a
manutenção da temperatura adequada requer constante suprimento de madeira. Como explica
Vogt (1997, p. 146):

Na cura são observadas três fases distintas: a primeira, a do amarelamento das


folhas, tem a duração de 1,5 a 2 dois, período este em que a temperatura é mantida
entre os 90 e 100 graus fahrenheit; a segunda, a da secagem da folha, dá-se entre 36
e 54 horas, tempo em que a estufa é mantida sob uma temperatura de 140 a 150 graus
fahrenheit; a terceira, que é a da secagem do talo (nervura central da folha), em que o
calor é elevado para 160 a 170 graus fahrenheit. Para se consumar a operação de
secagem do fumo são necessários cinco dias. Este processo é uma rotina que o
fumicultor repete semanalmente de 8 a 10 vezes por safra, durante os meses de verão.

O próximo passo dentro do processo de produção do tabaco é a classificação. Quando as


folhas saem da estufa, elas são deixadas durante uma noite inteira em contato com o ar, para
que ganhem novamente um pouco de umidade, e não fiquem quebradiças. Como os colonos
não podem realizar a colheita, a secagem e a classificação simultaneamente, o tabaco
permanece durante 30 a 50 dias no abrigo, para que após o processo de secagem terminado,
ele possa ser selecionado e classificado. Esta não é uma tarefa fácil, pois o colono deve
separar todas as folhas de acordo com 48 categorias diferentes de tabaco. Tais categorias
assimilam diferenciações ligadas à posição das folhas na planta, à cor, ao tamanho e à textura.
Na prática, os colonos já iniciaram este processo durante a colheita, pois ela acontece em

174
etapas, sendo que, em cada etapa, diferentes tipos de folhas são colhidos e secos. Quando o
tabaco deixa a estufa, as folhas já estão separadas conforme o tipo colhido na época. O
processo de classificação é geralmente feito pelo colono, ou o homem, que lidera todo o
processo de produção de tabaco. Escolher as folhas de tabaco exige especialização, já que o
colono não pode se permitir errar, pois os técnicos das fumageiras irão verificar tudo
novamente mais tarde. No entanto, é comum que todos os membros da família – incluindo as
crianças e os mais velhos – se envolvam nesta etapa do processo, por ser uma tarefa
relativamente leve. A etapa de classificação continua enquanto pilhas de folhas semelhantes
são arranjadas em manocas, isto é, em feixes de folhas similares amarrados por cordas ou
outras folhas. A fase termina quando as manocas são comprimidas em fardos, que recebem
etiquetas de identificação com o nome do colono, o peso do fardo e sua classificação, em
termos de 48 categorias identificadas abaixo. A tabela 8 descreve o critério de classificação:

Tabela 8

CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO DO TABACO

Subgrupo de Classes, de acordo Subclasse de Tipos, de Subtipos, de Restante


acordo com a com a posição na acordo com a acordo com a acordo com
disposição das árvore cor das folhas qualidade possíveis
folhas anomalias

FM – folhas em T – ponteiras, ou O – folhas 1 K SC –


manocas folhas do topo laranja fragmentos
de folhas
B – meeiras, ou
folhas da metade
2 G2
superior da árvore
FS – folhas L – folhas
C – semimeeiras,
isoladas limão ST –
ou folhas da
fragmentos
metade inferior da
3 G3 de caule
árvore

X – baixeiras, ou R – folhas
folhas da parte com cores
mais baixa da mistas, 50%
árvore marrom,
também com
coloração
laranja e

175
limão

Fonte: Vogt (1997, p. 149)

A combinação das categorias identificadas acima fornece 48 tipos diferentes de folhas de


tabaco, como mostra a tabela 9. Cada tipo tem um valor de mercado diferente.

Tabela 9

COMBINAÇÕES DE CLASSES, SUBCLASSES, TIPOS E SUBTIPOS DE


TABACO

T01 TL1 TR1 C01 CL1 CR1

T02 TL2 TR2 T2K C02 CL2 CR2 C2K

T03 TL3 TR3 T3K C03 CL3 CR3 C3K

B01 BL1 BR1 X01 XL1 XR1

B02 BL2 BR2 B2K X02 XL2 XR2 X2K

B03 BL3 BR3 B3K X03 XL3 XR3 X3K

G2 SC

G3 ST

Fonte: Vogt (1997, p. 149)

A última fase da produção de tabaco, tal como propõe Vogt (1997), é o transporte e o
beneficiamento, na fumageira. Assim que os fardos estão prontos, nas propriedades dos
colonos, eles devem ser transportados à fumageira, de acordo com o horário das companhias.
Como a produção é o resultado do trabalho de muitos colonos, as fumageiras precisam
racionalizar o transporte e o horário de entrega, a fim de evitar o tráfego intenso em frente a
seus prédios. A condução é oferecida pela fumageira. Na prática, isso é visto como

176
extremamente conveniente ao colono, pois poucos teriam meios de conduzir a produção para
a cidade de Santa Cruz. As fumageiras patrocinam um esquema de racionalização do processo
produtivo, o que inclui os recursos necessários à produção do ano seguinte – fertilizantes,
pesticidas, calcário, etc. – que também são entregues com o mesmo caminhão que irá apanhar
os fardos. Como afirmam os colonos, este sistema facilita suas vidas, pois o percurso até a
cidade para adquirir tais materiais é, geralmente, difícil. Contudo, ao aceitar este sistema de
entrega de materiais, os colonos têm de pagar o preço determinado pelas fumageiras; trata-se
do sistema integrado de produção. Ao entrarem nas fumageiras, os fardos são recebidos por
um empregado especializado na classificação. Ele procede a reclassificação do tabaco. Trata-
se de um momento crucial para o colono, que acompanha este procedimento, pois essa
classificação oficial do tabaco irá definir a renda familiar. A categorização proposta pelo
colono não necessariamente coincide com a da fumageira, o que traz surpresa e,
constantemente, desagrado ao colono. À medida que ela é definida, o preço pago ao colono é
aquele previamente combinado pela fumageira e os representantes dos produtores, pelas
categorias entregues.

Assim que o tabaco foi recebido pela fumageira, ele deve passar pelo processo de
beneficiamento para que possa ser enviado aos mercados consumidores. Por se tratar de um
produto perecível, ele necessita de tratamento químico para que não adquira doenças ou
fungos. Ele é imunizado, esterilizado e armazenado em condições próprias de temperatura e
umidade, a fim de manter sua textura. O próximo passo é a remoção dos caules. Uma máquina
é utilizada neste procedimento, embora, em alguns tipos de tabaco, o trabalho manual ainda
seja necessário. Enquanto aguarda para ser mandado para os mercados consumidores, o
tabaco é novamente arranjado em fardos ou em caixas, e armazenado em depósitos
apropriados. A tabela 10 sumariza as fases que compõem o processo de produção do tabaco.
Embora um pouco diferente do proposto por Vogt (1997), as fases da tabela são equivalentes
àquelas que compõem o esquema do autor. O ‘X’ sinaliza os momentos mais intensos de cada
fase da produção, e o ‘--' mostra a variação de períodos de cada uma delas, quando ainda pode
haver quantidades significativas de trabalho.

Tabela 10

FASES QUE COMPÕEM O PROCESSO DE PRODUÇÃO DO TABACO

Atividades Abr. Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Jan Fev Mar

177
Viveiro de -- X --
mudas

Preparação do -- X X --
solo

Fertilização -- X --

Transplante -- -- X -- --

Procedimentos -- -- X X -- --
de cultivo

Combate à -- X -- -- -- -- -- X X -- --
doenças

Colheita X X X --

Secagem X X X --

Classificação -- X X --

Transporte e -- X X --
beneficiamento

Fonte: CEDIC. Perfil setorial do fumo. Secretaria de Indústria e Comércio. Governo do


Estado do Rio Grande do Sul e AFUBRA.

A produção de tabaco no Vale do Rio Pardo acontece dentro de um contexto de agricultura


familiar. Como discute Prieb (2005), tal conceito é intrinsecamente complexo, e suas
particularidades estão relacionadas ao processo histórico no qual este fenômeno está
embebido. De uma maneira geral, agricultura familiar é o conjunto de atividades
desempenhadas pelos membros da família, que também detém a propriedade e os meios de
produção. Neste caso, a agricultura familiar é aquela desenvolvida dentro dos limites da
propriedade, geralmente pequena em termos de área, pelos membros da família dona das
terras. De fato, como discutem outros autores, a orientação econômica típica no contexto da
agricultura familiar no Brasil é dirigida ao mercado, com a agricultura de subsistência vista

178
como atividade complementar, mas não como base das atividades familiares diárias
(WANDERLEY, 1999). Na prática, as famílias, que exercem agricultura na região do Vale do
Rio Pardo, desenvolvem dois tipos de ofícios: a produção de tabaco, entre outros produtos,
para os mercados consumidores, e a cultura de subsistência, em especial, produtos como leite,
milho, frutas, aves, gado, etc.

Como também apontado em estudos anteriores sobre o sistema de produção de tabaco, as


famílias produtoras são encorajadas – implicitamente por suas contingências diárias e
explicitamente pelas fumageiras, através dos instrutores – a desenvolverem atividades de
subsistência, a fim de alcançar níveis mais altos de qualidade de vida (PRIEB, 2005;
LIEDKE, 1977; VOGT, 1997). No entanto, as atividades produtivas não são rigorosamente
desenvolvidas com base no receituário básico dos negócios, segundo o qual se devem
maximizar os lucros e minimizar os gastos. Ao contrário, a falta geral de educação formal na
região pode estar associada a problemas comuns na esfera das propriedades e da
administração dos cultivos. Como sugerem os líderes, apenas uma pequena porcentagem de
colonos consegue realmente fazer algum dinheiro com o cultivo de tabaco por serem
“administradores talentosos de suas propriedades”. Em outros casos, mesmo tendo o
instrutor a responsabilidade de ensinar e orientar os colonos, problemas com a cultura do
tabaco são normais, tais como plantar em épocas erradas, errar os cálculos das quantidades de
aditivos, não esperar o momento certo para recobrir a terra, desperdiçar material, etc.
Particularmente, as culturas de subsistência são desenvolvidas dentro do quadro tradicional de
conhecimento técnico, o que exclui tentativas mais sofisticadas de maximizar a renda através
do comércio de excedentes. Portanto, as atividades tradicionais de subsistência dos colonos
(tais como leite e criação de porcos) geram excedentes, que são vistos como bens extras pelas
famílias; em geral, são comercializados individualmente ou trocados pelas famílias. Não
existem cooperativas ou outros meios capazes de aumentar os lucros.

Na prática, o modo como o cultivo de tabaco ocorre varia nas regiões. Dependendo da
quantidade de trabalho, do tamanho e qualidade das terras, o sistema de papéis que permeia a
agricultura familiar na região pode extrapolar os limites da família e, em muitos casos, os
limites da propriedade. Em tal contexto, produzir tabaco pode ser, para alguns, o ganha-pão e
a sobrevivência, assim como para os diaristas. Para outros, pode ser basicamente confiar em
outras pessoas, como para os parceiros do sistema local conhecido como meiar. Em vez de
trabalho árduo, para alguns, a produção de tabaco é um modo de se aumentar a renda da
terra. Para a maioria das pessoas, produzir tabaco é uma tarefa coletiva, penosa, que exige

179
responsabilidade, e que está intrinsecamente ligada às suas percepções de unidade familiar e
sobrevivência.

Além do modo tradicional de se produzir tabaco, dentro dos limites da propriedade e baseado
na força de trabalho familiar, existe importantes variações que aumentam as opções de
arranjos produtivos e das estratégias de sobrevivência disponíveis na região. Efetivamente,
20% dos produtores de tabaco não possuem terras e, para eles, a produção incorpora custos e
responsabilidades extras. Segundo os colonos, é possível utilizar as terras de outro para se
produzir tabaco, de acordo com um sistema chamado “meiar”. O dono das terras dá ao colono
autorização de uso das mesmas e disponibiliza a infra-estrutura, incluindo a estufa, para que o
colono se envolva em todas as fases de produção. Ele assume toda a responsabilidade
relacionada à produção, e seu sócio – o proprietário das terras – fica com 50% dos lucros. O
colono deve separar metade da quantidade total obtida com a venda da produção às
fumageiras; o dinheiro entra na conta bancária três dias após a venda da produção para as
empresas, e o produtor deve retornar ao proprietário das terras sua parte nos negócios.
Algumas pessoas têm problemas com seus associados. Há histórias de sócios que
trapacearam, roubando a parte do outro nos negócios. Normalmente, os sócios não assinam
nenhum tipo de contrato formal, mas acreditam no relacionamento de boa-fé. O sistema de
“meiar” é típico na região do Rio Pardo, pois as pequenas propriedades estão cercadas por
grandes e médias propriedades, cujos donos não as utilizam necessariamente. Para estas
pessoas, trata-se de uma maneira de aumentar o uso da terra, sem assumir responsabilidades
significativas. Para os colonos sujeitos ao sistema – que são muito pobres e não possuem
terras suficientes (outras vezes, não possuem terra alguma) – trata-se de uma estratégia de
sobrevivência, entre outras. Para outros, que possuem terras, o sistema de “meiar” pode ser a
possibilidade de se produzir mais e, assim, aumentar os padrões de vida da família.

Para outras pessoas, a produção de tabaco é uma maneira de maximizar o lucro da terra.
Principalmente, a estrutura de possessão de terras em Rio Pardo é caracterizada pela
existência de grandes propriedades, de fazendeiros que desenvolvem, entre outras atividades,
plantações de soja, arroz e criação de gado. Como discute Stülp (2001), 63% das propriedades
são consideradas pequenas, com até 20 hectares; 30% são consideradas médias, com
tamanhos que variam entre 20 e 200 hectares (com grande concentração na categoria de 20-50
hectares, totalizando 18,7% do número de propriedades); e 6% são consideradas grandes, com
mais de 200 hectares. Apesar da pequena significância em termos de números absolutos de
propriedades, ao se imaginar a área total, as grandes fazendas ocupam 63,3% do total, ou

180
436.212 hectares. Muitos estancieiros não utilizam partes importantes de suas terras, enquanto
que muitos colonos possuem poucas terras, que não são suficientes para um cultivo proveitoso
do tabaco. Nesta conjuntura, muitos colonos alugam extensões de terras dos fazendeiros para
que possam desenvolver atividades produtivas. Este sistema é chamado arrendamento. Com
efeito, tal sistema está intimamente ligado à percepção do poder de produção dos colonos. O
colono menor, ou “mais fraco”, é aquele que não possui muita terra, e por isso deve alugá-la,
ou arrendá-la, a fim de produzir. Assim, eles têm um gasto a mais com a produção de tabaco,
o aluguel das terras. Este custo diminui os lucros obtidos pela família, abaixa o nível de vida,
e gera, com freqüência, mais dependência em relação às fumageiras. Diferentemente, o
colono maior, ou “mais forte”, possui terras suficientes e não precisa assumir muitos gastos
extras; quanto “mais forte” o colono, mais recursos ele possui em suas próprias terras, a
nenhum custo ou custos mais baixos; em especial, a lenha é um item de custo significativo.

Outra estratégia de sobrevivência muito importante é assumida pelos “diaristas”. Trata-se de


pessoas que vendem sua força de trabalho aos colonos, que geralmente necessitam de ajuda
em diversos momentos da produção de tabaco. Como o próprio termo diz, os diaristas vendem
seu trabalho em uma base diária, recebendo dinheiro do colono ao final do dia. Eles não têm
responsabilidades com a produção, apenas vendem sua força de trabalho nas épocas mais
cheias do ano, ganhando relativamente bem, o suficiente para ter uma vida considerada
mediana e regular, durante todo o ano. Em realidade, eles trabalham bastante, já que a
quantidade trabalho extra, que os colonos possuem nos tempos mais movimentados, é grande;
entretanto, o colono fica com as responsabilidades mais sérias, tais como lidar com o processo
de secagem, que os obriga a ficarem acordados a noite inteira. Há um sentimento, entre os
colonos, de que ser um diarista é na verdade um bom negócio: pelos valores pagos,
considerados altos, e pelas poucas responsabilidades que a ocupação possui, sem dívidas,
contas ou mau tempo, etc. Na verdade, a região é um paraíso para os diaristas, pois há sempre
trabalho para todos. De fato, cerca de 200 pessoas vêm anualmente das vizinhanças para
trabalhar nas colheitas, embora os colonos prefiram diaristas locais, pois estas pessoas já
possuem laços com as famílias e evitam problemas como o roubo nas propriedades. Alguns
diaristas possuem alguma terra, onde estão localizadas suas casas; outros possuem um pouco
mais, onde plantam vegetais, por exemplo. A maioria não possui terras suficientes para se
plantar tabaco. Os diaristas ganham dinheiro de acordo com uma tabela regular de valores,
que é largamente aceita na região; estes valores são acordados com os representantes, e, como
a demanda de trabalho é sempre alta, há pouca pressão para que os valores diminuam.

181
A seguinte conversa com um técnico do governo ilustra o tipo de problemas que muitos
colonos enfrentam quando plantam tabaco. Ele tem 34 anos, e concluiu o segundo grau;
trabalha para o governo municipal de Vera Cruz, mas cresceu em Albardão e, junto a seus
pais, sempre viveu no distrito. Sua família possui um pedaço um pouco maior de terra, que
aluga aos produtores através do sistema de arrendamento.

ALBARDÃO, 12 DE JUNHO DE 2005

PROPRIETÁRIO DE TERRA: É, eu acredito que as empresas chegaram numa certa infra-


estrutura, assim, de clientela, que nós não temos muito o direito de expandir, e eles começam
a, a apertar... Mas tem outros fatores, oitenta por cento do pessoal que planta fumo
sobrevive.

ANDRÉ: É?

PROPRIETÁRIO DE TERRA: Vinte por cento vive... Consegue ganhar um dinheirinho,


consegue construir uma casinha melhor, ter uma terra, né?

ANDRÉ: Oitenta por cento, você acha que sobrevive...

PROPRIETÁRIO DE TERRA: Sobrevive. Pega a graninha, né, mas não muda de perfil... A
vida toda. Quando percebeu, o dinheiro, aquilo já tá gasto, já tá comprometido, né, tu não
tem uma casa... É só uma manutenção da vida, digamos.

[...]

[FALANDO SOBRE 80% DOS COLONOS]

PROPRIETÁRIO DE TERRA: Aí você falou de formação, né? Você perguntou pra mim como
é que é a formação dos agricultores. Eu acho que, eu, pra passar no concurso público, eu tive
que fazer uma prova, pra ver se eu tinha [formação], né... Então eu fui selecionado no
processo de seleção. Eu acho que eu preenchi esse critério de seleção, né, os requisitos
mínimos pra eu exercer aquela função...

ANDRÉ: Sei.

PROPRIETÁRIO DE TERRA: E depois, se fossem ver o produtor rural, porque produtor


rural é um trabalho, né? Tem que administrar os negócios... Se fossem fazer uma seleção, pra
ver se eles têm aptidão, se têm condições, se têm formação, assim, pra administrar o negócio,
eu acredito que quem tem um grau de escolaridade baixa, pessoa tem pouco conhecimento,

182
eu acredito que seriam reprovados, por exemplo. Veriam que fulano não tem condição
nenhuma de ser produtor rural...

ANDRÉ: Entendi. Entendi.

PROPRIETÁRIO DE TERRA: Acho que grande parte estaria reprovada. Não teria
condições...

PROPRIETÁRIO DE TERRA: Por que que vinte por cento consegue ganhar dinheiro?
Porque, sei lá, têm aquele dom de administrar a propriedade, eles plantam na hora certa,
utilizam as técnicas corretas, sei lá, sabe, têm, assim, um bom desempenho na propriedade,
eles fazem em alta produtividade associada à qualidade do produto, né?

ANDRÉ: Sei.

PROPRIETÁRIO DE TERRA: E eles conseguem ganhar dinheiro. E oitenta por cento não
administram corretamente, têm uma produção baixa, qualidade baixa do produto, e aí...

ANDRÉ: Então, você tá associando o insucesso, digamos, desses oitenta por cento, à falta de
qualificação mesmo?

PROPRIETÁRIO DE TERRA: Claro que sim, com certeza. Agora tu plantou melhor, assim.
Às vezes planta fora de hora. Planta bem mais. Falta... aí tu planta como pode, não tem
também estrutura financeira pra bancar a lavoura. E o dinheiro que vem do banco, que a
firma dá, é insuficiente...

ANDRÉ: Sei, aí fica preso nas dívidas...

PROPRIETÁRIO DE TERRA: E aí tu perde o plantio, tu plantou um pouquinho tarde o fumo,


[...] depois tu perde a lavoura porque tu não tem a estrutura, o financeiro, às vezes até a
estrutura, assim... Tu já plantou mais do que a tua estrutura permite, né?

ANDRÉ: Sei.

PROPRIETÁRIO DE TERRA: E aí pra tu poder... Mal tu vai ter a estrutura suficiente. Agora,
se for plantar sem condições, nunca vai ganhar, né? Às vezes é até traído por um palpite:
“Dá pra aumentar a produção aí...”; “Ah, mas eu quero diminuir”. Então eu vou ter
interesse em diminuir a planta, não vou conseguir [aumentar a produção], fulano. “Prometo
mais dez mil aí, te dou cinco, dez mil reais, paga cinco anos sem juros, cara”.

ANDRÉ: Sei.

183
PROPRIETÁRIO DE TERRA: E aí o cara, sem dinheiro, ele aumenta o plantio, só que ele
não tem estrutura pra aumentar o plantio, né? E aí aumenta e aí vem a dificuldade, né? Vem
o endividamento, né?

ANDRÉ: Os vinte por cento que têm mais qualificação, conseguem planejar o negócio
melhor, conseguem ganhar mais com o negócio. Tá...

PROPRIETÁRIO DE TERRA: Porque o fumo, assim, a gente aprendeu, quando tu faz até
quase quinze arrobas por mil. Por mil pés de fumo... E, normalmente, quando chega nessa
alta produtividade, é que o fumo também é de alta qualidade, são duas coisas que são muito
aliadas; se teve uma superprodução, é que o produto é de boa qualidade, se teve baixa
produção, é que o produto é de baixa qualidade.

4.5 As comunidades rurais de Rio Pardo

Albardão é um dos sete distritos rurais do município de Rio Pardo; na verdade, é o maior da
região. A comunidade é composta por propriedades de tamanhos diferentes, cujos donos
originais foram inseridos em diferentes posições da estratificação social em épocas passadas.
Hoje em dia, grandes fazendeiros, empregados do governo, pequenos negociantes locais,
colonos e diaristas dividem o mesmo distrito, e seu padrão de vida é mais similar que as
diferenças nos tamanhos de suas terras podem sugerir. Em Albardão, a principal atividade
econômica é certamente o tabaco, embora outras culturas também sejam desenvolvidas nas
propriedades maiores. Desde a introdução da cultura do tabaco, houve um aumento nos
padrões de vida locais, entre a população mais pobre, não apenas em Albardão. Segundo os
mais velhos, no passado, a distância entre o topo e a base do sistema de estratificação social
era bem maior do que hoje em dia. Os mais ricos – os estancieiros, poderosos fazendeiros –
possuíam um padrão de vida muito melhor em comparação aos miseráveis que viviam ao seu
redor ou trabalhavam para eles. Com a introdução do tabaco, a população pobre se tornou um
pouco menos pobre, em termos relativos. Seu cultivo permitiu uma diminuição generalizada
na pobreza e, atualmente, é possível afirmar que não há família morrendo de fome na região.
Hoje, o período de melhoramentos nos padrões de vida terminou, pois o conforto extra gerado
pela produção de tabaco é muito limitado; as pessoas possuem um padrão de vida regular, e a
pequena ascensão social viabilizada pelo tabaco esgotou-se. Algumas das antigas grandes

184
propriedades da região foram divididas em porções de terra menores, outras foram herdadas,
mas basicamente nenhum proprietário se tornou um fazendeiro poderoso nas últimas décadas.

A comunidade vizinha é chamada Passo da Areia. Em comparação a Albardão, a comunidade


de Passo da Areia é historicamente composta por pessoas mais simples, que são mais pobres,
mas que desenvolveram – com base em seus escassos recursos – uma economia mais
diversificada. Atualmente, Albardão é tida como uma comunidade cuja economia estagnou
há 15 anos, enquanto Passo da Areia tem experimentado uma significativa melhora em sua
qualidade de vida, embora ainda não apresente melhores indicadores em comparação a
Albardão. Em Passo da Areia, as famílias são mais pobres, a população apresenta menores
níveis de educação formal, e as propriedades são menores; no entanto, elas conseguiram
melhorar suas condições de vida dando atenção a outros cultivos, que desenvolveram para
subsistência, e cujo excedente também é vendido. De qualquer maneira, o tabaco também é o
ofício mais importante ali, seguido por tangerina, mandioca, melancia e outros. O hábito de se
organizar em associações também é algo recente em Passo da Areia; entretanto, da mesma
maneira que Albardão, os moradores enfrentam vários problemas ao articularem iniciativas
coletivas. Há um sentimento histórico de discriminação, em Albardão, em relação às pessoas
de Passo da Areia, como percebido por moradores desta comunidade. Tal sentimento é
explicado como relacionado ao fato de que Passo da Areia sempre foi percebido como um
grupo ignorante e de população pobre e rude pelos habitantes de Albardão; também há raízes
na discriminação racial, que é muito forte na região. Passo de Areia teve alguns quilombos –
comunidades de escravos negros libertos – enquanto Albardão foi tradicionalmente uma
comunidade de brancos. Recentemente, líderes comunitários de Albardão envolveram-se em
projetos de emancipação do distrito da cidade de Rio Pardo; este projeto é baseado na
hipótese do maior dos distritos rurais da cidade possuir todas as condições para emancipar-se
dela. A seguinte conversa, entre dois colonos de Passo da Areia, descreve alguns conflitos
entre as duas comunidades:

PASSO DA AREIA, 5 DE MAIO DE 2005

Noeli: [...] As comunidades, elas são formadas mais ou menos assim, ó, por grupos sociais
que... Há vinte anos atrás a comunicação era muito pouca.

André: Sei.

185
Noeli: Os distritos, eles viviam integrados, eles entre si. Casando dentro, não indo na festa do
outro... Então, vamos dizer, aqui nós temos o Passo da Areia, temos, entre o Albardão e o
Passo da Areia, temos o Passo da Taquara, e depois vem o Albardão. No meu casamento, há
trinta e quatro anos, foi o primeiro rapaz do Passo da Areia que foi no Albardão e dançou
com alguém num bailezinho no Albardão.

André: Sério?

Noeli: Não tinham nem se conhecido... Então, é quase uma cultura, uma região se sentindo
mais superior culturalmente, financeiramente... Essa nossa região aqui sempre foi
considerada... Não é, Roberto?

Roberto: É, pitangueiro. É verdade!

Noeli: ...considerada um povo humilde, um povo... Chamavam de pitangueiro, de batateiro...


Bem humilde, bem humilde. Até no linguajar e tudo. O Albardão, Passo da Taquara, os
Pântano, que depois eu vou falar das igrejas, que é das terras dos coronéis, vamos dizer
assim... Então, olha, o Roberto me entende...

Roberto: Sim.

Noeli: ...porque eu falo, era quase... era quase aqui como um quilombo branco. Aí eu dizendo
essa palavra aqui, é quase um quilombo branco, um tanto rejeitado pelas comunidades em
volta, porque era um povo humilde, de palavreado simples, então...

André: Mas o que o povo lá tinha de diferente?

Noeli: Eles tinham um pouco de cultura alemã, eles vêm mais do açoriano... E a fração de
terra era maior, tinha mais poder aquisitivo e tinha menos densidade demográfica.

André: Sei.

Noeli: Só que eu vi, nesses anos, em trinta anos, eu vi uma coisa. Se tu pegar hoje essa região
pobre, essa região pobre foi buscar. Ela tem gente por todo o estado do Rio Grande do Sul,
como eu te disse, tem na RBS [canal de TV], tem no banco, tem... na Prefeitura tem 20, 30%
do funcionalismo público. E tem gente na faculdade, hoje... Viu, ali tem mais que uma moça
na faculdade. E se tu entrar no Albardão, que é um povo do padrão que se sentia melhor...
tem menas... Porque esse povo aqui sempre foi trabalhar lá fora, né? Porque aqui não tinha...

Roberto: Não tem...

186
Noeli: Ele sempre foi na fazenda de gado, ele foi na cultura de arroz, ele foi plantar pinhos
em Santa Catarina, ele foi apanhar milho em Santa Rosa, vindo da Argentina, ele sempre foi
lá porque a esposa fica em casa e o homem vai buscar trabalho. E uma região como
Albardão, ali tem homem que casou e morreu e nunca dormiu uma noite separado da mulher.
Ele não tem aquela cultura de buscar.

André: Sei.

Noeli: Só que sempre se sentindo...

Roberto: Poderoso.

Noeli: ...tem as casa mais bonita, eles se sentem um povo melhor. E eu nasci dentro, com um
pai de lá, uma mãe daqui, então, eu conheço. Como eu te disse, que eu cheguei em [19]65
aqui, ali na região do Vale dos Pântanos, onde eu me criei como jovem, indo nos bailezinhos,
danças, não tinha fogão de lenha, de ferro, fogão de tijolo. Então esse povo cresceu, esse
povo desenvolveu...

Noeli: [...] mas existe ainda, dentro da mente daquela região, que aqui é mais inferior, que é
mais humilde...

A vida nas comunidades é muito limitada pela escassez de recursos disponíveis. Como as
pessoas apontam, o distrito rural de Albardão possui um vilarejo, que consiste numa longa
avenida (ou estrada) com casas mais ou menos distantes umas das outras; algumas se
encontram a quase 500 metros de distância da outra, já que a maioria das propriedades é
formada por longas extensões de terra em frente à estrada (Na verdade, esta é a única rua que
eu chamaria de ‘rua’ no vilarejo, de acordo com meus parâmetros urbanos, embora não seja
asfaltada e, à noite,a iluminação seja pouca). O centro do vilarejo, de acordo com seus
habitantes, é composto por alguns quilômetros de estrada em que as casas estão mais
próximas umas das outras; a periferia começa quando as casas se tornam mais distantes uma
das outras, a qualidade da rua é menor (ela é mais esburacada) e há cada vez menos
iluminação. No centro, encontramos as casas da população, incluindo colonos e diaristas. Os
diaristas geralmente moram em casas mais simples, em porções menores de terras, suficientes
apenas para a casa; enquanto os colonos possuem propriedades maiores. A área central
também possui várias bodegas, ou pequenos armazéns, onde a população pode comprar itens
de conveniência e também, ou principalmente, bebidas e jogos. Também é na área central que
se localizam a igreja, o pavilhão público e um salão de danças privado. O pavilhão público,
próximo à igreja, é o local para encontros comunitários, tais como eventos políticos e festivos,

187
e outras cerimônias como funerais, casamentos, etc. Este pavilhão é mantido com os esforços
da associação de produtores e dos grupos da igreja liderados pela autoridade católica local.

Além da produção de tabaco, podemos identificar, na comunidade, uma variedade de outras


ocupações. Entre estes empregos, alguns são tipicamente femininos enquanto outros são
voltados aos homens, refletindo os papéis históricos esperados no grupo. Entre as ocupações
femininas, encontram-se: costureiras, vendedoras ambulantes de roupas e cozinheiras. O tricô
parece ser o maior hobby, às vezes lucrativo entre as mulheres, que também se ocupam dos
afazeres domésticos e trabalhos secundários nas plantações. Por exemplo, uma mulher pode
começar a fazer vestidos de tricô para suas filhas e pode, ocasionalmente, vender alguns deles
para outras famílias. A mesma coisa acontece com a culinária, que pode suprir eventos locais
com bolos e tortas. No caso dos homens, a agricultura é certamente sua atividade mais
importante. Em alguns casos, além destas atividades, e da criação de gado, o colono pode
gerenciar um açougue ou um armazém, normalmente localizado em sua propriedade, de frente
para a rua. Mais raramente, o homem pode apenas dirigir um armazém ou possuir outra
pequena empresa, como um salão particular para festas. Os salões particulares são
construções espaçosas usadas para bailes – grandes festas promovidas na região, com música
ao vivo e propósitos comerciais. Assim como acontece com a agricultura, a administração
destes negócios é de responsabilidade dos homens; as mulheres devem cuidar das casas. Na
comunidade, entre as outras opções de carreira, ou possibilidades de se auferir renda,
encontramos: a aposentadoria, empregos públicos, tornar-se político, o trabalho como safrista
nas fumageiras, trabalho como empregada doméstica, entre outros.

Efetivamente, o domínio masculino é uma característica da comunidade. O homem é a


autoridade na casa; e a mulher, sua assistente. Na maior parte dos lares, o homem sempre tem
a última palavra, embora alguns deles afirmem ouvir suas esposas antes de tomarem uma
decisão. O negócio principal da família é um assunto basicamente sob a responsabilidade
masculina (Certa vez, perguntei algo a uma mulher num armazém e ela respondeu que não
poderia interferir). Alguns homens reforçam sua posição de poder contando piadas, por
exemplo. Certa vez, um homem disse que ouvia sua mulher – ele era adepto do diálogo em
casa – mas era ele quem sempre dava a última palavra nos impasses. Em geral, a autoridade
masculina é freqüentemente justificada com o argumento de que é ele quem domina as
atividades econômicas em casas. Este predomínio, no entanto, perdeu recentemente parte de
seu significado à medida que as novas estratégias de sobrevivência requereram que a família
diversificasse suas atividades. As mulheres não chegam a ser encorajadas a trabalhar fora de

188
casa. Contudo, o domínio masculino é parcialmente revertido quando as mulheres começam
realmente a ganhar dinheiro; os homens só permitem certa liberdade e autonomia a suas
esposas quando estas trazem dinheiro aos lares. Por outro lado, pode-se também sugerir que
as mulheres estejam numa zona de conforto; isto é, muitas delas podem estar acomodadas
com o predomínio econômico dos homens, e também com as responsabilidades dadas aos
homens ao gerenciarem a propriedade. Conseqüentemente, as meninas têm menos motivações
para estudar e aprender, por haver uma expectativa tradicional de que irão cuidar de filhos em
suas casas.

Em Albardão, e em Passo da Areia, não há sistema de telefonia fixa, e as pessoas não podem
telefonar. Não há Internet nas propriedades. Algumas pessoas possuem seus próprios
aparelhos celulares, mas não os utilizam com fins de lazer, ou longas conversações, por serem
muito caros. Além disso, os telefones celulares funcionam muito mal nas propriedades, isto
quando funcionam. Chamadas por celulares são consideradas muito caras, mesmo com o
sistema pré-pago, isto é, quando o usuário compra créditos para fazer ligações. Ismael – o
filho de um líder comunitário – pagou R$ 40,00 para utilizar 16 minutos de conversação numa
semana, o que é considerado um exagero. Logo, as relações sociais na comunidade estão
estritamente baseadas em encontros físicos, não havendo nenhum outro modo de interação.
Nesta situação, as pessoas se visitam com freqüência, chegam sem aviso prévio e ficam. Em
uma tarde de domingo, por exemplo, fui à casa de um colono quando, lá pelas 19 horas,
algumas pessoas começaram a chegar. Primeiro era uma cliente da esposa do colono, que
vende roupas em casa, que veio para uma conversa rápida e pagar as contas. Depois, três
homens chegaram e conversaram por mais de uma hora. As pessoas são muito cordiais umas
com as outras e o chimarrão é um sinal esperado de boas maneiras e boas-vindas. Trata-se de
uma bebida quente à base de chá, servida num recipiente específico. É largamente consumido
nos estados do sul do Brasil, bem como outros países ao sul da América do Sul.

Na comunidade, a arquitetura típica das casas favorece os encontros e as interações sociais,


em detrimento da privacidade. Elas geralmente possuem a cozinha integrada à sala de estar.
Como as famílias recebem visitas com certa freqüência, elas utilizam a cozinha como parte da
sala de estar, por estarem sempre juntos ao preparar e beber o chimarrão. A mulher é
responsável pelo chimarrão e está, geralmente, na cozinha, cozinhando, mas também tomando
parte nas conversas. Como a esposa de um colono me contou, ela conversou uma vez com
alguém que possuía uma casa maior, e esta pessoa lhe disse que a cozinha tinha de ser uma
área distinta na casa, separada da sala, e que deveria ter espaço suficiente para a pessoa que

189
cozinha. Ela não concordava com isso porque, sendo a mulher, quem cozinha, ela merece
estar integrada ao resto da família e aos convidados. De fato, a arquitetura muda nas casas
maiores e mais ricas, quando há uma empregada trabalhando nelas. Na cozinha integrada à
sala de estar, o fogão a lenha também funciona como lareira; este fogão tradicional é,
geralmente, usado durante o inverno, por também funcionar como aquecimento na casa; por
isso, tudo é integrado em um só espaço. Não há aquecedores modernos. Além do mais, em
muitas casas os quartos não possuem banheiros ou toaletes ligados a eles, e tomar banho,
muitas vezes, exige atravessar a cozinha, pois esta é integrada à sala de estar. Em muitas
habitações, as portas dos quartos são peças de tecidos coloridos, usados para separar a cama
do restante da casa. Como visitas especiais aparecem, servir uma boa refeição é um assunto
muito importante para as famílias da comunidade, por ser basicamente o produto do trabalho
das pessoas, segundo eles. As famílias se orgulham do que produzem em casa, embora não
sejam todos que plantem outras coisas além do tabaco.

Em comparação à colônia de Santa Cruz do Sul, as comunidades rurais do município de Rio


Pardo exibem, relativamente, pouca capacidade de mobilização e organização em grupo. Os
primeiros grupos organizados em Albardão e nos outros distritos foram as associações pró-
desenvolvimento, ou as associações de produtores rurais. Estas 23 associações, uma para cada
comunidade rural da cidade, foram fundadas por Fernando Schwunck, ex-líder local, ex-
membro do governo de Rio Pardo e que já não mora no município. Efetivamente, as primeiras
organizações sociais não foram fundadas por seus membros, mas propostas e promovidas por
Schwunck, ex-proprietário de terras na região, alguém visto como um homem educado e
articulado. Em Albardão, a associação chama-se Associação Pró-desenvolvimento do
Albardão. Hoje, ela congrega a maior parte dos produtores de tabaco da comunidade, realiza
encontros mensais, e oferece alguns serviços aos associados, tais como aluguel de tratores e
outras máquinas para a produção, e a organização de eventos festivos. A associação de
produtores é uma organização social sem fins lucrativos que, na prática, visa aumentar e
racionalizar o uso dos recursos de produção necessários; principalmente, a organização é a
instância social que compra e mantém os caros equipamentos agrários que, mesmo
necessários, não são utilizados com freqüência por um único produtor. Mais que isso, as
associações são a instância onde iniciativas especiais são discutidas entre os habitantes da
comunidade e onde conceitos como solidariedade, mobilização e empreendedorismo são mais
observados. Em Passo da Areia, as associações de produtores são em número de três, uma
para cada subdivisão da comunidade. Passo da Areia é uma comunidade formada por

190
aproximadamente 4.000 pessoas e pode ser dividida em outros pequenos grupos – São Pedro,
Picadinha e Beco. Cada grupo possui sua associação de produtores rurais.

A agregação de pessoas nas organizações sociais na região também reflete os papéis


assumidos por homens e mulheres nas famílias. Algumas das associações de produtores
possuem também, em separado, um grupo de mulheres. Em Picadinha, Passo de Areia, o
grupo promovia encontros todas as primeiras quartas-feiras do mês. Este grupo tinha dois
anos de existência e havia crescido desde então, segundo uma das mulheres. O grupo de
mulheres desenvolve diversas atividades. O grupo organiza cursos cujos temas são de
interesse das mulheres, como artesanato, culinária e leituras. Ele também promove atividades
de lazer com as mulheres; por exemplo, jogos beneficentes: aproximadamente 50 mulheres se
divertindo com um jogo, no qual uma mulher estava prestes a dar a luz e as demais deveriam
ajudá-la com presentes. Em geral, os encontros do grupo são grandes oportunidades para a
troca de informação, fofocas e conversas animadas. Acima de tudo, os encontros são
momentos privilegiados para comunicar fatos, como casamentos, nascimentos ou mortes, e
para discutir assuntos relevantes para a coletividade, como a organização de eventos e
discursos políticos. Se, no grupo de mulheres, as mulheres são as líderes, a associação de
produtores reúne homens e mulheres, ainda que, veladamente, os homens tenham o direito às
posições privilegiadas, ao discurso e à liderança. Na prática, a associação de produtores
congrega a comunidade, e não apenas as mulheres ou os homens. Os dois tipos de grupos são
regularmente assistidos por outras instituições públicas e privadas, como o sindicato dos
trabalhadores rurais, o EMATER, e o governo da cidade – que fornecem apoio técnico e
educacional, ajudando aos líderes a implantar as iniciativas coletivas.

A dinâmica das organizações sociais na região é altamente dependente da qualidade da


liderança vigente. Em geral, os habitantes das comunidades não são engajados em iniciativas
sociais e as mobilizações dependem da capacidade do líder em superar resistências e a falta de
confiança e comprometimento. Na prática, uma pequena porcentagem de pessoas é
ativamente engajada nas atividades diárias necessárias à concretização das decisões coletivas.
A porcentagem maior de indivíduos pode ser dividida em dois grupos: o dos observadores,
que não se engajam nas decisões diárias, mas não negam a possibilidade das coisas darem
certo; e os céticos, que não acreditam que as coisas possam acontecer, assumindo posições
pessimistas e posturas evasivas ao serem chamados a contribuir. Esta situação, geralmente,
leva à sobrecarga de trabalho para algumas pessoas, os chamados ‘mão pequena’, que são
constantemente considerados pelos não-engajados como ‘idiotas’, por trabalharem

191
voluntariamente pela coletividade, ou por sonharem com projetos futuros pouco prováveis,
com pouca ou nenhuma ajuda. Neste caso, a expressão ‘idiota’ não tem o sentido de
xingamento ou ofensa, mas relaciona-se a uma atitude de questionamento dos benefícios reais
do trabalho social engajado, e ainda de descrença na possibilidade de se alcançar progressos
significativos por meio da mobilização coletiva. Simultaneamente, a emergência e a
consolidação de um novo líder comunitário, muitas vezes, levantam sentimentos ambíguos
entre muitas pessoas, pois ele pode ser considerado como tendo objetivos ambíguos: está
trabalhando pela comunidade, mas também é aspirante político – uma categoria que engendra
uma complexidade de significados, muitos dos quais “ruins”.

A conversa a seguir reúne dois líderes comunitários de Passo de Areia. Roberto é um colono
bem simples que não possui muita terra e, no entanto, vive intensamente os dilemas e
problemas do sistema de produção integrada. Apesar de sua simplicidade, Roberto é um líder
que se envolve em diversas iniciativas comunitárias. Noeli é outro líder comunitário, cujo
conhecimento social, motivação e capacidade de articulação, de idéias e de mobilização são
expressivos. Ele é, realmente, um homem de potenciais não explorados formalmente, pois não
completou o ensino básico, embora sua curiosidade tenha tornado possível que ele discuta
tópicos variados com carisma e relativa sofisticação. Sua casa é cheia de mapas, vídeos e
livros, e ele apresenta grande mobilização em torno de suas idéias, que são centradas na
“evolução e desenvolvimento social” das comunidades. De fato, muitas pessoas confundem
sua mobilização com interesses políticos e aspirações pessoais; mas ele nega tudo, afirmando
nunca ter concorrido a nenhum emprego público, embora tenha sido convidado a participar do
governo municipal.

PASSO DA AREIA, 5 DE MAIO DE 2005

Noeli: [apresentando Roberto e mencionando as associações com as quais ele contribui] [...]
do CEDEJOR, é do conselho do CEDEJOR e da Casa Jesus Maria José, e... é o tesoureiro do
Cedecor, e é líder... Faz parte da direção da Associação da Picadinha. Vamos esperar um dia
de reunião dela pra nós ir lá também... Ali, na Associação, inclusive, né? Então ele é também
uma pessoa que movimenta os grupos, é liderança na comunidade.

André: E por que tanto envolvimento, Roberto?

Roberto: Ah, isso é uma boa... Que pergunta, hein? (Risos). Boa pergunta! Não só em
associações, a gente participa já do colégio, das diretorias... Sei lá, eu acho que é por gostar!

192
Essa pergunta aí, é uma pergunta por que, porque a gente gosta, tem os amigos lá e, vamos
dizer, o colégio mesmo é uma das coisas que a gente acha que todos os pais deveriam de,
pelo menos uma vez por ano, ir no colégio, né? Nem sabe como é que tá... Tem muitos pais
aqui que não sabem como é que tá os seus filhos no colégio; eu não, eu sempre sou
participativo, eu gosto de ir nas reuniões... né? Uma associação, um piquete, ali.

Roberto: A associação... a associação..., eu vou falar um pouquinho, então, da associação,


onde eu faço parte há... tá com oito anos de idade, desde o primeiro dia, desde o primeiro dia
eu tô ali, até hoje, tô sempre dentro dela...

André: Que associação é essa?

Roberto: Associação de produtores, onde os nossos produtores se reúnem e... Isso é sem fins
lucrativos, é onde os produtores se reúnem pra poder buscar mais recursos pra eles próprios.
Exemplo, se tu vai fazer uma compra coletiva de uréia, ou, qualquer outra coisa, quando for
comprar num montante maior, é mais fácil, né?

André: Sei.

Roberto: Tudo hoje no país é assim, é, por exemplo, eu quero um pulverizador, no caso agora
nós já temos, mas como é que eu, sozinho, Roberto, vou comprar um pulverizador que custa
aí dois mil real, mil e quinhentos real, pra usar, decerto, duas vezes no ano. A associação
serve pra isso. Aí, são cinqüenta sócios, trabalham, unidos ali, fazem um torneio de futebol,
fazem um bailezinho, fazem uma coisinha ou outra pra arrecadar fundo, pra pagar aquele
pulverizador que todo mundo vai usar.

André: Essa é uma associação daquelas 23 que a gente tava comentando?

Noeli: É, das 23, é.

Roberto: Então a gente trabalha assim, aí a gente, quando faz reunião, a gente opta pela
prioridade. Que que é prioridade, o que que nós precisamos mais na associação agora? Bom,
é um cortador de milho? Assim que tem fundo, ou mesmo não tem fundo, que nós compremos
o espanador que nem tinha fundo, mas... vamos trabalhar pra pagar, terminar de pagar.
Então é umas coisas assim, agora, terminando de pagar essa, próximas reuniões vão
perguntar assim: “A prioridade agora?” Vamos trabalhar sempre com objetivo.

André: Tá.

Roberto: Certo? Então isso é uma associação. Tem uma mensalidadezinha, que é dois reais
por cada pessoa, por cada sócio, mas essa mensalidadezinha mal dá pra água e a luz. Então

193
se tu quer fazer um outro, uma outra compra, uma outra coisa, aí tu tem que fazer um torneio
de futebol, um baile, algo assim...

André: Tá.

Roberto: Nós já fizemos muitos cursos de dança... Um jeito de, no dia das mães, dia dos pais,
a gente faz aquela integração. No dia das mães, como agora tá vindo, agora, domingo, nós
pais, vamos lá, vamos fazer uma janta pras nossas mulher...

André: É?

Roberto: ...mas pras nossas mulher, nós fizemos a nossa janta... Vamos lá pra cozinha, é nós
que fizemos a bóia. No dia dos pais a mesma coisa, elas vão lá e assam a carne, tudo.

André: E, por exemplo, quando vocês vão fazer uma compra mais relacionada ao trabalho,
uma colheitadeira, por exemplo, de onde vem o dinheiro?

Roberto: É esse dinheiro que eu digo assim, quer dizer... Nós pegamos, por exemplo, fomos
comprar um secador de grãos. A Prefeitura, na época, ela tinha um dinheiro na... Bem, como
é que eu vou dizer, [um fundo] rotativo. Aí a gente faz um projetinho pra gente e bota lá. Se a
gente é premiado, aquele fundo vem pra nós...

André: Sei.

Roberto: Pra nós, não, vai direto lá pra onde vamos comprar. Aí nós temos aquele espaço de
seis meses, um ano, pra pagar...

André: Ah, tá, pra retornar o dinheiro.

Roberto: ...pra retornar. Aí esse dinheiro, a gente vem cá, faz uma promoção, como eu te
disse, né? E vai lá e paga.

André: Que outras associações? Eu vi que você faz parte de várias...

Roberto: É, eu, por exemplo, agora a água. Hídrica, por exemplo, a hídrica. Agora eu tô
fazendo parte já dela. É uma outra coisa que a gente tem, aqui a nossa água hoje, que a gente
toma. A Prefeitura fez o poço e entregou: “Olha, vocês cuidem”. Mas como isso aí também a
gente não cobra muito caro a taxa, e tem sempre que arrecadar um fundinho, porque amanhã
ou depois pode quebrar o motor ou coisa parecida, a gente tem que dar esse trabalho
voluntário. Por exemplo, se arrebenta um cano na rede, alguém tem que ir lá, politicar,
geralmente é o presidente, o vice-presidente, que vai lá e faz isso. Claro que o presidente às
vezes chega e: “Ô, colega, dá uma mãozinha!”. Ele vai lá e dá uma mãozinha... Mas é essa

194
mãozinha que a gente tá trabalhando pra, quando for fazer o troço, ter uma mão maior. Na
Associação tem a ‘mão pequena’. Mão pequena, que eu quero dizer, assim ó, vai fazer um
baile, associação é cinqüenta sócios, dez se envolvem, os outros ficam meio de fora...

Roberto: É... é assim em todo lugar... A gente trabalha pros cinqüenta...

André: Sei. E mão pequena o que é então, são os quarenta?

Roberto: O mão-pequena é os cabeças no caso, é os que mais trabalham.

André: Entendi.

Roberto: É menas gente pra trabalhar, né? Mas não que eles não vão participar, também, os
quarenta, né? Eles participam, mas de um outro modo. Sei lá, eu compro o ingresso dele, eu
compro a janta dele... Mas aqueles da cabeça é os que, é que nem o Noeli tá fazendo, ó, no
Cedecor. São em quantos, mas quem mais...

André: Mão pequena?

Roberto: Não, o mão pequena foi o jeito de eu falar só, né? Não, o jeito de eu falar só! Não
tem nada a ver, ele é o mais sozinho, sabe?

Noeli: Todo grupo tem uma liderança... Num grupo de cinqüenta, tem dez que mais se
envolve, mais se dedica.

André: Sim, sim.

Roberto: É o que eu falo... Não, tem gente que mete... é isso aqui, ó. Tem gente, assim,
percebo na eleição, se tu tem cem pessoas... trinta quer fazer funcionar...

André: Sei.

Roberto: ...fazer funcionar o troço. Mas, vamos dizer, quarenta fica esperando, “será que dá
certo ou não?” Aí tem dez, vinte que: “Isso não dá certo!” Entendeu? Esse é o tipo de coisa.
Aí, o que é a mão pequena, que eu tô te falando, o mão pequena é esses trinta. Eles tavam
num pepino, assim, ó, eles têm que... esses quarenta que tão esperando pra ver se funciona ou
não, eles têm que fazer um trabalho pra dizer pra esses quarenta que funciona.

André: Hum.

Roberto: E tem mais a obrigação de buscar os outros lá, ó, os outros dez lá que dizem que
não funciona.

195
Roberto: Porque toda coisa, aqui na nossa terrinha, que for fazer, primeira coisa, agora se
for fazer, se tu agarrar e pegar um alto-falante e sair na rádio, na estrada, e dizer “vou fazer
uma fábrica de chapéu”, tem alguém que vem atrás: “colono sem cabeça!”

André: (Risos).

Noeli: Mas, não, agora... que, nós nos grupos... nós caminhamos nas outras comunidade, eu
digo pra ele, sem medo, eu digo, pra qualquer lugar, que ele não vai achar comunidade mais
organizada aí dentro do município de Rio Pardo.

Roberto: Sim!

André: Essa aqui?

Noeli: Essa aqui.

Em Albardão, a associação de produtores é chamada Associação Pró-desenvolvimento de


Albardão, ou APROALBA. Ériton, um dos líderes, era um colono proeminente que deixou as
atividades com o tabaco para se dedicar a outros projetos; em especial, o projeto CEDEJOR,
como discutido na próxima parte. Ériton também tem raízes no cenário político; seu pai era
um homem político, e ele possui relações com líderes políticos na região. Em 2005, Ériton
cursava Ciências Sociais na UNISC, a melhor universidade da região. Paulo Miguel, ou
apenas Miguel, também é outro líder em Albardão. Ele nasceu na região, mas mudou-se para
estudar. Completou o segundo grau técnico, trabalhou na cidade por um determinado tempo e
retornou à comunidade rural por saber que viver no campo era seu destino. Miguel é um
homem articulado, com forte lado espiritual baseado num Catolicismo crítico, idéias
modernas sobre ecologia, carisma e uma sensibilidade educacional jovem e profunda. Ériton e
Miguel estão entre os principais líderes da comunidade, e a boa produtividade da
APROALBA parece estar diretamente ligada a seu envolvimento no grupo. Ériton foi o
segundo presidente da associação e, no primeiro semestre de 2005, ele articulou apoio para
tornar Miguel o presidente da mesma.

A associação possui um trator, equipamento caro de uso na agricultura, alugado aos membros
da associação: eles pagam R$ 1,00 por mês como taxa, anualmente. Ériton afirma que a
associação tem problemas na coleta do dinheiro; não que as pessoas não paguem, mas a
equipe deve ir atrás das pessoas, pois elas não se mobilizam o suficiente para tornar este
procedimento desnecessário. Um exemplo dos resultados e das dificuldades enfrentados pelos

196
líderes da associação foi a mobilização encabeçada por Ériton para comprar dois containers
agrícolas diretamente do fornecedor. Os produtos chegam do exterior através do porto de
Santos, e o presidente teve de arrecadar o dinheiro em cada casa, pois a carga deveria ser paga
em dinheiro e à vista. Apesar de terem obtido 10% de desconto sobre o preço de mercado,
pagar em dinheiro vivo torna o negócio inviável aos colonos inseridos no sistema de produção
integrada. De acordo com Ériton e Miguel, que uniram forças para a eleição de 2005, o
objetivo da associação deveria ser transformar-se numa ferramenta que aumente o poder dos
colonos, a fim de unir sua produção e adquirir maior poder de barganha, além de, também,
vender diretamente aos clientes estrangeiros caso não achem apropriadas as condições de
venda das fumageiras. O problema para concretizar este projeto é, entre outros, a necessidade
de pessoal em tempo integral trabalhando na associação (por exemplo, um ‘diretor executivo’
que teria de ganhar um salário) e a comunidade não possui nem a mobilização, nem as
condições financeiras para adotar tal estratégia. Ériton sugeriu articular esta demanda junto ao
governo municipal, para que fosse providenciada uma posição remunerada pelo governo, cujo
ocupante fosse apontado pela comunidade para implantar esta estratégia. Eles teriam de eleger
Miguel para inserir a estratégia, caso contrário, ela não seria articulada. Desde algum tempo, a
associação tem passado por um período de muito pouca evolução; de acordo com eles, os
líderes atuais podem ser culpados, pois não instigam as pessoas, nem sugerem caminhos de
melhoramento. Antes de aceitar a posição, Miguel possuía muitas dúvidas sobre sua decisão,
por pensar que a comunidade está em uma zona de conforto; isto é, todos esperam que ele
aceite mas ninguém pensa ou assume responsabilidades maiores ou mais complexas. Portanto,
a comunidade não se desenvolve porque espera que seus poucos líderes assumam estas
responsabilidades.

A fonte mais importante de receita para as associações de produtores, e para outros grupos,
são as festas, os eventos de entretenimento mais significativos da região. De fato, a festa
como um evento de entretenimento na região pode ter diversos significados para a população;
pode ser a ocasião de se encontrar um namorado, de se encontrar os amigos e parentes de
lugares longínquos (de fato, parentes vivendo em comunidades diferentes no mesmo
município vivem “longe”, já que o transporte é difícil), a ocasião para articulações políticas,
para mobilizações sociais, ou o momento de se mostrar a solidariedade com outras pessoas.
Particularmente, há diferenças importantes entre os conceitos locais de festa e baile, e eles são
relevantes para o entendimento das atividades de divertimento nas comunidades. Baile é uma
festa comercial, geralmente organizada por homens de negócios da região, proprietários de

197
grandes salões de festa específicos para estes fins. Didi é uma destas pessoas em Albardão;
ele sobrevive da organização de grandes festas, como a de Santo Antônio no dia 11 de junho.
Didi pode ganhar R$ 2.000,00 em cada festa, o que o faz um homem de negócios de sucesso.
Os bailes são eventos que começam mais tarde na noite, geralmente aos sábados e têm banda
ao vivo. Eles são excelentes oportunidades para as garotas encontrarem rapazes e vice-versa.
Diferentemente, a festa é, geralmente, uma iniciativa da comunidade, quando um grupo de
pessoas organiza um evento comunitário. A maior parte delas são jantares, ou jantas, que
começam no início da noite e terminam cerca de meia-noite. Algumas festas podem ser
similares aos bailes, quando há música ao vivo para entreter as pessoas, que dançam até tarde
na noite. Estes eventos atraem famílias inteiras, crianças inclusive. As festas são organizadas
com maior freqüência, normalmente visando um objetivo, como angariar fundos para um
garoto que tenha sofrido um acidente com sua moto. Desta maneira, elas são momentos
privilegiados para a mobilização social em torno de um objetivo específico.

Festas na comunidade são geralmente feitas para arrecadar fundos para propósitos específicos.
Em geral, o grupo tem a ajuda de lojas da cidade, que doam pequenos objetos, como
presentes, a serem sorteados durante as festas. O comitê de organização prepara atrações
especiais, vende os convites, organiza sorteios e vende rifas. Durante a festa, eles identificam
o ganhador, a quem será dado o presente; e a renda coletada com as rifas contribui com o total
arrecadado com a festa. Lojas da cidade realmente ajudam estas festas, e mensagens de
patrocínio só são colocadas quando a doação é grande. Outras doações são feitas pelas
mulheres da comunidade, que podem oferecer bolos ou roupas a serem rifadas, por exemplo.
Sobre o motivo das lojas ajudarem nas festas, trata-se de um costume antigo. Com a
apresentação do CNPJ da associação, estas doações ficam mais fáceis. As festas são
acontecimentos que reúnem as pessoas com o pretexto de se arrecadar fundos para um
propósito, visto coletivamente como relevante. Na prática, as famílias devem reservar parte de
sua renda mensal para finalidades de lazer, ou as festas, se quiserem contribuir com as
iniciativas comunitárias. Como não são muitas as oportunidades de lazer na região, muitas
famílias realmente o fazem. Em conseqüência, tais iniciativas diminuem em tempos difíceis,
como os longos períodos entre os pagamentos feitos pelas fumageiras. A passagem seguinte,
de minhas anotações de campo, ilustra uma festa que assimilou algumas características de um
baile:

ALBARDÃO, 14 DE MAIO DE 2005

198
No sábado à noite, fomos a uma festa, que é, freqüentemente, a ocasião para se encontrar
pessoas de toda a comunidade. As famílias se reúnem às 22 horas na escola pública.
Basicamente toda a comunidade sabe sobre o evento, pois foi organizado semanas atrás, e as
redes de comunicação espalham rapidamente as notícias, anunciando em locais públicos de
grande circulação, como o posto de gasolina. Famílias completas estavam ali, desde crianças
até avós, e eles dançavam e faziam jogos. Havia uma competição para escolher o melhor
dançarino, e eu fui escolhido para ser um dos juízes. As pessoas mais velhas (incluindo
adolescentes) bebiam na frente das crianças, e a maioria estava bem vestida. As festas podem
ser momentos privilegiados para encontros e interação social e, claro, casos românticos e
flertes. Pareceu-me que muitas pessoas estavam procurando um par, mesmo que casar-se
cedo seja um problema que desperta diversas opiniões e repostas. Os encontros nas festas
são eventos importantes. As pessoas vêm em suas “roupas de domingo”, isto é, em suas
melhores roupas, usadas em ocasiões especiais. É interessante notar que algumas estão
realmente bem vestidas (eu não estava entre eles), enquanto outras vêm em roupas muito
simples. Algumas estão sujas, enquanto outras, perfumadas. Algumas famílias estão
completas, dos avós aos netos, muitas crianças estão com seus amigos, correndo e brincando,
enquanto seus pais estão bebendo e ficando bêbados. De fato, foi estranho ver hábitos
alcoólicos tão intensos nas pessoas mais velhas, por estarem cercadas de adolescentes e
crianças. A comissão de pais e professores cobrava R$ 5,00 a entrada e angariava dinheiro
para efetuar melhoramentos no pavilhão, que também é usado como sala de aula para
crianças do primário. A festa tinha música ao vivo e algumas rifas para atrair as pessoas.
Podemos notar que pessoas de comunidades vizinhas vieram, assim como jovens de Passo da
Areia, que nos encontraram em frente ao pavilhão com suas motos personalizadas. Em geral,
era tratado como o garoto inteligente, ou ‘escolado’, ‘formado’, o ‘doutor’ de São Paulo, que
estava estudando as comunidades; as pessoas se referiam a mim com respeito e curiosidade,
embora não muitos tenham vindo falar comigo.

O sistema político da região é centrado no governo da cidade. A população local desenvolveu


uma relação ambígua com os políticos; eles não gostam de políticos, mas, ao mesmo tempo,
vêem neles sua única ou principal esperança para melhorar de vida. Os políticos são tidos
como pessoas que não ligam realmente para as comunidades, exceto no período
imediatamente antes das eleições. São vistos como pessoas de motivações egoístas, por
sempre se esquecerem dos eleitores após as eleições. De acordo com os colonos, os políticos
organizam suas atividades de acordo com o calendário eleitoral, tentando manipular as

199
opiniões para conseguirem o máximo de votos. Este fato tem implicações práticas relevantes
no que diz respeito às reivindicações comunitárias, já que os políticos as ouvem com mais
atenção durante o ano imediatamente anterior às eleições. As pessoas, entretanto, gostariam
que eles os ouvissem com mais freqüência, que visitassem suas casas, ou suas comunidades,
para sentir seus problemas.

Trata-se de uma impressão geral de que, no que depender dos políticos, a qualidade de vida
nas comunidades irá melhorar muito devagar. Políticos vêm a cada quatro anos pedir por
votos, mas ninguém está realmente preocupado com o desenvolvimento da comunidade.
Como discutem as pessoas, o governo geralmente ignora os problemas por muito tempo antes
de resolver tomar alguma atitude. Os políticos dos últimos governos são vistos como pessoas
que encheram seus bolsos com dinheiro público e que não trabalhavam da maneira como
deveriam: “não consertando os tratores, não se deram ao trabalho de arrumar as estradas”,
por exemplo. As famílias reclamam que os prefeitos não se importam com os habitantes das
comunidades rurais, pois não as visitam regularmente e, assim, não vêem as condições das
estradas. Os investimentos são tidos como paralisados, como os para a grande rodovia federal;
há pouca honestidade e vontade no governo. Logo, os líderes comunitários muitas vezes
afirmam que as pessoas deveriam se organizar sozinhas; que elas não deveriam esperar que
alguém fizesse isso por elas, como os políticos. Alguns habitantes pró-ativos realmente não
esperam pelo governo, mas arrumam, eles mesmos, as estradas próximas a suas propriedades.
De fato, o governo de Rio Pardo sofre com muitos limites financeiros, pela cidade ser
decadente e depende de um orçamento pequeno, em grande parte, transferido pelo governo
federal.

O sistema político local é caracterizado pela barganha intensa entre população e os políticos, e
pela constante assistência às comunidades (assistencialismo). Efetivamente, a profissão
‘político’ é considerada cara, já que eleger-se pode custar muito. Fazer uma carreira política é
uma exceção entre as pessoas, e é visto como algo que exige muito investimento e tomadas de
risco; assim, não é para qualquer um. Os problemas e barreiras à carreira que os políticos
geralmente enfrentam estão relacionados à (1) instabilidade da profissão – eles têm de ser
reeleitos a cada quatro anos, o que exige uma renda de apoio, caso o político queira se ver
livre do risco de estar desempregado; (2) ao risco de fracasso nas eleições, e perdas
financeiras associadas a isso (Fernando Schwunck desistiu de sua candidatura a prefeito
quando percebeu que não iria ganhar); (3) até certo ponto, a opção de uma carreira política
exclui o desenvolvimento das atividades produtivas tradicionais nas propriedades,

200
especialmente se o candidato é um colono. Isso significa que o político tem de fazer uma
escolha de viver como tal e, ao mesmo tempo, deixar outras atividades para trás ou delegá-las
a outras pessoas. Além de trabalhar na administração pública, os políticos precisam se expor
aos eleitores, e ser um colono simultaneamente seria impossível; (4) o alto custo das eleições
– algo entre R$ 20.000,00 e R$ 30.000,00 para vereador – e o baixo retorno (o oficial), pois o
salário de vereador geralmente diminui com as ‘mordidas’, ou o dinheiro distribuído como
favores aos eleitores – que muitas vezes pedem dinheiro.

Neste contexto, corrupção e desvio de verbas públicas são percebidos como intrínsecos ao
sistema político; a questão é quem é mais e quem é menos corrupto. Para se tornar político,
deve-se angariar vários tipos de votos. Os primeiros são os votos associados a favores
pessoais, que, geralmente, implicam no comprometimento ao candidato. Estes são votos que
os políticos conseguem através da distribuição de favores à população, na maior parte das
vezes, num pedido silencioso por futuros votos. Para se conseguir tais votos, o político deve
estar disponível à população e, naturalmente, ele deve ser do local, pois aqueles de fora da
cidade têm poucas chances de ganhar nas comunidades. Neste sentido, os políticos podem ser
vistos como agentes a quem a população procura quando necessita de favores especiais, ou
tarefas especiais consideradas difíceis, tais como procedimentos para a aposentadoria, ajuda
em doenças ou alguma documentação do governo municipal. Com um sistema de saúde tão
precário, os políticos são, muitas vezes, as pessoas que encontram vagas nos hospitais, ou
viabilizam consultas médicas. Parte dos eleitores vota em retribuição ao favor concedido;
desenvolvem comprometimento com o político que lhes fazem favores do qual realmente
precisavam. Doenças, por exemplo, geram muitas emoções e o sistema de saúde é um ótimo
jeito de se distribuir favores e acumular votos.

O segundo tipo são os votos de amizade, isto é, os votos das pessoas que estão naturalmente
sob a influência do candidato. Neste caso, os candidatos, que são populares entre um grande
número de pessoas – por exemplo, um líder comunitário – têm maiores chances de ganhar.
Finalmente, é também preciso arrecadar os votos negociáveis, isto é, votos que o candidato
compra ou troca logo antes das eleições. Para arrecadar estes últimos, os políticos visitam as
famílias antes das eleições para ver do que elas precisam; e pagam por seus votos; muitas
vezes pagam parte do combinado antes das eleições, e a outra parte depois das eleições. Na
maioria dos casos, os políticos pagam as famílias com materiais de construção ou dinheiro.
Contudo, não apenas os políticos reforçam este sistema ao oferecer facilidades imediatas à
população, mas também os moradores esperam favores pessoais em troca de seus votos.

201
Muitas pessoas enxergam o período eleitoral como o momento de se obter alguma vantagem
ou benefício material com negociações com políticos; alguns prometem seus votos para dois
ou mais candidatos, traindo um ou mais no momento do voto. Enfim, eleger-se é uma
empresa que exige muitas visitas e dinheiro. Pessimistas sobre o sistema político, muitos
colonos preferem votar nos candidatos que mostram algum potencial de lhes distribuir favores
no futuro. Como descreve o filho de um ex-candidato:

ALBARDÃO, 12 DE JUNHO DE 2005

André: O que é a carreira política aqui? Como é que o povo do campo encara o político?
Assim, eu sinto meio que uma relação de desgosto e dependência muito forte... Quer dizer, o
político é aquele cara que vem atrás da gente só na hora da eleição, mas o político é aquele
cara de quem eu dependo bastante. É isso? Como é que é?

Diovani: É, eu acho que é isso, o pessoal tem muito do padroeiro que conseguiu um
documento, conseguiu um exame; quer se aposentar, vai atrás de político. [...] Sei lá, se eu
tenho uma propriedade, eu completei aquele serviço e fiz aí, ganhei a aposentadoria... Aí o
pessoal costuma ir, vai lá com vereador, sei lá, alguém lá, pra fazer um favor pra ele... Corre
pra lá, corre pra cá, ajeita papel, ajeita tudo. Mas, se eu tenho direitos, eu não preciso de
ninguém que me auxilie, né?

André: Então, político às vezes é quase que um despachante também?

Diovani: Também, também. Na dificuldade, os caras querem alguma coisa na prefeitura e


não consegue, aí um vereador acaba auxiliando, uma pessoa que tem mais influência, vai até
o prefeito pra conseguir lá o...

Diovani: E aí tem também, o pessoal ficou bravo porque, na época da eleição..., o voto
perdido é aquela história, o político compra, mas também tem que estar disposto a perder,
ou, até muitas vezes, quem vem fazer a proposta pra venda do voto é o próprio eleitor, né? E
aí começa aquilo lá, nas épocas de eleição os políticos aparecem e depois eles desaparecem,
né? Mas... os votos que eles conquistaram, eles compraram, eles têm a obrigação com o
eleitor. O pessoal fala muito, eu sei porque meu pai foi candidato a vereador.

Diovani: E aí, os caras tinha que fazer um auê, vaiando, né... E falam várias coisas, aí vem
aqui, e aí vai, tijolo, exame, sabe? O cara tá doente também, a pessoa tá doente, aí vai lá no
político, procura o político, às vezes vai até pro sistema de saúde, às vezes tu vai lá e não é

202
atendido. Mas eles pegam o político lá, e pega e vai lá, e dá uma ajeitada, e a possibilidade
das consultas, os exames... Aí o cara tá comprometido, né, com aquele favor.

André: Daí ele vota no político?

Diovani: Vota. Eu não posso dizer que, de modo geral, parte do eleitorado vota pelo favor
que o político fez. Outros votam porque a eleição foi na época de favor, da compra do voto...
Parte do favor, né, e compromete muito. Então ele se sente muito comprometido com aquele
político que “ah, ele conseguiu a consulta pra mim, um exame, uma internação”. Isso gera,
sabe, uma, uma emoção. É, é. E aí o pessoal... geralmente são fiéis àquele político, né?

Em geral, também é possível afirmar que as relações de dependência entre a população e os


políticos extrapolam os mecanismos de acúmulo de votos. Efetivamente, tais mecanismos
podem gerar vantagens imediatas à população, que consegue resolver problemas pessoais ou
familiares rapidamente. Ao considerarmos os problemas ou as demandas maiores da
comunidade, e sua pouca capacidade de se mobilizar a fim de atingir objetivos coletivos, os
colonos e a população em geral esperam que os políticos concretizem as mudanças
necessárias ao melhoramento de vida da comunidade; esta é sua grande esperança. As
estradas da região deveriam ser mantidas em boas condições, pois o transporte na área é um
grande problema. Além da saúde e da educação, a atual diminuição na geração de renda dos
colonos é vista como uma questão fundamental a ser atacada pelos políticos, apesar destes
problemas serem associados aos baixos preços pagos pelas fumageiras. Não há uma cultura de
movimentos políticos populares, embora haja alguns focos de grandes movimentos na região,
como o MST. Como os colonos se consideram destituídos de qualquer voz política ou
influência, permanece a esperança geral de que o governo deva implantar as mudanças,
embora isso, geralmente, aconteça a passos bem lentos. Esta esperança também pode ser
relacionada a um sentimento geral de solidão e resignação entre os colonos, isto é, eles não
identificam nenhuma instituição, grupo ou nem mesmo alguém que poderia ajudá-los a
melhorar sua qualidade de vida, ou ao menos adotar seus problemas como causa política. A
política seria a única maneira de se programar mudanças; como se trata de um sistema
ineficiente e não digno de confiança, resta à população esperar com paciência as coisas
acontecerem. Neste contexto, os políticos freqüentemente exercitam sua capacidade de
comunicação com energia e paixão, prometendo futuros benefícios à região, a fim de
sensibilizar as pessoas e alimentar suas esperanças em ter seus problemas solucionados. Como
resposta, em geral, a população respeita os políticos, ou os adula, em encontros públicos, nos
203
quais os cidadãos assumem posturas que reforçam a autoridade formal do político. De fato,
quando as pessoas se encontram com políticos, elas demonstram uma complexa mistura de
respeito, curiosidade e esperança. Na privacidade de grupos ou da família, no entanto, a
maioria dos políticos é tratada como pessoas de pouca confiança. Roberto descreve:

PASSO DA AREIA, 5 DE JUNHO DE 2005

André: Tem uma resistência aos atuais políticos, é?

Roberto: É, as comunidades, o povo em si, o povo vota, o povo é ludibriado, mas o povo tem
resistência aos políticos. Ele acredita não acreditando, tu entende? Ainda é como, vamos
falar uma verdade... Ainda é como aquele servo, aquele escravo, ainda, que admirava o
patrão, beijava na mão, mas sabia que apanhava dele.

Roberto: E o povo abraça o político, elogia ele, mas ele sabe lá dentro que aquilo é um falso
que tá ali. Que nem todos, lógico, mas... Nem todo político é assim, mas, o que o político
passa pro povão é isso aí mesmo, que não é confiável. Que ele tá indo pra lá pra se promover
e ganhar dinheiro.

A passagem seguinte, de minhas anotações de campo, esclarece as relações entre os políticos


e as pessoas em geral, caracterizadas pela dependência mútua. A passagem reporta a posse da
nova diretoria da APROALBA, a associação de produtores de Albardão, quando Miguel foi
nomeado presidente. O evento teve a participação de políticos, que o usaram como uma
oportunidade para fazer promessas.

ALBARDÃO, 9 DE JUNHO DE 2005

(…)Mas o momento mais interessante da noite foi o discurso do gerente regional, um


assistente do prefeito. Ele possui grande habilidade de comunicação e muita intensidade e
paixão em sua voz. Realmente como um político. Em suma, ele prometeu duas prioridades à
comunidade; as pessoas poderiam se reunir e discutir duas prioridades à coletividade, e o
governo também indicou grandes surpresas para o futuro. O interessante foi ver a
intensidade da promessa política; os membros da comunidade esperam que o governo
implante benefícios sociais, e os políticos estão constantemente fazendo promessas e
anunciando benefícios, “quando o dinheiro está disponível”, justificam. As relações são de

204
total dependência e passividade. As promessas discutidas são, em grande parte, materiais e
custam dinheiro, sendo que apenas o governo pode concretizá-las. Elas incluem
equipamentos especiais e recursos para a agricultura, infra-estrutura nas vizinhanças,
máquinas, conserto de estradas, etc. Desta maneira, a comunidade está de um lado da
audiência, perguntando e esperando por progresso, e as autoridades estão do outro lado,
prometendo e justificando resultados (ou a falta deles) de promessas passadas.

As expectativas e necessidades idealizadas pela comunidade, geralmente, requerem


investimentos que nem a comunidade nem o governo municipal podem aparentemente
assumir. Por exemplo, um ginásio de esportes junto à escola para o lazer das crianças e aulas
de educação física. De fato, considerando a pouca capacidade da comunidade em levantar
fundos, ou em promover o desenvolvimento por conta própria, e o acesso restrito à
informação referente à esfera governamental, a comunidade está sempre na dependência dos
políticos, seus julgamentos e decisões, quando solicitam um investimento especial. Nesta
conjuntura, os políticos estão sempre sugerindo que a falta de dinheiro é o impeditivo às
expectativas comunitárias, e reforçando seu empenho em arrecadar dinheiro nas instâncias
mais altas do governo. Reivindicações maiores da comunidade levam mais tempo a serem
satisfeitas, e estes avanços são, muitas vezes, usados pelos políticos como plataformas
políticas. Na prática, tais exigências maiores são intermediadas pelos ‘presidentes das
comunidades’ e outros líderes, que assumem a responsabilidade de articular e discutir as
necessidades comunitárias com as autoridades. É, normalmente, uma relação na qual o líder
reivindica e justifica suas exigências, e a autoridade prontamente nega, usando como
argumento a falta de recursos. A partir deste momento, eles estabelecem uma relação que
realça a dependência da comunidade em relação às autoridades, pois estas serão as
responsáveis por angariar os fundos necessários, enquanto a comunidade espera. A próxima
passagem, também de minhas notas de campo, denota a relação entre líderes da comunidade e
autoridades durante o processo de arrecadação de dinheiro para a melhoria da escola primária
local, cujas salas de aula eram insuficientes para todas as séries existentes:

ALBARDÃO, 12 DE JUNHO DE 2005

O ‘presidente da comunidade’ também me contou a história sobre a ampliação da escola


fundamental local. Eles já haviam tido problemas com muito poucas classes para quatro
séries, e, recentemente, tiveram de implantar o precário sistema escolar de multi-séries, no
qual uma única classe tem mais de uma série, simultaneamente, com o mesmo professor; no
205
caso do Casemiro de Abreu, duas classes foram incorporadas. (…) Os problemas com as
escolas sempre existiram, e, recentemente, o deputado estadual Adolfo Brito (PP) envolveu-se
em tentativas de levantar dinheiro para expandir a escola. Em 17 de abril, as pessoas da
comunidade fizeram sua tradicional festa anual para arrecadar fundos; como sempre fazem,
enviaram convites aos políticos, embora nenhum deles costume ir às festas. Este ano, o
deputado telefonou e confirmou sua presença, mesmo que rápida. Ele apareceu na festa e foi
embora uma hora mais tarde, mas convidou algumas pessoas presentes para um churrasco,
que ele ofereceria. No churrasco, alguns dias mais tarde (20 de abril,) o presidente da
comissão de pais e mestres (CPM) explicou a ele todos os detalhes dos problemas da escola,
e ele prometeu buscar fundos junto ao governo federal; afirmou que os governos municipal e
estadual estavam completamente quebrados, mas que ele conhecia um fundo federal que
poderia ter dinheiro para o empreendimento. Alguns meses mais tarde, a secretária do
deputado ligou para os membros da CPM novamente, e falou que ele havia articulado a
questão com o Ministro da Educação, e que este sugeriu a possibilidade de implantar o
projeto de expansão começando já no fim do ano, com a liberação de uma verba do governo
federal. O projeto inclui cinco novas salas de aula e sanitários, o que significaria
basicamente dobrar o tamanho da escola. Tal projeto seria prioridade do Ministro, de
acordo com o deputado. Quando encontrei com o ‘presidente da comunidade’ no posto de
gasolina, ontem, esta foi a primeira coisa que me contou, com orgulho.

Políticos são vistos como pessoas em quem não se pode confiar, apesar da esperança
associada a eles. A má reputação da classe política leva a uma importante e, com freqüência,
explícita diferenciação, feita pela população em geral e pelos líderes comunitários, que
sugerem as divergências entre a sua ética e a maneira com que os políticos pensam e agem.
Líderes comunitários são pessoas que sempre se envolveram em iniciativas coletivas de base e
movimentos sociais, mas com apoio na idéia de viabilizar um novo futuro às próximas
gerações. Na prática, um líder comunitário permanece como tal enquanto não se envolver nos
laços que unem autoridades políticas. Caso se envolva, pode ser visto como oportunista e
egoísta. Em conseqüência, os líderes enfrentam dúvidas éticas constantemente, por terem
sempre a ocasião de se tornarem, eles próprios, políticos ou, pelo menos, parceiros deles.
Aceitar tais propostas pode trazer conforto material, mas a ética associada aos políticos é
considerada pervertida e dissociada dos interesses da comunidade. Nas relações entre
políticos e líderes comunitários sempre existem conflitos velados. Os políticos vêem os
líderes comunitários como oponentes potenciais e não lhes facilitam as coisas, o que

206
provavelmente tem impacto na consecução dos projetos coletivos, como demandam seus
líderes. A passagem seguinte, de minhas anotações de campo, ilustra as relações entre
políticos e as pessoas em geral, principalmente, líderes comunitários. Ela se refere às
iniciativas sociais lideradas por Noeli, em Passo da Areia:

PASSO DA AREIA, 11 DE JULHO DE 2005

Noeli também destaca os problemas que enfrenta junto aos políticos; estes não estão
interessados em mudanças, querem pessoas votando por eles para que estejam no poder
constantemente. Noeli contou-me que os candidatos o visitaram em sua casa para lhe
oferecer um cargo no governo municipal. Como ele fez propaganda do Cedecor [a mais
recente iniciativa social de Passo da Areia, liderada por Noeli] na câmara da cidade, eles
foram a sua casa propor uma posição no governo, em troca de seu apoio durante a
campanha eleitoral. Ele deveria se posicionar claramente em favor de certo candidato em
sua comunidade durante a campanha. Noeli não aceitou o cargo por dizer que as pessoas na
comunidade iriam associar suas atividades a interesses políticos. Ele não quer misturar as
coisas por não querer ser acusado de oportunismo. Mas também me disse que a lógica por
trás da decisão dos políticos, de virem atrás dele, era que, uma vez que não podem acabar
com suas atividades, ou colocar barreiras em seus projetos, o melhor seria “juntarem-se a
ele”. Logo, vieram convidar Noeli para não ter um oponente perigoso na comunidade. Foi o
que aconteceu quando Noeli ergueu a voz contra o governo, durante o encontro popular para
a escolha das prioridades de ação do governo na comunidade de Passo da Areia. Embora o
prefeito não tivesse realmente olhado em seus olhos durante o encontro, Noeli afirmou que
ele ofereceu muita ajuda na construção do prédio do Cedecor, mais do que se esperava do
governo. Noeli reclamou da divulgação do encontro, que não havia atingido toda a
comunidade. O prefeito chamou seus assessores e pediu que fossem mais cuidadosos ao
envolverem a comunidade, pois falharam em convidar todas as pessoas para o encontro.
Entretanto, Noeli também me contou que os assessores, geralmente, convidam apenas os
presidentes das associações cujos membros votaram por eles, para que os votos tenham
repercussão ao se convidar seus eleitores a opinar; os demais não ficam sabendo da
oportunidade. Neste sentido, o convite para o encontro é uma espécie de retribuição aos
votos conquistados. Os presidentes das associações são, muitas vezes, relacionados a um
partido político, e os convites às iniciativas governamentais, normalmente, vão para aqueles
das coligações partidárias.

207
4.6 Trabalhando para as fumageiras, ou “escravos brancos”

Produzir tabaco na região é uma atividade que causa sentimentos ambíguos. Em especial, o
desenvolvimento desta atividade pode ser associado à perda de autonomia dos colonos –
dimensão básica do conceito de colono como originalmente entendido. Este sentimento, que é
intensamente discutido entre os colonos, pode estar intimamente ligado à constante luta pela
sobrevivência nas propriedades familiares. De fato, a chegada das fumageiras internacionais
nos anos 70, e a consolidação do sistema de produção integrada, foram inicialmente vistos
como oportunidades para se alcançar níveis de vida mais elevados, com pouco ou nenhum
risco, especialmente ao se considerar as garantias de compra da produção oferecidas por estas
companhias. No passado, ao se comprar a produção a um bom preço, a cultura do tabaco,
dentro dos parâmetros introduzidos pela Souza Cruz desde 1920, era vista como uma
atividade produtiva de bom retorno e pouco risco. Neste sentido, o fato dos colonos já serem
produtores de tabaco naquela época tornou a adesão ao sistema integrado de produção muito
mais fácil. No entanto, se plantar tabaco foi, no passado, uma garantia de uma renda razoável,
com a qual se poderia sustentar a família com relativo conforto, hoje esta atividade parece ser
vista como uma ocupação que já não oferece a compensação esperada e justa. Nas
comunidades, a lucratividade decrescente é freqüentemente associada ao número crescente de
famílias que plantam tabaco e, simultaneamente, aos baixos preços pagos, que refletiriam o
aumento no número de plantadores. Além disso, há um sentimento entre os colonos, e suas
famílias, de uma grande dependência em relação às fumageiras, dentro de um “sistema cruel”
de trabalho. Tal dependência é geralmente ilustrada pela reclamação dos colonos de que não
há negociação com a fumageira: sua única opção é vender a produção ao preço proposto pela
fumageira, mesmo que ele não seja satisfatório às mínimas expectativas da família.

De fato, a produção de tabaco parece ser um bom negócio para os colonos, à primeira vista. A
fumageira provê os recursos necessários à produção mediante nenhum desembolso por parte
dos colonos, providencia assistência técnica e, ao final do processo, garante a compra total da
produção. Contudo, o sistema de produção integrada esconde truques perigosos. À medida
que o colono se envolve com a fumageira, ele se endivida e, conseqüentemente, precisa
negociar exclusivamente com esta fumageira até que tenha liquidado suas dívidas.
Normalmente, a dívida se refere aos recursos necessários à produção, como fertilizantes e
pesticidas, e aos investimentos nas propriedades, como estufas e abrigos. No momento em
208
que o colono e a fumageira estabeleceram uma relação, esta define a quantidade de tabaco a
ser produzida e entregue, para justificar os investimentos na propriedade e na produção. O
dinheiro por ela investido na propriedade deve ser pago em cinco anos, por meio de entregas
da produção anual previamente acordada. Caso o colono não atinja a produção esperada, ele
deve compensá-la nas próximas safras, o que, geralmente, causa mais dívidas e problemas.
Em conseqüência destes termos, as famílias são presas a um relacionamento com a fumageira
– freqüentemente chamado de “escravidão” pelos colonos – por anos a fio, tendo de aceitar o
preço determinado pela companhia, de acordo com negociações prévias entre representantes e
produtores. Como explica um colono:

ALBARDÃO, 5 DE JUNHO DE 2005

ANDRÉ: E se alguém quer começar a plantar fumo agora, quem vai ajudar ele?

COLONO: Ele chama o instrutor na casa dele, aí ele vai auxiliar no que ele precisa ter e
fazer para plantar o fumo.

ANDRÉ: Onde mora esse instrutor? É uma pessoa da comunidade?

COLONO: Não, esse instrutor é uma pessoa contratada pela fumageira para trabalhar com
os agricultores; geralmente ele não mora aqui na região; ele só presta serviço aqui na área
dele – porque é dividido em áreas – cada firma tem seus orientadores, que é dividido por
região, cada um pega uma parte para trabalhar, e fazer o acompanhamento com os
agricultores. Para você começar a plantar fumo, eles vão ver os bens que a gente tem, aí
para você retirar o empréstimo, ele vão pegar os seus produtos como garantia, se o valor de
suas coisas valer pouco, ou se você não tiver nada, aí você precisa de um fiador.

ANDRÉ: E quando você começa a pagar sua dívida, é em troca de fumo?

COLONO: Vou te dar um exemplo. Você vai fazer uma estufa que custa R$ 5.000,00; você vai
precisar de um paiol para guardar o fumo, eles vão te dar 10.000,00 para você fazer. Depois
eles somam a dívida e dividem para o colono pagar em cinco anos, em fumo; eles pegam o
valor da melhor classe de fumo que tem, que é o BO1, que vale R$ 83,00 a arroba.

ANDRÉ: E se o fumo subir de preço, o produtor dança?

COLONO: Daí, se o fumo subir o preço, você vai pagar bem mais mesmo...

209
ANDRÉ: Você usou como comparação o fumo de melhor qualidade, e se você não vender o
de melhor qualidade?

COLONO: Aí, a gente vende o mais preto, ou o que vale menos, até o preço chegar naquele
que foi estipulado. Se você precisaria de dez arrobas de fumo bom para pagar a dívida,
fazendo fumo pior você vai precisar de vinte ou trinta arrobas para chegar ao mesmo valor
estipulado. Você vai ter que compensar. Outra coisa que está acontecendo este ano, é a
maior parte dos colonos ficarem devendo para as firmas, e quando o colono fica devendo eles
parcelam a dívida em vários anos.

ANDRÉ: Aí, então, tem que produzir mais para tampar o buraco dos outros anos?

COLONO: Isso mesmo, eles parcelam a dívida do ano anterior, e divide ela; aí, no próximo
ano, além de você pagar sua dívida, que você fez no ano, a gente tem que pagar a dívida do
ano anterior.

ANDRÉ: Mas não tem nem uma saída para o colono sair desta situação?

COLONO: O único escape, que a gente tem, é entregar o que a gente tem em troca da conta;
daí o colono fica sem nada, eles empenhoram o que o colono tem e se ele não pagar a dívida
ele entrega o que ele tem.

ANDRÉ: Vocês assinam uns papéis, são muitos? É em forma de contrato? E vocês não ficam
com nenhuma cópia?

COLONO: São vários os papéis que nós assinamos, no decorrer da safra. Esses papéis são
contrato, ou como uma garantia que a gente fez a dívida. Normalmente, a gente não fica com
nenhuma cópia de nada; se a gente pede uma cópia, eles ficam ofendido, acham que a gente
ta desconfiando deles... Aqui fora é assim que funciona a coisa.

A sensação geral de que aderir ao sistema de produção integrada já não é tão proveitoso como
costumava ser, pode ser associada a diversas percepções. A primeira se refere aos preços
pagos hoje em dia pelas fumageiras, que são considerados muito baixos em relação às
necessidades dos colonos. Efetivamente, de acordo com o discurso dos colonos, os preços
pagos pelas fumageiras diminuíram na medida em que o número de famílias aderidas ao
sistema aumentou, especialmente nos últimos cinco ou dez anos. Especula-se que, desde
alguns anos atrás, o número crescente de contratos entre fumageiras e colonos implica em
maiores quantidades de trabalho por família, pois a produção total de tabaco na região
aumentou e cada arroba vendida pelos colonos alcança preços mais baixos. Com um número

210
maior de colonos produzindo tabaco, os que já produziam tiveram de aumentar a produção, a
fim de ampliar os habituais níveis de renda, o que ainda sustenta a tendência de preços mais
baixos. Com os preços pagos pelas fumageiras diminuindo, as famílias não podem pagar as
dívidas tão rapidamente como no passado, o que as amarra ao contrato. Particularmente,
quando um problema acontece na produção, como a seca intensa no ano agrícola de
2004/2005, as fumageiras pagam menos pelo tabaco com a justificativa da qualidade baixa, e
o lucro produzido pelas famílias cai a níveis tidos como insustentáveis. Em adição a estas
possíveis dificuldades, percebe-se um aumento significativo no custo de vida nos últimos
anos: por exemplo, dez anos atrás era necessária a venda de 20 arrobas de tabaco BO1 – o de
melhor qualidade – para se produzir um poço artesiano numa propriedade; hoje é necessária a
venda de 50 arrobas da mesma qualidade de tabaco. Similarmente, para remunerar um dia de
trabalho do diarista, costumava-se pagar uma saca de farinha de milho; hoje paga-se 8 sacas
do mesmo produto, ou 8 x R$ 5,00. De fato, os colonos temem esta atual superprodução de
tabaco, pois a consideram responsável por suas perdas na renda:

RENDIMENTO DO FUMO FICA ABAIXO DA PROJEÇÃO

[...]

Os preparativos para a próxima safra já começaram, em grande parte da região, com


a semeadura do fumo. O presidente da Afubra afirma que a orientação da entidade
aos produtores é não aumentar a área de plantio. Gralow afirma que o segredo é o
agricultor vender bem seu tabaco. “É importante não oferecer mais produto para o
mercado”, defende. Lembra que as campanhas antitabagistas podem trazer
conseqüências para a safra, justificando ainda mais a preocupação em evitar o
crescimento da cultura (GAZETA DO SUL, ano 61, nº. 300, 11/01/06).

A conversa abaixo, com a esposa de um colono, ilustra algumas das percepções atuais,
relacionadas ao sistema integrado de produção.

ALBARDÃO, 7 DE JUNHO DE 2005

Beth: Como já foram coisas que deu bastante dinheiro, André, mas agora não dá mais; não
tá fácil a coisa, não tá dando pra sobreviver...

André: Mas quando que dava dinheiro?

211
Beth: Ah, isso há alguns anos atrás, quando tinha menos, agora é muito plantador de fumo, e
eles não tão mais incentivando muito...

André: Aumentou a plantação?

Beth: A plantação... aumentou bem mais. Nós mesmos aumentamos bastante... mais e mais
despesas, e mais dívidas, e comprando [as fumageiras] cada vez mais mal. Só compra mal,
né André... nem sei, não tá fácil, não.

André: Sei... tem mais plantador, então?

Beth: Que, aqui? O Albardão é o lugar do fumo, né? Lugar do fumo, e aumentou muito,
demais. Todo mundo vive do fumo, sai aqui ó... só vê forno. Acho que tu já notou, já notou
isso aqui, ó. Só eu aqui tenho quatro. E aí começa, né, geralmente. Tá muito difícil, André. E
este ano aqui anda então pior. Pra matar mesmo, não é pra deixar vivo este ano. Eles querem
liquidar com nós todos este ano (risos).

Beth: Assim, de pagar bem pouco mesmo. Pagar mal. Tão comprando mal mesmo esse ano. E
a seca, né, André, acho que tu soube, né?

André: Soube, soube.

Beth: Já que a gente não teve um fumo muito bom, claro, este ano, que a seca não ajudou. E
aí eles comprando mal... E aí é a desculpa pra eles pagarem mal. E aí a gente precisa, né,
André? É daquilo ali que a gente tá sobrevivendo, e a gente tem que vender mal ou bem...
pagar as dívidas...

André: Não tem opção, ou você vende ou você vende.

Beth: Não, ou tu vende ou fica com ele dentro de casa! É assim. É a lei da sobrevivência aqui
(risos).

Beth: Eu acho que a gente tá... não sei... eu sei que se não melhorar isso aí, a maioria, eu
acho que os novos [os jovens] não vão querer lavoura lá na frente. Porque a coisa tá difícil,
não tá...

André: Então... como é que os novos estão, como é que a nova geração tá reagindo em
relação a isso?

Beth: Tá querendo mais a cidade pra trabalhar, porque como é que vão sobreviver? Porque é
um trabalhão, e mal-remunerado... Só se trabalha. E sabe o que é que é? Eu tô te falando,

212
André, verdade, eu vou te contar. A gente trabalha o ano inteirinho, André, e chega no final,
se tu faz as contas, não sobra nada.

André: Sério?

Beth: No final, se tu fizer as contas, não sobrou nada do que tu trabalhou. Que agora nós já
estamos sortido fumo pra mandar pra firma, já estamos já... plantando as mudas, que a gente
tem que plantar as mudas, e já vamos passar a plantar fumo agora em julho, e aí já vem
colher, porque a gente sempre, sempre, tá trabalhando, não é? E quando tu vai fazer conta,
né, pros da casa, ainda falta dinheiro.

André: É quase a sobrevivência só.

Beth: Sim, pra comer.

André: Pra pagar as contas e...

Beth: E olhe lá, né, André? E olhe... é muito, ó... se a gente não fizer assim, ó, vai pro ralo
nosso ordenado. Tá muito difícil. Pode ser que alguma coisa ainda melhore, não sei, a gente
não tá com muita esperança mais. André, senta, vai jantando!

André: Sento!

Segundo os colonos, o cultivo do tabaco foi proveitoso no passado, quando não havia muita
gente dedicada à cultura. De acordo com dados da Afubra, apesar do Brasil ser um dos
primeiros exportadores de tabaco do mundo e oferecer um produto de alta qualidade, os
preços alcançados pela produção brasileira não alcançou o nível apropriado nos últimos anos.
Todos os anos, os preços pagos pelas fumageiras são determinados ao final de um processo de
negociação. As conversações começam ao se iniciar a colheita, ao final de cada ano, e reúnem
os representantes dos colonos e das fumageiras. Os encontros com os representantes das
fumageiras são, geralmente, precedidos por outros encontros, entre os líderes dos produtores e
os colonos, quando a situação atual da cultura é analisada e uma proposta consensual a ser
apresentada às fumageiras é elaborada. Nestes encontros primários, os colonos discutem seus
custos, dificuldades e lucratividade, entre outros assuntos. Particularmente, os custos com a
produção atual, incluindo gastos com fertilizantes, lenha, força de trabalho, etc., são
identificados, e seu impacto nos preços é discutido. Mais tarde, nos encontros com os
representantes das fumageiras, os colonos apresentam seu preço consensual e as fumageiras
fazem suas contrapropostas, de acordo com sua análise de mercado. A determinação dos
preços a serem pagos pela matéria-prima depende de vários fatores, como qualidade dos

213
produtos (que também depende das condições na época da colheita, como o clima), demanda
internacional, existência de estoques internacionais, quantidade de matéria-prima vendida
pelos colonos, quantidade e qualidade da produção de outros países, etc. Em geral, a
determinação dos preços – uma decisão das fumageiras – leva em conta a complexa interação
destes fatores, além das demandas dos produtores. Recentemente, as fumageiras têm
determinado preços irregulares e baixos, e os colonos têm a sensação de que as companhias
“apertam num ano pra dar uma folguinha no ano seguinte”, referindo-se ao fato de que os
preços estão baixos, mas que em outros anos eles foram ainda mais baixos. Nas negociações
mais recentes, os pedidos dos produtores não foram completamente assimilados nas decisões
das fumageiras sobre os preços, a despeito das boas condições do mercado de tabaco.

TABELA DO PREÇO DO FUMO TEM AUMENTO DE 4%

Índice contempla proposta da indústria em caráter definitivo.


Produtores pediram 24,9%

Um reajuste de 4% sobre a tabela de preços praticada na safra passada. O aumento


foi anunciado pelo Sindicato da Indústria do Fumo (Sindifumo), durante reunião com
a representação dos produtores, formada pela Afubra e pelas Federações dos
Sindicatos Rurais e dos Trabalhadores Rurais dos três estados do Sul, ocorrida na
manhã de hoje, 10, na sede da Fetaesc, em Barreiros, distrito de São José, situado na
região da grande Florianópolis. [...] Os novos valores sobre o fumo, formalizados
pela representação das indústrias fumageiras, ficaram muito aquém da proposta das
entidades dos produtores, que pediram reajuste de 24,9%. Segundo Hainsi Gralow,
presidente da Afubra, o objetivo da proposta é de recompor a lucratividade do
fumicultor. Em relação à proposição da indústria, que resultou na não assinatura do
protocolo de comercialização, Gralow lamenta a decisão. “O aumento não contempla
nem mesmo a variação do custo de produção, apurado em 8,5%”, diz. O dirigente
ressalta, porém, que os produtores poderão obter ganhos maiores através de uma boa
classificação quando da venda à indústria. Ele lembra o baixo nível do estoque
mundial, atualmente em 5,2 milhões de toneladas, e o consumo, cuja média nos
últimos anos tem ficado acima de 6 milhões de toneladas. “Diante da qualidade do
produto brasileiro, a indústria vai vender a produção com facilidade”, acredita. Além
disso, Gralow enfatiza a quebra de produção, que nesse momento já é vista com maior

214
clareza. “Esse fator vai aumentar a disputa pelo nosso tabaco”, completa. Além do
reajuste de 4% à tabela, o Sindifumo reiterou outras garantias, a exemplo de safras
passadas, com destaque à compra total da produção; pagamento do frete e seguro do
fumo da casa do produtor até a indústria; aval para os financiamentos de insumos e
investimentos; repactuação das dívidas e o pagamento do fumo em quatro dias úteis
(AFUBRA, 2006).

Outra reclamação sobre o sistema de produção integrada refere-se à falta de autonomia do


colono, uma vez nele inserido. Na prática, o colono assume as funções de um empregado das
fumageiras, embora sem os níveis regulares de renda ou os benefícios sociais aos quais um
empregado registrado teria direito. Quando um colono decide entrar no negócio do tabaco,
deve escolher uma fumageira e produzir a quantidade certa de tabaco, de acordo com as
expectativas da companhia. O nível necessário de produção é rigorosamente controlado pelo
instrutor, que visita a propriedade a fim de verificar as condições gerais do cultivo. Durante o
processo de produção, o colono não tem que desembolsar dinheiro, exceto para pagar aos
diaristas que trabalham para a família durante os meses mais difíceis. Os créditos oferecidos
pela fumageira incluem os investimentos e recursos necessários à produção, e o colono os
paga com a quantidade de tabaco acordada. De acordo com a fumageira, toda a produção da
família deve ser destinada à companhia, para que se justifiquem os investimentos14; possíveis
desvios são considerados procedimentos ilegais. De acordo com o sistema, o colono não tem
um nível de renda regular durante o ano; diferentemente, ele também se utiliza de créditos da
fumageira para viver, somados às rendas geradas pelos outros produtos comercializados pela
família, quando este é o caso15. Assim, o colono também é dependente dos créditos pessoais
oferecidos pela fumageira durante o ano.

Os preços que serão, de fato, pagos ao tabaco produzido pelos colonos são determinados mais
tarde, de acordo com as condições de mercado e a qualidade produzida, e espera-se que o
colono tenha um excedente de lucro. Durante o ano, o colono não lida com dinheiro ao
produzir tabaco, mas com produtos, pois as fumageiras providenciam os materiais
necessários, incluindo fretes. A autonomia no processo produtivo é extremamente reduzida
em conseqüência desta situação. Neste contexto, os preços dos recursos providenciados pelas

14
Pode-se também especular sobre o medo das fumageiras do mercado paralelo de cigarros, pois é dito que a
maioria do tabaco usada como matéria-prima para os cigarros ilegais também provém da região. No Brasil, o
mercado ilegal de cigarros representa uma grande porcentagem do total do mercado.
15
De acordo com informações da AFUBRA, em média, 17% da receita familiar total é obtida por meio da venda
do excedente da produção de subsistência. Este dinheiro ajuda a família durante o processo produtivo do tabaco,
antes da realização dos lucros.

215
fumageiras são cotados pelas empresas; estes são, geralmente, mais altos do que os preços
praticados pelo mercado. Quando inserido no sistema de produção integrada, o colono não
possui condições de barganhar preços no mercado, pois não possui dinheiro para comprá-los.
No final, o processo de produção de tabaco é, essencialmente, receber os recursos das
fumageiras, executar um trabalho árduo e, ao final, entregar a produção às fumageiras e
ganhar o que estas companhias determinam. Os níveis de lucro variam, mas são muito
dependentes de fatores externos como o clima, ou o nível de preços também determinado
pelas fumageiras. Em alguns anos, quando o clima está favorável e as condições de mercado
são tidas como adequadas, os lucros dos colonos podem render algum conforto extra às
famílias; em outros casos, contudo, quando o colono “foi mal de colheita”, o lucro é o
suficiente para pagar as contas básicas e sobreviver, ou “sobreviver ao inverno”, como dizem
ao se referir ao intenso inverno que geralmente se enfrenta nos estados do sul do Brasil. Em
muitos destes últimos casos, a família acumula dívidas para o ano seguinte.

É difícil sair do sistema de produção integrada, ou mesmo plantar tabaco fora dele, pois os
colonos não têm muitas opções. Uma vez inserido no contrato, o colono só pode largá-lo
quando liquidar suas dívidas. Antes disso, nenhuma outra fumageira o aceitaria como
produtor associado. Na prática, o colono recém dedicado à cultura do tabaco terá dificuldades
em deixar o contrato nos cinco primeiros anos, pois os investimentos na propriedade devem
ser pagos. De fato, é raro que uma família liquide suas dívidas com as fumageiras neste
período. Com o passar do tempo, os maus resultados em alguns anos gerarão novos débitos, e
as famílias entrarão no ciclo de dependência. Entre as fumageiras, as políticas adotadas não
variam muito, não havendo um mercado competitivo entre colonos e fumageiras; no que se
refere aos colonos, as políticas e regras das fumageiras são, geralmente, percebidas como
igualmente hostis embora algumas políticas específicas possam ser consideradas mais
adequadas em algumas situações. Esta situação é especialmente verdadeira ao se considerar o
recente processo de associações e fusões entre as fumageiras. Por exemplo, os preços dos
recursos necessários à produção e disponibilizados pelas fumageiras não variam
significativamente, de maneira que o colono não possua opções de escolha. Além disso, trocar
de fumageira não é procedimento comum ou fácil. Entre as companhias há regras para a troca
de produtores. Quando alguém não possui mais dívidas, está insatisfeito com sua empresa, e
gostaria de comercializar com outra, a nova fumageira deve estar disposta a recebê-lo e
compensar a outra companhia transferindo outro colono insatisfeito. Plantar tabaco fora do
sistema de produção integrada é uma estratégia arriscada, de acordo com os colonos. Para

216
negociar com as fumageiras deve-se estar inserido no sistema, caso contrário pode-se não
encontrar mercado para vender seu produto, no caso de altos níveis de produção. As
fumageiras estão comprometidas em comprar o tabaco dos produtores associados e não o
fazem de produtores independentes. Estes teriam chance no caso de baixos níveis de
produção, mas esta situação não tem sido comum na região em anos.

Em adição à percepção de baixa autonomia, os colonos, geralmente, reclamam de outras


dimensões “cruéis” do sistema de produção integrada. A dependência dos colonos em relação
às fumageiras é reforçada ao se atingir a última fase do processo de produção de tabaco,
quando o produto é levado à companhia. De fato, ao venderem a produção de tabaco, um dos
grandes problemas discutidos pelos colonos refere-se à sua classificação final. Quando o
tabaco é re-classificado – e a última palavra é sempre do empregado da fumageira –, o colono
tem de aceitar freqüentes baixas na classificação do tabaco entregue, voltando para casa
frustrado. A entrega do tabaco é um momento tenso na relação entre fumageiras e colonos, e é
comum que os colonos deixem as negociações com raiva. Na prática, a fumageira,
geralmente, justifica suas baixas baseando-se em argumentos como baixa qualidade ou erros
na classificação. Esta situação acarreta diferentes interpretações e discussões entre os colonos
sobre as estratégias de comercialização capazes para minimizar estes problemas. Alguns
sugerem que as fumageiras obtêm vantagens por meio da exploração da ignorância dos
colonos. Um líder dos colonos, que havia terminado a escola secundária, descreveu suas
técnicas de comercialização, capazes de burlar as dificuldades impostas pelas fumageiras. Ele
acredita que as fumageiras possuam um sistema de seleção com base no qual escolhem um
entre cinco colonos, a quem pagarão um bom preço pelo tabaco. Em conseqüência, os demais
pensarão que seu tabaco era efetivamente de má qualidade, e que se é de fato possível ganhar
dinheiro. Ele afirma que, embora os colonos conheçam as categorias, eles não conseguem
realmente discutir a qualidade de seus produtos. Diferentemente das fumageiras, cuja
organização é admirável aos olhos dos colonos, a falta de qualificação entre os agricultores é
completa. Ele decidiu passar a vender sua produção ao final do processo, pois lhe parece que,
durante os últimos momentos da comercialização, as fumageiras são mais justas com os
fazendeiros16. Baseado em sua estratégia, ele conseguiu ganhar mais dinheiro em alguns anos,
mas em outros pareceu não funcionar muito bem. Como outro colono explica:

16
Foi possível identificar um registro que justifica a impressão do colono: o presidente da Afubra explica que
houve muitas dificuldades na comercialização da safra, havendo queixas dos agricultores. Observa que no
início as indústrias foram rigorosas com a classificação e depois a situação melhorou um pouco. Mas, na reta
final, as reclamações dos produtores voltaram novamente (GAZETA DO SUL, ano 61, nº. 300, 11/01/2006).

217
ANDRÉ: Vocês percebem quando as fumageiras estão baixando o valor do fumo de vocês?

COLONO: Sim, com certeza, quando eles deixam de comprar o fumo de boa qualidade e
rebaixa ele, o agricultor sabe, o fumo pode dar diversas qualidades.

ANDRÉ: O agricultor consegue identificar a qualidade do fumo ou a fumageira consegue


enrolar ele?

COLONO: Não, todos os colonos sabem a qualidade do fumo que eles produzem, e a classe
que ele pode ser vendido. No nosso caso eu planto fumo há dez anos, quando eu estou
descarregando um forno eu já sei a classe que o fumo é.

ANDRÉ: Quando vão para a fumageira eles satisfazem suas expectativas?

COLONO: Não, na maior parte das vezes eles compram como eles querem e o agricultor é
prejudicado; e é raramente a vez que eles compram na qualidade que o colono quer, depois
que o fumo entra nas esteiras de venda quem avalia é eles, aí eles pagam a classe que eles
querem, e a palavra final é dele. O que o colono pode fazer é retirar o fardo e levar de volta
para casa, aí passa um picareta na rua, o picareta fala: “eu te pago R$ 80,00 a arroba”, e
na firma eles queria pagar R$ 60,00 a arroba; você vai vender para o picareta, e é isso que
acontece.

No caso de não aceitação da classificação dada pelo técnico da fumageira, a única estratégia
possível ao colono é deixar a negociação, retornando para casa com seu tabaco, e vendendo-o
mais tarde a um picareta. O picareta é um negociante de tabaco que vem às propriedades dos
colonos e compra sua produção. No caso de uma classificação muito baixa na fumageira, o
picareta pode pagar preços mais altos em dinheiro, gerando mais lucro ao colono. No entanto,
esta é uma estratégia perigosa. De fato, quando o colono vende sua produção ao picareta, ele
está diminuindo a produção a ser entregue à fumageira, de acordo com o que foi estabelecido
previamente. A renda extra gerada pela negociação com o picareta irá custar mais débitos no
futuro e, em conseqüência, poderá aprofundar a dependência do colono em relação à
fumageira. Comercializar com um picareta é visto, entre os colonos, como uma estratégia a
ser considerada quando alguém está “com a corda no pescoço”. A negociação com o picareta
permite certo alívio nas finanças domésticas; porém, não resolve o problema maior de
dependência, além de piorá-lo mais tarde. As peculiaridades do sistema de produção integrada
criam outra função ao picareta. Como os colonos lidam com pouco dinheiro ao produzirem
tabaco, pagar a força de trabalho extra necessária durante os períodos intensos do sistema
218
produtivo, os diaristas, é muitas vezes um problema. Estes devem receber em bases diárias, e
os colonos muitas vezes têm problemas com o capital de giro necessário ao pagamento de tais
despesas; eles freqüentemente lidam com picaretas para levantar este capital e pagar as
despesas. Porém, o mesmo problema relacionado à diminuição na produção entregue às
fumageiras acontece nestas situações.

Ao comprarem a produção do colono, os picaretas são normalmente vistos como


comerciantes independentes, que vendem este tabaco a outros grupos econômicos e ao
mercado paralelo, numa negociação considerada fora das normas impostas pelas fumageiras.
De acordo com tais normas, os instrutores das fumageiras são constantemente responsáveis
pelo controle da quantidade, para que a produção total do colono, previamente acordada, seja
efetivamente destinada àquela companhia, que financiou a produção naquela propriedade.
Contudo, há outras interpretações para o papel do picareta no sistema. Ele também é visto
como alguém mandado pelas fumageiras para aliviar as finanças do colono, quando alguém
realmente enfrenta um problema em sua propriedade. De acordo com essa interpretação, o
picareta é orientado pelo instrutor, que acompanha a situação das famílias e indica aquelas
que provavelmente irão vender sua produção ilegalmente a fim de sobreviverem. A conversa
seguinte, com um líder dos colonos, ilustra algumas dimensões do sistema de produção
integrada, conforme discutidas até agora:

ALBARDÃO – 6 DE JUNHO DE 2005

COLONO: Desde quando eu comecei a plantar, quando não tinha tanta gente assim no fumo,
sabe, sempre foi assim. Eles davam a cordinha num ano, no outro ano puxavam um
pouquinho, sempre foi assim. Historicamente, sempre eles fizeram isso. Tanto é que quando
uma fumageira começa num ano, no outro ano eles estão ricos. Quer dizer, sempre foram
assim... Eles nunca deram muita chance, não.

COLONO: Eu acho que não é uma questão dos produtores, acho que é a questão...

ANDRÉ: O sistema, o sistema...

COLONO: É cartel, né? O sistema é de cartel. Não existe uma fumageira pagar um preço e a
outra pagar outro preço, é um preço só. Não tem uma diversificação de preço, é tudo um
preço só. E hoje, hoje uma é sócia da outra, uma tem tantos por cento do valor, e assim vai,
na verdade...

219
ANDRÉ: Elas se comunicam?

COLONO: Eu acho que sim, porque tudo é um preço só, entendeu? Não existe... É, Souza
Cruz ter um preço do adubo a 50, outra ter a 51, é tudo 50.

ANDRÉ: Então elas vendem os insumos num preço acordado?

COLONO: Lógico! E o fumo também é comprado por um mesmo preço. Não existe uma paga
um preço, outra paga outro preço, uma tem um preço mínimo e aí ir subindo, é todo mundo
num preço só.

ANDRÉ: Mas não existe, assim, é muito estranho eu imaginar que os contratos, não os
contratos, mas os preços dos insumos, por exemplo, são todos tabelados. É, não existe um
movimento que combata isso?

COLONO: Nunca ouvi ninguém dizer nada disso. Nunca ninguém falou nada. Nunca tem
isso, sempre é o mesmo valor. Até porque se fosse, se tivesse alguma mais barato, os
agricultores iam querer migrar, entendeu?

ANDRÉ: E essa migração, ela é possível a qualquer hora?

COLONO: Não, não é possível, tem que, pelo menos, estar com a sua dívida... Quem não está
devendo nada... Entendeu, acabou a safra, tem que estar... Mas dificilmente uma firma pega
um colono da outra.

ANDRÉ: Ah, é?

COLONO: Eles até pegam, mas, por exemplo, eles têm entre eles, lá em cima, na alta cúpula
lá, se eu pegar um freguês seu, eu tenho que te dar um meu, entendeu? Mas se tu sair
devedor, ninguém te pega.

ANDRÉ: Sério?

COLONO: Ninguém te pega, tu tem que sair, se tu sair por cima, quitou, aí bom, tá livre. Que
nem eu saí da Dimon, parei de plantar, hoje se eu quiser plantar de novo, planto pra quem eu
quiser, não devo nada pra ninguém. Planto pra quem eu quiser, eu estou livre. Adquiri minha
alforria, tô livre! Mas, se tu tiver devendo, aí não tem perspectiva, tem que ficar ali. E eles
fazem assim, ó, quando tá muito descontente, que nem, assim, eu tô descontente com a
Dimon, então a Souza Cruz vai lá e me pega, mas a Souza Cruz dá um descontente deles
pra... Entendeu? Aí faz a permuta. Mas eu não sei por que nessa região aqui, aqui em
Albardão, há vinte anos atrás, há quinze anos atrás, quando eu comecei, 90% dos produtores

220
era Souza Cruz; hoje 90% dos produtores é Dimon. Não sei por que isso, porque migrou, não
sei. Se ficaram, se a Souza Cruz deixou de investir, não sei. Agora, eles têm uma linha
diferente de trabalhar, eu acho que a Dimon migrou muitos produtores pra eles porque os
adiantamentos deles são mais polpudos, os outros são mais... Diminui um pouco mais.

ANDRÉ: Sei... E essa história de você ficar em dívida por algumas safras, é normal? Os
agricultores ficam em dívida mesmo, é uma grande parte deles que tem esse problema ou...

COLONO: Grande parte deles fica. Qualquer coisinha que der, de atrapalho aí, já ficam. A
maioria deles fica.

ANDRÉ: Daí você tava dizendo da questão do clima também. O clima é uma grande desculpa
pra se cair em dívida também.

COLONO: Uma grande desculpa pra cair em dívida. Mas assim, ó, o que acontece, quando,
às vezes, agora que os agricultores tão ficando mais sabidinhos, entendeu, então tá
ocorrendo de ficar muito mais endividado, porque aí quando chega, quando a coisa, que eles
vêem que vai apertar mesmo, que nem vai dar pra pagar as contas, eles pegam e desviam,
eles vendem pra outros, arrumam um picareta e põe pra vender, entendeu, porque aí fica um
pouquinho mais de capital de giro e negocia a dívida com a firma, entendeu, e aí a firma
negocia. Eles usam muito de fazer estimativa de produção, o orientador vem, e quando tu tá...
tu plantou, aí tem o número de mil pés que plantou, eles vão lá e conferem, plantou tanto. Aí
tu conferiu, tu plantou tantos mil pés. Aí quando tu tá... no médio, a lavoura tá na metade da
fase, eles vêm de novo e fazem uma estimativa de produção, eles vêem como é que tá a
lavoura e tal, vai produzir tanto, aí o agricultor tem que assinar, vai produzir tanto, tá?
Estimativa de produção. Aí, quando tá iniciando a colheita, eles vêm de novo pra renovar,
pra refazer a estimativa, ou pra mais ou pra menos, pra ver como tá a lavoura. O agricultor
tem que assinar de novo, se comprometer que vai fechar aquele valor ali...

ANDRÉ: E? O que acontece depois?

COLONO: Aí, o agricultor tem que se comprometer com aquela estimativa, 10% a mais ou a
menos, o agricultor tem que se comprometer, tem que fechar aquele... entendeu? Fechou ali,
aí quem te dá esse aval perante a fumageira é o orientador, o que vem fiscalizar lá na casa.
Vem e fiscaliza e vê se tu tá...se tá desviando fumo ou não; eles chamam de orientador.

ANDRÉ: Então o orientador também é um controle contra os picaretas?

COLONO: Também. Também contra o desvio de fumo, né? Contra o desvio.

221
ANDRÉ: Sei, entendi... E por que as pessoas desviam fumo, porque elas recebem mais no
mercado paralelo?

COLONO: Não, porque aqui eles não precisam usar pra conta, que ele é um dinheirinho que
vem livrezinho, entendeu?

ANDRÉ: Mas, de qualquer maneira, você tem que pagar sua dívida, vendendo pra fumageira
ou vendendo fora...

COLONO: Tem que pagar, mas aí se tu não conseguiu pagar, tu renegocia pra mais anos,
pra não pagar, entendeu?

ANDRÉ: Ah, tá. É como se fosse mais crédito.

COLONO: Mais crédito. Mais um creditozinho que tu tem pra sobreviver, pra ti passar o
ano. Pra ti ter...

ANDRÉ: É, mas isso não é nenhum alívio, né?

COLONO: Não, não é. Alívio na hora, né? Mas aquilo tá lá adiante.

ANDRÉ: Mas você disse que às vezes esses picaretas são da própria empresa.

COLONO: Da própria empresa.

ANDRÉ: Como isso?

COLONO: Pra não te dizer, pra não te dar o gosto de dizer que te deram a chancezinha, ou
te dizer que a fumageira afrouxou um pouquinho, entendeu... porque aí não força pra
ninguém entendeu? Pra não te dar o gosto de...

ANDRÉ: É como se fosse uma válvula de escape?

COLONO: Sim, pra não dizer que..., pra eles não perderem o produto também, né? Quando
eles tão vendo que o cara tá enforcado, ele vai vender fora, eles tão vendo que tu tá
precisando, o orientador diz “olha, o cara tá mal mesmo, ele vai vender”. E aí eles vão lá e
mandam comprar o teu próprio fumo. E aí tu ganhou aquela valvulazinha de...

ANDRÉ: Mas isso não é explícito, assim?

COLONO: Não, isso no decorrer do tempo eu fui pegando o esquema como é que é. E aí o
agricultor toma aquele fôlego, que não perdeu tudo, que não deixou o produto cair nas mãos
de outros.

ANDRÉ: E quem seriam esses outros?

222
COLONO: Outras fumageiras, outros grupos. Eles fazem de tudo pra não perder o produto,
né? E pra não dar o gosto de dizer que a briga é exceção. Eles são organizados. O que os
agricultores tão devendo é de se organizar e ter um grupo forte pra combater, porque eles
são organizados, tem que se tirar o chapéu pra eles.

COLONO: Eles fazem planejamento a longo prazo... Hoje aqui, ó, hoje tem... Se for lá em
Santa Cruz, tem... Em Venâncio, que são os dois pólos aí, tem acho que mais de dez, doze
fumageiras diferentes, mas são três grandes grupos; tem dez, doze, mas são três grupos, que
é o grupo Souza Cruz, o grupo Monk, que é o grupo da Dimon, e a Universal. São três
grandes grupos que dominam. A Meridional juntou com a Dimon agora. Tudo é um grupo só.

COLONO: É, a Universal. Então esses três grandes grupos que dominam, entende? Tem
outras fumageirazinhas pequenininhas, mas que uma tá ligada com a Dimon, outra tá ligada
a essa, que tá ligada a aquela, que tá ligada a outra... Que são aquele tipo que eles
inventaram pra dizer “ai, eu tô descontente na Dimon, eu vou plantar pra Premium”, mas a
Premium é da mesma, entendeu, do mesmo grupo, do mesmo dono, só muda o nome.

Entre os colonos, as relações com os diaristas e outros profissionais, no contexto do cultivo do


tabaco, também são fontes de percepções negativas relacionadas ao sistema de produção
integrada. O diarista é um profissional independente, que vende seu esforço durante os
períodos de trabalho mais intenso, recebendo diariamente. Seu papel é antigo na região.
Antes, o diarista era visto como um trabalhador pobre, que não possuía nenhuma terra ou
autonomia; portanto, era discriminado. Hoje, para algumas pessoas (especialmente os mais
velhos), ainda é visto como uma ocupação menor, “eles trabalham de dia para comerem à
noite”; ser diarista também é tido como pertencer a uma classe social inferior, pois estão
“submetidos aos proprietários de terras”. Para a maior parte das pessoas, no entanto, os
diaristas são vistos como detentores, hoje, de uma posição de trabalho privilegiada, o que se
deve aos lucros decrescentes conseguidos com a agricultura e às altas demandas atuais por sua
força de trabalho. Neste sentido, seu papel é visto como sendo cheio de vantagens; entre elas,
a autonomia: previamente associada às atividades dos colonos, mas agora ligada às atividades
dos diaristas. “Eles sempre encontram trabalho, são bem pagos e não assumem as maiores
responsabilidades”. A vida dos diaristas é tida por muitos como confortável, com menos
estresse: “com seu trabalho, eles ganham dinheiro para carne, para ir às bodegas nos finais
de semana; todos eles fazem todas as refeições ao dia, e têm as contas de luz, gás e água
pagas. Alguns deles têm uma vida mais ordinária, menos confortável, mas estes preferem
trabalhar menos e viver uma vida mais relaxada, ao invés de trabalhar duro e ter mais

223
conforto”. Particularmente, há um sentimento de insatisfação dos colonos ao perceberem que
os diaristas ganham o mesmo (ou mais) que eles com o cultivo de tabaco, apesar do baixo
nível de responsabilidade que assumem ao venderem sua força de trabalho.

Se ser um diarista é freqüentemente considerado mais interessante que ser um colono, por
outro lado, as desvantagens incluem os direitos básicos, como aposentadoria, que não é
observado, pois o contrato de trabalho é informal. Este problema muitas vezes os leva a dar
um “jeitinho”, tornando assim seu trabalho algo atrativo. Em relação aos demais atores na
conjuntura do plantio de tabaco, as relações e percepções dos colonos em relação aos
parceiros do sistema conhecido como ‘meiar’, aos parceiros de arrendamento, e às outras
pessoas que cobram para emprestar dinheiro aos colonos também trazem muito
descontentamento. Para os colonos mais pobres, que precisam alugar mais terras, a produção
de tabaco é uma atividade difícil, que impõe responsabilidades estressantes, e gera um
pequeno lucro. Neste caso, as receitas com o tabaco podem atingir um nível abaixo do
mínimo, pois as despesas são particularmente altas, graças à necessidade de se pagar pela
terra em dinheiro – no caso do arrendamento – ou com metade da produção, no caso do
sistema ‘meiar’. Finalmente, os colonos levantam fundos para diversas necessidades
relacionadas ao processo produtivo; as pessoas que emprestam dinheiro cobram juros e
diminuem ainda mais a lucratividade do processo. Em geral, a sensação final é a que produzir
tabaco é o trabalho mais difícil, que implica em assumir responsabilidades estressantes, sendo,
entretanto, pouco interessante e rentável, uma ocupação caracterizada por nenhuma
autonomia. A passagem a seguir, de minhas anotações de campo, retrata a conversa com
Waldemar, um colono que vive numa pequena porção de terra e tem trabalhado de acordo
com dois papéis: como parceiro do sistema de ‘meiar’ e como diarista.

ALBARDÃO – 11 DE JUNHO DE 2005

O ‘bloco de agricultor’ é o documento de trabalho que os colonos possuem. Waldemar vem


“meiando” (isto é, trabalhando de acordo com o sistema de ‘meiar’) por cinco anos; ele tem
assinado o ‘bloco de agricultor’ durante este período, e ainda faltam três anos para a
aposentadoria – ele afirma que os agricultores precisam assinar seus blocos por oito anos
para se aposentarem. Mas seu parceiro disse que pode dar um jeito de aposentá-lo no
próximo ano, quando terá formalmente seis anos. Waldemar trabalhou por dezesseis anos
nas fumageiras (como safrista), e acumulou tempo de aposentadoria; mas parece que o
tempo de trabalho dentro e fora da fazenda não podem ser somados. Waldemar também me
224
contou que as pessoas trapaceiam com freqüência nos blocos de aposentadoria; fazendeiros
compram a produção virtual de outros, pagam o imposto barato e contam o tempo para
aposentadoria. Houve um ano que Waldemar não plantou, mas pediu que o fazendeiro
assinasse seu bloco, ele “vendeu” milho. O bloco foi para a prefeitura para a verificação, ele
pagou o imposto – que era de R$ 10,00, mas a transação não aconteceu realmente; o tempo
foi adicionado à contagem da aposentadoria. Depois de trabalhar para as fumageiras,
Waldemar também trabalhou como diarista por alguns anos; mas como se tratava de um
contrato de trabalho informal, não se tem o bloco assinado durante tal período e, portanto,
não se pode acumular tempo para a aposentadoria. Perguntei a ele se trabalhar como
diarista não era melhor que como produtor, ele apontou o problema da aposentadoria. Mas
disse que no próximo ano não irá plantar tabaco, mas irá trabalhar como diarista, e que tem
um amigo com diversos negócios que irá assinar seu bloco, como se Waldemar fosse
produtor. Ele me contou que, uma vez, depois de pagar todas as matérias-primas e as dívidas
relacionadas à produção, não havia sobrado R$ 1.000,00 para sua família, para o ano
inteiro. Isto era o mesmo que R$ 83,00 ao mês, ou US$ 33. Waldemar paga R$ 16 ao mês de
eletricidade – por possuir o sistema rural de conta de luz – e a água é gratuita por possuir
sua fonte própria. Ao contrário, o trabalho de diarista é bem melhor, como ele diz, pois paga-
se R$ 40 por dia em épocas de bastante trabalho, ou R$ 20 em tempos mais calmos. Nestes
dias mais calmos os diaristas, ou peões, são chamados para tarefas de limpeza ou outras
tarefas variadas, a fim de deixar a propriedade pronta para a próxima colheita. É mais
proveitoso, de acordo com Waldemar, o trabalho como diarista; ele me contou a história de
um parente dele que comprou uma motocicleta nova apenas trabalhando como diarista,
motos novas não são facilmente adquiridas na região por serem caras; este rapaz pagou mais
de R$ 5.000,00.

Percepções negativas a respeito do sistema de produção integrada também têm sido


relacionadas aos problemas de saúde causados pelos produtos químicos utilizados na cultura
de tabaco. Com a chegada das fumageiras nos anos 1920 e a crescente racionalização da
cultura, produtos químicos foram crescentemente introduzidos no processo produtivo a fim de
proteger as plantas contra insetos e doenças, entre outros problemas. Conseqüentemente,
outro problema que os habitantes de Albardão e das comunidades vizinhas enfrentam está
relacionado ao uso intenso destes fertilizantes químicos. O contato regular com tais
substâncias causa inúmeros problemas de saúde em muitos colonos, como a bibliografia
sugere. Embora eles saibam acerca dos possíveis problemas causados pelos produtos

225
químicos, não conhecem os detalhes e, muitas vezes, têm problemas ao manipulá-los. É
comum ouvir testemunhos de pessoas que já não podem mais trabalhar, que perderam os
movimentos de algumas partes do corpo, que se cansam com facilidade. As crianças da
região descrevem os problemas que enfrentam suas famílias, como mostra a passagem a
seguir, de minhas anotações de campo:

ALBARDÃO, 2 DE JUNHO DE 2005

(…) Todos têm uma história sobre problemas com produtos químicos. Josué disse que seu pai
– 49 anos – tem utilizado fertilizantes em sua cultura de tabaco durante muitos anos,
servindo-se do utensílio de aplicação que vai às costas. Nos dias ensolarados, o produto
químico pingava em suas costas e, de acordo com seu pai, ele costumava beber água gelada.
Ele já não pode trabalhar nas plantações de tabaco porque tem câimbras e o médico afirmou
que são resultado do produto químico. Atualmente seu pai trabalha como diarista, fazendo a
seleção do tabaco, já que não pode mais trabalhar em sua própria plantação. (…) Cléia
também me contou que teve problemas com os químicos, o que a obrigou a visitar um médico
uma vez por semana em Rio Pardo, há algum tempo. Ela não possui todos os movimentos em
um de seus braços. Ela é jovem, ainda não tem 18 anos, e sua família não tem apoio
financeiro das fumageiras porque, oficialmente, o trabalho de menores de idade é proibido.
As fumageiras pedem às famílias que assinem um documento em que assumem total
responsabilidade pelo trabalho de adolescentes, e quando eles têm problemas, as fumageiras
isentam-se da responsabilidade.

Também é possível relacionar o uso de fertilizantes à alta incidência de problemas no sistema


nervoso entre os produtores rurais, levando possivelmente a um maior nível de suicídios na
região, como reporta a bibliografia. De fato, recentemente, algumas epidemias de suicídio têm
sido relatadas em algumas regiões do Brasil. Após investigações parciais, elas foram
associadas ao uso de fertilizantes químicos na agricultura. Enquanto a média brasileira de
suicídios era de 3,8 casos para 100.000 pessoas, 21 pessoas cometeram suicídio em Santa
Cruz em 2001, cidade com 100.000 habitantes. Os colonos do Rio Grande do Sul foram
especialmente afetados pelo problema, o que alimenta especulações científicas a respeito dos
perigos ligados ao intenso contato dos colonos com produtos químicos, no contexto da
agricultura familiar. A causa ainda não foi comprovada, mas muitos estudos científicos
sugerem a associação de alguns produtos químicos a diversas doenças, como depressão,
intoxicações e distúrbios de comportamento (GIRARDI, 2002; FALK ET AL, 1996;
226
FONSECA, 1996). Particularmente, o nível de magnésio no organismo das pessoas
investigadas por tais estudos científicos era bem maior que os níveis médios, e a substância
tem sido associada a muitas doenças. Entre os sintomas geralmente reportados pelos colonos
da região, é comum as pessoas dizerem que “sofrem dos nervos”, isto é, ficam irritados,
ansiosos, deprimidos, ou nervosos facilmente. Na prática, os efeitos dos químicos no
organismo podem acentuar as situações estressantes que os colonos enfrentam diariamente em
suas propriedades, especialmente os desafios e incertezas das culturas. De acordo com artigo
publicado na revista Galileu:

O índice de mortes é um reflexo da complicada condição de vida do agricultor. A pesquisa,


realizada com 315 colonos, constatou altos índices de morbidade psiquiátrica (44%),
ansiedade (65%) e de pessoas que dizem "sofrer dos nervos" (cerca de 25%). O fumicultor
Haroldo Ivo Bolduan, de 54 anos, conta que na época da colheita facilmente passa mal
depois do trabalho e fica “irritado por qualquer coisa". "Eu tô sofrendo do nervo. Às vezes
acontecem umas coisas que não dão bem certo. Aí a gente fica nervoso. Produzir fumo não é
fácil", lamenta-se. Bolduan lembra que o pai, Artur, também sofria desse mal. Chegou a ser
encaminhado para um sanatório, mas voltou para casa ainda doente. "Um dia ele acordou,
tomou café da manhã e saiu. Depois de cinco minutos fez aquilo." Artur não agüentava mais
a aparente "inutilidade" em que ele se encontrava e se enforcou. "Ele não comentava nada,
mas estava muito nervoso. A idéia sentou na cabeça e não teve jeito. Ele gostava muito de
trabalhar (na lavoura) e não podia mais. Sentiu que não tinha mais valor."

Esse tipo de doença "dos nervos," citada por Bolduan, tem como pano de fundo o estresse a
que é submetido o colono, que trabalha o ano inteiro para uma única colheita e está sujeito o
tempo todo a algo dar errado: granizo ou calor excessivo fora de hora, pragas na lavoura e o
preço baixo na hora da venda. Tudo isso pode ser agravado pelos efeitos dos produtos
químicos usados. Vários estudos mostram que pessoas expostas aos agrotóxicos apresentam
irritabilidade. "A ansiedade e a morbidade psiquiátrica são mais elevadas do que as
registradas em outros estudos na zona urbana", afirma a psicóloga Raquel Ribas Fialho, que
coordenou o trabalho de campo. "O questionário aplicado deu um perfil da situação, indicou
que podem existir problemas psiquiátricos nessa população. Mas não deu um diagnóstico. É
necessário agora fazer entrevistas em aprofundamento" (GIRARDI, 2002).

Em adição aos problemas causados pelos produtos químicos, os colonos de Rio Pardo
enfrentam problemas relacionados ao acesso ao sistema de saúde pública. As comunidades
227
rurais não contam com postos de saúde. Assim, seus habitantes ficam completamente sem
ajuda para controlar doenças crônicas ou, pior, em situações de emergência, como infartos,
por exemplo. Albardão teve o projeto para um posto de saúde aprovado, mas sua
implementação foi recentemente adiada. O governo afirma que manter um posto de saúde
demanda a construção de um prédio, a presença de um clínico-geral, de um pediatra, um
enfermeiro e remédios. Não basta construir o prédio e não poder operá-lo. Os habitantes de
Albardão utilizam as facilidades médicas de Vera Cruz, cidade vizinha, pois lá os serviços são
de melhor qualidade. No entanto, trata-se de uma prática ilegal, uma vez que não são cidadãos
de Vera Cruz; para terem acesso às facilidades médicas, têm de mentir, dizendo que habitam
ali. Albardão também é muito longe para médicos e enfermeiros, e encontrar os recursos
humanos adequados para trabalhar na área é uma tarefa complicada, o que muitas vezes serve
de justificativa à qualidade e alcance ruins do sistema público de saúde na região. Em Passo
da Areia, que está a apenas 8 km do centro da cidade, a população recebe a visita semanal de
um médico, o que é considerado um privilégio.

A cidade de Rio Pardo centraliza hospitais públicos e serviços médicos, fazendo com que as
pessoas tenham de se dirigir até lá quando têm um problema. Ir das comunidades rurais até o
centro da cidade é uma tarefa difícil para muitas pessoas, pois o sistema de transporte público
que interliga as comunidades possui pouquíssimas opções de horários. Na prática, as famílias
devem utilizar seus próprios meios de transporte para se locomoverem, e o meio mais popular
é a motocicleta, por ser bem mais barata que o automóvel. A motocicleta é um equipamento
muito importante na vida dos moradores das comunidades, mas não se trata do mais adequado
meio de transporte hospitalar. Como as estradas não são asfaltadas e não possuem iluminação
adequada, as pessoas devem dirigir lentamente, e alguns poucos quilômetros se transformam
num longo e desagradável caminho. O carro ou a motocicleta tremem muito e o motorista
deve prestar muita atenção no caminho. Além disso, dirigir pode significar ‘enfrentar o frio’,
por exemplo, durante os frios invernos do Rio Grande do Sul, ou ainda, ‘enfrentar a poeira’,
durante as épocas secas do ano, ou ‘enfrentar o atoleiro’, em épocas de chuvas intensas, ou
ainda, de maneira geral, ‘enfrentar perigos genéricos’ durante as noites. Em suma, deixar a
propriedade e dirigir-se até o centro da cidade é, em geral, uma tarefa difícil, pois demanda
muita mobilização por parte das pessoas. Ao se deslocarem especificamente ao sistema de
saúde, os cidadãos sabem ainda que, assim que chegarem a seu destino, os problemas estarão
apenas começando: conseguir uma consulta médica pode ser um pesadelo. Em conseqüência
destes fatos, entre outros, os colonos não contam com a assistência próxima e contínua de

228
médicos, ou outros profissionais especializados; portanto, os problemas com fertilizantes
químicos são freqüentemente tratados apenas quando se tornam graves.

4.7 A necessidade de diversificação

Examinando as percepções negativas associadas às atividades de produção de tabaco, os


colonos discutem estratégias alternativas de vida. Entre as quais, a mais importante é a
diversificação das atividades produtivas. De fato, os colonos perceberam que a chegada das
fumageiras foi acompanhada de um gradual abandono de algumas atividades tradicionais na
propriedade. Considerando-se que estas atividades são intrinsecamente ligadas ao conceito de
‘colono’, o envolvimento geral das famílias com a monocultura de tabaco é freqüentemente
associado a um tipo de rejeição inapropriada às raízes das pessoas. O colono tradicional é
aquele cujas atividades produtivas são em sua maioria voltadas à subsistência familiar, de
maneira que a família tenha uma vida confortável e independente, isto é, não dependentes em
demasia de outras instâncias. De acordo com esta interpretação comum, o colono e sua
família são vistos como uma entidade social autônoma, possuidora de terras e, logo, capaz de
ter uma vida razoável baseada nos próprios meios familiares. Neste sentido, o conceito de
colono implica originalmente em uma relativa emancipação da unidade familiar, apesar desta
não ser mais vista como uma realidade. A diversificação seria a estratégia que tornaria o
colono menos dependente da indústria tabagista, se não independente; as famílias
recuperariam antigos padrões de vida e, principalmente, a autonomia perdida nas últimas
décadas. De fato, a estratégia de diversificação vem sendo vista como urgente e necessária,
pois as recentes ameaças representadas pela Convenção-Quadro reforçam a necessidade de se
desenvolver outras atividades econômicas nas pequenas propriedades.

Na realidade, tal estratégia tem sido levada em consideração há certo tempo. De acordo com
Vogt (1997, p. 163-64), há muitas décadas a diversificação de culturas nas propriedades dos
produtores de tabaco tem sido sugerida pelas fumageiras, principalmente pela Souza Cruz,
como uma estratégia necessária de vida. De acordo com análise do autor, a cultura de
subsistência desenvolvida dentro das propriedades contribui com a diminuição dos custos da
produção de tabaco, pois as famílias consomem comida produzida em casa e destinam o
excedente da produção ao mercado, produzindo alguma renda extra com tais produtos e,
portanto, permitindo melhores condições de vida e a reprodução da força de trabalho. Com o

229
objetivo de promover as culturas de subsistência, a Souza Cruz implantou políticas
organizacionais e desenvolveu um projeto social a fim de sensibilizar as famílias, sugerindo
os riscos das monoculturas17. Além dos discursos tradicionais das fumageiras em favor da
diversificação, mais recentemente, outros atores de relevância social e política assumiram os
medos dos colonos locais, que desenvolveram percepções negativas relacionadas à
dependência ao tabaco, ou ao sistema de produção integrada, mais especificamente. A Afubra,
associação de produtores de tabaco, alerta os produtores sobre essa necessidade e,
ultimamente, promoveu o tema durante seu evento mais importante, a Expoagro Afubra, a
maior feira agropecuária da região. Tradicionalmente focada no cultivo de tabaco, a Expoagro
Afubra tem promovido, nos últimos anos, a exibição de técnicas e suprimentos para culturas
alternativas:

EVENTO VAI TER DIVERSIFICAÇÃO E TECNOLOGIA

A Expoagro 2006 estará recheada de novidades. O evento promovido anualmente pela


Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) vai trazer para a região especialistas
em tecnologia para a lavoura e intensificar a apresentação de ações voltadas à
diversificação produtiva nas pequenas propriedades. Os debates em torno desses dois
eixos devem ganhar força por causa da ratificação da Convenção-Quadro para
Controle do Tabaco. De acordo com o coordenador da mostra, Marco Dornelles, a
idéia de difundir os lançamentos para o setor partiu da necessidade de buscar
melhores resultados para o mercado agrícola. “A diversificação e o uso de novas
tecnologias são importantes para isso”, completou.

ALTERNATIVAS

Além de uma oportunidade para conhecer o que há de mais recente para as lavouras,
a Expoagro Afubra garante espaço para a busca de opções de renda aos pequenos
produtores. Segundo Hainsi Gralow, embora todas as discussões se voltem para a

17
Como descreveu Gardelin (1957): A razão principal que a monocultura não alcançou ainda um nível de
impressionar está no comportamento de algumas das maiores compradoras de fumos. Por exemplo, a
Companhia de Cigarros Souza Cruz não aceita como seu fornecedor um colono que só plante fumo. Nem que,
com isso, enchesse todas as suas terras de ‘Virgínia-Dixie’, ou de Amarelinho. ‘Esse colono não nos serve’,
dizia-nos um instrutor da companhia. Se a colheita do fumo falhar, ele dirá que foi o fumo que o pôs na miséria.
E não plantará mais [...] A monocultura é trágica. Bem o sabem as companhias organizadas. O colono
passando a comprar tudo de fora, não tendo outra fonte de renda, termina caindo numa rotina alimentar que, se
em tempos normais, como dieta não é das melhores, resulta em depauperamento físico.

230
lavoura de fumo, o evento tem um foco diferenciado. “Não é uma feira sobre o tabaco,
mas sim para apresentar a possibilidade de novas culturas em toda a região”, disse.
Dentre os expositores que já confirmaram participação constam as variedades
alternativas e técnicas que garantam sua adaptação no Vale do Rio Pardo. “Existem
muitas opções de renda para a pequena propriedade e é isso que vamos mostrar”,
afirmou (GAZETA DO SUL, ano 61, nº. 265, 01/12/2005).

O governo e as instituições de assistência social também assumiram a necessidade da


diversificação, em especial com a clarificação dos riscos relacionas à aprovação da
Convenção-Quadro. Particularmente, o governo municipal discute a implantação de políticas
visando viabilizar as condições necessárias para a diversificação de culturas entre os colonos.
Entre tais discussões estão aquelas realizadas em eventos públicos que congregam líderes
comunitários e outros colonos, por exemplo, os encontros nas associações de produtores e nos
centros comunitários. Nestas ocasiões, os assuntos tratados incluem a necessidade de novas
qualificações relacionadas às culturas alternativas, a identificação de novas estratégias
comerciais e organizacionais a serem implantadas e o desenvolvimento da infra-estrutura
indispensável à diversificação. A recém criada Agência de Desenvolvimento do Rio Pardo
também se engajou na discussão acerca da diversificação, assimilando políticas federais e
metodologias que dizem respeito ao desenvolvimento sustentável local. Outras associações
sociais e técnicas também se engajaram nessas discussões – algumas mais recentemente,
outras desde algum tempo –, em especial, a EMATER e o CAPA são duas organizações que
fornecem assistência técnica aos colonos em suas tentativas de diversificação.

AGRICULTURA APÓIA OPÇÕES DE DIVERSIFICAÇÃO

A Secretaria da Agricultura desempenha um papel importante no processo de


valorização da vocação agrícola do município de Rio Pardo. O trabalho do Poder
Público municipal se direciona a busca de alternativas de diversificação nas
propriedades rurais. O secretário da Agricultura, Luiz Ronaldo Moraes, afirma que,
atualmente, 90% dos pequenos produtores do município cultivam fumo. Explica que a
administração municipal não é contrária à cultura, mas pretende conscientizar os
agricultores sobre a importância de ter outras opções de renda, principalmente com a
produção de alimentos. Uma das medidas que recebem incentivos é o fortalecimento
das atuais 27 associações dos produtores rurais existentes no município. Outras
quatro devem ser criadas em pouco tempo. Elas têm papel fundamental no
231
gerenciamento de tratores e outros implementos agrícolas que a Prefeitura
disponibiliza para melhorias nas propriedades. O secretário da Agricultura explica
que as entidades distribuem, entre os sócios e não-sócios, das máquinas e dos
secadores de grãos, equipamentos de silagem e espalhadores de calcário. As
associações também terão participação nas discussões, com a Agência de
Desenvolvimento do município, de planos de alternativas de renda. Um deles é o
Projeto Traíra, que se encontra na fase de cadastramento dos produtores interessados
em obter auxílio de máquinas para a implantação de açudes à criação dos peixes. O
secretário de Agricultura observa que o município realiza, anualmente, a Festa do
Peixe, e quase toda a carne consumida no preparo dos pratos vem de outros
municípios e regiões. Na primeira fase do projeto, que se inicia agora em julho,
haverá a construção de 40 açudes. O secretário da Agricultura afirma que já há perto
de 80 agricultores inscritos, mas alguns deverão ser contemplados apenas na segunda
etapa. Um trator-esteira da Prefeitura está em reforma e, no próximo mês, deve
começar os trabalhos nas propriedades, com subsídio de 75% no custo da hora de
serviço. Luiz Ronaldo de Moraes afirma que o município ainda deverá dar apoio com
cursos e disponibilização de técnicos para a orientação aos produtores, com posterior
acompanhamento. Outra idéia é a formação de uma associação de piscicultores e a
construção de um abatedouro para agregar ainda mais renda à atividade.

FRUTAS – Outra opção que tem o apoio do Poder Público municipal é a produção de
frutas. Hoje existe uma pequena agroindústria familiar de suco de uva em Rio Pardo.
O secretário da Agricultura afirma que a Prefeitura pretende dar incentivos aos
proprietários na ampliação e buscar mais plantadores interessados na formação de
parreirais para fornecer matéria-prima. O secretário explica ainda que a empresa
Oderich, de São Sebastião do Caí, propôs a compra de toda a produção de pêssegos e
de figos do município, mas ainda faltam agricultores interessados em investir na
atividade. Moraes observa que existe incentivo também para o cultivo de citros,
amora e mirtilo. Esse último, apesar de ser uma fruta ainda pouco conhecida na
região, tem grande valor de comercialização pelas suas propriedades medicinais, com
mercado até nos Estados Unidos, e vendido atualmente por R$ 70,00 o quilo. Além do
apoio técnico da Emater/RS–Ascar para a produção de frutas, a Prefeitura oferece
subsídio de 50% na aquisição das mudas. O secretário destaca que o município

232
também participa na busca do mercado para a venda. “Muitos produtores de fumo
permanecem na atividade justamente pela garantia de comercialização, o que
dificilmente acontece com outras culturas”, explica Moraes. Outra opção dos
agricultores é o plantio de milho doce, utilizado para conservas e venda garantida
para a empresa Oderich. Moraes afirma que 80 plantadores do município estão em
preparativos para fazer a colocação do cultivar na resteva do fumo (GAZETA DO
SUL, Especial Retrospectiva 2005, disponível em www.gazetadosul.com.br)

Apesar de ser intensamente discutida nas comunidades, a implantação de uma estratégia de


diversificação esbarra em várias dificuldades. Especialmente, podemos citar a existência de
uma “zona de conforto” entre os colonos, caracterizada pela aversão ao risco, a acomodação e
a falta de organização. Em primeiro lugar, podemos afirmar que, enquanto inserido no sistema
de produção integrada, a capacidade do colono em variar as atividades familiares está
severamente reduzida por ele possuir uma fonte de renda regular e poucas oportunidades de
aprendizado. A fumageira oferece ao colono todos os recursos necessários à produção,
introduzindo e ensinando a ele as técnicas adequadas para produção com máxima qualidade.
Além disso, a fumageira provém o colono com ajuda financeira e logística necessárias à
colheita, de tal maneira que ele não assume integralmente o papel do gestor da fazenda, mas
apenas as funções relacionadas às exigências técnicas diárias da agricultura, tais como o uso
de fertilizantes, o transplante das mudas e a irrigação. Grande parte da administração das
propriedades foi na verdade transferida ao design e aos parâmetros do sistema de produção
integrada, operado pelas fumageiras, e que define o nível de lucro que a família receberá ao
final do ano agrário. Neste contexto, ao colono resta apenas checar se os procedimentos do
sistema foram corretamente executados, por exemplo, se a quantidade correta de tabaco foi
registrada, se a classificação esperada foi aceita, ou se a fumageira depositou a quantia certa
de dinheiro no banco.

Na prática, as estratégias de diversificação surgem em uma situação caracterizada pelas


reduzidas possibilidades de aprendizado. Implantar uma nova atividade comercial demanda
aprender uma nova empresa e se articular com as pessoas. As necessidades de aprendizado
incluem os procedimentos técnicos das novas culturas, penetração de mercado, operações de
venda, logística, finanças, etc., além de todas as competências comportamentais associadas à
nova atividade. A obrigação de aprender esbarra, entretanto, na falta de tempo, vontade,
acesso e auto-estima dos colonos. De fato, eles percebem que o tempo não é algo abundante
na conjuntura do cultivo de tabaco, especialmente com a crescente quantidade de matéria-

233
prima cultivada. Se a cultura do tabaco permite algum tempo livre durante alguns meses, as
culturas de subsistência e a criação de gado também exigem tempo em muitas propriedades.
Em outros meses, as atividades relacionadas ao tabaco demandam muitas horas diárias, ou até
mesmo dias e noites inteiros, como acontece nos últimos meses do ano. A mecanização ainda
é muito baixa no contexto desta cultura, que é basicamente uma atividade artesanal e
exaustiva. Além do mais, no que diz respeito às atividades produtivas das famílias, as
oportunidades de aprendizado não estão facilmente disponíveis, exceto para assuntos
relacionados ao tabaco, especialmente providenciadas pelas fumageiras por meio de boletins
informativos impressos e dos instrutores, por exemplo. Em adição a todas estas dificuldades, a
produção de tabaco gera uma fonte de renda que, embora pequena, é quase livre de riscos,
pois as fumageiras comprometem-se em comprar a produção do colono. Nesta conjunção,
tomar a decisão de deixar a produção de tabaco é logo vista como algo muito arriscado e até
mesmo louco; da mesma maneira, diversificar as atividades produtivas é tido como um
trabalho arriscado, difícil e penoso.

A zona de conforto criada pelo sistema de produção integrada pode ser ilustrada ao se
explorar as reações dos colonos às ameaças representadas pela Convenção-Quadro. A
perspectiva de ter de substituir a cultura de tabaco por outras culturas causa grande emoção e
aversão na maioria dos colonos. Neste conjunto, de acordo com seus discursos, a cultura de
tabaco é a única estratégia produtiva capaz de gerar níveis de lucratividade como os
realizados hoje, apesar dos baixos preços pagos pelas fumageiras mais recentemente. O
tabaco é visto como a única cultura lucrativa que pode ser implantada em pequenas
propriedades; todas as outras não gerariam a mesma renda. As ameaças representadas pela
Convenção-Quadro podem ser associadas ao grande medo que os colonos têm, hoje em dia,
de ter sua qualidade de vida ainda mais deteriorada. Nas interações sociais diárias, quando as
pessoas conversam sobre a Convenção-Quadro, as idéias de extinção da cultura são severa e
ardorosamente criticadas com base nos argumentos das fumageiras; no contexto dos grupos
sociais, uma voz em favor da Convenção-Quadro é considerada como uma ofensa a toda
comunidade. Segundo Miguel, um dos líderes comunitários de Albardão, “as pessoas são
radicalmente contra, e entram em pânico quando pensam que ela pode acontecer”. Nas
discussões diárias,

“parece que há um bloqueio na mente das pessoas da comunidade e elas não


compreendem que o tabaco causa problemas sérios de saúde às pessoas envolvidas

234
com seu cultivo e à saúde das pessoas que fumam, e que os gastos públicos com saúde
são altos demais e, então, não vale a pena futuros investimentos neste mercado”.

No entanto, há vozes importantes que divergem do medo geral. Miguel mencionou certa vez a
parábola da vaca, que ele geralmente conta às pessoas para sugerir a grande oportunidade de
se viabilizar novos padrões de vida. De acordo com esta parábola, um sábio surpreende a
todos quando mata a única vaca com a qual a família sobrevive, numa aparente atitude hostil.
Mais tarde, a família é forçada a vislumbrar novos modos de vida, e a atitude do sábio foi
compreendida quando a família atingiu maiores níveis de felicidade e de provisão material.
Embora Miguel afirme que alguém precisa “matar a vaca da comunidade” para que ela possa
começar a fazer algo, além de trabalhar com o tabaco, a incerteza associada a esta evolução
parece levar à resistência geral. Os que tentam mudar a situação são considerados “loucos”,
pois as coisas parecem arriscadas demais em comparação aos baixos riscos oferecidos pelo
cultivo de tabaco. Certamente, a substituição de culturas iria demandar um período
significativo de transição, para que os colonos aprendessem uma nova empresa, a fazer
dinheiro e sobreviver delas. A situação ideal seria, de acordo com Miguel, que o período
transitório levasse a uma situação em que os colonos se tornassem independentes das
multinacionais e organizassem suas próprias empresas, por exemplo, desenvolvendo uma
cooperativa agro-industrial para processar e adicionar valor aos produtos produzidos nas
propriedades familiares. Há, de fato, histórias regionais que reforçam tais possibilidades,
como o sucesso dos colonos italianos de Caxias do Sul, cidade ao norte do estado do Rio
Grande do Sul, que desenvolveram sua região sem serem dependentes de uma companhia.

Contudo, a história local reforça o ceticismo geral acerca destas possibilidades. De acordo
com Schmidt e Goes (2002) e Schmidt (2003), a região do Vale do Rio Pardo tem sido o
cenário de atividades cooperativas pioneiras e relevantes, em especial, com a chegada dos
imigrantes alemães em Santa Cruz do Sul. De fato, o acelerado desenvolvimento sócio-
econômico de Santa Cruz do Sul está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento horizontal
das cooperativas, administradas pela população e sem a intervenção estatal. Desde a segunda
metade do século XX, no entanto, a influência e importância das cooperativas diminuíram.
Houve um intenso declínio em suas atividades, quando as mais importantes enfrentaram sérias
crises e faliram. As cooperativas foram associadas à má administração, à corrupção e à
ineficiência desde então. “Falar sobre cooperativas em alguns ambientes ainda provoca
reações de apatia, ceticismo e até mesmo revolta” (SCHMIDT E GOES, 2002, p. 126). A
despeito do recente crescimento nas iniciativas de cooperativas na região, as experiências

235
locais com tais desafios têm-se caracterizado pelo desvio de recursos pelos administradores
das cooperativas, percepções de má administração, pela falta generalizada de qualificação e
comprometimento, por comportamentos obscuros e autoritários, por perdas financeiras e,
finalmente, pelo instável e insuficiente apoio dado pelas autoridades locais a estas iniciativas.
Mais especificamente em Albardão, uma iniciativa local de cooperativismo dirigida por um
grupo de famílias, entre os quais Miguel e sua esposa Neiva, também não obteve sucesso,
como mostra a passagem de minhas anotações de campo:

ALBARDÃO, 5 DE JULHO DE 2005

Contaram-me a história de seu antigo grupo de amigos que costumava se encontrar


regularmente; eles possuíam um calendário com festas de aniversários, isto é, cada família
organizava as festas de aniversários das outras famílias; eles faziam festas surpresas, mas o
hábito era tal que as festas já eram esperadas assim que alguém estivesse para comemorar o
aniversário. Neiva e Miguel se sentiam privilegiados por haverem terminado o colegial, e
pensavam ter um olhar privilegiado sobre os problemas da comunidade. Ambos cursaram
Teologia mais tarde, com ênfase nas questões sociais. No contexto do grupo de amigos, eles
costumavam promover os valores do cooperativismo, como força ao desenvolvimento, por
exemplo, sugerindo a organização dos colonos em cooperativas. Certa vez, decidiram
organizar uma empresa de agro-negócio na comunidade; eles queriam abrir um negócio
para industrializar a produção de frango; iriam realizar todo o processo até que o frango
estivesse pronto para ser cozinhado; mas queriam fazer o que chamam de ‘frango criollo’,
não o frango que as pessoas normalmente comem. O frango criollo não passa pelo mesmo
processo de crescimento que o frango normal. Os produtores de frangos normais utilizam
remédios para os fazerem crescer mais rápido, incluindo outras técnicas, o que deixa o gosto
do produto diferente e também menos saudável. No interior, as pessoas apreciam muito o
frango criollo por ter melhor gosto e ser mais saudável; trata-se do frango que as pessoas
normalmente comem em casa. O grupo de amigos foi mobilizado; tinham as análises de
mercado e os planos operativos prontos; construíram com seus próprios recursos os
pavilhões para a empresa, mas ainda precisavam de algum tipo de ajuda para adquirir o
equipamento necessário ao processo produtivo. Eles tinham um acordo com o governo
municipal, que os prometera uma série de coisas; mas o governo mudou no meio do
processo, e o novo governo os abandonou, embora tivesse prometido seguir os acordos
anteriores, antes das eleições. O grupo de amigos começou a entrar em crise; já tinham

236
prontas todas as formalidades burocráticas; a cooperativa já existia em termos jurídicos.
Foram atrás de bancos, mas as taxas de juros eram muito altas para eles, e o negócio se
tornaria inviável. Os amigos abortaram o projeto, e também não fazem mais as festas de
aniversários. O pavilhão está lá, inutilizado. O governo municipal aceitou o pavilhão
existente como pagamento das dívidas feitas em conseqüência do projeto, e, portanto, eles
não tiveram maiores problemas com a falência da cooperativa.

Particularmente, estratégias de diversificação exigem articulação social, pois o colono precisa


contar com a ajuda de outros para coletar informação e programar decisões. Nas
comunidades, no entanto, o aprender não é encorajado, pois muitas famílias negam,
freqüentemente, as possibilidades de se organizar para pensar e implantar novas estratégias de
produção. Neste sentido, os indivíduos mais dispostos à mudança sugerem não ser
empreendedora a maior parte das pessoas na comunidade; pior, algumas pessoas desejam,
freqüente mas veladamente, que as iniciativas dos demais dêem errado, quando alguém tenta
algo novo. De fato, a prática cultural local caracteriza-se pela inveja e pelo individualismo de
muitas pessoas, que realmente não entendem as razões pelas quais alguém trabalharia por um
projeto ou causa coletiva, por não haver salário, mas apenas estresse e frustração. Neste
contexto, as pessoas também mencionam a falta de confiança no trabalho colaborativo entre
as pessoas. Em Passo da Areia, por exemplo, Noeli e um de seus jovens colaboradores
sugerem que as comunidades não são, geralmente, entusiastas a propósito de novas
iniciativas, e as pessoas não encontram apoio nelas para suas novas idéias. Há muita inveja e
fofoca na comunidade, e as pessoas nunca ajudam; “se elas podem, elas deixam as pessoas
para baixo. Ajudar? Nunca! As pessoas se intrometem na vida alheia e algumas desejam que
os negócios dos outros dêem errado”. Envolvido num projeto de diversificação, o jovem
colaborador de Noeli, Mauro, também teme trabalhar em grupo por ser muito difícil se chegar
a consensos na comunidade; ele sugere que, se um dia o grupo não conseguir atingi-lo, todo o
trabalho coletivo pode ser perdido.

Estas barreiras são mais facilmente compreendidas ao se considerar o conjunto social no qual
os colonos estão inseridos. De fato, a maior parte dos colonos não terminou o ensino
fundamental. Estes baixos níveis de educação formal relacionam-se às maneiras como os
colonos percebem a si mesmos. O colono é tido como “um homem de pouca educação, rude,
que não entende muito mais além do seu trabalho”. A baixa auto-estima é realmente um
problema entre as pessoas da comunidade. Muitos colonos põem barreiras ao comunicar ou
expressar suas idéias, por se virem como detentores de poucos argumentos e de maneiras

237
erradas, por utilizarem um linguajar incorreto. Assim, têm muitas dificuldades em construir,
apresentar e discutir argumentos mais sofisticados, sendo facilmente convencidos por pessoas
tidas como detentoras de mais conhecimento e melhores competências de comunicação, ou
ainda, desistindo das discussões ao perceberem sua incapacidade de contestar. Nesta
conjuntura, alguém que tenha alcançado níveis mais elevados de educação formal é altamente
respeitado entre as pessoas, como eu, que fui muitas vezes tratado como “doutor” por meus
interlocutores. Na prática diária das associações de produtores, e outras iniciativas coletivas,
por exemplo, estas questões materializam-se na recusa da maioria das pessoas em participar
ativamente de discussões mais elaboradas, quando muitas assumem posturas de observação,
delegando aos poucos líderes as responsabilidades decisórias.

Em especial, muitos colonos resistem à possibilidade de sonhar com uma vida melhor, em
geral, pois isto requer mais ‘educação’ e ‘articulação social’. É possível associar estes
sentimentos à recusa geral em se engajar em projetos coletivos, cujos objetivos são
freqüentemente considerados impossíveis. Por exemplo, neste mesmo contexto, o colono não
confia na competência do outro colono como líder, ou como alguém realmente capaz de trazer
vantagens sociais à coletividade. De fato, esta ‘dúvida’, ou falta de confiança, pode estar
associada ao fato de, historicamente, o ‘colono’ sempre ter sido um título pejorativo; pois se
trata do agricultor pobre ou pequeno, isolado, em contraste aos indivíduos poderosos e
articulados, aos políticos, ou aos estancieiros, por exemplo. Esta ‘dúvida’, ou falta de
confiança nos resultados passíveis de serem alcançados pelas lideranças, também se relaciona
aos sentimentos de solidão e resignação que povoam a consciência dos agricultores.
Antigamente, o colono era freqüentemente associado às pessoas rudes das montanhas, no
território do Rio Grande do Sul, aqueles que tiveram de trabalhar duro para sobreviver. Mais
tarde, com o rápido desenvolvimento das antigas colônias de imigrantes, como Santa Cruz do
Sul, o termo colono perdeu algumas de suas conotações pejorativas, mas ainda transmite
significados associados à aspereza e ao isolamento das pessoas.

Mesmo entre aqueles dispostos a diversificar suas atividades produtivas, as barreiras práticas,
geralmente, implicam no adiamento dos planos. “Ser um colono hoje em dia não é fácil”. À
medida que o desenvolvimento tecnológico atinge as comunidades, as necessidades das
famílias crescem, não apenas em termos do sistema produtivo familiar (a mecanização), mas
também em termos de qualidade de vida esperada pelas famílias. Nesta conjunção, “se meu
vizinho possui uma televisão, nós também temos de ter uma.” Se a vida era bem mais simples
no passado e ter água em casa era uma questão de se subir às montanhas para buscá-la, hoje o

238
desenvolvimento tecnológico trouxe conforto, como ter água diretamente nas torneiras; mas
também trouxe despesas e, em conseqüência, a dependência das fontes externas de renda.
Apesar de produzirem algum alimento em casa, uma porcentagem crescente das necessidades
familiares depende de rendimentos, pois as contas devem ser pagas. Tais fatos tornam as
famílias dependentes do comportamento orientado ao mercado ou, mais especificamente, para
a maioria, do sistema integrado de produção, que gera pouca renda, mas numa base regular e
mediante poucos riscos.

Neste conjunto, diversificar as atividades econômicas nas propriedades, geralmente, exige


envolvimento e investimentos, e tais critérios são vistos como incompatíveis com as
exigências práticas da produção de tabaco e das atividades de subsistência. Se a família decide
plantar morangos para vendê-los no mercado aberto da cidade, ela precisará construir uma
nova estufa adequada para a produção, o que demanda tempo e dinheiro. No entanto, os
orçamentos familiares são extremamente apertados, e realizar tal investimento provavelmente
aumentaria sobremaneira os riscos de falência, aos quais a família está constantemente
exposta. Mesmo que o negócio dê certo, para se obter retornos adequados leva-se tempo – o
que os colonos sugerem não possuir, por não terem acesso a crédito. De acordo com o
comportamento típico brasileiro, as famílias dos colonos adquirem novos aparelhos
domésticos – como televisões, videocassetes e motocicletas – e as dívidas com as lojas são
parceladas e pagas com juros, durante muitos meses, período durante o qual o colono está
comprometido com sua dívida e não pode se expor a altos riscos financeiros.

A próxima conversa, com dois líderes dos colonos, ilustra as dificuldades associadas ao
sistema de produção integrada e às estratégias de diversificação na região. Ambos têm uma
visão positiva das estratégias de diversificação, assumindo que precisam implementá-las
enquanto sugerem algumas dificuldades a elas associadas.

[DISCUTINDO O PROJETO DE DIVERSIFICAÇÃO CHAMADO “AJAE” – PARTE 1]

COLONO 1: [...] Então vamos dizer assim, bota aí cinco mil real, faz uma estufa, vamos
fazer um grupo de cinco aí, ó, fazer cinco estufas aí, ó, vamos trabalhar, vamos lá buscar
mercado, eles fizeram, ah... em Rio Pardo, eles trabalharam um tempo agora, antes da seca,
com... verdura ecológica, fizeram o levantamento, verificaram qual é o ponto que vendia
melhor, tentaram... Mas depois faltou o quê? [A seca veio e] Faltou a água, não tinham

239
dinheiro pra fazer o poço artesiano, e não fizeram a estufa. Faltou o material dele... E agora,
começar como? Esse é o grande problema do pequeno...

[DISCUTINDO O TRABALHO DO FILHO NA FUMAGEIRA, COMO SAFRISTA]

COLONO 1: Aí, então, tá... aí tu tá vendo ele chegar da fumageira... Tá. Chegando da
fumageira. Trabalha, sai de madrugada daqui. Por falta desse recurso, ele não... dentro da
propriedade, como são pequeno, ele não pode ficar aqui, ele tem que buscar o recurso [para
subsistência da família] de fora. Agora, se ele vai buscar o recurso de fora, ele tem que
deixar, como tava dizendo o Noeli, ó, ele não tá chegando junto lá na outra...

COLONO 2: Então, isso tudo são dificuldades. Dificuldades. Tá... assim, a oportunidade [de
trabalho na fumageira] apareceu agora, quatro, cinco mês, ó. Amanhã ele termina lá. Ele tem
que pegar, achar outra, não pode parar...

ANDRÉ: Qual o seu trabalho?

Filho do colono 1: Trabalho no fumo. Lá nas fumageira, na indústria, em Santa Cruz.

COLONO 1: Então, lá abre a vaga nessas... Sessenta, cento e vinte dias, por exemplo, quatro
meses aí ... Dada a oportunidade, vai lá, pega esse dinheiro... que a gente é pobre, tem que
ter sempre, né?

ANDRÉ: Aproveitar a oportunidade.

COLONO 1: Claro que esse, esse trabalho..., muito melhor seria uma estufa..., só que essa
estufa, se tu fazer ela, ela vai te... ela vai dar às vezes seis meses pra dar total retorno...

COLONO 2: Pra dar rendimento, né?

ANDRÉ: Sei.

COLONO 1: Aí nesses seis meses, um pobre, como é que fica? Ele tem que buscar outra
fonte... Só que daí ao buscar ele perde... Ele perde... a oportunidade de...fazer...de ganhar
isso aí. É, isso aí, a nossa comunidade em geral é assim.

COLONO 2: O pequeno agricultor tem muita dificuldade por isso; porque, pra entrar num
projeto, ele tem que sobreviver, né?

ANDRÉ: Isso é crédito. Isso é crédito...

COLONO 1: Tá, mas não pode dar muito crédito. Se dar muito, pega muito, e não faz nada,
aí fica devendo. Esse crédito não pode ser... a gente sempre não pode dar o peixe, a gente tem
que dar o caminho...
240
COLONO 2: Sim, mas um pouco de crédito, como esse agora que tá fazendo, tem que ter.

COLONO 1: Sim, o crédito tem que ter. Essa é a dificuldade.

[DISCUTINDO O PROJETO DE DIVERSIFICAÇÃO CHAMADO “AJAE” – PARTE 2]

COLONO 1: O projeto deles foi... mas, só veio com uma exigência, em uma propriedade só...
Porque aí veio dois contos pra cada um [de um fundo de investimento para a diversificação
do governo municipal]. É uma dificuldade também, mas eu acho que ainda é a melhor coisa.
Por exemplo, veio dois contos, são cinco, o grupo deles é cinco. Veio dez mil real, fazer isso
tudo.

ANDRÉ: Tá.

COLONO 1: Que eles fizeram um projeto pra plantar hortaliça. Só que isso aí é muito bom,
mas também teria que mudar. Porque é o seguinte, o meu tio, que tá dentro do projeto, ele
cedeu a terra, cedeu tudo. Luz, pra botar o motor lá, tudo. Só que daqui lá, tem três
quilômetros e meio. Ele tá no projeto. O correto era eles “vamos trabalhar dentro do nosso
projeto hoje?”. Então vamos trabalhar. Mas, pra ele sair daqui até lá, isso é uma das coisas
também, ó, é grupo? Tá certo. Mas esses dois mil, se viesse dois pra cada um, cada um
fazia...

COLONO 2: Seu pequeno...

COLONO 1: ...seu pequeno... aí, sobrou dez minutos, ele vai ali, capinar. Carpir o pé de
repolho dele. Agora, se sobra uma hora, não adianta ele ir lá, chega lá, a uma hora já
venceu.

COLONO 1: Eles ganharam esse projeto com essa condição... trabalhar num lugar só. E aí
foi na propriedade do meu tio lá. Ele disse, “olha, eu dou a propriedade, vou dar a
propriedade", tem bastante árvore. Porque se tu queres se meter num projeto desses aí...
porque agora nós tivemos uma estiagem aí que, nem a grama não... né? E aí, tu tá num
projeto desse, investiu toda tua renda, e dá uma lesão de tempo desse, tu não tem recurso, vai
fazer o quê? Tem que pegar a roupa, os pelego pra dar. Né, Noeli?

COLONO 2: (Risos)

COLONO 1: É que tu não tem de onde tirar. Essa é uma das coisas que sempre a pessoa...
faz a coisa, mas pensando... acho que todo mundo faz, tu vai fazer alguma coisa, tu tem que
pensar, porque... clima do tempo é clima do tempo. Amém ou não amém. Se corre bem, tudo
bem, tu bota teu dinheirinho no bolso. Mas se dá um problema?

241
[PERSPECTIVAS PARA O FUTURO]

ANDRÉ: Então, o seguinte, não fossem essas necessidades, por exemplo, de trabalhar nas
fumageiras, o que vocês fariam?

COLONO 1: Pois é, aí tinha que trabalhar na propriedade, aí não saía da propriedade...

ANDRÉ: E aí, fazer o que? Tem alguma idéia, tem algum sonho de desenvolvimento seu na
propriedade aqui, o que vocês fariam?

COLONO 1: Ah, é esse tipo de coisa que a gente tá tentando fazer. É... por exemplo, uma
feira ecológica na cidade, que aí tu faz seu produto e tu tem aonde vender. É esse tipo de
coisa. Agora sabe que, com o grupo faz isso, agora tá vindo, embalar mandioca, esse é um
projeto que eu quero entrar.

ANDRÉ: Por quê?

COLONO 1: É, nós temos, dentro das associações agora, vai vim sobre o aipim. Então, como
embalar ele e vender no mercado. Porque a maior dificuldade nossa, nós... produzir a
mandioca, nós produzimos, mas...

ANDRÉ: ...embalar...

COLONO 2: A organização de chegar lá.

COLONO 1: Embalar e chegar lá. Aonde botar ela. E aí esse é o erro... e eu quero, já falei
em casa um dia, vou arrumar cinco companheiros, vamos lá plantar nossa lavourinha, vamos
buscar o mercado, porque não adianta, o fumo não é mais alternativa, o fumo tu é um
escravo dele.

[SOBRE O SISTEMA DE PRODUÇÃO INTEGRADA]

ANDRÉ: O fumo; você é um escravo dele?

COLONO 1: Sim, te digo porque, exemplo, se tu... tu foi mal de colheita, só mesmo pra pagar
as conta... Como é que tu vai começar uma outra, uma outra... plantar o fumo de novo? Tem
que chegar na fumageira e “olha, eu só posso plantar se tu me der cinco real pra mim me
manter até eu mandar o fumo de novo.” Prontamente, a fumageira tem dinheiro, tem recurso.

COLONO 2: Pronto. Tu tá escravizado de novo...

242
COLONO 1: Tu tá escravizado. Tu faz o teu produto, vai lá, te pagam e pronto.

COLONO 2: Tem que ter uma alternativa pra escravidão...

COLONO 1: É disso aí que nós temos que sair fora.

COLONO 2: E o governo apóia muito porque ele dá...

COLONO 1: Dá renda, dá muita renda.

COLONO 2: É. Muito ICMS.

COLONO 1: Então a gente pode dizer que é um escravo branco. Às vezes eu falo assim, claro
que não posso dizer, que eu também planto fumo, né, eu mantenho a família com o fumo
também; mas a vida da gente tá chegando pro lado que é muita gente indo no fumo...

ANDRÉ: Sei.

COLONO 1: ...e, se bota um barco que cabem cem pessoas pra botar quinhentos, quando vê
tá tudo lá no fundo...

COLONO 2: Mas é um mal que ainda é necessário. É, por causa que, como o CEDEJOR
veio, como as associação tão aí, tudo, que os grupos tão se organizando, é com esse
pensamento de procurar alternativa. Não terminar com o fumo.

COLONO 1: Não, não terminar.

COLONO 2: É, é poder ter outra alternativa pra melhora da propriedade, de subsistência, de


tudo o que puder fazer pra ir se organizando de outra maneira, pra que um dia pode até, se
quiser, deixar do fumo...

COLONO 1: É. Porque se tu chegar lá, no final do fumo, não sobrou nada; mas tu tem um
franguinho aqui, tu tem uma vaquinha com leite aqui do lado, não precisa ir lá na fumageira
pra pedir dinheiro. Tu sabe que aqui entra um pouquinho, aqui entra outro... se tu tiver um
açude que tem uns peixinhos ali, bom, agora, mês que vem vai ser quaresma... vou vender
aqueles peixinhos pra mim não ficar tão... não vou pedir, não vou ficar engatado com eles.
Eu tenho daqui.

ANDRÉ: Essa percepção da dependência da indústria do fumo... ela é geral?

COLONO 1 e COLONO 2: É geral.

COLONO 2: Ela é geral.

243
COLONO 1: Mas ainda, como eu te disse, ainda vai ter alguém aqui e dizer que o fumo... que
o fumo é a solução da vida. Aquele que começou agora, ou que ainda tá com bastante dívida,
ou que fez uma safra boa... Se tu chega na casa de um produtor que fez uma safra cem por
cento, ele vai dizer “não, pra mim o fumo é o melhor, eu não quero outra coisa”. Vai ter, não
vai, Noeli?

COLONO 2: ... e até não digo que elimine com ele, mas que a comunidade não seja
dependente só de uma fonte, né? Que tenha alternativas, né?

COLONO 1: Porque eu acho que aí, tem muita gente que é... dependente de porco...

COLONO 2: ...de frango.

COLONO 1: De frango!

COLONO 2: Tem dependência de frango, que tem um colono lá, cria vinte mil pinto, de
quarenta ou cinqüenta dias, ele é um escravo da multinacional lá, que ele não tem como se
libertar, ele...entrega um lote e tem que entregar outro. É.

[...]

ANDRÉ: Na dinâmica do fumo, tá, a compra e venda do fumo, a plantação do fumo, as


margens conseguidas, o que se ganha com fumo hoje. Tá se apertando? No sentido de... em
termos relativos, já se ganhou mais com fumo ontem do que hoje? Como é que tá isso?

COLONO 1: Já, já. Ontem, tinha produtor que comprava as minhas terra, hoje acho que o
produtor...

COLONO 2: ...tem que vender.

COLONO 1: ...tem que vender.

COLONO 2: Teve os anos, os anos de ouro do fumo...

COLONO 1: Teve.

COLONO 2: E agora eles vêm assim, ó, um ano dá, o outro tira. É como aquilo, não
podemos marcar, derrubei os caras num ano, dei uma folguinha no outro. E em termos de
fumo não se fala em Souza Cruz só, porque Souza Cruz, hoje aqui na região, eu acho que tem
trinta por cento... É a Universal, a Dimon se juntou com outras aí.

COLONO 1: A Meridional. É Dimon e Meridional, as duas se juntaram, tem uma cadeia


muito forte. Então a Souza Cruz tá com trinta por cento do fumo da região.

244
COLONO 2: Viu, o fumo... tem essa coisa de se falar em fumo se pensa em Souza Cruz. Mas é
aquilo, hoje os domínio, o mando, não é da Souza Cruz, né? Ela tá, eu acho que numa base
de ... Em Albardão não tem dez por cento. É tudo Tabacos, Universal, Dimon. E a Universal
é considerada a maior exportadora de fumo do mundo...

COLONO 1: É, e eu acho que é a realidade, né? Isso aí...

[UM CAMINHÃO CHEGA NA PROPRIEDADE E ROBERTO SE REFERE A ELE MESMO]

COLONO 1: É. E agora o Roberto. O Roberto já tá comprando as coisas, já tá se engatando.


É a realidade da vida! Eu tenho uma relação que eles que traz tudo em casa. Tá aí, ó, beleza!

COLONO 2: Tu não precisa de dinheiro, não precisa nada, tu vai pagar na safra. Vem as
flores, pra fazer a muda, vem o adubo, vem a semente, vem tudo.

COLONO 1: Vem tudo! Tu ganha tudo em casa.

COLONO 2: E mais o dinheiro pra ti se...

COLONO 1: É, dinheiro é aquele negócio, dinheiro se tu quer, tu reverte, se não quer, faz do
teu recurso...

ANDRÉ: Espera aí, não estou entendendo.

COLONO 1: Esse aí... ele é o caminhoneiro, é o que vem carregar o nosso fumo. Ele pega
nossa produção e leva pra fábrica.

COLONO 1: Agora, hoje ele vinha já de lá, entregou fumo. Eu fiz o pedido, de bandeja, de
adubo pra poder sanear minha muda.

ANDRÉ: Ah, então aqueles isopores ali...

COLONO 1: É pra botar mudinha dentro. Aí então ele já tá... como ele veio de caminhão, ele
já vem trazendo o pedido.

COLONO 2: Traz o adubo, traz a...

ANDRÉ: Mas eu ouvi dizer que sai mais caro fazer assim do que ir lá comprar na loja.

COLONO 1: Sai, sai! Tu ouviu certo! Mas eu tenho pra comprar?

COLONO 2: Mas ele não tem dinheiro pra comprar. Porque o pouco que sobrou pra ele, da
firma...

245
COLONO 1: ...dá pra comer! Se eu tivesse dinheiro eu dizia “não, não, deixa que eu compro
do meu.” Se eu comprar agora, com a firma, eu pago quatro reais por cada uma delas. Se eu
vou ali, e eu quero comprar cem bandejas, “ó, te pago três”. Tu sabe que o comércio é assim,
vende. Mas eu não tenho esse dinheiro pra dar pros caras.

COLONO 2: O agricultor é descapitalizado, ele não trabalha com capital dele. Ele trabalha
numa relação que ele recebe tudo, entrega e sobra um lucrinho dele. O lucrinho dá apenas
pra ele passar o inverno, como diz o gaúcho.

COLONO 1: E olha lá ainda... (Risos)

ANDRÉ: Entendi. Pra ele passar o inverno.

COLONO 1: Tu é paulista, vai aprender muito com os gaúchos aqui! (Risos) Vai aprendendo
as coisas! A realidade...

ANDRÉ: É como se fosse um empréstimo, ele tá...

Roberto e COLONO 2: Sim, é um empréstimo!

ANDRÉ: ...ele tá te dando todos os meios pra você produzir...

COLONO 1: Trabalhar, trabalhar...

ANDRÉ: ...você produz, daí você fica com o lucro final...

COLONO 1: É.

ANDRÉ: ...mas entra na contabilização do negócio, você fica com preços maiores do que se
você fosse lá comprar...

COLONO 2: Se tu tivesse capital do teu bolso e fosse especular no mercado, tu comprava


mais barato.

ANDRÉ: Mas é tudo contabilizadinho, tudo certinho?

COLONO 2: Tudo, tudo certinho.

ANDRÉ: Vem um balancinho da coisa?

COLONO 1: Tudo, tudo direitinho. E é outra coisa aqui, ó, mesmo se esse produtor, ele seja
folgado, aí ele vai lá buscar isso aí com o dinheiro dele. Mas ele não tá vinculado à firma, e
se dá um excesso de fumo, aonde ele vai botar o fumo? Não dá pra botar o fumo, ele perde.

COLONO 2: Ele tem que ser filiado pela firma...

246
COLONO 1: Pra ela poder consumir...

COLONO 2: pro consumo.

COLONO 1: Senão aonde eu vou vender esse fumo? Eu não posso por onde eu quero. A
fumageira não, ela... ela tem a exportação dela.

ANDRÉ: Ela se vira?

COLONO 1: Ela se vira.

COLONO 2: Ela tem obrigação de comprar.

ANDRÉ: Entendi.

COLONO 1: Se vale cem e ela pagar cinqüenta, não é bom, né?

ANDRÉ: Entendi.

COLONO 1: Né, e agora eu vou plantar por conta, também é um risco que eu corro. Dá um
ano de pouco fumo, eu vendo bem o meu fumo, botei o dinheiro todo no bolso. Mas e se for
um ano bom? E se enche as fumageiras, vai sobrar o que pra ti, aí tu não tem onde vender. Se
eu não me proteger, eu posso deixar de ganhar.

COLONO 2: É um monopólio.

COLONO 1: É.

COLONO 2: É quase um monopólio, é meia dúzia que domina o mercado. É um oligopólio.


Umas cinco fumageiras, no Brasil, vamos dizer, que domina o mercado. Porque uma não
paga mais que a outra.

ANDRÉ: Existe um mal-estar da população em relação a esse sistema, existe?

COLONO 2: Existe. Existe um descontentamento dentro das famílias. O colono, quando ele
era auto-suficiente, produzindo artesanalmente tudo o que ele tinha, dentro da propriedade,
tinha pouco dinheiro no bolso. Lógico que tinha, nos anos 40, 50, 30, vamos dizer, os avô da
gente, eles era bem mais feliz produzindo tudo isso, não sendo dependente de ninguém.

ANDRÉ: Qual a razão que eles partirem dessa... eles resolveram entrar...

COLONO 2: Não, isso entrou na comunidade... Eu acho que, com o crescimento das famílias,
o desenvolvimento social trouxe... porque ainda tem isso, se é que pode se dizer... nas regiões,
que não existe ninguém com o domínio, como o frango, como o fumo, como o vinho, até
vamos dizer, como o porco, como a vaca de leite... as comunidades são pobríssimas, elas não

247
progrediram. Então, o fumo trouxe progresso junto. Só que trouxe... cada região dessa
perdeu aquelas raízes, do colono, do colonizador que veio, que produzia tudo pra sobreviver.
Então ele partiu pra uma cultura, e aquela cultura dominou as outras.

Esposa do COLONO 1: É um pouco o custo de vida também, né, Seu Noeli? Antigamente
tinha muito, o custo de vida...

COLONO 2: Pois é, a evolução também trouxe. O colono não comprava nada, mas ele não
tinha conta, prestação pra pagar... Nada pra pagar...

Esposa do COLONO 1: Não tinha prestação da máquina de lavar... (Risos)

COLONO 2: Não tinha nada! Então, colhendo na roça dele, e ele tando bem alimentado, ele
tinha tudo... ele montava a cavalo uma vez por mês.

COLONO 1: É. Ia na venda lá, né?

COLONO 2: Então, o desenvolvimento social e o progresso também veio trazer a


dependência...

ANDRÉ: Sei.

COLONO 1: Que nem eu... se eu tivesse na época, vamos dizer, no século 19 lá, cento e vinte,
trinta anos atrás, a água pra mim eu tinha que pegar uma lata e ir lá na serra buscar. Hoje
vem na torneira. Mas eu tenho que pagar isso aí, a água.

COLONO 2: A esposa, se a vizinha tem televisão, não vai ficar sem televisão. Amanhã vem o
forno...o forno elétrico.

COLONO 1: Comprei um vídeo ontem, ó...

COLONO 2: De primeiro tu andava de tamanco e não ia o pé no chão. Agora tu tem que usar
o sistema... Mas eu acho que no geral mudou pra melhor...

[DEPOIS DE ALGUNS PROBLEMAS PARA FAZER O VÍDEO-CASSETE FUNCIONAR...]

COLONO 1: Filha, Dayane, bota ali um pouquinho da fita, o baile gaúcho. Esses baile que
eu falei pra ti, ó, vai mostrar um pouquinho pra vocês aí como é que a gente faz pra juntar o
pessoal...

COLONO 1: Olha lá, ó. Aquilo ali, a gente vai na comunidade... nós fomos lá na casa sua,
por exemplo, fomos lá e dissemos assim, ó: “o seu filho não quer tirar um cursinho de dança,

248
pra desenvolver”... porque tá lá o filho lá no meio do campo, não sai em lugar nenhum,
coitado. Vamos lá, vamos dançar! Aí depois a gente faz a formatura, aí tu vai ver o
bailezinho da formatura, onde tem aquela integração, e aí deixa o grupo pra comprar o
pulverizador, comprar as coisas pra associação. Esse é o tipo de trabalho que nós vêm
fazendo.

COLONO 1: Agora falta um pouquinho pra dizer, ó, ele falou em gaúcho, ele quer... aí, de
gaúcho a gente também entende... eu trabalho, eu sou tradicionalista!

COLONO 1: Aí, ontem, eu comprei esse vídeo, aí... ó, olha ele falando. Não, É usado! Achei
tão barato, 150 pila, e o outro é 400 pila. E tá novinho, eu falei “ah, eu vou comprar”.

Esposa do COLONO 1: Olha que não vai funcionar...

4.8 Educando os jovens

Com o recente crescimento das oportunidades educacionais nas comunidades rurais de Rio
Pardo, as famílias enfrentam desafios e debates peculiares ao educarem seus filhos nos dias de
hoje, em comparação às gerações mais velhas. No passado, as famílias enfrentavam muitas
dificuldades em conciliar o processo de educação formal com as exigências práticas do dia-a-
dia. De fato, as oportunidades disponíveis às famílias eram muito restritas e a maior parte das
crianças – hoje avós, com 50, 60 ou 70 anos – freqüentavam a escola por poucos anos antes
de se envolverem integralmente com as atividades rurais em suas propriedades, ou nas
fazendas dos estancieiros. Antes da larga disseminação do sistema de produção integrada,
muitas propriedades rurais tinham suas economias centradas nas culturas de subsistência,
enquanto a produção de tabaco era algo que gerava uma renda extra para alguns agricultores.
Em adição a isto, a região era caracterizada pela existência de grandes propriedades e pelo
emprego das pessoas pobres por parte dos poderosos estancieiros. Nesta conjuntura, as
pessoas mais pobres viviam nas estâncias ou tinham suas pequenas propriedades associadas a
elas. Com o passar das décadas, a emergência da economia do tabaco na região aumentou o
interesse por terras nas comunidades rurais, quando muitas fazendas foram divididas e
vendidas como propriedades menores. O processo de sucessão nas famílias também levou à
divisão de muitas grandes fazendas em propriedades menores pelos parentes, que doavam
suas terras a seus filhos. Neste meio tempo, a densidade demográfica aumentou, bem como as
possibilidades de transporte e a ênfase familiar na importância da educação.
249
Hoje, com a inauguração de escolas nas comunidades rurais, as crianças têm a oportunidade
de freqüentá-las durante um período significativamente maior que seus pais. Há diversas
opções de escolas nas comunidades rurais de Rio Pardo, bem como serviços regulares de
ônibus para buscar os estudantes em casa, de manhã, e trazê-los de volta, ao meio-dia, ao
término das aulas. Em Albardão, a escola fundamental Casemiro de Abreu oferece os
primeiros oito anos do ciclo educacional brasileiro, a educação fundamental. Trata-se de um
prédio antigo e precário, com problemas de espaço – nem todas as séries possuem salas de
aula exclusivas, e alunos de séries diferentes têm de compartilhar a mesma sala e professor. O
prédio também possui um campo de futebol e sanitários, uma pequena biblioteca com revistas
e livros infanto-juvenis, e salas para os administradores. A Casemiro de Abreu é mais que
uma escola; é o prédio onde atividades comunitárias acontecem, por haver espaço disponível
para eventos maiores. Em Passo da Areia, a escola Habekost é destinada aos estudantes do
ensino médio, ou o último passo antes da universidade. Outras escolas menores estão
espalhadas nas comunidades, especialmente as de ensino fundamental. Efetivamente, cursar o
ensino médio ainda é considerado um grande empreendimento: por haver poucas escolas,
muitas crianças têm de se locomover por grandes distâncias para estudar.

Apesar de ser bem mais disponível que em outras épocas, a educação no interior apresenta
muitos problemas, como discute a população local. Em geral, imagina-se que os professores
que trabalham nestas escolas são menos preparados para seu trabalho que os das cidades, e,
conseqüentemente, a educação na zona rural possui menor qualidade ao ser comparada com a
urbana. Pode-se também sugerir a existência de uma zona de conforto entre professores, que
não são encorajados a desenvolver sua didática e suas técnicas de aprendizado; poucos
professores tentam se dedicar mais, aprender continuamente, ou trabalhar melhor. O contexto
é de salários muito baixos, estabilidade empregatícia, falta de oportunidades de
desenvolvimento continuado, condições de trabalho precárias, além de não se requerer,
formalmente, nenhum padrão de desempenho. Nas salas de aula, as abordagens de ensino não
dão ênfase às questões de desenvolvimento das habilidades das crianças, nem de sua
autonomia intelectual. Muitos professores não estão preparados para este tipo de trabalho.
Diferentemente, a dinâmica dos cursos é definida de acordo com conteúdos a serem
assimilados e exames que comprovem tal assimilação. O problema da qualidade do ensino
possui raízes profundas. De fato, assim como acontece com o sistema de saúde, é muito difícil
atrair bons profissionais à zona rural. Nas áreas rurais é comum se encontrar professores que
não obtiveram um bom desempenho nas cidades. Adicionalmente, o processo de formação de

250
professores é muito precário, e, em muitos casos, os professores são pessoas que completaram
sua formação regular, mas não possuem nenhuma qualificação para cargos educacionais. Em
muitos casos, a atuação profissional dos professores baseia-se em sua intuição, e não em
competências formalmente desenvolvidas.

A abertura de escolas e a consolidação do sistema de produção integrada nas comunidades


tiveram conseqüências profundas na rotina das crianças, em comparação a seus pais ou avós.
Durante grande parte do século passado, a responsabilidade natural das crianças era ajudar a
família nas atividades das propriedades, quando alcançassem a idade suficiente para trabalhar.
Como a escola não durava mais que cinco anos para a grande maioria das crianças, a
responsabilidade a ser assumida após este período era o auxílio nas agriculturas, contribuindo,
assim, com a melhora dos padrões de vida da família. De fato, antes da expansão do sistema
de produção integrada, os adolescentes tinham poucas oportunidades disponíveis após
terminarem o curto ciclo escolar ao seu alcance: ou se permanecia na propriedade assumindo
tarefas relacionas à agricultura, ou se mudava para a cidade a fim de se continuar com os
estudos e, conseqüentemente, conseguir um trabalho no crescente setor industrial. Até hoje,
trata-se de opções mutuamente exclusivas.

Portanto, as décadas anteriores à consolidação das fumageiras em Santa Cruz do Sul foram
um período de intensa migração das comunidades rurais para a cidade, pois deixar o campo
era a estratégia daqueles que não queriam seguir a trajetória dos pais. Ao serem impelidas a
escolher um futuro, buscava-se evitar a pobreza das zonas rurais por meio da migração,
muitas vezes bancada pelos pais. Como relatam os avós, a maior parte dos que mudaram para
a cidade encontraram empregos e tiveram uma vida razoável durante um período de
urbanização, crescimento econômico e desenvolvimento social acelerados. Aqueles que
permaneceram, acabaram finalmente envolvidos com o sistema de produção integrada, pois as
fumageiras ofereciam as melhores perspectivas de vida. Mais tarde, com o desenvolvimento
da infra-estrutura rural e a consolidação do sistema de produção integrada, principalmente na
segunda metade do século XX, as famílias tiveram mais estímulos para ficar no interior, e a
migração diminuiu consideravelmente. Assim, as crianças já não tinham de se mudar para
completar seus estudos ou para fugir de uma vida miserável; os parentes poderiam contar com
a presença e com a ajuda dos jovens nas propriedades, e as famílias tinham apoio das
fumageiras, que ofereciam vantagens e baixos riscos a quem se envolvesse com a produção de
tabaco, viabilizando o progresso no meio rural. Como conseqüência, a segunda metade do

251
século XX foi um período de pouca migração e relativa prosperidade para as populações
rurais.

Hoje em dia, entretanto, as tradicionais opções mutuamente exclusivas reassumem sua


relevância. Frente às percepções de esgotamento do ciclo de prosperidade relativo à produção
do tabaco, as crianças têm estímulo de seus pais para completarem seus estudos e para,
eventualmente, migrarem para a cidade, caso estejam preparadas para o mercado de trabalho.
Como sugere a interpretação corrente, completar o ciclo educacional é a estratégia para se
alcançar posições sociais mais elevadas, ao mesmo tempo garantindo que a criança não se
torne um marginal – assegurar que ela não se tornará um marginal é uma das grandes
preocupações dos pais. Com base em suas percepções culturais, eles creditam à falta de
estudos a sua situação atual, isto é, a falta de estudos no passado é vista como uma barreira
para o desenvolvimento pessoal no presente, pois os mais velhos não podem assumir um
papel mais ativo em sua relação com as fumageiras, e, também, por não poderem se
candidatar a empregos melhores na cidade, que geralmente exigem o colegial completo. Os
mais velhos vêem o fato de serem pessoas rudes e ignorantes como uma barreira que não lhes
viabiliza grandes possibilidades de melhorar sua renda ou seu status.

Neste contexto, existe uma interpretação cultural bem peculiar que permeia a mentalidade dos
colonos. De acordo com tal mentalidade, completar os estudos é o passaporte para uma vida
melhor, e esta, geralmente, implica em assumir profissões urbanas e, como resultado, morar
na cidade, apesar de suas desvantagens. Na zona rural, as bem conhecidas possibilidades são,
a cada ano, menos atraentes. No entanto, se os pais estimulam o estudo dos filhos, a
possibilidade de migração para a cidade também é vista com receio pelas famílias, que temem
as notícias sobre a falta de empregos e a violência, da maneira como chegam pela televisão e
pelas histórias de amigos. De fato, o destino dos fluxos migratórios não é mais um contexto
de desenvolvimento acelerado, isto é, com muitos empregos disponíveis, e relativa paz
urbana. Trata-se, portanto, de uma situação contraditória. Em suma, estudar é subir de vida, e
isto significa conseguir um bom emprego, ou uma boa posição social na cidade. Apesar de se
estimular o estudo, o medo do fracasso e da violência na cidade coloca as famílias num
impasse ao discutirem o futuro de seus filhos. Impasse sem solução tradicional.

De fato, a cidade é entendida tradicionalmente como o lugar onde o jovem tem oportunidades
de crescer profissionalmente, enquanto que a vida profissional nas pequenas propriedades é
vista como intrinsecamente pobre e desinteressante. Ser um colono é visto hoje como uma
carreira de dependência e exploração; portanto, não tão atrativa como costumava ser quando

252
as fumageiras chegaram. “Trabalhar como colono é duro e, hoje, já não vale a pena, a menos
que você tenha uma melhor condição e possa viver mais relaxado. O tabaco não pode garantir
uma boa educação às crianças”. Em conseqüência, o tabaco não é visto como a opção de
carreira ideal, embora seja a ocupação mais garantida e segura, devido às oportunidades de
desenvolvimento das competências estarem muito disponíveis. Em geral, os jovens não vêem
as atividades agrárias como ideais, por exigirem muito trabalho, com retorno pequeno e
irregular. Portanto, não completar os estudos é uma estratégia dos que querem continuar no
interior ou daqueles que não desejam ter uma vida diferente da de seus pais. No entanto,
quebrar a dependência do sistema de produção integrada e adquirir um nível de vida mais
confortável requerem mais que a complementação do ciclo formal de educação.

Acerca da tendência de migração para a cidade, as pessoas possuem opiniões divergentes, o


que sugere várias percepções e sentimentos entre as famílias. Algumas famílias sugerem que a
maior parte dos jovens não quer se mudar para a cidade porque a vida no campo é considerada
cheia de vantagens para a maior parte delas. Particularmente, embora a cidade não seja tão
distante, trata-se de um domínio estranho à criança, que não sai com freqüência da área rural
até adquirirem autonomia com as motocicletas, o meio de transporte mais popular da região.
A área rural é o ambiente onde as crianças nasceram e construíram seus laços sócio-culturais,
e a dinâmica de se viver no campo é muito apreciada. Entre os problemas típicos de se viver
na cidade estão: o individualismo extremo, a falta de solidariedade, o estresse, a dependência
de seus empregos, etc. Para muitas pessoas, morar na cidade é tão estressante quanto no
campo, sem os benefícios de uma vida pacífica rodeada pela natureza. Para estas pessoas,
mesmo que o jovem se mude para a cidade para estudar, ela irá voltar, pois “alguém nascido
no campo sempre irá retornar um dia, mesmo se ficar um longo período de sua vida na
cidade”. De acordo com esta opinião, as pessoas do campo que o abandonam para trabalhar
na cidade fazem-no como resultado de necessidades de sobrevivência, por não quererem se
envolver com atividades agrárias. Contudo, eles sempre terão o sonho de retornar, “comprar
uma pequena propriedade para passarem o resto de suas vidas”. Para outras pessoas, no
entanto, os jovens têm tendência a gostar da cidade devido às “suas cores e ritmos”. “Tudo
parece estar ao alcance das mãos na cidade, enquanto tudo parece ser de difícil acesso no
campo”. A televisão e a mídia teriam grande influência na construção desta disposição. As
crianças sonham em se tornarem grandes profissionais famosos, ou viverem uma vida mais
dinâmica. Particularmente, as intensas atividades de lazer nas comunidades incorporam,
sentimentos contraditórios de paixão pelo local e o desejo por uma vida melhor e idealizada.

253
Os meninos sonham em se tornar jogadores famosos de futebol, o que exigiria deixar o
isolamento das comunidades rurais:

ALBARDÃO, 5 DE JUNHO DE 2005

ANDRÉ: Você acha que a mídia enfeitiça também?

COLONO: Eu acredito que sim, porque... tu quer ser muito... tu cria um exemplo...
Ronaldinho gaúcho, sei lá! Ronaldo, sei lá, outros jogadores...

ANDRÉ: É?

COLONO: O pessoal que joga bola, pensou em alternativa, quer ser jogador de bola, né?

ANDRÉ: É.

COLONO: Se tu analisar o contexto, assim, se tu fazer uma análise, assim, mais profunda
sobre jogador de...futebol... futebol de campo, como profissão, os que tão na televisão tão
ricos.

ANDRÉ: Estão muito bem.

COLONO: Mas noventa e oito por cento dos jogadores de futebol é muito mais humilde. Mas
pros jovens, eles são todos assim... bem-sucedidos. Mas eu acho que noventa e sete, noventa e
oito por cento deles ganham salário mínimo...

ANDRÉ: É, é.

COLONO: É aquela meia dúzia lá, que joga... que joga no Campeonato Brasileiro, tá na
mídia toda hora, né? Cheio de mulher bonita, carro importado...

ANDRÉ: E, assim, considerando que o pessoal... porque, assim, futebol é muito forte, assim,
no Brasil inteiro, mas aqui também é muito forte. Esse sonho do jogador de futebol bem-
sucedido é presente mesmo? Ou o pessoal tá na real mesmo?

COLONO: Eu acredito que se tu chegar numa escolinha de futebol, e entrevistar as crianças,


e olha, “que tu sonha em ser na vida?”, eu acredito que... É o sonho... Eu acho que a maior
parte que gosta, que pratica esporte, futebol, eu acho que um bom percentual se inclinaria
por... ainda quem joga futebol é uma panela, tá sempre unido, né?

COLONO: Pelo menos quem tá aqui, que tá envolvido com a escolinha de futebol, sempre
sonha em ser jogador de futebol...

254
ANDRÉ: Mas é comum que a pessoa realmente trilhe essa carreira? Fale “eu quero ser
jogador de futebol” e fique lá e...

COLONO: O sonho, né? É o sonho que acaba com o tempo. No fim, é mais diversão mesmo...

De acordo com esta última opinião, os jovens vão para as cidades devido à falta de boas
oportunidades profissionais na área rural, mas também por se encantarem com a possibilidade
de ter uma vida urbana, embora a maioria delas não saiba muito a respeito. De acordo com
estas pessoas, se os jovens realmente gostassem da vida no campo, elas voltariam após seus
estudos, ou promoveriam, durante sua estadia na cidade, o desenvolvimento de suas
competências para as atividades rurais. Em comum, nas duas perspectivas, está o fato da
migração para a cidade ser a estratégia principal para os jovens que não queiram seguir os
rumos profissionais de seus pais; e isto seria verdadeiro tanto para aqueles com a esperança de
retornar, como para os jovens que objetivam romper definitivamente com as raízes – muitos
não querem depender da produção de tabaco e a cidade é a destinação natural aos que querem
aprender um emprego alternativo. De fato, a maioria dos migrantes não deixa o campo
pensando em estudar para melhorar as atividades econômicas desenvolvidas na propriedade
familiar, mas com o objetivo de acumular precondições de abandoná-la definitivamente. Para
realizá-lo, no entanto, eles precisam preencher as pré-condições dos empregos escassos e
concorridos na cidade.

Na prática, ser colono não é uma ocupação capaz de gerar renda suficiente para que os pais
possam garantir o crescimento profissional das próximas gerações. Obter sucesso na carreira é
uma façanha considerada cada vez mais difícil, ou que exige cada vez mais investimentos.
Como percebem os colonos, as oportunidades no campo são muito ruins para os pobres, pois
o sistema de produção integrada já não oferece o mesmo nível de conforto que oferecia no
passado. Simultaneamente, a vida na cidade é difícil devido às altas taxas de desemprego e
aos crescentes pré-requisitos educacionais. Por esse motivo, hoje em dia, freqüentar a
faculdade é considerado um grande sonho em muitas famílias, já que a formatura dos jovens
abre as melhores perspectivas de uma boa inserção profissional. É um sonho, no entanto, de
difícil realização. A região oferece poucas opções de educação superior, embora muitas
universidades estejam sendo inauguradas em conseqüência das recentes políticas
governamentais que facilitaram a abertura de universidades particulares. Em contradição, as
universidades que vêm sendo abertas são caras para os mais pobres, por serem privadas. As
universidades públicas não estão disponíveis na região. A UNISC – Universidade de Santa
Cruz do Sul – é uma universidade comunitária tradicional na região, isto é, administrada por

255
um comitê da comunidade, embora cobre taxas aos estudantes. Ela é considerada a melhor
opção na região por apresentar preços razoáveis e a reputação de oferecer uma educação de
boa qualidade. Mais recentemente, surgiu a Faculdades Dom Alberto, localizada no centro de
Santa Cruz, instituição que oferece cursos superiores mais populares.

Contudo, ambas as instituições de ensino superior de Santa Cruz do Sul estão a cerca de 30
km de Albardão. Como as estradas são ruins, demora-se aproximadamente uma hora para ir e
o mesmo tempo para voltar, o que é uma tarefa muito cansativa para as pessoas que trabalham
o dia todo na propriedade. Além disso, freqüentar a faculdade exigiria transporte diário, o que
é possível apenas para algumas famílias. Acima de tudo, o preço cobrado pelas universidades
está muito acima da renda média do colono. Em geral, as famílias não podem incluir as taxas
cobradas pelas instituições de ensino superior em seus orçamentos mensais; pois, para muitos,
pagar a universidade do filho significaria ter de dobrar os níveis de renda da família. A trecho
seguinte de minhas anotações de campo registram um encontro comunitário, e ilustra as
dificuldades comuns e as estratégias associadas ao sonho das universidades, especialmente, o
problema dos transportes:

JOÃO RODRIGUES, 20 DE MAIO DE 2005.

(…) Eles discutiram as promessas de um ônibus para pegar os jovens que gostariam de
freqüentar a universidade. Hoje não há ônibus para a faculdade, mas eles estão tentando
fazer o possível; falta pouco para conseguirem, de acordo com Maria. Ela disse haver muitos
jovens na comunidade que gostariam de se envolver em programas educacionais, em Rio
Pardo ou em Santa Cruz, mas não possuem condições de se locomoverem todos os dias nem
de dormir nas cidades por não haver transporte. Estes programas educacionais incluem,
particularmente, o supletivo – um programa amplamente espalhado que torna possível aos
estudantes fazerem três anos em um, considerado uma opção de baixa qualidade educacional
no Brasil. Noeli disse que, talvez, ainda não se tenha formado um grupo grande o suficiente
para tornar possível o ônibus (eles são providenciados pela universidade). Algumas poucas
pessoas já vão à faculdade, eles têm muitas dificuldades de transporte, têm de fazer conexões
de ônibus, o que demanda tempo. Alguns cursam poucas matérias por semestre, assim vão
duas vezes por semana e pagam menos, pois as faculdades cobram por disciplina.

Em geral, as opções de carreira disponíveis aos jovens da comunidade certamente incluem a


produção de tabaco, sempre considerada a primeira opção mais segura, já que os jovens

256
aprendem o ofício no contexto familiar. Para permanecer no campo e trabalhar como colono,
envolvendo-se com o cultivo do tabaco ou ainda com outras culturas, a interpretação cultural
local sugere não serem necessários muitos anos de estudo. Efetivamente, concluir a escola
regular e inserir-se numa carreira de agricultor nas pequenas propriedades são estratégias
tradicionalmente vistas como incompatíveis, apesar das atuais contingências da vida prática
forçarem jovens formados à vida no campo. Normalmente, se o jovem vislumbra a opção de
deixar o campo, ele ou ela deve completar os estudos. Caso contrário, completar os estudos
deixa de ser prioridade. Neste caso, o casamento ou o trabalho assumem este posto, já que os
jovens, ao saírem da infância, anseiam construir uma vida autônoma, longe dos pais. Por
exemplo, é comum ouvir casos de garotas que se casaram e largaram os estudos para cuidar
da propriedade da nova família; ao mesmo tempo, os maridos desistiram dos estudos para se
dedicar à lavoura e sustentar a família. Segundo a ingenuidade destes jovens, não se trata de
desistir da formatura, mas de adiá-la.

Quando o menino completa o ensino médio, há um sentimento tradicional de que o melhor a


fazer é procurar por um emprego na cidade para que os estudos sejam aproveitados, e ele
possa progredir. No caso das meninas, muitas seguem cursando o magistério. Quando a
menina não se casa, e possui autonomia em relação aos pais, completar o ensino médio e se
tornar professora também é uma boa desculpa para se tentar a vida na cidade. A maior parte
das garotas que vão para o magistério, contudo, não encontram empregos nas escolas, mas em
lojas, como vendedoras, ou ficam em casa, como donas-de-casa. Em geral, há um sentimento
entre os filhos dos colonos que a agricultura é o pior dos mundos, e completar a educação é
um meio de se alcançar mais autonomia, rendas maiores e mais regulares, e status social mais
privilegiado, pois se pode procurar por emprego na cidade. Neste conjunto, percebe-se a
irrelevância da opção profissional de buscar aperfeiçoar o desempenho das atividades
produtivas nas propriedades e desenvolver uma carreira mais rica enquanto colono, com base
em uma formação sociotécnica mais ampla. De fato, as poucas exceções se esgotam
rapidamente. Miguel e Neiva, sua esposa, completaram o ensino médio e retornaram ao
campo para serem líderes dos colonos, após um período infeliz na cidade. Da mesma maneira,
Ismael, filho de Neiva e Miguel, cursou o ensino técnico profissionalizante em agricultura,
mas afirma que há apenas mais um rapaz com nível educacional semelhante, Marcelo, que se
tornou instrutor de uma fumageira, isto é, trabalha para a indústria.

Entre os jovens rurais que terminaram o ensino médio, cursaram o magistério ou


freqüentaram a faculdade, muitos não permaneceram no campo, mas foram para a cidade em

257
busca de emprego. De fato, a competição no mercado de trabalho intensificou-se nas últimas
décadas, como percebem as famílias. No passado, para trabalhar na cidade, o candidato
deveria ter completado o ensino fundamental; hoje em dia, é desejável que ele tenha, pelo
menos, terminado o ensino médio, ou suas chances diminuem, e sobreviver se torna mais
difícil. Mais especificamente, os empregos passíveis de serem encontrados na cidade são cada
vez mais atrativos à medida que ele, ou ela, tenha níveis maiores de qualificação. Neste
contexto, o jovem pode encontrar mais facilmente um emprego como assistente de mecânico,
caso tenha terminado o colegial; similarmente, com este nível de educação formal, ele pode
encontrar emprego em postos de gasolina, como frentista, ou em supermercados, como caixa.
Estes são, no entanto, considerados como empregos pesados, que não remuneram bem e
também exigem muita força. Diferentemente, pode-se encontrar um emprego mais “leve” –
um emprego que não exija força física – por exemplo, uma posição burocrática em uma das
companhias de Rio Pardo ou de Santa Cruz. Os melhores empregos, no entanto, requerem um
currículo diferenciado, ou mesmo a universidade. Por exemplo, caso o candidato saiba
utilizar computadores, pode-se encontrar uma posição administrativa “leve” ou, caso tenha
terminado a universidade, o jovem pode candidatar-se para os melhores empregos da cidade.
Em geral, os que não cursaram a universidade podem melhorar sua empregabilidade ao
adicionar competências em seu currículo, por exemplo, conhecimentos de língua estrangeira,
cursos técnicos, informática, liderança em grupos sociais, etc. Durante o processo seletivo
para tais empregos, as competências básicas são testadas durante a entrevista, enquanto as
competências adicionais são normalmente medidas em termos dos cursos ou programas
educacionais complementares cursados. Em geral, a maior parte dos jovens começa a
trabalhar na cidade em posições pesadas, como frentistas ou assistentes em supermercados.
No entanto, muitos jovens buscam encontrar empregos mais “leves”. Em contextos
caracterizados pelas barreiras à educação superior, muitas famílias e jovens valorizam as
oportunidades de enriquecimento dos currículos com cursos adicionais, úteis para futuras
prospecções de empregos na cidade.

Com as mudanças nas comunidades, incluindo a instalação de escolas nas áreas rurais, a
rotina dos jovens mudou significativamente. No passado, a maioria dos jovens se envolvia
com as atividades agrícolas ao terminarem os ciclos educacionais extremamente curtos aos
quais se submetiam. Como acontecia com a maioria deles, as exigências práticas de
subsistência, e a falta de oportunidades para o desenvolvimento continuado, eram as razões
para o engajamento e a contribuição precoce à economia familiar. Os jovens eram

258
definitivamente incorporados ao trabalho árduo da família ao completarem treze anos, ou
mesmo antes. O envolvimento precoce dos jovens na agricultura sempre foi interpretado
como uma estratégia capaz de melhorar a qualidade da vida familiar, mas também como uma
necessidade à formação do caráter dos meninos. Afirma-se que o envolvimento precoce dos
meninos na rotina das propriedades evita a “preguiça”, tornando-os conscientes e
acostumados às necessidades familiares, e contribui à sua formação como futuro marido e pai.
Do mesmo modo, as meninas também são convidadas a colaborarem com suas mães,
responsáveis pelas tarefas domésticas. No que diz respeito às gerações anteriores, as crianças
eram criadas numa atmosfera de autoridade altamente concentrada; a maior parte dos pais era
muito distante de seus filhos, com quem mantinham relacionamentos bastante hierarquizados.
Para os pais atuais, o período de sua infância foi caracterizado pela obediência estrita e pela
formalidade entre pais e filhos, dentro de um contexto familiar de dificuldades econômicas e
muito trabalho para se sobreviver. Os pais mencionam as dificuldades que tiveram em atingir
melhores níveis de qualidade de vida; a tecnologia estava fora de seu alcance, a obediência
aos empregadores era rígida, e não havia como se pensar no futuro. Hoje em dia, ao contrário,
as crianças são educadas de maneira significativamente diferente; em geral, são criadas mais
soltas, em relacionamentos mais próximos com seus pais. Como os atuais pais geralmente
mencionam, as dificuldades que costumavam ter com seus pais os motivaram a construir
relacionamentos diferentes com seus filhos, tornando-se mais próximos e mais abertos a suas
necessidades e opiniões. Neste sentido, os traumas que tiveram durante sua infância, com o
exagerado autoritarismo familiar, são justificativas freqüentes para a reconfiguração das
relações parentais. Atualmente, muitos pais sentem que deveriam ser abertos com seus filhos,
e tentar aproximar-se de seus problemas. Na prática, as relações familiares são
freqüentemente conflituosas, pois muitas crianças são diretas ao questionarem as idéias e o
modo de vida de seus pais.

Apesar de se justificar os relacionamentos mais abertos com os filhos como uma reação a um
passado traumático, outra interpretação para a infância liberada, e a existência de muitos
conflitos familiares, sugere a existência de uma zona de conforto na qual os pais também
estariam inseridos, por muitas vezes não saberem e não quererem assumir a tarefa de ter de
interferir muito na vida das crianças. Educar um jovem pode ser um assunto estressante e
difícil para muitos deles. Os pais, geralmente, mencionam as dificuldades e dúvidas que
surgem ao se educar uma criança, como se o mundo estivesse se tornando muito difícil e
caótico, e ainda, como se seus filhos assumissem posturas muito diferentes daquelas típicas de

259
sua infância. Há muitos debates sobre os conflitos entre pais e filhos. Particularmente, os
jovens de hoje em dia podem ter muito mais liberdade para escolher caminhos diferentes em
suas vidas, pois as tecnologias melhoraram e as oportunidades cresceram, além do acesso a
elas também ter se tornado bem mais fácil. O período mais longo na escola pode ser
relacionado a estas percepções. Como as crianças permanecem mais tempo na educação
formal, elas podem estudar até terem de enfrentar os desafios relacionados à conclusão
escolar. A conclusão da educação básica é um portal para novas estratégias de vida, às quais
seus pais não tiveram acesso no passado. Mais especificamente, a existência de mais
oportunidades disponíveis às crianças geralmente cria uma atmosfera de negação do trabalho
árduo que seus pais são obrigados a enfrentar diariamente. As crianças sonham com
ocupações mais nobres e, portanto, sentem-se menos disponíveis para o envolvimento com a
agricultura, como exigido pelos pais. Nos dias de hoje, há uma queixa generalizada entre os
pais, que muitos jovens são “preguiçosos” para as tarefas diárias, ao questionarem seu futuro
nas propriedades. Simultaneamente, as famílias são freqüentemente bombardeadas com
recomendações de instituições externas, como as fumageiras, as ONGs e as instituições
públicas educacionais, para liberarem seus filhos do envolvimento prematuro nos trabalhos
nas propriedades, pois advogam a necessidade de intensa dedicação aos estudos. Contudo, as
reivindicações externas contra o envolvimento das crianças no trabalho são muitas vezes
interpretadas como um apelo à liberalidade e à liberdade total; por esse motivo, os pais não
vêm muita coerência na sua implementação.

Em geral, os pais desejam que seus filhos se envolvam nas tarefas diárias relacionadas à
agricultura e à administração das propriedades e, simultaneamente, estudem. Nas rotinas
familiares, as crianças ficam muito soltas e livres, caso não se envolvam em ambas as
atividades e, em conseqüência, muito vulneráveis aos perigos da juventude. Por exemplo,
sobre o trabalho infantil, Miguel afirma não entender os motivos pelos quais o problema é
considerado tão grande. Ele diz que as crianças começam a trabalhar quando estão com
quinze anos; pois com esta idade, normalmente, assumem o papel de aprendizes, aprendendo
o ofício na fazenda. Segundo ele, a maioria dos pais não força seus filhos a trabalhar nesta
idade, todos estudam meio período e esta é a prioridade. Durante a outra parte do dia eles,
geralmente, trabalham duas ou três vezes por semana. Miguel sugere que as crianças deveriam
começar a trabalhar aos quinze anos porque, se esperarem até os dezoito, podem não começar
mais. Na verdade, muitos pais têm medo de que as crianças não se acostumem ao trabalho e,
assim, envolvam-se com bebidas e drogas, ou apenas não queiram fazer nada, e se tornem

260
‘”vagabundos”. Certamente, há pais que exageram nas responsabilidades que cobram dos
filhos, mas não é comum ver jovens lidando com fertilizantes ou venenos. Miguel também
questiona o que se deveria fazer quando um jovem vem a sua casa procurando por emprego
como diarista durante a colheita; ele tem quinze anos e sua família é necessitada, e ele vem
“de bom grado”, isto é, disposto e feliz em ajudar sua família ao trabalhar.

Os temores dos mais velhos podem ser compreendidos ao se analisar o contexto sócio-técnico
no qual os jovens estão inseridos, que é significativamente diferente daquele no qual seus pais
foram criados. Desde algumas décadas, a disseminação das tecnologias de transportes é mais
intensa nas comunidades rurais. No contexto das gerações anteriores, as crianças cresciam
dentro dos limites das propriedades, pois deixá-las requeria muito esforço. Antes da
disseminação das motocicletas e carros, as pessoas dependiam de bicicletas e animais para
deixarem as propriedades, e a vida era bem mais restrita pelas distâncias físicas. A vida era
muito mais centrada nas propriedades, nas quais os jovens ocupavam-se com as exigências
práticas de sobrevivência. Hoje em dia, as crianças vivem um cotidiano bem diferente. Há
algumas décadas, o preço das motocicletas diminuiu e os colonos conseguiram comprá-las.
De fato, as motos são o meio de transporte mais popular nas comunidades rurais, por serem
sua aquisição e manutenção mais baratas (a maioria das motos é de segunda mão, comprada
no mercado de usados). Diferentemente, os carros são bens mais raros, já que implicam gastos
bem maiores. No contexto de larga disseminação de motocicletas entre as famílias, os jovens
são muitas vezes quem as mais utilizam, para visitarem amigos em localidades rurais mais
distantes. Em teoria, a maior parte dos jovens não pode dirigir motos, pois carteiras de
habilitação só podem ser emitidas quando se completa dezoito anos no Brasil, e grande
porcentagem dos jovens ainda não completou esta idade quando começam a dirigir. Apesar da
lei, as comunidades rurais são territórios em que não há policiamento ou fiscalização. Em
conseqüência, as famílias experimentam sérios problemas relacionados ao comportamento de
seus filhos com as motocicletas. Acidentes graves são comuns, pois não se utiliza o capacete
obrigatório. Os meninos têm uma relação de alto risco com suas motos: eles apostam corridas
com outros garotos, negligenciando todas as normas de segurança. Além de seu
comportamento, a infra-estrutura local não contribui aos níveis de segurança. Em minha
experiência dirigindo motocicletas nas comunidades rurais, pude perceber o quanto é
relevante aos moradores a boa qualidade das estradas. As motos não são equipamentos
confortáveis. Elas são simples e antigas, e as estradas são cheias de buracos e lamacentas,
quando chove. Encontrar um buraco em alta velocidade pode ser muito perigoso. Os altos e

261
baixos das estradas tornam-nas perigosas para os motoristas, que precisam frear bruscamente
e com freqüência, devido aos acidentes geográficos no caminho; os motoristas devem prestar
constante atenção, caso contrário, sofrer um acidente é fácil. À noite, os perigos se
multiplicam por não haver iluminação suficiente. Em todas as minhas experiências dirigindo,
meus condutores abaixo dos dezoito anos chegavam sem capacete, embora eu pedisse que me
trouxessem um, antes de qualquer coisa. A justificativa sobre a falta de proteção é que iriam
dirigir devagar. Imagine se dirigissem rápido...

O comportamento dos jovens com relação às motos, e outras autorizações concedidas pelos
pais, é um debate entre os mesmos. Há um sentimento geral de que a motocicleta é um
equipamento importante para as famílias, por reduzir os limites físicos em suas vidas, e
permitir mais dinamismo às atividades nas propriedades. Todas as atividades sociais das
famílias dependem da motocicleta. A maior parte dos pais, no entanto, sente que não pode
controlar seus filhos quando eles utilizam este meio de transporte, e reclama disto. Por
exemplo, a esposa de um colono diz haver uma dúvida comum entre as famílias rurais, um
sentimento de que os pais deveriam dar a seus filhos o que eles não tiveram em sua infância.
Os avós eram muito rígidos e as crianças raramente ganhavam alguma coisa, um brinquedo
por exemplo. Como era muito triste para eles, que tinham de trabalhar duro se quisessem
conseguir algo; os pais se dizem felizes, hoje, ao poder dar a seus filhos presentes que
sonhavam receber. Contudo, freqüentemente reclamam sobre a falta de limites de seus filhos.
Nos dias de hoje, as coisas parecem ser mais facilmente atingíveis, há mais acesso à
tecnologia; de fato, ainda se tem que trabalhar duro pra comprá-las, mas não tanto quanto no
passado. Para os pais, parece-lhes que os jovens de hoje dão outro valor às coisas, ou menos
valor, e assim, eles nunca sabem se estão dando liberdade ou facilitando demais a vida de seus
filhos.

Na realidade, muitos jovens têm sua própria moto, pois a compraram depois de juntarem
dinheiro trabalhando como diaristas nas propriedades de outros, o que lhes concede condições
de autonomia consideradas inadequadas por muitos pais. Em conseqüência, muitos jovens
buscam assumir atitudes de pessoas emancipadas, confrontando as expectativas de seus pais,
embora ainda não tenham dezoito anos. Ao se perguntarem muitas vezes se não estão dando
muita liberdade às crianças, tais questionamentos são, geralmente, neutralizados por meio de
um argumento poderoso: o vizinho dá a mesma liberdade, então eles não têm contra-
argumentos poderosos capazes de justificar a não concessão da mesma liberdade. De fato, as
relações familiares são freqüentemente caracterizadas pelas dificuldades que os pais têm em

262
argumentar com seus filhos. Quando discutem expectativas e comportamentos mútuos, os
mais novos geralmente possuem melhores habilidades de comunicação e melhores
argumentos, impondo-se a seus pais. A impressão geral entre os pais é que as crianças não
estimam os relacionamentos com seus pais, não dão o valor devido aos presentes, pois não
têm de trabalhar duro para consegui-los e, finalmente, usam mal a liberdade que lhes é
concedida.

Entre as atitudes que os pais esperam de seus filhos, podemos citar seu envolvimento nas
atividades familiares e suas obrigações escolares, o bom comportamento ao dirigir as motos, o
não envolvimento com drogas e más influências, as boas maneiras e o comportamento sexual
adequado, de acordo com os valores do sistema tradicional local e as expectativas de papel.
Sobre este último assunto, as mudanças recentes nas atitudes dos jovens também são
intensamente discutidas entre os pais. Hoje, os jovens parecem adotar atitudes estranhas
durante sua adolescência por estarem muito concentrados em “assuntos de adultos”, o que
inclui mobilizações pessoais com objetivos sexuais. Particularmente, a cultura do “ficar” está
disseminada entre os jovens, o que causa aversão aos mais velhos. Tais comportamentos
referem-se à intimidade que os jovens desenvolvem entre si, ao se envolverem em encontros
casuais, beijos e contatos sexuais sem nenhum comprometimento amoroso futuro, mas apenas
por diversão e curiosidade. No contexto da juventude nas comunidades, os jovens estão
freqüentemente procurando por outros para casos amorosos; elas comentam e discutem seus
casos entre si, fofocam sobre os outros e se divertem dentro de seu grupo social. Interações
dentro dos grupos sociais geralmente incluem uso de bebidas alcoólicas quando estão
sozinhos, especialmente quando os jovens se reúnem em casa e os pais estão fora,
trabalhando. Entre os pais, há sempre a impressão de decadência moral, especialmente quando
as meninas estão envolvidas. Por exemplo, um colono mencionou seu desapontamento com as
meninas de sua geração, por elas estarem perdendo sua feminilidade ao começarem a beber
tão cedo, ao contestarem os mais velhos, e ao serem rudes com os outros. Particularmente,
para muitos pais, beber e agir de forma rebelde são comportamentos aceitáveis apenas para os
meninos. Para muitos, a cultura do “ficar”, os hábitos de beber e o comportamento
excessivamente rebelde são considerados influências inadequadas da existente degradação
moral, que inclui a intensa liberalização dos hábitos reforçados pela televisão. As crianças não
parecem estar realmente preocupadas com estas mudanças culturais; ao contrário, eles
geralmente questionam os valores tradicionais de seus pais.

263
A decadência moral no contexto da adolescência é, geralmente, associada à desarticulação da
igreja e de sua influência entre as crianças. Efetivamente, muitas famílias possuem laços mais
ou menos intensos com a Igreja Católica; tais laços podem ser sociais ou mais ideológicos. Na
prática, há uma intensa fragmentação de idéias e credos metafísicos. No passado, a Igreja
Católica foi a mais importante referência educacional e ideológica da região – havia escolas
religiosas importantes na região, mais tarde substituídas em sua importância pelo sistema
educacional público. Hoje, no entanto, a igreja encontra-se menos influente e articulada nas
comunidades. Há um padre para servir as demandas de um grande território, e as missas
acontecem uma vez por mês na igreja local. A estrutura da Igreja inclui a Diocese –
governada pelo bispo – que abrange várias cidades. A Diocese da região, sediada em Santa
Cruz do Sul, ainda está dividida em várias paróquias, que são áreas administrativas menores.
Toda pequena cidade possui sua paróquia; algumas cidades maiores podem contar com mais
de uma paróquia. Rio Pardo possui três - Rincão Del Rey, São Nicolau e Nossa Senhora do
Rosário; esta última inclui Albardão. Por sua vez, a paróquia de Nossa Senhora do Rosário
está dividida entre 42 comunidades, que compartilham a mesma entidade legal da paróquia.
Albardão possui três comunidades diferentes: Santa Ana, São João Baptista e Nossa Senhora
Aparecida. Na prática, muitos líderes das comunidades religiosas também são líderes
comunitários.

A educação religiosa é uma tradição na região, e inclui a tradicional catequese (doutrinação) –


a primeira fase da educação religiosa, para as crianças mais novas – e a crisma (confirmação),
a segunda fase, para as crianças mais velhas. Noventa por cento das crianças completa a
catequese; no entanto, a porcentagem de crianças a freqüentar a crisma é bem mais baixa.
Apesar de ainda atrair muitas crianças, a educação religiosa está em crise. As mulheres são,
geralmente, as responsáveis por ensinar a doutrina, e elas muitas vezes reclamam, lastimam e
mostram desapontamento ao falar da falta de envolvimento das crianças nos assuntos
religiosos e morais. Segundo uma instrutora religiosa da comunidade, ela tem muitas
dificuldades em controlar as crianças, que acham muitos assuntos “caretas”, ou ultrapassados.
Muitos jovens se submetem à educação religiosa mais como uma obrigação imposta pelos
pais, e consideram o processo chato, uma sobrecarga de aprendizagem – cada fase dura dois
anos –, pois eles já são obrigados a ir à escola. Em conseqüência, muitas delas começam a
catequese, mas não chegam a iniciar a crisma. Como reação, a Igreja decidiu começar a
crisma mais cedo, devido às altas taxas de evasão. As crianças costumavam freqüentá-la
quando completavam quinze ou dezesseis anos; agora ela é destinada às crianças de onze

264
anos. Contudo, é muito difícil manter os jovens mais velhos na educação religiosa; eles
abandonam-na por vários motivos e dificuldades, e parece que muitos pais não se importam
realmente, e até mesmo facilitam sua desistência.

Como sugerido pela instrutora religiosa, a decadência da educação religiosa é uma “inversão
de valores”. Apesar da crise existente, a doutrina católica ainda é uma moral forte e uma
referência social que permeia o julgamento diário dos colonos, suas percepções e argumentos.
Em relação a seus filhos, muitas famílias reforçam o comportamento sexual adequado e as
expectativas de papel, como tradicionalmente pregados pela Igreja Católica, embora não
necessariamente evocando leis religiosas. Particularmente, os pais têm problemas em lidar
com suas filhas, pois elas não devem ter relações sexuais antes do casamento ou, pelo menos,
não o fazem em casa por muitos pais não o permitirem. Acima de tudo, parece que a filiação
religiosa é um rótulo social indispensável, embora as pessoas não necessariamente
compartilhem dos mesmos princípios e valores, e freqüentemente os critiquem. Em
conseqüência, a conversão daqueles que não compartilham da fé católica é muitas vezes
estimulada, pois as missas e as atividades promovidas pelas comunidades religiosas locais são
momentos de encontros sociais que reúnem as famílias. A seguinte conversa, com um líder
dos colonos, ilustra a influência da religião na comunidade, mostrando a existência da
fragmentação de crenças, mas também sugerindo a sua relevância enquanto referência moral e
sua importância como aglutinador social.

ALBARDÃO, 5 DE JUNHO DE 2005

ANDRÉ: E a igreja católica hoje na comunidade?

COLONO: Aqui nas comunidades não é muito atuante, não. Isso depende muito do pároco
que tá, né? Aqui o pároco..., o pároco tem uma vasta região, o município todo pra atender,
dois párocos pra todo mundo.

ANDRÉ: É?

COLONO: Aí não tem condição.

COLONO: É um trabalho muito especial. Ele vem uma vez por mês aqui. Tem, mas a
comunidade aqui, por exemplo, a Comunidade Nossa Senhora Aparecida, ela tem a igreja
dela, nós temos o nosso pavilhãozinho de festas ali, modestinho, tudo, mas tem...

ANDRÉ: Sei.

265
COLONO: Tem uma diretoria que atua modestamente, mas tá atuando, assim. Não tanto em
trabalhos sociais, né? Assim, como quase como um ponto de lazer, pros jovens também.
Minha esposa, no caso, é catequista; a festa dos jovens hoje, já tava à tarde, de tardezinha,
com os... Acho que tem uns dez jovens que vêm aí, fazer a catequese pra crisma e tal. A gente
já encerrou uma turma. Principalmente aqui...

[...]

COLONO: Na verdade, sobre da igreja católica, eu acho que ela tem uma influência bastante
interessante no andamento da comunidade. Tem os seus valores...

ANDRÉ: É?

COLONO: Tem os seus defeitos, mas tem os seus valores também. E eu sou um católico e
acredito nos valores, nas coisas, assim, como é que eu vou dizer, assim, tem muita gente “ah,
eu não gosto da igreja, ah, porque o padre tal fez isso”, não, eu não sou católico por causa
do padre...

COLONO: ...é porque eu acredito, né? Determinados valores, determinados... É, nessa


espiritualidade, eu acredito nisso, eu tenho minha formação e... aí eu acredito, sim. Não é
porque fez isso. “Ah, aqueles padres lá dos Estados Unidos acusados de pedofilia”. Pô, eu
não acredito por causa do que o padre fez ou deixou de fazer, é claro que eles têm
influências, sim, mas não é eles que vão definir o que eu acredito ou deixo de acreditar, né?

ANDRÉ: Sei...

COLONO: Senão eu estaria se alienando ao padre, e não é isso. Eu acho que não é isso a
igreja católica, não é só isso, né? Eu creio na igreja católica, principalmente nesses valores
que são pregados por aí, nesse Cristo, que eu acho que, é impossível que não... Tem esses
valores, que tá há dois mil anos aí, né? Tem tanta gente acreditando, é claro que tem os seus
valores, né?

COLONO: Então, acredito também que tem que ter um respeito muito grande pelo outro,
pela maneira de pensar das outras pessoas, né? Não se pode haver radicalismos, “eu sou
católico e o resto não presta”. Não é por aí, muito pelo contrário, tem os seus valores em
todas. Em todas as manifestações de crenças, de religião.

ANDRÉ: É?

COLONO: Respeito por isso, tem que ter o respeito. Como tudo, né? Como cada um tem sua
profissão, tem que ser respeitado, tal.

266
5 – CEDEJOR, OU ‘CENTRO DE DESENVOLVIMENTO DO JOVEM RURAL’

5.1 Instituto Souza Cruz

A fundação do Instituto Souza Cruz (ISC) está estritamente relacionada à trajetória de Letícia
Sampaio na Souza Cruz. Nos anos 80, Letícia já era uma das principais executivas do
departamento de RH quando foi convidada para trabalhar no departamento de tabaco,
localizado em Santa Cruz do Sul, como parte do esforço de dar a toda empresa um novo foco
estratégico, naquela época sob a influência das idéias de core business. A Souza Cruz decidiu
focalizar naquilo que conhecia melhor: trabalhar com o tabaco. Naquela ocasião, ela encarou
os problemas relacionados ao envolvimento de crianças como força de trabalho nas
propriedades de tabaco, ao ser desafiada por Oded Grajew – atual assistente de Lula e a
personalidade mais influente no Brasil relacionada à responsabilidade social – a resolvê-los.
Ele questionou a Souza Cruz sobre a tolerância no envolvimento de crianças como força de
trabalho nas propriedades de tabaco; e Letícia lançou um grande projeto relacionado ao
assunto – o projeto “O Futuro é Agora”. Isto pode ser visto como a iniciativa mais importante
que leva, mais tarde, à fundação do ISC, a ONG empresarial responsável por aperfeiçoar as
ações da corporação em responsabilidade social.

Em 1998, como parte das estratégias corporativas e dos esforços relacionados à


responsabilidade social, havia um interesse especial por um projeto social contra a venda de
cigarros a crianças e adolescentes. Letícia convidou a Fundação Getulio Vargas para uma
parceria neste projeto, que tinha seu foco na limitação da oferta de cigarros: era necessário
conscientizar os varejistas a não vendê-los às crianças. Como parte do desenvolvimento do
projeto, era necessário atacar a demanda também. Ao tentar estabelecer parcerias com outras
instituições, Letícia se deparou com muitas dificuldades; a reputação da indústria do tabaco já
não era boa. Como estratégias para superar tais dificuldades, e também com o objetivo de
fornecer novo status à responsabilidade social na corporação, Letícia e sua equipe tiveram a
idéia de fundar um instituto, associado à Souza Cruz. Então, em 1999 eles discutiram e
amadureceram a idéia do ISC para, mais tarde, em 2000, fundarem o Instituto Souza Cruz.
Como a companhia já possuía alguns programas com claros apelos de responsabilidade social,
alguns deles foram confiados ao ISC – os que possuíam menos conexões com os negócios da

267
corporação – enquanto outros permaneceram sob a responsabilidade do departamento de
relações corporativas. No início, o ISC tinha sua fundamentação teórica embasada nas
propostas do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Durante seus
três primeiros anos de existência, o ISC havia determinado quatro focos à sua atuação social,
entre os quais educação de empreendedorismo. O Instituto era parceiro financeiro e técnico
de outras instituições que tinham projetos sociais a serem implantados ou já em fase de
implementação. Durante estes anos iniciais, o ISC apoiou e administrou vários projetos
simultaneamente; entre estes esforços, o ISC forneceu o suporte necessário para lançar o
projeto CEDEJOR como uma ONG independente. Naquela época, o ISC possuía dois
gerentes, Flávio Goulart e Luis André, cada um responsável pela administração de projetos
em duas áreas de atuação.

5.2 O Projeto CEDEJOR – Educação para o empreendedorismo

Desde o início de sua história, o ISC havia definido um foco de atuação na “educação para o
empreendedorismo”, e o projeto CEDEJOR foi elaborado de acordo com ele. A gestação do
projeto durou 1 ano, de outubro de 2000 até julho de 2001, e incluiu diversas viagens e visitas
a outros projetos similares para benchmarking e seminários no sul do Brasil, para os quais o
ISC convidou vários atores importantes da região, que foram atraídos pela possibilidade de
discutir o projeto com o amplo apoio do ISC. Assim, o Instituto Souza Cruz promoveu a
formação de um grupo inicial de trabalho para discutir os conceitos relacionados ao projeto.
Foram convidadas algumas personalidades do terceiro setor para liderarem o projeto; entre
elas, Sônia, uma das assistentes de Ruth Cardoso, e também líderes das comunidades locais,
como Fernando Schwunck, Ériton, Paulo Miguel, e a secretária de educação de Santa Cruz do
Sul. Com a sistematização dos conceitos, o CEDEJOR foi fundado logo após a gestação do
projeto. Enquanto as discussões aconteciam, os líderes políticos envolvidos articulavam para
trazer os futuros núcleos da nova ONG para suas comunidades. Assim, definiu-se que a ONG
teria inicialmente três núcleos. Um deles seria localizado na cidade de Rio Pardo – a Casa
Jesus Maria José – estabelecido em conseqüência de articulações feitas pela Igreja Católica,
cujos líderes ofereciam recursos físicos para a implantação do projeto. Fernando Schwunck
trabalhou para trazer um núcleo a Albardão, pois a escola local também oferecia instalações
para o projeto. O terceiro núcleo fixou-se em São Martinho, distrito rural de Santa Cruz do
Sul, base eleitoral da secretária de educação do município. Estes grupos usaram sua influência
268
para oferecer recursos e atrair um dos três núcleos da nova ONG. Em termos de
gerenciamento, o CEDEJOR não foi planejado para estar sob a responsabilidade
administrativa do ISC, seria uma ONG independente a ser financiada pelo ISC nos primeiros
anos de suas atividades, mas gerenciada por líderes comunitários. Portanto, o CEDEJOR era
uma iniciativa do ISC, financiado por ele, mas não estaria sob sua responsabilidade direta.

À medida que as discussões evoluíam, definia-se que o CEDEJOR seria uma ONG dedicada
ao desenvolvimento de atividades educacionais com os jovens das regiões onde os núcleos
estariam localizados. Estas atividades seriam baseadas nos conceitos da pedagogia da
alternância, uma metodologia pedagógica de origem francesa. De acordo com este método, os
jovens deveriam ficar durante uma semana inteira no núcleo da ONG – período chamado
“alternância” – envolvidos com atividades educacionais. As semanas de alternância seriam
seguidas de três semanas em que os jovens permaneceriam em suas casas, quando teriam a
responsabilidade de socializar o novo conhecimento com o resto de sua família e também de
aplicá-lo na propriedade. Apesar das amplas discussões anteriores à sua fundação, o
CEDEJOR iniciou suas atividades com a formalização de poucos conceitos básicos, pois o
plano político-pedagógico que traria os parâmetros de implementação do programa ainda não
estava pronto, mas seria redigido na medida em que o programa educacional fosse sendo
implantado. Inicialmente, o grupo responsável pelas primeiras definições envolvendo as
atividades do CEDEJOR instituiu sua missão e sua visão, bem como seus valores. Sua missão
era “contribuir com o desenvolvimento integral da juventude rural, baseado na promoção da
solidariedade e do empreendedorismo, na construção da cidadania, e no estímulo às relações
familiares e comunitárias, promovendo, conseqüentemente, o desenvolvimento sustentável
local”. Os valores que iriam servir de base para as atividades da ONG davam destaque aos
“jovens enquanto agentes das transformações nas comunidades; à ética da vida; à paz, ao
respeito, à amizade e à felicidade enquanto métodos de desenvolvimento; ao crescimento
integral de jovens, famílias e comunidades; ao incremento da auto-estima nas comunidades
rurais; ao apoio a projetos de vida; e ao incentivo ao desenvolvimento coletivo baseado na
cooperação”. Na prática, o programa visaria desenvolver habilidades empreendedoras entre
os adolescentes, para que estes pudessem implementar iniciativas familiares e coletivas em
suas comunidades e promover o desenvolvimento de um novo modelo sócio-econômico na
região, caracterizado por maior autonomia dos agentes sociais e diversificação de produção.

A missão do CEDEJOR seria implantada por meio da aplicação da pedagogia de alternância,


baseada num currículo customizado às necessidades da região. Durante as semanas de

269
alternância, os adolescentes se reuniram no núcleo para desenvolver os conteúdos com os
monitores. Desta maneira, o programa não deveria competir com o ensino médio, que os
adolescentes também freqüentavam. Os conteúdos deveriam ser complementares aos
desenvolvidos na escola, mas mais voltados ao desenvolvimento do comportamento
empreendedor e das competências gerenciais, assim como questões humanísticas. O programa
educacional de três anos oferecido pelo CEDEJOR estava estruturado em torno de três eixos
de conhecimento – “humanístico, técnico e gerencial”. O primeiro eixo de conhecimento é o
humanístico. Durante o primeiro ano do programa, a equipe do CEDEJOR desenvolveria
diversas atividades voltadas ao incremento das habilidades de comunicação, de administração
de conflitos e das competências interpessoais, da auto-estima dos adolescentes, além de temas
como sociabilidade e ecologia. Durante este período, os adolescentes foram encorajados a
desenvolver projetos de responsabilidade social, como, por exemplo, a coleta de lixo seletiva
e a jardinagem na comunidade. Tais atividades eram lideradas pelos monitores, que contavam
muitas vezes com o apoio de consultores e palestrantes convidados e contratados em
instituições educacionais locais e também na principal universidade da região – UNISC,
Universidade de Santa Cruz do Sul. A próxima parte do programa seria o eixo técnico. De
acordo com as definições originais do programa CEDEJOR, este eixo era um passo necessário
ao planejamento do PIC, projeto profissional que os adolescentes deveriam desenvolver na
última etapa do percurso. O eixo técnico seria caracterizado pelo desenvolvimento de alguns
conteúdos técnicos básicos, com base nos quais os adolescentes teriam a oportunidade de
aperfeiçoar atividades agrárias. Entre outras iniciativas, as técnicas relacionadas ao
desenvolvimento da agricultura ecológica seriam ensinadas; o conhecimento básico em gestão
da propriedade; o conhecimento relacionado a algumas culturas alternativas, por exemplo, a
apicultura, que tornariam a diversificação possível.

Com esta base conceitual desenvolvida, os adolescentes estariam aptos para o próximo passo
do programa, o “Projeto de Investimento Capital”, ou PIC, dentro do eixo gerencial. O PIC foi
pensado como sendo a etapa mais objetiva, por meio da qual os adolescentes seriam avaliados
no programa, e este seria avaliado por seus financiadores. A elaboração dos PICs e sua
implantação foram pensados como parâmetros de avaliação da efetividade do programa, pois
o implemento de projetos profissionais alternativos na área rural poderia ser definido como o
objetivo prático principal do programa. De acordo com o plano original, o eixo gerencial teria
seu foco na elaboração do PIC, quando os adolescentes teriam a oportunidade de discutir com
a equipe da ONG seus objetivos pessoais e profissionais, para poderem elaborar um projeto

270
completo de sua implementação. Durante estas discussões, as pessoas teriam a oportunidade
de verificar a viabilidade de certos planos profissionais na medida em que os adolescentes
levantassem todas as informações relevantes ao planejamento de suas iniciativas. De acordo
com a viabilidade, os jovens poderiam, então, identificar e freqüentar cursos técnicos
adicionais na área escolhida. A idéia era que, à medida que o jovem desenvolvesse um
conhecimento técnico básico e suas competências humanísticas, ele, ou ela, pensasse e
discutisse com a equipe um plano profissional. Assim, a elaboração do PIC era vista como a
etapa final de um processo de amadurecimento dos planos profissionais dos jovens, que
deveriam ser discutidos pela equipe durante todo o programa educacional. Ao final, se o
jovem escolhesse desenvolver o cultivo de pêssegos em casa, ele estaria envolvido, durante o
eixo gerencial, em levantar dados e verificar a viabilidade do plantio e de sua venda na
comunidade vizinha, por exemplo. Se este plano se mostrasse praticável, o aluno estaria apto
a identificar e escolher cursos ou oportunidades educacionais adicionais que gostaria de
freqüentar, a fim de melhorar as habilidades relacionadas ao plano profissional específico que
elaborou.

O CEDEJOR começou suas atividades em Albardão assim que o grupo de trabalho conseguiu
negociar o uso das instalações da Escola Casemiro de Abreu – a escola de ensino fundamental
da comunidade. Os adolescentes do CEDEJOR utilizariam estas instalações – o pavilhão, para
as palestras e aulas, e a cozinha, para as refeições coletivas – enquanto estivessem em
alternância, isto é, durante as semanas em que permaneceriam juntos, em tempo integral, para
as atividades educacionais. Assim, os adolescentes foram recrutados e selecionados nas
comunidades vizinhas para se juntarem às atividades educacionais promovidas pelo
CEDEJOR, após as aulas regulares na escola, no período da manhã. Eles passariam as manhãs
na escola – serviriam-se do transporte regular para chegar lá, de suas casas, e retornariam ao
CEDEJOR, na escola Casimiro de Abreu, com ônibus contratado pela ONG. Durante os dois
primeiros anos do programa, os adolescentes não dormiram nas instalações coletivas, mas
voltavam para suas casas à noite, com os ônibus contratados pelo CEDEJOR. É importante
salientar que os jovens vinham de outras escolas da região, pois a escola Casimiro de Abreu
oferecia apenas o ensino fundamental, e a maioria deles cursava o ensino médio, quando não
haviam abandonado a escola. Os conteúdos desenvolvidos durante a alternância seriam
reforçados durante as três semanas em que os adolescentes voltassem às propriedades.
Durante estas três semanas, os monitores e o coordenador dividiriam as responsabilidades e
visitariam todos os adolescentes e suas famílias a fim de conversar e verificar se o novo

271
conhecimento estaria realmente sendo discutido e implementado, na medida do possível. Por
exemplo, os monitores observariam e discutiriam com as famílias assuntos desenvolvidos
durante a alternância, tais como as técnicas de gestão para o melhoramento de resultados da
propriedade, temas ecológicos ligados à coleta e produção de lixo, conflitos e comunicação
dentro da família e da comunidade, etc. As visitas familiares eram uma das maiores
dimensões das propostas da pedagogia de alternância, metodologia francesa adotada pelo
CEDEJOR.

Desde o início de suas atividades, a ONG sofreu com a falta de recursos humanos
qualificados para implementar seus planos e missão; havia um evidente processo de
desenvolvimento de RH que deveria ser promovido antes que as atividades da ONG
atingissem sua maturidade. Os planos e conteúdos pedagógicos que compunham o programa
foram inicialmente desenvolvidos pela equipe da ONG, com apoio de consultores e
educadores da UNISC, que envolveram-se em discussões com a comunidade, os adolescentes
e o pessoal da ONG durante as dez primeiras alternâncias. Embora não possuíssem
qualificação formal para as novas posições, Ériton e Paulo Miguel foram, respectivamente,
escolhidos pelas comunidades como coordenador e monitor do núcleo de Albardão logo após
a fundação da ONG, por terem sido os principais líderes envolvidos nas discussões iniciais.
Seu envolvimento inicial com a ONG também foi visto como crucial pelo ISC, pois os dois
líderes comunitários teriam a responsabilidade de promovê-la na comunidade, emprestando
sua credibilidade à instituição. Além destes dois moradores de Albardão, outro monitor foi
escolhido, Osmar. Em complemento ao efetivo de Albardão e ao dos outros dois núcleos, o
CEDEJOR contava com uma equipe administrativa central, composta por um gerente geral –
que permanecia na sede da ONG em Santa Cruz do Sul –, e um coordenador pedagógico para
assistir as equipes dos três núcleos. Na prática, os membros da equipe não dominavam as
competências necessárias a seus trabalho. Por exemplo, Miguel – responsável pelo
monitoramento os adolescentes –, percebia que seu trabalho com os conteúdos humanísticos
era demasiadamente baseado em sua intuição, fato que sempre considerou perigoso. Ele
sempre sentiu-se inseguro a respeito da qualidade dos conteúdos discutidos, embora visse
bons resultados no decorrer do processo pedagógico. Ele temia ir na direção errada, já que os
resultados poderiam ser ruins; ele poderia causar problemas e piorá-los ao invés de solucioná-
los. Simultaneamente, Osmar, o outro monitor contratado no início do programa, era
despreparado para a função, de acordo com Miguel; ele havia sido indicado pelo prefeito da

272
cidade, Edivilsom. Enquanto Osmar não possuía o perfil de educador, Ériton, escolhido como
coordenador do grupo, não dominava competências organizacionais ou administrativas.

O CEDEJOR tinha um presidente eleito, Fernando Schwunck, o mesmo líder que atraiu o
núcleo da ONG para Albardão. O presidente foi escolhido depois que algumas comissões
permanentes foram criadas, que seriam parte da estrutura planejada para a organização. O
“conselho deliberativo” é a esfera principal de decisão da ONG, enquanto o “conselho
comunitário” é formado por membros das comunidades para assistir a equipe local nas
decisões referentes aos conflitos diários. A decisão coletiva do conselho deliberativo elegeu o
presidente do CEDEJOR.

5.3 Bem-vindo à comunidade: recrutamento e seleção do primeiro grupo de jovens

Após a definição pelo grupo de trabalho das dimensões conceptuais e organizacionais do


projeto CEDEJOR, as equipes nos núcleos ficaram responsáveis por selecionar e implantar o
programa educacional para o primeiro grupo de trinta jovens. Neste contexto, o curto tempo
disponível e a necessidade em gerar confiança e comprometimento iniciais na comunidade
com o novo programa tornaram necessário que a equipe em Albardão – Ériton e Miguel,
principalmente – assumisse a responsabilidade direta de recrutar e selecionar os adolescentes.
De fato, os jovens selecionados deveriam preencher alguns critérios. Particularmente, o
programa procurava por adolescentes com comportamento pró-ativo, vontade de permanecer
na área rural e desenvolver um projeto profissional dentro da propriedade. Efetivamente, o
perfil identificado pelo programa era mais um ideal utópico, já que as dimensões
comportamentais requeridas eram exatamente o que o programa gostaria de desenvolver; no
entanto, os adolescentes não deveriam ser escolhidos a esmo, pois a aplicação do critério
deveria garantir um grupo mais coeso, facilitando o sucesso coletivo.

Durante o recrutamento e seleção, entretanto, interpretações divergentes sobre a proposta do


programa tornaram o resultado final desalinhado aos parâmetros iniciais. O processo de
recrutamento e seleção era empreendido pela equipe do CEDEJOR, liderada pelo coordenador
Ériton, que visitava as famílias e explicava os conceitos e objetivos associados ao projeto,
reforçando as vantagens de se participar dele. Apresentava-se o CEDEJOR como sendo um
processo educacional que ensinaria aos adolescentes outras culturas além do tabaco, assim
como conteúdos humanísticos e gerenciais. Além de constituir-se numa oportunidade de

273
sociabilidade para os adolescentes, o CEDEJOR viabilizaria uma inserção profissional
inovadora para os adolescentes, que seriam capazes de escolher estratégias alternativas de
vida. Após explicar a dinâmica do programa, a equipe utilizava dois argumentos principais
para atrair os jovens. Primeiro, sugeria-se que os adolescentes teriam oportunidade de “tirar
uns cursos”, o que significava que eles estariam envolvidos com oportunidades educacionais
variadas e, ao final, sua assiduidade seria registrada por meio dos “certificados”. Em segundo
lugar, a equipe sugeria que o PIC seria financiado pelo ISC, ou pela Souza Cruz, a “fundo
perdido”, ou por meio de um fundo rotativo. De fato, o programa parecia muito interessante,
especialmente ao se considerar que os adolescentes e seus pais não querem que os mais jovens
se envolvam com o tabaco como ocupação futura.

O discurso da equipe do CEDEJOR produziu grandes expectativas na comunidade. Para


alguns, finalmente alguém tinha olhado para eles; particularmente, a Souza Cruz, pois as
fumageiras são vistas por muitos como as exploradoras dos colonos. De fato, estes não
diferenciam o Instituto Souza Cruz da Souza Cruz; a instituição que estava promovendo o
programa CEDEJOR era a mesma que comprava seu tabaco. O discurso, no entanto, não era
baseado na realidade. Como havia sido discutido pelo grupo de trabalho, o dinheiro seria uma
dimensão crucial à implantação dos PICs, pois conseguir crédito nas comunidades rurais é
algo muito difícil, e os adolescentes não seriam capazes de inovar caso não possuíssem forte
apoio financeiro. Certamente, o assunto “dinheiro” foi discutido durante os encontros iniciais;
no entanto, nenhum dinheiro foi prometido pelo ISC ou pela Souza Cruz. Aparentemente, a
recém formada equipe do CEDEJOR Albardão decidiu utilizar estes argumentos durante o
recrutamento a fim de atrair adolescentes para o programa.

Na prática, o processo seletivo dos jovens não seguiu os critérios originais. No que diz
respeito aos resultados finais do processo, há diversas explicações. Em primeiro lugar, a
equipe temeu o prazo apertado para a implementação do projeto, que não viabilizava a
estruturação do processo; em conseqüência, todos que queriam se juntar ao grupo estavam
automaticamente selecionados, até que o grupo atingisse trinta pessoas. Em segundo lugar, a
equipe queria atrair quantas pessoas pudesse, num contexto de pouco comprometimento e
confiança da comunidade em relação ao projeto. Desta maneira, não se excluiu ninguém do
grupo interessado. Em terceiro lugar, as pessoas foram selecionadas conforme os interesses e
inclinações pessoais da equipe. De qualquer maneira, é possível afirmar que muitos
adolescentes selecionados não possuíam o perfil considerado adequado ao programa. De
acordo com Miguel, que visitava as famílias regularmente, era evidente que alguns jovens não

274
possuíam nenhum interesse no programa, e este descomprometimento poderia ser notado em
suas casas, durante as visitas. Estes jovens não se comprometiam com as atividades extra-
classe sugeridas, e suas famílias tampouco estavam estimuladas. Miguel afirma que 40% do
grupo era formado por adolescentes que estavam realmente interessados no programa, e
demonstravam possuir as competências básicas necessárias às atividades; os outros 60% eram
jovens que não dominavam estas competências (não dominavam competências básicas de
interpretação de texto, por exemplo), de maneira que acompanhar as atividades era algo muito
difícil. A maior parte desta porcentagem, no entanto, era formada por aqueles adolescentes
que não demonstravam real interesse e envolvimento no programa. Miguel disse que inúmeras
vezes encontrou famílias que não mostravam nenhum interesse nos conteúdos desenvolvidos
no CEDEJOR.

5.4 O processo pedagógico

O programa CEDEJOR iniciou-se com o eixo humanístico, cujo desenvolvimento foi


caracterizado pela indisciplina e alto nível de conflitos entre muitos jovens durante as
alternâncias. As alternâncias são períodos de uma semana em que os adolescentes passam as
tardes juntas, fazem refeições coletivas e se engajam em atividades educacionais, enquanto os
conteúdos são desenvolvidos pelos monitores do CEDEJOR, ou por consultores externos
contratados. Segundo os jovens, foram muitos os desentendimentos, discussões e até mesmo
brigas entre eles, o que fez da primeira parte do programa extremamente complicada. De fato,
a análise do grupo permite a sugestão de algumas razões por trás de tantos conflitos. Em
primeiro lugar, pode-se afirmar que os jovens que participavam do programa não
compartilhavam necessariamente dos mesmos objetivos. De fato, com o passar das
alternâncias ficava claro que grande parte dos jovens não estava realmente engajada nas
atividades educacionais propostas. Muitos estavam no CEDEJOR pela oportunidade de
encontrar seus amigos. As divergências de objetivos estavam, certamente, por trás de muitos
conflitos vividos durante as alternâncias.

Particularmente, pode-se dizer que muitos meninos não mostravam envolvimento com os
conteúdos desenvolvidos no eixo humanístico. Estes não viam muito valor nos conteúdos
iniciais desenvolvidos pelo CEDEJOR, ou achavam-nos supérfluos, e aguardavam os
próximos, por estarem mais focados em questões técnicas. Há algumas explicações para este

275
fato. Pode-se dizer que muitos meninos são estimulados a aprender uma profissão relacionada
à agricultura, estão acostumados a questões técnicas desde sua infância e cientes da
necessidade de capacitarem-se aos trabalhos agrários. Na verdade, os pais de muitos
adolescentes são realmente limitados em termos de outras competências profissionais, além
daquelas requeridas pelo trabalho com o tabaco; os mais jovens são mais propensos à
capacitação por estarem mais cientes da competitividade no mercado de trabalho, e por terem
mais experiência na educação formal. Entretanto, os meninos também têm competências
humanísticas pouco desenvolvidas. Eles aprendem desde cedo a trabalhar na lavoura, e se
envolvem com a plantação de tabaco de forma a passar muito tempo dentro da propriedade,
no contexto familiar, desenvolvendo mais suas competências técnicas. De fato, é muito
comum ouvir histórias de conflitos familiares sérios, de discriminação racial e dominação
masculina, por exemplo. No início do programa, quando a equipe não dominava as
competências adequadas para trabalhar com os conteúdos do eixo humanístico, a maior parte
destes conteúdos parecia inútil para muitos, isto é, não agregaria muito em suas vidas. A falta
de interesse de alguns adolescentes demonstrada em relação aos conteúdos humanísticos
também foi reforçada por diversos conflitos entre a equipe, que se tornaram claros
rapidamente. Exceto pelo Miguel, a equipe não acreditava na importância de vários conteúdos
humanísticos, que incluíam associativismo, cooperação, relações interpessoais, comunicação,
etc. Por exemplo, desenvolver a auto-estima entre os adolescentes não era considerado um
objetivo importante pelos outros dois membros da equipe, especialmente pelo Ériton.
Contudo, Miguel era um monitor com um perfil humanístico bem acentuado. Ele acreditava
que os conteúdos que compunham o eixo humanístico deveriam ser constantemente
desenvolvidos pela equipe, já que a baixa auto-estima é um problema fundamental na
comunidade.

A percepção de pouca importância dos conteúdos humanísticos era, no entanto, parte das
razões por detrás dos problemas de indisciplina. Simultaneamente, havia um sério conflito
crescendo entre a equipe do CEDEJOR, particularmente entre Ériton – o coordenador – e
Miguel – um dos monitores – que possuíam visões pedagógicas diferentes. De acordo com
Ériton, não era possível exigir muita disciplina e obediência dos jovens no CEDEJOR, caso
contrário eles abandonariam o programa e a instituição se esvaziaria. Segundo Ériton, era
preciso manter um equilíbrio entre disciplina e liberdade para que os jovens não se sentissem
pressionados e quisessem abandonar o projeto. Diferentemente, Miguel protestava
freqüentemente contra as atitudes que Ériton assumia quando problemas de indisciplina

276
surgiam no grupo. Certa noite, por exemplo, os adolescentes começaram a brigar e Miguel
decidiu levá-los para casa. Ele lhes disse que se não mudassem de atitude, não deveriam
voltar. Ériton repreendeu Miguel imediatamente e disse que este estava exagerando, pois
poderiam perder jovens caso eles não voltassem. Ériton temia que o grupo diminuísse,
enquanto Miguel acreditava que um processo de desenvolvimento implicava a imposição de
limites claros. Na prática, os conflitos cresceram à medida que Ériton assumia posturas
antipedagógicas, como quando convidou os jovens para jogar futebol durante uma atividade,
o que deixou os monitores surpresos e irritados, ou ainda quando emprestou seu carro a
alguns jovens para que eles pudessem ir a um baile no meio da alternância. Ao mesmo tempo,
a discussão do modelo pedagógico imposto por Ériton – isto é, a premissa de não impor
limites aos jovens – era evitada e negada por ele, que era visto como uma pessoa autoritária.
As tentativas de se impor limites aos adolescentes não eram autorizadas por Ériton. Em geral,
este assumia o papel do ‘tiozão’, ou ‘amigão’, aquele que oferecia tudo aos jovens mas não
pedia muito em troca. Certa vez, os jovens conversavam com Miguel sobre problemas de
indisciplina quando foram interrompidos pelo Ériton, que desautorizou Miguel dizendo que
invejava os adolescentes por não poder mais fazer aquilo que eles faziam.

Como resultado da visão pedagógica do Ériton, o programa não impôs limites claros de
disciplina entre os adolescentes, e aqueles que queriam estudar e se engajar nas atividades se
sentiram incomodados pelos que não queriam envolver-se, mas apenas aproveitar a
oportunidade de estarem junto do grupo. Assim, para muitos, as atividades pedagógicas e de
aprendizado não eram prioritárias. Como Miguel e os jovens descrevem, era difícil manter o
grupo sob controle durante as atividades pedagógicas; enquanto algumas pessoas estavam
interessadas em trabalhar os conteúdos, a equipe gastava muito tempo atraindo a atenção dos
demais. Entre estas últimas pessoas, alguns simplesmente não respondiam ao estímulo dado
pela equipe; não faziam nenhuma tarefa sugerida e não prestavam atenção, distraindo
freqüentemente os que estavam envolvidos no processo de aprendizado. De acordo com um
adolescente, não havia um líder forte – “pulso firme” – apto a regular as relações no grupo.
Estes conflitos levaram a uma situação de falta de credibilidade do CEDEJOR entre os jovens
e, de maneira geral, em toda a comunidade. Os que não estavam interessados nas atividades
não eram repreendidos pela equipe e isso criava uma situação em que não se podia trabalhar.
“Se muitos não trabalhavam e apenas bagunçavam, por que a gente tinha que trabalhar?”.
Além disso, estes jovens não mostravam nenhuma motivação em casa, onde suas famílias
tampouco estavam envolvidas. A má reputação do CEDEJOR na comunidade relacionava-se

277
à percepção de que os jovens tinham “liberdade demais para bagunçarem”. Havia até uma
competição de beijos nos ônibus:

JOVEM: [...] No dia que nós fomos, nossa, olha, eu sou jovem, mas a bagunça era
demais. Era concurso de beijo, uma guri beijava um guri, que beijava outra, pra ver
qual era o gosto do beijo! Primeiro de abril, é dia do mentiroso, mas é verdade! Olha,
eu fiquei apavorada. A nossa família não era... porque, em primeiro lugar, a gente
tinha regra, primeiro lugar, não namorar, segundo, não fumar em ambiente fechado,
e tinha guri lá fumando em ambiente fechado. E a gente tinha as aulas e saía pelo
menos uma vez, né, [...] E as mães perguntam, “como é que é o CEDEJOR?”. “Olha,
o CEDEJOR é bom, é bom participar das coisas”. E nem sabem o que tá
acontecendo, né? É bom se abrir, falar o que tá acontecendo realmente.

Nas comunidades, o CEDEJOR foi chamado de “cabaré”. O fato de meninos e meninas


permanecerem juntos durante tardes inteiras por uma semana – sem limites claros impostos
pela equipe – permitiu a formação de subgrupos, ou “panelas” entre os adolescentes, bem
como casos amorosos. Muitos jovens assumiam posturas e comportamentos que colocavam a
amizade, o amor e a busca por relacionamentos amorosos como objetivo principal, em
detrimento do aprendizado. Em tal contexto, o conceito de “ficar” era relevante. Os meninos
procuravam beijar as meninas, e elas também mostravam interesse em beijar os rapazes.
Relações sexuais também aconteciam às escondidas, quando a relação atingia certa
maturidade. Os adolescentes estavam constantemente conversando sobre suas relações com os
demais e fofocando sobre as relações dos outros, vivendo conflitos, ciúmes e
desentendimentos. Os casais se separavam e mudavam com freqüência. Entre as atividades de
lazer, os adolescentes freqüentemente assistiam a filmes até tarde da noite, e os garotos
usavam todos os truques para ficarem próximos às garotas. Esta situação criou muito
desapontamento na comunidade; chamou-se o CEDEJOR de “cedebosta”, pois o núcleo era
visto como o lugar onde tudo acontecia, exceto estudar e aprender. Os jovens descrevem o
“cabaré” CEDEJOR como um lugar cujas regras não eram realmente colocadas em prática,
mas eram mera formalidade. Segundo eles, se os pais soubessem realmente o que se passava
no núcleo, não os deixariam participar. De acordo com os jovens, o CEDEJOR não possuía
mais reputação alguma entre muitas pessoas, em muitas comunidades. Algumas acreditavam
que os jovens do programa eram vistos como representativos, ou imagens do CEDEJOR na

278
comunidade, por não haver muitos deles oriundos das comunidades vizinhas. Em
conseqüência, se um ou dois jovens do CEDEJOR de uma comunidade fizessem ou dissessem
certas coisas, a comunidade toda interpretava que o núcleo inteiro agia daquela forma.

É possível afirmar que, para muitos adolescentes, as alternâncias no CEDEJOR eram


momentos de socialização, durante os quais tinham a oportunidade de conhecer pessoas
novas, das comunidades mais distantes, e de passar mais tempo em companhia de pessoas da
sua idade. De fato, os jovens das comunidades, geralmente, conhecem e se encontram com
outros ao freqüentarem a escola, ou mais tarde, quando compram uma moto para circular
pelas redondezas; fora isso, a essência da juventude é vivida na propriedade. Neste contexto,
surgiu uma cultura no CEDEJOR segundo a qual era permitido aos jovens fazerem de tudo.
No decorrer do programa, ao acontecerem fatos significativos que reforçaram esta cultura, os
conflitos entre Ériton e Miguel se agravaram, e este se sentiu cada vez mais desmotivado. Por
exemplo, quando computadores e equipamentos de som foram roubados das precárias
instalações da ONG na escola Casemiro de Abreu, alguns adolescentes se ofereceram para
dormir no pavilhão a fim de tomar conta do resto do equipamento. Entretanto, em retribuição
a esta atitude generosa dos jovens, Ériton permitiu que eles navegassem pela Internet
gratuitamente durante a noite, incluindo filmes e sites pornôs. Durante as noites, os jovens
convidavam outros amigos e levavam bebidas ao lugar. Miguel não concordava com tais
autorizações, mas Ériton dizia que, se não fosse assim, eles não tomariam tal atitude. Também
no núcleo, os adolescentes possuíam a senha para utilizar a Internet, que não estava disponível
em nenhuma casa nas comunidades. Em conseqüência dos conflitos com Miguel, a rede do
núcleo possuía um mecanismo de bloqueio contra sites pornôs. Contudo, Ériton costumava
lhes entregar a senha necessária, ignorando o acordo sobre o bloqueio.

Sobre os conflitos entre visões pedagógicas divergentes, havia uma relação de subordinação
entre Ériton e Miguel, que implicava que este procurasse aquele para discutir assuntos
disciplinares e pedagógicos. Neste contexto, as discordâncias foram muitas vezes explícitas
apenas entre a equipe, pois algumas delas não eram abertamente discutidas com todo o grupo.
Miguel, que possui competências de comunicação e carisma, não era tratado pelos jovens
como o “cara chato”; ao contrário, a maioria o respeitava. Ao discutir os conflitos com os
jovens, Miguel não era autoritário, mas tentava convencê-los de que alguns comportamentos
eram inadequados. Muitos jovens mantêm intensas relações com Miguel até hoje, que é um
líder na comunidade. De acordo com ele, os adolescentes precisavam de limites; Ériton, no
entanto, não era um defensor destes limites; ele temia e mencionava constantemente a

279
possibilidade de perder jovens do programa. Sua estratégia era evitar isso por meio da
implantação de um ambiente livre para os adolescentes, em detrimento dos assuntos
pedagógicos.

Mais tarde, com a construção do pavilhão do CEDEJOR, a situação piorou já que os


adolescentes começaram a dormir em quartos coletivos durante as alternâncias. De fato, neste
momento já havia uma norma formal que os proibia de ter qualquer relacionamento amoroso
enquanto estivessem nas instalações do CEDEJOR; esta norma, no entanto, era
sistematicamente ignorada pela equipe. Os mais velhos, que eram os dominadores, não
dormiam e atrapalhavam aqueles que iam para a escola de manhã, utilizando-se de todos os
truques para se aproximarem dos dormitórios das “gurias”, apesar da interdição. Havia
sempre reclamações dos que não conseguiam dormir, mas Ériton costumava dizer que isso era
“coisa da juventude”, e que ele também havia feito isso. Quando tentava impor limites,
Miguel era sempre desautorizado pelo resto da equipe, o que o desmotivava. Miguel se sentia
isolado no processo, pois era o único em sua orientação pedagógica. Havia um forte conflito
de valores entre os dois e, mais tarde, com Renato – monitor contratado após a demissão de
Osmar –, que se juntou a Ériton em sua orientação pedagógica. Neste contexto, trabalhar no
CEDEJOR era um constante questionamento para os valores básicos de Miguel e, por esta
razão, sentia-se enfraquecido. A situação levou-o à decisão de abandonar o projeto, no final
de 2004, por não concordar com a perspectiva pedagógica de Ériton e do outro monitor. Os
conflitos de valores alcançaram um ponto insuportável quando Denise – uma consultora
contratada mais tarde pelo ISC para dar apoio às atividades pedagógicas nos núcleos – estava
dando uma palestra sobre sexualidade no núcleo de Albardão, mas alguns adolescentes não
prestavam atenção e não demonstravam respeito pela palestrante, deixando a sala de aula
freqüentemente para fumar e conversar. Ao final, Miguel desculpou-se com Denise pelo
comportamento daqueles, e ela o provocou sugerindo que aquilo era resultado da liderança de
sua equipe.

As próximas etapas do programa, os eixos técnico e gerencial, também foram problemáticas.


De acordo com as definições originais do programa CEDEJOR, o eixo técnico era um passo
necessário ao planejamento do PIC, o plano profissional que os jovens deveriam desenvolver
na etapa final do programa. O eixo técnico seria caracterizado pelo desenvolvimento de
alguns conteúdos técnicos básicos, durante os quais os adolescentes teriam a oportunidade de
desenvolver o conhecimento essencial ao avanço nas práticas agrícolas. Estes conteúdos
foram desenvolvidos pelos monitores, que possuíam mais competência formal para tais

280
conteúdos técnicos, em conjunto com a ajuda externa dos consultores. Com esta base de
conhecimentos desenvolvida, os jovens estariam aptos a avançar à próxima etapa do
programa, o eixo gerencial, quando, junto com os monitores, deveriam se concentrar no
Projeto de Investimento Capital, ou PIC. A elaboração dos PICs e sua implantação foram
pensados como parâmetros de avaliação da efetividade do programa pelos patrocinadores. A
qualidade dos projetos e o número de adolescentes envolvidos com seus PICs seria o critério
de julgamento do sucesso do programa, o que estava de acordo com os objetivos globais do
programa de fixar os jovens nas comunidades rurais e permitir o desenvolvimento de sua
inserção sócio-econômica baseada na diversidade de atividades agrárias e em sua alta
qualificação.

De acordo com o plano original, o eixo gerencial iria se concentrar na elaboração do PIC,
quando os adolescentes teriam a oportunidade de aprofundar as discussões sobre seus
objetivos pessoais e profissionais, para que pudessem elaborar um plano, um projeto completo
de inserção profissional na zona rural. Esta discussão seria a chance de se verificar a
viabilidade de certos projetos profissionais com base no levantamento dos dados necessários
ao planejamento do projeto. De acordo com a viabilidade, os jovens identificariam cursos
adicionais que gostariam de freqüentar, a fim de melhorar suas habilidades relacionadas aos
seus planos profissionais. No entanto, no decorrer do programa ficava claro que estes planos e
expectativas não eram consensuais. Parece que o Instituto Souza Cruz impôs ao CEDEJOR a
necessidade de possuir um sistema de avaliação dos resultados. As competências requeridas à
equipe de monitores para a elaboração do PIC, contudo, não foram suficientemente
desenvolvidas, já que esta não se engajou realmente na iniciativa. Além disso, acreditava-se
que a maioria dos jovens não era madura o suficiente para tomar decisões complexas sobre
qual direção escolher para seu futuro, como abrir uma empresa. De acordo com a equipe, as
expectativas do ISC em relação à elaboração e implementação do PIC eram muito distantes da
realidade dos jovens. Naquele momento, as contradições por trás do PIC incluíam o fato de
que, caso este se tornasse uma norma estrita no programa – a ser assumida pela equipe e pelos
jovens – não seria dada a estes a possibilidade de não realizarem nenhum projeto, como
muitos desejavam.

Em conseqüência, os planos associados às duas últimas fases do processo pedagógico não


foram seguidos corretamente. De fato, aos adolescentes foi oferecido um “catálogo de cursos”
a serem escolhidos desde o início do eixo técnico. Entretanto, não foram promovidas
discussões estruturadas sobre os objetivos associados aos cursos, e estes eram escolhidos de

281
acordo com os interesses imediatos dos jovens, sem maiores debates sobre as suas prioridades
e necessidades específicas. Os “cursos” por eles freqüentados foram escolhidos de acordo
com vários critérios, que incluíam a escolha coletiva dos mesmos cursos para que um grupo
de amigos pudesse viajar juntos. Neste contexto, os cursos selecionados pelos jovens não
tinham relação com seu PIC, pois a maioria não tivera a oportunidade (de fato, muitos não
tinham interesse) de se envolver com este projeto durante o processo. A maior parte dos
cursos freqüentados era fora da comunidade, alguns em Santa Cruz do Sul, quando os jovens
eram hospedados em hotéis, com todas as despesas pagas pelo CEDEJOR. Miguel não
concordava com as decisões referentes ao “catálogo de cursos” oferecido aos adolescentes,
por ser algo como se tivesse “caído no colo deles”; os cursos eram dados como presentes a
pessoas que não sabiam realmente de que modo iriam usá-los. A maioria encarava os cursos
como algo divertido, diferente e importante, que poderia ser útil no futuro. Em conseqüência
desta situação, na comunidade, a impressão era a de que havia dinheiro para tudo, o ISC era
muito rico e generoso.

Miguel percebeu que o PIC seria o fim de um longo processo durante o qual a equipe deveria
promover o envolvimento pessoal e o desenvolvimento das competências necessárias à
implementação dos projetos profissionais dos jovens. No entanto, a maior parte dos jovens
não estava consciente do processo, e o PIC não foi apropriadamente desenvolvido e discutido
no decorrer do programa enquanto projeto de vida no campo. Na prática, os “cursos” eram
freqüentados entre as alternâncias e, durante as mesmas, os jovens discutiam temas como lixo,
administração das propriedades e outros assuntos técnicos como produção de mel, por
exemplo. Estas discussões, contudo, não interligavam efetivamente os “cursos” e os outros
conteúdos aos PICs que os jovens deveriam realizar. Efetivamente, os jovens não haviam
escrito nenhum projeto profissional até muito tarde no processo. Em conseqüência, o
programa não discutiu suas direções e estratégias profissionais. Na realidade, quando o eixo
gerencial deveria começar, o trabalho no núcleo estava difícil, pois as tarefas e rotinas não
estavam organizadas. Nesta última etapa, a equipe envolvia-se também com a construção do
novo prédio da ONG, de maneira que havia sempre problemas a serem resolvidos e pouco
tempo para preparar aulas, além da falta de materiais didáticos apropriados.

Ao final do programa, os jovens deveriam elaborar seus PICs e o ISC iria avaliar o programa
baseado no sucesso nesta etapa objetiva. Entretanto, o primeiro grupo de jovens foi um
fracasso completo em termos de elaboração e implementação de seus projetos. De fato, os
cursos técnicos oferecidos pelo CEDEJOR exigiam muito tempo. O tempo reservado à

282
elaboração do PIC era curto, se considerarmos a complexidade da empreitada. Sua elaboração
contava com alguns parâmetros teóricos sugeridos, mas o programa também enfrentou
problemas com a falta de habilidades e conhecimentos por parte dos monitores que deveriam
liderar as discussões. O ISC promoveu algumas iniciativas de capacitação ao PIC, mas estas
não foram suficientes. Miguel afirma que era muito desafiador trabalhar o lado empreendedor
no espírito dos adolescentes, por estes serem muito jovens, ele achava difícil tocá-los e fazê-
los pensar em seu futuro profissional. A situação do CEDEJOR Albardão era especialmente
perigosa. De acordo com Miguel, aqueles 60% dos adolescentes que não estavam preparados
o suficiente para o processo não conseguiram elaborar seus PICs ao final do programa; estes
foram os que mais se frustraram com o processo. Estes jovens já possuíam baixa auto-estima
e sua frustração a reforçou; eles tinham esperança no programa, mas não conseguiram
terminá-lo. Para Miguel, as competências básicas e o espírito empreendedor deveriam ser
desenvolvidos antes do PIC, mas ele não sabia como fazer isso.

Ao final dos três anos do programa, o pouco tempo reservado pela equipe para a elaboração
do PIC foi gasto pelos monitores e pelos adolescentes, que tinham pressa em entregar seus
resultados ao ISC. A equipe subestimou as dificuldades e complexidades relacionadas a este
processo, bem como a importância que o PIC tinha para o ISC; ao final, então, algumas
estratégias desonestas tiveram de ser adotadas. Como tentativa final de se viabilizar as coisas
da maneira como haviam sido planejadas, a equipe, em segredo, pediu a alguns jovens –
aqueles que haviam demonstrado maior interesse e habilidades em realizar o PIC – para
ajudarem os outros. Os monitores também decidiram assumir a responsabilidade por alguns
jovens, para que seus PICs fossem entregues a tempo ao ISC. A equipe do CEDEJOR
enfrentou dois tipos de problemas naquele momento: alguns jovens não apresentavam as
competências básicas para elaborar projetos complexos, enquanto outros simplesmente não
tinham interesse em desenvolvê-lo. Esta recusa era de fato uma ameaça à ONG, cujos
resultados iriam ser avaliados com base nos PICs. Quando a equipe descobriu esse problema,
pediu aos jovens que preparassem seus PICs sem a obrigação de executá-los, apenas para
entrega-los a tempo ao ISC, para que o CEDEJOR pudesse ser avaliado adequadamente. A
conclusão do processo aconteceu com a entrega dos PICs, mas muitos deles não foram
escritos por seus ditos autores – alguns haviam copiado seus conteúdos de colegas, havendo
projetos com propostas muito similares.

Certamente, as dificuldades com a elaboração dos PICs e a recusa de alguns adolescentes em


prepará-los podem ser relacionadas às frustrações dos jovens em relação às promessas de

283
dinheiro barato. Durante as últimas alternâncias do programa, conversar com os adolescentes
sobre os PICs era muito complicado e penoso, por não ter sido empreendido um “trabalho de
base” capaz de esclarecer as expectativas dos jovens e mobilizá-los para as decisões. Antes do
final do programa, os jovens começaram a cobrar o dinheiro, lembrando a equipe de suas
promessas. Neste momento, a equipe viveu pressões intensas por ter afirmado inicialmente
que o ISC financiaria os projetos; contudo, até aquela ocasião não havia nenhuma
possibilidade concreta de financiamento dos projetos dos jovens, pois o ISC e o CEDEJOR
não haviam avançado as discussões sobre o dinheiro. A equipe sugeriu que ajudaria os
adolescentes a levantar o dinheiro eles mesmos. Entre as soluções possíveis havia o
PRONAF18 e o projeto de um fundo rotativo exclusivo para financiar as iniciativas dos
jovens; no entanto, estes fundo não previa dinheiro “a fundo perdido” e ainda estava no
esboço. Conseqüentemente, os adolescentes ficaram frustrados e revoltados com as promessas
não cumpridas da equipe. Ao se frustrarem, alguns pais começaram a reclamar e expressar seu
extremo desapontamento com o programa. Para outros, no entanto, o fato apenas era coerente
com sua idéia prévia de que ninguém realmente se importa com os problemas nas
comunidades rurais – “era bom demais para ser verdade”. O primeiro grupo de jovens havia
sido recrutado com base em falsas expectativas e conceitos; a sensação criada era de que o
ISC era rico e generoso, e iria ajudar as famílias a viabilizarem estratégias profissionais mais
interessantes a seus filhos. Como conseqüência, estes não foram estimulados a desenvolver o
projeto na última fase do programa e a equipe perdeu muito de sua credibilidade. Na
realidade, com a crescente importância e complexidade de algumas estratégias
organizacionais do CEDEJOR – como o Projeto Fênix –, pode-se afirmar que as exigências
dos jovens, na fase final do programa, não atraiam a atenção total da equipe. Em especial, a
percepção da real necessidade e as indicações iniciais de futura provisão financeira para a
implementação dos PICs, como haviam sido discutidas pela equipe de trabalho que
empreendeu as discussões conceituais do projeto, levaram a equipe a assumir os riscos de
anunciar o financiamento durante o recrutamento, embora não tivessem nada concreto a
oferecer no momento. Para correr tal risco, é provável que o coordenador tivesse assumido a
necessidade de se desenvolver uma estratégia para oferecer o dinheiro ao final do programa.
Se não fosse pela oportunidade de construir uma nova sede da ONG na comunidade, os três
anos de programa pareciam tempo suficiente para implantar esta estratégia…

18
PRONAF ou Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar, programa do governo federal que oferece
crédito às famílias de agricultores com juros subsidiados.

284
Como conseqüência deste intenso envolvimento da equipe com a construção da nova sede, a
fase final do programa foi caracterizada pelo abandono parcial das questões pedagógicas. Os
jovens reclamaram da pouca atenção que obtiveram da equipe ao final do processo
educacional. Contrariamente às suas expectativas, os adolescentes não tiveram mais notícias
do CEDEJOR após a última alternância, exceto pelo telefonema convidando-os para irem
buscar seus certificados, que não estavam prontos para a festa de formatura. Embora tivessem
feito uma festa de formatura – quando vestiram suas melhores roupas para dançar e celebrar o
fim de seus estudos – os adolescentes se sentiram extremamente frustrados com o fato do
Ériton ter sido rude ao lhes entregar os certificados; ele e Clóvis, o presidente do Cedejor,
entregaram os diplomas rapidamente, pois o coordenador disse que tinha outro compromisso.
Alguns jovens chegaram atrasado, quando o coordenador já estava indo embora. Ao se
vestirem com suas melhores roupas para a ocasião, os jovens se sentiram frustrados por
pensarem que haveria uma “janta” para a entrega dos certificados. Sentiram-se humilhados
com as atitudes do coordenador. A confecção dos certificados também teve problemas, pois
os cursos que alguns freqüentaram estavam listados incorretamente. A intensa utilização dos
equipamentos do CEDEJOR pelas pessoas da comunidade também gerou reclamações por
parte dos jovens. Embora pessoas que não participassem do programa costumassem aparecer
com freqüência para imprimir arquivos, Ériton sempre pedia que os jovens não imprimissem
tanto por sempre terem problemas de baixo nível de tinta.

5.5 O ‘Projeto Fênix’ e a mobilização na comunidade

De fato, durante o período reservado ao eixo gerencial – o último dos três anos de programa –
os desafios pedagógicos foram significativamente deixados de lado, pois Ériton, e o resto da
equipe, estavam intensamente envolvidos em negociações, planejamentos e tarefas
administrativas relacionadas à construção do novo prédio do CEDEJOR. Durante os dois
primeiros anos, a infra-estrutura utilizada para desenvolver o programa era precária, pois a
ONG utilizava as instalações da escola Casemiro de Abreu em Albardão. Em conseqüência,
os adolescentes não tinham dormitórios para permanecerem juntos durante as alternâncias, e
isto era considerado um problema por não terem a oportunidade de conviver com os
monitores e utilizar todo o tempo de que dispunham para aprender. A construção do novo
prédio foi conseqüência direta de um caso de roubo do equipamento na ONG. Em 2002 os
computadores e o equipamento de som do CEDEJOR foram roubados do prédio que abrigava
285
as atividades educacionais. O prédio era precário demais e não possuía estrutura de segurança
para abrigar equipamentos caros. O crime foi perfeito e, até agora, ninguém tem idéia de
quem seja o responsável. Naquele momento, tornou-se a desculpa ideal para mobilizar a
comunidade e, com isso, levantar dinheiro para a compra de novos equipamentos.

O projeto Fênix foi desenvolvido por meio de vários encontros para a preparação de festas e
de rifas. Estas reuniões atraíam diversas pessoas da comunidade, particularmente os líderes,
quando foi lançada a idéia, mais como uma utopia, da construção de um novo prédio para o
CEDEJOR. Na realidade, o grupo não pensava num prédio novo para a ONG, pois ela já
estava estabelecida na escola fundamental. Continuar na escola tinha suas vantagens por se
utilizar uma estrutura pública e, desta forma, economizar dinheiro. A ONG também pouparia
caso construísse a sede junto à escola; utilizaria as mesmas terras e dividiria as estruturas
necessárias. Além disso, continuar na escola viabilizaria futuros melhoramentos no seu
prédio, o que era uma demanda antiga da comunidade. Quando o Projeto Fênix foi discutido,
o grupo decidiu consultar o ISC sobre a realização de melhorias no prédio da escola, que eram
realmente necessárias para evitar futuros problemas, como furtos. A partir deste momento, o
projeto cresceu em importância. Quando a idéia foi levada ao ISC, seus dirigentes mostraram-
se interessados; no entanto, pediram às pessoas que tivessem idéias mais generosas, pois o
ISC não tinha interesse em utilizar as instalações da escola.

Nesta época, o nome “Projeto Fênix” estava relacionado à oportunidade de renovação do


CEDEJOR como uma reação à experiência ruim do roubo do equipamento: “se os
computadores não tivessem sido roubados, não estaríamos aqui, conversando sobre o futuro
do CEDEJOR”. Os encontros reuniam líderes comunitários como Ériton, Clóvis (que foi mais
tarde escolhido como presidente do CEDEJOR), Brenno (pai de Clóvis, antigo morador da
comunidade), Paulo Miguel, Neiva (esposa de Miguel, educadora religiosa da comunidade), e
Diovani (presidente da comunidade religiosa de São João Baptista). Outras pessoas também
apareciam em um ou outro encontro. A primeira oferta do ISC foi construir a estrutura do
projeto CEDEJOR, mas era preciso que a ONG mantivesse seus princípios originais, em
especial, ser um projeto de educação complementar. De acordo com esta oferta, o governo
municipal teria de assumir despesas mensais com o CEDEJOR, isto é, o ISC faria o
investimento, mas o governo teria de bancar o andamento dos programas. Neste instante, o
governo municipal entrou nas negociações. Baseado na suposição de que o governo municipal
poderia utilizar o investimento da maneira como quisesse, o prefeito manifestou a intenção de
construir várias salas de aula nas diferentes comunidades do município, e não uma estrutura

286
grande em apenas uma. A justificativa para esta proposta era que as outras comunidades não
entenderiam o motivo de um investimento único e tão grande, se outras instalações escolares
no município precisavam urgentemente de reformas. No entanto, o ISC não aceitou a
proposta, pois queria um projeto de educação complementar, e não queria investir dinheiro na
educação regular como havia entendido o governo. O ISC decidiu então assumir os riscos de
investimento, assim como as despesas do CEDEJOR no novo prédio, por alguns anos,
enquanto a ONG não elaborasse e implantasse uma estratégia de sustentabilidade. Em um ato
de generosidade em reação aos pedidos dos líderes, o ISC também prometeu dinheiro para
melhoramentos no prédio da escola, em caráter de reconhecimento pela comunidade ter
permitido a utilização destas instalações. Este dinheiro, no entanto, não seria suficiente para
suprir todas as necessidades de reforma do prédio da escola. Com esta decisão, o governo
municipal prometeu ajudar o ISC com os investimentos, doando R$ 10 mil para o prédio e
também oferecendo equipamentos e força de trabalho para a construção.

Na prática, as discussões sobre o novo prédio do CEDEJOR requeriam o envolvimento da


equipe e dos líderes comunitários. Primeiramente, um edifício simples foi proposto, com
estrutura insuficiente para as exigências do projeto da maneira como entendia o ISC. A equipe
do ISC orientou os líderes comunitários a buscarem pela ajuda profissional de um engenheiro,
para que o projeto se alinhasse a padrões técnicos e fosse coerente com suas necessidades.
Simultaneamente, o ISC queria ter certeza de que Albardão era a localização adequada para o
novo prédio do CEDEJOR, e também identificar a melhor localização disponível no distrito,
considerando que o programa educacional possuía demandas específicas de espaço. Ériton era
um defensor entusiasta do local onde o CEDEJOR está localizado hoje. Embora tenha sido
Miguel quem fez o projeto do novo prédio em Albardão, Ériton adotou a causa e a defendeu
perante a equipe do ISC com um entusiasmo impressionante. Ele mostrou que Albardão
preenchia todos os requisitos para a instalação da ONG e que o local atual era o melhor, por
estar localizado ao lado da escola e também por estar no meio do caminho para as outras
comunidades. De fato, o senhor Petry já havia mencionado seu desejo de doar terras para a
ONG. O resto da equipe, contudo, não compreendeu porque ele defendia aquela escolha com
tanta veemência. Miguel e Neiva haviam identificado outras duas porções de terra que
pareciam mais interessantes e adequadas ao CEDEJOR. Uma delas era próxima à casa de
Miguel; o outro lugar, que eles acreditavam ser bem mais fácil de se conseguir, tinha 2.000
metros quadrados, contra os 500 metros quadrados do local atual doado pelo senhor Petry,
além de estar localizado mais próximo ao centro de Albardão. O dono deste lote também

287
estava interessado em doá-lo. Quando Miguel questionou a defesa de Ériton do local atual, ele
se justificou afirmando que a comunidade já estava mobilizada para construir o CEDEJOR
ali, e que o ISC já havia aprovado a escolha. O fato de haver outras opções de local para o
CEDEJOR não foi revelado até meses depois que o edifício estivesse pronto. De fato, a
comunicação entre o ISC e o CEDEJOR era intermediada pelo coordenador, e os monitores
tinham pouco contato com os financiadores no Rio de Janeiro.

Enquanto o projeto para a nova sede estava sendo discutido, os líderes comunitários
organizaram alguns eventos para angariar fundos. Como relatam algumas pessoas, Ériton
liderou a mobilização na comunidade para algumas festas e fez também algumas rifas, o que
lhes permitiu arrecadar R$ 7 mil para comprar novos computadores e os equipamentos de
áudio e vídeo que haviam sido roubados do antigo prédio. De acordo com as pessoas que
foram à festa, ela teve grande sucesso, embora tivesse chovido naquele dia. Na prática, a
mobilização na comunidade relaciona-se ao sucesso da festa – em circunstâncias normais, ela
seria um fiasco, pois não era um dia adequado para sua realização. De acordo com um líder
que acompanhou o projeto, levou meses para que fossem arrecadados aproximadamente R$
30 mil na comunidade, que foram complementados pelo ISC, mais tarde, e finalmente
alcançasse o orçamento completo para a construção de uma “sede de primeiro mundo”. A
comunidade coletou dinheiro dos habitantes que podiam doá-lo, por Albardão ser considerada
uma comunidade rica, onde as pessoas têm patrimônio – como grandes fazendeiros – e podem
fazer doações. A terra, em que o novo edifício foi construído, foi doada por Brenno Petry –
pai de Clóvis, mais tarde presidente do CEDEJOR – cujo nome foi registrado como um dos
responsáveis pelo projeto na placa comemorativa na entrada do novo prédio. Apesar das
indicações de que o dinheiro arrecadado através do Projeto Fênix na comunidade tenha sido
usado no prédio, o relatório oficial menciona a doação de mais de R$ 312 mil pelo ISC, mas
não há registros do dinheiro da comunidade no projeto. A mobilização da comunidade
também abrangia a ajuda das mulheres do “grupo de mulheres de Albardão”, que pintaram e
limparam o novo prédio na fase final de construção, e da associação de produtores
APROALBA, que contribuiu com o trator e o transporte dos materiais.

Em geral, o coordenador usou diversas vezes o argumento de intensa mobilização em


Albardão para justificar a construção do edifício no distrito. Ao defender esta idéia, com
freqüência, a comunidade era aplaudida por seu engajamento ao projeto. Contudo, era
controversa a mobilização comunitária em torno do Projeto Fênix, bem como em outras
iniciativas coletivas durante os primeiros anos de vida do CEDEJOR. Como questionam

288
alguns, as festas foram organizadas por um pequeno grupo de pessoas e seu sucesso na
comunidade se deu unicamente pelo comparecimento em massa, uma vez que ficaram lotadas.
Sobre a ajuda dos grupos de mulheres à causa do CEDEJOR, também é possível questionar a
natureza desta mobilização. De fato, o grupo de mulheres se envolveu nas atividades de
pintura do novo prédio; entretanto, a totalidade destes grupos na região promove uma
competição anual unificada para premiar o grupo de mulheres que mais trabalha para sua
comunidade. De acordo com tais questionamentos, a real motivação por trás da mobilização
era vaga, e não realmente gerada pelas necessidades e pela oportunidade oferecida à
comunidade. A oportunidade de trabalho dada pelo CEDEJOR certamente serviu aos
interesses institucionais do grupo de mulheres enquanto membros de uma competição. Do
mesmo modo, durante a mobilização da comunidade na discussão do plano político-
pedagógico do projeto, liderada pelos consultores da UNISC, as pessoas tinham comida e
transporte gratuitos, o que também explicaria, para alguns, a eficácia do convite do
CEDEJOR.

5.6 CEDEJOR, interesses políticos e econômicos

O Projeto Fênix tornou a nova sede viável. No entanto, as articulações em torno da nova
oportunidade foram além. Quando o ISC anunciou suas intenções de investir dinheiro na nova
infra-estrutura para o projeto, a iniciativa atraiu a atenção da equipe, da comunidade e
também do governo municipal. Para algumas pessoas, o investimento também era capaz de
viabilizar outras oportunidades na região, particularmente, na região onde a escola Casemiro
de Abreu está localizada, e onde o presidente do CEDEJOR tem sua propriedade. De fato,
pode-se sugerir que interesses políticos já estavam por detrás da perspectiva de se empreender
melhorias na escola fundamental, pois a comunidade reconheceria os esforços dos líderes
responsáveis. Quando o ISC decidiu aumentar os planos, havia uma nova ordem de
conseqüências a serem analisadas. Ao sugerir a construção de uma nova sede equipada, o ISC
indicou a possibilidade de se atrair ainda mais infra-estrutura àquela área. Um condomínio
residencial e comercial foi planejado em frente ao prédio do CEDEJOR. A idéia era atrair um
banco, um armazém agrícola e outros serviços da cidade, além das residências. Sobre o
condomínio, ouvi inúmeras histórias. A informação consensual era de que seus proprietários
eram investidores de Vera Cruz – cidade vizinha – que pagaram R$ 50 mil pelas terras, após
intensas negociações. Entretanto, diz-se que a terra comprada não valia mais que R$ 16 mil. O
289
proprietário original não queria vendê-la de jeito nenhum, mas os investidores aumentavam a
oferta enquanto sua resposta era negativa. Diz-se que Ériton tem uma porcentagem no projeto,
bem como um lote no condomínio. Apesar dos preços pagos, o condomínio deveria ser
lucrativo; segundo Clóvis, o governo municipal assumiria todas as outras despesas com
urbanização e com a atração de infra-estrutura e das empresas, de maneira que os R$ 50 mil
fossem a única quantia a ser desembolsada pelos investidores. No final das contas, esperava-
se que a infra-estrutura renovada levasse a um aumento nos preços das terras da região,
atraindo futuros investidores e valorização imobiliária. Nesta época, a iniciativa tinha o
envolvimento de Edivilsom – prefeito de Rio Pardo –, e Ériton, como muitos sugeriram.

A doação do terreno ao CEDEJOR e a iniciativa do condomínio devem ser analisadas em


termos do contexto político no qual estas ações se inserem. Certa vez, perguntei a Miguel por
que alguém doaria terras na região; ele hesitou, mas respondeu que o custo da terra é baixo na
área e algumas pessoas possuem grandes lotes; doa-se para fazer algo pela comunidade.
Miguel também contou que algumas pessoas abraçam causas sociais e fazem doações por
altruísmo. Contudo, Clóvis Petry – o presidente do CEDEJOR, cujo pai doou as terras – é
membro do PP e foi candidato a vereador, mas não alcançou um número significativo de
votos. Neste caso, parece que há algo a mais envolvido na doação do que a identificação com
uma causa social. Já é antigo um movimento pró-emancipação de Albardão – que é o maior
distrito rural de Rio Pardo. No entanto, este movimento não tem sido explícito; as discussões
são promovidas pelos líderes, desde alguns anos atrás. A possibilidade de emancipação de
Albardão torna-se real ao considerarmos que outras comunidades conseguiram se emancipar
de Rio Pardo, que foi, no passado, um dos quatro grandes municípios do Rio Grande do Sul,
com mais da metade de seu território. No decorrer de sua história, Rio Pardo sofreu uma
longa seqüência de emancipações, à medida que seus distritos e comunidades se
desenvolviam de forma a preencher os pré-requisitos ao status de cidade emancipada, o que
gera uma série de benefícios à localidade. Como sugerem alguns, caso a emancipação de
Albardão aconteça um dia, o coordenador do CEDEJOR seria um forte candidato para
governá-la.

A nova infra-estrutura do CEDEJOR causou impactos profundos na comunidade. De fato, era


a primeira vez que a comunidade recebia tal quantia de dinheiro em investimentos, e este fato
atraiu a atenção das pessoas. Há bastante tempo, Albardão tem esperado por investimentos
públicos na escola fundamental Casemiro de Abreu. De repente, e de uma só vez, a
comunidade conseguiu muito mais que suas aspirações históricas, já que parte dos

290
investimentos esperados na escola fundamental também foram realizados pelo ISC. No final
do processo, os líderes comunitários haviam conseguido atrair aproximadamente R$ 500 mil
em investimentos para Albardão – esta era a quantia investida no novo prédio do CEDEJOR,
mais os equipamentos modernos, tais como data show, sistemas de áudio e vídeo, 20
terminais de computador, antena satélite, cozinha completa para 40 refeições de uma só vez, e
estrutura para 30 pessoas dormirem ao mesmo tempo. Finalmente, os adolescentes poderiam
permanecer no núcleo durante as alternâncias, e a comunidade tinha ganhado um sofisticado
programa educacional. Desde a chegada do CEDEJOR, e especialmente após o anúncio da
construção de seu novo prédio, os habitantes da comunidade se sentiram inseridos num boom
econômico, após tantos anos de paralisação econômica e dependência. Com a divulgação
boca-a-boca dos investimentos nos projetos de diversificação dos jovens e no novo prédio, a
impressão geral entre os habitantes do distrito era de que havia muito dinheiro chegando, o
suficiente para se investir na comunidade e no futuro dos jovens. A chegada do CEDEJOR e
as novas perspectivas anunciadas pela equipe foram consideradas estratégias profissionais
interessantes por muitos jovens, enquanto os colonos viam-nas como uma luz de esperança
para um futuro melhor. Estas eram realmente as melhores notícias no distrito desde muito
tempo. O sentimento geral era de que o progresso iria finalmente chegar. Neste contexto, a
abertura do primeiro posto de gasolina na localidade também reforçou a impressão de
progresso e desenvolvimento no distrito. A construção do condomínio era outro fato que
reforçava a esperança de um futuro melhor para os colonos, talvez como uma cidade
emancipada. A despeito das articulações, o projeto do condomínio não se concretizou após a
inauguração da nova sede do CEDEJOR. De fato, o prefeito de Rio Pardo não completou seu
mandato. Ele sofreu um impeachment e foi removido de seu gabinete. A iniciativa do
condomínio foi, portanto, abandonada ou adiada.

As definições relacionadas à localização do novo prédio da ONG, em Albardão, foram


momentos que tornaram explícitas as duas forças opostas que compõem o cenário político
interno do CEDEJOR. Ao compor o grupo de trabalho inicial, responsável pela discussão dos
conceitos básicos que diziam respeito ao CEDEJOR, o ISC convidou diversos líderes
políticos de Albardão, incluindo Fernando Schwunck, Ériton e Miguel, mas excluindo outros
líderes importantes das comunidades vizinhas a Albardão. As questões relacionadas à
rivalidade entre Passo da Areia e Albardão são particularmente importantes. Enquanto
Albardão sempre foi considerada uma comunidade mais rica, cujos habitantes são vistos como
detentores de um status sócio-econômico mais elevado, Passo da Areia é uma comunidade de

291
colonos mais pobres, que lutaram nas décadas recentes para alcançar padrões de vida mais
altos, mas que ainda enfrentam dificuldades para viver decentemente. Neste contexto, Passo
da Areia é tida como uma comunidade cujos habitantes são mais desejosos de se
desenvolverem por meio de esforços coletivos, embora a formação de associações e
cooperativas de moradores ainda seja uma questão incipiente. Coerente com estas percepções
locais, Passo da Areia seria a localidade natural para a instalação do CEDEJOR. Contudo, as
forças políticas de Albardão – Ériton, em particular – buscaram neutralizar a crescente
influência de Noeli na ONG, quando ele foi admitido no conselho comunitário e, em especial,
quando ele tentou ser eleito presidente da instituição. A eleição de Clóvis pode ser vista como
um movimento da coordenação para manter a presidência da ONG em Albardão. De fato,
Clóvis não tem sido um presidente de atuação pró-ativa. Com os rápidos movimentos de
Ériton, quando o ISC anunciou a construção do novo prédio, os líderes de Passo da Areia
sentiram que as decisões haviam sido injustas e incoerentes com a história da região,
mostrando seu descontentamento com a decisão que também contrariava seus interesses.
Neste contexto, o comportamento e os interesses de Ériton foram visto como políticos por
aqueles que não concordavam com o critério utilizado como justificativa para a construção da
nova sede em Albardão. A partir deste momento, os líderes comunitários intensificaram uma
campanha não explícita para revelar os reais motivos por trás das decisões do grupo, fazendo
uma clara distinção de interesses: as reais causas comunitárias e as políticas, egoístas,
centradas na maximização de futuros ganhos pessoais com o projeto. Nas rodas sociais,
muitas histórias e hipóteses relacionadas à atuação do Ériton como coordenador, e aos outros
líderes locais, eram discutidas com freqüência. Estas histórias eram vistas como muito
obscuras, pois não se podia afirmar que os problemas organizacionais que o CEDEJOR
enfrentava fossem resultado de incompetência ou de má-fé. De fato, as dificuldades foram
vistas por muitos como resultado de uma associação das duas causas.

5.7 Laços políticos obscuros

De fato, o CEDEJOR tem se desenvolvido dentro de uma intrincada rede de interesses


políticos. Desde seus primeiros anos, dois grupos mantêm laços obscuros com a ONG. Num
primeiro momento, o presidente Fernando Schwunck vendeu serviços de consultoria à ONG
através da empresa de seus parentes, que tentaram, em vão, implantar o padrão de qualidade
ISO 9001 na organização. O sistema logo caiu em desuso. Nesta época, ele era candidato à
292
prefeitura da cidade, mas desistiu assim que percebeu que não iria ganhar. Fernando tem uma
boa reputação entre as pessoas, como um ex-secretário municipal competente. Ele não foi
muito longe em seu projeto político. Ao desistir de sua candidatura, ele deixou a região e se
concentrou em seus negócios privados. Ao contrário, Edivilsom aparentemente fez um pacto
político com Ériton, que foi parcialmente implantado. De fato, é possível analisar o contexto
em que este pacto se desenvolveu. Como um antigo colono, Ériton provavelmente não tenha
visto o CEDEJOR como uma ferramenta política no início de seu envolvimento com o
projeto; entretanto, sua inserção privilegiada na instituição e sua visibilidade crescente na
comunidade indicavam um novo status social. Desenvolver uma carreira política havia se
tornado uma estratégia pessoal interessante. Pode-se sugerir que o modo como as coisas se
desenrolaram, desde sua inserção no grupo de trabalho, tornou esta possibilidade muito
concreta, pois era possível superar todas as barreiras associadas ao lançamento de uma
carreira política na região. Ao chegar a tal percepção, o coordenador centrou seus esforços
nesta direção. Particularmente, o processo de qualificação inicial no qual estava envolvido –
as discussões do grupo de trabalho – foi caracterizado por inúmeras viagens e visitas a lugares
em todo o país, bem como pelo contato com todos os tipos de autoridades e especialistas
(incluindo uma audiência com o governador do estado do Rio Grande do Sul, por ocasião da
inauguração da nova sede do CEDEJOR), o que possivelmente tenha lhe exercido grande
influência simbólica. Finalmente, a carreira política era algo que fazia muito sentido à medida
que Ériton se viu envolvido numa empreitada tão grande e, como coordenador, em seu
completo comando.

O pacto político com o prefeito da cidade envolveu várias decisões que não estavam alinhadas
às expectativas do ISC. Entre outros incidentes, a contratação de Renato para o cargo de
monitor, substituindo Osmar, foi um erro que também teve explicações políticas. Quando
Osmar saiu, Ériton decidiu fazer um processo seletivo para contratar um novo monitor. Além
de um candidato que não havia participado do processo seletivo até o fim, havia duas pessoas
elegíveis: Renato e Neiva. Neiva é a esposa de Miguel, ex-educadora religiosa da
comunidade, e alguém que possuía competências educacionais relevantes. Ao contrário,
Renato é tido como alguém com comportamento ético questionável, embora com ótimas
competências de comunicação. Durante o processo seletivo, Neiva percebeu que Renato já
havia sido escolhido quando ela passou pela entrevista. Devido ao fato de ter acompanhado o
desenvolvimento do CEDEJOR desde o início, ela tinha grande entusiasmo pelo projeto e por
sua missão; ela se sentia preparada para o cargo e mostrou interesse na posição. Entretanto, a

293
desculpa utilizada por Ériton, e apoiada pelos consultores contratados pelo ISC para ajudar no
processo de seleção, relacionava-se ao nepotismo, já que seu marido já trabalhava na
instituição. Durante a entrevista, a consultora perguntou a Neiva se ela sabia o significado da
palavra nepotismo; ela ficou nervosa e se sentiu acusada de “algo desonesto que os políticos
fazem”. Neiva sentia-se motivada à aprendizagem, pois sabia que não possuía todas as
competências para o cargo; além disso, ela tinha grande aceitação na comunidade – o que era
um requisito básico para a função. Quando Renato foi escolhido, ele se mostrou despreparado
para a função de educador. De fato, os conflitos entre Renato e Miguel reforçavam as
tradicionais divergências entre Miguel e Ériton no que dizia respeito às suas visões
pedagógicas, já que Renato havia se alinhado aos valores da coordenação. Certa vez, um
barulho forte vinha de fora do núcleo, já era tarde no dia e as atividades já tinham se
encerrado; Miguel olhou para fora e viu que haviam dois jovens fazendo competição de
velocidade (um “racha”) em frente ao CEDEJOR, sem capacete, e Renato havia assumido o
papel de juiz. Miguel perdeu a compostura e sua diplomacia, e ficou furioso com Renato. Ao
final, Ériton teve de interferir usando diplomacia; ele afirmou que Miguel tinha razão, mas
sugeriu que este não deveria ter se enfurecido tanto. À medida que os conflitos pioravam,
especialmente após a chegada de Renato, Miguel sentiu que suas posturas eram
crescentemente desautorizadas. Após vários meses tentando superar o cenário complicado, ele
atingiu um ponto de frustração insustentável e abandonou o programa. Em conseqüência
destes conflitos, a antiga amizade que Miguel tinha com Ériton, desde a infância, tinha sido
severamente abalada e se tornara, finalmente, um relacionamento frio.

O pacto político, que Ériton estabeleceu com o prefeito, tinha Renato como um de seus atores.
Quando ele foi contratado, Ériton começou a pagar um salário para um funcionário que já
recebia vencimentos de um emprego público, embora já não estivesse trabalhando no
governo. Este era um “caso de clara desonestidade e má-fé”, como mais tarde apontou Letícia,
e Ériton não deveria tê-lo contratado conhecendo tais condições. Ériton sabia sobre o duplo
salário e contratou-o para a posição de monitor, ocupada por vários meses, até que o fato veio
a público, e o coordenador foi pressionado pelo ISC a demiti-lo. A parceria entre o governo
municipal e o ISC para construir a nova sede do CEDEJOR também foi uma questão que
gerou discussões e desapontamentos. Segundo os dirigentes do ISC, os investimentos na ONG
foram utilizados desonestamente com propósitos políticos. Ao discutirem como os
investimentos seriam feitos, ficou definido que o governo municipal contribuiria com R$ 10
mil, entre outras doações menores. Entretanto, o prefeito nunca depositou o dinheiro como

294
havia prometido. Letícia não sabia deste fato até meses depois da inauguração, pois Ériton
não o havia mencionado. Durante o dia inaugural em Albardão, o prefeito da cidade estava
sentado ao lado de Letícia no palanque, que promoveu e agradeceu a parceria com
entusiasmo; Ériton sabia que a parceria não havia sido consumada de fato. Apesar disso, ela
fez “papel de idiota na frente de todo mundo”, sendo grata pela falsa parceria que renderia ao
prefeito muitos votos. De acordo com Letícia, ela estava ao lado do prefeito, “como uma
idiota”, pensando que ele havia sido seu parceiro, o que não era verdade. Ela afirma que a
campanha política local havia sido baseada em grande medida nas conquistas relacionadas ao
CEDEJOR, que é a maior instituição baseada nas comunidades, e tinha o poder de render
muitos votos. Logo após este incidente, Ériton e Renato foram convidados pelo prefeito a
assumirem posições importantes no governo local. Em particular, Ériton seria um dos seus
secretários, isto é, um dos assistentes mais próximos do prefeito. Num contexto de brigas
políticas, acusações e a possibilidade de impeachment na cidade, Ériton não aceitou o convite.
De acordo com ele, seu papel no projeto do CEDEJOR era muito maior e mais importante que
assumir o cargo que lhe fora proposto. Ao contrário, Renato aceitou o convite. Alguns meses
mais tarde, e em discordância das recomendações do ISC, Renato foi contratado pelo
CEDEJOR para organizar um passeio turístico pela cidade com as equipes dos outros núcleos
da ONG, que visitavam Rio Pardo para um evento de capacitação. O contrato rendeu
discussões e também contribuiu à erosão da confiança, antes irrestrita, que os dirigentes do
ISC depositavam na coordenação do CEDEJOR.

5.8 O CEDEJOR como uma ‘organização em aprendizado’

Desde seus primórdios, o CEDEJOR era coordenado por Ériton. Durante os dois primeiros
anos do projeto, o programa educacional fora implantado pela equipe local, com a assistência
de consultores contratados pelo ISC para facilitar o desenvolvimento das competências
administrativa e educacional da equipe. No que diz respeito ao relacionamento entre o ISC –
os patrocinadores do programa – e o CEDEJOR, os primeiros anos de funcionamento da ONG
foram caracterizados por sua grande autonomia. Esta autonomia pode ser explicada de
diversas maneiras. Em primeiro lugar, o ISC havia definido quatro focos estratégicos, o que
implicava apoiar vários projetos ao mesmo tempo, sendo que o CEDEJOR era apenas um
destes. De fato, o CEDEJOR era uma iniciativa do ISC relacionada a um de seus quatro focos
estratégicos iniciais, mais especificamente, a “educação para o empreendedorismo”. Na sede
295
no Rio de Janeiro, o CEDEJOR e outros projetos sociais ocupavam o dia-a-dia de apenas um
analista de projetos, que deveria lidar com todas as suas demandas, problemas e dificuldades,
assim como as demandas associadas a outros projetos alinhados a outros focos estratégicos.
No que diz respeito ao CEDEJOR, o tempo dos analistas era utilizado basicamente para as
definições estratégicas ligadas ao programa, numa interação muito próxima com Maria Ieda.
A Profa. Ieda é uma especialista em assuntos educacionais e projetos sociais, e havia sido
contratada para substituir Sônia, a antiga assistente do ISC em assuntos relacionados ao
CEDEJOR, que deixou o programa meses após sua fundação e depois de contribuir ao grupo
de trabalho que definiu os conceitos básicos relacionados ao programa. Após a fundação do
CEDEJOR e durante a implementação do programa em sua fase inicial, Maria Ieda costumava
ir ao Rio Grande do Sul regularmente para discutir com a equipe as suas dificuldades diárias.
De fato, quando os outros núcleos da ONG foram fundados em Santa Cruz do Sul e na cidade
de Rio Pardo, Maria Ieda costumava encontrar-se com as três equipes num hotel no centro de
Santa Cruz, no qual eram promovidas discussões sobre os problemas dos três núcleos. Sobre
as relações entre o CEDEJOR Albardão e a sede do ISC no Rio de Janeiro, as reuniões com
Maria Ieda eram o principal meio de comunicação com os patrocinadores além do e-mail, pois
o núcleo não possuía sistema telefônico, apenas Internet. Neste contexto, as atividades
realizadas em Albardão eram mantidas a grande distância do conhecimento do ISC, por não
haver um canal adequado de comunicação. A equipe do ISC não conversava com freqüência
com os monitores, mas apenas com o coordenador. De fato, Eriton era um comunicador
competente, “muito bom com as palavras”, e sempre descrevia uma realidade fictícia. Maria
Ieda não costumava visitar o núcleo de Albardão com muita freqüência – uma vez ao mês, na
maior parte das vezes –, quando grandes recepções eram preparadas. De fato, a chegada de
Maria Ieda ao núcleo era vista como um grande evento, e os adolescentes eram instruídos pela
equipe sobre os comportamentos adequados frente à consultora.

Ériton era considerado por muitos uma pessoa autoritária que, quando pressionada ou
contestada, tornava-se violenta com freqüência. Suas habilidades de comunicação e persuasão
eram tais que ele era odiado por aqueles que questionavam seus meios e fins, expostos muitas
vezes com grande entusiasmo. Para estas pessoas, ele era um adulador; ele venerava as
pessoas em demasia, desenvolvendo amizades falsas e egoístas. Para outros, no entanto, ele
era considerado um grande amigo, sempre disposto a ajudar; alguém que realmente trabalhava
muito para desenvolver os adolescentes e a comunidade. Seu estilo administrativo era descrito
como competente para mobilizar as pessoas para as iniciativas e projetos, mas “fraco” quando

296
se devia cobrar resultados. Por exemplo, de acordo com o presidente do CEDEJOR, o
programa sofria com a falta das competências necessárias aos desafios administrativos
específicos, pois o coordenador não se mostrava competente em avaliar resultados ao final
dos processos. Ele não deveria ser o responsável por estas tarefas, pois Paulo Miguel era mais
incisivo ao desempenhá-las. Por exemplo, em relação ao desempenho dos adolescentes no
programa, a equipe devia preencher formulários de avaliação ao final de cada alternância, de
acordo com as definições pedagógicas iniciais do CEDEJOR. Os formulários foram
planejados como ferramentas para o registro e o acompanhamento das principais deficiências
que os jovens apresentassem, para que os monitores pudessem estimular o desenvolvimento e
promover oportunidades de aprendizagem específicas. No entanto, Ériton nunca implantava
os procedimentos corretos de avaliação, mas preenchia os formulários sozinho, com
comentário superficiais e referindo-se positivamente ao desempenho da maioria dos
adolescentes. Em poucos casos, ele mencionava a falta de motivação ou de envolvimento,
sem maiores comentários sobre as principais deficiências dos jovens. Contudo, Ériton era o
grande entusiasta dos novos projetos e propostas, quando estes estavam alinhados às suas
crenças sobre o programa; sua liderança nestas iniciativas rendia-lhe o direito de continuar em
sua posição.

Entretanto, se é verdade que o coordenador não costumava cobrar resultados, é possível


interpretar a renúncia de Ériton aos procedimentos de avaliação como reflexo de seu projeto
maior na ONG e na comunidade. Para Ériton, o núcleo de Albardão deveria ser o melhor
possível, o melhor de todos, não importando o custo, nem mesmo se esse sucesso implicasse a
construção de uma grande mentira. Para alguns de seus colegas de trabalho, Ériton era um
comunicador competente, mas daquele tipo que comunicava apenas aquilo que lhe
interessava. Por exemplo, Maria Ieda não conhecia a visão pedagógica implementada pela
coordenação, segundo a qual aos jovens do programa não eram impostos limites. De fato, a
professora Ieda não vivia a rotina do núcleo. Ériton costumava contar mentiras ou esconder
fatos relevantes durantes seus encontros com Maria Ieda e com as outras equipes, escondendo
a real dinâmica cotidiana do núcleo; Miguel costumava ficar embaraçado com o
comportamento de seu chefe, enquanto as equipes dos outros núcleos ficavam descontentes e
riam nervosamente de tais manipulações. Estas sabiam que tais informações não poderiam ser
reais, pois conviviam com muitos problemas em seus núcleos. Contudo, os outros membros
da equipe de Albardão não estavam autorizados a contestar as informações da coordenação.
Maria Ieda e Letícia acreditavam e confiavam nele. O estilo de liderança de Maria Ieda

297
também contribuiu com a reprodução da manipulação das informações. A professora Ieda é
uma pessoa amigável, com competências interpessoais muito especiais. Ela buscava resolver
conflitos e fazer amigos evitando confrontações e construindo consensos adotando posturas
diplomáticas. Impor suas opiniões não era seu estilo, mas sim convencer as pessoas a
reconhecer as estratégias corretas, discutindo vantagens, desvantagens e alternativas.
Entretanto, a professora Ieda não era tão convincente quando cobrava resultados. De fato, ela
pedia por resultados; entretanto, não era tão incisiva, pois acreditava que a equipe possuía seu
tempo e seu ritmo para aprender e, conseqüentemente, mostrar resultados. Embora ela
desenvolvesse uma boa relação com os jovens e a equipe, seu trabalho junto ao CEDEJOR
Albardão foi, mais tarde, classificado como controverso, já que ela teria assumindo o papel de
“mãezona”. Neste contexto, Ériton tinha um bom relacionamento com ela, pois seus conflitos
eram geralmente resolvidos, e Maria Ieda não interferia muito na rotina do núcleo.
Certamente, a freqüente manipulação das informações teve um papel importante ao mantê-la
longe dos conflitos pedagógicos e dos problemas organizacionais que a instituição enfrentava.

O período inicial de desenvolvimento organizacional do CEDEJOR caracteriza-se pelo


alinhamento da instituição aos interesses e propostas da coordenação. Na prática, durante os
dois primeiros anos de programa, a rotina da ONG foi bastante desorganizada e muito “aberta
à comunidade”. Este termo tem sido usado com freqüência para classificar o tipo de relação
entre os habitantes das comunidades e o CEDEJOR. Estar “aberto à comunidade” refere-se à
extensão da abrangência das atividades do CEDEJOR a outros habitantes das comunidades, e
não apenas aos adolescentes envolvidos no programa educacional. De fato, as novas
instalações do CEDEJOR são vistas como o melhor equipamento disponível à comunidade e,
de acordo com seus usuários, seria uma pena, ou um desperdício, se a equipe não os deixasse
usufruir daquela infra-estrutura. Em especial, o novo prédio possui o único laboratório de
informática da região, com quinze terminais e acesso à Internet, uma sala de leitura, uma
biblioteca, uma cozinha comunitária e refeitório e uma sala de reuniões. Apesar da utilidade
destas instalações, que poderiam ser usadas pelas famílias em diversas ocasiões, o prédio não
oferece muito espaço, como seria preciso para eventos maiores. Durante os primeiros anos de
funcionamento da ONG, e mesmo nas antigas acomodações da escola Casemiro de Abreu,
Ériton teve a iniciativa de oferecer à comunidade diversos serviços, a despeito de seus
recursos limitados. Por exemplo, a ONG ofereceu um curso de informática à comunidade.
Para implantá-lo, os jovens do programa assumiram o papel de professores dos moradores
interessados, embora eles não estivessem suficientemente preparados para a tarefa. De acordo

298
com Miguel, a falta de competências entre os jovens para ensinar informática era clara, e foi
fácil para a comunidade perceber que o curso era, na verdade, um erro – “havia poucos
adolescentes que podiam ensinar”. Enquanto o curso lutava para decolar, foi interrompido
pelo roubo dos computadores.

Para implantar “relações abertas com a comunidade”, Ériton precisava de suporte para
satisfazer as demandas diárias das famílias, que usavam o CEDEJOR freqüentemente como
um centro comunitário, disponível para diversos tipos de serviços. Neste contexto, os
monitores poderiam eventualmente assumir estas responsabilidades. Entretanto, seu papel
estava relacionado às demandas do programa educacional, que abrangia as visitas às famílias
dos jovens enquanto estes não estivessem em alternância, e isto demandava muito tempo. Da
mesma maneira, a coordenação era incapaz de assumir a responsabilidade diária pelos
procedimentos operacionais que a política de “relações abertas com a comunidade” exigia.
Como solução, uma jovem do programa foi escolhida e, mais tarde, contratada para auxiliar a
coordenação, assumindo a função de secretária, responsável pelos contatos com a
comunidade. De fato, o cargo de secretária da coordenação foi criado sem o conhecimento do
ISC, pois era o governo municipal quem garantiria a sua remuneração. A jovem, Dayane,
havia sido oficialmente contratada como uma estagiária pela prefeitura para ajudar a organizar
a biblioteca da escola Casemiro de Abreu; mais tarde ela foi transferida ao CEDEJOR para
ajudar a organizar a biblioteca da ONG e, então, assumiu a função de secretária de Ériton, em
sucessivas mudanças de responsabilidades. Enquanto estava na posição de secretária, Dayane
auxiliava as pessoas da comunidade – líderes, colonos, jovens de todas as idades –, que
usavam os recursos disponíveis, especialmente os computadores.

A relevância dos serviços disponibilizados pelo CEDEJOR era grande e também reforçava a
dependência dos moradores da comunidade. Entre outros, um líder da comunidade religiosa
de Santa Ana procurou por Ériton, depois da extinção do cargo de secretária, e quando ele já
não era mais o coordenador do núcleo. O seu pedido à nova equipe sugeria uma intensa
relação de troca entre a comunidade e o CEDEJOR, pois o núcleo oferecia meios tecnológicos
e competências humanas que eram cada vez mais necessárias à consecução das tarefas e
projetos diários dos moradores. O líder da comunidade religiosa estava buscando ajuda para
fazer convites para uma procissão. Quando a nova equipe perguntou-lhe sobre o arquivo com
o conteúdo e o modelo do convite para que pudessem imprimi-lo, o morador disse que não
havia elaborado nada. Ele então comentou que a secretária de Ériton é quem costumava fazer
os convites. A monitora disse que não poderia assumir a responsabilidade de fazer os

299
convites, pois não sabia como eles eram geralmente escritos. Embora o morador reconhecesse
os limites da monitora, sugerindo que ela não poderia mesmo saber por não ser da
comunidade, ele também não sabia fazê-los e voltaria para casa frustrado. Ele sugeriu então
que sua incapacidade era devido à sua falta de educação formal – ele era competente apenas
em matemática, nos cálculos das áreas para o cultivo do tabaco. Como solução, o líder
religioso disse que iria pedir a um amigo médico, “inteligente”.

A conversa com o líder religioso também reforçou outras percepções culturais que
caracterizam a relação do CEDEJOR com a comunidade. Ao discutir com a monitora sobre o
andamento dos estudos dos jovens, o morador não sabia explicar a metodologia e os horários
do programa, embora tenha tentado mostrar-se informado diante da profissional. Após ouvir a
explicação sobre a nova agenda do programa, ele expressou grande surpresa em relação ao
fato de que haveria períodos em que os adolescentes não estariam no núcleo, e os monitores
deveriam planejar e estudar os conteúdos das próximas alternâncias. Preparar-se para as
próximas alternâncias parecia ser uma nova e surpreendente tarefa dos novos monitores, que
haviam substituído a equipe antiga em 2005, depois que Ériton foi desligado do programa. A
surpresa estava relacionada às novas responsabilidades de aprendizado associadas ao trabalho
de monitor que, até então, estavam sempre ocupados visitando e auxiliando os adolescentes e
suas famílias fora dos períodos de alternância, e raramente tinham tempo para estudar. De
fato, o núcleo nunca havia sido um lugar para estudos quando não havia alternâncias, pois as
variadas demandas externas tomavam a maior parte do tempo da equipe. Estas demandas
incluíam os colonos, que vinham com freqüência para saber a previsão do tempo pela
Internet. Aliás, a meteorologia era uma ferramenta que se tornava relevante aos colonos, que
deviam gerir as incertezas associadas ao cultivo de tabaco. Outras demandas diárias incluíam
a pesquisa para trabalhos escolares feita pelos alunos do ensino fundamental e médio, que
sempre utilizavam a Internet no CEDEJOR, e as visitas de pessoas da comunidade, que
vinham conhecer ou visitar as instalações, saber do desenvolvimento do programa, ou apenas
fofocar com a equipe. Além destas tarefas, os eventos especiais da comunidade realizados no
CEDEJOR sempre juntavam muitas famílias, e sua organização também requeria o
envolvimento próximo da equipe. Em especial, os moradores que vinham usar os
computadores sempre precisavam de ajuda da equipe ou da secretária. Ajudá-los era,
certamente, grande parte do trabalho da secretária do CEDEJOR.

De fato, a demissão do coordenador do CEDEJOR e a substituição da equipe foram o


resultado de uma mudança mais profunda no curso do desenvolvimento da instituição. Esta

300
mudança foi acelerada quando o ISC decidiu refazer suas orientações estratégicas,
abandonando a maior parte das causas sociais anteriormente apoiadas e concentrando seus
esforços na problemática da “educação para o empreendedorismo”. Desde sua fundação, em
2000, o ISC buscava consolidar resultados, apesar de várias e diferentes iniciativas estarem
sendo apoiadas simultaneamente, nenhuma delas com o nível adequado de envolvimento.
Neste contexto, o CEDEJOR era apenas um entre os vários projetos promovidos pelo
instituto. Durante o planejamento estratégico para o período 2003-2008, no entanto, a equipe
do ISC chegou à conclusão de que a ONG precisava reduzir seu foco de atuação e concentrar
seus esforços se quisesse contribuir significativamente a uma causa social. Em conseqüência,
o CEDEJOR foi eleito pelo ISC como o projeto social de maior importância, por estar
completamente alinhado ao seu novo objetivo, promover o “desenvolvimento local com foco
no jovem rural”. Sobre a escolha deste novo objetivo, Letícia mencionou o fato de que havia
muitas ONGs dedicadas à juventude urbana enquanto poucas à juventude rural; além disso, a
Souza Cruz já acumulava conhecimentos relacionados às causas rurais; em especial, Letícia já
havia implantado um projeto de combate ao trabalho infantil.

Com o reposicionamento estratégico do ISC, a equipe sediada no Rio de Janeiro passou a


dedicar muito mais tempo e recursos ao acompanhamento do projeto CEDEJOR, já que,
desde então, seus resultados dependiam muito dos resultados do projeto. Na prática, o
CEDEJOR precisava comprovar resultados. Em 2004, o ISC fez um profundo diagnóstico da
situação no CEDEJOR, incluindo o núcleo de Albardão, com base no qual foram listados
vários problemas organizacionais e pedagógicos. Enquanto analisavam a situação dos jovens
no processo de aprendizagem, a equipe do ISC descobriu que o eixo gerencial estava atrasado,
e que os PICs não estavam sendo elaborados da maneira como previsto pelo programa. Na
realidade, o programa estava quase acabando – a última alternância estava marcada para julho
de 2004 –; entretanto, pouco antes desta data os projetos ainda não estavam apresentáveis.
Como a elaboração e a implantação dos PICs eram consideradas o objetivo final do programa,
o ISC decidiu contratar Zaira para dar suporte a este desafio pedagógico. A consultora
acompanharia os trabalhos nos núcleos de Rio Pardo e de Santa Cruz do Sul, incluindo
Albardão. Zaira trabalhou junto ao CEDEJOR de julho de 2004 até março de 2005; ela
acompanhou a última alternância com os adolescentes enquanto conhecia o processo. Como
todo o programa estava atrasado e a ONG tinha muitos problemas administrativos, o ISC
adiou o recrutamento do segundo grupo de jovens para que a consultora e a equipe tivessem
tempo de “arrumar a casa” durante o período entre julho e dezembro de 2004.

301
O primeiro grupo de jovens deveria ter terminado o programa em julho de 2004; entretanto,
seus projetos de investimento de capital não estavam prontos naquele momento. A equipe do
CEDEJOR conhecia os parâmetros teóricos para a elaboração do PIC – o livro O Segredo de
Luísa, em cujos capítulos são discutidos conceitos relacionados ao projeto, como análise de
mercado, fluxo de caixa, etc. Ao acompanhar a última alternância, no entanto, Zaira se
incomodava com a falta de fundamentação teórica para a elaboração do PIC, que afetava não
somente os jovens, mas também os monitores. Ao discutir os conceitos básicos com os
alunos, sua resposta típica era um “sim” vazio. De acordo com Zaira, era evidente que os
alunos não estavam cientes da complexidade associada a cada um dos termos que estavam
discutindo, pois ninguém podia de fato discuti-los. A consultora percebeu que os conceitos
não eram familiares aos adolescentes e aos monitores, que conduziam as aulas de tal maneira
que os alunos não se engajavam realmente; muitos não demonstravam nem curiosidade. Em
conseqüência, Zaira se envolveu no processo pedagógico, interferindo nas aulas e discutindo
os projetos com os alunos. No núcleo de Santa Cruz do Sul a consultora se levantou durante a
palestra final e fez uma intervenção de uma hora e meia, recolocando diversas questões
relacionadas ao projeto. Ela começou ensinando aos adolescentes como calcular o preço final
dos produtos. Um exemplo foi o projeto para confeccionar toalhas de mesa: oito tipos
diferentes de toalhas de mesa requeriam oito estruturas diferentes de custo e preço. No que
dizia respeito aos competidores, ela usou o exemplo de um concorrente fictício que também
confeccionava toalhas de mesa na região. De fato, ensinar os conceitos aos jovens requeria a
adaptação de termos técnicos para a linguagem simples utilizada nas comunidades. Suas
intervenções causaram reações entre os adolescentes; alguns afirmaram que iriam mudar seus
projetos, outros admitiam a necessidade de propostas coletivas ao invés de individuais. De
acordo com Zaira, em Santa Cruz do Sul a equipe admitiu a falta de conhecimento para
desenvolver o PIC, e aceitou sua ajuda. Contudo, em Albardão as resistências às suas
intervenções foram grandes; a equipe não aceitou que ela interferisse nos projetos; a
coordenação era muito escorregadia toda vez que ela queria analisar e discutir os projetos.
Tudo estava sempre bem e a equipe não tinha tempo para discutir com a consultora.

Os conflitos e a resistência à interferência de Zaira foram profundos. Ao realizar um


diagnóstico sobre a situação do CEDEJOR Albardão, a consultora percebeu que os problemas
pedagógicos não eram os únicos que mereciam sua atenção. A administração era muito
precária no núcleo e Zaira começou a pressionar Ériton a repensar suas práticas. Numa
analogia, Zaira afirma que não poderia ensinar a um adolescente o conteúdo da quarta série se

302
ele ainda não tivesse terminado a primeira série. Quando começou a trabalhar, ela encontrou
uma situação de centralização administrativa na figura do Ériton, que atuava de maneira
autônoma há três anos. A maior responsabilidade da coordenação com o ISC era o envio de
relatórios financeiros regulares, que não eram contestados pelo Instituto. Entre os problemas
administrativos que a consultora encontrou, o relatório financeiro trimestral era uma confusão,
e “estava mais para um romance financeiro”. A ordem cronológica das despesas não era
obedecida; as despesas não eram devidamente justificadas, mas apenas vagamente
mencionadas (como, “pedágio, 01/11/2003”). Zaira questionou o modo como a equipe
preparava os relatórios ao sugerir, por exemplo, que as despesas com pedágios deveriam ser
justificadas em detalhes, para que se pudesse comprovar sua relação direta com as atividades
da ONG. Ao perceber a situação, uma de suas primeiras decisões foi convidar o escritório de
contabilidade para treinar a equipe, pois Zaira acreditava que o seu conhecimento no assunto
pudesse estar desatualizado. O problema com a secretária da coordenação também veio à
tona. Ao notar a atuação da jovem do programa como secretária, Zaira decidiu pedir
instruções sobre como agir ao ISC. De acordo com ela, a contratação da garota como
secretária era uma contradição ao processo, pois se tratava de uso indevido de recursos,
enquanto a extinção destes comportamentos obscuros era um dos objetivos do programa. O
ISC, no entanto, não sabia sobre a secretária da coordenação, embora ela estivesse
trabalhando na posição há um ano. Zaira questionou a equipe sobre suas responsabilidades na
contratação da jovem; de fato, ela deveria participar do programa e não estar fazendo o
serviço da coordenação. No final das discussões, e após o ISC interceder, a secretária deixou
o emprego, e Zaira foi reconhecida como a responsável pela decisão.

Enquanto Zaira discutia os problemas administrativos do núcleo, interpretações divergentes


sobre o comportamento de Ériton surgiam. Ele mesmo admitiu suas carências em termos de
competências de gestão, pois dizia não gostar de tarefas organizativas. Contudo, algumas
pessoas ligadas ao projeto sugeriam que a desonestidade poderia estar por trás dos problemas
administrativos, que estavam disfarçados sob a forma de problemas, mas que deveriam, na
verdade, continuar intocados. De acordo com Zaira, por exemplo, os problemas eram uma
espécie de síndrome de INSS – “não vamos organizar nada porque se o fizermos, vão
descobrir quem está levando o quê”. De acordo com outro consultor, era possível que Ériton
houvesse manipulado várias contas de custos a fim de desviar dinheiro. Devido ao fato da
equipe utilizar seus próprios meios de transporte enquanto estavam em serviço, eles recebiam
o reembolso dos quilômetros rodados. Era comum o relatório financeiro apresentar gastos

303
proporcionais a 900 km rodados na região durante um mês, associados principalmente às
visitas às famílias dos jovens nas comunidades. Para alguns, entretanto, esta quilometragem
soava exagerada. Outra suspeita sugeria a transferência do dinheiro reservado ao pagamento
dos consultores externos a despesas com combustíveis, pois a equipe conseguia com
freqüência atrair consultores das instituições educacionais da região para palestras gratuitas.
Noeli, de Passo da Areia, também reforçava as desconfianças em relação às atitudes da
coordenação. Moradores das comunidades tinham a impressão que Eriton estava
enriquecendo desde que se envolveu com o projeto. Ao contrário do usual nas comunidades,
uma percepção sugeria que o ex-colono Ériton tinha construído uma casa equipada e
confortável muito rapidamente após sua entrada no projeto. Por outro lado, Ériton me
confidenciou sugeriu ter levado cerca de quinze anos para construir sua casa, o que contradiz
as percepções da comunidade. Ao reforçar suas diferenças com a coordenação, Noeli
afirmava com freqüência que nunca aceitaria “negociações erradas”; de acordo com ele, as
pessoas poderiam contar com ele para tudo, exceto corrupção e “coisas erradas”. Na prática,
ninguém podia afirmar realmente se os problemas eram resultado da incompetência ou de má-
fé por parte da coordenação. Além da completa falta de informação administrativa disponível
(como reconheceu o ISC posteriormente, os arquivos do CEDEJOR eram muito pobres e
desorganizados), a coordenação impunha barreiras a Zaira quando a consultora tentava
analisar a contabilidade do CEDEJOR.

Apesar de suas sérias suspeitas, Zaira não sistematizou provas, mas fez questão de avisar a
coordenação que estava de olho em suas ações. De fato, Eriton se assustou com a persistência
de Zaira e os conflitos atingiram níveis insustentáveis. Certa vez, ao questionar Ériton sobre
alguns procedimentos administrativos, o coordenador ofendeu-se e perguntou se a consultora
estava duvidando dele. Ela respondeu que sim, mas que sua atitude era correta, pois os
procedimentos deveriam ser os mais transparentes possíveis; ela trabalhava para o ISC e
garantir a transparência na gestão era sua função e responsabilidade. De fato, o CEDEJOR
deveria ser uma instituição que pudesse ser investigada a qualquer momento. Caso fiscais
aparecessem, a imagem do CEDEJOR não poderia ser danificada pelas ações e decisões de
uma pessoa, pois isso iria prejudicar os projetos de muitas pessoas. Eram muitos os problemas
administrativos. Por exemplo, Zaira descobriu que o novo prédio do CEDEJOR havia sido
registrado sob o nome da Casa Nova – a loja de materiais de construção local – que mantinha
um relacionamento muito próximo à coordenação do CEDEJOR. Ao questionar o Ériton
sobre a questão, ele disse que se tratava de um erro do engenheiro; Zaira conversou com o

304
engenheiro, que creditou o engano ao secretário da Casa Nova. A consultora pediu que todos
os documentos fossem regularizados, a fim de corrigir os erros. Zaira conversou diversas
vezes com Ériton sobre problemas jurídicos e suas implicações, mas ele não tomava as
decisões sugeridas. Certamente, os conflitos entre a coordenação e a consultora também
abrangiam a disciplina dos jovens. De acordo com a consultora, a equipe deveria ensinar-lhes
regras básicas de higiene, como lavar suas mãos antes das refeições, urinar dentro dos vasos
sanitários, apertar a descarga, etc. A liberdade, no entanto, era excessiva. Por exemplo, Zaira
viu uma garota ir ao dormitório dos meninos durante a noite; ela chamou a atenção do Ériton
e o lembrou de suas responsabilidades com os jovens. Ele ouviu, foi em direção aos
dormitórios, mas voltou sem tomar nenhuma atitude. Particularmente, sob a coordenação do
Ériton, um cômodo vazio do prédio estava sendo usado pelos adolescentes como “quarto do
namoro”, onde os meninos se encontravam, sozinhos, com as meninas. Neste momento, Zaira
assumiu o papel de Paulo Miguel ao protestar contra a visão pedagógica da coordenação. Ela
acreditava que os adolescentes não deveriam fazer tudo o que queriam. Ao contrário do ex-
monitor, ela não era subordinada à coordenação, mas representava os patrocinadores do
programa. Neste momento, Ériton pareceu não agüentar a intensa crítica e questionamento de
Zaira.

Neste contexto, a consultora promovia a implantação de novos procedimentos e valores nos


processos de gestão, entre os quais, métodos mais racionais de trabalho. De acordo com Zaira,
o CEDEJOR foi planejado para ser um centro de estudos e “não uma sala de estar de casa”.
Entretanto, todos costumavam visitar o núcleo como se fosse uma “atração turística” de
Albardão, onde também se oferecia cachorro-quente, lanches e refeições às pessoas em
“eventos para a comunidade”. Por exemplo, a cozinha era um foco de desperdício de dinheiro.
Ériton costumava oferecer “jantas” em cada reunião realizada no núcleo. “Para estes eventos,
ele convidava os jovens, os pais dos jovens, os amigos dos jovens, os vizinhos dos jovens...”
Por exemplo, o processo seletivo para a segunda turma foi um destes conflitos. A equipe,
assistida pelas consultoras, teria de entrevistar os adolescentes recrutados, e a estratégia
consensual era dividi-los em dois grandes grupos, os quais deveriam vir em períodos
diferentes: um na parte da manhã, outro na parte da tarde, com o transporte adequado a cada
um deles. Zaira queria oferecer lanches simples a cada um dos grupos, mas Ériton não aceitou
a proposta e ofereceu-lhes refeições completas. Ela tentou dissuadi-lo, dizendo que “toda
fonte de dinheiro seca um dia”, e que ele teria de provar ser um bom gerente. Bons gerentes
devem ser avaliados pelo que fazem com o dinheiro e, por esta razão, ele deveria gastar o

305
dinheiro que possuía de maneira racional durante o mês, caso contrário, ele iria viver como
um “rei” nos dez primeiros dias, mas para o resto do período não teria mais orçamento - “isto
é equilíbrio orçamentário”, segundo Zaira. “O dinheiro gasto toda semana deve ser
comparado ao dinheiro planejado no orçamento”; Zaira pediu relatórios, mas não conseguiu
recebê-los enquanto estava lá. De fato, ela não poderia impor estes procedimentos, pois Ériton
tinha autonomia enquanto coordenador do CEDEJOR. A administração da cozinha era um
tema de conflitos freqüentes. O trabalho da cozinheira era concentrado em uma semana a cada
quatro, quando os adolescentes estavam em alternância e faziam refeições no núcleo. De
acordo com Zaira, a cozinheira não deveria trabalhar além de seu turno normal durante as
alternâncias, pois poderia realizar parte de seu trabalho durante as outras três semanas em que
os jovens não estivessem ali. Havia equipamentos para a conservação de alimentos. A
cozinheira poderia cortar cebolas, por exemplo, e deixá-las congeladas; ou fazer comida
congelada, para que não tivessem que assumir despesas extras com a cozinheira nas semanas
de alternância, quando ela normalmente trabalhava mais que suas oito horas habituais. Zaira
insistia que Ériton deveria assumir as despesas com a manutenção do prédio – havia uma
fechadura quebrada há seis meses e os problemas mecânicos com os carros (doados pela
Souza Cruz) nunca haviam sido solucionados. Mas a resistência a esta racionalização era
enorme da parte de Ériton; que muitas vezes não oferecia argumentos contrários mas era
apenas escorregadio nas discussões.

Ao questionar as práticas tradicionais da coordenação do CEDEJOR, Zaira também teve


conflitos com Maria Ieda, que vinha acompanhando as atividades pedagógicas no núcleo há
algum tempo. Seus embates refletiram duas concepções sobre o processo ideal de
desenvolvimento de uma ONG. A professora Ieda tinha um ponto de vista mais idealista sobre
o processo que estava assistindo. Ela acreditava que as pessoas não devem aprender porque a
educação lhes é imposta, mas porque possuem uma motivação real para o desenvolvimento.
De acordo com Maria Ieda, há uma fome por resultados no setor privado que pode ser
associada à ingenuidade no processo. Não é real que os patrocinadores esperem que a equipe
do CEDEJOR elabore “grandes relatórios”; eles não sabem como prepará-los, nunca tiveram
computadores em casa, e este procedimento é novo para eles. Sobre a existência de problemas
administrativos, Ieda acredita que era impossível esperar o contrário, pois a equipe não
possuía nenhuma competência prévia para lidar com os processos. Com base nestas
convicções, a professora Ieda não concordava com muitas das posturas das outras consultoras
(havia outra consultora alocada em outro núcleo do CEDEJOR), pois elas não consideravam a

306
inexistência de competências prévias e a necessidade de desenvolvê-las. Segundo sua
concepção, havia um processo de desenvolvimento em curso e os consultores tinham de
observá-lo e respeitá-lo. Particularmente, Ieda acreditava que Zaira não teria respeitado este
processo ao promover mudanças drásticas, sem nenhuma diplomacia ou sensibilidade. Ao
contrário, Zaira sugeria um excesso de relativismo no núcleo, como se as coisas tivessem de
obedecer necessariamente à lógica tradicional da comunidade. De acordo com ela, trata-se de
uma versão exagerada do “respeito antropológico à cultura da comunidade” que não geraria
resultados satisfatórios ao se contrapor aos objetivos do projeto – transformar sem destruir a
cultura local. Coerentemente, Zaira assumia que o desenvolvimento da ONG teria de ser
orientado por uma instância externa, caso contrário, a equipe local não saberia como lidar
com o poder e o dinheiro que o ISC lhes transferia. Ao discutir o envolvimento de Eriton no
projeto, Zaira sugere suas interpretações ao comportamento do coordenador. Segundo a
consultora, a nova realidade trazida pelo CEDEJOR – cinco refeições ao dia e alta qualidade
tecnológica no núcleo, cujo orçamento atinge R$ 200 mil ao ano – fez com que alguns na
comunidade se sentissem como os “donos do mundo”. Segundo a consultora, o ISC envia
dinheiro muito facilmente e a equipe local não sabe lidar com todo este dinheiro, mas o fazem
“segundo a lógica com que lidam com o pouco dinheiro que têm”.

Apesar de haver percebido problemas sérios, Zaira assumiu um estilo de liderança que
divergia das convicções de Maria Ieda. Do ponto de vista da equipe, ela mostrava muito
autoritarismo ao impor os novos princípios administrativos; entre eles, transparência,
racionalismo, estratégia, precisão conceitual. De acordo com Adair, ex-monitor da Casa Jesus
Maria José – núcleo da cidade de Rio Pardo –, Maria Ieda era uma pessoa de mais fácil
acesso; ela era muito competente para mostrar os problemas intrínsecos ao ponto de vista das
pessoas, não impondo suas opiniões, mas convidando a pessoa a repensar suas visões ou
soluções alternativas, construindo coletivamente as estratégias de ação. Diferentemente, Zaira
era muito mais autoritária; ela era vista como agressiva ao criticar os pontos de vista das
pessoas, interrompendo-as com freqüência para explicitar seus erros. Segundo Adair, Zaira
era muito rigorosa no que dizia respeito à operacionalização de alguns conceitos que ela
considerava indiscutíveis. Ela queria que o núcleo fosse uma instituição perfeita, e a maior
parte de suas estratégias para alcançar esta perfeição implicava a desconstrução das práticas e
conceitos tradicionais da equipe. Por exemplo, a equipe insistia em definir os conteúdos a
serem ensinados nas alternâncias em primeiro lugar e, depois, os objetivos relacionados a
eles. De acordo com Zaira, no entanto, os objetivos das alternâncias deveriam ser definidos

307
em primeiro lugar. Segundo a consultora, embora o processo de desenvolvimento em
Albardão implicasse muito trabalho em equipe e debates, havia conceitos de fato
inquestionáveis; tais como fluxo de caixa – “fluxo de caixa é fluxo de caixa, e tem de ser
assim porque há controle e inspeção” –, planejamento, pagamento de taxas, pontualidade, etc.
Zaira argumentava que, embora o turno de trabalho fosse flexível no CEDEJOR, ele não
poderia ser reduzido a seis horas, pois os turnos são regulamentados pela CLT. Na prática, a
consultora impunha um novo ritmo organizacional que implicava a promoção de muitas
mudanças. Segundo pessoas envolvidas com o projeto, ela pedia informações e prazos, “tudo
para ontem”; a equipe se assustou, pois todas estas exigências eram novas. A linguagem
técnica de Zaira também era muito diferente daquela falada na comunidade. De acordo com
Clóvis – presidente do CEDEJOR –, por exemplo, o conhecimento técnico de Zaira estava
muito acima da média local; ela usava termos difíceis e era muito complicado discutir com
ela, pois ela sempre tinha argumentos contra as práticas da equipe.

As estratégias de Zaira não foram bem sucedidas. Ao contrário, ela questionou


agressivamente os procedimentos tradicionais e causou forte reação na medida em que
membros importantes das equipes do CEDEJOR no Rio Grande do Sul uniram suas forças
para minar seu trabalho e reforçar o status quo. De acordo com ela, no CEDEJOR Albardão a
equipe não sabia como construir argumentos, usando a expressão “isso sempre funcionou
assim aqui”, a qual era rebatida com um contundente “é hora de mudar”. Num certo
momento, a equipe desistiu de discutir os problemas ao tratar com a consultora, falando
apenas entre si e ignorando-a. Por exemplo, Zaira e Renato tiveram vários conflitos até o
momento em que este desistiu e passou a concordar com ela sem oferecer resistências. Ao ser
vista como agressiva demais e autoritária, a consultora começou a ser perseguida, sugeriu-se
que seu trabalho era desnecessário e desalinhado das necessidades organizacionais, e que suas
sugestões se confrontavam com os valores da comunidade. Simultaneamente aos conflitos
com a equipe, ela teve vários problemas com os dirigentes do ISC, com quem não se
comunicou o suficiente, deixando a impressão de que era o tipo de profissional “que trabalha
sozinho”. Como sugerem pessoas envolvidas com o projeto, foi a manipulação de
informações que fez com que Zaira caísse. Seu contrato com o ISC não foi renovado após
março de 2005, antes de completar um ano de trabalho. Ela acredita que foi boicotada porque
poderia traçar um retrato da incompetência e dos interesses obscuros por trás da administração
do CEDEJOR.

308
Apesar do ISC ter contratado a consultora para “arrumar a casa”, não foi possível acelerar o
processo de desenvolvimento organizacional até que Letícia e Luis André assumiram o
desafio, eles mesmos, e começaram a visitar Albardão regularmente. Embora Zaira não tenha
sido bem sucedida, ela trouxe à tona os sérios problemas que atraíram a atenção do ISC para o
que acontecia em Albardão. Quando Letícia e Luis André perceberam a gravidade dos
problemas pedagógicos e administrativos, decidiram transferir Ériton para outro cargo e
contratar outros profissionais para as posições de coordenador e monitor. Letícia e Luis André
não estavam a par das políticas pedagógicas implementadas pelo coordenador; quando
descobriram as peculiaridades do processo pedagógico, e também a reputação do CEDEJOR
para muitas pessoas na comunidade, ficou claro que Ériton havia falhado na implantação do
projeto educacional. Em conseqüência, ele deixou suas responsabilidades pedagógicas ao ser
transferido para uma nova posição, “coordenador de projetos especiais”, responsável pela
estruturação do fundo rotativo destinado ao financiamento dos projetos dos jovens – a razão
de tanto desapontamento entre as famílias. Assim que o ISC descobriu os mal-entendidos e as
interpretações divergentes sobre o financiamento dos PICs, Letícia decidiu que o CEDEJOR
deveria envolver alguém neste projeto, considerado urgente.

No início de 2005, o ISC assumiu uma orientação estratégica diferente ao contratar Isani, para
a posição de coordenadora pedagógica, e Adriana, como monitora. Isani possuía um título de
Mestre em economia e tinha sido professora na UNISC; Adriana era bacharel em pedagogia e
havia sido professora em escolas de ensino fundamental. Estas duas profissionais não eram
naturais das comunidades, mas vinham da cidade de Santa Cruz do Sul e eram completamente
desconhecidas na vizinhança. Inicialmente, Isani havia sido contratada como coordenadora
pedagógica; entretanto, pouco tempo depois, suas responsabilidades cresceram quando o ISC
decidiu que Ériton deveria deixar a gestão do núcleo, que estava completamente
desorganizado. Neste momento, a história sobre o pagamento duplo ao ex-monitor Renato
veio à tona, reforçando a impressão de que Ériton não deveria mais coordenar o núcleo. As
duas novas funcionárias se juntaram a Adair, que havia sido monitor na Casa Jesus Maria José
– núcleo da cidade de Rio Pardo –, e transferido para Albardão após a decisão do ISC de
extinguir as atividades do núcleo urbano.Ériton havia perdido completamente o controle da
gestão. Quando Isani e Adriana começaram a trabalhar, os novos desafios eram significativos.
O período reservado pelo ISC à reorganização do núcleo tinha expirado e o segundo grupo de
jovens já havia sido selecionado pela equipe, com a ajuda de Zaira e Maria Ieda. Isani chegou
ao CEDEJOR com o desafio de liderar o processo de transição, pois o núcleo ainda teria de

309
ser reestruturado e reorganizado. Suas primeiras semanas no novo trabalho foram “duras”,
pois, além dos problemas complexos herdados do Ériton, as novas funcionárias não
dispunham das informações gerenciais necessárias. Embora ainda não tivessem uma clara
noção dos conceitos pedagógicos do programa, elas tiveram de planejar e liderar uma
alternância – a primeira do segundo grupo de jovens.

As novas funcionárias encontraram dificuldades desde o início. Quando procuraram por


material pedagógico, nada encontraram no núcleo; mais tarde descobriram que a antiga equipe
não havia deixado nenhum material de ensino relacionado às alternâncias. A falta de material
pedagógico incluía os PICs, que não estavam disponíveis porque a antiga equipe os havia
perdido. O ISC tinha uma cópia deles, mas o CEDEJOR não mais. Além dos desafios
pedagógicos, Isani tinha de lidar com todos os tipos de problemas administrativos, cujas
soluções esbarravam na total falta de informações. Entre os problemas administrativos
encontrados, a Internet não funcionava porque Ériton havia atrasado o pagamento uma vez e o
débito automático no banco havia sido cancelado. O coordenador não havia comunicado o
fato, nem tomado as providências para corrigi-lo. A autorização para o uso de imagens,
necessária para a liberação do vídeo sobre o CEDEJOR, havia se atrasado porque Ériton não
havia tomado as decisões necessárias. A frota de sete carros doados ao CEDEJOR carecia de
manutenção e alguns deles não tinham mais condições de rodar. Além disso, os carros não
haviam sido formalmente incorporados ao patrimônio da instituição e os documentos que
registravam as doações haviam sido perdidos. Como Isani constatou, Ériton não controlava
nada, os arquivos físicos eram pequenos e completamente desorganizados; nos computadores
não constavam os arquivos de controle necessários e ela não conseguia encontrar os contratos
relevantes à gerência do CEDEJOR, por exemplo, o contrato dos recém adquiridos telefones
celulares. Nos meses anteriores, Ériton havia deixado de realizar alguns pagamentos, e o
CEDEJOR se expôs a riscos judiciais. Entre os problemas, o núcleo tinha dívidas de impostos
e os salários não haviam sido pagos no período certo. Como constatou Letícia, a ONG estava
construindo uma reputação ruim no mercado.

Desde seus primeiros dias no novo trabalho, Isani e Adriana tiveram de lidar com a resistência
de Ériton a sua chegada. De maneira insistente, ele tentava minar e criticar seu trabalho, e não
oferecia nenhuma ajuda ou sugestão às novatas, esquivando-se ao ser solicitado. Desde que
havia sido transferido ao cargo de “coordenador de projetos especiais”, parecia que ele fugia
de suas responsabilidades. Ele resistia em compartilhar as informações e deixava seu celular
no núcleo, tornando a comunicação com a equipe muito difícil. Quando Isani lhe perguntava

310
por documentos, ela nunca obtinha o que desejava. De acordo com a nova equipe, Ériton
parecia muito inacessível. De fato, ele foi solicitado a ajudar as novas funcionárias, mas nunca
estava presente para discutir os conteúdos das alternâncias com elas. Enquanto a nova equipe
planejava as alternâncias, ele alegava uma reunião fora do núcleo. As relações com a nova
equipe desgastavam-se a cada dia e, em especial, a partir da reunião que todos tiveram no Rio
de Janeiro, em fevereiro de 2005. Nesta reunião, definiu-se diversas mudanças no CEDEJOR,
incluindo a nova orientação pedagógica, de acordo com a qual a equipe deveria impor limites
aos jovens. Durante as discussões, Adriana afirmou que certa vez ela e Ériton tiveram
conflitos quando os jovens estavam bagunçando; Adriana queria acalmá-los, mas Ériton não
fez nada e não permitiu que ela o fizesse. Ela questionou as atitudes do ex-coordenador e este
afirmou que os adolescentes deixariam o programa se fossem repreendidos. No encontro no
Rio, Letícia interrogou Eriton a este respeito, mas ele não confirmou o que havia dito a
Adriana. Conseqüentemente, os dois começaram a ter conflitos no CEDEJOR, durante as
atividades, pois ele era rude com as novatas.

O ultimo capítulo de Ériton como funcionário do CEDEJOR aconteceu em maio de 2005,


depois de muitas semanas de conflitos entre ele e a nova equipe. Como parte dos novos
investimentos em infra-estrutura no núcleo, os conselhos decisórios do CEDEJOR decidiram
reconstruir a biblioteca, integrando duas salas e corrigindo um erro do projeto arquitetônico.
Até aquele momento, havia uma sala pequena contígua à biblioteca, que não tinha encontrado
utilidade. Enquanto esta sala ficava vazia, não havia espaço suficiente na biblioteca para
mesas e cadeiras. Além disso, o cômodo vazio era o “quarto do namoro”, onde os
adolescentes se reuniam para “ficar”. Numa manhã, o construtor responsável pelas obras disse
a Isani que o proprietário da Casa Nova – loja de materiais de construção da região – estava
furioso por não ter sido designado fornecedor dos materiais. Nesta ocasião, Isani descobriu
que o CEDEJOR tinha uma dívida de R$ 35 mil com ele – que deveria ser paga por ocasião
das próximas obras, como a nova biblioteca. Isani estranhou a história, e o que lhe pareceu
mais bizarro foi a pilha de notas fiscais que encontrou, num total de R$ 50 mil, também
relacionadas à construção do novo prédio do CEDEJOR em Albardão. Os documentos
comprovavam as despesas, mas não eram parte do relatório financeiro do Projeto Fênix. A
pilha de notas também incluía despesas com o novo pavilhão da escola Casemiro de Abreu,
pois ambos os investimentos foram gerenciados pelo ex-coordenador. A história da dívida
com a Casa Nova emergiu junto com a revelação de outro débito: o CEDEJOR devia
aproximadamente R$ 8 mil ao INSS, dívida relacionada à autorização governamental para a

311
construção do novo prédio. Este fato surgiu porque o núcleo precisava de nova autorização
para a reconstrução da biblioteca; para resolver a situação, as dívidas antigas deveriam ser
quitadas.

Coincidentemente, Letícia estava indo ao CEDEJOR no dia seguinte às revelações. Durante a


reunião com a equipe, as histórias foram debatidas, e Letícia ficou furiosa com a nova dívida
que o ISC teria de pagar e, especialmente, com o fato do ex-coordenador não ter sido honesto
com ela. Aparentemente ele havia sido incompetente ao dimensionar os investimentos
necessários no novo prédio e, quando o dinheiro acabou, ele pediu ao dono da loja que
esperasse até a próxima oportunidade para que pudesse saldar as dívidas, ao invés de pedir
mais dinheiro ao ISC ou à comunidade. Ele poderia até ter ficado sem dinheiro devido a erros
orçamentários; entretanto, de acordo com ela, ele deveria ter prestado contas. De fato, a
escolha do terreno à construção do novo prédio foi muito inadequada já que o solo afundou
durante as obras; as terras doadas eram pantanosas e a quantidade de cimento necessária
aumentou significativamente. Entretanto, como sugerem as pessoas, outras histórias são
capazes de revelar relações obscuras entre Ériton e o proprietário da Casa Nova. Os demais
participantes da reunião – coordenador e monitores do núcleo de Santa Cruz do Sul – não
demonstravam nenhuma surpresa à medida que as histórias surgiam, retomando antigas
dúvidas sobre a honestidade do ex-coordenador. Ao discutir os fatos, sugeriam que havia algo
ainda mais errado: “Ériton pode ter adicionado notas fiscais pessoais à quantia total, para que
sua casa também fosse financiada com o dinheiro do ISC”. Além do mais, a Casa Nova é tida
como uma loja cara. Em geral, as equipes dos outros núcleos não demonstravam simpatia
alguma pelo ex-coordenador, já que sempre se enfraqueceram devido às suas constantes
mentiras e manipulações. Neste contexto, entender como o ISC nunca soube da real situação
em Albardão torna-se mais fácil ao explorarmos os motivos pelos quais o resto da equipe
nunca contou a Letícia sobre os problemas. Quando Denise – consultora contratada pelo ISC
– questionou Miguel a respeito, este respondeu, “você não conhece o Ériton...”.

Na manhã seguinte, Letícia chamou Ériton ao núcleo e o demitiu da posição de coordenador


de projetos especiais; ele estava definitivamente desligado do CEDEJOR. “É o preço que
pago por ter sido o pioneiro”.

312
6 – O CASO CEDEJOR: JOVENS EGRESSOS, LÍDERES COMUNITÁRIOS E A
MUDANÇA ESTRUTURAL

Neste momento, faz-se possível construir alguns argumentos capazes de explicitar o processo
de mudança cultural no qual os indivíduos – moradores das comunidades e envolvidos com o
projeto CEDEJOR – estavam inseridos. De fato, pode-se sugerir a relevância do conceito
sahliniano de estrutura da conjuntura a esta análise: as recentes pressões pela diversificação
das atividades produtivas e a chegada do CEDEJOR na comunidade rural de Albardão
instauraram “um conjunto de relações históricas que, enquanto reproduzem as categorias
culturais, lhes dão novos valores retirados do contexto pragmático” (SAHLINS, 1990, pág
160). A estrutura da conjuntura era ainda caracterizada pelo temor, por parte das famílias, das
dificuldades atuais que os jovens enfrentam ao buscar colocações profissionais na cidade,
entre as quais, o desemprego, a concorrência e a violência urbana. De fato, esta estrutura da
conjuntura gerava um impasse nas famílias, que reconheciam as dificuldades atuais na zona
rural, mas também resistiam à migração de seus filhos devido às incertezas na cidade.

Deve-se atentar ao caráter mediador da noção de estrutura da conjuntura: por ser um conceito
interposto entre evento e estrutura, a ‘estrutura da conjuntura’ integra a reprodução cultural à
transformação, destacando a impossibilidade de separação entre as perspectivas sincrônica e
diacrônica à cultura. De fato, o evento não existe sem o sistema simbólico consolidado, já que
um fenômeno só se torna significativo se inserido em um esquema cultural – neste ponto,
trata-se de reprodução da ordem cultural. Ao mesmo tempo, o evento é a forma empírica do
sistema, já que este, enquanto um conjunto de relações entre as categorias, não passa de uma
ordem virtual e potencial a ser realizada nas ações dos indivíduos. No evento, as categorias
culturais tradicionais podem ser resignificadas por meio da ação motivada dos sujeitos
históricos – neste ponto, trata-se de transformação da ordem cultural. Certamente, no que diz
respeito ao caso em análise, estas observações requerem maiores explicações. Para se
construir os argumentos desta análise, entretanto, complementar-se-á a narrativa até agora
desenvolvida por meio de dados etnográficos extras, cuja relevância se fará sentir daqui em
diante.

Como sugere uma longa tradição sócio-antropológica, o “olho que vê é o órgão da tradição”.
De fato, um evento é apreendido pelos indivíduos e se torna significativo para eles ao ser
interpretado com base nas categorias culturais consolidadas na ordem cultural. Por ordem
cultural podemos entender uma ordem estrutural, ou seja, podemos considerar que os

313
indivíduos, que habitam as comunidades rurais de Rio Pardo, estão inseridos em uma ordem
estrutural de significados, que abrange e articula diversas dimensões da vida coletiva, entre
elas, a social, a econômica, a geográfica, a política. Esta ordem estrutural de significados foi
historicamente construída e é, hoje, a base sobre a qual se constrói a sociabilidade nas
comunidades locais. Isto significa que, naquele contexto, os indivíduos interpretam a
realidade ao seu redor, e se comportam diante dela, com base nas categorias definidas por esta
ordem de significados, que sugere (sugerir, este é o melhor verbo) os conceitos, os limites e
as perspectivas à comunidade. Assim, seus habitantes balizam seus interesses e concepções de
vida em seus esforços para construírem formas particulares de vida. Entretanto, a ordem
estrutural de significados compartilhada pelos habitantes das comunidades rurais de Rio Pardo
não é inabalável. De fato, se esta ordem sugere categorias e significados, os sujeitos históricos
motivados podem contribuir à sua reconfiguração. Neste sentido, pode-se conceituar esta
ordem estrutural de significados como um conjunto de relações mutuamente contrastantes e
definidoras entre os signos ou categorias, relações estas que são postas em movimento no
interior dos eventos que caracterizam a prática cultural cotidiana.

Com base em uma ordem estrutural de significados, os membros de uma certa cultura
interpretam os eventos, ou os signos com os quais interagem cotidianamente. É possível,
então, analisar a maneira como o CEDEJOR foi apreendido pelos membros da ordem cultural,
interpretação esta que pode ser localizada dentro deste conjunto de relações definidoras entre
os signos. De fato, o projeto CEDEJOR é um signo – isto é, um estímulo intencional
codificado e composto de significante e significado – que tem seu valor conceitual
determinado pelos indivíduos no contexto de suas relações com os outros signos ou categorias
coexistentes. Assim, ao apreenderem e interpretarem o “evento” CEDEJOR, os indivíduos
buscaram defini-lo em termos de suas relações com outros signos que compõem a ordem
estrutural. Apesar da polissemia que caracteriza os signos, a questão fundamental a ser
respondida torna-se: o que significava o CEDEJOR para os indivíduos? Certamente, a ordem
estrutural de significados é uma espécie de lente capaz de ordenar a história, ou os eventos, no
interior das sociedades. O CEDEJOR era um estímulo passível de ser compreendido pelos
indivíduos somente ao ser inserido no contexto local de significações consolidadas.

A ação humana é caracterizada pela interpretação dos eventos em termos de sua posição na
ordem estrutural de significados vigente. Assim, as categorias culturais a priori – definidas
por meio das distinções e do contraste com outras – são a base para a classificação das
realidades práticas. A ação simbólica implica na comparação dos eventos da realidade aos

314
conceitos culturais tradicionais que compõem a ordem estrutural de significados, de maneira a
tornar a realidade inteligível e transmissível a outros indivíduos. Neste sentido, é possível
analisar o CEDEJOR como uma oportunidade de se mudar de vida, no que diz respeito à
interpretação típica dos pais, entre outros envolvidos com o projeto. O CEDEJOR era, de fato,
uma oportunidade educacional oferecida aos jovens das comunidades. Como uma
oportunidade educacional, o CEDEJOR era uma instituição na qual os jovens poderiam
viabilizar uma nova inserção profissional por meio do apoio dado pelos monitores, pelo
coordenador e, principalmente, pelo Instituto Souza Cruz, que patrocinava o “evento”. É
possível se analisar a interpretação corrente do signo “CEDEJOR” com base nas suas relações
mutuamente definidoras e contrastantes com outros signos. Deve-se considerar, em primeiro
lugar, a grande dependência, ou pouca autonomia, que caracteriza o comportamento social
dos habitantes das comunidades rurais de Rio Pardo. Ao apresentar diversas facetas, essa
dependência complexa mostra-se um fator limitador das aspirações locais. Vejamos esta
questão com mais detalhes.

Pode-se dizer que os colonos estão inseridos em um contexto sócio-econômico marcado pela
dependência histórica do sistema integrado de produção. Neste contexto, as fumageiras ditam
os comportamentos produtivos adequados e as expectativas de vida das famílias. O sistema
integrado de produção é um mecanismo gerador de relacionamentos assimétricos, no contexto
dos quais os colonos e suas famílias vivem um paradoxo relevante: ao mesmo tempo em que
têm suas condições mínimas de vida asseguradas pelos poucos clientes/fornecedores
poderosos – as fumageiras –, a sua autonomia – tida como um traço cultural original e
definidor do conceito de colono – é perdida, já que as grandes empresas limitam as
possibilidades de aprendizagem, de mobilização e de reação. Os colonos e suas famílias, na
realidade, vivem uma zona de conforto caracterizada por dois conjuntos de comportamentos
que se reforçam mutuamente, compondo um círculo vicioso: os agricultores são, simultânea e
constantemente, seduzidos pela possibilidade de auferir rendas garantidas pelas fumageiras e
desencorajados a buscar novas alternativas de inserção profissional, devido às facilidades e à
comodidade oferecidas pelas empresas. Ao se dedicarem por anos à produção assistida de
tabaco, os colonos sentem sua capacidade de mudança prejudicada e, conseqüentemente,
permanecem no sistema, apesar de descontentes. Assim, à medida que garantem a
sobrevivência da família, ao estarem inseridos no sistema integrado de produção, os
agricultores vêm sua capacidade de mudança e mobilização prejudicada, o que os impele a
permanecer no sistema. A dependência do sistema integrado de produção também é reforçada

315
por outros significados construídos no interior da vida familiar e comunitária. Por exemplo, o
desenvolvimento tecnológico e as possibilidades dadas de aquisição de equipamentos e bens
de status prendem os agricultores em esquemas caros de crediário, que os mantêm atados às
possibilidades, ainda que crescentemente desinteressantes, ditadas pelas fumageiras.

A dependência que caracteriza o comportamento social dos colonos ainda pode ser analisada
em termos de suas posturas passivas e desacreditadas em relação às possibilidades de
mobilização de base. É possível, então, analisar esta dependência em termos de seu contraste
com os conceitos locais de mobilização. Ao se verem como colonos “ignorantes”, com um
“linguajar errado” e “isolados do resto do mundo”, a precariedade da auto-estima dos
habitantes locais reforça a descrença geral em uma vida diferente, mais próspera e autônoma.
De fato, o baixa nível educacional dos pais de família é visto por eles próprios como uma
deficiência capaz de frear o ímpeto à prosperidade, à ousadia e à mobilização. Neste sentido,
“o colono não sabe muito além do trabalho na lavoura”. Na prática, as iniciativas de
mobilização dos colonos resumem-se à sua aglutinação em associações comunitárias cujos
objetivos são, além do lazer e da socialização, a reivindicação de projetos coletivos junto às
instâncias políticas locais. A mobilização assume, então, estratégias centradas em iniciativas
de articulação comunitária junto à Prefeitura local, entre outros atores políticos, capazes de
gerar ganhos mútuos aos políticos e às comunidades. Na realidade, o sistema político na
região é caracterizado pela barganha de benefícios mútuos entre políticos e candidatos, seja
por meio da compra de votos, que gera benefícios imediatos para candidatos e moradores, seja
pela reivindicação, muitas vezes frustrada, de investimentos diversos capazes de solucionar
problemas das comunidades.

Na realidade, o sistema sócio-político vigente na região reforça comportamentos passivos


frente às possibilidades de desenvolvimento local e pessoal. No que diz respeito ao
desenvolvimento local, estes comportamentos passivos também são encontrados no âmbito
das associações pró-desenvolvimento rural, como a APROALBA. Na prática, o êxito
experimentado por estas associações, no que diz respeito à consecução de projetos coletivos
de desenvolvimento, é dependente da qualidade de suas poucas lideranças, que são impelidas
ao trabalho solitário e pouco acreditado pela maioria dos colonos, pouco envolvidos com o
dia-a-dia dos desafios enfrentados. De fato, a associação de produtores rurais de Albardão
experimentou períodos difíceis caracterizados pela relativa paralisação dos projetos coletivos.
Entre as razões alegadas pelos colonos, a baixa qualidade de sucessivas lideranças não
garantiu a continuidade da mobilização, bem como as resistências individuais ao trabalho em

316
grupo. Em especial, as lideranças comunitárias indicam a existência de subgrupos cujas
reações frente aos projetos coletivos são divergentes. Enquanto uma pequena quantidade de
pessoas dão assistência aos líderes no cotidiano das associações e dos grupos – os indivíduos
chamados “mão pequena” – a maioria assume posturas de descrença ou desconfiança.

Em Albardão, as pessoas não têm o hábito de “unir forças”, e a confiança mútua, necessária à
consecução coletiva de projetos de desenvolvimento, é tida como pequena. A maioria das
pessoas não acredita na possibilidade da coletividade alcançar o sucesso por meio da
mobilização de base comunitária; ao contrário, devido ao suporte governamental às iniciativas
inovadoras dos colonos ser historicamente precário, as famílias não são estimuladas ao
envolvimento, mas sim a ‘esperar’ pela única saída, ou seja, as soluções propostas pelos
agentes políticos capacitados, vistos como os únicos detentores dos recursos e das articulações
sociais necessárias. Neste sentido, a compra de votos é vista como um momento privilegiado,
no qual as pessoas podem efetivamente lucrar com o sistema político, ao trocar a fidelidade
por benefícios materiais imediatos (em muitos casos o eleitor manipula a situação para
maximizar seus ganhos imediatos com o sistema já desacreditado). Na prática, esta espera
traduz-se em comportamentos ambíguos de veneração e desprezo em relação à classe política
por ocasião de suas freqüentes promessas de mudança para uma vida melhor nas
comunidades. Os colonos vêem na ação dos políticos e de outras lideranças a única saída para
uma ‘reviravolta’ em suas vidas; ao mesmo tempo, os atitudes egoístas dos políticos geram
reações de revolta e descrença nesta mesma ‘reviravolta’.

Num contexto sócio-político no qual as lideranças partidárias são consideradas egoístas e


centradas em projetos pessoais, o desenvolvimento pessoal também não é estimulado. Ao
contrário, iniciativas capazes de colocar um indivíduo em evidência tornam-se
freqüentemente suspeitas. Neste momento, pode-se sugerir a existência de significados em
processos de representação capazes de reforçar e reproduzir a dependência dos colonos em
relação aos políticos tradicionais. A ‘espera’ desacreditada vivida pelos colonos deve ser
perpetuada de maneira que as perspectivas de mudança nas comunidades sejam
constantemente associadas à ação política ‘oficial’. Assim, as eventuais insurgências da base
devem ser ‘abafadas’ por meio da aliança com as novas lideranças. Permite-se, então, a
reprodução das relações interessadas caracterizadas pelo ‘toma-lá-dá-cá’ generalizado. Por
exemplo, a interação entre os líderes comunitários e os líderes políticos pouco contribui às
iniciativas coletivas de desenvolvimento e mobilização. Ao perceberem a emergência de
novos líderes comunitários na região, os líderes políticos buscam incluí-los em sua esfera de

317
influência com a promessa de vinculação das perspectivas do novo líder às possibilidades e
ganhos provenientes do sistema político. O líder comunitário depara-se, então, com a
possibilidade de lucrar ao se unir com as lideranças tradicionais, o que o faz enfrentar uma
decisão difícil. Da parte dos políticos, trata-se da mentalidade “se não pode vencê-lo, junte-se
a ele”, coerente com os seus projetos pessoais, que buscam a manutenção ou o aumento de
sua esfera de influência num contexto em que a carreira política é tida como cara, temporária
e arriscada. De fato, as relações entre o coordenador Ériton e os líderes políticos da região,
especialmente por ocasião da construção da nova sede do CEDEJOR, era uma reflexo destes
relacionamentos.

No que diz respeito às relações intra-comunitárias, as percepções dos colonos em relação aos
líderes políticos e suas manobras egoístas (como o convite feito ao Sr. Noeli para que
integrasse o governo municipal) levam à freqüente polarização mutuamente excludente entre
os conceitos de ‘líder comunitário’ e ‘líder político’. De fato, trilhar a carreira da liderança
comunitária expõe o trabalho do indivíduo a um número significativo de pessoas, fazendo
dele um potencial candidato a lutar pelas mesmas causas no âmbito das instâncias políticas
governamentais. Entretanto, incoerente com a essência do líder comunitário, embarcar na
carreira de político seria trilhar um caminho egoísta, cuja dinâmica é tida como
intrinsecamente corrupta e capaz de suprimir as aspirações sociais originais do indivíduo,
levando ao seu distanciamento da comunidade e ao conflito de valores. Desta forma, a
carreira como liderança comunitária pode ser vista com desconfiança, já que sujeita o seu
pretendente à possibilidade de ‘mudar de vida’ por meios considerados egoístas e,
freqüentemente, desonestos. De fato, muitos colonos questionam com freqüência o altruísmo
de líderes que trabalham em prol de causas comuns sem nenhuma remuneração ou benefício
material imediato, denunciando uma certa irracionalidade (“papel de idiota”), ou ainda,
sugerindo possíveis vantagens futuras. Ao forçar a negação de aspirações políticas maiores, a
possível vinculação dos líderes comunitários emergentes a projetos privados é capaz de frear
planos individuais de “vôos mais altos”.

Com a escassez de lideranças de base, inibe-se também o desenvolvimento dos grupos e das
associações. Em muitos casos, a efetiva mobilização da comunidade, em torno de projetos
comuns, restringe-se à ação liderada por poucos líderes comunitários reconhecidos como tal.
Estes líderes, entretanto, devem enfrentar o dilema do “tempo e dos recursos”, já que a
responsabilidade concentrada em torno de poucos indivíduos dificulta o seu envolvimento
efetivo com os projetos e, conseqüentemente, o desenvolvimento das causas e das

318
associações. Na prática, os líderes enfrentam jornadas duplas de trabalho (mais uma vez, o
“papel de idiota”), já que devem cumprir com suas obrigações na propriedade sob pena de ver
diminuída a qualidade de vida de sua família. Como reflexo da percepção destas dificuldades,
a mobilização coletiva nos distritos rurais de Rio Pardo assume mais freqüentemente o
formato de administração de eventos, pensados em termos de sua capacidade de reunir os
moradores e concentrar seus gastos com lazer. Desta maneira, a mobilização dos colonos em
torno de seus projetos comuns não promove a geração de renda e de autonomia extras, mas,
simplesmente, a transferência de renda para a execução de decisões coletivas. A organização
das “festas”na comunidade são, então, momentos privilegiados nos quais o comportamento
empreendedor dos colonos é exibido. As causas mais comuns, capazes de reunir os moradores
e gerar solidariedade, são freqüentemente ligadas a contingências adversas do cotidiano, como
por exemplo o acidente que deixou um jovem inválido e o roubo dos computadores do
CEDEJOR, ou, ainda, a aspirações coletivas consideradas prioritárias, como a reforma da
igreja, a reforma da escola, etc.

Mas continuemos a contrastar signos e a definir suas relações dentro da ordem estrutural de
significados em vigência. A dependência complexa e tradicional dos colonos em relação aos
agentes políticos, às poucas lideranças comunitárias e ao sistema integrado de produção (entre
outros relacionamentos coercitivos e assimétricos mais sutis) pode ser analisada em termos de
uma estrutura da conjuntura específica, caracterizada pela chegada do CEDEJOR em
Albardão e pela pressão recente pela diversificação das atividades produtivas. Neste
momento, deve-se chamar a atenção para as percepções e os significados associados ao
sistema produtivo local. De fato, a situação de dependência dos colonos, em relação ao
sistema integrado de produção, torna-se cada vez mais indesejada pelas famílias, dentro desta
estrutura da conjuntura específica. De fato, a produção de tabaco é uma atividade que gera
sentimentos de amor e ódio, dependendo das contingências externas (entre elas, as
justificativas das fumageiras para “comprar mal o tabaco” e as intempéries do clima) e das
contingências internas (entre elas, as dívidas adquiridas pelos colonos e os problemas na
lavoura). Se a lucratividade da lavoura de tabaco é tida como crescentemente desinteressante
(as fumageiras “apertam em um ano para aliviar a barra no outro”), a produção de tabaco
ainda é considerada a única ocupação segura pelos colonos, que formam um coro homogêneo
ao denunciar as conseqüências desastrosas da implementação da Convenção-Quadro e
defender a manutenção do sistema. De fato, se a dependência excessiva da produção de
tabaco é considerada indesejável por todos, a busca pela diversificação geraria a dependência

319
de outros atores, em especial, dos políticos, vistos como os detentores dos recursos e das
articulações sociais necessárias ao desenvolvimento de novas atividades produtivas. Neste
contexto, grande parte dos colonos tem dificuldades ou apresentam resistências à
aprendizagem de novas agriculturas, o que os leva a desenvolver sentimentos conformistas em
relação a situação atual.

Estes sentimentos conformistas, entretanto, aplicam-se menos no que diz respeito às novas
gerações. A inserção dos filhos na mesma zona de conforto, na qual as famílias estão
inseridas, é considerada um cenário menos desejável por muitos pais e, principalmente, por
muitos filhos. Ao associar-se ao sistema integrado de produção de tabaco, a responsabilidade
do colono é grande, e o trabalho é considerado muito pesado e perigoso para os chefes de
família, que ficam dias e dias acordados na época de cura do fumo e enfrentam os problemas
de saúde tão comuns na região. De fato, em épocas atuais, ser um colono é considerado menos
lucrativo que ser um diarista, profissão cujas desvantagens incluem a falta da terra – símbolo
tradicional de autonomia e status. Com base na percepção de que a lavoura de tabaco gera
cada vez menos excedentes, o que faz dela uma ocupação considerada sem futuro (no limite, a
ratificação da Convenção-Quadro pode levar à extinção das plantações), os colonos, em sua
maioria, sonham com outras ocupações menos pesadas para seus filhos, que, por sua vez,
rejeitam viver segundo os padrões impostos a seus pais. Em especial, muitos jovens não
pretendem continuar a desempenhar o mesmo trabalho braçal de seus pais, considerado por
demais exaustivo pelas novas gerações. Mesmo àqueles que se identificam com a vida na
propriedade rural, as atividades tradicionalmente executadas por seus pais lhes parecem muito
desestimulantes, o que os força freqüentemente a redefinições que incluam a cidade. Como
conseqüência, as famílias discutem, com freqüência, novas estratégias de inserção
profissional, que certamente implicam a qualificação.

Nas discussões com amigos e familiares sobre possíveis estratégias alternativas de inserção
profissional, alguns conceitos importantes são polarizados: à perpetuação das atividades com
a lavoura de tabaco associa-se a total desnecessidade de qualificação formal (afinal, “por que
estudar para continuar ganhando mal e trabalhando duro, como os pais colonos?”). Situação
menos desejável pelos filhos, continuar na roça plantando tabaco requer simplesmente que
eles aprendam a cultura com o pai, desde menino. Tradicionalmente, ao buscar alternativas à
vida na propriedade, o jovem tem uma opção principal: ele pode deixar o campo em direção a
cidade. Assim, aumentar a empregabilidade do jovem fora da propriedade e, em especial, na
cidade, requer a construção de um currículo que viabilize a sua inserção em processos de

320
seleção nas empresas da região. Neste sentido, ao concluir a educação fundamental e média, o
jovem se faz um possível candidato a empregos de médio status em estabelecimentos
comerciais e pequenas e médias indústrias. Neste caso, trabalhar na cidade é atraente, pois
viabiliza a separação dos pais e a liberdade dos jovens, que passam a ganhar seu próprio
dinheiro numa base regular. Ao avançar em seu processo de formação, o jovem universitário
se faz digno dos melhores empregos, que, certamente, estão na cidade. Esta última
possibilidade, entretanto, constitui-se no ideal de vida da maioria, que não consegue viabilizar
as oportunidades.

Com base na compreensão desta rede de representações simbólicas, torna-se possível explorar
os significados associados ao CEDEJOR por ocasião de sua chegada na comunidade. Pode-se
dizer que a educação tem sido tradicionalmente interpretada nas comunidades rurais de Rio
Pardo como um ‘passaporte’ capaz de libertar o jovem dos limites da zona rural.
Coerentemente, o CEDEJOR foi visto pelos pais e pelos jovens como uma oportunidade
educacional capaz de viabilizar uma nova vida às novas gerações. Esta nova vida, como
vislumbrada por muitos pais e jovens, entretanto, não se alinhava necessariamente à missão e
às propostas educacionais do programa CEDEJOR. Coerentes com as estratégias tradicionais
de inserção profissional, pais e filhos viram no CEDEJOR uma oportunidade de satisfazer
diversas necessidades, ou pré-requisitos, relacionadas a estas estratégias. Também coerentes
com as expectativas locais, os responsáveis pela divulgação e pelo recrutamento de jovens ao
CEDEJOR comunicaram o programa educacional alinhando as propostas às expectativas do
público-alvo, destacando as vantagens potenciais da participação no projeto e, então,
maximizando a sua atratividade na comunidade. Em primeiro lugar, podemos dizer que, para
aqueles propensos à migração para a cidade, o programa CEDEJOR era uma oportunidade de
se construir um currículo que fosse mais favorável a sua inserção no mercado de trabalho
urbano. Para estas pessoas, a oportunidade de se “tirar uns cursos” pela nova instituição
parecia, de fato, imperdível. Na comunidade, o orçamento das famílias para educação é
extremamente limitado, o que fazia da participação no CEDEJOR uma saída para o aumento
da empregabilidade. Para estes, os cursos prometidos – entre os quais nas áreas técnica e
gerencial – eram o maior atrativo do programa.

Ao mesmo tempo, para aqueles menos propensos à migração para a cidade, o CEDEJOR era
uma oportunidade capaz de viabilizar uma inserção profissional alternativa na zona rural. Para
estes jovens, em especial, o CEDEJOR trazia uma novidade importante: a possibilidade de se
implementar um plano profissional que não fosse relacionado à cultura do tabaco era uma

321
maneira de se livrar das imposições do sistema integrado de produção – entre elas a baixa
lucratividade e o trabalho pesado e perigoso – e continuar na zona rural. Abria-se uma
possibilidade antes pouco considerada na comunidade, já que as alternativas profissionais
eram bem delimitadas às duas opções excludentes – o tabaco ou a cidade – como discutidas
há pouco. Para este grupo, o financiamento (que para alguns seria a “fundo perdido”) poderia
viabilizar um novo futuro mais autônomo e livre do tabaco, ao driblar os principais problemas
que as famílias sempre enfrentaram ao pensarem em diversificação; em especial, a falta de
capital para investimentos, o alto risco associado à diversificação e a falta de capacitação,
apoio técnico e gerencial. O dinheiro bancado pelo Instituto Souza Cruz (ou pela Souza Cruz,
já que ambas as instituições são comumente vistas como uma só pelos colonos) seria uma
oportunidade única para a ‘reviravolta’ na vida dos jovens. De fato, os responsáveis pela
divulgação do CEDEJOR conseguiram construir a confiança inicial no projeto dentro da
comunidade e atrair um bom número de jovens ao programa.

Neste momento, é possível dizer que, se o CEDEJOR foi visto, inicialmente, como uma
oportunidade capaz de viabilizar uma ‘reviravolta’ na vida dos jovens, os múltiplos
significados associáveis ao signo permitiam a sua reavaliação funcional pelos sujeitos
históricos, como discutido por Sahlins (1990; 2001). No curso da vida das pessoas, os signos
são utilizados por elas em relações com os objetos de suas ações, adquirindo, assim, valores
contextuais particulares. Trata-se de reconhecermos que os significados são submetidos a
riscos à medida que as pessoas socialmente capazes deixam de ser escravas de seus conceitos
para serem seus senhores, em seus contextos imediatos de ação (SAHLINS, 1990, p. 11). Os
signos são polissêmicos, isto é, têm muitos sentidos possíveis, e o projeto CEDEJOR poderia
ser implementado como um centro comunitário, cujos significados associados transcenderiam
a promoção da aprendizagem dos jovens e da ‘reviravolta’ em suas vidas. Num contexto
cultural real, o CEDEJOR poderia ser valorizado em algum sentido selecionado, de forma que
um dos significados possíveis seja posto em evidência, em detrimento dos outros. A seleção
deste sentido, por sua vez, depende das possibilidades dadas pelo contexto, das experiências
sociais dos indivíduos e de seus interesses. Vejamos como este processo aconteceu no caso
em questão.

Segundo Sahlins (2001), os sujeitos históricos revisam os signos atribuindo-lhes novos


valores funcionais de acordo com seus projetos pessoais. Desta maneira, é possível sustentar
que aos signos são associados significados alternativos, capazes de deslocá-los das suas
relações originais com outros signos, dentro da ordem estrutural de significados. Se o

322
CEDEJOR era uma oportunidade educacional capaz de mudar a vida dos jovens, o projeto
poderia ser implementado de uma outra maneira, com base na qual se poderia associá-lo às
possibilidades dadas pelo sistema político na região. De fato, Sahlins reforça o termo
reavaliação porque, na prática cultural, a reavaliação funcional dos signos acontece ainda
com base na lógica das categorias culturais das pessoas e depende das possibilidades dadas
pelo sistema já consolidado, no caso, o sistema político. Se é verdade que as oportunidades de
ganhos políticos associados à coordenação do projeto CEDEJOR já existiam anteriormente, é
possível localizarmos este momento por ocasião do Projeto Fênix, após o roubo dos
computadores. Neste momento, começa a se consolidar uma rede de interesses por detrás dos
investimentos prometidos pelo Instituto Souza Cruz, em especial, o prédio-sede do núcleo
Albardão.

No que diz respeito ao risco subjetivo das categorias em referência, a reavaliação funcional
dos signos depende do modo como os indivíduos utilizam o signo enquanto interesse
(SAHLINS, 1990). Pode-se dizer que, com a chegada do CEDEJOR, a comunidade de
Albardão encontrava-se em um contexto caracterizado pela estagnação econômica, devido à
dependência da monocultura e aos lucros decrescentes com o tabaco. As perspectivas ruins
para o futuro dos filhos eram o resultado da percepção de esgotamento do ciclo de
desenvolvimento iniciado por ocasião da implementação do sistema integrado de produção.
Neste sentido, como uma oportunidade que ia ao encontro das expectativas das famílias, ao
viabilizar uma ‘reviravolta’ na vida dos jovens, o CEDEJOR poderia ser considerado uma
arma política capaz de colocar seus líderes em grande evidência. Assim, o projeto CEDEJOR
pode ser analisado em termos de seus significados aos seus líderes, que, em suas posições
privilegiadas, vislumbraram estratégias capazes de viabilizar projetos pessoais mais
audaciosos. O CEDEJOR, entretanto, poderia ser ainda mais do que uma grande oportunidade
oferecida às famílias da região.

No que diz respeito aos processos locais de representação, a chegada do CEDEJOR,


principalmente com a construção do novo prédio, era vista como um grande acontecimento na
região. Tratava-se de um investimento de um porte sem similares na comunidade, cujas ruas
não têm pavimentação e a iluminação é precária. De fato, havia bastante tempo que a
comunidade mobilizava-se, sem sucesso, em torno da reforma da escola de educação
fundamental, na qual o CEDEJOR instalou-se em seus primeiros anos de existência. A
articulação bem-sucedida feita pelo coordenador Ériton, que garantiu a permanência do
núcleo na comunidade (apesar do terreno inadequado às necessidades do projeto), também

323
viabilizou a reforma da escola. Em oposição a interesses de outras comunidades, cujos líderes
construíram argumentos capazes de justificar a ida do novo prédio para suas regiões, os
líderes do CEDEJOR em Albardão conseguiram construir um centro educacional “de primeiro
mundo”, com infra-estrutura e equipamentos informáticos inéditos à população local. Ao
mesmo tempo, num esforço que parece misturar interesses especulativos e políticos, o projeto
do condomínio em frente ao CEDEJOR prometia trazer facilidades à comunidade nunca antes
imaginadas, como um banco e um centro comercial. Era um passo importante à emancipação
de Albardão, discutida veladamente por seus principais líderes políticos. A sensação era de
que “o progresso tinha finalmente chegado”, e este poderia ser diretamente associado ao
CEDEJOR e, conseqüentemente, aos seus dirigentes. Neste momento, seus líderes – líderes
comunitários em emergência – já haviam se associado aos líderes políticos tradicionais, neste
caso, o prefeito da cidade, o qual também via no CEDEJOR uma de suas plataformas
políticas. De fato, diante dos dividendos políticos colhidos pelo coordenador do CEDEJOR, o
prefeito (destituído, posteriormente) o convidou ao cargo de assessor especial.

Na realidade, a ‘reavaliação funcional do signo’ empreendida pelos líderes do CEDEJOR em


Albardão fazia todo o sentido como expressão de interesses políticos pessoais passíveis de
serem alcançados no contexto sociocultural local. Na prática, o ‘domínio’ do projeto abria as
portas à política, devido à superação dos entraves a esta carreira, da maneira como percebidos
pelos aspirantes a cargos eletivos na região. Em primeiro lugar, pode-se sugerir que a inserção
dos líderes comunitários no projeto CEDEJOR, desde seu início, abriu novos horizontes a
estes indivíduos, predispondo-os a ‘vôos mais altos’. O grupo de trabalho inicialmente
responsável pelas discussões conceituais do projeto, composto por especialistas e
personalidades regionais, era uma instância social da qual os habitantes das comunidades
rurais não haviam ainda participado. Se a ‘gestação’ do programa incluiu viagens a outros
estados brasileiros, a inauguração do novo prédio do CEDEJOR levou um grupo de pessoas
envolvidas com o projeto a uma audiência com o governador do estado, divulgada pelos
jornais da região. Em segundo lugar, as condições imediatas com as quais os líderes do
projeto, como tais, deparavam-se, dentro desta estrutura da conjuntura específica,
viabilizavam a carreira política. Vejamos então como isso aconteceu.

Segundo a visão local, a carreira política demanda altos investimentos e caracteriza-se pelos
altos riscos. Uma vez dentro, o político é forçado a manter ou aumentar sua esfera de
influência como uma maneira de assegurar seu status e seus padrões de vida conquistados.
Conseqüentemente, essa carreira demanda o abandono, parcial ou integral, das atividades do

324
político na propriedade, o que o torna dependente de sua inserção na carreira. Além do mais,
esta inserção deve ser reconstruída a cada 4 anos, sob a pena de o político ter que retornar às
suas ocupações tradicionais. Neste sentido, o sistema de cooptação de votos pode ser visto
como um instrumento capaz de preservar o status quo no sistema político (ou manter a
elegibilidade dos grupos consolidados), diminuindo os riscos associados à carreira por meio
do assistencialismo generalizado. Da mesma forma, os eleitores obtêm ganhos marginais de
um sistema já desacreditado, o que compõe um mecanismo de dominação ou de auto
preservação dos políticos. Como parte deste mecanismo, existem algumas modalidades
possíveis de voto – entre as quais, o voto de amizade, o negociado e o derivado dos favores
pessoais –, caracterizadas por alguma forma de assistencialismo praticado pelo político. É
neste contexto que se pode compreender a implementação de ações e estruturas que
descaracterizaram o CEDEJOR, fazendo da instituição uma espécie de centro comunitário,
em detrimento das atividades educacionais originalmente previstas.

De fato, um candidato bem-sucedido na região precisa acumular os votos de eleitores de


acordo com os três tipos principais – os votos de favores, votos de amizade e votos
negociáveis – em nenhuma proporção ideal. Se o coordenador do CEDEJOR já poderia contar
com uma área de influência significativa, devido à sua posição privilegiada como aquele
quem “trabalhou tanto por tudo isso aí”, era necessário ainda aumentar esta esfera de
influência de forma a diminuir o risco de seus projetos pessoais. Na prática, a coordenação do
núcleo em Albardão implicava ainda o controle de um orçamento considerado muito alto para
os padrões locais, gerando oportunidades inéditas de barganha, negociação e realização. A
infra-estrutura do CEDEJOR deveria ser então utilizada como um ponto de suporte à
comunidade, um local no qual as demandas cotidianas das pessoas pudessem ser satisfeitas.
Deveria-se, entretanto, contratar uma secretária para suprir o sobre trabalho gerado pelas
visitas constantes, de moradores em busca de auxílio para a elaboração de textos e mensagens,
ou pelos eventos organizados pelo CEDEJOR em prol da “comunidade de Albardão”. Como
resultado, a lógica por detrás da gestão do núcleo centrou-se, principalmente após a
inauguração do novo prédio, na necessidade de se construir uma atuação assistencialista junta
à comunidade. Neste contexto, a racionalização da administração e a maximização dos
resultados pedagógicos – da maneira como eram perseguidos pelos patrocinadores do
programa – tornaram-se objetivos secundários. Ao contrário, a evasão de jovens devido à
disciplina mais rígida ou devido à frustração de suas expectativas poderia ser um golpe fatal
às pretensões dos líderes.

325
Ao implementarem um centro comunitário, os líderes do CEDEJOR Albardão manipularam o
signo enquanto interesse, que então deveria ter um lugar em um esquema ordenado de meios e
fins. Assim, o valor intencional do signo – CEDEJOR como um instrumento de promoção
política – era derivado do valor conceitual – CEDEJOR como uma oportunidade para a
‘reviravolta’. De fato, os limites entre os conceitos de ‘CEDEJOR como centro comunitário’ e
‘CEDEJOR como centro educacional’ são tênues: o CEDEJOR pode oferecer cursos de
informática aos jovens, mas pode também oferecer cursos de informática à comunidade, tendo
os jovens como instrutores. O CEDEJOR pode oferecer uma “janta” para a confraternização
dos jovens, mas pode também chamar as famílias para se juntarem ao evento. Ao
empreenderem esta ‘reavaliação funcional do signo’, os líderes do CEDEJOR Albardão
arriscaram seu valor conceitual original ao promoverem um mal-entendido criativo. Segundo
Sahlins,

[...] os signos na ação são incluídos em várias operações lógicas, como metáforas e
analogias, redefinições de intensidade e de extensão, especializações ou
generalizações de sentido, deslocamentos ou substituições, para não falar de ‘mal-
entendidos’ criativos. E porque os signos são engajados em projetos por interesses
[...] seus valores são arriscados (SAHLINS, 1990, p. 188).

As palavras do coordenador ao ser demitido de sua posição ilustra bem a promoção desse tipo
de mal-entendido criativo junto aos outros atores históricos envolvidos com o projeto. Ter
sido “o pioneiro” abrange os múltiplos significados passíveis de serem associados ao
CEDEJOR, cujos limites são, de fato, tênues: pioneiro ao viabilizar a ‘reviravolta’ na vida dos
jovens, pioneiro por promover o desenvolvimento integral dos jovens rurais, pioneiro ao
trazer o CEDEJOR à comunidade, pioneiro por garantir o investimento no novo prédio em
Albardão, pioneiro ao disponibilizar a Internet e as impressoras aos moradores...

Entretanto, se o coordenador do CEDEJOR louvava com freqüência o “grande projeto social,


o desenvolvimento da mentalidade social e da mobilização coletiva, a educação para o
futuro”, estas palavras soavam paradoxais para a maioria. Sobre os processos de reavaliação
funcional dos signos, Sahlins (1990, p. 185-186) sugere que

[...] as pessoas colocam, na ação, seus conceitos e categorias em relações ostensivas


com o mundo. Esses usos referenciais põem em jogo outras determinações dos signos,
além de seus significados recebidos, isto é, o mundo real e as pessoas envolvidas. [...]
Como o mundo tem propriedades próprias, ele pode vir a se mostrar intratável,
podendo muito bem negar os conceitos que lhe sejam indexados. A hubris simbólica
326
do homem se torna uma grande aposta feita com as realidades empíricas. Esta aposta
é de que a ação referencial, que coloca os conceitos a priori em correspondência com
objetos externos, implicará alguns efeitos imprevistos que não podem ser ignorados.

De fato, não podemos ignorar os efeitos imprevistos ao longo do processo de ‘reavaliação


funcional do signo’ em questão. A compreensão desses efeitos, e a maneira como foram
acomodados pelos atores históricos nesta estrutura da conjuntura, é fundamental à
identificação das mudanças estruturais observáveis. Num processo de reavaliação funcional, o
destaque do valor conceitual do signo selecionado pelo(s) agente(s) histórico(s), e que se
relaciona a alguma representação especificamente interessante a este(s) agente(s), pode
contribuir para algum tipo de inflexão do seu valor, tal como definido pela estrutura ou pelo
sistema simbólico.

Se o eixo técnico foi caracterizado pelos cursos “tirados” pelos jovens, que os adicionavam a
seus currículos, o eixo gerencial deveria ser marcado pela discussão e pela elaboração dos
Projetos de Investimento de Capital, os PICs, cuja aprovação pelos patrocinadores do
programa capacitaria o seu autor a receber o financiamento (ou a doação, como entendido por
vários jovens) para suas pretensões de negócio. Entretanto, o último ano do programa foi
extremamente atribulado, já que o novo prédio do CEDEJOR estava sendo construído e a
equipe dividia-se entre as demandas da organização, o projeto Fênix, e as demandas
pedagógicas junto aos jovens. No momento de se discutir e elaborar o PIC, a equipe viu-se
despreparada, e os jovens, perdidos. Se o PIC era o ponto fundamental do programa para
muitos jovens, as competências requeridas para a sua elaboração não foram suficientemente
desenvolvidas pela equipe no decorrer do processo, o qual não se engajou realmente na
iniciativa desde o início do programa. O eixo gerencial foi, de fato, concluído por ocasião da
entrega dos PICs aos patrocinadores. Sua conclusão, entretanto, tornou-se possível somente
após dois eventos, gerando o desconforto e a revolta na turma, que percebeu a falta de
seriedade da equipe no que dizia respeito ao ponto mais esperado do programa. Em primeiro
lugar, a intervenção da consultora contratada pelo ISC, que se espantou com a precariedade
dos projetos e com a falta generalizada de consciência acerca da complexidade intrínseca a
eles. Assumindo um estilo de liderança controverso, a consultora buscou sanar as deficiências
dos projetos, apesar das reações de resistência da equipe em Albardão. Ao mesmo tempo, a
coordenação do CEDEJOR promoveu estratégias desonestas para viabilizar o maior número
possível de projetos a serem entregues ao Instituto Souza Cruz. De fato, as contradições do
programa estavam claras neste momento.

327
Ao final do eixo gerencial, a maioria dos jovens não estava madura o suficiente para tomar
decisões sobre qual direção escolher para seu futuro, já que não havia sido desenvolvido o
“trabalho de base” necessário a esta escolha crucial. Efetivamente, os jovens tardaram a
escrever o projeto. Ao se depararem com as exigências dos patrocinadores e com as
dificuldades dos jovens, a coordenação do CEDEJOR deveria resolver o problema da entrega
dos projetos, sob pena de não conseguir comprovar os resultados da ONG, como previamente
acordado. A solução foi, então, propor um pacto aos jovens, que não foi bem recebido. Foi
pedido a eles que preparassem seus PICs sem a obrigação de implementá-los, bastando
entregá-los, para que o CEDEJOR pudesse ser avaliado adequadamente. Mas nem todos
estavam aptos ao desafio. De acordo com Miguel, os jovens que não estavam preparados o
suficiente para o programa – segundo o monitor, 60% da turma não dominava competências
básicas ao serem selecionadas – não conseguiram elaborar seus PICs ao final deste, sendo
então substituídos na autoria do projeto por outros jovens ou pelos monitores, ou ainda,
tiveram seus nomes adicionados a projetos nos quais não se envolveram efetivamente. Foram
estes jovens os que mais se frustraram com o processo.

Ao final do programa, a maioria dos jovens não tinha elaborado seus projetos, tendo suas
pretensões frustradas. Para agravar a situação, os últimos momentos do programa foram
caracterizados pelo desprezo da equipe aos procedimentos de conclusão, a formatura, que
coroaria oficialmente os esforços da turma. Embora tivessem feito uma festa de formatura –
quando vestiram suas melhores roupas para dançar e celebrar o fim de seus estudos – os
jovens sentiram-se extremamente frustrados com o fato de a equipe ter sido rude ao lhes
entregar os certificados, que não estavam prontos para a festa e sendo, posteriormente,
entregues com erros na discriminação dos “cursos”. Contrariamente às suas expectativas, os
jovens não tiveram mais notícias do CEDEJOR após a última alternância, exceto pelo
telefonema para irem buscar seus certificados. Os PICs, elaborados às pressas e sem o
envolvimento necessário de todos os interessados, foram abandonados e perdidos no núcleo,
já que vários deles não puderam ser localizados posteriormente. Os jovens, frustrados, não
poderiam mais se dedicar ao projeto devido à conclusão do programa e ao envolvimento da
nova equipe com a segunda turma de jovens, cujo recrutamento tomou todo seu tempo.
Valendo-se da conclusão da primeira turma do programa, os jovens não contavam mais com o
apoio da equipe para continuar a elaboração de seus projetos.

Na prática, o processo de reavaliação funcional do signo promovido pela coordenação do


CEDEJOR foi questionado por ocasião da chegada da consultora Zaira, que propunha

328
interpretações do signo “CEDEJOR”, entre outros, divergentes daquelas promovidas pela
coordenação. Com base na proposta do ISC, parecia-lhe claro que a utilização do CEDEJOR
como um centro comunitário era um desvio na implementação de um projeto que deveria
promover novos comportamentos e valores, muitos dos quais divergiam das práticas
consolidadas no núcleo. Os conflitos entre Zaira e Ériton foram, de fato, conseqüências
inesperadas do processo de reavaliação funcional do signo da maneira como empreendido
pela coordenação. Estas conseqüências levaram a uma reação por parte da coordenação, que
buscava garantir a hegemonia de suas interpretações, e o sucesso de suas empreitadas. Por
ocasião da conclusão da primeira turma, as contradições do programa também tornaram-se
explícitas aos jovens e a seus pais, que, de fato, reagiram. Na comunidade, a frustração dos
jovens com as estratégias desonestas associadas ao PIC e com a falta do dinheiro para a sua
implementação gerou reações raivosas de alguns pais, que denunciavam a irrelevância do
programa e o tempo perdido de seus filhos, “que se dedicaram por tanto tempo para nada”.
Reforçavam-se as impressões segundo as quais o CEDEJOR era o “cedebosta”, ou um
“cabaré”, onde os jovens não estudavam, mas sim, se divertiam. Com a saída do Ériton do
cargo de coordenador, os jovens foram posteriormente chamados pela nova equipe da ONG,
coordenada pela Professora Isani, para expressar suas mágoas e expectativas com o fim
desastrado do programa. Na realidade, a nova equipe do CEDEJOR já ouvia relatos furiosos
na comunidade sobre o desfecho da primeira turma.

Podemos analisar as reações dos jovens, bem como outras conseqüências e resultados do
desfecho da primeira turma, como indícios de uma mudança na ordem estrutural de
significados vigente nas comunidades. Mas voltemos, neste momento, a aprofundar nossa
compreensão da maneira como o CEDEJOR foi apropriado por pais e jovens, com base nas
expectativas locais e nos significados inicialmente associados à oportunidade. Na prática, o
CEDEJOR, como um programa educacional, seria visto mais como uma instituição provedora
de boas oportunidades do que como uma instância formativa e mobilizadora. Esta dimensão
do significado associado ao CEDEJOR é realmente coerente com o sistema simbólico no qual
as famílias estão inseridas. Para muitos jovens, estar no CEDEJOR não significava
necessariamente fazer parte de um projeto de desenvolvimento integral, individual ou
coletivo, composto de três fases – os eixos humanístico, técnico e gerencial –, e que os levaria
a amadurecer um plano de inserção profissional, o PIC, capaz de ditar em grande medida seus
futuros. Diferentemente, estar no CEDEJOR significava acompanhar um programa que lhes
oferecia oportunidades de aprendizagem, que, dependendo dos interesses imediatos do jovem,

329
poderiam ser aproveitadas ou não. Ao final, ao jovem seriam oferecidas as oportunidades
associadas aos cursos opcionais (“tirar uns cursos”) e ao financiamento do PIC. Enquanto
esses benefícios não vinham, assumiam seus interesses imediatos, não necessariamente
ligados ao processo de aprendizagem proposto: “Ficar”, namorar, brigar, beber, navegar na
Internet, participar ou não das atividades, sempre com a autorização do coordenador. Como
denunciou um jovem, “muitas vezes, durante as aulas que se davam, tu botava a boca neles e
ninguém queria fazer nada”. De fato, o processo de aprendizagem lhes parecia
freqüentemente muito abstrato e, por isso, um tanto desnecessário.

Outros significados podem ser associados às maneiras como o CEDEJOR foi apropriado pela
comunidade, isto é, como uma instituição provedora de boas oportunidades. Em especial, as
comunidades rurais de Rio Pardo encontram-se em contextos nos quais a ‘aprendizagem
contínua como estratégia de desenvolvimento pessoal e coletivo’ não é um valor básico e
consolidado; diferentemente, pode-se sugerir a existência de interpretações tradicionais da
aprendizagem que limitam sua abrangência conceitual ao colocarem em destaque uma
dimensão instrumental relevante. Na prática, as oportunidades de aprendizagem disponíveis
na região não são aproveitadas em prol da mudança social, ou do desenvolvimento da
comunidade, mas são vistas por muitos jovens como componentes de estratégias pessoais de
inserção profissional urbana, capazes de viabilizar ‘reviravoltas’ na empregabilidade.
Segundo a interpretação local, concluir o processo educacional, ou inserir-se nele, é uma
estratégia incompatível com a vida de agricultor de tabaco, já que abre as portas para uma
vida profissional mais interessante, “leve” e lucrativa. Coerentemente, as necessidades de
aprendizagem nas comunidades são tradicionalmente relacionadas às demandas do sistema
integrado de produção de tabaco. As famílias, inseridas há décadas em um sistema que gera
uma zona de conforto, não são submetidas a necessidades de ampla e diversificada
aprendizagem contínua, mas somente à medida que novas exigências das fumageiras
requeiram mudanças de práticas e de procedimentos, didaticamente introduzidas pelos
instrutores. Assim, caracterizadas pela falta de formação básica e pela baixa auto-estima entre
os colonos, as competências gerenciais demandadas pela gestão da propriedade também não
são desenvolvidas, apesar das constantes reclamações das famílias acerca dos atuais limites do
sistema produtivo. De fato, o sistema educacional atual, caracterizado por professores pouco
carismáticos, perpetua essas interpretações ao não garantir padrões de educação básica aos
jovens que ponham em destaque a autonomia intelectual e a mobilização coletiva; ao
contrário, a dinâmica educacional local caracteriza-se pela apatia dos alunos e professores.

330
Num contexto no qual a ‘aprendizagem contínua como estratégia de desenvolvimento pessoal
e coletivo’ não é um valor básico, a comunidade caracteriza-se pela pouca confiança entre os
moradores, pela descrença na mobilização de base, pelo medo dos conflitos, pela
desconfiança em relação aos líderes e pela expectativa de um evento ou sujeito salvador,
como foi o caso do CEDEJOR. Na prática cultural local, a limitação conceitual referente à
aprendizagem leva à espera dos moradores, comportamento caracterizado pela crença na
inviabilidade da ação de base bem-sucedida e pela dependência, cuja complexidade
conceitual foi explorada ao longo da narrativa. As relações com a classe política também
refletem os significados limitados tradicionalmente associados à aprendizagem, bem como o
comportamento de ‘espera’. Nas comunidades, os indivíduos vêem na ação das autoridades
sua principal esperança para uma vida melhor e mais confortável. Apesar das percepções que
sugerem a desonestidade e o egoísmo intrínsecos ao sistema político, os moradores das
comunidades nutrem a esperança no progresso sem reservarem para si um papel efetivo no
processo de desenvolvimento, o que implicaria aprender para empreender. Por exemplo, no
que diz respeito às pressões atuais pela diversificação das culturas, o medo generalizado das
conseqüências da Convenção-Quadro é minimizado pelas indicações de um futuro programa
governamental de apoio à diversificação, bem como pelas “promessas” dos políticos locais,
que se dizem comprometidos com novas estratégias produtivas à região. De fato, o CEDEJOR
foi visto como uma oportunidade capaz de viabilizar uma nova inserção profissional aos
jovens por meio dos cursos, que aumentariam a empregabilidade, ou por meio do
financiamento (ou, novamente, da doação) aos projetos de diversificação. Para muitos, as
expectativas em torno do dinheiro não implicavam a necessidade de aprendizagem, ou, mais
especificamente, aprender para empreender.

Podemos analisar, dessa forma, a expressão “tirar uns cursos” como reflexo das interpretações
locais que limitam a abrangência conceitual da aprendizagem. Tal expressão costuma ser
empregada pelos moradores das comunidades ao se referirem às vantagens potenciais com a
participação no CEDEJOR. O verbo “tirar”, ao ser associado ao signo “curso”, salienta a
instrumentalidade da aprendizagem, cuja interpretação local resume-a aos “cursos”. Neste
sentido, poderia ser resumida a oportunidade de aprendizagem, para muitos, a um ou vários
“cursos”, sendo utilizados como argumento em favor da empregabilidade dos jovens. Assim,
as vantagens auferidas com o envolvimento no programa de aprendizagem não estariam no
desenvolvimento do indivíduo inserido no processo de formação em si, mas sim no valor
instrumental que o “curso” tem para o indivíduo, como um passaporte capaz de viabilizar a

331
perseguição de seus interesses pessoais relacionados às oportunidades disponíveis. De fato,
para muitos, o PIC não era interessante e o programa esgotava seus benefícios ao final do eixo
técnico. Em contraste com os verbos “envolver-se”, “desenvolver-se” ou, ainda, o menos
ambicioso, “participar”, o verbo “tirar” torna a aprendizagem algo muito objetivo e reforça o
seu caráter instrumental. Ao por em destaque a certificação do curso, isto é, sua vantagem
imediata aos indivíduos, “tirar uns cursos” não requer considerá-lo como uma oportunidade
mobilizadora e formativa.

Coerente com esses significados locais, e apesar do notável desenvolvimento de diversos


jovens durante o eixo humanístico, prender a atenção da maioria para temas aparentemente
inaplicáveis na sua prática cotidiana – auto-estima, relações interpessoais, conflitos,
comunicação – não era tarefa fácil. Se o CEDEJOR propicia um momento privilegiado para a
socialização dos jovens, isto é, se eles se encontravam com seus grupo sociais nas semanas de
alternância, o nível de conflitos entre as ‘panelinhas’, e as demandas práticas do dia-a-dia,
tanto ao núcleo quanto às propriedades, faziam com que houvesse, por parte de muitos, um
equilíbrio frágil entre a vontade de permanecer no programa e a de abandoná-lo. Neste
contexto, as expectativas relacionadas ao financiamento final do PIC e aos cursos que seriam
oferecidos marcaram o andamento da turma e garantiram sua coesão até o final. No cotidiano
da comunidade, entretanto, o CEDEJOR perdeu grande parte de sua reputação como
programa educacional, já que o ambiente era visto como “liberado” demais e o
comportamento de muitos jovens caracterizava-se pela indisciplina, num contexto pedagógico
pouco apropriado à implementação da missão institucional. A autorização dada aos jovens
para que ‘ficassem’ uns com os outros, entre outros comportamentos mais “liberados”, gerou
relacionamentos muitas vezes conflituosos no grupo e conflito de valores, principalmente
entre os jovens que buscavam envolver-se nas atividades educacionais e os mais interessados
em aprofundar laços afetivos. Na prática, controlar os jovens era tarefa difícil, principalmente
no ambiente de conflitos entre orientações pedagógicas divergentes. Como resultado do
triunfo da visão pedagógica mais “liberada”, a ação dos monitores limitou-se muitas vezes a
tentar garantir que as atividades pedagógicas acontecessem efetivamente, para constar, e para
que aqueles poucos que realmente quisessem acompanhar os momentos de aprendizagem
pudessem fazê-lo. No fim, as iniciativas pedagógicas eram implementadas com dificuldades,
enquanto poucos as aproveitavam efetivamente.

Ao final do programa, grande parte dos jovens tinha suas pretensões frustradas em relação ao
PIC e ao programa CEDEJOR como um todo. Com a falta de notícias e de um convite do

332
CEDEJOR à continuidade da elaboração do projeto, as reações de mágoa e raiva em relação
ao programa espalharam-se rapidamente nas comunidades. O que os jovens haviam feito no
CEDEJOR, durante três anos, se suas expectativas haviam sido frustradas? Para que serve o
CEDEJOR? Tinha sido o programa implementado adequadamente? Estas eram questões
levantadas pela comunidade frente ao fracasso da primeira turma. Ao perceber os problemas
de reputação que o CEDEJOR enfrentava nas comunidades, os jovens egressos foram
chamados pela nova equipe da ONG para expressar suas mágoas e expectativas. A reunião
com os egressos reuniu aproximadamente 15 jovens e foi um momento privilegiado, no qual
significados e relações que compõem a ordem cultural puderam ser revistos e reformulados,
haja vista as experiências recentes dos participantes. De fato, um estado estrutural diferente
pode se consolidar se a redefinição conceitual do signo (como a aprendizagem) gerar novas
relações posicionais entre as categorias do esquema simbólico. O novo sentido dado ao signo
altera a estrutura ou o conjunto tradicional de delimitações e contrastes recíprocos entre os
signos. Na prática, a mudança cultural se consolidará na medida em que os novos significados
atribuídos aos fatos sejam efetivamente incorporados à ordem cultural local, o que depende do
poder que os indivíduos envolvidos têm para impor suas interpretações (SAHLINS, 2001, p.
143). Na formação da conjuntura analisada, são diversas as evidências que sugerem
transformações importantes na estrutura de significados.

A reunião com os egressos começou com a apresentação dos participantes e da nova equipe
do CEDEJOR. Os diálogos a seguir revelam as expectativas e as frustrações dos jovens com o
desfecho da primeira turma. De fato, não compareceram todos os jovens, já que uma parte
deles se disse frustrada demais para acreditar que a reunião poderia dar em algo. Ao
debaterem as experiências e os planos futuros, os jovens e a nova equipe revêem os
significados originalmente atribuídos à aprendizagem e à mobilização, inaugurando novas
posturas entre eles.

COORDENADORA: Sejam bem-vindos! Eu espero que esse nosso primeiro encontro seja o
primeiro encontro de muitos que virão, tá? E esse é o propósito que a gente está se reunindo
aqui, nesse momento, que é de nós, enquanto equipe, também de nos apresentar, né, porque
houve mudanças enquanto equipe e agora, no núcleo de Rio Pardo, estamos Adair, Isani e
Adriana, né, trabalhando na equipe. E, nos acompanhando, num processo de aprendizado
também em ambas as partes e que está trabalhando aqui conosco, mas não diretamente no
núcleo, o André e o Beto, que também é nosso trabalho... está fazendo essa consultoria, ele

333
está ficando aqui pra nos acompanhar e fazer essa consultoria através do Instituto Souza
Cruz. E nós aqui, que está presente o Conselho, no dia seis de junho, que tivemos uma
reunião do Conselho Deliberativo, é que se veio à tona os jovens egressos, quem eram, onde
estavam, o que faziam, quais eram suas angústias, quais eram os seus desejos, e muito mais
ainda, pra nós, que é a equipe nova, de conhecer vocês, saber quem são, né, e o que estão
fazendo. E então, dali que saiu a idéia e que se veio hoje, e então, estamos aqui. Foram
convidados a todos, tá, vocês estão presentes, ótimo, vamos lá, vamos seguir, e que não
morra, o propósito de hoje é esse, que não morra essa idéia. Tá? Por quê? É pra saber
exatamente, vocês são jovens egressos, a turma que saiu, a turma que se formou. O que que
aconteceu na cabeça de vocês de lá, de dezembro até hoje, né, que mudou? Ou não mudou?
O que que tá ajudando, ou não tá ajudando? O que que a gente tá fazendo depois do
CEDEJOR, tá? E essa é uma angústia nossa também, enquanto equipe nova, porque temos
uma turma que iniciou esse ano, como vocês iniciaram em 2001, tá? E uma das propostas até
também é saber o que que vocês estão fazendo, como vocês trabalharam nesses três anos e
até que sirva de apoio, que sirva de suporte, pra essa turma que tá chegando, tá? E eu
gostaria, assim, de propor da seguinte forma, que cada um se apresentasse, pode ser? E o
que que tá fazendo hoje, que que fez depois do CEDEJOR, pode ser? Quem começa?

Ao se apresentarem, os jovens não se limitaram às informações pedidas pela coordenadora,


Profa. Isani, e expuseram suas angústias e ressentimentos, que explicitam os significados
discutidos até agora. Lidiane, uma jovem egressa comunicativa e bem articulada, assumia a
liderança junto aos outros jovens:

LIDIANE: Bom, meu nome é Lidiane. Como jovem, hoje, não posso dizer que não foi bom,
não é justo, no CEDEJOR, aprendi muito aqui dentro, como pessoa, como ajudar a
comunidade... só que, uma coisa que me doeu muito, assim, e acho que não foi só a mim, é...
foi um ótimo começo, foram momentos, foram muitas coisas base pra nós, assim, como foi a
oportunidade, sabe? Então a gente tinha aquela esperança, desde o começo, de montar o
projeto e, como é que eu vou te explicar, montar o projeto e tu passar por uma certa
avaliação com o seu projeto. E, dali, tu tirar do seu projeto, ou ele é aprovado ou não. Então,
teria dito, tu ganharia verba pra colocar o seu projeto em prática, só que nada disso
aconteceu. No final, muitas coisas mudaram, e nem sequer dizer assim, ó, pra nós, pelo
menos eu me coloco em mim e dos jovens daqui que eu converso, que eu concordo com outros
jovens, nunca perguntaram se “precisa de uma ajuda, tô aqui pra ajudar”, sabe? Só que eu

334
acharia que deveria ter colocado alguém mais específico pra passar a teoria pros jovens, pra
procurar recursos pro jovem colocar o seu projeto em prática, sabe? Então, quando tu fala
do CEDEJOR, as pessoas ficam, pelo menos na parte onde eu moro, as pessoas ficam assim
“mas não vale a pena, porque, vê, tu passou três anos lá”; meu Deus, eu não perdi tempo
aqui, eu ganhei, porque eu ganhei muita coisa de bom pra ajudar as pessoas, no meu dia-a-
dia, como pessoa humana, sabe? Hoje eu não sei dizer não pra pessoa, eu sei fazer as coisas,
eu tinha outra maneira de lidar com as pessoas. Eu vou pedir pro Rodrigo falar junto
comigo, porque ele sabe do que tô falando. Pode falar, Rodrigo!

RODRIGO: [...] E hoje perguntam, “e aí, no CEDEJOR, como é que foi, que que tu fez lá,
que que tu aprendeu lá? E aí, não iam fazer projetos, e coisa, não iam pegar a verba, e
coisa?” E ficava lá, dando explicações, e a gente não tinha.

Rodrigo e Lidiane põem em destaque, em suas falas, as interpretações correntes nas


comunidades associadas à aprendizagem, cuja dimensão central é instrumental. Segundo os
jovens, os moradores da comunidade julgavam a oportunidade de aprendizagem com base no
cumprimento das “promessas” de verba para os projetos. “Então, quando tu fala do
CEDEJOR, as pessoas ficam, pelo menos na parte onde eu moro, as pessoas ficam assim
“mas não vale a pena, porque, vê, tu passou três anos lá”. Com base na ordem cultural
tradicional, o CEDEJOR foi apropriado pela comunidade como uma fonte de boas
oportunidades, entre as quais os “cursos” e o financiamento. Ao relatarem suas experiências,
os jovens discutiram as expectativas e as mágoas associadas a esta apropriação frustrada.
Sobre as expectativas frustradas de financiamento:

LIDIANE: [...] Pra começar, no começo, a primeira reunião que teve, que veio fazer a
política pedagógica, eles, no começo, eu lembro até hoje, eu não esqueço disso, só que eu não
sei se tá registrado em ata ou não, quem tivesse menos de dezoito hectares de terra, poderia
ganhar o próprio... o fundo perdido, o dinheiro lá, pra fazer seu projeto, sabe? E isso magoa
muito a gente. Porque nós, todos os jovens daqui, no crescimento do CEDEJOR, aqui no
Albardão, Adair sabe mesmo, quando foram roubados nossos computadores, né, João Pedro,
como a gente correu, a gente ganhou apoio da comunidade, pra ajudar aqui, né? Aí então, no
final, tu chegar e dizer assim “olha, eu preciso de uma ajuda”; aí vem, não vou dar nomes

335
aos bois, vem uma pessoa e diz assim “olha, esses aqui foram os empréstimos que o banco
dá, se alguém não colocar o projeto é porque não quer”, tá?

VAGNER: Meu nome é Vagner, tenho dezoito anos, sou de João Rodrigues. Só acho, assim,
eu também tenho a mesma opinião que a Lidiane, tenho o mesmo desejo que a Lidiane tinha,
e também eu gostaria, já, de sair do CEDEJOR e implantar meu projeto.

COORDENADORA: Qual foi?

VAGNER: O meu é hortaliças. E agora, assim, eu tô parado em casa e não tô fazendo nada.
E eu gostaria já de sair do CEDEJOR com o meu projeto implantado. E o que a Lidiane falou
mesmo, assim, que eu penso, assim, foi... teve bastante... não é, assim, bastante, no meu ver,
assim, (hesitante) bastante ilusão, a gente ficou bastante iludido, sabe, com promessas.

Os cursos, certificados e projeto PIC, eram fundamentais aos jovens que aceitaram deixar suas
obrigações diárias nas propriedades, acumular obrigações educacionais além da escola e
participar do programa CEDEJOR. Nas passagens seguintes, os jovens põem em destaque a
interpretação instrumental da aprendizagem, bem como as contradições durante o processo.
Na realidade, num contexto de muito poucas oportunidades educacionais, além da escola
regular, participar do CEDEJOR era um esforço capaz de diferenciar um jovem:

O certificado nosso, do CEDEJOR, é um papel importantíssimo na nossa vida, três


anos não são três dias. Eu sou casada, tenho a minha casa, o meu noivo sabe das
dificuldades que eu tinha desde antes de casar, que eu tinha que fazer fumo, eu tinha
que ajudar na lida da casa, eu tinha a minha avó que era doente... então, às vezes eu
vinha pra cá, deixava todo mundo trabalhando...

Abaixo, o jovem faz um balanço dos “cursos” realizados por ele, destacando a “sedução” aos
candidatos durante o processo de recrutamento e os problemas no processo de capacitação
para a elaboração do PIC. Mais adiante, o jovem destaca questões fundamentais à apropriação
local do CEDEJOR, as expectativas de reconhecimento oficial, de certificação do programa e
de financiamento do Projeto de Investimento de Capital:

JOVEM EGRESO: Meu nome é André, tenho vinte anos, meu projeto é de criação de codorna
e trabalho com um tio agora. Na época do CEDEJOR, quando começou o CEDEJOR, eu nem

336
ia participar do CEDEJOR, por causa que eu tinha que trabalhar e uma coisa ou outra, aí
acabei participando, pensando que era uma coisa e era outra muito diferente. Não tenho
vergonha de dizer, os cursos que eu fiz pra fora (cursos externos), pra mim foi ruim, o curso
foi muito aproveitado, mas o meu, saí daqui, passou uma semana, uma semana de serviço,
aprendi a arar ou uma coisa e outra, coisa que eu aprendi em casa, coisa que em casa mesmo
eu aprendi a fazer. O curso de administração eu aprendi bastante. Outro curso também foi
bom, um curso que eu fiz no Senai de Santa Cruz, eu aprendi bastante coisa nesse curso. O
negócio do projeto, eu tinha muita dificuldade de fazer o projeto, nunca falaram de projeto,
em dois anos, nunca falaram de projeto pra nós. Aí faltou um ano pra terminar e todo mundo
começou a pauleira. Projeto, tatatá, tatatá...

JOVEM EGRESSO: [...] a gente tinha a idéia de o CEDEJOR ser reconhecido como uma
oficina, né? Ter um reconhecimento, de repente do Estado, por causa que ele é meio que um
curso agrícola, assim, é um curso técnico, na verdade. E essa ilusão foi logo tirada de mim,
porque nós tínhamos umas atividades, assim, no meio, que não tinha como ser considerado
um curso técnico, e o outro que foi a questão do financiamento, foi uma questão, assim,
levantada logo no início por nós, até uma vez nós fizemos uma rebelião, né? Lembra na
época do Gerson, saindo lá, que nós fizemos um agito louco, né? No início acharam que ia
sair, mas logo mais pro fim do ano foi tomada a consciência que essa verba seria um pouco
mais complicada de sair, que nós teríamos que procurar os investimentos, teríamos que
procurar um órgão.

De fato, se a comunidade apropriou-se do CEDEJOR como uma fonte de boas oportunidades


aos jovens, essas expectativas frustraram-se com o fracasso generalizado do programa, aos
olhos da comunidade (“mas não vale a pena, porque, vê, tu passou três anos lá”). Pode-se
associar este fracasso à reavaliação funcional do signo empreendida pelo coordenador, que
transformou o núcleo em um centro comunitário, coerente com seus interesses e projetos
pessoais. Esta situação gerou diversas incoerências aos olhos de vários jovens, diretamente
implicados com o processo de reavaliação funcional do CEDEJOR. A passagem a seguir traz
algumas destas contradições, que explicitaram as limitações das interpretações tradicionais
associadas ao CEDEJOR e à oportunidade de aprendizagem oferecida pela ONG. Na prática,
essas contradições percebidas minaram a validade das interpretações culturais locais,

337
sugerindo a necessidade de uma reavaliação do signo entre os jovens mobilizados em torno de
seus projetos pessoais:

JOVEM EGRESSO: E, em relação ao CEDEJOR, assim, é como já comentaram, né, no


começo foi uma ilusão, assim, grande, né? Até eu vou dizer até a época, mais ou menos, que
era. Até o roubo dos computadores. Até aquela época ali, o CEDEJOR vinha vindo, assim,
tranqüilo, né, de vento em poupa. Até era uma relação, fizeram uma mobilização, coisa, pra
ganhar dinheiro, pra comprar o computador, a comunidade toda se mobilizou, fizemos uma
festa, foi uma das maiores festas que houve do Albardão aqui, né? Mas, no dia até, frio, frio
mesmo, choveu de manhã, a gente pensou “pô, não vai dar nada, né, com o tempo assim, na
gíria, né, tamo ferrado, né?”. Chegou de noite, assim, mais à tarde já tinha gente; de noite,
então, bombou mesmo. Mas, depois daí, o pessoal todo viu que a população de Albardão
tava, a comunidade do CEDEJOR, e os cara saíram pra fazer entrevista pro projeto (PIC; as
entrevistas objetivavam o levantamento de dados para pesquisas de mercado). O cara saía,
chegava na casa, né? Aí, tá, tranqüilo. Todo mundo de acordo, parava o serviço pra atender
a gente, até é uma briga pra que a gente fale, todo mundo, tratavam bem a gente até, mesmo,
atendiam bem. Aí depois, todo mundo, “pô, mas daí o projeto não vem mesmo, né?”, todo
mundo lá, perguntando, ficou mais chato porque a gente dá uma de bobo, né? Veio com essa
história de projeto depois, né? A comunidade toda. Aí, foi o que todo mundo dizia, “e aí o
projeto, que que houve”? Aí o cara vai explicar, fica... não diz... faz o seguinte, fala a
verdade, eles falaram uma coisa no começo e terminamos em outra. Aí, entra no grupo um
dos melhores monitores, o Bernardo. Por causa que o Bernardo foi gente fina, porque muitas
vezes, assim, eu tava bem na época do plantio da soja, que eu tava trabalhando forte mesmo,
eu, tinha dia, que eu largava a lavoura de dia, né, e chegava por essa hora, mais ou menos,
tava chegando aqui. Aí passava o projeto pra ele, e ele até onze horas, meia-noite, no
computador, digitando projetos, coisa. Aí complementava uns pedaços e, se faltava um
pouquinho pra digitar no outro dia, ele ficava e digitava pra mim depois, tudo, sabe? Aí tava
com o projeto bonitinho, tudo lá, e foram falar que o projeto tinha sido reprovado. Aí ele
voltou dizendo que eu tinha que fazer umas modificações, e me apertou daí e mandou de
volta. Não entendi mais nada. Aí, tá. Aí chegou num dia, nem lembro quem ligou pra mim, aí
ligaram pra mim dizendo que tinha certificado. Pra receber. Aí o projeto tinha sido escolhido
... achei estranho... mas, ah, não sei, todo mundo recebe certificado. Aí eu disse, “ah, eu vou
lá, né?”. Aí eu cheguei aqui, era um dia que eu tava trabalhando, cheguei tarde, cheguei uma

338
meia-hora atrasado, cheguei aqui e encontrei o Ériton no portão. Ele disse “ué, tu chegou
atrasado?”. Eu achei que ia ter uma cerimônia, ia ter um negócio. Cheguei e entrei aqui
dentro, aí, tá, aí tava aqui o Clóvis, a turma de vocês, a equipe toda. Aí entregaram o
certificado. Aí eu comecei a ler onde tinha certificado. Tinha coisa que faltava ainda, projeto
não terminado, e o projeto nem tinha sido aprovado nem nada. Chegou aqui e tava “projeto
aprovado”, seis linhas, né? E eu falei “não, no certificado isso?”.

JOVEM EGRESSO: Tavam todos lá, aprovados, todos os projetos tavam aprovados, tava
tudo lá.

JOVEM EGRESSO: Isso!

De fato, a elaboração apressada e desonesta dos projetos reforçou as contradições do


processo, causando desconforto entre os jovens:

JOVEM EGRESSO: E o problema também, que foi um dos maiores motivos, o pior, foi a
quantidade. Pra ter terminado quase todo mundo. Porque daí tem muita gente que, na
carona, pra terminar o projeto, botou horticultura porque era um que alguém tinha
concluído, já tava com o projeto pronto, daí pegava em cima daquele e só mudava alguma
coisa, daí todos tavam, mas o cara não sabia nem o que que nós estávamos trabalhando e
não sabia nem diferenciar o um pé de alface do repolho. Mas nem...

JOVEM EGRESSO: Eu tenho aqui o projeto de horticultura, e o cara botou uma espécie de
repolho lá, na época de verão, e eu perguntei pra ele por que, e ele falou “não sei”. Eu fiquei
simplesmente abismado.

[...]

LIDIANE: Só falar uma coisa. Assim, ó, chegou um dia e o Ériton disse pra mim, ó, “Lidiane,
vai lá e faz o projeto de vocês”. “O que é o projeto de vocês?”. Cultura. Mas e o meu
projeto? Assim como ele pensa, de que jeito eu vim aqui, que eu também tenho outros
compromissos, pra fazer o meu projeto, ele também poderia ter vindo fazer, pra falar que foi
ele que fez o projeto. Não..., se fizesse...

JOVEM EGRESSO: Eu tenho duas coisas pra falar. Primeiro, quando tava nos meados do
CEDEJOR, ele disse que não tinha tanta importância, que não precisava terminar o projeto,
no CEDEJOR, né? Se o cara chegasse no fim dos três anos, todo mundo que tava ali tava
com o projeto concluído. O cara tinha mais uns dois anos de acompanhamento, né, com o

339
monitor pra acompanhar. Outra coisa que, que eu lembrei, uma noite que a gente tava no
CEDEJOR, né, trabalhando esses projetos, fizeram uma reuniãozinha lá, tinha uma
biblioteca lá, a Lidiane também tava, eu, a Daiane, a Rosicléia, o Ricardo. A gente tava
escondido dos outros, que tinha menos capacidade assim... mais dificuldade de realizar o
projeto, que é assim, ó, precisamos vim atrás deles pra poder terminar depois com eles.
“Aquilo que vocês souberem ajudar, você façam, fiquem de padrinhos deles no projeto”. Mas
não tinha como ajudar, porque o cara não tinha interesse, nada. Aí não dá... vocês pegam e
fazem o projeto deles.

De fato, se a apropriação do CEDEJOR pela comunidade em geral como uma fonte de boas
oportunidades foi frustrada, os jovens denunciaram as incoerências no processo, que, por sua
vez, sugeriam a agregação de novos significados à oportunidade que iriam além da dimensão
instrumental. Se considerarmos que os jovens também tinham interesses pessoais relacionados
ao CEDEJOR, falamos de uma nova reavaliação funcional do signo (SAHLINS, 2001; 1990).
De fato, os jovens perceberam a contradição principal no processo, isto é, apesar das
expectativas gerais em torno do financiamento, o grupo não reunia as competências
necessárias às estratégias de diversificação. Como conseqüência, a reunião dos egressos
caracterizou-se pela associação, por parte dos jovens, de outras dimensões de significado à
aprendizagem, que punham em destaque a oportunidade de desenvolvimento pessoal e social,
e que requeriam a interação no grupo. “Meu Deus, eu não perdi tempo aqui, eu ganhei, porque
eu ganhei muita coisa de bom pra ajudar as pessoas, no meu dia-a-dia, como pessoa humana,
sabe?” Esta inflexão conceitual será reforçara pelos outros jovens, que articularão, junto à
equipe do CEDEJOR, novas maneiras de apropriação da oportunidade de aprendizagem. A
passagem seguinte é o relato de jovens que denunciam as contradições no processo
educacional e sugerem novas dimensões conceituais associadas ao signo “CEDEJOR”:

JOVEM EGRESSO: [...] na reunião, falaram que o jovem ia fazer um projeto, ia passar por
uma avaliação da comunidade, não, primeiro ia fazer o projeto e ia passar pela avaliação
deles, aí depois ia apresentar pro núcleo, do núcleo vai fazer uma apresentação pra
comunidade, aí depois ele ia ser encaminhado, não me lembro, naquela época parece que
tinha exame no núcleo, cada grupo ia passar por ele, e aí depois ia pro Instituto. Tá. A gente
veio pra cá, aprendemos bastante mesmo, aprendemos muitas coisas, fizemos amizade aqui
dentro, forte...
340
LIDIANE: Virou uma família.

JOVEM EGRESSO: É, e aí, tá. Chegou na última alternância começaram a dizer que o jovem
primeiro tinha que ver como tava o projeto, que tinha projeto que tava concluído, outros que
tavam por fazer. Mas, no começo do andar do CEDEJOR, eu já vi que não ia dar certo,
porque muitos jovens só ficavam ali, bagunçando. E aí, tá, no começo do CEDEJOR foi
produtivo, era uma coisa, no fim era outra. No começo do CEDEJOR eu comecei com
entusiasmo, com espírito de incentivo mesmo, né? O cara tinha que, pelo menos, se esforçar
pra poder tá junto, né? Aí, chegou no meio, na metade em diante, eu vi que todo mundo
bagunçava, todo mundo ia pra bagunça, aí eu falei “eu também vou”. Mas, depois que saía
das aulas, os caras diziam “ah, eu não quero assistir às alternâncias”, e ele dizia “não, tudo
bem, é tu que tá perdendo”, falava assim. E eu dizia “falta de respeito”, o cara vem pro
CEDEJOR pra assistir às palestras que tinham, dentro da... pelo menos sai assim, na
tranqüilidade... mas, não, dizia “não, eu não quero ir pra lá”. Sei lá, se tivessem mandado
um pulso firme ali, dado um ajuste, escrever uma advertência... mudar mesmo aquilo ali, o
cara mudava de idéia, não, aí o primeiro saiu, aí o cara não tava aqui, tendo palestra aqui, e
o cara ia pra rua... às vezes tinham cinco, seis, dez, e um bolo lá, aí a palestra tinha meia
dúzia de guri. Mas, também, no começo deixaram assim, o cara... no começo, a turma toda
pegava junto, as primeiras alternâncias, todo mundo pegava junto, era bonito até de ver,
cada um queria fazer mais melhor que o outro, mais bonito que o outro. Aí depois
começaram a deixar, aí depois começou a ter, como é que eu vou dizer, assim, muito atrito
entre jovens e monitores e coisa... ah, uma vez eu me atritei por vários motivos com o Ériton.
Até com horário ele atritava, brigava um com outro.

LIDIANE: Ele passava que ele tinha razão por causa que tinha razão. Não tinha um tempo
pra ti se explicar, pra ti conversar, ele levava tudo à ponta de faca, sabe? Muito a sério. Às
vezes a gente chegava com uma brincadeira e ele levava a sério. [...] às vezes as pessoas
perguntam, assim, pra ti, tu vai falar do CEDEJOR, e eles viram “que CEDEJOR, aquilo lá é
Cedebosta, não é CEDEJOR”. Porque, eu garanto, se tu for na comunidade, o nome não é
mais nada na comunidade. Mães e pais daqui, hoje... eu disse assim, ó, um dia eu cheguei a
falar pro Luis Carlos, “eu juro, Luis Carlos, se acontecer um terço, do que aconteceu com
nós, com essa segunda turma”, porque a gente não conhecia, né? Não conhecia a Isa, não
conhecia a Adriana, não conhecia ninguém. Então, se acontecer a mesma coisa, nós vamos
fazer uma reunião e vamos falar. Porque nós achávamos que o Ériton não deixava nós
virmos aqui com medo de nós contarmos pros os jovens de hoje.

341
JOVEM EGRESSO: Eu tenho uma visão, assim, ó, eu acho que os jovens da casa (trata-se da
Casa Jesus Maria José, o antigo núcleo do CEDEJOR na cidade de Rio Pardo, desativado
após o fim da primeira turma) têm grande diferença dos jovens de Albardão.

LIDIANE: É. É assim, ó, é muito diferente, sabe por que, porque eu convivi pra cá e eu achei
muito isso aí. Porque quando a gente vai pra casa, mesmo que a gente não quisesse, o Adair
tava ali, ó, “vamos fazer”. A gente ia no banheiro, ele ia lá atrás e dizia “o que tu tá fazendo
lá, vamos voltar pro trabalhar”.

JOVEM EGRESSO: Ele não tinha obrigação, ele ficava até às nove horas da noite, ajudando,
na frente do computador. O Renato e o Paulo Miguel nunca tiveram preguiça de te ajudar. O
Paulo Miguel foi um dos melhores monitores que tivemos aqui na nossa turma, não tem o que
falar do Paulo Miguel.

JOVEM EGRESSO: O negócio é que eu entendo que às vezes dá saudade porque os


monitores bons saíram, né? O Osmar, no começo, né? O Osmar, precisava dele, tava junto,
chegasse à hora que for. Preciso que tu pare agora, tem um negócio lá, que é um negócio do
meu projeto do CEDEJOR, ele tava junto. Uma vez tomamos um banho de carro, eu e ele
indo, ele ficou de me pegar no colégio, e o carro estragando ali, e passamos o maior tempo
tomando chuva, indo até Rio Pardo.

LIDIANE: É, mas vamos falar de coisa boa também, é tão bom, a gente encontra na rua,
pessoas que a gente vê, muitas pessoas que eu não conhecia, passava na rua e dizia “oi, tudo
bom?”. Ele falava “muito bom o que Deus lhe deu, a vida foi suada, eim?”. Falava assim,
ampliou uma linguagem, conheceu mais pessoas, tu conviveu mais com as pessoas, sabe, tu
se abriu mais com a comunidade, sim, porque eu vim pra Albardão, não conhecia ninguém,
só conhecia os jovens do CEDEJOR, sabe, que ele era meu vizinho e eu disse “bá, eu te
conheço”.

A análise do trecho acima indica uma inflexão nos significados tradicionalmente atribuídos à
aprendizagem e ao CEDEJOR na comunidade. Se as perspectivas de obter financiamento e
cursos foram centrais ao envolvimento com o CEDEJOR, parecia claro a alguns jovens, e
posteriormente a outros, que o processo não se viabilizaria da maneira com estava sendo
conduzido.

Na reunião, falaram que o jovem ia fazer um projeto, ia passar por uma avaliação da
comunidade [...] Chegou na última alternância começaram a dizer que o jovem
342
primeiro tinha que ver como tava o projeto, que tinha projeto que tava concluído,
outros que tavam por fazer. Mas, no começo do andar do CEDEJOR, eu já vi que não
ia dar certo, porque muitos jovens só ficavam ali, bagunçando.

Assim, percebia-se que a viabilização dos projetos de investimento de capital demandaria o


esforço e o desenvolvimento de todos, jovens e monitores. Com base nesta percepção, os
jovens apontam os problemas do programa educacional, da maneira como foi implementado,
e põem em destaque dimensões conceituais da aprendizagem que não simplesmente o seu
valor instrumental. Assim, novos significados possíveis são postos em destaque numa nova
reavaliação funcional do signo “aprendizagem”. À oportunidade de aprendizagem no
CEDEJOR associou-se o desenvolvimento pessoal e coletivo e a construção de laços afetivos
e da confiança entre os jovens, na comunidade (“A gente veio pra cá, aprendemos bastante
mesmo, aprendemos muitas coisas, fizemos amizade aqui dentro, forte... Virou uma família”),
a necessidade de esforço e dedicação pessoal (“O cara tinha que, pelo menos, se esforçar pra
poder tá junto, né?”), a importância da liderança (“às vezes dá saudade porque os monitores
bons saíram”), do envolvimento (“o cara vem pro CEDEJOR pra assistir às palestras que
tinham... mas, não, dizia “não, eu não quero ir pra lá”. Sei lá, se tivessem mandado um pulso
firme ali, dado um ajuste, escrever uma advertência... mudar mesmo aquilo ali”), da
negociação e da busca do consenso (“Ele passava que ele tinha razão por causa que tinha
razão. Não tinha um tempo pra ti se explicar, pra ti conversar” ) e a importância da união e da
mobilização (“eu juro, Luis Carlos, se acontecer um terço do que aconteceu com nós, com
essa segunda turma, [...] nós vamos fazer uma reunião e vamos falar”). De fato, se o signo
“CEDEJOR” havia sido reavaliado pelo coordenador segundo seus projetos e interesses
pessoais, as contradições no processo, como percebidas pelos jovens, mobilizaram-nos de
maneira que também reavaliassem o signo de maneira coerente com seus objetivos.

Neste momento, é possível sugerir que, o que começou como reprodução cultural (a
apropriação local do CEDEJOR pelos sujeitos históricos), terminou como transformação
estrutural (os novos sentidos dados ao signo aprendizagem e suas novas relações com outros
signos). Como coloca Sahlins (1990, p. 9-10) “a cultura é uma aposta feita com a natureza,
durante a qual voluntária ou involuntariamente [...] os nomes antigos, que estão na boca de
todos, adquirem novas conotações, muito distantes de seus sentidos originais”. Assim, o
CEDEJOR, ou a oportunidade de aprendizagem, não era uma “promessa” de uma vida melhor
e mais confortável. “Era muito bom pra ser verdade mesmo”. O CEDEJOR não era uma
simples oportunidade de se levantar fundos para um projeto, ou para se viabilizar “cursos”

343
que aumentassem a empregabilidade dos jovens; era, sim, uma oportunidade de
desenvolvimento, dependente do esforço individual, e capaz de gerar a autonomia necessária
à consecução dos objetivos pessoais e coletivos. Como afirmou a Lidiane: “se eu fizer, se eu
conseguir, se Deus quiser, montar minha mini-padaria lá, eu quero colocar uma placa bem
grande assim: ‘Sem ajuda financeira do CEDEJOR’” (Risos). Ao destacarem novas
dimensões conceituais da aprendizagem, os jovens, mobilizados em torno de seus objetivos,
articularam, junto à nova equipe do CEDEJOR, a continuidade do processo de
desenvolvimento, explicitando suas expectativas renovadas em relação à nova oportunidade.
Ao contar aos jovens sobre suas experiências com o cooperativismo nas comunidades, a
coordenadora Isani fez uma proposta de continuidade do programa, reintegrando os jovens
egressos à “comunidade” revigorada do CEDEJOR:

COORDENADORA: [...] E foi muito, eu digo, crescimento, porque a gente trabalhou, de


perto, a sucessão de cooperativas, a formação. E formação, assim, ó, desde crianças, que
acompanhavam, os jovens, os pais, e o grande público era o de pessoas que não tinham o
acesso à quarta série, tá, de trabalhar alternativas de renda, de formação, do que é possível
dentro de uma comunidade. E eu acompanhei, aqui em Rio Pardo, foi de perto a Promilk
(cooperativa local de produtores de leite) e a cooperativa de vestuário, Sobradinho, de
prestação de serviço, tinha em todo lugar, nessas cidades, eu acompanhei. A minha parte era
de viabilidade econômica e, depois, projetos de investimento. Porque, na época, tinham
linhas de financiamento no Governo Olívio pra esse tipo de cooperativa. Só que não dava pra
dar dinheiro, e as pessoas também receberem dinheiro, sem saber se era possível, porque
uma das coisas que eu prezo, e isso eu coloco aqui também, é... a gente tem que ter muita
responsabilidade, muita consciência e muita transparência, tá? Que não é simples, tu montar
uma empresa, pensar lá na frente e dizer que isso vai dar certo, não é simples. Mas, bem
informada, aprendendo todos os passos, consciente, se consegue [...] todos têm que estar
juntos pra coisa dar certo. Mas aí é que tá, até que ponto agora, e olha, é importante, e é por
isso que a gente tá aqui, é o de retomar esse assunto. Isso é muito importante. Só que tem um
outro lado também. Dá medo. Ô! Montar um negócio, seguir adiante, dá medo também. E é
uma responsabilidade mesmo, que o Everton (jovem egresso) comentou, não é de uma hora
pra outra. E isso eu vi muito de perto nas associações. E uma outra coisa, assim, que eu
teimo, que eu coloco isso em discussão, eu vi as coisas dando melhor, ou mais certo, quando
eram em grupos, e não individuais. Que aí a gente ganha mais força, que o pequenininho,

344
sozinho, é diferente do que um grupo junto, não tá todo mundo sozinho, um grupo é melhor.
Mas isso não invalida aqueles que querem fazer sozinhos. Só que tem que estar muito assim,
ó, pé no chão. Porque tem que saber exatamente no que que tá entrando, o que que eu tô
produzindo, o que vai sair, e o quanto eu vou ter que pagar lá na frente. Isso se chama
responsabilidade, conhecer todo o processo para entrar, muita responsabilidade. E aí que
vem outra questão. Como é que a gente pode vir aqui, a partir de hoje, ajudar. Por quê?
Porque nós estamos trazendo, assim, ó, os nossos anseios, as nossas angústias, também, e a
nossa experiência. Da gente agendar novos encontros, agendar processos, conversar de
novo, porque, porque isso não pode morrer. Porque nós temos um nome, o nome CEDEJOR,
já se fez um nome, e ele é importante, vocês são importantes. Só que, aí aquela ressalva, não
pode fazer propaganda enganosa, propaganda enganosa não dá certo. Então, começar com
cuidado, começar com responsabilidade, começar firme. E essa é uma das propostas da gente
estar aqui hoje, de retomar isso.

LIDIANE: Só que alguns deixaram a entender pra nós... como se nós... agora nós não somos
mais CEDEJOR. O mais importante é a turma que entrou (a segunda turma), nós não
teríamos tanta importância pra eles.
JOVEM EGRESSA: E eu até botei uma vez, na nossa reunião, ainda coloquei, bá, que bom,
que eu vou poder vim aqui, passar a minha experiência pros outros. “Não, não pode vim, tem
que marcar na agenda”. E tudo, se nós tivermos um espaço pra atender vocês.

JOVEM EGRESSA: E uma outra promessa também, depois que terminasse o CEDEJOR,
quando a gente fosse jovem egresso, nós teríamos dois anos de acompanhamento com
monitores, só que fazem novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho,
sete meses, não apareceu ninguém na nossa casa.

COORDENADORA: E aí, Clarisse, Lidiane, João Pedro, Fabiano, todo esse grupo é
CEDEJOR, nós somos CEDEJOR. Nós vamos dar continuidade a isso, se não tivermos vocês,
se não tiver esse ajuste...
JOVEM EGRESSA: Até porque motivaram nós, lá... não... por quê não, né?
COORDENADORA: Vamos lá, vamos mudar. E é por isso que a gente tá aqui.
JOVEM EGRESSA: Se a gente formou isso, por que a gente vai deixar agora, né?
COORDENADORA: E eu te digo, assim, ó, Clarisse, que isso dá medo. Claro que dá medo!
Porque eu sei o quanto é um projeto de investimento, de viabilidade econômica, não é algo
fácil. Não é algo fácil lidar com aqueles números.

345
JOVEM EGRESSA: Outra coisa, porque na comunidade, porque eu faço trabalho voluntário
na escola. Lá na minha casa, final de semana, tem um pessoal trabalhando comigo. Sabe, é
tão bom tu ter, valorizar oportunidade. Aí depois perguntam “tu não tá mais no CEDEJOR,
não tá mais participando?”, eu falo “não”. Sabe? É ruim também.

Podemos sugerir que a reavaliação funcional do signo aprendizagem, como empreendida


pelos jovens, implica em novas relações contrastantes na ordem estrutural de significados.
Podemos, neste momento, recuperar a discussão sobre as estratégias de inserção profissional
dos jovens das comunidades. Tradicionalmente, as iniciativas de aprendizagem vêm sendo
instrumentalmente associadas à saída do campo, por capacitar o jovem a oportunidades
urbanas de trabalho, mais “leves”, interessantes e regulares. Na região, às garantias oferecidas
pelas fumageiras e aos riscos associados à diversificação na zona rural sempre
desencorajaram-na, associava-se o esforço em qualificar-se às boas oportunidades na cidade
ou nas empresas, o que fazia com que a estratégia de diversificação não fosse considerada,
diante de oportunidades melhores ou menos arriscadas. Assim, entre as relações que
compõem a estrutura cultural tradicional na região, a aprendizagem exclui o trabalho na
lavoura, que é visto como “o pior dos mundos”, da maneira como é praticado hoje em dia.

Ao levantarem a bandeira da diversificação, a reavaliação funcional do signo empreendida


pelos jovens permite que se pense a vida no campo de uma outra perspectiva, segundo a qual
a diversificação das atividades produtivas na zona rural é uma estratégia alternativa ao tabaco
e típica daqueles que não se identificam com a vida na cidade. Trata-se, então, de uma
estratégia viabilizada no contexto da atual estrutura da conjuntura, caracterizada pela
percepção de esgotamento do ciclo do tabaco e das incertezas nas cidades, e capaz de
solucionar um impasse importante das famílias, que reconheciam as dificuldades atuais na
zona rural, mas também resistiam à migração de seus filhos à cidade. Assim, conceitos mais
amplos de aprendizagem e desenvolvimento passam a ser importantes à inserção profissional
na zona rural. De fato, a proposta da nova equipe do CEDEJOR foi aceita pelos jovens, que
reconheciam a necessidade de se avançar o processo formativo visando às iniciativas de
diversificação nas propriedades: “Ó, uma coisinha que eu queria te dizer. Eu acho que tudo o
que nós aprendemos, acho que não foi suficiente, acho que tem... nós trabalhar mais, mas é
pra aprender. Aprendemos um pouco, uma parte da laranja. Tem muita coisa que precisa
aprender”.

346
Na reunião com os egressos, a proposta de continuidade no processo formativo objetivando à
diversificação foi intensamente debatida entre os jovens e a nova equipe do CEDEJOR,
salientando as novas dimensões associadas à aprendizagem: mobilização, união, esforço,
planejamento, organização, negociação, etc.

CONSULTOR DO CEDEJOR: E aí, eu acho que, a partir do planejamento pro ano que vem,
e aí a gente pensar isso pro início do ano já, se a gente vai fazer dois encontros, ou três, por
ano, pros jovens egressos, de informação, já agenda isso no início do ano, né, e aí numa
primeira reunião já tá... todo mundo já sabe... eu sei que, de três em três meses, ou de quatro
em quatro meses, vai depender do que a gente acertar com o grupo, poderia ter o encontro de
informação, de formação, de celebração, de reencontro... porque daí já, essa coisa de ficar
trabalhando atrás, ligando, correndo atrás, vocês conversam com os colegas que não
puderam vir, se eles quiserem, né? Mas aí, isso pensando já num planejamento a longo prazo
até o final do ano, né?

COORDENADORA: Exato. Dar continuidade.

CONSULTOR DO CEDEJOR: É, esse processo formativo. Mas, agora, por exemplo, nós
podemos fazer, daqui a dois meses, daqui a três meses, um encontro...

JOVEM EGRESSO: Agora, eu acho que o trabalho de mobilizar, de convidar, pra andar, tem
que envolver o pessoal.

CONSULTOR DO CEDEJOR: É verdade, isso é trabalho pra quatro colegas, tem que ser.

JOVEM EGRESSA: Eu acho que eu tenho medo que a reunião se encalhe.

JOVEM EGRESSO: Por que vai ser de três em três meses? Eu não concordo. Eu acho que
tem que ver a... essa reunião tem que servir pra, assim, de utilidade, pra quem? Pra nós,
jovens que entrou, que queira voltar pro CEDEJOR, assim...

CONSULTOR DO CEDEJOR: Acho que a palavra é trocar informação. A gente tem que
estar preparado pra dar informação o tempo inteiro, gente. Se vocês já estão formados no
CEDEJOR, não acabou mesmo assim, né? [...] A proposta que a gente tá fazendo é que seja...
que essas reuniões sejam informativas também, que a gente tenha espaço, de repente, de
trazer aqui jovens de outras comunidades, sei lá, pra discutir os projetos, e aí a gente pegar
isso e trabalhar a partir dos nossos. Sei lá, trazer alguém pra discutir créditos...

JOVEM EGRESSO: ... a partir da sua necessidade...

347
[...]

COORDENADORA: Agora que tu comentou sobre créditos, né, tem uma pessoa que tá me
procurando feito... muita doida, assim, pra se apresentar no CEDEJOR, que se chama Paulo,
gerente do Banco do Brasil, pra apresentar o Pronaf. E o tio Zé (líder local), já de antemão,
me disse que isso aí é uma boa saída, lançar os jovens que têm talão (documento profissional
do agricultor), tem que ter talão, tá? Vocês, em casa, têm talão?

JOVEM EGRESSO: Em trinta dias você tem talão.

COORDENADORA: Tá? O que que vocês acham, porque, assim, ó, o Paulo tá louco pra vir
nesse próximo encontro...

JOVEM EGRESSA: Só que tem que ver, assim, ó, tem o Pronaf e o mini-Pronaf, né? Tem os
dois.

COORDENADORA: É, e aí ele vem apresentar. Então existe a possibilidade, entende? É uma


oportunidade de... pra que vocês conheçam o que existe. É interessante também fazer isso.

JOVEM EGRESSO: E tem outro lado também, nem todas as regiões se enquadram na linha
do Pronaf. E se a renda é maior não se enquadra.

JOVEM EGRESSO: Eu acho que assim, ó, fazer um convite pro próximo encontro, seria
tentar aí, ver o horário, se cada um trazer o seu projeto, né, a gente vê os projetos, a quantia
de valor que cada projeto é, né? Eu acho que depois de cada um ter visto o projeto, porque
vai ter confusão, tem que ser organizada alguma coisa, de repente, né?

JOVEM EGRESSO: Porque aqui, se a gente fizer um levantamento a grosso modo, entendeu,
de repente depois, na hora de fazer, vai trazer o cara do Banco do Brasil e vai entrar um
valor mais barato. E não vai ser a realidade.

COORDENADORA: Bá, aí eles têm o diagnóstico de cada um. Exato.

CONSULTOR DO CEDEJOR: Deixa eu fazer uma pergunta, todo mundo aqui domina os
créditos do Pronaf? Sobre esse assunto, todo mundo sabe?

JOVEM EGRESSA: Eu não.

JOVEM EGRESSO: Eu também não.

CONSULTOR DO CEDEJOR: Tem que conhecer o que que é. Nós precisamos trazer gente
pra discutir... algumas coisas, algumas normas do Pronaf pra nós, pra conhecer a
regulamentação, né? Como acessar, como fazer, né? Porque o Pronaf requer a declaração

348
de aptidão, cem horas no mínimo de formação técnica, por exemplo, o curso do CEDEJOR
pode ser, eu vejo que sim, porque o sindicato apóia, o Senac apóia... Então, são algumas
coisas que a gente precisa se apropriar, e, claro, se informar, que o jovem rural, se eu não
me engano, até onde eu acompanhei, que era cinco mil reais o limite, né? Então, assim, a
gente tem que ver, saber o que fazer.

Apesar das evidências de transformações na ordem estrutural de significados, é necessário


reconhecer que a mudança cultural depende, ainda, de outros fatores, entre os quais o poder
político dos proponentes da reavaliação do signo. Como sugere Sahlins (2001, p. 143), “a
ocorrência ou extensão de efeitos estruturais, ligados a uma reavaliação subjetiva de signos,
está condicionada por vários fatores, implícitos à cultura-tal-como-constituída”, entre os
quais, “o lugar do ator no interior de uma hierarquia social que dá peso estrutural à sua ação,
acarretando mais ou menos conseqüências para os outros atores”. De fato, podemos sugerir as
dificuldades a serem enfrentadas pelos jovens em suas iniciativas de diversificação nas
propriedades. Entre tais dificuldades, os jovens teriam que impor aos outros sujeitos históricos
novos consensos culturais, o que dependeria de sua capacidade de persuadi-los a reconhecer a
relevância e a utilidade da reavaliação funcional do signo no interior daquela estrutura da
conjuntura específica. Mais especificamente, os jovens teriam que convencer os demais de
que a diversificação da produção é possível, não depende exclusivamente das “promessas”
dos outros atores políticos na região, e requer o esforço e o envolvimento de todos os
interessados. Trata-se de promover os novos significados mais amplos associados ao
CEDEJOR, como uma oportunidade de desenvolvimento pessoal e coletivo, salientando as
possíveis novas relações dentro da ordem estrutural de significados, ou ainda combater
reações como “mas não vale a pena, porque, vê, tu passou três anos lá”. No que diz respeito a
este desafio, é possível sugerir que o processo de reavaliação subjetiva do signo abrangia
ainda as percepções de líderes comunitários importantes, também envolvidos com as
experiências dos jovens. Assim, a ação política destes líderes pode contribuir para ampliar as
conseqüências das ações dos jovens. “Uma posição privilegiada na cultura-tal-como-
constituída pode ampliar as conseqüências da ação de um indivíduo” (SAHLINS, 2001, p.
143). De fato, há evidências significativas que indicam a importante contribuição destes
líderes à transformação estrutural.

Em primeiro lugar, devemos recuperar a discussão sobre o cenário de forças políticas por
detrás do CEDEJOR. As questões relacionadas à tradicional rivalidade entre Passo da Areia e

349
Albardão são relevantes. Em especial, as definições para a construção do novo prédio da
ONG em Albardão foram momentos que tornaram explícitas as divergências entre os líderes
das duas comunidades mais diretamente envolvidas com o projeto, Albardão e Passo da Areia.
Enquanto o grupo de Albardão defendia com paixão a construção da nova sede em sua
comunidade, o grupo de Passo da Areia, com menos representação e acesso aos
patrocinadores, frustrava-se ao perceber injustiças no processo. Enquanto Albardão sempre
foi considerada uma comunidade mais rica, cujas famílias possuem um status sócio-
econômico mais elevado, Passo da Areia é tida como uma comunidade de famílias mais
pobres e simples. Entretanto, Passo da Areia percebe-se como uma comunidade cujos
habitantes lutaram nas décadas recentes para alcançar padrões de vida mais altos, apesar de
ainda não terem alcançado os padrões vividos em Albardão. Neste contexto, Passo da Areia é
vista por seus habitantes como uma comunidade mais propensa a esforços coletivos, embora o
desenvolvimento das associações ainda seja um processo em seus estágios iniciais. Seria
justo, então, que Passo da Areia recebesse os investimentos na nova sede. Na prática,
entretanto, os rápidos movimentos do grupo de Albardão garantiram que o novo prédio do
CEDEJOR fosse construído em sua comunidade, gerando o descontentamento entre os líderes
de Passo da Areia, que sentiram que a decisão havia sido injusta e incoerente com as
particularidades históricas e as demandas da região. A polarização de interesses já havia
ficado visível por ocasião da eleição da nova presidência do CEDEJOR, quando o grupo de
Albardão neutralizou a influência dos líderes de Passo da Areia. Com o passar do tempo, as
relações entre os dois grupos tornaram-se crescentemente tensas devido às percepções
derivadas do processo de reavaliação funcional do signo “CEDEJOR”, empreendido pela
coordenação do núcleo. Neste contexto, ao associar-se as atitudes e decisões do coordenador
Ériton às suas pretensões políticas, ele foi desqualificado por muitos enquanto líder de um
projeto social. No decorrer do processo, entretanto, Albardão havia saído vitoriosa ao atrair os
investimentos do ISC, gerando reações entre os líderes de Passo da Areia.

Recentemente, Noeli lidera uma iniciativa coletiva em Passo da Areia, o CEDECOR, ou


Centro de Desenvolvimento da Comunidade Rural. Segundo ele, o CEDECOR surgiu da
percepção de que era necessário dar suporte às atividades das outras associações na
comunidade de Passo da Areia – como os grupos de mulheres e as associações de agricultores
– por meio de uma instituição de caráter educacional. Entre os objetivos do CEDECOR estão
a promoção do desenvolvimento socioeconômico da região por meio da ação de base da
comunidade, o que inclui esforços de capacitação e promoção de melhorias na infra-estrutura

350
necessária à diversificação produtiva. O CEDECOR também assume funções ligadas aos
jovens de Passo da Areia no CEDEJOR. A nova associação foi pensada como um ponto de
apoio e de capacitação continuada às iniciativas empreendedoras destes jovens na
comunidade. Desta maneira, Noeli convidou um integrante da primeira turma do CEDEJOR,
morador de Passo da Areia, para compor a diretoria da associação e estimular a participação
dos mais jovens. Pode-se dizer que, ao contrário das outras associações importantes nas
comunidades, o CEDECOR nasceu como o resultado da ação dos moradores. A instituição
ocupa o prédio de uma antiga escolinha na comunidade de Passo da Areia, que há algum
tempo não funcionava. Por meio de reuniões, contatos e apresentações, seus fundadores
articularam apoios de diversas outras instituições, como a prefeitura, o Senai, o Instituto
Souza Cruz e os próprios moradores, que doaram dinheiro e materiais à reforma do prédio e à
instalação dos equipamentos. Em especial, os líderes do CEDECOR articularam a doação de
computadores à instituição junto ao Instituto Souza Cruz, e a alocação de um estagiário da
prefeitura à operação dos computadores e à instrução e orientação dos moradores ao seu uso.
As primeiras iniciativas do CEDECOR incluíram um curso de capacitação na criação de
frangos, oferecido aos moradores como alternativa de diversificação. Como Noeli relata, por
ocasião da reunião com os egressos:

NOELI: Eu sou Noeli, que vocês já conhecem, e eu tenho uma longa história de eu estar aqui,
é uma história que nasceu na Casa Jesus Maria José (antigo núcleo do CEDEJOR na cidade
de Rio Pardo, desativado por ocasião dos investimentos em Albardão). E dentro dessa
história, né, nasceu a idéia de formar alguma coisa na comunidade. Então, a gente... o
primeiro passo, nós pensamos, foi oferecer um terreno pro CEDEJOR. E, com uma das
articulações que nós fizemos em Albardão, nós ficamos na Casa Jesus Maria José. Mas o
Jovani, o Adair (antigos monitores da Casa Jesus Maria José) e mais a nossa equipe de cinco
conselheiros comunitários, achava que nós tinha que ter uma referência dentro da nossa
comunidade. Articulamos um centro, como é que vamos fazer, como é que não vamos, vamos
nos informar, ter um centro comunitário, e surgiu a oportunidade de usar a escolinha da
comunidade. E aí, com uma série de vereadores, tinha a Prefeitura, conseguimos a escolinha.
Encontramos a Dra. Letícia numa reunião, e pedimos os computadores. Só que hoje os
computadores não é mais história. Só que na época estava só no papel. Então hoje nós temos
um Centro Comunitário na escolinha aqui [CEDECOR – Centro de Desenvolvimento da
Comunidade Rural], já demos curso e palestras do Sebrae, curso do Senai, encontros todos
os meses, até os jovens do CEDEJOR, da turma nova, da geração, convidada pra participar,

351
articulando com eles, dando idéia pra eles, dando apoio pra eles, dando uma força pro
desenvolvimento deles. Então, pra vocês (a turma de egressos), que deixaram o CEDEJOR...
porque eu deixei “o meu CEDEJOR” há quarenta anos, e por isso eu tô aqui. Então, se vocês
saíram do CEDEJOR, e tão achando que ainda tão um pouco mais, não tão preparados
ainda, vocês aprenderam mais do que eu [...]. E meu deu esse espírito de articulação civil, de
desenvolvimento social, e hoje eu tô, tô até com dificuldade de se manter, porque ninguém
gostava de fazer isso. Eu saía três dias por semana, lá de Passo da Areia, a Letícia ajudando
com os computadores, então, essa é minha recompensa hoje, e esse é o crescimento do
CEDEJOR que nós temos com vocês, eu não sou fundador, mas já tenho um filhotinho pra
ver. Tá engatinhando. Tomara que vocês, eu não sou ninguém, nada, mas, se todos vocês, que
aprenderam o que aprenderam no CEDEJOR, não falando por orgulho, mas falando por uma
coisa... o CEDEJOR não pára aqui, vamos falar assim, mas se todos vocês chegarem aos
cinqüenta e sete anos com amizade, com as referências, nas associações, nos grupos, nas
comunidades, vocês vão agradecer o CEDEJOR que tiveram, que o “meu CEDEJOR” me
ajudou muito (Noeli se refere à sua educação fundamental).

É possível sugerir que o Cedecor tenha surgido como uma espécie de reação à perda do
CEDEJOR a Albardão. Neste contexto, a reavaliação funcional do signo empreendida pela
coordenação do núcleo CEDEJOR em Albardão gerou reações na comunidade de Passo da
Areia, insatisfeita com o destino dado aos investimentos. De fato, o CEDEJOR havia sido
apropriado pelos líderes em Albardão como um instrumento capaz de viabilizar “vôos
políticos” mais altos, o que minava a proposta educacional do programa. Na prática, o antigo
núcleo na cidade de Rio Pardo – desativado por ocasião dos investimentos no novo prédio –
não sofria grande parte dos problemas pedagógicos percebidos no núcleo em Albardão, que
permitiram o surgimento de apelidos como “cedebosta” e “cabaré”. Assim, se os líderes de
Albardão haviam conseguido segurar o CEDEJOR em sua comunidade, às custas da
desativação do núcleo da Casa Jesus Maria José, era necessário construir um ponto de apoio
ao desenvolvimento na comunidade. No fim das contas, se a percepção de injustiças na
destinação dos investimentos e os problemas pedagógicos em Albardão justificavam os
esforços em Passo da Areia, também se pode associar a reavaliação funcional do signo
empreendida pelos líderes do CEDEJOR em Albardão a novos interesses e interpretações na
outra comunidade. Passo da Areia não deveria “esperar” por outra “promessa”, ou outro
investimento externo, mas sim mobilizar seus moradores em torno de um projeto de

352
desenvolvimento coletivo. Conseqüentemente, pode-se sugerir a existência, entre alguns
habitantes de Passo da Areia, de um processo de reavaliação funcional do signo análogo
àquele empreendido pelos jovens egressos: a perda do CEDEJOR não era a perda de um
“presente” à comunidade, ou de um “evento salvador”, mas uma oportunidade de se promover
o desenvolvimento de base entre os moradores. Neste processo, entretanto, os líderes devem
lidar com a tradicional possibilidade de terem suas ações associadas a motivações egoístas e
políticas.

Processo de reavaliação funcional do signo similar, mas mais incipiente, acontece em


Albardão, sob a liderança do ex-monitor Paulo Miguel, também um líder comunitário. De
fato, as suas experiências como monitor da primeira turma do CEDEJOR, durante a maior
parte do programa, causaram um impacto significativo na maneira como enxerga o
desenvolvimento da comunidade. Miguel associa os problemas pedagógicos e administrativos
enfrentados pelas pessoas envolvidas com o CEDEJOR ao processo de amadurecimento ou
desenvolvimento necessário às instituições, que devem se profissionalizar para sobreviver no
mundo de hoje em dia. “Eles tavam procurando fazer da melhor maneira possível, e talvez
não tiveram competência, não tiveram conhecimento, não tiveram preparo pra isso, como eu
não tive. [...] Eu acho que ali, aqui, tá o despreparo [...]. E tudo tem um andar, né? De repente,
desde o início, quem sabe, a coisa não foi bem conduzida. É um processo de
desenvolvimento, que tem que ter um tempo de amadurecimento”. O que Miguel sugere,
neste momento, é a impossibilidade de se experimentar o CEDEJOR em um formato pronto
ou acabado, como se a implementação do projeto fosse, desde o início, óbvia e natural. Na
realidade, como Miguel sugere, a implementação do projeto CEDEJOR não é óbvia, mas
requer o desenvolvimento ou a “profissionalização” dos sujeitos envolvidos, sem a qual não
sobrevive:

MIGUEL: Eu acho que é fundamental, porque no momento... [...], nas últimas semanas, eu tô
percebendo que, se não tornar profissional mesmo esse processo, vai chegar o momento que
vai faltar parceiros. Infelizmente, ou felizmente, o mundo tá se tornando, assim, para aquelas
pessoas que são muito competentes na área em que atuam. E isso, eu como agricultor, como
coordenador... tem que ser pessoas profissionais. E, se o CEDEJOR não for profissional,
daqui a pouco não tem mais parceiros que vá bancar o CEDEJOR.

ANDRÉ: Você tá falando de parceiros externos, né?

353
MIGUEL: Isso. Os parceiros externos que podem bancar o CEDEJOR querem profissionais.
Eles não entregam pra projeto amador. Eu enxergo assim. E como o Instituto entrou... o
Instituto também é profissional, enfim. [...] Mas que, num primeiro momento, pro processo
iniciar, foi interessante que isso acontecesse, que tivessem pessoas que não fossem tão
profissionais, mas que tivessem uma ligação comunitária muito grande. Hoje, talvez, esses
não precisem mais. Entende? É um papel que aqui eles tinham que cumprir naquele
momento. E o profissional adequado naquele momento seria eu.

MIGUEL: Mas agora não é mais. Talvez se eu tivesse me profissionalizado, mas eu não...
nem poderia. Então, agora o processo é com outros que tem que acontecer. Então eu vejo o
CEDEJOR se manter com dificuldade se não for profissional, se não for super organizado, é
difícil se manter. Não vai ter Instituto Souza Cruz bancando a vida inteira.

MIGUEL: E qual é a saída, se tornar profissional. Aí temos que mostrar esse lado, né?
Senão... Senão não sai. Não sai parceiro. E aí o projeto se acabou, e daí o projeto vai se
acabar porque... não pode!

Ao sair do CEDEJOR e envolver-se com outros projetos, Paulo Miguel transfere suas
percepções às demandas que considera importantes à comunidade. Em especial, ao ser
convidado para assumir a presidência da APROALBA, a Associação Pró-desenvolvimento do
Albardão, Miguel não concorda com a maneira como a comunidade encara, tradicionalmente,
a associação, bem como outras iniciativas coletivas. Segundo ele, os habitantes da
comunidade esperam que um número muito limitado de pessoas assuma as responsabilidades
relevantes à comunidade, como, por exemplo, liderar a associação ou outros grupos em
iniciativas junto à outras instituições. De fato, trata-se de outra dimensão da “zona de
conforto”, como percebida nas comunidades: a existência de poucos líderes, cujo tempo e
recursos são limitados, faz com que muitas iniciativas coletivas não sejam levadas adiante por
dependerem demasiadamente dos “mão pequena”, ou aqueles que realmente se envolvem.
Assim, como sugere Miguel, a sua “aclamação” como o novo presidente é uma solução à
longa paralisação da associação, liderada por indivíduos sem as competências necessárias.
Neste contexto, entretanto, as pessoas o vêem como um “salvador”, um indivíduo cuja
responsabilização é capaz de dar respostas às demandas da comunidade. Esta
responsabilização, entretanto, tira das outras pessoas a oportunidade de desenvolvimento, ou
“profissionalização”:

354
MIGUEL: Agora, quando deu a reunião lá, quando foi escolhido o conselho comunitário (do
CEDEJOR), tudo, daí o conselho comunitário se reuniu, aquelas quinze pessoas, pra escolher
o presidente do conselho comunitário; eu, sem eleição, entendeu? Por quê? Foi por
aclamação, ué? Tem que ser obrigado a pessoa a aceitar.

ANDRÉ: Entendi.

MIGUEL: Tudo bem, vamos lá. Agora vai ter uma eleição pra presidente da Aproalba, que é
a Associação Pró-desenvolvimento de Albardão. E é eu que eu acho que vai ser por
aclamação. Mas daí não é bonito! Porque aí tem duas coisas, ou três coisas, ou várias coisas
aí. Uma delas, eu não vou ter competência pra fazer tudo. Eu não tenho tempo hábil. [...]
Esse tempo eu não tenho pra tudo isso. Outra coisa, fica criando a área de conforto.

ANDRÉ: Sim, sim.

MIGUEL: E eu fico deixando de dar oportunidade para aquelas outras pessoas que têm que
crescer dentro do processo. E tem outro detalhe aí, se eu disser não, desestimula outros que
tão gostando do que eu faço.

[...]

MIGUEL: E existe outra coisa curiosa que aconteceu aqui na comunidade, que é uma coisa
bem peculiar. Quando foi fundada a Associação, eu fui o primeiro tesoureiro, junto com o
senhor lá de cima, o seu Manfredo, que era presidente, e foi desencadeado um processo
muito legal, a associação explodiu, assim, no começo foi bem, daí depois teve um andamento,
assim, de alguns anos muito bons. Podia comemorar. E então teve esse processo todo, e eu
tive envolvido nessas diretorias sempre, nunca como presidente, sempre como secretário, ou
como conselheiro fiscal, ou como tesoureiro. Tesoureiro era... puxavam o pé do tesoureiro. E
eu não aprendi a roubar.

MIGUEL: E daí, como é que eu vou dizer, daí houve um momento que eu parei. Bom, eu
agora não vou, agora que venham outras pessoas. Acabou a associação.

André: Sério?

MIGUEL: Acabou que deu dó. E agora querem botar eu de novo lá. Agora tão pedindo por
favor, pra eu voltar pra fazer esse... Já teve dois senhores que mandaram dizer, pelo Ismael,
que se eu assumir a diretoria eles vão voltar a se associar e a freqüentar. E agora? Vou de
novo?

355
Como resposta a este impasse, Paulo Miguel promoveu a reavaliação subjetiva do signo junto
à comunidade, propondo a resignificação de signos como participação, liderança,
mobilização. De acordo com a ordem estrutural de significados vigente, a sua “aclamação”
como presidente pode ser vista como uma dimensão da dependência e do comportamento de
“espera” dos habitantes das comunidades, que têm a expectativa que os seus problemas sejam
resolvidos sem a sua inserção ativa no processo de solução, que implicaria a aprendizagem, o
desenvolvimento ou a “profissionalização”. Entretanto, coerente com seus interesses e
percepções, o líder não deveria ser visto como um salvador, mas sim como um articulador e
facilitador do desenvolvimento coletivo. Assim, a sua aceitação do convite público para
assumir a presidência da Aproalba não deveria ser vista como um evento salvador da
associação; diferentemente, a comunidade deveria estar ciente de que as pessoas seriam
chamadas a participar dos encontros e das discussões coletivas, e a assumir as
responsabilidades derivadas destes debates. Desta forma, Paulo Miguel delegaria e
coordenaria as ações da associação, mas não as assumiria integralmente. Segundo ele, esta
seria uma solução intermediária, capaz de integrar as pessoas ao processo de aprendizagem
que caracteriza o desenvolvimento das iniciativas sociais. Esta seria a única maneira de
promover a maior “profissionalização” da associação na comunidade e torná-la independente
da disposição de um ou dois líderes. Para operacionalizar esta solução, Paulo Miguel buscou
compor sua diretoria por meio da seleção daqueles indivíduos com maior potencial de
desenvolvimento na comunidade, o que implicava a inserção de mais mulheres numa diretoria
que, tradicionalmente, era considerada um reduto de homens. Desta maneira, como o relato a
seguir sugere, podemos relacionar as experiências negativas do Miguel com o CEDEJOR à
proposta de revigoramento da Aproalba, no interior do processo de reavaliação subjetiva dos
signos:

MIGUEL: Eu quero fazer andar. Mas ao mesmo tempo eu não queria me tornar o dono da
situação. O imperador.

ANDRÉ: ...talvez seja o caso de você assumir, colocando condições. Se as pessoas estão te
aclamando, você tá numa posição de fazer algumas exigências.

NEIVA: De impor.

ANDRÉ: Exatamente, impor algumas exigências.

356
MIGUEL: Até hoje no caminho eu vim impondo alguns detalhes pro Clóvis, que têm que
mudar. Eu acho que, ao mesmo tempo que eu tava questionando, eu também acho que a
associação tem que ser um mais profissional na coisa, tem que ser mais organizada. E daí eu
fico contrapondo, talvez o que você tava falando do CEDEJOR que é... É, esses dilemas.
Então muitas coisas que eu tava pondo, algumas horas têm que mudar, sistemática de
reuniões, não pode fazer dessa maneira, mas é a questão operacional.

ANDRÉ: Sei, sei. Tem que sistematizar.

MIGUEL: E aí eu fico curioso por causa disso... Que é o dilema do CEDEJOR, é o mesmo
dilema do CEDEJOR. Claro que numa escala bem diferente. Mas é... e daí lá, onde eu acho
que eu não posso, aqui eu tenho certeza que eu posso. Então, quer dizer... é o meu tempo em
cada lugar.

[...]

MIGUEL: Do tipo, eu assumi, só que eu quero a participação de todos nas reuniões, eu


quero que as pessoas assumam as responsabilidades que vão surgir das reuniões. E daí... Eu
vou delegar funções. No mínimo eu posso dizer “olha, cara, tu tá errado, vamos lá”.

MIGUEL: Eu também tenho outro medo, que eu acho que... como tá a situação da
agricultura, a situação do nosso município, a situação, enfim, aqui, da nossa área, a
associação tem que agir de outra maneira, e não é de outra maneira na questão econômica, é
de outra maneira na questão de ver as coisas, de agir, de pensar, de... e isso é muito difícil,
de querer mudar a maneira do agricultor lá pensar, [...]. Que nós, aqui no Albardão, uma
necessidade muito grande do... porque aqui todo mundo planta fumo. É todo mundo
dependendo da firma. A firma larga tudo mastigado na mão, o agricultor não precisa pensar.

MIGUEL: Eu, sentado aqui, vem o rapazinho, vira pra mim, ele faz toda a proposta do banco
aqui, eu só assino. Mas isso aí. E aí o que que tu vai buscar? Não precisa pensar. E aqui o
agricultor não precisa pensar. Porque ele recebe o adubo, os insumos todos na sua casa,
senta aí pra fazer o pedido, ele vende o fumo sentado em casa, sem precisar ir lá na firma, se
não quiser, se quiser ir assistir, pode ir. O dinheiro é depositado na conta dele, é descontado
já o dinheiro que ele deve pra firma, então ele só vai lá e busca o que sobrou. E já, bom, já
vai na cidade e gasta lá dentro. Entende?

[...]

357
MIGUEL: E eu acho que o agricultor tem que pensar diferente, tem que pensar por ele
mesmo, ele tem que começar a tomar atitude diferente. Não diferente, mas atitudes que eles
criam. Eu tenho que começar de novo, eu tenho que plantar outra coisa lá, mesmo que não dê
muito, mas que eu tenha uma alternativa, eu tenha uma área de escape. Eu tenho que ir lá
fazer o orçamento, eu tenho que ir lá no banco fazer minha proposta. E é dentro dessa
situação que trabalha o CEDEJOR também. Se esse jovem é produto deste meio, e esse jovem
é muito difícil se tornar um empreendedor porque ele já é um dependente...

NEIVA: Tá acomodado também, né?

MIGUEL: E as fumageiras são as principais culpadas. Claro que elas tão desenvolvendo um
negócio pra elas, querem ganhar dinheiro e dessa maneira elas ganham, pô. Eu acho que...
mas eu quero que mude isso aí. E aí, eu não sou meio atrevido? (Risos)

358
CONCLUSÕES – CULTURA ORGANIZACIONAL E A CONTRIBUIÇÃO
SAHLINIANA

Com base na análise do caso CEDEJOR, é possível destacar as idéias principais de Marshall
Sahlins (1990; 2001) e sua relevância aos estudos sobre cultura organizacional. Os
argumentos empíricos que compõem esta tese foram desenvolvidos na seção anterior; neste
momento, a recuperação das questões principais faz-se útil à clarificação das idéias de
Marshall Sahlins. Na estrutura da conjuntura analisada, o signo CEDEJOR, ou aprendizagem
foi reavaliado seguida vezes pelos indivíduos envolvidos, de maneira coerente com seus
interesses e com suas categorias culturais consolidadas. Na prática, como sugere Sahlins
(2001), os signos possuem múltiplos significados ou valores conceituais possíveis, e estes
valores são selecionados e dispostos pelos indivíduos em esquemas ordenados de meios e
fins, coerentes com as categorias culturais consolidadas.

De fato, o CEDEJOR, um projeto educacional patrocinado pelo Instituto Souza Cruz, foi
apropriado pela coordenação e pelas famílias da comunidade de maneira coerente com suas
categorias culturais, inseridas em uma ordem de significados caracterizada pela dependência e
pela ‘espera’ dos moradores, que não se inserem em processos de aprendizagem e de
desenvolvimento nos quais as soluções para os problemas comunitários seriam formuladas e
implementadas. Ao considerar a racionalização da administração e a maximização dos
resultados pedagógicos objetivos secundários, o coordenador do CEDEJOR selecionava
valores conceituais possíveis do signo que lhe permitiam a apropriação do programa dentro de
um esquema de meios e fins, promovendo uma espécie de mal-entendido criativo. Ao fazer
do CEDEJOR um moderno centro comunitário aberto às demandas dos moradores, a
coordenação punha em destaque junto à comunidade uma série de significados relacionados
ao seu progresso (“o progresso tinha finalmente chegado”), em detrimento dos significados
originalmente atribuídos ao CEDEJOR pelos seus proponentes (“CEDEJOR” como processo
de aprendizagem e desenvolvimento), viabilizando então a inserção de seu líder no círculo
político da região. Ao mesmo tempo, a comunidade apropriava-se do programa educacional
como uma oportunidade de ‘reviravolta’ na vida dos jovens, que encaram, tradicionalmente, a
decisão de permanecer no meio rural, plantando tabaco, ou migrar para a cidade em busca de
empregos urbanos, considerados mais interessantes, “leves” e regulares. Neste processo
referencial, o CEDEJOR poderia ser visto como um instrumento capaz de melhorar a
empregabilidade dos jovens na cidade (“tirar uns cursos”), ou ainda, viabilizar o

359
financiamento dos projetos de investimento de capital, “dinheiro a fundo perdido” a ser
investido na diversificação produtiva das propriedades.

Entretanto, se “o olho que vê é o órgão da tradição” (SAHLINS, 1990, p. 182), as


circunstâncias da ação humana não estão condenadas a conformar-se às categorias com base
nas quais as pessoas percebem estas circunstâncias (SAHLINS, 2001, p. 139). De fato,
Sahlins (1990, p. 186) sugere ser a práxis um risco para os significados destas categorias: “a
ação referencial, que coloca os conceitos a priori em correspondência com objetos externos,
implicará alguns efeitos imprevistos que não podem ser ignorados”. O processo de
reavaliação funcional do signo empreendida pela coordenação do CEDEJOR gerou efeitos
imprevistos que levaram a outro processo de reavaliação funcional do signo, desta vez,
empreendida pelos jovens egressos, engajados em seus projetos de diversificação produtiva. A
construção do novo prédio do CEDEJOR implicou o abandono parcial do projeto pedagógico
– este mesmo, já bem prejudicado pela ‘vitória’ do coordenador Ériton sobre o monitor
Miguel) –, denunciando os problemas decorrentes da apropriação do projeto segundo uma
política de “portas abertas à comunidade”. No fim do programa, o dinheiro a ser investido nas
propriedades dos jovens não estava disponível, e os projetos não haviam sido elaborados. A
falta de um processo de capacitação à elaboração dos projetos, que frustrou muitos jovens
desprovidos das competências mínimas necessárias à empreitada, incitou-os à revolta contra
os parâmetros de implementação do programa. A nova equipe do CEDEJOR, contratada após
a demissão do antigo coordenador, assumiu a responsabilidade pela articulação e pelo reforço
dos novos significados atribuídos à oportunidade pelos jovens. Neste momento, mais do que
uma fonte de boas oportunidades, o programa CEDEJOR representava uma oportunidade de
aprendizagem e desenvolvimento pessoal e coletivo, por meio da qual laços afetivos e de
confiança poderiam ser construídos. Ao empreenderem a extensão do significado do
CEDEJOR, surgia a necessidade de esforço e dedicação pessoal e ressaltava-se a importância
da liderança, do envolvimento, da negociação e da busca do consenso à consecução dos
objetivos coletivos. Na prática referencial, as contradições expostas durante o processo de
reavaliação funcional do signo empreendida pela coordenação, e como percebidas pelos
jovens, mobilizaram-nos de maneira que também reavaliassem o signo “CEDEJOR”,
expandindo os seus significados de maneira coerente com seus objetivos.

De fato, a mudança estrutural depende do poder que os indivíduos têm para impor suas
interpretações, construindo novos consensos culturais. Assim, pode-se sugerir que a extensão
conceitual empreendida pelos jovens foi acompanhada de processos similares liderados por

360
líderes comunitários, cuja ação também é relevante ao causar impactos significativos ao
cotidiano das pessoas. Em Passo da Areia, a perda do CEDEJOR a Albardão salientou as
injustiças do processo de escolha do destino dos investimentos, convidando os líderes
comunitários à mobilização de base em prol de uma instituição educacional que desse apoio
aos jovens participantes do programa CEDEJOR, além de articular os esforços dos outros
grupos da região. Neste momento, a reavaliação funcional do signo acontece à medida que a
perda do CEDEJOR não era a perda de um “presente” à comunidade, ou o desperdício de um
fato salvador, mas um evento capaz de mobilizar os indivíduos ao desenvolvimento de base
entre os moradores. Na história da comunidade, tratava-se da primeira iniciativa ampla de
associativismo cuja origem era os próprios moradores. Ao mesmo tempo, as percepções do
líder Miguel associadas ao necessário e natural processo de desenvolvimento do CEDEJOR
levaram à proposição de novos padrões de atuação coletiva no âmbito da Aproalba. Segundo
Miguel, o desenvolvimento coletivo deveria ser estimulado como pré-condição à maior
independência dos colonos em relação ao sistema integrado de produção. Na história da
comunidade, a associação de produtores sempre foi dependente da atuação de poucos líderes
articulados. Finalmente, ao expandirem o valor conceitual do signo aprendizagem, as novas
interpretações promovidas pelos atores históricos implicavam ainda novas relações na ordem
estrutural de significados; mais especificamente, no que diz respeito às estratégias de inserção
profissional dos jovens. Na prática, conceitos mais amplos de aprendizagem e
desenvolvimento passariam a ser importantes à inserção profissional na zona rural segundo
uma estratégia de diversificação, alternativa ao tabaco e típica daqueles que não se
identificam com a vida na cidade.

Como propõe Sahlins, é possível sugerir que, o que começou como reprodução cultural (a
apropriação local do CEDEJOR pelos sujeitos históricos), terminou como transformação
estrutural (os novos sentidos dados ao signo ‘aprendizagem’ e suas novas relações com outros
signos), dependente ainda da capacidade dos atores de impor suas interpretações. Com base
nesta análise e nas idéias propostas pelo autor, algumas questões importantes podem ser
postas em discussão. Em primeiro lugar, seria legítimo perguntar se é possível que um sistema
cultural se reproduza sem alterações? Em segundo lugar, é possível que a ordem cultural se
transforme sem reproduzir-se? De fato, Sahlins sugere serem as duas questões os dois lados
da mesma moeda:

Mesmo os processos aparentemente extremos de cultura-na-história que estivemos


discutindo, reprodução e transformação, será que eles são verdadeiramente – isto é,

361
fenomenicamente – distintos? Por um lado, contextos de ação prática são apropriados
por toda uma sabedoria convencional, por conceitos já dados de atores, coisas e suas
relações [...]. E isso certamente foi reprodução. Por outro lado, a especificidade das
circunstâncias práticas, as relações diferenciais das pessoas com elas, mas também o
conjunto de arranjos particulares resultantes (estrutura da conjuntura) sedimenta
novos valores funcionais nas antigas categorias. Esses novos valores provavelmente
são apropriados no interior da estrutura cultural (SAHLINS, 2001, p. 140).

Assim, Sahlins defende ser a incorporação do evento, numa estrutura da conjuntura, um


processo inovador e conversador simultaneamente, de maneira que se possa construir um
argumento em favor da inseparabilidade de continuidade e mudança.

De fato, ao sugerir a inseparabilidade entre continuidade e mudança, Sahlins oferece um


argumento capaz de atenuar as dicotomias que caracterizam o pensamento social; em especial,
a clivagem entre as perspectivas sincrônica e diacrônica por detrás da matriz disciplinar da
antropologia (OLIVEIRA, 1988). No contexto disciplinar da antropologia, a oposição entre
diacronia e sincronia – que assume a forma dos pares opostos sistema e evento, história e
estrutura, estabilidade e mudança, entre outros – sempre entrincheirou os teóricos. No curso
do desenvolvimento histórico da disciplina, os paradigmas clássicos podem ser vistos como
uma reação às propostas evolucionistas de compreensão da evolução cultural. Além de
rejeitarem diversas premissas assumidas pelos evolucionistas ao proporem projetos
intelectuais radicalmente diferentes, o desprezo ao estudo histórico das sociedades também
era uma estratégia capaz de garantir a objetividade das conclusões. Como resultado,
construiu-se uma tradição de estudos que destacava a continuidade em detrimento da
mudança, ou a estrutura em detrimento da história. Esta tradição se perpetuaria por ocasião da
emergência do paradigma interpretativo, na segunda metade do século XX. As idéias de
Sahlins, entretanto, sugerem não haver razão para a polarização excludente entre estrutura e
história, considerando-se a complexidade e especificidade dos fenômenos culturais.

A antropologia histórico-estrutural propõe a fusão entre as perspectivas sincrônica e


diacrônica à cultura ao assumir a possibilidade de se “dar história à estrutura” (SCHWARCZ,
2001, p. 128). De fato, as conseqüências são abrangentes ao permitirem redefinições
importantes nos conceitos clássicos de cultura. Em especial no que diz respeito às propostas
sincrônicas dos funcionalistas britânicos e estruturalistas franceses, pode-se dizer que a
antropologia histórico-estrutural põe ênfase em uma série de questões desprestigiadas pelos
paradigmas clássicos ao discutir conceitos oriundos destes paradigmas com o objetivo de se

362
transpor alguns de seus limites teóricos. Se a tradição antropológica clássica já punha bastante
ênfase na idéia de que a história (ou os eventos) é organizada pelos indivíduos com base em
estruturas de significação consolidadas (“o olho que vê é o órgão da tradição”), as premissas
assumidas pelos autores excluíam as ambigüidades e descontinuidades culturais, impedindo a
compreensão da mudança cultural. Neste sentido, as proposições inovadoras de Sahlins
permitem a análise das continuidades e descontinuidades nas ordens culturais, da maneira
como caracterizam as dinâmicas culturais cotidianas. Trata-se, então, de avançarmos nossas
discussões antropológicas para além da sincronia, redefinindo a abrangência conceitual de
noções tradicionais de cultura: “o grande desafio para uma antropologia histórica é não apenas
saber como os eventos são ordenados pela cultura, mas como, nesse processo, a cultura é
reordenada. Como a reprodução de uma estrutura torna-se a sua transformação?” (SAHLINS,
2001, p. 139). Em relação aos referenciais teóricos ao estudo da mudança cultural derivados
dos paradigmas antropológicos clássicos (aculturação, fricção interétnica, etc), a antropologia
histórico-estrutural não se restringiria ao estudo das relações de contato intercultural:

Argumento ainda que efeitos como transformação e reprodução são distinguíveis de


maneira privilegiada em situações de contato cultural, apesar de os processos
envolvidos não serem de forma alguma exclusivos dessas situações. Porque aqui, no
embate entre entendimentos e interesses culturais, tanto a mudança quanto a
resistência à mudança são elas mesmas assuntos históricos. As pessoas estão se
criticando umas às outras. Além disso, as suas diferentes interpretações sobre os
mesmos eventos também se criticam umas às outras e, assim, permitem-nos chegar a
uma compreensão mais adequada da relatividade cultural do evento e das respostas a
ele. Ainda assim, todos estes processos ocorrem de uma mesma maneira geral no
interior de qualquer sociedade, independentemente da existência de diferenças
culturais radicais. A condição fundamental para tanto é que atores dotados de
conceitos e projetos parcialmente distintos relacionem suas ações entre si – e com um
mundo que pode provar ser refratário ao entendimento de todos os atores envolvidos
(SAHLINS, 2001, p. 140).

No que diz respeito à incorporação do referencial antropológico pelos teóricos


organizacionais, é possível sugerir as potenciais contribuições da antropologia histórico-
estrutural aos estudos sobre a cultura organizacional. Ao retomarmos o caminho histórico pelo
qual os paradigmas antropológicos foram assimilados às discussões sobre organizações,
percebe-se a polarização entre os referenciais funcionalista e interpretativo, que não oferecem

363
frameworks privilegiados para a análise da mudança cultural, como discutido no capítulo 2
desta tese. Segundo o levantamento bibliográfico de Martin (2002), a literatura sobre cultura
organizacional caracteriza-se pela predominância das abordagens integrativas e gerencialistas,
baseadas nas premissas do paradigma sócio-antropológico funcionalista, frente a abordagens
interpretativas, descritivas ou críticas. Neste cenário, idéias e premissas sincrônicas
funcionalistas – como a noção de função e de equilíbrio social – foram incorporadas às
discussões gerencialistas, cuja ênfase recai sobre o controle normativo, ou a tentativa de se
“formatar” sentimentos, valores e crenças nas organizações. As abordagens gerencialistas,
genericamente denominadas symbolic management, propõem técnicas capazes de gerar
comprometimento e integração social, fazendo o tema cultura organizacional dominante nos
meios acadêmico e executivo em pouco tempo.

As abordagens alinhadas ao symbolic management assumem freqüentemente a idéia da


cultura organizacional como vantagem competitiva. Pode-se defini-la com base em conceitos
que destacam o que é claro e compartilhado por todos ou quase todos os membros de uma
organização, excluindo a ambigüidade. Segundo Martin (2002), estes conceitos são típicos
dos estudos de integração sobre a cultura organizacional. A cultura organizacional seria uma
variável que caracteriza a organização, permanente, no sentido de ser difícil de se mudar, e
compartilhada, no sentido de ser aceita e não haver ambigüidades. Entre as questões centrais
abordadas pelos autores alinhados ao symbolic management, destacam-se as estratégias de
mudança cultural nas organizações. Neste sentido, os fenômenos culturais deviam ser vistos
como uma dimensão manipulável da realidade, um objeto de decisões racionais e conscientes,
cujo destino poderia ser traçado por análises de custo-benefício. A idéia central seria
manipular práticas sociais e seus significados intrínsecos nas organizações, com o objetivo de
se promover culturas consideradas mais adequadas à consecução dos fins da administração.
Por exemplo, segundo Trice e Beyer (2001), por ser a cultura uma variável complexa, cujos
conteúdos são persistentes, a mudança cultural freqüentemente demanda alterações em
diversos elementos – como ritos, mitos e histórias – e em seus conteúdos para que, juntos, elas
possam refletir novos padrões de normas, significados, valores e expectativas de
comportamento.

Apesar do predomínio das idéias do symbolic management na literatura, autores alinhados ao


paradigma sócio-antropológico interpretativo esforçam-se em suas críticas a estas propostas
(BARLEY, MEYER E GASH, 1988). São diversas as tradições de pesquisa mais críticas em
relação ao symbolic management, como mencionadas no capítulo 2. Em comum, estas

364
tradições assimilam conceitos sócio-antropológicos de cultura que abrangem a ambigüidade,
ou as interpretações divergentes de manifestações culturais. Segundo autores alinhados a estas
tradições, as propostas do symbolic management, ou ainda os estudos de cultura
organizacional feitos em uma perspectiva de integração, ignoram questões importantes que
podem distorcer a interpretação da realidade cultural. Segundo estes autores, a cultura
organizacional não pode ser simplesmente considerada um sistema fechado de premissas,
valores e comportamentos esperados, que serviria como um script para a ação no contexto em
questão. A inclusão da ambigüidade põe em destaque o fato de não necessariamente
compartilhamos os significados com base nos quais outras pessoas – ou grupos – dão sentido
às suas ações. Assim, as propostas do symbolic management incorporam as visões da alta
direção sobre a cultura organizacional, ou a cultura ‘mais adequada’ –, e ignoram a real
complexidade cultural que caracteriza a organização.

Apesar dos avanços teóricos, o paradigma antropológico interpretativo não fornece aos
teóricos organizacionais um referencial à análise da mudança cultural. Neste sentido, as
críticas às propostas de symbolic management podem ser enriquecidas por meio da
incorporação das proposições de Sahlins. Frente às premissas e idéias do symbolic
management – segundo as quais nos centraríamos nas interpretações consistentes das
manifestações culturais dentro da organização –, os autores mais críticos denunciam a
exclusão da ambigüidade e a simplificação da complexidade cultural. Martin (1992) diz, por
exemplo, que “estudos de integração são criticados por legitimar práticas organizacionais e
intelectuais que ignoram, não valorizam ou excluem idéias, opiniões e interesses daqueles que
se afastam individualmente ou coletivamente de uma visão dominante” (p.68). Mais do que
isso, as idéias de Sahlins nos permitem perceber a inadequação das premissas sincrônicas
adotadas por teóricos organizacionais alinhados à abordagem de integração, segundo as quais
estudar a cultura implicaria identificar o permanente e o consensual. Na prática, apesar da
multiplicidade de conceitos de cultura usados por pesquisadores que adotam a abordagem de
integração, todos excluem a ambigüidade de suas definições, centrando-se no consensual, ou
no permanente, ou na dimensão sincrônica da cultura. Por exemplo, Schein (1991, p.248) diz:
“se não há consenso, ou há conflito, ou as coisas são ambíguas, portanto, por definição, este
grupo não tem uma cultura naquelas áreas (…) compartilhamento e consenso são centrais para
a definição, não são escolhas empíricas”. Com base em Sahlins pode-se, de fato,
problematizar o que Schein considera central à definição de cultura.

365
A antropologia histórico-estrutural poderia fornecer aos Estudos Organizacionais um
referencial às investigações sobre os processos de mudança cultural, contribuindo
sobremaneira à literatura sobre cultura organizacional. Ao defender a existência da estrutura
histórica, em que as categorias culturais e suas relações que compõem as visões de mundo são
reordenadas historicamente, a mudança é destacada, não sendo possível a separação entre
sincronia e diacronia no que diz respeito à definição de cultura. Os eventos e fatos só fariam
sentido quando contextualizados, interpretados em referência a uma estrutura e discutidos
com a História. De fato, o caso do CEDEJOR é útil à compreensão destas propostas. A busca
do consensual e do permanente na cultura organizacional do CEDEJOR seria um esforço
simplificador da realidade sócio-cultural, cujos resultados ignorariam o processo dialético de
mudança que caracteriza este sistema. O processo histórico de mudança cultural nas
comunidades rurais de Rio Pardo caracteriza-se por uma dialética estrutural impulsionada
pelas desconformidades entre os valores tradicionais e os valores intencionais atribuídos aos
signos no cotidiano dos indivíduos, engajados em seus projetos pessoais e coletivos. De fato,
os diversos processos de reavaliação funcional dos signos observados na estrutura da
conjuntura analisada implicam o questionamento de significados que compõem a ordem
estrutural tradicional, questionamentos estes que podem ser incorporados à ordem cultural
dependendo do poder que os indivíduos envolvidos têm para impor novos consensos à
coletividade. Neste sentido, a cultura pode ser definida como uma ordem estrutural de
significados cujos conteúdos alteram-se diante da história. Trata-se então de reconhecermos
que a cultura é sistema e evento, ambigüidade e consenso, e estrutura e história,
simultaneamente.

Especificamente no que diz respeito às propostas do symbolic management, Sahlins sugere


que a absorção de um modelo cultural, ou de manipulações de manifestações culturais,
passaria por uma reavaliação da história pela estrutura e da estrutura pela história. Assim,
releituras locais passam por estruturas anteriores, de maneira que eventos, fatos e objetos
possam ser apreendidos e interpretados de diversas maneiras entre as subculturas
organizacionais. A mudança cultural seria então um processo dialético e contínuo que se
desdobra num movimento recíproco entre “a prática da estrutura e a estrutura da prática”
(SAHLINS, 2001, p. 144). Contextos e eventos pragmáticos são interpretados à luz de
categorias anteriores (“prática da estrutura”), o que tem o potencial de alterar o sistema
cultural (“estrutura da prática”) de maneira imprevisível. Desta forma, a estrutura (ou a
cultura) estaria sempre em movimento, possuindo uma diacronia própria. Na prática, as idéias

366
de Sahlins denunciam o controle limitado que os administradores têm sobre as manifestações
culturais e os processos induzidos de mudança cultural, que resultam em arranjos culturais
imprevisíveis. Atualmente, considera-se a abordagem de Sahlins central para
compreendermos a mudança cultural. Em um mundo marcado pela globalização e pelo
avanço do capitalismo, não nos faltam previsões de homogeneização cultural, como se todos
nós estivéssemos condenados a viver em um contexto comum, uma mega-cultura
racionalizada e globalizada. Ao assumir a problemática da recepção da cultura, Sahlins mostra
que, na verdade, este fenômeno é mais complexo do que se imagina. Schwarcz (2001, p. 130)
coloca bem esta questão:

Em meio ao contexto contemporâneo, quando se afirma a imposição de um sistema


mundial e teme-se a tão falada globalização, o modelo de Sahlins tem o mérito de
mostrar que a incorporação do capitalismo em países periféricos se dá, também, de
acordo e a partir das distintas lógicas nativas, que geram resultados culturais
diversos e, muitas vezes, inesperados. É o ‘retorno da cultura’ que, vista a partir da
ótica da [sua] recepção, possibilita imaginar que não estaríamos todos condenados,
igualmente, à globalização.

Ao recuperarmos as críticas e propostas dos teóricos organizacionais alinhados a abordagens


interpretativas, críticas ou descritivas, a incorporação das idéias de Sahlins permite que se
ultrapasse as abordagens sincrônicas de integração à cultura organizacional. Por exemplo,
Wright (1994) e Martin (2002) sugerem ser a cultura um conceito pluralista e dinâmico, que
pode ser definido como as teias de significados que são retrabalhadas constantemente no
contexto das interações diárias de grupos e indivíduos, inseridos em estruturas sociais
marcadas pela desigualdade no acesso ao poder e pelos conflitos. Segundo esta visão, a
ambigüidade permite que se reescreva constante e dialeticamente os textos com os quais
indivíduos e grupos dão significados a suas interações diárias. Ao sugerir a assimilação da
ambigüidade ao estudo da cultura, a adoção do referencial antropológico histórico-estrutural
permite a análise dos caminhos imprevisíveis pelos quais as ambigüidades e divergências
podem se impor como novos consensos sociais. Finalmente, é possível sugerirmos à
relevância das propostas de Marshall Sahlins à construção de uma perspectiva cultural à
aprendizagem organizacional, como discutida por Cook e Yanow (2001).

De fato, as idéias propostas pela antropologia histórico-estrutural nos permitem perceber com
mais clareza a diferença ontológica entre os fenômenos de aprendizagem individual e
coletiva. A aprendizagem organizacional poderia ser pensada em termos de mudança cultural,

367
definida como a alteração dos conteúdos que compõem a ordem estrutural de significados
diante da História. Entre as vantagens desta perspectiva, entenderíamos a organização como
uma entidade cultural, o que seria um pulo conceitual muito menor do que considerá-la uma
entidade cognitiva. Assim, poder-se-ia desenvolver a idéia segundo a qual a natureza da
aprendizagem organizacional é cultural, e não cognitiva. Em segundo lugar, numa perspectiva
cultural a aprendizagem organizacional seria pensada em termos de transformações e
reproduções dos significados que compõem a ordem cultural, de maneira que a aprendizagem
seria pensada como um fenômeno coletivo, e não individual. Em termos teóricos, ao invés de
se basear em pretensas similaridades entre os conceitos relativos à aprendizagem individual e
coletiva, uma perspectiva cultural permitiria o desenvolvimento do nosso entendimento do
fenômeno de aprendizagem coletiva por meio da análise do comportamento cultural real dos
grupos. Finalmente, a perspectiva cultural nos permite entender a aprendizagem
organizacional como um fenômeno dialético que promove a inovação bem como a
conservação.

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Arquivos do CEDEJOR

Arquivos da Gazeta do Sul. Disponível em www.gazetadosul.com.br

Arquivos da Associação de Fumicultores do Brasil (AFUBRA). Disponível em


www.afubra.org.br

Arquivos do Instituto Souza Cruz – Rio de Janeiro/RS

384
ANEXO METODOLÓGICO

O primeiro capítulo desta tese oferece uma definição muito simples da antropologia. Neste
momento, a apresentação da metodologia de pesquisa abre espaço para o aprofundamento
desta discussão. De fato, apesar do conceito de cultura também ser intensamente discutido
pela Sociologia, entre outras ciências sociais, os esforços de diferentes correntes
antropológicas para criar e sustentar definições específicas de cultura permitem considerar o
conceito central ao definirmos a antropologia. Além disso, em um esforço para definir a
antropologia em termos mais precisos, o antropólogo francês Louis Dumont sugere o conceito
de idéia-valor, segundo o qual a prática antropológica é baseada em algumas idéias que
carregam significados fortes e valorosos; ou ainda, a antropologia é caracterizada por
conceitos e referenciais metodológicos que são intrinsecamente relacionados à maneira com
que os antropólogos constroem o seu conhecimento (DUMONT, 1983 apud OLIVEIRA,
1996). Neste sentido, além do conceito de cultura, sobre o qual se construiu esta disciplina,
devem ser analisados o método clássico da antropologia, a etnografia, e a postura relativista,
intrínseca ao método etnográfico e ao olhar do antropólogo. Estas idéias podem demarcar com
mais precisão o campo de trabalho dos antropólogos. Como sugere Geertz (1989, p. 15):

Se você quer compreender o que é uma ciência, você deve olhar, em primeiro lugar,
não para as suas teorias ou às suas descobertas, e certamente não para o que os seus
apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem. Em
antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que os praticantes
fazem é a etnografia. E é justamente ao compreender o que é a etnografia, ou mais
exatamente, o que é a prática da etnografia, é que se pode começar a entender o que
representa a análise antropológica como forma de conhecimento.

É possível dizer que o conceito de cultura, o método etnográfico e a postura relativista


caracterizam a prática antropológica (MASCARENHAS, 2002; VERGARA, 2005). A
etnografia é um método de pesquisa baseado na idéia de se estudar as culturas por meio da
inserção do pesquisador no grupo humano que está sendo estudado. Com o aumento da
popularidade desta técnica, introduzida pela Escola Histórico-cultural e pela Escola
Funcionalista Britânica, a antropologia se tornou uma disciplina com métodos específicos,
que se distanciava efetivamente do padrão científico baseado nas experiências fechadas e
controladas. A etnografia consiste na observação e na familiarização do antropólogo com a
cultura sendo estudada, através da interação social com o grupo durante um longo período de
385
tempo, e da coleta e sistematização dos dados levantados. Com o advento da antropologia
moderna, o método da “antropologia de gabinete” – como foram apelidados os estudos
antropológicos da escola evolucionista – deveria ser substituído pela observação direta e
participativa, para que o pesquisador pudesse compreender em profundidade a maneira com
que as pessoas organizam suas interações sociais. Em seu livro clássico Os argonautas do
pacífico ocidental, Malinowski (1976a), um dos fundadores da antropologia moderna,
descreve a etnografia como uma metodologia de interação: os antropólogos devem ficar com
os grupos estudados por longos períodos, se possível viver perto de seus lares, estar presente
nas atividades diárias, desde as mais simples às mais solenes, aprender a língua, e
cuidadosamente observar o que as pessoas dizem e fazem.

O advento da etnografia na antropologia foi acompanhado pelo surgimento da perspectiva


relativista19. Esta é uma postura do antropólogo, uma estratégia para se capturar o diferente
em maior profundidade, baseada na pressuposição de que a maneira com que nós
organizamos a nossa vida social e classificamos as interações humanas em nosso grupo não
pode ser considerada a única possibilidade. O relativismo cultural é relacionado à perspectiva
relativista e se refere a idéia de que elementos de uma cultura não são naturais e não podem
ser usados em termos absolutos para uma comparação entre culturas. O relativismo cultural é
a conseqüência do reconhecimento do historicismo e da variação entre as manifestações
humanas em populações diferentes, que implica considerarmos a cultura como um conceito
relativo a cada grupo. Assim, adotar esta postura requer que reconheçamos, por exemplo, que
a maneira como organizamos nossas interações sociais, em suas múltiplas dimensões
(econômica, religiosa, artística, política etc.), é própria de nossa cultura. Estas várias
dimensões em um outro grupo social devem ser apreendidas pelo antropólogo a partir de uma
interpretação de dentro da cultura estudada (perspectiva emic), na qual ele deve buscar
posicionar-se como um ‘nativo’. Deve, para isso, livrar-se dos seus próprios conteúdos e
cargas valorativas relacionadas a categorias como sistema econômico, religião, organização
política, entre muitas outras. De fato, a etnografia pode ser considerada um esforço de
observação participante, no qual o pesquisador busca inserir-se ativamente no sistema de
papéis vigente de maneira a viver os dilemas e as questões que o caracterizam.

19
É necessário diferenciar a postura relativista do relativismo. Enquanto a primeira diz respeito ao ‘fazer
antropológico’, o relativismo é uma ideologia científica ou uma teoria epistemológica que nega a existência de
verdades objetivas, independentes do observador. Em ética, o relativismo nega as regras morais e os valores
tradicionais (HILLMANN, 2001; BENEDICT, 1934).

386
A emergência da perspectiva relativista permitiu a construção de um referencial inovador até
então às ciências sociais. O relativismo cultural é uma perspectiva contrária ao etnocentrismo,
visão na qual se baseavam muitas teorias sociais anteriores à consolidação da etnografia como
método privilegiado a partir do qual o conhecimento antropológico poderia ser construído.
Adotar uma visão etnocêntrica de investigação social implica considerarmos nossa cultura
nativa como superior, a qual as outras culturas deveriam ser necessariamente comparadas.
Nos dias de hoje, o relativismo cultural é uma postura básica do fazer antropologia e, de
maneira geral, fundamental para a construção do nosso conhecimento sobre o mundo social.
De uma maneira geral, adotar a postura relativista na antropologia implica reconhecermos que
o ‘sistema de conhecimento’, ou o “sistema de relações sociais” – a cultura – que caracteriza
um grupo social deva ser apreendido em seus próprios termos, independentemente das
maneiras como nós organizamos nossas próprias categorias culturais, como o sistema de
parentesco e a política, por exemplo. É necessário entender como se manifesta esta cultura
‘estranha’ e qual é o significado e a relevância específica de suas manifestações, bem como
das relações entre elas. Ao reconhecer as condições históricas específicas e a variedade de
culturas como válidas no contexto mais amplo da humanidade, a postura relativista abre
espaço para uma comparação reveladora com nossa própria cultura, a partir da qual aspectos
considerados por nós absolutamente naturais passam a ser vistos como ‘alternativas’, haja
visto as configurações sociais também coerentes e típicas de outras culturas (HILLMANN,
2001; DAMATTA, 1987).

Com base nestas idéias, a pesquisa etnográfica empreendida em Albardão assumiu uma
abordagem indutiva. Apesar desta idéia suscitar controvérsias, a investigação deveria buscar
apreender o todo cultural, o contexto no qual os atores históricos estavam situados. Como
sugerem Rada e Velasco (1997, p. 32),

A pretensão que anima o trabalho de campo é a apreensão da totalidade. Esta recebe


nomes genéricos, globalizadores: o contexto, a história, a sociedade, a cultura. E
inclusive quando a investigação se dirige a algum tema específico ou a algum
problema concreto, sua compreensão exige a contextualização, ou ainda, a
identificação do conjunto de fatores ou elementos que nele incidem ou intervêm, e que
finalmente se revelam em extensão quase indefinida, como um conjunto estruturado,
como um todo.

Tratava-se, realmente, de um projeto de doutorado marcado por uma grande carga de


ansiedade: já em campo, eu não tinha uma noção clara dos objetivos específicos de minha

387
investigação, ou do que surgiria como “resultado final” de todo aquele esforço. Estes
objetivos assumiam uma natureza muito genérica, projetos de problemas que iriam definir-se
com base nas possibilidades ditadas pelo contexto. Ao definir o local e o contexto a ser
investigado, o referencial teórico de apoio citado no projeto de pesquisa era uma possibilidade
a ser confirmada posteriormente. Em especial, eu havia entrado em contato com as idéias de
Marshall Sahlins no final do ano de 2002, por ocasião de uma disciplina optativa que cursei
no último semestre de minha formação em Ciências Sociais. Neste momento, já havia
concluído o mestrado em Administração e me causava surpresa não ter ouvido falar deste
autor nestas outras rodas acadêmicas. Aparentemente, o formato geral do projeto era
adequado a uma discussão baseada em Sahlins, mas nada poderia ser afirmado antes de minha
inserção nas comunidades.

Assim, fui a campo com o objetivo de apreender o contexto cultural no qual o projeto
CEDEJOR havia sido implementado, e as inter-relações e influências mútuas entre o projeto e
este mesmo contexto. Neste sentido, pode-se considerar que os atores históricos envolvidos
com o projeto CEDEJOR estão inseridos em uma cultura, que pode ser conceituada como
uma ordem estrutural de significados que abrange e articula diversas dimensões da vida
coletiva, entre elas, a social, a econômica, a geográfica e a política. Esta cultura foi
historicamente construída e é hoje a base sobre a qual se constrói a sociabilidade na
comunidade local. Isto significa que, naquele contexto, os indivíduos interpretam a realidade
ao seu redor e se comportam diante dela com base nesta ordem de significados que impõe os
conceitos, os limites e as perspectivas à comunidade. Ao promoverem atividades educacionais
com os jovens da comunidade de Albardão, o CEDEJOR pode ser considerado um agente de
mudança desta ordem estrutural de significados – ou desta cultura. Inseridos nestas atividades
sociais, os jovens reunidos no CEDEJOR viviam experiências que indicavam a possibilidade
de reconstrução de sua inserção sócio-econômica. Por meio destas experiências coletivas, os
significados e conceitos que compõem esta ordem estrutural poderiam ser negociados, de
forma que os eventos vividos pelos grupos reordenassem a cultura. As famílias, por terem
contato indireto com as experiências vividas pelos jovens, acompanhariam-nos neste caminho
de re-significação de suas realidades imediatas. De fato, estas eram realidades apreendidas por
meio dos discursos dos dirigentes da ONG, por ocasião de contatos exploratórios, e que ainda
deveriam ser investigadas em profundidade.

No que diz respeito à inserção em campo, a pesquisa foi viabilizada a partir de negociações
com o Instituto Souza Cruz, os patrocinadores do projeto CEDEJOR. O contato com o

388
instituto formalizou-se através da área de RH da Souza Cruz em São Paulo, objeto de minhas
pesquisas para a dissertação de mestrado. Eu e meu orientador entramos em contato com o
núcleo Albardão em duas ocasiões, a primeira em julho de 2003 e a segunda em julho de
2004. Nesta segunda ocasião fomos acompanhados pela profa. Isabella Vasconcelos e pelo
prof. Gideon Kunda, que co-orientou esta tese no que dizia respeito aos estudos sobre cultura
organizacional. Durante estes dois contatos exploratórios encontramo-nos informalmente com
os coordenadores da ONG e com alguns dos jovens participantes. No primeiro instante, foram
debatidos o conceito de empreendedorismo e a sua aplicação no programa. Sendo o
desenvolvimento do empreendedorismo entre os jovens rurais a razão de ser do programa,
fez-se uma reflexão coletiva sobre o conceito de empreendedorismo adotado pelos dirigentes.
Segundo eles, o tema do empreendedorismo é crucial ao Brasil contemporâneo e,
particularmente, às comunidades carentes, pois os jovens de baixa renda, no contexto da
economia global que provoca o desemprego em escala crescente, necessitam de alternativas
para sua subsistência. Tais alternativas incluem mudanças de mentalidade e de
comportamento, voltadas para o associativismo pró-ativo e para a busca de negócio próprio
em substituição ao cada vez mais escasso emprego de carteira assinada. Tendo por objetivo
levar o jovem à exploração de sua propriedade de forma criativa e produtiva, o CEDEJOR
procura transmitir a eles conceitos de como lidar com a terra, avaliar a viabilidade financeira
de um investimento e encontrar formas de desenvolver projetos que não dependam de muito
capital.

Em uma segunda visita, um ano depois da primeira, foi discutida a interação do CEDEJOR
com a comunidade de Albardão. Notamos uma dinâmica bastante ativa, pois o CEDEJOR
conta com representantes dos jovens, dos pais destes jovens e das associações agrícolas da
região, recebendo o apoio da comunidade ao desenvolvimento de projetos que visam
promover o progresso da região, como a promoção da consciência ecológica, por exemplo. O
orçamento para projetos do núcleo busca satisfazer os interesses coletivos da comunidade. As
decisões de investimentos são tomadas com base nas demandas dos diversos grupos
representados na comissão que define o orçamento. Os jovens expuseram os motivos pelo
qual participavam do programa e o que dele esperavam. Em geral, estes motivos eram
relacionados à diferenciação do programa em relação à educação formal, à expectativa de
inserção na sociedade de forma a desempenhar um papel empreendedor, e ao acesso a formas
de desenvolvimento mais produtivas e promissoras de suas propriedades. Além disso, os
dirigentes e jovens expuseram suas experiências com o Projeto Fênix, que era implementado

389
naquele momento. Entre tais experiências, o projeto foi apresentado como o resultado da
mobilização comunitária em torno do CEDEJOR. De fato, tivemos acesso à dimensão do
discurso dos dirigentes nestes encontros, dimensão esta que se mostraria complexa e
contraditória posteriormente. Apesar de curtos, algumas categorias e signos culturais que se
tornariam extremamente relevantes à compreensão da problemática de campo surgiam no
contexto destes encontros. Entre eles, a “aprendizagem”, o “CEDEJOR”, a “mobilização
comunitária” e a “dependência”.

A minha inserção definitiva nas dinâmicas do projeto CEDEJOR iniciou-se no dia 24 de Abril
de 2005, e durou aproximadamente três meses, até o dia 26 de Julho do mesmo ano. No
decorrer deste período, vivi o cotidiano da nova equipe encarregada do projeto, que havia sido
recém contratada, e transferida, após a demissão do coordenador Eriton. De fato, testemunhei
um período de grande turbulência e agitação no núcleo, devido às resistências à nova equipe
encontradas na comunidade e aos problemas com a segunda turma de jovens, que havia
começado o programa há poucos meses. De fato, os problemas enfrentados pela segunda
turma eram um reflexo dos problemas da primeira turma, como retratados pelo relatório
etnográfico. O Instituto Souza Cruz, por sua vez, promovia mudanças fundamentais na gestão
e na visão pedagógica tradicional da instituição como resultado de uma nova postura frente à
autonomia da ONG. Durante os três meses, acompanhei os trabalhos da equipe do CEDEJOR
e do Instituto Souza Cruz também no Paraná e no Rio de Janeiro. Como não poderia ser
diferente, o meu período em campo caracterizou-se pela construção de laços afetivos com
diversos atores importantes ao contexto. Estes laços foram construídos à medida que eu
buscava inserir-me nos círculos sociais da comunidade. Alguns informantes foram muito
importantes por terem indicado e facilitado o mapeamento das relações sociais e dos
conteúdos culturais relevantes. Foram feitos aproximadamente 180 “contatos” não
estruturados, que duravam de 10 minutos a 5 horas. Na prática, estes contatos assumiram
formatos distintos: muitos podem ser formalmente considerados entrevistas
(aproximadamente 40), que eram marcadas (muitas delas não eram marcadas como
“entrevistas”, mas como “conversas”) e duravam, em alguns casos, de 3 a 5 horas; muitas,
entretanto, eram fruto dos encontros casuais que caracterizavam a dinâmica diária da inserção
em campo. Estes encontros aconteciam por ocasião de reuniões de jovens, festas, bailes,
eventos políticos, intervalos de reuniões administrativas, traslados por ônibus público, entre
muitas outras oportunidades. Nestes casos, as conversas eram muito informais e duravam
entre 5 e 50 minutos, sendo essencialmente relacionadas ao contexto ou aos fatos imediatos

390
que justificavam o encontro. Além destas entrevistas e conversas, os dados foram levantados
por meio da pesquisa histórica em arquivos, dinâmicas de grupo e, eventualmente,
questionários respondidos pelos jovens. Ao todo, o levantamento de dados gerou
aproximadamente 250 horas de arquivos de áudio e mais de 300 páginas de field notes, ou o
relatório de campo, inspecionado regularmente pelo orientador e co-orientador da tese. Por
meio deste documento, registrei os principais fatos e impressões obtidas no cotidiano junto
aos grupos, numa média de 4 páginas por dia.

Apesar de antropólogos clássicos terem sustentado posições divergentes, a pesquisa


etnográfica permite que se interprete a cultura de um grupo a começar pela investigação de
como seu sistema de valores é organizado e como isso influencia o comportamento da
coletividade (GODOY, 1995). Como afirma Smircich (1983), entre muitos outros, esta
abordagem metodológica gera um tipo de conhecimento subjetivo, já que este conhecimento
não é independente do observador. Diferentemente, na biologia, por exemplo, é muito mais
fácil o estabelecimento de relações objetivas entre pesquisador e o pesquisado, de forma a
termos um claro binômio sujeito (o pesquisador, que busca conhecer) – objeto (a realidade
que deve ser observada). Ao estudarmos baleias, por exemplo, não podemos imaginar seu
universo interior, não sentimos o que seria ser uma baleia, não podemos ser contestados pelas
baleias, que tampouco modificarão seus comportamentos por causa de nossas teorias. Nosso
conhecimento sobre as baleias é independente delas, é objetivo, e passa a ser uma espécie de
ponte entre a nossa realidade e a realidade das baleias. Diferentemente, a interpretação de uma
cultura é construída enquanto o observador interage com os observados e os significados
intersubjetivos são capturados. A subjetividade do conhecimento reside no fato de não existir
uma distância significativa entre o pesquisador e o pesquisado, distância esta capaz de gerar
relações ‘objetivas’ entre eles. Como colocou DaMatta (1987), há uma interação complexa
entre pesquisador e pesquisado que, apesar de suas diferenças, compartilham de um mesmo
universo das experiências humanas. Trata-se do binômio sujeito – sujeito, que caracteriza o
contato entre pesquisador e pesquisado, e que implica reconhecermos se tratar da construção
de uma interpretação possível daquela cultura, já que a compreensão de significados
intersubjetivos não acontece de uma forma neutra. A interpretação final é uma mediação da
relação sujeito-sujeito, sempre sujeita a contestações de indivíduos com visões diferentes.

No processo de interpretar uma cultura através de observação direta e participativa, Rada e


Velasco (1997) enfatizam os atos de descrever, traduzir, interpretar e explicar como partes
do desenvolvimento de um texto etnográfico, inteligível e homogêneo, a partir de dados de

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natureza heterogênea e permanentemente incompleta. Para estes autores, estes atos podem ser
vistos como processos sucessivos de preparação de dados, provenientes de diferentes
momentos, em diversos níveis de abstração. No entanto, eles são também, de certa forma,
processos inseparáveis, cujo objetivo é perseguir estruturas de significados que parecem
irregulares, inexplícitos, ou desconhecidos uma para a outra. O investigador deve fazer uma
conexão em alguma maneira, capturar a variedade de significados e os tornar accessíveis do
ponto de vista dos autores. Ao construir uma interpretação de uma cultura, Oliveira (2000)
nos fala sobre as principais habilidades de um pesquisador usadas no campo de pesquisa. Ele
enfatiza os atos de observar, escutar, e escrever como de extrema importância para se “fazer
antropologia”: “Enquanto ‘olhar’ e ‘escutar’ constituem a nossa percepção de realidade,
escrever torna-se uma parte quase indivisível do nosso pensamento, quando o ato de escrever
é feito simultaneamente ao ato de pensar” (OLIVEIRA, 2000, p. 31-32). Conforme o autor,
apesar destas habilidades serem a princípio familiares, a ponto de estarem além de qualquer
problematização, estas atividades assumem um papel particular nas ciências sociais,
especialmente na antropologia. Este caráter especial se torna evidente quando percebemos
que, através destas habilidades, construímos o nosso conhecimento. Oliveira diz que,
enquanto no olhar e no escutar nós conseguimos perceber, “será no escrever que o nosso
pensamento exercitar-se-á da forma mais cabal como produtor de um discurso que seja tão
criativo como próprio das ciências voltadas à construção da teoria social” (OLIVEIRA,
2000, p.18).

De fato, foi no escrever que a presente tese ganhou seu objetivo e seu formato final. Com base
nos dados levantados, a elaboração do relatório de campo desenvolveu-se através da
identificação, da interpretação e da comparação dos significados relevantes à cultura
analisada, significados estes que já haviam sido mapeados no decorrer da pesquisa de campo.
Assim, os signos “dependência”, “fumageiras”, “sistema integrado de produção”, “Santa Cruz
do Sul”, “CEDEJOR”, “jovens”, “tabaco”, “políticos”, entre muitos outros, foram
interpretados com base nas interações sociais documentadas, que revelavam seus conteúdos e
suas relações. Em especial, o processo de interpretação da cultura requeria a atenção às
evidências de inflexão conceitual, isto é, às transformações na ordem estrutural de
significados tradicional por meio da ação engajada dos atores históricos. O recorte empírico
desenvolvido nesta tese surgiu após o período de inserção em campo, por ocasião do
aprofundamento dos meus estudos sobre as idéias de Marshall Sahlins, que indicaram a
adequação e o potencial de contribuição teórica da análise do processo histórico empreendida

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nas páginas precedentes. Neste período, após o reconhecimento das particularidades e do
potencial do caso analisado, o insight fundamental à elaboração da tese da maneira como se
viu surgiu da intersecção entre meus estudos sobre cultura organizacional e meus
conhecimentos sobre as idéias de Sahlins. Tratou-se, efetivamente, de um feliz acidente. Se
algum trabalho já foi feito, resta ainda muito a fazer, o que certamente implicará um período
mais longo em campo. De qualquer maneira, os dados empíricos já coletados não se
esgotaram; ao contrário, é possível aumentar a sofisticação dos argumentos propostos com
base no desenrolar dos acontecimentos. Trata-se de um caso dramático, que culminou em
rebeliões de jovens, em traições e, finalmente, no suicídio do ex-coordenador Eriton, que
sofreu uma brutal morte simbólica após sua demissão da coordenação do programa.
Certamente, esta pesquisa ainda não se esgotou.

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